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COSTUMES E DIÁLOGOS – ASSOCIAÇÃO CULTURAL

O Manuscrito

PAULO ALEXANDRE BAPTISTA DA SILVA 1


Cópia de um curioso manuscrito que pertenceu ao pai do falecido
funcionário da Câmara Municipal. Sr. Adelino dos Santos Mendes, e publicado
no Jornal O ECO em 19 de Outubro de 1952.

«A 30 de Dezembro de 1861 comprei ao SNº João Fortunato Monteiro


desta vila com Procuração do Snrº João de Cupertino Effrem, de Lisboa, as casas
sita na rua das canas desta vila de Pombal que forao do sogro do Effrem Capitão
João José Elizeu de Sousa que nelas viveu e morreu, cuja compra fiz por
1400$00, e foi realizada a 7 de Janeiro de 1862 por Escritura publica nas Notas
do Tabelião António Ivo Leitão desta dita vila. No mesmo mês de Janeiro
comecei despendendo dinheiro com elas em diferentes obras que lhe fui fazendo
até Março de 1863 e do 1º de Julho do dito ano em diante continuei com toda a
força na sua reedificação dando-lhe, para assim dizer, uma reforma geral no que
ouve um grande labarinto, trabalho e massada, sem sessar com artistas, operarias,
carreiras, e grande variedade de objectos necessários para a mesma obra, e muito
mais por ser em ocasião da construção do Caminho de Ferro que tudo custava
muito mais dinheiro que noutras épocas, e não só isso mas mesmo havia grande
dificuldade de obter materiais e haços necessários, porem foi Deus servido que a
custa de muitas fadigas (só eu sei) trabalhos e dispêndio eu vencesse esta batalha
a pronto que em 31 de Dezembro de 1864 me recolhi nelas com a mesma família
e fiz o primeiro mercado do meu negócio na loja no 1º de Janeiro de 1865.
Continuei pois com o resto da obra que terminou na pintura em 11 de Novembro
do dito anno de 1865. Todos os vigamentos de solho e ferro; e emadeiramentos

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do telhado foram novos de serne e castanho com a maior solidez possível. Todos
os solhos e forros foram novos feitos de belos pinheiros escolhidos nos melhores
sítios desta freguesia e cortados nos melhores cortes de Janeiro e Dezembro. As
portas do sino e da escada, a que deita para o sote e a que deita para a sala são de
sernedo pinhal Real, as 3 da mesma casa da entrada que deitão para a rua são, as
dos lados de bela casquinha, e a do meio, de pinho de cá, as duas portas das
janelas da sala para a rua são de pinho de cá, as duas da sala imediata são do
mesmo pinho de cá, as 2 portas dos dois quartos contíguos a cozinha e as
guarnições são de serne do pinhal Real, a porta da cozinha e a janela são de Serne
de pinho de cá, a porta da janela rasgada do quarto que deita para trás é de serne
do pinhal Real, a porta interior deste, as 2 que a tem interiores na sala anexa, e as
duas janelas dos dois quartos da cozinha herão antigas e assim ficarão, as duas
janelas do quarto da sala são de serne de pinho de cá, as duas janelas da casa de
entrada que deitão para traz são também de pinho borne de cá, a cancela que
parte desta para a cozinha e a porta da loja que deita para o pateo são de sernedo
pinhal Real, assim como o são todas as cozinhas de todas as janelas de cima e de
baixo de traz e de diante; todas as portas das lojas, e a do fundo da escada e as
dos dois portões são de pinho de cá, mas por serem de pinho borne com as
demais que deixo dito de pinho não deixão por isso de serem de muita duração
sendo estimadas e auxiliadas com tintas de anos em anos. A parede da cozinha
em volta da chaminé foi toda nova. A casa da entrada foi demolida e feita de
novo de raiz com actual gosto e inteiramente diferente. Hera de gosto em uma
baranda aberta com peitoril geral de cantaria, desta subião quatro colunas roliças
de canteria ao telhado ao aonde, digo, subião 4 colunas redondas de cantaria,
sobre elas em sima corria uma semalha de canteria que servia de apoio ao
vigamento do telhado da dita baranda, desta descia a escada de pedra para o lado
de traz que parte dela e parte do fundo não tinha cobertura, havia em seguida um
muro que devediu o pateo com uma pequena porta de comunicação, o telheiro do
pateo era muito baixo, com uma outra porta pequena para a travessa, o muro da
travessa foi todo arazado para fazera obra a vontade assim como o foi também o
dito que pegava no patim da escada da baranda. Na dita baranda de que falo
havia um quarto a que chamarão o quarto do Beato António, e tinha por baixo da
baranda um estreito portão de entrada e comunicação para toda a casa. Toda a
canteria da dita baranda era de muito trabalho e bom gosto, mas tanto esta como
também o portão de baixo estavam em estado de ruína, gastas arrebentadas em
parte e sem equilíbrio pela sua muita antiguidade que pormetia desabar mais dia
menos dia, e tanto mais se conheceu grande perigo quando se arriou, porque aqui
viu-se e reconheceu-se que tudo estava apenas seguro por um varão de ferro já
muito carcomido de ferrugem que ia pregar em um fexal da semalha da baranda,
mas mesmo o fexal conquanto de cerne de carvalho estava carcomido do tempo e
chuva no sitio aonde pregava o varão, de forma que logo que este despedisse, a
baranda ia toda em jacto para a rua; para evitar este sinistro que poderia ser de
tristes consequências é que demoli e edifiquei de novo dando-lhe outro gosto de
muito mais solidez e comodidade. É certo pois que toda esta casa é das mais
antigas da vila como consta na descrição desta terra mandada fazer pelo
reverendo Dr. Manuel Nobre Pereira, lente da cadeira de 6º na Universidade de

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Coimbra, cónego da catedral Sé da mesma cidade, vigário capitular deste
bispado, e feita em nome de Frei Joseph Pinto, vigário da igreja de S. Martinho
desta vila, o que copiei de copia de originais escritos antiquíssimos que existem
na casa dos Mascarenhas desta vila que foram e hoje pertencem a Luiz Augusto
de Mancellos Ferraz. É também certo que estas casas foram do venturoso Beato
António que nelas nasceu e que foi baptisado em 12 de Maio de 1522 na Igreja
de Nossa Senhora do Castelo, segunda paróquia desta vila, o que vi na mesma
cópia, em cujo ponto fala assim na descrição da dita Igreja:
«Nesta Igreja está desde imemoriavel tempo a pia baptismal e nesta foi batisado
o venturoso minino depois venerável padre António da Conceição singular
ornamento da florentissima Congregação dos Cónegos Seculares de S. João
Evangelista».
Vi mais adeante aonde tratam as ditas escritas, digo a dita descrição da terra na
parte que diz respeito ao interrogatório decimo primeiro:
«Varões insignes em virtudes naturais desta Vila de Pombal:
O Venerando Padre António da Conceição
No seu século se chamou António Borges segundo me constou de um manuscrito
seu a respeito da sua Quinta de Flandes deste termo. Foi clérigo e formado na
Universidade de Coimbra, depois cónego secular da Congregação de S. João
Evangelista, aonde viveu e morreu claro em virtudes: ainda hoje existe nesta vila
na Rua das Cannas as cazas de seu ilustre nascimento; são na sua antiguidade
das mais nobres dela e as aforou sua Religião em tanto cómodo de enfiteuta que
sendo seu foro só quatro mil reis cada ano se expendem estes no reparo das ditas
casas segundo a clausula da Escritura d’aforamento que também tem a de que o
Enfiteuta será obrigado a largar logo as ditas casas no caso que a Congregação
queira fazer nelas alguma fundação. Não se expendem algumas virtuosas ações
deste venerável Padre por andar já exerada a sua vida em eloquentíssimas
escritas.»
Vi mais em outra parte:
«Tem Pombal sido berço de muitos varões ilustres, e entre outros do venerável
Padre António da Conceição vulgarmente chamado Beato António, que nas céu
em 1522 em umas casas sitas na Rua das Cannas cujos ferrolhos os frades de
Santo António de passagem por Pombal iam beijar; e tinha a casa grandes
previlegios inclusive o de asilo a qualquer criminoso».
Em outra parte vi:
«Descendo pela Rua das Cannas, antigamente denominada das Bengalas. ao
fundo da qual existem ainda as casas em que nasceu Beato António, chamado no
seu século António Borges».
Mais não vi. Esta casa é muito do meu gosto, pela sua posição, tamanho e
comodidades, comprei-a em deplorável estado de ruína em todo o sentido.
Edifiquei-a o melhor que pude em gosto e solidez, vencendo grandes
dificuldades desde a compra até findar a obra; e gosto tanto dela que não entro
nem tenho entrado em casas algumas de longe ou perto que tanto me agradem
como estas a ponto que me causam saudade quando as minhas jornadas são
demoradas.

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São também muito da minha paixão pela sua notabilidade, é um prazer que sinto
nas minhas horas particulares, terpor minhas umas casas aonde habito com a
minha família, em cujas nasceu, viveu, e saiu para estudos um cervo de Deus que
foi beatificado, que acabou santamente claro em virtudes, coberto da Graça
Divina… o Beato António é forçoso relatar eu Joaquim dos Santos Conde, que
estas casas houveram pretendentes de muito maior posição representação e meios
do que eu, levaram os seus lanços a um conto de reis, e como lhe não fossem
entregues retiraram; casualmente soube isto passados dias e corri logo ao Snr.
João Fortunato, a sendicar o estado deste negócio, ele com a maior franqueza me
patenteou tudo mostrando-me a carta do seu dono em que determinava não
fizesse a venda por menos de 1:4000$000, e cujo ponto fizera desanimar a
pretendentes. Ainda fez mais este cavalheiro — teve a paciência de me mostrar
todos os cantos da casa, esclarecendo-me do seu triste estado. Eu tremi por tudo
isto, mas também tremia de pena se lhe não pudesse chamar minhas, entretanto
fiquei de dar resposta no dia seguinte: Não pude conciliar o sono nessa noite, vi,
contei, revi toda a minha vida e levantei o pensamento a Deus e a sua Mãi
Santíssima Senhora da Conceição, da minha particular devoção desde tenra
idade, que fosse servido auxiliar-me, ajudar-me nesta batalha de forma que eu
conseguisse o meu intento sem que tão grande sacrifício incompatível com os
meus fundos me fosse funesto depois. Não sei que foi — senti-me resoluto e
animado que não descansei enquanto pela manhã não fui ter com o dito Snr. a dar
a minha resposta que me sujeitava ao lanço determinado de 1:4000$000, ele
admirou, deu-me palavra, sem querer grande quantia de signal que lhe quis
entregar, e participou para Lisboa deste negócio para virem as competentes
procurações para a factura da escritura. este caso divulgou-se, e acharam-no tão
extraordinário, e alguém correu logo a querer cobrir o meu lanço dizendo que se
as casas continuassem em lanço chegariam a dois contos de reis: o ilustre
cavalheiro procurador João Fortunato Monteiro respondeu logo que se não
admirava disso, e que muito o admirava era terem vindo pretendentes tão grandes
e acharem as casas muito caras oferecerem muito menos e retirarem, e vir uma
formiga tão piquena em relação a eles acha-las baratas e aceitar logo o lanço
determinado: Que não tinha nada a dispor a tal respeito, que a sua palavra valia
mais que todas as escrituras que pudessem haver, finalmente que se as casas
agora lhe pareciam bem que fossem ter com o Conde, que só ele podia pôr e
dispor delas pela palavra que lhe tinha dado, que se arranjassem com ele que só
ele era o directo senhorio, etc, etc. Assim o Senhor lhe faça à sua alma como ele
se houve de bem a tal respeito.
Por todas estas circunstancias achei muito extraordinário comprar as casas, mas
inda mais de extraordinário na sua reedificação porque apesar de ser em uma
crise tão apertada como deixo dito por causa do caminho de ferro.»

Publicado no Jornal O ECO em 19/10/1952, 26/10/1952 e 23/11/1952.

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