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A literatura exigente

Os livros que não dão moleza ao leitor


Waltercio Caldas

Leyla Perrone-Moisés

RESUMO Após ter consolidado uma literatura vendável, de


entretenimento, o Brasil vê florescer uma geração de autores que
praticam uma "literatura exigente", "de proposta". Herdeira das
vanguardas do século 20, a prosa desses autores é marcada pelo
ensaísmo, pelas artes plásticas e pela recusa da linearidade narrativa.

ENTRE AS VÁRIAS correntes da prosa brasileira atual, existe uma


bem consolidada, que poderíamos chamar de literatura exigente. São
obras de gênero inclassificável, misto de ficção, diário, ensaio,
crônica e poesia.

São livros que não dão moleza ao leitor; exigem leitura atenta,
releitura, reflexão e uma bagagem razoável de cultura, alta e pop,
para partilhar as referências explícitas e implícitas. A linhagem
literária reivindicada por esses autores é constituída dos mais
complexos escritores da alta modernidade: Joyce, Kafka, Beckett,
Blanchot, Borges, Thomas Bernhard, Clarice Lispector, Pessoa...

Os autores dessas novas obras nasceram quase todos por volta de


1960, a maioria passou por ou está na universidade, como pós-
graduando ou professor, o que lhes fornece boa bagagem de leituras
e de teoria literária; alguns são também artistas plásticos, o que
acentua o caráter transgenérico dessa produção. E diga-se, desde já,
que, se para alguns leitores, entre os quais me incluo, são excelentes
escritores, para muitos outros são aborrecidos e incompreensíveis.

DESCONFIANÇA Tratarei aqui de apenas alguns deles, não


porque sejam os únicos, mas porque ilustram, de modo exemplar,
essa tendência. Alguns traços gerais os irmanam. O principal deles é
a desconfiança.

Desconfiam do sujeito como "eu", do narrador, da narrativa, das


personagens, da verdade e das possibilidades da linguagem de dizer
a realidade. Pertencem ainda e cada vez mais àquele tempo que
Stendhal chamou, já no século 19, de "era da suspeita" e que
Nathalie Sarraute consagrou ao caracterizar o romance experimental
do século 20.

Nossa época, escreve ela em 1956, "revela no autor e no leitor um


estado de espírito particularmente sofisticado. Não apenas eles
desconfiam da personagem de romance mas, através dela,
desconfiam um do outro". Para ela, autores e leitores estariam
cansados dos "sentimentos de confecção", das "emoções
convencionais" e das "reminiscências literárias".

Mais de meio século depois dessas considerações de Sarraute, a


maioria dos escritores atuais parece não sofrer com tais suspeitas.
Mas esses a que me refiro são todos desconfiados.

Um exemplo entre muitos: "Escrevo sendo filmado e esquadrinhado


pela medida opressiva de duzentos olhares e duzentas vozes, então
um frio horror se aloja no meu peito. É o terror da falsidade. A
desconfiança permanente por ocupar um lugar tão frágil, pois o que
pode uma nascente no meio do asfalto?" (Juliano Garcia Pessanha,
"Instabilidade Perpétua", Ateliê, 2009, pág. 36).

Desconfiam do "eu": "Não procurem nada atrás de meus escritos,


'eu' se existir, está todo neles, bem à tona. Sim, o eu é uma das
nossas mais caras ficções - carecemos dela apaixonadamente"; "o eu
é incrivelmente diviso, um tanto suspenso de si, eu sou quem não
sou, mesmo e outro" (Evando Nascimento, Retrato desnatural,
Record, 2008, págs. 138 e 167).

Desconfiam do narrador: "O narrador está calado. Até quando não


sabemos. [...] E então, de que se faria a palavra sem corpo do
narrador? De que se faria, ou ao que se daria esta palavra? [...] À
memória desmaterializada dos homens e das gentes que circulam no
mercado de ações?" (André Queiroz, "Outros Nomes, Sopro",
7Letras, 2004, pág. 35).

O narrador pode ser apenas uma língua sem corpo: "Esta pessoa
denegada, quase toda ausente, que depende da gramática para se
manter, manifestando-se pela língua crescida e projetada que só o
sufocamento pode produzir" (Carlos de Brito e Mello, "A Passagem
Tensa dos Corpos", Companhia das Letras, 2009, pág. 137).

Desconfiam das histórias: "Não há mais história para se contar, Não


há mais memória de guardados em restos de fazenda e de tecidos de
terceira linha. Desfiados, os tecidos. Desmoronados, os resíduos e as
partes deste si" (André Queiroz, pág. 38).

Ou: "Não, gente demais já morreu e histórias demais, de quem mais


ninguém se lembra, enchem o vento agora, feito um marulho sem
mar" (Nuno Ramos, "Ó", Iluminuras, 2008, pág. 168). Ou: "Existe
uma história, se toda metáfora e toda memória são insatisfatórias?"
(Julián Fuks, "Procura do Romance", Record, 2011, pág. 77).

Desconfiam da literatura como instituição e repetição de fórmulas:


"A tagarelice da literatura, esse nomear segundo - menos preciso e
carregado de vaidade, [...] esta literatice" (André Queiroz, pág. 48).
"Podemos agora renomear o mundo, isso outrora se designava como
literatura" (Evando Nascimento, pág. 274).

Desconfiam da escrita como representação: "Toda a interminável


noite da escrita está no fim. [...] Ó cão, os signos são todos
perecíveis! E as palavras não passam de cascas de coisas que eram
que foram que vieram se esfarelando na ladeira das eras até se
tornarem o que são -esta fala: gargarejo, cacareco" (Alberto Martins,
"A História dos Ossos", Editora 34, 2005, págs. 23-4).

RESÍDUOS Os exemplos poderiam multiplicar-se, mas passemos a


outro traço comum. São textos que, em vez de descrever grandes
paisagens, concentram-se frequentemente em coisas minúsculas:
restos, resíduos, cantos, cacos, lixo. Darei apenas dois exemplos:

"No grosso era areia batida que se cobria aos sábados e domingos de
milhares de saquinhos de polvilho, copos de plástico, garrafas de
cerveja, brinquedos destocados, restos de jornal, vidros de loção,
chaves, isqueiros, cortadores de unha, alianças e mais um sem
número de objetos que aproveitavam o fim de semana para mudar de
dono" (Alberto Martins, pág. 45).

Ou: "Sem conseguir escolher se a vida é bênção ou matéria estúpida,


examinar então, pacientemente, algumas pedras, organismos secos,
passas, catarros, pegadas de animais antigos, desenhos que vejo nas
nuvens [...] olhando a um só tempo do alto e de dentro para o
enorme palco, como quem quer escolher e não consegue: matéria ou
linguagem?" (Nuno Ramos, pág. 18).

Não por acaso, os mais sensíveis ao apelo sensorial desses detritos


são os escritores também artistas plásticos, como os dois últimos
citados. Num mundo excessivamente carregado de coisas
pretensamente úteis e funcionais, podemos cultivar "um desejo de
desperdício e falta de função", diz Nuno Ramos: "O interessante é
que não sejam ruínas mas pequenas células de inutilidade ou de
utilidade incompreensível, em meio à avalanche de propósitos, à
avareza minuciosa incrustada na fração circular de cada dia" (pág.
170).

Perpassam, nessas enumerações de restos e detritos, tanto a


preocupação ecológica quanto a memória de tantas ruínas históricas
e culturais sobrevoadas pelo anjo de Klee (via Benjamin), familiar a
todos esses escritores. Mas as preocupações apenas perpassam,
porque eles também não acreditam na literatura de mensagem, na
literatura engajada. Apenas registram, com lucidez e desgosto, o
estado lamentável de nossa "civilização".

Atentando para seus restos, eles rejeitam o excesso de informação,


de consumo, de imagens: a "face regressiva da tecnologia" como
instru mento de guerra, a "fantasmagoria ininterrupta" da televisão,
nosso "eterno presente aflito" (Nuno Ramos).

Às vezes, é possível arrancar desses restos "o pequeno infinito da


epifania, dessa minúcia preciosa que nada poderá reproduzir (textura
da cortina, mancha de mofo, borda da manteiga, beijo plissado, luz
às três da tarde, samba, sandália), porque a memória depende de
treino, de atenção ao que parece único, e encontra nisso sua função
mais elevada: frear a multiplicação desordenada do que acontece
simultaneamente" (idem, págs. 172-3).

E o resultado dessa atenção é poesia: "Ah língua da infância, muda


de lembranças -por toda parte só areia, imensas e monótonas dunas
de areia. Aqui a vida desistiu de existir e o tempo se reduz a um
prolongamento do nada. Uma luz impenetrável incide sobre lagartos
e pedras. Delas é que mais me aproximo. De dia entalam no calor do
sol. À noite estalam sob rajadas de areia fria. Areia no vento é lixa
-lâmina que penetra nas frinchas, incha, rabisca, Depois o vento
sopra e seca áspero as feridas" (Alberto Martins, pág. 28).


MEIAS PALAVRAS A reflexão implícita nas obras desses


escritores é complexa, mas seus textos são despojados, sem
pirotecnias verbais como as dos modernistas.

O trabalho da linguagem é de outro tipo. É a procura de dizer o que


ainda não foi dito, com vocabulário e sintaxe conhecidas. Em geral,
eles preferem dizer menos do que mais, pressupondo que tanto já foi
dito e redito que o leitor entende por meias palavras.

Do mesmo modo, quando narram, evitam explicar as implicações


psicológicas dos fatos para não cair em clichês, coisa que eles
temem mais do que tudo. Os fatos e sentimentos são dados a partir
de índices. Assim, em Nuno Ramos, na narrativa da venda da casa
paterna, depois de acontecimentos só rapidamente referidos como
"terríveis", todo o afeto, o luto, a perda, a dor e a revolta estão
contidos na pergunta irada: "Esta casa? Esta casa aqui?" (pág. 268).

Ao contrário da "angústia da página branca" de que se queixavam os


antigos escritores à espera da inspiração, os escritores de hoje lutam
com o excesso de informação que nos oprime: "Quando se começa,
nunca se está diante da folha ou da tela em branco, no papel, pano ou
cristal líquido, a folha lívida e lisa já está cheia de clichês, montoeira
de inutilidades que é preciso limpar para iniciar o trabalho, e o
principal clichê foi o que acabei de mencionar" (Evando
Nascimento, pág. 213).

Vivemos em "um universo inteiro hipernomeado de sentido,


hipersaturado de narrações (Juliano Garcia Pessanha, pág. 30).

Apesar das desconfianças na narração e na descrição, esses


escritores por vezes narram e descrevem cenas lembradas ou
imaginadas. Em muitos deles, as cenas ocorrem em hospitais,
cemitérios ou campos de batalha.

A morte é um tema constante em suas obras, não apenas porque ela é


o tema humano por excelência, tratado em toda a história da
literatura, mas porque, em nosso tempo, ela está onipresente nos
noticiários, nas imagens e até mesmo na recusa em aceitá-la. Nesses
escritores, o sentimento de que talvez estejamos numa época
terminal da humanidade se mistura à reflexão sobre a morte
individual.

PAI Entre os mortos e ausentes evocados nessas narrativas, avulta a


figura do pai. "O pai sumido" de Nuno Ramos, os ossos do pai em
Alberto Martins, a agonia do pai em André Queiroz, a "passagem
tensa" do corpo paterno em Carlos de Brito e Mello, o pai protetor
da infância em Julián Fuks. A morte do pai, experimentada na
existência ou ficcionalizada, é um "leitmotiv" de nossa época.

A geração a que pertencem esses escritores é composta de órfãos:


órfãos dos grandes modelos literários e artísticos, órfãos da proteção
do Estado, órfãos de ideologias e, já há muito tempo, órfãos de
Deus. A carta ao pai, de Kafka, às vezes referida nesses textos, é o
atestado de nascimento dessa tribo de órfãos. Encontramo-la
igualmente em obras de outra feitura, como o belo "Ribamar" de
José Castello (Bertrand Brasil, 2010).

Ao tentar captar alguns traços comuns, espero não ter dado a


impressão de que esses escritores "difíceis" são indistintos. Pelo
contrário, cada um deles tem uma forte marca autoral. Carlos de
Brito e Mello narra uma história fantástica, num romance de enredo
e estrutura surpreendentes.

Evando Nascimento é o mais ensaístico de todos; fala de arte, de


política, contém sua própria teoria e sua própria crítica, restando
muito pouco a dizer ao "amável crítico" que ele interpela
ironicamente. André Queiroz ainda está às voltas com aquilo que se
chamou, na França dos anos 70, de "écriture". Escreve (e bem) sob a
égide de Beckett e Blanchot.

Julián Fuks, na procura de seu impossível romance, parece recuperar


algumas das preocupações do "nouveau roman": a desconfiança em
todos os elementos da narração, a desconstrução sistemática do
enredo, a descrição minuciosa das coisas e dos próprios passos da
personagem, como um autodetetive em busca de indícios que
avivem a memória pouco confiável.

Alberto Martins justapõe dois relatos aparentemente muito diversos,


o primeiro loquaz e delirante, o segundo, seco como os ossos, a areia
e as pedras. Nuno Ramos sabe passar da reflexão grave e trágica a
um "elogio do bode", até concluir com um conto engraçadíssimo,
"No espelho".

Esses escritores, tão conscientes da triste situação do mundo atual e


das dificuldades de seu ofício, em geral não são muito chegados ao
humor. Mas há um humor negro em Carlos de Brito e Mello, e muita
ironia nos outros. E não se julgue que, por sua temática catastrófica,
eles sejam apocalípticos e desesperançados.

"Quem retorna à casa arruinada por um furacão ou uma bomba tem a


vida que não viveu a seus pés, talvez melhor e mais autêntica do que
a antiga. Toda catástrofe abre os seres, tornando-os essencialmente
relacionais. [...] E em meio às lágrimas recolhemos a madeira de
nossa nova casa, abrimos os braços ao consolo de um novo amor e
sabemos do céu e dos homens o que não sabíamos antes" (Nuno
Ramos, pág. 117).

LEITORES Maurice Blanchot dizia que estamos hoje escrevendo e


lendo "sob a vigilância do desastre", mas afinal "o desastre já
ultrapassou o perigo" ("L'Écriture du Désastre", 1980). O próprio ato
de escrever é um ato vital, um gesto de amor à vida e um voto de
confiança nos outros homens, os possíveis leitores.

E para quem escrevem esses escritores exigentes? Certamente para


um número restrito de leitores, tão inteligentes e refinados quanto
eles, leitores que só podem aparecer numa parcela educada da
população. Eles sabem que não entrarão nas listas dos mais
vendidos, como aqueles que satisfazem os anseios de entretenimento
dos leitores de romances, esses mesmos tão poucos num país
iletrado como o nosso.

Mas sabem que encontrarão aqueles poucos que lhes interessam, que
merecerão alguma resenha (o espaço jornalístico é pouco), algum
artigo em revista especializada e até mesmo algum prêmio, já que os
júris dos prêmios são compostos por leitores qualificados.

Enquanto muitos ainda se aproveitam das técnicas narrativas do


século 19, esses escritores assimilaram as vanguardas do século 20 e
desejam, agora, sair da modernidade para encontrar maneiras de
dizer mais apropriadas para o século 21.

"Como no século 21 criar algo de novo, se o século 20 tudo


inventou? ou ainda: como fazer algo distinto da modernidade sem
romper com ela? se rompo com a modernidade, permaneço moderno
ou modernista, pois a sua grande linhagem, desde pelo menos os
românticos se fundou em gestos de ruptura [...] como criar sem
romper nem se alinhar? A única solução talvez seja simplesmente
diferir" (Evando Nascimento, pág. 255).

Qual o futuro desse tipo de literatura? Acredito que, aos poucos,


encontrará mais leitores que a apreciem, porque leitura é questão de
treino. Os leitores que hoje ainda gostam de romances que contam
histórias com peripécias e surpresas, vividas por personagens "de
carne e osso", foram treinados há muito tempo por escritores que,
em sua época, inovavam no modo de narrar: Cervantes, Sterne,
Diderot, Edgar Poe, Dickens, Balzac e outros. As convenções por
eles introduzidas foram aos poucos naturalizadas.

Não me compete especular sobre o futuro dessa literatura, pois ela


será (ou será outra coisa que não se chamará mais literatura) feita
pelos escritores presentes e futuros. Ao crítico, cabe acompanhar,
tentar compreender, e não vaticinar. Assim, apenas registro, com
satisfação, que a literatura brasileira se enriquece com esses
escritores exigentes.

Há mais de 20 anos, o cultíssimo poeta-crítico José Paulo Paes


advogava "por uma literatura brasileira de entretenimento": "Numa
cultura de literatos como a nossa, todos sonham ser Gustave Flaubert
ou James Joyce, ninguém se contentaria em ser Alexandre Dumas ou
Agatha Christie. Trata-se obviamente de um erro de perspectiva: da
massa de leitores destes últimos autores é que surge a elite dos
leitores daqueles, e nenhuma cultura integrada pode se dispensar de
ter, ao lado de uma vigorosa literatura de proposta, uma não menos
vigorosa literatura de entretenimento" ("A Aventura Literária",
Companhia das Letras, 1988, pág. 37). Agora que já temos suficiente
literatura de entretenimento, nacional e importada, é muito bom que
tenhamos, ainda e também, uma literatura de proposta.

São livros que não dão moleza ao leitor; exigem leitura atenta,
releitura, reflexão e uma bagagem razoável de cultura, alta e pop,
para partilhar as referências explícitas e implícitas

Perpassam, nessas enumerações de restos e detritos, tanto a


preocupação ecológica quanto a memória de tantas ruínas
históricas e culturais sobrevoadas pelo anjo de Klee

A reflexão implícita nas obras desses escritores é complexa, mas


seus textos são despojados, sem pirotecnias verbais como as dos
modernistas

Enquanto muitos ainda se aproveitam das técnicas narrativas do


século 19, esses escritores assimilaram as vanguardas do século 20
e desejam, agora, sair da modernidade

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