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A ciência do sensível ou as contribuições de Lévi-Strauss para


uma leitura sobre os mitos

Larissa Pelúcio1

“Particulares e locais, universais e essencialmente humanos. Talvez resida aí


uma parte do fascínio e do mistério dos mitos”, escreveu, na trilha de Lévi-Strauss, a
antropóloga Aracy Lopes da Silva. É justamente essa dimensão exclusivamente
humana que Lévi-Strauss enfatiza na sua análise sobre os mitos: a capacidade que
temos de atribuir significado às nossas experiências.

Mais do que narrativas capazes de exprimir sentimentos básicos ou estórias


fantasiosas sobre o início dos tempos, os mitos, propôs Lévi-Strauss, “são lugares
para a reflexão” (apud Silva, 2000). Pois, eles revelam as operações mais
fundamentais do intelecto humano.

A cosmogonia levistraussiana não se inicia com a tradicional


separação da luz e das trevas, mas com um fenômeno de outra
ordem: a emergência da linguagem, expressão mais alta de
manifestação do espírito humano, que permitiu ao universo ganhar
significado como um todo. O que, de qualquer forma, não deixa de
reproduzir um princípio inaugural por excelência: no início era o
Verbo (Werneck, 2002: 57)

Desde o princípio, a linguagem. O ser humano não pode estar no mundo sem
significá-lo, classificando as coisas, os seres e as relações entre eles. “Toda a
classificação é superior ao caos”, postula Lévi-Strauss nas primeiras páginas de O
Pensamento Selvagem. E segue seu argumento procurando mostra a vocação
intelectual do humano.

1
Professora de Antropologia do departamento de Ciências Humanas da Faculdade de Arquitetura,
Artes e Comunicação da Unesp, campus Bauru.
2

Longe de serem, como muitas vezes se pretendeu, obra de uma


“função fabulosa” que volta as costas à realidade, os mitos e os ritos
oferecem como valor principal a ser preservado até hoje, de forma
residual, modo de observação e de descobertas de tipo determinado:
as que a natureza autorizava, a partir da organização e da exploração
especulativa do mundo sensível. Essa ciência do concreto devia ser,
por essência, limitada a outros resultados além dos prometidos às
ciências exatas e naturais, mas ela não foi menos científica, e seus
resultados não foram menos reais (Lévi-Strauss, 2007: 31).

As contribuições de Lévi-Strauss nesse sentido procuraram situar o mito não só


como uma forma de narrativa cosmológica e cosmogônica, mas também como um
discurso ordenador, capaz de falar de regras, por meio do qual é possível se pensar
conceitualmente. A lógica do pensamento mítico reside, a princípio, no plano das
qualidades sensíveis, mas arrisca, em momentos diversos, um rumo em direção a
uma maior abstração, é o que aponta Lévi-Strauss.

Talvez, uma das maiores contribuições de Lévi-Strauss neste campo resida


justamente aí, no seu esforço em aproximar, de forma teoricamente sofisticada,
pensamento mítico e pensamento científico, rompendo com a hierarquia que coloca o
primeiro como ingênuo e falho, enquanto atribui ao segundo estatuto de
racionalidade e verdade. Vamos aos seus argumentos:

O pensamento mítico, esse bricoleue, elabora estruturas organizando


os fatos ou os resíduos dos fatos, ao passo que a ciência, “em
marcha” a partir de sua própria instauração, cria seus meios e seus
resultados sob a forma de fatos, graças a estruturas que fabrica sem
cessar e que são suas hipóteses e teorias. Mas não nos enganemos
com isso: não se trata de dois estágios ou de duas fases de evolução
do saber, pois os dois são igualmente válidos (Lévi-Strauss, 2007:
37)
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A metáfora da “bricolage intelectual”, largamente usada depois da proposta


levistraussiana, soma-se a do caleidoscópio e ambas servem para iluminar os
caminhos pelos quais pensamento mítico opera. Como o bricoleue ele se utiliza dos
resíduos e fragmentos de acontecimentos: testemunhas fósseis da história de um
indivíduo ou de uma sociedade. Elabora estruturas ordenando os acontecimentos, ou
antes, os resíduos dos acontecimentos (Lévi-Strauss, 2007: 52).

O que não compromete a diversidade dos mitos, pois, ainda que estejamos
lidando com um número limitado de fragmentos, como em um caleidoscópio, “basta
um movimento sutil para que a rosácea formada pelos pequenos cacos de vidro
colorido se desfaça e dê origem a uma nova configuração” (Werneck, 2002: 56).

É com essa proposta teórica apresentada por Lévi-Strauss em sua vasta obra
sobre os mitos, que gostaria de discutir de forma bastante introdutória, as
contribuições deste importante autor para os debates contemporâneos sobre o mito e
o pensamento mítico. Seu intento foi o de dissolver a aparência de irracionalidade do
mito, procurando, para tanto, efetuar uma "ampliação dos quadros da nossa lógica"
(Lévi-Strauss apud Lima, 1999). Para entender o vigor da sua teoria e seu caráter
absolutamente inovador é importante resgatar a própria origem da Antropologia, uma
disciplina que se constitui no século XIX como uma espécie de “obra de uma
sociedade”, a ocidental moderna, “sobre outras sociedades” (Lévi-Strauss em
entrevista a Viveiros de Castro, 1998: 120).

Um mito europeu: o fardo do homem branco

“A Antropologia, esta serva do colonialismo”, como diria Lévi-Strauss, nasce


tendo como foco de interesse o encontro com a alteridade, com um “Outro”
específico, os não-europeus. Surge quando o paradigma evolucionista encontrava-se
bastante vigoroso como modelo explicativo para uma das questões que se impõe à
curiosidade antropológica: “como da unidade biológica do ser humano se chega à
diversidade cultural?”.
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O evolucionismo oferecia uma resposta bem articulada para os modismos


intelectuais da época, quando as ciências naturais triunfavam graças, entre outras
conquistas, às teses de Charles Darwin (Young, 2005). As nascentes ciências sociais
tomaram de empréstimo das ciências naturais seu método, para assim legitimarem-
se. Daí as tantas metáforas biologizadas usadas pelos primeiros sociólogos e
antropólogos para falar da sociedade e das relações sociais: organismo social, corpo
social, evolução social, entre outras.

O evolucionismo partia da premissa que sim, os seres humanos eram iguais no


plano físico, mas encontravam-se em estágios evolutivos diferentes, daí a diversidade
cultural (Laplantine, 1996). Correspondendo cada estágio a uma forma de
organizarem-se socialmente e de pensarem sobre si e seu mundo. A proposta vinha
de Auguste Comte com seus três estágios do desenvolvimento intelectual: o
teológico, o metafísico e, por fim, o que coroaria a ascensão intelectual da espécie, o
positivo. Evidentemente quem estava no topo dessa hierarquia eram os homens que
estavam propondo esta teoria. Desta forma, civilização tornou-se sinônimo de
Europa. Mas não qualquer Europa, mas aquela compostas por homens brancos,
burgueses e de mentalidade cientificista. Ficando na base os escuros, não-europeus,
mistificadores.

Robert Young (2005), em sua minuciosa pesquisa sobre as origens e


transformações do conceito de cultura, procura mostrar que havia algo de avançado
na proposta evolucionista: a sua crença na unidade biológica da humanidade, a qual
permitiria que com uma ajuda dos brancos, os bárbaros, incivilizados e animistas
galgassem cada um dos estágios e, assim, eles também poderiam se tornar
civilizados. A ousadia da proposta, segundo Young, aparece quando comparamos a
teses evolucionistas a outras vertentes teóricas que apregoavam a impossibilidade
biológica dos chamados primitivos em sair de seu estágio “selvagem”. Havia, por
este última perspectiva, uma incomensurabilidade entre os povos que ia além da
distância intelectual. De maneira que defender o progresso humano era crer também
no projeto iluminista que atribuía a cada ser humano a faculdade da razão.

Os primeiros antropólogos, como homens de seu tempo, estavam marcados por


essa visão evolucionistas. Eles também, ainda que fascinados pela diferença,
acabaram por definir aquelas sociedades “exóticas” muito mais pela negatividade,
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pelo que elas não eram ou pelo que elas não tinham. Como o parâmetro era o mundo
europeu, aquelas outras culturas era “sem-Estado”, “sem-moeda”, “sem-escrita”,
“sem-história” (Clastres, 1978). E é aqui que entra um dos temas privilegiados da
Antropologia desde sua gênese: o mito.

Algumas propostas teóricas viam o mito como uma forma “primitiva” de


história, por meio da qual os povos sem escrita falavam de suas origens, de seus
heróis, mantinha vivos eventos passados, enfim, o mito, era uma forma “defeituosa”
daquilo que os europeus tinham na forma de ciência positiva: a História.

Foi preciso que viesse na I Guerra sacudindo as verdades européias para que a
antropologia também repensasse seus paradigmas. Foi quando passamos a colocar a
cultura no plural. Culturas! Cada uma formando todo um sistema complexo, de
maneira que se pegássemos apenas alguns traços isolados fatalmente iríamos exotizar
hábitos, nos horrorizar com algumas práticas, rir dos mitos. Cada um desses
elementos citados, diziam agora alguns antropólogos e antropólogas, só poderiam se
compreendidos se analisados contextualmente. Eles só adquiririam seu significado
pleno se considerados como parte de um sistema. E para trabalhar desta maneira era
preciso se estar lá, vivendo na aldeia, aprendendo a língua, pois, como já havia nos
ensinado Emile Durkheim, ela, a linguagem, é o fato social por excelência. Sem
penetrarmos no mundo simbólico do outro não teríamos como apreender o “ponto de
vista do nativo” (Malinowski, 1996). Sem essa apreensão, os mitos, por exemplo,
soariam sempre como meras estórias fantasiosas e não como narrativas
cosmogônicas que podem nos falar não só das origens, dos primórdios, mas também
de como aquelas diferentes sociedades organizam o mundo material, pensam o
sagrado, classificam as coisas mais prosaicas do cotidiano, nos dando uma abertura
concreta para a abstração das representações sociais.

A mudança na forma de se conceituar cultura implicou em um novo modo de


fazer antropologia, numa transformação metodológica, consagrando com Bronislaw
Malinowski, a etnografia2 como método privilegiado da disciplina.

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O método etnográfico é aquele que notabilizou o trabalho de campo na antropologia pela imersão
na sociedade ou grupo a qual cada pesquisadora ou pesquisador se dedica, buscando nesse
convívio, aproximarem-se das subjetividades daquelas pessoas que ali vivem, deixando-se
sensibilizar por suas maneiras de ver o mundo, interpretá-lo e significá-lo. Seu marco fundador
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“A Segunda Guerra fez muitas vítimas e uma delas, de fato, foi a inocência da
pesquisa colonial da ‘unidade etnográfica’ contida em ilhas remotas”, observa Mauro
de Almeida (2004: 67) .A II grande Guerra trará grandes rupturas para as reflexões e
teorizações antropológicas. Não cabe desenvolver esse ponto aqui, mas estou
mencionando este evento para poder situar o tempo em que Lévi-Strauss formula sua
proposta estruturalista, fundando, mesmo sem intenção, uma escola vigorosa
antropológica e filosoficamente.

Diferentemente do que os estudiosos do tema tinham feito até então, Lévi-


Strauss não procurou “decifrar” os mitos, nem captar a linguagem “secreta” e
fragmentada que eles supostamente contêm, pois os via como uma espécie de
espelho capaz de mostrar como a mente humana opera. E fez isso escrevendo quatro
grossos volumes reunidos sob o nome de Mitológicas. Um conjunto de quatro livros
que reúne uma impressionante análise estrutural de mitos ameríndios realizada por
Claude Lévi-Strauss, ao longo de vinte anos. Nesse esforço ele “cria singulares
ferramentas epistemológicas, sugeridas pela música, pelas ciências naturais, e pelas
artes plásticas” (Werneck, 2002: 51).

O primeiro volume das Mitológicas, O cru e o cozido, saiu na França em 1964.


Seguiram-se Do mel às Cinzas (1967), Origens das Maneiras à Mesa (1968) e O
Homem Nu (1973). Seguiram-se, mais tarde, as “pequenas Mitológicas” composta
por mais três volumes: A Via das Máscaras, A Oleira Ciumenta e História de Lince.

“Os mitos se pensam nos homens”, escreveu Lévi-Strauss na “Abertura” de O


Cru e o Cozido, ou seja, como a natureza, essa matéria boa para pensar, torna-se
cultura na linguagem dos mitos. Como os seres humanos observando a si mesmo são
capazes de pensar o cosmos e com ele estabelecer relações que são operações
cognitivas.

A estrutura e o mito

encontra-se no trabalho de Malinowski sobre os trobriandeses, intitulado Os Argonatutas do


Pacífico Ocidental, publicado em 1922.
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É difícil falar da teoria dos mitos em Lévi-Strauss sem passar pela sua proposta
teórica mais abrangente: a teoria estrutural e pela sua epistemologia que propõe uma
simetria da racionalidade presente tanto no pensamento científico quanto no
mitológico. Aqui a proposta evolucionista não faz o menor sentido, pois não
considera que há uma simultaneidade epistêmica na produção de conhecimento. Ou
seja, as pessoas ao largo do planeta pensam sobre si mesmas e seu mundo de maneira
igualmente lógica, mas operando a partir de distintas racionalidades. Pensamos da
mesma maneira, mas pensamos coisas diferentes, diria Lévi-Strauss.

Para ele o pensamento “selvagem”, aquele que opera pela lógica do concreto,
não se difere em estágio do pensamento científico, mas na forma de operar a sua
significação da realidade. O pensamento selvagem seria aquele que não está
domesticado pelo rigor conceitual, abstrato, da ciência do mundo ocidental, o saber
positivo, mas o que classifica, organiza, pensa o mundo concreto que o cerca,
organizando-o, retirando seu saber das coisas, pois, como diz Lévi-Strauss, elas são
boas para pensar.

Indo de encontro às propostas de antropólogos que o antecederam, nosso autor


vai inverter a tese de seus colegas quanto ao que eles chamaram de “pensamento
primitivo” ou “pré-lógico”. A humanidade, ao contrário do que acreditavam, por
exemplo, os teóricos do funcionalismo, não “caminhava sob seu estômago”, isto é,
movida exclusivamente pelas urgências dos instintos e necessidades fisiológicas. A
curiosidade intelectual é para Lévi-Strauss algo da ordem do humano. Sendo assim,
“as coisas não são conhecidas porque são úteis, elas são consideradas úteis ou
interessantes porque são primeiro conhecidas” (Lévi-Strauss, 2007: 24).

Tudo isso para começar a situar o mito na proposta teórica de Lévi-Strauss. Ele
entende que o pensamento selvagem articula o mito a partir de uma rigorosa lógica
explicativa e organizadora dos fenômenos naturais e das relações sociais. Na
tentativa de tornar mais clara a discussão apresentada até aqui, reproduzo abaixo um
longo trecho extraído do pequeno e saboroso livro Mito e Significado (2007 [1978]).

Vamos agora considerar um mito do Canadá Ocidental sobre uma raia


que tentou controlar ou dominar o Vento Sul e que teve êxito na empresa.
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Trata-se de uma história de uma época anterior à existência do Homem na


Terra, ou seja, de um tempo em que os homens não se diferenciavam de fato
dos animais; os seres eram meio humanos e meio animais. Todos se sentiam
muito incomodados com o vento, porque os ventos, especialmente os ventos
maus, sopravam durante todo o tempo, impedindo que eles pescassem ou
que procurassem conchas com moluscos na praia. Portanto, decidiram que
tinham de lutar contra os ventos, obrigando-os a comportarem-se mais
decentemente.

Houve uma expedição em que participaram vários animais humanizados


ou humanos animalizados, incluindo a raia, que desempenhou um importante
papel na captura do Vento Sul. Este só foi libertado depois de prometer que
não voltaria a soprar constantemente, mas só de vez em quando, ou só em
determinados períodos.

Desde então, o Vento Sul só sopra em certos períodos do ano ou, então,
uma única vez em cada dois dias; durante o resto do tempo a Humanidade
pode dedicar-se às suas atividades.

Bom, esta história nunca aconteceu na realidade. Mas a nossa posição


não se pode limitar a considerarmos esta história completamente absurda e a
ficarmos satisfeitos ao taxá-la de uma criação imaginosa de uma mente
entregue ao delírio. Temos de a tomar a sério e fazer a seguinte
pergunta:porquê a raia e porquê o Vento Sul?

Quem responde é o próprio Lévi-Strauss:

A razão por que se escolheu a raia é que ela é um animal que,


considerado de um ou outro ponto de vista, é capaz de responder –
empregando a linguagem da cibernética – em termos de «sim» ou «não». É
capaz de dois estados que são descontínuos, um positivo e o outro negativo.
A função que a raia desempenha no mito é – ainda que, evidentemente, eu
não queira levar as semelhanças demasiado longe – parecida com a dos
elementos que se introduzem nos computadores modernos e que se podem
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utilizar para resolver grandes problemas adicionando uma série de respostas


de «sim» e «não».

(...) Esta é a originalidade do pensamento mitológico – desempenhar o


papel do pensamento conceptual: um animal susceptível de ser usado como,
diria eu, um operador binário, pode ter, dum ponto de vista lógico, uma
relação com um problema que também é um problema binário. Se o Vento
Sul sopra todos os dias do ano, a vida torna-se impossível para a
Humanidade. Mas. Se apenas soprar um em cada dois dias – «sim» um dia,
«não» o outro dia, e assim por diante –, torna-se então possível uma espécie
de compromisso entre as necessidades da Humanidade e as condições
predominantes no mundo natural.

Esse binarismo que Lévi-Strauss identifica no mito acima é uma das marcas da
sua teoria, o estruturalismo. Seria próprio da estrutura cognitiva humana organizar o
pensamento a partir de pares de oposição derivando destas, cadeias significativas e
associativas de idéias. As estruturas do pensamento são comuns, operam a partir
dessas lógicas binárias que classificam, ordenam, hierarquizam. O diverso que a
cultura expressa repousaria nessa estrutura comum: a mente humana.

O que ele percebia é que apesar das diferenças inquestionáveis das populações
se organizarem ao largo do planeta, havia uma estrutura comum de organização do
mundo, das representações simbólicas, expressas na universalidade da arte, dos
sistemas de parentesco, da música, religião, uso ritual de substâncias, da cozinha, dos
mitos. Evidentemente que nosso autor reconhecia que estas coisas variavam, mas o
que ele está apontando é que não há sociedade que não faça essas coisas de alguma
forma. O estruturalismo concentrava-se na maneira que o comportamento humano é
determinado por estruturas culturais, sociais e psicológicas. Estas são estruturas
inconscientes, como explica Cynthia Sarti:

A noção de estrutura pressupõe a noção de inconsciente como a


forma fundamental do espírito humano. Retém de Freud a idéia de
inconsciente como o centro dos mecanismos estruturais, cuja função
é dar um sentido à realidade. O inconsciente “está sempre vazio; ele
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é tão estranho às imagens quanto o estômago aos alimentos que o


atravessam” (Lévi-Strauss 1967:234-235 apud Sarti, 2005: 46).

É esta estrutura inconsciente que permite que os seres humanos organizem,


representem, criem e articulem signos de maneiras bastante parecidas. Ainda que
num olhar sobre as coisas manifestas nós vejamos mais as diferenças que as
semelhanças.

Em relação especificamente aos mitos, Lévi-Strauss se pergunta em um texto


escrito em 1955: Se o conteúdo do mito é inteiramente contingente (incerto,
eventual), como compreender que de um canto a outro da terra, os mitos se pareçam
tanto?” (1970 [1955]: 227). Bem, vamos ver que respostas ele nos oferece. Mas
antes, voltemos à teoria levistraussiana.

O estruturalismo, que é também um método de análise, vai buscar inspiração


em outras ciências, com destaque para a lingüística de Saussure e Jacobson. Essa
influência é fundamental para que entendamos o lugar do mito na proposta do autor.
Desde que escreveu, em 1949, as Estruturas Elementares do Parentesco, Lévi-
Strauss, já mostrava como a lingüística poderia ajudar a antropologia a construir um
método realmente científico de análise.

Os termos do parentesco (pai, mãe, primos cruzados), por exemplo, assim


como os elementos do mito, como ele vai mostrar mais tarde, devem ser
considerados como os fonemas. Isto é, só fazem sentido se tomados como membros
de um sistema, só podem ser entendidos em relação. É na relação entre essas
pequenas partes que o sentido se dá. Nas palavras dele mesmo, referindo-se aos
mitos: “Tomado por si só, cada detalhe não é obrigado a significar algo, porque é no
seu relacionamento diferencial que reside sua inteligibilidade” (Lévi-Strauss &
Eribon. 1990: 171).

Quando falamos, colocamos os fonemas em relação, formamos palavras,


frases, construímos sentido, mas não fazemos isso, pelo menos não o tempo todo,
conscientes das formas como a língua opera. Há, de acordo com Saussure, uma
lógica que subjaz oculta por detrás da fala, isto é, a estrutura.
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A estrutura corresponde a um sistema de regras (inconsciente) a ser


apreendido e decifrado pelo trabalho do etnógrafo (...). Para este, os
fatos isolados não tem significado, por isso, precisam ser vistos em
suas relações (nas regras que estabelecem estas relações). Nessa
perspectiva, as relações de parentesco não derivam de grupos
familiares isolados, mas se constituem por códigos (sistemas de
regras), configurando um sistema de comunicação (Sarti, 2005:42).

“As estruturas não são realidades diretamente visíveis ou observáveis, mas


níveis de realidade que existem e funcionam, constituindo a lógica mais profunda de
um sistema social” (Minayo: 20011: 09). O mito, para Lévi-Strauss, evidencia essas
estruturas do pensamento, reflete a maneira como o pensamento opera. O mito é
linguagem, mas uma linguagem com propriedades específicas, justamente porque ela
permite que penetremos na sua estrutura, e possamos assim, vislumbrar como o
pensamento humano organiza intelectualmente a materialidade do mundo.

Com o seu método, Lévi-Strauss procurava mostrar que um mito não existe
isoladamente, ele está relacionado com outros mitos. A sua interpretação somente se
torna possível quando analisado conjuntamente com outros grupos de mitos que lhes
são próximos. Um mito não tem começo, nem fim. Um relato mítico não é mais do
que um pedaço de uma narrativa maior e seu sentido não está contido jamais em si
mesmo, mas deve ser buscado em outros relatos, muitas vezes em povos diferentes,
onde poderá ser encontrado de maneira transformada. Deste modo, como escreve o
próprio Lévi-Strauss, a originalidade da reflexão mítica está, pois, em operar por
meio de vários códigos. Foi analisando uma grande quantidade de mitos indígenas
que ele pôde demonstrar que a criação de mitos se dá a partir de elementos existentes
em outros sistemas de significação, rearranjando-os e criando novos sentidos. Como
ele mesmo declara, em entrevista a Didier Eribon, explicando a aleatoriedade
científica de sua escolha em nomear o mito do “desaninhador de pássaro” como o
M1, aquele que está ao centro de sua “rosácea” de estórias, em O Cru e o Cozido.
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Comecei, então, pelo estudo da mitologia do Brasil Central, para


perceber que, conforme o caso, os mitos de povos vizinhos
coincidem, superpõem-se parcialmente, correspondem-se ou se
contradizem. A análise de cada mito envolvia outros, e esse contágio
semântico, atrevo-me a dizer, estendia-se de vizinho a vizinho e em
várias direções ao mesmo tempo. Como se chegássemos a um ponto
de vista aberto sobre vastas perspectivas, que incitam a atingir outros
pontos de vista a partir dos quais o olhar estende-se em novas
direções (Lévi-Strauss em entrevista a Eribon, 1990: 164).

Por isso tudo, para o autor de Mito e Significado, não faz sentido procurar a
versão autêntica ou primitiva de um mito, pois é certo e esperado que ela por si só
não explicaria nada. Pois precisaria estar em relação com outras versões e outros
mitos. Segundo, porque os mitos se transformam, exatamente porque eles também
falam com e do presente, ainda que seus fragmentos pertençam a um tempo passado,
irreversível. Assim, todas as versões pertencem ao mito. Enfatizo que o mito não
deve ser analisado isoladamente, ele faz mesmo sentido quando em relação com
outros mitos da mesma sociedade ou com as variações que ele vai sofrendo de uma
sociedade para outra. Mas uma coisa, a análise do mito não pode prescindir de um
conhecimento etnográfico da cultura de onde ele provém, como declara o próprio
Lévi-Strauss na já mencionada entrevista a Eribon:

Quando se constata que determinado mito, de tal povo, existe, de


forma modificada, numa população vizinha, é preciso examinar toda
a literatura etnográfica relativa a essa população para assinalar em
seu meio, em suas técnicas, em sua história, em sua organização
social, os fatores que podem ter relação com essas modificações
(1990: 170-171).
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“E isso não é tudo...”

Escrevendo antes de Lévi-Strauss, Ernest Cassirer que também se dedicou a


pensar o mito em sua correlação com o pensamento científico e religioso, propôs que
a sociedade seria o verdadeiro modelo para o mito. A natureza, por essa leitura, é a
imagem do mundo social. Ou como escreveram Émile Durkheim e Marcel Mauss,
claras influências intelectuais de Lévi-Strauss: “A classificação das coisas reproduz
essa classificação dos homens” (Durkheim & Mauss, 1969: 402). Classificar é,
assim, conhecer.

Os mitos falam sempre de uma só questão: a passagem da natureza à cultura,


isto é, o estabelecimento das regras de aliança e a separação entre humanos e não-
humanos. O tempo do mito é justamente o tempo da passagem, o tempo quando
natureza e cultura não estão dissociadas. É justamente essa passagem narrada nos
mitos que evidenciaria uma origem comum entre os seres humanos e os animais.
Assim, analisa Viveiros de Castro,

a diferenciação entre ‘cultura’ e ‘natureza’, que Lévi-Strauss


mostrou ser o tema maior da mitologia ameríndia, não é um processo
de diferenciação do humano a partir do animal, como em nossa
cosmologia evolucionista. A condição original comum aos humanos
e animais não é a animalidade, mas a humanidade. A grande divisão
mítica mostra menos a cultura se distinguindo da natureza que a
natureza se afastando da cultura: os mitos contam como os animais
perderam os atributos herdados dos humanos ou por eles mantidos.
Os humanos são aqueles que continuaram iguais a si mesmos: os
animais são ex-humanos, e não os humanos ex-animais (2002: 355)

Se os mitos continuam a se pensar nos homens, é preciso que pensemos


nossos próprios mitos de cientificismo, objetividade e sínteses conciliadoras a
partir de dicotomias aprisionadoras, distintas dos provocativos pares binários que
Lévi-Strauss propunha, mas que se abriam em cadeias, instigando o pensamento.
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O mito nos mostra que a “natureza” foi desde sempre “cultura”. O


pensamento mítico evidencia isso quando busca na materialidade da physis
(natureza) seu caminho para a abstração, para o conceitual. Processo que aponta
mais para rupturas do que para a continuidade, para os antagonismos ao invés de
sínteses conciliadoras. “E isso não é tudo3”, como costumava escrever Lévi-
Strauss, em um maneirismo que Eduardo Viveiros de Castro lê como uma ousadia
teórica e epistemológica.

O mito representa para Lévi-Strauss aquele momento quase-adâmico


da história cognitiva da espécie, quando a arte e a ciência ainda não
haviam tomado rumos distintos. E o futuro do pensamento humano –
se é que há um – não poderá consistir senão em um movimento em
espiral de volta à região onde impera, inesgotável, o impulso gerador
do mito (Em entrevista a Cantarino & Cunha, sem data).

E esse impulso é justamente nossa estranha e fascinante curiosidade pelas


coisas, pelo mundo, pelo outro e, numa busca incansável, por nós mesmos. Pois é da
cultura que o mito fala, e nada mais humano do que a invenção de cultura.

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3
“Com o ‘isso não é tudo’, começamos a divisar a possibilidade de pensar Lévi-Strauss como um
pós-estruturalista. Isso não é tudo = fórmula canônia = devir” (Viveiros de Castro. 2009: s/n)
15

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