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rapazes do C o rin th ia n s, do G erm ânia, do A m ericano, do Palm eiras da Flores-
la... Aí, Caiu foi cam p eão jo g an d o co n tra o Santos — e ele foi cam p eão em
1932, 1933, 1934...
Namoro às escondidas
Rã à milanesa
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c id ad e com ercial, astúcia, h ab ilid ad e , claro q u e d e s la n c h a v a m logo. Agora, s u
p o n h o q u e os lib an eses ou sírios a n te c e d e ra m aos j u d e u s neste trab a lh o de
v e n d e r à p restaç ão — o u te n h a m sid o c o n c o m ita n te s , n ã o sei. E esse trab a lh o
teve u m m é rito m u ito g ra n d e p o rq u e , na realidade, foi o p rim e iro sistem a de
cap tação p ara o m erc ad o , de in tro d u ç ã o n o c o n s u m o de u m a faixa q u e estava
to ta lm e n te fora d o m ercad o . E x istem m u ita s p iad as so b re os v e n d e d o re s à p res
tação, m u ita h istó ria em q u e eles ap arec e m se n d o rec eb id o s na casa p o r u m
m a rid o de revólver na m ão, m as a v e rd a d e é q u e eles tra b a lh a ra m d u ro , e que
b o ta ra m m u ita coisa na m ão de se u s clientes: g u a rd a -c h u v a s , colchas, ro u p as,
m óveis... E que, n o com eço, eles n ão sabiam se q u er falar p o rtu g u ês, e e n tão se
m etiam em trap alh ad as colossais! E é aqui no Brasil q u e as m u lh e res e n tra m em
cheio n o trabalho fora de casa. É verdade qu e, n a P olônia, a m aioria das m u lh e res
tom ava co n ta das lojas, e n q u a n to os m arid o s se d ed icav am m ais ao culto religio
so. Mas, n a s c o n d içõ es em q u e v in h am para o Brasil, eram o brigados a e n tra r no
m ercado de trabalho, n ão só na loja co m o nas oficinas. Eu m e lem bro de que,
naq u ele tem p o , já havia notícia de alg u n s ju d e u s q u e ‘estavam b e m ’, co m o os
Tabacow. E que u m a das coisas q ue m ais foram c o m e n ta d a s n o s an o s 30, pelo
Bom Retiro ju d e u , foi o c asa m en to da filha do fam oso co m e rcian te .”
O mundo se transform a
Os tipos do bairro
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Alguns dias depois, ele verificou que ali havia várias olarias. Trabalhadores c
oleiros o levaram para conhecer o trabalho de cada olaria, tomando-se não só
oleiro como um arguto conhecedor do trabalho, Assim, falou com dona
Pietrina — e esta ao marido, e empregaram Pietro na olaria que o casal pos
suía. Pietro, com imensa vontade de trabalhar, esperto, ativo, conquistou um
bom lugar na olaria, tendo sido feitor-chefe. (Ele viera da Itália com algum
dinheiro, depois de ter vendido parte de sua herança a um patrício.)
Recordações do Castelo
Pietro, que fizera economia, e com algumas que possuía da venda da h eran
ça da Itália, adquiriu, em 1880, um lote de terreno na rua Solon até o Vale
do Tibagy, num total de onze mil melros quadrados. No terreno que fe
chou, construiu o forno de cozer tijolos, com pipas, cobertura para seca
gem de ti jolos, as telhas, casinhas para operários, cocheirão, carroças e tudo
o que era necessário para uma olaria, para abastecer os operários e famílias
de vizinhos. E logo tratou de constituir família.
Assim, nas andanças a cavalo, para a negociação da venda de madeira, ven
deu materiais também para o Seminário da Glória, nas margens do córrego
Anhangabaú, onde atualm ente está o prédio dos Correios de São Paulo. Ali,
conhecendo a irmã superior, falou, com meia-vergonha:
— Não há alguma moça que queira casar comigo?
— Sim, Pietro. Passe daqui a alguns dias, que vou verificar.
Dois dias depois, Pietro passou. E foi-lhe apresentada a moça escolhida,
com licença de casamento do reverendíssimo padre Chico, da paróquia lo
cal. Órfã de pai e mãe, a moça, dona Deolinda, estava ali internada, com sua
irmã Herculana, com ordem do governo da província.
E claro que eles casaram — e que foram felizes, e que desta união nasceram
Luiz Sérgio — o narrador da história — e Cristina Maria, que faleceu a 11 de ju lh o
de 1905, com 20 anos. A mãe, dona Deolinda, m orreu a 24 de m arço de 1894, num
domingo de Páscoa, no dia em que Cristina Maria nasceu... Agora, a casa dos Thomás
foi o primeiro sobrado do Bom Retiro, fez furor, há tanto tempo. Alcina, a filha de
seu Luiz, de 56 anos, não esquece o sobrado u m m om ento. O sobrado era conheci
do m uito antigam ente com o um castelo. O castelo do Bom Retiro.
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Era um sobrado de três andares
Todos achavam tão bonito!
Tinha uma biblioteca enorm e,
E com o era de esquina
Tinha sacadinha de ferro...
Q uatro sacadas
Era tão antiga
que o banheiro ficava lá fora,
com o m eu avô construiu.
Os amigos chegavam —
e não queriam ir embora.
A gente esperava o bonde na sacada.
Dava tem po de correr e pegar o “53”.
Tinha um a sala de piano.
E o piano era alemão.
A casa era nossa vida, nosso sol, nossa alegria.
Lá, casamos, até.
E tinha u m sótão estilo suíço,
com livros, objetos, coisas engraçadas.
Todo m u n d o queria ir para o sótão.
Mas era difícil subir,
tinha que pôr a mesa, e a criançada gritava
gritava e acabava subindo po r lá.
Sonho que a gente está na casa,
que m inha mãe está viva; e
cheia de alegria,
e que ela abre as janelas, os
trin q u in h o s de ferro, e
o sol entra — e a gente acorda.
Mas, hoje, se acordo, não estou mais lá.
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até a p orta da gente, c o h o m em das verduras... o h o m em da cabra, levando
leite de porta cm porta... e tinha o h o m em q ue entregava carne de porta em
porta... e no São Jo ã o a g en te c o m p rav a feixes de m ad eiras e as famílias estavam
sem p re na rua. E a tua infância, pai?
Pai: f oi m u ito ruim . Fiquei sem m ãe, tão cedo. Mas d ep o is estudei Direito.
Ia para a Faculdade a cavalo o u de tílburi — o nosso táxi, lá nos a n o s 10, 20,
p u x ad o a cavalos... E d ep o is veio a vida política do Bom Retiro. Não tinha
bairro com mais política do q ue o Bom Retiro. Q u a n d o veio a R evolução de
1024, os so ld ad o s q u e ria m usar nossa casa para colocar suas arm as. Não d e i
xei. E aí n ó s fugim os n u m a m ad ru g ad a, para Santo Amaro. Já em 1932, eu
estava n u m a festa, q u a n d o ch eg o u a notícia da Revolução. Fui logo para a Re
volução. E o Bom Retiro inteiro se alistou, q u a n d o so u b e q u e eu estava na
briga, q u e eu era o chefe do S eg u n d o D e stac am e n to da G u a rd a Civil... Eles
vieram aos sopetões... Era o Bom Retiro na guerra! A nossa casa era a filial do
q u artel-g en eral da Revolução de 1932 — ali no Bom Retiro. É, n ad a parecido
com 1924, q u a n d o nó s fomos, n aq u ele Ford velho, aq u ela retran ca braba...
E assim ficam eles falando, de vez em q u a n d o , em todas estas histórias do
Bom Retiro... E o velho lem bra de u m a velha cavalgada, nos a n o s 20, q u em
sabe?, ele, garboso, p ag an d o um p atacão de cobre para atravessar o V iaduto do
Chá... O u to m a n d o n u m a confeitaria do bairro u m a cerveja feita ali m esm o, na
G erm â n ia — q u e n u m desses acessos p a trió tic o s teve q u e m u d a r de nom e... E
a cerveja passou a se cham ar... Ah... “O rd e m e Pro g resso ” !
Cerveja O rd em e Progresso...
Puxa...
Coisas do Bom Retiro...
“Barrichinaaaa”
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Ele m e m o stra u m m ap a e vai d ize n d o q ue o Bom Retiro, co m o o c o n h e c e
m os até sua últim a divisão, tin h a p o r limites u m a linha que, p artin d o da José
Paulino e com eço da avenida T iradentes, seguia até o Rio T am an d u ateí; seguindo
o Rio Tietê até o com eço da p o n te da Casa Verde, seg u in d o pela avenida Rudge
até a linha férrea — esq u in a com a rua Solon — e re to rn a n d o p o r essa via férrea
até o p o n to de início (Estação da Luz-José P aulino-T iradentes). E n te n d era m ?
N a verd ad e, p ara ver o B om Retiro é p reciso m ais do q u e sab er os seu s
lim ites físicos, geográficos. A su a h istó ria se inscreve p o d e ro s a m e n te n o s seus
p réd io s, em q u e a m ão d o s h o m e n s to co u de várias form as. P o r q u ase to d o o
Bom Retiro, u m a arq u e o lo g ia d o s seu s p ré d io s vai d e sv ela n d o as d u a s parles
p rin c ip a is de s u a a v e n tu ra no sécu lo xx: neles se vê, a in d a, os m a n e iris m o s da
a rq u ite tu r a do c o m e ç o do sécu lo , q u e fascinavam os italian o s q u e os c o n s tr u í
ram . N a su a m etam o rfo se , q u e tra n s fo rm a o Bom Retiro a p a rtir d o s a n o s 30 —
q u a n d o ele a s s u m e d e fin itiv a m e n te o d e stin o de u m bairro com ercial, e q u a n
do m a rc a d a m e n te os italian o s d e ix a m de ser h e g e m ô n ic o s — , o bairro r e c u
so u -se a m a ta r o seu passad o . E as casas p a ssa m a ser, e n tã o , esta e s tra n h a fusão
de te m p o s — q u e se u n e , hoje, a u m a sp ecto m a ltra ta d o , em q u a se to d as elas.
S e g u n d o Jú lio B ernardi, “o bairro é m u ito an tig o , p o r estar ligado aos rios
T a m a n d u a te í e Tietê — e era o A n h e m b y de seu s a m ig o s h a b ita n te s, os in d íg e
nas. Mas esta p o rç ã o d e terra estava m u ito p ró x im a do c in tu rã o de colinas q u e
fo rm av a a P aulicéia d o s p rim e iro s f u n d a d o re s (ru a s Direita, São B ento, 15 de
N o v e m b ro ). N in g u é m deve, p o ré m , e sq u e c e r q u e o Bom Retiro estava s e p a ra
do d este n ú c le o c en tral p elo Vale d o A n h a n g a b a ú , c o m o rio do m e s m o n o m e ,
q u e d e ság u a n o T a m a n d u a te í, in d o este d e sa g u a r n o Tietê, f o rm a n d o a c h a m a
da V árzea do B om R etiro ”.
“O seu n o m e de Bom Retiro, p resu m im o s seja dado pelas m uitas chácaras ou
sítios q ue havia na região, cujos grossos vestígios ainda se po d iam observar no
com eço do século... Porém , com a construção da via férrea Santos-Jundiaí, em
m eados de 1850, com sua estação principal localizada na linha divisória (rua Mauá-
José Paulino), co m eço u verdadeiram ente a transform ação do bairro, m o rm e n te
com a abolição da escravatura, em 1888, e a construção do posto de triagem de
imigrantes, na hoje ru a Tenente, final da José Paulino, primitiva Imigrantes.
“S e g u n d o u m a o b ra oficial da Prefeitu ra de São Paulo, o bairro do Bom
Retiro o rig in o u -s e do lo te a m e n to de p o rç õ e s de sítios e de ch ác ara s o u tro ra
lo calizad o s e n tre a lin h a férrea da E. F. Inglesa e as V árzeas do Tietê e do
T a m a n d u a te í — Sítio do C arv alh o , C h á ca ra do Bom Retiro, C h á ca ra Dulley.
A s se n to u -se so b re co lin as de suaves declives, q u e in ic ia lm e n te se lim itavam
pelas lin h a s d e e n c h e n te s p e rió d ica s das várzeas c o rre s p o n d e n te s m ais ou m e
n o s à cota de 725 m e tro s de altitu d e.
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“Foi na década dc 1880-90 que se processaram o loteamento e sua urbanização,
época em que se intensificou a imigração européia, particularmente a de italianos.”
Recortes de jorn al
Sem luz e sem polícia — Com esse título refere a G azeta Liberal:
Temos recebido constantes reclamações sobre a falta de segurança indivi
dual, nos Campos Elysios e no bairro do Bom Retiro.
Por aquelles lados... nem gaz, nem urbanos.
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Além do mysterioso suicídio (?) do velho Charles, succedido ha irês dias,
ainda conta se que às sete horas de um a das últim as n o u tes passadas, ao
sahir da casa de família de que é criada, foi agarrada e violentada brutam ente
um a moça, de nacionalidade allemã. O attentado foi com m ettido por dous
estrangeiros, que não p u d eram ser reconhecidos.
As chácaras próxim as são invadidas, m esm o à luz do dia, e não ha repulsa
possível, porque os proprietários procuram , e com razão, evitar conílictos
desagradáveis.
Para attrahir as vistas da polícia já bastava por alli a proxim idade de um
depósito de immigrantes.
A som bra do facto seja-nos lícito addicionar reclamos análogos. Por exem
plo, sem luz e sem polícia anda ha m uito o bairro formado pelas ruas João
Theodoro, Dutra Rodrigues e outras.
No m esm o sentido já tivemos instantes queixas do florescente bairro do
Cambucy.
A cidade cresce e cresce de m odo espantoso, entretanto que os governantes
policiaes, provinciaes e m unicipaes ainda p reten d em servil-a com os recur
sos velhos e insufficientes.
Substituição g lo n o s a
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Um dia resolveram abrira rua e m eueram mãos á obra, mas a polícia interveiu
e prendeu os obreiros daquelles serviços de utilidade publica. O caminho
estava aberto.
O governo provincial m andou fechal-lo, porque se tratava do jardim sob
sua administração.
Com certeza vão gastar centenas de mil réis para daqui a pouco derrubarem
de novo o muro.
Um acto dc camara nos convence de que ella julga ainda necessaria a rua,
m andou intim ar a Com panhia Ingleza para retirar do Largo os armazéns
provisorios que levantou com licença e po r tempo determinado.
Estando findo o praso, a camara quer o local livre.
H possivel, porém, que o presidente da província não pense do mesmo modo e
que tenha idéia de construir alli, ouiros armazéns e sem caracter pro viso ri o. Mas
como temos ainda eleições, de certo não ha tempo para se cuidar do assumpto.
Não chegou o m om ento psychologico da empreza de armazéns alfandegados.
Resta saber si elles ahi ficaram bem collocados.
A posição é boa, mas talvez haja melhores e de mais espaço.
Não será de adm irar que os m oradores do Bom Retiro percam o seu esforço
de picareta e tenham de se contentar com as sahidas actuaes. C ortando o
jardim para sahir no largo da Luz, só ha possibilidade de uma estrada de
ferro aérea como aquella do Rio que o senhor André Rebouças m ostrou ser
effeito da febre bancaria.
O r g a n iz e m os m o r a d o r e s d o Bom R etiro a c o m p a n h i a , e s c o lh a m
incorporadores entre os amigos do governo e depois peçam garantia de
juro, quando m enos para haver mais um lugar de engenheiro fiscal.
Eis ahi o meio. Façam isto e terão fácil sahida, melhor, mais arejada, de
vista mais bonita que a rua passando pelo jardim.
O canudo póde ser um ponto de apoio para a nova linha.
Oh! uma estrada de ferro séria em São Paulo, como ha de ser im ponente e
glorioso. Do Bom Retiro ao Ypiranga — tal deve ser o percurso para cobrar
mais frete.
Mãos á obra, m oradores do Bom Retiro!
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E foi n esle tem p o , lá e m 1880, q u e o b a irro c o n h e c e u u m do s seus p e rs o n a
gens m ais falados: o velho F ra n co , q u e c h eg o u a São P au lo em 1880, e foi tirar
areia do claro Tietê. E este s e n h o r Stefano F ra n c o ficou fam oso p o r tão b e m
fo rn ecer areia p ara as olarias da cidade... e só m o rre u em abril de 1953... q u a n
do faltavam p o u c o s m eses p a ra c o m p le ta r cem anos...
E o circo chegou
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com o c o p in h o na m ão,
até os vaqueiros,
perto da Várzea...
(Da rua C ristina T h o m á s p ara baixo,
q u a n to s estábulos havia!)
Mas, ai dos leiteiros:
se colocavam u m p o u q u in h o d a g u a no leite
e os fiscais da Prefeitura desco b riam ,
todo leite era jo g a d o fora.
(O s velhos de hoje fazem piada...
Q u a n to leite tem na água que to m a m o s?)
E n o s lim ites do b airro, q u a n ta s ig u arias n ã o se co m iam ? Era o v in h o
típico da Itália, da E sp a n h a , de P o rtu g a l — tu d o im p o r ta d o — e q u e era
v e n d id o nas fam osas cartolas... Barris im en so s, n o s q u a is os teu s h a b ita n te s ,
Bom Retiro, iam c o lh e r g arrafas e garrafas, litros e litros. Q u a n to v in h o n ã o se
b e b e u em teu te rritó rio , Bom Retiro? E q u a n to b a c a lh a u , e q u a n ta pizza, e
q u a n ta m a c a rro n a d a n ão se c o m e u ? E q u a n ta s festas n ão se fizeram na Soci
ed ad e de Arte D ra m á tic a Luso Brasileira, q u e foi criad a n o m arco do sécu lo , a
13 de m aio de 1900? E ram c e le b rid a d e s do m u n d o in teiro , q u e p o r lá p a ssa
vam — e os m e lh o re s a u to r e s n acio n ais, c o m o os g ra n d e s L eo p o ld o F róes ou
O d u v a ld o V ianna; e ta m b é m os g ra n d e s p o lític o s d o s a n o s 20, 30, 40... E as
m a tin ê s d o s teus m e n in o s , n o Teatro M arconi ou n o c in e m a Bom Retiro, com
os se riad o s d o s d o m in g o s à tarde? E os bailes, as festas de se m p re , no Luso ou
no O lím p ic o — e te rn a d is c u ss ã o qual c lu b e é m elh o r, q u e a tra v e sso u tan to s
carn av ais e chega a in d a h o je n as c o n v e rsa s d o s m u ito velhos? Pois n ão é com
tan to o rg u lh o q u e seu J ú lio B ernardi lem b ra a in d a q u e em “ 1935 o L uso o b
teve o p rim e iro p rê m io de r a n c h o s e fez s e n tir a su a p u ja n ç a ta m b é m no
p in g -p o n g , n u m c a m p e o n a to da G a z e ta ”... (M em ó ria: jo g o de esp elh o s. O
q u e faz u m h o m e m g u a rd a r e x a ta m e n te estas le m b ra n ç a s ? ) E os teu s rap azes
vestiam tão im p e cá v eis te rn o s de c asim ira (A u ro ra )... n o s fo o tin g s d o s d o
m in g o s na Jo sé P a u lin o , r u m o ao J a r d im da Luz... Ir e vir, e s e m p re de c h a p é u
p a lh e ta na cabeça... E o fo rm id áv el so rv e te da c o n fe ita ria Elite, q u e era de
u n s gregos... E a C o n fe itaria C astelõ es, ali da Silva P in to com a Jo sé P au lin o ,
o n d e a n tig a m e n te se fabricavam os cig arro s C astelões.
Lembranças de Caiu
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do Bom Retiro, d o s ú ltim o s c in q ü e n ta an o s, o u m ais, não diz q u e “q u a n d o
en tra no Araçá, até p e n sa q u e está n u m a cid ad e ita lia n a ”?
P o rq u e o q u e é incrível no Bom Retiro é isto: h o m e n s c o m o C arlos G iusti
— o C aiu — c a m in h a m p o r su a s ruas, e são c o n h e c id o s p o r u m a p arte d o s seus
h a b itan te s, h á q u a re n ta , c in q ü e n ta anos... Tudo isto n u m a cidade c o m o São
Paulo n ão é m u ito e stra n h o ? De vez em q u a n d o C aiu vai até a ja n e la de seu
a p a rta m e n to , espia os lad o s da V árzeas (q u e d e sa p a re c e u q u a n d o veio a M argi
nal) e diz q u e ain d a lá está a Várzea.
Puxa!
E ele a in d a jo g a bola. 68 anos! N o m ín im o u m a vez p o r se m a n a , pega c h u -
teiras, m eias, calção e vai p ara u m c a m p in h o de areião d e b aix o da P o n te da Vila
G u ilh e rm e , jo g a r bola, a lg u m as vezes com seu am igo Paulo. O s dois j u n t o s
s o m a m 136 anos.
— A m ais an tig a d u p la em ação n o futebol m u n d ia l.
Ele ficou m e reclam ando: se fosse inglês, co m o este tal de sir Stanley M athews,
q u e m não iria falar dele? O u vocês sabem de o u tra ala esq u erd a em atividade,
com 136 anos? Jo g a colado na p o n ta esquerda, nas b o rd as do cam po, com o os
antigos p o n ta s jogavam . N ão corre sem n ecessidade, m as corre — e os ou tro s
v eteran o s e alguns rapazes n a d a tem a reclam ar de suas cru zad as precisas.
E ele m e c o n to u q u e foi criad o n a ru a A n h aia, p e rto da Vila C o n ceição , e ali
a t u r m in h a se re u n ia e jo g av a bola. Só p a ra v a m q u a n d o v in h a m as carro ças q u e
se g u iam p a ra as serrarias d o s C a m p o s Elíseos... M e n in o s do Bom Retiro. Iam
jo g a r bola n o C olégio Sagrado C o ração de Jesu s. Iam ao catecism o só para
jo g a r bola. M e n in o s d an ad o s! O c ateq u ista era o s e n h o r M en eses e os filhos
dele ta m b é m jo g a v a m bola. Tirava-se p a r o u ím p a r — e co m eçav a o b a te-fu n -
do, até q u e o c ateq u ista gritava:
— M en iiin o o o o sss!
“V am os m e n i n o s .” E b atia p alm as. Todo m u n d o co rria para o b e b e d o u ro . E
iam para as a ulas de catecism o. G a n h a v a m u m c u p o n z in h o e, n o fim do ano, os
m e n in o s q u e m ais c u p o n z in h o s tivessem g a n h a v a m presentes: sap ato , meia,
calça de b rim . Mas, q u a n d o tin h a m ais o u m e n o s 17 an o s, ele e m ais q u a tro
rap azes do O lím p ia foram jo g a r n o Palestra Itália.
— Vocês c o n h e c e m o jo g o .
Isto tin h a m o u v id o d o p a d eiro A fonso, do signore Felício, p a le strin o s ro
xos. Foi com os o u tro s rap azes d o B om Retiro... “e to m a m o s c o n ta do cam po.
N ão tin h a p ro b lem a. F o m o s jo g a r no extra. E em 1932 passei p ara o s e g u n d o
q u a d ro , q u e foi c am p eã o jo g a n d o n u m c a m p o o n d e está o Tietê (o Tietê não
existia — e to d o o jo g o da m e m ó ria destes h o m e n s passa p o r u m tem p o e p o r
u m espaço q u e m u d a r a m tan to !). Aí p o r o n d e corre o rio, c o rria m an tes os
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rapazes do C o rin th ia n s, do G erm ânia, do A m ericano, do Palm eiras da Flores-
la... Aí, Caiu foi cam p eão jo g an d o co n tra o Santos — e ele foi cam p eão em
1932, 1933, 1934...
Namoro às escondidas
Rã à milanesa
318
“T in h a d u a s v aletas q u e v i n h a m d o c a m p o de aviação. E ra u m a ru a q u e
v in h a d e S a n ta n a , e q u e ch eg av a à V árzea. O b a r q u i n h o e n tra v a nas v aletas, e
seguia. Era só b o ta r u m farol de u m lado e d o o u tro . Era ir r e m a n d o e as rãs
fisgando. D e p o is, era a tra v e s s a r p o r b a ix o da p o n te e voltar. Até 1941, C arlo s
G iu sti esteve n e sta s p escarias. D e p o is c o m e ç o u a g u e rra . C o m e ç o u este m e d o
do p e sso a l; m e d o d as b o m b a s . Iam b o m b a r d e a r u m h a n g ar? U m dia de 1941.
U m a n o ite.
Q u a n d o estava n o m eio do c a m in h o p ara p egar rã, o so ld a d o a p o n to u o
carab in o te.
— E sto u p e g a n d o rã, qual é o p ro b lem a? — falou Caiu.
— M as é pro ib id o .
— N u n c a n in g u é m m e in c o m o d o u . Faço isto há tan to s anos.
— Agora, a o rd e m é atirar. E o m u la to q u e e n tra à m e ia-n o ite, não d iscu te:
atira.
— O ra, m e u n e g ó cio é p e g a r rãs. A lg u m a coisa devo fazer n a vida, não?
M as se o neg ó cio é assim , p o r causa da guerra... M u ito obrig ad o ... N ão vou
ficar até a m eia-n o ite. M as se p u d e r avisar o seu colega...
Os teu s r a p a z e s n ã o te e s q u e c e m , Bom R etiro. N ão e s q u e c e m n e m m e s m o
os la m p iõ e s a gás, q u e d e s a p a r e c e r a m n o c o m e ç o d o s a n o s 30, q u a n d o a Light
c h e g o u ; n ã o e s q u e c e m a n e b lin a , a g a ro a q u e caía em 1935, 1936 q u a n d o
c h e g a ra m as p r o s t i tu t a s n o s furgões da p o líc ia d e A d e m a r de B arros, o gover-
n a d o r- d ita d o r , e fo ram jo g a d a s , p e la d a s , n u i n h a s , n a s tu a s ru a s — a A im o rés,
a Itab o c a, a R ibeiro de L im a — p a ra e s p a n to , p a ra h o r r o r d o s ita lia n o s, q u e
fu g iram d o e sc â n d a lo de ter a z o n a n a s tu a s e n tr a n h a s . Infelizes a n o s 30! Foi
p o r aí q u e a N i t r o q u ím i c a de São M ig u e l c o m e ç o u a m a ta r as traíras, os
la m b a ris, os p e ix e s do teu rio.
Aí, u m certo Bom Retiro co m eçav a a m orrer.
T e m p o II
O bairro de Szm ul, de Isaac, de Jacob, do bcigale, do aren q u e, das dez sinagogas.
U m dia, o B om Retiro ita lia n o c o m e ç o u a re c e b e r os j u d e u s . Isto foi p o u c o
d e p o is do c o m e ç o do sé c u lo m as , p o r a lg u m a s d é ca d as, d u a s , três, o “ju d e u "
n e m era b e m c o n h e c id o . Era C h a m a d o d e “ru s s o da p r e s ta ç ã o ” . E to d o s era m
“r u s s o s ” , os p o lo n e s e s , os da B essarábia, da U c râ n ia — o u até os ru sso s! C o m
estes im ig r a n te s , c h e g a v a m u m a n o v a religião, o p a la v re a d o iíd ic h e, alegres
c a n ç õ e s hassíclicas, a lg u n s r e v o lu c io n á rio s , u m a tra n s fo rm a ç ã o n a in d ú s tr ia
p a u lis ta , e e stes tip o s q u e e s p a n ta v a m seus freg u eses, v e n d e n d o
p a rc e la d a m e n te “p a ra g e n te q u e n e m c o n h e c i a m ”...
319
Um dos prim eiros barbeiros ju d e u s do Bom Retiro foi Szmul Sajwel Wajzfeld,
que ainda c o n h ec eu o Bom Retiro d o s lam piões. Ele leve u m a barbearia na rua
Prates, com d u as cadeiras, que recebia m u ito s patrícios — com os quais podia
ao m en o s falar, p o rq u e não sabia u m a palavra de p o rtu g u ês, no co m ecin h o .
Hoje, ele ainda tem um a barbearia na Ribeiro de Lima; c h eg a n d o aos 80 anos,
veste o avental branco, m as não se arrisca a c o rtar cabelos, m u ito m en o s a fazer
a barba dos fregueses.
Szmul não seria famoso no Bom Retiro só po r sua arte com a tesoura ou a
navalha. Lá na aldeia d e ja m o w , na Polônia, de onde veio, ap ren d eu , com o pai,
m uitas coisas... O velho Wajzfeld en sin o u a ele e aos quatro irm ãos coisas m uito
diferentes. Todos eram músicos, barbeiros e fotógrafos. Se ele, d u ra n te os dias,
era barbeiro, podia ser, em noites especiais, músico. Violinista de alegres canções
folclóricas dos ju d e u s da Europa O riental, b rilh o u em jantares e c asam entos com
a O rquestra que criou (Samuel e sua O rq u estra), q ue se aventurava até pelos
tangos, valsas e sambas.
A m úsica é coisa do passado. Há três anos, o velho Szmul v en d eu seu violino.
Isaac partiu
320
Velho Leibe, o gaúcho...
321
tidade da co m id a do Jaco b , de seu pão preto, de su a s azeitonas, de seus peixes
d efu m ad o s, é sem pre lem brada pelos j u d e u s p io n eiro s do Bom Retiro.
Mas, hoje em dia, no Pletzale, os v e lh in h o s gostam de b o ta r um p o u c o de
m aldade nestas rem iniscências. Dizem, p o r ex em p lo , q u e u m patrício, c h e g a n
do do interior, foi ao Bar do Ja co b — e falou ao p ró p rio J a c o b q u e estava com
v o n tad e de co m er u m peixinho...
Mas, q u a n d o co m e ço u a comer, estrilou.
— Mas, Jacob, este peixe não está bom ... E eslava tão b o m , na se m an a
passada...
— Pois eu te j u r o q u e é o m esm o peixe...
Aos d o m in g o s, p rin c ip a lm e n te se faz sol, eles vestem os m elh o res ternos, e
às nove da m a n h ã vão para o Pletzale. O Bom Retiro é o ú ltim o lu g ar de São
Paulo em q ue m u ito s h o m e n s u sam c h a p é u s — co stu m e , q u ase u m ritual para
os velhos j u d e u s da E u ro p a O riental. O Bom Retiro tem até u m a fábrica de
b o n é s — p o rq u e eles tam b ém g ostam de belos bonés. N o Pletzale, eles falam de
negócios, falam de política, lem b ram velhas h istórias do Bom Retiro, do s te m
pos da E uropa, do s c am p o s de c o n ce n tra çã o nazista (p o r o n d e u m ou o u tro
p a sso u ), e ficam m u ito n erv o so s q u a n d o a ch am q u e Israel passa p o r algum
perigo — p o rq u e q u ase to d o s passaram p o r p erseg u içõ es na E u ro p a e se n tem
Israel co m o u m a espécie de lar ideal para os ju d e u s . M istu ra m iídiche com
p o rtu g u ê s, e falam g ritan d o . G esticu lam e ficam v e rm e lh o s e te rm in a m a c h a n
do e n g raçad o tu d o o q u e a co n tece n o s d o m in g o s do Pletzale. “Isto aqui é a
nossa o n u ”, dizem , irô n ic o s c o m o os j u d e u s sab em ser. Mas n e m to d o s os d o
m in g o s são divertidos. De vez em q u a n d o , quase s e m p re pelo M echalle, v e n d e
d o r de giletes, e “R ep ó rter O s s o ” do Bom Retiro (em alusão ao fam oso p ro g ra
m a de notícias “R epórter E sso ”), eles ficam s a b e n d o q u e u m deles foi in te rn a d o
no Lar d o s Velhos J u d e u s , na Vila M ariana, p o rq u e, porq u e... (Q u a n ta s razões
levam u m velho a ser in te rn a d o ? ) O u en tã o q u e u m deles m o rre u , e p asso u
pelas m ão s do velho Leibe — fatalidade? E o Pletzale, de u n s cinco a n o s para
cá, está cada vez m ais vazio.
Dizem que alg u n s j u d e u s q u e era m do Bom Retiro agora estão se r e u n in d o
em H igienópolis, p e rto da Praça B uenos Aires. Ali é u m novo Pletzale?
Duas saudades
322
p e río d o p o ste rio r à G ra n d e G u e rra, q u a n d o m u ito s p a trício s c o m e ç a m a vir
d o s h o rro re s da E u ro p a, e o Bom Retiro j u d e u a m p lio u -s e e x tr a o r d in a r ia m e n
te, e o Pletzale b r ilh o u c o m o n u n c a . E m b o ra as co n v ersas, em 1946, 1947,
1948, fossem tão tristes: e ra m relatos so b re os c a m p o s de c o n c e n tra ç ã o , o n a
zism o , os p a re n te s e os am ig o s m o rto s , p o d e ria ter-se n otícia de coisa p ior?
M as há u m território c o m u m nesse relatos do passado do Bom Retiro, que
em erge de ju d eu s q u e foram crianças no bairro, nos an o s 30. “Todos nó s éram os
filhos de im igrantes p o b re s“ — co n ta o intelectual Jaco b G u i n s b u r g — , ue fomos
ig u alm en te criados n a rua, p e n d u ra d o s nos b o n d e s, c o rre n d o pelas ruas, jo g a n
do bola no s cam p in h o s, na várzea, o n d e b rin cá v am o s e brigávam os, e q u a n to ! ”
Os filh os de Meneghetti
“A briga era para valer, e n ão era só a soco; tam b ém brigávam os com ronquei-
ra, u m a arm a q u e era feita com cápsulas deflagradas de fuzis da Revolução de
1924 — p o rq u e a R evolução de 1924 foi ali — e s o b ro u u m a q u a n tid a d e im ensa
de cápsulas deflagradas e tam b ém p o rq u e o q uartel da Força Pública era logo ali,
n a avenida T iradentes. Em 1930, p o r ex em p lo , g a n h a m o s pentes de bala dos
soldados... a gente, então, tirava a p o n ta, fazia u m talo na cápsula, socava pólvora
e sal, e q u a n d o íam os caçar p ú n h a m o s b o lin h a s de c h u m b o . Mas a o u tra m an eira
de fazer isto, q u e era m ais perigosa, era com cano de g u arda-chuva. Aí, a co n teci
am desgraças. Eu m e sm o vi u m m e n in o p e rd e r dois dedos. Porque, é claro, a bala
de fuzil ag ü en tav a a d eto n ação , e o cano do g u ard a-ch u v a, n ã o .”
As tro c in h a s — os b a n d o s de m e n in o s do Bom Retiro — re u n ia m g uris
italian o s e ju d e u s . N a q u ele Bom Retiro, tu d o parecia possível. “Lá o n d e eu
m o r a v a ” — lem b ra Ja c o b G u i n s b u r g — “e lá na e sq u in a da ru a A m a zo n a s com
a G u a ra n i, eu era v izin h o d o s d o is filhos d o fam oso lad rão ro m â n tic o , G ino
M e n eg h e tti, c h a m a d o s S p artacu s e L e n in e .”
(São P aulo in te ira a c o m p a n h a v a as p ro ez as de G in o M en eg h etti, q u e se
dizia ter p e rn a s de m ola, q u e lhe p e rm itia m c h eg a r a q u a lq u e r lu g ar q u e q u i
sesse... E ele ro u b av a as m ais finas m a n s õ e s e fugia n a s m ais ro cam b o lescas
p erip écias de q u a lq u e r cárcere... E era o R obin H o o d de São P aulo — era isto
q u e se dizia. Mas o n d e se falava m ais de G in o M e n eg h e tti, se n ão n o s bairros
italianos, c o m o este Bom R etiro?)
O b a n d id o n u n c a aparecia p a ra ver os filhos — n e stes a n o s estava c o n fin a
do a u m a solitária e g ritava, à n o ite, p a ra q u e todos, policiais e b a n d id o s , o u v is
se: “Io so n o u n u o m m o . ” ( “Eu s o u u m h o m e m .”) Mas, lem b ra G u in sb u rg ,
“cada vez q u e ele era ju lg a d o , era u m a festa. A g e n te sabia cio ju lg a m e n to p o r
q u e os filhos saíam to d o s e n ca p elad o s, para ver o ju lg a m e n to d o pai.
323
“Iam m u ito chiques, a rru m a d o s pela avó, um a s e n h o ra italiana severa, que
cuidava deles m u ito bem . O fato de serem filhos do M eneghetti não os abalava:
eram m e n in o s co m o os outros."
No com eço dos a n o s 30, as características ju d aica s ainda não tin h a m se
a c e n tu a d o no Bom Retiro. O n ú m e r o de im igrantes c o m e ço u a crescer d o s anos
30 para a frente, e cresceu m u ito ao ap ro x im ar-se a g u erra — e mais ainda
dep o is da guerra. In d istin ta m e n te , os m e n in o s j u d e u s e italianos eram a p a ix o
nados p o r futebol, isto é, pelo C o rin lh ia n s e pelo Palestra Itália. “Mas aí havia
u m a p e q u e n a d istin ç ã o ” — diz G u in sb u rg . “Q uase to d o s os m e n in o s ju d e u s
eram co rin tian o s, e n q u a n to quase todos os italianos eram do Palestra. Mas,
neste tem p o , no sso s pais eram c h a m a d o s m esm o era de 'ru sso s d a p restação ’. E
só com o co rrer dos a n o s 30, com o in teg ralism o no Brasil, com a su b id a de
H itler na A lem an h a etc., é q u e c o m e ço u a se falar m ais no ‘j u d e u ’. Afinal, estes
m e n in o s to d o s do Bom Retiro eram iguais. Iguais e tre m e n d o s .”
“Na rua em q u e eu m o rav a — a A m azo n as — havia casas m elh o res e casas
m ais pobres. M in h a tia era u m a m u lh e r m ais d o q ue rem ediada. M eu avô veio
para o Brasil antes da g u e rra de 1914; ele faleceu e ela m a n tin h a o resto de sua
fortuna. E ntão, nó s m o ráv a m o s nessa casa com ela. Era u m a casa e n o rm e , com
u m q u in ta l im en so , enfim , corno essas casas antigas, tão gostosas. Ao lado de
nossa casa, estava u m c o n ce ssio n á rio do serviço de re s ta u ra n te Paulista. Era
u m h o m e m rico, e o filho dele era m édico. O filho dele b rincava co n o sco e m
b o ra tivesse u m status diferente. E ao lado estavam os filhos de G ino M eneghetti,
e na frente u m sapateiro, e, bem perto, m o rav a u m h o m e m q u e trabalhava na
Estação da Luz co m o carregador. E ntão, essa era a co m p o s iç ão de nossa rua... E
a p a rtir de 1931 ch eg a ra m os litu an o s, q u e foram , em su a m aioria, m o ra r em
porões, q ue tin h a m u m a s ja n e lin h a s q u e d av am para as r u a s .”
Análise da comunidade
324
c id ad e com ercial, astúcia, h ab ilid ad e , claro q u e d e s la n c h a v a m logo. Agora, s u
p o n h o q u e os lib an eses ou sírios a n te c e d e ra m aos j u d e u s neste trab a lh o de
v e n d e r à p restaç ão — o u te n h a m sid o c o n c o m ita n te s , n ã o sei. E esse trab a lh o
teve u m m é rito m u ito g ra n d e p o rq u e , na realidade, foi o p rim e iro sistem a de
cap tação p ara o m erc ad o , de in tro d u ç ã o n o c o n s u m o de u m a faixa q u e estava
to ta lm e n te fora d o m ercad o . E x istem m u ita s p iad as so b re os v e n d e d o re s à p res
tação, m u ita h istó ria em q u e eles ap arec e m se n d o rec eb id o s na casa p o r u m
m a rid o de revólver na m ão, m as a v e rd a d e é q u e eles tra b a lh a ra m d u ro , e que
b o ta ra m m u ita coisa na m ão de se u s clientes: g u a rd a -c h u v a s , colchas, ro u p as,
m óveis... E que, n o com eço, eles n ão sabiam se q u er falar p o rtu g u ês, e e n tão se
m etiam em trap alh ad as colossais! E é aqui no Brasil q u e as m u lh e res e n tra m em
cheio n o trabalho fora de casa. É verdade qu e, n a P olônia, a m aioria das m u lh e res
tom ava co n ta das lojas, e n q u a n to os m arid o s se d ed icav am m ais ao culto religio
so. Mas, n a s c o n d içõ es em q u e v in h am para o Brasil, eram o brigados a e n tra r no
m ercado de trabalho, n ão só na loja co m o nas oficinas. Eu m e lem bro de que,
naq u ele tem p o , já havia notícia de alg u n s ju d e u s q u e ‘estavam b e m ’, co m o os
Tabacow. E que u m a das coisas q ue m ais foram c o m e n ta d a s n o s an o s 30, pelo
Bom Retiro ju d e u , foi o c asa m en to da filha do fam oso co m e rcian te .”
O mundo se transform a
Os tipos do bairro
325
rias dos mais velhos é sem p re um lugar em que eles p o d ia m se se n lir lão bem...
U ma parte do m u n d o do passado havia atravessado o o ceano com eles. A lguns
o rto d o x o s an davam pelo Bom Retiro com seus trajes negros, suas barbas lo n
gas — e os guris italianos não p o d ia m d eix ar de rir. Feio era o dia de m a lh a r o
Ju d as. Inevitavelm ente p o d ia haver b aru lh o . Às vezes, havia.
Mas nas ruas do Bom Retiro, os grilos dos vendedores de iguarias italianas se
co n fu n d iam com os de tipos m u ito judaicos, com o o v e n d ed o r de beigale, que às
três da tarde partia da José Paulino e chegavam à Santa Ifigênia, sem pre gritando:
— Beigale! Beigale!
Este d o cin h o de sem en te de papoula anim ava o p obre do v e n d ed o r à presta
ção ou o alfaiate ou o m otorista de táxi ou os agitados carregadores de pacotes —
todos eles ju d e u s — que reencontravam no beigale u m sabor secular e familiar.
Mas tam b ém era c o m u m se e n co n trar o tecelão ju d e u , ou o sapateiro ju d e u que
passavam o tem po cantarolando m u siq u in h a s de suas aldeias (com o era o caso
de Haskl). E havia ainda os q ue trouxeram técnicas novas para a in d ú stria da
m alharia, os d o n o s de padarias e p e q u en o s em pórios, e tantos tipos mais...
Eliezer Levin evoca, num livro de crônicas sobre o Bom Retiro, histórias e tipos
do baitTo em que o seu lado ju d eu foi crescendo, pelos anos 40. “Devo a Reb Shulem ”
— diz Levin — “os primeiros rudimentos da Bíblia. A imagem ficou-me como a de
alguém muito íntimo dos personagens daquele livro sagrado”. Red Shulem não se
limitava a traduzir fiel e secamente o texto hebraico: intercalava longos comentários,
belas histórias, ricas descrições; alçava do Bom Retiro aos longínquos ermos da Ásia,
num cenário onde viviam e sonhavam os patriarcas Abraão, Itchac e Iacoov.
— D ebaixo de u m céu co alh ad o de estrelas, eis o ancião h e b re u a c o n te m
p lar a gran d eza de D eus e a o u v ir u m a voz q ue lhe su s su rra v a aos o u v id o s que,
entre ele e o C riador, havia u m p acto eterno. “O lh a as estrelas se p u d e re s contá-
las. E disse-lhe: Assim será a tua s e m e n te .”
Suas palavras desfiavam com suavidade, faziam -nos e sq u ec er de q ue está-
vam os n u m a sim ples sala de aula.
Ao c o n trá rio do s d em ais m estres, n ão usava o “m é t o d o ” de b a te r (...) Reb
Shulem m orava não m u ito longe, n u m miserável casebre, u m c o n ju n to gem inado
su jo de pátina. E m igrara da Polônia havia alg u n s anos. Sabe lá D eu s com q ue
sacrifício p ro cu ra v a adaptar-se ao novo estilo de vida.
N o p ercu rso diário de casa para a escola, sua figura original atraía a atenção
d o s m o le q u es q u e se p u n h a m a persegui-lo. O cap o te e n o rm e , o ch ap e u zã o , a
b arba eram n o v id ad es para eles.
— Lá vai o j u d e u , ladrão de crianças — gritavam .
Red S hulem ouvia-os sem c o m p reen d er. A lguns a d u lto s a c o m p a n h a v a m as
risotas dos m en o re s e lhe a p o n ta v a m o dedo. Ele os olhava, im passível.
326
O estranho cachorro
Encontros desencontros
327
Bom Retiro. E n tre a lg u n s v elh o s ju d e u s , ficou o s e n tim e n to de q u e o m e lh o r do
Bom Retiro já m o rreu . A lg u n s velhos italian o s ficam re sse n tid o s q u a n d o se fala
n o s a n o s 30. Foi nesta ép o ca q u e as p ro s titu ta s foram jo g a d a s em três de su a s
ru a s m ais im p o rta n te s. As fam ílias italian as fugiram do bairro. O s j u d e u s tra z i
am a lg u m d in h e iro da E u ro p a e c o m p r a r a m su a s casas. Foi assim ?
Mas, ao longo d o s a n o s 40, talvez pelas m e s m a s razõ es — as p ro s titu ta s a
d a re m m á fama ao b a irro — , famílias ju d ia s ta m b é m c o m e ç a ra m a sair do Bom
R etiro. F o r a m p a ra H ig ie n ó p o lis , p a ra os J a r d i n s — a lg u m a s até p a ra Vila
M ariana, e para o u tr o s p o n to s da cidade. “M as o c o ração de m u ito s d eles ficou
n o Bom R etiro ” , diz o a d v o g a d o Carol G o ld ste in . “Q u a n d o eles q u e re m u m
b o m p ão p reto , u m a boa c o m id in h a d o je ito q u e a avó d eles fazia, o n d e é q u e
eles têm q u e v ir ? ” E vai até a ja n e la de seu e scritó rio na ru a da G raça e a p o n ta
para baixo: “É a q u i.” Logo à frente d o escritório fica o p o rã o z in h o o n d e d o n a
Sara há m u ito s a n o s faz u m a das m elh o res c o m id as ju d a ic a s do bairro. N a Ribei
ro de Lima, fica o re s ta u ra n te E uropa. E b e m perto, n u m p e q u e n o negócio, o
búlgaro A lberto Levy elabora coalhadas, io g u rtes e q u eijo s tão sen sacio n ais que,
n o s tem p o s em q u e viveu em Israel, faziam a s e n h o ra G olda M eyr m a n d a r seu
m o to rista p a rticu la r ro d ar q u a re n ta q u ilô m e tro s para trazê-los, diariam en te.
M as a lé m d o s vareneques, krepeles, p e ix e s d e fu m a d o s , a re n q u e s e borshts do
lado j u d e u d o Bom Retiro, a su a h e ra n ç a italian a lhe g a ra n tiu a lg u m a s das
m e lh o re s c a n tin a s de São P a u lo — a d as m ais a n tig as, c o m o a L ucca, q u e tem
seg red o s q u e A ttílio B en ed itin i n ã o revela, c o m o a a rte de se u n h o q u e . E as
c a n tin a s M o n te Verde, O u r o B ranco, M o n te N eg ro e M o n te C astelo ta m b é m
são c o n s id e ra d a s e x c e p c io n a is (e tra n q ü ila s).
Este é o B om R etiro d e hoje, n o m e io d o s a n o s 80, 2 5 .1 0 9 h a b ita n te s , q u i
n h e n ta s m il p esso a s c o rr e n d o p o r su a s ru a s d ia r ia m e n te , s e ss e n ta e o ito to n e la
d as de lixo, em cada dia. D ez sin a g o g as, três igrejas, d o z e escolas. Pela ru a
A im o rés e ad ja cê n cia s, a lg u n s c o m e rc ia n te s g reg o s a b rir a m u m a s lojas m u ito
b o n ita s. P o r lo d o o b airro , os c o re a n o s tra b a lh a m e m clãs, in tr o d u z e m n o v a s
técn icas co m e rciais e in d u s tria is . O s ita lia n o s a n tig o s falam c o m s a u d a d e s do
te m p o em q u e o L uso-B rasileiro era u m d o s m ais fam o so s c lu b e s de São Paulo.
O s m e n in o s de h o je em dia n ã o p o d e m im a g in a r q u e a n tig a m e n te h av ia a vár
zea, c o m c a m p o s , lagos e u m rio p a ra jo g a r bola, caçar, pescar. H oje, o C o rin -
th ia n s d o Bom R etiro, q u e su rg iu em 1926, está m o r r e n d o , p o r q u e n ã o te m u m
c a m p o p a ra jo g a r futebol.
— M as eu lhe j u r o — m e diz C aiu , o m ais a n tig o j o g a d o r de b o la d o Bom
Retiro — q u e os v e lh o s d o Bom R etiro a in d a v ê m à várzea, e q u e nela, de vez
em q u a n d o , n ó s a in d a e sta m o s, n e m q u e seja s o n h a n d o , p e s c a n d o traíra, ca
ç a n d o rã, a n d a n d o de barco... O s e n h o r d u v id a?
328
o rd en a o caos (c escreve, en cad ean d o
os fatos com o são encadead as as p a
lavras). P orque o rep ó rter sen te, as
rep o rtag en s em o cio nam . P orque ele
e n ten d e, elas in form am . (In fo rm a
ção. não cu sta repetir, é um d ad o que
co n tém sen tid o para o leitor. O u não
será in fo rm ação, m as ap e n as um d a
d o a m ais, perd id o .)
Mas o jo rn alism o lida com um tipo
especial de inform ação. A arte da re
portagem , neste ponto, é a de trazer a
luz a inform ação que é notícia —
aquela cujas repercussões tendem a al
terar a expectativa dos fatos futuros.
As reportagens aqui reunidas por
Igor Fuser chegam até nós com o um
alerta. Vivemos um m om ento em que a
im prensa proporciona um a gigantesca
oferta de dados, mas carece de infor
mações; anda atulhada de opiniões,
mas raquítica em visão de m undo; lisia
fatos e mais fatos, mas quase não tem
reportagem . A reportagem só é arte (e
bom jo rnalism o), qu and o foge da im
p ostura da neutralidade (ou indiferen
ça), e qu and o traz, em sua narrativa
sobre o que se passa, a pretensão de
com preender o que se passa.
Eugênio B ua i
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