INTRODUÇÃO
4. Faz parte da missão pastoral da Igreja anunciar e defender as exigências éticas para
que elas iluminem a convivência social. Exercendo essa missão queremos, desde o início,
deixar bem claro que são necessárias e indispensáveis ao mesmo tempo, a
transformação das estruturas e a conversão dos espíritos, isto é, da consciência das
pessoas e de sua mentalidade. Para cumprir esse dever, nós, bispos católicos, lançamos
em 1986, por ocasião da 24ª Assembléia Geral, o documento “Por uma Nova Ordem
Constitucional”.
1.1.1. Valores
8. – a ação popular: proposta por qualquer cidadão para anular ato lesivo ao patrimônio
público, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e
cultural;
16. Houve também progresso quanto às normas referentes aos índios, aos direitos dos
trabalhadores, à proteção ecológica e à reforma urbana. O direito à educação foi
ampliado em termos de recursos e programas complementares, garantindo o ensino
religioso e reconhecendo um novo tipo de escola, a comunitária. Igualmente positivas
são as normas referentes às crianças, aos adolescentes e aos idosos. Outro ponto
positivo é a descentralização do poder, valorizando o Legislativo e o Judiciário, assim
como o poder dos Estados e dos Municípios.
1.1.2. Limites
21. – Não foi superado o estreito espírito de corpo e de ambição utilitarista, que levou à
aprovação de dispositivos constitucionais, apenas por interesse de grupos. Por exemplo,
a exclusão da propriedade produtiva, de desapropriação para efeito de Reforma Agrária.
No mesmo sentido, foram efetivados milhares de funcionários sem concurso,
contrariando preceito constitucional4.
24. Já durante a elaboração do texto constitucional, não faltaram indevidas pressões nem
intervenções do Poder Executivo e dos poderes econômicos, nem cumplicidades por
servilismo, pagas sob forma de mordomias ou compensações ilícitas e outros artifícios,
em detrimento do bem comum.
27. A própria Justiça, que deveria ser o reduto intacto do exercício ético do Direito, em
determinados casos é desvirtuada, lenta e elitizada, protelando o processamento de
causas especialmente criminais. A cumplicidade e a impunidade favorecem os corruptos e
estimulam, no campo ou na cidade, o sacrifício de vítimas inocentes.
28. No nível sócio-econômico, a década de 80 foi quase perdida, sobretudo para os mais
pobres5, com os mais baixos índices de crescimento, situação essa agravada por uma
política econômica voltada principalmente para o pagamento da dívida externa6. A
conseqüência é a deterioração da qualidade de vida, sem que tenha melhorado a
situação econômica.
4
29. O fenômeno da inflação permanece uma realidade desafiante. As medidas decretadas
pelo governo para debelá-la – Plano Cruzado, Bresser, Verão – não só não produziram os
resultados anunciados, mas, sobretudo, empobreceram ainda mais as classes de baixa
renda.
30. A qualidade de vida vai-se deteriorando cada vez mais em seus vários aspectos: a
nutrição, a saúde, a educação, a habitação, o transporte, o saneamento básico. A
mortalidade infantil nas áreas mais carentes infelizmente ainda é alta e desafia a
consciência nacional7. A situação dos menores abandonados que perambulam nas ruas
não recebeu ainda adequado encaminhamento por parte da sociedade, apesar dos
esforços recentes. Aumentaram os índices de evasão e de repetência escolar. O déficit
habitacional, especialmente para as populações de baixa renda, atingiu níveis
escandalosos, agravados pelas péssimas condições de saneamento e preservação
ambiental. A vida é ameaçada e destruída pelo aborto, pela expansão de doenças
endêmicas, pela difusão das drogas e pela violência urbana e rural, que amedronta o dia-
a-dia de todos os cidadãos.
31. Esta situação crítica continuará, enquanto não acontecer uma reorientação do modelo
sócio econômico brasileiro que ataque problemas básicos tais como o esbanjamento e
mau uso dos recursos públicos, a dívida externa e interna8, a questão urbana e agrária, e
que contribua para estabelecer uma nova ordem financeira mundial.
32. De fato, foi mais uma vez frustrada a expectativa, de “uma política agrícola que
garanta a permanência do pequeno agricultor no campo, e da execução imediata de uma
Reforma Agrária justa, urgente e eficaz”9, agravando a situação de milhões de
trabalhadores rurais sem terra10.
36. Externamente, o País já foi obrigado a exportar, para os países ricos, entre 1980 e
1987, 50,4 bilhões a mais do que as divisas que entraram no país14. Quando o Papa, na
encíclica “Sollicitudo Rei Socialis”, aborda o problema da dívida externa, parece que está
se referindo diretamente ao Brasil. João Paulo II, verifica que o fato de os países em
desenvolvimento aceitarem, a título de empréstimo, o capital estrangeiro, “transformou-
se num mecanismo contraproducente”, um freio do desenvolvimento e, em certos casos,
“uma acentuação do subdesenvolvimentos”15. E isto porque os países devedores são
obrigados a exportar capital, necessário para aumentar, ou, pelo menos, manter o seu
nível de vida. “Não é lícito pagar a dívida simplesmente às custas da fome, da miséria e
do subdesenvolvimento do nosso povo''16.
Esta dívida tornou-se fator de novo colonialismo, em que os povos do Terceiro Mundo,
como o Brasil, devem pagar pesados tributos, comparáveis aos piores períodos da
5
história humana. Todos os dados nos mostram que a dívida externa “é hoje um dos mais
eficazes instrumentos da diminuição da vida e implantação da morte, instrumento de
pecado coletivo e usurpação do domínio de Deus”17.
38. Verifica-se, no Brasil, aquele perigo que o Santo Padre denunciava com tanto vigor:
“a existência de ricos, cada vez mais ricos, às custas de pobres, cada vez mais pobres”18.
Numa palavra: obstáculo à nova ordem democrática é a estrutura injusta do nosso
modelo sócio-econômico marcado pelo pecado.
40. Na vida social, as formas de solidariedade e de comunhão não poucas vezes são
rompidas para dar lugar a formas acentuadas de individualismo. Multiplicam-se, assim,
os conflitos: ao invés da defesa de direitos fundamentais, muitas vezes só se buscam
privilégios de categorias, deixando, em crescente estado de abandono, os mais fracos e
desprotegidos.
42. Na vida econômica, vai forjando-se uma consciência distorcida, para a qual tudo é
válido, desde que favoreça o lucro, sob o signo da eficácia tecnocrata e do utilitarismo
econômico. Aceitam-se, assim, a opulência e o desperdício de poucos em contraste com
a miséria e a fome de muitos.
43. No confronto entre técnica e ética, entram em crise as tradições culturais e religiosas
do povo, ameaçando, assim, o seu “substrato” cultural cristão e, em última análise, o
próprio sentido de Deus.
44. Continua sendo ameaçada a sobrevivência dos povos indígenas, agredidos nos seus
direitos à posse da terra que, por sua vez, constitui elemento determinante de sua
identidade cultural. As culturas e os direitos da população afro-brasileira não são
suficientemente respeitados, assim como de outros grupos étnicos.
50. Com a Conferência de Puebla, podemos afirmar que esta realidade na área cultural
se constitui em “desafios que a Igreja há de enfrentar. Neles se manifestam os sinais dos
tempos que apontam o futuro para onde vai o movimento da cultura. A Igreja deve
discerni-los para poder consolidar os valores e derrubar os ídolos que alentam esse
processo histórico''21.
1.3. Esperanças
51. Uma série de obstáculos se contrapõe à nova ordem democrática em nosso País. Não
é esta, porém, toda a realidade. Existem sinais de esperança, tanto na revalorização de
nossa cultura, como no reconhecimento de novos valores emergentes, igualmente
necessários para o projeto democrático. O Brasil é um país economicamente viável,
socialmente dinâmico e culturalmente rico em valores.
52. O cristão, por sua fé, tem motivos para a esperança: Deus se faz salvificamente
presente na História e inspira sempre novas forças para a construção de um mundo
novo, conforme o seu plano de amor.
53. Reconhecemos que a ordem constitucional vigente oferece aberturas para uma
vivência mais democrática. As próximas eleições presidenciais e, em seguida, as
parlamentares serão oportunidades e, ao mesmo tempo, responsabilidade para escolher
aqueles candidatos realmente comprometidos com a melhoria das condições de vida do
povo e com os valores que alicerçam e consolidam a ordem democrática.
54. Verificamos que há esforços sérios para viver os valores que realizam o ideal
democrático:
62. – a busca de fé mais autêntica, pura, aberta à comunhão com Deus, que está com
seu povo, e comprometida com a caminhada da liberdade humana;
64. – o testemunho supremo daqueles que sacrificaram a vida por amor ao próximo e em
defesa da justiça.
2. EXIGÊNCIAS ÉTICAS
65. Começamos esta reflexão com algumas considerações de caráter mais universal,
como fundamentação do discernimento cristão da democracia.
67. Por um lado, com a democracia abre-se a possibilidade de efetiva diminuição das
desigualdades sociais, na medida em que proporcione a todos as mesmas oportunidades
de participação na organização da sociedade, de modo especial do processo produtivo.
Isto significa que é no trabalho que os homens encontram o fundamento do seu direito
de participar nas decisões que dizem respeito aos problemas da sociedade inteira, que
vive do seu trabalho22.
68. Como a pessoa humana tem a primazia sobre a instituição, a ordem social, tem por
base, o reconhecimento do primado do trabalho sobre o capital e, como objetivo, o bem
estar de todos na justiça social.
8
69. A democracia não se realiza, de fato, quando o sistema econômico exclui parcelas da
população dos meios necessários a uma vida digna: acesso ao trabalho com justa
remuneração, à moradia, à terra23, à educação, à organização sindical, à participação
nos lucros e na gestão da empresa24.
70. Por outro lado, a construção da democracia é a criação das condições necessárias
para que os homens, como cidadãos, rompam o isolamento e sua desagregação social e
ocupem o espaço público, através da discussão, da negociação, do diálogo e da decisão.
Forja-se, assim, um novo sentido do viver em comum, onde ninguém é excluído da
efetiva participação dos bens da sua nação, do direito à educação, respeitando as
convicções éticas e religiosas, e “do direito à informação honesta”25.
73. Afirmamos que “o ser humano é sempre um valor em si e por si, e exige ser
considerado e tratado como tal, e nunca ser considerado e tratado como um objeto que
se usa, um instrumento, uma coisa”28. “De todas as criaturas terrenas, só o homem é
'pessoa', sujeito consciente e livre e, precisamente por isso, 'centro e vértice' de tudo o
que existe sobre a Terra”29.
74. A pessoa humana não existe para viver isoladamente, mas com os outros e em
comunidade. “O homem é, por sua natureza íntima, um ser social”30. É na participação
plena e efetiva da pessoa humana na vida da comunidade e da sociedade, numa ordem
democrática, que ela encontra a sua verdade. Assim, a pessoa humana se realiza
plenamente no trabalho, na comunicação, na solidariedade, na comunhão, na entrega
aos outros e na liberdade31.
76. O homem vai tomando-se efetivamente livre enquanto responde ao apelo ético, que
lhe vem do “rosto do outro”33, como sujeito igualmente livre e portador de direitos,
entrando com ele numa relação de amor, na justiça e na liberdade.
80. Cumpre, entretanto, recordar, com João XXIII, que sobre cada direito humano pesa a
responsabilidade de um dever36: ao direito à vida digna corresponde o dever de viver
com dignidade, não atentar contra ela e, ao mesmo tempo, o de respeitar a vida dos
outros; ao direito à própria liberdade corresponde o dever de usá-la bem, assim como o
de respeitar a liberdade dos demais; ao direito à propriedade corresponde o dever de
colocá-la ao serviço da sociedade, como o de lutar para que todos possam igualmente
beneficiar-se dela.
83. A solidariedade é uma opção pela vida e pela justiça. Como bem afirmou João Paulo
II: “a solidariedade, como atitude de fundo, implica, nas decisões econômicas, sentir a
pobreza alheia como própria, fazer carne sua a miséria dos marginalizados, e, em vista
disto, atuar com rigorosa coerência. Não se trata somente da profissão de boas
intenções, mas da decidida vontade de buscar soluções eficazes no plano técnico da
economia, com a clarividência, que dá o amor e a criatividade, que brota da
solidariedade”39.
84. Todos os indivíduos de uma sociedade são solidariamente responsáveis pelo bem de
todos e de cada um, em particular dos mais pobres, “porque todos somos
verdadeiramente responsáveis por todos”40.
86. Importa não perder de vista a realidade do mundo contemporâneo, no qual se vão
definindo os contornos da grande comunidade internacional. O bem comum, como já o
notara a Gaudium et Spes, “está assumindo sempre mais uma dimensão universal, no
qual se incluem os direitos e deveres que dizem respeito à humanidade inteira”42. A falta
de consciência deste bem comum universal e a ausência de uma ética de solidariedade
são responsáveis pelos mecanismos perversos de opressão que pesam sobre o Terceiro e
o Quarto mundos, verdadeiras “estruturas de pecado”43, que ameaçam a própria unidade
do gênero humano44. Cada ser humano é chamado à responsabilidade solidária de fazer
acontecer o bem comum não só para a respectiva sociedade, mas para toda a
humanidade45.
87. A criação de homens livres e solidários46, pelo trabalho, pela educação, pela
organização e pela “nobre luta pela justiça”47 e por estruturas de solidariedade é
condição para a construção de uma sociedade democrática. Pois a solidariedade “ativa e
vivida”48 é o princípio ético que deve presidir tanto a vida familiar, quanto a vida das
diversas comunidades e da sociedade como um todo.
89. A fé cristã, apesar das falhas dos próprios cristãos, contribuiu decisivamente para o
reconhecimento dessas exigências. Pois no centro da fé cristã encontra-se uma afirmação
sem igual da dignidade da pessoa humana: criatura que ocupa lugar eminente na obra
do Criador (cf. Gn 1,25-26)49, ela é chamada ao diálogo, à amizade e à comunhão com o
próprio Deus. Vítima do pecado, ela é resgatada pelo sacrifício do Filho de Deus, que
para isso se faz homem e eleva a humanidade a participar da vida divina. O Novo
Testamento reflete, de diversas formas, a experiência que os discípulos de Jesus fizeram
do amor de Deus, manifestado em Cristo, expressando a gratidão e o louvor tanto ao Pai,
que “não poupou o próprio Filho” (cf. Rm 8,32)50, como ao Filho, que os “amou até o
fim” (Jo 13,1)51, e ao Espírito Santo, que suscita no coração dos filhos o amor ao Pai (Rm
8,16)52.
92. – o chamado à liberdade dos filhos de Deus, em oposição à condição de servidão (cf.
Gl 4,1-5,1)54;
94. – a fraternidade pela qual os filhos do mesmo Pai se reconhecem irmãos (cf. Mt
23,8)56 e fazem da solidariedade (“Koinonia”, comunhão) o princípio de seu
relacionamento, visando alcançar o ideal bíblico: “Entre vós não haverá nenhum
necessitado” (Dt 15,4; cf. At 4,35)57.
95. Num mundo marcado por desigualdade, ódio e injustiça, os cristãos enfrentam
oposição a seus ideais. Respondem com a prática, ainda mais radical, da nova lei. Amor
ao próximo significa para os cristãos não apenas amar o irmão de fé, o vizinho, o
conterrâneo, mas aquele que está marginalizado ou inferiorizado, e mesmo o adversário
e o perseguidor. O cristão não se limita a amar o próximo. Faz-se próximo do outro (cf.
Lc 10,36-37)58. O pequeno e o pobre tornam-se para ele o rosto do próprio Senhor (cf.
Mt 25,31-45)59. Paradoxalmente, os rejeitados tornam-se privilegiados no “Reino de
Deus” (cf. Mt 5,1-10; Lc 6,20-23)60.
98. Certamente contribuiu para isto a separação que o mundo moderno criou entre ética
e religião, de um lado, política e economia, do outro65. A consciência moral parece
restringir-se ao âmbito das questões individuais, à esfera íntima da pessoa. As decisões
no campo econômico e político obedecem unicamente à lógica do lucro e do poder,
escapando ao juízo ético. Esta separação pesa até hoje sobre a sociedade brasileira e
pode explicar, em grande parte, o fato de que o Brasil um dos maiores países católicos
está entre os que apresentam as maiores desigualdades sociais e trágica ausência de
ética cristã na organização sócio-econômica, nas instituições e costumes políticos.
99. Diante de certas reivindicações modernas da democracia, que surgiram num contexto
de crítica violenta e unilateral das tradições religiosas e sociais, a Igreja Católica reagiu
bastante negativamente, rejeitando juntamente os princípios do capitalismo liberal, com
suas calamitosas conseqüências sociais, e os princípios democráticos, que deveria mais
tarde reconhecer como essenciais para a convivência civil. A participação na luta contra
as diversas formas de autoritarismo e totalitarismo do século XX levou os cristãos a
assumirem mais claramente a defesa dos direitos humanos e o valor da democracia. A
revisão das posições históricas dos cristãos e a formulação sistemática da doutrina da
Igreja com relação ao regime democrático foram feitas pelo Concílio Vaticano II (1962-
1965), à luz também, do magistério pontifício, particularmente dos papas Pio XII, João
XXIII e Paulo VI.
100. Também no Brasil, a Igreja Católica tem procurado adequar melhor às exigências
evangélicas os princípios que norteiam sua presença na sociedade. Na República, da qual
celebramos o Centenário (1889-1989), após um momento inicial de interrogações sobre
o novo regime, a Igreja reconheceu o valor da liberdade religiosa e da oportunidade de
participar autonomamente da convivência civil, numa sociedade pluralista. Durante a
República Velha e o Estado Novo, a Igreja continuou prestando relevantes serviços à
sociedade, especialmente no campo da educação e da promoção humana, sem contestar
o caráter elitista ou autoritário do regime.
4. RECOMENDAÇÕES PRÁTICAS
102. Aos católicos e a todos os que desejam encontrar uma orientação prática e atual,
em ordem à construção da sociedade democrática, lembramos algumas diretrizes mais
recentes do magistério da Igreja, em particular o documento de Puebla sobre a
construção de uma sociedade pluralista66.
104. Reafirmando esta opção, temos consciência de que continuaremos recebendo crítica
de dois lados: dos que procuram institucionalizar a situação de iniqüidade, porque dela
se beneficiam, e dos que procuram transformar em luta ostensiva os conflitos latentes,
descrentes de qualquer outra solução, que classificam de reformismo conformista.
Acreditamos, porém, que haja crescente consenso da nação, amadurecida pelo
sofrimento de longos anos de arbítrio e pela difícil conjuntura por eles legada, de que as
mudanças devem processar-se de forma democrática, dentro dos espaços abertos pela
nova Constituição.
105. Continua atual a exigência de que a transformação da sociedade seja obra de todo o
povo. Esta participação poderá expressar-se de modo privilegiado no momento das
eleições, através do voto consciente e responsável. Mas vai muito além do voto,
estendendo-se, como vimos, aos diversos aspectos - econômico, social, cultural - da
sociedade. As dificuldades conjunturais, gerando, hoje, forte onda de pessimismo,
inclusive entre a juventude, não nos devem fazer recuar diante do desafio da construção
da democracia; antes, devem preparar os ânimos a enfrentar com tenacidade, coragem e
perseverança o “duro aprendizado” da liberdade na solidariedade.
106. Permanece atual o apelo de Puebla para que a transformação das estruturas seja
estimulada e seguida por verdadeira conversão dos espíritos, isto é, da consciência das
pessoas e de sua mentalidade. As gritantes desigualdades, que já duram séculos,
enraizaram profundamente - tanto nos privilegiados quanto nos oprimidos e destituídos
de posses - hábitos mentais e formas de comportamento, de autoritarismo e de
conformismo ou servilismo, de ganância ou de resignação, que devem ser
transformados.
107. A própria Igreja deve dar o exemplo: “a conversão começa por nós mesmos''67.
Pastores e fiéis, podemos e devemos, permanentemente, procurar atitudes e
comportamentos mais adequados às exigências do Evangelho e, por isso mesmo,
capazes de “abrir caminho para um tipo mais humano de sociedade”68. Embora na Igreja
do Senhor Jesus o poder não venha do povo, nem seja exercido em nome do povo,
queremos trabalhar generosamente para que se consolidem em nossas dioceses e em
nossas comunidades, o espírito de comunhão, o clima de corresponsabilidade, o respeito
mútuo, a atitude de serviço e o florescimento de adequados mecanismos de
participação (cf. Mt 20,25-28)69, excluídas todas as formas de autoritarismo arbitrário.
110. – Necessidade de garantir a justa distribuição social do solo urbano, cuja utilização
não pode ser deixada aos caprichos do mercado72.
114. – Necessidade de medidas que garantam a função social da empresa (salário justo,
livre organização sindical dos trabalhadores, condições dignas de trabalho, negociações
permanentes, participação nos lucros, participação na política econômica da empresa...)
a subordinação e também o atendimento prioritário dos projetos governamentais às
necessidades das populações carentes76;
115. – Necessidade de a dívida externa ser submetida a uma auditoria pública, com
participação do Poder Legislativo e de organizações representativas da sociedade civil,
para identificar a sua justa composição a partir das responsabilidades sobre suas origens
e modos de utilização. Isto foi expresso pela Constituição, quando afirma a necessidade
de “exame analítico e pericial dos atos e fatos geradores do endividamento externo
brasileiro''77.
117. Apelamos também aos Deputados Federais e Senadores eleitos pelo povo, para que
se empenhem com esmero e urgência na elaboração das Leis Complementares e
Ordinárias necessárias para que a nova Constituição seja efetivamente completada e
aplicada. Aos Deputados Estaduais e aos Vereadores Municipais pedimos que elaborem
as Constituições dos Estados e as Leis Orgânicas dos Municípios, busquem e valorizem as
contribuições do povo, exercendo a sadia criatividade que lhes faculta a Lei Magna
Federal.
CONCLUSÃO
119. São muitas as dificuldades para se construir uma democracia alicerçada nos valores
éticos e cristãos. Com verdadeira ansiedade pastoral, para que não se confunda
democracia com permissividade moral, pedimos que todos colaborem na urgente tarefa
da educação ou reeducação dos comportamentos individuais, familiares e sociais, hoje
tão perigosamente deteriorados entre nós. Temos, firme esperança: o Cristo
Ressuscitado, vencedor do pecado, da opressão, da morte, será a nossa força e a nossa
vitória.
120. Invocando, por intercessão da Virgem Aparecida, a benção de Deus sem a qual “em
vão trabalham os que constroem a casa” (Sl 126,1), confiamos que o povo brasileiro
possa realizar também a sua páscoa, passando do sofrimento da cruz para uma nova
vida, na solidariedade, na justiça e na paz.
_____________________
Nota:1
GS, 39: “Não sabemos até quando existirão a terra e a humanidade, nem sabemos que transformações hão de
sofrer. A figura desse mundo, deformado pelo pecado, haverá de passar, mas o Senhor ensina que haverá uma
14
nova morada para o homem, em que habitará a justiça e cuja felicidade preencherá e superará todos os
desejos de paz que o coração humano alimenta.
Então, vencida a morte, os filhos de Deus ressuscitarão em Cristo. O que foi semeado na fraqueza e na
corrupção, vestirá a incorruptibilidade. O amor permanecerá e toda a criatura, feita em vista do ser humano, há
de ser também libertada.
Ouvimos que de nada adianta ganhar todo o universo e se perder. A expectativa da nova terra, longe de
esvaziar, estimula o desejo de cuidar das coisas terrestres, em meio às quais cresce o corpo da nova família
humana, oferecendo desde agora uma tênue imagem do que será no futuro.
Embora se deva distinguir o reino de Cristo do progresso humano, não resta dúvida de que, na medida em que
se entende por progresso a organização mais perfeita da sociedade esta organização é da maior importância
para o reino de Deus.
Bens como a dignidade humana, a comunhão fraterna e a liberdade, frutos da natureza e do trabalho humano,
depois de difundidos na terra segundo o mandamento do Senhor e no seu Espírito, serão reencontrados depois,
purificados de toda mancha, iluminados e transfigurados, quando o Cristo entregar ao Pai o seu reino eterno e
universal: reino de verdade e vida, reino de santidade e graça, reino de justiça, de amor e de paz. O reino,
misteriosamente presente na terra, chegará à consumação com a vinda do Senhor”.
Nota:2
Preâmbulo da Constituição.
Nota:3
Constituição, Art. 5, XLIV: “Constitui crime inafiançável e imprescridível a ação de grupos armados, civis ou
militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”.
Nota:4
cf. Disposições Transitórias, Art. 19.
Nota:5
É sabido que, no Brasil, o aumento médio anual do PIB foi de 11,2% no período de 1967-73 e de 7,1% no
período de 1973-80. No período de 1980 a 1984, o crescimento do PIB foi praticamente nulo, com deterioração
da renda por habitante. Certa retomada do crescimento, nos anos seguintes, apenas repôs as perdas
anteriores. Segundo dados da CEPAL (ONU), o produto interno por habitante em 1987 era somente 3,9% maior
que o de 1980. (cf. CEPAL, Estudio Económico de América Latina y el Caribe. 1987. Brasil. LC/L. 463/Add. 4
(septiembre de 1988). cf. Também Hélio Jaguaribe e outros, Brasil: Reforma ou Caos, Rio de Janeiro, 1989,
p.54-55).
Nota:6
cf. Igreja: Comunhão e Missão n.146: “Hoje, uma das principais causas da situação de injustiça dos nossos
trabalhadores e do crescente e inaceitável empobrecimento do povo é, certamente, a dívida externa brasileira.
O endividamento externo representa uma forma moderna do tributo que as metrópoles cobravam dos povos
colonizados. Os bilhões de dólares, que anualmente saem como dinheiro líquido exportado para os credores
estrangeiros, são o que o país deveria investir para tirar o povo da miséria e criar empregos para as novas
gerações”.
Nota:7
A taxa da mortalidade infantil para o Brasil era de 80/1000 em 1984. O trabalho da Pastoral da Criança
conseguiu baixá-la consideravelmente nas áreas onde atua, especialmente graças à campanha do Soro Caseiro
que salvou a vida de, aproximadamente, um milhão de criança pobres por ano.
Nota:8
A dívida interna brasileira caracteriza-se não apenas pelo montante elevado (que, somado ao da dívida pública
externa, chega a cerca de 50% do PIB anual), mas especialmente por seu financiamento a juros elevados e a
curto prazo, gerando instabilidade e inflação (cf., por exemplo, Hélio Jaguaribe e outros, Brasil: Reforma ou
Caos, Rio de Janeiro, 1989, p.154-157).
Nota:9
CNBB, Igreja: Comunhão e Missão 178: “Reafirmamos a necessidade de uma política agrícola que garanta
permanência do pequeno agricultor no campo, bem como a execução imediata de uma Reforma Agrária
urgente, justa e eficaz:
a) com aproveitamento das terras públicas;
b) com desapropriação do latifúndio por extensão e por exploração;
c) com indenização das terras desapropriadas, em títulos da dívida pública;
d) sem indenização das benfeitorias oriundas de recursos públicos;
e) acompanhada da revisão dos títulos de propriedade, a fim de averiguar a legitimidade da posse frente à
“grilagem” usada na produção de títulos cartoriais”.
Nota:10
O Plano Nacional de Reforma Agrária entre 85 e 88 somente desapropriou, com imissão de posse, 6,8% da
área prevista, beneficiando apenas 4,7% das famílias as quais o Plano se destina. Muitas vezes a
desapropriação da terra acabou representando um negócio lucrativo para os donos de terra. cf. MIRAD
(Ministério de Reforma Agrária e Desenvolvimento) - período de 15.03.85 a 22.02.89, citado no livro: Conflitos
no Campo, Brasil/88, CPT, p.78.
Nota:11
cf. João Paulo II, Discurso Inaugural II, 4: “O destino universal dos bens criados por Deus e produzidos pelos
homens, que não podem esquecer que “uma hipoteca social pesa sobre toda propriedade privada” (João Paulo
II, Discurso Inaugural III, 4; AAS LXXI, p.200). Por ocasião da audiência ao Presidente Sarney, em 1986, o
Papa afirmou que a Reforma Agrária não pode fracassar no Brasil.
Puebla 1224: “O destino universal dos bens criados por Deus e produzidos pelos homens, que não podem
esquecer que “uma hipoteca social pesa sobre toda propriedade privada” (João Paulo II, Discurso Inaugural III,
4. AAS LXXI, p.200)”.
Nota:12
40,7% das pessoas, no Brasil, vivem com menos de meio salário mínimo. Isto corresponde a um total absoluto
de mais de 53 milhões de pessoas. (Dados do IBGE-PNAD/85: tabulações especiais citadas em: Hélio Jaguaribe
15
e outros, Brasil: Reforma ou Caos, Rio de Janeiro, 1989, p. 68-69) O salário médio de 1987 foi o menor da
história do salário mínimo do Brasil, isto é, Cz$ 4.726,44 ou 36,3% do salário mínimo de julho de 1940. O
salário mínimo chegou a ser inferior a 50 dólares mensais, um dos mais baixos do mundo.(cf. Igreja:
Comunhão e Missão, no. 139).
Igreja: Comunhão e Missão n.139: “Porém, segundo dados do DIEESE, em 1987, o rendimento médio real
dos trabalhadores caiu em 34.3%. O salário médio de 1987 foi o menor da história do salário mínimo no Brasil,
isto é Cz$ 4.726,44 ou 36.3% do salário mínimo de julho de 1940. O salário mínimo chegou a ser inferior a 50
dólares mensais, um dos mais baixos do mundo. No Brasil isto se agrava se considerarmos que a participação
dos salários no produto industrial representa apenas 17%, menos da metade da média geral dos países (42%)
e inferior à média da América Latina (27%)”. O arrocho salarial em nosso país atinge proporções espantosas.
Nota:13
Temos esperança nos novos planos da Previdência, atendendo melhor às necessidades da população, conforme
a nova Constituição, Art. 201: “Os planos de previdência social, mediante contribuição, atenderão, nos termos
da lei, a:
I - cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte, incluídos os resultantes de acidentes do trabalho,
velhice e reclusão;
II - ajuda à manutenção dos dependentes dos segurados de baixa renda;
III - proteção à maternidade, especialmente à gestante;
IV - proteção ao trabalhador em situação de desemprego involuntário;
V - pensão por morte de segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes, obedecido o
disposto no parágrafo 5º e no art. 202.
Parágr. 1°. - Qualquer pessoa poderá participar dos benefícios da previdência social, mediante
contribuição na forma dos planos previdenciários.
Parágr. 2°. - É assegurado o reajustamento dos benefícios para preservar-lhes, em caráter permanente,
o valor real, conforme critérios definidos em lei.
Parágr. 3°. - Todos os salários de contribuição considerados no cálculo de benefício serão corrigidos
monetariamente.
Parágr. 4°. - Os ganhos habituais do empregado, a qualquer título, serão incorporados ao salário para
efeito de contribuição previdenciária e conseqüente repercussão em benefícios, nos casos e na forma da lei.
Parágr. 5°. - Nenhum benefício que substitua o salário de contribuição ou o rendimento do trabalho do
segurado terá valor mensal inferior ao salário mínimo.
Parágr. 6°. - A gratificação natalina dos aposentados e pensionistas terá por base o valor dos proventos
do mês de dezembro de cada ano.
Parágr. 7°. - A previdência social manterá seguro coletivo, de caráter complementar e facultativo,
custeado por contribuições adicionais.
Parágr. 8°. - É vedado subvenção ou auxílio do Poder Público às entidades de previdência privada com
fins lucrativos.
Nota:14
cf. Fundação Getúlio Vargas, citado na Declaração da Consulta Nacional Igrejas e a Dívida Externa - Seminário
do CONIC, 27 a 30.03.1989, RJ.
Nota:15
SRS, n.19: “Há outro fenômeno, também ele típico do período mais recente embora não se encontre em toda
parte que é sem dúvida igualmente indicativo da interdependência existente entre os países desenvolvidos e os
menos desenvolvidos. É a questão da dívida internacional, a que a Pontifícia Comissão Justitia et Pax, há pouco,
consagrou um documento.
Não se poderia aqui deixar em silêncio a estreita relação entre este problema, cuja gravidade crescente já tinha
sido prevista pela Populorum Progressio, e a questão do desenvolvimento dos povos.
A razão que levou os povos em vias de desenvolvimento a aceitarem a oferta de abundantes capitais
disponíveis foi a esperança de os poderem empregar em atividades de desenvolvimento. Por conseguinte, a
disponibilidade dos capitais e o fato de os aceitar a título de empréstimo podem considerar-se uma contribuição
para o próprio desenvolvimento o que é desejável e legítimo em si, embora talvez imprudente e, nalguns casos,
precipitado.
Tendo mudado as circunstâncias, tanto nos países endividados como no mercado financeiro internacional, o
instrumento escolhido para dar uma ajuda ao desenvolvimento transformou-se num mecanismo
contraproducente. E isto quer porque os países devedores, para satisfazerem os compromissos da dívida, se
vêem obrigados a exportar os capitais que seriam necessários para aumentar ou pelo menos para manter o seu
nível de vida, quer porque, pela mesma razão, eles não podem obter novos financiamentos igualmente
indispensáveis.
Por força deste mecanismo, o meio destinado ao desenvolvimento dos povos tornou-se um freio e, em certos
casos, até mesmo uma acentuação do subdesenvolvimento.
Estas verificações devem levar a refletir como diz o recente documento da Pontifícia Comissão Justitia et Pax
sobre o caráter ético da interdependência dos povos; e, para permanecer na linha das presentes considerações,
também sobre as exigências e as condições da cooperação para o desenvolvimento, inspiradas igualmente em
princípios éticos”.
Nota:16
CNBB, Igreja: Comunhão e Missão 180: “Com relação à dívida externa, propomos que ela seja submetida a
uma auditoria pública, com participação do Poder Legislativo e de organizações representativas da sociedade
civil, para identificar a composição justa da dívida, a partir das responsabilidades sobre suas origens e modos
de utilização. Com base nessa auditoria e no montante já pago até hoje, a legitimidade da atual dívida ficaria
esclarecida. Em todo caso, a Igreja insiste no princípio que a economia deve estar sujeita à ética e, portanto,
não é lícito pagar a dívida simplesmente às custas da fome, da miséria e do subdesenvolvimento do nosso
povo”.
Nota:17
Desafios às Igrejas. A questão da dívida externa, CONIC - CESE, São Paulo, 1988.
16
Nota:18
cf. João Paulo II, Discurso Inaugural III, 3; cf. Puebla, 30: “Puebla 30. Ao analisar mais a fundo tal
situação, descobrimos que esta pobreza não é uma etapa casual, mas sim o produto de determinadas situações
e estruturas econômicas, sociais e políticas, embora haja também outras causas da miséria. A situação interna
de nossos países encontra, em muitos casos, sua origem e apoio em mecanismos que, por estarem
impregnados não de autêntico humanismo, mas de materialismo, produzem, em nível internacional ricos cada
vez mais ricos às custas de pobres cada vez mais pobres. Esta realidade exige, portanto conversão pessoal e
transformações profundas das estruturas que correspondam às legítimas aspirações do povo a uma verdadeira
justiça social; tais mudanças ou não se deram ou têm sido demasiado lentas na experiência da AL”.
Nota:19
ChL, n.38: “O reconhecimento efetivo da dignidade pessoal de cada ser humano exige o respeito, a defesa e a
promoção dos direitos da pessoa humana. Trata-se de direitos naturais, universais e invioláveis: ninguém, nem
o indivíduo, nem o grupo, nem a autoridade, nem o Estado, pode modificar e muito menos eliminar esses
direitos que emanam do próprio Deus.
Ora, a inviolabilidade da pessoa, reflexo da inviolabilidade absoluta do próprio Deus, tem a sua primeira e
fundamental expressão na inviolabilidade da vida humana. É totalmente falsa e ilusória a comum defesa, que
aliás justamente se faz, dos direitos humanos como por exemplo o direito à saúde, à casa, ao trabalho, à
família e à cultura , se não se defende com a máxima energia o direito à vida como primeiro e frontal direito,
condição de todos os outros direitos da pessoa.
A Igreja nunca se deu por vencida perante todas as violações que o direito à vida, que é próprio de cada ser
humano, tem sofrido e continua a sofrer, tanto por parte dos indivíduos como mesmo até por parte das
próprias autoridades. O titular desse direito é o ser humano, em todas as fases do seu desenvolvimento, desde
a concepção até à morte natural, e em todas as suas condições, tanto de saúde como de doença, de perfeição
ou de deficiência, de riqueza ou de miséria. O Concílio Vaticano II afirma abertamente: Tudo quanto se opõe à
vida, como seja toda espécie de homicídio, genocídio, aborto, a integridade da pessoa humana, como as
mutilações, os tormentos corporais e mentais e as tentativas para violentar as próprias consciências; tudo
quanto ofende a dignidade da pessoa humana, como as condições de vida infra-humanas, as prisões
arbitrárias, as deportações, a escravidão, a prostituição, o comércio de mulheres e de jovens; e também as
condições degradantes de trabalho, em que os operários são tratados como meros instrumentos de lucro e não
como pessoas livres e responsáveis; todas estas coisas e outras semelhantes são, sem dúvida, infamantes; ao
mesmo tempo que corrompem a civilização humana, desonram mais aqueles que assim procedem do que os
que as padecem, e ofendem gravemente a honra devida ao Criador.
Ora, se a todos pertencem a missão e a responsabilidade de reconhecer a dignidade pessoal de cada ser
humano e de defender o seu direito à vida, certos fiéis leigos são a isso chamados por um título particular: são
os pais, os educadores, os agentes da saúde e todos os que detêm o poder econômico e político.
Ao aceitar amorosa e generosamente toda a vida humana, sobretudo se fraca e doente, a Igreja vive hoje um
momento fundamental da sua missão, tanto mais necessária quanto mais avassaladora se tornou uma cultura
de morte. De fato, a Igreja firmemente acredita que a vida humana, mesmo se fraca e sofredora, é sempre um
dom maravilhoso do Deus da bondade. Contra o pessimismo e o egoísmo, que ensombram o mundo, a Igreja
está do lado da vida: e em cada vida humana ela consegue descobrir o esplendor daquele sim, daquele amém,
que é o próprio Cristo (cf. 2Cor 1,19; Ap 3,14). Ao não que avassala e aflige o mundo, contrapõe-se esse vivo
sim, defendendo dessa maneira o homem e o mundo daqueles que ameaçam e mortificam a vida. Pertence aos
fiéis leigos, que mais diretamente ou por vocação ou por profissão se ocupam do acolhimento à vida, tornar
concreto e eficaz o sim da Igreja à vida humana.
Nas fronteiras da vida humana abrem-se hoje novas possibilidade e responsabilidades com o enorme progresso
das ciências biológicas e médicas, aliado ao surpreendente poder tecnológico: o homem, com efeito, é já capaz
não só de observar, mas também de manipular a vida humana no seu início e nas primeiras fases de seu
desenvolvimento.
A consciência moral da humanidade não pode ficar alheia ou indiferente perante os passos gigantescos dados
por uma força tecnológica que consegue ter um domínio cada vez mais vasto e profundo sobre os dinamismos
que presidem à procriação e às primeiras fases do desenvolvimento da vida humana. Talvez nunca como hoje e
neste campo a sabedoria se revela como única âncora de salvação, para que o homem, na investigação
científica e na aplicada, possa agir sempre com inteligência e com amor, isto é, no respeito, diria mesmo na
veneração, da inviolável dignidade pessoal de todo ser humano, desde o primeiro instante da sua existência.
Isso acontece quando, usando meios lícitos, a ciência e a técnica se empenham na defesa da vida e na cura da
doença, desde os inícios, recusando, no entanto pela própria dignidade da investigação, intervenções que se
tornem perturbadoras do patrimônio genético do indivíduo e da geração humana.
Os fiéis leigos que, a qualquer título ou a qualquer nível, se empenham na ciência e na técnica, bem como na
esfera médica, social, legislativa e econômica, devem corajosamente enfrentar os desafios que lhes lançam os
novos problemas da bioética. Como disseram os padres sinodais, os cristãos devem exercer a sua
responsabilidade como donos da ciência e da tecnologia, não como seus escravos… Em ordem a esses desafios
morais, que estão para serem lançados pela nova e imensa força da tecnologia e que põem em perigo não só
os direitos fundamentais dos homens, mas a própria essência biológica da espécie humana, é da máxima
importância que os leigos cristãos com a ajuda de toda a Igreja tomem a peito o enquadramento da cultura
nos princípios de um humanismo autêntico, de forma que a promoção e a defesa dos direitos do homem
possam encontrar fundamento dinâmico e seguro na sua própria essência, aquela essência que a pregação
evangélica revelou aos homens.
É urgente que todos, hoje, estejam alertados para o fenômeno da concentração do poder, e, em primeiro lugar,
do poder tecnológico. Tal concentração tende, com efeito, a manipular não só a essência biológica, mas
também os conteúdos da própria consciência dos homens e os seus padrões de vida, agravando, assim, a
discriminação e a marginalização de povos inteiros”.
Nota:20
Constituição, Art. 221, IV: “Respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família”.
Nota:21
17
Puebla, 420: “Os fatos acima indicados são os desafios que Igreja há de enfrentar. Neles se manifestam os
sinais dos tempos, que apontam o futuro para onde vai o movimento da cultura. A Igreja deve discerni-los,
para poder consolidar os valores e derrubar os ídolos que alentam esse processo histórico”.
Nota:22
cf. João Paulo, II, Homilia para o mundo do trabalho, Danzigue, 12 de junho de 1987; CNBB, Igreja:
Comunhão e Missão, 159: “Ainda que, no atual contexto, o justo salário se torna o índice mais concreto para
medir a justiça duma sociedade em suas instituições e estruturas, contudo, não basta “responder ao trabalho
humano só com a retribuição. Porque - como pessoa- o homem não é apenas executor, mas é também co-
autor da obra que nasce no campo do trabalho”. Como tal, o trabalhador é também, de alguma forma, co-
proprietário. Isso exige a criação de formas de participação nos lucros e na propriedade dos meios de produção.
Conseqüentemente, o trabalhador “tem o direito de decidir deste campo de trabalho. Tem direito, como
trabalhador, a autogovernar-se. Depois o trabalho humano, mediante centenas e milhares (talvez milhões) de
lugares de trabalho, contribui para o bem comum da sociedade. Os homens do trabalho encontram
precisamente nele (...) o título para decidirem a respeito dos problemas da sociedade inteira, que do seu
trabalho vive e por ele se desenvolve”.
Nota:23
cf. CNBB, Por uma Nova Ordem Constitucional art. 127: “A realização da justiça social exige a implantação
de reforma agrária e de reforma do uso do solo urbano que favoreçam o acesso à posse e uso de terra rural ou
urbana nas seguintes condições:
- garantir a terra para quem realmente nela trabalha;
- proibir despejos daqueles que estão efetivamente utilizando a terra no campo e na cidade para o sustento de
sua família, cabendo ao Estado a regularização fundiária através de legislação específica;
- propiciar uma política agrária e uma política agrícola adequadas, que dêem condições ao homem do campo
para permanecer na terra e cultivá-la;
- criar mecanismos que impeçam a concentração fundiária sendo na própria Constituição fixado o módulo
máximo para uma propriedade rural;
- implantar uma justiça agrária que previna os conflitos ou agilize sua solução;
- propiciar uma política relativa ao uso do solo urbano que possibilite o acesso à moradia a todos os cidadãos.
Tal política implica na necessidade de impedir a estocagem de áreas urbanas e reprimir a especulação
imobiliária”.
cf. CNBB, Igreja: Comunhão e Missão 178: “Reafirmamos a necessidade de uma política agrícola que
garanta permanência do pequeno agricultor no campo, bem como a execução imediata de uma Reforma Agrária
urgente, justa e eficaz:
a) com aproveitamento das terras públicas;
b) com desapropriação do latifúndio por extensão e por exploração;
c) com indenização das terras desapropriadas, em títulos da dívida pública;
d) sem indenização das benfeitorias oriundas de recursos públicos;
e) acompanhada da revisão dos títulos de propriedade, a fim de averiguar a legitimidade da posse frente à
“grilagem” usada na produção de títulos cartoriais”.
Nota:24
cf. CNBB, Igreja: Comunhão e Missão 159 e 174: “159. Ainda que, no atual contexto, o justo salário se
torna o índice mais concreto para medir a justiça duma sociedade em suas instituições e estruturas, contudo,
não basta “responder ao trabalho humano só com a retribuição. Porque - como pessoa- o homem não é apenas
executor, mas é também co-autor da obra que nasce no campo do trabalho”. Como tal, o trabalhador é
também, de alguma forma, co-proprietário. Isso exige a criação de formas de participação nos lucros e na
propriedade dos meios de produção. Conseqüentemente, o trabalhador tem o direito de decidir deste campo de
trabalho. Tem direito, como trabalhador, a autogovernar-se. Depois o trabalho humano, mediante centenas e
milhares (talvez milhões) de lugares de trabalho, contribui para o bem comum da sociedade. Os homens do
trabalho encontram precisamente nele (...) o título para decidirem a respeito dos problemas da sociedade
inteira, que do seu trabalho vive e por ele se desenvolve.
174. Devemos animar e incentivar os trabalhadores a participar de seus sindicatos e se empenhar para ter
participação ativa na gestão das empresas e nas decisões sobre os problemas de toda a sociedade”.
Nota:25
CNBB, Por uma Nova Ordem Constitucional 88: “Direito à informação honesta, oriunda de diversas fontes
sobre o que está acontecendo na administração pública e na sociedade, inclusive através de meios de
comunicação verdadeiramente livres e não sujeitos ao arbítrio de governantes ou às pressões do poder
econômico”.
Nota:26
Constituição - Art. I, parágrafo único.
Nota:27
cf. CNBB, Igreja: Comunhão e Missão, 206: “Por outro lado, preveniu os Apóstolos contra uma falsa
concepção do poder ao adverti-los: “Sabeis que aqueles que vemos governar as nações as dominam, e os seus
grandes as tiranizam. Entre vós não deverá ser assim: ao contrário, aquele que dentre vós quiser ser grande,
seja o vosso servidor, e aquele que quiser ser o primeiro entre vós, seja o servo de todos''. Para Jesus, o poder
legítimo se caracteriza pelo serviço e não pela dominação. Se é o serviço que deve caracterizar o poder político,
ele estende-se a todos os homens, sem acepção de pessoas; privilegia, porém, os pequenos, os pobres, os
oprimidos. O critério decisivo para julgar o comportamento das pessoas - e a prioridade dos que detêm o poder
- é atender às reais necessidades da pessoa humana: dos famintos, dos sedentos, dos sem teto, dos sem terra,
dos sem poder... Só corresponde à evangélica concepção do poder aquele que é exercido em benefício do povo
que se torna, assim, mediação do poder que vem de Deus. É por isso que a Igreja (...) proclama que é para o
bem da sociedade e para salvaguarda de sua soberania que o poder é necessário; só isso o justifica”.
Nota:28
18
ChL, n.37: “Descobrir e ajudar a descobrir a dignidade inviolável de cada pessoa humana constitui uma tarefa
essencial, diria mesmo, em certo sentido, a tarefa central e unificadora do serviço que a Igreja, e nela os fiéis
leigos, são chamados a prestar à família dos homens.
De todas as criaturas terrenas, só o homem é pessoa, sujeito consciente e livre e, precisamente por isso,
centro e vértice de tudo o que existe sobre a terra.
A dignidade pessoal é o bem mais precioso que o homem tem, graças ao qual ele transcende em valor todo o
mundo material. A palavra de Jesus: Que serve ao homem ganhar o mundo inteiro, se depois perde a sua
alma? (Mc 8,36) implica uma afirmação antropológica luminosa e estimulante: o homem vale não por aquilo
que tem mesmo que ele possuísse o mundo inteiro , mas por aquilo que é. Não são tanto os bens do mundo
que contam, mas o bem da pessoa, o bem que é a própria pessoa.
A dignidade da pessoa aparece em todo o seu fulgor, quando se consideram a sua origem e o seu destino:
criado por Deus à sua imagem e semelhança e remido pelo sangue preciosíssimo de Cristo, o homem é
chamado a tornar-se filho no Filho e templo vivo do Espírito, e tem por destino a vida eterna da comunhão
beatífica com Deus. Por isso, toda a violação da dignidade pessoal do ser humano clama por vingança junto de
Deus e torna-se ofensa ao Criador do homem.
Em virtude da sua dignidade pessoal, o ser humano é sempre um valor em si e por si, e exige ser considerado
e tratado como tal, e nunca ser considerado e tratado como um objeto que se usa, um instrumento, uma coisa.
A dignidade pessoal constitui o fundamento da igualdade de todos os homens entre si. Daí, a absoluta recusa
de todas as mais variadas formas de discriminação que, infelizmente, continuam a dividir e a humilhar a família
humana, desde as raciais e econômicas às sociais e culturais, das políticas às geográficas, etc. Toda
discriminação é uma injustiça absolutamente intolerável, não tanto pelas tensões e conflitos que pode gerar no
tecido social, quanto pela desonra feita à dignidade da pessoa: não só à dignidade daquele que é vítima da
injustiça, mas ainda mais à daquele que pratica essa injustiça.
Fundamento da igualdade de todos os homens entre si, a dignidade pessoal é, ao mesmo tempo, o fundamento
da participação e da solidariedade dos homens entre si: o diálogo e a comunhão têm a sua raiz última naquilo
que os homens são, antes e mais ainda do que naquilo que eles têm.
A dignidade pessoal é propriedade indestrutível de cada ser humano. É fundamental compreender-se toda a
força que irrompe desta afirmação, que se baseia na unicidade e na irrepetibilidade de toda pessoa. Dela deriva
que o indivíduo seja irredutível a tudo o que o queira esmagar e anulá-lo no anonimato da coletividade, da
instituição, da estrutura, do sistema. A pessoa, na sua individualidade, não é um número, não é o anel de uma
cadeia nem uma peça da engrenagem de um sistema. A afirmação mais radical e exaltante do valor de cada ser
humano foi feita pelo Filho de Deus ao encarnar no seio de uma mulher. E disto continua a falar-nos o Natal
cristão”.
Nota:29
CL, n.37: “Descobrir e ajudar a descobrir a dignidade inviolável de cada pessoa humana constitui uma tarefa
essencial, diria mesmo, em certo sentido, a tarefa central e unificadora do serviço que a Igreja, e nela os fiéis
leigos, são chamados a prestar à família dos homens.
De todas as criaturas terrenas, só o homem é pessoa, sujeito consciente e livre e, precisamente por isso,
centro e vértice de tudo o que existe sobre a terra.
A dignidade pessoal é o bem mais precioso que o homem tem, graças ao qual ele transcende em valor todo o
mundo material. A palavra de Jesus: Que serve ao homem ganhar o mundo inteiro, se depois perde a sua
alma? (Mc 8,36) implica uma afirmação antropológica luminosa e estimulante: o homem vale não por aquilo
que tem mesmo que ele possuísse o mundo inteiro , mas por aquilo que é. Não são tanto os bens do mundo
que contam, mas o bem da pessoa, o bem que é a própria pessoa.
A dignidade da pessoa aparece em todo o seu fulgor, quando se consideram a sua origem e o seu destino:
criado por Deus à sua imagem e semelhança e remido pelo sangue preciosíssimo de Cristo, o homem é
chamado a tornar-se filho no Filho e templo vivo do Espírito, e tem por destino a vida eterna da comunhão
beatífica com Deus. Por isso, toda a violação da dignidade pessoal do ser humano clama por vingança junto de
Deus e torna-se ofensa ao Criador do homem.
Em virtude da sua dignidade pessoal, o ser humano é sempre um valor em si e por si, e exige ser considerado
e tratado como tal, e nunca ser considerado e tratado como um objeto que se usa, um instrumento, uma coisa.
A dignidade pessoal constitui o fundamento da igualdade de todos os homens entre si. Daí, a absoluta recusa
de todas as mais variadas formas de discriminação que, infelizmente, continuam a dividir e a humilhar a família
humana, desde as raciais e econômicas às sociais e culturais, das políticas às geográficas, etc. Toda
discriminação é uma injustiça absolutamente intolerável, não tanto pelas tensões e conflitos que pode gerar no
tecido social, quanto pela desonra feita à dignidade da pessoa: não só à dignidade daquele que é vítima da
injustiça, mas ainda mais à daquele que pratica essa injustiça.
Fundamento da igualdade de todos os homens entre si, a dignidade pessoal é, ao mesmo tempo, o fundamento
da participação e da solidariedade dos homens entre si: o diálogo e a comunhão têm a sua raiz última naquilo
que os homens são, antes e mais ainda do que naquilo que eles têm.
A dignidade pessoal é propriedade indestrutível de cada ser humano. É fundamental compreender-se toda a
força que irrompe desta afirmação, que se baseia na unicidade e na irrepetibilidade de toda pessoa. Dela deriva
que o indivíduo seja irredutível a tudo o que o queira esmagar e anulá-lo no anonimato da coletividade, da
instituição, da estrutura, do sistema. A pessoa, na sua individualidade, não é um número, não é o anel de uma
cadeia nem uma peça da engrenagem de um sistema. A afirmação mais radical e exaltante do valor de cada ser
humano foi feita pelo Filho de Deus ao encarnar no seio de uma mulher. E disto continua a falar-nos o Natal
cristão”.
Nota:30
GS, n.12: “Fiéis ou não, todos estão mais ou menos de acordo que tudo na terra está ordenado em função do
ser humano, centro e ápice de todas as coisas.
Mas o que é o ser humano? Muitas são as opiniões a respeito, no passado e no presente. Opiniões diversas e
até contrárias. Às vezes ele se coloca acima de tudo, como regra suprema do universo, outras, se avilta até o
desespero, ansioso e cheio de dúvidas sobre sua própria identidade. Dando-se conta destas dificuldades e
19
instruída pela revelação divina, a Igreja lhe pode oferecer resposta, esclarecendo a condição humana e suas
fraquezas, ao mesmo tempo que sua dignidade, permitindo-lhe assim reconhecer sua verdadeira vocação.
As Escrituras ensinam que o homem foi criado à imagem de Deus, capaz de conhecer e amar o seu criador. Foi
colocado por ele como senhor sobre todas as criaturas da terra, para governá-las e delas usufruir, rendendo
glória a Deus. O que é o ser humano, para dele te lembrares? E para que o visites? Tu o fizeste pouco menos
do que um deus, e o coroaste de glória e esplendor. Tu o fizeste reinar sobre as obras de tuas mãos, e sob os
pés dele tudo colocaste (Sl 8, 5ss).
Deus não criou só o homem. Desde o início os fez homem e mulher (Gn 1, 27), cuja união é a base da
comunhão entre pessoas. Por sua íntima natureza o ser humano é pois um ser social, não pode viver nem
crescer senão em relação com os outros. Como lemos ainda na Escritura, Deus viu tudo que fez, e era muito
bom (Gn 1, 31)”.
Nota:31
GS, n.24: “À imagem de um pai, Deus quer que todos os seres humanos constituam uma única família e se
relacionem uns com os outros como irmãos. De um só homem, Deus fez toda a raça humana para habitar
sobre a face da terra (At 17, 26), criando-os à sua imagem e chamando todos para um único fim, que é o
próprio Deus.
Por isso o amor a Deus e ao próximo é o primeiro mandamento. As Sagradas Escrituras ensinam que não se
podem separar: todos os mandamentos se resumem nesta sentença, ame o seu próximo como a si mesmo... o
amor é o pleno cumprimento da lei(Rm 13, 9s; cf. Jo 4, 20). A crescente interdependência entre os seres
humanos e a progressiva unificação do mundo conferem especial importância a esta exigência.
Quando Jesus ora ao Pai para que todos sejam um como nós somos um (Jo 17, 21s), numa perspectiva que a
razão humana não pode alcançar, acena para uma certa semelhança entre a unidade das pessoas divinas e a
união dos filhos de Deus na verdade e no amor. Esta semelhança explica por que o ser humano que, na terra, é
a única criatura querida por Deus por si mesma, não se realiza plenamente senão no dom generoso de si
mesmo aos outros”.
Nota:32
cf. RH, 21: “Nos nossos tempos, algumas vezes julga-se, erroneamente, que a liberdade é fim para si mesma,
que cada homem é livre na medida em que usa da liberdade como quer, e que para isto se deve tender na vida
dos indivíduos e das sociedades. Mas a liberdade, ao contrário, só é um grande dom quando dela sabemos usar
conscientemente, para tudo aquilo que é o verdadeiro bem. Cristo ensina que o melhor uso da liberdade é a
caridade, que se realiza no dom e no serviço. Foi para tal liberdade que Cristo nos libertou e nos liberta
sempre. A Igreja vai haurir aqui a incessante inspiração, o estímulo e o impulso para a sua missão e para o seu
serviço no meio de todos os homens. A verdade plena sobre a liberdade humana acha-se profundamente
gravada no mistério da redenção. A Igreja presta verdadeiramente um serviço à humanidade, quando tutela
esta verdade, com infatigável aplicação, com amor ardente e com diligência amadurecida; e, ainda, quando,
em toda a própria comunidade, através da fidelidade à vocação de cada um dos cristãos, a mesma Igreja a
transmite e a concretiza na vida humana. Deste modo é confirmado aquilo a que já nos referimos
anteriormente, isto é, que o homem é e continuamente se torna o caminho da vida cotidiana da Igreja”.
Nota:33
Puebla, 31-32: “31. Esta situação de extrema pobreza generalizada adquire, na vida real, feições
concretíssimas, nas quais deveríamos reconhecer as feições sofredoras de Cristo, o Senhor (que nos questiona
e interpela):
32. - Feições de crianças, golpeadas pela pobreza ainda antes de nascer, impedidas que estão de realizar-se,
por causa de deficiências mentais e corporais irreparáveis, que as acompanharão por toda a vida; crianças
abandonadas e muitas vezes exploradas de nossas cidades, resultado da pobreza e da desorganização moral da
família”.
Nota:34
Puebla, 321: “Deve-se revalorizar entre nós a imagem cristã dos homens. É forçoso e indispensável que volte
a ressoar essa palavra em que se vem cristalizando desde há muito tempo um sublime ideal de nossos povos,
LIBERDADE. Esta liberdade é a um tempo dom e tarefa. Ela não se alcança verdadeiramente sem a libertação
integral e é, em sentido válido, meta do homem segundo nossa fé, uma vez que “para a liberdade é que Cristo
nos libertou” (Gl 5,1) a fim de que tenhamos vida e a tenhamos em abundância, como “filhos de Deus e co-
herdeiros do próprio Jesus Cristo (Rm 8,17)”.
Nota:35
ChL, n.38: “O reconhecimento efetivo da dignidade pessoal de cada ser humano exige o respeito, a defesa e a
promoção dos direitos da pessoa humana. Trata-se de direitos naturais, universais e invioláveis: ninguém, nem
o indivíduo, nem o grupo, nem a autoridade, nem o Estado, pode modificar e muito menos eliminar esses
direitos que emanam do próprio Deus.
Ora, a inviolabilidade da pessoa, reflexo da inviolabilidade absoluta do próprio Deus, tem a sua primeira e
fundamental expressão na inviolabilidade da vida humana. É totalmente falsa e ilusória a comum defesa, que
aliás justamente se faz, dos direitos humanos como por exemplo o direito à saúde, à casa, ao trabalho, à
família e à cultura , se não se defende com a máxima energia o direito à vida como primeiro e frontal direito,
condição de todos os outros direitos da pessoa.
A Igreja nunca se deu por vencida perante todas as violações que o direito à vida, que é próprio de cada ser
humano, tem sofrido e continua a sofrer, tanto por parte dos indivíduos como mesmo até por parte das
próprias autoridades. O titular desse direito é o ser humano, em todas as fases do seu desenvolvimento, desde
a concepção até à morte natural, e em todas as suas condições, tanto de saúde como de doença, de perfeição
ou de deficiência, de riqueza ou de miséria. O Concílio Vaticano II afirma abertamente: Tudo quanto se opõe à
vida, como seja toda espécie de homicídio, genocídio, aborto, a integridade da pessoa humana, como as
mutilações, os tormentos corporais e mentais e as tentativas para violentar as próprias consciências; tudo
quanto ofende a dignidade da pessoa humana, como as condições de vida infra-humanas, as prisões
arbitrárias, as deportações, a escravidão, a prostituição, o comércio de mulheres e de jovens; e também as
condições degradantes de trabalho, em que os operários são tratados como meros instrumentos de lucro e não
como pessoas livres e responsáveis; todas estas coisas e outras semelhantes são, sem dúvida, infamantes; ao
20
mesmo tempo que corrompem a civilização humana, desonram mais aqueles que assim procedem do que os
que as padecem, e ofendem gravemente a honra devida ao Criador.
Ora, se a todos pertencem a missão e a responsabilidade de reconhecer a dignidade pessoal de cada ser
humano e de defender o seu direito à vida, certos fiéis leigos são a isso chamados por um título particular: são
os pais, os educadores, os agentes da saúde e todos os que detêm o poder econômico e político.
Ao aceitar amorosa e generosamente toda a vida humana, sobretudo se fraca e doente, a Igreja vive hoje um
momento fundamental da sua missão, tanto mais necessária quanto mais avassaladora se tornou uma cultura
de morte. De fato, a Igreja firmemente acredita que a vida humana, mesmo se fraca e sofredora, é sempre um
dom maravilhoso do Deus da bondade. Contra o pessimismo e o egoísmo, que ensombram o mundo, a Igreja
está do lado da vida: e em cada vida humana ela consegue descobrir o esplendor daquele sim, daquele amém,
que é o próprio Cristo (cf. 2Cor 1,19; Ap 3,14). Ao não que avassala e aflige o mundo, contrapõe-se esse vivo
sim, defendendo dessa maneira o homem e o mundo daqueles que ameaçam e mortificam a vida. Pertence aos
fiéis leigos, que mais diretamente ou por vocação ou por profissão se ocupam do acolhimento à vida, tornar
concreto e eficaz o sim da Igreja à vida humana.
Nas fronteiras da vida humana abrem-se hoje novas possibilidade e responsabilidades com o enorme progresso
das ciências biológicas e médicas, aliado ao surpreendente poder tecnológico: o homem, com efeito, é já capaz
não só de observar, mas também de manipular a vida humana no seu início e nas primeiras fases de seu
desenvolvimento.
A consciência moral da humanidade não pode ficar alheia ou indiferente perante os passos gigantescos dados
por uma força tecnológica que consegue ter um domínio cada vez mais vasto e profundo sobre os dinamismos
que presidem à procriação e às primeiras fases do desenvolvimento da vida humana. Talvez nunca como hoje e
neste campo a sabedoria se revela como única âncora de salvação, para que o homem, na investigação
científica e na aplicada, possa agir sempre com inteligência e com amor, isto é, no respeito, diria mesmo na
veneração, da inviolável dignidade pessoal de todo ser humano, desde o primeiro instante da sua existência.
Isso acontece quando, usando meios lícitos, a ciência e a técnica se empenham na defesa da vida e na cura da
doença, desde os inícios, recusando, no entanto pela própria dignidade da investigação, intervenções que se
tornem perturbadoras do patrimônio genético do indivíduo e da geração humana.
Os fiéis leigos que, a qualquer título ou a qualquer nível, se empenham na ciência e na técnica, bem como na
esfera médica, social, legislativa e econômica, devem corajosamente enfrentar os desafios que lhes lançam os
novos problemas da bioética. Como disseram os padres sinodais, os cristãos devem exercer a sua
responsabilidade como donos da ciência e da tecnologia, não como seus escravos… Em ordem a esses desafios
morais, que estão para serem lançados pela nova e imensa força da tecnologia e que põem em perigo não só
os direitos fundamentais dos homens, mas a própria essência biológica da espécie humana, é da máxima
importância que os leigos cristãos com a ajuda de toda a Igreja tomem a peito o enquadramento da cultura
nos princípios de um humanismo autêntico, de forma que a promoção e a defesa dos direitos do homem
possam encontrar fundamento dinâmico e seguro na sua própria essência, aquela essência que a pregação
evangélica revelou aos homens.
É urgente que todos, hoje, estejam alertados para o fenômeno da concentração do poder, e, em primeiro lugar,
do poder tecnológico. Tal concentração tende, com efeito, a manipular não só a essência biológica, mas
também os conteúdos da própria consciência dos homens e os seus padrões de vida, agravando, assim, a
discriminação e a marginalização de povos inteiros”.
Nota:36
cf. PT, n.28: “...Enquanto que universalmente prevalece hoje a opinião de que todos os seres humanos são
iguais entre si por dignidade de natureza. As discriminações raciais não encontram nenhuma justificação, pelo
menos no plano doutrinal. E isto é de um alcance e importância imensa para a estruturação do convívio
humano segundo os princípios que acima recordamos. Pois, quando numa pessoa surge a consciência dos
próprios direitos, nela nascerá forçosamente a consciência do dever: no titular de direitos, o dever de reclamar
esses direitos, como expressão de sua dignidade; nos demais, o dever de reconhecer e respeitar tais direitos.
E quando as relações de convivência se colocam em termos de direito e dever, os homens abrem-se ao mundo
dos valores culturais e espirituais, quais os de verdade, justiça, caridade, liberdade, tornando-se conscientes de
pertencerem àquele mundo. Ademais, por esse caminho, são levados a conhecer melhor o verdadeiro Deus,
transcendente e pessoal, e a colocar então as relações entre eles e Deus como fundamento de sua vida: da
vida que vivem no próprio íntimo e da vida em relação com os outros homens”.
Nota:37
cf. CNBB, Igreja: Comunhão e Missão 206: “Por outro lado, preveniu os Apóstolos contra uma falsa
concepção do poder ao adverti-los: “Sabeis que aqueles que vemos governar as nações as dominam, e os seus
grandes as tiranizam. Entre vós não deverá ser assim: ao contrário, aquele que dentre vós quiser ser grande,
seja o vosso servidor, e aquele que quiser ser o primeiro entre vós, seja o servo de todos''. Para Jesus, o poder
legítimo se caracteriza pelo serviço e não pela dominação. Se é o serviço que deve caracterizar o poder político,
ele estende-se a todos os homens, sem acepção de pessoas; privilegia, porém, os pequenos, os pobres, os
oprimidos. O critério decisivo para julgar o comportamento das pessoas - e a prioridade dos que detêm o poder
- é atender às reais necessidades da pessoa humana: dos famintos, dos sedentos, dos sem teto, dos sem terra,
dos sem poder... Só corresponde à evangélica concepção do poder aquele que é exercido em benefício do povo
que se torna, assim, mediação do poder que vem de Deus. É por isso que a Igreja (...) proclama que é para o
bem da sociedade e para salvaguarda de sua soberania que o poder é necessário; só isso o justifica”.
Nota:38
MM, n.76: “Devem considerar-se exigências do bem comum no plano nacional: dar emprego ao maior número
possível de trabalhadores; evitar que se constituam categorias privilegiadas, mesmo entre trabalhadores;
manter uma justa proporção entre salários e preços; tornar acessíveis bens e serviços de interesse geral ao
maior número de cidadãos; eliminar ou reduzir os desequilíbrios entre os setores da agricultura, da indústria e
dos serviços; realizar o equilíbrio entre a expansão econômica e o desenvolvimento dos serviços públicos
essenciais; adaptar, na medida do possível, as estruturas produtivas aos progressos das ciências e das
técnicas; moderar o teor de vida já melhorado da geração presente, tendo a intenção de preparar um porvir
melhor às gerações futuras”.
21
Nota:39
Discurso de João Paulo II à CEPAL, Santiago 3.4.87.
Nota:40
SRS, n.38: “É um caminho longo e complexo, e, além disso, encontra-se sob constante ameaça, quer pela
intrínseca fragilidade dos desígnios e realizações humanas, quer pela mutabilidade das circunstâncias externas
assaz imprevisíveis. Todavia, é preciso ter a coragem de enveredar por ele e, se já tiverem sido dados alguns
passos, ou já tiver sido percorrida uma parte do trajeto, ir até o fim.
No contexto destas reflexões, a decisão de pôr-se a caminho ou de continuar a marcha comporta, antes de
tudo, um valor moral que os homens e as mulheres que acreditam em Deus reconhecem como requerido pela
vontade divina, único e verdadeiro fundamento de uma ética absolutamente vinculante.
É para desejar que mesmo os homens e as mulheres desprovidos de uma fé explicita venham a convencer-se
de que os obstáculos interpostos ao desenvolvimento integral não são apenas de ordem econômica, mas
dependem de atitudes mais profundas que, para o ser humano, se configuram em valores absolutos. Por isso, é
de esperar que todos aqueles que em relação aos seus semelhantes são responsáveis, de uma maneira ou de
outra, por uma vida mais humana, inspirados ou não por uma fé religiosa, se dêem plenamente conta da
urgente necessidade de uma mudança das atitudes espirituais, que determinam o comportamento de cada
homem naquilo que diz respeito a si mesmo e nas relações com o próximo, com as comunidades humanas,
mesmo as mais distantes, e com a natureza; e isto em virtude de valores superiores, como o bem comum, ou,
para repetir a feliz expressão da Encíclica Populorum Progressio, o pleno desenvolvimento do homem todo e de
todos os homens.
Para os cristãos, como para todos aqueles que reconhecem o significado teológico preciso da palavra pecado, a
mudança de comportamento, de mentalidade ou de maneira de ser chama-se, na linguagem bíblica, conversão
(cf. Mc 1,15; Lc 13,3.5; Is 30,15). Esta conversão designa especificamente uma relação com Deus, com a culpa
cometida e com as suas conseqüências; e, portanto, relação com o próximo, indivíduo ou comunidade. É Deus
em cujas mãos estão os corações dos poderosos e os de todos os homens, que pode, segundo a sua própria
promessa, transformar por obra do seu Espírito os corações de pedra em corações de carne (cf. Ez 36,26).
No caminho da desejada conversão, rumo à superação dos obstáculos morais para o desenvolvimento, pode-se
já apontar, como valor positivo e moral, a consciência crescente da interdependência entre os homens e as
nações. O fato de os homens e as mulheres, em várias partes do mundo, sentirem como próprias as injustiças
e as violações dos direitos humanos cometidas em países longínquos, que talvez nunca visitem, é mais um sinal
de uma realidade interiorizada na consciência, adquirindo assim uma conotação moral.
Trata-se antes de tudo da interdependência apreendida como sistema determinante de relações no mundo
contemporâneo, com as suas componentes econômica, cultural, política e religiosa e assumida como categoria
moral. Quando a interdependência é reconhecida assim, a resposta correlativa, como atitude moral e social e
como virtude, é a solidariedade. Esta, portanto, não é um sentimento de compaixão vaga ou de enternecimento
superficial pelos males sofridos por tantas pessoas, próximas ou distantes. Pelo contrário, é a determinação
firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum; ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque
todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos. Esta determinação está fundada na firme convicção
de que as causas que entravam o desenvolvimento integral são aquela avidez do lucro e aquela sede do poder
de que se falou. Estas atitudes e estas estruturas de pecado só poderão ser vencidas pressupondo o auxilio da
graça divina com uma atitude diametralmente oposta: a aplicação em prol do bem do próximo, com a
disponibilidade, em sentido evangélico, para perder-se em beneficio do próximo em vez de o explorar, e para
servi-lo em vez de o oprimir para proveito próprio (cf. Mt 10,40-42; 20,25; Mc 10,42-45; Lc 22,25-27)”.
Nota:41
LE, n.14: “O processo histórico aqui brevemente apresentado que sem dúvida já saiu da sua fase inicial, mas
continua ainda e tende mesmo a se tornar extensivo às relações entre nações e continentes, exige um
esclarecimento também sob um outro ponto de vista. Quando se fala da antinomia entre trabalho e capital não
se trata, como é evidente, apenas de conceitos abstratos e de forças anônimas que agem na produção
econômica. Por detrás de um e de outro dos dois conceitos, há homens, os homens vivos e concretos. De um
lado, aqueles que executam o trabalho sem serem proprietários dos meios de produção; e do outro lado,
aqueles que desempenham a função de patrões e empresários e que são os proprietários de tais meios, ou
então representam os proprietários. E assim, portanto, vem inserir-se no conjunto deste difícil processo
histórico, desde o início, o problema da propriedade. A Encíclica Rerum Novarum, que tem por tema a questão
social, põe em realce também este problema, recordando e confirmando a doutrina da Igreja sobre a
propriedade e sobre o direito de propriedade privada, mesmo quando se trata dos meios de produção. E a
Encíclica Mater et Magistra fez a mesma coisa.
O princípio a que se alude, conforme foi então recordado e como continua sendo ensinado pela Igreja, diverge
radicalmente do programa do coletivismo, proclamado pelo marxismo e realizado em vários países do mundo,
nos decênios que se seguiram à publicação da Encíclica de Leão XIII. E, ao mesmo tempo, ele difere também
do programa do capitalismo, tal como foi posto em prática pelo liberalismo e pelos sistemas políticos que se
inspiram no mesmo liberalismo. Neste segundo caso, a diferença esta na maneira de compreender o direito de
propriedade, precisamente. A tradição cristã nunca defendeu tal direito como algo absoluto e intocável; pelo
contrário, sempre o entendeu no contexto mais vasto do direito comum de todos a utilizarem os bens da
criação inteira: o direito à propriedade privada está subordinado ao direito ao uso comum, subordinado à
destinação universal dos bens.
Por outras palavras, a propriedade, segundo o ensino da Igreja, nunca foi entendida de maneira a poder
constituir um motivo de contraste social no trabalho. Conforme já foi recordado acima, a propriedade adquire-
se primeiro que tudo pelo trabalho e para servir ao trabalho. E isto diz respeito, de modo particular, à
propriedade dos meios de produção. Considerá-los isoladamente, como um conjunto à parte de propriedades,
com o fim de os contrapor, sob a forma do capital, ao trabalho e, mais ainda, com o fim de explorar o trabalho,
é contrário à própria natureza de tais meios e à da sua posse. Estes não podem ser possuídos contra o
trabalho, como não podem ser possuídos para possuir, porque o único titulo legitimo para a sua posse e isto
tanto sob a forma da propriedade privada, como sob a forma da propriedade pública ou coletiva é que eles
sirvam ao trabalho; e que, conseqüentemente, servindo ao trabalho, tornem possível a realização do primeiro
22
princípio desta ordem, que é a destinação universal dos bens e o direito ao seu uso comum. Sob este ponto de
vista, em consideração do trabalho humano e do acesso comum aos bens destinados ao homem, é também
para não se excluir a socialização, dando-se as condições oportunas, de certos meios de produção. No espaço
dos decênios que nos separam da publicação da Encíclica Rerum Novarum, o ensino da Igreja tem vindo
sempre recordar todos estes princípios, remontando aos argumentos formulados numa tradição bem mais
antiga, por exemplo, aos conhecidos argumentos da Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino.
No presente documento, que tem por tema principal o trabalho humano, convém confirmar todo o esforço com
o qual o ensino da Igreja sobre a propriedade sempre procurou e procura assegurar o primado do trabalho e,
por isso mesmo, a subjetividade do homem na vida social e, especialmente, na estrutura dinâmica de todo o
processo econômico. Deste ponto de vista, continua sendo inaceitável a posição do capitalismo rígido, que
defende o direito exclusivo da propriedade privada dos meios de produção, como um dogma intocável na vida
econômica. O princípio do respeito do trabalho exige que tal direito seja submetido a uma revisão construtiva,
tanto em teoria como na prática. Com efeito, se é verdade que o capital entendido como o conjunto dos meios
de produção é ao mesmo tempo o produto do trabalho de gerações, também é verdade que ele se cria
incessantemente graças ao trabalho efetuado com a ajuda do mesmo conjunto dos meios de produção, que
aparecem então como um grande banco de trabalho, junto do qual, dia a dia, a presente geração dos
trabalhadores desenvolve a própria atividade. Trata-se aqui, como o óbvio, das diversas espécies de trabalho,
não somente do trabalho chamado manual, mas também das várias espécies de trabalho intelectual, desde o
trabalho de concepção até ao de direção.
Sob esta luz, as numerosas proposições enunciadas pelos peritos da doutrina social católica e também pelo
supremo Magistério da Igreja adquirem um significado de particular relevo. Trata-se de proposições que dizem
respeito à propriedade dos meios de trabalho, à participação dos trabalhadores na gestão e/ou nos lucros das
empresas, o chamado acionariado do trabalho, e coisas semelhantes. Independentemente da aplicabilidade
concreta destas diversas proposições, permanece algo evidente que o reconhecimento da posição justa do
trabalho e do homem do trabalho no processo de produção exige várias adaptações, mesmo no âmbito do
direito da propriedade dos meios de produção. Ao dizer isto, tomam-se em consideração, não só as situações
mais antigas, mas também e antes de mais nada a realidade e a problemática que se criaram na segunda
metade deste século, pelo que se refere ao Terceiro Mundo e aos diversos novos países independentes que
foram aparecendo especialmente na África, mas também em outras latitudes no lugar dos territórios coloniais
de outrora.
Se, por conseguinte, a posição do capitalismo rígido tem de ser continuamente submetida a uma revisão, no
intuito de uma reforma sob o aspecto dos direitos do homem, entendidos no seu sentido mais amplo e nas suas
relações com o trabalho, então, sob o mesmo ponto de vista, deve afirmar-se que estas reformas múltiplas e
tão desejadas não podem ser realizadas com a eliminação apriorística da propriedade privada dos meios de
produção. Convém, efetivamente, observar que o simples fato de subtrair esses meios de produção (o capital)
das mãos dos seus proprietários privados não basta para os socializar de maneira satisfatória. Assim, eles
deixam de ser a propriedade de um determinado grupo social, os proprietários privados, para se tornarem
propriedade da sociedade organizada, passando a estar sob a administração e a fiscalização diretas de um
outro grupo de pessoas que, embora não tendo a propriedade, em virtude do poder que exercem na sociedade,
dispõem deles a nível da inteira economia nacional, ou então a nível da economia local.
Este grupo dirigente e responsável pode desempenhar-se das suas funções de maneira satisfatória, do ponto de
vista do primado do trabalho; mas pode também cumpri-las mal, reivindicando, ao mesmo tempo, para si o
monopólio da administração e da disposição dos meios de produção, sem se deter quanto a isso nem sequer
diante da ofensa aos direitos fundamentais do homem. Deste modo, pois, o simples fato de os meios de
produção passarem para a propriedade do Estado, no sistema coletivista, não significa só por si, certamente, a
socialização desta propriedade. Poder-se-á falar de socialização somente quando ficar assegurada a
subjetividade da sociedade, quer dizer, quando cada um dos que a compõem, com base no próprio trabalho,
tiver garantido o pleno direito a considerar-se como proprietário do grande banco de trabalho em que se
empenha juntamente com todos os demais. E um dos caminhos para alcançar tal objetivo poderia ser o de
associar o trabalho, na medida do possível, à propriedade do capital e dar possibilidades de vida a uma série de
corpos intermediários com finalidades econômicas, sociais e culturais: corpos estes que hão de usufruir de uma
efetiva autonomia em relação aos poderes públicos e que hão de procurar conseguir os seus objetivos
específicos mantendo entre si relações de leal colaboração reciproca, subordinadamente às exigências do bem
comum, e que hão de, ainda, apresentar-se sob a forma e com a substância de uma comunidade viva; quer
dizer, de maneira a que neles os respectivos membros sejam considerados e tratados como pessoas e
estimulados a tomar parte ativa na sua vida”.
Nota:42
GS, n. 26-74: “26. A promoção do bem comum - O bem comum é a soma das condições sociais que
permite, tanto às pessoas como aos grupos humanos, alcançar mais fácil e plenamente a perfeição a que são
chamados.
A crescente interdependência entre os seres humanos, que se estende progressivamente ao mundo inteiro,
torna o bem comum cada vez mais universal, abrangendo direitos e deveres em relação a todo o gênero
humano.
Cada grupo deve considerar as necessidades e as legítimas aspirações dos outros, e de toda a família humana.
Cresce igualmente a consciência da dignidade superior da pessoa, que está acima de tudo, dotada de direitos e
de deveres universais e invioláveis.
O ser humano tem direito a tudo de que necessita para levar uma vida verdadeiramente humana: alimento,
roupa, moradia, liberdade na escolha do seu estado de vida e na constituição de sua família, educação,
trabalho, reputação, respeito, informação objetiva, liberdade de agir segundo a norma de sua consciência reta,
privacidade e gozo de uma justa liberdade, inclusive religiosa.
Numa ordem social justa, o bem das pessoas passa na frente do progresso, de tal forma que a ordem das
coisas está sujeita ao bem das pessoas, e não vice-versa. Como disse o Senhor, o sábado é para o homem e
não o homem para o sábado. A ordem social deve ir se aperfeiçoando dia após dia, baseada na verdade,
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edificada segundo a justiça e animada pelo amor, obtendo-se aos poucos um equilíbrio cada vez mais humano
entre as liberdades. Tudo isso requer porém uma nova mentalidade e profundas transformações sociais.
O Espírito de Deus, que dirige o curso da história com admirável providência e renova a face da terra, preside a
essa evolução. O fermento do Evangelho despertou e continua alimentando, no coração humano, uma
irrefreável exigência de dignidade.
27. O respeito para com a pessoa - Praticamente, o Concílio insiste no respeito para com o ser humano.
Cada um deve considerar o próximo, sem exceção, um outro ele mesmo, cuidando de sua vida e dos meios
indispensáveis a que viva dignamente, para não fazer como aquele rico do Evangelho, que não se incomodava
com o pobre Lázaro.
Nos nossos dias ainda é maior a necessidade de considerar os outros nossos próximos e servi-los de maneira
eficaz, quer se trate do idoso abandonado, do trabalhador migrante desprezado, dos exilados, das crianças sem
família, dos injustamente perseguidos, dos que passam fome, de todos que nos interpelam a consciência,
lembrando a palavra do Senhor: Todas as vezes que o fizestes a um de meus irmãos pequeninos, a mim o
fizestes (Mt 25, 40).
Tudo que contraria a vida é vergonhoso, ofende o Criador, fere a civilização, mancha os que o praticam, mais
até do que prejudica suas vítimas. É o caso dos diversos tipos de homicídio, genocídio, aborto, eutanásia e
suicídio. As muitas violações da integridade da pessoa como mutilações, tortura corporal e mental e as
pressões de todo tipo. Os inúmeros atentados contra a dignidade humana, como condições de vida subumanas,
prisões arbitrárias, deportações, escravização, prostituição, tráfego de mulheres e jovens, condições
vergonhosas de trabalho, em que os trabalhadores se vêem reduzidos a simples instrumentos de lucro, não
sendo tratados sequer como pessoas livres e responsáveis.
28. O respeito e o amor para com os adversários - O respeito e o amor são devidos mesmo àqueles que
pensam e agem de maneira diversa da nossa na sociedade, na política e na religião. Quanto melhor
compreendemos, humana e caridosamente, seu modo de pensar, mas fácil se torna o diálogo com eles.
Amor e bondade não podem nos tornar indiferentes à verdade e ao bem. Pelo contrário, o amor leva os
discípulos de Cristo a anunciar a verdade salvadora a todos os seres humanos. Mas é preciso sempre distinguir
entre o erro e a pessoa que erra, cuja dignidade deve ser sempre respeitada, mesmo quando adere a idéias
religiosas falsas ou pouco exatas. Só Deus é juiz dos corações e ele nos proíbe de culpar interiormente quem
quer que seja.
A doutrina de Cristo exige que perdoemos as injúrias. O preceito do amor se estende a todos, inclusive aos
inimigos, de acordo com o mandamento do Novo Testamento: Vocês ouviram o que foi dito: Ame o seu
próximo e odeie o seu inimigo! Eu porém lhes digo: amem os seus inimigos e rezem por aqueles que
perseguem vocês (Mt 5, 43s).
29. A igualdade entre os seres humanos e a justiça social - Reconheça-se cada vez melhor a igualdade
fundamental entre todos os seres humanos: todos são dotados de alma espiritual, foram criados por Deus, têm
idêntica origem e mesma natureza, foram salvos por Cristo e são destinados a participar da mesma vocação
divina.
Nem todos se equivalem quanto a capacidade física, intelectual e moral, mas contraria o propósito divino e
deve ser rejeitada e superada, toda discriminação por causa do sexo, da raça, da cor, da condição social, da
língua e da religião, que afeta os direitos fundamentais da pessoa, tanto pessoais como sociais.
É verdadeiramente lamentável que esses direitos fundamentais da pessoa não sejam ainda reconhecidos e
protegidos em toda parte. Nega-se à mulher o direito de escolher seu marido e de adotar livremente o estado
de vida que queira, ou o direito de receber a mesma educação que o homem e de conquistar um mesmo nível
cultural.
Além disso, apesar da justa diversidade que possa existir entre os seres humanos quanto à maneira de viver, a
dignidade pessoal, que é a mesma em cada um, exige que as condições de vida de todos sejam cada vez mais
humanas e eqüitativas.
As grandes desigualdades econômicas e sociais entre as pessoas ou os povos da mesma e única família
humana são vergonhosas e contrárias à justiça social, à eqüidade, à dignidade da pessoa, à paz social e
internacional.
As instituições humanas, privadas ou públicas, devem procurar estar a serviço da dignidade e do fim a que são
chamados todos os seres humanos, lutando firmemente contra toda dominação social ou política, em favor do
respeito aos direitos humanos fundamentais, sob qualquer regime. Devem, além disso, progressivamente,
ajustar-se às exigências espirituais, que são as mais importantes, mesmo que o caminho nessa direção seja
longo.
30. Superar a ética individualista - As mudanças profundas e rápidas pelas quais o mundo está passando
exigem que ninguém se deixe iludir nem vencer pela inércia, no combate ao individualismo. Os deveres de
justiça e de caridade só serão satisfeitos na medida em que cada um se puser a serviço das necessidades dos
outros e que as instituições, públicas ou privadas, promoverem e incentivarem tudo o que contribua para a
melhoria das condições de vida de todos.
Muitos vivem sem nenhuma preocupação social, apesar de sustentarem, às vezes teoricamente, opiniões
liberais e generosas. Outros, em todas as partes do mundo, não dão a mínima importância às leis. Muitos
sonegam impostos, outros desprezam as normas do convívio social no que se refere, por exemplo, à proteção
da saúde pública ou à segurança do trânsito, sem se preocupar com os riscos que incorrem para sua própria
vida e para a vida dos outros.
Considerar as exigências da vida social como um dos principais deveres atuais e respeitá-las é absolutamente
sagrado. Quanto maior for a unidade do mundo, mais imperiosas se tornam as obrigações para com o conjunto
da sociedade, acima dos interesses de grupos particulares. É pois indispensável que se cultive individual e
socialmente as virtudes morais e sociais, criando na sociedade um clima que favoreça o surgimento de seres
humanos renovados autores de uma humanidade verdadeiramente nova, com a graça divina.
31. Responsabilidade e participação - Para que os seres humanos obedeçam rigorosamente à sua
consciência em relação a si mesmos e aos grupos sociais de que são membros, precisam ser cuidadosamente
educados numa ótica cultural mais ampla, com todos os recursos de que hoje dispõe o gênero humano. Uma
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educação universal, para todos os jovens, independentemente de sua origem social, formando mulheres e
homens não apenas instruídos, mas magnânimos, à altura das exigências da época.
Trata-se de um nível de responsabilidade que requer, para todos, condições de vida correspondentes à
dignidade humana e à sua vocação de se consagrar a Deus e ao próximo. A liberdade humana é muitas vezes
limitada pelas condições de extrema pobreza, e perde sentido, quando a pessoa, entregue às facilidades da
vida, só enxerga a si mesma, isolando-se. Quando, porém, se dá conta das grandes necessidades sociais,
assume as exigências da comunidade e se coloca a serviço dos outros, a liberdade se afirma e se fortalece.
Deve-se pois estimular todas as iniciativas em favor do bem comum. Merecem louvores os países em que a
maioria dos cidadãos participa livremente da coisa pública, sem que se possa desconhecer a natureza de cada
povo e a necessidade da autoridade do governo. Para que todos se tornem participantes da vida das diversas
comunidades de que consta o corpo social, é preciso que reconheçam nessas comunidades algum bem que os
atraia e lhes dê oportunidade de prestar serviço. Podemos prever que o futuro da humanidade depende de
quem souber transmitir aos jovens sentido para a vida e uma grande esperança.
32. O Verbo encarnado e a solidariedade humana - Deus não criou os seres humanos para viver isolados,
mas para formar uma comunidade social. Da mesma forma quis santificá-los e salvá-los, não como simples
pessoas, independentemente dos laços sociais que os unem, mas como povo, que o reconhecesse na verdade e
o servisse, na santidade.
Desde o início da história da salvação, Deus encara os seres humanos como membros de uma comunidade e
não apenas individualmente. Chamou seu povo (Ex 3, 7-12) e com ele fez a aliança no Sinai, para manifestar
esse seu desígnio.
A obra de Jesus Cristo veio completar e coroar o aspecto comunitário da salvação. Verbo encarnado, quis
participar do convívio humano. Foi às bodas de Caná, hospedou-se na casa de Zaqueu e comia com publicanos
e pecadores. Manifestou o amor do Pai e a sublimidade da vocação humana referindo-se às realidades mais
comuns da vida social e recorrendo a imagens e expressões do cotidiano mais simples. Santificou as
contingências da vida humana, especialmente da família, que estão na raiz da vida social, e se sujeitou
voluntariamente às leis de sua pátria. Levou uma vida de trabalhador, de acordo com a época e os costumes da
região em que nasceu.
Na sua pregação, exigia explicitamente que os filhos de Deus se tratassem como irmãos. Na sua oração, pediu
que todos os seus discípulos fossem um. Ele próprio, até a morte, se ofereceu por todos, como redentor. “Não
existe amor maior do que dar a vida pelos amigos” (Jo 15, 13). Mandou os apóstolos pregar a todos a
mensagem evangélica, para que a humanidade se tornasse como uma só família, em Deus, tendo por lei o
amor.
Primogênito entre muitos irmãos, depois da morte e da ressurreição, estabeleceu uma nova comunhão fraterna
com os que o acolhem na fé e no amor, pelo dom do Espírito Santo. Seu corpo é a Igreja, em que todos se
prestam serviço, sendo membros uns dos outros.
Esta solidariedade deve crescer até o dia da consumação final, quando os seres humanos, salvos pela graça,
estarão na glória, como uma única família amada por Deus e por Cristo, nosso irmão.
33. O problema - O ser humano procurou sempre se desenvolver com inteligência e trabalho. Hoje, porém,
graças à ciência e à técnica aumenta de tal forma seu domínio sobre o universo, com a colaboração de todos os
povos da terra, que a família humana se reconhece, no mundo inteiro, como sendo uma única comunidade.
Bens que outrora se esperava do alto busca-se hoje conquistar com os recursos de que se dispõe.
Desse imenso esforço comum da humanidade, resultam novas e enormes questões. Que sentido e que valor
tem a atividade humana? Para que serve tanta coisa? Qual o objetivo de cada um e de toda a sociedade?
A Igreja não pretende ter resposta para tudo. Como, porém, dispõe da palavra de Deus, fonte da religião e da
moral, deseja contribuir para iluminar os novos caminhos que se descortinam para a humanidade, associando à
criatividade humana a luz da revelação.
34. O valor da atividade humana - Para os fiéis é claro que a atividade humana, tanto individual como
coletiva, isto é, o imenso esforço com que se procura, através dos séculos, melhorar as condições de vida, faz
parte do desígnio de Deus. Criado à imagem de Deus, o ser humano recebeu o mandato de dominar a terra
com tudo o que contém e governar o mundo segundo a justiça e a santidade. Deve reconhecer a Deus Criador
e a ele referir todas as coisas, para que, submetidas a si, proclamem universalmente o nome de Deus.
O princípio se aplica igualmente à atividade de todo dia. Mulheres e homens que trabalham diariamente para se
sustentar e às suas famílias estão a serviço da sociedade. Com seu trabalho, desenvolvem a obra do Criador,
favorecem seus irmãos e contribuem para a realização do desígnio de Deus na história.
Os cristãos sabem que as obras da inteligência e do poder humanos em nada derrogam o poder divino. A
criatura racional não entra em concorrência com o Criador. As vitórias do gênero humano são sinais da
grandeza de Deus e frutos inefáveis de seus desígnios. Quanto maior, porém, é o poder do homem, maior
também a responsabilidade das pessoas e das comunidades. A mensagem cristã em nada se opõe à construção
do mundo, nem cria obstáculo a que se faça o bem. Pelo contrário, acentua o dever de o ser humano
desenvolver todas as suas potencialidades.
35. A norma da atividade humana - A atividade humana está ordenada ao bem do ser humano, de que
procede. Ao agir, o ser humano não apenas muda as coisas e a sociedade, mas se realiza como tal: aprende,
desenvolve suas capacidades, volta-se para o outro e para o alto. Este crescimento é o que há de mais
precioso. O ser humano vale mais pelo que é do que pelo que tem.
Assim, tudo que se possa fazer para obter maior justiça, desenvolver a fraternidade e tornar mais humana a
sociedade é mais valioso do que qualquer progresso técnico, que é apenas a matéria do desenvolvimento e,
como tal, não leva a nenhuma realização efetiva.
Somente o respeito a esta norma primordial de sua atividade permitirá ao ser humano cultivar e realizar sua
vocação, tanto individual como social, para cumprimento do desígnio e da vontade de Deus e para o bem do
gênero humano.
36. A autonomia das coisas terrestres - Hoje em dia, muitos temem que a vinculação da atividade humana
à moral e à religião prejudique a autonomia das pessoas e da sociedade, constituindo um empecilho para o
progresso da ciência.
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É preciso defender a todo custo a autonomia das realidades terrenas, quando por autonomia se entende que as
coisas criadas e as sociedades têm o direito de ser encaradas em si mesmas e de se organizar com seus valores
e suas próprias leis, que se vão aos poucos descobrindo, explicitando e aplicando.
É uma exigência atual legítima, que está de acordo com a vontade do Criador. Por condição própria, as
criaturas são dotadas de consistência, verdade e bondade, e possuem suas leis, numa ordem que lhes é
intrínseca. O ser humano as deve respeitar. As ciências e as técnicas, reconhecê-las, de acordo com seus
respectivos métodos. A investigação metódica em todas as disciplinas, feita cientificamente e levando em conta
as exigências morais intrínsecas ao próprio agir humano, jamais entrará em conflito com a fé, pois uma só e
mesma é a origem das criaturas e da fé.
Quem investiga com humildade e perseverança o segredo das coisas é conduzido, mesmo sem o saber, pela
mão de Deus, que a todas sustenta e faz serem o que são. É lamentável que se tenha introduzido, inclusive
entre os cristãos, uma certa atitude de desrespeito à autonomia das ciências, gerando disputas e controvérsias
que levaram muitos a pensar que existisse uma oposição entre a ciência e a fé.
Quando, porém, se entende por autonomia das coisas terrenas, a pretensão de que não foram criadas por Deus
e que se pode delas usar sem qualquer referência ao Criador, é claro que se trata de uma falsa idéia, a ser
rejeitada por todo aquele que reconhece a Deus. Sem o criador a criatura se reduz a nada. Aliás todas as
pessoas que têm fé, independentemente da religião que professem, reconhecem a voz e a manifestação de
Deus nas criaturas. O esquecimento de Deus torna o mundo incompreensível.
37. A atividade humana prejudicada pelo pecado - Em consonância com a experiência de séculos, a
Escritura ensina que o progresso humano é um bem extraordinário, embora seja também grande tentação.
A ordem dos valores foi perturbada e o mal se misturou com o bem. Pessoas e grupos humanos tendem a se
preocupar unicamente com o que é seu, esquecendo-se dos outros. O mundo deixou de ser um espaço
fraterno. O poder humano, à medida que aumenta, ameaça a existência da própria humanidade.
A história dos homens é uma luta contra o poder das trevas, que começou nas origens do mundo e continuará,
como diz o Senhor, até o fim. Envolvido nesta guerra, precisa-se brigar para fazer o bem, e só se alcançará a
unidade, com a graça de Deus, depois de muita luta.
Confiante na disposição do Criador, a Igreja de Cristo reconhece que o progresso pode contribuir para a
felicidade humana, com a condição, porém, de que se observe o que diz o apóstolo: não se amoldem às
estruturas desse mundo (Rm 12, 2), a saber, o mundo da vaidade e da malevolência, que converte em
instrumento de pecado a capacidade humana de agir, que deveria se voltar para o serviço de Deus e dos
próprios seres humanos.
Os cristãos afirmam que para se superar essa miserável condição, a atividade humana, marcada pelo orgulho e
pelo falso amor de si mesmo, deve ser purificada pela cruz e pela ressurreição de Cristo e aperfeiçoada cada
dia mais.
Remido por Cristo e transformado em nova criatura no Espírito Santo, o ser humano pode e deve amar todas as
coisas criadas por Deus. Recebe-as das mãos de Deus e as refere inteiramente a ele. Agradecendo-as ao seu
benfeitor e usando-as com prazer, num espírito de pobreza e de liberdade, entra na posse verdadeira do
mundo, sem nada ter, mas tudo possuindo. “Tudo é seu, vocês são de Cristo e Cristo, de Deus” (1Cor 3, 22s).
38. A atividade humana e o mistério pascal - O Verbo de Deus, pelo qual todas as coisas foram feitas, fez-
se homem e veio habitar a terra. Entra assim, na história do mundo, um homem perfeito, que a assume e a
recapitula. Revela que Deus é amor (1Jo 4, 8) e ensina que a lei fundamental da perfeição humana e, por
conseguinte, da transformação do mundo, é o novo mandamento do amor. Certifica os que acreditam no amor
divino de que não é inútil mostrar a todos o caminho do amor e se esforçar para estabelecer uma fraternidade
universal.
Ensina que o amor não se limita às grandes coisas, mas deve se manifestar principalmente na vida e nas
circunstâncias de todo dia.
Por amor de nós todos, pecadores, suportou a morte, ensinando-nos pelo exemplo a assumir a cruz que a
carne e o mundo impõem aos ombros de todos os que lutam pela paz e pela justiça.
Constituído Senhor, pela sua ressurreição, e tendo recebido todo poder no céu e na terra, Cristo atua, pelo
Espírito Santo, no coração dos seres humanos, inspirando o desejo da vida futura e, a partir dele, animando,
purificando e corroborando a esperança de que a família humana se torne cada vez mais humana, e venha, aos
poucos, a colocar toda a terra a serviço do ser humano.
São muito diversos os dons do Espírito. Uns são chamados a dar testemunho manifesto do desejo da pátria
celeste, e a conservá-lo ardente, no seio da família cristã. Outros, a prestar serviço aos seres humanos,
preparando o reino do céu. Todos, entretanto, libertados pela renúncia ao amor próprio, assumem
corajosamente a vida humana na perspectiva da vida futura, quando a humanidade se tornará toda ela oblação
pura, aceita por Deus.
Como penhor dessa esperança e sustento no caminho, o Senhor nos legou o sacramento da fé, em que os
elementos naturais, fruto do trabalho humano, se convertem no seu corpo e sangue gloriosos, antecipando a
festa da comunhão fraterna e a ceia celestial.
39. Nova terra e novo céu - Não sabemos até quando existirão a terra e a humanidade, nem sabemos que
transformações hão de sofrer. A figura desse mundo, deformado pelo pecado, haverá de passar, mas o Senhor
ensina que haverá uma nova morada para o homem, em que habitará a justiça e cuja felicidade preencherá e
superará todos os desejos de paz que o coração humano alimenta.
Então, vencida a morte, os filhos de Deus ressuscitarão em Cristo. O que foi semeado na fraqueza e na
corrupção, vestirá a incorruptibilidade. O amor permanecerá, e toda a criatura, feita em vista do ser humano,
há de ser também libertada.
Ouvimos que de nada adianta ganhar todo o universo e se perder. A expectativa da nova terra, longe de
esvaziar, estimula o desejo de cuidar das coisas terrestres, em meio às quais cresce o corpo da nova família
humana, oferecendo desde agora uma tênue imagem do que será no futuro.
Embora se deva distinguir o reino de Cristo do progresso humano, não resta dúvida de que, na medida em que
se entende por progresso a organização mais perfeita da sociedade esta organização é da maior importância
para o reino de Deus.
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Bens como a dignidade humana, a comunhão fraterna e a liberdade, fruto da natureza e do trabalho humano,
depois de difundidos na terra segundo o mandamento do Senhor e no seu Espírito, serão reencontrados depois,
purificados de toda mancha, iluminados e transfigurados, quando o Cristo entregar ao Pai o seu reino eterno e
universal: “reino de verdade e vida, reino de santidade e graça, reino de justiça, de amor e de paz”.
O reino, misteriosamente presente na terra, chegará à consumação com a vinda do Senhor.
40. As relações entre a Igreja e o mundo - Tudo que até agora foi dito a respeito da dignidade humana, da
comunidade existente entre os seres humanos e do sentido profundo de sua atividade constitui o fundamento
da relação entre a Igreja e o mundo e a base de seu diálogo recíproco.
Depois de o Concílio ter falado sobre o mistério da Igreja, convém que a considere agora enquanto existe e
atua no mundo, em convívio com ele.
A Igreja procede do amor do Pai eterno, foi fundada na história pelo Cristo Redentor e é sustentada na unidade
pelo Espírito Santo. Sua finalidade é salutar e escatológica e só se realizará plenamente no século futuro.
Contudo, está presente aqui na terra, é feita de mulheres e homens que são membros da sociedade terrena,
chamados desde agora a formar, na história, a família dos filhos de Deus, que deve ir aumentando até a vinda
do Senhor.
Família, cuja união vem dos bens celestiais de que todos participam, foi constituída e organizada por Cristo
nesse mundo, como uma sociedade, dotada dos meios adequados a toda sociedade visível. A Igreja é assim, ao
mesmo tempo, um grupo histórico e uma comunidade espiritual em caminho, com toda a humanidade,
participando, com o mundo, da condição terrena e agindo como fermento ou como alma da sociedade humana,
a ser renovada em Cristo e transformada em família de Deus.
Só a fé percebe esta compenetração das sociedades terrena e celestial. O mistério da história humana,
perturbada pelo pecado, permanecerá impenetrável até o fim dos séculos, quando se manifestará plenamente a
glória dos filhos de Deus. A Igreja, fiel a seu próprio fim, comunica a todos a vida divina e ilumina com sua luz
o mundo inteiro, contribuindo para restabelecer e elevar a dignidade humana e fortalecer os laços sociais,
proporcionando uma significação nova e mais profunda a toda a atividade humana.
Através de cada um de seus membros e atuando em conjunto, a Igreja acredita poder contribuir para tornar
mais humana a família dos humanos e sua história.
Além disso, a Igreja Católica se alegra de poder assinalar a importância da contribuição que deram e ainda dão,
no mesmo sentido, as outras Igrejas cristãs e as diversas comunidades eclesiásticas.
Tem, além disso, a convicção de poder contar, sob inúmeros e variados aspectos, com o apoio e com a ajuda
do mundo, das pessoas individualmente e da sociedade humana, com seus bens e com sua atividade, para
abrir caminho ao Evangelho.
Para promover adequadamente esta colaboração, em que, reciprocamente, Igreja e mundo se ajudam, convém
estabelecer aqui alguns princípios gerais.
41. A Igreja procura ajudar os seres humanos - Hoje em dia todos procuram desenvolver plenamente sua
pessoa, estabelecer e afirmar claramente seus direitos. Encarregada de manifestar o mistério de Deus, último
fim do ser humano, a Igreja o ajuda a esclarecer o sentido da própria existência, e lhe revela sua mais íntima
verdade.
De fato, a Igreja sabe que somente Deus, a quem serve, satisfaz aos mais profundos desejos do coração
humano, que as coisas da terra jamais hão de saciar.
Sabe também que, sob ação do Espírito de Deus, o ser humano não será jamais completamente indiferente ao
problema religioso, como o demonstra não apenas a experiência dos séculos passados, mas inúmeros
testemunhos contemporâneos. Sempre se desejou saber, ainda que de maneira confusa, qual o sentido da
vida, da atividade no mundo e da morte. A própria presença da Igreja coloca tais problemas. Só Deus, que fez
o ser humano à sua imagem e o resgatou do pecado dá resposta plenamente satisfatória a essas questões, pelo
seu Filho feito homem. Quem segue a Cristo, homem perfeito, torna-se cada vez mais humano.
A fé permite que a Igreja coloque a dignidade da natureza humana acima de toda discussão entre os que
tendem por um lado a exaltar o corpo, e, por outro, a desprezá-lo. Nenhuma lei preserva tão bem a dignidade
e a liberdade humanas como o Evangelho de Cristo, confiado à Igreja. O Evangelho anuncia e proclama a
liberdade dos filhos de Deus, rejeitando toda servidão decorrente, em última análise, do pecado, leva ao
respeito sagrado da consciência e da liberdade, induz a colocar a serviço de Deus e em favor dos outros todos
os talentos humanos, recomendando a todos, acima de tudo, o amor. É esta, a lei fundamental da economia
cristã.
Deus é, ao mesmo tempo, criador e salvador, Senhor da história humana e da história da salvação. A
autonomia da criatura, especialmente dos seres humanos, e sua dignidade, não só são preservadas, como
restituídas e confirmadas, na esfera própria das coisas divinas.
Baseada, pois, no Evangelho que lhe foi confiado, a Igreja proclama os direitos humanos. Reconhece e dá todo
valor ao empenho com que eles são hoje promovidos, em todas as partes do mundo. Mas esse movimento
precisa estar imbuído do espírito do Evangelho, para não cair numa espécie de falsa autonomia. Há sempre a
tentação de considerar que os direitos pessoais só se preservariam sem a lei divina, o que constituiria perigoso
desconhecimento da verdadeira dignidade humana.
42. A Igreja procura ajudar a sociedade - A união da família humana é favorecida e aperfeiçoada pela
unidade, em Cristo, da família dos filhos de Deus.
A missão própria que Cristo confiou à sua Igreja não é de ordem política, econômica ou social, mas religiosa, da
qual, entretanto, emanam luz e forças que servem para fundamentar e fortalecer a comunidade humana, de
acordo com a lei divina. Dependendo das circunstâncias, a Igreja pode, e em certos casos deve, suscitar
iniciativas em favor de todos, especialmente dos pobres, como o são as obras de misericórdia.
A Igreja reconhece o que há de bom nos movimentos sociais de nossos dias, especialmente na evolução para
maior unidade do mundo, nos processos sadios de socialização, nas organizações civis e nas associações
econômicas.
A promoção da unidade está intimamente vinculada à missão própria da Igreja que, em Cristo, é o sacramento,
isto é, sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano. Mostra ao mundo
que a verdadeira união social externa provém da união das mentes e dos corações, da fé e da caridade,
indissoluvelmente ligadas à união que se funda no Espírito Santo. A força que a Igreja pode dar à sociedade
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vem do vigor da fé e do amor. Resulta da vida, não de qualquer domínio externo que possa exercer, utilizando-
se de meios puramente humanos.
Por sua natureza e missão, a Igreja não está vinculada a nenhuma forma de cultura nem a nenhum sistema
político, econômico ou social. Graças à sua universalidade, porém, estabelece um laço estreitíssimo de união
entre as diversas comunidades e nações humanas, desde que nela confiem e lhe reconheçam a plena liberdade
de ação. Por isso a Igreja aconselha não apenas aos seus filhos, mas todos os seres humanos, que superem as
dissensões entre nações e raças, passando a viver num espírito familiar de filhos de Deus, que consolidará
internamente todas as justas associações entre os homens.
O Concílio considera com todo respeito tudo que há de verdadeiro, de bom e de justo nas mais diversas
instituições sociais. Declara que a Igreja quer ajudar e promover todas essas instituições, no que dela dependa
e que tenha relação com sua missão. O que mais deseja é estar a serviço do bem de todos, gozando de plena
liberdade em qualquer regime que seja, desde que reconheça os direitos fundamentais da pessoa e da família e
as necessidades do bem comum.
43. Por meio dos cristãos, a Igreja procura dar apoio a todas as atividades humanas - O Concílio
exorta os fiéis, cidadãos de uma e de outra cidade a se deixarem conduzir pelo espírito do Evangelho e, ao
mesmo tempo, a cumprir fielmente seus deveres terrestres.
Afastam-se da verdade todos aqueles que, sabendo que não temos aqui morada permanente, mas buscamos a
futura, julgam poder negligenciar suas obrigações temporais, pensando não lhes estar sujeitos por causa da fé,
segundo a vocação a que cada um foi chamado.
Não é menor o erro daqueles que, pelo contrário, julgam poder mergulhar nos negócios terrenos
independentemente das exigências da religião, pensando que esta se limita a determinados atos de culto e ao
fiel cumprimento de certos preceitos morais. Esta divisão entre a fé professada e a vida cotidiana de muitos é
um dos mais graves erros do nosso tempo. Os profetas, no Antigo Testamento, já o condenavam como um
escândalo e Jesus Cristo, no Novo Testamento, o ameaça com pesadas penas.
Evite-se a perniciosa oposição entre as atividades profissionais e sociais, de um lado, e as religiosas, de outro.
O cristão que não cumpre suas obrigações temporais, falta a seus deveres para com o próximo e para com
Deus e põe em risco a sua salvação eterna.
Alegrem-se, ao contrário, os cristãos que, seguindo o exemplo de Cristo, que trabalhou como operário,
exercem todas as suas atividades unificando os esforços humanos, domésticos, profissionais, científicos e
técnicos numa síntese vital com os bens religiosos, sob cuja direção tudo se orienta para a glória de Deus.
Competem aos leigos, embora sem exclusividade, os deveres e as atividades seculares. Agindo como cidadãos
do mundo, individual ou coletivamente, observarão as normas de cada disciplina e procurarão adquirir
verdadeira competência nos setores em que atuam. Trabalharão em cooperação com os demais, na busca dos
mesmos objetivos. Imbuídos de fé e lhe reconhecendo claramente as exigências, tomarão e procurarão levar a
bom termo as iniciativas que se fizerem necessárias. A lei divina se aplica às realidades temporais através dos
leigos, agindo de acordo com sua consciência, devidamente formada. Mas os leigos devem contar com as luzes
e a força espiritual dos sacerdotes. Não pensem, porém, que seus pastores sejam peritos ou tenham respostas
prontas e soluções concretas para todas as questões que possam surgir. Não é esta a sua missão. Seu papel
específico é contribuir com as luzes da sabedoria cristã, fiéis à doutrina do magistério.
Em geral, as soluções se apresentarão como decorrência da visão cristã em determinadas circunstâncias.
Muitas vezes acontece que outros cristãos, igualmente sinceros, pensarem de maneira diversa. Mesmo que a
solução proposta por uma das partes decorra, aos olhos da maioria, dos mais autênticos princípios evangélicos,
não pode pretender a exclusividade, em nome da autoridade da Igreja. Todos devem se empenhar num diálogo
de esclarecimento recíproco, segundo as exigências da caridade e do bem comum. Os leigos que têm
responsabilidade na Igreja, estão obrigados a agir, no mundo, de acordo com o espírito cristão, sendo, entre os
seres humanos, testemunhas de Cristo.
Bispos encarregados de governar a Igreja de Deus e sacerdotes, preguem de tal forma a mensagem de Cristo
que todas as atividades temporais dos fiéis sejam iluminadas pelo Evangelho.
Os pastores devem estar conscientes de que seu modo de viver o dia-a-dia é responsável pela imagem que se
tem da Igreja e da opinião que se forma a respeito da verdade e da força da mensagem cristã. Pela vida e pela
palavra, juntamente com os religiosos e com os fiéis, mostrem que a Igreja, com todos os seus dons, pela sua
simples presença, é fonte inexaurível das virtudes de que o mundo de hoje tanto precisa.
Dediquem-se aos estudos, para se tornarem capazes de dialogar com pessoas das mais variadas opiniões,
tendo no coração o que diz o Concílio: A humanidade é hoje cada vez mais una, do ponto de vista civil,
econômico e social. É preciso pois que os sacerdotes atuem em conjunto, sob a direção dos bispos e do papa,
evitando toda a dispersão de forças, para conduzir a humanidade à unidade da família de Deus.
Graças ao Espírito Santo a Igreja se manterá sempre como esposa fiel a seu Senhor e nunca deixará de ser, no
mundo, sinal da salvação. Isto não quer dizer que entre os seus membros, não tenha havido muitos, através
dos séculos, que foram infiéis ao Espírito de Deus, tanto clérigos como leigos. Ainda hoje a Igreja não ignora a
distância que existe entre a mensagem que anuncia e a fraqueza humana daqueles a quem foi confiado o
Evangelho. Devemos tomar conhecimento de tudo que a história registra a respeito dessas infidelidades e
condená-las vigorosamente, para que não constituam obstáculo à difusão do Evangelho. Mas a Igreja tem
consciência de quanto a experiência da história contribui para amadurecer suas relações com o mundo.
Conduzida pelo Espírito Santo, a Igreja, como mãe, exorta seus filhos a se purificarem e a se renovarem, para
que o sinal de Cristo brilhe cada vez mais na face da Igreja.
44. O mundo auxilia a Igreja - Assim como interessa ao mundo reconhecer a Igreja, na sua realidade social,
como fermento da história, a Igreja não deve esquecer quanto lhe aproveita a evolução e a história do gênero
humano.
A experiência dos séculos passados, o progresso das ciências e os muitos tesouros escondidos nas mais
variadas culturas são extremamente úteis à Igreja: manifestam as virtudes da natureza humana e abrem novos
caminhos para o conhecimento da verdade.
Desde o início de sua história a Igreja soube anunciar Cristo por intermédio de expressões e conceitos
lingüísticos aprendidos dos diversos povos e torná-lo melhor conhecido recorrendo à sabedoria dos filósofos. A
Igreja teve sempre por objetivo adaptar o Evangelho à capacidade de entender do povo e às exigências dos
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intelectuais. Essa acomodação da pregação da palavra revelada é uma lei permanente da evangelização. Em
todas as nações a possibilidade de exprimir a seu modo a mensagem de Cristo deve ser cultivada,
promovendo-se um intercâmbio fecundo entre a Igreja e as diversas culturas.
Para intensificar este intercâmbio, especialmente nos dias de hoje, em que as coisas mudam rapidamente e a
maneira de pensar é extremamente variada, a Igreja precisa daqueles que vivem no mundo, conhecem por
dentro as diversas instituições e disciplinas, mesmo que não sejam cristãos. Todo o povo de Deus, mas
especialmente os bispos e os teólogos, com o auxílio do Espírito Santo, devem estar atentos à linguagem do
nosso tempo, analisá-la e interpretá-la à luz da palavra divina, para aprofundar sempre mais a compreensão da
verdade revelada, melhor entendê-la e divulgá-la de maneira mais acessível.
Dotada de estrutura social visível, sinal de sua unidade em Cristo, a Igreja pode aproveitar e se aproveita de
fato da evolução da sociedade. Não que lhe falte qualquer elemento constitucional, mas deve sempre se
conhecer de maneira mais profunda e se exprimir de maneira mais adequada aos tempos em que vivemos.
Tem consciência de que muito deve, quer individual, quer coletivamente, a pessoas de todas as classes e
condições. Todos os que lutam pela promoção da família, da cultura, da vida econômica, social e política, tanto
nacional como internacional, segundo o desígnio de Deus, promovem igualmente a comunidade eclesial no que
ela depende do auxílio externo, que é muito importante. A Igreja reconhece ainda que mesmo as resistências e
oposições que encontrou e ainda encontra lhe são proveitosas, como sempre o foram.
45. Cristo, alfa e ômega - Ajudando o mundo e sendo por ele ajudada, a Igreja caminha para um único fim:
a vinda do reino de Deus e a salvação de todo o gênero humano. Todo bem que o povo de Deus, em sua
peregrinação terrestre, pode oferecer à família humana, vem da Igreja, como sacramento da salvação
universal, mistério em se manifesta e se realiza o amor de Deus para com os seres humanos.
O Verbo de Deus, por quem foram feitas todas as coisas, encarnou-se para salvar a todos e tudo recapitular,
como homem perfeito. O Senhor é o fim da história humana, o ponto para o qual convergem todos os desejos
da história e da civilização, o centro do gênero humano, a alegria de todos os corações e a realização de todas
as nossas aspirações. Foi quem o Pai ressuscitou dos mortos, exaltou e colocou à sua direita, como juiz dos
vivos e dos mortos. Vivificados e reunidos pelo seu Espírito, caminhamos para a realização final da história
humana, que corresponderá plenamente ao seu desígnio de amor: instaurar tudo em Cristo, no céu e na terra
(Ef 1, 10).
O próprio Senhor o diz: Eis que venho em breve e comigo trago o salário para retribuir a cada um conforme o
seu trabalho. Eu sou o alfa e o ômega, o primeiro e o último, princípio e o fim (Ap 22, 12s).
46. Depois de falar da dignidade da pessoa e do papel que é chamada a exercer no mundo, tanto individual
como socialmente, o Concílio convida todos a considerar, à luz do Evangelho e da experiência humana, alguns
problemas mais urgentes, que afetam toda a humanidade.
Dentre as muitas preocupações de todos, lembremos: o casamento e a família, a cultura, a vida econômica,
social e política, a união dos povos e a paz. Cada uma destas questões se ilumina à luz de Cristo, que ajuda
tanto os cristãos como os não-cristãos a encontrarem caminhos para sua solução.
47. O matrimônio e a família nos dias de hoje - A salvação da pessoa e da sociedade, tanto humana como
cristã, está intimamente relacionada com o bem estar do casal e da família. Como todos os que têm consciência
da importância do casamento, os cristãos apreciam e contam muito com os diferentes recursos que hoje
favorecem a constituição desta comunidade de amor e lhe facilitam a vida, ajudando-os no desempenho de um
de seus principais papéis.
Mas a instituição matrimonial nem sempre é respeitada. Contrariam-na, em muitos lugares, a poligamia, o
divórcio, o amor livre e várias outras deformações. O amor nupcial é freqüentemente profanado pelo egoísmo,
pelo hedonismo e pelas práticas ilícitas contra a fecundidade. Além disso, as condições econômicas,
psicossociais e políticas do mundo moderno trazem inúmeras perturbações para a família. Em certas regiões da
terra o problema demográfico causa enormes preocupações. As consciências sofrem com tudo isso. No entanto,
a força e a consistência da instituição matrimonial se manifestam pela resistência que ela continua oferecendo a
todas essas dificuldades, apesar das profundas modificações que a vida social sofre.
Lembrando alguns aspectos da doutrina da Igreja, o Concílio procura esclarecer e confortar os cristãos e todos
os humanos a se esforçarem defender e promover a dignidade natural do casamento.
48. A santidade do matrimônio e da família - O matrimônio, pelo consentimento recíproco e irrevogável
dos cônjuges, funda a comunhão íntima de vida e de amor conjugal, estabelecida pelo Criador e dotada de suas
próprias leis. A instituição estável, segundo a lei divina, nasce do ato humano pelo qual os cônjuges se dão e se
recebem um ao outro, inclusive diante da sociedade. Uma vez contraído, esse vínculo sagrado não depende
mais da vontade humana, em função do bem dos próprios cônjuges e de sua prole. Deus é o autor do
matrimônio, de seus bens e de seus fins, que são da maior importância para a continuação do gênero humano,
o proveito pessoal e a salvação eterna de cada um dos membros da família, a dignidade, a estabilidade, a paz e
a prosperidade da própria família Para o conjunto da sociedade e para o gênero humano em geral, enfim.
Por sua própria natureza, a instituição matrimonial e o amor conjugal se ordenam à procriação e educação da
prole, que os como que coroar. O homem e a mulher, pelo casamento, já não são dois, mas uma só carne (Mt
19, 6). Unidos pessoalmente e agindo de comum acordo, prestam-se serviço e auxílio mútuos, experimentam o
sentido de sua unidade e a vão realizando melhor cada dia. Este íntimo dom recíproco de um ao outro, somado
ao bem dos filhos, exige pois, de ambos, total fidelidade e requer a indissolubilidade da união.
O Cristo Senhor abençoou generosamente este amor tão rico, que brota da fonte divina do amor e é
apresentado como imagem de sua união com a Igreja. Assim como outrora Deus veio ao encontro de seu povo
com uma aliança de amor e de fidelidade, o Salvador dos homens e esposo da Igreja vem agora ao encontro
dos cônjuges cristãos com o sacramento do matrimônio. Ele amou a Igreja e se entregou por ela, como os
esposos devem-se amar e guardar fidelidade perpétua um ao outro.
O legítimo amor conjugal, assumido pelo amor divino, é comandado e enriquecido pela virtude redentora de
Cristo e pela ação santificadora da Igreja, para que os cônjuges se encaminhem para Deus e sejam ajudados e
confortados no desempenho de sua função paterna e materna. Os cônjuges cristãos são sustentados no
exercício dos deveres de seu estado assim como na dignidade que lhes cabe, através de um sacramento
específico, uma espécie de consagração, por cuja virtude, ao cumprirem seu papel conjugal e familiar, imbuídos
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do espírito de Cristo, que os leva a tudo viver na fé, na esperança e no amor, vão-se aperfeiçoando e
mutuamente se santificando, para juntos entrarem na glória de Deus.
O exemplo e a oração familiares mostram, para os filhos e para todos que participam da vida familiar, o
caminho da humanidade, da salvação e da santidade. Dignificados pela função paterna e materna, os cônjuges
devem cumprir os deveres da educação religiosa, a começar por si mesmos.
Os filhos, membros vivos da família, contribuem a seu modo para a santificação dos pais. Devem corresponder
com gratidão, piedade e confiança ao que recebem dos pais e assisti-los nas dificuldades e, especialmente, na
velhice.
A viuvez, considerada como prolongamento do matrimônio, deve ser por todos reconhecida e honrada.
As famílias compartilhem umas com as outras suas riquezas espirituais. Sendo participação da aliança de amor
entre Cristo e a Igreja, a família cristã deve manifestar ao mundo a presença do Salvador e a verdadeira
natureza da Igreja, tanto pelo amor dos cônjuges, como pela fecundidade generosa, pela unidade e pela
fidelidade, assim como pela amável cooperação de todos.
49. O amor conjugal - Noivos e cônjuges são muitas vezes convidados pela palavra divina a alimentar e
fomentar um amor casto durante o noivado e fiel, durante o casamento.
São muitos aqueles que nos dias de hoje dão grande importância ao verdadeiro amor entre marido e mulher,
manifestado de muitos modos, segundo os costumes honestos que variam de acordo com os povos e as
épocas.
Esse amor, eminentemente humano, afeição voluntária de um para com o outro, abraça a pessoa na sua
totalidade, conferindo especial dignidade e nobreza às expressões de afeto, inclusive corporais, como
elementos e sinais da amizade conjugal.
Por especial dom da graça e da caridade, o Senhor se dignou a sanar, aperfeiçoar e elevar esse amor, que,
unindo o humano ao divino, leva os cônjuges ao dom livre e recíproco de si mesmos, comprovado pelas
manifestações de afeto e pela maneira de agir de um para com o outro, através de toda a vida. A prática desse
amor o faz crescer, ao contrário da simples atração erótica, que se volta egoisticamente para si mesmo, e
desaparece rápida e miseravelmente.
Esse amor se exprime e se aperfeiçoa através dos atos próprios do matrimônio, em que os cônjuges se unem
de maneira casta e íntima. São pois atos honestos e dignos. Quando humanamente exercidos, exprimem e
favorecem o dom recíproco, enchendo os cônjuges de alegria e de satisfação.
Ratificado pela fidelidade mútua e sancionado pela força única do sacramento de Cristo, o amor conjugal é
capaz de se manter fiel tanto na prosperidade como na dificuldade, afastando as ameaças de adultério e de
divórcio.
Desde que se reconheça a igual dignidade pessoal do homem e da mulher, no amor recíproco e total,
compreende-se bem de que natureza é a unidade do matrimônio, confirmada pelo Senhor.
A prática constante dos deveres desta vocação cristã exige muita virtude. Os cônjuges recebem muitas graças
para levar uma vida santa, mas devem cultivar incessantemente a firmeza no amor e a generosidade no
espírito de sacrifício, impetrando-as na oração.
O autêntico amor conjugal será mais valorizado e considerado pela comunidade se os cônjuges cristãos derem
testemunho de fidelidade e de harmonia, destacarem-se pelo cuidado com os filhos e atuarem, na medida de
suas possibilidades, na renovação cultural, psicológica e social em favor do matrimônio e da família.
Os jovens, o mais cedo possível, especialmente no seio da família, devem ser instruídos a respeito da
dignidade, da função e da prática do amor conjugal, para que, na castidade, possam aguardar a idade mais
conveniente para se tornarem noivos e se casarem.
50. A fecundidade matrimonial - O matrimônio e o amor conjugal, por sua própria índole, são ordenados à
procriação e educação da prole. Os filhos são o dom mais importante do matrimônio, fonte da maior felicidade
para os pais. Deus disse que não é bom o homem ficar só (Gn 2, 18), e, desde o início os fez homem e mulher
(Mt 19, 4), conferiu-lhes uma participação especial na obra criadora e os abençoou, dizendo: crescei e
multiplicai-vos (Gn 1, 28).
O cultivo do amor conjugal, pois, e toda a estrutura da vida familiar a que dá origem, sem prejuízo dos demais
fins do matrimônio, tendem a encorajar os cônjuges a cooperar com o amor do criador e do salvador, que,
através deles, faz crescer e progredir sua própria família.
O dever de transmitir a vida e de educar, missão própria dos cônjuges, torna-os cooperadores e intérpretes do
amor criador de Deus. No cumprimento de sua função, procurem agir com toda responsabilidade humana e
cristã. Mostrem-se dóceis a Deus, com toda reverência, consultem-se mutuamente e coloquem em comum os
seus esforços, para chegar a uma decisão. Em vista do seu próprio bem e do bem da prole, já nascida ou por
nascer, levem em conta as circunstâncias e as condições em que vivem, tanto materiais como espirituais, as
exigências da comunidade familiar, da sociedade e da própria Igreja, e, finalmente, tomem sua decisão diante
de Deus.
No seu modo de agir os cônjuges cristãos tenham consciência de que devem orientar sua consciência em
conformidade com a lei divina e de acordo com o magistério da Igreja, que a interpreta de maneira autêntica.
A lei divina, ao mostrar a significação plena do amor conjugal, constitui a sua garantia e o encaminha para a
perfeição, como amor humano. De tal forma que os cônjuges cristãos, confiantes na Providência e cultivando o
espírito de sacrifício, ao exercerem a função de procriar com generosa responsabilidade humana e cristã,
glorificam ao Criador e se orientam para a perfeição em Cristo.
Entre os cônjuges que cumprem dessa forma a função que lhes foi atribuída pelo Criador, merecem especial
menção aqueles que, de acordo com as normas da prudência, decidem juntos, com coragem, ter um número
maior de filhos para educar.
Mas o matrimônio não foi instituído apenas para a procriação. A própria índole da união indissolúvel entre as
pessoas e o bem da prole, exigem que o amor recíproco dos cônjuges seja cultivado, cresça e amadureça.
Portanto, mesmo quando, por mais que se deseje, não se tem filhos, o matrimônio, como regime de vida e de
comunhão, guarda todo valor assim como sua indissolubilidade.
51. Amor conjugal e vida humana - O Concílio sabe que não é fácil, hoje em dia, para os cônjuges cristãos,
organizarem sua vida conjugal. Geralmente as circunstâncias impedem, ao menos por um certo tempo, que se
pense em aumentar o número de filhos, criando dificuldades para a fidelidade. Quando a vida reduz a
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convivência entre os cônjuges, aumentam os riscos de infidelidade e o bem das crianças é ameaçado, com
prejuízo da educação e da disposição de ter mais filhos.
Algumas soluções propostas para esses problemas são inaceitáveis. Chega-se a apelar para a eliminação da
vida. A Igreja, porém, trabalha com a certeza de que não pode haver contradição entre o estabelecido por Deus
sobre a transmissão da vida e o cultivo do verdadeiro amor conjugal.
Deus, Senhor da vida, confiou aos seres humanos o cuidado de conservá-la de maneira digna. A vida deve ser
protegida com o máximo cuidado, desde o momento da concepção. O aborto, pois, como o infanticídio, são
crimes abomináveis.
A vida sexual e a faculdade de procriação humanas superam admiravelmente todas as outras formas inferiores
de vida. Por conseguinte, os atos próprios da vida conjugal, em conformidade com a dignidade humana, devem
ser objeto de especial consideração. A moralidade da ação, quando se trata de compor o amor conjugal com a
transmissão responsável da vida, não depende unicamente da intenção ou dos motivos de agir, mas também
de critérios objetivos, baseados no que a pessoa é e na natureza da ação que executa, respeitando-se sempre
as exigências da doação recíproca integral e da procriação humana, no contexto do verdadeiro amor. Nessas
circunstâncias, somente uma castidade bem cultivada permite agir corretamente.
No que diz respeito ao controle da natalidade, os filhos da Igreja devem se basear nesses princípios, sabendo
que não lhes é lícito adotar soluções afastadas pelo magistério da Igreja, como contrárias à lei divina.
Saibam todos, porém, que a vida humana e a função de transmiti-la não se restringem a este mundo. Não se
entendem, pois, nem podem ser reguladas unicamente por critérios mundanos, pois se colocam
necessariamente no horizonte da vida eterna a que todos somos chamados.
52. Empenhar-se em favor do matrimônio e da família - A família é a escola em que cada um aprende a
se tornar humano. Para que possa atingir a plenitude de sua vida e de sua missão é preciso que haja entre os
cônjuges uma comunhão de afeto e de maneiras de ver, assim como efetiva cooperação na educação dos filhos.
A presença do pai é muito valiosa para a formação, mas o cuidado doméstico da mãe, especialmente com as
crianças mais pequenas, deve ser sempre preservado, sem que se desconheçam as exigências da promoção da
mulher.
A educação dos filhos deve permitir que, quando maiores, sejam livres para seguirem uma vocação, inclusive a
religiosa, ou eclesiástica, e de escolher seu estado de vida. Casando-se, têm direito de constituir a própria
família em condições morais, sociais e econômicas favoráveis.
Os pais ou tutores devem orientar os jovens na fundação de sua família com conselhos que sejam bem
acolhidos, evitando, porém, toda coação direta ou indireta que os force ao casamento ou à escolha do cônjuge.
A família constitui o fundamento da sociedade. Nela se reúnem e colaboram diversas gerações, que crescem
em sabedoria e aprendem a compatibilizar os direitos das pessoas, com as exigências da vida social.
Todos os que têm influência nas comunidades e nos grupos sociais devem contribuir eficazmente para a
promoção do matrimônio e da família.
O poder civil deve considerar sagrada sua função de reconhecer a natureza própria da família, protegê-la e
promovê-la, preservando a moralidade pública e favorecendo a prosperidade doméstica.
Os fiéis, resgatando o tempo presente e distinguindo o que é eterno de suas formas mutáveis, sejam
promotores diligentes dos bens do matrimônio e da família, tanto pelo testemunho de sua própria vida como
pela ação, em conjunto com todos os homens de boa vontade. Vencendo as dificuldades, procurem prover às
necessidades da família e obter-lhe todas as facilidades próprias do nosso tempo. Para a consecução desses
objetivos contribuem igualmente o senso cristão dos fiéis, a consciência moral dos homens e sua sabedoria,
assim como a ciência daqueles que são versados nas disciplinas sagradas.
Os que praticam as ciências biológicas, médicas, sociais e psicológicas podem prestar um grande serviço ao
bem do matrimônio e da família e à pacificação das consciências, desde que se esforcem em seus estudos para
elucidar o melhor possível as diversas condições favoráveis no que respeita ao controle da natalidade.
Os sacerdotes devem receber a necessária instrução sobre o que diz respeito à família. Coloquem a serviço da
vocação dos cônjuges, da vida conjugal e familiar, os diversos meios pastorais de que dispõem, como a
pregação da palavra de Deus, o culto litúrgico e outros recursos espirituais, procurem encorajá-los nas
dificuldades com compreensão e paciência e confortá-los com amor.
Confirmem na doutrina e assistam na ação os diversos movimentos e associações familiares, de jovens e de
casais, especialmente jovens casais, dando apoio à sua vida familiar, social e apostólica.
Finalmente os próprios cônjuges, feitos à imagem do Deus vivo, estejam unidos no afeto, no modo de pensar e
na santidade e sigam a Cristo, princípio da vida, nas alegrias e nas dificuldades de sua vocação, tornando-se,
por seu amor fiel, testemunhas do mistério do amor, que o Senhor revelou ao mundo, pela sua morte e
ressurreição.
53. O ser humano alcança plenamente sua humanidade pelo cultivo dos bens da natureza e dos valores. É a
cultura. Natureza e cultura, pois, implicam-se mutuamente, sempre que se trata da vida humana.
Num sentido amplo, a palavra cultura indica tudo com que o ser humano desenvolve e aperfeiçoa os seus
diferentes dons da alma e do corpo. Procura dominar a terra com seu conhecimento e seu trabalho. Procura
tornar mais humana a vida social, tanto familiar como civil, com o progresso dos costumes e das instituições.
Finalmente, exprime, comunica e conserva, através de suas obras, suas grandes experiências espirituais e seus
desejos de todos os tempos, para o proveito de todo o gênero humano.
Daí o aspecto histórico e social da cultura, que leva a se entender a palavra num sentido sociológico ou
etnológico.
Nesse sentido, fala-se de pluralidade de culturas. Das diversas maneiras de utilizar as coisas, de trabalhar e de
se exprimir, de prestar culto religioso, de educar, de legislar e de organizar as instituições sociais, de progredir
no saber e nas artes e de cultivar o belo, nascem a diversidade nas condições de vida e as várias formas de
entender o que é bom para o ser humano. Dessa forma, os usos tradicionais passam a ser patrimônio próprio
de cada comunidade humana. Constitui-se assim uma esfera definida e histórica, em que se inserem os seres
humanos de qualquer povo ou época e na qual vão haurir as expressões do progresso humano e civil.
54. Novas formas de vida - As condições da vida moderna sofreram modificações tão profundas, do ponto de
vista social e cultural, que se pode falar de uma nova época histórica. O progresso e a difusão da cultura se faz
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por novos caminhos, abertos pelo extraordinário progresso das ciências naturais, humanas e sociais, pelo
aperfeiçoamento das técnicas e pelo desenvolvimento dos meios de comunicação.
Em conseqüência, a cultura atual se reveste de determinadas características. Dá-se extremo valor às críticas e
conclusões das ciências exatas. Os estudos recentes de psicologia analisam mais profundamente os
mecanismos da atividade humana. As disciplinas históricas contribuem fortemente para que se considerem as
coisas na perspectiva de sua mutabilidade e evolução. Os costumes e os hábitos de vida são cada vez mais
uniformes. A industrialização, a urbanização e outros fatores de mesma ordem, que acentuam a
interdependência entre as pessoas, criam novas formas de cultura, culturas de massa, como se diz, que dão
origem a novos modos de sentir, de agir e de passar o tempo. A intensificação da comunicação entre os
diversos povos e grupos sociais torna acessíveis a todos e a cada um o tesouro das diversas formas de cultura,
favorecendo uma espécie de cultura universal que promove e exprime a unidade do gênero humano, na medida
em que respeita a particularidade de cada uma das culturas.
55. O ser humano, autor da cultura - Cresce a cada dia o número de mulheres e homens, dos mais diversos
grupos e nações, que têm consciência de ser criadores e artífices da cultura da comunidade a que pertencem.
Cresce também, cada vez mais, no mundo, o senso de autonomia e de responsabilidade, contribuindo
enormemente para a maturidade espiritual e moral do gênero humano.
Isto se torna ainda mais evidente se considerarmos a unificação da humanidade e o dever que nos é imposto
de construir um mundo melhor, na verdade e na justiça.
Somos, por isso, testemunhas do nascimento de um novo humanismo, em que o ser humano se define
principalmente pela sua responsabilidade para com seus irmãos e para com a história.
56. Dificuldades e deveres - Nessas condições compreende-se que o ser humano, sentindo-se responsável
pelo progresso cultural, alimente uma grande esperança, ao mesmo tempo que se torna ansioso diante das
grandes contradições que precisa resolver.
Que fazer para que os contatos cada vez mais intensos entre grupos humanos e nações, que deveriam
proporcionar ocasião a um verdadeiro diálogo, tão valioso, não acabem por perturbar a vida das comunidades,
esvaziar a sabedoria dos antepassados e destruir a índole própria de cada povo?
Como favorecer o dinamismo e a expansão da nova cultura, sem prejuízo da fidelidade à herança tradicional?
Especialmente onde a cultura promovida pelo progresso científico e técnico deve se conciliar com as diversas
tradições dos estudos clássicos?
Como harmonizar o vertiginoso progresso das disciplinas particulares, com a permanente necessidade de
síntese, para alimentar o gosto pela admiração e pela contemplação, que levam à sabedoria?
Que fazer para que participem todos dos bens culturais, ao mesmo tempo que a cultura dos especialistas seja
cada vez mais profunda e complexa?
Como, enfim, reconhecer a legítima autonomia da cultura, sem cair num humanismo puramente terrestre, mais
ainda, adversário da religião?
A cultura progride hoje em meio a todas estas contradições, procurando manter a integridade da pessoa e
ajudar os humanos todos, especialmente os fiéis, chamados a cumprir seus deveres, unidos fraternalmente na
unidade da família humana.
57. Fé e cultura - Peregrinos do céu, os fiéis devem buscar e saborear as coisas do alto, o que, porém, não
diminui em nada, pelo contrário, aumenta, a importância de seu dever de colaborar com todos os demais seres
humanos, na construção desse mundo. A fé cristã os empenha e ajuda no perfeito cumprimento deste dever,
principalmente manifestando-lhe o sentido último, que permite integrar a cultura no conjunto da vocação
humana.
Ao cultivar a terra com o trabalho de suas mãos e com o auxílio da técnica, para que dê frutos e abrigue
dignamente toda a família humana, e ao participar da vida social, o ser humano está cumprindo a vontade de
Deus, manifestada na criação, de que sujeite a terra e aperfeiçoe o mundo criado e a si mesmo, ao mesmo
tempo que cumpre o grande mandamento de Cristo de se colocar a serviço dos irmãos.
Também o estudo da filosofia, da matemática, das ciências naturais ou de outras disciplinas, assim como a
prática das artes, contribuem para aproximar a família humana da verdade, do bem e do belo, levá-la a
apreciar o valor do universo, e iluminá-la com a luz da sabedoria, que está eternamente junto de Deus, tudo
fazendo com ele, brincando na superfície da terra e se deliciando com a humanidade.
Desta forma, o ser humano vai-se libertando da servidão das coisas e progredindo no conhecimento e na
contemplação do Criador. Sob o impulso da graça, prepara-se para o reconhecimento do Verbo, que se fez
carne, a fim de tudo salvar e recapitular em si mesmo, tendo vindo ao mundo como luz verdadeira, que ilumina
todos os homens. (Jo 1, 19).
O progresso das ciências, das artes e das técnicas, incapaz de atingir, em virtude do método que emprega, as
razões do ser, pode vir a favorecer um certo fenomenismo e, até mesmo, alimentar um certo agnosticismo, se
vier a achar que seu método é a regra suprema do conhecimento a que temos acesso. Há perigo de se confiar
demais nas descobertas modernas, julgar-se o ser humano auto-suficiente e renunciar a qualquer busca
ulterior.
São riscos que corre a cultura moderna, mas que não impedem de lhe reconhecer valores positivos. Como, por
exemplo, a dedicação ao saber e o rigor das pesquisas científicas; a necessidade de colaboração entre as
diversas especialidades e o senso da solidariedade internacional; a consciência cada vez mais viva da
responsabilidade dos especialistas para com a parcela da humanidade que precisa de auxílio e de proteção; o
desejo de melhorar as condições de vida de todos, especialmente dos que sofrem a pobreza e estão privados
de responsabilidades. Tudo isto deve-se considerar preparação ao Evangelho, capaz de ser animada pela
caridade divina, graças àquele que veio salvar o mundo.
58. Relações entre o Evangelho de Cristo e a cultura - Há muitas relações entre o Evangelho e a cultura.
Revelando-se a seu povo, Deus falou de acordo com a cultura de cada época, até a sua plena manifestação no
Filho encarnado.
Vivendo em condições diversas através dos tempos, a Igreja também utilizou elementos de diversas culturas
para difundir e manifestar o Evangelho de Cristo, pregá-lo a todos os povos, melhor compreendê-lo e mais
profundamente exprimi-lo, nas variadas formas da vida dos fiéis, através das celebrações litúrgicas.
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Enviada aos povos todos, de todas as idades e latitudes, a Igreja não está ligada exclusiva e necessariamente a
nenhuma raça ou nação, a nenhum sistema particular de costumes, nem a nenhuma tradição nova ou antiga.
Aderindo à sua própria tradição e, ao mesmo tempo, consciente de sua missão universal, quer entrar em
comunhão com todas as formas de cultura, para enriquecimento recíproco, tanto da Igreja, como das culturas.
A boa nova de Cristo renova incessantemente a vida e a cultura do ser humano sujeito ao pecado. Combate e
anula os erros e os males provenientes da ameaça constante do pecado. Purifica e eleva os costumes dos
povos. Fecunda, fortifica, completa e restaura em Cristo, com os bens do alto e como que do interior, as
qualidades e os dotes espirituais de todos os povos e idades. Dessa forma, no cumprimento de seu próprio
papel, a Igreja contribui e favorece a cultura humana e civil, conduzindo o homem à liberdade interior, inclusive
pela liturgia.
59. A harmonia entre os diversos aspectos da cultura - Baseada nesses princípios, a Igreja lembra a
todos que a cultura está a serviço da integridade da pessoa humana, do bem da comunidade e de toda a
sociedade. Deve-se pois cultivar o espírito pelo desenvolvimento da capacidade de admiração e da percepção
interior, da contemplação e da elaboração de um juízo pessoal, do sentido religioso, moral e social.
Decorrência imediata da natureza humana, racional e social, a cultura requer sempre uma justa liberdade para
se exprimir e uma legítima autonomia, segundo seus próprios princípios. Requer respeito e goza de certa
imunidade, de acordo com os direitos da pessoa e da comunidade, tanto particular como universal, dentro dos
limites do bem comum.
Recordando o que foi dito pelo Concílio Vaticano I, há duas ordens de conhecimento, distintas entre si, a da fé e
a da razão. Nada impede que a Igreja use no seu âmbito próprio os princípios e os métodos das artes e
disciplinas da cultura humana, sem que, porém, deixe de lhes reconhecer uma justa liberdade, afirmando, pois,
a legítima autonomia da cultura humana, especialmente das ciências.
Para tanto é preciso que se respeitem as exigências da ordem moral e da utilidade comum, que haja liberdade
de pesquisa e de opinião, que se possa divulgar e cultivar toda espécie de expressão artística, a começar pela
informação objetiva sobre tudo que acontece.
Não compete à autoridade pública determinar a forma das expressões culturais, mas criar condições de apoio
às atividades culturais, inclusive das minorias. É importante insistir que a cultura não seja desviada de seu fim,
e colocada a serviço do poder político ou econômico.
60. O direito universal à cultura - Nos dias de hoje há possibilidade real de libertar a muitos da miséria da
ignorância. É, pois, dever de todos, especialmente dos cristãos, trabalhar com afinco para que tanto na
economia como na política, em âmbito nacional e internacional, afirmem-se os princípios fundamentais do
reconhecimento do direito de acesso efetivo de todos à cultura humana e civil, de conformidade com a
dignidade das pessoas e sem discriminação de raça, sexo, nação, religião ou condição social.
Todos devem ter acesso aos bens culturais fundamentais, para que o analfabetismo e a impossibilidade do
exercício de uma atividade responsável não os prive de participar da vida humana e de cooperar para o bem
comum.
Lute-se para que as pessoas mais capazes tenham acesso aos estudos superiores, de tal forma que, na medida
do possível, participem das funções, deveres e serviços da comunidade, de acordo com suas habilidades e
especialidades. Toda pessoa ou grupo social de qualquer povo que seja terá assim a possibilidade de alcançar a
plenitude da vida cultural e exprimir adequadamente seus dotes e suas tradições.
Trabalhe-se igualmente com empenho para que todos tomem consciência do direito à cultura e do dever de se
cultivar e também de ajudar os outros a se cultivarem. Há situações de vida e de trabalho que constituem
obstáculo à cultura e até a destroem. É o que acontece especialmente com os agricultores e com os operários,
cujas condições de trabalho não devem impedir, mas favorecer o seu desenvolvimento cultura.
As mulheres já trabalham em quase todos os setores de atividade. Assumam, entretanto, plenamente, em
primeiro lugar, as tarefas que lhes convêm. Todos devem reconhecer e promover a participação indispensável e
específica da mulher, na vida cultural.
61. A educação - É difícil fazer hoje a síntese dos conhecimentos e das artes. O número e a diversidade dos
dados que interessam à cultura só fazem aumentar, ao mesmo tempo que diminui a possibilidade de um só
homem captar e compor organicamente todos os elementos do saber. O espírito universal torna-se cada dia
mais raro. Mas é preciso que todos se dêem conta, pelo menos, da originalidade da pessoa, em que brilham os
valores da inteligência, da vontade, da consciência e da fraternidade, que têm sua raiz em Deus, Criador, e em
Cristo, que os sanou e os elevou.
É na família que se aprendem e se fortalecem esses valores. A atmosfera de amor faz com que os filhos sejam
naturalmente iniciados na cultura, cujos valores se transmitem ao jovem em crescimento, contribuindo para
sua educação.
Na sociedade moderna multiplicaram-se as possibilidades de educação, especialmente pela difusão da imprensa
e dos outros meios de comunicação cultural e social. Pode-se hoje pensar numa cultura para todos. A redução
do tempo de trabalho facilita a vida de um número cada vez maior de pessoas. Generaliza-se a prática do lazer,
que descansa e contribui para a saúde do corpo e do espírito. Difundem-se as atividades e os estudos nos
tempos livres. Viagens freqüentes aprimoram os conhecimentos das pessoas e estabelecem laços de
comunicação entre os diversos povos. O esporte, como prática e como espetáculo, ajuda no equilíbrio das
pessoas e das comunidades, criando relações fraternas entre mulheres e homens das mais diversas condições
sociais, países e raças.
Contribuam os cristãos para que tanto as manifestações coletivas, como todas as expressões da cultura,
estejam imbuídas do melhor espírito humano e cristão.
Mas todas essas facilidades pouco adiantam se não se leva em conta o sentido profundo que têm, para a
pessoa, a educação e a cultura.
62. Harmonia entre cultura e pensamento cristão - Embora a Igreja tenha contribuído enormemente para
o progresso da cultura, a experiência mostra que nas condições em que se vive não é fácil manter a harmonia
entre cultura e pensamento cristão.
Essas dificuldades não prejudicam necessariamente a vida da fé, pelo contrário, podem até despertar para uma
compreensão mais perfeita e mais profunda da própria fé.
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O desenvolvimento das ciências, os estudos mais recentes de história e de filosofia e as novas invenções
suscitam questões que transformam a vida e colocam novos problemas para a teologia. Sem abdicar das
exigências e dos métodos próprios de sua disciplina, os teólogos enfrentam o desafio de buscar modos de
expressão que comuniquem a doutrina de forma melhor adaptada aos nossos tempos. Uma coisa é o depósito
da fé, a verdade, outra a maneira como vem expresso, dentro da fidelidade ao mesmo sentido e ao mesmo
conteúdo. Na pastoral, além dos princípios teológicos, são de grande utilidade as descobertas científicas, em
particular da psicologia e da sociologia, que muito contribuem para a maturidade e pureza da fé.
As letras e as artes têm também grande importância para a Igreja. O homem procura naturalmente solução
para os problemas levantados pela experiência de si mesmo e do mundo, quer esclarecer sua situação na
história e no conjunto do universo, manifestar as misérias e as alegrias, as necessidades e o potencial da
humanidade, tentando concretizar suas esperanças. Ressalta quanto é valiosa a vida humana, sob todos os
aspectos, de acordo com as expressões próprias de cada época e cada região.
Procure-se então fazer com que os artistas sejam reconhecidos na Igreja, respeitando-lhes a liberdade e
estabelecendo com eles laços mais estreitos, na comunidade dos fiéis. Esteja-se aberto às novas formas de
arte, segundo a natureza das diversas nações e regiões. Adotem-se, inclusive nas celebrações, as artes que
levam a pensar em Deus e estão de acordo com o modo de ser e de se exprimir da liturgia.
Dessa forma, o conhecimento de Deus se torna mais amplo e a pregação evangélica, mais clara, oferecendo-se
como resposta natural às interrogações humanas.
Os fiéis devem viver muito próximos dos homens e das mulheres do seu tempo, comungando com o seu modo
de pensar e de sentir, de acordo com sua cultura. Procurem articular com os costumes, doutrinas e instituições
cristãs, o saber e as novas invenções da ciência, para que a cultura religiosa e a honestidade intelectual dos
fiéis sigam os mesmos passos do conhecimento, do progresso, científico, técnico e artístico, autorizando-os a
falar de tudo, numa perspectiva verdadeiramente cristã.
Os que se dedicam aos estudos de teologia nos seminários e nas universidades, procurem colaborar com os
cientistas, estabelecendo vias de cooperação e de recíproco entendimento. A pesquisa teológica ao mesmo
tempo que visa ao conhecimento profundo da verdade revelada, não pode perder o contato com a atualidade,
inclusive para facilitar o acesso à fé dos estudiosos de todas as outras disciplinas.
Essa colaboração é muito útil à formação dos ministros sagrados, que estarão, assim, melhor preparados para
expor aos nossos contemporâneos a doutrina da Igreja a respeito de Deus, do ser humano e do mundo.
Seria desejável até que alguns leigos cultivassem as disciplinas sagradas, com todo o rigor científico. Para que
os fiéis, clérigos e leigos possam exercer sua função devem além disso gozar da mais ampla liberdade de
pesquisa, pensamento e opinião nas suas respectivas especialidades.
63. Aspectos a considerar - Para o bem da sociedade, deve-se respeitar e promover a dignidade da pessoa,
na integridade de sua vocação, também nas esferas econômica e social, pois o ser humano é o autor, o centro
e o fim de toda a vida econômico-social.
Como nas demais esferas da vida social, a economia se caracteriza hoje por um domínio cada vez maior do ser
humano sobre a natureza, pela intensificação e aprofundamento das relações de mútua dependência entre os
cidadãos, os grupos humanos e os povos, bem como pelas freqüentes intervenções do poder político. Mas, ao
mesmo tempo, o desenvolvimento da produção e do intercâmbio de bens e de serviços tornaram a economia
instrumento capaz de satisfazer às sempre crescentes necessidades da família humana.
Mas há inúmeras razões de preocupação. Muitos, especialmente nas regiões mais desenvolvidas, tanto nos
países socialistas como nos outros, orientam-se unicamente por motivos de ordem econômica e sua vida
inteira, pessoal e social, inspira-se unicamente na busca de vantagens materiais.
Num momento em que o desenvolvimento econômico teria condições de se fazer de maneira racional e
humana, com a progressiva diminuição das desigualdades sociais, elas estão se tornando, pelo contrário, cada
vez mais graves, com a deterioração econômica dos mais fracos e o desprezo dos pobres.
Para uma enorme e crescente multidão, falta o absolutamente necessário, enquanto alguns, mesmo em regiões
pobres, vivem na maior opulência, dissipando riquezas. O luxo e a miséria convivem, lado a lado. O poder de
decisão está concentrado na mão de uma minoria, enquanto a maioria carece até da possibilidade de tomar
qualquer iniciativa ou de assumir responsabilidades, vivendo e trabalhando em condições indignas do ser
humano.
Desequilíbrios econômicos e sociais dessa natureza verificam-se tanto entre os diversos setores, agricultura,
indústria e serviços, como entre as regiões diversas de uma mesma nação ou Estado. Torna-se cada dia maior
o fosso entre as nações ricas e os outros países, o que pode se tornar uma ameaça à paz.
Aumenta a cada dia a consciência de tais disparidades, na medida em que se generaliza a convicção de que o
aperfeiçoamento técnico e a abundância dos recursos econômicos, característicos do mundo moderno, podem e
devem corrigir esta situação.
Mas são necessárias profundas reformas da vida econômica e social, assim como uma verdadeira conversão e
uma radical mudança de comportamento por parte de todos.
Nesse sentido, através dos séculos, à luz do Evangelho, a Igreja elaborou princípios racionais de justiça e de
eqüidade que devem reger a vida individual, social e internacional. Nos dias de hoje tem insistido na sua
importância. O Concílio os quer enfatizar, dando algumas orientações adaptadas às atuais circunstâncias, tendo
em vista, em primeiro lugar, as exigências do progresso econômico.
64. Desenvolvimento a serviço do homem - O crescimento demográfico e a exigência de satisfazer às
crescentes necessidades humanas tornam mais importante do que nunca o esforço para aumentar a produção
agrícola, fazer crescer a industrial e desenvolver os serviços.
Em nome do desenvolvimento, é preciso favorecer o progresso técnico, o espírito de inovação, que cria e
amplia iniciativas, o aperfeiçoamento dos métodos e o empenho de todos que trabalham na produção.
Produzir, porém, não quer dizer principalmente aumentar a quantidade de produtos, o lucro ou o domínio sobre
a natureza, mas ter em vista as necessidades humanas na sua integralidade, compreendendo as materiais e as
de sua vida intelectual, moral, espiritual e religiosa.
Entende-se por ser humano todos os homens e todos os grupos humanos de todas as raças e regiões do globo.
A atividade econômica, de acordo com seus próprios métodos e leis, deve ser exercida na perspectiva da ordem
moral, para cumprir o desígnio de Deus sobre a humanidade.
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65. Desenvolvimento, mas sob o controle humano - O desenvolvimento deve estar sob o controle humano.
Não apenas de alguns, pessoas ou grupos, que desfrutam de imenso poder econômico, da comunidade política
ou de algumas nações todo-poderosas. É indispensável que, em todos os níveis, o maior número possível de
pessoas e, em nível internacional, todas as nações, participem ativamente da responsabilidade econômica pelo
planeta.
É igualmente indispensável que as livres iniciativas de cada um e de cada grupo humano se articulem com os
esforços das autoridades públicas, numa coordenação cada vez mais perfeita.
O crescimento não pode ser deixado aos simples mecanismos da vida econômica, nem ficar inteiramente na
mão das autoridades públicas. São erradas as doutrinas que, sob alegação de falsa liberdade, opõem-se às
reformas. Também erradas aquelas que, desprezando os direitos fundamentais das pessoas dos grupos
humanos, tudo sujeitam à organização coletiva da produção.
Lembrem-se os cidadãos que é direito e dever seu, a ser reconhecido pelo poder civil, promover, na medida do
possível, o desenvolvimento da comunidade. Nas regiões menos desenvolvidas, onde se tem urgência de
utilizar todo os recursos disponíveis, pecam gravemente contra o bem comum aqueles que, salvo em caso de
migração, mantêm inutilizados os recursos de que dispõem, privando sua comunidade dos bens materiais e
espirituais de que necessita.
66. Combate às enormes desigualdades econômicas - Atendendo às exigências da justiça e da eqüidade,
deve-se fazer o maior esforço possível, respeitados os direitos das pessoas e a índole própria de cada povo,
para eliminar as desigualdades econômicas e a conseqüente discriminação de indivíduos e grupos, que crescem
nos dias de hoje.
No campo, em diversas regiões, em virtude de especiais dificuldades de produção e comercialização, os
camponeses devem ser ajudados a produzir mais e a vender sua produção, tendo acesso às inovações
modernas e a remuneração condigna, deixando de ser considerados cidadãos de uma segunda categoria, como
acontece com freqüência. Por outro lado, é indispensável à melhoria da agricultura, que os agricultores,
especialmente os jovens, procurem se aperfeiçoar profissionalmente.
A justiça e a eqüidade exigem igualmente que a mobilidade, necessária ao progresso econômico, não torne
incerta e precária a vida das pessoas e de suas famílias. Os trabalhadores estrangeiros ou migrantes, cuja
atividade contribui para o crescimento econômico da nação ou região que os recebe, não devem ser
discriminados no que diz respeito nem à natureza do trabalho, nem quanto à remuneração. Ninguém, a
começar pelos poderes públicos, os deve tratar como simples instrumentos de produção, mas como pessoas,
ajudá-los para que possam acolher suas famílias, dispor de moradia decente e se integram na vida social do
povo e da região que os recebe. Embora, na verdade, seria preferível que cada um encontrasse trabalho em
sua própria região de origem.
Nas economias em fase de transformação, como nas novas sociedades industriais que se informatizam, deve-se
cuidar para que todos tenham trabalho e oportunidades para se reciclarem profissional e tecnicamente,
providenciando-se proteção para todos aqueles que por idade ou doença passam necessidade.
67. O trabalho e o tempo livre - O trabalho humano para a produção e distribuição de bens ou na prestação
de serviços é o que há de mais importante na economia. Tudo mais são autônomo, simples instrumentos.
Tanto como assalariado, o trabalho procede diretamente da pessoa, que imprime sua marca nas coisas e as
sujeita à sua atividade. Normalmente o trabalho é a fonte de sustento do trabalhador e de sua família, mas é
também um meio de colaborar com seus iguais, exercer a caridade e aperfeiçoar o mundo criado por Deus.
Além disso, pelo trabalho oferecido a Deus, o ser humano se associa à obra redentora de Jesus Cristo, que,
trabalhando manualmente em Nazaré, conferiu especial dignidade ao trabalho.
Nisto se baseiam o dever e o direito ao trabalho. Compete à sociedade, concretamente, ajudar os cidadãos a
encontrar trabalho. Por sua vez, a remuneração do trabalho deve permitir que se leve dignamente a vida
material, social, cultural e espiritual, de acordo com a função e a produtividade de cada um, com as condições
da empresa e com o bem comum.
Como a atividade econômica, freqüentemente, associa a pessoa à produção, é iníquo e desumano organizá-la
em detrimento dos trabalhadores, escravizando-os praticamente ao que produzem. Nenhuma lei econômica o
justifica. Todo processo de produção precisa estar sujeito às necessidades da pessoa e se amoldar às suas
razões de viver, a começar pela vida familiar, levando-se em conta a idade e o sexo. É sobretudo importante
considerar à parte o caso das mulheres e das mães de família.
Os trabalhadores devem ter oportunidade de desenvolver seus dotes pessoais no próprio trabalho. Podem,
assim, aplicar ao trabalho seu tempo e suas forças, com a devida responsabilidade, sem prejuízo do tempo de
lazer necessário para que se dediquem à vida familiar, cultural, social e religiosa. Além disso, devem ter
oportunidade de desenvolver livremente suas forças e capacidades novas fora do mundo do trabalho.
68. Participação na empresa e na economia. Os conflitos trabalhistas - A empresa é uma associação de
pessoas livres e autônomas, criadas à imagem de Deus. De acordo, pois, com a função de cada um,
proprietários, diretores, gerentes ou trabalhadores, salva a necessária unidade de direção, deve-se promover a
participação ordenada de todos nas iniciativas a serem tomadas.
Como entretanto, na maioria das vezes, as decisões econômicas e sociais, de que depende a situação dos
trabalhadores e de suas famílias, não são tomadas na empresa, mas em nível muito mais alto, eles têm
também o direito de participar destas decisões, diretamente ou através de seus delegados.
O direito dos trabalhadores de criar livremente suas organizações é um dos direitos fundamentais da pessoa.
Quando essas organizações os representam de fato, contribuem enormemente para corrigir defeitos da
economia, e devem poder agir livremente, sem risco de represálias.
Esta participação, juntamente com a progressiva formação social e econômica, fará aumentar nos
trabalhadores a consciência de seu papel e de suas responsabilidades, de acordo com as possibilidades de cada
um, na busca do desenvolvimento econômico e social, e do seu dever de se comportar como associados na
promoção do bem comum do universo.
Quando surgem conflitos econômicos e sociais, deve-se procurar uma solução pacífica. Comece-se sempre por
negociar entre as partes, de maneira sincera. A greve deve ser reconhecida como um direito de defesa dos
trabalhadores, a que podem recorrer em último caso, voltando, porém, o quanto antes, à negociação.
35
69. Destinação universal dos bens a terra - Deus destinou a terra a todas as pessoas e povos, para que
aproveite a todos, segundo a justiça, acompanhada da caridade.
Independentemente das instituições legítimas de cada povo e das circunstâncias variáveis de tempo e lugar,
todas as formas de propriedade estão subordinadas a esse princípio de destinação universal dos bens da terra.
Por conseguinte, os que usam desses bens não os podem considerar simplesmente como seus, mas como bens
comuns, que devem aproveitar a todos, embora cada um tenha direito ao que lhe é suficiente para viver com
sua família.
Assim o ensinaram os padres e doutores da Igreja, fundamentando tanto a obrigação de vir em socorro dos
pobres, mesmo com o que não é supérfluo, como o direito de recorrer ao que é dos outros quando alguém se
encontra em estado de extrema necessidade.
Em face da fome no mundo, o Concílio relembra a todos, indivíduos e autoridades, a doutrina dos padres:
Alimente quem tem fome, para que você não seja culpado de sua morte. Dentro da possibilidade de cada um,
que os bens possuídos sejam realmente comunicados e empenhados, principalmente em favor das pessoas e
dos povos que podem se desenvolver com esse auxílio.
Nas sociedades economicamente menos desenvolvidas a destinação comum dos bens obedece a costumes e
tradições que asseguram o necessário a todos. Mas deve-se evitar que estas tradições se considerem imutáveis
quando deixam de corresponder às atuais exigências. Mesmo costumes perfeitamente honestos e
extremamente úteis devem se adaptar às circunstâncias.
Da mesma forma, nas nações economicamente desenvolvidas, o conjunto de instituições sociais de previdência
e seguridade social pode contribuir substancialmente para a efetivação do princípio da destinação universal dos
bens. Além disso, deve-se desenvolver os serviços familiares e sociais, especialmente de educação e cultura.
Mas em todas essas iniciativas procure-se evitar que os cidadãos, movidos pela inércia, deixem de cumprir seu
dever ou se recusem a trabalhar.
70. Investimentos de capital e problemas monetários - Os investimentos devem, como tais, criar
ocasiões de trabalho e oferecer um rendimento suficiente aos investidores, no presente e no futuro. Todos os
que intervêm no mercado financeiro - pessoas, sociedades e autoridades públicas - tenham presentes estes fins
e saibam estar obrigados a persegui-los, cuidando, por um lado, de proporcionar uma vida decente a cada um e
a todos, na comunidade, e, por outro, de prever o futuro de maneira a estabelecer um equilíbrio entre as atuais
necessidades do consumo, pessoal e coletivo, e as exigências de prover às gerações futuras.
Considerem igualmente as necessidades urgentes das nações ou das regiões menos desenvolvidas.
No que diz respeito às transações monetárias, respeitem o bem da nação e dos outros países, procurando
evitar que a inflação imponha sacrifícios injustos aos mais fracos.
71. O acesso de todos à propriedade e os latifúndios - A propriedade e a posse de bens exteriores são
expressões da pessoa, permitindo-lhe exercer seu papel na sociedade e na economia. Daí a importância de
todos, pessoas e comunidades, terem acesso à propriedade.
A propriedade privada e o domínio sobre as coisas criam um espaço necessário à autonomia pessoal e familiar
e devem ser considerados como uma extensão da liberdade. Estimulam o exercício dos deveres e dos direitos e
consolidam as liberdades civis.
As formas de domínio ou de propriedade são inúmeras e se diversificam cada dia mais. Em todas as
circunstâncias, porém, os fundos sociais, os direitos e os serviços garantidos pela sociedade, constituem uma
segurança que não pode ser desprezada. Falamos aqui não apenas de propriedades materiais, mas também dos
bens imateriais, possuídos pelos profissionais.
O direito privado de domínio não contraria as diversas formas de propriedade pública. A desapropriação só
pode ser feita pela autoridade competente, em função das exigências do bem comum, e mediante congruente
compensação. Compete igualmente à autoridade evitar que se abuse do direito de propriedade, em detrimento
do bem comum.
A propriedade privada tem uma função social, baseada no princípio da destinação comum de todos os bens.
Quando não se reconhece a devida importância a esta sua função social, a propriedade se torna ocasião de
cupidez e desordem, dando razão àqueles que a combatem.
Em muitas regiões subdesenvolvidas, há enormes latifúndios mal-explorados ou completamente abandonados
por razões especulativas, enquanto, por outro lado, a maioria da população carece de terra, ou só dispõe de
propriedades mínimas. Urge a necessidade de aumentar a produção agrícola.
Nessas circunstâncias, em geral, os trabalhadores ou arrendatários recebem uma remuneração indigna, moram
em péssimas condições e dependem de intermediários. Carentes de toda segurança, praticamente em regime
de escravidão, quase sem nenhuma liberdade nem responsabilidade, excluídos completamente da participação
na vida social e política.
Impõem-se, então, nesses casos, profundas reformas, para que cresça a renda, corrija-se a situação dos
trabalhadores, aumente a segurança de todos, incentivem-se a atividade agrícola e distribuam-se as terras
incultas, a fim de que se tornem produtivas. Deve-se então fornecer a todos meios e instrumentos necessários,
especialmente do ponto de vista da educação e desenvolvimento das relações de cooperativas.
Sempre que o bem comum exigir a desapropriação, deve-se reconhecer uma compensação eqüitativa, a ser
determinada de acordo com as circunstâncias.
72. A atividade econômico-social e o reino de Cristo - Participando ativamente do desenvolvimento
econômico-social e lutando pela justiça e pela caridade, os cristãos estão convencidos de que contribuem
significativamente para a prosperidade humana e para o progresso do mundo. Dão exemplo, como indivíduos e
como comunidade de pessoas. Tendo adquirido os conhecimentos e a experiência necessários, respeitem a
ordem das coisas terrestres e sejam fiéis a Cristo e a seu Evangelho, de maneira que toda sua vida, tanto
individual como social, seja compenetrada pelo espírito das beatitudes, especialmente, pelo espírito de pobreza.
Todo aquele que, obedecendo a Cristo, busca, em primeiro lugar, o reino de Deus, tem acesso a um amor mais
puro e mais forte, que o leva a ajudar os irmãos e a cumprir a justiça, inspirada na caridade.
73. A vida pública - Todos os povos passam hoje por transformações profundas, conseqüência da evolução
cultural, econômica e social, que acabam afetando suas estruturas e instituições. Essas transformações
repercutem fortemente na vida da comunidade política, de maneira particular no que diz respeito aos direitos e
36
deveres ligados ao exercício da liberdade civil, ao bem comum, à relação dos cidadãos entre si e com a
autoridade pública.
A consciência mais aguda da dignidade humana, em um número crescente de países, suscita o desejo de
instaurar uma ordem político-jurídica em que se preservem os direitos pessoais, como o de se reunir, de se
associar, de opinar e de professar livremente uma religião, privada e publicamente. A proteção jurídica das
pessoas é condição indispensável para que os cidadãos formem partidos capazes de participar ativamente da
vida pública e do poder.
Juntamente com o desenvolvimento cultural, econômico e social, vem a vontade de assumir maior
responsabilidade no ordenamento da coisa pública. Cresce a consciência de que é preciso respeitar o direito das
minorias, ao mesmo tempo que se exige delas o cumprimento de suas obrigações para com a comunidade
política. Aumenta igualmente o respeito para com as pessoas de opinião ou religião diversas, estabelecendo-se
entre os cidadãos um laço mais amplo de cooperação, de modo que todos possam usufruir dos direitos pessoais
e não apenas os privilegiados.
Rejeitam-se todos os regimes que prevalecem em certos países, contrários à liberdade civil e religiosa, que
fazem tantas vítimas de ambições e crimes políticos e se desviam do bem comum, em benefício de alguns
grupos ou dos próprios governantes.
Nada é tão necessário à instauração de uma vida política verdadeiramente humana como o senso pessoal de
justiça, benevolência e serviço, a convicção formada a respeito da natureza e dos fins da comunidade política e
do reto exercício da autoridade e de seus limites.
74. Natureza e fim da comunidade política - As pessoas, as famílias e os diversos grupos que constituem a
comunidade civil têm consciência de que não se bastam a si mesmos. Precisam de uma comunidade maior que
promova, com a contribuição de todos, o bem comum a todos. Surgem assim as várias formas de comunidade
política, em função do bem comum, que, ao mesmo tempo as justifica, lhes dá sentido e constitui o
fundamento de seus direitos. O bem comum é o conjunto das condições sociais de vida que permitem às
pessoas, famílias e grupos humanos se realizar amplamente, da maneira mais perfeita possível.
Os membros da comunidade política são numerosos e uns diferentes dos outros, podendo pensar e agir de
modo muito diversos. Mas para que a comunidade política não se desfaça, seguindo cada um sua opinião, é
necessária uma autoridade que oriente os cidadãos para o bem comum, não de maneira mecânica ou
despótica, mas, principalmente pela força moral, que se apóia na consciência da liberdade e do dever
assumido.
A comunidade política e a autoridade se fundam, pois, na natureza humana e, como tal, provêm de Deus. Mas
a forma de governo e a designação dos governantes foi deixada à livre decisão dos cidadãos.
Segue-se, igualmente, que o exercício da autoridade política, quer na comunidade, quer através de instituições
que a representem, deve se fazer sempre dentro dos limites da ordem moral, para promover o bem comum,
numa perspectiva dinâmica, de acordo com a ordem jurídica estabelecida ou a se estabelecer. Nessas
circunstâncias, os cidadãos estão, em consciência, obrigados a obedecer. Daí a responsabilidade, a dignidade e
a importância dos que exercem o poder.
Quando porém a autoridade pública se impõe aos cidadãos fora dos limites de sua competência, estes não
devem se recusar, desde que haja uma exigência objetiva do bem comum, mas podem defender os seus
direitos do abuso de autoridade, apelando para os concidadãos, dentro dos limites indicados pela lei natural e
evangélica.
De maneira concreta, a comunidade política e o exercício da autoridade variam de acordo com a índole e a
história de cada povo, mas devem ter sempre por objetivo favorecer o desabrochamento de pessoas amantes
da paz e dispostas a prestar serviço aos outros, em benefício de toda a família humana”.
Nota:43
cf. SRS, n.36: “Por conseguinte, é preciso acentuar que um mundo dividido em blocos, mantidos por ideologias
rígidas, onde, em lugar da interdependência e da solidariedade, dominam diferentes formas de imperialismo,
não pode deixar de ser um mundo submetido a estruturas de pecado. O conjunto dos fatores negativos, que
agem em sentido contrário a uma verdadeira consciência do bem comum universal e à exigência de o
favorecer, dá a impressão de criar, nas pessoas e nas instituições, um obstáculo difícil de superar.
Se a situação atual se deve atribuir a dificuldades de índole diversa, não será fora de propósito falar de
estruturas de pecado, as quais, como procurei mostrar na Exortação Apostólica Reconciliatio et Paenitentia, se
radicam no pecado pessoal e, por conseqüência, estão sempre ligadas a atos concretos das pessoas, que as
fazem aparecer, as consolidam e tornam difícil removê-las. E, assim, elas reforçam-se, expandem-se e tornam-
se fontes de outros pecados, condicionando o comportamento dos homens.
Pecado e estruturas de pecado são categorias que não se vê com freqüência aplicar à situação do mundo
contemporâneo. E, no entanto, não se chegará facilmente à compreensão profunda da realidade, conforme ela
se apresenta aos nossos olhos, sem dar um nome à raiz dos males que nos afligem.
É certo que se pode falar de egoísmo e de vistas curtas; pode-se fazer referência a cálculos políticos errados, a
decisões econômicas imprudentes. E em cada uma destas avaliações nota-se que há um eco de natureza ético-
moral. A condição do homem é tal que torna difícil uma análise mais profunda das ações e das omissões das
pessoas, sem implicar, de uma maneira ou de outra, juízos ou referências de ordem ética.
Esta avaliação, por si, é positiva, sobretudo quando se torna inteiramente coerente e quando se fundamenta na
fé em Deus e na sua lei que ordena o bem e proíbe o mal.
É nisto que consiste a diferença entre o tipo de análise sócio-política e a referência formal ao pecado e às
estruturas de pecado. Segundo esta última maneira de ver, são tidas em consideração: a vontade de Deus três
vezes Santo; o seu plano sobre os homens; e a sua justiça e a sua misericórdia. Deus, rico em misericórdia,
redentor do homem, Senhor e doador da vida, exige da parte dos homens atitudes precisas, que se exprimem
também em ações ou omissões que concernem ao próximo. E isto está em relação com a segunda tábua dos
dez mandamentos (cf. Ex 20,12-17; Dt 5,16-21): com a inobservância destes, ofende- se a Deus e prejudica-
se o próximo, introduzindo no mundo condicionamentos e obstáculos, que vão muito além das ações de uma
pessoa e do breve período da sua vida. Interfere-se igualmente no processo do desenvolvimento dos povos,
cujo atraso ou cuja lentidão devem ser julgados também sob essa luz”.
Nota:44
37
cf. SRS, n.14: “A primeira verificação negativa a fazer é a da persistência e, muitas vezes, a do alargamento,
do fosso entre a área do chamado Norte desenvolvido e a do Sul em vias de desenvolvimento. Esta tecnologia
geográfica tem apenas valor indicativo, porque não se pode ignorar que as fronteiras da riqueza e da pobreza
passam pelo interior das próprias cidades, quer desenvolvidas, quer em vias de desenvolvimento. De fato,
assim como existem desigualdades sociais até aos extremos da miséria em países ricos, assim, em
contraposição, nos países menos desenvolvidos também se vêem, não raro, manifestações de egoísmo e de
ostentação de riqueza, tão desconcertantes quanto escandalosas.
A abundância de bens e de serviços disponíveis nalgumas partes do mundo, sobretudo no Norte desenvolvido,
corresponde um inadmissível atraso no Sul; e é precisamente nesta faixa geopolítica que vive a maior parte do
gênero humano.
Quando se repara na gama dos diversos setores produção e distribuição dos víveres, higiene, saúde e
habitação, disponibilidade de água potável, condições de trabalho, especialmente feminino, duração da vida e
outros índices econômicos e sociais , o quadro, no seu conjunto, apresenta-se desolador, quer considerando-o
em si mesmo, quer em relação aos dados correspondentes dos países mais desenvolvidos. A palavra fosso volta
espontaneamente aos lábios.
Talvez não seja este o termo mais apropriado para designar a verdadeira realidade, enquanto pode dar a
impressão de um fenômeno estacionário. E não é assim. Na caminhada dos países desenvolvidos e em vias de
desenvolvimento verificou-se nestes anos uma diferente velocidade de aceleração, que contribuiu para
aumentar as distâncias. Deste modo, os países em vias de desenvolvimento, especialmente os mais pobres,
encontram-se hoje numa situação de gravíssimo atraso.
A isto há que acrescentar ainda as diferenças de cultura e dos sistemas de valores entre os vários grupos de
população, que nem sempre coincidem com o grau de desenvolvimento econômico, mas que contribuem
também para criar distâncias. São estes os elementos e aspectos que tornam muito mais complexa a questão
social, precisamente porque ela adquiriu uma dimensão universal.
Quando se olha para as várias partes do mundo, separadas pela crescente distância desse fosso, e quando se
observa que cada uma delas parece seguir um rumo próprio, com as suas realizações particulares,
compreende-se a razão por que, na linguagem corrente, se fala de mundos diferentes dentro do nosso único
mundo: Primeiro Mundo, Segundo Mundo, Terceiro Mundo e, algumas vezes, Quarto Mundo. Expressões como
estas, que não pretendem, por certo, classificar de modo exaustivo todos os países, não deixam de ser
significativas: são o sinal da sensação difundida de que a unidade do mundo, em outras palavras, a unidade do
gênero humano está seriamente comprometida. Esta maneira de falar, além do seu valor mais ou menos
objetivo, encobre sem dúvida um conteúdo moral, diante do qual a Igreja, que é sacramento ou sinal e
instrumento... da unidade de todo o gênero humano, não pode ficar indiferente”.
Nota:45
cf. Gaudium et Spes, 78: “A paz é obra da justiça (Is 32, 7). Não se limita, pois, à mera ausência de guerra,
nem tampouco ao equilíbrio de forças entre os adversários, e, muito menos, ao domínio absoluto de um sobre o
outro. Fruto da ordem humana prevista para a sociedade pelo seu divino fundador, é chamada a ser
progressivamente realizada pelos seres humanos em busca de uma justiça sempre maior.
O bem comum do gênero humano tem por fundamento a lei eterna, mas suas exigências concretas estão
sujeitas a constantes modificações através dos tempos, de tal forma que a paz nunca será definitivamente
alcançada, mas deverá ser sempre, constantemente, procurada. Além disso, a fraqueza da vontade humana,
acentuada ainda mais pelo pecado, faz com que a busca da paz exija de todos o domínio das paixões e, das
autoridades, vigilância sem descanso.
Mas não basta. A paz não se pode obter na terra a não ser pela preservação do bem das pessoas e pela
comunicação generosa e confiante, a todos, dos dons e das riquezas espirituais de cada um. São necessárias,
para que haja paz, a vontade firme de respeitar a dignidade das pessoas e povos e disposição efetiva de
exercer a fraternidade. A paz, além da justiça, é fruto do amor.
A paz na terra, que brota do amor ao próximo, é sinal e reflexo da paz de Cristo, que tem sua fonte em Deus
Pai. O próprio Filho encarnado, príncipe da paz, reconciliou com Deus toda a humanidade, na cruz, e a todos
ofereceu a unidade, para que se reunissem num só povo, num só corpo, tendo vencido o ódio em sua própria
carne1 e, exaltado pela ressurreição, derramado o Espírito de amor em todos os corações.
Todos os cristão são insistentemente chamados a praticar a verdade no amor (Ef 4, 15), a se unir aos homens
verdadeiramente pacíficos, a orar pela paz e a procurar implantá-la.
Movidos pelo mesmo espírito, não podemos deixar de louvar aqueles que renunciam à ação violenta na defesa
dos direitos humanos, e recorrem a meios que estão ao alcance, inclusive dos mais fracos, sem prejuízo dos
direitos dos outros e das obrigações para com a comunidade.
Enquanto forem pecadores, até o advento de Cristo, os seres humanos correm o risco da guerra. Na medida,
porém, em que, unidos pela caridade, superarem o pecado, superarão também a violência e se verificará a
palavra do profeta: De suas espadas eles fabricarão enxadas e de suas lanças farão foices. Nenhuma nação
pegará em armas contra outras e ninguém mais vai se preparar para a guerra (Is 2, 4)”.
SR, n.38: “É um caminho longo e complexo, e, além disso, encontra-se sob constante ameaça, quer pela
intrínseca fragilidade dos desígnios e realizações humanas, quer pela mutabilidade das circunstâncias externas
assaz imprevisíveis. Todavia, é preciso ter a coragem de enveredar por ele e, se já tiverem sido dados alguns
passos, ou já tiver sido percorrida uma parte do trajeto, ir até o fim.
No contexto destas reflexões, a decisão de pôr-se a caminho ou de continuar a marcha comporta, antes de
tudo, um valor moral que os homens e as mulheres que acreditam em Deus reconhecem como requerido pela
vontade divina, único e verdadeiro fundamento de uma ética absolutamente vinculante.
É para desejar que mesmo os homens e as mulheres desprovidos de uma fé explicita venham a convencer-se
de que os obstáculos interpostos ao desenvolvimento integral não são apenas de ordem econômica, mas
dependem de atitudes mais profundas que, para o ser humano, se configuram em valores absolutos. Por isso, é
de esperar que todos aqueles que em relação aos seus semelhantes são responsáveis, de uma maneira ou de
outra, por uma vida mais humana, inspirados ou não por uma fé religiosa, se dêem plenamente conta da
urgente necessidade de uma mudança das atitudes espirituais, que determinam o comportamento de cada
homem naquilo que diz respeito a si mesmo e nas relações com o próximo, com as comunidades humanas,
38
mesmo as mais distantes, e com a natureza; e isto em virtude de valores superiores, como o bem comum, ou,
para repetir a feliz expressão da Encíclica Populorum Progressio, o pleno desenvolvimento do homem todo e de
todos os homens.
Para os cristãos, como para todos aqueles que reconhecem o significado teológico preciso da palavra pecado, a
mudança de comportamento, de mentalidade ou de maneira de ser chama-se, na linguagem bíblica, conversão
(cf. Mc 1,15; Lc 13,3.5; Is 30,15). Esta conversão designa especificamente uma relação com Deus, com a culpa
cometida e com as suas conseqüências; e, portanto, relação com o próximo, indivíduo ou comunidade. É Deus
em cujas mãos estão os corações dos poderosos e os de todos os homens, que pode, segundo a sua própria
promessa, transformar por obra do seu Espírito os corações de pedra em corações de carne (cf. Ez 36,26).
No caminho da desejada conversão, rumo à superação dos obstáculos morais para o desenvolvimento, pode-se
já apontar, como valor positivo e moral, a consciência crescente da interdependência entre os homens e as
nações. O fato de os homens e as mulheres, em várias partes do mundo, sentirem como próprias as injustiças
e as violações dos direitos humanos cometidas em países longínquos, que talvez nunca visitem, é mais um sinal
de uma realidade interiorizada na consciência, adquirindo assim uma conotação moral.
Trata-se antes de tudo da interdependência apreendida como sistema determinante de relações no mundo
contemporâneo, com as suas componentes econômica, cultural, política e religiosa e assumida como categoria
moral. Quando a interdependência é reconhecida assim, a resposta correlativa, como atitude moral e social e
como virtude, é a solidariedade. Esta, portanto, não é um sentimento de compaixão vaga ou de enternecimento
superficial pelos males sofridos por tantas pessoas, próximas ou distantes. Pelo contrário, é a determinação
firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum; ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque
todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos. Esta determinação está fundada na firme convicção
de que as causas que entravam o desenvolvimento integral são aquela avidez do lucro e aquela sede do poder
de que se falou. Estas atitudes e estas estruturas de pecado só poderão ser vencidas pressupondo o auxilio da
graça divina com uma atitude diametralmente oposta: a aplicação em prol do bem do próximo, com a
disponibilidade, em sentido evangélico, para perder-se em beneficio do próximo em vez de o explorar, e para
servi-lo em vez de o oprimir para proveito próprio (cf. Mt 10,40-42; 20,25; Mc 10,42-45; Lc 22,25-27)”.
Nota:46
cf. RH, n16: “Não será fácil avançar, porém, neste difícil caminho, no caminho da indispensável transformação
das estruturas da vida econômica, se não intervier uma verdadeira conversão das mentes, das vontades e dos
corações. A tarefa exige a aplicação decidida de homens e de povos livres e solidários. Com muita freqüência se
confunde a liberdade com instinto do interesse individual e coletivo, ou ainda com o instinto de luta e de
domínio, quaisquer sejam as cores ideológicas de que eles se revistam. É óbvio que esses instintos existem e
operam, mas não será possível ter-se uma economia verdadeiramente humana, se eles não forem assumidos,
orientados e dominados pelas forças mais profundas que se encontram no homem, e que são aquelas que
decidem da verdadeira cultura dos povos”.
Nota:47
LE, n.8: “Ao tratar-se do trabalho humano, encarado pela dimensão fundamental do seu sujeito, isto é, do
homem-pessoa que executa esse trabalho, partindo deste ponto de vista deve fazer-se uma apreciação pelo
menos sumária dos processos que se verificaram, ao longo dos noventa anos transcorridos após a Encíclica
Rerum Novarum, em relação com a dimensão subjetiva do trabalho. Com efeito, embora o sujeito do trabalho
seja sempre o mesmo, isto é, o homem, deram-se todavia notáveis modificações quanto ao aspecto objetivo do
mesmo trabalho. E embora se possa dizer que o trabalho, em razão do seu sujeito, é um (um e, de cada vez
que é feito, irrepetível), todavia, considerando os seus sentidos objetivos, tem de se reconhecer que existem
muitos trabalhos: um grande número de trabalhos diversos. O desenvolvimento da civilização humana
proporciona neste campo um enriquecimento continuo. Ao mesmo tempo, porém, não se pode deixar de notar
que, no processar-se de tal desenvolvimento, não somente aparecem novas formas de trabalho humano, mas
há também outras que desaparecem. Admitindo muito embora, em princípio, que isto é um fenômeno normal,
importa, no entanto, ver se nele não se intrometem, e em que medida, certas irregularidades que podem ser
perigosas, por motivos ético-sociais.
Foi precisamente por causa de uma dessas anomalias com grande alcance que nasceu, no século passado, a
chamada questão operária, definida por vezes como questão proletária. Tal questão bem como os problemas
com ela ligados deram origem a uma justa reação social e fizeram com que surgisse e, poder-se-ia mesmo
dizer, com que irrompesse um grande movimento de solidariedade entre os homens do trabalho e, em primeiro
lugar, entre os trabalhadores da indústria. O apelo à solidariedade e à ação comum lançado aos homens do
trabalho sobretudo aos do trabalho setorial, monótono e despersonalizante nas grandes instalações industriais,
quando a máquina tende a dominar sobre o homem tinha um seu valor importante e uma eloqüência própria,
sob o ponto de vista da ética social. Era a reação contra a degradação do homem como sujeito do trabalho e
contra a exploração inaudita que a acompanhava, no campo dos lucros, das condições de trabalho e de
previdência para a pessoa do trabalhador. Tal reação uniu o mundo operário numa convergência comunitária,
caracterizada por uma grande solidariedade.
Na esteira da Encíclica Rerum Novarum e dos numerosos documentos do Magistério da Igreja que se lhe
seguiram, francamente tem de se reconhecer que se justificava, sob o ponto de vista da moral social, a reação
contra o sistema de injustiça e de danos que bradava ao céu vingança e que pesava sobre o homem do
trabalho nesse período de rápida industrialização. Este estado de coisas era favorecido pelo sistema sócio-
político liberal que, segundo suas premissas de economismo, reforçava e assegurava a iniciativa econômica
somente dos possuidores do capital, mas não se preocupava suficientemente com os direitos do homem do
trabalho, afirmando que o trabalho humano é apenas um instrumento de produção, e que o capital é o
fundamento, coeficiente e a finalidade da produção.
Desde então, a solidariedade dos homens do trabalho e, simultaneamente, uma tomada de consciência mais
clara e mais compromissória pelo que respeita aos direitos dos trabalhadores da parte dos outros, produziu em
muitos casos mudanças profundas. Foram excogitados diversos sistemas novos. Desenvolveram-se diversas
formas de neo-capitalismo ou de coletivismo. E, não raro, os homens do trabalho passam a ter a possibilidade
de participar e participam efetivamente na gestão e no controle da produtividade das empresas. Por meio de
associações apropriadas, eles passam a ter influência no que respeita às condições de trabalho e de
39
remuneração, bem como quanto à legislação social. Mas, ao mesmo tempo, diversos sistemas fundados em
ideologias ou no poder, como também novas relações que foram surgindo nos vários níveis da convivência
humana, deixaram persistir injustiças flagrantes ou criaram outras novas. A nível mundial, o desenvolvimento
da civilização e das comunicações tornou possível uma diagnose mais completa das condições de vida e de
trabalho do homem no mundo inteiro, mas tornou também patentes outras formas de injustiça, bem mais
amplas ainda do que aquelas que no século passado haviam estimulado a união dos homens do trabalho para
uma particular solidariedade no mundo operário. E isto assim, nos países em que já se realizou certo processo
de revolução industrial; e assim igualmente nos países onde o local de trabalho que predomina continua sendo
o da cultura da terra ou de outras ocupações congêneres.
Movimentos de solidariedade no campo do trabalho de uma solidariedade que não há de nunca ser fechamento
para o diálogo e para a colaboração com os demais podem ser necessários, mesmo pelo que se refere às
condições de grupos sociais que anteriormente não se achavam compreendidos entre estes movimentos, mas
que vão sofrendo no meio dos sistemas sociais e das condições de vida que mudam uma efetiva proletarização,
ou mesmo que se encontram realmente já numa condição de proletariado que, embora não seja chamada ainda
com este nome, de fato, é tal que o merece. Podem encontrar-se nesta situação algumas categorias ou grupos
da inteligência do trabalho, sobretudo quando, simultaneamente com um acesso cada vez mais ampliado à
instrução e com o número sempre crescente das pessoas que alcançaram diplomas pela sua preparação
cultural, se verifica uma diminuição de procura do trabalho destas pessoas. Tal desemprego dos intelectuais
sucede ou aumenta: quando a instrução acessível não está orientada para os tipos de emprego ou de serviços
que são requeridos pelas verdadeiras necessidades da sociedade; ou quando o trabalho para o qual se exige a
instrução, pelo menos profissional, é menos procurado è menos bem pago do que um trabalho braçal. É
exidente que a instrução, em si mesma, constitui sempre um valor e um enriquecimento importante da pessoa
humana; contudo, independentemente deste fato, continuam sendo possíveis certos processos de
proletarização.
Assim, é necessário prosseguir interrogando-se sobre o sujeito do trabalho e sobre as condições da sua
existência. Para se realizar a justiça social nas diversas partes do mundo, nos vários países e nas relações entre
eles, é preciso que haja sempre novos movimentos de solidariedade dos homens do trabalho e de solidariedade
com os homens do trabalho. Tal solidariedade deverá fazer sentir a sua presença onde a exijam a degradação
social do homem-sujeito do trabalho, a exploração dos trabalhadores e as zonas crescentes de miséria e
mesmo de fome. A Igreja acha-se vivamente empenhada nesta causa, porque a considera como sua missão,
seu serviço e como uma comprovação da sua fidelidade a Cristo, para assim ser verdadeiramente a Igreja dos
pobres. E os pobres aparecem sob variados aspectos; aparecem em diversos lugares e em diferentes
momentos; aparecem, em muitos casos, como um resultado da violação da dignidade do trabalho humano: e
isso, quer porque as possibilidades do trabalho humano são limitadas, e há a chaga do desemprego quer
porque são depreciados o valor do mesmo trabalho e os direitos que dele derivam, especialmente o direito ao
justo salário e à segurança da pessoa do trabalhador e da sua família”.
CNBB, Igreja: Comunhão e Missão 161: “Junto ao direito de organização sindical, o Magistério da Igreja
sempre reconheceu o direito de greve como meio “legítimo, observadas as devidas condições e nos justos
limites”. Este direito é necessário, ainda que último, para defesa dos próprios direitos e a realização das
reivindicações justas dos trabalhadores. No contexto do “conflito real entre capital e trabalho”, mostra-se o
sentido moral do sindicato como “um expoente da luta pela justiça social, pelos justos direitos dos homens do
trabalho, luta essa que deve ser compreendida como um empenho normal das pessoas 'em prol' do justo bem e
não como uma luta contra os outros”. Entretanto, a Doutrina Social da Igreja recusa a interpretação marxista
da luta de classes transformada numa estratégia absoluta de conquista do poder, mesmo admitindo que as
lutas, como fato e meio, sejam parte do processo de construção da justiça social”.
Nota:48
Ao, n.47: “A passagem à dimensão política exprime também um requisito atual do homem: uma maior
participação nas responsabilidades e nas decisões. Esta aspiração legítima manifesta-se sobretudo à medida
que se eleva o nível cultural que se desenvolve o sentido da liberdade e que o homem se apercebe melhor de
como, num mundo aberto para um futuro incerto, as opções de hoje condicionam já a vida de amanhã. Assim
João XXIII, na Encíclica Mater et Magistra fazia notar que um tal acesso às responsabilidades é uma exigência
fundamental da natureza do homem, um exercício concreto da sua liberdade, uma via para o desenvolvimento
e ademais, indicava como é que na vida econômica e em particular nas empresas, esta participação nas
responsabilidades devia ser garantida.
Hoje o âmbito de tal participação é mais vasto; ele estende-se também ao campo social e político, em que
igualmente tem de ser instituída e intensificada uma compartilha razoável nas responsabilidades e nas
decisões. É certo que as alternativas propostas à decisão são cada vez mais complexas; as considerações a ter
em conta são múltiplas e a previsão das conseqüências é aleatória, se bem que ciências novas se esforcem por
iluminar a liberdade nestes momentos importantes. No entanto, apesar das limitações que por vezes se
impõem, estes obstáculos não devem reprimir uma difusão maior na comparticipação, no elaborar das
decisões, na sua eleição e no pô-las em prática. Para contrabalançar uma tecnocracia crescente, torna-se
necessário criar formas de democracia moderna, que não somente proporcione a cada homem a possibilidade
de informar-se e de exprimir-se, mas também que o leve a comprometer-se numa responsabilidade comum.
Deste modo, transformar-se-ão os grupos humanos, pouco a pouco, em comunidades de comparticipação e de
vida. A liberdade que se afirma muitíssimas vezes como reivindicação de autonomia em oposição à liberdade de
outrem, desabrochará na realidade humana mais profunda: comprometer-se e prodigalizar-se, para chegar a
construir as solidariedades ativas e vividas. Mas, para o cristão é ao perder-se em Deus que o liberta, que o
homem encontra uma verdadeira liberdade, renovada na morte e ressurreição do Senhor”.
Nota:49
cf. Gn 1,25-26: “E Deus fez as feras da terra, cada uma conforme a sua espécie; os animais domésticos, cada
um conforme a sua espécie; e os répteis do solo, cada um conforme a sua espécie. E Deus viu que era bom.
Então Deus disse: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Que ele domine os peixes do mar, as
aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra”.
Nota:50
40
cf. Rm 8,32: “Ele não poupou seu próprio Filho, mas o entregou por todos nós. Como não nos dará também
todas as coisas junto com o seu Filho?”.
Nota:51
Jo 13,1: “Antes da festa da Páscoa, Jesus sabia que tinha chegado a sua hora. A hora de passar deste mundo
para o Pai. Ele, que tinha amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim”.
Nota:52
Rm 8,16: “O próprio Espírito assegura ao nosso espírito que somos filhos de Deus”.
Nota:53
Estas considerações são desenvolvidas pelo documento de Puebla, 211-215 para fundamentar sua visão de
comunhão e participação na sociedade e na Igreja. A comunhão, que nasce da SSma. Trindade, não é apenas o
ideal de vida da Igreja, mas aspiração profunda de toda a sociedade humana, o que exige transformação
também das estruturas sociais (ver Puebla, 327).
Puebla 211-215; 327: “211. Depois da proclamação de Cristo que nos revela o Pai e nos dá seu Espírito,
chegamos a descobrir as raízes últimas de nossa comunhão e participação.
212. Revela-nos Cristo que a vida divina é comunhão trinitária. Pai, Filho e Espírito vivem, em perfeita
intercomunhão de amor, o mistério supremo da unidade. Daqui procede todo amor e toda comunhão, para a
grandeza e dignidade da existência humana.
213. Por Cristo, único Mediador, participa a humanidade da vida trinitária. Cristo hoje sobretudo por sua
atividade pascal, nos leva a participar do mistério de Deus. Por sua solidariedade conosco, nos torna capazes de
vivificar pelo amor nossa atividade e transformar nosso trabalho e nossa história em gesto litúrgico, isto é, de
sermos protagonistas com ele da construção da convivência e das dinâmicas humanas que refletem o mistério
de Deus e constituem sua glória que vive.
214. Por Cristo, com ele e nele, passamos a participar da comunhão de Deus. Não há outro caminho que leve
até ao Pai. Vivendo em Cristo, chegamos a ser seu corpo místico, seu povo, povo de irmãos, unidos pelo amor
que derrama em nossos corações o Espírito. Esta é a comunhão à qual chama o Pai por Cristo e por seu
Espírito. Para ela se orienta toda a história da salvação e nela se consuma o desígnio amoroso do Pai que nos
criou.
215. A comunhão que se há de construir entre os homens abrange-lhes todo o ser desde as raízes do amor, e
há de se manifestar em toda a sua vida, até na sua dimensão econômica, social e política. Produzida pelo Pai, o
Filho e o Espírito é a comunicação de sua própria comunhão trinitária.
327. O amor de Deus que nos dignifica radicalmente se faz necessariamente comunhão de amor com os outros
homens e participação fraterna; para nós, hoje em dia, deve tornar-se sobretudo obra de justiça para com os
oprimidos, esforço de libertação para quem mais precisa. De fato, “ninguém pode amar a Deus a quem não vê,
se não ama o irmão a quem vê” (l Jo 4,20). Todavia a comunhão e a participação verdadeiras só podem existir
nesta vida projetadas no plano bem concreto das realidades temporais, de tal modo que o domínio, o uso e a
transformação dos bens da terra, dos bens da cultura, da ciência e da técnica se vão realizando em um justo e
fraterno domínio do homem sobre o mundo, tendo-se em conta o respeito da ecologia. O Evangelho nos deve
ensinar, em face das realidades em que vivemos imersos, que não se pode atualmente na AL amar de verdade
o irmão nem portanto a Deus sem que o homem se comprometa em nível pessoal e, em muitos casos, até em
nível estrutural com o serviço e promoção dos grupos humanos e dos estratos sociais mais pobres e
humilhados, arcando com todas as conseqüências que se seguem no plano destas realidades temporais”.
Nota:54
cf. Gl 4,1-5,1: “Vou dar outro exemplo: durante todo o tempo em que o herdeiro é criança, embora seja dono
de tudo, é como se fosse um escravo. Até chegar a data fixada por seu pai, ele fica sob tutores e pessoas que
administram seus negócios. O mesmo aconteceu conosco: éramos como crianças e andávamos como escravos,
submetidos aos elementos do mundo. Quando, porém, chegou a plenitude do tempo, Deus enviou o seu Filho.
Ele nasceu de uma mulher, submetido à Lei”.
Nota:55
Gl 3,28: “Não há mais diferença entre judeu e grego, entre escravo e homem livre, entre homem e mulher,
pois todos vocês são um só em Jesus Cristo”.
Nota:56
cf. Mt 23,8: “Quanto a vocês, nunca se deixem chamar de mestre, pois um só é o Mestre de vocês, e todos
vocês são irmãos”.
Nota:57
Dt 15,4: “É verdade que no meio de você não haverá nenhum pobre, porque Javé vai abençoar você na terra
que Javé seu Deus dará a você, para que a possua como herança”.
cf. At 4,35: “e o colocavam aos pés dos apóstolos; depois, ele era distribuído a cada um conforme a sua
necessidade”.
Nota:58
cf. Lc 10,36-37: “Na sua opinião, qual dos três foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes? O
especialista em leis respondeu: Aquele que praticou misericórdia para com ele. Então Jesus lhe disse: Vá, e
faça a mesma coisa”.
Nota:59
cf. Mt 25,31-45: “Quando o Filho do Homem vier na sua glória, acompanhado de todos os anjos, então se
assentará em seu trono glorioso. Todos os povos da terra serão reunidos diante dele, e ele separará uns dos
outros, assim como o pastor separa as ovelhas dos cabritos. E colocará as ovelhas à sua direita, e os cabritos à
sua esquerda. Então o Rei dirá aos que estiverem à sua direita: Venham vocês, que são abençoados por meu
Pai. Recebam como herança o Reino que meu Pai lhes preparou desde a criação do mundo. Pois eu estava com
fome, e vocês me deram de comer; eu estava com sede, e me deram de beber; eu era estrangeiro, e me
receberam em sua casa; eu estava sem roupa, e me vestiram; eu estava doente, e cuidaram de mim; eu
estava na prisão, e vocês foram me visitar. Então os justos lhe perguntarão: Senhor, quando foi que te vimos
com fome e te demos de comer, com sede e te demos de beber? Quando foi que te vimos como estrangeiro e
te recebemos em casa, e sem roupa e te vestimos? Quando foi que te vimos doente ou preso, e fomos te
41
visitar? Então o Rei lhes responderá: Eu garanto a vocês: todas as vezes que vocês fizeram isso a um dos
menores de meus irmãos, foi a mim que o fizeram.
Depois o Rei dirá aos que estiverem à sua esquerda: Afastem-se de mim malditos. Vão para o fogo eterno,
preparado para o diabo e seus anjos. Porque, eu estava com fome, e vocês não me deram de comer; eu estava
com sede, e não me deram de beber; eu era estrangeiro, e vocês não me receberam em casa; eu estava sem
roupa, e não me vestiram; eu estava doente e na prisão, e vocês não me foram visitar. Também estes
responderão: Senhor, quando foi que te vimos com fome, ou com sede, como estrangeiro, ou sem roupa,
doente ou preso, e não te servimos? Então o Rei responderá a esses: Eu garanto a vocês: todas as vezes que
vocês não fizeram isso a um desses pequeninos, foi a mim que não o fizeram”.
Nota:60
cf. Mt 5,1-10: “Jesus viu as multidões, subiu à montanha e sentou-se. Os discípulos se aproximaram, e Jesus
começou a ensiná-los: Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino do Céu. Felizes os aflitos, porque
serão consolados. Felizes os mansos, porque possuirão a terra. Felizes os que têm fome e sede de justiça,
porque serão saciados. Felizes os que são misericordiosos, porque encontrarão misericórdia. Felizes os puros de
coração, porque verão a Deus. Felizes os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus. Felizes
os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino do Céu”.
Lc 6,20-23: “Levantando os olhos para os discípulos, Jesus disse: Felizes de vocês, os pobres, porque o Reino
de Deus lhes pertence. Felizes de vocês que agora têm fome, porque serão saciados. Felizes de vocês que
agora choram, porque hão de rir. Felizes de vocês se os homens os odeiam, se os expulsam, os insultam e
amaldiçoam o nome de vocês, por causa do Filho do Homem. Alegrem-se nesse dia, pulem de alegria, pois será
grande a recompensa de vocês no céu, porque era assim que os antepassados deles tratavam os profetas”.
Nota:61
1Ts 5,15: “Cuidem que ninguém retribua o mal com o mal, mas procurem sempre o bem uns dos outros e de
todos”.
Gl 6,10: “Portanto, enquanto temos tempo, façamos o bem a todos, especialmente aos que pertencem à nossa
família na fé”.
Nota:62
2Ts 2,10-12: “E com toda a sedução que a injustiça exerce sobre os que se perdem, por não se terem aberto
ao amor da verdade, amor que os teria salvo. Por isso Deus manda o poder da sedução agir neles, para que
acreditem na mentira. Desse modo serão condenados todos os que não acreditaram na verdade, mas
preferiram permanecer na injustiça”.
Lc 3,10-14: “As multidões perguntavam a João: O que é que devemos fazer? Ele respondia: Quem tiver duas
túnicas, dê uma a quem não tem. E quem tiver comida, faça a mesma coisa. Alguns cobradores de impostos
também foram para ser batizados, e perguntaram: Mestre, o que devemos fazer? João respondeu: Não cobrem
nada além da taxa estabelecida. Alguns soldados também perguntaram: E nós, o que devemos fazer? Ele
respondeu: Não maltratem ninguém; não façam acusações falsas, e fiquem contentes com o salário de vocês”.
Nota:63
Rm 13,1-7: “Submetam-se todos às autoridades constituídas, pois não há autoridade que não venha de Deus,
e as que existem foram instituídas por Deus. Quem se opõe à autoridade, se opõe à ordem estabelecida por
Deus. Aqueles que se opõem, atraem sobre si a condenação. Na verdade, os que governam não devem ser
temidos quando se faz o bem, mas quando se faz o mal. Se você não quer ter medo da autoridade, faça o bem,
e ela o elogiará. A autoridade é o instrumento de Deus para o bem de você, mas, se você pratica o mal, tema,
pois não é à toa que a autoridade usa a espada: quando castiga, ela está a serviço de Deus, para manifestar a
ira dele contra o malfeitor. Por isso, é preciso submeter-se, não só por medo do castigo, mas também por
dever de consciência.
É também por isso que vocês pagam impostos, pois os que têm esse encargo são funcionários de Deus. Dêem a
cada um o que lhe é devido: o imposto e a taxa, a quem vocês devem imposto e taxa; o temor, a quem vocês
devem temor; a honra, a quem vocês devem honra”.
1Pd 2,13-17: “Submetam-se a toda criatura humana por causa do Senhor, seja ao rei como soberano, seja
aos governadores como enviados dele para punir os malfeitores e para louvar os que fazem o bem. Pois esta é
a vontade de Deus: praticar o bem, fazendo calar a ignorância dos insensatos. Comportem-se como homens
livres, não usando a liberdade como desculpa para o mal, mas como servos de Deus. Respeitem a todos, amem
os irmãos, temam a Deus e respeitem o rei”.
Nota:64
cf. At 4,19: “Pedro e João responderam: Julguem vocês mesmos se é justo diante de Deus que obedeçamos a
vocês e não a ele!”.
Nota:65
cf. também João Paulo II, Christifidelis Laici, 44 (ver abaixo). Esta cultura aparece divorciada não só da fé
cristã mas até dos próprios valores humanos. Certa cultura científica e tecnológica é incapaz de dar resposta à
premente procura de verdade e de bem que arde no coração dos homens.
ChL, n.44: “O serviço à pessoa e à sociedade humana exprime-se e realiza-se através da criação e
transmissão da cultura, que, especialmente nos nossos dias, constitui uma das mais graves tarefas da
convivência humana e da evolução social. À luz do Concílio, entendemos por cultura todos aqueles meios com
que o homem afina e usa os seus múltiplos dons de alma e de corpo; procura submeter ao seu poder, com o
saber e o trabalho, o próprio cosmos; torna mais humana a vida social, tanto na família como em toda a
sociedade civil, com o progresso do costume e das instituições; enfim, no decorrer do tempo, exprime,
comunica aos outros e conserva nas suas obras, para que sejam de proveito a muitos e mesmo à humanidade
inteira, as suas grandes experiências espirituais e as suas aspirações. Nesse sentido, a cultura deve ser
considerada como o bem comum de cada povo, a expressão da sua dignidade, liberdade e criatividade; o
testemunho do seu percurso histórico. Em particular, só dentro e através da cultura é que a fé cristã se torna
histórica e criadora de história.
Perante o progresso de uma cultura que aparece divorciada não só da fé cristã mas até dos próprios valores
humanos, bem como perante uma certa cultura científica e tecnológica incapaz de dar resposta à premente
42
procura de verdade e de bem que arde no coração dos homens, a Igreja tem plena consciência da urgência
pastoral de se dar à cultura uma atenção toda especial.
Por isso, a Igreja pede aos fiéis leigos que estejam presentes, em nome da coragem e da criatividade
intelectual, nos lugares privilegiados da cultura, como são o mundo da escola e da universidade, os ambientes
da investigação científica e técnica, os lugares da criação artística e da reflexão humanística. Tal presença tem
como finalidade não só o reconhecimento e a eventual purificação dos elementos da cultura existente,
criticamente avaliados, mas também a sua elevação, graças ao contributo das originais riquezas do Evangelho
e da fé cristã. O que o Concílio Vaticano II escreve sobre a relação entre o Evangelho e a cultura representa um
fato histórico constante e, simultaneamente, um ideal de ação de singular atualidade e urgência; é um
programa empenhativo que se impõe à responsabilidade pastoral da Igreja inteira e, nela, à responsabilidade
específica dos fiéis leigos: A Boa Nova de Cristo renova continuamente a vida e a cultura do homem decaído,
combate e elimina os erros e males nascidos da permanente sedução e ameaça do pecado. Purifica sem cessar
e eleva os costumes dos povos… Desse modo, a Igreja, só com realizar a própria missão, já com isso mesmo
estimula a ajuda a civilização e, com a sua atividade, também a liturgia, educa o homem para a liberdade
interior.
Merecem ser aqui ouvidas de novo certas expressões particularmente significativas da Exortação Evangelii
Nuntiandi de Paulo VI: A Igreja evangeliza quando, unicamente firmada na potência divina da mensagem que
proclama (cf. Rm 1,16; 1Cor 1,18; 2,4), procura converter, ao mesmo tempo, a consciência pessoal e coletiva
dos homens, a atividade a que se dedicam e a vida e o meio concreto que lhes são próprios. Estratos da
humanidade que se transformam: para a Igreja não se trata tanto de pregar o Evangelho a espaços geográficos
cada vez mais vastos ou populações maiores em dimensões de massa, mas de chegar a atingir e como que a
modificar pela força do Evangelho os critérios de julgar, os valores que contam, os centros de interesse, as
linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida da humanidade, que se apresentam em
contraste com a Palavra de Deus e com o desígnio da salvação. Poder-se-ia exprimir tudo isto dizendo: importa
evangelizar não de maneira decorativa, como que aplicando um verniz superficial, mas de maneira vital, em
profundidade e isto até às suas raízes a cultura e as culturas do homem… A ruptura entre o Evangelho e a
cultura é, sem dúvida, o drama da nossa época, como o foi também de outras épocas. Importa, assim, envidar
todos os esforços no sentido de uma generosa evangelização da cultura, ou, mais exatamente, das culturas.
O caminho que hoje se privilegia para a criação e a transmissão da cultura é o dos instrumentos da
comunicação social. Também o mundo dos mass-media, na seqüência do acelerado progresso das inovações e
da influência, ao mesmo tempo planetária e capilar, sobre a formação da mentalidade e do costume, constitui
uma nova fronteira da missão da Igreja. Em particular, a responsabilidade profissional dos fiéis leigos neste
campo, exercida tanto a título pessoal como através de iniciativas e instituições comunitárias, deve ser
reconhecida em todo o seu valor e apoiada com mais adequados recursos materiais, intelectuais e pastorais.
No uso e na recepção dos instrumentos de comunicação, tornam-se urgentes tanto uma ação educativa em
ordem ao sentido crítico, animado da paixão pela verdade, como uma ação de defesa da liberdade, do respeito
pela dignidade pessoal, da elevação da autêntica cultura dos povos, com a recusa, firme e corajosa, de toda
forma de monopolização e de manipulação.
Não deve ficar nessa ação de defesa a responsabilidade pastoral dos fiéis leigos: em todos os caminhos do
mundo, também nos principais da imprensa, do cinema, da rádio, da televisão e do teatro, deve anunciar-se o
Evangelho que salva.
Nota:66
Puebla, n.1206-1253: “1206. A Igreja colabora por meio do anúncio da Boa Nova e mediante uma radical
conversão à justiça e ao amor, para transformar, a partir do seu íntimo, as estruturas da sociedade pluralista,
para que respeitem e promovam a dignidade da pessoa humana e lhe ensejem a possibilidade de realizar a sua
vocação suprema de comunhão com Deus e dos homens entre si (cf. EN 18,19, 20).
Limitamo-nos a enfocar alguns aspectos que mais diretamente desafiam nossa ação pastoral, fazendo assim
uma como síntese de questões tratadas em diversos lugares.
1207. Desde Medellin, percebem-se sobretudo duas tendências evidentes:
a) Por um lado, a tendência à modernização, com forte crescimento econômico, urbanização crescente do
Continente, tecnificação das estruturas econômicas, políticas, militares, etc.
b) Por outro, a tendência à pauperização e crescente exclusão das grandes maiorias latino-americanas da vida
produtiva. Por isso, o povo pobre da América Latina anseia por uma sociedade de maior igualdade, justiça e
participação em todos os níveis.
1208. Essas tendências contraditórias favorecem a apropriação, por uma minoria privilegiada, de grande parte
da riqueza, assim como dos benefícios criados pela ciência e cultura; por outro lado, geram a pobreza duma
grande maioria com a consciência de sua exclusão e do bloqueio de suas crescentes aspirações de justiça e
participação. Não obstante, verificamos que as classes médias estão aumentando em muitos países da América
Latina.
1209. Deste modo, surge um conflito estrutural grave: A crescente riqueza de alguns poucos corre paralela
com a crescente miséria das massas” (João Paulo II, Discurso Inaugural, III, 4. - AAS LXXI, p.200).
1210. Vivemos numa sociedade pluralista, na qual se encontram diversas religiões, concepções filosóficas,
ideologias, sistemas de valores que, encarnando-se em diferentes movimentos históricos, propõem-se construir
a sociedade do futuro, rejeitando a tutela de qualquer instancia inquestionável.
1211. Sabemos que a Igreja, ao trazer uma valiosa colaboração para a construção da sociedade, não se atribui
competência para propor modelos alternativos. Por isso, adotamos os critérios doutrinais seguintes:
1212. a) Não reivindicamos privilégio algum para a Igreja; respeitamos os direitos de todos e a sinceridade de
todas as convicções, com pleno respeito para a autonomia das realidades terrestres.
1213. b) Contudo, exigimos para a Igreja o direito de dar testemunho de sua mensagem e de usar sua palavra
profética de anúncio e denúncia em sentido evangélico, na correção das falsas imagens da sociedade,
incompatíveis com a visão cristã.
1214. Defendemos os direitos dos organismos intermediários, dentro do princípio de subsidiariedade, inclusive
dos criados pela própria Igreja, em colaboração com tudo o que se refere ao bem comum.
43
1215. a) A superação da distinção entre pastoral de elites e pastoral popular. A pastoral é uma só. Penetra em
“quadros” ou “elites” evangelizadoras; afeta todos os âmbitos da vida social; dinamiza a vida da sociedade e,
ao mesmo tempo, põe-se a seu serviço.
1216. b) A responsabilidade específica dos leigos na construção da sociedade temporal, conforme inculca a
Evangelii Nuntiandi.
1217. c) A preocupação preferencial em defender e promover os direitos dos pobres, marginalizados e
oprimidos.
1218. d) A preocupação preferencial pelos jovens, da parte da Igreja, que neles vê uma força transformadora
da sociedade.
1219. e) A responsabilidade insubstituível da mulher, cuja colaboração é indispensável para a humanização dos
processos transformadores, como garantia de que o amor é uma dimensão da vida e da mudança e porque sua
perspectiva é insubstituível para a representação cabal das necessidades e esperanças do povo.
1220. Sabemos que o povo, em sua dimensão total e em sua forma particular, mediante suas organizações
próprias, constrói a sociedade pluralista. Diante deste desafio, temos consciência de que a missão da Igreja não
se reduz a exortar os diversos grupos sociais e categorias profissionais à construção duma sociedade nova,
para o povo e com o povo, nem se trata tão-somente de estimular cada um dos grupos e categorias a darem,
com honestidade e competência, sua contribuição específica, mas a serem outrossim agentes duma
conscientização geral de responsabilidade comum perante um desafio que exige a participação de todos.
1221. Temos consciência de que a transformação das estruturas é uma expressão externa da conversão
interior. Sabemos que esta conversão começa por nós mesmos. Sem o testemunho duma Igreja convertida,
vãs seriam nossas palavras de pastores.
1222. Na Igreja, como unidade dinamizadora e em vista duma eficácia permanente de sua ação, assumimos a
necessidade duma pastoral orgânica que compreenda, entre outras coisas: princípios orientadores, objetivos,
opções, estratégias, iniciativas práticas, etc.
1223. A defesa e promoção da inalienável dignidade da pessoa humana.
1224. O destino universal dos bens criados por Deus e produzidos pelos homens, que não podem esquecer que
“uma hipoteca social pesa sobre toda propriedade privada” (João Paulo II, Discurso Inaugural III, 4; AAS LXXI,
p.200).
1225. O recurso às fontes da força divina: a oração assídua, a meditação da palavra de Deus, que sempre
questiona, e a participação eucarística dos construtores da sociedade que com suas responsabilidades, acham-
se rodeados de tentações que os inclinam a encerrar-se no âmbito das realidades terrenas sem abertura para
as exigências do Evangelho.
1226. A comunidade cristã conduzida pelo bispo estabelecerá a ponte de contato e diálogo com os construtores
da sociedade temporal, a fim de iluminá-los com a visão cristã, estimulá-los com gestos significativos e
acompanhá-los com atuações eficazes.
1227. Neste contato e diálogo deve circular, numa atitude de escuta sincera e acolhedora, a problemática
trazida por eles do seu próprio ambiente temporal. Assim poderemos descobrir os critérios, normas e caminhos
por onde aprofundar e atualizar a doutrina social da Igreja, no sentido da elaboração duma ética capaz de
formular as respostas cristãs aos grandes problemas da cultura contemporânea. Exortamos a todos a lutarem
contra a corrupção econômica em seus diversos níveis, tanto na administração pública como nos negócios
particulares, pois com ela causa-se grave prejuízo à grande maioria.
1228. Este diálogo requer iniciativas que permitam o encontro e relacionamento estreito com todos os que
colaboram na construção da sociedade, de tal sorte que eles descubram a sua complementariedade e
convergência. Pela mesma razão, nesta ação, deve-se trabalhar prioritariamente com aqueles que detêm poder
decisório. Isto não exclui o reconhecimento do valor construtivo de tensões sociais que, dentro das exigências
da justiça, contribuem para garantir a liberdade de direitos, especialmente dos mais fracos.
1229. Formar nos diversos setores pastorais pessoas capazes de exercer nos mesmos liderança como fermento
evangelizador.
1230. Elaborar, com pessoas de cada setor, normas de conduta cristã que sejam objeto de reflexão e aplicação
e que se submetam a permanente revisão.
1231. Promover encontros que reunam pessoas de setores pastorais diversos, para confrontar suas
experiências e em vista da convergência de sua ação.
1232. Estimular a elaboração de alternativas viáveis para a ação evangelizadora, tendentes à renovação cristã
das estruturas sociais.
1233. Promover a formação de sacerdotes e diáconos especializados, e os novos ministérios confiados aos
leigos, que se adaptem às necessidades pastorais de cada setor.
1234. Desenvolver movimentos especializados que reunam os elementos disponíveis para a evangelização do
próprio ambiente.
1235. Saber valorizar os meios pobres, humildes, populares, inclusive artesanais, para comunicar a
mensagem.
1236. Preservar os recursos naturais criados por Deus para todos os homens, a fim de transmiti-los como
herança às gerações vindouras.
1237. A Igreja leva sua palavra com simpatia e sem prevenção àqueles que ela sabe que a esperam e
precisam de sua orientação ou estímulo. Aos que elaboram, difundem e realizam idéias, valores e decisões:
1238. Aos políticos e homens de governo, lembramos as palavras do Concílio Vaticano II: “Só Deus é a fonte
da vossa autoridade e o fundamento das vossas leis” (Vaticano II, Mensagem à Humanidade, N. 2, aos
governantes) por mediação do povo. Afirmamos a nobreza e dignidade do compromisso com uma atividade
orientada para a consolidação da concórdia interna e segurança externa, estimulando a ação sensível e
inteligente do político para melhor conduzir o Estado, para conseguir o bem comum e para conciliar eficazmente
a liberdade, a justiça e a igualdade, numa genuína sociedade participada. “A comunidade política e a Igreja são
independentes e autônomas, cada qual em seu próprio terreno. Todavia ambas, embora por títulos diferentes,
acham-se a serviço da vocação pessoal e social do homem. Este serviço, ambas o realizarão com tanto maior
eficácia, para o bem de todos, quanto melhor cultivarem uma sadia cooperação entre si, levando em conta as
circunstancias de tempo e lugar” (GS 76).
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1239. Ao mundo intelectual e universitário, para que atue com liberdade espiritual, cumpra com autenticidade
sua função criativa, se disponha para a educação política diferente da mera politização e satisfaça a lógica
interior da reflexão e o rigor científico, já que deste mundo se esperam projetos e linhas teóricas sólidas para a
construção da nossa sociedade (cf. Vaticano II, Mensagem à Humanidade: Aos homens do pensamento e da
ciência).
1240. Aos cientistas, técnicos e forjadores da sociedade tecnológica, para que incentivem o espírito científico
com amor à verdade, a fim de investigar os enigmas do universo e dominar a terra; para que evitem os efeitos
negativos duma sociedade hedonista e a tentação tecnocrática e apliquem a força da tecnologia à criação de
bens e à invenção de meios destinados a resgatar o homem do subdesenvolvimento. Deles se esperam
notadamente estudos e investigações tendentes à síntese entre a ciência e a fé. Exortamos a todos os
pensadores conscientes do valor da sabedoria cuja fonte primeira e última é o Logos e preocupados com a
criação do novo humanismo, a que atentem à grande afirmação da Gaudium et Spes: “O destino futuro do
mundo corre perigo, se não se formarem homens mais instruídos nesta sabedoria” (15,c). Para isso, é preciso
um grande esforço de dialogo interdisciplinar da teologia, filosofia e ciências, à procura de novas sínteses.
1241. Aos responsáveis pelos meios de comunicação para que elaborem e respeitem um código de ética da
informação e comunicação, para que tomem consciência de que a neutralidade instrumental dos meios os torna
disponíveis para o bem ou para o mal; para que sirvam à verdade, objetividade, educação e conhecimento
suficiente da realidade
1242. Aos criadores em arte, para que se esmerem em intuir os rumos do homem, pressintam e interpretem
suas crises, ampliem a dimensão estética da vida humana e contribuam para a personalização do homem
concreto.
1243. Aos juristas, segundo o seu saber especial, para que reivindiquem o valor da lei na relação entre
governantes e governados e para a justa disciplina da sociedade. Aos juizes, para que não comprometam sua
independência, julguem com eqüidade e inteligência e sirvam, através de suas sentenças para a educação de
governantes e governados no cumprimento das obrigações e conhecimento de seus direitos.
1244. Aos operários: no mundo que se urbaniza e se industrializa, cresce o papel dos operários e “como
principais artífices das prodigiosas transformações que o mundo hoje experimenta” (Vaticano II Mensagem aos
Trabalhadores, 6). Para isto, devem empenhar sua experiência na busca de novas idéias; renovar-se a si
mesmos e contribuir de maneira ainda mais decidida para construir a América Latina do porvir. Não esqueçam
o que o Papa lhes disse no mesmo discurso: é direito dos operários “criar livremente organizações para
defender, promover seus interesses, para contribuir responsavelmente para o bem comum” (João Paulo II,
Alocução Operários Monterrey 3; AAS LXXI, p.241).
1245. Aos camponeses: vós sois uma força dinamizadora na construção duma sociedade mais participada.
Advogando por vós, o Santo Padre dirigiu estas palavras aos setores de poder: “Dá vossa parte, responsáveis
pelos povos, classes poderosas que mantendes por vezes improdutivas as terras que escondem o pão que falta
a tantas famílias: a consciência humana, a consciência dos povos, o clamor do desvalido e, sobretudo, a voz de
Deus, a voz da Igreja vos repete comigo: não é justo, não é humano, não é cristão continuar com certas
situações claramente injustas. Devem-se pôr em prática medidas concretas, eficazes, em nível local, nacional e
internacional, na vasta linha traçada pela Encíclica Mater et Magistra... Irmãos e filhos muitos amados:
trabalhai por vossa elevação humana” (João Paulo II, Alocução Oaxaca AAS LXXI, p.210).
1246. A sociedade econômica, para que os economistas contribuam com um pensamento criativo a dar
respostas rápidas às exigências fundamentais do homem e da sociedade. Para que os empresários, tendo
presente a função social da empresa, atuem concebendo-a não só como fator de produção e lucro, mas como
comunidade de pessoas e como elemento duma sociedade pluralista, unicamente viável quando não há
concentração excessiva do poder econômico.
1247. Aos militares: lembramo-lhes com Medellin que “sua missão é dar garantia às liberdades políticas dos
cidadãos, em vez de pôr-lhes obstáculos” (Pastoral de Elites, 20). Tenham eles consciência de sua missão:
garantir a paz e a segurança de todos. Jamais abusem da força. Sejam antes defensores da força do direito.
Propiciem outrossim uma convivência livre, participativa e pluralista.
1248. Aos funcionários, para que assumam sua atividade como um serviço, porque a dignidade da função e da
vida pública reside no fato de que o seu destinatário natural é a sociedade e, sobretudo, os que menos
possuem e mais dependem do bom funcionamento do serviço público.
1249. A todos, por fim, que contribuam para o funcionamento normal da sociedade: profissionais liberais,
comerciantes, para que assumam sua missão em espírito de serviço ao povo, que deles espera a defesa de sua
vida, de seus direitos e a promoção do seu bem-estar.
1250. Na conjuntura atual da América Latina, as mudanças poderão ser rápidas e profundas em benefício de
todos, especialmente dos pobres, por serem estes os mais afetados, e dos jovens que, em breve, assumirão os
destinos do Continente.
1251. Para tanto, propomos a mobilização de todos os homens de boa vontade. Que eles se unam, com novas
esperanças, para essa tarefa imensa. Queremos escutá-los com viva sensibilidade; unir-nos a eles em sua ação
construtiva.
1252. Com nossos irmãos que professam a mesma fé em Cristo, embora não pertençam à Igreja Católica,
esperamos unir esforços, preparando constantes e progressivas convergências que apressem a chegada do
Reino de Deus.
1253. Aos filhos da Igreja que se empenham em postos de vanguarda, queremos transmitir-lhes nossa
confiança em sua ação, fazendo deles nossos mensageiros de novas esperanças. Sabemos que, no Evangelho,
na oração e na Eucaristia, procurarão encontrar a fonte de constantes revisões de vida e a força de Deus para
sua ação transformadora”.
Nota:67
Puebla 1221: “Temos consciência de que a transformação das estruturas é uma expressão externa da
conversão interior. Sabemos que esta conversão começa por nós mesmos. Sem o testemunho duma Igreja
convertida, vãs seriam nossas palavras de pastores”.
Nota:68
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Puebla 273: “Cada comunidade eclesial deveria esforçar-se por constituir para o Continente um exemplo de
modelo de convivência onde consigam unir-se a liberdade e a solidariedade, onde a autoridade se exerça com o
espírito do Bom Pastor, onde se viva uma atitude diferente diante da riqueza, onde se ensaiem formas de
organização e estruturas de participação, capazes de abrir caminho para um tipo mais humano de sociedade, e,
sobretudo, onde inequivocamente se manifeste que, sem uma radical comunhão com Deus em Jesus Cristo,
qualquer outra forma de comunhão puramente humana acaba se tornando incapaz de sustentar-se e termina
fatalmente voltando-se contra o próprio homem”.
Nota:69
cf. Mt 20,25-28: “Mas Jesus chamou-os, e disse: Vocês sabem: os governadores das nações têm poder sobre
elas, e os grandes têm autoridade sobre elas. Entre vocês não deverá ser assim: quem de vocês quiser ser
grande, deve tornar-se o servidor de vocês; e quem de vocês quiser ser o primeiro, deverá tornar-se servo de
vocês. Pois, o Filho do Homem não veio para ser servido. Ele veio para servir, e para dar a sua vida como
resgate em favor de muitos”.
Nota:70
cf. Exigências Cristãs de uma Ordem Política, 1977; Igreja e Problemas da Terra, 1980; Solo Urbano e Ação
Pastoral, 1982; Por uma Nova Ordem Constitucional, 1986; Igreja: Comunhão e Missão, 1988.
Nota:71
cf. CNBB, Igreja: Comunhão e Missão 178: “Reafirmamos a necessidade de uma política agrícola que
garanta permanência do pequeno agricultor no campo, bem como a execução imediata de uma Reforma Agrária
urgente, justa e eficaz:
a) com aproveitamento das terras públicas;
b) com desapropriação do latifúndio por extensão e por exploração;
c) com indenização das terras desapropriadas, em títulos da dívida pública;
d) sem indenização das benfeitorias oriundas de recursos públicos;
e) acompanhada da revisão dos títulos de propriedade, a fim de averiguar a legitimidade da posse frente à
“grilagem” usada na produção de títulos cartoriais”.
Nota:72
Solo Urbano e Ação Pastoral 118: “Impõem-se, portanto, reformas na legislação, com vistas a garantir a
justa distribuição social do solo urbano, cuja utilização não pode ser deixada aos caprichos do mercado”.
Nota:73
CNBB, Por Uma Nova Ordem Constitucional 59: “O direito à vida exige a preservação e renovação do meio
ambiente, resguardando-o contra formas de exploração predatória e de toda a espécie de poluição”.
Nota:74
CNBB, Igreja: Comunhão e Missão 173: “Devemos animar vivamente os trabalhadores a se empenharem
na “luta pela justiça social, pelos justos direitos dos homens do trabalho”. Mesmo quando esta luta assume um
caráter de oposição aos outros, nas questões controvertidas, isso sucede por se ter em consideração o bem que
é a justiça social”.
Nota:75
cf. João Paulo II, Homilia para o mundo do Trabalho, Danzigue, 12.6.1987, 6.
Nota:76
CNBB, Igreja: Comunhão e Missão 176: “Baseada na primazia do trabalho sobre o capital, a Igreja insiste
na necessidade de medidas que garantam a função social da empresa (salários justos, organização sindical livre
dos trabalhadores nos locais de trabalho, condições de trabalho dignas, negociação permanente, participação
nos lucros e até na política econômica da empresa e outras), e a subordinação de toda a propriedade à
destinação universal dos bens da terra. Esse deve ser também o empenho de empresários cristãos que se
organizam em associações para conhecer e aplicar os princípios da Doutrina Social da Igreja”.
Nota:77
Constituição da República, Disposições transitórias, 26.
cf. Igreja: Comunhão e Missão, n.180: “Com relação à dívida externa, propomos que ela seja submetida a
uma auditoria pública, com participação do Poder Legislativo e de organizações representativas da sociedade
civil, para identificar a composição justa da dívida, a partir das responsabilidades sobre suas origens e modos
de utilização. Com base nessa auditoria e no montante já pago até hoje, a legitimidade da atual dívida ficaria
esclarecida. Em todo caso, a Igreja insiste no princípio que a economia deve estar sujeita à ética e, portanto,
não é lícito pagar a dívida simplesmente às custas da fome, da miséria e do subdesenvolvimento do nosso
povo”.