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DÉCIO FREITAS

HISTORIADOR
Candidatos e suas promessas
No jogo de sedução da campanha eleitoral, o candidato precisa convencer o eleitor de que cumprirá
as promessas do seu programa de governo. Como regra, o eleitor desconfia: cumprirá o candidato
suas promessas?
O jogo eleitoral mudou radicalmente desde o advento da comunicação eletrônica. No sistema de
voto censitário do Império, só podiam votar e ser votados os que tivessem certa renda mínima – uma
insignificante minoria. O candidato dirigia ao limitado círculo de eleitores do seu distrito carta-circular
em que expunha princípios doutrinários. A República instituiu o sufrágio universal, mas como só
exerciam o direito de voto os adultos alfabetizados, a altíssima taxa de analfabetismo excluía cerca
de 80% dos eleitores potenciais. Chamava-se o programa de governo de “plataforma”, lida
solenemente pelo candidato em banquete no qual os convivas trajavam fraques. A “plataforma”
resumia-se a uma enunciação de princípios doutrinários, sem mais detalhes sobre soluções práticas.
O resto ficava por conta dos oligarcas e seus cabos eleitorais duma imbatível máquina, o “eleitorado
de cabresto”. Num país de analfabetos, a propaganda nos jornais tinha eficácia quase nula.
A campanha baseia-se cada
vez menos na oposição
doutrinária entre candidatos
Quando candidato a presidente da República, em 1930, Getúlio Vargas fez uma inovação: não tendo
uma máquina eleitoral de âmbito nacional, correu o país fazendo comícios em que ele e seus
oradores falavam diretamente ao povo. Inspirou-se, na adoção do comício, nos “meetings” dos
americanos. Derrotado, liderou sete meses depois uma revolução para desmantelar o sistema
oligárquico. Primeiro político brasileiro a perceber e explorar as revolucionárias potencialidades do
rádio, criou a política da comunicação, que o converteu no político mais popular da história brasileira.
Descartou o discurso doutrinário, adotando o de propostas práticas e inaugurando a “democracia
catódica” (ele era um orador muito insípido).
A televisão estabeleceu o primado absoluto da comunicação eletrônica nas campanhas eleitorais (no
Brasil, o número de leitores de jornais ainda é ridiculamente baixo). Eleições ou tele-eleições?
Democracia ou midiacracia? Os programas dos partidos não podem mais se permitir referências a
sistemas doutrinários complexos: a televisão transmite imagens, não idéias. O programa impresso
não é lido por quase ninguém. O autêntico programa do candidato é o não-impresso: aquilo que ele
declara na televisão, em entrevistas, debates ou exposições autorizadas pela Justiça Eleitoral. A
campanha baseia-se cada vez menos na oposição doutrinária entre candidatos. Busca-se definir,
neutral e pragmaticamente, uma política antes do que um programa, restando ao eleitor aceitar ou
recusar o que lhe é proposto. A exposição do candidato busca obter o máximo de aprovação e
sufrágios no dia da eleição. Para isso a política exposta deve possuir um caráter muito geral,
inconclusivo e evasivo. Há um impressionante contorcionismo verbal para deixar perguntas sem
respostas.
Exemplificaram isso as entrevistas do Canal 36 com os candidatos ao governo do Estado. Todos se
comprometeram a promover a expansão da economia e o aumento do emprego, atraindo
investimentos estrangeiros (na hora em que eles fogem do Brasil) ou estimulando os existentes (na
hora em que a desaceleração econômica reduz a capacidade de uso do gasto público como política
de reativação). Não explicitaram as fontes dos recursos para quaisquer dos seus projetos.
Silenciaram sobre a manutenção ou mudança do atual modelo econômico nacional, como se isso
não tivesse importância para os Estados. Todos falaram sobre a captação de recursos federais,
qualquer que seja o eleito para a Presidência, fazendo caso omisso de que o RS não tem hoje – e
seguramente não terá, como acontece desde a redemocratização do país – voz decisória nas
instâncias federais.
Tudo isso remete à questão do empobrecimento do regime federativo. A União virtualmente quase
recambiou os Estados à condição das províncias no Império. Sob a ditadura exercida pela União
sobre os Estados, nenhum governador do país realizou ultimamente gestão brilhante. O que
desacredita o evidente voluntarismo dos candidatos. Ainda: qual a validez dos compromissos se o
eleito não tiver maioria no Legislativo? Esta questão remete à esqualidez do sistema partidário
brasileiro: inexistência de partidos tradicionais e fortes capazes de afiançar os compromissos
eleitorais dos candidatos. Os entrevistados se esmeraram em ocultar a rancorosa polarização
ideológica hoje subjacente na política gaúcha. Houve candidatos que, condicionados pela ideologia
do “fim das ideologias” e pelo fundamentalismo quase religioso do mercado, propuseram-se ser bons
“gerentes”, não estadistas.
Na era da mídia eletrônica, a comunicação engendra, na política como em tudo mais,
incomunicação. Não surpreende que um governante eleito seja cada vez mais, no Brasil e em toda
parte, uma caixa-preta.
VOLTAIRE SCHILLING
HISTORIADOR
Dresden, incendiada e afogada
“Chocou-me naquele momento o pensamento de que mulheres e crianças estavam lá embaixo.
Parecia que estávamos voando horas sobre um lençol de fogo – uma terrível fogueira vermelha com
um nevoeiro cinzento pairando sobre ela. Dei-me a comentar com a tripulação: ‘Oh Deus, esta pobre
gente’. Aquilo foi completamente desnecessário. Você não pode justificá-lo.”
Roy Akehurst, operador de bordo da RAF durante a destruição de Dresden, 13-14 de fevereiro de
1945
Coube ao príncipe-eleitor da Saxônia, August der Starke, Augusto o Forte (1670-1733), conhecido
como O Cavaleiro Dourado, tornar Dresden um assombro arquitetônico. A emulação viera-lhe do seu
vizinho e rival Pedro o Grande, o czar da Rússia, o Cavaleiro de Bronze, que, em 1703, erguera a
magnífica São Petersburgo, nos pântanos do Rio Neva. Não demorou para que entre a Paris de Luís
XIV e a capital do czar Pedro nada houvesse que se equiparasse à bela Dresden, onde o fantástico
Palácio Zwinger, em estilo barroco tardio (obra de Pöppelmann e Permoser) – que fazia as vezes de
galeria de arte, biblioteca, museu e orfeão musical –, converteu-se num centro extraordinário de
ebulição cultural. Famosa igual foi a Semperoper, a casa de ópera cuja afinada acústica serviu para
que Richard Wagner nela apresentasse pela primeira vez, entre 1842 e 1845, o seu Rienzi, o Navio
Fantasma e o barulhento Tannhuäser.
Umas décadas antes de Wagner lá estabelecer-se como chefe da orquestra real, ela assumira-se
como a protetora da escola romântica alemã, quando, em 1798, por lá estiveram os irmãos Schlegel
e o poeta Novalis. Com Praga, Viena e Budapeste, Dresden, com justa razão chamada de a
Florença do Elba, formava no século 19 um quarteto de cidades esplêndidas da Mitteleuropa, da
Europa Central, onde, quotidianamente, podia-se usufruir o melhor da vida. Cafés, estupendos
jardins, academias de arte, belos locais sempre lotados, onde, ao sons de polcas e valsas, das
lieden de Schubert, entre os vespeiros de estudantes, misturavam-se a proletária cerveja e o nobre
champanha.
Deu-se então que nos estertores da II Guerra Mundial tudo terminou numa só noite. Às 21h30min de
13 de fevereiro de 1945, um barulho atrovoante tomou conta dos ares da cidade. Quase mil aviões
Lancasters da RAF (Real Força Aérea), a mando de sir Winston Churchill, tido como homem da
cultura, começaram a descarregar a primeira leva de bombas sobre ela. Choveram lá do alto 1.478
bombas explosivas e mais 1.182 incendiárias. Em seguida foi a vez das fortalezas voadoras dos
americanos, despejando 1,8 mil bombas e outras tantas de magnésio para pôr fogo em tudo. Em
poucas horas, Dresden viu-se transformada na maior fogueira do mundo ateada pelo homem. Um
calor que ultrapassou a 800C, sequer imaginado no reino do Medonho, incinerou ou asfixiou quase
toda a população civil, aumentada ainda mais por refugiados vindos do Leste. Calculou-se entre 35 a
135 mil vítimas! Oitenta por cento delas eram mulheres, crianças e idosos, visto que os homens
estavam no fronte (o que ultrapassou a todas as baixas civis inglesas nos seis anos de guerra, e foi
quase equivalente às de Hiroxima, abrasadas em 6 agosto daquele mesmo ano pela bomba
atômica).
Nos dias seguintes, em vôos rasantes, aviões mosquitos da RAF varreram à metralha as estradas
vizinhas, atulhadas com os sobreviventes em fuga, para mostrar-lhes que o inferno os perseguia
também ali. No final de tudo, impressionantes pilhas de cadáveres retorcidos, com cem, com 200
mortos cada uma, pirâmides humanas ainda fumegantes, espalhadas por toda a Dresden,
disputavam em horror com os escombros de séculos de beleza e de história devoradas num par de
horas. Churchill, Cavaleiro da Rainha, Nobel de Literatura em 1953, que ordenou a dizimação da
cidade, arrasou numa sentada só mais prédios e objetos de arte do que todos os bárbaros do
passado, de Átila a Gengis Khan, justificou-se dizendo ao marechal-do-ar Arthur Harris, o Harris
Bombardeador, o executor da tétrica operação, que ele “preferia a devastação total das cidades
alemãs do que a perda de um só osso de um granadeiro inglês”.
Pois não é que agora, 57 anos depois daquela hecatombe, com Dresden recuperada, foi a vez de as
águas do Elba virem a reclamar seus direitos de destruição?

OLAVO DE CARVALHO
FILÓSOFO E JORNALISTA
Transição revolucionária
A mídia nacional já levou longe demais essa farsa de rotular o tucanato de “direita”, um truque
inventado pela esquerda para poder condenar como extremismo e fascismo tudo o que esteja à
direita de FH, ou seja, à direita da centro-esquerda.
Se é verdade que o atual presidente obedeceu em linhas gerais às exigências econômicas do FMI –
coisa que qualquer outro faria no lugar dele e que o próprio Lula promete fazer igual, o que não torna
nem um nem o outro direitistas –, por outro lado o presente governo subsidiou fartamente com
dinheiro público o crescimento da mais poderosa organização revolucionária de massas que já
houve na América Latina, introduziu ou ao menos permitiu a doutrinação marxista nas escolas,
instituiu a beatificação oficial de terroristas aposentados e a concomitante desmoralização das
Forças Armadas, generalizou o uso de critérios morais “politicamente corretos” para o julgamento
das questões públicas e destruiu uma por uma as lideranças regionais mais ou menos
“conservadoras” que restavam, além de deixar montado todo o aparato legal e fiscal que seu
sucessor necessitará para criminalizar a atividade capitalista, sufocar as críticas de oposição e,
tendo feito tudo dentro da lei, poder posar de democrático. Democrático no sentido de Hugo Chávez,
é claro.
Negar o caráter revolucionário
das mudanças observadas érealmente
abusar do direito à cegueira
Sem tocar nos interesses internacionais, mas seguindo estritamente a receita de guinada à esquerda
que lhe foi preparada desde 1998 por Alain Touraine, FH fez mais pelo avanço da revolução
comunista no Brasil do que o próprio João Goulart, que ficou só na ameaça.
Se, não obstante, seu governo ainda é rotulado de “direitista” é somente graças a um fenômeno
bastante conhecido na mecânica das revoluções: sempre que uma facção revolucionária toma o
poder, suas próprias dissensões internas se substituem às divisões de partidos e facções existentes
no regime anterior. Assim, por exemplo, após a revolução de 1917, a ala revolucionária menchevique
passou a ser atacada pela ala radical como direitista e reacionária. Evidentemente, o sentido de
“direita” havia mudado por completo: antes, era ser contra a revolução; agora, era não ser
revolucionário o bastante. A diferença entre o caso russo e o brasileiro é que naquele a mudança foi
declarada e consciente, ao passo que entre nós ela está proibida de ser mencionada em público.
Um dos elementos primordiais da revolução cultural gramsciana em curso é o lento e inexorável
deslocamento de todo o eixo de referência dos debates públicos para a esquerda, de modo a
estreitar a margem de direitismo possível e, aos poucos, substituir a direita genuína pela facção
direita da própria esquerda ou por algum fanatismo hidrófobo estereotipado e fácil de desmoralizar.
O processo deve ser conduzido de maneira tácita e, se alguém o denuncia, negado com veemência.
As coisas devem acontecer como se não estivessem acontecendo. Os discordes e recalcitrantes,
mais que censurados, são jogados para o limbo da inexistência e se tornam tão deslocados que
parecem malucos.
Poucos brasileiros se dão conta da profundidade das mudanças políticas por que este país passou
ao longo dos últimos 15 anos. Elas podem ser resumidas assim: a oposição de esquerda ao antigo
regime militar tomou o poder, ocupa todos os postos do governo e da oposição e não deixa lugar
para mais ninguém. Os poucos remanescentes do antigo regime se apegam desesperadamente aos
últimos resíduos de poder que lhes sobram em escala regional, ao passo que na disputa nacional
não podem aspirar senão ao papel de auxiliares e meninos de recados de alguma das facções
esquerdistas em disputa. As presentes eleições deixaram isso muito claro.
À completa liquidação da direita corresponde, quase instantaneamente, a institucionalização de uma
das facções de esquerda no papel de “direita” – uma direita fabricada ad hoc para as necessidades
da esquerda.
O processo foi enormemente facilitado pelo fato de que, nas eleições legislativas federais, estaduais
e municipais, o Brasil tem uma das mais altas taxas de substituição de políticos já observadas no
mundo. A transfusão de lideranças, a completa destruição de uma classe e sua substituição por
outra já são fatos consumados. A revolução está em curso.
Se vai descambar para a destruição violenta das instituições ou se vai chegar a seus fins por via
anestésica é algo que só o futuro dirá. Mas negar o caráter revolucionário das mudanças observadas
é realmente abusar do direito à cegueira.
Alguns enxergam essas mudanças, mas só parcialmente e segundo um viés predeterminado.
Notam, por exemplo, a destruição de velhas lideranças, abominadas como “corruptas”, e vêem nisso
um progresso da democracia – sem reparar que não há progresso nenhum numa caçada a corruptos
de menor porte que serve apenas de disfarce para encobrir o crime infinitamente maior em que estão
envolvidos os próprios moralizadores mais entusiásticos: a narcoguerrilha, o terrorismo internacional,
a revolução continental.
Que, no meio, surjam algumas situações paradoxais – como por exemplo o fato de que o próprio
Partido Comunista, com nome trocado, acabe aparecendo como única alternativa à ascensão da
esquerda revolucionária – é coisa que faz parte da natureza intrinsecamente nebulosa do processo.
E que ninguém seja capaz de discernir por baixo do paradoxo a lógica implacável que leva este país
dia a dia para dentro do bloco terrorista internacional é sintoma do mesmo turvamento geral das
consciências, sem o qual nenhum processo revolucionário jamais teria sido levado a efeito no
mundo.

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