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CORPO-AMADOR: esboço para um circuito de sobrevivências

Pouco a pouco fazem-nos desaparecer, querem-nos mortos e invisíveis, alienados e calados. Mas ainda,
apesar de tudo, há o outro, esse território onde sempre é noite, onde pelo gesto de uma ação se faz luz
— como pequenas luzes1 intermitentes que se comunicam. Pelo gesto de uma ação vencemos o
paralisante oceano de melancolia que nos ocupa o corpo enquanto seguimos solitários. Por isso, que
resistamos à penumbra, que permaneçamos vivos, que comuniquemos as potências do corpo. Viva os
desajustados, os esquecidos, os amantes, inadequados, os ativistas, passionais, o estranho, o amador.
Viva o CORPO-AMADOR.

I.

Para quem eu estou aqui, quando eu escrevo? Vilém Flusser

O que podemos com as imagens? O que pode a arte? Como ficar vivo?

Ao longo da década de 1980 no Chile a fotógrafa Paz Errázuris e a escritora Claudia Donoso
colaboraram numa série que viria a registar a vida de travestis prostitutas das cidades de Talca e
Santiago. A convivência ao longo dos anos resultaria no livro intitulado La Manzana de Adán composto
por retratos, registros do cotidiano e relatos das travestis, além da narrativa de Donoso acerca dos
encontros e vivências. O livro viria a ser publicado somente no início dos anos 1990 após o fim do
regime do ditador Augusto Pinochet.

1 DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes. Trad. - Vera Casa Nova, Márcia Arbex. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2011.
A partir de contatos diversos Paz Errázuris e Claudia Danoso acessaram o espaço heterotópico2 das tais
casas passando a ganhar confiança gradualmente. Uma vez lá dentro operam pela ação da
solidariedade, ampliam a existência daqueles corpos, afirmam um visível real e dão a chance destas
existências serem partilhadas com aqueles que as olharão posteriormente na forma de retratos. São
pontos de luz sobre uma noite sem fim de corpos que desaparecem, de corpos que desejam viver e que
agora coexistem indefinidamente enquanto dura o olhar para a imagem.

2 Michel Foucault observando aspectos de certos espaços criados nas sociedades distinguiu alguns como “espaços
absolutamente outros”, como cemitérios, casas de repouso e penitenciárias, que estariam apartados do comum
partilhado por todos, possuindo um funcionamento e dinâmicas próprias inerentes à lógica e propósito da existência de
cada espaço dito singular. Tais espaços, as heterotopias, abarcariam “utopias situadas”, “lugares reais fora de todos os
lugares” possuindo, ainda, passagens, brechas que os ligariam a outros espaços.
Os relatos e a fotografia dão visibilidade às travestis perdidas em sua marginalidade, em seu destino
que parece ser o esquecimento, numa época em que não havia a possibilidade delas próprias
registrarem suas histórias. Por isso, La Manzana de Adán dá corpo a seus afetos, ao seu modo de fluir
em carne viva sempre “enfermas de los nervios” porque são perseguidas pela polícia ou porque
enamoradas por alguém. A palavra e a imagem de seus corpos delimitam um território, são a prova de
uma existência que também luta para existir.

As casas em sua heterotopia carregam um aspecto ambivalente: são o local de um corpo utópico,
idealizado em que masculino e feminino se borram na contramão das representações mais normativas,
mas também é onde o corpo se realiza de fato nas alegrias e nas dores, entre urgências e violências
carregando marcas de uma realidade crua, como cicatrizes que quase todas carregam consigo.

Paz Errázuris e Claudia Donoso estão junto com as travestis exercendo puramente solidariedade de um
ponto de vista ético. O livro também faz nova morada aos seus corpos e afetos como uma estratégia ao
se lançar um olhar na produção de imagens e de como essas imagens podem circular atravessando
tempos e espaços distintos criando mesmo um circuito de possibilidades de memórias compartilhadas,
inscrevendo sobre os corpos texturas passíveis de leituras e, quem sabe, de reescritas.

II.

Os que dizem que “são só palavras” não entendem nada sobre o que palavras realmente são. Palavras
são o que temos de mais real, pois sua circulação autoriza ações, violências, afetos e túmulos.
Vladmir Safatle

A imagem não existe se não no fio dos gestos e das palavras, tanto daqueles que a qualificam e a
constroem, como daqueles que a desqualificam e destroem.
Marie-José Mondzain

Restituir às palavras seus significados. Dar corpo às palavras. Por onde se pode começar a ler um
corpo?
Há palavras, muitas palavras em meio a fragmentos de paisagens, figuras de corpos em meio a uma
grande ansiedade de objetos que emergem aqui e ali ao lado de mais imagens, e corpos-palavras
sobrepostos ou sobrescritos como se fossem imagens cegas que se abrem para a luz por meio de
inscrições sobre os próprios corpos ou em páginas de jornais, pedaços de madeira ou, ainda, sobre
gente aos pedaços esquecida na História, rememoras por relatos de outras gentes da própria terra que
ali permaneceu miúda nesses fragmentos de paisagens como pequenos espaços de memória que aos
poucos compõem, talvez, uma espécie de arquivo-monumento em devoção a um gesto de documentar e
contar histórias.

Inferno Verde é uma instalação realizada pelos artistas Ricardo Burgarelli e Luísa Horta que configura
um trabalho de pesquisa e memória, uma escrita lenta sobre as urgências de um certo tempo e certos
tipos de corpos. Um trabalho que se debruça sobre arquivos – fotos, matérias de jornal, cartas, pinturas,
objetos diversos – e também sobre relatos orais de fatos, lendas e memórias que aos poucos dão algum
contorno a uma parte da história do país no período da Nova República e das gentes que naquela época
viviam.

Vilém Flusser a respeito da escrita nos diz que “quem escreve é um organizador de sinais, um
desenhista, um designer, um semiólogo” (FLUSSER, 2010) e que, ainda, haveria um gesto de inscrição
e sobrescrição:
As inscrições são monumentais, as sobrescrições são documentais. Essa diferença nem sempre
é óbvia. Quando os romanos riscavam as placas de cera com seus buris, tratava-se para eles de
fixar seus conceitos. Eles queriam documentar. E quando os monges copiavam árdua e
cautelosamente uma letra sagrada depois da outra no pergaminho com suas penas de ganso,
tratava-se para eles de devoção, de contemplar a divindade: erguer seu monumento. Mas fica o
sentimento de que teria sido melhor se os romanos tivessem pincelado e os monges, cinzelado.
(FLUSSER, 2010, p.37)

Nesse sentido, Inferno Verde pode ser olhado como um grande texto de inúmeras indexações. Um
panorama aberto para múltiplas leituras organizadas por um desejo cortante de se contar algo, de trazer
à luz relatos e fatos de histórias já esquecidas ou negligenciadas. Somos impelidos a colher os cacos, os
fragmentos, os resíduos daqueles que aos poucos se descobre serem os “desterrados” numa “região
mortífiera”, “victimas da tyrannia cruel” sob “crimes da burguesia”, um “crime social”. Um texto,
portanto, que se constrói na textura de uma instalação artística a partir de objetos diversos navegando
sobre um mesmo oceano.

A segunda década do século XX no Brasil foi um momento de grande instabilidade política no contexto
de revoltas e insurgências como a Revolta Paulista de 1924. Sob o governo autoritário do ex-Presidente
Arthur Bernardes é instaurada a Colônia Penal de Clevelândia do Norte no ano de 1924 na divisa do
que hoje é o estado do Amapá com a Guiana Francesa. Esse foi o destino mortífero, o desterro de
muitos “indesejáveis” aos olhos das autoridades da época, como presos políticos, anarquistas, militares
insurgentes, e também de outros presos “comuns”, pessoas “perigosas”.

Inferno verde era o nome pelo qual os prisioneiros se referiam à Colônia Prisional. A maioria dos
desterrados morreu sob terríveis condições de trabalho forçado, punições por desobediência ou parca
alimentação. De uma das partes da instalação lê-se o que parece ser uma manchete de jornais da época:
“Mais de quinhentos victimas da tyrania ficaram ali para sempre”; “A mortalidade foi colossal.
Encerrando uma página de luto”; “Um desesperado apello á solidariedade internacional”. Essas frases
pairam ao longo da instalação junto a objetos e outros fragmentos tecendo e ao mesmo tempo
destecendo um relato. Mas Inferno Verde é ainda presente. Dos prisioneiros sobreviventes uma leva
permaneceu na região construindo uma vida à margem no limite mesmo da barbárie se pensarmos, por
exemplo, no trabalho dos garimpeiros nas jazidas de ouro no Amapá, ou nas novas vítimas da violência
policial.

Em 1915, Lima Barreto publicaria um conto na primeira edição de Triste fim de Policarpo Quaresma
intitulado Como o “Homem” chegou narrando uma absurda investida conta um homem pacato,
indesejável, suposto louco. O conto mostraria a violência estruturante do Estado, e como homens
obtusos agem de forma perversa.

Já na primeira parte do conto Lima Barreto faz um provocativo panorama do pacato destacamento
composto apenas por um cabo e três soldados:

Vivia tudo em paz; o delegado não aparecia. Se o fazia de mês em mês, de semestre em
semestre, de ano em ano, logo perguntava: houve alguma prisão? Respondiam alvissareiros:
não, doutor; e a fronte do doutor se anuviava, como se sentisse naquele desuso do xadrez a
morte próxima do Estado, da Civilização e do Progresso. (BARRETO, 2010, p.259)
A tranquilidade do destacamento é abalada por ordens advindas da capital Rio de Janeiro: “‒ Doutor,
foi logo dizendo o guarda, temos um louco”. E no que consistia a loucura do sujeito? Vivia nos
confins de Manaus, era pacato, estudioso amador da Matemática e da Astronomia:

Em uma terra inteiramente entregue à chatinagem e à veniaga, Fernando foi tomando fama de
louco, e não era ela sem algum motivo. Certos gestos, certas despreocupações e mesmo outras
manifestações mais palpáveis, pareciam justificar o julgamento comum; entretanto, ele vivia
bem com o pai e cumpria seus deveres razoavelmente. Porém, parentes oficiosos e outros
longínquos aderentes entenderam curá-lo, como se curassem assomos d’alma e anseios de
pensamento. (BARRETO, 2010, p.264)

O homem será preso e transferido para o Rio de Janeiro por meio de uma “masmorra ambulante” num
percurso de um “infinito de quilômetros”. A porta da “prisão” nunca será aberta ao longo do trajeto pois
se julgava que os ares exteriores poderiam fazer mal ao “sujeito”. Desta forma, após quatro anos de
viagem a caravana chega ao seu destino:

Logo que foi chegado, um hábil serralheiro veio abri-lo, pois a fechadura desarranjara-se devido
aos trancos e às intempéries da viagem, e desconhecida à chave competente. Sili determinou
que os médicos examinassem o doente, exame que, mergulhados numa atmosfera de
desinfetantes, foi feito no necrotério público.
Foi este o destino do enfermo pelo qual o delegado Cunsono se interessou com tanta solicitude.
(BARRETO, 2010, p. 278-279)

Lima barreto foi ele próprio um “indesejável” tendo sido internado por duas vezes no Hospício
Nacional. Foi também um anarquista e escritor muito crítico aos desajustes das políticas da Nova
República, às desigualdades sociais e até ao feminicídio. A obra de Lima Barreto é um bom exemplo
das potências de um corpo-amador, vivo, lúcido em desajustes, principalmente nos limites borrados
entre arte e vida e em toda a crítica realizada por ele que permanece ainda bastante atual.

De todos os nós, rasgos e relatos em Inferno Verde há um que se destaca na figura de Sebastião Maia,
“artista plástico, serigrafista, pintor de faixas, escritor, garimpeiro, funcionário público, arquivista e
cuidador de mortos” (BURGARELLI, 2016). Também ele, de certa forma, um desterrado, emigrante
do Maranhão, pintor, estudante de artes em São Paulo no momento de imposição do AI-5 e, depois,
trabalhador no garimpo.

Sebastião Maia é uma espécie de síntese de muitos elementos do conto de Lima Barreto, carrega uma
certa potência para o amador. Ele se dedica à pintura da realidade do garimpo, a construir arquivos
levantando dados e histórias das pessoas de Clevelândia, além de sua atividade de cuidar dos mortos.
Tomou para si tal tarefa de registrar, limpar, velar, enterrar, identificar os corpos despejados em frente
ao cemitério da cidade e informar a família quando possível:

Eles colocavam os cadáveres e não existia uma capela. Não existia um necrotério. Eles
colocavam esses cadáveres lá e eles iam apodrecendo. Eram muitos do garimpo. Muitos
maranhenses. Morriam de assalto, polícia matava, essas coisas que aconteciam, ou então
outras pessoas matavam. Como o cemitério fica no centro, as pessoas da vizinhança
começaram a sentir o mal-cheiro. Tínhamos que correr às pressas, lavar, preparar o corpo.
Eu sentia muita emoção dentro de mim. Trabalhando com essas pessoas. Mas eu não
deixava transparecer não. Só de você pegar e ver que o cara esta lá, moribundo. Quando
você vai ver é lá de Caxias, é lá da Paraíba. Eu montei uma base de dados, com minha
máquina fotográfica, de todos os cadáveres. Eu convivi com todos eles e eu tenho essa
experiência dentro dessa situação de pessoas nesse estado. (BURGARELLI, 2016, p.62-63)

Entre urgências e violências, memória e eficácia em que medida a prática artística poderia se aproximar
à complexa figura de Sebastião Maia? Quais os limites para a arte face a tal brutal realidade de
tragédias que se acumulam? Poderia, quem sabe, o artista velar imagens e criar aberturas para
passagem de luz aos mortos por meios das palavras, das próprias imagens, enunciando seus nomes,
dando contornos as suas existências, enfim, às suas memórias?

III.

O artista vela a imagem dando a ela camadas de significados, metáforas, atando as coisas com nós de
afetos, criando redes, tecendo tramas de um fino e opaco véu de linguagem. O artista cria imagens e
conta histórias mas não vela os mortos. Cria imagens tentando restituir corpo aos mortos. O artista é
solidário pela imagem e, como todos, solitário na morte. Ele desvela a memória não deixando os
mortos solitários. O artista destece o véu expondo corpos-amadores que nos indicam outros jeitos de se
fazer as coisas, que nos ajudam a pensar o corpo hoje na difícil tarefa de se inventar o desconhecido, de
fazer aquilo que ainda não se sabe fazer para que se possa, de fato, dar um salto para mais além. O que
pode um corpo em relação a si mesmo e ao outro? O que podemos com as imagens? Como ficar vivo?
Referências

BARRETO, Lima. Diário do hospício; O cemitério dos vivos. Org. - Augusto Massi e Murilo
Marcondes de Moura. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 257-279.

BURGARELLI, Ricardo Miranda. Um homem que conta histórias é de maior confiança do que um
homem que dá conselhos. 2016. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Minas Gerais,
Escola de Belas Artes

DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes. Trad. - Vera Casa Nova, Márcia Arbex.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

ERRÁZURIZ, Paz; DONOSO, Claudia. La manzana de Adan. Ed. - Juan Andres Piña. Santiago do
Chile: Zona Editorial, 1990.

FLUSSER, Vilém. A escrita – Há futuro para a escrita?; Trad. Murilo Jardelino da Costa.
São Paulo: Annablume, 2010.

FOUCAULT, Michel. O corpo utópico, as heterotopias. Trad. - Salma Tannus Muchail. São Paulo: n-1
Edições, 2013.

MELENDI, Maria Angélica. Corpos ausentes, corpos espetaculares: anotações e esboços sobre arte,
corpo e memória. In: Estratégias da arte numa era de catástrofes. 1ª ed. Rio de Janeiro: Cobogó,
2017.

Meios Eletrônicos

BRUM, Eliane. EU + UM + UM + UM +.
Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2019/05/15/politica/1557921007_146962.html>.
Acesso 26 de setembro de 2019.

Revista Zum.
Busca o meu rosto: os retratos de transexuais de Paz Errázuriz no Chile dos anos 1980
Disponível em: <https://revistazum.com.br/revista-zum-13/busca-o-meu-rosto/>
Acesso em 26 de setembro de 2019.

Mediapart.
Chile 1973-2013, conversations with photographers 3.
Disponível em: <https://blogs.mediapart.fr/miriam-rosen/blog/250913/chile-1973-2013-conversations-
photographers-3>
Acesso em 26 de setembro de 2019.

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