Larissa Pelúcio1
Desde o princípio, a linguagem. O ser humano não pode estar no mundo sem
significá-lo, classificando as coisas, os seres e as relações entre eles. “Toda a
classificação é superior ao caos”, postula Lévi-Strauss nas primeiras páginas de O
Pensamento Selvagem. E segue seu argumento procurando mostra a vocação
intelectual do humano.
1
Professora de Antropologia do departamento de Ciências Humanas da Faculdade de Arquitetura,
Artes e Comunicação da Unesp, campus Bauru.
2
O que não compromete a diversidade dos mitos, pois, ainda que estejamos
lidando com um número limitado de fragmentos, como em um caleidoscópio, “basta
um movimento sutil para que a rosácea formada pelos pequenos cacos de vidro
colorido se desfaça e dê origem a uma nova configuração” (Werneck, 2002: 56).
É com essa proposta teórica apresentada por Lévi-Strauss em sua vasta obra
sobre os mitos, que gostaria de discutir de forma bastante introdutória, as
contribuições deste importante autor para os debates contemporâneos sobre o mito e
o pensamento mítico. Seu intento foi o de dissolver a aparência de irracionalidade do
mito, procurando, para tanto, efetuar uma "ampliação dos quadros da nossa lógica"
(Lévi-Strauss apud Lima, 1999). Para entender o vigor da sua teoria e seu caráter
absolutamente inovador é importante resgatar a própria origem da Antropologia, uma
disciplina que se constitui no século XIX como uma espécie de “obra de uma
sociedade”, a ocidental moderna, “sobre outras sociedades” (Lévi-Strauss em
entrevista a Viveiros de Castro, 1998: 120).
pelo que elas não eram ou pelo que elas não tinham. Como o parâmetro era o mundo
europeu, aquelas outras culturas era “sem-Estado”, “sem-moeda”, “sem-escrita”,
“sem-história” (Clastres, 1978). E é aqui que entra um dos temas privilegiados da
Antropologia desde sua gênese: o mito.
Foi preciso que viesse na I Guerra sacudindo as verdades européias para que a
antropologia também repensasse seus paradigmas. Foi quando passamos a colocar a
cultura no plural. Culturas! Cada uma formando todo um sistema complexo, de
maneira que se pegássemos apenas alguns traços isolados fatalmente iríamos exotizar
hábitos, nos horrorizar com algumas práticas, rir dos mitos. Cada um desses
elementos citados, diziam agora alguns antropólogos e antropólogas, só poderiam se
compreendidos se analisados contextualmente. Eles só adquiririam seu significado
pleno se considerados como parte de um sistema. E para trabalhar desta maneira era
preciso se estar lá, vivendo na aldeia, aprendendo a língua, pois, como já havia nos
ensinado Emile Durkheim, ela, a linguagem, é o fato social por excelência. Sem
penetrarmos no mundo simbólico do outro não teríamos como apreender o “ponto de
vista do nativo” (Malinowski, 1996). Sem essa apreensão, os mitos, por exemplo,
soariam sempre como meras estórias fantasiosas e não como narrativas
cosmogônicas que podem nos falar não só das origens, dos primórdios, mas também
de como aquelas diferentes sociedades organizam o mundo material, pensam o
sagrado, classificam as coisas mais prosaicas do cotidiano, nos dando uma abertura
concreta para a abstração das representações sociais.
2
O método etnográfico é aquele que notabilizou o trabalho de campo na antropologia pela imersão
na sociedade ou grupo a qual cada pesquisadora ou pesquisador se dedica, buscando nesse
convívio, aproximarem-se das subjetividades daquelas pessoas que ali vivem, deixando-se
sensibilizar por suas maneiras de ver o mundo, interpretá-lo e significá-lo. Seu marco fundador
6
“A Segunda Guerra fez muitas vítimas e uma delas, de fato, foi a inocência da
pesquisa colonial da ‘unidade etnográfica’ contida em ilhas remotas”, observa Mauro
de Almeida (2004: 67) .A II grande Guerra trará grandes rupturas para as reflexões e
teorizações antropológicas. Não cabe desenvolver esse ponto aqui, mas estou
mencionando este evento para poder situar o tempo em que Lévi-Strauss formula sua
proposta estruturalista, fundando, mesmo sem intenção, uma escola vigorosa
antropológica e filosoficamente.
A estrutura e o mito
É difícil falar da teoria dos mitos em Lévi-Strauss sem passar pela sua proposta
teórica mais abrangente: a teoria estrutural e pela sua epistemologia que propõe uma
simetria da racionalidade presente tanto no pensamento científico quanto no
mitológico. Aqui a proposta evolucionista não faz o menor sentido, pois não
considera que há uma simultaneidade epistêmica na produção de conhecimento. Ou
seja, as pessoas ao largo do planeta pensam sobre si mesmas e seu mundo de maneira
igualmente lógica, mas operando a partir de distintas racionalidades. Pensamos da
mesma maneira, mas pensamos coisas diferentes, diria Lévi-Strauss.
Para ele o pensamento “selvagem”, aquele que opera pela lógica do concreto,
não se difere em estágio do pensamento científico, mas na forma de operar a sua
significação da realidade. O pensamento selvagem seria aquele que não está
domesticado pelo rigor conceitual, abstrato, da ciência do mundo ocidental, o saber
positivo, mas o que classifica, organiza, pensa o mundo concreto que o cerca,
organizando-o, retirando seu saber das coisas, pois, como diz Lévi-Strauss, elas são
boas para pensar.
Tudo isso para começar a situar o mito na proposta teórica de Lévi-Strauss. Ele
entende que o pensamento selvagem articula o mito a partir de uma rigorosa lógica
explicativa e organizadora dos fenômenos naturais e das relações sociais. Na
tentativa de tornar mais clara a discussão apresentada até aqui, reproduzo abaixo um
longo trecho extraído do pequeno e saboroso livro Mito e Significado (2007 [1978]).
Desde então, o Vento Sul só sopra em certos períodos do ano ou, então,
uma única vez em cada dois dias; durante o resto do tempo a Humanidade
pode dedicar-se às suas atividades.
Esse binarismo que Lévi-Strauss identifica no mito acima é uma das marcas da
sua teoria, o estruturalismo. Seria próprio da estrutura cognitiva humana organizar o
pensamento a partir de pares de oposição derivando destas, cadeias significativas e
associativas de idéias. As estruturas do pensamento são comuns, operam a partir
dessas lógicas binárias que classificam, ordenam, hierarquizam. O diverso que a
cultura expressa repousaria nessa estrutura comum: a mente humana.
O que ele percebia é que apesar das diferenças inquestionáveis das populações
se organizarem ao largo do planeta, havia uma estrutura comum de organização do
mundo, das representações simbólicas, expressas na universalidade da arte, dos
sistemas de parentesco, da música, religião, uso ritual de substâncias, da cozinha, dos
mitos. Evidentemente que nosso autor reconhecia que estas coisas variavam, mas o
que ele está apontando é que não há sociedade que não faça essas coisas de alguma
forma. O estruturalismo concentrava-se na maneira que o comportamento humano é
determinado por estruturas culturais, sociais e psicológicas. Estas são estruturas
inconscientes, como explica Cynthia Sarti:
Com o seu método, Lévi-Strauss procurava mostrar que um mito não existe
isoladamente, ele está relacionado com outros mitos. A sua interpretação somente se
torna possível quando analisado conjuntamente com outros grupos de mitos que lhes
são próximos. Um mito não tem começo, nem fim. Um relato mítico não é mais do
que um pedaço de uma narrativa maior e seu sentido não está contido jamais em si
mesmo, mas deve ser buscado em outros relatos, muitas vezes em povos diferentes,
onde poderá ser encontrado de maneira transformada. Deste modo, como escreve o
próprio Lévi-Strauss, a originalidade da reflexão mítica está, pois, em operar por
meio de vários códigos. Foi analisando uma grande quantidade de mitos indígenas
que ele pôde demonstrar que a criação de mitos se dá a partir de elementos existentes
em outros sistemas de significação, rearranjando-os e criando novos sentidos. Como
ele mesmo declara, em entrevista a Didier Eribon, explicando a aleatoriedade
científica de sua escolha em nomear o mito do “desaninhador de pássaro” como o
M1, aquele que está ao centro de sua “rosácea” de estórias, em O Cru e o Cozido.
12
Por isso tudo, para o autor de Mito e Significado, não faz sentido procurar a
versão autêntica ou primitiva de um mito, pois é certo e esperado que ela por si só
não explicaria nada. Pois precisaria estar em relação com outras versões e outros
mitos. Segundo, porque os mitos se transformam, exatamente porque eles também
falam com e do presente, ainda que seus fragmentos pertençam a um tempo passado,
irreversível. Assim, todas as versões pertencem ao mito. Enfatizo que o mito não
deve ser analisado isoladamente, ele faz mesmo sentido quando em relação com
outros mitos da mesma sociedade ou com as variações que ele vai sofrendo de uma
sociedade para outra. Mas uma coisa, a análise do mito não pode prescindir de um
conhecimento etnográfico da cultura de onde ele provém, como declara o próprio
Lévi-Strauss na já mencionada entrevista a Eribon:
Bibliografia