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DADOS

DE ODINRIGHT
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Apresentação
O presente livro é uma parte da grande obra de Anton Pannekoek, Os
Conselhos Operários, publicada originalmente em 1947. Trata-se do livro 01, A
Tarefa, dividido em oito capítulos; e do livro 02, A Luta, dividido em seis
capítulos. Optamos pelo título geral A Revolução dos Trabalhadores visando não
confundir com a obra em sua totalidade, que contém 6 livros, subdivididos em
diversos capítulos. Estes dois primeiros livros da obra de Pannekoek são os dois
mais importantes e por isso são publicados agora isoladamente. Eles também já
foram publicados isoladamente como livros, em Portugal, sendo que um foi
intitulado A Luta Operária e o outro A Tarefa dos Conselhos Operários.
Anton Pannekoek é um intelectual holandês, astrônomo renomado
mundialmente no início do século 20, que aderiu ao movimento socialista neste
mesmo período. Fez parte da ala radical da social-democracia, ao lado de nomes
como Herman Gorter, Rosa Luxemburgo, entre outros. Passou do radicalismo
para o esquerdismo com a cisão da social-democracia e, posteriormente, passou
a integrar a corrente anti-bolchevista denominada “comunismo de conselhos”.
Assim, fez parte do amplo movimento revolucionário dos conselhos operários na
Alemanha e das correntes críticas tanto do reformismo social-democrata quanto
do bolchevismo (“comunismo de partido”) e do regime russo, caracterizado
como um capitalismo de estado. Após a derrota dos movimentos revolucionários
dos conselhos operários, Pannekoek passa a desenvolver atividades teóricas,
longe do calor da luta. A sua obra Os Conselhos Operários faz parte desta fase,
no qual os adeptos do comunismo de conselhos desenvolviam teses e
publicações, esperando uma nova onda revolucionária, que, esporadicamente,
explodiu aqui ou ali e sempre fazendo renascer os conselhos operários.
A presente conta também com um prefácio de Nildo Viana, que é, na verdade,
um pequeno artigo para divulgação da obra de Pannekoek, publicado
originalmente na Revista Eletrônica Espaço Acadêmico. Este artigo coloca, em
linhas gerais, o desenvolvimento do pensamento de Pannekoek, o que é
fundamental para entender os textos aqui publicados.
Introdução: Pannekoek - Teórico dos Conselhos
Operários
A história do marxismo, no período posterior a Marx e Engels, foi
obscurecida, por um lado, pela historiografia oficial, e, por outro, pelo
“marxismo” oficial. Este último reduz a história do marxismo à história da
social-democracia e do bolchevismo. No entanto, “tanto a social-democracia
quanto o bolchevismo nada tem a ver com o movimento operário” (Rosenberg,
1986). Este é motivo pelo qual vários teóricos que desenvolveram a teoria
marxista foram marginalizados e esquecidos na história do marxismo, tal como é
o caso de Anton Pannekoek.
Anton Pannekoek foi um dos principais representantes do comunismo
conselhista. Ele nasceu 1873 na Holanda e morreu em 1960. Escreveu obras
fundamentais para o movimento comunista revolucionário, tais como: Os
Conselhos Operários; Lênin, Filósofo; Revolução Mundial e Tática Comunista;
e uma diversidade de artigos e outras obras.
Segundo Paul Mattick, outro teórico conselhista,
“Como outros socialistas holandeses notaram, Pannekoek saiu da
classe média, e como ele próprio uma vez acentuou, o seu interesse pelo
socialismo provinha de uma tendência científica bastante poderosa, para
envolver a um tempo a sociedade e a natureza. Para ele, o marxismo era
a ciência aplicada aos problemas sociais e a humanização da ciência era
um aspeto da humanização da sociedade. Sabia conciliar o seu gosto
pelas ciências sociais com a sua paixão pelas ciências da natureza; ele
torna-se não só um dos teóricos dirigentes do movimento operário
radical, mas também um astrônomo e um matemático de reputação
mundial”.
Pannekoek publicou também várias obras que tratam de temas considerados
das ciências naturais, tal como História da Astronomia; Marxismo e
Darwinismo; e Antropogênese – Estudo sobre a Origem do Homem (há tradução
para o esperanto desta obra: Pannekoek, 1978), entre outras.
Pannekoek foi um militante revolucionário desde sua juventude. Segundo
Mattick, “ainda jovem estudante em ciências naturais, e especializando-se em
astronomia, Pannekoek entrou no Partido Operário Social-Democrata da
Holanda e situou-se imediatamente na sua ala esquerda ao lado de Hermann
Gorter e Frank van der Goes” (Mattick, 1976, p. 10-11). Neste partido, fundado
por Domela Nieuwenhuis, de origem anarco-sindicalista, Pannekoek e Gorter
fundaram um jornal que representava as posições de sua esquerda e logo a
degeneração reformista fez com que eles rompessem com ele e fundassem o
Partido Social Democrata. Este também seria abandonado tão logo passasse a ser
seguidor da linha bolchevique. Neste período, Pannekoek assumiu uma posição
antimilitarista (era a época da primeira guerra mundial), rejeitou o
parlamentarismo como meio de transformação social e se opôs à expulsão dos
anarquistas da II Internacional.
A explosão da primeira guerra mundial e o apoio da social-democracia serviu
para unir os vários grupos oposicionistas. Na Alemanha, Rosa Luxemburgo e
Karl Liebneckt e outros militantes, formaram a Liga Spartacus, que, futuramente
– junto com os comunistas internacionalistas (Rühle e outros) – formariam o
Partido Comunista Alemão; Na Holanda, os oposicionistas à guerra imperialista
se aglutinaram em torno de Pannekoek, Gorter, Roland-Host.
Ocorre, nesse período, a Revolução Russa. Rosa Luxemburgo e os comunistas
holandeses demonstraram não oferecer apoio incondicional, como a maioria na
época fez. Sem dúvida, os militantes de esquerda possuem uma necessidade
inconsciente de se agarrar a experiências e movimentos em outros países para se
sentirem “do lado do desenvolvimento histórico”, o que demonstra a insegurança
psíquica de muitos revolucionários, que assim apelam para o modelo soviético,
cubano ou “guevarista”, ou qualquer outro. Rosa Luxemburgo escreveu textos de
crítica ao bolchevismo e à revolução russa, demonstrando receio em relação ao
autoritarismo bolchevique. Todos eles (Rosa Luxemburgo, Pannekoek, etc.),
ofereceram “apoio crítico”, colocando já as discordâncias em relação a um
processo que ainda não estava claro para pessoas de outros países.
A experiência soviética e alemã influenciou Pannekoek. Ele era um marxista
declarado. Ele concordava com os princípios básicos do marxismo, sendo que o
modo de produção era considerado por ele como elemento fundamental para a
explicação da sociedade. É o modo de produção da vida material que fornece a
determinação fundamental do conjunto das demais relações sociais. Assim, ele
observava o que passava na esfera da produção e sua relação com o movimento
político geral da sociedade. A luta de classes torna-se o “motor da história”,
como em Marx, e a luta operária se manifesta como o embrião do comunismo e
é por isso que toda sua obra será dedicada a analisar a forma de emancipação dos
trabalhadores e a experiência histórica e concreta da luta operária lhe inspirará
na sua constituição de sua teoria dos conselhos operários.
A experiência russa dos sovietes (conselhos operários), que também ocorreu
na Alemanha, foi fundamental para Pannekoek assumir sua posição conselhista.
Segundo Mattick,
“Pannekoek reconheceu neste movimento dos conselhos o princípio
de um novo movimento operário revolucionário, e ao mesmo tempo o
início de uma reorganização socialista da sociedade. Este movimento
não podia nascer e manter-se senão opondo-se às formas tradicionais.
Estes princípios atraíram a parte mais militante do proletariado em
revolta, para grande desgosto de Lênin que não concebia um
movimento escapando ao controle do Partido ou do Estado e que
procurava castrar os sovietes da Rússia. Não podia tolerar um
movimento comunista internacional fora do controle absoluto do seu
próprio partido. Primeiro recorrendo a intrigas, e depois em 1920
abertamente, os bolcheviques esforçaram-se por combater as tendências
antiparlamentares e anti-sindicais do movimento comunista, sob o
pretexto de que era preciso não perder o contato com as massas que
aderiam às antigas organizações. O livro de Lênin, O Esquerdismo, A
Doença Infantil do Comunismo, era sobretudo dirigido contra Gorter e
Pannekoek, porta-vozes do movimento dos conselhos comunistas. O
Congresso de Heidelberg em 1919 dividiu o partido comunista alemão
numa minoria leninista e numa maioria que aderiu aos princípios do
antiparlamentarismo e do anti-sindicalismo sobre os quais o partido
tinha sido fundado inicialmente. Nova controvérsia se junta à primeira:
ditadura do partido ou ditadura de classe? Os comunistas não leninistas
adotaram o nome de Partido Operário Comunista da Alemanha
(KAPD). Uma organização similar foi mais tarde fundada na Holanda.
Os comunistas de partido se opuseram posteriormente aos comunistas
de conselhos e Pannekoek colocou-se ao lado dos segundos”.
Assim nasce a mais importante e desenvolvida corrente do marxismo mundial:
o comunismo conselhista. A partir deste momento, vai se firmando cada vez
mais esta corrente e sua posição diante do bolchevismo vai se clarificando.
Korsch já colocara, anteriormente, o princípio fundamental para a análise da
história do marxismo: a aplicação do materialismo histórico ao próprio
materialismo histórico (Korsch, 1977). E procedendo desta forma, ele concebeu
três fases na história do marxismo, sendo que a última corresponderia à
retomada do seu caráter revolucionário acompanhando a emergência das lutas
revolucionárias do proletariado no início do século 20, sendo expresso por
teóricos como Rosa Luxemburgo, Hermann Gorter, Anton Pannekoek, Otto
Rühle, entre outros. Esta corrente deveria, necessariamente, entrar em confronto
tanto com a ala reformista social-democrata quanto com a ala bolchevista, o que
ocorreu embrionariamente já desde os confrontos de Rosa Luxemburgo contra a
socialdemocracia (Bernstein e Kautsky) e Lênin, e se solidificou com os
desdobramentos da Revolução Russa e das demais tentativas de revolução
proletária na Europa.
O comunismo de conselhos via nos conselhos operários (Sovietes, na Rússia)
como a forma de auto-organização revolucionária do proletariado, tal como se
pode ver embrionariamente na Comuna de Paris e posteriormente em 1905, na
primeira Revolução Russa, bem como nas diversas tentativas de revolução
proletária na Europa, sem falar na Revolução Russa de 1917. Os conselhos
operários também seriam as instituições de autogestão social na reorganização
comunista da sociedade. Neste contexto, se desenvolvia a crítica aos partidos
políticos e sindicatos. Otto Rühle, por exemplo, seria o mais ferrenho crítico dos
partidos políticos, não a determinados partidos, mas aos partidos em geral, tal
como se vê em seu artigo A Revolução não é Tarefa de Partido.
Os sindicatos também sofreram várias críticas dos teóricos conselhistas. Ao
invés de organizações que representariam os interesses do proletariado, os
sindicatos representavam, na verdade, os interesses da classe dominante.
Segundo Pannekoek, “As condições existentes nos sindicatos atuais os
transformaram, mais que nunca, em órgãos de dominação do capitalismo
monopolista sobre a classe operária” (Pannekoek, 1977, p. 102).
Pannekoek também era um crítico da social-democracia reformista e do
parlamentarismo. Para ele, o parlamento é um freio para o desenvolvimento da
consciência de classe do proletariado e a democracia burguesa é uma forma de
escravizar e não de libertar a classe proletária (Pannekoek, 1978).
Depois do confronto na III Internacional, os teóricos conselhistas (Pannekoek,
Rühle, Wagner, Gorter, etc.) vão cada vez mais aprofundando sua crítica ao
bolchevismo e ao regime ditatorial russo. A Rússia passa a ser caracterizado
como um capitalismo de estado. Segundo Pannekoek,
“A consolidação do capitalismo de estado na Rússia foi a razão
determinante do caráter que tomou o Partido Comunista. Enquanto que
na sua propaganda no exterior, continuava falando de comunismo e de
revolução mundial, criticava o capitalismo e chamava os trabalhadores a
se unirem na sua luta pela libertação, escondia o fato de que na Rússia
os trabalhadores não eram mais que uma classe submetida a uma
ditadura opressiva e implacável, privada de liberdade de expressão, de
imprensa e associação, muito mais duramente submetida que as classes
operárias dos países ocidentais” (Pannekoek, 1977, p. 129).
A posição de Pannekoek e dos comunistas de conselhos se torna
antibolchevista. O bolchevismo passa a ser visto como um movimento contra-
revolucionário que atua dentro do movimento operário. Tal como colocou
Mattick,
“enquanto a luta de Lênin contra a ‘ultra-esquerda’ era o primeiro
sintoma das tendências contra-revolucionárias do bolchevismo, o
combate de Pannekoek e Gorter contra a corrupção leninista do novo
movimento operário foi o começo de um antibolchevismo dum ponto de
vista proletário” (Mattick, 1976, p. 18-19).
O capitalismo estatal russo transformou o marxismo em ideologia da
burocracia “soviética”. Em Lênin, Filósofo, Pannekoek buscava analisar a
filosofia leninista e demonstrou que o seu materialismo, oposto ao idealismo de
Mach e Avenarius, exposto em Materialismo e Empiriocriticismo, revela mais
um fundamento do caráter semi-burguês do bolchevismo, pois ele criticava estes
autores com base no materialismo burguês, aquém do materialismo histórico.
Segundo Pannekoek,
“O materialismo burguês identifica a matéria física com a realidade
objetiva; portanto, deve-se considerar tudo o mais, também o espiritual,
com um atributo, uma propriedade desta matéria. Logo, não é estranho
que encontremos as mesmas idéias em Lênin” (Pannekoek, 1973, p. 13).
Esta concepção de matéria, contrária a posição do materialismo histórico, é
uma retomada do materialismo burguês, que fornece um fundamento filosófico
de caráter burguês ao bolchevismo. E é este o motivo do ataque de Lênin a
Joseph Dietzgen, defendido por Pannekoek. O curioso é que Dietzgen foi
considerado por Engels como um dos fundadores da dialética materialista
(Engels, s/d; Engels, 1990) e, no entanto, foi criticado e abandonado pelos
social-democratas e bolchevistas (de Kautsky e Plekhanov até Lênin e os
leninistas), apesar de se inspirarem mais em Engels do que em Marx para criar
sua ideologia do “materialismo dialético” (Viana, 1997). Mas o que se tem, neste
caso, neste uso do materialismo burguês sob a máscara de materialismo
histórico, é a criação de uma ideologia de uma nova classe social, a burocracia,
ou, segundo Pannekoek, a intelligentsia:
“Esta ideologia leninista, que hoje professam os partidos comunistas
e que, em princípio, se adequa à ideologia tradicional do velho partido
socialdemocrata, já não expressa nenhum dos objetivos do proletariado.
Segundo Harper [Pannekoek – NV], é muito mais a expressão natural
dos objetivos de uma “nova classe”: a intelligentsia” (Korsch, 1973, p.
157).
A Revolução Russa era vista como uma contra-revolução burocrática que
sucedia a revolução operária dos sovietes. O bolchevismo, do ponto de vista de
Pannekoek, utilizava métodos que “não tem nada a ver com um marxismo
revolucionário, nem com a práxis da luta de classes da Europa ocidental, e que
inclusive se encontrava em contradição com ambos” (Brendel, 1978, p. 9).
A segunda guerra mundial e a ascensão do nazi-fascismo marcaram a crise do
movimento operário e, por conseguinte, do comunismo conselhista. Este
sobreviveria marginalmente na sociedade capitalista, tanto através de
publicações e coletivos que reivindicavam o comunismo de conselhos quanto
através de sua influência nas mais variadas correntes políticas que buscavam
apresentar uma alternativa à social-democracia e ao bolchevismo. A hegemonia
bolchevista nas organizações burocráticas que dizem representar o movimento
operário relegou o conselhismo ao esquecimento junto a militantes e operários, e
somente recordado como uma “doença infantil”, chamada “esquerdismo”
(Lênin, 1989). Porém, sempre que há emergência do movimento operário, ocorre
o ressurgimento do comunismo de conselhos, tal como na rebelião estudantil de
maio de 68, no qual a idéia de autogestão fez ressurgir o interesse pela obra dos
comunistas conselhistas, inclusive em um dos participantes deste processo que
retomava a teoria conselhista do capitalismo de estado para explicar a posição do
partido comunista francês (Cohn-Bendit e Cohn-Bendit, 1969).
Em 1947, Pannekoek escreveu sua grande obra Os Conselhos Operários, onde
expressou a afirmação teórica da experiência proletária do caminho para a
autogestão social. Depois disso, devido ao refluxo do movimento operário na
Europa Ocidental, Pannekoek continuaria sua militância basicamente através da
teoria, escrevendo e publicando textos, até seu falecimento em 1960. Dentre os
teóricos revolucionários, Pannekoek foi o que mais se dedicou ao que ele
denominava “novo movimento operário” fundado nos conselhos operários. Ele
pode ser considerado o maior teórico dos conselhos operários e, ao contrário do
que alguns críticos de esquerda do conselhismo afirmam, sua visão destas
formas de auto-organização do proletariado não era fixa e acrítica. Os conselhos
operários podiam ser corrompidos, tal como ocorreu na revolução bolchevique e
durante a vigência do reformismo. Segundo Pannekoek, os conselhos operários
“não designa uma forma de organização fixa, elaborada de uma vez
por todas, a qual só faltaria aperfeiçoar os detalhes; trata-se de um
princípio, o princípio da autogestão operária das empresas e da
produção. A realização deste princípio não passa, absolutamente, por
uma discussão teórica referente aos seus melhores modos de execução.
É uma questão de luta prática contra o aparato de dominação capitalista.
Em nossos dias, por conselhos operários não se entende a associação
fraternal que tem um fim em si mesma; conselhos operários quer dizer
luta de classes (na qual a fraternidade tem seu lugar), ação
revolucionária contra o poder do Estado” (apud. Bricianer, 1975, p.
310).

Nildo Viana
Capitulo I: O Trabalho
Atualmente e no período que se está a iniciar, no momento em que a Europa é
devastada e a humanidade empobrecida pela guerra mundial, é aos trabalhadores
de todo o mundo que cumpre organizar a indústria, para se libertarem da miséria
e da exploração. A sua tarefa é empreender a organização da produção dos bens.
Para realizarem esta obra imensa e difícil, é necessário que conheçam
plenamente o caráter do trabalho. Quanto melhor for o conhecimento que
possuírem da sociedade e, dentro desta sociedade, do lugar que aí devem ocupar,
menos dificuldades, decepções, e fracassos encontrarão no combate a travar.
Na base da sociedade encontra-se a produção de todos os bens necessários à
vida. A maior parte desta produção faz-se recorrendo a técnicas muito
elaboradas, em grandes fábricas, utilizando máquinas complicadas. Este
desenvolvimento das técnicas, que fez passar da pequena ferramenta, manejada
por um único homem, às enormes máquinas, postas a funcionar por vastas
coletividades de operários, com qualificações diferentes, operou-se no decurso
dos séculos precedentes. Embora ainda sejam utilizadas pequenas ferramentas,
como acessórios, e embora existam ainda numerosas pequenas oficinas, já não
ocupam praticamente qualquer lugar no conjunto da produção.
Cada fábrica é uma organização minuciosamente adaptada aos seus fins, uma
organização de forças, tanto inertes como vivas, de instrumentos, de operários.
As formas e o caráter desta organização são determinados pelos objetivos que
devem servir. Quais são estes objetivos?
Nos nossos dias, a produção é dominada pelo capital. O capitalista que possui
o dinheiro funda a fábrica, compra as máquinas e as matérias-primas, contrata
operários e fazê-los produzir mercadorias, que podem ser vendidas. Isto significa
que ele compra a força de trabalho dos operários, força essa que irá ser
despendida no trabalho quotidiano, e paga-lhe o valor desta força, o salário, com
o qual podem obter aquilo de que necessitam para viver e para restaurar
permanentemente a sua força de trabalho. O excedente conservado pelo
capitalista quando o produto é vendido, o mais-valor, constitui o lucro que, na
medida em que não é consumido, é acumulado, transformando-se assim em novo
capital. A força de trabalho da classe operária pode ser comparada a uma mina:
pela exploração, rende mais do que o que custou. Daí a expressão: exploração do
trabalho pelo capital. O próprio capital é produto do trabalho: é, na sua
totalidade, mais-valor acumulado.
O capital é o senhor da produção. Possui a fábrica, as máquinas, os bens
produzidos, os operários trabalham sob as suas ordens, os seus objetivos
dominam o trabalho e determinam o caráter da organização. O objetivo do
capital é obter lucro. O capitalista não é motivado pelo desejo de fornecer aos
seus concidadãos os produtos necessários à vida; é levado pela necessidade de
ganhar dinheiro. Se possui uma fábrica de sapatos, o que o move não é a piedade
pelos que poderão sofrer dos pés, é simplesmente o fato de saber que a sua
empresa tem de obter lucro e que abrirá falência se esses lucros forem
insuficientes. A maneira normal de obter lucros é evidentemente produzir
mercadorias que possam ser vendidas por bom preço, e geralmente só podem ser
vendidas se forem bens de consumo necessários e práticos para quem os compra.
Para obter lucros, o negociante de sapatos tem, portanto de produzir bons
sapatos, melhores e menos caros que os dos concorrentes. A produção capitalista
consegue assim, em período normal, atingir aquilo que deve ser o objetivo de
toda a produção: fornecer à humanidade aquilo de que necessita para viver. Mas
toda a gente sabe que, para o capitalista, pode ser mais rentável produzir, para os
ricos, objetos de luxo supérfluos, ou, para os pobres, mercadorias ordinárias, que
pode ser mais vantajoso vender a sua fábrica a um concorrente, que a pode
encerrar se tal lhe aprouver.
Estes são exemplos frequentes, e mostram claramente que o objetivo
primordial da produção atual continua a ser o lucro.
Este objetivo determina o caráter da organização do trabalho na fábrica.
Começa por impor a autoridade de um senhor absoluto. Se é o próprio
proprietário quem dirige, tem de ter o cuidado de não perder o seu capital, bem
pelo contrário tem de o aumentar. O trabalho é dominado pelo seu interesse: os
operários são a sua mão-de-obra e devem obedecer. Assim são determinados o
seu papel e a sua função no trabalho. Se os operários se queixarem do número
demasiado elevado de horas ou do trabalho esgotante, responde-lhes insistindo
no seu próprio trabalho e nas preocupações que o obrigam a manter-se acordado
pela noite dentro, quando eles já regressaram a casa e só têm que se preocupar
consigo próprios. Só se esquece de dizer, e de resto ele mesmo mal o
compreende, que todo este trabalho, muitas vezes tão penoso, todos estes
aborrecimentos que lhe tiram o sono só servem o lucro e não a própria produção.
Todo o seu trabalho consiste finalmente em procurar como vender as
mercadorias, como ultrapassar os concorrentes, como conseguir que um máximo
de mais-valor entre nos seus cofres. Não é um trabalho produtivo, e os esforços
que despende para lutar contra os concorrentes são inúteis para a sociedade. Mas
ele é o patrão, e são os seus objetivos que regem a empresa.
Se este patrão da fábrica é um diretor contratado, sabe que foi colocado nesse
posto com o fim de obter lucros para os acionistas. Se não o conseguir, é
despedido e substituído por outro. Naturalmente que, se quiser dirigir o trabalho
de produção, tem de ser um especialista experiente, ao corrente das técnicas
utilizadas no seu ramo de atividade. Mas, além disso, ou melhor, antes de mais,
tem de ser um perito na arte de realizar lucros. Tem de começar por obter e
dominar as técnicas de aumento de lucro líquido, por descobrir como produzir ao
menor custo, como vender o melhor possível, como vencer os rivais. Qualquer
diretor sabe isto. É isto que comanda a marcha dos negócios. É também isto que
determina a organização na própria fábrica.
A organização da produção na fábrica segue, portanto duas vias: a da
organização técnica e a da organização comercial. O rápido desenvolvimento das
técnicas no século passado, que se baseou em progressos científicos notáveis,
provocou melhoramentos dos métodos de trabalho nestes campos. Ter à sua
disposição uma técnica superior é a melhor arma para a concorrência: permite
obter um maior lucro à custa dos concorrentes que ficarem para trás. Porque o
desenvolvimento técnico aumenta a produtividade do trabalho, diminui o preço
dos bens úteis e de consumo, torna-os mais abundantes e mais variados; aumenta
assim as possibilidades de atingir um certo bem-estar e, baixando o custo de
vida, - ou seja, o valor da força de trabalho - permite elevar consideravelmente o
lucro do capital. Este alto nível de desenvolvimento técnico atraiu às fábricas um
número cada vez maior de especialistas: engenheiros, químicos, físicos,
cientistas competentes formados nas universidades e nos laboratórios,
indispensáveis para dominar as operações técnicas complexas e melhorá-las
constantemente através de novas descobertas científicas. Sob a direção destes
especialistas trabalham técnicos e operários qualificados. A organização técnica
acarreta assim uma colaboração estreita entre diferentes camadas de
trabalhadores: um pequeno número de especialistas com formação universitária,
um maior número de profissionais qualificados e de operários especializados, e
uma grande massa de operários não qualificados, que efetuam tarefas manuais.
São necessários os esforços combinados de todos para fazer mover as máquinas
e para produzir as mercadorias.
A organização comercial deve assegurar a venda da produção. Estuda os
mercados e os preços; ocupa-se da publicidade; forma agentes que irão
incrementar as vendas. Utiliza o “management” dito científico para fazer baixar
os custos de produção, repartindo o melhor possível os homens e o material;
inventa estimulantes para iniciar os operários a esforços mais elevados e mais
intensos. Transforma a publicidade numa espécie de ciência, ensinada mesmo
nas universidades. Para os capitalistas, a organização comercial e as suas
técnicas não são menos importantes do que as técnicas de produção; são a arma
principal na luta entre capitalistas. Se nos colocarmos do ponto de vista de uma
sociedade que deve assegurar a produção de bens necessários à vida, veremos
que isto é um desperdício de talentos sem nenhuma utilidade. Diretores e
operários vivem integrados num meio social; partilham as mentalidades das
respectivas classes. Seja qual for o lugar onde se efetue, o trabalho assume o
mesmo caráter capitalista. É essa a sua característica essencial, a sua natureza
profunda, apesar das diferenças superficiais constituídas pelas condições,
melhores ou piores, em que é exercido.
A própria natureza do trabalho, no regime capitalista, é constituir uma
extorsão. Os trabalhadores têm de ser levados, ou pela força, ou pela arte
melíflua da persuasão a dar o máximo das suas forças. O próprio capital está
sujeito a um constrangimento semelhante. Se não for competitivo, se os lucros
forem insuficientes o negócio desmoronar-se-á. Os trabalhadores defendem-se
instintivamente desta opressão por meio de uma resistência contínua. Se não o
fizessem, se, voluntariamente, se deixassem arrastar, veriam que lhes seria
extorquido muito mais que a sua força de trabalho quotidiana: a sua própria
capacidade física de trabalhar seria consumida, a sua força vital ver-se-ia
precocemente esgotada (é já o que acontece hoje em dia pelo menos até certo
ponto). Seria, para eles e para a sua descendência, a degenerescência, a
destruição da saúde e das forças. Por isso têm de resistir. Mesmo fora dos
períodos de conflitos agudos, de greves ou de diminuição de salários, cada
oficina, cada empresa é palco de uma guerra silenciosa e permanente, de uma
luta perpétua feita de pressões e de contra-ofensivas. Nos altos e baixos desta
luta estabelecem-se determinadas normas de salários, de tempo de trabalho, de
cadências, que se situam no ponto limite entre o tolerável e o intolerável (se
estas normas forem intoleráveis, toda a produção será afetada). As duas classes,
trabalhadores e capitalistas, embora obrigadas a labutar juntas no quotidiano,
nem por isso deixam de ser, profundamente e devido aos seus interesses
contraditórios, inimigas implacáveis que, quando não se defrontam, vivem numa
espécie de paz armada.
O trabalho, em si mesmo não é repugnante. É uma necessidade imposta ao
homem pela natureza, para obter a satisfação das suas necessidades. O homem,
como todos os outros seres vivos, tem de utilizar as suas forças para obter
alimento. A natureza dotou todos os seres de órgãos corporais e de faculdades
mentais, músculos, nervos e um cérebro, para se poderem adaptar a esta
necessidade. As necessidades e os meios de satisfazê-las estão, nos seres vivos,
harmoniosamente adaptados uns aos outros, pelo menos no decurso normal da
sua vida. O trabalho, ou seja, esta utilização normal dos membros e das
capacidades mentais, é um impulso normal tanto do homem como do animal.
Sem dúvida que há um componente de obrigação na necessidade de procurar
alimentos e um abrigo. A utilização livre e espontânea dos músculos e dos
nervos, ao sabor dos caprichos do trabalho e do recreio, situa-se na própria
essência da natureza humana. O constrangimento imposto ao homem pela
satisfação das suas necessidades obriga-o a um trabalho regular, ao recalcamento
do impulso do momento, a utilização das suas forças, a um controle poderoso e
assíduo. Mas deste autodomínio, por necessário que seja para a sua própria
preservação, para a da família e da comunidade, o homem extrai a satisfação de
ver vencidos os obstáculos existentes em si mesmo ou no mundo que o cerca, e
adquire o sentimento orgulhoso de ser capaz de atingir os fins que se propôs. O
hábito do trabalho regular fixou-se assim pelo seu caráter social, pelos usos e
costumes da família, da tribo ou da aldeia; transformou-se numa segunda
natureza, num modo de vida natural, numa unidade harmoniosa de forças e de
necessidades, de tendências naturais e de deveres. O camponês, por exemplo,
durante uma vida de trabalho, muito dura ou tranquila, transforma a natureza que
o rodeia num lugar onde se sente seguro. Do mesmo modo para todos os povos,
cada um com os seus traços específicos, o modo de produção artesanal permitiu
ao artesão utilizar alegremente as suas capacidades e a sua imaginação para
fabricar coisas úteis e simultaneamente belas e boas.
Tudo isto foi destruído quando o capital se transformou no senhor do trabalho.
Com a produção para o mercado, para a venda, os bens transformam-se em
mercadorias que, além da utilidade que assumem para o comprador, possuem um
valor de troca que de algum modo corresponde ao trabalho realizado para
produzi-las. Este valor de troca determina o dinheiro que rende a venda. Outrora
um operário que trabalhasse um tempo razoável - salvo nos casos excepcionais
em que se podia exigir dele um esforço violento - podia produzir o suficiente
para viver. Mas o lucro capitalista é constituído precisamente por aquilo que o
operário produz para além do que necessita para viver. Quanto maior for o valor
daquilo que produz e quanto menor for o valor daquilo que consome, mais
importante será o mais-valor capturado pelo capital. Dai que as necessidades
vitais do operário sejam reduzidas, que o seu nível de vida seja baixado o mais
possível, que o tempo de trabalho seja aumentado, que as cadências sejam
aceleradas. O trabalho perde totalmente o antigo caráter de utilização agradável
do corpo e dos membros. Transforma-se numa calamidade e numa degradação. É
este o seu verdadeiro caráter, sejam quais forem as disposições introduzidas
pelas leis sociais e pela ação sindical, ambas decorrentes da resistência
desesperada dos trabalhadores face a uma degradação insuportável. Mas tudo
quanto podem esperar desse lado é conseguir fazer passar o capitalismo do
estádio do absurdo poder total ao da exploração normal. Mesmo neste último
caso, o trabalho, sob um regime capitalista, conservará sempre o seu caráter
intrínseco de servidão penosa e desumana. Para não morrerem de fome, os
trabalhadores são obrigados a pôr as suas forças à disposição de uma direção que
lhes é estranha, para lucros que lhes são estranhos, num fabricar desinteressante
de coisas desinteressantes ou de má qualidade. Forçados a dar o máximo que o
corpo esgotado pode dar, os trabalhadores gastam-se antes do tempo.
Economistas ignorantes, que não conhecem a verdadeira natureza do
capitalismo, só enxergam a profunda aversão dos operários pelo seu trabalho, e
concluem daí que o trabalho produtivo, pela sua própria natureza, é repugnante
para o homem e deve, portanto ser imposto, a bem ou a mal, à humanidade,
através dos mais severos constrangimentos.
Evidentemente, este caráter do trabalho nem sempre é conscientemente
percebido pelos trabalhadores. Por vezes, reaparece igualmente o caráter
primitivo do trabalho, esse impulso instintivo para a ação geradora de satisfação.
Em particular, jovens trabalhadores, ignorantes da natureza do capitalismo,
ambicionando mostrar as suas capacidades, impacientes por se verem
reconhecidos como operários plenamente qualificados, sentem em si uma
espécie de força de trabalho inesgotável. O capitalismo tem métodos judiciosos
para explorar esta disposição. Só mais tarde quando surgem, cada vez maiores,
as preocupações e as obrigações familiares, é que o operário se vai sentir
apanhado entre os constrangimentos e os limites das suas forças, acorrentado por
inexoráveis obstáculos de que não consegue libertar-se. Por fim, sente as forças
fugirem-lhe numa idade em que o homem da burguesia está no apogeu da sua
força e da sua maturidade. Tem então de suportar a explorarão com uma
resignação silenciosa temendo ser posto de parte, como uma ferramenta usada.
Por muito mau e condenável que possa ser o trabalho em regime capitalista, a
falta de trabalho é ainda muito pior. Como qualquer mercadoria, a força de
trabalho às vezes não encontra comprador. A liberdade problemática, deixada ao
trabalhador, de escolher o seu patrão, vai de par com a liberdade que o capitalista
tem de contratar ou despedir os seus operários. O desenvolvimento contínuo do
capitalismo, a criação de novas empresas, o declínio e a falência das mais
antigas dispersam permanentemente os trabalhadores: aqui, reúnem-se grandes
massas de trabalhadores, acolá se despedem. No fundo, devem considerar-se
muito felizes quando são autorizados a deixarem-se explorar. Dão-se então conta
de que estão à mercê do capitalismo. Só com o consentimento dos patrões têm
acesso às máquinas, essas máquinas que esperam por eles para poderem
funcionar.
O desemprego é o pior flagelo da classe operária. É inerente ao capitalismo. É
uma calamidade que ressurge sempre. Acompanha as crises e as depressões
periódicas que, durante todo o domínio do capitalismo, destroçaram a sociedade
a intervalos regulares, e que são uma consequência da anarquia da produção
capitalista. Cada capitalista, enquanto senhor independente da sua empresa, é
livre para dirigi-la como muito bem entende, para produzir o que lhe parece
lucrativo, ou para fechar a fábrica quando os lucros diminuem. Em oposição à
organização minuciosa que reina no interior da fábrica, há uma falta absoluta de
organização da produção social global. O rápido crescimento do capital,
resultado da acumulação dos lucros, a necessidade de encontrar lucros também
para este novo capital conduzem a um aumento rápido da produção. Esta inunda
assim o mercado com produtos invendáveis. Depois vem a queda, que não só
reduz os lucros e destrói o capital supérfluo, como ainda expulsa das fábricas
exércitos de trabalhadores, abandonando-os unicamente aos seus recursos, ou a
uma caridade irrisória. Nessa altura os salários diminuem, as greves são
ineficazes, a massa de desempregados pesa muito nas condições de trabalho. O
que se ganhou com duras batalhas num momento de prosperidade é muitas vezes
perdido na crise. O desemprego sempre foi o principal obstáculo ao aumento
continuo do nível de vida da classe operária.
Alguns economistas afirmaram que o desenvolvimento moderno da grande
indústria faria desaparecer esta alternância perniciosa de crise e prosperidade.
Esperavam que os trustes e os cartéis, monopolizando, como fazem vastos
setores da indústria, trouxessem um pouco de ordem e de organização à anarquia
da produção e reduzissem as irregularidades desta. Não tomavam em conta o
fato de a corrida aos lucros continuar, conduzindo os grupos organizados a uma
competição ainda mais renhida. A incapacidade do capitalismo moderno para
vencer a sua própria anarquia manifestou-se claramente na altura da crise
mundial de 1930. Durante longos anos, pareceu que a produção se havia
definitivamente desmantelado. Em todo o mundo, milhões de operários, de
camponeses, e mesmo de intelectuais viram-se reduzidos a viver de socorros que
os governos eram obrigados a prestar-lhes: a crise da atual guerra decorre
diretamente desta crise da produção.
Esta crise orientou os holofotes da história para o verdadeiro caráter do
capitalismo e para a impossibilidade de fazê-lo durar. Para milhões de pessoas
era já impossível obter o estritamente necessário. Havia milhões de operários em
plena posse das suas forças que só procuravam trabalho; havia milhões de
máquinas, em milhares de fábricas, à espera de serem postas a funcionar para
produzirem mercadorias em abundância. Mas isso não era permitido. O direito
de propriedade capitalista sobre os meios de produção erguia-se entre os
operários e as máquinas. Este direito de propriedade, defendido se necessário
pelas forças da polícia e do Estado, impedia os operários de tocarem nas
máquinas e de produzirem aquilo de que a sociedade e eles próprios
necessitavam para viver. As máquinas enferrujar-se-iam paradas, os
trabalhadores passariam a vaguear desocupados e a aguentar a sua miséria. Por
quê? Porque o capitalismo é incapaz de pôr em marcha as enormes capacidades
técnicas e produtivas da humanidade para o seu verdadeiro objetivo: a satisfação
das necessidades da sociedade.
Não há dúvida que o capitalismo tenta atualmente iniciar uma espécie de
organização e de planificação da produção. A sua insaciável sede de lucros não
pode ser satisfeita dentro dos seus limites tradicionais. É levado a estender-se a
todo o mundo, a apropriar-se de todas as riquezas, a abrir mercados e a subjugar
as populações dos outros continentes. Os grupos capitalistas têm de, à custa de
uma competição sem piedade, procurar conquistar ou conservar as partes mais
ricas do mundo. A classe capitalista de Inglaterra, de França, da Holanda obtinha
lucros fáceis explorando ricas colônias, conquistadas durante guerras passadas.
Na mesma altura, o capitalismo alemão podia apenas contar com a sua própria
energia, com as suas capacidades e, a despeito do seu desenvolvimento rápido,
só lutando pelo domínio do mundo, só preparando-se para a guerra mundial,
poderia obter a sua parte, já que chegara demasiado tarde à partilha do mundo
colonial. Tinha de ser ele o agressor, e os outros os "agredidos". Foi assim o
primeiro a pôr em ação e a organizar todas as forças da sociedade com vista a
atingir este objetivo, e os outros tiveram que seguir o seu exemplo.
Nesta luta pela vida entre grandes potências capitalistas, a ineficácia do
capitalismo privado não podia ser tolerada por muito mais tempo. O desemprego
surgia como um desperdício, não só estúpido como criminoso de forças
produtivas cuja necessidade era absolutamente vital. Era necessária uma
organização estrita e minuciosa para assumir o pleno emprego de todas as forças
de trabalho e do potencial de luta da nação. O caráter insustentável do
capitalismo revelava-se a partir desse momento sob um aspeto muito diferente,
mas igualmente ameaçador. O desemprego transformava-se no seu contrário, o
trabalho obrigatório. Trabalho forçado, o desses combates nas fronteiras em que
milhões de homens jovens e fortes, dotados dos meios de destruição mais
aperfeiçoados, se mutilam, se matam uns aos outros, se exterminam, se
suprimem mutuamente para o domínio mundial dos seus patões capitalistas.
Trabalho forçado, o que é executado nas fábricas por todo o resto da população,
incluindo mulheres e crianças, que tem de produzir ininterruptamente cada vez
mais instrumentos de morte, ao passo que a produção do necessário vital se
limita estritamente ao mínimo. A rarefação de tudo o que é necessário à vida, a
penúria, o regresso à barbárie mais miserável e mais atroz, eis a consequência do
extremo desenvolvimento da ciência e da técnica, eis o fruto glorioso do
pensamento e do trabalho de tantas gerações! E por quê? Porque, apesar de todos
os discursos enganadores sobre a comunidade e a fraternidade, o capitalismo
organizado também é completamente incapaz de fazer funcionar as ricas forças
produtivas da humanidade para aquilo que é o seu verdadeiro objetivo, não faz
senão utilizá-las como meios de destruição.
A classe operária vê-se assim face à necessidade de tomar ela própria em
mãos a produção. O domínio sobre as máquinas, sobre os meios de produção,
tem de ser retirado das mãos indignas dos que dele fazem tal uso. É a causa
comum de todos os produtores, de todos os que asseguram o trabalho produtivo
na sociedade: os operários, os técnicos, os camponeses. Mas são as principais e
eternas vitimas do sistema capitalista – que, além disso, constitui a maioria da
população –, os operários, que cabe a tarefa de se libertarem a si próprios e ao
mesmo tempo a humanidade em geral, deste flagelo. Têm que se apropriar dos
meios de produção. Tem de se transformar em donos das fábricas, em donos do
seu próprio trabalho e de conduzi-lo segundo a sua própria vontade. Nesse
momento as máquinas reassumirão o seu verdadeiro destino: a produção em
abundância dos bens destinados a satisfazer as necessidades da vida de todos.
É esta a tarefa dos trabalhadores no período que se inicia. É esta a única via
para a liberdade; é a revolução para que se encaminhe a sociedade, revolução
que irá subverter totalmente o caráter da produção; na base desta irão estar novos
princípios. E, desde logo, porque a exploração terá cessado. O produto do
trabalho comum pertencerá aos que tiverem participado na obra comum. Já não
haverá mais-valor para o capital, nem apropriação de uma parte do produto
social por parasitas capitalistas.
Mais importante que o fim da apropriação de uma parte do produto social será
o fim do domínio do capital sobre a produção. A partir do momento em que os
operários sejam donos das fábricas, os patrões perderão a possibilidade de deixar
paradas as máquinas, essas riquezas da humanidade, esses produtos preciosos
dos esforços intelectuais e manuais de tantas gerações de trabalhadores e de
investigadores. Com os capitalistas, desaparecerá o poder de impor a produção
de objetos supérfluos, de produtos de luxo ou de mercadorias ordinárias. Quando
os operários tiverem o controle das máquinas, servir-se-ão delas para produzir
tudo o que é necessário a vida da sociedade.
Isto só será possível reagrupando todas as fábricas, membros separados de um
mesmo corpo, num sistema de produção bem organizado. Os contatos que, no
capitalismo, são resultado fortuito do mercado e de uma competição cega,
dependente da oferta e da procura, passarão então a ser objeto de uma
planificação consciente. Em vez das tentativas de organização imperfeitas e
parciais do capitalismo moderno, cujo resultado é tornar mais ferozes as lutas e
as destruições, ir-se-á desenvolver uma organização perfeita da produção, que se
alargará num sistema de colaboração à escala mundial, porque as classes dos
produtores não poderão entrar em competição, mas tão somente colaborar.
Estas três características da nova produção definem um mundo novo. O fim
do lucro capitalista, o fim do subemprego dos homens e das máquinas, a
regulação consciente e adequada da produção e o aumento desta produção graças
a uma organização eficiente darão a cada trabalhador uma maior quantidade de
bens em troca de um trabalho menor. Uma nova via se abre agora para um
desenvolvimento muito mais vasto da produtividade. Pela aplicação de todos os
progressos técnicos, a produção aumentará de tal modo que a abundância para
todos se fará acompanhar do desaparecimento de todo o trabalho penoso.
Capitulo II: A Lei e a Propriedade
Tal transformação do sistema de trabalho implica uma transformação do
Direito. Não se trata, evidentemente, de fazer votar novas leis no parlamento e
pelo Congresso. Estas transformações atingem as próprias bases da sociedade,
todos os seus costumes e as suas práticas, muito além das modificações
provisórias que resultam dos atos parlamentares. Esta transformação reporta-se
às leis básicas de toda a sociedade e não apenas de um determinado país, porque
se fundamentam nas convicções dos homens sobre o Direito e a Justiça.
As leis não são imutáveis. As classes dominantes sempre tentaram preservar o
Direito existente, proclamando que se baseia na natureza, que se fundamenta nos
direitos eternos do homem, ou que é consagrado pela religião. Tudo isto tem
como objetivo único consolidar os seus privilégios e votar as classes exploradas
a uma escravidão perpétua. Na história, pelo contrário, é bem evidente que as
leis se modificam incessantemente, segundo as concepções do bem e do mal que,
também elas se vão modificando.
O sentido do bem e do mal, a consciência da justiça, não são coisas acidentais
no homem. Tudo isto se desenvolve, irresistivelmente e naturalmente, a partir da
sua experiência, a partir das condições fundamentais da sua vida. A sociedade
tem de viver, e por isso as relações entre os homens devem ser reguladas de
maneira tal que a produção do necessário vital se possa processar sem entraves
(e é este o papel da lei). É justo antes de tudo, o que é bom e necessário para
viver; não só útil no momento presente, mas necessário em geral tanto para a
vida de um único indivíduo como para a de todos, considerados no seu conjunto,
isto é, como comunidade, não tomando unicamente em consideração os
interesses pessoais ou temporários, mas igualmente a felicidade duradoura de
todos. Quando mudam as condições de vida, quando o sistema de produção se
desenvolve e assume novas formas, as relações entre os homens modificam-se, e
simultaneamente o sentido que os homens têm do bem e do mal. A lei tem então
de ser modificada.
Isto transparece claramente nas leis que regem o direito de propriedade. No
estado original, selvagem e bárbaro, a terra era considerada como pertencendo a
uma tribo que nela vivia, caçava ou apascentava gado. Para empregar a
linguagem de hoje, pode dizer-se que o território era propriedade comum da
tribo, que o utilizava para viver e o defendia contra as outras tribos. As armas, os
utensílios, que o indivíduo podia fabricar com as suas próprias mãos, eram de
certo modo pessoais, eram a sua propriedade privada, mas não no sentido
exclusivo, consciente, que este termo assume para nós, e isto devido aos laços
mútuos e poderosos que uniam os membros da tribo. Não eram leis e sim usos e
costumes que regulamentavam as relações mútuas. Esses povos primitivos e
mesmo, em épocas mais próximas de nós, determinadas populações agrícolas
(como, por exemplo, os camponeses russos de antes de 1860) não podiam
conceber a ideia de propriedade privada de uma parcela de terreno, tal como nós
não podemos conceber a ideia de propriedade privada de uma determinada
quantidade de ar.
Estas regulamentações tiveram de se modificar quando as tribos se estenderam
e se fixaram, desbastaram as florestas, se dispersaram em individualidades
distintas (ou seja, em famílias), trabalhando cada parcela distinta. Modificaram-
se ainda mais quando o artesanato se separou da agricultura, quando o trabalho
ocasional de todos passou a ser o trabalho permanente de alguns, quando os
produtos se transformaram em mercadorias destinadas à venda, quando se
estabeleceu um comércio regular, quando os produtos passaram a ser
consumidos por outros que não os produtores. Era, contudo, natural que o
camponês, que havia trabalhado uma parcela de terra, que a havia melhorado,
que tinha labutado ele próprio, sem recorrer a outras pessoas, dispusesse
livremente da terra e dos utensílios, que o produto da terra lhe pertencesse, que a
terra e a produção que dela extraía continuassem a ser propriedade sua. Todavia,
na Idade Média, foram feitas restrições a estas regulamentações: assumiram a
forma de obrigações feudais, tornadas necessárias para assegurar a defesa das
terras. Por outro lado, era natural que o artesão, único a manejar os seus
utensílios, deles dispusesse em exclusivo, tal como dos objetos que fabricava:
continuava a ser o único proprietário deles.
A propriedade privada passou deste modo a ser a lei fundamental de uma
sociedade baseada em unidades de trabalho de pequena dimensão. Sem que
tenha sido expressamente formulado, isto foi sentido como um direito
necessário: quem utilizasse exclusivamente os utensílios, a terra, um produto,
devia ser dono deles, e dispor deles livremente. A propriedade privada dos meios
de produção é própria do pequeno comércio, é o seu complemento jurídico
necessário.
Nada deste ponto de vista se modificou quando o capitalismo se transformou
em senhor da indústria. Quando muito, estes princípios foram expressos, com
uma clareza ainda maior, pela Revolução Francesa que, em pleno conhecimento
de causa, proclamou a liberdade, a igualdade e a propriedade como direitos
fundamentais do cidadão. E era nem mais nem menos que a propriedade privada
dos meios de produção que vemos manifestar-se quando, em vez de alguns
aprendizes, o mestre de ofício recrutava servos, em número cada vez maior, para
o auxiliarem no seu trabalho, a quem fornecia utensílios que continuavam a ser
propriedade sua, e que fabricavam, para ele, produtos destinados à venda. Por
intermédio da exploração da força de trabalho dos operários, as fábricas e as
máquinas, propriedade privada do capitalista, transformaram-se em fonte de uma
acumulação, imensa e sempre crescente de capital. A propriedade privada
desempenha assim uma nova função na sociedade. Enquanto propriedade
capitalista, gerou o poder e uma riqueza cada vez maior a uma nova classe
dirigente: os capitalistas; permite-lhes desenvolver poderosamente a
produtividade do trabalho e estender o seu domínio sobre a terra inteira. Esta
instituição jurídica, apesar da degradação e da miséria dos trabalhadores
explorados, surgiu assim como uma instituição benéfica e mesmo necessária,
veiculando a promessa de um progresso ilimitado da sociedade.
Pouco a pouco, este desenvolvimento provocou transformações no caráter
interno do sistema social. A função da propriedade privada modificou-se de
novo. Com as sociedades por ações, cindiu-se o duplo caráter do proprietário
capitalista (dirigir a produção e meter ao bolso o mais-valor). Outrora
intimamente ligados, o trabalho e a propriedade estão presentemente separados.
Os proprietários são, hoje, acionistas que vivem fora do processo de produção,
que preguiçam nas suas longínquas casas de campo e que, por vezes, jogam na
bolsa. Um acionista não tem ligações diretas com o trabalho. A sua propriedade
nada tem a ver com as ferramentas de que se serviria para trabalhar. A sua
propriedade consiste simplesmente em bocados de papel, em partes nas
empresas, que ele nem sequer sabe onde funcionam. A sua função na sociedade é
de parasita. A sua propriedade não significa que ele comande e dirija as
máquinas (é tarefa unicamente do diretor), simplesmente, ele pode reclamar uma
determinada quantia de dinheiro sem ter que trabalhar para obtê-lo. A
propriedade daquilo que tem em mãos, as suas ações, são certificados que
indicam os seus direitos – garantidos pela lei, pelo governo, pela justiça, pela
política – de participar nos lucros. Títulos de co-participação nesta grande
Sociedade para a Exploração do Mundo, eis o que é hoje o capitalismo.
O trabalho nas fábricas é completamente distinto das atividades acionistas. O
diretor e os quadros todo o dia têm de dirigir, correr por todo lado, pensar em
tudo; os operários trabalham e pensam de manhã à noite, pressionados,
maltratados. Cada um tem de se esforçar por dar o máximo, por produzir o mais
possível. Mas o produto do trabalho comum não é para os que o forneceram.
Outrora, os burgueses eram despojados pelos salteadores de estradas. Hoje,
pessoas inteiramente estranhas à produção vêm, fazendo valer os seus papéis –
como detentores de ações devidamente registradas – apoderar-se da maior parte
do produto. Nem sequer têm de fazer o uso da violência, não têm que mexer uma
palha: a parte que lhes cabe é automaticamente depositada na sua conta bancária.
Quanto àqueles que, em conjunto, forneceram o trabalho, só lhes é deixado um
soldo de miséria ou um salário modesto. Tudo o resto se transforma em
dividendo levado pelos acionistas. Será loucura? É a nova função da propriedade
privada dos meios de produção. É simplesmente o que dá, na prática, a herança
da velha lei, aplicada às novas formas de trabalho a que já não está de modo
nenhum adaptada.
Pode assim ver-se como, devido à modificação gradual das formas de
produção, a função social instituição jurídica se transforma no oposto daquilo
que era inicialmente. A propriedade privada que, originalmente, era um meio de
dar a cada um a possibilidade de desempenhar um trabalho produtivo,
transformou-se num meio de privar os trabalhadores da livre utilização dos
instrumentos de produção. Enquanto que, originalmente, esta propriedade
garantia ao produtor a possibilidade de dispor do fruto do seu trabalho,
transformou-se no meio pelo qual os trabalhadores são desapossados deste fruto
por uma classe de parasitas inúteis.
Como é possível que leis tão obsoletas continuem a dominar a sociedade?
Para começar, são numerosos os que ainda a elas se agarram, porque pensam que
elas garantem a pequena propriedade e a vida das classes médias e de todos os
“pequenos” camponeses, artesãos independentes; mas não vêm que, na
realidade, são frequentemente vítimas da usura e do capital bancário, que os tem
na mão por intermédio dos títulos de propriedade, devidamente hipotecados.
Quando dizem: “sou dono de mim mesmo”, querem dizer: “não tenho que
obedecer a um estranho”. São totalmente incapazes de imaginar uma
comunidade no trabalho, ou seja, um grupo onde iguais colaborariam numa
mesma tarefa. Mas, e muito mais que isso, se tais leis subsistem é, sobretudo,
porque o poder do Estado, com a sua força policial e militar, as impõem, no
interesse da classe dominante: os capitalistas.
Na classe operária, a consciência desta contradição começa a manifestar-se,
sob a forma de noções novas de Direito e de Justiça. A transformação do
pequeno comércio em grandes empresas faz com que o direito antigo se tenha
tornado nefasto e que tenha sentido como tal. Ele ergue-se contra a regra
evidente que os que fornecem o trabalho e utilizam os instrumentos de trabalho
devem dispor deles para executar e ordenar o trabalho da melhor maneira
possível. A pequena ferramenta e o pedaço de terra podiam ser utilizados e
trabalhados por uma única pessoa e a família. Os que deles dispunham deste
modo eram os seus proprietários. As grandes máquinas, as fábricas, as grandes
empresas só podem ser utilizadas por um corpo organizado de trabalhadores, por
uma comunidade de forças em colaboração. Por isso este corpo, esta
comunidade, terá de dispor delas para organizar o trabalho segundo a vontade
comum dos seus componentes. Esta propriedade comum não significa
propriedade no sentido antigo da palavra, quer dizer, o direito de usá-la ou
desperdiçar segundo a sua própria vontade. Cada empresa não é mais que uma
parte do aparelho produtivo total da sociedade; por isso, o direito de qualquer
organismo, ou qualquer coletividade de produtores deverá estar limitado pelo
direito superior da sociedade, e tem de ser considerado e posto em prática
através de ligações regulares com todos os outros.
A propriedade comum não deve ser confundida com propriedade pública. Na
propriedade pública, muitas vezes defendida por eminentes reformadores sociais,
o Estado ou outro órgão político é o dono da produção. Os operários não são
donos do seu trabalho, são dirigidos por funcionários do Estado que organizam e
dirigem a produção. Independentemente, das condições de trabalho ou do fato
dos operários serem ou não tratados de maneira humana e com muita
consideração, o fato fundamental continua a ser este: não são os operários, que
são os produtores, mas sim os quadros do Estado, que dispõem dos meios de
produção, dispõem do produto, dirigem todo o processo de produção e decidem
qual a parte da produção que irá ser reservada para as inovações, para a
substituição do material, para os melhoramentos e para as despesas sociais; são,
portanto eles que decidem que parte do produto social deve caber aos
trabalhadores e que parte irá guardar para si. Os operários recebem, portanto, um
salário, uma parte do produto, determinado pelos dirigentes. Sob o regime de
propriedade pública dos meios de produção, os trabalhadores são ainda
dominados e explorados por uma classe dominante. A propriedade pública é o
programa burguês de uma forma moderna e disfarçada de capitalismo. A
propriedade comum dos produtores deverá ser o único objetivo da classe
operária.
Uma revolução no sistema de produção está, portanto, estreitamente ligada a
uma revolução no domínio do Direito. Baseia-se numa mutação das concepções
mais profundas do Direito e da Justiça. Cada sistema de produção é a aplicação
de uma determinada técnica combinada com um determinado Direito que rege as
relações entre os homens no seu trabalho, que fixa os direitos e deveres destes.
O nível técnico da pequena ferramenta, associado à propriedade privada,
implica uma sociedade de pequenos produtores livres fazendo-se livremente
concorrência. O nível técnico das máquinas complexas, associado ao regime da
propriedade privada, corresponde ao capitalismo. A técnica das máquinas
complexas, associada à propriedade comum, implica uma colaboração livre entre
todos os homens. O capitalismo não passa de um sistema intermédio, de uma
forma de transição, resultante da aplicação do Direito antigo a técnicas novas. O
desenvolvimento das técnicas aumentou enormemente o poder do homem; a lei
que vinha do passado e que regulamentava a utilização destas forças técnicas
manteve-se quase inalterada. Não espanta por isso que ela se tenha mostrado tão
inadequada e a sociedade tenha caído numa tal desordem. É este o sentido
profundo da atual crise mundial: a humanidade descurou pura e simplesmente a
adaptação a tempo das suas velhas leis ao novo poder das técnicas. E é por isso
que tem presentemente de sofrer tantas ruínas e destruições.
A técnica é um dado da época. O seu desenvolvimento rápido é com toda a
evidência obra do homem, o culminar normal da reflexão sobre o trabalho, da
experiência e da experimentação, de esforços e de competição. Mas uma vez
adquirida, a aplicação de uma técnica é automática, independente da nossa livre
escolha, imposta como uma força inata da natureza. Não podemos voltar a atrás,
como desejaram os poetas, e voltar a utilizar os pequenos utensílios dos nossos
antepassados. Além disso, o Direito deve ser fixado pelo homem em plena
consciência.
Tal como está estabelecido, o Direito determina, em relação aos homens e ao
equipamento técnico, a liberdade ou a sujeição desses homens.
Quando a lei existente se transforma num meio de exploração e de opressão,
na sequência do desenvolvimento silencioso da técnica, passa a ser objeto de
conflito entre as classes sociais, os exploradores e os explorados. Enquanto a
classe explorada admitir respeitosamente que a lei atual é o Direito e a Justiça
personificados, a sua exploração continuará a ser legal e incontestada. Mas as
massas tomam progressivamente consciência da sua exploração; surgem então
novas concepções do Direito. À medida que se desenvolve o sentimento de que a
lei existente é contrária à justiça, amplia-se a vontade de transformar e de fazer
das novas concepções de Direito e de Justiça a lei da sociedade. Isto significa
que o sentimento de laborar no erro não é suficiente. Só quando este sentimento
se transformar numa convicção clara e profunda para grandes massas de
trabalhadores, quando tiver penetrado todo o seu ser, comunicando-lhes uma
firme determinação e um entusiasmo ardente é que poderão jorrar as forças
necessárias para a transformação radical das estruturas sociais. Mas isto não
passará ainda de uma condição preliminar. Será necessária uma luta longa e
penosa para vencer a resistência da classe capitalista, que defenderá o seu poder
até ao último extremo e com todos os recursos da sua força; uma tal luta impõe-
se para estabelecer uma ordem social nova.
Capitulo III: A Organização no Local de Trabalho
A ideia de propriedade comum dos meios de produção ameaça a instalar-se no
espírito dos trabalhadores. Logo que tomarem consciência de que a ordem nova,
de que o seu próprio domínio sobre o trabalho é uma questão de necessidade e
de justiça, todos os seus pensamentos e Atos se dirigirão no sentido da sua
realização. Eles sabem que isso não se consegue num dia. Será inevitável um
longo período de luta. Para vencer a resistência obstinada das classes dirigentes,
os trabalhadores terão que desenvolver todos os seus esforços, até aos mais
extremos recursos. Terão que utilizar todas as suas faculdades, tanto as que
relevam da inteligência como as que relevam da forca de caráter, todas as suas
capacidades de organização, todos os seus conhecimentos. Terão que mostrar-se
capazes de reunir tudo quanto puderem mobilizar. Mas, antes de mais, terão que
determinar claramente o objetivo visado e o que representa a ordem nova a
estabelecer.
Quando um homem tem um trabalho a fazer, deve começar por concebê-lo na
sua mente, sob a forma de um plano ou de um projeto mais ou menos consciente.
Eis o que distingue as ações dos homens dos atos puramente instintivos dos
animais. Isto também é válido em princípio, nas lutas comuns, nas ações
revolucionárias das classes sociais. Não inteiramente, é evidente, porque há uma
grande parte de ações espontâneas e não premeditadas nas explosões de uma
revolta apaixonada. Os trabalhadores em luta não são um exército conduzido por
um estado-maior de chefes competentes, agindo segundo um plano
minuciosamente preparado. Formam uma massa que, a pouco e pouco, emerge
da submissão e da ignorância, que, a pouco e pouco, toma consciência da
explorarão, que se vê obrigada a lutar implacavelmente por melhores condições
de vida e que, assim, vê a sua força desenvolver-se gradualmente. Jorram novos
sentimentos, elevam-se novos pensamentos: dizem respeito ao que poderia ser,
ao que deveria ser o mundo. Agora, têm em mente novos desejos, novos ideais,
novos objetivos que determinam a sua vontade e guiam os seus atos. Pouco a
pouco, as perspectivas esboçam-se mais claramente. Aquilo que inicialmente,
não era mais que uma simples luta por melhores condições de trabalho, dá
origem a ideias de reorganização fundamental da sociedade. O ideal de um
mundo sem exploração nem opressão assediou durante gerações a mente dos
trabalhadores. A concepção dos trabalhadores como donos dos meios de
produção, devendo dirigir, eles próprios, o trabalho, impõe-se cada vez mais
claramente a todos.
Devemos aplicar todos os recursos da nossa inteligência para procurar saber e
explicar, tanto para nós como para os outros, qual será esta nova organização do
trabalho. Não podemos extraí-la unicamente da nossa imaginação; deduzimo-la
das condições reais e das necessidades do trabalho e dos trabalhadores no
momento atual.
Não pode, bem entendido, ser exposta detalhadamente: nada conhecemos das
condições futuras que irão determinar as suas formas precisas. Estas formas
definir-se-ão no espírito dos trabalhadores quando eles afrontarem essa tarefa.
De momento, devemos contentar-nos com traçar unicamente as linhas gerais, as
ideias diretrizes que irão orientar as ações da classe operária. Estas ideias serão
como que uma estrela, como o objetive supremo para o qual os trabalhadores
lançarão permanentemente o olhar quando, durante a luta, conhecerem as
alternâncias de vitórias e de derrotas, as sequencias de sucessos e de fracassos na
sua auto-organização. Estas ideias diretrizes devem ser tornadas mais claras, não
por minuciosas descrições de detalhe, mas essencialmente pela comparação entre
os princípios deste mundo novo e as formas de organização existentes que já
conhecemos.
Quando os operários se apoderarem das fabricas para organizarem o trabalho
verão levantar-se inúmeros problemas, novos e espinhosos. Mas disporão
também de novas forças igualmente numerosas. Um novo sistema de produção
nunca é uma estrutura artificial edificada unicamente pela vontade dos homens.
Brota como um processo irresistível da natureza, como uma convulsão que abala
a sociedade no mais profundo de si mesma, libertando as mais poderosas forças
e paixões do homem. É o resultado de uma luta de classe longa e obstinada.
Só através deste combate podem nascer e desenvolver-se as forças necessárias
para a construção de um mundo novo.
Quais serão as bases deste mundo? Serão as forças sociais: a fraternidade e a
solidariedade, a disciplina e o entusiasmo; serão as forças morais: a abnegação e
a dedicação à comunidade; serão as forças espirituais: o saber, a coragem, a
perseverança; será a sólida organização que congrega e encaminha para um
objetivo último estas forças que, todas, são a concretização da luta de classe.
Não se pode criá-las antecipadamente por uma ação voluntarista. Os primeiros
sintomas dessas forças surgirão nos trabalhadores espontaneamente, a partir da
sua exploração comum; desenvolver-se-ão incessantemente através das
necessidades da luta, sob a influência da experiência, do estímulo mútuo, da
educação recíproca. Nascerão necessariamente, porque a sua expansão trará a
vitória, ao passe que a sua ausência é sinônimo de derrota. Enquanto estas forcas
sociais continuarem insuficientemente desenvolvidas, enquanto os novos
princípios não ocuparem completamente o coração e a mente dos trabalhadores,
fracassarão as tentativas para construir um mundo novo, mesmo se as lutas
obtiverem um certo sucesso. Porque os homens têm de viver, a produção tem de
continuar e, na sua ausência, outras forças, de coação, de repressão e de
regressão tomarão em mãos a produção. Deverá então retomar-se o combate, até
que as forças sociais da classe operária atinjam um poder tal que possam
conduzir ao autogoverno, ao domínio total da sociedade.
A tarefa maior é, para os trabalhadores, a organização da produção em novas
bases. Deverá começar pela organização no interior da fábrica. Também o
capitalismo possui uma organização minuciosamente planificada; mas os
princípios da nova organização serão totalmente diferentes. Em ambos os casos,
as bases técnicas serão as mesmas: é a disciplina do trabalho, imposta pelo ritmo
regular das máquinas. Mas as bases sociais, as relações mútuas entre os homens
serão o oposto do que foram. A colaboração entre camaradas, iguais entre si,
substituirá o comando dos patrões e a obediência dos que os serviam. O medo da
fome e do risco permanente de perder o trabalho será substituído pelo sentido do
dever, pela dedicação à comunidade, pelos louvores ou censuras feitos pelos
camaradas aos esforços e às realizações de cada um e que agirão como
estimulantes. Em vez de serem os instrumentos passivos e as vitimas do capital,
os trabalhadores serão os donos e os organizadores da produção, seguros de si,
exaltados pelo orgulho de cooperarem ativamente no aparecimento de uma nova
humanidade.
O órgão de gestão, nesta organização da fábrica, será constituído pela
coletividade dos trabalhadores que nela colaborarem. Reunir-se-ão para discutir
todos os problemas e tomarão as decisões em assembleia. Assim, todos os que
tomarem parte no trabalho participarão na organização do trabalho comum. Este
método impõe-se naturalmente como evidente e normal; parece ser idêntico ao
que é adotado em regime capitalista pelos grupos e sindicatos de trabalhadores
quando decidem, pelo voto, assuntos comuns. Mas existem diferenças
essenciais. Nos sindicatos, encontramos habitualmente uma divisão do trabalho
entre os delegados e os membros: os delegados preparam e enunciam as
propostas e os filiados votam. A fadiga dos corpos e a lassidão dos espíritos
obrigam os trabalhadores a delegar para outros a tarefa de conceber os projetos.
Só muito parcialmente e aparentemente é que se ocupam dos seus próprios
assuntos. Na organização em comum da fábrica deverão fazer eles próprios tudo
ter as ideias, elaborar os projetos, bem como tomar as decisões. A dedicação e a
emulação não se limitarão a desempenhar um papel no trabalho de cada um, mas
serão ainda mais importantes na tarefa comum de organizar toda a produção.
Para começar, porque se trata de uma obra comum, logo da maior importância,
que não podem deixar para outros fazerem. Seguidamente, porque está em
relação direta com o sistema das relações mútuas no seio do seu próprio
trabalho, que a todos diz respeito e em que todos são competentes. É por isso
que esta tarefa deve absorver toda a sua atenção e que os problemas postos se
devem resolver através de discussões profundas. Não é unicamente com o
esforço físico, mas mais ainda com o esforço intelectual que cada um deverá
contribuir para a organização geral da produção e estes esforços serão objeto da
emulação e da apreciação recíprocas. A discussão deverá, além disso, apresentar
um caráter diferente daquele que existe nas associações e nos sindicatos sob o
regime capitalista, onde se verifica sempre divergências devidas á existência de
interesses pessoais, onde cada um, no mais profundo da sua consciência, se
preocupa antes de mais com a sua sorte pessoal e onde as discussões têm por
função ajustar e aplanar as diferenças com vista a uma ação comum. Na nova
comunidade do trabalho, pelo contrário, todos os interesses serão essencialmente
os mesmos e todos os pensamentos serão orientados para o objetivo comum da
organização, numa cooperação efetiva.
Nas grandes fábricas, o número de operários é demasiado elevado para que
possam reunir numa assembleia única e para que possam levar a cabo uma
discussão real e profunda. As decisões só poderão ser tomadas há dois tempos:
pela ação combinada de assembleias nas diferentes oficinas da fábrica com as
assembleias de comitês centrais de delegados. As funções e o andamento prático
destes comitês não podem ser determinados antecipadamente; constitui algo
inteiramente novo, um órgão essencial da nova estrutura econômica. É quando se
encontrarem a braços com as necessidades práticas que os operários constituirão
as estruturas adequadas. As linhas gerais de algumas das características dessas
estruturas podem, contudo ser deduzidas por comparação com as organizações e
os grupos que conhecemos.
No mundo capitalista, o comitê central de delegados é uma instituição bem
conhecida. Encontramo-la no parlamento, em toda a espécie de organizações
políticas e nos bureaux de diversas associações e sindicatos. São investidos de
uma autoridade sobre os que os designaram, ou mesmo, por vezes, reinam sobre
estes como verdadeiros patrões. Esta é a forma assumida por estes organismos, e
que corresponde a um sistema social em que uma grande massa de trabalhadores
é explorada e comandada por uma minoria: a classe dominante. A tarefa
essencial, no mundo novo, consistirá em encontrar uma forma de organização
constituída por uma coletividade de produtores, livres e associados, que
controlem, tanto nos atos como na concepção destes, a atividade produtiva
comum, regulamentando-a segundo a sua própria vontade, mas com poderes
idênticos para cada um; será um sistema social totalmente diferente do antigo.
No sistema antigo, também existem conselhos sindicais que administram os
assuntos correntes, entre duas reuniões dos filiados, a intervalos mais ou menos
próximos, em que se fixam as grandes linhas da política geral. Aquilo de que
estes conselhos se ocupam então são apenas os imprevistos do quotidiano e não
as questões fundamentais. No mundo novo, e a própria base da vida, a sua
essência, que estão em causa: é o trabalho produtivo que ocupa e ocupará
permanentemente o espírito de cada um, que será o objeto primordial do seu
pensamento.
As novas condições de trabalho farão destes comitês de fabrica algo muito
diferente do que conhecemos no mundo capitalista. Serão organismos centrais,
mas não organismos dirigentes, não conselhos governamentais. Os delegados
que os compuserem terão sido mandatados pelas assembleias de seção com
instruções específicas; virão de novo a estas assembleias para prestar contas da
discussão e do resultado obtido e, após deliberações mais amplas, os mesmos
delegados, ou outros, munidos de novas instruções, voltarão a reunir-se no
comitê de fábrica.
Deste modo, atuarão como agentes de ligação entre os membros das diferentes
seções. Estes comitês de fábrica também não serão grupos de especialistas
encarregados de fornecer diretivas à massa dos trabalhadores não qualificados.
Naturalmente que serão necessários especialistas, isolados ou em equipas, para
se ocuparem dos problemas científicos ou técnicos específicos. Os comitês de
fábrica tratarão dos problemas quotidianos, das relações mútuas, da
regulamentação do trabalho, tudo coisas em que cada um é ao mesmo tempo
competente e parte interessada. E, entre outras coisas, terão de estudar a
aplicação prática do que os especialistas tiverem sugerido. Os comitês de fábrica
não serão responsáveis pelo bom funcionamento do conjunto, porque isto teria
como consequência deixar que cada membro se isentasse das suas
responsabilidades, confiando numa coletividade impessoal. Pelo contrario, e
embora este funcionamento incumba a toda a comunidade, poderão confiar-se a
certas pessoas, e só a elas, tarefas específicas que desempenharão devido às suas
capacidades particulares, sob a sua inteira responsabilidade, recebendo todas as
honras se forem bem sucedidas.
Todos os membros do pessoal, homens e mulheres, novos e velhos, terão uma
parte igual no trabalho, uma parte igual nesta organização da fábrica, tanto na
execução quotidiana como na regulamentação geral. Sem dúvida que haverá
grandes diferenças na natureza dos trabalhos; mais ou menos árduos segundo a
forca e as capacidades de cada um, serão repartidos em função dos gostos e das
aptidões. E, bem entendido, as disparidades em matéria de cultura geral
permitirão que os mais conhecedores ou mais inteligentes façam prevalecer a sua
opinião. Devido à herança do capitalismo, continuarão inicialmente a existir
grandes diferenças de educação e de qualificação e, por conseguinte, as massas
sentirão a ausência de bons conhecimentos técnicos e gerais como uma
inferioridade grave. Dado o seu pequeno número, os técnicos altamente
qualificados e os quadros científicos deverão, portanto atuar na qualidade de
dirigentes técnicos, sem por tal se poderem arrogar funções de comando ou
privilégios sociais além da estima dos camaradas e da autoridade moral que
sempre se liga às capacidades e ao saber.
A organização da empresa não é senão a ordenação e ligação consciente das
diversas etapas do trabalho, de maneira que estas formem um todo. É possível
expor todas estas interconexões entre estas operações articuladas umas com as
outras, por meio de um esquema geral, de uma representação mental do processo
real. Esta imagem presidiria à elaboração do primeiro “planning”,
correspondendo outras aos melhoramentos e desenvolvimentos ulteriores. Este
esquema deverá estar presente no espírito de todos os trabalhadores; é necessário
que todos tenham um perfeito conhecimento do que diz respeito a todos. Um
mapa, ou um gráfico, fixa e mostra, por uma imagem simples e acessível a todos,
as relações de um conjunto complexo; do mesmo modo, a situação da empresa
no seu conjunto deverá ser mostrada a todo o momento, em todos os seus
desenvolvimentos, por representações adequadas. Sob a forma de números, é o
que realiza a contabilidade. Esta registra tudo o que se passa no processo de
produção: as matérias primas que entram na fábrica, as máquinas de que esta
dispõe, o que ela produz, a quantidade de horas de trabalho que foram
necessárias para obter um dado produto e que cada operário fornece, finalmente
quais são os produtos terminados e entregues. Ela segue e descreve os trajetos
dos diversos materiais no processo de produção. Permite assim comparar, com o
auxilio de balanços sistemáticos, os resultados efetivos com as previsões do
plano. A produção da empresa transforma-se deste modo num processo
submetido a um controle mental.
A gestão capitalista da empresa baseia-se igualmente no controle mental da
produção. Neste caso, como no outro, as operações são representadas sob forma
de contabilidade. Mas, ao contrário do precedente, o método de cálculo
capitalista está a todos os níveis adaptado ao ponto de vista da produção de
lucro. Os seus dados fundamentais são os preços e os custos; o trabalho e os
salários entram unicamente na qualidade de fatores no balance da empresa,
quando este é efetuado para calcular o montante anual do lucro. Pelo contrário,
no novo sistema de produção, o dado fundamental é o número de horas de
trabalho, quer seja expresso em unidades monetárias, nos primeiros tempos, ou
sob forma real. No seio da produção capitalista, o cálculo e a contabilidade
continuam a ser segredos reservados unicamente à direção. Não dizem respeito
aos operários. Estes não passam de objetos submetidos à exploração, que surgem
apenas como fatores entre muitos outros no calculo dos custos e dos
rendimentos, como vulgares acessórios das máquinas. Com a apropriação
coletiva da produção, a contabilidade passa a ser um assunto público; toda a
gente pode ter acesso aos livros. Os trabalhadores têm a todo o momento uma
visão completa do processo de conjunto. Só assim poderão estar aptos a discutir
problemas que se põem nas assembleias da unidade de produção e nos comitês
de empresa, a decidir quais as medidas a tomar e a executar. Os resultados
numéricos são tornados visíveis sob a forma de quadros estatísticos, de gráficos
e de mapas que permitam abarcar facilmente a situação. Estas informações não
são reservadas ao pessoal da fábrica: são públicas, acessíveis a todos,
empregados ou não. Não passando toda e qualquer empresa de um elemento da
produção social, a relação entre as suas atividades e o conjunto do trabalho
social efetua-se por meio da contabilidade. Assim, o conhecimento exato da
produção em cada empresa constitui um simples fragmento de um conhecimento
comum ao conjunto dos produtores.
Capitulo IV: A Organização Social
O trabalho é um processo social. Cada empresa representa uma fração do
corpo produtivo da sociedade. As conexões e a cooperação entre estas diversas
partes constituem outros tantos elementos da produção social global. Tal como
as células de que se compõe um organismo vivo, estas partes não podem
subsistir isoladamente, independentemente do corpo produtivo. Organizar o
trabalho nas empresas representa, portanto apenas metade da tarefa. Resta outra
parte, infinitamente mais importante: estabelecer um sistema de ligações entre as
diferentes empresas e reuni-las no seio de uma mesma organização social.
Estando a empresa já organizada em regime capitalista, é suficiente substituí-
la por um tipo de organização com novas bases. Pelo contrário a organização
social do conjunto das empresas é – ou era, até aos últimos anos – um problema
absolutamente novo, sem precedentes, como testemunha o fato de todo o século
19 ter considerado que a classe operária tinha por missão construir uma
organização deste gênero, – a que se chamava o «socialismo». O capitalismo
compunha-se de uma massa não organizada de empresas independentes – «o
campo de peleja dos empresários privados», como dizia o programa do partido
trabalhista – ligadas entre si unicamente pelos acasos do mercado e da
concorrência, tendo como resultado a falência, a sobreprodução, a crise, o
desemprego e um enorme desperdício de materiais e de força de trabalho. Para
abolir este sistema, a classe operária teria de conquistar o poder político e servir-
se dele para organizar a indústria e a produção. Pensava-se, nesse tempo, que o
socialismo de Estado marcaria o inicio de uma evolução nova.
Nestes últimos anos, a situação modificou-se na medida em que o capitalismo
começou a utilizar a organização pelo Estado. Não foi levado a isso apenas pelo
desejo de aumentar a produtividade e os lucros através de uma planificação
racional da produção. Na Rússia, por exemplo, era necessário compensar o
atraso do desenvolvimento econômico por meio de organização rápida da
indústria. Foi o que fez o governo bolchevique. Na Alemanha, foi a luta pelo
poder mundial que conduziu ao controle da produção pelo Estado e à
organização estatal da indústria. Esta luta era uma tarefa de tal modo pesada que
a classe capitalista da Alemanha só tinha a hipótese de levá-la a cabo
concentrando o poder sobre todas as forcas produtivas nas mãos do Estado. Na
organização nacional-socialista, a propriedade e o lucro – embora fortemente
atingidos pela tributação do Estado – continuam nas mãos dos capitalistas
privados, mas a direção e a administração dos meios de produção são assumidas
pelos funcionários do Estado. O capital e o Estado asseguram para si a totalidade
da produção do lucro por meio de uma organização eficiente. Esta organização
de toda a produção baseia-se nos mesmos princípios que a organização no seio
da empresa, ou seja, na autoridade pessoal do diretor geral da sociedade, do
Führer, do chefe de Estado. Em todos os casos em que o governo detém em suas
mãos a alavanca de comando da indústria, a antiga liberdade dos produtores
capitalistas cede o lugar aos métodos autoritários, à coação. Os funcionários do
Estado vêm o seu poder político consideravelmente reforçado pelo poder
econômico que lhes é conferido, pela sua hegemonia sobre os meios de
produção, base da vida social.
Os princípios da classe operária situam-se, a todos os níveis, no campo
oposto. A organização da produção pelos trabalhadores, com efeito, baseia-se na
livre cooperação: nem patrões nem servos. O mesmo princípio preside ao
reagrupamento de todas as empresas numa organização social unificada. É aos
operários que cabe instaurar o mecanismo social correspondente.
Dada a impossibilidade de reunir os operários de todas as fábricas numa
mesma assembleia, só podem expressar a sua vontade por intermédio de
delegados. De algum tempo a esta parte que estes corpos de delegados vêm
sendo denominados conselhos operários. Cada grupo de trabalhadores que
cooperam designa os membros que irão expressar as suas opiniões e desejos nas
reuniões dos conselhos. Se tiverem, através de uma participação ativa nas
deliberações do seu grupo, evidenciado como defensores hábeis dos pontos de
vista adotados pela maioria, será delegado a eles a função de porta-vozes do
grupo, que irão confrontar os pontos de vista deste com os dos outros grupos,
para chegarem a uma decisão coletiva. Embora as suas capacidades pessoais
contem muito para persuadir os companheiros e para clarificar os problemas, a
importância que assumem não provém da sua força pessoal, e sim da
comunidade que os escolheu como delegados. Não são meras opiniões que
prevalecem, mas muito mais a vontade e o desejo do grupo de agir em comum.
Indivíduos diferentes desempenharão as funções de delegados, consoante as
questões postas e os problemas delas decorrentes.
O problema fundamental, a base de tudo o resto, é a própria produção. A
organização desta comporta dois aspetos: o estabelecimento das regras gerais e
das normas, e o trabalho propriamente dito. É necessário elaborar regras e
normas que fixem as relações mútuas no trabalho, os direitos e os deveres de
cada um. Em regime capitalista, a norma era o poder do patrão, do diretor. No
capitalismo de Estado, é o poder ainda maior do Chefe supremo, do governo
central. Na sociedade nova, pelo contrário, todos os produtores são livres e
iguais. O campo econômico, o campo do trabalho assiste a uma metamorfose
comparável àquela que a ascensão da burguesia provocou no campo político,
nestes últimos séculos. Quando o reinado do monarca absoluto foi substituído
pelo poder dos cidadãos, isso de modo nenhum significou uma substituição do
arbitrário do autocrata pelo arbitrário de qualquer outro indivíduo. Significava
que as leis, conformes com a vontade geral, passavam a fixar os direitos e os
deveres. Do mesmo modo, no campo do trabalho, a autoridade do patrão
desaparece em proveito de regras elaboradas em comum, que visam fixar os
direitos e os deveres sociais, tanto em matéria de produção como de consumo. E
os conselhos operários terão como primeira missão formulá-los. Não é uma
tarefa árdua, nem uma questão que exija estudos intermináveis, ou que origine
divergências graves. Estas regras germinarão naturalmente na consciência de
cada trabalhador, uma vez que constituem a base natural da sociedade nova: cada
um tem o dever de participar na produção segundo as suas forças e as suas
capacidades, cada um tem direito a uma parte proporcional do produto coletivo.
Como avaliar a quantidade de trabalho efetuada e a quantidade de produtos
que cabe a cada um? Numa sociedade em que a produção vai diretamente para o
consumo, não existe nem mercado para trocar os produtos, nem valor, enquanto
expressão do trabalho cristalizado nesses produtos, que se estabelece
automaticamente, pelo processo da compra e da venda. O trabalho despendido
na produção tem por isso de ser avaliado de uma maneira direta, pelo número de
horas de trabalho. Os serviços de gestão calculam a quantidade de horas de
trabalho cristalizadas em cada elemento ou quantidade unitária de um produto,
bem como a quantidade de horas de trabalho fornecidas por cada trabalhador.
Fazem-se depois as médias, tanto em relação ao conjunto de operários de uma
determinada fábrica como ao conjunto das fábricas da mesma categoria;
desaparecem assim as variações devidas a fatores individuais e podem comparar-
se os diversos resultados.
No inicio do período de transição, quando é necessário reconstruir uma
economia arruinada, o problema essencial consiste em pôr a funcionar o
aparelho de produção, para assegurar a existência imediata da população. É
muito possível que, nestas condições, se continue a repartir uniformemente os
gêneros alimentares, como sempre se faz em tempo de guerra ou de fomes. Mas
é mais provável que, nesta fase de reconstrução, em que todas as forças
disponíveis se devem empenhar a fundo e, mais do que isso, em que os novos
princípios morais do trabalho comum vão tomando forma de uma maneira
gradual, o direito ao consumo esteja ligado ao desempenho de qualquer trabalho.
O velho ditado popular «quem não trabalha não come» exprime um sentido
instintivo da justiça. Isto significa sem dúvida ver no trabalho aquilo que ele é na
realidade: o fundamento da existência humana. Mas isto também significa que, a
partir desse momento, a exploração capitalista desapareceu, que acabou a
apropriação dos frutos do trabalho de outrem por uma classe ociosa, em virtude
dos seus títulos de propriedade.
Evidentemente que isto não significa que a totalidade da produção passará a
ser repartida pelos produtores proporcionalmente ao número de horas de trabalho
fornecido por cada um deles ou, por outras palavras, que todos os operários irão
receber sob a forma de produtos o equivalente exato das horas de trabalho que
forneceram. Com efeito, uma parte muito grande do trabalho tem de ser
consagrada à propriedade comum, tem de servir para aperfeiçoar e para
aumentar o aparelho de produção. No regime capitalista, uma certa quantidade
de mais-valor era utilizada para este fim. O capitalista tinha de empregar uma
parte do seu lucro, acumulado sob a forma de capital adicional, a inovar, a
aumentar e a modernizar o equipamento técnico; ao fazê-lo, era movido pela
necessidade de fazer frente à concorrência. Deste modo, o progresso técnico era
inseparável das formas de explorarão. Na nova forma de produção, este
progresso passa a ser um assunto que diz respeito à coletividade dos
trabalhadores. Se por um lado, antes de tudo o mais, tem de assegurar a sua
existência imediata, por outro a parte mais exaltante da atividade consiste em
edificar as bases da produção futura. Têm de fixar qual a proporção do trabalho
global que será aplicada na preparação de máquinas e de instrumentos
aperfeiçoados, na investigação e na experimentação com o fim de facilitar o
trabalho e no melhoramento da produção.
Além disso, será necessário dedicar uma parte do tempo de trabalho global a
atividades não produtivas, mas socialmente necessárias: a administração geral, o
ensino, os serviços de saúde. As crianças e as pessoas idosas terão direito a uma
parte da produção, sem participarem nela. O mesmo sucederá a pessoas
incapazes de trabalhar entre as quais, nos primeiros tempos, se contarão grande
número de farrapos humanos herdados do capitalismo. É provável que, regra
geral, sejam os elementos mais jovens da população adulta quem tem seu cargo
efetuar o trabalho produtivo; ou, por outras palavras, este deverá ser efetuado por
todos, neste período da vida em que os desejos e capacidade de ação se
encontram no nível mais alto. Com o rápido progresso da produção do trabalho,
a parte da existência dedicada a produzir os artigos necessários à vida irá
diminuindo permanentemente, enquanto uma parte cada vez maior da existência
poderá vir a ser dedicada a outros fins e a outras atividades.
A organização social da produção baseia-se numa boa gestão, através de
estatísticas e de dados contabilizáveis. Estatísticas relativas ao consumo dos
diferentes bens, estatísticas sobre a capacidade das empresas industriais, das
máquinas, da terra, das minas, dos meios de transporte, estatísticas sobre a
população e os recursos das cidades, das regiões, dos países, – tudo isto
representa, em colunas bem ordenadas de dados numéricos, a base do processo
econômico. No regime capitalista, já se conheciam estatísticas relativas a certas
atividades econômicas, mas continuavam a ser imperfeitas, devido à falta de
coesão entre os homens do negócio privado e às suas visões limitadas. A
aplicação dessas estatísticas era limitada. Mas, agora, são o ponto de partida da
organização da produção. Para produzir a quantidade de bens adequada, é
necessário conhecer as quantidades utilizadas ou necessárias. Simultaneamente,
estas estatísticas, resultado numérico condensado do inventário do processo de
produção, resumo global da contabilidade, expressam a marcha do
desenvolvimento.
A contabilidade geral, que diz respeito e engloba as administrações das
diferentes empresas, reúne-as a todas num quadro de evolução econômica da
sociedade. A diferentes níveis, registra o processo total da transformação da
matéria, acompanhando esta desde a extração das matérias-primas, seguindo-a
nas diversas fábricas onde é trabalhada até se transformar em produtos
terminados, prontos a serem consumidos. Reunindo num todo os resultados das
empresas do mesmo tipo que cooperam, compara a eficácia destas, estabelece a
média das horas de trabalho necessárias e dirige a atenção para as possibilidades
de progresso. Uma vez organizada a produção, a administração passa a ser
tarefa, relativamente simples, de uma rede de escritórios de contabilidade,
ligados uns aos outros. Cada empresa, cada grupo de empresas ligadas, cada
ramo da produção, cada cidade ou região terá o seu centro administrativo para
reunir, analisar e discutir os números da produção e do consumo, e para Ihes dar
uma forma clara e de fácil exame. Graças ao trabalho combinado desses centros,
a base material da vida transforma-se num processo dominado pelo intelecto. O
processo de produção é patenteado à vista de todos, sob a forma de uma imagem
numérica simples e inteligível. É nesse momento que a humanidade contempla e
controla a sua própria vida. Aquilo que os operários e os seus conselhos decidem
e planificam numa colaboração organizada surge com clareza, traduzido nos
números da contabilidade. Porque estes resultados estão permanentemente diante
dos olhos de cada operário, a direção da produção social pelos próprios
produtores pode finalmente ser realizada.
Esta organização da vida econômica é inteiramente diference das formas de
organização existentes em regime capitalista; é mais perfeita e mais simples. As
complicações e dificuldades da organização do capitalismo, a que tiveram de se
consagrar tantos grandes homens de negócios de gênio tão elogiado, estão
ligadas às lutas mútuas, a essa guerra capitalista que exige tanta arte e tantos
sacrifícios para dominar ou aniquilar os concorrentes. Tudo isso irá desaparecer.
A simplicidade do objetivo a atingir, que é satisfazer as necessidades vitais da
humanidade, faz com que toda a estrutura seja simples e direta. Em princípio,
administrar grandes quantidades não é mais difícil ou mais complicado do que
administrar pequenas quantidades; basta acrescentar alguns zeros aos números.
A diversidade rica e multifacetada das necessidades e dos desejos, que pouco
menor é em pequenos grupos de pessoas do que em grandes massas, pode ser
satisfeita mais fácil e completamente, devido precisamente à natureza massiva
destas necessidades.
A função e a importância de que se revestem os serviços de estatística e de
contabilidade pública no seio de uma dada sociedade dependem do caráter desta
sociedade. Desde sempre que a gestão financeira do Estado constituiu
necessariamente uma atribuição do governo central e os funcionários deste, que
eram incumbidos desta missão, estavam estreitamente submetidos aos reis e aos
outros poderosos da terra. Na era do capitalismo moderno, em que a produção
está sujeita a uma organização social onipotente, os que detêm em mãos a
administração central passam de fato a ser os senhores principais da economia e
transformam-se gradualmente em burocracia dirigente. Na Rússia, por exemplo,
a revolução de 1917 provocou uma expansão industrial acelerada. Os operários
afluíram em massa às fábricas novas, mas, ainda imbuídos de uma ignorância
crassa, própria da vida rural, foram incapazes de obstar aos progressos da
burocracia que, nesse momento, se constituía em nova classe dominante. Na
Alemanha de 1933, quando um partido submetido a uma disciplina de ferro
conquistou o poder de Estado e dele fez um órgão de administração central a ele
devotado, assumiu simultaneamente a organização de todas as forças do
capitalismo.
A situação modifica-se radicalmente quando os operários organizam a
produção na qualidade de donos do seu trabalho e de produtores livres.
Determinadas pessoas têm a seu cargo a contabilidade pública, tal como outras
são metalúrgicos ou padeiros. Os trabalhadores do serviço de estatística nem são
senhores nem servos. De modo nenhum são funcionários ao serviço dos
conselhos operários e coagidos a obedecer às ordens destes. Com efeito, estes
grupos de trabalhadores gerem seu próprio trabalho, dispõem do seu material,
desempenham a sua tarefa como qualquer outro grupo, nunca perdendo de vista
as necessidades do conjunto social. São os peritos encarregados de fornecer os
dados de base necessários às discussões e às decisões das assembleias de
trabalhadores e dos conselhos. Têm a seu cargo a recolha destes dados, que
devem apresentar sob uma forma facilmente acessível (quadros, gráficos,
planos...) de modo que cada trabalhador possa ter sempre uma perspectiva clara
do curso das coisas. Os conhecimentos que possuem não são uma propriedade
privada passível de lhes conferir um poder; os técnicos de estatística e de
contabilidade não formam um corpo especializado que, único a deter as
informações necessárias à gestão, se veria assim preparado para exercer, de uma
forma ou de outra, uma influência decisiva. O produto do trabalho deles, o
conhecimento estatístico indispensável ao bom andamento da sociedade, está à
disposição de todos. É com base nestes conhecimentos gerais que os operários e
as assembleias dos seus delegados discutem e tomam as decisões, através das
quais se constrói a organização do trabalho.
Pela primeira vez na história, os homens terão diante de si, como um livro
aberto, o conjunto e os pormenores da vida econômica. Em regime capitalista, as
bases da sociedade eram dissimuladas aos olhares, enorme massa perdida no
meio de trevas espessas que, de tempos a tempos, eram penetradas por algumas
estatísticas sobre o comércio e sobre a produção; a partir de agora, nem um só
pormenor escapa ao olhar, todo o edifício surge claramente. A partir desse
momento, passa a haver uma ciência da sociedade, que assenta numa ordenação
adequada dos fatos e que permite descobrir sem dificuldade as grandes relações
causais. Essa ciência constitui a base da organização social do trabalho, tal como
o conhecimento dos fatos da natureza, também eles concebidos sob a forma de
relações causais, serve de base à organização técnica do trabalho. Todos podem
assim adquirir um conhecimento perfeito da vida quotidiana, nos seus mais
ínfimos pormenores, podem estudar e compreender tanto as exigências do
conjunto social como a parte que, dentro desse conjunto, lhes respeita. Esta
ciência da sociedade constitui o instrumento por meio do qual os produtores
ficam aptos a gerir a produção e a dominar o seu universo.
Capitulo V: Objeções
Os princípios da nova estrutura da sociedade revelam-se tão naturais e
evidentes que, em princípio, não pareceria possível que se levantassem quaisquer
dúvidas ou objeções. As dúvidas originam-se nas velhas tradições, que
continuarão a encher o espírito de teias de aranha até ao momento em que o
vento salubre das tempestades sociais as vier varrer. Mas são, sobretudo, as
outras classes – aquelas que, ainda hoje, estão à frente da sociedade – que
levantam objeções. É por isso que temos de examinar os argumentos da
burguesia da classe dominante, dos capitalistas.
Poderia pensar-se não ter interesse determo-nos na consideração das objeções
dos que formam esta classe capitalista. Não se põe o problema de convencê-los,
e de resto não é necessário. As suas ideias e convicções são ideias de classe,
determinadas, tal como as nossas, por condições de classe. Diferem das nossas
porque são diferentes as condições de vida e as funções sociais. Não temos de
convencer essas pessoas pelo raciocínio, temos é que as vencer pela força.
Não devemos, contudo esquecer que, em grande medida, o poder do capital é
um poder espiritual, um poder sobre o espírito, sobre o cérebro dos
trabalhadores. As ideias da classe dominante reinam na sociedade e impregnam
o espírito das classes exploradas. Fundamentalmente, essas ideias são
implantadas pela força e pelas necessidades internas do sistema de produção; na
prática, são implantadas pela educação, pela propaganda emitida pela escola,
pela igreja, pela imprensa, pela literatura, pelo rádio, pelo cinema. Enquanto
assim for, a classe operária, não tendo consciência da sua posição de classe e
aceitando a exploração como uma condição normal da vida, não pensará em
revoltar-se e será incapaz de lutar. Espíritos doutrinados e submetidos a quem os
domina não podem esperar encontrar a liberdade. Têm de começar por vencer o
domínio espiritual que o capitalismo exerce sobre o seu próprio pensamento
antes de poderem realmente sacudir o jugo. O capitalismo tem de ser vencido
teoricamente antes de o ser materialmente. Só nesse momento é que a absoluta
certeza da verdade das suas ideias, bem como a razão que preside ao seu
objetivo, poderá dar aos trabalhadores a confiança de que necessitam para
vencer. Porque só nesse momento é que a hesitação e a dúvida irão paralisar as
forças do inimigo. Só nesse momento é que as classes médias, sempre hesitantes,
em vez de se baterem pelo capitalismo, poderão compreender, ate certo ponto, a
necessidade de uma transformação social e as vantagens que poderão obter com
a criação de um mundo novo.
Somos, portanto obrigados a considerar as objeções que a classe capitalista
levanta, objeções que decorrem diretamente da sua concepção do mundo. Para a
burguesia, o capitalismo e o único sistema social possível e natural (trata-se do
capitalismo na sua forma final, a mais elaborada, já que foi precedida por outras
formas mais primitivas). É por isso que, segundo a burguesia, as características
do sistema capitalista não são temporárias e sim fenômenos naturais, expressão
da eterna natureza humana. A classe capitalista vê bem a profunda aversão que
os operários experimentam face ao seu trabalho quotidiano. Constata que eles só
se resignam a trabalhar sob a coação de uma necessidade implacável. Conclui
dai que é da própria natureza da maior parte dos homens sentir uma repulsa
espontânea por todo e qualquer trabalho regular. Daí deduz que o ser humano
está condenado a permanecer pobre, excetuando, todavia essa minoria de
homens dinâmicos, obstinados, capazes, essa minoria que gosta do trabalho e
que fornece naturalmente os chefes, os quadros superiores, os capitalistas. Por
conseguinte, se os trabalhadores passassem coletivamente a ser os donos da
produção, sem serem estimulados e lançados em competição uns contra os
outros, por meio de recompensas pessoais que pagam os esforços de cada um,
ver-se-ia uma maioria de preguiçosos fazer o menos possível e viver à custa
duma minoria, a dos mais laboriosos, que faria todo o trabalho. Dai resultaria
inevitavelmente uma pobreza universal. Todos os progressos maravilhosos, toda
esta abundância trazida pelo capitalismo durante este século se perderiam, e isso
por se haver suprimido esse estimulante, que é o interesse pessoal. A
humanidade regressaria ao estado de barbárie.
Pata refutar tais objeções, é suficiente fazer notar que elas constituem o ponto
de vista normal dos que estão do lado de lá da barreira, do lado da classe dos
exploradores. Durante toda a história, nunca os que dominavam foram capazes
de compreender aquilo de que uma nova classe era capaz; estavam convencidos
de que essa classe fracassaria inevitavelmente quando tentasse dirigir os assuntos
públicos, sociais e políticos. A nova classe, embora consciente da sua força, só
podia mostrar aquilo de que era capaz conquistando o poder, e na prática só
depois de tê-lo conquistado. O mesmo se aplica aos trabalhadores. Pouco a
pouco, tomam consciência da forma da sua própria classe, adquirem esse
conhecimento superior da estrutura social e do caráter do trabalho produtivo que
lhes mostra a futilidade dos argumentos dos capitalistas. Sem dúvida que terão
de demonstrar as suas capacidades. Mas não se trata de vencer as provas de um
teste prévio. Serão na realidade a sua luta e a sua vitória que constituirão as
provas a vencer.
Não temos que discutir com a classe capitalista. Temos sim que fornecer
argumentos aos nossos camaradas trabalhadores. As ideias pequeno-burguesas
impregnam ainda grande parte deles: fazem subsistir neles a dúvida e a falta de
confiança na sua própria força. Enquanto uma classe não acredita nela própria,
não pode esperar que outros grupos sociais acreditem. A falta de confiança em si
própria, principal ponto fraco da classe operária dos nossos dias, não pode
desaparecer totalmente no seio deste regime, o capitalismo, que segrega fatores
de degradação e de esgotamento. Mas em caso de urgência, a crise mundial e a
ruína iminente coagem a classe operária à revolta e ao combate, e coagi-la-ão
igualmente, logo que obtiver a vitória, a tomar em mãos o controle da produção.
Nesse momento os imperativos de uma inexorável necessidade varrerão todo o
temor, toda a falta de confiança em si própria, e as tarefas que daí resultarem
revelarão energias insuspeitadas. Há outra coisa de que os trabalhadores têm a
certeza, por muitas dúvidas e hesitações que tenham: é que, melhor que os
ociosos detentores do direito de propriedade, eles sabem o que é o trabalho;
sabem que são capazes de trabalhar, sabem que terão de trabalhar. As vãs
objeções da classe capitalista desmoronar-se-ão com esta classe.
Objeções mais sérias provêm de outro lado. São levantadas pelos que se
consideram amigos, aliados e mesmo porta-vozes da classe operária. Nas formas
mais recentes de capitalismo encontramos, entre os intelectuais e os
reformadores sociais, entre os dirigentes sindicais e os social-democratas, a
seguinte opinião, largamente espalhada: a produção capitalista com vista ao
lucro é má, deve desaparecer e ser substituída por um sistema de produção
socialista. Segundo estas pessoas, a organização da produção deve servir para
produzir em abundância para todos. A anarquia capitalista da produção deve ser
abolida e substituída por uma organização idêntica à que existe dentro da fábrica.
Tal como, numa empresa bem gerida, a marcha perfeita do conjunto, até ao mais
ínfimo pormenor, e a sua eficácia são asseguradas graças à autoridade
centralizadora do diretor e do seu estado-maior, também, numa estrutura social
ainda mais complexa, as ligações e a interação entre todas as partes do conjunto
só podem ser corretamente asseguradas por um poder dirigente central.
São estes mesmos que pretendem que a ausência de tal poder centralizador e
regulador é a objeção fundamental que se pode levantar ao sistema de
organização em conselhos operários. O principal argumento afirma que, nos
nossos dias, a produção já não consiste no manejar de utensílios simples que
cada um podia facilmente dominar, como nos tempos idos dos nossos
antepassados, mas sim na aplicação das ciências mais abstratas, acessíveis
unicamente a cérebros capazes e bem instruídos. Pretendem que uma concepção,
uma compreensão clara e precisa de estruturas complexas e a respectiva
organização eficiente exigem qualidades que só se encontram numa minoria de
pessoas, particularmente dotadas. Pretendem que o sistema dos conselhos se
recusa a ver que as pessoas, na sua maioria, são dominadas por um egoísmo
mesquinho e que não têm nem as aptidões, nem sequer o interesse, necessários
para assumirem tão grandes responsabilidades. E se os trabalhadores, por
presunção estúpida, rejeitassem esta direção pelos mais capazes e tentassem
dirigir eles próprios a produção e a sociedade, contando unicamente com o seu
número, o fracasso seria inevitável, por maior que fosse o seu zelo e a sua
dedicação. Cada fábrica conheceria em breve o caos e a produção começaria a
declinar. Os trabalhadores falhariam porque não teriam sabido utilizar um poder
dirigente, dotado de uma autoridade suficiente para impor a obediência e
assegurar o andamento sem sobressaltos desta organização complexa.
Mas onde encontrar esse poder central? Segundo eles, já existe: é
simplesmente o governo, o Estado. Até agora, este limitava as suas atribuições
aos assuntos políticos, seria suficiente estendê-las aos assuntos econômicos –
como é já o caso em certos campos de importância limitada – ou seja, confiar-lhe
a organização geral da produção e da distribuição. Não será a guerra contra a
fome e a miséria tão importante, e mesmo mais importante, que a guerra contra o
inimigo externo?
E se o Estado dirige as atividades econômicas atua, de fato, como organismo
central da coletividade. Os produtores são os donos da produção, não em
pequenos grupos separados, mas todos em conjunto, enquanto classe, enquanto
população. Para a maior parte destes «socialistas», propriedade pública dos
meios de produção significa propriedade do Estado, sendo o conjunto da
população segundo as concepções deles, representado pelo Estado. Estado
democrático, evidentemente, no qual o povo escolhe os dirigentes. E uma
organização social e política na qual as massas escolhem os seus chefes a todos
os níveis, tanto na fábrica como nos sindicatos e na chefia do Estado, eis o que é
uma democracia universal! Evidentemente que, uma vez eleitos, estes chefes
devem ser obedecidos sem hesitação e sem um murmúrio. Porque só através da
obediência às ordens de dirigentes competentes, que reinam sobre o aparelho de
produção, é que a organizarão poderá funcionar sem choques e de forma
satisfatória.
É este o ponto de vista dos defensores do socialismo de Estado. É evidente
que este projeto de organização social é totalmente diferente do de uma
organização na qual os produtores exerçam, eles próprios, o domínio real da
produção. No socialismo de Estado, os trabalhadores são senhores do trabalho
apenas de uma maneira formal, dessa mesma maneira formal que assegura o
domínio da população sobre o Estado. Nestas pretensas «democracias» (assim
denominadas porque as assembleias parlamentares são eleitas por sufrágio
universal), os governos não são de modo nenhum compostos por delegados
designados pela população para executarem, as vontades desta. É sabido que, em
todos os países, o governo está nas mãos de pequenos grupos de aristocratas, de
políticos e de altos funcionários, em número limitado e com funções muitas
vezes hereditárias, e que os parlamentares formam o corpo social que os apoia,
mas não são eleitos pelos mandantes para executar a sua vontade. A quem vota
só resta, praticamente, a escolha entre duas equipas de políticos selecionados,
apresentados e lançados pelos dois principais partidos políticos cujos chefes,
segundo os resultados, ou formam o gabinete ministerial ou então esperam a sua
vez praticando uma «oposição leal». Os funcionamos do Estado que dirigem os
assuntos públicos também não são escolhidos pelo povo: são nomeados de cima,
pelo governo. Mesmo que uma propaganda hábil os apresente como servidores
do povo, são na realidade os dirigentes deste, os seus senhores. No socialismo de
Estado, esta burocracia de funcionários, consideravelmente mais numerosa
dirige a produção. Dispõe dos meios de produção e, portanto exerce o comando
supremo sobe o trabalho. Tem que velar por que tudo funcione bem, tem de
dirigir o processo de produção e fixar a repartição dos produtos. Assim, os
trabalhadores têm novos patrões que lhes distribuem um salário e que conservam
para si o resto da produção. Por outras palavras, os trabalhadores continuam a
ser explorados. O socialismo de Estado pode também ser apelidado de
capitalismo de Estado. Tudo depende do aspeto sobre o qual se põe a tônica e da
importância que a influência dos trabalhadores assume no sistema.
O socialismo de Estado é um projeto de reconstrução da sociedade que tem na
sua base uma classe operária tal como a classe média a vê e a conhece no
sistema capitalista. Naquilo a que chamam sistema socialista de produção, a
estrutura fundamental do capitalismo é mantida: os operários põem as máquinas
a funcionar sob as ordens de chefes. Mas este fato brutal é acompanhado por
novas promessas vás. Os capitalistas, sedentos de lucros, foram substituídos por
uma classe dirigente de reformadores que, arvorados em verdadeiros benfeitores
da humanidade, consagram as suas capacidades ao seu ideal: libertar as massas
laboriosas da miséria e da indigência.
É facilmente compreensível que, no século 19, quando os trabalhadores
estavam a começar a resistir e a lutar, mas não estavam ainda aptos para tomar o
poder na sociedade, este ideal socialista tenha encontrado numerosos adeptos. E
isto não só entre a pequena burguesia socializante que simpatizava com as
massas oprimidas, mas também entre os próprios trabalhadores. Estes viam a
libertação da sua servidão concretizar-se pela simples expressão da sua opinião
no voto, pela utilização do poder político representado pelas eleições, meio para
pôr no governo os seus salvadores em vez dos seus opressores. E é evidente que,
se se tratasse unicamente de uma discussão calma e de livre escolha entre
capitalismo e socialismo, este último teria então boas probabilidades de se
realizar.
Mas a realidade é totalmente diferente. O capital detém o poder e defende-o.
Quem poderá ter a ilusão de que a classe capitalista irá abandonar o seu império
o seu domínio, os seus lucros, que são as próprias bases do seu poder, o que
significa renunciar finalmente à sua própria existência, perante o simples
resultado de um voto? Ou mesmo, quem pode crer que a classe capitalista irá
passar os poderes depois de uma campanha de persuasão da opinião publica
através de meetings e de manifestações de rua? É bem evidente que esta classe
se irá bater, convencida dos seus direitos. Sabemos já que é necessário batermo-
nos, mesmo por reformas, e que a menor reformazinha, em sistema capitalista, é
sempre resultado de uma luta; é evidente que não é uma luta até as últimas
consequências, até a guerra civil ou à efusão de sangue, ou pelo menos o é muito
raramente. E isto muito simplesmente porque a opinião pública, ou seja, a da
burguesia no seu conjunto, alertada pela resistência decidida dos trabalhadores,
se deu conta de que estas reivindicações operárias não põem em causa a própria
essência do capitalismo, que o lucro, enquanto tal, não é ameaçado. Pelo
contrário. Todos sentem que o capitalismo sairá reforçado, uma vez que as
reformas apaziguam os trabalhadores e os ligam mais estreitamente ao sistema
existente.
Se e a própria existência da classe capitalista enquanto classe dominante e
exploradora que está em jogo, toda a classe burguesa alinhará atrás dela. Se o
seu poder, a sua exploração, os seus lucros forem ameaçados, não por uma
revolução ilusória formal, mas por uma revolução real que atinja as próprias
bases da sociedade, podemos ter a certeza de que a classe burguesa irá resistir
com todas as suas forças. Onde está o poder capaz de vencê-la? Os argumentos
irrefutáveis e as boas intenções dos reformadores generosos não podem travar, e
muito menos destruir, uma força tão solidamente estabelecida. Um único poder
no mundo é capaz de vencer o capital, é a classe operária. A classe operária não
pode ser libertada por outros; só pode ser libertada por ela própria.
Mas a luta será longa e difícil, porque o poder da classe capitalista é enorme.
Firmemente entrincheirada no aparelho de Estado e no governo, ela tem à sua
disposição todas as instituições e todos os recursos daqueles, toda a sua
autoridade moral e todos os meios físicos de repressão. Dispõe de todos os
tesouros da terra e pode despender somas ilimitadas para recrutar, pagar,
organizar exércitos de defensores, para orientar a opinião pública. As suas ideias,
as suas concepções, impregnam toda a sociedade, enchem livros e jornais,
subjugam a própria consciência dos trabalhadores. É esta a principal fraqueza
das massas. É verdade que a classe operária lhe pode opor o número. Nos países
capitalistas, constitui já a maior parte da população. Ela tem uma função
econômica capital; tem o controle direto sobre as máquinas, a capacidade de pô-
las a funcionar ou de pará-las. Mas estes recursos não têm qualquer utilidade
enquanto os espíritos se encontrarem sob a dependência dos senhores da
sociedade, se alimentarem das ideias destes, enquanto os trabalhadores
continuarem a ser indivíduos isolados, egoístas, limitados, rivalizando entre si. O
seu número e importância econômica, considerados isoladamente, são como as
forças de um gigante adormecido. A luta prática deve começar por os acordar,
pondo-os em plena ação. O conhecimento e a unidade devem transformá-los em
poderes ativos. A luta pela existência, contra a miséria, contra a exploração,
contra o poder da classe capitalista e do Estado, o combate pelo domínio dos
meios de produção devem permitir que os trabalhadores atinjam a consciência da
sua posição social, a independência das suas ideias, o conhecimento da
sociedade, a solidariedade e a dedicação à comunidade, a firme unidade de
classe que lhes permitirá vencer o poder do capital.
Não podemos prever quais as tempestades da política mundial que irão
acordar essas forças. Mas de uma coisa podemos estar certos, é de que isto não
será produto de alguns anos, nem de um breve combate revolucionário. É um
processo histórico que abrangerá todo um período, com avanços e recuos, com
batalhas e calmarias, mas seguindo sempre uma progressão constante. Será uma
transformação da sociedade na sua própria essência, não só porque as relações
de força entre as classes terão sido invertidas, não só porque as relações de
propriedade terão sido mudadas, não só, ainda, porque a população terá sido
reorganizada sobre novas bases, mas essencialmente (e é o elemento capital em
todo este processo) porque a classe operária se terá transformado, no mais
profundo de si mesma. Os trabalhadores transformar-se-ão, de indivíduos
submetidos, em donos do seu destino, confiantes em si próprios e na sua
liberdade, capazes de construir e de organizar um mundo novo.
Foi o grande humanista socialista Robert Owen quem nos ensinou que para
edificar uma autêntica sociedade socialista seria necessária uma modificação de
caráter no homem, e que esse caráter pode ser transformado pelo meio e pela
educação. Completando as teorias do seu predecessor, o grande teórico
comunista Karl Marx ensina-nos que é a própria humanidade que tem de
modificar o seu meio, de se educar combatendo, através da luta de classe, a
exploração e a opressão. A doutrina do socialismo de Estado, ou seja, a
concepção dum socialismo atingido através de reformas, é uma teoria oca e
mecanicista; julga ela que para fazer a revolução social basta mudar as
instituições políticas e as condições exteriores da vida, sem necessidade duma
transformação do próprio homem que faça do escravo submisso um combatente
orgulhoso e audacioso. O socialismo de Estado, programa da social-democracia,
é na realidade utópico, já que pretende estabelecer um novo sistema de produção
pela simples conversão das pessoas às novas ideias políticas através da
propaganda. A social-democracia era incapaz – e de resto não o pretendia a
preço nenhum – de conduzir a classe operária pelo caminho duma luta
revolucionária autêntica. O seu declínio começou quando o desenvolvimento
moderno do grande capitalismo fez do socialismo eleitoral uma ilusão
anacrônica.
Contudo, as ideias socialistas conservam ainda hoje a sua importância, se bem
que duma maneira diferente. Disseminaram-se por todas as camadas sociais,
tanto entre aqueles burgueses sensíveis aos problemas sociais, como no seio da
grande massa dos trabalhadores. Exprimem a aspiração a um mundo sem
exploração, aspiração essa combinada, nos operários, com uma falta de
confiança nas suas próprias forças. Um tal estado de espírito não desaparecerá
imediatamente, mesmo após as primeiras vitórias, pois é nessa altura que os
trabalhadores se irão aperceber da imensidão da sua tarefa, da força formidável
do capital, e da forma como as tradições e as instituições do velho mundo criarão
obstáculos à sua marcha. Nesses momentos de hesitação, o «socialismo»
parecer-lhes-á a via mais fácil de seguir, aquela que não inclui dificuldades
intransponíveis a vencer, que não exige sacrifícios incessantes. É que aos
trabalhadores, exatamente devido aos seus sucessos, virá juntar-se um grande
número de reformistas, cheios de preocupações sociais, que se apresentarão
como amigos, como aliados de peso que irão pôr as suas capacidades ao serviço
da classe ascendente, mas que exigirão, podemos estar certos, lugares
importantes, a fim de poderem agir e, finalmente, conduzir o movimento
segundo as suas ideias. Se os trabalhadores os levarem ao poder, se instalarem
ou apoiarem um governo socialista, então a poderosa máquina do Estado passará
a estar disponível para atingir este objetive novo; poderá como pretenderão ases
reformistas, ser utilizada para abolir a exploração capitalista e instaurar o reino
da liberdade, unicamente através da votação de leis apropriadas. Não será este
modo de atuação mais atraente que essa luta de classe? Certamente que sim. O
único inconveniente é que deste modo acabar-se-á por conhecer o mesmo
destino que o movimento revolucionário do século 19: as massas, que haviam
derrubado os antigos regimes através das suas lutas na rua, foram em seguida
convidadas a regressar ao trabalho e a confiar nos governos provisórios que se
auto-designaram e que, de há muito, estavam preparados para tomar as coisas em
mãos.
A propaganda levada a cabo a volta desta doutrina socialista, tem tendência a
lançar a dúvida nos espíritos dos trabalhadores, a despertar ou reformar a sua
falta de confiança nas suas próprias forças, a obscurecer a consciência que
possam ter das suas tarefas e capacidades. É esta a função social do socialismo,
hoje como amanhã, na altura de cada vitória operária nas lutas futuras. Faz
cintilar aos olhos dos trabalhadores, como que ofuscados pela apreensão dos
duros combates pela liberdade que os esperam, a luz morna duma nova, mas
agradável, servidão. E mais, quando o capitalismo vier a receber os rudes golpes
que o esperam, todos aqueles que não têm confiança na liberdade completa das
massas, os que a temem, os que desejam preservar a distinção entre senhores e
servos, entre inferiores e superiores, se reunirão sob esta bandeira. Rapidamente
se assistirá ao aparecimento de palavras de ordem apropriadas: a «ordem» e a
«autoridade» opostas ao «caos», o «socialismo» e a «organização» contra a
«anarquia». Porque um sistema econômico no qual os trabalhadores dominem o
seu trabalho e possam orientá-lo só pode ser sinônimo de anarquia e de caos para
os espíritos pequeno-burgueses. Assim, o único papel que o socialismo poderá
vir a desempenhar, no futuro será o de obstáculo no caminho do combate dos
trabalhadores pela sua emancipação.
Em resume, o esquema socialista de reconstrução tal como e proposto pelos
reformistas, está votado ao fracasso. Em primeiro lugar, por eles não deterem a
possibilidade de criarem as forças capazes de vencerem o capital, em segundo
lugar, porque só os próprios trabalhadores podem consegui-lo. Somente as suas
próprias lutas permitirão o desenvolvimento dessas forças irresistíveis,
indispensáveis ao cumprimento duma tal tarefa. São estas lutas que o socialismo
tem de evitar. Uma vez derrubado o poder capitalista pelos trabalhadores e
conquistada a liberdade, por que razão a abandonariam para se submeterem a
novos patrões?
Existe uma teoria que tenta explicar esta inevitabilidade, e por que razão as
coisas se passariam assim: é a teoria da desigualdade entre os homens, essa
teoria que acentua o fato da natureza os ter feito diferentes. Uma minoria de
homens capazes, dotados, dinâmicos, erguer-se-ia acima da massa inapta,
imbecil e apática. A despeito de todos os decretos e de todas as teorias que
instituem a igualdade formal e legal, a minoria inteligente e enérgica assumiria a
direção e a maioria incapaz segui-la-ia e obedecer-lhe-ia.
Não é a primeira vez que uma classe dirigente tenta explicar e, portanto
perpetuar o seu domínio apresentando-o como a consequência duma diferença
inata entre duas espécies de pessoas: umas destinadas pela natureza a funções de
comando, as outras a serem comandadas. A aristocracia fundiária do passado
fazia já a defesa da sua posição de privilégio vangloriando-se de descender duma
raça nobre de conquistadores, que teria subjugado a raça inferior das pessoas
vulgares. Os grandes capitalistas explicam a sua posição de domínio afirmando
serem inteligentes enquanto que os outros não o são. Hoje em dia podemos ouvir
a mesma cantiga na boca dos intelectuais. Consideram-se como os legítimos
dirigentes de amanhã e proclamam a sua superioridade espiritual. Integram a
classe ascendente de funcionários e de membros de profissões liberais que
receberam uma formação universitária, que se especializaram no trabalho
intelectual, no estudo dos livros, das ciências; acham-se as pessoas mais dotadas
no campo das atividades espirituais. Essa a razão por que estariam destinados a
tornarem-se os dirigentes da produção, ficando para as massas inaptas as tarefas
manuais que não exigem reflexão. Não fazem a defesa do capitalismo; sustentam
que é a inteligência e não o capital que terá que dirigir o trabalho, sobretudo nos
nossos dias em que a sociedade assumiu uma estrutura de tal modo complexa,
assentando em ciências abstratas e difíceis, que só uma elevada capacidade
intelectual pode abarcar, compreender e aplicar. Se a classe operária, por falta de
lucidez, não compreendesse a necessidade duma tal direção intelectual, se
tentasse estupidamente dirigir-se a si própria, o caos e a ruína seriam as
consequências inevitáveis.
É bom que realcemos aqui que o termo intelectual não designa o indivíduo
detentor duma inteligência. Intelectual é uma palavra que caracteriza uma classe
com funções definidas na vida econômica e social, para cujo cumprimento
aquilo que se revela mais necessário e uma formação universitária. A
inteligência, a faculdade de compreender, existe em todas as classes, tanto entre
os capitalistas e os artesãos, como entre os camponeses e os operários. Os
«intelectuais» não são dotados de uma inteligência superior, possuem
simplesmente uma capacidade especial de manejar abstrações e fórmulas
científicas, muitas vezes, em verdade, de decorá-las, capacidade essa que se alia
frequentemente a um conhecimento limitado das outras coisas da vida. A sua
presunção origina um intelectualismo limitado, que ignora a maior parte das
restantes qualidades que desempenham um papel importante nas atividades
humanas. No homem podem encontrar-se uma quantidade de disposições ricas e
variadas que diferem tanto pela sua natureza como pelo seu grau de
desenvolvimento: num determinando indivíduo, poder de abstração ou
habilidade manual; num outro, inteligência viva ou imaginação rica; noutros
ainda, compreensão rápida ou imaginação profunda; ou ainda grande
perseverança ou espontaneidade impaciente; ou ainda uma coragem indomável
na ação e na luta; ou então uma ética amplamente aberta para a compreensão dos
homens. Todas estas qualidades são necessárias na vida social; segundo as
circunstâncias e de acordo com as exigências da vida e do trabalho, poderá ser
uma ou outra a assumir um plano de destaque. É ridículo querer separá-las em
superiores e inferiores. São justamente as diferenças existentes entre elas que
permitem que as predileções e disposições de cada um encontrem o seu campo
de aplicação nas diversas formas de atividade. Uma destas aptidões, a aptidão
para os estudos abstratos e científicos (que frequentemente assumem em regime
capitalista a forma abastardada de especializações forçadas) encontra o seu
verdadeiro lugar no processo técnico de produção, quer para vigiar, quer para
dirigir. Não passa duma aptidão entre muitas outras. Não há na realidade
qualquer razão para que os intelectuais dominem do alto da sua superioridade as
massas de não intelectuais. Não é certo que, referindo-se ao século XVIII, o
historiador Trevelyan falava da «riqueza de imaginação, da profundidade
emocional, do vigor e variedade da inteligência entre os pobres... uma vez
despertos os seus espíritos»?
É evidente que alguns se encontram mais bem munidos de certas qualidades
do que outros; os homens e mulheres de talento, sobressaem no meio dos seus
contemporâneos. Mas em regime capitalista eles são com toda a certeza em
muito maior numero do que o que pode parecer, pois uma das características
deste regime é o desprezo, a má utilização, a exploração das qualidades
humanas. No seio duma humanidade liberta, estes diferentes talentos serão muito
melhor aproveitados; a consciência de estarmos a contribuir para a causa
comum, pondo em jogo o melhor de nós próprios, trará uma satisfação muito
mais completa do que um qualquer privilégio material fornecido pelo mundo da
exploração.
Que significa esta pretensão da classe dos intelectuais, esta afirmação duma
superioridade do trabalho intelectual sobre o trabalho manual, logo do domínio
do primeiro sobre o segundo? Não é o espírito que deve comandar o corpo, as
atividades físicas? Sem dúvida que sim. O espírito humano constitui, aliás, o
ponto mais alto do desenvolvimento da natureza. Pelas suas capacidades
intelectuais, o homem eleva-se acima do animal. O espírito é o que o homem
tem de mais precioso. Foi graças a ele que pôde tornar-se senhor do mundo.
Aquilo que distingue o trabalho do homem da atividade do animal é justamente a
base do pensamento: primeiro conceber, refletir e elaborar um projeto antes de
passar a sua execução. Este predomínio da teoria, do pensamento sobre o
trabalho prático não para de se reforçar, à medida que o processo de produção se
vai desenvolvendo, se vai complicando cada vez mais, tornando-se
progressivamente dependente da ciência.
Isto não permite concluir que os trabalhadores intelectuais estejam autorizados
a dominar os trabalhadores manuais. A oposição manual-intelectual não existe
na natureza: é um produto da sociedade; constitui uma distinção de classe
artificial. Qualquer trabalho, mesmo o mais simples, tem tanto de intelectual
como de manual.
Todo o trabalho, até se tornar mecânico à força de repetição, exige a
intervenção do espírito. É justamente esta combinação pensamento/ação que faz
o encanto da atividade humana. Este atrativo subsiste na divisão natural do
trabalho, na que assenta em diferenças de gostos e de aptidões. Mas o
capitalismo perverteu estas disposições naturais. Com o fim de aumentar o lucro,
levou ao extremo a divisão do trabalho, introduziu uma especialização de sentido
único. Há já três séculos que, desde o seu aparecimento pela primeira vez com o
sistema da manufatura, a repetição incessante das mesmas manipulações em
número limitado fez do trabalho uma retina monótona, em que a utilização
abusiva de certos membros ou de certas faculdades mentais, em detrimento das
outras, origina uma mutilação perpetua do espírito e do corpo. Hoje o
capitalismo, à semelhança disto, para aumentar a produtividade e os lucros,
operou a separação do trabalho manual e intelectual, fez de cada um dela o
objeto duma educação especializada, em detrimento das restantes capacidades.
Criou assim duas especialidades, onde o trabalho natural não via senão uma,
originou tarefas distintas, profissões distintas, realizadas por classes sociais
distintas. Os trabalhadores manuais, embrutecidos por longas horas passadas em
trabalhos sem vida e vazios de qualquer iniciativa, em lugares insalubres, estão
impedidos de desenvolverem as suas faculdades intelectuais. Por outro lado, os
trabalhadores intelectuais, mantidos, pela sua própria formação teórica, afastados
do trabalho físico e da exercitação natural do corpo veem-se obrigados a recorrer
a substitutos artificiais. Num caso como noutro, assistimos a uma verdadeira
mutilação da natureza humana. E, ostentando esta degenerescência, imposta pelo
sistema capitalista, como um dos traços inerentes a esta natureza humana, uma
das classes sociais pretende afirmar a sua superioridade e o seu domínio sobre a
outra.
Uma série de outros argumentos vem reforçar esta pretensão da classe
intelectual ao domínio espiritual e à condução social dele decorrente. Eminentes
teóricos não se cansam de acentuar que todo o progresso humano se fica a dever
a um número limitado de gênios. Segundo eles, teria sido um pequeno número
de investigadores, de inventores, de pensadores a edificar a ciência, a aperfeiçoar
a técnica, a conceber ideias novas, a abrir novos caminhos, enquanto a massa dos
seus concidadãos se teria limitado a segui-los e a imitá-los. Toda a civilização
assentaria neste punhado de cérebros eminentes. O futuro da humanidade e o
progresso da civilização dependeriam, pois, da educação e seleção de tais elites,
e estas se veriam ameaçadas por um nivelamento geral.
Admitamos por um instante que esta asserção é verdadeira. Poder-se-ia
responder, não sem ironia, que o resultado conseguido por estes espíritos
superiores, esse mundo deplorável que é o nosso, resulta diretamente desta
concepção mesquinha, e que não há muito motivo para orgulho. Se todos esses
grandes precursores pudessem ver o que foi feito das suas descobertas, não
teriam por certo grandes motives para satisfação. Se nos damos por incapazes de
fazer melhor, então bem que podemos desesperar da humanidade.
Ora esta asserção é falsa. Mesmo o mais simples estudo atento duma
descoberta científica, técnica, ou outra qualquer, surpreende pela quantidade de
nomes que a ela se encontra associada. Mas nas obras populares, nos manuais de
textos históricos, fontes de tantas ideias falsas, apenas alguns grandes nomes são
conservados e glorificados, como se essa fosse a única realidade válida. Deste
modo foram fabricados, de acordo com as necessidades em questão, alguns
gênios excepcionais. Na realidade, qualquer progresso importante e engendrado
por todo um ambiente social donde brotam, de todos os lados, novas ideias,
sugestões, compressões súbitas. Nenhum destes grandes homens, levados aos
píncaros pela história oficial, por terem dado um passo decisivo, teriam podido
fazê-lo sem o trabalho dum grande número de precursores, no qual as suas
descobertas se baseiam. Alem disso, este punhado de homens de talento,
louvados séculos mais tarde como iniciadores do progresso mundial, não foram
os guias espirituais do seu tempo. Foram frequentemente ignorados pelos seus
contemporâneos, trabalharam tranquilamente, isolados do mundo; pertenciam na
sua maior parte à classe explorada, tendo sido por vezes mesmo perseguidos
pelos dirigentes. Os seus homólogos contemporâneos não são esses irrequietos
pretendentes a direção intelectual, mas sim trabalhadores silenciosos,
praticamente desconhecidos, quem Sabe mesmo, ridicularizados e perseguidos.
Só uma sociedade de produtores livres, capazes de apreciarem a importância das
realizações espirituais, e desejosos de as porem em pratica para o bem-estar
comum, poderá reconhecer e apreciar o gênio criador na sua real medida.
Como é que se pode então admitir que o trabalho de todos estes homens de
gênio do passado não tenha conduzido a nada de melhor do que o capitalismo
atual? Tudo aquilo de que eles se revelaram capazes foi de estabelecer as bases
científicas e técnicas da alta produtividade do trabalho. Por razões que os
ultrapassavam, esta produtividade tomou-se a fonte do poderio e das enormes
riquezas dessa minoria dirigente que conseguiu monopolizar os resultados de tais
progressos. Uma sociedade de abundância e de liberdade para todos não poderá
nascer da boa vontade de alguns indivíduos superiores, ainda que distintos. Ela
não pode resultar da atividade cerebral de alguns, mas antes da afirmação da
personalidade de todos. As ciências e as técnicas, na medida em que têm um
papel a desempenhar na criação da abundância, são já suficientes. O que falta
são as forças sociais capazes de congregar as massas operárias, de transformá-las
numa sólida organização numa unidade. A base da nova sociedade não é a
quantidade de saber que ela possa adquirir, nem as técnicas que possa ir buscar a
outras, mas sim esses sentimentos comunitários, essa atividade organizada que
os trabalhadores são capazes de desenvolver. Este caráter novo não pode vir do
exterior; tão pouco pode ser adquirido por obediência a um qualquer patoá.
Apenas poderá brotar da ação autônoma, da luta pela liberdade, da revolta contra
os patrões. De nada servirá todo o gênio dos indivíduos superiores.
O passo decisivo para o progresso da humanidade, para a transformação da
sociedade, de que se apercebem já os primeiros indícios, consistirá
essencialmente numa transformação das próprias massas laboriosas. Só poderá
concretizar-se pela ação, pela revolta, pelo esforço das próprias massas; a sua
natureza essencial é a auto-emancipação da humanidade. Nesta perspectiva,
torna-se evidente que a direção, por uma elite intelectual, é perfeitamente
supérflua. Toda e qualquer tentativa para impô-la só poderia revelar-se
prejudicial, retardando os progressos necessários, agindo, portanto como uma
força reacionária. As objeções levantadas pelos intelectuais, assentando nas
insuficiências presentes da classe operária, encontrarão a sua refutação prática
quando as condições mundiais obrigarem as massas a travar o combate pela
revolução mundial.
Capitulo VI: Dificuldades
Mas existem outras dificuldades mais importantes. Surgirão na altura da
construção da sociedade nova e provirão das diferenças de desenvolvimento e de
dimensões entre as diversas empresas, diferenças essas que envolvem
divergências de concepções.
Tecnicamente e economicamente, a sociedade é dominada pelas grandes
empresas, pelo grande capital. Os grandes capitalistas, em si, representam,
contudo apenas uma minoria da classe possuidora. Sem qualquer dúvida que têm
por detrás deles a totalidade das classes de senhorios e de acionistas. Mas estes
não passam de simples parasitas, não podendo ser-lhes de grande utilidade na
luta de classes. O grande capital ver-se-ia numa posição delicada se não estivesse
apoiado pela pequena burguesia, pela totalidade da classe dos proprietários de
pequenas explorações. Para consolidar o seu domínio sobre a sociedade, ele
serve-se das ideias e das concepções reinantes tanto no espírito dos patrões como
no dos trabalhadores do pequeno comércio e da pequena indústria. A classe
operária deve ter isto em consideração. As suas tarefas, os seus objetivos, são
concebidas na base do desenvolvimento social operado pelo grande capital, mas
nos meios pequeno-burgueses são pensados e compreendidos em função das
condições específicas do pequeno comércio.
Regra geral, nas pequenas empresas capitalistas, o patrão e simultaneamente o
proprietário, muitas vezes o único proprietário; se não é o único, os acionistas
são amigos ou parentes seus. É patrão de si próprio e muitas vezes é também o
mais qualificado tecnicamente na empresa. As duas funções de diretor técnico e
de capitalista ávido de lucro não existem separadas uma da outra; dificilmente as
poderemos distinguir. Os seus lucros parecem ser adquiridos não do seu capital,
mas do seu trabalho. Não do trabalho de exploração dos seus operários, mas das
suas capacidades técnicas de patrão. Os operários que tem ao seu serviço, quer
como pessoal qualificado quer como serventes, apercebem-se perfeitamente de
que o seu patrão possui uma maior experiência geral, uma maior qualificação do
que eles próprios. Nas grandes empresas, a direção técnica está confiada a
assalariados. Trata-se duma medida ditada pelas necessidades de eficácia prática
e que exclui da direção técnica os que são unicamente detentores de títulos de
propriedade. Na pequena empresa, uma tal prática traduzir-se-ia numa regressão:
repugnaria aos técnicos melhores e levaria a um abandono do trabalho técnico as
mãos de indivíduos menos qualificados, até mesmo incompetentes.
É necessário compreender que não se está, por esse fato, perante uma
dificuldade real, que obstaria à organização técnica da indústria. É difícil de
conceber que os operários das pequenas empresas possam desejar expulsar o
técnico mais qualificado (ainda que se trate do antigo patrão) se este mostrar
desejo de colaborar sinceramente no trabalho comum, com todo o seu saber, e
num pé de igualdade. Mas não haverá nisto uma contradição com os
fundamentos e a doutrina da nova sociedade que implicam a exclusão dos
capitalistas? Não, pois a classe operária, ao reorganizar a sociedade em bases
novas, não está obrigada a aplicar à letra uma doutrina rígida; simplesmente,
para orientar as suas opções, terá que se apoiar num grande princípio norteador.
Este princípio, que para qualquer espírito lúcido constitui a verdadeira pedra de
toque da edificação da nova sociedade, afirma que aqueles que executam o
trabalho devem controlá-lo e que todos aqueles que colaboram efetivamente na
produção devem dispor dos meios de produção, estando evidentemente postos de
lado toda e qualquer propriedade ou interesse capitalistas. É com base neste
princípio que os trabalhadores terão que fazer face a todos os problemas, a todas
as dificuldades com que venham a deparar na organização da produção, e que
terão que encontrar as respectivas soluções.
Os ramos tecnicamente atrasados da produção, como os que se encontram nas
pequenas empresas, revelarão com toda a certeza um certo número de
dificuldades específicas, mas não fundamentais. O problema da sua organização,
da instalação nelas de coletividade autogestionárias, como o de assegurar a sua
ligação com as estruturas principais da organização social, e um problema que
deverá ser resolvido fundamentalmente pelos trabalhadores desses ramos, muito
embora, evidentemente, possam ser auxiliados por trabalhadores doutros setores.
A partir do momento em que o poder político e social da classe operária esteja
consolidado, em que as ideias sobre a construção dum mundo novo se tiverem
imposto a todos os espíritos, é evidente que todos aqueles que desejarem
cooperar na comunidade de trabalho serão bem-vindos e encontrarão o lugar e o
trabalho adequados às suas capacidades. Para, além disso, o desenvolvimento do
espírito comunitário e o desejo de eficácia no trabalho trarão como consequência
que as unidades de produção não irão permanecer por muito tempo nesta
situação de pequenas fábricas isoladas herdadas da época precedente.
As dificuldades maiores residem, aliás, no estado de espírito, na maneira de
pensar ligados ao exercício do pequeno comércio e que afetam todos os que nele
participam, patrões, artesãos, operários. É isto que os impede de compreender
que o verdadeiro problema, o único, é o do grande capital e das grandes
empresas. É, todavia facilmente compreensível que as condições de existência
das pequenas empresas, que determinam as ideias que nelas reinam, não podem
constituir o ponto de partida para uma transformação duma sociedade cuja
origem e força é justamente o grande capital. Mas não é menos evidente que a
disparidade geral de condições pode constituir uma fonte de discórdias, de
querelas, de mal-entendidos e de dificuldades. Dificuldades na luta, dificuldades
no trabalho construtivo. Nas pequenas empresas, as qualidades sociais e morais
desenvolvem-se duma forma diferente daquilo que se passa nas grandes
empresas: a ideia de organização não domina tanto os espíritos. Numa pequena
empresa o operário pode mostrar-se recalcitrante, mais independente, mas em
compensação menos propenso a solidariedade, à fraternidade. A propaganda
deverá, portanto assumir, nestes meios, um papel mais importante; não no
sentido de impor uma doutrina teórica, mas simplesmente de expor uma visão
mais ampla da sociedade em geral, a fim de que as ideias dos operários deixem
de ser determinadas pela experiência restrita das suas próprias condições de vida,
para passarem a sê-lo pelas condições, fundamentais e mais gerais, do trabalho
em regime capitalista no seu conjunto.
Isto se torna ainda mais verdadeiro para a agricultura, a qual agrupa um
grande número de pequenas empresas cujo peso econômico é considerável. Para
além disso, a agricultura revela uma diferença material suplementar: a superfície
do solo e limitada, o que condicionou a existência dum parasitismo especifico.
Porque o solo é absolutamente indispensável para viver e para a produção dos
alimentos, o proprietário de terras viu-se beneficiado com a possibilidade de
lançar uma tributação sobre todos aqueles que queiram utilizá-las; é o que se
chama, em economia política, renda fundiária. Remontando a tempos antigos,
estamos aqui perante uma propriedade que não é baseada no trabalho e que é
protegida pelo poder estatal e pela lei; uma propriedade que consiste em
certificados, em títulos que garantem direitos sobre uma parte, por vezes
importante, da produção social. Quer o camponês que paga uma renda ao
proprietário de terras ou um juro a um banco de crédito agrícola, quer o cidadão,
patrão ou operário, que paga, a título de aluguer, grandes importâncias em
dinheiro por um pedaço de terra nua (onde poderá habitar ou construir a sua
oficina) são explorados pela propriedade fundiária. Há um século atrás, na época
do pequeno capitalismo, a diferença entre as duas formas de rendimentos, – os
do proprietário de terras, que vive ociosamente por um lado, os do homem de
oficio, do comerciante, do operário ou do artesão, penosamente alcançados, por
outro lado – era tão flagrante, e a propriedade fundiária considerada como um
roubo de tal modo manifesto, que por diversas ocasiões foram apresentados
projetos para aboli-la, através da nacionalização dos solos, por exemplo. Mais
tarde, quando a própria propriedade capitalista foi assumindo cada vez mais a
forma de certificados, de ações traduzindo-se em rendimentos para os seus
detentores sem que estes tivessem de trabalhar, deixou de se falar em reforma da
propriedade fundiária. O conflito entre capitalistas e proprietários de terras, entre
lucro do trabalho e renda fundiária desapareceu; hoje, a propriedade fundiária
não passa duma das numerosas formas de propriedade capitalista.
O camponês que cultiva a sua própria terra combina as características de três
classes sociais. Os seus rendimentos são compostos por três elementos
indissociáveis: um salário correspondente ao seu próprio trabalho, um lucro
proveniente da gestão da sua propriedade e da exploração dos seus trabalhadores
agrícolas, uma renda fundiária proveniente da propriedade do seu terreno.
Originariamente, em condições como estas, que subsistem em parte hoje, mas,
sobretudo sob a forma de tradições herdadas dum passado idealizado, o
camponês produzia tudo ou quase tudo o que lhe era necessário para viver, a ele
e à família, na sua própria terra ou numa terra que alugava. Nos nossos dias, os
agricultores têm igualmente que abastecer a população industrial que, cada vez
mais, vai constituindo a maioria dos habitantes dos países capitalistas. Em troca,
as classes rurais recebem os produtos industriais de que vão carecendo para as
suas atividades progressivamente mais diversificadas. Mas o problema agrícola
não permaneceu como um assunto interno de cada país. A maior parte das
necessidades mundiais em cereais é satisfeitas por grandes empresas agrícolas
que exploram terras virgens de novos continentes, segundo métodos capitalistas.
Se por um lado elas esgotam a fertilidade intata destas vastas planícies, por
outro, ao introduzirem na Europa os seus produtos a baixos preços, fazem baixar
a renda fundiária neste continente, provocando assim crises agrícolas frequentes.
Mas não é tudo: na velha Europa, a produção agrícola transformou-se numa
produção para o mercado. Os camponeses vendem a maior parte da sua
produção e compram aquilo de que necessitam para viver. Veem-se assim
sujeitos às vicissitudes da concorrência capitalista. Tão depressa se vêm com a
corda ao pescoço pela descida dos preços, crivados de hipotecas, até mesmo
arruinados, como tiram proveito de circunstâncias favoráveis. E como o aumento
da renda fundiária se traduz por um aumento do preço da terra em geral, o antigo
proprietário pode transformar-se em senhorio ao passo que o novo proprietário
que logo à partida está sobrecarregado de dividas, é facilmente conduzido à
ruína por muito pouco que os preços desçam. Daqui que a posição da classe
camponesa no seu conjunto se mostre enfraquecida. No total, as suas condição e
posição na sociedade moderna são bastante semelhantes às dos pequenos patrões
ou dos trabalhadores independentes da indústria.
Existem, contudo diferenças que resultam do fato da superfície do solo ser
sempre limitada. Enquanto na indústria ou no comércio qualquer pessoa que
detenha um pequeno capital pode sempre arriscar na montagem: dum negócio e
pôr-se a batalhar contra os concorrentes, na agricultura, pelo contrario o
camponês não pode entrar em liça se são outros que detêm a terra de que ele
necessita. Para produzir, precisa de terra. Em sociedade capitalista é necessário
ser-se proprietário para se poder dispor livremente do seu terreno. Se um
camponês não é proprietário, poderá evidentemente trabalhar e servir-se da sua
habilidade e das suas capacidades, mas na condição de explorado pelo possuidor
do solo. Assim, trabalho e propriedade encontram-se intimamente ligados: no
seu espírito. Esta a origem desse fanatismo da propriedade tantas vezes criticado.
Tornar-se proprietário é ver assegurada a possibilidade de ganhar a sua vida
durante anos e anos de intensa labuta; mais tarde, alugando ou vendendo essa
mesma terra, poderá esperar viver das suar rendas, sem trabalhar, e subsistir
assim durante a velhice, como deveria poder fazer qualquer trabalhador após
uma vida de esforços. A perpétua luta contra as caprichosas forças da natureza e
do clima – luta que só agora começa a utilizar as técnicas originadas no moderno
conhecimento científico, e que, portanto, permanece ainda, em grande parte,
dependente dos métodos tradicionais e da capacidade pessoal – vê-se ainda
agravada pelas pressões exercidas pelas condições de vida capitalistas. Esta luta
engendrou um individualismo fortemente enraizado que faz dos camponeses
uma classe especial, com uma mentalidade e pontos de vista específicos,
estranha às ideias e objetivos da classe operária.
Todavia, também aqui o desenvolvimento moderno operou modificações
consideráveis. O poder tirânico das grandes empresas capitalistas, dos bancos
fundiários e dos magnatas dos caminhos de ferro, de quem os camponeses
dependem para empréstimos e transporte das suas mercadorias, oprimiu-os,
arruinou-os a ponto de lançá-los por vezes a beira da revolta. Por outro lado, a
necessidade em que se viram as pequenas empresas de alcançar certas vantagens
das grandes, contribuiu em muito para reforçar a cooperação: compra de adubos
e máquinas agrícolas, abastecimento de produtos necessários à alimentação das
imensas concentrações urbanas. A procura de produtos estandardizados, na
produção de leite, por exemplo, exige uma regulamentação e um controle
severos aos quais as propriedades individuais tiveram que se submeter. Os
camponeses viram-se deste modo imbuídos dum certo espírito comunitário: o
seu individualismo foi obrigado a muitas concessões. Mas a integração do seu
trabalho na totalidade social assume a forma capitalista de sujeição a um poder
estranho o que, de novo, se vai chocar com o espírito de independência.
São todas estas condições que determinam a posição do campesinato face à
reorganização da sociedade pelos operários. Os camponeses, se bem que por um
lado dirigentes independentes das suas empresas, e nisso comparáreis aos
capitalistas industriais, participam geralmente, eles próprios, num trabalho
produtivo que depende ao mais alto grau da sua habilidade e dos seus
conhecimentos profissionais. Se é fato que embolsam a renda fundiária, quando
são proprietários, a sua existência nem por isso depende menos da sua atividade
produtiva, penosa de resto. O direito de gestão e de controle sobre o solo que
lhes e conferido pela sua qualidade de produtores, de trabalhadores, e que eles
partilham com os restantes trabalhadores, é absolutamente conforme aos
princípios da nova ordem. Pelo contrário, a sua apropriação da terra, resultante
da sua qualidade de proprietários, está em perfeita contradição com estes
princípios. Mas os camponeses nunca aprenderam a distinguir estes dois aspetos
completamente diferentes da sua posição. Além disso, a livre disposição do solo
enquanto produtor constitui, segundo os princípios novos, uma função social, um
mandato da sociedade, um serviço encarregado de fornecer aos outros habitantes
víveres e matérias-primas. A tradição e o egoísmo capitalistas levam pelo
contrário a considerá-la como um direito estritamente pessoal.
Tais diferenças de estatuto podem originar numerosas divergências e
dificuldades entre as classes produtivas da indústria e da agricultura. Os
trabalhadores terão que ter em conta, de forma rigorosa, o princípio da exclusão
de todo e qualquer interesse ligado a propriedade, sinônimo de exploração.
Admitirão somente os interesses baseados no trabalho produtivo. De resto, um
corte dos víveres pelo campo significaria, para os operários fabris como para a
maioria da população, morrer à fome. Uma tal coisa será intolerável. Claro que
nos países altamente industrializados da Europa, as trocas transoceânicas com os
países produtora de víveres desempenham um papel importante, mas tal não
invalida a necessidade absoluta de se encontrar uma forma de pôr de pé uma
organização comum da produção agrícola e industrial em cada país.
Na realidade, entre operários e camponeses, entre a cidade e o campo, existem
diferenças consideráveis de perspectiva e de ideias, mas não autênticas
divergências ou conflitos de interesses. Existirão, portanto numerosas
dificuldades, numerosos mal-entendidos, fontes de divergências e de conflitos,
mas não uma luta de morte como entre o capital e a classe operária. Mesmo se
ainda hoje os camponeses, aderindo a palavras de ordem políticas e sociais
tradicionais e limitadas se colocam do lado do capitalismo contra os operários –
e isso poderá continuar a acontecer no futuro – a lógica dos seus verdadeiros
interesses acabará por voltá-los contra O capital. Mas isto não será suficiente.
Tal como os pequenos comerciantes e industriais, eles poderiam considerar-se
satisfeitos por se verem libertos da opressão e da exploração com uma vitória
operária, tenham eles ou não participado na batalha. Mas, segundo as suas
concepções, a revolução deveria transformá-los em proprietários privados, livres
e sem contestação possível, da terra – no fundo uma revolução semelhante às
revoluções burguesas do passado. A esta tendência, deverão os trabalhadores
opor, através duma propaganda intensiva, os novos princípios: a produção é uma
função social, os produtores donos do seu trabalho constituem uma comunidade.
Terão igualmente que afirmar a sua vontade firme de criar esta comunidade da
produção agrícola e industrial. Enquanto que os produtores rurais, tornados
senhores de si mesmos, realizarão e organizarão o seu próprio trabalho sob a sua
própria responsabilidade, a ligação deste com a parte industrial da produção terá
de ser tarefa comum de todos os trabalhadores e dos seus conselhos centrais. São
estas relações mútuas, permanentes, que irão fornecer a agricultura todos os
meios científicos e técnicos, todos os métodos de organização necessários ao
aumento da eficácia e da produtividade do trabalho.
Os problemas levantados pela organização da produção agrícola são em parte
da mesma ordem que os encontrados na indústria. Nas grandes empresas, como
nas grandes propriedades produtoras de trigo de milho ou de outras coisas, nas
quais se faz uso de máquinas aperfeiçoadas, a regulação do trabalho será feita
pela comunidade dos trabalhadores e pelos seus conselhos. Nos casos em que
pequenas unidades de produção se tornem necessárias, para a realização de
trabalhos preciosos e minuciosos, por exemplo, a indispensável cooperação entre
unidades desempenhará um papel importante. O número e a diversidade de
pequenas propriedades acarretarão problemas semelhantes aos da pequena
indústria; a sua gestão será tarefa das suas associações autônomas.
Provavelmente impor-se-á a criação de comunidades locais reunindo herdades
semelhantes, mas, entretanto diferenciadas, para evitar que a organização social
no seu conjunto tenha que encarar separadamente cada pequena unidade, que
efetuar para cada uma todos os cálculos correspondentes. Mas todas estas formas
de organização não podem ser imaginadas antecipadamente; serão concebidas e
realizadas pelos produtores quando estes a tal se virem impelidos pelas
necessidades práticas.
Capitulo VII: A Organização dos Conselhos
O sistema social aqui tratado poderia ser designado por comunismo não fosse
o caso de esta palavra ser utilizada na propaganda mundial do «Partido
comunista» para denominar o seu sistema de socialismo de Estado, sob uma
ditadura do partido. Mas que importa um nome? Sempre se abusou dos nomes
para enganar as massas; os sons familiares impedem-nas de pensar duma forma
critica e de apreciar a realidade com clareza. Portanto, em vez de procurarmos o
nome que mais convém, será sim de maior utilidade examinar mais de perto a
característica principal do sistema: a organização dos conselhos.
Os conselhos operários constituem a forma de autogoverno que substituirá, no
futuro, as formas de governo do velho mundo. Não para sempre, bem entendido;
nenhuma destas formas é eterna. Quando a vida e o trabalho em comunidade
constituem uma maneira normal de existir, quando a humanidade controla
inteiramente a sua própria vida, a necessidade cede o lugar à liberdade e as
regras estritas de justiça estabelecidas anteriormente convertem-se num
comportamento espontâneo. Os conselhos operários constituem a forma de
organização desse período de transição durante o qual a classe operária luta pelo
poder, destrói o capitalismo e organiza a produção social. Para conhecermos o
seu verdadeiro caráter, será útil compará-los às formas existentes de organização
e de governo, que o hábito apresenta ao juízo público como coisas evidentes.
As comunidades, demasiado amplas para se reunirem numa assembleia única,
resolvem sempre os seus problemas através de representantes, de delegados.
Assim, os cidadãos das cidades livres da Idade Média governavam-se através de
conselhos de cidade e as burguesias de todos os países modernos possuem o seu
parlamento, a exemplo da Inglaterra. Quando falamos de administração das
coisas públicas por delegados eleitos, é sempre nos parlamentos que estamos a
pensar; é portanto sobretudo com os parlamentos que teremos de comparar os
conselhos operários se quisermos descobrir os seus aspetos essenciais. É
evidente que dadas as grandes diferenças existentes tanto entre as classes como
entre os objetivos, os corpos representativos correspondentes terão que ser, eles
também, essencialmente diferentes.
Esta diferença salta desde logo à vista: os conselhos operários ocupam-se do
trabalho e têm que regular a produção, ao passo que os parlamentos são corpos
políticos que discutem e decidem as leis e os assuntos do Estado. A política e a
economia não são, contudo campos inteiramente separados. Em regime
capitalista, o Estado e o parlamento tomam as medidas e promulgam as leis
necessárias ao bom andamento da produção; garantem a segurança dos negócios,
a proteção do comércio, da indústria, das trocas e das deslocações tanto no
interior como no estrangeiro; garantem ainda a administração da justiça, a
emissão de moeda e a uniformidade dos pesos e medidas. E as suas tarefas
políticas que, à primeira vista, não parecem ligadas a atividade econômica, estão
relacionadas com as condições gerais da sociedade, com as relações entre as
diversas classes, que constituem a base do sistema de produção. Assim, a
política, a atividade dos parlamentos, pode, num sentido lato, ser considerada
como um auxiliar da produção.
Onde reside, pois, em regime capitalista, a distinção entre política e
economia? As relações entre elas são as mesmas que existem entre a
regulamentação geral e a prática concreta. O papel da política consiste em criar
as condições sociais e legais nas quais trabalho produtivo possa realizar-se
regularmente, sendo este mesmo trabalho uma tarefa dos cidadãos. Deste modo,
existe uma divisão do trabalho. A regulamentação geral, embora constitua uma
base necessária, não é mais do que uma parcela ínfima da atividade social, um
acessório do trabalho propriamente dito, e pode ser deixada a cargo duma
minoria de políticos dirigentes. O próprio trabalho produtivo, base e conteúdo da
vida social, é composto pelas atividades separadas de numerosos produtores e
absorve inteiramente as suas vidas. A parte essencial da atividade social é a
tarefa pessoal. Se cada um se ocupar do seu trabalho pessoal e cumprir a sua
tarefa, a sociedade no seu conjunto funcionará bem. De tempos a tempos, a
intervalos regulares, na altura das eleições legislativas, os cidadãos terão que
voltar a sua atenção para as regulamentações gerais. Somente em épocas de crise
social, de decisões importantes e de controvérsia severa, de guerra civil e de
revolução, é que a massa dos cidadãos terá que consagrar todo o seu tempo e
forças a estas regulamentações gerais. Uma vez resolvidas as questões
fundamentais, os cidadãos poderão regressar às suas ocupações específicas, e
abandonar uma vez mais essas tarefas gerais a um número reduzido de
especialistas, aos juristas e aos políticos, ao parlamento e ao governo.
Completamente diferente é a organização da produção comum pelos
conselhos operários. A produção social não se encontra dividida numa série de
empresas separadas, cada uma das quais é obra limitada duma pessoa ou dum
grupo; constitui antes uma totalidade coerente, objeto de atenção para todos os
trabalhadores, ocupando os espíritos destes enquanto tarefa comum a toda a
gente. A regulamentação geral deixa de ser uma questão acessória, a cargo dum
pequeno grupo de especialistas; passa a constituir o problema principal, exigindo
a atenção conjugada de todos. Deixa de haver separação entre política e
economia, outrora atividades quotidianas, por um lado, dum corpo de
especialistas, por outro, da massa dos trabalhadores. Para a comunidade indivisa
dos produtores, política e economia fundiram-se; existe uma unidade entre a
regulamentação geral e o trabalho prático de produção. Esta totalidade constitui
o objetivo essencial de toda a gente.
Esta característica vai refletir-se em toda a prática. Os conselhos não
governam, transmitem as opiniões, as intenções, a vontade dos grupos de
trabalho. Não, evidentemente, como garotos de recados indiferentes que
entregam passivamente cartas e mensagens cujo conteúdo desconhecem. Eles
tomaram parte nas discussões, distinguiram-se como ardentes porta-vozes das
opiniões que prevaleceram; de tal modo que, como delegados dum grupo, não
são capazes de defender as suas ideias na reunião do conselho, como são ainda
suficientemente imparciais para se abrirem a outros argumentos, e para
apresentarem ao seu grupo opiniões passíveis duma mais ampla audiência. Os
conselhos constituem, portanto os órgãos da discussão e comunicação sociais.
A prática parlamentar situa-se exatamente no oposto. Os delegados terão que
tomar decisões sem consultar os seus eleitores, sem estarem amarrados a um
mandato. O deputado, para conservar a fidelidade dos seus mandantes pode
dignar-se falhar-lhes e expor-lhes a sua linha de conduta, mas fá-lo enquanto
senhor dos seus próprios atos. Ele vota tal como a sua consciência e a sua honra
lhes impõem, de acordo com as suas próprias opiniões. É perfeitamente natural:
é ele o especialista em matéria política, em matéria legislativa, e não pode
deixar-se guiar por diretivas de pessoas ignorantes. A função destas últimas é a
produção, as diversas ocupações específicas; a dele, é a política, as
regulamentações gerais. Ele terá que se guiar por grandes princípios políticos, e
não deixar-se influenciar pelo egoísmo mesquinho dos interesses privados dos
seus mandantes. É assim que, no capitalismo democrático, se torna possível para
políticos eleitos por uma maioria de trabalhadores servirem os interesses da
classe capitalista.
Os princípios do parlamentarismo criaram também as suas raízes no
movimento operário. Nas organizações sindicais de massas ou em organizações
políticas gigantes como o partido social-democrata alemão, os dirigentes agiam
como uma espécie de governo com poderes sobre os membros, e os seus
congressos anuais assumiam as características de parlamentos. Os seus
dirigentes, para realçarem a sua importância, designavam-nos com orgulho
parlamentos do trabalho; os observadores críticos, por seu lado, chamavam a
atenção para o fato da luta de facções, a demagogia dos dirigentes, as intrigas de
corredor, serem os sinais dessa degenerescência surgida já nos verdadeiros
parlamentos. E na verdade, dado o seu aspeto fundamental, era de parlamentos
que se tratava. Não no início, quando os sindicatos eram pequenos e os seus
devotados membros faziam, eles próprios, todo o trabalho, quase sempre
gratuitamente; mas com o aumento dos efetivos acabou por se verificar a mesma
divisão de trabalho existente na sociedade em geral. As massas trabalhadoras
deviam voltar toda a sua atenção para os seus interesses pessoais específicos,
para a forma de encontrar e conservar um emprego. Esta a ocupação principal
das suas vidas e dos seus espíritos; só duma forma muito geral e que elas tinham,
para, além disso, de decidir, através do voto, dos seus interesses comuns de
classe e de grupo. O pormenor da prática era deixado aos especialistas, aos
funcionários dos sindicatos e aos dirigentes dos partidos, que sabiam como lidar
com os patrões capitalistas e com os ministros. E, além disso, apenas uma
minoria de dirigentes locais se encontrava suficientemente familiarizada com
estes interesses gerais para poder ser enviada na qualidade de delegação aos
congressos onde, a despeito dos mandatos muitas vezes imperativos, cada um
votava na realidade segundo o seu próprio critério.
Na organização dos conselhos, o domínio dos delegados sobre os seus
mandantes desaparece, uma vez que desapareceu também a própria base deste
domínio, a divisão de tarefas. Nessa altura, a organização social do trabalho
obriga cada operário a dedicar toda a sua atenção à causa comum, à totalidade da
produção. Tal como anteriormente, a produção daquilo que é necessário à vida
como base da própria vida, ocupa inteiramente o espírito. Mas não se trata já da
preocupação de cada um com sua própria empresa, com o seu próprio emprego,
em concorrência com os outros, porque a vida e a produção só podem ser
asseguradas na colaboração entre companheiros através do trabalho coletivo.
Este trabalho coletivo domina assim o pensamento de cada um. A consciência da
comunidade constitui o fundo e a base de todo e qualquer sentimento, de todo e
qualquer pensamento.
Trata-se duma revolução total na vida espiritual do homem. Ele aprende a
olhar para a sociedade, sabe o que é a comunidade na sua essência. Antes, em
regime capitalista, a sua visão limitava-se àquilo que dizia respeito aos seus
negócios, ao seu trabalho, a sua família e a si próprio. Não podia ser doutra
forma, já que disso dependia a sua existência. Para ele a sociedade não passava
dum plano de fundo obscuro e desconhecido, por detrás do seu pequeno mundo
visível. E, evidentemente, sofria o efeito dessas forças poderosas que
determinavam o êxito ou o fracasso do seu trabalho. Mas, guiado pela religião,
era levado a ver nessas forças a obra de poderes supremos sobrenaturais. No
mundo dos conselhos operários, pelo contraio, a sociedade surge à luz do dia,
transparente e conhecível; a estrutura do processo social do trabalho não mais se
encontra dissimulada aos olhos do homem, cujo olhar abarca a produção na sua
totalidade; é isso que se torna necessário à sua vida, à sua existência. A produção
social transforma-se então em finalidade duma organização consciente. A
sociedade passa a estar nas mãos do homem; ele age sobre ela, e por isso
compreende a sua natureza essencial. É assim que o mundo dos conselhos
operários opera a transformação do espírito.
Em regime parlamentar, que é o sistema político correspondente às empresas
independentes, o povo é formado por uma multidão de pessoas separadas; na
melhor das hipóteses, segundo a teoria democrática, cada um proclama-se
investido dos mesmos direitos naturais. Para a eleição dos delegados, as pessoas
são agrupadas segundo a sua residência, em circunscrições. Nos primeiros
tempos do capitalismo, era possível a existência de uma certa comunidade de
interesses entre vizinhos duma mesma cidade ou duma mesma aldeia, coisa que
se foi tornando cada vez mais, à medida que o capitalismo se desenvolvia, em
ficção desprovida de sentido. Os artesãos, os comerciantes, os capitalistas, os
operários que habitam o mesmo bairro têm interesses diferentes e opostos;
votam em geral em partidos diferentes, e é uma maioria de acaso que vem a sair
vencedora. Se bem que a teoria parlamentar considere o eleito como o
representante duma circunscrição, é evidente que estes eleitores não constituem
um grupo que o delegou para representar os seus desejos.
A este nível, a organização dos conselhos é absolutamente o oposto do
parlamentarismo. São os grupos naturais, os operários que trabalham juntos, o
pessoal duma empresa, que agem na qualidade de unidades e designam os seus
delegados. Estes grupos podem encontrar no seu próprio seio representantes
efetivos e porta-vozes, uma vez que possuem interesses comuns e que fazem
parte dum todo na práxis da vida quotidiana. A democracia completa realiza-se
na igualdade de direitos de todos aqueles que participam no trabalho.
Evidentemente que aqueles que se situam à margem do trabalho não têm a
palavra no tocante à organização deste mesmo trabalho. Não se pode considerar
como uma falha de democracia que, neste mundo em que os grupos no seio dos
quais todos colaboram se governam a si próprios, aqueles que não se interessam
pelo trabalho – e o capitalismo legará muitos, exploradores, parasitas, senhorios
– não participem nas decisões.
Há setenta anos atrás, Marx assinalava que entre o reinado do capitalismo e a
organização final duma humanidade livre, haveria um período de transição
durante o qual a classe operária seria senhora da sociedade, mas sem que a
burguesia tivesse ainda desaparecido. Ele designava este estado de coisas por
ditadura do proletariado. Na sua época, esta palavra não possuía ainda a
ressonância sinistra que lhe conferiram os sistemas modernos de despotismo, e
era impossível usá-la abusivamente para significar a ditadura de um partido no
poder, como aconteceu mais tarde na Rússia. Significava unicamente a
transferência do domínio da sociedade da classe capitalista para a classe
operária. Mais tarde, pessoas inteiramente conquistadas pelas ideias do
parlamentarismo tentaram materializar esta concepção retirando às classes
possuidoras a liberdade de constituírem agrupamentos políticos. É evidente que
esta violação do sentimento instintivo da igualdade de direitos era contrária à
democracia. Vemos hoje que a organização dos conselhos realiza na prática
aquilo que Marx antecipara em teoria, mas cuja forma concreta era impossível
de conceber nessa época. Quando a produção se encontra organizada pelos
próprios produtores, a classe exploradora de outrora se vê automaticamente
excluída da participação nas decisões, sem quaisquer outras formalidades. A
concepção de Marx da ditadura do proletariado surge como idêntica a
democracia operária da organização dos conselhos.
Esta democracia operária não tem nada de comum com a democracia política
do sistema social precedente. Aquilo a que se chamou democracia política do
capitalismo era um simulacro de democracia, um sistema hábil concebido para
ocultar o domínio real exercido sobre o povo por uma minoria dirigente. A
organização dos conselhos é uma democracia real, a democracia dos
trabalhadores, na qual os operários são senhores do seu trabalho. Na organização
dos conselhos, a democracia política desaparece porque desaparece a própria
política, cedendo o lugar a economia socializada. A vida e o trabalho dos
conselhos, formados e animados pelos operários, órgãos da sua cooperação,
consistem na gestão prática da sociedade, orientada pelo conhecimento, pelo
estudo permanente e por uma atenção firme.
Todas as medidas são tomadas num processo de trocas constantes, por
deliberação no seio dos conselhos e discussão nos grupos e locais de trabalho
através de ações nesses mesmos locais de trabalho e de decisões tomadas nos
conselhos. Aquilo que é atingido em tais condições jamais poderia sê-lo por
encomenda vinda de cima, ou por uma ordem exprimindo a vontade de um
governo. A fonte de tais medidas é a vontade comum de todos aqueles em causa,
porque a ação é baseada na experiência e no conhecimento do trabalho de todos,
e vai influenciar profundamente a vida de Cada um. As decisões só poderão ser
executadas se as massas as considerarem como uma emanação da sua própria
vontade; não haverá nenhum constrangimento exterior a fazer com que sejam
respeitadas, pela simples razão de que uma tal força não existe. Os conselhos
não são um governo; mesmo os conselhos mais centralizados não possuem um
caráter governamental, pois não detém qualquer instrumento capaz de impor a
sua vontade às massas; não possuem órgãos de poder. Todo o poder social
pertence aos próprios trabalhadores. Onde quer que o exercício do poder se
venha a impor – contra perturbações ou ataques a ordem existente – emanará das
coletividades operárias nas próprias oficinas e permanecerá sob o seu controle.
No decurso de toda a era civilizada e até aos nossos dias, os governos
revelaram-se necessários como instrumentos que permitem à classe dirigente
conservar as massas exploradas sob a sua alçada. Foram assumindo igualmente
funções administrativas cada vez mais importantes; mas o seu caráter principal,
de forma orgânica do poder, era determinado pela necessidade de manter um
domínio de classe. Ao desaparecer esta necessidade, desaparece igualmente o
seu instrumento. O que se conserva é a administração, que é uma espécie de
trabalho como tantas outras, tarefa dum tipo especifico de trabalhadores; aquilo
que substitui o governo é o espírito de vida da organização, a discussão
constante entre os operários, que pensam em comum na sua causa comum. O
que impõe o cumprimento das decisões dos conselhos é a autoridade moral
destes. E numa sociedade deste tipo a autoridade moral possui uma força bem
mais rigorosa que as ordens ou a coação dum governo.
Na época dos governos acima do povo, quando o poder político teve de ser
concedido aos povos e aos seus parlamentos, existia uma separação do poder
legislativo e do poder executivo do governo; às vezes, mesmo, o poder judicial
constituía ainda um terceiro poder independente. A função dos parlamentos era
legislar, mas a aplicação, a execução das leis, a administração quotidiana
estavam reservadas a um pequeno grupo privilegiado de dirigentes.
Na comunidade de trabalho da nova sociedade, esta distinção desaparece.
Decisão e execução estão intimamente ligadas; aqueles que executam o trabalho
decidem, e aquilo que decidem em comum, põe-no em prática em comum.
Quando se trata de grandes massas, serão os conselhos os seus órgãos de
decisão. No primeiro caso, quando a função executiva estava confiada a
organismos centrais, era a estes que era conferida a capacidade de comando,
deviam constituir-se em governos; no segundo caso quando a tarefa executiva
cabe às próprias massas, deixará de existir esta necessidade e os conselhos não
terão este caráter de governos. Além disso, de acordo com os problemas que se
põem e com as questões que irão constituir objeto de decisão, serão pessoas
diferentes a serem delegadas para dela se ocuparem. No campo da própria
produção, cada empresa deverá não só organizar cuidadosamente o seu setor de
atividade, como terá também que criar ligações horizontais com as empresas
similares, verticais com as que lhe fornecem as matérias-primas e com as que
utilizam os seus produtos. Nesta dependência mútua e nesta ligação entre
empresas, no seu elo com outros ramos da produção, os conselhos, que são os
órgãos de discussão e de decisão, abrangerão setores cada vez mais extensos, até
a organização central da totalidade da produção. Por outro lado, a organização e
o consumo, a distribuição de todos os bens necessários, exigirão os seus próprios
conselhos de delegados de todos os interessados e assumirá um caráter
predominantemente local ou regional.
Junto com esta organização da vida material da comunidade humana, nos
deparamos com o vasto campo das atividades culturais e das que não são
diretamente produtivas, que constituem para a sociedade uma necessidade
primordial, como por exemplo, a educação das crianças e o cuidado com a saúde
de todos. Também aqui reina um mesmo princípio: o da auto-organização destes
setores de trabalho por aqueles que executam esse trabalho. Parece
absolutamente natural que sejam aqueles que participam ativamente quer nos
cuidados com a saúde da comunidade, quer na organização da educação, isto é, o
pessoal sanitário e os professores, a regular e a organizar o conjunto destes
serviços, através das suas associações. Em regime capitalista quando se viam
obrigados a viver das doenças que afligem os homens ou da educação das
crianças, a sua ligação á sociedade em geral assumia a forma, quer duma
profissão competitiva, quer duma aplicação das ordens dum governo. Na nova
sociedade, devido aos laços muito mais estreitos que unem a saúde e a educação
com o trabalho, regularão as suas funções de modo a que os seus conselhos
permaneçam em contato estreito e colaborem constantemente entre si e com os
outros conselhos operários.
Há que realçar aqui que, vida cultural, campo das artes e das ciências, se
encontra, pela sua própria natureza, tão intimamente ligada a inclinação e ao
esforço individuais, que só a livre iniciativa de pessoas não esmagadas pelo peso
de um incessante trabalho pode assegurar o respectivo florescimento. Esta
verdade não poderá ser refutada pelo fato de, no decorrer dos séculos de
sociedade de classes, os princípios e os governos terem protegido as artes e a
ciência, a fim, evidentemente, delas se servirem para a sua glória e para a
manutenção do seu domínio. Duma maneira geral, existe, tanto no tocante as
atividades culturais como a qualquer outra atividade não produtiva ou produtiva,
uma disparidade fundamental entre uma organização imposta de cima por um
corpo dirigente, e uma organização obtida na livre colaboração de colegas e de
camaradas. Uma organização dirigida centralmente implica uma regulamentação
o mais possível uniforme: sem isso, não poderia ser concebida e dirigida por um
organismo central. Na regulamentação autônoma elaborada por todos os
interessados, a iniciativa dum grande número de especialistas atentamente
debruçados sobre o seu trabalho, o aperfeiçoamento através de estímulos e de
relações constantes, a iniciação e as permutas de pontos de vista deverão ter por
resultado uma grande diversidade de meios e de possibilidades. A vida espiritual,
se depende da autoridade central dum governo, cai forçosamente numa insipidez
monótona; se for inspirada ela livre espontaneidade do impulso humano das
massas, desenvolver-se-á dentro duma diversidade notável. O princípio dos
conselhos permite encontrar formas apropriadas de organização. A organização
dos conselhos tece assim, no seio da sociedade, uma rede de corpos
diversificados, trabalhando em colaboração e regulando a sua vida e o seu
progresso de acordo com a sua livre iniciativa. E tudo o que é discutido e
decidido nos conselhos extrai a sua autêntica força da compreensão, da vontade,
da ação da humanidade laboriosa.
Capitulo VIII: Crescimento
No momento em que na difícil luta contra o capital, durante a qual crescem e
se desenvolvem os conselhos operários, a classe operária atinge a vitória, inicia a
sua tarefa: a organização da produção.
Naturalmente que temos consciência de que a vitória não será um
acontecimento único que encerra a luta e inaugura o período seguinte de
reconstrução. Sabemos que a luta social e a construção econômica não irão estar
separadas, mas antes associadas como uma serie de sucessos na luta e na
preparação da nova organização, interrompidas talvez por períodos de
estagnação ou de reação social. Os conselhos operários que se desenvolverão
como órgãos de combate, serão ao mesmo tempo órgãos de reconstrução. No
entanto, para uma maior clareza, distinguiremos estas duas tarefas como se de
coisas separadas se tratasse, sobrevindo uma a seguir à outra. A fim de
apreendermos a verdadeira natureza da transformação da sociedade, teremos que
a encarar de forma esquemática, como um processo uniforme contínuo iniciado
«no dia seguinte ao da vitória».
Assim que os trabalhadores se tornam senhores das fábricas e da sociedade,
começam a pôr as máquinas em funcionamento. Eles sabem que se trata duma
tarefa urgente; a primeira das necessidades é sobreviver, e a própria vida deles –
a vida da sociedade – depende do seu trabalho. Originada no caos do capitalismo
em ruína, a primeira ordem operária tem que ser criada através dos conselhos.
Inúmeras dificuldades se porão; resistências de toda a ordem terão que ser
ultrapassadas, nascidas da hostilidade, da incompreensão, da ignorância. Mas
novas forças insuspeitadas acabarão por surgir: as do entusiasmo, do
devotamento, da clarividência. A hostilidade terá de ser derrotada por meio
duma ação resoluta. A incompreensão terá que ser dissipada por uma persuasão
paciente, a ignorância, ultrapassada por uma propaganda e trabalho de ensino
constantes. Através de relações cada vez mais estreitas entre as oficinas, por
inclusão de setores de produção cada vez mais vastos, através de estimativas e de
contas cada vez mais precisas na planificação, o processo de produção irá sendo
dia a dia melhor controlado. É assim, passo a passo, que a economia social se irá
transformando numa organização conscientemente controlada, capaz de
assegurar a todos o necessário a vida.
O papel dos conselhos operários não se reduz à realização deste programa.
Pelo contrário, isso não passa duma introdução ao seu trabalho real, mais
importante e mais vasto. É então que se inicia um período de desenvolvimento
rápido. Assim que os operários se sintam senhores do seu trabalho, livres para
revelarem as suas capacidades, manifestarão a vontade decidida de acabar com
toda a miséria e indignidade, de pôr fim às insuficiências e aos abusos, de
destruir toda a pobreza e a barbárie que, herdadas do capitalismo, humilham a
Terra. Haverá que recuperar dum enorme atraso; aquilo que as massas obtinham
era muito pouco relativamente ao que poderiam e deveriam ter conseguido nas
condições existentes. Quando elas tiverem possibilidade de satisfazer as suas
necessidades, estas se elevarão a um nível superior; o nível de cultura dum povo
avalia-se pela extensão e quantidade das suas exigências perante a vida.
Utilizando simplesmente os meios e métodos de trabalho existentes, a
quantidade e qualidade das habitações, da alimentação, do vestuário, postos à
disposição de todos, podem ser elevados a um nível que corresponda à
produtividade existente do trabalho. Toda a força produtiva que, na sociedade
precedente, era desperdiçada ou utilizada para o luxo dos dirigentes, poderá
então servir para satisfazer as necessidades aumentadas das massas. Deste modo,
e será a primeira inovação desta sociedade, assistiremos ao aparecimento duma
prosperidade geral.
Contudo, os trabalhadores terão igualmente, desde o inicio, que dirigir a sua
atenção para o atraso dos métodos de produção. Não aceitarão verem-se
esmagados pela fadiga por utilizarem ferramentas primitivas e métodos de
trabalho ultrapassados. Se se melhorarem os métodos e as máquinas pela
aplicação sistemática de todas as invenções e descobertas conhecidas no campo
da técnica e da ciência, a produtividade do trabalho poderá ser
consideravelmente aumentada. Estas técnicas mais aperfeiçoadas tornar-se-ão
acessíveis a toda a gente; integrando no trabalho produtivo todos aqueles que até
ai não faziam mais do que desperdiçar as suas forcas no lamaçal do pequeno
comercio, ou como empregados domésticos em casa dos ricos, porque o
capitalismo não tinha emprego para eles, poder-se-á determinar o número de
horas de trabalho necessárias para cada um. Será, pois um período de intensa
atividade criadora. Esta provirá da iniciativa dos produtores competentes no seio
das empresas; mas só se tornará efetiva através duma deliberação constante, da
colaboração, da inspiração mutua e da emulação. Deste modo, os órgãos de
colaboração – os conselhos – estarão constantemente em ação. Nesta construção
e organização novas dum aparelho de produção sempre melhor, os conselhos
operários, fibras nervosas da sociedade, terão a possibilidade de desenvolver
plenamente os seus recursos. Enquanto que a abundância, a prosperidade
universal, representam o lado passivo da nova vida, o seu lado ative – a
renovação do próprio trabalho – faz da vida uma mais perfeita experiência
criadora.
O aspeto da vida social modifica-se totalmente. Também a aparência mais
exterior sofre modificação: o meio que nos cerca e os objetos testemunham pela
sua harmonia e beleza do caráter nobre do trabalho que os moldou. Aquilo que
afirmava William Morris acerca das profissões do passado, com as suas
ferramentas simples – que a beleza dos produtos provinha do fato do trabalho ser
uma alegria para o homem – esta a razão porque desapareceu com a fealdade do
capitalismo – voltará a verificar-se, mas tratar-se-á então dum maior grau de
controle das técnicas mais aperfeiçoadas. William Morris amava a ferramenta do
artesão e detestava a máquina do capitalista. Para o trabalhador livre do futuro, o
manejo duma máquina perfeitamente construída provocará uma tensão profunda,
constituirá uma fonte de exaltação mental, de alegria para o espírito, de beleza
intelectual.
A técnica transforma o homem em livre senhor da sua vida e do seu destino. A
técnica, que atingiu o seu estado de desenvolvimento atual através dum doloroso
processo de crescimento durante milhares de anos de trabalho e de luta,
suprimirá a fome e a pobreza, o trabalho pesado e toda a espécie de escravatura.
A técnica coloca as forças da natureza ao serviço do homem e das suas
necessidades. O desenvolvimento das ciências da natureza abre ao homem novas
formas e novas possibilidades de vida, de tal modo ricas e variadas que
ultrapassam de longe aquilo que hoje nos é dado imaginar. Mas a técnica por si
só não basta. É necessário que seja pertença duma humanidade que se entregou
conscientemente, por sólidos laços de fraternidade, à construção duma
comunidade de trabalho que controle a sua própria vida. Indissoluvelmente
ligadas, a técnica como fundamento material e força visível, e a comunidade
como fundamento ético e consciência, ditam a renovação total do trabalho.
E o próprio homem se irá modificando juntamente com o seu trabalho.
Apoderar-se-á dele um novo sentimento, um sentimento de segurança. Enfim, a
humanidade verse-á liberta dessa inquietação que tortura a existência. Nos
séculos decorridos desde o estado selvagem das origens até a civilização
moderna, jamais a vida foi segura. O homem não era senhor da sua subsistência.
Sempre existiu, mesmo nos períodos de maior prosperidade, um receio
silencioso em relação ao futuro, escondido no subconsciente, por detrás da ilusão
de um bem-estar perpétuo. Esta ansiedade habitava o mais fundo dos corações
como uma opressão permanente, pesando seriamente nos espíritos e impedindo
um pensamento livre. Para nós, que vivemos sob esta pressão, é impossível
imaginar a modificação profunda na perspectiva, na visão do mundo, no caráter,
que se operará com o desaparecimento de toda e qualquer ansiedade relacionada
com a vida. As velhas ilusões e superstições, que anteriormente se destinavam a
manter uma humanidade espiritualmente indefesa, acabarão por desaparecer.
Agora que o homem se sente verdadeiramente seguro de ser o senhor da sua
vida, serão substituídas por um conhecimento acessível a todos, pela beleza
intelectual duma visão total e cientifica do mundo
Mais ainda que no próprio trabalho, será na preparação do trabalho futuro, na
educação e na formação das gerações seguintes, que a transformação e o novo
caráter da vida se revelarão. Compreende-se claramente que tendo cada tipo de
organização da sociedade o seu sistema específico de educação adaptada às suas
necessidades, essa transformação fundamental no sistema de produção terá de
ser imediatamente acompanhada duma transformação igualmente fundamental
na educação. Na economia domestica, no mundo do caseiro e do artesão, a
família, com a sua divisão natural do trabalho, constituía o elemento de base da
sociedade e da produção. As crianças iam crescendo e aprendendo os métodos
de trabalho, participando gradualmente nesse trabalho. Mais tarde, em regime
capitalista, a família perdeu a sua base econômica, uma vez que o trabalho
produtivo foi sendo progressivamente transferido para as fábricas. O trabalho
transformou-se num processo social com uma base teórica mais ampla; como
consequência, tornaram-se indispensáveis conhecimentos mais vastos e uma
educação mais intelectual. Abriram-se as escolas que conhecemos: massas de
crianças educadas em casa, em lares isolados, sem contato orgânico com o
trabalho, afluíram a essas escolas para nelas adquirirem os conhecimentos
abstratos necessários à sociedade, mas mais uma vez sem existir uma ligação
direta com o trabalho vivo. E, bem entendido, esta educação difere de classe
social para classe social. Aos filhos da burguesia, aos futuros administradores e
intelectuais, é garantida uma boa formação científica e teórica que lhes permita
dirigir e governar a sociedade. Aos filhos dos camponeses e dos operários, o
mínimo indispensável: a leitura, a escrita, o cálculo necessários ao seu trabalho,
e também a história e a religião para mantê-los obedientes e respeitosos para
com os seus senhores e dirigentes. Alguns teóricos, autores de manuais de
pedagogia, ignorando as bases capitalistas deste estado caduco que julgam
eterno, tentam em vão explicar e aplanar os conflitos originados nesta separação
entre o trabalho produtivo e a educação, na contradição entre o isolamento
familiar e o caráter social da produção.
No mundo novo da produção em regime de colaboração, estas contradições
desaparecem e é restaurada a harmonia entre a vida e o trabalho numa base
alargada a toda a sociedade. A juventude aprende os métodos de trabalho e
aquilo que constitui a base destes participando gradualmente no processo de
produção; não no isolamento da família, já que a tarefa de prover as
necessidades da vida é assumida pela comunidade; a família perde, para alem do
seu papel de unidade de produção, o de unidade de consumo. A vida
comunitária, que corresponde às tendências predominantes das próprias crianças,
assume um papel bem mais importante; abandonando os seus lares restritos, as
crianças passam a ter acesso ao ar livre da sociedade. A combinação híbrida
casa-escola cede o lugar a comunidades de crianças, controlando uma parte
importante das suas próprias vidas, sob a direção atenta de educadores adultos. A
educação, em lugar de ser um processo passivo em que se abordam
conhecimentos vindos de cima, transforma-se numa atividade essencialmente
pessoal, dirigida para o trabalho social e a ele ligada. Os sentimentos sociais
ainda vivos em toda a gente como herança dos tempos primitivos, mas
especialmente fortes nas crianças, poderão então expandir-se sem serem
reprimidos pelo egoísmo necessário a luta pela vida em regime capitalista.
As formas de educação são, portanto determinadas pela atividade da
comunidade e de cada um, e os seus conteúdos dependem da natureza do sistema
de produção para o qual ela fornece uma preparação. Ora, este sistema,
sobretudo durante o século passado, tem assentado cada vez mais na aplicação
da ciência à técnica. A ciência permitiu ao homem o domínio das forças da
natureza; um tal domínio tornou possível a revolução social e determina a base
da nova sociedade. Os produtores podem passar a ser senhores do seu trabalho,
da produção, na condição de dominarem esta ciência. Daqui que as novas
gerações devam ser ensinadas antes de tudo as ciências da natureza e as
respectivas aplicações. A ciência não será mais, como era em regime capitalista,
monopólio dum pequeno número de intelectuais, e deixará de haver massas sem
instrução, reduzidas a atividades subalternas. A ciência na sua totalidade estará
ao alcance de toda a gente. Em lugar da divisão entre trabalho unilateralmente
manual e trabalho unilateralmente intelectual, cada um especifico duma classe,
existirá para cada um uma união harmoniosa do trabalho manual e intelectual,
coisa que é igualmente indispensável para o ulterior desenvolvimento da
produtividade do trabalho, já que esta depende do progresso da ciência e da
técnica que formam a sua base. A criação de conhecimentos e a sua aplicação ao
trabalho deixarão de ser tarefa apenas duma minoria de intelectuais, para
passarem a estar a cargo das pessoas inteligentes de todo um povo, preparadas
através duma educação extremamente atenta. É de esperar que a um tal ritmo de
desenvolvimento da ciência e da técnica, o progresso tão louvado em regime:
capitalista venha a parecer um pálido começo.
Existe, em regime capitalista, uma diferença característica entre o trabalho dos
jovens e o dos adultos. À juventude compete aprender, aos adultos compete
trabalhar. É evidente que enquanto os operários continuarem a esforçar-se ao
serviço de outrem – com uma finalidade contraria ao seu próprio bem-estar a
satisfação – para produzirem um máximo de lucro para o capital, toda a
capacidade terá, logo que adquirida, que ser consumida até aos últimos limites
do tempo e da força. O tempo dum operário não pode ser desperdiçado a
aprender sempre coisas novas. Muito poucos têm a possibilidade ou a obrigação
de se irem instruindo regularmente durante a vida. Na nova sociedade esta
diferença desaparece. Por um lado, a educação durante a juventude consiste em
ir participando progressivamente, duma forma proporcional à idade, no trabalho
produtivo. Por outro, dado o incremento da produtividade e a ausência de
exploração, os adultos terão cada vez mais tempo disponível para atividades
intelectuais. Isto lhes permitirá conservarem-se ao corrente do rápido
desenvolvimento dos métodos de trabalho, o que, na realidade, lhes é necessário.
Só lhes é possível participar nas discussões e nas decisões se estiverem
capacitados para estudar os problemas técnicos que continuamente atraem e
estimulam a sua atenção. A grande expansão da sociedade através do
desenvolvimento técnico e científico, da segurança e da abundância, do domínio
sobre a natureza e sobre a vida, só poderá ser assegurado pelo aumento das
capacidades e dos conhecimentos de todos os associados. Confere à vida um
conteúdo novo, de atividade vibrante, eleva a existência transformando-a em
alegria consciente, a alegria duma participação ardente no progresso espiritual e
prático do novo mundo.
A estas ciências da natureza virão acrescentar-se as novas ciências da
sociedade inexistentes em regime capitalista. A característica específica do novo
sistema de produção é que o homem passa a dominar as forças sociais que
determinam as suas ideias e os seus impulsos. Este domínio de fato terá que
buscar a sua expressão num domínio teórico, no conhecimento dos fenômenos e
das forças determinantes da atuação e da vida humanas, do pensamento e da
sensibilidade. Nas épocas que nos precederam, quando a origem social destas
forças era desconhecida, em virtude da ignorância a respeito da sociedade, o seu
poder era atribuído ao caráter sobrenatural do espírito, a um misterioso poder do
pensamento, e as disciplinas correspondentes, as ditas humanidades, viram
atribuir-se-lhes o rótulo de «ciências do espírito» (ciências humanas): psicologia,
filosofia, ética, história, estética. Como acontece com todas as ciências, estavam
inicialmente cheias de tradições e de místicas primitivas; mas contrariamente às
ciências da natureza, a sua ascensão a um nível verdadeiramente científico foi
impedida pelo capitalismo. Era-lhes impossível encontrar um terreno sólido uma
vez que no mundo capitalista elas partiam do ser humano isolado, com o seu
espírito individual, e que, nessa época de individualismo, se desconhecia que o
homem é essencialmente um ser social, que todas as suas faculdades emanam da
sociedade e são por ela determinadas. Mas a partir do momento em que a
sociedade se revela aos olhos do homem como um organismo constituído por
seres humanos ligados entre si, e em que a mente humana é considerada como o
órgão principal das suas relações, tais ciências poderão se desenvolver como
autênticas ciências.
E a importância prática destas ciências para a nova comunidade não é menor
do que a das ciências da natureza. Elas estudam as forças que residem no
homem, que determinam as suas relações com os outros homens e com o mundo,
que inspiram as suas ações na vida social, e que se manifestam nos
acontecimentos históricos, passados e presentes. Sob a forma de paixões
poderosas e de tendências cegas, estas forças tiveram o seu papel nas grandes
lutas sociais, levando por vezes o homem a atuações vigorosas, mantendo-o
outras vezes numa submissão apática através de tradições igualmente cegas, e
permaneceram sempre como espontâneas, incontroladas, desconhecidas. A nova
ciência do homem e da sociedade, ao descobrir estas forças, torna o homem
capaz de controlá-las através de um conhecimento consciente. De forças
dominadoras sobre os seres humanos, tornam-se servidoras deles em função dos
objetivos claramente planejados.
Instruir a geração futura na consciência destas forças sociais e espirituais e
prepará-la para a orientação consciente delas, será uma das tarefas principais de
educação da nova sociedade. A juventude ficará assim apta a desenvolver todos
os dons de paixão e de vontade, de inteligência e de entusiasmo, e a utilizá-los
numa atividade eficaz. Trata-se simultaneamente de formação de caráter e de
transmissão de conhecimentos. Esta educação atenta, tanto teórica como prática,
da nova geração, voltada ao mesmo tempo para as ciências sociais e para a
consciência social, constituirá um elemento essencial do novo sistema de
produção. Só assim se poderá assegurar um progresso sem entraves da vida
social. E será também deste modo que o sistema de produção se irá
desenvolvendo e assumindo formas progressivamente melhores. Assim, através
do domínio teórico das ciências da natureza e da sociedade e da sua aplicação
prática ao trabalho e a vida, os trabalhadores farão da Terra a morada plena de
alegria duma humanidade livre.
Capitulo IX: O Sindicalismo
A tarefa primordial da classe operária é tomar em suas mãos a produção e
organizá-la. Para prosseguir a luta é, contudo, necessário ver clara e
distintamente o fim a atingir. Não resta senão o combate em si mesmo, isto é, a
conquista do poder sobre a produção é a principal e mais difícil parte do que há a
fazer. É no decurso desta luta que se criarão os Conselhos Operários.
Não podem prever-se exatamente as formas que, no futuro, tomará a luta dos
trabalhadores pela sua libertação. Essas formas dependerão das condições sociais
e evoluirão com o crescente poder da classe operária. É e será necessário
examinar de que modo esta batalha se desenrolou até ao presente e como
adaptou as suas ações às mudanças de circunstâncias. Não seremos capazes de
fazer face às necessidades do momento senão através dos ensinamentos, da
experiência daqueles que nos precederam e somente encarando-a de uma forma
crítica.
Em qualquer sociedade assente sobre a exploração duma classe trabalhadora
por uma classe dominante se trava uma luta permanente, cuja parada é a divisão
do produto total do trabalho, ou, noutros termos, o grau de exploração. Assim, a
Idade Média, como todos os séculos que se Ihe seguiram, está cheia de combates
incessantes e encarniçados entre os camponeses e os senhores da terra. Na
mesma época, pode ver-se a luta da classe burguesa, em ascensão, contra a
nobreza e a monarquia, pelo poder sobre a sociedade. É uma luta de classes, de
natureza diferente, associada ao crescimento de um novo sistema de produção,
proveniente do desenvolvimento da técnica, da indústria e do comércio. É uma
guerra entre os senhores da terra e os do capital, entre o sistema feudal em
declínio e o sistema capitalista em pleno vôo. Através duma série de convulsões
sociais, revoluções políticas e guerras, em Inglaterra, França e, em seguida,
noutros países, a classe capitalista conquistou o domínio completo da sociedade.
No regime capitalista, a classe operária deve travar contra o capital duas
formas de luta. Travar um combate perpétuo para atenuar a forte pressão da
exploração, para fazer aumentar os salários e acrescentar ou manter a sua parte
no produto total. Por outro lado deve com o aumento da sua força, conquistar o
domínio da sociedade para derrubar o capitalismo e instaurar um novo sistema
de produção.
Quando, pela primeira vez, no inicio da revolução industrial, em Inglaterra, se
introduziram máquinas de fiar e depois de tecer, os operários revoltados
quebraram-nas. Não eram propriamente operários no sentido atual do termo,
quer dizer, assalariados. Tratava-se de pequenos artesãos, até então
independentes, reduzidos agora à fome pela concorrência das máquinas,
produzindo a baixo preço, e que em vão experimentaram destruir a causa da sua
miséria. Em seguida, eles ou os seus filhos, tornaram-se os trabalhadores
assalariados, manobrando eles mesmos as máquinas, e a sua posição foi mudada.
O mesmo se passou com exércitos de camponeses que, durante todo o século 19,
período do desenvolvimento industrial, se amontoaram nas cidades, atraídos por
aquilo que lhes parecia bons salários. Na época moderna, são os descendentes
dos operários que povoam as fábricas e sê-lo-ão cada vez mais.
Para todos, a luta por melhores condições de trabalho é uma necessidade
imediata. Sob pressão da concorrência e para aumentar os lucros, os patrões
tentam baixar os salários e aumentar o mais possível os períodos de trabalho. Os
trabalhadores, impotentes, ameaçados pela fome, devem submeter-se em
silêncio. Depois a resistência explode de repente, sob a única forma possível: a
recusa de trabalhar, a greve. Na greve, os trabalhadores descobrem pela primeira
vez a sua força; na greve aparece o seu poder de luta. Da greve nasce a
associação de todos os trabalhadores duma fábrica, duma indústria, duma nação.
Da greve nasce a solidariedade, o sentimento de fraternidade entre camaradas de
trabalho o sentimento de união com toda a classe: é a primeira aurora do que
será, um dia, o sol da nova sociedade. A ajuda mútua, aparecendo primeiro sob a
forma de coletas espontâneas e benévolas, cedo toma a forma durável dum
sindicato.
O desenvolvimento dum sindicalismo sólido exige certas condições. A dura
existência em um mundo onde tudo é permitido aos exploradores, onde reinam
as proibições e o arbítrio policial, situação herdada em grande parte do período
pré-capitalista, deve ser primeiro suavizada, antes de se poderem edificar
construções sólidas. Os trabalhadores tiveram de lutar a maior parte do tempo
por si mesmos, para que as condições de desenvolvimento do sindicalismo
fossem garantidas. Na Inglaterra, foi a campanha revolucionária do cartismo; na
Alemanha, meio século mais tarde, a luta da social-democracia, que, impondo o
reconhecimento dos direitos sociais dos trabalhadores, lançaram as bases do
desenvolvimento dos sindicatos.
Nos nossos dias existem sólidas organizações, englobando trabalhadores de
um mesmo ramo industrial, num mesmo país, mantendo ligações com outros
setores da atividade e internacionalmente unidas aos sindicatos de outros países
do mundo. O pagamento regular de elevadas cotizações fornece os fundos
necessários para a manutenção dos grevistas quando se torna imperioso forçar os
capitalistas a conceder, contra sua vontade, condições mais decentes de trabalho
aos operários. Os camaradas mais capazes, por vezes vítimas do inimigo na
sequência de lutas passadas, tornam-se os permanentes, fazendo, nas
negociações com os investidores capitalistas, o papel de porta-voz dos operários,
independentes e conhecendo bem os problemas. Em consequência de uma greve
oportunamente desencadeada e sustentada com toda a força do Sindicato, em
consequência das negociações que se realizam, podem ser concluídos acordos,
assegurando salários mais elevados e uniformes, horários de trabalho mais
reduzidos, na medida em que a duração destes não esteja ainda fixada por lei.
Os trabalhadores já não são mais indivíduos impotentes, obrigados pela fome
a vender a sua força de trabalho não importa por que preço. Estão agora
protegidos pela força da sua própria solidariedade e cooperação, porque cada
sindicalizado não só dá uma parte do seu salário para os seus camaradas, como
está pronto a arriscar o seu próprio emprego, na defesa da organização e da
comunidade sindical. Assim, estabelece-se um certo equilíbrio entre a força
operária e a dos patrões. As condições de trabalho deixam de ser impostas pelos
interesses todo-poderosos dos capitalistas. Os sindicatos são, pouco a pouco,
reconhecidos como representantes dos interesses dos trabalhadores e, ainda que
a luta continue necessária, tornam-se uma forca que participa nas decisões. Não
por toda a parte, nem de um só golpe, nem em todos os ramos da indústria. Os
operários especializados são geralmente os primeiros a criar os seus sindicatos.
A massa dos operários não especializados, que povoam as grandes fábricas e
lutam contra os patrões mais poderosos, só mais tarde o consegue. Os seus
sindicatos nascem, sobretudo, no decorrer duma súbita explosão de grandes
lutas. Mas contra os monopólios, proprietários de empresas gigantescas, os
sindicatos têm poucas chances de sucesso; esses capitalistas todo-poderosos
querem ser os senhores absolutos, e a sua arrogância tolera somente o «sindicato
amarelo», quer dizer, às suas ordens.
Posta esta restrição de parte e supondo que o sindicalismo esteja plenamente
desenvolvido e controle toda a indústria, isso não significa que a exploração
esteja abolida e o capitalismo suprimido. São somente o arbítrio do capitalismo
isolado e os piores abusos de exploração que estão abolidos. E este estado de
coisas corresponde também ao interesse dos outros capitalistas – protege-os
contra toda a concorrência desleal - e ao interesse do capitalismo em geral. O
desenvolvimento do poder dos sindicatos permite uma normalização do
capitalismo, uma certa norma de exploração é universalmente aceite e
estabelecida. Uma norma para os salários, que corresponda às exigências vitais
mais modestas e tal que os trabalhadores, empurrados pela fome, não sejam
conduzidos à revolta, é necessária para que a produção não se faça aos
solavancos. Uma norma para os horários de trabalho, não esgotando de todo a
vitalidade da classe operária – ainda que as reduções de horários sejam
largamente compensadas pela aceleração da cadência e pela intensidade do
esforço – é necessária ao capitalismo em si mesmo; é preciso ter em reserva uma
classe operária utilizável pela explorarão futura. Foi a classe operária que, com
as suas lutas contra a mesquinhez e estreiteza de espírito da capacidade
capitalista, contribuiu para estabelecer as condições de um capitalismo normal.
Sem parar, deve bater-se para preservar este precário equilíbrio. Os sindicatos
são os instrumentos destas lutas, por isso preenchem uma função indispensável
no capitalismo. Alguns patrões menos espertos não compreendem isto, mas os
seus chefes políticos, mais avisados, sabem muito bem que os sindicatos são um
elemento essencial ao capitalismo, e que, sem esta força reguladora que são os
sindicatos operários, o poder capitalista não seria completo. Finalmente, se bem
que produzidos pelas lutas dos operários e mantidos vivos pelos seus esforços e
sacrifícios, os sindicatos tornaram-se órgãos da sociedade capitalista.
Mas com o desenvolvimento do capitalismo, as condições de exploração,
pouco a pouco, tornaram-se favoráveis aos operários. O grande capital cresce,
toma consciência da sua força e deseja ser sozinho o senhor. Os capitalistas
aprenderam também o valor da forca que dá a associação; organizam-se em
sindicatos patronais. Em lugar da igualdade de forças aparece uma nova forma
de superioridade do capital. As greves são contrariadas pelo «lock-out», que
esgota os fundos aos sindicatos. O dinheiro dos trabalhadores não pode rivalizar
com o dinheiro dos capitalistas. Nas negociações sobre salários ou condições de
trabalho, os sindicatos estão, mais do que nunca, em posição de inferioridade,
porque devem temer (ou tentar evitar) as grandes lutas que esgotem as reservas
e, por isso mesmo, põem em perigo a existência bem assente da organização e
dos seus funcionários permanentes. Nas negociações, os delegados têm muitas
vezes que aceitar uma degradação das condições de vida para evitar a luta. A
seus olhos, é inevitável s escusado será dizer, compreendem que as condições
mudaram e a força da sua organização na luta baixou relativamente.
Do ponto de vista dos trabalhadores, não é absolutamente evidente que se
deva aceitar, em silêncio, condições de trabalho e de vida mais duras; os
trabalhadores querem lutar. Aparece então uma contradição. Os funcionários
sindicais permanentes parecem possuir o bom-senso por todos. Sabem que os
sindicatos estão em posição de fraqueza e que a luta terminará na derrota. Mas
os trabalhadores sentem instintivamente que grandes forças permanecem
escondidas sob as massas; se ao menos soubessem como pô-las em movimento e
como servir-se delas! Compreendem bem que cedendo, agora e sempre, verão a
sua situação piorar e que esta degradação só pode ser evitada lutando. Surgem
então conflitos entre os filiados dos sindicatos e os seus permanentes. Os
sindicalizados protestam contra os novos níveis de salários, sempre favoráveis
aos patrões; os delegados defendem os acordos a que chegaram depois de longas
e difíceis negociações e tentam fazê-los ratificar. Assim, devem por vezes servir
de porta-voz dos interesses do capital contra os dos operários. E, porque são os
dirigentes influentes dos sindicatos e põem todo o peso do seu poder e
autoridade dum lado, bem determinado, da balança, pode dizer-se que, nas suas
mãos, os sindicatos se transformam em órgãos do capital.
O crescimento do capital, o aumento do número de trabalhadores, a
necessidade permanente para eles de se associarem, transformaram os sindicatos
em organizações gigantes, que exigem um estado-maior, cada vez mais
importante, de funcionários e dirigentes. Cria-se uma burocracia que executa o
trabalho administrativo; torna-se num poder que reina sobre os sindicalizados,
porque todos os elementos de poder estão nas mãos de burocratas sindicais.
Estes burocratas sindicais, especialistas, preparam e organizam todas as
atividades; ocupam-se das finanças e dispõem do dinheiro em todas as ocasiões;
publicam a imprensa sindical, graças à qual podem difundir e impor as suas
próprias ideias e pontos de vista pessoais aos restantes filiados. Instala-se uma
democracia formal. Reunidos os membros dos sindicatos nas assembleias, os
delegados eleitos pelos congressos devem tomar as decisões, exatamente como o
povo decide da política por intermédio do parlamento e do estado. Mas as
mesmas razões que fazem do parlamento e do governo os senhores do povo,
encontram-se nestes parlamentos do trabalho. A burocracia dos especialistas
oficiais, dominando todas as coisas, transforma-se numa espécie de governo
sindical, reinando sobre os filiados açambarcados pelo seu trabalho e problemas
quotidianos. Já não é a solidariedade, essa virtude proletária por excelência, mas
a disciplina, a obediência às decisões que lhes é pedida. Surgem então
divergências de pontos de vista e de opiniões sobre diversas questões. Crescem
do mesmo modo que as diferenças de condições de vida: insegurança de
emprego para os trabalhadores sempre ameaçados pelas depressões e pelo
desemprego, contrastando com a segurança necessária aos permanentes para
uma boa gestão dos assuntos do sindicato.
É tarefa e função do sindicalismo, ao unificar as lutas, fazer sair os
trabalhadores da sua miséria e angustia e permitir-lhes conquistar e fazer
reconhecer a sua condição de cidadãos e direitos a ela inerentes na sociedade
capitalista. Deve defender os operários contra a exploração cada vez maior do
grande capital. Mas hoje, o grande capital transforma-se cada vez mais em poder
monopolista de bancos, de trustes industriais, e assim se reforça, daqui resulta
que esta função primária do sindicalismo desapareceu. O seu poder tornou-se
insignificante em relação ao formidável poder do capital. Os sindicatos são hoje
organizações gigantes, cujo lugar é reconhecido pela sociedade. A sua posição
está regulamentada pela lei; e acordos que façam têm força legal para toda a
indústria. Os seus chefes aspiram fazer parte do poder que determina as
condições de trabalho. Formam um aparelho, graças ao qual o capitalismo
monopolista impõe as suas condições à classe operária inteira. Para o capital,
doravante todo-poderoso, é mais vantajoso disfarçar a sua hegemonia sob formas
democráticas e Constitucionais, que mostrá-la sob a forma direta e brutal de
ditadura. As condições de trabalho que lhe parecem convir aos operários serão
respeitadas mais facilmente sob a forma de acordos concluídos com os
sindicatos, do que sob a forma de «diktat» imposto com arrogância. Para já,
porque deixa aos operários a ilusão de serem senhores dos seus próprios
interesses; depois, porque tudo o que liga os operários aos sindicatos (os
organismos que eles próprios criaram, pelos quais fizeram tantos sacrifícios,
travaram tantas lutas, dispensaram tanto entusiasmo), quer dizer, tudo o que
torna os sindicatos queridos ao seu coração, é justamente o que torna os
trabalhadores dóceis à vontade dos seus senhores. Assim, as condições que
vigoram hoje fizeram que, mais que nunca, os sindicatos se transformassem em
órgãos de dominação do capitalismo monopolista sobre a classe operária.
Capitulo X: A Ação Direta
Os sindicatos perdem então a sua importância na luta dos operários contra o
capital. Mas a luta, em si mesma, não pode cessar. Com o grande capital, as
tendências para a crise acentuam-se e a resistência operária tem que desenvolver-
se também. As crises econômicas fazem cada vez mais estragos e destroem o
que poderia parecer um progresso assegurado. A exploração intensifica-se na
esperança de retardar a baixa dos níveis de lucro dum capital que cresce
rapidamente. Os trabalhadores terão de resistir sempre. Mas contra o poder
grandemente aumentado do capital, os velhos métodos de luta tornaram-se
ineficazes. Novos processos são necessários e logo aparecem. Brotam
espontaneamente das greves selvagens (ilegais), na ação direta.
A ação direta é a ação dos trabalhadores, aquela que não passa pelo
intermediário – os burocratas sindicais. Uma greve diz-se «selvagem» (ilegal ou
não oficial) por oposição às greves desencadeadas pelos sindicatos respeitando
os regulamentos e as leis. Os trabalhadores sabem que a greve legal carece de
efeito; os delegados são forçados a desencadeá-la contra sua vontade e sem que a
tenham previsto, talvez pensando intimamente que uma derrota seria lição
salutar para os presunçosos operários e sempre tentam pôr-lhe fim o mais
rapidamente possível. É por isso que a exasperação explode no meio de grupos,
maiores ou menores, de operários e toma a forma de greve selvagem, desde que
a opressão se torne muito forte ou as negociações se arrastem sem resultado.
O combate da classe operária contra o capital é impossível sem organização.
Esta nasce espontaneamente, imediatamente; não sob a forma de um novo
sindicato, é precise dizê-lo, com direção eleita e regras escritas, sob a forma de
parágrafos sucedendo-se em boa ordem. Por vezes acontece assim: os
trabalhadores, atribuindo a ineficácia de luta aos defeitos pessoais dos velhos
chefes, cheios de furor contra os sindicatos tradicionais, fundam um novo
sindicato, à cabeça do qual põem os homens mais capazes e enérgicos. E, com
efeito, ao princípio as lutas endurecem, encarniçam-se. Mas com o tempo, ao
novo sindicato, se continua pequeno, falta-lhe força, qualquer que seja, de resto,
o seu ativismo; se, pelo contrário cresce, a necessidade faz-lhe adquirir as
mesmas características dos sindicatos tradicionais. Em consequência das
experiências deste tipo, os trabalhadores acabarão por escolher outra via: manter
inteiramente nas suas mãos a direção da sua própria luta.
Que se pretende dizer com: «manter inteiramente nas suas mãos a direção da
sua própria luta» (ou, se preferirmos, dirigir eles próprios os seus assuntos)?
Deve entender-se que toda a iniciativa e decisão emanam dos próprios
trabalhadores. Mesmo existindo um comitê de greve – indispensável quase
sempre, pois os trabalhadores não podem estar permanentemente reunidos – tudo
será feito pelos grevistas. Permanecem ligados, repartindo entre si as tarefas,
tomam as medidas que se impõem e decidem diretamente todas as ações a
efetuar. A decisão e a ação, ambas coletivas, formam um todo.
A primeira tarefa a executar, a mais importante, é fazer propaganda, numa
tentativa de estender a greve. A pressão sobre o capital deve intensificar-se. Em
face do gigantesco poder do capital, não somente os operários, tomados
individualmente, são impotentes, mas também os grupos de trabalhadores que
permaneçam isolados. A única força que está à altura de lutar contra o capital é a
que resulta da unificação, firme e resoluta, de toda a classe operária. Os patrões
sabem-no ou sentem-no muito bem e a única coisa que os faz ceder e fazer
concessões é o medo de que a greve se torne geral. As hipóteses de sucesso são
tanto maiores quanto a vontade dos grevistas seja claramente expressa e o
número dos que entram em luta é mais importante.
Tal extensão produz-se porque não se trata da greve de um grupo que está
atrasado, vivendo em condições piores que os outros operários tentando elevar-
se até ao nível geral. Nas circunstâncias presentes e novas, o descontentamento é
geral; todos os trabalhadores se sentem acabrunhados pela dominação do capital,
por toda a parte se acumulam motivos para uma exploração social. Não é por
terceiros, mas por si mesmos que os trabalhadores entram em luta. Se se
sentissem isolados, temendo perder os seus empregos, ignorando as reações dos
camaradas, na ausência total de unidade, recuariam perante a ação. Mas, desde
que entram na batalha, transformam-se; o medo, o egoísmo são relegados para
segundo plano e novas forças jorram – o sentimento comunitário e a própria
comunidade, a solidariedade e a abnegação – que despertam a coragem e
reforçam a determinação. E elas são contagiosas, o exemplo da luta subleva
outros trabalhadores, que sentem nascer em si próprios as mesmas forças, a
mesma confiança em si e nos outros. Assim, a greve selvagem, qual fogo numa
pradaria, alcança outras empresas e engloba massas cada vez mais numerosas e
importantes.
Tal resultado não pode ser obra de um pequeno número de chefes, de
funcionários sindicais ou de novos porta-vozes, que se tivessem imposto por si
mesmos, se bem que, sem dúvida alguma, a ousadia de alguns intrépidos
camaradas possa impulsionar fortemente a ação. É necessário que seja a vontade
e o trabalho de todos, o produto da iniciativa coletiva. Os trabalhadores não
devem somente agir, é preciso que imaginem, reflitam e decidam por si próprios.
Não podem deixar a decisão e responsabilidade a um organismo, um sindicato,
que se encarregaria deles. São inteiramente responsáveis pela sua luta, sucesso
ou derrota dependem deles somente. Eram homens passivos, tornam-se homens
ativos, tomando com decisão o seu próprio destino nas mãos. Eram indivíduos
isolados, importando-se apenas consigo mesmos, são agora um grupo unido,
fortemente coeso.
As greves espontâneas apresentam ainda outro aspeto importante: a divisão
dos trabalhadores em sindicatos distintos é anulada. No mundo sindical as
tradições herdadas da época do pequeno capitalismo jogam um importante papel,
separam os trabalhadores em corporações muitas vezes rivais, invejosas, e
disputando-se sem cessar. Em alguns países, as diferenças políticas e religiosas
são também barreiras que conduzem à criação de sindicatos liberais, Católicos,
socialistas ou outros, bem individualizados uns dos outros. Na oficina, os
membros dos diversos sindicatos encontram-se ombro a ombro. Mas, mesmo no
decorrer duma greve permanecem muitas vezes isolados, evitando deixar-se
contaminar demasiado por ideias unitárias, deixando o trabalho de fazer acordos,
com vista à ação ou às negociações, apenas para as direções sindicais e os
delegados. A partir de uma ação direta, estas diferenças de dependência perdem
totalmente o seu objetivo e interesse. Porque durante uma luta espontânea a
unidade é uma necessidade vital. E esta unidade existe, pois se assim não fosse
não existiria a luta. Todos os que trabalham em conjunto numa fábrica, que estão
na mesma situação, submetidos à mesma exploração, lutam contra o mesmo
patrão e reencontram-se em conjunto na ação comum. A comunidade real é a
fábrica, é o pessoal da mesma empresa, constituem uma comunidade natural que
efetua um trabalho em comum, cujos membros estão ligados a um destino e
partilham interesses comuns. As antigas divergências, resultando de
dependências sindicais ou religiosas, apagam-se. Espectros do passado, estão
quase esquecidos na realidade viva e nova que constitui a fraternidade na luta
coletiva. A consciência vivificante da unidade nova reforça o entusiasmo e o
sentimento de força.
Assim nas greves selvagens aparecem algumas características da forma das
lutas do futuro: primeiro que tudo, a ação por si mesmo e a iniciativa pessoal,
que permitem conservar nas mãos toda a atividade e decisão; em seguida a
unidade, que se ri das antigas divisões e se realiza a partir do agrupamento
natural que é a empresa. Estas formas surgem não de planos pré-concebidos, mas
espontaneamente. Irresistivelmente, impostas pela força superior do capital,
contra a qual as organizações tradicionais já não podem seriamente lutar. Mas
isto não significa só por si que o vento tenha mudado, que os trabalhadores vão
ganhar de certeza. Porque as greves selvagens conduzem a maior parte das vezes
à derrota, continuam a ser muito limitadas. Só em alguns casos favoráveis
conseguem evitar a degradação das condições de trabalho. A sua importância
reside no fato de mostrarem um vivo espírito de luta, que não pode ser
reprimido. Sempre essa vontade de se afirmar como homem brota de novo dos
instintos profundos de auto-conservação, dos deveres para com a família e os
camaradas. Assim se reencontram e desenvolvem a confiança em si mesmo e a
consciência de classe. Estas greves selvagens são anunciadoras das grandes lutas
do futuro, que, provocadas pelas necessidades sociais importantes, por uma
repressão cada vez mais pesada e uma miséria mais profunda, as massas serão
forcadas a travar.
Quando as greves selvagens rebentam em larga escala, envolvendo grandes
massas, ramos inteiros da indústria, cidades ou regiões, a organização tem de
tomar novas formas. É então impossível reunir numa única assembleia para
deliberar todos os grevistas. Todavia, mais que nunca, a compreensão mútua é
condição da ação comum. Formam-se comitês de greve que agrupam os
delegados de todo o pessoal e que discutem permanentemente a situação. Claro
que os comitês de greve nada têm de comum com os secretariados sindicais
compostos por funcionários. Antes possuem já certas características dos
conselhos operários. Nascem da luta, da necessidade de lhe dar unidade, direção
e fim. Mas não agrupam líderes no sentido ordinário do termo, pois não têm
poder direto algum. Os delegados, que de resto não são sempre as mesmas
pessoas nas diferentes sessões, vêm para exprimir a vontade e opinião dos
grupos que os escolheram. Porque esses grupos não apoiam senão uma ação em
que a sua vontade se pode manifestar. Por consequência, os delegados não são
simples mensageiros dos grupos mandatários; têm um papel preponderante na
discussão, encarnam as convicções dominantes. Nas reuniões dos comitês, as
opiniões são discutidas, examinadas à luz das circunstâncias; os resultados das
deliberações e as resoluções são retransmitidos pelos delegados aos grupos de
grevistas reunidos. É por seu intermédio que o pessoal da fábrica, ele mesmo,
pode tomar parte nas deliberações e decisões. É assim que, no caso de
importantes massas de grevistas, a unidade de ação está assegurada.
Bem entendido, esta unidade de ação não significa que cada grupo se curve
sem pestanejar às decisões do comitê de greve. Nenhum regulamento escrito
confere tal poder de decisão ao comitê. A unidade na luta não é um regulamento
determinando uma utilização judiciosa de competências, mas uma resposta
espontânea às exigências da situação, numa atmosfera de ação apaixonada. Os
trabalhadores decidem por si mesmos, não em virtude de um direito que lhes
fosse conferido por regulamentos por eles aceites, mas simplesmente porque
decidem verdadeiramente dos seus atos. Pode mesmo acontecer que os
argumentos apresentados por um grupo não consigam convencer os outros, mas
que isso acabe por conduzir finalmente à decisão, pela força da sua ação e do seu
exemplo. A autodeterminação dos trabalhadores em luta não é uma dessas
exigências deduzida do estudo teórico, a partir de discussões sobre a necessidade
e possibilidade da sua utilização, é simplesmente a constatação de um fato
decorrendo da prática. Muitas vezes tem sucedido no decurso de grandes
movimentos sociais – e sem dúvida alguma voltará a suceder – que as ações
efetuadas não correspondam às decisões tomadas. Por vezes os comitês centrais
lançam um apelo à greve geral e só são seguidos aqui e além por pequenos
grupos. Algures, os comitês pesam tudo minuciosamente, sem se aventurarem a
tomar uma decisão, e os trabalhadores desencadeiam uma luta de massas. É
possível também que os mesmos trabalhadores que estavam resolvidos a fazer
greve com todo o entusiasmo, recuem no momento de agir, ou, inversamente,
que uma prudente hesitação se reflita nas decisões e que de repente, por ação de
forças interiores ocultas, uma greve não decidida estale irreversivelmente.
Enquanto os trabalhadores nada têm de comum com os secretariados sindicais
compostos por funcionários. Antes possuem já certas características dos
conselhos operários. Nascem da luta, da necessidade de lhe dar unidade, direção
e fim. Mas não agrupam líderes no sentido ordinário do termo, não têm poder
direto algum. Os delegados, que de resto não são sempre as mesmas pessoas nas
diferentes sessões, vêm para exprimir a vontade e opinião dos grupos que os
escolheram. Porque esses grupos não apoiam senão uma ação em que a sua
vontade se pode manifestar. Por consequência, os delegados não são simples
mensageiros dos grupos mandatários; têm um papel preponderante na discussão,
encarnam as convicções dominantes. Nas reuniões dos comitês, as opiniões são
discutidas, examinadas à luz das circunstâncias; os resultados das deliberações e
as resoluções são retransmitidos pelos delegados aos grupos de grevistas
reunidos. É por seu intermédio que o pessoal da fábrica, ele mesmo, pode tomar
parte nas deliberações e decisões. É assim que, no caso de importantes massas de
grevistas, a unidade de ação está assegurada.
Bem entendido, esta unidade de ação não significa que cada grupo se curve
sem pestanejar às decisões do comitê de greve. Nenhum regulamento escrito
confere tal poder de decisão ao comitê. A unidade na luta não é um regulamento
determinando uma utilização judiciosa de competências, mas uma resposta
espontânea às exigências da situação, numa atmosfera de ação apaixonada. Os
trabalhadores decidem por si mesmos, não em virtude de um direito que lhes
fosse conferido por regulamentos por eles aceites, mas simplesmente porque
decidem verdadeiramente os seus atos. Pode mesmo acontecer que os
argumentos apresentados por um grupo não consigam convencer os outros, mas
que isso acabe por conduzir finalmente à decisão, pela força da sua ação e do seu
exemplo. A autodeterminação dos trabalhadores em luta não é uma dessas
exigências deduzida do estudo teórico, a partir de discussões sobre a necessidade
e possibilidade da sua utilização, é simplesmente a constatação de um fato
decorrendo da prática. Muitas vezes tem sucedido no decurso de grandes
movimentos sociais – e sem dúvida alguma voltará a suceder – que as ações
efetuadas não correspondam às decisões tomadas. Por vezes os comitês centrais
lançam um apelo à greve geral e só são seguidos aqui e além por pequenos
grupos. Algures, os comitês pesam tudo minuciosamente, sem se aventurarem a
tomar uma decisão, e os trabalhadores desencadeiam uma luta de massas. É
possível também que os mesmos trabalhadores que estavam resolvidos a fazer
greve com todo o entusiasmo, recuem no momento de agir, ou, inversamente,
que uma prudente hesitação se reflita nas decisões e que de repente, por ação de
forças interiores ocultas, uma greve não decidida estale irreversivelmente.
Enquanto os trabalhadores, na sua maneira consciente de pensar, utilizam velhas
palavras de ordem e velhas teorias que se exprimem nos seus argumentos e
opiniões, dão provas, no momento da decisão de que depende a sua felicidade ou
infelicidade, duma intuição profunda, duma compreensão instintiva das
condições reais, que finalmente determina os seus atos. Isso não significa que
essas intuições sejam sempre um guia seguro; as pessoas podem ser induzidas
em erro pela impressão que têm das condições exteriores. Mas são essas
intuições que conduzem à decisão. Não se podem substituir por uma orientação
exterior, por anjos da guarda, por mais hábeis que fossem, que dirigiriam os
grevistas. É necessário que estes tirem da sua própria experiência de luta, dos
seus sucessos como dos fracassos, dos esforços que fizeram, o ensinamento que
lhes permita adquirir a capacidade necessária à defesa dos seus próprios
problemas.
Assim, as duas formas de organização e de luta opõem-se. A antiga, a dos
sindicatos e greves regulamentadas; a nova, a das greves espontâneas e dos
conselhos operários. Isto não significa que a primeira seja um dia, simplesmente,
substituída pela segunda. Formas intermédias poderão imaginar-se. Estas
constituiriam tentativas de corrigir os males e fraquezas do sindicalismo,
salvaguardando os seus bons princípios; por exemplo, atenuar o dirigismo de
uma burocracia permanente, evitar aprofundar o fosso criado pela estreiteza de
vistas e interesses «de capelinha», preservar e utilizar a experiência de lutas
passadas. Isto poderia fazer-se reagrupando, depois duma greve, o núcleo dos
melhores militantes num único sindicato. Em qualquer lado onde uma greve
rebentasse espontaneamente, esse sindicato estaria presente com os seus
organizadores, e propagandistas experientes. Assistiriam as massas inexperientes
com o seu conselho, instruí-las-iam, defendê-las-iam e organizá-las-iam. Deste
modo, cada luta marcaria um progresso na organização, mas no sentido do
desenvolvimento da unidade de classe.
O grande sindicato americano IWW é um exemplo de tal organização. Criado
nos fins do último século, este sindicato, que se opunha à AFL, sindicato
conservador dos operários especializados com salários elevados, corresponde às
condições particulares dos EUA. Em parte resultado de duras batalhas travadas
por mineiros e lenhadores, pioneiros independentes que partiram à conquista das
regiões selvagens do faroeste, contra o grande capital que tinha monopolizado ou
saqueado as riquezas das florestas e dos solos, era também o resultado das
greves da fome efetuadas por massas de emigrantes miseráveis, originários da
Europa de Leste e do Sul, amontoados e explorados nas minas de carvão, nas
fábricas e cidades do Este dos Estados Unidos, desprezados e abandonados pelos
sindicatos tradicionais. Os I. W. W. forneceram a esses trabalhadores chefes e
agitadores experimentados, que lhes mostraram como lutar contra o terrorismo
da polícia, que os defenderam perante a opinião pública e os tribunais, que lhes
deram uma consciência mais ampla das sociedades do capitalismo e da luta de
classes. Nessas lutas gigantescas, dezenas de milhar de novos membros aderiram
aos IWW.. Hoje mais não resta que um punhado de militantes. Esse «grande
sindicato único» (one big union) estava adaptado ao crescimento selvagem do
capitalismo americano, na época em que este construía o seu poder, esmagando
massas formadas de pioneiros individuais.
Formas similares de luta e organização poderão aparecer, aqui ou além, e
espalhar-se quando, no decurso de grandes greves, os trabalhadores despertarem
sem terem ainda confiança suficiente para tomarem em mãos os seus próprios
assuntos. Mas isso não passará duma forma transitória. Com efeito, existe uma
diferença fundamental entre as condições de luta futura na grande indústria e as
da América de outrora. Ontem era a ascensão do capitalismo, amanhã será o seu
declínio. Ontem, tinha de contar-se com a independência feroz de pioneiros ou o
egoísmo primitivo de emigrantes à procura de meios de existência, quer dizer,
com a expressão de um Individualismo pequeno-burguês que ia ser esmagado
sob o jugo da exploração capitalista. Amanhã, as massas habituadas à disciplina
durante toda a vida, pelas máquinas e pelo capital, estreitamente ligadas ao
aparelho produtivo, técnica e mentalmente, organizarão a utilização deste
aparelho em novas bases: as da colaboração. Os trabalhadores tornaram-se
proletários completos, em quem toda a sobrevivência de individualismo
pequeno-burguês foi apagada há muito tempo pelo hábito de trabalho em
comum. As forças neles escondidas, que são a solidariedade e a dedicação,
esperam somente por grandes lutas, para se transformarem em princípios
orientadores da vida. Então, mesmo as camadas mais oprimidas da classe
operária, aquelas que só com hesitação se juntam aos camaradas, quererão seguir
o seu exemplo e sentirão crescer nelas as novas forças comunitárias.
Compreenderão então que a luta pela liberdade não só requer a sua adesão, mas
também exige que desenvolvam a sua atividade própria e a confiança em si
mesmos. Ultrapassando assim as formas intermediárias de autodeterminação
parcial, o progresso tomará definitivamente o caminho que leva à organização
em conselhos.
Capitulo XI: A Ocupação de Fábrica
Com as novas condições impostas pelo capitalismo, uma nova forma de luta
por melhores condições de trabalho apareceu: a ocupação da fábrica, geralmente
chamada greve de ocupação, com suspensão do trabalho, mas permanecendo os
trabalhadores no local. Não foi inventada por teóricos, surgiu espontaneamente
de necessidades práticas: a teoria mais não faz que explicar depois as suas causas
e consequências. Durante a crise mundial de 1930, o desemprego era tão
generalizado e persistente que se desenvolveu uma espécie de antagonismo de
classe entre o pequeno número de privilegiados que trabalhavam e a massa dos
sem trabalho. Toda a greve normal contra a redução dos salários se tornara
impossível, porque as fábricas, uma vez evacuadas pelos grevistas, eram
imediatamente invadidas pela massa daqueles que no exterior esperavam
trabalho. Assim, a recusa de trabalhar em condições piores trouxe a obrigação de
se soldar ao local de trabalho, ocupando a fábrica.
Tendo surgido assim de circunstâncias particulares, a greve de ocupação
revelou, contudo algumas características que lhe valeram ser considerada em
seguida como expressão duma forma de luta que permitia ir bastante mais longe.
Exprime a formação de uma unidade mais sólida. Na greve tradicional, a
comunidade dos trabalhadores destrói-se ao deixar a fábrica. Dispersos pelas
ruas ou nas suas casas, afogados no meio de outras pessoas, são indivíduos
isolados. Para discutir ou tomar decisões, necessitam reunir-se em salas de
reuniões, nas ruas ou praças públicas. Muitas vezes a polícia e as autoridades
tentam dificultar ou mesmo proibir essas reuniões, mas os trabalhadores
defendem com energia esse direito, porque no seu pensamento batem-se com os
meios legais por objetivos legítimos. E por outro lado a legalidade da prática
sindical é geralmente reconhecida pela opinião pública.
Mas quando essa legalidade não é reconhecida, quando o poder sempre
crescente do grande capital sobre o Estado contesta o emprego de salas ou praças
publicas para tais assembleias, os trabalhadores, se querem lutar, têm de afirmar
os seus direitos, tomando-as. Na América, cada greve era regularmente
acompanhada de tumultos contínuos com a polícia, para o emprego das ruas e
salas como locais de reunião. As greves de ocupação libertaram os trabalhadores
desta necessidade, porque têm agora o direito de se reunir no local adequado: a
fábrica. Ao mesmo tempo, a greve torna-se verdadeiramente eficaz, porque é
impossível aos furadores de greves tomarem o seu lugar.
Naturalmente isto não se consegue sem novos e duros combates. Os
capitalistas, proprietários das fábricas, consideram a ocupação pelos grevistas
como uma violação da sua propriedade; apoiando-se neste argumento jurídico,
apelam para a polícia desalojar os trabalhadores. Com efeito, do ponto de vista
estritamente jurídico, a ocupação de fábrica está em conflito com o direito
formal, como toda a greve está em conflito com esse direito. De fato, os patrões
fazem regularmente apelo a esse direito formal. Acusam os trabalhadores de
romper o contrato de trabalho, o que lhes dá, dizem eles, o direito de substituir
os grevistas por outros operários. Contudo e contra esta lógica jurídica, as greves
continuaram, desenvolveram-se mesmo, porque eram uma forma de luta
necessária.
O direito formal, de fato, não representa a realidade interna do capitalismo,
mas tão somente as suas formas exteriores, às quais se agarram a burguesia e o
espírito jurídico. O capitalismo, na verdade, não é um mundo de indivíduos
assinando contratos em plena igualdade, como nos querem fazer crer, é antes um
mundo de classes em luta. Quando a força dos trabalhadores era demasiado
fraca, as concepções burguesas do direito formal eram importantes, os grevistas,
considerados como tendo rompido o contrato de trabalho, eram, por
consequência, despedidos e substituídos por outros. Mas nos locais onde a luta
sindical conquistara o direito de vida, uma nova concepção jurídica mais justa
apareceu: uma greve não é uma ruptura, uma cessação, mas uma suspensão
temporária do contrato, com o objetivo de regular um conflito sobre condições
de trabalho. Teoricamente os juristas podem não aceitar este ponto de vista, mas
a sociedade o faz praticamente.
Deste modo, a ocupação de fábrica afirmou-se como um método de luta, por
toda a parte onde era necessária e os trabalhadores capazes de resistir. Os
capitalistas e juristas bem podiam titubear a propósito de violação do direito de
propriedade, mas os trabalhadores continuavam a pensar que não se tratava de
atacar esse direito, mas somente suspender-lhe temporariamente os efeitos. A
ocupação de fábrica não é uma expropriação. É somente para o capitalista, uma
suspensão momentânea do direito de dispor da fábrica. Depois de resolvida a
disputa, torna a ser o senhor e indiscutível proprietário.
Mas a ocupação da fábrica é ainda qualquer coisa mais. Como fulgurante flash
que iluminasse o horizonte, fez surgir uma visão dum desenvolvimento futuro.
Pela ocupação, os trabalhadores inconscientemente demonstram que a sua luta
entrou numa nova fase. Aqui se afirma os seus sólidos laços de interesse, sob a
forma duma organização no seio da fábrica e ao mesmo tempo essa unidade
natural, que não pode dissolver-se em individualidades distintas. Aqui os
trabalhadores tomam consciência das suas apertadas ligações com a fábrica. Para
eles não é apenas um edifício pertencendo a alguém aonde vêm trabalhar para
seu único proveito, sujeitos inteiramente à sua vontade até que os despeça. Para
eles, pelo contrário, a fábrica é um aparelho produtivo que fazem andar, um
órgão que só se torna parte viva da sociedade através do seu trabalho. Nada do
que lhe diga respeito lhes é estranho, estão lá como em sua casa, bem mais que
os proprietários nos termos da lei, os acionistas que nem sequer sabem onde ela
fica. Na fábrica tomam consciência do conteúdo da sua vida, do seu trabalho
produtivo, da sua comunidade de trabalho, dessa coletividade que transforma a
fábrica num organismo vivo, num elemento do conjunto social. Através da
ocupação aparece o sentimento, ainda vago, de que devem ser inteiramente os
senhores da produção, que devem expulsar os intrusos: os capitalistas que só dão
ordens, que fazem mau uso das riquezas da humanidade, esbanjando-as e
devastando a Terra. E na difícil luta que será necessária travar para eliminá-los,
às fábricas caberá um papel essencial, primeiramente como unidades de base da
organização comum, mas talvez também como praças fortes, como pontes de
apoio, mesmo até como objetivos estratégicos das lutas, Por oposição a estes
laços naturais que unem os trabalhadores às fábricas, o reino do capital aparece
como um domínio artificial, imposto do exterior, sem dúvida em plena força no
momento presente, mas como que suspenso no ar, enquanto que a força dos
trabalhadores, crescendo sem cessar, está firmemente enraizada na terra. Assim,
nas ocupações das fábricas desenha-se esse futuro que: repousa na consciência
mais clara de que as fábricas pertencem aos operários, formando um conjunto
harmonioso, e que a luta será levada até ao fim nas e pelas fábricas.
Capitulo XII: As Greves Políticas
Todas as grandes greves operárias do século passado tiveram outros motivos
além de salários e melhores condições de trabalho. Ao lado das chamadas greves
econômicas, estalaram as greves políticas. O seu objetivo era obter ou impedir
uma medida política. Não eram dirigidas contra os patrões, mas contra o governo
do Estado, para levá-lo a conceder mais direitos políticos aos trabalhadores ou
dissuadi-los de enveredar por uma via que lhes seria prejudicial. Assim podia
mesmo acontecer que os patrões estivessem de acordo com esses objetivos e
favorecessem a greve.
No capitalismo é necessário reconhecer à classe operária uma certa igualdade
social e um certo número de direitos políticos. A produção industrial moderna
assenta sobre técnicas complexas que advêm dum saber altamente desenvolvido;
exige por isso dos trabalhadores uma colaboração pessoal atenta e o seu acordo
para porem em ação as suas capacidades. Não se Ihes pode pedir, como no caso
dos coolies, ou dos escravos, que vão até ao esgotamento das suas forças
utilizando a coação física, o chicote ou a violência. A resposta seria igualmente
dura: a sabotagem das máquinas. A coação deve ser interiorizada, utilizar meios
de pressão moral, fazendo apelo à responsabilidade individual. Os trabalhadores
não devem sentir-se escravos impotentes e irritados, devem possuir meios para
se oporem aos males que se tenta infligir-lhes. Devem sentir-se livres – livres
para venderem a sua força de trabalho – e que vão até ao esgotamento das suas
forças porque são eles – formalmente e na aparência – que determinam a sua
própria sorte na competição geral. Se se quer que a classe operária continue a
existir, é necessário reconhecer-lhe, não somente a liberdade pessoal e jurídica
proclamada pelo direito burguês, mas também os direitos e liberdades
particulares: direito de associação, direito de reunião, direito sindical, liberdade
de expressão, liberdade de imprensa. E todos esses direitos políticos devem ser
protegidos pelo sufrágio universal: os trabalhadores devem poder exercer
influência sobre o parlamento e sobre a fabricação das leis.
O capitalismo começou por recusar estes direitos. Foi ajudado pelo
despotismo herdado do passado e pelo atraso mental dos governantes no poder.
Começou por tentar transformar os trabalhados em vítimas impotentes da
exploração. Somente pouco a pouco, na sequência de lutas ferozes contra essa
opressão desumana, alguns direitos foram arrancados. Nas suas origens, o
capitalismo temia a hostilidade das classes inferiores; artesãos empobrecidos
pela concorrência das máquinas, operários reduzidos à fome pelos seus baixos
salários. O direito de voto era reservado estritamente às classes ricas. Mais tarde
quando o capitalismo estava solidamente instalado, quando os lucros foram
suficientes e o domínio estava assegurado, as restrições ao direito de voto
desapareceram progressivamente. Mas foi somente sob coação de uma forte
pressão dos trabalhadores e muitas vezes depois de duros combates. As batalhas
pela democracia são, no século 19, o essencial da política interna dos países
onde o capitalismo estava instalado. E começou pela Inglaterra.
Em Inglaterra, o sufrágio universal era uma das exigências principais da carta
apresentada pelos trabalhadores ingleses do «movimento cartista». Foi o
primeiro e mais glorioso período de luta da classe operária inglesa. A agitação
que então se desenvolveu jogou um papel importante para forçar os proprietários
da terra, detentores do poder, a ceder à pressão do movimento pelas reformas
que, simultaneamente, lançavam os capitalistas industriais, cuja forca estava em
desenvolvimento. O Reform Act de 1832 reconheceu aos investidores industriais
uma parte do poder político, mas os operários regressaram a casa de mãos vazias
e tiveram de continuar a lutar. O movimento cartista atingiu o seu apogeu em
1839, quando foi decidido que o trabalho cessaria até que as reivindicações
fossem satisfeitas. Foi o que se chamou: o mês sagrado.
Os trabalhadores ingleses foram, assim, os primeiros a brandir a ameaça duma
greve política, arma nova na sua luta. Mas a greve não se realizou e, em 1842, a
que foi desencadeada teve de ser interrompida sem resultado. Não tinha podido
fazer vergar o poder, agora aumentado, da classe dirigente, que agrupava então
os senhores das terras e os donos das fábricas. Só uma geração mais tarde, após
um período de prosperidade e expansão industrial sem precedentes, a
propaganda pelos direitos políticos reaparece, desta vez sob o impulso dos
sindicatos agrupados na Associação Internacional dos Trabalhadores (a primeira
Internacional, a de Marx e Engels). A opinião pública burguesa já estava agora
preparada para estender gradualmente o direito de voto à classe operária.
Em Franca, desde 1848, o sufrágio universal fazia parte da constituição
republicana, se bem que o governo dependesse sempre, mais ou menos, do apoio
da classe operária. Na Alemanha, nos anos de 1866-1870, a fundação do Império
correspondia a um desenvolvimento febril do capitalismo que subvertia a
população inteira; o sufrágio universal parecia ser um meio de garantir o contato
permanente com o conjunto do povo. Mas em muitos outros países, a classe
dominante, e por vezes apenas uma parte privilegiada desta, agarrava-se
firmemente ao seu monopólio político. Nesta situação as campanhas pelo direito
de voto apresentavam-se como ponto de partida para a conquista do poder
político e da liberdade. Elas arrastaram um número cada vez maior de
trabalhadores a participar na atividade política e na sua organização. Por outro
lado, o medo do domínio pelo proletariado aprofundou a resistência da classe
dominante. Sob a sua forma jurídica e legal, o problema parecia sem esperança
de solução favorável às massas: o sufrágio universal não podia ser concedido por
um voto legal, no parlamento, quer dizer por deputados escolhidos pela maioria
dos privilegiados, e que eram assim convidados a destruir as suas próprias bases.
Daqui resultava que o fim só podia ser atingido por meios extraordinários, por
uma pressão exterior e finalmente por greves políticas em massa. Um exemplo
clássico é a greve pelo direito de voto que houve na Bélgica em 1893. De fato é
instrutivo.
Na Bélgica, um sufrágio censitário restrito permitia a uma súcia de
conservadores do partido clerical deter eternamente o poder governamental. As
condições de trabalho nas minas de carvão e nas fábricas eram notoriamente as
piores da Europa e levavam frequentemente a explosões de cólera que se
traduziam em greves. A extensão do direito de voto considerado como um meio
de reforma social, muitas vezes proposta como tal por alguns parlamentares
liberais, era sempre recusada pela maioria conservadora. Então o Partido
Operário, que conduzia a agitação, que se organizava e preparava para este tipo
de ação há anos, decidiu uma greve geral. Esta greve tinha por fim fazer pressão
sobre o Parlamento durante a discussão de uma proposta de lei sobre um novo
modo de eleição. Devia demonstrar o grande interesse que nela tinham as massas
e a sua firme vontade: estas não hesitariam em abandonar o seu trabalho, para
prestarem toda a sua atenção a esta questão fundamental. A greve devia também
incitar todos os elementos indiferentes, quer trabalhadores, quer pequeno-
burgueses, a tomar parte no que, para eles, era de interesse vital. Devia
igualmente mostrar, aos dirigentes «limitados», o poder social da classe operária,
devia fazer-lhes compreender que os trabalhadores estavam fartos de estar sob
tutela. Claro que a maioria parlamentar começou por resistir, recusando inclinar-
se perante pressões exteriores, querendo decidir em plena consciência. Fez
ostensivamente retirar o projeto de sufrágio universal da ordem do dia e pôs-se a
debater outros problemas. Entretanto, a greve estendia-se cada vez mais; parou
toda a produção, o mesmo aconteceu com os transportes e os serviços púbicos,
tão ciosos, habitualmente, do dever, foram atingidos. O funcionamento ao
aparelho governamental ficou perturbado e no mundo dos negócios, onde
começava a manifestar-se uma inquietação crescente, pensava-se em voz alta
que era menos perigoso satisfazer as exigências dos grevistas que correr para a
catástrofe. Também a determinação dos parlamentares começou a enfraquecer;
sentiam que tinham de escolher entre ceder ou esmagar a greve com a
intervenção do exército. Mas poder-se-ia, neste caso, ter confiança nos soldados?
A sua resistência teve, pois, que se vergar, a sua alma e consciência modificar-se
e, finalmente, aceitaram e votaram o projeto. Os trabalhadores, graças à sua
greve política, tinham alcançado o seu fim e obtido o seu direito político
fundamental.
Depois de um tal sucesso, muitos trabalhadores e os seus porta-vozes
pensaram que esta nova arma, tão eficaz, poderia ser utilizada mais
frequentemente para obter reformas importantes. Mas tiveram que mudar de
tom. A história do movimento operário conheceu mais greves políticas seguidas
de insucessos que de sucessos. Este gênero de greves procura impor a vontade
dos trabalhadores a um governo da classe capitalista. É uma espécie de revolta,
de revolução, que desperta o instinto de conservação da classe dominante e a
leva à repressão. Estes instintos só são reprimidos quando uma parte da própria
burguesia se sente incomodada pelo arcaísmo das instituições políticas e sente
necessidade de reformas. As ações das massas operárias tornam-se então um
instrumento de modernização capitalismo. A greve resulta porque os
trabalhadores estão unidos e cheios de entusiasmo, face a uma classe proprietária
dividida. Paradoxalmente, ela pode atingir o seu fim, não porque a classe
capitalista esteja fraca, mas porque o capitalismo está forte. O capitalismo saiu
reforçado da greve belga, porque o sufrágio universal, que assegura, no mínimo,
a igualdade política, permite-lhe enraizar-se mais profundamente na classe
operária. O direito de voto é inseparável do capitalismo evoluído, porque os
trabalhadores precisam de eleições, como, aliás, dos sindicatos, para assegurar a
sua função na sociedade capitalista.
Mas se agora os trabalhadores creem ser capazes de impor a sua vontade,
contra os reais interesses dos capitalistas, em certos pontos mesmo menores,
deparam com uma classe dominante sólida como um bloco. Sentem-no
instintivamente e permanecem indecisos e divididos, porque não têm para
conduzi-los projetos precisos, que anulariam todas as indecisões. Verificando
que a greve não é geral, cada grupo torna-se por sua vez hesitante. Voluntários
vindos de outras classes sociais oferecem-se para assegurar os serviços de
urgência e as trocas; sem dúvida não são capazes de fazer andar a produção, mas
a sua atitude desencoraja, mesmo que pouco, os grevistas. A proibição de
reuniões, o deslocamento das forças armadas, a lei marcial, mostram a força do
governo e a vontade de utilizá-la. A greve começa então a apodrecer e deve
terminar, por vezes com consideráveis perdas e muitas desilusões para as
organizações vencidas. Na sequência de experiências como estas, os
trabalhadores puderam dar-se conta de que o capitalismo tem forças internas que
lhe permitem resistir a esses assaltos mesmo massivos e organizados. Mas ao
mesmo tempo sentem, com certeza, que as greves de massas, se são feitas no
momento próprio, permanecem uma arma eficaz.
Esta ideia foi confirmada pela primeira revolução russa de 1905. Ela mostrou
que as greves de massas podiam ter um caráter inteiramente novo. A Rússia da
época ainda só estava nos começos do capitalismo; contava-se apenas com
algumas fábricas nas grandes cidades, mantidas essencialmente por capital
estrangeiro e subsídios do Estado, onde camponeses esfaimados se amontoavam
na esperança de se tornarem trabalhadores industriais. Os sindicatos e as greves
eram proibidas. O governo era primitivo e despótico. O Partido Socialista,
composto por intelectuais e operários, tinha de combater por aquilo que as
revoluções burguesas da Europa haviam já obtido: a supressão do absolutismo e
a introdução de direitos e leis constitucionais. Por este fato, a luta dos
trabalhadores russos só podia ter um caráter espontâneo e caótico. Começou por
greves selvagens, protestando contra as miseráveis condições de trabalho. Foram
duramente reprimidas pelos cossacos e pela polícia. A luta tomou então um
caráter político.
Capitulo XIII: A Revolução Russa
A Revolução russa é um momento importante no desenvolvimento do
movimento operário. Em primeiro lugar, tal como já o indicamos, porque vieram
a manifestar-se novas formas de greve política durante a mesma. Em segundo
lugar, e muito mais ainda, porque nesta ocasião surgiram novas formas de
organização dos trabalhadores em luta, os sovietes ou Conselhos Operários. Em
1905 a sua existência, como fenômeno efêmero, passou quase despercebida e os
sovietes desapareceram ao mesmo tempo em que a atividade revolucionária. Em
1917 surgiram de novo, mas com uma potência incrementada. Nesta ocasião, os
trabalhadores da Europa ocidental compreenderam a importância destas novas
formas organizacionais e o papel que os sovietes deviam desempenhar nas lutas
de classes que se produziram neste continente depois da Primeira Guerra
Mundial.
No essencial, os sovietes eram simplesmente comitês de greve, como os que
se formam sempre durante as greves selvagens. Na Rússia, ao produzir-se as
greves nas fábricas e alcançar mui rapidamente as cidades e províncias, os
operários deviam manter-se em contato de forma permanente. Reuniam-se e
discutiam nos lugares de trabalho, de modo regular, ao rematar a jornada laboral
e, nos momentos de crise, incluso durante todo o dia sem interrupção. Enviavam
delegados às demais fábricas e aos sovietes centrais, para intercambiar
informações, discutir os problemas, tomar decisões e examinar as novas tarefas.
Mas estas últimas revestiam agora outra amplitude que nas greves ordinárias.
Os trabalhadores tinham que desfazer-se da pesada opressão do czarismo;
sentiam que, por meio da sua ação, a sociedade russa ia mudando nos seus
fundamentos. Deviam considerar não somente os salários e as condições que
reinavam nos lugares de trabalho, senão também todas as questões vinculadas à
sociedade em sentido amplo. Tinham que encontrar por si mesmos o seu próprio
caminho nestes domínios, e tomar decisões sobre questões políticas. Quando a
greve estourou, estendendo-se a todo o país, detendo toda a indústria e o
transporto e paralisando as funções do governo, os sovietes se encontraram
diante de novos problemas. Tinham que regularizar a vida social, atender à
segurança e à ordem, velar pelo bom funcionamento dos serviços públicos
indispensáveis; em poucas palavras, desempenhar funções que ordinariamente
som as dos governos. O que eles decidiam, os operários o executavam, enquanto
que o governo legal e a policia se cuidavam muito de não intervir, conscientes da
sua impotência frente às massas sublevadas. Então os delegados doutros grupos
sociais, dos intelectuais, dos camponeses, dos soldados, vieram rapidamente a
unir-se aos sovietes centrais e a participar tanto nos debates como nas decisões.
Mas toda esta potência foi como um clarão na noite, um pouco como o passo
dum cometa. Quando o governo zarista logrou finalmente reunir as suas tropas e
liquidar o movimento, os sovietes desapareceram.
Assim aconteceu em 1905. Em 1917, as derrotas militares e a fome que
reinavam nas cidades tinham debilitado a autoridade governamental e os
soldados, tal como os camponeses, participam já na ação. Além dos conselhos
operários das cidades, formaram-se conselhos de soldados no exército; os
oficiais que se opunham a que os sovietes formaram o poder foram fuzilados,
para evitar a anarquia total. Durante seis messes, políticos e chefes militares
esforçaram-se por impor novos Governos, mas em vão; em adiante, os sovietes
apoiados pelos diferentes partidos socialistas, eram donos da sociedade.
Deste modo, os sovietes encontravam-se ante uma nova tarefa. Órgãos da
Revolução até então, deviam agora transformar-se em órgãos da reorganização
social. As massas tinham o poder e, por suposto, punham-se a planificar a
produção de acordo com as suas necessidades e interesses vitais. Como sempre
nestes casos, os seus desejos e atos não estavam determinados em absoluto por
doutrinas inculcadas, senom pela sua mentalidade de classe, pelas suas
condições de vida. Quais eram estas condições? Rússia estava no período
agrícola primitivo, e não conhecia mais que um começo de desenvolvimento
industrial. As massas populares estavam formadas por camponeses incultos,
dominados espiritualmente por um clero carregado de riquezas, e os operários
industriais estavam unidos por mil laços aos seus velhos povos. Os sovietes
camponeses criaram-se por todas partes, foram, pois, comitês de camponeses
que se governavam por si mesmos, ocupavam as grandes propriedades e as
dividiam. A situação evolucionava cara uma generalização da pequena
propriedade privada e manifestava-se já uma diferença entre proprietários, entre
camponeses ricos e influentes e agricultores pobres e pouco escutados.
Nas cidades, em câmbio, estava excluída toda possibilidade de
desenvolvimento da indústria capitalista privada, dada a falta duma burguesia de
certa importância. Os trabalhadores aspiravam sem dúvida a uma certa forma de
produção socialista, a única viável em tais circunstâncias. Mas o seu espírito e a
sua mentalidade, modificadas só superficialmente pelos começos do capitalismo,
escassamente lhes permitiam levar a cabo a tarefa do momento: organizar eles
mesmos a produção. Pelo que os elementos que iam à sua cabeça, os militantes
socialistas do partido bolchevique, disciplinados e endurecidos por anos de luta
ao serviço da causa, viram-se transformados de chefes da Revolução em
dirigentes da reconstrução. Por outro lado, para evitar que estas tendências da
classe obreira não fossem barridas pela carreira cara a pequena propriedade,
procedente do campo, era necessário um governo forte e centralizado, capaz de
contradizer estas tendências camponesas. Devia acometer-se uma tarefa imensa:
organizar a indústria e a defesa contra os ataques da contra-Revolução, cortar de
raiz a resistência dos camponeses, mais ou menos favoráveis ao capitalismo, e
inculcar-lhes ideais científicas modernas no lugar das crenças arcaicas; todo isto
exigia que os elementos mais aptos entre os operários, os intelectuais e os
antigos funcionários e oficiais que tinham aceitado colaborar com eles, se
encontraram no seio do Partido Bolchevique, o novo órgão dirigente. O Partido
transformou-se em Governo. Os sovietes perderam progressivamente a sua
qualidade de órgãos mediante os que se expressava a autodeterminação das
massas, e viram-se reduzidos ao nível de simples engrenagens do aparelho
governamental. Não obstante, manteve-se o nome de República dos sovietes
para camuflar esta evolução, e o partido dirigente manteve o nome de Partido
Comunista.
O sistema de produção que se desenvolveu na Rússia é um socialismo de
Estado. É uma produção organizada na que o Estado é o patrono universal, o
dono do aparelho produtivo. Os trabalhadores já não som donos dos meios de
produção, ao igual que no capitalismo ocidental. Recebem um salário e som
explorados pelo Estado, que é o capitalista único (e de que talha!). É por isto
pelo que o nome de capitalismo de Estado pode definir adequadamente este
sistema. O conjunto da burocracia dos funcionários, que dirige e governa o país,
é o verdadeiro proprietário das fábricas. Forma a classe possuidora. Os seus
membros som, de fato, os proprietários dos meios de produção, não por
separado, tendo cada um direito à sua parte, senom coletivamente, todos juntos.
A eles correspondia cumprir com a função e a tarefa que foram levadas a cabo na
Europa ocidental e Norte América pela burguesia: desenvolver a indústria e a
produtividade do trabalho, assim como transformar a Rússia de país agrícola e
bárbaro em país civilizado, moderno, é dizer, possuidor duma grande indústria.
A isto se dedicavam. E, rapidamente, no curso de uma guerra de classes,
geralmente cruel, entre camponeses e dirigentes, grandes empresas agrícolas
controladas pelo Estado vieram substituir às pequenas fazendas atrasadas.
Portanto, a Revolução não fez da Rússia, como pretende uma propaganda
enganosa, um país onde os trabalhadores são os amos e reina o comunismo. Mas
si tem logrado um progresso de enorme importância. Pode-se compará-lo com a
grande Revolução Francesa. Destruiu o poder dum monarca absoluto e duns
proprietários feudais; começou por outorgar a terra aos camponeses e converter
aos donos da indústria em dirigentes do Estado. Ontem, na França as massas, os
setores desprezados, converteram-se em cidadãos livres; reconheceu-se a cada
um uma personalidade, incluso aos pobres ou aos que se encontravam em
situação de dependência econômica, assim como a possibilidade de ascender na
escala social; também na Rússia as massas saíram da sua barbárie imutável para
entrar na corrente do progresso mundial, onde cada qual pode atuar como
indivíduo dotado duma personalidade reconhecida. Ainda se o governo não
adota a forma duma ditadura política, já não pode parar esta evolução, como lhes
ocorrera a Napoleão e à ditadura militar na França. E, tal como na França,
surgiram da massa de cidadãos e camponeses os capitalistas e chefes militares,
livrando-se uma batalha encarniçada pela ascensão social, na que todos os meios
eram bons, a energia como o talento, a intriga como o engano. Do mesmo modo,
na Rússia formou-se a classe dominante. Os filhos dos operários e camponeses
mais dotados intelectualmente, lançaram-se às escolas técnicas e agrônomas;
chegaram a ser engenheiros ou oficiais, é dizer, chefes técnicos ou militares.
Abria-se o porvir ante eles, sentiam-se desbordantes de energia. Mediante o
estudo e o trabalho intensivo, a astúcia e a intriga, tentavam fazer-se um sítio na
nova classe dirigente que, também aqui, reinava sobre uma massa miserável de
proletários explorados. E, ao igual que uma vaga de nacionalismo apoderou-se
da França revolucionária, que a conduzira a querer dar a nova liberdade a toda
Europa e a abandonar-se, durante um tempo relativamente curto, a um sonho de
glória eterna, também Rússia proclamou-se orgulhosamente investida da missão
de libertar, mediante a Revolução mundial, a todos os povos do jugo capitalista.
A significação da Revolução russa, do ponto de vista da classe obreira, deve
buscar-se numa direção totalmente diferente. Tem mostrado, com efeito, aos
trabalhadores europeus e americanos, detidos nas ideais e práticas reformistas,
primeiro como uma classe de operários industriais é capaz de comover e destruir
o poder estatal por meio duma ação colossal de massas sem precedentes e,
depois, como se transformavam os comitês de greve, no curso destas ações, em
Conselhos Operários, órgãos de combate e autogestão encarregados de tarefas e
funções públicas. Para estudar a influência do exemplo russo sobre as ideais e
ações da classe obreira depois da Primeira Guerra Mundial, devemos retroceder
no tempo.
A proclamação da guerra de 1914 trouxe consigo um derrubamento
inesperado do movimento operário em toda a Europa capitalista. A submissão
voluntária dos trabalhadores ao poder militar, o rápido apoio aportado, em todos
os países, pelos chefes dos sindicatos e partidos socialistas aos seus governos,
que fazia deles os cúmplices do massacre dos trabalhadores, a ausência de toda
protesta de certa importância, tinham provocado um profundo desânimo entre
todos os que anteriormente punham as suas esperanças de libertação no
socialismo proletário. Mas, de modo progressivo, os operários mais conscientes
começaram a compreender que o que se tinha derrubado era a ilusão duma
libertação fácil mediante reformas parlamentares. Eles viam às massas mais
sangradas e exploradas que nunca rebelar-se contra os sofrimentos da opressão e
da carnificina humanas. Esperavam, de acordo nisto com os revolucionários
russos, que a destruição do capitalismo pela Revolução mundial seria uma
consequência do caos provocado pela guerra. Rejeitavam o apelativo de
socialistas, pois esta palavra tinha chegado a ser repugnante, e se denominavam
comunistas. Era uma volta ao velho nome que se deram, noutro tempo, os
revolucionários da classe obreira.
Então, como uma brilhante estrela no céu escuro, a Revolução russa acendeu-
se e brilhou sobre a terra. E em todas as partes as massas sentiram-se enchidas de
pressentimentos e começaram a inquietar-se, ao ouvir o chamado dos
revolucionários em favor do remate da guerra, da irmandade dos trabalhadores
de todos os países, da Revolução mundial contra o capitalismo. Ainda apegadas
às suas velhas doutrinas socialistas e às suas antigas organizações, as massas,
inseguras sob a maré de calúnias que derramava a imprensa, quedaram
aguardando, vacilantes, para ver se o conto se convertia em realidade. Grupos
menores, especialmente entre os operários jovens, reuniam-se em todas as partes
para formar um movimento comunista cada vez mais amplo. Constituíram a
vanguarda nos movimentos que, depois do remate da guerra, irromperam em
todos os países, e de jeito mais acentuado na Europa central, derrotada e exausta.
Este comunismo era uma nova doutrina, um novo sistema de ideais, uma nova
táctica de luta que, com os poderosos meios de propaganda governamental, por
então novos, foi propagada desde Rússia. Fazia referência à teoria de Marx da
destruição do capitalismo mediante a luta de classe dos operários. Chamava a
uma luta contra o capital mundial, concentrado, sobretudo em Inglaterra e os
Estados Unidos, que explorava a todos os povos e a todos os continentes.
Convocava não só a todos os trabalhadores industriais de Europa e Norte
América, senom também aos povos submetidos de Ásia e África, para que se
levantassem numa luta comum contra o capitalismo. Como toda guerra, esta só
podia ganhar-se por meio da organização, mediante a concentração de poderes e
uma boa disciplina. Nos partidos comunistas, incluídos os lutadores mais
valentes e capazes, já havia os núcleos e as equipes dirigentes: estes tinham que
assumir a guia, e ao seu chamado as massas deviam levantar-se e atacar aos
governos capitalistas. 'Na crise política e econômica mundial não podemos
esperar até que as massas, mediante um paciente ensino, se tornem comunistas.
Tampouco é isto necessário; se estão convencidas de que só o comunismo é a
salvação, se depositam a sua confiança no Partido Comunista, seguem as suas
diretivas, o levam ao poder, o Partido, que será o novo governo, estabelecerá a
nova ordem. Foi o que ocorreu na Rússia. Não era preciso mais que seguir o
exemplo. Mas então, em resposta à pesada tarefa e à devoção dos dirigentes, som
imperativas uma estrita obediência e disciplina das massas, destas para co
partido e dos membros do partido para com os chefes. O que Marx chamara a
ditadura do proletariado só pode realizar-se como a ditadura do Partido
Comunista. No Partido está encarnada a classe trabalhadora, o Partido é o seu
representante'.
Nesta forma de doutrina comunista era claramente visível a origem russa. Na
Rússia, com a sua pequena indústria e a sua classe obreira não desenvolvida, só
havia que derrotar a um despotismo asiático já mui descomposto. Na Europa e
nos Estados Unidos uma classe obreira numerosa e muito desenvolvida, treinada
por uma poderosa indústria, enfrenta-se com uma poderosa classe capitalista que
dispõe de todos os recursos do mundo. Por tal razão, a doutrina da ditadura do
partido e da obediência cega encontrou nesses países uma forte oposição. Se na
Alemanha os movimentos revolucionários depois do remate da Primeira Guerra
tivessem levado a uma vitória da classe obreira e esse país se unisse a Rússia, a
influência desta classe, produto do desenvolvimento capitalista e industrial mais
elevado, teria sobrepujado rapidamente as características russas. A sua influência
sobre os operários ingleses e norte-americanos teria sido enorme, e teria
arrastado à própria Rússia cara novos caminhos. Mas na Alemanha a Revolução
fracassou; as massas mantiveram-se apartadas pela ação dos seus dirigentes
socialistas e sindicais, mediante relatos de atrocidades e promessas de felicidade
socialista bem ordenada, enquanto eram exterminadas as suas vanguardas e
assassinados os seus melhores porta-vozes pelas forças militares sob a proteção
do governo socialista. Assim, os grupos opositores de comunistas alemães não
puderam exercer influência alguma; foram expulsos do Partido [Comunista
Alemão (KPD)]. No seu lugar, os grupos socialistas descontentes foram
induzidos a unir-se à Internacional moscovita, atraídos pela nova política
oportunista da mesma ao apoiar o parlamentarismo, co qual esperava conquistar
o poder nos países capitalistas.
Deste modo, a «Revolução Mundial» transformou-se, de grito de guerra, em
uma mera expressão verbal. Os dirigentes russos imaginavam a Revolução
mundial como uma extensão e imitação a grande escala da Revolução russa. Só
conheciam o capitalismo na sua forma russa antes da Revolução, isto é, sob a
forma submetida à exploração estrangeira, que empobrecia aos habitantes e se
levava todos os benefícios para fora do país. Não conhecia o capitalismo como o
grande poder organizador que, com a sua riqueza, produzia a base dum novo
mundo ainda mais rico. Como resulta claro pelos seus escritos, não conheciam o
enorme poder da burguesia, frente ao qual todas as capacidades de dirigentes
abnegados e dum partido disciplinado resultam insuficientes. Não conheciam as
fontes de energia que subjazem ocultas na classe obreira de hoje. Daí as formas
primitivas de ruidosa propaganda e terrorismo partidário, não só espiritual, senão
também físico, contra os pontos de vista dissidentes. Foi um anacronismo que
Rússia, que recém entrava na era industrial, saindo da sua primitiva barbárie,
tomara o mando da classe obreira de Europa e os Estados Unidos, enfrentada à
tarefa de transformar um capitalismo industrial mui desenvolvido numa forma
ainda superior de organização.
A velha Rússia tem sido, essencialmente no que respeita à sua estrutura
econômica, um país asiático. Em toda Ásia viviam milhões de camponeses que
praticavam uma agricultura primitiva a pequena escala, restritos à sua aldeia,
baixo senhores despóticos mui distantes com os que não tinham vinculação
alguma, salvo o pago dos impostos. Na época contemporânea, estes impostos
transformaram-se num tributo cada vez mais pesado em favor do capitalismo
ocidental. A Revolução russa, ao repudiar as dívidas czaristas, significava a
libertação dos camponeses russos desta forma de exploração que beneficiava ao
capital ocidental. Com isso incitou a todos os povos reprimidos e explorados de
Oriente a seguir o seu exemplo, a unir-se à luta e arrojar o jugo dos seus
déspotas, instrumentos do rapaz capital mundial. E o chamado ouviu-se ao longo
e ancho do mundo, na China e Pérsia, na Índia e África. Formaram-se partidos
comunistas, compostos de intelectuais radicalizados, de camponeses rebelados
contra os proprietários feudais da terra, de jornaleiros e artesãos, que levavam a
centos de milhões de homens a mensagem de libertação. Como na Rússia,
significou para todos estes povos a apertura do caminho cara o desenvolvimento
industrial moderno e, às vezes, como na China, a aliança com uma burguesia
industrial progressista. Desta maneira, a Internacional moscovita, mais que
instituição europeia chegou a ser, ainda mais, uma instituição asiática. Isto
acentuou o seu caráter de movimento da classe meia e fixo reviver nos seus
seguidores europeus as velhas tradições das revoluções das classes meias, com a
preponderância de grandes dirigentes, de sonoras consignas, de conspirações,
complots e revoltas militares.
A consolidação do capitalismo de Estado na Rússia foi a razão determinante
do caráter tomado pelo Partido Comunista. Enquanto que na sua propaganda no
estrangeiro seguia a falar de comunismo e de Revolução mundial, criticava o
capitalismo e chamava aos trabalhadores a unir-se a ele na sua luta pela
libertação, escondia o fato de que, na Rússia, os trabalhadores não eram mais
que uma classe submetida e explorada, que vivia na sua maior parte em
condições laborais miseráveis, baixo uma ditadura opressiva e implacável,
privada de liberdade de expressão, de prensa e de associação, muito mais
duramente sujeita ainda do que às suas irmãs dos países capitalistas ocidentais.
Deste modo, uma falsificação congênita impregnava a todos os níveis a política
e os ensinamentos deste partido. Ainda que fosse na prática o instrumento da
política exterior do governo russo, logrou monopolizar, mediante a sua
fraseologia revolucionária, as tentativas de rebelião que espalhavam entre a
juventude entusiasta dos países ocidentais, assolados pelas crises. Mas só para
dissipar a sua força em abortados e odiosos simulacros de luta, ou numa política
oportunista – umas vezes contra os partidos socialistas sinalados como traidores
os social-fascistas, e outras buscando a sua aliança nos denominados frentes
vermelhos ou frentes populares –, o que trouxe consigo o abandono,
desgostados, dos melhores elementos. A doutrina que este partido difundia baixo
o nome de marxismo não era a teoria do derrocamento dum capitalismo
altamente desenvolvido por uma classe obreira igualmente desenvolvida, senom
uma caricatura, produto dum mundo primitivo e bárbaro, onde a luta contra as
superstições religiosas serve de alimento espiritual e a industrialização moderna
é identificada co progresso. O ateísmo é a sua filosofia. O domínio do Partido, o
seu objetivo. A obediência à ditadura, a regra suprema. O Partido Comunista
russo não tinha a intenção de transformar aos trabalhadores em combatentes
independentes, capazes de construir por si mesmos o seu mundo novo com a
ajuda da sua inteligência e a sua compreensão. Queria unicamente fazer deles
servidores obedientes dispostos a levá-lo ao poder.
Assim obscureceu-se a luz que tinha iluminado ao mundo; as massas que
tinham saudado a sua chegada quedaram numa noite mais negra, e por desalento
alijaram-se da luta ou seguiram a combater para encontrar novos e melhores
caminhos. A Revolução russa dera ao começo um poderoso impulso à luta da
classe obreira, pelas suas ações massivas diretas e as suas novas formas de
organização com base nos Conselhos – isto se expressou no amplo surgimento
do movimento comunista em todo o mundo. Mas quando, logo, a Revolução se
assentou e se traduziu numa nova ordem, um novo domínio de classe, uma nova
forma de governo, o capitalismo de Estado baixo a ditadura duma nova classe
exploradora, o Partido Comunista assumiu necessariamente um caráter ambíguo.
Assim, no curso dos eventos seguintes, converteu-se em algo mui ruinoso para a
luta da classe obreira, a qual pode somente viver e crescer na claridade do
pensamento lúcido, os fatos desembuçados e o trato honesto. Com seus discursos
superficiais acerca da Revolução mundial, o partido obstaculizou a nova
orientação de meios e fins, que tão urgente era. Promovendo e ensinando, baixo
o nome de disciplina, o vício da submissão – o principal vício de que devem
desprender-se os trabalhadores –, suprimindo toda pegada de pensamento crítico
independente, impediu o desenvolvimento dum poder real de classe obreira. Ao
usurpar o nome de comunismo para o seu sistema de exploração dos
trabalhadores e a sua política de perseguição dos adversários, geralmente cruel,
fixo deste nome, que até então tinha sido expressão de elevados ideais, um
objeto de opróbrio, aversão e ódio ainda entre os trabalhadores. Na Alemanha,
onde as crises políticas e econômicas agudizaram ao máximo os antagonismos
de classe, o partido reduziu a dura luta de classes a uma escaramuça infantil de
moços armados contra bandas nacionalistas similares. E, então, quando a maré
do nacionalismo alcançou uma grande altura e se tornou muito forte, grande
parte deles, só educados para derrotar aos adversários dos seus dirigentes,
mudaram simplesmente de lado. Assim, o Partido Comunista contribuiu
enormemente, com a sua teoria e a sua prática, a preparar a vitoria do fascismo.
Capitulo XIV: A Revolução dos Trabalhadores
A revolução pela qual a classe operária atingirá o poder e a liberdade não é um
acontecimento único, com uma duração limitada. É um processo de organização,
de auto-educação, no decurso do qual os trabalhadores encontrarão pouco a
pouco, ora por uma progressão regular, ora por saltos, a força para vencer a
burguesia, para destruir o capitalismo e construir um novo sistema de produção
coletiva. Esse processo ocupará toda uma época histórica, da qual ignoramos a
duração, mas na qual estamos seguramente à beira de entrar. Se bem que não
possamos prever os detalhes do seu desenrolar, podemos apesar disso discutir
desde já as condições e circunstâncias em que terá lugar.
O combate em questão não pode comparar-se a uma guerra normal entre
forças antagonistas do mesmo tipo. As forças dos trabalhadores parecem-se com
um exército que se reagrupa durante a batalha! Elas devem crescer pela própria
luta, não podem afirmar-se antes; só podem pôr defronte objetivos parciais e
atingir objetivos parciais. Se examinarmos a história, vemos desenvolver uma
série de ações que parecem ser outras tantas falhas de tentativas de tomada de
poder: do cartismo à Comuna de Paris, passando por 1848, até às revoluções da
Rússia e Alemanha de 1917-1918. Mas há aí progressos numa mesma direção;
cada tentativa nova mostra um nível de consciência e de força mais elevado. A
história do trabalho mostra-nos, por outro lado, que há, na luta incessante da
classe operária, altos e baixos que correspondem na sua maioria às variações da
prosperidade industrial. No começo do desenvolvimento industrial, cada crise
trazia a miséria e movimentos de revolta; a revolução de 1848 no continente era
a sequela duma grande depressão econômica combinada com as más colheitas. A
depressão industrial dos anos de 1867 originou um renovar da agitação política
na Inglaterra, a grande crise dos anos de 1880, o desemprego enorme que se lhe
seguiu, suscitaram ações de massas, a subida da social-democracia no continente
e o «novo sindicalismo» em Inglaterra. Mas nos períodos: de prosperidade
industrial, como, por exemplo, entre 1850 e 1870, 1895 e 1914, todo esse
espírito de revolta desapareceu. Quando o capitalismo está florescente e estende
o seu império em atividade febril, quando não há desemprego e quando as ações
dos sindicatos são capazes de originar aumentos de salários, os trabalhadores não
pensam em mudar o que quer que seja no sistema social. A classe capitalista,
acumulando riquezas e poder, acredita-se capaz de tudo, avança sobre os
trabalhadores e consegue impregná-los do seu espírito nacionalista.
Formalmente, os trabalhadores podem ficar agarrados às velhas palavras de
ordem revolucionárias, mas no seu subconsciente estão satisfeitos com o
capitalismo, a sua visão das coisas está estreitada; é por isso que, ainda que o seu
número aumente, o seu poder declina. Até que uma nova crise os apanhe
desprevenidos e os acorde de novo.
Se o poder combativo adquirido anteriormente se esboroa na satisfação duma
prosperidade nova, a questão põe-se em saber se a sociedade e a classe operária
estarão algum dia suficientemente maduras para a revolução. Para responder a
esta questão, é necessário examinar de mais perto o desenvolvimento do
capitalismo.
A alternância de prosperidade e de depressão na indústria não é um simples
movimento de pêndulo. Cada novo movimento foi sempre acompanhado de uma
expansão. Depois de cada baixa, de cada crise, o capitalismo foi capaz de tornar
a subir a encosta estendendo o seu domínio, os seus mercados, o número de
produtos e a importância da sua produção. Enquanto o capitalismo puder
estender sempre mais o seu domínio sobre o mundo e aumentar as suas
dimensões, pode oferecer empregos à massa da população. E enquanto puder
fazer face à primeira exigência de todo o sistema de produção, proporcionar o
necessário vital a todos os seus membros, será capaz de se manter, porque
nenhuma inexorável necessidade obrigará os trabalhadores a acabar com ele. Se
ele pudesse continuar a prosperar, estendendo-se sempre mais, a revolução seria
então tanto impossível como supérflua, só restaria esperar por um
desenvolvimento gradual da cultura que pudesse pôr termo às suas carências.
Mas o capitalismo não é um sistema de produção normal, e de modo nenhum
um sistema estável. Os capitalistas da Europa e depois da América puderam
fazer crescer a sua produção com tal regularidade e rapidez, porque estavam
cercados por um vasto mundo não capitalista, possuindo apenas uma reduzida
produção, e sendo, ao mesmo tempo, fonte de matérias-primas e mercado para
os seus produtos. Esta separação entre um núcleo capitalista ativo e um todo à
volta passivo, vivendo na sua dependência, era um estado de coisas artificial: o
núcleo estendia-se (e estende-se) sem cessar. Sendo a própria essência da
economia capitalista, o crescimento, a atividade, a expansão, qualquer paragem
significa a queda e a crise. A razão é que os lucros se acumulam continuamente,
sob a forma de novo capital que tem de ser investido para trazer novos lucros;
assim a massa do capital e a massa dos produtos crescem cada vez mais depressa
e os mercados são procurados cada vez mais febrilmente. Também o capitalismo
é uma grande força revolucionária, que transforma por toda a parte as antigas
condições e modifica o aspeto da Terra. Aos milhões, novos indivíduos,
populações inteiras que durante séculos tinham vivido por si mesmas e sem
mudanças notáveis, unicamente da sua produção familiar, veem-se envolvidos
pelo turbilhão do comércio mundial. O próprio capitalismo, a exploração
industrial, penetra nesses países e depressa os antigos clientes se tornam
concorrentes. No século 19, vindo da Inglaterra, o capitalismo instalou-se em
Franca, na Alemanha, na América, no Japão, depois invade, no século 20, os
vastos territórios da Ásia. Inicialmente, permanecendo ao nível da concorrência
individual, ulteriormente organizando-se sob a forma de Estados nacionais, os
capitalistas lançaram-se numa luta pelos mercados, pelas conquistas coloniais,
pelo domínio do mundo. Assim vão sempre em frente, revolucionando domínios
cada vez mais vastos.
Mas a Terra não passa de uma esfera cuja superfície é limitada. A descoberta
das dimensões finitas do globo acompanhou a subida do capitalismo há quatro
séculos; a tomada em consideração dos limites dessas dimensões mostra que o
capitalismo tem um fim. A população a escravizar é limitada. Uma vez que tenha
feito entrar debaixo do seu domínio as centenas de milhões de pessoas que
vivem nas planícies férteis da China e da Índia, o trabalho essencial do
capitalismo estará realizado. Então já não haverá grandes massas humanas para
subjugar. Seguramente ficarão enormes regiões selvagens onde desenvolver as
culturas, mas a sua exploração exigirá a cooperação consciente da humanidade
organizada; os métodos de rapina grosseiros do capitalismo, «a violação da
terra» que destrói a sua fertilidade, não poderão absolutamente ser empregues
neste caso. Assim a expansão do capital encontrar-se-á ela própria posta em
cheque. Não como se um obstáculo se levantasse subitamente diante dela, mas
pouco a pouco, pela dificuldade de vencer os seus produtos e investir o capital.
Então o ritmo de desenvolvimento baixará e a produção diminuirá. O
desemprego tornar-se-á uma doença insidiosa. Então a luta entre capitalistas pela
dominação do mundo tornar-se-á mais encarniçada, com a perspectiva de novas
guerras mundiais.
Não podemos deixar de duvidar do fato de que uma expansão ilimitada do
capitalismo, oferecendo possibilidades de vida duradoiras a toda a população,
esteja excluída pelo caráter econômico intrínseco desse sistema. O momento virá
em que todos os males das depressões, as calamidades do desemprego, os
terrores da guerra, se acentuarão cada vez mais. Então a classe operária, se ainda
não estiver revoltada, deve sublevar-se e combater. Então os trabalhadores
deverão escolher entre sucumbir passivamente ou bater-se ativamente para
alcançar a sua liberdade. Então deverão assumir a tarefa de criar um mundo
melhor a partir do caos engendrado pelo capitalismo em plena decrepitude.
E eles bater-se-ão? A história humana é uma série incessante de combates; e
Clausewitz, o teórico de guerra alemão, tirava da história a conclusão de que no
mais íntimo de si mesmo o homem é um ser guerreiro. Mas outros, tão cépticos
como ardentes revolucionários, vendo a timidez, a submissão, a indiferença das
massas desesperam muitas vezes quanto ao futuro. É preciso examinar de uma
maneira mais aprofundada o impacto de todas as forças psicológicas.
O impulso dominante e mais profundo no homem é, como para todos os seres
vivos, o instinto de conservação. Esse instinto obriga a defender a própria vida
com todas as forças. O medo e a submissão são assim o efeito desse instinto,
quando, frente a senhores todo-poderosos, são as melhores hipóteses de
conservação. De todas as diversas aptidões do homem, são essas as melhor
adaptadas para conservar a vida, nas circunstâncias do momento, que
prevalecerão e se desenvolverão. Na vida cotidiana, no regime capitalista, é
impossível e mesmo perigoso para um trabalhador conservar os seus sentimentos
de independência, de orgulho; quanto mais os reprimir e obedecer em silêncio,
menos dificuldade encontrará para achar e conservar um emprego. A moral
ensinada pelos padres da classe dominante reforça esta disposição. E só alguns
espíritos independentes aceitam o desafio e estão prontos a enfrentar as
dificuldades que daí resultam.
Mas em período de crise e de perigo, toda essa submissão, toda essa virtude,
não tem qualquer utilidade para a preservação da vida; somente o combate pode
consegui-lo e então eles cedem lugar aos opostos, a revolta e a coragem. Os mais
audazes dão o exemplo e os tímidos descobrem com surpresa de que atos de
heroísmo são capazes. A confiança e o ardor despertam neles; e crescem porque
só do seu desenvolvimento dependem as hipóteses de vida e de felicidade. E
imediatamente, por instinto e por experiência, eles sabem que só a colaboração e
unidade podem dar forças às massas. Quando então compreendem que forças
existem neles e nos seus camaradas, quando sentem a felicidade e o orgulho do
despertar do respeito por si mesmos e do devotamento fraternal, quando vêm
despontar a imagem duma sociedade nova que ajudam a construir, o entusiasmo
e ardor tornam-se uma força irresistível. Então a classe operária começa a estar
madura para a revolução. Então o capitalismo começa a estar maduro para o
afundamento.
Assim, uma humanidade nova está prestes a nascer. Os historiadores
espantam-se muitas vezes quando vêm as rápidas mudanças que intervêm no
caráter das pessoas em período revolucionário. Isso parece ter algo de milagroso;
mas simplesmente mostra quantos traços estão nelas escondidos, reprimidos
porque não têm nenhuma utilidade. E ressurgem então, temporariamente talvez;
mas, se a situação continua a exigi-lo, tornam-se as qualidades dominantes,
transformando o homem, tornando-o apto para fazer frente às novas
circunstâncias e às novas necessidades.
A primeira metamorfose, a mais importante, exprime-se pelo desenvolvimento
do sentimento comunitário. As suas primeiras manifestações aparecem no
capitalismo, como consequência do trabalho comum e da luta comum. É
reforçado pela tomada de consciência, extraída da experiência, de que o operário
isolado é impotente contra o capital e que somente uma solidariedade efetiva
pode garantir condições de vida suportáveis. Quando a luta se torna mais áspera
e mais importante e se alarga numa luta pelo domínio sobre o trabalho e a
sociedade, uma luta de que dependem a vida e o amanhã, a solidariedade deve
estender-se, dar origem a uma unidade generalizada e indissolúvel. O novo
sentimento comunitário, penetrando por toda a parte a classe operária, suplanta o
velho egoísmo do mundo capitalista.
Isto não é inteiramente novo. Nos tempos primitivos, predominava na tribo o
sentimento comunitário, o das formas simples, comunistas, do trabalho. O
homem estava inteiramente ligado à tribo, separado dela não era nada; em todos
os seus atos, o indivíduo não contava, comparado com a prosperidade e a honra
da comunidade. O homem primitivo era unido com a tribo; estava ligado a ela
por relações complexas, inextricáveis, e não era ainda uma «pessoa»
reconhecida. Quando, seguidamente, os homens se separaram e se
transformaram em pequenos produtores independentes, o sentimento
comunitário apagou-se para dar lugar a um individualismo que fazia da própria
pessoa o centro de todo o interesse e de todos os sentimentos. Durante longos
séculos que marcaram a ascensão da burguesia, da produção mercantil e do
capitalismo, o individualismo despertou e esse novo caráter afirmou-se cada vez
mais solidamente. É uma aquisição que não pode mais ser contestada.
Seguramente, isso não impede que o homem seja, no sistema capitalista, um ser
social; a sociedade comanda e, em momentos críticos – por exemplo, revoluções
e guerras –, o sentimento comunitário impõe-se temporariamente, como um
dever excepcional. Mas em período normal, esse sentimento é reprimido e
submergido pela quimera orgulhosa da independência do indivíduo.
Aquilo que se desenvolve na classe operária não é a transformação inversa,
como, aliás, a modificação das condições da vida não é um regresso às formas
do passado. Trata-se de uma fusão do individualismo e do sentimento
comunitário numa unidade superior. É a subordinação consciente de todas as
forças do indivíduo ao serviço da comunidade. Ao gerar poderosas forças
produtivas, os trabalhadores, como os seus senhores todo-poderosos de hoje,
desenvolvem a sua personalidade a um nível ainda desigual. Desde que toma
consciência da relação que existe entre o sentimento de personalidade e a
sociedade, o homem, unificando este com o sentimento social infinito que o
anima, atinge uma nova percepção da vida, que se apoia na compreensão do fato
de que a sociedade é a fonte do ser humano inteiro.
O sentimento comunitário é, desde sempre, a força principal, necessária para o
progresso da revolução. Esse progresso encarna no desenvolvimento da
solidariedade, das relações mútuas entre trabalhadores, na sua unidade. A
organização e poder crescente são caracteres novos, que se forjam durante a luta;
correspondem a uma transformação do ser no mais íntimo de si mesmo, a uma
nova moralidade. O que os comentadores dizem da guerra ordinária – quer dizer
que as forças morais aí têm um papel predominante –, é também verdadeiro para
a guerra de classes. O que aí se visa é de outro modo importante. As guerras não
têm sido sempre mais que uma luta entre forças rivais da mesma natureza, que,
qualquer que tenha sido o vencedor, não podia modificar a estrutura da
sociedade. Os conflitos de classes, pelo contrário, são combates por novos
princípios e a vitória da classe ascendente conduz a sociedade a um estado
superior de desenvolvimento. Se as comparamos com uma guerra no sentido
ordinário, verificamos que as forças morais exigidas aqui são de natureza
superior: colaboração dedicada e voluntária em lugar de obediência cega, fé num
ideal em lugar de fidelidade a chefes, amor aos seus companheiros de classe, de
humanidade, em lugar de amor à pátria. O seu desencadear não é uma violência
armada, nem assassínio, mas a firmeza, o endurecimento, a perseverança, a força
de persuasão, a organização. O seu objetivo não é partir cabeças, mas abrir
inteligências. É certo que a ação armada também jogará um papel importante na
luta de classes: a violência armada dos dirigentes não pode ser derrubada por um
sofrer paciente «a la Tolstoi». Ela deve ser vencida pela força, mas por uma
força animada por uma profunda convicção moral.
Houve guerras que tiveram um pouco esse caráter, guerras que eram uma
espécie de revolução – ou parte de uma revolução –, por ocasião das lutas pela
liberdade travadas pela burguesia. Nos locais onde a burguesia em expansão
lutava pelo domínio contra os poderes feudais do interior ou do estrangeiro
(monarquia e propriedade da «raiz») – como na Grécia da Antiguidade, a Itália e
a Flandres da Idade Média, a Holanda, a Inglaterra e a França dos séculos
seguintes –, o idealismo e o entusiasmo, nascidos de sentimentos profundos das
necessidades de classe, engendraram atos de grande heroísmo e abnegação.
Esses episódios, tais como os que encontramos na Revolução Francesa ou na
libertação da Itália pelos partidários de Garibaldi, contam-se entre as mais belas
páginas da história humana. Os historiadores glorificaram-nas e os poetas
cantaram-nas, como épocas de grandeza que jamais terminariam. Mas o que se
seguiu a esta libertação, a verdadeira realização prática da nova sociedade, foram
a dominação pelo capital, o contraste entre o luxo insolente e a miséria, a
avareza e a rapacidade dos homens de negócios, a caça aos lugares de
funcionário; todo esse baixo espetáculo de baixo egoísmo caiu como um balde
de água fria sobre a geração seguinte. Nas revoluções burguesas, o egoísmo e a
ambição de algumas personalidades fortes jogam um papel importante; regra
geral, os idealistas são sacrificados e são os mais vis que alcançam a riqueza e o
poder. Na burguesia, cada um deve tentar elevar-se caminhando sobre os outros.
As virtudes do sentimento comunitário não foram senão uma necessidade
temporária para permitir à classe burguesa alcançar o poder; desde que esse fim
foi atingido, dão lugar a uma luta sem piedade de todos contra todos.
Aqui tocamos a diferença fundamental entre as revoluções burguesas do
passado e a revolução operária que se aproxima. Para os trabalhadores, o forte
sentimento comunitário que nasce da sua luta pelo poder e pela liberdade é
simultaneamente a base de uma sociedade nova. As virtudes da solidariedade e
do devotamento, os impulsos para a ação coletiva numa sólida unidade
engendrados pela luta social, são os próprios fundamentos do novo sistema
econômico que assenta sobre o trabalho em comum; serão exaltadas e
perpetuadas pela sua própria prática. A luta forma a nova humanidade, aquela
requerida pelo novo sistema de trabalho. O grande individualismo do homem
depara, doravante, com uma melhor via para se afirmar como a sede insaciável
de poder pessoal sobre os outros. Aplicando toda a sua força para a libertação da
classe, desenvolver-se-á mais completamente e nobremente que para atingir fins
pessoais.
O sentimento comunitário e de organização não chegam para vencer o
capitalismo. Porque ele mantém a classe operária na submissão, o domínio
espiritual da burguesia tem o mesmo poder que a força física. A ignorância é um
entrave à liberdade. As velhas ideias e tradições pesam enormemente nos
espíritos, mesmo quando já foram tocados por ideias novas. É que agora os
objetivos são vistos por outro ângulo mais estreito, as palavras de ordem bem
sonantes são aceites sem crítica, as ilusões de sucesso fácil, as meias-medidas e
as falsas promessas desviam do bom caminho. Mede-se assim toda a importância
das forças intelectuais para os trabalhados. O saber e a perspicácia são fatores
essenciais para a ascensão da classe operária.
A Revolução operária não será o efeito de uma força física brutal, será sim
uma vitória do espírito. Será certamente obra do poder resultante da massa dos
operários, mas este poder será, sobretudo, espiritual. Os trabalhadores não
ganharão por possuírem sólidos punhos – os punhos são facilmente dirigidos,
por vezes voltados contra os seus possuidores por espíritos astuciosos; também
não ganharão por serem a maioria – as maiorias ignorantes e desorganizadas
foram regularmente mantidas em sujeição e na impotência por minorias
organizadas e instruídas. A maioria só vencerá se forças, morais e intelectuais,
poderosas lhe permitirem ultrapassar e dominar os seus senhores. Ao longo da
história, as revoluções não foram avante porque novas forças espirituais se
levantaram nas massas. Contudo as revoluções são períodos construtivos de
evolução da humanidade. E mais ainda que todas as que se desenrolaram no
passado, a revolução que fará dos trabalhadores os senhores do mundo exigirá as
mais levadas qualidades morais e intelectuais.
Os trabalhadores poderão fazer frente a esta necessidade? Como poderão
adquirir o saber necessário? Seguramente não será nas escolas, onde as crianças
são impregnadas de ideias falsas sobre a sociedade, essas ideias que as classes
dominantes desejam ver-lhes adotar. Certamente também não será nos jornais,
pertencendo e sendo editados por capitalistas ou por grupos em luta pelo poder.
Com certeza não será escutando os sermões lançados do alto dos púlpitos, de
onde sempre foi pregada a submissão e onde só raramente ascendem indivíduos
como John Ball. Certamente não será escutando a rádio, porque se, outrora, as
discussões públicas eram um meio poderoso dos cidadãos se iniciarem nos
assuntos públicos, hoje pelo contrário só saiam da rádio discursos de sentido
único, procurando esclerosar os auditores passivos e que, pelo seu barulho
incessante e inoportuno, não permitem uma reflexão ponderada. Certamente
também não será indo ao cinema, que ao contrário do teatro que foi, no início,
um meio de educação e mesmo de combate da burguesia –, faz somente apelo à
impressão visual, mas nunca à reflexão ou à inteligência. Todos são instrumentos
poderosos que a classe dominante utiliza para manter a classe operária numa
escravatura espiritual. Todos são empregues para esse fim, por vezes com uma
astúcia instintiva e uma intenção deliberada. E as massas trabalhadoras
submetem-se à sua influência sem se aperceberem de nada. Deixam abusar de si
com palavras enganadoras e aparências. Mesmo aqueles que compreendem um
pouco o que são as classes e as lutas, abandonam os seus assuntos aos dirigentes
e aos políticos e aplaudem-nos quando utilizam os velhos temas que lhe são
queridos. As massas passam os seus tempos livres à procura de prazeres pueris,
ignorando os grandes problemas da sociedade e de que dependem a sua
existência e a dos seus filhos. Não será um problema insolúvel esse do
desencadear e do sucesso da revolução operária, quando a sagacidade dos
dirigentes e a indiferença dos dirigidos impedem todo e qualquer
desenvolvimento das condições espirituais necessárias!
Mas as forças do capitalismo trabalham nas profundezas da sociedade,
empurrando as velhas condições, impelindo as pessoas para a frente mesmo
contra sua vontade. Os seus efeitos perturbadores são, tanto quanto possível,
reprimidos, para salvaguardar os velhos hábitos de vida; acumulados no
subconsciente, esses efeitos não fazem mais que intensificar as tensões internas.
Até que finalmente, durante a crise, no paroxismo da necessidade, eles quebram
tudo e libertam-se na ação, na revolta. A ação não é o resultado duma intenção
deliberada; surge irresistivelmente, como um ato espontâneo. Em tais ações
espontâneas, o homem descobre aquilo de que é capaz e isso não deixa de
surpreendê-lo. E porque a ação é sempre coletiva, revela a cada um que as forças
confusamente sentidas em si mesmo existem nos outros. A confiança e a
coragem despertam com a descoberta desta grande força de classe que é a
vontade comum; apoderam-se de massas cada vez mais importantes, sacodem-
nas e arrastam-nas.
A ação estala espontaneamente, imposta pelo próprio capitalismo aos
trabalhadores, que não a desejam. Ela não é o resultado, mas o ponto de partida
do seu desenvolvimento espiritual. Uma vez começada a luta, os trabalhadores
devem continuar a atacar e defender-se; devem utilizar no máximo as suas
forças. A indiferença desaparece, ela era apenas uma forma de resistência a
necessidades que se sentiam incapazes de dominar. Um período de esforços
intelectuais intensos aparece. Ao opor-se às forças imensas do capitalismo, os
trabalhadores compreendem que não podem esperar vencer a não ser pelo preço
de esforços cada vez maiores e utilizando todas as suas reservas de energia. O
que aparecia apenas sob a forma de vagos indícios no decorrer das lutas
ordinárias, desabrocha agora largamente. Toda a força que dormia no seio das
massas desperta e põe-se em movimento. É o trabalho criador da revolução. A
necessidade de uma sólida unidade está agora bem presente nas suas
consciências; a necessidade do saber faz-se agora sentir a todo o momento. Toda
a parcela de ignorância, toda a ilusão sobre o caráter e as forças do inimigo,
qualquer fraqueza na resistência à sua astúcia, a incapacidade para refutar os
seus argumentos e as suas calúnias, pagam-se com a derrota e o revés. Um
desejo ardente surge dos impulsos profundos do ser, obrigando os trabalhadores
a fazer funcionar o seu cérebro. As novas esperanças, as novas visões do amanhã
animam o espírito, transformam-no numa força ativa e viva, que não se poupa a
trabalhos na procura de verdade, na aquisição de conhecimentos.
Onde os trabalhadores encontrarão o saber de que têm necessidade?
As fontes são numerosas: toda uma literatura científica, de livros e brochuras,
explicando os fatos fundamentais e as teorias da sociedade e do trabalho, existe
já e outras se seguirão. Mas essas obras apresentam a maior diversidade de
opiniões sobre o que deve ser feito; e os próprios trabalhadores devem escolher e
distinguir o que é verdadeiro e justo. Devem utilizar o seu próprio cérebro,
refletir duma maneira profunda, discutir seriamente. Porque terão sem cessar que
fazer frente a novos problemas, problemas a que os velhos livros não dão
qualquer solução. Neles só encontrarão um conhecimento geral da sociedade e
do capital; apresentam os princípios e teorias tirados das experiências
precedentes. O nosso próprio trabalho é procurar a sua aplicação a situações que
se renovam sem cessar.
Esta compreensão necessária não pode brotar da instrução de uma massa
ignorante por sábios professores, do entupimento de cérebros de alunos passivos.
Só pode ser adquirida pela auto-educação, por essa atividade intensa que anima
os cérebros de um vivo desejo de compreender o mundo. A tarefa da classe
operária seria bem fácil, se apenas consistisse em receber a verdade estabelecida
por aqueles que a conhecem. Mas a verdade de que os operários têm necessidade
não existe em parte alguma do mundo, a não ser neles próprios. Ela tem de ser
desenvolvida neles e por eles próprios. O que está escrito neste livro não tem a
pretensão de ser uma verdade definitiva para ser aprendida de cor. Não é mais
que um sistema de ideias, elaborado a partir de uma experiência da sociedade e
do movimento operário e das reflexões críticas que ela inspira e editado para
levar outras pessoas a refletir e a discutir os problemas do trabalho e a sua
organização. Há centenas de pensadores capazes de apresentar novos pontos de
vista; há milhares de trabalhadores inteligentes que, uma vez que tenham
examinado estes problemas, serão capazes de tirar do seu próprio conhecimento
uma melhor concepção, mais detalhada da organização da sua luta e do seu
trabalho. O que ali fica dito pode ser a faísca que acenderá a chama nos seus
espíritos.
Existem grupos e partidos que se pretendem detentores exclusivos da verdade.
Tentam conquistar os trabalhadores para as suas ideias pela propaganda e excluir
e aniquilar todas as outras opiniões. Pela coação moral e, quando não têm outros
meios, também pela coação física, tentam impor as suas ideias às massas. Deve
ser bem claro para todos que o ensino unilateral dum sistema doutrinário só pode
servir – e de fato serve – para fabricar seguidores obedientes. Por isso mantém a
velha dominação ou prepara uma nova. A auto-emancipação das massas
trabalhadoras subentende a autonomia de pensamento, a aprendizagem por si
mesmo. Exige que as massas determinem por si mesmas o que é verdadeiro ou
falso, pela atividade do seu próprio intelecto. Fazer trabalhar o cérebro é muito
mais difícil e muito mais fatigante que fazer trabalhar os seus músculos. Mas é
preciso fazê-lo, porque é o cérebro que comanda os músculos, e, se o não
fizermos, serão outros cérebros que os comandarão.
É por isso que a liberdade sem limites de discussão, de expressão e de opinião
é o único ar verdadeiramente respirável, no decorrer das lutas operárias. Há mais
de um século, Shelley, o maior poeta inglês do século 19, «o amigo dos pobres
abandonados por todos», reivindicava, contra um governo despótico, o direito,
para cada um, de exprimir livremente a sua opinião. «Cada homem tem direito a
uma liberdade de discussão ilimitada... Não tem somente o direito de exprimir as
suas ideias, mas também o dever de fazê-lo... e nenhum ato legislativo pode
abolir esse direito». Shelley proclamava a filosofia que afirma os direitos
naturais do homem. Para nós, é porque é necessária para a libertação da classe
operária que a liberdade de expressão e de imprensa deve ser afirmada.
Restringir a liberdade de discussão e impedir os trabalhadores de atingir o
conhecimento que lhes é necessário. Todo o despotismo de outrora, todas as
ditaduras de hoje começam por perseguir a imprensa ou mesmo suprimir a sua
liberdade; qualquer restrição imposta a esta liberdade é o primeiro passo para
conduzir os operários à dominação pelos novos senhores, quaisquer que sejam.
Contudo, não é necessário que as massas sejam protegidas contra as mentiras, as
deformações e a propaganda enganadora dos seus inimigos? No domínio da
educação, só mantendo o indivíduo cuidadosamente afastado de influências
nefastas se poderá nele desenvolver a faculdade de lhes resistir e de vencê-las. A
classe operária não poderá nunca fazer a aprendizagem da sua liberdade,
submetendo-se a uma tutela espiritual. Quando os inimigos se apresentam
disfarçados em amigos, e quando, examinando a diversidade de opiniões, cada
partido tem tendência a considerar os outros todos como perigos para a classe,
quem deve determinar o verdadeiro e o falso? Os trabalhadores, seguramente;
devem encontrar o seu caminho nesse domínio, como em todos os outros. Mas
os trabalhadores poderão condenar como nocivas opiniões que, amanhã, se
revelarão as bases dum novo progresso. Contudo, só permanecendo aberta a
todas as ideias que a vinda de um novo mundo engendra no espírito dos homens,
pondo-as à prova e escolhendo as que lhe convêm, exercitando o seu raciocínio e
faculdades mentais, pondo as suas próprias conclusões em prática, é que a classe
operária conseguirá atingir a superioridade intelectual requerida para dominar o
poder do capitalismo e constituir uma nova sociedade.
Cada revolução da história foi uma época de febril atividade espiritual. Às
centenas, aos milhares, apareceram jornais e brochuras políticas testemunhando
a intensa auto-educação das massas. Na revolução proletária que virá não será
diferente. E ilusório pensar que, uma vez saídas da submissão, as massas terão
uma visão lúcida e uniforme e que seguirão o seu caminho sem hesitações, numa
unanimidade de opiniões. A história nos ensina que, em tais ocasiões, surge no
espírito humano uma profusão de ideias novas, as mais diversas expressões de
um mundo novo, entrada hesitante da humanidade num terreno novo que oferece
imensas possibilidades, o desabrochar da vida mental. É que só através da
confrontação de todas essas ideias se cristalizarão os princípios diretores
essenciais das novas tarefas. Os primeiros grandes sucessos, resultados de ações
espontâneas e unidas, destruindo as velhas cadeias, não farão mais que abrir
todas as grandes portas da prisão; os trabalhadores, pelos seus próprios esforços,
deverão descobrir então novas orientações para irem mais longe na via do
progresso.
Isto é o mesmo que dizer que esta época estará cheia do barulho das lutas
partidárias. Os que têm as mesmas ideias formarão grupos para discuti-las entre
si e propagar, para esclarecer os seus camaradas. Tais grupos, com as mesmas
opiniões, poderão ser chamados partidos, se bem que o seu caráter seja
totalmente diferente do desses partidos políticos que o antigo mundo conheceu.
Sob o regime parlamentar, os partidos políticos são os órgãos representantes de
interesses de classe diferentes ou opostos. No movimento da classe operária
apresentavam-se como organizações, tomando a direção da classe, agindo como
seus porta-vozes e seus representantes, e aspirando a guiá-la e dominá-la. A nova
função dos partidos estará antes limitada à luta espiritual. A classe operária não
tem necessidade deles para a sua ação prática; terá criado os seus novos órgãos
para a ação, os conselhos. Na organização da fábrica, a organização em
conselhos, será a totalidade dos operários que agirá e que deverá decidir o que
haverá a fazer. Nas assembleias e nos conselhos, as diferentes opiniões serão
expostas e defendidas e da controvérsia deverá sair a decisão e ação unânime.
A unidade de objetivo só poderá ser atingida pela discussão de pontos de vista
divergentes. A função dos partidos, e é uma função importante, será fazer tomar
forma à opinião, organizá-la por trocas, discussões, proceder de maneira que as
ideias nascentes tomem formas concisas, que se clarifiquem, que os argumentos
sejam exprimidos duma forma compreensível e pela sua propaganda, fazê-los
conhecer por toda a gente. Só desta maneira os trabalhadores, nas suas
assembleias e conselhos, poderão julgar da verdade dessas ideias e argumentos,
dos seus méritos, da sua aplicabilidade em cada caso particular; poderão então
tomar as suas decisões com pleno conhecimento de causa. É assim que as forças
espirituais, criadas pelas ideias novas, que germinarão como ervas selvagens em
todas as cabeças, serão organizadas, postas em forma, transformadas em
instrumentos utilizáveis pela classe. Eis a grande tarefa que deve desempenhar a
luta entre partidos no decorrer do combate dos trabalhadores pela sua libertação,
tarefa muito mais nobre que aquela na qual os velhos partidos gastavam todos os
seus esforços: apoderar-se do poder por si próprios.
Passar da supremacia de uma classe para a da outra, eis um elemento essencial
de qualquer revolução, tanto nas do passado como na da classe operária. Esta
transição não depende da sorte, de acontecimentos acidentais. Se os acidentes.
Os altos e baixos dependem de condições e situações diversas, que são
impossíveis de prever, constata-se igualmente, desde que se examinem as coisas
dum ponto de vista mais alargado, que existe uma marcha para diante bem
definida e que pode ser estudada com antecedência. Trata-se do crescimento do
poder social da classe ascendente e do enfraquecimento do poder social da classe
em declínio. Essas rápidas variações de poder, visíveis apesar de tudo, são a
característica fundamental das revoluções sociais. É preciso que estudemos
também mais de perto os elementos, os fatores constituintes do poder das classes
que se opõem.
O poder da classe capitalista consiste, em primeiro lugar, na posse do capital.
Ela é a dona de todas as fábricas, das máquinas, das minas, de todo o aparelho
produtivo da sociedade. A humanidade depende por isso desta classe para
trabalhar e viver. Com o seu dinheiro e poder que este lhe confere, pode não
somente comprar os servidores para seu uso pessoal, mas, quando é ameaçada,
pagar a um número ilimitado de homens, jovens e robustos, para defender o seu
domínio, organizando-os em grupos bem armados e assegurando-lhes uma
posição social. Pode também, fornecendo-lhes lugares de honra e bons salários,
comprar artistas, escritores e intelectuais, não só para divertir e servir os
senhores do momento, mas também para cantar os seus louvores, para celebrar a
sua autoridade e, pela astúcia e também pelo saber, defender o seu domínio de
toda a crítica.
Mas o poder espiritual da classe capitalista tem raízes mais profundas que a
possibilidade de comprar inteligências. A burguesia, donde é oriunda a camada
superior da classe capitalista, foi sempre uma classe iluminada e confiante em si
própria, graças à sua larga visão que se estende à escala do mundo. Para ela, a
existência, o trabalho, o sistema de produção deveriam assentar sobre a cultura e
o saber. Os seus princípios – reconhecimento da propriedade privada,
responsabilidade pessoal, exaltação do esforço e da energia individual
impregnam toda a sociedade. Os trabalhadores transportam para si mesmos essas
ideias; elas vêm-lhes dos meios pequeno-burgueses arruinados donde provêm, e
todos os meios físicos e espirituais possíveis são postos em ação para preservar e
reforçar a influência destas ideias pequeno-burguesas sobre as massas. Assim, o
domínio da classe capitalista está firmemente enraizado no pensamento e mesmo
nos sentimentos da maioria escravizada.
O fator mais importante; do poderio da burguesia continua a ser a sua
organização política: o poder do Estado. Somente uma sólida organização pode
permitir a uma minoria governar a maioria. A unicidade e a continuidade dos
fins e a vontade do governo central, a disciplina da burocracia de funcionários,
que enerva a sociedade inteira como o sistema nervoso se ramifica em todo o
corpo e que é animada e dirigida por um mesmo estado e espírito, a
possibilidade da dispor de uma força armada sempre que é necessário, tais são os
meios que permitem a esta minoria assegurar o domínio incontestável sobre a
população. A solidez da fortaleza exalta ao máximo as forças físicas da
guarnição e cria um poder indomável que reina sobre uma região inteira; o
mesmo acontece com o poder do Estado: consolida as forças físicas e espirituais
da classe dominante e cria uma fortaleza inatacável. O respeito que os cidadãos
têm pelas autoridades, respeito que provém do sentimento de que a existência de
autoridades é uma necessidade e a influência de tradições e da educação,
assegura normalmente a marcha sem atropelos do aparelho. Se o
descontentamento levasse a população à revolta, que poderia fazer desarmada e
sem organização, contra as forças armadas, bem organizadas e disciplinadas, do
governo? Com o desenvolvimento do capitalismo, o poderio duma burguesia
numericamente importante encontra-se concentrado nas mãos de um número
cada vez mais pequeno de grandes capitalistas; o Estado concentra-se também,
aumenta o seu poder e, estendendo cada vez mais as suas funções, acrescenta;
sempre a sua influência sobre a sociedade.
Que pode a classe operária opor a essas formidáveis forças?
Cada vez mais a classe operária constitui a parte maior da sociedade
(sobretudo nos países ditos avançados); está concentrada em empresas
industriais gigantes. Todas as máquinas, todo o aparelho produtivo da sociedade
está nas suas mãos, não juridicamente sem dúvida, mas literalmente, na prática.
É verdade que os capitalistas são os senhores e os proprietários, mas nada podem
fazer além de comandar. Se a classe operária não fizer caso das suas ordens, não
podem fazer trabalhar as máquinas. Os trabalhadores, esses podem. Os operários
são os senhores diretos e reais das máquinas; quer seja obedecendo a ordens ou
decidindo por si próprios, podem fazê-las funcionar ou pará-las. São eles que
desempenham a função econômica mais importante: toda a sociedade assenta
sobre o seu trabalho.
Esta força de origem econômica fica adormecida tanto tempo quanto os
trabalhadores forem subjugados pelas ideias burguesas. É a consciência de classe
que faz uma força efetiva. Pela prática de vida e do trabalho, os trabalhadores
descobrem que formam uma classe muito particular, explorada pelo Capitalismo,
que eles devem combater para se libertarem eles próprios da exploração. A sua
luta obriga-os a compreender a estrutura do sistema econômico, a conhecer o
que é a sociedade. Apesar de todas as propagandas contrárias, este novo
conhecimento tirará das suas cabeças as ideias burguesas tradicionais, porque se
enraíza na verdade, na realidade vivida quotidianamente, enquanto que as velhas
ideias exprimem as realidades passadas de um mundo acabado.
É pela organização que as forças econômicas e espirituais se transformarão em
poder ativo. A organização liga todas as vontades diferentes numa unidade de
fim e reúne as forças isoladas em poderosa unidade de ação. As suas formas
exteriores podem modificar-se e diversificar-se segundo as circunstancias, mas
ela tira a sua essência, o seu novo caráter moral, da solidariedade do firme
sentimento comunitário, do devotamento do espírito de sacrifico, da
autodisciplina. A organização é o princípio vital da classe operária, a condição
da sua emancipação. Uma minoria governando graças a uma forte organização,
não poderá ser vencida e não o será certamente, a não ser pela organização da
maioria.
Assim se erguem, frente a frente, os elementos constitutivos do poderio das
classes antagonistas. Os elementos do poder da burguesia aí estão, imensos e
temíveis, porque são forças que existem e dominam, enquanto que os do poder
da classe operária, à partida insignificantes, devem desenvolver-se com o
impulso duma vida nova. A classe operária cresce em número e em importância
econômica, pela mesma razão que o capitalismo se desenvolve; mas outros
fatores de poder, tais como a clarividência e a organização, dependem dos
esforços dos próprios trabalhadores. São esses fatores que determinam a eficácia
na luta e por consequência eles são os resultados dessa mesma luta; todo o revés
obriga, com efeito, as células cinzentas e os cérebros a procurar remédio, todo o
sucesso enche os corações duma confiança plena de ardor. O despertar da
consciência de classe, um conhecimento mais profundo da sociedade e do seu
desenvolvimento, acarretam a libertação da escravatura espiritual, o fim da
passividade, a abertura às forças intelectuais, a ascensão das massas a uma
verdadeira humanidade. A união para um combate comum é já,
fundamentalmente, uma libertação social; os trabalhadores, escravizados pelo
capital, reencontram a sua liberdade de ação. Da submissão acordam para a
independência, coletivamente, por essa união organizada que desafia o poder dos
seus senhores. Progredir, para a classe operária, é fazer avançar os fatores do seu
poder. O que pode ser ganho como melhoria das condições de trabalho e de vida
depende da força que os trabalhadores adquiriram; se esta força declina, mesmo
relativamente – seja em relação à do capitalismo, seja em consequência de uma
clarividência e de esforços insuficientes ou de mudanças sociais inevitáveis –, as
condições de trabalho dos operários sofrerão. Só há um critério para julgar
qualquer forma de ação, tática, método de luta ou forma de organização:
aumentam ou não o poder dos trabalhadores? Na situação presente, sem dúvida,
mas também, e é o essencial, com vista ao futuro para atingir o fim supremo, a
destruição do capitalismo. Ontem o sindicalismo deu forma aos sentimentos de
solidariedade e de unidade e reforçou a força combativa dos operários,
agrupando-os numa organização eficaz; mas mais tarde, quando reprimiu todo o
espírito de luta e fez passar a obediência aos chefes à frente do instinto de
solidariedade de classe, o desenvolvimento do poder da classe operária foi
entravado. Ontem também, o trabalho dos partidos socialistas contribuiu
fortemente para despertar, nas massas, o interesse pela política e sua
compreensão; mas quando mais tarde esses partidos se puseram a tentar
restringir as atividades das massas ao parlamentarismo e começaram a pregar-
lhes ilusões de democracia política, tornaram-se uma fonte de fraqueza.
A classe operária deve fazer surgir sua força no curso das ações futuras,
superando essas dificuldades passageiras. Deve esperar-se, sem dúvida, por um
período de crises e combates; poderão ocorrer alternâncias de calma, de recaída,
de consolidação do capitalismo. É então que tradições e ilusões poderão agir
momentaneamente como fatores de enfraquecimento. Mas é também então que
se poderá aproveitar asses períodos de descanso para uma preparação e, graças a
uma propaganda perseverante, para fazer penetrar mais nos trabalhadores as
novas ideias de autodeterminação e de organização em conselhos. Neste
momento, e, aliás, desde agora, a tarefa de cada operário que tomar consciência
das possibilidades de libertação da sua classe, será a de expandir as suas ideias
entre os camaradas, tentar sacudir a indiferença e abrir os seus olhos. Esta
propaganda desempenha um papel essencial para o futuro. A realização prática
de uma ideia é impossível, enquanto não tiver penetrado amplamente os espíritos
das massas. A luta é uma fonte inesgotável de poder para a classe em
desenvolvimento. Não se pode prever agora que formas revestirá o combate dos
trabalhadores pela sua libertação. Conforme as épocas e os lugares, poderá tomar
a forma de guerra civil encarniçada, forma que as revoluções de outrora, onde
era necessário forçar a decisão, conheceram frequentemente. Poder-se-ia pensar
que os trabalhadores não teriam, em tal caso, qualquer possibilidade, porque os
governos e os capitalistas podem recrutar exércitos em numero ilimitado, graças
ao seu dinheiro e autoridade. De fato, a força da classe operária não pode
exercer-se plenamente nestes confrontos sangrentos, os massacres e a matança.
O seu verdadeiro terreno é o domínio do trabalho, do trabalho produtivo e, para
mais, esta força reside na superioridade de espírito e de caráter dos membros da
classe. E, na própria luta armada, a superioridade capitalista não é incontestável.
A produção de armas está nas mãos dos trabalhadores; a ação das tropas
mercenárias depende do seu trabalho. Se estas tropas forem em número limitado
e se toda a classe operária, unida e sem temor, se erguer contra elas, elas serão
reduzidas à impotência e submersas pelo número. Se, pelo contrário, estas tropas
forem numerosas, compreenderão necessariamente trabalhadores acessíveis ao
apelo de solidariedade de classe.
A classe operária deve encontrar e desenvolver as formas de luta adaptadas às
suas necessidades. Lutar pressupõe que ela siga a via que escolheu livremente,
guiada pelos seus interesses de classe, independente dos seus antigos mestres,
portanto oposta a eles. As suas faculdades criadoras afirmam-se na luta através
da descoberta das vias e dos meios. Outrora, as formas de luta da classe operária
tinham surgido espontaneamente da sua prática e da sua imaginação; greve, voto,
manifestação de rua, meeting de massa, panfletos, greve política, eis alguns
exemplos. O mesmo acontecerá no futuro. As ações, quaisquer que sejam as
formas assumidas, terão sempre as mesmas características, o mesmo fim, o
mesmo efeito: acrescentar os elementos próprios do poder da classe, enfraquecer
e destruir as forças do inimigo. A julgar pela experiência, são as greves políticas
das massas que têm as mais fortes consequências; no futuro poderiam ser ainda
mais eficazes. No decurso destas greves, nascidas de crises agudas no seio de
fortes tensões, os arrebatamentos são demasiado impetuosos, as perspectivas
demasiado vastas, para que sindicatos ou partidos, comitês ou estados-maiores
de dirigentes oficiais possam assumir o seu comando. Trazem a marca das ações
diretas de massas. Os trabalhadores não entram em greve individualmente, mas
por fábrica, enquanto pessoal que decide coletivamente a ação. Formam-se
imediatamente comitês de greve, que agrupam os delegados de todas as
empresas e apresentam já características dos conselhos operários. Devem
realizar a unidade na ação e, tanto quanto possível, a unidade nas ideias e nos
métodos, assegurando a interação continua entre os impulsos da luta, no seio das
assembleias de fábrica, e as discussões no seio dos conselhos. Assim, os
trabalhadores criam os seus próprios órgãos, opondo-se aos órgãos da classe
dominante.
Tal greve política é uma espécie de revolta, ainda que sob forma legal, dirigida
contra o governo. Tenta, ao paralisar a produção e as trocas, exercer uma pressão
tal que o governo seja obrigado a ceder às reivindicações dos trabalhadores. Por
seu lado, o governo, recorrendo às medidas políticas de interdição das reuniões,
de suspensão da liberdade de imprensa, de mobilização das forças armadas – isto
é, transformando a sua autoridade legal numa força arbitrária, mas bem real –
tenta quebrar a determinação dos grevistas. Nisso é ajudado pela própria classe
dominante que, graças ao seu monopólio da imprensa, faz a opinião pública e
tenta, através de uma propaganda intensa à base de calúnias, isolar e
desencorajar os grevistas. A classe dominante consegue também recrutar
voluntários, não somente para manter um mínimo de atividade nas trocas e nos
serviços públicos, mas também para formar bandos armados que aterrorizam os
trabalhadores e procuram levar a greve para o terreno da guerra civil, forma que
melhor convém à burguesia. A greve não pode durar indefinidamente e uma das
partes, a que possui mais fraca coesão interna, tem de ceder.
As ações de massas e as greves universais são a luta de duas classes, de duas
organizações que, apoiando-se cada uma na sua própria coesão, procuram que a
outra dobre e, finalmente, quebre. Isto não pode fazer-se no decurso de uma
única ação; é preciso uma sucessão de lutas, toda uma época de revolução social.
Porque cada uma das classes antagônicas dispõe de recursos profundos, que
constituem a base do seu poder e que lhes permite refazer-se depois de um revés.
Os trabalhadores podem ser desencorajados e vencidos num dado momento, as
suas organizações podem ser destruídas, os seus direitos abolidos, mas as forças
sempre em movimento do capitalismo, as suas próprias forças internas e a sua
vontade de viver, erguê-los-ão uma vez mais. O capitalismo, por sua vez,
também não pode ser destruído de um só golpe; mesmo se a sua fortaleza, o
Estado e o seu poder, forem sacudidos e demolidos, a classe capitalista dispõe
ainda de todo o peso das suas forças físicas e espirituais. A história é pródiga de
exemplos de governos totalmente desamparados, mesmo abatidos pela guerra e
pela revolução, que foram repostos no lugar pelo poder econômico da burguesia,
seu dinheiro, suas capacidades intelectuais, sua paciente habilidade, sua
consciência de classe que se encarna num ardente sentimento nacional. Mas,
finalmente, a classe operária que constitui a maioria do povo, aquela cujo
trabalho está na base de toda a sociedade, aquela que tem a disposição direta do
aparelho de produção, essa classe deve arrebatá-lo. E esta vitória deve tomar a
forma duma dissolução e dum desabamento do poder do Estado, a mais potente
organização da classe capitalista, sob a ação de uma sólida organização da classe
majoritária.
Aí onde a ação dos trabalhadores for tão poderosa que os próprios órgãos do
governo sejam paralisados, os conselhos deverão desempenhar as funções
políticas. Os trabalhadores deverão assegurar a ordem e a segurança pública,
ocupar-se da continuidade da vida social, os conselhos são os órgãos apropriados
para essa tarefa. O que é decidido nos conselhos é posto em prática pelos
trabalhadores. É por isso que os conselhos se tornarão os órgãos da revolução
social. Com os progressos da revolução, as suas tarefas terão cada vez maior
amplitude. Enquanto durar a luta das classes pela supremacia, tentando cada
uma, graças à solidez da sua organização, quebrar a da outra, a sociedade deve
continuar a viver. Mesmo que nos momentos críticos de alta tensão ela possa
viver das reservas de gêneros, a produção não pode estar parada por um tempo
muito longo. É por esta razão que os trabalhadores, se as suas forças internas de
organização falham, são constrangidos pela fome a ficar de novo sob o antigo
jugo. É a razão pela qual, se forem suficientemente fortes para desafiar, rechaçar
e abater o poder do Estado, se conseguirem sobrepor-se à violência, se se
tornarem senhores das fábricas, devem imediatamente ocupar-se da produção.
Serem senhores das fábricas traz imediatamente a necessidade de organizar a
produção. A organização posta a funcionar para a luta, os conselhos, será
igualmente a organização da reconstrução.
Diz-se dos Judeus da Antiguidade que construiriam os muros de Jerusalém,
que lutaram com a espada numa mão e a pá na outra. Aqui a espada e a pá serão
uma só. Construir a organização da produção é pôr em marcha a arma mais
poderosa, pode mesmo dizer-se a única arma verdadeira, para destruir o
capitalismo. Por toda a parte onde os trabalhadores abriram o seu caminho nas
fábricas e se apoderaram das máquinas, devem imediatamente começar a
organizar o trabalho. Aí onde a direção capitalista tenha desaparecido, tenha
perdido toda a audiência e poder, os trabalhadores reconstruirão a produção
sobre novas bases. Pela sua ação prática, estabelecerão o novo direito, a nova lei.
Não poderão esperar que a luta tenha completamente terminado por toda a parte,
em todos os domínios; a nova ordem deverá nascer de baixo, partir das fábricas,
trabalho e luta misturados.
Simultaneamente, os órgãos do capitalismo e do governo definharão até se
tornarem coisas completamente supérfluas e estranhas à nova ordem. Poderão
ainda fazer mal, mas terão perdido essa autoridade de que se revestem as
instituições úteis e necessárias. Então os papéis serão invertidos. É uma
evidência que se imporá cada vez mais a todos. A classe operária e os seus
órgãos, os conselhos, formam o poder que determina a ordem, porque a vida e
prosperidade da população inteira dependem do seu trabalho e da sua
organização. As medidas e os regulamentos decididos nos conselhos, executados
e seguidos pelas massas trabalhadoras, serão respeitados e reconhecidos como
emanando de uma autoridade legítima. Ao contrário, os velhos organismos
governamentais enfraquecerão, para se tornarem forças exteriores que tentarão
simplesmente impedir a estabilização da ordem nova. Os bandos armados da
burguesia, mesmo que ainda se mantenham poderosos, tomarão cada vez mais o
caráter de perturbadores ilegais, de destruidores nocivos, no mundo de trabalho
em plena ascensão. Causadores de agitação, acabarão por ser submetidos e
dissolvidos.
Eis tanto quanto nos é possível prevê-lo neste momento, a maneira como o
poder do Estado desaparecerá, com o desaparecimento do próprio capitalismo.
Outrora predominavam ideias diferentes sobre a futura revolução social.
Pensava-se que a classe operária devia primeiramente conquistar o poder
político, alcançando através de eleições a maioria no parlamento, eventualmente
com a ajuda de lutas armadas ou de greves políticas. O novo governo que dai
resultaria, composto de porta-vozes, de chefes e políticos, teria, por decreto,
estabelecido um novo direito, expropriado a classe capitalista e organizado a
produção. Os próprios trabalhadores apenas teriam tido que fazer metade do
trabalho, a parte menos essencial; o trabalho real, a reconstrução da sociedade, a
organização do trabalho, teria sido realizada pelos políticos e burocratas
socialistas. Esta concepção é a imagem da fraqueza da classe operária dessa
época; pobre, miserável, sem poder econômico, era-lhe necessário ser conduzida
à terra prometida da abundância por outros, por chefes capazes, por um governo
cheio de boas intenções. E, bem entendido, assim continuaria na sujeição,
porque a liberdade não se dá, conquista-se. Esta ilusão fácil foi dissipada pelo
crescimento do poder do capitalismo. Hoje, os trabalhadores devem
compreender que só desenvolvendo ao mais alto grau o seu próprio poder,
poderão esperar conquistar a sua liberdade, devem compreender que a
dominação política, o domínio da sociedade tem de estar fundamentados no
poder econômico, no domínio do trabalho.
A conquista do poder político pelos trabalhadores, a abolição do capitalismo,
o estabelecimento do novo Direito, a apropriação das empresas, a reconstrução
da sociedade, a construção dum novo sistema de produção, não são elementos
sucessivos e distintos. São simultâneos, coexistem no desenrolar de um processo
de transformação social. São de fato aspetos diferentes, batizados com nomes
diferentes, dum mesmo processo, duma grande revolução social: a organização
do trabalho pela humanidade trabalhadora.
Table of Contents
Apresentação
Introdução: Pannekoek - Teórico dos Conselhos Operários
Capitulo I: O Trabalho
Capitulo II: A Lei e a Propriedade
Capitulo III: A Organização no Local de Trabalho
Capitulo IV: A Organização Social
Capitulo V: Objeções
Capitulo VI: Dificuldades
Capitulo VII: A Organização dos Conselhos
Capitulo VIII: Crescimento
Capitulo IX: O Sindicalismo
Capitulo X: A Ação Direta
Capitulo XI: A Ocupação de Fábrica
Capitulo XII: As Greves Políticas
Capitulo XIII: A Revolução Russa
Capitulo XIV: A Revolução dos Trabalhadores

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