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M 2015

1 • Introdução
As Cartas Portuguesas:
relação entre texto e imagem
Relatório de Projecto
MARINA DA SILVA MOTA
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO APRESENTADA
À FACULDADE DE BELAS ARTES DA UNIVERSIDADE DO PORTO
EM DESIGN GRÁFICO E PROJECTOS EDITORIAIS
As Cartas Portuguesas:

5 • Introdução
relação entre texto e imagem
Relatório de Projecto

Relatório de projecto apresentado para cumprimento dos requisitos


necessários à obtençãodo do grau de Mestre em Design Gráfico
e Projectos Editoriais, realizada sob a orientação científica do Professor
Doutor Rui Vitorino dos Santos.

Setembro, 2015
Ao Prof. Doutor Rui Vitorino dos Santos,

7 • Introdução
pelo empenho e dedicação com que me orientou.
À família, amigos e colegas de mestrado.
Resumo

Este relatório de projecto tem como objectivo reflectir sobre o papel do ilustrador, enquanto

9
autor e mediador na relação entre texto e ilustração. O ilustrador tem a capacidade de inter-
pretar o enunciado narrativo de um outro autor, consegue transformá-lo pelo seu próprio
pensamento, reflectindo as memórias, as emoções, as experiências e a perspectiva como vê e
cria o seu próprio mundo. A ilustração é um exercício de autoria. A forma como pode repre-
sentar um texto é baseada na interpretação dos signos escritos, por norma associados às pa-
lavras, revelam o que está implícito, conferem novos significados. Dedicamo-nos a perceber
o que faz um ilustrador com o texto que lê e como utiliza esse mesmo texto para ilustrar. Esta
investigação propõe uma nova abordagem As Cartas Portuguesas de Mariana Alcoforado, um
projecto sobre a forma de um livro ilustrado, uma reflexão sobre a interpretação da ilustra-
ção enquanto suporte da construção narrativa.

Palavras - Chave
Design Editorial, Ilustração, Autoria, Interpretação, Mariana Alcoforado
Abstract
This project report has as purpose to think about the illustrator’s as an author and a media-

11
tor of the relationship between the text and the illustration. The illustrator has the capacity
of interpreting another authors narrative briefing, convert it in is own thought, reflecting
the memories, emotions, experiences and the perspective of how he sees and creates his
own world. Illustration is an authorship exercice. The way it can represent a text is based
on the interpretation os the written signs, usually related to words, revealing what is implic-
it, checking new meanings. We dedicate ourselves to understand what an illustrator does
with the text he reads and how he uses the same text to illustrate it. This investigation pro-
poses a new approach to As Cartas Portuguesas by Mariana Alcoforado, a project shaped as
an illustrated book, a reflection about the interpretation of the illustration as the base of
the narrative construction.

Keywords
Editorial Design, Illustration, Authorship, Interpretation, Mariana Alcoforado
Índice
Agradecimentos • 7

13
Resumo • 9

Abstract • 11

Introdução • 16

Cap. I As Cartas Portuguesas de Soror Mariana Alcoforado • 19


1.1 Síntese Histórica • 19
1.2 Alegoria e Caracterização Literária das Personagens •22
1.3 Autenticidade e Tradução das Lettres Portugaises • 26
1.4 Legiões de Alcofodoristas • 29

Cap. II O ilustrador: intermediário na relação do texto e da imagem • 35


2.1 Pensar a Imagem. Da percepção visual para o tratamento visual. • 35
2.2 Ilustração e semiótica: construção de mensagens usando signos • 38
2.3 A construção narrativa: entre texto e ilustração • 40
2.4 A ilustração e a estrutura da mensagem • 42
2.4.1 A Interpretação • 42
2.4.2 A Metáfora • 46
2.5 O ilustrador enquanto intérprete ou autor • 47
2.6 Casos de Estudo • 50

Cap. III Projecto Prático • 75


3.1 O Artefacto • 75
3.2 Os desenhos e os desígnios da ilustração • 85
3.2.1 Primeira Carta • 87
3.2.2 Segunda Carta • 90
3.3.3 Terceira Carta • 93
3.3.4 Quarta Carta • 96
3.3.5 Quinta Carta • 100

Conclusão • 105
Lista de Figuras • 109

Referências Bibliográficas • 111


Introdução

As imagens ilustradas, comunicam visualmente, revelam uma metodologia específica de

15 • Introdução
pensamento e processo. Cada ilustrador domina uma expressão singular, uma forma única
de se exprimir, onde manifesta a participação cognitiva e afectiva, na tentativa de interpretar
o texto, desvendando o seu sentido implícito. Através da individualização da subjectividade
e da poética, constroem-se soluções narrativas, gráficas e plásticas únicas.
A ilustração ao recorrer à metáfora visual, para a comunicação, evoca significados interpre-
tativos, é regularmente, de comentário autoral. Aquilo que perspectivamos ser o processo de
ilustração, actualmente. Uma reflexão visual que procura transmitir ao leitor e observador
as dimensões que o texto suporta. A configuração entre a linguagem verbal e a expressão vi-
sual é transposta para o artefacto imbuída de experiências, memórias e conhecimento, tudo
aquilo que o corpo permite ao autor sentir.

Para desenvolver esta investigação construímos o relatório de projecto na seguinte for-


ma: num primeiro capítulo As Cartas Portuguesas de Soror Mariana Alcoforado, onde
contextualizaremos a obra e a autora que serviram de base para a concretização de pro-
jecto prático; num segundo capítulo, O ilustrador: intermediário na relação do texto e da
imagem tentaremos perceber os pressupostos teóricos que foram a base, para a aplicação
prática, em conjunto com a análise a três obras; por último, no Projecto prático descrevere-
mos o processo e as soluções aplicadas no livro ilustrado, o artefacto final que engloba este
relatório de projecto.

Na análise de As Cartas Portuguesas de Mariana Alcoforado salientaremos a importância da


pesquisa, uma etapa fundamental na criação dos livros ilustrados. Na recolha, sob a forma
de informação textual, procuramos uma síntese histórica, que situa a obra, na época e o seu
contexto social que consideramos essenciais para a sua tradução visual, no projecto prático,
a que nos propomos realizar. Assim como, uma breve explicação e caracterização da narra-
tiva textual e das personagens, presentes no texto. Através da visão de alguns autores, real-
çaremos várias controvérsias, sobre a prova e a autenticidade de As Cartas Portuguesas, ao
longo dos séculos, que atribuíram às mesmas, o título de lenda intemporal. Encerraremos o
capítulo com um levantamento de diversas interpretações que decorreram sob a influências
das cinco cartas, com a intenção de ressaltar o valor literário e as diferentes abordagens vi-
suais e textuais que se sucederam ao longo da história que contribuíram para o alargamento
narrativo da obra.

No estudo do ilustrador: intermediário na relação do texto e da imagem introduziremos a


necessidade de pensar a imagem e o que poderá ser entendido por imagem. Na tentativa de
compreender a relação entre texto e ilustração exploraremos a construção da narrativa, da
textual para a visual, mediante a visão do ilustrador. O mesmo que interpreta o texto, utili-
zando metáforas, com o intuito de construir novas formas de significar sobre o enunciado
narrativo, através de signos icónicos, figurativos, plásticos, e integrais.
É a reflexão sobre estes aspectos que nos permitirá perceber e identificar o papel/processo
16 • Introdução

do ilustrador, enquanto mediador entre o texto e a ilustração.


Para concluir, este capítulo, procederemos à análise de três obras. A selecção das publica-
ções para esta investigação requereram uma pesquisa cuidada. Interessou-nos privilegiar
uma selecção de livros, cuja narrativa gráfica, transparecesse uma linha de pensamento cui-
dada e direccionada, que justificassem e reforçassem a perspectiva teórica.

Em Lettres Portugaises, litografias de Henri Matisse (2004) procuraremos perceber a forma


como o artista interpretou e transpôs o texto para o artefacto, no caso de Todas as Cartas de
Amor (2014) de Paulo José Miranda, com ilustrações de Mariana, A Miserável, ressaltaremos
a exploração do livro enquanto objecto editorial. Por último, com o colectivo It’s Raining
Elephants analisaremos Die Grosse Flut (2011). Exemplos que nos abrem pistas sobre possí-
veis formas de interpretar um texto, com vários séculos e inúmeras interpretações.

Na análise sobre o Projecto prático descreveremos as várias etapas, na concretização real do


livro ilustrado, assumindo o papel de ilustradores e de designers gráficos.
A publicação desenvolve-se em diversas fases projectuais, iremos mencionar as escolhas re-
lativas: ao estudo do objecto, à interpretação do texto, à realização da ilustração, à edição e à
paginação do artefacto final. Através da aplicação dos conteúdos investigados, no decorrer
do relatório de projecto, incluído as dificuldades encontradas, ao longo da concretização fí-
sica do objecto. O livro, por ser um artefacto editorial que comunica através de um conjunto
de recursos semióticos, onde destacamos o texto, a ilustração e a materialidade do livro, que
requerem um tratamento particular nesta parte do relatório. Enquanto artefacto, tencioná-
mos explicar a utilização dos materiais e a escolha dos caracteres. Por último, mencionare-
mos o processo de trabalho, enquanto ilustrador e mediador entre o texto e a imagem, na
criação de uma interpretação singular.

Na fase inicial da estruturação de projecto, tínhamos o intuito de trabalhar sobre a temáti-


ca amorosa, nomeadamente, as cartas de amor. Roland Barthes (1981) sustenta que as car-
tas amorosas têm sempre um destinatário, mesmo que seja um destinatário futuro ou uma
identidade fantasmática. O autor salienta, contudo, que o discurso amoroso é um discurso
isolado, não havendo ninguém disposto a defendê-lo.
No processo de selecção, de um texto, que sustentasse as principais intenções desta inves-
tigação: compreender o papel do ilustrador como mediador entre o texto e a imagem. Ao
lermos As Cartas Portuguesas pela primeira vez interessou-nos explorar a autenticidade
exacerbada dos sentimentos de Mariana, que julgamos ser resultado do que Barthes define
como um processo de construção de extrema solidão.
O texto de Mariana Alcoforado diferencia-se de vários exemplos que consultámos. O tema

17 • Introdução
das cinco cartas de amor, não é uma simples troca diária de afectos ou um relato de activi-
dades que o casal pudesse fazer. Contam uma história, onde residem diferentes níveis de
sentimentos e metáforas que se revelaram no foco de interesse para o projecto. A publicação
final tenciona ser mais um contributo, contemporâneo, para preservar a potencialidade do
valor literário, presente nestas cartas e relembrá-las na actualidade.

No decorrer da investigação procuraremos perceber outras questões pertinentes, relaciona-


das com o nosso principal objectivo, nomeadamente: O que faz o ilustrador com o texto que
lê?; Como é que o ilustrador usa o texto a ilustrar?; Como poderá ser construído o espaço de
experimentação, transmutação, representação e significação?

A característica mais importante deste estudo encontra-se na modalidade de investigação


utilizada, um método de investigação aplicado, que propõe o desenvolvimento de um pro-
jecto prático. Com o intuito de construir um espaço de reflexão, oferecendo uma interdis-
ciplinaridade crítica entre o pensamento e a prática. Atribui-se o papel do ilustrador como
uma preocupação de relevo, na relação entre texto e imagem, aliado às motivações que sus-
citaram este trabalho, na tentativa de colmatar dúvidas e decisões para futuros projectos,
numa perspectiva de enriquecimento e crescimento profissional.

O relatório de projecto pretende ser uma reflexão sobre a acção de ilustrar, defendido como
um exercício de autoria, na interpretação do texto de um outro autor, deste modo, contri-
bui para a afirmação do que se compreende ser a ilustração nos nossos dias, na singula-
ridade do seu pensamento e enquanto recurso expressivo, impulsionadora na criação de
novos percursos semânticos.
Capítulo I

As Cartas Portuguesas de Soror Mariana Alcoforado

19 • Capítulo I
1.1 Síntese Histórica

Mariana Alcoforado, considerada contemporaneamente um mito nacional a “freira portu-


guesa, produto de muitas décadas de escritos, imaginativos e criativos, sobrepostos a um
registo histórico escasso e frequentemente contraditório, adquiriu a solidez e a coesão tran-
quilizadoras de uma lenda intemporal” (Klobucka, 2006, p.73).

Ao longo deste projecto descobriremos que um dos aspectos fundamentais no processo de


criação dos livros ilustrados relaciona-se com a pesquisa. Esta recolha de elementos especí-
ficos ou transversais, pode ser sob a forma de informação visual ou, como será narrado ao
longo deste capítulo, sob a forma de informação textual.

Gémeo Luís, refere na sua tese de doutoramento intitulada A importância do Ilustrador no


Processo do Livro que “na abordagem ao texto, quer este seja de carácter narrativo ou não
narrativo, a atitude do ilustrador passa pela desconstrução e comporta a leitura analítica, a
reescrita, o resumo, o levantamento de ideias-chave ou a listagem de novas palavras-chave.
O alargamento semântico proporcionado por estas estratégias, nomeadamente pela produ-
ção de texto paralelo ao inicial, proporcionam o distanciamento da ilustração face ao texto a
ilustrar, logo, o alargamento do espaço conceptual dos livros” (Fonseca, 2013, p.379).

Com este pressuposto, o ilustrador deve respeitar o texto original, “por via da insubmissão
da ilustração e consequente desvio de sentido” (Fonseca, 2013, p.379), enriquecendo o aumen-
to de possibilidades de interpretação, relativamente às expectativas criadas pelos leitores
e autores, ao criar um ambiente de trabalho favorável à descoberta, à experimentação e ao
aumento das hipótese de escolha.

Com base na importância atribuída à pesquisa, excedente ao enunciado narrativo, inicia-


mos esta investigação com uma síntese histórica, em torno de alguma informação escrita
sobre Soror Mariana Alcoforado e o mistério em redor de As Cartas Portuguesas, baseado
em opiniões, críticas e controvérsias de alguns escritores e historiadores, relevantes ao
longo dos séculos.

1. Anna Klobucka
Doutorada em Línguas e Literaturas Românicas pela Universidade de Harvard (EUA), professora no Departa-
mento de Português da Universidade de Massachusetts Dartmouth (EUA), lecciona literatura portuguesa e lite-
raturas africanas em língua portuguesa e colabora no projecto Women’s and Gender Studies. Autora de O Formato
Mulher: A Emergência da Autoria Feminina na Poesia Portuguesa (2009) e Mariana Alcoforado: Formação de um Mito
Cultural (2006). É editora executiva da revista Journal of Feminist Scholarship. Entre o ano de 2005 e 2006 foi Presi-
dente da American Portuguese Studies Association.
A alegoria sobre a freira portuguesa, segundo Anna Klobucka1, no livro Mariana Alcoforado:
20 • Capítulo I

Formação de um Mito Cultural, refere que dificilmente conseguimos afirmar que foi “um aci-
dente fortuito da história o facto da descoberta, a tradição e, por fim a ávida adopção das
Lettres portugaises, pelos portugueses, ter coincidido cronologicamente com a ascensão do
nacionalismo cultural moderno e, especificamente, com a constituição e agilização graduais
de uma das instituições fundamentais: a história da literatura nacional” (Klobucka, 2006, p.102).

E revela que, “o destino histórico literário das Lettres portuguaises em Portugal, como obra
notável e nacionalmente importante, por outras palavras, imbuída de notoriedade ‘sociogra-
mática’– concretizou-se, pela primeira vez, plenamente nos escritos de Teófilo Braga2, o mais
incansável investigador oitocentista do património cultural português”(Klobucka, 2006, p.108).

A primeira edição de As Cartas Portuguesas ocorreu no ano de 1669, em Paris, a obra anónima
denominada Lettres Portugaises, escrita em francês, apresentava-se, através de um “avis au
lecteur introdutório, como uma tradução igualmente anónima de cinco cartas de amor au-
tênticas, escritas por uma freira portuguesa chamada Marianne” (Klobucka, 2006, p.11).
Revelaram-se um êxito na época, foram traduzidas em diversos idiomas, durante a vida de
Mariana Alcoforado produziram-se “mais de cinquenta edições das cartas, em francês, in-
glês, alemão e italiano” (Saramago, 1994, p.166).

No entanto, o reconhecimento da obra literária e inclusive de Mariana foi moroso, demons-


tra-se importante o contributo de diversas gerações de escritores, historiadores, artistas, ci-
nematógrafos, entre outros, que interpretaram e analisaram as cartas atribuindo-lhes a rele-
vância literária actual, como explana Anna Klobucka: “Durante o primeiro século e meio da
sua existência, a fugida Marianne, cujo queixume se eleva das páginas das Lettres portugaises,
não passou de uma sombra textual anónima (...). Foi graças ao esforço de gerações de alcofo-
radistas portugueses que ela foi ganhando substância (...)” (Klobucka, 2006, p.19).

Em Portugal, no decorrer do século XVII, durante o reinado do rei D. Afonso VI, período em
que As Cartas Portuguesas foram escritas, o reino de Portugal e Espanha estavam em guerra.
Denominada a Guerra da Restauração, entre os anos de 1640 e 1668, neste último, ocorreu a
assinatura do Tratado de Lisboa que atribuiu a integral independência a Portugal.
A sociedade portuguesa desta época dominava uma tendência conservadora e consequen-
temente devota, contemplava “sacrificar as filhas em prol dos irmãos, era preceito da época
e tanto, que não se considerava castigo, antes constituía distinção, imolarem-se as meninas
a uma comunidade” (Martins, 2006, p.4), como afirma Rocha Martins, na introdução que escre-
veu para uma reedição de As Cartas Portuguesas, intitulada Soror Mariana.

Mas, apenas as famílias que pertenciam à nobreza o poderiam fazer, como explana Alfredo
Saramago3, no ensaio histórico sobre o Real Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição: “por ra-
zões que andavam distantes da verdadeira fé e da devoção, o convento ia abrindo as portas
ás senhoras das melhores famílias do reino que, impedidas de constituírem casa na vida

21 • Capítulo I
laica, no convento pretendiam encontrar condições dignas do seu estatuto social. Era me-
lhor ser freira de convento rico e influente do que senhora solteira, sem dote e sem marido, e
a falta de dote ou marido continuava a constituir a principal razão de ingresso no mosteiro”
(Saramago, 1994, p.82).

Segundo os registos do Real Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição: “Mariana Alcofora-


do nasceu em Beja, a 22 de Abril de 1640 e era filha de Francisco da Costa Alcoforado. O pai
foi executor de almoxarifado de Beja, procurador às cortes de 1642 a 1645, coudel-mor e juiz
de fora. (...) Pertenceu à ordem de Cristo e foi guerreiro destemido” (Saramago, 1994, p.164). Filha
de nobre ingressou “para o convento em 1656, com dezasseis anos” (idem, 1994, p.164).

A questão controversa sobre a verdadeira entidade da freira persistiu durante anos. Mas,
segundo o livro de óbitos de 1710 a 1743 existe o registo do falecimento de Mariana Alco-
forado com as habituais lisonjas de comportamento: “era muito exemplar, com todos os
seus anos gastos ao serviço de Deus; ninguém dela teve queixa e era muito benigna para to-
dos... durante trinta anos de fé, de ásperas penitências e padeceu de graves enfermidades...”
(Saramago, 1994, p.166).

No decorrer da nossa investigação é referido que a freira tinha um irmão, que conforme as
ambições paternais, para a época, este “devia nobilitar mais o nome da família (...) era da tro-
pa, tenente ou capitão dum regimento que operava conjuntamente com cavaleiros franceses
do Conde de Schomberg, comandante e chefe dos exércitos” (Martins, 2006, p.6). A presença
de oficiais e soldados estrangeiros em Portugal, durante a Guerra da Restauração, tinha como
principal propósito impedir o exército espanhol de conquistar Évora.

Nesta breve contextualização histórica, sobre Soror Mariana Alcoforado conseguimos situar no
tempo, o período em que As Cartas Portuguesas puderam ter sido escritas.
Assim como, obter um sucinto retrato social dos costumes, de uma sociedade devota e con-
servadora do século XVII, em Portugal. Revela-se fácil entender a condição, referida ao longo
das cartas, por Mariana Alcoforado, de estar confinada a um Convento. Visto que, era uma
prática corrente na época, para as meninas das famílias nobres do reino. Todos os aspectos
abordados sobre a contextualização das Lettres portugaises são tidos como possibilidades de
criação, do livro ilustrado, que engloba este relatório de pesquisa.

2. Teófilo Braga
O político, escritor e ensaísta português Joaquim Teófilo Fernandes Braga, frequentemente nominado por
Teófilo Braga, nasceu em 1843. A sua primeira obra literária Folhas Verdes foi publicada em 1959. Desenvolveu
diferenciadas produções textuais sobre etnografia, poesia, ficção, filosofia e história literária.
3. Alfredo Saramago
Alfredo Saramago, nasceu em 1938, formou-se na área das ciências sociais e humanas, fez o doutoramento em
Antropologia,
e trabalhou como investigador, entre França e Inglaterra. A sua investigação centraliza-se sobre as temáticas de
história, gas-tronomia e tradições gastronómicas.
1.2 Alegoria e Caracterização Literária das Personagens

“Jamais tão esbeltos militares tinham aparecido nos campos alentejanos. E em seus unifor-
22 • Capítulo I

mes vistosos, azuis e oiro, verdes e prata, alambazados, cintilantes, os oficiais faziam mano-
brar os seus esquadrões nos terreiros vastos, quando não assomavam na raia os inimigos
chamando-os a combater” (Martins, 2006, p.6).

O texto introdutório da reedição intitulada Soror Mariana, Rocha Martins4, escreve de for-
ma fantasiosa e por vezes irónica, uma história subjacente às Cartas Portuguesas. Uma intro-
dução que acrescenta detalhes e uma possível caracterização de determinados pormenores
sobre as personagens, que ajuda o leitor a criar imagens visuais, ao iniciar a leitura das car-
tas, visto que, as mesmas não revelam muito do ambiente envolvente.
Acima citado, é referida uma caracterização generalizada dos militares da época, que habi-
tavam pelos campos alentejanos.

Joana Quental, no seu estudo A Ilustração enquanto Processo e Pensamento. Autoria e Interpre-
tação direccionado para a relação entre o ilustrador e a ilustração, no âmbito do processo de
design, refere Platão e Aristóteles, no primeiro capítulo Da história do conceito de Ilustração.
Afirma que Platão “constrói um argumento essencial para a ilustração: a possibilidade de
antecipar, de projectar algo de novo, a partir das imagens suscitadas por palavras. Chama a
estas construções da alma ‘pinturas de prazeres’, pinturas que advêm de opiniões, suscitadas
pelas sensações e pela memória. Aristóteles reformula os pressupostos de Platão: a percep-
ção das coisas que existem além de nós suscita uma imagem mental que corresponde ao co-
nhecimento do mundo e, por isso, ver corresponde a pensar. O conhecimento advém então,
das sensações proporcionadas pelas formas sensíveis (...)” (Quental, 2009, p.26).

Partindo deste princípio que a ilustração “corresponde a uma necessidade de conhecer e de


fundamentar o saber” (Quental, 2009, p.29) ao longo deste subcapítulo, sobre a alegoria e carac-
terização literária das personagens iremos ressaltar alguns excertos de textos, que revelaram
um factor importante para a construção do universo visual, presente no projecto prático, e
uma melhor compreensão da história que sustenta a lenda intemporal das cartas.

Rocha Martins, continua a caracterização dos cavaleiros, ao narrar que “ (...) só chamavam
pela divindade nas horas das preces apressadas em que lhe solicitassem prazeres. Fora disto,
bravos, valentes, viciosos, bebendo e jogando, os cachimbos atulhados de tabaco, ignoran-
tes, cheios de garbo nas fardas vistosas, prontos a dar vida numa batalha ou num duelo, mas
sendo em amor tão voláteis como nas pelejas, iam devastando sempre o maior número de
corações e de inimigos” (Martins, 2006, p.7).

Sobre Mariana Alcoforado, “a freira portuguesa tem sido retratada de muitas e variadas ma-
neiras pelos seus interpretes e as Lettres portugaises mantiveram uma presença constante,
ocasionalmente até como centro de animados debates, no cânone referencial dos estudos
literários internacionais” (Klobucka, 2006, p.21).
Rocha Martins, descreve “o seu olhar terno de donzela falha de carinhos, criada longe dos

23 • Capítulo I
afagos maternos, na figura esbelta e forte, graciosa e audaz, dum capitão de cavalaria cujo
nome quisera, desde logo, conhecer” (Martins, 2006, p.8). Noel, era o nome do cavaleiro, que
utilizava o título de Conde de Chamilly.

Foi retratado como um “homem esbelto e valoroso, habituado ao trato das damas e aos ardo-
sos ímpetos do amor, sem escolha (...)” (Martins, 2006, p.8). Mariana Alcoforado apaixonou-se
primeiramente, em sonhos e “entregando-se ao preferido, quase tinha a certeza de serem
mentirosas as frases saídas de seus lábios; porém, não queria convencer-se, como se elas,
mesmo mentiras, lhe soubessem melhor do que as verdades ditas por outro mais sincero
mas do menor agrado” (idem, 2006, p.8-9).

Segundo a descrição de Rocha Martins “o amante era desatento”, ainda no auge da desmedi-
da paixão de Mariana Alcoforado ele “preferia-lhe as caçadas, o jogo, os divertimentos, depois
de a ter enganado. Levá-la-ia para as terras de França, tornando-se ali o seu esposo, a abater a
prosápia orgulhosa dos Chamilly, os quais acabariam por ceder aos encantos da monja exilada
do seu país por um doce e enternecido delito de paixão. Eis o que lhe segredava” (Martins, 2006,
p.9). A par das falsas promessas do Conde de Chamilly “as coisas mais estranhas se passavam,
sem que a triste acordasse do seu devaneio. Largava-a pelas correrias nos campos em batidas
alegres, trocando pela febre da jogatina os delírios dos beijos, quando começara a achar-
lhe um sabor vulgar. Noel, seguia a rota habitual do declínio de todos os rasgos amorosos”
(Martins, 2006, p.10).

A família de Mariana Alcoforado teria tomado conhecimento do imponente escândalo para


a época “aquela loucura tinha chegado ao conhecimento da família da que se entregara,
rindo e em lágrimas, para querer voltar a ser do amado, em júbilos e em soluços. O seu amor
era feito de abismos, de auroras e de cavernas, de estrelas e de pélagos; e sofria, torturava-se,
magoando-se nos pensamentos como numa roda de lâminas ás quais ofertasse a sua carne,
sentindo prazer maior nas mais agudas lacerações.” (Martins, 2006, p.10).

A metáfora literária criada por Rocha Martins, para descrever os sentimentos de Mariana
e a sua própria caracterização remete-nos para mais um exuberante exercício de fantasia
explorado por vários autores procurando identificar o feminino de Mariana, como ressalta
Klobucka: “(...) visando imaginar a identidade física de Mariana e, em particular, o seu corpo
inconfundivelmente feminino e, muitas vezes, fortemente sexualizado” (Klobucka, 2006, p.132).

4. Rocha Martins
Autor de os “Grandes amores de Portugal” viveu entre os anos de 1879 e 1952. Teve um percurso versátil foi jorna-
lista e um dos cronistas, folhetistas e novelistas mais requisitados na sua época. Começou o seu percurso num
jornal monárquico, o "Diário Popular", de Mariano de Carvalho; de seguida trabalhou para a "Vanguarda", diri-
gida par Magalhães Lima, grão-mestre da maçonaria; ligou-se depois a João Franco e à ditadura que implantou,
no "Jornal da Noite"; foi braço direito de Malheiro Dias na "Ilustração Portuguesa".
Um desses exemplos, citado pela escritora, aborda lascivamente o tema da púbere Mariana,
24 • Capítulo I

prematuramente aprisionada na sua clausura monástica:

O seu corpo gentil ia desenvolvendo-se, exuberante de vida, dentro da mal suportada tortura dos ci-
lícios. A atmosfera de misticismo (...) excitava-lhe os sentidos” (Guimarães, cit. por Klobucka, 2006, p.132).
Outros escritores, tinham uma perspectiva inversa preferindo “registar provas de perversão
e patologia na história de Mariana. O esforço mais notável nesse sentido foi realizado por
Asdrúbal de Aguiar, professor de Medicina Legal e especialista na ‘ciência sexual’ em Portu-
gal (...)” (Klobucka, 2006, p.133). Define Mariana Alcoforado como um exemplo de masoquismo
e sadismo, em cuja, introdução declarou seu intuito:

“procurando descobrir através das tão admiráveis frases das cinco cartas (...) as provas do crudelíssi-
mo prazer que ela sentia como o decorável e inconsciente proceder do homem a quem tão apaixonada-
mente amava” (Aguiar, cit. por Klobucka, 2006, p.134).

Anna Klobucka refere que Asdrúbal de Aguiar, apenas tinha um objectivo, fundamentar o
diagnóstico da freira portuguesa como um “caso patológico de masoquismo psíquico” (Klo-
bucka, 2006, p.75), e alega que Mariana só podia ser masoquista, para se justificarem as refe-
rências, à modéstia e inferioridade, da sua condição patente nas Lettres portugaises. “Afinal,
ela não tinha qualquer motivo para se sentir esmagada pelo esplendor aristocrático do seu
amante francês, uma vez que a sua família igualava a dele em nobreza e era superior em
antiguidade” (Klobucka, 2006, p.75).

No decorrer da construção alegórica de Mariana Alcoforado, por Rocha Martins, este acres-
centa que “as mentiras de Chamilly sabiam a Mariana como deliciosas verdades. Não queria
aprofundá-las. Deixava-se amar, ceguinha de todo, não vendo as imperfeições, tratando de
sublime o que era banal, pois emprestava espírito com destino ao ser superior ao qual dese-
java render-se” (Martins, 2006, p.12).

Por fim, a partida do francês “pôs termo ao romance, mas em nada diminuiu a intensidade
da paixão da freira abandonada pelo seu ex-amante” (Klobucka, 2006, p.11). Rocha Martins es-
clarece-nos, “um dia, o amado deixou, precipitadamente, o exército, os seus camaradas, o
país pelo qual se batera nas guerras contra os espanhóis, abandonando, sobretudo, Mariana,
a doce, a terna, a encantadora de alma, a fascinada que, mergulhando, ainda no seu arreba-
tamento, entrara a chamá-lo, de longe nas cartas torturantes em que lhe enviava bocados
sangrentos do seu nobre coração prisioneiro” (Martins, 2006, p.12).
Sob este sentimento, Soror Mariana Alcoforado “escreveu numa prosa ao mesmo tempo
exuberante e magistral, digna dos mais dotados artificies do grand siécle francês. Pouco de-
pois da sua publicação, as cartas tornaram-se um best-seller internacional” (Klobucka, 2006,
p.11), como foi anteriormente referido.
A religiosa implorava e fustigava estafetas para as novas missivas, após ter escrito a primeira

25 • Capítulo I
carta, “alguns dos amigos de Chamilly, conhecedores da desdita monja, ocorriam à grade
e entre eles o tenente de esquadrão, a participar-lhe que sabia do oficial. Talvez esperasse
herdar-lhe o afecto de tão apaixonada e veemente mulher, obtendo-o por uma represália”
(Martins, 2006, p.58).

No convento5 “era uma desgraçada (...) queriam distraí-la e nomeavam-na porteira (...)”
(Martins, 2006, p.61). Como provam os registos do Real Mosteiro de Nossa Senhora da Concei-
ção “sabe-se que foi nomeada Madre porteira em 1668 (...)” (Saramago, 1994, p.164).

O enredo termina sem obter muitas respostas do cavaleiro francês “desfizera-se de todas as
lembranças que possuía, vindas das mãos amadas, como se imaginasse olvidar totalmente
a sua imensa dor, a sua incomensurável desdita. Pedira à confidente, D. Brites de Brito, para
devolver tudo quanto possuía provindo do comandante: o retrato, as pulseiras, os troféus
de amor que se dão com beijos e se recebem, quase sempre com gestos desdenhosos ou
indiferente; quando são devolvidos. O que ela não podia enviar-lhe porque lho entregara
inteirinho, era o seu próprio coração” (Martins, 2006, p.61).

Anna Klobucka (2006) refere que em 1885, E. Beauvois, investigador e historiador francês, pu-
blicou na cidade de Beanne, na Borgonha, um estudo biográfico do Marechal de Chamilly.
Possivelmente utilizado, por Rocha Martins, nas notas do seu texto, ao mencionar que “Noel
Bouton, Conde de Chamilly, nasceu em Chamilly, morreu em Paris (1636-1715). Distinguiu-se
nas guerras de Portugal e da Holanda. Foram-lhe dirigidas as Cartas Portuguesas. Casaria em
1671 com uma senhora da casa de Villefix, filha do Marechal de França, João Jacques de Brou-
chet” (Martins, 2006, p.60). E acrescenta, que mesmo “depois de se bater bravamente na Grécia, no
Luxemburgo e na Holanda, foi chamado o triste herói das cartas da freira portuguesa ” (idem,
2006, p.60). Para Soror Mariana, “o amor consistia naquela ânsia de sem se sacrificar, entregan-
do-se como uma louca e duas torturas: primeiro, a do amor; depois, desejando ter mais que
padecer 6” (Martins, 2006, p.64).

No decorrer desta exposição narrativa de alguns autores, conseguimos obter informação dis-
tanciada ao texto original, que é um ponto de partida para o alargamento do espaço concep-
tual, na realização do projecto prático, sobre a história que reúne a origem das cinco cartas.

5. Convento
Nas cartas de Mariana Alcoforado há uma menção à Janela de Mértola, actualmente conservada no Museu Regional
de Beja. Considerada uma atracção do convento, do museu e da cidade, através da qual a religiosa observava o cavaleiro,
e que desencadeou a infeliz paixão.
6. Notas de Madre Escrivã
“Notas de madre escrivã do Real Convento da Conceição, de Beja, D. Antónia Baptista de Almeida”
(Martins, 2006, p.64).
Que podemos sintetizar do seguinte modo: Mariana Alcoforado, pertencia à nobreza, in-
26 • Capítulo I

gressou no convento bastante jovem. Avistou o cavaleiro Chamilly, através da janela de Mér-
tola, situada no interior do convento. Iludiu-se, numa enorme paixão e acreditou em todas
as mentiras, nomeadas ao longo das cartas. Num discurso, que passa por várias fases, como
abordaremos no primeiro caso de estudo, é narrado o sentimento de abandono e tristeza.
Na tentativa de descobrir o feminino de Mariana, vários autores, incutem um discurso se-
xual, referem-na com sendo, principalmente, submissa e masoquista.
O cavaleiro, também de família nobre é retratado de forma galante e boémia. A alegoria,
descrita, por Rocha Martins, descrevo-o como a personagem maligna. Aproveitou-se da ino-
cente Mariana, proferindo-lhe várias mentiras, até voltar novamente para França, onde ca-
saria com a sua esposa.

1.3 Autenticidade e Tradução das Lettres Portugaises

Este projecto tenciona ressaltar o valor literário, que As Cartas Portuguesas obtiveram ao lon-
go dos séculos, e contribuir com mais uma interpretação sobre as mesmas. Não é do nosso
interesse provar a sua verdadeira autoria. Mas, partirmos do princípio, que de facto, Mariana
Alcoforado existiu e tentámos perceber esta controvérsia sobre a verdadeira entidade da
freira, que atribuiu sucesso às cartas, até aos dias de hoje.

A forma de escrever à lá portugaise converteu-se “um verdadeiro código aplicável a um deter-


minado estilo – a escrita no auge da paixão num momento de desvario e angústia” (Kauffman,
cit. por Koblucka, p.95). Embora Dubois7 considere que “as múltiplas traduções e edições ates-
tam o interesse suscitado por uma obra cujo valor literário é por vezes mal apercebido, mas
que conquista o êxito pelo atractivo mundano – uma espécie de êxito do escândalo.” (Du-
bois, 1988, p.36). O entusiasmo exercido em torno das cartas da freira, deveu-se essencialmente
“à excitante incerteza que rodeia a identidade concreta da sua autora. O debate sobre essa
questão começou, seriamente, no início do século XIX quando um erudito francês, Jean-
François Boissonade, publicou uma nota que identificava a freira (...)” (Klobucka, 2006, p.13).

Esta nota também é referenciada, por Alfredo Saramago, no seu ensaio histórico. “Em 1810,
no folhetim semanal do Variétés, Boissonade faz a seguinte revelação: ... os bibliográficos não
descobriram ainda o nome da religiosa. Posso dizer-lhe eu: no exemplar da edição de 1669,
há uma nota numa letra que não é desconhecida que diz, la religieuse à Beja, entre l’Estrama-
dure et l’Andalouse. Le cavalier a qui cês lettres furent ècrites etait le conte de Chamilly, dit alors le
comte de Saint-Léger” (Saramago, 1994, p.166).

No entanto, a polémica originada sobre a autenticidade de Soror Mariana Alcoforado pre-


valeceu durante os séculos “e em relação à qual não foi possível encontrar resposta, encami-
nhou para o arquivo da Conceição os entusiastas que aceitavam a Mariana como autora e os
defensores da ideia de falso autor, inventando pelo editor Barbin em oportunismo livreiro”

27 • Capítulo I
(Saramago, 1994, p.166). Barbin, referenciado por Alfredo Saramago, publicou a primeira edição
das cartas, anteriormente mencionada, em 1669. Contudo, a dúvida persiste “desde o prin-
cípio, porque nada existe na edição que possa provar a autoria das cartas” (idem, 1994, p.166).

Em Portugal, a história da recepção das Lettres portugaises “com a sua insistência na figura
imaginada de Soror Mariana Alcoforado como uma personificação de essência nacional, a
ansiedade da localização semiperiférica emerge como um tema dominante” (Klobucka, 2006,
p.38). A primeira edição portuguesa, foi publicada por Morgado de Mateus, em 1824, “en-
controu os Alcoforados em Beja, mas não foi mais do que uma suposição sem interesse”
(Saramago, 1994, p.168). O reconhecimento do valor literário das cartas foi controverso, “em 1862,
Inocêncio Francisco da Silva8, ao compilar, a secção respectiva do seu monumental Dicioná-
rio Bibliográfico Português em múltiplos volumes (...), registou uma menção das Lettres Portu-
gaises, mas optou por não pronunciar sobre a autenticidade nacional das mesmas” (Klobucka,
2006, p.53).

Mais tarde, durante o seu curso de Literatura Portuguesa (1876), Camilo Castelo Branco9 foi
categórico ao excluir as cartas da freira do património português” (Klobucka, 2006, p.53). Segun-
do Alfredo Saramago, “Camilo Castelo Branco, em 1876, dava a primeira notícia sobre duas
freiras de nome Alcoforado, D. Peregrina10 e D. Mariana, dizendo no entanto que tal freira,
amando talvez muito o conde, não escreveu tais cartas, e apenas lhe deu o amor e o nome
para a ficção” (Saramago, 1994, p.168).

7. Dubois
Jean Paul Dubois, um escritor, ensaísta e jornalista francês, nasceu em 1950, na cidade de Toulouse. Em 2004
ganhou o Prémio Femina, com Une Vie Française, um importante galardão literário, em França.
8. Inocêncio Francisco da Silva
Foi um importante bibliógrafo lusófono, reuniu toda a informação existente sobre autores de língua portugue-
sa até meados do século XIX. Viveu em Lisboa, entre 1810 e 1876 é autor do monumental Dicionário Bibliográfico
Português, que foi terminado por outros autores após a sua morte.
9. Camilo Castelo Branco
Camilo Castelo Branco, um importante escritor português, nasceu em Lisboa em 1825, durante a sua carreira
literária foi romancista, cronista, dramaturgo, crítico, tradutor e historiador.
10. D. Perigrina
Mencionada no ensaio histórico sobre o Real Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição, de Alfredo Saramago,
irmã de Mariana Alcoforado.
11. Conde de Sabugosa
O Conde de Sabugosa, viveu entre os anos de 1854 e 1923, foi escritor poeta e publicista, foi um dos fundadores do
grupo Vencidos da Vida, que determinou o panorama intelectual português nos finais do século XIX.
12.Jean-Jacques Rousseau
Um dos principais nomes dos filósofos que fizeram parte do movimento intelectual do século XVIII, o Iluminis-
mo. O filósofo social, teórico político e escritor viveu entre os anos de 1712 e 1778. A sua obra de maior relevância
é O Contrato Social.
Esta atitude céptica já tinha sido manifestada pelo escritor, Alexandre Herculano e mais tar-
28 • Capítulo I

de perfilhada pelo romancista português, Henrique Lopes de Mendonça. Luciano Cordeiro


“o mais notável mitógrafo de Mariana” (Klobucka, 2006, p.45) com uma importante obra, que
destaca a emotiva defesa da autenticidade de Soror Mariana Alcoforado e da sua respecti-
va autoria. Conseguiu provar que Mariana Alcoforado existira: “fora freira do Convento da
Conceição e tinha vinte e cinco anos de idade aquando da estadia de Chamilly em Portugal”
(Klobucka, 2006, p.55).

Era inevitável que a tradução fosse um dos aspectos relevantes a discutir. “Afinal, é no domí-
nio da linguagem, da tradução e da aptidão para serem traduzidas que as cartas de Mariana
revelam a sua singular inadequação como ícone de portugalidade, dado o duplo afastamen-
to linguístico do texto traduzido em relação à essência nacional depurada que os alcofora-
distas portugueses postulavam estar na base da sua expressão primitiva” (Klobucka, 2006, p.79).
Esta questão “ia animando periodicamente os intelectuais e, em 1915, o Conde de Sabugosa11
dizia que as cartas tinham sido vertidas directamente para francês (...). Tal como, o poeta
português, Afonso Lopes Vieira, que igualmente reconhece a sua autenticidade (...). O poeta
e historiador português, António Sardinha retoma a questão, diz que as cartas só poderiam
ter sido escritas por um homem, juntando-se assim à ideia que foi de Rousseau12. Mais tarde,
Green, um professor de literatura francesa da Universidade de Cambridge, veio dar base
documental à conclusão de Rosseau e de António Sardinha (...)” (Saramago, 1994, p.168). Com
um manuscrito encontrado na “Biblioteca Nacional de Paris (...) no século XVII, em que sob
o nome de Barbin vem escrito o seguinte: aujourdui 17 Novembre 1668 nous a esté presenté en
Privilage du Ray donné a Paris le 28 Octobre 1668 signe Mageret pour cinp annés um livre Intitulé
Les Vallentines lettres portugaises Epigrannes et Madrigaux de Guilleraques” (Saramago, 1994, p.170).
O ficcionista, poeta e crítico literário, José Osório de Castro e Oliveira, em 1942 defendia que
as cartas tinham sido escritas em português “deu ao lamento de amor de Mariana a sua fama
internacional e o transformou, assim, num agente ‘pró-nacional’ de expansão e influência
cultural” (Klobucka, 2006, p. 95).
Anna Klobucka declara que “a correspondência de Mariana com Chamilly só podia ter sido
originalmente escrita em francês” (Klobucka, 2006, p.81). A mesma teoria anteriormente par-
tilhada, em 1915, pelo Conde de Subugosa, Camilo Castelo Branco, Alexandre Herculano,
pois sendo filha de família nobre e freira saberia francês, ao contrário de Chamilly. Ale-
gando que possivelmente o tempo de estadia em Portugal poderia não ter sido suficiente
para aprender português.

Concluindo que “se as Lettres portugaises tivessem sido escritas e exclusivamente divulgadas
em português, o seu eventual valor patriótico teria sido muito reduzido” (Klobucka, 2006, p.96).
Alfredo Saramago acrescenta que “os que recusam a Mariana a autenticidade referem o
grande interesse que Barbin tinha em utilizar, Guilleraques, boémio galante de época, como
tradutor, e não como verdadeiro autor das cartas. Portugal, por causa da guerra da Restau-
ração e da estadia de muitos franceses entre nós, estava na moda no imaginário de mui-
tos franceses. Era uma oportunidade para lançar uma obra que se adequava ao espírito da

29 • Capítulo I
época” (Saramago, 1994, p.170). E continua, “dizer que Mariana desconhecia o mundo e que só
a frequência dos salões podia permitir uma experiência que levasse à escrita das cartas, é
desconhecer em absoluto o clima que se vivia no Mosteiro. (...) Em relação à formação li-
terária de Mariana é oportuno realçar que foi ela que educou desde a idade de três anos, a
sua irmã Peregrina, que foi mais tarde escrivã e abadessa do Mosteiro durante dois triénios”
(idem, 1994, p.171).

Em suma, Alfredo Saramago esclarece-nos que “nunca foi conhecida prova irrefutável que
pudesse constituir Mariana Alcoforado como autora das cartas, mas também não existe
qualquer facto que impeça essa autoria” (Saramago, 1994, p.172).

1.4 Legiões de Alcofodoristas

Ao longo dos séculos as diversas questões, análises e interpretações sobre as cartas portu-
guesas, mantiveram Soror Mariana Alcoforado como uma figura presente. “Geração após
geração, legiões de alcofodoristas das mais diversas estirpes tentaram dar existência a Ma-
riana através da escrita, decifrar a realidade material do seu corpo feminino e a identidade
cultural da sua voz portuguesa nas cadências retóricas das cartas” (Klobucka, 2006, p.22). Este
projecto constitui mais uma contribuição para sustentar a memória de Soror Mariana Alco-
forado. Neste subcapítulo iremos abordar algumas interpretações, de diferentes áreas, que
decorreram sob a influência das cinco cartas.

Um dos exemplos mais recentes e significativos que daremos ênfase, remota o ano de 1972,
com o manifesto feminista Novas Cartas Portuguesas, da autoria colectiva de Maria Isabel
Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho Costa, “cuja interpretação revisionista da histó-
ria de Soror Mariana, à semelhança de muitas narrativas estabelecidas a partir de uma pers-
pectiva anteriormente marginalizada, impeliu o mito para novos e emocionantes rumos”
(Klobucka, 2006, p. 25).

O colectivo, também apelidado de as três Marias “ao restituírem o passado, não em termos
de uma verdade a recuperar, mas como uma fonte muito sugestiva de substancia histórica
e simbólica, as três Marias não se propuseram ‘desmitificar’ Mariana, recrutando-a, em vez
disso, para o seu projecto progressista, onde se incluíam quer uma descrição e uma denún-
cia directas das realidades sociais e históricas vividas pelas mulheres portuguesas, quer uma
reunificação semiótica compensatória de uma das ficções mais relevantes da feminilidade
portuguesa” (idem, 2006, p.25).
A All My Independent Woman (AMIW), fundada por Carla Cruz, categoriza-se por um projecto
30 • Capítulo I

de exposição e de um blogue, baseado numa perspectiva feminista. Em 2010, realizou uma


exposição em torno da leitura das Novas Cartas Portuguesas, das quais surgiram várias inter-
pretações dos diferentes artistas convidados. Resultante desta exposição foi o catálogo All
My Independent Woman, com o prefácio transcrito da segunda edição em 1974 e o pré-prefá-
cio e prefácio para a terceira edição, em 1980, de Maria de Lourdes Pintasilgo, que questiona:
“A partir do nó evolutivo das Novas Cartas Portuguesas – a freira de Beja Mariana Alcoforado
e o seu romance de amor, em pleno séc. XVII – surgem as mulheres deste século, em muitas
e diversas situações e culturas. E é legítimo perguntar: porquê um tal eco? Que coisa nova foi
dita? Que forma tão universalmente comum foi utilizada?” (Pintasilgo, 2010, p.7).
E acrescenta que era a primeira vez na história do “movimento feminista da sua expressão
literária a cumplicidade entre as mulheres foi ao mesmo tempo sujeito e objecto de toda a
trama de um livro. Aí reside a sua espantosa originalidade” (Pintasilgo, 2010, p.7).

As Novas Cartas Portuguesas são mais do que um simples testemunho. “São um libelo con-
tra a sociedade que descrimina, escraviza, julga, marginaliza. Por isso falam de estruturas
sociais, de relação entre dominadores e dominados. As Novas Cartas Portuguesas revelam e
denunciam a opressão das mulheres como parte de uma sociedade toda ela operativa.
A escolha de Mariana vai dar um nome a essa opressão: chamar-se-á ‘clausura’ (aqui não
escondesse, ó Marias, a vossa experiência de meninas educadas à sombra de conventos para apren-
derdes as maneiras que ás gentes de vossa classe convinha)” (Pintasilgo, 2010, p.10).
As cartas das três Marias são pioneiras inscrevem-se na grande corrente da literatura femi-
nista. Atribuem ao texto uma afirmação fundamental: “a mulher tem uma identidade pró-
pria e, com o próprio gesto com que reclama igualdade, traça na história a sua fundamental
diferença” (Pintasilgo, 2010, p.13).

Este colectivo feminino não foi o primeiro “a reescrever as Lettres portugaises para fazer delas
um romance à sua maneira” (Dubois, 1988, p.35).
Dubois no artigo que escreveu para o Colóquio de Letras da Gulbenkian, em 1988, afirmava
que “as Letrres portugaises não tardaram a passar para lá do canal da Mancha: a primeira em
data das traduções inglesas é a de sir Roger l’Estrange, de 1678, com uma introdução crítica
onde se afirma ‘que o original é escrito em francês e é um dos textos mais artificiais que
existem do género’ (...)” (Dubois, 1988, p.36).

O poeta alemão, “Rilke, na sua tradução Portgiesishe Briefe, de 1907, propôs uma interpretação
muito pessoal do amor, no sentido da sublimação, mas inteiramente inadequada ao caso,
(...) salienta a ideia de abandono, (...) que seria a característica peculiar do amor na mulher
desde que esta aceita a dominação do homem. O papel da mulher é revalorizado: repudiada
pelo amante, adquire a sua verdadeira personalidade na abnegação – e isto faculta-lhe uma
certa independência perante o homem. Este ponto de vista não contradiz inteiramente o das
autoras modernas, que afirmam também o seu desejo de independência da mulher. Mas,
para elas, a personalidade feminina manifesta-se na sensualidade por forma idêntica à do

31 • Capítulo I
homem” (Dubois, 1988, p.36).
As Novas Cartas Portuguesas “foram levadas à cena sob o título La Clôture e com encenação
de N. Ozanne, em Outubro de 1978, no teatro da Cidade Universitária de Paris. Mais tarde, as
Lettres portugaises foram apresentadas na Televisão portuguesa em 1979 (RTP, de 2 de Agosto
a Outubro) e seguidamente publicadas em edição bilingue (1980). Foram também adaptadas
para o teatro sob o título From the Balcony (BBC e National Theatre, Maio de 1982) num diá-
logo, ou antes: em dois monólogos paralelos, de Mariana e um tal Amand. Nessa adaptação
Mariana retoma as expressões das cartas, conta o seu amor infeliz ao passo que Amand
evoca as suas numerosas conquistas amorosas (...)” (Dubois, 1988, p.36).
Mas, para Dubois não existiam dúvidas que a mais profunda “transformação do romance
epistolar” foi a das Novas Cartas Portuguesas. “O livro das três Marias è um romance contesta-
tário e contestado que retoma a forma exterior do seu modelo: (...) seguir de perto Mariana
e as cartas (Terceira Carta II) para representar três vozes distintas. Há no romance duas linhas
que se entrecruzam: uma é da amplificação da Lettres portugaises, isto é, uma construção da
vida de Mariana Alcoforado através das escassas migalhas de factos reveladas no seu monó-
logo e do que se julgou descobrir sobre a personagem real e histórica, bem como do que se
inventou sobro os membros da família ao longo das gerações de pessoas religiosas ou laicas
até à nossa época” (Dubois, 1988, p.38).

As autoras das Novas Cartas Portuguesas diligenciam explicar a desafortunada situação de


Mariana “encerrada num convento, repudiada pela mãe de que é filha adulterina e aproxi-
mando-a, assim, de La Religieuse de Diderot. No seu processo literário, que consiste em per-
mutar as cartas e em seguida reunirem-se para as discutir, as três romancistas transformam
a paixão vivida e dominada na escrita e pela escrita do seu modelo num erotismo cruamente
afirmado. Enquanto as Novas Cartas aprofundam o tema da sensualidade e da sexualidade
femininas – o ‘exercício da paixão’ (Primeira Carta I) –, no texto original que serviu de ponto de
partida há apenas uma sugestão desses temas” (Dubois, 1988, p.38).

Uma outra perspectiva abordada nas Novas Cartas Portuguesas “é o desenvolvimento de um


certo número de situações modernas paralelas, em que outras Marianas se sentem vítimas
da dominação do homem, de que foram separadas por razões históricas, tal como a freira de
Beja. A conjugação da ficção com a realidade está de acordo com o tom do texto original” (idem,
1988, p.38). O erotismo explícito, no livro, demonstrou ser um dos principais motivos da con-
denação oficial em 1972, no entanto, no ano de 1974 as três Marias foram absolvidas, a seguir à
libertação de Portugal.

As Novas Cartas Portuguesas reforçaram “o movimento feminista no País” (Dubois, 1988, p.38).
Tornaram-se “o movimento social que constituíram hoje as mulheres, traz potencialmente
consigo a resposta. A força colectiva das mulheres, como o grupo social simultaneamente
mais discriminado e mais internacional, é um factor de que a história não pode ainda dar
contas. Foram passos como as Novas Cartas Portuguesas que ajudaram essa força a tomar
32 • Capítulo I

consciência de si própria.
Ela está hoje em movimento, na descoberta de novos valores e de outra maneira de estar no
mundo, na prática de uma vida mais liberta e mais dada” (Pintasilgo, 2010, p.13).

Apesar de As Novas Cartas Portuguesas terem sido uma das mais relevantes interpretações das
cartas de Mariana Alcoforado, outras existiram. Como é exemplo, em 1915, “José de Alma-
da Negreiros, uma das principais figuras da vanguarda modernista, publicou o seu célebre
Manifesto Anti-Dantas. Assinado José de Almada Negreiros, Poeta d’Orpheu, Futurista e Tudo,
o manifesto era um ataque violento e cónico à peça Soror Mariana, escrita por Júlio Dantas,
escritor imensamente prolífero e popular. Destacado membro de ‘establishment cultural’. Al-
mada denunciou a peça, que na altura estava a ter um êxito considerável no Ginásio Dramá-
tico de Lisboa, como um sistema de tacanhez geral da cultura dominante portuguesa, e um
exemplo de regurgitação de fórmulas da tradição nacional (...)” (Klobucka, 2006, p.119).

Alguns autores foram mencionados ao longo do texto que escreveram sobre Mariana Alco-
forado, mas é de salientar que em Portugal, antes da reforma de 1930, na educação, as Lettres
portugaises eram leccionadas nas escolas, segundo Anna Klobucka, no livro Mariana Alcofo-
rado: Formação de um Mito Cultural. Com o intuito de preservar o conservadorismo português
e a moral da sociedade foram retiradas do programa.

Em 1940, ano em que se realizaram as grandes celebrações do duplo centenário, englobando


o tricentenário da Restauração da Independência Portuguesa relativamente a Espanha, em 1640,
e o oitavo centenário da existência de Portugal como “Estado-nação autónoma, também tes-
temunhou a publicação de mais uma ‘biografia’ da freira. Vida e Morte de Madre Mariana
foi escrita por um autor alentejano, Manuel Ribeiro, cuja dedicatória explicativa revela a
dimensão patriótica do seu projecto” (Klobucka, 2006, p.123), sendo o livro apresentado como:
tributo do autor às comemorações nacionais da Restauração da Pátria e do nascimento de Madre
Mariana Alcoforado, gloriosa filha de Beja, grande coração que levou a todo o mundo o nome de
Portugal e fundiu no bronze das suas Cartas memória eterna do sentimento português” (Ribeiro, cit.
por Klobucka, 2006, p.123).

No decorrer do mesmo ano “o seu retrato foi exposto no pavilhão principal, na monumental
Exposição do Mundo Português, onde foi catalogada como uma ‘grande figura nacional’
(...) (Pereira, 2006, cit. por Klobucka, p.122). Posteriormente, a presença fictícia de Soror Mariana
Alcoforado na exposição realizada em 1994, na “Biblioteca Nacional de Lisboa, intitulada
Amor em Portugal e consagrada, nas palavras de Maria Leonor Machado de Sousa, a recordar
“alguns pares amorosos particularmente significativos na tradição portuguesa” (Sousa, cit. por
Klobucka, 2006, p.126).
Soror Mariana Alcoforado, também inspirou realizadores de cinema como é o caso do po-

33 • Capítulo I
lémico filme, para a época, de Jesús Franco, Cartas de Amor de uma Freira Portuguesa (1977)
assinado com o seu pseudónimo Jess Franco. Outras produções mais recentes são de Eu-
géne Green, com A Religiosa Portuguesa (2009), o Film Les Lettres Portugaises (2013) de Bruno
François-Boucher e Jean-Paul Seaulieu e o documentário de Leonor Noivo, Outras Cartas ou
o Amor Inventado (2012).

Henri Matisse, o artista francês atribui existência a Mariana, à qual lhe dedicou uma série de
litografias, que serão analisadas como caso de estudo, no segundo capítulo. Em 1946, ilustra
o livro Lettres d'une religieuse portugaise por Mariana Alcoforado onde evoca plasticamente a
devoção e a paixão excessiva, num traço delicado com diversas expressões que idealizam um
retrato da freira. Ao longo das páginas utiliza diversos símbolos como flores e frutos, incluin-
do capitulares, meticulosamente desenhadas.

As Lettres portugaises foram objectos de interpretações tão numerosas como variadas “embo-
ra isto seja seguramente verdade no que respeita à presença contemporânea de Soror Ma-
riana, em Portugal, ocasionalmente ainda se fazem ouvir algumas vezes, vindas de locais tão
remotos do mundo lusófono como, por exemplo, o sul da Califórnia, que insiste na necessi-
dade de manter em aberto a questão da confirmação histórica da sua autoria.” (Klobucka, 2006,
p.126). Um exemplo sugerido por Anna Klobucka, ao referir um comentário sobre o romance
Marianne (1996) da escritora luso-america Katherine Vaz.

O primeiro capítulo é sustentado pela necessidade de pesquisa, no desenrolar do processo


criativo da ilustração. Na tentativa de perceber o autor e a sua intenção, ao criar possibili-
dades para fazer uma abordagem, ao texto, de Soror Mariana Alcoforado. Neste contexto,
Bárbara Kiefer acrescenta: “A escolha do conteúdo pictórico por parte do artista pode ser
essencial para o significado geral do livro e pode ser a escolha mais importante em termos
técnicos. Embora muitos artistas optem por representar, ou ecoar, o texto verbal de um livro,
a experiência estética é reforçada quando o artista traz algo extra para a cena” (Kiefer, cit. por
Fonseca, 2013, p.349).

Com base nesta análise isolada do texto original, conseguimos obter um retrato psicológi-
co das personagens principais e algumas possíveis caracterizações físicas, narradas pelos
autores referidos. Contextualizar, brevemente, o tempo de acção da história, alguns costu-
mes da sociedade, que revelam ser importantes na compreensão das cartas e referidos nas
Novas Cartas Portuguesas.
O levantamento de vários projectos, como os mencionados, demonstra o interesse e a re-
34 • Capítulo I

levância que vários autores e artistas atribuíram ao trabalhar sobre as cinco cartas. Assim
como, é um levantamento de hipóteses que são tidas como exemplos, de diferentes aborda-
gens e suportes, para a concretização do projecto prático.

Ao terminar este primeiro capítulo voltámos a relembrar a necessidade de pesquisa no de-


senvolvimento do processo criativo da ilustração, como refere Diaz Armas, “ilustração e tex-
to formam uma unidade quanto aos valores e à visão que defendem” (Armas, cit, por Fonseca,
2013, p.349). Atendendo que a autora do texto, que sustenta este projecto prático, faleceu entre
1710 e 1743, mais pertinente se revela a investigação descrita, ao longo deste capítulo, que
auxiliou na criação de uma estrutura de informação textual paralela ao texto. Revelando
ser um ponto de partida importante no pensar a imagem, neste caso particular, a ilustração.
Capítulo II

O ilustrador: Intermediário na relação do texto e da imagem

35 • Capítulo II
2.1 Pensar a Imagem. Da percepção visual para o tratamento visual

O recorrente uso do termo imagem, por vezes, é suportado com diversos significados sem
uma ligação próxima, o que demonstra uma certa dificuldade em construir uma definição
simples que englobe as variadas formas de a utilizar. Como questiona Martine Joly, em a
Introdução à análise da imagem, o que poderá haver em comum entre “um desenho de uma
criança, um filme, uma pintura rupestre ou impressionista, graffitis, cartazes, uma imagem
mental, uma imagem de marca, ‘falar por imagem’ e por aí fora?” (Joly, 2008, p.13). Apesar da
diversidade de significados que podemos atribuir à palavra imagem, entendemos que esta
designa algo que apesar de nem sempre remeter para o visível, utiliza de “empréstimo al-
guns traços ao visual e, em todo o caso, depende da produção de um sujeito: imaginária ou
concreta, a imagem passa por alguém, que a produz ou a reconhece” (Joly, 2008, p.13).

Uma das mais antigas definições de imagem, é dada por Platão, explica-nos: “chamo ima-
gens, em primeiro lugar às sombras; em seguida, aos reflexos nas águas ou à superfície dos
corpos opacos, polidos e brilhantes e todas as representações deste género” (Platão, cit. por Joly,
2008, p.13). Portanto, poderemos afirmar a imagem, como um reflexo de tudo o que utiliza um
processo de representação.

Apesar de não ser um objectivo, desta investigação, definir o que é e o que se compreende
por imagem, esta surgiu “segundo relato de Plínio, do gesto de contornar a sombra de um
sujeito real projectada na parede de uma caverna, está por sua vez na origem da imaginação,
termo que justamente remete para a conversão das coisas em imagens... Das coisas... que
vimos algures, e que registámos com um desenho de traço ou que fotografámos (e as coisas
são aqui preexistentes às imagens delas) e daqueloutras que conjecturámos, colhemos no
pensamento, fizemos nascer das potencialidades gráficas dos sistemas informáticos (e neste
processo são muitas vezes as imagens que preexistem às coisas...)” (Calado, 1994, p.13).

O mundo das coisas vistas é rico e diversificado conseguimos formar imagens mentais, ou seja,
produtos da nossa criação mental, dos objectos e seres do mundo exterior, que provém de
várias circunstâncias, de origem sensorial, visual, auditiva, olfactiva e gustativa.

“O que quer dizer que pensamos por imagens. Assim, o pensamento inconsciente é predo-
minantemente, um pensamento por imagens, como o pensamento onírico” (Calado, 1994, p.24).
Acrescenta, Martine Joly que aplicámos, também, o termo imagem para referir actividades
psíquicas. A imagem mental equivale à impressão que obtemos, por exemplo, quando esta-
mos a ler ou a ouvir a descrição de um lugar, podemos ter a sensação de ver esse local, como
se estivéssemos lá fisicamente. “Uma representação mental é elaborada de um modo quase
alucinatório e parece pedir emprestadas as suas características à visão. Vê-se” (Joly, 2008, p.20).
Esta representação relaciona-se com um modelo perceptivo do objecto, ou de uma estrutura
36 • Capítulo II

formal que interiorizamos, e aliámos a um determinado objecto, onde algumas referências


visuais são o suficiente para o evocar.

Neste caso, o conceito imagem não se refere apenas a imagens visuais, mas a um conjunto
de percepções sensoriais, que englobam a memória. Como explica António Damásio (2000)
quando vemos, ouvimos ou tocamos em determinada coisa, instantaneamente se desenca-
deia uma sucessão de imagens, no entanto aquilo que sentimos sobre estas imagens é o que
nos traz a sensação de pertença e a própria consciência deste sentimento. As imagens que vi-
sualizámos na nossa mente nunca serão cópias reais ou exactas de um determinado objecto,
mas antes um resultado de várias interacções entre o sujeito e uma determinada situação, ou
seja, as imagens que construímos são de carácter individual, relacionadas com as nossas ex-
periências pessoais. Como refere Isabel Calado, no livro A Utilização Educativa das Imagens,
define que “pensar a imagem é, em primeiro lugar, reconhecê-la como objecto inteligível.
Realçar a importância dessa reflexão é, em segundo lugar, estar convicto do poder que ela
detém sobre a nossa cultura, a nossa mundividência, a nossa inserção na realidade, as nossas
fantasias, os nossos distúrbios e as nossas utopias.” (Calado, 1994, p.12).

Esta questão sobre como pensar a imagem, neste caso particular, a ilustração, subjacente ao
projecto prático, que suporta esta pesquisa. Revelou-se uma das principais dificuldades a
ultrapassar. A capacidade e a necessidade de construir uma narrativa visual que “não subs-
titui um texto escrito ou uma imagem” (Calado, 1994, p.34), atendendo às suas propriedades
estruturais, a imagem é mais adequada a representar do que o discurso verbal. Gunther
Kress e Theo van Leewen, no livro Reading Images - The Grammar of Visual Design mencio-
nam Barthes, ao referenciar um outro ponto importante: “the visual component of a text is an
independently organized and structured message – connected with the verbal text, but in no away
dependent on it: and similarly the other way around” (Barthes, cit. por Kress e Leeuwen, 1996, p.17). Assim
como, Gémeo Luís, no seu estudo A importância do ilustrador no processo do livro, acrescenta:
“cada obra propõe um início de leitura quer por meio do texto, quer da imagem, e [que] tanto
um como outro pode sustentar maioritariamente a narrativa” (Fonseca, 2013, p.51).

Isabel Calado, refere que “a imagem figurativa (não necessariamente mimética...) é expressi-
va e apelativa. Prende o olhar, desperta o prazer, desencadeia a evocação. Mas nem sempre
aposta no entusiasmo – è um valor de percepção. Quando, numa imagem, a sensibilidade
poética se sobrepõe à racionalidade semântica. Quando, numa imagem, a sensibilidade (por
vezes, mesmo, a do mito...) – que não a da inteligibilidade – aquela que encara a sedução
como ponto de partida para o entendimento, antes como armadilha na qual o seduzido è
ludibriado” (Calado, 1994, p.13).

Com esta afirmação sobre imagem entrámos no domínio da comunicação visual, exposta
por Bruno Munari, em determinados casos, como “um meio insubstituível que permite a
um emissor passar as informações a um receptor, sendo condições fundamentais do seu

37 • Capítulo II
funcionamento a exactidão das informações, a objectividade dos sinais, a codificação uni-
tária e a ausência de falsas interpretações. Só se podem atingir estas condições se ambas as
partes, entre as quais tem lugar a comunicação, conhecerem estruturalmente o fenómeno”
(Munari, 2009, p.78).

Todos estes factos da modalidade da percepção visual são estudados, pela psicologia: “o li-
mite de percepção de uma imagem elementar, as ilusões ópticas, a permanência de uma
imagem na retina, o movimento aparente e outros casos (...) (Munari, 2009, p.83).

Isabel Calado explica-nos que a psicologia da visão assenta os seus princípios na Gestalt ou
Teoria da Forma. Esta teoria fundada por Wertheimer, Kohler e Koffka, nos anos vinte do
século anterior, consiste numa noção básica, de que qualquer sistema é um todo constituído
por partes. Ou seja, a Teoria da Forma “pode decompor-se, isto é, podem analisar-se as partes
de percepção, mas modificar qualquer uma delas terá repercussões no conjunto, pois essas
partes são interdependentes. Daí que o mundo das formas visuais seja um campo de predi-
lecção da Gestalt” (Calado, 1994, p.24).
Apesar de apenas referenciarmos, a Teoria da Forma, o termo alemão gestalt “remete para a
ideia de totalidade: as formas percepcionadas, enquanto elementos particulares do cam-
po visual, dependem do lugar e da função que ocupam dentro desse contexto total. De
modo idêntico, a estrutura do conjunto pode alterar-se por efeito de modificações locais”
(idem, 1994, p.24).

A mesma autora define percepção visual como o tratamento visual da informação, “a nível
cerebral, dos dados (sensações) que recolhemos através dos receptores sensoriais que são os
olhos. A percepção visual é uma capacidade humana fundamental (...), que trata as formas
de modo abstracto (indutivo)” (Calado, 1994, p.25). Se fosse um registo mecânico, apenas tería-
mos informações sobre o tamanho, ângulo e outras características semelhantes.

Assim sendo, concluímos que “as percepções são conceptualizações – se por este termo en-
tendermos construções da mente (...)” (Calado, 1994, p.26). O tratamento visual da informação
pode depender de diversos factores, anteriormente referidos e enumerados, também, por
Isabel Calado, de carácter individual, sociocultural, sintáctico, semântico e pragmático. O
que puderam ser factores determinantes, neste projecto prático, para a compreensão da re-
lação entre o texto e imagem, como abordaremos no decorrer deste capítulo.

Poderemos partir do princípio que, no caso específico deste relatório de investigação, utili-
zámos As Cartas Portuguesas como estímulo para a produção, numa primeira leitura, de ima-
gens mentais, baseadas nas experiências da autora, como descobriremos na continuação da
leitura, que originaram um processo de criação para o resultado final da ilustração.
Introduzimos, o segundo capítulo, sobre a questão de pensar a imagem e o que poderá ser
38 • Capítulo II

entendido por imagem. Ao realçar, brevemente, alguns aspectos sobre a percepção visual
ou o tratamento visual, que serão importantes no decorrer da leitura desta pesquisa e na
concretização prática deste projecto. Com os objectivos predefinidos, inicialmente, em com-
preender a relação entre o texto e imagem, assumindo o papel de ilustradora.

2.2 Ilustração e semiótica: construção de mensagens usando signos

Nesta investigação sobre entender o papel do ilustrador na relação entre a imagem e o texto,
o mesmo, que atribui origem à ilustração, no contexto deste projecto. Denomina-se por uma
racionalidade hermenêutica, como refere Joana Quental (2009), uma racionalidade retórica
– argumentativa, que valoriza o sujeito e a intersubjectividade na produção de um senti-
do. Entendemos por hermenêutica a actividade de interpretação de textos, como acrescenta
Michel Foucault, em As palavras e as coisas: “Denominemos hermenêutica o conjunto dos
conhecimentos e das técnicas que permitem fazer falar os signos e descobrir o seu sentido;
chamemos semiologia ao conjunto dos conhecimentos e das técnicas que permitem distin-
guir onde se encontram os signos, definir o que os institui como signos, conhecer os seus
liames e as leis das suas conexões: o século XVI sobrepôs semiologia e hermenêutica na
forma da similitude” (Foucault, 1991, p.85).

Todas as formas de comunicação envolvem signos e códigos. Os signos denominam-se por


artefactos ou actos são construtores significantes. Os códigos são os sistemas nos quais os
signos se constituem e determinam a forma de como os signos se podem relacionar uns com
os outros. Ambos são transmitidos ou tornados acessíveis a outros, ou seja, receber signos,
códigos ou comunicação é a prática das relações sociais. O ser humano, enquanto agente co-
municador, produz e interpreta signos. O estudo desta prática denomina-se por semiótica.

Como refere José Saraiva, no seu estudo O Álbum Narrativo em Portugal do Século XX para o
Século XXI: Um estudo sobre a Relação entre a Ilustração e o Leitor-modelo: “As diferentes for-
mas de comunicação concebidas pelo homem usam signos como elementos de significação.
Embora as palavras estejam entre os signos mais utilizados pelo homem, na representação
visual a comunicação estabelece-se a partir de marcas gráficas que podem permanecer, pe-
renemente, para além da existência física do seu autor” (Saraiva, 2013, p.120).

O acto de significação advém do processo de união entre o significante e o significado,


este acto origina o signo. Como refere Barthes, “a significação pode ser concebida como
um processo; é o acto que une o significante ao significado, acto cujo produto é o signo”
(Barthes, 1997, p.40).
Quando nos referimos à imagem, e neste caso, a visual, situámo-nos no campo da semiolo-

39 • Capítulo II
gia, área que estuda as mensagens visuais e, assim sendo, como acrescenta Martine Joly “a
mensagem tornou-se sinónimo de ‘representação visual’”(Joly, 2008, p.40).
José Saraiva explica-nos que no campo da semiologia “os sinais linguísticos dividem-se es-
sencialmente em signos da fala (os sons que produzimos ao falar) e signos da escrita (as
palavras com origem na base lexical do alfabeto, as letras, também signos). Quer o mate-
rial fonético quer o tipográfico é tido como o significante, a forma das palavras. O sentido
que advêm da consciência de determinada palavra é o seu significado” (Saraiva, 2013, p.124).
Assim como, refere Barthes o significante é um mediador “a matéria é-lhe necessária”
(Barthes, 1997, p.39), ou seja, a sua substância é sempre material (sons, objectos, imagens,
incluindo as palavras).

No processo de significação, no caso prático deste projecto, na abordagem à ilustração, a


leitura do texto pode ser tida como um campo de acção com inúmeras possibilidades de pro-
duzir um sistema de signos. A forma como a ilustração pode representar um texto é baseada
numa interpretação dos signos escritos, por norma associados às palavras, “e essa interpre-
tação pode estar presente quer nos signos icónicos13, quer nos plásticos” (Saraiva, 2013, p.127).

Como explana, Joana Quental, “um espaço vivido – que promove o prazer, o acto lúdico de
sermos transportados para a pele do outro, como se fossemos o outro – um espaço vivido
porque, ao ser experimentado, se converte em sentido. O suporte constitui-se, então, como
um espaço de significação para o ilustrador, ‘compõe o artefacto de um outro mundo’, agora
não recebido, mas fabricado” (Certeau, 2009, cit. por Quental, p.142).

José Saraiva acrescenta que a função simbólica da ilustração evidencia-se quando é orienta-
da para um significado sobreposto ao seu referente, ao exemplificar citando Camargo: “Em
sua função simbólica, a imagem pode ser investida de significados convencionais, como é o
caso da imagem do coração com uma flecha, que simboliza pessoa apaixonada, ou do signo
formado pelo cruzamento de uma linha horizontal com uma vertical que, conforme o con-
texto, pode, na lousa, em uma aula de matemática, simbolizar a adição, e, no obituário de
um jornal, a morte” (Camargo, cit. por Saraiva, 2013, p.136).

Esta função simbólica está dependente do sujeito e do contexto em que é interpretada,


pois, “cada interpretante de um signo é uma unidade cultural ou semântica” (Eco, 1981, p.158),
ou seja, dependendo de uma determinada cultura o significado de uma imagem pode,
também, ser diferente.

13. Signos icónicos e plásticos


Denomina-se por signos icónicos, os figurativos, signos plásticos, os que correspondem à cor, signos plenos e integrais
os relativos à forma, composição e textura. Estes elementos influenciam o ilustrador na concretização da ilustração mediante
o leitor-modelo.
“O sistema das unidades semânticas representa o modo como uma certa cultura segmenta o
40 • Capítulo II

universo perceptível e pensável e constitui a forma conteúdo” (Eco, 1981, p.158).


Ressaltámos apenas a diferença entre significação e valor que na visão de Barthes, com-
preende-se que “(...) a significação participa da substância do conteúdo e o valor da
sua forma (...)” (Barthes, 1997, p.47) ou seja, o valor acaba por ser mais importante do que
a própria significação. No caso, específico de mensagens elaboradas, ambíguas ou confusas,
temos de tomar uma série de decisões interpretativas, e definir em qual ou quais códigos ire-
mos referir o significante. No entanto, Umberto Eco enaltece que “neste caso, o trabalho de
descodificação torna-se actividade interpretativa que envolve em elevado grau de responsa-
bilidade do destinatário, tornando-o às vezes co-emissor, pois que pode decidir descodificar
a mensagem com base em códigos que não estavam presentes no emissor quando emitia a
mensagem” (Eco, 1981, p.172).

2.3 A construção narrativa: entre texto e ilustração

A articulação entre o texto e a imagem provém do uso apropriado de ambas as linguagens: a


escrita e a visual. No livro ilustrado, partimos do princípio que o texto e a imagem, devem re-
lacionar-se, como um conjunto que permita a compreensão da narrativa, como uma espécie
de dupla narração. Ou seja, como se existissem dois narradores, um responsável pelo texto
e outro pelas imagens, ambos podem depender um do outro. Na tentativa de produzirem
um segundo nível de leitura, as imagens podem ser um complemento dos vazios do texto,
ou ambos serem opostos um ao outro, o texto não contar nada do que contam as imagens.

Ao longo da história, o texto e a imagem partilharam o mesmo suporte, em diversos arte-


factos de comunicação (iluminuras, livros de Salmos, álbuns ilustrados, etc..) quase sempre
com um objectivo comum, de comunicar uma ideia, através de uma linguagem específica. “A
ilustração nasce deste encontro” (Quental, 2009, p.7), como refere Joana Quental, no seu estudo
A ilustração enquanto processo e pensamento. Autoria e interpretação.

A função do ilustrador e da ilustração ao longo dos séculos assumiu diferenciados papéis,


como por exemplo, Joana Quental (2009) refere que a iluminura primava um carácter essen-
cialmente didáctico, era utilizada para explicar o texto às pessoas menos conhecedoras das
letras. Em comparação com os livros de Salmos, que utilizavam a ilustração, por vezes repe-
tida e desprendida do sentido do texto, “a imagem reunia um carácter instrutivo e um poder
de fascínio e sedução” (Quental, 2009, p.35). A título de curiosidade, salientamos o papel do ilus-
trador no final do século XVI, início do século XVII (período em que As Cartas Portuguesas
foram escritas), como um contributo para a criação de um imaginário sobre a personagem
principal do projecto prático. O ilustrador assumia o “papel de cronista” (idem, 2009, p.64) os
temas da ilustração reflectiam as motivações e o gosto da nobreza, representavam a socie-
dade da época. Eram, essencialmente, sobre os interesses da monarquia e as classes mais
elevadas, caracterizavam a vida cortesã, a arquitectura, a vida militar (equitação, esgrima,

41 • Capítulo II
torneios), entre outros. Um reflexo da forma de estar e de pensar na época. A imagem estabe-
lece-se, assim, como elemento mediador entre o Sujeito e o Objecto, um terceiro elemento
que filtra os dados da percepção e que apenas deixa transparecer as informações possíveis
de se materializarem, neste contexto, numa ilustração.

Retomando a relação entre texto e imagem, Gémeo Luís relembra com Diaz-Armas que “a
ilustração, geralmente, é concebida depois, quando o texto já está feito, e a sua presença
ou ausência não é determinante para o desenrolar do argumento; de facto, são componen-
tes separáveis e podem merecer distintos juízos valorativos” (Armas, cit. por Fonseca, 2013, p.342).
No entanto, é possível desafiar esta convenção, invés de partir do texto para a imagem, po-
demos inverter o processo, partindo da imagem para o texto ou realizar uma produção em
simultâneo de texto e imagem.

O texto funciona como ponto de partida, para este projecto prático, assume um carácter
essencialmente descritivo, determina linhas orientadoras e indicações, ao estabelecer os li-
mites a respeitar na concepção do produto final. “O artefacto resulta de um processo de
construção em que o texto do programa original vai sendo sucessivamente interpretado
e reorganizado, desvanecendo-se progressivamente até ser quase imperceptível no final.
(Quental, 2009, p.108).

A história reflecte um momento no tempo, è contada pela autora do texto por palavras e
graficamente traduzida e fixada pelo ilustrador, tendo em conta, as vivências e as memó-
rias do mesmo, como perceberemos ao longo desta investigação. E, assim sendo, designá-
mos por ilustração um acto de “revelar, fixando graficamente, a subjectividade e a emoção”
(idem, 2009, p.77).

Jean-Michel Adam e Françoise Revaz no livro, A análise da narrativa, definem a narrativa,


como sendo “em primeiro lugar a ‘representação de acções’ (Adam e Revaz, 1997, p.18). E acres-
centam que para além, de uma simples imitação ou cópia de acções preexistente, revela-se
uma transposição da acção do ser humano no e pelo texto narrativo. “Neste sentido, todo o
texto narrativo deve ser considerado o produto de uma actividade criativa que opera uma
redescriçao da acção humana” (Adam e Revaz, 1997, p.18). No contexto da ilustração, Joana Quen-
tal, esclarece-nos que quando um texto se articula com a ilustração, o seu sentido depende,
também da leitura da mesma. “Tem-se por isso a ilustração como uma narrativa una mas
polissémica, construída pela dialéctica entre os discursos verbal e visual. Dir-se-ia que a
ilustração se realiza na interpretação de dois textos distintos, em termos de funções e de
conteúdos: o texto do programa e o texto que traduz por meios visuais” (Quental, 2009, p.109).
Neste processo, de procura, de ordem e equilíbrio, de unanimidade, concretizada numa uni-
42 • Capítulo II

dade narrativa, pictórica, ficcional e poética. “A imagem é uma mentira, mas uma mentira
que deve ser lida no seu contexto, limitada pelo quadro que a destaca e retira da realidade,
transportando-a para o mundo das hipóteses e das possibilidades. São as nossas histórias,
as nossas construções, os nossos pequenos mitos que transportamos e representamos no su-
porte. È na dialéctica entre o texto e a ilustração que reside o seu potencial inovador, o facto
de se construir, a si própria, sobre um projecto de mundo. Aqui reside a diferença e a especi-
ficidade da ilustração face a expressões como, por exemplo, o desenho.” (Quental, 2009, p.109).

Assim como, acrescentam Jean-Michel Adam e Françoise Revaz: “todo o universo diegético14
é interpretativamente construído pelo leitor/auditor a partir do que é dito, mas também do
que é implicitamente pressuposto pelo texto. É neste sentido que Umberto Eco fala, no Lec-
tor in fabula, de uma ‘cooperação interpretativa’ destinada a preencher os vazios, espaços em
branco, elipse de qualquer enunciado” (Adam e Revaz, 1997, p.39), poderemos atribuir este papel,
também, ao acto de ilustrar.

No decorrer desta pesquisa ressaltamos o que cumpre definir e o que se entende por narra-
tiva, e em que medida a ilustração poderá ser uma narrativa. Podemos partir do pressuposto
que a narrativa designa o enunciado narrativo (um discurso oral ou escrito).
“O que há a compreender numa narrativa não é, em princípio, aquele que fala por detrás do
texto, mas aquilo de que se falou, a coisa do texto, a saber. A espécie de mundo que, de certa
forma, a obra revela pelo texto” (Ricouer, 2009, cit. por Quental, p.115).

Na descrição de Barthes:
“A narrativa é antes de mais nada uma prodigiosa variedade de géneros, eles mesmos distri-
buídos entre várias matérias – como se qualquer material estivesse adaptado para receber as
histórias do ser humano. Capaz de ser transmitida por linguagem articulada, falada ou es-
crita, imagens fixas ou em movimento, gestos, e a mistura ordenada de todas estas matérias;
a narrativa está presente no mito, na lenda, na fábula, no conto, na novela, épico, história,
tragédia, drama, comédia, mímica, pintura (...), vitral, cinema, banda desenhada, notícias,
conversação. Além do mais, sob esta quase infinita diversidade de formas, a narrativa está
presente em todas as épocas, em todos os lugares, em todas as sociedades; começa com o
princípio da história da humanidade e em parte alguma houve ou há pessoas sem narrativa”
(Barthes, 2009, cit. por Quental, p.115).
Em suma, concluímos que a narrativa está presente em diversas formas, as pertinentes para

43 • Capítulo II
esta investigação, são em suporte escrito (o texto) e visual (a ilustração).
Vimos que a ilustração poderá completar o texto, mas também, pode acrescentar mais, ou
uma nova informação ao mesmo. No caso específico do projecto prático, a narrativa é explo-
rada visualmente a partir do texto, amplia as possibilidades de sentindo. Constrói uma rela-
ção complementar, pressupõe acrescentar uma nova leitura sobre o enunciado narrativo. Na
tentativa de construir uma nova adaptação sobre As Cartas Portuguesas.

2.4 A ilustração e a estrutura da mensagem


2.4.1 A interpretação

Podemos partir do princípio, que na leitura de um determinado texto, pelo ilustrador de-
senvolve-se um processo de interpretação (hermenêutica) do qual resulta um interpretan-
te “(a imagem mental nele suscitada, fruto da experiência, do conhecimento e da emoção)
mediado por uma operação especular em que atende aos sentidos presentes no texto, por
uma operação dialógica, em que confronta o texto com um outro texto (o do programa) e com
as suas contingências, e por uma operação poética em que recria os sentidos presentes ou
ausentes à luz do interpretante, o ilustrador usa o corpo e recorrendo à tecnologia, configura
o signo – o desenho da ilustração” (Quental, 2009, p.153). Existe uma procura, uma organização
sustentada na narrativa, que apela ao símbolo e à metáfora para trazer ao conhecimento o
que poderá estar ausente numa tradução literal do texto.

Paul Ricouer, no livro, Teoria da Interpretação refere que a “hermenêutica è a interpretação


orientada para textos e na medida em que os textos são, (...) exemplos da linguagem escrita,
em nenhuma teoria da interpretação é possível que não se prenda com o problema da escri-
ta” (Ricouer, 1987, pg.37). Umberto Eco, em Os limites da interpretação sob a luz do raciocínio de
Derrida, relembra que devemos, “(...) analisar o inconsciente do texto e não o inconsciente
do autor” (Eco, 2004, p.36). Joana Quental, afirma que Umberto Eco, levantou algumas ques-
tões, relativamente à tradução, pertinentes para o estudo da ilustração, sustenta que: “(...)
Tem de se rebater que, se o texto original propunha qualquer coisa como referência implíci-
ta, ao torná-la explícita certamente se interpretou o texto, levando-o a fazer ‘a descoberto’ algo
que originalmente ele tencionava manter implícito” (Eco, 2009, cit. por Quental, p.145).

14. Universo Diegético


Universo diegético para designar o mundo singular construído por qualquer narrativa.
Partindo deste esclarecimento sobre o que se poderá entende por interpretar, a interpretação
44 • Capítulo II

do texto, acaba por ser um factor determinante, que envolve o autor e a sua própria identida-
de. A linguagem para além de dizer, revela e origina a realidade, as formas pelas quais o texto
se apresenta são mediadoras, entre o ser humano e o mundo real.

Como explana José Saraiva: “as palavras descrevem pessoas ou espaços, mas as ilustrações
podem ampliar o seu sentido ao apresentarem pormenores omissos do texto, como vestuá-
rio, aspectos físicos particulares das personagens ou características do cenário. Deste modo,
as ilustrações não expressam apenas o conteúdo explícito do texto mas o seu conteúdo im-
plícito. Por isso são sugestivas relativamente ao texto referencial. Para além da interpretação
que o ilustrador faz dos aspectos físicos sugeridos, representa ideias e conceitos intangíveis
e invisíveis, como o medo ou o amor” (Saraiva, 2013, p.135).

Na ilustração a interpretação exige uma suspensão no tempo, “um instante de silêncio e


de recolhimento, de pôr em relação; de questionar, de duvidar, de repetir; de ler e de, sim-
plesmente, olhar. O espaço de representação contemporâneo revela-se, acima de tudo, um
espaço semântico15 de interacção e de permuta de sentidos, um espaço de significação. Um
espaço afectivo e de encontro, de reunião entre o eu e o outro” (Quental, 2009, p.143).

Gémeo Luís, expõe no seu entender, ao citar Díaz Armas:


“È o caso, por exemplo, do simbolismo acarretado pela ilustração; das referências transtex-
tuais que podem, ou não, ser reconhecidas pelo leitor previsto e que, em muitas ocasiões,
chegam a somar novas dimensões plurissignificativas ao texto, sugerindo diversos níveis de
leitura ou, inclusive, ajudando a descobrir as intenções do autor ou da obra; de algumas
possibilidades de complicação narrativa que a ilustração, por si só, ou em combinação com a
palavra, proporciona finais abertos ou ambíguos [...] circularidade, dialogismo [...] polifonia
textual” (Armas, cit. por Fonseca, 2013, p.52).

Paul Ricouer, esclarece-nos que “a mensagem tem fundamento da sua comunicabilidade na


estrutura da sua significação” (Ricouer, 1987, pg.37). Partindo do princípio que o texto escrito é
um processo comunicativo que entende a presença de um emissor, José Saraiva explica-nos
que, “uma mensagem e um receptor, os papéis dos extremos são ocupados pelo autor e pelo
leitor. Aqui devemos fazer uma distinção no papel de leitor. Entendemos por leitor-mode-
lo, aquele que tem a capacidade intelectual de actualizar plenamente o conteúdo potencial
do texto e, por isso, cooperando com o autor. É leitor-modelo na perspectiva do autor, pois
cumpre as expectativas deste. Lê o texto da forma como o autor pretende que o faça” (Saraiva,
2013, p.128). Nesta caso específico, a interpretação do texto é mais restrita. Quando referimos
o leitor-empírico este pode julgar e interpretar consoante aquilo que ele pensa que são as
verdadeiras intenções do autor. “O leitor-empírico tem a certeza absoluta de que o seu juízo
é o resultado intencional das intenções do seu autor-modelo, interpretando a partir do que,
enganado, acredita serem as reais intenções do seu autor-modelo” (idem, 2013, p.125).
Umberto Eco, acrescenta que de um texto podemos retirar várias interpretações. “Em prin-

45 • Capítulo II
cípio podem fazer-se infinitas. Mas no fim as conjecturas deverão ser provadas com base na
coerência do texto e a coerência textual só poderá desaprovar certas conjunturas avançadas.
Um texto é um artifício destinado a produzir o seu próprio leitor-modelo” (Eco, 2004, p.38).
Atribuindo o uso e a interpretação como sendo dois modelos abstractos, pois todas as leituras
resultam da junção de ambos. “Por vezes acontece que um jogo, iniciado como sendo uso,
acabe por produzir uma criativa e lúcida interpretação - ou vice versa” (Eco, 2004, p.42). E eluci-
da-nos ao explicar que, por vezes, “interpretar mal um texto significa descascá-lo de muitas
interpretações canónicas anteriores, descobrir-lhe novos aspectos e, neste processo, o texto
resulta muito melhor è muito mais produtivamente interpretado (...)” (Eco, 2004, p.42).

Joana Quental, refere que no caso da ilustração existem opções formais e semânticas a to-
mar. Retomando a adequação da metáfora “ao texto a comunicar, não é garante de que o de-
senho não destrua os sentidos que quereria significar. Porque as referências e as memórias
são individuais, conduzem necessariamente à criação de diferentes imagens e representa-
ções. Deste modo, a ilustração pode traduzir e respeitar as palavras em termos denotativos,
mas não lhes ser correspondente em termos estéticos” (Quental, 2009, P.147). Sendo a ilustração
uma informação que poderá acompanhar um texto, “a ilustração é canal da mensagem, tal
como o texto” (Saraiva, 2013, p.131). E, considerando que o mesmo possa ter um carácter informa-
tivo, não é necessário que a ilustração acompanhe esse género.

Aliás, como ressalta Joana Quental (2009) o interesse na ilustração está na capacidade de
“superar a tradução literal do texto e revelar-se um processo de transmutação, de inovação
semântica”, com a possibilidade de enriquecer e adicionar significado. A ilustração invés de
apenas representar, deve interpretar o que está escrito, com o objectivo, de fornecer ao leitor
uma segunda leitura sobre o texto, enriquecendo-o ou atribuindo novos dados. È importan-
te salientar que, nesta relação entre texto e imagem, nem tudo é possível de ilustrar. Existem
determinadas coisas, que apenas as palavras as conseguem definir, cabe ao ilustrador reco-
nhecer esse limite.

15. Espaço Semântico


“A semântica, a ciência da frase, diz imediatamente respeito ao conceito de sentido (...), na medida em que a semântica se define
fundamentalmente mediante procedimentos integrativos da linguagem”(Ricouer, 1987, p.19-29).
2.4.2 A Metáfora

Como referimos anteriormente, na leitura de um texto, o leitor cria as suas próprias ima-
46 • Capítulo II

gens, mesmo que distraidamente, ao contrário do ilustrador que o lê da mesma forma mas
tem, em seguida, por breves momentos esquecer aquilo que leu. Na tentativa de ponderar os
“resíduos que nele produziu essa leitura; valorizá-los e em alguns casos ampliá-los, noutros
abandoná-los ou substituí-los; imaginar-lhes a forma, a expressão, num processo que alia o
jogo ao pensamento.” (Quental, 2009, p.157). Na tentativa de interpretar o texto, podemos sugerir
que criámos metáforas. Umberto Eco define a metáfora “como fenómeno de conteúdo induz
a pensar que ela só terá uma relação mediata com a referência, que não pode ser assumida
como parâmetro da sua validade. Mesmo quando se diz que todas as expressões metafóricas
têm de ser identificadas como tal porque, se forem tomadas à letra, pareceriam absurdas e
falsas (...)” (Eco, 2004, p.167).

A metáfora tem a capacidade de demonstrar aspectos da realidade, utilizando outras pala-


vras ou imagens, esta pertence ao jogo da linguagem que reage á designação. Lemos, assim,
na poética de Aristóteles, que uma metáfora é a “aplicação a uma coisa de um nome que per-
tence a outro e a transferência tem lugar do género para a espécie para o género, de espécie
para espécie, ou proporcionalmente” (Aristóteles, 1987, cit. por Ricouer, p.59).
Esta é uma das “figuras retóricas, aquela em que a semelhança serve de razão para substituir
uma palavra figurativa a uma palavra literal, perdida ou ausente” (Ricouer, 1987, p.60).

Paul Ricouer, na Teoria da metáfora faz um resumo muito esquemático, sobre a metáfora, ao
longo da história da retórica, que começa com os sofistas gregos e é continuada por Aristó-
teles, Cícero e Quintiliano, até morrer no século XIX. Esquematizada nas seis proposições
abaixo mencionadas:

“1) a metáfora é um tropo, uma figura de discurso que diz respeito à denominação;

2) representa a extensão do sentido de um nome mediante o desvio do sentido literal


das palavras;

3) a razão deste desvio é a semelhança;

4) a função da semelhança é fundamentar a substituição do sentido figurativo de uma pala-


vra em vez do sentido literal, que se poderia ter usado no mesmo lugar;

5) por isso, a significação substituída não representa nenhuma inovação semântica. Pode-
mos traduzir uma metáfora, isto é, repor o sentido literal de que a palavra figurativa è subs-
tituto. Com efeito, substituição mais restituição é igual a zero;
6) visto que não representa uma inovação semântica, uma metáfora não fornece qualquer

47 • Capítulo II
informação nova acerca da realidade. Eis porque se pode considerar como uma das funções
emotivas do discurso” (Ricouer, 1987, p.61).

Compreender a metáfora é importante, pois ajuda-nos a perceber a razão pela qual o autor
a escolheu. Não deve ser tida como um “ornamento de discurso” (Ricouer, 1987, p.64), tem mais
do que um valor emotivo, pois faculta uma nova informação, pode dizer-nos algo novo sobre
a realidade, ou neste caso, da relação entre texto e ilustração (acrescentar informação adicio-
nal ao texto). No decorrer da leitura do enunciado narrativo o ilustrador recebe estímulos,
e mesmo que não tenha vivenciado esses estímulos ou experiências, deve ter a capacidade
de suportar e reflectir sobre os mesmos. Na tentativa de lhes atribuir um novo sentido, uma
nova percepção daquilo que essa realidade significa, para o ilustrador, na sua visão pessoal
de mundo. Assim sendo, não colocámos em causa a verdade, mas sim, a dependência da ca-
pacidade de simbolizar o real. A metáfora, à luz deste projecto prático, foi adaptada para co-
municar novas formas de significar. Como expõe Joana Quental (2009): enquanto que o con-
ceito se detém na explicação, a metáfora sugere, insinua e exprime qualidades ou sentidos.

2.5 O ilustrador enquanto intérprete ou autor

Ao longo do segundo capítulo expusemos, aquilo que poderá ser entendido por imagem,
que em conjunto com o texto, deve permitir uma clara compreensão da narrativa.
O suporte revela, essencialmente, um espaço de significação para o ilustrador, a função sim-
bólica do mesmo, está dependente do sujeito e do contexto em que é interpretada.

O ilustrador, assume um papel mediador entre o texto e a imagem. Deve, sempre que possí-
vel, interpretar o texto, fornecendo uma nova leitura sobre o enunciado narrativo. Pode co-
municar a mensagem através da criação de metáforas visuais, no intuito de construir novas
formas de significar. Ao longo, da investigação afirmámos algumas vezes que a ilustração
dependeria, essencialmente, das vivências do ilustrador, recorre à emoção. A sua criação
nunca será um processo isento, é o que tencionámos descortinar no terminar deste capítulo.
Atendendo que o interesse da ilustração está na capacidade de superar a tradução literal do
texto, tentámos perceber no decorrer do projecto prático, o que faz o ilustrador com o texto
que lê e como utiliza esse mesmo texto para ilustrar.

O ilustrador transforma e acrescenta, “(...) cria para si um espaço de jogo para maneiras de
utilizar à ordem imposta do lugar ou da língua. Sem sair do lugar onde tem que viver e que
lhe impõe uma lei, ele aí instaura pluralidade e criatividade. Por uma arte de intermediação
ele tira daí efeitos imprevistos” (Certeau, 2007, p.92-93).
José Saraiva explica-nos que “ao representar o que lê, o ilustrador impõe a sua interpretação
48 • Capítulo II

do texto, o seu estilo e opções de caracterização das personagens ou espaços, adicionando


todos os pormenores não descritos nas palavras” (Saraiva, 2013, p.130).

Podemos então concluir que a ilustração pode ser mais do que uma representação, daquilo
que é evidente. Esta pode ser uma ficção “na medida em que não tem um compromisso on-
tológico com a realidade, apenas com o texto que ilustra, e por isso se relaciona o projecto de
ilustração com a ideia de um laboratório, em que o ilustrador se experimenta, porque ima-
gina, ensaia, avalia e decide acerca das suas ideias e dos seus desenhos; que permite ao ilus-
trador pensar e projectar-se como se fosse outro, revelando-se a si mesmo” (Quental, 2009, p.127).

O ilustrador tem a capacidade de interpretar o texto de outro, consegue transformá-lo pelo


seu próprio pensamento, revê-se no papel de actor e consegue interpretá-lo, também quan-
do o apresenta, confere-lhe uma nova visão. Contrapondo com o leitor comum, como expla-
na Joana Quental “para quem as imagens produzidas pela leitura de um texto permanecem
ocultas na mente sem nunca serem dadas a conhecer, ao ilustrador é pedido que as revele,
que as mostre pela ilustração. O momento de atribuição de sentido não determina o fim,
mas mais uma etapa (fundamental) a ultrapassar neste jogo. É a altura em que, confrontado
com o ‘horizonte de expectativas’ sugeridas pelo texto, tem que decidir o que quer fazer
significar. E aí emprestando o seu corpo ao mundo, o ilustrador transmuta o mundo do texto em
ilustração” (Quental, 2009, p.127-128). Ou seja, o ilustrador pensa como se o seu corpo fosse ou-
tro corpo, “põe-se no lugar do outro, e ainda que não possa experimentar o que é dito no
texto, ele é capaz de o sentir como se participasse na história. O que se julga é que, ainda
que tente fazer como se fosse outro corpo, há traços, registos que denunciam a sua presença”
(idem, 2009, p.157).

Como acrescenta Saraiva (2013), a função expressiva pertence ao emissor da mensagem, reve-
la as qualidades do produto da imagem, como o seu valor plástico e traços de personalidade,
assim como os valores do objecto da representação.
Estas propriedades estão presentes em função das opções plásticas ou compositivas do au-
tor. “As deformações, o uso enfático da cor não-referencial (por exemplo, um cavalo azul)
e a gestualidade no estilo de representação, ou seja, os gestos que são inferidos através dos
traços, pinceladas, manchas, etc., sinalizando, assim, a ênfase no emissor, são traços carac-
terísticos do movimento artístico justamente denominado como expressionismo. Mesmo
quando a pintura se afasta (ou abandona) a representação, como é o caso, por exemplo, da
pintura chamada ‘abstracta’, a função expressiva pode continuar existindo, como ocorre no
expressionismo abstrato”. (...) A imagem pode expressar sentimentos e valores pessoais, in-
terpessoais (do autor em relação a outra pessoa), interpessoais (inconscientes), do autor em
relação a objetos (inclusive a natureza) e valores socioculturais, ultrapassando, assim, o uni-
verso pessoal e a abrangência dessa função explicitada na proposta jakobsoniana.
Nesse sentido, conforme sua abrangência, a função expressiva pode permitir – entre outras

49 • Capítulo II
– abordagens psicológicas, sociais e antropológicas” (Camargo, 2013, cit. por Saraiva, p.137).
Entende-se por tradução ser a “compreensão e significação, enquanto tradutor, o ilustrador
é também um produtor de sentidos, que transfere invariavelmente o seu traço e expressão
para as representações que faz. Então, por mais rigoroso, minucioso, atento, respeitoso, por
mais próximo que esteja do texto, o ilustrador invade e trai o seu sentido” (Quental, 2009, p.146).
Ou seja, o papel do ilustrador, poderá ser considerado de um tradutor com mais responsa-
bilidades, sendo ele o primeiro intérprete do texto, funciona como mediador, onde explora
os sentidos que o texto, lhe transmite. “Quanto mais uma história é contada de uma maneira
decente, eloquente, sem malícia, num tom adocicado, mais fácil se torna invertê-la, denegri
-la, lê-la ás avessas” (Barthes, 1988, p.65).

Com este raciocínio pretendemos esclarecer que não é o sentido do texto que nos ocupa, mas
sim, a elaboração do seu pensamento, a nossa imagem do mundo. A leitura do texto deve
ser realizada como um todo significativo, “falar é construir mundos” (Fonseca, cit. por Quental,
p.103). Ler o enunciado narrativo é um processo de construção, de confronto de memórias, no
pensamento do leitor/ilustrador, absorvido pelas suas vivências, pelas suas experiências e
pela sua própria história.

Como refere a ilustradora Catarina Sobral16 em entrevista para o projecto Big Jumps, em que
é questionada por ter muito boas ideias a sustentar as suas estórias, ao que a própria afirma:
“O principal trabalho do ilustrador é ter ideias. Mais do que a técnica, o principal será sem-
pre a ideia que queres comunicar. Seja para uma notícia de um jornal, onde tens que criar
uma metáfora visual qualquer, que te comunique aquela notícia, seja para uma estória. (…)

Milton Glaser entrevistado por Steven Heller afirma que: “a ilustração nunca foi uma forma
documental de representação. Sempre foi o entendimento da cultura que estava por trás da
aparência das coisas”. (Glaser, 2009, cit. por Quental, p.101) Joana Quental, acrescenta que “esta
postura contraria a ideia de que a ilustração possa ter sido (ou seja, como alguns a conside-
ram ainda) apenas uma representação mimética da realidade, ou simples paráfrase do tex-
to. Depreende-se que, para Milton Glaser, a ilustração corresponde sempre a um processo
cognitivo e de interpretação. Mesmo quando é supostamente uma forma de documentar a
realidade, a ilustração tem implícito o ilustrador, porque essa representação corresponde a
um entendimento do contexto contaminado pela genética, as memórias e as experiências do
seu autor” (Quental, 2009, p.101).

Em suma, “a imagem do mundo não é a sua representação, é a imagem, a ideia que cada um
tem do mundo” (Vitta, 2009, cit. por Quental, p.92) entende-se por representar uma mediação en-
tre o pensamento e a realidade. O mesmo processo, pelo qual o ilustrador desencadeia como
mediador entre a relação texto e ilustração.
De certa forma, oferece o seu corpo, propõe vivenciar uma história, tem a capacidade de sen-
50 • Capítulo II

tir como se participasse na mesma. Ao registar a sua interpretação, denuncia a sua presença,
através da expressão e da forma pessoal como pode recriar a narrativa visual, influenciada
por vários factores, essencialmente, individuais e culturais. Ou seja, o acto de ilustrar é um
exercício de autoria, que reflecte as memórias, as emoções, as experiências e a forma de
como o ilustrador vê e cria o seu próprio mundo.

2.6 Casos de Estudo

No decorrer desta investigação analisaremos três objectos editoriais, como caso de estudo,
que possuem alguns aspectos similares ao projecto prático.
A primeira análise, sobre a edição Lettres Portugaises, litografias de Henri Matisse (2004), será
longa, tem por objectivo perceber como o artista interpretou e transpôs o texto para o ar-
tefacto, o espaço de significação. Visto que, o exercício prático desta investigação desenvol-
ve-se sobre o mesmo enunciado narrativo. É uma breve sinopse, dos acontecimentos que
englobam as cinco cartas de Mariana Alcoforado, para criar uma ponte de ligação com
o trabalho do artista.
No segundo artefacto, analisámos o livro Todas as Cartas de Amor de Paulo José Miranda (2014),
com ilustrações de Mariana, A Miserável, debruçamo-nos, essencialmente, sobre a tipologia
do objecto editorial.
Por fim, iremos analisar a publicação Die Grosse Flut (2011), do colectivo It’s Raining Elephants,
essencialmente, com o intuito de compreender como é possível reinventar uma nova abor-
dagem, sobre um texto, com vários séculos e inúmeras interpretações, à semelhança de
As Cartas Portuguesas.

2.6.1 Lettres Portugaises, litografias de Henri Matisse

O primeiro artefacto editorial (Fig.1), mencionado anteriormente, são o conjunto de litogra-


fias que o pintor francês Henri Matisse produziu sobre as célebres cartas de amor de Ma-
riana Alcoforado. O artefacto em questão, não é o original, trata-se de uma reprodução (ou
catálogo de exposição) realizada no âmbito da exposição Lettres Portugaises, litografias de
Henri Matisse, que sucedeu em 2004, na Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva. Da edição
original e preciosa em colaboração com o editor Tériade, apenas resultaram duzentos e cin-
quenta exemplares, assinados pelo artista.

“Não faço distinção entre a construção de um livro e a de uma pintura e parto sempre do sim-
ples para o complexo, ainda assim estou sempre disposto a recriar a partir da simplicidade”.
Henri Matisse, Comment j’ai fait mes livres, 1946.
51 • Capítulo II
Fig.1 Reprodução da capa original de Lettres Portugaises, litografias de Henri Matisse,
no catálogo de exposição da Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva, 2004

Em 1945, Matisse apaixona-se por Lettres Portugaises e é a sua vez de propor a Tériade a edição
ilustrada das cartas de amor atribuídas a Mariana Alcoforado. “Também Matisse se impres-
sionou com a paixão sem eco da freira de Beja e executa uma série de retratos imaginários
de Mariana Alcoforado. Vários modelos posaram para dar corpo à sua Soror Alentejana,
mas ninguém lhe oferecia a imaculada frescura e persistente fulgor que procurava. Até que
se lembrou de Doucia, a filha do seu merceeiro. Com ela, Matisse nas quinze litografias que
acompanham os textos dá-nos com grande poder de síntese os diversos estados d’alma da
religiosa: da pureza à paixão, da desilusão à amargura” refere José Sommer Ribeiro (Ribeiro,
2004, p.5), na introdução do catálogo. E acrescenta para além dos retratos imaginários que faz
de Soror Mariana são notáveis as ilustrações “que ornamentam as páginas com uma malha
sensual de flores, frutos e plantas características dos países do sul e que muito contribuem
para dar ao texto todo esse brotar de paixão e desânimo” (idem e ibidem).

16. Entrevista Catarina Sobral


Catarina Sobral em entrevista para o projecto Big Jumps. Acedido em http://www.bigjumps.pt/interview_4
Matisse encantou-se de tal forma pelo texto das cartas que “decidiu encarregar-se da pagina-
52 • Capítulo II

ção; desenhou preciosamente as capitulares que abrem as cartas e os seus parágrafos mais
importantes, renovando a tradição dos manuscritos iluminados.

“Agora sei o que é um J, ele confessou-se-me orgulhosamente; e um A, é difícil um A, um A..., bem ver-
se-à...”, disse Matisse a Louis Aragon, acrescentando que passava as noites a desenhar as suas
letras, as suas folhas, as suas iluminuras. Aos setenta e três anos continuava devotamente a
aprender!” (Ribeiro, 2004, p.5). Esta completa entrega de Henri Matisse às Lettres Portugaises foi
plenamente recompensada, resultou numa das “mais belas e poéticas publicações” (Ribeiro,
2004, p.5) de Tériade.

Na execução das litografias, Henri Matisse, enquanto intérprete, utilizou lápis de cores di-
ferentes. Nas ilustrações com flores, aplicou a cor lilás, que expressa a espiritualização da
alma, ao criar uma aproximação à paixão de Cristo. No rosto de Mariana, empregou a cor
marrom ou castanho, que corresponde à cor da ordem religiosa Clarissa Franciscana, da qual
Mariana Alcoforado fazia parte. Esta cor também, simboliza a terra, maturidade e responsa-
bilidade. Não conseguimos obter nenhuma informação sobre a relação da interpretação do
texto, por parte do artista, com a técnica de litografia17 utilizada.

Na abertura de cada carta, Matisse, desenha uma folha (Fig.2) com um número indefinido de
pétalas, uma espécie de barroquismo sensual, orgânico e voluptuoso. Estas folhas podem
ser uma metáfora sobre as questões do amor e referentes às diversas dúvidas, apresentadas
no primeiro capítulo, desta investigação, ou puderam estar relacionadas com as frases desta-
cadas pelo artista ao longo da edição.

Mariana Alcoforado, na primeira carta lamenta a negligência e as falsas promessas do ca-


valeiro, ao sentir o profundo abandono e o vazio da separação. Ainda sob o efeito da forte
paixão e emoção, não consegue sentir desprezo e recusa-se a esquecer o seu amado. Reco-
nhece, no entanto, a tortura das lembranças e dos bons momentos vividos e afirma o seu
amor incondicional, onde acaba por expressar a vontade em abandonar o convento, com o
intuito de seguir os seus impulsos.

Na impossibilidade de realizar este desejo, glorifica o amor que uniu os dois corações e des-
pede-se, com emoção, na perda dos sentidos e choros que consomem os seus dias, ao desejar
morrer de amor.

A primeira litografia que representa o rosto de Mariana (Fig.3), com a inscrição Il ne leur reste
que dês larmes (Só lágrimas lhes restam. Trad. Eugénio de Andrade), o pintor delineia o contorno da
face, onde os traços delicados, que representam o nariz e a boca, incitam a expressão de um
olhar triste e saudoso, ao destacar o seu abatimento pelas lágrima derramadas.
E declara que é a única coisa que lhe resta, as lágrimas, e ressalta a saudade daquele que

53 • Capítulo II
tanto amou:

Ai! Os meus (olhos) estão privados da única luz que os alumiava, só lágrimas lhes restam, e chorar é
o único uso que faço deles, desde que soube que havias decidido a um afastamento tão insuportável
que me matará em pouco tempo.”

(excerto da primeira carta de Mariana Alcoforado)

Fig.2 Página de abertura das Lettres Portugaises

17. Litografia
A técnica de litografia, o artista desenha/pinta na pedra com uma substância oleosa, como por exemplo, um lápis,
tintas ou grafites, apropriados para litografia.
54 • Capítulo II

Fig.3 Primeira Carta - Dupla página com litografias

Na litografia seguinte (Fig.3), Matisse criou uma ilustração curiosa, estilizada e de difícil com-
preensão. Alguns autores afirmam que a figura se assemelha a uma pinha com folhas agu-
çadas, explicando que o fruto da pinha, composto por escamas, simboliza a fertilidade e a
vida. Mariana, desejava que este amor fosse eterno, mas a traição ao seu puro sentimento
despertou o sentimento de frustração e de desistência da vida. Outros autores, referem tra-
tar-se de uma mariposa (negra e nocturna), símbolo relacionado com a alma, expressa a saí-
da do túmulo (casulo) para o renascimento – passagem do mundo dos mortos para o mundo
dos vivos. Significa a transparência e a transformação que encaminha para a consciência
e compreensão dos sonhos, revela o crescimento e a evolução, é considerado um símbolo
de libertação sexual.

Na segunda carta, Mariana revela que a demonstração dos seus sentimentos, significa uma
verdadeira afronta ao seu coração, opondo, à primeira carta. Remete para a falta de confian-
ça, na consequência do silêncio e esquecimento demonstrado pelo cavaleiro. Acusa-o de
traidor pela ausência de notícias, ao reconhecer a sua inocência e ilusão. No entanto, insiste
em continuar a sofrer, ao invés de o esquecer. Revela que foi nomeada porteira do convento,
por apresentar um desvio de comportamento e confirma não estar arrependida dos senti-
mentos e actos que proferiu. Comprova a sua paixão ao terminar a carta e expressa o desejo
de perdoar Chamilly.
O rosto delineado (Fig.4), por Matisse, na segunda carta, revela uma expressão de indiferen-

55 • Capítulo II
ça. Fazem parte dele os sentimentos de desilusão e indignação pela ausência do cavaleiro.
Esta ideia é reforçada pela frase: je n’envie point vostre indifférence (Em nada invejo a tua indiferença.
Trad. Eugénio de Andrade). O olhar permanece indefinido, longínquo e questionador, o nariz e
a boca sempre bem marcados, ressaltam a decepção e a amargura que o ciúme provocou, ao
perceber que Chamilly não partilhava os mesmos sentimentos com a mesma intensidade.

“Ai, que ilusão a minha! Como me enganei!”


(excerto da segunda carta de Mariana Alcoforado)

Este olhar longínquo é definido por alguns autores como, Cumming (1996), como se os olhos
estivessem recolhidos no seu mundo interior e perdidos nos seus diversos pensamentos.

Fig.4 Segunda Carta - Dupla página com litografias

As frutas que simbolizam a paixão e a fecundidade, compõem a vinheta da segunda carta,


respectivamente, três romãs (Fig.4). Segundo a narrativa mitológica, a árvore deste fruto, foi
consagrada à deusa Afrodite. O texto referente a esta ilustração é uma analogia ao ardor de
um sentimento presente nas cinco cartas.
Na terceira carta, a freira destroçada, questiona a vida, o amor e a sorte dos que se entregam
à paixão. Começa o texto a contestar a ausência do amado e a falta de notícias.
56 • Capítulo II

“Esperava que me escrevesses de toda a parte por onde passares e que as tuas cartas fossem longas,
que alimentassem a minha paixão com a esperança de voltar a ver-te.”
(excerto da terceira carta de Mariana Alcoforado)

Confessa o seu estado debilitado de saúde, devido ao sofrimento que o cavaleiro lhe causou
e reconhece a falsidade do mesmo. Esta excessiva dor de abandono leva Mariana a confron-
tar-se com dúvidas relativas à própria identidade. E acrescenta as perdas sofridas: a reputa-
ção, o desprezo da família, a punição pelas leis portuguesas com as freiras e, principalmente,
a ingratidão por parte de Chamilly. Mas, continua apaixonada e confessa o prazer fatal que
teve a arriscar tudo por este sentimento. Despede-se várias vezes, reafirma o seu amor e
aceita a sentença do destino.
Na litografia correspondente a esta carta (Fig.5), observamos a tristeza, o desalento e a de-
silusão no rosto de Mariana. È visível, um delineado dos olhos, intencionalmente, triste e
encontram-se inchados de tanto chorar. O formato do rosto e a expressão são desolado-
res, representam a saúde abalada e a dor proporcionada pela ausência de notícias do ca-
valeiro. Como justifica o fragmento textual retirado: vous m’avez trahie. (Atraiçoavas-me. Trad.
Eugénio de Andrade).

Fig.5 Terceira Carta - Dupla página com litografias


Na ilustração (Fig.5), Matisse, representou as três maças, símbolo do pecado original, neste
caso o amor proibido. O excerto do texto presente revela a ideia de tentação, o sentimento de

57 • Capítulo II
abandono e a desolação.
A quarta carta manifesta uma enorme preocupação sobre o estado de Chamilly, depois de
receber a notícia, por intermédio de um tenente, que este tinha desembarcado no mar do
reino do Algarve, por causa de problemas com a embarcação.
E, novamente, Mariana Alcoforado, reclama a ausência de notícias. Prevê que o cavaleiro já
não partilhe os mesmos sentimentos, mas continua a afirmar a sua desmedida paixão. Con-
fiou nas promessas do amado, e de todas as alegrias, agora só restavam suspiros e lágrimas,
uma triste previsão de morte.

Fig.6 Quarta Carta - Primeira dupla página com litografias

No decorrer, da extensa carta, questiona o procedimento e as razões do abandono, por parte


do amado e declara a desonra e o prejuízo moral, que obteve com este relacionamento. Mas,
continua a desvendar o seu amor incondicional e revela que todos perceberam a sua mudan-
ça de carácter e que sentem pena do seu estado. O único que não parece sentir é Chamilly,
que lhe envia cartas insignificantes. Refere a presença e a companhia de D. Brites, que a
convence a sair do quarto, onde avista Mértola, possivelmente, uma referência à célebre ja-
nela, que lhe trás horríveis lembranças e retira-lhe todas as esperanças, em voltar a ver o seu
cavaleiro. No decorrer da carta desvenda a existência de outra mulher, na vida de Chamilly,
e pede que lhe envie uma fotografia da mesma, do irmão e da cunhada. Com o intuito de
terminar, mais um desabafo, declara que esta devota paixão, já dura um ano e despede-se,
repetindo várias vezes, a palavra adeus e a expressão como eu te amo.
A litografia que ilustra esta carta (Fig.6), anuncia o estado de alma de Mariana, demonstrado
58 • Capítulo II

um olhar triste. Os olhos continuam inchados de chorar, conforme sugere o texto:

“(..) o que de feliz começo não são mais que suspiros, lágrimas e uma tristíssima morte que julgo sem
remédio.” (excerto da quarta carta de Mariana Alcoforado)

O rosto permanece apoiado pela mão, que expressa uma atitude estática e sugere um mo-
mento de reflexão e desalento.

A ilustração (Fig.6), representa a imagem de uma planta denominada por borragem. Os efei-
tos medicinais desta planta tornam as pessoas felizes, estimulam as atitudes de coragem e
ajudam a combater estados depressivos. As flores, com forma de estrela, que adquirem tona-
lidades variadas, entre a cor púrpura e azul, no contexto português simbolizam a felicidade.
Esta simbologia identifica as verdadeiras declarações de Mariana.

No entanto, é possível fazer uma segunda observação, em torno desta ilustração, se con-
siderarmos que as flores são lírios. O símbolo da luz, da pureza e da virgindade. Ao partir
deste pressuposto, podemos fazer uma interpretação ambígua, sobre esta flor. Pois, identifi-
ca-se com a piedade e inocência de Cristo, mas também, pode ser associada à fecundidade e
ao amor erótico.

A próxima litografia (Fig.7) pronuncia o desalento de Mariana ao recordar as palavras ditas


por sua mãe: ma Mère m’em a parle (Minha mãe falou-me. Trad. Eugénio de Andrade) sobre os momen-
tos de exortação, ao receber a sua mensagem. Uma expressão de dor, desolação e tristeza,
manifesta-se no formato alongado do rosto, nas sobrancelhas arqueadas e nos olhos baixos.
A boca comprimida, relembra as pessoas que a alertaram para a grave situação.

A litografia (Fig.7) seguinte, revela um rosto mais arredondado e menos sofrido, representado
por traços mais leves, mas mantém a tristeza, no olhar. Ilustra o momento de apoio atribuído
por Dona Brites: “Dona Brites insistiu, nestes últimos dias, para que saísse do meu quarto, julgando
distrair-me, levou-me a passear até o balcão de onde se avista Mértola.”
(excerto da quarta carta de Mariana Alcoforado)

O tema principal da narrativa das cartas, a decepção com o abandono e a indiferença de


Chamilly, está reflectido nos traços, linhas e contornos das litografias que ilustram esta edi-
ção de As Cartas Portuguesas.
59 • Capítulo II
Fig.7 Quarta Carta - Segunda dupla página com litografias

Na ilustração (Fig.8), Henri Matisse, surpreende o leitor ao desenhar um rosto retorcido, dis-
forme e envolto num véu. Os olhos de Mariana demonstram um profundo sofrimento que,
segundo a carta, remete-nos para o estado de saúde fragilizado.

Na última litografia (Fig.8), que ilustra a quarta carta, permanece a deformidade nos traços.
No entanto, a expressão do olhar está mais aliviada, depois de terminar mais um desabafo.
Seguidamente, anuncia o seu sofrimento, não está conformada com a rejeição, como remete
o texto salientado por Matisse: que vous m’estes dur! (Como eu te amo! Trad. Eugénio de Andrade).
60 • Capítulo II

Fig.8 Quarta Carta - Terceira dupla página com litografias

Na quinta e última carta, Mariana Alcoforado, declara o fim do relacionamento com Cha-
milly, convencida que tudo foi um engano.
Com a ajuda de Dona Brites, devolve o retrato e as pulseiras que lhe foram oferecidas, pelo
cavaleiro, depois de muitas lágrimas e hesitações, esclarece que finalmente tentou de todas
as formas curar-se da paixão, mas não livrar-se dela. Suplica ao amado, para permanecer em
silêncio, pois prevê que será o único meio para esquecê-lo. Num tom fortemente magoado
pede para que não interfira mais no seu destino. Refere que poderia ter conhecido um outro
“amante melhor e mais fiel”, e inúmera várias questões sobre esta paixão.

Escreve com um sentimento negativo, que a leva ao desespero final, assume toda a culpa
deste sentimento e da desgraça que foi abatida. Expõe razões para odiar o cavaleiro e expres-
sa desejo de entregá-lo à vingança da família. Na última carta, a mágoa é exacerbada. Admite
estar livre do encantamento e, no último parágrafo, revela que apenas duas das cartas, escritas
por Chamilly, ficariam guardadas para leituras contínuas, até atingir um estado de alma
mais tranquilo. Não tencionava tomar resoluções mais extremas, que lhe pudessem causar
ainda mais desgosto. Por fim, admite que se sente livre para afirmar que não iria escrever
mais ao cavaleiro, nem lhe revelar os seus sentimentos.

Na primeira ilustração (Fig.9), desta carta, os traços do rosto encontram-se mais firmes e de-
lineados. Representa a expressão de coragem que suscita a última carta, com um olhar mais
sereno, apesar da visível tristeza, o contorno do rosto e dos lábios, demonstra a decisão em
terminar definitivamente com Chamilly. O excerto je vous z’envoyeraí done... (Mandar-lhe-ei... Trad.
Eugénio de Andrade), comprova a triste decisão de devolver as cartas e desistir da reconciliação.
A litografia (Fig.9), desta última carta, também suscita uma dupla leitura. Num primeiro pon-

61 • Capítulo II
to de vista, a ilustração sugere que sejam flores de romã, que os gregos consideravam como
um símbolo do amor. Na interpretação de Matisse, estas flores simbolizam o desabrochar de
uma nova fase de Mariana, ao celebrar o fim da relação com o cavaleiro. Como demonstra
o texto da capitular: Je vous escris pour la dernièri fois, et j’espère vous faire connoistre par la diffé-
rence dês termes, et de la manièri de cette lettre, que vouz m’avez enfin (Escrevo-lhe pela última vez e espero
fazer-lhe sentir, na diferença de termos e modos desta carta, que finalmente acabou. Trad. Eugénio de Andrade). Numa
segunda interpretação, as flores podem lembrar cravos, que como tradição, nos matrimó-
nios, eram colocados na bebida dos noivos. Expressam o amor puro e inocente daquele que
nasceu para ajudar o próximo, o encantamento, a distinção e também são um símbolo da
paixão de Cristo.

Fig.9 Quinta Carta - Primeira dupla página com litografias

Na próxima litografia (Fig.10), Matisse, representa mais um possível rosto de Mariana, apoia-
do numa mão espalmada, expressa uma enorme tristeza, num olhar baixo e cismador, como
os de quem procura um caminho, uma luz, ou uma explicação. A imagem completa-se com
o excerto da carta: Je vous promets en ne vous point layer (Prometo-lhe não o ficar a odiar. Trad. Eugénio
de Andrade), no qual Mariana esclarece que não o conseguiria odiar.
Esta decisão induz Matisse a ilustrar outro rosto (Fig.10) que completa a visão de sofrimen-
62 • Capítulo II

to, da imagem anterior. Suporta e aumenta a dificuldade que Mariana teve em tomar esta
decisão definitiva. A face ilustrada é mais magra, o nariz adunco e os lábios cerrados, atri-
buindo destaque aos olhos perdidos e vidrados. Reflexão de um estado de espírito abatido
e mortificado pelas lágrimas e pelo sofrimento que foram revelados, ao longo das cartas. No
entanto, as palavras são de perdão: Je cherches dans ce moment’s vous excuser (Procuro neste momento
desculpá-lo. Trad. Eugénio de Andrade).

Fig.10 Quinta Carta - Segunda dupla página com litografias

A litografia seguinte (Fig.11), revela Mariana envolta nas vestes de freira, visto que, na última
carta declara a decisão de retomar a vida religiosa, livre do encantamento. A expressão do
rosto é mais serena, nunca livre de um olhar triste. Nesta última carta, ela relembra o seu
percurso no convento:

Eu era nova, ingénua; haviam-me encerrado neste convento desde pequena; não tinha visto senão
gente desagradável; nunca ouvira as belas coisas que constantemente me dizia (...).
(excerto da quinta carta de Mariana Alcoforado)
63 • Capítulo II
Fig.11 Quinta Carta - Terceira dupla página com litografias

A expressão retirada: Toujours distrailes for mille bagatelles... (Sempre distraídas com futilidades... Trad.
Eugénio de Andrade), reforça este momento e remete para a dificuldade que o cavaleiro terá em
suportar outras mulheres e as suas futilidades.

Na penúltima ilustração (Fig.11), Mariana é representada com traços bem definidos e apresen-
ta uma certa tranquilidade. O olhar incerto tenta esclarecer o pensamento preso no passado,
na procura de antever o futuro que a espera. A decisão de terminar a ligação entre ambos
está tomada, é reforçada a ideia que não lhe voltará a escrever, reportando ao sofrimento,
os momentos de amor e ira, o arrependimento e, finalmente, o perdão: Je croys que je ne vous
souhaite (Creio que não lhe desejo nenhum mal. Trad. Eugénio de Andrade).

A última litografia (Fig.12) representa a mulher decidida de coração puro. Matisse ilustra um
rosto bem delineado e mais cheio, que expressa tranquilidade, com um olhar confiante e de
lábios firmes, um reflexo da decisão tomada. O excerto: Je prendai contre moi (A mim própria. Trad.
Eugénio de Andrade), comprova a confiança e o reconhecimento do erro praticado, mas que
resultou na força de uma decisão.
64 • Capítulo II

Fig.12 Quinta Carta - Ùltima litografia

Henri Matisse, criou várias litografias sobre As Cartas Portuguesas, que identificam os aspec-
tos da experiência vivida por Mariana Alcoforado, uma mulher apaixonada. E construiu
uma agradável integração entre o texto e a ilustração, ao detectar e acrescentar, na sua visão
de mundo, os vazios do texto, na criação de diversas metáforas, descritas ao longo desta
análise. Este conjunto de litografias é importante, como caso de estudo, porque é uma inter-
pretação próxima, relacionada com a concretização prática e a aplicação teórica desenvol-
vida, no decorrer do relatório de investigação, que suporta o mesmo enunciado narrativo,
de projecto prático. E de certa forma comprova, como foi mencionado, anteriormente, que
um texto pode ter diversas interpretações, “infinitas” (Eco, 1990, p.38). Esta foi a interpretação
de Henri Matisse, no terceiro capítulo iremos expor uma visão diferente de As Cartas Portu-
guesas, a que pertence à ilustradora do projecto. Neste caso particular, tendo em conta, que a
análise das litografias decorreu com base no catálogo resultante da exposição, da Fundação
Arpad Szenes-Vieira da Silva, não conseguimos analisar o artefacto físico original.
2.6.2 Todas as Cartas de Amor

O segundo artefacto de estudo é o livro Todas as Cartas de Amor, de Paulo José Miranda (2014),

65 • Capítulo II
com ilustrações de Mariana, A Miserável (Fig.13). O autor do texto dirige setenta cartas de
amor, a uma mulher, num discurso extremamente temido.

O objecto físico, realizado por Elisabete Gomes / Silvadesigners, remete-nos para uma edição
de bolso, com o formato de 11 x 18 centímetros. O livro é composto a duas cores, preto e rosa,
sobre papel olin recycled cream de cento e vinte gramas.
As cento e quarenta e quatro páginas, são protegidas por guardas de cor rosa, que contras-
tam com a capa mole, certamente por se tratar de uma edição de bolso, de trezentas gramas,
no papel keayklolour china white.

Na capa, a informação textual está alinhada ao centro, existe um grande destaque para o tí-
tulo do livro. Seguido de uma primeira ilustração, apresenta ser um casal no interior de uma
carta de papel, que remete o leitor para este universo de troca amorosa, entre duas pessoas.
Abaixo da ilustração consta o nome do autor do texto.

Fig.13 Capa do livro - Todas as Cartas de Amor


Para o texto do miolo utilizam uma tipografia serifada, a Heofler Text, da fundidora Hoefler &
66 • Capítulo II

Co. A paginação é composta por uma única coluna de texto, ao centro, juntamente com uma
abertura, acima do texto principal, alinhada em itálico, que se dirige ao destinatário Meu
amor. No topo de cada página é referenciado o número da carta, em caixa alta, na mesma cor
rosa, presente ao longo de todo o livro. As cartas terminam, também, sempre com a inscri-
ção, O teu, a itálico e não possuem data. A numeração aparece, alinhada ao centro, no fim de
cada página, impressa na tonalidade rosa.

Fig.14 Página do livro, Todas as Cartas de Amor

Ao longo do livro ressaltam vários apontamentos de frases, em caligrafia, e no tom rosa, que
sugerem um novo sentido ao texto ou acrescentam aquilo que, num determinado ponto de
vista, falta. A utilização da caligrafia cria uma afinidade com a plasticidade da ilustração.

A ilustração marca o ritmo do livro, cria pausas de descanso do texto, para o leitor. Promove
a subjectividade e a emoção, proferidas textualmente, ao tornar visível o que está ausente
no texto. Como poderá ser exemplo, a ilustração (Fig.14), presente na página noventa e nove,
que envolve duas personagens. Uma mulher de pernas para baixo, que contém uma ex-
pressão pensativa, com o olhar direccionado para o lado esquerdo, de onde consta a página
com o texto.
67 • Capítulo II
Fig.15 Ilustração de Mariana, A Miserável

O interior da sua saia é uma piscina ou um mar, onde a segunda personagem, um homem,
irá mergulhar. A metáfora presente na ilustração, sobre o texto, desta carta, remete para ad-
miração que criámos em torno dos outros, e as saudades que o autor sente pela sua amada,
e como gostaria de: “Buscar ar pra voltar a descer em ti, para levar o céu para o fundo do
mar” (Miranda, 2014, P.97-98). Demonstra ser, como referimos, anteriormente, a criação de uma
metáfora, que traduz e acrescenta uma nova leitura sobre o texto.

O segundo objecto editorial, analisado, domina o mesmo material do projecto prático, as


cartas de amor. É uma publicação recente, interessou-nos neste projecto perceber, princi-
palmente, o objecto. Os pormenores da paginação e o comportamento da ilustração, ao lon-
go do livro, na criação de um ritmo. Visto que, em comparação com as cartas de Mariana
Alcoforado, também contém uma densa mancha de texto. E percebemos a necessidade de
explorar tipograficamente, diversos níveis de leitura, na paginação. Neste caso, referentes à
numeração, à abertura e ao fim das cartas, assim como, o ritmo da ilustração conjugada com
apontamentos caligráficos, que permitem esmorecer o peso do texto. O tratamento de cor
também auxiliou neste processo.
2.6.2 Die Grosse Flut

O último caso de estudo, pertence ao colectivo It’s Raining Elephants. A publicação que ire-
68 • Capítulo II

mos analisar é Die Grosse Flut (2011), que consiste numa reinterpretação de um texto bíblico,
A Arca de Noé. As ilustradoras ficaram fascinadas com a força arcaica e o absurdo, de deter-
minados excertos que possui este texto, que já teve enumeras publicações e interpretações,
inclusive a nível da ilustração. Esta nova abordagem cria metáforas sobre padrões dominan-
tes entre as pessoas. Arrecadou uma menção honrosa na Illustrarte Portugal, dois prémios no
CJ Picture Book Festival, na Coreia e ganhou o prémio internacional de ilustração na feira do
livro infantil e juvenil em Bolonha.

A publicação, explora o artefacto de forma interessante, o suporte na sua magnitude.


Numa história ilustrada sobre a queda, salvação e renovação, o colectivo criou uma em-
balagem (Fig.15), que inclui no seu interior três cadernos desdobráveis, correspondentes
aos temas mencionados, onde o leitor pode ler e descobrir as ilustrações. E no fim, quan-
do abrimos o desdobrável é possível obter uma ilustração em grande formato, densa de
elementos e personagens.

Fig.16 Die Grosse Flut - Capa e Interior da embalagem


A capa principal da embalagem (Fig.15), tem o título da publicação no canto superior esquer-

69 • Capítulo II
do e é composta por três cores, azul, vermelho e amarelo, sobrepostas por cima da ilustração
a grafite. Estas três cores correspondem, no interior, a um respectivo caderno. A ilustração,
da capa, remete-nos para um ambiente atmosférico, de sonho, como se o observássemos
através de um binóculo. Um lugar, que poderá ser aquele que Noé anseia encontrar para
desembarcar com todas as espécies, e assim, salvar a vida na Terra.

Fig.17 Die Grosse Flut - A capa dos três cadernos que contém a publicação

Quando abrimos a publicação, visualizámos a ilustração de uma cápsula petri, com diversas
células microscópicas, que nos remetem para a criação do Universo. O texto presente na
publicação é em alemão, com uma adaptação para francês, infelizmente não conseguiremos
traduzir expressões na sua totalidade. No entanto, na parte superior e inferior (Fig.15), o leitor
é confrontado com uma lista, cujo o título é Vor Der Sinflut, refere-se à informação antes do
Dilúvio, e contêm um símbolo que nos remete para um contexto religioso. Ao continuar, a
descobrir o objecto, o leitor é confrontado com a presença de metade de uma maçã ilustrada,
que é recorrentemente, tida como símbolo do pecado, mas também, da fertilidade, conheci-
mento, desejo e de mundo, pela sua forma.
Os três cadernos (Fig.16), contém inscrito na capa, no canto superior direito, Genesis, e uma
ilustração no centro página.
Na capa do primeiro caderno, com o tema a queda, dominante pelo tom vermelho, conse-
70 • Capítulo II

guimos observar a vista de cima de um tronco com todos os seus anéis, que representam os
anos de vida de uma árvore, portanto o tempo, que está a ser perfurado. A madeira também
é o material utilizado na construção da arca.
No decorrer da visualização do caderno, observamos que a ilustração conjuga-se ao lado do
texto, demonstra cenas sobre o comportamento do ser humano, que são impróprias, tidas
como pecado, no recorrer do texto. As ilustrações presentes, nas últimas duplas páginas, são
um momento de silêncio, de reflexão e comparação. Um homem (Fig,17), Noé, aparece com
um olhar baixo (na página direita), ao lado, na página esquerda há uma aproximação ao que
ele vê, uma pequena formiga. Quando fechamos o caderno, é representado o momento em
que Deus (os raios de luz), fala com Noé.

Fig.18 Ilustração primeiro caderno - terceira dupla página Fig.19 Ilustração primeiro caderno - quarta dupla página

Ao continuarmos a leitura, de forma contrária, deparamo-nos com uma noz, símbolo da


fertilidade. Na página seguinte, observamos uma nova aproximação ao rosto de Noé (Fig.18),
com uma expressão séria, pensativa. A última ilustração dá-nos sinais para o que iremos
descobrir a seguir. No meio do condenável comportamento humano, há uma personagem
que está a cortar uma árvore. Certamente, para a construção da arca de Noé, que podemos
descobrir quando abrimos o interior do caderno (Fig.19).
As ilustrações são compostas por inúmeras personagens, onde o colectivo, intervém e acres-
centa mais informação ao texto, por vezes de forma irónica, onde até a morte (representada
por um esqueleto) tenta salvar a vida na Terra, ao intervir na construção da arca.
71 • Capítulo II
Fig.20 Ilustração primeiro caderno - em grande formato

O segundo caderno, a salvação, é composto pela cor azul. A ilustração da capa é uma nu-
vem densa, com chuva, remetendo-nos para o dia do Dilúvio. Quando iniciámos a leitura
do caderno, somos surpreendidos por uma dupla página, de cor azul (Fig.20), só com texto.
Na dupla página seguinte, apenas com ilustração, podemos observar a reunião dos diversos
casais de animais, a entrarem para dentro da arca de Noé. As restantes ilustrações são muito
saturadas de negro, muito texturadas, remetem o leitor para a acção que está a decorrer, a
tempestade. Como se irá descobrir quando abrirmos o caderno (Fig.21) onde em torno de uma
silhueta, numa posição embrionária, (um novo ser humano está a ser gerado), tudo o que era
menos bom à sua volta parece desaparecer.

Fig.21 Segundo caderno - desdobrado


72 • Capítulo II

Fig.22 Ilustração segundo caderno - em grande formato

O último caderno, a renovação, dominante pelo tom amarelo tem na capa uma pena, que
simboliza, principalmente o pensamento, e neste caso, marca um novo início, uma nova for-
ma de pensar. A primeira dupla página, é composta por ilustração (Fig.21), o leitor pode ver
os animais amontoados dentro da arca, não há espaço. E na próxima ilustração (Fig.22), estes
apresentam uma expressão triste, cansada e de desespero. Seguidamente, após cento e cin-
quenta dias, Deus mostra a terra. Na ilustração de grande formato (Fig.23), depois de todo o
tempo de espera e angustia, os animais e as pessoas encontram um novo espaço para viver e
prolongar a vida na Terra, é o momento da libertação.

Fig.23 Ilustração terceiro caderno - primeira dupla página Fig.24 Ilustração terceiro caderno - terceira dupla página
73 • Capítulo II
Fig.25 Ilustração terceiro caderno - em grande formato

Comparativamente, ao estudo de caso anterior, neste artefacto, a ilustração assume um pa-


pel predominante face ao texto, atendendo que este não é tão denso.
Die Grosse Flut (2011), também é uma publicação recente, foi uma das principais influências
na concretização do projecto prático. Em comparação, trata-se da interpretação de um texto
com muitos séculos, um tema bíblico, representado contemporaneamente. É bastante inte-
ressante a forma como o objecto físico foi construído. Consegue prolongar no leitor, a
sensação de descoberta sempre que é manuseado. O tratamento de cor plana ajuda a cons-
truir um ritmo bastante dinâmico. É evidente que o colectivo de ilustradoras interpretou
e acrescentou uma nova leitura sobre o texto, através dos signos icónicos. Ressaltámos a
importância da pesquisa, e da criação de metáforas em torno da ilustração, que enriquece
o texto e aumenta as possibilidades de interpretação, relativamente às expectativas que o
leitor poderá criar.
74 • Capítulo III

Fig.26 Primeiro mono e amostras de materiais


Capítulo III

Projecto Prático

75 • Capítulo III
3.1 Artefacto

Um projecto pode desenvolver-se de diversas formas. No terceiro capítulo, desta investiga-


ção, iremos referenciar todas as etapas da concretização do projecto prático.
Até à materialização final, esta publicação passou por diversas fases projectuais, como são
exemplo, o estudo do objecto, a interpretação do texto, a realização da ilustração, a edição
e a paginação do artefacto final. Serão estes, os tópicos abordados ao longo deste último
capítulo. Pois, o livro comunica através de um conjunto de factores, para além do texto e da
ilustração, o processo editorial, apesar de ter um papel mediador, ajuda a reforçar a ideia
que tentámos transmitir.

Inicialmente debruçámo-nos sobre uma intensa pesquisa, excedente ao texto, que foi referi-
da na primeira parte desta investigação. Obtivemos informação sobre o enunciado narrativo,
que podíamos usar, não só para interpretar a ilustração e criar a nossa própria visão sobre o
texto, mas para pensar o artefacto gráfico.

Simultaneamente, a este processo, desenvolvemos o primeiro mono, um estudo sobre o li-


vro, enquanto objecto físico, que pudesse representar e identificar Mariana Alcoforado e As
Cartas Portuguesas. Com o intuito, de criar uma base de trabalho que nos ajudasse a tomar
decisões, sobre a realização prática da ilustração, nomeadamente, o tamanho original do
suporte que deveríamos usar. O formato do livro é uma característica importante, para além
da capa, que comunica imediatamente, o tamanho, a escolha dos materiais e dos caracteres
dispostos ao longo do objecto, também, são factores que devemos ter em conta.

Atendemos à magnitude que As Cartas Portuguesas atingiram ao longo dos séculos, o que nos
levou a explorar um formato maior, comparativamente às edições que consultamos da obra,
e tendo em conta, as possibilidades de produção enquanto protótipo, a sua dimensão é de
vinte e quantro por trinta e quatro centímetros.

Esta edição das cartas de Mariana Alcoforado é impressa em Munken Lynx, de cem gramas,
que possui um agradável toque, uma sensação natural e genuína no papel, que cria um forte
contraste com a densidade escura das ilustrações e do texto. A cor branca, símbolo de pure-
za, limpeza e paz, remete o leitor para os sentimentos verdadeiros e o alívio que o desabafo
das cartas significava para a remetente. O branco também é o símbolo do amor de Deus, da
espiritualidade, inocência e virgindade, partindo do estatuto de freira e do facto desta se
sentir enganada pelo seu amado, pensámos que faria todo o sentido o objecto ser, comple-
tamente nesta tonalidade. Assim sendo, a capa, recorre ao mesmo papel, numa gramagem
superior, para dar continuidade a este bloco de cor.
A capa, é o primeiro indício de toda a mensagem e interpretação contida no livro ilustrado.
76 • Capítulo III

A exploração gráfica da capa e contra-capa procurou acentuar a potencialidade da narrativa,


desafiando o leitor, num carácter pouco comum numa publicação, a questionar-se sobre a
ausência de informação. Pois, tratam-se de cartas de amor, são um conteúdo muito pessoal,
apesar de neste caso particular, já não serem secretas, tencionámos explorar um certo mis-
tério na descoberta do objecto.

Na capa, apenas está cravado um calo com uma folha caída. Simboliza o narrador do texto, a
última lembrança que restou deste sentimento e as suas cartas. A morte de todas as esperan-
ças, a folha caída, ao lado do calo que ficou de pé, abandonado, como Mariana Alcoforado.
A envolver todo o objecto, está um material “precioso”, a folha dourada, da qual foi possível
carimbar a capa. Este material, é bastante sedutor pelo seu brilho e cor, remete, não só para
a classe nobre, de que a autora e o cavaleiro pertenciam, como para a preciosidade da obra.
Afinal, estamos perante a interpretação de um texto que remonta o século XVII, que viajou
por diversos idiomas e tantas controvérsias e interpretações arrecadou.
A concepção, do saco dourado foi bastante difícil, pela sensibilidade do material, no entanto,
achámos que seria o mais indicado, atendendo à sua fragilidade e leveza, caracteriza a auto-
ra e o conteúdo do texto.

Fig.27 Objecto Final


77 • Capítulo III
Fig.28 Capa e carimbo final
78 • Capítulo III

Outro elemento que assume um carácter relevante, no objecto, é a presença das cinco fitas
que correspondem a cada carta. As primeiras quatro cartas possuem uma transição de cor,
entre o branco, passando por tons cada vez mais escuros de cinzento, até à cor preto. Mais
uma vez é representado, à semelhança do primeiro caso de estudo, o declínio da pureza des-
te “encantamento” e o fim da relação. Como tal, a última carta corresponde a uma fita de cor
azul, associada à tranquilidade, serenidade e harmonia, o estado que certamente Mariana
terá alcançado depois da importante decisão. Para além, de ter uma relação simbólica com
uma das cores, dos uniformes dos cavaleiros franceses, nesta época, “uniformes vistosos,
azuis e oiro (...)” (Martins, 2006, P.6). Este primeiro contacto com o objecto, reforça o jogo de ex-
pectativas que se dirigem ao leitor, todos estes elementos, introduzem o leitor ao conteúdo.

As guardas, para além da sua função funcional, na abertura do livro, ou conceptual (pelo
conteúdo), primeiramente devem antecipar a narrativa e por fim remeter novamente para a
mesma. Frequentemente, são uma extensão da narrativa visual do livro, neste caso, princi-
palmente, por questões de produção, não transcenderemos o miolo para as guardas. Estas
serão representadas por cores planas. A primeira será no tom azul, é uma relação directa
com a última carta, leva o leitor para o interior do livro. A última guarda será na cor preto,
que remeterá novamente o leitor para o interior da narrativa, visto que, é uma cor muito
presente na densidade das ilustrações monocromáticas.

Fig.29 Pormenor das cinco fitas


79 • Capítulo III
Fig.30 Estrutura da paginação, páginas 14 e 15

A folha de rosto, revela ao leitor as principais informações para iniciar a leitura do texto,
identifica o autor, da obra em questão, o ilustrador e o autor da tradução para português
(das cinco cartas), pois, dependendo do tradutor do texto, determinadas expressões textuais
poderão ser diferentes. Visto que, as guardas são numa cor plana, decidimos que a folha de
rosto fosse sugestiva, na medida em que oferece ao leitor, um primeiro contacto com a ilus-
tração que encontrará no interior do livro, dando início à narrativa.

A paginação do texto, inicialmente, revelou-se um desafio. Atendendo à densidade do enun-


ciado narrativo e a ausência de níveis diferenciados de informação. Como tal, a análise ao
segundo caso de estudo revelou-se fundamental, apesar de As Cartas Portuguesas, não pos-
suírem uma estrutura tão igualitária. Decidimos apenas, ressaltar alguns excertos, que saem
fora da estrutura da grelha do texto corrente, e que se relacionam com a metáfora da ilustra-
ção. Cria-se diferentes níveis de leitura, o texto torna-se mais apelativo para o leitor.
Como tal, foi necessário também, marcar os parágrafos do enunciado narrativo. Optámos
80 • Capítulo III

por não numerar as páginas do livro, porque partimos do princípio que o texto original,
corresponderia, ao formato de carta. Na escolha tipográfica, seleccionámos duas tipografias
serifadas, para os destaques atribuímos preferência a uma que transparecesse uma
base caligráfica.

O ritmo do livro foi construído numa organização de dupla página, que mantém separado,
o texto e a imagem, apenas no fim de cada carta, aparecem em páginas articuladas. Com o
intuito de preservar os mesmos, valorizando ambas as vertentes, para que o leitor tenha a
possibilidade de explorar as duas leituras, a narrativa textual e visual, como mencionámos
no capítulo anterior.
81 • Capítulo III

Fig.31 Visualização dos spreads do livro,


página 1 à 29
82 • Capítulo III
83 • Capítulo III

Fig.32 Visualização dos spreads do livro,


página 30 à 90
84 • Capítulo III

Fig.33 Primeiro estudo dos materiais e esboços


3.2 Os desenhos e os desígnios da ilustração

No processo de trabalho, a ilustradora reagiu de forma emotiva ao texto, o decorrer da des-

85 • Capítulo III
coberta de um imaginário para ilustrar foi moroso. Primeiramente, porque este projecto é
de certa forma, uma primeira tentativa, com um contexto próximo ao trabalho de um ilus-
trador, exercido pela autora das ilustrações. É também, a continuação de uma descoberta, de
uma expressão, de uma expressão autoral própria, enquanto ilustradora.

Ao longo, da concretização de projecto prático efectuamos vários momentos de leitura sobre


As Cartas Portuguesas. O primeiro, isento de qualquer investigação sobre as mesmas, aquele
que de certa forma consideramos o mais verdadeiro e impulsionador na construção de uma
nova interpretação. O segundo momento de leitura, realizou-se após termos investigado so-
bre Mariana Alcoforado, e aqui destacámos principalmente, o prefácio de Rocha Martins,
que referimos no primeiro capítulo. Pois, foi o texto principal que nos forneceu informação
adicional, sobre as cartas, que numa primeira leitura não teríamos detectado.

No caso específico, deste enunciado narrativo, encontrámos diversa informação sobre o mes-
mo e considerámos como melhor opção, iniciar o processo de ilustração depois de perceber
e assimilar essa mesma informação. Mas, temos consciência que há enunciados narrativos,
em que não é possível recolher este género de pesquisa, e aí sim é apenas o ilustrador, aquele
que efectua uma primeira visão e interpretação do texto.

Com o processo de pesquisa, realizado, desenvolvemos os primeiros esquissos e atendendo


à densidade das cartas, tivemos a noção que não poderíamos interpretar todos os momentos
de cada carta, como se apenas, uma carta fosse um livro ilustrado.

Tendo em conta, o tempo que teríamos disponível para realizar o projecto e com a intenção
de preservar as decisões que tínhamos tomado em relação ao artefacto. Não convinha que
este ficasse muito pesado ou demasiado extenso, pois o conteúdo é de apenas cinco cartas
de amor. Tencionámos que o leitor tenha a percepção do conteúdo original da obra, pelo
volume reduzido e a importância que esta atingiu, pelo tamanho do objecto.

Portanto, decidimos que iríamos ter dois momentos de ilustração por carta, à excepção da
quarta e quinta carta, que devido à sua extensão propusemos ilustrar três momentos. In-
fluenciados pela paginação do segundo caso de estudo, atribuímos um símbolo ao final de
todas as cartas, que explicaremos a sua relação com o texto, no decorrer da leitura.

Conceptualmente, interpretámos as cartas de Mariana Alcoforado, como se fossem um so-


nho, dando oportunidade à mesma de concretizar o seu desejo, sair do convento. Todo o seu
estado alucinatório, de sofrimento e abandono é representado através de uma viagem, com
diversas personagens e elementos. A nossa principal influência foi o trabalho do colectivo,
It’s Rainning Elephants, abordado no terceiro caso de estudo.
Paralelamente, a estas decisões, procurámos algumas referências exteriores ao texto, que
86 • Capítulo III

tiveram uma forte influência no trabalho da ilustradora, e na criação de um imaginário que


pudesse ser tido como o de Mariana Alcoforado. Esta pesquisa, baseou-se no distrito de
Beja, desde o convento, às Ruínas de Mirobriga (referentes na terceira carta), à fauna e flo-
ra do local, passando por referências dos nossos dias, como o artesanato das Irmãs Flores.
Também, nos interessou pesquisar sobre os temas representados em iluminuras, livros de
salmos, jogos do ganso (presente na segunda carta) e pinturas do século XVII, que consegui-
mos ter acesso através da pesquisa virtual.

Quando realizámos a primeira leitura das cartas, a autora transmitiu-nos uma sensação de
tristeza, angústia e prisão, a clausura. Para representar estes sentimentos negativos, optámos
por fazer um registo de ilustração mais pesado e ruidoso, utilizando como materiais: carvão
(aguado), lápis de grafite, tinta-da-china, pastel seco branco e lápis de cor.
Estes materiais, com características diferentes, permitiram-nos transparecer para o leitor
que à medida que lê a narrativa visual, esta perde definição. Ou seja, a ilustradora aos pou-
cos desprende-se do lápis (a certeza e o auge da paixão), e a ilustração passa a viver mais da
mancha (das lágrimas e da profunda tristeza que invade Mariana). Assim como, os senti-
mentos de Mariana Alcoforado, que na transição das primeiras quatro cartas vão ficando
cada vez mais diluídos na sua angústia e desespero.

A escolha da utilização, principalmente, do carvão, deve-se a este material ser o mais pró-
ximo das cinzas. Como As Cartas Portuguesas nunca foram encontradas na versão original,
imaginámos que tenham sido destruídas, esta edição propõe interpretar o que nelas poderia
estar implícito. Na quinta carta, à semelhança do primeiro caso de estudo, a interpretação
de Henri Matisse, quebrámos este ritmo e introduzimos a cor, visto que, nesta carta a autora
do texto toma a difícil decisão de terminar a relação com o cavaleiro, o tom do seu discurso é
diferente, é a última carta, a despedida, a libertação para uma nova fase.

Seguidamente iremos explanar de forma sucinta o momento e a interpretação presente em


todas as ilustrações, desta edição de As Cartas Portuguesas.
3.2.1 Primeira Carta

Como foi referido, anteriormente, na nossa interpretação sobre as cartas de Mariana Alcofo-

87 • Capítulo III
rado, despertámos o lado onírico, o mundo dos sonhos. Apesar de no primeiro capítulo ter-
mos mencionado o feminino de Mariana distanciámo-nos das interpretações mais comuns, e
de idealizar a autora do texto. Como tal, ao longo da narrativa visual ela aparece metaforica-
mente representada em diversas personagens. Como é exemplo (Fig.24), da primeira carta em
que a mesma é um javali. A nossa intenção nesta primeira carta foi contextualizar o leitor
e representar os campos alentejanos, ou seja, algumas actividades que os soldados faziam,
como era exemplo, a caça. E no início da narrativa visual, em que Mariana, um javali, por
norma um animal selvagem, forte, feroz e agressivo, capaz de fugir e enfrentar todos os sol-
dados é capturado com lanças, que ferem, e neste caso feriram os olhos de Mariana, aqueles
de quem ela se queixa e faz alusão ao longo da primeira carta.

“Os meus estão privados da única luz que alumiava, só lágrimas lhes restam, e chorar é o único uso que
faço deles, desde que soube que te havias decidido a um afastamento tão insuportável que me matará
em pouco tempo. (...)”

O Real Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição é apenas delineado sobre toda a compo-
sição. Na segunda ilustração (Fig.25), sob o efeito da leitura de excertos de As Novas Cartas
Portuguesas, representámos várias mulheres em forma de árvores, todas elas submissas aos
soldados, e todas elas poderiam ser a Mariana. “Mal te vi, a minha vida foi tua, e chego a ter
prazer em sacrificar-ta”. A árvore era frequentemente utilizada por poetas e pintores, para
representar e falar da mulher, sedutora, materna e protectora. Nesta ilustração, temos em
conta a descrição de Rocha Martins, dos prazeres a que os soldados se dedicavam nas horas
livres, e que mesmo Mariana sabendo, cegamente ignorava. Como representa a personagem
superior da página direita. No entanto, a raposa continua a viagem da carta com o olho de
Mariana, uma metáfora às pessoas que a alertavam para os perigos da sua relação com o
cavaleiro. As personagens enterradas e dispersas, que constroem este imaginário, ao longo
das ilustrações adquirem um papel mais activo, são pistas para o leitor do que acontecerá nas
próximas cartas.

Terminámos a primeira carta num momento de silêncio, do qual salientámos o olho, como
protagonista, ferido com uma seta, atendendo que Mariana se despede da seguinte forma:

“Ama-me sempre, e faz-me sofrer mais ainda.”


88 • Capítulo III

Fig.34 Primeira ilustração - Primeira carta


Fig.35 Segunda ilustração - Primeira carta

89 • Capítulo III
3.2.2 Segunda Carta

A viagem continua e na segunda carta deparámo-nos com um tabuleiro de jogo (Fig.26), que
90 • Capítulo III

contém diversas personagens e símbolos. Este tabuleiro é uma alusão ao jogo do ganso, que
ao longo dos séculos XVI e XVII, foi bastante popular na Europa. Era tido como uma perso-
nificação moral, uma espécie de lição sobre as controvérsias da vida real. Neste caso, refere-
se apenas à vida de Mariana, que é a porteira do jogo, (na segunda carta revela que é nomea-
da porteira do convento), representada em forma de árvore. No tabuleiro existem outros e
outras pobres enganados(as), pelo cavaleiro, que caminham para o mesmo abismo, para a
mesma escuridão, sem se conseguirem salvar, ambos perdidos de amores.
O tabuleiro é povoado por pernas de mulheres gigantes (os prazeres de Chamilly), e peque-
nos símbolos (a bíblia, a morte, as cartas, o barco, a ponte, etc..), a perna do javali que morreu
na primeira carta, inicia o jogo.

“És tu mais digno de piedade do que eu, pois vale mais sofrer como sofro do que ter os fáceis prazeres
que te hão-de dar em França
as tuas amantes.”

A segunda ilustração (Fig.27) é outro sinal de um possível desfecho para o romance, uma con-
sequência do esquecimento e do silêncio demonstrado pelo cavaleiro. Todas estas tentativas
de comunicação com o mesmo, são o resultado de uma profunda solidão e escuridão. As
lágrimas (Fig.28), o choro e a tristeza, ao reconhecer a sua inocência e ilusão, são o terminar
da segunda carta:

“Estou desesperada, a tua pobre Mariana já não pode mais: desfalece ao terminar esta carta. Adeus,
adeus, tem pena de mim!”
Fig.36 Primeira ilustração - Segunda carta

91 • Capítulo III
92 • Capítulo III

Fig.37 Segunda ilustração - Segunda carta


3.2.3 Terceira Carta

As ruínas, Mariana sente-se cada vez mais despedaçada, questiona a vida, o amor e a sorte

93 • Capítulo III
dos que se entregam à paixão. Na primeira ilustração (Fig.29), desta carta, representámos um
pântano, tido por alguns autores no sentido do imobilismo e da preguiça (a autora, apesar de
desejar, nunca tentou sair do convento), e por outros, como um dos símbolos do inconscien-
te e da mãe, o local das germinações invisíveis. Visto que, nesta carta, a autora do texto tem
dúvidas sobre a sua própria identidade e revela todas as suas perdas, como mencionámos
anteriormente, no primeiro caso de estudo. Os corpos dilacerados, são referentes às puni-
ções que sofreu, por parte das freiras, da família e pelo abandono de Chamilly.

No entanto, na ilustração seguinte (Fig.30) Mariana ergue-se em forma de múmia, pois conti-
nua a referir que nutre os mesmos sentimentos, da desmedida paixão:

“Contudo, não me resolvo a desejar que não penses em mim; e confesso ter ciúmes terríveis de tudo
o que em França te dá gosto (...)”.

No decorrer da realização das ilustrações tivemos sempre atenção à composição e à divisão


que a ilustração iria sofrer no suporte do livro. Como tal, neste exemplo, no lado esquerdo,
acontece o confronto de várias silhuetas negras, num duplo combate, como se Mariana, no
momento em que escreveu a terceira carta lutasse contra ela própria. No lado direito, da
página, numa poça negra emergem uma série de silhuetas embrionárias, na tentativa de
perceber e conceber um resultado para aquele combate. Quem poderá ser ela própria?

Mas, no final a autora volta a reafirmar a paixão pelo cavaleiro:

“O meu amor aumenta a cada momento”.


Por isso, ironicamente representámos uma corda, utilizada para representar o enforcamen-
to, novamente uma pista de como parece transparecer o final do enredo narrativo.
94 • Capítulo III

Fig.38 Primeira ilustração - Terceira carta


Fig.39 Segunda ilustração - Terceira carta

95 • Capítulo III
3.2.4 Quarta Carta

Na quarta carta, a mais aguada graficamente, a cena inicial (Fig.31) remete o leitor para a preo-
96 • Capítulo III

cupação da autora do texto com o desembarcar da tripulação de Chamilly no reino do Algar-


ve. Nesta ilustração, as cabeças de certas figuras, presentes na primeira carta, revelam ser
polvos e os peixes assumem as personagens dos soldados, pois o enredo é dominado pelo
tema mar. Mariana Alcoforado, reclama novamente a ausência de notícias e prevê que o ca-
valeiro já não possua os mesmos sentimentos, há um desespero e uma procura em algo que
continue a alimentar esta paixão. Missão atribuída aos tentáculos dos polvos presentes nesta
ilustração, que tentam apoderar-se da tripulação e do seu barco.

Na segunda ilustração (Fig.32), representámos uma mulher pirata, destemida e corajosa, à


imagem do que Mariana sonhava ser. É uma alusão à lendária pirata Anne Bonny, que des-
temidamente corta a cabeça ao cavaleiro invés de lhe implorar amores. Esta cena sucede-se
em frente à janela de Mértola, a que Mariana descreve na carta, como o sítio onde avistou
pela primeira vez o cavaleiro.

“Ah, serás um desgraçado! Suplico-te que tires ao menos proveito do estado em que encontro, e que
assim o meu sofrimento não seja inútil.”

A terceira ilustração (Fig.33), remete-nos para o momento em que Mariana revela a existência
de uma outra mulher, sobre uma mancha bastante ruidosa, como se Mariana tivesse chora-
do por cima da ilustração. Diluído nesta mancha está representado um momento de difícil
percepção, como se a autora não o quisesse revelar, ou ter consciência dele. Este momento
figura num cálice, uma mulher com cabeça de suíno (a que Mariana refere como interesse de
Chamilly), a nadar, e ao lado um soldado com cabeça de bovino (o Chamilly).
Sobreposto a esta imagem, no lado esquerdo, a pastel seco branco, o negativo do carvão,
surgem algumas memórias de fragmentos que foram construindo esta narrativa. No lado di-
reito quase que desaparecem. Com o intuito de indiciar o leitor de que começamos a deixar
alguma coisa para trás.

No desfecho da carta, ilustramos um par de cornos (Fig. 34), pois a própria autora refere:
“Ah, corno eu te amo”, e este simbolismo é utilizado pela gíria popular quando se refere a uma
traição, numa relação amorosa.
Fig.40 Primeira ilustração - Quarta carta

97 • Capítulo III
98 • Capítulo III

Fig.41 Segunda ilustração - Quarta carta


Fig.42 Terceira ilustração - Quarta carta

99 • Capítulo III
3.2.5 Quinta Carta

Na quinta carta, em que Mariana termina o relacionamento com Chamilly, a forma como
100 • Capítulo III

se dirige ao cavaleiro é diferente. É o início de uma nova fase para a freira, por isso, intro-
duzimos a cor, no intuito de referir o presente, que contrasta com o passado das ilustrações
monocromáticas anteriores. O enunciado narrativo da última carta é bastante extenso, mas
acrescenta pouca nova informação. Por isso, representámos as ilustrações com menos per-
sonagens.

Na primeira ilustração (Fig.35), o lado esquerdo, é a continuação, agora com cor e definida, da
última imagem da quarta ilustração. No lado direito da página, representámos uma enorme
fogueira, composta pelas árvores (que anteriormente representavam as Marianas), na tenta-
tiva de fazer desaparecer todas as memórias e sentimentos. Na última carta, a freira refere
que pediu ajuda a Dona Brites (freira confidente da autora) que se desfizesse de todos os
pertences, associados a Chamilly. Esta difícil tarefa, que nem Mariana teve capacidade de
fazer pelas próprias mãos, pela dor e sofrimento que lhe causava. É representada na ilus-
tração como se fossemos queimar o próprio corpo do cavaleiro, novamente, os pássaros que
apareceram em ilustrações anteriores assumem um papel mais relevante.

Apesar de tudo, Mariana afirma que não sente ódio pelo cavaleiro. Por isso, na segunda ilus-
tração (Fig.36) ele emerge das cinzas, num corpo mais proporcional ao de homem, e observa
o interior de uma noz, símbolo da fertilidade e do feminino, na procura de novas conquistas,
como sucedeu.

“Que todas as distracções que procura sem nenhuma vontade de as encontrar, apenas servem para
o convencer que na ama tanto como a lembrança do seu sofrimento?”

Para terminar (Fig.37), a última carta, do lado esquerdo representámos uma pena caída (mate-
rial de escrita das cartas), pois Mariana já tomou a difícil decisão.

“Que obrigação tenho eu de lhe dar conta do meus sentimentos?”

E no lado direito, uma coruja, que simboliza a autora, representada com um olhar para fora
do livro, na busca de um novo horizonte. A coruja é frequentemente atribuída à sabedoria.
Fig.43 Primeira ilustração - Quinta carta

101 • Capítulo III


102 • Capítulo III

Fig.44 Segunda ilustração - Quinta carta


Fig.45 Terceira ilustração - Quinta carta

103 • Capítulo III


O leitor, ao terminar a leitura das cartas pode ler o posfácio presente na edição de Henri
104 • Capítulo III

Matisse. Por norma, todas as edições de As Cartas Portuguesas contêm um prefácio ou um


posfácio, que ajuda a contextualizar a leitura das mesmas. Achámos pertinente referenciar
esta informação, na nossa publicação, caso algum leitor tenha a possibilidade de a ler, ausen-
te deste relatório de investigação.

O livro, como foi anteriormente mencionado, é dividido em cinco partes, que correspondem
a cada carta. Neste momento de pausa prolongámos os elementos presentes na folha de ros-
to. No decorrer da narrativa visual têm tendência a desaparecer. A construção deste percurso
amplia no leitor o efeito de caminho/viagem, que tencionámos transmitir. Para além de ter
uma relação com os sentimentos proferidos nas cartas, ou seja, no decorrer das cinco pausas
o percurso desenvolve-se em diferentes composições e perde elementos.

O tema predominante para a interpretação da ilustradora, sobre as cartas de Mariana Al-


coforado é resumidamente, a morte no amor, ou seja, o fim da relação e do sofrimento tido
pela ausência da pessoa amada. O enunciado narrativo na primeira interpretação, ausente
de toda a pesquisa que o envolve, revelou ser no conjunto, um conteúdo emocionalmente
triste, iludido de esperanças, a autora do texto, promete muitas vezes evocar a morte, na in-
compreensão de lidar com a dor.

As ilustrações originais foram realizadas no tamanho A2. Inicialmente, traduzimos por pala-
vras a nossa interpretação, daquilo que o texto suscitava, ao mesmo tempo que realizámos os
primeiros esquissos rápidos, para fixar a ideia. Em seguida, desenhámos todas as composi-
ções num suporte A2 e passámos as mesmas para o papel vegetal, que usamos para transferir
a ilustração, para o suporte original.

O processo de edição foi moroso, em comparação com os originais, algumas ilustrações so-
freram pequenas alterações, por exemplo, o acréscimo e duplicação de elementos, que achá-
mos necessários para valorizar a composição das ilustrações, aplicadas no livro final.

Este projecto foi um desafio pessoal, na exploração de técnicas, domínio de suportes e ex-
pressões que a ilustradora não tinha experimentado. Revelou-se um laboratório de experiên-
cias e auto-conhecimento que induziu a ilustradora na descoberta de novos percursos que
englobam o ilustrador como intermediário na relação entre texto e ilustração, na tentativa de
colmatar dúvidas e decisões em futuros projectos.
Conclusão
A ilustração, é o acto de revelar, fixando graficamente, a subjectividade e a emoção. Reflecte um

105 • Conclusão
momento, no tempo da história, dominado pelas vivências e memórias do seu autor.
Nesta pesquisa pretendíamos compreender o papel do ilustrador, enquanto mediador entre
texto e ilustração. E concluímos que na leitura do texto o ilustrador desenvolve um proces-
so de interpretação que podemos denominar por hermenêutico, do qual resulta um inter-
pretante, ou seja uma imagem mental, que advém da experiência, emoção e conhecimento
individual.

O ilustrador oferece o seu corpo, como um canal de sentidos, e através dos materiais e supor-
tes, configura o signo, o respectivo desenho da ilustração.
Referenciámos a importância da pesquisa, na procura de uma organização sustentada na
construção de uma narrativa visual, que apela ao símbolo e à metáfora para tornar explíci-
to, o que poderá estar ausente numa tradução literal do texto. Como forma de colmatar os
vazios do enunciado narrativo, na criação de novas formas de significar, que completem e
sustentem uma visão sobre um determinado texto.

A leitura da narrativa textual pode ser um campo de acção, com inúmeras possibilidades
de produzir um sistema de signos. A função simbólica da imagem pode representar o texto
através da interpretação dos signos escritos, por norma, associados às palavras. Esta inter-
pretação está presente nos signos icónicos, figurativos, plásticos e integrais, que influenciam
o ilustrador na realização da ilustração mediante o leitor-modelo. Pois o interesse da ilus-
tração está nesta capacidade de superar a tradução literal do texto, revela-se um processo de
inovação semântica, que enriquece o seu significado. Portanto, a mesma, não deve apenas
representar, mas sim interpretar o que está escrito. O ilustrador ao pensar a ilustração, neste
sentido, cria metáforas para demonstrar a realidade. Atribuí designações a imagens figura-
tivas que se referem a imagens literais, que suscitam a interpretação, imbuídas de um novo
significado. No entanto, existem determinados aspectos, que apenas as palavras definem,
o ilustrador deve ter a capacidade para reconhecer este limite. É o mediador, entre texto e
imagem atendendo que é o primeiro explorador dos sentidos do enunciado narrativo. Ler
o texto é um processo de construção, de confronto de memórias, de sentir o que é dito por
outro como se participássemos na história.

O ilustrador revê-se no papel de produtor de sentidos, que transfere invariavelmente o seu


traço e expressão nas ilustrações que cria, atribuindo novas formas de significar. Resume-se
assim, o acto de ilustrar a um exercício de autoria, que reflecte as memórias, as emoções, as
experiências e a forma de como o autor vê e cria o seu próprio mundo.
O presente estudo surge do contexto da edição do livro ilustrado, um artefacto de comuni-
106 • Conclusão

cação, cujo os limites físicos são frequentemente reconfigurados e transformados pelos seus
autores. Neste relatório de projecto compreendemos a construção deste processo, enquanto
ilustradores (autores), que é tido num campo de experimentação, transmutação, representa-
ção e significação.

A revisão da leitura dedicada à história e contextualização de As Cartas Portuguesas de Ma-


riana Alcoforado surgiu como uma fase indispensável do processo de investigação, na com-
preensão do texto e na consolidação do conhecimento e da dimensão da obra. Reconhece-
mos a necessidade do ilustrador em desconstruir e comportar uma leitura analítica, sobre
o texto original, recorrendo a processos de pesquisa, excedentes ao texto, que sejam possí-
veis pelo ilustrador, proporcionando o distanciamento da ilustração face ao texto a ilustrar,
construindo um novo espaço conceptual para os livros. O resultado desta abordagem, deve
respeitar o texto original, aumentando as possibilidades de interpretação.

A leitura, do ilustrador: intermediário na relação de texto e imagem, constituiu as bases das


quais resultaram a concretização de projecto, nomeadamente, a forte componente na com-
preensão do processo de trabalho de um ilustrador, na singularidade de uma expressão, que
manifesta a participação cognitiva e afectiva, na tentativa de interpretar o texto, desvendan-
do o seu sentido implícito. Os livros a que recorremos como influência contextualizaram as
práticas e as linguagens artísticas abordadas nesta investigação.

Este enquadramento temático que constrói os primeiros capítulos deste relatório de inves-
tigação sustentou as opções metodológicas e criativas desenvolvidas no projecto prático. O
livro ilustrado constitui um espaço de significação para o ilustrador, onde compõe um novo
mundo, aquele que lhe é permitido revelar quando interpreta um texto. A compreensão do
papel do ilustrador mediador na relação entre texto e imagem, foi fundamental na cons-
trução de linhas estruturais, para a descodificação do processo de ilustrar e da criação de
imagens, que poderá ser aplicado a outros contextos e suportes no futuro.

Esta edição assume um carácter autoral e uma expressão experimental, que define um exer-
cício singular, na interpretação de um texto adaptado ao suporte de livro ilustrado.
Com a intenção de compreender e ter a consciência do processo de interpretação, partindo
de um enunciado narrativo para a construção narrativa visual.
Este projecto revelou-se um método de aprendizagem fundamental enquanto espaço de
experimentação para pensar o objecto como um todo. Ser autora, ilustradora e designer
gráfica, pensar no livro-objecto. Um exercício completo de auto-conhecimento de confronto
com as próprias memórias e de como as poderia expressar, no desejo de florescer enquanto
ilustradora.
Esperámos ter deixado aqui o nosso contributo e incentivo para a continuidade. Sentimos

107 • Conclusão
que, no fim desta pesquisa, reunimos as ferramentas e os conhecimentos necessários para
podermos interpretar um enunciado narrativo e enveredar pelo design editorial de livros
ilustrados, assim como outros suportes para a ilustração. Como continuidade para investi-
gação futura gostaríamos de percorrer a história do livro ilustrado e perceber a evolução do
papel e da função, quer do ilustrador, quer da ilustração, até à contemporaneidade.

Atendo à necessidade actual que o ilustrador tem em dominar vários suportes, que cada vez
mais se baseiam em ferramentas digitais, utilizadas para a comunicação de ideias e concei-
tos visuais, aplicados a processos criativos.

Terminámos este relatório de projecto, com a esperança de expor as ilustrações finais, visto
que, não conseguimos saber se realmente esta edição será publicada num contexto real. No
entanto, conseguimos relembrar As Cartas Portuguesas e Mariana Alcoforado, transportando
a obra para actualidade de todos aqueles que acompanharam esta investigação.
Lista de Figuras

109
Figura 1. Reprodução da capa original de Lettres Portugaises, litografias de Henri Matisse • 51
Figura 2. Página de abertura das Lettres Portugaises • 53
Figura 3. Primeira Carta - Dupla página com litografias • 55
Figura 4. Segunda Carta - Dupla página com litografias • 55
Figura 5. Terceira Carta - Dupla página com litografias • 56
Figura 6. Quarta Carta - Primeira página com litografias • 57
Figura 7. Quarta Carta - Segunda dupla página com litografias • 59
Figura 8. Quarta Carta - Terceira dupla página com litografias • 60
Figura 9. Quinta Carta - Primeira dupla página com litografias • 61
Figura 10. Quinta Carta - Segunda dupla página com litografias • 62
Figura 11. Quinta Carta - Terceira dupla página com litografias • 63
Figura 12. Quinta Carta - Última litografia • 64
Figura 13. Capa do livro - Todas as Cartas de Amor • 65
Figura 14. Página do livro, Todas as Cartas de Amor • 66
Figura 15. Ilustração de Mariana, A Miserável • 67
Figura 16. Die Grosse Flut - Capa e Interior da embalagem • 68
Figura 17. Die Grosse Flut - A capa dos três cadernos que contém a publicação • 69
Figura 18. Ilustração primeiro caderno - terceira dupla página • 70
Figura 19. Ilustração primeiro caderno - quarta dupla página • 70
Figura 20. Ilustração primeiro caderno - em grande formato • 71
Figura 21. Segundo caderno - desdobrado • 71
Figura 22. Ilustração segundo caderno - em grande formato • 72
Figura 23. Ilustração terceiro caderno - primeira dupla página • 72
Figura 24. Ilustração terceiro caderno - terceira dupla página • 72
Figura 25. Ilustração terceiro caderno - em grande formato • 73
Figura 26. Primeiro mono e amostras de materiais • 74
Figura 27. Objecto final • 76
Figura 28. Capa e carimbo final • 77
110

Figura 29. Pormenor das cinco fitas • 78


Figura 30. Estrutura da paginação, páginas 14 e 15 • 79
Figura 31. Visualização dos spreads do livro, página 1 à 29 • 81
Figura 32. Visualização dos spreads do livro, página 30 à 90 • 82,83
Figura 33. Primeiro estudo dos materiais e esboços • 84
Figura 34. Primeira ilustração - Primeira carta • 88
Figura 35. Segunda ilustração - Primeira carta • 89
Figura 36. Primeira ilustração - Segunda carta • 91
Figura 37. Segunda ilustração - Segunda carta • 92
Figura 38. Primeira ilustração - Terceira carta • 94
Figura 39. Segunda ilustração - Terceira carta • 95
Figura 40. Primeira ilustração - Quarta carta • 97
Figura 41. Segunda ilustração - Quarta carta • 98
Figura 42. Terceira ilustração - Quarta carta • 99
Figura 45. Primeira ilustração - Quinta carta • 101
Figura 46. Segunda ilustração - Quinta carta • 102
Figura 47. Terceira ilustração - Quinta carta • 103
Referências Bibliográficas
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