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Imagens

ra
do Brasil na

r
França nos s
anos 30:
reportagens
de Blaise
MARIA TERESA DE FREITAS Cendrars

134 REVISTA USP, São Paulo, n.48, p. 134-145, dezembro/fevereiro 2000-2001


Cn
d
e Q uando, em 1940, Cendrars

mergulha no longo silêncio


que iria pesar sobre sua pena

durante quatro anos, ocupa ele uma

dupla posição no panorama literário


francês: autor de contos e grande re-

pórter. Sua atividade – lamentam-se

os exegetas – gravita em torno do jor-


nalismo de grande difusão: “Pour le

créateur, c’est une période blanche ou


MARIA TERESA DE
FREITAS é professora do
Departamento de Letras
Modernas da FFLCH-USP
e autora de Literatura e
História (Atual).

presque […]. …les reportages […]

servent alors à illustrer les faits, gestes


et humeurs de ce personnage à

legendes […], au détriment d’une


écriture qui s’y fige” (1).

Sem pretender provar o contrário,

viso aqui a atenuar essa afirmação, ana-

lisando um certo número de textos


jornalísticos, de Cendrars – ditos “re-

portagens” – que tocam diferentes as-


pectos da realidade brasileira. Além

de examinar um aspecto inédito da


escritura cendrarsiana e de ampliar a

reflexão sempre renovada sobre a pró-


pria noção de literatura que acompa-

nha inevitavelmente toda leitura críti-


1 Cl. Leroy, La Main de Cendrars,
ca da obra de Cendrars, este estudo Villeneuve d’Ascq, Presses
Universitaires du Septentrion,
visa sobretudo a mostrar a maneira 1996, pp. 266-7.

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original pela qual o escritor mobiliza, re- quanto amplos, podendo inscrever-se numa
novando-os, grande número de mitos bra- dimensão mais abrangente do que a sim-
sileiros, contribuindo assim para imprimir ples proximidade temporal. Reside aí, ali-
uma certa visão da nossa realidade no ima- ás, a “graça” da reportagem: é possível
ginário coletivo francês da época. fazer-se um texto novo sobre um tema an-
Examinaremos assim os textos “brasi- tigo. O êxito da tarefa dependerá do “ân-
leiros” de Cendrars que foram, inicialmen- gulo” adotado. É o que permite a existên-
te, publicados como reportagens – e que cia de diferentes tipos de reportagem, que
apresentam, portanto, ao menos aparente- vão da reportagem “quente” – sobre, por
mente, algumas das características desse exemplo, um acontecimento político re-
gênero jornalístico. O que implica, em pri- cente, ou uma ocorrência policial de fôle-
meiro lugar, um determinado tipo de veícu- go – à “falsa reportagem”, gênero mais ou
lo – os periódicos, de cunho informativo – e menos híbrido (5).
a forma de publicação que ele impõe: dispo- Considerando-se esses diferentes aspec-
sição espacial e apresentação visual signifi- tos, um critério essencial determinou a es-
cativas (paginação, tipologia, ilustração…), colha do corpus do presente estudo – e gui-
e condições específicas de enunciação. Por ará também a análise proposta: as condi-
um lado, assumem a forma do testemunho ções de recepção dos textos no momento
direto, até certo ponto pessoal: a reportagem de sua publicação. Assim, serão analisados
pressupõe a presença do repórter no local da aqui os textos jornalísticos de Cendrars que,
ação, e o relato do que pôde ele ver, ouvir e além de colocarem em cena um determina-
sentir; é, pois, um trabalho pessoal – embora do aspecto da realidade brasileira, foram
deva ser também o mais objetivo possível. apresentados como reportagem quando de
Por outro lado, exigem uma certa forma de sua primeira publicação – e que, portanto,
escritura (um tom, um estilo e uma lingua- foram lidos como tal. O que significa que
gem) escolhida em função do destinatário, serão tomados por verídicos – quer o sejam
qual seja, o grande público, e, mais especi- quer não – conseqüentemente, participa-
ficamente, o leitor de jornais. rão da formação do imaginário coletivo da
Em segundo lugar, a reportagem impli- época. Pois:
ca referencialidade – relação estreita de
dependência do texto com a realidade “les articles de Cendrars […] entrent dans
extratextual a que se refere – e, em princí- l’actualité générale, dans les souvenirs
pio, veracidade. Pois a reportagem deve fugitifs du lecteur et contribuent à la
2 Sobre as características da re- relatar fatos reais e contar uma história ver- constitution des pensées courantes, de la
portagem, ler-se-á com provei-
to (entre outros): J.-D. Boucher, dadeira (2). O que vem lembrar também seu doxa, au même titre que tout ce qui paraît
Le Reportage Écrit , Paris, caráter factual, sua relação com uma ação, au jour le jour. Le reportage est […] percu
Editions du Centre de Formation
et de Perfectionnement des com fatos ou, pelo menos, com uma situação. comme vrai par le lecteur, au même titre
Journalistes, 1993.
Pois “[le reportage] est dans l’événement. Il que les autres informations” (6).
3 J.-D. Boucher, op. cit., p. 9 l’éclaire, le met en perspective et donne de la
4 M. Touret, “Cendrars Reporter”, chair à l’information brute” (3). O que sig- Decorre daí sua importância, se não li-
in Sud, p. 142.
nifica ainda que se trata de uma narrativa, terária, ao menos sociológica, não apenas
5 Cf. J.-D. Boucher, op. cit., pp.
26-7. e, portanto, deverá responder às seis per- como reflexos de uma certa realidade numa
6 M. Touret, art. cit., p. 140. guntas-chave da retórica clássica, formu- determinada época, mas sobretudo como
7 Publicado primeiramente no ladas há vinte séculos: quem, o que, onde, criadores de sentido, na medida em que são
Brasil, com pequenas modifica- quando, como e por quê. responsáveis pela imagem do Brasil que
ções, sob o título
“Métaphysique du Café” (O Discurso sobre a realidade factual, a veiculam.
Jornal, Rio de Janeiro, 15 de
outubro de 1927), esse texto reportagem terá por princípio básico a re- Trataremos portanto aqui dos textos se-
foi inserido em coletânea qua- lação com a atualidade. É um discurso so- guintes: 1. “Devant les Champs de Café”
tro anos mais tarde, com alguns
acréscimos (“La Métaphysique bre o presente, uma “escritura de circuns- (L’Intransigeant, Paris, 23/nov./1927, p. 1)
du Café”, in Aujourd’hui
tância” (4). No entanto, os limites dessa (7); 2. “En (Paquebot) Transatlantique dans
[“Actualités”], Paris, Grasset,
1931). atualidade são, freqüentemente, um tanto la Forêt Vierge” (Le Jour, Paris, du ler au

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6/nov./35, p. 2) (8); 3. “Pénitenciers pour política cafeeira da valorização se encarre-
Noirs” (Paris-Soir, du 30/mai au 2/juin/ gariam de devolver ao lugar devido” (12).
1938, p. 4) (9); e 4. “Le Brésil Change de Visão eufórica, pois, do progresso econô-
Capitale” (Marco Polo, no 9, juillet/1955, mico no Brasil, que corresponde perfeita-
pp. 4-11) (10). mente à realidade (13) – uma realidade que,
Examinemos primeiramente cada um aliás, entra perfeitamente também na mito-
deles de perto, para em seguida estabelecer logia pessoal de Cendrars.
relações e tirar daí as devidas conclusões.

2. “En Paquebot Transatlantique


1. “Devant les Champs de Café”
dans la Forêt Vierge”
O artigo está publicado à primeira pági-
na, à esquerda da informação central, de O texto está anunciado à primeira pági-
natureza política – o que garante sua im- na do número em que sai publicada a pri-
portância. A página inteira contém atuali- meira das quatro partes que o compõem.
dades políticas e sindicais – o que garante Ilustra-o uma foto, onde se vê um certo
sua seriedade. Em letras de forma, garrafais, número de pessoas sentadas no convés de
o título da coluna – “LE VERTIGE um navio, olhando a paisagem. Abaixo, lê-
MODERNE” – garante sua atualidade e se: “Durant la remontée de l’Amazone: les
sugere sua função de comentário social. passagers du bord regardent défiler les
Segue o título do artigo, em letras de for- rives mystérieuses du fleuve”. A foto au-
ma: “DEVANT LES CHAMPS DE tentica o texto, atribuindo-lhe um caráter
CAFÉ”. O texto começa com indicações referencial, já que atesta a existência efeti-
de local e data: Rio, oct. 192. (sic) – o que va da realidade que descreve. Após o que,
garante sua autenticidade ou, pelo menos, a legenda pode se dar ao luxo de atrair a
seu caráter referencial, bem como sua atua- atenção do leitor para o aspecto misterioso
lidade. Embora não haja ação propriamen- dessa realidade: nada mais atraente do que
te dita, há uma situação socioeconômica de um “real misterioso”.
8 Inserido em coletânea dois anos
fato, de interesse e de atualidade geral – o Segue-se o texto introdutivo da edição: mais tarde, levemente remane-
jado (“En Transatlantique dans
que irá caracterizá-lo, segundo a termino- la Forêt Vierge”, in Histoires
logia jornalística, como “reportagem “Un monde perdu, um monde oublié, un Vraies, Paris, Grasset, 1937),
esse texto será posteriormente
intemporal” (11). monde tel qu’au commencement des âges… retomado em outro periódico
( Marco Polo , n o 1, Monte
O texto é, pois, dado como referencial, C’est la monstrueuse forêt amazonienne, Carlo, nov./54), sob o título
aparentemente verídico, ligado à atualida- inviolable, inconnue, pleine de poisons, de “Un Paquebot dans la Forêt
Vierge”.
de social e considerado manifestadamente splendeurs et de silence, où le fleuve bordé
9 Inserido em coletânea no mes-
importante. Ele será lido como tal. A influ- de plages à caïmans roule ses eaux mo ano, com várias alterações
ência que exercerá sobre o público leitor – limoneuses en emportant des îles avec soi. (“Fébronio, Magia Sexualis”,
in La Vie Dangereuse, Paris,
e portanto sobre o inconsciente coletivo – Dans cette sylve exubérante, l’aviateur Grasset, 1938).
francês dos anos 20 é inegável. Ora, se por Redgern, disparu en 1928, serait, dit-on, 10 Inserido em coletânea dois
anos mais tarde, com vários
um lado esse texto representa um momento encore vivant”.
acréscimos (“Utopialand”, in
preciso da vida de Cendrars, em que o po- Trop c’est Trop, Paris, Denoël,
1957).
eta pensou seriamente em enriquecer-se no Essa introdução aproxima do leitor fran-
11 Cf. J.-D. Boucher, op. cit., p.
Brasil por meio de grandes negócios (entre cês a longínqua realidade brasileira que anun- 27.
os quais, a exploração do café), por outro cia, na medida em que lhe oferece um ponto 12 A. Eulálio, A Aventura Brasilei-
lado ele é sem dúvida “um dos mais ex- de referência tirado da sua própria realida- ra de Blaise Cendrars, São
Paulo, Quiron, 1978, p. 38.
pressivos documentos sobre a euforia eco- de – ou, pelo menos, gravado na memória
13 Como o lembra ainda Eulálio,
nômica paulista e o sentimento de onipo- coletiva (“l’aviateur Redgern, disparu en essa febre dos grandes negó-
tência dela resultante – que a crise de 1929, 1928”). Ao mesmo tempo, dinamiza o arti- cios atingira também, antes de
Cendrars, Oswald de Andrade
a revolução brasileira do ano seguinte e a go – de caráter essencialmente descritivo – (cf. A. Eulálio, op. cit., p. 70).

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ligando-o de certa forma à ação aí evocada intemporal do tema, ao mesmo tempo em
(“serait, dit-on, encore vivant”). que garante sua atualização. O leitor é as-
Segue-se a apresentação propriamente sim preparado psicologicamente para ler o
dita do texto e de seu autor: texto como reportagem. Teremos aí “re-
portagem de revista”, relacionada ao lazer
“Blaise Cendrars, qui n’est pas seulement e à moda.
l’écrivain que l’on sait, mais aussi un No entanto, a autenticidade da “repor-
voyageur enivré de découvertes, est allé tagem” é duvidosa. Segundo consta, nas
promener son observation lucide dans ces viagens que fez ao Brasil, Cendrars jamais
régions où la curiosité n’est jamais esteve além das cidades históricas de Mi-
assouvie. Et cela vaudra aux lecteurs du nas Gerais; o que viu do interior parece não
Jour la très belle série d’images dont nous ter ultrapassado os cafezais de algumas fa-
commençons aujourd’hui la publication zendas paulistas (14). Suas duas pretensas
dans notre deuxième page”. vindas para cá na década de 30, na qualidade
de enviado especial da imprensa parisiense,
O “viajante” compete aí com o escritor, parecem ser fruto de sua imaginação. Mas…
que implicitamente é apresentado como teria isso realmente grande importância? O
“repórter”: ele esteve no local para colher que não viu, imaginou e recriou, com a aju-
14 Cf. S. Milliet, “Cendrars: Fan-
tasia e Realidade”, in Diário Crí- suas próprias impressões, com – além do da, obviamente – como bem observa Ale-
tico, VI, São Paulo, Martins, xandre Eulálio –, de um certo número de
1960; retomado em: A. Eulálio,
mais – sua “observation lucide”. A preci-
op. cit., pp. 195-7. são: “ces régions où la curiosité n’est ja- relatos de viagem, tais como A Jangada de
15 Cf. A. Eulalio, op. cit., p. 23. mais assouvie” valoriza o aspecto Jules Verne, ou A Amazônia que eu Vi, de
Gastão Cruls, que seus amigos brasileiros
d ars
Blaise

ter-lhe-iam talvez enviado (15).

3. “Pénitenciers pour Noirs”


123
123
123
(Febrônio)
123
123
123
123
O texto é também anunciado à primeira

e
página do jornal: “Paris-Soir commence
aujourd’hui un nouveau reportage de

Cn
r
BLAISE CENDRARS – PENITENCIERS
POUR NOIRS”.
Segue-se uma foto de Cendrars, com os
dizeres:

“Le puissant, le brillant romancier de L’Or,


de Moravagine, de Rhum, du Plan de
l’Aiguille, est aussi – nos lecteurs le savent
mieux que personne – un journaliste de
grande classe. Nous commençons
aujourd’hui son extraordinaire reportage
sur les fameux pénitenciers nègres au
Brésil que Blaise Cendrars fut le seul
journaliste à pouvoir visiter et où il a
rencontré des types étranges de meurtriers.
Son récit est court, mais il est saisissant de
force, d’observation et d’humanité”.

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O artigo é, pois, apresentado explicita- ‘A chaque époque et dans tous les pays,
mente como reportagem – ainda que “ex- l’humanité a vu jaillir de son sein des
traordinária”– e o autor como “jornalista” monstres: Jack l’éventreur en Angleterre;
– embora também escritor. le vampire de Dusseldorf en Allemagne;
Na página 4, em letras garrafais, lê-se: Landru, Weidman en France, sans parler
de Gilles de Rais, le Barbe Bleu de la
“Un hallucinant reportage de Blaise légende.
Cendrars dans les pénitenciers de nègres Médecins, avocats, légistes, psychologues,
au Brésil prêtres, mais aussi les écrivains étudient
UN ASSASSIN CULTIVE DES avec angoisse ces monstres, énigmes de
VIOLETTES l’âme humaine. Je me suis penché sur le
… depuis trente-deux ans dans un coin de cas de Fébronio Indio de Brazil, première
la cour de la prison”. apparition d’un sadique au Brésil, avec
toute l’intelligence dont je suis capable et
A “reportagem” – que ocupa quase toda ai raconté son histoire avec la véracité et
a página – é ilustrada pela foto de Febrônio le respect que je dois aux lecteurs de Pa-
onde se vê a inscrição tatuada. ris-Soir.
O número seguinte mostrará, à mesma Mais je n’ai pas conscience d’avoir manqué
página, também em letras garrafais: au respect et à l’amour que je porte au
Brésil, car si tout homme a deux patries, la
“Dans un pénitencier brésilien… sienne puis la France, tout Français qui
FEBRONIO connaît le Brésil en a également deux: la
le Landru nègre. France et puis le Brésil’ ”.
Mage, sorcier, possédé par d’étranges
forces occultes, ce fils de boucher est E a “reportagem” prossegue, ilustrada
devenu un monstre sanguinaire por uma foto da floresta do Pão de Açúcar,
par Blaise Cendrars”. com a legenda: “La brousse du ‘Pain de
Sucre’, repaire de Fébronio”.
Nova foto de Febrônio, legendada – “Le E no dia seguinte, à primeira página, o
sourire du criminel” –, ilustra essa segun- jornal publica a quarta e última parte;
da parte da reportagem.
No número seguinte, sempre à página “PENITENCIERS DE NOIRS
4, e sempre em letras garrafais, lê-se: Le nègre halluciné lutte contre l’oiseau
magique
“PENITENCIERS DE NOIRS Et Fébronio, en proie à ses rêves insensés,
Dans la brousse sauvage une femme habité par l’esprit du dieu vivant, ivre de
blonde rayonnante apparaît au nègre sang, tue… t u e… T U E (en caractères en
extasié crescendo)
Le misérable Fébronio poursuivi par une par Blaise CENDRARS”.
cruelle hallucination devient um monstre
en se croyant Segue-se o texto, ilustrado por uma foto
UN DIEU da baía da Guanabara, assim legendada:
par BLAISE CENDRARS”. “La baie splendide de Rio dont le spectacle
réjouissait le coeur du monstre”.
Desta feita, no entanto, o relato é prece- O estatuto desse texto coloca inúmeros
dido por uma nota da redação: problemas aos estudiosos da obra de
Cendrars. Por um lado, sabe-se hoje que,
“L’hallucinant reportage de Blaise contrariamente ao que afirma o editor, em 16 Com efeito, o artigo produzira
um veemente protesto, divulga-
Cendrars ayant suscité une certaine 1926, o poeta não veio ao Brasil como en- do publicamente, da parte de
émotion dans la colonie brésilienne (16) à viado especial de Paris-Soir, sabe-se tam- grupos brasileiros que viviam
em Paris (cf. A. Eulálio, op. cit.,
Paris, notre colaborateur nous déclare: bém que essa “reportagem” aparenta-se aos p. 31).

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contos de Cendrars, inspirados em fatos uma verdadeira reportagem, e que tudo no
reais (17); é igualmente verdade que o tex- texto a isso levava. Clara está, pois, a di-
to está mais para “estória” do que para re- mensão sociológica do artigo, sua reper-
portagem, enquadrando-se na linha das cussão social enquanto veículo de uma certa
projeções fantásticas de Cendrars, de seus imagem do Brasil – tanto mais que se tra-
combates pessoais contra monstros; tam- tava de um jornal de alta circulação:
pouco resta dúvida de que o personagem de 1.700.000 exemplares em 1939.
Febrônio fascinou Cendrars e provocou
amplamente sua imaginação. Contudo, é
fato também que:
1) Trata-se de um fato real, que teve 4. “Le Brésil Change de Capitale”
grande repercussão no imaginário coletivo
carioca da época, e cujos elementos com- Ilustrado por fotos de lugares e perso-
provados pelos arquivos correspondem in- nagens tipicamente brasileiros, o texto é
tegralmente aos que constituem o texto de apresentado da seguinte forma:
Cendrars (18).
2) O livro de Febrônio que Cendrars “La capitale du Brésil ne sera plus Rio de
cita em seu texto, Revelações do Príncipe Janeiro. Elle sera transporté à huit cents
de Fogo, foi efetivamente por ele escrito kilomètres de là, à l’intérieur des terres,
e publicado – era, por sinal, considerado dans l’état de Goyaz. Ce surprenant projet
por certos jovens modernistas da época découle de la constitution brésilienne de
como um “exemplar autóctone do melhor 1946 et a pris forme administrative par une
Surrealismo, enquanto escrita automáti- loi du 5 janvier 1953. Ministères,
ca, transporte lírico e delírio consciente” gouvernement, administrations de toutes
(19); todos os exemplares encontrados sortes seront transportés dans cette région
foram de fato confiscados pela polícia – qui n’est reliée à la côte que par avions.
mas sobrou um, recentemente descoberto C’est donc un démenagement sans
em São Paulo (20), onde se pode verificar précédent dans l’histoire qui se prépare, et
que as passagens citadas por Cendrars são dont Blaise Cendrars décrit ici –
textuais. spécialement pour nos lecteurs – l’ampleur
Concluiremos, pois, juntamente com et les difficultés”.
Eulálio, que o texto sobre Febrônio deve
ser considerado como uma forma de repor- Tudo indica, pois, que se trata de uma
tagem: “Na galeria das personagens reportagem: um assunto atual, uma histó-
cendrarsianas, Febrônio […] ganha desta- ria real, um interesse mediático indubitável.
que pela condição de personagem a Todavia, de todas as “reportagens” brasi-
anteriori, a quem o escritor quase nada leiras de Cendrars, é a que mais dista da
emprestou de pessoal, desde que a matéria- verdadeira reportagem.
prima era em si mesma cendrarsiana” (21). “Crônica […] na qual o escritor antevê,
Vemos novamente a realidade brasilei- numa miragem deslumbrante, o que será
17 Cf. Miriam Cendrars, Blaise
Cendrars , Paris, Balland, ra enquadrando-se perfeitamente na mito- no ano 2000 a futura capital do Brasil” – no
1993, p. 497.
logia pessoal do escritor. E, embora dizer de Brito Broca (22) –, o único ele-
18 Cf. A. Eulálio, op. cit., p. 31.
Cendrars multiplique as interferências mento que se pode reconhecer aí como
19 Idem, ibidem. temáticas que irão fazer com que esse seu verdadeiro refere-se às precisões sobre o
20 Por Carlos Augusto Calil, que, texto entre em ressonância com os demais, local onde seria construída a nova capital –
generosamente, ofertou-me um
fac-símile. fazendo-o assim adentrar cada vez mais seu precisões que, aparentemente, nosso repór-
21 A. Eulálio, op. cit., p. 31. universo imaginário pessoal, é preciso con- ter “emprestou” ao Padre Marie Tapie, em
22 “As Estórias Brasileiras de vir que o leitor não é, certamente, o mesmo seu livro Chevauchées dans les Forêts
Cendrars”, in O Estado de S. das obras completas. A prova é que se viu,
Paulo, 11/5/57, retomado em
Vierges du Brésil, sem citá-lo (23). Todo o
A. Eulálio, op. cit., pp. 204-6. nesse artigo, a verdade pura e completa, resto são divagações em torno do tema: é a
23 Idem, ibidem. que os “brasileiros de Paris” o leram como sua “Utopialand”. Todavia, no ano seguin-

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te, os jornais franceses anunciavam a cons- 1935, quando, após cinco anos de esqueci-
trução, no planalto central do país, da nova mento, o Brasil reaparece sob sua pena (26),
capital do Brasil, inaugurada efetivamente será num texto dado como “reportagem”–
quatro anos mais tarde. Uma vez mais, a “En Transatlantique dans la Forêt Vierge”,
realidade brasileira revela-se conforme à publicado num jornal francês de grande
mitologia pessoal de Cendrars, muito em- difusão – Le Jour. E três anos mais tarde,
bora ela seja amplamente ultrapassada por em “Pénitenciers pour Noirs”, além dos
sua transbordante imaginação. Além do termos da redação do jornal apresentando
que, como já se disse antes, se nada é ver- o artigo como reportagem e seu autor como
dadeiro nos detalhes, tudo é extremamente jornalista, o próprio Cendrars se identifica-
fiel ao espírito da realidade brasileira (24). rá como tal: “J’écris dans les journaux”,
É certamente por isso que o próprio Gilber- diz ele a Febrônio. Donde se conclui que,
to Freyre considera Cendrars um dos mais embora aparentemente a reportagem o
lúcidos intérpretes da civilização brasilei- entedie (27), o escritor não hesita em se
ra mestiça, e louva a acuidade de sua obser- mostrar como “escritor de jornal” perante
vação nas páginas por ele escritas sobre seus leitores. O Brasil, com suas perspec-
temas brasileiros (25). tivas de modernidade futurista, é certamente
visto como um tema de atualidade geral,
••• antes de tornar-se – para ele, ao menos –
um motivo estético. “Voici enfin un pays
24 Cf. W. Martins, “Cendrars e o
Eis portanto aí as “reportagens” de qui bouge!”, proclama Cendrars em Brésil”, in Revista do Livro, Rio
de Janeiro, junho de 1960; S.
Cendrars sobre o Brasil. A análise e a inter- “Devant les Champs de Café”. Com efeito, Milliet, “Entrevistas de
pretação desses textos permitir-nos-ão es- da “vertigem moderna” que representou a Cendrars”, in O Estado de S.
Paulo, 23/5/1952, retoma-
tabelecer um certo número de reflexões do monocultura do café, ao famoso “filme do em A. Eulálio, op. cit., pp.
215-22 e 199-200.
mais alto interesse não apenas no que toca 100% brasileiro” que esse “belo país” ter-
lhe-ia inspirado, passando pelas “fotogra- 25 “Recordação de Cendrars”, in
à relação entre Cendrars e sua “segunda O Cruzeiro, Rio de Janeiro,
pátria espiritual”, mas sobretudo para o fias verbais” de Feuilles de Route, a rela- 2/6/1962; retomada em A.
Eulálio, op. cit., p. 230.
estudo da imagem do Brasil na França nos ção imediata que se estabelece entre o Bra-
26 Após o artigo de 1927, o Bra-
anos 30. sil e a mídia parece não deixar dúvida. sil reaparecerá em seus escri-
tos por duas vezes apenas: num
texto para o hebdomadário
Cinémonde, intitulado “Une
Superproduction 100%…”,
CENDRARS JORNALISTA E O O REPÓRTER E O “EXOTE ”(28): publicado em abril de 1929
(que conta a história do famo-
so filme sobre o Brasil que

BRASIL UM DISCURSO SOBRE O OUTRO Cendrars teria pensado em


realizar durante uma de suas
estadas entre nós), e no prefá-
cio a L’Aigle et le Serpent de
M. L. Guzman (Paris, Fourcade,
Antes de mais nada, observe-se aqui que, Em segundo lugar, essa identificação 1930), intitulado “L’Actualité
na interação verbal de seus textos “brasi- de caráter “profissional” vê-se quase sem- de Demain” e retomado na co-
letânea Histoires Vraies em
leiros”, Cendrars não hesita em se forjar pre acompanhar de uma outra, que indica 1937 (que reporta detalhes his-
tóricos sobre a revolução de
uma identidade de jornalista – ou, pelo sua posição de exterioridade em relação à julho de 1924, a cujo início
menos, de “escritor de jornal”. Com efeito, realidade descrita. Assim, o artigo Cendrars assistira em São Pau-
lo). Embora esses textos pos-
é sob o signo do jornalismo que o poeta “Métaphysique du Café”, publicado num sam também ser considerados
jornal brasileiro, está redigido em francês. como reportagens, eles não
coloca sua primeira viagem ao Brasil, em
entram em nosso corpus por
1924; assim em Eloge de la Vie Dangereuse Em “Pénitenciers pour Noirs”, quando o não responderem a todos os
quesitos de reportagem, con-
(publicado em 1926), ouve-se o prisionei- autor-narrador diz a Febrônio que escreve forme o esclarecido nas pre-
ro de Tiradentes, que o autor-narrador in- para jornais, apressa-se ele em acrescentar: missas deste estudo.

terroga, dizer-lhe: “Vous qui écrivez dans “Pas dans ceux d’ici, dans ceux de Paris”. 27 Cf. Miriam Cendrars, Blaise
Cendrars, op. cit., p. 468.
les journaux…”. Além do mais, viu-se aci- No texto “En Transatlantique dans la Forêt
28 Mantenho aqui o termo de
ma, em 1927 Cendrars publica efetivamente Vierge”, o sujeito da enunciação assume Victor Segalen, em Essai sur
um artigo num jornal do Rio (edição come- a posição de observador do alto e de fora: l’Exotisme (Paris, Fata
Morgana, 1978), expressivo
morativa ao bicentenário do café). E, em se o autor mantém certa distância em re- e de difícil tradução.

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lação ao destinatário do texto – o turista tem, por outro lado, ao leitor francês encon-
francês –, que é designado pela terceira trar pontos de referência culturais.
pessoa, tampouco procura ele identificar- Vê-se pois que a posição aparente de
se ao objeto de seu relato, o homem primi- Cendrars nesses textos – e portanto a ima-
tivo brasileiro. gem que ele próprio se forja junto ao gran-
Por outro lado, esse discurso que fala de público – é, primeiramente, a do repór-
do Outro revela incessantemente, por seus ter – esse emissor que fala em seu próprio
pontos de referência, um segundo discurso nome, mas que é exterior ao assunto – e, em
que se poderia qualificar de “retorno ao segundo lugar, a do “exote”, que vê o Outro
Mesmo”. Assim, Febrônio, identificado no a partir de sua cultura própria, e que “de-
subtítulo de uma das seqüências como o gusta” a diferença entre si e o Outro. Para
Landru negro, vê-se também relacionado a o leitor de jornal, tal imagem é, no fundo,
Jack, o Estripador, ao vampiro de uma garantia de credibilidade: o autor é
Dusseldorf, a Weidman e a Gilles de Rais visto assim como alguém que partilha sua
– todos europeus, franceses na maioria. O cultura, e não a do Outro, e que portanto
espetáculo da vista noturna do Rio é, fre- pode assumir o papel de representante do
qüentemente, descrito na sua relação com grupo social ao qual pertence. Por outro
a “cidade-luz” – Paris. A igreja Nossa Se- lado, a maneira pela qual Cendrars se apre-
nhora da Penha, no Rio, lembra a Notre- senta nessas reportagens mostra que ele se
Dame der la Garde de Marseille, e o Teatro coloca claramente na posição de colabora-
Municipal da metrópole brasileira viu tri- dor prestigioso de jornais, alguém que foi
unfar em seu palco Louis Jouvet e Jean- um escritor famoso, mas que é agora um
Louis Barrault (“Le Brésil Change de repórter brilhante e na moda.
Capitale”, p. 6). “En Transatlantique dans Uma moda onde o exotismo ocupava
la Forêt Vierge” joga sem cessar com os um lugar de honra. Note-se aliás que, na
estereótipos antitéticos “ordem/desordem” Histoire de l‘Édition Française, Cendrars
e “disforia/euforia”, que refletem a idéia aparece como um dos escritores que abri-
preconcebida que o Ocidente alimenta, há ram caminho para uma “paraliteratura”, que
séculos, sobre a oposição Norte/Sul: o cru- respondia plenamente a um certo gosto do
zeiro na Amazônia do texto de Cendrars se público pelo exotismo, pela evasão, pelo
efetua a bordo de dois barcos italianos e imprevisto (30). É nesse contexto que se
um luxuoso steamer inglês, que efetuam a situam, numa leitura horizontal, as “repor-
viagem em condições de salubridade ab- tagens” brasileiras de Cendrars: um discur-
soluta, de conforto, de rapidez e de higie- so sobre o Outro, em que o exotismo ocupa
ne – permitindo assim ao turista europeu um lugar privilegiado.
aliar a atração gulosa à repulsa sanitária que, No entanto, para compreender tal dis-
de hábito, lhe inspiram os países considera- curso na sua verticalidade, será necessário
dos “exóticos” do Terceiro Mundo; a flores- colocá-lo numa perspectiva histórica.
ta virgem é apreendida na sua oposição à
natureza cultivada e à paisagem cadastra-
da do Velho Mundo; o apelo da floresta é
29 Jean-Louis Dufays, “Stéréotypes,
Lecture Littéraire, et ouvido por esses civilizados perturbados,
MOBILIZAÇÃO DOS MITOS
Postmodernisme”, in Christian
despertando seus instintos primitivos. Em
Plantin (org.), Lieux Communs,
Topoï, Stéréotypes, Clichés, suma, o texto insiste em explorar estereóti-
BRASILEIROS
Paris, Kimé, 1993, p. 86. Ver
também nosso texto: “Exotismo pos – que constituem a mais partilhada com-
e Alteridade: Histórias Brasilei-
ras de Blaise Cendrars”, in
petência cultural, o menor denominador A imagem que Cendrars divulga do Bra-
Revista USP, no 38, São Paulo, comum aos membros de uma sociedade (29) sil na França em suas “reportagens” brasi-
CCS-USP, 1998, pp. 178-84.
–, e até mesmo clichês – que formam, como leiras aparece, pois, numa primeira leitura,
30 Anna Sauvy, “La Littérature et
les Femmes”, in Chartier (dir.), dirá Jauss, o “horizonte de expectativa” do estereotipada, feita em grande parte de
Histoire de l’Édition Française, leitor: elementos que, se, por um lado, são clichês. Ora, essa visão exótica da realidade
t. 4: Le Livre Concurrencé, Pa-
ris, Promodis, 1986, p. 250. de valor literário mais que duvidoso, permi- brasileira, introduzida na Europa já na épo-

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ca dos antigos viajantes, e consolidada aí Europa, dominado por paixões políticas,
sobretudo no início do século XIX, se insere no mais das vezes fratricidas (31).
numa tradição histórico-literária, que está Ora, são esses os temas que caracteriza-
na própria base da formação de nossa litera- rão as “reportagens” brasileiras de
tura à época do Romantismo, e que iria ser Cendrars: da “immense forêt tropicale” ao
revalorizada nos anos 20 pelos modernistas “majestueux piton du Pain de Sucre”, da
brasileiros amigos de Cendrars. “grandeur manifeste d’aujourd’hui” a “la
Definindo-se não apenas como a entra- beauté immuable de l’activité humaine”,
da da literatura brasileira na modernidade dos “hommes de tous les pays”, de “toutes
(como o foi nas literaturas européias), mas les races” aos “gratte-ciel de la ville de
sobretudo como sua liberação, como a con- Saint-Paul”, do “homme nouveau, le
quista de sua autonomia em relação aos citoyen du Nouveau Monde” à “métropole
modelos europeus que a haviam fundado, de l’avenir” – e assim por diante –, todos os
compreende-se que o Romantismo no Bra- mitos românticos encontram-se aí mobili-
sil se tenha constituído sobre bases essen- zados. Atitude neo-romântica, que se ins-
cialmente nacionalistas. É fato que a for- creve perfeitamente no espírito modernista
mação de nacionalidades é um fenômeno brasileiro da época (32) – mas que entra
da época, que, em quase toda a Europa, também perfeitamente na mitologia pesso-
encontrou igualmente no Romantismo sua al de Cendrars. É aliás por isso que o Brasil
melhor forma de expressão. Todavia, nos se torna “sua terra de predileção”, como
países novos, o nacionalismo foi manifes- dirá a filha e biógrafa Miriam Cendrars (33).
tação de vida, tomada de consciência, subs- Esses mitos, no entanto, o poeta irá
tituição do Outro pelo Mesmo. explorá-los e elaborá-losde maneira inédi-
No Brasil, o sentimento de patriotismo ta, colocando-os em ressonância não ape-
despertado pela independência política virá nas com o mundo moderno ocidental, nas
também com uma certa mitologia univer- 31 Sobre as características do Ro-
forjar um certo número de mitos naciona- mantismo brasileiro, remeto
listas por excelência, que serão elaborados sal. É o que veremos a seguir. aqui aos especialistas, entre os
quais: A. Candido, Formação
literariamente na poesia e na prosa român- da Literatura Brasileira. Mo-
tica, com vistas a criar uma imagem cons- mentos Decisivos, São Paulo,
Martins, 1964; A. S. Amora,
trutiva do país. Aliás, é precisamente aí que O Romantismo , São Paulo,
se encontra a natureza e a originalidade do TEMA E PERSPECTIVA: UMA “VISÃO Cultrix, 1977; P. Hazard, “Les
Origines du Romantisme au
nosso Romantismo. São eles (entre outros): Brésil”, in Revue de Littérature

mito da grandeza territorial, que está na DO ESPÍRITO” (34) Comparée, Paris, janv-mars/
1927, 1, pp. 111-28; M. C.
Moraes Pinto, “A Magnólia e
origem de um certo sentimento de orgulho a Jandaia: de Chateaubriand
em relação ao país; mito da exuberância e Comecemos por observar que as “re- a Alencar”, in Boletim Biblio-
gráfico, v. 47, no 1/4, São
da fertilidade da natureza, que, ao orgulho, portagens” brasileiras de Cendrars jamais Paulo, Secretaria Municipal de
vinha acrescentar a esperança em um gran- se referem à atualidade factual imediata, Cultura, 1986.

de futuro econômico; mito da igualdade de mas, ao contrário, discorrem sobre temas 32 A própria reação da colônia
brasileira de Paris por ocasião
todos os brasileiros, independentemente de de atualidade geral. Trata-se sempre de da publicação da “reporta-
gem” sobre Febrônio constitui
sua origem, que dava a pressupor uma iden- “reportagens intemporais”, relacionadas um excelente exemplo da per-
tidade intrínseca mais rica; mito da hospi- não aos acontecimentos recentes, mas à vida manência desse espírito nacio-
nalista dos brasileiros. Alexan-
talidade e da grandeza de caráter dos brasi- quotidiana, às preocupações constantes do dre Eulálio define essa atitude
leiros, que se traduzia num modelo huma- leitor. A distância geográfica e cronológi- como “a exaltação patriótica
ingênua da alta classe média
nitário de comportamento; mito da evolu- ca do tema em relação ao leitor francês vê- brasileira instalada em Paris,
ofendida no seu orgulho de
ção cultural, de um povo que, em cinqüenta se assim compensada por outras formas de cidadãos de um país civiliza-
anos, pretendia ter ultrapassado três sécu- proximidade: existencial, antes de tudo, do”, op. cit., p. 31).

los de colonialismo; mito, enfim, da famo- pelas reflexões sobre algumas das grandes 33 Op. cit., p. 436.

sa “paz otaviana” brasileira, perante uma questões humanas que esses textos contêm; 34 A expressão é do próprio
Cendrars, no texto intitulado
independência conquistada sem derrama- psicológica, a seguir, nas referências aos “Importance Primordiale de
mento de sangue – considerada a fortiori instintos primitivos do homem (sexo, vio- l’Actualité” (in Hollywood,
Oeuvres Complètes, vol. IV,
excepcional num mundo como o da Velha lência e morte – sobretudo em “Pénitenciers Paris, Denoël, p. 413).

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pour Noirs”); temática, enfim, pelas rela- a monocultura em geral, que transborda
ções que estabelecem com a vida moderna numa apologia – um tanto quanto irônica,
em geral (“Le Brésil Change de Capitale”), a nosso ver – do progresso tecnológico e
ou mais particularmente a uma moda, como, econômico da modernidade no prolonga-
por exemplo, as viagens exóticas (“En mento das teorias materialistas do início do
Transatlantique dans la Forêt Vierge”). século (o taylorismo, em particular), pros-
Além disso, não se trata nunca de repor- segue sobre considerações sociológicas em
tagens no sentido estrito do termo (relato torno das novas democracias do mundo
de fatos reais tomados ao vivo), mas sim de moderno, para terminar com uma interro-
reconstituições (por vezes imaginárias) a gação metafísica sobre o “verdadeiro sen-
posteriori e de artigos de comentário (35), tido da vida: a confraternidade humana”
que propõem uma análise mais ou menos (“Devant les Champs de Café”, p. 1).
objetiva do assunto e um julgamento pes- O cruzeiro na Amazônia responde a uma
soal – extrapolando no mais das vezes para moda da época, a um gosto do público pelo
a metafísica. Decorre daí que, se, por um exotismo, pela evasão, pelo imprevisto –
lado, o estatuto referencial dessas “repor- com o qual, aliás, Cendrars joga magistral-
tagens” não deixa dúvidas – elas dizem mente, explorando todos os elementos do
respeito a uma realidade de existência exótico que compõem, para o leitor fran-
extralingüística atestada, exterior e anteri- cês, a realidade brasileira: o longínquo e
or ao texto –, por outro lado, a autenticida- desconhecido (a “terra ignota”), o estranho
de dos elementos que as compõem torna-se e misterioso (“les rives énigmatiques du
impossível de ser controlada – ao menos fleuve”, “le mystérieux avertissement…
pelo leitor presumido. Assim, aquilo que caché [derrière] les frondaisons de la forêt
deveria ser um relato de acontecimentos, vierge”, o “cercle magique que l’homme
fiel à realidade a que se refere, transforma- amazonien a tracé et occupe depuis la nuit
se em discurso de autor, fiel sobretudo ao des temps”) e a beleza paradisíaca (a
sujeito da enunciação. Já que o tema lhe é “symphonie extralucide des oiseaux”, “la
imposto do exterior – pelas próprias condi- faune, la flore de la vallée”, e tudo o mais:
ções de produção e de recepção do discurso “c’est beau, c’est grandiose, et, bien
jornalístico – o escritor-repórter vai privi- entendu, cela dépasse de beaucoup tout ce
legiar o único elemento que pode ele mes- qu’on avait pu imaginer ou lire ou entendre
mo escolher: a perspectiva ou, como dirá o dire et raconter sur l’exotisme des pays
próprio Cendrars, “a visão do espírito”, d’outremer” (38).
única maneira possível, segundo o autor, A história de Febrônio, como vimos,
de dar conta da vida do universo, que é, ela insere-se num texto que deveria ser “uma
35 Sobre os diferentes gêneros também, uma “visão do espírito” (36). E reportagem sobre as famosas prisões de
jornalísticos, ver, entre outros, ele o fará com seu “temperamento de es- negros no Brasil”. É, com efeito, o objetivo
J.-L. Martin-Lagardette, Les
Secrets de l’Écriture critor”: assim é que, contrariamente às aparente do texto: a primeira parte se esten-
Journalistique , Paris, Syros,
1987, chap. IV. regras de construção da reportagem, se- de sobre a atmosfera reinante numa prisão
36 Certamente não foi por acaso gundo as quais a escolha da perspectiva do Rio de Janeiro – dada, além do mais,
que Cendrars publicou, em ple- provém mais do domínio da “ginástica” como típica de um certo espírito brasileiro
no meio das reportagens que
remanejara para reuni-las em do que da “arte” (37), para Cendrars tal – e insiste sobre as diferenças existentes
coletânea, essa espécie de escolha será certamente uma arte: a de com relação às da Europa. Significativa-
“manifesto” da reportagem que
é o texto “Importance Primordiale fazer com que a perspectiva suplante o mente, o trecho do texto publicado em co-
de l’Actualité”, que representa,
na verdade, uma verdadeira tema. Atingirá ele então aquela “signifi- letânea que faz alusão aos três prisioneiros
negação do gênero. cação geral” da atualidade, que é, segun- alcoólatras não consta da “reportagem”:
37 Cf. Boucher, op. cit., p. 36. do suas próprias palavras, “o único teste- eram não apenas brancos, mas europeus. O
38 Sobre as características do munho verdadeiro que podemos dar da caso de Febrônio sugere toda uma reflexão
exótico, e sua utilização por
Cendrars, ver nosso texto: vida do universo, esse desconhecido”. sobre a criminalidade dos negros na civili-
“Exotismo e Alteridade: Histó- Assim, a questão da monocultura do café zação moderna e sobre o caráter esotérico
rias Brasileiras de Blaise
Cendrars”, op. cit. no Brasil torna-se logo uma reflexão sobre de tal criminalidade, ligado às suas origens

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africanas. No mais, um toque de pitoresco vés da qual a descoberta da realidade bra-
para satisfazer o gosto do leitor pelo sileira participa da possível resposta a per-
exotismo – mas também o gosto do autor guntas de ordem geral, tais como: a mesti-
pela escritura: o exotismo é, na verdade, o çagem, os mecanismos sociais, as relações
lugar por excelência da escritura de do homem com a natureza, os contrastes da
Cendrars, sua maneira pessoa de “degustá- modernidade e, até mesmo, os mistérios
la” – como se pode notar nas imagens que profundos da alma humana. O inevitável
elabora para descrever, por exemplo, o Rio exotismo é, pois, utilizado, na verdade,
de Janeiro – “la féerie nocturne qui pare como “isca”, por assim dizer, para atrair o
[cette] ville couchée comme une mariée leitor francês, que será então mais facil-
dans le plus grandiose paysage du mon- mente levado a refletir sobre tudo aquilo
de”, “toutes ces lignes scintillantes qui que se esconde por trás dessa faceta super-
convergent et se nouent comme une torsade ficial dessa realidade.
de perles lumineuses au cou d’une déité Por outro lado, essas “reportagens” de
indienne, autour du sombre du majestueux Cendrars raramente comportam datas. O
piton du Pain de Sucre”… caráter circunstancial, que caracteriza o
Vê-se assim criar-se uma “estética da gênero, desaparece. Os textos se tornam
reportagem” particular a Cendrars – que intemporais: não é propriamente a seus
atingirá sua plenitude em “Le Brésil Change contemporâneos que o autor se dirige, mas
de Capitale”. Um tanto quanto profético, o sim à posteridade. É aliás o que lhe permi-
texto se constrói como um mosaico: da rede tirá retomar esses textos, por vezes sem
rodoviária do Brasil ao carnaval do Rio, do grandes remanejamentos, em coletâneas,
salto para a mitologia antiga ao mergulho que virão integrar sua imensa obra literá-
na história do Brasil, da megalomania dos ria: as “reportagens” tornar-se-ão assim
brasileiros à “oitava maravilha do mundo” textos literários e, como tais, sobreviverão
que deveria ser a nova capital, as imagens à marcha do tempo.
se superpõem, num jogo de contrastes e de
simultaneidades que empresta ao texto um •••
efeito de espelho em relação à realidade
que descreve, esse Brasil “despedaçado Além da riqueza e originalidade que essa
como um puzzle”. Para um “país sedutor, “estética da reportagem” própria a Cendrars
todo feito de contrastes simultâneos”, uma revela, vemos aí, antes de mais nada, uma
escritura igualmente sedutora, toda feita, ocasião para o poeta de reencontrar o Brasil,
ela também, de contrastes simultâneos. O esse “fantástico laboratório existencial” –
tema designado da “reportagem” só apare- para utilizar a feliz expressão de Alexandre
ce no final, e, no mais, acaba por se revelar Eulálio – que germinava há anos no fundo
como um simples pretexto: pretexto para de seu imaginário, e que ele iria então recriar
analisar o fenômeno do gigantismo econô- segundo seus fantasmas pessoais: caráter
mico e político do mundo moderno, pre- iniciático da realidade brasileira, que, por
texto para elaborar sob novas formas esse sua vez – como se pôde verificar aqui –, não
antigo mito da grandeza e do progresso do oferece resistência alguma para entrar nessa
“Eldorado”, pretexto para refletir sobre a mitologia. Ao mesmo tempo, na medida em
megalomania em geral, pretexto enfim para que suas “reportagens” procuram, a partir
se interrogar sobre o sentido da vida. de diferentes exemplos encontrados no Bra-
Como resultado ter-se-á um certo nú- sil, levantar questões de ordem geral e me-
mero de fenômenos que contrariam fron- tafísica, Cendrars mostra à França a impor-
talmente as normas jornalísticas, em geral tância da realidade brasileira – muito além
inevitáveis. Assim, por exemplo, ao invés do simples exotismo que a tornara conheci-
de informar o leitor sobre um determinado da no Velho Mundo – para uma reflexão
problema referente ao Brasil, as “reporta- mais ampla sobre a vida, sobre o universo,
gens” de Cendrars mostram a maneira atra- em suma, sobre a condição humana.

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