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CARTOGRAFIA AMBIENTAL: UMA PERSPECTIVA A PARTIR DA PROPAGAÇÃO

DAS LIANAS

ENVIRONMENTAL CARTOGRAPHY: A PERSPECTIVE FROM THE SPREAD OF


LIANAS

Matheus Reis1

Resumo: Esse artigo busca contribuir e agregar possíveis a metodologia de pesquisa cartográfica
a partir de uma aproximação empírica com a Mata de Santa Genebra em Campinas, um dos
maiores fragmentos de mata urbana no Brasil. Utilizando fotografias e diagramas esquemáticos,
aborda uma relação análoga entre a experiência estética aos modos de propagação das Lianas,
espécies de plantas trepadeiras que se fazem abundantes nela. Nesse relato, é introduzida uma
tentativa de criar um sistema aberto a respeito das interações territoriais das espécies vivas com o
ambiente, bem como, um breve glossário norteador.
Palavras-chave: Cartografia, Experiência, Estética.

Abstract: This article seeks to contribute and add possible to the cartographic research
methodology based on an empirical approach to Santa Genebra’s Forest in Campinas, one of the
largest fragments of urban forest in Brazil. Using photographs and schematic diagrams, it
addresses a similar relationship between aesthetic experience and the ways of propagating Lianas,
climbing plant species that abound in it. In this report, an attempt is made to create an open
system regarding the territorial interactions of living species with the environment, as well as a
brief guiding glossary.
Keywords: Cartography, Experience, Aesthetics.

Introdução a propagação das Lianas

A Mata Santa Genebra localizada no município de Campinas é um fragmento de mata


urbana sob responsabilidade de manejo partilhada entre a Fundação José Pedro de Oliveira e o
Ministério do Meio Ambiente/ICMBio (SANTAROSA, 2010). Gerindo uma série de programas
que possibilitam o acesso da comunidade externa na unidade de conservação, dispõe de um entre
eles chamado ‘fotógrafos de natureza’, o único no qual há possibilidade de realizar visitas
autoguiadas na mata após passar por um curso de formação ministrado anualmente (Figura 1).
Essa pesquisa iniciou-se despretensiosamente a partir de tal acesso para produção de um material
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Matheus Reis, nome artístico Mathias Reis, é artista visual e professor de artes e design na Faculdade de Artes e Administração
de Limeira (FAAL). mth.reis@gmail.com

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fotográfico de intenção poética e artística das lianas, espécies de trepadeiras recorrentes em
Florestas Estacionais Semi-Deciduais. O interesse pelas lianas já era presente em projetos
artísticos anteriores, como na Residência Artística Nave na Mata (espaço artístico em frente a
U.C.) quando seus potenciais estéticos impulsionaram uma série de investigações escultóricas
inter-dependentes a formações arquitetônicas e ecológicas do local e se intensificou com a
proposição fotográfica, posteriormente desdobrando-se nessa pesquisa.
A característica mais generalista das lianas é sua capacidade de preensão, ou
preensibilidade, que consiste em se propagar agarrando e escorando em quase qualquer
superfície. As trepadeiras fogem das zonas de sombra e se projetam em direção ao sol criando
desenhos com seus caules hora lenhosos, hora semi-lenhosos ao longo deste percurso. Fora esta,
não há qualquer semelhança formal entre uma liana e outra, nesse sentido, sua formação é
estritamente inter-relacionada e dependente da paisagem em que se desenvolve, configurando
singularidade a cada uma delas.

Figura 1: O autor fotografando lianas na Mata de Santa Genebra.

Fonte: Fotografia de Pedro Hurpia (2019)

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Levando em consideração uma experiência prévia com proposições cartográficas
influenciadas pelo conceito em que Deluze e Guattari (1997) sugerem uma analogia com os
rizomas para tratar do pensamento, de sua relação com o mundo e dos planos de imanência do
sujeito. Com a experiência empírica de fotógrafo da mata, tornou-se quase que inevitável que o
modo de se investigar a partir da cartografia fosse severamente modificado pelo contato com as
lianas. Quanto se tem a imagem de pensamento de rizomas como gramíneas ou tubérculos se
propagando num espaço liso (DELEUZE; GUATTARI, 1991) ocorre-se a impressão de uma
expansão ilimitada. Compreende-se a partir da relação deste com outros conceitos dos autores
que há outras intensidades que se somam a esse contexto, levando a possibilidade de terem
optado por esta analogia para enfatizar uma ruptura paradigmática com as restrições racionalistas.
No entanto, escapando as intenções de escopo filosófico (DELEUZE; GUATTARI, 1997) dos
autores, as interações ecológicas das lianas dependem da relação com outros sujeitos e paisagens
para se propagar e aparentam novas qualidades quando tratamos de investigações que buscam
refletir sobre as relações do sujeito em determinada paisagem.
Além de sua capacidade de preensibilidade, as lianas são influenciadas pela produção de
sombra da copa das árvores que se altera ao longo das estações e pela eclosão autopoiética da
floresta, fazendo com que grandes regiões fiquem sem folhas. Porém, esse vestígio de seu
percurso não está morto por estar sem folhas, pois participa de seu agenciamento territorial para
continuar buscando por sol. Não podemos dizer que os caules na sombra são o seu passado mas
sim, um caminho percorrido que continua presente em sua estética de existência, ou seja, não
trata-se apenas de um vestígio, mas de um resíduo ativo ressignificado em função de novas
condições e necessidades de seu corpo. Seu desenvolvimento não é apenas como um indivíduo
mas como sujeito propagador de um ambiente onde são desempenhadas diversas relações inter-
espécie e movimentos de territorialização que não a dela:

As lianas proporcionam importantes caminhos entre as copas para muitos


animais que vivem nos dosséis e também são importantes engenheiros do
ecossistema. Sem essas conexões de trepadeiras, movimentar-se de um
árvore para outra exigiria que os animais descessem até o chão, onde
estariam muito suscetíveis à predação (PUTZ, 2011, s/p.)

Partindo de tais considerações sobre as lianas, suas perspectivas e relações ecológicas,


tomaremos por tarefa deslocar alguns termos (corpo, ambiente, paisagem, reciclagem, resíduo e

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rejeito) recorrentes a campos do conhecimento distintos, tendo por intenção um diálogo com
estes em vias de agregar possíveis a cartografia de ambientes de modo universal e irrestrito.

Umwelt, corpo-eventual e corpo-resíduo

Independente de sua espécie, cada corpo tem um limite perceptivo, referente ao que seus
sentidos possibilitam de acesso a uma paisagem específica. Pautando-se pela fenomenologia,
uma referência cara a se pensar sobre as percepções possíveis de um corpo é Uexküll (1909) com
o conceito de umwelt. Resumidamente, a umwelt é um recorte na materialidade de uma
paisagem, uma delimitação imposta por cada corpo que determina seu campo de ação.

Figura 2: Diagrama esquemático da Umwelt de duas espécies numa paisagem.

Fonte: Diagrama do autor

Compreende-se que cada ser vivo tem um alcance perspectivo próprio sobre tal em acordo
com seus corpos, mas que, no entanto, podem partilhar de um mesmo agenciamento, tal qual uma
árvore de que ambos se alimentam dos frutos. Para o autor, a paisagem agrega um cruzamento
desses mundos distintos (Figura 2), sem fazer juízo de valor entre eles ou hierarquiza-los

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(Uexküll, 2007). O corpo está em movimento por paisagens e a percepção que tem delas, produz
um plano próprio de experiências que este carrega consigo (Figura 3).

Figura 3: O corpo desloca-se por uma paisagem partilhada com outros corpos apreendendo dela aquilo que está ao
seu alcance perceptivo.

Fonte: Fotografias do autor com participação de Iam Campigotto na Mata de Santa Genebra (2019)

Assim como os caules sem folha das lianas, esse plano da experiência relaciona-se a um
conjunto de acontecimentos e encontros prévios que formam um corpo de resíduos, ou, corpo-
resíduo. Esse, não partilha de uma noção de passado ou memória historicista. A cada movimento
o corpo é reciclado por relações presentificadas com a paisagem (MORRIS, 2006). Conforme
Heráclito tudo flui e nada permanece, paisagem diferente, novos sentidos para o plano de
experiência, para os resíduos do corpo. A escolha do termo ‘resíduo’ ressalta esse sentido, pois,
ainda que o corpo carregue algo de eventos que já aconteceram, os resíduos são sempre
ressignificados, ou seja, nada devem a uma concepção de ‘rejeito’ ou ‘estratificação’. Essa
consideração vale ser ressaltada, pois a noção de passado pode ser uma restrição para se pensar
nas relações do corpo. O que chamamos de memória, ancestralidade, inconsciente coletivo, etc,
possuem seu valor no campo discursivo das políticas institucionais ou de criação literária, no
entanto, quando pensamos num plano fenomenológico estas perdem função, pois a constatação
de algo não carrega consigo o saber que advém de sua experiência: apesar de constatar que os
chapéus eram usados no início do século XX, nunca saberemos as relações sensoriais de usá-lo
quando todos usavam; nunca saberemos as reações provocadas aos nossos sentidos ao caminhar

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pelas matas que aqui outrora existiram, sem que haja um esforço imaginativo que nós leve a um
domínio de especulação ficcional – só conseguimos perceber com nosso corpo o tempo presente,
o Aíon, nesse sentido o passado é sempre irreversível (PRIGOGINE; STENGERS, 1991). Do
mesmo modo, as imagens de pensamento suscitadas por nossas memórias mudam de sentido com
o passar do tempo.
O plano de experiência depende da materialidade física das paisagens e a abstração do
pensamento só é possível pela inter-relação com ela. Com isso, um resíduo imaterial como uma
receita de bolo, só é possível a partir da paisagem que proporcionou ingredientes e condições
para que essa receita fosse um dia executada e uma paisagem pra que fosse apreendida
(INGOLD, 2002). Assim, não há uma separação entre os aspectos subjetivos/imateriais e os
aspectos expressivos/materiais do corpo. A diferença entre fazer um estudo dentro de um
laboratório, numa floresta ou em ambos, vai interferir na pesquisa, porque os resíduos dessa
paisagem proporcionam o campo de possíveis para o pensamento (FOUCAULT, 2013).
Enquanto o plano de experiências de um corpo vivo carrega esses resíduos significantes,
podemos pensar sobre o que gera essa dinâmica, qual iremos nos referir como corpo-eventual.
Quando pensamos o corpo de uma perspectiva fenomenológica ele não se limita a pele, quando
pensamos esse corpo de uma perspectiva formal também não (ingerimos e expelimos alimentos,
ar etc.). O corpo modifica-se conforme a paisagem em que está inserido. A eventualidade faz
com que o corpo não seja o mesmo para todos os lugares, sobreposto ao corpo-residual há sempre
um corpo-eventual que o obriga a se reciclar conforme as circunstancias da paisagem e suas
relações, ou seja, o corpo está em devir, a tornar e criar algo novo para se adaptar conforme as
potências e afetos encontrados (Figura 4).

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Figura 4: Trabalho artístico ‘Preensões’ (2019), fotografia digital, dimensões variáveis.

Fonte: Fotografias do autor com participação de Iam Campigotto na Mata de Santa Genebra (2019)

Uma analogia interessante a essas reflexões seria a experiência de mudar de casa. A


imanência da nova paisagem é um evento singular para o corpo, esse corpo-eventual recém-
formado sobrepõe-se ao plano de experiência com que nela chegamos (corpo-residual). O corpo-
resíduo começa a se expressar materialmente e em seu movimento as experiências prévias são
recicladas, bem como a paisagem da nova casa com os resíduos dessa expressão (Figura 5).
Colocamos um vaso sobre a mesa que nos traz certa familiaridade, colocamos um quadro na
parede porque carrega um afeto-residual, são não-objetos: expressões materiais de um plano da
experiência, mas uma vez levados a paisagem da nova casa, já não são mais os mesmos, nem a
paisagem que as recebe e nem as memórias que se faz deles.

Figura 5: Diagrama esquemático das dinâmicas entre Umwelt, corpo-resíduo e corpo-eventual em uma paisagem.

Fonte: Diagrama do autor.

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O corpo não é apenas o resultado do encontro de forças da paisagem (DE OLIVEIRA,
2005), quando ele responde aos encontros com essa, é responsável também por produzi-la, é uma
das forças da paisagem. Sempre que estamos em alguma paisagem inevitavelmente geramos
algum efeito com nossa presença, estamos a intervir. Esse jogo de forças que os corpos produzem
na paisagem é o que podemos entender por ambiente. Um ambiente tem vida própria, uma
produção autopoiética (MATURANA; VARELLA, 1998). Uma paisagem pode reunir vários
ambientes, várias dinâmicas de força (Figura 6).

Figura 6: Diagrama esquemático da formação de um ambiente a partir de movimentos de territorialização de várias


espécies.

Fonte: Diagrama do autor.

Dinâmicas entre corpos, territórios, ambientes e paisagem

É interessante deixar em evidência um olhar de similaridade entre corpo e paisagem.


Iniciar esse texto escrevendo primeiro pelo corpo-residual/corpo-eventual ou pela
paisagem/ambiente é indiferente, são múltiplas entradas diferentes para um mesmo plano. Apesar
de termos iniciado esse texto com o corpo, poderíamos ter iniciado pela paisagem, pois o foco de

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atenção está nas inter-relações, não há juízo de valor entre seus aspectos. A paisagem tem uma
aproximação ao corpo-resíduo. Ela é o acúmulo residual do jogo de forças produzido pela
presença e dinâmica entre os corpos (INGOLD, 2002). Assim, a paisagem está para o corpo-
residual de modo semelhante com que o corpo-eventual está para o ambiente. Ambiente e evento
estão no plano de devir, catarse, transformação e movimento perpétuo; movimento este, que não
para de gerar e sobrepor resíduos que alimentam o próprio movimento (Figura 7).

Figura 7: Diagrama esquemático da dinâmica entre paisagem e ambiente a partir da territorialização de várias
espécies.

Fonte: Diagrama do autor.

Em sua presença física na paisagem, os corpos se expressam materialmente. Essa


expressão, que é uma manifestação do corpo eventual, utiliza-se dos resíduos da paisagem e do
corpo-resíduo para agir no ambiente. A ação de uma espécie no ambiente é sempre uma aposta,
pois em sua dinâmica há sempre a ação de outras espécies, ou seja, nem sempre há uma relação
direta entre a intenção com o que irá ocorrer. Essa expressão do corpo no ambiente é o que

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podemos entender por territorialização (DELEUZE; GUATARRI, 1997), um recorte de
organização na paisagem que varia conforme a intenção ou necessidade em questão. Um
território é uma formação material de corpos no ambiente, que por sua vez, gera resíduos na
paisagem (Figura 8).

Figura 8: No aceiro da Mata de Santa Genebra, o autor verifica resíduo de uma árvore utilizado por outras espécies
para novos movimentos de territorialização.

Fonte: Fotografia de Caio Boteghim, 2019.

Resumidamente, as paisagens são formadas e produzidas pelos resíduos deixados pelos


seres e forças geológicas ao intervirem em um espaço no decorrer do tempo. Se estivermos na
mata e olharmos ao nosso redor, iremos constatar que há uma sobreposição material: uma
trepadeira abaixou com o peso do pouso de um carcará até a sombra, um ninho abandonado de
bem-te-vi se desfez com o movimento, um musgo ali cresceu e morreu com a chegada do verão,
uma trilha formou-se com a passagem de um teiú, uma camada de folhas foi espalhada pelo vento
e assentadas pela chuva. Essa sucessão de relações no espaço deixa resíduos, o que é vivo e
dinâmico num momento, no outro se sedimenta e forma paisagem. Por sua vez, a paisagem
condiciona materialmente e imaterialmente novas experiências ambientais que produzirão novas
paisagens sucessivamente.
O território não ocorre necessariamente pela expressão material de um único corpo, pois
pode desenvolver formações territoriais coletivas com outros corpos. O encontro com outros
corpos pode gerar ou não um acontecimento, que seria o desenvolvimento relacional de um
território em que os corpos são desterritorializados de seu movimento por afetos comuns,
territórios sociais/coletivos. A relação com outro corpo exige essa desterritorialização que, a

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priori, não é um movimento necessariamente confortável ao corpo-resíduo, mas ela possibilita
prazer, por incontáveis motivos, dentre eles novas fruições do corpo-eventual. Essas relações não
dizem respeito apenas à espécie humana, mas a todos os corpos. Cada espécie processa e cria a
engenharia que circunstancialmente lhe convém na formação de territórios
sociais/desterritorialização partilhada com outras espécies, para a produção de arquiteturas de
subjetividade que favoreçam a fruição e prazer sensorial de seu corpo (Figura 9).

Figura 9: Diagrama esquemático da dinâmica entre um ambiente e seus territórios partilhados

Fonte: Diagrama do autor.

Há conflitos entre territórios quando as expressões materiais de um corpo são violadas,


isso porque não há desejo entre os corpos de se desterritorializarem para uma partilha de
território, o território deixa de ser expressivo para se tornar possessivo (DELEUZE; GUATARRI,
1997). No entanto, isso não diz respeito a uma relação de predador-presa, pois ela demanda um
território comum, há um tanto de subjetividade da presa no corpo do caçador como do caçador na
presa; uma continuidade entre os corpos (DE CASTRO, 2018).
Todas essas postulações são uma concepção mais generalista e referencial para essa
proposta de vocabulário. O que ocorre, no entanto, é que na prática não poderíamos afirmar que

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compreendemos todas essas relações e que podemos cartografá-las. O corpo pode afetivamente
eleger alguns critérios que lhe parecem consistentes para sua intenção, mas dificilmente passará
disso. Sendo assim, o corpo sempre interfere na paisagem-ambiente em que está inserido, ele a
compreende por sua umwelt, carrega consigo um corpo-resíduo que também intervém em seu
corpo-eventual, em suas possibilidades de ação e interação. Não conseguimos precisar as relações
territoriais que formam um ambiente ou mesmo, reconhecer o território de outras espécies senão
uma fração a partir de um território partilhado-coletivo. Também não temos como definir onde
começa e onde termina uma paisagem ou um ambiente, postular em exatidão a relação entre esses
ou como esses influenciam indiretamente o corpo-eventual, pois as divisões só existem a partir
do momento que dizemos ‘veja, aqui há tal ambiente ou paisagem com essas relações, etc’. Essa
expressão em si, já é cartográfica. Quando elencamos um ambiente, uma paisagem, um território,
estamos fazendo um recorte, que por si, já é um mapa (Figura 10).

Figura 10: Diagrama esquemático da cartografia como perspectivismo, ou, plano de organização de um dos sujeitos
dos ambientes ou de uma paisagem.

Fonte: Diagrama do autor.

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Assim, só podemos assumir que a cartografia além de perceptiva, é afetiva. Ela sempre
tem uma intenção e um interesse em modificar-se através do corpo-eventual. Poderíamos dizer
que ela parte do corpo em sentido a paisagem e ao ambiente, mas com isso estaríamos
desconsiderando que o corpo se utiliza da paisagem como matéria de expressão para formar
territórios no ambiente, sendo assim, não podemos hierarquizar. No entanto, ao cartografar
estamos também gerando matéria de expressão: os mapas. Os mapas são movimentos de
territorialização, carregam intensidades, criam outras relações e devires que não seriam possíveis
antes dele. A possibilidade é justamente pensar como ela influencia o processo de criação.
Podemos elencar elementos da paisagem (um punhado de terra, um vergalhão de aço etc.),
territórios partilhados com outras espécies (macacos, trepadeiras, aves etc.) e traçar com isso um
plano de organização das relações específicas conosco, assumindo-se como parte das dinâmicas
ambientais. Esse processo prático pode ser chamado de plano de organização para fins de
comunicação e criação, levando em consideração que o próprio movimento de cartografar altera
os agenciamentos de ambiente/paisagem em que estamos inseridos e que não param de se mover,
desterritorializar e deformar.

Breve glossário de termos

Corpos: Os corpos são formados na dinâmica do ambiente-paisagem; conforme a


materialidade de uma paisagem e das relações ambientais. Por sua vez, são também responsáveis
por sua formação potencializando casualidade e imanência. Possuem uma umwelt, percepção
sensorial específica para cada espécie, ainda que possa partilhar com outras espécies um território
de percepção comum tanto de cooperação como de conflito. Um corpo é sempre corpo-resíduo e
corpo-eventual.
Corpo-resíduo: É um plano de experiências prévias, dos encontros do corpo com outros
corpos, paisagens e ambientes que já aconteceram. Esse plano de experiência é próprio ao corpo e
compreende desde o envelhecimento dele, cicatrizes, até habilidades técnicas, educação
perceptiva etc.
Corpo-eventual: É um plano de experiências presentificado de interação, é o movimento
de adaptação que modifica o corpo-resíduo de acordo com os devires de um ambiente, ele
territorializa e é desterritorializado simultaneamente conforme se expressa materialmente. O

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corpo eventual é o que impede de um corpo de ser entendido como sujeito, pois compreende as
regiões que não pertencem exclusivamente a ele mesmo, impossibilitando que o corpo seja
pensado com uma noção de centralidade, pois ele é também os ambientes-paisagens onde se
situa.
Ambiente: Plano imanente produzido pela expressão de diversos corpos reciclando os
resíduos da paisagem; Ecossistema emergente na dinâmica de forças produzida pela geofísica e
pela expressão material (territorialização) dos corpos a partir dos resíduos da paisagem. Só possui
fronteiras quando denotados por uma cartografia.
Paisagem: Fundação da realidade sensível e perceptiva, acúmulo de resíduos das relações
ambientais, quais só são possíveis a partir da mesma. Plano material da experiência perceptiva
dos corpos. Uma paisagem pode agregar vários ambientes. Só possui fronteiras quando denotada
por uma cartografia.
Território: A expressão material dos corpos vivos em um ambiente, essa expressão
intervém, deixa resíduos que compõe a paisagem, da qual se se utiliza para intervir; potencializa
com suas ações a complexidade imanente do ambiente.
Território coletivo/social: É a formação de um território perceptivo comum, ele pode se
formar em longo prazo como o território de um corpo. Para que exista é necessário um
movimento duplo de territorialização/desterritorialização conjunto dos envolvidos e as relações
possíveis são múltiplas, interações desde as mais simples as mais simbióticas.
Contágio: É a catalisação e profusão de um território coletivo, que por sua vez,
desenvolve um corpo-resíduo próprio; território-resíduo.
Cartografia: Estabelecer um plano de organização perceptivo-afetivo sobre uma
paisagem ou ambiente, seja ele científico, artístico ou filosófico. Recorte a partir de um interesse
específico ou necessidade eminente. Por um lado, é um racionalismo sobre a experiência
perceptiva do corpo que a produz, por outro, sua produção potencializa novas relações,
multiplicidades e devires.

Referências

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Faria e Maria J. M. Trincheira. Brasília: Universidade de Brasília, 1991

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