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Esculturas | Bustos de ponta-cabeça, sujeira sob o tapete: a arte cidadã de Siron Franco

Em parte importante da produção do artista, destacam-se os valores da construção coletiva e


da responsabilidade social

Esculturas destaca produções de artistas presentes na coleção de obras de arte do Itaú


Cultural. A cada edição da série, uma conversa sobre trabalhos com temáticas e estilos
variados, buscando ampliar horizontes. Siga aqui pelo site ou no nosso perfil no Instagram.

Siron Franco
Balanço, 1997
ferro e bronze
340 x 400 x 160 cm
Acervo Itaú Cultural
Imagem: Edouard Fraipont/Itaú Cultural

Imagine só nos balançarmos sentados na cabeça de Getúlio Vargas, Dom Pedro II, Tiradentes
– ou outras dessas figuras de quem a posteridade fez bustos para lembrar sua história. Com o
rosto de pedra grudado na parte de baixo do banco, pegamos impulso e nos deixamos voar
baixo; de ponta-cabeça vêm e vão conosco Pedro Álvares Cabral, Anita Garibaldi, Juscelino
Kubitschek, ou outros, pois não sabemos quem está representado na obra acima, de Siron
Franco. Eis que, no ar, nos ocorre: “Pode brincar com a história desse jeito?”. Mais interessante
do que responder a isso é saber o que jogar assim – ou considerar essa possibilidade –
produz.

Meio solitários nas praças ou nos museus, lá estão os bustos, condenados à mesma expressão
e a olhar para a frente para todo o sempre. Juntos com certo tipo de estátuas e monumentos,
servem a propósitos educativos e, com mais frequência talvez, ao discurso estatal. Se de
alguém fazem um busto e o dispõem nos locais de encontro da cidade, é porque essa pessoa
de alguma forma é (ou se quer que seja) um símbolo para a coletividade. É essa estrutura
política que se desloca no Balanço: uma estética tão ligada à sisudez, ao oficial, está agora
conectada ao lúdico.

Isso não se dá de forma total – quando exposta a obra, não se permitia andar no balanço –
mas algo do conceito dessas esculturas sérias foi sacudido. Pode jogar com o oficial, os
intencionados marcos coletivos, as bases estatais desse jeito? Brincar assim seria quase dizer
que a história não serve para contemplar, mas que podemos nos incluir nela, mesmo de
maneiras inesperadas. Sem forçar essa interpretação à obra de Siron, podemos ressaltar que
em outros trabalhos seus também vemos a criação de ícones para a sociedade e o atrito com o
status quo.

No primeiro campo, incluem-se o Monumento às Nações Indígenas (1992), iniciado em Goiânia


para homenagear os povos originários do país (leia o texto do escritor Antonio Callado
sobre a feitura da obra); e o Monumento à Paz (1988), que, esculpida na mesma cidade,
com réplica no Rio de Janeiro (1992), tem formato de ampulheta e traz a proposta de recolher
em seu interior a terra de várias partes do mundo. Em agosto de 2020, o artista anunciou um
monumento aos profissionais de saúde que atuam no combate ao coronavírus. Repare no
que ele escolhe pôr no lugar do monumental – parece dizer: a paz, o indígena, o trabalhador
são nossos ícones.

Já no segundo campo, encontram-se intervenções como O que Vi na TV (2001), em que o


artista dispôs diante do Congresso Nacional um cubo preenchido com um material com
aparência de fezes – antes criada para denunciar a contaminação da água por coliformes
fecais, foi movida para criticar a “sujeira na política” –, e “Intolerância Não” (2013), frase
montada em letras enormes no gramado do parlamento para contrapor um projeto de
criminalização dos usuários de drogas. Mais recentemente, em 2016, pintou o Instituto Rizzo,
em Goiânia, com dados do estupro e do feminicídio no Brasil. Da proposta desta última ele
comentou:
É como tirar sujeira debaixo do tapete. Está sujo, sabemos que há um
problema, então precisamos falar sobre ele. Não faço isso como
artista, faço como cidadão. Sempre trabalhei com arte-ativismo, como
se chama hoje, mas desde 1970 já fazíamos isso. Sou de uma
geração que conviveu com uma repressão muito grande, a ditadura
militar. Crescemos com um sentimento de coletividade muito grande.

Coletividade, diz Siron. Essa noção – que remete à construção conjunta – parece ser uma
chave para entender o que faz o escultor. De forma análoga, em entrevista ele ressaltou a
participação na sociedade: “A crise que estamos vivendo é importante porque as pessoas vão
se dar conta que é necessário participar. Participar, para mim, é dizer: este país é nosso, eu
amo este país”. Em outra fala, ele conta que aprendeu com seu pai que “a cidade deve ser
nosso grande jardim: não jogue nada fora, a cidade é nossa, governo vai e vem, nós
continuamos”. Somando tudo, o valor que está em evidência é o da cidadania, com tudo que
isso exige de nós.

Tendo em vista isso, é importante refletir sobre o destino de alguns trabalhos de Siron no
espaço público. A réplica do Monumento à Paz, que guardava terra de 108 países que
compuseram a Eco92, em 2012 estava em degradação. Do Monumento às Nações
Indígenas, nunca concluso, noticiou-se a deterioração em 2016 (em 2015, a prefeitura de
Aparecida de Goiânia anunciara avanço nas propostas de reforma). Que diagnóstico isso dá
sobre o estado das coisas públicas hoje? Se monumentos são ideais, o que se passa quando
são desprezados?

Virando pelo avesso nossa proposição inicial, pode ser que Balanço fale disso também:
situações em que o que é histórico, o coletivo, o simbólico são jogados de pernas para o ar. O
que se fazia centro da vida pública tornado joguete – será? Qual interpretação o engaja mais?

Siron Franco é pintor, escultor, ilustrador, desenhista, gravador e diretor de arte. Estudou
pintura na década de 1960 e início da de 1970. Em 1979, faz suas primeiras intervenções
urbanas, com o projeto Ver-a-Cidade. Suas pinturas nos anos 1970 e 1980 se caracterizam por
uma atmosfera sombria e monstruosa. Em 1987, ele produziu a Série Césio, que trata de um
acidente radiológico ocorrido naquele ano em Goiânia, considerado o maior do mundo.
Após 1990, seus quadros se tornaram mais abstratos, com uso de colagem, desenho e
grafismos. Saiba mais sobre a obra de Siron na Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e
Cultura Brasileira.

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