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Doutrina ACCAO DE REIVINDICACAO (*) Por Prof. Doutor José de Oliveira Ascensao SUMARIO: 1. A homenagem; 2. O poder de reivindicar como momento essencial da propriedade; 3. As “razdes absolutas”; 4. Objecto; 5. Reivindica- Gio e acgo executiva; 6, Tipo de acg0; 7. Pedido de reconhecimento do direito de propriedade?, 8. Acgio de condenacao; 9. Eficécia inter partes da sentenga; 10. Propriedade e caso julgado; 11, Propriedade e causa de pedir; 12. Alegago da propriedade ou dos factos constituti ‘A abstracgiio da causa de pedir na reivindic detengo por terceiro como elemento da causa de pedir; 15. Caracte- rizagdo da posigio do réu; 16. Insuficiéncia da causa de pedir e rejei- Go liminar; 17. Aquisigio origindria e presungoes; 18. A propriedade como questio prévia; 19. A prova da titularidade nas acgbes reais; 20. O debate sobre a propriedade ¢ a dependéncia do litigio concreto; 21. “melhor titulo”; 22. O interesse do réu como critério da medida da prova da propriedade exigivel; 23. A comprovacio pelos interes- ses implicados. 1. A homenagem Dificilmente pode uma homenagem ser tao grata como esta que prestamos hoje a Joao de Castro Mendes. Ligou-nos uma con- vivéncia estreita e, amos dizer, uma amizade muito especial. S6 0 niio fazemos porque, olhando a nossa volta, verificamos quao (*). Este escrito tem na base a conferéncia que pronunciémos nas Jomadas de Homenagem ao Prof. Doutor Jodo de Castro Mendes na Faculdade de Direito de Lisboa. 5i2 JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO vasto € 0 circulo daqueles que podem invocar uma amizade espe- cial com Joao de Castro Mendes; como se a grandeza de coracéo do mestre fosse tal que levasse ao paradoxo de transformar toda a convivéncia em funda amizade. Também teve defeitos. De todos, 0 mais grave foi sem diivida a sua dedicagao ao Processo Civil. Mas desse, foi ele proprio o primeiro a penitenciar-se. Numa faceta de muitos desconhecida, Castro Mendes era 0 criador fluente, irénico e profundo de hist6rias que distribuia pelos seus amigos. Guardo avaramente as que me foram destinadas. Uma delas consiste num didlogo de Jodo de Castro Mendes com Jesus Cristo. Jesus Cristo repreende-o nestes termos: «O pro- cesso é arte de escribas e fariseus. Quem 0 nao souber sera glorifi- cado». Ao que Castro Mendes replicava teimosamente: «Mas nao passa para 0 5.°!», Calada a sua voz, a melhor homenagem que lhe podemos prestar consiste em procurar continud-lo no seu proprio dominio prioritdrio — o Processo Civil — na medida das nossas forgas. E vamos fazé-lo num tema de importancia primordial — a accao de reivindicagaéo. Porque sem a projeccéo processual é impossfvel a compreensao das realidades substantivas. 2. O poder de reivindicar como momento essencial da pro- priedade O poder ou faculdade de reivindicar, ou a pretensdo corres- pondente, que cabe ao titular do direito de propriedade e doutros direitos reais que compreendem no seu contetido a posse da coisa ('), € momento essencial destes. Por simplificagao linguis- tica, falaremos daqui por diante sé em propriedade, normalmente, para englobar todos estes direitos. A anélise tem sido dificultada pela consideragao dos aspectos processuais do exercicio desta pretensao. Defrontam-se as agruras préprias de todo o tema interdisciplinar. (Por oposigao aos direitos reais que 0 nao asseguram, como a hipoteca. ACCAO DE REIVINDICAGAO 513 O art. 1311.° () da assento, no titulo da propriedade, ao direito do titular de exigir judicialmente «a restituigo do que lhe pertence». Portanto, quando a coisa cai indevidamente em poder de ter- ceiro, concretiza-se um direito — assim Ihe chama a lei — de 0 titular ter a coisa em seu poder. A accao de reivindicagao é o meio processual por exceléncia de tutela dos direitos reais cujo contetido tipico inclui a posse da coisa. Observe-se porém que esta visdo, bisica no nosso Direito, nao foi acolhida em todos os tempos e lugares. Pode a defesa destes direitos reais aproximar-se mais da protec¢4o possess6ria. Assim, no antigo Direito alemao nao se conhecia a reivindicagao; a tutela da propriedade baseava-se numa Gewere. Também 0 actual Direito inglés funda a reacgdo na lesao da posse, ou do direito de pos- suir (*). Jé nas ordens jurfdicas de derivagdo romanistica a reivin- dicagio é hoje téo importante que se integra no préprio nécleo do direito de propriedade. 3. As «razées absolutas» De facto, a reivindicag&o manifesta o cardcter real do direito em causa. Temos caracterizado o direito real como um direito absoluto porque se baseia em razées absolutas, enquanto que ao direito relativo é essencial assentar numa relagdo. Toda a pretensao deste ultimo emergente € caracterizada por ser dirigida contra alguém qualificado pela posicdo que ocupa naquela relagio (*). Torna-se expressivo atribuir ao titular do direito real razGes abso- lutas, por ele nao ter de descer a discussao dos factos e titulos invo- cados por terceiros. Pelo contrario, os direitos relativos fundam-se em razées relativas, por natureza, pois est4o sempre em causa as posigdes reciprocas de titulares determinados: se se é credor, é-se credor de alguém, necessariamente. @) Todo o preceito cuja origem nao for indicada pertence ao Cédigo Civil. ©) Cfr. Wolff/Raiser, Sachenrecht, 10. ed., J. C. B. Mohr (Tubinga), 1957, § 84 1. (¢) Nosso Direito Civil — Reais, 5.* ed., Coimbra Editora, 1993, n.° 19. 514 JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO Isso torna-se nitido no plano processual, e permite até distin- guir a acco de reivindicagao da acgao de reintegragao ou restitui- ¢40 da posse. A posse, na nossa concepgao, é um direito relativo, endo um direito real (°): dirige-se pessoalmente contra o esbulha- dor, e ainda contra terceiros que tenham a coisa em seu poder e tenham conhecimento do esbulho (art. 1281.°/2 do Cédigo Civil). Portanto, a accdo possessoria é dirigida contra 0 detentor, e é além disso fundada necessariamente em razoes ligadas 4 pessoa desse detentor. Nao é assim na acgao de reivindicagao. Ao reivindicante é indiferente a pessoa do detentor, ou a razdo por que a coisa foi parar ao poder daquele. Nem tem de impugnar os actos aquisitivos porventura praticados pelo réu. Basta-Ihe demonstrar 0 préprio direito. E como ele é proprietario as suas razGes s4o absolutas: a ct terd de Ihe ser entregue — salvo, claro, se a outra parte tiver razées (relativas) justificativas da manutengao da situagdo de facto (°). Fora disto, as vicissitudes materiais ou juridicas da coisa sao globalmente irrelevantes. 4. Objecto Quanto ao objecto da accao de reivindicag4o, diremos apenas que esse objecto é uma coisa corpérea, pois s6 estas podem ser objecto dos direitos reais (art. 1302.° do Cédigo Civil). Entre as coisas corpéreas se incluem as universalidades de facto. Um rebanho pode ser reivindicado como tal, sem prejuizo de operacées de liquidagaéo ou concretizagéo que seja necessdrio depois realizar. Pelo contrario, excluem-se as universalidades de direito, que nao sao coisas, mas complexos de situagées juridicas. O autor deve identificar a coisa suficientemente, de modo a que se nao confunda com nenhuma outra. Mas nao ha que levar longe demais esta exigéncia. Sobretudo nao se deve supor, quando a accao respeite a iméveis, que é necessdria a descri¢do exaustiva (8) Nossos Reais cit. n.° 59. As observagdes subsequentes no puderam ter ainda em consideragdo as alteragdes introduzidas com a tiltima reforma do Cédigo de Processo Civil. (*) A celebragdo de um contrato de locago com o proprietério, por exemplo. ACCAO DE REIVINDICACAO, SIS destes. Nao se devem nomeadamente confundir acgao de reivindi- cacao e acgao de demarcagao, como se a primeira absorvesse os requisitos da segunda (’). Pois bem pode acontecer que, encerrada vitoriosamente a accao de reivindicagao, haja depois que proceder & demarcagao do imével. Por isso, para a reivindicagao em si nao sao decisivas exigén- cias formais, como a das confrontagdes. Também a drea sé terd de ser indicada se isso for necessdrio para caracterizar 0 prédio rei- vindicado. O que € necess4rio, mas também suficiente, é a identificagdo fundamental da coisa, de modo a tornd-la distinta de todas as demais. Tudo que for além disso é burocracia, que néo emana da légica da acgao de reivindicagao. 5. Reivindicacao e accao executiva Fomos indicando estas caracteristicas da acgao de reivindica- ¢40 norteando-nos pelas regras comuns. Nao recorremos para isso a precisas disposigGes da lei processual. Isto € consequéncia forgosa de a acgao de reivindicagdo nao originar hoje um processo especial. Corresponde-lhe 0 processo comum. Esté pois submetida aos princfpios gerais. A perda de autonomia da acgao de reivindicagio tem todavia uma consequéncia pratica muito importante. E que a restituigéo coerciva da coisa j4 nao pode ser feita no mesmo processo. Se pro- cedente, poderd seguir-se 0 processo executivo para entrega de coisa certa, se o réu nao entregar voluntariamente, e s6 nos termos deste a entrega efectiva se impord (*). ©). Sobre a distingdio das duas acgGes, cfr. 0 Ac. S.T.J. de 10 de Abril de 1986 (BMI, 356, 285). (@) Eccerto que j4 se procurou derrubar estas dificuldades. Considerou-se que cer- tas acces so necessariamente conducentes & execugdo, muito embora integradas no pro- cesso comum, porque isso resultaria do desenho substantivo da propria pretensio. Ovidio Baptista da Silva formulou esta tese com ilustragdo e profundidade (A Accdo de Imissdo de Posse no Direito Actual, Saraiva, Sao Paulo, 1981). Haveria no processo de conheci- mento acgdes executivas Jato sensu, em que a actividade executéria pertence a estrutura interna da prépria demanda. Seria disso exemplo, justamente, a acco de reivindicagio 516 JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO 6. Tipo de acgao Preliminarmente, ha que afastar uma ambiguidade que se oculta em certas referéncias ao pretenso pedido de reconhecimento da propriedade. Diz-se que o reivindicante pode exigir do réu 0 reconheci- mento. Observemos desde j4 que isto nao tem em Direito nenhum sentido. O réu nao é condenado a reconhecer, nao tem de prestar facto ou declaragao com este contetido. A tinica declaragdo que pode estar em causa é a do préprio tribunal. Que tipo de acgiio é configurado pela reivindicagao, dentro do processo de declarag’io? Devemos responder 4 luz do art. 4.° do Cédigo de Processo Civil. A acgao é declarativa. Nao € constitutiva. Nao é de simples apreciagao, porque se nao pretende obter apenas a declaragio da existéncia dum direito ou dum facto. Pelo que pareceria ser uma acg4o de condenagao. Mas esta conclusao nao é afinal partilhada pela doutrina por- tuguesa dominante. Em estudo publicado em 1924, que representa ainda a fonte precipua de inspiragao na matéria em Portugal, Manuel Rodri- gues (°) considera que o fim principal da acgiio de reivindicagao € a declaragio do direito de propriedade; a restituigao do objecto seria uma consequéncia necesséria, ainda assim essencial a propria reivindicacao. E preferiu esta posigao 4 de autores, como Butera, que consideravam que o fim era a entrega da coisa, sendo a decla- ragio do direito apenas o fundamento, com a unica consideragao (ob. cit,, 61). Como nela o réu tem ao seu dispor todos os meios de defesa processual, que controvérsia poderia sobrar para os emburgos do executado, se a acco fosse meramente condenat6ria? (0b. cit., 68). Nao obstante, esta tese ndo tem encontado eco. Contra ela se ergue a tipificagao das formas processuais, pouco compativel com estas consequéncias que se pretendem retirar da natureza da propria demanda. Como o nosso estudo nao € especi ficamente processual, absterno-nos de examinar mais profundamente este aspecto ¢ segui- remos a orientago comum. ©) A reivindicacao no direito civil portugués, na Rev. Leg. Jurispr., ano 57.°, pags. 113 e segs. ACCAO DE REIVINDICACAO 5i7 de que «a restituicdo tem lugar na reivindicacéo sé quando se prove a existéncia do direito de propriedade no reivindicante» ('°). Apesar de nao haver aqui propriamente um argumento, a dou- trina posterior — fundadndo-se particularmente em autores italia- nos e ignorando a orientagdo germanica ('') — enfileirou quase uniformemente por esta posigao. A acgaio de reivindicacao transformou-se assim numa figura hibrida, em que ha cumulagao de acgdo de simples apreciagdo e acco de condenagio. E assim procede também a jurisprudéncia, embora haja a anotar uma ero- s4o progressiva das bases do sistema, como melhor teremos opor- tunidade de indicar posteriormente. Isto tem consequéncias da maior importancia. Suponhamos que alguém invade arbitrariamente imével alheio. O proprietario, por inércia, deixa passar 0 prazo de ano e dia: perdeu a possibili- dade de recorrer 4 accdo possesséria. Para reaver a coisa, s6 lhe resta a reivindicagao. Mas na reivindicagao, ele vai ter de fazer a demonstragado exaustiva da propriedade. Mesmo que seja evidente a falta de titulo do ocupante, o éxito da sua acgao dependerd de uma demonstracao sem lacuna do seu direito. Por isso se fala duma probatio diabo- lica: qualquer falha, e a coisa estara definitivamente perdida. Sobrecarregou-se drasticamente o proprietério enquanto que o ocupante tem indirectamente 0 caminho livre para tirar todo 0 pro- veito da sua malicia. Mas ento, o Direito estaré destinado a ser a capa protectora dos desonestos? Particularmente 0 processo, nao seré na verdade a arte dos escribas e dos fariseus? Nao incorremos decerto no primarismo de pressupor que 0 proprietario € sempre 0 autor, na acgao de reivindicagao, e que o abuso est4 sempre do lado do réu. Mas nao pode deixar de impres- sionar tal desequilfbrio de posigdes. O fundamento terd de ser cui- dadosamente apurado, nao resulte ele de uma burocracia acumu- (Lug. cit, 114, ("Para a doutrina alema o pedido de reconhecimento ou declaragao do direito de propriedade no pertence ao contetido da reivindicagao. E porém evidentemente possivel uma cumulagao das duas acces. Cfr. Wolff/Raiser, Sachenrecht cit., § 84 II]. 518 JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO lada que cada vez sufoque mais a vida real. E uma tarefa de dog- mitica juridica. E este o sentido da nossa indagacdo subsequente. Vamos repensar a valia das afirmagées feitas neste dominio, sondando o fundamento dogmatico. Teremos particularmente em vista os casos em que 0 autor nao é possuidor, e portanto sé pode reagir mediante a reivindicagao. 7. Pedido de reconhecimento do direito de propriedade? A afirmagao de um pedido de reconhecimento de direito de propriedade filia-se nas fontes romanas. Mas a sabedoria romana soube encontrar correctivos 4 rigidez da exigéncia. O principio da livre apreciagao da prova impediu que se desembocasse na proba- tio diabolica ('?). Por outro lado, a rei vindicatio coexistia com a actio publiciana, que se aplicava aos casos em que 0 autor tivera uma posse justa, embora insuficiente para fundar a usucapiao, e em que se exigia apenas uma prova mais aligeirada. Talvez a f6rmula de Ulpiano traduza que na pratica a vertente condenatoria acaba por ser a dominante: é a actio in rem per quam rem nostram quae ab alio possidetur petimus. Nao havendo no direito actual correspondente da actio publi- ciana, a reivindicagao ter de corresponder a necessidades diferen- tes das que lhe cabiam em Roma. A revivescéncia do Direito Romano fez reaparecer formulas que correspondem 4 rei vindicatio romana. Para Corréa Teles, «vindicar € tirar 0 que € nosso da mao de quem injustamente 0 pos- sui» ('*), Mas este autor dé abertura a um pedido auténomo de declaragio do dominio, ao escrever no mesmo lugar: «Pede ser declarado senhor dela, e que o réu seja condenado a restituir-lha». Porém, para Coelho da Rocha reivindicar corresponde sim- plesmente ao «poder-se repetir a coisa de qualquer possuidor, que () Cf. Max Kaser, Rdmisches Privatrecht, C. H. Beck (Munique), 16.* ed., 1992, § 2713. (°) Doutrina das Acgées, 3.* ed., Imprensa Nacional, 1837, § 68. ACCAO DE REIVINDICACAO, 519 indevidamente a detenha» ('*). A vertente condenat6ria parece pre- valecer sobre a declaratéria. Onde fundar afinal a exigéncia duma demonstracio exaustiva da propriedade? No interesse presumivel da parte que recorre a juizo? Mas perguntemo-nos: quem intenta a ac¢do de reivindicacao, o que pretender, nos casos normais? O seu objectivo precipuo é a decla- ragao do direito de propriedade ou € a injungao de entrega da coisa? Respondemos com seguranga que o moverd antes de mais 0 objectivo pratico de ter para si a coisa. A declaragao do direito sé surgiré como a via crucis a percorrer para atingir a almejada entrega. 8. Acco de condenacao Admitira 0 direito a accao dirigida meramente & condenagdo do detentor? Desde que, em qualquer caso, fique livre a quem o deseje a alternativa de pedir especificamente também a declaragdo do direito de propriedade. Ou nao permitiré que este objectivo pra- tico seja atingido? Mas se a acco de reivindicacao nao é tipica, onde se funda- ria a proibig&o de, neste caso, o autor moldar o pedido como enten- desse, e intentar portanto uma acgao de condenagio dirigida & entrega da coisa, na sua qualidade de proprietario? No art. 1311.°/1 do Cédigo Civil? Atribui este ao proprietario o poder de exigir judicialmente «o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente res- tituigdio do que Ihe pertence». Inferiram alguns daqui que a lei exige os dois pedidos e mai que o reconhecimento do direito de propriedade € o pedido principal e a restituigao 0 pedido subse- quente. Vimos ja ('°) que uma exigéncia de reconhecimento pelo réu nao teria qualquer sentido: o réu nao tem de prestar declaragéo com ()Instiwigdes de Direito Civil Portugués, 4 e4., tomo II, Coimbra, 1857, § 406. (3) Supra, n.° 6. 520 JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO este contetido. Mas para além disso nao ha nenhum motivo para impor que o autor na reivindicagao faga também o pedido de reco- nhecimento judicial do direito de propriedade ('*). O art. 1311.°/1 do Cédigo Civil nao é uma norma processual. Fixa pretensdes substantivas do proprietario. O proprietério tem a faculdade de deduzir aqueles pedidos em juizo. Mas com isto néo se criou uma acgdo especial, e portanto os proprietarios nao fica- ram inibidos de intentar puras acgGes de condenagio tendentes a entega da coisa. O que fazem na generalidade dos casos. Nada lhes impée que formulem o pedido de reconhecimento se 0 nao quise- rem fazer ('’). Do art. 1311.°/1 no resulta sequer que o conceito de reivi dicagao_ pressuponha 0 pedido de reconhecimento do dominio. A lei nao pode impor qualificagdes doutrinarias nem definigdes. A reivindicagao é a accao correspondente a pretensao substan- tiva do proprietario. Esta implica apenas o pedido de entegra da coisa. O elemento vinculativo do art. 1311.°/1, e que explica o equi- voco do legislador, esté em que esse pedido de entrega se tem de basear na propriedade. Isto é essencial, pois a reivindicagéo é uma acgio de condenagao fundada em razées absolutas. Mas esse fundamento, como veremos, nao tem de surgir dese- nhado como um pedido auténomo. Surge tipicamente na causa de pedir. A pretensao real é a da entrega; a propriedade intervém para justificar as razGes absolutas. Falaremos por isso sempre na reivindicagéo como acco de condenagio. A accfio em que se deduza especificamente 0 pedido de declaracao do direito de propriedade apresenta j4 uma cumula- gao de pedidos. (°°) Parece-nos uma composicdo semantica, e em todo 0 caso contradit6ria, a que 6 realizada no Ac. STJ de 9 de Julho de 1991 (BMJ 409, 729), com invocagdo de Paulo Cunha: seria uma cumulaciio aparente de pedidos. Sé processualmente haveria uma acco de simples apreciagio cumulada com uma acgdo de condenagio. () Na prética, chega-se a resultado semelhante através da erosdo da posigdo dominante. Assim, o Ac. Rel. Coimbra, de 20 de Outubro de 1987, sumariado no BMJ, 370, 619, declara que no obsta & procedéncia da acco de reivindicagao 0 facto de o autor nfo ter formulado um pedido expresso de reconhecimento do direito de propriedade, limitando-se a pedir a restituigdo do prédio. ACCAO DE REIVINDICACAO, 521 9. Eficacia inter partes da sentenca Pode perguntar-se se o obstaculo provém da prépria natureza do direito real. Se o direito real € um direito erga omnes, isso nado significaré que a declaracdo judicial de propriedade tenha de ser uma declaracao categérica, porque vai ter efeitos contra todos? As razGes absolutas nao acarretam a necessidade de uma prova absoluta da propriedade? Isso seria assim se a sentenca pronunciada em accao de rei- vindicagao intentada por Abel contra Bento fosse atingir também Carlos. Se assim acontecesse, compreende-se que o juiz exigisse uma prova exaustiva da propriedade, para acautelar a situag&o de terceiros. Seria em qualquer caso andémalo, porque a solucao cor- recta teria sido propiciar a intervengao de Carlos no processo para fazer valer as suas raz6es. Mas em abstracto, a lei poderia ter abra- gado este sistema. Mas nao é de facto assim. E preciso nao confundir a opinibi- lidade erga omnes do direito real e a eficdcia da sentenga. A lei nao estabelece nenhuma especialidade no que respeita aos limites subjectivos do caso julgado em matéria de acgdo de rei- vindicagao. A regra é a de que o caso julgado nao tem efeitos em relacdo a terceiros, fora de hipéteses excepcionais como a do art. 674.° C.P.C.. Logo, a sentenga proferida a favor de Abel em accfo de reivindicagao intentada contra Bento no tem nenhum efeito em relagdo a Carlos, que continua a poder fazer valer por todos os meios qualquer eventual pretensao 4 propriedade. Portanto, também por este motivo, nao ha fundamento para exigir uma demonstragao exaustiva do direito de propriedade. 10. Propriedade e caso julgado A andlise precedente permitiu-nos uma verificagao funda- mental: o direito de propriedade, na acg4o de reivindicagao para- digmatica, nao compée processualmente 0 pedido, mas sim a causa de pedir. Nao se integra na pretensao substantiva que se actua em juizo, é o fundamento do pedido caracteristico da acgao: a entrega da coisa. 522 JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO O facto de a propriedade nao respeitar ao pedido, mas @ causa de pedir, pode ter logo consequéncias ao nivel do ambito do caso julgado, mesmo inter partes. Discute-se se 0 caso julgado se limita 4 decisdo, ou se se estende também aos fundamentos da decisao. Consoante a posi¢ao adoptada, terfamos que a decisao sobre a propriedade, como causa de pedir, pode ser ou nao vinculativa entre as préprias partes, em posteriores pleitos. Nos termos da posi¢ao restritiva, a parte ven- cida nao estaria inibida de discutir depois, em novo processo, aquele direito de propriedade que servira de fundamento a conde- nagao. Entre as duas posigdes extremas situam-se varias posigdes intermédias. E importante a de Zeuner, para quem os fundamentos ignificado auténomo de caso julgado, mas apenas na medida em que estéo em conex4o teleolégica com a decisdo. O juiz nao se pode afastar de uma fundamentacao anterior quando doutra maneira entraria em contradigao com o sentido da decisio. Tudo o resto pode ser reposto em discussio ('*). Aproxima-me desta posi¢ao, mas vai mais longe, o ilustre mestre que aqui comemoramos. Segue também uma posigao inter- média: os pressupostos da decisao transitada em julgado sao indis- cutiveis como pressupostos da decisao, e sé nessa medida (""). A causa de pedir teria sempre, nesta orientagao, apenas forga de caso julgado relativo, como o autor Ihe chama (*”). Passa a ser indiscutivel como fundamento daquele efeito juridico, mas pode ser contestada por si. Pode assim amanha esse fundamento ser decla- rado inexistente, que isso nao prejudica a decisao transitada em jul- gado nem a causa de pedir enquanto fundamento daquela decisao. Em matéria de acgao de reivindicagao as consequéncias desta posi¢fo parecem profundas, introduzindo um relativismo conside- ravel. A propriedade, como fundamento da condenagao a entrega () Albrecht Zeuner, Grenzen der Rechtskraft in Rahmen rechtlicher Sinnzusam- menhéinge, J.C.B. Mohr, 1959, 173 segs. No que respeita & reivindicacdo, é levado a atri- buir efeito de caso julgado & afirmago da propriedade como fundamento da condenagdo a entrega da coisa ('%) Jodo de Castro Mendes, Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, Atica, 1968, 152 e seguintes. ©) Lug. cit, 169. ACCAO DE REIVINDICACAO 523 da coisa, tornar-se-ia no caso indiscutivel. Nao obstante, nao impe- diria a parte vencida de propor ac¢ao em que demonstrasse a ine- xisténcia daquele direito de propriedade, ou que tinha a titulari- dade do direito contestado. Com-a consequéncia, de facto impressionante, de que mesmo que fosse declarado proprietério nao poderia pedir a entrega da coisa, porque o direito a entrega fora jd atribufdo ao seu adversdrio pela primeira decisdo transitada em julgado. Mas nao é a andlise da posigao em si que nos interessa. O que interessa é anotar que a observacao de que a propriedade se situa na causa de pedir, e nao no pedido, pode ter consequéncias prati- cas muito importantes, consoante a posi¢ao que se adopte quanto aos limites objectivos do caso julgado. ll. Propriedade e causa de p Vejamos agora as consequéncias da desloca¢4o da proprie- dade para a causa de pedir. Pareceria a primeira vista que, uma vez efectuada a transposi- ¢ao, toda a problematica da probatio diabolica se reacende, agora pelo prisma da causa de pedir. A aplicar a teoria dominante, teria de se provar cabalmente a propriedade, ou os seus factos aquisitivos. Nomeadamente, nao bastaria ao autor invocar um titulo translativo de propriedade. Nao bastaria uma aquisigdo derivada. Porque nunca se saberia se 0 transmitente era ou nao, ele proprio, proprietario verdadeiro. Teria de se chegar até uma causa origindria de aquisi¢éo, que seria nor- malmente a usucapiao. Como essa prova é frequentemente uma prova dificil, o deten- tor ocuparia uma posig4o muito confortavel. Seria sobre o reivin- dicante que recairia todo o peso da prova. - Mas dir-se-A que tem de ser efectivamente assim. A partida, ninguém sabe se o autor é ou nao proprietdrio, ou se o € o deten- tor: € isso justamente que se vai discutir. Ento, até ver, haveria que manter 0 statu quo. Isto significaria atribuir uma presungao, em beneficio do detentor. 524 JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO Esta presungao é estabelecida pela lei portuguesa? Aqui temos que fazer uma distingao. J4 vimos que o detentor pode ser ou nao possuidor. Se nao alega a posse, nenhuma presun- ¢40 o beneficia. E entao inadequado agravar de qualquer modo a prova que se impée ao autor. Mas vamos debrugar-nos particularmente sobre 0 caso mais grave, que € o que se verifica quando o réu é possuidor. Ha entao efectivamente uma presuncdo de propriedade, constante do art. 1268.° do Cédigo Civil. S6 neste caso o reivindicante tem realmente contra si 0 6nus da prova, destinada a ilidir aquela presungao. Significard isto que o autor tem de provar uma aqui gindria? 12. Alegacao da propriedade ou dos factos constitutivos desta A este propésito observa-se que, se bem que 0 desenho rigido da acc’o de reivindicagio, de que partimos, nao seja entre nos directamente posto em causa, 0 certo é que a pratica se tem de variadas formas furtado ao que seriam as suas consequéncias. A comegar logo pela prépria alegagao do direito de proprie- dade, ou dos factos constitutivos desta. A questo foi objecto do importante Ac. STJ de 15 de Janeiro de 1985 (?'). Na petig&o inicial, 0 reivindicante nao alegara 0 facto de a propriedade jé existir na pessoa do transmitente (que lhe ven- dera o prédio). Mas considerou-se que a certidao comprovativa do registo supre a falta de alegacao do direito do transmitente. Vemos assim que, no caso, o Supremo dispensa, nao s6 a prova, como até a alegago do direito do transmitente. Por maioria de razio se dispensa a prova de uma causa origindria de aquisi¢ao, pois da certidao do registo nado consta necessariamente a mengao de uma causa dessa ordem (””). Cl) BMJ 343, 335. ©) Pelo contrério, Gongalves Salvador, A causa de pedir na acgio de reivindica- (do, na Justiga Portuguesa, ano 27, Fev. 1960, 16 e segs., n.° 278, considera que a pre- sungao de direito permite presumir o facto, mas nao dispensa a alegacao do facto que deu origem ao direito. ACCAO DE REIVINDICACAO, 525 O tema é aflorado no recente Ac. STJ de 4 de Fevereiro de 1993 (33). Tal como no caso anterior, o autor nem sequer juntara certidao do registo predial, mas pedira o reconhecimento do direito de propriedade que teria adquirido por heranga. Apenas posterior- mente, por determinagao do juiz, juntou certiddo do registo. No despacho saneador, 0 juiz julgou improcedente a excepgao de inep- tidio inicial por falta de causa de pedir. O Supremo, nao obstante ponderar que a excepgiio deveria ter sido julgada procedente, nao deu ganho de causa aos recorrentes por considerar que a questao ficara definitivamente decidida com forga de caso julgado naquele despacho saneador. Na verdade, nao ha nada que se oponha a existéncia de uma causa de pedir implicita; e se esta est4 implicita nao ha espago para se pretender uma ineptidao da petigao inicial. 13. A abstracgao da causa de pedir na reinvindicagio O problema tem porém de ser analisado pelo angulo da exacta configuragao da causa de pedir na reivindicagao. Do que dissemos até agora resultaria que a causa de pedir so 86 0s factos constitutivos do direito real. Mas esta orientagao nao € pacifica na doutrina processualista. Vamos aproximar-nos deste problema perguntando se podera atribuir-se cardcter abstracto 4 reivindicagao. Tabet f4-lo, por no ser preciso qualificar o facto genético (**). O autor refere-se directamente ao facto dissociador da pro- priedade e da posse. A afirmagao é certeira, pois como vimos 0 rei- vindicante pode abstrair do facto do esbulho. Mas a abstracgdo estender-se-4 também ao facto gerador da propriedade? Bastar ao autor declarar-se proprietario, ou necessi- tard ir além e especificar 0 facto aquisitivo? A colocagao do problema podera parecer paradoxal. Mas, se a primeira posigao fosse admissivel, 0 autor teria ganho de causa @) Colecténea de Jurisprudéncia (S.T.3.), 1, 1993-1, 137-139. C*)_ Reivindicaziane, no Novissimo Digesto Italiano, XVI, 226. 526 JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO desde que o réu nao contestasse a propriedade, pois ndo se trata de direito indisponivel; se a contestasse, perdia a acgdo, pois nao tendo alegado os factos nao poderia provd-los. Segundo a outra posig4o, pelo contrario, nao se tendo especificado o facto aquisi- tivo, o juiz deveria rejeitar liminarmente a petigdo. Na realidade, tocam-se aqui grandes problemas do Direito Processual, que sao controvertidos e nao podemos ter a pretensio de resolver. Nomeadamente, da-se a incidéncia de dois modos diversos de conceber a causa de pedir, expressos através das teorias chamadas, com terminologia que se presta particularmente a equivocos, da substanciagao e da individualizagao. Segundo a teoria da substanciacao, o facto aquisitivo da pro- priedade compée a causa de pedir. Tera pois de ser alegado, e a ele se reporta 0 caso julgado. Pela teoria da individualizagao, pelo contrério, bastaria a mera invocagao da propriedade (*°). Na realidade, nao ha aqui nada especifico da reivindicagao. Esta problematica é generalizavel a todas as accGes reais. Desde que 0 autor invoque o direito de propriedade, h4 que saber se tem itivos do seu direito. Sob a comina- ¢4o gravissima da ineptidao da petigio inicial, se vingar a teoria da substanciacao. Assim, se se discutisse uma mera relacdo de vizinhanca, o reclamante teria de sujeitar-se ao exame rigoroso de todos os seus titulos — o que é absurdo, porque nada teria que ver com a querela in iudicio (**). Sem nos envolvermos nesta polémica, vamos apontar alguns aspectos ligados especificamente a acg4o de reivindicacao. Supomos poder dizer que a tradic¢4o ia no sentido de admitir a mera alegagdo da propriedade; a que associaria a consequéncia de Para esta teoria, o facto s6 interessaria quando necessario 4 completa identifi- cagio do direito. () Cf 0 Ac. STJ de 15 de Outubro de 1985 (BMJ 350, 301), num caso em que © autor invocava os inconvenientes resultantes da vizinhanga, e 0 réu reconheceu na con- testagdo a propriedade do autor. O acérdao afasta sensatamente as consequéncias ldgicas daquele entendimento. ACCAO DE REIVINDICACAO, 527 que, se 0 autor decafsse, nao poderia mais intentar acgao de rei- vindicago por uma causa especifica, pois a mera alegag4o da pro- priedade equivalera 4 alegagdo de todas as causas possiveis (*’). Em contrario, afirma-se que a alegagao de uma causa especi- fica de aquisigao é indispensdvel para o réu saber de que se defen- der. O argumento nao procede, se se considerar que, contra a mera alegagao da propriedade, bastaria ao réu a mera impugnacao para ter ganho de causa. Nao nos cabe seguramente resolver este grande dissidio. Até porque, no final desta indagagao, os resultados para 0 nosso tema seriam modestos. A divergéncia de concepgées sobre causa de pedir sé seria significativa para a solugao do problema que enfren- tamos se a nossa lei abragasse a teoria da individualizacao. 14. A detencio por terceiro como elemento da causa de pedir Nao se dispensa porém uma reflexdo sobre a posigao que a propriedade ocupa na causa de pedir. Autores muito significativos afirmam que a propriedade ¢ a causa de pedir. Assim faz Manuel Rodrigues, por exemplo (*). Contra, tem-se objectado com a nogdo da causa de pedir nas acgGes reais, constante do art. 498.°/4 C.P.C.. A causa de pedir nao € uma situagio juridica, mas um facto: o facto juridico de que deriva o direito real. Terfamos assim que, na acgio de reivindica- do, a causa de pedir seriam os factos constitutivos do direito real em causa. De facto, diz-nos a lei que, nas acgGes reais, a causa de pedir € 0 facto juridico de que deriva o direito real. E que a acgo a que falte a causa de pedir deverd ser objecto de indeferimento liminar (arts. 193.°/2 ae 474.°/1 a C.P.C.). Mas a propria identificagao dos factos constitutivos do direito real com a causa de pedir da reivindicagao nao é satisfatéria. (©) Cir, neste sentido Lafayette Rodrigues Pereira, Direito das Coisas, 3.* ed., Freitas Bastos, Rio ¢ Sao Paulo, 1940, § 82, nt. 16. @) Reivindicagdo cit., 114. 528 JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO E certo que a acc4o de reinvindicagéo é uma acco real. Acgées reais so as que actuam uma pretensio real, e esta € neces- sariamente titulada por um direito real. O art. 498.°/4 C.P.C. declara realmente que nas acgdes reais causa de pedir é 0 facto juridico de que deriva o direito real. Mas este destina-se a definir a identidade de causa de pedir para efeitos de litispendéncia e de caso julgado. Nas acgGes reais, o que o preo- cupa sao as situagGes em que as partes disputam a titularidade de um direito real. Ora, se nos interrogarmos sobre a correc¢4o da afirmacao de que, nas acgdes reais, a causa de pedir é 0 facto juridico de que deriva o direito real, nao podemos deixar de concluir pela inad- missibilidade da nocao. Ela quadra apenas a acgées de simples apreciagao de um direito real. HA porém ac¢ées reais das mais variadas espécies. Entre elas estd a acgdo de reivindicagio. E € importante observar que 0 Cédigo de Processo Civil nunca contempla a accio de reivindica- ¢ao, pelo que ao art. 494.°/4 C.P.C. tém de ser estranhas quaisquer especificidades desta. Ora, afirmar, em relacao a acgdo de reivindicagao, que a causa de pedir é 0 facto juridico de que deriva o direito real, é necessa- riamente insuficiente. E incompativel com a configurac&o desta ac¢do como de condenacio. Numa acgao de condenagao a causa de pedir é necessaria- mente complexa. Consiste, nio apenas no direito ou nos factos constitutivos deste que se invocam, mas também numa situagiio a este contraria que se quer ver transcendida através da condenagao. A acco de reivindicagao € dirigida 4 entrega. Isto significa que a causa de pedir nao é apenas a titularidade ou os factos cons- titutivos do direito, mas também necessariamente uma situagao de desconformidade na relagdo com a coisa, a que a entrega deve por termo. A desconformidade consiste na detengao por terceiro, que implicitamente contraria a situacgdo de direito real. Esta representa mesmo o momento essencial, como teremos oportunidade de veri- ficar. ACCAO DE REIVINDICAGAO, 529 Antes, porém, aproveitemos a oportunidade para ir mais longe na caracterizagao da posigao do réu e da relagdo que deve mediar entre ele € 0 autor. 15. Caracterizacao da posigao do réu Dissemos que 0 direito real se funda em raz6es absolutas: ¢ que isso dispensa o autor de discutir as razGes do réu. Consequen- temente, o art. 1311.° C.C. diz-nos que a acgao se dirige «contra qualquer possuidor ou detentor da coisa». Mas isso nao significa que o autor tenha o 6nus de demonstrar qual 0 titulo do réu. E-lhe indiferente a posig&o juridica do réu, porque se funda em razdes absolutas. E o réu sera caracterizado por ser autor de um acto ilicito? Esse acto seria 0 esbulho. Mas 0 esbulho, como noutro lugar ja demonstrémos (*°), no é por si um acto ilicito. Ha esbulho desde que alguém tenha indevidamente em seu poder coisa perten- cente a terceiro. Mas vamos mais longe. Nem sequer é necessdrio que na acgao de reivindicag&o se caracterize um acto de esbulho. O que o réu fez, € indiferente. S6 interessa 0 estado de facto objectivo, consis tente em a coisa estar em poder do réu quando nao devia estar. Se quisermos, podemos dizer que na acgio de reivindicagao o que interessa é o esbulho como situacdo objectiva de detencgao descon- forme, e nado 0 acto de esbulho. Tudo isto esta solidamente assente no art. 1311.°/1 do Cédigo Civil, que dirige a acciio de reivindicagao contra «qualquer possui- dor ou detentor da coisa». Assim, réu é quem tem a coisa em seu poder (*). ©) Cr. o nosso A tearia finalista e 0 ilicito civil, volume de homenagem ao Prof. Doutor M. G. Cavaleiro de Ferreira, DJ, Hl, 1981-86, 81-97. () Ciro Ac. STJ de 26 de Julho de 1987, BMJ, 369, 546, que admite a reivin- dicagio contra simples caseiros. Tem dois votos de vencido, no sentido de que os casei- 10s, por ndo terem posse, no podem ser condenados & restituigao. Nao tém raz, porque doutro modo o proprietério ficaria em situagdo mais desprotegida justamente quando a posigao do ocupante, como nao possuidor, era mais frdgil. No caso, nio teria nenbum pos- suidor contra quem se dirigir. 530 JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO S6 pode ser esse o sentido do art. 1311.°/1, ao permitir dirigir a acco contra qualquer detentor da coisa (*'). Mas 0 autor nao esta inibido de se dirigir também contra qual- quer possuidor da coisa. Em principio deverd dirigir-se contra 0 possuidor a quem cabe 0 exercicio de poderes de facto, mas nem sequer isso é indispensdvel; apenas, se nao dirigir a acgao contra este, sujeita-se, mesmo que tenha tido ganho de causa, a defrontar posteriormente a oposigao deste a entrega. Em qualquer caso, a qualificagao pelo autor do réu como pos- suidor ou detentor é irrelevante. Se 0 nao fizer, ou 0 fizer errada- mente, em nada é prejudicado. N§o obstante, o facto de o réu ser ou ndo um possuidor pode ter consequéncias importantes. Se o autor demandar o detentor como possuidor em nome préprio, este deveré nomear a acco a pessoa em nome de quem a possua (art. 320.°/1 C.P.C.). Se 0 nao fizer, a sentenca proferida sobre o mérito da causa nao constitui caso julgado em relagdo 4 pessoa em nome de quem o demandado possui, a nado ser que esta intervenha voluntariamente na causa (n° 2).E pois do interesse do autor demandar o possuidor, para evitar a frustragéo da acco, e assegurar caso julgado em relagao aele. Insistimos apenas que este desenho nao é incompativel com a caracterizagao da reivindicagao como fundada em razées absolu- tas. Do direito absoluto emanam pretensGes, que sao sempre rela- tivas, porque dirigidas a sujeitos determinados. A pretensdo a entrega sé nasce quando alguém tem a coisa em seu poder e pode por isso entregar. A detengao é assim condigao factica da entrega e factor genético da pretensdo (*). Mas com isto o direito real nao passou a fundar-se numa relacao e o titular a depender de razGes relativas, porque continua a nao ter de discutir os titulos do réu. (")_ Veja-se expressamente neste sentido 0 Ac. STJ de 26 de Outubro de 1989, por ter assim qualificado os réus, que ocupariam o andar a titulo gratuito e por mera tolern- cia: BMJ, 390, 398. (*) Pressupde-se que essa detengiio ¢ indevida, mas o autor nao tem que alegar factos que o fundamentem. Cabe ao réu, querendo, alegar factos que demonstrem que tem titulo para a detengdo, ou alegar a desnecessidade da acedo por ndo haver da parte dele oposigao a entrega. ACCAO DE REIVINDICACAO, 531 16. Insuficiéncia da causa de pedir e rejeigéo liminar Do que dissemos resulta que a causa de pedir, na ac¢do de rei- vindicagdo, € necessariamente complexa. Compdem-na, nao sé 0 direito real ou os seus factos constitutivos, como a detengdo por terceiro, em desconformidade com aquele direito (°°). A situagao factica desconforme é até um momento prévio, sem 0 qual o recurso A reivindicagao surge logo como carente de sentido. Por isso, nao se pode dizer que a accao em que a parte se limi- tasse a invocar a situagio desconforme — a detengao contréria & sua propriedade — fosse uma acc4o sem causa de pedir. Haveria sempre 0 recorte na corrente dos acontecimentos da vida () que daria a individualizagao daquela pretensao. Haveria pedido e causa de pedir. E havé-lo-ia ainda que o autor nao tivesse feito nenhuma qua- lificagdo da situacao. A qualificag4o da parte nada tem de decisivo. E 0 verdadeiro significado da accdo s6 se desenhardé com a tomada de posigao do réu. Assim sendo, semelhante demanda nao poderia ser liminar- mente rejeitada, num est4dio anterior & propria possibilidade de definitiva qualificagao juridica. O que se poderia dizer, isso sim, seria que haveria insuficién- cia de causa de pedir. Mas a insuficiéncia de causa de pedir deve originar uma decisio de improcedéncia, no desfecho normal do processo, e nfo uma rejeigao liminar (*). (©) Neste sentido diz-nos Wolfram Henckel, Parteilehre und Streitgegenstand im Zivilprozess, Carl Winter, 1961, 21-22, que a pretenso pressupée a preexisténcia do direito e a violago. A posse do no proprietério — como estado lesivo — seria caracte- ristica tipica da pretenstio material de entrega da coisa. Apenas nos afastamos das qui cagdes adoptadas, «posse» e «violagdon, que no compartilhamos. (*) fr. o mesmo Henckel, ob. cit., 277. (5) Nao queremos alids deixar de levantar a hipGtese de a nogdo de causa de pedir, para efeitos de rejeigo, ndo ser a mesma que a de causa de pedir, para efeitos de litispen- déncia e de caso julgado. Naquele primeiro momento, o que esté em causa é simplesmente saber-se por que se pede, de maneira a assegurar a congruéncia minima na acco. O que significa que, possivelmente, se tem mais em vista ums justificagao juridica que um enun- ciado de factos. Os factos sao apreciados depois, e a0 final se verd se so suficientes ou nao; sendo absurdo pensar-se que, se so insuficientes, o processo deve entio ser decla- rado nulo (art. 193.° C.P.C.) por ser inepta a petigao inicial. 532 JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO Se a causa de pedir é complexa, e além da propriedade que se invoca houver litigio sobre uma relagao entre autor e réu, ou fac- tos constitutivos duma relagdo, j4 nao haverd falta de causa de pedir, mesmo que esta nao seja suficiente para assegurar a proce- déncia da acgado. E por maioria de razao assim acontecera se se indicar apenas como facto aquisitivo da propriedade uma compra e venda: jd nao pode ser pronunciado o indeferimento liminar. A regra que permite o indeferimento liminar sem dependén- cia de controvérsia, é substancialmente excepcional. Nao pode ser estendida a casos nela nao compreendidos. Se a lei refere apenas a falta de causa de pedir, nao se pode aplicar a previsao a insuficién- cia de causa de pedir. Caso contrario grande nimero de pretensdes infundadas ficariam afinal abrangidas, porque a causa de pedir é insuficiente para 0 efeito que se pretende. Pelo que nos parece que, mesmo quando o autor argui a situa- ¢40 de desconformidade ao seu direito, mas se abstém de indicar os factos constitutivos desse direito, ndo deve haver rejeigao limi- nar. O processo prossegue, e tudo depende da atitude a tomar pelo réu. S6 entao o juiz deverd apreciar se hd ou nao insuficiéncia na causa de pedir complexa, e quais as consequéncias desta. Mas, citado o réu, entra-se na normalidade do processo, por- que com a citagao do réu se constitui caso julgado formal (**). 17. Aquisigdo originaria e presuncdes E surge entéo o outro grande problema enunciado: 0 da dimensao da prova necesséria neste tipo de processo. A posigao corrente, como dissemos, exige uma demonstracaio exaustiva da propriedade na accao de reivindicagao. E para isso 0 autor teria sempre de remontar a uma aquisi¢ao originaria do direito. (°) A nulidade porventura existente s6 poderia ser apreciada no despacho sanea- dor (art. 206.°/1) se tivesse sido arguida pelo réu até A contestagao, nos termos do art. 204.°/1; mas entiio, havendo réplica, o autor pode tomar nesta posicdo, nos termos do art. 273.° C.P.C.. Cf. ainda o Assento de 26 de Maio de 1994, que referimos infra, n.° 18, ACGAO DE REIVINDICAGAO 533 E esta a posicdo corrente; e na realidade s6 ela é compativel com a exigéncia de uma prova cabal da propriedade (*”). Mas tam- bém este pressuposto nao consta da lei; e também ele tem sofrido a erosao da pratica. No que respeita aos meios de prova, seria incompreensivel que, justamente neste caso, o autor nao pudesse recorrer aos meios de prova normais em todos os processos. Porque nao poderia recorrer, sobretudo, 4 prova por pre- sungGes? Esta particularmente em causa a presungao derivada do registo, em se tratando de bens iméveis ou de méveis sujeitos a registo (**). O art. 7.° do Cédigo do Registo Predial faz derivar do registo a presungao da titularidade do direito. Semelhante presuncao ser aplicavel em hipotese de reivindi- cagao? Mas, se nao fosse invocdvel aqui, para que serviria, afinal? O seu sentido é justamente o de aliviar do 6nus probatorio o titular que satisfez a publicidade. Seria arbitrario desconhecé-la justa- mente na hipétese prototipica da reivindicagao. Aqui se acentua a erosao dos pretensos pressupostos da acgao de reivindicagao. A jurisprudéncia afirma a necessidade de subir a uma aquisi¢ao origindria; mas afinal basta-se com uma presungao legal de propriedade (*°). Mas vamos ainda mais longe. Nao poderd o reivindicante fun- dar o seu direito em presungdes de facto? (°) Cf, neste sentido Barassi, Proprieta e Comproprieta, Giuffre (Milio), 1951, nS 188, onde analisa alguns dos problemas suscitados. Mas o autor recorda também (pag. 839, nt. 29) que a antiga jurisprudéncia se bastava com presungdes precisas, graves e con- cordantes. (*)Tratando-se de coisas méveis, ha s6 a presungdo fundada na posse (art. 1268.° C.C.), mas esta tem normalmente menor signific recorre normalmente 4 acco de reintegragio da posse, € nao a reivindicagio. () Cir. 0 Ac. STI de 16 de Junho de 1983 (BMJ, 327, 546). Este aresto foi objecto de anotagao de Antunes Varela (Rev. Leg. Jurispr., 120, 214), que expressamente nega que se deva considerar essencial & prova do dominio do reivindicante a ascensio pro- batéria, até se alcangar 0 adquirente originério da coisa reivindicada (n.° 6). E, embora admita que no basta a alegacio eo registo de uma aquisigo derivada, considera todavia que basta para a demonstragio do direito do transmitente que «o transmitente seja o ultimo titular (do direito) inserito no registo — facto que, naturalmente necessita de ser provado». 534 JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO Isso nao seria possivel se a lei moldasse a prova em termos diferentes dos comuns. Mas nao hd nenhuma regra especial de prova na ac¢ao de reivindicagao, o que é alids decorréncia de esta nao ser tipica. Temos de concluir que o autor pode usar dos mes- mos meios de prova que em qualquer ac¢4o e portanto, pode recor- rer também a presungées, iuris e facti. Com isto chegamos a uma posi¢ao muito mais razodvel. Cabe ao autor a prova da propriedade; mas a sua posigdo, mesmo quando © réu goza da presungao fundada na posse, nao é fundamental- mente diversa da deste, podendo recorrer 4 generalidade dos meios de prova admitidos por lei para ilidir aquela presungao (*”). 18. A propriedade como questao prévia E a altura de retomar a problematica relativa A configuracao que a questao da propriedade toma na causa de pedir. Ela deve ser configurada, na acgao de condenagao que é a acgao de reivindicagdo, como uma questao prévia. A terminologia parece-nos preferivel 4 de questao prejudicial, que a lei usa para a questao prévia que é objecto de outro processo, ou para as questdes que seriam da competéncia de tribunal criminal ou administrativo (art. 97.° C. P.C.). Definir a situagao da propriedade nao é 0 escopo daquele pro- cesso, mas a posi¢ao tomada quanto aquela é relevante como base para a decisdo sobre 0 objecto do litigio. E perante esta configuragio concreta que ha que perguntar qual o nivel da prova necessdrio para dar ao autor ganho de causa. Isso depende porém da contestagao do réu, e portanto da con- formagao concreta do litigio. Se o réu litigio nao recai sobre a propriedade, que o réu nao contesta, nada mais serd necessdrio. O autor actua como proprieta- rio, ainda que implicitamente. Se o réu o aceita, hd a admissao dessa qualidade. () Podendo chegar-se a um conflito das presungdes fundadas na posse e no registo (art, 1268.° C.C.). Cir. 0 Ac. STJ de 16 de Junho de 1983 (BMJ, 328, 546) ¢ os nossos Reais cit, n.° 174, ACCAO DE REIVINDICACAO 535 Pouco importa até que 0 autor nao tenha sequer incluido, entre os factos constitutivos da causa de pedir, os factos aquisitivos da propriedade. Indicou elementos de uma causa de pedir complexa: foi o bastante. Esta é a parte da verdade da teoria da individualiza- go que, a esta luz e nestes limites, é aceitavel. Parece-nos que a prova de uma questao prévia se deve fazer em termos diferentes dos que se aplicam ao objecto directo do litigio. Se 0 réu contesta a propriedade e o pode fazer, hé que proce- der a prova cabal desta. Portanto, a prova a produzir depende da atitude do réu. Se o réu a nao contesta, parece dever falar-se de uma admis- sdo desta, pelo que ainda neste caso pode haver ganho de causa pelo autor. Tocamos aqui outra massa extremamente complexa de pro- blemas substanciais que devemos limitar-nos a deixar assinalada. Essa é a da possibilidade do reconhecimento de situag6es jurfdicas. Varela/Bezerra/Sampaio e Nora enunciam a hipdtese de a parte reconhecer apenas a existéncia do direito, sem se referir ao seu facto constitutivo, e afirmam com razao que haverd apenas que aplicar 0 disposto no art. 458.° do Cédigo Civil (*'). De facto, neste estabelece-se que, se alguém, por declaracio unilateral, reconhecer uma divida ou prometer uma prestagio, sem indicagao da respec- tiva causa, fica o credor dispensado de provar a relagao fundamen- tal, que se presume até prova em contrario. Daqui resulta que os direitos podem ser objecto de admissao e que esta dispensa a prova dos factos constitutivos. Nenhuma razdo ha para nao aplicar a Tegra ao processo, ou para exceptuar a acco de reivindicagao. E particularmente, nao ha motivo nenhum para o excluir quando esté em causa uma questao prévia. A correcta qualificagao da questao da propriedade como questao prévia produz assim os (*) Varela/Bezerra/Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2. ed., Coimbra Editora, 1985, n.° 173, pag. 537, nt. A posicao é perfilhada por Lebre de Freitas, que trata a prépria figura do reconhecimento do que chama ao direito prejudicial, mas que parece acabar por reconduzir & confissdo (de factos): A Confissdo no Direito Probatério, Lisboa, 1990, 442. No seguimento de Castro Mendes, afirma que produz caso julgado relativo. Vai porém mais longe, logo a seguir, no que respeita ao reconhecimento do direito pelo exe- cutado, em processo executivo. 536 JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO seus frutos. Fica sujeita a um regime que nao pode deixar de dife- rir do que respeita ao objecto principal da acgdo. Por outro lado, a lei permite a invocagao da exceptio dominii nas acgdes possessérias (arts. 1034.° e seguintes, C.P.C.); e af, se 0 autor nao impugnar o direito de propriedade invocado pelo réu, o pedido do autor é logo declarado improcedente e procedente o pedido de reconhecimento do direito de propriedade formulado pelo réu (arts. 1035.°/1 e 1034.°/1 C.P.C.), sem que se faga referéncia 4 causa de pedir nem se exija a prova da propriedade pelo réu (*). A admissao de um direito invocado como questao prévia é im uma figura normal na ordem juridica portuguesa. Rosenberg/Schwab/Gottwald dio-nos uma precisa confirmagao de quanto se acaba de dizer. O autor satisfaz 0 6nus de fundamentar aacgio quando faz alegagGes que correspondem ao tipo abstracto da norma aplicdvel, ainda quer de maneira pouco concretizada, dizem — nomeadamente quando se trata de uma questo prévia (ou preju- dicial). E ilustram expressamente: «Na reivindicagao (§ 985 BGB), por exemplo, basta inicialmente a simples afirmagao do autor de que € proprietario». 6 do tipo de defesa do réu dependeria se, e em que medida, ele deverd fazer alegagdes mais concretas, como seja, fun- dar a questao prévia mais precisamente, por exemplo através da ale- gagao do respectivo facto constitutivo (**). Para © direito portugués, apenas anotariamos que s6 0 poder fazer se 0 processo admitir réplica. E invocdvel neste sentido, por analogia, © recente Assento do STJ de 26 de Maio de 1994 (4). (®)_ Este aspecto foi-nos pessoulmente assinalado por Miguel Teixeira de Sousa. Ji pelo contrario nos parece que o raciocinio do mesmo autor, em Sobre a exceptio domi- nil nas aces possessérias e nox embargos de terceiro, separata da Rev. Ord. Adv., ano 52 |, Abr/1992, 21-27, estd inquinado por tomar a aegdo possesséria como uma accao de pro- priedade, quando a causa de pedir s6 pode ser a posse. O autor nio precisa de se declarar proprietério, nem da demonstra¢ao de propriedade resultaria a admissibilidade da acco possesséria, (") Rosenber/Schwab/Gotwald, Zivilprozessrecht, 15. ed., C. H. Beck, 1993, glositt. ©) DR. n? 167, de 21 de Julho: «A nulidade resultante de simples ininteligibiti- dade da causa de pedir, se nao tiver provocado indeferimento liminar, é sanvel através da ampliagdo fitctica em réplica, se o processo admitir este articulado e respeitado que seja 0 Prinefpio do contraditério através da possibilidade de tréplica». Dirfamos que desta tomuda de posigdo resulta que a insuficiéncia da causa de pedir, que ndo é uma nulidade, ACCAO DE REIVINDICACAO, 337 19. A prova da titularidade nas accées reais Temos com isto 0 caminho aberto para uma verificagdo fun- damental. Procuremos na lei o fundamento duma exigéncia da demons- tragao exaustiva da propriedade na reivindicacio. Debalde o faremos. Em lugar nenhum o Cédigo de Processo Civil exige nesta acco uma prova diferente de qualquer outra E nao o poderia fazer, desde logo porque em lugar nenhum regula a accdo de reivindicagao. Tudo 0 que se encontra € 0 referido art. 498.°/4 C.P.C. Mas ja acentudmos (*°) que este nao prevé a reivindicagao mas as acgGes reais. Mesmo em relagao a estas, definindo a causa de pedir como 0 facto juridico de que deriva o direito real, nao faz nenhuma exigéncia agravada de prova quanto a esse facto. E se essa exigéncia nao se encontra neste preceito, nado se vé nenhum outro em que se possa encontrar. A imposigao da demonstragao exaustiva é pois mera preten- sao doutrindria, fundada no dogma de que «a declaragao da titula- ridade do direito de propriedade parece pois o fim primario e essencial da reivindicacao» (*°). Mas ja vimos que este pressuposto é infundado perante o direito portugués. Na realidade, as acgdes em que a propriedade ou os factos aquisitivos desta esto na causa de pedir s4o muito variadas. Podem configurar-se quando se discutem relagGes de vizinhanga, quando se actua a responsabilidade extra-obrigacional por danos causados na coisa, quando proprietario e usufrutudrio litigam sobre os termos da fruig&o deste, e assim por diante. Em todos estes csos pode ser sanada por maioria de razdo. Notemos que no assento se acentua também que se 0 tribunal viabilizar 0 andamento do processo, mandando citar o réu, ndo obstante a peti- do estar inguinada de ineptiddo, o prineipio da economia processual e outras regras no excluem 0 aproveitamento do processado. Pode invocar-se também a analogia com 0 art. 193.° C.P.C.: mesmo havendo razdo de indeferimento liminar da peti¢do inicial, se ele no for pronunciado, a atitude do réu pode levar & sanacdo do vicio, quando o fim de pro- tecgo deste ficou afinal assegurado. 9) Supra, n2 14. () Manuel Rodrigues, Reivindicagdo cit., 114, acentuando a divergéncia com 0 direito alemao. 538 JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO 0 autor funda a sua pretensao na qualidade de proprietario: a acco € pois uma acgao real. E porém inadmissivel logo a uma primeira vista que em todas estas acgGes se exija uma demonstragdo exaustiva da propriedade. O camionista veio embater no muro da quinta, destruindo-o. Levado a juizo, escusa-se 4 obrigagdo de indemnizar alegando que © autor nao fez a prova exaustiva da propriedade. Nao pode ser assim. A prova que se requer da propriedade é apenas uma prova bastante, adequada 4 situagao em litigio. Deve corresponder ao tnico interesse tuteldvel do camionista: assegurar que nao seja amanha obrigado a pagar segunda vez a outra pessoa. Mas seria distorsivo impor em semelhante caso ao autor a demons- tracdo exaustiva da propriedade. Na prdtica, a questo da proprie- dade surge um pouco como um pressuposto processual, assegu- rando a legitimidade do autor. Mas se passarmos a acgio de reivindicagao, a situagdo é afi- nal da mesma indole. Também a propriedade esté na causa de pedir, mas esta é uma causa complexa, porque engloba igualmente © estado de coisas desconforme. Compreende-se ento que 0 mero ocupante, que ndo tem nem alega nenhum direito sobre a coisa, se Tecuse a entregar porque 0 autor nao estd em condigdes de provar uma aquisi¢ao originaria? Na realidade, também nestas acgdes 0 debate sobre a proprie- dade que se deve travar € somente o que for justificado pelo dese- nho concreto do litigio. Se o autor provou o esbulho, por exemplo, eo réu ndo alega a propriedade nem nenhum outro direito sobre a coisa, nao hi litigio sobre a propriedade. O autor deve ter entao ganho de causa, desde que tenha feito uma prova prima facie do seu direito sobre a coisa (*”), Isto nos vai mostrando que a situagdo na reivindicagao é afi- nal a situagdo normal do processo. O que o autor tem efectiva- mente de provar depende da posi¢ao adoptada pelo réu, e dos adi- tamentos constantes da réplica, se houver este articulado. E nada () Diferente € ainda a situaco nos litigios entre 0 proprietério e o titular de direito real menor. Como tivemos ocasido de observar (Reais cit., n.° 217 Il) insere-se no litigio um elemento relativo. 0 que se discute é a posigio: reciproca de titulares de dit Gm contlito, O que significa que, mais que o direito real em si, 0 objecto 6 a relagao ju dica real entre aqueles sujeitos, ACCAO DE REIVINDICACAO 539 impede a admissao pelo réu, referente a situacao juridica que surja como questao prévia ou fundamento juridico da posigao do autor. 20. O debate sobre a propriedade e a dependéncia do litigio concreto Podemos distinguir, mesmo quando a propriedade se integra na causa de pedir como questdo prévia, duas situacdes funda- mentais: a) aquelas em que 0 objecto do litigio € a propriedade. Ambos os contendores pretendem ter direito sobre a coisa. 5) aquelas em que o réu nao pretende a propriedade, quer apresente quer nao razdes de outra ordem em abono da sua situagao (**), Ora, a essas fungées distintas tem de corresponder uma diver- sidade também na incidéncia da prova. Se 0 litigio recai directamente sobre a propriedade, h4 que exigir a prova cabal desta. S6 assim o autor pode limitar-se as tazdes absolutas que permitem quebrar a resisténcia de estranhos. Mas quando se configura em primeiro plano uma posigao telativa, e a propriedade surge como uma justificagdo indirecta, a prova adequada é muito menos exigente. Imaginemos a hipotese de o autor reivindicar a coisa, fundado na extingdo do contrato de arrendamento que celebrou com o réu (*). Poderd o réu exigir a prova cabal da propriedade, e ter ganho de causa se o autor nao conseguir demonstrar uma aquisigao origindria? (®) Ha na ordem juridica portuguesa outro preceito decaleado da reivindicagao que ilustra bem esta dualidade de posicdes: o art, 2075.° do Cédigo Civil, sobre a petigao (ou reivindicacao) da heranca. Também af se parte de uma posi¢do «declarativistica» do direito do herdeiro, «contra quem possua os bens como herdeiro, ou por outro titulo, ou mesmo sem titulo». (*) Admite-se geralmente que a acgio de reivindicagdo é neste caso a propria. Cfe. Manuel Rodrigues, Reivindicagao cit., 130. $40 JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO A imposicao seria descabida. O réu s6 poderia ter direitos por forca do arrendamento. Se puder paralisar a actuacdo do autor pela exigéncia de um titulo de aquisigao originaria, vai prevalecer-se de um elemento completamente estranho & relagéo com 0 autor. Se nao fosse o contrato, nenhuns direitos teria sobre a coisa. Seria absurdo permitir ao réu valer-se de uma situagao a que € completamente estranho, e com isso perpetuar afinal uma posse para que ndo tem nenhuma justificagao! Mas se é este 0 vasto ambito da reivindicagao, esta deve estar estruturada de maneira a responder a todas as situagdes. Quer Aquelas em que 0 objecto do litfgio é realmente a propriedade, quer aquelas em que a invocagao da propriedade tem apenas a fungdo de dar ao autor o passaporte para pedir em juizo a entrega. Na realidade, quando o autor se funda na propriedade para con- seguir outro efeito, mas esta em si no é litigiosa, a propriedade surge numa posi¢io muito parecida com a de um pressuposto pro- cessual, como dissemos ja. O autor invoca a propriedade para legiti- mar que seja cle a vir litigar naquele processo, cujo objecto é muito diferente, E 0 que se passa por exemplo quando é uma relagfio de rinhanga que esté em causa: a alegagao da propriedade € apenas a justificago para vir discutir a relagdo de vizinhanga, mas a accZo nao visa minimamente fixar uma situagdo de propriedade. Pois tam- bém quem invoca a propriedade para reivindicar de quem nao se pre- tende proprietirio, nao esta a querelar sobre a propriedade. 21. O «melhor titulo» E a esta luz que haverd que equacionar e resolver a proble- matica do «melhor titulo», Ao lado da orientagio que exige a demonstragdo absoluta da propriedade manteve-se sempre outra, que se contenta com a pre- valéncia do melhor titulo; e com isto dé uma solugio relativa ao dissfdio em apreciagao (™), () "Cir. neste sentido Jacinto Rodrigues Bastos, em Direito das Coisas, I, 1975, 138. Cfr. sobre este ponto ainda Cunha Gonealves, Tratado de Direito Civil, XML, n" 1824 © segs. pigs. 168 € segs. (172), que observa que a admissao da melhor posse se baseia ACCAO DE REIVINDICACAO, S41 Com efeito, disse-se que cada parte tem apenas de demonstrar que tem melhor titulo que a outra. Sera a posigao dominante em Franga e Espanha. Apenas quando se chegasse a uma equivaléncia fundamental dos titulos apresentados o réu teria ganho de causa; mas isso pela preferéncia universal pela inércia, porque se o autor nao provar melhor titulo nao hd que bulir com a situagao preexis- tente. De todo o modo, o tema da prova nao seria mais a proprie- dade, afinal, mas a vantagem relativa do titulo do reivindicante em relagdo ao do detentor (5'). Supomos porém que se nao pode dar uma resposta Unica. A suficiéncia ou nao do melhor titulo depende da configuragio concreta do litigio. A solugdo romana, de uma sabedoria que a torna actual, foi a de contrapor acgao de reivindicagio, caracterizada pela necessi dade de demonstragdo da propriedade, a actio publiciana, que admitia efectivamente a redugao do énus probatério. Mas na acgao de reivindicagado nunca © autor poderia ser aliviado do énus da prova da propriedade; pela razao definitiva de que este 6nus é a contrapartida da vantagem que lhe cabe de nao ter de discutir a situagdo e os actos aquisitivos do oponente. Porque se funda em raz6es absolutas, pode abstair da posigao relativa do seu contendor. Mas para beneficiar dessa vantagem terd de provar ter um direito que o justifique (°?). O confronto com as fontes romanas dé-nos, por outro lado, uma boa pista de solugdo. A reivindicacéo pode exigir uma demonstra¢ao rigorosa de propriedade quando coexistir com outra acgfio, como a publiciana, ainda na consideragdo de que a posse da presungio de propriedade, ¢ nota certeiramente que naquelas posigdes ha um reflexo da publiciana; mas nao as considera admissiveis em Portugal. (") Gongalves Salvador, em A causa de pedir cit., 17 € segs., dé-nos conheci- mento de duas decisdes de tribunais portugues, ambas de 1959, que teriam acolhido esta doutrina. Rebate-as, embora nem todas as razdes coincidam com a posigdo geral por nds adoptada. Aquelas decisGes nao lograram fazer inflectir a posi¢ao da jurisprudéncia domi- ante, que continua a exigir a prova da propriedade. (°) Doutra forma, a figura seria meramente relativa; mas entdo cada parte teria de rebater os titulos da outra. Diversa teria de ser a causa de pedir, e portanto diversa também a estrutura processual 542 JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO que ocorre a outras situagGes que se bastam com uma prova ali- geirada. Mas quando a reivindicagao é a tnica accdo disponivel, ela deve ser dotada de maleabilidade suficiente para dar resposta a todos os tipos de situagdes. O que significa que a acco hé-de ter a faculdade de se adequar em certa medida as circunstancias do caso concreto. Isso permite chegar a uma nocao de prova adequada. Na ordem juridica portuguesa temos assim que distinguir. Se o litigio recai sobre a propriedade, ha entéo que fazer a prova adequada a esse litigio. Que poderd levar 4 exigéncia de uma demonstragado realmente exaustiva, quando ambos os contendores disputam a propriedade da coisa. Mas se 0 litigio nao versa sobre a titularidade, e a propriedade surge apenas, de envolta com outros elementos, na causa de pedir, a demonstragdo a fazer é a adequada ao concreto litigio em pre- senga. Nao se mede por consideragdes dogmaticas sobre a reivin- dicagdo, mas pela necessidade de resolver, com justic¢a e mera efi- cdcia inter partes, um litigio concreto. E por aqui se pode chegar efectivamente a uma suficiéncia do melhor titulo. No sentido de que, se 0 litigio nao versa sobre a pro- priedade, o mero indicio de uma situagao de proprietario € sufi- ciente perante um réu que nao apresenta titulo nenhum. Quer se litigue sobre a propriedade quer nao, a reivindicagao € a accdo adequada quando se pede a entrega com base num direito de propriedade. Mas a reivindicagéo tem de desempenhar, quer a fungdo da reivindicatio, quer de algum modo a fungdo da accio publiciana. Tem de comportar pois a diversificacao suficiente para permitir que estas fungdes distintas sejam satifeitas. 22. O interesse do réu como critério da medida da prova da propriedade exigivel Ha porém que determinar com mais Precisfo os casos em que haveré que proceder a uma demonstragdo mais avangada da pro- priedade, nao bastando uma demonstracao prima facie desta. Os casos-padrao sdo aqueles em que ambos os titulares se pre- tendem proprietdrios da coisa. Mas nao sio os tnicos. ACCAO DE REIVINDICACAO 543 Podemos dizer que 0 autor deverd demonstrar os titulos aqui- sitivos da propriedade sempre que o réu tiver interesse nisso, e na medida desse interesse. O interesse do réu, a que fazemos referéncia, é 0 interesse juridicamente atendivel, e nao o interesse meramente téctico numa posi¢ao de vantagem na lide. E claro que ha sempre um interesse tactico do réu nao proprie- tario em suscitar problemas desta indole, entorpecendo a acgo da justicga. Mas af a situagdo é idéntica, de novo, a de todas as acgdes em que a propriedade esta na causa de pedir. Também aquele que é demandado em acgiio de perdas e danos pode defender-se invo- cando fragilidades na demonstragao da propriedade pelo lesado. Da mesma forma, 0 gatuno poderia recusar a entrega alegando que a vitima nao provou um titulo origindrio de aquisigao da coisa fur- tada... O interesse porém que se reclama é 0 interesse juridicamente relevante. Se se prova a desconformidade e 0 réu no se arroga pro- prietério, ele nao tem um interesse juridicamente relevante na demonstracao da propriedade, porque nunca esta lhe aproveitara. Entao a exigéncia de uma demonstragao exaustiva da propriedade seria chicaneira, pelo que é bastante uma prova prima facie da pro- priedade. A hipotese que logo nos ocorre, quando se quer ilustrar a situagdo de um detentor que se nao pretende proprietrio, mas pode ter interesse na demonstragao da propriedade que o autor se arroga, € aquela em que o réu pretende evitar a responsabilidade, perante quem Ihe confiou a coisa, que Ihe adviriam da entrega a um nao proprietério. Nao deixaremos porém de acrescentar que mesmo estas situagdes sao dificilmente configuraveis. O que a lei civil manda é que avise o concedente da actuagao de terceiros; e 0 art. 320.°/1 C.P.C. manda que © possuidor em nome alheio, se for demandado como possuidor em nome préprio, nomeie 4 ac¢o a pessoa em nome de quem possui. Se o nao fizer, responde por todos os prejuizos que cause ao concedente com a falta de nomea- Go (n.° 3). Vemos pois que € uma solugao muito mais razodvel; e que nao deixa espaco para uma imposi¢do, por quem se nao pre- tende proprietario, de uma demonstragao cabal da propriedade por parte do autor. 544 JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO Consequentemente, a medida da demonstragao necessaria da propriedade deve ser fixada em concreto, de harmonia com o interesse do réu nessa demonstracao. Nao seria correcto colocar tudo em termos de sim ou nao, numa alternativa radical entre a Prova cabal ou a remissdo para o «melhor titulo». Na realidade, hd uma gradagado continua, e a prova exigida é maior ou menor consoante a configuragaéo concreta do litigio. Portanto, consoante a intensidade do interesse juridicamente atendivel do réu nessa prova. implicados 23. A comprovacio pelos interess: Estamos agora em condigées de tirar os resultados da andlise empreendida. A concepgao estratificada e monolitica da acco de reivindi- cagdo acolhida pela doutrina dominante é arbitraria e conduz a resultados inadmissiveis. Nao atende a diversidade de fungGes que a invocagdo da pro- priedade desempenha nas acg6es reais. Foi por nao atender a esta diversidade que a concepgdo domi- nante, que assenta a reivindicagdo no pedido de reconhecimento da Propriedade, entrou em rotura. Os fundamentos em que Tepousava sofreram progressiva erosao. E hoje podemos dizer que a imagem da teivindicagdo emer- gente da obra da jurisprudéncia é ja muito diversa. A reivindicagao é uma accao de condenagio. A invocagao da propriedade surge tipicamente como causa de pedir. Na prat deixou-se cair a exigéncia de que se ascenda a uma causa originiria de aquisi¢ao da propriedade. Admite-se a prova por presuncdes. nomeadamente a resul- tante de certidao do registo, sem se cuidar de apurar se ai se con- igna efectivamente uma causa aquisitiva da propriedade ou se esta foi sequer alegada, Mas sobretudo, hd que reconhecer que a reivindicagao, tal como teoricamente defendida, representaria a figura anémala de uma cumulagio objectiva necessaria, s6 doutrinariamente criada. ACCAO DE REIVINDICACAO. S45 A prova exaustiva da propriedade nao encontra nenhum apoio na lei processual. Nao decorre da referéncia genérica 4 causa de pedir nas acgées reais, nem esta necessariamente implicada na con- figuragdo substantiva da reivindicagao. A prova a fazer da propriedade é a contrapartida da outorga ao autor da faculdade de usar razées absolutas. Assim sendo, destina-se a satisfazer um interesse do réu. Na medida em que este interesse fique satisfeito, nada mais haverd que exigir. Mas argumenta-se muitas vezes como se houvesse um inte- resse ptblico a fundamentar uma exigéncia absoluta daquela demonstragao. Semelhante afirmagao de um interesse ptblico ou resultaria: — do peso da burocracia, suporte de um Estado controlador de todas as situagGes de propriedade — do peso do formalismo, que leva a acumular exigéncias, perdendo-se 0 sentido da sua finalidade. Mas nada disto tem justificagao. Nao ha que exigir que toda a vez que se discute uma propriedade em juizo se faga a demonstra- ¢4o exaustiva dessa propriedade. O julgador nao est4 a escrever para a eternidade, definindo em absoluto situagées juridicas, mas simplesmente a resolver os litfgios que lhe sao submetido: Na realidade, nao ha aqui nenhum absoluto. Ha litigios con- cretos entre partes concretas que vao ser resolvidos inter partes. Nos termos gerais, a defesa dos interesses privados esté entregue antes de mais aos proprios. As necessidades da Justiga ficam satis- feitas melhor se aos interessados for deixada a liberdade de demar- car 0 objecto do processo civil conforme os seus interesses. Daqui resulta que a prova que se exige é, como em todas as accGes, a adequada ao litigio concreto que foi trazido a juizo. A acgio de reivindicagao nao representa uma excepgao a este principio.

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