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A obra seis filmes AS OBRAS-PRIMAS as oito
psicanalítica para quem sobre VIAGEM distopias mais
de HITCHCOCK. ama filosofia. NO TEMPO. perturbadoras.

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carta ao leitor capítulo 1

Tempo

abduzido e Espaço
pág. 6

pela
inteligência
Viagens
no Tempo
pág. 8

Destes 50 filmes, meu primeiro foi Contatos Ime-


diatos do Terceiro Grau – que mostra um encontro mar-
cado entre humanos e uma nave-mãe alienígena. Como
ainda era criança, eu passei noites em claro, com medo
de ser abduzido – como acontece com um menininho
na história. Já à luz do dia, o filme despertou em mim
o interesse por ufologia, e pedi à minha mãe que com- Vida
prasse um livro sobre avistamentos, que descobri no Extraterrestre
catálogo do Clube do Livro que ela assinava. pág. 14
Esse novo gosto ainda me levou à série Cosmos. Nos
anos 1980, o astrofísico Carl Sagan abria as portas do
Universo, na TV, com a informação científica disponí-
vel na época, abordando temas como o ciclo de vida
das estrelas, viagens no tempo, a origem do mundo e
– o que mais me interessava – a possibilidade de vida
inteligente fora da Terra.
Agora, pesquisando para este dossiê, aprendi a res-
peito do Método Kodály, que os cientistas de Contatos
Imediatos... adotam para se comunicar com os aliens.
Essa técnica pedagógica foi idealizada por um compo-
sitor húngaro para facilitar o ensino de música para
crianças – e no filme serve para estabelecer uma lin-
guagem comum com os ETs.
Isso é o que filmes inteligentes fazem com a gente.
Abrem a nossa cabeça e nos estimulam a cavar mais
fundo na terra fértil de assuntos incríveis.
Esperamos, com esta revista, provocar o mesmo
efeito, mas no sentido inverso: que nossas revelações
e análises ampliem a sua percepção sobre estas 50 obras.
E assim você possa ver, rever e apreciar estes filmes
em toda a sua dimensão: como o entretenimento de
alto QI que todos eles são.

ed i to r A l e x a n d r e C a r v a l h o

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capítulo 2 capítulo 3 capítulo 4 capítulo 5

mente e CINEMA DE
DISTOPIAS cérebro INovaÇão enigmas
pág. 18 pág . 28 pág. 54 pág. 60

por dentro
da mente
pág . 30

INTELIGÊNCIA
ARTIFICIAL
pág . 34

FILOsofia
em cena
pág . 38

HITCHCOCK E
A PSICANÁLISE
pág . 4 4

DISTÚRBIOS
MENTAIS
pág . 4 8

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Viagens
no Tempo
capítulo 1

Tempo
e Espaço
Vida Extra-
terrestre

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Um americano acorda na Grã-Bretanha medie- sobre a possibilidade de viagens para o passado.
val e se vale da ciência moderna (ou melhor, do século Já os aliens costumam aparecer como seres antro-
19) para impressionar os Cavaleiros da Távola Redon- pomórficos. Mas há belas exceções a essa falta de
da. O conto Um Ianque na Corte do Rei Artur, de 1889, criatividade: em A Chegada, eles são polvos; em Solaris,
escrito por Mark Twain, foi inspiração para o primei- todo um planeta é um cérebro gigante que brinca com
ro filme sobre viagens no tempo, A Connecticut Yankee as nossas memórias.
in King Arthur's Court, de 1921. Nesses quase cem anos, Por tocar em temas do universo da ciência, os bons
deslocamentos para o passado e o futuro surgem de filmes de ficção científica, vira e mexe, exigem mais
modos tão variados nas telas que é difícil falar de um de seus roteiristas. E nos permitem viajar aos extre-
denominador comum. O padrão é que a maioria dá mos da inteligência no cinema – como vamos ver
de ombros para as sérias restrições que a ciência faz neste capítulo.

ilustração: cristina kashima


DOSSIê SUPER 7

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te mpo e espaço
vi ag ens
no temp o

A produção
do filme teve
consultoria
de um Prêmio
Nobel de Física.

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1 INTERESTELAR
Interstellar, 2014

dir eção C h r i s t o p h e r N o l a n rot e iro J o n a t h a n N o l a n , C h r i s t o p h e r N o l a n

p o r que está aqui


continuar sua caça ao gêmeo da Terra. Tudo muito
além da imaginação para se esperar embasamento
Faz científico correto. Mas tem, sim. E num nível jamais
r e pr es en taçõ es visto no cinema.
Para que o enredo fosse o mais próximo da ci-
d e bu racos ência complexa que governa o Universo, Nolan
contratou Kip Thorne, Prêmio Nobel de Física de
n eg ros e
2017, como consultor. A equipe de efeitos especiais
wo r m h o l es f i éi s utilizou equações criadas por Thorne para repre-
sentar um buraco de minhoca como uma esfera – e
à f í si ca . não como um buraco de fato, como os livros de
divulgação científica geralmente mostram, repro-
duzindo um erro conceitual. Tudo isso só vale,
claro, se buracos de minhoca realmente existirem
por aí. Embora a Relatividade Geral considere o
conceito válido, e ele seja bem aceito pela cosmo-
logia moderna, ainda não há evidências de que
esses túneis hipotéticos no espaço-tempo – que
serviriam de atalho para atingir distâncias inima-
O cenário é um futuro próximo – e bem gináveis do Universo – sejam mais que uma teoria.
factível. As mudanças climáticas trouxeram secas Outro acerto do filme foi mostrar como o tem-
que transformaram o planeta num ambiente inós- po passa de maneira diferente para os astronautas
pito, desértico, e onde a sobrevivência depende das quando estão próximos a um buraco negro. A gra-
parcas plantações que ainda vingam. De tempos vidade descomunal nessa região estende o espaço-
em tempos, um tipo de hortaliça não resiste aos tempo – como uma bola de boliche faria num teci-
extremos do clima e desaparece para sempre. Com do esticado. E daí vem o conflito sentimental por
isso, profissões também entram em extinção. O trás de toda a física teórica de Interestelar. Quando
mundo não precisa mais de pilotos hábeis como Cooper parte para as proximidades de um buraco
Cooper (Matthew McConaughey) – a Terra tem negro, o tempo para ele passa muito mais devagar
carência, desesperadora, é de fazendeiros que con- que o de sua filha, Murphy, que ficou na Terra, e
sigam colheitas bem-sucedidas. Mesmo assim, o que vai de menina a adulta (Jessica Chastain) en-
piloto veterano ganha uma missão da Nasa: encon- quanto o pai continua com a mesma idade. A ciên-
trar outro planeta habitável, já que este aqui está cia séria, então, dá lugar à licença poética: mesmo
com os dias contados mesmo. nessa incompatibilidade temporal, os dois tentam
A mesma verossimilhança desse apocalipse am- dar um jeito de se reencontrar. Nem que para isso
biental, cada vez mais presente, Christopher Nolan Cooper tenha de contrariar as leis da física, voltan-
imprimiu a uma parte do filme difícil de prescindir do para casa, e para sua filha amorosa, após ter
da fantasia: a viagem pelo espaço. Acompanhado atravessado o horizonte de eventos – a fronteira
por uma equipe de astronautas-cientistas, Cooper teórica de um buraco negro, a partir da qual nem a
deve levar sua nave até as proximidades de Saturno, luz (muito menos um corpo celeste de carne e osso)
onde vai viajar através de um wormhole, ou buraco é capaz de retornar. Mas nada que estrague a inte-
de minhoca, até uma galáxia distante, onde deve ligência do filme.

Foto: divulgação
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v i ag e n s n o te m p o
t e m p o e es paço

No filme,
como na
Relatividade,
você não
pode mudar
o passado.

2
Todo mundo gosta de De Volta para o Fu- diz ser amiga dele há anos. Tão amiga que,
turo, o clássico moderno sobre um garoto em algum lugar do futuro, os dois já estão
que viaja ao passado e muda sua própria casados. Henry não faz ideia de quem é a
história. Essa aventura tem 96% de críticas moça porque só a conheceria mais tarde,

TE positivas no site Rotten Tomatoes, porém...


tiraria nota baixa em física teórica. Assim
numa futura viagem... ao passado. Então,
o que para ela já tinha acontecido, para

AMAREI
como a maioria dos filmes de viagem no ele ainda era novidade. Complexo, não?
tempo (incluindo Efeito Borboleta, da pág. Ninguém disse que seria fácil.

PARA
12). Isso porque a graça de seus roteiros se Uma narrativa que cumpra com o que a
baseia num erro recorrente: a ideia de que o ciência sabe até agora precisa respeitar o
passado é mutável. Uma obra que obede- seguinte: há uma única linha do tempo com
SEMPRE cesse cegamente à Teoria da Relatividade
mostraria que o passado e o futuro são
toda a história já escrita – tanto o que há
para frente quanto para trás. “Ah, mas um
The Time Traveler ’s inalteráveis. E que a nossa capacidade de viajante do tempo poderia interferir nos
Wife, 2009 transformar a própria história, no fundo, é acontecimentos...” Será? O físico america-
d i reção
uma ilusão. no Kip Thorne (o mesmo que foi consultor
Robert Schwentke Felizmente, esse filme existe. O roman- de Interestelar) lembra que, pela natureza
rotei ro ce Te Amarei para Sempre conta a vida de imutável do tempo, você não poderia voltar
Bruce Joel Rubin Henry (Eric Bana), um homem que, por 60 anos e assassinar a sua avó antes que
conta de um distúrbio genético, viaja no ela desse à luz o seu pai – o que supos-
p o r que está aqui
tempo esporadicamente, repentinamente, tamente impediria que você nascesse.
Eis que um filme sem o menor controle sobre isso – como “Alguma coisa vai segurar sua mão quando
acerta na ciência das quem tem um ataque epilético. Logo no você tentar matar sua avó. O quê? Como?
viagens no tempo. começo do filme, ele topa com uma mulher A resposta, se é que existe uma, está longe
desconhecida (Rachel McAdams), mas que de ser óbvia.”

Fotos: divulgação
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3 CONTRA
O TEMPO

Source Code, 2011

dir eção rot e iro


Duncan Jones Ben Ripley

p or que está aqui

É um thriller
a r r e p i a n t e bas e a d o
e m u n i v e rsos
pa ra l e los.

Colter Stevens (Jake interessante.


Gyllenhaal) precisa salvar O militar não morre
Chicago de uma bomba porque não está lá de
atômica. Ele está a bordo verdade. Ele faz parte de
de um trem que, em oito um projeto que consegue
minutos, vai explodir. E transferir sua mente para
tem de evitar que a cidade a consciência de um pas-
seja o próximo alvo. Sem sageiro desse trem, numa
pistas que o ajudem espécie de viagem no
no início, ele tem como tempo que leva em conta
missão investigar: a) onde a hipótese de realidades
está a bomba; b) quem alternativas. Enquanto sua
é o terrorista. Porém, mente dá habilidades de
embora o capitão esteja soldado a um homem co-
empenhado em sua tarefa mum, o corpo de Stevens
kamikaze, ele não entende está sendo mantido em
muito bem a dinâmica outro lugar, misterioso.
enigmática da sua missão. Esta primeira produção
Aliás, nem o espectador. de grande orçamento
O que logo fica claro é que do diretor Duncan Jones
o prazo não é suficiente. apresenta experimentos
Stevens explode junto que talvez não sejam
com o trem. Mas não tão fantasiosos assim. O
morre. Pelo contrário, logo próprio roteirista do filme,
ressurge no mesmo vagão, Ben Ripley, explicou: “Mais
e no mesmo instante oito e mais, a física moderna
minutos antes que tudo vá está ficando confortável
pelos ares – só que agora com a ideia de universos
com as pistas obtidas nos paralelos. Contra o Tempo
oito minutos anteriores. imagina uma aplicação
É possível E é aí que a coisa fica prática para eles”.
estar em
dois lugares
ao mesmo
tempo?

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v i ag e n s n o te m p o
t e m p o e es paço

Diferente
do efeito
dominó, o
borboleta não
é linear, mas
imprevisível.

4
dir eção E r i c B r e s s ,
J. Mackye Gruber Quem nunca sonhou em voltar ao Lorenz propôs o conceito de Efeito
passado? Nessa fantasia poderíamos Borboleta nos anos 1960 – na tentati-
roteiro J . M a c k y e mudar algum episódio da nossa va de prever mudanças climáticas. Ele
Gruber, Eric Bress história. Então Evan (Ashton Kutcher) descobriu que o clima é um sistema
parece ter tirado a sorte grande. Ele tão sensível a pequenas interferên-
descobre que, ao ler seus antigos cias que é impossível fazer previsão
diários, consegue viajar no tempo, do tempo a longo prazo. A ideia é de
EFEITO de volta à infância, mantendo sua
mentalidade de adulto. Parece a
que o bater de asas de uma borboleta
no Brasil (exemplo dado pelo próprio
BORBOLETA redenção para quem foi abusado Lorenz) produz uma minúscula alte-
The Butterfly Effect, 2004 por um pedófilo e apanhava de um ração no padrão dos ventos, que pode
coleguinha. Mas é nesse ponto que evoluir para mudanças progressivas
o filme se revela um thriller baseado até provocar um tufão no Texas – uma
em conceito científico. Toda vez que causalidade que pode ser aplicada
embarca numa viagem temporal para tanto aos esportes quanto à Bolsa de
p o r que está aqui apagar seus traumas, Evan muda Valores, e que se tornaria um novo
alguma coisa em sua história, o que
é U m a aul a ramo da ciência: a Teoria do Caos.
mexe com o futuro. Cada pequena Parece efeito dominó, só que, em vez
cinematográfica mudança traz uma consequência que de a mudança gerar uma reação em
implica outra... E gente que ele ama cadeia linear, essa teoria descreve
so br e a T eo r i a
acaba se dando mal. reflexos cheios de variáveis imprevi-
d o Caos. O matemático americano Edward síveis por natureza. Como a vida.

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Por que uma comédia de Sessão
da Tarde nesta edição de filmes
inteligentes? Menos preconceito, por
favor. Feitiço do Tempo é brilhante ao

FEITIÇO transmitir a mensagem mais impor-


tante de todas: viva intensamente.

DO TEMPO E faz esse apelo transcendental te


fisgando pelo humor e pela fantasia.
Groundhog Day, 1993 Phil (Bill Murray) é o homem do tempo
de um canal de TV. Todo ano, no dia
d i reção H a r o l d R a m i s
2 de fevereiro, ele precisa ir a uma
rotei ro D a n n y R u b i n , H a r o l d R a m i s
cidadezinha, a contragosto, para uma
p o r que está aqui reportagem sobre uma marmota que
faz previsões sobre o clima. E Phil
Faz metáfora do purgatório com
detesta esse trabalho – o que fica
base na ideia do “eterno retorno”. explícito no modo arrogante como
trata as pessoas. Então acontece a
mágica: quando acorda no dia se-
guinte, ele descobre que é ontem de
novo – é dia 2, toca a mesma música
no despertador, ele tem de fazer a
mesma reportagem chata... E a prisão
temporal se repete, dia após dia. No
começo, Phil se desespera. Tenta até
o suicídio. Mas, depois de um tempo,
ele aprende. Aprende que, se você
está congelado num “hoje” em modo
looping, “é preciso amar as pessoas
como se não houvesse amanhã”
(Renato Russo).
Essa ideia de um homem preso no
mesmo dia começou com um trecho
de Gaia Ciência, de Friedrich Nietzs-
che. A ideia do eterno retorno, para
o filósofo alemão, é de que vivemos
essa mesma vidinha de agora no
passado, e a repetiremos sempre no
futuro, prisioneiros de ciclos repetiti-
vos. Se você gosta dessa existência,
ótimo. Mas, se a encara com o tédio de
Phil diante do roedor caipira, você está
no inferno. Ou quase lá. O “dia eterno”
do personagem se assemelha mais à
visão cristã do purgatório: um lugar de
provações onde o jornalista precisa se
purificar antes de chegar ao paraíso.
“A jornada de Phil é uma parábola
sobre a nossa época materialista, e
incorpora uma visão do crescimento
humano”, carimbou um dos críticos
americanos mais influentes da
história, Roger Ebert. O fato é que
Feitiço do Tempo tem uma analogia
Enredo que é um soco na boca do estômago:
remete a um
trecho de a nossa vida é exatamente assim. Se
Gaia Ciência, você não se mexer e ir atrás dos seus
de Nietzsche.
sonhos, todo dia será o 2 de fevereiro
da maldita marmota.

Fotos: divulgação
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te mpo e espaço
vi da extra-
te rrestre

O Exército
manda uma
tradutora
descobrir
se os aliens
são de paz.

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1 a chegada
Arrival, 2016

dir eção D e n i s V i l l e n e u v e rot e iro E r i c H e i s s e r e r

p o r que está aqui


escreve no ar. Ou desenha: eles formam glifos, que
lembram carimbos circulares com tinta escorrida
é bas ea do n a ou em falta em alguns pontos do desenho. Diante
h i p ót es e d e qu e desses sinais, Louise faz duas descobertas: que a
escrita é independente dos sons dos ETs, o que abre
a pr en der u m a caminho para uma conversa por símbolos; e que
cada mancha ou ausência “de tinta” nos círculos
l í n g ua m o l da
tem um significado, que pode ser um simples “oi”
a sua m e n t e. ou toda uma frase.
Essa sintaxe desconhecida exige um cuidado
maior. Eles entenderiam que uma pergunta é só
uma dúvida que se quer esclarecer? Isso é bastan-
te delicado porque a indagação “Vocês vieram ata-
car a Terra?”, por exemplo, pode soar como uma
afirmação, “Vocês vieram atacar a Terra!” – arris-
cando uma reação hostil.
Só essa questão já rende um mundo de reflexões
sobre os ruídos na comunicação. Mas a grande sa-
cada do filme está relacionada à hipótese de Sapir-
Imagine que, fora da ficção, extraterrestres in- -Whorf – também chamada de relativismo linguís-
vadissem a Terra, estacionassem naves gigantescas tico –, que trata do condicionamento recíproco
nos céus de 12 países e demorassem para comuni- entre a percepção e a linguagem. Essa tese, propos-
car qual sua intenção por aqui. E que uma delas ta em 1940, defende que a nossa língua acaba, de
parasse sobre uma cidade dos EUA. É difícil prever alguma forma, moldando a nossa mente – a manei-
qualquer resposta que não fosse uma ação militar ra como você fala e escreve determina (ou pelo
contra os invasores. menos influencia) o seu modo de pensar, e a sua
Já o filme do canadense Denis Villeneuve é oti- concepção de mundo também.
mista: nessa exata circunstância, antes de partir Os heptapods são seres que não entendem a
para um ataque armado, o Exército convoca uma existência de uma forma linear, pois não enxergam
tradutora, Louise Banks (Amy Adams), para tentar qualquer distinção entre passado, presente e futu-
comunicação com os aliens – entender sua língua ro. Sua escrita, os glifos circulares, reflete essa pers-
e se vieram em paz. É no trabalho, e num drama pectiva. Quando então a linguista americana se
familiar, dessa linguista que o filme mantém seu aprofunda no idioma dos extraterrestres, ela também
foco. E sua originalidade também. passa a enxergar essa “paisagem temporal", na qual
Diferente da maioria dos alienígenas da cultura tudo o que já foi, o que é e o que virá acontecem ao
popular, que têm perfis baseados no corpo humano mesmo tempo.
(com duas pernas, dois braços, cabeça etc.), os de A Esse superpoder será decisivo em sua tentativa
Chegada parecem um desenho distorcido de um de evitar uma guerra entre as nações terráqueas e
polvo alongado, com sete tentáculos multitarefa. os alienígenas bonzinhos. E também para que Lou-
Esses heptapods, como são chamados, soltam gru- ise fique em paz com um trauma – localizado em
nhidos distantes de qualquer compreensão. Mas algum lugar nesse tempo que só ela e os aliens são
seus membros lançam um tipo de vapor preto, que capazes de enxergar.

Foto: divulgação
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3
SOLARIS
Solyaris, 1972
v i da e xtrate r r estr e

dir eção A n d r e i Ta r k o v s k y
rot e iro F. G o r e n s h t e y n ,
A n d r e i Ta r k o v s k y

p or que está aqui

Sua alienígena
nasce de
t e m p o e es paço

fragmentos da
memória humana.

Tarkovsky ganhou o
Grande Prêmio do Júri de
Cannes por esta ficção
científica – considerada
uma resposta da Rússia a
Aliens lutam
contra o apartheid
2001 . E conseguiu fazer um
- no qual eles filme tão filosófico quanto o
são os negros.
de Kubrick. Kris Kelvin é um
psiquiatra que vai ao espa-
ço investigar as mudanças

2
no comportamento de
vivem separados de nós”, diz uma cosmonautas que chegam
mulher entrevistada pela TV. Outra perto de um planeta recém-
cena mostra uma placa à frente de um descoberto – o Solaris, do
estabelecimento na qual se lê: “Apenas título. Um deles cometeu

DISTRITO 9 para uso de humanos”. Sim, o filme é


uma alegoria a respeito de segregação,
suicídio. E é no envolvimen-
to desse médico com uma
District 9, 2009 racismo e xenofobia. E se passa força alienígena enigmática
justamente no país do apartheid – com que o enredo revela toda a
d i reção N e i l l B l o m k a m p aliens no papel dos negros. sua novidade. Aquilo que
Rotei ro Te r r i Ta t c h e l l ,
Neill Blomkamp
O enredo mostra a agonia de um parece ser um oceano
burocrata (Sharlto Copley) que tem cobrindo o corpo celeste
p o r que está aqui contato com um fluido alienígena e co- é uma forma gigantesca
Usa ETs para falar de meça a se transformar, aos poucos, em de inteligência extrater-
um deles. Sua jornada para reverter o restre – capaz de sondar
racismo e xenofobia. processo – encontrar uma “cura-alien” a mente dos humanos e
– o obriga a juntar forças com um dos transformar memórias em
ETs, que pode ter o antídoto. Detalhe: o materializações.
Quase todas as histórias de humano se infectou enquanto cumpria Essas emanações
extraterrestres os descrevem como ordens de despejar os extraterrestres mentais vão provocar o
uma raça superior, capaz de inspirar de seu gueto, de modo a mudá-los para reencontro de Kelvin com
admiração ou medo nos terráqueos. um campo de refugiados mais distante sua esposa – ou com
Este filme inverteu a ordem das coisas. da população. Algo semelhante ao que uma réplica, já que ela
Distrito 9 é o nome de um gueto acontecia na África do Sul antes do está morta há anos. Ele
tomado pela miséria onde alienígenas, governo Mandela, quando, confinados sabe, mas releva. Vê que a
tão violentos quanto subnutridos, são em “bantustões”, os negros era vul- materialização alienígena,
mantidos pelo governo da África do Sul. neráveis a remoções constantes, num além de amorosa, tem
(A escolha do país não é gratuita, como vaivém de moradias que tinha sempre o qualidades morais e sofre
você logo vai perceber.) “Manter todos objetivo de isolá-los ainda mais – ou de com a falta de lembranças
eles aqui é caro, e podiam investir em tirá-los de um terreno que pudesse ter autobiográficas – que só a
outras coisas... mas pelo menos eles valor imobiliário para a minoria branca. esposa original poderia ter.

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4
for Extraterrestrial Intelligence),
projeto da vida real que analisa
emissões de ondas eletromag-
néticas vindas do espaço, à
CONTATO espera de detectar tentativas
Contact, 1997 de contato de alguma civilização
extraterrestre. Quando ela recebe
dir eção R o b e r t Z e m e c k i s uma mensagem contendo uma
rot e iro J a m e s V. H a r t , sequência de números primos,
Michael Gondenberg
emitida da estrela Vega – a 25
p or que está aqui
anos-luz do nosso sistema solar
–, a notícia agita o mundo: sim,
Transforma existe vida inteligente lá fora! E os
um contato ETs querem um encontro com o
extraterrestre pessoal daqui – tanto que a men-
sagem já traz um esquema para a
numa reflexão
construção de uma espaçonave
sobre a fé. com tecnologia inimaginável para
este mundo. Mas Contato não
é uma ficção científica juvenil,
baseada em ação. Seu conflito
está no debate entre ciência e o
dogma religioso. Ellie quer ser a
astronauta a arriscar a vida nessa
viagem imprevisível, mas seu
ateísmo vira um obstáculo – ri-
vais defendem que um embaixa-
dor terráqueo precisa representar
a maioria da população, que
acredita em Deus.
Estamos sozinhos no Univer- Ao finalmente conseguir um
so? A resposta de Carl Sagan meio de embarcar, a astrônoma
era: “isso seria um tremendo tem uma experiência improvável
desperdício de espaço”. Este em seu contato imediato, se-
filme, baseado em um livro do melhante à dos religiosos diante
Um
interlocutor astrônomo, trata de um de seus de uma aparição – e aí ninguém
da Terra principais campos de interesse: a na Terra quer acreditar nela. Sua
no espaço
precisa crer procura de vida extraterrestre. conexão é tão transcendental que
em Deus? Ellie Arroway (Jodie Foster) não tem como ser descrita em
é uma cientista da Seti (Search linguagem científica.

5
Depois que vê OVNIs durante extraterrestre. O terceiro, uma frase de cinco notas é
um blecaute, Roy (Richard fazer contato direto com um respondida pela nave-mãe
Dreyfuss) começa a se sentir ET. Na noite desse encontro, com variações de registro, de
atraído para uma região iso- os cientistas usam o Método oitavas e de ritmo – como se
CONTATOS lada nos EUA – sem entender Kodály de pedagogia musical os aliens estivessem nos en-

IMEDIATOS
por quê. Mas há uma razão. É para se comunicar. O que sinando um vocabulário tonal,
lá que o Exército prepara uma começa com a repetição de uma língua em comum.
DO TERCEIRO reunião com formas de vida
alienígena. A classificação
Fenômeno pop instantâ-
neo, Contatos Imediatos... foi
GRAU em graus dessas interações p or que está aqui a obra que estabeleceu mar-
Close Encounters of foi criada em 1972 pelo É o melhor cas registradas de Spielberg:
ufologista J. Allen Hynek. O estão lá a criança perdida, as
the Third Kind, 1977 filme a
primeiro grau seria ver um autoridades pouco confiáveis,
d i reção & rotei ro disco voador. O segundo, ter respeito de o indivíduo em busca de um
Steven Spielberg evidência física de uma visita ufologia. sentido para a vida.

Fotos: divulgação
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capítulo 2

DISTOPIAS

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Por que os filmes que tratam do futuro raras E vamos combinar: desde que o cinema nasceu,
vezes mostram sociedades humanistas, despoluídas, no fim do século 19, a história tem sido pródiga
pacíficas e que primam pela igualdade? Já repa- em matéria-prima para distopias. O nazismo foi a
rou? Na ficção científica, o pessimismo prevalece. inspiração de 1984, de George Orwell; o totalitaris-
Uma resposta possível é que a utopia é o desejo mo inspirou Laranja Mecânica, o livro de Anthony
de todos, mas... não tem muita graça. O cinema Burgess... Perspectivas distópicas têm servido de
depende de conflito, então nada melhor que colo- inspiração para alguns dos filmes mais inteligen-
car os personagens num tempo em que a barbárie tes de todos os tempos. E há o inverso também:
foi instaurada, a tecnologia joga contra o ser hu- O Show de Truman acabou dando ideias para a
mano e a natureza não passa de uma nostalgia. vida real. Confira a partir da próxima página.

ilustração: cristina kashima


DOSSIê SUPER 19

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di stopias

Uma
refugiada
grávida
pode ser a
salvação de
um planeta
sem crianças.

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1 FILHOS DA
ESPERANÇA
Children of Men, 2006

direÇão & roteiro A l f o n s o C u a r ó n

P O R QUE ESTÁ AQUI


te thriller futurista, tão distante quanto possível do
personagem épico que a aventura à sua frente exi-
r e pr es en ta , co m ge: surge como um funcionário público que, no
u m a pa n d em i a d e passado, foi ativista político, um idealista, mas que
agora afoga sua frustração no estupor alcoólico.
i n f e rt i l i da de, Quando enfim revê a ex-esposa (Julianne Moore)
– que persiste na militância, liderando um movi-
o d es es pero de
mento de resistência antigoverno –, ele se envolve,
u m a so c i eda de de princípio a contragosto, em uma missão de ris-
co: ajudar uma refugiada africana a atravessar fron-
o p r i m i da . teiras. Mas por que – um cínico como ele – arris-
caria o pescoço por essa imigrante específica,
quando há milhares fugindo da perseguição e do
cativeiro? A resposta envolve o aspecto distópico
principal do enredo – fantasioso, no caso, mas que
reflete a preocupação mundial com a superpopu-
lação: no futuro do filme, as mulheres se tornam,
todas, inférteis, e o último indivíduo que nasceu
tinha 18 anos antes de ser assassinado. Não requer
muita matemática para concluir: a raça humana
DISTOPIA É A DESCRIÇÃO de uma sociedade ima- está a poucas décadas de sua finitude.
ginária em que tudo está organizado de forma Mas eis que... não se sabe por qual milagre, a
opressiva, totalitária ou assustadora. Filmes que refugiada protegida por Theo está grávida – de oi-
fazem previsões catastróficas, ou simplesmente to meses. É a esperança do título brasileiro: de que
muito pessimistas, do futuro da humanidade têm a humanidade não seja extinta. E é também a opor-
formado um subgênero dentro do campo da ficção tunidade de Theo se reencontrar. De ter em si, uma
científica. É nesse universo que Filhos da Esperança vez mais, o comprometimento de uma ação guiada
se insere. Lançado em 2006, vale lembrar, o filme pela moral – uma redenção.
é ambientado na Inglaterra de 2027 (estamos che- Alfonso Cuarón não deixa clara a razão dessa
gando lá!), um lugar afetado pelas mudanças climá- pandemia de infertilidade. É a espécie rara de ar-
ticas, ataques terroristas e divisões sociais. Por um tista que não gosta de explicar tudo ao espectador:
regime opressor também, que faz campanha para “Há um tipo de cinema que eu detesto, que vive de
que a população denuncie imigrantes ilegais às au- exposição e explanações”, disse o mexicano em uma
toridades, para que sejam presos – trancados em entrevista à época do lançamento do filme. “Esse
jaulas – e mandados de volta às condições terríveis cinema tornou-se um meio para leitores preguiço-
de seus países de origem. Algo que às vezes signi- sos e é refém da narrativa. Eu prefiro a narrativa
fica uma condenação à morte. como refém do cinema.” Já o filósofo Slavoj Žižek,
Tudo isso era plausível, e talvez já existisse em um especialista em cultura pop, captura um senti-
certo grau, 14 anos atrás, quando o filme chegou às do metafórico para o fenômeno. Segundo ele, o
telas. Mas impressiona como algumas de suas pre- filme é a comunicação de um desespero paralisan-
visões se confirmam tão cedo. te diante das políticas mais anti-humanistas: “a
Theo (Clive Owen) é um herói improvável nes- infertilidade é tanto biológica quanto espiritual”.

Foto: divulgação
DOSSIê SUPER 21

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d i stop i as

Macacos
independentes
da tutela humana.
Para nós, é o
começo do fim.

2 Se você soubesse que chimpanzés


estariam prestes a tomar o planeta da
gente, você torceria pelos macacos? Pro-
vavelmente sim, se sua resposta se basear
identifiquem com um personagem que se
sabe excepcional em algum nível, mas que
se ressente de não ter a individualidade
reconhecida.

PLANETA neste filme. Tendo como referência o


clássico distópico O Planeta dos Macacos
Vale lembrar que não é o fato de ter
sido “humanizado” que provoca confusão

DOS (1968), esta produção conta o que acon-


teceu antes de os chimpanzés dominarem
ao seu redor. O contexto desse entorno é
que se mostra inaceitável – para não dizer

MACACOS: o mundo. E o protagonista aqui não é


humano, mas o macaco – o superdotado
hediondo. No “santuário” de macacos,
Caesar sofre violência constante dos

A ORIGEM
Caesar (Andy Serkis, o ator que é rei no cuidadores e dos outros animais. A única
uso da técnica de captura de movimento). reação possível é se revoltar. E a rebelião
Rise of the Planet Tratado por um cientista (James de Caesar será o estopim que pode levar
of the Apes, 2011 Franco) como se fosse uma criança ao final da hegemonia humana na Terra.
humana, Caesar tem sua inteligência Planeta dos Macacos: A Origem é um
d i reção anabolizada por uma droga experimental, belo drama familiar, embora predominem
Rupert Wyatt que tem como efeito inesperado bombar o suspense e a ação. É, além disso, muito
rotei ro
a cognição mental e emocional do ma- sombrio, tem um clima de juízo final e de
Rick Jaffa, Amanda Silver
caco. E isso o leva à frustração de não se descontinuidade da vida como ela é. Des-
p o r que está aqui encaixar – nem entre os humanos, nem taque para a linda – e aterrorizante – cena
entre os primatas. Seu comportamento da chuva de folhas numa rua residencial,
Explica uma coisa
incompreendido faz com que acabe preso. provocada por um tsunâmi de macacos em
que a ciência já sabe: E é quando mais empatizamos com ele: disparada pela copa das árvores. A cena
#somostodosmacacos. compreendemos suas frustrações, seu empresta um quê de Stanley Kubrick a
medo quando é tirado de casa e jogado esta produção, como se O Iluminado en-
numa jaula, ao lado de feras que não têm contrasse Frankenstein – outra fábula de
seu QI. Não é difícil que adolescentes se uma criatura revoltada contra seu criador.

Fotos: divulgação
22

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3 O SHOW
DE TRUMAN

T h e Tr u m a n S h o w , 1 9 9 8

dir eção rot e iro


P e te r We i r Andrew Niccol

p or que está aqui

A n t ec i p ou o B i g
B rot h e r e a p e r da
d e p r i vac i dad e na
i n t e r n e t.

Truman Burbank (Jim é este no qual nossos


Carrey) não é uma cele- dados são obtidos na ma-
bridade. Pelo menos, não landragem (ou alguém lê
na vidinha que ele acredita os termos de concordância
que seja o mundo real. do Facebook?) para depois
Ainda assim, o planeta serem vendidos pelos
inteiro sabe tudo sobre gigantes da internet? Há
ele. Porque a sua vida é alguém do lado de lá que
uma grande mentira, e sabe tudo sobre a nossa
esse vendedor de seguros vida – ainda que não seja-
é a estrela do maior mos figuras públicas.
reality-show de todos A estreia do filme
os tempos. Desde que aconteceu meses antes de
nasceu, sua existência é a produtora holandesa En-
filmada 24 horas por dia, demol criar o primeiro Big
seus amigos e parentes Brother (a Globo compra-
são atores interpretando, ria os direitos em seguida).
e a cidade onde mora é o Desde o lançamento, este
maior estúdio já constru- drama com pinta de comé-
ído – “a única edificação dia causou tanto impacto
visível do espaço além da que virou tema de estudos
Muralha da China”. Até que mundo afora. A ideia já
uma parte da iluminação parece tão verossímil que
desse set cai no meio da pesquisadores do Instituto
rua – vindo do que Truman de Psiquiatria de Londres
julga ser o céu. E ele descreveram um distúrbio
começa a desconfiar. mental que chamaram de
A reflexão é: até onde “síndrome de Truman”: os
vão os limites da mídia de doentes acreditam que vi-
entretenimento? E, num vem num filme, enganados
contexto atual, que mundo pelos outros “atores”.
A vida como
reality-show:
um tema mais
atual que nunca.

DOSSIê SUPER 23

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O filme levou
a uma onda
de selvageria
na Inglaterra.
d i stop i as

4 dir eção & roteiro


Stanley Kubrick Não eram nazistas, mas soldados
americanos os que espancaram e
estupraram a esposa de Anthony
Burgess na 2ª Guerra Mundial. O trau-
comete a transgressão ou quem a
reprime.
Décadas antes da selvageria es-
tilizada de Tarantino, a ultraviolência
ma inspirou o escritor a criar o perso- aqui é apresentada com um sex-

LARANJA nagem Alex DeLarge, um adolescente


que, num futuro indeterminado, sai
-appeal chocante. Em uma cena de
estupro, Alex canta e dança “Singin’
MECÂNICA com uma gangue para barbarizar
quem estiver pela frente – e que
in the Rain” (do musical Cantando
na Chuva) enquanto surra um idoso
A Clockwork Orange, 1971
depois sofre uma lavagem cerebral e arranca a roupa da esposa dele.
do Estado, quase tão feroz quanto Depois mata outra mulher com uma
seus crimes. Tudo para que ele vire escultura de pênis gigante.
p o r que está aqui um cidadão de bem, inofensivo. Só que tanto estilo acabou levan-
quest i o n a : No filme, baseado no livro, a do delinquentes da época a cometer
intenção é mostrar o conflito entre crimes inspirados no filme – uma
no esta do livre-arbítrio e controle estatal. As holandesa foi violentada na Inglaterra
ações dessas autoridades lembram
auto r i tá r i o, por um bando que cantava “Singin’ in
projetos de internação compulsória the Rain”. A coisa saiu do controle e
que m é p i o r , o de drogados e a remoção em massa Stanley Kubrick, num gesto inédito,
de moradores de rua – episódios decidiu pela autocensura: proibiu
agr esso r ou
marcados pela brutalidade. A questão a exibição de Laranja Mecânica na
o r e pr esso r ? levantada é sobre quem é pior: o que Inglaterra enquanto vivesse.

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5
Vale a pena sacrificarmos tanto a
privacidade individual quanto a ideia
de livre-arbítrio em prol de uma
suposta segurança contra o crime?

MINORITY REPORT Muita gente acha que sim. É essa


a reflexão por trás deste enredo

– A NOVA LEI futurista, adaptado de uma história


do autor de ficção científica Philip K.
Minority Report, 2002 Dick. Uma ponderação que vem em-
balada numa das experiências mais
d i reção S t e v e n S p i e l b e r g
radicais de Spielberg com o uso de
rotei ro S c o t t F r a n k , J o n C o h e n
efeitos especiais. A tecnologia aqui
p o r que está aqui está tanto a serviço de impressionar
o espectador quanto retratar as ten-
Faz refletir sobre a resposta
dências de um futuro crível – ainda
à criminalidade num mundo que tenha tanto de distopia.
em que a Justiça é falível. Para chegar lá, o diretor se
preparou: três anos antes das
filmagens, ele reuniu um time de 16
especialistas em tendências para o
futuro. A missão: prever como será
a vida em 2054. A equipe incluiu
Shaun Jones, diretor da Agência de
Projetos de Pesquisas Avançadas de
Defesa dos Estados Unidos – além
de experts em urbanismo, carros,
realidade virtual... e até o fundador
da revista Wired. Deu tão certo que,
vira e mexe, você lê sobre novas
tecnologias que já estavam no
filme – como a interface em que o
policial John Anderton (Tom Cruise)
navega por várias telas só mexendo
as mãos, lançada em 2012 pela
Oblong Industries, e também os
carros autônomos, a publicidade
personalizada e as residências com
comandos acionados por voz.
Na trama, uma unidade policial
de Washington, DC, acaba com os
roubos e homicídios graças a um
programa chamado Precrime: viden-
tes, conhecidas como Precogs (uma
abreviação para “pré-cognitivo”),
dão detalhes de um assassinato que
ainda vai acontecer, e o acusado
é caçado e recebe voz de prisão,
mesmo sem ter feito nada... ainda. O
sistema é considerado infalível, pelo
menos até o dia em que aponta o
dedo para o próprio líder dessa tropa
de elite (o personagem de Cruise).
Começa aí a parte da história que, em
O medo do
crime faz meio aos cenários futuristas, combi-
nascer um na duas tradições do gênero policial:
tipo inédito
de "prisão a de filme de fuga e perseguição com
preventiva". a do “homem errado”, o inocente
que se vê acusado pela Justiça.

Fotos: divulgação
DOSSIê SUPER 25

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7
expresso
do amanhã
d i stop i as

Snowpiercer, 2013

dir eção B o n g J o o n H o
rot e iro K e l l y M a s t e r s o n ,
Bong Joon Ho

p or que está aqui

Usa a divisão de
classes num trem
pós-apocalíptico
para falar de
desigualdade.

Um escolhido foi o primeiro filme em


escapa de sua inglês de Bong Joon Ho,
prisão mental
e vai encarar criador de Parasita, o grande
a realidade. vencedor do Oscar 2020. E
parte de uma premissa até

6
utópica: as nações desen-
volvidas concordariam que o
de pilha para máquinas tão inteligentes aquecimento global está fora
quanto perversas. Vale a pena acordar de controle e tomariam pro-
para esse futuro distópico? Ou é pre- vidências. Mas é a distopia

MATRIX
ferível o conforto da ilusão? O hacker que assume a partir daí.
Neo (Keanu Reeves) ganha a oportu- A ação conjunta é dispersar
The Matrix, 1999 nidade de conhecer o mundo real. E uma substância de resfria-
um grupo de resistência à máquina o mento artificial nas camadas
d i reção & rotei ro liberta das baterias da Matrix para que superiores da atmosfera,
I r m ã o s Wa c h o w s k i ele seja o novo líder da rebelião. para derrubar a temperatura.
Há tempos a filosofia investiga o Só que não dá certo: isso cria
p o r que está aqui
trunfo do argumento desta aventura uma Era do Gelo no planeta,
Usa parábola de cibernética: afinal, nossa interpretação extinguindo toda a vida.
Platão para falar do de tudo aquilo que passa pelos nossos Ou quase toda. Os únicos
risco das máquinas sentidos é de fato a realidade? Ou sobreviventes estão a bordo
existe uma realidade outra que não de uma espécie de Arca de
inteligentes. apreendemos? Noé sobre trilhos – um trem
Como explica o espanhol Juan An- que atravessa as superfícies
tonio Rivera, em O que Sócrates Diria geladas sem nunca parar
a Woody Allen?, Matrix tem raízes no (senão ele congela).
mito da caverna de Platão. Nessa ale- Mas há um sistema de
O filme dos irmãos Wachowski (agora goria, o filósofo pede que imaginemos classes: nos vagões de trás,
irmãs – são transexuais) nos deixa de uma caverna onde vivem pessoas que as pessoas são mantidas em
orelha em pé diante de uma questão nasceram e cresceram ali, acorrentadas condições sub-humanas, se
presente: até que ponto a inteligência e obrigadas a olhar a vida inteira para alimentando com uma ração
artificial pode colocar a humanidade em sombras na parede. Desde sempre, gelatinosa à base de insetos.
risco? Matrix é o nome de uma fábrica os prisioneiros julgam que o mundo Já a frente do trem é o mun-
de sonhos, uma ilusão plantada na se resume àquelas sombras. Até que do desenvolvido: escola boa,
mente dos seres humanos e que imita um “escolhido” – como Neo – escapa muita festa e até sushibar.
a vida comum. Enquanto isso, o mundo e descobre o que existe fora daquele Curtis (Chris Evans) é o
de verdade, esse sim, parece pesadelo: buraco. Essa base platônica coloca rebelde que vai liderar uma
a humanidade está escravizada e Matrix acima de 90% dos enredos de luta de classes em direção
inconsciente, nossa energia servindo ficção científica. aos vagões de luxo.

Fotos: divulgação
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8 FAHRENHEIT
451

Fa h r e n h e i t 4 5 1 , 1 9 6 6

dir eção F r a n ç o i s rot e iro J e a n - L o u i s R i c h a r d ,


Tr u f f a u t F r a n ç o i s Tr u f f a u t

p or que está aqui

M ost ra os e f e i tos
da d i ss e mi n ação
da bu r r i c e – um
p ro b l em a d os
n ossos t e mp os.

Realizado mais de até que o conflito se


50 anos antes do novo instaura na figura de outra
obscurantismo de terra- mulher: é uma subversiva.
planistas e movimentos Clarisse (também Christie,
antivacina, este filme faz que aqui assume dois
imaginar como seria se papéis) atrai a atenção de
uma visão política contrá- Montag e o faz experi-
ria ao conhecimento e à mentar a droga proibida:
cultura predominasse num um livro. Isso vira de
país totalitário. cabeça para baixo toda a
Com base na obra ho- percepção de mundo do
mônima de Ray Bradbury, policial – que passa de
lançada 13 anos antes homem da lei à condição
do filme, Fahrenheit 451 de fora da lei.
mostra uma sociedade Em seu primeiro
condicionada pelas ima- filme colorido, Truffaut
gens da TV estatal, e onde dá sentido a cada uso da
o gosto por literatura, jor- cor, com ênfase no ver-
nais e revistas é delito sem melho e laranja rascantes,
perdão. Crime mesmo. lembrando a ameaça do
O protagonista, Montag fogo. As cores só ficam
(Oskar Werner), é um suaves na “floresta dos
bombeiro-policial que homens-livros”, onde
queima livros encontrados leitores exilados criam
nas mãos dos deliquentes uma sociedade alternativa
que insistem na liberdade com espírito poético: cada
de ser leitores. E sua morador da comunidade é
esposa (Julie Christie) é ci- responsável pela memória
dadã exemplar: passa o dia de uma obra literária,
anestesiada com pílulas e decorando um livro inteiro
hipnotizada pela TV. de cabeça, só para depois
Como
seria uma A rotina profissional do poder compartilhar – e
sociedade na agente segue previsível torná-lo perpétuo.
qual os livros
(todos) são
proibidos?

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por dentro
da mente

INTELIGÊNCIA
ARTIFICIAL
capítulo 3

Filosofia
em cena

mente e
HITCHCOCK E
A PSICANÁLISE

cérebro DISTÚRBIOS
MENTAIS

28

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Disciplina que estuda os processos thriller psicológico tão impressionante quan-
mentais do ser humano, a psicologia é con- to Psicose seria nos anos 1960. E, por falar em
temporânea do cinema. Emergiu na segunda Hitchcock, o inglês consolidou seu status de
metade do século 19, e dois acontecimentos mestre do suspense com produções calcadas
marcaram sua fundação: o livro Princípios de na psicanálise freudiana – como você vai ver
Psicologia Fisiológica, de 1873, e o primeiro neste capítulo. Hoje, os diretores recorrem a
laboratório de psicologia, de 1879, obras do efeitos de estúdio para colocar o espectador
médico alemão Wilhelm Wundt. Então não é dentro da mente dos personagens, como na
de se estranhar que os filmes, criados menos animação tão fofa quanto filosófica que é
de duas décadas depois, logo se interessas- Divertida Mente. Este capítulo é justamente
sem em investigar os mistérios da mente. sobre isso: os altos voos das atividades men-
Em 1920, O Gabinete do Dr. Caligari já era um tais. Mas também seus abismos.

ilustração: cristina kashima


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me nt e e cérebro
p or dentro
da mente

O filme ainda ensina


como as memórias são
fixadas pelas emoções.

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1 DIVERTIDA
MENTE
Inside Out, 2015

direção P e t e D o c t e r roteiro M e g L e Fa u v e , J o s h C o o l e y , P e t e D o c t e r

P O R QUE ESTÁ AQUI


que a incomoda, é Raiva quem assume o comando.
t ra n sfo r m a O conflito surge quando a família dela precisa
se mudar de Minnesota para São Francisco, uma
ca da em o ção cidade muito maior. Essa novidade vai afastá-la dos
n u m p erso n ag e m amigos, e ela terá de frequentar outra escola. Para
piorar, a casa nova é meio detonada, e os pais estão
- pa ra m ost ra r ocupados demais com a mudança. Eis então que
a fo r m ação da Tristeza – que até aí vivia meio sem função na sala
de controle – começa a mexer no painel. E isso
p e rso n a l i da de. desespera as outras emoções, que nunca tinham
visto Riley triste por muito tempo. A intervenção
mexe principalmente com seu oposto – Alegria.
Quando esta começa uma briga com a colega deprê,
as duas são sugadas acidentalmente para um espa-
ço mental distante da sala de controle. E isso é
terrível para Riley: como fica a cabeça de uma pré-
-adolescente na qual só há medo, raiva e nojo para
lidar com as situações?
Foram as variações de humor de sua filha Apesar de ser uma animação, com estética in-
adolescente que inspiraram Pete Docter a criar es- fantil, o filme é repleto de analogias que exigem
ta animação para o estúdio Pixar. Ele imaginou maturidade do espectador. Exemplo: quando crian-
como essa confusão de sentimentos, comum na ça, Riley tinha um amigo imaginário, feito de algo-
idade dela, podia ser apresentada de maneira ale- dão-doce e tromba de elefante. O momento em que
górica. E foi assim que nasceram cinco personagens ele começa a morrer diante dos nossos olhos tem
representando emoções distintas: Alegria (dublada uma explicação que se encaixa na aventura – o bicho
pela comediante Amy Poehler) é uma garota que caiu por acidente numa espécie de aterro sanitário
não para quieta e está sempre de bom humor; já da mente, que evapora tudo o que está por lá. Mas
Tristeza (Phyllis Smith) é uma baixinha melancóli- seu apagamento possui outra lógica: meninas de 11
ca, adequadamente azul – já que blue também é um anos não têm mais amigos imaginários. Na mente
adjetivo que significa “triste”. Completam esse de Riley, aquela é uma recordação condenada à
quinteto o Medo, um sujeito com síndrome do pâ- morte.
nico, Raiva, que é um baixinho esquentado, e Nojo, Outro achado do roteiro é a mudança da percep-
uma patricinha que torce o nariz para tudo. Esse ção de Alegria quanto ao papel de Tristeza. Esse
grupo trabalha todos os dias numa espécie de sala maior equilíbrio entre elas faz nascer o que cha-
de controle, localizada dentro da mente de Riley, mamos de sentimento “agridoce", metade alegre,
uma menina de 11 anos. É de lá que os personagens metade triste. Uma emoção essencial em seu rumo
administram as maneiras como a garota responde à vida adulta.
aos estímulos do mundo. Por exemplo: se ela des- Mais do que uma aventura engraçada e emocio-
cobre que a pizzaria da rua só tem redondas com nante, Divertida Mente é uma jornada de amadure-
cobertura de brócolis, Nojo entra em ação, apertan- cimento – retrato preciso do instante em que tro-
do os botões de um painel. Quando o pai insiste camos a alegria incomplexa do começo da vida por
em perguntar sobre seu dia na escola, um assunto um mosaico sentimental, tantas vezes lancinante.

Foto: divulgação
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p or d e n tro da m e n te
m e n t e e cé re b ro

Nada é
previsível
no caos
aleatório do
inconsciente.

2 Dom Cobb (Leonardo DiCaprio) é o


melhor do mundo num tipo inédito de
espionagem empresarial: envolve infil-
Há ainda dois fatores que complicam
tudo, e parecem interligados. Sua esposa
morta (Marion Cotillard) surge em seus

A ORIGEM trar-se na mente de executivos enquanto


eles dormem, para descobrir – ou roubar
sonhos, desviando a atenção dele. E cada
movimento do grupo acaba tendo uma
Inception, 2010 – segredos valiosos para a concorrência. reação imediata, o que torna evidente
A atividade é de risco, mas nunca tão que há um inimigo que sabe dos seus
d i reção & roteiro
Christopher Nolan
perigosa quanto a missão que ele agora planos de sabotagem.
se vê forçado a aceitar. Em vez de extrair Mais inteligente ainda que o argu-
P OR QUE ESTÁ AQU I pensamentos – sua operação padrão –, mento desse thriller é a maneira como
A aventura se passa ele deve plantar uma ideia na mente do Nolan apresenta as atividades de Cobb. O
rival do seu cliente: uma falsa impressão roteiro é tão labiríntico quanto o nosso in-
num sonho dentro que fará com que a vítima decida arruinar consciente: as ações se dão em camadas
de um sonho, e de o próprio negócio. E isso não pode ser de sonhos – são cinco narrativas parale-
outro, e de outro... feito com algum tipo de hipnose. Cobb las em velocidades temporais diferentes.
e sua equipe também precisam estar O tempo do sonho demora mais que o da
sonhando para interagir com seus alvos. vigília e, à medida que os personagens se
Daí o risco maior: não há ambiente mais deslocam para sonhos dentro de sonhos,
imprevisível que o nosso inconsciente. a coisa fica mais radical: um segundo aqui
Em seu livro A Interpretação dos Sonhos, fora pode levar uma vida inteira dentro da
Sigmund Freud já dizia que, no oceano mente. Os personagens correm o risco de
escuro do inconsciente, lembranças da envelhecer nesse universo aleatório.
nossa vida podem surgir deformadas e À ficção com os dois pés firmados na
ameaçadoras, e que, no sonho, senti- neurociência, A Origem soma um quebra-
mentos que preferimos manter ocultos cabeça que demanda concentração total
encontram um meio de expressão. E “as do espectador – ou, quem sabe, assistir
leis da lógica ficam suspensas”. ao filme mais de uma vez.

32

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3
cerebral no procedimento?”. E o
médico responde: “Tecnicamente,
a operação é um dano cerebral,
mas do tipo que você tem numa
Brilho noite de bebedeira”. O paciente é
convencido. Só que bate um arre-
Eterno pendimento no meio da operação,
de uma e sua mente entra num jogo de
esconde-esconde neurológico,
Mente sem tentando salvar o que resta das

Lembranças
memórias românticas.
Essa reviravolta pode ser mais
Eternal Sunshine que “a vitória do amor”. Pode ser
of the Spotless autopreservação também. Apagar
Mind, 2004 uma recordação implica aniquilar
um pedaço da sua própria iden-
d i reção M i c h e l G o n d r y tidade – já que somos feitos das
rotei ro C h a r l i e K a u f m a n
nossas memórias. Numa cena, Joel
P OR QUE ESTÁ AQUI diz não se lembrar de nenhuma si-
tuação da vida em que a namorada
Mostra que
não estivesse lá. Assim como ve-
apagar um trauma mos em Divertida Mente, eliminar
também é amputar o sofrimento é também sabotar a
uma parte da alegria, pois há uma conexão entre
todos os momentos.
identidade. Brilho Eterno... ainda pode ter
antecipado um achado científico.
A neurocientista Sheena Josselyn,
da Universidade de Toronto,
apresentou evidências de que é
possível eliminar uma memória
Joel (Jim Carrey) descobre que específica em ratos, sem afetar o
sua namorada, Clementine (Kate restante das recordações do bicho.
Winslet), pagou para uma clínica Seu laboratório identificou em
futurista – a Lacuna Inc. – apagar quais células cerebrais está aloca-
de sua cabeça todas as memórias da essa memória, e então diminuiu
que ela tinha dele. Indignado, ele a atividade delas por meio de uma Charlie Kaufman
mistura psicologia
dá o troco: quer essa amnésia toxina. A ideia é aplicar em huma- e surrealismo em
parcial também. Na clínica, Joel nos no futuro – com o objetivo de seus roteiros.
pergunta: “Há algum risco de dano tratar estresse pós-traumático.

4
Um professor de filosofia maneira como o papo-cabeça baseado no fenômeno dos so-
fala com o protagonista do filme surge na tela. nhos lúcidos, e a clareza mental
(Wiley Wiggins), que nunca Essa sequência de diálogos do personagem sobre a ilusão
é nomeado: “Recuso tomar se passa dentro de um sonho das interações vai lhe dando
WAKING o existencialismo como uma
moda francesa porque ele tem
do protagonista – que sabe
que está sonhando. O enredo é
um despertar da consciência –
dentro do caos do inconsciente.
LIFE algo a nos oferecer. Receio que Outra novidade: este foi o
Waking Life, 2001 estejamos perdendo a virtude primeiro filme em rotoscopia
P OR QUE ESTÁ AQU I
de viver apaixonadamente”. digital. As animações foram
d i reção & rotei ro
Esse exemplo dá o tom de Wa- O fenômeno feitas em cima das filmagens
Richard Linklater
king Life: o diálogo é elemento dos sonhos com os atores reais. O resulta-
principal da ação. Além da do é um desenho que repete a
lúcidos é o
filosofia de Sartre, discute-se fisionomia dos artistas, mas em
suicídio, evolução, as relações cenário de versões coloridas e distorcidas
humanas... A diferença aqui é a toda a ação. – assim como num sonho.

Fotos: divulgação
DOSSIê SUPER 33

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me nt e e cérebro
I NTEL IGÊNC IA
ARTIFICIAL

Ela dá um
passo além
da relação
com boneca
inflável.

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1 ELA
Her, 2013

dir eção & rot e iro S p i k e J o n z e

P OR QUE ESTÁ AQUI


Apesar de agora ter alguém com quem pode se
abrir, Theo arruma outras neuroses. Com o tempo,
m ost ra u m Samantha evolui e vai adquirindo características
h o m em qu e cada vez mais humanas. Ela então passa a filosofar
sobre seu papel no mundo e – para desespero de
n a m o ra u m Theo – a questionar o relacionamento.
Se esse namoro entre um jornalista decadente
si st em a
e um sistema operacional já faz de Ela um dos ro-
o p erac i o n a l mances mais originais da história, as reflexões que
o filme proporciona o colocariam facilmente na
( m as qu e t e m a seção de “filmes filosóficos” desta revista. Além de
voz da sca r l e t t) . explorar as possibilidades futuras da Inteligência
Artificial, o diretor Spike Jonze faz uma exposição
crítica dos costumes do presente – com ênfase na
nossa relação cada vez mais intensa com a tecno-
logia. Como a situação recorrente dos casais que,
em vez de conversar olho no olho, ficam com a
vista grudada em seus celulares. Um comporta-
mento que provoca alienação do momento presen-
Solitário e deprimido com um divórcio, The- te – se o que estão olhando é para uma tela de
odore (Joaquin Phoenix) é um ex-jornalista que cristal líquido, tanto faz estarem num restaurante
agora paga as contas escrevendo cartas sentimen- ou no banheiro de casa.
tais para pessoas que não têm essa habilidade. Sua Outra provocação que o filme sugere diz res-
vida só muda da água para o vinho quando ele peito à interação nas redes sociais. Toda publicação
decide instalar no seu smartphone um software de no Facebook ou no Instagram passa por uma es-
Inteligência Artificial que se manifesta com voz pécie de curadoria. Você escreve mensagens edifi-
feminina – a voz reconhecidamente sexy da Scar- cantes ou engraçadas, dá opiniões que se encaixam
lett Johansson. O programa é vendido como a pri- no modo de pensar de quem habita sua bolha ar-
meira tecnologia com “consciência”. Theodore vê tificial, e só expõe registros dos seus momentos
no gadget a maneira de ter alguém com quem con- mais invejáveis – um drink colorido naquele res-
versar, e finalmente driblar sua solidão. Mas Sa- taurante da moda, o registro dos 10 quilômetros
mantha, como o sistema é chamado, supera as que você correu num domingo de manhã (olhem
expectativas: é esperta, divertida, ótima ouvinte como sou saudável!), pernas em primeiro plano com
dos problemas do seu humano... e ainda trata Theo uma praia paradisíaca ao fundo...
como se ele fosse a última bolacha do pacote. Ti- Nesse contexto de projeções photoshopadas,
rando o fato de que é só uma voz robótica, ela se Samantha é a única capaz de externar sentimentos
mostra a companhia perfeita... a namorada perfei- espontâneos. E isso mesmo quando está com raiva
ta. E eis que um casal transhumano se forma. ou tristeza, ou até – principalmente – quando diz
“A mulher com quem tenho saído é um sistema o que seu namorado não desejaria ouvir.
operacional”, Theodore anuncia. E recebe de volta Seu cérebro eletrônico acaba se mostrando o
a ironia da ex-mulher: “Você sempre quis uma es- avesso da internet – mais humano do que os hu-
posa sem os desafios de lidar com algo real”. manos de fato.

Foto: divulgação
DOSSIê SUPER 35

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É baseado no
livro Androides
Sonham
com Ovelhas
Elétricas, de
Philip K. Dick.
I N T E L I G Ê N CI A ARTI F I CI AL
m e n t e e cé re b ro

2
dir eção
Ridley Scott
Nesta fábula cyberpunk, Deckard era tão à frente do seu tempo – o
(Harrison Ford) é um especialista século 17 – que ele já suspeitava
roteiro
H a m p t o n Fa n c h e r ,
em “aposentar” (matar) replicantes que precisaríamos de testes para
David Peoples – clones humanos programados distinguir se um interlocutor é
para nos servir e que só podem humano ou uma máquina. Chegou
viver poucos anos. Ele é chamado a a criar exames que se baseavam
agir quando um bando violento foge na habilidade linguística. O filme de
BLADE RUNNER: ao controle, liderado pelo replicante Ridley Scott faz várias referências

O CAÇADOR DE
Roy (Rutger Hauer). O policial vai a Descartes, como o nome do
persegui-los, mas, quanto mais in- protagonista: Deckard. O enredo
ANDROIDES terage com as réplicas, mais percebe
o quanto elas se parecem conosco.
ainda inclui a ideia do tal teste, mas
o critério aqui não é o uso da língua.
Blade Runner, 1982
É esse entendimento que sugere É a empatia. E faz sentido: o poder
reflexões. E a principal é: se compar- humano de empatizar é o que nos
tilharmos o planeta com autômatos coloca no lugar dos outros em diver-
que têm memórias (ainda que sas situações. A maioria dos repli-
P OR QUE ESTÁ AQU I
implantadas), que pensam e sofrem cantes, assim como os psicopatas,
Tratou de questões como humanos... matá-los não seria não tem essa qualidade. Para esses,
sobre os direitos uma ação imoral? René Descartes pelo menos no mundo distópico de
imortalizou um postulado que pode Blade Runner, ainda falta algo para
dos robôs bem antes
dar um norte a essa discussão: que se apliquem as mesmas regras
de Westworld. “Penso, logo existo”. Sua filosofia do nosso contrato social.

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3
Caleb (Domhnall Gleeson) é um
programador que trabalha na empresa
de tecnologia mais poderosa do planeta
– que aqui é chamada de Blue Book

EX_MACHINA: em vez de Google. Um belo dia ele é


sorteado para passar uma semana na

INSTINTO ARTIFICIAL mansão do fundador da companhia.


Só que Nathan (Oscar Isaac), o chefão,
Ex Machina, 2014 tem outros planos para essa semana
a dois. Ele quer compartilhar com o
d i reção & rotei ro A l e x G a r l a n d
funcionário sua invenção, uma nova
P OR QUE ESTÁ AQUI
Inteligência Artificial. E mais: quer que
Caleb conduza um tipo de Teste de
Começa com o Teste de Turing e Turing com o brinquedo.
avança para a "Singularidade". Conceito da filosofia da Inteligência
Artificial, esse teste foi concebido pelo
matemático Alan Turing, num artigo de
1950, no qual ele questiona: “Há como
imaginar um computador que faria bem
o jogo da imitação?”. O teste é mais ou
menos assim (há variações): um indi-
víduo é colocado para conversar com
outra pessoa e com um computador,
sem vê-los, durante alguns minutos. Se
no final ele não souber quem é quem, é
porque o computador passou no teste.
Ele consegue imitar um humano à
perfeição. E podemos especular se isso
é bom ou ruim.
No filme, Nathan quer que seu
programador aplique sessões de
perguntas e respostas com sua IA, para
identificar se ela desenvolveu consci-
ência. O que talvez pareça fascinante
não é visto com tanto entusiasmo
por estudiosos do tema. Robôs que
pensem sozinhos podem cumprir a
profecia do Exterminador do Futuro,
levando à chamada “Singularidade”, o
ponto em que as IAs serão capazes de
criar elas próprias novas IAs, cada vez
mais evoluídas, deixando a humanidade
para trás – até se perguntarem se a
presença de Homo sapiens na Terra
é uma inconveniência. Nathan parece
entender o que está em jogo: “Um dia
as IAs vão olhar para nós da mesma
forma que olhamos para fósseis nas
planícies da África”.
O que Caleb não fazia ideia é que a
IA da Blue Book, de nome Ava (Alicia
Se criarmos Vikander), é um robô com rosto e corpo
IAs à nossa
imagem e femininos. Para apimentar as coisas,
semelhança... esse androide começa a flertar com
será um
risco à nossa o rapaz. E aí surge outra questão: a IA
espécie? também seria capaz de amar? Ou sua
atitude sedutora não passa de uma
estratégia de manipulação?

Fotos: divulgação
DOSSIê SUPER 37

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me nt e e cérebro
F i losofia
e m cena

Sob uma
perspectiva
depressiva, a
vida só entra
em harmonia
na finitude.

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1 MELANCOLIA
Melancholia, 2011

direção & roteiro L a r s v o n Tr i e r

P O R QUE ESTÁ AQUI


(Charlotte Gainsbourg). A primeira parte mostra a
festa de casamento de Justine, feita na mansão de
m ost ra qu e Claire. E não demora que saibamos dos extremos
a n at u r eza é opostos dessas duas. A noiva é a irmã-problema
– insegura, deprimida, mas do tipo que tenta se
tão i m per f ei ta esconder atrás de um sorriso forçado; disfarce que
não engana ninguém, nem ela. Nos labirintos da
e dest ru t i va
mansão, tenta isolar-se da programação quase mi-
qua n to n ós. litar do evento, a festa organizada pela irmã. Peça-
chave do ritual (lógico, é a noiva!), ela não se en-
caixa, o que desmonta o circo de Claire.
Já esta é metódica, ansiosa em estampar um mo-
delo de sucesso de festa perfeita, de marido, mor-
domo e família perfeitos. No fundo, naquele am-
biente disfuncional, talvez seja ainda mais inade-
quada que a irmã triste.
A segunda parte coloca em primeiro plano um
tema que no capítulo de Justine ainda estava só
sugerido: a aproximação de um planeta chamado
Melancolia. O choque com a Terra é certo, o fim
Lars von Trier nunca pareceu muito bem con- dos tempos, que vai provocar reações muito dife-
sigo mesmo. A depressão confessa do artista, es- rentes nas protagonistas. Diante do inescapável, do
cancarada em seu filme anterior, Anticristo, tem que independe de qualquer ação humana (não há
novo capítulo em Melancolia  – dois títulos, cá entre para onde fugir), a altiva Claire é a que desaba.
nós, nada alegrinhos. Todas as suas certezas tiravam força das convenções,
Mas o transtorno mental do diretor não faz mal valores que não significam nada perto do caos cós-
ao seu cinema. Pelo contrário. Suas viagens emo- mico. Paradoxalmente, é aí que Justine renasce. Seus
cionais têm luto, a pequenez do homem diante da desequilíbrios finalmente fazem sentido – o Uni-
natureza, a assimilação (difícil) da finitude inesca- verso revela-se tão imperfeito, destrutivo e sem
pável. E também o anacronismo de uma masculi- rumo quanto ela própria.
nidade que quer se impor como inteligência supe- O espectador pode levar um tempo para se acos-
rior e protetora. Contemplações que se apresentam tumar à câmera na mão de Trier, mas logo passa.
de modo sempre no oposto do convencional: esta- Convence o fato de que a lente está sempre atrás
mos no terreno do cinema idiossincrático, cinema de suas atrizes principais, que não se perde na ir-
de autor, que nunca vai agradar a todos, porque relevância.
minimiza o papel do marketing e o desejo de achar Há um prólogo antes dessa narrativa. Já sabemos,
uma fórmula de agradar todo mundo. daí, a tragédia que virá. Ela é feita de imagens em
Melancolia t  em composições plásticas arrebata- câmera lenta, quase estáticas; uma poesia de juízo
doras e personagens fortes, profundos, místicos, final, como se a harmonia só fosse possível no fim
tão humanos e tão irreais ao mesmo tempo. O fil- e na música.
me tem duas partes distintas, uma dedicada a Jus- E talvez seja coisa de deprimido, pintar a morte
tine (Kirsten Dunst) e outra a sua irmã Claire e a imobilidade com cenas tão bonitas…

Foto: divulgação
DOSSIê SUPER 39

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3
O HOMEM
DA TERRA
F i losof i a e m ce n a

The Man from


Earth, 2007

dir eção R i c h a r d S c h e n k m a n
m e n t e e cé re b ro

rot e iro J e r o m e B i x b y

P OR QUE ESTÁ AQU I

Faz pensar: o que


você perguntaria
a um homem de
14 mil anos?

Depois da insistência dos


colegas, o professor John
Oldman (David Lee Smith)
resolve contar a razão
Heroína e diálogos
espirituosos nos últimos de querer se mudar de
dias de uma vida. repente. Só que aí ninguém
acredita. Ele jura que

2
nasceu na Pré-História, na
Europa, e que sua idade gira
Diante disso, ele busca o que pode des- em torno de 14 mil anos. É
sa ilusão de morte feliz: reúne familiares um imortal. As mudanças
e antigos amigos do departamento de repentinas de endereço são

AS
História da universidade, confraterniza para que ninguém perceba
e começa a pensar num estratagema que ele não fica velho. E a

INVASÕES
que evite a perda da dignidade no final. revelação acende um de-
Para aliviar a dor física do câncer, tem bate filosófico. Seus amigos
uma experiência inédita: usa heroína. são autoridades em as-

BÁRBARAS Também começa a planejar uma euta-


násia, que aconteça com o intelectual
suntos como antropologia,
psicologia e arqueologia.
Les Invasions rodeado pelos amigos. Com tanta erudição, procu-
Barbares, 2003 O que dá leveza a um filme sobre um ram uma brecha no relato
paciente desenganado são os diálogos insólito de Oldman. Mas ele
d i reção & rotei ro
Denys Arcand
filosóficos da turma reunida, que é a tem resposta para tudo.
forma como Rémy decide passar seus Porém, à medida que o
P OR QUE ESTÁ AQUI últimos momentos. É uma ocasião para relato avança, seus amigos
Apresenta uma forma reafirmar seus valores de juventude, o vão ficando perturbados.
idealismo, as escolhas políticas. E se ele estiver falando a
original (e intelectual)
O título do filme se refere à invasão verdade? “O que você está
de eutanásia. simbólica desses intelectuais antica- dizendo ofende o senso
pitalistas ao que chamam de “império comum”, afirma um deles.
americano”. Uma discussão sempre “Assim como a Relatividade
de alto repertório, que mescla reflexão e a mecânica quântica”, ele
A ilusão dos jovens é de que nunca existencial e uma boa dose de autoiro- responde. “É assim que a
vão morrer; a dos mais velhos é de que nia. Quando o grupo começa a enumerar natureza funciona.”
terão saúde até o final, e uma morte as alternâncias em seus engajamentos Justamente essa incerteza
tranquila e indolor. Esses desejos caem políticos e artísticos ao longo dos anos é o que torna a especula-
por terra quando se depara com um (que incluem marxismo, estruturalismo, ção mais rica – e nos faz
prognóstico de doença terminal. Rémy anticolonialismo, feminismo...), um imaginar como seria a vida
(Rémy Girard), um intelectual canadense amigo pergunta se houve algum “ismo” se a humanidade, enfim,
na casa dos 50 anos, tem um câncer que eles nunca abraçaram. “Cretinismo”, vencesse a morte.
no fígado e a certeza de pouco tempo. responde um outro.

Fotos: divulgação
40

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4 O SÉTIMO
SELO

Det sjunde inseglet, 1957

direção & roteiro I n g m a r B e r g m a n

P OR QUE ESTÁ AQUI

a b r i u ca m i n h o pa ra o
c i n e m a f i losó f i co.

Quando a Guerra Fria com ela. Desafia-a para


passava uma impressão um jogo de xadrez, e
de contagem regressiva ambos combinam que ele
para o juízo final, Ingmar será poupado enquanto
Bergman fez um filme resistir no tabuleiro –
em que uma morte com uma das cenas mais
fisionomia humana ronda memoráveis do cinema. O
os personagens o tempo acerto lhe dá tempo para
todo. O cenário é a Europa buscar sentido naquela
medieval. No lugar da devastação causada
ameaça atômica, o temor pela peste e questionar a
da Peste Negra – pan- própria fé. Onde estavam
demia causada por uma os sinais inequívocos da
bactéria que, no século 14, existência de Deus? Só a
matou um terço de toda a morte parecia uma força
população europeia. evidente. E o que dizer da
Com título inspirado benevolência divina sendo
numa passagem do Apo- que os fiéis sucumbiram à
calipse, da Bíblia, o filme febre em número igual ao
apresenta o momento em dos ímpios?
que o cavaleiro cristão Questionar a relação
Antonius Block (Max entre Deus e os homens
Von Sydow) retorna das era algo que os filmes não
Cruzadas e encontra costumavam fazer nos
sua terra natal dizimada anos 1950. Mas que deu
pela doença. Um destino certo. O filme teve um
que está reservado para impacto enorme na época,
ele também. A morte provou que o cinema
o encontra e ergue seu filosófico podia, sim, ter
manto negro para levá-lo, seu público – e abriu ca-
mas Antonius resiste e minho para artistas como
Bergman disse consegue fazer um trato Antonioni e Fellini.
que se curou
do medo da
morte após
fazer este filme.

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O filme questiona o
sentido de um Deus
intervencionista.
F i losof i a e m ce n a
m e n t e e cé re b ro

5 dir eção & roteiro


Te r r e n c e M a l i c k
Um diretor que estudou filosofia
em Harvard e Oxford, Terrence Mali-
ck faz deste filme a obra mais refle-
xiva de sua cinegrafia – reconhecido
relações. A narrativa faz um con-
traste entre a natureza humana, de
violência e egoísmo (personificados
pelo pai), e a fé cristã, que envolve
com a Palma de Ouro em Cannes. Ele amor incondicional e aceitação do
parte do argumento de um drama fa- sofrimento (concentrados na figura
A ÁRVORE miliar para inserir o espectador num da mãe). Essa resignação materna
DA VIDA exercício lírico, não linear, que aborda
questões tanto metafísicas quanto
é testada quando o filho de 19 anos
morre em combate.
The Tree of Life, 2011 dos relacionamentos humanos. Há uma sequência numa igreja
Jack (Sean Penn) é um homem que remete diretamente a esse teste
de meia-idade atormentado com as da fé: citando o exemplo de Jó, um
P OR QUE ESTÁ AQU I memórias de um pai opressor (Brad padre explica que não há garantia
Pitt) e da morte de um irmão mais de felicidade terrena, e que nenhum
M ost ra o novo. Sua tentativa de entender e cristão deve impor condições a Deus
pa ra d oxo se reconciliar com esse passado é ou negar sua presença em razão do
alternada com cenas da infância, sofrimento. Quando Malick insere,
entre o quando ele vivia entre a dureza do no meio do filme, uma longa sequ-
e n ca n to da pai e o carinho e espontaneidade da ência da criação do Universo – que
mãe (Jessica Chastain). Mas a forma ninguém entendeu de primeira –, ele
v ida e n osso como essa história se apresenta nos lembra da insignificância de cada
pa p e l n o é mais complexa. Há um contexto morte aleatória diante do infinito.
espiritualizado por trás dessas Somos pequenos. E somos breves.
Un i v e rso.

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6
Este filme foi lançado 15 anos antes
de Forrest Gump, mas saltam aos olhos
as semelhanças entre seus protago-
nistas. Assim como o personagem

MUITO ALÉM interpretado por Tom Hanks, Chance


(Peter Sellers) é um adulto infantilizado,

DO JARDIM com alguma deficiência intelectual, e


que por circunstâncias do acaso acaba
Being There, 1979 sendo tomado pelo que não é.
Recluso a vida toda na mansão de
d i reção H a l A s h b y
um ricaço, onde suas atividades se
rotei ro J e r z y K o s i n s k i
limitavam a cuidar do jardim e ver TV
P OR QUE ESTÁ AQUI compulsivamente, Chance não apren-
deu a ler nem escrever. Nem havia
Repete Schopenhauer: as pessoas são
colocado o pé na rua até que o dono da
uma representação na nossa mente. casa morre, e ele é obrigado a deixar o
lugar. Quando então é atropelado pelo
carro de uma família de milionários,
ele é confundido com um aristocrata
– adivinham isso por conta das roupas
que ele herdou do patrão. Como se
machucou no acidente, é levado para o
casarão da família, que logo interpreta o
estilo monossilábico do jardineiro como
um tipo de excentricidade, própria dos
muito ricos. Uma vez que fala pouco e
concorda sorridente com tudo, Chance
é tido como um sábio, alguém cuja
opinião é valiosa demais para ser dada
a qualquer hora. Nas vezes em que se
manifesta com mais de uma frase intei-
ra, as pessoas procuram significados,
querem as pérolas do seu pensamento.
Uma confusão recorrente, que é a linha
condutora do enredo e que gera as
situações mais engraçadas.
Um exemplo: seu novo anfitrião é
amigo dos poderosos e o leva a uma
reunião com o presidente dos EUA.
Solicitado a opinar sobre a situação
da economia, Chance fala da única
coisa que conhece: jardinagem. E seus
interlocutores entendem a explicação
– que discorre sobre as estações do
ano favoráveis ao plantio – como uma
metáfora sobre investimentos no
país - a ponto de o presidente ficar im-
pressionado. A pobreza de raciocínio de
Chance só lhe permite falar num sen-
tido literal, mas as pessoas entendem
cada comentário como uma analogia.
Muito Além do Jardim é considerado
um dos grandes filmes filosóficos por
refletir sobre como a vida e as pessoas
são a interpretação que fazemos
Gênio ou deficiente
mental? Depende delas - como afirma o filósofo Schope-
da sua perspectiva. nhauer em O Mundo como Vontade e
Representação.

Fotos: divulgação
DOSSIê SUPER 43

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me nt e e cérebro
HI TC HCOCK E
A PSICANÁL ISE

A cena do chuveiro
é tão forte que
nem reparamos em
outra inovação: a
protagonista morre
no meio do filme.

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1 PSICOSE
Psycho, 1960

direção A l f r e d H i t c h c o c k roteiro J o s e p h S t e f a n o

P O R QUE ESTÁ AQUI


O filósofo e teórico do cinema Slavoj Žižek su-
gere mais uma interpretação psicanalítica interes-
É o co m p l exo sante para o filme, especificamente para o motel da
d e Éd i p o l e va d o família Bates, associando-o às três instâncias da
estrutura mental segundo Freud. O porão do esta-
às ú lt i m as belecimento, que é onde Norman guarda o cadáver
mumificado da mãe, seria o espaço do Id, onde to-
co n sequ ên ci as.
das as loucuras seriam possíveis. O andar térreo,
onde ele até parece uma pessoa normal, atendendo
os hóspedes, seria o espaço do Ego, a subpersona-
lidade que precisa adequar os arroubos sociopatas
do Id às exigências da realidade – afinal, o motel
precisa ser um negócio viável para que seu dono
possa manter-se. Já o andar superior seria o espaço
do Superego, de onde vêm as censuras da mãe –
internalizadas pela mente insana de Norman –, uma
Jocasta do mal que não quer saber de mulheres com
seu filho naquele motel. Muito menos nuas debai-
xo de um chuveiro.
A sequência mais famosa do filme – que é tam-
bém um dos momentos mais icônicos de toda a
história do cinema – dura exatos 45 segundos de
Considerado pelo American Film Institute taquicardia. Norman Bates esfaqueando a hóspede
como o segundo maior vilão do cinema (o primei- em pleno banho, fantasiado com as roupas de sua
ro é o doutor canibal de O Silêncio dos Inocentes), mãe morta – uma cena de horror extremo, que po-
Norman Bates, interpretado por Anthony Perkins, deria complicar a vida de Hitchcock junto aos cen-
é um personagem com um grande desvio em seu sores. O Código Hays – conjunto de normas morais
desenvolvimento psicossexual. Norman é obceca- aplicadas aos filmes nos EUA até 1968 – iria barrar
do pela figura materna – a tal ponto que, saberemos tanto a nudez da atriz Janet Leigh quanto os golpes
pela boca de um psiquiatra, ele já havia matado a de faca que matariam sua personagem.
própria mãe e o padrasto, por ciúmes. Mas o que se vê, em ritmo vertiginoso, é um
Depois desses assassinatos – que acontecem mosaico de dezenas de imagens recortadas: closes,
antes dos eventos mostrados no filme –, e diante ângulos de baixo para cima, de cima para baixo, do
da impossibilidade de ter a mãe como objeto de chuveiro, da faca, do braço da vítima, seu umbigo,
desejo, o gerente de motel mais famoso do mundo pés, rosto, boca gritando, o sangue escorrendo pa-
desenvolve um transtorno mental e passa a se iden- ra o ralo. O diretor retalha a cena da mesma forma
tificar com ela de maneira alucinada. É isso o que que o assassino faz com o corpo da vítima.
gera a transformação-chave desse suspense: Norman Mesmo sem ser explícita, essa sequência é tão
Bates divide a própria personalidade com a da mãe impactante que, após o lançamento do filme, os
morta, uma mulher extremamente possessiva e produtores receberam cartas de pais reclamando:
repressora, e transforma a fúria desse Superego suas filhas estavam com medo de ir para o chuvei-
materno em uma sequência de novos homicídios. ro sozinhas.

Foto: divulgação
DOSSIê SUPER 45

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3
UM CORPO
QUE CAI
H I TCH COCK E A PSI CAN ÁL I SE

Vertigo, 1958

dir eção A l f r e d H i t c h c o c k
rot e iro A l e c C o p p e l ,
S a m u e l Ta y l o r

P OR QUE ESTÁ AQU I

Neste drama
psicológico, nada
m e n t e e c é re b ro

é o que parece ser.

UM DOS GRANDES filmes


de mistério, Um Corpo que
Cai é digno de divã. Tem
fobia, amor obsessivo e
A psicanalista tenta
acessar uma memória perversão sexual. Repare
oculta - e talvez culpada. nas espirais que brotam
de um olho na abertura

2
do filme. São pistas para o
enredo labiríntico que virá
vez que os complexos que perturbam o a seguir.
paciente são descobertos e interpreta- Scottie (James Stewart)
dos, a doença e a confusão desapare- é um detetive contratado
cem... e os demônios da irracionalidade para seguir Madeleine (Kim

QUANDO são retirados da mente humana”.


A história trata do romance entre
Novak), que tem tendên-
cias suicidas. Só que acaba

FALA O dois psicanalistas, Constance Petersen


(Ingrid Bergman) e Anthony Edwardes
se apaixonando por ela.
Então, quando a investiga-

CORAÇÃO
(Gregory Peck). O conflito se dá quan- da sobe ao alto de uma tor-
do o personagem de Peck é tomado re de igreja para se matar,
Spellbound, 1945 por um sentimento de culpa após ele é incapaz de detê-la.
uma crise de amnésia – ele começa a E o motivo é um distúrbio
d i reção A l f r e d H i t c h c o c k acreditar que pode ter matado o ver- mental: Scottie tem acro-
rotei ro B e n H e c h t
dadeiro dr. Edwardes e assumido sua fobia, medo irracional de
P OR QUE ESTÁ AQU I
identidade. Mas será mesmo? É nesse altura. Cheio de culpa, ele
momento que o suposto assassino sofre um choque quando,
A psicanálise no filme desmemoriado vira paciente da sua tempos depois, encontra
é a ferramenta para a colega, e Constance se apressa com uma mulher incrivelmente
solução de um crime. as armas da psicanálise para chegar parecida com Madeleine.
à memória reprimida dele – numa Hum... Suspeito, não? Mas
corrida contra os policiais, que também o detetive está cego pelo
Hitchcock flertou com as ideias de querem saber a verdade. que Freud descreveria
Freud em diversos momentos, mas Para chegar aos conteúdos ocultos como um desejo fetichista:
este é o “filme de psicanálise” oficial do dessa mente suspeita, nossa heroína tornar essa mulher cada
diretor. Tanto que a abertura do longa- recorre a um dos grandes hits de Sig- vez mais parecida com a
metragem já avisa: “Nossa história lida mund Freud: a interpretação dos sonhos. amante suicida – exigindo
com a psicanálise, um método pelo qual E quem ganha com isso é o espectador. que mude a cor do cabelo e
a ciência moderna trata os problemas As sequências oníricas estão entre as vista roupas idênticas às da
emocionais das pessoas sadias. O melhores desse tipo no cinema, inspira- outra. “Esse homem quer
analista procura induzir o paciente a falar das nas obras de Salvador Dalí – justa- se deitar com uma falecida,
sobre suas questões ocultas, a abrir as mente o artista que levou a outro tipo de é pura necrofilia”, explicaria
portas trancadas da sua mente. Uma tela a exploração do inconsciente. Hitchcock.

46

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4
da natureza ou é uma simbologia
para os nossos medos mais pro-
fundos e irracionais? (Segundo a
perspectiva freudiana, claro, é o
OS PÁSSAROS segundo caso.)
The Birds, 1963 Acompanhamos o início de
um romance entre Melanie (Tippi
d i reção A l f r e d H i t c h c o c k Hedren) e Mitch (Rod Taylor),
rotei ro E v a n H u n t e r uma paixão que convive em
desarmonia com os olhares
P OR QUE ESTÁ AQUI
ciumentos da mãe dele, a viúva
Representa o Lydia (Jessica Tandy), e outras
conceito de mulheres de sua cidade. Haveria
castração com uma ligação psicológica entre
esses sentimentos hostis e a
aves assassinas. violência dos corvos? Óbvio que
sim, diz o professor Paul Gordon,
da Universidade do Colorado, um
especialista em analisar cinema
e literatura à luz da psicanálise.
Os pássaros seriam símbolos
de castração, que estão ali para
afastar Melanie de seu objeto se-
xual – o namorado. Num contexto
edipiano tão importante quanto
o de Psicose, o ataque das aves
Estamos diante de um dos é uma manifestação metafórica
filmes mais enigmáticos de da raiva e do ciúme da viúva, que
todos os tempos. Desde seu quer seu filhinho só para ela.
lançamento, na década de 1960, Além disso, o filme retrata o
todos os que veem Os Pássaros tipo de cotidiano vivido, segundo
se enchem de perguntas: por que a psiquiatria, por quem sofre
essas aves se comportam de de transtorno de ansiedade:
forma monstruosa? Por que de- é repleto de elementos que
cidem atacar pessoas num grau causam pânico (sejam insetos, O enigma da
crescente de ferocidade? O que multidões, trovões...) – ainda que ferocidade dos
corvos tem raízes
está acontecendo é um fenômeno o paciente não saiba explicar por no complexo
localizado ou tomou o mundo que tais elementos parecem tão de Édipo.
inteiro? Trata-se de uma vingança perigosos.

5
Reportagens perigosas são começa a pensar em si como (Grace Kelly). É ela quem vai
a especialidade do fotógrafo um espião amador. Numa de invadir o apartamento onde o
Jeff (James Stewart). Podemos suas espionagens ele acredita crime pode ter ocorrido – en-
deduzir pelas fotos que ter descoberto um assassinato quanto ele observa de longe...
JANELA decoram sua residência. De – e decide investigá-lo. Imóvel com um misto de aflição e

INDISCRETA
molho por causa de uma perna em sua cadeira, Jeff acaba prazer secreto.
quebrada, ele passa o tempo envolvendo a namorada, Lisa Essa compulsão foi analisa-
Rear Window, 1954 observando, com um binóculo, da por Freud em seus estudos
os moradores dos apartamen- da sexualidade. Para ele, olhar
d i reção
tos em frente ao seu – que à distância nos dá um controle
Alfred Hitchcock
rotei ro deixam portas e janelas aber- P OR QUE ESTÁ AQU I que é também poder. Enquan-
John Michael Hayes tas por causa do calor. Esse É um tratado to o voyeur observa seus alvos,
voyeurismo começa como um eles estão impotentes contra
passatempo inocente, mas Jeff
sobre a curiosidade mórbida da qual
vai ficando viciado na coisa, voyeurismo. são objetos.

Fotos: divulgação
DOSSIê SUPER 47

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me nt e e cérebro
DI ST ÚRBIOS
ME NTAIS

Extras do filme
em DVD dão a
opção de assistir
no sentido
tradicional: do
começo ao fim.

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1 AMNÉSIA
Memento, 2000

direção & roteiro C h r i s t o p h e r N o l a n

P O R QUE ESTÁ AQUI


Este thriller psicológico é apresentado de modo
inventivo, em duas correntes paralelas. Uma é mos-
Faz o especta d o r trada em P&B, e corre no sentido linear. É a narra-
ver o mundo tiva que dá a Leonard – enquanto fala ao telefone
– a chance de explicar ao espectador seu problema
co m o s e foss e u m de esquecimento. A narrativa paralela – predomi-
nante no filme – é em cores, e conta a história de
a m n ési co.
trás para a frente. Começa pelo que seria o fim:
Leonard dando cabo do suposto assassino de sua
esposa. Conforme essa narrativa avança – interca-
lando as cenas com as da história linear em P&B –,
vai revelando o que levou o protagonista a esse
desfecho.
Ao acompanhar a trama a partir do final, sempre
de marcha a ré, o espectador se coloca na posição
do amnésico: também ele não tem as pistas que
levam a cada nova sequência. Quando a garçonete
Natalie (Carie-Anne Moss) aparece na cama de Le-
onard, ficamos tão perdidos quanto o protagonista,
“A memória muda o formato de um quarto, a e a única informação que recebemos é a que ele
cor de um carro. Lembranças podem ser distorcidas. tem: uma polaroid com a anotação de que ela po-
São só uma interpretação”, afirma Leonard (Guy deria ajudá-lo. O mesmo se dá quando surge Eddie
Pearce). A fala é simbólica de como podemos ser (Joe Pantoliano), o homem que Leonard mata no
enganados pelo baralho complexo que mistura me- final/começo da história. O viúvo só sabe do sus-
mória e imaginação. O que você lembra não é o peito o que já está anotado em suas fotos: “É ele!
registro perfeito de um acontecimento – é a relei- Mate-o”.
tura que você faz desse evento, e que vai sendo Assim vivenciamos o filme no reino da subje-
distorcida com o tempo. tividade, dentro da cabeça do protagonista – dife-
Pior para o protagonista deste filme, que preci- rente da maioria dos roteiros, que nos dão o con-
sa criar e decifrar recordações à base de fotos de forto de uma realidade objetiva. Por isso, somos
polaroid. Desde que foi nocauteado quando bandi- tentados a fazer os mesmos julgamentos que ele.
dos invadiram sua casa, estupraram e mataram sua Pelo menos no começo. À medida que as duas nar-
mulher, ele sofre de amnésia anterógrada – um rativas avançam – e elas vão se encontrar em algum
distúrbio mental que afeta a memória de curto pra- instante –, começamos a ter informação suficiente
zo. Leonard não é capaz de recordar o que aconte- para questionar o ponto de vista de Leonard. Des-
ceu no dia anterior – nem anteontem, nem na se- cobrimos que ele acredita demais na própria inter-
mana passada –, embora se lembre de todo o seu pretação das memórias, e aí vem a dúvida: o quan-
passado até esse trauma. O que já significaria uma to seu discurso é confiável? Não sabemos mais se
rotina difícil fica ainda mais complicado quando a perspectiva distorcida do amnésico é verdadeira,
sabemos de sua única motivação na vida: encontrar se o personagem está sonhando ou mentindo para
e se vingar do criminoso. Mas dá para botar fé nu- si próprio. A confusão mental é transferida da pe-
ma investigação feita por um amnésico? lícula para a percepção abalada do espectador.

Foto: divulgação
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D I STÚR B I OS M E N TAI S
m e n t e e cé re b ro

Dois perfis
opostos que se
completam - à
base de porrada.

2 “A televisão nos fez acreditar que um


dia seríamos milionários, deuses do cine-
ma e astros do rock. Mas não seremos”,
afirma o brigão Tyler Durden (Brad Pitt).
em que os “sócios” se juntam tão so-
mente para socar a cara um do outro. Sua
primeira regra vai ao encontro da negação
da publicidade, tão valiosa ao capitalismo:
CLUBE Claro, o que a maioria consegue são traba-
lhos chatos, repetitivos e mal pagos. Essa
“é proibido falar sobre o Clube da Luta”.
Mas aos poucos o espectador recolhe

DA rotina corporativa atormenta seu amigo,


o personagem narrador (Edward Norton),
pistas de que o enredo não é só manifesto
antissistema. Por trás da ação, há um dis-

LUTA que não tem seu nome mencionado no


filme. Os dois se unem no ódio contra a
túrbio de identidade que permeia os acon-
tecimentos. Uma dica é prestar atenção à
Fight Club, 1999 sociedade de consumo, embora seja Tyler dualidade dos protagonistas. Até conhecer
o profeta desse inconformismo: “Para se Tyler, o narrador é o cidadão certinho, que
d i reção D a v i d F i n c h e r
ter liberdade completa, recomendo uma agoniza num emprego aborrecido. O ami-
rotei ro J i m U h l s
vida caótica”. go é o seu oposto: anárquico, o que abraça
P OR QUE ESTÁ AQUI A amizade dos dois começa de um a marginalidade sem medo de nada. A
jeito improvável. O narrador tem insônia e fusão dessas duas personalidades está na
É um (violento) jogo de
resolve frequentar grupos de autoajuda. essência desse retrato – alucinado – da
aparências engendrado Até que descobre uma válvula de escape autoafirmação masculina, tentando sair do
por uma mente doente. formando, com o novo amigo, um clube seu cubículo no escritório.

Fotos: divulgação
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3 FRAGMENTADO

Split, 2016

direção & roteiro M . N i g h t S h y a m a l a n

P OR QUE ESTÁ AQUI

m ost ra o l a b i r i n to
qu e é l i da r co m
u m a i d e n t i da d e
est i l h aça da .

Três garotas são identidade.


raptadas por um homem No RG o nome desse
misterioso (James McA- homem é Kevin. Mas o
voy) e presas no subsolo distúrbio faz com que se
de um local desconhecido. apresente com muitos
Quando ele surge no cár- outros nomes. São 23
cere, é como um indivíduo personalidades diferentes
de camisa abotoada até – embora só oito delas
o pescoço, que sofre apareçam no filme.
de um tipo de TOC com O caso psiquiátrico do
limpeza e tem obsessão vilão existe – está listado
sexual por adolescentes. no Manual Diagnóstico e
A possibilidade de estupro Estatístico de Transtornos
logo passa pela cabeça Mentais –, embora não
das meninas. Porém, haja essa tendência à
quando volta a visitá-las, violência como na tela. A
o sujeito está vestido com maioria dos diagnostica-
saia e sapato de salto, e dos tenta esconder sua
fala como uma governanta condição. Já no cinema, há
de sotaque britânico. Na um precedente interes-
vez seguinte, se comunica sante. As Três Máscaras
como um moleque de 9 de Eva (1957) é baseado
anos, fã do Kanye West. As na doença de uma mulher
jovens, assim como o es- chamada Chris Sizemore.
pectador, logo entendem Quando ela vendeu os di-
que o bandido sofre de al- reitos para que filmassem
gum problema mental, que sua história, o estúdio
se manifesta em múltiplas exigiu três assinaturas
personalidades. E ficamos no contrato: de cada uma
sabendo pela médica de suas personalidades.
Não é só dele que se trata de um Afinal, uma delas podia
ficção: ter
personalidades transtorno dissociativo de não aceitar o acordo.
múltiplas é
um distúrbio
reconhecido
pela medicina.

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O desconforto
com sexo da
personagem
evolui para
pânico e delírios.
DISTÚRBIOS MENTAIS
m e n t e e cé re b ro

4
dir eção
Roman Polanski
No começo da carreira, o diretor escova de dentes no seu banheiro,
Roman Polanski criou uma trilogia ela retira o objeto como quem tem de
roteiro
Gérard Brach,
de terror, associando a solidão em tocar num rato morto. Logo vamos
Roman Polanski um apartamento à tortura mental descobrir que Carol sofre ataques de
autoimposta. Repulsa ao Sexo foi o pânico em situações que remetam a
primeiro filme dessa sequência – sexo. Como ao ouvir a irmã transando
REPULSA depois viriam O Bebê de Rosemary
(1968) e O Inquilino (1976). Também
no quarto ao lado. Seu quadro, que
já era delicado, acaba se mostrando
AO SEXO foi o primeiro a transformar em irrecuperável quando ela fica sozinha
Repulsion, 1965 grande arte um caso de fobia sexual no apartamento claustrofóbico – e a
– um distúrbio que provoca repulsa, inquietação decai para a insanidade.
ansiedade descontrolada e medo até O melhor de um filme com tantos
p o r que está aqui
de pensar em relações sexuais. acertos é a forma como o diretor
Carol (Catherine Deneuve) é uma polonês filma essa desintegração
traz a fo b i a manicure tímida, que veio da Bélgica e mental: ele constrói um universo
s e xua l pa ra mora com a irmã em Londres. Apesar surrealista que coloca o espectador
de muito atraente, ela prefere viver dentro do pesadelo íntimo da perso-
o c en t ro de reclusa, sente-se desconfortável nagem. O terror vai envolvendo aos
na convivência com homens e tem poucos, e as imagens são expres-
um t e r ro r
nojo de simplesmente encostar em sionistas, distorcidas de propósito.
ps ico ló g i co. qualquer pertence masculino. Quando Escolhas que cumprem com o intento
o namorado de sua irmã deixa a de refletir uma consciência torturada.

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5 Tire as crianças da sala. Esta ani-
mação sobre amizade tem alcoolismo,
depressão e até uma tentativa de

MARY E MAX: UMA


suicídio. O primeiro som é o de um
narrador descrevendo a personagem

AMIZADE DIFERENTE
principal: “Mary Daisy Dinkle tinha os
olhos da cor de poças de lama e uma
marca de nascença da cor de cocô”.
Mary and Max, 2009
Pense na baixa autoestima dessa me-
d i reção & rotei ro A d a m E l l i o t nina de 8 anos, sem amigos, que mora
com os pais alcoólatras na Austrália.
p o r que está aqui
Ela ainda ouve da mãe que nasceu
Nenhuma animação tem diálogos por acidente. Por acidente? Mary
tão inteligentes (e eles se dão então pergunta ao avô como bebês
são fabricados. “Eles brotam no fundo
entre uma criança e um autista). de canecas de cerveja”, é a resposta.
Intrigada, a menina resolve checar se
é assim no mundo todo. E decide es-
crever uma carta a um desconhecido
do outro lado do mundo: Nova York.
Quer saber se, num país em que todos
se entopem de refrigerante, bebês
surgem no fundo dessas latinhas.
Seu destinatário é um quarentão
judeu, Max Horovitz (dublado por Phi-
lip Seymour Hoffman). Assim como
Mary, ele é um solitário, tem sobrepe-
so e adora chocolate. As coincidências
geram empatia, e os dois passam a
trocar cartas. Só que elas acabam
provocando ataques de ansiedade em
Max, o que faz com que ele às vezes
demore para responder. Como não
quer perder sua amiga, Max decide
explicar suas peculiaridades. “Não
entendo expressões faciais.” “Acho
o mundo confuso e caótico porque
minha mente é literal e lógica.” “Tenho
dificuldade em expressar emoções.”
O perfil não deixa dúvida: estamos
vendo uma criança melancólica ten-
tando se comunicar com um portador
da Síndrome de Asperger – tipo de
autismo marcado por dificuldade na
interação social.
Ou seja, não dá para dizer que
o filme seja leve. O contrapeso são
os diálogos engraçados, como se
a animação tivesse as melhores
falas de Woody Allen. Um exemplo é
quando Max responde à tal questão
do nascimento: “Minha mãe disse que
os bebês vêm de ovos botados por
rabinos. Se você não é judeu, veio de
Mary e sua
mancha na testa um ovo de uma freira católica. Se é
- "da cor de cocô". ateu, aí é ovo de uma prostituta”.

Fotos: divulgação
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capítulo 4

CINEMA DE
INovaÇÃO

54

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Desde que os irmãos Lumière projetaram os Lumière – que inventaram o cinematógrafo
dez curtas-metragens em Paris, no ano de 1895 – davam lugar a autores interessados na expres-
– o início oficial dos filmes –, o cinema procura são artística. E na capacidade de inovar. Os mais
surpreender o público com novidades no proces- criativos perceberam que o cinema é campo fértil
so criativo. Os primeiros anos já foram de inova- para experimentação – algo que se vê tanto na
ção e invenção puras: pioneiros logo transforma- técnica (como a profundidade de campo em Cida-
ram cenas de tomada única, com a câmera imóvel, dão Kane) quanto na narrativa (os depoimentos em
em produções mais elaboradas, que passam a ter flashback de Rashomon). Os filmes deste capítulo
edição de cenas e artistas pensando em movi- são exemplos de QI alto por isso: engenhosos e
mentos de câmera, ângulos distintos, closes e imaginativos na forma e no conteúdo, eles revolu-
planos gerais. Técnicos e homens de ciência como cionaram a linguagem cinematográfica.

ilustração: cristina kashima


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ci nema de
i novação

O American
Film Institute
colocou o
filme no topo
do ranking
de melhores
do cinema.

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1 CIDADÃO KANE
Citizen Kane, 1941

dir eção O r s o n W e l l e s rot e iro H e r m a n J . M a n k i e w i c z , O r s o n W e l l e s

p o r que está aqui


O artista teve de se desculpar por ter incitado o
terror em massa, mas o impacto da produção lhe
m o d er n i zou deu fama instantânea. E logo Welles era convidado
ta n to a t éc n i ca para levar suas ousadias a uma outra mídia popular,
o cinema, com um contrato que lhe dava ampla
qua n to a liberdade artística. Então o novo diretor resolveu
mexer num vespeiro: um filme inspirado na vida
n a r rat i va .
do magnata da imprensa William Randolph Hearst,
que controlava grande parte da mídia americana e
era fã de Hitler – a ponto de publicar uma entrevis-
ta falsa com o führer, para transmitir as “boas in-
tenções” do nazista.
Cidadão Kane mostra como o milionário Charles
Foster Kane, dono de 37 jornais, fez de tudo na vi-
da para ser amado – em larga escala e no âmbito
privado –, mas caiu sozinho do topo do mundo,
terminando com uma morte solitária. Este argu-
mento, embora poderoso, não revela quão inova-
dores foram a narrativa e a estética com que essa
história se apresenta.
Era véspera do Dia das Bruxas, em 1938, É na forma de um noticiário que vemos a con-
quando os americanos que sintonizaram seus rádios quista e perda de poder de Kane, flashbacks de sua
(a TV da época) na estação CBS ouviram uma in- violência contra a mulher e a amante, o castelo
tervenção jornalística: “Senhores, temos um grave construído para afirmar a opulência do seu império:
anúncio a fazer. Por mais inacreditável que possa Xanadu. Orson Welles aglutina uma variedade de
parecer, as observações científicas e a visão dos inovações cinematográficas para representar essa
nossos olhos levam à inescapável conclusão de que trama de uma forma inédita.
os seres que pousaram em Nova Jersey são a van- A iluminação é expressionista – os personagens
guarda de um exército invasor, do planeta Marte”. surgem envoltos pela escuridão e vistos por ângu-
Então a Terra estava sendo invadida por marcianos los incomuns; e um efeito de profundidade de cam-
hostis? Mais de 1 milhão de ouvintes pensaram que po faz com que elementos próximos e distantes na
sim. E entraram em pânico. Famílias colocaram tela sejam vistos em foco, ao mesmo tempo – per-
toalhas úmidas nas janelas, numa tentativa de blo- mitindo que fixemos o olhar em qualquer parte da
quear gases venenosos dos alienígenas, e um grupo imagem. A força desse domínio técnico se soma ao
de moradores de Nova Jersey, em meio à escuridão, simbolismo visual: vemos, ao longo do filme, pe-
atirou contra uma caixa d’água – imaginando tratar- quenas partes da persona de Kane, às vezes desco-
se de uma máquina extraterrestre de assassinar nexas; e, no final, é o próprio personagem que se
terráqueos. Mas não. O que os EUA tinham ouvido olha multiplicado pelos diferentes ângulos de um
como verdade era uma adaptação realista do clás- espelho, uma distorção da imagem que parece dizer:
sico A Guerra dos Mundos, de H.G. Wells – um ra- nenhum desses sou eu.
dioteatro dirigido e interpretado por um homem “É um labirinto sem um centro”, diria sobre o
sem freios: Orson Welles. filme o escritor Jorge Luis Borges.

Foto: divulgação
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3
UM HOMEM
COM UMA
ci n e m a d e i n ovação

CÂMERA
Chelovek s kino-
apparatom, 1929

dir eção & rot e iro D z i g a Ve r t o v

p or que está aqui

Fundou a
vanguarda
soviética no
cinema.

Quando o papa da Nouvel-


Foram 12
anos de le Vague, Jean-Luc Godard,
filmagens, fundou uma cooperativa mi-
com os
mesmos litante de “cinema-verdade”,
atores. batizou o grupo de Dziga
Vertov – homenagem a um

2
dos cineastas mais inovado-
res da história. Vertov criou
perrengues de lidar com padrastos documentários poéticos,
violentos e o bullying na escola, os que exploravam os limites da
primeiros amores e as inevitáveis linguagem. Seu Um Homem

BOYHOOD:
incertezas do amadurecer. O que torna com Uma Câmera mostra
o filme inovador é a maneira de contar um dia na vida de uma me-

DA
esse enredo prosaico. trópole: operários, bondes,
Como num experimento sociológi- um enterro e um parto,
co, Boyhood foi filmado, a cada verão, crianças encantadas com

INFÂNCIA À ao longo de 12 anos (2002 a 2013) com


o mesmo elenco – diferente do padrão
um mágico – e outras cenas
cotidianas. Só que cada

JUVENTUDE em que usam pessoas diferentes para


interpretar um mesmo personagem
sequência é uma revolução
russa da técnica de se fazer
Boyhood, 2014 em idades distintas. Atores e atrizes cinema. O filme foi pioneiro
envelhecem de verdade, diante dos em recursos como telas di-
d i reção & rotei ro R i c h a r d L i n k l a t e r
nossos olhos – algo que só costuma vididas, aceleração de cena,
p o r que está aqui acontecer nas séries de TV. Ethan quadros congelados e até
Hawke, o artista mais conhecido do animação em stop-motion.
Mostra a passagem
elenco, tinha 31 anos nas cenas iniciais, Vertov usa câmera lenta para
do tempo sem e 42 nas últimas. Mas é a transforma- dar leveza aos movimentos
truques de estúdio. ção do protagonista que mais chama de atletas (sacada copiadís-
atenção: desde seus 7 anos, vemos o sima até hoje), e as imagens
garoto crescer ao longo de 2h45min de uma mulher piscando
Poderia ser só uma obra sobre a de filme, até os 18 – um adulto já. Em são intercaladas com o
passagem da infância à vida adulta, média, cada ano na vida dos persona- diafragma de uma câmera,
sobre relacionamentos em família gens toma 14 minutos – embora haja que abre e fecha – como um
e sobre adaptação. Mason Jr. (Ellar sequências maiores e menores. “cine-olho”.
Coltrane) é filho de pais divorciados e A correspondência entre a passa- E, no entanto, esse gênio
mora com a mãe (Patricia Arquette), gem dos anos na ficção e na realidade foi relegado ao ostracismo
embora encontre o pai (Ethan Hawke) emociona, deixando em primeiro plano pelos soviéticos. Seu peca-
de quando em quando. O filme mostra a inexequível missão de capturar o tem- do: exaltar a forma estética
o transcorrer dos anos pelos olhos po. Nunca uma obra cinematográfica de uma obra em detrimento
desse menino-adolescente-rapaz: os sobre os ciclos da vida foi tão autêntica. do conteúdo ideológico.

Fotos: divulgação
58

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4
conversam sobre fotografia ar-
tística, mas o diálogo é legendado
(sim, em inglês mesmo). E as
legendas revelam o verdadeiro
NOIVO pensamento de cada um – bem
diferente do papo intelectual
NEURÓTICO, que eles estão tendo. Quando
NOIVA Alvy diz “a fotografia é uma nova
forma de arte”, a legenda mostra
NERVOSA “fico imaginando como ela seria
Annie Hall, 1977 pelada”. Quando Annie responde,
com outro comentário sobre cul-
dir eção W o o d y A l l e n tura, seu pensamento é “tomara
rot e iro M a r s h a l l que ele não acabe virando um
B r i c k m a n , Wo o d y Al l e n
babaca”. Em outra cena, enquanto
p or que está aqui o casal faz sexo, uma imagem de
Annie Hall sai do corpo dela e fica
É o filme mais
olhando a si própria transando.
inteligente de Outra passagem inventiva é a do
Woody Allen. Alvy adulto conversando com
Ponto. a professora e os alunos de sua
classe quando era criança, ao
ser repreendido por beijar uma
A grande invenção do diretor coleguinha. “Pelo amor de deus,
nova-iorquino neste filme foi Alvy! Até Freud fala de um período
transformar em imagens o fluxo de latência”, reclama a menina,
de consciência do personagem, também falando como adulta.
como num exercício surrealista. (Pela teoria freudiana, latência é
“Era uma história em que eu podia a fase do desenvolvimento em
utilizar as ferramentas do cine- que a criança, ao entrar para a
ma”, diria no livro Conversas com escola, esquece um pouco sua
Woody Allen, de Eric Lax. E toda sexualidade.)
essa sofisticação criativa sem “Noivo Neurótico, Noiva
O filme de perder sua velha arte de fazer rir. Nervosa contém mais brilho
Allen superou Em uma cena, que mostra o intelectual e referências culturais
Star Wars
no Oscar casal Alvy (Allen) e Annie Hall que qualquer outro filme a vencer
de 1978. (Diane Keaton) ainda estudando o Oscar”, destacou o crítico
um ao outro, os personagens americano Roger Ebert.

5
RASHOMON
Kurosawa virou de ponta-
cabeça a narrativa do filme
policial usando um conto do
do espectador, em vez de
alegarem inocência, eles
juram que são os culpados
a uma expressão do meio
acadêmico: “efeito Rasho-
mon” diz respeito a uma
Rashomon, 1950 século 12, sobre um bandido – inclusive a vítima (!), que notória falta de confiabilidade
que mata um samurai e diz ter se matado. Era uma de testemunhas oculares.
d i reção A k i r a K u r o s a w a estupra sua esposa. Quatro forma original de investigar Um estudo do MIT, de 2014,
rotei ro S h i n o b u H a s h i m o t o , envolvidos dão versões bem a identidade dos criminosos aplicou o termo à conclusão
Akira Kurosawa
diferentes sobre o crime, numa obra de ficção, brotada de que dois executivos
p o r que está aqui testemunhos apresentados de um coquetel de influências dificilmente vão enxergar os
em flashback – e que con- que vão da literatura russa ao fatos da empresa de uma
Tem a investigação
tam com a palavra do morto, cinema experimental. mesma maneira – compli-
de homicídio mais que se manifesta graças a O filme fez tanto sucesso cando a tomada de decisões
original da ficção. um médium. Para surpresa que emprestou seu título estratégicas.

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capítulo 5

enigmas

60

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Não importa o seu tipo de cinema preferido, obedecem ao padrão de consumo – o que David
é provável que a maioria dos filmes que já viu Bordwell, teórico e historiador da sétima arte,
tenha saído de Hollywood. O negócio que habita chama de “um cinema excessivamente óbvio”.
esse distrito de Los Angeles, por mais que se ba- Mas você comprou esta revista, então faz parte de
seie na criação artística, é isso mesmo: um negó- outro grupo. Segundo Bordwell, são pessoas com
cio. E não se ganha dinheiro com produtos que as hábitos de cognição e percepção visual elabora-
pessoas não entendem. O grosso dos espectadores dos. E que talvez gostem de enredos em que nada
prefere histórias em que tudo está mastigado, é evidente, filmes que se abrem à interpretação de
porque a mente trabalha no sentido de reconhe- quem os assiste, como as produções deste capítu-
cer padrões e encaixá-los no nosso repertório. lo. Esfinges que o espectador deve decifrar – ou
Hollywood, assim, emprega lógicas narrativas que saborear o desconhecido.

ilustração: cristina kashima


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e ni g mas

Na pré-estreia,
240 pessoas
saíram no meio
da sessão: não
entendiam nada.

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1 2001 – UMA ODISSEIA
NO ESPAÇO
2001: A Space Odyssey, 1968

dir eção S t a n l e y K u b r i c k rot e iro A r t h u r C . C l a r k e , S t a n l e y K u b r i c k

p o r que está aqui


amantes do gênero pela audácia de sua narrativa”,
diz Michel Ciment, autor do livro Conversas com
“S e a lg u é m Kubrick.
e n t en der d e Dentre as muitas perspectivas que o filme des-
perta, há também a abordagem do perigo represen-
p r i m ei ra , é s i n a l tado pela evolução da Inteligência Artificial – na
figura de HAL 9000, o supercomputador da nave
d e qu e fa l h a m os”
Discovery One, que fala e mimetiza a mente hu-
(A rth u r C . C l ar k e ) . mana. Apesar de ser o vilão do filme, a máquina
tem um fim melancólico, que chega a emocionar:
humanizado, expressa a percepção da própria mor-
te iminente.
Desde o lançamento, 2001 ganhou a pecha de
incompreensível. Antes até. Na pré-estreia, 240
pessoas saíram no meio da sessão, reclamando dis-
so. Em entrevista para a Playboy na época, Kubrick
se recusou a explicar o sentido da coisa. E o escri-
tor de ficção científica Arthur C. Clarke – roteiris-
ta e autor do conto em que o filme foi baseado –
Na época em que 2001 foi realizado, o diretor disse o seguinte: “Se alguém entender de primeira,
Stanley Kubrick cogitou fazer uma apólice de se- é sinal de que falhamos”.
guro. O risco coberto seria o de eventuais prejuízos Mas o enredo em si, dividido em partes distintas,
caso fosse descoberta alguma forma de inteligência não é tão hermético: na Pré-História, um monólito
alienígena antes da estreia do seu filme. Tinha me- misterioso provoca um salto de evolução entre os
do de que tal revelação deixasse a história ultrapas- primatas, que de coletores passam a caçadores ar-
sada. Exagero, claro. Nunca havíamos tropeçado mados. Milênios depois, uma expedição é formada
numa inteligência extraterrestre antes, e não havia para investigar o monólito, mas agora na Lua – uma
indícios de que isso poderia acontecer de uma ho- missão que vem a ser sabotada pelo computador
ra para a outra. HAL, que mata quase todos os astronautas. O úni-
Exagero também porque esta odisseia no espa- co sobrevivente entra em contato com mais um
ço é mais sobre a relação homem-máquina e uma monólito, dessa vez na órbita de Júpiter, atravessa
abstração poética sobre os caminhos da Seleção um portal do espaço-tempo e vive ele próprio um
Natural – e os mistérios da evolução humana – que salto evolutivo.
um filme de ETs. Pelo menos, distancia-se como Mesmo com tantos mistérios, ou por causa deles,
nunca antes da ficção científica clássica ao repre- o filme revolucionou o gênero de obras futuristas,
sentar a enigmática inteligência alienígena como e virou um marco do cinema tão forte quanto seu
um monólito – em vez de antropomorfizar o “per- monólito. A tal ponto que despertou uma curiosa
sonagem”. “Kubrick criou um filme que fez, repen- teoria da conspiração, de que o diretor teria cedido
tinamente, todo o cinema de ficção científica enve- cenas não usadas para forjar as imagens dos astro-
lhecer, correndo o risco de decepcionar os especia- nautas da Apollo 11 em solo lunar, em 1969. Men-
listas, que não encontravam, materializados nele, tira, claro: as cenas da missão nem de longe foram
seus caros extraterrestres, e de deixar perplexos os tão bem filmadas assim...

Foto: divulgação
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3
OLDBOY
Oldeuboi, 2003
e n i g m as

dir eção C h a n - w o o k P a r k
rot e iro J o o n - h y u n g L i m , J o -
yun Hwang, Chan-wook Park

p or que está aqui

Mostra que
nem todo
autoconhecimento
tem final feliz.

Uma década e meia antes


que Parasita atraísse os
olhos do mundo para o
cinema sul-coreano, este
É o primeiro filme
da Trilogia da filme já ganhava o Prêmio
Incomunicabilidade. do Júri de Cannes com
uma trama que, à primeira

2
vista, parece remeter às
produções orientais de
mais. Teria cometido suicídio, sofrido violência. Mas Oldboy
um acidente? Ninguém do grupo con- passa longe dessa super-
segue descobrir – nem o espectador. ficialidade. Este thriller,

A
Mais interessante que o sumiço é baseado em um mangá,
o que acontece a partir dele. O enredo transcorre durante boa

AVENTURA
subverte a estrutura clássica do que parte do tempo sem que o
seria um filme de mistério. Normal- espectador entenda o que
mente, a sequência à incógnita guiaria está se passando – porque
L’avventura, 1960
a atenção do público à investigação do a pancadaria é só coadju-
d i reção & rotei ro que aconteceu. Michelangelo Antonioni vante de uma jornada sem
Michelangelo Antonioni vai no sentido oposto: o foco rapida- bússola rumo ao (doloroso)
mente migra do desaparecimento para autoconhecimento.
p o r que está aqui
outras preocupações dos personagens. Dae-su (Min-sik Choi)
Retrata o niilismo (O namorado de Anna inicia um é sequestrado, aparente-
da época – sumindo romance envergonhado com a melhor mente sem motivo e não
amiga dela.) E o filme não oferece uma se sabe por quem. Preso
com a protagonista.
explicação conclusiva – como às vezes num quarto sem janelas, é
acontece no mundo real. “A diferença mantido incomunicável...
entre os roteiros de cinema e a vida por 15 anos. Até que chega
é que os scripts fazem sentido”, já o dia em que é solto sem
disse Woody Allen. Então o cinema de qualquer explicação. Mas
“Onde está a Anna?” , pergunta Antonioni está mais próximo da vida – ele vai querer respostas.
Claudia (Monica Vitti). Nesse instante, embora seja profundamente artístico. Cego de vingança, Dae-su
passaram-se apenas 26 minutos de A Aventura é a primeira obra de esmurra meia Coreia atrás
filme. Há mais duas horas de história uma Trilogia da Incomunicabilidade, da solução dessa charada.
pela frente, e Anna (Lea Massari) até aí do diretor. Assim como em A Noite Só que a ignorância tam-
se destacava como a protagonista. Ela (1961) e O Eclipse (1962), seus perso- bém pode ser uma dádiva.
faz parte de um grupo de ricaços que nagens – principalmente casais – não Sua busca vai revelar uma
passeia de barco pela costa da Sicília. conseguem se entender nem formar equação envolvendo as
Quando resolvem explorar uma ilha vínculos. Estão sozinhos, alienados consequências de uma in-
vulcânica, Anna desaparece. Mesmo. A na sociedade cheia de angústias do confidência, tabus sexuais
personagem some do filme e não volta pós-guerra. e suicídio.

Fotos: divulgação
64

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4 CIDADE
DOS SONHOS

Mulholland Drive, 2001

dir eção & rot e iro D a v i d L y n c h

p or que está aqui

E x i b e a d esco n exão
n a r rat i va d o n osso
i n co n sc i en t e.

Um dos pontos mais altos para embaralhar as cartas.


da carreira de um diretor O filme se divide em duas
de obras enigmáticas, esta partes – sendo a segunda
produção foi escolhida uma variação mais realista
pela prestigiada revista da primeira história, mas
francesa Cahiers du Ciné- com as personagens
ma como filme da década assumindo novos papéis.
(os anos 2000). Mas quem E essa história é a se-
não está acostumado ao guinte: uma mulher (Laura
universo idiossincrático Harring) sofre de amnésia
de David Lynch deve se após um acidente de carro,
preparar. Não é incomum quando estava sendo
sentir-se de volta ao pro- ameaçada por gângsteres.
cesso de alfabetização – Ela encontra refúgio na
foi assim com todo mundo casa de uma aspirante
que assistiu ao retorno a atriz em Hollywood
da série Twin Peaks, na (Naomi Watts), que se
Netflix. empenha em ajudar a nova
O que mela um pouco amiga a recuperar sua
os segredos desta obra é identidade. Esse enredo
a tradução que deram ao simples, porém, evolui
título em português. Sim, para uma exploração
é de sonhos que estamos surreal – e sensual – das
tratando – embora janelas abertas do incons-
isso não fique claro de ciente. “O cinema de Lynch
início, mesmo com as convida o público a novas
sequências não lineares experiências sensoriais,
e as transformações das nas quais a lógica narrativa
protagonistas. se desintegra”, explica a
Originalmente, A estrutura é composta Cahiers du Cinéma.
a história
seria um
spin-off de
Twin Peaks.

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Fundada em 1950
VICTOR CIVITA ROBERTO CIVITA
(1907-1990) (1936-2013)

Publisher: Fábio Carvalho

Diretora de Marketing: Andrea Abelleira

Diretor de Redação: Alexandre Versignassi


Editor: Bruno Garattoni
Editor-assistente: Bruno Vaiano
Repórteres: Guilherme Eler e Rafael Battaglia Popp
Editora de Arte: Juliana Krauss
Designers: Anderson C.S. de Faria, Carlos Eduardo Hara e Maria Pace
Estagiárias: Carolina Fioratti e Maria Clara Rossini (texto) Lucas Jatobá (arte)

Editor: Alexandre Versignassi


Colaboraram nesta edição: Alexandre Carvalho (edição e textos),
Estúdio Nono (projeto gráfico e edição de arte), Cristina Kashima (ilustrações),
Leonardo Yorka (ilustração da capa) e Anderson C.S. de Faria (produção gráfica)

Os 50 filmes mais inteligentes da história


ISBN 978-85-69522-99-7

é um livro da Editora Abril S.A., distribuído em todo o país pela Dinap S.A. Distribuidora Nacional de Publicações, São Paulo.
O Dossiê Os 50 filmes mais inteligentes da história não admite publicidade redacional.

IMPRESSO NA GRÁFICA ABRIL

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

C331c
Carvalho, Alexandre
Os 50 filmes mais inteligentes da história / Alexandre Carvalho. –
São Paulo: Abril, 2020.
66 p ; il. ; 27 cm.

(Dossiê Superinteressante , ISBN 978-85-69522-99-7 ; ed. 413-A)

1. Filmes cinematográficos. 2. Cinema - História. 3. Filmes inteligentes –


História - Cinema . I. Título. II. Carvalho, Alexandre. III. Série.

CDD 791.437

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