individualidades que lhe dá origem. Por fim, e talvez seja esta a mais grave
herança que nos foi legada pela matriz jusnaturalista de conceber o Estado, tem-
se que o Estado é um ESTADO SUJEITO, ou seja, entidade ativa, que paira
acima da sociedade e dos homens, dotada de vontade própria, de iniciativa
própria, como se não correspondesse a grupos sociais distintos e, por isso
mesmo, com total poder de (co)mando sobre a sociedade. Se pararmos para
pensar um pouco mais detidamente no assunto, vemos que a visão de Estado ora
em vigor, guarda esta característica, o que torna a sociedade NATURALMENTE
impotente e totalmente submissa aos desígnios do “Estado”.
O século XIX viu nascer, logo em seus primórdios, com Hegel, a crítica
desta concepção tão duradoura de Estado. Seus adversários discordavam,
justamente, do caráter a-histórico do mesmo, bem como da idéia de um suposto
“contrato social” que transferira ao governante todos os poderes sobre a
sociedade, agregando-se a estas críticas, uma outra: a da visão estritamente
individualista de conceber-se o Estado. Seria com a matriz marxiana que a
ruptura com tal modelo se completaria.
Em primeiro lugar, cabe dizer que a nova matriz também opera com uma
dualidade de conceitos - não mais sociedade de natureza versus sociedade civil,
mais sim sociedade civil e sociedade política - o que, no entanto, não resulta na
mesma visão do Estado. É importante notar que introduziu-se um outro termo
como binômio: a “sociedade política” no lugar da antiga “sociedade civil”. Longe
de ser mero formalismo, tal alteração atinge o cerne do modelo jusnaturalista,
uma vez que se separa, com clareza, uma esfera propriamente política, da esfera
“civil”, demonstrando, de uma forma ou de outra, algo peculiar: o homem, no
modelo marxiano, jamais teria vivido historicamente um “estado de natureza” e,
mais que isso, que a sociabilidade humana não se esgota somente - tal como o
modelo anterior o estipulara - no âmbito do puramente político.
Para chegar a tal mudança, é bom compreendermos as premissas da
matriz marxiana. Em primeiro lugar, sua ótica não parte dos indivíduos ou da
sociedade enquanto somatório de individualidades. Se há natureza no homem,
ela é social e, portanto, passível de transformação. Os homens têm uma
sociabilidade própria que lhes é dada, em cada momento da história, pelo lugar
que ocupam no processo de produção e de trabalho. Alguns, neste caso, são
proprietários dos meios de produzir e fazer trabalhar e outros não. Os não
proprietários, por sua vez, exercem distintas funções no processo produtivo,
podendo ser operários, lavradores, etc., etc. Em suma, o que a matriz marxiana
apresenta é uma visão HISTÓRICA e CLASSISTA da sociedade e dos homens.
Estes pertencem sempre a uma classe social, por sua posição face aos meios de
produção, não existindo, em tempo algum, individualidades soberanas em “estado
de natureza”, quer este seja concebido como estado “de guerra” ou de qualquer
outra forma.
Ora, mas então, qual a origem do Estado para este modelo? Ela residiria,
justamente, na emergência da propriedade privada ou seja, no momento em que
um dado grupo apropriou-se, privadamente, daquilo que era de todos,
subordinando os demais e transformando-os em força de trabalho. O Estado,
nessa ótica, teria sua origem na necessidade de determinados grupos de
proprietários privados de assegurar e ocultar sua apropriação, mediante leis e
demais medidas coercitivas, que garantissem que os despossuídos não só
permanecessem nesta condição, como também que contra ela não se
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que ele, enquanto relação social, engloba tanto a sociedade civil quanto a
sociedade política, numa interação permanente.
Mas por que motivo o pensador italiano teria chegado a essa nova visão de
Estado? Em primeiro lugar, há que se ter em conta que a conjuntura histórica em
que viveu é bem distinta daquela do marxismo do século XIX, tendo Gramsci
presenciado mudanças no capitalismo que Marx não poderia ter vivenciado, além
de ter sofrido uma experiência indelével: a ascensão do fascismo na Itália e, para
ele o que seria mais dramático, com a aprovação das classes subalternas
italianas, sobretudo os camponeses, verdadeiros “adoradores” de Mussolini.
Foi partindo desta perplexidade e para tentar respondê-la, que Gramsci
teorizou sobre as peculiaridades do Estado no capitalismo ocidental, chegando às
conclusões acima sumariadas. O que não foi ainda explicitado é o caminho
através do qual o autor as atingiu, caminho bastante singular e altamente
inovador, permitindo uma explicação do Estado ocidental em qualquer de suas
manifestações. Gramsci percebeu, diversamente de um marxismo mecanicista,
que o Estado - além de não poder ser visto como Objeto - não pode ser percebido
nem como pura coerção ou violência nem como puro engano, ambos agindo em
prol da manutenção das classes proprietárias. Se assim o fosse, diria ele, como
explicar que os mais oprimidos da Itália venerassem um ditador? O Estado -
integrado pela sociedade civil e pela sociedade política - tem uma OUTRA
DIMENSÃO, para além da força, que é tão ou mais importante do que ela para
sua estruturação e preservação. Esta dimensão é, para Gramsci, a CULTURA.
E cultura para Gramsci não é a erudição dos sábios, mas o conjunto das
visões de mundo - valores, crenças e auto-percepções de seu lugar na sociedade
- desenvolvidas por cada grupo social ou fração de classe. No mundo
contemporâneo, nem sempre certos grupos conseguem desenvolver sua própria
visão de mundo - por falta de organização em aparelhos da sociedade civil -
adotando, como sua, a visão de outros, quase sempre de grupos dominantes.
Esse é o princípio do que Gramsci chama de hegemonia, ou seja, quando a visão
de mundo (cultura) de um dado grupo se impõe sobre o conjunto dos demais.
Para tanto é fundamental o papel do Estado em seu sentido restrito.
Assim, o que é peculiar ao Estado contemporâneo, o qual, por sua vez,
deve ser pensado como uma relação social em si mesmo, é que ele guarda um
espaço de consenso e não só de violência, sendo o consenso - ou consentimento
- obtido, para Gramsci, através dos aparelhos privados de hegemonia, bem como
através da ação do Estado que busca promover e generalizar a visão da fração
de classe hegemônica. Logo, a política e o Estado são inseparáveis da cultura e
mesmo instituições da sociedade política tipicamente relacionadas com a
violência - como o Exército, por exemplo - são responsáveis, para Gramsci, pela
difusão de uma dada cultura.
A transformação social e do Estado nas sociedades ocidentais, por certo,
só pode ser obtida, para Gramsci, a partir da multiplicação dos aparelhos da
sociedade civil - ou seja, das visões de mundo organizadas - que disputam entre
si, todo o tempo, a imposição de uma cultura contra-hegemônica, que visa tornar-
se hegemônica. Mas para tanto, é indispensável que o grupo organizado nesta ou
naquele aparelho privado de hegemonia, pressione para inserir alguns de seus
representantes ou projetos junto à sociedade política. Vê-se, pois, que a idéia do
Estado como uma relação, além de altamente dinâmica e enriquecedora para a
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