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Doutrina CONTRATO DE COMPRA E VENDA NO CODIGO CIVIL PROIBIQOES DE COMPRA E DE VENDA — VENDA DE BENS FUTU- ROS— VENDA DE BENS DE EXISTENCIA OU DE ‘TITULARIDADE INCERTA — VENDA DE COISAS SUJEITAS A CONTAGEM, PESA- GEM OU MEDIDA Pelo Prof. Doutor Raul Ventura SUMARIO PROIBIQOES DE COMPRA E DE VENDA 1—Venda de coisa Htigiosa. 2— Venda por pais ou avés a filhos ou netos, 3—Compra por pais, tutores e curadores. 4—Compra por mandatérios. 5—Compre por pessoas colectivas, 6 — Questtes comuns. VENDA DE BENS FUTUROS 1—Nog&o de coisa ¢ de direito futuro. 2— Construgéo juridica do contrato de venda de coisa futura, 8—Regime da venda de coisa futura. 4— Questes especiais da emptio spei. 262 RAUL VENTURA VENDA DE BENS DE EXISTENCIA OU DE TITULARIDADE INCERTA VENDA DE COISAS SUJEITAS A CONTAGEM, PESAGEM OU MEDIDA 1— Requisitos comuns dos artigos 887.° e 888.". 2—O regime do artigo 887. 3—O regime do artigo 888.. 4—Compensagéo entre faltas e excessos. 5—Caducldade do direito 4 diferenca de preco 6 —Resolugho do contrato. 7 — Disponibllidade destes preceitos. &—Enquadramentos de outras hipéteses possiveis, 9—Vendas comercials a conta, peso e medida, e vendas comerclais a esmo ou por partida intelra. PROIBICOES DE COMPRA E DE VENDA Venda de coisa litigiosa 1—O art. 876.°, n.° 1 C. C. determina que nio podem ser compradores de coisa ou direito litigioso, quer directamente, quer por interposta pessoa, aqueles a quem a lei nao permite que seja feita a cessio de créditos ou direitos litigiosos, con- forme se dispde no capitulo respectivo. Continua, pois, a proi- big&o relativa de venda de coisas litigiosas que j& constava do art. 1563.° do Cédigo anterior. B de notar a existéncia de uma duplicacao nos arts. 876.° e 579.°; eate regula a cessiio de créditos ou outros direitos liti- Biosos e aquele, além da venda de coisa litigiosa, a venda de direitos litigiosos; a duplicacio resulta de a cessio de direitos compreender a venda de direitos. A definig&io do direito litigioso encontra-se no art. 579° n.° 3: diz-se litigioso o direito que tiver sido contestado em jufzo contencioso, ainda que arbitral, por qualquer interessado. Olhando as situacdes possiveis na evolugio de um litigio sobre um direito, podemos em primeiro lugar distinguir con- forme 0 litigio ainda nfo ou jA foi deduzido em juizo e em CONTRATO DE COMPRA E VENDA NO CODIGO CIVIL 263 seguida, a partir da deducio em jufzo, conforme ainda nio tenha havido alguma oposi¢io do requerido; depois, podemos distinguir conforme a espécie da oposigio deduzida; por outro lado, 0 litigio pode ser deduzido em juizo numa fase declara- tiva ou logo numa fase executiva. Nao pode considerar-se afastada in limine a hipdétese de © car&cter litigioso do direito ser apurado antes de deduciio em juizo; perante o art. 1485.° do antigo Cédigo Civil italiano prevalecia a opiniao no sentido de bastar a controvérsia ainda nao judicial, mas possfvel e previsivelmente transformAvel em litigio judicial. Nao é, contudo, opiniéo defens4vel perante o art. 599.°, n.° 3, do nosso Cédigo—como deixou de o ser Perante o art, 1261° do actual Cédigo Civil italiano — pois este diz «em juizo contencioso, ainda que arbitral». A palavra , suscitando dividas quanto ao tempo em que o requi- sito deve ser apreciado. Se o juiz, magistrado, funcion&rio, ma- datério adquirir o direito litigioso e 96 depois disso passar a exercer a sua actividade ou profissfio na 4rea onde o processo decorre, a compra é valida; igualmente valida é a compra efec- tuada depois de o comprador ter deixado de exercer a activi- dade ou profissiio na frea em causa (contre, B. Lopes, pag. 65, que entende e nunca se duvidou de que, por forca deste artigo 1567.°, todas as proi- bigdes constantes dos artigos anteriores eram extensivas as vendas ou compras efectuadas Por interposta pessoa. No actual Cédigo, algumas Proibicgdes de compra ou venda aparecem com a extensiio a pessoa interposta: art. 876.° (venda de coisa ou direito litigioao), art. 1892°, n° 1 (aquisigéo por pais), 1937.° e 1939.° (aquisigéo por tutor e aplicAvel ao cura- dor por forca do art. 156.°). O art. 877.°, como se disse, nfo refere a interposigio de pessoas e€ 0 mesmo sucede com o art. 1714.°, n° 2, Na primeira versio do Projecto elaborado pelo Prof. Galvio Teles, mantinha-se a Proibigaio de venda a descendentes, expres- samente alargada no caso de contrato Por interposta pessoa. Na segunda versio do mesmo projecto, fora eliminada essa Proibigio de venda, a qual reapareceu na segunda revisaéo ministerial. E reapareceu por aproveitamento do art. 1565.° do Cédigo anterior, salvo pequenos Pormenores de redacciio, que néo interessam ao problema agora discutido. Como o art. 1565.° nao referia a interposicéo de Pessoa, o art. 877.°, n.° 1, também nao a refere. Nio foi, porém, reproduzido no novo Cédigo o art. 1567.0 do Cédigo anterior; deixara de ter cabimento, uma vez que as hipéteses a que ele se referia tinham deixado de estar alinha- das a propésito do contrato de compra e venda e tinham pas- sado a estar dispersas, Assim, a proibig&io de vendas recipro- cas entre cOnjuges, passou para o art. 1714.°, também sem CONTRATO DE COMPRA E VENDA NO CODIGO CIVIL 269 @ mengo das pessoas interpostas, que j4 nfo tinha no antigo art. 1564.° Explicada, por meros motivos formais, a omiseio do art. 1567.°, segue-se que nos arta, 877, no 1, e 17142, ne 2, @ falta da mencio da interposigao de pessoas n&o é intencio- nal; resultou da reproducio de Preceitos anteriores, os quais eram completados pelo art. 1567.° Ficaram a existir lacunas nao intencionais, por falta de um complemento «; hé, pois, aqui uma interdigéo da compra por interposta pessoa. cominada directamente e nfo por meio de remissdo para qual- quer outro preceito. E continua: «...aqueles a quem a lei nfo Permite que seja feita a cessio de créditos ou direitos litigio- 808 conforme se dispde no capitulo respectivo»; portanto, «aqueles> siio os juizes, magistrados do Ministério Publico, fun- ciondriog de justica, mandatérios judiciais (nas condigdes men- cionadas no artigo), mas nao as pessoas interpostas entre esses © os vendedores, que estio referidos no inicio deste artigo e CONTRATO DE COMPRA E VENDA NO CODIGO CIVIL 27 directamente inibidos no artigo 876, n.° 1. Daqui seguir-se-ia que, apesar da semelhanga de situacdo, aceitando-se o cardcter excepcional do art. 579.°, n.° 2, este niio poderia ser aplicado & venda de coisas litigiosas. A referéncia a coisas transmitidas feita no art. 579°, n.° 2 permite pensar que, embora situado nease artigo respeitante a cessiio de direitos, ele abrange tam- bém a transmissio do direito de Propriedade sobre a coisa, dito abreviadamente, transmissio da coisa. Na parte que nos interessa agora, o problema da aplica- g&o do art. 579.2, n° 2, & venda de pais ou avés a filhos ou netos est4é reduzido a isto: saber se o cénjuge do inibido ou @ pessoa de quem este seja herdeiro presumido io, por sim- ples forca da lei, pessoas interpostas. Na verdade, j& se viu que a parte final do art. 579.°, n.° 2, nfio é excepcional e, por outro lado, que este preceito 6 aplicdvel tanto & transmissfio de direitos como 4 transmissio de coisas. Mas s6 de coisas liti- giosas? Em nosso entender, quando um Preceito € excepcional e se coloca o problema da sua aplicagio analégica, é preciso determinar onde reside a especialidade do Preceito. Nos casos de presuncio iuris et de iure ou de regras introduzidas por «considerar-se que...» ou «. Nio se afigura que a «naturezay do contrato e a determi- nagio (entre mandante e mandathrio) do contefido do con- OA-11-3 28 RAUL VENTURA trato sejam equivalentes. Por outro lado, a «natureza» do con- trato de compra e venda nfo exclui a Possibilidade de conflitos de interesses, Acresce que o prego nio é o tinico elemento do contrato de compra e venda susceptivel de criar conflitos de intereeses; pense-se, por exemplo, na hipdtese de o mandatario comprar por um prego superior ao corrente, mas diferir por longo tempo o pagamento dele. Compra por pessoas colectivas 5—O art. 161.°, n° 1 declara que as pessoas colectivas podem adquirir livremente bens iméveis a titulo gratuito e o n° 2 do meamo artigo dispGe que carece de autorizagio do Governo, sob pena de nulidade, a aquisigio de iméveis a titulo oneroso bem como a sua alienagdo ou oneragdo a qualquer titulo. Varios pontos podem considerar-se assentes na interpre- tagiio deste preceito: nfo we aplica a sociedades; nfo ha que distinguir conforme os bens sejam ou néo indispens4veis para © desempenho das fungdes da pessoa colectiva; o not&rio nfio pode lavrar o contrato sem prova da autorizagaéo, que pode ser dada por oficio da autoridade competente. Duvida-se, porém, da nulidade cominada como sancio. Pires de Lima e Varela, I, pig. 106, e B. Lopes, pig. 63, enten- dem tratar-se antes de ineficdcia ou invalidade mista, sanfvel Por autorizagio posterior, confirmagiio ou validacio do Governo. N&o vemos motivo para isso. Partindo-se da expressa afirmacgéo de nulidade e niio existindo qualquer referéncia a confirmagéo ou autorizagio posterior, nem estas sio possiveis nem de tal Possibilidade — que niio existe — pode tirar-se argumento para alterar o regime da prescrita nulidade, Alias, a lei, quando pre- tende que @ nulidade seja — contra os princ{pios gerais — sané- vel pela confirmagio de outrem, di-lo expressamente, como por exemplo no art. 1939.°, n.° 2, quanto a actos Praticados pelo tutor. Preceitos especiais permitem que certas aasociacdes adqui- ram . Quando, porém, se entenda que a ilegitimidade nao abrange as situagdes em que a proibigéo incide sobre o proprio resul- tado, preacindindo para isso de todas as questdes de titulari- dade ou de autorizagio do autor do negécio e sobretudo quando 8e observe que a sancio adequada a ilegitimidade 6 a inefi- cacia do acto e nio a anulabilidade — Bianca, «La vendita», pag. 110 — tal enquadramento néo pode ser aceite. Impedimento de exercicio, Proposto por Bianca para alguma das hipéteses, 6 uma locug&io que exprime subjectivamente aquilo que objectivamente é expresso por «proibicgio de exer- cicio (ou compra ou venda)». Erigi-lo, portanto, em conceito técnico-jurfdico, com um regime — anulabilidade, nulidade rela- tiva, inefic&cia — conforme a previsio legal da proibig&o, pouco ou nada adianta tecnicamente. VENDA DE BENS FUTUROS Nogéo de coisa e de direito futuro 1—O art. 890° trata da venda de bens futuros, frutos pendentes e partes componentes ou integrantes duma coisa. As coisas futuras referem-se também os art. 211.°, para as definir como «as que nic estiio em poder do disponente, ou a que este nfo tem direito, ao tempo da declaraciio negocial», © art. 399., para admitir a Prestacio de coisa futura sempre que a lei nao a proiba e o art. 408.°, n° 2, para determinar que © direito se transfere quando a coisa for adquirida pelo alie- nante. No Céd. Com. refere-se-lhe o art. 467, n° 1. A definigio do art. 211°, com a intencio de eaclarecer alguns aspectos adiante indicados, obscurece a hipétese mais natural, que é a de a coisa ainda nfo existir in rerum natura; CONTRATO DE COMPRA E VENDA NO CODIGO CIVIL 281 apesar da sua redaccfo, que inculca a existéncia da coisa — pode parecer que a referéncia a estar a coisa em poder do disponente ou a ela ter o disponente um direito supde a exis- téncia natural da coisa — essa hipdtese est& incluida na defi- nigéo, Vende coisa futura quem, por exemplo, vende um prédio urbano ainda nio construfdo. Os usos sociais determinam se a coisa deve considerar-se existente in rerum natura, naquelas hipéteses em que 6 duradouro ou complexo o processo de pro- dugio; é futura a venda da coisa enquanto esse processo nfo tiver terminado e isto seja o contrato celebrado antes ou depois do inicio de tal processo. Desta hipétese aproxima-se a de a coisa no ter, ao tempo da declaracio negocial, individualidade juridica e portanto nfo ser uma coisa para o direito, como sucede com og frutos pen- dentes e as partes componentes e integrantes, que 96 depois da separagio se tornam coisas juridicamente auténomas. Para distinguir esta e a anterior hipéteses, basta pensar na venda da colheita de trigo do ano seguinte e na venda da colheita do trigo j& semeado nesse ano. O art. 890.° poderia ter deixado de se referir separadamente a coisas futuras, frutos pendentes e partes componentes ou integrantes, pois esses frutos e partes deveriam, em qualquer caso, ser considerados coisas futuras, A separaciio entre coisas futuras, frutos naturais e partes com- Pponentes aparece no art. 408.°, n.° 2, ai com mais razio, pois encara-se o problema da transferéncia da propriedade, que ocorre em momentos diversos: para a coisa futura st. sensu, no momento em que for adquirida pelo alienante, para frutos e partes componentes e integrantes, no momento da colheita ou separacio, De carécter meramente juridico é a distingio entre o direito existente ou presente e o direito futuro, paralelo a dis- tingdo feita quanto a coisas corpéreas. H& venda de direito futuro, antes de mais, quando o direito vendido ainda nio tem existéncia juridica, como um crédito ainda nfio constituido ou um direito real sobre uma coisa (j& existente) antes de ocor- vido o facto que Ihe dé vida. Pelo contrario, nfio h& venda de direito futuro, mas sim de direito presente, quando se vende um direito de crédito sujeito a condigio, pois esse direito j4 282 RAUL VENTURA existe, ou quando ee vende um direito resultante de negécio aleatério, pois 6 vendido um direito ja existente, embora este tenha por objecto uma prestacéo aleatéria. O car&cter futuro da coisa pode resultar de esta néo se encontrar no patriménio de ninguém; o disponente ainda néo tem sobre ela o direito de que pretende dispor, mas nio 86 ele, pois @ coisa nio pertence a ninguém, sendo res nullius, num dos sentidos em que esta expressio pode ser usada. Em relac&éo ao declarante ou disponente, é ainda futura © coisa de que ele n&o pode dispor ou sobre a qual ndo tem direito, embora o poder de disposigéo ou o direito pertencam, no momento da declaracio negocial, a outra pessoa, A moderna doutrina italiana, com bage no art. 1472.° do seu actual Cédigo, néo considera a coisa, neste caso, futura; em Portugal é deci- siva a definicio de coisa futura dada no art. 211. Esta hipé- tese torna, porém, evidente que a Situagdo material ou juridica da coise niio basta pare caracterizar a venda da coisa futura, Pois 6e assim nfo fosse, seriam futuras para efeitos de venda todas as coisas que n&o pertencessem ao vendedor e néo se distinguiriam vendas de coisas futuras e vendas de coisas alheias; aliés, raciocinio paralelo poderia ser aplicado 4s outras hipéteses, deixando de se poder distinguir a venda de coisa inexistente e a venda de coisa futura. A venda de coisa futura exige, pois, uma certa intengio das partes: a consciente incidéncia do negécio sobre uma coisa que nio & presente (por alguma das circunstncias acima indi- cadas) mas que pode vir a ser objecto do negécio e se espera que o venha @ ser. A simples possibilidade da existéncia futura da coisa nfo chega para caracterizar o negécio; a esperanca de que venha a existir futuramente 4 coisa é um elemento posi- tivo que deve manifestar-se activamente na preparacio da Essa intencio ou atitude psicolégica das partes distingue a venda de coisa futura da venda de bens de existéncia ou titu- laridade incerta (art. 981.°), em que as partes ignoram se a coisa existe ou quem é o titular, mas se reportam a uma situa- Séo presente. Distingue-a, por outro lado, da venda de bens alheios, em que as partes, no Momento do contrato, néo enca- CONTRATO DE COMPRA E VENDA NO CODIGO CIVIL 283 ram a possibilidade e os efeitos para o alienante adquirir o poder de disposic&o sobre ela (art. 893.°). Construgao juridica do contrato de venda de coisa futura 2—A terminologia do art. 467° Céd. Com.—venda de esperancas — poderia inculcar que a venda de coisas futuras tem afinal um objecto presente, a esperanca, spes, Gewinn- chance; o objecto da compra nfo seria coisa, ainda futura, mas @ esperanga, a lea, em si mesma, da existéncia ou nao exis- téncia futura da coisa. Contrariar tal ideia com base em ele- mentos essenciais da compra e venda — por exemplo, a trans- feréncia da propriedade sobre a coisa — apenas pode conduzir @ afastar ease negécio do campo da compra e venda para qualificar noutro tipo ou o considerar atipico; a verdadeira critica consiste em notar que @ spes, em si mesma nfo é uma coisa que possa ser objecto de negécio juridico; a Alea é criada pelos elementos do negécio e nio é objecto deste. Presente seria também o objecto do contrato de venda de coisa dita futura se tal objecto fosse constituido nio pela coisa mas sim pela representacdo des partes quanto 4 coisa e sua futura existéncia, mas além de outras dificuldades, esta construcéo exigiria a prévia demonstragéo de que essa «repre- sentagdo» pode ser objecto de um contrato de venda. Distinguem-se tradicionalmente duas modalidades de venda de coisa futura, a emptio spei, e a emptio rei speratae, e a elas se reporta o art. 880.°, ao admitir que o prego seja devido, ainda que a transmiasio dos beng néo chegue a verificar-se, e, @ contrario, que o preco 86 seja devido se a transmissao dos bens chegar a verificar-se. Na emptio spei, o prego & sempre (entenda-se, relativamente 4 existéncia dos bens) devido, podendo suceder que o comprador nada obtenha em contrapar- tida; na emptio rei speratae, 0 comprador obtém uma contra- partida do prego, deixando de o pagar, se aquela faltar. Lem- bramos esta concepcio tradicional, sem prejuizo de ser melhor precisada a natureza da chamada emptio spei. O art. 880.°, n.° 1 atribui ao vendedor a obrigacdo de exer- 284 RAUL VENTURA cer as diligéncias necesshrias para que o comprador adquira os bens vendidos, segundo o que for estipulado ou resultar das circunstAncias do contrato. Ao estabelecer expressamente esta obrigacéo, o Cédigo consagra s doutrina mais generalizada, que se refere a uma obrigacdo preliminar ou preparatéria, des- tinada a fazer a coisa existir ou, pelos modos apropriados, torné-la presente. A doutrina considerava geralmente essa obrigacdo como elemento acidental do negécio, que em cada caso deveria ser estipulado, embora tacitamente, enquanto o art. 880.° a eleva a elemento legal do contetido do negécio; Testa, saber ge elemento essencial, se elemento natural. A tltima frase «segundo o que for estipulado ou resultar das circunst&ncias do contrato» parece referir-se @ aquisicio dos bens vendidos e nio A propria existéncia da obrigacio, isto é, define o contetido dessa obrigagho, remetendo para a estipulacao ou circunstancias do contrato. Afigura-se, porém, que essa obrigacio pode faltar, Primeiro, quando a aquisicio do direito pelo alienante nfo dependa de qualquer diligéncia. (positiva) do vendedor — por exemplo, a aquisiciio depende de especificagio da coisa por outra pessoa —e segundo, quando assim for estipulado — por exemplo, atribuindo ao comprador o corte de &rvores, partes componentes do prédio ristico. A obrigacio prevista no art. 880.° cabe ao vendedor e tem contefido positive, nio se confundindo, portanto, com o dever de ambas as partes de nada fazer que impeca a plena efi- c&cia do contrato, principalmente a exist&ncia futura da coisa. Pelo seu contetido, distingue-se também dag obrigagSes essen- clais nascidas da compra e venda, quer se admita uma obriga- $80 de dare quer se olhe apenas & obrigacio de entregar a coisa. Sobre o incum v. adiante. A derrogabilidade desta obrigacio torna impossivel basear nela a construcio jurfdica da venda de coisa futura, mas outros motivos concorrem para afastar uma concepeio segundo a qual essa obrigaco constituisse o elemento principal e caracteris- tico; nfo importaria a necesséria passagem para um contrato diferente da vende, corrigindo-se, se necessfrio fosse, a quali- ficagSo dada pelo legislador, mas importa reconhecer que tal obrigacio, e6 por sl, é insuficiente para caracterizar a venda CONTRATO DE COMPRA E VENDA NO CODIGO CIVIL 285 de coisa futura. Ela tem cardcter acesaério, vinculando o ven- dedor a uma actividade que, s6 por si, nfio tem autonomie, pois destina-se a fazer nascer um elemento—a coisa— dum con- trato destinado a transferir a propriedade da coisa mediante um prego. Esta transferéncia resulta da venda e nfo da activi- dade a que o vendedor esti obrigado. Nem se estranhe que essa obrigacio acesséria constitua o niicleo do artigo dedicado & venda de bens futuros, frutos pendentes e partes compo- nentes ou integrantes, ao contrério, por exemplo, do art. 1472.° italiano, centrado eobre a aquisic&éo da propriedade. O nosso Cédigo cinde o tratamento da venda de coisa futura, colo- cando-o, na parte referida, no art. 880.° e, quanto & transferén- cia do direito sobre a coisa, no art. 408°, n° 2. A venda de coisa futura também nio pode ser construida como simples contrato-promessa de compra e venda; 0 conteido da vontade manifestada pelos contraentes nfo & a celebracio obrigatéria de um contrato de venda, mas a actual vontade de vender e comprar, nfo havendo qualquer acto posterior dos contraentes que possa considerar-se 0 contrato definitivo cele- brado em cumprimento do contrato-promessa. Assente que 36 existe uma manifestagio de vontade con- tratual e que esta antecede a «presenca» da coisa, o problema consiste em coordenar esses dois aspectos, o que se pode fazer, em principio, por duas maneiras: ou através da inefichcia tem- poraria (e possivelmente definitiva) do consentimento ou atra- vés da formacio sucessiva do préprio negécio juridico. No pri- meiro aspecto, dir-se-6 que o consentimento dos contraentes est& subordinado a uma condic&o, a futura existéncia ou «pre- senga> da coisa; para uns, trata-se de uma verdadeira condi- cio, cliusula acidental introduzida no negécio pela vontade das partes; para outros, trata-se de uma conditio iuris, direc- tamente resultante da lel. Contra essa idela, nota-se, porém, que a condicio no pode consistir na falta ou existéncia de um elemento easencial do negécio; «vendo uma coisa, se ela vier a existir> nfio é uma venda sujeita & condig&o de existéncia da coisa, mas uma venda que espera a existéncia da coisa, uma venda em que ainda nfo existe um elemento easencial. O segundo aspecto d& origem a construcdes baseadas na 286 RAUL VENTURA ideia de negécio ou de consentimento antecipado; as partes pre- dispdem o elemento uma quanti- dade minima fixada no contrato e nesse caso ter-se-4 como inexistente a coisa se essa quantidade nao for atingida, com as consequéncias normais de tal inexisténcia, designadamente quanto ao prego, que nio é devido. Podem estipular um prego por unidade, de modo que o preco total ser4 proporcional 4 quantidade produzida. Podem estabelecer um prego global e fazé-lo reduzir se néo chegar a existir uma quantidade minima, ete. O ponto duvidoso reside na estipulacio de um prego global, gem outras indicacgGes para a hipdtese de nio ser atingida certa quantidade. Como regra, o preco global é devido, tomando o contrato uma certa tonalidade aleatéria. 292 RAUL VENTURA Questées especiais da emptio spei 4—Segundo a orientacdo tradicional, tratimos até aqui a emptio spei como uma das duas possiveis modalidades da venda de coisa futura, isto 6, admitimos que a emptio spei seja, por natureza, um contrato de compra e venda. Tradicionais pio, contudo, também as dividas a tal respeito, as quais se avolumam em fungio da construgio dogmitica adoptada pare @ venda de coisa futura (ou apenas para a emptio rei speratae). ‘A Gificuldade resulta da obrigagio de pagamento do prego, apesar da falta de existéncia da coisa, e parece desafiar todas as possiveis solugdes. Da lei no ee retira argumento decisivo. O art. 880.°, n.° 2 esth colocado no capitulo dedicado & compra e venda, mas niio é anémala semelhante colocacio de referéncia a um contrato diferente, que histérica ou dogmaticamente tenha alguma rela- ¢Ho com o objecto do capitulo. A frase «Se as partes atribui- rem ao contrato (note-se que nao diz ao contrato de venda) carécter aleat6rio» tanto pode ser interpretado como admitindo que © contrato de venda tenha caracter aleatério, como afas- tando da venda esse . Deste preceito parte a doutrina para entender que © riseo do anterior perecimento da coisa vendida pode tam- bém ser assumido pelo comprador, Nao interessa agora a dis- cuasfio acerca do alcance da cléusula que ponha a venda a CONTRATO DE COMPRA E VENDA NO CODIGO CIVIL 295 risco do comprador (ou 96 quanto & titularidade ou também quanto 4 existéncia da coisa). A incerteza é um estado subjectivo; objectivamente, uma coisa ou existe ou nio existe ou tem ou nio tem determinada pessoa como titular do direito de propriedade sobre ela. Como estado subjectivo, pode existir ou s6 no comprador ou 86 no vendedor ou em ambos; o art. 881.° contempla a hipdtese de a incerteza. respeitar aos dois contraentes, isto 6 de ambos admitirem a situacio de incerteza. Para esate efeito niio é deci- siva a exigéncia de se fazer no contrato mencao dessa incer- teza, pois a mencao pode referir-se a um 66 deles. Aquele resul- tado se chega, porém, quando se alinham as possibilidades de conhecimento ou desconhecimento por vendedor e/ou com- prador. Se o vendedor e o comprador conhecem a inexisténcia da coisa e apesar disso contratam ‘como se a coisa existisse, ha uma simulag&o de elemento do contrato, cuja falta, 36 por si, torna o contrato nulo, Se o vendedor conhece a inexisténcia da coisa e o com- prador a desconhece, hé dolo por parte daquele e, independen- temente da responsabilidade em que incorre, o contrato deve ser nulo, por falta de elemento essencial. Embora nfo se veja interesse do comprador para isso, pode teoricamente supor-se que ele conhece a inexisténcia da coisa, colocando-se em situa- cdo idéntica 4 referida para o vendedor. Se o vendedor ou o comprador conhece a existéncia da coisa, mas a outra parte manifesta incerteza e apesar disso contrata mencionando a incerteza, houve no plano dos factos um «contégio» da incerteza, passando a haver dois graus, um maior e outro menor, em cada um dos contraentes. A incerteza quanto 4 existéncia da coisa e a incerteza quanto a titularidade diferem num ponto; a incerteza quanto a titularidade respeita necessariamente 4 titularidade do ven- dedor, sendo inconcebivel que a incerteza entre titularidades de terceiros esteja incluida neste artigo que, aliés, no segui- mento fala em nfo pertencerem os bens ao vendedor. 296 RAUL VENTURA A inexisténcia da coisa tanto pode resultar de nunca ele ter existido in rerum natura como de ter perecido. A apreciagiio judicial destes estados subjectivos dos con- traentes é ericada de dificuldades e por isso o legislador exige que no contrato se faga mengfo dessa incerteza. A razéo da exigéncia leva a nfo permitir a sua substituicéo por qualquer outro facto ou circunstincia. Essa incerteza é a incerteza con- creta em que as partes se encontram, a qual versaraé ou sobre @ existéncia ou sobre a titularidade. Mencionada no contrato, a incerteza sobre a existéncia ou sobre a titularidade reporta-se 4 data do contrato. Pasgando aos efeitos deste contrato, o art. 881.° utiliza a forma de regra e de excepcao: a regra é ser devido o prego, ainda que os bens nfo existam ou nio pertengam ao vendedor; @ excepcio é nao ser devido o prego se as partes recusarem a0 contrato natureza aleatéria. Isto implica que o legislador reco- nheceu como regra natureza aleatéria a este contrato, a0 con- trério do que se fez no art. 880.°, n .° 2, para a venda de bens futuros. Assim, a mencfio da incerteza, sem qualquer outra indicagiio, torna o prego devido. A recusa de natureza aleatéria deve constar também do préprio contrato e a sua forma mais simples é a declaracio de que o prego ndo serd devido se a coisa nao existir ou niio pertencer ao vendedor. Comparando o art. 881.° com o art. 880.°, n.° 1, verifica-se néo existir naquele a obrigacgao de o vendedor exercer as dili- géncias necessirias para que o comprador adquira os bens vendidos, o que bem se compreende nas hipéteses em que estes tenham perecido. Comparando o art. 881.° com o art. 897.°, vé-se que, na venda de bens de titularidade incerta, o vendedor niio 6 obrigado a sanar a nulidade (que, alias, comeca por nao existir), adquirindo a propriedade da coisa ou o direito ven- dido. Nem sequer é o vendedor obrigado a fazer qualquer dili- géncia para dissipar a situagiio de incerteza existente na data do contrato. Se a incerteza se dissipa, no sentido de a coisa existir ou pertencer ao vendedor, a coisa é adquirida pelo comprador ex vi do contrato e na data deste, e o preco é devido. Se a CONTRATO DE COMPRA E VENDA NO CODIGO CIVIL 297 incerteza se dissipa no sentido contrério, o comprador nada adquire e o prego é ou nao devido, conforme a natureza alea- t6ria ou nfo aleatéria atribufda ao contrato. Sendo o prego devido, por ao contrato ter sido atribufda natureza aleatéria, pode perguntar-se quando se considera exi- givel a respectiva obrigagio: ou ainda durante o periodo de incerteza ou s6 depois de se ter tornado certa a inexisténcia ou a falta de titularidade. A resposta deve ser dada no primeiro sentido, pois desde a celebracio do contrato esté constituida essa obrigagéo, sem dependéncia das eventualidades que, quanto & coisa, vierem a ser averiguadas; a exigibilidade regu- lar-se-A, conforme os casos, ou pelas estipulacgdes dos con- traentes, ou nfo as havendo, pelas regras gerais. O contrato donde resulte a obrigac&o de o comprador pagar © preco, nas circunstancias acima referidos, 6 um contrato vélido, apesar de se verificar posteriormente que coisa nfo exista ou nao pertencia ao vendedor. Como dissemos, & nesse contrato que se funda a obrigac&éo de pagar o prego e da validade desta obrigacio resulta por sua vez & regularidade do pagamento do prego, nomeadamente a sua irrepetibilidade, no caso de ele ter sido efectuado antes de averiguada a inexis- téncia da coisa ou o defeito de titularidade. Resta saber qual a verdadeira qualificagio juridica de um contrato pelo qual o comprador desembolsa o chamado pre¢o, sem nada receber em contrapartida. Para responder a tal per- gunta nfo podemos argumentar com o facto de, no caso de a coisa existir ou ser da titularidade do vendedor, o comprador receber a contrapartida da sua prestagio em dinheiro. N&o é possivel entender que neste caso o contrato é de compra e venda, mas nfo o é na hipétese oposta, pois a questiio da natu- reza do contrato coloca-se quanto a este mesmo e nao quanto as eventualidades posteriores; o contrato é peculiar porque dele tanto pode resultar a aquisicio da coisa contra o desem- bolso do prego como pode resultar o desembolso do prego sem contrapartida. Aqui se coloca, portanto, o mesmo problema de qualifica- 298 RAUL VENTURA ¢&o do contrato que defrontamos quanto & venda de bens futu- ros— compra e venda a risco e perigo do comprador, isto é, mesclada com um elemento aleatério— ou contrato de natu- reza, aleatéria, regulado, no possfvel e com as necessérias adap- tagdes, pelas regras do contrato de compra e venda. Pelos moti- vos apontados a propésito de venda de bens futuros, preferimos a segunda solugio. VENDA DE COISAS SUJEITAS A CONTAGEM, PESAGEM OU MEDICAO Requisitos comuns dos artigos 887° e 888° 1—0 art. 1576. do antigo C. C. dispunha que, se a coisa for vendida em razio de certo niimero, peso ou medida, podera ser 0 contrato rescindido pelo comprador, havendo na entrega falta considerdvel ou exceaso, que no possa separar-se sem Prejuizo da coisa; mas se o comprador quiser manter o con- trato, poderé exigir a redugio do prego em proporeio da falta, aseim como o deve aumentar em proporcdo do excesso. A doutrina acentuava que o preceito era aplicdvel tanto 8 coisas méveis como a coisas iméveis, procurava determinar © que se deveria entender por «falta consideravel», observava que o preceito era dispositivo e comparava a hipdétese com outras nas quais a coisa néo podia considerar-se vendida em vazio de certo nimero, peso ou medida. No actual Cédigo, os arts. 887.° e 888.° tratam de duas hipdteses ligadas entre si por uma coincidéncia — tratar-se de venda de coisas determinadas —e por uma oposicio; num aso, a venda & feita com prego fixado & razio de tanto por unidade, Ro outro caso, o prego niio é estabelecido a razéo de tanto por unidade. & manifesta nestes dois nossos preceitos a ins- Pirag&io dos arts. 1537.° e 1538.° do C. C. Italiano, os quais, fazendo parte da secgiio dedicada 4 venda de coisas iméveis, contemplam, o primeiro, a hipétese de um determinado imével ser vendido com a indicagio da sua medida e por um preco estabelecido em razao de um tanto por cada unidade de medida; CONTRATO DE COMPRA E VENDA NO CODIGO CIVIL 299 o segundo, og casos em que o preco é determinado em relagéio ao corpo do imével e no 4 sua medida, embora esta seja indi- cada. A generalizacao a todas as coisas, de preceitos editados especialmente para coisas iméveis, deve ter contribufdo para as dificuldades de interpretacao dos artigos portugueses. Requisito comum aos dois artigos é ser objecto da venda uma coisa determinada. Apesar da latitude da epigrafe da Secefio, os arts. 887.° e seguintes nio deixam duvidas a tal respeito. Noutra altura veremos o que a tal respeito se passa com a venda de coisas indeterminadas. Para que os arts. 887.° e 888.°, n.° 1 nfo paregam, pelo menos em parte, absurdos, é necessdrio fazer deles cuidadosa leitura, designadamente néo separar as suas oragées princi- pais e as suas oracdes subordinadas. Se apenas se ler, em cada um dos artigos, «Na venda de coisas determinadas, com prego fixado 4 raziio de tanto por unidade, é devido o prego proporcional ao niimero, peso ou medida real das coisas vendidas» e «Se na venda de coisas determinadas o preco nao for estabelecido 4 razio de tanto por unidade, o comprador deve o prego declarado», nao se vis- lumbra qual o problema que o legislador quis solucionar atra- vés daqueles dois preceitos; no primeiro caso, apenas haver& que multiplicar o nimero de unidades pelo prego unitario esti- pulado; no segundo caso, tudo se limita ao pagamento do prego global declarado. O art. 1537.° italiano indica mais claramente a hipétese em vista, pois diz: «quando um determinado imével é vendido com a indicagéo da sua medida e por um prego estabelecido em razio de um tanto por cada unidade de medida, etc.», sabendo-se, pois, logo de entrada, que a hipétese configurada &, antes de mais, a de ter sido indicada no contrato a medida do imével vendido. Nesse caso, o problema plausivel e mere- cedor de atengio legislativa é a discrepfincia entre a medida indicada no contrato e a medida real da coisa. A uma eventual discrepfncia entre a quantidade indicada no contrato e a quantidade real da coisa determinada ven- dida fazem também referéncia as partes finais daqueles dois preceitos portugueses — «sem embargo de no contrato se decla- 300 RAUL VENTURA rar quantidade diferente» e «mesmo que no contrato se indi- que o niimero, peso ou medida das coisas vendidas e a indicacio n&o corresponda 4 realidades—mas fazem-se de modo que parece implicar nfo terem sido apenas essas as hipéteses con- templadas. Na verdade, «sem embargo de» e «mesmo que» podem levar a supor que, estabelecido um principio geral, este mantém-se «sem embargo de» ou «mesmo que». Somente, neste caso, os preceitos foram editados— ou pelo menos 36 deixam de, em parte, ser ridiculos —, sendo seu propésito precisamente o contrério. ‘Tomamos, pois, como hipétese pré-figuradas nos arts. 887.° e 888.°, a determinacio da coisa, a indicac&io contratual da quantidade (nimero, peso ou medida) e, respectivamente, a fixagio do preco em razio de tanto por unidade ou sem tal fixagio. O regime do artigo 887.° 2— Como indica a propria expressiio usada no art. 887.° o prego é fixado em raz&o de tanto por unidade quando a declaracio negocial fixa uma importfincia em dinheiro por cada unidade de quantidade da coisa, de modo que o preco devido resulte da multiplicac&o dessa importfncia pelo nimero de uni- dades (reais ou declaradas). Reunidos os dois elementos, coisa determinada e preco fixado & razio de tanto por unidade, segue-se, por forga do art. 887.° e quando este for aplicdvel, a determinagio do prego: & devido o prego proporcional ao numero, peso ou medida real da coisa. Talvez nfo seja inteiramente correcto dizer «preco Pproporcional», mas a expressio indica com bastante clareza que o preco devido pelo comprador é determinado pela multi- plicagio da importfncia ou prego unitério pelo nimero real de unidades. Desse preceito decorre que nenhum dos contraentes pode, quando o art. 887.° for aplicdvel, valer-se da diferenca entre ®@ quantidade declarada e a quantidade real para considerar o contrato resolvido. Vide, contudo ,abaixo, o disposto no art. 891.° CONTRATO DE COMPRA E VENDA NO CODIGO CIVIL 301 Nao est& declarada no contrato quantidade diferente da quantidade real se o contrato estipular que a contagem, pesa- gem ou medida serio feitas depois de o contrato ser celebrado. Nessa hipétese é devido o prego que resultar da aplicagéo do prego unitario, pois assim foi contratado, mas nfo se coloca © problema de divergéncia entre quantidade declarada e quan- tidade real. H& em Italia quem pense que alguns preceitos relativos & venda por medida siio aplicdveis no caso de, em execucio da cléusula contratual que manda efectuar a medicio, ee chegar a medida diferente daquela que, ainda posterior- mente, se verificou ser a real. A situagio é, contudo, diferente, pois a discrepincia aparece entre duas medigdes, nenhuma das quais serviu para uma declaracio contratual tendente a fixar a medida. O regime do artigo 888.° 3—Na transplantacio do art. 1538.° italiano para o nosso direito, o modo como naquele é descrita a hipétese, quanto ao preco, nao foi seguido a letra; o artigo italiano diz «nos casos em que o prego é determinado em relagiio ao corpo do imével e nao a sua medida», enquanto o nosso art. 888.°, n.°1 se exprime por oposig&o & hipétese contemplada no art. 887.°: «Se o prego nao for estabelecido & razao de tanto por unidade». Tanto pelo art. 887.° como pela continuagio do art. 888.°, n° 1, verifica-se ter o legislador tido em vista a unidade de ntimero, peso ou medida (nfo necessariamente as unidades ofi- ciais) e sem divide esté contraposta a essa hipdtese a deo prego ser estabelecido globalmente — um ‘nico prego para uma 36 coisa determinada. Logicamente parece que 0 prego de venda de coisa determinada 86 pode ser estabelecido no contrato por um dos dois referidos métodos—ou um s6 prego global ou prego reportado @ uma unidade, no interessando para o efeito ge 0 prego global ou o prego unitario s&o declarados em moeda ou indirectamente fixados (por ex.: 0 preco de venda deste prédio réstico ser& 0 mesmo por que o vizinho venda o seu; o metro quadrado deste prédio ristico ser& igual ao prego de venda do metro quadrado do prédio do vizinho). Pode, porém, 32 RAUL VENTURA suceder que a unidade correspondente ao prego unitério nio seja de nimero, peso ou medida da coisa vendida, mas dife- rente (por exemplo, uma porciio de rocha extraida duma mina, por certo prego em raziio da quantidade de certo minério que contenha — venda por anflise). Atendendo apenas 4 letra do art. 888.°, n.° 1, a hipdtese estaria abrangida nele, pois o prego nao é estabelecido 4 razio da unidade de nimero, peso ou medida da coisa vendida, mas na realidade esse preceito exige a declaragio contratual do prego da coisa vendida e esta 6 pode ser a declaracgio do preco global. Aliés, também #6 assim se compreendem a redaccaio e o aumento referidos no n.° 2 do mesmo artigo. Nesta interpretagio dos referidos preceitos, restaré des- cobrir o regime dos contratos em que o preco nfo seja esta- belecido em razéio da unidade de nimero, peso ou medida da coisa vendida, nem globalmente. Parece que o art. 887.° devera ser aplicado por analogia. Concebe-se que num contrato aparecam simultaneamente um prego global e um prego unitério. Seriando as varias hipé- teses, teremos: vendo o prédio a 100$00 o m’; vendo o prédio que mede 1 ha, a 100$00 o m’; vendo o prédio por 1000 contos; vendo o prédio que mede 1 ha por 1000 contos; vendo o prédio que mede 1ha por 1000 contos, 4 razfo de 100$00 o m*. As duas primeiras hipéteses enquadram-se no art. 887.°; as duas seguintes no art. 888.°, mas a quinta satisfaz os requisitos de ambos os preceitos, embora nfio possam ambos ser-lhe simul- taneamente aplicados. Em principio, tanto podemos encontrar nesea hipétese um prego global explicado pela indicagio do prego unitério, como um preco unitério acompanhado do resul- tado da multiplicaciio. Nao parece que a hipétese comporte recondugéo @ um tnico dos referidos preceitos. Seré questiio de facto averiguar qual das duas intengdes possiveis foi, no caso concreto, a vontade das partes, as quais podem preparar a eolugio do eventual problema tornando clara a prevaléncia de uma ou outra das duas declaracies. O art. 888.°, n° 1, quando aplic4vel, torna o preco decla- rado independente da quantidade da coisa, mesmo que esta seja declarada no contrato, Nao se pode dizer que o artigo faca CONTRATO DE COMPRA E VENDA NO CODIGO CIVIL 303 Prevalecer a quantidade declarada sobre e quantidade real, pois a quantidade declarada pode ter servido para a determina- gio do prego também declarado, mas com isso esgotou a sua funcio, ao contrario do que sucede no art. 887.° em que a quan- tidade real prevalece sobre a declarada, para ser efectuada a multiplicagio pelo preco ou importancia unitaria. Segundo o art. 888°, n.° 2, se, porém, a quantidade efec- tiva diferir da declarada em mais de um vigésimo desta, 0 preco sofreré redugiio ou aumento proporcional. A estabilidade do prego resultante do n.° 1 do artigo 6, pois, limitada nos termos do n.° 2. A diferenga superior a um vigésimo (a dife- renga igual a um vigésimo cabe no n.° 1) da quantidade decla- rada importa uma redugio ou um aumento proporcional do prego. Pressuposto da aplicagio do n.° 2 é haver uma quanti- dade declarada no contrato; havendo-a, calcula-se a diferenca entre a quantidade efectiva ou real e a quantidade declarada e, verificando-se que esta diferenca é superior a um vigésimo da quantidade declarada, o preco ser& reduzido ou aumentado na mesma proporcio. Compensagao entre faltas e excessos 4— Anteriormente ao actual Cédigo Civil nao existia pre- ceito semelhante ao do art. 889.°, embora a doutrina ja apli- casse o critério que este consagrou. Fonte do art. 889.° foi o art. 1540.° do Cédigo Civil ita- liano, segundo o qual «Se dois ou mais iméveis foram vendidos com o mesmo contrato por um sé e mesmo prego, com a indi- cago da medida de cada um deles, e se verifica que a quan- tidade 6 menor num e maior no outro, faz-se compensacio até & devida concorréncia; o direito ao suplemento ou a diminui- gGo do prego existe em conformidade com as disposicdes acima estabelecidas». Na transposigio para o nosso direito, o Ambito do pre- ceito foi alargado, passando a abranger tanto coisas méveis como iméveis. O primeiro requisito do artigo 6 a venda por um 86 prego 04 RAUL VENTURA de uma pluralidade de coisas. Com o mesmo contrato e por um 86 prego diz o preceito italiano e, embora o nosso nfo refira a unidade do contrato, é de exigir tal unidade, que o legislador portugués deve ter pressuposto por causa da unidade do prego. Realmente, nfo se compreenderia que se procedesse & compen- sagio de faltas e excessos entre contratos distintos. Por outro lado, desde que esteja estabelecido um prego separado para cada uma das coisas vendidas, haver& dois contratos. Um 26 prego néo significa, porém, um #6 prego global, podendo o prego ser estabelecido por unidade de numero, peso ou medida. O segundo requisito consiste em a venda ter por objecto coisas determinadas e homogéneas. Serf o uso da venda de duas barras do mesmo metal, declarando-se que cada uma pesa 1000 gramas e realmente uma pesa 1010 e outra 990 gramas. ‘A homogeneidade teve de ser introduzida no preceito, por causa da sua generalizacio relativamente ao art. 1540. italiano; neste, a compensacio opera-se na medida de coisas iméveis, mas transposto o preceito para todas as coisas, a compensagéio 86 ge justifica se entre elas houver homogeneidade. Homogéneo significa da mesma natureza, idéntico, ‘igual. Ndo nos parece que certos exemplos que aparecem nos nossos comentadores respeitem tal requisito; milho e centeio ou vinho branco e vinho tinto nfo devem ser considerados homogéneos para este efeito. Terceiro requisito é a declaragéo contratual da quantidade, sem a qual nfo poderia haver comparacéo com a quantidade efectiva ou real e consequente determinagio de excesso ou falta. Verificados esses trés requisitos, far-se-A compensacio entre as faltas e os excessos até ao limite da sua concorréncia. Como é natural, a falta numa das coisas e 0 excesso noutra 86 sio mutuamente anulfveis até ao que for menor; néio seria admissivel que qualquer falta compensasse qualquer excesso. Feita 2 compensagio até respectiva concorréncia pode ainda resultar uma quantidade declarada inferior ou superior & quantidade real. A esse saldo positivo ou negativo relativa- mente & quantidade declarada sio de aplicar os arts. 887. e CONTRATO DE COMPRA E VENDA NO CODIGO CIVIL 305 888. e, portanto, conforme os casos, é devido o prego propor- cional ou nao haver4 reducio ou aumento proporcional do prego global, conforme a diferenca resultante da compensagio for inferior ou superior & quamtidade total declarada. Pires de Lima e Varela, II, 139, entendem que, se, efec- tuado o encontro, se alegar e provar que a diferenca entre o prego global fixado e o prego que resultaria dos pregos ‘unité- rios que os contraentes tiveram ou deveriam ter em vista excede um vigésimo daquele, deve permitir-se por analogia com o caso versado no art. 888.°, o aumento ou a redugio pro- porcional do prego. Baptista Lopes, pag. 130, opde a essa solu- go varios argumentos. Afigura-se-nos que a questiio esté des- locada, tanto numa como noutra solugio, do seu verdadeiro campo. Se o prego for estabelecido em fungiio de unidade de nimero, peso ou medida, como o prego unitario deve ser ainico —pois no caso contrario nio hé «um 86 prego» e nio se est& no Ambito do art. 889.° — é indiferente que a compensacio seja feita por unidade de quantidade ou por unidade de prego. © mesmo sucederf se o prego foi estabelecido globalmente e o preco unitério da pluralidade de coisas for igual. No caso de o prego ser estabelecido globalmente, mas serem diferentes os valores unitérios das duas coisas, a com- pensag&io em quantidade e a compensagio em valor produzem resultados diferentes e a adopgio do primeiro desses resultados pode causar graves injustigas. Assim, no exemplo dos comen- tadores, vendidos por 10000$00 100 arrobas de milho e 100 arrobas de centeio e verificando-se as quantidades reais de 85 arrobas de milho e 112 arrobas de centeio, se o valor da arroba de centeio for o dobro do valor da arroba de milho a compensacio em quantidade faria cobrir parcialmente a falta de 15 arrobas de milho pelo excesso de 12 arrobas de centeio, mas estas valem 24 arrobas de milho. A dificuldade é afastada por nfo deverem ser considera- das homogéneas coisas que tém valores unitirios diferentes e, portanto, a hipdtese mio estar abrangida no art. 888.°, nem este poder ser aplicado por analogia, falhando a homogenei- dade. 306 RAUL VENTURA Caducidade do direito a diferenga de prego 5—O art. 890.° epigrafado «caducidade do direito A dife- renga de prego» teve, em parte, por fonte o art. 1541.° italiano, segundo o qual <«o direito do vendedor ao suplemento e o direito do comprador 4 diminuig&o do prego ou a resolugio do contrato prescrevem em um ano a contar da entrega do imével». Comega o art. 890.° por dizer «O direito ao recebimento da diferenca de prego caduca...», palavras que podem levar a pensar que se trata apenas da diferenca de prego favoravel ao vendedor, pois em bom rigor 86 este ) admite as duas modalidades de prego («5$00 Por quilo»; «20 000$00») e conforme o caso, esté abrangida no art. 877.° ou no art. 888.° Jé niio é claro se essa venda, tendo cardcter comercial, est4 abrangida pelo art. 472.° Céd. Com. Por outro lado, € indubitavel que a venda de coisas inde- terminadas nfo esté compreendida nos arts. 877.° e 878.°, mas & duvidoso se o esta no art. 472.° Cod. Com., dtivida que resulta da existéncia de vendas de coisas determinadas mas multiplas —a que chamaremos, por enquanto e para evitar confusdes de terminologia — venda em massa. E esta modalidade de venda suscita também, para o Cédigo Civil, a davida da sua inclus&io nos arts. 877.° e 888.° Se atendermos apenas & determinagiio da coisa, podemos organizar uma escala, para efeitos de venda: vendo o meu automével; vendo os meus trés automéveis; vendo trés auto- méveis Datsun Sunny. Pressupondo que a multiplicidade das coisas néo destréi a unidade do contrato, as duas primeiras hipdteses siio vendas de coisa ou coisas determinadas, a ter- ceira é venda de coisa indeterminada. Relacionando agora essas hipdteses com os modos de deter- minagfio de prego, é manifesto que tanto a primeira como a segunda comportam (quanto 4 primeira, lembra-se 0 exemplo de venda para sucata) o prego em func&io da unidade, ou o CONTRATO DE COMPRA E VENDA NO CODIGO CIVIL 315 Prego global mas nfo é seguro que o mesmo acontega quanto 4 terceira; veja-se, por exemplo, que nas definigées de Cunha Gongalves acima transcritas, a venda por conta, peso e medida é venda de coisa indeterminada (embora um Prego global apa- Yega como mera soma). Nio parece de aceitar esta opiniio; a venda de coisa indeterminada pode prescindir, para a deter- minagao do prego, da unidade quantitativa; tanto podem ser vendidos 100 frangos a 100$00 cada, como 100 frangos por 10 000$00. Quando se vende uma parte de massa determinada, o objecto da venda pode ser convencionado ou por unidade ou por partes aliquotas: venda de 100 garrafas da garrafeira do Hotel X, venda de um quarto das garrafas da garrafeira do Hotel X. Para ambos os casos tem havido opinides no sentido de que se formaria uma compropriedade da garrafeira, nas Proporgées resultantes da convengio. Embora tal opinido tenha maiores visos de plausibilidade na hipétese de venda de parte alfquota, nem numa nem noutra 6 aceitével como regra cate- gérica. Pode suceder que as partes tenham tido a intengio de criar entre elas uma compropriedade, mas tal intengio nem & necessiria nem pode ser presumida. Quando tal intenciio nfo exista, a venda tem por objecto coisas indeterminadas dentro de um género limitado. Com estes elementos pode ser tentada uma interpretacio coerente do art. 472.° Céd. Com. A venda a esmo ou por partida inteira é uma venda em massa ou em bloco, venda, portanto, em que o objecto é deter- ménado e nfio apenas descrito por um género, embora limitado, e pela quantidade: venda da garrafeira do Hotel X, venda dos carros do Stand Y. O § 1.° do art. 472° refere-se ao preco para excluir a irrelevancia do modo da sua determinacio e 4 quantidade (conta, peso ou medida) para afastar a sua fungéo de determinac&o do objecto da venda: ou é um prego global, sem atengio 4 conta, peso ou medida dos objectos e, portanto, 86 em atengao & massa, ou se atende ou A conta ou a0 peso ou & medida dos objectos, mas unicamente para determinar a quan- tia do prego e néo para determinar o objecto da venda. 316 RAUL VENTURA O art. 472.° teve por fontes, quanto ao corpo, os arts. 458.° —o qual, por sua vez, se inspirara no art. 1585.° do Cédigo Civil franc&s—e 461.° do Cédigo Comercial de 1833; quanto ao § 1°, o art. 1450.° do Cédigo Civil italiano de 1865; quanto ao § 2.°, o art. 460.° do Cédigo Comercial de 1833. O art. 458.° forneceu «As coisas nfo vendidas a esmo, mas por conta, peso ou medida, séo a risco do vendedor, até que sejam contadas, pesadas ou medidas»; no transitaram para o art. 472.° nem a segunda parte do primeiro periodo («mas o comprador em caso de inexecugéio do contrato tem direito ou a demandar a entrega, ou a indemnizag&o de perdas e danos, a ter lugar»), nem o segundo perfodo, que tratava do risco, no caso de venda a esmo, A referéncia & culpa do comprador, na falta de con- tagem, pesagem ou medicdo, proveio do art. 461.° Céd. Com. de 1833. O art. 1451.°, 2.° trecho, do Céd. Civil italiano dispu- nha: «S'intende fatta la vendita in massa, se le cose sono state vendute per un solo e certo prezzo, senza che siasi avuto riguardo al peso, al numero o alla misura, od quando vi si abbia riguardo unicamente all’effetto di determinare la quantia del prezzo medesimo> e a sua semelhanca com o § 2.° do nosso art. 472.° & manifesta. Tanto @ doutrina francesa como a italiana entendiam que 0s respectivos arts. 1585.° e 1586.°, 1450.° e 1451.°, se referiam @ coisas multiplas vendidas num sé contrato e niio a venda de uma coisa isolada. Nao h& motivo para interpretar diversa- mente o nosso art. 472° Na parte que interessa agora, na doutrina francesa é geralmente aceite: que a venda & medida, conta ou peso é carac- terizada pelo facto de a medida ser necesséria para a indi- vidualizagéo da coisa, e a venda em bloco é aquela que incide Sobre a totalidade das coisas situadas num lugar determi- nado; que para a distincio das duas modalidades de venda é irrelevante o modo de determinac&io do preco; que, embora o art. 1585.°, para as vendas por medida, refira apenas dois efeitos — 0 risco suportado pelo vendedor até & medigio e a possibili- dade de o comprador exigir a entrega ou indemnizagiio — a pro- priedade 86 é transferida no momento da individualizacio da coisa; que nas vendas em bloco o risco é suportado pelo compra- CONTRATO DE COMPRA E VENDA NO CODIGO CIVIL 317 dor desde a celebracao do contrato, salvo se a medigéo foi esti- pulada como condic&o suspensiva, caso em que se aplicam as regras desta cléusula acesséria. Perante o art. 1450.° Céd. Civil italiano de 1865, semelhante ao art. 1585.° francés, havia quem fizesse interpretagéo muito diversa (GASCA, «La compravendita civil y comercial», trad. espanhola, I pags. 491 e segs.). Esse artigo nao se aplicaria a coisas determinadas pela sua espécie, sem indicagio do lugar onde se encontram, porque pronunciando-se sobre um problema de risco, supde que a coisa pereca; como genus nunquam perit, o art. 1450.° teria de ee aplicar a coisas determinadas, cuja pro- priedade seria transferida pelo contrato, mas cujo risco con- tinuaria a ser suportado pelo vendedor por se encontrarem na posse deste, O raciocinio bsico desta teoria pressupée, primeiro, que quanto a coisas de género ilimitado nunca se pde um pro- blema de risco; segundo, que a venda de coisas que fazem parte de um género limitado—o qual é perecivel e, portanto, coloca um problema de risco — nfo estaria incluida no preceito porque, conforme os casos, ou seria simplesmente uma venda de coisas determinadas ou como venda de quota parte de uma massa, seria produtora de uma compropriedade sobre esta. O pri- meiro pressuposto é discutivel e talvez nfo passe de questdo de palavras, mas o segundo 6 inaceitvel; quanto & hipétese de compropriedade, falamos acima; quanto a hipétese de coisa espe- cifica ou determinada, ele escamoteia o problema de determina- ¢&o do objecto da venda, o qual tanto surge dentro do género limitado como dentro do género ilimitado. Assim, o art. 472.° Cod. Com., abrange as vendas de coisas de género ilimitado, para quem entenda que nesses casos pode colocar-se tecnicamente um problema de risco (0 resultado pr- tico serA idéntico para quem perfilhe opini&o contraria, pois manter-se-4 sempre a obrigac&io do vendedor) ; abrange as ven- das de coisas de género limitado. A venda de coisas por conta, peso ou medida aparece no art. 472.° apenas para efeito de um problema de risco; a venda de coisas a esmo ou por partida inteira nem sequer encon- tra nease artigo resposta ao problema do risco, pois apenas é 318 RAUL VENTURA definida, no § 1.°, como complemento da hipétese prevista no corpo do artigo. De seu lado, os arts. 887.° e 888.° C. C. nao tratam de pro- blemas de risco, mas sim de divergéncias entre as quantidades convencionadas e quantidades reais de coisa vendida, para efei- tos da determinacio do prego e da resolugao do contrato. Certamente no se pensaré eer o art. 472.° Cod. Com. rele- vante para resolver problemas de risco quanto a vendas civis; para estes bastam as regras constantes do Cédigo Civil. Inversa- mente, contudo, os arts, 887.° e 888.° serio aplicdveis a vendas comerciais, pois as questées neles versadas n&o podem ser resol- vidas nem pelo texto da lei comercial, nem pelo seu espirito, nem pelos andlogos nela prevenidos e, portanto, serio decididos pelo direito civil (Céd. Com. art. 3.°). A esta conclusio nfo obsta a real diferenciagiio de hipéteses entre os artigos dos dois Cédi- g08, escondidos sob uma nomenclatura idéntica. Em ambos se fala em vendas por conta, peso ou medida, mas, como se viu, nfo é apenas a mengiio da conta, peso ou medida que define a hipétese de facto visada por cada preceito, cada um dos quais se aplicaré & hipotese nele visada, sem dependéncia das hipé- teses porventura visadas em preceitos de outro Cédigo.

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