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APIA 15, 2003, 8 125: RESQUICIOS DE AFRICANISMOS LINGUISTICOS NO BRASIL Hildo Honério do Couto (UnB/IESPLAN) ido um intenso contato de linguas.no Brasil inicialmente entre portugués € linguas amerindias. Com o inicio da importagao de escravos, as Hinguas africamas se somaram a esse proceso. Sua presenga passou avser tio marcante que alguns estudiosos chegaram a dizer que houve linguas gerais (linguas francas)africanas no pafs (Rodrigues 1945, Rodrigues 1983). Até hoje se tem discutido se desse contato surgiu um crioulo. Alguns falam em resquicios de crioulizagao prévia (Baxter & Lucchesi 1995, Gilbert 1993), outros falam em semictioulizagao (Holm 1992b, Mello 1996,Souza 1999). Meu objetivo nesta comunicagio nioé discutir essas importantes questdes. O que pretendo fazer € simplesmente discutic possiveis resquicios de africanismos lingiisticos subsistentes no Brasil, independentemente da questio crioulizagio/nao crioulizagio ou semicrioulizagao. Esses resquicios podem ser respigados em comunidades de ex-quilombos, nos tituais afro-brasileiros, no léxico geral da Kingua e,talvez, ‘em alguns fendmenos fonéticos e morfossintéticos em fase adiantada de extinco. Alguns desses ltimos seriam a flexao no inicio da palavra: ‘io tenho a pretensfo de aptesentar dados novos. Minha intengdo é chamar a atencio para as mencionadas sobrevivéncias de africanismos no Brasil, slientando algumas evidéncias jpresentadas por outros autores. Nesse sentido, creio que minha contribuigio, se é que ha alguma, consistiria mais em uina retomada do assunto e uma sugestio de novas metodologias, para se investigar a questo. As vezes, uma nova andlise de determinado fendmeno com instru- mental tedtico mais refinado pode ser mais interessante do que sua primeira apresentacio. 2. A questiio geral dos africanismo: no Brasil _ Queas linguas africanas tiveram um papel muito importante no period de formago do Brasil nfo resta a menor davida. Basta ver a relativamente extensa bibliografia sobre escravidéo ‘ogra. Pelo menos na primeira medade do século XVII surgiu a obra Obra nova de lingua geral cde Mina, na regido de Vila Rica (cf. Peixoto 1945). “Trata-se de um cademo redigido na intengéo. de ensinar um vocabulério africano que eracomumente tsado entre escravos da regido. Esse vocabulério precisamos como de base ewe, ¢, dos 831 termos que ele contém, 80% podem ser ‘dentificados com fon, enquanto 20% sdo mahi; mina e ewe, embora nao esquecendo, comoj4 dissemos, que, do grupo de linguas ewe, o fori; o gun ¢ o mahi so muito proximos entre si” (Pessoa 1978:19). Essa obre foi analisada por Souza (2001) e por Rodrigues (2003). Existem outros trabalhos do género, como o bein mais recente Garcia (1935). Como {informa esse autor, aobra teria sido escrita na primeira metade do século XIX, em Pernambuco, poralguém que lho entregou, porém, nao se lembrava mais de quem poderia ter sido. O glossério consta de cerca de 223 itens lexicais portugueses com equivalentes em “nag6”, ou seja, iorubi. No final, hé um subtitulo “Observagées gramaticaes” que, na verdade, consta dos numerais de 1a 10, 0s pronomes “emi” (eu), “ond” (tu), “miléni” (meu, minha) algumas expresses © 126 noo Hoven 99 Coune algumas observagées efetivamente gramaticais, sendo uma delas a de que o género é indicado pela palavra ocoré (macho) ¢ oberé (femea). Assim, irmao ¢ amd-ocoré ¢ irma € amd oberé. Isso lembra as expresses menino home e menina muié ou menino macho e menina fémia, do interior do Brasil. No crioulo guineense é mininu matchu ‘menino’ ¢ nininu feria ‘maenina’, ‘Nos tempos atuzis ainda subsistem resquicios de afticanismos, sobretudo ligados aos cultos afto-brasileizos. Também eles vem sendo estudados, sobretudo por cientistas sociais, comoéo caso do xangé do Recife, estudado, entre outros, por Carvalho (1995). Ele registrou praticamente todos os cantos, acrescentando a tradugdo em portugués e comentarios, O tnico sendo desse trabalho & que o autor se esmerou em transcrever as palavras pela forme que tém no iorubé atual, com tons e tudo mais, ndo o que efetivamente se diz atualmente no Brasil. Bonvini (2000) faz:umea descrico minuciosa da linguagem de preto velho dos terreiros de umbanda do Rio eda Baixada Fuminense. ‘Em outros paises da América Latina, temos situagGes muito semelhantes. Em Cuba, pot exemplo, temos a santerfa, muito parecida com esse xang6. Em Cabrera (1993) temos uma apresentagio romanceada da cultura e dos resquicios de afticanismos em Cuba, Em Alvarez (1987) temo-lo para a Venezuela. E assim por diante. Registrem-se também os trabalhos de Verger, Bastide e de Herskovit ‘Uma segunda fonte para pesquisa de resquicios de africanismos lingtiisticos no Brasil é ‘constituida pelas comunidades de ex-quilombos. A mais conhecida entre essas comunidades éa do Cafund6, bairro rural do municipio de Salto de Pirapora, a 30km de Sorocaba, estado de $0 Paulo, A “descoberta” da linguagema dessa comunidade se deu no final da década de 70 por Carlos Vogt, Peter Fry e Maurizio Gnerre. Consultando Vogt & Fry (1978, 1996) bem como ‘Andrade (2000), nota-se que a cupépia (como as vezes 6 chamada) consta de cerca de 200 palavras, alm de expressoes compostas. A seguir, temos algumas frases, tiradas des primelros: (a) vimbundo esté cupopiando no injé do tata ‘o homem preto esté falando na casa do pai (b) nanhamanhara euendou no ingombe do andaru ‘o homem foi de carro" (©) hoje eu vou cogumbar o mambi no orofim ‘hoje eu vou passar o machado no mato (cortary’ ‘No capitulo 6, os autores reproduzem um extenso didlogo em cupSpia, com comentarios. No capitulo seguinte, eles procuram investigar as possiveis origens da lingua do Cafundé, incluindo algumas sugestées de etimologia. No.cap. 8, eles falamn de “outras‘linguas africana no Brasil". Sao as de Conceigdo dos Caetanos (vale do Ribeira, SP), de Vila Bela ede Livramento (MT), de Moji das Cruzes (SP: com alguns itens lexicais), Alfenas/Pogos de Caldes (MG: com muitas expresses) e, por fim, de Patrocinio (MG), no Triangulo Mineiro, a 300 km de Belo Horizonte, ‘Mais recentemente, Silvio Vieira de Andrade defendeu uma tese de doutorado na USP sobre. linguagem de Cafund6. Trata-se do primeito trabalho especificamente sobre a lingua, © ‘lo sobre aspectos culturais. O autor analisa todos os nfveis gramaticais da cupopia, ouseja, a fonétice, a morfologia, a sintaxe, os campos semainticos. Por fim, apresenta um “Dicionério 5 ‘-portugués’ eum “Diciondrio portugués-’cupdpia”.O primeiro deles contém cerca de ‘upepi 317 entradas. Em 2000, 0 texto foi publicado em forma de livro (Andrade 2000). Resqucio pe wc neoimneo No BRAS 127 ‘Uma outra comunidade muito interessante é a de Bom Despacho (regio oeste de Minas), bsirro de Tabatinga. Os moradores so'conhecidos como “negros da costa’. Essa comunidade estudada por Sénia Queiroz, da UFMG, Ja na “sinopse” inicial do livro que publicou, a autora afirma que essa linguagem se testringe “quase que exclusivamente ao léxico, em que predominam vocdbulos de origem africana, enquanto na gramatica, as estruturas séo as mesmas do portugués regional” (Queiroz 1984: 11), 0 que mostra qué ela se enquadra no que chamei de anticrioulo ‘(Couto 2002). 0 vocabisltio apresentado pela autora contéin cerca de 330 entradas, sendo algumas delas de itens compostos em consondincia com'a gramatica do portugués, fato compartithado pelos outros glossérios mencionados acima Vejainos algumas frases na linguagem do “negro da costa”: (@) Os cucte imbanic da ocaia (..] & tudo curimbad@’, curimba avura ‘Os cara irmao da muihéé tudo trabalhad6, trabalha muito’ (b) As ocaia tipura s6 assim pra mim: é, cuete, gé 6 cixipad6, né no, cuete? ‘As mulhé fala 56 assim pra mim: é, cara, cé & comed6, né nio, cara?” ‘Segundo Aires da Mata Machado Filho, em Sao Jodo da Chapada, préximo a Diamantina, no norte de Minas Gerais, também existiam resquicios de linguagem africana que se manteveram sobretudo devido aos cantos chamados vissungos. O autor a chamou de “dialeto crioulo de Séo Joo da Chapada”, o que, evidentemente, ndoé verdade. Abaixo temos alguns exemplares desses cantos, sem tradugdo, que no foi fornecida pelo autor. ® (b) orossangi Eu memo & capicovite ccum galinha Eu memo é catiocanga . cum quimbondé Eumemo é candandumba serena cou ldbo lobs * barundo ue ié be barundo uéereré ( tivro termina com win “Vocabuléio crioulo de sanjoanense", com 156 entradas, seguido de outro intitulado “Vestigios do dialeto crioulo no linguajar local”, com 40 entradas. Ao que tudo indica, trata-se também de um anticrioulo. Com efeito, “antigamente os escravos nose contentavam com as cangées em lingua propria. Usavam, até hé pouco tempo, seu idioma natal, cada vezmais mesclado de portugués, naturalmente” (Machado F° 1985: 118) Em todo 0 Triangulo Mineiro parece que ha diversas comunidades de ex-quilombos. Batinga (1994), apesar de assistemitico e nao explicitar onde colheu seus dados, apresenta ‘uma lista das cerca de 200 palavras que conseguit coletar. Ele afirma que, apesar de ndo mi ser “falado como antigamente”, “o linguajar Kalunga (..] ainda pode ser reconhecido, falado escrito, por algumas dezenas de pessoas negras, mesticas e brancas. Muita gente conhece palavras sem, contudo, saber formar frases. Muita gente, por outro lado, é capaz de conversar, ‘quando analfabeto, fatar e escrever, quando alfabetizado”. Infelizmente, o autor nao apresenta ‘nenhuma frase “kalunga”; a ngo set kuriata acaxo ‘comida chegou’, kamano acaxo ‘homem esti chegando ou chegou’ e compostos do tipo okay de banzo ‘mulher adiltera’, macara de sanjé ‘ovo’ c fairs de sanjo ‘foice’.-.. 128 aoe Hoxono 00 Couro Hé diversas outras comunidades de ex-quilombos por todo Brasil. Entretanto, a maioria delas no mantém nada mais das inguas africanas originais. O processo de glototandsia (morte de lingua) chegou ao seu final. “Tudo que foi discutido até aqui pode ser chamado de enclaves punctuais, alguns deles ainda sobreviventes. No entanto, a questao “afticanismos no Brasil” tem sido estudada também dda perspectiva das marcas que as linguas africanas deixaram no portugués brasileiro, O tema ter sido investigado por diversos filélogos do passado como, por exemplo, Mendonge (1973). Mais recentemente outros autores se dedicaram ao assunto de uma perspectiva mais “lingistica”, Entre eles poderiamos citar Angenot, Jacquemin & Vincke (1974), Megenney (1978), Schneider (1991), além de Lopes (s/d) e Castro (2001). O iltimo livro retoma dados contidcs em De ‘antégration des apportsafricains dans les parlers de Bahia au Brésil, que foi a tese de doutorado da autora, em 2 volumes; defendida em 1976 na Universidade Nacional do Zaire (inédita). Eu acrescentaria ainda a obra Nouveau dictionnaire étymologique afro-brésilien: afro-brasileirismos dorigine ewé-fon et yoruba, de Lébéné Philippe Bolouvi, a que nao tive acesso. Os textos de Margarida Petter, Jorge A. A. da Silva, Terezinha Resende, Nortna Lopes, Mary Careno e Silvio Andrade Fo. deste nimero de Papia também tratam da questo Iinguas afticanas no Brasil”. Nas seqes seguintes, comento alguns possiveis resquicios de afticanismos lingilisticos que pude respigar aqui e ali no portugues brasileiro. Como jé adiantado acime, eles parecem ser encontraveis em todos os niveis da lingua. Comego pelo léxico. 5. Africanismos lexicais ‘O componente da lingua em que os resquicios de africanismos séo mais conspicuos € 0 \éxico. Isso no constitui nenhuma surpresa, uma vez que sabemos que é ele que representa mais diretamente a cultura de um povo. Como sabemos, a cultura brasileira é fortemente marcada pela presenca africana. Portanto, as entradas lexicais de origem africana permeiam praticamente ‘quase todas as éreas seminticas em que 0 léxico do portugués brasileiro pode set dividido. A seguir, apresento alguns exemplos, em ordem alfabética, atendo-me a alguns dos mais conhecidos. Na medida do possivel, apéio-me em Castro (2001), a ndo ser quando indicado em contrério. + (a) banguela (< bantu) ‘desdentado ou que tem a arcada dentéria falha na frente’; (b) ‘burda'(< bantu) ‘nédegas’; (c) cacunda (< bantu} ‘dotso, costas; que roga praga pelas costas’ ( Gi]. (aw. @] > Cu, (fizeram > fizero, homem > home); (d) {1} > fr] (planta > pranta); (e) (s} > 0: ‘menino); (Q) CC> CVC (branco > baranco, porta > pota -sic!). Holm (1987: 406) achs que a afticativizacio de /t/e /d/ antes de {i revela influéncia do crioulo sdo-tomense, lingua em que praticamente todas as seqiiéncias desse tipo viraram {t5]. Eu ‘nfo creio que isso seja verdade. Com efeito, trata-se de um processo fonético assimilat6rio ‘encontrével em muitas linguas, como o japonés 0 inglés. Além do mais, a quantidade de sio- tomenses que vieram para o Brasil foi insignificante, se considerarmos as proporgées ccntinentais ddenosso pais. Néo obstante, pode ser que outros fendmenos fonéticos jamais considerados como devidos a influéncia africana podem sé-lo, como.os exemplificados que se véem em seguida: (a) 1nd2 [qu o0é mora]: cf. nde no crioulo!; (b) mbdra ( salvé > salavé > surava) Cruz (1996) menciona fatos do portugués paraense presumivelmente de origem africana, ‘Trata-se de (i) neuttalizacao das vogais médias posteriores, (ii) alterndncia entre as liquidas, (it) ideofones. Poder-se-ia acrescentar também a tendéncia aevitar consoante na coda silébica. 8. Observagées finais Infelizmente, todas as linguas africanas que foram ttazidas para o Brasil chegaram quase a0 término do provesso de glototandsia. Nem mesmo as Iinguas gerais conseguiram sobreviver. O ‘que houve com elas é muito parecido com o que aconteceu com o bretao. Nesse caso, causa da lototandsia foi o fato de que “as duas linguas ndo tinham omesmo valor, nio estavam no mesmo nivel social. Una das duas morreut porque se encontrava em situacao de inferioridade” (Vendryés 1952: 43). Devido a paucidade de dados, a maioria dos exemplos discutidos acima pode ter alguma dose de verdade. O problema é que muitos fendmenos seriam explicdveis também por tendéncias gerais de simplificaglo, ou de opgao por formas ndo-mercadas, ou menos marcadas,em sitwagdes de contato de linguas. Na auséncia de mais evidéncias, fica dificil chegarse a uma ‘conclusdo segura. O fato€ que as influéncias lexicais sao inegéveis. Tanto isso é vetdade que “em alguns casos, a palavra banto chega a substituir completamente o seu equivalente em portugués” (p. 745, 121). Bis alguns exemplos, em que “<” significa “substituiu’: moringa

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