A renovação implica na construção de um pluralismo profissional, fundado em
procedimentos diferentes, que embasam a legitimação prática e a validação teórica, bem como as matrizes teóricas a que elas se prendem. As mobilizações e os conflitos no interior deste movimento, foram capazes de provocar em segmentos significativos da categoria profissional, deslocamentos político-ideológicos que tiveram implicações técnico-profissionais. Outro traço constitutivo do processo de renovação foi o grau de abrangência das discussões teóricas e as formas organizativas de que elas passam a valer- se, que apresentam uma complexidade desconhecida anteriormente. De um lado, procura-se dar fundamento sistemático a todos os componentes do processo profissional, com base nas análises e diagnoses, passando pelos passos interventivos, às variáveis sociais que interferem na ação profissional. De outro, recorre-se a um diversificado elenco de fontes teóricas e ideo- culturais para operar aquela fundamentação. Um dos traços mais marcantes dessas elaborações foi a ênfase na análise crítica do próprio Serviço Social: a profissão mesma se põe como objeto de pesquisa, num aprofundamento teórico antes desconhecido. As antigas entidades que tradicionalmente eram os pólos de discussão da profissão viram-se afetadas nesse processo de renovação. A ABAS criada em 1946 definha no fim dos anos 50, e destacam-se neste novo cenário a Associação Brasileira de Escolas de Serviço Social – ABESS, depois denominada Associação Brasileira de Ensino de Serviço Social, e o Comitê Brasileiro da Conferência Internacional de Serviço Social - CBCISS, depois Centro Brasileiro de Cooperação e Intercâmbio de Serviços Sociais. O CBCISS, cujos embriões datam de final dos anos 40, e que de fato se organiza em 1961-1962, teve papel destacado na promoção de reflexões profissionais inscritas no processo de renovação do Serviço Social no Brasil, através de seus seminários de teorização (Araxá, 1967; Teresópolis, 1970; Sumaré, 1978 e Alto da Boa Vista, 1984). Para José Paulo Netto, são quatro os aspectos que sinalizam os “nós” mais decisivos do processo de renovação do Serviço Social: a) a instauração do pluralismo teórico, ideológico e político no marco profissional, deslocando uma sólida tradição de monolitismo ideal; a) a crescente diferenciação das concepções profissionais (natureza, funções, objeto, objetivos e práticas do Serviço Social\), derivada do recurso diversificado a matrizes teórico-metodológicas alternativas, rompendo com o viés de que a profissionalização implicaria numa homogeneidade de visões e práticas.
c) A sintonia da polêmica teórico-metodológica profissional com as discussões
em curso no conjunto das ciências sociais, inserindo o Serviço Social na interlocução acadêmica e cultural contemporânea como protagonista que tenta cortar com a subalternidade intelectual posta por funções meramente executivas. É neste processo que o Serviço Social é reconhecido como área de investigação e produção de conhecimento a ser estimulada no âmbito da comunidade científica pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico- CNPQ.
d) A constituição de um segmento de vanguarda, inseridos na vida acadêmica,
voltados para a investigação e a pesquisa.
A renovação do Serviço Social aparece sob todos os aspectos como avanço,
mesmo nas vertentes em que as concepções herdadas do passado não são essencialmente colocadas em pauta. Registra-se uma articulação que lhes confere uma arquitetura que procura oferecer mais consistência à ordenação de seus componentes internos. A autocracia burguesa exerceu uma função precipitadora de um processo de erosão do Serviço Social “Tradicional” que lhe é anterior, e a ela conferiu uma direção particular, colocando demandas de intervenção sobre a questão social, que se desdobravam amplamente as práticas profissionais, com a assunção da abordagem comunitária como outro processo profissional, além das abordagens individual e grupal. Ainda que o universo teórico-ideológico do Desenvolvimento de Comunidades fosse candidamente acrítico e profundamente mistificador dos processos sociais reais, e não supusesse uma ruptura com os pressupostos gerais do tradicionalismo, ele abria uma fenda nas preocupações basicamente microssociais. Outra consequência era a inserção do assistente social em equipes multiprofissionais, relacionando o assistente social com aparelhos administrativos e decisórios do Estado, situando-o ao mesmo tempo em face das novas exigências de alocação e gestão de recursos e de circuitos explicitamente políticos. O II Congresso Brasileiro de Serviço Social realizado no Rio de Janeiro em 1961, significou não apenas a descoberta do desenvolvimentismo, mas efetivamente a intervenção profissional inscrita no Desenvolvimento de Comunidade como a área do Serviço Social a receber dinamização preferencial e mais compatível com o conjunto de demandas da sociedade brasileira. São elementos determinantes para detectar a erosão do Serviço Social tradicional: - o reconhecimento de que a profissão, ou se sintoniza com as solicitações de uma sociedade em mudança e em crescimento, ou se arrisca a ver seu exercício relegado a um segundo plano; - levanta-se a necessidade de aperfeiçoar o aparelhamento conceitual do Serviço Social e de elevar o padrão técnico, científico e cultural de profissionais desse campo de atividades, com o reconhecimento da insuficiência da formação profissional; - a reivindicação de funções não apenas executivas na programação e implementação de projetos de desenvolvimento. - o amadurecimento de setores da categoria profissional, na sua relação com outros protagonistas ( equipes multiprofissionais, grupos da população politicamente organizados, núcleos administrativos e políticos do estado). - o desgarramento de segmentos da Igreja católica em face de seu conservantismo tradicional e a emersão de católicos progressistas, e mesmo de uma esquerda católica, com ativa militância cívica e política. - a expansão do movimento estudantil, que faz seu ingresso nas escolas de Serviço Social. - o referencial próprio de parte significativa das ciências sociais do período, influenciadas por dimensões críticas e nacional-populares. Vislumbra-se, no início dos anos 60, um duplo movimento de desprestígio do Serviço Social tradicional, e a crescente valorização da intervenção no plano comunitário, nos quais era possível identificar três vertentes: - uma corrente que extrapola para o Desenvolvimento de Comunidades os procedimentos e as representações tradicionais, apenas alterando o âmbito da sua intervenção; - outra que pensa o Desenvolvimento de Comunidade numa perspectiva macrossocietária, supondo mudanças socioeconômicas estruturais, no bojo da sociedade capitalista; - e por último uma vertente que pensa o Desenvolvimento de Comunidade como um instrumento de transformação social substantiva, conectado à libertação social das classes e camadas subalternas. O Golpe de Abril modificou substantivamente o cenário no qual essas transformações vinham se desenvolvendo. Num primeiro momento, pela neutralização dos protagonistas comprometidos com a democratização da sociedade e do Estado, cortando os suportes que poderiam dar encaminhamento crítico e progressista à crise em andamento no Serviço Social tradicional. Com seu projeto de modernização conservadora, precipitou essa mesma crise, pois as duas vertentes compatíveis com os limites da autocracia burguesa (as duas primeiras citadas), encontrariam um campo aberto para se desenvolver.