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V olum e

ORGANIZAÇÃO DE IGOR FUSER


F a to s e menos fa to s

Os fatos são o que m enos importa


nas grandes reportagens. Parece uma
heresia dizer isso a respeito de textos
cuja finalidade é reportar os aconteci­
mentos. Parece heresia, mas precisa
ser dito. Disfarçada de fato objetivo,
muita mentira aparece diariamente
em jornais, revistas, emissoras de rá­
dio e telejornais. E muita gente acre­
dita. Pior: muita gente acredita que o
jornalism o é um observatório neutro
do que se passa no mundo.
Não é. E por não ser, não pode con-
tentar-se com o relato factual. Sobretu­
do a reportagem não pode. Claro, a
objetividade e os fatos são indispensá­
veis. Mas são insuficientes. Ou a re­
portagem não seria reportagem. Pegue
as enciclopédias. Estão abarrotadas de
fatos — e não têm nada a ver com
reportagens. Aliás, se existe uma arte
da reportagem, essa é exatamente a ar­
te de livrar-se das enciclopédias. Ago­
ra pegue os processos criminais. São
mais minuciosos em fatos que em di­
reitos. Nem por isso são reportagens,
donde o conhecido tédio dos juizes.
(Em tempo: a arte da reportagem não
é a arte de livrar-se dos processos.
Muitas vezes é a arte contrária.)
A questão, portanto, não são os
fatos, mas o sentido que eles possam
ter. Sozinho, um fato é apenas um de­
talhe do caos. Daí que a reportagem,
com o a arte (talvez essa analogia ex­
plique um pouco a percepção de que
a reportagem é uma arte), tem a ne­
cessária pretensão de iluminar o sig­
nificado, de apontar uma direção aci­
ma do caos dos eventos cotidianos.
Não tem jeito. O repórter deve
entender o que tem a narrar. E, para
entender, precisa sentir. Só então ele
Ele m e m o stra u m m ap a e vai d ize n d o q ue o Bom Retiro, co m o o c o n h e c e ­
m os até sua últim a divisão, tin h a p o r limites u m a linha que, p artin d o da José
Paulino e com eço da avenida T iradentes, seguia até o Rio T am an d u ateí; seguindo
o Rio Tietê até o com eço da p o n te da Casa Verde, seg u in d o pela avenida Rudge
até a linha férrea — esq u in a com a rua Solon — e re to rn a n d o p o r essa via férrea
até o p o n to de início (Estação da Luz-José P aulino-T iradentes). E n te n d era m ?
N a verd ad e, p ara ver o B om Retiro é p reciso m ais do q u e sab er os seu s
lim ites físicos, geográficos. A su a h istó ria se inscreve p o d e ro s a m e n te n o s seus
p réd io s, em q u e a m ão d o s h o m e n s to co u de várias form as. P o r q u ase to d o o
Bom Retiro, u m a arq u e o lo g ia d o s seu s p ré d io s vai d e sv ela n d o as d u a s parles
p rin c ip a is de s u a a v e n tu ra no sécu lo xx: neles se vê, a in d a, os m a n e iris m o s da
a rq u ite tu r a do c o m e ç o do sécu lo , q u e fascinavam os italian o s q u e os c o n s tr u í­
ram . N a su a m etam o rfo se , q u e tra n s fo rm a o Bom Retiro a p a rtir d o s a n o s 30 —
q u a n d o ele a s s u m e d e fin itiv a m e n te o d e stin o de u m bairro com ercial, e q u a n ­
do m a rc a d a m e n te os italian o s d e ix a m de ser h e g e m ô n ic o s — , o bairro r e c u ­
so u -se a m a ta r o seu passad o . E as casas p a ssa m a ser, e n tã o , esta e s tra n h a fusão
de te m p o s — q u e se u n e , hoje, a u m a sp ecto m a ltra ta d o , em q u a se to d as elas.
S e g u n d o Jú lio B ernardi, “o bairro é m u ito an tig o , p o r estar ligado aos rios
T a m a n d u a te í e Tietê — e era o A n h e m b y de seu s a m ig o s h a b ita n te s, os in d íg e ­
nas. Mas esta p o rç ã o d e terra estava m u ito p ró x im a do c in tu rã o de colinas q u e
fo rm av a a P aulicéia d o s p rim e iro s f u n d a d o re s (ru a s Direita, São B ento, 15 de
N o v e m b ro ). N in g u é m deve, p o ré m , e sq u e c e r q u e o Bom Retiro estava s e p a ra ­
do d este n ú c le o c en tral p elo Vale d o A n h a n g a b a ú , c o m o rio do m e s m o n o m e ,
q u e d e ság u a n o T a m a n d u a te í, in d o este d e sa g u a r n o Tietê, f o rm a n d o a c h a m a ­
da V árzea do B om R etiro ”.
“O seu n o m e de Bom Retiro, p resu m im o s seja dado pelas m uitas chácaras ou
sítios q ue havia na região, cujos grossos vestígios ainda se po d iam observar no
com eço do século... Porém , com a construção da via férrea Santos-Jundiaí, em
m eados de 1850, com sua estação principal localizada na linha divisória (rua Mauá-
José Paulino), co m eço u verdadeiram ente a transform ação do bairro, m o rm e n te
com a abolição da escravatura, em 1888, e a construção do posto de triagem de
imigrantes, na hoje ru a Tenente, final da José Paulino, primitiva Imigrantes.
“S e g u n d o u m a o b ra oficial da Prefeitu ra de São Paulo, o bairro do Bom
Retiro o rig in o u -s e do lo te a m e n to de p o rç õ e s de sítios e de ch ác ara s o u tro ra
lo calizad o s e n tre a lin h a férrea da E. F. Inglesa e as V árzeas do Tietê e do
T a m a n d u a te í — Sítio do C arv alh o , C h á ca ra do Bom Retiro, C h á ca ra Dulley.
A s se n to u -se so b re co lin as de suaves declives, q u e in ic ia lm e n te se lim itavam
pelas lin h a s d e e n c h e n te s p e rió d ica s das várzeas c o rre s p o n d e n te s m ais ou m e ­
n o s à cota de 725 m e tro s de altitu d e.

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rapazes do C o rin th ia n s, do G erm ânia, do A m ericano, do Palm eiras da Flores-
la... Aí, Caiu foi cam p eão jo g an d o co n tra o Santos — e ele foi cam p eão em
1932, 1933, 1934...

Namoro às escondidas

— Você está vendo a M arginal? Pois eu vejo a Várzea.


“Isto era u m cam po... era a várzea, cheia de verde, de cap o eirin h as, de cava­
los soltos, de vacas soltas... Pobres das vacas! Q u a n d o eu aparecia lá com os
m eu s cachorros, e soltava m e u s cach o rro s, era um tal de vaca fugir, correr... E a
g em e ia para a várzea pegar c a n a rin h o , c h o p in h a , coleirinha, bartuíra... Caçava
e pescava o q ue queria. T inha u m c am arad a q u e era p escad o r profissional: dava
d u a s tarrafadas e já saía v e n d e n d o peixe. Levava u m a ratoeira para peixe... isto
é, u m a a rm ad ilh a, m as só botava na boca da n o ite, para n in g u é m ver. Podia
algum esperto ir pegar o peixe do h o m em . A lgum e s p iritu o s o .”
Lá vão teus m eninos, Bom Retiro, n u m barco alugado do velho Cecco — eles
co n tinuam neste barco, Bom Retiro; continuam . E pela luz que ilumina luas ruas
eles ju ra m que eram tantos os lambaris que saltavam nos barcos, só com o bater dos
remos... Mas lá onde é o cam po da Portuguesa, lá é que estava o reino das traíras,
que se ocultavam em certos cam inhos do rio, para devorar os lambaris de passa­
gem... Mas os teus m eninos, Bom Retiro, term inavam devorando as traíras — que
às vezes eram fisgadas com os peixinhos na boca... Mentira, mentira? Talvez algum
exagerinho. Os exageros da paixão que tu despertaste nestes senhores, não é? E ali,
na Ponte G rande era um a p o n tin h a que existia, de cinco ou seis metros. Não p e n ­
sem que dava para dois bondes passarem. U m sem pre ficava esperando no desvio.
E ju stam en te ali tinha u m porto de areia em que os teus m eninos iam pegar m uito
m andi-chorão — e era duro tirar o peixe do anzol, porque ele dava um as ferroadinhas
que valiam! E tinha a Ponte dos Amores, po r onde passava o trenzinho da Cantareira,
que saía da rua João Teodoro e seguia para G uarulhos (coisa que fez religiosamen­
te, até vinte anos atrás). Ponte dos Amores: era lá que se nam orava às escondidas.
Vocês im aginam estes pais de quarenta, cinqüenta anos atrás?

Rã à milanesa

E a lg u n s do s teus m e n in o s iam atrá s d as rãs — q u e as m ães faziam à


m ilanesa...
Até hoje, C aiu c o n ta certas h istó rias co m o se fossem segredos. E ram os
p e q u e n o s seg red o s d o s teus m e n in o s , Bom Retiro — q u e eles preservam m ais
do que n u n c a. E o n d e estavam as tuas cobiçadas rãs?

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c id ad e com ercial, astúcia, h ab ilid ad e , claro q u e d e s la n c h a v a m logo. Agora, s u ­
p o n h o q u e os lib an eses ou sírios a n te c e d e ra m aos j u d e u s neste trab a lh o de
v e n d e r à p restaç ão — o u te n h a m sid o c o n c o m ita n te s , n ã o sei. E esse trab a lh o
teve u m m é rito m u ito g ra n d e p o rq u e , na realidade, foi o p rim e iro sistem a de
cap tação p ara o m erc ad o , de in tro d u ç ã o n o c o n s u m o de u m a faixa q u e estava
to ta lm e n te fora d o m ercad o . E x istem m u ita s p iad as so b re os v e n d e d o re s à p res­
tação, m u ita h istó ria em q u e eles ap arec e m se n d o rec eb id o s na casa p o r u m
m a rid o de revólver na m ão, m as a v e rd a d e é q u e eles tra b a lh a ra m d u ro , e que
b o ta ra m m u ita coisa na m ão de se u s clientes: g u a rd a -c h u v a s , colchas, ro u p as,
m óveis... E que, n o com eço, eles n ão sabiam se q u er falar p o rtu g u ês, e e n tão se
m etiam em trap alh ad as colossais! E é aqui no Brasil q u e as m u lh e res e n tra m em
cheio n o trabalho fora de casa. É verdade qu e, n a P olônia, a m aioria das m u lh e res
tom ava co n ta das lojas, e n q u a n to os m arid o s se d ed icav am m ais ao culto religio­
so. Mas, n a s c o n d içõ es em q u e v in h am para o Brasil, eram o brigados a e n tra r no
m ercado de trabalho, n ão só na loja co m o nas oficinas. Eu m e lem bro de que,
naq u ele tem p o , já havia notícia de alg u n s ju d e u s q u e ‘estavam b e m ’, co m o os
Tabacow. E que u m a das coisas q ue m ais foram c o m e n ta d a s n o s an o s 30, pelo
Bom Retiro ju d e u , foi o c asa m en to da filha do fam oso co m e rcian te .”

O mundo se transform a

À b eira da S e g u n d a G u e rra M u n d ia l, o Bom R etiro assiste às su as b a ta lh a s


particu lares.
O s in te g ralistas — s im p a tiz a n te s do n a z ism o — a ta ca v am os m e n in o s j u ­
d e u s n as escolas. E o revide d o s j u d e u s era feito co m o a p o io de o rganizações
de esq u erd a. “H o u v e até u m rap a z j u d e u ” , evoca G u in sb u rg , “q u e m o rre u b ale­
a d o n a a v en id a P aulista, em 1937, q u a n d o os in teg ralistas te n ta ra m desfilar
com su a s fardas e b a n d e ira s , e foram c o rrid o s p elo s d e m o c r a ta s .”
N este te m p o , G u in s b u r g era u m ra p a z in h o , m as à su a casa se m p re c h e g a ­
vam n o tíc ias da E u ro p a, cartas de p are n tes , q u e in fo rm a v a m q u e tu d o ia tão
mal. A situ aç ão e c o n ô m ic a n ã o p o d ia ser p io r e o fascism o av ançava cada vez
m ais, c o m u m a n ti-se m itis m o d eclarad o . Era assim na Po lô n ia, na Bessarábia,
na L itu ân ia, na Letônia... P o r to d o s estes países, o fascism o avançava — e as
cartas c h e g a n d o , e m u ito s j u d e u s tam b ém .

Os tipos do bairro

H avia m e d o , é certo, e u m a p a rte do co ração estava n a q u elas cidades e


aldeias em q u e o m u n d o d e s m o ro n a v a , n a E u ro p a. M as o Bom Retiro das h is tó ­

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Alguns dias depois, ele verificou que ali havia várias olarias. Trabalhadores c
oleiros o levaram para conhecer o trabalho de cada olaria, tomando-se não só
oleiro como um arguto conhecedor do trabalho, Assim, falou com dona
Pietrina — e esta ao marido, e empregaram Pietro na olaria que o casal pos­
suía. Pietro, com imensa vontade de trabalhar, esperto, ativo, conquistou um
bom lugar na olaria, tendo sido feitor-chefe. (Ele viera da Itália com algum
dinheiro, depois de ter vendido parte de sua herança a um patrício.)

Recordações do Castelo

Pietro, que fizera economia, e com algumas que possuía da venda da h eran­
ça da Itália, adquiriu, em 1880, um lote de terreno na rua Solon até o Vale
do Tibagy, num total de onze mil melros quadrados. No terreno que fe­
chou, construiu o forno de cozer tijolos, com pipas, cobertura para seca­
gem de ti jolos, as telhas, casinhas para operários, cocheirão, carroças e tudo
o que era necessário para uma olaria, para abastecer os operários e famílias
de vizinhos. E logo tratou de constituir família.
Assim, nas andanças a cavalo, para a negociação da venda de madeira, ven­
deu materiais também para o Seminário da Glória, nas margens do córrego
Anhangabaú, onde atualm ente está o prédio dos Correios de São Paulo. Ali,
conhecendo a irmã superior, falou, com meia-vergonha:
— Não há alguma moça que queira casar comigo?
— Sim, Pietro. Passe daqui a alguns dias, que vou verificar.
Dois dias depois, Pietro passou. E foi-lhe apresentada a moça escolhida,
com licença de casamento do reverendíssimo padre Chico, da paróquia lo­
cal. Órfã de pai e mãe, a moça, dona Deolinda, estava ali internada, com sua
irmã Herculana, com ordem do governo da província.

E claro que eles casaram — e que foram felizes, e que desta união nasceram
Luiz Sérgio — o narrador da história — e Cristina Maria, que faleceu a 11 de ju lh o
de 1905, com 20 anos. A mãe, dona Deolinda, m orreu a 24 de m arço de 1894, num
domingo de Páscoa, no dia em que Cristina Maria nasceu... Agora, a casa dos Thomás
foi o primeiro sobrado do Bom Retiro, fez furor, há tanto tempo. Alcina, a filha de
seu Luiz, de 56 anos, não esquece o sobrado u m m om ento. O sobrado era conheci­
do m uito antigam ente com o um castelo. O castelo do Bom Retiro.

Evocações de dona Alcina

Eu sonho sempre com aquela casa.

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Era um sobrado de três andares
Todos achavam tão bonito!
Tinha uma biblioteca enorm e,
E com o era de esquina
Tinha sacadinha de ferro...
Q uatro sacadas
Era tão antiga
que o banheiro ficava lá fora,
com o m eu avô construiu.
Os amigos chegavam —
e não queriam ir embora.
A gente esperava o bonde na sacada.
Dava tem po de correr e pegar o “53”.
Tinha um a sala de piano.
E o piano era alemão.
A casa era nossa vida, nosso sol, nossa alegria.
Lá, casamos, até.
E tinha u m sótão estilo suíço,
com livros, objetos, coisas engraçadas.
Todo m u n d o queria ir para o sótão.
Mas era difícil subir,
tinha que pôr a mesa, e a criançada gritava
gritava e acabava subindo po r lá.
Sonho que a gente está na casa,
que m inha mãe está viva; e
cheia de alegria,
e que ela abre as janelas, os
trin q u in h o s de ferro, e
o sol entra — e a gente acorda.
Mas, hoje, se acordo, não estou mais lá.

Diálogo cie dona Alcina e o pai

Filha; Q u a n d o eu era criança, tin h a m u ita e n c h e n te , não é papai? O pessoal


v in h a de barcos nas e n c h e n te s , não é papai?
Pai; De b a rq u in h o .
Filha: P o r q u e e n ch ia o rio, pai?
Pai: P o rq u e o rio era torto! Foi e n d ire ita d o pelo Prestes Maia.
Filha: Você lem bra, papai? N ão existia su p e rm e rc a d o . Ia o h o m e m do café

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até a p orta da gente, c o h o m em das verduras... o h o m em da cabra, levando
leite de porta cm porta... e tinha o h o m em q ue entregava carne de porta em
porta... e no São Jo ã o a g en te c o m p rav a feixes de m ad eiras e as famílias estavam
sem p re na rua. E a tua infância, pai?
Pai: f oi m u ito ruim . Fiquei sem m ãe, tão cedo. Mas d ep o is estudei Direito.
Ia para a Faculdade a cavalo o u de tílburi — o nosso táxi, lá nos a n o s 10, 20,
p u x ad o a cavalos... E d ep o is veio a vida política do Bom Retiro. Não tinha
bairro com mais política do q ue o Bom Retiro. Q u a n d o veio a R evolução de
1024, os so ld ad o s q u e ria m usar nossa casa para colocar suas arm as. Não d e i­
xei. E aí n ó s fugim os n u m a m ad ru g ad a, para Santo Amaro. Já em 1932, eu
estava n u m a festa, q u a n d o ch eg o u a notícia da Revolução. Fui logo para a Re­
volução. E o Bom Retiro inteiro se alistou, q u a n d o so u b e q u e eu estava na
briga, q u e eu era o chefe do S eg u n d o D e stac am e n to da G u a rd a Civil... Eles
vieram aos sopetões... Era o Bom Retiro na guerra! A nossa casa era a filial do
q u artel-g en eral da Revolução de 1932 — ali no Bom Retiro. É, n ad a parecido
com 1924, q u a n d o nó s fomos, n aq u ele Ford velho, aq u ela retran ca braba...
E assim ficam eles falando, de vez em q u a n d o , em todas estas histórias do
Bom Retiro... E o velho lem bra de u m a velha cavalgada, nos a n o s 20, q u em
sabe?, ele, garboso, p ag an d o um p atacão de cobre para atravessar o V iaduto do
Chá... O u to m a n d o n u m a confeitaria do bairro u m a cerveja feita ali m esm o, na
G erm â n ia — q u e n u m desses acessos p a trió tic o s teve q u e m u d a r de nom e... E
a cerveja passou a se cham ar... Ah... “O rd e m e Pro g resso ” !
Cerveja O rd em e Progresso...
Puxa...
Coisas do Bom Retiro...

“Barrichinaaaa”

O Bom Retiro é a terra do velho da B arrichina.


— Barrichina! B arrichina! — lá vai o velho F rancisco Policce g rita n d o nas
feiras (h á tan to tem p o a m esm a coisa)... E as crianças correm ... Ficam em volta
do s e n h o r Policce, aos 76 a n o s se m p re v e n d e n d o o d o ce fam oso, q u e a p re n d e u
a fazer com seu c u n h a d o , Estevão G recco, q u e tro u x e a fórm ula em 1923, da
Itália... São c in q ü e n ta an o s v e n d e n d o b a rrich in a... Coisas do Bom Retiro...
O m estre... o eru d ito em Bom Retiro — se diz desde os lados da Três Rios
até a rua dos Italianos... — , o g ra n d e m estre é este s e n h o r Jú lio B ernardi, q ue
no s seu s 70 an o s viu tanta coisa, e tan ta coisa a n o to u . (É e s tra n h o c o m o em
cada bairro surge u m h o m e m q u e carrega, co m o um c o m p ro m isso , causa s u p e ­
rior, a h istó ria das ru as e de certas pessoas.)

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Ele m e m o stra u m m ap a e vai d ize n d o q ue o Bom Retiro, co m o o c o n h e c e ­
m os até sua últim a divisão, tin h a p o r limites u m a linha que, p artin d o da José
Paulino e com eço da avenida T iradentes, seguia até o Rio T am an d u ateí; seguindo
o Rio Tietê até o com eço da p o n te da Casa Verde, seg u in d o pela avenida Rudge
até a linha férrea — esq u in a com a rua Solon — e re to rn a n d o p o r essa via férrea
até o p o n to de início (Estação da Luz-José P aulino-T iradentes). E n te n d era m ?
N a verd ad e, p ara ver o B om Retiro é p reciso m ais do q u e sab er os seu s
lim ites físicos, geográficos. A su a h istó ria se inscreve p o d e ro s a m e n te n o s seus
p réd io s, em q u e a m ão d o s h o m e n s to co u de várias form as. P o r q u ase to d o o
Bom Retiro, u m a arq u e o lo g ia d o s seu s p ré d io s vai d e sv ela n d o as d u a s parles
p rin c ip a is de s u a a v e n tu ra no sécu lo xx: neles se vê, a in d a, os m a n e iris m o s da
a rq u ite tu r a do c o m e ç o do sécu lo , q u e fascinavam os italian o s q u e os c o n s tr u í­
ram . N a su a m etam o rfo se , q u e tra n s fo rm a o Bom Retiro a p a rtir d o s a n o s 30 —
q u a n d o ele a s s u m e d e fin itiv a m e n te o d e stin o de u m bairro com ercial, e q u a n ­
do m a rc a d a m e n te os italian o s d e ix a m de ser h e g e m ô n ic o s — , o bairro r e c u ­
so u -se a m a ta r o seu passad o . E as casas p a ssa m a ser, e n tã o , esta e s tra n h a fusão
de te m p o s — q u e se u n e , hoje, a u m a sp ecto m a ltra ta d o , em q u a se to d as elas.
S e g u n d o Jú lio B ernardi, “o bairro é m u ito an tig o , p o r estar ligado aos rios
T a m a n d u a te í e Tietê — e era o A n h e m b y de seu s a m ig o s h a b ita n te s, os in d íg e ­
nas. Mas esta p o rç ã o d e terra estava m u ito p ró x im a do c in tu rã o de colinas q u e
fo rm av a a P aulicéia d o s p rim e iro s f u n d a d o re s (ru a s Direita, São B ento, 15 de
N o v e m b ro ). N in g u é m deve, p o ré m , e sq u e c e r q u e o Bom Retiro estava s e p a ra ­
do d este n ú c le o c en tral p elo Vale d o A n h a n g a b a ú , c o m o rio do m e s m o n o m e ,
q u e d e ság u a n o T a m a n d u a te í, in d o este d e sa g u a r n o Tietê, f o rm a n d o a c h a m a ­
da V árzea do B om R etiro ”.
“O seu n o m e de Bom Retiro, p resu m im o s seja dado pelas m uitas chácaras ou
sítios q ue havia na região, cujos grossos vestígios ainda se po d iam observar no
com eço do século... Porém , com a construção da via férrea Santos-Jundiaí, em
m eados de 1850, com sua estação principal localizada na linha divisória (rua Mauá-
José Paulino), co m eço u verdadeiram ente a transform ação do bairro, m o rm e n te
com a abolição da escravatura, em 1888, e a construção do posto de triagem de
imigrantes, na hoje ru a Tenente, final da José Paulino, primitiva Imigrantes.
“S e g u n d o u m a o b ra oficial da Prefeitu ra de São Paulo, o bairro do Bom
Retiro o rig in o u -s e do lo te a m e n to de p o rç õ e s de sítios e de ch ác ara s o u tro ra
lo calizad o s e n tre a lin h a férrea da E. F. Inglesa e as V árzeas do Tietê e do
T a m a n d u a te í — Sítio do C arv alh o , C h á ca ra do Bom Retiro, C h á ca ra Dulley.
A s se n to u -se so b re co lin as de suaves declives, q u e in ic ia lm e n te se lim itavam
pelas lin h a s d e e n c h e n te s p e rió d ica s das várzeas c o rre s p o n d e n te s m ais ou m e ­
n o s à cota de 725 m e tro s de altitu d e.

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“Foi na década dc 1880-90 que se processaram o loteamento e sua urbanização,
época em que se intensificou a imigração européia, particularmente a de italianos.”

Recortes de jorn al

E m A Província de São Paulo de 8 de o u tu b ro de 1880 aparece u m a notícia


do Bom Retiro...

E statuas — É conhecida a p ro sp erid ad e e desen v o lv im en to que vão to ­


m an d o as officinas da olaria do Bom Retiro, desta capital, o prim eiro
estab elecim en to da província no gênero, hoje p e rte n c e n te ao se n h o r
M aníredo Mayer.
Além do fabrico de tijolos, telhas, betons e louça, trabalha-se também ali na
feitura de estatuas (moldagem em argila) que não são propriam ente obras
artísticas, mas prestam-se a im portantes fins de ornam entação, dando aber­
ta a que á som bra d’aquelle ramo industrial se vão desenvolvendo u m p o u ­
co entre nós o rudim entos de estatuaria.
O artista que ali tem a seu cargo taes trabalhos é o moço portuguez senhor
Augusto dos Santos Silva. Está elle agora em mãos com um a volumosa
encom m enda, nada m enos do que quatro grandes estatuas, representando
os Evangelistas S. Pedro, S. Paulo, S. João e S. Marcos, destinadas, a ornar o
frontespício da matriz da Itatiba.
O senhor Santos Silva já aprom ptou o S. Marcos, um gigantesco S. Marcos
de dois metros de altura, e que ao certo vae fazer bella figura no alto da
egreja de itatiba, em com panhia de seus outros tres collegas.
Estas tres outras estatuas vão ser moldadas no logar, e para esse fim o artista
em breve parte para Itatiba.
O trabalho do sen h o r Santos Silva é m uito regular e está feito em perfeitas
condições para o fim a que se destina.
É um artista consciencioso e trabalhador o sen h o r Santos Silva, e além do
mais representa entre nós um gênero m uitíssim os raro.

Quatro anos d ep o i s , A Província ( I o de f e v e r e i r o de 18 84)


se vo lta ao Bom Retiro

Sem luz e sem polícia — Com esse título refere a G azeta Liberal:
Temos recebido constantes reclamações sobre a falta de segurança indivi­
dual, nos Campos Elysios e no bairro do Bom Retiro.
Por aquelles lados... nem gaz, nem urbanos.

312
Além do mysterioso suicídio (?) do velho Charles, succedido ha irês dias,
ainda conta se que às sete horas de um a das últim as n o u tes passadas, ao
sahir da casa de família de que é criada, foi agarrada e violentada brutam ente
um a moça, de nacionalidade allemã. O attentado foi com m ettido por dous
estrangeiros, que não p u d eram ser reconhecidos.
As chácaras próxim as são invadidas, m esm o à luz do dia, e não ha repulsa
possível, porque os proprietários procuram , e com razão, evitar conílictos
desagradáveis.
Para attrahir as vistas da polícia já bastava por alli a proxim idade de um
depósito de immigrantes.

— É folha in su sp e ita , n o caso, a q u e reclam a.

A som bra do facto seja-nos lícito addicionar reclamos análogos. Por exem ­
plo, sem luz e sem polícia anda ha m uito o bairro formado pelas ruas João
Theodoro, Dutra Rodrigues e outras.
No m esm o sentido já tivemos instantes queixas do florescente bairro do
Cambucy.
A cidade cresce e cresce de m odo espantoso, entretanto que os governantes
policiaes, provinciaes e m unicipaes ainda p reten d em servil-a com os recur­
sos velhos e insufficientes.

F in a lm e n te , u m ed ito rial de 26 de o u tu b r o de 1889 assinala u m a g ran d e


vitória do b a irro — q u e saía do c o n fin a m e n to a q u e o sacrificara a falta de
ligação direta c o m o Largo da Luz:

Substituição g lo n o s a

A abertura de um a rua do Bom Retiro ao largo da Luz, margeando a estrada


ingleza e passando por terrenos do jardim público, era m elhoram ento defi­
nitivam ente resolvido pelos poderes com petentes, camara m unicipal e As­
sembléia que, de accordo com alguns presidentes da província, julgaram
necessária a nova rua.
Q uanto a utilidade da obra, não há duvida, porque os poderes públicos assim
julgaram. O carro da administração, porém , pegou na urgência e parou.
Apoz dem oradas consultas e respostas da m unicipalidade ao governo, do
governo a C om panhia Ingleza, da C om panhia ao governo e outra vez do
governo a m unicipalidade, os m oradores do Bom Retiro ficaram a espera da
o pportunidade, e até hoje!

313
Um dia resolveram abrira rua e m eueram mãos á obra, mas a polícia interveiu
e prendeu os obreiros daquelles serviços de utilidade publica. O caminho
estava aberto.
O governo provincial m andou fechal-lo, porque se tratava do jardim sob
sua administração.
Com certeza vão gastar centenas de mil réis para daqui a pouco derrubarem
de novo o muro.
Um acto dc camara nos convence de que ella julga ainda necessaria a rua,
m andou intim ar a Com panhia Ingleza para retirar do Largo os armazéns
provisorios que levantou com licença e po r tempo determinado.
Estando findo o praso, a camara quer o local livre.
H possivel, porém, que o presidente da província não pense do mesmo modo e
que tenha idéia de construir alli, ouiros armazéns e sem caracter pro viso ri o. Mas
como temos ainda eleições, de certo não ha tempo para se cuidar do assumpto.
Não chegou o m om ento psychologico da empreza de armazéns alfandegados.
Resta saber si elles ahi ficaram bem collocados.
A posição é boa, mas talvez haja melhores e de mais espaço.
Não será de adm irar que os m oradores do Bom Retiro percam o seu esforço
de picareta e tenham de se contentar com as sahidas actuaes. C ortando o
jardim para sahir no largo da Luz, só ha possibilidade de uma estrada de
ferro aérea como aquella do Rio que o senhor André Rebouças m ostrou ser
effeito da febre bancaria.
O r g a n iz e m os m o r a d o r e s d o Bom R etiro a c o m p a n h i a , e s c o lh a m
incorporadores entre os amigos do governo e depois peçam garantia de
juro, quando m enos para haver mais um lugar de engenheiro fiscal.
Eis ahi o meio. Façam isto e terão fácil sahida, melhor, mais arejada, de
vista mais bonita que a rua passando pelo jardim.
O canudo póde ser um ponto de apoio para a nova linha.
Oh! uma estrada de ferro séria em São Paulo, como ha de ser im ponente e
glorioso. Do Bom Retiro ao Ypiranga — tal deve ser o percurso para cobrar
mais frete.
Mãos á obra, m oradores do Bom Retiro!

O Bom Retiro de fins do sécu lo xix... do co m e ço do século xx... era fascina­


do p o r u m a bebida de fabricação caseira, feita com g o m o s de c an a -d e -aç ú c ar
rep a rtid o s em q u a tro e po sto s a ferm e n ta r n u m barril, n u m a m is tu r a de água
com a çú c ar “m u la t in h o ”... E q u e m fabricava m e lh o r tão e stra n h a b eb id a do
q u e o s e n h o r Cecco??? Esta era a “p ix a s sa ” q u e o s e n h o r Jú lio Bernardi ch am a
de “o n é c ta r do s d eu ses da várzea a n tig a ”.

314
E foi n esle tem p o , lá e m 1880, q u e o b a irro c o n h e c e u u m do s seus p e rs o n a ­
gens m ais falados: o velho F ra n co , q u e c h eg o u a São P au lo em 1880, e foi tirar
areia do claro Tietê. E este s e n h o r Stefano F ra n c o ficou fam oso p o r tão b e m
fo rn ecer areia p ara as olarias da cidade... e só m o rre u em abril de 1953... q u a n ­
do faltavam p o u c o s m eses p a ra c o m p le ta r cem anos...

E o circo chegou

M as n o c o m e ço do sécu lo xx o Bom Retiro c o m eçav a a viver u m g ra n d e


p ro b le m a (n o s c o n ta o v elho Jú lio ): faltavam escolas! “P o ré m , n a a u ro ra do
an o de 1905, u m jo v e m casal de p ro fesso res passa a oferecer seu sab er nas
m o d e s ta s salas de e n sin o do In s titu to A lessan d ro M an zo n i. De início, o profes­
so r A n tô n io Práto la e s u a jo v e m esposa M aria d iv id e m e n tre si as d u a s classes
q u e se fo rm am e b e m c o m p o r ta m o p ré d io da ru a Silva Pinto. O p ro fesso r
P rá to la e n c a rn a v a a figura d o p ro fe s s o r d o s é c u lo xx im p e cá v el n o trajar,
c irc u n sp e c to no trato, p o r é m grave em to d o s os seu s gestos e v alo riza n d o cada
palavra c o m su a inflexão ju s ta (...) A p e q u e n a escola p ro g red iu , transferiu-se
p a ra a r u a Ribeiro de Lima e p o s te r io r m e n te para a Jo sé P au lin o . Do In stitu to
A lessan d ro M a n z o n i n a sce u a Escola do C o m ércio T irad en tes. Em 1955, feste­
jo u - s e o seu 50° a n iv ersário , p a ra m ais a lg u n s a n o s d ep o is transferir-se do b air­
ro. N esse p e río d o , os m ais trad icio n a is n o m e s p a ssa ram p elo s seu s b a n c o s es­
colares. O rei da Itália u m dia o fez c o m e n d a d o r .”
Q u e m e n in o do Bom Retiro n ão se fascinava com os Irm ã o s Piere ou os
Irm ã o s Q u e iro lo , reis d o s circos do c o m e ço do século?
N a q u ele tem p o , lá p o r 1912, n e m havia sid o c o n s tr u íd o o g ru p o escolar
M arechal D eodoro.
Era lá q u e os circos p o u sa v a m c o m su a s magias.
Era lá q u e ap arec iam ta m b é m os p a lh a ço s fam osos, c o m o o C h ic h a rrã o ou
o Piolim .
M as q u e m e d o baixava n o bairro q u a n d o a p areciam os ciganos, e a c a m p a ­
vam n o final da ru a das Flores ou N e w to n P rad o , n a q u ele te m p o c h a m a d a de
M atarazzo!
N in g u é m explica de o n d e veio este m edo: os ciganos n u n c a to ca ram n u m
do s teus m e n in o s , Bom Retiro!
E os teus m e n in o s , Bom Retiro,
se eram fraq u in h o s,
tin h a m u m a receita m édica:
to m a r leite-sem p re-d a-m esm a-v aca...
E lá se g u iam eles,

315
com o c o p in h o na m ão,
até os vaqueiros,
perto da Várzea...
(Da rua C ristina T h o m á s p ara baixo,
q u a n to s estábulos havia!)
Mas, ai dos leiteiros:
se colocavam u m p o u q u in h o d a g u a no leite
e os fiscais da Prefeitura desco b riam ,
todo leite era jo g a d o fora.
(O s velhos de hoje fazem piada...
Q u a n to leite tem na água que to m a m o s?)
E n o s lim ites do b airro, q u a n ta s ig u arias n ã o se co m iam ? Era o v in h o
típico da Itália, da E sp a n h a , de P o rtu g a l — tu d o im p o r ta d o — e q u e era
v e n d id o nas fam osas cartolas... Barris im en so s, n o s q u a is os teu s h a b ita n te s ,
Bom Retiro, iam c o lh e r g arrafas e garrafas, litros e litros. Q u a n to v in h o n ã o se
b e b e u em teu te rritó rio , Bom Retiro? E q u a n to b a c a lh a u , e q u a n ta pizza, e
q u a n ta m a c a rro n a d a n ão se c o m e u ? E q u a n ta s festas n ão se fizeram na Soci­
ed ad e de Arte D ra m á tic a Luso Brasileira, q u e foi criad a n o m arco do sécu lo , a
13 de m aio de 1900? E ram c e le b rid a d e s do m u n d o in teiro , q u e p o r lá p a ssa ­
vam — e os m e lh o re s a u to r e s n acio n ais, c o m o os g ra n d e s L eo p o ld o F róes ou
O d u v a ld o V ianna; e ta m b é m os g ra n d e s p o lític o s d o s a n o s 20, 30, 40... E as
m a tin ê s d o s teus m e n in o s , n o Teatro M arconi ou n o c in e m a Bom Retiro, com
os se riad o s d o s d o m in g o s à tarde? E os bailes, as festas de se m p re , no Luso ou
no O lím p ic o — e te rn a d is c u ss ã o qual c lu b e é m elh o r, q u e a tra v e sso u tan to s
carn av ais e chega a in d a h o je n as c o n v e rsa s d o s m u ito velhos? Pois n ão é com
tan to o rg u lh o q u e seu J ú lio B ernardi lem b ra a in d a q u e em “ 1935 o L uso o b ­
teve o p rim e iro p rê m io de r a n c h o s e fez s e n tir a su a p u ja n ç a ta m b é m no
p in g -p o n g , n u m c a m p e o n a to da G a z e ta ”... (M em ó ria: jo g o de esp elh o s. O
q u e faz u m h o m e m g u a rd a r e x a ta m e n te estas le m b ra n ç a s ? ) E os teu s rap azes
vestiam tão im p e cá v eis te rn o s de c asim ira (A u ro ra )... n o s fo o tin g s d o s d o ­
m in g o s na Jo sé P a u lin o , r u m o ao J a r d im da Luz... Ir e vir, e s e m p re de c h a p é u
p a lh e ta na cabeça... E o fo rm id áv el so rv e te da c o n fe ita ria Elite, q u e era de
u n s gregos... E a C o n fe itaria C astelõ es, ali da Silva P in to com a Jo sé P au lin o ,
o n d e a n tig a m e n te se fabricavam os cig arro s C astelões.

Lembranças de Caiu

Bom Retiro, só faltava um lugar para a co lh er os teus m ortos. E ntão, se g u i­


am to d o s para o C em itério do Araçá... E o velho Caiu, tão fam oso d esp o rtista

316
do Bom Retiro, d o s ú ltim o s c in q ü e n ta an o s, o u m ais, não diz q u e “q u a n d o
en tra no Araçá, até p e n sa q u e está n u m a cid ad e ita lia n a ”?
P o rq u e o q u e é incrível no Bom Retiro é isto: h o m e n s c o m o C arlos G iusti
— o C aiu — c a m in h a m p o r su a s ruas, e são c o n h e c id o s p o r u m a p arte d o s seus
h a b itan te s, h á q u a re n ta , c in q ü e n ta anos... Tudo isto n u m a cidade c o m o São
Paulo n ão é m u ito e stra n h o ? De vez em q u a n d o C aiu vai até a ja n e la de seu
a p a rta m e n to , espia os lad o s da V árzeas (q u e d e sa p a re c e u q u a n d o veio a M argi­
nal) e diz q u e ain d a lá está a Várzea.
Puxa!
E ele a in d a jo g a bola. 68 anos! N o m ín im o u m a vez p o r se m a n a , pega c h u -
teiras, m eias, calção e vai p ara u m c a m p in h o de areião d e b aix o da P o n te da Vila
G u ilh e rm e , jo g a r bola, a lg u m as vezes com seu am igo Paulo. O s dois j u n t o s
s o m a m 136 anos.
— A m ais an tig a d u p la em ação n o futebol m u n d ia l.
Ele ficou m e reclam ando: se fosse inglês, co m o este tal de sir Stanley M athews,
q u e m não iria falar dele? O u vocês sabem de o u tra ala esq u erd a em atividade,
com 136 anos? Jo g a colado na p o n ta esquerda, nas b o rd as do cam po, com o os
antigos p o n ta s jogavam . N ão corre sem n ecessidade, m as corre — e os ou tro s
v eteran o s e alguns rapazes n a d a tem a reclam ar de suas cru zad as precisas.
E ele m e c o n to u q u e foi criad o n a ru a A n h aia, p e rto da Vila C o n ceição , e ali
a t u r m in h a se re u n ia e jo g av a bola. Só p a ra v a m q u a n d o v in h a m as carro ças q u e
se g u iam p a ra as serrarias d o s C a m p o s Elíseos... M e n in o s do Bom Retiro. Iam
jo g a r bola n o C olégio Sagrado C o ração de Jesu s. Iam ao catecism o só para
jo g a r bola. M e n in o s d an ad o s! O c ateq u ista era o s e n h o r M en eses e os filhos
dele ta m b é m jo g a v a m bola. Tirava-se p a r o u ím p a r — e co m eçav a o b a te-fu n -
do, até q u e o c ateq u ista gritava:
— M en iiin o o o o sss!
“V am os m e n i n o s .” E b atia p alm as. Todo m u n d o co rria para o b e b e d o u ro . E
iam para as a ulas de catecism o. G a n h a v a m u m c u p o n z in h o e, n o fim do ano, os
m e n in o s q u e m ais c u p o n z in h o s tivessem g a n h a v a m presentes: sap ato , meia,
calça de b rim . Mas, q u a n d o tin h a m ais o u m e n o s 17 an o s, ele e m ais q u a tro
rap azes do O lím p ia foram jo g a r n o Palestra Itália.
— Vocês c o n h e c e m o jo g o .
Isto tin h a m o u v id o d o p a d eiro A fonso, do signore Felício, p a le strin o s ro ­
xos. Foi com os o u tro s rap azes d o B om Retiro... “e to m a m o s c o n ta do cam po.
N ão tin h a p ro b lem a. F o m o s jo g a r no extra. E em 1932 passei p ara o s e g u n d o
q u a d ro , q u e foi c am p eã o jo g a n d o n u m c a m p o o n d e está o Tietê (o Tietê não
existia — e to d o o jo g o da m e m ó ria destes h o m e n s passa p o r u m tem p o e p o r
u m espaço q u e m u d a r a m tan to !). Aí p o r o n d e corre o rio, c o rria m an tes os

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rapazes do C o rin th ia n s, do G erm ânia, do A m ericano, do Palm eiras da Flores-
la... Aí, Caiu foi cam p eão jo g an d o co n tra o Santos — e ele foi cam p eão em
1932, 1933, 1934...

Namoro às escondidas

— Você está vendo a M arginal? Pois eu vejo a Várzea.


“Isto era u m cam po... era a várzea, cheia de verde, de cap o eirin h as, de cava­
los soltos, de vacas soltas... Pobres das vacas! Q u a n d o eu aparecia lá com os
m eu s cachorros, e soltava m e u s cach o rro s, era um tal de vaca fugir, correr... E a
g em e ia para a várzea pegar c a n a rin h o , c h o p in h a , coleirinha, bartuíra... Caçava
e pescava o q ue queria. T inha u m c am arad a q u e era p escad o r profissional: dava
d u a s tarrafadas e já saía v e n d e n d o peixe. Levava u m a ratoeira para peixe... isto
é, u m a a rm ad ilh a, m as só botava na boca da n o ite, para n in g u é m ver. Podia
algum esperto ir pegar o peixe do h o m em . A lgum e s p iritu o s o .”
Lá vão teus m eninos, Bom Retiro, n u m barco alugado do velho Cecco — eles
co n tinuam neste barco, Bom Retiro; continuam . E pela luz que ilumina luas ruas
eles ju ra m que eram tantos os lambaris que saltavam nos barcos, só com o bater dos
remos... Mas lá onde é o cam po da Portuguesa, lá é que estava o reino das traíras,
que se ocultavam em certos cam inhos do rio, para devorar os lambaris de passa­
gem... Mas os teus m eninos, Bom Retiro, term inavam devorando as traíras — que
às vezes eram fisgadas com os peixinhos na boca... Mentira, mentira? Talvez algum
exagerinho. Os exageros da paixão que tu despertaste nestes senhores, não é? E ali,
na Ponte G rande era um a p o n tin h a que existia, de cinco ou seis metros. Não p e n ­
sem que dava para dois bondes passarem. U m sem pre ficava esperando no desvio.
E ju stam en te ali tinha u m porto de areia em que os teus m eninos iam pegar m uito
m andi-chorão — e era duro tirar o peixe do anzol, porque ele dava um as ferroadinhas
que valiam! E tinha a Ponte dos Amores, po r onde passava o trenzinho da Cantareira,
que saía da rua João Teodoro e seguia para G uarulhos (coisa que fez religiosamen­
te, até vinte anos atrás). Ponte dos Amores: era lá que se nam orava às escondidas.
Vocês im aginam estes pais de quarenta, cinqüenta anos atrás?

Rã à milanesa

E a lg u n s do s teus m e n in o s iam atrá s d as rãs — q u e as m ães faziam à


m ilanesa...
Até hoje, C aiu c o n ta certas h istó rias co m o se fossem segredos. E ram os
p e q u e n o s seg red o s d o s teus m e n in o s , Bom Retiro — q u e eles preservam m ais
do que n u n c a. E o n d e estavam as tuas cobiçadas rãs?

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“T in h a d u a s v aletas q u e v i n h a m d o c a m p o de aviação. E ra u m a ru a q u e
v in h a d e S a n ta n a , e q u e ch eg av a à V árzea. O b a r q u i n h o e n tra v a nas v aletas, e
seguia. Era só b o ta r u m farol de u m lado e d o o u tro . Era ir r e m a n d o e as rãs
fisgando. D e p o is, era a tra v e s s a r p o r b a ix o da p o n te e voltar. Até 1941, C arlo s
G iu sti esteve n e sta s p escarias. D e p o is c o m e ç o u a g u e rra . C o m e ç o u este m e d o
do p e sso a l; m e d o d as b o m b a s . Iam b o m b a r d e a r u m h a n g ar? U m dia de 1941.
U m a n o ite.
Q u a n d o estava n o m eio do c a m in h o p ara p egar rã, o so ld a d o a p o n to u o
carab in o te.
— E sto u p e g a n d o rã, qual é o p ro b lem a? — falou Caiu.
— M as é pro ib id o .
— N u n c a n in g u é m m e in c o m o d o u . Faço isto há tan to s anos.
— Agora, a o rd e m é atirar. E o m u la to q u e e n tra à m e ia-n o ite, não d iscu te:
atira.
— O ra, m e u n e g ó cio é p e g a r rãs. A lg u m a coisa devo fazer n a vida, não?
M as se o neg ó cio é assim , p o r causa da guerra... M u ito obrig ad o ... N ão vou
ficar até a m eia-n o ite. M as se p u d e r avisar o seu colega...
Os teu s r a p a z e s n ã o te e s q u e c e m , Bom R etiro. N ão e s q u e c e m n e m m e s m o
os la m p iõ e s a gás, q u e d e s a p a r e c e r a m n o c o m e ç o d o s a n o s 30, q u a n d o a Light
c h e g o u ; n ã o e s q u e c e m a n e b lin a , a g a ro a q u e caía em 1935, 1936 q u a n d o
c h e g a ra m as p r o s t i tu t a s n o s furgões da p o líc ia d e A d e m a r de B arros, o gover-
n a d o r- d ita d o r , e fo ram jo g a d a s , p e la d a s , n u i n h a s , n a s tu a s ru a s — a A im o rés,
a Itab o c a, a R ibeiro de L im a — p a ra e s p a n to , p a ra h o r r o r d o s ita lia n o s, q u e
fu g iram d o e sc â n d a lo de ter a z o n a n a s tu a s e n tr a n h a s . Infelizes a n o s 30! Foi
p o r aí q u e a N i t r o q u ím i c a de São M ig u e l c o m e ç o u a m a ta r as traíras, os
la m b a ris, os p e ix e s do teu rio.
Aí, u m certo Bom Retiro co m eçav a a m orrer.

T e m p o II

O bairro de Szm ul, de Isaac, de Jacob, do bcigale, do aren q u e, das dez sinagogas.
U m dia, o B om Retiro ita lia n o c o m e ç o u a re c e b e r os j u d e u s . Isto foi p o u c o
d e p o is do c o m e ç o do sé c u lo m as , p o r a lg u m a s d é ca d as, d u a s , três, o “ju d e u "
n e m era b e m c o n h e c id o . Era C h a m a d o d e “ru s s o da p r e s ta ç ã o ” . E to d o s era m
“r u s s o s ” , os p o lo n e s e s , os da B essarábia, da U c râ n ia — o u até os ru sso s! C o m
estes im ig r a n te s , c h e g a v a m u m a n o v a religião, o p a la v re a d o iíd ic h e, alegres
c a n ç õ e s hassíclicas, a lg u n s r e v o lu c io n á rio s , u m a tra n s fo rm a ç ã o n a in d ú s tr ia
p a u lis ta , e e stes tip o s q u e e s p a n ta v a m seus freg u eses, v e n d e n d o
p a rc e la d a m e n te “p a ra g e n te q u e n e m c o n h e c i a m ”...

319
Um dos prim eiros barbeiros ju d e u s do Bom Retiro foi Szmul Sajwel Wajzfeld,
que ainda c o n h ec eu o Bom Retiro d o s lam piões. Ele leve u m a barbearia na rua
Prates, com d u as cadeiras, que recebia m u ito s patrícios — com os quais podia
ao m en o s falar, p o rq u e não sabia u m a palavra de p o rtu g u ês, no co m ecin h o .
Hoje, ele ainda tem um a barbearia na Ribeiro de Lima; c h eg a n d o aos 80 anos,
veste o avental branco, m as não se arrisca a c o rtar cabelos, m u ito m en o s a fazer
a barba dos fregueses.
Szmul não seria famoso no Bom Retiro só po r sua arte com a tesoura ou a
navalha. Lá na aldeia d e ja m o w , na Polônia, de onde veio, ap ren d eu , com o pai,
m uitas coisas... O velho Wajzfeld en sin o u a ele e aos quatro irm ãos coisas m uito
diferentes. Todos eram músicos, barbeiros e fotógrafos. Se ele, d u ra n te os dias,
era barbeiro, podia ser, em noites especiais, músico. Violinista de alegres canções
folclóricas dos ju d e u s da Europa O riental, b rilh o u em jantares e c asam entos com
a O rquestra que criou (Samuel e sua O rq u estra), q ue se aventurava até pelos
tangos, valsas e sambas.
A m úsica é coisa do passado. Há três anos, o velho Szmul v en d eu seu violino.

Isaac partiu

U m dia, Isaac N aspitz viu-se n u m navio c h eg a n d o ao o u tro lado do oceano.


Ele tinha u m irm ão em São Paulo, c h eg ad o a São Paulo no co m eço d o s a n o s 20.
O u tro s patrício s da P olônia p a rtiam das aldeias, em q ue n ã o viam n e n h u m
futuro, e a in d a sofriam p erseguições, para vir para a “A m é ric a ”. U m am igo de
Isaac disse p ara o c o m a n d a n te do navio q u e q u eria a A m érica — e iria descer
no p rim eiro p orto. Foi p a ra r no Recife!
S e c u re m i n ã o era só u m a a ld eia. E ra u m a p e q u e n a a ld eia. Sua ú n ic a
i n d ú s t r i a era u m m o in h o . Sua m a i o r a le g ria era a feira p a ra o n d e ia, u m a
vez p o r s e m a n a , g e n te d e a ld e ia s a in d a m e n o r e s , c o m p r a r m a n t i m e n to s ...
c o m o o a r e n q u e , u m tip o de p e ix e q u e os j u d e u s de to d a a São P a u lo vão
b u s c a r na r u a da G raça... O s m e n i n o s de S e c u re m i — os m e n i n o s j u d e u s —
a p r e n d i a m a lg u m a coisa c o m o h e id e r, q u e lh es e n s in a v a em m e s a s c o m p r i ­
das, em casas e s c u ra s , e ai de q u e m n ã o a p r e n d ia logo. O v e lh o — c o m o os
p ro fesso res da ép o ca, em to d as as p a rte s — ach av a q u e u m a s p a lm a d a s a ju d a ­
v am a fazer a c a b e ç a p e n sa r. E n o s á b a d o o h e id e r ia de casa em casa d o s
g u ris, p a ra fazer a s a b a tin a .
O s pais deliciavam -se com os m e n in o s , q u a n d o acertav am as p e rg u n ta s do
heider. E a ch av am q ue eles iam ter u m fu tu ro b rilh a n te . Mas q u e fu tu ro ia ter
Isaac, na loja d e M en ach e Peres, c o m o balconista? N ão q ue a loja fosse p e q u e ­
na; era a m a io r de Securem i. Mas isto bastava?

320
Velho Leibe, o gaúcho...

A lg u n s d o s p rim e iro s j u d e u s do Bom Retiro v iveram , n o c o m e c in h o do


século, n u m a co lô n ia do Rio G ra n d e do Sul. E ram p esso as m u ito pobres. Vi­
n h a m da Rússia, o n d e era m p e rs e g u id o s n o s progroms.
T en taram c o n s tr u ir u m a n o v a vida n o Sul do Brasil, o n d e a A gência Ju d a ic a
de C o lo n iz aç ã o lhes c o m p ra ra u m a terrin h a. M o ra ram em galpões. P o u c o sa b i­
am de a g ric u ltu ra. C o n s tr u ír a m com os m e n o re s re c u rso s u m a sinagoga, q ue
e sp an ta v a os p eõ es g a ú ch o s. G a n h a ra m de j u d e u s da L etônia u m a Torá, os
rolos sa g rad o s de su a religião. E foi lá q u e o v elho Leibe a p re n d e u as p rim e ira s
lições de su a religião. M ais tarde, veio p a ra São P aulo e foi — claro — p ara o
Bom Retiro. C o n h e c e u as trad içõ es italianas. O u v iu h istó ria s de p atriarcas ita­
lianos. C o n h e c e u litu a n o s q u e viviam em p o rõ e s — qu e, n o s sáb ad o s, d ep o is
de fo rm id áv eis b eb ed e ira s, b rig av am com su as m u lh e res . In icio u -se m ais f u n ­
do em su a p ró p ria religião. E é ele q ue dirige as rezas n o s sáb ad o s da sinagoga.
C o n h e c e tan tas orações.., E q u a n d o passa pelas ru a s d o Bom Retiro to d o s o
c o n h e c e m . J u d e u s e n ã o ju d e u s . O s b ilh e teiro s italian o s se a p ro x im a m do ve­
lh o Leibe e lhe falam em iídiche. Se é o sáb ad o , e a religião lhe p ro íb e de levar
d in h e iro , o b ilh e teiro enfia u m b ilh e te in teiro n o b o lso do v elh o Leibe. E o
v elh o re s p o n d e à su a sa u d a ç ã o c o m u m a risada. “C o n tin u e trein an d o , o seu
iíd ich e está cada vez m e lh o r .” O v elh o Leibe lava os cadáveres d o s fiéis de sua
religião — trad ição m ilenar. E h á u m a p iad a s o tu r n a q u e co rre pelo B om Retiro
ju d e u : “Se o v elh o Leibe te olha c o m m u ita atenção... cu id a d o ... ele p o d e estar
m e d in d o o teu c o r p o .”

Estranho Bom Retiro

O v elho Leibe q u a n d o passa p elo Pletzale é s a u d a d o com as h o n r a s de u m


g ra n d e p e rso n a g e m . Pletzale q u e r dizer, em iídiche, p rac in h a. E a “p r a c i n h a ”
d o s v elh o s j u d e u s d o Bom Retiro é na e sq u in a da R ibeiro da Lim a c o m a ru a da
G raça — c o stu m e q u e vem de m u ito tem p o . H oje, ou m elh o r, h á dois an o s, o
b a r do Pletzale é a L a n c h o n e te Benny, de p r o p rie d a d e de u m a família — os
C h e n g — chinesa, q u e vivia na África negra, em M o çam b iq u e. E é ali n o Pletzale
q u e estes v elh o s j u d e u s v êm c o m e n ta n d o , n o s ú ltim o s an o s, a ch eg ad a de n o ­
vos im igrantes: os gregos, os coreanos.,.
Os j u d e u s das n o v a s gerações n e m sa b em q u e , a n tig a m e n te , o Pletzale n ão
era b e m ali. C h e g o u a ser n o Bar e B ilhar C arlos e n o Bar C aciq u e, e, m ais
r e m o ta m e n te , n o Bar e R e stau ra n te do Ja co b , na Jo sé P a u lin o — p o n to de r e u ­
nião q u e atraía os j u d e u s do in te rio r de São P aulo, n o s a n o s 30, 40,,. A h o n e s ­

321
tidade da co m id a do Jaco b , de seu pão preto, de su a s azeitonas, de seus peixes
d efu m ad o s, é sem pre lem brada pelos j u d e u s p io n eiro s do Bom Retiro.
Mas, hoje em dia, no Pletzale, os v e lh in h o s gostam de b o ta r um p o u c o de
m aldade nestas rem iniscências. Dizem, p o r ex em p lo , q u e u m patrício, c h e g a n ­
do do interior, foi ao Bar do Ja co b — e falou ao p ró p rio J a c o b q u e estava com
v o n tad e de co m er u m peixinho...
Mas, q u a n d o co m e ço u a comer, estrilou.
— Mas, Jacob, este peixe não está bom ... E eslava tão b o m , na se m an a
passada...
— Pois eu te j u r o q u e é o m esm o peixe...
Aos d o m in g o s, p rin c ip a lm e n te se faz sol, eles vestem os m elh o res ternos, e
às nove da m a n h ã vão para o Pletzale. O Bom Retiro é o ú ltim o lu g ar de São
Paulo em q ue m u ito s h o m e n s u sam c h a p é u s — co stu m e , q u ase u m ritual para
os velhos j u d e u s da E u ro p a O riental. O Bom Retiro tem até u m a fábrica de
b o n é s — p o rq u e eles tam b ém g ostam de belos bonés. N o Pletzale, eles falam de
negócios, falam de política, lem b ram velhas h istórias do Bom Retiro, do s te m ­
pos da E uropa, do s c am p o s de c o n ce n tra çã o nazista (p o r o n d e u m ou o u tro
p a sso u ), e ficam m u ito n erv o so s q u a n d o a ch am q u e Israel passa p o r algum
perigo — p o rq u e q u ase to d o s passaram p o r p erseg u içõ es na E u ro p a e se n tem
Israel co m o u m a espécie de lar ideal para os ju d e u s . M istu ra m iídiche com
p o rtu g u ê s, e falam g ritan d o . G esticu lam e ficam v e rm e lh o s e te rm in a m a c h a n ­
do e n g raçad o tu d o o q u e a co n tece n o s d o m in g o s do Pletzale. “Isto aqui é a
nossa o n u ”, dizem , irô n ic o s c o m o os j u d e u s sab em ser. Mas n e m to d o s os d o ­
m in g o s são divertidos. De vez em q u a n d o , quase s e m p re pelo M echalle, v e n d e ­
d o r de giletes, e “R ep ó rter O s s o ” do Bom Retiro (em alusão ao fam oso p ro g ra ­
m a de notícias “R epórter E sso ”), eles ficam s a b e n d o q u e u m deles foi in te rn a d o
no Lar d o s Velhos J u d e u s , na Vila M ariana, p o rq u e, porq u e... (Q u a n ta s razões
levam u m velho a ser in te rn a d o ? ) O u en tã o q u e u m deles m o rre u , e p asso u
pelas m ão s do velho Leibe — fatalidade? E o Pletzale, de u n s cinco a n o s para
cá, está cada vez m ais vazio.
Dizem que alg u n s j u d e u s q u e era m do Bom Retiro agora estão se r e u n in d o
em H igienópolis, p e rto da Praça B uenos Aires. Ali é u m novo Pletzale?

Duas saudades

N o Bom Retiro co sm o p o lita de hoje, as histó rias do p assad o ficaram no


im aginário de velhos italianos e velhos ju d e u s . Dos italianos, é u m tem p o q ue
com eça com o século e vai até os a n o s 30, co m eço do s 40 — às vezes, um
p o u c o além. N os ju d e u s , se inicia q u ase s e m p re n o s a n o s 30 e se am p lia no

322
p e río d o p o ste rio r à G ra n d e G u e rra, q u a n d o m u ito s p a trício s c o m e ç a m a vir
d o s h o rro re s da E u ro p a, e o Bom Retiro j u d e u a m p lio u -s e e x tr a o r d in a r ia m e n ­
te, e o Pletzale b r ilh o u c o m o n u n c a . E m b o ra as co n v ersas, em 1946, 1947,
1948, fossem tão tristes: e ra m relatos so b re os c a m p o s de c o n c e n tra ç ã o , o n a ­
zism o , os p a re n te s e os am ig o s m o rto s , p o d e ria ter-se n otícia de coisa p ior?
M as há u m território c o m u m nesse relatos do passado do Bom Retiro, que
em erge de ju d eu s q u e foram crianças no bairro, nos an o s 30. “Todos nó s éram os
filhos de im igrantes p o b re s“ — co n ta o intelectual Jaco b G u i n s b u r g — , ue fomos
ig u alm en te criados n a rua, p e n d u ra d o s nos b o n d e s, c o rre n d o pelas ruas, jo g a n ­
do bola no s cam p in h o s, na várzea, o n d e b rin cá v am o s e brigávam os, e q u a n to ! ”

Os filh os de Meneghetti

“A briga era para valer, e n ão era só a soco; tam b ém brigávam os com ronquei-
ra, u m a arm a q u e era feita com cápsulas deflagradas de fuzis da Revolução de
1924 — p o rq u e a R evolução de 1924 foi ali — e s o b ro u u m a q u a n tid a d e im ensa
de cápsulas deflagradas e tam b ém p o rq u e o q uartel da Força Pública era logo ali,
n a avenida T iradentes. Em 1930, p o r ex em p lo , g a n h a m o s pentes de bala dos
soldados... a gente, então, tirava a p o n ta, fazia u m talo na cápsula, socava pólvora
e sal, e q u a n d o íam os caçar p ú n h a m o s b o lin h a s de c h u m b o . Mas a o u tra m an eira
de fazer isto, q u e era m ais perigosa, era com cano de g u arda-chuva. Aí, a co n teci­
am desgraças. Eu m e sm o vi u m m e n in o p e rd e r dois dedos. Porque, é claro, a bala
de fuzil ag ü en tav a a d eto n ação , e o cano do g u ard a-ch u v a, n ã o .”
As tro c in h a s — os b a n d o s de m e n in o s do Bom Retiro — re u n ia m g uris
italian o s e ju d e u s . N a q u ele Bom Retiro, tu d o parecia possível. “Lá o n d e eu
m o r a v a ” — lem b ra Ja c o b G u i n s b u r g — “e lá na e sq u in a da ru a A m a zo n a s com
a G u a ra n i, eu era v izin h o d o s d o is filhos d o fam oso lad rão ro m â n tic o , G ino
M e n eg h e tti, c h a m a d o s S p artacu s e L e n in e .”
(São P aulo in te ira a c o m p a n h a v a as p ro ez as de G in o M en eg h etti, q u e se
dizia ter p e rn a s de m ola, q u e lhe p e rm itia m c h eg a r a q u a lq u e r lu g ar q u e q u i ­
sesse... E ele ro u b av a as m ais finas m a n s õ e s e fugia n a s m ais ro cam b o lescas
p erip écias de q u a lq u e r cárcere... E era o R obin H o o d de São P aulo — era isto
q u e se dizia. Mas o n d e se falava m ais de G in o M e n eg h e tti, se n ão n o s bairros
italianos, c o m o este Bom R etiro?)
O b a n d id o n u n c a aparecia p a ra ver os filhos — n e stes a n o s estava c o n fin a ­
do a u m a solitária e g ritava, à n o ite, p a ra q u e todos, policiais e b a n d id o s , o u v is­
se: “Io so n o u n u o m m o . ” ( “Eu s o u u m h o m e m .”) Mas, lem b ra G u in sb u rg ,
“cada vez q u e ele era ju lg a d o , era u m a festa. A g e n te sabia cio ju lg a m e n to p o r ­
q u e os filhos saíam to d o s e n ca p elad o s, para ver o ju lg a m e n to d o pai.

323
“Iam m u ito chiques, a rru m a d o s pela avó, um a s e n h o ra italiana severa, que
cuidava deles m u ito bem . O fato de serem filhos do M eneghetti não os abalava:
eram m e n in o s co m o os outros."
No com eço dos a n o s 30, as características ju d aica s ainda não tin h a m se
a c e n tu a d o no Bom Retiro. O n ú m e r o de im igrantes c o m e ço u a crescer d o s anos
30 para a frente, e cresceu m u ito ao ap ro x im ar-se a g u erra — e mais ainda
dep o is da guerra. In d istin ta m e n te , os m e n in o s j u d e u s e italianos eram a p a ix o ­
nados p o r futebol, isto é, pelo C o rin lh ia n s e pelo Palestra Itália. “Mas aí havia
u m a p e q u e n a d istin ç ã o ” — diz G u in sb u rg . “Q uase to d o s os m e n in o s ju d e u s
eram co rin tian o s, e n q u a n to quase todos os italianos eram do Palestra. Mas,
neste tem p o , no sso s pais eram c h a m a d o s m esm o era de 'ru sso s d a p restação ’. E
só com o co rrer dos a n o s 30, com o in teg ralism o no Brasil, com a su b id a de
H itler na A lem an h a etc., é q u e c o m e ço u a se falar m ais no ‘j u d e u ’. Afinal, estes
m e n in o s to d o s do Bom Retiro eram iguais. Iguais e tre m e n d o s .”
“Na rua em q u e eu m o rav a — a A m azo n as — havia casas m elh o res e casas
m ais pobres. M in h a tia era u m a m u lh e r m ais d o q ue rem ediada. M eu avô veio
para o Brasil antes da g u e rra de 1914; ele faleceu e ela m a n tin h a o resto de sua
fortuna. E ntão, nó s m o ráv a m o s nessa casa com ela. Era u m a casa e n o rm e , com
u m q u in ta l im en so , enfim , corno essas casas antigas, tão gostosas. Ao lado de
nossa casa, estava u m c o n ce ssio n á rio do serviço de re s ta u ra n te Paulista. Era
u m h o m e m rico, e o filho dele era m édico. O filho dele b rincava co n o sco e m ­
b o ra tivesse u m status diferente. E ao lado estavam os filhos de G ino M eneghetti,
e na frente u m sapateiro, e, bem perto, m o rav a u m h o m e m q u e trabalhava na
Estação da Luz co m o carregador. E ntão, essa era a co m p o s iç ão de nossa rua... E
a p a rtir de 1931 ch eg a ra m os litu an o s, q u e foram , em su a m aioria, m o ra r em
porões, q ue tin h a m u m a s ja n e lin h a s q u e d av am para as r u a s .”

Análise da comunidade

N o co m eço d o s a n o s 30 — lem b ra G u in s b u rg — a c o m u n id a d e israelita era


m u ito dispersa, e m b o ra “existissem alg u n s focos de ag lu tin ação (cem itério,
cooperativa, escolas). Havia tam b ém a relação e co n ô m ic a q u e era m u ito im ­
p o rtan te. O s q u e não tin h a m ofício, q u a n d o v in h a m para cá, iam trab a lh a r à
prestação. (Ter u m a loja q u e ria d izer estar bem de vida.) M as o im ig ran te re­
cém -ch eg ad o ia à loja do patrício e o b tin h a u m crédito. Recebia e n tão alg u m as
peças de fazenda, p o r e x em p lo , e ia b ater de p orta em p o rta, fazendo u m a coisa
q ue era c h a m a d a ‘c la p m ’, em iídiche. ‘C lap m it’ q u e r d izer b a te r à porta. E ntão,
era assim q u e eles com eçavam . Havia u m a d e p e n d ê n c ia e co n ô m ic a p o r parte
dos m ais p o b res q u e v in h am , d o s im igrantes. Agora, os q u e tin h a m m ais c ap a ­

324
c id ad e com ercial, astúcia, h ab ilid ad e , claro q u e d e s la n c h a v a m logo. Agora, s u ­
p o n h o q u e os lib an eses ou sírios a n te c e d e ra m aos j u d e u s neste trab a lh o de
v e n d e r à p restaç ão — o u te n h a m sid o c o n c o m ita n te s , n ã o sei. E esse trab a lh o
teve u m m é rito m u ito g ra n d e p o rq u e , na realidade, foi o p rim e iro sistem a de
cap tação p ara o m erc ad o , de in tro d u ç ã o n o c o n s u m o de u m a faixa q u e estava
to ta lm e n te fora d o m ercad o . E x istem m u ita s p iad as so b re os v e n d e d o re s à p res­
tação, m u ita h istó ria em q u e eles ap arec e m se n d o rec eb id o s na casa p o r u m
m a rid o de revólver na m ão, m as a v e rd a d e é q u e eles tra b a lh a ra m d u ro , e que
b o ta ra m m u ita coisa na m ão de se u s clientes: g u a rd a -c h u v a s , colchas, ro u p as,
m óveis... E que, n o com eço, eles n ão sabiam se q u er falar p o rtu g u ês, e e n tão se
m etiam em trap alh ad as colossais! E é aqui no Brasil q u e as m u lh e res e n tra m em
cheio n o trabalho fora de casa. É verdade qu e, n a P olônia, a m aioria das m u lh e res
tom ava co n ta das lojas, e n q u a n to os m arid o s se d ed icav am m ais ao culto religio­
so. Mas, n a s c o n d içõ es em q u e v in h am para o Brasil, eram o brigados a e n tra r no
m ercado de trabalho, n ão só na loja co m o nas oficinas. Eu m e lem bro de que,
naq u ele tem p o , já havia notícia de alg u n s ju d e u s q u e ‘estavam b e m ’, co m o os
Tabacow. E que u m a das coisas q ue m ais foram c o m e n ta d a s n o s an o s 30, pelo
Bom Retiro ju d e u , foi o c asa m en to da filha do fam oso co m e rcian te .”

O mundo se transform a

À b eira da S e g u n d a G u e rra M u n d ia l, o Bom R etiro assiste às su as b a ta lh a s


particu lares.
O s in te g ralistas — s im p a tiz a n te s do n a z ism o — a ta ca v am os m e n in o s j u ­
d e u s n as escolas. E o revide d o s j u d e u s era feito co m o a p o io de o rganizações
de esq u erd a. “H o u v e até u m rap a z j u d e u ” , evoca G u in sb u rg , “q u e m o rre u b ale­
a d o n a a v en id a P aulista, em 1937, q u a n d o os in teg ralistas te n ta ra m desfilar
com su a s fardas e b a n d e ira s , e foram c o rrid o s p elo s d e m o c r a ta s .”
N este te m p o , G u in s b u r g era u m ra p a z in h o , m as à su a casa se m p re c h e g a ­
vam n o tíc ias da E u ro p a, cartas de p are n tes , q u e in fo rm a v a m q u e tu d o ia tão
mal. A situ aç ão e c o n ô m ic a n ã o p o d ia ser p io r e o fascism o av ançava cada vez
m ais, c o m u m a n ti-se m itis m o d eclarad o . Era assim na Po lô n ia, na Bessarábia,
na L itu ân ia, na Letônia... P o r to d o s estes países, o fascism o avançava — e as
cartas c h e g a n d o , e m u ito s j u d e u s tam b ém .

Os tipos do bairro

H avia m e d o , é certo, e u m a p a rte do co ração estava n a q u elas cidades e


aldeias em q u e o m u n d o d e s m o ro n a v a , n a E u ro p a. M as o Bom Retiro das h is tó ­

325
rias dos mais velhos é sem p re um lugar em que eles p o d ia m se se n lir lão bem...
U ma parte do m u n d o do passado havia atravessado o o ceano com eles. A lguns
o rto d o x o s an davam pelo Bom Retiro com seus trajes negros, suas barbas lo n ­
gas — e os guris italianos não p o d ia m d eix ar de rir. Feio era o dia de m a lh a r o
Ju d as. Inevitavelm ente p o d ia haver b aru lh o . Às vezes, havia.
Mas nas ruas do Bom Retiro, os grilos dos vendedores de iguarias italianas se
co n fu n d iam com os de tipos m u ito judaicos, com o o v e n d ed o r de beigale, que às
três da tarde partia da José Paulino e chegavam à Santa Ifigênia, sem pre gritando:
— Beigale! Beigale!
Este d o cin h o de sem en te de papoula anim ava o p obre do v e n d ed o r à presta­
ção ou o alfaiate ou o m otorista de táxi ou os agitados carregadores de pacotes —
todos eles ju d e u s — que reencontravam no beigale u m sabor secular e familiar.
Mas tam b ém era c o m u m se e n co n trar o tecelão ju d e u , ou o sapateiro ju d e u que
passavam o tem po cantarolando m u siq u in h a s de suas aldeias (com o era o caso
de Haskl). E havia ainda os q ue trouxeram técnicas novas para a in d ú stria da
m alharia, os d o n o s de padarias e p e q u en o s em pórios, e tantos tipos mais...
Eliezer Levin evoca, num livro de crônicas sobre o Bom Retiro, histórias e tipos
do baitTo em que o seu lado ju d eu foi crescendo, pelos anos 40. “Devo a Reb Shulem ”
— diz Levin — “os primeiros rudimentos da Bíblia. A imagem ficou-me como a de
alguém muito íntimo dos personagens daquele livro sagrado”. Red Shulem não se
limitava a traduzir fiel e secamente o texto hebraico: intercalava longos comentários,
belas histórias, ricas descrições; alçava do Bom Retiro aos longínquos ermos da Ásia,
num cenário onde viviam e sonhavam os patriarcas Abraão, Itchac e Iacoov.
— D ebaixo de u m céu co alh ad o de estrelas, eis o ancião h e b re u a c o n te m ­
p lar a gran d eza de D eus e a o u v ir u m a voz q ue lhe su s su rra v a aos o u v id o s que,
entre ele e o C riador, havia u m p acto eterno. “O lh a as estrelas se p u d e re s contá-
las. E disse-lhe: Assim será a tua s e m e n te .”
Suas palavras desfiavam com suavidade, faziam -nos e sq u ec er de q ue está-
vam os n u m a sim ples sala de aula.
Ao c o n trá rio do s d em ais m estres, n ão usava o “m é t o d o ” de b a te r (...) Reb
Shulem m orava não m u ito longe, n u m miserável casebre, u m c o n ju n to gem inado
su jo de pátina. E m igrara da Polônia havia alg u n s anos. Sabe lá D eu s com q ue
sacrifício p ro cu ra v a adaptar-se ao novo estilo de vida.
N o p ercu rso diário de casa para a escola, sua figura original atraía a atenção
d o s m o le q u es q u e se p u n h a m a persegui-lo. O cap o te e n o rm e , o ch ap e u zã o , a
b arba eram n o v id ad es para eles.
— Lá vai o j u d e u , ladrão de crianças — gritavam .
Red S hulem ouvia-os sem c o m p reen d er. A lguns a d u lto s a c o m p a n h a v a m as
risotas dos m en o re s e lhe a p o n ta v a m o dedo. Ele os olhava, im passível.

326
O estranho cachorro

“Todas as n o ite s ” — c o n ta Eliezer Levin — “era c o m u m v irem à nossa casa


u n s casais de professores, colegas de m e u pai; os a s s u n to s via de regra giravam
em to rn o de n o tícias, e sta m p a d a s n o s jo rn a is , so b re a p e rs eg u iç ão aos j u d e u s
na A le m a n h a. Pairava em to d a a E u ro p a a am eaça da g u erra. E q u e m de n ó s
n ão tin h a p a re n te s p o r lá? ”
“P o r vezes, m a m ã e refugiava-se n a c o z in h a , o n d e eu a su rp re e n d ia e n x u ­
g a n d o os o lh o s ch eio s de lágrim as.
“C o m ecei a in te ressa r-m e pelo assu n to : desejava sab er q u e m eram os p e rs e ­
g uidores.
“M eu o u v id o a te n to c a p to u u m n o m e re p e tid o várias vezes: Elitler. Devia
ser este o tal. O q u e eu e stra n h a v a é q u e o p ro n u n c ia v a m s e m p re a c o m p a n h a d o
de cac h o rro . Isto m e fez s u p o r q u e se tratava re a lm e n te de u m c ach o rro .
“Eu n ão p o d ia c o m p r e e n d e r co m o , e de q u e je ito , u m sim p le s cac h o rro
p o d ia fazer ta n to m al ao n o sso povo.
“Q u e raio de c a c h o rro será e s te ? ”, p e rg u n ta v a -m e d e ita d o na cam a, sem
p o d e r d o r m ir .”

Nos tempos cia guerra

Até 1 9 4 2 -1 9 4 3 , s e g u n d o Ja c o b G u in s b u rg , n as ro d as de in telectu ais do Bom


Retiro ( o n d e h avia revistas e jo r n a is ju d e u s , e m u ito s clu b es sociais e políticos)
a in d a n ã o se sabia e x a ta m e n te o q u e aco n tec ia com os j u d e u s n a E u ro p a. Só em
1 9 4 4 -1 9 4 5 é q u e a coisa c o m e ç o u a aflorar, co m as in fo rm a ç õ e s so b re os c a m ­
p o s de c o n c e n tra ç ã o .
E, d u r a n te a g u e rra , c o m o é q u e vive o Bom Retiro, o u m elh o r, os j u d e u s e
italian o s d o bairro?
— E n tre os italian o s — diz Já c o b G u in s b u r g — havia u m a certa in fluência
do fascism o, m a s era u m a coisa difusa. É claro q u e a lg u n s torciam pela Itália, e
q u e o fascism o m a n ip u la ss e . M as n ã o se p o d e d izer q u e te n h a h a v id o u m a
posição, p o rq u e n a d a obrigava a colô n ia italiana a se p o sic io n a r de m o d o m u i ­
to decisivo. P o r e x e m p lo , os s e n tim e n to s j u d e u s em relação à Itália se m p re
foram b a sta n te s am isto so s. A g en te se n tiu , sem sab er efetiv am en te, q ue o povo
italian o n ão eslava c o m p a c tu a n d o com a coisa.

Encontros desencontros

E n tre a lg u n s v elh o s italian o s ficou o s e n tim e n to de q u e eles p e rd e ra m o

327
Bom Retiro. E n tre a lg u n s v elh o s ju d e u s , ficou o s e n tim e n to de q u e o m e lh o r do
Bom Retiro já m o rreu . A lg u n s velhos italian o s ficam re sse n tid o s q u a n d o se fala
n o s a n o s 30. Foi nesta ép o ca q u e as p ro s titu ta s foram jo g a d a s em três de su a s
ru a s m ais im p o rta n te s. As fam ílias italian as fugiram do bairro. O s j u d e u s tra z i­
am a lg u m d in h e iro da E u ro p a e c o m p r a r a m su a s casas. Foi assim ?
Mas, ao longo d o s a n o s 40, talvez pelas m e s m a s razõ es — as p ro s titu ta s a
d a re m m á fama ao b a irro — , famílias ju d ia s ta m b é m c o m e ç a ra m a sair do Bom
R etiro. F o r a m p a ra H ig ie n ó p o lis , p a ra os J a r d i n s — a lg u m a s até p a ra Vila
M ariana, e para o u tr o s p o n to s da cidade. “M as o c o ração de m u ito s d eles ficou
n o Bom R etiro ” , diz o a d v o g a d o Carol G o ld ste in . “Q u a n d o eles q u e re m u m
b o m p ão p reto , u m a boa c o m id in h a d o je ito q u e a avó d eles fazia, o n d e é q u e
eles têm q u e v ir ? ” E vai até a ja n e la de seu e scritó rio na ru a da G raça e a p o n ta
para baixo: “É a q u i.” Logo à frente d o escritório fica o p o rã o z in h o o n d e d o n a
Sara há m u ito s a n o s faz u m a das m elh o res c o m id as ju d a ic a s do bairro. N a Ribei­
ro de Lima, fica o re s ta u ra n te E uropa. E b e m perto, n u m p e q u e n o negócio, o
búlgaro A lberto Levy elabora coalhadas, io g u rtes e q u eijo s tão sen sacio n ais que,
n o s tem p o s em q u e viveu em Israel, faziam a s e n h o ra G olda M eyr m a n d a r seu
m o to rista p a rticu la r ro d ar q u a re n ta q u ilô m e tro s para trazê-los, diariam en te.
M as a lé m d o s vareneques, krepeles, p e ix e s d e fu m a d o s , a re n q u e s e borshts do
lado j u d e u d o Bom Retiro, a su a h e ra n ç a italian a lhe g a ra n tiu a lg u m a s das
m e lh o re s c a n tin a s de São P a u lo — a d as m ais a n tig as, c o m o a L ucca, q u e tem
seg red o s q u e A ttílio B en ed itin i n ã o revela, c o m o a a rte de se u n h o q u e . E as
c a n tin a s M o n te Verde, O u r o B ranco, M o n te N eg ro e M o n te C astelo ta m b é m
são c o n s id e ra d a s e x c e p c io n a is (e tra n q ü ila s).
Este é o B om R etiro d e hoje, n o m e io d o s a n o s 80, 2 5 .1 0 9 h a b ita n te s , q u i ­
n h e n ta s m il p esso a s c o rr e n d o p o r su a s ru a s d ia r ia m e n te , s e ss e n ta e o ito to n e la ­
d as de lixo, em cada dia. D ez sin a g o g as, três igrejas, d o z e escolas. Pela ru a
A im o rés e ad ja cê n cia s, a lg u n s c o m e rc ia n te s g reg o s a b rir a m u m a s lojas m u ito
b o n ita s. P o r lo d o o b airro , os c o re a n o s tra b a lh a m e m clãs, in tr o d u z e m n o v a s
técn icas co m e rciais e in d u s tria is . O s ita lia n o s a n tig o s falam c o m s a u d a d e s do
te m p o em q u e o L uso-B rasileiro era u m d o s m ais fam o so s c lu b e s de São Paulo.
O s m e n in o s de h o je em dia n ã o p o d e m im a g in a r q u e a n tig a m e n te h av ia a vár­
zea, c o m c a m p o s , lagos e u m rio p a ra jo g a r bola, caçar, pescar. H oje, o C o rin -
th ia n s d o Bom R etiro, q u e su rg iu em 1926, está m o r r e n d o , p o r q u e n ã o te m u m
c a m p o p a ra jo g a r futebol.
— M as eu lhe j u r o — m e diz C aiu , o m ais a n tig o j o g a d o r de b o la d o Bom
Retiro — q u e os v e lh o s d o Bom R etiro a in d a v ê m à várzea, e q u e nela, de vez
em q u a n d o , n ó s a in d a e sta m o s, n e m q u e seja s o n h a n d o , p e s c a n d o traíra, ca ­
ç a n d o rã, a n d a n d o de barco... O s e n h o r d u v id a?

328
o rd en a o caos (c escreve, en cad ean d o
os fatos com o são encadead as as p a ­
lavras). P orque o rep ó rter sen te, as
rep o rtag en s em o cio nam . P orque ele
e n ten d e, elas in form am . (In fo rm a ­
ção. não cu sta repetir, é um d ad o que
co n tém sen tid o para o leitor. O u não
será in fo rm ação, m as ap e n as um d a ­
d o a m ais, perd id o .)
Mas o jo rn alism o lida com um tipo
especial de inform ação. A arte da re­
portagem , neste ponto, é a de trazer a
luz a inform ação que é notícia —
aquela cujas repercussões tendem a al­
terar a expectativa dos fatos futuros.
As reportagens aqui reunidas por
Igor Fuser chegam até nós com o um
alerta. Vivemos um m om ento em que a
im prensa proporciona um a gigantesca
oferta de dados, mas carece de infor­
mações; anda atulhada de opiniões,
mas raquítica em visão de m undo; lisia
fatos e mais fatos, mas quase não tem
reportagem . A reportagem só é arte (e
bom jo rnalism o), qu and o foge da im­
p ostura da neutralidade (ou indiferen­
ça), e qu and o traz, em sua narrativa
sobre o que se passa, a pretensão de
com preender o que se passa.
Eugênio B ua i

O jornalista Igor F u se r é editor de


A ssuntos Gerais da revista Veja, onde
trabalha desde 1988. Trabalhou tam ­
bém efn Movimento, Folha cie S. Paulo c
IstoÉ. Em 1992, foi bolsista da Reuter
F oundation na Universidade de O x ­
ford, Inglaterra, onde realizou estudos
na área de relações internacionais. F
alu n o de m estrado no Program a de
P ó s-g ra d u ação em In te g ração da
A m érica Latina ( p r o l a m ) da U niversi­
d ad e de São Paulo. P ublicou o livro-
reportagem M éxico cm transe pela ed i­
tora Scriila. em 1995
arte da reportagem. Um pano­
A rama dos grandes eventos
dos últim os cento e cinqüen­
ta anos. Um caleidoscópio das idéias
e sentim entos que mudaram o m un­
do. A história repassada pela fasci­
nante pena da m elhor investigação
jornalística.
A guerra de Canudos reportada por
Euclides da Cunha. O terremoto de
San Francisco, em 1906, contado por
Jack London. Os dez dias da Revo­
lução russa de 1917, por John Reed.
A ascensão do nazismo narrada por
William Shirer. Estas são algumas das
grandes reportagens reunidas nesta
antologia.
A arte da reportagem. A informação
direta, eletrizante, reveladora. Os fei­
tos de um jornalism o que se recusa à
banalidade e à verdade oficial.
A arte da reportagem. A obra dos que
dedicaram seus melhores esforços à
desvendar a realidade dos que sofrem,
lutam e se emocionam.

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