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SACERDOTES EM CRISTO

12 Testemunhos De Um Chamamento

2
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3
I Parte
O sacerdócio ministerial ao longo da
História
O Ano Sacerdotal1 proporciona-nos o salutar reencontro com o sacerdócio
ministerial em diversas perspectivas. A nós, cabe-nos vê-lo ao longo da História da
Igreja. Porque,
[…] conhecer as formas históricas alteráveis, não se destina a encontrar modelos para copiar, mas a fortalecer a liberdade de iniciativa humana para corresponder ao Dom Divino da
Apostolicidade Evangélica, ministério fundamental.2

Atrevemo-nos a percorrer este longo caminho com tanta vastidão, sabendo que se
nos impõe uma rigorosa selecção do que nos parece primordial e essencial, para
depois elaboramos uma síntese que silenciará certamente, por imperativo de tempo e
espaço, muitos aspectos da vivência do sacramento da Ordem ao longo dos vinte e
um séculos de cristianismo.
Procuramos situar o sacerdócio ministerial no tempo dos Apóstolos e na
antiguidade Cristã, no contexto da Idade Média, da época e das reformas e finalmente
nos novos tempos, marcados pelas grandes revoluções do século XIX e XX. Foram
sobretudo os momentos de crise, que levantaram interrogações e exigiram reflexão e
aprofundamentos doutrinários e pastorais. O que encontramos nessas respostas é fruto
do percurso que foi aprofundando o sacerdócio ministerial, ao longo dos séculos,
enriquecendo-o com variadas experiências e exigindo-lhe diversidade de modelos
capazes de nos permitir um olhar liberto e criativo, a partir da segurança que nos dá a
riqueza da História e da fidelidade que nos proporciona o magistério da Igreja.
1
O Ano Sacerdotal, (19 de Junho de 2009 a 19 de Junho de 2010), foi proclamado por Bento XVI a 16 de Março de 2009, como vista a «favorecer esta tensão dos sacerdotes para a
perfeição espiritual do qual sobretudo depende a eficácia do seu ministério», precisamente no ano em que se celebra o 150.º aniversario da morte do «Santo Cura d’Ars, João Maria Vianney,
verdadeiro exemplo de pastor ao serviço da grei de Cristo» (cf. Discurso de Anúncio do Ano Sacerdotal por Bento XVI, durante a audiência do Plenário da Con‑ gregação para o Clero, 16 de
Março de 2009).
2 Azevedo, Carlos A. Moreira, «Estruturação dos Ministérios a Igreja Antiga», in Igreja e Ministérios, Semana de Estudos Teológicos da Universidade Católica Portuguesa, Editora Rei dos
Livros, Lisboa, (s.d.), p. 81.

O sacerdócio na época apostólica e na antiguidade cristã.


Na época apostólica, encontramos agrupados à volta do bispo, os seus principais
colaboradores, que com ele formavam três ordens: bispos, presbíteros e diáconos.
Estas ordens, correspondestes a distintas funções, organizavam-se à volta da ordem
episcopal, que era o epicentro das mesmas, ficando toda a autoridade nas mãos do
bispo, que governava absolutamente a igreja particular, tendo sempre a última palavra
sobre todos os assuntos espirituais e temporais. De facto, os diáconos exerciam as
suas funções, sob o controle e responsabilidade do bispo. Os presbíteros formavam
um corpo auxiliar, ligado à pessoa do bispo, para o qual exerciam as funções de um
“Colégio de Consultores” em génese, manifestando as suas opiniões e acolhendo as
decisões do bispo, unindo-se a ele na concretização das suas orientações.
Durante a época apostólica, em algumas províncias romanas, as comunidades
multiplicavam-se, formando uma “federação”, centralizada. Assim, dentro da Igreja,
instituída por Cristo, nasceram múltiplas comunidades cristãs, intituladas também
elas, igrejas. Esta designação não surgiu em oposição ou em paralelo, mas por
aplicação de um termo, empregado desde cedo para qualificar a comunidade de
irmãos, crentes em Jesus Cristo, os Cristãos. A necessidade de unidade na Igreja,

4
surgiu logo no início, desde a primeira geração de cristãos, como uma verdade
teológica aceite por todos e fundada sobre o ministério atribuído por Jesus Cristo a
Pedro e aos restantes Apóstolos. É neste contexto, que percebemos as exortações
dirigidas por Pedro às igrejas da Ásia Menor e de São Clemente Romano († c. 100) à
Igreja de Corinto1. Sem esta compreensão teológica, estas intervenções exteriores à
própria comunidade teriam causado forte surpresa nestas e nas outras comunidades.
No tempo de Santo Inácio de Antioquia († c. 107), ainda se não considerava cada
igreja local como uma verdadeira pessoa moral original e distinta, autêntica porção de
Igreja, ou seja a totalidade da Igreja una, santa, católica e apostólica, presente em
cada igreja local. O contributo de Santo Inácio de Antioquia foi decisivo para esta
compreensão e amadurecimento eclesiológico da Igreja apostólica, porém o caminho
a percorrer foi ainda longo.
O crescimento da consciência de que as igrejas locais deviam absorver e
desenvolver em si as noções da Igreja Universal, advém também do contributo
oferecido pela intensa vida municipal vivida na Ásia Menor nesta época. De facto, a
autonomia municipal foi construída passo a passo no Império Romano a partir da
persistência cívica das cidades, que aplicavam a si qualidades próprias do império.
Constatamos que na época de Trajano (97-117), a autonomia e o espírito municipal
eram apreciados e aplicados nas diversas cidades, gerando o funcionamento regular
das instituições autónomas. Os magistrados municipais eram os representantes
oficiais desta autonomia, que se inspirava nas formas tradicionais das cidades gregas,
agora aplicadas à administração romana, conforme afirma H. Leclercq2. Este espírito
e zelo municipal fortemente implantado na Ásia Menor, foi transportado desde o
século i para as comunidades cristãs.
1
1Pd 1,1‑12; 1 São Clemente Romano aos Coríntios, I, LVIII – LXV.

Pode-se verificar, de facto, os benefícios que a concepção helénica de Estado trazia


para todos. A cidade passou a oferecer o ideal de organização social a aplicar pelos
Judeus Cristãos nas suas próprias comunidades eclesiais. Deste modo, e partindo das
bases delineadas pelos seus fundadores, muitos deles vindos da Judeia, por ocasião da
primeira evangelização apostólica, os cristãos da Ásia Menor organizaram entre si a
hierarquia cristã das suas igrejas nascentes, inspirando-se nos modelos e instituições
que eles viam funcionar bastante bem nas suas cidades. Os cristãos, ao chamarem
“igreja” à comuni-dade reunida à volta do bispo, aplicaram à sua realidade o mesmo
título que os próprios Gregos aplicavam à sua Assembleia Municipal. A
personalidade moral destas assembleias cristãs caracterizava-se por depender da
presença do bispo, sucessor dos Apóstolos, à volta de quem os cristãos se reuniam,
mesmo nas circunstâncias de itinerância e fundação de novas comunidades3.
Verificamos a existência de um só bispo em cada cidade. Este era assistido por um
colégio de presbíteros, governando uma comunidade, cujos membros, mesmo aqueles
que vives sem dispersos fora da cidade, permaneciam ligados à igreja da cidade e ao
seu bispo, a quem reconheciam como elo de ligação ao próprio Cristo. Por sua vez o
bispo era membro do colégio reinante e governante da Igreja, que eram todos os seus
irmãos bispos. O bispo, uma vez eleito e entronizado, permanecia revestido de uma
autoridade soberana e monárquica, apoiado pelo seu conselho synédrion tõu
Episkoppon. Os membros deste conselho são chamados Presbyteroi, significando

5
etimologicamente anciãos, experientes, amadurecidos, ou seja, presbíteros.
2
Leclerq, Henri, «Chaitre des Cathédrales», in Dictionnaire d’ Archéologie Chetienne et de Liturgie, publié par Fernand Cabrol & H. Leclercq, Edition Librairie Letourzey et Ané, Paris,
1948, tomo 13, coluna 495 507.
3 Encontramos em algumas cidades da Ásia Menor, não um bispo na condução de igreja local, mas um presbitério, como é o caso da cidade de Filipos, todavia trata-se de uma excepção, que
não retrata as igrejas da época, a quem Santo Inácio de Antioquia recomendava nada fazerem fora da comunhão com o bispo, seus presbíteros e diáconos (cf. Inácio de Antioquia, Epístolas
Filadelfias, 3 e 4).

Os presbíteros entravam no synédrion tõu Episkoppon, escolhidos pela experiência


de vida cristã, pela maturidade, pela idade e pela respeitabilidade adquirida no
interior da comunidade. Nada indica que o seu ministério fosse temporário, antes pelo
contrário, ao exercer a título permanente o ministério presbiteral, iam merecendo cada
vez mais a designação de Presbyteroi. O modo de designação dos membros para as
três ordens é nos referido pelo verbo Geirotonẽsai, que significa eleger de mão
levantada. H. de Ginoulhiac4 refere com mais precisão o termo «Symboúlion» que
pode ser entendido com um significado mais preciso do que «Geirotonẽsai», ou seja,
«eleger em assembleia reunida». Após a eleição, «o bispo preside e tem o lugar de
Deus Pai, os presbíteros ocupam o lugar dos Apóstolos e os diáconos exercem a
função do próprio Cristo»5. Isto equivale a dizer que os diáconos executavam as
ordens do bispo, enquanto imagem do Pai, do mesmo modo que Jesus executou a
vontade de seu Pai que está nos Céus.
São notórias as continuas exortações de Santo Inácio, pelas quais pretende inculcar
nos presbíteros a ideia da sua subordinação à vigilância do bispo, pois eles deviam
representar o Colégio Apostólico na igreja particular, sem nunca correrem o risco de
se tornarem uma força de oposição ao ministério episcopal. A este propósito, citamos
A. de Ginoulhiac:
4
Ginoulhial, H., L’Église chretirnne au temps de Saint Ignese, Editions 8.ème, Paris, 1907, p. 157.
5 Santo Inácio de Antioquia, Epístola aos Magnésios, VI, 1.
[...] É certo que cada um dos presbíteros estava subordinado ao bispo; mais ainda, o próprio conselho dos presbíteros, ou presbyterion não devia ter como tal, mais do que uma função
quase honorífica, deixando íntegra a independência de acção do bispo. A própria fórmula de São Policarpo parece exprimir perfeitamente a situação dos presbíteros [...]. À volta do bispo, existia
pois um pe‑ queno grupo de colaboradores, esperando dele a palavra de ordem e não acedendo jamais à tentação de fazerem prova de sua independência.6

Podemos concluir que o presbítero desligado do bispo e encerrado no seu hipismo


ministerial não existe no entendimento da Igreja Primitiva. Pelo contrário, a ideia que
dela surge é sempre de o considerar inserido num corpo, designando-o
colectivamente: os presbíteros ou presbitério.
Nesta remota época da História da Igreja o presbitério não apresentava grandes
actividades. No dizer de H. Leclercq,
Eles acompanham o bispo enquanto ele observa as evoluções litúr‑ gicas na paz de um banquete que preenche inteiramente o santuário. Por vezes um deles poderá ser convidado a celebrar
a Eucaristia, tal‑ vez também a ágape e o Baptismo. Inofensivos e parcialmente sem responsabilidades próprias, pois é o bispo quem decide e quem go‑ verna; a comunidade poderá ser levada a
tratar os presbíteros com alguma negligência; Santo Inácio recomenda aos fiéis para lhes se‑ rem submissos como ao bispo.7

Mais activos do que os presbíteros eram os diáconos. Estes eram essencialmente os


actuantes, os colaboradores do bispo. Transmitindo as ordens do bispo, faziam a
intermediação entre os fiéis e o bispo, ocupando-se da administração material e das
obras assistenciais e missionárias. Sabemos que as três ordens se reuniam, porém
desconhece-se quase tudo acerca da frequência das suas reuniões e dos assuntos
tratados. Variando de comunidade para comunidade, tudo indica que estas reuniões
tinham convocação regular. Sem dúvida que a importância real destas reuniões era
mais evidente nas vacâncias episcopais, como por exemplo na perseguição Valeriana
(253 260) que se revestiu de métodos persecutórios diferentes dos anteriores, em vez
de atingir a multidão dos fiéis, dirigiu-se contra os pastores da Igreja: bispos,
presbíteros e diáconos. Com esta metodologia, Valeriano pretendia obter resultados
mais duráveis, através das indesejadas apostasias, sobretudo de bispos. As apostasias
da hierarquia seriam capazes de produzir o escândalo dos fiéis e o consequente

6
desprestígio do Cristianismo e desaparecimento dos catecúmenos, afinal a dispersão e
perda do “Rebanho de Cristo”.
6
Ginoulhiac, H., op. cit., p. 500.
7 Santo Inácio de Antioquia, Epístola aos Tralianos, XIII, 2, (cf. Leclercq, H., op. cit., coluna 500).

Muitos dos bispos, presbíteros e diáconos sofreram o martírio ou partiram para


exílios intermináveis. Houve também casos de fuga e de escondimento, evitando-se o
fim drástico pela morte violenta. Em todos estes casos, em que o bispo desaparecia
por morte, por desterro, ou por fuga e escondimento, era necessário velar, confortar e
orientar os fiéis nos períodos que mediavam as diversas vagas de perseguição, ou no
tempo de paz após as perseguições. Os momentos mais difíceis eram aqueles que
antecediam o perigo eminente e por isso se sentiam todas as inseguranças e
fragilidades. Estes momentos exigiam fortes ajudas espirituais e também forte
disciplina. É neste contexto histórico, que encontramos grupos de presbíteros, por
vezes em conjunto com diáconos, a assumir o governo de igrejas locais.
Sobre este assunto, próprio da vida disciplinar das comunidades locais,
encontramos na correspondência de São Cipria no de Cartago (210 14 de Setembro
de 258), indicações úteis sobre as igrejas de Roma e de Cartago, no referente à
delegação do governo da Igreja, em tempos de ausência dos seus bispos.8
Verificamos que os presbíteros de Cartago exerciam os direitos do seu bispo,
presidindo à Eucaristia, quer nas assembleias regulares quer nas prisões, onde iam
visitar os “Confessores da Fé”.9 São Cipriano atribui-lhes também o ministério de
reconciliar com a Igreja os “apóstatas penitentes” recomendados pelos confessores,
mas somente em caso de perigo de vida10, reservando a absolvição dos outros casos
para ele, quando regressasse à sua comunidade11, porque somente os bispos
representam a autoridade do Senhor e por isso, só eles têm o direito divino de
reconciliar os pecadores com a Igreja. O bispo de Cartago reafirma que os presbíteros
unidos aos diáconos são os conselheiros do bispo por isso devem ser fortemente
respeitados, pois o bispo nada de importante deve decidir, sem o parecer deles, tal
como tudo deseja decidir com o apoio de todo o seu povo cristão. São Cipriano
recorda aos presbíteros, que todos os actos de jurisdição que exercem, o fazem por
delegação do bispo e dentro dos limites traçados por ele.12
Em Roma, após o martírio do Papa São Fabião (236 250), os presbíteros apoiados
pelos diáconos assumiram com grande vigor sacerdotal a condução da igreja Romana.
Temos um documento precioso, no qual o clero romano escreve ao clero de Cartago,
ainda privado da presença do seu bispo, exortando-o à generosidade a fim de encarar
com fortaleza todos os perigos, com a finalidade de sustentarem a fé e a coragem dos
fiéis. Esta carta deplorava também a atitude daqueles que caíam na apostasia. A esses,
deviam os presbíteros e diáconos falar com firmeza, mas também com doçura e
reconciliação. A hierarquia romana assumia-se como plenamente responsável pela
sua igreja, que «presidia à caridade ecuménica», encarregando-se de exercer o ofício
de pastores e propondo o seu exemplo para animar a igreja de Cartago.13 Comentando
esta carta, H. Leclercq, afirma:
8
Cf. São Cipriano, Epístola V, Edition Hartel, 1, p. 478; ibidem, Epístola XIV, 2, p. 520.
9 Ibidem, Epístola XVI, 2, p. 519; ibidem, Epístola V, 2, p. 479.
10 Ibidem, Epístola XVIII, 1, p. 523.
11 Ibidem, Epístola, XV, XVI, XVIII, pp. 515 523.
12 Ibidem, Epístola XIV, 4, p. 516; ibidem, Epístola, XV, XVI, XVII, pp. 517‑23.
Eu acredito poder acrescentar que o tom desta carta [...] manifesta entre o colégio presbiteral de Roma a consciência da preeminência de sua Igreja particular e o dever de solicitude que

7
lhes incumbe em relação a todo o mundo cristão.14

Esta mesma consciência está presente nas cartas do Conselho de Presbíteros de


Roma dirigidos ao próprio bispo São Cipriano.15
A colegialidade do presbitério com o bispo
O Papa Cornélio (251 253) mostra-nos, nos clérigos de Roma, a existência de um
grupo específico de consultores, que reflectem com o bispo os diversos problemas
que lhes eram colocados. Quanto ao número de membros que compunham os
Colégios de Consultores, citamos uma carta do referido Papa Cornélio que descreve o
número dos membros do Colégios de Consultores da igreja de Roma: 46 padres e 7
diáconos. Pouco tempo após a paz de Constantinopla, Santo Alexandre de
Alexandria, apresenta o Colégio de Consultores da sua igreja com 17 presbíteros e 20
diáconos.16 Devemos sublinhar a existência de diáconos nestes Colégios de
Consultores, que não se confinavam apenas a presbíteros.
13
São Cipriano, Epístola VIII, 2, Edition Hartel, p. 486.
14 Leclercq, H., op. cit., p. 502.
15 São Cipriano, Epístola XXX e XXXIV, Edition Hartel, pp. 549 e 572.
16 Leclercq, H., op. cit., in coluna 504, apresenta as referências que utilizamos sobre o Papa Cornélio e Santo Alexandre de Alexandria.

No Concílio de Niceia (325), aparece pela primeira vez com clareza um conjunto
de interdições para bispos, presbíteros e diáconos, nomeadamente no referente à
vinculação de cada um deles à igreja em que se encontravam colocados e face à igreja
a que pertenciam em virtude do vínculo da sua ordenação.17 O cânone 18, recorda aos
diáconos o seu dever de subordinação ao bispo e seu presbitério. Em 342, o Concílio
de Antioquia chama aos três graus da Ordem «Presidentes da Igreja» e São Jerónimo,
fiel à Tradição, refere-se ao «Senado eclesiástico» composto por presbíteros. São
Basílio evoca a recordação da velha instituição municipal, como referência para a
organização da vida interna da Igreja. O mesmo autor, conjuntamente com outros
seus contemporâneos, deixa entrever a necessidade de moderar algumas dificuldades,
devido à necessidade de reprimir os excessos de poder por parte de alguns bispos.
Assim o Colégio de Consultores deveria fazer esta moderação.18
Os Statuta Eccllesiae Antiqua impunham aos bispos, sob pena de nulidade, não
pronunciarem sentenças jurídicas, senão com a colaboração do seu clero,
representado pelo Colégio de Consultores.19 As mesmas restrições são aplicadas no
que diz respeito às ordenações.20 Na ausência do bispo, Santo Hilário de Poitiers, em
tempo de exílio (351- 360), enuncia orientações no sentido de delegar os seus poderes
aos seus presbíteros, que funcionavam como seu Colégio de Consultores.21 Santo
Hilário, ao comentar a carta de São Paulo a Timóteo, manifesta a opinião que em
cada cidade deve haver 1 bispo, 7 diáconos, e 2 presbíteros por cada igreja. Em
Hipona, Santo Agostinho foi por algum tempo, o único presbítero do seu bispo,
Valério, tornando-se depois, ele mesmo bispo daquela igreja particular, passando a ter
no seu Colégio de Consultores, para além dos diáconos, 9 presbíteros.
17
Concílio de Niceia, cânone 15, in tomo II, coluna 691; ibidem cânone 18, coluna 675, Edição Mansi.
18 São Jerónimo, «Comentários Isaionn», in Migne, Patrologia Latina, tomo XXIV, coluna 61.
19 Leclercq, H., Histoire des Conciles, Editions 8.ème, Paris, 1908, tomo II, p. 115.
20 «Statuta Ecclesial Antiqua», cânone 22, in Leclerq, H., Histoire des Conciles, op. cit., p. 114.
21 Santo Hilário «Ad. Constantinum», in Migne, Patrologia Grega, tomo XVIII, colunas 577 581.

Percebemos que existia um número bem determinado de presbíteros e de diáconos


em cada igreja local, porém ignoramos a relação destes com os Colégios de
Consultores propriamente ditos. Por exemplo, em Alexandria, a sentença de

8
deposição de Ario foi subscrita por 17 presbíteros e 20 diáconos da cidade e por 19
presbíteros e 20 diáconos de Maréote, um distrito dependente de Alexandria, mas no
qual nunca existiu bispo, nem sequer corepiscopus. Acerca desta questão, Thomassin
escreveu no século xviii:
O clero superior de cada cidade episcopal, compunha, conforme sua decisão, um corpo em forma de conselho do bispo, governando com ele e sob a sua orientação todas as questões
temporais e espirituais da diocese. Eis a natureza dos cabidos dos primeiros séculos [...].22

O século vi trouxe mais precisão e clareza às funções do Colégio de Consultores.


Começou a distinguir-se a existência de uma selecção de clero, que se foi
constituindo progressivamente em corporação. Assim, o bispo e o seu Colégio
Consultivo começaram a viver em comum, ou a manter fortes relações que os
distinguiam do resto do clero, criando entre eles interesses e ocupações idênticas. A
vida comum foi ensaiada diversas vezes e por diversas tentativas. Periodicamente,
aflorava o desejo de vida comunitária do bispo com o seu Colégio de Consultores.
Estas tentativas contribuem para afirmar a distinção do Colégio de Consultores face
ao restante clero; muitas vezes era coincidente a composição destes colégios com o
clero da Igreja Catedral. Referindo-nos ao clero da Catedral, percebe-se a organização
progressiva dos serviços, face às necessidades existentes e crescentes. Vão surgindo
também títulos correspondentes às funções exercidas pelos seus membros. O nome
destes títulos começa por variar de catedral para catedral, porém a universalidade da
orgânica catedralícia vai-se assumindo progressivamente, até se generalizar em todas
as catedrais, naquilo que vieram a ser os capítulos, ou cabidos e simultaneamente
Colégios de Consultores.
22
Thomassim, Ancienne discipline de l’Eglise, in folium, Paris, 1725, tomo I, coluna 1361, citado in, H. Leclercq, op. cit., tomo III, coluna 50a, nota 15.

A vida comunitária nos presbitérios da Antiguidade a par das catedrais episcopais,


apareceram referidas, já desde os testemunhos de Gregório de Tours, um elevado
número de basílicas. A maior parte dessas basílicas tinham a sua origem no culto dos
mártires. Devemos distinguir vários tipos de basílicas: para além das basílicas
monásticas, ocupadas exclusivamente pelos monges, encontramos também basílicas
edificadas nas cidades e basílicas construídas no campo. Foi o Concílio de Orleães,
no ano de 538, que distinguiu e legislou sobre estas basílicas.23 Assim, as basílicas
urbanas passam a depender directamente da catedral, que a partir do século vii passou
a designar-se muitas vezes também por basílica. As basílicas rurais funcionavam
muitas vezes como sedes de paróquias. Desde o século vi, muitas destas basílicas
eram servidas pelo clero episcopal, porém muitas outras permaneciam ligadas a
mosteiros, sendo servidas pelas comunidades dos monges. Várias fontes históricas
demonstram que as diversas basílicas eram superiormente dirigidas por um abade,
título que no século vi nada tinha de monástico. Estes abades funcionavam como
conselheiros do bispo durante os julgamentos; os seus vigários nas questões mais
privadas, referentes às diversas igrejas; os seus procuradores nos afazeres temporais e
membros da sua comunidade e do seu colégio de consultores.
23
Cf. Maassen, in Monumenta Germaniae Historica, Concílios da Época Merovíngia, p. 74.

Ao lado dos clérigos vinculados às basílicas, cuja principal função era celebrar os
mistérios divinos, encontramos “irmãos leigos piedosos”, cujo quotidiano era
preenchido pelo exercício de diversos ofícios.
É importante referir que nesta época o regime das catedrais não consistia apenas
numa só igreja, a catedral, mas em várias igrejas diferentes pertencentes ao cabido

9
catedralício, muitas vezes distanciadas umas das outras vários quilómetros. Uma carta
endereçada em 568 a Pedro, bispo de Metz, dá-nos a ideia exacta da organização
interna daquela diocese: após a presidência do bispo, figuravam um Rector domus
ecclesiae, vários abades sanctis templorum liminibus conversantes, um arquidiácono,
um notário e vários chantres.24 Nesta época, os cónegos eram chamados a exercer o
seu ministério presbiteral em diversos serviços, que compreendiam mosteiros,
paróquias, basílicas citadinas ou rurais. O Concílio de Mérida (666) diz-nos que os
bispos escolhiam os cónegos de entre os padres das paróquias; estes continuavam a
conservar os títulos das paróquias e os proventos inerentes às funções pastorais
exercidas nessas comunidades. Para obviar à acumulação das tarefas assumidas com
as funções capitulares, fazia-se a nomeação de vigários para auxiliar os párocos nas
diversas funções paroquiais.25
24
Cf. Monumenta Germaniae Historica, Estudios Eclesiasticos, Madrid, 1992, volume III, p.134.
25 Cf. Mansi, XI, 99.

Voltando à vida comum dos canonicus, para a perceber melhor, encontramos uma
série de referências à chamada “mesa comum”. Assim, Gregório de Tours (538-594),
no seu Liber Vitae Patrum faz alusão à mesa canonicarum a propósito do bispo São
Gall e do diácono Patrocle de Bourges.26 Encontram-se também referências à mesa
canonical na sua obra Historia Francorum, fazendo-se aí menção da mesa
estabelecida em Tours pelo bispo Baudin, por volta do ano de 550. Percebemos
nestas referências que a refeição canonical era quotidiana, ou seja, sempre que o
tempo e os recursos o permitissem. Em alguns casos estava prevista a refeição só nos
dias festivos mais importantes. Por exemplo, no Actus Pontificum Cenomanensium, o
bispo Bertanel instituiu em 616, uma refeição para o clero no dia da dedicação da
catedral, o mesmo sucedeu em Milão.
O sacerdócio na medievalidade
Na medievalidade do Ocidente Cristão, e concretamente durante a Alta Idade
Média, quanto mais se fundiam numa cultura própria as formas de vida germânicas,
romanas e também célticas, tanto mais surgiam novas instituições na Igreja, formadas
com base em concepções jurídicas romano-germânicas.27
As criações jurídicas dos povos romano-germânicos radicavam essencialmente
numa forma de vida campesina e feudal, distinta da cultura citadina da Antiguidade.
Entre as diversas manifestações deste período, aparece como digno de registo o
impulso dado à construção de igrejas espalhadas pelo campo. As igrejas rurais foram
geralmente construídas, dotadas e sustentadas pelos latifundiários ou por associações
de fiéis, libertando os bispos de um dever que dificilmente cumpririam somente com
os meios postos à disposição da Igreja. Porém, surgiu um novo problema à hierarquia
da Igreja, referimo-nos aos direitos de propriedade que os fundadores das novas
igrejas faziam valer a seu favor, desenvolvendo-se uma nova forma jurídica contrária
à constituição eclesiástica romana: a instituição das “igrejas próprias” e dos
“padroados”.
26
Dereine, C., «Chanoines», in Dictionaire D’ Histoire et de Géocraphie Ecclésiastique, tomo 12, Edition Liberaire Letouzey et Ané, Paris, 1953, pp. 361 362.
27 Posteriormente a reforma gregoriana assumiu os princípios constitucionais romanos. O Código de Direito Canónico, ainda em formação nesta época, concluindo‑se em 1140, apresenta-se
como uma antítese, da germanização, dando preferência ao direito romano e provocando o retrocesso do direito germânico.

Foram os germânicos que impulsionaram a nova figura jurídica das “igrejas


próprias” e dos “padroados”. Esta realidade espalhou-se por todo o Ocidente,
sobretudo na Espanha, na Inglaterra, na Escandinávia e na França. Foi porém, no

10
reino Franco que o sistema de “igrejas próprias” assumiu vínculos mais poderosos.
Com a finalidade de prevenir novas perdas, os próprios bispos adoptaram também o
sistema de “igrejas próprias” para as poucas igrejas que ainda lhes restavam. Os
mosteiros também se organizaram dessa forma. Assim, entre os Francos não havia
igrejas sem o correspondente senhorio secular ou eclesiástico.28
Na Hispânia, nas Gálias e na Itália, ao longo da Alta Idade Média, afirmou-se
também o uso das “igrejas baptismais”29, com base jurídica num romanismo tardio
assente nos direitos episcopais. A partir dos séculos vii e viii, até as igrejas
baptismais, passaram para as mãos dos clérigos episcopais, ou seja, independentes
dos padroados.
As paróquias rurais organizaram-se frequentemente a partir das antigas igrejas
baptismais, que desde o século vi, na Espanha e nas Gálias, e desde o século viii, no
centro e norte de Itália, se constituíam em grandes paróquias. A partir desta realidade,
verificou-se, que quanto mais se povoava o campo, mais urgia a necessidade de
atendimento pastoral, começando a surgir paróquias menores, fortemente favorecidas
pelos senhores das “igrejas próprias” e geralmente com direitos limitados e retirados
às primitivas “igrejas baptismais”.
28
No Oriente do Império Romano, inclusivamente entre os Bizantinos, também surgiu o mesmo fenómeno jurídico, que acabou por evoluir para o chamado direito dos kitores.
29 Para poderem organizar a vida paroquial nas vastas zonas rurais da Itália, os bispos da Antiguidade tardia e da Alta Idade Média criaram disposições canónicas pelas quais só poderiam ter
baptistério as igrejas ligadas ao bispo, retirando esse direito às “igrejas próprias”. Esta realidade foi-se estendendo às Gálias e a Hispânia.

Nesta época, as igrejas urbanas também entraram em transformação, não só as


catedrais episcopais mas também as grandes igrejas urbanas, que desde a antiguidade
cristã eram servidas por vários clérigos, como já constatámos. Desde os finais do
século iv, encontramos vários casos em que estes clérigos começaram a viver em
comunidade, inspirando-se quase sempre na vida monástica. Como referimos, foi
com São Eusébio de Vercelli († 371) e Santo Agostinho de Hipona (354-430)30 que a
ideia de uma comunidade fixa de clérigos citadinos surgiu, tomou corpo e se
concretizou.
É neste contexto, que no Ocidente aparece o nome de clerici canonici para designar
todos os clérigos com obediência episcopal, aplicando-se gradualmente esta
designação só aos membros das comunidades nascentes de cónegos. De facto,
originariamente chamavam-se canonci ou cónegos a todos os clérigos episcopais,
apontados na lista oficial ou cânone dos bispos, em oposição aos sacerdotes das
igrejas particulares ou pertencentes a padroados. Posteriormente, este nome passou a
ter também relação com as prescrições canónicas que os cónegos seguiam e
cumpriam, como por exemplo o Offiium Canonicum, ou seja a oração diária no coro
a que estavam obrigados e deviam cumprir, acabando por designar somente este
grupo de clérigos.31 A designação de capitulum ou capitularis advém também do
facto de se ler diariamente um capítulo da regra.
30
Cf. notas 1 e 2.

Entre 1059 e 1064 reuniram-se sínodos e apareceram vários cânones romanos com
o intuito de comprometer os cónegos, sacerdotes e diáconos com a vida comunitária,
pondo em comum os rendimentos materiais e a habitação, tanto nas pernoitas como
nas refeições. A legislação fazia um apelo à vida apostólica comum e à renúncia
voluntária às propriedades privadas.32 O principal mentor desta reforma foi o monge
Hildebrando, mais tarde Gregório VII (1073-1085).

11
Nesta mesma época, surgiram também as comunidades canonicais, não unidas às
igrejas catedrais, as quais se chamaram colegiadas. No século xii estas colegiadas
expandiram-se enormemente por toda a Europa, surgindo também e simultaneamente
cabidos femininos de cónegas regrantes ou reformadas. Todas estas comunidades,
masculinas e femininas, seguiam da denominada regra de Santo Agostinho,
chamando-se-lhe por isso Cónegos Regrantes de Santo Agostinho.
A regra agostiniana impunha-lhes várias obrigações ao nível da piedade e da vida
comunitária: a oração diária do Ofício Divino; a vida comum; obediência ao deão,
prior ou abade; pobreza individual e castidade. Diferenciavam-se da vida monástica
também pelo facto de não renunciarem definitivamente aos bens materiais, pois era
permitido a cada um continuar como titular das suas propriedades. A diferença surgia
também por assumirem a cura de almas dos grupos humanos em que se inseriam,
prestando-lhes os diversos serviços pastorais e apoios espirituais. Assim, esta vida
canonical regular assumia-se como activa, em contraposição aos movimentos
eremíticos e cenobíticos assentes no cultivo da solidão e do silêncio contemplativo e
orante. Alguns cónegos regulares entregaram-se à pregação e ao ensino, outros, à cura
pastoral de paróquias; casos houve em que, como na antiguidade cristã, junto das
residenciais canónicas se construíam casas de acolhimento para irmãos leigos
conversos que, sob a direcção de um magister laboris, se dedicavam a trabalhos
manuais com vista à própria subsistência.
31
O termo canonicus aplicado a todos os clérigos com obediência episcopal, apontados na lista oficial ou cânone dos bispos, evoluiu na terminologia jurídica canónica para o termo
“encardinado” que significa exactamente a vinculação jurídica de um clérigo a uma diocese.
32 No contexto da renovação eclesiástica, Nicolau II convocou um sínodo, em Latrão, no ano de 1059, no qual participaram 113 bispos. O sínodo decretou severas resoluções contra a simonia e
exortou os sacerdotes sobre os deveres do celibato, da vida comum, do zelo apostólico e do desprendimento face aos bens materiais.

Algumas destas congregações canónicas foram muito importantes. Entre as mais


conhecidas destacavam-se a congregação de São Rufo de Avinhão, surgida em 1039
e que chegou a agrupar 1200 colegiadas; a congregação de Arrouaise, formada a
partir de 1094 pelo bispo de Arros; a congregação de Marbach que em 1094 chegou a
contar com 300 colegiadas e a de São Victor de Paris, fundada em 1110 por
Guilhermino de Champeaux. Um dos casos mais típicos deste movimento de cónegos
regrantes foi São Norberto (1080-1128), fundador dos Cónegos Pregadores ou
Premonstratenses. São Norberto não impôs aos seus discípulos a observância de uma
regra monástica, mas a regra de Santo Agostinho, seguindo os critérios de São Victor
de Paris que completava esta regra com regulamentos internos inspirados em Cister e
em Hirsau. Assim os Premonstratenses tornavam-se pregadores, mas pregadores
pobres.33
33
São Norberto nasceu em 1080, filho do conde de Xanten, iniciou a sua vida dentro do clero secular.
Em 1126, foi consagrado arcebispo de Magdeburgo; aí, entregou-se a uma imensa actividade missionária, chamando em sua ajuda as suas antigas religiosas, cuja direcção manteve até 1128. A
metodologia missionária consistia na fundação de colegiados, fazendo a difusão do cristianismo a partir de 13 igrejas colegiais que fundou nos territórios novamente conquistados para o
cristianismo. Faleceu a 6 de Junho de 1134.

Na Baixa Idade Média, o século xiii foi um dos mais importantes na história da
teologia do sacerdócio, como se pode constatar pela importância do IV Concílio de
Latrão (1215) que teve de esclarecer as questões postas pelos Cátaros e pelo
Valdenses, os quais levantaram dúvidas fundamentais ao sacerdócio ministerial na
Igreja, pondo-o radicalmente em causa. Os Cátaros, mas sobretudo os Valdenses
reduziam a Igreja apenas ao sacerdócio universal do Povo de Deus, o qual é
designado pela Teologia Contemporânea como sacerdócio comum dos fiéis, e radica
nos sacramentos do Baptismo e do Crisma, tornando os Cristãos num povo
sacerdotal, mas para os Valdenses sem sacerdócio ministerial.

12
O IV Concilio de Latrão (1215) que teve de afirmar as bases fundamentais do
sacerdócio ministerial, que é a vocação e a missão confiada àqueles, que pela
imposição das mãos, receberam o ministério sacerdotal e pelo ministério ordenado
receberam o espírito sacerdotal que não é uma conquista pessoal e muito menos uma
usurpação contra a igualdade fundamental de todos os cristãos.34
Pela imposição das mãos, os presbíteros recebem a capacidade para os ministérios
da Eucaristia, da Palavra, da Reconciliação e para a bênção matrimonial, oferecida
aos esposos, após o testemunho do seu matrimónio, precisamente reconhecida como
um dos sete Sacramentos, por esta época, quer pelos teólogos quer pelos magistérios
da Igreja.
O sacerdócio e a época das reformas
Fruto de circunstâncias históricas diversas, entre as quais sobressai o Cisma do
Ocidente, surgiu a crítica de Juan Wyclif (1330-1384) e sobretudo a de Lutero (1483-
1546) expressa na sua obra De captivitate babylonica (1520). Lutero chegou à
negação do sacerdócio ministerial e do sacramento da Ordem, insistindo
unilateralmente no ensinamento de Pedro:
34
O Concílio Vaticano II assumiu esta doutrina, afirmando que não há Eucaristia sem o sacramento da Ordem (UR 22), esclarecendo que há uma diferença essencial, e não ape‑ nas em
grau, entre sacerdócio comum de todos os fiéis e o sacerdócio sacramental.
Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio régio, nação santa, povo ad‑ quirido por Deus, para proclamar as obras maravilhosas d’Aquele que vos chamou das trevas para a sua luz
maravilhosa. (1Pd 2,9)

Deste modo, Lutero declarou o sacerdócio comum dos fiéis, como o único
sacerdócio da Igreja. A partir de 1525, e em coerência com as suas ideias, Lutero
inseriu leigos nos ministérios eclesiásticos, realizando ele mesmo a “ordenação”
destes leigos e a partir de 1535 a Faculdade Teológica de Wittemberg desenvolveu
um rito próprio para esta nova “instituição” dos ministérios eclesiásticos.35
Em 1551, o Concílio de Trento condenou estas heterodoxias, tratando em
simultâneo da doutrina sobre o sacrifício da Missa e da Ordem sacerdotal. Em 1562,
publicou a doutrina católica acerca do sacrifício da Missa em 9 cânones e sobre o
sacramento da Ordem sacerdotal em 8 cânones. Trento definiu o sacerdócio
ministerial a partir do poder da consagração e da absolvição, conferidos pelo
sacramento da Ordem, o qual confere o Dom do Espírito Santo e imprime carácter
sacramental.
Trento distinguiu explicitamente entre ordens maiores e menores. Definiu
explicitamente o ministério episcopal a partir do poder de confirmar e de ordenar, e
pôs de manifesto a autoridade papal no facto do seu poder de nomear bispos.
No período póstridentino, sobretudo através de São Roberto Belarmino (†1621),
voltou-se ao aprofundamento do sacramento da Ordem. A importância da imposição
das mãos, enquanto rito propriamente dito, voltou a ocupar o primeiro lugar, na
ordenação uma vez que o Concilio Tridentino, ao referir-se ao rito da unção das
mãos, só reafirmou a sua continuidade, ou seja, que não devia ser menosprezado.
Também se estudou detalhadamente a instituição do sacramento da Ordem feita por
Cristo na Última Ceia com todas as suas consequências. Nesta época, consideraram-
se como sacramentos o diaconado e o subdiaconado. Durante os séculos XVI, XVII e
XVIII, também se designaram como sacramentos as quatro ordens menores.36
35
Não poderemos esquecer que esta renúncia do sacerdócio ministerial, se tornou mais fácil pelo facto de Lutero ter renunciado também ao sacrifício da Missa, o qual exigia o sacramento
da Ordem. A Reforma Protestante Luterana passou a relacionar o ministério sacerdotal com o serviço da Palavra e dos Sacramentos da Iniciação Cristã; a Reforma Protestante Calvinista, com a
direcção das comunidades cristãs.

O sacerdócio na época das revoluções

13
O século XIX ficou caracterizado na história da Igreja por controvérsias muito
agitadas, devido ao impacto das sucessivas revoluções liberais, que puseram em crise
os fundamentos do mundo contemporâneo, ficando definitivamente em causa as
sociedades, ditas “tradicionais”. Nestas mudanças estiveram implicados os
indivíduos, a cultura e toda a sociedade e por isso mesmo também a Igreja. Os
desafios trazidos por estas mudanças provocaram confrontos e debates de ideias,
polémicas e dividiram a sociedade em grupos de entusiastas e de opositores, ambos
radicais. Não foi um processo pacífico, mas pelo contrário implantou-se a custo na
sociedade.
O caso de Portugal apresenta-nos o exemplo do que foi a vida nacional, desde a
Revolução Liberal de 1820, iluminada pelos ideais franceses de 1789, «Liberdade,
Igualdade e Fraternidade». Esses tempos trouxeram dificuldades e impossibilidades
durante alguns anos para alguns sectores da Igreja, como foi o caso das congregações
religiosas e da sua extinção em 1834, e posteriormente pela Implantação da
República em 1910.
36
Até Billot (†1931), os teólogos tomistas negaram a sacramentalidade da consagração episcopal, porém as restantes escolas teológicas afirmaram‑na, na maior parte dos casos, dentro do
contexto da Ordenação sacerdotal, para manter o número septenário dos Sacramentos. Curiosamente, nessa época, a opinião sobre a validade da Ordenação sacerdotal conferida por sacerdotes,
não bispos, era muito extensa. O assunto recebeu uma resposta do Magistério Pontifício, através do Papa Leão XIII (1878-1903), quando em 1896 respondeu à questão muito discutida sobre a
verdade das ordenações anglicanas, declarando que as referidas ordenações tinham sido e eram inválidas (cf. Bula Apostolicae Cural, 13 de Setembro de 1896).

A primeira reacção da hierarquia face à cultura liberal foi de desconfiança, muitas


vezes como reacção às medidas antieclesiais e anticlericais assumidas por vários
governos liberais, que por si mesmas, remetiam os responsáveis da Igreja para
posições “defensivas”, ou até mesmo de “contra-ataque”. Foram necessários muitos
anos até que se ultrapassassem estas desconfianças mútuas e sistemáticas.
Neste contexto, gerou-se a noção de que a Igreja deveria estar em atitude de
separação e até em contraste face ao mundo.37 Não esqueçamos que desde 1870, o
Papa Pio IX (1846-1878) despojado da soberania dos estados pontifícios, se
considerou «prisioneiro do Vaticano». Assim, se à Igreja caberia distanciar-se da
sociedade, ao padre pertencia-lhe ser exemplo dessa separação. Como explica D.
Manuel Clemente,
[…] esta separação, como atitude interior e exterior, não era espontânea mas fruto da educação nesse sentido. Por isso, se insistia nela no seminário, para que, a pouco e pouco, se
assimilasse tal disposi‑ ção de espírito […].

O carácter «separado» do futuro padre era também reforçado pela sua própria
«apresentação pessoal».38 D. Manuel Clemente adverte também para a «reverência e
gravidade que deviam caracterizar as pessoas da religião»39, mostrando como esta
reverência e gravidade se manifestavam extremamente pelo rigor próprio do vestuário
eclesiástico de então.
37
Em 1864, o Papa Pio IX (1846-1878) condenou 80 erros contemporâneos em forma de colecção denominada Syllabus. O último erro condenado é assim explicitado: «O Romano
Pontífice pode e deve reconciliar-se e transigir com o progresso, com o liberalismo e com a civilização moderna.» (N.º 80)
38 Clemente, Manuel «O Presbítero na vida da Igreja nos últimos Cem anos (Prespectivas de Formação Presbiteral)» in Igreja e Ministérios, Semana de Estudos Teológicos da Universidade
Católica Portuguesa, Editora Rei dos Livros, Lisboa, (s.d.), p. 235.

No século xx, os anos 30 assistiram à significativa mudança que a Acção Católica


trouxe à Igreja: os padres e os leigos passaram a compartilhar de modo mais
participativo e próximo a missão apostólica dos respectivos prelados. Esta missão
assumida em comum por padres e leigos surgia como resposta necessária da Igreja
aos ataques que recentemente tinha sofrido. De facto, a Acção Católica,
[…] foi dos anos 30 aos tempos do Concílio, a principal activado‑ ra da eclesiologia que a constituição Lumen Gentium veio a formu‑ lar, já que se promoveu uma co‑responsabilidade
apostólica muito maior.40

Os presbíteros e o Concílio Vaticano II


O Concílio Vaticano II ensinou que consagração episcopal é o sacramento da
Ordem em grau supremo.41 Por consequência, o presbiterado é a participação do

14
sacerdócio pleno do bispo. É mediante a consagração episcopal que permanece na
Igreja o tríplice ministério de «ensinar, governar e santificar», de que participa
também o presbítero.
O Papa Paulo VI (1963-1978) estabeleceu na constituição apostólica Pontificalis
Romani Recongnitio (30 de Junho de 1968)42 o sinal sensível (matéria e forma) da
ordenação dos diáconos e presbíteros. O novo Pontifical Romano renovou depois os
ritos da ordenação, concretizando as exigências do Concílio Vaticano II43,
procurando a harmonização entre o Oriente e o Ocidente, seguindo-se o modelo da
Traditio Apostolico de São Hipólito, da primeira metade do século iii. Paulo VI
considerou não serem exigíveis para a recepção do sacerdócio, a instituição dos
exorcistas, ostiarios e sub-diáconos como graus preparatórios do sacramento da
Ordem.44 O leitorado e o acolitado passaram a ser considerados como «incorporação
a ministério de serviço» e não como grau da Ordem.45 É este o novo enquadramento
que dá suporte, entre nós, à actual formação dos futuros sacerdotes.
39
Idem.
40 Ibidem, p. 239.
41 Lumen Gentium, 21.
42 Acta Apostolicae Sedis, n.º 60, cidade do Vaticano, 1968, pp. 369-381.

Esta doutrina da especificidade do sacerdócio ministerial, no contexto de um povo


sacerdotal, deve ser profundamente possuída pelos candidatos ao sacerdócio e
determinar a maneira de conceber as relações entre os presbíteros e o demais Povo de
Deus e o que é próprio no ministério sacerdotal, em relação a outros ministérios e
serviços, exercidos pelos leigos.46
São vários os valores a inculcar nos futuros sacerdotes e a cultivar nos actuais
presbíteros: co-responsabilidade e complementariedade pastoral, participação e
testemunho de vida, realismo e eclesialidade, caridade pastoral e comunhão
presbiteral, discernimento e atenção aos sinais dos tempos, opção preferencial pela
evangelização e defesa da dignidade da pessoa Humana, disponibilidade e solicitude
para o serviço ministerial. De facto, «nada do que diz respeito à vida da comunidade
humana deve ser estranho à vida do seminário à formação dos futuros sacerdotes.»47
43
Decreto Christus Dominus, 15 e 21.
44 Carta Apostólica de 15 de Agosto de 1972, em vigor a partir de 1 de Janeiro de 1973.
45 Papa Paulo VI, motus proprio «Ministeria quaedam», L’Osservatore Romano, 15 de Se‑ tembro de 1972.
46 Conferencia Episcopal Portuguesa, Normas fundamentais para a formação sacerdotal nas dioceses portuguesas, Secretariado‑Geral do Episcopado, Lisboa, 1992.
47 Ibidem, n.º 150.

Sabemos que os desígnios de Deus são largos e a experiência do ministério


sacerdotal é grande, mas
o mesmo Espírito Santo, enquanto anima a Igreja a abrir novos caminhos, para se aproximar do mundo do nosso tempo, sugere e favorece também as convenientes adaptações do
ministério sacer‑ dotal.48

Por isso a esperança e a alegria evangélicas serão sinal e testemunho de libertação


interior que os sacerdotes hão-de experimentar em cada geração ao viverem
intensamente a sua identificação com Cristo «pobre, casto e servo de todos», vendo
em Maria o modelo do “sim” à vontade de Deus e a presença constante junto a Cristo
e à sua Igreja, desde o Gólgota até ao Cenáculo. Nela, a Mãe dada por Jesus ao
Apóstolo João, vemos a Mãe da cada sacerdote e da comunhão entre todos os
sacerdotes de Cristo.
Padre Senra Coelho 48 Decreto Presbiterum Ordinis, n.º 22.

15
II Parte
12 testemunhos de um chamamento
Trinta anos de sacerdócio, já e apenas
D. Manuel Clemente
Nasceu em Torres Vedras no ano de 1948. Terminou a licenciatura em História na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e em 1973 entra no Seminário Maior dos Olivais. Dois
anos depois, começa um longo período de leccionação de História na Universidade Católica Portuguesa. Com 31 anos, termina a licenciatura em Teologia e é ordenado presbítero. Treze anos
depois, em 1992, termina o doutoramento em Teologia Histórica. Além dos diversos cargos e funções eclesiais que exerceu, foi cónego da Sé de Lisboa, reitor do Seminário dos Olivais e é autor
de diversos livros de História da Igreja. Em 1999, é nomeado bispo auxiliar de Lisboa, com o título de Pinhel, sendo ordenado em Janeiro de 2000. Exerce cargos directivos e de coordenação
em diversas entidades da Igreja e, em 2007, é nomeado bispo do Porto, onde continua a exercer essa função.

Não é fácil incluir trinta anos de sacerdócio – já e apenas nas poucas linhas agora
possíveis. Mas aceito o convite, por me dar um pretexto para resumir o que deles
apre(e)ndi e continuarei a verificar enquanto Deus for servido.
Ordenei-me quase a completar 31 anos, numa altura em que saíam muitos e
entravam poucos neste ministério. Em toda a década de 70 não passámos duma
quinzena os padres ordenados na mais populosa diocese do país: graças a Deus,
continuamos todos ao serviço. Creio que, comigo e todos esses colegas, se passou e
passa algo de essencial, ou seja, o apuramento do que é específico e permanente em
nós e no que Cristo e a Igreja nos pedem.
Explico-me: o sacerdócio ministerial tem assumido formas variáveis ao longo
destes dois milénios, em que sacramentalmente ofereceu a todo o Povo de Deus a
presença e o estímulo de Cristo sacerdote e pastor. Nos primeiros séculos foi
necessariamente martirial e, após 313, em volta dos bispos, litúrgico e doutrinal.
Idade Média fora, no Ocidente latino em que nos inscrevemos, adaptou-se ao meio
rural e a subdivisão do culto acentuou muito mais o seu papel litúrgico, paróquia a
paróquia, sobretudo no que se refere à presidência eucarística e ao sufrágio das almas.
Os tempos modernos requereram-lhe mais presença nos lugares, mais competência na
pregação e na administração dos sacramentos, com particular incidência na Eucaristia
e na Penitência; datam também daqui os primeiros seminários no sentido que hoje
lhes damos, que pela formação específica e apartada, deram mais densidade e recorte
à vida espiritual do sacerdote, em torno dos conselhos evangélicos (pobreza,
castidade e obediência) adaptados à vida secular. E, mais ou menos assim, chegámos
a meados do século xx. Ao “meu tempo”, pois nasci em 1948.
Nos anos 50, o nascimento e o crescimento numa família crente, onde basicamente
aprendi a oração e a moral cristã, e depois a catequese da minha paróquia de origem
possibilitavam uma boa iniciação cristã. Certamente que a bondade, a proximidade e
o bom senso do pároco ajudavam muito, bem como a paciência e a aplicação das
catequistas (também havia alguns jovens da Acção Católica a ajudar, especialmente
na “perseverança”, depois da profissão de fé).
Mas é o todo que sublinho: ao domingo de manhã acorria à igreja com os outros da
minha idade, sentávamo-nos em grupos em frente de cada altar ou nos claustros e
aprendíamos os Catecismos Nacionais, cujos quatro volumes estavam a sair na altura.
Eram simples, substanciais e ilustrados e não há tema teológico que não me evoque
agora alguma das suas gravuras. Logo de seguida participávamos na Missa (ainda em
latim), com uns pequenos missais apropriados. Depois de almoço voltávamos à

16
igreja, mais propriamente a uma sala contígua, onde o pároco nos projectava
sequências de imagens fixas, a preto e branco, que iam contando histórias bíblicas.
Ainda hoje não consigo “descolar” a parábola do Filho Pródigo daquelas imagens tão
simples. Havia também o adro da igreja e o jardim em frente, onde a tarde continuava
com brincadeiras e jogos. Mesmo ao lado, os presos da cadeia pediam-nos ofertas por
entre as grades e lá ia uma coisa ou outra. Somavam-se a isto as festas e os passeios
da catequese: as primeiras, com os respectivos ensaios, puxavam-nos muito pela
criatividade e pelo treino; os segundos, ansiosamente esperados, levavam-nos todos a
lugares mais distantes, à descoberta e à aventura. Como ainda não havia televisão,
quase todas as minhas ideias da altura tinham referência cristã e eclesial. Creio que o
primeiro filme que fui ver, aos seis anos, foi o Marcelino, pão e vinho, linda história
dum menino devoto de Cristo crucificado. Também desses tempos data a iniciação
litúrgica: primeiro como “menino de coro”, decorando as respostas em latim, e, mais
tarde como acólito, em adolescente e jovem, acompanhando a reforma do Vaticano
II, que assim fui indelevelmente apreciando.
A Primeira Comunhão e a Profissão de Fé, a primeira Confissão e o Crisma, tudo
foi caminho pessoal, familiar e comunitário, muito integrado, caloroso e
determinante. Ficou como referência para o que temos de reencontrar meio século
depois, certamente adaptado a outra sociologia e cultura, mas com semelhante
envolvência, integralidade e sedução. A realidade desses primeiros anos é sem dúvida
a raiz e sustento da vocação cristã e sacerdotal em que me explico.
Seguiram-se os tempos da adolescência e da juventude, sempre em ambiente
cristão e “apostólico”: família, paróquia, colégio católico, Acção Católica,
Escutismo… Na Universidade de Lisboa, onde acabei por me formar em História, foi
muito importante o alojamento no Colégio Universitário Pio XII. Aí mesmo, entre
tantos colegas dos mais variados cursos e proveniências, tudo se debatia das grandes
questões nacionais, internacionais e eclesiais dos anos 60 e princípio dos anos 70,
com uma continuidade e abertura que não eram vulgares na sociedade portuguesa de
então. Aí se definiu a opção vocacional que me levou a contactar o Seminário dos
Olivais em 1972, entrando no ano seguinte.
O seminário, que rondara as duas centenas antes de 1968, tinha agora uma escassa
dúzia de alunos. Obviamente que tínhamos razões reforçadas para lá estar, pois
éramos de algum modo vocações de contraste. Lembro-me que a alguém que nos
chamou um “resto”, um colega meu retorquiu com “antes um recomeço”. Dos que lá
encontrei, a maioria chegou ao fim e continua a servir em várias dioceses. Mas o mas
importante foi, como acima disse, a descoberta do “essencial” da nossa vocação e
ministério. E, como mantenho conversas habituais com colegas desse tempo, posso
adiantar que, passados todos estes anos, ainda hoje aprofundamos os tópicos que
fomos (re)descobrindo: são a nossa vida. Por assim dizer, concentram-se nos
conselhos evangélicos (pobreza, castidade e obediência) como podem ser vividos por
padres seculares: pobreza como desprendimento e relativização do que não seja
necessário, o “único necessário”; castidade para mais nítida configuração com a vida
de Cristo, “esposo da Igreja”; obediência para viver eclesialmente, ou seja, segundo a
vontade de Deus, como é interpretada a nosso respeito por quem esteja encarregado
de o fazer, para melhor serviço do Povo de Deus.

17
Posso dizer também que, entre debilidades e retornos, assim se configuraram os
meus anos sacerdotais, nos vários cargos e missões, em especial como formador do
seminário, professor da universidade e assistente de movimentos. E assim continua
desde 6 de Novembro de 1999, ano em que fui nomeado bispo.
E, se pretender acentuar algo que me pareça mais importante e oportuno no
sacerdócio ministerial que nos incumbe agora – aos padres deste Ano Sacerdotal, tal
será o carácter “escatológico” do sacerdócio ministerial e da Igreja, na respectiva
relação com o mundo.
Explico-me: quando comecei a caminhada cristã, vivia-se ainda o ambiente de
“reconquista” duma sociedade que em grande parte parecia ter deixado Cristo e a sua
Igreja. Depois, o Concílio ensinou-nos a olhar o mundo com outra simpatia,
divisando nos grandes movimentos da história – e que grandes e rápidos foram eles,
depois da Segunda Guerra Mundial! –, por entre tantas contradições e inépcias, quer
uma humanidade em crescimento e complexificação contínuos, quer os apelos do
Espírito que a continua a animar; apelos que a Igreja deve ouvir e interpretar segundo
o Evangelho, para lhes responder consequentemente. E nem a dispersão individualista
contemporânea, tão arredia aos grandes entendimentos ideológicos ou idealistas de há
anos, nega tal caminhada humana, antes relativiza as sínteses apressadas e adensa a
irredutibilidade e o mistério de cada um.
– Que fará a Igreja neste contexto? Resumindo o que não tem tamanho, direi que a
Igreja, enquanto Igreja, oferece ao mundo o que recebe de Cristo: precisamente o seu
“fim”. Onde Jesus chegava, interrogava sobre o sentido e a finalidade do que se dizia
ou fazia. E inaugurava Ele mesmo, no que anunciava por palavras e obras, aquela
convivência última com o Pai e com todos, animada pelo Espírito, a que chamava o
Reino.
A Igreja, qual Corpo de Cristo no mundo, tem como única missão alargar o Reino.
Os cristãos estarão presentes em todas as realidades e fronteiras como portadores do
“fim”, do sentido último que as coisas ganham pela Páscoa de Cristo. E é
exactamente para que tal aconteça que o sacerdócio ministerial, na pessoa de cada
padre, visibiliza sacramentalmente, entre os cristãos e no meio do mundo, a presença
de Cristo sacerdote e pastor. Para isso tem de ultimar-se constantemente a si mesmo,
na total configuração com a vida, o estilo e as atitudes do seu Senhor: os seus meios
serão frágeis, o seu coração indiviso e a sua vontade a de Cristo, eclesialmente
interpretada. É uma graça especialíssima, que assim o configura a Cristo, para bem e
estímulo dos crentes, para a ultimação e salvação do mundo. Como João Maria
Vianney fez em Ars há dois séculos, como o faremos nós agora.

18
O segredo da felicidade é a fidelidade
D. Serafim Ferreira e Silva
Nasceu a 16 de Junho de 1930 em Santa Maria de Avioso (Maia). Foi ordenado sacerdote em 1954 e em 1979 é nomeado bispo auxiliar de Braga, com o título de Lemellefa. É transferido
como auxiliar para Lisboa em 1981 e seis anos depois é nomeado coadjutor da diocese de Leiria-Fátima, sendo bispo residencial de 1993 a 2006, quando resignou tornando-se bispo emérito. D.
Serafim é o director e fundador da revista Síntese, criada em 1968.

1. Começo por dizer que estudei no Porto e em Roma, mas continuo a estudar
todos os dias, em bom casamento da Bíblia e da Vida. Cada vez sei mais que sei
pouco... Basta estar com Cristo.
Tenho vivido a missão pastoral, em vários sectores da mesma Igreja sem fronteiras,
nas dioceses do Porto, de Braga, de Lisboa e de Leiria-Fátima. Agora, como bispo
emérito, vivo no santuário da Cova da Iria.
Disponho de mais tempo livre para ler e rezar. Não estou inactivo, exercendo o
ministério sacerdotal e o magistério eclesial, sem nomeação específica, e sempre em
comunhão orgânica ou hierárquica.
Desde há cerca de setenta anos, porque um sacerdote me falou da solidariedade
cristã e da “comunhão dos santos”... rezo, ainda que pouco e sempre de boa vontade,
por aqueles que fui encontrando na vida, especialmente os meus colegas. Não
esqueço os da meia idade, que porventura sofrem de solidão, ou de desencanto.
2. Desde 1954, sou padre para sempre... Quando, na Sé do Porto, o bispo ordenante
me perguntou se conhecia bem as obrigações que ia assumir e se as aceitava, eu
respondi que sim. Prostrado, enquanto eram cantadas as ladainhas, tive tempo para
pensar melhor e prometer ser um sim, em todas as circunstâncias de tempo e lugar.
Sabia que surgiriam dificuldades e tentações. Chegaram. Sei, por experiência, que
a vitamina O (não é zero,mas a inicial de oração) constitui o combustível de força
para a luta, e o antídoto de defesa, e de fidelidade.
Também poderei testemunhar que Cristo é sempre a força das minhas fraquezas e a
certeza das minhas dúvidas!
3.Como surgiu a vocação sacerdotal? Sou o nono filho de um casal de lavradores
da Maia. Família muito cristã. Um tio padre.
Pelos meus 11 anos, um cónego ofereceu-me um “santinho”, ou estampa, que
representava um sacerdote a elevar o cálice, para o qual gotejava sangue do Cristo
que estava na Cruz do altar. O senhor cónego Assunção apenas me disse: «Se um dia
fores padre, podes fazer o mesmo milagre.»
Fiquei seduzido pelo mistério. Guardei religiosamente o “santinho” entre os livros
escolares da sacola, e muitas vezes o contemplava. Comecei a escutar o chamamento
de Quem queria precisar de ministros para santificar o mundo.
Só mais tarde, já no seminário, juntei a esse ideal fascinante as componentes de
missão profética e de serviço social [...].
O tempo de seminarista passou depressa, e sem sobressaltos, apesar da Guerra
Mundial. Ainda hoje reunimos os condiscípulos, ordenados sacramentalmente ou não,
e é uma festa de saudade e de amizade.
4. Neste Ano Sacerdotal, especialmente dos sacerdotes, Bento XVI fala do
«estímulo à perfeição» (16 de Março) e de «nova primavera» (16 de Junho). É um
apelo à coerência feliz, e é um abrir da janela à luz da esperança!
Por sua vez, o cardeal Hummes, lembrando a «oração dos sacerdotes, com eles e

19
por eles», não deixa de sublinhar «as condições concretas» e exprimir o voto de que
seja «um ano positivo e propositivo», isto é, de restauração e de renovação. Nem
todos os sacerdotes poderão ser como o padre Vianney, mas todos, párocos ou não,
sempre missionários de Cristo, podem e devem ser felizes. Santidade não é
canonização. Somos chamados a sermos mais santos.
Costumo dizer que o segredo da felicidade é a fidelidade. Por coincidência as duas
palavras têm as mesmas letras,mudando apenas o C, que é a inicial de coragem.
Neste Ano Sacerdotal rezarei mais e melhor pelos meus irmãos sacerdotes, e pelas
vocações sacerdotais, pois a sociedade precisa da Igreja, e a Igreja precisa de
ministros instituídos, sobretudo ordenados sacramentalmente.
Que Cristo, com a ajuda da Mãe, faça dos sacerdotes uma grande bênção para todo
o mundo.
Fátima, 21 de Julho, memória facultativa de São Lourenço de Brindes, presbítero capuchinho, missionário na Europa, que morreu em Lisboa no ano 1619.

20
Sacerdote para amar e servir
Padre Dário Pedroso, sj
Nasceu na Póvoa de Santo Adrião, Lisboa, em 1943. Licenciou
-se em Filosofia e em Teologia e foi ordenado sacerdote jesuíta em 1975. Publicou, até ao momento, mais de cinquenta obras. Actualmente, é Secretário Nacional do Apostolado da Oração e
director das revistas mensais Mensageiro do Coração de Jesus e Cruzada.

Quis começar a escrever esta minha “confidência” exactamente no dia do


aniversário da minha ordenação sacerdotal, que foi em 12 de Julho de 1975. Ontem,
por graça de Deus, participei na ordenação de um companheiro meu. Boa ocasião
para rezar, reflectir, fazer exame de consciência, dar acção de graças pelo dom que o
Senhor em mim colocou. Dom surpreendente e “inesperado”, pois nasci numa família
quase pagã, com um pai muito anticlerical, num lar onde nunca vi ninguém rezar,
numa paróquia que nessa altura nem tinha Eucaristia dominical, nem catequese. Mas
o Senhor, em desígnio de amor, olhou com misericórdia para mim, convidou-me,
escolheu-me, quis-me sacerdote em Cristo, na Companhia de Jesus. Como se poderá
imaginar, a história da vocação foi muito atribulada, não só pelas minhas dúvidas e
pelo sentimento da minha fragilidade, mas pelos obstáculos que encontrei na família
e no ambiente hostil que me rodeava. Foi preciso esperar pela maioridade e, no dia
seguinte, fugir de casa, sem mala, sem enxoval, sem nada e partir rumo ao noviciado,
que nessa altura era em Soutelo, perto de Braga. Uma verdadeira odisseia do amor de
Deus, que quando chama dá força e graça para respondermos, dá energia e audácia,
que nós não temos, mas Ele vem em nossa ajuda, como fogo descido do Céu.
Já pelos meus 12 anos, nessa altura a estudar em Lisboa, comecei a sentir o desejo
de ser padre. E ser padre significava, para mim, ser homem para me dedicar à Igreja,
à pregação, aos sacramentos. Já nessa altura rejubilava ao imaginar-me a confessar e
a poder, em nome de Deus, perdoar pecados. Tendo estudado no Colégio de São João
de Brito, sinto, com muita gratidão, que não só a formação, a catequese, a orientação
espiritual, a vida de oração diária que os alunos tinham, mas também o exemplo da
vida e do martírio do santo jesuíta, nascido em Lisboa e martirizado na Índia, me
encantavam. Com lutas, dúvidas, tentações, mas, ano após ano, o Senhor, que me
continuava a chamar para Ele, me segredava a vida de sacerdote como o caminho que
Ele queria para mim. Os 6 anos que passei no colégio foram anos de graça e de
crescimento, de amadurecimento humano e espiritual. Se é verdade que ia a festas, a
bailes, que namorei algumas vezes, também não é menos verdade que o desejo de ser
sacerdote vinha sempre à tona da alma e do coração como um desejo mais forte,
como um maior encanto.
Não me enganei. Deus não me enganou. Depois destes 34 anos de vida sacerdotal,
continuo feliz pela opção feita. Deus, no Seu amor, tem sido fiel e tem-me não só
conservado no Seu serviço e no serviço dos irmãos, como continua a dar-me a alegria
do dom e da entrega, a alegria de viver com Ele, ao jeito d’Ele, na espiritualidade
inaciana, o sacerdócio que em mim depositou, pela unção do Espírito e pela
imposição das mãos do bispo ordenante, D. Maurílio Gouveia, nessa altura auxiliar
do Patriarca de Lisboa e, depois, arcebispo de Évora. Foi a grande capela do Colégio
de São João de Brito, com tantas e belas recordações, o lugar da ordenação, com mais
dois jesuítas, os padres Afonso Herédia e Casimiro Gaspar. A Missa Nova, no dia
seguinte, na Igreja onde fui baptizado e onde fiz a Primeira Comunhão, foi dia grande

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em alegria e acção de graças, mesmo se meu pai não participou nem na Ordenação
nem na Missa Nova. A Cruz teve de estar presente. Mas a participação da alegria da
ressurreição foi maior e mais jubilosa.
Ordenado padre, depois da teologia feita em França – em Lion e, depois, em Paris
– fui enviado para Braga, onde vivi e trabalhei, sofri e amei, rezei e dei-me ao Senhor
e ao próximo, durante 16 anos. Além das pregações populares, nas paróquias, que
tanto me encantavam, como verdadeiros retiros ao povo mais simples, com muitas
horas de confissões, enchiam os dias sacerdotais, a orientação espiritual dos
seminaristas do Seminário Maior, pertencentes às dioceses de Braga e Viana, assim
como as aulas de Teologia Espiritual. Trabalho que sempre assumi como dom
sacerdotal para ajudar a formar sacerdotes. Ainda tenho muito contacto com vários
desses sacerdotes, com quem estabeleci amizade e comunhão em Cristo Sacerdote.
Mas em breve se juntou a este serviço sacerdotal outro não menos importante: ser
Vigário Episcopal para a Vida Consagrada. Que anos bonitos de partilha, de
comunhão, de serviço aos irmãos e irmãs da vida consagrada, sobretudo nos cinco
mosteiros de clausura, que mais dependiam do bispo diocesano e, portanto, de mim,
seu vigário.
Entretanto, ainda nesses dezasseis anos de vida sacerdotal em Braga, acumulei
durante nove anos a orientação espiritual dos meus irmãos jesuítas, meus
companheiros mais novos, que estudavam filosofia. Foi tempo de muito
enriquecimento, de partilha e ajuda que não posso esquecer, pois se dei, também
recebi muito ao longo desses anos. Estou muito agradecido ao Senhor e a eles. Mas
quis a Providência que assumisse também, durante 9 anos, ser superior da
Comunidade do Apostolado da Oração, director da revista Mensageiro do Coração de
Jesus e, durante alguns anos, Secretário Nacional do Apostolado da Oração. Sinto e
penso que não minto nem exagero, que esses 16 anos, com tanto trabalho e tantas e
tão variadas actividades, me encheram a alma e o coração e me fizeram um sacerdote
feliz. Os exercícios espirituais de 8 dias que fazia cada ano, assim como os muitos
turnos de exercícios que dava, as leituras sobre temas inacianos e o estudo das nossas
constituições ajudavam-me a não perder a graça do carisma e da espiritualidade
inaciana, que meu pai e fundador, Santo Inácio de Loiola, me deixou e que me
alimentava a vida e a alma. E não faltaram turnos de exercícios espirituais ou retiros a
casais, a jovens, a seminaristas, a padres, à Conferência Episcopal, a religiosas e
religiosos de muitas ordens e congregações. Por esse caminho se desenvolvia também
o dom do sacerdócio na ajuda espiritual, no conselho, no sacramento da
Reconciliação.
Acabados esses anos de Braga, acharam os superiores que eu devia assumir em
Coimbra o serviço de mestre de noviços. Apesar dos anos de orientação espiritual em
Braga, a diocesanos e a jesuítas, não me sentia preparado para esta missão. Deus a
queria! Bendito seja Ele que nunca me falhou, pelo menos com a alegria de ajudar,
durante estes 7 anos, os noviços que entravam na nossa Província Portuguesa da
Companhia de Jesus. Em Coimbra, assumi as aulas de Teologia Espiritual no ISET,
os artigos no Correio de Coimbra, a orientação de cursos e a assistência a grupos de
universitários no Centro Universitário Padre Manuel da Nóbrega (CUMN). 7 anos
ricos na actividade sacerdotal, onde não faltaram muitos cursos e turnos de exercícios

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espirituais e de retiros. Foi também rica a experiência, a pedido do senhor D. João
Alves, de ser assistente do Instituto Secular da Sagrada Família, que assumi durante 8
anos, mesmo depois de ter deixado Coimbra.
Ao fim de 7 anos, parecia que era necessário deixar aquela casa e aqueles serviços
de que tanto gostava e que enchiam não só o meu tempo mas o meu coração
sacerdotal, e partir para a Póvoa de Varzim, como superior da comunidade e reitor da
basílica. Aqui, o serviço sacerdotal parecia-me ainda mais intenso na pastoral da
Palavra, no sacramento da Reconciliação, na vida daquela comunidade. Mas… fiquei
só 3 anos, nos quais assumi também ser director da Casa de Retiros de Soutelo, junto
de Braga, e novamente director da revista Mensageiro. Acredito que não tivesse
muito talento para tudo, mas o serviço pastoral na Casa de Retiros de Soutelo
apaixonou-me: obras, transformações, ajuste e mudança de calendário, etc. Tinha um
excelente grupo de colaboradores, quer sacerdotes, quer leigos. Na Póvoa, naquela
encantadora basílica passaram-se momentos grandes, vivências pessoais e do Povo de
Deus muito belas, quer durante o Ano do Jubileu, quer no dia a dia da vida. Foi
nesses anos na Póvoa, que iniciei as minhas idas a Balasar, não só por causa da beata
Alexandrina, mas para orientar mensalmente a Recolecção ao clero do arciprestado,
trabalho que continuo, já lá vão 10 anos. Mas Balasar, depois da beatificação de
Alexandrina, começou a ter mais encanto e, por convite dos párocos, comecei a estar
presente em muitos momentos pastorais, de pregação, de celebração de Eucaristias,
de artigos no boletim da causa de canonização, etc. Em tudo isto, além de me sentir
feliz e realizado, julgo que era o serviço sacerdotal a desenvolver-se em novos
campos. E Deus, no Seu amor, ia abençoando.
Como disse, estive na Póvoa só 3 anos, mas volto lá cada mês para rezar com o
Povo de Deus na primeira sexta-feira e no dia de Cenáculo mensal, em que a basílica
se enche com cerca de setecentas pessoas, para duas horas de oração. Mas Braga
esperava por mim, pois tinha sido essa a missão que o padre provincial me dera. Vim
para ser superior da grande comunidade da Faculdade de Filosofia e do Apostolado
da Oração, com vinte e um membros, entre os quais muitos idosos e doentes.
Entretanto, continuava director da Mensageiro e Vigário Episcopal para a Vida
Consagrada. Quis a obediência que o Secretário Nacional do Apostolado da Oração
deixasse Braga e deram-me novamente este serviço. Com a muita idade e pouca
saúde do grande e ilustre sacerdote padre Fernando Leite, assumi também a direcção
da revista Cruzada, do jornal Clarim, dos Bilhetes Mensais, além de director do
editorial do Apostolado da Oração.
Inseridos em todo este ministério sacerdotal estiveram também serviços em Cabo
Verde, Guiné, Angola e Moçambique. Assumi em 1990 o serviço de vicepostulador
da causa de canonização de Maria da Conceição Pinto da Rocha, com a publicação do
boletim Grão de Trigo, que ainda continua. Fui escrevendo artigos e livros. Estes já
totalizam cinquenta e oito títulos, com muitas edições e cerca de um milhão e
trezentos mil exemplares. Tudo isto foi e é acção sacerdotal. E tenho a certeza que
tudo, mesmo tudo, tem um segredo: o Coração de Jesus, com todo o Seu amor, a
acompanhar-me e a fazer frutificar o sacerdócio que recebi.

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Sacerdócio acolhido como dádiva
Padre David Sampaio Barbosa, svd
Nasceu a 4 de Novembro de 1941. Foi ordenado sacerdote da Congregação do Verbo Divino, em 1969. Nove anos depois, em 1978, doutorou-se em História Eclesiástica na Universidade
Gregoriana de Roma. Há alguns anos que lecciona História da Igreja na Universidade Católica Portuguesa. Actualmente é membro dos Conselhos Presbiteral e Pastoral do Patriarcado de Lisboa
e Presidente da Fundação Ajuda à Igreja que Sofre.

Teve a feliz ideia o Papa Bento XVI de proclamar um Ano Sacerdotal. A iniciativa
leva-me a reflectir sobre o que tem sido e continua a ser a minha vida sacerdotal. Os
40 anos que completei de sacerdote fazem-me entrar no espaço da memória. Um
passado sempre presente, onde enquadro o meu sacerdócio num horizonte de
passado, presente e futuro.
1. Motivações duma opção sacerdotal
O sacerdócio entrou bem cedo na minha vida de criança e de adolescente. No
ambiente familiar, de profunda prática religiosa, tinha-se especial carinho e respeito
pela vida do padre. A circunstância de haver na família um padre franciscano,
prestou-se a explicações simples das formas variadas de viver o sacerdócio – como
pároco de freguesia ou padre religioso. A visibilidade maior desse sacerdócio
acontecia nas celebrações litúrgicas ou devocionais a que presidia o pároco da
freguesia. O decurso cerimonial celebrativo em ambiente de igreja, com os seus
muitos dourados envolventes, avivados por velas e luzes, era sempre um momento de
muita alegria e que prendia a minha atenção de criança. Na sequência do que na
igreja se fazia, várias outras devoções aconteciam também no ambiente familiar.
Essas realidades simples entraram com naturalidade no meu mundo de criança de
fim de escola primária. No fim daquela etapa de instrução colocou-se-me a hipótese
de entrar para o seminário para ser padre. Tratou-se duma conversa simples, em
família, compreensível e dentro dum clima de muita liberdade, onde se colocava a
hipótese do seminário diocesano ou religioso. A essas conversas em curso, juntou-se
o conselho dum sacerdote conhecido, familiar e amigo da família. A escolha dum
seminário religioso, da Congregação do Verbo Divino, deveu-se a esse sacerdote
diocesano que se entusiasmara pelo seminário que a Congregação do Verbo Divino
tinha aberto na Costa, junto da cidade de Guimarães.
Aceitei com naturalidade entrar no Seminário da Costa na segunda quinzena de
Setembro de 1954. O apoio familiar foi grande; comigo, “entrava” toda a família. As
lágrimas da separação, teimosamente indecisas, expressaram o quão difícil era a
separação da família. Não foram suficientemente fortes para me dissuadirem duma
vida que sinceramente desejava.
2. O sacerdócio que chega ao altar da ordenação
O percurso de seminário menor e maior sucedeu de forma cadenciada. Reconheço
que ano após ano muitos “sacerdócios” se foram sucedendo. A formação humana e
espiritual ia purificando imaginários que muito contribuíram para opções mais
acertadas com as exigências do ministério da Ordem de que me aproximava.
A década de 60 foi marcada por acontecimentos inebriantes. Ao pontificado de Pio
XII, que bem recordo, sucede João XXIII. O sorriso do novo eleito virava a página do
luto pelo Papa Pacelli. De Roma, chegavam notícias indicadoras dum pontificado
diferente. Entusiasmei-me; deixei-me envolver pelo alcance que as novas propostas
prenunciavam. O curso teológico coincide com os primeiros documentos e

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orientações emanadas do Concílio Vaticano II aberto pelo Papa Roncalli.
Subestimavam-se manuais tradicionais e apostava-se mais no ensaio exegético e
teológico. As novidades editoriais levaram-me a muita leitura e a roubar horas à noite
para acompanhar as novas propostas teológicas que ensaiavam novo caminho.
Nos anos a seguir ao Concílio, mormente a partir do Maio de 1968, muitos dos
meus colegas arrepiaram caminho. Confesso ter sido um momento delicado para
mim. Não era fácil passar duma maioria confortável para um grupo de minoria.
Serviram essas circunstâncias para acrisolar um sacerdócio que se despedia de laivos
de triunfalismo que o passado se lhe apegara. Pela graça de Deus e sábia orientação
de superiores, interiorizei valores e, decididamente, tomei o propósito de permanecer
no ideal do sacerdócio a que me sentia chamado; ofertando-me a Deus, sentia poder
mediar a oferta de tantos outros que diariamente se entregariam também ao Senhor.
O dia da Ordenação sacerdotal começou bem cedo. A grandeza do momento
expressava-se na dinâmica celebrativa já anteriormente preparada. Sentia pisar chão
de Deus. A liturgia, na sua cadência celebrativa, parecia-me a forma de Deus se
passear naquele dia entre nós. O dia que se iniciara cedo, fez-se pequeno para
interiorizar tantas realidades que me envolviam. A presença de meus pais, irmãos,
familiares, amigos e conhecidos, foi conforto, carinho e certeza de ter entrado no
sacerdócio acompanhado por tantos amigos e conhecidos. Finalmente caiu a noite; ao
quarto recolhi, agradecido pelas belas coisas que nesse dia me tinham acontecido.
Senti-me pequeno, e até amedrontado por tantas expectativas que sobre mim recaíam.
Felizmente, e disso tive convicção profunda, não estava só. Aquele que me chamara e
me conduzira, envolvia-me e enchia-me o coração.
Esse enlevo espiritual teve continuação na Missa Nova celebrada na minha
paróquia. Naquele dia tudo se virara do avesso. A paróquia engalanara-se. O bom
povo da terra, mormente a juventude, entregara-se com tempo, arte e paciência no
embelezamento de caminhos, ruas e casas. O grupo coral, composto por jovens do
lugar (Póvoa), esmerou-se como se dum irmão se tratasse. Entrei por baixo de arcos,
pisei tapetes e fui acariciado por pétalas multicolores. Senti-me sufocado por tanta
generosidade. Quando dirigi a palavra nesse dia, foi-me impossível conter as
emoções, que por dentro fervilhavam. Nunca meus pais, irmãos, familiares e o bom
povo da terra – Palmeira – tinham entrado tão intensamente dentro de mim. Era uma
terra prometida, que naquele dia acolhia e ovacionava um filho da terra. Acolhia e
ovacionava quem, por meio do sacerdócio, se iniciava no ministério de Deus,
servindo os seus irmãos.
Razões invocadas pelos meus superiores da altura, levaram-me após a Ordenação
sacerdotal e Missa Nova a iniciar estudos superiores na Universidade Gregoriana de
Roma. Traduzi o meu primeiro sacerdócio no estudo académico. Entre livros e aulas,
houve sempre tempo para colaborar nas paróquias vizinhas ou em capelanias de
comunidades religiosas. O sacerdócio que vi e observei na minha comunidade e nos
professores sacerdotes da Gregoriana foi de respeitável exemplaridade. Foi-me
particularmente grata a atitude de alguns dos nossos professores jesuítas. À
competência académica, atestada em aula e em obras de tomo, articulavam-na com
uma piedade simples e natural. Nas viagens de estudo que então fazíamos, onde a
celebração eucarística nunca faltou, como me maravilhava ver os professores G.

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Martina e Garcia Villoslada, em acção de graças, bem junto do altar da celebração a
desfiar as contas do rosário.
O tempo de Roma foi benéfico. Preparou-me para a docência, sem abalar o meu
sacerdócio. Já em Portugal, a par da docência e da investigação, por mandato dos
superiores, fui encarregado da formação de seminaristas maiores. Nos fins de semana,
ajudava num bairro pouco conceituado da capital – Musgueira sul. Ali, por 14 anos,
encontrei uma segunda família. Era gente que “amedrontava” os de fora – (puro
preconceito) – mas acarinhava os de dentro. Os arruamentos sem nomes,
classificados por letras, abrigavam casas térreas e demasiado modestas. A pobreza era
o parente de todos. Em pobreza se vivia, se trabalhava, se convivia e se celebrava a
fé. A Eucaristia dominical, em pavilhão improvisado, limpo como se de um altar se
tratasse, era um momento de muita alegria. Apresentava-me ali antes da hora. Tanta
coisa ouvia e partilhava. Era um exercício de fraternidade que precedia a acção
eucarística onde tudo se apresentava ao Senhor. A solidariedade era o dialecto local.
O fruto de pequenos gestos tinha sempre efeito multiplicador na melhoria de vida de
tantos “vizinhos” do bairro. Inseri-me, ajudei e fermentei com o meu sacerdócio o
que já de bom ali se praticava e vivia.
No ano de 2003 foi me proposta a presidência da Assembleia de Curadores da
Fundação Ajuda à Igreja que Sofre. Já tinha tido conhecimento dessa associação
internacional de fiéis de direito pontifício. Sabia da intuição do seu fundador, o padre
Werenfried e dos objectivos que preconizara desde o primeiro ano da fundação
(1947). Os anos que passei no bairro da Musgueira sul aproximaram-me muito de
carências, aflições e pobrezas imerecidas. Esse percurso levou-me a aceitar o convite
da Fundação Ajuda à Igreja que Sofre com relativa naturalidade. Desde então até
hoje, quer em Portugal quer na Alemanha como membro do conselho geral, tenho
procurado acompanhar de perto as acções que se desenvolvem segundo as
orientações do fundador. Procuramos ir ao encontro e minorar situações de pobreza e
de sofrimento que atingem tantas populações e igrejas de todo o mundo que, em
apelo contínuo, demandam compaixão e caridade. Respondeu o fundador, em
condições difíceis, a tantos que suspiravam por alívio corporal e espiritual. No
seguimento dessa frente de acção sócio caritativa e de ajuda pastoral, alargamos a
nossa acção a toda a geografia da carência, do sofrimento e ausência de liberdade
religiosa. Como presidente, e com inúmeros amigos, benfeitores e colaboradores,
entrego-me a discernimentos para que a nossa ajuda seja dirigida ao mais necessitado.
A ajuda imediata articula-se com o apoio que prestamos à formação de leigos,
seminaristas e sacerdotes de países pobres que pedem a nossa ajuda. Assumo isso
como parte integrante do meu sacerdócio; chegar à fronteira do sofrimento e minorar
o que de imerecido sofrem homens, mulheres e crianças é propósito e acção que
fazem parte do meu dia a dia.
3. O sacerdócio que persiste
Em jeito de conclusão, gostaria de referir que o meu sacerdócio, na sua preparação,
recepção e dinâmicas que se seguiram, foi sempre acolhido como dádiva; reconheço
ter ficado aquém da excelência do dom recebido. A circunstância de ter vivido e
continuado a viver num ambiente de grande cidade ditou-me uma proximidade à
realidade citadina envolvente. A cidade onde vivo, Lisboa, alberga muitas outras

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“cidades”. Os contrastes aqui são gritantes. Neste espaço urbano deambulam
mendigos, sem abrigo, pessoas de diferentes etnias, pobres, desempregados, mal
informados, pessoas humanamente pouco atraentes. Essas bolsas de cidade anicham-
se na grande cidade. Entre encontros e desencontros, pressas e correrias, onde
ninguém tem tempo para ninguém, se passeiam eles anónimos, carregando o
infortúnio da vida.
Sinto que essas minorias nos pertencem; devem ser um assunto de Igreja. Os
pobres ainda estão fora da Igreja; não entram nos nossos templos; os seus cadeirais
são os degraus que precedem a entrada das nossas igrejas. O Evangelho ainda não é
Boa Notícia para muitos deles. Pergunto-me: como anunciar a excluídos a notícia de
que são filhos amados por Deus, irmãos meus e nossos irmãos?
Os pobres deram a volta ao coração de Deus, ao coração de Jesus. Poderão eles
incendiar de forma renovada o meu sacerdócio. Pressinto que andar por essas
“cidades” é pisar chão de Deus, um espaço para viver um dinamismo cristão e um
sacerdócio fecundo. Do grande “altar” onde me encontro, continua a ser meu
propósito levar a todos, em oblação contínua, a perderem-se em amor, proximidade e
caridade – por Deus e pelos irmãos.

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Ser padre, uma aventura de graça e de
liberdade
Padre Duarte da Cunha
Nasceu a 1 de Junho de 1968 em Lisboa. Em 1993 foi ordenado padre e foi estudar para Roma. Em 1998 defendeu a tese de doutoramento, na Universidade Gregoriana, sobre a amizade
em São Tomás de Aquino. De 1997 a 2000 foi Secretário-Geral do Patriarcado de Lisboa. De 1997 até 2007 foi assistente da Pastoral da Família na diocese de Lisboa.
Foi ainda presidente da comissão instaladora do Instituto de Ciências da Família, da Universidade Católica. (2003-2006) e professor nesse mesmo instituto até ao presente. Em 2002 e 2005
leccionou por algum tempo no Seminário Maior de Dili, Timor Leste, algumas cadeiras de Teologia.
No ano 2000 foi nomeado pároco da Paróquia de Nossa Senhora do Carmo do Alto do Lumiar, Lisboa, cargo que exerceu até Outubro de 2008. Foi vigário da II Vigararia de Lisboa de 2005 a
2008.
Depois do referendo sobre o aborto, em 1998, ajudou a criar uma IPSS, o Ponto de Apoio à Vida, de que chegou a ser presidente, para apoiar grávidas em dificuldades. Deu ainda assistência de
capelania à Associação Ajuda de Berço, desde a sua fundação. No dia 1 de Outubro de 2008 foi eleito Secretário
-Geral do Conselho das Conferências Episcopais da Europa, função que mantém ainda actualmente.

O despertar da minha vocação está intimamente ligado à minha experiência de fé


na família e na paróquia. Nada teria acontecido como aconteceu, não fosse eu ter
recebido desde pequeno um testemunho de fé feliz e comprometido quer dos meus
pais, quer das minhas irmãs e até de tios e avós. Na paróquia, sobretudo a partir dos
meus 10 anos, experimentei o que é uma comunidade. Foi especialmente importante
o ter sido acólito e as responsabilidades que fui assumindo no grupo de jovens e no
jornal dos jovens da paróquia do Lumiar, em Lisboa. Mas não é de modo algum
secundário ter feito campos de férias com o Camtil, ter sido da organização que
começou o CUPAV (Centro Universitário Padre António Vieira) ou o ter pertencido a
uma Equipa de Jovens de Nossa Senhora. Eram, de facto, muitas as actividades! Mas
não posso dizer que a minha vida ficasse só pelas coisas “da Igreja”. Desde cedo, os
computadores, ainda nos inícios dos computadores pessoais (comecei com um ZX
Spectrum 16kb!), e outras engenhoquíces eléctricas entusiasmavam-me. Os livros de
aventuras, os amigos e até uma ou outra namorada e, claro, os estudos preenchiam o
dia a dia da minha vida que era, posso dizer, absolutamente normal.
É certo que a participação em actividades da Igreja levava à relação com Jesus e ao
desejo de a aprofundar. Aos poucos fui aprendendo a rezar, ou mais precisamente, a
desejar aprender a rezar. Fui descobrindo o valor da Missa. E fui tendo amizade com
alguns padres. Os padres da minha paróquia (o padre Ruy e o padre Bento), os padres
jesuítas dos campos de férias, e outros que passavam pelas actividades diocesanas de
acólitos ou de jovens. Quem anda nestas coisas não estranha que surja inquietação
vocacional. Pensar no que Deus queria de mim, coisa aliás que desde pequeno, volta
e não volta, me passava pela cabeça, levou a ter de tomar decisões. Isso passou pela
experiência de namorar para perceber se era isso que Deus me pedia. Queria saber se
Deus me queria casado ou que fosse padre, isso implicava ver o que era mais preciso,
mas também perceber onde me sentia mais “em casa”, mais satisfeito. Foi com esta
inquietação que no final do 12.° ano percebi que, embora desejasse muito ser
engenheiro electrónico, havia outra coisa que me interessava mais profundamente,
que me parecia mais para mim, onde via com mais entusiasmo o meu futuro. Fui com
esta inquietação falar com um padre para perceber se era mania minha ou se podia
considerar esta ideia uma coisa autêntica e vinda de Deus. Fui ver o seminário (que já
não era uma coisa estranha para mim porque um ano antes um amigo tinha entrado no
seminário e eu tinha visto como é uma casa de pessoas normais!) e em meados de
Junho fui apresentado aos padres de lá. Foi um almoço que ainda hoje recordo. No
dia 29 de Setembro de 1986 entrei no Seminário de São Paulo de Almada. Aí fiquei 3
anos, até, como habitualmente, passar para o Seminário dos Olivais, onde fiquei até

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ser ordenado em 1993.
Foram 7 anos muito bons. Nem sempre fáceis, mas, graças a Deus, nunca tive
dúvidas de que queria ali estar e que estava a andar para a frente. Os padres que me
acompanhavam foram-me corrigindo e entusiasmando. Aprendi a rezar, estudei
filosofia e teologia, conheci a realidade da igreja diocesana de Lisboa, e fui
encontrando tanta gente que testemunhava o empolgante que é ser cristão e ser padre.
Percebi que Deus me chamava mesmo, e quis mesmo consagrar a minha vida. Se para
ter a certeza da vocação sacerdotal, tinha de esperar o dia da Ordenação – quando o
bispo impõe as mãos –, para entregar a minha vida ao Senhor e à Igreja, foi só preciso
descobrir o Seu imenso amor por mim. Estes momentos em que se diz sim a Deus são
a coisa mais fantástica que se pode experimentar nesta terra e nunca se pode deixar de
retomar esse sim, nunca é um processo terminado.
Os meus colegas de seminário, uns que hoje são como eu padres, outros que foram
percebendo não ser essa a sua vocação e saíram do seminário, foram autênticas
surpresas de Deus para mim. Não fui eu que os escolhi! Nem os conhecia, mas de
facto foram e são fundamentais para mim. Um padre precisa muito da amizade de
outros padres. Não só com padres, porque precisa de ter outros amigos, mas a
companhia vocacional aproximanos e estreita muito os laços de amizade. Não só os
colegas de seminário, mas outros padres mais velhos e, hoje em dia, também os mais
novos, são indispensáveis.
Tive duras “batalhas” teológicas durante o tempo de estudos, quer com professores
quer com colegas, que pareciam dizer coisas diferentes da doutrina da Igreja. Mas
tudo isso não me fez duvidar da Igreja, pelo contrário, fez me desejar aprofundar a fé.
Percebi desde cedo que a teologia não é um entretenimento mas é algo de essencial
na vida dum padre. Não há espiritualidade sacerdotal, penso eu, que se aguente sem
estudo. Até o Santo Cura d’Ars lia todos os dias algo dum dos muitos livros que
ainda hoje se podem ver na sua casa transformada em museu.
No dia 4 de Julho de 1993 fui ordenado padre. Foi, seguramente, de todos os dias
da minha vida, aquele que mais paz e alegria me deu e continua a dar, porque a
Ordenação imprime carácter, ou seja, muda a pessoa e permanece, mesmo quando a
pessoa falha ou se distrai. Foi a tomada de consciência, que já vinha desde a
ordenação como diácono uns meses antes, de que pertencia agora, de uma maneira
especial, a Jesus e que toda a minha vida é agora ainda mais d’Ele para ser sacerdote
em Seu nome.
A primeira missão, depois da Ordenação, que o senhor Patriarca pensou para mim
foi a de continuar a estudar. Ir para Roma e estudar na Universidade Gregoriana.
Foram quatro anos muito bons. Voltei, então, para Portugal em 1997, ainda sem ter
defendido a tese. Foi preciso mais um ano para a terminar. Entretanto, fui nomeado
Secretário Geral do Patriarcado, ou melhor, da cúria diocesana. Nunca pensei que
gostaria desse trabalho! Tinha pensado que poderia dar aulas, ou ser pároco, queria
estar mais perto das pessoas e julgava que as secretarias eram lugares mortos. Mas
nestas coisas não é o que sonhamos mas, o que nos é pedido pelo bispo que melhor
nos diz o que é bom para nós. Foram três anos importantíssimos. O trabalho na
secretaria implica lidar muito com muitos papéis e telefonemas, mas com a ajuda de
algumas pessoas, como o D. António dos Reis Rodrigues e o diácono Armando

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Dilão, fui descobrindo que há pessoas por detrás dos papéis e, portanto, também este
trabalho é profundamente pastoral. Hoje esses ensinamentos e essa experiência volta
a ser importante, nas novas funções que fui chamado a assumir em 2008. Mas antes é
preciso ainda falar de outras coisas.
O senhor Patriarca, quando vim de Roma, também me nomeou para o Secretariado
Diocesano da Pastoral da Família. Aí fiquei 10 anos acumulando sempre com outras
actividades. Considero também que essa missão foi uma grande graça para mim. A
Pastoral da Família, que vai desde a preparação dos casais (ainda jovens namorados
ou já nas vésperas do casamento) até ao acompanhamento das famílias, passando
pelas questões sociais e políticas, que hoje frequentemente põem em causa a verdade
natural da família baseada numa aliança entre um homem e uma mulher e aberta ao
dom dos filhos, ou pelo estudo das questões éticas da vida, da sexualidade e do amor
em geral, é um campo apaixonante da pastoral. É aliás, o centro de toda a pastoral.
Foi deste modo que vim ao conhecimento de uma série de catequeses que o Papa
João Paulo II fizera de 1979 a 1984 sobre o amor e sobre o casamento, ou melhor,
sobre a pessoa humana chamada à experiência da comunhão, e que ficaram
conhecidas como a Teologia do Corpo. Hoje este é um dos meus campos preferidos
de investigação e de estudo. Faz confusão como é que alguns teólogos, que se querem
modernos, permanecem em velhos esquemas dos anos 60, e se dedicam a criticar a
doutrina da Igreja em vez de procurar conhecer estas catequeses.
Voltando à minha vida de padre, chega o momento de falar daquela experiência
que considero a mais importante de todas. Ser pároco. Primeiro em São Vicente de
Fora, depois na paróquia de Nossa Senhora do Carmo. A paróquia é uma verdadeira
família. Muito antes de ser uma instituição ou, pior, uma empresa de eventos
religiosos ou um espaço de reuniões, ela é a comunidade de pessoas que procuram
Deus, e que, descobrindo, O quer amar e seguir, uma comunidade de pessoas que
estão ligadas por laços de fé e de amizade e por isso que se querem bem, mesmo que
por vezes se zanguem como irmãos e depois tenham de pedir desculpa. O centro da
vida da paróquia é a Missa, o lugar de encontro da família à volta do Seu Senhor.
Claro que se tem de ter coisas organizadas, como a catequese, os acólitos, os apoios
sociais, os processos de casamentos e de baptizados, mas o ambiente deve ser sempre
o do acolhimento familiar, da amizade, das pessoas que se aproximam com
curiosidade e que são tratadas como especiais. Tenho consciência de que, por bonitas
que sejam as ideias e apesar de tantas ajudas que, graças a Deus, sempre tive, também
tive muitas falhas. Queria ter dado mais tempo, ter dedicado mais atenção a cada
pessoa, gostaria de ter sido mais organizado para poder ter tido mais disponibilidade
para as pessoas. Gostaria de ter rezado mais pelos meus paroquianos. Mas mesmo
assim foi uma experiência de graça que não poderei nunca deixar de agradecer a
Deus. E espero que, do pouco que pude dar, Ele faça muito. E agradeço a todas as
pessoas que souberam perdoar-me e ultrapassar os meus limites.
Já vai longo este texto e ainda tenha tanto para dizer! Poderia aqui lembrar as aulas
na Universidade Católica aos alunos de Serviço Social, ou as aulas que dei em Timor
no seminário, onde estive por duas vezes. Podia recordar os campos de férias do
Sairef ou da Candeia que, desde a minha Ordenação, acompanhei e que me ajudaram
tanto a descobrir a profundidade e os dramas de jovens, independentemente da sua

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situação social e económica. Mas há um aspecto que foi tão importante na minha vida
que não posso deixar de referir: o empenho em que me vi envolvido na defesa da
vida. Primeiro no referendo de 1998, depois no Ponto de Apoio à Vida e noutras
obras que foram surgindo como as Vinhas de Raquel ou a Ajuda de Berço, e mais
tarde ainda no referendo de 2007. A certeza de que a vida começa no momento da
concepção é uma missão. É uma certeza que impede estar de ânimo leve quando
alguém fala de aborto. São vidas humanas, não são coisas! E a missão da Igreja, se é
servir todo o homem, é servir todos os homens e, por isso, defender a vida desde a
concepção até à morte natural. Não entendo como é que há cristãos que podem ser
indiferentes a esta questão ou como é que há mesmo padres que julgam que não
devem tomar parte nos debates públicos. Claro que não basta falar. É preciso agir. É
verdade que por detrás dum aborto está sempre uma história complicada e nenhum de
nós julga os corações das mulheres, pelo contrário, o mandato de Jesus é de levar a
Sua misericórdia, mas não é iludindo a sua dor e a sua tristeza, que lhes vem da
consciência da gravidade do que fizeram, que se ajuda. Como nos diz o Santo Padre,
a acção da Igreja é sempre chamada a agir pela Caridade na Verdade. O meu
sacerdócio, sinto o bem, ganhou muito com isso. Aliás o sacerdote é chamado a ser
um servidor da vida e da verdade.
Agora estou noutro serviço. Desde Novembro de 2008 que comecei a trabalhar no
Secretariado do Conselho das Conferências Episcopais da Europa. Peço ao Senhor
que me ajude a viver tudo com a consciência de ser sacerdote, de servir o bem da
Igreja e de aproveitar tudo quanto Ele me põe no caminho. A Europa é muito grande
e muito complexa. Muitos países, muitas culturas, muitas histórias, mas há uma raiz
comum, a fé cristã que tem mais de mil anos neste território e em alguns sítios quase
dois mil anos. Enfim, novas tarefas, mas sempre o mesmo sacerdócio. Como nada
disto é vivido sozinho, posso estar seguro que o pouco que eu puder semear, Deus
fará crescer. Espero não destruir nada!
Termino estas reflexões, reafirmando a minha gratidão a Deus por esta história que
me tem oferecido, por me ter dado uma família espectacular, por me ter dado a fé e a
vocação sacerdotal, por me ter acompanhado sempre. Ao longo dos anos fui
descobrindo alguns santos que me fazem especial companhia, além de São Tomás de
Aquino que é o grande mestre, Santa Teresinha do Menino Jesus, Santo António de
Lisboa, São Bernardo, o Santo Cura d’Ars são uma grande companhia de
intercessores e de modelos. Não posso terminar este testemunho sobre as maravilhas
que Deus fez em mim, sem pedir perdão ao Senhor, como o fui pedindo ao longo da
minha vida de padre, por tantos pecados que gostaria de nunca ter cometido, e
agradecer-lhe também pelo muito trabalho que Lhe dei. Por tudo quanto já vivi, tenho
a certeza que Deus nunca falta com a Sua misericórdia e que aproveita tudo o que eu
possa dar, por isso, mesmo que com alguma atrapalhação pessoal fruto da experiência
das minhas fragilidades, neste Ano Sacerdotal quero dizer-lhe de novo, com toda a
convicção, e com o mesmo entusiasmo do primeiro dia, sim, para ser cada vez mais
todo d’Ele e, por isso, todo da Igreja.

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O segredo da missão está no sacrário e na
rua
Padre João António Pinheiro Teixeira
Nasceu a 25 de Abril de 1965 em São João de Fontoura e foi ordenado em 1989, no mesmo ano em que finalizou o curso de Teologia. Foi director do jornal Voz de Lamego, delegado para
o Diaconado Permanente e responsável pelo Secretariado Diocesano da Pastoral Juvenil de Lamego. Actualmente, é reitor do Seminário Maior de Lamego, director e professor no Instituto
Superior de Teologia e director, também, da Escola de Leigos.

Amigo leitor:
Talvez nunca nos tenhamos encontrado, mas é altamente provável que já nos
tenhamos cruzado. Vou tentar explicar.
Um padre é gerado no mistério da Cruz de Cristo. Ele cruza-se, portanto, com todos
aqueles por quem Ele deu/dá a Sua vida.
Em Cristo está tudo, estão todos. N’Ele encontramo-nos sempre. É por isso que sinto
que já estive consigo, amigo leitor. Nunca deixamos de estar juntos. N’Ele, nós,
assim se poderia sintetizar.
A história da minha vocação é bela pelo lado d’Ele, é pobre (e bem trivial) pelo meu
lado.
Mas como a um servidor não é legítimo nada guardar para si, vou contar-lhe como
tudo começou e tem acontecido, embora não fosse a mim que competisse fazê-lo.
No que toca à vocação, é com Deus que devemos falar. Porque é Ele que tem a
iniciativa. É Ele que chama. É Ele que, qual amável (e persistente) intruso, não cessa
de insistir, mesmo quando nós não paramos de resistir.
Não existe autarquia vocacional. Na Igreja, Corpo de Cristo, não se exerce um
ministério por candidatura, por iniciativa própria.
O protagonismo não é nosso. O protagonista é Ele. É Ele que resolve vir ao nosso
encontro.
Connosco estabelece uma espécie de pacto de liberdades: entre a Sua liberdade de
convidar e a nossa liberdade de responder.
Para nos chamar, Ele serve-se de sinais. Estes sinais, sobretudo se aparecem na
infância, surgem mais sob a forma de pretextos do que sob a forma de motivos ou de
razões.
Em mim, há uma imagem muito impressiva que espevitou o íman da vocação. Ainda
criança com poucos anos, eu via chegar os corpos dos soldados que morriam na
guerra do (então) Ultramar.
Causava-me uma impressão enorme (e, para sempre, imperecível) os gritos das mães
inconsoláveis.
Eu perguntava à minha Mãe: «Também tenho de ir para o Ultramar?» — «Todos os
rapazes têm de ir. Só os padres é que não vão.»
Não era bem assim. Mas fiquei aliviado. Os padres até tinham de ir. Como capelães, é
certo. Mas não estavam dispensados.
Acontece que, a partir de certa altura, já não era o medo da guerra que me movia, até
porque o 25 de Abril chegou. Mas a vontade manteve-se.
Conservo uma redacção feita poucos dias após a Revolução (10 de Maio de 1974) em
que o tema proposto era “Quando eu for grande”. Transcrevo o que então verti para
um pequeno papel:
Quando eu for grande, gostaria de ser padre. Não gostaria de deso‑ bedecer a Deus, nem de ser um padre ruim.

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E gostaria de falar de Deus aos Homens, de ter gosto em fazer o bem e de ajudar os pobres.

Lembro-me de como as professoras da altura olhavam para o meu desejo com algo
parecido com comiseração. Mas sempre me respeitaram e incentivaram.
Foi no Verão quente de 1975 que entrei no Seminário Menor de Resende. Passados 5
anos, fui para o Seminário Maior de Lamego.
Na altura, era gago profundo. Os professores, pensando que me ajudavam,
convidavam-me a repetir as palavras em que tropeçava até que elas saíssem sem
interrupções.
O senhor D. António de Castro Xavier Monteiro, bispo que viria a ordenar-me,
deu-me o indispensável apoio de pai. Disse-me para não me preocupar.
Eu estava apreensivo: como é que alguém que tem de falar permanentemente não
consegue falar em público?
E, de facto, muitas vezes, eram os colegas que falavam por mim, que davam as
informações, no início do ano lectivo, aos professores.
Fui ordenado, com mais quatro colegas, em 12 de Agosto de 1989.
Em Setembro desse ano, estava em Lisboa para prosseguir os estudos, para ajudar no
Secretariado-Geral da Conferência Episcopal Portuguesa e para trabalhar na paróquia
de São João de Brito.
Nunca escondi — jamais poderia esconder — que esta paróquia suscita em mim
ressonâncias singulares e recordações únicas.
Aqui cheguei, com alguma timidez, na tarde do dia 28 de Setembro de 1989. Daqui
parti, com muita emoção, na manhã do dia 16 de Agosto de 1993.
Apesar dos anos que já transcorreram desde a minha partida, não há dia nenhum em
que o meu coração agradecido não faça uma viagem de regresso a esta comunidade.
Em pensamento, vejo-me, mesmo em Lamego, a percorrer, frequentemente, aquelas
avenidas ou a circular por aqueles bairros. Relembro rostos, recordo pessoas, bendigo
todos os encontros que mantive e todas as expressões de afabilidade que me
desvaneceram e me marcaram.
Tenho pensado, muitas vezes, que sou de São João de Fontoura (Resende) por
geração e de São João de Brito por adopção. Foi aqui que aprendi a ser padre. Como
afirmou Xavier Zubiri a respeito de Ortega y Gasset, também eu digo que «o menos
mau de mim mesmo a vós o devo».
Louvo a Deus, pois, por esta paróquia, por esta comunidade, por estes sacerdotes
magníficos, por estes leigos maravilhosos, pelos doentes com quem tanto aprendi,
pelos queridos jovens que tão bons momentos me proporcionaram, por aqueles (e
foram tantos) que me franquearam as portas da sua casa e me abriram as janelas da
sua alma.
Para mim, São João de Brito foi família e foi escola. Foi, não. É. Sêlo-á sempre.
Nunca deixamos de pertencer à nossa família nem de fazer parte da nossa escola. E,
como gostava de advertir o já referido Xavier Zubiri, «ser discípulo pertence ao que
não passa». Para mim, São João de Brito nunca passa. Não passará jamais.
De regresso à minha diocese, foi-me pedida a docência de várias disciplinas de
Teologia nos Seminários de Lamego e de Viseu, na Escola de Leigos, no
acompanhamento aos diáconos permanentes e no Secretariado da Juventude.
Foi com surpresa que o meu bispo me ouviu pedir-lhe que gostaria de trabalhar numa
«paróquia simples e pobre». Estive em Samodães 12 anos em acumulação com outras

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tarefas incluindo, durante 8 anos, a direcção do jornal diocesano.
Entregaram-me também, além das aulas, a reitoria do Seminário Maior e a direcção
do Instituto Superior de Teologia Beiras e Douro.
Sinto que a oração é a alma da missão. Foi assim com Jesus, com Paulo, com tantos.
Impus, por isso, a mim mesmo que a primeira hora do dia fosse em adoração diante
do Santíssimo Sacramento. Para que seja Ele a comandar o resto do dia, a falar por
mim…apesar da minha gaguez.
Nas mãos d’Ele, vou, assim, refazendo o ministério. O sacramento da Ordem tem
princípio, mas não tem fim. Afecta não apenas o agir, mas também o ser.
O centro do padre não está nele. O seu centro está descentrado. O centro do padre é o
mesmo centro de Cristo: Deus e o Homem.
A partir da entrega ao Senhor Jesus na Ordenação, o ser do padre deixa de pertencer a
ele mesmo, passa a pertencer a Cristo. Tudo no padre fica “tatuado” por Cristo.
Daí que me considere um alienado. Pertenço a Cristo e, em Cristo, àqueles por quem
Ele deu/dá a vida.
Não formei família para poder pertencer à família de todos. Mas a minha família de
sangue tem-me acompanhado sempre. Particularmente, a minha querida mãe tem
feito parte do meu sacerdócio. Como te estou reconhecido, mãe!
O segredo da missão está no sacrário e na rua. É fundamental estar perto de Deus e é
urgente estar próximo do povo.
Um padre não pode ser imparcial. Ele tem de tomar partido. Não por partidos, mas
pelo Evangelho, pelas pessoas. Há momentos em que calar é um pecado, um crime.
Um padre não é da direita, não é da esquerda, não é do centro; é do fundo. É da
profundidade de Deus que ele tem de brotar. É na profundidade do Homem que ele
tem de estar.
Na humanidade de cada Homem, o ministerium patris (ministério do padre) tem de
ser, cada vez mais, um mysterium pacis (mistério de paz). Enquanto portador de
Cristo, o padre há-de ser, nessa mesma medida, portador de paz.
Não basta, contudo, ao padre pregar a paz. Ou, dito outramente, não lhe chega pregar
com os lábios. Urge que ele pregue a paz com a vida. Que irradie paz, que seja paz,
que comunique paz, que infunda paz.
Esta paz não é apatia e é muito mais que quietude. Às vezes, a paz pode até assumir a
forma de inquietude. Maria de Lourdes Pintasilgo chegou a defender que «a fé é a paz
da permanente inquietação».
A paz de Cristo (a paz que é Cristo) é, com toda a propriedade, «obra da justiça».
Para que haja justiça, tem de haver uma clara opção em favor das vítimas da injustiça:
os pobres. É, na verdade, aos pobres que o padre tem de dar o seu tempo, a sua vida.
Os “preteridos do mundo” têm de despontar como os “preferidos do padre”.
Bossuet, o emérito pregador do século xvii, costumava repetir: «Nossos senhores, os
pobres». Aliás, já São Francisco de Assis gostava de se referir à «senhora Pobreza».
O padre não pode esquecer o pobre. Que, aliás, é o mais grato de todos os homens. Se
Cristo nos enriqueceu com a Sua pobreza (cf. 2Cor 8, 9), amemos o Senhor no
sacramento do Pobre (sacramentum Pauperis).
Junto dos pobres, dos pequenos, dos simples e dos que sofrem assisto sempre a uma
epifania de Deus. São eles os principais artífices da edificação da cidade mais bela

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que construir se pode: uma Filadélfia (um povo de amigos, um povo de irmãos).
Deus já pôs os alicerces. Trabalhemos todos na sua construção. Deus é o maior
investidor da nossa felicidade. Ele deseja-a para nós. Aqui. Agora.
Um padre é um eco muito modesto dessa voz insistente que o convida, também a si,
amigo leitor, à felicidade. Especialmente quando se sente mais infeliz. Porque, como
dizia Santo Agostinho, «é quando parece que tudo acaba que tudo verdadeiramente
começa»!

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Um sacerdócio diferente
Padre José Carlos Nunes, ssp
Nasceu a 5 de Fevereiro de 1972 em Luanda, Angola. Em 1985, com 13 anos, entra no Seminário Paulista, em Fátima, onde termina os estudos pré-universitários. Depois do noviciado, em
Roma, termina os estudos Filosóficos na Universidade Lateranense, e Teológicos na Universidade Gregoriana. Após o seu regresso a Portugal, inicia a licenciatura em Comunicação Social pela
Universidade Católica Portuguesa, onde neste momento frequenta o Mestrado em Ciências da Comunicação. A 4 de Junho de 2000 é ordenado sacerdote na Sé Patriarcal de Lisboa.
Actualmente, é Director-Geral da Paulus Editora e Director da revista Família Cristã, Superior da Comunidade dos Paulistas em Lisboa, integra a equipa de sacerdotes que colabora na RTP e é
membro do Comité Técnico Internacional para o Apostolado Paulista.

Tinha 7 anos quando pedi à minha mãe para entrar no seminário. Aos 9 anos voltei
a fazer o mesmo pedido e aos 13 anos entrei no seminário dos Paulistas em Fátima.
As circunstâncias como tudo aconteceu permanecem insólitas e providenciais.
Uma criança aos 7 anos não sabe o que é ser padre, e de facto, esta é uma recordação
da minha mãe, que ficou surpreendida com tal pedido, pois apesar de sermos uma
família católica e muito praticante não tínhamos sacerdotes na família, e não conhecia
nenhum seminário. Como qualquer criança numa família católica frequentei a
catequese e participava nas várias actividades da paróquia. Do pedido que voltei a
fazer aos 9 anos tenho uma vaga ideia, talvez porque gostasse muito de ser acólito e
servir ao altar e também influenciado pelo exemplo de um jovem que morava na
mesma praceta e andava no seminário.
Num domingo de Junho, a Eucaristia foi celebrada por um sacerdote Paulista que
tinha ido à nossa paróquia falar da revista Família Cristã. Viu um grupo numeroso de
acólitos e convidou alguns para fazerem um campo de férias vocacional. Não
imaginava o que fosse mas pelo facto de ter sido convidado e de ir na companhia dos
outros amigos, a coisa agradou-me. Fui seleccionado para entrar no seminário, disse
que sim sem saber muito bem porquê, os meus pais consentiram e no dia 7 de
Outubro de 1983 levaram-me até ao seminário dos Paulistas em Fátima. A meio do
caminho aperta-se-me o coração, começo a pensar na ausência da família e dos
amigos, na música e na ginástica que ficam para trás, na catequese e na escola que
iriam ser diferentes, e desato a chorar. O meu pai pára o carro e pergunta-me se quero
continuar ou voltar para trás, ao que respondo sem saber porquê que é melhor
continuar para Fátima.
Novos amigos, nova escola, novo estilo de vida. Entre as brincadeiras com os
colegas, a escola e o estudo colectivo, as orações quotidianas e os retiros mensais, as
aulas de boa educação e sobre o carisma paulista, vários sentimentos se foram
alternando, ora de alegria, ora de tristeza, ora de entusiasmo, ora de saudades. E os
anos foram passando.
O “clic” do chamamento aconteceu num momento de adoração eucarística, em que
depois de ler a parábola do bom samaritano (Lc 10,29 37) uma voz fez-me estremecer
ao repetir «vai e faz tu também o mesmo». Lembro-me que fiquei confuso, nunca
tinha sentido nada semelhante, fui perguntar à irmã que estava em adoração se tinha
sentido alguma coisa, ao que ela me respondeu apenas, «confia no Senhor». Escusado
será dizer que aquela parábola passou a ser um tormento, pois se até então não tinha
as ideias bem definidas sobre ser ou não presbítero, a partir daquele momento
comecei a sentir ainda mais a insistência do Senhor e a minha resistência. Tinha 16
anos. Estava a passar pela adolescência com tudo o que ela acarreta: espírito
irrequieto e de contradição, grandes sonhos e projectos, namoricos e paixonetas,
amizades e desilusões, euforias e tristezas, dúvidas e anseios. Como não podia deixar

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de ser, também comecei a colocar em dúvida a minha vocação para a vida religiosa e
sacerdotal. Pedi ajuda a Nossa Senhora, e desde então estas dúvidas desapareceram.
Foi como se tivesse sido plantada a certeza no meu espírito!
O passo seguinte foi perceber o que Deus quereria de mim ao fazer-me tal convite.
Comecei por colocar em questão a congregação onde me encontrava, pois não eram
missionários no sentido de irem para as missões em África e também não se
dedicavam directamente às obras de caridade. Até que num dia de retiro houve uma
nova luz: «o nosso sacerdócio é diferente dos outros, nós pregamos através da
comunicação social», terá dito o nosso mestre. «Não podemos ficar à espera das
pessoas na igreja, temos que levar o Evangelho até elas através dos meios da
comunicação», insistiu. E estas palavras ficaram gravadas no meu coração.
O Senhor convidava-me a ser padre, não como os que conhecia (sobretudo
párocos), e que muito admirava e estimava, mas um sacerdote que faz o bem e exerce
o seu ministério de um modo diferente, através da comunicação social, que pode
levar as palavras e os gestos de Jesus a muitas mais pessoas, fazendo chegar a Sua
mensagem além das paredes de uma igreja e de uma forma moderna e atraente. Foi
então que comecei a descobrir a figura do beato Tiago Alberione e o seu carisma:
A imprensa, o cinema, a rádio e a televisão constituem hoje as mais urgentes, as mais rápidas e as mais eficazes obras do apostolado católico […]. A Câmara, o microfone, o ecrã, são o
nosso púlpito; a tipografia, a sala de produção, de projecção e de transmissão é como a nossa igreja.

E sobre a figura do sacerdote dizia:


O sacerdote-apóstolo é um pregador que tem a alma cheia de Jesus Cristo, Caminho, Verdade e Vida, e sente a necessidade de dar quanto de Deus recebeu.

Aos 18 anos fui para Roma fazer o noviciado. Foi um mergulho na espiritualidade,
missão e carisma da Sociedade de São Paulo. Foi uma experiência universal da
congregação e de uma vivência comunitária com horizontes apostólicos. No final do
noviciado professei os votos de pobreza, castidade, obediência e fidelidade ao Papa.
Seguiu-se o estudo da Filosofia e da Teologia, a primeira na Pontifícia
Universidade Lateranense e a segunda na Gregoriana. A par destes estudos houve
sempre actividades apostólicas e durante as férias tempo para o estudo das línguas em
Inglaterra, Irlanda e Alemanha. Este período de estudos foi marcado pela vontade de
saber mais para fazer melhor. Orientado por um director espiritual inteligente e de
uma bondade divina, fui descobrindo os horizontes mais largos da missão dos
Paulistas e como a parábola do bom samaritano poderia ser um projecto de vida.
Regressado a Lisboa, iniciei a licenciatura em Comunicação Social e comecei a
colaborar na revista Família Cristã, passando de redactor a chefe de redacção, a vice-
director e por fim a director em Dezembro de 1999. Fiz a profissão perpétua dos
votos, até então renovados todos os anos. Iniciei a preparação para o diaconado e
depois para o presbiterado. Fui ordenado diácono no dia 28 de Novembro de 1999, no
Mosteiro dos Jerónimos, pelo D. José Alves, na altura bispo auxiliar de Lisboa, e
presbítero no dia 4 de Junho de 2000, na Sé Patriarcal, pelo Cardeal-Patriarca D. José
Policarpo. Celebrei a primeira Missa no dia 11 de Junho de 2000, solenidade de
Pentecostes, na paróquia de São João da Talha, que me viu crescer e tanto me tem
dado em testemunho e amizade.
A nível de trabalho apostólico passei pela formação dos aspirantes, pela direcção
administrativa e pela direcção-geral da Paulus Editora. Associado a estas
responsabilidades tenho procurado manter um contacto com a realidade pastoral
através das paróquias, pois o sentir do Povo de Deus ajuda-me a descobrir como
posso servir melhor a Igreja através do carisma paulista.

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A pregação tem-me feito descobrir a riqueza e actualidade das Cartas de São Paulo,
também ele encontrado pelo caminho e convidado a testemunhar a bondade de Deus.
Em São Paulo tenho descoberto o ardor e entrega a Deus de uma forma
incondicional. Por isso, o «ai de mim se não evangelizar» é uma actualização do «vai
e faz tu também o mesmo», na medida em que tudo o que faço é mais fruto da graça
de Deus do que por mérito pessoal. Como Paulo, ao sentir-me amado por Cristo,
confio na sua palavra e lanço-me nos desafios que a sociedade coloca à vida espiritual
e humana, procurando as respostas em Cristo.
A actualidade da parábola do bom samaritano tem-me desafiado tanto a nível
espiritual como apostólico. A atenção ao próximo, quem quer que ele seja e onde
quer que ele se encontre, a bondade, a generosidade e a caridade são valores que
procuro cultivar na minha vida. O conhecimento dos destinatários da nossa missão, a
situação em que se encontram, os problemas da vida e da sociedade, as respostas a
dar, são instrumentos fundamentais para evangelizar hoje. Por isso, o estudo tem um
lugar muito importante na minha vida. Deus inspira, mas tenho que fazer a minha
parte. E a melhor maneira é conhecer a fundo o espírito humano e a organização
social que dele deriva. Para poder, à luz da Palavra de Deus, estar atento às suas
sugestões.
A bondade e a generosidade de Deus têm-se manifestado na minha vida através de
todos aqueles que me ajudaram, e continuarão a ajudar certamente, a cumprir a
vontade de Deus, apesar das minhas limitações. A minha família, os meus formadores
e superiores, os amigos e colaboradores têm sido uma bênção e uma força muito
grande.

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Servimos este mundo semeando em cada
um a vida divina
Padre José Miguel Barata Pereira
Nasceu em 1971 e foi ordenado em 29 de Junho de 1996. Actualmente é vice-reitor do Seminário Maior de Cristo Rei dos Olivais, exerce o cargo de director do Pré-Seminário e de
director do Sector de Animação Vocacional da diocese de Lisboa. É coordenador da Equipa de Selecção e Formação dos Candidatos ao Diaconado Permanente e secretário do Secretariado de
Acção Pastoral (SAP).

À minha mãe Cristiana e a ti, meu irmão Cristóvão, manifestações da graça de


Deus na minha vida: a primeira porque me gerou e educou na vida em Cristo; o
segundo porque foi presença do cuidado pastoral de Cristo que me chamou, e me
guiou no ministério de ser portador de Cristo-Pastor e da Sua graça.
É com emoção que te escrevo estas palavras, pois elas tentam dizer aquilo que
tantas vezes foi experiência da ternura de Deus, que nos toca e recria. Faço-o também
com algum embaraço, seja porque muita desta experiência se diz melhor sem
palavras – antes guardando-a no coração – seja porque ela também esconde e revela o
muito que, devido à minha resistência em morrer, ficou por crescer e dar fruto.
A primeira motivação consciente para o sacerdócio nasceu do desejo de
corresponder àquilo que «o Senhor quisesse de mim quando eu fosse grande». A
confissão regular enquanto menino da catequese que a mãe me oferecia de três em
três semanas, e sobretudo a possibilidade que ela me deu de servir o altar, a partir dos
14 anos, ali junto do Senhor na hora em que dava a Sua vida por nós em cada
domingo, foram-me levando a passar daquilo que queria ser para aquilo que o Senhor
queria fazer em mim e com a minha vida. Recordo a paciência e sabedoria com que
tu, meu irmão, trabalhaste nessa altura: depois de me teres dado a conhecer o Pré-
Seminário, por meio do meu pároco, serviste-te de ambos para vencer a minha
resistência. Durante 2 anos, enquanto eu fugia, o meu prior era um sinal pelo que
dizia, rezava e testemunhava; e o Pré-Seminário (nos convites que me chegavam para
as actividades vocacionais) era um chamamento constante que, quanto mais eu
negava mais fazia crescer a certeza de que o Senhor tinha um plano para mim, que eu
conheceria se aceitasse procurá-lo sem recusas a priori.
Outras motivações foram crescendo no caminho que, então, a mãe e tu me foram
levando a fazer. Falo-te delas agora, consciente que muitas se foram clarificando em
várias ocasiões, tanto antes com já depois de ser padre.
Uma delas, das mais fortes, foi a experiência de ser amado no perdão de Deus e o
desejo de oferecer a todos a mesma experiência. Não posso esquecer uma celebração
sacramental da Reconciliação, pelos meus 16 ou 17 anos. Nessa hora Deus tocou-me.
A experiência foi a da certeza de que Deus me amava mais do que eu podia amar-
me… por isso dera a vida por mim e nunca deixara de o fazer. Essa vida refazia a
minha, dava-lhe outra dimensão. Aquele perdão era isso a acontecer. Então chorei…
Chorei abundantemente de comoção… E renasci na água dessas lágrimas. Nunca
mais pude falar desse momento sem a certeza de um encontro palpável e
indesmentível. Foi o início da descoberta, depois fortalecida e confirmada tantas
vezes na vida pessoal e pastoral, de que só pela graça de Deus eu posso ser o que sou.
O ministério do Perdão é um traço essencial do sacerdócio sacramental, ainda mais
neste mundo dilacerado por conflitos e desconfianças, que se vai tornando incapaz de

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perdoar e ser perdoado, de se aceitar e aceitar o outro. Sempre que sou perdoado, sou
curado… sou amado pelo que sou e não pelo que faço. E os outros renascem também
nesse horizonte. Por isso sou padre, para ser imagem da parábola do filho pródigo,
que revela que é quando perdoa que Deus Se manifesta como Senhor e Pai.
Outra motivação que me estruturou foi a experiência do mistério da Cruz de Cristo.
Diante da Cruz, a morte revelou-se-me como Vida: «Ninguém me tira a vida; Eu dou-
a livremente.» (cf. Jo 10, 18) Este é a verdadeira vida. Ela multiplica-se quando é
lançada à terra, dada e partilhada. A vida que se resguarda e auto-defende, permanece
encerrada, acaba por definhar e destruir-se. Aquela que se entrega e abandona em
Deus recebe a força da fecundidade eterna. Mais uma vez foi a mãe e tu, meu irmão,
quem me permitiram, de forma mais palpável, tocar esta realidade. Quantos
testemunhos me deram a observar… e como me permitiram eu próprio tocar, algumas
vezes, esta realidade. Sempre que aceitei gastar e dar a minha vida ao Senhor, no
concreto que a missão e as relações assim o exigiam, como isso ia gerando vida:
pessoas a desbloquear e a libertarem-se, medos a serem superados, o Evangelho a
tornar-se concreto e palpável. A ponto de experimentar momentos em que não quis
outra coisa senão, «completando na minha carne o que falta aos sofrimentos de
Cristo, a favor do seu corpo, que é a Igreja». (cf. Cl 1, 24) Recordo como nas
tribulações próprias do ministério, Santo Inácio de Antioquia me levou, algumas
vezes, a desejar ser moído como o trigo que só assim pode ser farinha para se tornar
pão de Deus. Tudo isto me levou a purificar muitas ilusões ingénuas e pretensiosas,
como se a salvação do mundo dependesse do meu perfeccionismo, da tua actividade
pastoral, ou mesmo da impecabilidade da mãe. Ainda que a nossa santidade concorra
para tal, só o amor imenso de Deus que O levou a entregar o Seu Filho pode salvar o
mundo. Essa entrega acontece(u) na Redenção pascal e na Encarnação. Sei hoje de
forma existencial que toda a actividade do meu ministério sacerdotal tem que ter a
sua fonte e alimento aqui. Por isso a Eucaristia que celebro diariamente é o que de
mais fecundo posso fazer pelo mundo: na oferta do sacrifício pascal e na pregação do
Evangelho, Cristo salva o mundo.
Deixa-me que partilhe contigo dois momentos em que isto se tornou mais evidente.
O primeiro foi a peregrinação à Terra Santa, em Julho de 2000: de joelhos diante do
Santo Sepulcro, contemplo a mesa de pedra onde o corpo do Senhor morto foi
depositado e de onde saiu Vivo e glorioso, e recordo a atitude de João quando,
acompanhado por Pedro, se encontrou no mesmo local e observou a mesma mesa
com o lençol e os panos: viu e acreditou! (cf. Job 20, 1 10) Quando uns minutos
depois celebrei Eucaristia na capela católica da Igreja do Santo Sepulcro vivi a
experiência espiritual de poder participar desse momento da manhã pascal: na mesa
do altar, contemplo o corpo do Senhor morto e ressuscitado, entre a toalha e demais
panos, e também me é oferecido ver e acreditar.
O outro momento foi a celebração do Natal de 2005. Ao contemplar as diferentes
pessoas presentes no estábulo de Belém identifiquei São José como figura do
sacerdote que guarda e cuida do Menino e da Senhora (a Virgem Maria/Igreja), que o
apresenta ao Povo de Deus (pastores) e a todos os que, com fé ou sem ela, procuram
conduzir-se pelos sinais do Céu (os Magos). Quando nessa quadra presidi à Missa da
meia-noite, e apresentei o Corpo de Cristo para adoração e O entreguei para ser

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comungado, fui transportado a essa hora em que o Verbo se fez carne e deu aos que O
receberem a possibilidade de se tornarem filhos de Deus. (cf. Jo 1,12)
Estes momentos celebrativos tornaram-se assim iluminadores da minha acção
pastoral. A esta luz, foi crescendo a urgência da pregação e do
acompanhamento/direcção espiritual que leve cada pessoa a deixar-se guiar pela
Palavra que se cumpre no concreto da vida pessoal e comunitária. Quantas vezes a
Palavra lida no silêncio, meditada diante do sacrário, perscrutada e partilhada em
pequeno grupo, pregada em grandes assembleias, rasgou caminhos e se cumpriu na
minha vida e na dos irmãos… Quantas vezes a Palavra conduziu à fé que torna
possível ver o invisível, tocar o definitivo e experimentar a vida XPTO (“muito à
frente”), isto é, ao jeito de Cristo (do grego, Christòs)… Quantas vezes a ausência
destes momentos me deixou entregue à minha sorte e às minhas incapacidades…
Bem sabes, por experiência própria, como viver a força dos conselhos evangélicos
como sinal revelador para o mundo é também alimento do ministério sacerdotal.
Consagrar a vontade pela obediência na fé é acto libertador. Tal tem sido garantia de
não correr em nome próprio (e em vão) mas meio para verificar que «se guardardes as
minhas palavras, sereis de facto meus discípulos, conhecereis a verdade e a verdade
vos libertará». (cf. Jo 8, 31 32) De facto, amar é pertencer àqueles a quem se entrega
e permanecer nesse dom até ao fim. Esta é a verdade do amor revelado em Cristo.
Como o mundo tem necessidade de testemunhas alegres desta liberdade.
Renunciar a bens e projectos pessoais para ter como meus os que são do meu
Senhor, tem revelado como se cumpre esta sua palavra: «em primeiro lugar buscai o
Reino de Deus, e Deus vos dará, em acréscimo todas essas coisas.» (cf. Mt 6,33)
Podia recordar-te a quantidade de bens, mesmo materiais, muito mais espirituais e
relacionais, que já recebi por consagrar a minha vida a Deus, procurando confiar mais
no que Ele me dá do que no que eu possuo. Se Deus multiplica por cem cada bem a
que, por Ele, renuncio e/ou partilho, ainda acrescenta a paz e a esperança dos que
experimentam que quem a Deus tem nada lhe falta. Como o mundo tem necessidade
de testemunhas alegres desta esperança e confiança.
Mas não posso deixar de colocar à cabeça a consagração virginal que me faz
pertencer todo a Cristo, de corpo e alma. Quantas vezes esta união me preencheu por
completo… quantas vezes Ele se fez um comigo e gerou comunhão, vida,
plenitude… Quantas vezes me ofereceu a experiência de um amor que, por ser
gratuito e eterno, se torna mais forte que a infidelidade e o egoísmo (que pratico ou
sofro)… Quantas vezes me tornou próximo de tantos a quem não arriscaria dar-me…
Quantas vezes me alargou ao tamanho do Seu amor universal e me fez participar da
vida de milhares de irmãos desconhecidos… Quantas vezes me uniu a Si na solidão
na Cruz onde o mundo se apresenta diante dos olhos como amor da nossa vida,
mesmo que nem sempre correspondido. Esse é o silêncio que antecede a hora da
verdade para a qual se consagrou a vida. Silêncio cheio de relação e de Deus. Como o
mundo tem necessidade de testemunhas alegres deste Amor verdadeiro e fecundo,
fonte e inspirador das diferentes formas autênticas de relação e amor.
Deixa-me partilhar como descobri a experiência da comunhão como marca
essencial do ministério. Contigo aprendi a vivê-la entre nós e a ser motor dela para
todos. Contigo aprendi a reconhecer que essa é uma das maiores características da

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mãe e a alimenta como Corpo de Cristo. Contigo descobri que ela é instrumento para
a Reconciliação, a justiça e a paz do mundo. Contigo aprendi que ela nos configura
com Cristo na Sua relação com o Pai e na Sua entrega pelos Homens. Contigo
aprendi que ela pode ser espiritualmente fecunda e superar desânimos e dores (guardo
de forma única o que vivi contigo na partida do cardeal Ribeiro, bem como em lutas
que Deus conhece). Contigo aprendi que a comunhão presbiteral fortalece a nova
identidade em Cristo que a consagração sacerdotal gerou e alimenta.
Termino, referindo-te outro tesouro que me foi dado descobrir. Pela sua
radicalidade e sacramentalidade, tantas vezes sinal de contradição e anúncio do Céu,
o sacerdócio ministerial serve e alimenta o Povo de Deus como povo sacerdotal, para
que este seja no mundo ponte entre Deus e os Homens. Neste horizonte, o serviço de
ambos ao mundo não se cumpre na realização de um qualquer reino na terra. Pelo
contrário, existe para ser canal da vinda de Deus ao mundo e da peregrinação do
mundo, pela caridade na verdade, para a casa do Pai. Hoje como antes, servimos este
mundo semeando em cada um a vida divina e preparando cada pessoa para esse
encontro definitivo com Deus. Posso testemunhar-te como este horizonte tornou
espiritual e pastoralmente densos de eternidade alguns Baptismos que ministrei, bem
como alguns funerais a que presidi. Quando nos é dado tocar o Eterno, percebemos
que aí está tudo. Quando nos é revelado que esta vida terrena é um segundo útero
onde somos gerados para a vida verdadeira, cada momento pode ser uma
oportunidade da graça divina para esse mergulho na Vida.
Deus me perdoe sempre que resisti ou me tornei obstáculo a que outros
descobrissem este tesouro.
Bendito seja Deus pelo que me deu experimentar e pelo que fez comigo, por mim e
apesar de mim.

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Queria ser importante... Mas o importante
era (é...) não ser... “importante”!
Padre Júlio Grangeia
Nasceu no ano de 1958 em Vale de Ílhavo (Ílhavo). De 1983 até 2005 leccionou Educação Moral e Religiosa Católica, em várias escolas. Em 1984 foi ordenado sacerdote na Igreja de
Águeda. Pároco de várias paróquias, colaborou na Rádio Soberania, em outras rádios da região de Águeda e na Rádio Regional do Centro (Coimbra). Em 1997 torna-se no primeiro padre
português a utilizar a Internet como meio de Evangelização, criando um sítio wEB, para apoio das suas actividades paroquiais e pastorais.

Fui baptizado à pressa, em casa, pela minha tia …


Quando entrei para a escola primária – como então se dizia
– o “bichinho” já lá estava muito por “culpa” da minha mãe, que rezava para ter um
filho padre. Ainda eu estava na sua “barriga” e já ela rezava por mim: para nascer
“perfeitinho” – como reza qualquer mãe… e, também, se fosse menino, que fosse
padre. Nasci com o cordão umbilical à volta do pescoço, fui baptizado à pressa, em
casa, pela minha tia … mas vá lá; nasci “perfeitinho” ...
Quanto ao meu pai, esse, era dos “tais” que sempre guardava para si o que sentia. E
quanto a esse assunto de ter um filho padre… “Nim”: nem sim nem não! Nunca me
disse nada a esse respeito, mas sempre entendi o seu silêncio como um consentimento
tácito.
Mesmo agora, no Céu “onde” acredito que ele se encontra… a minha Ordenação
sacerdotal terá sido, mesmo, o momento mais intenso e marcante da sua vida. Pelo
menos foi a única vez que o vi a… chorar. Sim! A chorar… mas com “gosto”; a
chorar… de alegria!
Ele, o Júlio, pai do outro Júlio que agora é padre, que sempre escondia os seus
sentimentos… chorava como uma “Madalena” na Igreja de Águeda em 29 de Janeiro
de 1984, quando D. Manuel de Almeida Trindade – coadjuvado pelo então bispo
auxiliar D. António Baltasar Marcelino – me ordenava presbítero!
Sim, o terreno favorável ao desabrochar da vocação começava, assim, em casa. O
(bom) exemplo de um seminarista da altura deu o “empurrão” que faltava…
Ah! Também queria ser médico… “porque sim”; “porque sim” e também para
ajudar quem sofria! Era uma profissão também linda, sim, senhor… mas, deixemo-
nos de coisas: o que gostava mesmo era de ser padre!
Os pecados na confissão…
Quando entrei para a escola (primária) queria, portanto, ser padre: para “rezar
Missa” e essas “coisas” que os padres faziam (e fazem), mas também para confessar;
deveria ser engraçado ouvir coisas complicadas, e aqueles segredos que nos contavam
só a nós e que não podíamos contar a mais ninguém!
Ainda não tinha descoberto aquilo que era o mais importante na Confissão. Esta,
mais do que o “sacramento do Segredo” era (e continua a ser!) o sacramento da Festa.
É ali, ou “lá”, que o próprio Cristo se sente mais … “aqui”; mais irmão, mais
companheiro; é sobretudo neste sacramento do Seu Amor que Ele se serve de nós
padres, pecadores também, para ministrar a Sua Graça, o Seu Perdão, a Sua
Misericórdia … para não falar já da Paz de Espírito e da libertação interior a quem o
recebe!
Sim! Isso só mais tarde é que descobri. E descobri também que se é gratificante
confessar para ouvir o que ninguém ouve e saber o que ninguém sabe […], também

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reaprendo em cada dia que para a Festa acontecer e para a libertação ter lugar implica
que haja humildade e um “saber ouvir” muito grande: saber ouvir o que se ouve pela
primeira vez e saber ouvir aquilo que já sabemos de “cor e salteado”… como se fosse
a primeira vez! Sim! É importante que o padre fale bem… mas o importante mesmo é
que saiba … ouvir!
O “balde de água fria”: a Matemática!
Depois de ter frequentado a escola primária entrei no Seminário de Calvão para…
“ser padre”; para aprender a “celebrar Missas e a fazer confissões” e “apanhei” o
primeiro grande “balde de água fria”: não só não aprendi a celebrar Missa nem a
confessar (até porque estas coisas não se aprendem; só se vivem…) como passei a
ter… Matemática! “Grrrrr”!
Mas, se calhar, foi mesmo com a Matemática que comecei a aprender que a
Eucaristia, a Confissão e os sacramentos eram outras … equações; tão diferentes que
só se aprendem com… o coração!
O grande sinal de Deus: o “chumbo” no 8.º ano…
A etapa seguinte foi a entrada no Seminário de Aveiro e foi aí, no 8.º ano, que
aconteceu o grande “sinal”, a grande viragem: eu e um colega do mesmo curso
“chumbámos”! Todos os outros passaram de ano; os mesmos que, no ano seguinte,
desistiriam e abandonariam o seminário!
E se eu não “chumbasse”?! E se tivesse passado de ano? Será que teria continuado?
Não desistiria como os outros?! Seria padre?!
Anos mais tarde ao olhar para trás, ao reflectir e rezar este acontecimento é que dei
conta que, de facto, Deus escreve (mesmo) direito por linhas tortas!
Quem somos nós para dizer que Deus nos abandonou numa determinada situação e
que às vezes nos vira as costas e que é injusto?! Quem nos disse que aquilo que
pensamos que é o melhor para nós… é mesmo o melhor?!
Aquela reprovação terá sido o grande “sinal” dado por Deus. Entendi-o como tal.
Não duvido, agora, que aquele “chumbo” foi a forma que Ele teve para me ajudar a
chegar ao fim… padre!
Queria ser importante
mas o importante é não ser “importante”!
Não me recordo de ter brincado às missas com bolachas, mas o que me lembro
bem é que queria ser padre para ser… importante!
Sim, naquela altura o padre era uma pessoa “importante”! Pelo menos era assim
que eu os via! As pessoas tiravam-lhe o chapéu, beijavam-lhe a mão e quando entrava
na igreja toda a gente se levantava! Ora, digam lá se não era bom ser padre?! E eu,
claro, criança que era, também queria ser padre para ser … assim; para ser
“importante”!
Ainda não tinha percebido que a importância do padre não está na “importância”
que este adopta, mas na simplicidade que assume! Como pode o padre chegar a todos
a não ser pela simplicidade?!
Que o diga o Mestre, Ele que sabia tão bem falar das coisas “complicadas” com o
Seu jeito tão simples:
•   «O Reino dos Céus é como um campo…» – lá falava assim para os
agricultores;

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•   «O Reino dos Céus é como um homem que faz colecção  de pérolas…» –
lá explicava, desta feita, para os comerciantes…;
•   «O Reino dos Céus é como uma rede …» – concretizava  quando falava
para os pescadores.
Padre anunciador da Boa Nova
aos de longe e aos de… perto!
Hoje, mais do que nunca, na era dos computadores, da Web, do Twitter, do
Facebook e do Youtube, dos blogues e dos sítios Web, do Hi5 e dos SMS e de outras
coisas que tais…; num tempo em que é tão fácil ser vizinho dos que estão longe, e
estar longe de quem é… vizinho… ou o padre se torna próximo, simples, claro,
apelativo e compreensível e vai ao encontro do homem concreto – onde quer que ele
se encontre – usando todas as “ferramentas” reais e virtuais que tem ao seu dispor
para chegar a mais gente e mais longe, ou continua cada vez mais a fechar-se em si
próprio convicto da sua “importância” e não chega a lado algum, nem tão pouco é
porta-voz do projecto que Deus tem para ele e, por ele, para todos!
Não será preferível o padre dizer até “menos bem” e as pessoas perceberem
minimamente do que se está a falar, do que dizer tudo “como deve de ser” e só
sermos entendidos pelos “entendidos” que, cada vez, são menos?!
Para mim ser padre, nos dias hoje, é (também) isto: falar de forma simples para
mostrar que o grande presente que Deus nos deixou – de “borla” não é uma coisa
complicada de aceitar ou de receber, mas que está ao alcance de todos. Sim, de todos!
De todos, mesmo, sem excepção: dos que estão perto, ao nosso lado, e dos que estão
longe…; daqueles que rezam muito e dos que rezam pouco; dos que não rezam e dos
rezam com a vida…
E para ir ao encontro desta gente nos dias de hoje, para anunciar a Boa Notícia,
para «lançar as redes» … – como nos pede Jesus Cristo – não será necessário,
forçosamente, ir a «todo o Mundo» para «anunciar o Evangelho». Hoje, é «todo o
Mundo» que pode vir ter connosco desde que nós estejamos lá, no sítio certo. Na
Internet, por exemplo, ensaiando tentativas de resposta a quem nos bombardeia com
perguntas; basta estar na “rede” e em rede, para lançar as “redes” aos homens de hoje
que também se encontram na “rede” … e “enredados”, quantas vezes, à espera de
uma palavra amiga que lhes diga apenas: «Deus é Amor e é Teu amigo»; «…Ele
pode não gostar do que fazes…mas gosta sempre de ti!»
Sim, o nosso Deus é, assim, um … “mãos largas” que quer oferecer, e de “borla”, e
para todos os Homens o seu “banquete”: a Salvação e a felicidade. Basta, apenas,
ter…“fome” e aceitar o convite que Ele nos faz para termos «Vida… e Vida com
abundância!»
O padre é isto! É “só” isto: é aquele que mostra o caminho para o … “Caminho,
Verdade e Vida”; é aquele que aponta para Jesus Cristo: o único “caminho” que dá
sentido ao nosso “Caminhar”!
A importância da … “embalagem”!
Mas se é importante apontar o Caminho não é menos importante encontrar a
melhor maneira de o apresentar! E foi outra coisa importante que aprendi (e
reaprendo…) na minha vida de padre: a importância da … “embalagem”!
De facto, o nosso “produto” até pode ser – e é! – de grande qualidade mas temos de

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o saber “embrulhar”; temos que cuidar, também, do “embrulho” para que a
Mensagem do Mestre se torne hoje e para os homens de todos os tempos mais eficaz
e apelativa…um pormenor (ou “pormaior”) que pode fazer toda a diferença!
Não se trata de uma questão de marketing … mas de saber estar (mais) próximo de
quem Ele quer estar próximo!
Não se trata de falar bem para “vender” mais… porque o nosso “produto” não é para
se impor, mas “apenas” uma proposta; uma proposta que, no entanto, faz toda a
diferença entre ser ou não (mais) feliz!
Padre – o homem que é feliz
e que aponta para a Felicidade!
Só quem faz ou fez a experiência de Deus na sua vida e é capaz de tratar Cristo por
“Tu” é que entende o que é mesmo ser feliz!
Sim! Feliz, pois claro! Quem acredita em Deus não tem de ser necessariamente um
fanático que conhece todas as passagens da Bíblia de cor e que até sabe o sítio
direitinho onde tudo se encontra…
É alguém que tem os olhos no Céu … mas os pés na terra; é uma pessoa normal,
equilibrada e feliz, que se sente bem consigo própria e com os outros e que vive sem
“paranóias”, animado por uma Esperança que tem nome: Jesus Cristo, o rosto de
Deus que é Pai e que é Amor e que Se fez homem connosco e para nós … para tornar
os homens mais parecidos com Deus.
É esta a missão do padre: ser um apaixonado do Amor de Cristo, deixar-se seduzir
por Ele e anunciar a todos este Amor, para que todos possam ser (mais) felizes;
felizes, no verdadeiro sentido da palavra!
O padre é, pois, e por isso mesmo, o homem da proposta mas também da
tolerância, da “ponte” e dos consensos! É alguém que é companheiro, solidário,
amigo e próximo… mas é também aquele que “faz – caminho com”… com quem
quer que seja, mesmo com quem não pensa como ele.
O padre é, pois, alguém realizado e feliz porque sabe em quem confia e é também
profeta da esperança… porque aponta o caminho:
Para a felicidade plena…
Para Jesus Cristo…
Para Deus…
Para o AMOR!
www.padrejulio.net

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A descoberta da vocação no quotidiano
Padre Stefano Mazzoti
Nasceu em Faenza (Itália) a 18 de Junho de 1966. Estudou no Seminário Regional Umbro de Assisi e no Almo Collegio Capranica em Roma. No dia 24 de Novembro de 2001 foi
ordenado sacerdote, em Terni, e incardinado na diocese de Terni-Narni-Amelia. Licenciou-se em Jurisprudência, na Universidade de Bolonha e doutorou-se em Direito Canónico na Pontifícia
Universidade Gregoriana de Roma. Em Outubro de 2002 entrou para a Pontifícia Academia Eclesiástica e em 1 de Julho de 2004 iniciou o Serviço Diplomático da Santa Sé, como Secretário de
Nunciatura, na Representação Pontifícia das Filipinas. Desde Maio de 2008 que exerce funções na Nunciatura Apostólica, em Portugal.

Sou um daqueles que comummente se qualificam como «vocação adulta». No


sentido em que decidi entrar no seminário depois dos estudos universitários, uma
tendência que ao menos na Europa, se vai afirmando como menos insólito em relação
ao que acontecia há tempos atrás.
Advirto já o leitor que nestas poucas linhas não irá encontrar narrações de
conversões espectaculares, «quedas do cavalo», ou episódios deste género. A minha
experiência vocacional está enxertada na vida normal de um rapaz educado
cristãmente, que desde criança encontrou nas estruturas da Igreja quem o nutrisse na
fé e lhe tivesse dado confiança. O catecismo e o empenho como acólito levou-me a
frequentar semanalmente a paróquia, onde o pároco desde o início me quis bem. Este
empenho não se interrompeu no curso da adolescência, quando muitos coetâneos
começavam a afastar-se da Igreja. Talvez também por isto, alguém, inclusive o
pároco entre um estilo sério e brincalhão me prognosticasse um futuro como padre.
Sinceramente isto irritava-me, porque a vida consagrada não exercia nenhum fascínio
sobre mim; como tantos, pensava continuar os estudos, na perspectiva de um futuro
profissional, de uma vida «normal».
A minha prática religiosa nunca esmoreceu, fundamentalmente, nos anos da
adolescência e na primeira juventude; não posso dizer o mesmo quanto à
profundidade de envolvimento; recordo que não encontrava interesse nas actividades
para os jovens da minha idade que a paróquia (e a diocese) ofereciam. Creio neste
aspecto ter partilhado uma experiência de afastamento em relação à vida da Igreja,
que acontece em grande parte com os jovens naquela idade. Mas no fundo a fé,
evidentemente, continuava a viver, e a ser provocada pelo que andava a amadurecer
também a nível intelectual na escola secundária e na universidade.
Recordo com exactidão, ainda que não possa localizá-lo cronologicamente, o
momento na minha vida em que decidi que a fé era uma coisa séria, não apenas uma
herança da infância, e que merecia ser cultivada com empenho; decidi ser cristão
seriamente, mas sem que isto comportasse imediatas consequências «vocacionais».
Contudo esta tomada de consciência levou-me a aperceber de um crescente interesse
pela Palavra de Deus, que me levou a ler toda a Bíblia, a ouvir os comentários
televisivos que preparavam a liturgia dominical, a ler textos de espiritualidade.
Nesta fase foram importantes dois cursos de exercícios espirituais para jovens
organizados pela Acção Católica diocesana. Ali aprendi a apreciar o diálogo profundo
com Deus, a Liturgia das Horas, a meditação. Procurava não perder os progressos na
vida espiritual frequentando algumas actividades que as paróquias da minha zona
propunham, como os retiros periódicos.
Ao mesmo tempo o meu empenho paroquial, com excepção de poucos anos
durante a minha primeira juventude, nunca falhou, também graças ao meu pároco que
continuou a valorizar-me, fazendo-me ultrapassar alguma relutância; terminada a
experiência de acólito, colaborei no Conselho Pastoral, que tinha sido criado

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entretanto, e aceitei o convite, no início com muita hesitação, para ser catequista.
Trabalhar com as crianças não era fácil, penso que não correspondia às minhas
atitudes, mas certamente ajudou-me a envolver-me de uma forma mais empenhada e
consciente na vida da Igreja, mais concretamente na pastoral paroquial. Nos mesmos
anos participei, como delegado da minha paróquia, no sínodo diocesano.
Penso que o leitor possa antever nesta narração uma história totalmente comum,
igual à de tantos jovens que ainda frequentam os grupos, as associações, as estruturas
que a Igreja dos países europeus, ainda que com tantas dificuldades, continua a
propor. Não existiram fracturas radicais no tecido da minha existência, mas um
amadurecimento progressivo na vida da fé, que me interpelava, perguntando-me até
que ponto o Senhor era importante na minha vida. E portanto que escolhas para o
futuro era chamado a fazer para ser coerente com esta verdade. A este ponto, a
dúvida, se talvez o Senhor me chamava a uma vida de especial consagração, começou
a colocar-se de uma forma sempre menos esporádica.
Uma vida gasta pela Igreja e pelo Senhor parecia-me bela, digna de ser vivida,
cheia de sentido. Mas de que forma? Padre diocesano ou religioso? Além disso
perspectivavam-se na imaginação todas as dificuldades que uma escolha, por
exemplo o ministério ordenado, comportava. Via como se desenrolava a vida dos
seminaristas e, sobretudo, dos jovens sacerdotes diocesanos; e francamente, aquele
percurso e aquele tipo de exercício do ministério não me entusiasmavam, sobretudo
numa pequena diocese como aquela a que pertencia. Eu não era, e não sou, o jovem
pároco que joga à bola e anima o oratório1. Entretanto, os estudos de Direito, a que
tinha dedicado grande parte das energias juvenis, pareciam-me muito áridos, e as
perspectivas profissionais que se me apresentavam não me satisfaziam totalmente.
Voltavam a aparecer na minha consciência as perguntas que São Filipe Neri tinha
dirigido a César Barónio, então estudante de Direito em Roma, orientado
espiritualmente pelo fundador do oratório, e a quem expunha as suas legítimas e
normais aspirações: «este propósito é bom, mas depois?» e de seguida, de uma forma
sempre mais insistente até que Barónio se rendeu e decidiu entrar também ele para o
oratório.
De facto, as ambições «normais», (profissão, afectos, etc.), tinham sempre menos
força atractiva sobre a minha imaginação. O discurso deslocava-se sobre como podia
viver a minha fé de uma forma mais construtiva para mim e útil para a Igreja, tendo
em conta os talentos que o Senhor me tinha dado (e obviamente as limitações). Dar
um sentido pleno à minha vida era a pergunta cada vez mais premente naqueles dias,
meses, anos… entretanto, também um luto familiar me colocou brutalmente a morte
diante dos olhos, e portanto a necessidade de dar um sentido à vida que tivesse o
gosto da plenitude, deixando para trás todas aquelas atracções que não regiam no
confronto com o fim temporal.
1
Palavra italiana que não tem correspondência em português e que significa o conjunto de actividades paroquiais para crianças e jovens ligadas à catequese.

Um elemento na importante decisão nesta fase da minha vida foi o encontro com o
sacerdote da minha diocese; um encontro fortuito, penso que o posso definir
providencial, que me permitiu encontrar um guia espiritual a quem abrir o meu
coração. Os diálogos regulares que iniciei com este sacerdote ajudavam-me a
encontrar serenidade. Foi ele o primeiro a quem coloquei a pergunta: como perceber a

48
vontade de Deus sobre a minha vida? Foi ele que me fez encontrar com o seu amigo
bispo, que se tornou depois o meu bispo, que me ajudou a iluminar as minhas
«moções interiores», para o dizer com uma linguagem inaciana, e redimensionar
tantos medos que surgiam ao imaginar-me seminarista, religioso e padre. Pelo meio
aconteceu-me uma peregrinação a Lourdes, com a secreta esperança de que Nossa
Senhora me indicasse o caminho…uma bela experiência, consoladora, mas que não
me deu nenhuma certeza nesta direcção. Gostaria que tivessem sido outros a decidir
por mim…
O objectivo imediato era terminar a universidade, depois decidiria sobre o futuro.
Contudo, quando me licenciei, já tinha decidido no coração o que iria fazer. Poucos
meses depois entrei no seminário, numa diocese diferente da minha, aquela daquele
bispo que me tinha ouvido com tanta benevolência. Esta escolha foi ditada também
pela necessidade de me afastar do ambiente em que tinha crescido, para um
discernimento mais sereno.
A escolha não foi fácil, como penso que se possa imaginar; além de que criou um
compreensível desgosto nos meus familiares, que foram apanhados de surpresa, ainda
que fosse assíduo na paróquia e nas actividades eclesiais. Porém deixaram-me livre e
nunca me fizeram pesar de modo algum a minha decisão. Da minha parte, encontrava
serenidade ao pensar que ainda teria muito tempo antes das decisões definitivas, e que
oferecia toda a minha disponibilidade para me deixar ajudar, numa total abertura, por
aqueles que eram encarregados desta tarefa.
A formação desenrolou-se em dois seminários diferentes: primeiro no Seminário
Regional Umbro de Assis, depois no Almo Colégio Caprânica em Roma. Duas
comunidades em que amadureci, em primeiro lugar como pessoa, e de que conservo
belíssimas recordações e profunda gratidão.
Os anos de seminário foram de empenho muito intenso, estudo, actividades
formativas e pastorais, vida comunitária. Apesar de ter encontrado sempre ajuda e
compreensão nos superiores, de vez em quando voltava a apresentar-se a pergunta
fundamental: é esta a tua estrada? Ainda que tudo me conformasse nesta escolha,
tinha dificuldade em chegar a uma certeza interior tão segura que pudesse dizer com
satisfação: estou feliz por esta escolha. Sobre isto incidiu o carácter, de per si bastante
hesitante, que me leva a afastar-me dos entusiasmos fáceis, a tendência a racionalizar
e a recusa de todo o tipo de romantismo espiritual. Dedicar a vida ao Senhor sim, mas
a decisão parecia-me um salto de acrobata sem rede, sem certezas do que me seria
depois, concretamente, pedido para fazer. Ser padre, sim, mas como concretamente?
Então decidi fazer o «mês inaciano», isto é, a experiência dos exercícios de Santo
Inácio na sua totalidade. Foi uma experiência intensa, fatigante, algo difícil de
descrever para um observador externo, mas que me permitiu pôr em ordem alguns,
entre vários impulsos, que conviviam no meu coração, e de encontrar a força
suficiente para o passo decisivo: o pedido para ser ordenado diácono.
A partir daquele momento a minha vida conheceu uma aceleração decisiva,
completamente independente dos meus projectos, que me levou cerca de um ano
depois à Ordenação presbiterial, e pouco depois a ser admitido na Pontifícia
Academia Eclesiástica.
Com a Ordenação não desaparecem completamente e para sempre as dúvidas. A

49
tentação de olhar para trás, as perspectivas que se deixaram, de realização pessoal,
profissional, de vez em quando voltam a aflorar. Neste aspecto contam certamente
também alguns elementos do carácter, aos quais devemos dar atenção durante toda a
vida. Limitações que fazem parte da nossa humanidade, mas que penso que ajudadas
a perceber podem servir melhor os irmãos na fé.
Para superar os momentos difíceis sempre me foi de auxílio o esforço de fazer uma
leitura unitária, à luz da fé, da minha vida, que me levou a ver nas minhas vicissitudes
a mão de Deus, a sua Providência. Sobretudo nas pessoas que encontrei, desde
seminarista a padre, e que me ajudaram com o conselho, com a oração e com o
encorajamento. Encontros por vezes imprevistos, nos quais li o acompanhamento
paciente de Deus, que concede aquela luz necessária para podermos dar o passo
seguinte, e raramente ilumina o nosso caminho com uma luz incandescente.
«Desolação» que muitas vezes senti enquanto seminarista, e que de vez em quando
ainda se apresenta na minha vida de padre, revela-se um caminho fecundo para uma
relação cada vez mais profunda com Deus.
Recordo com particular gratidão o serviço pastoral que, durante os anos da
formação romana, desempenhei numa prisão. Vi como o pouco que podia oferecer, a
nível de ajuda concreta, de tempo, de capacidade de consolação, de sabedoria
homilética, me foi retribuído com a descoberta da riqueza da humanidade, por vezes
dolorosa de tantas pessoas que as circunstâncias adversas da vida condenaram a
certas escolhas. Foi uma experiência enriquecedora do ponto de vista sacerdotal,
humano, e também a nível de consciência como cidadão.
O serviço específico a que a Igreja me chama neste momento, a colaboração nas
Representações Pontifícias, ainda que com inegáveis fadigas, permite-me dar um
contributo ainda que pequeno e escondido na edificação da Igreja; além disso oferece
a oportunidade para conhecer diferentes rostos da Igreja, captados a partir de ângulos
inéditos. Vejo este serviço como um alargar de horizontes, que espero me melhore
como homem e como sacerdote.
De facto, o ter entrado no seminário, e agora o ministério neste âmbito particular,
permitiu-me fazer experiências tão intensas e imprevisíveis, e encontrar uma série de
pessoas que não teria nunca imaginado, e conhecer mais de perto culturas que me
enriqueceram profundamente. Penso em primeiro lugar nas Filipinas, a primeira sede
que me foi atribuída, nos missionários que lá conheci, nos diferentes carismas das
famílias religiosas, na profunda fé daquele povo, na dignidade com que tantos pobres
vivem uma existência inconcebível para nós habitantes do mundo rico. Apercebo-me
de tantos modos diferentes de sentir-se filhos de Deus e empenhar-se em construir o
seu Reino; numa palavra, estou a fazer uma experiência privilegiada de catolicidade.
Reconheço que em outros âmbitos do ministério ordenado, a relação com as
pessoas possa ser fonte de uma grande consolação; sentindo-nos facilmente úteis e
apreciados. Isto não acontece, pelo menos em tal medida, no serviço específico das
Nunciaturas, que se caracterizam por relações com uma certa formalidade. Trata-se
de um ministério pastoral sui generis, ligado à sollicitudo omnium Ecclesiarum,
própria do ministério petrino.
Contudo, penso que se possam facilmente descobrir aspectos positivos desta vida;
por exemplo considero que este tipo de «trabalho» facilita um olhar mais destacado,

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menos emotivamente envolvido, e portanto, penso, que mais verdadeiro sobre tantas
situações da Igreja e em geral sobre as vicissitudes humanas. Além disso a vida da
Igreja é percebida também nos seus aspectos institucionais, nas relações com as
comunidades políticas, com entidades nacionais e supranacionais. São aspectos da
relação da Igreja com o mundo, sobre os quais um certo espiritualismo mal entendido
gostaria de sobrevoar, mas que pertencem constitutivamente à Igreja, enquanto
comunidade de homens que é parte integrante da família humana.
Se a escolha de consagrar-se no ministério implica inegáveis empenhos e
limitações na liberdade, todavia, se olho para o meu breve percurso de seguimento,
concordo com quanto escreveu no seu diário Pierre Claverie, bispo de Orano, morto
mártir em 1996. O encontro com Cristo é libertador, na medida em que liberta da
atenção que colocamos no olhar dos outros sobre nós e do mesmo olhar do nosso
“eu” sobre a nossa vida. Liberta-nos também de uma certa ideia do olhar de Deus
sobre nós. Trata-se de um sair de si mesmo que nos pode aterrorizar, até desencorajar,
como nos é proposto em algumas páginas do Evangelho, mas que se torna mais
«natural» e possível se nos colocamos com paciência no seguimento de Cristo.
Ao terminar estas considerações de coração aberto, talvez o leitor tenha percebido,
e talvez um pouco desiludido, que não comuniquei certezas, tão pouco sobre a minha
história pessoal vocacional. Simplesmente, a um certo momento da minha vida, com
uma decisão tomada graças a prévias escolhas, tornei-me disponível a gastar a minha
existência na Igreja; a lançar o meu pequeno contributo para a edificação do seu
Reino, sem presunções acerca de mim mesmo ou desejos de mudar o mundo. Uma
decisão, uma disposição cuja fecundidade, e consequente «realização», está ligada à
minha disponibilidade a tomar seriamente, em cada dia, a presença de Cristo na
minha vida, numa palavra, a disponibilidade a converter-me e a seguil’O. O
chamamento não é apenas um acontecimento que se possa fixar num certo tempo, um
evento, mas é uma tensão, que envolve e encaminha toda a existência, colocando-se
como critério de interpretação daquilo que vamos vivendo e que deve contar com
situações obscuras. Não se pode falar da vocação, e tão pouco do próprio ser
sacerdote, de ânimo leve, como alguma coisa que fizemos nossa uma vez para
sempre, ou uma realidade objectivável. Pela simples razão que não nos pertence,
sendo desde o início, e permanecendo em todo o seu desenrolar-se, um acontecimento
de Graça.

51
Sacerdócio missionário
Padre Tony Neves, cssp
Nasceu a 2 de Novembro de 1962. Missionário Espiritano foi ordenado em 30 de Julho de 1989, ano em que partiu, como missionário, para Angola. Regressou a Portugal em 1994,
fazendo o curso de Comunicação Social na Universidade Católica Portuguesa. Actualmente é Assistente Provincial, Coordenador Nacional dos Jovens Sem Fronteiras e director do jornal Acção
Missionária. Frequenta o doutoramento em Ciência Politica, onde prepara uma tese sobre a Igreja em Angola.

Ficar por qualquer preço


1993, Huambo. Acabaram os combates que arrasaram a cidade, mas permanecia o
cerco e os bombardeamentos aéreos eram intensos. Pediram-me um texto para o
capítulo provincial que se iria realizar em Julho de 1994. Enviei-o, terminando assim:
Quando acabaram os combates e recebi as primeiras cartas, diversas pessoas, sabendo que o Huambo se iria transformar num braseiro, insistiam comigo para ir embora. Em consciência,
mesmo que a saú‑ de não andasse boa (como não andava), eu nunca poderia aceitar tal sugestão. Sabia que era perigoso ficar e que, cada dia que passa, a vida corre perigo. Mas, afinal de contas,
sou Espiritano. E mais: estou com outros espiritanos, com os seminaristas e com este povo mártir. Com que direito poderia abandoná‑los, aproveitando‑me simplesmente do meu estatuto de
estrangeiro? Serei mais do que eles? […] Compreendam que não se trata de uma questão de heroicidade, mas de uma questão de coerência e de missão. Posso morrer aqui, mas morrerei de pé e
com a consciência de quem – apesar de todos os limites – fez o que pôde para bem desta Igreja e deste povo.

Ora, este texto foi escrito a 2 de Novembro de 1993, no dia em que fazia 31 anos
de vida. À distância de 16 anos, acho que é a carta onde melhor expresso a minha
vocação de padre.
Ordenação ao calor
Uma grande Eucaristia campal, numa tarde tórrida de Julho, na Foz do Sousa
(Gondomar) foi o momento da minha Ordenação. Aconteceu há 20 anos e sou o
primeiro padre que D. Gilberto Reis ordenou. Já há tempo suficiente para perceber a
graça que é a minha vocação sacerdotal, marcada pela dimensão missionária. É-me
exigida, dia após dia, a ousadia de ler o coração de Deus, onde está gravada a
vocação a que Ele me chama, a missão que me confia e a força de que preciso para os
compromissos a realizar.
Como em tudo na vida, o que fala mais alto são as atitudes. Os valores sobre os
quais assentamos a vida só fazem sentido se passarem para o quotidiano.
Ir à Fonte
Beber nas fontes é a forma mais sadia de alimentar um projecto de vida. Assim, a
Palavra de Deus, aliada às palavras da Igreja e da tradição Espiritana, tem sido o
alicerce das minhas opções e compromissos. Como Espiritano, invoco muitas vezes
ao dia o Vinde, Espírito Santo, com a firme convicção de que Ele é a minha força, a
minha luz e a coragem de que preciso para tomar as minhas decisões e cumprir as
missões que me são confiadas. É com a sua força que partimos pelos caminhos do
mundo a anunciar o Evangelho que é libertador de todas as formas de opressão.
20 anos de padre já me mostraram que a minha felicidade depende da fidelidade ao
projecto de vida que assumi em liberdade. Sinto-me responsável por fazer tudo o que
está ao meu alcance para que o mundo seja mais humano, mais fraterno e mais
cristão.
Deus coloca luzes no nosso caminho. Os meus fundadores, tão distantes no tempo,
foram próximos na intuição missionária e na docilidade ao Espírito Santo. Cláudio
Poullart des Places (celebramos trezentos anos da sua morte), fundou os Espiritanos
para estarem ao serviço dos pobres mais pobres e trabalhar onde mais ninguém
quisesse trabalhar. Francisco Libermann (cento e cinquenta anos depois) fez-nos
apontar baterias para África, lembrando-nos que devemos ser os advogados dos
pobres, como leves penas ao sopro do Espírito, sendo conduzidos para onde Ele nos
levar. Eles, na fragilidade das suas vidas, dos meios que dispunham, dos obstáculos
que se levantaram, encontraram a força do Espírito e construíram um projecto

52
credível. É nesta história que tento inscrever o meu nome.
Programas de vida
Fui à procura das frases bíblicas que escolhi para os marcadores oferecidos nas
ordenações. No diaconado (Cruz Quebrada, 1988), escolhi o Profeta Jeremias: «Irás
onde Eu te enviar e dirás o que Eu te mandar.» No guião da celebração escrevi:
Sou missionário Espiritano. Partir para estar com os mais carenciados, anunciar por palavras e vida o Jesus Libertador, lutar pela justiça e pela paz, ser voz de denúncia de todas as
estruturas e situações que oprimem e desumanizam o homem, ser solidário com todos os que sentem que a vida, o pão, a liberdade, o amor e a felicidade passam ao lado… é a minha forma de
estar na vida que Deus me dá para o serviço dos outros e o pano de fundo da minha consagração religiosa e missionária.

Devo confessar, 21 anos depois, que não consigo dizer melhor o que me vai na
alma e o que me faz ser padre hoje.
Na Ordenação de padre (Foz do Sousa, 1989), escolhi São Paulo: «Como poderão
invocar Aquele em quem não acreditaram? Como poderão acreditar, se não ouviram
falar d’Ele?» (Rm 10,14 15) 20 anos depois, esta pergunta continua a fazer mossa nos
meus ouvidos como provocação de Deus a exigir mais resposta da minha parte.
Devo recordar que na Profissão Religiosa (Coimbra, 1982), na Profissão Perpétua
(Braga, 1985), nas Ordenações de diácono e padre, o Evangelho foi sempre o mesmo:
«O Espírito do Senhor está sobre mim. Ele me consagrou com a unção para anunciar
a Boa Notícia aos pobres.» (Lc 4,16 21) Também sobre a actualidade e exigência
missionária desta passagem bíbli‑ ca não tenho nada a acrescentar, mas muito a viver.
Coração em Angola
Angola foi a minha primeira terra de Missão e cumpriu-se em mim a tradição que
diz que não há maior amor que o primeiro. Lá vivi os 6 anos mais duros, mas mais
intensos dos 20 enquanto padre. No Kuito e no Huambo (1989-1994), senti na pele os
efeitos da guerra mas, sobretudo, pude partilhar a sorte e a má sorte de um povo
mártir. Na vida nem sempre as coisas correm de feição e conseguimos estar onde
queremos, fazer o que achamos importante. Recordo com dor o “fico por qualquer
preço” que disse aos meus superiores, que não abandonaria o Huambo às portas de
uma guerra civil. Ainda me dói o meu regresso, em 1994, quando queria continuar a
viver com o povo que ainda hoje trago no coração e já pude reencontrar duas vezes.
Depois, vi-me obrigado pelos médicos a ficar em Portugal, já com malas e coração
prontos para regressar ao Huambo. O ritmo do nosso coração nem sempre bate no
mesmo tom que o de Deus e as horas de Deus nem sempre são as que aparecem nos
nossos relógios. Aprendi a estar preparado para tudo, para o melhor e para o pior,
para ficar ou para partir.
Recordo esta viagem de regresso do Huambo, sempre nas mãos de Deus. Durante
vários dias, atravessei três países africanos, engolindo quilómetros de jipes, de barco
e avião, até serem entregues em Roma os cinquenta quilos que restavam de mim.
Custou tanto esta partida de uma terra que precisava, mais que nunca, da presença de
padres.
Angola, essa missão e essa paixão continua com lugar cativo no meu coração de
padre. Por isso, mantenho muitas linhas abertas com este povo. Lá continuo a dar
corpo e a acompanhar projectos de desenvolvimento e de solidariedade. Por isso,
estou a investir num doutoramento em Ciência Política para provar que as
intervenções da Igreja Católica foram vitais para que a paz regressasse a Angola em
2002.
Padre na Europa
Desde 1994, a minha paixão pela missão tem o seu epicentro em Lisboa, ponto de

53
constantes chegadas e partidas.
Tive que inventar uma nova forma de ser padre, aqui nesta nossa Europa onde Deus
parece estar de férias ou onde as pessoas parecem passar bem sem Ele. Ganhei o
estatuto de “remador contra a corrente”, investindo o meu sacerdócio em áreas tão
desafiantes como o planeta jovem, a comunicação social, o ecumenismo. O trabalho
com os Jovens Sem Fronteiras (JSF) permitiu-me perceber como é urgente estar perto
dos que estão longe sem estar longe dos que estão perto. O mundo dos média
obrigou-me a encontrar novas formas de dizer Deus, sempre com a convicção de que
a missão também se escreve, se diz e se mostra (sem esquecer a Internet, o iPod, o
Facebook, o Twitter, etc.) Aprendi a amplificar os gritos dos pobres que falam em
surdina ou sentem a sua voz abafada. E, no mundo do correio electrónico, a
Ordenação é que marca o ritmo. Os meus endereços do Gmail e do Yahoo são
“tony.neves89”.
Acrescentar Capítulos aos Actos
D. Manuel Clemente, no prefácio ao meu livro sobre os vinte e cinco anos dos Jovens
Sem Fronteiras, escreveu:
A Nova Evangelização, tão estimulada desde João Paulo II, quer‑se, antes de mais, como novo ardor. Ardor que é acção do Espírito, verdadeiro fogo que Cristo trouxe à terra. E o mais
convincente de tudo é verificarmos como ele se ateia e levanta em tantos corações e tantas vidas, somando capítulos novos e criativos ao livro em que Lucas nos deixou a primeiríssima história
da Igreja.

De facto, acrescentar capítulos aos Actos dos Apóstolos é missão de todos, uma
enorme responsabilidade eclesial.
Missão é partir…
Sou missionário. D. Hélder Câmara, com a sua opção corajosa e radical pelos mais
pobres, é uma referência para mim desde o dia em que o encontrei, em Paris, em
1988, a comemorar os quarenta anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
É dele um dos textos mais fortes que alguma vez li sobre a missão:
Missão é partir, caminhar, deixar tudo, sair de si, quebrar a crosta do egoísmo que nos fecha no nosso “eu”. Missão é sempre partir, mas não devorar quilómetros. É sobretudo abrir‑se aos
outros como irmãos, descobri‑los e encontrá‑los.

Ousar servir
Continuo a construir-me como padre. Quero que o meu ser se transforme em agir.
Já que tenho a alegria de partilhar a fé com pessoas excepcionais, quero que a minha
vida grite alto a minha felicidade. Muitas vezes, ao longo destes 20 anos, senti a
desilusão de estar a pregar aos peixes, a viver os horrores de uma guerra cruel e sem
sentido. Presto homenagem aos padres Abílio Guerra, Albino Saluhaco e José Afonso
Moreira e às irmãs Lurdes Aguiar e Maria Joaquim, missionários como eu, amigos
meus de Angola, que foram barbaramente assassinados durante a guerra civil.
Explicaram-me pela vida o sentido da expressão: «dar-se até ao fim.»
Servir é uma palavra-chave para a minha vida sacerdotal. No Seminário da Silva
(Barcelos), passei três anos (do 10.º ao 12.º anos) a ler um cartaz que dizia: «quem
não vive para servir não serve para viver.» A disponibilidade é a prova dos nove da
nossa capacidade de servir. «Contem sempre comigo, desde que possa» – digo-o com
frequência aos meus colegas padres.
Ser padre é ter a capacidade de mostrar por palavras e vida a ternura de Deus e a
felicidade de ser cristão. É mostrar o rosto de uma Igreja simples, próxima das
pessoas, feliz e atenta às alegrias e tristezas, angústias e esperanças das pessoas –
como pede o Concílio Vaticano II.

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Mistério, Presbitério, Ministério
Padre José Nuno Ferreira da Silva
Nasceu a 8 de Novembro de 1964. Licenciou-se em Teologia e foi ordenado sacerdote em Julho de 1989. Depois de ter sido Assistente Regional do CNE e superior no seminário, é capelão
do Hospital de São João desde Outubro de 1998. Em 2002, a Conferência Episcopal Portuguesa nomeou-o Coordenador Nacional dos Capelães Hospitalares. Em 2004 concluiu o mestrado em
Bioética Teológica, na Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa (Porto), e o Master em Pastoral da Saúde, no Instituto Internacional de Teologia e Pastoral da Saúde em
Roma. Desde esse ano que é membro do Comité Executivo da ENHCC - Rede Europeia das Capelanias Hospitalares. Actualmente, encontra-se a concluir o doutoramento no Instituto de
Bioética da Universidade Católica Portuguesa. Dirige a Unidade de Antropologia da Saúde no Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto. É também o assistente do Secretariado da
Pastoral da Saúde no Porto, diocese em que integra o Conselho Presbiteral. Neste Ano Sacerdotal, o bispo nomeou-o seu delegado para o acompanhamento dos novos padres.

A minha história sacerdotal começou há vinte anos, recentemente cumpridos.


Só depois de escrita esta primeira linha é que dei por ela. Dei por ela, que não
começou há vinte anos, mas, mesmo sem apelar ao olhar longo de Deus sobre o
tempo e o irromper nele de cada um, tudo começou, na minha história pessoal
sacerdotal, há quarenta e cinco anos, quando os meus pais, Maria e José, se amaram e
geraram, nesse acto sublime de cumprimento sacramental, a inteireza deste que eu
sou e Deus lhes confiou.
Aí sim. Aí tudo começou. E se Deus me chamou e eu dei pela Sua voz, foi porque a
Sua voz soou aí, nesse lugar primordial da minha história que é a família à qual, pela
qual e na qual Deus me deu.
Não me é possível contar os vinte anos do meu sacerdócio e o que eles me dão a dizer
sobre a vida sem apelar a este instante originante e perpétuo que me diz a mim
mesmo fruto de amor comungante, que, na comunhão amorosa das identidades
geradoras e co-criadoras e na experiência de um quotidiano familiar simples e
honrado, onde Deus estava e a Igreja era referida, me fez tomar consciência de mim a
querer ser padre. Todos os interlocutores da minha infância mo atestam: desde
sempre quis ser padre e nunca manifestei vontade de ser outra coisa que não fosse
isso – padre. Eu próprio não me lembro de outra coisa. Aprendi a andar e a falar e
todas as outras coisas, menos ostensivas, mas não menos essenciais, que na família se
aprendiam, ainda há meio século atrás, a querer ser padre. Porquê? Não sei.
E este porquê sem resposta, como aqueles porquês que o sofrimento suscita, como
dinâmica interior a pedir busca de sentido, é um dos mais preciosos tesouros da
história do padre que sou. Quis ser padre sem consciência de porquê como se,
anterior aos porquês pessoais que a minha biografia foi trazendo e aprofundando e
transformando, houvesse uma outra Vontade que, por razões suas me fez querer
quando eu era ainda incapaz de razões para querer. Quantas vezes, em momentos-
chave da minha vida de padre, dei graças a Deus por ter tão claramente querido
mergulhar as raízes da minha vocação no mistério.
Venero, como dia mais importante dos meus dias, aquele domingo em que fui
baptizado, o terceiro após aquele outro domingo em que fui dado à luz, ao cair da
noite. Também ao cair da noite me foi dada a Luz dessa outra Vida, participação da
divina em Cristo, porque o meu tio padre, que paroquiava longe, teve um acidente na
vinda para a nossa terra natal, São Cosme, Gondomar.
Olhando hoje para trás, através da idade que me tem, não posso deixar de reconhecer,
no gérmen baptismal, o ímpeto pascal que, tornando-me aí filho da Igreja, definiu as
linhas gerais da minha infância e adolescência voluntariosamente a querer ser padre.
É sobre essas linhas que esse ímpeto, então percebido, a partir de um domingo
extraordinário que voluntariamente quis, me tem escrito – quanto permito –
presbítero, ao inscrever-me num presbitério.

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Presbítero. De todas as formas de dizer o ministério que me foi confiado, cada uma
acentuando dimensões diferentes desta mesma realidade, esta é a que mais vem ao
encontro da minha percepção do que me é pedido, na linha, aliás, do olhar novo que o
Concílio Vaticano II lançou sobre o ministério Ordenado, acentuando a sua profunda
identidade relacional.
Antes da idade, fui escuteiro do CNE, porque se o meu irmão ía, eu também tinha que
ir. Ainda hoje sorrio, ao olhar a fotografia a preto e branco da nossa promessa de
Lobitos. Na ponta de seis meninos alinhados em altura com o braço estendido sobre
os evangelhos, um sétimo, meio palmo mais baixo e, por isso, a ter que levantar mais
o braço, para “prometer” sobre os evangelhos. Questiono-me muitas vezes sobre a
importância que terá tido, para o meu sempre querer ser o que hoje vou tentando ser,
tão cedo ter assumido a pedagogia da boa acção de cada dia, que muitos –
atrevidamente ignorantes
– menosprezam e reduzem a anedotas de velhinhas e ruas para atravessar. Nunca
deixei de ser escuteiro.
Também fui acólito, menino ainda. E teve que se fazer uma túnica mais pequenina,
porque não havia para o meu tamanho e eu, já nessa altura, não sabia esperar. Ficou
para sempre gravada no meu espírito a solenidade grave e concentrada com que os
dois párocos que atravessaram a minha infância e juventude celebravam a Missa cada
dia. Particularmente o pároco do tempo do meu seminário maior e da minha
Ordenação. Na Eucaristia ferial quotidiana, liberto das exigências cerimoniais da
Missa dominical, o padre Vaz, que silêncio, que vagar, que sagrado... Aprendi o
essencial da Missa do lado de trás do altar, antes ainda de entrar no seminário.
Aprendi que a pressa nem sempre alcança o que pretende quando tive que frequentar
por dois anos o 4.º volume da catequese, como então se dizia, por ainda não ter idade
para a Profissão de Fé. Mas guardo para sempre a memória desse dia, num lugar de
mim inapagável: a renovação do Credo baptismal, o acto de comungar, o laço branco
no meu braço, a flor de liz, rubra, na procissão da tarde, para Nossa Senhora, a minha
primeira Bíblia, que o meu tio padre me ofereceu – «Já tenho uma Bíblia inteira!»
«Tu, p’ra padre?» – perguntava, se calhar como muitos outros, a Ti Rosa, boa e doce,
– «És o mais irrequieto dos três!...» (nós somos três irmãos). «Os padres num se quer
mamões!»
– respondi certo e seguro, aos oito anos, num episódio que entrou no anedotário da
paróquia, onde ainda às vezes assoma.
Eu queria e, aos 11 anos, após uma longa e preocupada conversa dos meus pais com o
senhor abade, fui proposto ao seminário. E fui aceite. E, salvaguardando que vivi
intensamente o meu tempo de rapaz com todas as rapaziadas que felizmente o
preenchem e o tornam inesquecível – até fumei sem os meus pais saberem! – acho
que a minha vida, no que é essencial, a partir desse primeiro passo explicitamente
dado no percurso que me traria ao presbitério, nada mais foi senão aceitar, receber,
acolher. Tal como agora, presbítero, procuro viver cada pessoa, cada situação, cada
desafio, aceitando, acolhendo. Nada renego do que vivi e se algo lamento foi ter-me
entregue ao estéril exercício de peneirar a existência, para guardar só o ouro, antes de
a mesma vida me ter conduzido à familiaridade com o olhar de Jesus sobre mim, com
conhecimento e maturidade suficientes para me olhar com os seus olhos e

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compreender que na minha miséria é que se encontrava o tesouro.
A vida não foi parca nos desafios que me colocou, nas situações que me deu para
enfrentar, nas pessoas que fez irromper no meu caminho, neste período mais
consciente e de que consigo uma leitura próxima.
Os desenraizamentos vários a que o seminário obrigou, bem como as exigências da
vida comunitária, as perdas sucessivas dos colegas que foram saíndo – dos que
entraram comigo, meninos ainda, só eu cheguei ao fim – foram-me exercitando para
uma forma de desapego que possibilitaram acolher, um dia, a liberdade, quando Jesus
Cristo, Pessoa viva feito Tu para mim, me veio oferecer este dom maior da liberdade
dos filhos, condição indispensável para a consciência ministerial que desejava
conceder-me.
O tempo de seminarista foi pródigo para mim e, num outro sentido, eu também fui
um pouco «filho pródigo» para o seminário. Além de um curso de teologia, de uma
disciplina de vida espiritual, de uma inciação global ao ministério e de um grupo fiel
de amigos companheiros, deu-me largo espaço para uma entrega, por vezes
excessiva, à vida da casa, oportunidades sérias de confronto com as minhas
insuficiências e, não menos importante, generosa possibilidade para conhecer muitos
lugares eclesiais e do mundo e figuras de padres e de leigos que influenciaram o meu
modo de ir descobrindo progressivamente as razões para ser padre, que a ausência de
porquês inicial, incompatível já com o exercício da razão, tornava necessárias.
Principalmente, o seminário deu-me algo sagrado: o meu porquê, para além das suas
multiformes concretizações eventuais, não poderia ser senão Jesus Cristo, a procura
da sua intimidade, a experiência e a certeza do Seu amor, tão pessoal quanto
universal. Foi aí, esse momento nuclear que plasmou a decisão de acolher o Seu
chamamento a participar, no ministério Ordenado, na sua missão dentro do seu
Corpo, para a salvação do mundo. Por isso tanto considero a obediência, expressão
máxima da liberdade que se faz amor. Por isso, também, ainda se um dia desfeita a
obrigatoriedade da vinculação do celibato ao ministério Presbiteral, eu quero manter-
me assim, célibe por causa da indivisão do coração e para significar, nesta possível
imagem de incompletude pessoalmente decidida, a presença no mundo de um Reino
em crescimento que não se cumpre inteiramente nos limites do tempo. O meu porquê
é Jesus Cristo e nada soa tanto aos meus ouvidos como as palavras últimas do ritual
da Ordenação, quando o Bispo me entregou as “Oferendas do Povo Santo de Deus”:
«... e conforma a tua vida pelo Mistério da Cruz do Senhor.»
Nesse dia, há vinte anos, já a minha decisão era a de viver «Por Cristo, com Cristo e
em Cristo», como, a meu pedido, Irene Vilar, na intemporalidade do latim, inscreveu
no cálice que concebeu e na pagela que desenhou. Mas só a vida sacerdotal me veio
desvelar, ao ritmo do correr dos dias, o sentido infindo deste voto.
Tive o privilégio, então não totalmente compreendido – a minha pressa! – de estagiar
três anos numa real comunidade de padres, em Santo Tirso, onde, entre outras coisas,
conheci a vida paroquial e a Acção Católica Operária, pela mão de grandes pastores,
irmãos e pais – anciãos, presbíteros de estado e condição. Retomei o Escutismo, com
outro grande irmão e pai no presbitério, com quem partilhei a assistência regional do
movimento na diocese. Conheci, como coadjutor, uma paróquia no coração da Cidade
do Porto – Cedofeita. Fui preciso no seminário e para lá fui. Hoje levaria menos

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bagagem e menos certezas... e menos pressa. Cinco anos a começar de novo em cada
um deles, porque, com outro padre, um irmão de cada vez, era responsável pelo
acompanhamento exclusivamente do 1.º ano de Teologia. Foi um tempo largo para o
meu processo interior, até porque sentia que o melhor que podia dar aos rpazes era o
testemunho de que, como eles, estava em caminho. E também sabia que só esta
procura interior me tornaria capaz daquilo que tão grande responsabilidade me pedia.
Entretanto, o Escutismo, sempre.
Mas, de repente: «É necessário como capelão no Hospital de São João. Preciso da sua
resposta hoje» – dizia o bispo. E garantia-me: «Vai ser mais difícil tirá-lo de lá, do
que enviá-lo para lá.» Foi o medo. Eu? E a percepção de uma realidade estranha: era
como se estivesse a ser re-ordenado, mas agora mais a sério, como se este sim pedido
tão surpreendentemente é que exigisse de facto tudo o que o que o sim da Ordenação
pede que acolha: «... e conforma a tua vida pelo Mistério da Cruz do Senhor.» Não
havia por onde escapar. Era a verdade do meu sacerdócio que estava em causa.
Apesar do medo e da incapacidade que sentia, experimentava ainda mais
profundamente que negar seria trair o âmago do que significa ser padre: seguir Jesus
mais de perto, na sua entrega quotidiana aos pobres, aos doentes, aos que sofrem, o
Jesus que os evangelhos não permitem iludir. Disse que sim e, nessa noite, sozinho na
capela do seminário que deixaria, chorei – é, os padres também choram... – e pedi a
Deus para me dar a graça, em cada dia, de não perguntar porque é que o bispo me
tinha mandado para o hospital, já que me sentia relegado para uma realidade
marginal, mas para que é que Ele me queria no hospital. No dia 7 de Outubro de
2008, Senhora do Rosário, dez anos exac‑ tos após o primeiro dia em que celebrei o
mistério da Fé no Hospital de São João, fui visitar o bispo que me nomeou, agora
emérito, agradecer-lhe e dizer-lhe que, de facto, me seria um dia muito mais difícil
sair do que fora entrar. É que, ali, descobrira a compaixão, que tudo transforma.
Estes dez anos conduziram-me a uma consciência nova de muitas coisas. Já fui aceite
e recusado, já muitas pessoas me morreram nas mãos e já de muitas me despedi,
restabelecidas, e já muitos recém-nascidos acariciei. Já chorei mais vezes, com mães
que choravam a dor e o termo de seus filhos e já me alegrei com alegrias mais
sublimes que o que consigo comunicar. Já me sentei na cama de velhos, pais e mães
entregues à sua sorte e interroguei mudamente seus filhos e filhas estregues às suas
vidas. Descobri os profissionais de saúde e a necessidade que muitos têm da presença
do capelão. Depois, os estudantes de saúde e a disponibilidade que muitos têm para as
propostas do capelão.
Estudei, por conta e risco, que para esta tarefa não era eclesiasticamente pensável que
fosse precisa competência específica. Percebi que esta é obrigatória para uma
actuação evangélica e, só assim, evangelizadora, na cultura e nas instituições de
saúde. Reconheci o heroísmo de muitos homens e mulheres, crentes e não crentes,
que se gastam pelos doentes e surpreendi-me com a indiferença de que um rosto
saudável e investido em responsabilidade pode revestir-se diante de outro, se nele se
espelha a vulnerabilidade e a finitude que o tempo procura esconder, como quem se
esconde.
Fui chamado a Coordenador Nacional das Capelanias e, por aí, ao Comité da Rede
Europeia das Capelanias – organismo fecundamente inter-confessional. O meu olhar

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alargou-se e aprofundou-se, tentando eu que não se afunde nem se estreite. Descobri
um mundo sem fim em situação de emergência pastoral, um mundo onde, no
presente, está em causa o futuro do homem. Um mundo que esta Igreja de que sou –
com toda a responsabilidade o afirmo, porque não posso não dizer e a obediência é
leal – teima não querer reconhecer consequentemente.
Procurei que os capelães formassem corpo, entre si e com os irmãos, tal como com os
iguais na multidisciplinaridade hospitalar. Procurei que os hospitais fossem a casa de
todos, também religiosamente.
Lutei para que o Sistema não amputasse, por via legislativa, num golpe só, os doentes
do seu direito à fé, o conceito de saúde de fundamento antropológico e as equipas de
cuidados de agentes de acompanhamento espiritual e religioso.
Neste Ano Sacerdotal, o bispo chama-me a ser seu delegado para o acompanhamento
dos padres mais jovens. Sempre preferi, entre todos os modos de nos chamarmos, o
de presbíteros. Tanta diversidade no meu percurso, tantos serviços em tão diferentes
lugares, quantas vezes sem “rebanho próprio”, sedimentou, no mais fundo de mim, o
amor ao presbitério, realidade tão esquecida, para não dizer ofendida, por práticas
individualistas, que esquecem que a nossa missão, na pluralidade das tarefas, é única;
e por opções de vida em que a secularidade, que caracteriza a nossa condição, se vê
hipotecada nos mil e um balcões da mundanidade.
Mas creio no presbitério e creio que só a opção por dinamismos relacionais e
organizacionais próprios da dimensão de comunidade que esta consciência de corpo
traz ao bispo e aos padres de cada igreja particular permite que, no seio do Povo de
Deus, sejamos epifania da Comunhão que salva, que faz da Igreja Sacramento e, da
sua acção, evangelização, serviço do Reino.
Pecador, sou presbítero e procuro sê-lo, como no primeiro dia, «por Cristo, com
Cristo e em Cristo». Espero sê-lo ad aeternum. Por Graça. Puro dom a acolher nesta
fragilidade pessoal que Ele ama e quis. Mistério a contemplar. Ministério a cumprir,
em presbitério.

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AJUDA À IGREJA QUE SOFRE
UMA ORGANIZAÇÃO AO SERVIÇO DA IGREJA
A Ajuda à Igreja que Sofre (AIS) é uma Organização Pública Universal
Dependente da Santa Sé em estreita colaboração com as Conferências Episcopais de
cada país e com os bispos diocesanos. Foi fundada em 1947 pelo reverendíssimo
padre Werenfried van Straaten, o. praem., inspirado na mensagem de Fátima, após a
Segunda Guerra Mundial, para ajudar os milhões de refugiados da Alemanha de
Leste, que fugiam da ocupação comunista.
Organização essencialmente pastoral, não cessa de ajudar a Igreja, onde quer que
seja perseguida, refugiada e ameaçada, em mais de cento e cinquenta países. A AIS
apoia todos os anos cerca de oito mil projectos em todo o mundo: na América Latina,
na África, na Ásia e também na Europa de Leste e Ocidente, onde quer que a Igreja
enfrente dificuldades. Os desafios são múltiplos: totalitarismo de esquerda ou de
direita, fanatismo religioso, multiplicação de seitas, materialismo, falta de
sacerdotes…
Como dizia João Paulo II aos delegados da AIS reunidos em Roma:
[…] Nem toda a gente ouve esses cristãos que sofrem em silêncio… Vós actuais, recolheis ofertas, enviais ajudas que levam, aos que esperam, a certeza de que os seus irmãos na fé
conhecem as suas necessidades e não os abandonam… Esta caridade concreta e multiforme é um testemunho indispensável em todas as épocas, sobretudo na nossa.

É este o trabalho da AIS, graças à ajuda de mais de setecentos mil que dão
regularmente apoio com as suas ofertas generosas.
Para mais informações, contacte a Fundação Ajuda à Igreja que Sofre e ser-lhe-á
enviada documentação gratuita.
Secretariado Nacional
Rua Prof. Orlando Ribeiro, 5D – 1600-796 Lisboa
Tel.: 217 544 000 – Fax: 217 544 001
Domus Pater Werenfried – Rua Francisco Marto, 205
2495-448 Fátima – Tel.: 249 534 956
fundacao-ais@fundacao-ais.pt
www.fundacao-ais.pt
NIB. 0032.0109.00200029160.73

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Table of Contents
I Parte
O sacerdócio ministerial ao longo da História
II Parte
12 testemunhos de um chamamento
Trinta anos de sacerdócio, já e apenas
O segredo da felicidade é a fidelidade
Sacerdote para amar e servir
Sacerdócio acolhido como dádiva
Ser padre, uma aventura de graça e de liberdade
O segredo da missão está no sacrário e na rua
Um sacerdócio diferente
Servimos este mundo semeando em cada um a vida divina
Queria ser importante... Mas o importante era (é...) não ser... “importante”!
A descoberta da vocação no quotidiano
Sacerdócio missionário
Mistério, Presbitério, Ministério
AJUDA À IGREJA QUE SOFRE

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Índice
I Parte 4
O sacerdócio ministerial ao longo da História 4
II Parte 16
12 testemunhos de um chamamento 16
Trinta anos de sacerdócio, já e apenas 16
O segredo da felicidade é a fidelidade 19
Sacerdote para amar e servir 21
Sacerdócio acolhido como dádiva 24
Ser padre, uma aventura de graça e de liberdade 28
O segredo da missão está no sacrário e na rua 32
Um sacerdócio diferente 36
Servimos este mundo semeando em cada um a vida divina 39
Queria ser importante... Mas o importante era (é...) não ser... “importante”! 43
A descoberta da vocação no quotidiano 47
Sacerdócio missionário 52
Mistério, Presbitério, Ministério 55
AJUDA À IGREJA QUE SOFRE 60

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