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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

PERSPECTIVA FILOSÓFICA

Revista dos Programas de Pós-graduação em Filosofia da


Universidade Federal de Pernambuco
e da Universidade Federal da Paraíba

Fundada em 1992

Número Financiado com Recursos da


PERSPECTIVA FILOSÓFICA
Revista dos Programas de Pós-Graduação
em Filosofia da UFPE e UFPB

Volume II – N. 38 (agosto a dezembro 2012) – ISSN 0104-6454

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

Reitor: Anísio Brasileiro de Freitas Dourado


Vice-Reitor: Sílvio Romero de Barros Marques

Centro de Filosofia e Ciências Humanas


Diretora: Ana Catarina Peregrino Torres Ramos
Vice-Diretor: Enivaldo Carvalho da Rocha

Departamento de Filosofia
Chefe: Jesus Vazquez Torres
Coordenadores da Pós-Graduação: Alfredo Moraes de Oliveira e
Fernando Raul de Assis Neto

UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

Reitora: Margareth de Fátima Formiga Melo Diniz


Vice-Reitor: Eduardo Ramalho Rabenhorst

Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes


Diretora: Mônica Nóbrega
Vice-Diretor: Rodrigo Freire de Carvalho

Departamento de Filosofia
Chefe: Gutemberg Pessoa R. Santos
Coordenadores da Pós-Graduação: Anderson D’Arc Ferreira e
Antonio Rufino Vieira

Endereço para correspondência


(Address for correspondence)
Universidade Federal de Pernambuco
Centro de Filosofia e Ciências Humanas
Departamento de Filosofia
Av. da Arquitetura, s/n, CFCH – 15º andar – Cidade Universitária – Recife – PE
Brasil – CEP 50.740-530

Telefones: (81) 2126.8297 – Fax: (81) 2126.8298


E-mail: perspectivafilosofica@gmail.com
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

PERSPECTIVA FILOSÓFICA

Revista dos Programas de Pós-graduação em Filosofia


da Universidade Federal de Pernambuco e da
Universidade Federal da Paraíba

Filosofia:
construindo os caminhos do ensinar
e do aprender

Organização
Prof. Dr. Junot Cornélio Matos

Volume II – N. 38 (agosto a dezembro 2012)


EXPEDIENTE

Editores
Tárik de Athayde Prata (UFPE)
Marcos Roberto Nunes Costa (UFPE)

Secretário da Revista: Hugo Medeiros (UFPE)

Conselho Editorial
Anderson D’Arc (UFPB)
Érico Andrade (UFPE)
Jesus Vazquez Torres (UFPE)
José Gabriel Trindade Santos (UFPB)
Juan Bonaccini (UFPE)
Marconi Pequeno (UFPB)
Richard Romeiro Oliveira (UFPE)
Sandro Sena (UFPE)
Tarik Prata (UFPE)
Thiago Aquino (UFPE)
Vincenzo Di Matteo (UFPE)

Comitê Científico
Enéias Forlin (UNICAMP)
Fátima Évora (UNICAMP)
Fernando Magalhães (UFPE)
Fernando Rey Puente (UFMG)
Giovanni Casertano (Università degli Studi di Nápoli )
Giuseppe Tossi (UFPB)
Juvenal Salvian (UNIFESP)
Márcio Damin (UNICAMP)
Marcelo Pimenta Marques (UFMG)
Miriam Campolina Peixoto (UFMG)
Noeli Rossato (UFSM)
Rafael Ramon Guerrero (Complutense de Madrid)
Rodrigo Jungmann de Castro (UFS)
Wilson Antonio Frezzatii (UNIOESTE)
Zeljko Lopariç (UNICAMP/PUC-SP)

Revisão Metodológica: Marcos Nunes Costa (UFPE)

Revisão Ortográfica: Profa. Sônia Sena

Capa: Yêda Bezerra de Mello

Imagem de capa: Coruja nordestina - de Rafael Ferreira Costa

Diagramação: Elvira de Paula


Apresentação

A promulgação da Lei que torna obrigatório o ensino de Filo-


sofia nos currículos do Ensino Médio, ao mesmo tempo em que signi-
fica oportunidade para a mobilização dos diferentes atores sociais, ges-
tores de políticas públicas, pesquisadores e interessado nas temáticas da
Filosofia da Educação e do Ensino de Filosofia, ensejou a realização,
numa parceria do GT, “Filosofar e Ensinar a Filosofar”, da ANPOF, da
PPG em Filosofia e do Departamento de Filosofia, Centro de Filosofia
e Ciências Humanas, da Universidade Federal de Pernambuco, do 2º
Congresso Brasileiro de Professores de Filosofia, ocorrido nos dias 12,
13 e 14 de dezembro de 2012, na cidade de Recife/PE, no campus da
UFPE.
O esforço para discutir e entender o Ensino de Filosofia tem
crescido de maneira significativa nos últimos anos. Neste debate parece
possível identificar duas posições complementares, embora exista quem
as advogue como opostas. Uma primeira perspectiva concentra-se em
pensar o ensino de filosofia como uma questão filosófica. Nesta seara
advoga-se que o fenômeno educacional do ensinar filosofia comporta
questões de natureza filosófica pois a primeira exigência refere-se à
própria concepção do que vem a ser a filosofia e da possibilidade de seu
ensino. Outra direção é a daqueles que entendem que ensinar filosofia,
enquanto atividade concernente ao trabalho da escola, refere-se a um
problema pedagógico pois implica em atividades com a organização
do trabalho pedagógico, estratégia de ensino que requer a seleção de
métodos e técnicas, de material didático e a avaliação da aprendizagem.
Neste diapasão volta-se a falar da famosa transposição didática.
Há pouco mais de três anos o Senado aprovou uma lei espe-
rada pelos profissionais de filosofia: a Lei nº 11.684/08 que altera o art.
36 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as dire-
trizes e bases da educação nacional, para incluir a Filosofia e a Sociolo-
gia como disciplinas obrigatórias nos currículos do ensino médio. Essa
lei foi, na verdade, fruto da mobilização articulada de professores de
filosofia dos diversos níveis de escolaridade, sistemas e Estados brasi-
leiros. Entretanto, sabe-se que no Brasil há um percentual significativo
de professores de filosofia no ensino médio que não possuem “forma-
ção filosófica”. Com a obrigatoriedade preconizada pela lei torna-se
necessário insistir que o ensino da filosofia para crianças e adolescentes
é um problema acima de tudo filosófico e não simplesmente de ordem
política, ideológica ou religiosa.
Esta Revista, fruto de participações e debates de excelente
nível durante o Congresso, é uma pequena mostra do longo caminho
que pesquisadores, docentes e discentes devem trilhar para consolidar a
caminhada e convocar novos parceiros para que se juntem a nós.
É importante ressaltar a importância fundamental do finan-
ciamento da CAPES e da FACEPE e da parceria com a ANPOF, atra-
vés do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar e com o Mestrado em Filo-
sofia da UFPE.

Junot Cornélio Matos


Sumário

Eixo temático

A teoria do agir comunicativo e os processos de aprendizagem


Anderson de Alencar Menezes ............................................................................. 9

Formação e ensino de filosofia


Celso João Carminati ............................................................................................. 29

Filosofia como práxis e seu ensino: relevância e prescindibilidade


da tradição filosófica para o ensino da matéria
Daniel Pansarelli ..................................................................................................... 45

Teoria Educacional e Filosofia à luz da abordagem hermenêutico-


fenomenológica de Otto Friedrich Bollnow
Ezir George Silva e Ferdinand Röhr .................................................................. 57

Alteridade e educação em Levinas


José Tadeu Batista de Souza ................................................................................. 75

Filosofia, responsabilidade e educação em Enrique Dussel


Vicente Medeiros da Silva ..................................................................................... 91

Artigos diversos

A crítica de Kripke às teorias descritivistas de nomeação


Cícero Antônio Cavalcante Barroso .................................................................... 109

Hierarquia, complexidade e coesão: a vontade de poder como


multiplicidade e as suas possíveis combinações
Mariana Lins Costa ............................................................................................... 127
Tradução

A distinção entre nomes próprios conotativos e não conotativos


John Stuart Mill....................................................................................................... 149

Normas para Submissão de Textos................................................................. 161

Revistas Permutadas................................................................................................ 163


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A teoria do agir comunicativo e os


processos de aprendizagem
The theory communicative action
and learning processes
Prof. Dr. Anderson de Alencar Menezes1

Resumo
O presente texto trata da relação entre a Teoria do Agir Comunicativo
e os Processos de Aprendizagem na ótica do pensador alemão Jurgen
Habermas. De fato, a compreensão dos Processos de Aprendizagem
em Habermas insere-se na sua compreensão de Esfera Política Pública
dentro do Estado Democrático de Direito. Deve-se, pensar, portanto, que
a aprendizagem em habermas é fundamentalmente aprendizagem social,
ética, cívica, normativa, estética e expressiva.
Palavras-Chave: Habermas, Aprendizagem, Esfera Pública.

Abstract
This present text comes up of the relation between Theory of
Communicative Action and Learning rocesses in the vision of the
German thinker Jurgen Habermas. Surely, the comprehension of the
Learning Processes in Habermas inset in the comprehension of Political
Publish Sphere in the Democratic State of Law. Should be considerate,
so, that the Learning in Habermas is fundamentally social learning, ethic,
civic, normative, aesthetics and expressive.
Keys words: Habermas, Learning, Public Sphere.

Introdução à legitimidade da problemática

Queremos pensar os processos de aprendizagem em Haber-


mas a partir de dois parâmetros fundamentais. Primeiramente, precisa-
mos perceber a distinção entre aprender e saber e, no segundo momen-
to, perceber os processos pedagógicos do aprender à luz da teoria do
agir comunicativo.
A premissa que deve orientar estas relações é a de que toda
ação educativa é imanentemente social. Como diz Paulo Freire (2005),
1
Professor Adjunto da Universidade Federal de Alagoas (Campus Arapiraca). Coordenador
do Comitê de Ética em Pesquisa e Professor dos Cursos de Letras, Arquitetura e Biologia do
Campus Arapiraca. E-mail: anderson.filosofiaufal@hotmail.com.

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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todo ato educativo é um ato político-social, em que as relações são


A teoria do agir comunicativo e os processos de aprendizagem

fruto de um processo construtivo, dialógico, crítico e emancipativo.


Nesse sentido, “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo,
os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo” ( FREIRE,
2005, p. 78).
Young (1990), ao tratar da organização da educação ilumi-
nista, tem como objetivo elevar o nível da racionalidade a fim de que
as organizações e indivíduos aprendam. Nesse âmbito de reflexão, a
crítica da “ação investigativa” (action research), um dos desenvolvimentos
mais promissores em teoria crítica da educação, tem se pautado pelo
reconhecimento similar do papel potencialmente válido de professores
e alunos no processo de mudança organizacional.
Portanto, é como diz Boufleuer:
Toda ação educativa se apresenta como uma ação
social. Assim, indiferentemente de compreender-
mos a educação ou como um ato de construção de
conhecimento, ou como uma prática da liberdade,
ou como um processo de formação humana, sem-
pre estaremos pressupondo que se trata de uma
ação social ou de uma interação. Esse ponto de
partida é fundamental, já que os conceitos de agir
comunicativo e de agir estratégico [...] se aplicam
a contextos de interação humana em que as ações
particulares necessitam ser coordenadas. À luz
desses dois conceitos, que representam distintos
modos de ação social definidos com base no me-
canismo de coordenação utilizado, podemos, ago-
ra, refletir criticamente sobre o agir pedagógico (
2001, p. 82).

Assim, é preciso fazer um corte metodológico, ou seja, per-


ceber os processos pedagógicos à luz da teoria da ação comunicativa
no que toca à dimensão da aprendizagem a partir de uma relação mais
ampla e complexa. Para efeitos didáticos, parte-se dos textos de Charlot
(2000) e Canário (2006) que tentam compreender as figuras do “apren-
der” como uma intuição original para uma compreensão ulterior do

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processo pedagógico. E, no segundo momento, compreenderemos os

Anderson de Alencar Menezes


sentidos da aprendizagem a partir de uma ótica habermasiana na leitu-
ra que faz Pinto (1996), em sua obra A Formação Humana no Projeto da
Modernidade, da relação existente entre os diversos mundos e as apren-
dizagens daí decorrentes.
Charlot (2000) diz que a questão do aprender é uma questão
mais complexa e estrutural do que o saber e compreende essa relação
de duas maneiras que se auto constituem. Primeiro, existem formas
de aprender que não significam, necessariamente, apropriar-se de um
saber, de forma estrita, de um conteúdo específico. E, por outro lado,
ao mesmo tempo que procura este tipo de saber (conteúdo de pensa-
mento), estabelece outras relações com o mundo circundante, no que
se traduz em diversas aprendizagens.
Há aqui uma dupla relação com o saber: epistêmica e identitária.
A forma epistêmica do aprender se estabelece na forma de saberes-
-objetos. Na primeira relação mencionada, é interessante observar uma
distinção que Charlot (2000) faz de duas relações epistêmicas: aprender
a nadar e aprender a natação – uma é uma atividade do aprender que
domina, e a outra é uma relação que se estabelece de forma conceitual
(saber-objeto). O que se deve considerar é que o aprender se reveste de
várias facetas concebidas a partir do domínio de uma atividade que se
estende até o âmbito de uma relação.
Por sua vez, há uma relação de identidade com o saber, pois
toda relação com o saber é uma relação consigo mesmo, com o outro
e com o mundo circundante. O aprender possibilita uma relação in-
trinsecamente identitária, já que o saber-objeto é uma das formas do
aprender que se dá mediante a relação, no caso habermasiano, median-
te a interação dos sujeitos. Nesse sentido, o aprender se dá mediante
uma relação eminentemente intersubjetiva, já que não há, na perspec-
tiva habermasiana, um aprender autêntico, ou seja, que tenha validade
se não for reconhecimento intersubjetivo, quer dizer, que tenha sido
consensualmente aceito por todos.
Na percepção de Canário (2006), são seis as características
essenciais das figuras do aprender. Em primeiro lugar, a aprendizagem

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é um trabalho que o sujeito realiza sobre si próprio; em segundo lu-


A teoria do agir comunicativo e os processos de aprendizagem

gar, a aprendizagem coincide com o ciclo vital de cada pessoa, ou seja,


aprender é sinônimo de “aprender a ser”. Aqui, dos pontos de vista
epistemológico e empírico, ganham especial realce as concepções re-
forçadas pela corrente das “histórias de vida” que, a partir das aborda-
gens biográficas, põem em relevo as questões da aprendizagem (como
as pessoas se formam?) em detrimento do ensino (como se ensinam as
pessoas?); em terceiro lugar, a aprendizagem se inscreve num processo
amplo e multiforme. Merecem atenção especial aqui as aprendizagens
não formais como matriz de referência para pensar e analisar os pro-
cessos de aprendizagem. Em quarto lugar, a aprendizagem é um pro-
cesso em que os papéis de quem ensina e de quem aprende podem ser
reversíveis; em quinto lugar, a aprendizagem caracteriza-se por ser um
trabalho que ocorre em todos os contextos, dentro e fora do âmbito es-
colar, pois a maior parte dos contexos educativos não são, obviamente,
contextos escolares; e, em sexto lugar, a maior parte das aprendizagens
não são o resultado de uma ação deliberada e intencional, sob a forma
de uma atividade de ensino; ou seja, existem outras aprendizagens que
extrapolam o âmbito estritamente da sala de aula.
Por sua vez, no âmbito das figuras do aprender em caráter
habermasiano, mencionam-se duas chaves interpretativas utilizadas por
Habermas quando se trata das questões ligadas à aprendizagem huma-
na no seu sentido mais amplo.
A partir das teorias cognitivistas oriundas do pensamento de
Piaget e Kohlberg, a primeira ligada à teoria do desenvolvimento, e a
segunda ligada às evoluções da moralidade, compreende-se como, em
Habermas, a aprendizagem cognitiva é, basilarmente, aprendizagem
social, já que o sujeito não é norma para si mesmo, pois é na relação
intersubjetiva, ou melhor dizendo, na construção do consenso, que a
aprendizagem se desenvolve chegando a estágios cada vez mais ela-
borados e complexos nas resoluções e encaminhamentos para a vida
humana.
Portanto, a aprendizagem, nesse sentido, retomando Charlot
(2000), é mais complexa que o saber, se aqui entendermos o saber en-

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quanto saber-objeto circunscrito pela educação escolarizada. O fato é

Anderson de Alencar Menezes


que o aprender, em sentido habermasiano, comporta estruturas cog-
nitivas e sociais que vão além dos raciocínios lógicos e dedutivos e
passam a implicar uma interação mediada pela linguagem com o mun-
do social. O sujeito aprende na medida em que é descentrado do seu
mundo, utilizando aqui uma perspectiva piagetiana, e quando as esferas
do mundo racional são, cada vez mais, justificadas por princípios uni-
versalizáveis, ou seja, em que a pretensão moral de uma escolha é discu-
tida e consensuada por todos os participantes. Nesse sentido, Piaget e
Kohlberg, ambos de distintos modos, são instrumentais para a herme-
nêutica habermasiana do conceito fundamental de aprendizagem. Os
procedimentos linguísticos se inserem aqui num contexto mais amplo
e alcançam, cada vez mais, níveis de profundidade em que emergem os
sujeitos em discussão. Portanto, a competência discursiva é um dos ob-
jetivos da teoria habermasiana, seguindo as normas e os critérios para a
participação de uma comunidade discursiva, critérios estes válidos para
o desenvolvimento das estruturas cognitivas e pragmáticas.
Em conformidade com Habermas, portanto:
Kohlberg comparte com Piaget um conceito de
aprendizagem construtivista. Este baseia-se nas
seguintes suposições: primeiro, a suposição de que
o saber em geral pode ser analisado como um pro-
duto de processos de aprendizagem; depois, que o
aprendizado é um processo de solução de proble-
mas no qual o sujeito que aprende está ativamente
envolvido; e, finalmente, que o processo de apren-
dizagem deve poder se compreender internamente
como a passagem de uma uma interpretação X1 de
um dado problema para uma interpretação X2 do
mesmo problema, de tal modo que o sujeito que
aprende possa explicar, à luz de sua segunda inter-
pretação, por que a primeira é errada. É na mes-
ma linha de pensamento que Piaget e Kohlberg
estabelecem uma hierarquia de níveis ou ‘estádios’
de aprendizagem distintos, sendo que cada nível
particular é definido como um equilíbrio relativo
de operações que se tornam cada vez mais com-

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plexas, abstratas, gerais e reversíveis... Kohlberg


A teoria do agir comunicativo e os processos de aprendizagem

acrescenta a isso outras hipóteses sobre a interação


entre o desenvolvimento sócio-moral e cognitivo
(1989, p. 49-53).

Nesta perspectiva, Habermas retoma Piaget como instrumen-


tal de compreensão para o desenvolvimento das estruturas do eu e para
a percepção da evolução das visões de mundo e o seu consequente
descentramento nos mundos objetivo, social e subjetivo.
Coutinho (2002) salienta a correspondência entre Habermas
e Piaget, no que se refere à distinção piagetiana das quatro fases de
desenvolvimento. São elas: a) simbiótica (não existe separação entre su-
jeito e objeto); b) egocêntrica (embora chegue a fazer separação entre o
seu eu e o meio, a criança não consegue compreender e julgar situações
que difiram do seu ponto de vista); c) sócio-cêntrica/objetivista (fase no
termo da qual se está apto para uma objetivação da natureza externa e
a dominar todo um sistema de atos de linguagem e a pôr, em relações
complementares, expectativas de comportamentos generalizados); d)
universalista (fase na qual os adolescentes se libertam, progressivamen-
te, do dogmatismo da fase de desenvolvimento anterior, fora do qual
são capazes de conduzir discursos racionais, através dos quais o sistema
de demarcações do eu se torna reflexivo, sendo capazes de ir além de
uma atitude objetivista, face à natureza, e de quebrar o socientrismo de
uma ordem das coisas que lhes foi legada pela tradição).
Nesse sentido, a aprendizagem é percebida de forma mais
complexa e estruturante, pois, indo além de uma aprendizagem cog-
nitiva, a relação intersubjetiva nos faz entender todo o processo de
aprendizagem. E, aqui, refiro-me mais propriamente ao contexto da
sala de aula em que a aprendizagem deve possibilitar a abertura para
outros horizontes educativos, tais como a aprendizagem social, na qual
a discussão das normas sociais que legitimam o fazer quotidiano são
amplamente discutidas na escola, em seu interior e em outras instâncias
educativas.
No âmbito mais subjetivo, faz-se notar a importância do
mundo habitado pelos alunos e pelos profissionais da educação. No

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âmbito do processo de interação entre sujeitos capazes de fala e ação,

Anderson de Alencar Menezes


em que as vivências subjetivas vão além de todo cognitivismo de uma
pedagogia tradicional que valoriza unicamente o saber-objeto, a pers-
pectiva de uma práxis pedagógica, entendida a partir da teoria da ação
comunicativa, é plenamente devedora de um mundo simbolicamente
estruturado e interpretado segundo as interações mediadas pela fala.
Nesse sentido, caracteriza-se como uma aprendizagem que
sublinha a importância dos sentimentos, das vivências e das paixões
vivenciadas pelos alunos e que nos faz entender que a escola tem um
papel fundamental no desenvolvimento da dimensão lúdica e afetiva
(mundo pré-interpretado linguisticamente) dos alunos e dos profes-
sores, bem como em relação à dimensão estética do gosto, do prazer,
da sensibilidade e da memória. Isso porque a arte, em seu sentido crí-
tico, cumpre um papel educativo por excelência no desenvolvimento
de uma identidade do eu em constante relação com uma aprendizagem
social simbolicamente estruturada.
Conforme Young (1990), a teoria crítica da educação leva a
processos descentralizados de aprendizado. Aqui se evidencia a relação
intrínseca, no seio da teoria crítica em educação, do que pode significar
um elo pedagógico interno entre o estilo administrativo e o nível de
aprendizado da evolução social representado pela democracia – seria o
nível da formação volitiva, baseado na discussão racional aberta.
Portanto, para Habermas, o processo de aprendizagem é um
processo de descentralização de certas estruturas fixas e rígidas e passa
por um processo de formação da vontade numa sociedade explicita-
mente democrática. Nesse sentido, Young nos ajuda a compreender
que:
A perspectiva de Habermas, em relação aos pro-
cessos de resolução do problema democrático, é
baseada em uma posição levemente diferente da
de Walker. Embora o fato de que Habermas não
duvidaria em concordar com a compreensão ge-
ral dewyiana de que os modos democráticos de se
resolver os problemas sejam superiores a outros,
todavia, ele não o faria com base num argumento

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acerca do caráter inerente dos atos comunicati-


A teoria do agir comunicativo e os processos de aprendizagem

vos antes que sobre aquela análise mais pragmá-


tica de Dewey. A análise de Habermas, enquanto
concorrendo com aquela de Dewey, e geralmente
por razões similares, permanece, adicionalmente,
sobre uma análise específica do modo pelo qual
a validez, intersubjetivamente criticável, reivindica
validade em domínios que são resolvidos cogniti-
va, interpessoal e expressivamente na ação comu-
nicativa (1990, p.153).

Na leitura habermasiana dos processos pedagógicos de apren-


dizagem encontra-se o desenvolvimento de um agir crítico por parte
dos vários atores sociais envolvidos no âmbito educativo. Esse desen-
volvimento crítico toca não só nos atores educativos como em suas
estruturas organizativas, e deve-se, salientar, nesse sentido, o desenvol-
vimento do currículo a partir do modelo de Ação Crítica.
No dizer de Young (1990), o modelo de investigação ativa tem
sido aplicado ao desenvolvimento do currículo (curriculum) por Shir-
ley Grundy. Ela mostra que há uma grande correspondência entre a
discussão de Habermas acerca da organização do esclarecimento (Au-
fklärung) e os princípios da ação investigativa crítica. Grundy, citada por
Young, argumenta que a ação investigativa crítica prevê um modelo de
desenvolvimento curricular consistente com o que ela considera como
os princípios da pedagogia crítica e que profissionais liberais estão en-
gajados em um processo de autoeducação ou de pedagogia mútua em
que: 1) eles confrontam os problemas reais de sua existência; 2) eles se
empenham em um processo de conscientização; 3) eles confrontam
as distorções ideológicas; 4) eles incorporam ações com uma parte do
conhecimento.
Nesse sentido, tem-se necessidade, a partir do pensamento
habermasiano, de se postular a necessidade de uma pragmática empí-
rica nos ambientes educativos. Fica claro, a partir de muito da discus-
são precedente, que, no presente, processos situados de esclarecimento
(Aufklärung) implicarão uma sintonia fina das estruturas comunicativas,
quer dizer, formas organizacionais apropriadas e uma política que se

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preocupe com o estabelecimento de estruturas racionais de consulta e

Anderson de Alencar Menezes


de representação.
O uso de uma tal pragmática empírica nos permite identificar,
pelo processo de reconstrução dos discursos ideais, as estruturas dis-
torcidas de comunicação por meio de uma ideologia crítica direcionada
àquelas estruturas distorcidas que, de maneira alguma, pedem para ser
democráticas ou consultivas. Nesse âmbito de consideração, seu exer-
cício é uma das mais importantes salvaguardas contra usos manipula-
dores de processos aparentemente críticos.
Para Young, a pragmática empírica pode ser assumida como
um método reflexivo quando:
A pragmática empírico analítica prevê um guia
para o desenvolvimento crítico e progressivo de
estruturas e práticas de comunicação. Ela pode
prover um método reflexivo para professores e
administradores; os rudimentos que podem ser
ensinados no pré-serviço a professor-educandos.
Pode também prover uma base à educação em
serviço. Enquanto pode prover uma salvaguarda
de tipos de situações reais ou de julgamento para
se conhecer em que ponto as estruturas são mais
apropriadas à acessibilidade; o que não pode fazer
é prover a coragem de se fazer uma crítica especí-
fica arriscada (1990, p.162).

A partir dessas considerações, analiso a partir de Pinto (1996)


a relação estabelecida, e complexificada por ele, entre os mundos (ob-
jetivo, social e subjetivo) e as respectivas racionalidades (cognitiva, ética
e estética).

1 Racionalidade “Cognitivo-Instrumental” – Referida ao Mundo


Objetivo

A relação imbricada, nesta primeira ordem, é própria do mun-


do dos objetos. As descobertas científicas vêm impulsionando grandes
transformações e revoluções que incidem diretamente sobre o nosso

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modo de ser e de agir no mundo. Não se pode negar nem prescindir


A teoria do agir comunicativo e os processos de aprendizagem

da ciência, enquanto locus de novas fontes para o desenvolvimento e


expansão da espécie humana.
Os vários avanços e as últimas pesquisas científicas apresen-
tam a importância dos dados científicos para a preservação da espécie
humana. Logicamente, a ciência esclarecida hoje não pretende ser infalível.
Nesse sentido, a perspectiva assumida por Morin (2000), em sua obra
Ciência com Consciência, em que o autor se refere a Popper, apresenta o
falibilismo popperiano como um dos grandes avanços para a concep-
ção da teoria científica hoje. De fato, não há uma ciência pura, ou seja,
toda ela é imbuída de suas falsas representações da ideia do mundo real.
Um dos grandes méritos dessa obra citada de Morin (2000) é reconhe-
cer que a ciência e a técnica hoje não podem expurgar de sua natureza
constitutiva a capacidade reflexiva oriunda da razão, é como diz textu-
almente Morin:
Popper troca a certeza pelo falibilismo, porém,
não abandona a racionalidade. Ao contrário, ele
diz que o que é racional na ciência é que ela aceita
ser testada e aceita criar situações nas quais uma
teoria é questionada, ou seja, aceita a si mesma
como ‘biodegradável’. E a opinião de Popper so-
bre o freudismo e o marxismo, por exemplo, é de
que não são teorias científicas porque nunca po-
deremos provar que são falsas, isto é, os adeptos
sempre podem dizer que são os opositores, seja
na ilusão libidinal e que, por razões psicanalíticas,
recalcam a psicanálise, ou na ilusão de classe que
os faz desconhecer o verdadeiro motor da história
(2000, p. 39).

Nesse sentido, a ideia popperiana de ciência está em oposição


a uma perspectiva positivista de entender o papel da ciência hoje. Ha-
bermas, em sua obra Técnica e Ciência como Ideologia, assim comenta:
Cria-se assim uma perspectiva na qual a evolução
do sistema social parece estar determinada pela
lógica do progresso técnico-científico. A legalida-
de imanente de tal progresso parece produzir as

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coações materiais pelas quais se deve pautar uma

Anderson de Alencar Menezes


política que se submete às necessidades funcionais.
E quando esta aparência se impõe com eficácia,
então, a referência propagandística ao papel da
técnica e da ciência pode explicar e legitimar por
que é que, nas sociedades modernas, uma forma-
ção democrática da vontade política perdeu as suas
funções em relação às questões práticas e deve ser
substituída por decisões plebiscitárias acerca de
equipas alternativas de administradores (2001, p.
73-74).

Habermas (2001) discute as questões a partir de Marcuse, so-


bre a instrumentalização da técnica, em que, a partir da ideia original
do homem unidimensional, faz uma crítica à sociedade tecnicamente
instrumentalizada. Portanto, desde o final do século XIX, impõe-se
cada vez com mais força a outra tendência evolutiva que caracteriza o
capitalismo tardio: a cientifização da técnica. Isso acontece porque no
capitalismo sempre se registrou a pressão institucional para intensificar
a produtividade do trabalho por meio da introdução de novas técnicas.
De fato, o Aufklärung pretendido pela ciência e pela técni-
ca, segundo Adorno e Horkheimer, na obra Dialética do Esclarecimento,
quando trata do mito e dos avanços da técnica e da ciência numa socie-
dade administrada, apresenta os limites de um paradigma cientificizado.
Quer dizer, a ciência pretendeu ser a última resposta aos problemas
mais nefastos da humanidade. A razão instrumental, comandada pela
técnica e pela ciência, criou mundos artificiais quando expurgaram da
própria racionalidade as esferas do direito, da moral e da arte, que fo-
ram relegados a um segundo plano na ordem da vida social humana.
Ou seja, a ciência, que pretendia ser a porta de entrada para o Au-
fklärung, o esclarecimento, acabou se transformando em mito, caindo
no obscurantismo ou na barbárie.
Transportando para a ambiência escolar, Pinto assim compre-
ende:
O lugar da socialização da ciência é, evidentemen-
te, a escola; é esse o lugar privilegiado da possi-

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


20

bilidade de formação de um senso comum evo-


A teoria do agir comunicativo e os processos de aprendizagem

lutivamente esclarecido. É por tudo isso que o


ensino-aprendizagem da ciência é também o ensi-
no-aprendizagem do seu sentido antropogenético.
O sentido da ciência é, no fim de contas, o sentido
filosófico da história da humanidade. Quer dizer
que só se ensina e aprende significativamente a ci-
ência através da evocação dos contextos históricos
em que ela foi crescendo com consequências para
o mundo-da-vida. Pelo método da reconstituição
histórica, os alunos são chamados a percorrer os
três momentos temporais de uma descoberta cien-
tífica relevante: o antes, em que a motivação se
gera, o presente, da investigação em si e o depois,
em que os resultados se repercutem socialmente.
É desse modo que se oferece ensejo para a experi-
ência pedagógica da interpenetração ativa de todas
as esferas da reprodução material e simbólica do
mundo-da-vida (1996, p. 500).

Na compreensão de Habermas (2001), para os diferentes ti-


pos de conhecimentos científicos têm-se os diversos tipos de interes-
ses, portanto, pode-se nomeá-los da seguinte forma, de acordo com
Carr e Kemmis (1988, p. 149) no quadro a seguir:

INTERESSE SABER MEIOS CIÊNCIA


Técnico Instrumental O Trabalho As empírico-analíticas
(explicação causal) ou naturais
Prático Prático A Linguagem As hermenêuticas ou
(entendimento) interpretativas
Emancipatório Emancipatório O Poder As ciências críticas
(reflexão)

2 Racionalidade “Prático-Moral” – Referida ao Mundo Social

A questão prático-moral referida ao mundo social das normas


é um evocativo dos princípios norteadores e reguladores da ação huma-
na. De fato, o desenvolvimento da aprendizagem moral encontra eco

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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no pensamento habermasiano, principalmente quando trata das ques-

Anderson de Alencar Menezes


tões éticas ou das questões ligadas atualmente ao princípio pós-con-
vencional, para utilizar uma quadratura de Kohlberg. É interessante
notar essa relação no desenvolvimento da moral, pois ao evitar adotar
uma moral pré-convencional ligada à norma naturalmente instituída,
ou a uma moral convencional que apela aos valores da consciência, ele
tenta postular uma moral fundada em princípios a serem desenvolvidos
consensualmente.
Essa perspectiva remete a uma ética deontológica fundada em
princípios de per si postos em discussão por uma determinada comu-
nidade humana que estabelece como critérios a veracidade, a inteligibi-
lidade e a normatividade.
No horizonte de um pensamento pós-metafísico, ou seja, prá-
tico e intersubjetivo, a discussão, numa perspectiva dos processos peda-
gógicos de aprendizagem, deve nos ajudar a perceber que a formação
da vontade, ou dos princípios que regem a eticidade e a moralidade,
deslocam-se do campo metafísico e transcendental para um campo
mais histórico e hermenêutico.
Nesse sentido, a validade, no campo da moral prática, não está
assentada nos princípios ou valores da tradição, da religião ou da meta-
física, perspectivas que devem ser consideradas, mas que, de per si, não
se auto-legitimam na práxis interativa da vida humana.
O sentido de regulação, ou normatividade, nesse campo, ade-
re e se aplica ao campo pedagógico enquanto discussão dos princípios
deontológicos que fazem com que a justiça e a solidariedade sejam per-
cebidas indo-se além da prática do bom e do útil, discurso este próprio
de uma sociedade tecnificada e regida única e simplificadamente por
interesses técnicos que substituem os interesses práticos e críticos da
história de auto-formação da espécie humana.
Portanto, os processo pedagógicos, principalmente no âmbito
da sala de aula, devem possibilitar a formação da consciência cidadã
que passa pelo reconhecimento do outro eu na percepção das discus-
sões educativas. Formar para a dimensão prática e ética significa formar
para o sentido das relações humanas, petrificadas por uma cultura su-

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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plantada pelos interesses econômicos e falsamente políticos.


A teoria do agir comunicativo e os processos de aprendizagem

É como afirma Pinto:


E, afinal, o que mais importa, do ponto de vista
da formação moral-prática dos alunos, é que estes
sejam sensíveis aos défices da liberdade e saibam
descodificar, numa situação mudada, os novos si-
nais da relação senhor-escravo. Também aqui se
pode adotar analogicamente o ceticismo dinâmico
da epistemologia popperiana. Como no caso das
teorias científicas, trata-se de evitar o espírito da
acomodação ao estabelecido. O fato de se supor
por princípio que uma determinada ordem social
comporta virtualmente relações de força que têm
o seu efeito na repressão de interesses universali-
záveis – vistos estes à luz do historicamente possí-
vel – induz a procurar, nessa ordem, não os fatos
confirmativos da sua aparência legítima, mas aque-
les que, pelo contrário, desmentem a sua pretensão
de legitimidade (1996, p. 508-509).

O pensamento contemporâneo, no que tange à compreensão


do Direito, tem provocado inúmeras reflexões por parte de vários auto-
res dessa área de compreensão. De fato, o pensamento contemporâneo
quando trata do Direito, entende-o a partir de dois prismas principais:
da facticidade e da validade, e é daqui que se depreende a compreensão
atual do Direito. A partir destas duas categorias centrais, facticidade e
validade, o Direito se auto-compreende como normatizador e regula-
dor da postulação de um possível Estado Democrático de Direito.

3 Racionalidade “Estético-Expressiva” – Referida ao Mundo


Subjetivo

Nesse sentido, o pensamento habermasiano reveste-se de


uma profunda singularidade ao sublinhar as vivências, os sentimentos
e as paixões do Eu. Na perspectiva do descentramento dos mundos na
esteira de Piaget, a vivência subjetiva toca na atitude performativa do
Eu que fala, quando descentrado em suas formas de agir em relação ao

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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mundo dos objetos e do mundo social.

Anderson de Alencar Menezes


A Antiguidade Greco-clássica, mais especificamente a figura
de Aristóteles, concebia a ideia de mímesis como uma relação insepará-
vel entre o saber teórico e o saber prático, ou seja, uma relação de in-
separabilidade entre o conhecimento e a estética, melhor representada
pela ideia de tragédia.
Vale ressaltar a ideia de Trevisan a esse propósito:
Pesquisar a mímesis, tendo como seu motivo ins-
pirador a análise das tragédias gregas, tem ainda o
sentido de recuperar a aura e o fascínio da arte e,
com isso, da educação, de um universo ainda não
dominado pela racionalidade tecnológica. Aliás,
nada pode contrastar mais com o modelo cientifi-
cista, que excluiu as mitologias, do que buscar uma
alternativa de pensamento figurativamente exem-
plificado nas tragédias gregas, cuja matéria-prima
de construção é o mito. A arte trágica é uma téchne
que possui uma importância educativa de inegá-
vel valor histórico. Entretanto, ela não é educação
técnica, que visa ao treino de habilidades; é, sim,
medicina da alma, educação do caráter, do senti-
mento, do imaginário e até do pensamento (2000,
p. 64).

Nessa perspectiva, Aristóteles, diferentemente do seu mestre


Platão, vê na mímesis uma fonte educativa por excelência, já que a mes-
ma cumpre um papel que vai além da pura imitação, ou duplicação do
real, pois se coloca na linha da reinvenção do real. A mímesis, segundo
Aristóteles, vai retirar conteúdos dos mitos, e, nesse sentido, a narração
mítica passa a ter uma função preponderante na educação da sensibili-
dade e dos sentidos.
Na modernidade, Adorno vai recuperar essa ideia da mímesis
no mesmo sentido aristotélico e aplicá-la ao âmbito educativo. A crítica
adorniana faz referência ao Projeto Iluminista da Modernidade, em que
a mímesis é a possibilidade de se pensar o heterogêneo, o não idêntico da
lógica e da ciência matemática à luz de uma certa teoria positivista da
realidade. A partir do princípio de não identidade do ser e das formas,
Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012
24

a mímesis, em Adorno, é pensada como uma não regressão dos sentidos,


A teoria do agir comunicativo e os processos de aprendizagem

ou seja, procura banir o terror e o medo, sentimentos próprios de uma


cultura bárbara e dominada pela lógica de uma racionalidade técnico-
-científica. Daí a mímesis mostrar-se como a possibilidade de um conhe-
cimento sem dominação e sem violência.
Nesse sentido, Adorno e Horkheimer, na Dialética do Esclare-
cimento, apresentam o papel negativo que a Indústria Cultural exerce na
formação da sociedade, esta que vive sob uma espécie de tirania ou de
ditadura da razão. A razão esclarecida é bloqueada em seus aspectos
essenciais de auto desenvolvimento e emancipação, pois o seu poder é
reduzido aos interesses da técnica e da ciência modernas. A mímesis em
Adorno tem, assim, um aspecto fundamental e de importante realce.
Deve-se sublinhar, aqui, a compreensão Adorniana da mímesis, em que
ela cumpre um papel de libertação das forças e dos poderes de uma
magia que enfeitiça e dissimula o real.
O papel da mímesis em educação, segundo uma concepção
adorniana, seria o de educar para a sensibilidade e contra todo tipo de
preconceito ou de barbárie. Ou seja, fazer com que a regressão dos
sentidos ou das sensibilidades não imperem na modernidade iluminis-
ta, em que o paradoxo da tirania das trevas, em oposição às luzes, não
deixe suas marcas nas novas gerações, entre as quais a frieza e a apatia
parecem dominar certas lógicas societárias.
Nesse sentido, Trevisan nos ajuda a compreender que:
[...] o regresso de comportamentos é incentiva-
do pela indústria cultural em variadas produções,
pressionadas pelas pesquisas de opinião pública
a buscar a máxima fusão da programação com o
‘gosto’ do assistente. Diante de seu potencial, a
produção midiática ainda demonstra muito pouco
interesse e vontade em indicar caminhos, orientar
o telespectador, ou, mesmo, preocupação com as
consequências educativas das suas produções. A
recaída no círculo vicioso causa a reversão incons-
ciente do telespectador ao estágio da mímesis pri-
mitiva, do maravilhoso e do encantamento (2000,
p.101-105).

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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A semi (formação) cumpre um papel fundamental no pensa-

Anderson de Alencar Menezes


mento adorniano em que a experiência estética é suplantada por uma
razão instrumental, cuja linguagem do dinheiro e do poder reduzem a
formação humana à aquisição de competências e habilidades relegando
a segundo plano a educação fundamental para a sensibilidade humana,
aqui traduzida nos conceitos de corporeidade, alteridade e natureza.
A partir desta compreensão, Trevisan afirma que:
A educação se submeteu às mesmas categorias
da semiformação. Nesse sentido, como afirmei
anteriormente, é justificável uma aproximação da
educação como reprodução, reduplicação do exis-
tente, com a semiformação produzida pelo meca-
nismo da indústria cultural, como cópia mimética
do recalque (2000, p.109).

À guisa de conclusão

Habermas não trata de temas educacionais de forma direta,


mas o seu postulado teórico-metodológico pode servir e tem servido
de base e fundamento para as teorias educacionais na contemporanei-
dade.
A Aprendizagem sublinhada por Habermas inscreve-se num
contexto maior das interações humanas. Fundamentalmente, ele a con-
cebe a partir de uma concepção sociológica mais ampla. Portanto, a
aprendizagem é nomeadamente social, dentro do âmbito da Esfera Po-
lítica Pública.
De fato, ao retomar Jean Piaget e Lawrence Kolhberg, ambos
de formas distintas, mas complementares, vê-se que tratam da evolução
da personalidade humana: Piaget partindo do estágio psico-motor e
Kolhberg tratando dos estágios da moralidade. Nesse sentido, a apren-
dizagem ganha grande realce pelo fato de que aprendemos a partir de
uma dimensão intersubjetiva da fala, ou seja, no debate, na procura
cooperativa da verdade.
Portanto, o conceito de aprendizagem relido à luz da Teoria
do Agir Comunicativo insere-se na compreensão do Estado Democrá-

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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tico de Direito em que as aprendizagens acontecem num contexto plu-


A teoria do agir comunicativo e os processos de aprendizagem

ral e multifacetado. O primeiro princípio da aprendizagem em termos


habermasianos é de compreender que todo ser humano é autotélico,
ou seja, é fim em si mesmo, ao modo kantiano. Portanto, não pode ser
manipulado em hipótese alguma para nenhum fim: subjetivo, político
ou social.
Penso que a aprendizagem em sentido habermasiano se en-
tende a partir de uma aprendizagem cidadã, cívica, ética e moral. En-
fim, é preciso criar consensos sobre o banimento da xenofobia, do et-
nocentrismo e buscar consensos sobre a paz pérpetua, a solidariedade
cívica e o respeito às várias etnias e culturas minoritárias.

Referências

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Habermas. Ijuí: Ed.Unijuí, 2001.
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FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.
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Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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Anderson de Alencar Menezes


Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
MORIN, Edgar. Ciencia com conciencia. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2000.
PINTO, Fernado Cabral. A formação humana no projeto da humanidade.
Porto: Instituto Piaget,1996.
TREVISAN, Amarildo. Filosofia da educação: mímesis e razão comunicativa.
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our Children´s Future. USA: Columbia University, 1990.

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Formação e ensino de Filosofia1


Training and teaching philosofy
Prof. Dr. Celso João Carminati2

Resumo
O texto apresenta alguns aspectos relevantes da discussão em torno do
ensino de filosofia no Ensino Médio enquanto elementos fundamentais
para se pensar as dinâmicas da aprendizagem para os alunos de nível médio.
Tomando como ponto de partida a definição do ensino como educação
examina a questão da prática pedagógica e da formação dos professores
de Filosofia indicando a necessidade de não dicotomizar a relação “fazer
filosofia” e “aprender a filosofar”. Neste processo, propões que a prática
do ensino de filosofia deve acontecer de forma interdisciplinar e aberta
para um diálogo com conhecimentos e perspectivas diversas. Analisando
a condição humana a partir de um modo de pensar novo, não apenas
por alternativas decorrentes de programas disciplinares, muitas vezes
emergenciais e dissociados, mas a partir de mudanças dos paradigmas
e enfoques teóricos e práticos que orientam a formação e prática dos
professores, pois, é fundamental estimular o pensar para que os alunos
aprendam a Filosofia e a filosofar.

Abstract
The paper presents some relevant aspects of the discussion on the
teaching of philosophy in high school as key elements to think about the
dynamics of learning for secondary students. Taking as starting point the
definition of education as education examines the issue of pedagogical
practice and the training of teachers of Philosophy indicating the need
not to dichotomize the relationship “doing philosophy” and “learn to
philosophize.” In this process, proposes that the practice of teaching
philosophy should happen in an interdisciplinary way and to open a
dialogue with knowledge and diverse perspectives. Analyzing the human
condition from a new way of thinking, not only due to alternative
disciplinary programs often emergency and dissociated, but from changes
in the paradigms and theoretical approaches and practical oriented training
and practice of teachers as it is essential to stimulate the thinking that
students learn philosophy and philosophizing.

1
Texto para apresentação na mesa redonda: “Fundamentos Filosóficos do Ensino de Filosofia”
no 2º Congresso Brasileiro de Professores de Filosofia – Recife (12 a 14 de dezembro de 2012).
2
Professor do Departamento de Pedagogia e do Programa de Pós-Graduação em Educação/
Mestrado da Universidade do Estado de Santa Catarina. E-mail: cjcarminati@hotmail.com

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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Introdução
Formação e ensino de Filosofia

O presente texto tem por objetivo apresentar alguns aspectos


relevantes da discussão em torno do ensino de Filosofia, notadamente
aqueles voltados aos aspectos e aos fundamentos do seu ensino, en-
quanto elementos fundamentais para se pensar as dinâmicas da apren-
dizagem para os alunos de nível médio.
Nos últimos anos, o ensino de Filosofia vem passando por
algumas situações e experiências que ora o consolidam, ora o colo-
cam numa condição de expectativa. Os movimentos decorrentes da sua
reintrodução e da preocupação com a qualidade do ensino de Filosofia
nas escolas de nível médio destacam que ainda há muito por se fazer,
isso desde as metodologias até os materiais didáticos e recursos para o
seu ensino.
Diante de uma realidade que evidencia a necessidade de prá-
ticas mais articuladas com outras disciplinas do currículo, percebemos
ainda aspectos fundamentais que nos remetem a um pensar que é
disjuntivo e fragmentado. Mas, em sala de aula, como deve se apre-
sentar o professor de Filosofia? Como podemos pensar as práticas pe-
dagógicas nas salas de Filosofia, para que resultem em aprendizagens
significativas para os estudantes?
Estas e outras questões derivadas dos aspectos necessários de
se pensar a formação e de se pensar o conhecimento colocam em evi-
dência a necessária discussão de quais são, afinal, os fundamentos que
devem ou podem alicerçar as aulas de Filosofia no Ensino Médio.

1 Teoria e prática na formação

Para discutir os fundamentos filosóficos do ensino de Filoso-


fia, assim como a especificidade e o campo de ação do professor de
Filosofia, acreditamos ser possível tomarmos como ponto de partida a
definição do ensino como educação, pois isso comporta dois aspectos
importantes: o primeiro é a dissensão entre ensino e pesquisa; e o se-
gundo, a identidade entre ensino e aprendizagem. Ligada ao primeiro
aspecto, geralmente encontra-se a caracterização da escola como lu-

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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gar de repetição em detrimento da inovação e, no tocante ao segundo,

Celso João Carminati


encontra-se a caracterização do professor como filósofo-pedagogo. E
é neste sentido que “o professor precisa proceder como filósofo, sua
atividade deverá ser o exercício público da Filosofia. Em sala de aula,
ele tem de se apresentar como filósofo, isto é, o modo e o exercício de
pensamento têm de ser filosóficos” (HORN, 2000, p. 199). Além disso,
o aspecto mais importante da pesquisa se deve ao fato de que ela é a
ligação entre a teoria e a prática.
Parte-se para a prática com fundamento em uma
teoria que, naturalmente, inclui princípios meto-
dológicos que contemplam uma prática. Mas um
princípio básico das teorias de conhecimento nos
diz que as teorias são resultado das práticas. Por-
tanto, a prática resultante da pesquisa modificará
ou aprimorará a teoria da partida. E assim modifi-
cada ou aprimorada, essa teoria criará necessidade
e dará condições de mais pesquisa, com maiores
detalhes e profundidade, o que influenciará a teo-
ria e a prática (D`AMBRÓSIO, 1996, p. 43).

Tanto o ensino quanto a pesquisa comportam um conjunto


de explicitações bem conhecidas da prática docente, quais sejam a ela-
boração dos programas de aula, as formas de avaliação com provas e
trabalhos, os livros didáticos e as relações entre a escola e a família. O
planejamento de novas atividades requer que se coloque em destaque
um conjunto de ações e que estas estejam voltadas para o objetivo
central que é a aprendizagem. Nesse sentido, a didática deve ser um
recurso mais eficaz na relação ensino-aprendizagem.
Como decorrência disso, parece fundamental pensar as prá-
ticas pedagógicas dos professores que lecionam Filosofia e os funda-
mentos do ensino enquanto laboratório. Pensar um laboratório de Fi-
losofia significa exercitar os fundamentos das teorias filosóficas através
de práticas dialógicas e investigativas do grupo. Trata-se, então, de re-
pensar a formação filosófica e pedagógica dos professores – de perfil
disciplinar – no sentido de transformá-las em um projeto que possa
fazer e exercitar novas práticas educativas onde a Filosofia se constitui

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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e é constituinte para um perfil multidisciplinar. Além disso, sabe-se que


Formação e ensino de Filosofia

aprender os conceitos filosóficos como fundamentos para a aprendiza-


gem significa exercitar e desenvolver as habilidades do pensar, todavia,
estas não podem ser desenvolvidas sem que possamos ao menos elabo-
rar algumas perguntas que dizem respeito ao o que é, afinal, a Filosofia.
Quem é o professor de Filosofia? O que é de fato a prática filosófica?
E qual é, de fato, o seu estatuto epistemológico?
Considero a contribuição de Hegel muito importante nesta
discussão, principalmente quando era professor de Filosofia, tanto na
universidade quanto no ginásio. Dessa experiência, Hegel escreveu vá-
rios informes e anotações sobre o ensino dessa disciplina, opondo-se
fortemente à dissociação entre a pesquisa e seu ensino, entre ensinar
Filosofia e aprender a filosofar:
Por lo pronto, cuando se llega a conocer una ciu-
dad y se pasa después a un río, a otra ciudad, etc.,
se aprende, en todo caso, con tal motivo a viajar, y
no sólo se aprende sino que se viaja realmente. Así,
cuando se conoce el contenido de la filosofía, no
sólo se aprende el filosofar, sino que ya se filoso-
fa realmente. Asimismo el fin de aprender a viajar
constituiría él mismo en conocer aquellas ciuda-
des, etc.; el contenido (HEGEL, 1991, p.139).

A proposição de Hegel a respeito da dicotomia que comu-


mente se estabelece entre o ensinar e o aprender é explícita, mas não
categórica. Além disso, ele proclama o estudo da Filosofia como autên-
tico fundamento de toda formação teórica e prática, enquanto sabedo-
ria do mundo, na medida em que se ocupa efetivamente de assuntos
terrenos, finitos, tanto em relação à natureza quanto em relação ao ho-
mem. Do mesmo modo, aprofundando um pouco mais sua proposi-
ção, percebemos que
El estudio de la filosofía es un obrar propio, es
asimismo un aprendizaje – el aprendizaje de una
ciencia configurada, ya existente. Esta constituye
un tesoro que consta de un contenido adquirido,
dispuesto, formado; este bien heredado existente

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


33

debe ser adquirido por el individuo, es decir, debe

Celso João Carminati


ser aprendido (Ibid., p.141).

Um aspecto relevante de sua definição é que a Filosofia pode-


ria ser ensinada e aprendida como qualquer outra ciência e, desde cedo,
ele se opôs à dissociação entre aprender a filosofar e aprender Filosofia.
O aluno que a aprende, aprende a filosofar, e, na medida em que se
esforça pessoalmente, se apropria do conteúdo racional da realidade.
Contudo, há discordâncias sobre o modo de ensino dessa disciplina.
Ao destacarmos que ela poderia ser ensinada e aprendida, na prática,
isto revela uma possibilidade, mas, como ela mantém uma especificida-
de, concordamos com os argumentos a seguir:
Como não acredito que a filosofia deva ser con-
cebida e ensinada como uma disciplina, a mesmo
título que a física ou a geografia, por exemplo,
postulo uma verdadeira reformulação de seu ensino
em nossas universidades. Encontra-se hoje pulve-
rizado em microestudos ditos “monográficos” de
textos ou de autores, sem articulação, praticamen-
te informativo, sem visão de conjunto, despreocu-
pado com a formação dos futuros docentes e pesquisa-
dores. Ademais, dominado por uma visão bastante
mercantil, não de vender créditos acadêmicos, pois
são ofertados gratuitamente (nas universidades
públicas), sofre os efeitos perniciosos do monstro
administrativo que o confina nessas espécies de
repartições denominadas “departamentos”, pra-
ticamente sem portas nem janelas, sem nenhum
espírito inovador ou interdisciplinar capaz de fer-
mentar e dinamizar suas atividades pedagógicas de
ensino e metodologias de pesquisa (JAPIASSÚ,
1997, p. 75).

Nessa trajetória, vale destacar que Hegel não substituiu a Fi-


losofia e o filosofar por textos de Filosofia, mas diferenciou as concep-
ções filosóficas e a sua história. Nesse âmbito,
conhecemos não apenas o que pensaram os filóso-
fos e por que pensaram determinada coisa e não

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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outra, mas também, como pensaram. Deste modo,


Formação e ensino de Filosofia

entendemos o que é filosofia e aprendemos a fi-


losofar aos poucos, à medida que entramos em
contato com as diferentes perspectivas filosóficas
existentes, percorrendo os textos dos filósofos,
acompanhando seu raciocínio, com rigor e disci-
plina, ou seja, filosofando (ALVES, 2002, p. 126).

É claro que se pode filosofar em qualquer área do conheci-


mento, mas esta deve se basear na produção que tenha por base um
trabalho sério de reflexão, de construção do discurso coerente, de pro-
cura da unidade do diverso, de superação de contradições, enfim, que
aconteça onde a observação, a medida, a experimentação, a descoberta
e justificativa não permitem explicações lógicas.
Percebe-se uma contradição muito grande, tanto nas univer-
sidades quanto nas escolas de Ensino Médio, entre os conteúdos que
são repassados, e assim considerados ensinados, e o resultado final,
que não necessariamente resulta em aprendizagens significativas. Em
virtude do
não ensinar filosofia e sim do aprender a filosofar,
muitos programas de filosofia acabam reunindo
uma diversidade de textos, cuja abordagem, não
obstante a melhor dedicação do professor, só
pode ser algo superficial, quase sempre aborreci-
do para o estudante, frustrante para o professor e
questionável do ponto de vista pedagógico, quan-
to a seus resultados educacionais (CARMINATI,
1997, p.160).

O desafio presente é o de evitar a separação entre “ensinar


Filosofia” e “aprender a filosofar”, pois, ao tomar em consideração
apenas um desses aspectos, poderemos incorrer no risco, de um lado,
de minimizar a importância do conteúdo e o papel do professor, e,
de outro, sobrepor métodos e técnicas de ensino como respostas aos
desafios da sala de aula. Entretanto, não se trata de menosprezar um
aspecto em detrimento do outro, mas que tanto o aluno que estuda na
universidade, quanto aquele do Ensino Médio possam ser levados a

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


35

aprender a filosofar mediante o estudo da própria Filosofia.

Celso João Carminati


Contudo, não devemos nos iludir com o adágio “não se
aprende Filosofia”, pois isto pode nos levar a um comodismo ou a uma
descaracterização da disciplina. Embora a capacidade de reflexão seja
ampliada com a aplicação de procedimentos metodológicos, o que a
Filosofia tem de diferente das outras disciplinas “é que o ato de ensiná-
-la se confunde com a transmissão do estilo reflexivo, e o ensino da
filosofia somente logrará algum êxito na medida em que tal estilo for
efetivamente transmitido” (SILVA, 1992, p. 163). Este percurso não
pode ser ensinado formalmente, mas pode ser suficientemente ilustra-
do quando o professor e os alunos refazem o percurso da interroga-
ção filosófica e identificam a maneira peculiar pela qual essa disciplina
constrói suas questões e suas respostas. Contudo, é fundamental que
o professor assuma uma postura concreta sobre a Filosofia como dis-
ciplina de ensino. Não se pode pretender uma Filosofia neutra e não
se pode prescindir da reflexão filosófica, pois seria negar a própria es-
pecificidade do saber filosófico e as contribuições que este pode dar à
prática pedagógica. Nesse sentido,
penso que se não podemos prescindir da refle-
xão, tampouco podemos, nas condições do atual
ensino brasileiro – seja público ou privado e em
qualquer de seus níveis – relegar a necessária fun-
damentação a um segundo plano. A Filosofia apre-
senta, sim, um sólido terreno sobre o qual se cons-
trói toda e qualquer ação pedagógica, referenciada
numa concepção de homem, numa concepção de
conhecimento e numa concepção política. Negar a
consciência desta realidade é negar a possibilidade
de qualquer reflexão filosófica sobre o fenômeno
educacional (GALLO, 1996, p. 110).

Outro aspecto a ser acrescido é que, num programa de ensino


e nos conteúdos escolhidos, não se pode esquecer que a leitura filosófi-
ca retém o essencial da atividade filosófica. Ou então, como nos alerta
Favaretto (1995, p. 80):

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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é preciso acentuar, entretanto, que uma leitura não


Formação e ensino de Filosofia

é filosófica apenas porque os textos são filosófi-


cos; pode-se ler textos filosóficos sem filosofar e
ler textos artísticos, políticos, jornalísticos, etc, fi-
losoficamente. A leitura filosófica não se esgota na
simples aplicação de metodologias de leitura; ela é
um exercício de escuta [...]. Nossos únicos mestres
são aqueles que nos dizem ‘façam comigo’ e que,
em vez de nos propor gestos a serem reproduzi-
dos, sabem emitir signos a serem desenvolvidos no
heterogêneo.

É fundamental termos claro que não são a disciplina, as me-


todologias ou os textos de Filosofia que garantem a “atitude do filoso-
far”. Nesse sentido, torna-se importante ouvirmos aquilo que Dantas
(2002, p. 61) afirma:
a filosofia não é apenas mais uma disciplina a ser
ensinada e aprendida, mas que nela se define, se
pratica e se põe em jogo a essência e a própria na-
tureza de ensinar e aprender – ao menos na me-
dida em que entendemos a natureza do processo
educativo e a prática de ensinar e aprender, tal
como a entendeu Paulo Freire3, não como simples
transferência de conteúdos, ou mera aquisição de
habilidades específicas, sejam elas técnicas, com-
portamentais ou cognitivas, mas na verdade como
toda uma prática, todo um processo essencialmen-
te emancipatório de educação, de formação de ho-
mens e mulheres efetivamente capazes de pensar,
questionar e elucidar dialogicamente as condições
de realização de suas vidas, de sua própria história,
do próprio mundo em que existem.

Este filosofar deve se colocar numa perspectiva que evite o


dogmatismo presente na cultura em geral. Como se sabe, muitas são
as possibilidades, muitos são os pontos de vista filosóficos sobre um
mesmo objeto em estudo, e isto tem colocado o professor diante de

3
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1997.

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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situações muito diversas. Isto revela o problema da Filosofia enquanto

Celso João Carminati


disciplina. Além disso, há outro aspecto importante a ser evidenciado,
que são as perguntas sobre “o que” e “como” se conhece através da
Filosofia, uma vez que lhe são próprias a busca e a compreensão da
totalidade do ser social. Nessa busca, não é o status de “filósofo” que
garante o procedimento rigoroso e amplo, mas sua postura e rigor na
busca e na pesquisa filosófica.
Esse aspecto nos remete ao debate sobre os recursos meto-
dológicos para a formação dos alunos de Ensino Médio, em específico
aqueles que se propõem a realizar o detour na busca clara de objetivar a
sua curiosidade. Por isso, recomenda-se aos professores não propalar
um sincretismo doutrinal que habita a superfície dos problemas ou das
perguntas filosóficas, ou, muito pior, que conduza os alunos a confun-
dir os problemas filosóficos com os problemas dos filósofos.
Para além do problema do “ensinar Filosofia” e do “aprender
a filosofar”, acreditamos que o professor encontra-se diante de exigên-
cias transversais e específicas da prática filosófica. Por isso, pensamos
que o ensino dessa disciplina não seja realizado como doutrina e sim
como atividade do pensamento, e que o mesmo não seja considerado
como uma prática estranha dos diversos aspectos da vida dos alunos,
e sim como uma prática que envolve a pessoa em sua totalidade exis-
tencial e social.
O desafio é evitar que a Filosofia acabe sendo somente uma
teoria ou um discurso sobre qualquer coisa, mediante o qual não se
toma contato com a vida nem com os problemas concretos das pesso-
as. É preciso transformá-la numa experiência significativa, através de
metodologias e conteúdos que conduzam à reflexão e, ao final de seu
exercício, com o objetivo de ajudar a esclarecer um pouco mais sobre
os distintos e contraditórios aspectos do conhecimento e da sociedade.
Isto certamente poderá conduzir os alunos a uma maior consciência
da própria visão de mundo, assim como das próprias relações com os
outros e com a totalidade social.
Por isso, não podemos definir o professor de Filosofia como
alguém que simplesmente realiza discursos e produz teorias, mas como

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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alguém que toma consciência de si mesmo e dos outros, do seu ser e


Formação e ensino de Filosofia

estar no mundo, de alguém que conduz, primeiro, a sua vida filosofica-


mente. Nesse sentido, reafirmamos o papel do professor como alguém
que é também testemunha de sua desordem interior, a fim de que possa
ser testemunha de sua busca, ou seja, de se pensar no mundo de hoje.
Assim, de acordo com Japiassú (1997, p. 77), “postulo ainda que de-
vam ser mudados os conteúdos, a pedagogia e as finalidades desse ensino.
Creio que toda a formação dos futuros docentes e pesquisadores deveria ser
revista”.
Retomando aqui a pergunta feita anteriormente, destacamos
que quando se fala em ensinar sempre se pressupõe o processo de
transmitir alguma coisa (di fare um segno – fazer um sinal - como se diz
em italiano), uma vez que não podemos deixar de construir e transmitir
as marcas dos conhecimentos universalmente acumulados. Contudo, o
desafio está posto: não ensinar Filosofia no sentido de repasse de dou-
trinas filosóficas, mas criar processos e dinâmicas mediante as quais se
criam novos processos, ou seja, filosofar propriamente.

2 Crise do pensar: mudar os conhecimentos, mudar a formação

O sonho iluminista de uma razão capaz de compreender e


explicar todas as dimensões da existência humana levou-nos a uma
centralidade ou predomínio de uma razão única, ou a uma pseudorra-
cionalidade. Como consequência desse modelo, percebem-se diversas
dificuldades nos estudos e na compreensão dos problemas em geral,
constituindo-se esses empecilhos num dos maiores desafios para o co-
nhecimento, pois, à medida que os problemas se complexificam, as al-
ternativas de solução são cada vez mais fragmentadas. Existe cada vez
mais uma inadequação maior entre a realidade mais complexa, multidis-
ciplinar, transnacional e global e os saberes, cada vez mais fragmentados.
Contudo, temos de reconhecer que houve grandes avanços no conheci-
mento a partir das especializações disciplinares, embora muitos desses
progressos estejam dispersos, por causa das especialidades que os frag-
mentam. Isto vale para todas as Ciências e as Humanidades em geral.

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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Com relação ao ensino de Filosofia no Ensino Médio, o pro-

Celso João Carminati


fessor deve ter por compromisso a reflexão sobre os problemas huma-
nos em geral. Embora se anuncie o seu caráter de formação interdis-
ciplinar, infelizmente ela tem-se tornado cada vez mais uma disciplina
fechada sobre si mesma, ou seja, os estudos que advêm das pesquisas
da maioria desses profissionais, sobretudo os das universidades, têm-se
voltado para áreas do conhecimento muito específicas, de interesse de
uma pequena comunidade.
Contudo, atualmente, parece haver uma certa preocupação
da Filosofia na relação com as demais disciplinas. Nos documentos
orientadores dos Currículos, se faz o anúncio de que ela, enquanto
pertencente à área das Ciências Humanas e suas tecnologias, deve ter
o compromisso de estabelecer relações concretas com as disciplinas da
mesma área e com as demais. Além disso, almeja-se que o estudante, ao
final do seu curso, esteja habilitado ao desempenho de um conjunto de
funções e papéis, tanto profissionalmente quanto em nível social.
Por isso, acreditamos que a Filosofia deve realizar sua tarefa
começando por “interrogar nossa condição humana” a fim de que
possa conhecer primeiro nossa posição no mundo. De acordo com
Morin (2002), “os problemas fundamentais e os problemas globais es-
tão ausentes das ciências disciplinares”. A tarefa, então, é suplantar essa
realidade, mas isto não se faz senão a partir de um modo de pensar
novo, não apenas por alternativas decorrentes de programas disciplina-
res, muitas vezes emergenciais e dissociados, mas a partir de mudanças
dos paradigmas e enfoques teóricos e práticos que orientam a forma-
ção e prática dos professores.
O conhecimento do mundo como mundo é ne-
cessidade, ao mesmo tempo, intelectual e vital. É
problema universal de todo cidadão do novo milê-
nio: como ter acesso às informações sobre o mundo e como
ter a possibilidade de articulá-las e organizá-las? Como
perceber e conceber o Contexto, o Global (a relação todo/
partes), o Multidimensional, o Complexo? Para articular
e organizar os conhecimentos e assim reconhecer

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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e conhecer os problemas do mundo, é necessária


Formação e ensino de Filosofia

a reforma do pensamento (MORIN, 2002, p. 35).

Conhecer informações, dados isolados, partículas, elementos


e conceitos originários desse saber é imprescindível no processo de
conhecimento, ou de ensino e aprendizagem. Trata-se de distinguir os
saberes que reduzem a dimensão dos problemas dos saberes que dis-
tinguem e unem forças capazes de responder às complexas dinâmicas
sociais. Nesse sentido, “o global é mais que o contexto, é o conjunto
das diversas partes ligadas a ele de modo inter-retroativo ou organi-
zacional. Dessa maneira, uma sociedade é mais que um contexto: é o
todo organizador de que fazemos parte” (Ibid., p. 37).
O conhecimento, para além das características disciplinares,
deve reconhecer o seu caráter multidimensional, pois não se pode iso-
lar uma parte do todo e nem mesmo as partes umas das outras. Os
elementos sociais, como o econômico, o sociológico, o religioso, o filo-
sófico, etc, enquanto constitutivos do todo, devem ser tomados e com-
preendidos como dentro de uma dinâmica de complexidade. É preciso
reconstruir o todo para que se possa conhecer as suas partes, mesmo
que isso pareça uma tarefa impossível, imediatamente.
Em geral, “a educação deve promover a ‘inteligência geral’
apta a referir-se ao complexo, de modo multidimensional e dentro da
concepção global” (Ibid, p. 39). Mesmo quando se trabalha com a His-
tória da Filosofia, seus distintos movimentos e posturas frente às di-
versas dimensões da vida humana e social, o que se observa é que os
problemas humanos desaparecem em benefício dos problemas técni-
cos particulares.
Por isso, quanto mais os problemas se tornam
multidimensionais, maior é a incapacidade de pen-
sar sua multidimensionalidade; quanto mais a crise
progride, mais progride a incapacidade de pensar
a crise; mais os problemas se tornam planetários,
mais eles se tornam impensáveis. Incapaz de con-
siderar o contexto e o complexo planetário, a inte-
ligência cega torna-se inconsciente e irresponsável
(MORIN, 2002, p. 43).

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


41

Nesse sentido, perguntamos: de que maneira é possível repen-

Celso João Carminati


sar novas relações entre a universidade e as escolas de Ensino Médio
a partir dos cursos de formação inicial dos professores de Filosofia?
De que maneira os programas das disciplinas podem ser flexibilizados
pelo professor para que se interconectem com os de outras disciplinas?
Dizendo de outro modo, é possível realizar esse movimento sem atri-
buir à Filosofia uma perda da sua especificidade? É possível estabelecer
conexões enquanto tentativa de explicar os diversos nexos existentes
entre os conhecimentos de uma mesma área para compreender uma
realidade ou um objeto de formas distintas? O professor está sendo
preparado para isso? É possível fazer com que o ensino de Filosofia
seja uma alternativa à fragmentação dos saberes e, dessa forma, con-
tribuir como componente individual na construção de uma visão mais
integral do currículo?
Essas perguntas, naturalmente, não podem ser respondidas
com tanta facilidade, pois isto pode equivaler a uma adequação utilitária
dos seus conteúdos a práticas ou resultados específicos. Porém, uma
alternativa que parece muito interessante é a de se sugerir a introdução
nos programas tradicionais disciplinares, de algumas temáticas especí-
ficas da atualidade, para que possam ser trabalhadas em forma de pro-
blemas, cujas características proporcionem relações multidisciplinares.
E, além disso, é importante concebermos o currículo como estratégia
para a ação educativa. Todavia,
o ponto crítico é a passagem de um currícu-
lo cartesiano, estruturado previamente à prática
educativa, a um currículo dinâmico, que reflete o
momento sociocultural e a prática educativa nele
inserida. O currículo dinâmico e contextualizado
no sentido amplo. Mas, o currículo cartesiano,
tradicional, baseado nos componentes objetivos,
conteúdos e métodos, obedece a definições obso-
letas de objetivos de uma sociedade conservado-
ra. Nessas condições ensinam-se conteúdos que
num determinado momento histórico tiveram sua
importância e que são transmitidos segundo uma

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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metodologia definida a priori, sem conhecer os


Formação e ensino de Filosofia

alunos (D`AMBRÓSIO, 1996, p. 42)4.

Ao desenvolver os distintos aspectos conceituais de uma te-


mática específica, o professor poderá estabelecer relações conceituais
históricas que possam definir e referir-se com outras áreas do saber na
forma de textos colaborativos. Um dos desafios é estabelecer interco-
nexões dos conhecimentos com formas atualizadas para a aprendiza-
gem. Isto pode contribuir para uma melhor relação entre o professor
e aluno, além de aumentar a diversidade de estilos comunicativos para
que diminuam a passividade e o desinteresse pela disciplina. Além dis-
so, “a função do professor é a de um associado aos alunos na consecu-
ção da tarefa, e consequentemente na busca de novos conhecimentos.
Isto quer dizer, deve haver pesquisa no processo” (Ibid., p. 43).

Considerações finais

Este se torna um desafio a ser superado, ou seja, é preciso


pensar em metodologias alternativas de trabalho, ainda que seja um
ponto de difícil inflexão, pois, na tradição cultural ocidental, tem-se
afirmado como método próprio de ensino da Filosofia a comunicação
oral, desde a sua história na Filosofia, a escola pitagórica, a maiêutica
socrática, os diálogos platônicos e o liceu de Aristóteles, onde os co-
nhecimentos eram transmitidos do mestre ao discípulo. Por isso, é fun-
damental estimular o pensar para que os alunos aprendam a Filosofia
e a filosofar.
Para compreender melhor os fundamentos do ensino de Filo-
sofia, a realidade e a dinâmica da formação nas escolas de Ensino Mé-
dio, faz-se necessário termos clareza da importância do diálogo como
caminho metodológico e da pesquisa como diretriz para a construção
de alternativas possíveis para o ensino e o aprendizado da Filosofia.
As temáticas que dizem respeito à formação dos professo-

4 Vale ressaltar que não é nosso objetivo discutir especificamente as temáticas e enfoques em
torno do currículo, embora seja um aspecto fundamental a ser retomado noutro momento.

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res de Filosofia na atualidade e que remetem a repensar a sua prática

Celso João Carminati


enquanto responsáveis pelas aulas no Ensino Médio devem indicar as-
pectos mais modernos de ensino e de pesquisa. E além disto, o que nos
cabe perguntar é em que medida essa disciplina pode contribuir para a
aquisição de competências. Ou então: quais são de fato as competên-
cias necessárias ao educando que conclui o Ensino Médio e em quais
aspectos a Filosofia poderá contribuir nesse processo? E o professor
está preparado para este papel?
Pelo exposto, temos pela frente grandes desafios e estes indi-
cam que a formação dos professores, tanto em nível inicial nos cursos
de graduação, quanto em nível continuado nas escolas, deve ser colo-
cada em evidência, pois as competências exigidas pelos documentos
oficiais colocam o foco em conteúdos específicos e estes, muitas vezes,
são indicativos de que o ensino deve se orientar por escolhas muito
pontuais, fragmentadas, tendo reduzidas as liberdades e as escolhas dos
professores.

Referências

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Autores Associados, 2002.
CARMINATI, Celso João. O ensino de filosofia no II grau: do seu
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In: BICUDO, Maria A. V.; SILVA JUNIOR, Celestino A. da. Formação do
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GALLO, Sílvio. A filosofia e a formação do educador: os desafios da
modernidade. In: BICUDO, Maria A. V.; SILVA JUNIOR, Celestino A. da.
Formação do educador. São Paulo: Unesp, 1996, vol 2.

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44

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Formação e ensino de Filosofia

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HORN, Geraldo Balduíno. Filosofia no ensino médio. In: KUENZER,
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JAPIASSÚ, Hilton. Um desafio à filosofia: pensar-se nos dias de hoje. São
Paulo: Letras & Letras, 1997.
MORAES, Maria C. M. Jogos de fragmentos, horizontes de mediações:
onde fica o
MORIN, Edgar. Os Sete Saberes necessários à educação do futuro. São
Paulo/Brasília: Cortez/UNESCO, 2002.
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Avançados. São Paulo, 1992. p 157-166.

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


45

Filosofia como práxis e seu ensino:


relevância e prescindibilidade da tradição
filosófica para o ensino da matéria
Philosophy as praxis and the philosophy teaching:
relevance and dispensability of
philosophical tradition
Prof. Dr. Daniel Pansarelli1

Resumo
Partindo de uma definição de Filosofia relacionada ao campo da práxis,
portanto, dando à matéria a obrigação de influir na – e ser influenciada
pela – realidade contextual em que é praticada, pretende-se refletir
dialeticamente acerca das contribuições que a milenar tradição filosófica
oferece ao ato de filosofar e ao seu ensino. Tomar-se-ão, por um lado, as
relevantes contribuições que a tradição oferece ao docente, ao docente-
filósofo e ao estudante, sobretudo como ampla e peculiar fonte cultural,
imprescindível à realização da educação filosófica como paideia ou como
bildung. Em oposição dialética, serão esboçados caminhos para a práxis
filosófica que não ocorra tendo na tradição o elemento fundamental
ou mesmo marginalmente presente. Nessa segunda vertente, serão
valorizadas competências próprias ao fazer filosófico bem como caminhos
não tradicionais pelos quais tais competências podem alternativamente
ser alcançadas. Por fim, serão explicitadas as vantagens oferecidas pela
valorização da tradição como componente do ensino de Filosofia, ao
mesmo tempo em que serão apontados os riscos castradores – portanto
antifilosóficos – oferecidos pela força de sua história. Buscar-se-á, assim,
fugir do maniqueísmo fetichista no trato da questão, oferecendo aos
docentes oportunidade de reflexão e diálogo acerca de um desejável
pluralismo metodológico.
Palavras-chave: práxis, tradição, ensino, pluralismo metodológico.

Abstract
By comprehending the philosophy as praxis, we give it an obligation to
influence - and be influenced by - contextual reality in which it is held.
This paper intends to reflect dialectically about the contributions that the

1
Doutor em Educação e doutorando em Filosofia pela USP, professor na UFABC, já tendo
coordenado o Bacharelado em Filosofia e atualmente coordenando a Licenciatura em
Filosofia. Líder do grupo Perspectivas críticas da filosofia moderna e contemporânea; membro do GT
Ética e Cidadania, da ANPOF; e da Associação Latino-americana de Filosofia da Educação. Site: www.
pansarelli.org. E-mail: pansarelli@gmail.com.

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


46
ancient philosophical tradition offers to the philosophical teaching. We will
Filosofia como práxis e seu ensino: relevância e prescindibilidade da tradição filosófica para o ensino da matéria

take the relevant contributions that tradition offers to the teacher, to the
philosopher-teacher and to the students, particularly as large and peculiar
cultural source, indispensable to the development of a philosophical
education as paideia or as Bildung. In a dialectical opposition, we will
present ways to philosophical practice that is not effected grounded
in tradition. In this second part, will be valued philosophical skills and
nontraditional ways by which such skills could be achieved. Finally, the
advantages offered by the appreciation of the tradition will be explained
as well as the risks offered by virtue of its history.
Keywords: Praxis, traditions, teaching, methodological pluralism.

O problema da definição
Entre os filósofos brasileiros de nossos dias parece perma-
necer, como regra geral, um hábito que é objeto de crítica filosófica
há pelo menos meio século. Trata-se da ausência da reflexão acerca
do sentido próprio do filosofar. Não se trata de defender a assunção,
pelo filósofo, de uma definição única que deverá permanecer imutável
durante sua carreira, mas, antes, cobrar uma reflexão que possa orien-
tar sua atuação, práxica, filosófica, oferecendo inclusive elementos para
uma autoavaliação constante. Com efeito, como saber se a produção
que realizamos é efetivamente filosófica, uma vez que não incluímos
nela a explicitação sobre o que consideramos ser próprio do e perti-
nente ao filosofar? E há que se considerar, ainda, que a criação ou ela-
boração de uma concepção de Filosofia ou de ato de filosofar implica,
evidentemente, os rumos e os limites da Filosofia a ser desenvolvida
pelo filósofo em questão, de modo que a resposta à pergunta acerca do
que seja a Filosofia se faz necessária por esse segundo motivo: não só
oferecer um parâmetro para a (auto)avaliação acerca da existência ou
não do caráter filosófico na produção realizada, como também permitir
a compreensão prévia dos limites e potencialidades existentes em tal
produção, conforme imposição da concepção adotada.
Ao longo de toda a tradição filosófica, autores dos mais diver-
sos se impuseram a tarefa de refletir acerca da questão sobre o sentido
da Filosofia, seja um grego como Platão, que não se nega a fugir de seu
estilo mais comum para oferecer aos leitores, na Apologia2; um Sócrates
2
Principalmente em 20c-24b, mas considerando também os desdobramentos práxicos em

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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que expõe os princípios do seu próprio filosofar; sejam pensadores

Daniel Pansarelli
contemporâneos, a exemplo de Heidegger (1973) ou Ortega y Gasset
(2010), ambos autores de reflexões cuja prioridade explícita era a defi-
nição de suas próprias compreensões acerca do que consideravam ser a
Filosofia. Mas a relevância das reflexões sobre o tema parece não tocar
a produção filosófica brasileira, como observa, por exemplo, Severino,
ao estudar nossa produção filosófica contemporânea e constar como
uma das
atitudes fundamentais que delineiam o estilo es-
pecífico do filosofar brasileiro [...] o fato de que o
praticante da filosofia entre nós nem sempre reve-
la uma preocupação marcante em se posicionar ex-
plicitamente quanto ao sentido da tarefa do filosofar. Parte
direto para sua atividade de análise, de reflexão e
de crítica, que ele julga como filosófica, e assim
desenvolve seu esforço, incorporando, com sua
atitude, o ditado de que nadar se aprende nadando
(SEVERINO, 1999, p. 24-5).

A ausência da reflexão acerca do sentido do filosofar, aponta-


da por Severino, vincula-se à segunda e última característica que o autor
identifica como marcante em nossa produção filosófica, a que “a grande
maioria de nossos pensadores desenvolve seu esforço teórico deixando-se guiar por
algum modelo filosófico já constituído” (1999, p. 24). Talvez permaneça válida
a explicação para o mesmo fato que já dava Cruz Costa em meados do
século passado, ao observar existir
na história da nossa inteligência [...] a mais com-
pleta e desequilibrada admiração por tudo que é
estrangeiro, – talvez uma espécie de ‘complexo de
inferioridade’ que deriva do afastamento em que
se mantiveram, por muito tempo, as nossas elites
em relação aos problemas concretos da terra e do
povo e que, talvez, também se explique em função
da situação colonial em que por longo tempo vive-
mos (CRUZ COSTA, 1956, p. 18).

28a-35d.

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


48

Para o praticante da Filosofia, o filósofo, a ausência da adoção


Filosofia como práxis e seu ensino: relevância e prescindibilidade da tradição filosófica para o ensino da matéria

de uma concepção clara sobre o sentido da matéria parece trazer ao


menos o inconveniente da indefinição acerca do caráter filosófico de
sua própria produção: sem uma concepção que lhe sirva de parâmetro,
parece ser difícil, se não impossível, aferir se sua produção atende ou
não à especificidade que se espera de um texto filosófico. Talvez derive
dessa condição a ampla preferência por produzir como filosofia textos
que se caracterizam por comentar as obras dos filósofos consagrados:
sem poder arriscar-se por caminhos mais autorais, desparametrizado
que está, o filósofo protege-se sob a forma única do texto monográ-
fico, amplamente amparado por suas citações as quais, pretensamente,
garantem a dimensão filosófica de seu próprio texto. Mas, ao filósofo
que exerce a docência da matéria, tal inconveniente é duplamente po-
tencializado: primeiro, no sentido de favorecer a difusão de uma prá-
tica que não poderá seguramente definir como filosófica; segundo, na
dificuldade que certamente terá na consecução de seus objetivos de
ensino, bem como na seleção de seus conteúdos, os quais não poderão,
de qualquer modo, levar adiante uma proposta de ensino cujo campo
constitutivo não fora evidenciado.
Na busca por construir uma concepção razoável ao desen-
volvimento dos argumentos deste texto, considero que a aproximação
entre Filosofia e ensino remete a alguma forma de práxis, na medida
em que faz parte de um mesmo tema – ensino de Filosofia – o cam-
po tradicionalmente teórico da Filosofia e a dimensão invariavelmente
prática contida na atividade de ensino. Proponho, assim, que tomemos
a Filosofia como práxis, em um sentido particular3: uma práxis que
parta da realidade mais imediata, tal como percebida pelos estudantes,
passe, num segundo momento, à reflexão mais profunda, comumente
abstrata, própria dos estudos filosóficos; e que retorne à realidade, em
seguida, na condição de possibilidade de intervenção refletida. Trata-
-se de um modelo, portanto, em que o conteúdo filosófico ocupa o
momento intermediário, de “negação” da realidade imediata para pos-
3
Uma complementação dessa hipótese de definição do sentido do filosofar está apresentada
em A filosofia e a universidade (PANSARELLI, 2010).

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


49

teriormente retornar a ela, com o que deverá ser uma visão mais ampla

Daniel Pansarelli
e aprofundada da mesma realidade. Tomo, assim, aspectos não filosófi-
cos como início e fim de cada ciclo do processo, garantindo à abstração
filosófica o papel de mediadora, que terá por objetivo a ampliação dos
horizontes na significação do mundo pelo estudante.

O lugar da tradição e os objetivos do ensino4

Ao tomar como concepção orientadora do ensino de Flosofia


a noção de Filosofia como práxis, que parta da realidade e a ela vol-
te, passando pela abstração e reflexão propriamente filosóficas apenas
na etapa intermediária, fica entendido que é justamente esse momento
intermediário o espaço que pode ser ocupado pela vasta tradição filo-
sófica. Não poderia ser diferente se entendemos, como apontado, que
a realidade imediata dos estudantes deva ser tomada como ponto de
partida da reflexão, e que o ponto de chegada de cada ciclo do fazer fi-
losófico deva se encerrar na própria realidade, lida pelos mesmos estu-
dantes, agora com maior profundidade e amplitude. Se não é em meio
à tradição filosófica que vivem tais estudantes, se não são os temas
clássicos da Filosofia aqueles que se lhes impõem à reflexão, ao menos
tal como em sua percepção, não poderá o professor tomar a própria
tradição nem como ponto de partida, nem como ponto de chegada.
A definição de um sentido para o filosofar (como práxis) e
mesmo a compreensão do lugar que a tradição filosófica ocupa (mo-
mento intermediário, abstrato) no movimento de cada ciclo filosófico
não dispensam a reflexão acerca das potencialidades que tal tradição
oferece ao ensino da matéria. Para avançar na questão, parece neces-
sário considerar quais são os objetivos de tal ensino, compreendendo
que eles podem ser mais pertinentes a um ou outro tipo de categori-
zação, mais ou menos próprios a um tipo de natureza. Eles podem – e
devem – variar quanto a sua natureza, pois, ainda que interligados, ob-

4
A divisão, para fins didáticos, dos tipos de “objetivos do ensino” pauta-se na tipificação
dos conteúdos tal como adotada nos PCN’s de áreas diversas, realizada em consonância com
Delors (2010).

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


50

jetivos de ensino podem apresentar-se como prioritariamente ligados


Filosofia como práxis e seu ensino: relevância e prescindibilidade da tradição filosófica para o ensino da matéria

aos conteúdos (dando maior ênfase, nesse caso, ao segundo estágio


do movimento do fazer filosófico que definimos anteriormente) ou
aos procedimentos e atitudes (nesse caso, prioritariamente ligados aos
momentos inicial e, principalmente, final do movimento). Consideran-
do que já apontamos qual o espaço prioritário ocupado pela tradição
nesses três momentos do fazer filosófico, será mero desdobramento
identificarmos sua (da tradição) contribuição tanto maior quanto mais
conteudistas ou conceituais5 forem os objetivos do ensino.
É preciso destacar, neste ponto, a relevância da tradição fi-
losófica se se busca formar os estudantes em uma espécie de Paidéia,
uma formação que abranja, para além da instrução, a sua própria vi-
são de mundo. Trata-se de compreender como objetivo do ensino de
Filosofia o extrapolar os próprios limites da matéria como disciplina
escolar, buscando colaborar para uma formação mais sólida, mais com-
pleta, que hipoteticamente deveria perpassar os grandes clássicos do
pensamento, permitindo chegar a uma compreensão da realidade que
abrangesse tudo aquilo que Jaeger identifica como constitutivo da Pai-
déia em sentido grego: “civilização, cultura, tradição, literatura ou educação”,
compreendido que “para abranger o campo total do conceito grego,
teríamos que empregá-los todos de uma só vez” (JAEGER, 1995, p.1).
A mesma formulação, possivelmente, valha para o sentido de compre-
ensão da educação como Bildung6: em ambos os casos, a apropriação da
riqueza contida nos grandes clássicos do pensamento, e apenas neles,
é indispensável. Tratar-se-ia, então, de favorecer o momento interme-
diário do movimento do fazer filosófico, seu momento mais abstrato
e reflexivo, buscando apresentar aos estudantes uma quantidade mais
significativa de conteúdos diversos, os quais poderiam ser tomados de
maneiras distintas para lidar com os problemas da realidade dos pró-
prios estudantes, por eles identificados na etapa inicial do processo. E,
5
Optaremos pela designação “objetivos conteudistas” para evitar possíveis confusões com a
noção de “conceito”, tão cara à Filosofia. Tomamos, então, a noção de objetivos conteudistas
no mesmo sentido em que Delors (2010) se refere aos conteúdos conceituais.
6
Tomamos a noção de Bildung a partir de A. Berman (1984). Ver, este respeito, o artigo de R.
Suarez (2005).

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


51

nesse caso, não seriam apenas as grandes obras da tradição filosófica a

Daniel Pansarelli
serem tomadas, mas, para além destas, as grandes produções do pen-
samento como um todo: a filosofia, a literatura, a música, o teatro, etc.
O objetivo, frisemos, estaria na aquisição de conteúdos culturais – em
sentido amplo –, na ampliação do repertório pelos estudantes, com
vistas à sua formação integral.
Um problema que surge nesse campo, de consecução de ob-
jetivos conteudistas por meio da apropriação da tradição intelectual,
está na delimitação do que se poderia considerar como “grandes clás-
sicos do pensamento”. Se, por um lado, algumas dezenas de autores
nos vêm imediatamente à memória mediante a simples remissão aos
tais clássicos, não se pode deixar de considerar, por outro lado, que
Aristóteles não fora um “clássico” – e nem menos que isso – durante
a Idade Média europeia; ou que Nietzsche pouco fora lido em vida.
Haveríamos de ponderar, também, a total ausência de autores orientais
e africanos dentre os clássicos consagrados como tal. Faltam, portanto,
elementos para saber se em nossa leitura contemporânea consideramos
adequadamente os autores que tratamos por clássicos, meritórios de
figurar nos planos de ensino de Filosofia. Quanto a esse ponto, parece
prudente lembrar, com Onfray, que “a historiografia é do âmbito da
arte da guerra” (2008, p. 11), de modo que apenas as perspectivas dos
“vencedores” figuram na história por tempo suficiente para se torna-
rem “clássicos”. Nesse mesmo sentido, destaca o autor,
É espantoso que a filosofia, tão pronta a criticar os
historiadores ou os geógrafos sobre a maneira de
praticar sua arte, os cientistas sobre a de conside-
rar os usos corretos da epistemologia, caia por sua
vez na esparrela de evitar aplicar em sua paróquia
o que ensina às capelas da vizinhança! Pois não
é do meu conhecimento que a filosofia exerça as
certezas de sua seita submetendo a história de sua
disciplina ao fogo cruzado de um trabalho crítico
capaz de se dar conta da maneira pela qual é escri-
to (ONFRAY, 2008, p. 12)

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


52

Com a colocação do problema acerca da delimitação daquilo


Filosofia como práxis e seu ensino: relevância e prescindibilidade da tradição filosófica para o ensino da matéria

que se poderia considerar “clássico”, introduzimos a necessidade da


atitude crítica, mesmo quando se busca lidar prioritariamente com ob-
jetivos conteudistas. Será preciso que ao menos o docente, na escolha
de seus conteúdos, exerça a crítica para aferir se são suficientemente
clássicas as obras que escolheu para compor seu plano de ensino. Em
se tratando do ensino da Filosofia, em especial, parece que a dimensão
da crítica deve permear não apenas a atitude do docente, mas também
a dos estudantes. Estamos, neste ponto, passando dos objetivos con-
teudistas aos atitudinais – sempre lembrando que, como já dissemos,
ambos não se excluem mutuamente; antes, se complementam.

Filosofar como atitude crítica

O ensino de Filosofia centrado nos textos clássicos não pres-


cinde o exercício da crítica, o qual está no campo das atitudes. A de-
finição de Filosofia que adotamos neste texto, por seu turno, parece
evocar, ainda que por outro motivo, a atitude crítica, visto que ao to-
marmos a realidade percebida pelos estudantes como início e fim do
movimento de filosofar, consequentemente favorecemos a priorização
dos objetivos de tipos procedimental e, sobretudo, atitudinal – mais
afeitos à prática por sua natureza – como meta do ensino da matéria.
Nesse caso, que nos parece melhor adequado à realidade da educação
básica, apresentar-se-á como mais relevante que a apropriação dos con-
teúdos filosóficos desenvolvidos por um ou outro autor, a apropriação
do modus operandi de tal autor. Trata-se de buscar identificar a forma de
lidar com a realidade exercida pelos grandes filósofos – não desneces-
sário dizer, aquela forma bastante particular e competente que fez de-
les “grandes filósofos” ou autores de “clássicos”. Antes de reproduzir
ou comentar conteúdos, seria o caso de inspirar-se em determinadas
formas de agir, ocasionando assim uma prática mais autoral, que nos
parece, por princípio, mais filosófica. Aqui, caminhamos junto a uma
compreensão segundo a qual a aquisição de conteúdos será primeiro
um pressuposto e depois um desdobramento, mas nunca a meta do
Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012
53

processo de ensino; os objetivos desse processo estarão, sobretudo, em

Daniel Pansarelli
auxiliar os estudantes no desenvolvimento de determinadas habilidades
de pensamento, as quais levarão à construção de algo que poderíamos
chamar por “competência filosófica”. Parece ser algo similar ao que
sugere Velasco, ao afirmar que
a necessidade de uma prática docente voltada para
o desenvolvimento de habilidades de pensamen-
to (ou ferramentas intelectuais) é consenso entre
educadores e críticos da educação contemporânea.
Por conseguinte, faz-se urgente uma educação
para o pensar: o ensino-aprendizagem pautado na
investigação crítica e criativa, na reflexão e funda-
mentação de ideias, valores e ações. Trata-se, pois,
de uma educação que visa à autonomia do pensa-
mento, formando educandos que pensem por si
mesmos e desenvolvam mecanismos próprios de
deliberação – tendo autonomia também no agir
(VELASCO, 2010, p. 13).

Parece correto observar que o estudo dos clássicos da Filoso-


fia tem sua relevância alterada quando damos prioridade ao desenvol-
vimento, nos estudantes, de uma competência filosófica. Com efeito,
não seria difícil conceber que um estudante pudesse apropriar-se de
um método filosófico sem conhecer profundamente um autor que o
utiliza: pode-se desenvolver a habilidade de questionar como forma de
construir verdades, inspirada na maiêutica socrática, sem nunca ter lido
Platão; ou pode-se compreender que há diferenças entre um objeto em
si e a percepção que cada sujeito tem desse objeto, mesmo sem trans-
passar as ásperas páginas dos textos kantianos ou husserlianos. Em
todos estes casos, o valor estaria na adoção de uma postura e de uma
atitude pelo estudante, tornando-se pouco relevante se ele as adotou
por meio da leitura dos grandes filósofos ou se, por outros meios, che-
gou aos mesmos objetivos aos quais possivelmente chegaria efetuando
tais leituras.
A tomada como prioritária de objetivos atitudinais não pres-
cinde da tradição filosófica. Conforme afirmamos, apenas desloca sua

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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relevância. Se os próprios textos clássicos não comporão – ao menos


Filosofia como práxis e seu ensino: relevância e prescindibilidade da tradição filosófica para o ensino da matéria

não obrigatoriamente – o conteúdo programático a ser estudado pe-


los discentes, caberá ao professor de Filosofia amplo conhecimento
dos conteúdos filosóficos, como meio único para que ele, o docente,
possa se apropriar suficientemente do modus operandi a ser difundido
entre os estudantes. Veja-se que, nesse sentido, ao professor não será
suficiente portar-se como simples docente da matéria, pois não será a
sua função a reprodução dos conteúdos. Antes, ele terá que colocar-
-se filosoficamente diante dos textos clássicos, aplicando-lhes a crítica
como manifestação filosófica, abstraindo de tais fontes não apenas seus
conteúdos, mas as estratégias procedimentais de seus autores. Trata-se
de desvelar não apenas uma ou algumas das verdades dos textos, mas
de desvelar os meios pelos quais seus autores os construíram.
Não há elementos rigorosamente impeditivos para que os
grandes nomes da tradição filosófica figurem nos programas de ensino,
mesmo quando se têm os objetivos atitudinais como prioritários. Com
efeito, é bastante comum que, mesmo alvejando o desenvolvimento
de um determinado tipo de postura e atitude, o conteúdo que permeie
as aulas – afinal, há de ter um conteúdo – seja aquele consagrado pela
tradição filosófica. Mas, nesse caso, é preciso observar ao menos dois
elementos, a saber: (1) a presença da tradição filosófica no conteúdo
programático não será o elemento que fornece os critérios para traçar
os objetivos constitutivos do plano de ensino. Tais objetivos estão tra-
çados desde antes da escolha dos conteúdos, os quais, por seu turno,
podem ser alteráveis. Para fazer referência a um exemplo pelo qual já
passamos: a apropriação da maiêutica como forma de conhecer pode
se dar por meio da leitura de Platão, mas igualmente pela análise, por
exemplo, da transcrição de um interrogatório judicial contemporâneo.
Qualquer que seja o texto, os objetivos poderão (nesse caso, deverão)
ser mantidos. (2) Considerando a complexidade, não raro presente nos
textos filosóficos, o grau de dificuldade que sua leitura e compreensão
podem apresentar, parece prudente que o docente avalie cuidadosa-
mente se a consecução de seus objetivos atitudinais não será dificultada
pelos desafios impostos pela compreensão do conteúdo selecionado.

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


55

Não há, aqui, a defesa de uma ideia segundo a qual os estudantes da

Daniel Pansarelli
educação básica são, por definição, incapazes de compreender adequa-
damente os textos clássicos da Filosofia – ao contrário, temos nos de-
parado com experiências ricas de utilização dos textos dos próprios
filósofos na educação básica como um todo, incluso o Ensino Fun-
damental. Mas é preciso considerar que tais textos podem impor di-
ficuldades que eventualmente não existiriam caso os textos adotados
fossem menos complexos. Nessa segunda hipótese, porém, estaríamos
abdicando ainda mais da formação paidética, cultural em sentido am-
plo, apresentada anteriormente. Parece ser o caso, portanto, de dosar
adequadamente os tipos de conteúdo, sempre em função dos tipos de
objetivo que se pretende priorizar – sendo estes escolhidos, por seu
turno, em conformidade com o sentido de filosofar que o filósofo ado-
ta como orientador de sua própria prática docente.

Referências

BERMAN, Antoine. Bildung et Bildungsroman. Le temps de la réflexion,


v. 4, Paris, 1984.
CRUZ COSTA, J. Contribuição à história das idéias no Brasil. Rio de
Janeiro: José Olympio Editora, 1956.
DELORS, J. (pres.). Educação: um tesouro a descobrir. Brasília: UNESCO,
2010.
HEIDEGGER, M. Que é isto – a filosofia? In: Conferências e escritos
filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1973 (col. Os pensadores).
JAEGER, W. Paidéia: a formação do homem grego. 3.ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2005.
ONFRAY, M. Contra-história da filosofia: as sabedorias antigas. São Paulo:
WMF Martins Fontes, 2008.
ORTEGA Y GASSET, J. ¿Qué es filosofía? 21.ed. Madrid: Alianza Editorial,
2010.
PASARELLI, D. A filosofia e a universidade. In: Curso (in)completo de
filosofia. São Bernardo do Campo: UMESP, 2010.

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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PLATON. Apologie de Socrate. In: Ouvres complètes. Tome I. 4.ed. Paris:


Filosofia como práxis e seu ensino: relevância e prescindibilidade da tradição filosófica para o ensino da matéria

Les Belles Lettres, 1946.


SEVERINO, A. J. A filosofia contemporânea no Brasil. 2.ed. Petrópolis:
Vozes, 1999.
SUAREZ, R. Nota sobre o conceito de Bildung (formação cultural). Kriterion,
v. 46, n. 112, 2005.
VELASCO, P. D. N. Educando para a argumentação. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2010.

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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Teoria Educacional e Filosofia


à luz da abordagem
hermenêutico-fenomenológica
de Otto Friedrich Bollnow
Educational Theory and Philosophy it light from
hermeneutic-phenomenological approach
by Otto Friedrich Bollnow
Prof. Ms. Ezir George Silva1
Prof. Dr. Ferdinand Röhr2

Resumo
O homem é o único ser capaz de compreender e apreender os aspectos,
elementos, situações e acontecimentos pertinentes à sua existência.
Essas habilidades fazem do homem alguém que, existindo no mundo
e para o mundo, não pode jamais assumir uma postura de indiferença
e neutralidade. É movidos por esta busca da não indiferença que
pretendemos analisar a contribuição da abordagem hermenêutico-
fenomenológica de Otto Friedrich Bollnow para o pensar e o fazer
pedagógico do ensino de Filosofia. Nesse sentido, desejamos tratar sobre
a continuidade e descontinuidade da formação humana a partir de sua
abordagem diante dos fenômenos humanos e pedagógicos, buscando
mostrar como as formas e processos instáveis e descontínuos de educação
podem iluminar/ampliar o ensino de Filosofia e a formação do homem,
face a sua condição de sujeito inacabado. O trabalho procura problematizar
as concepções mecânico artesanal e orgânica da educação e seu eventual
impacto sobre os modos do homem conceber sua existência, formação e
relação no e com o mundo no âmbito da comunidade humana. Por fim,
o texto pretende identificar as implicações do pensamento pedagógico
de Bollnow para a vivência do ensino de Filosofia, no contexto de uma
cultura globalizada e democrática.
Palavras-chave: Teoria Educacional, Filosofia, Formação.

1
Coordenador Pedagógico da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Caruaru – FAFICA,
onde é professor nos Cursos de Pós-Graduação e Licenciatura Plena em História e Pedagogia.
Mestre e Doutorando em Educação pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.
E-mail: ezo.silva@hotmail.com
2
Doutor em Pedagogia - RWTHA Aachen University (1985). Professor Titular da Universidade
Federal de Pernambuco. E-mail: ferdinan@elogica.com.br

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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Abstract
Teoria Educacional e Filosofia à luz da abordagem hermenêutico-fenomenológica de Otto Friedrich Bollnow

The human is the only one who is able to understand knows


the aspects, elements, situations and events relevant to their
live. These skills make the human someone who exists in the
world and for the world he can never assume a posture of
neutrality and in difference. It is moved by this search of no
indifference that intends to analyze the contribution of the
hermeneutic-phenomenological approach by Otto Friedrich
Bollnow for thinking and pedagogical act of teaching
philosophy. In this we, we want to tella bout continuity and
discontinuity of human formation from it approach in
human phenomen and pedagogical to show how the unstable
and discontinuous processes of education can increase
the teaching of philosophy and the human formation,
face it unfinished man. The search wants to understand
the conception of mechanic, handmade and organic al education
and its possible impact on the human’s ways to conceive
their existence, formation and relation within world in the
human community. Finally, the text intends to identify the
implications of pedagogical thinking of Bollnow for the
experience of Philosophy in the context of a globalized and
democratic culture.
Keywords: Educational Theory, Philosophy, Formation.

Introdução

Otto Friedrich Bollnow nasceu em 14 de março de 1903, em


Stettin, e faleceu em 07 de fevereiro de 1991 em Tübingen, na Alema-
nha. Cursou o primário em Anklam e graduou-se em Matemática e
Física na Universidade de Göttingen. Filho do professor Otto Bollnow
(1877 - 1959), seguiu a mesma carreira do pai, começando a lecionar
na Escola da Reforma Educacional de Oldenwaldschule aonde viria,
tempos depois, tomar a decisão de recorrer à Filosofia e à Pedagogia,
na intenção de aprofundar sua prática. Em 1925, doutorou-se em Físi-
ca, com uma tese sobre a Teoria da Estrutura dos Cristais, sob orientação
de Marx Born, que ganhou o Prêmio Nobel de Física em 1954 por seu
trabalho sobre a Teoria Quântica. Durante os anos de 1927 a 1929,
retomou seu trabalho sobre A Filosofia de F. H. Jacobis, vindo a receber,
anos depois, em 1931, a habilitação para ensinar na Universidade de
Göttingen que ficava no sul do estado da Baixa Saxônia, onde perma-
neceu durante sete anos.
Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012
59

Em virtude da tomada do poder por parte do Partido Nazista

Ezir George Silva e Ferdinand Röhr


e da consequente mudança da democracia para a ditadura (1933-1945),
Bollnow teve que deixar em 1935 a Universidade, só voltando a ensinar
no ano de 1938, como professor adjunto de Psicologia e Educação na
Universidade de Giessen onde foi nomeado, em 1939, Professor Cate-
drático.
Após a Segunda Grande Guerra Mundial (1945), Bollnow
ensinou de 1946 a 1953 na Universidade de Johannes Gutenberg, na
cidade de Mainz, capital e maior cidade da Alemanha, do Estado de
Renânia-Palatinado. A partir de 1953, ele assumiu o lugar de Eduard
Spranger, passando a ocupar as cadeiras de Filosofia e de Pedagogia,
em Tübingen, onde lecionou até a sua aposentadoria, em 1970. Des-
de 1958, manteve intenso intercâmbio científico e acadêmico com o
Japão, a Coréia e a cultura oriental. No ano de 1975, recebeu o título
de Doutor Honorário em Estrasburgo, além do Prêmio Lessing – uma
homenagem cultural e literária – que lhe foi concedido pela Maçonaria
Alemã.
Bollnow foi um escritor fecundo. Ao longo de sua trajetória
acadêmica, escreveu cerca de trinta oito (38) obras e mais de quatro-
centos (400) artigos3 e resenhas sobre Educação e Filosofia. Entre suas
principais produções estão: A Filosofia de F. H. Jacobis (1933); Dilthey: uma
introdução a sua filosofia (1936); Filosofia Existencial (1946); A Compreensão:
ensaios sobre a teoria das ciências humanas (1949); Nova Segurança: o problema
da superação do existencialismo (1955); A objetividade das Ciências Humanas
e da Essência da Verdade (1956); A Filosofia de Vida (1958); O Homem e o
Espaço (1958); Natureza e Mudança das Virtudes (1958); Pedagogia e Filosofia
da Existência (1958); Essência e os Caminhos das Virtudes (1959); Filosofia da
Esperança (1962); O Ambiente Educacional (1964); O Existencialismo Francês
(1965); Abordagem Antropológica em Pedagogia (1965); Linguagem e Educação
(1966); Introdução à Filosofia do Conhecimento (1970); Estudos Sobre Herme-
nêutica I e II (1982-1983); Entre Filosofia e Educação: aulas teóricas e ensaios
(1988), entre outros.
3
Boa parte destes artigos está disponível no site: http://www.otto-friedrich-bollnow.de/index.
html.

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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Otto Friedrich Bollnow foi um pensador influente das Ciên-


Teoria Educacional e Filosofia à luz da abordagem hermenêutico-fenomenológica de Otto Friedrich Bollnow

cias Humanas, na Alemanha. Como físico, pedagogo e filósofo, sua pro-


dução coloca-se como uma importante contribuição para os campos
da Arquitetura, da Fenomenologia, da Hermenêutica, da Ecologia, da
Filosofia e da Educação. Sua investigação filosófica caracteriza-se por
uma abordagem hermenêutico-fenomenológica que busca encontrar,
na existência e nas potencialidades humanas, seu principal objeto de
análise, visando a contribuir para a fundamentação de um pensamento
pedagógico voltado para o homem em sua integralidade e concretude.
O pensamento pedagógico de Otto Friedrich Bollnow che-
gou ao Brasil na década de 1970 através da tradução da obra “Pedagogia
e Filosofia da Existência” (1971), uma época em que o país atravessava
um dos momentos mais sombrios e decadentes de toda sua História.
Em virtude das tensões que marcaram o processo de ditadura políti-
co-militar no Brasil (1964-1985), as tendências marxista e gramsciana
passaram a exercer hegemonia no campo educacional. As teses de que
“a educação se constitui num ato político” (SAVIANI, 2008, p. 65) e que a es-
cola não pode funcionar como um aparelho reprodutor das estruturas
opressoras do Estado (BOURDIEU; PASSERON, 2008), acabaram
dominando o ideário pedagógico brasileiro e contribuindo para o ar-
refecimento do interesse por outras temáticas e perspectivas humanas
que pudessem ajudar a iluminar o saber e o fazer educacional.
Diante desse cenário, Dermeval Saviani relaciona as contri-
buições de Bollnow às nuanças pedagógicas denominadas de “concepção
humanista moderna de filosofia da educação” (SAVIANI, 2008, p. 49). Esta
categorização é fruto da compreensão histórica de um determinado
momento, quando se acreditou que a divisão e/ou tensão entre a Peda-
gogia Tradicional e a Pedagogia Nova acabava dissolvendo a especificidade
da contribuição pedagógica, como um dos caminhos viabilizadores do
processo de redemocratização do país e a superação de suas desigual-
dades sociais (Idem, 2005).
É diante dessa configuração histórico-contextual e do reco-
nhecimento do influxo que exerceram sobre a maneira de pensar e fa-
zer a educação no Brasil, que pretendemos explicitar as bases sobre as

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


61

quais se assenta o pensamento pedagógico de Otto Friedrich Bollnow.

Ezir George Silva e Ferdinand Röhr


Nossa intenção é demonstrar como sua análise pedagógica pode con-
tribuir para o alastramento das concepções educacionais que preten-
dem a educação e a formação do Ser, no âmbito de uma sociedade
marcada pelo primado do político sobre a educação e da reprodução de
saberes sobre o desvelamento do que é o homem e suas possibilidades.

Articulação entre Teoria Educacional e Filosofia à Luz da Aborda-


gem Hermenêutico-fenomenológica de Otto Friedrich Bollnow

A produção do conhecimento através da História é o resulta-


do da ação, com sentido, dos homens que, ao longo de suas existências,
se transformam em sujeitos capazes de refletir, desvelar, ressignificar
e socializar os saberes que são produzidos através da sua relação com
os outros e o mundo a que pertencem. É movido pela consciência de
que o homem é por natureza um ser de relação – alguém que interpela
e interage com tudo aquilo que acontece nele e à sua volta - que Otto
Friedrich Bollnow pretende discutir a natureza e os desdobramentos
do desenvolvimento da Filosofia da Existência (1971) e da Filosofia da
Esperança (1962) para a Pedagogia. Seu objetivo é analisar, com base
nessas linhas de pensamento, a maneira como as transformações cul-
turais, políticas, sociais e educacionais afetaram o modo de se pensar o
homem e a sua formação.
A obra Pedagogia e Filosofia da Existência (1971) foi escrita na
década de 1950, um período de pós-guerra, marcado pelo arrefecimen-
to do “entusiasmo pedagógico” que norteou a prática educacional nos anos
que intermediaram e sucederam a Primeira e a Segunda Guerra Mun-
dial. Esse enfraquecimento do vigor pedagógico foi resultado de uma
desconstrução “de uma vigorosa fé nas boas forças latentes no homem” (p.11),
um período de decepção geral que tirou dos educadores a imagem oti-
mista do homem, tão própria da década de 1920. Essa transformação
da imagem do homem foi seguida por uma ação pedagógica repressora
que tinha como objetivo libertá-lo das más energias e desvios sociais.

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


62

Ao menos em princípio, como possibilidade, era,


Teoria Educacional e Filosofia à luz da abordagem hermenêutico-fenomenológica de Otto Friedrich Bollnow

pois, necessário reconhecer no homem uma reali-


dade fundamentalmente demoníaca e má. E uma
vez que ela se desencadeara numa tão terrível pro-
porção, fazia-se iminente a necessidade de primei-
ro pôr diques a essas energias nefastas, de contê-las
de fora. Assim, o princípio ditado pela concepção
das boas energias inatas no homem, que só deve-
riam ser canalizadas, foi substituído pelo princípio
da repressão externa (Ibidem, 1971, p.18).

Foi a partir dessa nova realidade sócioeducacional que surgiu


a ênfase em torno da necessidade de se resgatar os “velhos modelos,” a fim
de tornar possível o trato dessa nova visão problematizadora do ho-
mem. O desafio não era apenas resgatar o elã pedagógico, mas ressigni-
ficar a concepção fechada do ser homem. Diante dessa nova realidade,
Bollnow propõe analisar os elementos da Filosofia da Existência e da
Filosofia da Esperança, considerando seus eventuais desdobramentos
para a prática pedagógica. Entendemos, assim, que é mobilizado por
esse interesse que o autor deseja mostrar a função e os limites da Filo-
sofia da Existência, almejando apresentar a contribuição da Filosofia da
Esperança para a Pedagogia e a “compreensão da vida humana em si mesma,
na sua imanência com exclusão de todas as representações e juízos que a transcen-
dem – o principal fim que a filosofia tem em vista -” (BOLLNOW, 1946, p.2),
visando a examinar os processos instáveis e descontínuos do ser e da
ação pedagógica, ocorridos dentro do processo educacional.
A perspectiva de análise de Bollnow tem como principal obje-
tivo mostrar de que maneira as temáticas discutidas em torno dos pro-
cessos estáveis e instáveis da vida humana, contribuíram para a relação
entre Filosofia Existencial e Pedagogia, pretendendo não apenas supe-
rar a dicotomia e a alienação que as separava, como apresentar os novos
enfoques propostos pela Filosofia da Esperança. Desse modo, cabe-
-nos perguntar: de que maneira a Filosofia da Existência pode dialogar
com a pluralidade dos fenômenos humanos e pedagógicos? Segundo o
teórico, a Filosofia da Existência traz para o campo da discussão temas
como: a angústia, o medo, o nada, o tédio, a melancolia, o desespero e
Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012
63

a morte, colocando-os como ponto de partida para a efetivação do seu

Ezir George Silva e Ferdinand Röhr


encontro e debate com a educação.
Nesse sentido, a tarefa da Filosofia, no pensamento de Boll-
now, é lançar luz sobre a existência humana em face de sua continui-
dade e descontinuidade, é levar o homem a refletir sobre si mesmo,
entendendo que existência esclarecida é existência em liberdade e
transcendência.

Concepções mecânico artesanal e orgânica da educação

Para fundamentar a proposição de que a reforma pedagógica


do seu tempo tinha se transformado num resgate de velhas ideias acerca
da essência do processo educativo, Bollnow (1971) procura descrever
a natureza da proposta formativa das concepções mecânico-artesanal e
orgânica da educação4.
A concepção “mecânico-artesanal” é assim chamada em vir-
tude do caráter técnico e objetivista que envolve a educação e a forma-
ção do sujeito. Nela, o professor segue, à semelhança de um artífice, a
partir de um material já dado, a construção de um modelo previamente
determinado. Assim, o artesão produz a sua obra através da aplicação
de seus instrumentos e realização dos procedimentos e métodos apro-
priados que foram escolhidos para tal fim, esperando alcançar, desse
modo, o resultado por ele almejado.
Como artesão, o professor também atua como o que produz
o Educar. Por ser reconhecido como o principal agente do processo
formativo, elabora o plano de ensino, seleciona o material, detém as
habilidades e projeta a imagem do homem que deseja formar, como se
fosse um escultor que esculpe na madeira, no mármore ou no barro sua
particular visão da vida e da própria realidade. Nesse caso, conforme
Bollnow;
[...] educar é produzir, caso assinalarmos com o
termo produzir aquele tipo de atividade, dirigida a

4
“Vistas sob o prisma da História do Pensamento Ocidental a primeira nasceu, principalmente,
do Iluminismo; a segunda, do Romantismo” (BOLLNOW, 1971, p. 25).

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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um fim, cujo efeito depende unicamente da von-


Teoria Educacional e Filosofia à luz da abordagem hermenêutico-fenomenológica de Otto Friedrich Bollnow

tade do homem. Disso resulta a dupla conexão, à


qual tradicionalmente a educação está vinculada. A
ética fornece as metas finais, isto é, o produto a ser
criado nesse trabalho chamado educação. A psico-
logia, por sua vez, o conhecimento necessário do
material (BOLLNOW, 1971, p. 24).

Esse “produzir”, de acordo com o ideal proposto, seria o re-


sultado de uma ação externa, um ato de forjar o outro através da ma-
nipulação dos conteúdos e mecanismos dos processos que envolvem
o ensino e a aprendizagem. Educar, nesse caso, significa “moldar” o
discente, através de uma atividade de produção, à imagem e concepção
de homem do próprio educador.
A analogia do artífice, usada por Bollnow, pretende esclare-
cer que a concepção mecânico-artesanal da educação mostra-se pre-
tensiosa5, quando propõe a formação do homem, de acordo com uma
determinada imagem e meta pedagógica. E, ainda, revela-se limitada
em perceber que o princípio da continuidade, que aponta para um pro-
gresso que se dá ano após ano e passo a passo rumo a um esplêndido
acabamento, mostra-se irrealizável e impossível de ser concretizado,
devido à condição subjetiva, não moldável e inacabada do ser humano.
O “para-além” do ser não pode ser pré-visto ou pensado
como uma construção objetiva do já dado e acabado. O homem não
pode, à semelhança do artesão, imaginar fabricar sua existência, como
se produz um boneco de cera ou uma imagem de barro. Sua projeção
não pode ser exata, a ponto de considerarmos que ele será um objeto
pensado e manipulado pelo outro. O ser não pode deixar-se coisificar,
pois isto implicaria considerar finito seu ser, que é infinito, e compro-
meteria o dinamismo de sua própria existência. O homem não pode ser
definido como se define um objeto que se pretende fabricar, porque ele

5
De acordo com E. M. Arndt “Formar, uma palavra magnífica – fazer uma imagem. Seria
divino, se o conseguíssemos por meio de artifício, se pudéssemos progredir passo a passo, de
ano após ano, como faz o artista, ao trabalhar o bloco de mármore, até que a obra esteja ali na
sua frente no seu esplêndido acabamento” Mais ainda, “tal processo é, conforme Arndt, algo
irrealizável” (apud BOLLNOW, 1971, p. 25).

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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pode transcender-se. Enquanto protagonista ontológico, ele poderá ser

Ezir George Silva e Ferdinand Röhr


muito mais do que tem sido e fazer germinar o que haverá de ser diante
do desvelamento de suas possibilidades.
Portanto, o que se propõe, na concepção mecânica, não é uma
educação para a imensidão, mas para o reducionismo; uma formação
que pretende fazer do ser um objeto para si/discente ou um conteúdo
objetivo para o outro/docente, uma educação que absolutiza o supos-
to da substância contínua a ser desenvolvida no homem (QUADROS,
1981). Nessa concepção mecânica, observa-se um processo de mode-
lagem educativa que restringe o devir humano ao dever-ser de um ato
pedagógico-artesanal, pelo qual se crê que o máximo da essência do
educando poderá ser levado a existir, a partir de um dado imediato ou
de uma meta pedagógica definida, sem levar em conta as especificida-
des e/ou subjetividades de cada educando.
A concepção mecânico-artesanal limita a educação a um ato
definidor da imagem do humano, e a uma visão comum e popular da
educação, que reduz a formação do ser a quaisquer categorias abstratas,
de acordo com receitas prontas ou fórmulas mágicas, que condicionam
não só a visão que o homem tem de si mesmo, como esgotam as pos-
sibilidades do próprio processo educacional.
Enquanto a concepção mecânico-artesanal parte do princípio
de que é a partir da matéria que se deve avançar para formar o homem,
a concepção orgânica compreende que esta ação não deve acontecer de
fora para dentro, mas do interior para o exterior. Para essa concepção,
a educação acontece como um crescimento orgânico onde a matéria
é “moldada” pela energia e substância contidas na própria condição
humana.
Na base teórica da concepção orgânica encontram-se as con-
tribuições de Jean-Jaques Rousseau (1999). Com ele, o cultivo do sen-
timento, através da relação do educando com a natureza, passa a ser
visto como fator fundamental para a vida individual. Na obra “Emílio
ou da Educação” (ROUSSEAU, 2004), ele descreve seu projeto educacio-
nal, considerando que o homem precisa ser educado à semelhança de
uma planta sobre a qual o jardineiro age, a fim de livrá-la das ameaças

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externas, que estão presentes no contexto da sociedade. Para o teórico,


Teoria Educacional e Filosofia à luz da abordagem hermenêutico-fenomenológica de Otto Friedrich Bollnow

Moldam-se as plantas pela cultura, e os homens


pela educação. Se o homem nascesse grande e
forte, a estrutura e a força ser-lhe-iam inúteis até
que tivesse aprendido a servir-se delas. Ser-lhe-iam
prejudiciais, pois impediriam que outros pensas-
sem em socorrê-lo, e, entregue a si mesmo mor-
reria de miséria antes de ter conhecido suas ne-
cessidades. Queixamo-nos da condição infantil e
não vemos que a raça humana teria padecido se
o homem não tivesse começado por ser criança.
Nascemos fracos, precisamos de força, nascemos
carentes de tudo, precisamos de assistência; nasce-
mos estúpidos, precisamos de juízo. Tudo o que
não temos ao nascer e de que precisamos quando
grandes nos é dado pela educação (Ibidem, p. 9).

Para a concepção orgânica, o desenvolvimento do educando


caracteriza-se pela ênfase que é dada à essência do homem. Sua natu-
reza pedagógica consiste na valorização das potencialidades inatas da
própria natureza humana que, em si, são suficientes para garantir seu
desenvolvimento livre, a partir de seu núcleo interior. Dessa forma,
o papel da educação é contribuir para que a verdadeira essência do
educando não se corrompa, mas cresça e frutifique através de uma
existência já dada e concluída. De acordo com Bollnow, na concepção
orgânica da educação,
[...] o homem se desenvolve a partir do seu inte-
rior segundo a sua própria lei, para atingir o fim
colocado nele mesmo. “Formação” é agora na sua
nova significação, desde então dominante, o resul-
tado desse crescimento “orgânico”. Isto condiciona
o aparecimento do conceito totalmente diferente,
diria negativo, da educação. A educação é uma arte
de cultivar e de deixar-crescer, arte de não – es-
torvar esse processo natural (BOLLNOW, 1971,
p.25).

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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Podemos compreender que essa perspectiva aponta para um

Ezir George Silva e Ferdinand Röhr


progresso interior e espontâneo, próprio de um crescimento natural-
-inatista. Assim como a meta do crescimento de uma planta já se en-
contra na semente, do mesmo modo, a essência do homem é que deve
determinar sua existência. Para essas concepções, as metáforas do pro-
fessor, como oleiro e jardineiro, revelam a natureza essencialista do
próprio atuar pedagógico. Uma prática, onde o educador identifica uma
causa eficiente e uma causa instrumental, conforme a imagem e con-
cepção que tem do aluno.
Descrevendo as metáforas do jardineiro e do artesão/ferreiro,
Celestin Freinet (1988) explora suas possibilidades, buscando destacar
o modo como cada um atua para cultivar ou forjar o educando. Falan-
do sobre as leis da vida e o modo como o educando é formado ele diz:
[...] poderíamos escrever um livro sobre a univer-
sidade das leis da vida, quer se trate de plantas,
de animais ou de homens. Falaria das semelhanças
das preocupações do jardineiro, do criador e do
educador. E o bom jardineiro, que obtém resul-
tados tão bons com suas próprias vergônteas, e o
criador tão compreensivo com seus animais, se-
riam então os primeiros a exigir, para a sua própria
semente, essa atenção minuciosa, esse clima, essa
calorosa doçura, esse ar e esse sol sem os quais não
se criam vergônteas nodosas que cresçam fortes
para frutificar segundo a própria natureza e o pró-
prio destino [...] O nosso papel e a nossa função,
nesse grau primário que condiciona as constru-
ções posteriores, serão justamente agir, verificar,
comparar, experimentar, ajustar. Experimentar e
ajustar não só materiais brutos ou peças mais ou
menos trabalhadas, mas elementos de criação e de
vida. Todavia para forjar o ferreiro precisa, não só
da saliva e da lógica abstrata, mas de uma bigorna,
martelos, tenazes e fogo. E tem de saber manejá-
-los, o que é tão delicado como manejar princí-
pios e hipóteses. Se, naquela bifurcação, quisermos
substituir a Escola da verbosidade pela Escola do
trabalho, quisermos aprender a forjar forjando, te-

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


68

mos de procurar, criar e fabricar os instrumentos


Teoria Educacional e Filosofia à luz da abordagem hermenêutico-fenomenológica de Otto Friedrich Bollnow

de trabalho à medida das nossas necessidades e


das nossas possibilidades; temos de aprender ou
reaprender a nos servir deles, nas múltiplas inci-
dências das vidas que nos confiam. Não devemos
esquecer o grande calor e a iluminação do fogo a
ser mantido e ativado, porque torna maleável todo
metal e dá aos objetos a forma eminente modelada
pelo homem (Ibidem, p. 87-89).

O professor visto como artesão, artista plástico ou oleiro é


aquele que a partir de uma matéria (o/a discente) inerte (passivo/a),
e de acordo com seu projeto prévio (plano de aula), molda, com base
em suas concepções, a imagem firme e estável de um homem ideal e
virtuoso. Como jardineiro, o professor entende que o desenvolvimento
do aluno acontece de modo espontâneo e que sua tarefa deve limitar-
-se a uma forma de atuar, que esteja voltada para o conhecimento da
natureza da planta (do humano). Seu papel não é ensinar, mas apenas
procurar proteger e possibilitar as situações necessárias para que cada
semente (discente) se desenvolva segundo suas propriedades, através
da busca constante da preservação das condições ideais de crescimento
de suas próprias leis internas.
De acordo com as metáforas acima descritas, o sentido da
ação de educar constitui-se na busca da verdadeira essência do homem,
num agir que pretende conduzir o sujeito a voltar-se para si mesmo
“entendendo o retorno à pureza da consciência natural como dever fun-
damental de todo homem” (ROUSSEAU, 2004, p. 14). Dessa maneira,
a educação “deve, tal como proclama a pedagogia da essência [...] dar a
sua contribuição de modo que a verdadeira essência humana possa as-
senhorear-se dos homens concretos” (SUCHODOLSKI, 2002, p. 25).
As ideias de homem e de educação, encontradas nessas duas
correntes pedagógicas, passam a guiar a ação docente, conforme o ideal
de perfeição humana a qual aspiram, dando a entender que elas repre-
sentam as únicas posições fundamentais da Pedagogia.
Para as concepções mecânico artesanal e orgânica da educação, o
homem é concebido dentro de um processo de aperfeiçoamento contí-
Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012
69

nuo, gradativo e ininterrupto. Uma formação6 que se orienta através da

Ezir George Silva e Ferdinand Röhr


manipulação do material e da apreensão de um determinado sistema de
valores que se constitui na expressão fundamental do desenvolvimento
humano.
Apesar desses dois modelos de formação caracterizarem uma
hegemonia no campo pedagógico, é importante considerar que a con-
tinuidade, o esteio essencial dessas concepções de educação, perde, na
Filosofia Existencial, a base do apoio, o fundamento. No cerne de sua
natureza antropológica, essa Filosofia nega a ideia de que há no homem
uma essência que se forma artesanal ou organicamente através de uma
progressão de contínua realização.

A possibilidade de formas descontínuas na educação

A Pedagogia Clássica caracteriza-se, com base no conceito


fundamental da formabilidade7, pela pressuposição da estabilidade de
uma educação que acontece de modo contínuo e linear. É a premissa
de um desenvolvimento humano paulatino da vida e da educação, que
é problematizada pela Filosofia Existencial, à medida que questiona se
esta é, realmente, a tendência necessária de todo e qualquer processo
formativo.
O conflito entre a Continuidade essencial e a Descontinuida-
de existencial da formação do homem é o motivo pelo qual a Pedago-
gia e a Filosofia da Existência não puderam, inicialmente, estabelecer
um diálogo que pudesse servir para alargar seus próprios horizontes
conceituais sobre a formação do homem. Diante dessa incompatibili-
dade, Bollnow (1971) considera que aquilo que separa a Pedagogia da

6
Conforme Nicola Abbagnano “Formação” – Bildung – “no sentido específico que esta
palavra assume em Filosofia e em Pedagogia, em relação com o termo alemão correspondente,
indica o processo de educação ou civilização, que se expressa nas duas significações de cultura,
entendida como educação e como sistema de valores simbólicos” (1998, p. 470).
7
“Vistas pelo prisma pedagógico, a formabilidade e a educabilidade não consistem
essencialmente na possibilidade de criar aptidões materiais, mas na disposição para aprender,
para escutar e para receber os valores [...] No sentido biológico, a formabilidade é a mutabilidade
dos caracteres inatos pelo influxo dos outros, do próprio indivíduo e do meio social” (HENZ,
1970, p. 162-163).

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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Filosofia pode se constituir numa possível abertura para um fecundo


Teoria Educacional e Filosofia à luz da abordagem hermenêutico-fenomenológica de Otto Friedrich Bollnow

debate que poderá servir para o surgimento de outras formas e catego-


rias pedagógicas que ainda não tinham sido devidamente exploradas. À
luz dessas acepções, considera-se importante examinar
[...] até onde a ideia dos processos descontínuos
é também aplicável aos fenômenos da educação
[...] Por outro lado, porém, devemos perguntar se
realmente está decretada toda e qualquer renún-
cia à atuação educativa, pelo fato de a Filosofia da
Existência constatar a impossibilidade de uma for-
mação constante e duradoura para o núcleo mais
íntimo do homem. Ou se não haveria aqui outras
formas de atuação, formas condizentes com o
caráter específico do existencial, às quais não po-
demos sem mais recusar o qualitativo educativo?
(Ibid, p. 28-29).

Movido por estas inquietações, Bollnow chama a atenção para


o caráter apelativo da Filosofia, tomando como exemplo a Filosofia
de Karl Jaspers quando afirma que “nos devamos limitar a um sim-
ples interrogar e a um constante apelar para a experiência existencial”
(BOLLNOW, 1946, p. 36). Para Bollnow,
o apelo à existência, que deve ser despertada no
homem, é certamente um tema de implicação pe-
dagógica extraordinária, de tal sorte que seria pos-
sível, a partir desse conceito “apelo”, estabelecer
uma forma própria, especialmente existencial da
Pedagogia (BOLLNOW, 1971, p. 29).

O apelo à existência, caracterizado por Jaspers, já traz em si


um aspecto educativo, o ato de chamar a si mesmo para o que é funda-
mental à vida e à sua formação; uma convocação da própria consciên-
cia, livre do ser que clama por uma atitude de empenho, engajamento
e comprometimento, diante da construção formativa de seu próprio
projeto existencial. Nas palavras de Hubert Henz, este apelo pedagógi-
co-existencial significa

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


71

[...] um chamado, um brado dirigido à consciên-

Ezir George Silva e Ferdinand Röhr


cia na liberdade e está acima da admoestação e do
conselho. O apelo é o ato de despertar, praticado
pelo educador sob a forma de uma intervenção na
vida da criança que vive na distração, mas só se
perfazendo pelo despertar do educando e pela li-
bertação interior a ser efetivada pelo mesmo, onde
o indivíduo é chamado a si (HENZ, 1970, p. 361-
362).

É nesse sentido que a Filosofia da Existência pode contribuir


para a Educação e para o fazer pedagógico, pois, em sua natureza, ela
se revela como portadora desse chamado do ser a si, a certas realidades
do homem, que, na prática, sempre estiveram presentes. Agora, apesar
de não terem sido admitidas anteriormente pelas teorias pedagógicas
tradicionais, essas realidades podem sim, contribuir para a ressignifica-
ção do modelo hermético do homem condicionado por sua formação.
Na concepção de Bollnow,
os fenômenos até hoje tão negligenciados na teo-
ria pedagógica como o apelo à consciência, exor-
tação e repreensão, a evocação das possibilidades
dormentes no homem – e muitos outros – adqui-
rem o caráter de verdadeiras categorias pedagógi-
cas (BOLLNOW, 1971, p. 30).

O papel da Filosofia da Existência, em sua relação com o fa-


zer educacional, é servir como estímulo para o alastramento e a am-
pliação da própria Pedagogia, a partir da análise dos processos instá-
veis e descontínuos da existência. Seu papel, ainda, é chamar a atenção
de educandos e educadores para aquelas questões que são próprias da
experiência humana; e, se forem consideradas devidamente, haverão
de apontar para outras possibilidades de abordagens pedagógicas que
poderão desencadear a revitalização do movimento próprio do fazer
educacional.

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


72

Provocações do Pensamento Filosófico-pedagógico de Bollnow


Teoria Educacional e Filosofia à luz da abordagem hermenêutico-fenomenológica de Otto Friedrich Bollnow

para o Ensino de Filosofia

Por pretender a construção de um homem solidário, fraterno


e aberto para o outro, o diferente e o mundo, é que a educação pode
ser pensada a partir do sujeito e de sua realidade. Pensar o ensino de
Filosofia sob as influências da Filosofia da Existência e da Filosofia da
Esperança é considerar a humanização do homem como possível, his-
tórica e criativa, um processo dialógico de relação e intervenção, aberto
ao novo e aos novos horizontes de sua existência. É pensar a educação
como forma de ser e não apenas de fazer as coisas do mundo; é ousar
fazer, reinventar, é abrir os olhos para a vida e, a vida, para novas expe-
riências e saberes.
Pensar a educação/ensino de Filosofia na perspectiva da abor-
dagem pedagógica de Otto Friedrich Bollnow é um convite à reflexão
não somente das nossas práticas, mas também dos nossos conteúdos,
interesses e ideais. A partir dessa análise, compreendemos que é impor-
tante destacar: primeiro, à problematização dos conteúdos, consideran-
do que a pedagogia das respostas precisa ser substituída pela pedagogia
das perguntas e dos questionamentos, ou seja, procurar não conceber
a Filosofia apenas como um conteúdo formativo, mas também, como
uma forma de Educação e formação interior que permite ao homem
pensar e agir de modo livre e coerente; segundo, a necessidade de uma
prática contextualizada, ou seja, que tenha como ponto de partida o ser
humano na sua integralidade. Por último, propomos analisar os aspec-
tos da Filosofia da Esperança que poderão ajudar na produção de um
projeto político-pedagógico que não seja tecnicista, frio e indiferente
às exigências do mundo; concebemos um projeto que sirva como fator
norteador para o pensar e o fazer da escola, que seja, acima de tudo, hu-
mano e coerente com a realidade e tenha como princípio o respeito ao
outro e, por finalidade, a emancipação do sujeito e a intervenção social.
Falar da relação entre Teoria Educacional e Filosofia num
contexto de um mundo globalizado é muito mais do que pensar so-
bre ideias e conceitos; é pensar/refletir sobre o homem em todas as

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


73

suas dimensões e possibilidades. É pensar sobre a necessidade de sair

Ezir George Silva e Ferdinand Röhr


das posturas tradicionais e herméticas da educação para uma prática
que tem no diálogo com os outros, as outras e os demais, a base de
uma proposta pedagógica que vai além das técnicas e das tecnologias.
Uma teoria-prática, com conteúdo científico-filosófico que seja capaz
de possibilitar ao homem, ao ser humano, seu viver social e histórico,
transformando, assim, o mundo, a realidade e a si próprio como ser
social e político.

Considerações Finais

A análise filosófico-pedagógica de Bollnow mantém abertas


vias e possibilidades de pesquisas que merecem ser estudadas e de-
senvolvidas posteriormente. Estamos falando de possíveis abordagens
aqui não apresentadas ou discutidas, em virtude da natureza e da in-
completude, próprias de uma comunicação/trabalho de pesquisa. Des-
te modo, destacamos a amplitude e profundidade do pensamento e da
produção acadêmica desse autor, que acenam para uma gama de temas,
ideias, discussões e elaborações fecundas e promissoras dentro dos ce-
nários acadêmico e educacional brasileiros.
Assim, entendemos que o estudo, a discussão e a visibilidade
do pensamento pedagógico de Otto Friedrich Bollnow em relação à
Filosofia da Existência e à Filosofia da Esperança constituem-se num
caminho promissor para a criação de um cenário sócioeducativo de
acolhimento à alteridade e de reconhecimento da sua existência, numa
dimensão humanizadora, enquanto ser integral. A discussão e o mergu-
lho nas ideias de Bollnow nos fazem lançar novos olhares para a educa-
ção e para o homem, como instâncias que transcendem as dimensões
técnica, curricular e burocrática dos saberes, e nos convidam a olhar
a vida e a formação humana, de educadores e educandos, a partir da
própria existência do Ser, de modo confiante e esperançoso.

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Referências
Teoria Educacional e Filosofia à luz da abordagem hermenêutico-fenomenológica de Otto Friedrich Bollnow

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 2. ed. São Paulo: Martins


Fontes, 1998.
BOLLNOW, Otto Friedrich. Filosofía de la esperanza. Buenos Aires:
Compañia General Fabril Editora, 1962.
______. Filosofia existencial. São Paulo: Saraiva, 1946.
______. Pedagogia e Filosofia da Existência: um ensaio sobre formas
instáveis da educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 1971.
BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A reprodução: elementos
para uma teoria do sistema de ensino. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
FREINET, Celestin. Pedagogia do bom senso. São Paulo: Martins Fontes,
1988.
HENZ, Hubert. Manual de pedagogia sistemática: pedagogia geral e
diferencial e introdução aos métodos de pesquisa pedagógica. São Paulo:
Herder, 1970.
QUADROS, Odone José de. Educação e filosofia da existência. In: ORO, Ari
Pedro. Filosofia da educação. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia
São Lourenço de Brindes, 1981.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social: ensaio sobre a origem das
línguas. v. 1. São Paulo: Nova Cultura, 1999.
______. Emílio ou da educação. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia. 36. ed. Campinas, SP: Autores
Associados, 2008.
______. Pedagogia histórico-crítica. 9. ed. Campinas, SP: Autores
Associados, 2005.
SUCHODOLSKI, Bogdan. A pedagogia e as grandes correntes
filosóficas: a pedagogia da essência e a pedagogia da existência. São Paulo:
Centauro, 2002.

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Alteridade e educação em Levinas


Otherness and education in Levinas
Prof. Dr. José Tadeu Batista de Souza1

Resumo
O texto tem o objetivo de apresentar a categoria de subjetividade e seus
modos de expressão no pensamento de Levinas, como inspiração para o
ensino de Filosofia. Seu pensamento emerge nesta tendo como novidade
fundamental a alteridade, a qual marca toda sua obra. Sua crítica ao
pensamento ocidental reclama o fato de ele ter negado a significação do
outro. Levinas constatou que os esforços da razão ocidental em explicitar
as problemáticas questões do ser, os modos de conhecimentos possíveis
e as formas de agir constituíram-se na própria identidade da Filosofia. A
identificação entre pensamento e ser tornou o pensar incapaz de abrir-se
para a alteridade. Assim, o pensamento atuou como um movimento circular,
reduzindo o que era diferente à mesmidade. Ao primado da identidade do
mesmo, Levinas propõe uma transformação para o fazer filosófico, que
atinge tanto os conteúdos nucleares e os métodos da Filosofia, como a
sua perspectiva mais geral. No que concerne aos conteúdos, ele propõe
a “ética como filosofia primeira”. A dimensão ontológica centrada no ser
cede lugar ao humano como locus originário da busca da inteligibilidade e
do sentido. O humano perde o caráter de objeto de investigação teórica e
sujeito cognoscente e torna-se polo de uma relação intersubjetiva fundada
no diálogo aberto e no respeito incondicional à diferença do outro. A
subjetividade plasma-se como instância fundamentalmente ética e pode
expressar-se no desejo desinteressado pelo outro; na responsabilidade por
ele e tem como medida a desmedida do infinito; na escuta paciente de
quem reconhece no falante uma autoridade ensinante; na hospitalidade,
como aquele que se alegra pela visitação desarranjadora do visitante
inusitado; no encontro face a face com o rosto de outrem que traz uma
significação originária e originante de novos sentidos: dizer de aprendizes
e ensinantes.
Palavras-chave: Levinas, Subjetividade, Alteridade, Educação.

Abstract
The text aims to present the category of subjectivity and its modes
of expression in the thought of Levinas, as inspiration for teaching
philosophy. His thinking emerges on this as having novelty fundamental

1 Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, atualmente
Professor Adjunto III da Universidade Católica de Pernambuco, líder do Grupo de pesquisa
Ética e Linguagem na Filosofia Contemporânea, linha de pesquisa Éticas da alteridade.
Tem experiência na área de Antropologia, com ênfase em ética, atuando principalmente nos
seguintes temas: Levinas, ética, alteridade, relação e subjetividade. E-mail: jtadeuoli@hotmail.
com

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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otherness, which marks all his work. His critique of western thought
Alteridade e educação em Levinas

complains that he denied the significance of the other. Levinas found that
the efforts of western reason in explaining the problematic issues of being,
the modes of possible knowledge and the ways to act constituted the
very identity of Philosophy. The identification between thought and being
became thinking incapable to open to otherness. So thought served as a
circular motion, reducing what was different to sameness. At the primacy
of identity of the same, Levinas proposes a transformation to make
philosophical, reaching both core content and methods of philosophy, as
his more general perspective. Regarding the contents, he proposes “ethics
as first philosophy.” The ontological dimension centered on the being
gives way to humans as locus originating in search of intelligibility and
sense. The human loses the character of object of theoretical research and
knowing subject and becomes the polo of a intersubjective relationship
based on open dialogue and the unconditional respect for the other’s
difference. The subjectivity plasma itself as ethical fundamentally instance
and can be expressed in the disinterested desire for another, in the
responsibility for he and has as a measure the disproportionate of infinity;
patient listening of who recognize in the speaker an authority teaching;
hospitality, as that who rejoices by visitation disarray of visitor unusual; in
meeting face to face with the face of others that brings originary meaning
and originator of new meanings: tell learners and teachers.
Keywords: Levinas, Subjectivity, Otherness, Education.

Introdução

O texto a seguir tem como objetivo principal apresentar a


compreensão levinasiana de subjetividade. Pretende-se com isso mos-
trar que o seu entendimento da subjetividade pode se constituir numa
perspectiva de possíveis contribuições para o exercício do filosofar e
de práticas pedagógicas. É óbvio que Levinas não foi um pensador
especializado em educação, pois na sua obra não consta nenhum tra-
tado de pedagogia ou didática. No entanto, é necessário afirmar-se que
a educação não ficou excluída de suas reflexões. Como um judeu fiel
às suas tradições, ele fez reflexões pontuais sobre a educação judia.
Em uma de suas obras, Difícil Liberdade: ensaios sobre o judaísmo, podem-
-se perceber três pequenos textos que versam particularmente sobre a
educação. Eles aparecem no seguinte registro: “Reflexões sobre a educação
judia”; “Educação e Oração”; e “Antihumanismo e Educação”.
Mesmo sendo uma meditação circunscrita a uma vertente re-
ligiosa, podem-se identificar intuições que são válidas e que podem
ser apropriadas por qualquer tradição cultural. Particularmente, o texto
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“Antihumanismo e Educação”, publicado em 1973, apresenta perspectivas

José Tadeu Batista de Souza


abertas à inspiração educacional, à prática política e às vivências éticas
humanizantes. É provável que o autor tenha a intenção de nos fazer
rememorar os tempos em que o homem ocidental teve a pretensão de
procurar no humanismo a “sua razão de ser”. A educação já foi pen-
sada e pretendida como a instância guardadora, criadora e reproduto-
ra do humanismo e o desenvolvimento das habilidades intelectuais no
campo das Ciências, a criatividade nas dimensões das Artes, a busca de
satisfações e do prazer de viver o cotidiano, o dimensionar as relações
dos Estados com os outros na construção da paz já foram fundados
em princípios humanistas. Lembrar essas habilidades encarnadas no
tempo e no espaço histórico talvez nos ajude a reagir diante de um “hu-
manismo esquecido na retórica e na ideologia”. Resgatar, portanto, a
educação humanista para além de formulações teóricas, ainda que logi-
camente coerentes, poderá fazer do humano algo distinto das essências
abstratas e dos conceitos fundados no anonimato do ser. A Filosofia
e a Educação podem acontecer como eventos desmistificadores das
formulações enganosas e equivocadas dos humanismos que não con-
seguiram evitar o extermínio de vidas e a perda do sentido do humano.
As proposições de Levinas podem ajudar educadores e educandos a
perceber que o sentido do sentido não é uma ideia, um conceito, uma
teoria abstrata, a humanidade do humano.

Proposições para a Filosofia da Alteridade e a educação


O filósofo franco-lituano Emmanuel Levinas surgiu no ce-
nário da Filosofia no começo do século XX. A sua vida e sua filosofia
desenvolveram-se numa circunstância histórica marcada por fatos ter-
ríveis como as duas guerras mundiais e o consequente extermínio dos
judeus na Europa. O seu pensamento, apesar de não ser uma reação ex-
clusiva à voracidade e ao horror desses acontecimentos, faz eco a esse
horror vivenciado por muitos seres humanos inocentes. Os seus textos,
produzidos em circunstâncias diversas, exprimem de forma viva a força
desses acontecimentos como uma espécie de invocação ao pensamento
a prestar contas à realidade.
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É notório o esforço que Levinas fez para sugerir o reconhe-


Alteridade e educação em Levinas

cimento do vínculo indissociável que existe entre o pensamento e a


existência histórica, e, a partir daí, abrir as possibilidades do pensar
como um interdito ao horror da violência e do assassinato dos homens.
A atividade reflexiva e as operações do pensamento ficam co-
locadas à prova pela forma como se articulam com os acontecimentos
decisivos da vida histórica. Impõe-se ao pensamento pensar a si mesmo
de modo rigoroso, a ponto de não se deixar usar a serviço da dinâmica
do mal e da indolor indiferença para com a morte dos outros. É louvá-
vel a postura de Levinas quando se refere aos fatos que têm significação
da gravidade. Ele não tangencia os fatos nem os dilui numa generali-
dade que, por vezes, amortece o seu impacto de constrangimento; ele
prefere ir direto aos acontecimentos na sua singularidade precisa,
fala-nos, de modo mais preciso possível, da singu-
laridade dos acontecimentos, desvelando-nos niti-
damente o aspecto fundamental de cada um em
relação à destruição dos judeus na Europa, assim
como à criação do Estado de Israel, e na escolha
de cada um de nós, à morte, ao nascimento, à carí-
cia e ao traumatismo (SEBAH, 2009, p. 37).

Pensar apegando-se sempre aos acontecimentos, mesmo que


na sua dureza, não é somente uma postura metodológica herdada da
fenomenologia husserliana, mas uma exigência radical do proceder e
produzir a própria racionalidade. Filosofar significou para Levinas estar
permanentemente desperto e vigilante perante os fatos em sua radica-
lidade. São eles que se impõem como desafios ao próprio movimento
do pensar e é deles que brotam as significações moventes do percurso
do pensamento na sua busca de sentidos.
Assombrar-se com o que acontece apareceu a ele como pro-
vação originária ao filosofar original. Invocar os fatos, “ir às coisas
mesmas” é um modo de escapar de um tipo de razão que procede na
e a partir da formalidade conceitual abstrata, ou de seus conteúdos
reais nas suas próprias criações. Por outro lado, é uma forma de evi-
tar um tipo de má consciência que se apoderou da Europa Moderna

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ao assumir a razão como única redentora e emancipadora do homem

José Tadeu Batista de Souza


mediante o saber. Talvez por não atentar suficientemente para os fatos,
discerni-los avaliativamente, a razão tenha tido que suportar o tremor e
o terror do que efetivamente aconteceu na Europa na primeira metade
do século XX.
Levinas constata que é chegada a “hora dos balanços”. É con-
victo da vigência da
má consciência no fim de milênios da gloriosa Ra-
zão, da Razão Triunfante do Saber; mas também
no fim de milênios de lutas fratricidas políticas
mas sangrentas, do imperialismo tomado como
universalidade, de desprezo humano e de explora-
ção e, até este século de duas guerras mundiais, da
opressão, dos genocídios, do holocausto, do ter-
rorismo, do desemprego, da miséria sempre inces-
sante do Terceiro Mundo, das cruéis doutrinas do
fascismo e do nacional-socialismo e até o supremo
paradoxo em que a defesa da pessoa se inverteu
em stalinismo (LEVINAS, 1997, p. 242).

Pode-se perguntar: não são esses acontecimentos suficien-


temente graves para passarem despercebidos, para uma razão que se
compreendeu iluminadora das trevas? Não são eles, na sua densidade,
acusadores de uma razão indiferente ao real? Não foram eles responsá-
veis pelo extermínio vitimador de milhões de inocentes? Não são eles
também que se constituem como instância crítica da racionalidade cen-
trada em si mesma? Por conseguinte, não são eles também que apon-
tam para a urgência de se perceber a “hora de se fazer os balanços” e
decidir sobre a continuidade ou interdição desses fatos tão acusadores
da fragilidade de uma forma de racionalidade que se pretendeu luz e
guardiã dos homens no Ocidente?
Levinas nos propõe rever as fontes, os meios e as modalida-
des do pensar e do agir e, a partir dessa revisão, fazer uma tomada de
decisão importante: decidir sobre a permanência de existir no tempo
e no espaço histórico ou fingir que a temporalidade se inscreve na di-
mensão do mistério indiscernível e, por isso, pode ser ignorada sem

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acarretar transtornos ao existir das grandes proposições das ciências e


Alteridade e educação em Levinas

dos notáveis princípios éticos. Talvez seja legítimo dizer que os aconte-
cimentos elaborados pela ciência e os nobres preceitos da moralidade
que defendem um humanismo só foram eficazes quando se tornaram
meios e ferramentas a serviço da cultura, que permite à política operar
como exímia fabricante de fazer vítimas, perfeitamente justificadas e
quantificadas racionalmente.
As considerações expostas acima podem ser assumidas como
razões suficientes para justificar o esforço de Levinas, em propor uma
nova orientação para o fazer teórico, a ação moral e as práticas educa-
cionais. A orientação se encaminha na perspectiva de superação e de
transformação das estruturas e formas de operações do pensamento
constituído desde os gregos na tradição ocidental.
Em primeiro lugar, Levinas propõe a transformação do pen-
samento que visa ao saber. Na pretensão de saber, o pensamento orga-
niza-se num modelo de relação bipolar. De um lado fica o sujeito que
deseja o conhecimento e de outro o objeto que pode ser conhecido.
Na dualidade sujeito-objeto, o sujeito tem um privilégio por ser o pólo
ativo, o que atua sobre o objeto. Na atuação do sujeito, toda a exterio-
ridade é reduzida à interioridade da consciência.
A relação de saber é uma forma de relação do mesmo com o
outro, em que o outro é reduzido ao mesmo, tolhido de sua condição
de outro, de alteridade. Nessa modalidade de relação, o que é compre-
endido como transcendência não passa de uma simples ilusão, uma
projeção do pensamento ou então uma realidade que sugira a experi-
ência e suas condições possíveis e, por isso, não pode ter legitimidade
para a especulação filosófica. Na relação sujeito-objeto, acontece ne-
cessariamente a objetivação do outro e sua redução ao mesmo identi-
ficador e nivelador de toda diferença. O outro é radicalmente diferente
em relação aos objetos do mundo, em relação a mim e aos outros e,
portanto, não pode ser objetificado, a não ser numa envergadura vio-
lenta. A forma de relação bipolar, sujeito-objeto, não considera o existir
humano e as relações inter-humanas com densidades impactantes em
termos práticos e éticos. A mediação entre os pólos acontece por um

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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termo neutro que não apreende as individualidades dos humanos na

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sua singularidade, mas as encaixa numa generalidade que não se parti-
culariza no interior da consciência permanente que identifica tudo e a
si mesma como mesmidade.
Levinas propõe a superação da primazia do saber porque
considera o outro a alteridade inadequada a uma investidura gnosio-
lógica. É muito interessante notarmos que um pensador da estatura
de Gadamer, tecendo a diferença entre a ciência grega e a moderna,
menciona Levinas exatamente no que tange ao saber:
Se o saber de Levinas é contraposto à transcen-
dência do outro, ele estabelece um limite para o
tema que é completamente diverso daquele que
veio à tona no interior da história da ciência no
ocidente. Sim, parece-me que a transcendência de-
sempenhou um papel determinante justamente nas
formações e transformações da ciência que se rea-
lizaram na história ocidental e não representa ape-
nas um ‘para além de toda a ciência’ e de sua ‘ima-
nência’. O ‘totalmente outro’ de Deus, o outro dos
outros, dos próximos, aquele de natureza fechada
em si – todos eles não se entregam à responsabi-
lidade de nosso saber (GADAMER, 2007, p.10).

Em segundo lugar, ele sugere a transformação da concepção


de Subjetividade Transcendental. A linguagem da modernidade inclui
e assume um discurso ético. São muitas as modalidades de teorias e
orientações morais, e essas orientações apresentam-se com a pretensão
de validade universal. Em resumo, pode-se dizer que a razão moderna
fala da ética a partir de teorias racionalmente impecáveis, com extremo
rigor lógico e objetivo. A assunção da Filosofia em Filosofia Transcen-
dental acontece sobre as experiências singulares e se conforma como
os esquemas abstratos, “o eu se torna sujeito transcendental, move-se
de acordo com os postulados formais da razão, nas operações seguem
a generalidade ou objetividade.” (PIVATTO, 2001, p. 82)
Até mesmo a pretensão de mover o conceito à realidade pro-
cessa-se envolta na abstração. O abstrato, assim, pretende fundar e as-

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segurar instituições que garantam a efetividade e universalidade da éti-


Alteridade e educação em Levinas

ca. Na verdade essas pretensões ficaram apenas em projetos abstratos.


O que de fato aconteceu foi a ruína do Humanismo, a perda de sentido
das instituições e a deteriorização das relações intersubjetivas que Levi-
nas reconhece ter acontecido, “na política e na técnica que convergem
na negação dos projetos que a conduzem”. (LEVINAS, 1993, p. 67)
Mediante a não realização desses projetos, e por que não di-
zer do seu fracasso, Levinas propôs romper com a subjetividade trans-
cendental, enquanto fria maneira de racionalidade, e substituí-la pela
atividade do humano que se apresenta e faz apelos em carne e osso.
Ou seja, ele sugere a concretude da relação entre os homens com base
sustentadora para se pensar a ética. Temos, dessa maneira, uma nova
concepção de subjetividade, nas palavras de Pivatto, “cuja órbita e ótica
transcendem o ser e a transcendentalidade”.
A toda perspectiva de compreensão de Husserl de pensar
a consciência estruturada intencionalmente e com a possibilidade de
constituir a objetividade dos objetos e toda a realidade do sentido, Le-
vinas vai muito respeitosamente manifestar o seu desacordo e esboçar
uma reação crítica.
Em primeiro lugar, discorda da função ativa do eu, sobretudo
quando essa atividade se apresenta como a sua essência, pois, para ele,
a “essencialidade” do eu enquanto subjetividade é ser ética. Essa é a
sua função primordial, o seu estatuto identificador, é, até mesmo, o seu
sentido fundamental. O eu não é primeiramente sujeito cognoscente
numa relação de conhecimento, mas polo de uma relação aberta com
o outro. A tentativa de reduzir o outro à condição de objeto de conhe-
cimento fracassa, pois ele não se deixa objetivar nem representar numa
relação teórica. Levinas não aceita que o outro seja constituído pelo eu.
Entre o eu e o outro há uma separação que permite ao outro se manter
numa dimensão de autonomia como quem assume uma condição de
transcendência. Em segundo lugar, ele discorda que o eu seja doador
de sentido e assegura que o outro tem o sentido em si mesmo e que,
originalmente, aparece como “auto-significante”. E mais, porque tem
o sentido em si mesmo, pode ensiná-lo, pois o eu é discípulo do outro

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que é mestre. Em terceiro lugar, não aceita a estrutura intencional da

José Tadeu Batista de Souza


consciência que reduz tudo à interioridade. Para ele, o outro fica sem-
pre no exterior, é transcendente, e a exterioridade é a forma adequada
para manter a sua condição de separado, fora do circuito da intencio-
nalidade. Por isso, não se iguala. Mesmo a relação que se estabelece tem
que se manter nessa forma de radical assimetria porque o outro não se
iguala simetricamente. Ele tem uma dimensão de altura que lhe permite
se manter outro como ente diferente.
Por causa de sua maneira de ser é que ele provoca no eu uma
atração, um chamamento, uma solicitação. Aos apelos do outro o eu
tem que dar uma resposta, ele não tem a alternativa de ficar indiferente
diante dos apelos do outro. Não porque não possa ficar indiferente,
mas por causa da radicalidade dos apelos do outro, exigência que se
apresenta como imperativo que não pode ser recusado.
Ao contrário do que afirmou Husserl, Levinas fez derivar o
sentido de uma outra forma de relação que não a teórica. Agora, o sen-
tido tem que ser buscado numa dimensão que se apresenta na experiên-
cia ética e não mais na trama da intencionalidade. A consciência que em
Husserl tem uma função ativa de constituição de sentido e objetividade
é vista por Levinas como abertura para o acolhimento do outro. O eu
não é mais o ponto de iniciativa, mas o polo de recepção da provocação
e lugar da possibilidade da resposta. É, portanto, na possibilidade de
uma relação com o outro que o eu se constitui. É também a partir dele
mesmo que deve ser pensado, fora de qualquer horizonte definido pela
compreensão.
Uma nova forma de pensamento em que seja possível des-
tituir o privilégio da subjetividade e da intenção cognitiva e instituir o
primado ético, onde o outro aparece como alguém com quem é possí-
vel estabelecer uma relação, que possa se fazer próximo, encará-lo num
frente a frente. Assim, o outro se apresenta como alguém que tem a
sua própria identidade e não a identidade construída pelo eu cognitivo.
Agora ele aparece como um convite ao estabelecimento de uma rela-
ção social e não como um objeto que pode ser feito tema e, portanto,
objeto.

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A objetividade possível da relação com o outro é o próprio


Alteridade e educação em Levinas

estar presente, fazer frente ao outro ou, por assim dizer, a experiência
da relação que se concretiza no encontro com o outro. Esta, sim, é uma
objetividade real porque passa pela concretude temporal do acontecer.
Não é uma objetividade formal, instituída por um pensamento que cria
objetos de conteúdos lógicos e realidades que apenas existem como
formas abstratas.
O sentido ético que advém dessa nova forma de pensamento
tem a excelência de ser um sentido que brota de uma concretude expe-
riencial que se efetiva temporalmente. É uma objetividade mais objetiva
do que a objetividade pleiteada por Husserl, pois se trata de uma obje-
tividade que não é objetividade de um objeto, mas de outrem que não
se objetiva, que se oferece numa relação ilimitada.
Em terceiro lugar, ele propõe a transformação dos conceitos
da Filosofia. Aqui se coloca em evidência o método do fazer filosófico.
O tradicional método transcendental processa-se com o fim de alcan-
çar um fundamento ou encontrar uma justificativa para uma tese ou
ideia postulada, pretende-se encontrar uma condição que a torne possí-
vel, mediante um enlaçamento lógico coerente até se chegar a uma evi-
dência consequente. Nessa ação do pensamento, que vem da intuição
moderna cartesiana, privilegia-se o ordenamento do ser, a apropriação
do objeto, a compreensão como saber e a correlação de sujeito cognos-
cente e objeto cognoscível.
Nesse privilégio desaparece o espaço da alteridade. A sua des-
coberta da fenomenologia lhe permite uma nova possibilidade de de-
senvolver os conceitos, “passar de uma idéia a outra”. Isso lhe permite
enxergar fenômenos que ficam recolhidos na intimidade da consciên-
cia, e que expõem “o sentido da objetividade ou do ser”. Daí se expli-
cita a sua atenção a dimensões tão simples do existir como “o cansaço,
a vigília, o tédio e o peso do existir”. Na base dessas realidades, que
não são percebidas pelo método transcendental, ele percebe as dimen-
sões do humano que podem ser explicitadas na linguagem. O que fica
escondido em segredo é a relação entre pessoas que constituem para
ele “a textura da inteligibilidade última e a instauração do sentido do

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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humano”, não percebido por outras perspectivas conceituais. A nova

José Tadeu Batista de Souza


maneira de desenvolver os conceitos capta a própria inteligibilidade e o
sentido do existir do humano fora deles. Isso não significa irracionali-
dade, mas racionalidade outra.
Em quarto lugar, ele propõe a transformação da ideia de que a
ética é apenas um aspecto da filosofia. É visível desde os primórdios da
filosofia grega a vigência de teorizações da vida moral. Nenhum gran-
de pensador conseguiu organizar o seu sistema filosófico prescindindo
da moralidade e da ética. No percurso da filosofia ocidental, grandes
sistemas foram erigidos na intenção de orientar as ações dos homens
nos níveis pessoal e coletivo. No entanto, todos esses sistemas entra-
ram em crise no seio das configurações culturais no Ocidente. O que
foi proposto como orientação e afirmação dos humanos acabou sendo
motivo de desagregação, conflito e esquecimento deles. Levinas tem
consciência dos limites dos propósitos éticos, mas não prescinde de
sua vigência e sugere transformar as âncoras promovidas pela tradi-
ção grega afirmadas no ser, no saber e no poder. Acolhe, então, como
inspiração-base a tradição semita que propõe a moralidade como fun-
damento da existência e das relações sociais.
Ele pensa ser possível acrescentar a essa tradição Ocidental
instituições sublimes, não suficientemente levadas a sério, como a ideia
de Platão bem além do ser, a ideia cartesiana de infinito e o imperativo
categórico kantiano. A partir dessas ideias, ele propõe a relação com o
outro como superioridade absoluta em relação ao ser e ao conhecimen-
to. A relação com o outro é constituinte fundamental do movimento
que pode levar até a transcendência do bem que nos pode ser apresen-
tado pelo rosto do outro homem na experiência ética. É aqui o âmbito
próprio, no qual é permitido pensar a alteridade que “não é apenas uma
qualidade do outro, é sua realidade, sua instância, a verdade do seu ser”.
Finalmente, Levinas propõe a pedagogia centrada no rosto,
na justiça, e aberta ao terceiro. Em Totalidade e Infinito pode-se perceber
a nítida relação entre o rosto e a justiça. Quando Levinas se ocupa
em apresentar sua reflexão sobre a relação implicativa de “outrem e
os outros”, desenvolve um intrigante entrelaçamento de conceitos que

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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podem ser compreendidos na perspectiva do alargamento do alcance


Alteridade e educação em Levinas

da ética. De início, ele delimita o horizonte de compreensão do rosto,


enfatizando a necessidade de compreendê-lo como diferente de um
fenômeno que pode ser dado à compreensão inteligível e possuído por
um sujeito cognoscente. Para ele “o que se dá, o que se toma, reduz-se
ao fenômeno, descoberto e oferecido à captação, arrastando uma exis-
tência que se suspende na posse” (LEVINAS, 1980, p.190).
A posse caracteriza o possuído como objeto particular, deter-
minado como realidade dada. O rosto não tem uma espessura de uma
fenomenalidade determinada em realidade objetiva. A sua apresenta-
ção exprime um outro modo de ser e de existir. Levinas afirma que
“a apresentação do rosto põe-me em relação com o ser. O existir do
ser-irredutível à fenomenalidade, compreendida como realidade sem
realidade” (LEVINAS, 1980, p. 190).
A efetivação da relação com o rosto dá-se na disposição de
oferecer a resposta que ele exige, ou seja, “efetiva-se na inadiável ur-
gência com que ele exige uma resposta” (LEVINAS,1980, p.190). Na
modalidade da resposta ou nas condições a ela dadas pode-se perceber
o alargamento no significado da relação ente outrem e outros. A res-
posta dada ao rosto difere daquela exigida por um dado objetivo. Ela
tem que ultrapassar o limite da objetividade das coisas e o âmbito do
nós. Quando Levinas diz que a resposta não pode ficar entre nós, quer
sugerir pensarmos nas possibilidades das apropriações particulares ou
mesmo das ações de ressonância curta.
Ora, o âmbito intersubjetivo, familiar ou mesmo comunitário
pode ser vivenciado como espaço privado. As vivências éticas podem
ocorrer nessas dimensões como instâncias individualizadas. Os sujeitos
da relação intersubjetiva podem acordar circunstâncias que lhes sejam
favoráveis, mas não favorecem outrem. É aqui que se reclama o ultra-
passamento do particular nós e o implemento do universal da ordem
pública: “tudo que se passa aqui entre nós diz respeito a toda gente, o
rosto que o observa coloca-se em pleno dia da ordem pública”. (LEVI-
NAS, 1980, p. 190).
A ordem pública tem o extraordinário poder de pôr em ques-

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tão determinadas preferências que muito bem satisfazem a interesses

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individualizados. Manter-se na afirmação das opções que convêm à re-
lação eu-tu, mesmo que sejam convicções de um amor verdadeiro, não
é suficiente para garantir a resposta à altura das exigências do rosto. O
rosto, que pode se fazer presente como linguagem, evoca a presença do
terceiro, que só nos atinge através de outrem. A entrada do terceiro na
relação abre o espaço público e visibiliza a justiça: “o terceiro observa-
-nos nos olhos de outrem – a linguagem é justiça.” (LEVINAS, 1980,
p. 190).
O acontecimento da linguagem verifica-se como um evento
negador da privacidade ou da posse individualizada do mundo. Nessa
perspectiva, pode-se entender que a forma, como o rosto, quando se
faz presente provoca a instauração da humanidade: “a epifania do rosto
como rosto abre a humanidade” (LEVINAS, 1980, p. 190). É muito
significativo perceber-se a profundidade humana que o rosto nos reve-
la. Ele expõe-nos a humanidade no seu estado de indigência e penúria,
apelando para o nosso poder: “o rosto em sua nudez apresenta-me a
penúria do pobre e do estrangeiro” (LEVINAS, 1980, p. 190).
Levinas compreende que o pobre e o estrangeiro apresentam-
-se como iguais na pobreza e que “sua igualdade na pobreza essencial
consiste em referir-se ao terceiro.” (LEVINAS, 1980, p. 191). O ter-
ceiro aparece para o encontro fazendo apelo ao serviço, pois enquanto
apela a partir de sua própria indigência, também profere uma ordem,
ordem que manda mandar, por assim dizer. A convocação do terceiro
a juntar-se a ele e a mandar apresenta-se como ordem vinda de uma
fonte de poder que não domina, nem manda dominar. Trata-se de uma
ordem vinda de quem tem sabedoria e pode ensinar como mestre e
reconhece no seu mandado também o estatuto do mestre no exercício
do serviço. Diz Levinas: “junta-se a mim. Mas junta-me a ele para ser-
vir, ordena-me como Mestre. Ordem que só pode dizer-me respeito na
medida em que eu próprio sou mestre, ordem, por conseguinte, que me
ordena que mande” (LEVINAS, 1980, p. 191).
No exposto, fica patente a força e importância do terceiro,
pois ele traz consigo uma convocação para juntar-se a ele e, ao mes-

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mo tempo, um mandato, uma ordem, instaurando uma relação triádica.


Alteridade e educação em Levinas

Aquele que recebe uma ordem, a recebe de um outro, e imediatamente


é ordenado para mandar a outrem. Há uma espécie de movimento que
suscita também um dinamismo de abertura do receber e dar. Aquele
que recebe ordens também é solicitado a dá-las. A relação entre três
incumbe a cada um assumir um compromisso que envolve necessaria-
mente os outros. Entra em cena aqui toda a dimensão da responsabili-
dade e da justiça.
É nessa dimensão que a ideia de autonomia e de liberdade é
posta em questão. Um eu não se afirma nem se define com referência
a si mesmo ou simplesmente a um outro. A sua possível afirmação
está condicionada à sua possibilidade de transcender não só o egoísmo,
mas também o nós. A responsabilidade que ele foi chamado a assumir
o obriga a comprometer-se com tudo o que concerne à humanidade.
O agente da responsabilidade é convocado a duplicar não somente o
seu discurso, mas também o seu empenho para atender ao chamado
do terceiro, presente no rosto do outro. Nessa trama entre os três, o eu
pode pronunciar a palavra profética que responde à manifestação do
rosto enquanto prova viva da presença do terceiro que lhe apresenta
toda humanidade. Nas palavras de Levinas,“... momento irredutível do
discurso suscitado essencialmente pela relação do rosto enquanto ele
atesta a presença do terceiro, de toda humanidade, nos olhos que me
observam” (LEVINAS, 1980, p. 191).
A revelação do rosto que faz efetiva a presença do terceiro
evoca também as possibilidades dos discursos acontecerem em sinto-
nia com a ética da justiça ou com outras atitudes que não são dignas de
qualificativos éticos positivos. Em outras palavras, no acontecimento
da linguagem pode haver justiça e injustiça e isso impõe a necessidade
fazer algumas distinções ou caracterizar a linguagem que é própria do
rosto e aquela que se diferencia por sua qualidade imoral. É nessa am-
biguidade, sempre aberta, que o trabalho educativo ganha toda a sua
significação. As proposições levinasianas são bem claras, a ação edu-
cativa deve estar sempre comprometida com a vivência da justiça, com
o acolhimento do rosto e com a linguagem que humaniza o humano.

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Considerações finais

José Tadeu Batista de Souza


A reflexão que realizamos sobre Subjetividade em Levinas
nos levou a concluir que, no que concerne às análises do rosto, ele
propõe uma nova categoria para a reflexão filosófica e um novo estilo
de produzir a própria racionalidade. Com a noção de Rosto, Levinas
se propõe fazer uma descrição da ética destituída das engrenagens da
ontologia. O rosto assume uma significação originária que se diferencia
radicalmente das categorias formais e do rigor da razão lógica.
A categoria do rosto se constitui na possibilidade de consi-
derar o humano para além das tessituras de inteligibilidades enraizadas
apenas no logos e nas suas determinações. Abordado dessa maneira,
o rosto quando foi considerado na tradição, nunca foi compreendido
como algo distinto de um ente objetivo do corpo humano. Determina-
ções bem particulares como: fronte, boca, nariz, olhos, sempre foram
consideradas como objetos de análises das ciências do homem.
Vimos que Levinas se contrapôs a essa perspectiva de consi-
deração e propôs uma reflexão sobre o rosto como um lócus de revela-
ção profunda do humano, capaz de ser expresso na pessoalidade e na
abertura para o outro.
Como acolhedor da diferença do outro e respondente incon-
dicional de suas solicitações, o rosto apresenta a significação mais su-
blime do humano, que é ser para o outro. Portanto, o rosto exprime o
sentido ético do existir humano enquanto possibilidade de construir a
sua identidade na aventura da abertura permanente para o outro.
Concluímos também que Levinas compreendeu a subjetivi-
dade de modo muito diferente da tradição da Filosofia. Aos modelos
mais eminentes da subjetividade como o transcendental moderno e o
constituinte de Husserl, Levinas contrapôs o modelo da hospitalidade.
À subjetividade que se apresentou como atividade teórica e constitui-
dora do sentido da realidade, ele apresentou a alternativa para ela con-
figurar-se como subjetividade aberta ao acolhimento do outro. Desse
modo, a subjetividade perdeu a sua função cognitiva e teórica e assumiu
a relacionalidade desinteressada para com o outro como o novo âmbito

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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do acontecer do sentido. Nessa perspectiva, o eu deixou de ser uma en-


Alteridade e educação em Levinas

tidade abstrata que tinha a autonomia e se auto proclamou como sujei-


to e passou a ser polo de uma relação possível com os outros. Assim, a
constituição da subjetividade acontece na medida da relação com outro.
A verdade e a objetividade possíveis são dados na medida da retidão do
encontro com o outro.
Vê-se que, assim como o rosto, a subjetividade foi pensada na
perspectiva da ética. Portanto, o sentido ético que brota desse modo
de pensar tem a magnitude de originar-se da concretude existencial e
temporal. Nesse sentido, a subjetividade ganha uma dimensão de ob-
jetividade eminente e privilegiada, pois se trata de uma objetividade
que não tem referência de objetos, mas de outrem que se abre na sua
infinitude. Para Levinas, é nessa abertura infinita para outrem que a
subjetividade ganha o seu estatuto de sentido. Em suma, vimos que a
subjetividade plasma-se como instância fundamentalmente ética e pode
expressar-se no desejo desinteressado pelo outro; na responsabilidade
por ele; e tem como medida a desmedida do infinito; na escuta paciente
de quem reconhece no falante uma autoridade ensinante; na hospi-
talidade, como aquele que se alegra pela visitação desarranjadora do
visitante inusitado; no encontro face a face com o rosto de outrem que
traz uma significação originária e originante de novos sentidos: dizer de
aprendizes e ensinantes.

Referências

GADAMER, Georg. Hermenêutica e a filosofia prática. Petrópolis: Vozes,


2007.
LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. Lisboa: Edições 70, 1980.
______. Entre nós. Petópolis: Vozes,1997.
______. Difícil libertad: y otros ensayos sobre judaísmo. Buenos Aires:
Lilmod, 2004.
PIVATTO, Pergentino. Correntes fundamentais da ética contemporânea.
Petrópolis: 2001.
SEBAH, François-David . Levinas. São Paulo: Estação Liberdade, 2009.

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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Filosofia, responsabilidade e educação


em Enrique Dussel
Philosophy, responsibility and education
in Enrique Dussel
Prof. Dr. José Vicente Medeiros da Silva1

Resumo
Enrique Dussel propõe uma ética material da vida, cujo objetivo é resgatar
a vida negada às vítimas dos sistemas de opressão. Dussel desenvolve uma
Filosofia da Libertação desde a América Latina - filosofia esta que enfrenta
os enormes desafios do continente (exclusão, injustiça, analfabetismo).
Nesse âmbito, a ética da libertação constrói uma responsabilidade
ético-politica para além do modelo hegemônico da totalidade vigente.
A responsabilidade é resposta dada ao outro enquanto vítima, na sua
concretude histórica. A análise dos princípios originários da ética em
Dussel permite-nos compreender o desafio que se coloca para a efetivação
de uma práxis a serviço da reconstrução da subjetividade e de um projeto
ético-político para a humanidade. Na atual crise ética, torna-se imperativo
pensar o outro para além do Eu e pensar a responsabilidade pelo Outro
como um dos pilares de uma nova educação. Trata-se de compreender
o processo de dominação e o processo de libertação, assumindo a
responsabilidade pelo outro na construção da justiça. Nesse sentido, não
basta a denúncia de uma situação injusta; deve-se, antes de tudo, encontrar
formas de superação da realidade excludente.
Palavras-chave: Dussel, Ética, Responsabilidade, Educação.

Abstract
Enrique Dussel proposes a material ethics of life which aims at giving back
the life which was neglected to victims of the oppressive systems. Dussel
develops a philosophy of liberation in LATIN AMERICA which faces the
enormous challenges of the continent (exclusion, injustice, illiteracy). In
this sense the ethics of liberation builds an ethical-political responsibility
which goes beyond the hegemonic model of totality which prevails
nowadays. Responsibility is the answer given to the other as a victim, in
its historical concreteness. The analysis of the principles originated from
the ethic of Dussel allow us to understand the challenge which is put
to us in order to obtain the effectiveness of a praxis which serves the
reconstruction of the subjectivity and that of an ethical-political project
for humanity. In the present ethical crisis, it is imperative to think the
other beyond the self, and to think the responsibility for the other as one

1
Doutor em Filosofia pela UFPB, professor da UFAL. Atualmente é Professor do Curso de
Especialização em Filosofia da UFAL (Campus Arapiraca). E-mail: medeirosvicente@ig.com.br

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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of the pillars of a new educational system. It is about understanding the
Filosofia, responsabilidade e educação em Enrique Dussel

domination and liberation processes taking on you the responsibility for


the other in constructing justice. In this sense it is not enough to denounce
an unfair situation, one must, above all, find ways of overcoming the
excluding reality.
Key words: Dussel, Ethics, Responsibility, Education. 

Crise ética e filosofia da libertação

A ética moderna parece manifestar diversos sinais de crise na


atualidade. Na modernidade, a ética esteve fundamentada em uma ética
racionalista, que orientou a vida humana. Mas a eclosão da barbárie
das duas guerras mundiais, a exploração dos países do chamado “Ter-
ceiro Mundo”, as diversas crises do sistema capitalista, o acirramento
da supressão da dignidade humana em praticamente todos os níveis da
vida, a negação dos direitos humanos básicos e a destruição da nature-
za apontam para a falência do modelo ético gestado na modernidade.
Na atualidade, o desafio parece ser o de construir uma ética
que seja capaz de apontar caminhos novos para a humanidade. Ecoa no
mundo, com força cada vez maior, uma insatisfação com o modelo de
ser hegemônico. Urgem uma teoria e uma ação que alimentem a utopia
de um novo mundo.
Nesse contexto, a Filosofia da Libertação de Enrique Dussel
surge como uma ética que se propõe a pensar desde a América Latina
à realidade histórica de dominação, dependência e exclusão dos povos.
Realizar uma Filosofia da Libertação desde o continente latino-ameri-
cano por si só já aponta para o enorme desafio dessa Filosofia. Gestada
pelo “centro” (Europa), a Filosofia desconfia de qualquer outra elabo-
ração fora da Europa. Eis que emerge, nas últimas décadas, na América
Latina, uma Filosofia da Libertação, que surge da “periferia” do mun-
do. Dussel é, a nosso ver, a expressão maior dessa Filosofia.
Nesse sentido, perguntamo-nos, diante da crise que a huma-
nidade atravessa, se é possível a reconstrução da subjetividade numa
sociedade que destrói valores fundamentais para o convívio humano
(solidariedade, justiça, responsabilidade). Em que sentido a alteridade e
a libertação proporcionam novos elementos para a superação da nega-
Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012
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tividade das vítimas do sistema totalitário e opressor? Como a respon-

José Vicente Medeiros da Silva


sabilidade pelo outro pode nos inspirar enquanto resistência e rebeldia
frente ao modelo hegemônico? É possível pensar a educação a partir
da ética da libertação?
No contexto de construção de novas propostas filosóficas na
contemporaneidade, Dussel, desde a década de 1970, elabora uma Fi-
losofia da Libertação que visa a ser uma autêntica produção relaciona-
da ao ethos e aos problemas do continente latino-americano. Filosofia
em construção, Filosofia rebelde e inconclusa. A produção de Dussel
remete-nos para a tentativa de construção de uma proposta filosófica
que visa a contribuir com o debate contemporâneo. Sem dúvida, a ética
e a política são os grandes desafios que Dussel enfrenta.
A produção filosófica latino-americana ganhou, nas últimas
décadas, um impulso importante, que tenta refletir o ethos do homem
latino-americano de maneira criativa e autônoma. Se a América Latina
almeja ser protagonista de sua História, cabe também, no âmbito da
produção filosófica, buscar a sua libertação da reprodução da Filosofia
europeia ou estadunidense.
O retorno da ética para o cerne do debate contemporâneo
surge como necessidade vital para uma humanidade em risco de extin-
ção. Não se trata do retorno à ética racionalista moderna, mas de efeti-
var outra ética, que inspire novas lutas, novos caminhos, novos homens
e mulheres que respeitem a natureza como fonte de vida.
A Filosofia da Libertação é a tentativa de pensar, em primeiro
lugar, a realidade, não a Filosofia. Nesse âmbito, a Filosofia da Liber-
tação enquanto Ética da Libertação tenta pensar e transformar a rea-
lidade de exclusão econômica, social, política e cultural da maioria da
humanidade. Segundo Dussel, a Ética da Libertação pretende pensar
filosófico-racionalmente essa situação real e concreta, da maioria da
humanidade presente, próxima de um conflito trágico de proporções
nunca vistas na História da espécie humana, filogeneticamente falando.
O cerne da Ética da libertação elaborada por Dussel é a vida.
Em várias passagens de sua obra Ética da libertação na Idade da globalização

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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e da exclusão, ele aponta a necessidade de defender a vida que está sendo


Filosofia, responsabilidade e educação em Enrique Dussel

negada de diversas formas:


Vida humana que não é um conceito, uma ideia,
nem um horizonte abstrato, mas o modo de re-
alidade de cada ser humano concreto, condição
absoluta da ética e exigência de libertação. Não se
deve estranhar, então, que esta ética seja uma éti-
ca de afirmação total da vida humana (DUSSEL,
2002, p. 11).

A história da América Latina é uma história de dependência


e de dominação. Pensar filosoficamente desde essa situação implica in-
vestigar o processo de dominação e propor respostas concretas para
as grandes demandas. Elaborar uma Filosofia da práxis, isto é, uma
Filosofia que enfrente os problemas que se apresentam na realidade
cotidiana e buscar resolvê-los é uma das grandes tarefas da Filosofia e
da Ética da Libertação que encontra em Dussel uma das suas maiores
contribuições.
Segundo Vieira, refletir sobre a condição humana tendo como
referencial as classes populares é tarefa urgente da Filosofia da Liber-
tação, pois ela não pode ignorar que as referidas classes são potencial-
mente as únicas protagonistas de mudança social qualitativa (VIEIRA,
2003, p. 16).
Nesse âmbito, os desafios podem ser colocados da seguinte
forma: como elaborar um projeto filosófico que sistematize, justifique,
esclareça e fundamente um novo modo de fazer filosofia, ética e políti-
ca para além do ethos e do lócus europeu? Como desconstruir um discur-
so da totalidade que nega a legitimidade e riqueza de outros discursos?
Como superar a barbárie, a fome material e espiritual e, ao mesmo
tempo criar novos horizontes de sentido e de socialização do mundo?
Como elaborar uma utopia concreta, capaz de transformar as reais e
desumanas condições de exploração da maioria?
Na tese 11 da obra Filosofia da Libertação na Idade da Globalização
e da Exclusão, Dussel sintetiza a defesa da vida humana, sendo esta o
critério ético material universal da ética por excelência. Para isso, ele

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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propõe um princípio material universal: a obrigação ética de reproduzir

José Vicente Medeiros da Silva


e desenvolver a vida do sujeito humano dentro de uma comunidade de
vida pressuposta, com pretensão de abarcar toda a humanidade. O seu
critério de verdade é a vida ou a morte. “É em função das vítimas, dos
dominados ou excluídos que se necessita esclarecer o aspecto material
da ética” (DUSSEL,2002,p.93). Assim, a vida humana concreta de cada
ser humano deve ser compreendida em três momentos distintos.
O primeiro momento é o da produção da vida humana nos
níveis vegetativo ou físico, material e por meio, e contém as funções su-
periores da mente (consciência, autoconsciência, funções linguísticas,
valorativas com liberdade e responsabilidade ética, etc.), como proces-
so inicial que é continuado no tempo pelas instituições. Dussel denomi-
na este momento de âmbito próprio da razão prático-material. A ética
material da vida tem como ponto de partida as vítimas, que sofrem na
sua corporalidade a dor e a infelicidade. Segundo Dussel, “as culturas,
por exemplo, são modos particulares de vida, modos movidos pelo
princípio universal da vida humana de cada sujeito em comunidade, a
partir de dentro” (2002, p.93). Nesse sentido, ele aponta a necessidade
de desenvolver a vida, pois “toda norma, opção, microestrutura, ou
eticidade cultural, tem sempre e necessariamente como conteúdo últi-
mo algum momento da produção, reprodução e desenvolvimento da
vida humana em concreto” (2002, p. 93).
No segundo momento, o da reprodução da vida humana nas
instituições e nos valores culturais, emerge a vida humana nos sistemas
de eticidade históricos motivados pelas pulsões reprodutivas. O princí-
pio material de reproduzir a vida mede a eticidade de toda norma, ação,
instituição ou sistema de eticidade possível. Isso significa que todas as
instituições são analisadas por sua capacidade de reproduzir ou não a
vida em todas as suas dimensões. A vida humana não é um fim em si
mesmo, nem um mero horizonte mundano-ontológico; a vida humana
é o modo de realidade do sujeito ético.
No terceiro momento, Dussel coloca o desenvolvimento da
“vida humana” no quadro das instituições ou culturas reprodutivo-
-históricas da humanidade. A mera evolução ou crescimento deixou

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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lugar para o desenvolvimento histórico. O princípio de reprodução da


Filosofia, responsabilidade e educação em Enrique Dussel

vida é internalizado em cada cultura como princípio universal que pode


julgar a mesma cultura e permitir um diálogo intercultural. “Realiza-se
através das culturas motivando-as por dentro, assim como aos valores
ou às diversas maneiras de cumprir a “vida boa”, a felicidade, etc. Mas
todas as instâncias nunca são o princípio universal da vida humana”
(DUSSEL, 2002, p. 93).
Daí a necessidade da crítica ao sistema que nega a reprodução
da vida em todas as suas esferas. A negação da vida pela fome, exclusão
ou analfabetismo se impõe contra o princípio material da vida na Ética
da Libertação, pois esta materializa, incorpora a vida na sua radicalida-
de, para além de tudo que a nega. O sujeito material da Ética da Liber-
tação é o sujeito corporal vivo.
Nesse âmbito, Dussel não distingue entre a sobrevivência ou
a reprodução material física, como comer e beber, e um desenvolvi-
mento cultural, científico, estético, místico e ético. O momento do de-
senvolvimento da vida humana é impulsionado pelas pulsões de prazer
e pela criação histórica. Esse desenvolvimento aponta para um ser hu-
mano inquieto, inacabado e aberto a desenvolver a vida em todas as
dimensões.
O desenvolvimento da vida está amparado pela razão ética
crítica que revela o rosto do outro vítima, excluído e negado. A vítima
deve viver. A vítima percebe que não está morta, que deve lutar para
desenvolver a vida qualitativamente, rompendo como a totalidade vi-
gente e com as suas diversas formas de dominação.
Nosso autor chama a atenção que, na sua Ética da Libertação,
as palavras produção, reprodução e desenvolvimento da vida humana
do sujeito ético sempre significam não só o vegetativo ou o animal, mas
também o superior das funções mentais e o desenvolvimento da vida e
da cultura humana. Elas indicam um critério material a priori ou anterior
a toda ordem ontológica e cultural vigente.
A ética material da vida de Enrique Dussel coloca como tese
central a defesa da vida. Isto significa desafiar o sistema capitalista que
produz, reproduz e desenvolve a morte; morte para a maioria que não

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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tem acesso aos bens materiais e aos bens simbólicos. A ação das classes

José Vicente Medeiros da Silva


dominantes internas da América Latina, em conjunto com as classes
dominantes externas, determinou o ritmo da vida, do crescimento e
do desenvolvimento dos países, estabelecendo, também, as diferentes
relações entre as classes sociais envolvidas no processo econômico.
Toda a América Latina, dominada até hoje por várias formas
de neocolonialismo, carrega a marca da profunda opressão. Nenhu-
ma remoção ou diluição consegue cancelar o fato de que, por mais de
cinco séculos, a população indefesa dessa região tem sido submetida a
uma série inaudita de violências e de crimes. Nesse sentido, a teoria da
dependência cumpre um papel importante na análise e soluções dos
problemas da América Latina.
A dependência constituiu profundas desigualdades e dife-
renças entre os países centrais e os países periféricos. A geração da
violência a partir da dependência econômica gerou diversos crimes na
história do continente latino-americano.
Segundo Giovanni Semeraro (2009, p.15) esses crimes podem
ser sintetizados da seguinte forma:
a) o extermínio dos índios;
b) o tráfico de escravos negros arrancados da África;
c) o sistema de escravidão e de servidão;
d) as repressões, as expedições punitivas, a caça ao homem, a
tortura, a prisão, o ostracismo e o exílio aplicados aos di-
rigentes e a todos os que ousaram opor-se abertamente ao
sistema colonial;
e) as ondas de migrantes expulsos da Europa;
f) a devastação sem limites da natureza;
g) a imposição cultural e religiosa;
h) as ingerências externas e a sustentação de governos auto-
ritários;
i) a exclusão dos centros mundiais de poder econômico e a
subordinação aos circuitos políticos internacionais;
j) a ludibriante especulação financeira e a armadilha da dívida
externa.
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Todas as barbáries cometidas produziram uma série de víti-


Filosofia, responsabilidade e educação em Enrique Dussel

mas que até hoje marcam o ethos da América Latina. Eduardo Galeano
afirma que a própria invasão, a expulsão e a imposição de outra cultura
têm gerado um sentimento de não pertencimento à América Latina,
a tal ponto que os nativos se sentem como se estivessem no exílio na
própria terra (1978, p. 73).
É nesse contexto que Dussel enfatiza a necessidade de elabo-
rar uma ética material da vida. Se a vida em sua materialidade, em sua
corporalidade é negada (fome, miséria, violência, etc), urge questionar
radicalmente o sistema vigente objetivando destruí-lo, pois ele é a causa
da morte de milhões de seres humanos.
Sacrificados em nome de uma civilização e de uma cultura que
se autodenomina superior, os condenados da terra clamam por liberta-
ção e justiça. Daí, a necessidade de uma fundamentação racional para
demonstrar o processo de produção de dominação desde os aspectos
históricos, econômicos, filosóficos e culturais.
Sob a perspectiva ética, afirma-se a hipótese da ética como
filosofia primeira. Se o que perpassa o momento civilizatório atual é a
crise ética, a crise do humano na sua raiz, com o aumento crescente da
irresponsabilidade frente ao outro, frente à natureza, etc, urge repensar
toda ação e toda prática humana para buscar novas respostas para o
humano. É preciso repensar todos os fundamentos.
Tradicionalmente, a ética sempre esteve ligada à vertente reli-
giosa ou sobre a perspectiva objetivadora dos gêneros que colocavam
o homem como ser capaz de modalização. Com a crise da vertente
religiosa, buscou-se o fundamento para a ética na filosofia política. A
racionalidade moderna pleiteou uma fundamentação antropológica
acatando como referências ora a convivência, ora o Estado, ora o Con-
trato Social, mas sempre polarizadas pelo Eu transcendental (PIVAT-
TO, 2001, p. 217).
Com a crise da ética racionalista moderna e também as limi-
tações da ética pós-moderna, onde ocorre a liberação absoluta, urge
repensar a ética como responsabilidade. Hoje, quando o homem se
tornou um ser altamente nocivo, incapaz de avaliar o conjunto de suas

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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ações, com o risco efetivo de alterar equilíbrios delicados, em parte

José Vicente Medeiros da Silva


ignorados; hoje que cada um contribui para a degradação do meio am-
biente, a responsabilidade, a reflexão e a cautela constituem uma obri-
gação vinculante e ineludível (BODEI, 2000, p. 280).

A responsabilidade ética pelo outro/vítima

Na América Latina, a responsabilidade surge, em primeiro


lugar, como uma resposta ao excluído, à vítima frente ao sistema que
lhe nega a vida. Se o sistema mata, exclui e oprime, a responsabilidade
implica viver, incluir e libertar.
Nesse sentido, inúmeros são os desafios do continente latino-
-americano no início do século XXI. Diante da crescente miséria e ex-
clusão, o principal desafio a ser superado talvez seja a pobreza material
e espiritual a que está submetida a maioria da população. A fome, o
desemprego, a miséria estrutural são problemas centrais nos chamados
países periféricos.
Para Dussel, isso impõe uma responsabilidade, uma resposta
para com as diversas vítimas do sistema: “Mas as vítimas do sistema
imperfeito [...] são as que sofrem em maior grau, como feridas abertas,
a enfermidade do corpo social. Elas mostram o lugar da patologia do
sistema, da injustiça que terá de saber reparar” ( 2007, p. 105).
Esse entendimento vem apontar que são inúmeras as vítimas e
que estas se multiplicam no decorrer da História nos últimos séculos. Es-
sas “vidas desperdiçadas”, de seres descartados que se multiplicam hoje
tanto no centro como na periferia do capital ( BAUMAN, 2004, p. 84).
Na História da Europa, o escravo, o servo e o empregado
sempre mantiveram alguma ligação com o senhor, com a aristocracia e
o patrão. Bem ou mal faziam parte do sistema: falavam a mesma língua,
praticavam a mesma religião, aceitavam os mesmos valores (SEMERA-
RO, 2009, p. 26).
As vítimas latino-americanas, ao contrário, apresentam uma
conotação mais brutal. Sendo considerados uma “raça inferior”, o ser-
-negado, os índios, os negros, os mestiços, os jovens são instrumentos

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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para usar e descartar. A inferioridade racial dos colonizados nunca ga-


Filosofia, responsabilidade e educação em Enrique Dussel

rantiu os direitos estipulados ao trabalhador europeu.


A responsabilidade pelo pobre, o exterior ao sistema, expõe
o homem justo aos ataques do sistema que se sente atacado por sua
gratuidade, disfuncionalidade, abertura e exposição. Segundo Dussel, a
responsabilidade é obsessão pelo outro; é religação com sua exteriori-
dade; é expor-se ao traumatismo, à prisão e à morte (DUSSEL, s.d, p.
66).
Essa responsabilidade frente ao outro faz emergir uma nova
construção teórica e prática no continente latino-americano. A chama-
da Filosofia da Libertação pretende repensar toda a Filosofia (desde a
lógica ou a ontologia, até a estética ou a política) a partir do outro, o
oprimido, o pobre: o não-ser, o bárbaro, o nada de sentido.
Segundo Dussel, “a ética da libertação é um repensar a totali-
dade dos problemas morais a partir da perspectiva e das exigências da
responsabilidade, pelo pobre, por uma alternativa histórica que permita
lutar no Egito, caminhar no deserto no tempo da transição e construir
a terra prometida” (1994, p. 264).
A responsabilidade pelo outro é, antes de tudo, responsabili-
dade pelo outro oprimido, excluído, vítima diante do sistema econômi-
co concreto de opressão. A responsabilidade pelo outro implica uma
reserva de humanismo e comprometimento radical com o outro, com a
dignidade e a libertação do outro. Lévinas acredita que, apesar de a His-
tória da humanidade ser uma história de guerra, pode haver também
santidade no humano, porque um homem pode morrer pelo outro. A
face do outro é presença, é nudez.
A responsabilidade é, antes de tudo, justiça que emerge do
respeito e do serviço ao outro. É sair de si em busca do outro caído,
faminto, miserável. É arriscar-se nos labirintos da História para, no face
a face, viver para o outro.

Educação e libertação
Nesse contexto, a pedagogia dominante reproduz o mesmo
em vista da manutenção do status quo, negando à grande maioria da hu-
Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012
101

manidade a capacidade de se humanizar. Na maioria das vezes, as suas

José Vicente Medeiros da Silva


mediações – escolas, universidades, métodos, projetos, etc – expressam
a totalidade que tudo engloba e controla.
A Pedagogia da Libertação expressa a tentativa de reproduzir
a vida, na medida em que o ser humano enfrenta o desafio de cons-
truir a sua humanidade. A Pedagogia da Libertação quer expressar um
momento de exterioridade, de ruptura com o dado em busca do novum.
Na luta pela construção de uma nova práxis pedagógica, a Filosofia da
Alteridade de Lévinas e a Filosofia de Dussel trazem suas reflexões.
A concepção do outro como mestre aparece de vários modos
e com várias acentuações no pensamento de Lévinas, que tende a con-
siderar qualquer outro como mestre. O outro em relação a mim repre-
senta o critério da própria verdade e justiça. Nesse sentido, o mestre é
sempre alguém em relação a mim. A maestria do outro é a essência da
alteridade
Se a ética da alteridade tem como cerne de sua ética o outro
enquanto rosto, como se dá a relação entre mestre e aluno? Como su-
perar as tradicionais teorias pedagógicas que reproduzem o mesmo nas
suas relações, metodologias e didáticas? Como construir novas relações
entre mestre e aluno?
Lévinas reflete sobre a relação tradicional mestre e educando.
“O mestre – coincidência do ensino e do que ensina - não é um fato
qualquer, por seu turno. O presente da manifestação do mestre que
ensina sobrepuja a anarquia do fato” ( LÉVINAS, 2000, p.56).
No mestre que ensina, Lévinas vê a figura emblemática da al-
teridade em que o mestre é outro para o aluno e o aluno é outro para o
mestre. Nesse sentido, a verdadeira aprendizagem implica uma relação
a dois no reconhecimento mútuo da exterioridade de ambos.
Segundo Lévinas, a maiêutica não fazia mais do que recordar
o que o aluno já sabia em si. O perigo desse conceito de mestre é que
ele pode querer violar o aluno, impondo-lhe ou quase o obrigando a
chegar a uma verdade. A relação mestre e aluno não é de fusão, nem
de complementaridade. Existe algo profundo nessa relação enquanto
ambos são seres únicos e, nesse sentido, separados.

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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Segundo Ricardo Timm, a presença do olhar do outro pode


Filosofia, responsabilidade e educação em Enrique Dussel

ser sentida pedagogicamente. Para ele, isso só pode acontecer caso o


medo original da alteridade, da estranheza, seja superado e a primeira
palavra ética possa ser ouvida. Esta primeira palavra pode passar, então,
de “ameaça” a “convite”, e o primeiro passo em direção ao futuro pode
ser dado (1999, p.158).
Nisso parece residir a força e a fraqueza da Pedagogia do Infi-
nito de Lévinas. “A pedagogia do infinito consiste em mobilizar a força
das gerações nascentes no sentido do encontro com o diferente em um
tempo diferente, ou seja, que não se explique pelo áspero correr do dia-
-a-dia tautologizado” (SOUZA, 1999, p. 158)
Para Dussel, a pedagogia é a proximidade pai-filhos, mestre-
-discípulo, onde convergem a política e a erótica. A criança que nasce
no lar é educada para fazer parte da comunidade política; e a criança
que nasce numa cultura cresce para formar um lar (DUSSEL, s.d. p.
109).
A pedagogia não se ocupa apenas da educação da criança, do
filho na família erótica, mas também da juventude e das instituições
escolares universitárias, científicas e tecnológicas.
A transmissão da cultura acumulada tranfere-se graças a siste-
mas pedagógicos, desde os mais antigos aos mais complexos.”O siste-
ma pedagógico erótico ou doméstico educa dentro do ethos tradicional
do povo. O sistema pedagógico político ou social educa dentro do ethos
social, mas, além disso, tem instituições” (DUSSEL, s.d. p.110).
Dussel caracteriza a pedagogia dominante como filicídio, em
que “a morte física ou cultural do filho é alienação pedagógica. O filho
é morto [...] no ventre do povo pela repressão cultural [...] esta repres-
são se realiza sempre em nome da liberdade e com os melhores méto-
dos pedagógicos” (s.d, p. 113).
No nível pedagógico, o desafio é promover a justiça superan-
do o modelo de relacionamento que reproduz o mesmo, a identidade.
A Filosofia da Libertação convida os pais e os mestres a renunciar a
uma relação de poder, daquele que sabe (pai, professor), daquele que
não sabe (filho, aluno).

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


103

Nela, respeita-se o novo, a alteridade do outro e se produz a

José Vicente Medeiros da Silva


justiça quando o outro é visto como um portador de um saber, de uma
exterioridade, que rompe com os modelos pedagógicos socialmente
constituídos. “Se a pedagogia ocidental, mesmo nos seus modelos apa-
rentemente mais a alteridade, como é o caso da maiêutica socrática,
não tem concebido a educação senão como processo de reprodução do
saber do mestre na mente do discípulo” (VELASCO, p. 92), cabe outra
tarefa à pedagogia da libertação: “chamar o mestre a saber ser discípulo
do discípulo, para contribuir com sua abertura à gestação do novo, que
este, como outro, traz intrinsecamente consigo” (VELASCO, p. 92.).
Nesse âmbito, Dussel elabora uma crítica radical aos mode-
los pedagógicos ocidentais, dizendo que Sócrates “mata a juventude,
fazendo-a crer que as respostas gregas às quais sutilmente encaminhava
seus discípulos eram nada menos que ideias eternas e divinas ( portan-
to, diviniza a cultura grega)’’ ( s.d. p. 113).
Para Dussel, na modernidade, Jean-Jacques Rousseau propôs,
em nome da natureza, a cultura burguesa emergente, e para isso preci-
sou primeiro realizar com seu discípulo um contato pedagógico. O pre-
ceptor (pai e Estado) obriga seu discípulo a ser e comportar-se como
um órfão da cultura popular, que lhe obedeça em tudo. A obra Emílio,
de Rousseau, nada mais é do que a tentativa de mostrar gradativamente
a gestação do modelo burguês de educação e de homem.
Segundo Dussel: “Pestalozzi, Montessori ou Dewey não fa-
zem mais nada do que continuar no mesmo caminho ideológico, aper-
feiçoando a domesticação com técnicas ainda mais modernas” (s.d. p.
98).
Esses modelos, pretensamente universais, passam a ser mo-
delos ideológicos que permitem a dominação e a opressão, na medida
em que não permitem ao outro, aluno-filho portador de um saber e de
uma alteridade, ser mais.
Assim entendido, o projeto de uma Pedagogia Libertadora
quer libertar o povo. “O ethos da libertação pedagógica exige que o
mestre saiba ouvir, no silêncio e com respeito, a juventude, o povo”
(DUSSEL, [s.d.], p. 117).

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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Dussel elabora novamente uma crítica contundente à pedago-


Filosofia, responsabilidade e educação em Enrique Dussel

gia dominante e aponta Paulo Freire como o anti-Rousseau do século


XX. Para Dussel, Rousseau é o modelo da pedagogia burguesa e “Paulo
Freire [...] nos mostra ao contrário uma comunidade intersubjetiva, das
vítimas dos Emílios no poder, que alcança validade crítica dialogica-
mente, anti-hegemônica, organizando a emergência de sujeitos históri-
cos (2002, p. 415).
Nesse âmbito, Dussel vê em Paulo Freire não simplesmente
um pedagogo, mas um educador da “consciência ético-crítica” das víti-
mas, os oprimidos, os condenados da terra, em comunidade.
Para Dussel, todos os psicólogos do desenvolvimento ou psi-
copedagogos contemporâneos como Piaget, Vigotsky e Kohlberg têm
um traço em comum; são cognitivistas, isto é, tratam o indivíduo como
participante de uma ordem social, cultural, política e pedagógica como
“dado”, e cuja transformação da sociedade nada tem a ver com a tarefa
do pedagogo (2002, p. 441).
A grande contribuição de Paulo Freire é que a práxis de li-
bertação não é um ato final, mas o ato constante que relaciona os su-
jeitos entre si em comunidade transformadora da realidade que produz
o oprimido. Daí a necessidade da conscientização e da transformação.
Segundo Freire: “os oprimidos, nos vários momentos de sua
libertação, precisam reconhecer-se como homens, na sua vocação on-
tológica e histórica de ser mais. A reflexão e a ação se impõem
quando não se pretende, erroneamente, dicotomizar o conteúdo da
forma histórica de ser do homem” (1987, p. 52).

Considerações finais

Nesse sentido, se afirma o desafio de construir uma educação


em favor das vítimas, assumindo a responsabilidade para além da or-
dem estabelecida. Isso porque só a consciência e a autoconsciência dos
indivíduos particulares quanto ao seu papel como indivíduos sociais
responsáveis – sua consciência clara de sua contribuição específica ime-
diata, mas escolhida de forma autônoma, à transformação oniabran-

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


105

gente contínua – é uma parte integrante e social de todo êxito possível

José Vicente Medeiros da Silva


(MÉSZAROS, 2008, p. 114).
A maior contribuição da ética de Dussel em contraposição à
ética moderna é, a nosso ver, a sua materialidade. A Ética da Liberta-
ção não é uma ética formal - como tentamos demonstrar – mas uma
ética material da vida. Dussel parte dos excluídos, das vítimas, para
fundamentar a possibilidade de construir outra ética, uma ética trans-
moderna.
Isto significa afirmar a vida como valor maior, para além do
conhecimento da razão cínica, para além da racionalidade instrumental,
para além da força destruidora do capital. A saída de si para o outro
enquanto vítima que, negado em sua humanidade, precisa ser recons-
truída, reconhecida e amada. Nesse âmbito, todo esforço teórico e prá-
tico deve estar voltado para construir uma nova realidade em que a vida
concreta e não meramente pensada seja fonte de sentido.
Nesse sentido, Dussel, ao propor uma ética material da vida,
inverte sistemas convencionais formais e consensuais. Desse modo,
rompe com a tradição filosófica e com a ética moderna desencarnada
da realidade concreta; pensa a realidade mais dura das vítimas sem vez
e voz nas instâncias de poder; pensa a realidade da fome que assombra
milhares no mundo; pensa a realidade das guerras produzidas para que
alguns lucrem.
Ele está questionando assim a “ética” vigente das grandes
corporações com seu cinismo, que, ao determinar as regras do jogo
econômico, define quem deve viver e quem deve morrer, os sistemas
políticos fetichizados, absolutizados em si mesmos.
Dussel desenvolve um “pensamento concreto” na medida em
que enfrenta o desafio de tentar produzir uma visão histórica e filo-
sófica desde a América Latina, mas com pretensões de mundialidade.
Sendo uma ética em construção, é necessário afirmar que a ética da
libertação é uma ética processual, em constante diálogo com a História.
Essa ética acredita na possibilidade de construção de um novo
humanismo, um novo modelo de ser humano e uma nova forma de so-
ciabilidade. Para além da ilusão contemporânea conduzida pelo capital

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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de que não há outra alternativa para além do consumo desenfreado, da


Filosofia, responsabilidade e educação em Enrique Dussel

crise das instituições, da letargia política que nos envolve e da falta de


futuro, emerge uma utopia, um sonho concreto que nasce não apenas
da América, como força e energia criativa, de revolução e esperança
humana.
A Ética da Libertação elaborada por Dussel é, sem dúvida,
uma contribuição para a efetivação de uma nova realidade a ser cons-
truída pelos povos e culturas no contexto de exclusão e supressão da
dignidade humana na atualidade. É uma rebeldia encarnada na História
em favor dos excluídos e das vítimas.
Não se trata de uma “responsabilidade social” defendida no
interior do sistema; não se trata de uma “responsabilidade jurídica”
dentro da legalidade atual. Trata-se de uma responsabilidade como
resposta radical, original, ética, no face a face, na exclusão que enfrenta
as angústias, os sofrimentos das vítimas para superá-los na luta por
libertação. Luta esta que implica afirmar o valor da vida para além de
todo sistema, regra, lei ou norma.
Entendemos que a proposta da ética dusseliana é, antes de
tudo, um esforço de decifrar o ser da realidade latino-americana. Trata-
-se de enfrentar um problema, um desafio, porém, também uma espe-
rança, uma perspectiva, um compromisso. Nesse âmbito, a responsabi-
lidade pelo outro constitui um dos pilares para a superação dos grandes
problemas humanos.
Se formos responsáveis uns pelos outros, especificamente
pelos excluídos e pelas vítimas, o projeto em todos os níveis (políti-
co, erótico, pedagógico, ecológico, econômico) a ser construído é lutar
para que se efetivem a justiça e a libertação. É preciso responsabilidade
pela produção, reprodução e desenvolvimento da vida; vida que é o
critério primeiro e único de todo caminhar possível.

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BODEI, Remo. A filosofia do século XX. São Paulo: edusc, 2000.

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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DUSSEL, Enrique. Ética da libertação na idade da globalização e da

José Vicente Medeiros da Silva


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Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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A crítica de Kripke às teorias


descritivistas de nomeação
A critique of the Kripke descriptivist theories
appointment
Prof. Dr. Cícero Antônio Cavalcante Barroso1

Resumo
Naming and Necessity é possivelmente a obra mais importante do filósofo
estadunidense Saul Kripke. Nessa obra, ele apresenta uma série de
argumentos contra a visão até então dominante sobre a semântica dos
nomes próprios, visão esta que ele chamou de ‘descritivismo’. O conjunto
desses argumentos mostra, na opinião de Kripke, que o descritivismo
é falso, seja enquanto teoria do significado, seja enquanto teoria da
referência. Em vista dessa falência do descritivismo, ele propõe então
uma nova explicação para a função referencial dos nomes próprios, uma
explicação baseada na noção de cadeia de comunicação. Este artigo examina e
detalha os argumentos antidescritivistas propostos em Naming and Necessity
e põe em relevo os pontos principais da explicação alternativa oferecida
por Kripke.
Palavras-chave: Crítica kripkiana, descritivismo, nomes próprios,
designação rígida.

Abstract
Naming and Necessity is possibly the most important work of American
philosopher Saul Kripke. In this work, he presents a series of arguments
against the hitherto dominant view about the semantics of proper names,
the vision which he called ‘descriptivism’. The set of these arguments
shows, according to Kripke, that descriptivism is false, either as a theory
of meaning or as a theory of reference. In virtue of this failure of
descriptivism, he proposes a new explanation for the referential function of
proper names, an explanation based on the notion of chain of communication.
This paper examines and details the proposed antidescriptivist arguments
in Naming and Necessity, and highlights the main points of the alternative
explanation provided by Kripke.
Keywords: Kripkian criticism, descriptivism, proper names, rigid
designation.

1
Universidade Federal do Ceará (Campus Cariri) - E-mail: cicero@lia.ufc.br

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


110

Introdução
A crítica de Kripke às teorias descritivistas de nomeação

Em Janeiro de 1970, na Universidade de Princeton, Saul Kri-


pke proferiu três célebres conferências sobre nomes próprios, e Naming
and Necessity é a transcrição dessas conferências, acrescida de notas e de
um prefácio. A discussão encetada nas conferências pode ser dividida
em dois momentos principais. No primeiro momento, trata-se de es-
clarecer de que forma é determinada a referência dos nomes próprios.
Kripke começa examinando algumas teorias que ele chama de ‘descri-
tivistas’, as quais, segundo ele, sustentam que a referência de um nome
próprio é fixada com o auxílio de descrições definidas. Depois de apre-
sentar vários argumentos contra essas teorias, ele dá sua própria expli-
cação da função referencial dos nomes próprios, e essa explicação se
apoiará na noção de uma cadeia de comunicação. No segundo momen-
to, Kripke tenta extrair as consequências mais importantes da tese de
que nomes próprios são designadores rígidos. Essa tese é apresentada
já no prefácio de Naming and Necessity e assevera que quando um nome
próprio ‘n’ refere um objeto b no mundo atual, ‘n’ refere b em todos os
mundos possíveis em que b existe. É, contudo, em sua terceira confe-
rência que Kripke se propõe a expor de uma forma mais minuciosa as
implicações da tese da designação rígida, quais sejam, a necessidade de
todas as identidades verdadeiras entre nomes próprios, a necessidade
das identidades teoréticas, a não identidade entre mente e corpo, etc.
Essas consequências dão origem a um novo tipo de essencialismo, um
essencialismo fundamentado sobre a análise semântica que Kripke faz
de enunciados contendo nomes próprios.
Neste artigo, tratarei principalmente da primeira parte de Na-
ming and Necessity, ou seja, dedicarei a maior parte de minha argumen-
tação ao esclarecimento da crítica de Kripke às teorias descritivistas de
nomeação. Não obstante, antes de começar a expor essa crítica, farei
umas poucas considerações sobre alguns de seus pressupostos e trata-
rei especificamente da noção de mundo possível e da tese da designação rígida.

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


111

1 Mundos possíveis e designação rígida

Cícero Antônio Cavalcante Barroso


No prefácio de Naming and Necessity, Kripke declara que as te-
ses que aparecem em suas três conferências “brotaram do trabalho for-
mal anterior na teoria dos modelos da lógica modal” (KRIPKE, 1980,
p. 3). De fato, a tese da designação rígida que é, por assim dizer, a mãe
de todas as outras teses de Naming and Necessity, é uma consequência di-
reta do conceito de mundo possível que Kripke havia desenvolvido para a
semântica das lógicas modais. Dessa forma, para que compreendamos
o desenvolvimento do pensamento kripkiano, é preciso, antes de tudo,
que entendamos esse conceito.
A ideia de mundo possível surge, como Kripke esclarece vá-
rias vezes, como uma generalização da ideia de situação contrafactual.
Assim, o que fazemos primeiramente é pensar numa situação atual em
que, digamos, um objeto b tem uma propriedade P para em seguida
imaginar uma situação em que b não tem a propriedade P, sendo essa
nova situação propriamente denominada de “situação contrafactual”.
Uma vez que pensamos no mundo atual como um conjunto de si-
tuações atuais, se imaginamos outro mundo onde algumas dessas si-
tuações dão lugar a situações contrafactuais, temos então um mundo
puramente possível. Por aí se vê que um mundo puramente possível
não é um mundo concreto, é apenas uma abstração, daí a insistência
de Kripke em afirmar que mundos possíveis não são planetas distan-
tes que poderiam ser vistos através de um telescópio. No prefácio de
Naming and Necessity, uma analogia tenta esclarecer a intuição de mundo
possível que é pressuposta na metafísica kripkiana. Trata-se da analogia
dos dados.
Kripke chama a atenção para o que acontece quando lança-
mos dois dados. Segundo ele, quando fazemos isso, “os trinta e seis
estados dos dados são literalmente trinta e seis ‘mundos possíveis’...”
(KRIPKE, 1980, p. 16), porém, somente um desses estados será o atu-
al, e não é preciso supor que os outros trinta e cinco estados existam
em algum lugar de contos de fadas. É ainda importante salientar que os
trinta seis estados possíveis dos dados têm o mesmo estatuto ontológi-

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


112

co, são entidades abstratas e que o estado atual se distingue dos demais
A crítica de Kripke às teorias descritivistas de nomeação

apenas por ser realizado, ou seja, ele existe.


Com a ajuda dessa analogia, não é difícil responder ao proble-
ma da identificação transmundial. O problema seria o seguinte: dado
um objeto b, pode-se argumentar que só podemos identificar b com
base em um conjunto F de propriedades de b e essas propriedades
são quase sempre contingentes. Como então seria possível identificar
b em um mundo possível em que b não tem as propriedades de F? A
resposta é que não precisamos fazer tal identificação. O que precisamos
é referir b no mundo atual e automaticamente o mesmo b será referido
em todo mundo possível em que ele existe. É o que acontece com os
dados. Quando falamos que a soma dos dados poderia ser dez ao invés
de doze, não há um problema de saber se os dados que somam doze
atualmente são idênticos aos dados que somariam dez em uma situa-
ção contrafactual, é óbvio que falamos sempre dos mesmos dados. Da
mesma forma, quando falamos de b em uma dada situação contrafac-
tual, falamos ainda do mesmo b existente no mundo atual. Primeira-
mente, temos objetos e propriedades e depois temos mundos possíveis,
não o contrário. É o que Kripke dirá em certa altura de sua primeira
conferência: “...nós começamos com os objetos, que nós temos, e po-
demos identificar, no mundo atual. Nós podemos então perguntar se
certas coisas poderiam ter sido verdadeiras a respeito desses objetos”
(KRIPKE, 1980, p. 53).
Ora, essa ideia de que referimos sempre a mesma coisa b
quando falamos de b em diferentes situações contrafactuais é o germe
da tese da designação rígida. É por isso que Kripke diz que seu trabalho
em lógica o levou a ter as opiniões expressas em Naming and Necessity.
Gostaria de tentar explicitar essa conexão com um exemplo.
Considere um enunciado modal sobre Sócrates, digamos,
“Sócrates poderia ter sido um dançarino”. Esse enunciado é intuiti-
vamente verdadeiro. Qual a nossa intuição quando julgamos que ele é
verdadeiro? A intuição é a de que podemos imaginar ou conceber Só-
crates numa situação em que ele é um dançarino. A situação imaginada
não corresponde a nenhuma situação histórica real, mas o indivíduo

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


113

que toma parte nessa situação imaginária é o indivíduo real. Se não fos-

Cícero Antônio Cavalcante Barroso


se assim, ela não seria uma situação em que Sócrates é um dançarino,
seria uma situação em que outro indivíduo é um dançarino, e isso não
nos ajudaria em nada para julgar a verdade do enunciado modal em
análise. Dessa forma, todo enunciado modal sobre Sócrates evoca uma
situação contrafactual que envolve o mesmo indivíduo: Sócrates. Se
acrescentarmos a isso o fato de que uma situação contrafactual é uma
situação que, por definição, ocorre em um mundo possível diferente
do atual, então cada enunciado modal sobre Sócrates faz referência a
um mundo possível em que Sócrates exista. O indivíduo existente lá é
o mesmo existente aqui, logo, se o nome ‘Sócrates’ refere o indivíduo
que existe aqui, também refere o que existe lá. De fato, o nome ‘Sócra-
tes’ refere o mesmo indivíduo em todos os mundos possíveis em que
ele exista, e isso equivale a dizer que ‘Sócrates’ é um designador rígido.
Como esse argumento pode ser generalizado para qualquer nome pró-
prio, a conclusão é a tese de que todo nome próprio funciona como um
designador rígido, isto é, a tese da designação rígida.
Em grande parte, foi por causa dessa tese que Kripke se tor-
nou antidescritivista. Depois de constatar que nomes próprios desig-
nam rigidamente, ele observou que descrições definidas não funcionam
em geral como designadores rígidos. Por exemplo, a descrição ‘o filóso-
fo casado com Xantipa’ refere Sócrates no mundo atual, mas podemos
imaginar um mundo possível em que coube a Parmênides a sorte de
ser o filósofo casado com Xantipa e, daí, naquele mundo, é Parmênides
que é referido pela descrição. Isso basta para mostrar que a referida
descrição não é um designador rígido. Com base no fato de que nomes
próprios e descrições definidas diferem no tocante à rigidez, Kripke
conclui, primeiramente, que a tese de que nomes próprios são sinô-
nimos de descrições definidas é falsa. Em seguida, percebeu que nem
mesmo a referência dos nomes próprios é determinada por meio de
descrições definidas, o que o levou a apresentar vários argumentos para
demonstrar isso em Naming and Necessity. São esses argumentos que
passo a examinar a partir de agora.

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2 As críticas de Kripke
A crítica de Kripke às teorias descritivistas de nomeação

A crítica mais elaborada encontrada em Naming and Necessity


é contra as teorias de nomeação que Kripke denomina de teorias descri-
tivistas. Segundo ele, essas teorias podem ser vistas de duas formas: 1.
elas podem ser consideradas teorias do significado cuja principal tese é a
de que descrições definidas dão significado aos nomes próprios; 2. elas
podem ser tratadas como teorias da referência cuja tese central é a de que
descrições definidas determinam a referência de nomes próprios2.
As principais teorias descritivistas que Kripke considera são
as de Frege, Russell e Searle. Essas teorias são ao, mesmo tempo, teo-
rias do significado e teorias da referência dos nomes próprios.
Frege é considerado um descritivista em grande parte por
causa desta nota de “Sobre Sentido e Referência” citada por Kripke:
No caso de um nome próprio genuíno como ‘Aris-
tóteles’, as opiniões quanto ao sentido podem cer-
tamente divergir. Poder-se-ia, por exemplo, tomar
como seu sentido o seguinte: o discípulo de Platão
e o mestre de Alexandre de Magno. Quem fizer
isto associará outro sentido à sentença ‘Aristóte-
les nasceu em Estagira’ do que alguém que tomar
como sentido daquele nome: o mestre de Alexan-
dre de Magno que nasceu em Estagira. Enquanto
a referência permanecer a mesma, tais variações de
sentido podem ser toleradas, ainda que elas devam
ser evitadas na estrutura teórica de uma ciência de-
monstrativa, e não devem ter lugar numa lingua-
gem perfeita (FREGE, 1978, p. 63, nota 1).

Kripke considera que Frege não usa a palavra ‘sentido’ de


forma unívoca. Segundo ele, “Frege deveria ser criticado por usar o
termo “sentido” em dois sentidos. Pois ele considera que o sentido
2
É preciso notar que, quando Kripke fala de ‘teorias do significado’ aqui, a noção de significado
que ele tem em mente é a noção de significado semântico, que é o significado dado pelo dicionário.
Por outro lado, quando ele fala de ‘teorias da referência’, ele emprega o termo ‘referência’
para denominar a relação que há entre uma expressão t da linguagem e o mundo, uma
relação estabelecida pelo uso que uma comunidade de falantes faz de t (cf. KRIPKE, 1998; e
CHATEAUBRIAND 2005, p. 23).

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115

de um designador é o seu significado; e ele também considera que é

Cícero Antônio Cavalcante Barroso


o modo como sua referência é determinada” (KRIPKE, 1980, p. 59).
Em outras palavras, Frege atribui duas funções àquilo que ele chama de
‘sentido’, a primeira é a de comunicar um significado, e a segunda é a
de “apontar” para um objeto do mundo. Na passagem supracitada, por
exemplo, Frege estaria dizendo que o significado que um nome próprio
comunica varia de acordo com aqueles que ouvem ou leem o nome.
Russell também é apontado como um dos principais repre-
sentantes do descritivismo. De fato, em Knowledge by Acquaintance and
Knowledge by Description, ele afirma que
Palavras comuns, mesmo nomes próprios, são em
geral realmente descrições. Quer dizer, o pensa-
mento na mente de uma pessoa usando um nome
próprio corretamente geralmente só pode ser ex-
presso explicitamente se nós substituímos o nome
próprio por uma descrição (RUSSELL, 1910, p.
114).

O nome ‘Bismarck’, poderia ser associado, por exemplo, à


descrição ‘o primeiro chanceler do Império Alemão’. É claro que ou-
tras descrições também podem ser usadas para referir Bismarck e assim
o significado do nome ‘Bismarck’ pode variar. Em seu livro Filosofia das
Lógicas, Susan Haack fala o seguinte sobre o descritivismo de Russell:
Assim como Frege, Russell identifica o significado
dos nomes próprios ordinários com o significado
de alguma descrição definida relevante (embora...
ele difira de Frege tanto em sua concepção do
significado, quanto em sua concepção de como
as descrições definidas, por sua vez, seriam expli-
cadas). E ainda como Frege, Russell entendia que
se seguia disso que os nomes possuem um signifi-
cado diferente para falantes diferentes (HAACK,
2002, p. 98).

Embora se distinga de Frege e de Russell, Searle também é


descritivista. Na sua visão, um nome próprio não é associado a uma
única descrição definida, mas a certa composição de descrições. O sig-
Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012
116

nificado do nome seria composto a partir dos significados de diversas


A crítica de Kripke às teorias descritivistas de nomeação

descrições. Essa teoria de Searle será vista com mais detalhes adiante,
porém, no momento, é bastante adiantar que seu descritivismo será um
dos alvos preferenciais dos ataques de Kripke.
Pelo que se vê, as teorias descritivistas mencionadas concor-
dam em afirmar que nomes próprios têm significado (ainda que o termo
‘significado’ não seja um termo comum a todas) e que esse significado
é derivado de descrições definidas, sejam elas tomadas isoladamente
ou em grupo. Destarte, elas funcionam como teorias do significado,
mas também lhes é comum a ideia de que o significado de um nome N
pode ser utilizado na identificação da referência de N. Isso é possível
porque a descrição sinônima de N (ou a composição de descrições que
dá o significado de N) estabelece certas condições para a determinação
da referência de N. Por exemplo, se ‘Platão’ significa o mesmo que ‘o
discípulo mais famoso de Sócrates’, então a referência de ‘Platão’ é
o homem que tem a propriedade de ser o discípulo mais famoso de
Sócrates. O próprio Kripke, no início de Naming and Necessity admite
que essa parece às vezes ser uma explicação mais natural de como a
referência de um nome próprio é determinada. Diz ele:
Por exemplo, se eu uso o nome ‘Napoleão’, e al-
guém pergunta, ‘A quem você está se referindo?’,
eu responderei algo como ‘Napoleão foi impera-
dor da França na primeira metade do século deze-
nove; ele foi finalmente derrotado em Waterloo’,
dando assim uma descrição univocamente identifi-
cadora para determinar o referente do nome. Fre-
ge e Russell, então, parecem dar uma explicação
natural de como a referência é determinada aqui
[...] (KRIPKE, 1980, p. 28).

Kripke também concorda que o descritivismo dá a impressão


de explicar de maneira satisfatória o que queremos dizer com enuncia-
dos de identidade em que dois nomes diferentes referem a mesma coisa.
Por exemplo, com o enunciado “Hesperus é Phosphorus”, queremos
dizer que certo corpo celeste que vemos pela manhã é idêntico a certo
corpo celeste que vemos pela tarde. Assim, parece que naturalmente
Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012
117

associamos os nomes com certas descrições. De todo modo, Kripke

Cícero Antônio Cavalcante Barroso


sentencia: o descritivismo é falso, seja enquanto teoria do significado
seja enquanto teoria da referência (cf. KRIPKE, 1980, p. 28-9). Dora-
vante, apresentarei os argumentos que ele oferece em favor dessa tese.
Kripke começa criticando o emprego das teorias descritivis-
tas enquanto teorias do significado. Sua primeira e mais fundamental
crítica baseia-se no argumento que Scott Soames chama de ‘argumento
modal’. O argumento é o seguinte: se um nome n é sinônimo de uma
descrição definida D, então a proposição expressa por “se n existe,
então n é D” é uma verdade necessária. Soames explica que a razoabi-
lidade desse argumento se evidencia da seguinte forma:
Se D tem o mesmo significado que n, então a
substituição de um pelo outro em uma sentença
não mudará a proposição expressa (ou o enuncia-
do feito). Mas isso significa que a sentença Se n
existe, então n é D expressa a mesma proposição
(a mesma coisa) que a sentença Se D existe, então
D é D. Uma vez que a última sentença expressa
uma verdade necessária, assim o faz a primeira
sentença (SOAMES, 2003, p. 338).

O problema é que, a menos que D descreva uma proprieda-


de necessária de n, não é aceitável que “se n existe, então n é D” seja
considerada uma verdade necessária, se D descreve uma propriedade
contingente de n, é evidente que “n é D” não é necessária. Consequen-
temente, não é aceitável que n e D sejam considerados sinônimos. Para
tornar mais clara a estrutura do argumento modal, vamos considerar
um caso particular. Assuma que ‘Kierkegaard’ significa ‘o maior filó-
sofo dinamarquês’; em outras palavras, assuma que o nome ‘Kierke-
gaard’ é definido como sinônimo de ‘o maior filósofo dinamarquês’.
Chamemos essa hipótese de ‘hipótese1’. Dada essa hipótese, podemos
concluir que, se Kierkegaard existe, o enunciado

‘Kierkegaard é o maior filósofo dinamarquês’

deveria ser semanticamente equivalente ao enunciado

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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‘O maior filósofo dinamarquês é o maior filósofo dinamarquês’,


A crítica de Kripke às teorias descritivistas de nomeação

pois, os termos em itálico em (a) e (b) são intersubstituíveis


por definição.

Ora, como (b) é uma verdade necessária, (a) também deveria


sê-lo. Só que (a) claramente não é uma verdade necessária, logo a hipó-
tese1 deve ser falsa. Como o argumento pode trabalhar com qualquer
hipótese que estabeleça a sinonímia entre um nome e uma descrição
definida não rígida, a conclusão geral é de que o significado dos nomes
próprios não é em geral estabelecido com base numa descrição defini-
da, ou seja, as teorias descritivistas do significado são falsas.
O próximo passo de Kripke é analisar as teorias descritivistas
enquanto teorias da referência. Para tanto, ele faz uma lista de teses
descritivistas que considera ser as mais representativas teses do descri-
tivismo em geral e não de um ou outro descritivista em particular, e, em
seguida, critica essas teses uma a uma. Para entendermos o conteúdo
dessas críticas, é necessário conhecermos melhor a teoria de Searle,
cujas teses aparecerão de forma mais explícita na lista de Kripke.
As ideias de Searle sobre nomes próprios encontram-se prin-
cipalmente num artigo publicado na revista Mind, em 1958, não por
acaso intitulado Proper Names. Nesse artigo, ele pretende desenvolver e
aperfeiçoar a ideia de Frege de que nomes próprios possuem sentido.
Uma das passagens mais conhecidas do texto, que é citada também em
Naming and Necessity, condensa o que há de mais importante na concep-
ção de Searle. Ela diz o seguinte:
Suponha que nós concordemos em eliminar “Aris-
tóteles” e usar, digamos, “o professor de Alexan-
dre”, então é uma verdade necessária que o ho-
mem referido é o professor de Alexandre – mas é
um fato contingente mesmo que Aristóteles tenha
tido práticas pedagógicas (embora eu esteja su-
gerindo que é um fato necessário que Aristóteles
tenha a soma lógica, a disjunção inclusiva, das pro-
priedades comumente atribuídas a ele (SEARLE,
1958, p.172).

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119

A ideia de Searle é que, quando associamos o nome n com

Cícero Antônio Cavalcante Barroso


uma única descrição definida D, nos deparamos com o problema de
que o enunciado “n é D” se torna necessário, embora realmente não
o seja (a mesma ideia presente no argumento modal). A solução seria
associar n com mais de uma descrição, seria associá-lo com uma com-
posição de descrições. Na passagem supracitada, Searle indica que essas
descrições devem descrever as propriedades comumente atribuídas ao
objeto nomeado e que elas devem ser compostas usando-se disjunções.
‘Aristóteles’, por exemplo, seria associado à soma lógica de descrições
como ‘o autor da ‘Ética a Nicômaco’’, ‘o professor de Alexandre, o
Grande’, ‘o mais ilustre discípulo de Platão’, etc. Ao se fazer isso, con-
tinua havendo algo necessário sobre n, é necessário que o referente de
n tenha pelo menos uma das propriedades comumente atribuídas a ele
(ou as mais importantes em algum sentido); em compensação, não é
preciso especificar nenhuma propriedade em particular. Searle consi-
dera esse resultado aceitável e coerente, pois a ideia é que se, para toda
descrição D que descreve uma propriedade do objeto referido por n,
“n é D” é falso, então não temos nenhum critério para usar o nome n.
Nesse caso, parece razoável afirmar que n nem mesmo tem referente e o
único enunciado em que faz sentido usar o nome é este: “n não existe”.
Feitas essas considerações sobre a teoria de Searle, passarei a
apresentar as críticas que Kripke faz às teses descritivistas constantes
de sua lista. A lista, que aparece nas páginas 64 e 65 de Naming and Ne-
cessity e volta a aparecer na página 71, é a seguinte (tome-se A como um
falante que usa o nome ‘x’):
1. A cada nome ou expressão designadora ‘x’ corresponde um
cluster de propriedades j, tais que A crê que ‘jx’;
2. A crê que uma das propriedades j, ou um conjunto delas,
identifica um indivíduo univocamente;
3. Se a maioria dos j’s (ou os mais relevantes) são satisfeitos
por um único objeto y, então y é a referência de ‘x’;
4. Se não existe um tal y, então ‘x’ não refere;
5. O enunciado “se x existe, então x tem a maioria dos j’s” é
conhecido a priori por A;
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6. O enunciado acima expressa uma verdade necessária.


A crítica de Kripke às teorias descritivistas de nomeação

(C). A explicação dada na teoria não deve ser circular, isto é,


os j’s não devem envolver a noção de referência3.

Kripke diz que, da lista que ele apresenta, somente a primeira


tese é verdadeira. Segundo ele, “essa tese é correta, por definição. As te-
ses que seguem, contudo, são todas, eu penso, falsas” (KRIPKE, 1980,
p. 64). A primeira tese, de fato, diz apenas que quem usa um nome ‘x’
tem certas crenças do tipo “x tem a propriedade j”. Não é dito nada
nem sobre o significado nem sobre a referência do nome.
A tese (2) diz que o falante que usa o nome ‘x’ crê que um
subconjunto não vazio das propriedades j identifica um único indiví-
duo. Kripke rebate isso dizendo que é possível que alguém acredite que
um objeto tem certas propriedades sem acreditar que um subconjunto
dessas propriedades identifica o objeto univocamente. Por exemplo, al-
guém pode ter sobre Cícero uma única crença, a de que ele foi um ora-
dor romano, o que não basta para identificar Cícero, já que Roma teve
vários oradores notáveis em sua história. Além disso, mesmo quando a
propriedade que acreditamos ser possuída pelo objeto é suficiente para
identificá-lo, ainda há um risco nessa identificação, o risco de infringir-
mos (C), a cláusula da não circularidade. Por exemplo, podemos iden-
tificar Cícero como o acusador de Catilina, mas como identificamos
Catilina? Muitas vezes, a única crença que temos sobre Catilina é a de
que ele é o homem acusado por Cícero. A circularidade existente aqui
impossibilita a identificação tanto de Cícero como de Catilina.
A tese (3) diz que se uma parte significativa das propriedades
j identifica um único objeto x, então x é o referente do nome associa-
do a essas propriedades. Kripke dá um exemplo para mostrar que um
objeto pode satisfazer a maioria ou as mais importantes propriedades j
e não ser o referente de ‘x’. Imagine que o nome ‘Gödel’ seja associado
apenas à propriedade de ser o homem que provou a incompletude da aritmé-
tica. Embora nós estejamos acostumados a pensar que Gödel foi esse

3 Kripke assinala que (C) não é uma tese da teoria, mas uma condição de satisfação das outras
teses (cf. KRIPKE, 1980: 71).

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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homem, nós poderíamos estar enganados, Schmidt poderia ser o ver-

Cícero Antônio Cavalcante Barroso


dadeiro descobridor do primeiro teorema da incompletude. Segundo
Kripke, nessa situação o objeto que satisfaz a maioria ou as mais rele-
vantes das propriedades j não será o referente de ‘Gödel’, o verdadeiro
referente de ‘Gödel’ será o impostor. Mas por que Kripke afirma tão
categoricamente que Schmidt não é o referente de ‘Gödel’? Porque, na
sua concepção sobre nomes, quem começa a usar o nome ‘Gödel’ são
os pais do impostor, e é a ele que eles querem se referir com o nome.
Bem, talvez não os pais, que provavelmente preferiam usar o nome
‘Kurt’, mas com certeza alguém que conheceu o impostor pessoalmen-
te. Essas pessoas, por assim dizer, batizaram o impostor de ‘Gödel’, e
isso lhe dá o direito de ser considerado o verdadeiro referente do nome.
Na tentativa de salvar sua teoria, o descritivista poderia ar-
gumentar que o homem que provou a incompletude da aritmética identifica
o homem do qual a maioria das pessoas crê que provou a incomple-
tude da aritmética, a saber, o verdadeiro referente de ‘Gödel’, e não o
desconhecido e injustiçado Schmidt. Contra esse argumento, Kripke
apresenta o seguinte contraexemplo: imagine que A se refere a Peano
quando usa a descrição ‘o homem do qual a maioria das pessoas pensa
que axiomatizou a aritmética’. Suponha então que A está enganado
a respeito do que as pessoas pensam. Ele acredita que as pessoas es-
tão pensando em Peano quando falam do homem que axiomatizou a
aritmética, mas elas na verdade estão pensando em Dedekind. Dessa
forma, a descrição usada por A identificará Dedekind, embora ele pre-
tenda se referir a Peano. Assim, o problema que o descritivista queria
evitar aparece novamente. A descrição que o falante associa ao nome
N não identifica o verdadeiro referente de N.
Kripke mostra que mesmo que o descritivista ainda não se
desse por vencido nesse ponto, haveria ainda outra objeção ao seu ar-
gumento. Segundo Kripke, quando um falante A diz com sinceridade:
“Gödel provou a incompletude da aritmética”, não se pode inferir, só
com base nisso, que A crê que Gödel provou a incompletude da arit-
mética. Para Kripke algo mais é requerido, “nós temos de estar nos
referindo a Gödel quando dizemos ‘Gödel provou a incompletude da

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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aritmética’. De fato, se nós estivéssemos nos referindo a Schmidt, nós


A crítica de Kripke às teorias descritivistas de nomeação

estaríamos atribuindo a incompletude da aritmética a Schmidt e não a


Gödel” (KRIPKE, 1980, p. 89). Posto isso, Kripke argumenta que não
é correto que o descritivista tente determinar a referência de ‘Gödel’
através da descrição ‘o homem do qual se pensa que provou o teorema
da incompletude da aritmética’, pois isso infringiria a cláusula (C) da
não circularidade. Com efeito, se para crermos que Gödel provou o te-
orema da incompletude da aritmética precisamos antes fazer referência
a Gödel, não podemos usar uma descrição expressando essa mesma
crença para determinar a referência de ‘Gödel’, já que isso seria circular.
O argumento do descritivista seria assim mais uma vez anulado.
Falando sobre a tese (4), Kripke dá o exemplo do profeta Jo-
nas. Ele diz que é possível acreditar que Jonas existiu mesmo que ele
não tenha feito nada do que a Bíblia diz que ele fez. Em outra parte
de Naming and Necessity, a mesma coisa é dita de Moisés. A propósito
de Moisés, Kripke afirma: “A estória bíblica pode ter sido uma lenda,
ou pode ter sido um relato substancialmente falso de uma pessoa real”
(KRIPKE, 1980, p. 66).
A tese (5) é tomada por Kripke como uma afirmação de que
as teses (3) e (4) são conhecidas a priori. A sua crítica nesse ponto se
limita à observação de que isso não é verdade. Segundo ele, mesmo
quando as teses (3) e (4) calham de ser verdadeiras, elas são conhecidas
a posteriori. Em outras palavras, o que Kripke sustenta é que essas te-
ses não podem ser tomadas como se a conjunção delas constituísse a
definição de referente de ‘x’.
Finalmente, chegamos à tese (6). Essa é a tese que Searle de-
fende ao dizer que é necessário que Aristóteles tenha as propriedades
comumente atribuídas a ele. Kripke rejeita essa tese com base no se-
guinte argumento: se a maioria das propriedades comumente atribuídas
a Aristóteles são contingentes, a soma lógica (disjunção inclusiva) delas
também será. Ou seja, dado o conjunto das propriedades j comumen-
te atribuídas a Aristóteles, numa situação em que Aristóteles não tem
nenhuma dessas propriedades, Aristóteles também não terá a soma ló-
gica S das mesmas.

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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Kripke apresenta as críticas examinadas acima e julga que

Cícero Antônio Cavalcante Barroso


com isso o descritivismo foi refutado. Mas sem o descritivismo, resta
explicar como de fato se determina a referência dos nomes próprios.
É introduzida então uma explicação segundo a qual a referência dos
nomes é determinada por uma cadeia de comunicação.
Kripke diz que um falante A consegue referir um indivíduo x,
porque há uma cadeia de comunicação que começa em x e alcança A. O
papel da comunidade que passa o nome ‘x’ de indivíduo para indivíduo
é imprescindível na determinação da referência de ‘x’. Kripke ressalta
esse aspecto quando afirma que “em geral, nossa referência não de-
pende simplesmente do que nós pensamos, depende também de outras
pessoas na comunidade, da história de como o nome alcançou alguém,
e coisas desse tipo” (KRIPKE, 1980, p. 95). Nesse cenário, A pode
referir x, mesmo que não seja capaz de identificá-lo. Kripke exemplifica
esse ponto dizendo que é possível que a única coisa que alguém saiba
sobre Richard Feinman é que ele foi um físico. Ainda assim, quando
essa pessoa usa o nome ‘Feinman’ no enunciado “Feinman foi um físi-
co famoso”, ela está se referindo a Richard Feinman.
O ponto da cadeia de comunicação em que se inicia o uso do
nome é o batismo inicial. Kripke afirma o seguinte:
Um ‘batismo’ inicial toma lugar. Aqui o objeto
pode ser nomeado por ostensão, ou a referência do
nome pode ser fixada por uma descrição. Quando
o nome é ‘passado de elo a elo’, o recebedor do
nome deve, eu penso, quando ele o aprende, pre-
tender usá-lo com a mesma referência do homem
de quem ele o ouviu (KRIPKE, 1980, p. 95).

Ele também requer que o aprendiz do nome o use com a mes-


ma referência que ele tinha na ocasião em que o aprendeu. Em função
disso, ele reconhece que sua explicação não elimina a noção de referên-
cia e que conserva o uso de descrições para o batismo inicial. O que
acontece é que sua explicação não é circular (cf. nota 44). No adendo
de Naming and Necessity, há ainda uma alusão a situações em que a cadeia
de comunicação seria desviada. Foi o que aconteceu com a referência

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


124

do nome ‘Madagascar’, pois esse era originalmente o nome de uma


A crítica de Kripke às teorias descritivistas de nomeação

parte da África continental, mas, Marco Pólo, não entendendo correta-


mente o uso nativo, atribuiu o nome a uma ilha. Isso poderia ter acon-
tecido mesmo que ‘Madagascar’ fosse originalmente o nome de uma
terra mítica. Assim, com esses desvios, a cadeia causal não teria origem
na referência atual do nome. Kripke explica que “no caso de ‘Madagas-
car’, este caráter social dita que a presente intenção de referir uma ilha
se sobrepõe ao distante liame do uso nativo” (KRIPKE, 1980, p. 163),
mas confessa que a questão exige esclarecimento posterior. Além disso,
em alguns casos de exceção, a fixação da referência de um nome pode-
ria ser feita com base em descrições em vez de ser feita através de uma
cadeia de comunicação causal. Isso é o que, segundo Kripke, aconteceu
no caso do nome ‘Netuno’ e do nome ‘Jack, o estripador’ (admitindo
que essa expressão seja um nome). No caso de Netuno, primeiro foram
dadas as condições de identificação do planeta e, posteriormente, ele
foi de fato identificado através dessas condições. No caso de ‘Jack, o
estripador’, um nome foi associado a descrições relativas a certo crimi-
noso. Embora o criminoso não tenha sido identificado, as condições de
identificação estavam dadas de antemão.
Um aspecto central da explicação kripkiana é que ela não é
uma teoria da identificação da referência (de fato, para Kripke, ela não
é uma teoria e ponto), ela é uma explicação de como os nomes pró-
prios referem. A ideia básica de Kripke é de que, no quadro explicativo
pintado por ele, um nome próprio deve sua função referencial a um
empreendimento social que começa com o batismo inicial e prossegue
apoiando-se em cada falante que usa o nome de certa forma. Em con-
trapartida, no quadro descritivista, um ato individual e solitário seria
bastante para dotar o nome de um poder referencial. Há uma passagem
de Naming and Necessity na qual Kripke descreve esse ato. Cito-a aqui:
O quadro que leva à teoria do cluster de descrições
é algo como isto: alguém está isolado em uma sala;
a comunidade inteira dos outros falantes, tudo o
mais, podia desaparecer; e alguém determina a re-
ferência por si mesmo dizendo – ‘por “Gödel” eu

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significarei o homem, quem quer que seja ele, que

Cícero Antônio Cavalcante Barroso


provou a incompletude da aritmética’ (KRIPKE,
1980, p. 91).

Esse contraste entre o caráter social da explicação kripkiana


da semântica dos nomes próprios e o viés meio misantropo da con-
cepção descritivista talvez seja a jogada mais apelativa de Kripke. Seja
como for, não me proponho aqui a analisar se ele tem boas razões para
fazer essa e outras acusações contra os descritivistas. De fato, o que me
interessava fazer ao longo deste artigo era primordialmente explicitar
as estratégias argumentativas que Kripke usa para criticar o descritivis-
mo, descrevendo-as de forma clara e criteriosa. Esse era o meu único
propósito, e espero que tenha sido alcançado.

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127

Hierarquia, complexidade e coesão:


a vontade de poder como multiplicidade e
as suas possíveis combinações
Hierarchy, complexity, cohesion:
The will to power as multiplicity
and its possible combinations
Mariana Lins Costa1

Resumo
Ao observar a natureza e o homem, o Nietzsche da maturidade, conferiu-
lhes um mesmo caráter, o qual denominou vontade de poder. No decorrer
das suas investigações, tal caráter foi ampliado de explicação do universo
orgânico, para explicação daquilo que há de mais elementar na própria
existência e que, na sua elementaridade, viria a conformar todos os
entes. Dentre as características que conformam o caráter da vontade de
poder, destacamos duas: a luta por mais poder e a conformação através
de hierarquias. O presente artigo visa a investigar as nuances referentes
à vontade de poder no seu grau mais elementar e as suas possíveis
combinações estruturais – combinações essas que são os próprios
entes. Nesse plano do mais elementar, defendemos que a diferenciação
qualitativa entre os entes se refere sobretudo ao grau de complexidade e
de coesão das estruturas hierárquicas que os compõem.
Palavras-chaves: Vontade de poder. Hierarquia. Complexidade. Coesão.

Abstract
By observing nature and man, the mature Nietzsche, gave them the
same character which he called the,  will to power. In the course of
his investigations, this character was expanded   from an explanation
of the organic universe, to an explanation of what is most basic in
existence. Among the characteristics that make up the character of the will
to power, we highlight two: the fight for more power and the formation of
hierarchies. This article aims to analyze the nuances regarding the will to
power at its most elemental level and their possible structural combinations
- combinations that are the beings. At the most elemental level, we argue
that the qualitative differentiation between beings mainly refers to the
degree of complexity and cohesion of the hierarchical structures which
compose themselves.
Keywords: Will to power. Hierarchy. Complexity. Cohesion.

1
Doutoranda pela Universidade Federal da Bahia. Salvador, Bahia, Brasil. E-mail: marianalins_@
hotmail.com

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128

Nietzsche “anteviu” o princípio da existência. Como afirma


Hierarquia, complexidade e coesão: a vontade de poder como multiplicidade e as suas possíveis combinações

ScarlettMarton (1990, p. 13), o filósofo, tal como os evolucionistas da


sua época, buscou encontrar o ponto de ligação entre as ciências da
natureza e as ciências do espírito. Todavia, percorrendo um caminho
inverso ao dos evolucionistas, Nietzsche partiu assumidamente da His-
tória das civilizações para chegar à filosofia da natureza – sendo esta
que lhe forneceu os fundamentos para “diagnosticar” os problemas pos-
tos pela condição humana.
Uma vez que o filósofo “encontra” no corpo físico os mes-
mos aspectos primordiais que ele, anteriormente, encontrara na investi-
gação das diferentes culturas e civilizações, ele se questiona se não seria
lícito compreender a existência também de acordo com essa perspec-
tiva: “A vontade de acumulação de força é específica ao fenômeno da
vida, à nutrição, procriação, hereditariedade, à sociedade, Estado, cos-
tume, autoridade. Não deveríamos nos permitir assumir esta vontade
como causa motora na química também? e na ordem cósmica?” (KSA
13,14[81], p. 261). Com as suas conclusões referentes às organizações e
aos corpos humanos, Nietzsche concebe, portanto, o princípio funda-
mental da vida e, com esse, o princípio fundamental de toda existência.
Sendo, para ele, a vida, “essencialmente apropriação, ofensa, sujeição do
que é estranho e mais fraco, opressão, dureza, imposição de formas
próprias, incorporação e no mínimo e mais comedido exploração”
(JGB 259;KSA 5, p. 207), temos configurado um caráter pouco con-
vencional para o existir. Caráter que, como defende Wolfgang Müller-
-Lauter(1997, p.83-5), não deve ser compreendido como uma substân-
cia, mas sim como uma qualidade, isto é, como a qualidade primordial
que se deixa encontrar, seja o que for que consideremos.
É no último período do pensamento nietzschiano, que a no-
ção de vontade de poder passa a designar o caráter da existência como
um todo, pois, até então, essa noção caracterizava-se unicamente como
vontade orgânica – restringindo-se ao plano biológico. Essa nova e
maior dimensão do conceito de vontade de poder é estabelecida quan-
do este passa a ser identificado com o conceito físico de “força efi-
ciente” (MARTON, 1990, p. 52). Ora, tal identificação/reformulação

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


129

amplia a extensão da noção de vontade de poder para o âmbito das

Mariana Lins Costa


questões referentes à “física”, e, portanto, das questões referentes ao
que há de mais elementar. Notemos ainda que essa ampliação revela a
própria trajetória dos estudos de Nietzsche, que se inicia com as suas
investigações na Filologia – e outras ciências humanas como a Antro-
pologia, Etimologia e História –, passando pela Biologia (quando o
conceito da vontade de poder é cunhado) e finalizando na Física (quan-
do a vontade de poder passa a caracterizar a existência, tudo o que há)
(MARTON, 1990, p.11-28).
Nietzsche não utiliza passivamente a noção física de força
eficiente, antes se apropria dela. Nesse ponto, surgem interpretações
controversas. Henry Staten (2006, p. 566), por exemplo, compreende
que a noção de vontade de poder vem a complementar a noção física
de força. Para ele, a vontade de poder seria posta por Nietzsche como
o elemento interno do conceito físico de força, uma espécie de tendên-
cia intrínseca para a expansão, isto é, para a superação e apropriação
de todas as forças externas que, por sua vez, também estariam nesse
mesmo caminho de expansão. Müller-Lauter, por sua vez, de maneira
mais radical, sequer admite a concepção de vontade de poder como
elemento interno da força. Ele julga que essa forma de compreensão
significa tomar “demasiado literalmente a consideração de Nietzsche
de que o conceito de força carece de um complemento por meio da
vontade de poder”. Müller-Lauter acredita que, na obra nietzschiana,
ou o termo força é empregado no sentido do representar mecanicista
– sendo nesta acepção criticado – ou no sentido de vontade de poder
(1997, p. 110-12).
Poderíamos citar ainda outras interpretações relacionadas a
uma possível diferenciação entre força (no sentido dado por Nietzsche)
e vontade de poder, tais como a de Marton, que, ao apontar para as
problematizações referentes a essa questão, parece não julgar que haja
uma diferença contundente, e a de Deleuze (1976, p. 32-43), que teria
diferenciado de maneira bastante pormenorizada a força da vontade
de poder. Apesar de não desconsiderarmos de todo a possibilidade de
haver alguma espécie de diferenciação entre os termos força e vontade

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de poder, acreditamos que ela, se existe, não é passível de definição e,


Hierarquia, complexidade e coesão: a vontade de poder como multiplicidade e as suas possíveis combinações

assim, optaremos por empregar os conceitos de força e de vontade de


poder como sinônimos.
Através da concepção de vontade de poder como caráter da
existência, Nietzsche não só deixa de lado a idéia do mundo “material”,
o mundo das unidades fixas inseridas num desencadeamento causal,
como também a do mundo imaterial, o das substâncias irredutíveis e
imutáveis. Para Nietzsche, não há nenhum “Ser” no sentido estável,
bem como não há “mônadas” indivisíveis. Todas as concepções filo-
sóficas que remontem a essas conclusões são, para o filósofo, ficções
cunhadas a partir da doença ascética. A noção de vontade de poder
como caráter da existência coloca o mundo sob a perspectiva do vir-
-a-ser, o que significa que as unidades (os entes) são concebidas como
continuamente mutáveis, de fronteiras inseguras, além de desprovidas
de qualquer essência transcendental. Na visão de Nietzsche, essência e
existência são uma coisa só, e é nesse sentido que devemos entender o
conformar-se e apresentar-se dos entes como vontade de poder.
A vontade de poder não deve ser compreendida como algo
que, subsistindo “por si”, viria a se impor sobre as demais vontades.
Não se trata de substancializar a força/vontade de poder, o que signi-
fica que não devemos compreendê-la como sujeito, como Um – o que,
para Nietzsche, seria o caso do átomo. A vontade de poder é uma qua-
lidade: “A qualidade ‘vontade de poder’ não é um Um efetivo; esse Um
nem subsiste de alguma maneira para si, nem sequer é ‘fundamento do
ser’” (MÜLLER-LAUTER, 1997, p.83-5).
A noção de vontade de poder traz para o “existir” um caráter
dinâmico e relacional, pois a força/vontade de poder é um desencade-
ar-se, um efetivar-se que só se estabelece na relação com outras forças/
vontades. Certamente esta relação é, de modo necessário, uma relação
de embate: “a vontade de poder apenas pode manifestar a si mesma
contra resistência; e por isso procura o que lhe resiste” (KSA 12,9[151],
p. 424). O caráter combativo configura o caráter da própria existência.
A inerência entre combatividade e vontade/força é dada nas próprias
condições em que o filósofo admite o existir da força mesma: “Queren-

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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do-vir-a-ser-mais-forte, a força esbarra em outras que a ela resistem; é

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inevitável a luta – por mais potência” (MARTON, 1990, p. 55).
O “querer-poder”, o “querer-vir-a-ser-mais-forte” expresso
pela vontade não é apenas desejar, aspirar, exigir, mas também, e prin-
cipalmente, um “afeto de comando” (MÜLLER-LAUTER, 1997, p.
54): “o afeto de superioridade em relação àquele que tem de obedecer
[...] – essa consciência se esconde em toda vontade” (JGB 19; KSA
5, p. 31). Aqui, temos não só outra perspectiva para compreender a
inerência entre combatividade e força, mas também a perspectiva que
nos conduzirá a compreender como desse combate incessante podem
resultar hierarquias. É através do afeto de comando constituinte das
vontades que emerge o sistema hierárquico-organizacional teorizado
por Nietzsche.
Quanto maior for a “força” de uma vontade, maior será a
sua capacidade de resistir às demais e, por conseguinte, maior a sua
possibilidade de dominá-las. Ora, se as vontades se efetivam mediante
o embate com outras vontades, e se nesse embate a vontade mais forte
subjuga e a mais fraca é subjugada, então, podemos afirmar junto com
Nietzsche que “‘[o]bediência’ e ‘comando’ são formas da luta” (KSA
11, 36[22], p. 561). A fixação desse “comando” e “obediência” se con-
figurará como uma hierarquia entre forças, e essa, como um ente. Com
isso, o estabelecimento da hierarquia não significa o fim da luta, rigidez
das formas ou qualquer outra coisa parecida. Afinal, mesmo se tratan-
do de um grande poder de domínio, a resistência das vontades subju-
gadas nunca é completamente eliminada: “há no comandar, a admissão
de que o poder absoluto do oponente não está vencido, incorporado,
desintegrado” (idem). Sendo o comandar e o obedecer as formas do
jogo da luta, hierarquia e luta estão completamente imbricadas – elas
conformam a dynamis da existência. Um ente nunca é algo de estanque
ou definitivo: está sempre vindo-a-ser, está sempre sob a tensão de
que a força (ou partido de forças) dominante continue a exercer o seu
domínio.
Se uma vontade se efetiva a partir das relações estabelecidas
– que, como vimos, são relações hierarquizadas – cada uma delas tem

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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a sua potência e, consequentemente, a sua posição hierárquica deter-


Hierarquia, complexidade e coesão: a vontade de poder como multiplicidade e as suas possíveis combinações

minada através dessas relações – “A medida de poder determina o ser da


outra medida de poder: sob qual forma, força, coerção esse ser atua ou
resiste” (KSA 13, 14[93], p. 271). Numa estrutura hierarquizada, cada
vontade assume certa perspectiva para com o todo, sendo essa perspec-
tiva o que a particulariza. E mais, ao mesmo tempo em que as vontades,
estejam no comando ou não, assemelham-se por serem “desenfreada
ambição por domínio”, elas se diferenciam por ocuparem diferentes
perspectivas em um complexo de domínio: “cada centro de força adota
uma perspectiva para com o restante, isto é, sua própria e particular valo-
ração, modo de ação e modo de resistência” (KSA 13, 14[184], p. 371).
O fato de uma vontade/força poder ocupar diferentes posi-
ções numa dada estrutura não significa que haja diferentes tipos de for-
ças. No plano do mais elementar, uma força é busca por manutenção
e ampliação de domínio, e nada mais. O fato de ela conseguir ou não
se impor sobre as demais não se refere a variações no seu caráter, mas
exclusivamente ao maior ou menor vigor para o domínio. Não é assim,
porém, que pensa Deleuze. Para ele, “as forças inferiores definem-se
como reativas” e as forças superiores como ativas (DELEUZE, 1976,
p. 33-4). Ora, primeiramente atentemos para que, na filosofia nietzs-
chiana, não há forças inferiores e superiores no sentido que Deleuze
sugere – para ele, as forças reativas cuidariam das funções menores e as
ativas das maiores. O que há são simplesmente forças que se impõem e
forças que são submetidas.
Acreditamos que essa compreensão acerca de uma tipologia
das forças deriva de uma transposição equivocada das características
referentes aos entes complexos, mais propriamente o homem, para as
forças elementares. De fato, existe na filosofia nietzschiana, o homem
ativo, que é superior (o nobre) e o homem reativo, que é inferior (o
escravo). E Deleuze toma as características referentes ao homem no-
bre e as atribui às forças que comandam, e de modo correlato, toma
as características referentes ao homem escravo e as atribui às forças
subordinadas. Apesar de todo ente se configurar como uma relação
entre vontades, isso não significa que os entes complexos se restrinjam

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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a uma atuação idêntica ao que há de mais elementar na existência – se

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assim fosse, não faria sentido falar em complexidade. A complexidade
confere camadas, especializações, diferentes modos de atuação que, de
fato, estão referenciados ao mais elementar, mas não o contrário – uma
força, por exemplo, não é doente e, portanto, não é reativa, pois a re-
atividade é para Nietzsche própria ao que é doente e complexo. Além
disso, quando, de modo inverso, as considerações sobre a superiorida-
de/inferioridade dos homens são transpostas para o plano das forças,
Deleuze – que não faz uma distinção entre o que é complexo e o que
é simples – isenta completamente Nietzsche das suas perigosas afir-
mações no campo da ética. Afinal, o escravo que para Nietzsche deve
servir ao senhor, ou a maioria dos homens que deve sucumbir para que
o homem elevado se faça possível desconfiguram-se na lógica deleuzia-
na – tornando-se meramente forças reativas.
Apesar de não haver diferentes tipos de vontades de poder
(nesse sentido do mais elementar) é inevitável que vontades diferentes
– surgidas e conformadas a partir de diferentes relações – quando no
comando, conformem diferentes hierarquias, já que imporão diferentes
direções. Contudo, e aqui passa a surgir uma diferenciação, como o todo
se porta de acordo com a perspectiva das vontades dominantes – o
todo é a ampliação do domínio delas, o resultado do seu crescimento e
conservação –, dá-se que “um poder maior implica uma outra consci-
ência, sentimento, desejo, numa perspectiva diferente” (KSA 12,2[157],
p. 142). Somente às vontades dominantes faz-se possível o exercício
da plasmação, da criação de formas. É por conta dessa sua posição de
dominante que a vontade que domina adquire um caráter diferenciado
das vontades subordinadas.
A vontade de poder dominante se apropria das vontades a ela
subordinadas, comandando-as para a efetivação da ampliação e con-
servação do seu domínio. Na medida em que a vontade subordinada
nunca perde absolutamente o poder sobre si – a sua perspectiva, por-
tanto – ela assimilará o comando da vontade dominante de maneira
não inteiramente equivalente às demais subordinadas. Devido a esse
sem-número de perspectivas não completamente subjugadas a confor-

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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mar uma estrutura, dá-se toda a imprevisibilidade da potência criadora


Hierarquia, complexidade e coesão: a vontade de poder como multiplicidade e as suas possíveis combinações

da existência. Não há lei que assegure regularidades imutáveis: “todo


poder esboça as suas últimas conseqüências a cada momento” (KSA
13,14[79], p. 257).
Nietzsche concebe todos os entes como unidades de fachada,
tendo em vista que eles são sempre uma multiplicidade de vontades:
“Toda unidade é unidade apenas como organização e combinação” (KSA
12,2[87], p.105). Sendo a dynamis da existência um jogo e contrajogo
de forças, “essas aglomerações de quanta de poder ininterruptamente
aumentam e diminuem”, daí essas “unidades” serem continuamente
mutáveis. “Unidade é sempre apenas organização, sob ascendência, a
curto prazo, de vontades de poder dominantes” (MÜLLER-LAUTER,
1997, p.75).
Curiosamente, porém, também a vontade de poder no sen-
tido mais elementar é entendida pelo filósofo como multiplicidade,
isto é, como algo que só enquanto palavra constitui uma unidade. Para
Nietzsche, em todo querer existe tanto uma pluralidade de sensações,
quanto um pensamento que comanda. Ora, se como foi afirmado an-
teriormente, a vontade de poder anseia por domínio, lança-se sobre as
demais e, quando bem sucedida, comanda com o intuito de preservar
e ampliar o seu domínio, não parecerá estranho atribuir-lhe um sentir
e um pensar. Vontade, pensamento e sentimento são, nessa concepção,
indissociáveis, e, nesse plano do mais elementar, são mesmo indiscerní-
veis: “a vontade de poder é a forma de afeto primitiva, todos os outros
afetos são apenas desdobramentos seus” (KSA 13,14[121], p.300).
O pensamento está, portanto, longe de ser uma propriedade
do intelecto, ou uma faculdade restrita ao gênero humano. Pensar e
sentir acham-se disseminados por todo o corpo: todas as organizações
de domínio são em Nietzsche, como bem afirma Abraham Olivier, in-
teligentes (2003, p. 131). Se, no homem, eles se apresentam como instân-
cias diferentes, é porque neste, tais potencialidades se especializaram –
nele, determinados complexos de vontade ao se conformarem fizeram
ora essa, ora aquela característica impor-se como dominante. Parece-
-nos bastante plausível que, para a organização de entes complexos, se-

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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jam necessárias especializações daquilo que se encontra indiferenciado

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nas conformações mais elementares. Se no homem o pensamento se
apresentou como uma das potencialidades mais preponderantes, isso
se deve à relevância que o pensamento adquiriu para a promoção das
suas condições de conservação e crescimento. Sendo mais intensa e
continuamente exercido, o pensamento tornou-se, com o tempo, cada
vez mais poderoso e pleno de reivindicações, tirano de todas as outras
forças – ou, nas palavras de Nietzsche, a “paixão em si” do bicho ho-
mem (KSA 10, 24[23], p. 658).
Sob a perspectiva do “mundo como vontade de poder”,
Nietzsche não difere de maneira essencial o “pensar humano” do
“pensar mais elementar”. Para ele, independentemente do grau de
complexidade, todo “pensar, julgar, perceber, comparar tem como
pressuposição um ‘equiparar’, ou antes, um ‘tornar igual’”. Por “tornar
igual”, devemos compreender o tornar conforme a vontade dominante,
isto é, o pôr uma nova e estranha perspectiva de acordo com a
perspectiva da vontade dominante. Embora a diferença nunca seja
completamente eliminada, ela é guardada e domada – e daí o “pensar”
poder também ser entendido como um dominar a diferença. Sendo,
então, esse “dominar a diferença”, esse “tornar igual” concernente a
todas as formas de pensamento, dá-se que o pensamento humano,
longe de assemelhar-se a alguma característica divina, assemelha-se, por
exemplo, tanto ao “processo de incorporação de matéria apropriada na
ameba” (KSA 12,5[65], p. 209), quanto à cristalização das formas, como
é o caso dos cristais (KSA 11,41[11], p. 688) – nada de tão diferente.
Esses “processos inteligentes” disseminados por todo corpo
– ao mesmo tempo em que conformando-o – devem, para Nietzsche,
ser entendidos sob o signo da interpretação. Tal concepção se funda-
menta na afirmação nietzschiana de que todos “os tipos de processos,
físicos e mentais, orgânicos e inorgânicos, podem ser explicados em
termos de processos interpretativos” (KSA 12, 2[148], p. 139). Natu-
ralmente, esses processos interpretativos devem ser entendidos sob os
parâmetros da vontade de poder: “Se [...] caracterizamos o perceber
das vontades de poder como relação de acontecimentos entre si, que se

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fixam mutuamente, pode-se dizer, então, sob o aspecto aqui destacado,


Hierarquia, complexidade e coesão: a vontade de poder como multiplicidade e as suas possíveis combinações

que vontades de poder se contrapõem como interpretações, continua-


mente mutantes” (MÜLLER-LAUTER, 1997,p. 125).
Para Nietzsche, portanto, não há nada de divino, sobrenatural
ou transcendental no pensamento:
Nunca ocorreu a ninguém considerar o seu es-
tômago como estranho, ou, por assim dizer, um
estômago divino: mas compreender as suas idéias
como “inspiradas”, suas valorações como implan-
tadas por um ‘Deus’, seus instintos como atividade
penumbrosa, para essa tendência e gosto no ho-
mem há testemunhos em todas as épocas da hu-
manidade (KSA 11,36[36], p. 565).

Mesmos os “órgãos e sentidos do conhecimento” teriam se


desenvolvido com referência às condições de conservação e crescimen-
to (KSA 12, 9[38], p. 352), ou seja, a partir de necessidades biológicas.
Com isso, todas as considerações acerca da verdade, da moral, da exis-
tência são ressigificadas por Nietzsche – e isso sob diversas perspecti-
vas. Para o filósofo, se o “mais universal e mais básico instinto em todo
atuar e desejar” (a vontade de poder), foi o que justamente permaneceu
mais oculto e desconhecido – a ponto de toda uma civilização, a oci-
dental, ter sido construída em cima do seu mal-entendido – isso se deve
ao fato de que “in praxi, nós sempre seguimos o seu comando, porque
nós somos esse comando” (KSA 13,11[96], p. 45).

Crescimento versus conservação

A conformação de um ente não deve e nem pode ser com-


preendida como uma mera conseqüência da luta entre as vontades, ou,
ainda, como o fim último dessa. A formação de um ente, de um com-
plexo de poder – expressão mais ajustada à compreensão nietzschiana
de “ente” – é o meio de a busca por domínio ampliar os seus limites e as
proporções de poder envolvidas numa luta.
Com a formação dos complexos, as vontades ampliam o seu

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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poder e o alcance do seu domínio para além de si mesmas – sendo

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isso o que, de fato, configura o sentido da “unidade”. A formação dos
complexos potencializa a luta. Por exemplo: na luta que se estabele-
ce entre os homens (que podem ser entendidos como uma hierarquia
entre instintos) há muito mais poder envolvido do que na luta que se
estabelece entre os instintos – e mais do que nessas duas, na luta que
se estabelece entre as civilizações (hierarquia entre os homens). Se a
dynamis da existência é dada pelo “jogo” entre luta e conformação de
hierarquia, é natural, uma vez que esse “jogo” é movido pela ambição
por domínio, que essa luta e hierarquia assumam proporções de domí-
nio cada vez maiores.
Além dessa “potencialização” luta-hierarquia, o estabeleci-
mento de um complexo é, em certa medida, o que possibilita a pre-
servação das vontades que o constituem – mas, isso sim, é mera con-
sequência. Com a formação de uma estrutura, a potência de diversas
vontades – em especial, as dominantes que são as que impõem formas
– ao invés de desperdiçadas em pequenos combates, são economiza-
das. Como nos diz Nietzsche, “não apenas conservação de energia:
mas sim máxima economia no consumo, assim a única realidade é a
vontade de tornar-se mais forte a partir de cada centro de força” (KSA
13, 14[81], p. 261).
Se a conservação das partes é mera conseqüência da forma-
ção do todo, ou seja, do aumento do poder, podemos concluir que as
condições de conservação são secundárias às de crescimento. Apesar
de termos utilizando a expressão – do próprio Nietzsche – “condições
de conservação e crescimento”, a autoconservação está, na filosofia nietzs-
chiana, bem longe de ser considerada o impulso cardinal ou um dos
impulsos cardinais de um ser. Para Nietzsche, a autoconservação é uma
atividade secundária, e, portanto, insuficiente para explicar o desenvol-
vimento de um organismo individual ou da espécie como um todo.
Percebamos que essa oposição à conservação como impul-
so cardinal vai diretamente contra a concepção darwinista. De acordo
com Gregory Moore, Nietzsche, leal à tradição vitalista da ciência ale-
mã, aderiu à concepção de que a engrenagem da evolução estaria não

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na maior ou menor capacidade de adaptação aos fatores externos, mas


Hierarquia, complexidade e coesão: a vontade de poder como multiplicidade e as suas possíveis combinações

sim em um diretivo interno, uma espécie de força interna transforma-


dora (Bildungstrieb) (2006, p. 519). Ao invés de enfatizar a relação entre
o organismo e o meio, Nietzsche localiza o “primeiro motor da evolu-
ção” na força criativa inerente à natureza – a vontade de poder (2006,
p. 520).
Outra contraposição à noção de conservação como impulso
cardinal residiria no fato de que, para Nietzsche, nem sempre aquilo
que promove o crescimento de um ente é propício à sua conservação.
Tomando o protoplasma como parâmetro, Nietzsche assegura que não
se pode deduzir da vontade de autoconservação a sua atividade mais
básica e original, tendo em vista que ele absorve insensatamente muito
mais do que exigiria a sua conservação – de modo que não se conserva
com isso, mas se arruína (KSA 13,11[121], p. 57). A ruína de uma estru-
tura, ente, ou complexo, não significa, necessariamente, o seu aniquila-
mento. A criação, especialização e engendramento são consequências
da incapacidade da estrutura de assimilar o material apreendido. No
caso do protoplasma, Nietzsche afirma que a sua divisão ocorre quan-
do o seu poder não é suficiente para dominar o que foi apropriado – e
daí, a curiosamente considerar que “a procriação é consequência de
uma impotência” (KSA 12, 1[118], p. 38). Em outros casos, porém, a
ligação entre o material desvencilhado e a estrutura que lhe deu origem
não é completamente abandonada – o que, ao longo do tempo, pode
vir a culminar com transformação desse material não completamente
desvencilhado em uma nova propriedade, em uma especialização da
estrutura. Com isso, já podemos antever o porquê de, para Nietzsche,
o crescimento e a exuberância andarem tão próximos ao aniquilamento
e à destruição. Tão próximos que, em um dado momento, será impos-
sível à estrutura processar a potência acumulada – por mais que ela crie
e se especialize não escapará do seu aniquilamento efetivo.
Nietzsche não concebe, então, o surgimento de uma nova
propriedade a partir da sua utilidade à estrutura. Para o filósofo, as
vontades simplesmente ampliam o seu domínio e, se, do “material par-
cialmente desvencilhado”, surgem novas formas e novas utilidades, não

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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é porque ele foi desvencilhado com vistas a esse fim. No longo tempo

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durante o qual uma propriedade se forma, ela não assegura a estrutura
e tampouco lhe é útil – podendo, com isso, ser repelida ou mesmo
aniquilada. A sua durabilidade, porém, será prova de que se incorporou
ao todo, de que se moldou de maneira a ser útil ao todo – “na luta das
partes, uma nova forma não duraria muito sem estar relacionada a uma
utilidade parcial” (KSA 12, 7[25], p. 304).
Toda essa compreensão está estritamente relacionada à con-
cepção de natureza como vontade de poder. Não há um telos que guie as
vontades de modo que elas conformem tais ou quais estruturas. Caso
aceitássemos isso, teríamos de admitir a natureza (ou Deus) enquanto
sujeito que, com o intuito de conformar uma determinada estrutura,
legislaria racionalmente sobre o modo de interação das forças. E, de
acordo com Staten, seria justamente a essa idéia, a de um propósito de
evolução conscientemente imaginado e tencionado (seja lá por qual en-
tidade) que Nietzsche mais radicalmente se oporia, mais radicalmente
até do que à idéia de finalidade (2006, p.568). De qualquer modo, po-
rém, na filosofia nietzschiana, não é admitida a existência de uma regra
a priori fixada pela natureza, o que significa que não há objetivo a atingir
ou meta a alcançar; “a vontade de poder é desprovida de qualquer cará-
ter teleológico – assim como a luta que se desencadeia pelo fato de ela
exercer-se” (MARTON, 1990, p. 39).
Nietzsche nega a compreensão de natureza como uma mar-
cha rumo ao progresso, ao mesmo tempo em que adota a idéia de
natureza como “tremendo laboratório experimental” – no qual as von-
tades se coadunam sem premeditação ou desvios, de maneira livre, sem
constrangimentos. Observemos que essa não premeditação conferida
à natureza permite que o filósofo possa justificar “cientificamente” o
seu desapreço dedicado à maioria. Afinal, não é de estranhar que desse
espontâneo “arranjo” entre as vontades de poder sejam originados um
sem-número de fracassos e aberrações – em contraposição a uns pou-
cos e raros sucessos (KSA 13, 15[8], p. 408).
Diferentemente de Darwin e de Spencer, que compreende-
riam a evolução sob a perspectiva da espécie, Nietzsche estabelece

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como o ponto central da evolução não a espécie, mas organismos soli-


Hierarquia, complexidade e coesão: a vontade de poder como multiplicidade e as suas possíveis combinações

tários – que, por sua vez, em nada contribuem para a melhoria da espé-
cie: “Primeira proposição: o homem, como espécie, não está em progresso.
Tipos mais elevados certamente são atingidos, mas eles não se mantêm.
O nível da espécie não se eleva” (KSA 13, 14[133], p. 316). Ora, sendo,
para Nietzsche, o normal da natureza, a má formação – “Existe entre
os homens, como em toda espécie animal, um excedente de malogra-
dos, enfermos, degenerados, fracos e votados ao sofrimento, também
entre os homens os casos bem-sucedidos constituem exceção” (JGB
62; KSA 5, p. 81) –, temos que esses casos isolados – que podem se
configurar tanto como indivíduos singulares (por exemplo, Napoleão),
quanto como um determinado povo ou civilização (por exemplo, os
gregos e romanos) – configuram-se como raras exceções. Nesse sen-
tido, a noção de vontade de poder expressa não só o caráter da exis-
tência, mas também um ideal de perfeição, pois esses homens ou povos
que se constituem como exceções, os por Nietzsche denominados de
“acaso feliz” (Glücksfall), seriam uma espécie de expressão máxima (ou
mais própria) da vontade de poder.
Toda a formação referente ao homem não obedece a leis pre-
viamente postas e nem se dá de maneira racional, antes é fruto de um
acréscimo de poder que ora cresce para essa, ora para aquela direção.
Na compreensão nietzschiana, o homem não é o objetivo oculto da
evolução animal e tampouco a coroa da criação. Longe de ser a finali-
dade última da realidade, o homem está mais próximo a algo como um
arranjo, um “amontoado” de forças que conseguiu organizar-se, que
conseguiu permanecer. A custa de quê é o que a crítica de Nietzsche ao
ideal ascético pretende desvendar.
Se, no primeiro momento do artigo, restringimo-nos ao as-
pecto mais apolíneo da argumentação nietzschiana – ao aspecto em
que as questões relativas à formação e plasmação possuem uma maior
força – , ao discutir mais pormenorizadamente a relação de certa opo-
sição entre o crescimento e a conservação dos entes, expusemos o lado
mais trágico, mais absurdo dessas formações – o lado mais dionisíaco.
Apesar das perspectivas referentes a esses dois “lados” não se harmo-

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nizarem totalmente, de maneira irreprochável, acreditamos que elas se

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complementam e trazem uma tensão à coerência, que, se tratando da
filosofia nietzschiana, é algo absolutamente inevitável. Como afirma
Marton, essa tensão é condensada na noção de vontade de poder, pois
enquanto dionisíaco é o princípio que quebra barreiras, rompe limites,
dissolve e entrega; apolíneo, o que delineia, distingue, dá forma (1990,
p. 56):
A decepção de Apolo: a eternidade da bela for-
ma; a legislação aristocrática, ‘assim deve ser para
sempre!’ Dionisos: sensualidade e crueldade. Tran-
sitoriedade pode ser interpretada como gozo das
forças produtivas e destrutivas, como criação con-
tínua (KSA12, 2[106], p. 113).

Complexidade versus coesão

Mais um acréscimo, que acaba por ser um outro ponto de


tensão, faz-se necessário, pois ainda que consideremos a formação de
um ente como meio para a ampliação do domínio e potencialização da
luta – o que nos conduz a enfatizar o crescimento – não é lícito deixarmos
de considerá-lo como uma multiplicidade de vontades de poder – o que
nos conduz a enfatizar a conservação; afinal, para que a multiplicidade
conforme um todo, a hierarquia tem de ser constantemente assegu-
rada. Dada essa dualidade irrevogável, temos de considerar um ente
tanto sob o ponto de vista de “unidade que expressa um maior poder
de domínio”, quanto sob o ponto de vista de “multiplicidade organizada
de vontades”.
Juntamente à ânsia por estender o domínio ao que é exterior, é
inerente ao ente manter o domínio do que foi interiorizado – e, com isso,
temos a importância de o poder coercitivo das leis continuar a ser exer-
cido. Ora, isso parece contradizer o item anterior, já que parece recolo-
car a conservação de um ente no mesmo patamar do seu crescimento.
Não exatamente, pois dizer que a manutenção da hierarquia é crucial
ao ente não é o mesmo que dizer que a autoconservação é a sua fina-

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lidade. Bem verdade que, para o filósofo, quando a conservação passa


Hierarquia, complexidade e coesão: a vontade de poder como multiplicidade e as suas possíveis combinações

de atividade secundária para atividade principal é porque o sistema, o


organismo em questão está em processo de degeneração.
De qualquer sorte, é inegável que “ampliar o domínio” pres-
suponha a “manutenção do domínio do já incorporado” – daí a con-
servação ser uma atividade secundária. Se não houvesse a manutenção
do “já incorporado”, não seria possível a ampliação do domínio, haveria
apenas um eterno recomeçar – o que, na leitura nietzschiana, resultaria
não em entes, mas em caos. Frente a isso, podemos chegar a uma fusão
– ainda que tensa – entre as perspectivas trazidas pelos termos “conser-
vação” e “crescimento”: o ente é uma ampliação-restrição da potência
das vontades que o constituem; de fato, é uma ânsia desenfreada por
domínio, mas uma ânsia cujo “desenfreamento” tende à disciplina e
à restrição – daí Nietzsche admitir dois tipos de utilidade: “Útil em
relação à aceleração do tempo do desenvolvimento é um tipo de ‘útil’
diferente daquele que diz respeito a uma maior estabilidade e durabili-
dade do que foi desenvolvido” (KSA 12,7[9], p. 297). Como exemplo
dessa “fusão”, pensemos no imenso trabalho pré-histórico do homem
sobre si mesmo (moralidade dos costumes): de fato, esse ampliou a
potência do homem, mas através de coerção e restrição violentas – de
modo, inclusive a exigir um “estreitamento das suas perspectivas, e em
determinado sentido também a estupidez, como condição de vida e
crescimento” (JGB 188; KSA 5, p. 108).
Deleuze tenta resolver essa questão atribuindo às forças reati-
vas as tarefas referentes à conservação, e às ativas, as tarefas referentes
ao crescimento ou aumento da potência (1976, p.33-4). Ora, essa distri-
buição de tarefas se apresenta como uma solução realmente prática, já
que elimina qualquer tensão entre conservação e crescimento – afinal,
torna coerente a opção nietzschiana pela ampliação do domínio como
impulso cardinal, sem ter de, com isso, abrir mão da conservação como
um impulso relevante, ainda que secundário. Apesar da praticidade, essa
solução simplifica a tensão estabelecida na filosofia nietzschiana. Não
há uma divisão tão rígida das atividades, admitir isso seria admitir que
o poder das vontades subordinadas poderia ser aniquilado. Para que

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as vontades dominantes possam estabelecer uma determinada direção,

Mariana Lins Costa


um determinado modo de apropriação do que é exterior, é necessário
que elas fixem esse modo de apropriação no seu “interior”.
Sob a ótica da natureza como laboratório experimental, dá-se
que a coerção imposta pelas vontades dominantes é algo construído na
relação com as vontades subordinadas, no momento da subordinação
– e daí a espontaneidade e não premeditação desses “arranjos”. Isso
significa que o sucesso dessa coerção-formação e conseguinte/conco-
mitante crescimento da estrutura não estão garantidos: serão formados
entes mais e menos coesos, mais e menos complexos – e disso temos
a abertura para um grande número de más e medíocres formações e
raridade de boas formações – os “acasos felizes”, como já o dissemos.
Acreditamos que essas variações estruturais, relativas sobretudo à com-
plexidade e à coesão, conformam a base para uma diferenciação geral
(entes de gêneros diferentes) e específica (entes de um mesmo gênero)
dos entes, e daí podermos afirmar, conjuntamente a Schatzki, que aqui-
lo que diferencia os homens dos animais é o mesmo que diferencia o
homem superior do inferior (1994, p. 151).
No que se refere a uma diferenciação geral, não podemos ir
mais adiante: o filósofo não nos oferece quaisquer elementos, além des-
ses. O motivo para isso é que todo o seu interesse nas questões relativas
à complexidade e à coesão – que, é bem verdade, ele não trata com a
especificidade aqui presente –, concentra-se em desenvolver as bases
para uma diferenciação entre os homens. O interesse nessa diferencia-
ção é não só algo de natural, mas mesmo algo de crucial à sua filosofia,
tendo em vista o seu principal intento filosófico, que, dito de modo su-
cinto, consiste na promoção de uma forma de valoração que se ponha
de acordo com o caráter da vida. Ora, sendo os valores uma expressão
mais complexa do que os instintos e havendo diferentes formas de ava-
liar, não parece errado supor que, no âmbito do humano, há diferentes
modos de hierarquização entre instintos – se assim não fosse, não seria
possível haver diferentes formas de avaliação – e, por conseguinte, di-
ferentes tipos de homem – uma vez que esses são justamente a hierarquia
entre os instintos.

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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O grau de complexidade de um ente está, para Nietzsche,


Hierarquia, complexidade e coesão: a vontade de poder como multiplicidade e as suas possíveis combinações

diretamente relacionado à quantidade de vontades que o compõem.


Quanto mais vontades compuserem um ente, mais complexo ele
será. A partir disso, podemos dizer que um ente complexo só se for-
ma quando as vontades nele dominantes possuem uma grande força
de domínio e plasmação – afinal, caso assim não fosse, não lhes seria
possível submeter um sem-número de vontades. Quando o número
de vontades a conformar um ente for muito grande, ocorrerá, inevita-
velmente, de o direcionamento imposto pelas vontades dominantes se
ramificar (“arruinar”) em um sem-número de especializações e subes-
pecializações. Isso significa que, em uma estrutura complexa, teremos
algo como diversos núcleos que, embora subordinados a um mesmo
poder e interconectados entre si, conformam diferentes áreas ou fun-
ções, regendo-se, portanto, de diferentes modos.
Nesse sentido, Olivier afirma que a incessante formação de
uma unidade, tal como Nietzsche pretende, acaba por dar lugar a uma
de-formação: no processo de uma formação (Gestaltung) excessiva, toda
forma de unidade é quebrada recorrentemente para que sejam forma-
das novas e mais exuberantes unidades – daí todo percussor no poder
(a vontade dominante) ser vítima da sua superpotencialização (2003,
p.132). Por outro lado, porém, essa crescente potencialização e, por
conseguinte, crescente complexidade, pode vir a comprometer a con-
servação do todo, já que ela aumenta as dificuldades em garantir a ma-
nutenção da unidade da estrutura, em outras palavras, a coesão das suas
múltiplas partes.
A coesão da multiplicidade constituinte de uma estrutura é de
suma importância, já que, como vimos, é justamente o que possibilita à
estrutura que se disponha enquanto um, que se comporte enquanto uma
vontade de potência (complexa). Quanto mais vigorosa for a coesão, a
harmonia entre o “comandar” e o “obedecer”, mais forte será a estru-
tura, ou seja, maior será a força com a qual o ente voltará a sua sede de
domínio contra aquilo que lhe é estranho, “exterior” – os outros entes.
Ora, observemos que a conexão, por nós proposta, entre
complexidade e coesão abriga um paradoxo, pois, ao mesmo tempo

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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em que esses dois elementos são indícios de uma maior força, eles se

Mariana Lins Costa


inviabilizam mutuamente (mas não de maneira necessária), tornando-
-se assim também um indício de fraqueza – embora o termo fraqueza
não se aplique da mesma maneira nos dois casos. Um ente complexo
cujas partes não se encontrem lá muito coesas, possui, como vimos,
um grande poder de apropriação-criação, mas, por outro lado, pode vir
a sucumbir com certa facilidade, já que, estando a sua inteireza com-
prometida (a forma da sua criação crescente em multiplicidade), grande
será o desgaste interno, e assim, grande a sua fragilidade quando tiver
de resistir contra aquilo que se lhe opuser. E, de acordo com Nietzsche,
não são poucas as forças que se contrapõem a um ente complexo, pois
a sua rica e múltipla formação o coloca quase sempre em choque com a
ordem vigente, com o que há de mediano – que está sempre em maior
número. Além do mais, a expansão inerente a todo ente complexo,
poderá, em um dado momento, desenvolver-se a tal ponto que lhe será
impossível conter a sua apropriação-criação – e isso independentemen-
te da resistência imposta pelo meio.
Já um ente cujas partes estejam bem coesas encontrará a força
justamente na sua “inteireza”: sendo grande a harmonia entre a parte
que comanda e a que obedece, e, assim, é também pequeno o desgaste
interno, e este ente terá a cumplicidade de praticamente todas as suas
partes constituintes quando voltar-se contra o que exteriormente se lhe
interpõe. Contudo, essa inteireza pode se tornar por demais rígida, e
assim pequena será a sua capacidade para a (auto)criação e plasmação e,
desse modo, pode vir a sucumbir com a mais simples mudança. Integri-
dade e rigidez constituem, portanto, dois lados de uma mesma moeda
e, enquanto um expressa força e abundância de vida, o outro expressa
decréscimo, pois para Nietzsche, não é sintoma de força uma estrutura
que se conserve às custas de qualquer tentativa de superação ou auto-
criação – mesmo que nessa tentativa resida a sua própria derrocada.
Damo-nos por satisfeitos com as nossas considerações espe-
cificamente referentes ao “plano ontológico” da filosofia nietzschiana.
Decerto, essas considerações poderiam estender-se, já que Nietzsche,
sobretudo nas suas anotações, deteve-se com bastante afinco em afir-

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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mar a noção de vontade de potência como a explicação geral para todas


Hierarquia, complexidade e coesão: a vontade de poder como multiplicidade e as suas possíveis combinações

as coisas. Antes de finalizarmos, consideremos apenas que todas as


noções ontológicas aqui expostas conformam uma espécie de cosmo-
visão ou filosofia da natureza. Para muitos filósofos, o desenvolvimen-
to de uma filosofia da natureza se configura como principal objetivo,
mas não pensamos que seja isto o que ocorra no caso de Nietzsche.
Acreditamos que a sua filosofia da natureza tem como principal função
estabelecer o caráter da vida – e, num sentido mais amplo, o da exis-
tência –, já que assim serão fornecidas as bases para uma valoração dos
homens e das suas conformações (moral e civilização). Não nos esque-
çamos que todo o esforço nietzschiano em promover uma valoração
e interpretação a favor da vida é indissociável do seu combate ao ideal
dominante, em outras palavras, à vida empobrecida da qual, segundo
ele, todos nós fazemos parte: “Minha tarefa é preparar a humanidade
para a grande tomada de consciência, um grande meio-dia em que ela
olhe para trás e para adiante, em que ela escape ao domínio do acaso e
do sacerdote [ascético]” (EH “Aurora” 2; KSA 6, p.330).

Referências

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Dias, Ruth Joffily Dias. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976.
KAUFMANN, Walter. Nietzsche: philosopher, psychologist, antichrist. 3
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MARTON, Scarlett. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos.
São Paulo: Brasiliense, 1990.
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Nietzsche. Maden; Oxford: Blackwell, 2006, p. 517-532.
MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. A doutrina da vontade de poder em
Nietzsche. Apres. ScarlettMarton. Trad. de Oswaldo Giacoia Junior. São
Paulo: Annablume, 1997.
NIETZSCHE, F. W. Além do bem e do mal. Trad. de Paulo César de Souza.
São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


147

______.Ecce homo. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia

Mariana Lins Costa


das Letras, 1995.
______. Werke – KritischeStudienausgable [KSA]. Editado por Giorgio
Colli e MazzinoMontinari. Munique: DTV; De Gruyter, 1999. 15 vols.
OLIVIER, Abraham. Nietzsche and neurology. In: Nietzsche-Studien.
Berlin: Walter de Gruyter, n.32, p. 30-42, 2003.
SCHATZKI, Theodore R. Ancient and naturalistic themes in Nietzsche’s
ethics. In: Nietzsche-Studien. Berlin: Walter de Gruyter, n.23, 1994, p. 147-
67.
STATEN, Henry. A Critique of the Willto Power. In: A companionto
Nietzsche. Maden; Oxford: Blackwell, 2006, p. 565-82.

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A distinção entre nomes próprios


conotativos e não conotativos
John Stuart Mill1
Trad. de Rodrigo Jungmann de Castro2

Passamos assim a considerar uma terceira distinção entre no-


mes, aquela entre nomes conotativos e não conotativos, sendo estes últi-
mos por vezes, ainda que impropriamente, chamados de absolutos. Essa
é uma das distinções mais importantes que teremos oportunidade de
apontar, e uma daquelas que penetram mais fundo na natureza da lin-
guagem.
Termo não conotativo é aquele que significa apenas um sujei-
to ou apenas um atributo; termo conotativo é aquele que denota um
sujeito e implica um atributo. O que aqui queremos dizer por sujeito é
qualquer coisa que possua atributos. Assim sendo, John, ou Londres,
ou Inglaterra são nomes que significam apenas um sujeito; brancura,
comprimento e virtude significam apenas um atributo. Nenhum des-
ses nomes, por conseguinte, é conotativo, mas branco, longo e virtuoso
são conotativos. A palavra branco denota todas as coisas brancas, tais
como neve, papel, a espuma do mar, etc., e implica, ou, na linguagem
dos escolásticos, conota, o atributo brancura. A palavra branco não é pre-
dicada do atributo, mas dos sujeitos, como neve, etc., mas quando a
predicamos deles, o significado que transmitimos é o de que o atributo
brancura pertence a eles. O mesmo pode ser dito dos outros nomes
acima citados. Virtuoso, por exemplo, é o nome de uma classe, a qual
inclui Sócrates, Howard, o Homem de Ross, e um número indefinível
de outros indivíduos, passados, presentes e vindouros. É apenas desses

1
MILL, John Stuart. A system of logic: raciocinative and inductive. University Press of the
Pacific: Honolulu, Havaí, 2002, reimpressão do original de 1891, Livro I, Capitulo II, Seção 5,
p. 19-25.
2
Professor do Departamento de filosofia da UFPE. E-mail: rodrigo_jungmann@yahoo.com.
br

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indivíduos, considerados coletiva e separadamente, que se pode dizer


A distinção entre nomes próprios conotativos e não conotativos

com propriedade serem denotados pela palavra. É apenas deles que


se pode dizer que a palavra em questão é um nome, mas é um nome
aplicado a todos eles em razão de um atributo que se supõe possuírem
em comum, o atributo que recebeu o nome de virtude e é aplicado a
todos os seres que julgamos possuir este atributo e a nenhum que não
julguemos possuí-lo.
Todos os nomes concretos genéricos são conotativos. A pala-
vra homem, por exemplo, denota Peter, Jane, John e um número inde-
finido de outros indivíduos, para os quais, considerados como classe, a
palavra serve como nome, mas é aplicada a eles porque possuem, e para
significar que possuem, certos atributos. Esses parecem ser a natureza
corpórea, a vida animal, a racionalidade e uma certa forma exterior a
que chamamos de humana. Toda coisa existente que possuísse todos
esses atributos seria chamada de homem; e qualquer coisa que deles
não possua nenhum, ou apenas um, ou dois, ou até mesmo três deles
sem possuir o quarto não seria assim chamada. Por exemplo, se no
interior da África viesse a ser descoberta uma raça de animais dotados
de razão igual à humana, mas com a forma de um elefante, eles não
seriam chamados homens. Os Houyhnhnms de Swift não seriam assim
chamados, ou se esses seres recém-descobertos possuíssem a forma de
homem sem qualquer vestígio de racionalidade, é provável que algum
nome diverso de homem fosse encontrado para eles. A razão de pare-
cer que a questão pode dar ensejo a qualquer dúvida será vista adiante.
A palavra homem, portanto, significa todos esses atributos e todos os
sujeitos que possuam esses atributos, mas só pode ser predicado dos
sujeitos. O que chamamos de homens são os sujeitos, o indivíduo Stiles
ou Nokes, não as qualidades pelas quais sua humanidade é constituída.
Diz-se do nome, portanto, que ele significa os sujeitos diretamente e os
atributos indiretamente; ele denota os sujeitos e implica, ou envolve, ou
indica, ou, como doravante diremos, conota os atributos. Trata-se de um
nome conotativo.
Por isso, nomes conotativos também foram chamados de de-
nominativos, porque o sujeito que denotam é denominado por um nome,

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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ou recebe um nome do atributo que conotam. A neve e outros objetos

John Stuart Mill – Trad. de Rodrigo Jungmann de Castro


recebem o nome branco porque possuem o atributo que é chamado
de brancura; Peter, James e outros recebem o nome homem porque
possuem os atributos que são considerados como constitutivos da hu-
manidade. Podemos, portanto, dizer que o atributo, ou atributos deno-
minam esses objetos ou ainda que lhes dão um nome comum.
Vimos que todos os nomes concretos genéricos são conotati-
vos. Mesmo nomes abstratos, embora nomes apenas de atributos, po-
dem, em alguns casos, ser com justeza considerados conotativos; afinal,
aos próprios atributos podem ser atribuídos atributos, e uma palavra
que denota atributos pode conotar um atributo de tais atributos. Cabe
nessa descrição, por exemplo, uma palavra como defeito; equivale esta a
uma qualidade ruim ou nociva. Essa palavra é um nome comum a mui-
tos atributos, e conota nocividade, um atributo desses vários atributos.
Quando, por exemplo, dizemos que a lentidão em um cavalo é um de-
feito, não queremos dizer que o movimento lento, a efetiva mudança de
posição de um cavalo lento seja uma coisa ruim, mas que a propriedade
ou peculiaridade do cavalo, do qual ele obtém o nome, a qualidade de
ser um movente lento é uma peculiaridade indesejável.
Os nomes próprios não são conotativos, eles denotam os in-
divíduos que são chamados por eles, mas eles não indicam nem impli-
cam quaisquer atributos pertencentes a esses indivíduos. Quando no-
meamos uma criança com o nome Paul, ou um cão com o nome Cesar,
tais nomes são simplesmente marcas usadas para fazer com que esses
indivíduos possam ser sujeitos do discurso. Pode ser dito, é bem verda-
de, que devemos ter tido algum motivo para dar-lhes esses nomes em
vez de quaisquer outros, mas o nome, uma vez que seja dado, fica in-
dependente do motivo. Um homem pode ter sido nomeado com John
porque este era o nome de seu pai; uma cidade pode ter sido nomeada
Dartmouth [Foz do Dart] porque está situada na foz do Dart, mas não
faz parte da significação da palavra John o fato de que o pai da pessoa
assim chamada usava o mesmo nome, e nem sequer da palavra Dart-
mouth o fato de a cidade ser situada na foz do Dart. Se a areia viesse
a bloquear a foz do rio, ou um terremoto mudasse o seu curso e o re-

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


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movesse para longe da cidade, o nome da cidade não necessariamente


A distinção entre nomes próprios conotativos e não conotativos

seria alterado. Tal fato, portanto, não pode fazer parte da significação
da palavra, pois, caso contrário, quando o fato reconhecidamente dei-
xasse de ser verdadeiro, ninguém nunca mais pensaria em empregar o
nome. Os nomes próprios são afixados aos próprios objetos, e não são
dependentes da permanência de qualquer atributo do objeto.
Mas há um outro tipo de nomes, que, embora sejam nomes
individuais, ou seja, predicáveis de apenas um objeto, são realmente
conotativos. Afinal, embora possamos dar a um indivíduo um nome in-
teiramente sem significação, o qual chamamos de nome próprio - uma
palavra que atende ao propósito de mostrar de que coisa estamos falan-
do, mas sem dizer nada a seu respeito - ainda assim, um nome peculiar
a um indivíduo não necessariamente se enquadra nessa descrição. Pode
significar um atributo, ou alguma união de atributos, que não sendo
possuídos por qualquer objeto exceto um único, fixa o nome exclusiva-
mente para tal indivíduo. “O sol” é um nome que cabe nessa descrição;
“Deus”, quando empregado por um monoteísta, é outro. Esses, contu-
do, mal contam como exemplos daquilo que estamos tentando ilustrar,
sendo, quando tratados em linguagem rigorosa, nomes genéricos e não
individuais, porque, conquanto possam ser de fato predicáveis de um
único objeto, nada há no significado das próprias palavras que implique
isso, e, como decorrência, quando imaginamos em vez de afirmarmos,
podemos falar de muitos sóis, e a maior parte da humanidade acredi-
tou a ainda acredita que haja muitos deuses. Mas é fácil produzir pala-
vras que representam exemplos reais de nomes conotativos individuais.
Pode ser parte do significado do próprio nome conotativo que só possa
existir um indivíduo possuidor do atributo que o nome conota como,
por exemplo, “o único filho de John Stiles; “o primeiro imperador de
Roma”. Ou o atributo conotado pode ser uma conexão com um evento
determinado, e a conexão pode ser de uma tal natureza que um único
indivíduo poderia tê-la, ou pode ser ao menos tal que um único indi-
víduo de fato a teve, e isto pode ser implicado na forma da expressão.
“O pai de Sócrates” exemplifica o primeiro tipo (visto que Sócrates não
poderia ter tido dois pais); “o autor da Ilíada”, “o assassino de Henri

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Quatre” exemplificam o segundo. Afinal, embora seja concebível que

John Stuart Mill – Trad. de Rodrigo Jungmann de Castro


mais de uma pessoa tenha tomado parte na autoria da Ilíada, ou no
assassinato de Henri Quatre, o emprego do artigo o implica que de
fato isso não se deu. O que aqui é feito pela palavra o é feito em outros
casos pelo contexto: assim, “exército de César” é um nome individual
se transparecer do contexto que o exército que se tem em mente é
aquele que foi comandado por César em alguma batalha em particular.
As expressões ainda mais genéricas “o exército romano” ou “o exér-
cito cristão” podem ser individualizadas de maneira semelhante. Um
outro caso de ocorrência frequente já foi notado, trata-se do seguinte:
o nome, embora contenha muitas palavras, pode consistir, em primeira
instância, de um nome genérico, suscetível em si mesmo, portanto, de ser
aplicado a mais de uma coisa, mas que, em segunda instância, é de tal
forma limitado por outras palavras a ele ligadas, que a expressão com-
pleta só pode ser predicada de um único objeto, de forma consistente
com o significado do termo genérico. Isso é exemplificado num caso
como o seguinte: “o atual Primeiro Ministro da Inglaterra”. Primeiro
Ministro da Inglaterra é um nome genérico, pois os atributos que co-
nota podem ser possuídos por um número indefinido de pessoas, mas
em sucessão e não simultaneamente, visto que o significado do próprio
nome revela (dentre outras coisas) que pode haver apenas uma pes-
soa tal qual esta a qualquer momento. Sendo assim, e com a aplicação
da palavra sendo subsequentemente limitada pelo artigo e pela palavra
atual, a indivíduos que possuam os atributos em um instante temporal
indivisível, ela resulta aplicável a apenas um indivíduo. E, visto que isso
se revela pelo significado do nome, sem qualquer prova extrínseca, o
nome é estritamente individual.
Das observações precedentes depreender-se-á facilmente que
sempre que os nomes dados a objetos transmitam qualquer informa-
ção, ou seja, sempre que propriamente tenham significado, o significa-
do reside não no que eles denotam, mas no que conotam. Os únicos no-
mes de objetos que nada conotam são nomes próprios, e estes, falando
em sentido estrito, carecem de qualquer significação.

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Se, à semelhança do ladrão das Mil e Uma Noites, fizermos


A distinção entre nomes próprios conotativos e não conotativos

sobre uma casa uma marca com giz para que possamos reconhecê-la
novamente, a marca tem um propósito, mas não propriamente qualquer
significado. O giz não declara coisa alguma sobre a casa; não significa
“Esta é a casa de tal pessoa”, ou “Esta é a casa que contém o butim”. O
propósito da marca é meramente o de distinguir. Digo a mim mesmo:
“Todas essas casas são tão semelhantes que, se eu as perder de vista,
não serei capaz de distinguir novamente aquela para a qual estou olhan-
do agora de qualquer uma das outras”; devo, portanto, dar um jeito de
fazer com que a aparência dessa casa em particular seja distinta da apa-
rência de qualquer uma das outras, para que doravante eu saiba ao ver a
marca – em verdade nenhum dos atributos da casa – mas simplesmente
que é a mesma casa para a qual agora estou olhando. Morgiana marcou
com giz todas as outras casas de maneira semelhante, e frustrou o ardil,
como? Simplesmente obliterando a diferença de aparência que havia
entre aquela casa e as outras. O giz ainda estava lá, mas não mais serviu
ao propósito de uma marca distintiva.
Quando colocamos um nome próprio, realizamos uma opera-
ção em algum grau análoga àquela que o ladrão pretendeu ao marcar a
casa com giz. Pomos uma marca, que não é na verdade sobre o objeto
em si, mas, por assim dizer, sobre a ideia do objeto. Um nome próprio
nada mais é que uma marca sem significado que associamos em nossas
mentes com a ideia do objeto, de tal forma que, sempre que a marca
apareça aos nossos olhos ou ocorra em nossos pensamentos, possamos
pensar naquele objeto individual. Não sendo associado à coisa em si
mesma, o nome, assim como o giz, não nos torna capazes de distin-
guir o objeto quando o vemos, mas nos torna capazes de distingui-lo
quando dele se fala, seja nos registros de nossa própria experiência,
seja no discurso dos outros; torna-nos capazes de saber que aquilo que
encontramos asseverado em qualquer proposição da qual é o sujeito é
asseverado daquela coisa em particular, com a qual nos havíamos fami-
liarizado previamente.
Quando predicamos de qualquer coisa seu nome próprio,
quando dizemos, apontando para um homem, que este é Brown ou

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Smith, ou apontando para uma cidade, que essa é York, o mero fato de

John Stuart Mill – Trad. de Rodrigo Jungmann de Castro


fazê-lo não nos leva a transmitir ao leitor qualquer informação sobre
eles, a não ser que aqueles são os seus nomes. Ao torná-lo capaz de
identificar os objetos individuados, podemos associá-los, informação
previamente possuída pelo destinatário. Ao dizer: “Esta é York”, po-
demos dizer-lhe que ela contém o Minster, mas isto se dá em virtude
do que foi previamente ouvido a respeito de York, não por qualquer
coisa implicada pelo nome. Caso diverso se dá quando falamos dos
objetos por meio de nomes conotativos. Quando dizemos: “A cidade
foi erguida com mármore”, damos ao ouvinte o que pode ser informa-
ção inteiramente nova, e o fazemos com a mera significação do nome
conotativo composto “erguida com mármore”. Tais nomes não são
meramente signos de objetos, inventados porque se dá o ensejo de que
pensemos ou falemos dos objetos individualmente, são, isto sim, signos
que acompanham um atributo. São um tipo de uniforme com o qual
o atributo veste todos os objetos que reconhecidamente o possuam.
Não são meras marcas, mas, a bem dizer, marcas mais significativas, e a
conotação é o que constitui sua significação.
Assim como se diz de um nome próprio que ele é o nome da
coisa individual da qual é predicado, da mesma forma (bem como pela
importância de mantermos a analogia e pelas outras razões anterior-
mente fornecidas) um nome conotativo deve ser considerado nome de
todas as várias coisas individuais das quais é predicável, ou, por outras
palavras, que denota, e não do que conota. Mas ao aprendermos de que
coisas é o nome não aprendemos o significado do nome. Com efeito,
à mesma coisa podemos aplicar, com igual propriedade, muitos nomes
que não são equivalentes em significado. Destarte, chamo um certo ho-
mem pelo nome de Sofronisco, e chamo-o por outro nome, “O pai de
Sócrates”. São ambos nomes do mesmo indivíduo, mas seu significado
é inteiramente diverso, pois são aplicados àquele indivíduo com dois
propósitos diferentes. O primeiro é tão somente para distingui-lo de
outras pessoas de que falamos; o outro para indicar um fato relaciona-
do a ele, o fato de que Sócrates foi seu filho. Além disso, aplico a ele ex-
pressões outras, tais como: homem, grego, ateniense, escultor, homem

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idoso, homem honesto, homem bravo. Todos esses termos são, ou po-
A distinção entre nomes próprios conotativos e não conotativos

dem ser, nomes de Sofronisco, e, na verdade, não apenas dele, mas


dele e de cada um de um número indefinido de outros seres humanos.
Cada um desses nomes é aplicado a Sofronisco por um motivo dife-
rente, e por cada um deles quem quer que compreenda seu significado
é inteirado de um fato distinto ou de uma gama de fatos distintos a seu
respeito; mas aqueles que nada soubessem a respeito dos nomes a não
ser que eram aplicáveis a Sofronisco, mostrar-se-iam completamente
desconhecedores de seus significados. É até mesmo possível que eu
conhecesse todo e qualquer indivíduo do qual um certo nome pudesse
ser verazmente afirmado, e ainda assim não se pudesse dizer de mim
que conheço o significado do nome. Uma criança conhece seus irmãos
e irmãs muito antes de ter qualquer concepção definida da natureza dos
fatos que estão relacionados com a significação de tais palavras.
Em alguns casos, não é fácil determinar precisamente o quan-
to uma palavra em particular conota ou não conota; vale dizer, não
sabemos exatamente (porque a questão não foi levantada) que grau de
diferença no objeto produziria uma diferença no nome. Assim, é claro
que a palavra homem, além de vida animal e racionalidade, também co-
nota uma certa forma exterior, mas seria impossível dizer precisamente
qual forma, vale dizer, determinar quão grande seria o desvio da forma
comumente encontrada nos seres a que estamos acostumados a chamar
de homens tal que bastasse para que nos recusássemos a chamar de ho-
mens uma raça recém-descoberta. O mesmo ocorre também com a ra-
cionalidade, por ser uma qualidade que admite gradações, e por jamais
ter sido estabelecido qual o mais baixo grau dessa qualidade, ainda daria
a qualquer criatura a prerrogativa de ser considerada humana. Em to-
dos esses casos, o significado do nome genérico é, em tão elevado grau
indeterminado e vago, que a humanidade jamais chegou a um acordo
explícito sobre a questão. Quando chegarmos ao tratamento da Clas-
sificação, teremos a oportunidade de mostrar em que condições esta
vagueza pode existir sem inconvenientes práticos, e surgirão casos em
que os propósitos da linguagem serão mais bem promovidos por ela do
que por uma completa precisão, de tal sorte que, na história natural, por

Perspectiva Filosófica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012


157

exemplo, animais individuais ou espécies de características pouco pro-

John Stuart Mill – Trad. de Rodrigo Jungmann de Castro


nunciadas podem ser elencadas ao lado daqueles animais individuais ou
espécies com características mais fortemente marcadas, com os quais,
consideradas todas as suas propriedades em conjunto, eles guardam a
semelhança mais próxima.
Mas essa incerteza parcial na conotação de nomes só pode
ficar livre de danos quando cercada de estritas precauções. Com efei-
to, uma das fontes principais de hábitos imprecisos de pensamento
reside no costume de empregar termos conotativos sem uma conota-
ção distintivamente estabelecida e sem nenhuma noção mais precisa
de seus significados do que a que pode ser depreendida vagamente
de observar que objetos os nomes são usados para denotar. É dessa
maneira, e ademais inevitavelmente, que todos nós adquirimos nos-
sos primeiros conhecimentos de nossa língua vernácula. Uma criança
aprende os significados das palavras branco e homem ao ouvi-las aplicadas
a uma variedade de objetos individuais, e descobrindo, por um proces-
so de generalização e análise que ela mesma não saberia descrever, o
que esses objetos variados têm em comum. No caso dessas duas pala-
vras, o processo é tão fácil que não requer qualquer auxílio da cultura;
os objetos chamados seres humanos e os objetos chamados brancos
distinguem-se de todos os demais por qualidades de uma natureza pe-
culiarmente definida e óbvia. Mas, em muitos outros casos, objetos
guardam uma semelhança genérica uns com outros, o que gera o hábito
familiar de classificá-los sob um nome comum, dando-se o caso, toda-
via, devido à ausência de hábitos mais analíticos que a maior parte da
humanidade não possui, de que não seja de imediato visível quais são
os atributos particulares de cuja posse conjunta por todos os objetos
em questão depende sua semelhança genérica. Quando isso ocorre, as
pessoas usam o nome sem qualquer conotação reconhecida, vale dizer,
sem qualquer significado preciso; falam, e consequentemente, pensam,
de maneira vaga, e se satisfazem em incorporar às suas palavras apenas
aquele grau de significação que uma criança de três anos de idade in-
corpora às palavras irmão e irmã. A criança, ao menos, raramente fica
perplexa com o aparecimento de novos indivíduos a respeito dos quais

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não sabe se deve ou não conferir a designação, visto que, em geral,


A distinção entre nomes próprios conotativos e não conotativos

haverá uma figura de autoridade prontamente disponível para dirimir


todas as dúvidas. Mas um recurso semelhante não existe na maior parte
dos casos; e novos objetos apresentam-se continuadamente a homens,
mulheres e crianças, e deles se requer classificá-los proprio motu. E, pre-
visivelmente, fazem-no sem base em qualquer princípio que não aque-
le que nota uma similaridade superficial, dando a cada novo objeto o
nome do objeto familiar cuja evocação aflora à mente mais prontamen-
te, ou daquele que, após uma investigação descuidada, mais lhes parece
assemelhar-se. Uma substância desconhecida encontrada no solo será
chamada, em conformidade com sua textura, de terra, areia ou pedra.
Destarte, nomes vão se espraiando sorrateiramente de sujeito a sujeito,
até que, por vezes, desapareçam todos os traços de um significado em
comum, e a palavra vem a denotar uma gama de coisas não apenas
independentemente de qualquer atributo em comum, mas que de fato
não possuem qualquer atributo em comum, ou nenhum, à exceção da-
quilo que é partilhado por outras coisas para as quais o emprego do
nome é caprichosamente negado. Mesmo escritores que se elencam
entre os homens de ciência contribuíram para essa prática que perverte
o propósito da linguagem geral, às vezes, porque, à semelhança do vul-
go, não poderiam fazer melhor, e às vezes por deferência àquela repulsa
à criação de novas palavras, repulsa esta que induz a humanidade, em
todos os assuntos que não sejam considerados técnicos, a tentar fazer
o estoque original de nomes servir, com poucos acréscimos, para ex-
pressar um número sempre crescente de objetos e distinções, e, como
consequência, expressá-los de uma maneira cada vez mais imperfeita.
Em que grau essa maneira vaga de classificar e de denominar
objetos deixou o vocabulário da filosofia mental e da filosofia moral
inadequado para os propósitos do pensamento preciso, é conhecido
melhor por quem quer que tenha meditado mais detidamente sobre a
condição atual desses ramos do saber. Contudo, uma vez que a ado-
ção de uma nova linguagem técnica como veículo para a especulação
acerca de assuntos pertencentes ao discurso do dia a dia é de realização
extremamente difícil e não estaria livre de inconvenientes, mesmo se

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ocorresse o problema diante do filósofo, um dos mais difíceis que ele

John Stuart Mill – Trad. de Rodrigo Jungmann de Castro


tem a resolver é como, em se mantendo a fraseologia existente, atenuar
ao máximo as suas imperfeições. Isso só pode ser conseguido dando-
-se a todo nome genérico concreto que sirva frequentemente como
predicado uma conotação definida e fixa, para que se possa saber que
atributos, quando chamamos um dado objeto com o nome em questão,
realmente tencionamos predicar do objeto. E a questão mais delicada é
como dar essa conotação fixa a um nome com a menor alteração pos-
sível nos objetos que habitualmente se usa o nome para denotar; com
o menor desarranjo possível, seja por adição ou subtração, no grupo de
objetos que, ainda que de maneira muito imperfeita, o nome serve para
circunscrever e reunir, e com a mínima violação da verdade de quais-
quer proposições comumente tidas como verdadeiras.
Esse propósito desejável, de dar uma conotação fixa onde ela
está em falta, é o fim almejado sempre que alguém tenta dar uma de-
finição de um termo genérico já no uso corrente, pois toda definição
de um nome conotativo é uma tentativa ou de meramente declarar, ou
de declarar e analisar, a conotação do nome. E o fato de nenhuma das
questões surgidas nas ciências morais ter sido tema de controvérsia
mais aguda do que a questão das definições de quase todas as expres-
sões cruciais serve como prova do grande alcance do mal a que aludi-
mos.
Nomes com conotações indeterminadas não devem ser con-
fundidos com nomes que têm mais de uma conotação, vale dizer, com
palavras ambíguas. Uma palavra pode ter vários significados, sendo,
porém, todos eles fixados e reconhecidos. É o caso da palavra post
[posto], por exemplo, ou da palavra box [caixa], os vários sentidos das
quais requereriam uma enumeração infindável. E a escassez de nomes
existentes, comparada com a demanda por eles, pode amiúde tornar
recomendável e até mesmo necessário preservar um nome com essa
multiplicidade de acepções, distinguindo-se estas com a clareza devida
para impedir que sejam confundidas umas com as outras. Uma tal pa-
lavra pode ser considerada como dois ou mais nomes, acidentalmente
escritos e proferidos da mesma forma.

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Normas para Submissão de Textos

A Revista Perspectiva Filosófica recebe artigos, resenhas, en-


saios e traduções em fluxo contínuo. Os textos devem ser enviados ao
Conselho Editorial que avaliará previamente a adequação dos mesmos
à política editorial da revista. Aqueles que forem avaliados positivamen-
te nesta primeira etapa, serão encaminhados à pareceristas, membros
do Conselho Científico ou Especialistas Ad Hoc. Uma vez aprovado
o texto será publicado no primeiro número disponível da revista. Os
trabalhos devem estar de acordo com as seguintes regras:
Os textos com no máximo 15 laudas (43.800 caracteres) de-
vem ser encaminhados no formato Word até a versão 2010, com as
seguintes especificações: tamanho de folha A4, espaço entre linhas 1,5
cm, fonte Times New Roman ou Arial 12, exceto nas citações em des-
taque e nas notas de rodapé, em que se diminui, respectivamente, para
11 e 10 o tamanho da fonte. Quanto às margens do texto, deve-se
obedecer às seguintes especificações: Superior 3,0 cm, Inferior 2,0 cm,
Esquerda 3,0 cm e Direita 2,0 cm.
Elementos ou estrutura do texto:
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sua devida titulação e instituição a que pertence);
• resumo e abstract (em letra 11, espaço entre linhas 1,5 (no
máximo 200 palavras ou cerca de 10 linhas), acompanhado
de palavras-chave (no máximo 5), separadas por vírgula);
• corpo do artigo (em que apresenta a problematização, le-
vantamento de hipóteses, argumentação, comprovação das
hipóteses, conclusões etc., podendo ser ou não dividido em
introdução, capítulos e conclusão (nas citações, ao longo do
corpo do trabalho, as referências podem ser em nota de ro-
dapé ou pelo sistema autor-data);
• referências (relação das obras com dados completos, organi-
zadas em ordem alfabética pelo último sobrenome do autor);

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• grego (as citações de termos gregos devem ser transliteradas


ou em fonte New Athena Unicode);
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prescindível o endereço postal para que, depois, possamos
enviar os dois exemplares a que o autor tem direito).

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Revistas Permutadas
1. Aisthe: Revista de Estética
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro, RJ, Brasil
2. Análise & Síntese
Faculdade São Bento da Bahia
Salvador, BA, Brasil
3. Analytica: Revista de Filosofia
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro, RJ, Brasil
4. Ágora Filosófica
Universidade Católica de Pernambuco
Recife, PE, Brasil
5. ARCHAI: Revista de Estudos sobre as Origens do Pensa-
mento Ocidental
Universidade de Brasília
Brasília, DF, Brasil
6. Argumentos: Revista de Filosofia
Universidade Federal do Ceará
Fortaleza, CE, Brasil
7. ARTEFILOSOFIA
Universidade Federal de Ouro Preto
Ouro Preto, MG, Brasil
8. Cadernos de Ética e Filosofia Política
Universidade de São Paulo
São Paulo, SP, Brasil
9. Cadernos de História e Filosofia da Ciência
Universidade Estadual de Campinas
Campinas, SP, Brasil
10. Cadernos Espinosanos: Estudos sobre o século XVII
Universidade de São Paulo
São Paulo, SP, Brasil
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164

11. Cadernos Nietzsche


Universidade de São Paulo
São Paulo, SP, Brasil
12. Cadernos UFS de Filosofia
Universidade Federal de Sergipe
Aracajú, SE, Brasil
13. COGNITIO: Revista de Filosofia
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
São Paulo, SP, Brasil
14. Diacrítica
Universidade do Minho
Braga, Portugal
15. Discurso
Universidade de São Paulo
São Paulo, SP, Brasil
16. Dissertatio
Universidade Federal de Pelotas
Pelotas, RS, Brasil
17. Doispontos
Universidade Federal do Paraná
Curitiba, PR, Brasil
18. Educação e Filosofia
Universidade Federal de Uberlândia
Uberlândia, MG, Brasil
19. Estudos Lacanianos
Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte, MG, Brasil
20. Filosofia Unisinos
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
São Leopoldo, RS. Brasil
21. Hypnos
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
São Paulo, SP, Brasil

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165

22. Kriterion
Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte, MG, Brasil
23. Manuscrito
Universidade Estadual de Campinas
Campinas, SP, Brasil
24. Natureza Humana
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
São Paulo, SP, Brasil
25. O que nos faz pensar
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro, RJ, Brasil
26. Philosophica
Universidade Federal de Sergipe
Aracajú, SE, Brasil
27. Princípios
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Natal, RN, Brasil
28. Aurora: Revista de Filosofia
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
Curitiba, PR, Brasil
29. Ethica
Universidade Gama Filho
Rio de Janeiro, RJ, Brasil
30. Scientiae Studia
Universidade de São Paulo
São Paulo, SP, Brasil
31. Scintilla
Instituto de Filosofia São Boaventura
Curitiba, PR, Brasil
32. Síntese
Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia
Belo Horizonte, MG, Brasil

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33. Stromata
Facultades de Filosofia y Teologia de San Miguel
San Miguel, Argentina
34. Theophilos
Universidade Luterana do Brasil
Canoas, RS, Brasil
35. Tempo da Ciência
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
Toledo, PR, Brasil
36. Trans/Form/Ação
Universidade Estadual Paulista
Marília, SP, Brasil
37. Veritas
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Porto Alegre, RS, Brasil

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