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ARTIGO DE REVISÃO / REVIEW ARTICLE / DISCUSIÓN CRÍTICA

Reflexões sobre música, saúde e espiritualidade


Reflections on music, health and spirituality
Reflexiones acerca de la música, de la salud y de la espiritualidad

Eliseth Ribeiro Leão*

RESUMO: A espiritualidade é uma dimensão humana que se apresenta freqüentemente negligenciada na assistência e é de fundamental
importância para a saúde. Sua abordagem é complexa e necessitamos compreendê-la melhor, assim como desenvolver habilidade para
reconhecer as necessidades espirituais dos pacientes e implementar formas de cuidado efetivas. Este artigo apresenta reflexões sobre a
música, seu caráter integrador, sugerindo-a como um recurso que pode auxiliar na compreensão dos aspectos espirituais e do sentido
da vida.
PALAVRAS-CHAVE: Música. Espiritualidade. Assistência de enfermagem.
ABSTRACT: Spirituality is a human dimension frequently neglected in health care although being vital to health. Approaching it is
a complex task, and we need to understand it better, as well as developing the ability to recognizing the spiritual needs of patients
and implementing effective care forms. This article presents reflections on music, on its integrative character, and suggests its use as a
resource that can assist in the understanding of the spiritual aspects and the sense of life.
KEYWORDS: Music. Spirituality. Nursing Care.
RESUMEN: La espiritualidad es una dimensión humana descuidada con frecuencia en el cuidado médico aunque siendo vital a la salud.
Acercarle es una tarea compleja, y necesitamos entenderla mejor, así como desarrollar la capacidad de reconocer las necesidades espiri-
tuales de los pacientes y implementar a formas eficaces de cuidado. Este artículo presenta reflexiones acerca de la música, en su carácter
integrador, y sugiere su uso como recurso que puede asistir a la comprensión de los aspectos espirituales y al sentido de la vida.
PALABRAS LLAVE: Música. Espiritualidad. Enfermeria.

Da mesma forma que não se pode Na formação acadêmica, co- adequadamente educados para li-
curar os olhos sem a cabeça, mumente é dada ênfase ao atendi- dar com a morte e com o morrer,
Ou a cabeça sem o corpo mento das necessidades bio-psico- principal em situação que obser-
Também não se deve tentar curar sócio-espirituais dos pacientes. Ta- vamos emergir as necessidades
o corpo sem a alma. refa árdua, pois parcela significativa espirituais. Não fomos formados
Pois a parte nunca pode ficar boa, das instituições de saúde atua ainda com sólida base acadêmica sobre
Se o todo não estiver bem. sob a égide do modelo biomédico esse assunto. Mais do que isso, se
(Platão) e como fator agravante nos depa- não temos aprendido a relacionar
ramos com a ausência de equipes a espiritualidade com a saúde, com
multiprofissionais adequadas e pre- a vida, como poderíamos abordá-
Um pequeno prelúdio paradas para esse fim. Se ainda ob- la frente à morte, condição em que
A Enfermagem, no exercício do servamos dificuldades no manejo essa demanda parece nos atropelar
cuidado, tem buscado um alinha- das necessidades psicossociais dos e passa a se constituir apenas um
mento às propostas holísticas, ou pacientes, que dirá as que tangem a recurso de esteio e conforto frente
seja, tem buscado desenvolver seu esfera da espiritualidade em nosso ao desespero?
olhar e nortear a assistência para meio, cada vez mais permeado pela A espiritualidade tem sido
além da doença e do sintoma. En- tecnologia e pelo tecnicismo. pouco focalizada quando se trata
tretanto, reconhecer o ser huma- Temos sido pouco preparados de saúde e doença nas ciências da
no como ser indivisível e tratá-lo para lidar profissionalmente com saúde (Marques, 2003) e somente
dessa forma tem constituído im- a espiritualidade e, via de regra em anos mais recentes evidências
portante desafio aos profissionais (culturalmente), no âmbito pes- na literatura médica passaram a
dessa área. soal, nós também não temos sido sugerir uma forte relação entre es-

* Doutora em Enfermagem pela Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. Pós-doutorada pela Universidade Marc Bloch (França). Assessora de Pesquisa
Científica e Coordenadora do Projeto Uma Canção no Cuidar do Hospital Samaritano – SP. E-mail: eliseth.leao@samaritano.com.br

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piritualidade e medicina (Ananda- valores pelos quais os indivíduos último não implica qualquer refe-
rajah, 2001). A literatura também vivem. Os aspectos emocionais da rência a conteúdo especificamente
aponta a necessidade de se edu- experiência envolvem sentimen- religioso (Stoll, 1989).
car melhor os enfermeiros para o tos de esperança, amor, conexão, A espiritualidade coloca ques-
cuidado espiritual (Benko; Silva, paz interior, conforto e suporte. tões a respeito do significado da
1996), ao abordar conceitos sobre Eles estão refletidos na qualidade vida e da razão de viver (Gastaud et
espiritualidade, a consciência dos dos recursos internos individuais, al, 2006). Questões essas também
enfermeiros sobre os aspectos es- na habilidade para dar e receber as quais nem sempre estão bem re-
pirituais da assistência, a identifica- amor espiritual e os tipos de rela- solvidas por cada um de nós, pro-
ção das necessidades espirituais dos cionamento e conexões do indi- fissionais da saúde. Danvers (1998)
pacientes. Entretanto, como fazê-lo víduo consigo mesmo, com a co- afirma mesmo que “para identificar
de forma efetiva é pouco abordado munidade, com o ambiente, com a as necessidades espirituais do paciente,
(Greenstreet, 1999), assim como natureza e com o transcendental. as enfermeiras precisam ter consciên-
formas de cuidado nesse sentido. Os aspectos comportamentais da cia da sua própria espiritualidade,
A música, segundo a NIC (Nursing espiritualidade envolvem a forma quer seja no âmbito de uma religião
Interventions Classification), configu- como a pessoa manifesta externa- oficial, quer numa forma menos con-
ra intervenção adicional opcional mente a sua crença espiritual indi- vencional”.
para diagnósticos de enfermagem, vidual e o estado de espírito interno Estudo sobre o significado da
como: distress espiritual, desespe- (Anandarajah, 2001). espiritualidade na área da saúde
rança, entre outros (McCloskey; A perspectiva espiritual inclui analisou 76 artigos e 19 livros sobre
Bulechek, 1996). conteúdos existenciais, que, por essa temática, que permitiu com-
Pensamos que a Arte constitui sua vez, têm profundas implicações preender a espiritualidade como
um caminho para a compreen- no bem-estar físico e psicológico. um componente inerente ao ser
são dessa dimensão humana ao Na medida em que a pessoa se abre humano, subjetivo, intangível e
concordamos com Fisher (1987) para a espiritualidade, há uma in- multidimensional (Tanyi, 2002).
quando diz que “A arte pode elevar o tegração com as outras dimensões Espiritualidade refere-se à pro-
homem de um estado de fragmentação da vida, uma vez que atua como pensão de dar significado através da
a um estado de ser íntegro, total. A arte elemento integrador, por isso sua relação das dimensões que trans-
capacita o homem para compreender a importância em relação à saúde. cendem o ser de tal maneira que dá
realidade e o ajuda não só a suportá-la A dimensão espiritual não requer poder e não desvaloriza o indivíduo.
como a transformá-la”. Assim, reside condições especiais, pode ser traba- Esta relação pode ser experiencia-
nela uma possibilidade latente em lhada individualmente, em grupos, da intrapessoalmente, como uma
favor da saúde. com pessoas instruídas ou anal- conexão dentro do próprio “eu”;
Este artigo se propõe, portan- fabetas, em ambientes variados, interpessoalmente, no contexto
to, a iniciar uma reflexão que nos como, por exemplo, em um leito de outros e do ambiente natural;
aproxime da dimensão espiritual de hospital. Na prática, pode ser e transpessoalmente, referindo-se
e suas implicações sobre a saúde, estimulada e desenvolvida, já que a um sentido de ligação ao oculto,
tendo a música (como forma da não requer arsenal tecnológico. Os Deus, ou poder superior ao eu e aos
Arte) como proposta de elemento valores, ética, sensibilização para recursos ordinários (Reed, 1992).
mediador, frente à complexidade o sagrado na vida, moralidade, ge- A dimensão espiritual invoca
do ser humano, sua essência e sua ram um clima da melhor qualidade sentimentos que demonstram a
existência. para o desenvolvimento humano e existência do amor, da fé, da espe-
auto-superação (Marques, 2003). rança, da confiança, do deslumbra-
Sobre a espiritualidade A abordagem da espirituali- mento e das inspirações; dos quais
dade é muito ampla. Envolve um decorrem o significado e a razão
A espiritualidade é uma par- componente vertical, religioso (um para a existência (Narayasasamy,
te complexa e muldimensional sentido de bem-estar em relação a 1999).
da experiência humana. Tem as- Deus) e um componente horizon- Embora existam diferentes defi-
pectos cognitivos, experienciais tal, existencial (um sentido de pro- nições de espiritualidade, podemos
e comportamentais. Os aspectos pósito e satisfação de vida — que observar temas recorrentes, como a
cognitivos ou filosóficos incluem reflete crenças, valores, estilos de busca do significado da vida.
a busca pelo significado, propósito vida e interações com o eu, os ou- Na Enfermagem, Elizabeth
e verdade na vida, e as crenças e tros e a natureza), sendo que este Taylor (2002) enfatiza que, no cui-

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dado total, a natureza espiritual da bal, que diz respeito a como usar o nada quase que exclusivamente
pessoa deve ser considerada tanto conhecimento para o aperfeiçoa- pela mídia e ou por interesses co-
quanto as dimensões física, mental, mento da condição humana, como merciais. Entretanto, sabemos que
emocional e que uma única abor- uma nova ciência ética que combi- resultados podem ser obtidos com
dagem de cuidados espirituais não na humildade, responsabilidade e as músicas preferenciais, principal-
é suficiente em sociedades multi- uma competência interdisciplinar, mente no que tange à mobilização
culturais, sendo necessários mui- intercultural e que potencializa o de emoções associadas ao passado
tos tipos de recursos. Enfatiza que a senso de humanidade (Pessini, do ouvinte, como auxiliar no es-
espiritualidade tem muitas facetas, Barchifontaine, 2005). tabelecimento de vínculo profis-
se expressa e se desenvolve por ca- Não vamos enfocar neste artigo sional-paciente, para distração ou
minhos formais e informais, reli- a música oriental, nem tampouco a entretenimento. Pode ser utilizada
giosos e laicos e que por isso deve espiritualidade em seu componente ainda, aí sim, com muita proprie-
estar disponível e acessível uma vertical (religioso) e embora a mú- dade, dentro de um contexto musi-
grande variedade de oportunidades sica ocidental nasça miticamente da coterápico pelos musicoterapeutas
para expressá-la e desenvolvê-la. lira de Apolo, por não termos con- ou por profissionais de saúde, em
Ressalta, também, que os pacien- dições de refletir sobre música tão atuação psicoterápica ou psiquiá-
tes nem sempre estão conscientes, antiga (a considerada ‘música das trica (setting terapêutico). Como já
capazes, ou manifestam desejo de esferas’), vamos nos ater a exem- dissemos, somos seres indivisíveis,
falar sobre questões espirituais, o plos de mais fácil acesso. e assim sendo, em maior ou me-
que requer acesso a outros recursos A questão que se interpõe é: nor grau, qualquer tipo de música
e, nesses casos, a música pode ser existe uma música apropriada pode influenciar nosso corpo, nos-
de particular interesse. Contextu- para tocar nossa espiritualidade? sas emoções, nossa mente e nosso
alizada dessa forma, pode, ainda, Infelizmente, a literatura é escassa espírito. Todavia, algumas músicas
atender a outro princípio: de que e controversa. Em música, sob esse têm potencial para afetarem mais
a afirmação da disponibilidade de aspecto, temos, principalmente, uma dimensão em detrimento de
ajuda espiritual, se desejada, pode material de cunho esotérico, va- outras. Portanto, uma análise do
ser de tudo quanto o paciente pre- riado e inconclusivo. Por razões material sonoro a ser proposto é
cisa (Taylor, 2002). epistemológicas, as evidências cien- sempre imperativa.
tíficas nessa área são limitadas e o Existem, na nossa compreen-
Música e Espiritualidade estudo, as reflexões, a experiência são, músicas mais voltadas ao nível
clínica, a intuição e o bom senso psicossocial — impulso de sociabi-
Sabemos que para os povos an- são as ferramentas que embasam lidade e de auto-afirmação; nível
tigos, como gregos, hindus, egípcios nossas considerações a seguir. psicobiológico — impulso de auto-
e chineses, ciência e espiritualidade Que música então, disponibi- conservação e impulso sexual; e ao
andavam juntas e, conseqüen- lizar aos pacientes com o intuito nível psicoespiritual — impulso de
temente, assuntos como música, de, via espiritualidade, promover ação do sentido da existência e de
astrologia, filosofia, religião e artes ou auxiliar na recuperação de sua autotranscendência (Sekeff, 2002).
em geral, eram vistos como ex- saúde? Como selecioná-la? Considerar qualitativamente em
pressões de uma realidade divina, Alguns recursos são indicados quais desses níveis uma determi-
portanto, intimamente ligados. Vi- para tal tarefa. A preferência mu- nada música parece produzir res-
vemos outros tempos, com outros sical sempre desponta em discus- postas já pode ser considerado pa-
valores, ou melhor, vivemos uma sões sobre esse tema. Outrora já râmetro bem confiável, ao qual po-
época de resgate de valores, tais fomos mais radicais em relação a dem ser agregados outros tipos de
como a valorização da vida em seu sua adoção, por inúmeros motivos análise, inclusive musicais (modo,
sentido mais amplo e da ética nas já descritos anteriormente (Dob- andamento, estilo, etc…).
relações, nas ações, nas intenções bro, 1998), que nos levam ainda, As músicas mais voltadas à di-
em franca oposição a uma série a considerá-la pouco aplicável nas mensão física têm ênfase no ritmo,
de imagens globalizadas que nos prescrições de enfermagem a ponto proporcionam sensação e incitam
assolam, de guerras, de execução de continuarmos abordando esse ao movimento corporal, devido à
de pena capital e outras formas de quesito com muita cautela. Isso resposta talâmica cerebral. Parece
violência e ações contrárias à dig- se deve também, ao fato de obser- haver uma tendência universal
nidade humana. Isso nos conduz varmos que, em grande número para revestir de sons o ritmo faci-
a reflexões sobre a bioética glo- de casos, a preferência é determi- litador dos gestos musculares (An-

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drade, 1980) como já se observava musical é um recurso de expressão ritmo, é claro, mas não é essa sua
nos cantos de trabalho. (de sentimentos, idéias, valores, característica mais forte. Normal-
São músicas que se assemelham cultura, ideologia), de comunica- mente são músicas mais melódicas.
a um convite à dança. Muitas vezes ção (do indivíduo com ele mesmo As músicas voltadas a essa esfera
têm um componente sensual bas- e com o meio que o circunda), são também facilmente decoradas.
tante exacerbado nas coreografias de mobilização (física, motora, Guardar decor significa guardar no
que propõem quando são execu- afetiva, intelectual) e de prazer coração, cor em latim, que, para os
tadas formando um apelo ao corpo (Sekeff; 2002). A música tem antigos, era o lugar da inteligência.
físico, à sensorialidade, como por sentidos plurais e pode refletir si- Em inglês, saber de memória é by
exemplo, no caso da Axé Music, en- tuações sociais, como nas canções heart, e, em francês, par coeur. De-
tre outras. Normalmente, as letras de protesto na época da ditadura coramos aquilo que entendemos e
fazem alguma alusão ao corpo: militar em nosso país. Todavia, aquilo que amamos. Dessa forma,
chega chegando, sambando e para qualquer que seja a função guardamos músicas que falam de
sambando que ela venha a representar, de- amor, da falta dele, de saudades e
bole bole bole sem parar vemos estar atentos, pois existirão que são as campeãs na evocação de
vem nessa viagem sempre músicas de boa qualidade memórias sem, contudo, assegurar
segura a sacanagem e de qualidade duvidosa, como em uma introspecção mais profunda.
e joga todo corpo… (Pancadão qualquer outra área de nossas vi- Já na esfera mental, se enqua-
– Babado Novo) das. Estamos cercados de produtos dram canções que nos levam a re-
que prometem ou geram, de fato, fletir, principalmente sobre suas
Ou então:
prazer momentâneo, mas que tra- letras e podem constituir um cami-
É som de preto, de favelado... mas
zem embutido à saúde, um preço nho inicial para acessar a espiritua-
quando toca ninguém fica para-
muito alto, como o fumo, o álcool, lidade, uma vez que nos levam a
do...’ (Som de preto – Amilcka
alimentos ricos em gorduras trans, pensar sobre questões relacionadas
e Chocolate). à nossa existência, a forma como
entre outros.
Este é o refrão de uma das mú- Desconhecemos, ainda, as con- vivemos e ao significado de nossas
sicas mais aclamadas atualmente seqüências que a música de massa vidas. Para Shopenhauer (1788-
pelos jovens que gostam de funk (não confundir com música popu- 1860), a música é um exercício in-
e que são convidados pela letra, a lar) pode desencadear. Recente- consciente de metafísica no qual a
dançar e remexer, principalmente, mente, um crime ocorrido em uma mente não se dá conta de que está
os quadris. Sem dúvidas, podemos casa noturna levou um dos maiores filosofando.
afirmar, a priori, que a dimensão representantes do rap nacional a se Na nossa prática clínica, temos
espiritual não é a característica perguntar se sua música poderia ter observado o impacto dos versos
predominante em músicas como algo a ver com aquilo, uma vez que de Renato Teixeira e Almir Sater
essa, que arrebatam milhares de pelo menos meia dúzia de outros em ‘Tocando em Frente’, pois se
pessoas na nossa sociedade e fi- jovens já haviam perdido a vida estabelece uma possibilidade de
gura como música de preferência de em seus shows (Nogueira, 2005). diálogo, ainda que interno, sobre
tantos. Vale ressaltar que não se Guardando a devida proporção, tal- o assunto:
trata aqui de julgamento moral ou vez esse seja um indício do quanto [...] Penso que cumprir a vida seja
puritanismo musical, mas é que devemos atentar para aquilo que simplesmente
a discussão da ética na música ou ouvimos e qual é a nossa respon- compreender a marcha ir tocando
sobre o que ela de fato produz nos sabilidade ao propormos música no em frente
ouvintes é algo raro, uma vez que ambiente da saúde. como um velho boiadeiro
a expressão artística tem como A dimensão emocional tem levando a boiada eu vou tocando
premissa básica, a total liberdade. vasto número de exemplos no os dias
Liberdade essa nem sempre as- cancioneiro popular. Nos versos de pela longa estrada eu vou, estrada
sociada ao senso de responsabili- Roberto Carlos, na sua música in- eu sou…
dade que necessariamente deveria titulada ‘Emoções’ temos: Se chorei Desde o início de nossos estudos
acompanhá-la. A hoje chamada ou se sorri, o importante é que emoções nessa área temos preferido buscar
de música da periferia é uma rea- eu vivi… Quantas pessoas repetem conhecer músicas ou canções que
lidade e acreditamos sim, que cada de cor esses versos mesmo que não mais se aproximem do conceito de
música tem seu espaço, sua razão apreciem esse cantor ou seu estilo arte, quer seja por sua atemporali-
de ser e sua função. A linguagem musical. Essas músicas também têm dade, por seu conteúdo arquetípi-

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co, ou porque, como na concepção Alguma coisa muito além da nossa Outros estilos musicais também
de Tolstoi (1828-1910), irmana os capacidade de compreensão, mas podem ser pensados, tais como as
homens em uma dada experiência, que nos é facultado entrever ou in- músicas sacras e os cantos religio-
oferecendo compreensão, sereni- tuir no contato com o universo da sos. A utilização litúrgica da música
dade e, se possível, esperança. A música (Fonseca, 2007). e do canto se faz presente em todos
música erudita é rica em exemplos, Por outro lado, no nosso can- os povos e civilizações, sendo esta
como pudemos observar em estudo cioneiro popular também existem uma forma do humano resgatar a
anterior, no qual as imagens men- obras preciosas, como “Asa Bran- unidade cósmica, o sentimento de
tais decorrentes da audição musi- ca” de Luiz Gonzaga e Humberto pertinência com o Todo. Talvez por
cal (um parâmetro interessante de Teixeira, dentre outras: isso tenha surgido o dito popular de
análise) permitiram uma vivência “… eu perguntei a Deus do céu, que a música é uma forma de oração,
simbólica que desvelou a dimensão porque tamanha judiação” e seja o canto uma das mais anti-
espiritual, levando os pacientes à Como também observa Dreher gas maneiras do homem entrar em
reflexão sobre o conceito de morte (2006), a judiação, a dor do povo contato com o transcendente, com
(sem tanto medo), com ênfase na relatado na canção é de uma rea- as formas divinizadas da natureza,
natureza cíclica do processo vital lidade, mas a dor não é só de do- com a idéia de um ser supremo.
humano e associado ao princípio mínio desse povo, mas de todo ser As canções e danças indígenas, os
da própria vida e às possibilidades humano, daí a capacidade de am- cantos Gregorianos, os hinos, os
de regeneração, de purificação, de pliação do símbolo, do significado mantras, as ladainhas, os spirituals,
transformação. O vislumbramen- que damos a ele. Podemos perceber os “pontos” de terreiro, enfim, as
to de uma condição de totalidade a “quem” se refere a súplica, a in- evocações religiosas, funcionam
e perfeição também foi observado, dagação, o pedido. O arquétipo do como um canal de comunicação
oferecendo desde uma tênue sen- “Pai” reflete a ajuda, o amparo, o entre céu e terra, entre homem e
sação de pureza a uma acentuada consolo, que pode responder a ne- Deus (Milecco Filho et al, 2001),
experiência de centralização do cessidade espiritual no momento mas são modalidades musicais que
indivíduo (Leão, 2002). As obras de doença, de angústia, ou de dis- estão para além do escopo a que
de Richard Wagner (1813-1883), tress espiritual. nos propusemos neste artigo.
como a utilizada naquele estudo, A canção invoca a seca, o perí- Por último, mas não menos im-
incluem músicas que nos possibili- odo de seca vivido por cada um ao portante, a magnífica música de J.
tam visitar uma outra dimensão do longo da vida, para na seqüência S. Bach (1685-1750), que consti-
tempo, nos recordam e informam o resgatar a esperança: Espero a chuva tui um capítulo à parte. É um dos
nosso organismo dessa outra possi- cair de novo… Chuva essa que pode maiores mestres da música e o
bilidade a respeito do tempo e, ain- demorar, que pode vir em dife- maior expoente da música barro-
da, nos sensibilizam para uma outra rentes formas, mas que é tão certa ca, com obras de profunda espiri-
dimensão possível dentro do existir quanto a seca vivida. tualidade. Sabemos que a intenção
(Queiroz, 2000). A natureza abstra- A música, ao corresponder o do músico sempre está presente e
ta da música erudita é que parece nível psicoespiritual, leva em con- transparece de alguma forma em
favorecer a realização da vida interior, sideração o fato do ser humano não suas composições. Bach tem no ca-
por meio da ressonância com seu lutar apenas por paz e harmonia beçalho de uma de suas partituras
pathos (atração baseada na emo- (ou busca desenfreada por diver- uma inscrição que resume seu pen-
ção), que prescinde de palavras. são), mas também por considerar samento e denota que para ele só
Trata-se, portanto, de uma forma o desenvolvimento de suas poten- fazia sentido compor música se fos-
plausível de ajudar nossos pacien- cialidades, a fim de ser uma pessoa se para ligá-lo a Deus. Pierre Four-
tes a encontrarem o significado de inteira, tão completa quanto possa nier (1906-1986), um dos maiores
suas vidas, mesmo quando não nos (Sekeff, 2002). Essa é a função in- violoncelistas franceses, disse certa
sentimos tão à vontade em usar as trínseca da arte que concerne sempre vez sobre Bach: Admirável síntese do
palavras para atender suas necessi- ao homem total, capacita o ‘Eu’ a iden- Divino e da Harmonia que reina no co-
dades espirituais. Na obra de W. A. tificar-se com a vida de outros, capacita- ral: ‘Eu te pertenço, Senhor’, da Missa
Mozart (1756-1791), parece possí- o a incorporar aquilo que ele não é, mas em si bemol menor — hino que sobe da
vel sentir pulsar a força da crença, tem possibilidade de ser […] A Arte é humanidade até Deus, cria uma espiri-
senão na existência, pelo menos na necessária para que o homem se torne tualidade que apazigua toda dor, apaga
possibilidade de existência de uma capaz de conhecer e mudar o mundo toda amargura, e torna mais suave a
ordem cósmica que nos transcende. (Fisher, 1987) e a si mesmo. nossa passagem pela Terra, dando-nos

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a Fé em Deus e a crença em nossa feli- em quadros dolorosos crônicos, e que tem nos levado a apresen-
cidade eterna. um paciente ao retornar para uma tar a música como intervenção de
Frente ao exposto, podemos nova sessão musical nos disse: saúde para além do controle de
depreender que são muitas as pos- “Hoje vou visitar minha alma, na vol- sintomas ou de emoções. Assim,
sibilidades de abordagens da mú- ta conto como estava lá”. Foi crucial na forma como a concebemos, ela
sica na espiritualidade, e por isso para que deixássemos de buscar continua a possibilitar o encontro
deixamos o convite para nos lan- tão somente o alívio para sua dor. entre os seres, o encontro do ho-
çarmos a elas, como uma maneira Em meio aos eletrodos da eletro- mem com sua própria essência e a
de enriquecermos nosso arsenal de miografia, resposta galvânica da facilitar a compreensão do sentido
intervenções. pele, temperatura cutânea e outros da vida, em uma experiência que
controles fisiológicos começamos ocorre sempre de forma única,
a compreender o caráter integra- subjetiva e que, potencialmente,
Considerações finais
dor que a música encerra. Foi um busca reunir todas as dimensões
Há alguns anos, quando inves- aprendizado, felizmente precoce, humanas.
tigávamos a influência da música que tem sido renovado, repensado

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Recebido em 26 de janeiro de 2007


Aprovado em 21 de fevereiro de 2007

296 O MUNDO DA SAÚDE São Paulo: 2007: abr/jun 31(2):290-296

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