Você está na página 1de 8
ARCO DA VELHA Henriquinho e sua mae viviam numa casa pequenina, no alto da montanha, ram muito pobres, mas’ao mesmo tempo muito ricos, porque se estimavam deveras. Henriqui- nho parecia 0 mais simpatico, o mais prestavel © 0 mais esperto dos meninos. Infelizmente a mie adoeceu com tanta gravi- dade que o filho, assustado, chamou em seu socorro a Fada do Bem. Esta nao podia deixar de acudir ao chama- mento. Aparecew-lhe, ¢ prometeu ajudar a sal- var a doente. —Mas és tu—disse cla —que pela tua coragem a poderas curar. Precisas. a cusia de mil trabalhos e de mil perigos, ir buscar aguela mon- tanha, que vés ali adiante, a planta chamada da vida, $5 0 suco dessa planta tem o roder de curar a doenga de que sofre a tua mie. ‘Sem hesitar, Henriquinho partiu. Era um consolo ver esse menino de sete anos tentar sul aonde nunca tinkam conseguido chegar outros 163 HISTORIAS DO ARCO DA VELMA mais crescidos ¢ mais fortes. Pelo caminho, preo- cupava-o a ideia de saber quem trataria da mae jurante a sua auséncia; mas a Fada prometera vigid-la, fazendo com que a enferma jamais fal- tasse 0 que fosse necessario. A montana parecia proxima e afinal estava muito distante. Henriquinho precisou dum dia inteiro para a trepar até meio. Andando, andan- do, encontrou um corvo que caira num laco. Apressou-se a liberté-lo € © corvo disse-lhe: — Retribuir-te-ei o favor. Mais longe, foi um galo quit o pequeno sal vou das goelas duma raposa, no momento em que esta se preparava para o comer. Eo galo disse-the: * ‘ ‘p, Reteibuirte-e 0 favor. epois, Henriquinho meteu uma pedra na boca dima cobra pars evitar que ela engolisse uma r8.E a £3, por sua vez, disse: etribuir-te-ei o favor. Por fim, achou-se defronte dum rio, mas no conseguia atravessé-lo porque no havia ponte nem vau. Ent&o 0 galo, que o rapazinho livrara 164 HISTORIAS DO ARCO DA VELHA da raposa, ofereceu-se para © passar & outra margem. Estava resolvida aquela dificuldade. E, cheio de coragem, o pequeno continuou 6 seu caminho. Esse caminho era tio comprido, tfo com- prido, que outra crianca qualquer ficaria desa- nimada. «Andarei cem anos, se for preciso>, declarou ele a si mesmo. Mal tinha pronunciado estas palavras, apa- receu-lhe um anciéio, que Ihe perguntou 0 motive pelo qual tanto desejava chegar a0 cimo da mon- tanha. —Queres, na realidade, realizar 0 teu pro- jecto? — acrescentou, Henriquinho explicou-lhe que o seu maior desejo era possuir a planta da vida para com cla curar a mie. — Ajudar-te-ei de boa vontade, pois sou um énjo da _montanha — respondeu 0 velho. — Tom a condigio, porém, de fazeres a ceifa dos meus campos. Colherés 0 trigo, reduzi-lo-as a farinha, ¢, com esta, amassards a maior quanti- dade possivel de paes, que has-de cozer no forno. “Vendo a imensidio das terras, Henriquinho teve vontade de desistir. Mas pensou na mie doente e deitou-se ao trabalho com todo o entu- siasmo. Durante cento e noventa e cinco dias ceifou o trigo: durante sessenta dias malhou as 165 HISTORIAS DO ARCO vA VEL espigas; durante noventa dias moeu 0 gro: € durante cento ¢ vinte dias amassou a farinha € cozeu os paes. Quando acabou, chamou pelo génio da montanha e este deu-lh¢ como recom- pensa uma boceta de pau, explicando. — Ao voltares para casa, acharas aqui den- tro tabaco como nunca viste. © pequeno estava bastante desiludide, pois fumava nem tomava rapé. Era, no entanto, muito bem criado e ndo quis mostrar-se aborre- cido, No fim de contas, satisfazia-se com 0 pra- zer de haver prestado um bom servigo. E Henriguinho comegou de novo a andar, até que encontrou uma grande muralha que pare- ia cercar a montanha. Contornou-a durante tres dias, com a esperanga de encontrar qualquer porta ou simples brecha. Em vao! «Procurare! cem anos, se for necessdrio», disse consigo. Apareceu-lhe entio outro génio da monta- nha. Era desta feita um gigante formidavel, que tinha na cara assustadora enormes pélos muito pretos. Impressionado, o pequeno eait para tras. Mas, como fosse corajoso, perguntou ao gigante se 0 ensinava a transpor a muratha, O génio de- 166 clarou-se pronto ajudaro visjante, se ete qu eee gue ainda dos suas tras, ere okdovas avas.e metendo o viaho nas pipas. Peron este trabalho, outa gue nso o Hen- ci ea loge recs, © meno aston wyposte € qastow trnta dias @ i oe aoe a fazer o vinho. Depois disso chamou pelo Yenlo da montanha, a fim de ihe mosis a 28 SER Gigante provou o vinho do prince tonele do timo, felicitow 0 pequeno e oersces- “ike um cardo,dizendo: “SGundo volves. pre casa ¢ desires ualguet cosa, ches somente este cardo. S"Bote Hleniguinko deve ter achado que @ recompensa era pouca em relagao 20 enorme ta Beige gus tvers: Mas contente por haves pres tala um bom servico, nfo exigit mais nada. “antes de se rticar, 0 gigante assobiod: > Jogo a este atobio, toda a extensa muralha desmornoe. Julgava 0 menino estar j& muito pesto do ‘cume da montanha, quando se viu detido por um precipieio. Era to fundo que fazia vertigens. STentou contomé-lo, mas o precipicio corria em DA VELHA volta da montanha inteira, € nao havia forma de Ihe descobrir passagem. Entao o rapazinho, pela primeira vez, sentiu as lagrimas subirem-Ihe aos olhos. Sentou-se, triste e desanimado, para reflectir um instante. ‘Nessa ocasifio ouviu um uivo medonho, e voltou- -se: estava ali um lobo que lhe perguntou, com voz terrivel, o que viera fazer aos seus dominios. —Procuro a planta da vida—respondeu Henriquinko.— para curar a minha mie. Se me ajudares a atravessar o abismo, serei para sempre teu servidor reconhecido. —Esta bem — replicou © lobo. — Ajudar- -te-ei se apanhares toda a caca mitida das mi- nhas matas, e se me fizeres, com ela, a maior quantidade possivel de empadas, tortas e pastéis. Quando acabares, chama por mim. Henriquinho arranjou arco e frechas e come- sou a cacar. Mas como era pequeno € pouco habituado aquele exercicio, no conseguiu apa- nhar nada. Foi entdo que voou ao seu encontro © corvo que ele salvara no principio da viagem. A ave facilitou-Ihe o trabalho, derrubando com 0 bico e com as garras toda a caca da regitio. O ra- pazinho s6 tinha que depenar faisdes, perdizes e galinholas e assa-los, ¢ fazer com eles pastéis, tortas e empadas. Chamou em seguida pelo lobo, que provou 168 mremsRtas DO ARGO DA VELMA HISTORIAS DO ARCO DA VELMA aqui uma coisa, ali outra, € se deu por satisfeito. Foi depois cortar na mata um galho de arvore, que limpou e deu ao pequeno, dizendo: — Quando voltares a casa e guiseres ser ransportado a qualquer parte, néo tens mais do Giue montar a cavalo neste bordao: ele te levara Bonde for da tua vontade. Agora, trepa-me para o dorso. Upa! - ‘So com tum salto, 0 lobo transpés o precipicio da montanha. Ja se enxergava 0 gradeamento do jardim onde crescia a planta da vida. Que alegria para © Henriquinho! a ‘Num dado momento teve ele a impressio de que ia cair num buraco. Deu um pulo para trés @ encontrou-se diante dum fosso de extraordina- rio comprimento e largo demais para que ele 0 pudesse atravessar sem morrer afogado. Costeou 6 fosso na ideia de Ihe descobrir 0 fim, mas per~ cebeu que ele marginava por completo o jardim onde crescia a planta da vida. Henriquinho néo desanimou. Dissera-lhe corvo que ainda haveria um obstaculo a trans- por, acrescentando que as Fadas 0 recompensa- riam do seu amor filial. 169 Sentou-se, pois, no cho, convencido de que viria mais algum génio da montanha em seu socorro, Nesse mesmo instante ouviu miados pa- vorosos e dai a pouco aparecia um gato gigante a ameagé-lo com as unhas em riste. — Que vens fazer aqui, pequeno? — pergun- tou-the o animal. — Nao sabes que sou capaz de te rasgar de alto a baixo com uma unhada? — Venho buscar a planta da vida para curar minha mae—disse Henriquinho.—Se me ajuda- res a passar 0 fosso, farei tudo 0 que ordenares. — Esta bem. Pesca-me todos os peixes desta Agua, coze-os ou salga-os. Quando acabares, chama por mim. Gosto da tua cara, Agradam-me 0 que sfio corajosos, para quem nao ha dificul- dades quando se trata de servir os outros. ‘© garoto viu junto de si linhas, redes € anzbis, e durante dez dias esforgou-se por utili- zar aqueles objectos. Nao conseguiu pescar um unico peixe! Comecava a entristecer quando viu borbulhar a agua e surgir a ra que ele libestara da cobra. — Vou salvar-te a vida como salvaste a mi- nha—disse a si— pois se no cumprires as ordens do gato, ele € capaz de te comer a ti Matarei eu todos os peixes deste fosso. Durante sessenta dias ar executou 0 seu trabalho. Henriquinho $6 tinha que cozer ou sal- 170 wisTORIAS DO ARCO DA VELMA ar carpas e salmGes que a suia amiga The atirava ara a margem. Por in, 0 apacinho camnou 9 jato € mostrou-lhe a obra acabadas on0 © fs bom rapaz — declarou o animale a tua paciéncia ha-de levar-te longe, Tomal Aqui fens uma das minhas unas. De cada vez que a levares a testa, desaparecerd a doenga, a fadiga a velhice. E todos o$ que estimares poder tam- bem beneticiar deste dom. Henriquinko estava t80 cansado que quis experimentar logo 0 poder da unha: e num ins- fant ficou freato ¢ bem disposto como 3° ac wwe de se levantar da cama. see Babe pore a minka cauda — acrescentos © gato. E a cauda cresceu tanto, tanto, tanto que o pequeno, num abrir ¢ fechar de olhos, se viu do outro lado do fosso. © menino chegara ao final da caminhada. Bi-lo no jardim, Mas qual daquelas plantas era a planta da vida? PVFembrou se de que a Kada do Bem the acon- selhara a chamar o doutor que tratava dos can- 171 HISTORIAS DO ARCO DA VELHA teiros de flores. Muito amavelmente, 0 doutor acompanhou-o até junto da planta da vida, cor tou um ramo e entregou-o ao Henriquinho, reco- mendando-lhe que nunca se separasse dele, sob pena de nis o poder encontrar mais. Agora tinha de voltar para casa. Acharia tantos obstaculos no regresso como ‘08 que achara a vinda? Recordou-se entio de que tinha consigo 0 bordao do lobo da montanha, € que este o.aconselhara a servir-se dele sempre que quisesse ser transportado a qualquer parte. Upal O rapazinho passou uma perna por cima do pau, montou a cavalo no bordao e dai a ‘um minuto estava ao lado da mae. Espremeu-lhe nos labios 0 suco da planta da vida, ea mae nessa mesma ocasiao abriu os olhos e pediu de comer. Entretanto, olhando para o filho, ela ficou muito admirada, Como era possivel que o Henri- quinho tivesse crescido tanto durante a sua doen- sa? Na realdade, aquilo fora coisa natural, por- que se haviam passado dois anos, sete meses € seis dias desde que ele partira. Antes que o pequeno pudesse explicar, abriu- ~se a janela e entrou a Fada do Bem, a qual con- tou a doen‘e curada como o filho se portara dignamente e todos os obstaculos que havia transposto por amor da mae. — Agora —acrescentou a Fada, ditigindo- 172 HISTORIAS DO ARCO DA VELHA -se a Henriquinho — podes fazer uso dos pre~ sentes que te deram os génios da montanha. © pegueno destapou a boceta, € saiu de la uma quantidade de trabalhadores que, num quar:o_de hora, construiram uma linda casa. — Tudo isto — declarou a Fada — se deve a paciéncia, perseveranca e bondade de Henrique. Disse estas palavras, despediu-se e desapa- receu, depois de o pequeno Ihe haver beijado a mao, A mae gostaria de se levantar, mas nfo tinha nada nos armérios, pois durante a doenca vendera quanta roupa possaia. Henriquinho lembrou-se do cardo que Ihe oferecera 0 gigante e, cheirando-o, desejou ter vestidos para a mae e fatos para si mesmo. Num instente, viu-se, como a mie, vestido de novo dos pés & cabeca, B as gavetas ficaram de repente cheias da melhor roupa. ‘Como se aproximava a hora do jantar. Hen- riquz aspirou outra vez 0 cardo, desejando uma boa refeicdo: ¢ a mesa, imediatamente, aparece servida de coisas apetitosas. Depois de terem comido, a mae ¢ o filho arru- maram a casa, Mas como nao queriam dever 0 pao de cada dia sentio ao seu trabalho, deseja- ram possuir ainda (e s6 isso) duas vacas ¢ dois cavalos. Nunca pediram nada além do que acha- vam necessario ao seu dia-a-dia. 173 HISTORIAS DO ARCO DA VELEA Esta hist6ria devia acabar aqui. Muitos me- ninos e meninas hio-de querer, todavia, saber se existe ainda o jardim onde eresce a planta da vida e se poderdo chegar até la. © jardim fica longe, muito longe. Para la chegar, € precisa muita coragem e muita pacién- cia. Deve-se aceitar a fome e a sede, esperar coisas impossiveis, trabalhar até ao fim nas tare- fas mais duras. Deve-se, sobretudo, ter no cora~ ‘so amor pela mae e por todos os que ajudam as criancas a atravessarem felizes a sua infancia. Foi o que repetin Henrique aos outros meninos que vieram procuralo para the pedirem Ihes indicasse 0 caminho do tal jardim. # claro que Henrique teria podido, se quisesse, ceder-lhes os talismas dados pelos génios da montanha: mas sabia que é melhor cada um fazer por si mesmo 03 esforgos precisos para merecer as recompen- sas e considerar-se feliz. Afinal, Henriquinho teve uma aventura de que podia falar sem fatigar nunca a atencao dos meninos ¢ meninas que o escutavam. Sé para 0 ouvir vinha gente de muito Ionge. O menino con- tava a hist6ria com singeleza e sem vaidade, e os, 174 HISTORIAS DO ARGO DA VELHA seus amiguinhos ado se cansavam de escutar a descrigio do lobo de dentes formidaveis, do gato que era grande como um tigre ¢ tinha unhas ameacadoras, do gigante que empunhava um bordao tio grosso como tronco de

Você também pode gostar