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FELÍCIO WESSLING MARGOTTI

MARTA DE FARIA E CUNHA MONTEIRO


WAGNER SABACK DANTAS
(Organizadores)

ANAIS DO SIMPÓSIO INTERNACIONAL


LINGUAGENS E CULTURAS:
HOMENAGEM AOS 40 ANOS DOS
PROGRAMAS DE PÓS-GRADUÇÃO EM
LINGUÍSTICA, LITERATURA E INGLÊS
DA UFSC

INGLÊS
LINGUÍSTICA
Apresentação LITERATURA
PÓS-GRADUAÇÃO
Sumário geral CCE - UFSC
anos
FELÍCIO WESSLING MARGOTTI
MARTA DE FARIA E CUNHA MONTEIRO
WAGNER SABACK DANTAS
(Organizadores)

ANAIS DO SIMPÓSIO INTERNACIONAL


LINGUAGENS E CULTURAS:
HOMENAGEM AOS 40 ANOS DOS
PROGRAMAS DE PÓS-GRADUÇÃO EM
LINGUÍSTICA, LITERATURA E INGLÊS
DA UFSC

1ª. Edição
Florianópolis
UFSC / CCE
2011
Catalogação na fonte pela Biblioteca Universitária da
Universidade Federal de Santa Catarina

S612a Simpósio Internacional Linguagens e Culturas (2011:


Florianópolis, SC)
Anais do Simpósio Internacional Linguagens e
Culturas : homenagem aos 40 anos dos Programas de
Pós-Graduação em Linguística, Literatura e Inglês da
UFSC / Felício Wessling Margotti, Marta de Faria e
Cunha Monteiro, Wagner Saback Dantas, organizadores.
- 1. ed. – Florianópolis : UFSC/CCE, Programas de Pós-
Graduação em Letras, 2011.
1.494 p.: il., gráfs., tabs., mapas

Inclui bibliografia
ISBN: 978-85-60522-74-3
1. Universidade Federal de Santa Catarina. Programas
de Pós-Graduação em Linguística, Literatura e Inglês
- Avaliação - Congressos. I.Margotti, Felício Wessling.
II.Monteiro, Marta de Faria e Cunha. III.Dantas, Wagner
Saback. IV. Título.
CDU 378.22UFSC
SUMÁRIO GERAL

Apresentação

Sumário de Linguística

Sumário de Literatura

Sumário de Inglês

Comissões organizadoras

Como referenciar a obra

Como obter os artigos individualmente


SUMÁRIO GERAL

Apresentação

ANAIS DO SIMPÓSIO INTERNACIONAL LINGUAGENS E CULTURAS:


HOMENAGEM AOS 40 ANOS DOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
LINGUÍSTICA, LITERATURA E INGLÊS DA UFSC

APRESENTAÇÃO

Os Programas de Pós-Graduação em Linguística (PPGLg), Literatura (PPGL) e


Inglês (PPGI) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) completaram, em 2011,
quarenta anos de existência. Em 1971, em uma iniciativa pioneira no país, a UFSC criou
o curso de Pós-Graduação em Letras, em nível de mestrado, com três áreas de
concentração: Literatura Brasileira, Linguística e Inglês. Essas três áreas, que sempre
executaram suas atividades com autonomia, administradas por três coordenadores
independentes, ganharam autonomia plena em 1983, ao se tornarem programas próprios,
por ocasião do recredenciamento do curso, atendendo a recomendação da comissão
avaliadora da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Tendo essa breve retrospectiva como pano de fundo, o PPGLg, o PPGI e o PPGL
organizaram o Simpósio Internacional Linguagens e Culturas, realizado no período de 04
a 07 de outubro, no Centro de Comunicação e Expressão (CCE) da UFSC, reunindo
pesquisadores de destaque das áreas de Letras/Linguística que contribuíram com a
história desses programas.

O objetivo deste evento foi produzir reflexões acerca da história dos estudos da
linguagem no Brasil e na região, evidenciando o trabalho realizado pelos pesquisadores
desses Programas de Pós-Graduação nos últimos 40 anos, assim como as suas parcerias
científicas em convênios e projetos interinstitucionais, nacionais e internacionais, além
de debater questões seminais da área por intermédio de mesas-redondas e grupos de
trabalho. Mais especificamente, o evento também teve como objetivos:

• Congregar pesquisadores brasileiros e estrangeiros envolvidos em trabalhos nas


diferentes áreas/linhas de pesquisa dos PPGLg, PGL e PPGI, bem como docentes e
discentes que participaram desses Programas;

• Possibilitar a apresentação de um esboço panorâmico de questões teóricas e aplicadas


relacionadas às diferentes áreas dos Programas ao longo de sua história até os dias atuais;

• Propiciar o debate acadêmico em torno das temáticas relativas às linhas de pesquisa


vigentes nos Programas;

• Oportunizar a discussão de questões relevantes para a construção de agendas científicas


pelas diferentes áreas/linhas de pesquisa.
SUMÁRIO GERAL

Apresentação

A programação do evento foi composta pelas seguintes atividades: 24


mesas-redondas (09 de Linguística, 09 de Literatura, 06 de Inglês, além das mesas de
abertura e de encerramento) e 24 Grupos de Trabalho (11 de Linguística, 07 de Literatura
e 06 de Inglês), totalizando 317 trabalhos inscritos.

Os participantes dos GTs foram convidados a enviarem seus trabalhos para


publicação e, assim sendo, a Comissão Organizadora recebeu 108 artigos, os quais
compõem os Anais ora publicados no formato de e-book. Os trabalhos disponibilizados a
seguir foram alguns dos apresentados nos GTs. Os da área de Linguística tratam de (i)
ensino e aprendizagem de língua estrangeira, (ii) ensino e aprendizagem de língua
materna, (iii) linguagem: discurso, cultura e tecnologia, (iv) Língua Brasileira de Sinais –
LIBRAS, (v) aquisição e processamento da linguagem, (vi) políticas linguísticas, (vii)
variação e mudança linguística, (viii) fala do ponto de vista perceptual-
acústico-articulatório e os modelos fonológicos, (ix) gramática do uso, (x) interfaces da
gramática, (xi) linguagem e cognição; os de literatura, por sua vez, discorrem acerca da
(xii) teoria da modernidade, (xiii) textualidades contemporâneas, (xiv) literatura e
filosofia: saber, poder e subjetivação, (xv) literaturas estrangeiras modernas: visões da
morte na literatura, (xvi) literatura e cinema, (xvii) Walter Benjamin o ruinólogo, (xviii)
literatura e discurso; e os de Inglês discutem (xix) análise do Discurso, (xx) leitura, (xxi)
tradução – teoria e prática, (xxii) aprendizagem e ensino, (xxiii) literaturas de língua
inglesa do século XIX à contemporaneidade, (xxiv) teoria e crítica literária e cultural:
estudos teóricos, literatura, cinema e teatro.

Boa leitura!

Felício Wessling Margotti


Marta de Faria e Cunha Monteiro
Wagner Saback Dantas
(Organizadores)
SUMÁRIO GERAL

Sumário de Linguística

1. A CONSTRUÇÃO [PEGAR OD E]: CONTRIBUTOS PARA UMA ANÁLISE


FUNCIONAL-TIPOLÓGICA – Maria Alice Tavares

2. A CULTURA DA MANDIOCA NO IGARAPÉ DO JURUTI-VELHO: EXPLORAÇÃO


LEXICAL-ETNOGRÁFICA – Orlando da Silva Azevedo e Felício Wessling Margotti

3. A FALA DE FLORIANÓPOLIS: UMA MARCA DE CULTURA – Teresinha de Moraes


Brenner

4. A INTERCULTURALIDADE NOS LIVROS DIDÁTICOS DE INGLÊS – Victor Ernesto


Silveira Silva

5. A LÍNGUA NA LÍNGUA DOS LOCUTORES DE RÁDIO DO RIO GRANDE DO SUL – Elias


José Mengarda e Letícia Sangaletti

6. A PERFORMANCE NO DOMÍNIO DO SISTEMA ALFABÉTICO POR PARTE DE ALUNOS


ALFABETIZADOS COM BASE NOS PRESSUPOSTOS DE EMILIA FERREIRO - Maria
Luiza Rosa Barbosa

7. A RELEVÂNCIA DA ABORDAGEM LEXICAL PARA O ENSINO DA LÍNGUA INGLESA -


Rosana Budny e Adja Balbino de Amorim Barbieri Durão

8. A RELEVÂNCIA DA (IM)POLIDEZ: TRANSDISCIPLINARIDADE NA INTERPRETAÇÃO


DO DISCURSO PUBLICITÁRIO – Juliana Camila Milani da Silva, Aristeu Mazuroski Jr. e
Maurício Fernandes Neves Benfatti

9. AGENTE DE LETRAMENTO: O PROFESSOR DE LÍNGUA MATERNA DO SÉCULO XXI -


MARIA LETÍCIA NAIME-MUZA E JOÃO PAULO VICENTE PRILLA

10. AINDA O LIVRO DIDÁTICO? PENSANDO O IMPRESSO, O DIGITAL E O(S)


(MULTI)LETRAMENTO(S) - FABIANA PANHOSI MARSARO

11. APLICABILIDADE PEDAGÓGICA DAS REDES SOCIAIS PARA O ENSINO A


DISTÂNCIA: UMA CONTRIBUIÇÃO PARCELAR - Eliamar Godoi

12. AQUISIÇÃO DE SEGUNDA LÍNGUA POR GRADUANDOS: A LÍNGUA DE SINAIS


COMO DISCIPLINA ACADÊMICA - Emiliana Faria Rosa

13. AS SMALL CLAUSES LIVRES SÃO MESMO SENTENÇAS EXCLAMATIVAS? – Karina


Zendron da Cunha

14. AS TECNOLOGIAS DIGITAIS NA AULA DE LÍNGUA ESTRANGEIRA: ALGUMAS


REFLEXÕES E PROPOSTAS - Simone Viapiana e Lisiane Ott Schulz

15. AS TIC’S NO PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM: ANÁLISES PRELIMINARES


- Alessandra Dutra, Letícia Jovelina Storto e Jair Flor da Rosa

16. ASPIRAÇÃO EM PLOSIVAS SURDAS DO PORTUGUÊS BRASILEIRO: UMA


ABORDAGEM SEGUNDO A FONOLOGIA DA GEOMETRIA DE TRAÇOS – Mariane
Antero Alves
SUMÁRIO GERAL

Sumário de Linguística

17. AULA DE LEITURA E LIVRO DIDÁTICO DE PORTUGUÊS - Cláudia Mara de Souza

18. CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO E DE PRODUTIVIDADE DO SUFIXO NOMINATIVO


[-RANA] – Felício Wessling Margotti e Orlando Azevedo

19. DEONTICIDADE DISCURSIVA NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES - Silvia Inês


Coneglian Carrilho de Vasconcelos

20. DESENVOLVENDO PROJETOS DE LEITURA E ESCRITA NAS AULAS DE LÍNGUA


MATERNA EM COLABORAÇÃO COM PROFESSORES - Lisiane Raupp da Costa

21. DIALETOLOGIA E RELAÇÕES PÚBLICAS: PROPOSTAS INTERDISCIPLINARES PARA


O ATLAS LINGUÍSTICO BRASILEIRO (ALiB) – Aline Ferreira Lira e Felício Wessling
Margotti

22. DIFERENÇAS ENTRE INPUT E INTAKE: EVIDÊNCIAS NA AQUISIÇÃO DE PRONOMES


INTERROGATIVOS - Vera Vasilévski

23. ENSINO-APRENDIZAGEM DE LÍNGUA PORTUGUESA POR ALUNOS SURDOS: UMA


ANÁLISE SEGUNDO A TEORIA DE KRASHEN - José Carlos de Oliveira

24. ENTRE O FRACASSO E O ÊXITO: HETEROGENEIDADE E DIVISÃO EM DISCURSOS DE


SUICIDAS - Larissa Costa Kurtz dos Santos

25. ENUNCIAÇÃO, SUBJETIVIDADE E AUTORIA: COMO ESSA APROXIMAÇÃO É


POSSÍVEL? - Márcia Elisa Vanzin Boabaid

26. ESTUDO ANALÍTICO DO PLANEJAMENTO ANUAL DE LÍNGUA PORTUGUESA EM


TURMAS DO ENSINO FUNDAMENTAL II EM ESCOLA PÚBLICA DE FLORIANÓPOLIS
- Roziane Keila Grando e Aline Renée Benigno dos Santos

27. EVENTOS DE LETRAMENTO E PRÁTICAS DE LETRAMENTO: IMPLICAÇÕES E


ABORDAGENS - Andressa da Costa Farias

28. FATORES PRAGMÁTICOS NA COGNIÇÃO RETÓRICA: A FICÇÃO COMO APARATO


SIMULADOR NA TOMADA DE DECISÃO – Rodrigo Bueno Ferreira, Aristeu Mazuroski
Jr e Maurício Fernandes Neves Benfatti

29. GÊNEROS ORAIS E SEQUÊNCIA DIDÁTICA: ESTRATÉGIAS METODOLÓGICAS PARA


TRABALHAR O DEBATE NAS AULAS DE LÍNGUA MATERNA - Paula Isaias
Campos-Antoniassi

30. “ICH TRINKE GERADE WASSER” OU “ICH BIN AM WASSER TRINKEN”?:


ABORDAGEM SEMÂNTICO-FORMAL SOBRE O DILEMA DO PROGRESSIVO (PROG)
NO ALEMÃO – Mágat Nágelo Junges

31. INCLUSÃO LINGUÍSTICA DE SURDOS NO ENSINO SUPERIOR ATRAVÉS DA


EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA - Vanessa de Oliveira Dagostim Pires
SUMÁRIO GERAL

Sumário de Linguística

32. INTÉRPRETE SURDO DE LÍNGUA DE SINAIS BRASILEIRA: O NOVO CAMPO DE


TRADUÇÃO / INTERPRETAÇÃO CULTURAL E SEU DESAFIO - Ana Regina Campello

33. MANUTENÇÃO DE LÍNGUAS “MINORITÁRIAS” NO VESTIBULAR – UM


DESCOMPASSO COM AS POLÍTICAS LINGUÍSTICAS? - Ina Emmel

34. MEMÓRIA, MEDO E SILÊNCIO: A SITUAÇÃO DOS DESCENDENTES DE MIGRANTES


ITALIANOS DO VALE DO RIO DO PEIXE/SC - Maristela Fatima Fabro

35. MEMORIAL ACADÊMICO: UM EXERCÍCIO DE INTERPRETAÇÃO E DE LEITURA


CONCEITUAL BAKHTINIANA - Régis Bueno da Silva

36. MUDANÇA LEXICAL NA ÁREA SEMÂNTICA DE BRINCADEIRA INFANTIL:


PESQUISA GEOLINGUÍSTICA REALIZADA NAS SEIS ZONAS DE MANAUS – Soraya
Paiva Chain

37. NARRATIVA E APRENDIZAGEM: DIFERENÇAS NA CONCORDÂNCIA VERBAL -


Lidiomar José Mascarello

38. O APAGAMENTO DO SCHWA DO FRANCÊS NA PERSPECTIVA DA FONOLOGIA


GERATIVA: UMA ANÁLISE BASEADA NA GEOMETRIA DE TRAÇOS E NA
FONOLOGIA AUTOSSEGMENTAL – Maria Eugênia Gonçalves de Andrade

39. O ENSINO FUNDAMENTAL DE NOVE ANOS: UM ESTUDO INTRODUTÓRIO SOBRE


OS LIMITES E DESAFIOS ENFRENTADOS POR ESCOLAS PÚBLICAS DE TRÊS
MUNICÍPIOS DA REGIÃO DA AMUREL, SC - Maria Sirlene Pereira Schlickmann

40. O FUNCIONAMENTO DA LÍNGUA SOBRE O PLANO DIGITAL - Paulo Henrique Simon

41. O LEITOR DE UMA PALAVRA, UMA NOVA APRENDIZAGEM - Ricardo Hecker Luz

42. O PROCESSO INFERENCIAL NO DISCURSO JORNALÍSTICO – Alessandra Bassi

43. OS TIPOS ORACIONAIS E OS ATOS DE FALA: UMA ABORDAGEM INTERLOCUTIVA


– Hilma Ribeiro de Mendonça Ferreira e Maria Teresa Tedesco Vilardo Abreu

44. PANORAMA ENTONACIONAL DAS MODALIDADES DECLARATIVAS E


INTERROGATIVAS TOTAIS DO FRANCÊS: NATIVOS E APRENDIZES BRASILEIROS
DE FLE - Sara Farias da Silva

45. PRÁTICAS DE LETRAMENTO NO LIVRO DIDÁTICO DE LÍNGUA PORTUGUESA:


DIFERENÇA ENTRE AQUISIÇÃO E PRÁTICA - Vanessa Wendhausen Lima

46. REFLETINDO SOBRE O FENÔMENO DA PRESSUPOSIÇÃO – Carlos Antônio Magalhães


Guedelha

47. REGULARIZAÇÃO DO SISTEMA VERBAL PELA CRIANÇA - Richard Fernando de


Souza Costa e Leonor Scliar-Cabral
SUMÁRIO GERAL

Sumário de Linguística

48. SANTA CATARINA NO MAPA DO AMPER: UM ATLAS PROSÓDICO EM


CONSTRUÇÃO - Vanessa Gonzaga Nunes

49. TECIDO NA LÍNGUA DE SINAIS: B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S -
Carla Morais

50. UM ESTUDO DESCRITIVO DA RELAÇÃO ENTRE O CONHECIMENTO TEÓRICO E A


PRÁTICA DOCENTE NO ENSINO DE PRODUÇÃO TEXTUAL - Mirella de Oliveira
Freitas

51. UMA PROPOSTA DE ANÁLISE DE ERROS NA INTERLÍNGUA - Chris Royes Schardosim


SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

A CONSTRUÇÃO [PEGAR OD E]:


CONTRIBUTOS PARA UMA ANÁLISE FUNCIONAL-TIPOLÓGICA

Maria Alice Tavares (PPGEL/UFRN)1

RESUMO

Na perspectiva da gramática emergente, analiso a construção [PEGAR OD E] no português


brasileiro contemporâneo. Pretendo contribuir para a investigação de uma construção
gramatical pouco estudada no português, além de fornecer subsídios para análises tipológicas
de construções similares em outras línguas. Com base em dados de fontes variadas, aponto
que a construção [PEGAR OD E], a exemplo da construção [TAKE NP AND] do inglês,
desempenha duas funções: a introdução do objeto direto do verbo subsequente e a seleção de
um referente específico.

Palavras-chave:
Construção [PEGAR OD E]. Gramática emergente. Português brasileiro.

ABSTRACT
From the emergent grammar perspective, I analyze the [PEGAR OD E] construction in
Brazilian contemporary Portuguese. I aim to contribute to the investigation of a grammar
construction little studied in Portuguese, and to provide subsidies for typological analyzes of
similar constructions in other languages. Based on data from different sources, I point that the
[PEGAR OD E] construction, similarly to the English [TAKE NP AND] construction, plays
two roles: the introduction of the direct object of the subsequent verb, and the selection of a
specific referent.

Keywords:
[PEGAR OD E] construction. Emergent grammar. Brazilian Portuguese.

1 INTRODUÇÃO
Em uma perspectiva funcionalista e utilizando dados do português brasileiro
contemporâneo oral provindos de bancos de dados de diferentes regiões do país, abordo a
construção [SUJi PEGAR ODj E SUJi V2 ODj] ou, simplesmente, [PEGAR OD E]. Tenho
como objetivo fornecer subsídios para a análise da(s) função(ões) desempenhada(s) por essa
construção. Vejamos alguns exemplos:

(1) E: É, é, ou sei lá ajudar mais, fazer mais casa pra ensinar profissão pra esses-
F: Mais casa, mais escolas, mais- podiam pôr aí tipo escola profissionalizante, né? Pegar essas
meninada de rua aí, essa piazada aí e ensinar, ensinar a fazer qualquer coisa.
E: Ensinar e empregar.

1
Doutora em Linguística pela UFSC; e-mail: aliceflp@hotmail.com.
2

F: Os índios nunca foram numa escola, quanto- quanto serviço bonito que fazem os índios, né? Então,
porque que não colocam esses- esses piás aí pra ir aprendendo, fazendo esse negócio. Primeira coisa,
podiam fazer sandália, bolsa, cinto, podia ser vendido mais barato, podia ajudar com esse dinheiro,
podiam ajudar escolas mesmo, né? hospitais podiam ajudar. (Banco de Dados
VARSUL/Curitiba/Entrevista 3)

(2) L2: por exemplo... a riqueza... o problema economia... a economia significando a existência de
dinheiro... no caso específico disso... é a existência de recursos materiais... não é a economia... o sistema
econômico... se é agrícola... se é comercial... se é industrial... não é esse problema... porque a economia
de um modo geral quando a gente fala... não fala da riqueza... e sim... da existência ou não de dinheiro...
mas do sistema econômico... agora... aqui no caso... nesse caso que foi empregado aqui... foi de existir
dinheiro... quer dizer... a economia existência de dinheiro... de bens... então... se a riqueza... se a riqueza...
não é sistema econômico ...
L1: eu posso dar um exemplo a você...
L2: então... o que acon/...
L1: na área de educação no Brasil... o maior resultado... o maior sucesso que teve... pelo menos
anunciaram aí... foi o Mobral... exatamente isso que ele está dizendo... pegaram uma grande parcela de
recursos e jogaram na alfabetização... então eu não sei... eu não ...
L2: talvez não tenha sido bem feita (NURC/Rio de Janeiro/inquérito 355 – D2)

Hopper (2001, 2008) analisa uma construção estruturalmente similar no inglês, [SUJi
TAKE NPj AND SUJi V2 NPj] ou, simplesmente, [TAKE NP AND], e defende que se trata
de um complexo verbal transitivo em que o verbo lexical (V2) e seu objeto direto estão em
diferentes orações. Vejamos dois dos exemplos fornecidos pelo autor:

(3) They took the same design as before and enlarged it by including a library and a gymnasium. 2
Eles pegaram o mesmo design de antes e o ampliaram com a inclusão de uma biblioteca e de um
ginásio.

(4) He was also saying I’m going to take that rational mind and hide it.
Ele também estava dizendo que eu vou pegar essa mente racional e escondê-la.

Segundo Hopper (op. cit.), TAKE funcionaria, nesses casos, como uma espécie de
auxiliar verbal que introduz o objeto do verbo pleno imediatamente subsequente. Portanto,
TAKE não remeteria a um evento distinto daquele denotado por esse verbo, apenas ressaltaria
seu objeto, tomando-o como seu argumento.

2
As traduções dos dados do inglês para o português são de minha responsabilidade.
3

Essa proposta parece ser válida para algumas ocorrências da construção [PEGAR OD
E] no português brasileiro. Todavia, é possível notar que, em alguns casos, o verbo PEGAR,
nessa construção, indica uma espécie de seleção, de escolha, de distinção de um referente face
a outros possíveis, o que pode se aplicar também a algumas das ocorrências da construção
[TAKE NP AND] apresentadas por Hopper. Portanto, talvez a construção [PEGAR OD E] e a
construção [TAKE NP AND] desempenhem duas funções distintas, questão para cuja
discussão intento contribuir.
A seguir, sintetizo o referencial teórico ao qual recorro para a análise dos dados
(seção 2), apresento a construção [PEGAR OD E] (seção 3), elenco motivações cognitivo-
comunicativa subjacentes ao uso dessa construção (seção 3.1), descrevo suas propriedades
morfossintáticas (seção 3.2), destaco construções similares em outras línguas (seção 3.3) e
levanto a possibilidade de a construção sob enfoque desempenhar mais de uma função (seção
3.4). Por fim, teço as considerações finais e listo as referências.

2 GRAMÁTICA EMERGENTE E GRAMATICALIZAÇÃO


A abordagem à língua na perspectiva da gramática emergente (HOPPER, 1987,
1998) ou da gramática baseada no uso (BYBEE, 2006, 2010) é:

[...] fundamentada na noção de que a experiência de um falante com as formas


linguísticas – sua frequência e contextos de uso – é a base do conhecimento
gramatical. Nessa abordagem, a gramática é entendida como uma entidade dinâmica
(HOPPER, 1998, p. 156) que emerge “da repetição de muitos eventos locais”
(BYBEE, 2006, p. 714). (TRAVIS; TORRES CACOULLOS, 2010, p. 1)

Assim sendo, as construções gramaticais têm sua origem na repetição de


agrupamentos de palavras no discurso. Nessa ótica, pode-se dizer que a gramática é composta
por “[...] esquemas e padrões rotinizados, que são generalizados das estruturas que mais
frequentemente emergem para preencher os objetivos comunicativos dos falantes”
(ENGLEBRESTON, 2003, p. 89).
Estratégias retóricas envolvendo itens lexicais e/ou gramaticais, inicialmente
criativas e expressivas, tornam-se habituais por terem sido utilizadas recorrentemente em
determinado tipo de contexto interacional (HOPPER, 1987). Segundo Thompson e Couper-
Kuhlen (2005), esses padrões gramaticais habituais suprem a necessidade humana de seguir
modos rotinizados para agir no mundo: certos tipos de ação desencadeiam certos tipos de
gramática.
4

O processo de constituição da gramática é constante, gradual e sempre dirigido pelo


discurso (HOPPER, 2008): as construções gramaticais rotinizadas não são estáveis, mas sim
adaptáveis às necessidades on line da interação face a face. Ou seja, “[...] as estruturas estão
constantemente sendo modificadas e negociadas durante o uso” (HOPPER, 2011). As
adaptações e negociações se dão a partir das experiências anteriores imediatas e de longa
duração de cada um dos interlocutores com o uso das construções gramaticais em situações
discursivas variadas. O material gramatical é, em sua base, variável e probabilístico por
natureza e derivado da experiência do usuário com a língua (cf. PIERREHUMBERT, 1994).
A gramática sempre está sujeita à mudança, posto que sofre influências do uso que é
feito dela nas diversas situações da vida cotidiana – palco em que se manifesta a adaptação
entre as necessidades cognitivo-comunicativas de falantes e ouvintes com diferentes
experiências de vida e, por conseguinte, de língua (cf. TAVARES, 2011a). Como as
experiências do falante e do ouvinte com a língua são particulares e podem ser distintas em
diversos graus, eles têm de se esforçar para se fazer entender e para tentar entender,
negociando e adaptando formas linguísticas para diferentes funções. Daí surge a mudança:
adaptações feitas durante a interação, como tentativa de obtenção de êxito no processo de
troca verbal, podem ocasionar o surgimento de novas estratégias para a constituição do
discurso, que, se frequentemente repetidas, rotinizam-se, tornando-se parte da gramática da
língua.
O movimento de rotinização gramatical é denominado gramaticalização,
caracterizado como o processo de regularização gradual pelo qual uma estratégia
frequentemente utilizada em situações comunicativas específicas adquire função gramatical.
A frequência de ocorrência das construções é fundamental para que adquiram status
gramatical. Uma construção que tem sua frequência aumentada passa de um modo não usual
de constituir ou reforçar um ponto no discurso para um modo usual de fazê-lo. Transforma-se,
dessa maneira, em uma estratégia comum, previsível. Essa compreensão de como as
estratégias gramaticais surgem é de suma importância para o estudo da mudança linguística. É
possível observar, em padrões discursivos que sofrem alterações, construções gramaticais
sendo geradas. O papel do linguista é identificar estratégias recorrentes de construção do
discurso, buscando assim as regularidades da língua – a gramática. Tais regularidades podem
estar gramaticalizadas há bastante tempo ou ser mais recentes (e talvez menos difundidas na
gramática da comunidade como um todo), o que somente um estudo diacrônico pode revelar.
5

3 A CONSTRUÇÃO [PEGAR OD E]
Observemos mais alguns exemplos da construção [PEGAR OD E]:

(5) Porque nós temos o letramento na escola. Então a gente tem que pegar essa linguagem tida como
corriqueira e trazer para a linguagem formal, quer dizer, há a transformação do que era banal e trazer
p‟uma coisa mais elitizada. Porque a linguagem é elitizada, você sabe, a linguagem exigida é elitizada.
(professora de língua portuguesa – cf. RAQUEL, 2007, p. 142)

(6) Eu posso até dizer assim ... é como se ele visse ... ele olhasse pra um lado ... olhasse pra outro e visse
tá aqui a solu/ a solução ... tá nas minhas mãos ... a solução do país tá nas minhas mãos ... a solução dos
meus filhos futuramente tá nas minhas mãos ... mas ele tem medo de enfrentar ... de encarar a realidade ...
de pegar o seu direito de voto e dizer assim ... “eu vou usar essa arma” ... não ... eles se deixa enganar
... se deixa iludir por um dinheiro ... por uma cara bonita ... por um ... por um:: meio de comunicação
como é a televisão ... (Corpus Discurso & Gramática/Natal)

(7) Como você pode... é::... dar alimento à criança... que é a parte da educação... nessa chamado CIEPS...
que eu não gosto nem um pouco... porque eu acho que CIEP e CIAC foram projetos... é:: como diz...
querem dar projetos revolucionários para educação num país que eu acho que você podia pegar um
prédio velho... reformar e manter o fator histórico... o fator... o fator... educacional... investir o tempo
que ia gastar num novo projeto... investir em professores... em educação... se investisse mais nesta parte...
então já é um grande bem... (Corpus Discurso & Gramática - Rio de Janeiro)

Quanto ao exemplo (5), será que primeiro a linguagem é pega, e depois é que é
“trazida” para a linguagem formal? Em (6), será que primeiro o direito de voto é pego, e
depois é que se diz algo sobre ele? Em (7), um prédio velho é pego e após reformado? Não
faria mais sentido interpretarmos a construção pegar essa linguagem tida como corriqueira e
trazer para a linguagem formal como se referindo a um único evento, isto é, „trazer a
linguagem corriqueira para a linguagem formal‟, assim como poderíamos interpretar a
construção pegar o seu direito de voto e dizer assim como se referindo a um único evento,
„dizer assim sobre o seu direito de voto‟? E em (7), não há também um único evento em jogo,
„reformar um prédio velho‟? Ou seja, as construções destacadas em (5), (6) e (7) se refeririam
a um único evento, podendo ser parafraseadas pelo segundo verbo. O mesmo vale para o caso
dos exemplos (1) e (2) apresentados na introdução.
Se considerarmos que, em todos esses exemplos, a primeira oração não faz referência
a um evento que seja independente do evento referido pela segunda oração, então estamos
diante de casos similares aos tratados por Hopper (2001, 2008) com base em dados do inglês,
envolvendo a construção [TAKE NP AND].
6

Similarmente à construção [TAKE NP AND], o efeito da construção [PEGAR OD E]


no português parece ser o de uma construção verbal em que o verbo lexical e seu objeto estão
em diferentes orações, isto é, o objeto está na primeira e o verbo está na segunda. PEGAR,
portanto, não remeteria a um evento distinto, apenas ressaltaria o objeto desse segundo verbo,
tomando-o como seu argumento.
Uma vez que se trata de uma construção monopredicativa, [PEGAR OD E], além de
fazer referência a um único evento, caracteriza-se por envolver dois verbos que têm o mesmo
tempo, aspecto e modo, e pelo fato de o sujeito desses verbos ser o mesmo.

3.1 Motivações cognitivo-comunicativas


Se há apenas um evento em jogo, por que apresentar em uma parte da construção o
objeto (introduzido por PEGAR) e em outra, o verbo pleno, que denota o evento? Hopper
(2001, 2008) aponta três motivações cognitivo-comunicativas que podem estar subjacentes ao
uso da construção [TAKE NP AND]. Essas motivações parecem se aplicar também ao caso da
construção [PEGAR OD E].
A primeira motivação é a tentativa, por parte do falante, de organizar do fluxo das
informações no discurso na direção de sua simplificação, pois, ao dividir a oração em duas
partes, cada uma delas passa a deter um pedaço da informação e o ouvinte pode processá-la
mais facilmente ao recebê-la em partes.
A segunda dessas motivações é a busca de manutenção da atenção do ouvinte por
mais tempo, já que a estratégia de uso de dois verbos ao invés de um e de retomada do
referente do objeto direto do primeiro verbo como objeto direto do segundo verbo aumenta a
extensão do turno do falante. Assim, ele tem a vantagem de reter o turno de modo
convincente enquanto apresenta as informações para o ouvinte.
Há ainda, como terceira motivação, a enfatização da importância da informação
através de sua distribuição em duas unidades prosódicas, o que pode contribuir para tornar
mais persuasivo aquilo que o falante deseja dizer. Isso ocorre porque o objeto direto dos
verbos TAKE e PEGAR é um nome temático, isto é, um nome que introduz uma entidade
significativa no discurso. Esse procedimento permite que a nova entidade ocupe uma oração
por si só, o que lhe rende um papel proeminente no discurso vindouro. Além disso, como o
verbo lexical é posposto para a oração seguinte, o ouvinte, para obter o conjunto total das
informações, que crucialmente envolvem esse verbo, precisa esperar até que a sequência seja
concluída.
As construções [TAKE NP AND] e [PEGAR OD E] são infrequentes na conversação
7

cotidiana. Elas tendem a ser mais recorrentes em contextos de fala em que se destacam
argumentações e explanações de maior extensão, contextos esses em que em que os falantes
estão convencionalmente autorizados a manter o turno por mais tempo que na conversação e
em que predominam gêneros das esferas argumentativa e explicativa – às vezes monológicos,
como palestras, aulas expositivas, pronunciamentos públicos etc.

3.2 Propriedades morfossintáticas


Até o momento, identifiquei as seguintes possibilidades de variações
morfossintáticas no que diz respeito à construção [PEGAR OD E]:

(i) A retomada do objeto direto na segunda oração pode ocorrer através de anáfora
pronominal (em (8)), anáfora zero (em (9)) ou com a repetição do sintagma nominal que é o
objeto da primeira oração (em (10)):

(8) Novamente o camarada olhava dizia: “Seu Rosildo, eu num sei como é que o senhor decora tantos
passageiro, tanto dinheiro, tanta senha e devolvia tudinho direitinho”. Quer dizer, era minha a propriedade
e eu fazia os condutor dizia às vezes os menino {inint} ia lá em baixo, né? “Eu vou ver se pego esse
camarada e enrolo ele”. Mas num enrolava não, entrava dez passageiro, dez passageiro no fim do dia eu
sabia quanto tinha feito, e sempre dava exato com eles porque depois que eu fazia num precisava de de
caderno nada, era uma máquina, é um computador. (Banco de Dados VALPB/informante 26)

(9) Agora não acredito que todo o dinheiro que estava investido, seja em- em que papel for, seja em
OVER, em OPEN ou caderneta de poupança, de todas as empresas, sejam pequenas, médias ou grandes
empresas, fosse especulação imobiliária. Porque toda- toda a empresa, qualquer cidadão, eu, você ou
qualquer pessoa, que tivesse um dinheirinho, ou recebesse o seu salário, tratava de aplicar um dinheiro.
Por que? Porque a inflação corroía o seu salário no dia seguinte. Então, não se pode ser contra que o
empresário pega- pegasse o dinheiro dele e colocasse num mercado financeiro, até pra subsistência
da- da empresa. que como é que ele vai pagar o empregado no final do mês se o dinheiro fica parado?
Sem- sem- sem estar aplicado, né? Então eu acho que é aceitável que todos tivessem o seu dinheiro
aplicado. Então eu repito: eu acho que devia ser levantado o que é que o empresário precisa pra
manutenção da sua empresa. Aquilo devia ser liberado pra ele. Até pra não ter recessão. (Banco de Dados
VARSUL/Florianópolis/Entrevista 21)

(10) Agora, depois de ele estar no mal não adianta, porque- o que é que você vê no jornal? Você vê no
jornal o seguinte: "Olha, cinco detentos da- da FUCABEM fugiram e roubaram e assaltaram, tentaram
estuprar." E- e assim está indo esse troço, está- está indo de- de cabo a rabo aí, está- está- está uma
bagunçada, que não dá mais pra entender. Então o que eu digo é o seguinte: Temos que ter a FUCABEM.
Sim. Que podia ser hoje o Abrigo de Menores, mas você pega a criança e escola a criança. Porque na
8

época do Abrigo de Menores, o- o menino não ficava lá- o abrigado não ficava lá, não só andando pra lá e
pra cá e preso, não. Porque hoje na FUCABEM é preso. Pra mim é preso. Que os detentos ficam- o abri-
pra mim é detento! O abrigado- o detento fica lá e fica sendo tratado que nem marginal. Agora, naq- na
época do Abrigo de Menores era o seguinte: garoto ia pra ali, então ele tinha: a hora de futebol, a hora de
aula, a hora de lanche, até a hora de jantar e dormir. Errava! Sim, errou. Então ele tinha o castigo dele.
Tinha! Tinha, que eu lembro, na época. Mas não era tão rigoroso como é o- a FUCABEM hoje. O castigo
era o seguinte: dar cinquenta voltas em- cinquenta voltas em- em volta do- do- do gramado. (Banco de
Dados VARSUL/Florianópolis/Entrevista 2)

(ii) A conjunção E pode não estar presente, como em (11):

(11) I: No palco, isso é ruim, pu0que quem tá, quem tá assistindo é: quem entende muito, observa tudo.
E: Sei. Essa coisa de ser paraibano tem alguma influência negativa para você, nessa sua carreira?
I: Eu acho que não. Não pra mim assim, mays como pra muita gente. Uma veyz, eu escutei aquela
Arlete Sales, que ela é de Recife, ela tava falan0o que ela teve muita dificuldade quando chegou no Rio,
pur causa do sotaque + entendeu? Quem chega no sul hoje para fazê0 teatro e tem sotaque nordestino
você sabe que é discriminado, porque eles num quere0. Agora, eles pegam os atores lá do sul, bota pra
aqui, fazê0 novela no Nordeste e quem é que fala arrastado assim, num sei o quê. + Aqui a gente num
fala daquele jeito. Aquilo dali é ridículo, assim, aquela novela, por exemplo, fala muito arrastado. É uma
coisa [ridícu] ridícula, porque a gente num fala desse jeito. A gente num fala de jeito nenhum. + É uma
coisa assi:m constrangedora pra quem é: + paraibano, principalmente quem é do Nordeste. + É uma coisa
chata. (Banco de Dados VALPB/informante 8)

(iii) O objeto direto da primeira oração pode ser retomado em outra função sintática. Ele pode
ser parte de um adjunto adnominal ou de um complemento nominal na segunda oração, como
em (12) e (13). Ele pode ser também parte de um adjunto adverbial na segunda oração, como
em (14), em que o adjunto adverbial está elíptico, mas é facilmente recuperável:

(12) Então é a maneira que [vem] vem [essa] essa criançada e que amanhã ou depois estão tudo aí nas
ruas. Eu achava assim que parte do governo, cada governo de sua cidade, cada autoridade, se reunir
governos, prefeitos, deputados, tudo assim, fazer [um] uma associação, um conjunto de pegar assim
[essas] [essas] essas mulheres assim e mandar fazer cirurgia em todas elas. Sabe? pra não porem
[<fi>] [<fi>] filhos no mundo pra amanhã serem ladrão, bandidos. Olhe, o que tem, né? [de] de meninos
de rua Isso aí nunca vai acabar, nunca vai ter fim, né? Eu acho que isso aí nunca Eu acho que o
vandalismo, sabe? está uma coisa por demais. (Banco de Dados VARSUL/Curitiba/Entrevista 10)

(13) agora o interessante é que ... quando ela cantava em boates ... as músicas que ela cantava ...
geralmente tinha assim ... aqueles temas de ... é ... por exemplo ... deixa eu lembrar uma das músicas que
tinha ... eu te amo né ... você é o meu homem ... assim ... coisas desse tipo ... e aí no ... quando ela
9

começou a reger o coral ... ela pegou as mesmas músicas e mudou um pouco as letras ... né ... no caso
ela dizia ... eu te amo Deus ... mudou assim ... as letras ... era super engraçado né ... (Corpus Discurso &
Gramática/Natal)

(14) I: <Rapay>, o que vale no casamento é o (inint) negócio de casamento eu tenho pra mim que num
vale nada não. O que vale é o procedimento, mais num é? Mulher procedeu bem também, eu sou contra,
condeno isso, aí eu sou contra isso. Homem só nasceu pra casar cum a mulher.
E: Assim, o senhor acha que deveria ter algum castigo pra essas pessoas?
I: Rapaz, eu num sei nem dizer. Que é parada você um homem casar cum outro, a mulher casar cum
outra, eu sou contra isso. Devia pegar uma ilha e botar esse povo separado, né? Num contam que aqui
Tambaba <rapay>, eu conheço, eu caçei muito lá. Mais num era, era mata. Agora diz que é muita tem
uma população E tão dançando nu! Eu só acredito vendo. É uma verdade, tão dançando nu por lá
mesmo? (Banco de Dados VALPB/informante 24)

3.3 Construções similares em línguas de verbos seriais


Caso semelhante ao das construções [PEGAR SN E] e [TAKE NP AND] é o das
construções em (15), (16) e (17) a seguir:

(15) iywi awa nutsi iku (GIVÓN, 2001)


garoto pegou porta fechou
„o garoto fechou a porta‟

(16) u lá dùku là (GIVÓN, 1979)


ele pega pote quebra
„ele quebrou o pote‟

(17) 0-à-fà í swa n à-klè mi (AIKHENVALD, 2001)


ele-ANT-pegar sua casa DEF ANT-mostrar me3
„Ele me mostrou sua casa‟ / „Ele me mostrou a casa dele‟

Em (15), temos um dado do yatye em que o verbo awa (pegar) destaca nutsi (porta)
como detentor do papel semântico de paciente, objeto do verbo iku (fechar). Em (16), temos
um dado do nupe em que o verbo lá (pegar) é um marcador de caso acusativo, isto é, esse
verbo indica que dùku (pote) é o objeto direto do verbo subsequente, là (quebrar). Em (17),
temos um dado do baule em que o verbo fà (pegar) introduz o objeto direto (í swa – sua casa)
do verbo que se segue, klè (mostrar).

3
ANT = anterior, DEF = definido.
10

Esses exemplos são oriundos de línguas de verbos seriais africanas, em que é comum
a gramaticalização de verbos com o significado de PEGAR „tomar algo com as mãos‟ como
marcadores de caso acusativo. Para Hopper (2008), no caso da construção [TAKE AND NP],
também ocorreu um processo de gramaticalização que resultou em serialização verbal, pois
TAKE e o verbo seguinte são empregados em sequência e fazem parte da mesma predicação,
fenômeno que seria marginal no inglês. Nas palavras de Hopper (op. cit., p. 253): “com
frequência, tipos de construções que são centrais e robustas em algumas línguas podem ser
identificadas de um modo mais fraco e rudimentar em outras.”
Contudo, não abordo aqui a possibilidade de a construção [PEGAR SN E]
representar um caso de serialização verbal no português brasileiro, pois a natureza do verbo
PEGAR nessa construção merece análise posterior mais refinada.

3.4 Função(ões) da construção [PEGAR SN E]


Vejamos mais dois dos exemplos fornecidos por Hopper (2001, 2008):

(18) We take that concept and apply it


Nós pegamos esse conceito e o aplicamos
(19) Other times I’d maybe take half the class and assess them at one task and the other half on a
different task later on.
Em outras épocas, talvez eu pegasse metade da turma e os avaliasse em uma tarefa e a outra metade
em uma tarefa diferente mais tarde.

Conforme o autor, em (18), we take that concept and apply it corresponde à paráfrase
we apply that concept e a diferença é que, na construção [TAKE NP AND], o objeto de apply
recebe uma introdução mais marcada, aparecendo na primeira oração e sendo retomado
anaforicamente na segunda. O mesmo acontece em (19): I’d maybe take half the class and assess
them at one task corresponde à paráfrase I’d maybe asses half the class at on task.
Segundo essa análise, na construção [TAKE NP AND], TAKE não é verbo pleno e
não faz referência a um evento distinto daquele denotado pelo verbo vindouro, mas apenas
introduz o objeto desse verbo, sem trazer em si traços semântico-pragmáticos mais
específicos. Trata-se, segundo Hopper (op. cit.), de um item gramatical que funciona como
um marcador de caso acusativo.
No entanto, em alguns casos da construção similar em português, [PEGAR OD E],
parece haver uma espécie de seleção, de escolha, de distinção de um referente em relação a
outros possíveis. Retomemos alguns exemplos:
11

(20) Como você pode... é::... dar alimento à criança... que é a parte da educação... nessa chamado
CIEPS... que eu não gosto nem um pouco... porque eu acho que CIEP e CIAC foram projetos... é:: como
diz... querem dar projetos revolucionários para educação num país que eu acho que você podia pegar um
prédio velho... reformar e manter o fator histórico... o fator... o fator... educacional... investir o tempo
que ia gastar num novo projeto... investir em professores... em educação... se investisse mais nesta parte...
então já é um grande bem... (Corpus Discurso & Gramática - Rio de Janeiro)

(21) I: <Rapay>, o que vale no casamento é o (inint) negócio de casamento eu tenho pra mim que num
vale nada não. O que vale é o procedimento, mais num é? Mulher procedeu bem também, eu sou contra,
condeno isso, aí eu sou contra isso. Homem só nasceu pra casar cum a mulher.
E: Assim, o senhor acha que deveria ter algum castigo pra essas pessoas?
I: Rapaz, eu num sei nem dizer. Que é parada você um homem casar cum outro, a mulher casar cum
outra, eu sou contra isso. Devia pegar uma ilha e botar esse povo separado, né? Num contam que aqui
Tambaba <rapay>, eu conheço, eu caçei muito lá. Mais num era, era mata. Agora diz que é muita tem
uma população e tão dançando nu! Eu só acredito vendo. É uma verdade, tão dançando nu por lá
mesmo? (Banco de Dados VALPB/informante 24)

Obviamente, nessa interpretação de PEGAR como „selecionar‟ não está envolvido o


significado „tomar algo com as mãos‟ no plano físico, no mundo concreto. Em ocorrências
como (20) e (21), PEGAR pode estar indicando um processo cognitivo: „pega-se‟ (seleciona-
se, distingue-se) mentalmente pessoas, coisas, ideias.
Essa análise parece ser aplicável para alguns das ocorrências de [TAKE NP AND]
apresentados por Hopper, como no exemplo (19) acima, em que TAKE pode trazer um traço
semântico-pragmático de seleção/distinção: de uma turma de alunos, o professor seleciona
(„take‟) a metade dos alunos e faz com eles uma avaliação.
Quanto à possibilidade de interpretação de PEGAR como sinalizando
seleção/distinção, estariam envolvidos dois eventos? Ou seria PEGAR tão ligado
semanticamente ao verbo subsequente que não poderia aparecer isolado deste, o que
significaria que não há dois eventos distintos em jogo?
São muito frequentes os casos em que a oração nucleada pelo verbo PEGAR
significando „tomar algo com as mãos‟ é coordenada à oração seguinte, que informa o que é
feito com aquilo que é pego. Vejamos alguns exemplos:

(22) Carro, como tem hoje de plástico, velocípede, nada disso. Cavalo de pau, aquele que a gente pega o
cabo de vassoura [bo] bota um cordão bota um cordão. Quando o vizinho comia uma lata de doce, a gente
ia lá, pegava aquela lata de doce, botava um prego e fazia [esse tipo de] a gente a gente criava a gente
12

criava o o o a brincadeira que a gente quisesse. A gente fazia um tipo de perna de pau. A gente fazia um
tripé assim. Um pau, a gente botava um lado do outro e botava um assim escorando, fazia um tripé, pra
fazer uma perna de pau pra andar em cima, né? (Banco de Dados VALPB/informante 30)

(23) Aí tu juntas tudo isso numa tigela, tudo junto, né? E se tu usares o salame, tu podes acrescentar o
salame na salada, tá? Aí tu- para o molho- para o molho, tu fazes o seguinte: tu pegas a maionese e
juntas com o suco de limão, né? o sal e a pimenta e juntas o açúcar. Depois de feito o molho e a salada,
aí tu juntas tudo, né? botas o molho por cima, né? temperas direitinho, isso aí é o tempero, né? da salada,
e coloca na geladeira por uma hora. (Banco de Dados VARSUL/Florianópolis/Entrevista 1)

(24) As minhas notas sempre eram boas, só que eu gostava de fazer travessura. Ah, gostava. Quando eu
ficava de castigo de ba- atrás do quadro negro, que ele ficava, assim, num canto, né? nós fica- eu pegava
o giz e começava a fazer desenhos. E- mas na escola eu não fazia muito, porque meu pai sempre dizia:
"Se você sair daquela escola por mau criação você não vai pra nenhuma outra. Vai ficar em casa, vai ficar
burra!" Então o meu medo era esse, né? (Banco de Dados VARSUL/Blumenau/Entrevista 5)

Todavia, também há ocorrências de orações isoladas nucleadas por PEGAR


significando „tomar algo com as mãos‟, sem a necessidade de complementação via uma
oração coordenada ou justaposta subsequente, como no exemplo (25) a seguir, o que revela
que o ato de pegar algo no plano físico pode ser apresentado no discurso independentemente
de um evento subsequente.4

(25) Quando os pacientes chegam ... minha filha ... aí que o trabalho aumenta ... porque um quer água ...
aí lá vai eu pegar água ... outro quer café ... lá vai eu fazer café ... uma pessoa só pra várias funções ...
né? (Corpus Discurso & Gramática/Natal)

Não encontrei nenhuma ocorrência isolada de uma oração com PEGAR com o traço
semântico-pragmático de seleção/distinção. De qualquer forma, não parece ser possível que
esse tipo de oração apareça independentemente da oração subsequente, pois, sem ela, a
informação não faria sentido.
Portanto, na construção [SUJi PEGAR ODj E SUJi V2 ODj], independentemente da
presença de um traço semântico-pragmático de seleção/distinção, PEGAR não se refere a uma
ação distinta de um sujeito comum, que é o que ocorre quando PEGAR, com o significado de

4
Em um estudo sobre construções com o verbo PEGAR, obtive 75 dados desse verbo em seu uso lexical com o
significado de „tomar algo com as mãos‟. Desses dados, 62 (83%) apareceram em estruturas coordenadas através
da conjunção E (o que representa a maioria dos casos, e pode ser exemplificada por pega a laranja e descasca)
ou por justaposição (com a presença de pausa entre uma oração e outra – um exemplo: daí ele pegou o picolé...
jogou na cabeça do homem). Apenas 13 dados (17%) foram de PEGAR em orações isoladas (cf. TAVARES,
2011b).
13

„tomar algo com as mãos‟, é o verbo nuclear do primeiro membro de um par de orações
coordenadas. Em decorrência, a construção sob enfoque não pode ser interrompida antes da
conjunção E e ainda assim ser entendida como uma informação distinta. Se fosse
interrompida em sua primeira metade, não haveria interpretação possível.
A indissociabilidade das duas orações que compõem a construção [SUJi PEGAR
ODj E SUJi V2 ODj] mostra que essas orações de fato constituem uma unidade semântica – e,
por tabela, uma unidade funcional, à semelhança da construção [SUJi TAKE NPj AND SUJi
V2 NPj] no inglês. Trata-se, pois, de uma construção constituída por duas partes bastante
integradas.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Concluo apontando que é não é claro se PEGAR, na construção [PEGAR OD E],
desempenha uma única função, a de marcador do objeto direto do verbo subsequente, ou se
desempenha duas funções distintas: em alguns casos, marcaria o objeto direto, e, em outros
casos, indicaria seleção/distinção de um referente em contraponto a outros. Também é
possível que, quando o traço de seleção/distinção esteja presente, ele se some à função de
marcação do objeto direto, configurando uma situação de funções sobrepostas desempenhadas
por uma única construção. Fenômenos de sobreposição funcional são sintomas típicos da
mudança linguística, e, talvez, o caso da construção [PEGAR OD E] possa ser futuramente
explicado considerando-se a questão da gramaticalização.
Hopper (1987) defende que a análise das construções gramaticais em seu habitat, o
discurso, leva a uma visão de gramática como fluida e instável, isto é, como emergente do
contexto discursivo, e inseparável dele (HOPPER, 1987). Nessa ótica, como já mencionei, a
tarefa do linguista é identificar estratégias linguísticas recorrentes no discurso, mapeando
assim as regularidades da língua – a sua gramática.
Foi o que Hopper (2001, 2008) fez ao identificar e estudar a construção [TAKE NP
AND], até então não considerada como gramatical e sequer como construção. No entanto,
trata-se de uma construção frequente, especialmente em gêneros das esferas argumentativa e
explicativa, e cuja estrutura é relativamente fixa – duas características típicas de construções
gramaticais.
Encontrei ocorrências do verbo PEGAR que podem ser recortadas no formato de
uma construção estruturalmente similar a [TAKE NP AND], qual seja [PEGAR OD E]. Essa
construção também é frequente e relativamente fixa em termos estruturais, indícios de que se
trata de uma construção gramatical.
14

Além disso, verifiquei que não apenas a organização morfossintática da construção


[PEGAR OD E] assemelha-se a da construção estudada por Hopper, mas também que a
função do verbo PEGAR nessa construção pode ser relacionada à função proposta por Hopper
para o verbo TAKE na construção [TAKE NP AND]: a introdução, no discurso, do referente
do objeto direto do verbo vindouro, de modo a garantir a simplificação no processo de
interpretação das informações, a manutenção do turno e a enfatização da importância da
informação transmitida.
Acredito, pois, ter identificado, no português brasileiro, uma construção gramatical,
[PEGAR OD E], que merece exploração futura mais detalhada, com o objetivo não só de
desbravamento de uma construção ainda pouco investigada, mas também como forma de
contribuir para uma análise tipológica de construções similares existentes em outras línguas,
como o inglês, o chinês (cf. HOPPER, 2008) e diversas línguas de verbos seriais (cf. GIVÓN,
1979, 2001, AIKHENVALD, 2001).
Tipologicamente, é importante que, quando construções similares são mapeadas em
línguas distintas, sejam observadas não apenas suas semelhanças e diferenças, mas os tipos de
contextos discursivos que podem ter levado à emergência dessas construções – esses
contextos podem ser similares em todas as línguas envolvidas.

5 REFERÊNCIAS

AIKHENVALD, Alexandra Y. Serial verb constructions. RCLT. Disponível em


<http://www.latrobe.edu.au/rclt/workshops/2003/position%20paper.pdf> Acesso em: nov.
2004.

BYBEE, Joan. From usage to grammar: The mind‟s response to repetition. Language, v. 84,
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CUNHA, Maria Angélica F. (Org,). Corpus Discurso & Gramática – a língua falada e
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15

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RAQUEL, Betânia M. G. Sociolinguística, política educacional e a escola pública de


Fortaleza/CE: correlações teórico-metodológicas e político-pedagógicas. Fortaleza, 2007.
Dissertação (Mestrado em Linguística) – Universidade Federal do Ceará.

TAVARES, Maria Alice. Gramática emergente: recorte de uma construção gramatical. In:
SOUZA, Edson Rosa F. (Org.). Gramática, texto e discurso: diálogos possíveis, novas
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Artigo em preparação.

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VOTRE, Sebastião; OLIVEIRA, Mariângela Rios (Coords.). A língua falada e escrita na


cidade do Rio de Janeiro. 1995. Impresso.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

A CULTURA DA MANDIOCA NO IGARAPÉ DO JURUTI-VELHO:


EXPLORAÇÃO LEXICAL-ETNOGRÁFICA1

Orlando da Silva Azevedo2 (UFSC/UFAM, FAPEAM)


Felício Wessling Margotti3 (UFSC)

RESUMO

O trabalho aborda os aspectos léxico-etnográficos relacionados à cultura da mandioca


praticada no Igarapé do Juruti-Velho, que está localizado na região do Baixo Amazonas no
Estado do Pará. De modo geral, a cultura e o consumo da mandioca na Amazônia constituem
um campo semântico e etnográfico de grande vitalidade lexical, que se desdobra e se
correlaciona com outros aspectos da vida cotidiana das populações que lá habitam. Por isso,
o objetivo deste estudo é descrever o léxico utilizado pelo homem caboclo ao se correlacionar
com o mundo da roça. Para a obtenção dos dados, entrevistarmos 10 pessoas do Igarapé do
Juriti-Velho, todas com experiência no plantio da mandioca e na produção de seus derivados.
No final, organizamos um glossário com 222 lexias sobre os nomes das mandiocas cultivadas
na região, sobre os utensílios usados na fabricação dos subprodutos da mandioca, sobre os
processos relacionados ao cultivo da mandioca e produção de derivados e sobre os demais
referentes que foram surgindo no decorrer das entrevistas. A pesquisa, em uma perspectiva
dialetológica, contribuiu para maior conhecimento do português amazônico.

Palavras-chave: Linguística. Mandioca. Dados lexicográficos e etnográficos.

ABSTRACT

The paper discusses lexicon- ethnographic aspects related to cassava practiced in Igarapé
Juruti-Velho, which is located in the Amazon Lower Region in Pará. In general, the
cultivation and consumption of cassava in Amazonia is a semantic and ethnographic field of
vitality, which unfolds and correlates with other aspects of daily life of the people who live
there. Therefore, the aim of this study is to describe the lexicon used by man caboclo by
correlating with the around environmental. To obtain the data, we interviewed 10 people from
Igarapé of Juriti-Velho, which have had experience in planting cassava production and its
derivatives. In the end, we organize a glossary with 222 lexicons in relation to: the names of
cassava cultivated in the region; on the utensils used in the manufacture of cassava products;
in the processes related to cassava cultivation and production of its derivatives and on the
other names that arose regarding the course of the interviews. The research, from the
perspective dialectology, contributed to greater knowledge of Portuguese Amazon.

Keywords: Linguistics. Cassava. Lexicographical and ethnographic data.

1
Este trabalho foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas - FAPEAM.
2
Professor da Universidade Federal do Amazonas lotado no Polo Médio Solimões, Campus Avançado de Coari,
e doutorando do Programa de Pós-graduação em Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC;
e-mail: orlandoazevedo@ymail.com.
3
Professor doutor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC; e-mail: wfelicio@cce.ufsc.br.
2

1 INTRODUÇÃO
A cultura da mandioca é praticada como meio de subsistência pelos índios de toda a
Amazônia desde tempos imemoriais, de modo que se tornou um legado para a população
cabocla formada após a colonização portuguesa. São inúmeras as contribuições que a raiz da
mandioca pode oferecer à alimentação de populações autóctones e alóctones na Região
Amazônica. O tubérculo apresenta-se em diferentes formas no cardápio do dia a dia como,
por exemplo, em forma de farinha, que é um complemento alimentar apreciado durante o
almoço e a janta, combinada com carnes de peixes, como tambaqui, jaraqui, pacu etc.
Os caboclos mais velhos dizem que a força de um homem está na farinha que ele
come, pois é ela que dá energia para desempenhar seus trabalhos rotineiros. Do ponto de vista
linguístico, a cultura e o consumo da mandioca na Amazônia constituem uma área semântica
e etnográfica de grande vitalidade lexical, que se desdobra e se correlaciona com outros
aspectos da vida cotidiana dessas populações. Com vistas a descrever aspectos lexicográficos
do homem amazônico relacionados à cultura e ao consumo da mandioca, realizamos algumas
entrevistas com moradores do Igarapé do Juruti-Velho, localidade situada no interior do
Estado do Pará.

2 METODOLOGIA DA PESQUISA
A pesquisa realizada foi do tipo exploratória e de caráter descritivo realizada no
Igarapé do Juruti-Velho, na microrregião de Óbidos, no Estado do Pará. O método etnográfico
empregado visou a descrever diferentes aspectos linguísticos relacionados ao mundo da roça.
Para a realização de tal descrição foram gravadas as informações com 10 pessoas experientes
que trabalharam ou trabalham há anos no plantio da mandioca, na produção de farinha e de
outros produtos derivados. Não fizemos a distribuição da pesquisa por estratificação social,
por ser irrelevante para o propósito deste estudo, uma vez que, por exemplo, um nome de uma
mandioca é o mesmo para homens e mulheres em diferentes faixas etárias.
No relatório de pesquisa foram usadas as iniciais dos nomes das pessoas, que
participaram diretamente das entrevistas, com vistas a assegurar a veracidade das informações
e a preservar suas identidades. Além disso, para facilitar a compreensão da metalinguagem
usada na descrição do léxico, adotamos no glossário as abreviaturas adj. para adjetivo, adv.
para advérbio, v.t.d. para verbo transitivo direto, v.t.i. para verbo transitivo indireto, v.i. para
verbo intransitivo, s.m. para substantivo masculino e s.f. para substantivo feminino. Foram
também usadas aspas em torna de palavras, expressões e citações que caracterizam
a linguagem dos moradores do Igarapé do Juruti-Velho. A partir das informações coletadas,
3

compusemos o léxico relacionado ao cultivo da mandioca e a de seus derivados. Foi, portanto,


de fundamental importância para a concretização deste trabalho, o relato das impressões que
o trabalhador rural teve sobre aquilo que desenvolveu ou trabalhou durante anos.

3 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
Entre os trabalhos sem o escopo da análise lingüística, há o de Pezzuti e Chaves
(2009), que descrevem os índios Deni, habitantes da área de interflúvio entre os rios Juruá
e Purus, no Estado do Amazonas, e a relação deles com a natureza e com populações não-
indígenas. Nesse artigo, menciona-se a agricultura dos vegetais que são produzidos na roça,
entre os quais está a da mandioca como um dos alimentos apreciados por essa comunidade
indígena. Chisté et al. (2010) afirmam que o processamento artesanal da mandioca e de seus
derivados nas comunidades rurais do Estado do Pará serve para diminuir a quantidade de
cianeto (HCN, um ácido prejudicial à saúde), tornando os subprodutos consumíveis sem
o risco de envenenamento. Em outro trabalho de Gonzaga et al. (2008) é mencionada
a manipueira, um subproduto da farinha de mandioca (Manihot Esculenta), que tem
propriedade inseticida e que surge como uma possível alternativa no combate e no controle de
pragas da região. Souza et al. (2008) afirmam que algumas características físico-químicas de
mandiocas oriundas do Vale do Juruá, no Estado do Acre, dependem da variedade utilizada
no processamento, e citam alguns tipos como: Paxiubão, Im221, Caboquinha, Panati, Araçá,
Colonial, Branquinha, Mansa e Brava, dentre as quais se destacaram as variedades Araçá,
Colonial e Branquinha como as mais apropriadas para a produção de farinha por apresentarem
alto teor de proteínas e carboidratos na composição.
Fausto (2006) descreveu que no Alto Xingu as mulheres indígenas lavam a mandioca
para retirar a tapioca, do qual fazem beijus; além disso, aproveitam a água residual da
lavagem para fazer uma espécie de mingau doce. O pesquisador cita também os paracanãs,
povo tupi-guarani no Estado do Pará, os quais deixam a mandioca na água durante quatro dias
para amolecer e tufar. Na seqüência amassam a mandioca fazendo bolotas para secarem ao sol
e para diminuir a quantidade de ácido cianídrico (HCN). Após terem certeza de que o líquido
da massa escorreu no moquém (varas postas horizontalmente), iniciam os demais processos
como peneiração e torragem para obterem uma farinha grossa e amarela, que esses índios
chamam de farinha puba. O termo puba na linguagem dos paracanãs significa podre, mole ou
fermentada. Segundo Fausto (2006), existem ainda centenas de variedades de mandiocas que
pertencem ao gênero Manihot e exemplifica o conhecimento que determinado povo indígena
4

tem desta forma: os paracanãs reconhecem apenas oito, sendo uma delas doce; os kuikuros do
Alto Xingu reconhecem em torno de cinqüenta e; na Amazônia central e oriental, as
populações indígenas preferem cultivar mandiocas bravas ou amargas, enquanto na parte
ocidental plantam cultivares doces.
Em trabalhos de cunho etnográfico, encontramos o trabalho de Mattos (2001), no
qual há a definição de etnografia como pertencente ao ramo da antropologia, cuja finalidade
é estudar e descrever aspectos culturais de um grupo, comunidade ou povo; e ele demonstra
que a abordagem etnográfica não deve seguir padrões rígidos ou pré-determinados, pois
depende muito do senso do pesquisador sobre o objeto de estudo. Em outra pesquisa de cunho
etnográfico, apresentamos a de Júnior (2007), em que o autor, ao analisar trinta e sete resumos
de dissertações disponíveis no Banco de Teses on-line da CAPES, encontrou resultados, que
sugeriram a etnografia ser mais empregada como instrumento de análise do que como uma
lógica de investigação em se tratando de pesquisas relacionadas ao Ensino e Aprendizagem de
Línguas estrangeiras.

4 DESCRIÇÃO DOS DADOS


4.1 A mandioca
Segundo a EMBRAPA4 o nome científico da mandioca é Manihot Esculenta Crantz
da família da Euphorbiaceae, que é originária do maior produtor sul americano: o Brasil.
Porém, ela é cultivada em outros países da América do Sul e em outros continentes como:
o africano, cujo maior produtor é a Nigéria e; asiático, sendo a Índia a maior produtora.
Existem inúmeras variedades em solo brasileiro. Por exemplo, Mendes et al. (2006)
catalogaram 2.871 espécies nas regiões Norte e Nordeste. O imenso sucesso dela é devido
à fácil adaptação a quase todos os tipos de solos, tais como: arenoso, argiloso e o que contém
húmus. Além do mais, ela não exige conhecimento técnico avançado sobre o plantio
e manuseio e é rica em carboidratos presentes desde o beiju produzido artesanalmente até
a produção industrializada da fécula.
Existem variedades de mandioca que produzem mais rapidamente, mas são frágeis às
ações do tempo e outras que demoram mais de um ano para apodrecer no solo. O caboclo, em
se tratando do Igarapé do Juruti-Velho, poderia escolher a variedade que quisesse para
plantar, porque a natureza fez uma seleção genética específica como, por exemplo, a que
produz mais tapioca ou a que possui muito líquido para o tucupi etc.

4
EMBRAPA: http://www.cnpmf.embrapa.br/index.php?p=pesquisa-culturas_pesquisadas-mandioca.php.
Acessado em 15 de agosto de 2010.
5

Os moradores fazem a nomeação a partir de nomes pré-existentes de coisas, objetos,


frutas, peixes e de outros animais conhecidos da região. Entre as variedades usadas e faladas
pelo Igarapé foram encontradas as seguintes no repertório linguístico local: “Tucumã”,
“Miriti”, “Coraci”, “Pororoca”, “Achadinha”, “Marrequinha”, “Coraci Branca”, “Traíra”,
“Branca”, “Paixão”, “Ajuda”, “Coraci Preta”, “Coraci Amarela”, “Pororoquinha”, “Mamuru”,
“Zolhuda”, “Olímpia”, “Camarãozinho”, “Bodó” ou “Acari”, “Aruanã”, “Macaxeira”,
“Macaxeira Manteiga”, “Macaxeira Vermelha”, “Macaxeira Jabuti”, “Macaxeira Amarela”,
“Manicuera”, “Manicuera Branca”, “Manicuera Roxa”, “Menina”, “Pagoa”, “Carga de
Burro”, “Arpão”, “Socó”, “Juritizinho”, “Iá”, “Tambaqui”, “Estaquinha”, “Estaca Grande”,
“Perereca”, “Rosarinho”, “Tapaiúna”, “Anuecê”, “Inajá”, “Jerimum” e “Leandra”.
Essas variedades de mandioca foram as mais citadas pelos informantes, mas existem
outras cujos nomes não souberam dizer, pois costumam trabalhar com número limitado nas
roças, de modo que outros tipos de mandioca vão se perdendo com o tempo, porque deixam
de ser cultivadas. O curioso é que os cultivadores de mandioca conseguem mensurar quais
mandiocas contém muito ou pouco veneno e quais são as mais apropriadas para fazer os
derivados, além da farinha.

4.2 O barracão
Ele é feito com “varas” grossas da árvore “cariúba”, as quais são os “esteios” das
bases principais, e de “varas” finas, que são os “caibros” de árvores como “Pau Caboclo”,
“Envira”5, “Moorta”, que recebem a cobertura de “palha”. Na “cumeeira” é colocado um
“jacaré”, que é feito de “palha preta” para evitar que chova no “meio do barracão”. Este pode
ter dimensões pequenas, médias e grandes dependendo da quantidade de famílias que
trabalham nele e da necessidade de ampliação para maximizar a produção de farinha. O lugar
onde se produz farinha e outros derivados pode ser construído permanente ou provisoriamente
próximo à casa dos roceiros ou muito mais distantes nos chamados centros.

4.3 A divisão do trabalho


A divisão do trabalho não obedece verdadeiramente a uma hierarquia rígida, mas os
papeis desempenhados pelo homem e pela mulher possuem certa peculiaridade, pois ele é o
responsável pelo sustento da casa, tendo que pescar nos lagos chamados de Araçá Grande
e Araçazinho, principalmente, com malhadeiras ou com caniços nos igapós. Ele caça durante
5
Envira é o nome da casca de um pau ou planta também chamada de envira. Devido à resistência da fibra,
é usada como alça nos paneiros por onde o roceiro coloca a cabeça.
6

a noite em um determinado lugar chamado de “Moitá”, onde passa veado, tatu, paca, cotia,
“catitu” ou “quexada” (os nomes que eles chamam para o porco do mato) ou então aves como
o jacu. Entretanto, a atividade principal que o homem faz é a plantação de mandioca feita
próxima a casa, que fica na “bera” do Igarapé ou então é feita distante nos grandes “centros”.
Além disso, o homem é responsável pela construção da casa, que antigamente era feita de
“palha” e a atualmente é feita de madeira. Embora o homem faça todas essas atividades, ele
participa de outras com menor frequência tais como lavar roupas, cuidar do peixe e fazer
o almoço e a janta. Por outro lado, a mulher cuida dos afazeres domésticos, do filho, mas
“tem” uma participação muita ativa no plantio e na produção da farinha e principalmente na
de seus subprodutos.

4.4. O plantio da “maniva”


Para fazer o plantio da “maniva”, é necessário cavar com a enxada, abrir as “valas”
para “interrar” as manivas “decotadas” ou cortadas. Essa “vala” ou buraco, como dito
anteriormente, recebe o nome de “manicujá”. Quando possível são divididos três grupos: um
que vai abrindo as “valas” com a enxada; outro composto pelos espalhadores ou
“espalhaderas”, que jogam os pedaços de “maniva” na “vala” ou “manicujá”; e por último,
o terceiro grupo vai “interrando” em pé.
Segundo o ex-agricultor EAQ, o caboclo trabalha o solo através do fogo e vai usar
o verão amazônico para fazer a queimada. Ele começa a fazer o roçado em torno junho e julho
e a queimada ocorre em setembro ou em outubro no forte do verão. A plantação começa em
novembro, mas existe alguma variação em que se planta até mesmo em janeiro. Portanto,
existem épocas diferentes para a “derribada” das árvores, para a secagem do roçado e para
o plantio das “manivas”. Depois de alguns meses ou um ano, dependo da variedade plantada,
o roceiro começa a fazer a colheita.
Para facilitar o plantio, o responsável ou interessado promove o “ajuri”, que pode ser
composto por 10, 15, 20, 30 ou mais pessoas, que irão ajudar no trabalho. Ajuri é uma troca
tradicional de diárias, que caracteriza muito bem a cultura da mandioca, uma vez que é quase
inviável empregar alguém na roça. As pessoas costumam dizer no interior desta forma: “eu
ainda vô naquele ajuri da pessoa. O ajuri significa ajudá, pode ser puxirum, significa muitas
pessoa” (DSA).
7

4.5 A produção da farinha e seus instrumentos de manufatura


O informante EAQ. disse que a forma como se produz no Juruti-Velho é rústica,
porque o caboclo não tem organização ou seria uma atividade vista recentemente como “um
quebra galho”, em função da entrada da mineração de bauxita cuja exploração está a cargo da
empresa americana Alcoa, que desviou os olhares dos ribeirinhos para outro tipo de trabalho,
mas que por falta de qualificação profissional, muitos depois de um ano ou dois anos de
serviço prestados a essa empresa foram dispensados e eles aos poucos retornam a atividade
anterior de produção de farinha. Em 2010 ocorreu uma carência pelo produto, de modo que
houve uma supervalorização em que um saco de farinha chegou a custar R$150,00 ou
R$160,00 nas principais cidades do Amazonas e do Pará. A causa da carência do produto
é devido a uma quantidade de chuva excessiva que ocasionou o apodrecimento das raízes de
algumas roças e também devido ao “pessoal que se dedicou ao trabalho das empresas
contratadas e subcontratadas pela Alcoa e não fizeram roças o suficiente para atender
a demanda regional” (JSA, 22 anos, oitava série).
Para o preparo principalmente da farinha, são utilizados vários instrumentos, que
ficam disponíveis no barracão. São usados como recipientes: “garera”, “gamela”, “cuia”,
“sacos”, “bacia”,” panelas”; para secagem da massa: “tipiti”, “prensa”; para mexer a farinha
no forno: “remo”, “rodo”, “pá”, “cuiapéua; para evitar que a massa no tipiti caia no
chão:“rolha”, “pano”, “ouriço de castanha”, “cuia”; para carregar a mandioca da roça para
o barracão: “paneiro”, “saco”; para descascar a mandioca:“terçado”, “faca”, “raspador”; para
serrar a mandioca: “motor de serrar mandioca”, “ralo”; para torrar a farinha: “forno de
barro”, “forno de camburão de diesel”, “forno de aço”; para peneirar a massa serrada:
“peneiras” para a massa da farinha e para a massa dos beijus; para esticar o tipiti: “pau-do-
tipiti” ; para alimentar a fornalha ardente do forno: “lenhas do roçado”.

4.6 Os subprodutos da mandioca


A mandioca, que contém ácido cianídrico (HCN) não pode ser consumida in natura.
Para torná-la consumível em diferentes subprodutos, precisa obedecer às etapas de serragem,
secagem e torragem no caso da produção de qualquer tipo de farinha. A partir da massa se
podem obter os subprodutos que exigem diferentes maneiras de preparo. Assim, foi consenso
na fala das pessoas os seguintes nomes: para beiju, encontramos “Beiju cica”, “Beiju de moça,
“Beiju de Pajiroba”, “Beiju de Tarubá”, “Beiju d’água”, “Beiju de tapioca”, “Beiju peteca” ou
“Pé-de-moleque”; para massas, encontramos “Massa lavada”, “Carimã”, “Crueira”; para
bebidas, encontramos “Tarubá”, “Pajiroba”, “Pajiroba picadinho”, “Caissuma”; para farinha,
8

encontramos “Farinha d’água”, “Farinha de toco mole”, “Farinha seca”, “Farinha de


mistura”, “Farinha de tapioca”; para frituras, encontramos “Frito de farinha”, “Frito de
tapioca”, “Croquete”; para pratos, encontramos,“Panquecas”,“Pato no tucupi”, “Peixe no
caldo do tucupi”, “Maniçoba”. Além desses derivados da mandioca, encontramos também
outros como “Mingau de farinha”, “Manicuera”, “Caribé”, “Pirão”, “Chibé”, “Tucupi”,
“Borra amarela”, “Polvilho”, “Tacacá”, “Bolo de macaxeira”, “Bolo podre”, “Tapioquinha,
“Tapioca” e “Biscoito”,
Portanto, essas são as diferentes formas de se usar a massa da mandioca pelos
moradores das comunidades do Igarapé do Juruti-Velho, e as mesmas denominações ou
procedimentos de manuseio e preparo podem ser encontrados em outras comunidades tanto
do Pará quanto do Amazonas. Muitos desses produtos são comercializados em pequena escala
nas pequenas, médias e grandes cidades da Região Norte.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da descrição dos dados, alcançamos o escopo da pesquisa que foi conhecer a
linguagem utilizada pelo caboclo em relação à organização de trabalho na roça, às variedades
de mandioca, ao plantio da maniva, aos instrumentos usados para a produção da farinha e de
seus derivados e em relação aos próprios subprodutos da massa da mandioca. Embora se
tenha chegado a uma metalinguagem específica no que diz respeito à cultura da mandioca
praticada nas comunidades do Igarapé do Juruti-Velho mediante a realização de entrevistas
com os moradores locais durante alguns dias da última semana do mês de agosto, a
composição do léxico pode ser maior, de modo que para descrevê-lo e observar o
comportamento lingüístico dos moradores, exigiria mais tempo de contato no barracão, nos
centros e na roça. Apesar disso, a linguagem descrita na pesquisa caracteriza bem o roceiro e
sua relação com a cultura da mandioca, por isso para os propósitos almejados e pela natureza
deste trabalho, os itens lexicais encontrados se bastam, uma vez que são os mais conhecidos
da região. O homem roceiro é detentor de um conhecimento tradicional herdado dos índios
sobre a cultura da mandioca, e se correlaciona com o mundo da roça mediante o uso de um
vocabulário típico, que foi descrito, parcialmente, no corpo do trabalho e acrescentado ao
glossário de termos relacionados à cultura da mandioca no apêndice desta pesquisa.
9

6 REFERÊNCIAS

CHISTÉ, Renan Campos et al. Quantificação de cianeto total nas etapas de processamento
das farinhas de mandioca dos grupos seca e d'água. Acta Amaz., Mar 2010, vol.40, no.1,
p.221-226. ISSN 0044-5967.

FAUSTO, C. Uma plantinha venenosa. Ciência hoje, v.39, p.37-39. Rio de Janeiro, 2006.

GONZAGA, Adriana Dantas et al. Toxicidade de manipueira de mandioca (Manihot


esculenta Crantz) e erva-de-rato (Palicourea marcgravii St. Hill) a adultos de Toxoptera
citricida Kirkaldy (Homoptera: Aphididae). Acta Amaz., 2008, vol.38, no.1, p.101-106.
ISSN 0044-5967.

JÚNIOR, Adail Sebastião Rodrigues. Etnografia e ensino de línguas estrangeiras: uma análise
exploratória de seu estado-da-arte no Brasil. Linguagem & Ensino, v. 10, n. 2. 2 , jul. dez.
2007.

MENDES et al. Mapeamento da distribuição geográfica das espécies silvestres brasileiras de


Manihot, com vistas à conservação dos parentes silvestres e das variedades crioulas da
Mandioca (Manihot esculenta Crantz.) In: Parentes silvestres das plantas cultivadas. Brasília.
Ministério do Meio Ambiente, 2006.

PEZZUTI, Juarez; CHAVES, Rodrigo Pádua. Etnografia e manejo de recursos naturais


pelos índios Deni, Amazonas, Brasil. Acta Amaz., Mar 2009, vol.39, no.1, p.121-138. ISSN
0044-5967.

SOUZA, Joana Maria Leite de et al. Caracterização físico-química de farinhas oriundas de


variedades de mandioca utilizadas no vale do Juruá, Acre. Acta Amaz., Dez 2008, vol.38,
no.4, p.761-766. ISSN 0044-5967.

EMBRAPA. http://www.cnpmf.embrapa.br/index.php?p=pesquisa-culturas_pesquisadas-
mandioca.php. Acessado em 15 de agosto de 2010.

APÊNDICE

Glossário de termos relacionados à cultura da mandioca usados no Igarapé do Juruti-


Velho pelos moradores locais

A
1. Acabar –v.t.d.1. Resultar. 2. Trazer como consequência.
2. Achadinha –s.f.1 É uma variedade de mandioca cultivada na região e de casca na cor
vermelho arroxeada.
3. Aguar –v.t.d.1. Dissolver a tapioca na água para remover o ácido cianídrico (HCN).
4. Ajuda –s.f.1. Variedade de mandioca.
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5. Amadurecer –v.i.1. Tornar-se maduro.


6. Âmago –s.m.1. O tubérculo. 2. A raiz. 3. A parte mais central da raiz da mandioca.
7. Amarelaça –adj.1. Variação de amarela ou amarelada em referência a cor da mandioca.
8. Ambé –s.m.1. O cipó do qual se faz o paneiro para carregar mandioca.
9. Ananás –s.m.1. É o rolo com dentes usado para serrar mandioca. 2. A fruta.
10. Anuecê –s.f.1. Espécie de mandioca não caracterizada pelos informantes.
11. Ajuri –s.m.1. Puxirum. 2. Mutirão. 3. Reunião de pessoas para trabalhar no roçado de
alguém sem remuneração.
12. Areia –s.f.1. É uma espécie de solo arenoso.
13. Areião –s.m.1. É o mesmo que solo arenoso.
14. Armar o beiju –v.t.d. 1. É deixar o beiju no ponto para assar. 2. Preparar o beiju para ser
assado.
15. Arpão –s.m.1. Espécie de mandioca cujo caule é grosso e comprido.
16. Aruanã –s.m.1. Espécie de mandioca cuja cor da segunda casca é vermelha.
17. Atorar –v.t.d.1. Cortar.
18. Avermelhar -v.i.1. Tornar-se vermelho.

B
19. Bago –s.m.1. O grão da farinha. 2. O caroço.
20. Barracão –s.m.1. O lugar onde produz a farinha no interior.
21. Batata –s.f.1. A raiz da mandioca. 2. O tubérculo.
22. Batata doce –s.f.1. É uma raiz tuberosa, que dá a coloração rosa ao pajiroba.
23. Beiju cica –s.m.1. O subproduto da mandioca dura, que é colocado diretamente no forno.
24. Beiju d’água –s.m. 1. O subproduto da mandioca mole, ou seja, da mandioca que fica na
água. O beiju é envolto em folhas de bananeira.
25. Beiju de crueira –s.m.1. É o subproduto da mandioca feito com as sobras na peneira, que
depois de colocadas ao sol para secarem são socadas em um pilão, de modo que tornam-
se um pó apropriado para fazer beiju no forno ou sobre outro recipiente levado ao fogo.
26. Beiju de tapioca –s.m.1. O subproduto da mandioca feito geralmente em uma frigideira
sobre o fogo 2. O mesmo que tapioquinha.
27. Beiju de tarubá –s.m. 1. É um beiju grande igual ao do pajiroba, mas com uma única
diferença: é bem assado e é específico para a bebida chamada tarubá.
28. Beiju grosseiro –s.m. 1. É um beiju grande, que adquire a coloração vermelha no forno
e é específico para fazer pajiroba.
29. Beiju pé-de-moleque -s.m.1. O subproduto da mandioca cuja massa precisa ser
escaldada para ligar e ir ao forno envolto em folha de bananeira 2. O mesmo que beiju
peteca.
30. Beiju peteca –s.m. 1. O subproduto da mandioca cuja massa precisa ser escaldada para
ligar e ir ao forno em folha de bananeira. 2. O mesmo que beiju pé-de-moleque.
31. Bera –s.f.1. Variação de beira. 2. A margem do Igarapé do Juruti-Velho.
32. Beradão –s.m.1. Variação de beiradão. 2. A margem do Igarapé do Juruti-Velho.
33. Bodó –s.m.1. Espécie de mandioca de massa amarela e caule alto.
34. Borra amarela –s.f.1. A camada amarela e residual da mandioca que fica sobre
a tapioca.
35. Braba –adj.1. Variação de brava dada à mandioca com muito ácido cianídrico.
36. Braço da maniveira –s.m.1. O pecíolo que liga a folha ao caule.
37. Branca –s.f.1. Variedade de mandioca cuja cor é amarela e é indicada para fazer, além da
farinha, os beijus.
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38. Brebrei –adv.1. A maneira como são arrumadas as mandiocas no paneiro. 2. Só jogado.
39. Broa –s.f.1. É o subproduto da mandioca feito da tapioca.

C
40. Caba –s.f.1. O mesmo que vespa.
41. Cabeça do paneiro –s.f.1. É a forma como são arrumadas as mandiocas maiores
e compridas na parte de cima do paneiro.
42. Caibro s.m.1. É o caule roliço de árvores, o qual é usado na cobertura do barracão.
43. Caissuma –s.m. 1. O mesmo que pajiroba, a bebida tomada no roçado durante o ajuri.
44. Caititu –s.m.1. É o nome da roda grande, onde dois homens a giram para que ela serre as
mandiocas 2. É o nome de um dos porcos-do-mato da região.
45. Caixa –s.f.1. O objeto posto sobre o rolo com dentes cuja função é evitar que a massa
espalhe por todas as direções.
46. Camarãozinho –s.m.1. Espécie de mandioca cujo arvoredo é baixo e a popa é amarela
47. Capinar –v.t.d.1. Cortar o mato, o capim com o terçado.
48. Capoeira –s.m.1. É a roça, que teve todas as suas mandiocas retiradas.
49. Capoeirão –s.m1. É a roça, que teve todas as suas mandiocas retiradas, mas desta vez
o mato já cresceu muito.
50. Carga de burro -s.f.1. Espécie de mandioca com casca marrom e massa amarela.
51. Caribé –s.m.1. É uma espécie de mingau de farinha.
52. Carimã –s.m.1. É a massa da mandioca que depois de lavada, põe-se para secar no forno.
Com ela se faz frito, mingau e beiju.
53. Cariúba –s.f.1. Madeira usada para fazer os esteios do barracão.
54. Carlitozadas –s.m. plural.1. Relativo à família Carlitos, que moram na comunidade
Raifran no Igarapé do Juruti-Velho.
55. Cavalo –s.m.1 O instrumento onde está o conjunto de acessórios usados para serrar
a mandioca 2. O acessório de madeira sobre o qual fica o motor de serrar mandioca.
3. O animal quadrúpede.
56. Caxiri. s.m. 1. O nome indígena para pajiroba, a bebida que os índios costumam cuspir
dentro para que ocorresse a fermentação.
57. Centro –s.m.1 O lugar distante da casa do caboclo, onde ficam a roça, o barracão e o
chavascal.
58. Chamuscar –v.t.d.1. Assar levemente sobre a brasa.
59. Chavascal –s.m.1. É o terreno alagado pelas águas do riacho, onde há muitas palmeiras
como açaizeiros e buritizeiros.
60. Chibé –s.m.1. É a farinha misturada com água natural.
61. Chumbo –s.m. 1. Nome dado à farinha de tapioca que senta no fundo do café por ser de
má qualidade.
62. Coraci –s.f.1. É uma espécie de mandioca de cor branca cultivada na região e é
considerada muito brava para alguns informantes, enquanto outros consideram que não.
63. Coraci amarela –s.f.1. Espécie de mandioca coraci cuja massa é amarela.
64. Coraci branca –s.f.1. Espécie de mandioca coraci cuja massa é branca.
65. Coraci preta –s.f.1. Espécie de mandioca coraci preta, que recebe esse nome devido ao
caule e a casca serem da cor preta.
66. Cozinha de farinha –s.f.1. O mesmo que barracão, o lugar onde se produz farinha.
67. Crueira –s.f.1. É a sobra da massa da mandioca que não passa na peneira.
68. Cuí –s.m.1. Os grãos mais finos da farinha.
69. Cumeeira –s.f.1. O vértice da cobertura do barracão ou a parte mais alta dele.
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70. Cuiapéua –s.f.1. É um instrumento feito de cuia usado para remexer a farinha no forno.
71. Curumim –s.m.1. O nome da planta em cujas folhas são colocados os beijus do tarubá.

D
72. Dar -v.t.d.1. Produzir. 2. Presentear, doar.
73. Decotar –v.t.d.1. O mesmo que cortar as manivas. 2. Tirar as mandiocas do tronco com
o terçado.
74. Demorar v.i.1. Levar tempo para amadurecer.
75. Derribar –v.td.1. Cortar a arvore no tronco. 2. Variação de derrubar.
76. Descascar –v.t.d.1. Remover as cascas da mandioca com a faca, raspador ou terçado.

E
77. Enfornar –v.t.d.1. Levar a massa da mandioca para o forno quente, onde virará farinha.
78. Envira –s.f.1. A fibra de origem vegetal usada no paneiro como alça que é posta na testa
da pessoa. 2. A árvore envira.
79. Empachada –adj.1. Com a barriga empanturrada de comida ou de bebida. 2. Com
a barriga dura ou cheia de vento.
80. Empoar o peixe para fritar –v.t.d.1. O mesmo que empanar com a massa da crueira ou
da farinha o peixe para fritar.
81. Enxada –s.f.1. Utensílio usado para cavar o buraco para onde serão enterradas as
manivas.
82. Escaldar –v.t.d1. Jogar a água quente sobre a massa, a farinha ou qualquer outro objeto.
83. Espalhadera –s.f.1. Variação de espalhadeira. 2. É a pessoa que joga dois pedaços de
maniva no buraco para serem plantados.
84. Espanta-molhe -s.m.1. O nome de um dos centros do Igarapé do Juruti-Velho.
85. Estaca –s.f.1. O caule da maniveira.
86. Estaca grande –s.f.1. Espécie de mandioca com caule longo e com massa branca.
87. Estaquinha –s.f.1. Espécie de mandioca com caule amarelo e com massa amarela.
88. Esteio –s.m.1. O caule roliço e grosso, que sustenta a cobertura do barracão.

F
89. Farinha d’água –s.f.1. A farinha feita com a massa da mandioca que ficou na água
durante alguns dias para amolecer.
90. Farinha da mandioca seca –s.f.1. É a farinha feita unicamente da mandioca dura.
91. Farinha de mistura –s.f.1. É o produto principal da mandioca, que serve como completo
alimentar.
92. Farinha de tapioca. –s.f.1. É a farinha feita com a massa da tapioca.
93. Filhas de mandioca –s.f.plural.1. As mandiocas pequenas.
94. Fofa –s.f.1. O mesmo que farinha.
95. Fora –adv.1. O Igarapé do Juruti-Velho em relação aos centros.
96. Fornada –s.f.1. É o processo de torragem de farinha ligado ao tempo. Por exemplo: Esta
é a minha primeira fornada.
13

97. Fornalha –s.f.1. É a fogueira alimentada com lenha dos roçados e fica embaixo do forno.
98. Forno –s.m.1. É uma chapa de aço em formato circular, onde se torram a farinha e outros
derivados da mandioca.
99. Frito de crueira –s.m.1. É o subproduto da mandioca feito com as sobras na peneira, que
depois de colocadas ao sol para secarem são socadas em um pilão, de modo que viram pó
que pode ser frito no óleo de cozinha.

G
100. Gamela –s.f.1. O recipiente de madeira usada para se lavar as mandiocas.
101. Garera –s.f.1. O recipiente feito do tronco oco de árvore destinado a receber
a mandioca lavada ou a mandioca serrada.
102. Goma –s.f.1 O amido da mandioca. 2. O mesmo que tapioca. 3. A água com tapioca
levada ao fogo adquire uma consistência pastosa e clara.
103. Gravatar -v.t.d.1. Retirar cuidadosamente o toco da mandioca para evitar
o desperdício de massa.
104. Graúda –adj. 1. É o nome dado à mandioca grossa e comprida.
105. Gruta –s.f.1. O local onde a água brota da terra. 2. O local onde passa o riacho nos
centros do Juruti-Velho.

H (Sem dados)

I
106. Iá –s.f.1. Espécie de mandioca de massa e casca brancas.
107. Igarapé –s.m.1. Braço de rio. 2. Rio pequeno.
108. Inajá -s.m.1. Espécie de mandioca cuja maniveira não cresce alta e possui massa
amarela.
109. Impurrar –v.t.d.1. Variação de empurrar. 2. Impelir com violência.
110. Incardida –adj.1. Manchada.
111. Ingrossar –v.i.1. Variante de engrossar. 2. Tornar mais grosso.
112. Interrar –v.t.d.1. Variação de enterrar. 2. Pôr embaixo da terra.
113. Iscaldar –v.td.1. Variação de escaldar. 2. Jogar água quente na massa. 3. Colocar
a massa da mandioca no forno quente para que torre.
114. Ispocar –v.i.1. Variante de espocar. 2. Estourar.
115. Ispremer –v.t.d.1. Variante de espremer. 2. Comprimir para extrair o suco.

J
116. Jacaré –s.f.1. A cobertura feita de palha rocha, que fica no vértice para evitar que
chova no barracão. 2. O mesmo que capote. 3. O animal réptil de sangue frio.
117. Jacitara –s.f.1. A planta que cresce sobre as árvores, da qual se retira a tala para fazer
o tipiti.
14

118. Jacuba –s.f.1. É a mistura de leite líquido com açúcar e com farinha.
119. Jambu –s.m.1. Planta rasteira cujas folhas e caule são fervidos para serem
adicionados ao tacacá.
120. Jerimum –s.m.1. Espécie de mandioca com guia alta e possui a massa amarela
e a casca marrom. 3. Abóbora.
121. Jurutizinho –s.m.1. Espécie de mandioca com caule amarelo e pecíolo vermelho.
122. Judiar –v.t.i.1. Maltratar.

L
123. Lacrau –s.m.1. Escorpião.
124. Lanternazadas –s.f.plural.1. Relativo à família dos Lanternas, que moram na
comunidade Raifran no Igarapé do Juruti-Velho.
125. Largata –s.f.1. Variação de lagarta.
126. Leandra –s.f.1. Espécie de mandioca de vários ramos, que possui a casca e a maniva
vermelhas.
127. Leite de mandioca –s.m.1. É o líquido branco que sai da mandioca quando cortada.
128. Levar v.i. e v.t.d. 1. Demorar. 2. Carregar.
129. Liguenta –adj.1. Mais pegajosa ou grudenta.

M
130. Macaxeira -s.f.1. É uma espécie de mandioca, que pode ser consumida in natura
2. Mandioca mansa.
131. Macaxeira amarela –s.f.1. Espécie de macaxeira com popa e folha amarela
132. Macaxeira manteiga –s.f.1. Espécie de macaxeira com popa branca e com casca
fina.
133. Macaxeira jabuti –s.f.1. Espécie de macaxeira com casca vermelha e popa branca;
134. Macaxeira vermelha –s.f.1. Espécie de macaxeira com popa vermelha e com casca
vermelha.
135. Machado –s.f.1. É o instrumento que tem o cabo de madeira e a lâmina de ferro presa
em uma das extremidades e é usado para partir madeiras para lenhas e para derrubar
árvores no roçado.
136. Mãe da mandioca –s.f. 1. É o nome dado às mandiocas grandes.
137. Mancha de mandioca –s.f. 1. É o nome dado à nódoa provocada pelo leite pegajoso
da mandioca. na roupa.
138. Mandiocona -xpressão usada para se referi à mandioca grande.
139. Manicujá –s.m.1. O buraco onde são colocados os dois pedaços de maniva.
140. Manicuera –s.f.1. Espécie de mandioca apropriada unicamente para fazer tucupi.
2. O subproduto dessa mandioca parecido com uma bebida ou mingau.
141. Maniva –s.f.1. O caule da planta. 2. A árvore da mandioca.
142. Maniveira –s.f.1. A árvore da mandioca
143. Marrequinha –s.f.1. Variedade de mandioca cujo amadurecimento no solo é rápido
e é excelente para produção de tapioca.
144. Massa –s.f.1. É a mandioca depois de serrada.
145. Massapé –s.m.1. É uma espécie de solo argiloso. 2. O mesmo que barro.
146. Menina –s.f.1. Espécie de mandioca com caule grosso e com raízes grandes
15

147. Mingau de crueira –s.m.1. O subproduto da mandioca feito com as sobras deixadas
na peneira, que depois de colocadas ao sol para secarem, são socadas em um pilão, de
modo que pode ser aproveitado em forma de mingau.
148. Mingau de farinha –s.m.1. O suproduto da mandioca em que pode se acrescentado
leite, castanha etc.
149. Miriti –s.f.1. Variedade de mandioca cuja cor é amarela.
150. Misgalha –v.t.d.1. Variante de misgalhar. 2. Reduzir em pedaços menores.
151. Moitá –s.m.1. O lugar na mata onde se espera a caça passar.
152. Moorta –s.f.1. Um das madeiras usadas para fazer os caibros do barracão.
153. Motor serra –s.m.1. A máquina usada para serrar mandioca.
154. Muralha –s.f.1. As paredes feitas de barro que sustentam o forno em cima.

N (Sem dados)

O
155. Olho –s.m.1. É o nome dado no Igarapé do Juruti-Velho para as gemas florais
2. O mesmo que broto 3. O órgão da visão.
156. Olímpia –s.f.1. Espécie de mandioca da cor amarela cujo arvoredo é alto.

P
157. Pá –s.f.1. Utensílio feito de madeira para mexer a farinha no forno.
158. Pagoa –s.f.1. Espécie de mandioca da popa branca e é própria para fazer beiju.
159. Paixão –s.f.1. Variedade de mandioca da cor amarela.
160. Pajiroba. s.m.1. É uma espécie de bebida feita a partir de beijus grandes da massa da
mandioca com a coloração rosa devido a presença da batata doce. 2. É a cachaça de
origem indígena. 3. Caissuma. 4. Caxiri.
161. Paneirada, -s.f.1. É o paneiro cheio de mandioca que se descarrega no barracão ou
na água. 2. É o carregamento de mandioca no paneiro.
162. Paneiro –s.m.1. O utensílio de origem indígena usado para carregar mandioca.
163. Parte –v.t.d.1. Variante de partir. 2. Quebrar-se.
164. Pau caboclo –s.m.1. Madeira usada para fazer os caibros do barracão.
165. Pau do tipiti –s.m.1. É uma vara resistente ao peso das pessoas ou de toras de
madeira cuja função é esticar o tipiti para secar a massa da mandioca em seu interior.
166. Peneira –s.f.1.Utensílio de origem indígena feito de tala de ambé ou de chapa de aço
com furos, por onde passa a massa da mandioca antes de ir ao forno para torrar.
167. Perereca –s.f.1. Espécie de mandioca cuja maniveira é baixa e possui a casca marrom
e a massa branca.
168. Pirão –s.m.1. É a farinha escaldada com, água quente.
169. Plantar em pé – Expressão usada para o plantio inclinado dos dois pedaços de
maniva na cova.
16

170. Plantar deitada – Expressão usada para o plantio de forma horizontal dos dois
pedaços de maniva na cova.
171. Polvilho –s.m.1. É a tapioca seca, da qual se pode fazer biscoito torrado, pão-de-ló
etc.
172. Popa –s.f.1. O mesmo que raiz. 2. A massa da mandioca in natura.
173. Pororoca –s.f.1. É uma variedade de mandioca cultivada na região que possui raízes
grandes.
174. Pororoquinha –s.f.1. É uma espécie de mandioca pequena.
175. Prensa –s.f.1. É o instrumento de secagem da massa da mandioca mais eficiente
devido a maior capacidade de armazenamento.
176. Presta –v.i.1. Variante de prestar. 2. O mesmo que ser útil.
177. Puçanga –s.f.1. É o ato de mastigar o beiju do pajiroba para que a bebida fermente ou
para que fique mais doce.
178. Purridão –s.f.1. Variante de porridão. 2. O mesmo que bêbado.
179. Puxirum –s.m.1. É a reunião de trabalhadores na roça para ajudar alguém a plantar
a maniva, a capinar ou mesmo para fazer o roçado. 2. O mesmo que ajuri ou mutirão.

Q
180. Queroizadas –s.m.plural.1. Relativo à família dos Queiróz, que moram na
comunidade Raifran no Igarapé do Juruti-Velho.

R
181. Raiz –s.f.1. A mandioca. 2. O tubérculo da planta maniveira.
182. Ralo –s.m.1. Objeto com dentes e forma retangular feito de lata de querosene ou de
lata de óleo de cozinha cuja função é ralar a mandioca.
183. Ramalhuda –adj.1. Com vários ramos ou galhos.
184. Raspar –v.t.d.1. Umas das formas de descascar a mandioca.
185. Raspador –s.m.1. Objeto em forma de “U” com uma lâmina presas às extremidades
cuja função é descascar a mandioca.
186. Rastejar –v.t.d.1. O mesmo que esfregar com o toco da mandioca o resto da outra no
ralo.
187. Remo –s.m.1. Objeto feito de madeira usado no casco pelo ribeirinho para se
locomover pelos igarapés e lagos, além de ser usado também para remexer a farinha
no forno.
188. Rodo –s.m.1. O instrumento de madeira com cabo longo inserido em uma peça
retangular cuja função é remexer a farinha no forno.
189. Roça –s.f.1. O terreno onde se planta a mandioca ou outras culturas.
190. Roçado –s.m.1. O terreno destinado a fazer a roça de mandioca ou outras culturas.
191. Roceiro –s.m.1. A pessoa que cultiva culturas em um terreno chamado roça.
192. Rolha - s.f.1. O ouriço de castanha colocado na cabeça do tipiti cuja função
é impedir que a massa derrame.
193. Rosarinho –s.m.1. Espécie de mandioca com casca vermelha, com guia roxa e com
massa amarela.
17

S
194. Santospé –s.m.1. Centopéia.
195. Sociedade -s.f.1. Sistema de partilha de produção de farinha entre o dono da
plantação da mandioca e o interessado.
196. Sevada –adj.1. Variação de serrada.
197. Socó –s.m.1. Espécie de mandioca com massa amarela e caule comprido. 2. A ave.

T
198. Tacacá -s.m.1. É a tapioca adicionada água que quando ferve adquire uma
consistência pastosa e clara, na qual são acrescentados camarão, jambu e tucupi, que
pode ser pimentoso ou não.
199. Tambaqui –s.m.1. Espécie de mandioca com caule roxo e com pecíolo vermelho.
200. Tapaiúana –s.f.1. Espécie de mandioca com vários ramos e possui a casca marrom e
a massa branca.
201. Tapioca –s.f.1. O subproduto da mandioca de cor branca. 2. O amido da mandioca.
202. Tapioquinha –s.f.1. É o beiju feito da massa da tapioca.
203. Tapiriti –s.f.1. O mesmo que massa seca dentro do tipiti.
204. Tapurati –s.f.1. Variação de tapiriti. O mesmo que massa seca.
205. Tarisca –s.f.1. O rolo com dentes 2. Os dentes, que serram a mandioca.
206. Tarubá –s.m.1. É uma bebida pastosa feita na folha da planta chamada curumim.
207. Ter –v.t.d ou modal1. Possuir. 2. Dever.
208. Terçado –s.m.1. Utensílio usado na capinação da roça.
209. Terra de várzea –s.f.1 É uma espécie de solo, que surge nas vazantes das águas
e é muito rico em húmus.
210. Terra rocha –s.f.1. É uma espécie de solo, rico em húmus.
211. Tipiti –s.m.1. Utensílio de origem indígena usado para secar a massa da mandioca.
212. Toco –s.m.1. A parte da mandioca que a liga ao tronco da maniveira.
213. Toco molhe -s.m.1. É a mandioca que ficou na água. 2. A farinha d’água.
214. Traíra –s.f.1. É uma espécie de mandioca cultivada na região cujas folhas são meio
arroxeadas.
215. Tronco –s.m.1. A parte grossa da maniveira junto às raízes da mandioca.
216. Tucumã –s.m.1. Variedade de mandioca cuja cor é amarela. 2. A fruta do
tucumanzeiro.
217. Tucupi –s.m.1. O líquido extraído da massa da mandioca adicionado à água.
218. Tucupi puro –s.m.1. O líquido extraído diretamente da massa da mandioca sem
adicionar água.

U (Sem dados)

V
219. Vai-quem-quer –s.m.1. O nome do centro da família Carlitos no Igarapé do Juruti-
Velho.
18

220. Vala –s.f.1. O buraco cavado com a enxada, onde são enterradas as manivas.
221. Veneno –s.m.1. O ácido cianídrico (HCN).

X (Sem dados)

Z
222. Zolhuda –s.f.1. Espécie de mandioca com caule roxo e a raiz meio amarela.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

A FALA DE FLORIANÓPOLIS: UMA MARCA DE CULTURA

Teresinha de Moraes Brenner1 (PPGLg/UFSC)

RESUMO

A fala dimensionada numa cultura regional estratifica um constructo histórico particularizado,


ao mesmo tempo que perfaz uma estrutura delimitada política e socialmente como nacional.
A fala de Florianópolis preserva os traços da colonização portuguesa local: Entradas e
Bandeiras organizadas por portugueses e, posteriormente, por grupos provindos de São Paulo.
Resguarda, sobretudo, a marca distintiva dos aportes da infiltração açoriana na região. Assim,
a cultura local possui propriedades individualizados confraternizando com o nacional. O
estudo situa apenas um fenômeno linguístico que ilustra o acima afirmado. Descreve os
fenômenos correlacionados à realização de /S/ em coda na região florianopolitana,
especialmente na zona pesqueira. A alofonia da [obstruinte, +contínua] recobre períodos
históricos delimitados, bem como processos sociais da distribuição do trabalho familiar e
comunitário altamente evidenciados. A pesquisa de fonética/fonologia dialetal, dirigida pela
autora deste, comprometeu, na década de 80, alunos da Graduação da UFSC, compreendendo
saídas em campo em praias de Florianópolis. Na década de 90, a autora deste realizou coleta
de dados „in loco‟ visando a uma análise fundamentada na área da Fonologia Multilinear,
apresentada em Paris III, para obtenção do grau de Doutor. A pesquisa recobria a [oclusiva] e
a [líquida]. Dos meados da década de 90 em diante, os Projetos sobre o tema recobriram a
demanda da Graduação e Pós-Graduação. Este breve estudo resulta de „corpora‟ colhida
conforme o descrito acima e se insere no modelo da Geometria dos Traços, conforme Projeto
da Pesquisadora.

Palavras-chave:
Obstruinte. [+contínua]. [+sibilante]. Traço cultural.

ABSTRACT

This study intends to present language as a particular feature of Santa Catarina island culture.
People‟s background is introduced as a crucial element for the construction of the regional
dialect. Therefore, in order to study the coda position of the segment /S/ in allophonic
distribution, it was necessary to review the historical context of the period. When looking
back at the process of colonization which Brazil went through – started at the 16th century and
lasted until the 18th century, it is possible to understand the European Portuguese linguistic
status in what concerns the [sibilant, +coronal, +anterior] phoneme realization that was
introduced in South Brazil. As a result of the colonization process, the emigration from
Azores to Santa Catarina Island in the 18th century modified the structural organization of the
local society. Other Portuguese varieties were, then, introduced, among them, the [sibilant,
coronal, -anterior] coda, which dominated by degrees the linguistic context. Both allophones
pointed out of [sibilant] in coda are nowadays present in the region. Thus, the Multilinear
Phonological Model and the Geometry of Phonological Features provide the theoretical basis
for explaining the [sibilant] variations.

Keywords:
Culture. Historical Phenomenon. Allophonic distribution. [sibilant].

1
Doutora pela Universidade de Paris III, Sorbonne-Nouvelle; e-mail: teresinha.brenner@ufsc.br.
2

1 INTRODUÇÃO
Este texto se propõe a descrever a alofonia de /S/ em coda [obstruinte, +contínuo,
+sibilante] como traço de cultura na fala de Florianópolis, sobretudo na zona pesqueira. Os
dados do corpus foram coletados através de pesquisas de campo realizadas nas praias de
Florianópolis, com os alunos da Graduação, nas décadas de 80 e 90 até a presente data sob a
direção da Pesquisadora. Os elementos de corpora resultam, também, de coleta de
informações in loco realizada pela autora deste para sua Tese de Doutoramento, bem como se
originam de processo de acompanhamento de trabalhos de alunos.
Os resultados demonstram uma convivência na área pesquisada entre a [+contínua, +
sibilante, -chiante] e a [+contínua, +sibilante + chiante], com prevalência da última. A
pergunta que se impõe reporta-se à causa desta distribuição. Busca-se a resposta em fatores
culturais. Entende-se aqui a cultura como resultante de traços históricos, geográficos, bem
como de marcas de caracterização regional, de organização comunitária, de distribuição do
trabalho, de estrutura familiar, dentre outros.
Enfatiza-se, sobretudo, o processo histórico da região que introduziu, de forma bem
delimitada, as duas variantes em coda: a [+contínua, + sibilante] versus a [+contínua, +
sibilante, +chiante]. Processos outros como sedimentação de cultura regional permitiram que
os dois alofones sobrevivessem, lado a lado: como representante do Português padrão no
território nacional /,/ [+ sibilante], e, no dialeto local, /,/ [+sibilante, +chiante], bem
como /,/, [+ sibilante]. O fenômeno remete, pois, necessariamente à época de colonização
do território nacional.
Os dois grupos consonânticos em foco se particularizam como [+estridente], uma
propriedade de gradiência da sibilância. Faz-se, pois, apelo a uma característica acústica de
ponto de articulação associada a modo para identificar um grupo aparentado em posição de
coda silábica, uma vez que a categoria maior de PontoC [+coronal, ± anterior] não restringe
suficientemente o grupo.
Para descrição da alofonia, selecionam-se os Modelos da Fonologia Multilinear e da
Geometria dos Traços Fonológicos. A interpretação para a classe natural [sibilante] feita neste
trabalho tem, ainda, apoio nas informações diacrônicas referentes a esta categoria na
passagem do latim para o português.
3

2 REVISANDO A HISTÓRIA
Entende-se a língua como elemento de uma cultura, que se organiza e se estrutura na
cultura e se perfaz continuamente dentro dela, mas que tem uma realização e uma
regulamentação própria e independente. Assim, a História constitui um fator que remete a sua
construção e estratificação na linha do tempo.
Santa Catarina situa-se no sul do Brasil, sendo o penúltimo Estado regional. Sua
História insere-se nos moldes da colonização portuguesa com recortes peculiares que a
distinguem das demais antigas províncias. Nos primeiros tempos após a descoberta do Brasil,
esteve associada às incursões de um grande centro de penetração portuguesa, São Paulo e, no
sul, vinculou-se a um vasto território vazio que formava com a Província do Paraguai até São
Pedro do Rio Grande.
Com a emigração açoriana, entre 1748 e 1756, a ilha de Santa Catarina assume uma
nova direção na sua História integrando valores peculiares de outro povo, nova gente à sua
estrutura colonial, afastando-se das lutas riograndenses entre portugueses e espanhóis na
disputa do solo brasileiro.
Para fins aqui delimitados que remetem a um esclarecimento sobre fenômenos
lingüísticos acima expostos, pode-se dividir a História de Santa Catarina em dois momentos:
(a) as peregrinações de viajantes e penetrações portuguesas e paulistanas de entradas e
bandeiras; (b) assentamento da cultura açoriana no litoral de Santa Catarina.

2.1 Das primeiras incursões nas terras catarinenses


Santa Catarina como território de posse portuguesa na América era habitada por
nativos indígenas carijós. A língua oficial do Brasil durante dois séculos e meio, foi o Tupi
que convivia com a língua dos europeus, de cunho popular. O índio foi catequizado pelos
jesuítas e servia como guia aos portugueses e espanhóis, no sul, para penetração no território.
Somente com a expulsão dos jesuítas do solo brasileiro, através de uma penada do Marquês
de Pombal, na segunda metade do século XVIII, o Português se oficializou como língua
nacional. A cultura autóctone se manteve, através da língua, altamente expressiva no território
português da América, durante dois séculos e meio.
Os primeiros registros escritos de aventureiros portugueses no Rio Grande do Sul,
como o de Gabriel Soares, datam da segunda metade do século XVI. As suas incursões se
estendiam do Rio da Prata ao Rio dos Patos (Santa Catarina). Essas entradas anteciparam de
mais de um século a implantação da Colônia do Sacramento nas margens do Rio da Prata.
Uns iam atrás do idealismo de fundar povoamentos, outros perseguiam a da prata ou o ouro.
4

O território ainda era concorrido pelos espanhóis. Além das entradas predatórias dos jesuítas
espanhóis e das que partiam de São Vicente, à caça de índio e de riqueza natural, havia a
perambulação de grupos pacíficos que valorizam o autóctone. Os lagunenses também
organizaram entradas para o Rio Grande do Sul. Foram surgindo, no século XVIII, em toda a
região as fortificações com o intento de defesa e centro de negociações. Mas, no século XVII,
ainda se via um enorme vazio nas terras que se estendiam da Província do Paraguai ao Rio da
Prata (Vellinho).
O território que corresponde ao atual Estado de Santa Catarina, se configurou
conforme o descrito acima referentemente ao processo de conquista da terra brasileira pelos
portugueses na região sul. Do Rio Grande do Sul como de São Paulo provinham excursões de
portugueses, de paulistas tanto predatórias como pacíficas. Pouco a pouco, foram construídas
as fortificações de defesa da terra e com fins de comércio. A história do Rio Grande se
distancia da de Santa Catarina na contingência de lutas entre espanhóis e portugueses na
disputa do solo como a que ocorreu na guerra pela posse da Colônia do Santíssimo
Sacramento, fundada em 1680por Portugal, no Rio da Prata, atual Uruguai.
Na verdade, Santa Catarina não ficou imune às lutas fraternas de portugueses e
espanhóis: entre 1580 e 1640 os dois povos se uniram politicamente, perdendo Portugal sua
soberania. Também houve uma invasão por espanhóis a Santa Catarina na definição final da
posse da Colônia do Sacramento (Caruso & Caruso).
Segundo Caruso & Caruso (p. 60), visando à defesa do litoral português no sul do
Brasil contra a Espanha, Santa Catarina transforma-se, em 1738, em Capitania, com nove
fortificações. O ato político autoriza maior autonomia à região frente às diretivas de São
Paulo. Como explica Furlan (p. 26), os centros mais antigos de povoamento na orla
catarinense foram fundados na segunda metade do século XVII, por grupos provindos de São
Vicente, no litoral paulista. Citam-se São Francisco do Sul, 1640, Nossa Senhora do Desterro,
hoje Florianópolis, 1662; 1675?, e Laguna, 1684.
Portanto, os primeiros investimentos na terra catarinense foram feitos pelos
portugueses do Continente e por portugueses instalados em São Paulo, bem como por seus
descendentes paulistas. Subiram do Rio Grande do Sul entradas organizadas por portugueses,
tentando alguns deles, comércio e construções de feitorias e povoamentos.

2.2 Da emigração açoriana


O Arquipélago dos Açores se situa entre Portugal e os Estados Unidos e se compõe
de nove ilhas. Foram colonizadas por Portugal, a partir do século XV, gozando de um estatuto
5

político de Região Autônoma desde 1976. Dividem-se em: (a) orientais- Santa Maria e São
Miguel; (b) centrais- Terceira, Graciosa, São Jorge, Pico e Faial; (c) ocidentais- Flores e
Corvo. Seu povoamento por portugueses do Continente e por flamengos se deu por fases
sucessivas a partir de sua descoberta em 1432 (Furlan, p.22-3).
Segundo Avelino de Meneses (Caruso & Caruso, p. 62-9), os Açores representaram
um celeiro agrícola para Portugal. Desde sua colonização no século XV, ofereceram, até o
século XIX, uma farta produção de cereais, do trigo ao milho. Sem condições administrativas,
a Corte Portuguesa estabeleceu um regime de Donatoria, sendo cedidos esses espaços a um
nobre com finalidade de ocupação e administração. A Donatoria, por causas semelhantes
criou as Capitanias, modelo imitado posteriormente para o Brasil. Essa estrutura criou um
regime de grandes propriedades de terras que desigualou o agricultor. Os conflitos sociais
resultantes favoreceram a vinda dos colonos para o Brasil, no século XVIII. O autor também
acredita na miragem brasileira. Registra, ainda, presos e embarcados. Assim, partiram
também alguns remediados, burocratas e „nobres‟. A emigração se fez entre 1748 e 1756. Em
1766, foi criada a capitania Geral dos Açores pelo Marquês do Pombal, centralizando a
administração.
Entende-se que a emigração de açorianos para Santa Catarina, após a fundação da
Capitania de Santa Catarina, em 1738, se deva, ainda, a fatores de fortificação local, em
consequência das lutas entre Espanha e Portugal pela posse de terras na América. Em 1750,
um tratado concede a Colônia do Sacramento, fundada pelos portugueses, aos espanhóis e os
portugueses recebem os Sete Povos das Missões no Rio Grande do Sul. Muita luta e revolta
resultou deste acordo (Caruso & Caruso, p.53-61).
Chegaram à Ilha de Santa Catarina 6000 açorianos. Desses, 1200 foram dirigidos
para o interior do Rio Grande do Sul. Retrata-se uma diversidade de destino dos dois grupos:
um se aclimatou e se organizou na Ilha, tendo uma vida relativamente tranquila. O que partiu
para o interior perdeu suas origens marítimas e, muitas vezes, se desfez na luta contra os
índios. Na verdade, ele foi absorvido pela estrutura do gaúcho (Caruso & Caruso, p. 70-1).
No edital publicado nos Açores, o embarcado deveria receber em sua chegada:
espingarda, facas, tesouras, machado, martelo, sementes, uma égua, duas vacas e Terra, além
de auxílio monetário. Na viagem, as mulheres eram embarcadas nos porões dos navios e eram
proibidas de falar com os maridos e os filhos. Só subiam ao convés nos domingos para assistir
à missa (id. p.72-3).
Para fins de reflexão, pode-se ponderar que os açorianos assentados em Santa
Catarina puderam cultivar seus costumes, crenças, folclores, tradições, deixando às gerações
6

posteriores um legado bem particularizado, com marcas significativas na estrutura da língua.


Essa cultura, mesmo predominante, convive, na Ilha, com a herança dos traços de civilização
do povo português do Continente, e de sua colonização instalada de dois séculos e meio,
quando da chegada açoriana.

3 QUESTÕES DE COLONIZAÇÃO: REALIZAÇAO DE /S/ [coronal, ± anterior] NA


ILHA DE SANTA CATARINA
Segundo o exposto acima, resume-se em duas etapas distintas o processo de
colonização da região correspondente ao atual Estado de Santa Catarina: (a) entradas de
viajantes e aventureiros, incursões de relatores de viagens e de jesuítas provindos do Rio
Grande do Sul, ao sul, e de São Vicente, ao norte; (b) chegada da população açoriana em
Santa Catarina. Sendo a história um fenômeno de cultura, no estudo linguístico da alofonia do
/S/ na Ilha de Santa Catarina, o processo de colonização portuguesa na região representa uma
sinalização cultural determinante.
Para melhor interpretação do processo linguístico em estudo, remonta-se à língua do
colonizador nas duas etapas. Lembre-se que as Ilhas dos Açores foram sendo exploradas pelos
portugueses a partir do século XV. Provinham, sobretudo, da região Meridional da península
e do Centro. A chegada dos portugueses no sul do Brasil ocorreu na primeira metade do
século XVI. Esse período corresponde à passagem do Português Arcaico para o Português
Moderno. Nesse estágio, as [coronal, -anterior], ,, começam a se consolidar como
fonemas da língua portuguesa.
No Latim clássico, havia apenas a [coronal,+anterior, -sonora], //, simples ou
geminada. Sua sonorização se firma a partir do século V e se expande no período da formação
dos romances, sobretudo na România Ocidental (Elia, p.188-91). As diferentes palatizações
que deram origem aos fonemas [sibilante, coronal, -anterior] se efetivaram ao longo da
evolução do romanço português. Citem-se, conforme Camara (1975, p.53) os fonemas ,,
pós-palatais, que, por assimilação, se palatizaram diante de ,, perdendo a oclusão. Assim,
“cera” /kea/ > cera e “gestum” /gestum/ > gesto (Camara, p. 55; Elia, 186-8). O mesmo
processo assimilatório demarca-se com , diante de ,: “passionem” > paixão, “caseum”
> queijo. O grupo  evoluiu para : “miscere” >  > mexer (p. 55).
O processo de palatização da [apical, sibilante] inicial de sílaba do galego-português
registra-se, segundo Furlan (p.56-7), até 1350 perdurando, ainda, em 1550, no português
comum do Centro e do Sul, quando passam a figurar apenas dois fonemas sibilantes, ,.
7

Assim, assinala que dois africados ápico-dentais ] e , como em “paço” e “cozer”,
respectivamente, perduram até por volta de 1500, pois foram perdendo o segmento [oclusivo].
Os dois ápico-alveolares, levemente palatizados , como em “sem”, “saber” e , como em
“coser” resistem até o final do século XVI, em proveito da [sibilante] sem palatização,
conforme o exposto no início do parágrafo. O Norte permaneceu conservador.
Somente a partir do século XVII a africada inicial de sílaba do galego-português //,
originária de „cl, fl, pl‟, do latim, se caracteriza como //, escrita com “ch” ou “x”(
Furlan.ibid), como a derivação de “pluvia”, do latim, em “chuva”. A descrição de onset
conduz à questão da [chiante] em posição de coda silábica. Furlan acena com duas hipóteses
discutidas também por Teyssier (p. 67): a primeira prevê um processo concomitante de
palatização de onset e coda; a segunda concebe a palatização da última como um processo
mais lento compreendido entre o século XVI e a primeira metade do século XVIII. Entendem
a última como mais razoável e mais difundida, tese que a autora deste também corrobora:
surge o fonema [palatal chiante] e, posteriormente, o chiamento aparece na alofonia do
travamento silábico.
Deve ter ficado esclarecido que a primeira etapa de colonização de Santa Catarina se
fez por portugueses do Sul e Centro do Continente. Nessa época, predominava em Portugal a
[sibilante] [coronal,+anterior], o que também justifica os /,/ [alveolar] do Rio Grande do
Sul. Alguns viajantes cultos e aventureiros dos séculos XVI e XVII deviam, provavelmente,
ainda, conservar marcas da palatização na [sibilante], em processo vivo, mas em extinção no
Continente da Europa. Esta reflexão, talvez, justifique a larga presença da [africada, -anterior]
ainda hoje no Rio Grande do Sul e da [+anterior] em Santa Catarina. A hipótese encontra
apoio em Camara (1975, p.55) que afirma que a africada chiante só subsiste dialetalmente
tanto no Brasil como em Portugal.
A [chiante] em coda como traço comum em Portugal registra-se, segundo Furlan
(p.79) apenas em 1736. Trata-se, pois, de processo mais tardio, inovado e irradiado no Centro
e na região Meridional do Continente, bem como em Lisboa. Tanto os Açores como demais
colônias sofreram influências lingüísticas dessas regiões. O chiamento penetrou, sobretudo, os
portos mais importantes da costa brasileira, sob influência da Corte.
Em Santa Catarina, assinala-se a chiante em coda nas áreas de cultura açoriana como
marca delimitativa. Penetra como traço inovador mais tardio. Lembre-se que quando a
imigração chegou no século XVIII, a propriedade [chiante] já era bem difundida na região
Meridional e Central do Continente, bem como na Corte.
8

O processo histórico da Ilha pode, pois, explicar a convivência das duas [sibilante]
em coda, na cultura açoriana atual. Essa área, de caráter conservador, se mostra, hoje, bem
mais reduzida devido à invasão do progresso na região. O português padrão de Santa
Catarina preconiza a [cor, +ant]. Na estratificação social, uma classe média de ilhéus difunde
as tradições da Ilha. Na cultura açoriana de pescadores e rendeiras, figuram os dois elementos,
predominando, na classe mais pobre, o segmento menos inovador.

4 SOBRE O CORPUS
Corpora resulta de pesquisas de campo realizadas pelos alunos da Graduação da
UFSC em praias e áreas de Florianópolis a partir de 1985 até 1990, sob a coordenação da
autora deste. Para fins de Doutoramento, a coleta de dados foi feita pela pesquisadora com
equipe auxiliar. A partir de 1996, as buscas de elementos se efetivam com alunos da
Graduação e da Pós-Graduação da UFSC. Os trabalhos visam ao estudo da fala de
Florianópolis, numa dimensão dialetal.
Para este, foram selecionados dois grupos de alunos da Graduação: (a) o primeiro
com pesquisa na Barra da Lagoa, em 2007/2; o segundo, com viagem de estudos a Santo
Antônio de Lisboa, em 2010/2. Pretende-se corroborar a alofonia da [sibilante, coronal, ±
anterior] na área de cultura açoriana. Antecipa-se que os dados confirmam o exposto acima
referente ao processo histórico na formação dialetal.
Os dados colhidos pelos Graduandos foram armazenados em CD-ROM e digitados
através do alfabeto fonético IPA- International Phonetic Alphabet, SIL Doulus IPA, conforme
segue fielmente abaixo.
Informa-se que, no primeiro grupo, predominou quase que totalmente a variante
[sibilante, +coronal, -anterior] em todos os informantes com, em alguns casos, co-ocorrências
da [+anterior]. No segundo grupo, prevaleceu também a [cor, -anterior]. Assinalam-se, no
entanto, informantes com registro da [cor, +anterior] como estrutura gramatical.
Ilustra-se o afirmado como segue. Seja Grupo1:
(1) Informante A, 62 anos, sexo masculino:
(a) 
(b) 
(c) 
(d) 
Co-ocorrências:
9

(e) 
(f) 
(2) Informante B, 79 anos, sexo masculino:
(a) 
(b) 
(c) 
(d) 
(e) 
Co-ocorrência:
(f) 
(3) Informante C, 60 anos, sexo feminino:
(a) 
(b) 
(c) 
(d) 
(e) 
Co-ocorrência:
(f) 
(4) Informante D, 83 anos, sexo feminino:
(a) 
(b) 
(c) 
(d) 
(e) ]
Co-ocorrências:
(f) [#
Seguem dados do Grupo2:
(5) Informante A, 60 anos, sexo masculino
(a) 
(b) 
(c) 
(d) ]
10

Co-ocorrências:
(e) 
(f) 
(g) 
(h) ]
(6) Informante B, 60 anos, sexo masculino
(a) 
(b) 
(c) 
Co-ocorrências dominantes:
(d) 
(e) 
(f) 
(g) 
(h) 
(7) Informante C, 51 anos, sexo feminino
(a) 
(b) 
(c) 
(d) 
(e) 
Co-ocorrências:
(f) 
(g) 
(h) 
(i) 
(j) 
(8) Informante D, sexo masculino
(a) 
(b) 
(c) 
(d) 
11

Co-ocorrências dominantes:
(e) 
(f) 
(g) 
(h) 
(i) ##

Os dados acima corroboram as hipóteses previstas, segundo as etapas de colonização


da região correspondente ao Estado de Santa Catarina. Constate-se que na amostra relativa à
área de Florianópolis prevalece, entre os informantes do sexo masculino e feminino a “coda”
[sibilante, chiada]. Em Santo Antônio de Lisboa, assinala-se, no entanto, um registro mais
significativo, embora não-dominante, de [sibilante, não-chiada].
Verifique-se que se evidencia a assimilação da sonoridade de “onset” pela [sibilante]
em “coda” precedente, como em (1)(e) versus (1)(f), em (3)(f) e (4)(a) versus (4)(b) entre
muitos outros exemplos. Em (1)(c) ilustra-se a redução de proparoxítonas; em (1)(d), a
despalatização de “onset” em proveito da [sibilante, não-chiada]; despalatização da [lateral],
(1)(f); ressilabação de “coda” se faz tanto com a [sibilante, chiada] como com a [não-chiada]
como em (4) (e)-(f); junturas (3)(c)-(4)(f)-(8)(b), (h) e outras; palatização mais elevada de
/,/ seguidos de // sem africação como em (3)(a), (b), (e), (f)-(4)(c)-(8)(a),(b) e com
africação (2)(e) e (6) (e),(h); harmonização vocálica (6)(b); ditongação (1)(a)(e). Podem-se,
ainda, mencionar outros processos fonológicos.
Na amostra, a fala se particulariza como conservadora, com predominância de
informantes com idade maior de 50 anos. Evidencia um nível social de classe baixa e de
pouca escolarização.

5 SOBRE O MODELO FONOLÓGICO


Selecionou-se para este trabalho o Modelo Multilinear que concebe a sílaba
distribuída binariamente em “onset” e “rhyme”. No primeiro, insere-se a consoante inicial na
sílaba e, na segunda, a vogal nuclear e a consoante, em “coda”, fecho silábico. Esses
elementos encontram, no esqueleto, posições vazias de significado fonético ou fonológico.
Nesse último, associam-se os segmentos fônicos às posições que lhes são correspondentes na
estrutura silábica. A sílaba dimensiona-se, pois, em dois planos.
12

Este trabalho focaliza a realização de /S/ em “coda” no dialeto de Florianópolis,


Santa Catarina. A distribuição alofônica recobre dois segmentos: [sibilante, coronal,+
anterior] e a [sibilante, coronal, -anterior].
Interpreta-se a [sibilante] como um som da fala caracterizado por um alto “pitch”
produzindo um barulho turbulento, como o  e o  do Inglês em „sip‟ e „ship‟ (
Ladefoged, p. 284). A categoria, formada pela [alveolar], , e pela [palatal], ,
sendo a primeira de cada par [+sonora] e a segunda, [-sonora], representa uma classe natural,
o que Trubetzkoy chamava de grupos de relações aparentadas. Pode-se estabelecer entre os
dois elementos [+sonoro] e os dois [-sonoro] da categoria uma oposição bilateral, delimitada
pela presença ou ausência da marca [chiante].
Jakobson (apud Camara, 1977, p.74) atribui a essa categoria um som claro, efeito
cromático, em oposição ao som escuro, abafado, da [labial] e da [recuada]. Assim,
particulariza-se também como [estridente]. Grammont (apud Camara, 1977, p.77) dividia a
[sibilante] em simples, chiante e molhada. Camara (id.ibid.) percebe no português do Brasil a
simples x a chiante molhada, compreendendo esta última como resultante de uma articulação
com modificações complementares realizada pelo dorso da língua na região do palato médio,
seja uma palatização. Esse molhamento ou amolecimento é entendido como uma iotização.
No latim clássico, ocorria apenas a [sibilante] [alveolar, -sonora], simples ou
geminada. A sonorização da consoante se fez na formação do romanço português. O
aparecimento do fonema chiante fez-se tardia em Portugal e, ainda mais posterior, a variação
em “coda”. No entanto, foi bem anterior, passagem do latim imperial ao galego-português, a
formação de // resultante da combinação, em latim, de uma [sibilante] dura com iode, em
hiato, originário de /,/, como exemplifica Teyssier (p.12):
(9) russeum > roxo

A questão que se impõe reporta-se ao modo como essa oposição categorial


determinada pelo ponto de articulação da [sibilante] é interpretada pela Geometria dos Traços
Fonológicos. O fonema [alveolar] não suscita discussões referentes a sua categorização em
traços hierarquizados.
Caracterizam-se ,,, como [obstruinte], uma categoria fechada, com grau zero
ou mínimo de sonoridade, dependendo do autor. Assinala-se também como [-sonorante], ou
seja, comporta a oposição ± sonoro ]. Quanto a modo de articulação, particulariza-se, ainda,
como [+continua], com grau 1 (hum) de abertura ou seja, grau mínimo de abertura.
13

Não há dúvidas na classificação da [alveolar] quanto a ponto de articulação. Trata-se


de uma [coronal, +anterior, -distribuída].
A Geometria de Traços Fonológicos, segundo proposição de Clements (1993), insere
a configuração arbórea e hierarquizada dos traços fonológicos na “linha do esqueleto” da
representação trilinear da frase fonológica, conforme mencionado acima: “linha silábica”,
“linha esqueletal”, e “linha segmental”. Dessa forma, o traço segmental se articula com a
sílaba, numa perspectiva tridimensional. Vejam-se as categorizações e sub-categorizações de
,.
Seja a configuração de , como em:
(10)

A árvore tem correspondência com a estrutura fisiológica da fala. O nó da “raiz” se


articula com o plano do “esqueleto” numa representação fonológica mais abrangente. Esse
nível compreende os traços laringais como os de [sonoridade]. A cavidade oral desenvolve os
traços de [modo] e [ponto de articulação]. Os fonemas em pauta distinguem-se entre si,
apenas, pela presença ou ausência da marca de [sonoridade].
Nesse texto, desenvolve-se a idéia de que , , ,  perfazem uma classe natural.
Buscou-se apoio histórico para mostrar a evolução da [coronal anterior] na [não-anterior]. O
processo articulatório comprova que a palatização envolve uma iotizazação, seja, ocorre um
14

processo de amolecimento da consoante dura [alveolar] por elemento de natureza vocálica.


Um contato longo do pré-dorso da língua com o pré-palato, articulação [+distribuída],
desencadeia um segmento com articulação secundária. A configuração arbórea de Clements
(1993, p. 103-4) prevê para segmento consonântico com articulação secundária um
encaixamento de articulação vocálica na articulação da consoante. Esta concepção se mostra
ajustada ao conceito estruturalista clássico de molhamento ou amolecimento da [palatal]
descrito acima, segundo Camara Jr.
Segue-se um diagrama para ,  que desenvolve uma articulação vocálica inserida
na articulação consonântica. Seja:
(11)

Verifique-se acima que na [coronal, +ant] insere-se uma articulação vocálica de


natureza [-anterior]. O PontoV domina o PontoC e se expande à esquerda, eliminando o traço
competitivo.
15

Nesta concepção, firma-se um estreito relacionamento entre a [coronal, +anterior] e


[-anterior]. Proposições divergentes compreendem ,  como segmento complexo:
segmento composto por duas articulações, uma [coronal] e, outra, [dorsal].

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Interpretou-se, neste trabalho, a língua como elemento fundamental da cultura.
Focalizou-se, como centro, a fala de Florianópolis. Para interpretação desta, selecionou-se
uma classe natural de fonemas consonânticos ,,,, realizados em posição de “coda”
silábica. A história da região articulada à história da língua particularizaram-se como fator
cultural preponderante na descrição da alofonia da categoria [sibilante] na área em estudo.
Uma amostra do corpus colhida por alunos da Graduação da UFSC, em 2007/2, na
Barra da Lagoa, e, em 2010/2, em Santo Antônio de Lisboa, comprova a distribuição
variacional de , , ,  em coda entre os falantes dessas áreas, com predomínio do
elemento [chiado].
A classificação desses fonemas como [coronal, ±anterior] se coaduna com a
descrição de segmento [palatal] proposta por Clements para a Geometria dos Traços
Fonológicos. Prevê-se um segmento consonântico com articulação secundária, de natureza
vocálica. A análise confirma a descrição estrutural clássica do português. A organização da
classe natural desses segmentos se firma através do traço [sibilante]; o [chiante] opõe
[+anterior] a [-anterior], identificando-se com o último.
Delimita-se a história da região em dois períodos: (a) chegada dos portugueses no
século XVI; (b) imigração açoriana. No primeiro momento, os portugueses organizam
entradas e bandeiras numa região sem fronteiras entre Rio Grande do Sul, Santa Catarina e
São Paulo e no sentido inverso. Tomam posse da terra e criam fortificações, disputando a
rivalidade espanhola. Nesse estágio, a Língua Portuguesa Meridional e do Centro despalatiza
alguns fonemas em proveito da [coronal, anterior, - chiado] e outras palatizações evoluem
para fixação do fonema [coronal, -anterior]. A [chiante] em coda se desenvolve a partir do
século XVIII. Portanto, o travamento silábico se caracteriza como [-chiante] nessa época de
conquista do Brasil. Na posição inicial de sílaba, com certeza, penetraram ainda, algumas
palatizações no sul do Brasil, trazidas por falantes desse período de penetrações históricas.
Após a criação da Capitania de Santa Catarina na primeira metade do século XVIII,
chegou a população açoriana para fortalecer o processo colonizador. O falar dos Açores como
o do Brasil segue os princípios do Português Meridional e Central. Nessa época, o
16

[chiamento] já invadia Lisboa, centro das duas colônias. As áreas de cultura açoriana em
Florianópolis atual comprovam o predomínio da [coronal, -anterior] no fechamento da sílaba,
embora a concorrente [+anterior] subsista em alto registro. Lembre-se, ainda, que o português
padrão regional, disseminado pela mídea, pela burocracia e pelo Ensino se pauta pelo
travamento [+sibilante, coronal, +anterior, -chiante].
Portanto, para análise do fenômeno linguístico- segmento [sibilante] em
“coda”silábica, na área de Florianópolis, fez-se apelo a dois elementos de cultura: a língua e a
história da região.

7 REFERÊNCIAS

BRENNER, Teresinha de M. Une approche multilinéaire dela variation dialectale des


consonnes occlusives et liquides chez les pêcheurs de Florianópolis. Paris, Thèse de
Doctorat, Sorbonne-Nouvelle, 1996.

CAMARA JR., J. Mattoso. Para o estudo da fonêmica portuguesa. Rio de Janeiro, Padrão,
2.ed., 1977.

_____. História e estrutura da língua portuguesa. Rio de Janeiro, Padrão, 1975.

CARUSO, Mariléa; CARUSO, Raimundo. Mares e longínquos povos dos Açores.


Florianópolis, Ed. Insular, 3.ed., 1996.

CLEMENTS, George N. Lieu d‟articulation des consonnes et des voyelles: une théorie
unifiée. In: Rialland; Laks (Orgs.), Architecture des représentations phonologiques. Paris,
CNRS Editions, 1993.

ELIA, Silvio. Preparação à lingüística românica. Rio de janeiro, Ao Livro Técnico Ed.
FURLAN, Oswaldo (1989). Influência açoriana no português do Brasil em Santa Catarina.
Florianópolis, Ed. da UFSC, 2004.

LADEFOGED, Peter. A course in phonetics. Los Angeles, University of California, 2nd ed.,
1982.

TEYSSIER, Paul. História da língua portuguesa. Trad. Celso Cunha. São Paulo, Martins
Fontes, 1997.

VELLINHO, Moysés. Fronteira. Porto Alegre, Ed. Globo, UFRGS, 1973.


SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

A INTERCULTURALIDADE NOS LIVROS DIDÁTICOS DE INGLÊS

Victor Ernesto Silveira Silva (IFBaiano)1

RESUMO

Segundo estudos recentes, as abordagens de ensino de língua inglesa tem se modificado


bastante, devido a situação da língua na atualidade (língua global e world Englishes) e as
notórias revoluções nos meios de comunicação e tecnologias que tem facilitado o contato
entre pessoas de línguas e culturas diversas, nesse contexto o ensino e aprendizado do inglês
deve levar em conta essas situações interculturais para que os traços socioculturais que
caracterizam os falantes se tornem, na verdade, aspectos relevantes para a compreensão mútua
e a auto valorização. Essa perspectiva intercultural é componente da competência
comunicativa intercultural (CCI) a qual tem sido divulgada por vários estudiosos da
contemporaneidade, sobretudo Byram (2002). Oliveira (2010) é uma das difusoras da CCI no
Brasil e defende a promoção do ensino de inglês que envolva o desenvolvimento da CCI e o
respeito às variedades de inglês faladas no mundo. Fundamentada, principalmente nas
propostas de Byram (CCI) e de Kachru (world Englishes), a autora desenvolveu um checklist
para identificar pontos de convergência entre livros didáticos de inglês e as propostas de
ensino e aprendizado da língua na atualidade. O presente artigo apresenta uma análise de duas
coleções de livros didáticos de inglês do ensino médio: Upgrade da editora Richmond e Prime
da editora MacMillan, as obras fazem parte do Programa Nacional do Livro Didático 2011
que sugere as obras a serem utilizadas pelo ensino médio no ano de 2012. A análise, baseada
na proposta de Oliveira (2010), concluiu que ambas as coleções parecem estar assimilando a
ideia da interculturalidade, contudo ainda precisam assumir (e mostrar) o fato de que a língua
inglesa, hoje, compreende inúmeras variedades.

Palavras-chave:
Livro didático. Interculturalidade. Inglês. World Englishes,

ABSTRACT

According to recent studies, English learning and teaching approaches have changed
outstandingly due to the situation of English nowadays (global language and world Englishes)
and the remarkable revolutions occurred in the medias and technology. Such revolutions had
facilitated the contact among people from different languages and cultures. In this context
English teaching and learning should take into account such intercultural situations in order to
turn socio-cultural traits of the speakers into important aspects for the mutual comprehension
and self-valorization. This perspective is component of intercultural communicative
competence (ICC) which has been divulged by several scholars recently, namely Byram
(2002). Oliveira (2010) is one of the advocates of ICC in Brazil and supports the English
teaching based in the development of ICC and respect to the World Englishes. She developed
a checklist to analyze an English text-book in order to identify intercultural approaches and
the representation of varieties of Englishes in the backdrop of the text-book. This article
presents an analysis of two text-book collections: Upgrade by Richmond editors and Prime by
MacMillan. Both collections are suggested by 2011 Text-Book National Program in Brazil
which recommends the text-books that will be adopted in the next year. The analysis is based

1
Mestre em Estudos de Linguagem pelo Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagem (PPGEL) da
Universidade do Estado da Bahia, campus I; e-mail: vesscorp@yahoo.com.br.
2

in the checklist developed by Oliveira (2010) and as conclusion the data revealed that both
collections seems to involve the interculturality into the activities of the book, yet the text-
book needs to take into account the fact that English has now several varieties.

Keywords:
Text-book. Interculturality. English. World Englishes

1 INTRODUÇÃO
Uma enorme gama de materiais didáticos tem incorporado o uso das mídias digitais e
materiais multimídia na contemporaneidade. No entanto, o reinado do livro didático (LD)
parece estar longe do fim, uma vez que este recurso é um dos mais utilizados e difundidos nos
sistemas de ensino na atualidade. De fato, a história do livro didático acompanha a história da
imprensa (PAIVA, 2011) e das publicações. Dada a importância da palavra impressa para a
civilização moderna, o livro didático tem desempenhado um papel proeminente na história da
humanidade, visto que a escola (onde o livro didático é utilizado quase que religiosamente) é,
para muitos estudiosos, um espelho da sociedade (DAMIÃO, 2008).
É possível perceber a ideologia predominante em determinada sociedade e em
determinada época estudando a estruturação (textos, imagens, atividades entre outros) dos
LDs utilizados no período, como mostra Paiva (2011) ao percorrer a trajetória do LD de
inglês no Brasil. A autora nota que os livros do final do século XIX, por exemplo, estavam
recheados de exercícios de tradução nos quais muitas frases tratavam de escravos negros e das
diferenças entre continentes como Europa e África. Vale ressaltar que os LDs tanto
retratavam as ideologias como as reforçava, ajudando a manter o discurso dominante que se
adequava aos valores defendidos e as concepções científicas predominantes na época.
No final do século XIX, o ensino das LE concentrava-se basicamente no estudo da
gramática e da tradução – as LEs eram aprendidas como forma de aumentar e exercitar o
intelecto (BROWN, 2000) – de modo que, as classes mais favorecidas eram, possivelmente,
as que poderiam se ocupar de tal tarefa. Logo, é previsível que os LDs tenham sido
estruturados para atender aos prováveis aprendizes oriundos de famílias mais abastadas.
Seguindo esta linha de pensamento, pode-se afirmar que, mudam-se os paradigmas
sociais, mudam-se os LDs. A partir da década de 60, por exemplo, o conceito do
“politicamente correto” passou a ser difundido para minimizar as desigualdades raciais e
sexuais em um período em que tanto o racismo quanto o preconceito sexual começaram a ser
rechaçados de forma mais veemente e com o apoio de uma parcela da sociedade (HORTA,
2010). Nos LDs de inglês já aparecem imagens de pessoas negras e brancas em diálogos e as
3

frases dos exercícios eram basicamente pautadas em situações cotidianas e do trabalho


(PAIVA, 2011). Nessa época, a noção de competência comunicativa (CC) já confrontava
perspectivas estruturalistas de ensino de LEs (SILVA 2011). Para Hadley (1993) o advento da
CC surgiu em um momento em que as abordagens de ensino e aprendizagem de LEs
existentes não se adequavam aos avanços das diversas ciências e das transformações no
comportamento humano ocorridos a partir da década de 60. Paiva (2011) aponta que em
meados de 1973, já existiam livros fundamentados na abordagem comunicativa, ou seja, os
LDs já haviam se adequado às revoluções do ensino e aprendizado de LE. E quanto aos LDs
da atualidade? Eles correspondem a abordagens recentes de ensino e aprendizagem de LE?
Será que os livros do século XXI incorporaram os novos paradigmas de língua e
comunicação? No presente artigo, será apresentada uma análise dos conteúdos de LDs de
língua inglesa para ensino médio com base em perspectivas de ensino e aprendizado de LE
que estão em voga recentemente: o conceito de competência comunicativa intercultural (CCI)
difundido por Byram et al. (2002) e World Englishes que vem sendo tratado sob a ótica de
Kachru (1991). Os LDs analisados fazem parte do rol de livros didáticos de inglês sugeridos
pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) de 2011 (BRASIL, 2011). A metodologia
que norteará a análise aqui empreendida está ancorada na proposta de Oliveira (2010) que
consiste em uma lista de itens que devem ser levados em consideração na escolha de um LD
que esteja em consonância com as concepções que interligam LE, interculturalidade e
globalização.

2 GLOBALIZAÇÃO, WORLD ENGLISHES E INTERCULTURALIDADE


Segundo Oliveira (2007) os LDs são muito criticados por apresentarem conteúdo
tendencioso ou por não se adequarem aos estudos contemporâneos a respeito de LE e seu
ensino. Na verdade após o advento da CC, a maioria dos LDs parece ter se firmado no ensino
comunicativo de línguas. Com efeito, a preponderância da CC ancorada na visão primordial
de Canale e Swain (1981) está explícita nos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino
Médio de língua estrangeira moderna (BRASIL, 2000), muito embora outros linguistas
tenham criticado e reconstruído a concepção de CC nas décadas de 80 e 90 (BACHMAN,
2003; BYRAM, 2002; GENESEE 1984).
A década de 90 marca o fim de um século de avanços científicos e o início de uma
época caracterizada pela “insubordinação das relações sociais aos limites geográficos”
(LONGARAY, 2009, p. 56) que é fruto de inúmeras inovações tecnológicas no campo da
comunicação. As mídias digitais (em especial a Internet), por exemplo, têm facilitado a
4

dissolução das fronteiras geográficas entre pessoas de países e culturas diferentes, essas
relações, no entanto, podem causar choques e conflitos os quais foram previstos por Delors
(1996). Segundo este autor, para enfrentar as tensões que se formarão no decorrer do século
XXI, devido á globalização, o sentimento de falta de consistência cultural e muitos outros
problemas de ordem social que serão consequências diretas da crescente interdependência
entre povos, a educação precisa ter como alicerces quatro pilares: saber ser, saber fazer, saber
conhecer e saber viver junto. Acertadamente, Delors divulga princípios altamente pertinentes
ao momento histórico atual. No campo de ensino de LE, estes princípios podem ser
percebidos na CCI desenvolvida por Byram (2002) e no Quadro Europeu Comum de
Referência para Línguas (QECRL) construído pelo Conselho da Europa em 2001.
A noção de CCI merece destaque, pois incorpora à CC uma consciência intercultural
que é necessária para lidar com as tensões das quais trata Delors (1996). De fato, a
interculturalidade na educação promove o desenvolvimento desejável da personalidade do
aprendiz no seu todo, bem como o seu sentido de identidade, em resposta à experiência
enriquecedora da diferença na língua e na cultura (CONSELHO DA EUROPA, 2001). A CC
tradicional não abarca tal perspectiva, ou seja, ela ainda está pautada em um modelo distante
dos aprendizes de LE, uma vez que para o ensino comunicativo de línguas o falante dito
nativo é o modelo fornecedor das regras corretas de apropriação e exequibilidade de discursos
na língua inglesa (GENESEE, 1984). Em outras palavras, a concepção de CC manteve o
falante nativo no status de paradigma linguístico de inglês, no entanto, um arcabouço teórico
para ensino e aprendizado de línguas que negligencia a identidade sociocultural dos
aprendizes e falantes, bem como as possibilidades de interação entre diversas culturas, não
contribui para a preparação de cidadãos do mundo globalizado. Por outro lado, se o falante
nativo não é o exemplo de uso linguístico do inglês, quem seria? Essa é uma discussão
complexa e que nem sempre termina em consenso. Muitos estudiosos concordam que o
falante nativo de inglês é cientificamente um ser idealizado com atribuições quase que
mitológicas (DAVIES, 2004; MEDGYES, 1996), além disso, os estudos a respeito da
dispersão do inglês pelo mundo têm mostrado que o paradigma linguístico do falante nativo
tem se tornado cada vez menos adequado para o ensino de LE.
A expansão da LI pelo mundo prova que o inglês não pertence mais aos falantes
nativos (KAPLAN, 1998). Na atualidade existem as referências ao inglês como língua global
(devido à expansão em escala mundial), língua franca (ou seja, uma língua comum entre
vários povos) ou língua internacional (por ser a segunda língua ou língua estrangeira mais
5

comum na comunicação entre falantes de línguas diferentes). Richards e Schmidt (2002)


comentam que a LI internacional é

o tipo de inglês usado (que) não precisa necessariamente estar baseado me


variedades do falante nativo de inglês, mas vai variar de acordo com a língua
materna das pessoas que conversam na língua e os propósitos pelos quais ela está
sendo usada (RICHARDS; SCHMIDT, 2002, p. 180).

Dentro da discussão a respeito da dispersão da LI pelo mundo, um dos termos mais


relevantes para a presente investigação é o de world Englishes. Esse conceito foi
desenvolvido a partir da observação de como os falantes não nativos utilizam a LI e,
notadamente para caracterizar sucintamente a situação da língua inglesa ao redor do mundo.
Segundo Kachru, world Englishes “são o resultado de (...) diversos contextos socioculturais e
diversos usos da língua em contextos internacionais culturalmente distintos.” (KACHRU,
p.181, 1991). O autor aponta que a LI está tão difundida no mundo que o número de falantes
não nativos ultrapassa o de falantes nativos. Para demonstrar o status dessa dispersão Kachru
(1991) concebeu que a distribuição da LI no mundo pode ser representada em círculos
concêntricos:
a) Círculo Interno: locais que são caracterizados como os modelos de uso da língua
inglesa, por essa razão os falantes oriundos desses lugares são considerados falantes.
Exemplo: Estados Unidos, Inglaterra e Austrália;
b) Círculo externo: os países onde o inglês foi institucionalizado como língua adicional.
Exemplo: Índia, África do Sul e Nigéria;
c) Círculo em expansão: compreende os demais países onde o inglês é caracterizado
como língua estrangeira. Exemplo: China, Israel, Japão e Filipinas (RAUSCH, 2000).
A noção de world Englishes é importante porque leva em consideração o uso da LI
pelo falante não nativo, o qual, segundo Kachru (1991), tem como interlocutor outro falante
não nativo. Essa perspectiva é impactante na área de formação de professores de LI e também
na concepção de materiais de ensino de LI. Isso porque os estudos a respeito da diversidade
linguística da LI falada nos países do círculo interno e das características culturais dos
falantes de LI dos demais círculos trouxeram à tona a faceta multicultural da LI dentro de um
momento histórico marcado pela globalização. Consequentemente, o padrão de uso de LI dos
falantes oriundos do círculo interno (e que por muito tempo pautou o ensino de inglês como
LE), passa a ser visto como mais uma variedade linguística que atende a uma determinada
comunidade linguística. Logo, a perspectiva Kachruviana causou a necessidade de novos
6

paradigmas de ensino de LE adequados às comunidades linguísticas e aos contextos


multiculturais nos quais essa língua será meio de comunicação.
Oliveira (2010) afirma que não só a noção de world Englishes, mas também o
conceito de interculturalidade exigem mudanças na forma tal como a LI é ensinada na
contemporaneidade e foi partindo dessa assertiva que a autora delineou o checklist (ANEXO
A) para análise de LDs de inglês. A autora propõe que o professor de inglês precisa estar
atento às propostas didáticas dos LDs para garantir um ensino de inglês que seja capaz de
levar o estudante a assimilar uma postura intercultural, pois como está patente no QECRL
(CONSELHO DA EUROPA, 2001), o ensino de língua sob a perspectiva intercultural
promove a reestruturação da própria identidade do aprendiz. Ou seja, o aprendizado de uma
LE não mais pode ser visto apenas como uma capacidade desejável aos profissionais das
diversas áreas em um mundo globalizado, já que a capacidade de falar uma LE deve ser
também uma forma de fortalecimento das raízes culturais e identitárias do aprendiz. Os LDs,
como “espinha dorsal da maioria dos contextos de ensino” (OLIVEIRA, 2010, p. 6) é um dos
recursos nos quais essa consciência intercultural pode e deve ser promovida.

3 ANALISANDO OS LDS DE INGLÊS DO ENSINO MÉDIO


Interessantemente, o governo brasileiro fornece à escola pública material didático
para implementar o ensino de LE e, de alguma forma, tornar mais efetivo o aprendizado das
línguas (espanhol ou inglês). O PNLD de 2011 indica uma série de livros didáticos de LE a
serem utilizados no ensino médio a partir do ano de 2012. Os LDs indicados para o ensino de
língua inglesa são: UpGrade da editora Richmond, On Stage do autor Amadeu Marques,
editora Ática; Prime das autoras Renildes Dias, Leina Jucá, Raquel Faria, Editora
MacMillan; English For All das autoras Eliana Aun, Maria Clara P. de Moraes e Neuza B.
Sansanovicz, editora Saraiva; Take Over de Denise Machado dos Santos, editora Lafonte,
Globetrekker do autor Marcelo Baccarin Costa, editora MacMillan e Freeway da autora
Verônica Teodorov, editora Richmond. No guia do PNLD há uma resenha para cada obra,
contudo, a análise é essencialmente descritiva e não propõe um olhar crítico sobre as
coleções. O que se propõe neste item é uma análise dos LDs pautada em um checklist
(ANEXO A) desenvolvido por Oliveira (2010) e levando-se em consideração as abordagens
teóricas discutidas no item anterior. Devido a grande quantidade de livros indicados no PNLD
de 2011, foram selecionadas duas coleções de LDs: UpGrade da editora Richmond e Prime
da editora MacMillan.
7

A coleção UpGrade foi lançada em 2010 pela editora Richmond e é composta de três
livros (um para cada série do ensino médio) divididos em oito unidades temáticas. Os temas
das unidades são independentes e perpassam pelos assuntos mais comuns na atualidade tais
como: Aquecimento global, obesidade, células tronco, globalização entre outros. As unidades
se dividem de forma a contemplar cada uma das habilidades linguísticas: Reading,
Vocabulary In Use, Grammar In Use e Language In Action (a qual é desenvolvida juntamente
com o áudio). Ao final de cada unidade há a seção In The Job Market, na qual são
apresentadas profissões, muitas das quais exigem um conhecimento de inglês. Esse tipo de
seção tem estado presente em vários LDs da atualidade, o que indica que o ensino de inglês
procura estar em consonância com os objetivos do ensino médio que é a preparação para o
trabalho. A coleção UpGrade demonstra que ao desenvolver LDs de inglês, os autores estão
mais preocupados com o aprendiz e não com os falantes nativos da língua. Este fato está
explícito no quadro 1 do APÊNDICE A, que apresenta a análise da obra com o checklist
proposto por Oliveira (2010). Embora a obra não apresente mais modelos de uso de inglês, ou
melhor, variedades de inglês, é notável a relevância dada a cultura geral brasileira e a
participação de brasileiros falantes de inglês nos textos orais. O LD em questão consegue
incentivar o aluno brasileiro a utilizar o inglês como ferramenta para discutir temas que ele
conhece. Essa proposta está bem próxima da perspectiva intercultural, pois proporciona ao
aprendiz de língua estrangeira refletir sobre o meio sociocultural em que vive. No entanto,
essa não deveria ser a única forma de construção de uma consciência intercultural. Os alunos
deveriam entrar em contato com as variedades de inglês para perceber que os traços
socioculturais dos falantes não nativos não prejudicam a compreensão da LE. Pelo contrário,
as variedades de inglês são a prova visível da globalização linguística. Como fenômeno
global, a imagem de um falante de inglês é imprecisa, por esta razão os estereótipo do falante
nativo também foi suplantado por tipos humanos que representam multiculturalidade. Isto é
notável na obra UpGrade, pois os personagens em sua grande maioria são pessoas de diversas
etnias, idades e sexo. Contudo, o status profissional é marcadamente estereotipado, ou seja, as
pessoas representando profissões (tais como médicos, secretários entre outros) são sempre
brancas. Além disso, alguns grupos étnicos são representados como exóticos (índios e
indianos). De modo geral, o UpGrade está se libertando dos modelos tradicionais de LDs, nos
quais a cultura predominante era a dos países do círculo interno. Os vestígios do
tradicionalismo podem ser percebidos no uso do inglês americano como variedade padrão,
tanto, que os brasileiros que atuam nos textos orais gravados em áudio procuraram ser
altamente fiéis à variedade geral americana.
8

A segunda coleção a ser analisada é Prime, também lançada em 2010 pela editora
MacMillan. Similarmente a Upgrade, a coleção Prime é composta de três livros embora cada
livro possua 12 unidades temáticas. Cada dupla de unidades abordam um tema em comum
que, como nos LDs UpGrade, são assuntos bastante atuais como: Internet, alimentação, meio
ambiente, entre outros. Cada unidade possui seções que estimulam as quatro habilidades
separadamente em receptivas e produtivas: Have Your Say, Reading Beyond The Words, In
Other Words, Practice Makes Perfect, The Way It Sounds e Put It In Writing O livro também
focaliza um gênero textual em cada unidade bem como há um espaço para apresentar uma
profissão no final de cada dupla de unidades. Em cada unidade há o incentivo à autoavaliação
e sugestões de leituras (na Internet, cinema e música) a respeito do tema abordado na unidade.
A coleção Prime propõe ao estudante a reflexão da sua cultura utilizando a LE. Essa
é uma das características que ambas as coleções compartilham, como pode ser observado no
quadro 2 do APENDICE A. No entanto, a abordagem do Prime é bem distinta da coleção
UpGrade. No Prime existe uma representação maior de grupos étnicos diferentes em
contextos socioculturais diversificados. Isso significa que a ocorrência de estereótipos é
bastante reduzida. A obra traz duas unidades para tratar deste assunto e leva o estudante a
refletir sobre a imagem que se tem dos brasileiros e dos típicos falantes de inglês (neste caso
os estereótipos dos falantes de inglês foram o do norte americano e do britânico). A intenção
de desconstruir tais estereótipos seria mais efetiva se a perspectiva do world Englishes, fosse
levada em consideração, pois induziria os alunos a perceberem a existência de outros ingleses
falados e que são altamente marcados pelas características socioculturais dos falantes. Em
outras palavras, o Prime poderia ter estendido a discussão dos estereótipos para os ingleses
falados nos círculos externo e em expansão.
Por outro lado a diversidade cultural e a reflexão sobre hábitos culturais dos diversos
grupos humanos é um ponto forte na coleção Prime. As atividades que incentivam
observações etnográficas exploram as diferenças socioculturais que existem entre etnias,
gêneros, religiões e posições sociais distintas. Vale ressaltar que tais observações não são
motivadas a título de comparação entre culturas, mas sim para assinalar a existência de
maneiras diferentes de se comportar, falar e dirigir-se ao outro. Por fim a coleção Prime, traz
uma proposta bem mais harmônica com a perspectiva da interculturalidade no ensino de
inglês. A maior dificuldade, contudo, é trazer para os alunos brasileiros amostras das
variedades de inglês, já que nos textos em áudio a LI falada é essencialmente norte-
americana. Neste aspecto ambas as coleções se assemelham.
9

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A posição Kachruviana não é nova, ela na verdade vem sendo discutida há bastante
tempo e tem ganhado força com os esforços dos linguistas aplicados da contemporaneidade ao
propor a CCI como meta para o aprendizado de LI. Possivelmente o processo de assimilação
de tais ideias se dê lentamente até suplantar métodos tradicionais enraizados nos sistemas de
ensino e que na maioria das vezes estão instituídos em textos oficiais. Os LDs precisam se
adequar as novas perspectivas, no entanto, é necessário que tais perspectivas sejam também
respaldadas pelos textos oficiais que regem a educação brasileira. Ambas as coleções aqui
analisadas estão próximas do que se espera de LDs de inglês inseridos em um contexto
histórico que exige a construção de uma consciência intercultural. Entretanto, elas precisam
assumir a dimensão sociolinguística da língua inglesa dispersa no mundo e torná-la, pelo
menos, comum a todos aqueles que querem/precisam aprender a LI.

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Que relação é essa? 2011. 177f. Dissertação (Mestrado em Estudos de Linguagem) –
Universidade do Estado da Bahia, Salvador. 2011
12

APÊNDICES
QUADRO 1
Upgrade
ASPECTOS INTERCULTURAIS
As atividades do livro refletem as características culturais de vários grupos sociais? Quais?
Do ponto de vista da divisão tradicional de classes o livro parece manter como referência a classe
média e alta. Em termos culturais o livro é bastante diversificado. Há representações culturais muito diferentes.
O livro explora tanto a cultura urbana em relação a musica, artes visuais, cinema, e literatura, quanto a cultura
característica de muitos países que não são exclusivamente os países do circulo interno
As perspectivas políticas, religiosas, e ideológicas de outros grupos sociais são levadas em
consideração? Quais?
O livro não destaca posições políticas ou religiosas, mas está completamente de acordo com
posições ideológicas bastante comuns nos dias de hoje: a ideia do politicamente correto por exemplo e divulga
temas correntes: a globalização, a inclusão social, aquecimento global, bullying, obesidade entre outros. No
livro 2, por exemplo, há uma unidade que trata da África.
As atividades do livro apresentam estereótipos culturais/raciais/ de gênero? Quais? (Caso a
resposta seja SIM, e haja uma quantidade muito grande de estereótipos vale a pena ponderar a adoção
do material.)
Parece que os autores tentaram minimizar a profusão de estereótipos. Mas mesmo assim ainda é
possível encontrá-los. No livro 2, o capitulo 5 trata da África e relaciona o tema somente ao racismo e
escravidão. (embora traga posições interessantes como a de Gilberto Freyre). As pessoas que representam
profissionais liberais são sempre brancas, enquanto negros e latinos representam o exotismo cultural. Estes
estereótipos não estão em grande quantidade e são sutis, o que não invalida a adoção do livro.
Existem atividades que fazem menção à cultura do aluno? De que forma?
Sim, mas de forma bastante geral, o livro faz menção ao cinema brasileiro, ações sociais comuns no
Brasil, a lei Maria da Penha e os avanços tecnológicos do país. Na verdade o livro trata de assuntos do país do
aluno, e procura ser bastante geral sem tratar de problemas específicos do país. O livro passa a tratar do inglês
baseando-se em temas muito atuais.
As atividades levam o aluno a refletir sobre semelhanças e diferenças entre as culturas de
forma não avaliativa? De que forma?
As atividades não levam o estudante a uma atitude comparativa. Pelo contrário, o livro começa pela
temática brasileira para o estudo da língua. Mas, vale ressaltar que o livro importa-se com temas em voga na
atualidade como citados na resposta da questão 3. Alguns temas como índios do Brasil, floresta amazônica,
trabalho voluntário são temas vistos do ponto de especialmente brasileiro.
As atividades ajudam o aluno a desenvolver tolerância e empatia em relação ao outro? De que
forma?
Como o livro possui temáticas especialmente brasileiras, a empatia com o outro é desenvolvida em
nível “intracultural”, ou seja, é evidente a relevância dos aspectos nacionais, incentivando o aluno a olhar para o
seu país por meio do inglês, em algumas poucas unidades há a representação de outros grupos como os
cumbieros da Argentina no livro 1.
Existem atividades que permitem ao aluno fazer observações etnográficas? De que forma?
Há sim, em algumas unidades há atividades pautadas em aspectos culturais de certos locais. Há
textos e atividades sobre índios brasileiros, tribos urbanas, negros africanos, indus, adolescentes, deficientes
físicos entre outros. Embora estes textos não busquem a percepção do outro por meio destes grupos, eles
abrem espaço para observações etnográficas se o professor aproveitar as situações.
VARIEDADES DE LÍNGUA INGLESA
No componente de áudio/video, falantes de países onde a língua inglesa não é a língua
materna estão representados? Quantos?
A grande maioria dos personagens dos textos orais que compõem o áudio ou são brasileiros ou são
norte-americanos.
É possível identificar os falantes pelo sotaque? Como?
Pelo sotaque não. Dá para perceber que há brasileiros falando inglês pela pronúncia bastante
característica de palavras portuguesas.
13

Existem textos que discutem o uso da língua inglesa no mundo? Quantos?


Não
As atividades de pronúncia permitem ao aluno utilizar sua variedade de inglês? Como?
As atividades apenas sugerem a produção de diálogos partindo de um diálogo modelo. Não há
nenhuma menção ao uso de variedade de inglês.
Existe um modelo de falante nativo subliminar? (eg., existe uma seção para a prática de
pronúncia exibindo um modelo do falante americano/inglês).
Não há exercícios específicos de pronúncia. Mas, está evidente que o livro adota a variedade
predominante nos Estados Unidos, o chamado General American.
As atividades de pronuncia e audição encorajam o aluno a valorizar a sua maneira de falar a
língua de forma inteligível? Como?
As atividades apenas encorajam a tomada de iniciativa para o uso da língua oral. Parece ser função
do professor levar em consideração a maneira de falar do aluno.

QUADRO 2
Prime
ASPECTOS INTERCULTURAIS
As atividades do livro refletem as características culturais de vários grupos sociais? Quais?
Sim, existe uma grande variedade de grupos sociais representados nas atividades dos livros. Há
grupos de pessoas da Índia, da África, do Brasil, de países da América central e sul entre outros. Em se
tratando da representação de etnias, percebe-se que os diversos grupos étnicos são representados em
diversas situações socioculturais. Ou seja, o negro não está ali apenas na temática escravidão e racismo ou o
indiano não está ali apenas para representar exotismo. No entanto, os temas das unidades em sua maioria são
comuns para pessoas de classes média e alta.
As perspectivas políticas, religiosas, e ideológicas de outros grupos sociais são levadas em
consideração? Quais?
Não situações onde a perspectiva política ou religiosa de determinados grupos sociais deva
sobressair. Mas, há em uma unidade em que o tratamento da perspectiva religiosa e ideológica é levada em
consideração: quando tratam da Formatura, há uma parte em que se trata da formatura tradicional nos EUA e
como as garotas muçulmanas que estudam nos EUA fazem para também comemorarem suas graduações. A
abordagem do tema é interessante pois incentiva um debate cultural, religioso e ideológico. Há também uma
determinada unidade que traz pesquisas e gráficos sobre o tratamento dos os adolescentes norte americanos
em relação a negros, asiáticos e latinos dentro dos EUA, no livro essa discussão começa partindo da postura
de Bush em relação às cotas para grupos minoritários e abrange também ideologias racistas ou afirmativas.
As atividades do livro apresentam estereótipos culturais/raciais/ de gênero? Quais? (Caso a
resposta seja SIM, e haja uma quantidade muito grande de estereótipos vale a pena ponderar a adoção
do material.)
A ocorrência de estereótipos é quase nula. Os autores delimitaram uma unidade (livro 1 unidade 3)
para tratar dos estereótipos, principalmente em se tratando dos falantes de inglês oriundos de países do círculo
interno. Mas a discussão não se estende a outros estereótipos (países dos demais círculos). No mesmo livro a
unidade 2 trata do estereotipo do brasileiro, talvez o aluno seja encorajado a discutir os estereótipos da cultura
brasileira e de países como Inglaterra e EUA.
Existem atividades que fazem menção à cultura do aluno? De que forma?
Há textos que tratam de pontos turísticos do Brasil, mas a cultura brasileira é uma unidade a parte no
livro 1. Em alguns casos o livro faz menção ao cinema e a música brasileira. Na maioria dos casos não há
predominância de determinada cultura nem mesmo a do aluno a qual o livro se destina. Por exemplo, no tema
Nutrição, os hábitos alimentares que foram destaque foram de países asiáticos, africanos e da América central.
Mas, muitos dos hábitos apresentados na obra são mais característicos de pessoas de classe média e alta:
cinema, moda, ir a shoppings, usar cartão de credito, ter mesada, participar formatura com baile, fazer dieta,
sofrer de anorexia ou bulimia entre outros.
As atividades levam o aluno a refletir sobre semelhanças e diferenças entre as culturas de
forma não avaliativa? De que forma?
Como citado na resposta 2, a questão da formatura das muçulmanas nos EUA é um exemplo de
14

consideração das diferenças culturais. É possível que os estudantes exprimam julgamentos de certo ou errado
sobre as restrições do islamismo em relação às mulheres, mas o texto não incentiva essa postura. Na unidade
que trata de Hip Hop por exemplo é bastante ilustrativa pois não considera os adeptos do Hip Hop como um
grupo marginalizado ou restrito a negros. Outra coisa interessante é o texto sobre cortes de cabelos, nessa
atividade vários tipos de corte de cabelo são apresentados não de forma comparativa ou avaliativa (ou
característica de determinado grupo social), mas simplesmente como formas de estilizar o cabelo. Ou seja, o
livro trata com normalidade as diferenças e semelhanças culturais
As atividades ajudam o aluno a desenvolver tolerância e empatia em relação ao outro? De que
forma?
Sim, ainda que precise de uma diversificação maior em termos de representações culturais, o livro
mostra tipos humanos variados em diversas situações e utiliza alguns textos sobre costumes de grupos
específicos. O livro procura não estereotipar o negro ou o indiano. Ou seja, o médico que aparece no texto pode
ser negro, branco ou asiático, assim como o empregado doméstico, o adolescente apaixonado ou a criança da
propaganda. Logo a tolerância é incentivada, principalmente, com uso de imagens nos quais os personagens
não são estereótipos tradicionais.
Existem atividades que permitem ao aluno fazer observações etnográficas? De que forma?
Sim. Há textos com gráficos sobre a situação de negros, asiáticos e latinos nos EUA, há textos que
tratam da cultura e estereotipo de pessoas do Brasil, EUA e Inglaterra entre outros. Há textos que tratam de
muçulmanos americanos. Há diversas situações que podem ser exploradas para observações etnográficas. O
livro não possui atividades especificas para tal.
VARIEDADES DE LÍNGUA INGLESA
No componente de áudio/video, falantes de países onde a língua inglesa não é a língua
materna estão representados? Quantos?
A grande maioria dos personagens dos textos orais que compõem o áudio ou são brasileiros ou são
norte-americanos.
É possível identificar os falantes pelo sotaque? Como?
Pelo sotaque não. Dá para perceber que há brasileiros falando inglês pela pronúncia bastante
característica de palavras portuguesas.
Existem textos que discutem o uso da língua inglesa no mundo? Quantos?
Não
As atividades de pronúncia permitem ao aluno utilizar sua variedade de inglês? Como?
Não há menção ao uso de variedades de inglês. As atividades de escuta geralmente exigem do
estudante a atenção para completar textos com lacunas. Como não há atividades focadas em pronúncia, a
questão da variação do inglês não é aventada na obra.
Existe um modelo de falante nativo subliminar? (eg., existe uma seção para a prática de
pronúncia exibindo um modelo do falante americano/inglês).
Não há exercícios específicos de pronúncia. Mas, está evidente que o livro adota a variedade
predominante nos Estados Unidos, o chamado General American.
As atividades de pronuncia e audição encorajam o aluno a valorizar a sua maneira de falar a
língua de forma inteligível? Como?
Nas atividades de escuta, como dito anteriormente, há a predominância do General American, e os
próprios brasileiros que atuam nos textos orais possuem uma pronúncia idêntica à americana. Não há, pelo
menos de forma evidente, o encorajamento ao uso inteligível do inglês independente de sotaque.
15

1. ANEXO A
Checklist para análise do livro-texto
ORIENTAÇÃO: Para que os aspectos interculturais presentes no livro-texto sejam
considerados relevantes, é necessário que pelo menos um terço do material apresentado em
formato de textos para leitura ou audição faça referência a outras culturas e a outras formas de
ver. As atividades de discussão devem levar o aluno não somente a comparar culturas, mas
também refletir sobre as semelhanças e diferenças. Para as variedades de língua inglesa é
necessário que pelo menos a metade dos falantes apresentados seja membro de outros grupos
culturais onde a língua inglesa é falada, mas não como língua nativa.
Para cada resposta SIM respondida abaixo, o professor deverá levar em consideração
o número de vezes que o item aparece no livro-texto.
ASPECTOS INTERCULTURAIS
1. As atividades do livro refletem as características culturais de vários
grupos sociais? Quais?
2. As perspectivas políticas, religiosas, e ideológicas de outros grupos
sociais são levadas em consideração? Quais?
3. As atividades do livro apresentam estereótipos culturais/raciais/ de
gênero? Quais? (Caso a resposta seja SIM, e haja uma quantidade muito
grande de estereótipos vale a pena ponderar a adoção do material.)
4. Existem atividades que fazem menção à cultura do aluno? De que
forma?
5. As atividades levam o aluno a refletir sobre semelhanças e
diferenças entre as culturas de forma não avaliativa? De que forma?
6. As atividades ajudam o aluno a desenvolver tolerância e empatia
em relação ao outro? De que forma?
7. Existem atividades que permitem ao aluno fazer observações
etnográficas? De que forma?
VARIEDADES DE LÍNGUA INGLESA
1. No componente de áudio/video, falantes de países onde a língua
inglesa não é a língua materna estão representados? Quantos?
2. É possível identificar os falantes pelo sotaque? Como?
3. Existem textos que discutem o uso da língua inglesa no mundo?
Quantos?
4. As atividades de pronúncia permitem ao aluno utilizar sua
variedade de inglês? Como?
5. Existe um modelo de falante nativo subliminar? (eg., existe uma
seção para a prática de pronúncia exibindo um modelo do falante
americano/inglês).
6. As atividades de pronuncia e audição encorajam o aluno a valorizar
a sua maneira de falar a língua de forma inteligível? Como?

Fonte: OLIVEIRA, Adelaide Pereira. World Englishes, competência comunicativa


intercultural e mudanças de paradigmas: uma proposta para uma nova checklist de análise de
livro-texto para o ensino de língua inglesa. In: XI SEMINÁRIO DE LINGUÍSTICA
APLICADA E VII SEMINÁRIO DE TRADUÇÃO, Salvador, BA. Comunicação Oral, 2010
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

A LÍNGUA NA LÍNGUA DOS LOCUTORES DE RÁDIO DO RIO GRANDE DO SUL

Elias José Mengarda (UFSM/Cesnors)1


Letícia Sangaletti (UFSM/Cesnors)2

RESUMO

Este artigo tem como objetivo analisar o comportamento linguístico de locutores de rádio AM
e FM da região da grande Porto Alegre e da região noroeste quanto aos empregos
pronominais “tu” vs. “você” e “nós” vs. “a gente”. O corpus é formado por gravações de
programas de entrevistas e programas musicais de 5 emissoras da capital e 5 emissoras da
região noroeste do estado. O enfoque teórico e metodológico baseou-se nos princípios da
teoria da variação linguística (LABOV, 1972, 2008). Os resultados encontrados confirmam
estudos anteriores realizados por Vandresen (2000), Abreu (1987) e Loregian (1996), quanto
à predominância do emprego do pronome “tu” na região de Porto Alegre. Por outro lado, os
locutores da região noroeste do estado do Rio Grande do Sul não apresentam na mesma
proporção esse comportamento quanto ao uso pronominal que se constata nas emissoras de
Porto Alegre.

Palavras-chave: Língua. Locutores de rádio. Variação linguística. Emissoras.

ABSTRACT

This article aims to analyze the linguistic behavior of speakers of AM and FM radio stations
in the Porto Alegre and the northwestern region do to the use of pronoun "tu" vs. "voce"and
"nós" vs. "a gente " The corpus consists of recordings of talk shows and music programs from
five capital’s radio stations and five radio stations from the Northwest region. The theoretical
and methodological approach was based on the principles of the theory of linguistic variation
(LABOV, 1972, 2008). The results confirm previous studies (VANDRESEN, 2000),
(ABREU, 1987) and (LOREGIAN, 1996), regarding the predominance of the use of the
pronoun "tu" in the Porto Alegre region. However, the speakers in the northwest region of the
Rio Grande do Sul state do not present this behavior in the same proportion as far as the
pronouns use that has been observed at radio stations in Porto Alegre.

Keywords:
Language. Radio talkers. Language variation. Radio station.

1 INTRODUÇÃO
O objetivo desse estudo é descrever os tipos de variação pronominais constatados na
linguagem radiofônica a partir de um corpus de gravações de programas musicais e
entrevistas, colhido em emissoras AM e FM da grande Porto Alegre e da região noroeste do

1
Doutor em Linguística e professor da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM/Cesnors; e-mail:
eliasmengarda@yahoo.com.br.
2
Graduada em Comunicação Social – Jornalismo pela UFSM/Cesnors; e-mail: leti.sangaletti@hotmail.com.
2

Rio Grande do Sul, à luz da metodologia variacionista proposta por Labov (1972) e Tarallo
(1990, 2001).
Procurou-se identificar o tipo de uso pronominal usado pelos locutores de rádio, uma
vez que as pesquisas sociolinguísticas identificam que no Sul do Brasil, precisamente em
Porto Alegre, há a predominância do uso de segunda pessoa, ou seja, o pronome “tu”,
enquanto nas demais capitais do país, a tendência é o uso do pronome “você”. A partir de um
conjunto de narrativas radiofônicas (entrevistas) com informantes variados é possível verificar
uma tendência ou predominância de um determinado uso linguístico e que tipo de mudança
linguística pode estar em curso.
Os estudos na perspectiva variacionista assumem que a variação é inerente ao
sistema linguístico. Ou seja, as línguas são heterogêneas (MOLLICA e BRAGA, 2007), e essa
heterogeneidade pode ser explicada a partir das várias normas, tais como o uso de toda uma
região - normas regionais, - do uso de diferentes classes socioeconômicas – normas sociais -,
dos usos em família – normas familiares -, dos usos típicos de certas profissões – normas
profissionais -, dos usos das gerações – normas etárias (AZEREDO, 2008, p. 61).
Alguns estudos relacionados ao emprego pronominal na região sul tornaram-se
referência na literatura linguística. Destacamos o trabalho realizado por Vandresen (2000), em
que demonstra a sobrevivência do pronome “tu” sujeito, com ou sem concordância. Também
o estudo de Abreu (1987) indica que no Paraná é categórico o uso do pronome “você”, mas
com a sobrevivência do possessivo “teu”, “tua” e do clítico “te” associado a você, ao passo
que “seu” ou “sua” ocorre, principalmente, combinado com o tratamento “senhor(a)”. No
mesmo estudo, o autor menciona que em Florianópolis, há um sistema básico de três níveis de
formalidade – “tu” informal, íntimo, solidário, “você” mais formal e “senhor(a)” formal e
respeitoso. Em Curitiba não ocorre o uso de “tu”, mas além do pronome “você” (informal) e
senhor(a) (formal) ocorre uma forma intermediária, sem o uso de pronome de tratamento
(pronome zero), quando o emissor fica em dúvida entre tratamento formal e informal.
Loregian (1996) também confirmou estudos anteriores como os de Abreu (1987) em
que não se constata o uso do pronome “tu” em Curitiba. No entanto, os dados de sua pesquisa
revelaram elevado uso do pronome “tu” em Porto Alegre e Florianópolis, em que 18 e 11
informantes, respectivamente, usaram somente “tu” ao longo de toda a entrevista e os demais
usaram “tu” alternativamente com “você” e “senhor(a)”. Isso significa que o pronome “tu”
ocorreu em todos os 24 informantes destas duas cidades.
O que nos interessa nesse trabalho, especificamente, é verificar se os locutores de
rádio, conscientes de que estão num contexto de comunicação em que o uso linguístico é mais
3

controlado do que os falantes que estão em ambientes informais, por isso, menos controlados,
produzem esse tipo de variação pronominal em que o pronome “tu” predomina, conforme
indicam as pesquisas realizadas com falantes de Porto Alegre. Além disso, nos interessa
analisar e comparar a locução dos locutores de emissoras da grande Porto Alegre com os
locutores de rádio da região noroeste do estado do Rio Grande do Sul, quanto a outros usos
pronominais tais como o emprego dos pronomes “nós” e “a gente”. Estabelecemos como
hipótese que os locutores de rádio, independente do tipo de programa que estejam fazendo
(programa esportivo ou de música, entrevista em estúdio, entrevista externa, jornal falado,
etc.), se aproximem do uso mais padronizado da língua oral, considerando que atuam num
contexto de comunicação que requer, segundo Vanoye (2007), um comportamento linguístico
mais cuidado, ou mais formal da expressão oral.
Diante dessas circunstâncias, deve-se considerar as características ou a natureza do
programa radiofônico, isto é, a que segmento social ou para que tipo de público está sendo
dirigido, haja vista que existe uma variedade bastante grande de programas radiofônicos,
podendo ser popular, como os programas musicais ou de debates, entrevistas, reportagens,
além da participação de radio-ouvintes ao vivo, o que naturalmente, implica em que o locutor
saiba estabelecer uma relação de afinidade com os ouvintes.
Como pode-se observar, as variáveis que interferem na expressão oral são múltiplas
em se tratando de um contexto de comunicação radiofônica, pois, existem programas que são
mais interativos envolvendo o âncora (apresentador) e os diversos repórteres que participam
num dado programa levando ao ar notícias diversas que pode ser ao vivo ou editadas. Nesse
caso, trechos considerados comprometidos quanto a algum tipo de falha tais como má
audição, sobreposição de vozes, pausas demasiadas, etc., podem ser cortados pelo diretor do
programa. Também podemos ter dois ou três locutores debatendo determinado tema que,
dependendo da sua idade, escolaridade e procedência afeta o seu processo comunicativo.
Martinez-Costa e Unzueta (2005) chamam a atenção para a questão dos gêneros em
que a redação de uma notícia, a elaboração de uma crônica, uma entrevista ou um comentário
radiofônico são sistemas formais para apresentar a narração dos conteúdos no rádio. Por isso,
o profissional do rádio deve conhecer os fins, limitações e possibilidades criativas para o
eficaz emprego dos diversos gêneros radiofônicos.
O modo de lidar com os diferentes gêneros radiofônicos (notícia, reportagem, nota,
boletim, comentário, crônica, etc.) determina ou define um tipo de comportamento
comunicativo do locutor em seu programa, passando a dar um caráter particular à presença da
emissora em que atua.
4

De acordo com Vanoye (2007, p. 23), para que se efetue a comunicação, é


“necessário que haja um código que é comum aos falantes. Diz-se, em termos mais gerais,
que é preciso falar a mesma língua: o português, por exemplo, que é a língua que utilizamos.”
No entanto, vivemos em um país com diferenças étnicas e culturais, sujeitas a influências
climáticas e socioambientais em que se percebe que o português pode não ser o mesmo em
certas regiões do Brasil. Para exemplificar, o português do sul não é o mesmo do nordeste ou
da região sudeste. Além disso, temos o que se caracteriza de norma regional, familiar, social,
profissional e etária o que por seu caráter coletivo e sua condição de modelo de uso, os
membros da comunidade seguem, por escolha ou por força da herança sócio-histórica
(AZEREDO, 2008).
No Brasil, poderíamos falar da existência de dialetos, embora não se chegue à
ininteligibilidade, como é o caso de alguns dialetos falados na Itália ou Alemanha. Estes
fatores mencionados permitem compreender a existência de níveis de uso da linguagem que
podem oscilar do nível informal (coloquial) ou popular até o nível padrão ou formal. O
vocabulário, a sintaxe e também a pronúncia variam segundo esses níveis.
Vejamos os níveis de linguagem que compreendem o modo como o falante poderá
manifestar-se nas diversas situações de comunicação em que ele se encontra:
a) Nível culto ou formal: obedece à gramática normativa, isto é, segue as regras da
norma culta. Geralmente é usada em situações que exigem tal posicionamento do falante,
como em discursos, sermões, apresentações de trabalhos científicos.
b) Nível coloquial ou informal: trata-se da manifestação espontânea da língua em que
os falantes usam gírias, vocabulário às vezes pejorativo, formas subtraídas ou cortes das
palavras, conjugação verbal inadequada, problemas de concordância verbal e nominal e outras
marcas da oralidade como “né, daí, a gente” etc. Este nível independe de regras e está
presente nas conversas entre amigos e familiares, por exemplo. Na internet é comum
encontrar o nível coloquial em textos de diálogos, ou em sites de relacionamentos como o
orkut, o facebook e o twiter e em programas de conversação como o msn messenger.
O estado do Rio Grande do Sul é formado por uma população constituída
predominantemente por povos de procedência europeia tais como os alemães, os italianos e os
poloneses. Esses colonizadores trouxeram suas culturas e tradições características de seus
países de origem. Essa formação étnica e cultural contrasta de algum modo com a de outros
estados brasileiros por apresentar sotaques, dialetos e identidades bem particulares. O Rio
Grande do Sul é um estado, que por suas peculiaridades histórico-culturais, é um caso
especial de regionalismo, além de ter vivido uma experiência separatista, como foi a
5

Revolução Farroupilha, por questões econômicas e políticas no século XIX. A linguagem


utilizada no RS apresenta forte influência do linguajar fronteiriço por fazer fronteira com o
Uruguai e Argentina. A linguagem do gaúcho chama bastante atenção por apresentar como
uma de suas principais marcas linguísticas, o uso do pronome de segunda pessoa “tu”,
sobretudo em Porto Alegre. Os estudiosos observam que há uma competição entre o uso dos
pronomes “tu” e “você”, e entre os pronomes “nós” e “a gente”, denotando que o segundo
pronome vem substituindo o primeiro, respectivamente. Essa pesquisa visa exatamente
verificar em que medida esse tipo de ocorrência se manifesta na região noroeste do RS
tomando por base de análise um corpus de locuções de locutores das duas regiões
pesquisadas.
Em Faraco e Tezza (1992, 2002) apresenta-se uma tipologia sobre a não
uniformidade da língua padrão. De acordo com os autores, as principais variações se
processam nos níveis geográfico, formal, estilística e a relação língua oral e língua escrita. É
certo que as variedades linguísticas são inerentes a todas as línguas do mundo, conforme
indicam os estudos de Labov (1972, 2008), Tarallo (1991) e Lucchesi (1994). A variedade
padrão é estabelecida a partir de uma opção política, isto é, a partir de quem detém o poder
(BAGNO, 2001, 2006). Desta forma, no Brasil, temos as variantes específicas do Português,
conforme as características regionais e, além disso, temos, sobretudo no sul do Brasil, as
comunidades de imigração italiana, alemã e polonesa, que são as que apresentam maior
concentração de descendentes.
Quanto às culturas de imigração, deve-se ressaltar que a política de nacionalização
estabelecida pelo governo Vargas em 1937, propagou, especialmente no sul do Brasil, um
verdadeiro “terrorismo” quanto ao uso da língua italiana (talian ou o dialeto italiano de matriz
veneta ou trentina) nas comunidades. As consequências desta política foram nefastas,
principalmente para a educação de crianças e jovens, que ao frequentarem a escola,
encontravam, além das dificuldades normais da comunicação oral, professores com posturas
pedagógicas autoritárias e conservadoras em relação aos seus usos linguísticos que,
inconscientemente ou não, resultaram em prejuízos psicológicos e sociais.
Este tipo de comportamento pedagógico da escola em relação à expressão linguística
dos falantes pode ser evidenciado, ainda, hoje, com práticas pedagógicas prescritivas
relacionadas ao ensino da língua portuguesa, quando as variantes estigmatizadas pela mídia e
pela escola acabam por aprofundar não só um tipo de preconceito linguístico, mas também
por extensão, o preconceito social.
6

2 LÍNGUA E VARIAÇÃO LINGUÍSTICA


A língua é um código ou sistema de signos verbais específicos que codifica palavras
e regras para a comunicação entre as pessoas, estando sujeita às influências de seus usuários.
O resultado dessas influências incide diretamente sobre o sistema linguístico, por ser um
produto social e que ao longo do tempo pode apresentar variações nos níveis fonológico e/ou
morfossintático. Uma forma até pouco tempo considerada de prestígio, atualmente, poderá ser
considerada estigmatizada, ou seja, desprestigiada. É assim que nascem as variantes,
consideradas formas concorrentes e que com o tempo podem impor-se como majoritárias pela
escolha livre e natural de seus falantes.
Um exemplo concreto para nós, brasileiros, é a mudança que se observa no
paradigma flexional do português. Diversos estudos, conforme encontramos em Kato (1993),
Duarte (1993), Figueiredo Silva (1998) e Loregian (1996) colocam em evidência que o
paradigma flexional do português brasileiro demonstra estar em transformação, conforme
demonstra a estrutura verbal a seguir:

Eu canto
Você canta (em alguns dialetos: tu cantas; em outros: tu canta
Ele canta
A gente canta (nós cantamos, ou nós canta)
Vocês cantam
Eles cantam

Embora as mudanças do paradigma flexional do português sejam evidentes, as


gramáticas continuam apresentando o paradigma tradicional da flexão verbal sem fazer,
muitas vezes, a devida reflexão de que a língua muda no tempo e as variantes novas
competem ou concorrem numa dinâmica constante de renovação do sistema linguístico.
De forma sintética, Tarallo (2001, p. 8) define variante linguística “como uma forma
de dizer a mesma coisa em um mesmo contexto, e com o mesmo valor de verdade”. A um
conjunto de variantes, dá-se o nome de variante linguística e estas podem ocorrer nos níveis
fonológico, morfológico, lexical e/ou sintático.
Todo falante de uma língua, expressa-se de acordo com um sistema de regras em boa
parte comum a seus interlocutores. De acordo com Saussure (1916), a língua constitui um fato
social. Isto significa que pertencemos a uma determinada comunidade de fala não nos
cabendo propor qualquer alteração, haja vista que a língua em uso é exterior ao indivíduo e
subsiste na consciência coletiva do grupo social. Por outro lado, se este sistema de signos
linguísticos é exterior ao indivíduo é também interiorizado pelos falantes e convencionado
7

socialmente. Portanto, linguagem, sociedade e cultura estão intimamente relacionadas,


caracterizando-se como um produto da faculdade criativa da linguagem.
Com relação ao Brasil, é preciso entender que se trata de um país plurilíngue, apesar
do “linguocídio” a que foi submetido por políticas de opressão do Estado, durante o governo
de Getúlio Vargas em relação às línguas de cultura, trazidas pelos imigrantes alemães,
italianos e poloneses. A história mostra que poderíamos ter sido um país ainda mais
plurilíngue, não fossem as repetidas investidas autoritárias do Estado (e das instituições
aliadas, ou ainda a omissão de grande parte dos intelectuais) contra a diversidade cultural e
linguística.
A história brasileira mostra que somos um país pluricultural e multilíngue, não apenas
pela diversidade de línguas faladas no território, mas ainda pela grande diversidade interna da
língua portuguesa, que é obscurecida por outro preconceito, o de que o “português” é uma
língua sem dialetos. Se uma língua é por natureza heterogênea, imaginemos esta língua
convivendo com as línguas de cultura no sul do Brasil.
Deve-se levar em conta que a linguagem utilizada no RS é resultado de sua cultura
plural de séculos em que convivem lado a lado etnias vindas da Europa, além de ter vasta
fronteira com os países platinos. Isso lhe confere particularidades que o diferenciam em
relação aos outros estados da federação.

3 A LÍNGUA, O LOCUTOR E O RÁDIO


O rádio constitui-se no meio de comunicação mais difundido em todo mundo,
estando presente nos lares, nos automóveis, nos estádios de futebol e nos ambientes de
trabalho. A maneira de narrar do rádio lida com o tempo e o espaço tendo na voz do locutor,
poderoso e original elemento de comunicação entre os seres humanos desde as origens pré-
históricas até nossos dias. É na narrativa radiofônica que percebemos toda a versatilidade e
capacidade de persuasão por meio da expressão oral dos locutores.
O fato de o rádio ser um veículo de comunicação de massa que atinge pessoas de
todas as classes sociais faz com que a sua linguagem seja simples, direta, e às vezes coloquial,
recurso essencial para que os ouvintes possam entender a mensagem. Porém, isso não
significa que a linguagem radiofônica tolere todo tipo de construção gramatical. É sabido que
os comunicadores de rádio exercem forte influência sobre seus ouvintes, mas dependendo do
tipo de programa, o estilo de linguagem pode oscilar bastante indo do uso coloquial ou
informal até um uso mais formal.
8

É certo que haverá programas em que os locutores serão mais formais, dando a
impressão de que estão lendo o texto, como ocorre, por exemplo, durante a locução de um
noticioso. Mas, há também diversos tipos de programas, como os musicais ou os debates em
que predominam a naturalidade e a espontaneidade dos locutores, gerando, assim, uma
relação de maior proximidade com os interlocutores.
Para Gomes (2002) a linguagem radiofônica obedece a critérios como a concisão,
exatidão, objetividade e a simplicidade. Esta deve ser bem articulada e agradável aos
ouvidos. Estes critérios exigem o uso adequado da língua para que se alcancem os objetivos
pretendidos a fim de poder comunicar-se de forma adequada com os ouvintes.
Os estudiosos do rádio, quando referem-se à linguagem, destacam que o radiouvinte
ao contar apenas com audição, significa que o som deverá suprir a falta de imagem. Isto
demanda o uso de uma língua(gem) bem articulada, timbre de voz adequado e capacidade de
expressividade oral fluente para que o ouvinte “veja” através das palavras. Por isso, os
profissionais do rádio precisam aprimorar essa capacidade de comunicação continuamente.
O papel do locutor é fundamental para o sucesso de determinada programação
radiofônica. O locutor deve cultivar sua voz e saber transmitir as mensagens com clareza, tom
de voz adequado e articular bem as palavras. Do ponto de vista dos conteúdos é fundamental
saber ambientar, descrever, narrar e expressar sensações e emoções que estimulam a
imaginação do ouvinte para que ele possa recriar as imagens mentais.
Por isso é importante conhecer a própria voz em termos físicos e acústicos. O locutor
deve saber combinar a velocidade de emissão de voz e administrar as pausas de modo correto
para que o ritmo possa ter variações contínuas em função do significado e o sentido das
mensagens. Muitas vezes a palavra radiofônica precisa ser improvisada. A arte e a técnica da
improvisação sustentam-se em três regras essenciais: não falar sobre temas que não se
conhecem, não fugir do tema e sentir-se à vontade diante do microfone.
Foi pensando nessa dinamicidade que o rádio é capaz de provocar entre locutor e
interlocutor que optamos pela narrativa radiofônica como dado concreto e real para estudar a
língua e os processos de variação. Os programas musicais intercalados com entrevistas e a
participação interativa dos ouvintes em que interagem dois ou três locutores oportunizam a
obtenção de rico material linguístico, proporcionando, desse modo, a possibilidade de
verificar quais são as situações linguísticas que podem apresentar a tendência inovadora.
Também é possível detectar em que medida o centro e a periferia ou interior se identificam ou
contrastam em nível de usos linguageiros.
9

4 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
A questão pronominal no Rio Grande do Sul apresenta características que a
diferencia da maior parte do país, pelo fato de ter como marca principal, o emprego do
pronome pessoal “tu”, enquanto em outros estados observa-se a predominância do emprego
do pronome “você”.
Para estudar o fenômeno da variação linguística, uma das estratégias de coleta de
dados é o uso da entrevista. Tarallo (2001) explica que o uso da técnica da entrevista é uma
situação interativa em que o falante se expressa naturalmente, permitindo ao pesquisador
verificar os usos linguísticos que deseja examinar. No caso da nossa pesquisa, as gravações
das narrativas radiofônicas constituem-se em excelente meio para verificar os usos
linguísticos e as tendências de variação.
Para implementar essa pesquisa foram realizadas dez gravações de programas
radiofônicos da região metropolitana e da região noroeste do Estado do Rio Grande do Sul.
O corpus constitui-se de dez programas:
- Programa “Gaúcha Entrevista” da Rádio Gaúcha AM de Porto Alegre, gravado em
07 de janeiro de 2009. O programa tem 44 minutos e 30 segundos.
- Programa “Tribuna Popular” da Rádio Província FM de Tenente Portela, gravado
em 07 de fevereiro de 2009. O programa tem 1 hora e 30 minutos.
- Programa “Vinil Rock Café” da Rádio Luz e Alegria FM de Frederico Westphalen,
gravado em 07 de fevereiro de 2009. O programa tem 3 horas e 30 minutos.
- Programa “Rádio Reporter” da Rádio Luz e Alegria AM de Frederico Westphalen,
gravado em 13 de fevereiro de 2009. O programa tem duração de 45 minutos.
- Programa “Pretinho Básico” da Rádio Atlântida FM, gravado em 14 de outubro de
2008 em Porto Alegre. O programa tem duração de 1 hora.
- Programa “Sala de Redação” da Rádio Gaúcha FM, gravado em 02 de janeiro de
2009, em Porto Alegre. O programa tem 50 minutos de duração.
- Programa “Manhã Máxima” da Rádio Querência AM, de Santo Augusto, gravado
em 17 de fevereiro de 2009. O programa tem a duração de, aproximadamamente 3 horas e
meia.
- Programa “Frequência Livre” produzido pelos alunos do 4º semestre de Jornalismo
da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM, campus de Frederico Westphalen, na
disciplina de Laboratório de RadioJornalismo III, veiculado em 18 de março de 2009 pela
Rádio Comunitária de Frederico Westphalen com 30 minutos de duração.
10

- Programa “Persona Singular” da Rádio Caxias AM, gravado em 17 de fevereiro de


2009. São 23 minutos que fazem parte do segundo bloco do programa.
- Programa “Cafezinho” da Rádio Pop Rock FM, de Canoas, gravado em 27 de
agosto de 2008 em Porto Alegre. São 47 minutos de programa.
O tempo total de entrevistas gravadas somou 13 horas de gravação. Os programas
radiofônicos foram transcritos seguindo o sistema de transcrição proposto por Paiva (2007).
Assim sendo, as regras utilizadas para a transcrição são as seguintes:
Quando há L1 no início da frase, indica que este é o primeiro locutor a falar, e segue
com L2, L3, L4 e, assim, acontece também com o convidado, C1, C2, C3. Quando aparecem
reticiências no final da frase entre chaves, significa que o locutor ou convidado foi
interrompido pelo outro falandte. Quando aparece a palavra (inint) entre chaves, significa que
não dá para entender o que o falante disse. Todas as falas (enunciados) são enumeradas,
iniciando de zero, para que possamos indicar e localizar no texto as ocorrências que são
objeto de estudo dessa pesquisa.
O principal objetivo da transcrição é transpor da forma mais clara e fiel possível, o
discurso falado para o escrito. Em uma transcrição, qualquer elemento notadamente gráfico
do oral pode ser descontínuo ou dissociativo. Descontínuo, pois recorre a elementos discretos,
como letras, palavras e frases, para representar o que se manifesta em fluxo contínuo.
Dissociativa, porque há elementos, componentes segmentais e suprassegmentais próprios do
discurso falado, que nenhum tipo de transcrição pode reproduzir. São as pausas, as diferenças
de entonação e altura de voz, alongamentos das vogais e consoantes, a ênfase de sílabas ou
palavras, os problemas particulares de notação das transcrições, apesar de estarem sujeitos a
um processo de filtragem por parte do ouvinte.
Todo o discurso oral está impregnado de hesitações, repetições, truncamentos e
falsos começos que não estão disponíveis no sistema ortográfico. Por isso, são utilizados
recursos especiais de notação para podermos captar com a maior fidelidade possível o
discurso falado dos locutores envolvidos na narrativa radiofônica, que via de regra, é
produzido com ativa linguagem gestual, podendo isso ser considerado, ou não, pelo
pesquisador.
11

5 APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS


A questão estudada nesta pesquisa é a verificação do uso dos pronomes “tu/você” e
"nós/a gente” pelos locutores de rádios do interior e da grande Porto Alegre, no estado do Rio
Grande do Sul. Apresentamos a seguir, as tabelas que indicam o uso pronominal nas dez
emissoras analisadas.
- Programa “Cafezinho” da Rádio Pop Rock FM, de Canoas, gravado em 27 de
agosto de 2008, em Porto Alegre. São 47 minutos de programa.

Tabela 1 – Usos pronominais.

CAFÉZINHO TU VOCÊ/S NÓS A GENTE

Ocorrências 58 22 3 5

Fonte: Programa Cafezinho

- Programa “Pretinho Básico” da Rádio Atlântida FM, gravado em 14 de outubro de


2008 em Porto Alegre. O programa tem duração de 1 hora.

Tabela 2 – Usos pronominais.

PRETINHO TU VOCÊ/S NÓS A GENTE


BÁSICO

Ocorrências 71 25 2 6

Fonte: Programa Pretinho Básico

- Programa “Sala de Redação”, da Rádio Gaúcha FM, gravado em 02 de janeiro de


2009 em Porto Alegre. O programa tem 50 minutos de duração.

Tabela 3 – Usos pronominais.

SALA DE TU VOCÊ/S NÓS A GENTE


REDAÇÃO

Ocorrências 21 4 3 2

Fonte: Programa Sala de Redação


12

- Programa “Gaúcha Entrevista” da Rádio Gaúcha AM de Porto Alegre, gravado em


07 de janeiro de 2009. O programa tem 44 minutos e 30 segundos.

Tabela 4 – Usos pronominais.

GAÚCHA TU VOCÊ/S NÓS A GENTE


ENTREVISTA

Ocorrências 5 9 31 39

Fonte: Programa Gaúcha Entrevista.

- Programa “Tribuna Popular” da Rádio Província FM, de Tenente Portela (região


noroeste), gravado em 07 de fevereiro de 2009. O programa tem 1 hora e 30 minutos.

Tabela 5 – Usos pronominais.

TRIBUNA TU VOCÊ/S NÓS A GENTE


POPULAR

Ocorrências 1 22 62 21

Fonte: Programa Tribuna Popular

- Programa “Vinil Rock Café” da Rádio Luz e Alegria FM de Frederico Westphalen


(região noroeste), gravado em 07 de fevereiro de 2009. O programa tem 3 horas e 30 minutos.

Tabela 6 – Usos pronominais.

VINIL ROCK CAFÉ TU VOCÊ/S NÓS A GENTE

Ocorrências 7 46 3 25

Fonte: Programa Vinil Rock Café.

- Programa “Rádio Repórter” da Rádio Luz e Alegria AM de Frederico Westphalen


(região noroeste), gravado em 13 de fevereiro de 2009. O programa tem duração de 45
minutos.
13

Tabela 7 – Usos pronominais.

RÁDIO REPORTER TU VOCÊ/S NÓS A GENTE

Ocorrências 1 1 54 32

Fonte: Programa Rádio Repórter.

- Programa “Manhã Máxima” da Rádio Querência AM, de Santo Augusto, gravado


em 17 de fevereiro de 2009. O programa tem a duração de, aproximadamamente 3 horas e
meia.

Tabela 8 – Usos pronominais.

MANHÃ MÁXIMA TU VOCÊ/S NÓS A GENTE

Ocorrências 2 79 59 31

Fonte: Programa Manhã Máxima

- Programa “Persona Singular” da Rádio Caxias AM, de Caxias do Sul, gravado em


17 de fevereiro de 2009. São 23 minutos que fazem parte do segundo bloco do programa.

Tabela 9 – Usos pronominais.

PERSONA TU VOCÊ/S NÓS A GENTE


SINGULAR

Ocorrências 6 10 7 8

Fonte: Programa Persona Singular

- Programa “Frequência Livre” produzido pelos alunos do 4º semestre de Jornalismo


da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM/Cesnors, campus de Frederico Westphalen
(região noroeste), na disciplina de Laboratório de RadioJornalismo III, veiculado em 18 de
março de 2009 pela Rádio Comunitária de Frederico Westphalen.
14

Tabela 10 – Usos pronominais.

PROGRAMA F. TU VOCÊ/S NÓS A GENTE


LIVRE

Ocorrências 3 9 - 1

Fonte: Programa Frequência Livre.

Na tabela 11 apresentamos o quadro geral das ocorrências pronominais “tu” vs.


“Você” e “nós” e “a gente”.

Tabela 11 - Quadro geral dos usos pronominais “tu” vs. “você/s” e “nós” e “a gente”.

Rádios Tu % Você/s % Nós % A gente %


Interior* 12 7,0 148 68,0 158 77,0 109 64,0
Cidades** 161 93,0 70 32,0 46 23,0 60 36,0
Total 173 218 204 169
* Refere-se às emissoras situadas na região noroeste do estado do Rio Grande do Sul
** Refere-se às emissoras da Grande Porto Alegre

Os dados revelam que não se constata nos locutores do interior a mesma frequência
de uso do pronome “Tu” com apenas 7,0% como ocorre nas emissoras da grande Porto Alegre
que registrou 93%. Os locutores das emissoras da região noroeste enfatizam o uso do
pronome “você” com 68% e o emprego do pronome “tu” com apenas 7,0%. Também é
interessante observar a frequência significativa do uso do pronome “a gente” nas emissoras
do noroeste com 64% em relação às emissoras da grande Porto Alegre com 36%. Os locutores
da região noroeste demonstram um uso pronominal equilibrado entre “nós” 77,0% e “a gente”
64%. Já os locutores da grande Porto Alegre usam bem menos os pronomes “nós” com 23% e
“a gente” com 36%.
Destacamos que o maior número de ocorrências do pronome “tu” deu-se no
programa “O Pretinho Básico”, da Rádio Atlândida FM com 71 ocorrências do pronome “tu”,
totalizando 74% e 25 ocorrências do pronome “você” com 26%. Trata-se de um programa de
entretenimento, apresentado por cinco comunicadores: Alexandre Fetter, que é o comunicador
responsável; Carlos Eugênio Nunes, o Cagê; Maurício Amaral; Marcos Piangers e Porã. Além
de “estrelas móveis”, que são amigos que participam do programa, neste caso, a “estrela
móvel” é o escritor David Coimbra.
A linguagem utilizada pelos locutores é bem variada e espontânea. Há leituras de e-
mails, piadas e comentários sobre os fatos que são notícia no Brasil e no mundo. Como o
15

programa é direcionado a um público mais jovem, verifica-se o uso de gírias e até de palavras
consideradas impróprias, como palavrões ou relacionadas ao sexo.
Em um programa de uma hora, há 70 menções do pronome “tu”, enquanto há apenas
7 menções do pronome “você”, embora 5 delas tenham sido em leituras de e-mail de ouvintes
e 2 em que o comunicador apresenta as empresas que patrocianam o programa. Houve, 9
menções do pronome “vocês”.

Tabela 12 – Usos pronominais


Você 2
Você 9
Tu 70
Você e-mail 5
Você propaganda 2
Você piada 3
Vocês e-mail 4

Os dados da tabela 12 ilustram em que situações se deram os usos pronominais. Há


momentos em que locutor está lendo ou o texto é a veiculação de alguma peça publicitária.
O programa Gaúcha Entrevista, da Rádio Gaúcha AM de Porto Alegre apresenta
entrevistas temáticas. A variação linguística nesse programa é perceptível apenas na
comparação do locutor com os convidados. A locutora menciona o pronome “você” 1 vez,
enquanto 7 vezes o pronome “você”, embora 2 vezes seja na divulgação dos patrocinadores.
O pronome “vocês” foi mencionado por ela 5 vezes. Pode parecer pouco para um programa
de quase 45 minutos, porém, a locutora prefere chamar alguns dos entrevistados pelo nome ou
pela função.
A primeira e a terceira pessoas que foram entrevistadas não se utilizam de qualquer
pronome durante a entrevista. Já o segundo se utiliza apenas uma vez de um pronome que é o
“você”.
O programa Tribuna Popular trata de debates e entrevistas. Nesta edição há 3
entrevistados: o primeiro se utiliza 1 vez do pronome “tu”, o segundo entrevistado apenas se
utiliza do “vocês” em toda a sua participação e o terceiro entrevistado não se utiliza de
qualquer pronome em sua participação.
O jornalista e comunicador responsável pelo programa se utilizou 17 vezes do
pronome “você” enquanto 1, apenas, do pronome “tu”. O pronome “vocês” foi mencionado 4
vezes.
16

O programa é musical, mas sempre apresenta algum tipo de participação ao vivo.


Nesta edição há uma entrevista, uma participação e algumas pessoas que estavam no estúdio,
mas não tiveram participação efetiva.
Os convidados 2, 4 e 5 apresentam poucas interações que envolvam o uso
pronominal. A primeira entrevistada utiliza apenas uma vez o pronome “vocês”. O terceiro
participante se utiliza 2 vezes do pronome “tu”, uma vez o pronome “você” e 4 vezes o
“vocês”. Já o apresentador do programa utiliza 2 vezes “vocês”, 5 vezes o pronome “tu” e 37
vezes o pronome “você”. Percebeu-se que quando ele se referia aos convidados utilizava o
“tu” e na maioria das vezes que direcionava a palavra aos ouvintes, utilizava “você”.
Este é um programa que traz entrevistas com assuntos que dizem respeito à ordem
pública. O locutor se utilizou uma vez do pronome “tu” e o entrevistado utilizou-se uma vez
do pronome “você”. Chama a atenção o fato de o locutor ter conduzido a entrevista sem
utilizar pronomes.

6 CONCLUSÃO
Não temos conhecimento de pesquisas que tenham analisado o comportamento
linguístico de comunicadores de rádio, da região metropolitana de Porto Alegre ou de
qualquer outra região do Rio Grande do Sul. As motivações iniciais em analisar a expressão
oral de comunicadores de rádio, a partir das narrativas radiofônicas tem como objetivo
verificar se, de algum modo, os empregos pronominais na região sul apresentam as mesmas
características já detectadas em pesquisas sociolinguísticas publicadas desde a década de
noventa. Nessas pesquisas, constata-se a predominãncia do uso pronomianl “tu” em Porto
Alegre, enquando nas outras capitais brasileiras há a predominância do emprego do pronome
“você”.
A realização de uma pesquisa dessa natureza mostrou que as narrativas radiofônicas
podem constituir-se em excelente material para verificar as tendências de mudança que
afetam a língua. A formação do corpus tornou-se possível pela facilidade em acessar as rádios
de qualquer região do país pela internet. Portanto, a escolha de apenas dez emissoras de
pontos tão distantes do estado do Rio Grande do Sul deve-se em parte, pelo tempo bastante
limitado para o desenvolvimento desse projeto, ou seja, um período de 12 meses. Por isso, era
necessário limitar o corpus pocurando obedecer a alguns critérios em termos de similaridade
dos programas e do público-alvo.
Em nossa pesquisa, o corpus é formado por programas musicais em que interagem
no mínimo dois locutores com a participação de ouvintes e programas de entrevistas. Trata-se
17

de programas em que a naturalidade dos locutores é fundamental para poder verificar em que
medida as variantes linguísticas, no nossos caso, os usos pronominais “tu” e “você”, “nos” e
“a gente” são gerados durante o processo interacional.
Uma primeira constatação mostra que os comunicadores de rádio da grande Porto
Alegre revelam a predominância de uso pronominal “tu”, o que confirma pesquisas anteriores,
como as realizadas por Vandresen (2000), Abreu (1987) e Loregian (1996). Note-se que essa
pesquisa, especificamente é apenas com comunicadores de rádio. Esses dados confirmam o
que as pesquisas realizadas por linguistas já mencionados nesse estudo, têm revelado sobre os
usos pronominais, nesse caso, o pronome “tu”.
Por outro lado, os comunicadores de rádio da região noroeste do estado do Rio
Grande do Sul revelam a predominância pelo emprego do pronome “você/s”. Esse dado é
interessante porque os estudos sociolinguísticos já mencionados, mostram a tendência do uso
do pronome “você” nas capitais brasileiras, mas não sabemos exatamente se isso é uma
tendência em todo o território nacional. Temos as capitais como referência para o uso
predominante do pronome “você”, mas no momento em que analisamos a série de narrativas
dos comunicadores da região noroeste do estado do Rio Grande do Sul, não constatamos a
mesma preodminância que se observa nos comunicadores da grande Porto Alegre que usam
predominantemente o pronome “tu”. Ao contrário, os dados do nosso inventário mostram o
emprego do pronome “você”, confome ilustram as diversas tebelas examinadas na discussão
dos resultados.
Portanto, diante disso, surge o desafio de ampliar a pesquisa com comunicadores de
rádio envolvendo outras regiões do estado sulino. Desse maneira, pode-se detectar se a
tendência de uso pronominal está de fato alterando o tradicional paradigma verbal, como já é
proposto por diversas pesquisas que analisam os fenômenos de variação da língua ao longo do
tempo.

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VANOYE, F. Usos da Linguagem – problemas e técnicas na produção oral e escrita. Martins


Fontes: São Paulo, 2003.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

A PERFORMANCE NO DOMÍNIO DO SISTEMA ALFABÉTICO POR PARTE DE


ALUNOS ALFABETIZADOS COM BASE NOS PRESSUPOSTOS
DE EMILIA FERREIRO

Maria Luiza Rosa Barbosa (PPGLg/UFSC)1

RESUMO

Esta pesquisa descreve a performance no domínio do sistema alfabético por parte de alunos
alfabetizados com base nos pressupostos de Emilia Ferreiro. Assim, delineou-se a pesquisa a
partir das seguintes questões-problema: Como se caracteriza a apropriação dos princípios do
sistema alfabético do português do Brasil em se tratando de alunos alfabetizados com base
nos postulados de Emília Ferreiro? No contexto em que esses alunos foram alfabetizados, em
que medida tais postulados foram ressignificados por parte de alfabetizadores? Tomaram-se,
por isso, como base para o aporte teórico as descrições do sistema alfabético do português do
Brasil, referenciando teorizações de Scliar-Cabral (2003a, 2003b); quanto à alfabetização, o
enfoque se deu com base nas teorizações de Emilia Ferreiro (2007 [1984]), Morais (1996) e
Gontijo (2002). A geração de dados contemplou entrevistas com alfabetizadoras e gestores de
duas instituições particulares de Florianópolis, que se autodenominam construtivistas, e
também a realização de testes por meio dos quais foi possível analisar como os 24 alunos do
segundo ano, do Ensino Fundamental, mostravam-se quanto ao domínio do código alfabético.
Teve enfoque qualitativo no que concerne à descrição das concepções da escola e ao trabalho
das alfabetizadoras; e quantitativo, em se tratando dos testes de decodificação e codificação
aplicados aos alunos do segundo ano. Constatou-se, a partir da análise dos dados gerados, que
as escolas participantes de pesquisa ressignificaram suas práticas de ensino tidas como
construtivistas e que os alunos da amostra não apresentam problemas no que diz respeito ao
domínio do sistema alfabético do português do Brasil.

Palavras-chave:
Sistema Alfabético. Alfabetização. Emilia Ferreiro.

ABSTRACT
This study describes the performance of students who were literate based on Emilia Ferreiro's
studies in relation to the domain of the alphabetic system. Thus, the research was outlined
regarding the following research questions: How can the appropriation of the principles of the
Brazilian Portuguese alphabetic system be characterized considering students who were
literate based on the Emilia Ferreiro's ideas? Regarding the context in which these students
were literate, to what extent such theories were resignified by the literacy teachers? To answer
these questions, the descriptions of the Brazilian Portuguese alphabetic system were
considered as a base to the theoretical framework, referring to Scliar-Cabral's theories (2003a,
2003b). For the aspects related to literacy, the focus was based on Emilia Ferreiro's theories
(2007 [1984]), as well as on Morais's (1996) and Gontijo's studies (2002). The data included
interviews with the teachers and the supervisors of two private schools in Florianópolis, who
claims to follow constructivism theories, and also the application of tests by means of which it
was possible to analyze the performance of 24 students in the second year of the elementary
school in relation to the alphabetical code understanding. The study made use of qualitative
approach in relation to the description of the school conceptions and the work of the literacy

1
Mestranda em Linguística do PPGLg/UFSC, na área de concentração de Linguística Aplicada, na linha de
pesquisa: Ensino e aprendizagem da língua materna, e pesquisadora com bolsa de produtividade do CNPq; e-
mail: marialuizarosab@yahoo.com.br ou mluiza2312@hotmail.com.
2

teachers. Also, quantitative approach concerning the decoding and encoding tests applied to
the second year students. Through the data analysis, it was evidenced that the schools which
participated in the research indeed resignified their teaching practices considered as
constructivist and that the students who participated in this sample do not present problems
regarding the domain of the alphabetic system of the Brazilian Portuguese.

Keywords:
Alphabetical System. Literacy. Emilia Ferreiro.

1 INTRODUÇÃO
Este artigo tem como objeto de estudo a apropriação do sistema alfabético do
português do Brasil no que diz respeito ao domínio dos princípios desse sistema por parte de
alunos alfabetizados com base em postulados de Emília Ferreiro. A problematização decorreu
da inferência de que parece haver hoje uma tendência de conceber a aplicação dos postulados
de Emília Ferreiro à alfabetização como causa de problemas relacionados ao a(na)lfabetismo
em escolas brasileiras. Assim, em classes que se autodenominaram ou ainda se
autodenominam construtivistas, crianças chegariam a séries mais avançadas do Ensino
Fundamental com problemas de codificação e decodificação e apresentariam dificuldade em
assimilar que a escrita é uma tentativa de representação, muitas vezes arbitrária, da fala, não
tendo pleno domínio das representações grafêmico-fonêmicas e vice-versa; domínio este que
deveria ser consolidado nos anos iniciais de escolarização básica. Sob essa perspectiva, tais
alunos, em decorrência da aplicação dos postulados de Ferreiro, teriam problemas em relação
à apropriação do sistema alfabético do português do Brasil.
Com base nessa inferência – que advém de percepção empírica e exige estudos
científicos que a legitimem ou não – e defendendo a essencialidade do domínio do código
para o uso social da escrita e da leitura, formulamos as seguintes questões-problema: Como se
caracterizam a apropriação dos princípios do sistema alfabético do português do Brasil em se
tratando de alunos alfabetizados com base nos postulados de Emília Ferreiro? No contexto
em que esses alunos foram alfabetizados, em que medida tais postulados foram
ressignificados por parte de alfabetizadores?
Assim, procuramos identificar, por meio desta pesquisa, se alunos alfabetizados com
base nos postulados de Emília Ferreiro revelam, no período de alfabetização, problemas na
apropriação do sistema alfabético, apresentando lacunas no que diz respeito ao domínio das
relações grafêmico-fonêmicas e fonêmico-grafêmicas que devem ser internalizadas no
processo de alfabetização; o estudo objetivou, por consequência, descrever a performance no
domínio do sistema alfabético por parte desses alunos. Procedemos, ainda, como
3

comportamento necessário ao estudo, à descrição da forma como tais instituições – escolas


privadas de Florianópolis, que se autodenominam construtivistas – concebem os pressupostos
teórico-epistemológicos de Emília Ferreiro no trabalho que empreendem com a alfabetização.
Para tanto, este artigo se organiza em cinco seções de conteúdo: uma discussão
inicial sobre a apropriação do sistema alfabético, seguida de considerações sobre o
pensamento de Emília Ferreiro e, após, de teorizações de outras vertentes que tematizam a
alfabetização; enfim, detalhamos a pesquisa empírica, com seus resultados no que respeita à
descrição da ação escolar e à análise da performance dos alunos em atividades de
decodificação e codificação.

2 APROPRIAÇÃO DO SISTEMA ALFABÉTICO


A aprendizagem de uma língua escrita alfabética exige a apropriação de um
conhecimento basilar: a compreensão de que os grafemas – unidades da escrita – são
representações dos fonemas – unidades da fala. A decodificação consiste, portanto, na
atribuição de valor aos grafemas que compõem as palavras do texto; a codificação, por sua
vez, consiste na conversão de fonemas em grafemas. São, por conseguinte, processos
distintos, mas fundados em um mesmo eixo: a natureza componencial do sistema alfabético.
Scliar-Cabral (2003a) explicita, por exemplo, que o entendimento acerca da decodificação e
da codificação é básico para os complexos processos de compreensão e de produção do texto
escrito.
Dado o exposto, podemos afirmar que a aprendizagem da leitura e da escrita “[...]
passa pela descoberta e a utilização do princípio alfabético de correspondência entre letras e
fonemas” (MORAIS, 1996, p.162). Assim, é primordial que o alfabetizando seja levado a
compreender que, “[...] conforme a posição que ocupam, as letras representam valores
fonéticos completamente distintos” (SCLIAR-CABRAL, 2002, p.149). Scliar-Cabral (2003a e
2003b), ao detalhar os princípios do sistema alfabético do português do Brasil, pontua que as
“[...] bases dos processos envolvidos na leitura e na escrita, particularmente no que diz
respeito à descodificação, isto é, ao reconhecimento da palavra e à codificação, ou seja, como
ela é escrita na língua portuguesa praticada no Brasil” (SCLIAR-CABRAL, 2003b, p.19).
Esse conhecimento, segundo a autora, faculta aos profissionais da área o reconhecimento das
“[...] dificuldades que resultam das condições de ensino-aprendizagem daquelas que têm sua
origem em distúrbios da linguagem” (SCLIAR-CABRAL, 2003b, p.20).
Em se tratando do domínio do sistema alfabético, importa considerar, à luz das
teorizações de Scliar-Cabral (2003a, 2003b), que as relações entre grafemas e fonemas e entre
4

fonemas e grafemas podem dar-se em contextos de biunivocidade ou em contextos


competitivos. Relações, por exemplo, entre os fonemas //, //, //, //, //, // e os
grafemas que os representam, respectivamente, p, b, t, d, f, v se estabelecem em contextos de
biunivocidade: um grafema para um fonema e vice-versa. Já em se tratando dos contextos
competitivos, ou seja, quando um mesmo grafema representa mais de um fonema – o grafema
c representa os fonemas // em casa, e // em cedo, por exemplo – ou quando um mesmo
fonema é representado por mais de um grafema, como o fonema // representado por c, em
cedo; representado por s em sapo; representado por sc em nascer, etc., o processo de ensino
e aprendizagem de uma língua alfabética ganha maior complexidade.

3 POSTULADOS DE EMÍLIA FERREIRO PARA A ALFABETIZAÇÃO


Diferentemente de Scliar-Cabral (2003a, 2003b), cujas teorizações descrevem o
sistema alfabético do português e a maior ou menor complexidade desse sistema no ensino e
na aprendizagem da modalidade escrita da língua – o que aproxima a estudiosa da defesa dos
métodos fônicos de alfabetização –, possivelmente a grande contribuição de Emília Ferreiro –
contrapondo-se a encaminhamentos metodológicos de base fônica – foi teorizar sobre o modo
como as crianças raciocinam a respeito da escrita por ocasião do processo de apropriação que
empreendem na escola ou fora dela. Ferreiro, no estudo que realiza com Ana Teberosky (2007
[1984]), postula que a construção do código não se dá pelo conhecimento dos fonemas, das
letras ou das sílabas em sua imanência, mas sim pela compreensão de como funciona o código
alfabético, uma vez que as crianças já têm as próprias hipóteses acerca do processo de
construção da escrita. Salienta, ainda, que tem uma visão radicalmente diferente do processo
de aquisição do código, pois acredita que a criança exerce um papel ativo na interação com a
linguagem e também na sua compreensão, uma vez que “[...] formula hipóteses, busca
regularidades, coloca à prova suas antecipações e cria sua própria gramática [...]. No lugar de
uma criança que recebe pouco a pouco uma linguagem inteiramente fabricada por outros,
aparece uma criança que reconstrói por si mesma a linguagem, tomando seletivamente a
informação que lhe provê o meio” (FERREIRO; TEBEROSKY, 2007[1984], p.24).
Em Psicogênese da língua escrita, escrito em parceria com Teberosky (2007 [1984]),
Emília Ferreiro registra a investigação que lhe permitiu mapear e descrever o processo de
aprendizado da língua escrita por parte de crianças. Por meio dessa obra, publicada no Brasil
pela primeira vez em 1989, a estudiosa apresentou sua pesquisa, por meio da qual interpretou
o modo como a criança reconstrói o sistema de escrita ao se apropriar dessa linguagem, e
propôs que esse processo se dá em níveis, hoje amplamente conhecidos. Descreveu, portanto,
5

a forma como as crianças participantes de sua pesquisa raciocinavam acerca do ato de


escrever, embora isso tenha suscitado, em muitos educadores, a ideia equivocada de que as
crianças seguiriam os níveis por hipótese-erro, o que liberaria o alfabetizador de proceder a
correções e a intervenções.
Concebe, ainda, que a aprendizagem da língua escrita passa por diferentes estágios
implicacionais de apropriação da escrita: pré-silábico, silábico, silábico-alfabético e
alfabético. No primeiro nível, escrever implica reproduzir os traços típicos da escrita, o que a
criança identifica como a forma básica de escrita; nesse nível, a criança não entende ainda que
a escrita representa a fala, não havendo correspondências fonêmico-grafêmicas. Há, no nível
silábico, a tentativa de representar com valor fonêmico cada grafema que compõe a escrita, e
a criança escreve uma letra para cada sílaba, sem correspondências grafêmico-fonêmicas – as
correspondências são silábico-grafêmicas; as formas dos grafismos ficam mais próximas às
das letras. Já no terceiro nível, o silábico-alfabético, a criança descobre a necessidade de fazer
uma análise que transcenda a sílaba, mas ainda hipotetiza sobre a quantidade de letras a ser
usada para representar cada sílaba. Finalmente, no nível alfabético, a criança passa a
compreender que os grafemas correspondem a unidades sonoras menores que a sílaba, o que a
leva a proceder a uma análise dos fonemas das palavras que vai escrever. Segundo as autoras,
mesmo chegando a esse nível de apropriação da escrita, nem todas as dificuldades são
superadas, uma vez que a partir desse momento a criança se defrontará com as dificuldades
próprias da ortografia. (FERREIRO; TEBEROSKY, 2007 [1984]).
Os estudos de Emília Ferreiro, em parceria com Ana Teberosky, atentam para a
forma como a criança raciocina por ocasião de seu contato com a língua escrita como objeto
de conhecimento, destacando os estágios implicacionais por que passa a construção de seu
conhecimento acerca da escrita. Essas discussões serviram, e ainda têm servido, de suporte
para que alfabetizadores categorizem os alfabetizandos em diferentes fases do processo de
construção de conhecimentos sobre a escrita. Tais categorizações, por sua vez, têm pautado o
planejamento de ações docentes no campo da alfabetização em classes que mantêm essa
orientação teórico-metodológica, a exemplo das classes participantes deste estudo.

4 ALFABETIZAÇÃO: ABORDAGENS DE BASE SÓCIO-HISTÓRICA


Dado o exposto, vale lembrar que, embora Ferreiro, juntamente com Teberosky,
tenha focalizado a criança na interação com a língua escrita tomada como objeto de
conhecimento, não endereçando sua atenção ao papel das relações intersubjetivas no processo
de descobertas que essa mesma criança empreende, seu trabalho foi de expressiva relevância.
6

Assim, podemos afirmar que, o conceito de alfabetização, a partir da década de 1980,


ampliou-se graças à contribuição dos estudos de Ferreiro e Teberosky, uma vez que essas
estudiosas concebem a aprendizagem do sistema de escrita não apenas como o domínio das
relações grafêmico-fonêmicas, mas sim como um processo ativo que permite à criança
construir e reconstruir “[...] hipóteses sobre a natureza e o funcionamento da língua escrita,
compreendida como um sistema de representação. Progressivamente, o termo passou a
designar o processo não apenas de ensinar e aprender as habilidades de codificação e
decodificação, mas também o domínio dos conhecimentos que permitem o uso dessas
habilidades nas práticas sociais de leitura e escrita” (BATISTA et al., 2007, p.10).
Na década de 1990, após a expressiva eclosão do pensamento de Emília Ferreiro,
surgiram oposições à natureza de sua abordagem teórico-epistemológica, sobretudo no que se
refere ao papel das relações intersubjetivas. Tais oposições vieram na esteira de um novo
movimento, originado, naquela década, da introdução do pensamento de base
sociointeracionista de autores como Luria e Vigotski. Essa vertente teórica ganhou, com
efeito, espaços expressivos no meio educacional e chamou atenção para os usos sociais da
escrita, trazendo o foco para a língua em uso, como instrumento psicológico de mediação
simbólica, por meio do qual se estabelece a interação humana (VIGOTSKI, 2003 [1984]).
Essa corrente de pensamento ganhou, também, espaços no universo da alfabetização.
Gontijo (2002, p. 10) destaca que “[...] a escola de Vigotski se contrapõe ao
empirismo, ao inatismo e também às concepções biologizantes do processo de
desenvolvimento humano, pois busca investigar os processos de formação da individualidade
numa perspectiva histórica e social”. Pontua, ainda, que Luria, com base em estudos
realizados, “[...] denominou as primeiras escritas infantis pré-escrita ou escrita pré-
instrumental, porque não auxiliavam a recordação dos significados que motivaram os
registros”. Assinala, igualmente, que as investigações de Luria sobre a linguagem escrita e o
desenvolvimento cognitivo a levam a considerar que “[...] a linguagem escrita não é apenas
um sistema de sinais gráficos que servem para registrar os sons da fala humana. Ela é,
também, um conhecimento, construído ao longo do desenvolvimento histórico-social, que
serve de apoio a funções intelectuais, além de ser mediadora entre os homens e entre os
indivíduos e as esferas mais amplas de objetivação do gênero humano” (GONTIJO, 2002,
p.26).
À luz do pensamento vigotskiano, a apropriação do conhecimento se dá nas relações
intersubjetivas. É na interação com um mediador mais experiente que a criança aprende; a
ação desse mediador incide sobre a zona de desenvolvimento real (ZDR), ou seja, “[...] aquilo
7

que elas [as crianças] conseguem fazer por si mesmas”, e a zona de desenvolvimento
proximal (ZDP2) que é determinada “[...] através da solução de problemas sob a orientação de
um adulto ou em colaboração de companheiros mais capazes” (VIGOTSKI, 2003 [1984],
p.111-12). Em outras palavras, o processo de apropriação do conhecimento é, com efeito,
mediado pelo outro na interação social. Enfatizamos, ainda, que

[...] o domínio de tal sistema complexo de signos [linguagem escrita] não pode ser
alcançado de maneira puramente mecânica e externa; ao invés disso, esse domínio é
o culminar, na criança, de um longo processo de desenvolvimento de funções
comportamentais complexas. A única forma de nos aproximar de uma solução
correta para a psicologia da escrita é através da compreensão de toda a história do
desenvolvimento de signos na criança (VIGOTSKI, 2003 [1984], p.140).

Ponto relevante no pensamento desse estudioso russo é que ele concebe a construção
do conhecimento como um processo que se efetiva na interação, num percurso
interpsicológico para intrapsicológico: “[...] no nível social, e, depois, no nível individual;
primeiro, entre pessoas (interpsicológica), e, depois, no interior da criança (intrapsicológica).
Isso se aplica igualmente para a atenção voluntária, para a memória lógica e para a formação
de conceitos. Todas as funções superiores originam-se das relações reais entre indivíduos
humanos” (VIGOTSKI, 2003 [1984], p.75). Importa salientarmos que, sob essa perspectiva,
tanto o contexto sócio-histórico quanto o cultural têm papel preponderante no processo de
aprendizagem da linguagem escrita, uma vez que ela ocorre quando a criança estabelece uma
relação de interação com outras pessoas. Ainda que o pensamento de Vigotski e o de Luria
estejam situados na primeira metade do século XX, o impacto dessas reflexões na educação
brasileira, na década de 1990, foi bastante significativo e se estende até hoje, estando visível
na ancoragem teórica sobre a qual se estruturam as propostas pedagógicas das redes públicas.
No que respeita à alfabetização, o legado desses autores relaciona-se com a preocupação em
empreender um processo de ensino que tenha os usos sociais da linguagem como base.

5 AÇÃO ESCOLAR NO PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO: RESSIGNIFICAÇÕES


DOS POSTULADOS DE FERREIRO?
Esta seção é resultado de um processo de pesquisa que previu nossa inserção em
duas escolas da rede privada, situadas no município de Florianópolis/SC. A escolha das
escolas observou similaridades quanto à configuração socioeconômica dos alunos e sua
inserção cultural, bem como com relação a encaminhamentos teórico-metodológicos do
processo de alfabetização – autodenominação das escolas como construtivistas, com ação
2
Com base no tradutor Paulo Bezerra (2001), prefiramos a tradução Zona de Desenvolvimento Imediato.
8

pedagógica baseada no pensamento de Emília Ferreiro. A discussão desta seção resulta de


dados gerados por meio de observação e entrevistas, à luz de Patton (2002) e pesquisa
documental (MARCONI; LAKATOS, 2007), o que teve como propósito responder à segunda
pergunta da questão problema que move este estudo, já enunciada na introdução: No contexto
em que os alunos participantes deste estudo foram alfabetizados, em que medida os
postulados de Emília Ferreiro foram ressignificados por parte de alfabetizadores? O
período de contato com as escolas, nesse processo de geração de dados, correspondeu a seis
meses de interação.
As escolas participantes de nosso estudo – aqui chamadas EA1 e EA2 –
autodenominam-se construtivistas, com uma ação fundada no pensamento de Emília Ferreiro.
Têm, no entanto – segundo afirmações de gestoras e alfabetizadoras –, procurado ressignificar
a sua ação escolar a fim de que a prática se torne mais significativa para os alunos com os
quais trabalham. Inferimos, na fala (1) a seguir, a preocupação em fugir ao espontaneísmo
atribuído ao pensamento de Ferreiro e Teberosky (2007 [1984]), crítica surgida com base no
olhar dessas autoras sobre a ação da criança em relação ao objeto do conhecimento – nesse
caso, a língua escrita. As teorizações das pesquisadoras, em estudos fundamentados no
método clínico de Piaget, não previam a intervenção direta do adulto no processo de interação
com o objeto escrita, empreendido pela criança, o que, segundo sugerem queixas empíricas,
fez com que leitores da obra entendessem que caberia ao professor apenas acompanhar a
criança, sem intervir, efetivamente, em favor de seu processo de aprendizagem. Isso fica
evidente quando a entrevistada assinala que,
(1) Nesse tempo todo, a nossa preocupação foi sair da questão espontaneísta e fazer um trabalho
com preceitos teóricos: de que forma o sujeito aprende, de que forma eu preciso ensinar para que
o sujeito possa aprender, de que forma lidar com o conteúdo de forma que tenha significado para
o aluno. Aí, foram anos e anos de estudo. Em função disso, todo o trabalho de formação com os
professores, com encontros semanais, assessorias com a coordenação para poder discutir aquilo
que está acontecendo, aquilo que está sendo feito em sala de aula. (Coordenadora do Ensino
Fundamental II da EA1, entrevista concedida em agosto de 2009).

No que tange explicitamente à alfabetização, a Coordenadora do Ensino


Fundamental I, da EA1, faz menção a posicionamentos que remetem aos conceitos de zona de
desenvolvimento real e zona de desenvolvimento imediato, de Vigotski (2003 [1984]),
ressignificando a postura que vinha sendo adotada de observação dos estágios implicacionais
propostos por Ferreiro e Teberosky (2007 [1984]). Ressalta que a escola

(2) [...] vem buscando uma apropriação de maior significado para o aluno. Então isso, há algum
tempo atrás, há alguns anos, era bastante comum se respeitar as diferentes fases de
desenvolvimento da criança na apropriação dos conteúdos de escrita e de leitura. À medida que o
tempo foi passando [...] passou-se a entender que também é papel do professor fazer com que esse
9

aluno avance além daquilo que, num determinado momento, ele consegue fazer sozinho. Então,
foge um pouco daqueles pressupostos iniciais que a gente desenvolvia, que era muito pautado na
teoria de Piaget, na qual, para cada faixa etária, determinadas competências e habilidades;
conforme os alunos amadureciam, essas habilidades e competências iam sendo modificadas quase
que naturalmente. Outro ponto é levar em conta a individualidade de cada aluno. Ao mesmo
tempo em que um aluno de determinada faixa etária tem possibilidade de um certo tipo de
aprendizagem, outro já não tem e vice-versa. São vários fatores que acabam interferindo nesse
processo todo. (Coordenadora do Ensino Fundamental I da EA1, entrevista concedida em agosto
de 2009).

A Coordenadora do Ensino Fundamental II complementou que também está


implicada a compreensão de que um processo de construção de conhecimento se dá
respeitando, mas não esperando o nível de maturidade do aluno, no sentido de que o
conhecimento pode ser um acelerador da própria maturidade, o que, mais uma vez, remete a
Vigotski (2003 [1984]) para o qual, diferentemente de Piaget (2007 [1970]) – para quem o
desenvolvimento antecede a aprendizagem –, a aprendizagem move o desenvolvimento.
Destaca, ainda, que

(3) É a questão do que é que vem primeiro; nós não discutimos isso. Nós simplesmente
trabalhamos de uma forma tal para que o sujeito possa se apropriar; e, na medida em que ele se
aproprie daquele conhecimento, ele possa se desenvolver e crescer. (Coordenadora do Ensino
Fundamental II da EA1, entrevista concedida em agosto de 2009).

Nesse ponto, a Coordenadora do Ensino Fundamental I interveio e completou com


comentário a seguir, cujo conteúdo lembra, novamente, discussões vigotskianas (2003 [1984])
sobre o papel da língua – incluindo a escrita – na interação social. Nessa mesma fala, mais
uma vez, percebemos a ressignificação do pensamento de Ferreiro e a preocupação em
explicitar uma nova compreensão para o conceito de escrita espontânea – compreendido, em
muitos contextos escolares, como sinônimo de espontaneísmo.

(4) Qual é a grande questão? Que eles entendam o que é um texto, manipular com esse texto – e
que possam fazer uso dessa escrita nas diferentes situações, que ela passe a ser espontânea –
intencionalmente. Essa é a grande questão: o espontâneo da escrita é utilizá-la para fins diversos,
sem que tenha alguém que faça a solicitação de que um aluno escreva, que o aluno passe a
incorporar a escrita à sua rotina. É espontânea nesse sentido: que ela seja uma ferramenta que
ele vai utilizando a todo momento. (Coordenadora do Ensino Fundamental I da EA1, entrevista
concedida em agosto de 2009).

Notamos, no discurso dessas gestoras, que há uma preocupação por parte da EA1 em
sempre buscar embasamentos teóricos que fundamentem sua prática e que promovam uma
melhoria significativa no ensino oferecido por esta instituição, mesmo que isso represente a
adoção de posturas vindas de linhas teóricas diferentes. Essa escola procurou, como sugerem
essas e outras falas das coordenadoras, ressignificar os postulados de Ferreiro à luz de outras
10

concepções teórico-metodológicas; até aqui, a atenção ao pensamento vigotskiano (2003


[1984]) é bastante evidente.
Em relação à EA2, a Coordenadora destaca que a escola, ao longo desses anos de
atuação, tem procurado, especialmente por meio dos grupos de estudos, sempre rever sua
prática. Comenta que o papel do professor foi, igualmente, ressignificado para que a ação
escolar pudesse acontecer de forma mais efetiva, especialmente porque concebe o caráter de
mediador que a figura do professor tem no processo ensino-aprendizagem, em uma clara
tentativa de conciliação do pensamento piagetiano com o pensamento vigotskiano, como se
nota no trecho a seguir.

(5) Aqui, na escola, o primeiro passo foi ressignificar o papel de professor e o de aluno, como se
dão essas relações. Não, nem é o professor que o é centro do conhecimento, nem é o aluno. É na
relação entre eles que se coloca a possibilidade de novos conhecimentos e com mais significado,
ou de conhecimentos onde cada um teu o seu lugar. Há uma hierarquia sim. [...] O professor tem
que ser, contudo, uma autoridade para sujeitos ativos. Então, esse lugar também passou a ter
outro valor; o professor começou a ter que trabalhar isso com ele mesmo: “ah, é verdade eu
tenho aqui uma importância”. Então, o que é importante é a minha mediação, além da minha
pessoa. Na mediação que eu faço, eu sou o interlocutor dessas mediações todas; eu sou junto com
essas pessoas que comigo aqui estão – no caso, os alunos. (Coordenadora Geral da EA2,
entrevista concedida em setembro de 2009).

Os pontos destacados pela Coordenadora da EA2 sugerem, igualmente, que houve,


por parte da escola, uma preocupação em ressignificar não só a fundamentação em Ferreiro,
mas também outros aspectos relacionados à prática educativa. Embora essa ressignificação
fique bastante clara no discurso dos gestores, vale referirmos aqui o que dizem as
alfabetizadoras das escolas que participaram do estudo. Em (6), parece-nos evidente a
preocupação inicial em categorizar os alunos segundo os estágios implicacionais de
apropriação da escrita propostos por Ferreiro e Teberosky (2007 [1984]). Paralelamente,
observamos a preocupação com a dimensão componencial da escrita, da qual trata Scliar-
Cabral (2003a, 2003b); mais uma vez, as interpenetrações teóricas na ressignificação da
prática alfabetizadora à luz de Ferreiro. Ao final da fala, clara alusão à figura do mediador
mais experiente, o que, de novo, traz o pensamento vigotskiano (2003 [1984]) para a
discussão.

(6) Quando os alunos chegam no começo do ano, tem as mais variadas hipóteses de alfabetização.
Tem alunos num processo bem inicial, que ainda estão num processo pré-silábico, silábico; outros
já chegam alfabéticos, com fluência. Então, eu agrupo as crianças de acordo com o nível de cada
um, para estar podendo fazer cada um se desenvolver dentro do seu nível, trabalhando sempre
com o contexto e, a partir disso, ir particularizando: trabalhando com frases, com palavras, com
letras, de acordo com o desenvolvimento de cada um. [...] Às vezes [...] agrupo alunos que já têm
um conhecimento maior com aqueles que estão no começo para haver a troca, um ensinar o
outro; enfim, para ter o questionamento e, para aquele que saber mais, poder estar respondendo
para o que sabe menos. São dessas duas formas que eu trabalho: agrupando por iguais e por
11

diferentes também, para haver a troca. (AM – Alfabetizadora da EA1, entrevista concedida em
agosto de 2009).

Na fala (7), essas interpenetrações teóricas ficam muito evidentes:

(7) Olha, eu me pauto numa proposta construtivista; socioconstrutivista, na verdade. E a didática,


a organização do trabalho, tem muito a ver com o texto. Do que ele parte desde o primeiro texto
que a gente considera que é o nome até os textos diferentes, como narrativos, poéticos. E, a partir
daí, nunca de forma descontextualizada, sempre procurando localizar a criança na história, no
que a gente está trabalhando. [...] A alfabetização, em nosso entendimento, é um processo, que
começa na infância, nos primeiros anos, quando a criança aprende a lidar com o mundo que a
cerca: o mundo escrito e o mundo falado. [...] Como é um processo, quando chega no ano em que
eu trabalho com eles, a gente parte do fato de que a criança já entendeu que, para se comunicar,
a gente escreve utilizando as letras, que dentro dessa escrita existem algumas regras; que, para a
gente ser entendido, é preciso que a gente escreva de uma forma que o outro entenda o que a
gente quer comunicar. A gente começa a sistematizar esse processo: escrever observando a norma
convencional e ajudando também a criança a entender qual é a função da escrita na sociedade,
que ela não é uma coisa só para mim; ninguém escreve só para mim, porque, depois que eu
escrevi, ela acaba se tornando pública: vai para o pai, para o professor, para o colega e objeto de
estudo para a própria criança. (LA – Alfabetizadora da EA2, entrevista concedida em setembro
de 2009).

Quanto aos postulados, as alfabetizadoras revelam, mais uma vez, tais


interpenetrações, como se dá em (8):

(8) No próprio construtivismo; os meus estudos, por exemplo, e aqui da escola, a gente busca
suporte em Piaget, no sociointeracionismo de Vigotski, na Emilia Ferreiro. [...] a construção que
ela fez é muito importante; eu acho que o estudo que ela fez dá uma orientação bastante
importante no sentido de entender como as crianças caminham nessa construção. E outras
leituras complementares também de autores afins, ou construtivistas, ou mais interacionistas, mas
são pessoas que escrevem dentro dessa área. (LA – Alfabetizadora da EA2, entrevista concedida
em setembro de 2009).
Em (9) a preocupação com o domínio do código alfabético nos parece claramente
presente.

(9) Partindo do pressuposto de que a gente começa a sistematização no segundo ano, que a gente
começa a ensinar as crianças a escreverem de acordo com a norma convencional.[...]. Ela exige
muito esforço da própria criança. A leitura e a escrita, ou seja, o processo de alfabetização exige
muito esforço da criança. Então, assim, precisa ter um gosto. Muito embora eles resistam e a
gente precise de um tempo maior para estar organizando esse aprendizado, a criança precisa
gostar. (LA – Alfabetizadora da EA2, entrevista concedida em setembro de 2009).

Além de terem destacado o papel da contextualização e de darem sentido ao ensino


da língua escrita, tecem comentários sobre a importância do processo de alfabetização e o que
não pode deixar de ser abordado. Em (10), fica clara a ancoragem no pensamento de Ferreiro
– noção de erro como parte do processo e foco nos estágios implicacionais de apropriação da
escrita (FERREIRO; TEBEROSKY, 2007 [1984]). A fala nos revela, no entanto,
ressignificação desses postulados quando mostra a preocupação com o domínio do sistema
alfabético.
12

(10) [...] na alfabetização, o cuidado é que todos possam estar crescendo dentro da sala de aula e
meu objetivo é que lá na metade do ano que os alunos já possam estar numa hipótese alfabética,
se comunicando com a escrita, mas sem a preocupação de corrigir erros ortográficos. O que
importa é a fluência, a construção das ideias, a criatividade e de estar podendo colocar tudo isso
no papel – cada vez mais estruturando para eles [...]. Assim, trabalho pelo contexto; a partir de
um texto que a gente esteja trabalhando, do qual retiro frases e questiono: o conceito de frase, o
que é uma palavra, o que são as letras. Então, de que forma a gente junta as letras para estar
construindo aquela palavra. Tem o alfabeto na sala. Eles têm aquelas letras móveis – que a gente
chama – que eles vão montando as palavras quando é necessário. É construção em cima do
pensamento deles. [...]. (AM – Alfabetizadora da EA1, entrevista concedida em agosto de 2009).

Já a alfabetizadora da EA2 registra tanto a preocupação com a importância das


relações intersubjetivas para a aprendizagem, o que vem, sobretudo, de Vigotski (2003
[1984]), quanto com o domínio do código, tal qual Scliar-Cabral (2003a, 2003b). Pontua que,

(11) [...] fazendo um recorte, a produção que a gente trabalha mais de forma coletiva no início,
em duplas ou trios, para que tenha mais sentido/significado, que outro possa complementar a
minha ideia; a própria escrita não pode deixar de abordada. E, dentro dela, questões referentes à
língua, como se escreve um texto, para que se escreve um texto; as regras.[...] Com relação às
relações fonêmico-grafêmicas ou grafêmico-fonêmicas e ao próprio sistema alfabético, trabalho
de forma bastante variada no sentido de que a leitura e o texto... é levantando assim...hoje, por
exemplo, eu fiz uma atividade que é assim: a gente estava trabalhando questões de ortografia, o
uso do r e do rr; então, fizemos algumas atividades que envolviam o uso dessas duas letras. [...]
Daí, eles foram dizendo: ah, o “r”, encontramos no começo de palavra. Daí, a gente foi listando
assim: palavras que tinham “r” no começo, palavras que tinham o “r” ou “rr” no meio; qual era
a diferença, para que eles conseguissem entender que como o som...esse fonema tinha a ver com a
posição do “r” na palavra. Isso já é um chão para que, das próximas vezes em que eles forem
escrever “rosa” ou palavras com um ou dois erres, como carro ou caro, eles já têm um suporte
para pensar onde é que esse erre está, né? (LA – Alfabetizadora da EA2, entrevista concedida em
setembro de 2009).

Nesses discursos, fica evidente a preocupação dessas professoras com um trabalho


mais efetivo em relação ao sistema alfabético. Além disso, pontuam a importância do papel
dos colegas de classe nesse processo de interação e comentam que o papel do professor no ato
de alfabetizar é relevante por ser ele o mediador nesse processo de ensino-aprendizagem –
eixos do pensamento vigotskiano (2003 [1984]). A menção aos conceitos de zona de
desenvolvimento real e zona de desenvolvimento imediato está subjacente à fala (12).
Paralelamente a esses focos, estão os estágios implicacionais de Ferreiro (FERREIRO;
TEBEROSKY, 2007 [1984]), como vemos a seguir:

(12) Acho que é fundamental o papel do professor, pois tem que estar sempre atento ao que cada
aluno está produzindo, o que já dá para pontuar num aluno e o que ainda não dá. Então, por
exemplo, na sala em que eu tenho os alunos alfabéticos, que já começam a questionar: „ah, mas
cachorro é com “x” ou com “ch”? É com um erre ou dois erres?‟. Então, para esses alunos, acho
que é fundamental que eu enquanto professora estar dando subsídios para ele avançar nesse
processo de escrita já com a preocupação ortográfica. Já, para quem está no processo inicial, daí
leio a palavra junto e pergunto o que está faltando; olhe, essa palavra tem seis letras, mas você
colocou só quatro. Então, vamos ver o que está faltando. O professor é o mediador, tem que estar
sempre possibilitando o avanço para as crianças. Chegou ali, então vamos mais adiante: agora,
13

vamos fazer mais isso, mais aquilo. Tem que instigar sempre para não deixar estacionado. Já
pensou se tenho um alfabético e deixo de lado, chega no final do ano e muda pouco, né! Tem que
ter intervenção direta do professor. (AM – Alfabetizadora da EA1, entrevista concedida em agosto
de 2009).

Percebemos, no decorrer das entrevistas, que essas alfabetizadoras demonstravam,


em suas falas, fundamentos no pensamento de Emília Ferreiro (FERREIRO; TEBEROSKY,
2007 [1984]), sobretudo no que diz respeito aos estágios implicacionais, ao mesmo tempo em
que revelavam claramente interpenetrações teóricas. Entendemos que essas professoras
assumem uma orientação construtivista, mas o fazem com a ressalva de incidir sobre essa
orientação, elaborando uma base bastante particular e claramente permeada de outras
influências teóricas. Em vista disso, podemos afirmar que se evidencia, no discurso das
educadoras da EA1 e da EA2, que a ação escolar é ancorada em Ferreiro no que diz respeito à
consideração dos estágios implicacionais de apropriação da escrita, do conceito de erro
(FERREIRO; TEBEROSKY, 2007 [1984]) e da preocupação com o foco piagetiano aprender
a aprender (DUARTE, 2004). Trata-se, porém, de um olhar ressignificado, que inclui uma
preocupação com a dimensão social da escrita e com o ensino sistemático do código
alfabético.

6 A APROPRIAÇÃO DO CÓDIGO ALFABÉTICO POR PARTE DAS CRIANÇAS


PARTICIPANTES DA PESQUISA
Esta seção procura responder ao primeiro desdobramento da questão-problema que
moveu este estudo e que já foi enunciada na introdução: Como se caracteriza a apropriação
dos princípios do sistema alfabético do português do Brasil em se tratando de alunos
alfabetizados com base nos postulados de Emília Ferreiro? Reiteramos que o objeto de
pesquisa, aqui, é a apropriação do sistema alfabético e não a construção de sentidos na
textualização com vistas à interação social. Isso não significa que entendamos alfabetização
como sinônimo de domínio do sistema alfabético. Concebemos, evidentemente, esse domínio
como essencial ao processo, mas não a razão dele e nem o seu foco asséptico.
Em busca de respostas a essa questão-problema, aplicamos a 24 alfabetizandos, doze
de cada uma das duas escolas participantes do estudo – EA1 e EA2 –, dois testes de
apropriação do sistema alfabético: um teste de decodificação e um teste de codificação, os
quais receberam tratamento quantitativo. Os alfabetizandos foram pareados quanto à idade e
ao gênero antropológico e a não existência de queixas de aprendizagem de nenhum tipo.
Ambos os testes foram aplicados no mês de agosto, em 2009.
14

6.1 Os testes decodificação e codificação


O teste de decodificação correspondeu à solicitação aos alunos que lessem em
voz alta a fábula “A formiga e a pomba”, de Esopo, não tendo havido nenhum preparo
anterior – o texto foi adaptado para que tivesse todos os pares focados e foi grafado apenas em
letras maiúsculas. Os pares enfocados no texto são os seguintes: 1.//, 2.//; 3.//, 4.//;
5.//, 6.//; 7.//, 8.//; 9.//, 10.//; 11.//, 12.//; 13.//, 14.//; 15.//, 16.//;
17.//, 18.//; 19.//, 20.//; 21.//; 22.//; 23.//, 24.//. A decodificação foi gravada no
software Praat, para posterior análise da elocução oral das correspondências grafêmico-
fonêmicas presentes no texto, de modo a não haver dúvidas quanto aos fonemas articulados.
Quanto ao teste de codificação, produzido com base em Scliar-Cabral (2003b), este
foi constituído pelo ditado de 24 palavras. Enfocaram-se os seguintes pares: 1.pala, 2.bala /
3.fio, 4.viu / 5.data, 6.dada / 7.caça, 8.casa / 9.cola, 10.gota / 11.queixo, 12.queijo / 13.ralo,
14.raro / 15.domo, 16.dono / 17.molha, 18.mola / 19.minha, 20.milha / 21.caro, 22.carro /
23.pinho, 24.pino. O objetivo foi analisar o domínio das correspondências fonêmico-
grafêmicas no conjunto de fonemas que compõe o teste.

6.2 O desempenho dos alunos no teste de decodificação

Os pares enfocados nos vocábulos do texto lido, no teste de decodificação, para aferir
a performance nas correspondências grafêmico-fonêmicas por parte dos alunos das duas
escolas são os seguintes: 1.//, 2.//; 3.//, 4.//; 5.//, 6.//; 7.//, 8.//; 9.//, 10.//;
11.//, 12.//; 13.//, 14.//; 15.//, 16.//; 17.//, 18.//; 19.//, 20.//; 21.//; 22.//;
23.//, 24.//. Tais pares permitiram que observássemos a destreza com que as crianças
alfabetizandas lidam com a conversão de grafemas em fonemas. O foco não foi, portanto, a
construção de sentidos do texto, mas a decodificação. Além disso, por meio do teste aplicado,
foi possível analisarmos o domínio do sistema alfabético por parte dessas crianças, levando
em conta sua condição de alfabetizandos. Vale lembrarmos que o texto escolhido para o teste
de decodificação foi a fábula “A formiga e a pomba”. Tratava-se, portanto, de um texto
inédito ao qual as crianças ainda não tinham tido acesso. Não houve momento de leitura
silenciosa, ou seja, a criança recebia o texto e, imediatamente, iniciava a leitura oral. De modo
geral, o percentual de acertos foi de 100%.
15

Observação: Os pares enfocados são os seguintes: 1.//, 2.//; 3.//, 4.//; 5.//, 6.//; 7.//, 8.//;
9.//, 10.//; 11.//, 12.//; 13.//, 14.//; 15.//, 16.//; 17.//, 18.//; 19.//, 20.//; 21.//;
22.//; 23.//, 24.//.

Gráfico 1 – Desempenho dos alfabetizandos no teste de leitura


Fonte: Produzido com base nos dados obtidos a partir do teste de decodificação.

Houve, contudo, casos em que computamos 92% de acertos: na escola EA1, esse
percentual ocorreu nos itens 6, 7, 9, 11, 12, 17, 19, 22 e 23; na escola EA2, as ocorrências
foram nos itens 7, 12, 17, 22 e 23. Tais ocorrências se devem à não leitura do item enfocado,
ou seja, a queda do desempenho não ocorreu pelo fato de o aluno não conseguir converter o
grafema em fonema, mas sim por, em um momento de desatenção, perder-se no trecho em
que estava e continuar de um ponto em diante. Veja-se Gráfico 1.
De todo modo, podemos afirmar que os participantes são proficientes em
decodificação. Apresentam, portanto, um bom domínio do código, pois lhes foram dados
subsídios no sentido de conhecerem e de dominarem os “[...] princípios que sustentam o
sistema de leitura e de escrita da língua portuguesa do Brasil” (SCLIAR-CABRAL, 2003b,
p.34), no que respeita ao domínio do código alfabético.

6.3 O desempenho dos alunos no teste de codificação


O teste de codificação implicou o ditado do conjunto de palavras, contemplando os
seguintes pares: 1.pala, 2.bala / 3.fio, 4.viu / 5.data, 6.dada / 7.caça, 8.casa / 9.cola, 10.gota /
11.queixo, 12.queijo / 13.ralo, 14.raro / 15.domo, 16.dono / 17.molha, 18.mola / 19.minha,
20.milha / 21.caro, 22.carro / 23.pinho, 24.pino. Constatamos, a partir da análise dos dados, as
seguintes ocorrências: a) na escola EA1, houve 100% de acerto nos itens 1, 2, 3, 6, 8, 9,10,
14,15, 16,18, 19, 20, 22, 23 e 24; 33%, no item 4; 92%, nos itens 5, 12 e 21; 50%, no 7; 8%,
no 11; 89%, no 14; e 90%, no 17; b) na EA2, tem-se 83% nos itens 3 e 21; 42%, no 4; 78%,
16

no 7; 92, no 8, 14 e 20; 33%, no 11; e, nos demais, 100%, como pode ser observado no
Gráfico 2.
Vale clarificarmos, aqui, que, na grafia de „queicho‟ em vez de „queixo‟, embora
tenhamos tratado como erro em razão de haver uma questão ortográfica implicada, temos um
contexto em que o valor de conversão do fonema ao grafema é não previsível por ocorrer em
posição intervocálica, com postula Scliar-Cabral (2003a, 2003b), uma vez que ambos os
grafemas podem representar o fonema // dependendo do contexto fonético. Assim, se essa
implicação ortográfica não tivesse sido levada em conta no momento de análise, o resultado
final seria o cômputo de 100% de acerto. Podemos dizer que, embora haja a troca ortográfica,
os participantes parecem ter internalizado que o “ch” é uma das possíveis representações
grafêmicas do fonema //. Salientamos, ainda, que essas relações dependentes de contexto, na
escrita, são mais complexas, especialmente para os alfabetizandos.

Observação: Os pares enfocados são os seguintes: 1.pala, 2.bala / 3.fio, 4.viu / 5.data, 6.dada / 7.caça,
8.casa / 9.cola, 10.gota / 11.queixo, 12.queijo / 13.ralo, 14.raro / 15.domo, 16.dono / 17.molha,
18.mola / 19.minha, 20.milha / 21.caro, 22.carro / 23.pinho, 24.pino.

Gráfico 2 – Desempenho dos alfabetizandos no teste de codificação


Fonte: Produzido com base nos dados obtidos a partir do teste de produção escrita.

No item 7, a palavra ditada foi „caça‟, mas alguns alunos grafaram „cassa‟. Nesse
caso, é preciso levar em conta que, em caça/cassa, homônimos na língua, temos a
possibilidade de o fonema // ser representado pelos grafemas “ç” ou “ss". Trata-se, pois, de
uma ocorrência em contexto competitivo, segundo Scliar-Cabral (2003a, 2003b), em que o
17

fonema //, quando ocorre em início de sílaba interna entre vogal ou semivogal, pode ser
representado, antes de vogal [+post], pelos grafemas “ss”, “ç” ou “sç”. Aqui há, novamente,
outra questão ortográfica implicada. Houve, ainda, casos em que, por hipercorreção, os alunos
usaram o grafema “rr" no lugar do grafema “r”, ou seja, ocorreu uma troca de grafemas. É
necessário observarmos que a ocorrência de hipercorreção em „rraro‟ demonstra que a criança
não está sabendo relacionar o grafema ao fonema neste contexto. Em „góla‟, temos o uso do
diacrítico que não é grafema, o que sugere hipercorreção e nos permite inferir a preocupação
da criança em grafar corretamente a palavra.
No caso da ocorrência de „quejo‟, é possível que a criança tenha repetido para si
mesma o vocábulo „queijo‟ que foi ditado e escreveu da forma como, na verdade, pronuncia a
palavra na oralidade. Isso não dá, portanto, para ser considerado um erro porque, neste caso,
há a omissão de um grafema se ela disser „queijo‟, mas, se ela articular „quejo‟, não temos
implicada a omissão, uma vez que a maioria dos falantes tende a monotongar essa palavra, o
que se constitui um caso de variável sociolinguística. Outro aspecto a considerarmos como
questão ortográfica é a grafia „vio‟ em vez de „viu‟, que também é de natureza ortográfica,
especialmente porque o grafema final, no PB, é diferente, mas o fonema é o mesmo – mais
uma vez a possibilidade de hipercorreção. Constatamos que se evidencia, portanto, o que foi
comentado, nas entrevistas, pelas alfabetizadoras: as crianças já dominam o código, mas ainda
apresentam alguns problemas ortográficos, esperados nessa fase da escolarização.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os participantes da pesquisa tiveram um desempenho plenamente satisfatório nos
testes de apropriação do código alfabético no que respeita à decodificação e à codificação.
Entendemos que, no caso específico das classes participantes desta pesquisa, a boa
performance nos testes parece ser fruto – entre outros fatores – de um processo que concilia
elaboração didática a partir das ideias de Emília Ferreiro, com ressignificação em outras
vertentes teóricas – sobretudo as concepções vigotskianas (2003 [1984]) e as teorizações
sobre o sistema alfabético (SCLIAR-CABRAL, 2003a). Percebemos, nessas classes, a
ressignificação do construtivismo por parte das escolas à luz das teorias mencionadas. As
concepções de Ferreiro revelam-se, todavia, presentes nesses espaços, principalmente na
preocupação com os estágios implicacionais de desenvolvimento da escrita, na concepção de
erro como parte do processo de aprendizagem, e na focalização da perspectiva piagetiana do
aprender a aprender.
18

É bastante provável que esses resultados que obtivemos, os quais se caracterizam


pela excelência tão expressiva em se tratando do domínio da decodificação e da codificação,
tenham profundas relações com o elevado letramento escolar das famílias – questionário
socioeconômico e de escolarização mostrou que a maioria dos pais tem curso superior –, com
o tipo de ambientação, de inserção no universo da escrita, com que essas crianças convivem.
Constatamos, por exemplo, que as práticas e os eventos de letramento3 nas famílias dos
alunos participantes da pesquisa são, como postula Kleiman (2008), altamente valorizados.
Isso abre, portanto, perspectivas para outra pesquisa, pois o objetivo aqui foi relacionar
orientação construtivista e domínio do código alfabético. Notemos que, dependendo da
ambientação de letramento escolar e familiar em que a criança se inserir, a escola assumirá
não um papel essencial, mas um papel complementar na atividade da família em se tratando
da educação para as práticas de leitura e de escrita. Esse não parece ser, contudo, o caso
dessas escolas porque, embora tais famílias seguramente assumam um papel determinante na
educação para essas práticas, as escolas demonstram uma ação pedagógica muito
consequente, tanto que suas ações estão voltadas para o sucesso na educação para a escrita,
como uso da biblioteca, hora do conto, projetos, entre outras estratégias e espaços de ensino.
Outro aspecto relevante a destacarmos é a inserção das novas tecnologias no
cotidiano das crianças que participaram do estudo, uma vez que os teclados dos dispositivos
eletrônicos4 colocam tais crianças em contato muito precoce com o caráter componencial da
língua escrita. Assim, elas acabam se apropriando de informações sobre a escrita, a partir do
próprio interesse delas, graças à ludicidade envolvida no manuseio da tecnologia, bastante
naturalizado nesses ambientes. Em vista disso, se querem entrar e sair do computador, elas
têm uma forma de entrar e extrair dados, o que implica o uso de um teclado alfabético. Isso
vai, por certo, incidir diretamente no processo de alfabetização, pois tais crianças podem
apresentar uma maior facilidade em lidar com o código e, consequentemente, apropriar-se, no
cotidiano extraescolar, das regras do sistema alfabético do português, o que vai incidir no
desempenho delas quanto ao uso da língua escrita. Importa frisarmos que reconhecer as letras
muito precocemente parece ser uma característica dessas gerações que mexem com
dispositivos eletrônicos desde cedo.

3
Os conceitos de práticas e eventos de letramento não foram especificados neste estudo, mas reconhecemos que
o tratamento desses temas é cuidadosamente discutido na literatura da área.
4
Clare Wood e colaboradores, da Coventry University (UK), têm realizado estudos que investigam a relação
entre tecnologia e aprendizagem da leitura e da escrita. Vale conferir, por exemplo, o seguinte artigo: WOOD,
Clare; PLESTER, Bev; BOWYER, Samantha. Liter8 Lrnrs: Is Txting Valuable or Vandalism? British Academy
Review, issue 14, p. 52-54, November 2009.
19

Este estudo aponta, assim, para um aspecto relevante em termos de alfabetização:


não parece ser possível generalizarmos o discurso que circula empiricamente de que o
construtivismo de Ferreiro é responsável, por si só, por problemas no domínio do código
alfabético por parte de crianças alfabetizadas sob esse ideário. Entendemos possível que, em
muitos espaços educacionais, tal qual constatamos nessas classes, as ideias de Ferreiro não
são mais tomadas naquele construtivismo primevo – e possivelmente equivocado sob vários
aspectos –, como o demonstram as escolas participantes da pesquisa que se autodenominam
construtivistas. É possível que, em muitos desses espaços, possa ter havido tal ressignificação
ao longo dos anos. Não podemos fazer, por isso, uma associação biunívoca entre
construtivismo e problemas na apropriação do sistema alfabético da língua; pelo menos, não
nos espaços nos quais esta pesquisa se deu.

8 REFERÊNCIAS

BATISTA, Antonio Augusto Gomes et al. Capacidades lingüísticas: alfabetização e


linguagem. In: BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Pró-
letramento: alfabetização e linguagem. Brasília: MEC, 2007. (Fascículo 1).

BOERSMA, Paul; WEENINK, David. Praat. Disponível em: <http://www.fon.hum.


uva.nl/praat/>. Acesso em: 04 abr. 2010.

DUARTE, Newton. Vigotski e o aprender a aprender: crítica às apropriações neoliberais e


pós-modernas da teoria vigotskiana. 3. ed. São Paulo: Autores Associados, 2004.

FERREIRO, Emilia; TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da língua escrita. 1. reimpr. Porto


Alegre: Artemed, 2007[1984].

GONTIJO, Cláudia Maria Mendes. O processo de alfabetização: novas contribuições. 1. ed.


São Paulo: Martins Fontes, 2002.

KLEIMAN, Angela (Org.). O significado do letramento: uma nova perspectiva sobre a


prática social da escrita. 10. impr. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2008.

MARCONI, Marina de Andrade; LAKATOS, Eva Maria. Fundamentos da metodologia


científica. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2007.

MORAIS, José. A arte de ler. São Paulo: EdUNESP, 1996.

PATTON, Michael Quinn. Qualitative evaluation and research methods. 3. ed. London:
Sage Publications, 2002.

PIAGET, Jean. A epistemologia genética. São Paulo: Martins Fontes, 2007[1970].


20

SCLIAR-CABRAL, Leonor. Capacidades metafonológicas e testes de avaliação: implicações


sobre o ensino do Português. Perspectiva, Florianópolis, v.20, n.01, p.139-156, jan./jun.2002.

______. Princípios do sistema alfabético do português do Brasil. São Paulo: Contexto,


2003a.

______. Guia prático de alfabetização – baseado em princípios do sistema alfabético do


português do Brasil. São Paulo: Contexto, 2003b.

VIGOTSKI, Lev Semenovich. A formação social da mente: o desenvolvimento dos


processos psicológicos superiores. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003[1984].
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

A RELEVÂNCIA DA ABORDAGEM LEXICAL


PARA O ENSINO DA LÍNGUA INGLESA

Rosana Budny1 (UFSC)


Adja Balbino de Amorim Barbieri Durão2 (UFSC)

RESUMO

Nesta comunicação se apresentarão idéias de especialistas que defendem o que vem sendo
chamado de abordagem lexical, buscando oferecer alternativas possíveis para a aprendizagem
de léxico por parte dos aprendizes de línguas estrangeiras, especialmente de língua inglesa.
Investigam-se propostas recentes a fim de considerar a viabilidade de sua aplicação no ensino.
Os defensores da abordagem lexical tais como Lewis (1993), Hill (2000), Coady e Huckin
(1997), entre outros, vêem no ensino do léxico a saída para levar os alunos ao aprendizado da
língua inglesa de um modo mais centrado em sua ocorrência diária. Segundo a literatura
consultada, a aprendizagem de vocabulário é fundamental para que se chegue efetivamente a
aprender uma língua, uma vez que é através da expansão do vocabulário que o aprendiz
consegue ultrapassar o nível de proficiência intermediária, avançando para a competência
almejada.

Palavras-chave:
Vocabulário. Abordagem lexical. Ensino e aprendizagem.

ABSTRACT

In this paper it will be presented ideas of specialists who defend what has been called lexical
approach trying to present possible alternatives for the lexical learning of the foreign language
students, mainly of English language. Recent proposals are investigated in order to appreciate
if its application is viable for the teaching. The lexical approach advocators, experts such as
Lewis (1993), Hill (2000), Coady and Huckin (1997), and others, see on the teaching of Lexis
the solution to take the students to the learning of English language in a more focused way in
its daily occurrence. According to the reviewed literature, the vocabulary learning is
fundamental for one to effectively come to learn one language, for it is through its expansion
that the learner is able to overcome the intermediate plateau proficiency advancing towards
the aimed competence.

Keywords:
Vocabulary. Lexical approach. Learning and teaching.

1
Estudante de Doutorado do Programa de pós-graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federal de
Santa Catarina.
2
Professora da Universidade Federal de Santa Catarina / Programa de Pós-graduação em Linguística / Programa
de Pós-graduação em Estudos da Tradução / Bolsista de Produtividade do CNPq.
2

1 INTRODUÇAO
A importância deste tema deve-se, em primeiro lugar, à relevância dada ao
vocabulário por todos os que se interessam pelos processos de ensino e aprendizagem de
línguas estrangeiras e, em segundo lugar, à necessidade de apresentar alternativas para os
novos desafios de ensiná-las de modo a torná-la mais coerente com as necessidades práticas
dos aprendizes. É indiscutível a importância do inglês em todo o mundo assim como sua
relevância no mundo acadêmico e de negócios requerendo pessoas preparadas para as
relações em todos os setores que o inglês se faça necessário.
Neste trabalho apresentamos idéias de alguns especialistas da área, tentando oferecer
alternativas mais coerentes para aprendizes que serão usuários da língua, acreditando que o
ensino de vocabulário tem sido, de certa forma, negligenciado na prática docente levada a
cabo ao longo de muitos anos. Investigamos propostas recentes no sentido de conhecer
melhor o que está sendo desenvolvido considerando sua viabilidade para o ensino.
O domínio do léxico da língua é uma das necessidades inquestionáveis do campo de
ensino de línguas. Esse domínio pode garantir uma parcela de sucesso nessa aprendizagem.
Entre as línguas estrangeiras dominar o inglês é um dos requisitos básicos para quem quer se
aventurar na busca de emprego entre outras questões. Contudo, o nível de inglês requisitado
não é aquele que os aprendizes normalmente têm ou aprendem nos bancos escolares.
O número de pesquisas recentes sobre o vocabulário demonstra o grande interesse dos
especialistas sobre o tema. O progresso alcançado se deve aos avanços tecnológicos que põem
a lingüística de corpus como ferramenta indispensável para o estudo da lingüística aplicada.
Suas implicações no ensino de vocabulário da língua inglesa são notáveis.
A abordagem lexical surge como uma proposta inovadora no sentido de aproximar o
aprendiz da competência do falante nativo3. Seus defensores, especialistas como Lewis
(1993), Hill (2000), Coady & Huckin (1997) entre outros, vêem no ensino do léxico a saída
para levar os alunos à aprendizagem da língua inglesa de forma mais centrada em sua
verdadeira utilidade para as necessidades reais de comunicação.
Um desafio é como preparar os professores para ministrar aulas a partir de um enfoque
lexical. O conhecimento do vocabulário básico é determinante para o êxito do aprendiz. Por

3
Neste trabalho entendido como o falante que tem o inglês como sua língua materna ou adquirida. Em alguns
momentos do texto estaremos alternando com a expressão, falante da língua materna ou L1.
3

isso, Coady (1997) afirma que exigir do aprendiz capacidade de compreensão e competência,
quando ele ainda não tem domínio do vocabulário é um paradoxo. A aprendizagem do
vocabulário básico é fundamental para o domínio da língua; é por meio da expansão do
vocabulário que o aprendiz avança do nível de proficiência intermediária para um nível de
competência que lhe permite, realmente, comunicar-se.
O aprimoramento da competência colocacional, ou seja, habilidade de usar as palavras
em combinações corretas e autênticas, a exposição continuada do aprendiz a construções
naturais da língua-alvo, parecem sinalizar positivamente para a absorção e utilização mais
autêntica da língua.

2 APRENDIZAGEM DO VOCABULÁRIO É UM PROCESSO ACIDENTAL?


Pesquisas recentes dão conta de que o conhecimento de vocabulário do falante em
sua língua materna (L1) reúne em torno de 20.000 palavras. Esse dado evidencia a enorme
carga lexical que supostamente deveria ser dominada também por aprendizes de segunda
língua (L2). Pouca compreensão de texto é possível, seja na língua materna (L1) ou na língua
estrangeira (LE) sem que se entenda o vocabulário. A compreensão da leitura está muito mais
fortemente relacionada ao conhecimento do vocabulário do que com outros componentes da
leitura. A literatura está repleta de evidências que a compreensão de leitura está relacionada
ao aumento do conhecimento do vocabulário, por isso é imprescindível conhecer melhor o
processo de aprendizagem de vocabulário à luz das ciências da linguagem.
Tradicionalmente, o ensino de vocabulário se baseava quase exclusivamente na
apresentação de novos itens conforme eles iam aparecendo nos textos. Atualmente vários
especialistas da área recomendam que o ensino do vocabulário faça parte do currículo e seja
ensinado de forma planejada e regular. De fato, alguns autores, como Lewis (1993) Coady
(1997), Hill (1997), Woolard (2000), estão entre os educadores que defendem que o
vocabulário deve ser o centro do ensino das línguas.
Richards (1976, apud Coady, 1997) foi um dos primeiros intelectuais a destacar o
fato de que o vocabulário é tipicamente negligenciado na instrução de LE. Ele atribui este fato
às tendências das teorias lingüísticas estruturalistas e gerativistas que eram orientadas para a
pronúncia e a gramática. Levenston (1979, apud Coady, 1997) também criticou a lingüística
aplicada pela negligência para com o vocabulário em favor da gramática.
Zimmerman (1997) também observou que o ensino e aprendizagem de vocabulário
têm sido subestimados, passando pela análise da história das abordagens de ensino de línguas,
4

concluindo que todos dão pouca atenção ao vocabulário. Somente as propostas mais recentes
entenderam o papel do vocabulário, tal como nos trabalhos de autores como Nattinger e
DeCarrico (1992) e Lewis (1993; 2000).
Embora o vocabulário tenha sido negligenciado por bastante tempo, nos últimos anos
ele tem se beneficiado com os avanços nos estudos lingüísticos sobre o léxico, das pesquisas
psicolingüísticas sobre o léxico mental, das tendências comunicativistas do ensino de línguas,
que trouxeram o aprendiz para o foco. O que talvez esteja faltando é ter um conhecimento
melhor estruturado sobre o que acontece quando se enfatiza o vocabulário. (Carter e Mc
Carthy, 1988 apud Coady, 1997, p.273).
Coady (1997) lembra ainda que há uma tendência de o professor ensinar da mesma
maneira como foi ensinado. De fato, a atitude do professor em relação ao ensino do
vocabulário é o resultado de suas próprias experiências de aprendizagem, de seus hábitos de
ler ou memorizar palavras, de sua forma de comunicar seus conhecimentos.
Hunt e Beglar (2003) apresentam uma proposta de ensino de vocabulário que
combina três abordagens de aprendizagem e instrução modificadas a partir de Coady (1997),
Hulstijn, Hollander e Greidanus (1996). São elas a aprendizagem acidental, instrução explícita
e desenvolvimento da independência do aprendiz. Há diferenças entre a aprendizagem
acidental e a aprendizagem intencional.
A aprendizagem acidental de vocabulário requer que o professor propicie
oportunidades de leitura e compreensão oral extensiva. A instrução explícita envolve a
necessidade de diagnóstico das palavras que os aprendizes precisam saber, com a
apresentação dessas palavras pela primeira vez e a elaboração desse conhecimento. E o
desenvolvimento da independência do aprendiz envolve a utilização desse vocabulário em
contexto e o treinamento no uso de dicionários. Durão (2010, pg. 26) ressalta a
instrumentalidade histórica dos dicionários, pois “cada vez mais, vêm se destacando seu
emprego como ferramenta de aprendizagem lingüística.”
Hunt e Beglar (op. cit.) explicam que apesar desses procedimentos serem importantes
para a aprendizagem do vocabulário, o nível de proficiência do aprendiz e a situação de
aprendizagem devem ser considerados para determinar o tipo de aprendizagem adequada em
cada momento do processo. Aprendizes iniciantes ou intermediários serão mais beneficiados
se receberem instrução explícita. Aprendizes de nível avançado podem expandir seus
conhecimentos através da leitura e compreensão oral extensiva. O uso do dicionário deve ser
feito desde cedo, pois seus benefícios são imediatos.
5

2.1 Gramática e Vocabulário


Lewis (1993; 2000) rejeita a dicotomia comumente aceita entre gramática e
vocabulário. Para ele o léxico é a base da linguagem, não a gramática, por isso não pode
aceitar essa dicotomia. Ele argumenta que um dos princípios centrais da organização de
qualquer currículo deve ser o léxico, pois é mediante a expansão do conhecimento das
unidades lexicais com sua gramática implícita que realmente se avança na aprendizagem de
qualquer língua. Do mesmo modo que Lewis, Hill (2000) afirma que o léxico e não a
gramática é o que deve estar no centro do ensino de línguas.
Lewis (1993, p.8) acha surpreendente que os dois termos - gramática e vocabulário –
estejam entre os mais mal entendidos do ensino de línguas, sendo tema de discussão extensiva
e que tem inibido o real papel do léxico na determinação dos programas. De forma geral, a
gramática é vista como um conjunto de estruturas de frases com compartimentos, os quais são
preenchidos pelas palavras apropriadas. Lewis (1993) considera que esta visão está
equivocada. A base da linguagem é o léxico, no entanto a gramática tem sido entendida como
a base da linguagem e, seu domínio tem sido considerado como pré-requisito para a
comunicação efetiva, embora obviamente a necessidade de saber manipular a gramática seja
inquestionável. Uma abordagem que enfatize o léxico não é revolucionária, mas uma
mudança de foco. Lewis (1993) argumenta que:
- grande parte da gramática que é ensinada é inexata ou errada;
- muitas regras gramaticais são freqüentemente incompreensíveis para os alunos;
- as regras abstratas e a metalinguagem são de difícil compreensão;
- a gramática não é a base da aquisição de linguagem;
A separação entre gramática e vocabulário segundo Lewis (2000), é artificial, pois
todas as palavras podem ser situadas em ambos os termos. Para o autor é necessária a
conscientização de que “vocabulário e gramática interagem em cada nível, em linguagem de
todos os tipos; separá-los viola a natureza da linguagem; também conduz à confusão, erro e
frustração no processo de aprendizagem de L2”. (p.145) Em outras palavras, esta descrição
enfatiza novamente que linguagem primeiramente diz respeito a significado, e que o
significado é transmitido essencialmente mediante o léxico – palavras, colocações e
expressões fixas – em um texto. A gramática é importante, mas desempenha um papel
subordinado, pois vem depois do significado.
6

Na opinião de Lewis (2000), o ensino das estruturas da gramática tradicional não


deve predominar sobre o do vocabulário. Ele cunhou o termo “abordagem lexical” para
propor uma mudança de foco no ensino de línguas.
Na seqüência explicaremos a proposta de Lewis e a questão dos materiais relevantes
no ensino e estudo da L2/LE.

3 ABORDAGEM LEXICAL: UM NOVO PAPEL PARA O LÉXICO


Neste capítulo, passamos então a detalhar primeiramente, a abordagem lexical de
Lewis (1993). Começamos por definir o que se entende por léxico mental. Em seguida,
descrevemos os tipos de unidades lexicais e por último, fazemos um levantamento do papel
dos materiais.
A palavra abordagem é definida por Lewis como
“um conjunto integrado de crenças teóricas e práticas envolvendo ambos, o
programa e o método. Ela envolve princípios que refletem, no caso do ensino da
linguagem, sua própria natureza e a natureza do aprendizado. Se o programa é ”o
quê” no ensino da linguagem, o método é o ”como“, e a abordagem é o “por que”.
A abordagem estabelece os tipos de procedimentos a serem utilizados; estes devem
basear-se em princípios teóricos gerais. O foco da abordagem deve ser a pessoa que está
aprendendo e não a língua que está sendo aprendida.
O ensino de línguas passou por uma revolução a partir dos anos 70, passando a
priorizar atividades reais que levam a uma comunicação menos artificial em sala de sala,
incentivando maior autonomia por parte do aluno. Apesar de reconhecer que a abordagem
comunicativa inegavelmente revolucionou a aprendizagem de línguas, Lewis (1993)
recomenda uma mudança na direção da abordagem lexical.
Na abordagem lexical a gramática da sentença tem menor relevância do que a
gramática da palavra (colocação e cognatos) e gramática textual. Nos últimos anos, estudos de
lingüistas têm focado a linguagem compilada e extraída de amostras de corpora lingüísticos.
Segundo Newby (2004), a abordagem lexical não estabelece uma metodologia baseada em
conjunto de procedimentos, mas tem certas implicações para a prática de sala de aula. Essa
proposta lança um olhar diferenciado para o ensino de inglês como segunda língua/língua
estrangeira. Se até aqui o material foi freqüentemente pautado no ensino de estruturas
gramaticais, orientado por uma tendência estruturalista, assume agora uma proposta mais
focada no ensino do léxico. A abordagem lexical faz uma distinção entre vocabulário –
tradicionalmente entendido como um estoque de palavras individuais com significados fixos –
e léxico que inclui não só as palavras individuais, mas também suas combinações que são
7

estocadas nos léxicos mentais. A linguagem se constitui de blocos (chunks) significativos que
quando combinados, produzem textos coerentes e contínuos. Devido à recorrência dessas
combinações, poucas sentenças usadas pelo “falante nativo” são inteiramente novas.
A abordagem lexical surge com base na Lingüística de Corpus, que teve na tecnologia
do computador seu maior aliado. Ao se fazer o estudo comparativo de frases em textos de
todos os tipos descobriu-se que era possível deslocar palavras que mais freqüentemente
ocorriam com outras chamadas palavras-chave e, portanto que tais combinações eram
previsíveis e passíveis de serem ensinadas aos alunos com suas co-ocorrências. A tarefa mais
importante dos aprendizes da língua nessa abordagem é adquirir um vocabulário que os
possibilite avançar de um nível de fluência intermediária (ou platô intermediário) no qual
segundo Lewis (2000), é onde fica a maioria dos alunos, para o avançado.
No nível avançado estão as chamadas colocações que são palavras que mais
freqüentemente ocorrem juntas com as palavras-chave, formando blocos de palavras que
habitualmente se combinam. Não sabendo combinar o vocabulário que possuem, os alunos
acabam por usar a língua em combinações estranhas diferentes das usadas por falantes
nativos. No próximo tópico, apresentaremos o conceito do léxico mental mais
detalhadamente.

3.1 Léxico mental


Os proponentes da abordagem lexical, entre os quais estão Lewis (1993), Hill (2000),
Coady e Huckin (1997), entre outros, entendem por léxico mental, toda bagagem de palavras,
grupos de frases, combinações, colocações e todas as possibilidades de co-ocorrências
estocadas na memória dos seres humanos e que estão prontas para uso. Dentro do léxico
mental, as colocações são elementos poderosos que facilitam a produção e a compreensão da
linguagem.
O que diferencia o aprendiz de nível avançado, do aprendiz de nível intermediário,
não é uma gramática complexa, mas um léxico mental mais extenso. Lewis (op.cit.) afirma
que é preciso ter em mente pelo menos três coisas para que entendamos a importância da
abordagem lexical no ensino de vocabulário:
- o léxico mental é maior do que se pensava;
- os grupos de frases estocados no léxico mental dos falantes de L1 e prontos para o uso são
maiores do que se pensava;
8

- conhecer/saber uma palavra envolve saber sua gramática - as estruturas nas quais é usada
regularmente.
Levando-se em conta o tamanho do léxico mental necessário para que um falante de
nível intermediário possa se comunicar satisfatoriamente deve-se aumentar grandemente a
quantidade de informações oferecidas nos cursos de línguas. Hill (2000) chama atenção para o
imenso número de colocações contidas nos textos e a necessidade de ensiná-las para que os
aprendizes se tornem colecionadores independentes dessas colocações. O léxico mental abriga
as chamadas unidades lexicais que serão detalhadas a seguir.

3.2 Tipos de unidades lexicais


Cowie (2001, apud Moudraia, 2001, p.2) defende que “a existência de tais unidades
em uma língua como o inglês serve às necessidades de ambos, tanto os falantes nativos,
quanto os aprendizes de L2, que são tão predispostos a estocá-las e reutilizá-las quanto são
de extraí-las dos textos”. A fusão dessas expressões que aparecem para satisfazer as
necessidades comunicativas individuais em um dado momento e são reutilizadas mais tarde, é
um meio pelo qual o estoque público de fórmulas e expressões é enriquecido continuamente.
(Cowie, op.cit.) Em Lewis (1997b) temos uma classificação mais abrangente dessas unidades
lexicais:
Palavras - ex: book, pen;
Expressões idiomáticas (as multi-words de Lewis) - ex: by the way, upside down;
Colocações ou combinações de palavras como em: community service, absolutely convinced;
Expressões institucionalizadas, como por exemplo: I´ll get it; we´ll see; That´ll do; If I were
you; Would you like a cup of coffee);
Estruturas de sentenças (sentence frames) como em: That is not as ...as you think; The
fact/suggestion/problem/danger was... sentenças-chave (heads) como em: In this paper we
explore... Firstly... Secondly...; Finally.
No próximo tópico abordaremos algumas características de certas unidades lexicais, e
entre elas as colocações e as palavras.

3.2.1 Colocação
Por meio do conhecimento das colocações habituais de uma expressão percebe-se a
fluência ou não do aprendiz em uma L2/LE. Lewis (1997, p.8) conceitua a colocação como “o
9

fenômeno prontamente observável, onde certas palavras aparecem juntas em textos naturais
com freqüência maior do que simplesmente o acaso”.
Woolard (2000, p.28) destaca que uma das definições para colocação seria a de
“palavras que estatisticamente são mais propensas a aparecer juntas do que ao acaso”, mas
o próprio autor considera esta definição um tanto vaga e abstrata para guiar o aluno a termos
específicos do texto de uma maneira clara e direta. Ele então tenta redefinir o termo
chamando de colocação “aquelas co-ocorrências de palavras, combinações que seus alunos
não iriam fazer por si só, em uma produção de texto”.
Hill (2000) argumenta sobre a existência de um grande número de colocações,
conhecidas e armazenadas por um falante de L1 instruído. Blocos de frases podem ser
encontrados com combinações previsíveis, ou seja, com probabilidade de ocorrer com aquelas
mesmas palavras como “encourage to think, a central feature, for the first X years of my
career, a moment`s thought, has come to play a more and more central part in my thinking,
huge impact, etc”. Segundo o referido autor, apesar do termo “colocação” ser desconhecido
para a maioria de alunos e alguns professores, o problema dos erros de colocação é tão antigo
quanto o próprio aprendizado da língua. Para atingir uma competência comunicativa avançada
os aprendizes precisam ser levados à competência colocacional. A falta dessa competência
leva o aluno a erros gramaticais de muitos tipos. O aprendiz geralmente constrói frases mais
longas por não saber como dizer o que ele quer. Na verdade será improdutivo corrigir os erros
gramaticais se o que lhe falta é a colocação correta. Hill (op. cit.) exemplifica esse problema
dizendo que o aluno poderia inventar a frase “His disability will continue until he dies” por
não saber a colocação correta “He has a permanent disability”. A falta de competência
colocacional pode levar o aluno a combinações estranhas em seus textos, usando verbos fora
de contexto, ou seja, com sentidos diferentes do habitual. Por não saber as colocações mais
importantes de uma palavra-chave, que é central para o que ele está escrevendo, o aluno
apesar de ter boas idéias, pode não conseguir se expressar adequadamente. A abordagem
lexical dá atenção especial às colocações. Lewis (1997a, p.204) diz que “ao invés de
palavras, nós conscientemente tentamos pensar em colocações e apresentá-las em
expressões. Ao invés de tentar dividir as palavras em segmentos menores, há um esforço
consciente de vê-las maiores, de uma forma mais holística.”
A colocação está se tornando rapidamente uma unidade de descrição já estabelecida
nos cursos e materiais de ensino de línguas. Woolard (2000) recomenda, unindo-se ao
10

pensamento de Lewis, que ao invés de palavras isoladas devemos pensar em ensinar


colocações e apresentá-las através de blocos de palavras ou frases.
Lewis (2000, p.188) relata que Orwell, em 1946, alertava para o perigo de se usar
muitos clichês e frases feitas: “Esta invasão de frases feitas para a mente de alguém (lay the
foundations, acquire a radical transformation) só pode ser evitada se a pessoa estiver em
guarda contra elas e cada uma dessas frases anestesia uma porção do cérebro da pessoa.”
Contudo, o próprio Orwel não conseguiu se livrar das colocações e frases fixas, pois utilizou
em seu livro “Animal Farm”, expressões fixas do tipo : “bitter winter”, “stormy weather”, “a
hard frost”, “carried on as best they could”, ”the outside world”, “finished on time”. A
questão é que esses itens, apesar de serem constituídos por várias palavras, acabam se
tornando opções únicas do falante nativo adulto, mesmo em se tratando do léxico mental de
Orwell. A colocação é uma característica de todos os tipos de textos, falados ou escritos,
embora tipos de textos diferentes contenham tipos diferentes de colocação.
Woolard (2000) explica que é preciso equipar os alunos com habilidades que os
capacitem a desenvolver seu conhecimento de colocação independentemente do professor,
utilizando a tecnologia que tem armazenado grandes quantidades de textos através de CD-
ROMs e Internet.

3.2.2 Palavras
Aprender vocabulário é o pré-requisito mais importante para o aprendizado de
qualquer língua estrangeira. Entender o significado das palavras é básico para a compreensão,
pois as palavras têm significados múltiplos e requerem um contexto para definição. Dechant
(1982, apud Zakaluk, 1982) chama atenção para algumas palavras como, por exemplo, “run”
que tem 109 significados distintos ou a palavra “take”, que tem 76 e a palavra “round”, que
tem 83. Uma palavra considerada fora de seu contexto permite muitas interpretações.
Pesquisas feitas por Goulden, Nation e Read (1990, apud Arnaud e Savignon ,1997)
estimam em cerca de 17.000 famílias de palavras (sua forma base e suas formas derivadas
juntas) o vocabulário médio de um estudante universitário que tem o inglês como L1. Nation
(1990, apud Arnaud e Savignon, 1997) diz que um vocabulário passivo de 2000 das palavras
mais freqüentes cobrirá 87% das palavras presentes em um texto médio. Para o referido autor,
essas 2000 palavras mais freqüentes devem ser ensinadas intensivamente enquanto que as
palavras menos freqüentes não valem o esforço de ensiná-las, pois o tempo de aula é limitado.
11

O que deve ser feito é equipar o aprendiz com estratégias para saber lidar com tais palavras
quando encontradas no texto.
Honeyfield (1977, apud Arnaud e Savignon, 1997) afirma que parece pouco provável
que possamos detectar quais palavras podem ser deixadas de ser ensinadas. O problema
apontado por Nation (op.cit.) é que palavras menos freqüentes, costumam carregar um peso
de informação alto e, portanto causam um grande obstáculo à compreensão de textos, quando
são desconhecidas. Arnaud e Savignon (1997) discordam de Nation (1990). Eles afirmam que
“o conhecimento de palavras raras (ou menos freqüentes) é um alvo valioso, pois capacita o
leitor de L2 a acessar os significados das elocuções sem muito esforço e imediatamente sem
ter que devotar tanta energia a inferência lexical.” (p. 159)
Nation e Coady (1988) evidenciam o fato de a proficiência lexical estar ligada ao
desempenho na leitura. Pesquisas mostram que 3000 famílias de palavras (correspondendo à
aproximadamente 4.800 palavras) são o limiar para a habilidade de leitura. Estudos
comprovam que é necessária a aquisição de doses maciças de vocabulário pelos aprendizes
indo para além das 2000 ou 3000 palavras (Laufer, 1997).
De acordo com Arnaud e Savignon (1997), não se pode esperar que os aprendizes
avançados alcancem um vocabulário igual ao do falante de L1, enquanto que o professor de
línguas, que deve perseguir a competência profissional deve tentar aproximar-se da
competência dos falantes de L1. No desenvolvimento do conhecimento de vocabulário há
evidências fortes de que esse conhecimento está ligado diretamente às habilidades de leitura.
Segundo Grabe e Stoller (2001) os alunos precisam reconhecer um grande número de palavras
automaticamente se eles querem ser leitores fluentes. Reconhecer uma palavra rapidamente é
o resultado do hábito de ler extensivamente e aprender novas palavras. É necessário também
que o aluno seja exposto a novas palavras através da instrução explícita, reconhecendo seu
próprio jeito de aprender e tornando-se um colecionador de palavras novas.
Grabe e Stoller (2001) dão a seguinte categorização no sentido de auxiliar o
professor na seleção de palavras a serem trabalhadas:
1. Palavras que são críticas para compreender o texto e úteis em outros ambientes.
2. Palavras que são necessárias para compreender o texto, mas não particularmente úteis em
outros contextos.
3. Palavras que não são necessárias para compreender o texto, nem particularmente úteis em
outros contextos.
12

As palavras da primeira categoria devem ser consideradas para instrução direta. No


caso de textos difíceis para os alunos, o professor pode identificar 40 ou 50 palavras nessa
categoria. No entanto, elas não devem ser ensinadas de uma vez. Segundo Grabe e Stoller
(2001), o ideal seria ensinar de 4 a 5 palavras-chave por serem mais fáceis de ser aprendidas e
lembradas quando apresentadas mais de uma vez e em contextos diferentes. Outras palavras
importantes podem ser ensinadas através de mapas semânticos, tabelas, etc. As palavras-
chave podem ser ensinadas através de palavras relacionadas. Os autores exemplificam a
palavra ”computer” que pode trazer outras palavras relacionadas como monitor, electricity,
software, printers, calculators, robots, e-mail, Internet, programming, writing e graphics. Em
um exemplo de mapa semântico todas essas palavras estariam no quadro relacionando-se com
a palavra-chave.
O conhecimento do vocabulário é um dos princípios centrais para a leitura eficiente. A
fluência envolve um reconhecimento de palavras rápido e automático, a habilidade de
reconhecer informação gramatical básica, a rápida combinação dos significados e as
informações estruturais com unidades de significados maiores (Grabe e Stoller, 2001). A
leitura fluente depende de um grande número de palavras para que a compreensão não seja tão
difícil. Como o reconhecimento do vocabulário é lento para os aprendizes de L2, o esforço
exigido para que eles se tornem fluentes é muito grande. Os autores dizem que, às vezes, o
professor hesita em treinar a fluência por considerá-la um tanto mecânica e irrelevante para a
prática de compreensão de leitura. Outros professores alegam que se trata de um compromisso
de longa duração e os ganhos do aluno não são imediatos.

4 MATERIAIS DE REFERÊNCIA
4.1 O uso de materiais de referência - o dicionário.
O uso de materiais impressos é parte natural do processo de ensino de línguas. Durão
(2010, p.26) explica que “dentre os objetivos que os dicionários podem cumprir, hoje, cada
vez mais, vêm se destacando seu emprego como ferramenta de aprendizagem lingüística [...]
e acrescentaríamos principalmente os dicionários em seu formato tecnológico dos dias atuais.
A autora explica que
No século XX, após serem fomentados tipos diferenciados de dicionários que
refletem os desenvolvimentos técnicos e científicos das sociedades modernas, a
lexicografia e, conseqüentemente, os dicionários passaram a ser elaborados à luz dos
avanços da Lingüística moderna e da tecnologia, produzindo-se, também, em CD-
rom, em DVD e em versões on-line. (DURÃO, 2010, pg. 25)
13

Evidentemente, muitas mudanças perpassaram o dicionário desde o período medieval


de suas origens. O que se vê atualmente são seus modelos tecnológicos correspondentes que
enchem nossas telas com informações de uso e de freqüência transformando-se em verdadeira
ferramenta de cunhar palavras. Essa ferramenta vem embutida em outro material de referencia
que é a Lingüística de Corpus.

4.2 O uso de materiais de referência – lingüística de corpus.

Os autores Bowker e Pearson (2002, p. 9) definem Lingüística de Corpus como


sendo “uma grande coleção de textos autênticos que foram reunidos eletronicamente de
acordo com um conjunto de critérios específicos” (tradução nossa). Os autores chamam a
atenção para quatro palavras-chave dessa definição quais sejam “autênticos”,
“eletronicamente”, “grande” e “critérios específicos”. São exatamente estas palavras que
diferenciam os corpora de outros tipos de coleção de textos.

Os corpora estão se tornando um recurso muito popular para pesquisadores e


lexicólogos que querem saber mais sobre o uso da língua. A maior parte dos corpora que estão
em uso atualmente contém textos escritos de língua para propósitos gerais (LPG). Mas eles
podem também fornecer excelente informação colocacional para aprendizes com propósito
específico. Isso vem a corroborar o fato de que o essencial na utilização do corpus lingüístico
é o grupo/propósito a que se destina.

4.3 O uso de materiais de referência - Concordanciadores


Concordanciadores são programas que buscam e mostram no corpus todos os
exemplos de uma palavra em particular. Os Concordanciadores são organizados do seguinte
modo: cada linha representa um exemplo de uma palavra selecionada, com o texto organizado
de tal forma que todos os exemplos desta palavra sejam impressos uma debaixo da outra no
centro da tela. O texto é colocado dos lados da palavra-chave e freqüentemente mostrado
alfabeticamente de acordo, ou com a palavra que vem antes ou depois da palavra chave.
Woolard (2000, p. 40) dá o exemplo de um concordanciador produzido para a palavra
“disappointment”:
14

The decision will come as a Disappointment to development agencies


Australia. He accepted Disappointment and defeat with dignit
N` s absence would be a big Disappointment for Spurs as his fellow
In New York said: “ The big Disappointment was exports.Given that
Ter read wedge.<p> His big Disappointment in the Ryder Cup was
Oviding perhaps the biggest Disappointment <p> That race went to
Failure is accompanied by Disappointment at one`s own incompetence
And had to admit, contained Disappointment at what Himmler had to as
By Mikhail Gorbachev a deep Disappointment to his countrymen when
Laughing and had expressed Disappointment that they had not even he
Several delegates expressed Disappointment at the delay in the elect
Man´s antics, but also from Disappointment over the Chancellor of
Wers to be granted. Further Disappointment arose from De Klerk`s pr
Stewart`s book is a great Disappointment . His method is unchallenged
Made little secret of her Disappointment in the course of her husband
Ling that goes with this is Disappointment and frustration. <item>

Este formato permite ao usuário explorar as colocações e coligações de uma palavra


com certa facilidade. Os concordanciadores fornecem fontes mais ricas de informações co-
textuais do que os dicionários e eles podem levar a uma exploração mais eficiente das
colocações de uma palavra. Assim como em um dicionário, os alunos precisarão de tempo e
treinamento para utilizá-lo de forma construtiva. É aconselhável chamar a atenção dos
aprendizes para as palavras que imediatamente seguem a palavra de seu interesse. Se a
palavra-chave for um substantivo é útil observar quaisquer adjetivos ou verbos que ocorrem à
sua esquerda. Com adjetivos ou verbos as palavras à sua direita freqüentemente mostram
colocações gramaticais como preposições ou advérbios típicos. É interessante notar que um
verbo em particular é sempre ou quase sempre seguido de uma sentença temporal ou outra
característica gramatical.

Os melhores benefícios dos concordanciadores é que os exemplos são sempre


contextualizados e os aprendizes podem ver um número grande de exemplos do mesmo item
rapidamente. As pesquisas demonstram que é necessário deparar-se com um item novo pelo
menos cerca de 7 a 10 vezes para ter um entendimento parcial antes de adquirí-lo.

Poole (apud Lewis, 2000, p. 199) descreve da seguinte maneira o uso de


concordanciadores:

“I find that the use of computer concordances of key verbs, in addition to improving their
knowledge of subject and object noun collocates, seems to improve their „feel‟ for the
15

finely-differentiated senses of a verb, and hence the range of nouns with which it can co-
occur. ...The great virtue of concordances is that they provide learners with the opportunity
to see lots of examples in day-to-day target language exposure – and to derive from this not
only an awareness of frequent collocates but also the kind of lexical word with which it has
potential to combine.

Essa visão vem reforçar a idéia de Lewis (2000, p.199) de que perceber os exemplos
no contexto sem prática formal ajuda a transformar a informação em conhecimento adquirido.
O autor enumera os seguintes benefícios para a utilização de concordanciadores:

- Eles freqüentemente respondem diretamente perguntas do tipo ”Que palavra geralmente


segue „different‟? É „to‟, „from‟ ou „than‟?
- Eles sensibilizam os aprendizes para o fato de que o texto consiste de blocos de palavras e
que perceber isso os ajuda a produzir linguagem mais fácil, fluente e exata.
- Esse processo tanto confirma suas intuições como faz o aprendiz reconsiderar justificativas
do tipo „I´ve never heard/seen it‟.
Observar dados reais convence o aprendiz do perigo de tomar exemplos fora dos
contextos naturais nos quais eles ocorrem e até mais, do perigo de inventar exemplos na sala
de aula. Segundo Lewis (2000), generalizações, regras ou abstrações não são assimiladas pelo
aprendiz, mas as frases como elas são. O autor observa que “the „rules‟ are generalizations
acquired by each individual from examples that individual has met and noticed. Abstractions
may be a summary of extensive observation; they are the basis for nothing.” (p.167)
É inegável a contribuição que os “concordanciadores” trazem para o
ensino/aprendizagem da L2, uma vez que se tem a chance de perceber a língua inserida em
seu próprio contexto. Os concordanciadores se inserem inegavelmente nos materiais de
utilização para o ensino da L2/ LE, como ferramenta indispensável para os professores da
área, pois fornecem uma amostragem real da língua em seu contexto específico.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
No entanto, a exigência para a utilização de uma abordagem como essa é, a nosso
ver, desafiadora, uma vez que, exige do professor uma competência lexical, semelhante à do
“falante nativo”.

É bem verdade que a abordagem lexical emerge como uma proposta promissora, uma
vez que, pretende levar os aprendizes da LE a se comunicarem com a mesma eficiência e
16

naturalidade da primeira língua de seus falantes. Contudo, o enriquecimento do léxico é um


processo longo e contínuo e exige do aprendiz uma identificação tal com a língua que o
obriga a rever constantemente suas fontes de palavras, através de curiosidade contínua por
livros, revistas ou material falado. Atividades que serão responsáveis pelo enriquecimento
diário de vocabulário do aprendiz.

6 REFERÊNCIAS

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using corpora. London/New York: Routledge. 2002.

CARTER, R.; McCARTHY, M. Vocabulary and Language teaching. London: Longman,


1988.

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Cambridge University Press, 1997.

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dicionário com outros olhos. Londrina: UEL, 2010.

GRABE, W.; STOLLER, F. Reading for academic purposes: guidelines for the ESL/EFL
teacher. In M. Celce-Murcia (Ed.), Teaching English as a Second or Foreign Language.
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advanced foreign language students: The influence of marginal glosses, dictionary use, and
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_____. Implementing the lexical approach: Putting theory into practice. Hove, England:
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17

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em: <http//www.cal.org/ericcii/digest/0102 lexical.html> . june 2001. Acesso em 19 nov
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NEWBY, I. Vocabulary and the Lexical Approach. NEW ROUTES. São Paulo, n.1, p.12-
18,jan./fev./mar. 2004.

WOOLARD, G. Collocation - encouraging learner independence. In: Teaching Collocation:


Further developments in the Lexical Approach. Hove, England: Language Teaching
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ZAKALUK, B. L. A theoretical overview of the reading process: factors which influence


performance and implications for instruction. 1982.

ZIMMERMAN, C.B. Historical trends in second language vocabulary. In: COADY, J.;
HUCKIN, T. Second Language Vocabulary Acquisition.CAMBRIDGE: Cambridge
University Press, 1997.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

A RELEVÂNCIA DA (IM)POLIDEZ: TRANSDISCIPLINARIDADE NA


INTERPRETAÇÃO DO DISCURSO PUBLICITÁRIO

Juliana Camila Milani da Silva (PG-LETRAS/UFPR)1


Aristeu Mazuroski Jr. (PG-LETRAS/UFPR)2
Maurício Fernandes Neves Benfatti (PG-LETRAS/UFPR)3

RESUMO

A Teoria da Relevância (SPERBER e WILSON, 1985/1995) e a Teoria da Polidez (BROWN


e LEVINSON, 1987) são teorias contemporâneas que possuem perspectivas distintas na
interpretação e compreensão de eventos comunicativos. A Teoria da Relevância funda-se nos
estudos sobre a cognição humana, propondo uma abordagem econômica e evolucionista no
funcionamento mental, aplicada aos processos de interpretação na comunicação. Já a Teoria
da Polidez, coloca em foco a necessidade de interação entre os indivíduos para a
comunicação, acarretando em estratégias de manutenção do equilíbrio de relações pessoais
para que se efetuem os eventos comunicativos. Inicialmente, as duas teorias pareciam
irreconciliáveis, mas alguns trabalhos apontam para uma transdisciplinaridade plausível entre
as duas visões (ESCANDELL-VIDAL, 1998; NOWIK, 2005). Neste trabalho abordaremos
conceitos das duas teorias, procurando demonstrar que os processos de interpretação são
fenômenos que emergem tanto das propriedades formais da cognição humana, quanto das
características funcionais atribuídas a comportamentos comunicativos e de socialização. Serão
apresentados anúncios publicitários que geraram reações adversas em públicos específicos,
argumentando que a percepção da (im)polidez é tanto uma questão de efeitos contextuais
cognitivos, como de desenvolvimento histórico-social de estratégias comportamentais de
interação comunicativa. Neste sentido, consideramos que uma peça publicitária consiste em
uma aposta comunicativa que assume riscos de se tornar ofensiva de acordo com as diferentes
expectativas de relevância envolvidas nos dois lados da interação.

Palavras-chave:
Teoria da Relevância. Teoria da Polidez. Impolidez.

ABSTRACT

Concerning the interpretation and comprehension of communicative events, there are


currently two theoretical perspectives with distinctive approaches of the subject: the
Relevance Theory (SPERBER & WILSON, 1985/1995) and Politeness Theory (BROWN &
LEVINSON, 1987). The former one is grounded in human cognition studies, bringing
economical and evolutive approaches to mental processes of human communication. The
latter one, focuses on the need for social interaction to establish meaning, showing the
importance of sustaining interpersonal relations in communication. Both theories seem to be
irreconcilable at first, however, some works try to bridge the gap between such different
approaches (ESCANDELL-VIDAL, 1998; NOWIK, 2005), namely, a cognitive and a social
perspective of meaning. The present work brings together some concepts from both theories,

1
Programa de Pós-Graduação em Letras – Estudos Linguísticos. Departamento de Letras. Universidade Federal
do Paraná. Curitiba. Paraná. Brasil; e-mail: ju.camila@hotmail.com
2
Programa de Pós-Graduação em Letras – Estudos Linguísticos. Bolsa CAPES REUNI. Departamento de
Letras. Universidade Federal do Paraná. Curitiba. Paraná. Brasil; e-mail: aristeumj@gmail.com.
3
Programa de Pós-Graduação em Letras – Estudos Linguísticos. Bolsa CAPES REUNI. Departamento de
Letras. Universidade Federal do Paraná. Curitiba. Paraná. Brasil; e-mail: mfbenfatti@yahoo.com.br.
2

proposing that interpretation processes share the formal properties of human cognition and the
functional properties of socialization practices as well. The analysis will proceed through the
presentation of some negatively received advertisements - pieces that elicited bad responses
from the audience - arguing that the audience perception of (im)politeness is both a question
of cognitive contextual effects and of historical/social development of behavioral strategies
for the communicative interaction. In such a view, the advertisement could be considered as a
gamble, taking risks of being offensive according to different relevance expectations from
both sides of interaction.

Keywords:
Relevance Theory. Politeness Theory. Impoliteness.

1 INTRODUÇÃO
A linguagem é o mecanismo mais instigante para troca de informações entre os seres
humanos, e é inegável o fato dela possibilitar desde a transmissão de fatos corriqueiros até a
manutenção da bagagem cultural de um povo. Neste sentido, encontramos na Pragmática um
caminho para compreender como as características cognitivas e interações sociais agem sobre
processos comunicativos. Embora tais abordagens pareçam inicialmente incompatíveis e
divergentes, nossa pesquisa parece apontar que ambas priorizam uma intuição interativa em
relação à racionalidade.
Acreditamos na sinergia das duas abordagens para enriquecer a análise já que, no
estudo da Pragmática, atribuímos importância fundamental ao contexto, intenções e
propósitos específicos de falante e ouvinte na construção da interação comunicativa:

A pragmática que vemos, pelo menos em Levinson e naqueles por ele resenhados,
estuda, antes, as apostas de interpretação que desenham uma intenção do falante que
se coloca no e pelo próprio ato de fala (na comunicação). A pragmática estuda a
atribuição de intencionalidades (e as apostas do falante de que o intérprete vai fazer
tal e qual atribuição), e os raciocínios que o falante acredita que seu interlocutor é
capaz de realizar, dada uma ancoragem numa aposta fundamental (seja ela o
princípio de cooperação ou o princípio de caridade). (PIRES DE OLIVEIRA e
BASSO, 2007, p. 25)

Na abordagem cognitiva, Sperber e Wilson fundam a Teoria da Relevância (TR) com


o intuito de expor processos mentais subjacentes à atividade interpretativa na comunicação
humana. Já na abordagem social, Brown e Levinson propõem a Teoria da Polidez (TP), que
definem os eventos comunicativos como perpassados pela necessidade de consideração da das
diferenças de posição social, status e desejos entre falantes e ouvintes, procurando alcançar
objetivos comunicativos com o mínimo de ameaça entre os participantes.
3

Neste trabalho, pretendemos mostrar que há um possível diálogo entre tais teorias,
pois, segundo Godoi (2008) a comunicação acontece graças, por um lado, a um código
compartilhado e, por outro lado, a certos princípios racionais moldados socioculturalmente.
Utilizaremos o discurso publicitário, devido ao fato dos artifícios linguísticos e imagéticos
possuírem uma função específica de informatividade.

2 EFICÁCIA COMUNICATIVA: É POSSÍVEL?


A Linguística tem fornecido farto material teórico e empírico para a formulação da
mente humana como objeto possível de reflexão científica, dentre os estudos podemos citar
Pinker (1998) que pretende explicar o que é a mente, de onde ela veio e como nos permite
ver, pensar, sentir, interagir etc. Uma das afirmações deste autor é a de que “quem pensa
precisa computar não apenas os efeitos de uma ação, mas os efeitos colaterais também”
(Pinker, 1998, p.25). Neste aspecto, é necessário limitar a observação da linguagem verbal às
suas relações naturais e funcionais. Isto não implica em uma abordagem funcionalista (tal
como concebida por Peirce ou Jakobson), mas sim em buscar compreender mecanismos
gerais da cognição humana. O que quer dizer que o estudo da comunicação humana não deve
ater-se a descrever significados de estruturas produzidas com a finalidade de comunicar algo,
mas sim, descrever os mecanismos pelos quais tais estruturas tornam-se efetivamente
comunicativas.
Segundo Sperber e Wilson (1986), não há comunicação sem que antes haja intenção,
esta sendo tanto do falante quanto do ouvinte. Inúmeras atividades humanas são realizadas
por meio de relações comunicativas, e sua eficácia depende de fatores culturais ligados às
interpretações dos interlocutores; cada indivíduo é uma unidade autônoma, com suas próprias
referências semânticas, mas é aberto às interações e significações que o meio propõe. Por
outro lado, há também como considerar a comunicação como caráter inerentemente social de
interações verbais.
Ao se considerar tais fatores imprevistos e incontroláveis na comunicação, verifica-
se que a eficácia comunicativa acaba por depender de ajustes realizados entre falante e
ouvinte. Na TR é proposto um exame das operações e processos cognitivos realizados pelo
ouvinte na interpretação de enunciados e na busca de intenção comunicativa. Já a TP propõe
um exame acurado dos fatores que são levados em consideração pelo falante em sua atividade
de produção de enunciados (em especial nas estratégias de polidez); sendo o grande mérito
4

desta teoria, demonstrar que o processo de interpretação realizado comumente pelos


interlocutores depende em grande medida de variáveis que ultrapassam o nível semântico
estrito da sentença. Neste ponto teríamos o fator social dialogando com o cognitivo.
No contexto específico deste trabalho (dos comerciais e propagandas) podemos
perceber tais detalhes de forma mais clara, já que anunciantes têm a intenção de vender uma
ideia ou um produto a um público específico. Toda mensagem veiculada precisa atingir e
persuadir tal público, procurando promover um comportamento de aquisição do produto ou de
disseminação da ideia. Com tal intenção, os anunciantes frequentemente utilizam recursos
cognitivos (atribuindo falsa relevância aos produtos e ideias, por exemplo) e sociais (o
produto elevaria o status ou poder do comprador, por exemplo), com o objetivo de persuasão.
Entretanto, tal relação nem sempre se estabelece de forma pacífica; uma das formas mais
utilizadas na persuasão midiática é a ironia, que se torna uma aposta arriscada para o
anunciante.

3 DISCURSO PUBLICITÁRIO EM FOCO


A função da propaganda é criar uma excitação, uma sensação na consciência e, essa
sensação varia de acordo com o grau de excitação do receptor (o qual possui imensa
influencia de universo cultural, meio de divulgação e transmissão da mensagem etc). Segundo
Martín-Barbero, citado por Laurino e Leal (2008, p. 144) “a concentração da recepção não
está apenas na mensagem, mas em como esta é recebida pelo receptor, como ele interage com
o meio.” Desta forma, pode-se dizer que um dos artifícios utilizados pelos anunciantes é o de
romper com formas de defesa dos consumidores, incentivando o surgimento de sentimentos e
atitudes que levem a fatos concretos.
Após a “primeira impressão” é que começam a sobressair os pormenores, tais como
atenção espontânea (varia de acordo com a intensidade e a qualidade); atenção fascinada (leva
ao sonho, a ideia fixa); atenção voluntária (tem consciência do fato que o domina). Para
Vestegaard e Schroder (1994, p. 105) também há interferência do meio e da recepção em um
anúncio publicitário, pois “um anúncio de imprensa tem valores diferentes como estimulante
da atenção”.
A primeira reação da audiência é a percepção global: o anúncio é percebido como
um todo coerente para, após uma primeira análise, voltar o olhar de forma mais detalhada para
suas partes componentes buscando maiores informações (se as formas e a abordagem forem
5

atrativas e relevantes para o telespectador). De acordo com Vestegaard e Schroder (1994), há


diversas experiências que permitem afirmar que a visão humana distingue a forma antes da
cor, e também algumas cores são percebidas antes de outras. E o valor estimulante que uma
cor provoca não depende unicamente da sua tonalidade, claridade ou saturação própria, mas
também da superfície que ocupa e das cores vizinhas (sobretudo a de fundo).
Tanto que, foi divulgado recentemente, um estudo no periódico Journal of
Neuroscience, Psychology and Economics (2011), da Universidade da Califórnia e na George
Washington University, demonstrando os efeitos da recepção e reação do cérebro diante de
dois tipos de anúncios publicitários: 1) Persuasão Lógica (PL), em que as características do
produto são utilizadas para convencer. Neste estudo em específico, foram utilizados tabelas,
imagens e detalhes sobre escovas de dente ou sugestões para selecionar comida para cães; e 2)
Influência Não Racional (IN), em que a propaganda utiliza recursos para seduzir fazendo
comparações, por exemplo, com mulheres bonitas. As propagandas para este tipo de
publicidade compreendiam mulheres em roupas justas.
O fato confirmado foi que, diferentes estratégias atingem diferentes partes do
cérebro, tanto que o baixo nível de atividade causada pela IN faz com que o consumidor tenha
menor resistência em adquirir o produto anunciado, já as imagens de PL estão vinculadas a
maiores atividades cerebrais responsáveis pela interpretação emocional e tomada de decisões.
Com tais fatos, o psiquiatra Ian Cook, afirmou que alguns publicitários, ao invés de persuadir
seus consumidores preferem seduzi-los (Cook et al., 2011)
Diante de tal estudo, podemos considerar que manifestações intencionais são como
fatos da vida cultural, afirmação esta da TR, pois há intencionalidade envolvida no ato de
interpretar as manifestações comunicativas.

4 RELATANDO TEORIAS
Tanto a TR quanto a TP surgem a partir dos estudos de Grice (1975) em “Logic and
Conversation”, que tinha como preocupação central encontrar uma forma de descrever e
explicar os efeitos de sentido que vão além do que é dito. Grice retoma a formulação kantiana
e sistematiza o seu “Princípio de Cooperação” através das máximas e implicaturas. Porém, TR
e TP seguem por caminhos que, até pouco tempo, achava-se não haver condições de ambas
trabalharem juntas; mas, há sim possibilidade de diálogo entre elas.
6

A TR pode ser vista como uma tentativa de desenvolver, de forma mais detalhada, a
máxima de relação de Grice, a qual assume que o proferido tem de ser relevante para o
ouvinte. Diante disto, Sperber e Wilson declaram que a cognição humana é guiada pela
relevância, ou seja, nossa compreensão é direcionada para informações que nos parecem
relevantes.
O modelo de Sperber e Wilson propõe a existência de duas propriedades da
comunicação humana: uma baseada no estimulo ostensivo, por parte do falante, que tem por
finalidade realizar sua comunicação de forma a torná-la relevante para que o ouvinte inicie
seu processo de interpretação; outra parte do comportamento inferencial do ouvinte, criando
uma relação de proporcionalidade entre os efeitos contextuais e o esforço de processamento
mental. Desta forma, segundo Sperber e Wilson (1995, p. 122), “an assumption is relevant in
a context if and only if has some contextual effect in that context”.
Por meio da TP, podemos observar que cada cultura faz uso de estratégias
linguísticas de maneira diferente, e nem sempre é eficaz como previsto no Princípio de
Cooperação de Grice. Por essa razão, Brown e Levinson – complementando o Principio de
Cooperação e ampliando o modelo de face de Goffman (1967), que se refere à imagem
pública que cada indivíduo tem de, e quer para si –desenvolvem sua teoria tendo como base o
desejo de ser apreciado pelos demais (imagem positiva) e o desejo de não ter suas ações
impedidas (imagem negativa). É importante também citar os “atos de ameaça à face” (Face
Threatening Acts ou FTAs), que podem ameaçar a imagem pública de falante e ouvinte, indo
contra os esforços desejáveis na manutenção da imagem.
Para estes autores, o falante sempre utiliza sua racionalidade para escolher estratégias
que tornam a interação um jogo em que o falante está constantemente avaliando sua posição e
a de seu interlocutor, assim como a distancia social, poder relativo, grau de imposição, entre
outros detalhes sociais.

5 VERIFICANDO POSSIBILIDADES
Ao nos depararmos com anúncios publicitários que geraram reações adversas em
públicos específicos, percebemos que a percepção da (im)polidez é tanto uma questão de
efeitos contextuais cognitivos, como de desenvolvimento histórico-social de estratégias
comportamentais de interação comunicativa. Para elucidar esta questão, verificamos os
anúncios do Nissan Tida, do Nissan Frontier e Havaianas Avó.
7

5.1 Nissan Tida4


Este anúncio, veiculado em 2011, é apresentado como se fosse um videoclipe com
gangsta rappers5, com direito a figurinos ostentando riqueza e título de música “Ouro de tolo
(no caso de vocês)”, na qual a frase mais pronunciada é “o luxo todo é do dinheiro de vocês”.
Para completar o cenário e a intenção de informatividade, ao fundo há a imagem de um Ford
Focus. Todos os detalhes são para ressaltar a diferença de valores entre um carro 1.8 (neste
caso o Nissan Tida) e um carro 1.6 (Ford Focus).
Tantos artifícios utilizados capturam a atenção de diversos públicos, visto que a
montadora valeu-se da provocação para se tornar relevante para a maior quantidade possível
de consumidores, tornando-se atrativa e instigante com provocações cômicas.
Para o ouvinte interessado neste seguimento o comercial foi apenas engraçado, mas
para simpatizantes da marca, proprietários e participantes da empresa concorrente, o anúncio
foi maldoso e antiético.
Contudo, é preciso verificar que nem todos saíram satisfeitos ao assistirem este
comercial, e a forma mais clara de perceber isto é por meio da analise social. Percebemos que
a montadora preferiu buscar uma imagem cortês com o consumidor, demonstrando gentileza e
consideração, levando a ele a comparação tanto de valores quanto de qualidade; mesmo sendo
grosseira com a concorrente, utilizando termos rudes e formas indelicadas para descrever a
diferença de valores. Pois, mesmo sendo ostensivamente impolido com o público concorrente,
o foco da Nissan era agradar o público interessado em adquirir carro. Visto que, muitos que
não são atraídos por este tema nem perceberam o clima de rivalidade.
Abaixo, alguns comentários do público relativos a este comercial:

Reinaldo Gutierrez
É bem obvio que a Nissan quer vender seu produto. E não tem nada de criativo
baixar o preço pra vender o que está encalhado, e convenhamos 3 mil R$ de
desconto é uma mixaria pra conquistar um mercado dessa categoria de automóvel.
Então o jeito é atacar o "Best In Class" da categoria, o Focus. Quem não tem
capacidade de "encantar" seu possível publico-alvo atira pra todo lado, tentando
alavancar "qualquer coisa" ou fazer "estardalhaço", mas só vão conseguir fazer mais
propaganda da Ford. Você acha que quem compra Rolex, esta preocupado com a
precisão da hora marcada? Profissionais de Marketing que não leram nem Michael

4
Anúncio pode ser visualizado pelo link – http://www.youtube.com/watch?v=V59htq7Ni2E
5
Com letras violentas, normalmente tendem a criticar a sociedade e a mostrar ao mundo a injustiça. A partir
dessa crítica, pretendem abrir os olhos para a realidade, mesmo que isso atinja diretamente o ouvinte.
8

Porter nem Philip Kotler. Não vamos falar em tecnologia e qualidade, pois ai o
Mercado reconhece que a Ford esta em primeiro lugar. Papagaios de Pirata. Então é
so pra dar risada mesmo. hahahahah!! Engenheiro da Ford. (28.02.2011)6

Danilo Souza
...brasileiro só presta atenção quando o negócio é levado na "brincadeira"...boa
sacada da Nissan!! (26.02.2011)7

Rodrigo Barreira
O Focus lindão é só 3 mil a mais que o Tiida? E ainda vai consumir menos sendo
1.6? HAHAHA! O tiro saiu pela culatra. (11.03.2011)8

Este comercial gerou tanta repercussão que, além da Ford entrar com uma ação no
Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária), a Ford abriu uma ação
criminal contra a Nissan. O presidente da Nissan, Christian Neunier, e diretores da montadora
japonesa são acusados de concorrência desleal, uso indevido da marca e ridicularização dos
funcionários da Ford.9
Os comentários adversos, a respeito desde comercial, mostram que a impolidez neste
caso está na forma de elaboração da mensagem e, o fato de nem todos admitirem como
grosseiro, os ataques diretos a imagem da Ford, nos faz pensar que a sensibilidade aos
contextos é fator determinante para esta avaliação.

5.2 Nissan Frontier10


A cena se passa em uma estrada com lama, situação elaborada para efetuar um
comparativo de motores da Nissan e demais concorrentes. Tal comparativo é realizado por
meio de uma sátira à potência dos motores rivais da montadora, comparando-os a pôneis. Um
detalhe que mostra a sutileza da Nissan ao provocar a Ford está no na frase: “Te quiero!” em
que um pônei fala para o proprietário da caminhonete. Tal sentença passa despercebida para a
maioria dos que assistem ao comercial, porém, para o público tem maior interesse neste

6
Relato retirado de: http://exame.abril.com.br/marketing/noticias/nissan-faz-engenheiros-da-ford-cantarem-rap,
acessado em 14.10.2011
7
Relato retirado de: http://exame.abril.com.br/marketing/noticias/nissan-faz-engenheiros-da-ford-cantarem-rap,
acessado em 14.10.2011
8
Relado retirado de http://www.brainstorm9.com.br/20419/advertising/nissan-provoca-ford-com-clipe-de-rap/,
acessado em 14.10.2011.
9
Notícia divulgada em http://carplace.virgula.uol.com.br/ford-denuncia-criminalmente-a-nissan-por-comercial-
dos-rappers-repercussao-ja-e-internacional/
10
Anúncio pode ser visualizado pelo link –
http://www.youtube.com/user/nissanoficial?v=X3yGSJE53kU&feature=pyv&ad=8204950816&kw=poneis%20
malditos#p/c/5E4E125630842627/0/NhSVx47kXY0
9

segmento automobilístico saberá que é uma crítica ao modelo Ranger da Ford, visto que tal
modelo é importado da Argentina.11
Na caminhonete atolada (da concorrência), o motor é representado por um carrossel
todo colorido e gracioso, com uma música que fixa na mente enfatizando o termo “pôneis
malditos”. Ao ponto que, a Frontier passa a imagem de um carro robusto como se fosse,
realmente, um cavalo selvagem.
Com uma questão que coloca o consumidor a questionar-se, a Nissan se faz presente
na memória de todos, inclusive dos que não são potenciais compradores de caminhonetes,
pois ao criar uma comparação intrigante guiada por uma música que marcante, é notório que
todos comentam a respeito.
Partindo para a abordagem social, gerou-se uma polêmica a cerca do termo “pôneis
malditos” (típico caso de associação de significado literal da palavra). Surgiram várias
denúncias que levaram o Conar a julgar se este comercial deveria ser vetado por fazer
associação de figuras infantis – no caso, os pôneis em desenho animado – com a palavra
“malditos”.12
Porém, por unanimidade de votos o processo foi arquivado13, e o comercial tornou-se
um sucesso, prova disto é que Com todo o sucesso alcançado, a ação foi apontada pela Nissan
como uma das mais comentadas em blogs e redes sociais desde a metade do ano passado. Mas
o furor da campanha não se limitou ao branding. Quando o mês de agosto terminou, a picape
Frontier promovida pelo filme já havia batido recorde de vendas no Brasil.14

5.3 Havaianas Avó15


A situação se passa em um restaurante, aparentemente refinado, onde avó e neta
estão almoçando. Devido ao ambiente avó reclama da neta estar usando chinelos ao invés de
algo mais apropriado ao ambiente. Ao qual a neta responde não estar de chinelos, mas sim de
Havaianas e enfatiza o fato da avó ser “atrasada” por não prestar atenção neste detalhe.

11
Informação pode ser acessada em http://carplace.virgula.uol.com.br/ford-ranger-chega-a-marca-de-450-000-
unidades-fabricadas-na-argentina/
12
Reportagem extraída de http://exame.abril.com.br/marketing/noticias/poneis-malditos-da-nissan-sera-
investigada-pelo-conar, datada de 04.08.2011.
13
Reportagem completa em http://exame.abril.com.br/marketing/noticias/poneis-malditos-escapa-de-punicao-
do-conar, datada de 29.09.2011.
14
Notícia divulgada em http://exame.abril.com.br/marketing/noticias/nissan-faz-engenheiros-da-ford-cantarem-
rap
15
Anúncio pode ser visualizado pelo link: http://www.youtube.com/watch?v=P69ik25jWsw
10

Em seguida entra Cauã Reymond. A neta o mostra para a avó, que comenta: “você
deveria arranjar um rapaz assim”. Mas a menina assume que deve ser difícil casar com
alguém que é famoso. E, para surpresa de todos, a avó enfatiza que não é para casar, é apenas
para sexo e diz que a neta que é “atrasada”.
Os termos foram considerados inapropriados e a propaganda saiu do ar, mas
continuou no site das Havaianas, isto porque, algumas pessoas se sentiram ofendidas. Ao
divulgar que o comercial continuaria na internet, a empresa sutilmente se isenta da culpa e,
numa jogada genial, chama o público que se escandalizou de ser “atrasado” por se ofender
com uma avó falando sobre esse tema polêmico.
Uma das marcas dos comerciais recentes das Havaianas é o humor, sempre atraindo
a atenção dos interlocutores por meio de situações do dia a dia envolvendo famosos. Porém,
está da “Avó”, aparentemente, foi pouco polida com as avós, mas a intenção não era ser. Os
publicitários julgaram errado a média do pensamento contemporâneo sobre sexo, neste caso,
podemos afirmar que a impolidez surgiu puramente da interação com certo tipo de público.

6 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Ao comparar a forma como os comerciais acima citados utilizam a TR e a TP, é
possível verificar que, na primeira é quando atribuem relevância ou destacam certas
características do produto. Já na segunda, quando a imagem de posse do produto elevaria
status ou poder do comprador. E, dependendo da maneira como a mensagem midiática é
transmitida, podem ocorrer falhas na interpretação “correta” do conteúdo.
No caso do Nissan Tida, a intenção do anunciante é dar relevância à diferença de
preço em relação às potências de motor. Espera-se o que o ouvinte/audiência perceba a
intenção original, a qual seria: “não devo pagar mais caro por um motor de menor potência”.
Porém, tal mensagem só faz sentido se o ouvinte supor que, tirando o preço e o motor, todo o
restante dos carros comparados são iguais. Caso esta não seja a interpretação relevante ao
ouvinte, surgirá a ideia de que o texto é apenas ofensivo, impedindo e distorcendo a
mensagem original. E isso acontece por uma ameaça à face do ouvinte e/ou concorrente.
Se observarmos o comercial da Frontier, teremos a mesma estratégia utilizada no
caso do Tida. Em que, a Nissan, supostamente, apenas que mostrar o comparativo de motores
dos carros, porém, se o ouvinte se ater a pequenos detalhes, encontrará ameaças a face da
11

concorrente. Por exemplo, na frase “te quiero” que remete à concorrente Ranger, por ser
importada da Argentina.
Tanto nas publicidades do Nissan Tida quanto do Nissan Frontier, a impolidez
encontra-se na forma como é apresentada ao público, pois ao observar o contexto cultural em
que tais comerciais estão inseridos, é inegável que há hostilidade nos comentários que fazer a
respeito dos concorrentes. Porém, ao interpretar apenas o conteúdo apresentado como
mensagem informativa, não haverá tal sensação de incivilidade.
Por ultimo, na propaganda das Havaianas, a intenção central era, por meio do humor,
divulgar que as sandálias Havaianas combinam com qualquer ambiente. Mas, a comparação
“do que é aceito ou não” efetuada por uma avó abordando o assunto “sexo”, gerou polêmica.
Pois, uma parte da sociedade acredita que a forma como o sexo foi tratado, agride a imagem
das avós de família, enquanto que a outra parte da sociedade apenas atribuiu relevância a
forma cômica.
Com isto, podemos dizer que: a (im)polidez na publicidade é determinada
socialmente e emerge da sensibilidade aos contextos.

7 REFERÊNCIAS

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Cambridge: Cambridge University Press, 1987.

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Alicantina de Estudios Ingleses, 11. pp. 45-47. 1998.

GRICE, H. P. Logic and conversation. In: MARTINICH, A. P. (Ed.). The philosophy of


language. Oxford: Oxford University Press, 1975, p. 159-170.

KORZENIOWSKA, Aniela; GRZEGORZEWSKA, Malgorzata (Orgs.). Relevance Studies


in Poland. University of Warsaw, Institute of English studies. 2005.

LAURINDO, Roseméri; LEAL, Andressa. A recepção da publicidade na TV entre


crianças de cinco anos. In: comunicação, mídia e consumo São Paulo. Vol. 5, n. 13, p. 139 –
157, jul. 2008.

NOWIK, Ewa Karolina. Politeness of the Impolite: relevance theory, politeness and banter.
In: Relevance Studies in Poland, volume 2, eds: A. Korzeniowska, M. Grzegorzewska,
Warszawa, pp. 157-166. 2005.
12

PINKER, Steven. Como a mente funciona. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

PIRES DE OLIVEIRA, Roberta; BASSO, Renato Miguel. A Semântica, a pragmática e os


seus mistérios. Revista Virtual de Estudos da Linguagem – ReVEL. V. 5, n. 8, março de
2007.

SPERBER, Dan; WILSON, Deirdre. Relevance: communication and cognition. Oxford:


Blackwell, 2nd Ed., 1995.

VESTERGAARD, T.; SCHRODER, K. A linguagem da propaganda. Trad. João Alves dos


Santos. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

AGENTE DE LETRAMENTO:
O PROFESSOR DE LÍNGUA MATERNA DO SÉCULO XXI

Maria Letícia Naime-Muza ( PPGLg/UFSC)1


João Paulo Vicente Prilla (PPGLg/UFSC)2

RESUMO

Este trabalho propõe reflexões acerca da identidade do professor de língua e linguagem,


enquanto formador de sujeitos críticos e atuantes, por meio de abordagens que contemplem
currículo e formação de professores, letramento, oralidade e escrita, multimodalidade e
gêneros textuais/discursivos. Temos entendido que o professor de português, formado no
paradigma tradicional, poderia dar espaço, na escola, para um outro profissional que atuaria
mais como um agente de letramento do que como um guardião da língua materna (Baltar,
2010). Esse agente de letramento, parafraseando Kleiman (2005), ao contrário de um
superprofessor, seria um organizador de atividades de linguagem que descortinassem aos
estudantes cenários mais aprazíveis para o estudo das linguagens na escola; capaz de
coordenar trabalhos com os usos sociais da escrita, discutindo com seus alunos novas práticas
de linguagem, que permitissem a mobilização de novos gêneros textuais/discursivos, orais,
escritos, verbo-visuais, multissemióticos no ambiente discursivo escolar. Entretanto, para que
seja viável a emersão desse ethos profissional é necessário que a questão seja discutida e
enfrentada desde a formação inicial nos cursos de letras de nossas universidades.

Palavras-chave:
Gêneros textuais/discursivos. Oralidade e escrita. Multimodalidade. Agente de letramento.
Ensino de língua materna.

ABSTRACT

This paper proposes reflections on the identity of the language teacher, as a trainer of critical
and engaged subjects, through approaches that include curriculum and teacher training,
literacy, orality and writing, multimodality and text /discursive genres. We understand that the
Portuguese teacher, formed in the traditional paradigm, could give space in the school to
another professional who would act as literacy agent more than a guardian of the mother
tongue (Baltimore, 2010). This literacy agent, paraphrasing Kleiman (2005) in opposite of a
superteacher, would be an organizer of language activities that could reveal to students the
most delightful language studying settings at school, able to coordinate work with the social
uses of writing, discussing with their students new language practices that would allow the
mobilization of new text/discursive genres, oral, written, verbal-visual, multisemiotic
discourse at school environment. However, for the emersion of this professional ethos be
possible is necessary that the matter be discussed and dealt with since the initial formation in
Letter courses of our universities.

1
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Linguística da UFSC; e-mail: leticiamuza@gmail.com.
2
Mestrando do Programa de Pós-graduação em Linguística da UFSC; e-mail: jpvprilla@hotmail.com.
2

Keywords:
Text/discursive genre. Orality and writing. Multimodality. Literacy agent. Mother tongue
teacher.

1 INTRODUÇÃO
Este trabalho propõe reflexões acerca da identidade do professor de língua e
linguagem, sua valorização como “transformador” social e “mediador” de conhecimento,
enquanto formador de sujeitos críticos e cidadãos atuantes em uma sociedade desigual.
Entendemos que o professor de português, formado no paradigma tradicional, poderia dar
espaço, na escola, para um outro profissional que pudesse atuar mais como um agente de
letramento do que como um guardião da língua materna (Baltar, 2010). Esse agente de
letramento, parafraseando Kleiman (2005), ao contrário de um superprofessor, seria um
organizador de atividades de linguagem que descortinassem aos estudantes cenários mais
aprazíveis para o estudo das linguagens na escola, capaz de coordenar trabalhos com os usos
sociais da escrita, discutir com seus alunos novas práticas de linguagem, que permitissem a
mobilização de novos gêneros textuais/discursivos, orais, escritos, verbo-visuais,
multissemióticos no ambiente discursivo escolar. Entretanto, para que seja viável a emersão
desse ethos profissional é necessário que a questão seja discutida e enfrentada desde a
formação inicial nos cursos de letras de nossas universidades e que continue e tenha eco na
formação em serviço. Queremos mostrar a relevância de investimento e políticas públicas na
formação continuada dos professores e a reflexão sobre os currículos das universidades e das
escolas que pensem na formação desse profissional e desse aluno-cidadão. Discutiremos,
dessa forma, abordagens que contemplem currículo e formação de professores, letramento,
oralidade e escrita, multimodalidade e gêneros textuais / discursivos.

2 CURRÍCULO
Inicialmente, paira a pergunta: que currículo é esse que constitue uma forma
mecânica e autoritária de pensar sobre como organizar um programa, proposto pelos
“gestores” e que demonstra falta de confiança na capacidade dos professores, alunos e
comunidade? Os centros e instituições de poder - secretarias de educação, supervisão escolar -
estabelecem o que deve ser feito em classe. Sua maneira autoritária nega o exercício da
criatividade entre professores e estudantes, comandando e manipulando, à distância, as
atividades dos educadores e dos educandos. Observamos que não há prática educativa sem
conteúdo, quer dizer sem objeto de conhecimento a ser ensinado pelo educador e apreendido,
para poder ser aprendido pelo educando. Se pensamos um currículo que valorize a cultura
3

local hibridizada com a cultura global, questionamos sobre que participação têm os
estudantes, os pais, os professores, os movimentos populares na discussão em torno da
organização dos objetos de conhecimento. Além disso, refletimos sobre que conteúdos
ensinar, a quem e a favor de que e de quem, contra o quê e quem, quem é que decide sobre
que conteúdos ensinar e, principalmente, como ensinar.
O objetivo do ensino da linguagem na escola é implementar práticas sociais de
uso da língua. No entanto, o ensino de Língua Portuguesa, marcado por mudanças
consideráveis ao longo dos anos que, segundo Geraldi (2010, p. 79), é:

um ensino que se deslocou vagarosamente de objetos a práticas, entre nós ao longo


dos últimos 40 anos, está na contramão dos projetos neoliberais de sociedade e
escola. Objetos podem ser mercadorias; práticas são atividades voltadas para fins
definidos individualmente ou coletivamente (...), mas uma questão crucial: como
conciliar a construção de competências práticas pelo consumo de mercadorias?
Infelizmente, foi para isso que serviu a leitura dos estudos sobre gêneros do Círculo
de Bakhtin.(...) para que a mercadoria se tornasse palatável ao sistema, foi preciso
esquecer a estabilidade relativa dos gêneros; o entrecruzamento genérico, a
correlação genética com as atividades sociais e sua distinção entre gêneros primários
e secundários deixa de ser processual para se tornar ontológica. (...) Assim
desbastado de toda sua originalidade, o estudo bakhtiniano, mantida a referência à
linguística da enunciação, se prestou a um deslocamento no ensino que vai das
tentativas de centração na aprendizagem através das práticas, para objetos definidos
previamente, seriáveis, unificados e exigíveis em avaliações nacionais.

Observa-se que, infelizmente, a volta da objetificação do ensino e aprendizagem


das práticas de usos sociais da leitura e escrita para “haver” e “ver” o que ensinar definido,
fixado, pré-estabelecido, distribuído em diferentes graus e séries para que, segundo Geraldi
(2010) se tenha um capital escolar vendável e consumível. Corremos um sério risco de
retornarmos “ao passado sob o manto do recente, do novo, do atual” (GERALDI, 2010, p.
80), desconsiderando a realidade social dos alunos, o entorno das escolas, as culturas locais.
“Encontrando um objeto de ensino, o espírito normativo reencontra sua tranquilidade”
(GERALDI,2010, p.80), encarcerando as práticas e reforçando um ensino descompromissado
com o futuro. Portanto, o risco da objetificação dos gêneros existe e é real por conta das
políticas públicas de querer “unificar” o ensino relembrando um passado não tão distante,
embora sob a égide de considerar as diversas realidades sociais e culturais.

3 FORMAÇÃO DE PROFESSORES INICIAL E CONTINUADA


A formação inicial dos professores nem sempre preenche ou contempla a
realidade e dificuldades enfrentadas dia a dia pelos professores nas escolas. O currículo nas
4

universidades pensa o ideal sem questionar o real, ficando academia de um lado e escola de
outro.
Um conjunto de medidas governamentais visando à melhoria e normatização do
sistema educacional pauta o cotidiano do professor: Parâmetros Curriculares Nacionais para o
Ensino Fundamental e Médio, Programa Nacional de Avaliação Permanente do Livro
Didático, diversos testes padronizados para avaliar as capacidades de ler, escrever e de usar
conhecimentos matemáticos do aluno da escola pública, como o SAEB, e o ENEM, a
exigência de diploma universitário para poder continuar atuando na escola obedecendo à Lei
de Diretrizes e Bases no. 9394/96 afligem o já tenso e atribulado dia a dia do professor, que
encontra dificuldades para entender a linguagem dos documentos oficiais supostamente a eles
dirigidos e para implementar as propostas dos livros didáticos para ele sugeridos, enquanto
corre o risco de ser exonerado ou substituído caso não volte aos bancos escolares para dar
início à sua formação universitária.
Existe uma discrepância entre o professor/alfabetizador ideal, pressuposto nos
documentos oficiais, e o professor/alfabetizador real, que, até a pouco tempo, era formado em
cursos profissionalizantes de nível médio ou em faculdades particulares de baixo prestígio
acadêmico, com pouca infra-estrutura e sem tradição de pesquisa. A mídia, geralmente
antagônica e crítica do trabalho realizado pelos professores, incrementa os sentimentos de
impotência e frustração entre os educadores, cujas vozes estão sempre ausentes do debate que
lhes diz respeito. Dessa forma, o professor não consegue se ver como protagonista do
processo de ensino e aprendizagem pelo qual é responsável.
A formação continuada de professores é de imensa importância, pois é uma forma
de analisar tanto a escola pública quanto a privada inserida no espaço democrático e propor
uma reflexão sobre o papel do professor como intelectual transformador. Com a intenção de
criar espaços de discussão democrática, refletindo o currículo no espaço social em que está
inserida a escola, para a formação do conhecimento escolar, mediante a socialização e
reflexão sobre as práticas pedagógicas, podemos discutir propostas sobre a construção de um
currículo em rede.
Na construção do currículo, é evidente a necessidade de perceber a
contribuição dos educadores, sua formação inicial e, no exercício da prática docente, sua
formação continuada, pois, estudos de um currículo democrático e de interesse social
dependem da proposta política pedagógica da escola e o espaço social onde está inserida.
Não há como esquecer as contribuições dos professores propostas no exercício de suas
práticas.
5

4 PROFESSOR COMO AGENTE DE LETRAMENTO: VIRADA PRAGMÁTICA


A noção de agente de letramento está apoiada na premissa de que vir a ser um
professor envolve questões identitárias relacionadas à aquisição e ao uso da leitura e escrita.
Em um quadro social que valorize as práticas locais dos grupos minoritários, uma
forma de legitimação das práticas do professor envolve a transformação das estratégias dos
cursos universitários a fim de formarem professores para virem a ser agentes capazes de agir
em novos contextos com novas ideias sobre letramento. Os processos que contribuem para as
construções identitárias são discursivos. A linguagem constitui o sujeito que, por sua vez, a
constitui, as identidades profissionais – vir a ser professor, por exemplo– são construídas
discursivamente nas instituições formadoras, onde os alunos aprendem a falar como
professores. Entendendo que a essência da linguagem é dialógica, cada palavra já tem o
sentido do outro nela inscrito e cada indivíduo se constitui intersubjetivamente através das
palavras do outro. Daí segue-se que as interações acadêmicas são centrais para o processo: o
aluno se afilia a uma ou outra ideologia ou discurso profissional nessas interações, em
particular àqueles discursos que tendem a oferecer respostas para as questões que afetam ou
afetarão o cotidiano de suas práticas.
O dialogismo postula que a interação é fundamental na vida social. Ela é
determinante na construção das identidades discursivas e situadas, que decorrem das
orientações momentâneas, locais, circunstanciais, passo a passo, dos participantes ao discurso
do outro.

5 O ESPAÇO DA ORALIDADE E ESCRITA NO PROGRAMA ESCOLAR


Os diferentes usos da língua que instituem relações interpessoais na sociedade, ou
seja, os gêneros discursivos, constituem instrumentos por meio dos quais nos relacionamos
com os outros para atender aos diferentes propósitos de nossas vivências sociais. Os gêneros
correspondem a usos da língua, sócio-historicamente construídos tanto na modalidade oral
quanto na modalidade escrita da língua.
O ensino de línguas a partir dos gêneros discursivos tem sido um desafio nas escolas
públicas brasileiras. O PCN (Parâmetro Curricular Nacional) aponta as diretrizes curriculares
para o ensino e aprendizagem nessa perspectiva, propondo o uso da linguagem em diferentes
situações de comunicação, para possibilitar a inserção social e ampliar, consequentemente, as
condições de participação dos educandos no exercício de sua cidadania. Para isso a escola
deve pensar, organizar e preparar um conjunto de atividades que, progressivamente e
correlacionadas, possibilite ao aluno “utilizar a linguagem na escuta e produção de textos
6

orais e na leitura e produção de textos escritos de modo a atender a múltiplas demandas


sociais, responder a diferentes propósitos comunicativos e expressivos, e considerar as
diferentes condições de produção do discurso” (PCN, 1998, p. 32). Apropriamo-nos dos
conteúdos ou objetos de conhecimento quando os transformamos em conhecimentos próprios,
ou seja, quando mobilizamos conscientemente o conhecimento ao interagirmos com o outro.
“É nas práticas sociais, em situações linguisticamente significativas, que se dá a expansão da
capacidade de uso da linguagem e a construção ativa de novas capacidades que possibilitam o
domínio cada vez maior de diferentes padrões de fala e de escrita” (PCN, 1998, p. 34).
Assim, segundo Kleiman (2002), a prática oral do professor é um fator importante
para a inserção dos alunos nas práticas sociais de uso não somente da língua escrita, mas
também da língua oral. O professor deve conhecer seu aluno, a comunidade e seu entorno
(local, social e cultural) que determinará a inter-relação, comunicação, interpretação e
negociação de sentidos do processo comunicativo. A concepção de competência comunicativa
deve levar em conta a dimensão social no agir interacional. Nesse sentido, o ensino de línguas
deve se materializar a partir dos gêneros textuais pensando no uso da linguagem em contextos
de sentido, em práticas situadas e na reflexão sobre a língua oral e escrita. Os elementos que
determinam e integram a competência comunicativa são os aspectos relativos à possibilidade,
adequação, viabilidade e realização da linguagem segundo as normas, regras e parâmetros do
evento de fala, ou de letramento, numa situação comunicativa (Kleiman, 2002). Aqui
podemos distinguir os conceitos relacionados à competência comunicativa e discursiva sendo
que aquela equivale à capacidade de alguém se comunicar com o outro e esta à capacidade de
produzir enunciados de um discurso específico em uma situação igualmente específica. Para
Baltar (2006, p. 48):

Competência discursiva é um amálgama de capacidades que o usuário de uma língua


natural atualiza e concomitantemente desenvolve, quando participa das atividades
situadas de linguagem que ocorrem nos diversos ambientes discursivos da
sociedade. Além de capacidades linguísticas, textuais e comunicativas, para viver de
forma autônoma, esse usuário necessita compreender as diferentes formações
discursivas e os respectivos discursos que compõem os ambientes discursivos dessa
sociedade. Dominar a maior gama possível dos gêneros textuais, orais e escritos,
disponível no inventário construído socioistoricamente corrobora para o usuário
desenvolver sua competência discursiva, já que é por intermédio dos gêneros
textuais que se dá toda interação sociodiscursiva. A competência discursiva do
usuário de uma língua abarca todas essas capacidades, é dinâmica e está em
constante desenvolvimento, pois é atualizada a cada momento em que ele participa
de uma atividade situada de linguagem, de forma ativa e responsiva.

Essa competência comunicativo-discursiva permite ao participante de um evento de


fala ou letramento usar a linguagem em uma determinada situação comunicativa e em um
7

determinado contexto social. Os parâmetros do possível, do adequado ou apropriado, do


viável e do realizável envolvem conhecimentos e capacidades de uso da linguagem aplicados
aos contextos interacionais. Uma dimensão que deve ser contemplada na competência
comunicativo-discursiva:

[...] são os determinantes sócio-históricos, próprios de uma concepção social e


interacional da linguagem, em que o social já está inscrito e, portanto, constituindo o
sujeito. Esse conhecimento sobre os usos da linguagem está integrado no conceito
de gênero discursivo de Bakhtin (1953), cujo funcionamento numa situação
comunicativa integra os aspectos linguístico-textuais, cognitivos, sócio-
interacionais, históricos e culturais relevantes para usar a linguagem. (...) A
heterogeneidade dos contextos construídos na interação e as relações
interdiscursivas mostram as possibilidades de reproduzir, criar ou subverter os
parâmetros da situação, com isso evitando qualquer possibilidade de determinismo
(KLEIMAN, 2002, p. 27-8).

Observamos que, conforme afirma Marcuschi (2008), hoje, se não podemos mais separar fala
e escrita, pelo menos não podemos mais observar tão distintamente as semelhanças e diferenças entre
fala e escrita, pois há uma nova concepção de língua e texto, um novo objeto de ensino considerando
língua e texto como um conjunto de práticas sociais.
Escrita e fala, além de modos de representação imagética, organizam quase todas as práticas
sociais convencionando-se chamá-las de práticas de letramento ou práticas discursivas, de modo que
estão diretamente relacionadas à realidade do sujeito:

A escrita é usada em contextos sociais básicos da vida cotidiana, em paralelo direto


com a oralidade. Estes contextos são, entre outros: o trabalho, a escola, o dia-a-dia, a
família, a vida burocrática, a atividade intelectual. Em cada um desses contextos, as
ênfases e os objetivos do uso da escrita são variados e diversos. Inevitáveis relações
entre escrita e contexto devem existir, fazendo surgir gêneros textuais e formas
comunicativas, bem como terminologias e formas típicas. Seria interessante que a
escola soubesse algo mais sobre essa questão para enfrentar sua tarefa com maior
preparo e maleabilidade, servindo até mesmo de orientação na seleção de textos e
definição de níveis de linguagem a trabalhar (MARCUSCHI, 2008, p. 19).

Partindo de uma concepção sociointeracionista de linguagem, as relações entre fala e escrita


devem ser tratadas como um contínuo determinado pelos usos sociais situados da escrita em uma
sociedade grafocêntrica. Desde um bilhete escrito a uma conferência oral, são inúmeras as
possibilidades de interação mediadas por diferentes gêneros, que organizam diferentes práticas
discursivas em sociedade3.

3
Segundo Kleiman (2005, p. 59) A compreensão do funcionamento das modalidades oral e escrita em sociedade
como um contínuo foi primeiramente aludida no texto Integration and involvement in speakin, writing, and oral
literature, do lingüista americano Wallace Chafe, publicado em 1982, no livro Spoken and written language:
exploring orality and literacy, organizado pela sociolinguista americana Déborah Tannen.
8

Assim, é necessário dizer que, fala e escrita não possuem supremacia uma sobre a outra. Isto
quer dizer que não há propriedade negativa ou privilegiada de uma em relação à outra: oralidade e
escrita constituem-se como forma de compreensão e expressão complementares na interação humana.
É possível não só ensinar a escrever textos, como também a se expressar oralmente em
situações públicas e extra-escolares, quando se proporciona na escola múltiplas ocasiões de escrita e
de fala, sem que cada produção se transforme, necessariamente, no objeto de ensino sistemático. Isso
se torna uma realidade, ao criarmos um contexto de produção que permite aos alunos apropriarem-se
das noções, das técnicas e dos instrumentos, necessários ao desenvolvimento de expressão oral e
escrita, em situações diversas de comunicação (Portal do MEC).
Assim, tanto a oralidade quanto a escrita cumprem papéis distintos em seus diferentes
contextos de uso e são imprescindíveis na sociedade atual, podendo ser trabalhadas sistematicamente
na escola para que os alunos desenvolvam sua competência discursiva.

6 MULTIMODALIDADE: NOVAS MOTIVAÇÕES SOCIAIS E POSSIBILIDADES


DE ENSINO
Atualmente, os novos estudos do letramento têm-se voltado em especial para os
letramentos locais ou vernaculares, de maneira a dar conta da heterogeneidade das práticas
não valorizadas e, consequentemente, pouco investigadas.
Podemos dizer que, por efeito da globalização, o mundo mudou muito nas duas
últimas décadas. É especialmente importante destacar as mudanças relativas aos meios de
comunicação e à circulação da informação no âmbito de exigências de novos letramentos. O
surgimento e a ampliação contínua de acesso às tecnologias digitais da comunicação e da
informação implicaram algumas mudanças que ganham importância na reflexão sobre os
letramentos: a intensificação e a diversificação da circulação nos meios de comunicação
analógicos e digitais (os quais distanciam-se hoje dos meios impressos) ocasionando maneiras
de ler, de produzir e de fazer circular textos nas sociedades (Chartier, 1997); a diminuição das
distâncias espaciais (geográficas e ou culturais), desenraizando as populações e
desconstruindo identidades; a diminuição das distâncias temporais ou a contração do tempo; a
multissemiose ou a multiplicidade de modos de significar que as possibilidades
multimidiáticas e hipermidiáticas do texto eletrônico trazem para o ato de leitura (é preciso
relacionar o texto verbal com um conjunto de signos de outras modalidades de linguagem); o
fato de os textos multissemióticos terem ultrapassado os limites dos ambientes digitais e
invadido também os impressos.
As mudanças na escola- principalmente a pública- sobretudo na universalização e
ampliação do acesso à educação tem impactos visíveis nos letramentos escolares: o ingresso
9

de alunos e de professores das classes populares nas escolas públicas trouxe para a escola
letramentos locais ou vernaculares antes desconhecidos e ainda hoje ignorados. Isso cria uma
situação de conflito entre práticas letradas valorizadas e não valorizadas na escola (Kleiman
1995, 1998).
Hamilton (2002) aponta para o fato de que muitos dos letramentos que são influentes e
valorizados na vida cotidiana das pessoas e que têm ampla circulação são também ignorados e
desvalorizados pelas instituições educacionais. Um exemplo que ilustra tal afirmação são as
redes sociais e informais que sustentam essas práticas letradas: as redes e comunidades
virtuais de que jovens e adolescentes de todas as classes sociais participam permanecem
desconhecidas e apagadas nas escolas, quando não têm seu acesso proibido, como é o caso da
proibição de acesso ao Orkut, Facebook, Twitter, MSN em muitas escolas e universidades
conectadas.
Dialogando com Rojo (2009, p. 106-107) a escola de hoje é um universo onde
convivem letramentos múltiplos e diferenciados, cotidianos e institucionais, valorizados e não
valorizados, locais e globais, vernaculares e universais, sempre em contato e em conflito,
sendo alguns rejeitados ou ignorados e apagados e outros constantemente enfatizados. Nessa
perspectiva, o que significa trabalhar a leitura e a escrita para o mundo contemporâneo? Como
delinear “políticas de letramento ao longo da vida” (Hamilton, p. 2002) que sustentem e
desenvolvam, efetivamente, os recursos, processos e metas que existem e são requeridos na
vida social contemporânea?
Um dos objetivos principais da escola do século XXI é justamente possibilitar que os
alunos possam participar das várias práticas sociais que se utilizam da leitura e escrita –
letramentos- na vida urbana, de maneira ética, crítica e democrática. Para tanto, é necessário
que a educação leve em conta os letramentos múltiplos, considerando os letramentos das
culturas locais de seus agentes – professores, alunos e comunidade escolar - e colocando-os
em contato com os letramentos valorizados, institucionais e universais. Além disso, deve
considerar os letramentos multissemióticos exigidos pelas interações contemporâneas,
ampliando a noção de letramentos para o campo da imagem, do som, de outras semioses que
não somente a escrita. O conhecimento e as capacidades relativas a outros meios semióticos
estão ficando cada vez mais necessários no uso da linguagem, tendo em vista os avanços
tecnológicos. As cores, as imagens, os sons, o design, etc., que estão disponíveis na tela do
computador e em muitos materiais impressos, têm transformado o letramento autônomo
tradicional em um tipo de letramento insuficiente para dar conta dos letramentos necessários
para agir na vida contemporânea.
10

Os gêneros multimodais referem-se àqueles que utilizam além da linguagem verbal


uma linguagem não-verbal que ao se articularem geram possibilidades de sentido (Kress e
Van Leeuwen, 2001). Com isso, devido à mudança nas formas de impressão e visualização
dos textos no ciber espaço, e também, a existência da possibilidade de articulação entre texto
e imagem na mídia televisiva e cinematográfica, o papel do leitor sofre significativas
modificações, visto que se torna primordial para uma leitura eficaz e crítica que o indivíduo
seja capaz de reagrupar suas estruturas sociodiscursivas para conseguir interpretar e entender
esses tipos de textos.
Coêlho (2010) aponta que “a linguagem em seus aspectos de representação da vida co-
evoluiu com a maneira de construção da sociedade contemporânea”. Dessa maneira, cultura,
história e linguagem interelacionam-se e transformam-se constantemente, na medida em que
representam o agir, o pensar, o ser e o sentir do ser humano, simultaneamente, multifacetado e
individual que produz a realidade tanto cotidianamente quanto nos textos
multimodais/multissemióticos. O advento da imagem como simulacro da instituição simbólica
e semiótica da realidade social evidencia mudanças na forma de ler e produzir textos, que
passam a ser vistos como construtos multimodais, nos quais a modalidade escrita é vista como
um dos modos de representação (Mozdzenshi, 2008). Portanto, imagem e palavra mantêm
uma relação cada vez mais próxima, cada vez mais integrada.
Com o “boom” das novas tecnologias, com muita facilidade se criam novas imagens,
novos layouts, bem como se divulgam tais criações para uma ampla audiência. Todos os
recursos utilizados na elaboração dos gêneros textuais exercem uma função retórica na
construção de sentidos dos textos. De acordo com Dionísio (2006, p.131-144), cada vez mais
se observa a combinação de material visual com a escrita; vivemos sem dúvida, numa
sociedade cada vez mais visual.
Bakhtin (2003) postula que a linguagem é concebida como um mecanismo de
interação social que tanto reflete quanto retrata a vida cotidiana e que sempre é dialógica.
Desse modo, os gêneros textuais ultrapassam as manifestações discursivas e sociocognitivas
dos tratados político-ideológicos que moldam e constroem as relações entre os indivíduos, do
mesmo modo que determinam os papéis sociais a serem seguidos nas diferentes situações do
viver em sociedade.
O discurso verbal e não-verbal, dentro de cada gênero textual é resultado de uma ação
comunicativa tanto coletiva quanto individual que se atualiza, constantemente, pelo fato da
interatividade entre ficção e realidade que permite a verossimilhança. Não devemos entender
tal verossimilhança como uma “xerox” exclusiva do real, mas uma possibilidade de aceitação
11

do enredo da história, isto é, o reconhecimento das redes de significados plausíveis para a sua
compreensão.
Por exemplo, o gênero mangá (bem como outros gêneros emergentes/ recentes que
ainda circulam na esfera escolar de maneira “clandestina”, trazidos pelo alunado que os
conhece e explora cotidianamente fora da sala de aula), diante do contexto da disseminação da
informação em um toque, da iconização da cultura e sua transposição para a televisão e para a
tela do cinema, bem como, a sua influência na elaboração dos quadrinhos nacionais (Turma
da Mônica Jovem é um exemplo desse fenômeno) e mundiais, torna-se um evento de
dimensão global que legitima e dissemina parâmetros de comportamento, maneiras
ideológicas do pensar, do agir e do dizer da cultura japonesa (nesse caso), ao mesmo tempo
em que simboliza os mecanismos ideológico-culturais de uma sociedade capitalista. Dessa
maneira, essa cultura pop abrange uma diversidade de leitores de todas as faixas etárias
(crianças, jovens e adultos) que fascinados pela sua linguagem híbrida de leitura acessível e
prazerosa projetam seus sonhos e fantasias, escondem seus medos e frustrações em uma
forma de entretenimento e deleite.
Por serem narrativas icônico-verbais, os mangás, ao serem lidos precisam acionar uma
rede de significações sociocognitivas, o que requer que o leitor seja multiletrado para poder
perceber que esse tipo de texto não é tão inocente quanto parece ser. E isso é uma
característica constante em todos os textos multimodais, hipertextuais e multissemióticos.
Para tanto, propomos a exploração desses textos nas escolas, ancorada em uma prática
pedagógica que possibilite ao aluno, orientado pelo seu professor/agente de letramento, ser
um sujeito crítico e reflexivo sobre os textos que lê e produz, para poder compreender,
interpretar e ressignificar os efeitos de sentido e os significados tanto explícito quanto
implícito nos textos que utilizam tanto linguagem verbal quanto não-verbal.
Assim, tomando novamente como exemplo a narrativa sequencial que é o mangá, a
linguagem fluida e oralizada com suporte nas imagens estilizadas é um mecanismo que seduz
ao mesmo tempo que manipula discretamente seus leitores por meio dos estereótipos sociais
disseminados pelos personagens dessas histórias. Nesse sentido, entendemos que esse gênero
– bem como todos os textos e gêneros com suporte na multimodalidade - se presta a
atividades de letramento escolar por se tratar de uma prática discursiva emergente que está
relacionada à aparição de novas motivações sociais, que são resultantes de novas
circunstâncias de comunicação associadas à produção tecnológica, constituindo assim um
novo ambiente de interação social que precisa ser estudado e didatizado.
12

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Assim, currículo, formação de professores e perspectivas metodológicas fazem parte
de um todo, ou seja, de um projeto-político pedagógico que deverá ser construído
coletivamente em cada espaço de educação.
Não adianta produzirem-se currículos ou técnicas sofisticadas sem o devido
investimento na capacitação do professor e na sua valorização profissional, além de ser
revisto o currículo da formação inicial nas universidades. Diminuir-se-ia, desta forma, a
grande lacuna entre escola e universidade, entre teoria e prática, entre o real e o ideal.
Acreditamos que o professor como agente de letramento é um sujeito multiletrado e
crítico, que leva em consideração a socioistoricidade de seu alunado, um cidadão atuante em
várias esferas sociais (por meio de seu trabalho que ultrapassa as paredes da escola), e
organiza o processo de ensino e aprendizagem da língua materna, como a oralidade e os
textos multimodais.
Um dos objetivos principais da escola do século XXI é justamente possibilitar que os
alunos possam participar das várias práticas sociais que se utilizam da leitura e escrita –
letramentos- na vida urbana, de maneira ética, crítica e democrática. Para tanto, é necessário
que a educação leve em conta os letramentos múltiplos, considerando os letramentos das
culturas locais de seus agentes – professores, alunos e comunidade escolar - e colocando-os
em contato com os letramentos valorizados, institucionais e universais. Além disso, deve
considerar os letramentos multissemióticos exigidos pelas interações contemporâneas,
ampliando a noção de letramentos para o campo da imagem, do som, de outras semioses que
não somente a escrita. O conhecimento e as capacidades relativas a outros meios semióticos
estão ficando cada vez mais necessários no uso da linguagem, tendo em vista os avanços
tecnológicos. As cores, as imagens, os sons, o design, etc., que estão disponíveis na tela do
computador e em muitos materiais impressos, têm transformado o letramento autônomo
tradicional em um tipo de letramento insuficiente para dar conta dos letramentos necessários
para agir na vida contemporânea.

8 REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BRASIL, Parâmetros Curriculares Nacionais: primeiro e segundo ciclo do ensino


Fundamental – Língua Portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998.

CHARTIER, R. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo. EDUNESP, 1998.


13

COÊLHO, Célia T. Mangá: uma ferramenta didática para multiletramentos.


Universidade Estadual de Londrina, 2010. Disponível
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em 23-04-2011.

DIONÍSIO, Ângela P. Gêneros multimodais e multiletramento. In: KARWOSKI, A.


GAYDECZKA, M.; BRITO, K. S. (Orgs.) Gêneros textuais: reflexões e ensino. Rio de
Janeiro:Lucerna, 2006. p. 131-144.

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Editores, 2010.

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R. R. F., Hanson, A.; Clarke, J. (orgs.) Supporting Lifelong Learning, Volume 1:
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_____. Ângela B. Professores e agentes de letramento: identidade e posicionamento social.


Filol. lingüíst. port., n. 8, p. 409-424, 2006.

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KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T.. Multimodal discourse: the modes and media of
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_____. G. Alfabetização na Idade Media Nova. London: Routledge. London: Routledge,


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LUYTEN, Sonia Bibe. Mangá: O poder dos quadrinhos japoneses. São Paulo: Hedra, 2001.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. São


Paulo: Cortez, 2008.

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cartilhas jurídicas. Recife: Editora Universitária (UFPE) / Coleção Teses, 2008.

PORTO, Rita de Cassia Cavalcanti. Currículo, formação de professores e repercussões


metodológicas. Disponível em:
www.smec.salvador.ba.gov.br/site/documentos/.../curriculo.pdf. Acesso em: 29/09/2011.
14

ROJO, Roxane. Letramentos múltiplos: escola e inclusão social. São Paulo: Parábola
Editorial,2009.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

AINDA O LIVRO DIDÁTICO? PENSANDO O IMPRESSO,


O DIGITAL E O(S) (MULTI)LETRAMENTO(S)

Fabiana Panhosi Marsaro (PPG-LA/UNICAMP)1

RESUMO

Resistindo às constantes transformações do mundo contemporâneo, o livro didático – no


contexto deste trabalho especificamente o livro didático de Língua Portuguesa (LDP) –
continua a ocupar seu lugar de material de ensino-aprendizagem majoritário nas escolas
brasileiras, principalmente públicas, consolidado e sustentado ao longo das últimas décadas.
Tendo como traço constitutivo o fato de ser ao mesmo tempo um instrumento pedagógico e
um produto comercial, o LDP determina não só muitas das práticas que acontecem em sala de
aula, mas também de forma direta a lucratividade das editoras que o produzem. Diante do
desenvolvimento e popularização das novas tecnologias, porém, a escola está diante do
paradoxo de educar através de materiais predominantemente impressos para uma realidade
que é cada vez mais online, digital, multimodal e plural. Torna-se, assim, cada vez mais
necessário se pensar em novas propostas, não de suportes e plataformas apenas, mas de novos
gêneros com fins didáticos que possam dar conta das demandas atuais. Nesse contexto, neste
trabalho pretendemos analisar de que forma as editoras de livros didáticos de língua
portuguesa têm respondido às novas demandas para a educação linguística, analisando
especificamente os portais que têm sido propostos concomitantemente aos LDP como forma
de associar o livro impresso às tecnologias digitais. Retomando a noção de letramentos e a
trajetória que o conceito percorreu ao longo do tempo, concluímos, em nossa análise, que as
propostas e estratégias desses sites ficaram aquém do que seria desejável e produtivo para o
desenvolvimento dos multiletramentos e dos letramentos multissemióticos.

Palavras-chave:
Livro didático. Mercado editorial. Sites.

ABSTRACT

The textbook – and in this paper‟s context, the Brazilian Portuguese textbook – endures the
constant transformations that occur in the contemporary world, and still occupies its place as a
consolidated teaching-learning material in Brazilian schools, mainly the public ones. The
Brazilian Portuguese textbooks have as their constitutive feature the fact of being both
educational tool and commercial product, wich determines not only the practices that occur in
the classroom, but also the publishers‟ profitability. While sees the new technologies
development and democratization, the school faces the paradox of teaching through printed
material in a reality where things are online, digital, multimodal and plural. Thus, it is
necessary to think in new genres, with educational purposes, wich take care of nowadays‟
demands. In this context, we aim to analyze in this paper the ways publishers answer the new
demands in linguistic education, analyzing specifically the large websites that have been
presented concomitantly to the textbooks. Theses websites are, allegedly, a way to link the
printed material to the digital technologies. Resuming the notion of literacies and the path
walked by that concept through time, we conclude, in our analysis, that the strategies and
approaches made by those websites are under the desireble level of multiliteracies‟ and multi-
semiotic literacies‟ development.
1
Mestranda em Linguística Aplicada no Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP, sob orientação da
Profª Drª Roxane Rojo; e-mail: fabiana.marsaro@gmail.com.
2

Keywords:
Textbook. Publishing market. Sites.

Resistindo às constantes transformações do mundo contemporâneo, o livro didático –


no contexto deste trabalho especificamente o livro didático de Língua Portuguesa, doravante
LDP – continua a ocupar seu lugar de material de ensino-aprendizagem majoritário nas
escolas brasileiras, principalmente públicas, consolidado e sustentado ao longo das últimas
décadas. Tendo como traço constitutivo o fato de ser ao mesmo tempo um instrumento
pedagógico e um produto comercial, o LDP determina não só muitas das práticas que
acontecem em sala de aula, mas também de forma direta a lucratividade das editoras que o
produzem. Não é sem razão, portanto, que nos últimos anos a Literatura a seu respeito venha
sendo continuamente ampliada, inclusive com pesquisas que procuram “compreender o
funcionamento desse subsetor editorial, em torno do qual se definem políticas educacionais,
desenvolvem-se processos de controle curricular e se organizam práticas de escolarização e
letramento2” (BATISTA; ROJO; ZUÑIGA, 2005, p. 1).
Entretanto, como Lemke (2010) faz questão de provocar,

faz um bom tempo que as tecnologias do letramento não são tão simples quanto a
caneta, a tinta e o papel. E na era da imprensa, assim como antes dela, o letramento
raramente esteve atrelado de forma estrita ao texto escrito (LEMKE, s/p, 2010).

De fato, assim como as “novas tecnologias diversificam e complexificam


continuamente as práticas de linguagem, os perfis dos sujeitos letrados e as ideologias sobre o
papel da leitura e da escrita” (BUZATO, 2009, p. 12), “o volume de informações [que
circulam na sociedade] [...] é constantemente superado, colocando novos parâmetros para a
formação dos cidadãos” (ROJO, 2009, p. 89). As crianças e adolescentes que atualmente
frequentam as escolas, pelo simples fato de terem nascido após a década de 70, junto a todos
os outros chamados nativos digitais, pertencem à geração conhecida como “„geração
(inter)net‟ (netgeneration) ou „geração digital‟ (digital generation)” (NOGUEIRA, 2007, p.
80), mesmo que essa nomenclatura não acompanhe necessariamente o acesso a computadores
e a conexões de boa qualidade, como acontece com grande parte da população. Dessa forma,
a escola está diante do paradoxo de educar essa geração através de materiais
predominantemente impressos para uma realidade que se diz – e que é – cada vez mais online,

2
Ainda que a citação utilize o termo “letramento”, no singular, destacamos que a perspectiva que adotamos é a
dos letramentos múltiplos, necessariamente no plural, a partir dos novos estudos do letramento (NEL/NLS). Esse
posicionamento será justificado ao longo deste trabalho, uma vez que esse é um de seus propósitos.
3

digital, multimodal e plural, mesmo que as necessidades atuais de leitura e aprendizagem já


não sejam mais totalmente saciadas (ou motivadas) apenas pelo texto verbal escrito.
Podemos dizer que, à instituição escolar

cabe a responsabilidade de criar condições para que o seu alunado se aproprie de


letramentos que, de fato, possibilitem o seu trânsito em diversas esferas da atividade
humana presentes nas sociedades contemporâneas (GRIBL, 2009, p. 46).

Torna-se, assim, cada vez mais necessário se pensar em novas propostas, não de suportes e
plataformas apenas, mas de novos gêneros com fins didáticos que possam dar conta das
demandas atuais. Lemke (2010), entendendo a complexidade da tarefa, questiona:
Quais serão as novas tecnologias da informação que poderão apoiar melhor um
paradigma de aprendizagem interativo e fazer uso desses letramentos
multimidiáticos e informáticos que serão genuinamente necessários para todos?
(LEMKE, 2010)

Podemos somar a essa questão muitas outras: Como as editoras vêm lidando com essa
realidade? Existem realmente maneiras de o livro impresso educar para o digital? Por quais
adequações têm passado os LDP para atender às novas demandas do mundo contemporâneo?
Como o mercado editorial encara esse novo público, que é o das crianças e adolescentes da
geração digital? Que pressupostos sobre os letramentos estão implícitos nessas novas (ou
velhas) práticas?
Antes de tentar responder a essas inquietações, ou pelo menos problematizá-las,
consideramos importante nos debruçarmos mais detidamente sobre a noção de letramentos e a
trajetória que o conceito percorreu ao longo do tempo, transformando-se para acompanhar os
impactos profundos dos fatores históricos, sociais e culturais sobre as já complexas relações
entre leitura e escrita na sociedade.
O termo letramento foi utilizado pela primeira vez no Brasil, segundo Kleiman (1995),
em 1986, por Mary Kato, como tradução do vocábulo inglês “literacy”3, procurando dar conta
da noção que hoje para nós é a dos alfabetismos. À época, estava claro que o conceito de
alfabetização, relativo ao processo – aparentemente simples4 – de “construção do
conhecimento sobre a relação entre os sons e as letras” (ROJO, 2009, p. 69) era insuficiente,
uma vez que considerar alguém como analfabeto ou alfabetizado dizia muito pouco sobre o
“estado ou condição” (SOARES, 2003 [1995], p. 29) daquele sujeito e sobre aquilo que ele

3
Ainda hoje usado na língua inglesa tanto para alfabetização quanto os letramentos.
4
As arbitrariedades fono-ortográficas da língua, as relações entre língua oral e língua escrita e as variedades
regionais e sociais são apenas alguns dos complicadores no processo de alfabetização que não é, portanto, “nem
simples, nem transparente e exige um longo trabalho de construção por parte dos alunos e de ensino pelos
professores” (ROJO, 2009, p. 69).
4

era efetivamente capaz de fazer com a leitura e a escrita. Tornou-se necessário, portanto, um
novo conceito, “de natureza sobretudo psicológica e de escopo individual” (ROJO, 2009, p.
45), que permitisse mensurar, entre os indivíduos de uma população, o quão aptos eles
estavam ou não para funcionar em uma sociedade que tinha suas práticas cada vez mais
centradas na escrita, dada a crescente urbanização e industrialização dos países. Passou-se a
falar, então, em níveis de alfabetismo, sendo que estes permitiam medir “o conjunto de
competências e habilidades ou de capacidades envolvidas nos atos de leitura ou de escrita dos
indivíduos” (ROJO, 2009, p. 97), associados aos medidores e índices oficiais, como os da
UNESCO e, no Brasil, mais recentemente, o Indicador de Alfabetismo Funcional (INAF), que
“pesquisa anualmente a capacidade de leitura, escrita e cálculo da população brasileira”
(ROJO, 2009, p. 43).
Mesmo que ampliasse os sentidos não recobertos pelo conceito de alfabetização,
porém, o conceito de alfabetismo, ainda sobreposto ao de letramento – sendo que muitas
vezes os termos eram utilizados como sinônimos – continuava não bastando, pois não atendia
a complexidade do “conjunto de práticas sociais ligadas à leitura e à escrita em que os
indivíduos se envolvem em seu contexto social” (SOARES, 1998, p. 72). Paulo Freire, ainda
nomeando como alfabetização “a capacidade de organizar reflexivamente o pensamento,
desenvolver a consciência crítica e ser capaz de introduzir os sujeitos no processo real de
democratização da cultura e de libertação” (GRIBL, 2009, p. 40), foi um dos pioneiros na
reflexão de cunho social a respeito das práticas que envolviam a leitura e a escrita. Foi-se
percebendo que o alfabetismo funcional, essencialmente adaptativo, seja ao mundo do
trabalho ou da escola, era muito institucional, ligado às necessidades, ao uso, não promovendo
as transformações sociais próprias daquele que seria um alfabetismo crítico, ideológico,
empoderador5. Ainda que continuassem a existir oscilações de nomenclatura6, foi a partir
desse tipo de pensamento que o conceito de letramento foi sendo reformulado, afastando-se
cada vez mais da noção de alfabetismo apenas.
Hoje, podemos dizer que

as práticas de letramento que exercemos em nossas vidas vão constituindo nossos


níveis de alfabetismo ou de desenvolvimento de leitura e de escrita; dentre elas, as
práticas escolares. Mas não exclusivamente [...]. É possível ser não escolarizado e

5
Do inglês “Empowerment.
6
“Soares (2003 [1995]: 41), por exemplo, chega a afirmar que „o neologismo [letramento] parece desnecessário,
já que a palavra vernácula alfabetismo [...] tem o mesmo sentido de literacy‟” (ROJO, 2009, p. 99).
5

analfabeto, mas participar, sobretudo nas grandes cidades, de práticas de letramento


(ROJO, 2009, p. 98).

Segundo Rojo (2009, p. 98), é a partir da obra de Street (1984), divulgada no Brasil
principalmente por Kleiman (1995), e dos novos estudos do letramento (NEL/NLS), que essas
noções tornam-se mais claras. Num primeiro momento, as pesquisas passam a falar em dois
enfoques diferentes a respeito do letramento: o autônomo e o ideológico. No primeiro
enfoque, a idéia é a de que o letramento, de forma autônoma e institucionalizada, influencia o
desenvolvimento social, cultural e cognitivo dos indivíduos, “ou seja, o contato (escolar) com
a leitura e a escrita, pela própria natureza da escrita, faria com que o indivíduo aprendesse
gradualmente habilidades que o levariam a estágios universais de desenvolvimento (níveis)”
(ROJO, 2009, p. 99). Já o segundo enfoque, o ideológico, numa perspectiva sócio-histórica,
considera

as práticas de letramento como indissoluvelmente ligadas às estruturas culturais e de


poder da sociedade e reconhece a variedade de práticas culturais associadas à leitura
e à escrita em diferentes contextos (STREET, 1993, p. 7, apud ROJO, 2009, p. 99).

Soares (1998) faz uma distinção parecida, falando em versão fraca e forte do
letramento, noções respectivamente ligadas aos modelos autônomo e ideológico de Street. De
forma semelhante ao autor, Soares (1998) vai propor, segundo Rojo (2009), que a versão fraca
de letramento “é (neo)liberal e estaria ligada a mecanismos de adaptação da população às
necessidades e exigências sociais do uso de leitura e escrita, para funcionar em sociedade”
(ROJO, 2009, p. 99), na raiz, portanto, do conceito de alfabetismo funcional. Já a versão forte,
reconhecendo a variedade e complexidade das diversas práticas sociais vivenciadas pelas
pessoas,

seria revolucionária, crítica, na medida em que colaboraria não para a adaptação do


cidadão às exigências sociais, mas para o resgate da autoestima, para a construção de
identidades fortes, para a potencialização de poderes (empoderamento,
empowerment) dos agentes sociais, em sua cultura local, na cultura valorizada
(ROJO, 2009, p. 100).

Assim, descrevendo, não mensurando, podemos falar em letramentos, necessariamente


no plural, desenvolvidos, construídos e vivenciados em práticas sociais sempre situadas
histórico e socioculturalmente, que envolvem não só a escrita, mas também outras
modalidades (ROJO, 2009). Os múltiplos letramentos, portanto, dividem-se, em locais e
dominantes ou, como denomina Hamilton (2002, p. 4, apud ROJO, 2009, p. 102), em
institucionalizados e vernaculares. Enquanto os letramentos dominantes, valorizados, estão
sujeitos a instituições e “prevêem agentes (professores, autores de livros didáticos,
6

especialistas, pesquisadores, burocratas, padres, pastores, advogados e juízes)” (ROJO, 2009,


p. 102), os letramentos locais “têm sua origem na vida cotidiana, nas culturas locais. Como
tal, frequentemente são desvalorizados ou desprezados pela cultura oficial e são práticas,
muitas vezes, de resistência” (ROJO, 2009, p. 103).
De acordo com Rojo (2009), é importante considerar que as novas configurações da
sociedade têm tido impacto direto nos letramentos, principalmente nos dominantes, e, por
isso, devem ser encaradas de maneira crítica pela escola. As quatro principais mudanças
elencadas pela autora são: i) “a vertiginosa intensificação e a diversificação da circulação da
informação nos meios de comunicação analógicos e digitais” (ROJO, 2009, p. 105), que têm
colocado em xeque o impresso e o papel; ii) “a diminuição das distâncias espaciais” (ROJO,
2009 p. 105), que tem efeitos sobre a construção das identidades e o enraizamento das
populações; iii) “a diminuição das distâncias temporais ou a contração do tempo” (ROJO,
2009 p. 105), que têm tornado o instantâneo e o imediato as medidas que regem o cotidiano;
iv) “a multissemiose ou a multiplicidade de modos de significar que as possibilidades
multimidiáticas e hipermidiáticas do texto eletrônico trazem para o ato da leitura” (ROJO,
2009 p. 105), que tem tornado o texto verbal escrito insuficiente diante das possibilidades de
associação a signos de outras modalidades.
Ainda segundo a autora, no contexto dessas mudanças está uma cultura de massa,
fruto da globalização e da sociedade de consumo, que é

padronizada, monofônica, homogênea e pasteurizada [...] Por isso, se tornam tão


importantes hoje as maneiras de incrementar, na escola e fora dela, os letramentos
críticos, capazes de lidar com os textos e discursos naturalizados, neutralizados, de
maneira a perceber seus valores, suas intenções, suas estratégias, seus efeitos de
sentido (ROJO, 2009, p. 112).

É na esteira desses mesmos desafios que o Grupo de Nova Londres7 se propõe a


pensar que pedagogia poderia dar conta de maneira crítica e situada da heterogeneidade,
pluralidade e das tensões que permeiam a sociedade e, consequentemente, a educação, na
contemporaneidade. Para eles, o prefixo “multi”, no conceito de “multiletramentos”, envolve

por um lado, a multiplicidade de linguagens, semioses e mídias envolvidas na


criação de significação para os textos multimodais contemporâneos e, por outro, a
pluralidade e diversidade cultural trazida pelos autores/leitores contemporâneos a
essa criação de significação (ROJO, a sair, p. 1).

7
O New London Group, formado por teóricos como Bill Cope e Mary Kalantzis, James Paul Gee, Gunther
Kress, Sarah Michaels e Martin Nakata, reuniu-se pela primeira vez em 1996, na cidade de Nova Londres, nos
Estados Unidos. Desse encontro originou-se o manifesto “Uma pedagogia dos multiletramentos: Projetando
futuros sociais”, publicado pela Harvard Educational Review.
7

Assim, para os autores, uma pedagogia dos multiletramentos deve desenvolver-se


recobrindo três âmbitos essencialmente (KALANTZIS; COPE, 2006): o do trabalho,
considerando a diversidade produtiva, uma vez que “no pós-fordismo, espera-se um
trabalhador multicapacitado e autônomo, flexível para adaptação à mudança constante”
(ROJO, a sair, p. 2); o da cidadania, levando-se em conta o pluralismo cívico, ou seja, frente
às práticas arraigadas e sedimentadas no contexto escolar, “provocar a coesão-pela-
diversidade, comprometer-se com o papel cívico e ético das pessoas (ROJO, a sair, p. 4); e o
da vida pessoal, pensando-se as identidades multifacetadas, “apropriadas a diferentes modos
de vida, espaços cívicos e contextos de trabalho em que cidadãos se encontram” (ROJO, a
sair, p. 2).
Um ponto fundamental, mas pouco teorizado pelo Grupo, entretanto, é o da(s)
cultura(s) do alunado. Como Rojo enfatiza, não há “uma maior atenção ao hibridismo cultural
característico da alta modernidade” (a sair, p. 5). Uma solução que a autora propõe, a partir de
García-Canclini (2008[1989]), é

tratar as produções culturais letradas em efetiva circulação social como um conjunto


de textos híbridos de diferentes letramentos (vernaculares e dominantes), de
diferentes campos já eles, desde sempre, híbridos (ditos “popular/de
massa/erudito”), que se caracterizam por um processo de escolha pessoal e política e
de hibridização de produções de diferentes “coleções”. Para o autor, a produção
cultural atual se caracteriza por um processo de desterritorialização, de descoleção e
de hibridação que permite que cada pessoa possa fazer “sua própria coleção”,
sobretudo a partir das novas tecnologias. Para ele, “essa apropriação múltipla de
patrimônios culturais abre possibilidades originais de experimentação e
comunicação, com usos democratizadores” (CANCLINI, 2008[1989], p. 308). Nesta
perspectiva, trata-se de descolecionar os “monumentos” patrimoniais escolares, pela
introdução de novos e outros gêneros de discurso – ditos por Canclini “impuros” –,
de outras e novas mídias, tecnologias, línguas, variedades, linguagens (ROJO, a sair,
p. 5).

Outra questão que se coloca é a do “texto contemporâneo, multissemiótico ou


multimodal, envolvendo diversas linguagens, mídias e tecnologias” (ROJO, a sair, p. 6).
Atualmente, nos termos de Bolter (2002, p. 23), vivemos uma remidiação do impresso pelo
digital, visto que as novas tecnologias estão modificando as possibilidades da leitura e da
escrita de modo irreversível. Os textos verbais escritos “muito mais morosos e seletivos”
(ROJO, 2009, p. 105), têm sido constantemente colocados “em relação com um conjunto de
signos de outras modalidades de linguagem (imagem estática, imagem em movimento, som,
fala) que o[s] cercam, ou intercalam ou impregnam”, inclusive em materiais impressos do
cotidiano, como jornais e revistas, que buscam tentativas de simulação de ambientes virtuais
ou de hipertextualidade. A questão da multimodalidade mostra-se, portanto, urgente no
contexto dos multiletramentos. Como argumenta Lemke (2010),
8

nós não ensinamos os alunos a integrar nem mesmo desenhos e diagramas à sua
escrita, quanto menos imagens fotográficas de arquivos, videoclipes, efeitos
sonoros, voz em áudio, música, animação, ou representações mais especializadas
(fórmulas matemáticas, gráficos e tabelas etc.) (LEMKE, s/p, 2010).

Mesmo o Grupo de Nova Londres, porém, não mostrou propostas satisfatórias ou


mesmo convincentes para o tratamento dessas especificidades dos textos contemporâneos.
Muito baseado nas categorias de análise da semiótica social de Kress e Van Leeuwen (1996),
o modelo proposto pelo Grupo acaba sendo muito fragmentado e excessivamente formal,
trazendo “o problema de chamar excessivamente a atenção às formas e as relações entre as
formas das diferentes modalidades, em detrimento dos temas, e às regularidades em
detrimento da variedade e dos híbridos” (ROJO, a sair, p. 9), mutilando os sentidos dos textos.
Uma saída proposta por Rojo (a sair), que não detalharemos neste trabalho, é a de utilizar a
teoria de gêneros de discurso do Círculo bakhtiniano como ferramenta de análise, uma vez
que “o caráter multissemiótico dos textos/enunciados contemporâneos não parece desafiar
fortemente os conceitos e categorias propostas” (ROJO, a sair, p. 12).
Diante do exposto até aqui e considerando que o papel da escola, hoje, é possibilitar
que seus alunos sejam letrados para “participar de várias práticas sociais que se utilizam da
leitura e da escrita (letramentos) na vida da cidade, de maneira ética, crítica e democrática”
(ROJO, 2009, p. 107), parece-nos claro que faz-se necessário, então, responder com novas
estratégias aos impactos “que têm transformado o letramento tradicional (da letra/livro) em
um tipo de letramento insuficiente para dar conta dos letramentos necessários para agir na
vida contemporânea” (ROJO, 2009, p. 107).

(...) tendo em vista o papel do discurso nas sociedades densamente semiotizadas em


que vivemos (...) ensinar a usar e a entender como a linguagem funciona no mundo
atual é tarefa crucial da escola na construção da cidadania, a menos que queiramos
deixar grande parte da população no mundo do face a face, excluída das benesses do
mundo contemporâneo das comunicações rápidas, da tecnoinformação e da
possibilidade de se expor e fazer escolhas entre discursos contrastando sobre a vida
social (MOITA-LOPES; ROJO, 2004, p. 46, apud ROJO, 2009, p. 89).

Atendendo às demandas atuais, portanto, é preciso que a educação linguística

leve em conta hoje, de maneira ética e democrática: os multiletramentos ou


letramentos múltiplos, deixando de ignorar ou apagar os letramentos das culturas
locais de seus agentes [...]; os letramentos multissemióticos [...], ampliando a
noção de letramentos para o campo da imagem, da música, das outras semioses que
não somente a escrita; os letramentos críticos e protagonistas requeridos para o
trato ético dos discursos em uma sociedade saturada de textos que não pode lidar
com elas de maneira instantânea, amorfa e alienada [...] (ROJO, 2009, p. 107-108).
9

Assim, voltando ao contexto que apresentamos no início deste trabalho, para que as
pesquisas envolvendo o LDP ganhem relevância é preciso que levem em conta, cada vez
mais, que estamos vivendo uma transição e que, muito em breve, o impresso conviverá ou
dará espaço a um amplo e variado uso de novas tecnologias em sala de aula. Uma vez que a
escola não pode mais ser considerada a principal agência de letramento a que as pessoas estão
sujeitas, é improvável que continue a deixar de lado o entendimento dos mecanismos de
produção, circulação e recepção dos textos contemporâneos, bem como dos letramentos
múltiplos e multissemióticos que os alunos têm praticado para além dos limites institucionais
(BUZATO, 2008, p. 121).
Por isso, a questão principal ao se pensar o LDP hoje, talvez não deva ser mais o que
esse material impresso pode fazer, uma vez que, sozinho, de fato ele pode muito pouco diante
das demandas atuais da educação linguística, quando comparado ao computador ou ao texto
digital, por exemplo. Provavelmente, nossas reflexões sejam mais produtivas se procurarmos
apontar o que o LDP não deve fazer, uma vez que certas estratégias e abordagens podem
acabar por limitar ainda mais as já escassas possibilidades de exploração desse tipo de
material, o que está longe de ser desejável para os milhares de alunos e professores que ainda
o utilizam diariamente, principalmente nas escolas públicas.
Não será sem tensão, porém, que os multiletramentos adentrarão as práticas escolares
via LDP, afinal, podemos dizer que esses materiais

participam do processo dos letramentos dominantes, institucionalizados pela escola,


pelos autores de livros, pelo mercado editorial e pelas propostas governamentais de
avaliação, compra e distribuição dos LD em território nacional (GRIBL, 2009, p.
42).

Pensando-se em LD no Brasil, é ingenuidade não considerar sempre a relevância que


esse tipo de material possui na dinâmica editorial. As editoras, que só em 2009 lucraram
aproximadamente 1,7 bilhão com didáticos, dificilmente abandonarão totalmente os impressos
e a segurança do Programa Nacional do Livro Didático, para se aventurarem sem garantias no
universo dos materiais completamente digitais, o que só acontecerá provavelmente quando as
oportunidades de lucro propiciadas por possíveis parcerias com empresas de novas
tecnologias, como as fabricantes de tablets, superarem as vantagens da garantia de
estabilidade associada ao PNLD.
Atualmente, porém, enquanto as editoras norteamericanas, por exemplo,
comemoraram, no primeiro trimestre de 2011, o aumento em mais de 159,8% das vendas de
livros eletrônicos (REUTERS, 2011), as únicas investidas no PNLD em livros digitais até o
10

momento foram destinadas a programas de acessibilidade, mais especificamente aos alunos


com deficiência auditiva que, desde 2007, recebem do Programa livros digitais em libras.
Segundo divulgação no site do MEC8,

os exemplares são formatados em CD-rom e trazem, ao final de cada título,


atividade ou questão em português e um ícone de TV, o qual, ao ser clicado pelo
aluno, abre uma janela. Nela, um tradutor-intérprete apresenta o conteúdo, em libras.
Além do CD-rom, o material inclui um livro impresso, com o mesmo conteúdo, para
auxiliar no aprendizado da língua portuguesa.

Ou seja, trata-se essencialmente de uma mudança de suporte. Conquanto nas obras


gerais seja, de fato, também uma mudança de suporte o que esteja ocorrendo, visto que
comprar um livro online e lê-lo em um tablet não difere muito de digitalizar um exemplar e
lê-lo em um computador de mesa ou em um laptop, pensar em simplesmente reproduzir o
LDP em um suporte que não seja o papel não nos parece muito adequado ou profícuo, tendo
em vista as muitas outras possibilidades que poderiam ser exploradas com vistas aos
multiletramentos.
Lemke (2010) argumenta que o currículo “do giz e da fala” logo será substituído por
um currículo interativo e afirma que já superamos o período de “simples transposição do
modelo de educação do livro texto para uma nova mídia de demonstração” (LEMKE, 2010,
s/p), porém, nos parece que, na prática, pelo menos no que concerne às políticas públicas,
estejamos ainda longe dessas mudanças efetivas. Tendo em mãos somente o impresso, resta
pouco a se fazer.
Um exemplo que ilustra bem essa situação pode ser a pesquisa feita por Caiado
(2010), objetivando identificar como as Tecnologias da Informação e Comunicação – TICs e
outros conteúdos digitais estavam sendo abordados ou propostos em coleções didáticas de
língua portuguesa aprovadas pelo PNLD. A autora analisou oito coleções de Livros Didáticos
de Língua Portuguesa (5ª a 8ª séries) aprovadas no PNLD de 2005 e 2008 e, diante dos dados
gerados, propôs as seguintes categorias para organizá-los: a) “Textos que foram retirados de
sites” e que “trazem a referência do site do qual foram extraídos logo abaixo do texto”
(CAIADO, 2010); b) “Textos sobre as TIC”, cuja temática versava sobre as novas tecnologias
da informação e comunicação, especificamente: o computador, a internet, a linguagem digital,
gêneros digitais; c) o que a autora chamou de “E-gêneros”, ou seja, a reprodução, no LDP de
e-mail, blog, bate-papo, MSN, jornal eletrônico; d) “Sites para pesquisa” ou de pesquisa,

8
Disponível em
http://portal.mec.gov.br/index.php?Itemid=86&catid=205&id=7752&option=com_content&view=article, acesso
em 04 de julho de 2011.
11

indicados aos alunos pelo(s) autor(es) do LDP; e) “Filmes (que envolvem) TIC”, isto é
“filmes que discutem questões ou utilizam elementos relacionadas às TDIC sugeridos pelo(s)
autor(es) dos LDP” (CAIADO, 2010); e f) “Livros paradidáticos relacionados às TIC”,
também indicados pelos autores aos alunos. Nos livros recomendados pelo PNLD/2008,
Caiado (2010) registrou duas novas categorias: g) “Produção de E-gêneros” (como os
exemplos acima citados) e o que a autora chamou de h) Linguagem Digital e que definiu
como a linguagem “utilizada pelos internautas no meio digital” (CAIADO, 2010), embora
consideremos que ela estivesse se referindo especificamente ao internetês.
Contabilizando a frequência das categorias nos LDPs analisados, Caiado (2010) chega
aos seguintes dados:
nas coleções aprovadas no PNLD 2005, a categoria com maior participação de
frequência foi “Sites para Pesquisa” (51,4%), seguida pelas categorias: “Textos de
Sites” (37,5%), “Textos sobre TIC (7,4%)”, “E-gêneros” (2,0%), “Livros
Paradidáticos/TIC” (1,1%) e “Filmes/TIC” (0,6%). Da mesma forma, nas coleções
aprovadas no PNLD 2008, a categoria com maior número de frequência foi “Sites
para Pesquisa” (41,3%), também seguida pela de “Textos de Sites” (29,9%). No
entanto, as seguintes categorias, por frequência, foram: “E-gêneros” (11,1%),
“Textos sobre TIC” (10,6%), “Produção de e-gêneros” (3,7%), “Livros
Paradidáticos/TIC” (1,8%), “Linguagem Digital” (1,6%) e “Filmes/TIC” (0,0%).
(CAIADO, 2010, p. 14).

A partir desses dados, a autora conclui que nos LDPs


aprovados no PNLD 2005, constatamos um predomínio de material textual extraído
de sites da internet, bem como indicações de sites para pesquisa, ao lado de uma
presença muito reduzida de e-gêneros. [...] Da mesma forma, constatamos que as
coleções de Livros Didáticos de Língua Portuguesa, aprovadas no PNLD 2008,
apresentaram um trabalho pouco expressivo com os materiais textuais relacionados
às TIC (CAIADO, 2010, p. 27).

Ainda que algumas das categorias e métodos utilizados pela autora sejam passíveis de
discussão, os dados que ela apresenta são suficientes para que possamos mostrar como o
trabalho com gêneros essencialmente digitais e/ou multissemióticos é extremamente precário
nos LDP, talvez, principalmente, por ser quase impossível trabalhar as especificidades desses
enunciados tendo como ferramenta somente o material impresso. Não surpreende, portanto,
que predominem textos retirados de sites utilizados como fontes pelos autores, o que não
implica um trabalho com seus contextos de produção e uso.
Um outro exemplo que podemos trazer, representativo de um movimento bastante
frequente das editoras no mercado de particulares, é o das plataformas online que têm sido
propostas concomitantemente aos LD como forma de associar o livro impresso à tecnologias
digitais e, assim, gerar um diferencial frente aos materiais exclusivamente impressos,
utilizados pelos escolar públicas devido às restrições impostas pelo PNLD.
12

Uma breve análise do que oferecem esses portais, entretanto, nos mostra que ainda não
há uma lógica totalmente nova regendo sua produção ou utilização. Tomemos como exemplos
o site da Abril Educação, empresa com grande relevância no mercado de didáticos,
juntamente com os portais das Editoras Ática e Scipione e do Sistema de Ensino SER, que
fazem parte do mesmo grupo.
Site da Abril Educação (http://www.abrileducacao.com.br): O site tem como
função agrupar os links para os portais das editoras que fazem parte do Grupo Abril: Ática,
Scipione e Sistema Ser. Uma das seções principais é a “Nossos Produtos”, na qual constam os
itens Catálogo, Sistema de Ensino e Conteúdo Digital. Chamou-nos bastante atenção a
descrição para essa última subseção: “Conteúdo digital: Os recursos tecnológicos são
poderosos aliados no processo de aprendizagem. Conheça os materiais que oferecemos para
você!”. Voltada para o professor, a área disponibiliza os links dos portais pedagógicos dos
quais o grupo dispõe. No texto, os portais das empresas pertencentes à Abril Educação são
caracterizados como “antenados com as últimas tendências de recursos multimidiáticos no
contexto educacional” e também como “soluções para a melhoria do ensino-aprendizagem”,
de forma a estimular os docentes a conhecê-los e “experimentá-los”. Analisamos esses portais
mais detalhadamente a seguir, juntamente com os sites institucionais das editoras às quais
estão relacionados.

Figura 1 - Reprodução da home do site da Editora Ática


Site da Editora Ática (http://www.atica.com.br/): O site da Editora Ática é
essencialmente institucional, ou seja, é utilizado para divulgar e promover a empresa, através
da sua história, ações e produtos.
13

Na Figura 1, podemos notar que no canto superior direito da home há um banner com
os dizeres “Ática Educacional: Um site especial para os professores”. Clicando nesse banner,
temos acesso ao portal pedagógico da Editora (http://www.aticaeducacional.com.br/), cuja
home reproduzimos na Figura 2.

Figura 2 – Reprodução da home do site da Ática Educacional

O site da Ática Educacional é basicamente um armazenador de conteúdos coletados


em outros sites e fontes da internet. Na área “Atualidades” o professor tem acesso a textos e
imagens referentes às diversas áreas de ensino, como Biologia, Matemática ou Língua
Portuguesa. Existem também podcasts que, conforme a descrição que aparece na própria
página, “abordam temas relacionados às matérias do currículo escolar, com depoimentos do
professor de cada matéria”. A instrução dada ao professor é: “É só clicar no tema e ouvir,
enriquecendo assim seu repertório cultural”. Entre os materiais fornecidos ao professor, há,
por exemplo, uma página sobre Atualidades Científicas, que se propõem a falar sobre os
recursos ópticos utilizados pelos artistas ao longo da história. A página contém um texto
longo e algumas imagens dispostas de maneira esparsa. Aparecem alguns links em certos
momentos, geralmente direcionando o leitor para textos teóricos ainda mais densos, como
pudemos comprovar observando vários exemplos de páginas. Não há instruções sobre qual
deve ser a ação do professor para com esse conteúdo: levá-lo aos alunos na sala de aula? Lê-lo
apenas? Adaptá-lo e agregá-lo em alguma aula? Vale lembrar que os conteúdos não são
exatamente novos ou exclusivos, mas curiosidades que poderiam ser encontradas na internet
14

com o auxílio de ferramentas como o Google, inclusive pelo próprio professor, desde que ele
saiba como buscá-los.
Site da Editora Scipione (http://www.scipione.com.br/): Também de caráter
institucional, o site da Editora Scipione tem no menu principal as áreas Catálogo, Scipione
Educação, Casa do Professor, Institucional e Fale Conosco. Essa segunda área dá acesso ao
portal pedagógico da editora que, diferentemente do da Ática, não é um site à parte, mas uma
área integrada à página principal da empresa. A área Scipione Educação
(http://www.scipione.com.br/scipioneeducacao.asp) tem no menu as seções Assessoria
Pedagógica, Oficinas, Galerias, Referências, Artigos, Atividades, Trilhas de pesquisa,
Cadastro de professores, Atualização de Cadastro e Livro do professor. Seguindo a mesma
idéia do site da Editora Ática, o portal da Scipione Educação traz vários conteúdos para o
professor, agrupados em galerias, oficinas e artigos. Como exemplo de oficina, temos a Figura
3, em que reproduzimos a oficina Terra & Universo.

Figura 3 - Reprodução da página da Oficina Terra & Universo

Como podemos observar, a oficina constitui-se por um hipertexto linkado ao site, que
por sua vez tem vários links internos, com informações, imagens e curiosidades sobre um
tema específico. Novamente, não há instruções de como o professor pode utilizar esse
material com seus alunos, ou mesmo de como os alunos podem explorá-lo de forma
independente. Também não há sugestões de ações ou semelhanças com uma sequência
didática, como o termo “oficina” parecia sugerir.
15

Site do Sistema de Ensino SER (www.ser.com.br): Finalmente, o site do Sistema de


Ensino SER (cuja home reproduzimos na Figura 4) difere um pouco do padrão apresentado
nas páginas das editoras Ática e Scipione, talvez exatamente por ser o portal de um Sistema
de Ensino e não de uma editora tradicional.

Figura 4 - Home do site do Sistema de Ensino SER

Além das informações institucionais, que aparecem com menos destaque, o site
oferece as áreas Artigos, Banco de Imagens, Conversores e Simuladores, Jogos, Notícias da
Educação, Multimídia, Tabela Periódica, Vídeos, Biografias, Galeria Virtual, Sites
Indicados, Provas de Vestibular e Web Aulas (Alunos). De novo voltadas para o professor de
maneira geral, as áreas oferecem conteúdos e ferramentas diversas, que se propõem a auxiliar
o processo de ensino-aprendizagem e o aproveitamento dos materiais impressos. Uma área
que buscamos observar melhor foi a chamada “Galeria Virtual”. Segundo a descrição do site,
a “seção contém mais de mil imagens sobre os mais variados temas para você, professor ou
aluno, enriquecer provas, trabalhos e estudos em geral”. Separadas nas categorias Alimentos,
Animais, Arquitetura, Artes, Ciência & Tecnologia, Corpo Humano, Educação, Energia &
Eletricidade, Esportes, Ferramentas & Objetos, Instrumentos Musicais, Natureza,
Personalidades Histórias, Política, Profissões, Sociedade e Transportes, as imagens não são
muitas e apresentam pouca variedade. Aparentemente retiradas de bancos de imagens livres,
muitas vezes elas apresentam pessoas e situações que não correspondem à realidade brasileira.
Ainda que, uma vez no site, essas imagens possam ser consideradas fontes seguras no que se
refere aos direitos autorais, elas são pouco criativas e provavelmente os resultados são
inferiores aos materiais que poderiam ser encontrados no Google Imagens.
16

A partir da análise dos sites, encontramos uma regularidade nos materiais oferecidos.
Primeiramente, a existência de um portal extra, adicional, exclusivo para os conteúdos
digitais, mostra que as empresas ainda procuram dissociar seus materiais tradicionais das
investidas em novos recursos didáticos. Essa coexistência, de certa forma, reflete a disputa
entre o papel e o virtual que, como vimos, não se restringe aos LD.
A tendência observada foi a de oferecer materiais extras, complementares, não
necessariamente multissemióticos, menos ainda hipermídiaticos, tendo como alvo o professor.
A imagem desse professor, por sua vez, é a de alguém com pouco conhecimento dos
ambientes digitais e que gostaria de (ou se vê obrigado a) encontrar maneiras de estimular e
motivar seus alunos com recursos digitais. Predominam, portanto, os materiais prontos,
formatados para o uso junto com o LD e não há orientações para que os professores façam
buscas autônomas, adaptem os conteúdos fornecidos ou desenvolvam materiais próprios. As
propostas e estratégias desses sites, portanto, ficaram aquém do que seria desejável e
produtivo para o desenvolvimento dos multiletramentos e dos letramentos multissemióticos.
Enquanto Bolter (2002, p. 23), aponta para um movimento contínuo de remidiação
entre as tecnologias, no sentido de que “uma nova mídia [sempre] toma o lugar de uma mais
antiga, emprestando e reorganizando características de escrita da mídia mais antiga para
reformular seu espaço na cultura”, nos sites analisados parece que estamos diante de uma
espécie de "remidiação" ao contrário, ou seja, as editoras remidiando o digital para que ele
passe a ter o estilo e a forma de composição próprias do LD.
Quando nos lembramos que a própria Editora Abril edita também a revista Veja, que
possui um rico acervo online em que estão catalogadas a maioria das edições da revista, com
certeza uma fonte de pesquisa mais variada e interessante que o pobre e limitado banco de
imagens oferecido ao professor no portal SER, por exemplo, que pertence ao mesmo grupo,
seria de se pensar, então, se são mesmo necessários portais desse tipo, ou se conectar as
escolas com banda larga de boa qualidade já não seria suficiente para um trabalho mais
proveitoso com esses novos letramentos. Como Lemke (2010) faz questão de lembrar

hoje, qualquer um edita um áudio ou um vídeo em casa, produz animações de boa


qualidade, constrói objetos e ambientes tridimensionais, combina-os com textos e
imagens paradas, adiciona música e voz e produz trabalhos muito além do que
qualquer editora ou estúdio de cinema poderia fazer até alguns anos atrás. (LEMKE,
2010, s/p).

Assim, o mínimo que poderíamos esperar é que “a próxima geração de ambientes de


aprendizagem interativos” não apenas reproduzisse o que já se encontra em materiais
impressos, posto que só seria realmente útil na medida em que, por exemplo, “adiciona[sse]
17

imagens visuais e sons e vídeos, [...] que podem acomodar [...] significados densos de
informação topológica” (LEMKE, s/p, 2010).
Chegando ao final deste trabalho, podemos concluir que é praticamente impossível
ignorar as novas demandas para educação. O conceito de multiletramentos, re-elaborado a fim
de acompanhar as profundas transformações que a sociedade tem passado, mostra-nos ser
urgente um ensino-aprendizagem que extrapole o domínio da letra e do papel e que possibilite
formar cidadãos críticos e situados, capazes de agir de forma consciente em suas realidades
sociais e culturais.
Diante das limitações impostas pelo modelo tradicional de ensino e pelo LDP tal qual
se constituiu e se mantém já há algumas décadas, nos vemos instigados a pensar em novos
gêneros e dispositivos com fins didáticos – multimodais, multissemióticos, multiculturais,
digitais, online – que talvez pudessem dar conta dessas novas demandas. Na falta deles,
entretanto, constatamos não haver nem mesmo um diálogo produtivo dos LDP com a
complexidade das interfaces encontradas na internet, das novas relações entre os textos
verbais e as imagens, das cores, do movimento, das novas formas de ler e organizar a
linguagem e de suas ideologias e valores próprios.
Muito disso se deve, não podemos deixar de apontar, ao fato de que a cultura escolar e
a cultura editorial ainda são muito subordinadas às políticas públicas, infelizmente
insuficientes, e à lógica comercial que rege a produção de materiais desse tipo. Finalmente,
esperamos que este trabalho, se não pôde apontar caminhos definitivos, que ao menos tenha
conseguido instigar a busca de novas propostas.

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SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

APLICABILIDADE PEDAGÓGICA DAS REDES SOCIAIS PARA O ENSINO A


DISTÂNCIA: UMA CONTRIBUIÇÃO PARCELAR1

Eliamar Godoi (PPGEL/UFU)

RESUMO

O objetivo desse trabalho é investigar e descrever algumas possibilidades pedagógicas apre-


sentadas pelas redes sociais. Partimos do pressuposto de que as redes sociais, por veicular
modos de interação se constituindo como um ambiente que integra o ser humano à era tecno-
lógica, abrem possibilidade para que o ensino ocorra mesmo a distância. Esse instrumento
sugere certo potencial para se ensinar via rede social indicando possibilidade de uso dessas
redes com finalidade educativa e amplia a possibilidade de prática pedagógica a distância.
Utilizamos a pesquisa qualitativa de natureza interpretativista para a coleta de dados e funda-
mentamo-nos em Levy (1999) que apresenta estudo sobre tipos de interação virtual e inteli-
gência coletiva fundada nas interações. Quanto às políticas de implementação e avaliação do
ensino e da aprendizagem em EAD, apoiamo-nos em Silva; Santos (2006). Esse trabalho se
justifica pelo fato de que analisar as redes sociais em suas possibilidades pedagógicas pode
contribuir para aumentar e diversificar as possibilidades de prática de ensino de professores de
modalidades a distância. Com o resultado de nosso estudo, esperamos contribuir para melho-
rar a relação professor e aluno e o processo ensino-aprendizagem, possibilitando novas alter-
nativas para professores e alunos no contexto da sala de aula virtual, além de contribuir para a
melhoria das interações no contexto virtual.

Palavras-chave:
Redes Sociais. Prática pedagógica. Ensino a Distância.

ABSTRACT

The aim of this study is to investigate and describe some pedagogical possibilities presented
by social networking. We assume that the social networks, vehicular modes of interaction
provided an environment that integrates the human to the technological age, open to the pos-
sibility that teaching occurs even from a distance. This suggests some potential tool for teach-
ing via social network indicating the possibility of using these networks with educational pur-
pose and increases the possibility of teaching practice at a distance. We used an interpretative
qualitative research to collect data and base our research in Levy (1999) that presents study on
types of virtual interaction and collective intelligence based on interactions. As for implemen-
tation and evaluation of teaching and learning in distance education, we found in proposal of
the Silva & Santos (2006). This work is justified by the fact that analyzing the social networks
in their pedagogical possibilities may contribute to increase and diversify opportunities for
teaching practice of teachers in distance mode. With the result of our study, we hope to im-
prove the relationship between teacher and student and teaching-learning process, providing
new alternatives for teachers and students in the context of the virtual classroom and contrib-
ute to the improvement of interactions in the virtual context.

1
Esse trabalho constitui uma vertente de um projeto maior. Trata-se de um projeto para Tese de Doutorado que
se encontra em andamento vinculado ao curso de Pós-Graduação em Mestrado e Doutorado da Universidade
Federal de Uberlândia – PPGEL/UFU.
2

Keywords:
Social Networks. Pedagogical practice. Distance Teaching.

1 INTRODUÇÃO
O advento das tecnologias trouxe consigo a concepção do novo homem e da informa-
ção disponibilizada em alta velocidade via Internet. As tecnologias, nesse contexto, apresen-
tam-se como elo entre esse novo homem a essa enormidade de informação que podem ser
facilmente acessadas ou recuperadas.
A era das tecnologias acaba por delinear um novo perfil de homem, de profissional, de
sociedade, de comportamento e de mercado de trabalho. Esse novo homem se vê preocupado
em acompanhar e assimilar as mudanças provocadas pela revolução tecnológica que altera o
cotidiano, ditando um novo ritmo de vida para a sociedade, impondo novas culturas e propon-
do novas formas de interação.
Como os demais setores, o mercado de trabalho também sofreu modificações bruscas
com o advento das tecnologias. Há a necessidade constante de profissionais capacitados e
formados e que consigam acompanhar todo esse processo. Surge nesse ínterim a figura do
homem dinâmico, multicultural e interativo, mas surge também a idéia de um ambiente ou
lugar em que todo esse processo pode acontecer em um só momento e em um só espaço.
Trata-se do Ambiente Virtual. Disponibilizado na rede da internet e veiculado por
equipamentos de alta tecnologia – computadores, telefonia móvel, aparelhos eletrônicos de
áudio e vídeo – é no ambiente virtual que as diversas interações em suas mais variadas formas
acontecem. É nesse ambiente, também, que o novo homem busca sua formação, capacitação e
acessa e posta informações de modo rápido e sem sair de casa ou do próprio trabalho.
Desse modo, para esse trabalho apresentamos um levantamento com algumas concei-
tuações no que se refere à aplicabilidade pedagógica das redes sociais para o ensino a distân-
cia. Para isso, apresentamos a contextualização do surgimento do ambiente on-line em nossos
dias direcionando o seu uso na educação.
Demonstramos, ainda, que o movimento das tecnologias articulado com as necessida-
des do mercado de trabalho nos leva aos cursos a distância que aparecem como um relevante
recurso que tende a suprir certa carência de profissionais formados e capacitados para assumir
funções no mercado de trabalho.
Em seguida trazemos também informações sobre as redes sociais e seu contexto de
surgimento. Nesse caso, a utilização das redes sociais se torna um artifício para driblar a soli-
3

dão pessoal afetiva, ampliar a rede de relações profissionais; lançar, divulgar, vender e encon-
trar produtos de diversas categorias.
As redes sociais, nesse aspecto, assumem papel de um local virtual em que as pessoas
se encontram para diversos fins: lazer, interação, comércio, marketing, etc., e de acordo com
nossas perspectivas, as redes sociais também podem assumir o papel de um local em que pes-
soas se encontram para fins educativos, sugerindo a possibilidade do uso pedagógico para as
redes sociais. Diante disso, apresentamos um pequeno histórico sobre algumas redes sociais
indicando a data de surgimento, público alvo e objetivo de criação de cada uma delas.
Por fim, indicamos os vieses pedagógicos das redes sociais demonstrando que o uso
das tecnologias depende da forma com que são utilizadas. Nesse caso, dependerá do enfoque
dado pelo professor que poderá encontrar nas redes sociais a possibilidade de ampliar e diver-
sificar sua prática utilizando as redes sociais como recurso pedagógico que possibilita ampla
interação e interatividade.
Para fundamentar nosso trabalho, no entanto, encontramos uma bibliografia bastante
singela, já que até mesmo as redes sociais são recursos muito recentes. Datamos o surgimento
de inúmeras delas do ano de 2003. Sendo assim, estudos sobre acesso para interação e outros
usos ainda estão em processo inicial.
Em relação ao uso das redes sociais com finalidade educativa ainda não encontramos
trabalhos publicados, mas já sabemos que estudos têm sido feitos e acreditamos que em breve
teremos publicações que poderão fundamentar nossos estudos. É justamente essa carência de
produções bibliografias sobre o uso das redes sociais, aliada à indicação da possibilidade de
uso educacional e pedagógico que justifica nossa pesquisa.
O objetivo é demonstrar que as redes sociais podem ser utilizadas como recurso peda-
gógico que possibilita ampliar e diversificar a prática pedagógica do professor atraindo a
atenção do aluno, possibilitando melhor interação professor-aluno e melhorando a qualidade
do processo ensino-aprendizagem. Acreditamos que os resultados de nosso trabalho possam
contribuir para melhoria do processo educacional ao ser mediado via redes sociais.

1.1 ASPECTOS METODOLÓGICOS


Para realizarmos nossa pesquisa, começamos pelo levantamento bibliográfico com a
finalidade de encontrarmos teorias e produções que fundamentassem nosso estudo. Nesse
contexto, não encontramos muito, já que as redes sociais são „ferramentas‟ de criação e dis-
seminação muito recentes. Ainda carecem de pesquisas que analisem sua influência no com-
portamento de seus usuários e também no processo de ensino e aprendizagem.
4

Por outro lado, o que encontramos foram trabalhos realizados envolvendo as redes
sociais cuja finalidade de uso era comercial e empresarial. Trata-se de estudos que abordam as
redes sociais como meio de comércio em que as utilizam como meio para lançar, vender, di-
vulgar e testar tendências.
Nesse aspecto, as redes sociais se constituem como uma forma de alcance direto e rá-
pido a milhares de pessoas de diversas regiões em tempo recorde. São milhares de acesso ao
mesmo tempo. Essa forma de uso para as redes sociais é tratado no trabalho de Juliette Powell
„33 milhões de pessoas na sua rede de contatos – Como criar, influenciar e administrar um
negócio de sucesso por meio das redes sociais’ publicado em 2010 que traz uma abordagem
amplamente comercial para as redes sociais.
No que se refere à comunicação em espaço virtual nos fundamentamos em Pierre Lévy
que apresenta estudo sobre tipos de interação virtual e inteligência coletiva fundada nas inte-
rações. Em sua obra „Cibercultura‟ publicada em 1999, esse autor traz definições sobre o que
é interação, o que é virtual e sobre o que representa a comunicação através de mundos virtuais
compartilhados, além da nova relação das pessoas com o saber via ambiente virtual.
Já o trabalho de Romeu Tori „Educação sem distância: as tecnologias interativas na
redução de distâncias em ensino e aprendizagem‟ publicado também em 2010 apresenta pres-
supostos não do uso pedagógico para as redes sociais, ma demonstra indícios para que a dis-
tância entre o ensino e a aprendizagem sejam reduzidos.
Segundo ele qualquer atividade de aprendizagem envolve comunicação, que por sua
vez necessita de uma ou mais mídias para se efetivar. Sendo assim, percebemos, nas redes
sociais, ampla possibilidade para se desenvolver relevantes práticas de ensino e a aprendiza-
gem, mediadas pelas redes sociais e seus potentes e atraentes recursos midiáticos.
Outra obra que nos chamou a atenção foi a de Marco Silva, publicada em 2006. Trata-
se da obra „Educação online: teorias, práticas, legislação, formação corporativa’. Essa obra
envolve uma coletânea de vários artigos que trazem relevantes informações sobre teorias e
práticas na educação online e nos serviu de base para nosso estudo.
Essa obra apresenta o processo de educação a distância como mediatizado pelo uso de
tecnologias e reforça a idéia de que ele deve trazer uma dimensão educacional pluridireciona-
da, descentralizada e interdisciplinar. Para esse autor a tecnologia favorece a educação online,
mas que devem prevalecer as visões de diversas áreas de conhecimento.
Devemos ressaltar que Pierre Lévy, Romeu Tori e Marco Silva não apresenta trabalhos
ou estudos sobre o uso pedagógico das redes sociais na educação a distância, mas seus traba-
5

lhos puderam nos direcionar para o contexto das práticas de ensino que acontecem a distância
mediadas por diversas mídias.
Sendo assim, fizemos adaptações e reflexões sobre os pressupostos desses autores que
apresentam diversas possibilidades para que o ensino e também o aprendizado possam ocorrer
a distância. E do nosso lado defendemos que as redes sociais podem também servir ao fim
educacional.
Outra ação que desenvolvemos para a consecução de nosso trabalho foi análises de
diversos cursos a distância que são oferecidos em nossa região. O objetivo era verificar se
algum deles utilizava as redes sociais como recurso pedagógico. Foram analisados um total de
6 cursos a distância: 2 cursos de graduação, 2 de extensão e dois de capacitação.
Entrevistamos, também, alguns tutores desses cursos, cuja finalidade era saber se eles
sentiam faltam de algum recurso que lhes dessem mais liberdade de comunicação com os alu-
nos e se de algum modo eles utilizavam as redes sociais para se comunicar com os alunos.
Foram entrevistados 6 tutores: 1 de cada curso.
Por fim analisamos os dados por meio da pesquisa qualitativa de natureza interpretati-
vista em que o pesquisador recebe também um papel de destaque no processo investigativo
cujos resultados apareceram nas considerações finais desse trabalho.

2 AMBIENTE ON-LINE E PERSPECTIVAS


No advento das tecnologias, o mercado de trabalho recebe novo formato e novos inte-
resses no ambiente virtual e todo esse contexto tecnológico da sociedade aliado à necessidade
da formação e capacitação profissional nos leva aos cursos a distância. Esses cursos a distân-
cia recebem um papel fundamental na era tecnológica. Eles visam garantir formação e capaci-
tação para um grande número de pessoas ao mesmo tempo, atendendo-as em lugares diversos.
A pretensão é suprir o vácuo deixado pelo ensino na modalidade presencial que não consegue
atingir esse patamar.
O contexto do ensino a distância, nessa perspectiva, tem gerado iniciativas de diversas
áreas do mercado de trabalho, inclusive das áreas acadêmicas. Atualmente, diversos setores, e
até mesmo o governamental, têm dispensado investimentos na busca pela qualidade do ensino
e da formação profissional objetivando suprir a demanda por profissionalização e formação
exigidas pelo mercado de trabalho. Entretanto, a busca, nesse momento, é para desenvolver
qualidade em docência e em aprendizagem no sentido de acompanhar as exigências específi-
cas do ambiente virtual.
6

O contexto do ambiente virtual de ensino permite a postagem de cursos que podem ser
acessados e desenvolvidos a distância, mas também permite o acompanhamento das ações dos
elementos envolvidos no processo de ensino e aprendizagem no curso. Dessa forma, esse am-
biente virtual apresentado traz a idéia da Educação On-line. Trata-se de um mecanismo que
apresenta a internet como o único meio para que o conteúdo do curso seja acessado e possui
como principais características, justamente o que prevê as tecnologias do ensino a distância.
Nesse caso, o ambiente on-line permite velocidade nas trocas de informações, acesso
às informações de modo síncrono e assíncrono, a possibilidade de acompanhamento do de-
senvolvimento do aluno a distância e um alto grau de interatividade entre alunos, professores
e equipamentos.
Outro modelo que surge trazendo inúmeras possibilidades de formação e de treina-
mento a distância é o E-Learning que se constitui como um novo formato de educação tendo a
internet como suporte. Nessa perspectiva, o E-Learning se caracteriza por organizar e dispo-
nibilizar materiais didáticos e outros recursos de mídias na modalidade on-line.
É nesse aspecto que o ambiente virtual reúne em si um novo modelo de educação ofe-
recendo a possibilidade de que tanto o ensino quanto a aprendizagem ocorra em um tempo e
espaço diferentes dentro de um processo educacional que atende inúmeras pessoas de uma só
vez. Dessa forma, o ambiente virtual agrega em si modelos ou paradigmas que agrupam a
Educação a Distância, a Educação On-line e o E-Learning, sendo que o modelo da educação
on-line se constitui como o mais interativo.
Tendo em vista esse aspecto do modelo da educação on-line, é perceptível que essa
modalidade requeira um uso das ferramentas que o compõe de modo a conseguir a ideal auto-
nomia na construção da aprendizagem, mas também, a possibilidade de construção coletiva
do conhecimento. É justamente nesse contexto que se delineia o perfil do novo homem imer-
so na era das tecnologias: autônomo, multicultural, multiprofissional e aberto a novas experi-
ências e aprendizagens.
Lévy (1999) introduz o conceito da cibercultura e adverte que precisa reflexão sobre o
futuro dos sistemas de educação e de formação na cibercultura, já que por meio dela deverá
haver uma renovação dos saberes. Nesse caso, segundo esse autor, deve-se ter cuidado para
com os equívocos que por ventura surgirem na relação entre educação, cibercultura e sua rela-
ção com o saber.
Nesse contexto, Lévy (1999, p. 157) constatou que
7

o ciberespaço suporta tecnologias intelectuais que amplificam, exteriorizam


e modificam numerosas funções cogitivas humansa: memória (bancos de da-
dos, hiperdocumentos, arquivos digitais de todos os tipos), imaginação (si-
mulações), percepção (sensores digitais, telepresença, realidades virtuais),
raciocínios (inteligência artificial, modelização de fenômenos complexos).
Essas tecnologias intelectuais favorecem novas formas de acesso à informa-
ção... e novos estilos de raciocínio e de conhecimento...

Sendo que a principal característica da educação on-line é a possibilidade de se formar


e de se capacitar mesmo longe das salas de aula ou de treinamento, percebemos que essa mo-
dalidade, que valoriza a autonomia, a participação e colaboração dialógica, traz em si aspectos
específicos responsáveis por uma redefinição de modelos até então finalizados. A educação
on-line possui potencialidades próprias, mas também aponta novos direcionamentos compon-
do uma nova versão do ensino redefinindo os elementos e recriando papeis que compõe o
processo de ensino e de aprendizado até o momento.
A grande demanda por educação tem levado o mercado a uma grande oferta de cursos
on-line. Nesse contexto, percebemos também que o governo tem garantido apoio a essa moda-
lidade de ensino por meio de fomento em diversas esferas governamentais. Contudo, a esfera
que tem recebido maior apoio financeiro é a esfera federal. Os maiores investimentos têm sido
direcionados para cursos de graduação e pós-graduação que atuam na formação docente e de
profissionais de alto nível.
Essa ação visa garantir formação inicial e continuada e de qualidade para um número
bastante ampliado de pessoas que até então não tiveram oportunidade de formação e/ou capa-
citação e nem acesso ao ensino presencial por motivos vários. Nesse caso, o ambiente on-line
surge como um grande aliado para esse intento, recebendo grandes investimentos e sendo
cenário de inúmeras pesquisas.
O ambiente on-line ou virtual agrega si possibilidade de formação e capacitação e ain-
da, mesmo a distância, promove a interação. Como o homem é um ser social, possibilitar inte-
ratividade é condição fundamental para atrair os interessados em se formar via Ambiente Vir-
tual. Nesse contexto, em que cada vez mais o mercado de trabalho exige capacitação, a socie-
dade é atraída para os ambientes virtuais em busca de capacitação, mas também em busca de
interação.

3 REDES SOCIAS EM CONTEXTO


Atualmente, o excesso de atividades tem levado as pessoas a um isolamento em que
por absoluta falta de tempo não conseguem se relacionar com os seus. Assim, por causa das
8

prioridades profissionais, relega a segundo plano a relação com amigos, parentes e até relaci-
onamentos pessoais. É nesse movimento que muitas pessoas buscam nos ambientes virtuais
possibilidades de se relacionarem sem a necessidade de priorizar uma coisa ou outra, ou seja,
pode fazer tudo isso ao mesmo tempo: trabalhar, se capacitar e se relacionar.
Percebemos que é o ambiente virtual que proporciona todas essas ações e é pela intera-
tividade que se consegue conciliar tudo isso. Portanto, essa interrelação de ações só é possível
no ambiente virtual especialmente nas chamadas redes sociais. Elas são responsáveis pelo
compartilhamento de idéias de pessoas que possuem interesses e objetivos em comum. As
redes sociais promovem a relação entre indivíduos na comunicação mediada por computador.
Segundo Powell (2010, p. 7)

O conceito de rede social recua no passado, para uma época bem antes de a
internet ter sido inventada. Ele se refere a uma comunidade na qual as pesso-
as estão de alguma forma conectadas – por meio de amizade, valores, rela-
ções no trabalho, idéias. Hoje o termo “rede social” também se refere à pla-
taforma web onde as pessoas podem se conectar entre si. É o equivalente on-
line ao arquivo rotatório de contatos de negócios e ao arquivo de fichários
englobados em um único, e está tornando onipresente.

As redes sociais são situações de comunicação em ambiente virtual e se trata de uma


novidade no que se refere ao formato de comunicação e envolvimento de inúmeros participan-
tes. Como um fenômeno recente, as redes sociais começaram a ganhar notoriedade em 2003.
Dessa época para cá, elas evoluíram e se multiplicaram, embora quase não possuam pesquisas
que as investiguem em seus inúmeros aspectos e conceitos.
Existem diferentes tipos de rede para diferentes tipos de público e para diversos pro-
pósitos. É como se cada rede fosse um microcosmo que se integra pela identidade, interesse e
os diferentes usos. Segundo Powell (2010, p. 20) “cada rede é criada considerando diferentes
usos e usuários”. Essa autora cita e descreve algumas das inúmeras redes sociais existentes e
apresenta alguns dados sobre o número e perfil dos usuários das maiores redes sociais.
Entre elas, Powell (2010) destaca o Myspace, criado em 2003 cujo público principal
são músicos, adolescentes e cultura em geral, que é utilizado para promover produtos para o
mercado de massa, música, moda e celebridades e para construir comunidades entre o público
jovem, além de descobrir e verificar tendências.
Powell (2010) destaca também o Facebook que foi fundado em 2004 e possui como
público principal os usuário em geral da internet. Além do público internacional, o Facebook
possui usuários na faixa etária 25 anos acima. Segundo essa autora, o Facebook agrega mais
9

de 350 milhões de usuário espalhados em todo o mundo e é muito utilizado para construir e
manter uma rede pessoal e profissional, para promover produtos para o mercado de massa
música, celebridades e políticos. O Facebook também é utilizado para construir comunidades
entre público mais velho e ainda para descobrir e verificar tendências, tal qual o Mayspace.
Já em relação ao Orkut, Powell (2010) esclarece que ele foi fundado em 2004 e tem
como principal público os usuários da internet de modo geral, e que em sua maioria o público
é brasileiro e indiano. Segundo essa autora, o Orkut também é muito utilizado para promover
produtos para o mercado de massa, música e celebridades para públicos do Brasil e da Índia.
Atualmente, o Orkut e o Facebook estão sempre disputando o espaço de maior e mais visitada
rede social do Brasil. Por ora, percebe-se um empate, já que ambos são os líderes de acesso no
que se refere as redes sociais no Brasil.
Outra rede destacada por Powell (2010) é o Twitter. Segundo essa autora, o Twitter
tem tido uma taxa de crescimento superior a 1000 % por ano. Fundado em 2006 essa rede
social tem como público principal usuário em geral com 30 anos ou mais. O perfil dos usuá-
rios varia entre atletas, políticos, marcas e organizações com ou sem fins lucrativos. A autora
afirma que o Twitter é muito utilizado para descobrir e compartilhar informações em tempo
real por meio de troca pública de envio de mensagens curtas. Ele é utilizado também para
expandir e manter redes pessoais e profissionais, além de construir comunidades.
As redes sociais de modo geral são apresentadas como uma rede de informações que é
movimentada por milhares de pessoas em todo o mundo que ficam conectadas entre si e se-
guem e são seguidos diariamente. De acordo com Powell (2010, p. 14)

As redes sociais permitem que você estenda sua rede para pessoas que estão
fora de sua rede pessoal, mas com quem você compartilha amigos, colegas e
idéias comuns. As redes sociais fornecem as ferramentas para controlar o
fluxo de informações entre você e sua rede, e podem ajudá-lo a extrair mais
dos seus relacionamentos com outras pessoas.

Ao permitir que se mantenha contato freqüente de modo síncrono e assíncrono, as re-


des sociais disponibilizam também formas de acesso e usos diversos das redes sociais con-
templando uma série de interesses. É algo que serve ao mesmo tempo um indivíduo, mas
também o coletivo, promovendo interação de um para muitos e de muitos para muitos. Trata-
se de uma ferramenta que por controlar o fluxo de informações entre o usuário e a rede, favo-
rece um uso direcionado a obter um fim específico de cada usuário. As redes sociais repre-
sentam um mundo novo e aberto da socialização que permitem maiores chances de sucesso
nos domínios da comunicação e produção e distribuição de informações e conhecimento.
10

Para Powell (2010) em essência, as redes sociais on-line apenas oferecem novas ma-
neiras de se comunicar. No passado, eram cartas, mas logo depois, passou-se a telefonar. Lo-
go após, surgiram os e-mails e mensagens de texto, e agora a conexão é por meio dos perfis
on-line e por conta deles cria-se a amizade entre uns e outros no Facebook. Essa autora escla-
rece que “as redes sociais não são apenas para alcançar as pessoas – elas são para ficar em
contato. As redes sociais tornam os relacionamentos transparentes e oferecem ferramentas
para ajudar você a se conectar e ficar conectado” (POWELL, 2010.p. 7).
Atualmente, as redes sociais têm assumido fins diversos, dentre eles a abertura de pos-
sibilidades de trabalho e negócio. Muitas empresas e instituições têm utilizado as redes sociais
para expandirem, avaliarem, divulgarem e até venderem produtos. Por outro lado, existem
muitas pessoas que estão em busca de oportunidade de trabalho e negócios. É nesse aspecto
que as redes sociais estão mudando o mundo e a forma de se negociar. Elas atendem a ambos
os lados tanto as necessidades da empresa, quanto às necessidades do cidadão que busca por
colocação no mercado de trabalho.
Há de se considerar, no entanto, a especificidade da rede social e a sua abrangência e
versatilidade. Em nosso levantamento pudemos perceber que as redes sociais têm recebido
diversas aplicabilidades. No geral, as redes sociais têm servido às necessidades de interação
das pessoas. Contudo, percebemos especial enfoque ou tendência de aplicação para os negó-
cios.
Encontramos diversos trabalhos publicados direcionando o uso das redes sociais por
empresas e em empresas que criaram mecanismos para estimular o uso interno. Por outro la-
do, a possibilidade de uso das redes sociais para os negócios tem sido bastante estimulada.
Empresários usam as redes sociais para lançamento, divulgação, avaliação de produtos que
recebem parecer imediato dos milhares de clientes usuários das redes sociais.
As redes sociais, nesse contexto, representam uma possibilidade de acesso direto e
rápido a inúmeros clientes em potencial para os diversos produtos criados e lançados no mer-
cado todos os dias. Todos podem se agregar a elas que estão criando novas oportunidades de
negócios na produção, distribuição e comunicação. Entretanto, por conta de sua relevante pos-
sibilidade de interação e interdisciplinaridade, percebemos indício para a sua aplicabilidade
também na área da educação atuando como recurso didático e pedagógico.

4 REDES SOCIAIS NA EDUCAÇÃO: ASPECTOS TEÓRICOS, VIESES E APLICA-


ÇÃO
11

As redes sociais com a utilização de tecnologias interativas têm ganhado um novo


espaço. Devido ao seu perfil multidirecional altamente popularizado, essa idéia da comunica-
ção em rede possibilitando amplo acesso de um público diverso, têm suscitado o seu uso no
contexto educacional.
Pelo fato de atingir um público diferenciado e também pelo fato de se utilizar inúme-
ras formas de linguagem midiática, linguagem verbal e não verbal, as redes sociais tendem a
favorecer o processo de ensino e aprendizagem, no sentido de melhorar a comunicação entre
professor e aluno num contexto fora da sala de aula.
Sendo assim, procuramos visitar algumas dessas redes sociais e vislumbrar se há
possibilidade de utilizá-las como um recurso pedagógico. Para isso, acessamos algumas redes
para levantar algumas possibilidades de uso que favoreça o ensino e a aprendizagem, mas
acessamos também alguns cursos oferecidos na modalidade a distância para vislumbrar se
algum deles tem usado as redes sociais como recurso didático e pedagógico.
Ao levantarmos referências bibliográficas que abordem o uso pedagógico das redes
sociais, percebemos a compreensível carência desses materiais. Como se trata de um fenôme-
no relativamente novo na sociedade, as redes sociais ainda carecem de estudos e pesquisas
que abordem todas suas vertentes. Inúmeros são os aspectos que podem ser investigados. Inte-
ressa-nos, no entanto, o seu caráter pedagógico e sua aplicabilidade na área educacional.
Pelas características apresentadas, buscamos vieses que englobem teoria e prática de
ensino com a finalidade de promover o ensino e a aprendizagem mediados pelas redes sociais.
Entendemos que o aluno, ao utilizar a rede social para executar alguma atividade postada pelo
professor ou incentivada por ele, participa ativamente da construção do seu próprio processo
de aprendizagem seguindo rumo à aprendizagem significativa.
Partimos da hipótese, também, que as redes sociais são pontos de encontro e de di-
versas formas de interação, e que abrem espaço ainda para permitir uma extensão da interação
professo-aluno e por isso, pode favorecer o acréscimo de mais um elo na corrente interativa
do processo ensino e aprendizagem que é o elo do conteúdo. Nesse caso, acreditamos que as
redes sociais favorecem a constituição da relação professor-conteúdo-aluno possibilitando que
o ensino, mas também, o aprendizado aconteça mesmo a distância.
Verificamos que o ensino pode ganhar um novo enfoque ao ser mediatizado pelo uso
de tecnologias disponibilizadas pelas redes sociais. Essa modalidade de ensino se configura
em novas formas não de ensino, mas de relações sociais entre professor e aluno, podendo for-
talecer laços e possibilitando que o ensino e a aprendizagem aconteçam mesmo a distância.
Segundo Silva (2006. p. 330)
12

Tendo como traço distintivo a mediatização das relações entre os envolvidos,


o processo de educação a distância mediatizado pelo uso de tecnologias deve
trazer uma dimensão educacional pluridirecionada, descentralizada e inter-
disciplinar em que prevaleçam as visões de diversas áreas de conhecimento.
Diante das inovações e contribuições trazidas pelas tecnologias de informa-
ção e comunicação à EAD, destaca-se a facilitação dos processos de comu-
nicação e estímulo a interação.

Esse autor ao refletir sobre a mediatização das relações professor-aluno no contexto


da Educação a Distância, abre caminho para a utilização da mediatização das relações do pro-
cesso ensino e aprendizagem via redes sociais. É justamente esse estímulo a interação que
favorece o uso pedagógico das redes sociais na educação. Outro fator que favorece o uso das
redes sócias como recurso pedagógico é o fato delas agregarem em si diferentes perfis e dife-
rentes linguagens. Isso faz com que o uso das redes sociais no contexto educacional as levem
a uma dimensão interdisciplinar abrangendo diversos conhecimentos.
A educação, tal qual se encontra, requer imediata realização de mudanças de toda or-
dem. Um ensino que potencialize as habilidades de aprendizagem do aluno anseia por um
enfoque interdisciplinar que podem utilizar pedagogicamente as redes sociais como facilitado-
ras do processo ensino e aprendizagem, melhorando a relação professor e aluno.
Nesses ambientes, o professor pode trabalhar ambientes colaborativos em que os
alunos se sentirão envolvidos com o próprio aprendizado. De acordo com Silva (2006, p.
277),

os aprendizes devem ser encorajados a confrontar problemas práticos... a in-


teração e o trabalho cooperativo são um caminho não só para buscar um pro-
duto coletivo, mas para desenvolver uma visão ampla... e também para esti-
mular a criatividade em prol de novas descobertas e alternativas inovadoras.
Em tal concepção os aprendizes são co-autores da construção do conheci-
mento e do seu próprio processo de aprendizado.

Pelo que pudemos verificar o uso pedagógico das redes sociais proporciona justa-
mente a autonomia do aluno na construção do conhecimento e na busca por informação. Ao
poder interagir com o professor e com os demais colegas num contexto diferente do da sala de
aula, o aluno se sente motivado a buscar pelo conhecimento e a participar das atividades de
modo mais interessado e consciente.
Além disso, o contexto das redes sociais sugere certa ludicidade bastante apreciada
pelo aluno que buscará freqüência e qualidade no acesso e na execução da atividade, além de
13

poder contemplar o ponto de vista de outros colegas e de diversas outras pessoas. O aluno ao
discorrer sobre determinado assunto é levado a aclarar idéias, pois será acompanhado e avali-
ado por inúmeras pessoas.
Esse fato leva o aluno a produzir textos mais elaborados, receber ou fazer críticas,
concordar ou discordar de outras idéias e posturas. Sendo assim, o contexto das redes sociais
favorece a socialização efetiva do aluno que em outras situações não teria tanta liberdade e
tanta autonomia. Ora por timidez, ora por falta de tempo, ora por falta de espaço ou por tantos
outros motivos.
O fato de o aluno poder dizer o que pensa, mas de certo modo, acompanhado por
inúmeras pessoas e podendo saber a opinião de outras pessoas na íntegra sem muito rodeio,
desenvolve a criticidade do aluno, delineando uma personalidade do aprendiz consciente e
que participa do próprio processo de aprender.
As redes sociais tendem a oferecer um ambiente propício ao aprendizado que poderá
ser direcionado e mediado pelo professor cujo papel altera de professor a direcionador, quase
um maestro que ao direcionar as atividades nas redes sociais, o professor pode até criar uma
comunidade de aprendizagem aberta.
O uso de diversas mídias na busca pelo ensino e pelo aprendizado faz das redes soci-
ais um local propício para que o processo ensino e aprendizagem se ambiente. A importância
do uso das mídias na educação tem sido bastante suscitada no contexto educacional. Segundo
Tori (2010, p. 38)
qualquer atividade de aprendizagem envolve comunicação, que por sua vez
necessita de uma ou mais mídias para se efetivar. Nessas atividades podemos
identificar pelo menos três canais de comunicação, uma para cada relação de
distância (aluno-professor, aluno-aluno e aluno-conteúdo) sendo que cada
um deles pode fazer uso de uma ou mais mídias. A seleção da mídia e de seu
conteúdo é uma importante tarefa dentro da modelagem de uma atividade de
aprendizagem.

O contexto das redes sociais oferece ao professor o espaço e a possibilidade de se


aplicar diferentes mídias na modelagem de uma atividade de aprendizagem e é o contexto das
redes sociais aliado ao perfil dos alunos que favorece a escolha e a modelagem dessas ativida-
des.
Segundo esse autor, hoje há uma profusão de tecnologias e possibilidades de compo-
sição de mídias, mas há também maior atenção em relação às diferenças cognitivas e às carac-
terísticas individuais de aprendizagem dos alunos. Essa atenção às diferenças cognitivas tem
aumentado o interesse de pesquisadores e educadores por melhor conhecer e desenvolver téc-
14

nicas e processos de seleção e aplicação das mídias nas atividades de aprendizagem (TORI,
2010).
Acreditamos que as redes sociais oferecem possibilidades educativas servindo como
recurso pedagógico de que o professor „antenado‟ ao mundo tecnológico pode lançar mão. O
fato é que mesmo oferecendo tantas possibilidades educativas, as redes sociais, como recurso
pedagógico, tem sido pouco ou nunca utilizado para fins educacionais.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tivemos experiências interessantes ao pesquisar sobre a aplicabilidade pedagógica
das redes sociais na educação a distância. Os resultados demonstraram que dos 6 cursos anali-
sados, nenhum apresentou indícios de utilização das redes sociais como recurso pedagógico.
Apenas 4 deles utilizavam vez ou outra o chat, mas apenas de modo interno à plataforma do
Ambiente Virtual de Aprendizagem.
Dos 6 tutores entrevistados, apenas 1 nos disse que para melhor se comunicar com os
alunos ele utiliza o MSN. Segundo ele, a necessidade de resposta rápida e personalizada, mui-
tas vezes o forçou a buscar outros meios de comunicação. Todos os tutores disseram que sen-
tem falta de outros recursos mais potentes e mais atrativos para se comunicar com os alunos,
mas reclamaram que mesmo que tivessem esses recursos, o tempo para utilizá-los seria outro
fator que comprometeria a interação. Segundo eles, tanto os alunos quanto eles não teriam
tempo para essa interação.
Segundo os tutores, o ideal seria que os cursos oferecessem propostas de atividades
envolvendo as redes sociais, pois se as atividades já fossem planejadas previamente nas ativi-
dades do curso e se os cursos já oferecessem links, direcionado tais atividades, seria bem mais
fácil e envolvente tanto para os tutores, quanto para os alunos. O que normalmente acontece,
segundo eles, é que os cursos já são estruturados previamente e são postados sem nenhuma
abertura para que atividades de interação, pesquisa, discussão pudessem ser levadas para o
ambiente das redes sociais.
Quanto a carência de material publicado sobre a aplicabilidade pedagógica das redes
sociais, acreditamos que ela pode ser explicada pela novidade que ainda se constituem as re-
des sociais, contudo, em breve acreditamos que encontraremos mais publicações. Isso pelo
fato da ampla utilização em todos os níveis sociais da população e pela interatividade e poten-
cialidade de recursos midiáticos que as redes sociais oferecem como suporte tanto para intera-
ção quanto para capacitação.
15

Os diversos fins de utilização nos levam a crer que conectividade das redes sociais
poderá ser utilizada também para ampliar e diversificar a prática de ensino do professor e me-
lhorar a relação entre professor e aluno, além de melhorar o processo ensino e aprendizagem.
Percebemos ampla possibilidade de uso pedagógico para diversas áreas como: Ensino de Lín-
guas, Análise do Discurso, Turnos de Fala, Geografia, História, Pesquisas diversas, Pedago-
gia, Políticas, Jornalismo entre várias outras.
Poderíamos, inclusive, listar uma série de atividades ou planos de aulas utilizando as
redes sociais como recurso pedagógico, entretanto, não é essa a finalidade desse trabalho.
Deixaremos tais ações para um trabalho próximo que envolverá pesquisas e análises de práti-
cas de alguns docentes que já se aventuraram a utilizar pedagogicamente as redes sociais co-
mo suporte didático-pedagógico para atuações tanto em cursos a distância como em cursos
presenciais.
É a interatividade que as redes sociais oferecem que serve de atrativo para o profes-
sor e para o aluno fazendo com que as relações entre ambos se fortaleçam de modo a garantir
qualidade do ensino levando o aluno a construir a aprendizagem significativa. Entretanto,
como todo recurso pedagógico, o uso didático, adequado e producente das redes sociais de-
penderá das concepções e da criatividade do professor que assume um papel de mediador,
planejando atividades interativas e de pesquisa motivando o aluno a utilizar as redes sociais
para participar ativamente do processo ensino e aprendizagem construindo o seu conhecimen-
to.
E se as redes sociais agregam milhares de acesso e se constituem como ponto de en-
contro em que milhares de pessoas se conectam por diversas finalidades, pudemos concluir
que uma dessas finalidades pode ser atividades pedagógicas, curriculares que podem planeja-
das, desenvolvidas e aplicadas pelo professor para atender o aluno fora do contexto espacial,
ou seja, em lugares diversos, tendo como ponto de encontro o espaço virtual das redes sociais.
Sendo assim, as redes sociais podem contribuir para ampliar e diversificar a prática
de ensino do professor nos cursos a distância e o seu uso pedagógico poderia fazer parte do
planejamento compondo o modelo pedagógico do curso já no planejamento.

REFERÊNCIAS
LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999. 264 p.

POWELL, Juliette. 33 milhões de pessoas na sua rede de contatos – Como criar, influenciar
e administrar um negócio de sucesso por meio das redes sociais. Tradução: Leonardo
16

Abramowicz. – São Paulo: Editora Gente, 2010. Título original: 33 million people in the
room: how to create, influence, and run a successful business with social networking.
Rede social. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Rede_social#cite_note-0> Acesso
em: 18 set. 2011.

SILVA, Marco. Educação online: teorias, práticas, legislação, formação corporativa. 2. ed.
São Paulo: Edições Loyola, 2006.

TORI, Romeu. Educação sem distância: as tecnologias interativas na redução de distâncias


em ensino e aprendizagem. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2010.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

AQUISIÇÃO DE SEGUNDA LÍNGUA POR GRADUANDOS:


A LÍNGUA DE SINAIS COMO DISCIPLINA ACADÊMICA

Emiliana Faria Rosa (UFSC)1

RESUMO

Com o presente trabalho desejo expor como acontece a aquisição da língua brasileira de sinais
(LIBRAS) por discentes universitários que devem obrigatoriamente fazer tal disciplina como
parte curricular. Coloca-se aqui a língua de sinais como segunda língua, visto que se tem a
língua portuguesa como primeira língua do graduando. Tendo este objetivo central, toma-se
por objetivos específicos como se da aquisição de uma segunda língua pelos discentes; como
a língua de sinais se faz presente no meio acadêmico e o que ela representa e quais os
resultados da relação ensino-aprendizagem desta língua. Apresento aqui observações, teorias
comprobatórias e explicações; para isso toma-se por metodologia a pesquisa teórica que
comprove e esclareça como acontece tal aquisição referida neste resumo, além de observações
efetuadas. As contribuições se fazem presente visto que a disciplina de LIBRAS está inserida
como componente curricular obrigatório em cursos de licenciatura e fonoaudiologia, assim
como também presente como disciplina optativa nos demais cursos de graduação.

Palavras-chave:
LIBRAS. Aquisição de segunda língua. Ensino superior.

ABSTRACT

With this paper I wish to state as it is the acquisition of Brazilian Sign Language (LBS) for
university students that must make such a course as part of the curriculum. This raises a sign
language as a second language, since it has the Portuguese language as a first language of the
student. Having this central goal, it becomes as specific goals for acquiring a second language
by students, such as sign language is present in academia and what it represents and what the
results of the teaching-learning this language. I present here observations, theories and
explanations corroborative; to this becomes a method to prove the theoretical research and
discuss this acquisition as it referred to in this summary, and observations made.
Contributions to do this since the discipline of LBS is inserted as a curriculum component
binding in undergraduate and speech therapy, as well as present as in other elective courses
for graduation.

Keywords:
LBS. Second language acquisition. Higher education.

Adquirir uma língua é não somente aprender sobre ela, mas como também conhecer ao
que ela se integra. Isto sendo observado sob o ponto de vista de uma disciplina acadêmica
gerará mais do que entendimento linguístico, ou seja, o graduando não estará a par somente de
uma língua, mas sim de aspectos lingüísticos e culturais de sujeitos que possuem uma língua
visuoespacial: os surdos.

1
Emiliana Faria Rosa; Mestra em Educação; Doutoranda em Linguística (PGLg/USFC); e-mail:
emilianarosa@gmail.com.
2

Segundo Skliar (1997) este contexto favorece o reconhecimento do outro, alargando a


convivência entre pares e instituindo um novo modelo social de interação com as diferenças,
nas escolas e na comunidade. Para que o surdo seja reconhecido como diferente nesta
concepção, é necessário que seja reconhecido como sujeito bilíngüe e bicultural, fazendo uso
das duas línguas, inclusive no contexto escolar.
O ensino superior remete a uma babel linguística que se integra e ao mesmo tempo se
diferencia. São as línguas que movem o processo de ensino-aprendizagem e, portanto, é
impossível deixar a língua brasileira de sinais de fora desta contextualização.
A existência de línguas além da língua portuguesa não é assunto novo no meio
acadêmico. É por essa afirmação que se tem outra afirmação: a língua de sinais sempre foi
conhecida, mas para ser reconhecida foi preciso a existência da lei. O Decreto 5.625 de 22 de
dezembro de 2005 reconheceu a LIBRAS como uma das línguas oficiais no país.
A partir deste decreto a língua de sinais integrou-se “oficialmente” no corpo
linguístico do ensino superior tanto como língua de uso comunicativo quanto como disciplina
curricular.
O ensino de línguas estrangeiras além da língua portuguesa na universidade é sempre
presente no meio acadêmico, mas a LIBRAS, ou seja, Língua Brasileira de Sinais, ela é
recente.
Após a oficialização da língua de sinais e da proposta de educação do MEC,
conhecida como educação inclusiva, observou-se a criação da disciplina de língua de sinais no
ensino superior. Além de tudo isso há, presentemente, a inclusão social, levando a
universidade a ser um dos locais no qual se prepara as pessoas para o que quer que aconteça,
embora isso seja por vezes utópico.
Esta é a língua da comunidade surda brasileira que passou a ser reconhecida e
oficializada com a existência da lei. O Decreto 5.625 de 22 de dezembro de 2005 reconheceu
a LIBRAS como língua oficial no país e determinou que fosse criada a disciplina de LIBRAS
na universidade. Tal como consta no capítulo II do referido decreto:
Art. 3o A Libras deve ser inserida como disciplina curricular obrigatória nos cursos
de formação de professores para o exercício do magistério, em nível médio e
superior, e nos cursos de Fonoaudiologia, de instituições de ensino, públicas e
privadas, do sistema federal de ensino e dos sistemas de ensino dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios.
§ 1o Todos os cursos de licenciatura, nas diferentes áreas do conhecimento, o
curso normal de nível médio, o curso normal superior, o curso de Pedagogia e o
curso de Educação Especial são considerados cursos de formação de professores e
profissionais da educação para o exercício do magistério.
§ 2o A Libras constituir-se-á em disciplina curricular optativa nos demais
cursos de educação superior e na educação profissional, a partir de um ano da
publicação deste Decreto (BRASIL, 2005).
3

Alguns pontos que se observa nas universidades sobre a inserção da LIBRAS é


dificuldade da presença de intérpretes, falta de material didático específico, discentes e
universidade com pouca ou nada de informação, professores desmotivados, inquietações
sobre processo de avaliação dos discentes, conquistas de valorização do papel do professor de
LIBRAS, mudanças na universidade em relação a quem é e como interagir com o surdo
(sendo este professor ou aluno), entre outros fatores.
Mas a presença da LIBRAS na universidade não apresenta somente esses fatores. Há
por exemplo casos de que graduandos com familiares ou colegas de trabalho passam a
interagir melhor depois de cursar a disciplina de língua de sinais. Isto porque tal disciplina
transmite não só conteúdos práticos como também contextos socioculturais da vivência do
surdo.
No caso do graduando conhecer/conviver com surdos, a maioria filhos ou parentes
próximos, até então a língua de sinais era uma situação que não havia informação satisfatória.
Ao interagir com a língua de sinais na universidade, esse aluno descobre o que lhe faltava de
informação. Esta virá através da metodologia usada em sala de aula. Ou seja, o professor de
LIBRAS não ensina somente a prática da língua de sinais, mas sim a teoria necessária para o
entendimento do que é a LIBRAS, seus contextos e vínculos indissolúveis.

Para o aprendizado da LIBRAS, como qualquer outra língua, é necessário


disposição, esforço e aprender a viver como surdo, ou seja, na sua cultura. É preciso
também, mesmo que em parte, eliminar os estereótipos de surdez e de deficiência
(RASBOLT, 2007).

Ter a língua de sinais no currículo da universidade não gera uma mudança social
somente por essa presença. Somente se os alunos entenderem e aceitarem a língua de sinais é
que teremos uma modificação social. É o caso de alunos que já trabalham como professores e
que já tiveram a experiência em sala de aula com um aluno surdo. Este graduando terá uma
melhor receptividade da LIBRAS do que o aluno que nunca teve contato antes.
A disciplina de LIBRAS é uma tentativa diária de ensinar o respeito e a valorização da
língua de sinais, uma vez que os graduados estarão, atual ou futuramente, em contato diário
com os alunos surdos nas escolas, universidades e no próprio cotidiano. O professor de língua
de sinais deve ser visto como qualquer outro professor, capaz de educar, influenciar e
estimular seus alunos nas descobertas lingüísticas de uma língua naturalmente visuoespacial e
motivadora da possibilidade de interagir com o outro e o mundo em que se vive.
4

Ter a disciplina de LIBRAS nas universidades brasileiras é uma conquista


extremamente importante para a comunidade surda. É como um troféu conquistado
arduamente pelos surdos durante anos de luta pela valorização da língua de sinais. Luta que
corresponde a um passo no meio de todo caminho percorrido e a ser percorrido. Caminho que
não acabou e continua no cotidiano enfrentado e vivido pelo surdo.

Ter a língua de sinais no currículo da universidade não gera uma mudança social
somente por essa presença. Somente se os alunos entenderem e aceitarem a língua
de sinais é que teremos uma modificação social. É o caso de alunos que já trabalham
como professores e que já tiveram a experiência em sala de aula com um aluno
surdo. Este graduando terá uma melhor receptividade da LIBRAS do que o aluno
que nunca teve contato antes (ROSA, 2010).

Fala-se sobre a língua de sinais e sua disciplina, mas ainda há não entendimento sobre
surdo, pois sempre foi visto como “deficiente” até a LIBRAS ser reconhecida; e mesmo com
esse reconhecimento ainda há desconhecimento. A divulgação está acontecendo aos poucos
através de mídia, palestras, cursos de formação e inclusive dentro da universidade através da
disciplina língua de sinais.
O governo acredita efetivar a inclusão social e educacional através da disciplina, a
qual teria função de capacitador a fim de que as pessoas trabalhassem com surdos. Não foi
levado em consideração que para ser fluente na LIBRAS é necessário anos de curso e
convivência com os surdos, pois a língua de sinais é complexa e tem o mesmo status e
dificuldade de aprendizagem e compreensão de qualquer língua oral.
A política educacional será vista como auxiliar em uma mudança social; afinal, a
sociedade não se modifica sozinha, mas sim a partir das relações sociais que nela existem. É a
partir dessa mudança que a sociedade pode conseguir mudar o currículo visando uma
melhoria social e, por conseguinte, educacional. Mudança esta que coloca a LIBRAS como
disciplina curricular.
Atentando a estas afirmações, pode-se “citar que todos os surdos são deficientes
auditivos, mas nem todos os deficientes auditivos são surdos, o que leva a entender que ser
surdo é ser usuário da língua de sinais naturalmente” (PONTIN, 2010).
Sobre aquisição da língua de sinais pelos discentes pode-se dizer que alunos adultos
podem possuir mais dificuldade de aprender uma segunda língua visto que sua primeira língua
é a língua portuguesa, a qual se apresenta na modalidade oral-auditiva; tal língua se difere da
língua em aprendizado que se apresenta na modalidade visuoespacial.
Outro ponto a refletir, em se tratando de aquisição, é a influência de uma língua sobre
outra. É observado que os discentes ao aprenderem a língua de sinais tentam sinalizar esta
5

com a gramática da língua portuguesa. Ao discorrer o aprendizado percebem que uma


gramática é diferente de outra. Cada língua possui uma gramática, mas mesmo assim, visto a
fluência na língua oral e o desconhecimento da língua visuoespacial, a influência será visível.
Ser usuário de uma língua é mais do que sabê-la. A aquisição da LIBRAS deve ser
diária, a partir do convívio como outros sinalizantes2. Deve ser diária, a partir do convívio
como outros sinalizantes. Fato que não acontece com muitos dos alunos.

A aquisição da linguagem é assim um processo universal, sujeito à maturação


biológica e à maturação linguística - o desenvolvimento regular e o domínio das
capacidades de falar e de compreender (PINTO, 2005).

Algumas situações que ocorre nas universidades de acordo com experiências e


observações são: turmas superlotadas, alunos de diferentes cursos numa mesma turma, alunos
que não conseguem sinalizar por dificuldade motora ou idade (“fase de maturação vencida” 3),
alunos que não memorizam sinais, alunos que não usam de forma alguma expressão facial,
alunos que não participam de aula expositiva por falta de interesse, vontade ou timidez de
expor o corpo em movimento...
São muitos os casos encontrados que limitam o desenvolvimento. Os fatores acima
descritos persistem nas salas de aulas da disciplina de LIBRAS. Observa-se que muitos alunos
cursam tal disciplina sem vontade, por pura obrigação. Seria, portanto, esse um dos motivos
do mau resultado dos mesmos. O aluno sem fluência deverá ser reprovado? Reprovar adianta?
Em alguns casos, em cursos de extensão, capacitação ou mesmo como disciplina curricular de
universidade o aluno não poderá ser reprovado mesmo tendo um péssimo desempenho em
LIBRAS. Como avaliar um aluno com dificuldade motora, com dificuldade de expressão e/ou
compreensão pelo fato de a língua de sinais ser de modalidade visuoespacial?
Sobre o processo de aprendizado, cita-se:

A aquisição e/ou aprendizagem de uma segunda língua é um processo complexo


constituído de um número significativo de variáveis. Modelos de aprendizagem e
pesquisas em aquisição de uma segunda língua (aqui significando também língua
estrangeira) têm procurado explicar alguns dos fatores que interagem nesse
processo, tais como questões relativas à metodologia e recursos instrucionais,
diferenças individuais do aprendiz (como aptidão e estilo cognitivo, por exemplo), o

2
Sinalizantes: pessoas que usam a língua de sinais.
3
Quando falamos de “maturação vencida” significa alunos com idade adulta que pode vir ter a dificuldade de
armazenar novas informações de outras línguas. Estes alunos possuem dificuldade de aprender a LIBRAS,
sinalizá-la ou ainda executar as expressões facio-corporais. Isso porque a maturação linguística no indivíduo “é
capaz de assimilar naturalmente as regras e os princípios que regem o funcionamento dessa língua, dominando-a
na forma e no uso ao fim de algum tempo. Esta faculdade pressupõe um suporte físico e estruturas mentais
exclusivas da espécie humana” (PINTO, 2005).
6

contexto de aprendizagem, características do professor, aspectos relativos à língua a


ser aprendida, os processos cognitivos dos aprendizes e sua produção efetiva
(HERBELE, 1997).

São muitas dúvidas, muitas questões sem resposta confiante. Cada professor leva em
conta muitas coisas na hora de avaliar. Há os que avaliam pela participação e
desenvolvimento durante a rotina de aulas, há os que dão provas, outros trabalhos a serem
apresentados...
Sobre isso Benedetti fala do ensino de LIBRAS a um curso superior, no caso
matemática:

O professor da disciplina deve identificar o aluno surdo observando as


características que apresenta. Demonstrar conhecimentos sobre a metodologia do
ensino para o surdo. Comunicar-se com o surdo. Dominar os aspectos linguísticos da
Língua Brasileira de Sinais, como a fonologia, a morfologia e a sintaxe além de
discutir o papel social da educação inclusiva (BENEDETTI, 2009).

E a parte teórica deve constar todos os textos possíveis como: história da educação
surda, introdução a LIBRAS, cultura e comunidade surda ou abordar somente a introdução
lingüística da língua de sinais? Em qualquer ensino de língua, antes do ensino dela, há vários
fatores que influencia e explica sobre a língua. Para valorizar a parte teórica, é necessário de
mais tempo; o que não é possível já que a disciplina de LIBRAS é ensinada num só semestre
e não há possibilidade de transmitir todas as informações.
Em se tratando da presença da disciplina no currículo acadêmico, a LIBRAS para ser
mais bem aproveitada poderia ser dividida com mais módulos, ao contrário do que apenas um
que se tem hoje em muitas universidades. Entretanto algumas universidades, ou ainda alguns
professores, não vêem essa possibilidade por questões burocráticas ou pessoais.
A aula de língua de sinais não corresponde a somente a prática, sinais soltos ou
expressões. A teoria é essencial para que o discente entenda o motivo de cursar essa
disciplina, além de perceber o que a sociedade mostra como „verdade absoluta‟ e a realidade
da comunidade surda. O aluno, a partir de então, se conscientizará da existência e necessidade
da LIBRAS no meio acadêmico e sócio-educacional.
Essa aceitação é fundamental para que se tenha desenvolvimento e interação na
disciplina tanto no curso de graduação quanto no possível uso da língua de sinais na
sociedade. Em se tratando da aceitação do corpo docente, é preciso acima de metodologias ou
ensinamentos a compreensão de que a disciplina de LIBRAS se relaciona com o contexto real
e diário na sala de aula e da própria sociedade.
7

Atente-se que a convivência com a comunidade surda é fundamental, pois a língua de


sinais também tem suas alterações, inovações assim como a língua oral. Essa convivência leva
a uma melhor aquisição das inflexões da língua de sinais e ao desenvolvimento da construção
do futuro docente.

(...) Para que o docente consiga lidar com todos os fatores que se articula em sua
prática, tem que estar bem preparado, o que nos conduz a uma problemática
recorrente: a formação do educador – que, para alcançar os resultados pretendidos,
nunca pode ser dada como concluída (GOMES, 2003, p. 51).

Pelo que é visto aqui não é fácil de ser resolvidas as observações e dificuldades.
Desafios e necessidades todos se deparam diariamente na sala de aula, o que muda é a forma
como são observados, vivenciados e solucionados. Isso porque “a sala de aula é um ponto de
encontro das diferentes histórias, dos diferentes percursos, dos diferentes saberes (...)”
(SMOLKA, 1989: 41).
Então fica o conhecimento ou reflexão do que seria adquirir a LIBRAS por parte dos
graduandos. Acredita-se que as indagações perante a proposta de inclusão “largada” de
qualquer jeito só para cumprir a lei possuem legitimidade. Fazer uma disciplina de forma
obrigatória e sem se dedicar como necessário não teria fundamento nem absorção do conteúdo
proposto.
A aquisição da LIBRAS não deve ser vista somente pelo lado do discente mas também
pelo professor. É necessário observar que o professor de língua de sinais já em sala de aula
vivencia o que foi exposto neste artigo e tenta de todas as formas equilibra-se entre o que
possui, o que pretende e o que lhe vem de encontro. Os referidos professores tendem a criar
possibilidades para superar as dificuldades e lecionar uma disciplina que ainda engatinha na
universidade.
Conclui-se que adquirir a língua de sinais é mais do que saber sinais básicos desta
língua, mas sim conscientizar-se do que a disciplina significa social, cultural e
linguisticamente para os surdos e as demais pessoas que com eles convivem.

REFERÊNCIAS

BENEDETTI, Luis Antonio. A disciplina LIBRAS no currículo do curso de Licenciatura em


Matemática. In: FAMAT em Revista. Uberlândia: UFU, 2009. Disponível em:
http://www.portal.famat.ufu.br/sites/famat.ufu.br/files/Anexos/Bookpage/famat_revista_13_re
flexoes.pdf. Acesso em: julho de 2011.
8

BRASIL. Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005, que regulamenta a Lei no 10.436.


Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-
2006/2005/decreto/d5626.htm. Acesso em 10 de maio de 2010.

GOMES, Márcia P. R. de Magalhães. A Importância da Relação Professor- Aluno na


Construção do Conhecimento. In: Espaço: Informativo Técnico- Científico do Instituto
Nacional de Educação de Surdos (INES). Rio de Janeiro: INES, 2003. nº 20 (dez/2003),
p.50-4.

HERBELE, Viviana. Aspectos de Teorias de Aquisição de uma Segunda Língua e o Ensino


de Línguas Estrangeiras. In: Revista de Divulgação Cultural. n 61 (janeiro abril de 1997)
FURB Blumenau. Disponível em:
http://www.nuspple.cce.ufsc.br/teoricos_teorias_de_aquisicao.htm. Acesso em: out de 2011.
PINTO. Claudia. Definição de maturação linguística. Disponível em:
http://www.flip.pt/language/en-US/Duvidas-Linguisticas/Duvida-Linguistica/DID/1172.aspx.
Acesso em: julho de 2011.

PONTIN, Bianca Ribeiro. Língua escrita: português/sinais (SW). Anais do IX Encontro do


CELSUL. Palhoça/SC: Universidade do Sul de Santa Catarina, 2010. Disponível em:
www.celsul.org.br/Encontros/09/artigos/Bianca%20Pontin.pdf. Acesso em julho de 2011.

RASBOLT, Junior. A experiência de aprender a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS).


Disponível em: http://sare.unianhanguera.edu.br/index.php/anudo/article/viewFile/735/560.
Acesso em: out de 2011.

ROSA, Emiliana Faria. Professor surdo e meio acadêmico: a vida presente no tempo presente.
In: Anais do VI congresso internacional de educação. São Leopoldo: UNISINOS, 2009.

______. LIBRAS na universidade: mudança de currículo, mudança na sociedade? In: Anais


do SENALE. Pelotas: UCPEL, 2010.

SMOLKA, Ana Luiza Bustamante. O Trabalho Pedagógico na Diversidade (Adversidade?) da


Sala de Aula. In: Cadernos CEDES. São Paulo: Cortez, 1989. nº 23, p.39-47.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

AS SMALL CLAUSES LIVRES SÃO MESMO SENTENÇAS EXCLAMATIVAS?

Karina Zendron da Cunha1 (PGL/UFPR)

RESUMO

Este artigo investiga as Small Clauses Livres em português brasileiro, classificadas por Sibal-
do (2009) como um tipo de sentença exclamativa. Mas o que caracteriza uma sentença excla-
mativa? O padrão entoacional dessas sentenças pode ajudar nessa caracterização? Com o ob-
jetivo de responder a essas questões, primeiramente foram aplicados os testes semânticos pro-
postos em Zanuttini e Portner (2003) para a classificação das sentenças exclamativas e, em
seguida, um experimento piloto foi elaborado para comparar o padrão entoacional das SCLs e
de outras sentenças exclamativas. Neste estudo também será apresentada a proposta de Kato
(2007) para a estrutura sintática das Small Clauses Livres com o intuito de verificar se há al-
guma evidência de que o padrão entoacional e a sintaxe estão de alguma forma relacionados.

Palavras-chave:
Small Clauses Livres. Sentenças Exclamativas. Interface fonologia-sintaxe.

ABSTRACT

This paper investigates the Free Small Clauses in Brazilian Portuguese, sorted by Sibaldo
(2009) as a kind of exclamative sentence. But what characterizes an exclamative sentence?
Can the intonation pattern of these sentences help with this characterization? In order to an-
swer these questions, the tests were first applied in the proposed semantic Zanuttini and Port-
ner (2003) for the classification of exclamative sentences, and then, a pilot experiment was
elaborated to compare the pattern of intonation SCLs and other exclamative sentences. This
study will also present the proposal of Kato (2007) for the syntactic structure of the Free
Small Clauses in order to verify whether there is some evidence that the pattern of intonation
and syntax are somehow related.

Keywords:
Free Small Clauses. Exclamative Clauses. Syntax-Phonology Interface.

1 INTRODUÇÃO
O objeto de estudo do presente artigo são as sentenças denominadas Small Clauses
Livres (doravante SCLs), que são estruturas em que o predicado precede o sujeito e em que
não há, aparentemente, nenhuma cópula flexionada e nenhuma marca morfológica de tempo2.
Veja os exemplos apresentados abaixo:

(1) a. Horroroso o namorado da Maria!


b. Muito bonito o anel da Maria!

1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPR; email: karinazendron@gmail.com.
2
Embora não haja nenhuma marca morfológica de tempo na superfície, segundo Sibaldo (2009) o tempo presen-
te é entendido subjacentemente.
2

Este artigo será assim dividido: na segunda seção farei uma revisão da literatura so-
bre as SCLs, na terceira seção apresentarei as sentenças que serão testadas, na quarta seção
farei uma rápida revisão do artigo de Zanuttini e Portner (2003) para, em seguida, aplicar os
testes semânticos sobre o corpus, na quinta seção farei uma rápida apresentação dos resulta-
dos de um dos experimentos piloto descritos em Zendron da Cunha (2011) para que, final-
mente, na sexta seção, sejam apresentadas as conclusões.

2 AS SCLS
2.1 Kato (2007)
Kato (1988)3 foi a primeira autora brasileira a trabalhar com as Small Clauses Livres,
termo que ela mesma cunhou4. A primeira observação de Kato (2007) a respeito das SCLs é
sobre a ordem dos constituintes dessa construção, que deve ser sempre Predicado + Sujeito,
caso contrário as sentenças tornam-se agramaticais. Veja os exemplos abaixo (KATO, 2007,
p. 88, ex. 7):

(2) a. *A sua casa bonita


b. *Esse seu secretário muito competente
c. *O seu filho um artista

Outra restrição colocada por Kato diz respeito ao tipo de adjetivo que pode acontecer
em uma SCL. Kato afirma que apenas adjetivos individual level podem acontecer nessas
construções:

(3) a. Inteligentes esses meninos


b. *Bêbados esses homens5

Como podemos observar no exemplo (3) a construção com o adjetivo individual le-
vel em (3a) é considerada gramatical por Kato, já a construção em (3b), com o adjetivo stage
level é considerada agramatical. Porém, como veremos na subseção 2.2, não é tão claro que
essa restrição seja mesmo válida, a começar pelo exemplo (3b), que parece ser gramatical

3
KATO, M. Free and Dependent Small Clauses in Brasilian Portuguese. Handout apresentado no GT de Teoria
da Gramática, 1988.
4
Na verdade o termo empregado por Kato é Free Small Clauses, traduzido por ela como mini-orações livres,
mas os pesquisadores têm geralmente mantido o termo Small Clause, traduzindo apenas a palavra free.
5
Exemplos retirados de Kato (2007, p. 88, ex. 8).
3

para os falantes do PB, assim como uma série de outras construções com predicado do tipo
stage level.
Kato (2007) também fala sobre a estrutura das SCLs, que ela considera semelhante a
das clivadas:

(4) É [FP [INTELIGENTE+Fi] que+F [IP o menino é ti]]]

A sentença clivada apresentada em (4), segundo a análise de Kato (2007), é resultado


de um movimento do predicado que possui o traço +F para a posição de foco sentencial, FP. E
é exatamente isso que, segundo Kato (2007), também acontece nas SCLs:

(5) [AP [ INTELIGENTE+F]i [AP ti [este menino]]]

Dessa forma, é fácil perceber a semelhança entre a SCL em (5) e a clivada em (4),
com a diferença de que na SCL o traço +F está no adjetivo.
A terceira cópula6, segundo Kato (2007, p. 23) pode ser apagada em PF quando está
no início da sentença (a palavra destacada em itálico representa a “terceira cópula”):

(6) É bonita a sua meia!

Segundo Kato, o que distingue uma sentença clivada finita comum de uma SCL é
que a terceira cópula é apagada e, dessa forma, as SCLs em PB são ordinariamente sentenças
clivadas finitas comuns. Se essa análise estiver no caminho certo, é possível hipotetizar um
mesmo padrão entoacional para as SCLs e para as clivadas (que são, em geral, estruturas de
foco identificacional), que exibem mudança de tessitura após a realização do foco. Para veri-
ficar essa hipótese, apresentarei, na seção (5) um dos experimentos pilotos já descritos em
Zendron da Cunha (2011).

2.2 Sibaldo (2009)


As SCLs são caracterizadas por Sibaldo (2009, p. 18) como um “(...) tipo de sentença
exclamativa com um aparente „apagamento‟ da cópula, tendo a seguinte ordem de constituin-

6
O termo „terceira‟ é utilizado para fazer menção a este tipo de cópula, uma vez que Kato (2007) levanta outros
dois tipos de cópula (a cópula atributiva „ser‟ e a cópula stage level „estar‟).
4

tes: Predicado + DP (...)". Para verificar se as SCLs são mesmo sentenças exclamativas, pro-
pus os testes apresentados na seção quatro.
Outra observação de Sibaldo (2009b) que quero salientar no presente artigo é o fato
de que o predicado de uma SCL deve ser restrito à categoria adjetival e que o adjetivo deve
ser graduável, excluindo sentenças como as apresentadas em (7):

(7) a. *Grávida essa mulher! > *Muito grávida


b. *Disponíveis os bombeiros! > *Muito disponíveis

Segundo o autor, as sentenças (7a) e (7b) são agramaticais não apenas pelo fato de o
adjetivo não ser graduável, mas também pelo fato de os predicados dessas sentenças serem
adjetivos do tipo stage level, que, segundo Kato (2007), não podem acontecer nas SCLs. En-
tretanto, como já foi comentado em nota na subseção 2.1, essa restrição colocada por Kato
(2007) não parece funcionar em todos os casos. Veja os exemplos abaixo:

(8) a. Crua essa carne! > Muito crua


7
b. Bêbado esse homem! > Muito bêbado
c. Suja a roupa dele! > Muito suja
d. Fedido esse cachorro! > Muito fedido
e. Gelada a sua mão! > Muito gelada

Os exemplos acima parecem ser perfeitamente gramaticais e os adjetivos não são do


tipo individual level, mas são graduáveis. Tendo isso em vista, talvez seja possível dizer que a
previsão de que o adjetivo que ocorre nas SCLs seja sempre do tipo individual level está in-
correta e que a restrição proposta por Sibaldo (2009), de que os adjetivos devem ser graduá-
veis, é que está correta.

3 O CORPUS
Observe a seguir as sentenças que serão utilizadas nos testes semânticos da seção 4 e
no experimento piloto da seção 5:

(9) Exclamativas Prosódicas:


a. Eu não vou e pronto!

7
Essa sentença é apresentada como agramatical em Kato (2007, p. 88).
5

b. Ai meu Deus do céu!


c. Eu odeio o Léo!

(10) Exclamativas canônicas:


a. Que lindo o Léo e a Maria!
b. Que Deus te ilumine e guarde!
c. Como é lindo aquele homem!
d. Como tu te iludes!
e. Quanto doce a Maria come!
f. Quanto homem nesse lugar!

(11) Clivadas:
a. É linda que a sua meia é.
b. É horroroso que o namorado da Maria é!
c. É louco que esse homem tá.

(12) SCLs:
a. Linda a sua meia!
b. Horroroso o namorado da Maria!
c. Uma merda as novelas da Globo!
d. Muito bonito o anel da Maria!

4 OS TESTES SEMÂNTICOS
4.1 Zanuttini e Portner (2005)
Zanuttini & Portner (2005), assim como Sadock e Zwicky (1985) 8, dividem os tipos
sentenciais conforme um par que abrange forma gramatical e uso conversacional. Para classi-
ficar as sentenças exclamativas, os autores utilizam essa noção de tipo sentencial. A forma
gramatical apresenta propriedades sintáticas e semânticas como as apresentadas abaixo:

(1) Propriedades Sintáticas9


a. As exclamativas contêm uma estrutura wh operador-variável;
b. As exclamativas contêm um morfema abstrato F no domínio CP.
(2) Propriedades Semânticas

8
SADOCK, J. M.; ZWICKY, A. Speech act distinctions in syntax. In: Language Typology and syntactic de-
scription. Cambridge: Cambridge University Press, 1985, p. 155-196.
9
Neste trabalho não daremos atenção às propriedades sintáticas apresentadas no artigo de Zanuttini e Portner
(2003).
6

a. As exclamativas denotam um conjunto de proposições alternativas, um resultado da estrutura


operador-variável.
b. As exclamativas são factivas, ou seja, seu conteúdo proposicional é pressuposto; essa caracte-
rística pressuposicional é o resultado do morfema abstrato F.

O uso conversacional das exclamativas é explicado pelos autores com base em um


conceito fundamental, o de widening10. Assim, com respeito ao uso, as exclamativas ampliam
o domínio de quantificação para o operador WH, que dá origem a um conjunto de proposições
alternativas para a sentença. Widening nos permite capturar os aspectos do significado das
exclamativas que têm sido informalmente descritos como “um sentido de surpresa”, “imprevi-
sibilidade”, “de grau extremo” e assim por diante.
Zanuttini & Portner (2005) identificam três propriedades que distinguem as exclama-
tivas de outros tipos de sentenças e com base nessas propriedades, propõem os seguintes tes-
tes semânticos: factividade, implicatura escalar e incapacidade de funcionar no par pergun-
ta/resposta. Esses testes serão apresentados de forma detalhada na subseção a seguir.

4.2 A aplicação dos testes e seus resultados


4.2.1 Teste de factividade
O teste de factividade pressupõe que sentenças exclamativas só podem ser encaixa-
das em predicados factivos:

(13) Maria sabe/*pensa/*pergunta como é lindo aquele homem.

Quando encaixadas em verbos como SABER e PERCEBER, no presente do indicati-


vo e com o sujeito em primeira pessoa, esse verbo não pode ser negado:

(14) *Eu não sei/percebo como é lindo aquele homem.

O problema de (14) é que a negação do conhecimento do falante entra em conflito


com a pressuposição factiva gerada pela exclamativa.

4.2.2 Teste de implicatura escalar


O teste de implicatura escalar relaciona a intuição de que exclamativas transmitem
surpresa ou algo digno de atenção. Segundo esse teste, as exclamativas não podem ser encai-
7

xadas na estrutura “Não é surpreendente...”, embora possam ser encaixadas em sua contrapar-
te positiva:

(15) *Não é surpreendente como é lindo aquele homem.


(16) É surpreendente como é lindo aquele homem.

A sentença (15) é inaceitável porque nega a surpresa da lindeza do homem e isso


contradiz a implicatura escalar. (15) é boa quando interrogada, ao passo que (16) fica agrama-
tical:

(17) Não é surpreendente como é lindo aquele homem?


(18) *É surpreendente como é lindo aquele homem?

A sentença (18) é inaceitável porque a interrogativa questiona a surpresa da lindeza


do homem, causando dúvidas sobre a implicatura.

4.2.3 Teste relação pergunta/resposta


O teste relação pergunta/resposta distingue as sentenças exclamativas das interroga-
tivas e das declarativas, pois exclamativas não podem funcionar em pares pergunta/resposta:

(19) A: A Maria come muito doce? B: Eu não sei.


(20) A: Quanto doce a Maria come! B: *Eu não sei./Claro que não!

Geralmente, elas também não podem ser usadas como resposta:

(21) A: A Maria come muito doce? B: *Quanto doce a Maria come! / Eu não sei.

São esses os testes que apliquei ao conjunto de sentenças apresentadas na seção 3.

10
O papel de widening nessa análise fica mais claro se relacionado com o conceito familiar de força sentencial
(enquanto membros de vários tipos de orações podem ser associados com a força ilocucionária de exclamar,
apenas os membros do tipo de oração exclamativa são convencionalmente associados com essa força sentencial.)
8

4.2.4 Resultados
O grupo que nomeei “exclamativas prosódicas”, não passa nos testes de factividade,
implicatura escalar e relação pergunta/resposta. Nesse caso, essas sentenças não fazem parte
do grupo das sentenças exclamativas. Veja a aplicação dos testes abaixo:

(22) Exclamativas Prosódicas:

a. Eu não vou e pronto!


Factividade:
A Maria *sabe/pensa/*pergunta eu não vou e pronto!
Eu não *sei/*percebo eu não vou e pronto!
Implicatura escalar:
*Não é surpreendente que eu não vou e pronto!
*É surpreendente que eu não vou e pronto!
*Não é surpreendente que eu não vou e pronto?
*É surpreendente que eu não vou e pronto?
Pergunta/Resposta:
A: Eu não vou e pronto! B: *Por quê?/ *Eu não sei
A: Você vai embora hoje ou amanhã? B: Eu não vou e pronto!

b. Ai meu Deus do céu!


Factividade:
A Maria *sabe/pensa/*pergunta ai meu deus do céu!
Eu não *sei/*percebo ai meu deus do céu!
Implicatura escalar:
*Não é surpreendente que ai meu deus do céu!
*É surpreendente que ai meu deus do céu!
*Não é surpreendente que ai meu deus do céu?
*É surpreendente que ai meu deus do céu?
Pergunta/Resposta:
A: Ai meu Deus do céu! B: *Eu não sei
A: Você soube da morte do João? B: Ai meu deus do céu!

c. Eu odeio o Léo!
9

Factividade:
A Maria *sabe/*pensa/*pergunta eu odeio o Léo!
Eu não *sei/*percebo eu odeio o Léo!
Implicatura escalar:
*Não é surpreendente que eu odeio o Léo!
É surpreendente que eu odeio o Léo!
Não é surpreendente que eu odeio o Léo?
*É surpreendente que eu odeio o Léo?
Pergunta/Resposta:
A: Eu odeio o Léo! B: *Eu não sei/ *não
A: O que você sente pelo Léo? B: Eu odeio o Léo!

Das sentenças classificadas como exclamativas canônicas, apenas a sentença em


(23b) não passou nos testes. Isso significa que todas as outras podem ser consideradas excla-
mativas.

(23) Exclamativas canônicas:

a. Que lindo o Léo e a Maria!


Factividade:
A Joana *sabe/*pensa/*pergunta que lindo o Léo e a Maria!
Eu não *sei/*percebo que lindo o Léo e a Maria!
Implicatura escalar:
*Não é surpreendente que lindo o Léo e a Maria!
É surpreendente que lindo o Léo e a Maria!
Não é surpreendente que lindo o Léo e a Maria?
*É surpreendente que lindo o Léo e a Maria?
Pergunta/Resposta:
A: Que lindo o Léo e a Maria! B: *Eu não sei/*não
A: O que você acha do Léo e da Maria? B:*Que lindo o Léo e a Maria!/ Formam um
belo casal.

b. Que Deus te ilumine e guarde!


Factividade:
10

A Maria *sabe/*pensa/*pergunta/deseja que deus te ilumine e guarde!


Eu não *sei/*percebo que deus te ilumine e guarde!
Implicatura escalar:
*Não é surpreendente que deus te ilumine e guarde!
*É surpreendente que deus te ilumine e guarde!
*Não é surpreendente que deus te ilumine e guarde?
*É surpreendente que deus te ilumine e guarde?
Pergunta/Resposta:
A: Que deus te ilumine e guarde! B: *Eu não sei/*não
A: O que você tem pra me dizer, vó? B: Que deus te ilumine e guarde!

c. Como é lindo aquele homem!


Factividade:
A Maria sabe/*pensa/*pergunta como é lindo aquele homem!
Eu não *sei/*percebo como é lindo aquele homem!
Implicatura escalar:
*Não é surpreendente como é lindo aquele homem!
É surpreendente como é lindo aquele homem!
Não é surpreendente como é lindo aquele homem?
*É surpreendente como é lindo aquele homem?
Pergunta/Resposta:
A: Como é lindo aquele homem! B: *Eu não sei/*não
A: Aquele homem é bonito? B: *Como é lindo aquele homem!/É lindo!

d. Como tu te iludes!
Factividade:
A Maria sabe/*pensa/*pergunta como tu te iludes.
Eu não *sei/*percebo como tu te iludes.
Implicatura escalar:
*Não é surpreendente como tu te iludes!
É surpreendente como tu te iludes!
Não é surpreendente como tu te iludes?
*É surpreendente como tu te iludes?
/Pergunta/Resposta:
11

A: Como tu te iludes! B: *Eu não sei./* não


A: Você acha que o Léo me ama? B: Como tu te iludes!

e. Quanto doce a Maria come!


Factividade:
A Joana sabe/*pensa/*pergunta quanto doce a Maria come!
Eu não sei/percebo quanto doce a Maria come!
Implicatura escalar:
*Não é surpreendente quanto doce a Maria come!
É surpreendente quanto doce a Maria come!
Não é surpreendente quanto doce a Maria come?
*É surpreendente quanto doce a Maria come?
Pergunta/Resposta:
A: Quanto doce a Maria come! B: *Eu não sei./*Claro que não!
A: A Maria come muito doce? B: *Quanto doce a Maria come! / Eu não sei.

f. Quanto homem nesse lugar!


Factividade:
A Joana *sabe/*pensa/*pergunta quanto homem nesse lugar!
Eu não *sei/*percebo quanto homem nesse lugar!
Implicatura escalar:
*Não é surpreendente quanto homem nesse lugar!
É surpreendente quanto homem (tem) nesse lugar!
Não é surpreendente quanto homem nesse lugar?
*É surpreendente quanto homem nesse lugar?
Pergunta/Resposta:
A: Quanto homem nesse lugar! B: *Eu não sei./Claro que não!
A: Tem muito homem nesse lugar? B: *Quanto homem nesse lugar! / Eu não sei.

As SCLs apresentaram alguns problemas quando apliquei os testes semânticos. Per-


cebi que se fosse adicionada à estrutura das SCLs a expressão “como é...”, algumas sentenças
passariam nos testes, mas daí eu estaria claramente modificando a estrutura e as sentenças
deixariam de ser SCLs. Sem a inclusão dessa expressão essas sentenças não passariam no
teste de factividade, ou seja, as SCLs se encaixam em predicados não factivos, o que em um
12

primeiro momento parece ser um problema. Entretanto, essas estruturas passam nos testes de
implicatura escalar e relação pergunta/resposta.
Se recorrermos ao argumento de Sibaldo (2009), o teste de factividade não nos im-
pediria de classificar as SCLs como sentenças exclamativas, uma vez que as SCLs “(...) são,
como o próprio nome diz, “livres” e não podem ser encaixadas” (SIBALDO, 2009, p, 132).
Essa argumentação do autor é construída sobre a hipótese de que as SCLs são TPs raízes1112.

(24) SCLs:

a. Linda a sua meia!


Factividade:
A Joana *sabe/*pensa/*pergunta/acha linda a sua meia!
Eu não *sei/*percebo linda a sua meia!
Implicatura escalar:
*Não é surpreendente linda a sua meia!
É surpreendentemente linda a sua meia!
Não é surpreendentemente linda a sua meia?
*É surpreendente linda a sua meia?
Pergunta/Resposta:
A: Linda a sua meia! B: *Eu não sei/*não
A: O que você acha da minha meia? B: *Linda a sua meia!/É bonita

b. Horroroso o namorado da Maria!


Factividade:
A Joana *sabe/*pensa/*pergunta/acha horroroso o namorado da Maria!
Eu não *sei/*percebo horroroso o namorado da Maria!
Implicatura escalar:
*Não é surpreendente horroroso o namorado da Maria!
É surpreendentemente horroroso o namorado da Maria!
Não é surpreendentemente horroroso o namorado da Maria?

11
Neste artigo não darei detalhes da proposta de Sibaldo para a estrutura das SCLs, mas caso o leitor tenha inte-
resse pode consultar as referências ao final deste trabalho.
12
Outro argumento é o de Renato Basso (comunicação pessoal) que sugere que o teste de factividade não se
aplica às SCLs já que essas sentenças, aparentemente, não têm valor de verdade, pois expressam uma opinião do
falante e não uma verdade incontestável. Por exemplo, se Maria acha o menino bonito, dizendo “Muito bonito
esse menino”, o João pode não achar o mesmo.
13

*É surpreendente horroroso o namorado da Maria?


Pergunta/Resposta:
A: Horroroso o namorado da Maria! B: *Eu não sei/*não
A: O que você acha do namorado da Maria? B: *Horroroso o namorado da Ma-
ria!/Acho horroroso.

c. Uma merda as novelas da Globo!


Factividade:
A Joana *sabe/*pensa/*pergunta/acha uma merda as novelas da Globo!
Eu não *sei/*percebo uma merda as novelas da Globo!
/Implicatura escalar:
*Não é surpreendente uma merda as novelas da Globo!
?É surpreendentemente uma merda as novelas da Globo!
?Não é surpreendentemente uma merda as novelas da Globo?
*É surpreendente uma merda as novelas da Globo?
Pergunta/Resposta:
A: Uma merda as novelas da Globo! B: *Eu não sei/*não
A: O que você acha das novelas da Globo? B: *Uma merda as novelas da Glo-
bo!/Acho uma merda

d. Muito bonito o anel da Maria!


Factividade:
A Joana *sabe/*pensa/*pergunta/acha muito bonito o anel da Maria!
Eu não *sei/*percebo muito bonito o anel da Maria!
/Implicatura escalar:
*Não é surpreendente muito bonito o anel da Maria!
?É surpreendentemente muito bonito o anel da Maria!
?Não é surpreendentemente muito bonito o anel da Maria?
*É surpreendente muito bonito o anel da Maria?
Pergunta/Resposta:
A: Muito bonito o anel da Maria! B: *Eu não sei/*não
A: O que você acha do anel da Maria? B: *Muito bonito o anel da Maria!/Acho bonito
14

Com o resultado desses testes, concluímos que apenas as SCLs e as Exclamativas


Comuns são sentenças exclamativas, já que as sentenças que classifiquei como Exclamativas
Prosódicas não passaram nos testes.

5 O EXPERIMENTO
O experimento apresentado nesta seção foi descrito com mais detalhes em Zendron
da Cunha (2011) como o segundo experimento piloto e, originalmente, contém mais sentenças
do que as apresentadas na seção 3 (excluí desse artigo as Small Clauses Dependentes (SCDs)
porque elas não são de interesse no momento).
A metodologia utilizada neste experimento é baseada em Seara e Figueiredo Silva
(2007) que argumentam a favor da coleta de dados de fala semi-espontânea. Para isso, utilizei
a leitura dirigida, ou seja, através do programa Power Point, apresentei ao informante as sen-
tenças inseridas em contextos que favoreciam a interpretação relevante para o propósito desta
pesquisa. As sentenças foram apresentadas em ordem aleatória para que o informante não
ficasse condicionado a repetir a mesma entoação para todas as sentenças. As sentenças testa-
das foram divididas em seis grupos, somando vinte e duas sentenças. Além da primeira grava-
ção, foram feitas duas repetições para garantir a integridade dos dados. Dessa forma, os dados
contabilizaram sessenta e seis sentenças.
Nesse experimento, apenas um informante do sexo feminino, com 30 anos, pós-
graduanda, foi gravada.
Para a gravação foi utilizado o programa Cubase e o microfone Shure KSM 27, com
taxa de amostragem do sinal a 44.100Hz por 16bit. Para a análise dos dados utilizei o PRA-
AT, versão 5.1.38 e do script MOMEL/INTSINT for PRAAT, versão 10.313.

5.1 Resultados
O objetivo de realizar esse experimento foi o de estabelecer um padrão entoacional
para as sentenças exclamativas, dessa forma, as sentenças apresentadas na seção 3 foram tes-
tadas.
As sentenças classificadas como exclamativas prosódicas apresentaram um padrão
entoacional instável, ou seja, em certos momentos o padrão entoacional se aproximava ao das
sentenças clivadas e SCLs e, em outros, ao das declarativas neutras, cf. Moraes (1998, p.
183).

13
Para mais detalhes sobre esses scripts recomendo a leitura de CELESTE, L. C. MOMEL e INTSINT: uma
contribuição à metodologia do estudo prosódico do português brasileiro. 2007. 222f. Dissertação (Mestrado em
Linguística) – Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.
15

As sentenças classificadas como exclamativas canônicas, por sua vez, apresentaram


um padrão entoacional mais regular. Observe a figura abaixo, uma tela gerada pelo INTSINT
para uma das produções da sentença (10c):

Figura 1 – Tela do programa PRAAT com a transcrição da curva de pitch da sentença “Como é lindo aquele
homem!” realizada pelo INTSINT.

A Figura 1 mostra, em azul, a curva de pitch da sentença “Como é lindo aquele ho-
mem”. O foco aparece logo no início da sentença principalmente sobre a palavra „lindo‟, ime-
diatamente após a palavra „como‟, seguido de uma descida considerável da curva azul até o
final da sentença, o que indica que o falante abaixou de forma considerável a sua frequência
fundamental com relação às frequências mais altas e mais baixas do resto da sentença. Obser-
ve que a linha vermelha horizontal que inseri sobre a curva azul deixa mais claro que a parte
final do enunciado é produzida em uma faixa de frequência mais baixa do que a do resto da
sentença, caracterizando o que a fonética acústica chama de mudança de tessitura14.

14
Para falar em mudança de tessitura é preciso primeiro entender o que á a tessitura: “A tessitura refere-se à
extensão da escala melódica usada pelo falante, ou seja, os limites reais onde se situam seus tons mais baixos e
mais altos quando fala. Alguns falantes tendem a ter uma escala melódica mais alta do que outros” (CAGLIARI,
2007, p.128). Entendendo melhor o que é a tessitura podemos falar da variação na tessitura, que ocorre quando a
frequência fundamental é aumentada ou abaixada de forma considerável com relação às frequências mais altas e
mais baixas que o falante costuma usar em sua fala normal. Segundo Cagliari e Massini-Cagliari (2001) essa
mudança na faixa de frequência fundamental costuma ocorrer em ambientes sintáticos bastante precisos.
16

Observe agora que a transcrição de pitch da sentença é feita em três faixas horizon-
tais localizadas abaixo do espectograma. A primeira faixa mostra os valores de F0 da estiliza-
ção feita pelo MOMEL, a segunda mostra a transcrição para símbolos tonais feitas pelo INT-
SINT e a terceira mostra os valores de F0 após os cálculos do INTSINT. Para destacar os va-
lores mais alto e mais baixo de pitch dessa sentença usei quadros vermelhos. Assim, o primei-
ro quadro mostra o valor mais alto da sentença, representando o foco e o segundo quadro
mostra o valor mais baixo da sentença, localizado ao final da sentença. Esses valores mostram
a grande variação que ocorre na tessitura.
As demais sentenças apresentadas em (10), no capítulo três, apresentam padrão ento-
acional bastante semelhante ao que aparece na Figura 1: o acento proeminente localizado logo
em seguida do elemento WH e uma queda da frequência fundamental logo após esse acento,
caracterizando a mudança na tessitura.
Agora analisaremos as sentenças apresentadas em (11), na seção três, as clivadas.
Veja a seguir uma das telas geradas pelo INTSINT para uma produção da sentença (11c):

Figura 2. Tela do programa PRAAT mostrando a transcrição da curva de pitch da sentença “É louco que esse
homem tá!” realizada pelo INTSINT.

Na Figura 2 temos o padrão entoacional de uma autêntica clivada, que é também


compartilhado pelas outras sentenças do grupo (11): acento proeminente sobre o foco, que é o
constituinte localizado entre a cópula e o CP, e um abaixamento considerável da curva de
pitch a partir do CP, indicando o fenômeno da mudança de tessitura.
O próximo grupo analisado foi o das SCLs. Observe a figura abaixo:
17

Figura 4. Tela do programa PRAAT mostrando a transcrição da curva de pitch da sentença “Muito bonito o anel
da Maria!” realizada pelo INTSINT.

Percebemos, a partir da Figura 4, que as SCLs apresentam o padrão entoacional bas-


tante parecido com o das clivadas e com o das exclamativas canônicas: acento proeminente
sobre o foco, que nesse caso é o adjetivo, e abaixamento da curva de frequência fundamental
depois do foco, ou seja, sobre o sujeito, indicando, como nos outros grupos, mudança de tessi-
tura.

6 CONCLUSÕES
As questões levantadas nesse trabalho foram: (1) o que caracteriza uma sentença ex-
clamativa? e (2) o padrão entoacional dessas sentenças pode ajudar nessa caracterização? Ao
longo deste artigo outras questões foram colocadas a partir da apresentação de propostas co-
mo a de Kato (2007) que atribui para as SCLs a mesma estrutura das clivadas. Além disso,
como o próprio título deste artigo já mostra, quero responder se as SCLs são mesmo sentenças
exclamativas.
Respondendo à primeira pergunta, se tomarmos o argumento de Zanuttini e Portner
(2003), as exclamativas caracterizam-se por serem factivas, por denotarem um conjunto de
proposições alternativas e por ativarem a operação widening (que está relacionada ao “sentido
de surpresa”, “imprevisibilidade”, “grau extremo” das exclamativas). Além disso, Zanuttini e
Portner (2003) propuseram uma série de testes semânticos, os quais foram aplicados ao meu
corpus. Com isso, concluí que são exclamativas as sentenças que classifiquei como exclama-
18

tivas canônicas e SCLs. O grupo que classifiquei como exclamativas prosódicas não passou
nos testes e, portanto, não é considerado um subtipo de exclamativa.
Para responder à segunda pergunta, recorri ao experimento descrito na seção cinco,
que resultou nas seguintes conclusões:
1. Imprecisão no que diz respeito ao padrão entoacional das sentenças classificadas
como exclamativas prosódicas. Essa imprecisão provavelmente é devida ao fato de
que, conforme os resultados dos testes semânticos, essas sentenças não se compor-
tam como sentenças exclamativas;
2. As exclamativas canônicas têm um padrão entoacional muito parecido com o das
SCLs e, uma vez que o acento focal dessas sentenças recai sempre sobre o sintag-
ma WH e após o foco, há um abaixamento na curva de pitch, caracterizando mu-
dança de tessitura.
Com os resultados desses experimentos, reforçamos a ideia de que há uma relação
entre padrão entoacional e sintaxe, uma vez que tanto o foco da sentença quanto a queda da
faixa de frequência fundamental parecem ocorrer em ambientes sintáticos bastante precisos: o
foco recai sempre sobre o adjetivo nas SCLs, entre a cópula e o CP nas clivadas e sobre o
sintagma WH nas exclamativas canônicas; dessa forma, a queda na faixa de frequência ocorre
sempre depois do foco sentencial.
Por fim, o fato de as SCLs e as clivadas apresentarem um padrão entocional tão pa-
recido pode fortalecer a análise de Kato (2007), que defende uma mesma estrutura sintática
para ambas as construções.

7 REFERÊNCIAS

CAGLIARI, L.C. Elementos de fonética do português brasileiro. São Paulo: Paulistana,


2007.

____; MASSINI-CAGLIARI, G. O papel da tessitura dentro da prosódia portuguesa. In: Cas-


tro, I. & I. Duarte (Org.) Razões e Emoção. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
2001, pp. 67-85.

KATO, M. Free and dependent small clauses in Brazilian Portuguese. DELTA, vol. 23, PUC-
SP, São Paulo, 2007. p. 85-111.

MORAES, J. A. Intonation in Brazilian Portuguese. In: HIRST, D. & Di Cristo (Org.). Into-
nation systems: a survey of twenty languages. Cambridge University Press, Cambridge,
1998.
19

SEARA, I. C.; FIGUEIREDO-SILVA, M. C. Metodologia para descrição da entoação na in-


terface sintaxe-fonologia. In: Revista Intercâmbio, Volume XVI. São Paulo: LAEL/PUC-
SP, ISSN 1806-275X-, 2007.

SIBALDO, M. A. A sintaxe das small clauses livres do Português Brasileiro. 2009a. 202 f.
Tese (Doutorado em Linguística) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Alagoas,
Maceió.

_____. Qual a estrutura das Small Clauses Livres do Português Brasileiro? In: Revista Le-
tras, Curitiba, n.º 78, p. 125-145, maio-ago. 2009b. Editora UFPR.

ZANUTTINI, R., PORTNER, P. Exclamative clauses: at the syntax-semantics interface.


Language 79, nº 1, p. 39–81, 2003. Disponível em:
http://www9.georgetown.edu/faculty/portnerp/nsfsite/excl-paper.pdf

ZENDRON DA CUNHA, K. Sujeito posposto em small clauses: a mudança de tessitura. Es-


tudos Linguísticos, São Paulo, v. 1, nº 40, p. 445-458, 2011.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

AS TECNOLOGIAS DIGITAIS NA AULA DE LÍNGUA ESTRANGEIRA:


ALGUMAS REFLEXÕES E PROPOSTAS

Simone Viapiana1 (PPGedu/UCS)


Lisiane Ott Schulz2 ( PPGedu/UCS)

RESUMO

A aula de língua estrangeira sempre esteve aberta às inovações que chegam das tecnologias
informáticas e digitais. O ensinar e o aprender na cultura digital estão inseridos também e
principalmente nas aulas de línguas estrangeiras através de espaços virtuais de trabalho. Estes
espaços virtuais mudaram a forma de pensar, de agir, interagir e de aprender. É proposta deste
artigo, analisar a relevância das tecnologias digitais e dos espaços virtuais, que servem como
local de aprendizagem, e as implicações que esses meios oferecem aos processos de ensino e
aprendizagem, mediados pela teoria de Vygotsky. As reflexões e as propostas estão pautadas
na utilização do suporte digital Glogster em aulas de língua espanhola e inglesa como línguas
estrangeiras. O Glogster é uma rede social que permite a criação de cartazes virtuais gratuitos
e interativos, denominados glogs. Os leitores podem interagir com o conteúdo apresentado
nos cartazes virtuais. A utilização deste recurso permite uma maior aproximação da língua
estudada à vida do aluno, pois o aluno sai do âmbito de espectador para o de produtor.

Palavras-chave:
Tecnologias digitais. Vygotsky. Língua estrangeira.

ABSTRACT

Information and digital technology has always been welcomed in the foreign language
classroom. The teaching and learning in the digital age is now also and mainly part of the
foreign language classes due to the use of virtual workspaces. This virtual environment has
changed the way we think, act, interact and learn. Therefore, the aim of this article is to
analyze the relevance and the implications of the use of digital technology and virtual
workspaces in the teaching and learning process. All considerations made in this paper are
supported by Vygotsky’s theory. The reflections and proposals offered here refer to the use of
Glogster in the Spanish and English as a foreign language classes. Glogster is a social
network that allows users to create interactive virtual posters or glogs for free. Unlike regular
posters, glog readers can interact with the content created in the website. By using the
resources provided in this social network, the language being studied gets closer to learners’
real lives once they become not just the spectators but also and mainly the producers.

Keywords:
Digital technology. Vygotsky. Foreign language

1
Professora de Língua Espanhola no Programa de Línguas Estrangeiras da Universidade de Caxias do Sul; e-
mail: simoneviapiana@gmail.com.
2
Professora de Língua Inglesa no Programa de Línguas Estrangeiras da Universidade de Caxias do Sul; e-mail:
ottschulz@gmail.com.
2

1 INTRODUÇÃO
O artigo divide-se em três partes. Na primeira parte, discutiremos o ensinar e
aprender na cultura digital. Na segunda parte, analisaremos a relevância da utilização das
tecnologias digitais e suas aplicações e implicações nos processos de ensino e aprendizagem,
tendo como base a teoria de Vygotsky. Finalmente, na terceira parte, apresentaremos algumas
propostas de interação da língua estrangeira com as tecnologias digitais.

2 CULTURA DIGITAL E PRÁTICA DOCENTE


O homem concebe, produz e utiliza ferramentas que permitem ou que facilitam o
cumprimento de diferentes tarefas em seu dia a dia. Ao se apropriar dessas novas ferramentas,
o homem transforma o meio e se transforma. O surgimento das tecnologias digitais, no final
da década de 80 e início da de 90, também trouxe e continua gerando transformações.
Os aparelhos de telefonia celular, as câmeras digitais, os computadores conectados à
Internet e os múltiplos recursos disponibilizados por estas ferramentas estão cada vez mais
presentes em nosso cotidiano. Batemos papo à distância, pagamos contas à distância,
participamos em fóruns de discussão, realizamos pesquisas, criamos e nos construímos nos
espaços virtuais. Esses espaços virtuais de trabalho e interação mudaram e têm mudado as
relações sociais, condicionando o nosso fazer e a nossa forma de pensar, de agir e de interagir.
Constituímos esta cultura digital e nos constituímos nela e através dela. Conforme
aponta Levy (1999, p. 25), “Uma técnica é produzida dentro de uma cultura, e uma sociedade
encontra-se condicionada por suas técnicas”. Nessa nova cultura, tempo e espaço foram
redimensionados e já não são mais vistos como limitadores.
Nesse contexto, percebemos que também a escola vem sofrendo mutações
significativas. Essas, entretanto, ocorrem num ritmo bem mais lento do que aquele que se
apresenta na sociedade. Fora da escola, o aluno está quase sempre inserido em situações de
uso das tecnologias digitais e quando chega à sala de aula precisa desconectar-se dela. Na
opinião da professora Lea Fagundes (2010), a escola é “um núcleo resistente a mudanças das
culturas”.
Mas por que isso ocorre? Uma das razões pode ser de cunho epistemológico. Alguns
professores acreditam que são eles os detentores do saber e do poder e que, para que haja
aprendizagem, este saber deve ser transmitido por ele a seus alunos. O papel que estes
3

professores imaginam que devam ter é o de passar o conteúdo, ou seja, transmitir o


conhecimento adquirido. Para tanto, em sala de aula, precisam estar na frente ou mesmo de
costas para os alunos apresentando seu conteúdo curricular. Essa visão de sala de aula é uma
construção histórica muito antiga. É desde a época de Comenius, educador e pedagogo do
século XVII, que a sala de aula possui uma disposição centrada à frente, com o ponto de
atenção voltado à figura do professor e este utilizando como tecnologia o quadro negro ou
similar. Os alunos, sentados cada um em sua carteira, aprendendo todos ao mesmo tempo o
mesmo conteúdo e atendendo às solicitações do programa único pensado igualmente a todos.
Nós, nossos pais e nossos professores fomos educados sob esta estrutura pedagógica.
No entanto, estamos perante uma nova cultura introduzida pela tecnologia digital, em
que esta premissa já não se mostra adequada. É difícil sustentar o ensino frontal, simultâneo e
homogêneo em uma cultura que pressupõe uma fragmentação da atenção e percursos
individualizados.
O professor contemporâneo está diante de uma geração que conquistou o mundo e
que não é mais aquela dona de seu quarto e de suas individualidades como era a geração
hippie da década de 60. A nova geração, também denominada nativos digitais3 ou geração Y,
Z, possui acesso bem mais amplo, determinado pela Internet. A identidade desta geração
transcende o lugar de onde está. Devido ao excesso e diversidade de informações e
possibilidades, esta geração pode ter ansiedade crônica. Muitas vezes iniciam em uma tarefa e
possivelmente terminam em outra, pois desenvolveram um modo não linear de pensar, que
reflete exatamente a linguagem da Internet, onde diversos assuntos podem ser acompanhados
ao mesmo tempo.
Ensinar nativos digitais requer, então, incorporar as novas tecnologias à prática
docente? Conforme enfatiza Bairon (2010), a tecnologia por si só não vai mudar a educação.
A forma como o professor utiliza as novas tecnologias digitais em sua prática docente de
alguma forma reflete a concepção que ele tem de ensino e de aprendizagem. Se ele acredita
que é o professor quem deve ensinar e o aluno quem deve aprender, vai repetir este modelo
trocando o giz e o quadro negro pela lousa digital ou outras ferramentas de apresentação ou
ainda solicitando aos alunos que busquem certas informações na Web ao invés de buscar nos

3
Este termo foi cunhado por Mark Prensky (2001) para descrever a geração que nasceu interagindo com as
tecnologias digitais.
4

livros. Este professor faz uso de recursos tecnológicos mais modernos sem, contudo, mudar a
proposta, a metodologia de ensino. De acordo com Fagundes (2010), utilizar os recursos
tecnológicos sem aliar a uma metodologia adequada é “ensinar para torturar, para manter os
alunos na mediocridade”.
Por isso, é preciso compreender que este modelo já não se sustenta mais nesta nova
cultura. Segundo Bairon (2010), “os estudantes hoje são e querem ser criadores de conteúdo,
eles querem aprender desde que possam interagir”.
É claro que para atender as necessidades contemporâneas, o professor,
principalmente o imigrante digital, precisa apropriar-se dessa cultura, isto é, precisa interagir
com estas ferramentas digitais. Ele precisa construir-se com base nas transformações
socioculturais impostas pelo meio, mas precisa, principalmente, entender que o sujeito da
aprendizagem é um sujeito interativo.
Para Schlemmer (2006), precisamos criar ambientes de aprendizagem que
incorporem a nova tecnologia com o propósito de

ampliar os espaços de comunicação, de interação, de construção coletiva, de


aprendizagem, constituindo-se em verdadeiros espaços de convivência, a fim de
provocar o desenvolvimento humano (cognitivo, afetivo, social)” (SCHLEMMER,
2006, p. 36).

3 A TEORIA VYGOTSKYANA E O USO DAS TECNOLOGIAS DIGITAIS


Com o intuito de propiciar a interação e a construção coletiva, buscamos em Souza
(2009), no artigo intitulado Letramento digital e desenvolvimento: das afirmações às
interrogações, algumas afirmações acerca da possibilidade de a utilização da tecnologia
digital revolucionar a educação no sentido de torná-la mais efetiva. A autora apoia-se no
pressuposto teórico vygotskyano para refletir sobre o impacto e as consequências do uso das
Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) na educação e a influência dessas no
desenvolvimento humano.
Corroboramos Vygotsky e Souza quando explicitam que as interações sociais e as
interações com os instrumentos do mundo são responsáveis por transformar o homem. Dito de
outra forma, as mudanças históricas e culturais produzem alterações na natureza humana. Os
indivíduos desenvolvem-se, adaptam-se e transformam-se num processo dialético contínuo no
5

qual o homem constrói a cultura e a cultura constrói o homem. Por isso, somos sabedores que
o contato com diferentes culturas propicia o desenvolvimento de diferentes funções cognitivas
no homem, ou seja, o desenvolvimento intelectual do homem é determinado histórica e
culturalmente. O homem é moldado pela cultura que ele próprio cria.
Vygotsky (2007), explica que toda a relação do homem com o meio (físico ou social)
é mediada. Este pensador considera dois elementos básicos na mediação: o instrumento
técnico e o signo (ou instrumento simbólico), ambos construídos historicamente. O homem se
desenvolve culturalmente por meio do uso de instrumentos. O instrumento técnico tem a
função de regular as ações do homem sobre os objetos e o instrumento simbólico sobre o
psiquismo. A linguagem, considerada um instrumento simbólico, é o principal mediador no
desenvolvimento cognitivo humano. Conforme aponta Vygotsky,

Todas as funções no desenvolvimento da criança aparecem duas vezes: primeiro, no


nível social, e, depois, no nível individual; primeiro, entre pessoas
(interpsicológica), e, depois, no interior da criança (intrapsicológica).
(VYGOTSKY, 2007, p. 57 e 58)

Não é, entretanto, somente o uso da tecnologia em si que provoca transformações,


mas principalmente a mediação social decorrente deste uso. O sujeito aprendente precisa
interagir e utilizar a linguagem, ou seja, precisa do outro social.
Para que possa criar ambientes de aprendizagem que incorporem as novas
tecnologias e que possibilitam a interação, a comunicação, a apropriação de conhecimentos já
produzidos e a construção de novos conhecimentos, o professor precisa incorporar essas
tecnologias no seu fazer docente e carece também acreditar que ensinar não é transmitir e
aprender não é receber pronto.
Mas de que forma essa incorporação precisa ser realizada a fim de que o uso tenha
como resultado práticas inovadoras e que se mostram eficazes? Valente (2011) procura
responder a esta pergunta em entrevista concedida ao professor Ivanilson mencionando três
níveis de apropriação tecnológica por parte do professor. O primeiro nível é quando o
professor toma conhecimento do computador e entende que esta máquina pode fazer coisas
diferentes. O segundo nível é quando ele inicia o processo de apropriação dessa tecnologia, ou
seja, passa a usá-la para realizar certas tarefas. E o terceiro nível é quando o professor
“começa a utilizar a tecnologia para fazer alguma coisa com os seus alunos”.
6

Leister, especialista em coaching, sugere, em sua homepage e em seu vídeo, três


fases da apropriação da tecnologia pelo professor de forma um pouco diferente daquela
apresentada pelo professor Valente. A fase um é a fase na qual a maioria dos professores
inicia sua jornada. Nesta fase, o professor começa a utilizar a tecnologia como forma de
dinamizar suas apresentações e suas aulas. A nova tecnologia, nessa fase serve, portanto,
apenas para substituir os recursos mais tradicionais como o quadro negro e o giz ou ainda um
retro projetor. No contexto brasileiro, vale lembrar que até o momento, a maioria das salas de
aula, quer sejam de escolas públicas ou privadas, não são equipadas com recursos
tecnológicos para esse fim. Assim, o professor ainda leva consigo os equipamentos que
viabilizam as apresentações tais como notebook, projetor de LCD, caixas de som, etc. Ou,
talvez, ainda se desloca a uma sala que disponha de uma lousa digital ou outros recursos.
Leister conclui que, na fase um, o controle da aula ainda é do professor.
À medida que o professor sente-se mais seguro na utilização destas novas
tecnologias, ele avança para uma segunda fase. Nesta fase, é dado ao aluno o acesso ao
teclado e ao mouse. O professor, então, sugere tarefas nas quais os alunos buscam
informações ou conteúdo na web ou ainda façam pequenas simulações ou executem tarefas
simples sugeridas em sites ou em CD-ROMs. Na maioria das vezes, nesta fase, os alunos
acessam informações, às vezes as manipulam, mas raramente produzem algo. Os alunos,
mesmo utilizando a nova tecnologia, ainda são considerados receptores de conteúdo.
A terceira fase é bem diferente e pode ser considerada uma fase na qual se percebe
uma mudança de paradigma na forma de ensinar. Nesta fase, é necessário pensar em como
fundir o conteúdo com as habilidades que devem ser desenvolvidas neste século XXI, isto é,
as habilidades de comunicação, cooperação e criação. Na terceira fase, os alunos não são mais
vistos apenas como consumidores de informações, mas principalmente como produtores de
conteúdo. O conteúdo produzido é facilmente compartilhado, quando os computadores estão
ligados em rede. Assim, na troca do conteúdo há também a troca do que os alunos pensam e
do que acreditam. Atualmente, existem muitas ferramentas disponíveis na rede que
possibilitam a execução de projetos criativos e colaborativos. O importante, conforme enfatiza
Leister, é que os alunos tenham um produto deles. As tarefas que podem ser propostas vão
desde a participação e contribuição num fórum de discussão até a criação de um podcast, de
uma apresentação ou de uma página na Internet. Além de produtores é importante também
7

que os alunos sejam publicadores. Tradicionalmente, o aluno produzia para o professor e às


vezes apresentava para os colegas. Atualmente, ele pode e quer produzir para um público
maior. Ele não quer fazer apenas o download do conteúdo, mas também o upload. É isso que
motiva e envolve o nativo digital. Num segundo momento, é importante também que o aluno
seja o destinatário para que possa então ser um revisor, um instrutor, um comentador, um
avaliador, etc. da produção de outros. Neste ciclo, é preciso que o aluno seja tanto o produtor
e publicador quanto o público e o comentador.
A sugestão de Leister que corroboramos, então, é de pensarmos em como o currículo
escolar pode ser construído em colaboração com os alunos para que desta forma possamos
ajudá-los a apropriar-se de conhecimentos anteriormente produzidos, a construir novos
conhecimentos e a desenvolver as habilidades de comunicação, de colaboração e de criação
exigidas na cultura digital.
Em conformidade com a teoria sociocultural de Vygotsky, podemos concluir que
incorporar a tecnologia digital às práticas pedagógicas não só favorece o desenvolvimento das
funções mentais superiores do aprendiz, uma vez que esta nova tecnologia se propõe
exatamente a facilitar as interações, mas também instiga o surgimento de novas funções
cognitivas.
É importante, ou até imperioso, aliar a educação às novas tecnologias, pois estas já
fazem parte da vida cotidiana da geração digital. A educação não pode alienar-se a este
acontecimento.
Entretanto, há que ficar claro que integrar a tecnologia à educação só se justifica se
houver melhoria na qualidade do ensino. É imprescindível que os professores considerem o
uso das novas tecnologias em sua prática pedagógica não apenas como mais um arsenal a ser
levado à sala de aula, mas como ferramentas que possibilitam e facilitam a interação e a
construção do conhecimento.
Não basta que a instituição disponha dos recursos tecnológicos se estes forem
subutilizados por alunos e professores. Ter acesso à rede e não permitir a mediação e a
interação do sujeito com o outro social é incoerente. É tarefa do professor, então, encontrar
formas de instigar seus alunos a realizar tarefas e solucionar problemas com os atuais recursos
tecnológicos e não somente solicitar que os aprendizes busquem informações. Cabe ao
professor pensar em como os alunos aprendem nessa nova onda digital. Será que a geração
8

dos nativos digitais aprende da mesma forma que os imigrantes digitais? O pedagogo francês
Phillippe Meireu (1998, p.37) aponta que,

Aprender é compreender, ou seja, trazer comigo parcelas do mundo exterior,


integrá-las em meu universo e assim construir sistemas de representação cada vez
mais aprimorados. (MEIREU, 1998,p.37)

Parece-nos que esta forma de compreender a aprendizagem se integra à nova escola,


à escola da cultura digital, pois se pautarmos a aprendizagem como a fusão do mundo interior
e do mundo exterior, a cultura digital é aliada nesse processo. Vivemos na era da
globalização, quando os avanços da ciência e da tecnologia, somados às constantes
transformações que são produzidas e ao imediatismo, produzem um novo cenário. Este
cenário está fortemente construído pelo espaço virtual, a Web 2.0 (blogs, redes sociais, wikis,
etc.), que produz um impacto sobre as gerações, não só na questão instrumental, mas também
na construção da subjetividade. É neste contexto que os professores necessitam de atualização
permanente.
Portanto, precisamos pensar uma nova forma de aprender aliada às tecnologias, cabe
pensar em desenvolver um projeto tecnológico de acordo com o atual avanço científico e
gerar um contexto que garanta a aplicação dos conhecimentos construídos pelos estudantes
nas diversas disciplinas. Surge, então, a necessidade de estabelecer nexos entre o
conhecimento, a operação e a instrumentalização entre os espaços curriculares tradicionais, as
TICs, a escola e os alunos com a sociedade e a nova cultura de aprendizagem.
Assim, um dos grandes desafios do professor hoje é criar situações em que o
aprendiz necessite interagir, colaborar, pesquisar, recriar e construir coletivamente no âmbito
escolar. Desta forma, assim como no passado a invenção do papel e da imprensa
revolucionou tanto a forma de pensar, de agir e de perceber o mundo quanto a própria
educação, também as TICs poderão revolucionar e estão revolucionando a cultura e a
educação.
Enfim, podemos dizer que as tecnologias facilitam a criação de situações que
propiciam a aprendizagem significativa. As atividades pensadas pelas tecnologias midiáticas
baseadas na exploração, na simulação e em ambientes virtuais podem servir de contextos nos
9

quais os alunos constroem conhecimento ao mesmo tempo em que melhoram e ampliam não
só a percepção como a cognição.

4 PROPOSTAS DE INTERAÇÃO DA LÍNGUA ESTRANGEIRA COM A


TECNOLOGIA DIGITAL: ELABORAÇÃO DE PÔSTERES VIRTUAIS
O professor precisa ser um constante investigador e pesquisador da língua e dos
recursos disponíveis para que consiga manter-se atualizado e para que proponha novas formas
desafiadoras de aprendizagem. O campo é vasto e a rede (Internet) proporciona infinitas
opções de recursos. Cabe ao educador buscar, averiguar, analisar e aproveitar da melhor
forma possível os recursos existentes, utilizando-os em propostas significativas e de real
construção do saber.
Encontramos, atualmente, muitos profissionais na área de línguas estrangeiras que
ainda não conseguem abrir mão do livro didático, do quadro negro e giz, dos CDs e de
pequenos fragmentos de vídeos para a elaboração de atividades. Nosso intuito é mostrar que
é possível transcender esse mundo através do uso dos recursos das tecnologias digitais nas
aulas de língua.
A seguir, serão apresentadas propostas de interação com o uso dessas tecnologias nas
aulas de língua estrangeira.
A primeira proposta versa sobre os aspectos históricos e culturais da Espanha em
geral e sobre os gastronômicos mais especificamente. Esta proposta é pensada para estudantes
adolescentes que possuam um nível básico de proficiência da língua. Estima-se que a
realização do projeto dure de 5 a 8 encontros com dois períodos semanais de aula. Entretanto,
tanto a faixa etária quanto o tempo de duração são flexíveis e adaptáveis às necessidades de
cada realidade. O objetivo geral do trabalho é permitir que o aluno aprenda de forma
autônoma o léxico referente aos alimentos e as bebidas. As tarefas propostas inicialmente têm
o intuito de despertar no aluno o interesse pela história, cultura e gastronomia (alimentos e
pratos típicos) das regiões da Espanha. A tarefa a seguir sugere a elaboração de um pôster
virtual, também conhecido como Glog, de um restaurante espanhol. O suporte digital que os
alunos utilizam para a resolução da tarefa é o Glogster. O Glogster é uma rede social que
permite a criação de cartazes virtuais gratuitos e interativos, pois os leitores podem interagir
com o conteúdo apresentado.
10

Para os trabalhos voltados à educação, está a serviço do professor o Glogster.edu,


considerado atualmente o líder mundial da plataforma de educação para a expressão criativa
de conhecimentos e habilidades. O Glog é apresentado de forma fácil de entender e sua
interface é agradável e simples permitindo que seja utilizada por usuários de qualquer idade
escolar. A plataforma do Glog é interativa, o que permite que os estudantes ou usuários criem
pôsteres ou páginas web, contendo elementos multimídia como áudios, vídeos, imagens,
textos, gráficos, desenhos, dados.
Quanto ao professor, durante o processo, ele pode continuar interagindo e auxiliando
os alunos através do ensino à distância, ou em uma sala de aula usando esta plataforma
multimídia - um sistema comunitário de partilha é preparado, onde se encontra o trabalho do
aluno. O mesmo é armazenado e encontra-se disponível em qualquer momento. O professor
pode criar projetos, indicar diretrizes para que o aluno explore o ambiente e produza o seu
conteúdo e, pode também, fornecer um feedback ao longo da missão.
A primeira proposta para a criação do Glog que vamos expor neste artigo, parte do
tema sobre cultura gastronômica (alimentos), que aparece em quase todos os livros destinados
ao ensino de língua estrangeira. É um tema que possui várias ramificações e que desperta o
interesse nos alunos. O desafio proposto, neste projeto, é o de proporcionar um
desenvolvimento integral do educando, oferecendo atividades que aliem o desenvolvimento
linguístico e o cognitivo. Para que isso ocorra, buscam-se estratégias vinculadas à internet
juntamente com a motivação do aprendiz, que consideramos como aspecto crucial no
processo de ensino e aprendizagem. Desta forma, pensamos em uma proposta que alie o
léxico proposto na unidade do livro didático à cultura, costumes, hábitos culinários e
gastronômicos.
A proposta está disponível online no endereço http://
viapi.edu.glogster.com/restaurante. Neste glog, elaborado pelo professor, os alunos buscam as
instruções para a elaboração das tarefas e ao mesmo tempo familiarizam-se com o tema e o
ambiente virtual. Ao propor a criação de um pôster publicitário, pretendemos promover nos
alunos o desenvolvimento das habilidades linguísticas presentes neste gênero discursivo.
11

Figura 1 - Glog Restaurante.

Após a divisão do grupo de alunos em duplas, o professor propõe a atividade de


aquecimento, atividade de número 1 no glog. Os alunos respondem a um quiz sobre a
gastronomia espanhola elaborado com recursos disponíveis no site www.spanish.jotform.com,
conforme a figura 2.

Figura 2 - Atividade Glog.

O objetivo desta primeira atividade é motivar os alunos a buscar informações sobre a


gastronomia espanhola para a elaboração de um material publicitário para um restaurante
12

típico espanhol localizado na Serra Gaúcha. Cabe ressaltar que o material no que se refere à
publicidade do restaurante deve ser todo virtual, ou seja, elaborado através do suporte digital
Glog e de outras ferramentas como jotform, o tondoo, etc.
Para melhor orientar a produção do projeto, o professor precisa estabelecer os passos
do trabalho como: i) escolha de uma cidade ou região da Espanha que dá origem ao
restaurante; ii) pesquisa sobre os alimentos, pratos típicos, costumes, localização geográfica
da região escolhida; iii) criação do nome original e a história do restaurante; iv) construção
do logotipo e slogan do restaurante; v) elaboração do cardápio com fotos e explicação dos
pratos; vii) inserção de vídeos e músicas relativas à comunidades da Espanha pesquisada: viii)
elaboração de um questionário sobre a gastronomia espanhola.
Durante a realização do projeto de trabalho, o professor pode criar um fórum para
que os alunos esclareçam dúvidas, para que postem dicas de sites e de recursos que encontram
para melhorar e facilitar o processo de criação do Glog.
Durante a construção do Glog pelas duplas de alunos, os colegas visualizam o
trabalho realizado pelos outros colegas, interagem compartilhando as descobertas de como
inserir imagens, vídeos, questionários e deixando comentários4, uma vez que para a maioria
dos alunos o recurso Glogster é uma novidade. Para finalizar a etapa no Glogster, os alunos
podem voltar ao Glog inicial, elaborado pelo professor, para responder a um questionário de
auto-avaliação.
Após o término de todos os projetos, os alunos podem compartilhar suas produções
em uma variedade de contextos educativos. Os Glogs podem ser incorporados em um blog,
em uma wiki, ou página da web ou ainda partilhar com outras pessoas, bem como serem
apresentados à classe.
Como conclusão do projeto de trabalho, sugerimos uma mostra culinária de cada
restaurante criado, com o cardápio, seu(s) prato(s) típico(s) e a história do restaurante.
Desta forma, o professor não precisa fazer uso de uma lista de léxico referente aos
alimentos, desprende-se, também, do trabalho de desbravar todas as regras gramaticais por si
só, tampouco necessita dedicar horas e horas frente à turma fazendo exposição sobre as

4
O glogster.edu é uma ferramenta que permite a visualização dos trabalhos de todos os que compõem a sala de
aula virtual do professor.
13

regiões da Espanha bem como a história do país. Os alunos buscam as informações


necessárias e as apresentam na elaboração de seu glog .
O que se almeja é ir além da experiência da língua em si mesma. Tomam-se como
referência os aspectos culturais e históricos da língua estudada para que os aprendizes possam
produzir. O enfoque metodológico que subjaz a esta prática parte do ensino baseado em
tarefas, (Nunan, 2004). Pensa-se em uma proposta como uma unidade de trabalho e não como
uma atividade isolada e descontextualizada da vida do aluno.
A segunda experiência também proposta com o recurso Glog, refere-se a lugares e
coisas misteriosas no mundo. A proposta foi pensada para grupo de nível A25 de proficiência
da língua inglesa num curso livre de idiomas.
A fim de instigar a curiosidade dos alunos, mostram-se imagens, vídeo, áudio e texto
6
do Glog criado pela professora. Antes da realização da leitura do texto ou da audição da
reportagem referente aos Moais, a professora pergunta-lhes se sabem onde ficam aquelas
estátuas gigantes, por que o lugar foi batizado com aquele nome, quem construiu, quando,
como e com que finalidade. Utilizando as informações postadas no glogster, os alunos
buscam as respostas para as perguntas propostas e as compartilham com os colegas.

5
Classificação sugerida pelo Quadro Comum Europeu de Referência para as Línguas: aprendizagem, ensino e
avaliação (QCER) para descrever o nível de proficiência na língua, onde A refere-se a Usuário Elementar, B a
Usuário Independente e C a Usuário Proficiente. Cada nível é subdividido em 1 e 2 sendo que o nível 2 indica
uma proficiência superior a do nível 1.
6
http://lisios.glogster.com/mysteries/
14

Figura 3 - Os Moais na ilha da Páscoa.

Na sequência, a professora pergunta-lhes o que gostariam de saber com relação ao


cavalo esculpido sobre a colina. A proposta é que elaborem verbalmente todas as perguntas na
língua inglesa, mesmo que solicitem, muitas vezes ajuda aos colegas e a professora. Uma vez
definidas as perguntas, os alunos ouvem o áudio em busca de quais perguntas estão sendo
respondidas e quais não estão.

Figura 4 - Cavalo esculpido sobre colina.

Pode-se sugerir que, em casa, realizem a tarefa proposta em Can you answer these
questions? adicionada ao Glogster. As perguntas são apresentadas utilizando os recursos
disponíveis no jotform conforme Figura 3
15

Após a realização destas atividades, sugerimos que criem seus próprios glogs sobre
algum lugar ou coisa misteriosa. Podem buscar ideias e informações na Internet bem como
utilizar dicionários online e ou interagir com os colegas solicitando e oferecendo ajuda quanto
à utilização dos recursos.
Sem que o professor precise ensinar de forma explícita aos alunos, conforme
proposto em alguns livros didáticos, o uso da voz passiva, os aprendizes podem fazê-lo
naturalmente ao apontar fatos como a época em que determinada construção foi feita, como e
por quem foi realizada, etc.
Ao final ou mesmo durante a realização do trabalho os alunos podem interagir
deixando sugestões ou comentários ou ainda auxiliando ou pedindo ajuda aos colegas quanto
à utilização dos recursos.

5 CONCLUSÃO
Observamos que as propostas expostas acima permitem que se saia do estudo linear
da sala de aula ou da cópia digital da Internet para ir a um espaço de criação e apropriação do
conhecimento. É na prática, com dados disponibilizados na rede mundial e com os suportes
digitais oferecidos neste ambiente que os alunos podem construir conhecimento, interagir com
o colega, com o meio e com as ferramentas, proporcionando uma aproximação maior às
questões de língua e cultura.
Neste artigo foram feitas algumas reflexões e propostas sobre o uso das tecnologias
digitais nas aulas de línguas estrangeiras. Acreditamos que muito mais poderá ser construído e
compartilhado, uma vez que, o campo é vasto.
16

Compreendemos que os usos atuais das tecnologias podem aproximar mais os


estudos em sala de aula à vida do aluno. Como pesquisadores e educadores, temos a
responsabilidade de articular as novas formas de trabalhos oriundos dos avanços tecnológicos
para que a aula não fique obsoleta perante tantas modificações, atrações e exigências da vida
fora da escola. Entretanto, é conveniente lembrar que os recursos e os suportes oferecidos
pelas tecnologias informáticas não deveriam ser utilizados com improviso, deixando levar a
todos pelos encantos e novidades. Mas sim, acreditamos que deva haver objetivos claros e
planejamento, como em qualquer outra tarefa que é abordada em aula e que possa fazer parte
do currículo. Ao buscar as tecnologias como forma de realizar um projeto, resolver um
problema ou executar uma tarefa seria interessante que o professor respondesse a três
perguntas: i) A atividade proposta é educativa e está de acordo com os objetivos que
planejamos? ii) O uso das tecnologias digitais permitirá que os alunos façam algo que antes
não podiam fazê-lo? iii) O uso dos suportes tecnológicos permitirá que os alunos façam algo
que podiam fazer, mas de uma forma melhor?
Existem muito mais recursos para trabalhar a língua estrangeira do que os citados
neste artigo, mas o que foi apresentado é possivelmente uma amostra de que o trabalho
consciente e planejado pode dar certo e de que as aulas podem tornar-se mais significativas e
o aprendizado, construído e embasado em material autêntico7.
Acreditamos que compartilhar experiências é uma das formas de auxiliar professores
a se apropriar destas novas tecnologias e a entender a finalidade a que elas se propõem, ou
seja, a possibilidade de comunicarem-se, criarem e colaborarem. Esperamos que com essas
reflexões e propostas os professores e os professores de línguas estrangeiras sintam-se
motivados e animados para fazer parte da nova cultura, a digital.

6 REFERÊNCIAS

BAIRON, Sérgio. Entrevista sobre a palestra Interfaces e a Educação concedida durante o


XII Seminário Internacional de Educação. Entrevistador: Rodrigo Teixeira. Porto Alegre, Rio
Grande do Sul. TV Feevale, 2010. Disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=icTYTOD3Rh4 Acesso em 16 de agosto de 2010.

7
Podemos dizer que o material autêntico é aquele produzido sem uma explícita intenção didática.
17

DE SOUZA, Débora. Letramento digital e desenvolvimento: das afirmações às


interrogações, 2009 Disponível em http://alb.com.br/arquivo-
morto/edicoes_anteriores/anais17/txtcompletos/sem13/COLE_3255.pdf Acesso em 06 de
abril de 2011.

FAGUNDES, Lea. Como entra a cultura digital na escola. Disponível em:


webparaeducadores.blogspot.com. 2010 Acesso em: 22 de junho de 2011.

LEISTER, Jon. Disponível em: http://www.sanjuan.edu/webpages/jleister/ Acesso em: 04


de junho de 2011

LEISTER, Jon. Disponível em http://youtube/-Ir4-EFVhzI Acesso em 04 de junho de


2011.

LEVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo. Editora 34, 1999.

MEIREU, Philippe. Aprender... sim, mas como? Tradução Vanise Dresch, 7 ed. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1998.

NUNAN, David. Task-based language teaching. Cambridge: Cambridge University Press.


2004.

PRENSKY. Mark. Digital Natives, Digital Immigrants, Part II: Do They Really Think
Differently? In: PRENSKY, Marc. On the Horizon. NCB University Press, Vol. 9 No. 6,
December 2001. Disponível em: http://www.marcprensky.com/writing Acesso em 14 de abril
de 2010.

SCHLEMMER, Eliane. O trabalho do professor e as novas tecnologias. Revista Textual.


2006. p. 33-42.

VALENTE, José Armando Valente. Entrevista concedida a Revista Salto em 10 de março de


2011. Disponível em http: //www.ivanilson.com/2011/03/entrevista-com-jose-armando-
valente.html?utm_source=feedburner&utm_medium=feed&utm_campaign=Feed%3A+profes
sorivanilson+%28professor+ivanilson%29 Acesso em 25 de abril de 2011.

VYGOTSKY, L. S. A Formação Social da Mente. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

AS TIC’s NO PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM:


ANÁLISES PRELIMINARES

Alessandra Dutra (UTFPR)1


Letícia Jovelina Storto (UTFPR/ PG-UEL) 2
Jair Flor da Rosa (UTFPR)3

RESUMO

O presente artigo propõe avaliar como tem ocorrido o emprego das TIC’s nas escolas públicas
de ensino fundamental no norte do Paraná. Para isso, aplicamos, como instrumento de coleta
de dados, um questionário a professores da rede pública das cidades de Londrina e Cambé. O
questionário é composto por seis questões subjetivas e uma subjetiva. Os resultados mostram
que, embora a maioria dos professores acredite que o uso das TIC’s facilita o processo de
ensino-aprendizagem, alguns ainda resistem à sua utilização em sala de aula. Além disso, os
números indicam que a TV Pendrive, fornecida a todas as escolas da rede pública do Paraná e
presente em muitas salas de aula, é utilizada raramente por um número significativo de
professores, os quais não costumam recorrer a recursos midiáticos, como datashow,
retroprojetor e outros.

Palavras-Chave:
Ensino-aprendizagem. Letramento digital. Escola pública. Ensino fundamental.

ABSTRACT

This article proposes to evaluate how the use of information technology and communication
(TIC´s) has been occurred in elementary public schools in northern of Paraná. For this, we
applied as an instrument of data collection, a questionnaire to teachers in public schools in the
cities of Londrina and Cambe. The questionnaire consists of six objective questions and one
subjective. The results show while most teachers believe that the use of TIC´s improves the
process of teaching and learning, some are still resisting using in the classroom. Moreover,
the numbers indicate that TV Pendrive, provided to all public schools in Paraná and present in
all classrooms, it is rarely used by a significant number of teachers, who do not usually use
media resources such as data projectors, and other overhead.

Key-words:
Teaching and learning. Digital literacy. Public school. Elementary school.

1
Professora da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, campus Londrina. Doutora em Linguística e
Língua Portuguesa pela UNESP/Araraquara; e-mail: alessandradutra@utfpr.edu.br ou
alessandradutra@yahoo.com.br.
2
Professora da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, campus Londrina. Doutoranda em Estudos da
Linguagem pela UEL; e-mail: leticia_storto@hotmail.com ou le_storto@yahoo.com.br.
3
Professor da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, campus Cornélio Procópio. Doutor em Educação
pela UNESP/Marilia; e-mail: vanderley@utfpr.edu.br.
2

1 INTRODUÇÃO
A reflexão a respeito das questões que envolvem o processo de ensino e
aprendizagem tem se modificado nas últimas décadas por causa das novas tecnologias, que
estão cada vez mais presentes nas salas de aula. Há uma década, a mídia utilizada em sala
limitava-se ao uso do videocassete, mas hoje os estudantes levam seus próprios computadores
para as aulas, há TV multimídia em muitas escolas públicas e nossos alunos têm cada vez
mais informação a respeito de como empregar os recursos tecnológicos a seu favor. No estado
do Paraná, por exemplo, a rede pública de ensino fundamental e médio recebeu, em suas salas
de aulas, televisores classificados como TV Pendrive (imagem ilustrativa em anexo), ou seja,
televisores de 29 polegadas com entradas para VHS, DVD, cartão de memória e pendrive e
saídas para caixas de som e projetor multimídia. Além disso, cada professor recebeu um
dispositivo pendrive para poder utilizá-la. Com esse dispositivo, o docente pode salvar objetos
de aprendizagem para usar em sala de aula. Além disso, foram disponibilizados na página
eletrônica do Ministério da Educação do governo do estado do Paraná
(http://www.educacao.pr.gov.br/), Portal Dia a Dia Educação, materiais para consulta e uso do
professor, como livro didático4, dissertações e teses, vídeos, áudios, entre outros.

Ilustração 1 – Portal Dia a Dia Educação

4
Disponível em:
http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/diaadia/diadia/arquivos/File/livro_e_diretrizes/livro/portugues/seed_port_e_book.pdf
3

Ilustração 2 – Portal Dia a Dia Educação – Língua Portuguesa

Segundo o portal, os objetos referidos são recursos que podem complementar e


apoiar o processo de ensino e aprendizagem, tais como vídeos, fotografias, músicas, entre
outros. Desse modo, não podemos ignorar a importância que o professor desempenha nesse
novo processo de ensino e aprendizagem que se instaura. Assim, o presente trabalho pretende
apresentar resultados de estudos realizados com professores da rede pública de ensino do
Paraná com a finalidade de verificar suas crenças a respeito da utilização das TIC’s em aulas
de aula, além de examinar se e como ele as emprega. Para tanto, o trabalho fundamentou-se
nas teorias do Letramento Digital. Partimos da hipótese de que, embora haja recursos
tecnológicos para que o professor aprimore suas aulas, fatores como excesso de aulas, número
elevado de alunos em sala e a falta de conhecimento para lidar com as TIC’s impedem que o
professor as utilize de modo mais frequente.

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
A educação na atualidade vem sofrendo muitas transformações. Uma delas é a
presença nas novas tecnologias de informação e comunicação que permeiam a vida dos
indivíduos sem que, muitas vezes, seja percebida. Com esse advento, o processo de ensino-
aprendizagem e todo contexto escolar precisam se adequar.
4

O crescente aumento na utilização das novas ferramentas tecnológicas (computador,


Internet, cartão magnético, caixa eletrônico etc.) na vida social tem exigido dos
cidadãos a aprendizagem de comportamentos e raciocínios específicos. Por essa
razão, alguns estudiosos começam a falar no surgimento de um novo tipo,
paradigma ou modalidade de letramento, que têm chamado de letramento digital
(XAVIER, 2011, online).

Pensar em adentrar em uma sala de aula da maioria das escolas do país com giz
apenas não faz mais sentido para os alunos e, também, para os professores. É a tecnologia
atual, que não pode estar ausente das escolas, ou seja, há a necessidade de se repensar no
papel do professor, em sua formação permanente, no uso das novas tecnologias com o intuito
de formar alunos e não apenas para acessar e veicular informações.
Se pensar em educação na atualidade sem a presença das mídias interativas é
algo impossível de se imaginar, por outro lado não é a tecnologia que subsidiará um ensino de
qualidade, que promova o crescimento pessoal e profissional dos indivíduos e que conduza o
país ao crescimento econômico.
Segundo Moran (2009, p. 13), a expectativa é que as novas tecnologias trarão
soluções rápidas para o ensino. Elas permitem ampliar o conceito de aula, de espaço, de
tempo, de comunicação audiovisual, e de estabelecer pontes novas entre o virtual e o visual,
entre o estar juntos e o estarmos conectados a distância. Mas, quem dera ensinar dependesse
somente de tecnologias. Sem dúvida, elas são importantes mais não resolver questões
inerentes ao processo de ensino-aprendizagem. Tais questões são desafios maiores que, nós,
professores, enfrentamos em todas as épocas e particularmente agora em que estamos
pressionados pela transição do modelo de gestão industrial para o da informação e do
conhecimento.
O mesmo autor ainda difere ensino de educação. Segundo ele, o primeiro
organiza-se uma série de atividades didáticas para ajudar os alunos a compreender áreas
específicas do conhecimento, já o segundo, além de ensinar, é ajudar a integrar ensino e vida,
conhecimento e ética, reflexão e ação, a ter uma visão holística de totalidade. A partir desses
conceitos, se formos avaliar o ensino público da atualidade vemos salas numerosas,
professores com excessiva carga horária e jornada de trabalho, salários incompatíveis com o
que seria o ideal, muitos alunos desinteressados, violência presente nas escolas, infraestrutura,
muitas vezes, deficitária, entre outros problemas.
No entanto, é necessário que o professor enfrente os problemas existentes no
contexto escolar e tente colocar em prática seu trabalho no sentido de proporcionar aos alunos
um ensino e uma educação de qualidade. O trabalho com os recursos tecnológicos permearão
5

e proporcionarão subsídios para trabalhar e formar cidadãos nas duas instâncias: no ensino e
na educação. No ensino porque, quando o professor utiliza a informática para implementar
seu trabalho em sala de aula, ele o faz para trabalhar conteúdos de sua disciplina, para que o
aluno adquira conhecimentos específicos de uma ou mais áreas. Ao mesmo tempo, vai
proporcionar ao educando conhecimento tecnológico e, assim, contribuir para a
democratização do acesso à informação. Desse modo, todos os envolvidos têm a oportunidade
de construir conhecimento científico, por meio da interação com os recursos midiáticos, ou
seja, dependendo do trabalho que o professor realiza, integra o aluno à vida, leva-o à reflexão
faz com que ele tenha uma visão de maior totalidade.
O fato das novas tecnologias permearem todo o processo educacional na
atualidade, o papel do professor e todo o percurso trilhado pela linguagem oral e escrita não
podem ser deixados de lado. Behrens (200, p. 74) afirma que na era digital o professor tem a
possibilidade de romper barreiras dentro de sala de aula, na qual se criam possibilidades de
encontros presenciais e virtuais, que levam o aluno a acessar informações disponibilizadas no
universo da sociedade do conhecimento. Segundo a autora, o docente serve-se da informática
como instrumento de sua prática pedagógica, consciente de que a lógica de consumo não pode
ultrapassar a lógica da produção de conhecimento. Nesse aspecto, o computador e a rede
devem estar a serviço da escola e da aprendizagem.
Cabe salientar que o trabalho com os recursos midiáticos não exclui ou descarta todo
o percurso realizado pela linguagem oral e escrita. Além disso, aprendizagem torna-se muito
mais significativa quando parte das situações vividas cotidianamente pelos alunos, os quais
utilizam assiduamente os recursos midiáticos disponíveis, como computadores conectados à
rede mundial, MPs, celulares, entre outros. Eles se sentem mais à vontade ao pesquisar em
textos a partir de links da internet, o chamado hipertexto do que somente em livros
tradicionais. Aprendemos com mais facilidade quando há interesse ou necessidade.
No entanto, ensinar com as novas mídias só será uma revolução se mudarmos
simultaneamente os paradigmas convencionais com os quais estamos acostumados e que
mantêm distantes professores e alunos. Caso contrário, conseguiremos dar um verniz de
modernidade, sem mexer no essencial.

3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Para a realização da pesquisa, foi elaborado um questionário como instrumento de
coleta de dados composto por seis questões objetivas e uma discursiva. Esse questionário foi
prontamente respondido professores do ensino fundamental de escolas públicas de Londrina e
6

Cambé, cidades situadas no norte do estado do Paraná. Os professores responderam também a


perguntas a respeito de sexo, idade, tempo de magistério, disciplina ministrada, escola(s) em
que atua e formação.
Ressaltamos que, para essa análise preliminar, não foram verificadas essas variáveis,
isto é, a análise pauta-se nas respostas do grupo total de professores sem qualquer distinção
entre eles.

4 ANÁLISE DOS DADOS


A primeira questão do questionário buscava saber se o professor costuma empregar
recursos midiáticos em suas aulas e com qual frequência.

1. Você utiliza ferramentas de multimídia em suas aulas?


( ) sempre
( ) quase sempre
( ) às vezes
( ) raramente
( ) nunca

Nas respostas a essa pergunta, verificamos que os professores pouco empregam os


recursos midiáticos em sala de aula, isso porque 46% dos docentes questionados disseram que
às vezes utilizam esses recursos e cerca de 14% afirmaram utilizá-los raramente. 20%
responderam que sempre ou quase sempre os emprega, número considerado pequeno diante
do contexto escolar que vivenciamos na atualidade e do número muito expressivo de
possibilidades que esses recursos apresentam para a prática docente. Além do fato de que, no
estado do Paraná, as escolas públicas têm muitas ferramentas midiáticas, a principal delas é,
como já dissemos, a TV pendrive, que projeta imagens, sons, vídeos, texto, funcionando
como um projetor multimídia muito rico. Cabe salientar que nenhum informante afirmou
nunca ter utilizado tais ferramentas, o que consideramos bastante positivo.
7

Gráfico 1 – Respostas para a pergunta 1.

Usa TIC's em aulas?

sempre ou quase
sempre
às vezes

raramente

nunca

A segunda questão indagava a respeito dos tipos de recursos midiáticos empregados


em sala e a frequência da utilização de cada um deles.

2. Quais ferramentas elencadas abaixo você costuma utilizar? Assinale a frequência e diga o porquê dessa
frequência de uso.

( ) TV pendrive
( ) sempre ( ) quase sempre ( ) às vezes ( ) raramente ( ) nunca

( ) Rádio
( ) sempre ( ) quase sempre ( ) às vezes ( ) raramente ( ) nunca

( ) Televisão, Vídeo ou DVD


( ) sempre ( ) quase sempre ( ) às vezes ( ) raramente ( ) nunca

( ) Datashow
( ) sempre ( ) quase sempre ( ) às vezes ( ) raramente ( ) nunca

( ) Retroprojetor
( ) sempre ( ) quase sempre ( ) às vezes ( ) raramente ( ) nunca

Investigamos o emprego da TV pendrive, do rádio, do datashow e do retroprojetor


por os considerarmos as ferramentas mais comuns e utilizadas nas salas de aula paranaenses.
8

TV pendrive Rádio TV/Vídeo/DVD Datashow Retroprojetor


Sempre 0% 0% 0% 0% 0%
Quase sempre 20% 6% 40% 0% 0%
Às vezes 34% 34% 46% 13% 6%
Raramente 20% 20% 14% 13% 14%
Nunca 26% 40% 0% 74% 80%
Tabela 1 – Pergunta 2: Tipos de TIC’s utilizadas e frequência de uso.

Observamos que os professores da rede pública do Paraná pouco empregam recursos


midiáticos em suas aulas, principalmente aqueles considerados mais modernos, como o
datashow, que nunca foi utilizado na prática docente por 73% dos professores questionados, e
a TV pendrive, nunca empregada por 26% dos participantes da pesquisa. Isso se deve à falta
de conhecimento de como esse instrumento funciona e à ausência daquele nas escolas
públicas do estado. Deve-se também ao fato de a TV Pendrive passar slides, substituindo,
assim, o datashow, o qual, por seu turno, exige o emprego em conjunto de um computador.
Chamou-nos a atenção o número bastante expressivo de professores que nunca
utilizaram o retroprojetor em aulas. Esse instrumento é bem conhecido por alunos e
professores, além de ser empregado já há algum tempo na prática docente e de estar
disponível em todas as escolas paranaenses. O seu pouco emprego deve-se ao fato de,
primeiro, ele ter de ser levado para sala de aula, o que pode ser considerado por muitos
professores desgastante e, segundo, por ele exigir a produção de transparências, o que gera um
custo para os docentes.
A TV pendrive é usada com a ajuda de um pendrive, oferecido a todos os professores
pelo governo sem custo algum. Essa ferramenta, que veio substituir o disquete e o CD-ROM,
possibilita a troca constante de materiais, a sua formatação (apagamento de todos os dados
salvos, ou seja, limpeza geral do drive), o que permite sua reutilização, e também salvar
muitos arquivos, como vídeos, músicas, slides, textos etc. Já as transparências não. O
professor precisa de várias delas para projetar um texto ou imagens, além de custarem em
torno de R$1,50 cada uma. Além disso, depois de gravado, seu conteúdo não pode ser
apagado para sua reutilização e muitas escolas não as oferecem para o uso do professor.
A terceira três indagava acerca do que pensa o professor a respeito das TIC’s.

3. Você acredita que o emprego das multimídias facilita o processo de ensino e aprendizagem?
( ) muito
( ) razoável
( ) pouco
( ) nada
9

Nas respostas a essa pergunta, verificamos que: 53% dos docentes questionados
acreditam que o uso de recursos facilita o processo de ensino-aprendizagem; 40% afirmam
que facilita razoavelmente; e 7% acreditam que facilita pouco. Isso demonstra que ainda não
há consenso a respeito das TIC’s em aulas, o que pode diminuir a recorrência de sua
utilização nas escolas.
A questão seguinte buscava determinar o que pensam os professores acerca do gosto
dos estudantes pelo uso das TIC’s.

4. Você considera que os alunos apreciam o emprego de recursos de multimídias em sala de aula?
( ) muito
( ) razoável
( ) pouco
( ) nada
Por quê?
_______________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________

Em relação à preferência dos alunos, 53% dos entrevistados afirmaram que os alunos
apreciam muito os recursos e 47% disseram que os alunos apreciam razoavelmente. O
professor P05 afirmou que:

Por fazer parte do cotidiano dos alunos, acredito que eles conseguem se concentrar melhor quando recursos
multimídia são utilizados.

Isso mostra a preocupação do professor em contextualizar a prática docente com as


vivências rotineiras dos seus alunos, de modo a tornar suas aulas mais interessantes. Outro
docente, P03, argumentou que:

Porque chama mais a atenção, é mais “agradável” do que uma exposição apenas oral.

Essa resposta demonstra a preocupação docente em tornar suas aulas mais atrativas
aos estudantes, auxiliando, assim, o processo de ensino-aprendizagem, já que aluno
interessado ouve e participa mais, aprendendo mais por consequência.
A quinta pergunta era a respeito dos momentos de suas aulas em que as ferramentas
de multimídia são utilizadas pelos docentes.

5. Em quais momentos você emprega esses recursos em sala de aula?


( ) explicação de teoria
( ) resolução de exercícios
10

( ) exemplificação
( ) motivação e/ou fechamento de aula
( ) todo o tempo
( ) outro. Qual? __________________________________________________________________________

Dos professores que responderam ao questionário: 60% afirmaram que empregam as


ferramentas multimídias em explicações de teoria; 20% na resolução de problemas; 53% em
exemplificações; 46% na motivação dos alunos; nenhum professor respondeu que as emprega
o tempo todo ou em outro momento da aula.

Gráfico 2 – Respostas para a pergunta 5.

Em quais momentos você emprega esses recursos em sala de aula?

explicação de teoria

resolução de exercícios

exemplificação

motivação e/ou
fechamento de aula
todo o tempo

outro

Por meio das respostas, observamos que muitos professores utilizam em mais de um
momento as TIC’s em suas aulas, mas que predomina a sua utilização em explicações, em
exemplificações e na motivação dos estudantes. Surpreendeu-nos o uso pouco expressivo
desses recursos em exemplificações e o número elevado de professores que os utiliza na
exposição teórica.
A questão sexta perguntava a respeito do modo como o professor emprega esses
recursos.

6. Como você utiliza esses recursos?


( ) apoio de aula
( ) substituinte a apostilas e livros
( ) na exibição de áudio e vídeo para exemplificações
( ) substituinte ao quadro
( ) outro. Qual? ____________________________________________________________________________
11

Em relação ao questionamento sobre como esses recursos são utilizados, 93% dos
professores os utilizam como apoio de aula, 6% substituinte a apostilas e livros, 66% na
exibição de exemplificações e 6% em substituição ao quadro.

Gráfico 3 – Respostas para a pergunta 6.

Como você utiliza esses recursos?

apoio de aula

substituinte a apostilas e
livros
na exibição de áudio e
vídeo
substituinte ao quadro

outro

Esperávamos não encontrar muitos docentes que utilizassem essas ferramentas para
substituir o quadro ou materiais didáticos. Foi exatamente isso que verificamos. Os
professores, em sua grande maioria, recorrem a esses instrumentos como apoio de aula ou na
exibição audiovisual. O que demonstra um uso adequado do recurso, já que ele não veio
substituir quadro ou material didático, mas acrescentar, estimular, ampliar. Não basta que o
professor empregue TIC’s em aulas, é preciso que ele saiba como e quando empregá-las.
A última pergunta do questionário queria saber se o professor acredita que esses
recursos vão substituir seu papel nas aulas:

7. Para você, esses recursos podem substituir o trabalho do professor? Justifique.


_________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________

Como esperávamos, 93% dos pesquisados afirmaram que tais recursos não
substituem o professor, apenas 7% disseram que eventualmente sim. Muitos docentes
manifestaram a consciência do papel mediador desenvolvido pelos professores, papel esse que
12

não pode ser substituído por instrumentos tecnológicos quaisquer que sejam. O professor P05
defende que:

Não. Acredito que os recursos multimídia auxiliam o trabalho do professor na aplicação e exposição do
conteúdo. Sempre é necessária “a mediação”.

A maioria dos professores argumentou que os recursos auxiliam, orientam,


exemplificam e colaboram com o processo de ensino-aprendizagem, mas que é sempre
necessária a presença do professor para solucionar dúvidas e agir como mediador.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da visão de democratização do acesso às novas tecnologias, praticamente
todas as escolas públicas do Paraná foram equipadas com laboratórios e microcomputadores,
TV’s Pendrive disponíveis para alunos e professores fazerem uso. No entanto, verificamos
que, embora os docentes tenham interesse em aplicar as TIC’s em sala de aula, encontram
alguns percalços, como a falta de conhecimento técnico, falta de tempo para preparo e
pesquisa para elaboração das aulas e também ausência de técnicos especializados para dar
suporte às escolas.

6 REFERÊNCIAS

BEHRENS, M. A. Projetos de aprendizagem colaborativa. In: MORAN, J. M.; MASSETTO,


M. T.; BEHRENS, M. A. Novas tecnologias e mediação pedagógica. São Paulo: Papirus,
2009.

MORAN, J. M. Ensino e aprendizagem inovadores com tecnologias audiovisuais e


telemáticas. In: MORAN, J. M.; MASSETTO, M. T.; BEHRENS, M. A. Novas tecnologias e
mediação pedagógica. São Paulo: Papirus, 2009.

PARANÁ. Secretaria da Educação. Portal dia a dia educação. Disponível em:


<http://www.educacao.pr.gov.br/>. Acesso em out 2011.

XAVIER, A. C. S. Letramento digital e ensino. Disponível em:


<http://www.ufpe.br/nehte/artigos/Letramento%20digital%20e%20ensino.pdf>. Acesso em
out 2011.
13

ANEXO

TV Pendrive
Fonte: http://www.educacao.pr.gov.br/
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

ASPIRAÇÃO EM PLOSIVAS SURDAS DO PORTUGUÊS BRASILEIRO: UMA


ABORDAGEM SEGUNDO A FONOLOGIA DA GEOMETRIA DE TRAÇOS 1

Mariane Antero Alves2 (PPGLg/UFSC)

RESUMO

Este artigo teve como objetivo analisar o fenômeno da aspiração em plosivas surdas /p/ , /t/, e
/k/ no português brasileiro, sob a perspectiva da teoria da Fonologia da Geometria de Traços.
Para isso, foi adotado o sistema de desenho de árvores, proposto por tal teoria, para demons-
trar como esse fenômeno ocorre na produção de fala. Este estudo preocupou-se também com a
problematização de certos aspectos inerentes à aspiração, como duração e traço de ponto de
articulação, levantando hipóteses para a tentativa de agregar tais conceitos à geometria de
traços da aspiração nas mencionadas consoantes.

Palavras-chave:
Plosivas surdas do português brasileiro. Aspiração. Fonologia da Geometria de Traços.

ABSTRACT

The present study aimed at investigating the aspiration feature in voiceless plosives of Brazil-
ian Portuguese /p/, /t/, and /k/ using the theory of geometry of phonological features. In order
to do so, the system of “trees“, proposed for such theory, was used to demonstrate how aspira-
tion occurs in the speech chain. This study was also aimed at discussing some aspects related
to aspiration, such as length e attribution of consonant place (C-Place), and it brings some
hypothetical claims to try to incorporate such aspects into the geometry of features of aspira-
tion.

Keywords:
Voiceless plosives of Brazilian Portuguese. Aspiration. Geometry of Phonological Features.

1 INTRODUÇÃO
As línguas naturais estão continuamente passando por processos de mudanças ao
longo de suas histórias. Com isso, diversos fenômenos linguísticos no âmbito fonéti-
co/fonológico são criados continuamente. É através dos estudos na área de Fonética e Fonolo-
gia que grande parte desses processos é trazida à tona para o meio linguístico e assim podem
ser amplamente estudados e implementados em áreas como aquisição de língua maternal e
língua estrangeira, por exemplo. Podemos pensar também que tais fenômenos podem enrique-
cer estudos na área de sociolinguística e dialetologia, principalmente aqueles que pretender
mapear a riqueza de uma determinada língua, no que tange à variação na produção oral.

1
Trabalho desenvolvido para a disciplina de Fonologia I, ministrada pela prof. Dra. Terezinha M. Brenner, no
PPGLg/UFSC.
2
Aluna de doutorado do PPGLg (UFSC); e-mail: mariantero@gmail.com.
2

Alves et al. (2008) realizaram um estudo na qual o fenômeno da aspiração em plosi-


vas surdas foi investigado e sua ocorrência foi verificada no português brasileiro (doravante,
PB), observada através de dados quantitativos o que Pagotto (2004) já apontava para as oclu-
sivas alveolares e Klein (1999), para as plosivas velares.
Seguindo esses achados, Alves (2011) também investigou o fenômeno da aspiração
em plosivas surdas, produzidas por falantes brasileiros de inglês como língua estrangeira. A
autora pôde observar, também por métodos quantitativos, que tal fenômeno se realiza na fala
brasileira ocorrendo, porém, em menor intensidade que a aspiração em inglês americano.
Levando em considerações os fatos relatados acima, o presente artigo tem como ob-
jetivo avaliar o fenômeno da aspiração em plosivas surdas no PB sob o olhar da Teoria da
Geometria de Traços, com o intuito de definir, através do design das geometrias dos segmen-
tos (modelo de árvores) proposto por essa teoria, os traços relacionados a esses segmentos.

2 PLOSIVAS SURDAS
As plosivas surdas são consoantes produzidas com total e momentânea constrição na
cavidade oral, causada pelo movimento de aproximação de articuladores ativos e passivos. No
caso do português brasileiro, estes articuladores podem ser: lábios inferiores e superiores, que
produzem a constrição bilabial das oclusivas bilabiais surda /p/ e sonora /b/; ápice ou ponta da
língua e alvéolos, que formam a oclusão necessária para a produção de oclusivas alveolares
surdas /t/ e sonora /d/; por fim, o último par de oclusivas do PB, surda /k/ e sonora /g/, é pro-
duzido pela oclusão total entre o dorso da língua e a região velar (CLARCK e
YALLOP,1995; LADEFOGED,2001).
Na articulação de tais segmentos, o fluxo de ar egressivo se inicia nos pulmões, pas-
sando pela cavidade subglotal, até atingir a supraglotal, onde é impedido momentaneamente
pelo contato entre os articuladores e é ligeiramente liberado, causando o que é conhecida co-
mo explosão. Porém, a soltura dessa oclusão pode ser dar de maneira gradual, fazendo que
entre o momento da oclusão e a total liberação de ar ocorra um ruído turbulento de ar, causa-
do pelo afastamentto (abdução) das pregas vocais. Esse ruído foi chamado de aspiração e
desta forma definido por Abramson e Lisker (1965).
O fenômeno da aspiração ocorre nas mais variadas línguas, sendo inclusive um pa-
râmetro usado para a diferenciação entre plosivas surdas e sonoras. Vários autores (LISKER e
ABRAMSON, 1964; WINITZ, LARIVIERE e HERRIMAN, 1971, LADEFOGED, 2001)
investigaram a ocorrência da aspiração em plosivas na língua inglesa, especialmente quando
estas consoantes ocorrem em posição de início de palavra. Nessa posição, as plosivas sonoras
3

do inglês são desvozeadas, sendo assim produzidas como surdas, porém sem aspiração. Por
sua vez, as plosivas surdas são produzidas com aspiração, fazendo com que esse fenômeno
seja o principal fator capaz de diferenciar plosivas surdas e sonoras do inglês, em posição de
início de palavra. Desta forma, o fenômeno da aspiração ganhou bastante destaque nas pes-
quisas, em nível segmental, sobre a língua inglesa, especialmente entre as décadas de 1960 a
1990.
Contudo, para o PB, tal fenômeno não havia sido levado em consideração até poucos
anos, quando Klein (1999), num estudo sobre as plosivas no PB, apontou para a provável
ocorrência de uma leve aspiração na produção de plosivas velares surdas.
Pagotto (2004) realizou um estudo sobre a produção de oclusivas alveolares diante
de [i] na região de Florianópolis e propõe que, dentre as várias realizações possíveis para /t/,
produzido diante de [i] ou [], tem-se plosivas aspiradas, sendo estas representadas como [th]
ou [dh].
Tal fato foi também verificado por Alves et al. (2008), que num estudo com fala se-
mi-espontânea de 35 participantes oriundos das mais diversas regiões do Brasil, pôde observar
a existência de uma leve aspiração em todas as plosivas surdas do PB, sendo que a porcenta-
gem de produção de plosivas surdas aspiradas em relação ao total foi de 49% para [p], 57%
para [t] e 82% para [k].
Por fim, Alves (2011) também verificou a existência de uma leve aspiração em plo-
sivas surdas do PB da ordem de 12% do total de plosivas bilabiais produzidas pelos informan-
tes, de 30% das alveolares e 82% de velares, sendo que as diferenças entre plosivas surdas
aspiradas e não aspiradas se mostrou significativa (p <.001). A autora também pode verificar
que, de forma geral, houve uma tendência de produção de um grau maior de aspiração em
plosivas seguidas de vogais altas anteriores [i]e [] e posteriores [u] e [].
Pode-se verificar a partir dos estudos mencionados acima que, apesar de não tida
como uma variante do PB, as plosivas surdas levemente aspiradas aparecem com grande fre-
quência na produção de fala desta língua. Como observado por Silva (2006), parece haver um
continuum entre a produção de plosivas não-aspiradas até a de plosivas africadas, podendo
ocorrer nesse espaço uma grande variação de fenômenos, como a aspiração, a produção de
africadas alveolares [ts] e [dz] e finalmente, africadas palato-alveolares [t] e [d]3.

3
Nos dois últimos casos, as plosivas sofrem processos de palatização quando seguidas pela vogal [i].
4

3 A FONOLOGIA DA GEOMETRIA DE TRAÇOS


A Fonologia da Geometria de Traços (FGT) está inserida dentro da teoria fonológica
autossegmental, que se estabeleceu após o surgimento da Teoria Gerativa de Noam Chomsky,
tendo com base, principalmente, a fonética articulatória.
A teoria gerativista se estabelece com a publicação do livro The Sound Patterns of
English (CHOMSKY & HALLE, 1968), teve como princípio básico a proposição de traços
fonológicos através de matrizes de traços dispostos de maneira linear, de acordo com os seg-
mentos que caracterizavam. Anterior ainda à Fonologia Gerativa, o Estruturalismo e a Fonê-
mica de Bloomfield também possuem esse caráter de linearidade.
Os modelos não-lineares se estabeleceram então, tendo em vista a necessidade de se
estabelecer uma sistematização interna entre as matrizes de traços. Essa sistematização ou
estruturação se dá a partir do estabelecimento de relações hierárquicas entre os traços, através
de linhas de associação. Segundo a FGT, são essas associações que permitem que determina-
dos segmentos passem por processos fonológicos, fazendo com que os traços possam se es-
praiar para alem de um único segmento.
Os traços se estabelecem em tiers, que se ligam em nós, e o mais alto desses nós irá
apresentar uma maior abrangência, representando então, consoantes ou vogais. Essas ligações
estabelecidas através de linhas hierarquizadas irão delinear uma estrutura (ou esqueleto) que
se assemelha a uma árvore, termo utilizado por McCarthy (1998 apud Cagliari, 1998).
Além disso, esses traços podem ou não ser de caráter binário. Caso sejam, eles pode-
rão receber valências positivas ou negativas. Desta forma, essa proposta representa apenas
aquilo que é necessário para a definição de distinções e dos processos articulatórios atuantes,
eliminando redundâncias.
Segundo Cagliari (1998), esta disposição geométrica faz com que cada traço fique
“auto-segmentado, colocando suas propriedades distintivas em fileiras, de acordo com a ne-
cessidade de aplicação de processos fonológicos independentes para cada fileira.” (p.17).
Seguindo o modelo de Clements (1985, apud Cagliari, 1998), os nós que ligam as li-
nhas de associação podem se desdobrar em nós terminais ou se ligar a outros nós que também
podem se desdobrar (chamados de nós constituintes). Parte-se de um nó inicial, chamado Ra-
iz, ao qual se ligam os traços terminais ([consonantal], [sonorante] e [± nasal]) os dois nós
inferiores: Laríngeo e Cavidade Oral (OC). Ao nó Laríngeo estão ligados os traços [ voi-
ced], e [spread glottis], enquanto que ao nó OC estão ligados o nó de ponto de articulação da
consoante (C-Place) e o nó de ponto de articulação da vogal (V-Place).
5

Quando ocorre um processo fonológico, as linhas de associação poderão ligar um tier


a outro, representando, por exemplo, um processo de assimilação (conhecido dentro da FGT
como espraiamento do traço), como pode ser percebido no processo de palatalização da oclu-
siva alveolar /t/ ou /d/ diante de vogal palatal /i/, como podemos observar na figura 1, propos-
ta por Cagliari (2002, p. 129). Como se pode observar, nesse processo (que é um processo de
assimilação sofrido pela consoante oclusiva alveolar de características do segmento vocálico
adjacente [i] ou []), há um único nó que se espraia, que neste caso é o nó C-place. De acordo
com Clements (1985), “all assimilation rules involve the spreading of a single node: the root
node, a class node or a feature node” (p.247), como se pode observer na Figura 1:

(1) t,d > t, d i, 


C V

Raiz Raiz

OC OC OC

[-cont] [+cont] [+cont]


C-Place C-Place C-Place

[cor] [cor] Vocálico

V-Place Abertura

[+ant] [-ant] [cor] [-open]

Figura 1 – Processo de palatalização de plosivas alveolares diante de vogal alta, segundo a FGT.
Fonte: Cagliari (2002, p. 95).

Em resumo, podemos perceber que a substancial diferença entre a proposta da FGT e


da Teoria Gerativa Linear (elaborada por Chomsky) se deve ao fato de que os traços aplicados
aos segmentos se estabelecem, na primeira, em multifileiras ou tiers que se ligam de forma
não-linear e, na segunda, e na segunda através de um feixe ou matriz disposto linearmente
(CLEMENTS, 1985, p.246). Na Figura 2, pode-se observar a formação do processo de palati-
zação, segundo a teoria generativa.

(2) /t,d/ [t, d] / ____ [i]

- sil - sil +sil


+ cor + cor +cor
6

- alto + alto ____ +alyo


+ ant - ant -arr

Figura 2 – Processo de palatalização de plosivas alveolares diante de vogal alta, segundo a Fonologia
Gerativa.

Além disso, a FGT vai propor uma interdependência hierárquica entre os traços, que
irão representar os principais movimentos e processos envolvidos dentro da articulação da
fala, que era vista de forma simplificada pela teoria gerativa.

4 ANÁLISE DA ASPIRAÇÃO SEGUNDO A FGT


4.1 Aspiração
A aspiração é um fenômeno que ocorre geralmente em plosivas surdas, nas mais va-
riadas línguas. Abramson e Lisker (1965) definem a aspiração como “turbulent excitation of a
voiceless carrier produced during the interval between release and voicing onset (p.1.2).”
Complementando essa afirmação dos autores, Ladefoged e Maddieson (1998) afir-
mam que, na presença de aspiração, as pregas vocais estão completamente afastadas em con-
traponto ao modo em que estão em sons vozeados (p.70). A aspiração é, portanto, um fenô-
meno que possui uma duração intrínseca, estando diretamente relacionado com o voice onset
time. O VOT é definido como o tempo entre a soltura (explosão) da obstrução de uma plosiva
e o início do vozeamento do segmento adjacente. Quanto maior o VOT, maior é a aspiração4.
Cho e Ladefoged (1999) propôs a classificação de plosivas surdas de acordo com o tamanho
de VOT em quatro categorias: plosivas sem aspiração, com VOT < 35ms; plosivas levemente
aspiradas com VOT entre 35ms até 55 ms; plosivas aspiradas, com VOT de 55 ms até 95 ms;
e plosivas fortemente aspiradas, com VOT> 95 ms.
Pagotto (2004) propõe que ambos os fenômenos de aspiração e africação em plosivas
alveolares no PB podem estar relacionados, já que ambos tendem a ocorrer em frente às vo-
gais altas [i] e, menos frequente, [u]. Porém, podemos ressaltar, segundo Alves (2011), a aspi-
ração pode se realizar não somente neste contexto, mas também seguida por qualquer vogal
oral do PB. Este fato também se confirma na língua inglesa, como avaliado por Klatt (1991).
Em resumo, o que se pode notar em todas as pesquisar citadas acima é a presença de
aspiração no PB, que pode ser visto como uma variante, tal qual as africadas surda e sonora.

4
Segundo Cho e Ladefoged (1999), percebe-se acusticamente o fenômeno da aspiração quando o VOT é igual
ou maior a 35 milissegundos. Dependendo da extensão do VOT, esses pesquisadores definem o fenômeno como
leve aspiração(35-55ms), aspiração (56-95ms) e como forte aspiração (acima de 96ms).
7

Neste ponto, portanto, a aspiração em PB se difere da africação, já que o último só ocorre


diante de [i].

4.2 Proposição do Modelo


Para representar a aspiração no PB escolhemos utilizar a notação proposta por Cle-
ments e Hume (1995). Os autores sugerem que o nó de raiz seja interpretado como (A0), ca-
racterizando esse nó como [-contínuo]; (Af), caracterizando o nó de raiz como [+contínuo, -
soante] e, finalmente, (Amax), que caracteriza o nó como [+contínuo, +soante].
Cabe notar que as plosivas surdas /p/, /t/, e /k/ se diferem, segundo a FGT pelos tra-
ços de ponto de articulação, dispostos da seguinte maneira:

(3a) Plosiva bilabial (3b) Plosiva alveolar (3c) Plosiva velar


/p/ /t/ /k/
R R R
[+cons] Lar [+cons] Lar [+cons] Lar
[-voz] OC [-voz] OC [-voz] OC
[-cont] CP [-cont] CP [-cont] CP
[labial] [cor] [dorsal]
[+ant]
Figura 3 – Configuração de plosivas surdas /p/, /t/ e /k/ do PB, respectivamente, de acordo com a
FGT.

No que se refere ao nó de raiz, Pagotto (2004) afirma que na aspiração, tal qual na
africação (palatização) no PB descrito em (1), há um processo de Fissão da Raiz, onde o [t] é
representado pelo nó de raiz (Ao) e a fricativa [h] (que representa a aspiração) é descrita no nó
de raiz (Af). Clements e Hume (1995) caracterizam esses segmentos como contour segments,
ou seja, segmentos de contorno, pois esses segmentos são produzidos em sequência que con-
tém diferentes traços.
Em relação ao nó laríngeo, Clements (1985) sugere que a aspiração é marcada com o
traço [spread glottis], que sinaliza que as pregas vocais estão afastadas, como proposto por
Ladefoged e Maddieson (1998) citado acima. A partir desse nó, os demais irão se configurar
de acordo com a consoante oclusiva a ser analisada, que irá se alterar de acordo com (3a), (3b)
ou 3(c). Optamos então por demonstrar o fenômeno da aspiração em consoantes oclusivas
alveolares (de acordo com Pagotto, 2004, p.231), possibilitando assim a comparação com a
8

africação descrita em (1). Cabe lembrar que a descrição da vogal adjacente à oclusiva não foi
agregado, já que a aspiração pode ocorrer em frente a qualquer vogal oral do PB.

(4) /th/
Ao Af
Lar Lar
[-voz] OC [-voz] [spread] OC
[-cont] [+cont]
C-Place

[ cor]
[+ant]
Figura 4 – Modelo de aspiração de oclusiva alveolar surda do PB, segundo a FGT.
Através do modelo proposto, podemos notar que o a aspiração não possuí um traço
de nó de C-Place associado a ela. Há aqui uma questão postulada por alguns autores (Fant,
1993; Pagotto, 2004) que é apenas a diferença entre a pressão supra e subglotal que causa o
afastamento das pregas e, portanto, o relaxamento da glote que vão ocasionar o surgimento da
aspiração. Por essa razão, nenhum traço de ponto de articulação deve ser associado.
Tem-se, desta forma, a produção de uma fricativa aspirada, que já se faz presente na
descrição do fenômeno da aspiração em Fant (1993) e Klatt (1991), onde há a produção de um
segmento fricativo entre o movimento de soltura da oclusão da oclusiva e a produção de um
segmento completamente aspirado, chamado por Fant de “h-like sound”, que é originário da
glote. O autor completa dizendo que os dois segmentos, fricativo e aspirado, podem co-
ocorrer até um determinado ponto, mas o movimento é predominado pelo segmento aspirado,
que vai aumentando, na medida em que o grau de abertura da articulação aumenta, até o início
do vozeamento do som adjacente, que no caso do PB é geralmente uma vogal.
Além da questão de como se representar o traço de C-Place discutido anteriormente,
outras questões podem ser colocadas no que tange à representação da aspiração de acordo
com a FGT. Contudo, é preciso ressaltar que vamos apenas fazer o levantamento dessas ques-
tões, que ainda pouco debatidas na literatura, demandam análises quantitativas apuradas para
que qualquer tentativa de solução seja proposta.
Uma problematização se refere à representação da duração, característica esta que é
intrínseca à aspiração. Apesar de a proposição da FGT está de acordo com os movimentos
articulatórios envolvido na produção de segmentos, no que se refere à questão temporal, a
duração inerente aos segmentos parece não ser representada na maioria das referências na
9

literatura da área. Essa distinção é de extrema importância para a diferenciação das oclusivas
surdas nas mais diversas línguas, já que estas podem variar segundo a duração do VOT e,
consequentemente, a quantidade de aspiração. É o caso, por exemplo, das plosivas surdas em
início de palavra na língua inglesa que, segundo Lisker e Abramson (1964), possuem um
VOT para as da seguinte ordem: 58 ms para [p], 70 ms para [t] e 80 ms para [k], consideradas
plosivas aspiradas, de acordo com as categorias propostas Cho e Ladefoged (1999) acima
citadas. Quando comparada com o PB, podemos perceber que há grandes diferenças entre
esses valores. De acordo com Alves (2011), o valor médio de VOT para [p] foi de 43 ms, de
44ms para [t] e de 57ms para [k], sendo considerada segundo a mesma classificação, uma leve
aspiração.
Clements e Hume (1996) fazem uma tentativa de solucionar a questão. Os autores
propõem que a representação da duração

can be defined as bipositionality on the tier representing phonological quantity,


whether this is taken as the CV – or X – skeleton (…). In all these approaches, a
long consonant or vowel is represented as a root node linked to two units of quantity
(…). (CLEMENTS; HUME, 1995, p. 256-257).

Os esquemas representados em (6a, 6b), retirados do mesmo trabalho de Clements e


Hume, esboça a tentativa de representar no sistema de árvores a duração de consoantes longas
e curtas:

(5a) Curta (5b) Longa:


X X X
Raiz Raiz
Figura 5 – Representação de Clements e Hume (1996) para a duração de consoantes curtas e longas,
respectivamente.
Fonte: Clements e Hume (1995, p. 257).

Um paralelo pode ser feito então entre a proposição desses autores com as categorias
estipuladas para as plosivas surdas por Cho e Ladefoged (1999). Em (7) pode-se perceber que
cada categoria de X, na tier quantidade fonológica, irá corresponder à uma classificação de
oclusiva, que é por sua vez quantificada através de tamanho de VOT.
10

Tabela 1 – Paralelo entre a representação de duração segundo Clements e Hume (1995) e a classifica-
ção de plosivas segundo Cho e Ladefoged (1999).

Classificação das oclusivas


Duração fonológica VOT
segundo a aspiração
0X Oclusivas sem aspiração 0-35ms
X Oclusivas com leve aspiração 35ms-55ms
XX Oclusivas com aspiração 55ms-95ms
XXX Oclusivas com forte aspiração Acima de 95 ms

No entanto, esta ainda é uma forma preliminar de representação, visto que a duração
da aspiração não é binária ou ainda não é de representação qualitativa, mas sim quantitativa.
Cabe a trabalhos futuros a análise da aspiração como um fator distintivo em línguas naturais,
para que tal proposta possa ser validada e incorporada à FGT.

5 CONCLUSÃO
O presente estudo teve como objetivo a proposição de um esquema de árvores, se-
gundo a FGT, para o fenômeno da aspiração em oclusivas surdas do PB, bem como a proble-
matização de questões inerentes ao fenômeno da aspiração como duração e aplicação do traço
C-Place.
A proposta da esquematização segundo a FGT proporciona uma melhor visualização
de fenômenos até pouco tempo vistos apenas sob a ótica da Fonética Acústica, possibilitando
assim que um fenômeno que parece ser recorrente no PB comece a ser visto como uma varia-
ção, tanto quanto o processo de palatização, já assim estabelecido na literatura.
Vimos também que segundo esse modelo, a aspiração em plosivas surdas é aplicada
como um segmento de contorno, que tem a raiz separa em dois momentos: um com a presença
dos traços que compõem a plosiva sob análise e o outro contendo o traço [spread glottis] liga-
do ao nó laríngeo.
Por fim, propusemos a representação de um tempo fonológico (ainda hipotético) que
pode ser inerente à aspiração, quando esta se mostrar distintiva para alguma língua. Para tra-
balhos futuros sugere-se que línguas como Thai, Marathi e Híndi (que possuem três ou quatro
categorias de plosivas) possam ser investigadas com dados quantitaivos para se confirmar se o
grau de aspiração pode ser usado como caráter distintivo entre as plosivas dessas e de outras
línguas.
11

6 REFERÊNCIAS

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Ed. da Unisul, p.1-9, 2010. Disponível em
http://www.celsul.org.br/Encontros/09/artigos/Mariane%20Alves.pdf. Acesso em: 08 ago.
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SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

AULA DE LEITURA E LIVRO DIDÁTICO DE PORTUGUÊS

Cláudia Mara de Souza (UFMG) 1


RESUMO

Este artigo é parte de um projeto de pesquisa que investiga a leitura no livro didático de
português. Parte-se de observações de aulas de leitura em uma escola pública, da dificuldade
revelada pelos alunos ao realizar as atividades da aula. Nesta proposta, busca-se discutir a
perspectiva de leitura de um livro didático de língua materna para o ensino fundamental e as
possibilidades de mediação para uma aula de leitura, em uma unidade no eixo específico. As
análises foram feitas à luz de teorias que compreendem a linguagem como interação, a leitura
como processo social e cognitivo de produção de sentido e a mediação como mobilização de
capacidades para um nível ainda não alcançado antes. Confrontou-se o que o livro declara
fazer com o que realmente faz nas propostas e verificou-se a base teórica que sustenta as
atividades.

Palavras-Chave:
Leitura. Livro Didático. Ensino.

ABSTRACT
This article is part of a research project that investigates the textbook reading in Portuguese.
This is based on observations of reading classes in a public school, the students revealed the
difficulty in carrying out the activities of the class. In this proposal, we seek to discuss the
prospect of reading a textbook language for elementary school and the possibilities of
mediation for a reading lesson in a unit in the specific axis. Analyses were made in light of
theories that understand the language as interaction, reading as social and cognitive process of
meaning production and mediation as mobilization of skills to a level not yet achieved
before. We confronted what the book says to do with what really it makes in the proposals
and we verified the theoretical basis that supports their activities.

Keywords:
Reading. Textbook.Teaching.

1 INTRODUÇÃO
São muitas as dificuldades com as quais um professor depara-se ao entrar em uma
sala de aula nos dias de hoje. Ao longo dos últimos anos parece que a tarefa de ensinar tem se
tornado mais complexa por vários motivos. Dentre eles as inovações tecnológicas, o acesso
rápido à informação, as transformações amplas e rápidas por que passam as gerações, por
outro lado, a escola parece estagnada em um modelo que foi pertinente e eficaz há algumas
décadas.

1
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos / Linguística Aplicada pela Faculdade de
Letras da UFMG; e-mail: smclaudia@hotmail.com.
2

Outros tantos motivos de ordem social, econômica e intelectual poderiam ser


apontados, mas por hora interessa-nos os aspectos práticos e teóricos que envolvem uma
prática escolar: a aula de leitura.
Há anos trabalhando em diversos segmentos e níveis de ensino o que se observa
comumente são alunos e suas reações numa aula. Há os que parecem absorver e prontamente
realizar o que é proposto, outros demonstram compreender parcialmente o que se pede,
outros, no entanto, demonstram quase absoluto desconhecimento das propostas feitas em sala
de aula.
No âmbito da leitura o que se observa é que parece haver certa apatia, desinteresse e
dificuldades na compreensão e interpretação de um texto. O que realmente ocorre? Há um
caos generalizado?
Professores de português e professores de outras disciplinas normalmente comentam
em intervalos na sala de professores e em reuniões que os alunos não sabem ler, não gostam
de ler, têm muita dificuldade.
É notório que ao longo dos últimos anos o nível de proficiência parece ter reduzido e
por mais que muitos tentem algumas inovações a situação persiste. A cada ano, e em cada
fase, os alunos parecem saber menos.
Num depoimento de um aluno acerca do que ele pensa sobre o livro didático (LD) de
português observam-se alguns dos indícios do que se pode encontrar no dia a dia:

―hummm... eu acho ele (livro) bom... é bom... O que eu gosto mais é história em
quadrinho é melhor, eu num gosto muito dos textos não... eles é muito grande. Ahh...
tem algumas perguntas que eu acho difícil.‖ (C, 14 anos)

O aluno C reconhece o valor do livro didático de português, ainda que titubeante,


afirma que ele é bom, por outro lado revela também suas preferências: gosta de História em
Quadrinhos por serem menores, em seguida diz não gostar de textos grandes.
A relação texto grande ser difícil e texto curto ser fácil nem sempre é real, contudo,
dependendo da forma como são abordados podem ser mais ou menos complexos para alunos
em fase de desenvolvimento e construção da competência leitora.

1.1 Metodologia
A partir de situações como apresentadas por C, ou seja, a partir do que os alunos
declaram sobre o LD e sobre suas dificuldades, o que se pretendeu, em fase preliminar de um
3

projeto de pesquisa, é discutir a perspectiva de leitura de um livro didático de língua materna


para o ensino fundamental e as possibilidades de mediação para uma aula de leitura, em uma
unidade no eixo específico. Procurou-se confrontar o que o livro declara fazer com o que
realmente faz nas propostas. Essa análise é pertinente porque encaminha para outra fase em
que será apontada a compreensão do aluno nas atividades do LD.
São apresentados alguns conceitos pertinentes às análises, em seguida a perspectiva
de uma coleção adotada num município do interior de Minas Gerais e por fim parte de uma
atividade de leitura desenvolvida em uma escola numa turma de sexto ano do ensino
fundamental. Na análise proposta, apontam-se os objetivos declarados pela obra
confrontando-os com o que é feito nas atividades a fim de verificar se os mesmos se realizam.
Finaliza-se com uma pequena reflexão sobre a aula de leitura na prática e suas possibilidades.

2 ALGUNS CONCEITOS
Ao se pensar na dinâmica que envolve sala de aula, é necessário pensar que toda e
qualquer opção metodológica de ensino articula uma visão política, uma visão teórica que se
refletem nas estratégias de sala de aula; envolve uma teoria de compreensão e interpretação de
uma realidade.
Dessa maneira, os conteúdos ministrados, bem como os enfoques, as metodologias, a
bibliografia utilizada, as formas de avaliação, o relacionamento com aluno corresponderão às
opções feitas e se refletirão nas atividades práticas.
Pensando nisso, observa-se que, no caso do ensino, especialmente o de língua
portuguesa, responder a questões como: ―como ensinamos?‖ e ―para quê ensinamos?‖, ajuda a
compreender melhor o processo e as concepções de linguagem possíveis.
A perspectiva atual do sociointeracionismo discursivo, subjacente a documentos e
diretrizes nacionais pode permear as práticas de ensino ou não. O que se justifica pelo
conhecimento ou desconhecimento das teorias de linguagem por parte dos profissionais que
atuam nas salas de aula.
O ser humano é constituído pela linguagem e tem necessidade de se comunicar, num
processo contínuo de interação. Na perspectiva de Bakhtin (1986, 1997), concebe-se que todo
enunciado é dialógico. Dessa forma, o dialogismo é o modo de funcionamento real da
linguagem, é o princípio constitutivo do enunciado. A interação é marca da comunicação
humana, pois todo enunciado constitui-se a partir de outro, é uma réplica a outro enunciado.
Neste trabalho, a linguagem é considerada como atividade de interação e, a leitura,
como processo cognitivo, social e cultural de produção de sentido. Como referencial teórico,
4

são usados pressupostos apresentados por autores como Bakhtin (1997); Bronckart (1999);
Marcuschi (2000, 2002); Cafiero (2002); Coscarelli (2002, 2006); Kleiman (1997), Soares
(2002) entre outros.
Ao longo dos anos e do desenvolvimento de teorias de linguagem (cf. GERALDI,
1985; POSSENTI, 2001; KOCH, 2003, 2006; COSTA VAL, 2004), destacam-se três
perspectivas de linguagem que influenciam ou direcionam concepções e formas de ensino de
leitura. Os autores evidenciam que inicialmente a linguagem foi considerada a expressão do
pensamento: essa concepção subjaz, basicamente, os estudos tradicionais. Ao se identificar a
linguagem como tal, possivelmente seriam ouvidas afirmações de que quem não consegue se
expressar não pensa.
Em outra linha, a linguagem foi considerada instrumento de comunicação. Essa
abordagem vincula-se à teoria da comunicação e concebe a língua como código (conjunto de
signos que se combinam segundo regras) capaz de transmitir ao receptor certa mensagem. Em
alguns livros didáticos, essa é uma concepção observada nas instruções ao professor, nas
introduções, nos títulos, embora em geral seja abandonada nos exercícios gramaticais.
Em uma terceira concepção, a linguagem é considerada uma forma de interação:
mais do que possibilitar uma transmissão de informações de um emissor a um receptor, a
linguagem é vista como um lugar de interação humana, ou seja, por meio dela o sujeito que
fala, pratica ações que não conseguiria praticar a não ser falando; com ela, o falante age sobre
o ouvinte, constituindo compromissos e vínculos que não pré-existiam antes da fala.
Paralelamente ao desenvolvimento das concepções de linguagem, desenvolveram-se
também algumas linhas teóricas sobre a leitura. Estudos apontaram que desde século XIX até
os dias de hoje, a leitura também passou por três momentos. Assim, num primeiro tempo,
enquanto a linguagem era expressão do pensamento, o foco da leitura coube ao autor; o texto
seria exatamente o que o autor queria dizer. Na segunda abordagem, quando a linguagem foi
considerada instrumento de comunicação (código), na leitura, o foco esteve sobre o texto,
considerado responsável e detentor do seu sentido. Num terceiro momento, quando a
linguagem foi vista como forma de interação, o papel do leitor expande-se e ele se torna o
produtor de sentido para o texto, um colaborador que interage com o autor por meio do texto.
Além da mudança de perspectiva houve também um avanço conceitual do termo
leitura. Gough (1972) que se detém ao aspecto mecânico da leitura a considera uma
decodificação serial de um texto dado (reconhecimento de letras, sílabas, palavras e
sentenças). Posteriormente, Goodman (1973) define leitura como um jogo psicolinguístico de
adivinhações. Para o autor, o leitor ao interagir com o texto, capta-o por meio de predições e
5

previsões. O modelo de processamento interativo de leitura é defendido por Smith (1978),


para ele a leitura ocorre com o uso de dois tipos de estratégias, ascendente (bottom-up) e
descendente (top-down).
Outros aspectos sociais e de experiência do indivíduo interferem diretamente na
produção de sentido em leitura e hoje em dia precisam ser considerados. Esses se relacionam
à terceira concepção de linguagem como interação. Lopes-Rossi (2005) propõe a associação
de vários aspectos de modelos cognitivistas e discursivos de leitura. A autora ressalta que há
uma série de competências imprescindíveis na realização da leitura. O que relembra o
pensamento de Paulo Freire (1988), para quem ―[...] a leitura do mundo precede a leitura da
palavra‖. Nessa linha, os conhecimentos prévios do leitor e suas vivências colaboram
significativamente para a produção de sentido, para interpretação de um texto.
Houve um avanço conceitual em relação ao processo da leitura, ao longo dos anos, o
sujeito deixou de ser passivo, mero receptor, e passou a agente, a interlocutor. Essa
abordagem está de acordo com o que propõem os documentos oficiais e com a perspectiva
mais atual de abordagem da linguagem. A percepção da linguagem/língua como um processo
dinâmico socialmente estabelecido e da leitura como processo de construção ativa de sentido
evidenciam os sujeitos envolvidos na comunicação. Seres ativos e não mais passivos, sujeitos
históricos que agem e expressam, marcam seu lugar na história.

2.2 O livro didático de Língua Portuguesa segundo o PNLD


Desde que foi instituído, o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) tem
contado com a discussão e a análise de vários especialistas, de diversas áreas. O programa foi
planejado e executado pelo Ministério da Educação (MEC) com o objetivo imediato de prover
a escola pública de ensino fundamental de livros didáticos, de qualidade, capazes de subsidiar
o ensino e a aprendizagem de diferentes disciplinas. Na área de Língua Portuguesa, o Centro
de Alfabetização, Leitura e Escrita da Universidade Federal de Minas Gerais
(CEALE/UFMG) tem sido a instituição responsável por assessorar a organização e,
particularmente, a execução de todo o processo avaliatório (RANGEL, 2006).
As principais finalidades, hoje, do PNLD são a avaliação, aquisição e distribuição
universal e gratuita de livros didáticos para o ensino público brasileiro (BATISTA e COSTA
VAL, 2004, p.10)
O PNLD/2011 destaca algumas orientações para o ensino-aprendizagem de língua
portuguesa no segundo segmento do novo ensino fundamental (passa a se constituir de nove
anos em vez de oito). Seguindo as orientações expressas pelas diretrizes e parâmetros
6

curriculares oficiais, o programa apresentou uma avaliação das coleções de livros didáticos
nela é considerado que o ensino de Língua Portuguesa, nos quatro últimos anos do novo EF,
deve se organizar de forma a garantir ao aluno:

―1. o desenvolvimento da linguagem oral e a apropriação e o desenvolvimento da


linguagem escrita, especialmente no que diz respeito a demandas oriundas seja de
situações e instâncias públicas e formais de uso da língua, seja do próprio processo
de ensino-aprendizagem escolar;
2. o pleno acesso ao mundo da escrita; e, portanto,
. a proficiência em leitura e escrita, no que diz respeito a gêneros discursivos e
tipos de texto representativos das principais funções da escrita em diferentes esferas
de atividade social;
. a fruição estética e a apreciação crítica da produção literária associada à
língua portuguesa, em especial a da literatura brasileira;
.o desenvolvimento de atitudes, competências e habilidades envolvidas na
compreensão da variação linguística e no convívio democrático com a diversidade
dialetal, de forma a evitar o preconceito e valorizar as diferentes possibilidades de
expressão linguística;
. o domínio das normas urbanas de prestígio, especialmente em sua modalidade
escrita, mas também nas situações orais públicas em que seu uso é socialmente
requerido;
. a práticas de análise e reflexão sobre a língua, na medida em que se revelarem
pertinentes, seja para a (re)construção dos sentidos de textos, seja para a
compreensão do funcionamento da língua e da linguagem.‖ (MEC - GUIA DO
PNLD/2011, p. 20)

Segundo as orientações do Guia do PNLD, as práticas de uso da linguagem devem


ser privilegiadas nas propostas dos livros didáticos. Por outro lado, as práticas de reflexão
sobre a língua e a linguagem e a descrição gramatical devem se exercer sobre os textos e
discursos, à medida que forem necessárias e significativas para a produção dos sentidos dos
textos.
Há, para o trabalho específico com o texto (na leitura, produção e elaboração de
conhecimentos linguísticos), a afirmação da necessidade fundamental de se diversificarem as
estratégias, assim como a máxima amplitude em relação aos vários aspectos envolvidos.
Em relação à leitura, objeto desta pesquisa, o PNLD destaca que as atividades de
exploração do texto devem ter como objetivo a formação do leitor e o desenvolvimento da
proficiência em leitura. Para isso, o esperado é que as atividades sejam capazes de:

―- Encararem a leitura como uma situação de interlocução leitor/autor/ texto


socialmente contextualizada;
- respeitarem as convenções e os modos de ler próprios dos diferentes gêneros, tanto
literários quanto não literários;
- desenvolverem estratégias e capacidades de leitura, tanto as relacionadas aos
gêneros propostos, quanto às inerentes ao nível de proficiência que se pretende levar
o aluno a atingir.‖ (MEC - GUIA DO PNLD/2011, p. 22)
7

Observa-se que a linha teórica apresentada no Guia de livros didáticos está respaldada pelos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN, 1998), como também está em consonância com a
teoria de leitura que a considera como um processo interativo de produção de sentido.

2.3 O que diz uma coleção


Em um município do interior mineiro foi adotada a coleção ―Para Viver Juntos –
Português‖, aprovada no Programa Nacional de Livros Didáticos (PNLD) 2011.
A coleção, no manual do professor, declara que a leitura é encarada como um
processo de significação sendo para isso imprescindível a participação dos interlocutores.
Ressalta que é um processo ao mesmo tempo individual, único e interpessoal. Faz uma
citação de Garcez (2000) que considera a condição ímpar do dialogismo envolvido no
processo estabelecido entre leitor e texto nas tarefas de decifrar, interpretar, refletir e reavaliar
conceitos a cada leitura.
Ainda de acordo com a fundamentação teórico-metodológica da coleção, o processo
de construção de sentido não é automático, mas exige a mobilização de uma série de
habilidades desde a decodificação à correlação de informações, dedução e inferência. Há a
mobilização de uma série de conhecimentos que devem ser, na aula de leitura, trabalhados
pelo professor de forma a garantir que os alunos deles se apropriem.
A coleção busca ainda, desenvolver capacidades como: compreender globalmente o
texto; identificar características dos gêneros textuais abordados; reconhecer semelhanças e
diferenças entre gêneros textuais; reconhecer estratégias discursivas envolvidas na produção
de efeitos de sentido, etc.

2.4 Uma proposta de leitura de um capítulo do 6° ano


Nesta seção, apresenta-se uma atividade de leitura, eixo que interessa a este trabalho,
observada numa turma de sexto ano. A proposta era o estudo de história em quadrinho (fig.1),
parte do capítulo 3, volume 6.

O manual do professor apresenta os seguintes objetivos para o capítulo:


- conhecer as características do gênero história em quadrinhos
- analisar os recursos linguísticos e visuais pertinentes ao gênero
- aprimorar as estratégias de leitura verbal e não verbal em histórias em quadrinhos
(Para Viver Juntos – Português - Manual do professor, p. 25)
No livro do aluno aparecem o texto e atividades a seguir
8

Figura 1 – Texto da seção de Leitura do Livro Didático

O texto previsto para o capítulo três é uma história em quadrinho, antes da leitura 1,
há uma introdução em que são apresentados os elementos da HQ. Na página destacada
anteriormente observa-se a apresentação do autor e da obra da qual o texto foi extraído.
Nas páginas seguintes são relacionadas questões de interpretação na seção ―Para
entender o texto‖. Para este texto, são propostas sete questões (fig.2) que buscam trabalhar o
sentido.
9

Figura 2 – Atividades de leitura do LD

É possível observar que as questões propostas na seção destinada à interpretação


textual buscam trabalhar ou desenvolver as seguintes competências e/ou habilidades:
1. Localizar informações explícitas no texto.
10

2. Reescrever texto em forma de diálogo.


3. a) descrever fisicamente o personagem a partir da observação da imagem na HQ
b) descrever o personagem a partir de características comportamental e atitudinal,
observadas nos quadrinhos
4. a) apontar objetos usados para caracterizar personagem
b) identificar a parte do corpo visível no desenho do personagem
c) perceber o efeito da caricatura na personagem
Todas as questões deste número são baseadas na leitura de imagem e basicamente
são de localização de informação.
5. Identificar os sentimentos baseado na leitura de expressões faciais.
Observa-se que foram inseridas novas imagens, não mais o texto base.
6. a) identificar pela observação do quadrinho o recurso usado para representar o personagem
não desenhado
b) localizar um quadrinho sem presença de personagens
c) identificar o uso de recurso gráfico e onomatopeia para representar uma ação
Nas questões propostas no número 6, novamente são necessárias a leitura atenta de
imagem e localização de informação.
7. Localizar informação.
Ao confrontar os objetivos declarados pelo livro com o que é proposto nas atividades
nota-se que as atividades cumprem parcialmente o que o LD objetiva fazer. Assim, verifica-se
que pela ênfase maior dedicada à exploração do não verbal, as características da HQ são
exploradas. Contudo, não se observaram atividades que explorassem a relação texto/ imagem.
Outro ponto a ser destacado é que o objetivo de aprimorar as estratégias de leitura verbal e
não verbal não é suficientemente claro, pois não são explícitas quais estratégias de leitura são
priorizadas nas atividades.
Apesar de declarar nos pressupostos teóricos que a linguagem é uma atividade de
interação e que a leitura é um processo de produção de sentido. No capítulo e seção de leitura
analisados, observa-se que ao priorizar as atividades que buscam a localização de
informações, a concepção de língua implícita é a que a entende a linguagem como código.
Para responder às questões de localização de informações, a concepção de leitura subjacente é
aquela que a define como decodificação. Essas concepções não privilegiam a reflexão nem a
atividade interativa.
11

É possível dizer que em outros momentos o livro e a coleção trabalhem de forma


distinta a leitura, mas na atividade observada na sala de aula e analisada neste trabalho ainda
foram encontradas as perspectivas mais codificadora e decodificadora.

3 A AULA DE LEITURA
A aula observada ocorreu de maneira rotineira: a professora fez a introdução do
tema, relembrou algumas características do gênero. Em seguida pediu alunos voluntários para
fazer a leitura oral do texto de introdução e outros para ler os quadrinhos.
Na primeira parte, um aluno lia um parágrafo de forma que quatro alunos leram a
introdução. Para a leitura da história em quadrinhos, cada quadro era lido por um aluno
diferente.
Observa-se que não houve uma leitura silenciosa ou preparatória para esse momento.
Depois de terminar a leitura oral os alunos foram orientados a responder às questões de 1 a 4
da página 87. Neste ponto, é que as dúvidas surgiram. Muitos não conseguiram entender o
que era proposto e em muitos momentos foi possível ouvir ―professora, o que é para fazer?‖;
―professora, o que é para fazer no número 2?‖; ―professora o que é fisionomia?‖; ― como
assim, o que quer dizer nessa letra b do exercício 3, como caracterizar o comportamento?‖
Foram muitas abordagens e os alunos foram incisivos em suas perguntas.
Diante de situações vistas é necessário que sejam repensadas as práticas de sala de
aula também. Na perspectiva de Vygotsky (1986, 1991), a escola e o professor desempenham
papel de excelência na mediação do conhecimento, em fazer com que o aprendiz avance no
conhecimento. Para ele, a construção do conhecimento se dá como uma interação mediada por
várias relações. Ou seja, o conhecimento não está sendo visto como uma ação do sujeito sobre
a realidade, assim como no construtivismo e, sim, pela mediação feita por outros sujeitos.
É notório que quanto mais o profissional souber sobre a mediação, a linguagem, a
leitura, sobre a prática social que as envolvem e compreendê-las como processo interativo,
decisões mais acertadas poderão ser tomadas no dia a dia. Se o professor puder aliar teoria e
prática, mais eficaz será sua intervenção.
As inúmeras aulas de didática e de metodologia de ensino do português dos cursos de
magistério são relembradas quando ensinavam que o professor deveria estimular seu aluno,
fazê-lo se surpreender e se encantar pelo texto, pela leitura. Às vezes, isso podia ser feito com
uma simples introdução, com uma pergunta, ou com uma pequena história. Repensar antigas
práticas, renová-las e aproveitar o que funciona, bem como pesquisar novas e incorporá-las ao
12

dia a dia é parte do processo de reavaliação da prática docente como de qualquer outra
profissão.
O início desta pesquisa e as primeiras observações puderam comprovar a enorme
necessidade de intervenções que possuem os estudantes. Até que ponto isso acontece será
assunto para um trabalho posterior. Fica evidente também a necessidade de o livro didático
apresentar propostas e concepções teórico-metodológicas que estejam em consonância, além
disso, destacam-se o papel do professor, do seu protagonismo e criatividade, bem como da
escola, na mediação e na construção do conhecimento junto com os aprendizes. É possível
acreditar no desenvolvimento pleno e eficaz da proficiência e da competência leitora dos
sujeitos que hoje encontramos no espaço escolar. É possível pensar no desenvolvimento da
linguagem em padrões desejáveis e para além deles. Esforços múltiplos, contudo, são
necessários. Teoria e prática devem e podem concorrer no mesmo território.

4 REFERÊNCIAS

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13

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SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO E DE PRODUTIVIDADE DO SUFIXO


NOMINATIVO [-RANA]

Felício Wessling Margotti (PPGLg/UFSC)1


Orlando Azevedo (PPGLg/UFAM/UFSC)2

RESUMO

Este trabalho visa a descrever as ocorrências do sufixo nominativo [-rana] de origem tupi na
formação de palavras em português. Os dados, que serviram de análise, foram retirados de um
questionário semântico-lexical aplicado em oito localidades da região Amazônica, conforme
princípios e método da geolinguística pluridimensional. Concluímos que o sufixo [-rana]
seleciona apenas bases substantivas com referentes da flora e da fauna regional. Além disso,
constatamos que nem todas as palavras do corpus analisado são registradas nos dicionários.
Todavia, não foi possível afirmamos que tal sufixo ainda seja produtivo em português, mesmo
que as palavras ainda não registradas nos dicionários sejam comuns no repertório linguístico
dos pescadores e moradores de rios e lagos amazônicos, onde tais variantes lexicais tenham
sobrevivido em línguas ágrafas e emprestadas ao português falado na região.

Palavras-chave
Morfologia. Derivação sufixal. Sufixo [-rana].

ABSTRACT

This paper discusses the occurrences of the suffix [-rana] of Tupi in the formation of words in
Portuguese. The data, which were used for analysis, were withdrawn from the lexical-
semantic questionnaire applied in eight localities in the Amazon region. We concluded that
the suffix [-rana] selects only substantive grounds in relating to the regional flora and fauna.
However, we noted that some words analyzed in corpus, they are not in dictionaries. Even so,
we could not affirm that this suffix is still productive, because the words that were not found
in dictionaries are common in the linguistic repertoire of fishermen and residents of the
Amazonian rivers and lakes, where such occurrences have survived a long time.

Keywords:
Derivation suffix. Suffix [-rana].

1 INTRODUÇÃO
Este trabalho surgiu a partir da motivação que tivemos ao constatarmos as
ocorrências, no português amazônico, de vocábulos formados com o sufixo de origem
indígena [-rana] (cuja pronúncia é nasalizada: “rana”, e é transcrito foneticamente como
[n]) constantes nas respostas de um questionário semântico-lexical aplicado nas
comunidades e cidades localizadas na região do médio Solimões/AM (respectivamente,
Saubinha, Ariri, Itapéua e as cidades Coari e Codajás) e em duas localidades da região do

1
Professor de Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina; e-mail: wfelicio@cce.ufsc.br.
2
Doutorando em Linguística pela Universidade Federal de Santa Catarina; e-mail: orlandoazevedo@ymail.com.
2

baixo Amazonas/PA (Igarapé do Juruti-Velho e Vila do Juruti-Velho). Os dados do QSL


(questionário semântico-lexical), elaborado e aplicado de acordo com princípios e método da
geolinguística pluridimensonal, fazem parte de uma Tese em fase de desenvolvimento que
trata da variação lexical nesses pontos da região amazônica.
Nosso propósito foi tanto descobrir se as formações de palavras com o sufixo [-rana]
se encontravam dicionarizadas, quanto descrever as bases que esse sufixo seleciona. Após
termos comparado os dados entre as variantes do português falado amazônico com o
português escrito constante nos dicionários Aurélio e Houaiss foi possível aplicarmos,
segundo a morfologia gerativa, a regra geral de formação de palavra (RFP) para o sufixo [-
rana], que ocorreu 32 vezes incluindo as formas alternantes em todo corpus mínimo
encontrado no QSL. Tanto as formações com o sufixo [-rana] constatadas no português falado
nos 08 pontos de inquérito, quanto a gama de vocábulos registrados nos dicionários com esse
mesmo sufixo, enquadram-se no processo de formação de palavras por derivação, com vistas
à criação de neologismos relacionados à fauna e à flora regional amazônica.

2 A FORMAÇÃO DE PALAVRAS POR SUFIXAÇÃO


A sufixação e a prefixação correspondem aos processos de formação de palavras em
português por derivação, nos quais são observados os parâmetros estabelecidos na língua
portuguesa a partir da combinação entre palavras e afixos já existentes no idioma. Na
perspectiva da morfologia gerativa, o falante, mesmo sendo iletrado, conhece as regras de
formação de palavras, e, por isso, será capaz de criar novas palavras na língua a partir dos
recursos linguísticos previstos pela gramática da língua. Tal mecanismo, a título de ilustração,
é muito usado pelas crianças como representado neste diálogo entre a mãe e a criança:

“– Filha, tá quente o chá! – Então, diquenta!”

Consideramos que as bases mais comuns a que os sufixos, via de regra, se fixam são
substantivos, adjetivos e verbos (BASÍLIO, 2009, p.34), sendo que a maioria dos processos de
formação de palavras por sufixação muda a classe gramatical da palavra primitiva, e a
produtividade de cada sufixo tem a ver unicamente com o tipo de base (s), que seleciona
como, por exemplo, o sufixo X–vel forma adjetivos com verbos transitivos diretos: amar + -
vel = amável, estimar + -vel = estimável, louvar + -vel = louvável, e rejeita outras bases como
o substantivo homem + -vel = *homemvel e o adjetivo beleza + -vel = *belezável. Se
tivermos a estrutura morfológica de um verbo em X-izar, o sufixo correspondente a forma
3

nominalizada será [-ção]; por outro lado se for X-ecer, o sufixo atuante na formação da nova
palavra será [-mento] (BASÍLIO, 2009, p. 27). Além disso, conforme o contexto de uso, o
falante pode priorizar a formação de palavras a partir da escolha das bases e de sufixos
existentes na língua. Logo, as condições de produção de cada sufixo tem a ver com o contexto
em que é empregado, ou seja, com o ambiente discursivo ou cultural que envolve o usuário da
língua (BASÍLIO, 1993). Por exemplo, tomemos as realizações do vocábulo “não” na
linguagem informal e na linguagem formal, respectivamente: na linguagem falada informal, o
usuário faz as realizações do “não” como “não”, “ não é”, “né” e “nu” com função adverbial
ou como partícula enfática para realçar a negação ou pedir confirmação do interlocutor como
em “-Ele foi pra festa? -Nu foi não, né!”; já na linguagem formal falada ou escrita, com o
mesmo vocábulo “não”, teremos construções tipo “não-lucrativo”, “não-didático”, “não-
jurídico”, “não-escrito” (ALVES, 2006), nas quais o “não” tem a função de servir como
prefixo negativo ao selecionar bases adjetivas e formas participiais com função adjetiva.
Portanto, os sufixos não selecionam qualquer base, podem mudar ou não a classe gramatical
da palavra derivada e são mais produtivos em determinados ambientes discursivos ou
culturais, onde há necessidade de nomeação de novos referentes. Baseado nisso, passamos a
analisar as particularidades do sufixo [-rana], que contribuiu acentuadamente na formação de
novas palavras no português do Brasil, na Amazônia.

3 FORMAÇÃO DE PALAVRAS COM O SUFIXO [-RANA]


O sufixo [-rana], documentado no século XVI (HOUAISS, 2009), se fixava
unicamente a bases tupi, as quais atribuía uma característica qualitativa. Devido à facilidade
que tal sufixo possui de selecionar palavras pertencentes à classe dos substantivos, o sufixo [-
rana] possibilitou, assim, uma espécie de contaminação linguística de bases substantivas ao se
misturar com raízes de outras línguas como no caso as da língua portuguesa, que notoriamente
recebeu uma contribuição enorme de lexias provenientes de línguas indígenas, dentre elas as
pertencentes às famílias do tronco tupi. Consideramos a natureza do morfe [-rana] ser sufixal,
por desempenhar a função de sufixo ao se adjuntar na parte final do vocábulo e por ter
contribuído para a formação de muitas palavras novas incorporadas ao léxico do português do
Brasil. No corpus mínimo analisado, as ocorrências do sufixo [-rana] correspondem a
vocábulos cujos referentes estão presentes na região amazônica. Tais vocábulos, identificados
através de um questionário semântico-lexical constituem um rol apenas exemplificativo, e no
processo de sufixação obedeceram ao princípio da economia linguística, pois partiram de
4

bases substantivas de vários níveis semânticos. A maioria dos vocábulos formados com o
sufixo [-rana] é muito conhecida nas variedades do português amazônico como:

Tabela 1 Palavras formadas com o sufixo [-rana]

No. Base Sufixo Sufixação Variações Etimologia3


encontradas
01 abacaxi [-rana] abacaxirana --------------------------- Tupi = iuaka’ti
02 abacate [-rana] abacaterana baquitirana, Náuatle4= aua’katl5
bacatirana
03 abio [-rana] abiorana abiurana, biorana Tupi= a’uiu
04 cabaça [-rana] cabaçurana --------------------------- Provavelmente de
origem pré-romana
05 caju [-rana] cajurana --------------------------- Tupi= aka’iu
06 cana [-rana] canarana --------------------------- Latim= canna,
derivada do grego
kánna
07 feijão [-rana] feijãorana fejurana Latim=faseolus –i
08 jacaré [-rana] jacarerana --------------------------- Tupi=iaka’re
09 jatuarana [-rana] jatuarana jutuarana Tupi=iatu6
10 limão [-rana] limãorana limorana Persa7= limu ou laimon
11 marirana [-rana] marirana --------------------------- Tupi= umarí ou
umarííua
12 melancia [-rana] melanciarana --------------------------- De origem incerta
13 piquiá [-rana] piquiarana --------------------------- Tupi= pequi’a
14 o [-rana] orana --------------------------- Ocorre prótese de “o”
no sufixo [-rana]
15 pupunha [-rana] pupunharana --------------------------- De étimo
indeterminado
16 oei [-rana] oerana --------------------------- Provavelmente de
origem tupi.
17 saboeira [-rana] saboarana saborana Provavelmente de
origem Tupi
18 seringa [-rana] seringarana siringarana Latim= syringa,
derivada do grego
syrigx-iggos
19 tabacu [-rana] tabacurana --------------------------- De base desconhecida
20 tupinambá [-rana] tupinambarana --------------------------- Tupi = tupinambá
21 uixi [-rana] uixirana xirana Provavelmente de
origem tupi
22 urucu [-rana] urucurana --------------------------- Tupi = uru’ku

Fonte: Dados obtidos por Orlando Azevedo, por meio de entrevistas.

3
A etimologia das palavras foi baseada nas definições dos dicionários constantes na referência deste trabalho.
Quanto à forma primitiva da palavra, foi retirada do dicionário Etimológico da Língua Portuguesa.
4
Língua indígena extinta, que era falada pelos astecas e pertencente à família linguística auto-asteca da América
Central e do México Central e Meridional.
5
O termo aua’katl sofreu variação para aguacate em espanhol, que por sua vez se transformou em abacate em
português.
6
Etimologia dada pelo dicionário tupi-português/português-tupi constante na referência deste trabalho.
7
Definição dada pelo dicionário Aulete digital no endereço www.aulete.com.br, acessado em 12.06.2011.
5

Das palavras listadas acima, não foram encontradas nos dicionários de língua
portuguesa Houaiss e Aurélio “abacaxirana, cabaçurana, feijãorana, melanciarana,
piquiarana, orana, uixirana e as variantes bacatiriana e baquitirana (variantes de
abacaterana), oerana (variante de oeirana), saborana (variante de saboarana), siringarana
(variante de seringarana), tabacurana (variante de tabacarana, mas com referentes
divergentes), xirana (variante de uixirana), limorana (variante de limãorana), jutuarana
(variante de jatuarana) e fejurana (variante de feijãorana).
O conteúdo semântico de [-rana] nas formações acima é “semelhante a”, “ igual a”.
Dessa forma, temos: abacaxirana é igual ou semelhante ao abacaxi, abacaterana é igual ou
semelhante ao abacate, abiurana é igual ou semelhante ao abiu, cabaçurana é igual ou
semelhante à cabaça, cajurana é igual ou semelhante ao caju, canarana é igual ou semelhante
à cana, feijãorana é igual ou semelhante ao feijão, jacarerana é igual ou semelhante ao
jacaré, limãorana é igual ou semelhante ao limão, marirana é igual ou semelhante ao mari
(fruta oval comestível na região do médio Solimões), melanciarana é igual ou semelhante à
melancia, piquiarana é igual ou semelhante ao pequiá, pupunhara é igual ou semelhante à
pupunha, siringarana, igual ao semelhante à seringa, tupinambarana8 é igual ou semelhante
ao tupinambá, uixirana é igual ou semelhante ao uixi (fruta comestível em toda região
Amazônica) e urucurana é igual ou semelhante ao urucu. Alguns vocábulos, que não são tão
comuns, merecem atenção especial como oerana, que é forma variante de oeirana de base
“oei” definida da seguinte forma pelo Hoaiss (2009):

substantivo feminino
Rubrica: angiospermas.
1arbusto (Alchornea castanaefolia) da fam. das euforbiáceas, nativo do Brasil (AM,
BA a MT), de folhas coriáceas, serruladas, espinescentes e peninérveas, flores
inconspícuas, em espigas pêndulas e unissexuais, e cápsulas pilosas; uirana
2Regionalismo: Amazonas.
m.q9. 1salgueiro (Salix chilensis)

Na definição da variante oerana feita por uma informante do baixo Amazonas existe
a referência a uma árvore com folhas chatas, que cresce às margens do rio Amazonas, e vai ao
encontro da definição dada pelo dicionário acima. Por sua vez, o vocábulo saboarana foi
classificado como “substantivo feminino, rubrica: angiospermas. Regionalismo: Amazonas.

8
Tupinambarana é o nome da ilha onde está situada a cidade de Parintins no Amazonas, portal de entrada para
o Estado.
9
m. q significa “mesmo que”.
6

m.q.10 saboeirana (HOUAISS, 2009), e na informação dada pelo falante da comunidade


Itapéua em resposta ao QSL 152, temos a seguinte descrição:

– Rapaz, tem. Tem a invira. Tambaqui come siringa, o matrinxã come a invira,
éé... – Essa invira é tipo uma invira mermo? – é uma árvore de pau, que dá invira e
dá essas fruta idêntica essa óh! Prêtinha. Aí tem...tem a cajurana também, que o
tambaqui come. Tem a saboarana, que o tambaqui come também [...] – Aqui só no
logo, a saboarana dá uma fruta assim óh! e a cajura, ela dá agora(...) nessa época
[...] saboarana, ela cai tchuum! ela bem azeda! azeda! azeda! Deusu livre! [...]
Essa, essa, os cara falaru que ela serve de suco.

Em outra resposta, desta vez de uma informante da comunidade Ariri, são


acrescentadas outras características à fruta saboarana:

– Tem oo...tem a sabôrãna. -Cumu é a sabôrana? –A sabôrãna, ela é uma


castanha, ela é desse tamanho, dessa grussura. Aí quando ela tá madura, ela
parte, cai n'água e o tambaqui come. – E a ente come também? – Não!
Come, não! é amargo, só o pexe que come.

Quanto ao vocábulo tabacurana, que não foi registrado em nenhum dicionário, tem
uma forte saliência com tabacarana, que o Houais (2009) classifica como sendo,
primeiramente, um substantivo feminino de rubrica angiosperma, mesmo que “fumo-bravo-
do-amazonas (Polygonum hispidum) e; em segundo lugar, como sendo um regionalismo:
Minas Gerais, o mesmo que quitoco (Pluchea quitoc). Mas na definição de um dos
informantes, tabacurana é uma fruta apreciada pelos peixes dos igapós.
O dicionário Tupi-português/português-tupi (MELLO, 2003) define o sufixo [-rana]
como “falso”, ou seja, para que haja o emprego do sufixo [-rana], deve haver um referente
original, por exemplo, existe primeira a “cana” da qual é feito o açúcar e a cachaça, depois
surge novo vocábulo como “canarana”, que pode ser traduzido como “igual a cana”,
“semelhante à cana” ou “falsa cana”, que é um tipo de capim com picos muito comum na
beira dos rios e lagos amazônicos, servindo como pastagem para o gado bovino.
As alternantes “feijãorana” e “fejuarana” são respectivamente de dois referentes: o
primeiro é explicado pelo informante do baixo Amazonas/PA como sendo um feijão do mato
parecido com o feijão verdadeiro, e o segundo é falado pelo informante do médio Solimões
como “um mato que cresce nos campo, é um cipó bravo”.
O vocábulo “siringarana” (variação de seringarana dada pelos informantes do
médio Solimões) “dá no mato bruto, tem leite igual a outra”. É uma espécie de seringa, que
serve de alimento, principalmente, para jatuarana.

10
Mesmo que.
7

Assim, acontece com as demais formações como: “melanciarana” sem registro em


obras lexicográficas e que foi caracterizada da seguinte forma pela informante da comunidade
Saubinha, no médio Solimões:

– Tem a siringa, né! Que o pexe come. – A siringa barriguda ô a siringaí? –Siringaí
e a siringa barriguda. Tem aa...essa, cumu é essa fruta aqui? -Pupunharana. -
Pupunhara, o marajá, tem o jóuari. [...] e tem a melanciarana, né! Que é uma que cai,
o pexe...o pexe gosta de cumê. -Cumu é essa melanciarana? -Ela é merque uma
melancia, só que ela é bem jitinha assim, só que ela vévi no igapó. [...]. (QSL152)

Mesmo que os dicionários etimológicos não consigam definir o étimo do vocábulo


“melancia”, a informante de 52 anos acima, representante da comunidade Saubinha, possui
assim como os demais habitantes dessa comunidade, parâmetros de formação de palavras em
português internalizados, por essa razão, foi possível a criação de uma palavra nova
“melanciarana” cujo referente é uma fruta do igapó parecida com a melancia, mas menor que
ela, sendo muito apreciada pelos peixes da região. Na formação “orana” (ver figura 01), que
não tem registro em nenhum dicionário da língua portuguesa, o sufixo [-rana] funciona como
verdadeira base, pois não há como saber se o “o” tem carga semântica, por essa razão
consideramos o “o” como um caso de inserção (prótese) no sufixo [-rana], que não tem seu
conteúdo esvaziado na formação da nova palavra, pois a lexia “orana” se refere a uma
variedade de peixe parecida com a catrapola, que é o mesmo charuto ou cubil nos diferentes
pontos em que o QSL (questionário semântico-lexical) foi aplicado na região Amazônica.
Logo, podemos dizer, de acordo com a variante diatópica, que “orana” é “igual uma catrapola,
“igual ao charuto”, “igual ao cubil” ou é uma “falsa catrapola”, “um falso cubil” e “um falso
charuto” se empregarmos o verdadeiro significado desse sufixo.

Figura 1 - Foto do peixe orana retirada do QSL


Fonte: Foto feita por Orlando Azevedo.
8

Diante das facilidades que o sufixo [-rana] tem em estabelecer uma relação
híbrida com a base que seleciona, temos formações como “abacaterana” (do Náuatle
aua’katl mais [-rana] do tupi), “cabaçurana” (do pré-romano cabaça mais [-rana] do tupi),
“canarana” ( do grego kánna mais [-rana] do tupi), “feijãorana” (do latim faseolus mais [-
rana] do tupi), “limãorana” (do persa limon ou laimon mais [-rana] do tupi). Essa tendência
de formações híbridas é encontrada nas palavras que estão dicionarizadas como é o caso de
“limãoranazinho” (diminutivo de limãorana), que obedece à hierarquia de formação com base
+ sufixo [-rana] + sufixo diminutivo (z)inho. Quanto ao domínio semântico das lexias
formadas com o sufixo [-rana] encontradas no português falado amazônico, temos a seguinte
distribuição:

Tabela 2 - Subclasses que o sufixo [-rana] seleciona

Fruta Peixe Réptil Árvore Toponímia


abacaxirana jatuarana jacarerana oerana tupinambarana
abacaterana orana ------------- --------- ------------------
abiorana ----------- ------------- --------- ------------------
cabaçurana ----------- ------------- --------- ------------------
cajurana ----------- ------------- --------- ------------------
canarana ----------- ------------- --------- ------------------
feijãorana ----------- ------------- --------- ------------------
limãorana ----------- ------------- --------- ------------------
marirana ----------- ------------- --------- ------------------
melanciarana ----------- ------------- --------- ------------------
piquiarana ----------- ------------- --------- ------------------
saboarana ----------- ------------- --------- ------------------
seringarana ----------- ------------- --------- ------------------
tabacurana ----------- ------------- --------- ------------------
uixirana ----------- ------------- --------- ------------------
urucurana ----------- ------------- --------- ------------------
Total 16 2 1 1 1

Fonte: Dados obtidos por Orlando Azevedo por meio de entrevistas.

A maioria dessas formações foi detectada no questionário semântico-lexical


de no. 152 (QSL152), que solicitava aos informantes para descreverem as frutas que os peixes
comem. Essa característica do sufixo [-rana] em selecionar bases substantivas pertencentes ao
domínio semântico de frutas foi também constatada nos dicionários Aurélio e Houaiss como:
abacaterana, abiorana, abiurana, acajurana, acapurana, ajurarana, algodãorana,
amendoeirana, aperana, araçarana, aricurana, arirana, arumarana, aurana, autuparana,
axuarana, batatarana, biorana, biribarana, brancarana, buritirana, caferana, cajarana,
cajurana, cambucarana, campinarana, canarana, canharana, canjarana, canjerana,
9

capoeirana, cariperana, cedrorana, coirana, cuirana, cujumarirana, cupuaçurana,


curcurana, diambarana, imburana, ingarana, jacarerana, jagoirana, jamburana, jarana,
jatuarana, jauarana, jaturana, jenipaparana, jitirana, landirana, laranajarana, limãorana,
liomãorana-da-várzea, limãoranazinho, maçarana, mandubirana, marrecarana, matarana,
marirana, mucurana, muçurana, muquirana, nhamburana, obarana, obaranaçu, obarana-
rato, oeirana, oirana, ourana, pacarana, pandarana, pupunhara, quiaborana, quinara,
quirana, saboarana, saboeirana, sapucairana, seringarana, Suçuarana, tabacarana,
tabarana, tapuirana, tatarana, taturana, taxirana, timborana, timburana, trapiarana,
tubarana, uacapurana, ucuquirana, ubarana ,uirana, umarirana, umburana, urarirana,
uricurana, urucuubarana, urucurana e urutaurana.
A gama de formações com o sufixo [-rana] acontece com regularidade na seleção de
bases substantivas com referentes da flora e da fauna. Com isso, foi possível estabelecermos
uma regra de formação de palavras: o sufixo [-rana], que se fixa unicamente a bases
substantivas:

RFP (regra de formação de palavra)


[X]a[X]a Y]b
[X]S[[X]S [-rana]]S
[abacaxi]S [[abacaxi]S [-rana]]S =[abacaxirana]substantivo
[melancia]S[[melancia]S [-rana]]S =[melanciarana]substantivo
[uixi]S[[uixi]S [-rana]]S =[uixirana]substantivo

Portanto, o sufixo [-rana] ao formar novos substantivos, se enquadra entre os sufixos


que formam novas palavras sem mudar a classe gramatical, e ao sabermos as peculiaridades
do de tal sufixo, novas palavras podem ser criadas como aquelas que não foram encontradas
nos grandes dicionários Houaiss e Aurélio. Vocábulos como [cupu]S [cupu]S [-rana]]S =
[cupurana], [urubu]S [urubu]S [-rana]]S = [uruburana] são palavras em potencial, que se
enquadram dentro da regra de formação de palavra com o sufixo [-rana].

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As formações de palavras com o sufixo [-rana] acontecem com bases substantivas
tanto no português falado amazônico quanto no português escrito, principalmente com
palavras que pertencem ao domínio semântico, sobretudo, de frutas e árvores. Como os dados
foram coletados por meio do QSL, que não teve o propósito de registrar todas as ocorrências
10

desse sufixo, e também devido à imensidão da região amazônica, cujo léxico é em grande
parte de origem indígena, há certamente uma gama maior de palavras a que esse sufixo se
junta. Porém, o corpus, apesar de ser limitado, mostra a tendência do sufixo [-rana] de
somente se fixar a bases substantivas constatado até entre as palavras que já estão registradas.
A maior parte das lexias com sufixo [-rana] encontradas nos dicionários é de referentes da
região amazônica. Com isso, o ambiente que envolve o homem amazônico favorece o
surgimento de léxicos que se referem a elementos da flora e da fauna regional. Entretanto, não
podemos dizer, por mais que não se tenha encontrado todas as palavras do Português falado
amazônico nos dicionários, que o sufixo [-rana] continua sendo requisitado na formação de
novas palavras, pois tais vocábulos que careceram de registro, já existem há décadas, uma vez
que são muito utilizados pelos pescadores e moradores durante as enchentes de rios e lagos
amazônicos.

5 REFERÊNCIAS

ALVES, Ieda Maria. Formações prefixais no português falado in: CASTILHO, Ataliba
Teixera de. (org.) Gramática do português falado. 3. ed. Campinas, SP: Editora da
UNICAMP, 2002.

BASÍLIO, Margarida. Formação e classes de palavras no português do Brasil. 2ª. ed., 2ª.
reimpressão. São Paulo: Contexto, 2009.

BASÍLIO, Margarida et al. Derivação, composição e flexão no português falado in:


CASTILHO (org.) Gramática do português falado. Vol. III. Campinas/SP: Editora da
Unicamp, FAPESP, 1993.

CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 4ª. ed. Rio de
Janeiro: Lexicon, 2010.

FERREIRA, Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 2ª. ed. Rio de
Janeiro: Nova fronteira, 1986.

HOUAISS, A et ai . Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva,


2009.

MELLO, Octaviano. Dicionário tupi-português/português-tupi. 2ª. ed. Manaus: EDUA,


2003.

DICIONÁRIO AULETE DIGITAL. Disponível em: www.aulete.com.br. Acessado em


12.06.2011.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

DEONTICIDADE DISCURSIVA NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Silvia Inês Coneglian Carrilho de Vasconcelos (DLLV/UFSC)1

RESUMO

A necessidade de construir o novo (BERMAN, 1999) tem sido considerada uma das bases da
produção do conhecimento e das relações de poder entre sujeitos (FOUCAULT, 1975). A
circulação do saber (o novo), via discurso(s), tem sido determinada pela mídia contemporânea
e pelos discursos oficiais direcionados a professores, os quais refletem e constituem o
imaginário social. A circulação dos discursos não ocorre de forma aleatória; obedece a regras
das „sociedades de discurso‟ (FOUCAULT, 1986). Os enunciados analisados circulam em
todas as mídias e nos documentos oficiais de Secretarias de Educação. Nesta comunicação
centramos nossa atenção num foco de significativa regularidade: os enunciados deônticos. O
caráter deôntico indica certa obrigatoriedade de ação, perceptível nas pistas linguístico-
discursivas e confere uma direção a ser seguida pelo leitor do texto. É típico de práticas
discursivas em que o locutor A (discursos oficiais) diz algo, a partir da assunção de uma
posição-sujeito de saber (pleno), a um interlocutor B (professor) que está posto em uma
posição-sujeito de não-saber e que, portanto, deve seguir determinações emanadas por quem
de direito. O procedimento metodológico pautou-se pela seleção de documentos direcionados
a professores em formação, pela busca de regularidades discursivas de caráter deôntico nesses
documentos e pela análise dessas regularidades. A explicitação de tais regularidades permite
um redirecionamento dos programas de formação continuada de professores.

Palavras-chave:
Deonticidade. Discurso. Identidade. Professores.

ABSTRACT

The need of building the new (BERMAN, 1999) is one of the bases for the production of
knowledge and power relationships among subjects (FOUCAULT, 1975). The spreading of
knowledge (novelty) through discourse has been determined by contemporary social media
and by official discourses, which represent and constitute the social imaginary stance,
addressed to teachers. The spreading of discourses does not happen at random but follow the
rules of „discourse societies‟ (FOUCAULT, 1986). Analyzed enunciations are broadcasted by
all the social media and by documents of the Education Department. Current essay deals with
highly regular focused deontic enunciations. The deontic characteristics forward a mandatory
activity which is perceivable in linguistic-discursive clues and confers a pathway to be
followed by the reader of the text. It is typical of discursive practices that locutor A (official
discourses) says something from the stance of a full knowledge subject-position to
interlocutor B (the teacher) who is conditioned in a subject-position of non-knowledge and
thus has to follow the determinations produced by the lawful constituted subjects.
Methodology is foregrounded on a selection of documents addressed to would-be teachers, on
the deontically discursive regularities in the documents and on the analysis of regularities.
The regularities‟ explicitness favors a re-addressing of programs within the teachers‟
continuous formation.

1
Professora de Língua Portuguesa; e-mail: silviaconeglian@terra.com.br.
2

Keywords:
Deonticity. Discourse. Identity. Teachers.

1 INTRODUÇÃO
Marshall Berman (1999) busca em sua obra “Tudo que é sólido desmancha no ar”
explorar as dimensões de sentido da modernidade. Percorrendo vários caminhos de leitura (de
Goethe, Marx, Baudelaire, Gogol, Dostoievski a Robert Moses) e buscando designar a
experiência vital da modernidade, aponta para a assunção do novo como uma das marcas da
modernidade. O novo, positivado, em todas as esferas da vida, vai se contrapondo ao velho,
ao tradicional. Ao se instaurar essa prática discursiva, o velho é tomado como ultrapassado,
portanto, negativado. Assim, uma nova ordem discursiva (FOUCAULT, 1999) vai se
formando e, para tanto, estratégias de exclusão ou de silenciamento de alguns discursos e de
afirmação de outros vão sendo acionadas.
A circulação do novo como um saber positivado, por meio de discurso(s), tem sido
determinada por diferentes vias. Dentre essas, a mídia contemporânea (VASCONCELOS,
2011) bem como os discursos oficiais direcionados a professores refletem e constituem o
imaginário social, afetam a construção de identidades de professores e de alunos e
determinam uma ordem discursiva tomada como inevitável no espaço em que se presentifica.
Em outras palavra, a circulação dos discursos não ocorre de forma aleatória; obedece a regras
das „sociedades de discurso‟ (FOUCAULT, 1999), instituindo o “verdadeiro de uma época”.
Discursos circulam e afetam os sujeitos, que, por seu turno, fazem circular discursos. E os
professores não estão imunes a isso. Se em pesquisas anteriores buscamos analisar o discurso
da mídia de revistas de entretenimento voltadas ao público feminino como uma prática social
que direciona a produção de enunciados, neste artigo, centramos nossa atenção na
significativa regularidade discursiva de caráter deôntico que trafega na massa discursiva
enunciada para e por professores.
Os enunciados que analisamos estão presentes, também, nas várias mídias e nos
documentos oficiais de instituições educacionais. Nosso objetivo aqui é evidenciar como os
enunciados com caráter deôntico encontram-se emaranhados aos fios dos discursos dirigidos
aos professores. Para tanto, primeiramente, delineamos o que entendemos, neste momento,
por discurso deôntico e sua deonticidade.
3

2 DEÔNTICO E DEONTICIDADE
O caráter deôntico indica uma certa obrigatoriedade de ação, apontada pelo enunciado
que traz certas marcas linguísticas, como veremos adiante. Esses enunciados deônticos
conferem uma direção a ser seguida pelo leitor do texto em que esse tipo de enunciado se
encontra. É típico de práticas discursivas em que o locutor A diz algo, a partir da assunção de
uma posição-sujeito de (suposto) saber (pleno), a um interlocutor B que está posto em uma
posição-sujeito de (suposto) não-saber e que, portanto, deve seguir determinações emanadas
por quem de direito (que tem o – suposto - saber). O interlocutor é, por consequência disso,
um eterno devedor, pois nele sempre algo falta, nele há a explicitação de uma lacuna.
Em outras palavras, o caráter deôntico impõe uma ordem de ação, que supõe uma certa
taxionomia avaliativa do dizer que se reflete no fazer. É uma ordem em duplo sentido:
ordenação como sequenciação e ordenação como obrigatoriedade. Em sequências linguísticas
como as que veremos adiante, os vocábulos “deve ser”, “tem de”, “tem que”, “é preciso”, “é
necessário”, “é bom”, entre outros, são produzidos pelo locutor A, que se assume como
autorizado a dizer “isso” ao locutor B. Esses enunciados, cujos conteúdos proposicionais têm
base nos conceitos de necessário, seguindo a tradição da lógica aristotélica, estabelecem o
valor de verdade.
Ao produzir um enunciado, o locutor aponta, mostra a sua atitude frente a ele. Os
enunciados construídos por “tem de” indicariam algo do tipo: “é necessário, porque é verdade,
portanto você, meu interlocutor, deve seguir, deve obedecer, deve acreditar no que digo”. A
regularidade desse tipo de sequência linguística, que caracteriza os enunciados como sendo
deônticos, permite-nos arriscar a indicação de um efeito de sentido (necessidade) que evita
uma contestação: se é verdade, se é necessário, então não há o que escolher ou dizer. Caso
não haja a concordância do interlocutor em acatar o sentido -significado e direção
(DELEUZE, 1998) -, esse pode ficar fora do circuito discursivo.
Dadas essas considerações iniciais, passemos agora à análise do nosso foco: a
deonticidade no discurso. A perspectiva analítica é a discursiva, que considera do dizer como
acionamento de conjuntos de enunciados que se filiam a formações discursivas sócio-
historicamente marcadas e, portanto, afetadas pela ideologia. O dizer não é transparente, nem
é produzido no vácuo. Os sujeitos ocupam posições que determinam as imagens de si, do
outro e do objeto do qual fala (o referente) (PÊCHEUX, 1975, ORLANDI, 1983)
Vejamos um exemplo:
4

(1) “Dessa forma, fica evidente que ter o objeto da Química como elemento de
pesquisa científica, não é a mesma coisa que aprender o desenvolvimento e
conquistas dessa ciência numa instituição como a escola. Ao professor compete,
então, transformar esse saber do cientista em um saber que possa ser ensinado na
escola; enfim, ao professor compete ensinar Ciência, caracterizando o que
entendemos por Transposição Didática.
Por esse processo, os conteúdos necessitam ser adequados e flexibilizados, inclusive
do ponto de vista da linguagem, uma vez que não se pretende que a iniciação ao
mundo da Ciência seja realizada tendo por referência apenas a terminologia usada
pelos cientistas.” (CP, Conteúdos e Metodologias do Ensino de Ciências I, 2004, p.
22). (negrito-itático nosso)

A regularidade desse tipo de sequência lingüística – “x necessita ser...” - , que


caracteriza os enunciados como sendo deônticos, permite-nos arriscar a indicação de um
efeito de sentido (necessidade) que evita uma contestação: se é necessário, se é verdade,
então não há o que escolher ou dizer. Caso não haja a concordância do interlocutor em
acatar o sentido (significado e direção), esse estaria fora do circuito discursivo. Esses
enunciados cujos conteúdos proposicionais têm base nos conceitos de necessário, seguindo
a tradição da lógica aristotélica, estabelecem o valor de verdade. Ao produzir um enunciado,
o locutor aponta, mostra a sua atitude frente a ele. Os enunciados construídos por “algo
necessita ser...” indicariam algo do tipo: “necessita (é necessário), porque é verdade,
portanto você, meu interlocutor, deve seguir o sentido, a direção, deve obedecer, deve
acreditar no que digo”.
Vejamos um outro:

(2) “Se você refletiu sobre isso, deve concluir que, ensinar sob outra ótica que não
implique o puro repasse de informações, requer uma reestruturação curricular, uma
retomada da formação docente, com base numa outra transposição didática e num
outro contrato didático, nos quais a história e a lógica dos conhecimentos ocuparão
lugar de destaque e nortearão a escolha dos conteúdos a serem ensinados.” (CP,
Conteúdos e Metodologias do Ensino de Ciências I, 2004, p. 23). (negrito- itálico
nosso)

A marca linguístico-discursiva acima destacada aponta, também, para a relação de


necessidade, de dever ou de obrigatoriedade, que busca evitar a contestação, ou ainda, busca
dialogar, negando, com enunciados contrários. Constrói-se, assim, o sentido (significado e
direção, de novo) de mão única, fechando, estancando, garroteando, possibilidades outras de
dizer e, portanto, de significar. É o fechamento do sentido de que fala Orlandi (1983). E “o
fechamento é a morte”. (VEIGA-NETO, 2000, p. 62).

E mais outro:

(3) A partir dos Parâmetros Curriculares Nacionais, definidores do que o aluno


precisa aprender, pode-se deduzir o que as agências formadoras precisam oferecer,
5

tanto para a formação inicial como para a formação continuada dos professores.
(SOUZA, 1999, p.5). (negrito-itálico nosso)

Num mesmo segmento lingüístico, o caráter deôntico se evidencia por duas vezes. A
autoridade do Ministério da Educação enuncia o que é preciso a B e, por consequência a C. Se
A indica a B e a C o que é necessário a eles, é porque A enuncia de uma posição que lhe
autoriza tal dizer, e tanto B quanto C são posicionados como aqueles que „devem‟ ouvir e
acatar o dito, pois esse é verdadeiro. É a indicação (direção) de sentido novamente se
instaurando.

(4) “É preciso saber que todo o conhecimento que a humanidade produziu e


continua produzindo precisa ser classificado para que se tenha uma ordenação, uma
sistematização do que já foi produzido”. (CP, Conteúdos e Metodologias do Ensino
de Ciências I, 2004, p. 23). (negrito-itálico nosso)

O enunciado (4) está na ordem discursiva proposta pela prática científica instaurada na
passagem da época clássica para a modernidade ocidental em que a máthèsis (FOUCAULT,
1976) definiu o solo epistemológico do qual emergiram os discursos considerados
verdadeiros de uma época. O uso do “é preciso saber...” e do “precisa ser...” não possibilita
qualquer debate para a questão, não deixa brecha para o questionamento da validade da
proposição explicitada. Assim, a epistéme da classificação, da ordenação, ambas se
conformam no espaço do verdadeiro de uma época (FOUCAULT, 1999) de se estende até a
atualidade.

(5) “Do que são feitas as coisas que compõem nosso Universo ? Afinal, por que
essa pergunta é tão provocativa e por que respondê-la é tão importante ?
É importante responder a essa pergunta porque é necessário saber interpretar a
natureza e porque o que temos a dizer a respeito da constituição das coisas que
compõem o Universo parecer ser insuficiente diante da diversidade de elementos e
de suas infinitas possibilidades de combinações”. (CP, Conteúdos e Metodologias do
Ensino de Ciências I, 2004, p. 58). (negrito-itálico nosso)

O enunciado (5) traz o “é necessário” com o mesmo caráter de prescrição de práticas


sociodiscursivas do “é preciso”.

(6) “O professor deve definir esses termos químicos considerando a representação


que os seus alunos têm a respeito do assunto”. (CP, Conteúdos e Metodologias do
Ensino de Ciências I, 2004, p. 59). (negrito-itálico nosso)

A marca linguístico-discursiva acima destacada aponta, também, para a relação de


necessidade de dever ou de obrigatoriedade, que busca evitar a contestação, ou ainda, que
6

evita o diálogo. Constrói-se, assim, o sentido (significado e direção, de novo) de mão única,
impossibilitando formas outras de dizer e de, portanto, significar.

(7) “Além de perceber a diferença, é preciso que nossos alunos aprendam a respeitá-
la. E esse aspecto só poderá ser possível a partir do momento em que rompermos
com um conceito de cultura baseado no senso comum”. (Caderno Pedagógico,
Conteúdos e Metodologias do Ensino de História I, 2004, p. 20). (negrito-itálico
nosso)

Independentemente de quaisquer reflexões que possamos fazer a respeito deste


dispositivo, o que aqui nos interessa é a indicação da certeza que ele traz: não se coloca em
debate a questão; indica-se o cumprimento do padrão eleito.

(8) “Nesse sentido, é preciso que o educador abandone o papel de único detentor
do saber e [é preciso que] tente aprender com o aluno e com o mundo. A escola
deve ser o espaço onde os conflitos são trabalhados, e não camuflados. Nessa
perspectiva, o professor deve engajar as crianças para que elas possam viver no
mundo da diferença, respeitando e solidarizando-se entre os diferentes. (...) É
preciso respeitar, conviver e valorizar a diferença, pois isso implica não só uma
melhor qualidade de vida como também de aprendizado”. (Caderno Pedagógico,
Conteúdos e Metodologias do Ensino de História I, 2004, p. 25). (negrito-itálico
nosso)

Neste exemplo (8), os enunciados deônticos aparecem cinco vezes. Essa regularidade
bem evidenciada diz algo. Nas duas primeiras sequências e na quarta, o sujeito é o
educador/professor. Na terceira, é a escola. Na quinta, é indeterminado, ou seja, qualquer um
ou todos. Em relação ao educador/professor, o caráter deôntico dos enunciados se volta para
o modelo a ser seguido (abandonar um papel, tentar aprender com, engajar as crianças).
Trata-se de uma sequência de deveres, de procedimentos a serem cumpridos sem qualquer
possibilidade de dissensão, de problematização. Nessa mesma esteira, a escola também se
torna o espaço onde o dever se cumpre. E finalmente, a todos, indistintamente, a deonticiade
se anuncia. Não há a outra possibilidade de agir a não ser a enunciada no texto.

(9) “A escola tem como missão primordial: Ensinar! Sabemos que escola boa é
àquela que ensina e o aluno aprende. Mas como educadores experientes, sabemos,
também, que, para que isso aconteça de fato, tem que haver comprometimento de
todos os envolvidos: aluno, professor, pais e ou responsáveis, comunidade, poder
público, em fim: T O D O S!

Cada um deve desenvolver muito bem suas funções, para que, além de garantir o
direito do aluno estudar, tenha ele também o direito de permanecer na escola e obter
sucesso no seus estudos. Caso contrário, será mais um, abandonado no meio desse
percurso, vítima de um sistema, cheio de engrenagens emperradas.”
(enunciado produzido por uma professora ao realizar uma tarefa on-line, enviada na
plataforma virtual de um curso de coordenadores pedagógicos. ESCOLA DE
GESTORES, 2011). (negrito-itálico nosso)
7

Neste (9) exemplo, a voz de uma professora ecoa os mesmos enunciados de caráter
deôntico com o “ter que” e o “deve + verbo de ação”. Assim, os documentos trazem essas
regularidades, e os sujeitos que entram no circuito de circulação desses discursos os colocam
adiante, fazendo-os circular ainda mais.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O caráter deôntico dos enunciados aqui analisados evidenciam o jogo discursivo que é
acionado em muitas esferas discursivas, mas especialmente nas práticas educacionais. A
deonticidade se configura, pois, como uma regularidade discursiva que flui nos fios
discursivos dos documentos direcionados a professores. Esses enunciados, que apontam para
o fechamento do dizer, ao colocarem numa ordem, numa direção, num sentido, a continuidade
do fio discursivo, se evidenciam, também, em discursos da mídia de entretenimento e da
mídia voltada a professores. Isso significa dizer que a sutil circulação da deonticiade se faz
presente em muitos fios discursivos que embalam a vida de profissionais da educação,
professores ou não. Isso é bem evidenciado por Costa (2000) que, ao analisar as relações entre
mídia e fabricação de identidades sociais, especificamente na mídia brasileira, voltada para a
constituição de discursos sobre a profissão magistério, tomado como um universo marcado
pelo feminino, embora não trate do caráter deôntico dos enunciados ali presentes, afirma:

O acento pedagógico-prescritivo [Manchetes do tipo: Como aliviar a tensão da


chegada à quinta série] parece ser privativo de revistas femininas e daquelas
dirigidas a docentes do ensino fundamental, revelando uma conduta distinta da
adotada em periódicos direcionados a outros segmentos ocupacionais. (COSTA,
2000, p. 87).

No entanto, o que podemos dizer a partir desses poucos casos aqui analisado é que o
acento pedagógico-prescritivo que estaria subjacente aos enunciados deônticos não é
privilégio de discursos midiáticos voltados somente, ou especialmente, para professoras como
já indicado em reflexões nossas em outra publicação nossa (VASCONCELOS, 2011). Ele
ocorre também com regularidade em discursos de vulgarização informacional ou científica
bem como em revistas de entretenimento. Buscando ecoar as palavras de Deleuze (1998),
dizemos com ele que a informação posta, transitada, veiculada é uma forma direcionada de
nos fazer pensar aquilo de se espera que pensemos.
A indicação de sentido (significado e direção) desses dois aspectos aqui analisados são
marcas de um discurso da modernidade em que a ordem e a classificação (FOUCAULT,
8

1976) constituem o movimento de sua epistéme, constituindo, assim, o “verdadeiro da época”


(FOUCAULT, 1986) que acaba por nos afetar em alguma medida.

4 REFERÊNCIAS

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. Trad. Carlos Felipe Moisés e
Ana Maria l. Ioriatti, São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

DELEUZE, G. A lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1998.

ESCOLA DE GESTORES. MEC/UNDIME/ UFSC. Plataforma Virtual. 02 out. 2011.

FOUCAULT, M. A Ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France, pronunicada


em 2 de dezembro de 1970. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Loyola,
1999.

FOUCAULT, M. As Palavras e as coisas. Uma arqueologia das Ciências Humanas. Trad.


Salma Thannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1976.

ORLANDI, E. A Linguagem e seu funcionamento. As formas do discurso. São Paulo:


Brasiliense, 1983.

PÊCHEUX, M. Análise automática do discurso. In: GADET, F. e HAK, T. (Orgs.). Por uma
análise automática do discurso. Uma introdução à obra de Michel Pêcheux,1993, p. 61-161.

SOUZA, P. R. Aos Responsáveis pela formação de professores. In.: BRASIL. MEC.


Secretaria de Educação Fundamental. Referenciais para a formação de professores.
Brasília: A Secretaria, 1999.

VASCONCELOS, S.I.C.C.de. O caráter deôntico em enunciados de revistas brasileiras e a


formação do leitor. In: BASTOS, Neusa Maria (Org.). Língua Portuguesa: aspectos
lingüísticos, culturais e identitários. São Paulo: EDUC, 2011 (no prelo).

UDESC. Caderno Pedagógico. Conteúdos e Metodologias do Ensino de Ciências I, UDESC:


Florianópolis, 2004.

UDESC. Caderno Pedagógico. Conteúdos e Metodologias do Ensino de História I, UDESC:


Florianópolis, 2004.

VEIGA-NETO, A. Michel Foucault e os Estudos Culturais. In: COSTA, M. V. (Org.).


Estudos Culturais em educação: mídia, arquitetura, brinquedo, biologia, literatura, cinema...
Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2000, p. 37-69.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

DESENVOLVENDO PROJETOS DE LEITURA E ESCRITA NAS AULAS DE


LÍNGUA MATERNA EM COLABORAÇÃO COM PROFESSORES

Lisiane Raupp da Costa(UNISINOS/RS)1

RESUMO

Esse trabalho se insere num projeto maior denominado “Por uma formação continuada
cooperativa para o desenvolvimento do processo educativo de leitura e produção textual
escrita no Ensino Fundamental”, do Programa Observatório da Educação/Capes, coordenado
por Ana Maria Mattos Guimarães, do PPGLA Unisinos, que visa a cooperação dos
professores na construção do próprio conhecimento e na reflexão de suas práticas de ensino.
Percebe-se que, apesar de todos os cursos de formação que se seguiram à publicação dos
Parâmetros Curriculares Nacionais pelo MEC em 1997, os princípios ali discutidos ainda não
estão disseminados nas escolas. Percebe-se ainda uma lacuna existente entre o que a academia
produz, o que recomendam os documentos oficiais, e o que efetivamente o professor faz na
sala de aula. Sendo assim, acompanha-se o trabalho de dois professores de Novo
Hamburgo/RS, na elaboração colaborativa e aplicação de projetos de ensino, que têm os
gêneros textuais como articuladores das atividades, analisando como esses professores
articulam as ideias desenvolvidas na academia à sua prática de sala de aula, após participarem
de grupos de discussão das bases teóricas para um trabalho dessa natureza. Por meio de
observação participante, o desenvolvimento dos projetos com os alunos foi gravado em áudio
e vídeo e foram realizadas entrevistas semi-padronizadas com os professores.

Palavras chave:
Prática. Gêneros. Projetos. Formação. Letramento.

ABSTRACT

This work is part of a larger project called "For a continuing cooperative education for the
development of the educational process of reading and writing textual production in
elementary school" of Program of Observatory Education / CAPES, coordinated by Ana
Maria Mattos Guimarães, PPGLA Unisinos, it aims to cooperation in the construction of
teachers' own knowledge and reflection on their teaching practices. It is clear that, despite all
the training courses that followed the publication of the National Curriculum by the MEC in
1997, the principles discussed here are not yet widespread in schools. We can also observe a
gap between what the academy does, what the official documents recommending, and that
effectively makes the teacher in the classroom. Thus, the work is accompanied by two
teachers from Novo Hamburgo/ RS, in the development and implementation of collaborative
teaching projects, which have the text genres as articulators of activities, analyzing how these
teachers articulate the ideas developed in academia to their practice classroom, after
participating in discussion groups of a theoretical basis for such work. Through participant
observation, the development of projects with the students was recorded on audio and video
interviews were conducted with semi-standard teachers.

1
Mestranda em Linguística Aplicada da Unisinos, especialista em Alfabetização e Letramento pelo IERGS,
graduada em Letras/Português pela ULBRA/Gravataí, professora de Língua Portuguesa e Inglesa; e-mail:
lisiraupp@yahoo.com.br.
2

Keywords:
Practice. Genres. Projects. Training. Literacy.

1 INTRODUÇÃO
Em tempos de tantas exigências pedagógicas feitas aos professores, por conta da
necessidade de adequar cada vez mais o que se ensina e se aprende na escola à realidade
social, por meio dos documentos oficiais como Parâmetros Curriculares Nacionais,
Referenciais Curriculares do RS e avaliações governamentais como SAEB, SAERGS,
ENEM, pensa-se mais e mais em como e o quê ensinar em todas as disciplinas,
especialmente, no nosso caso, na de Língua Portuguesa. Por isso, nos preocupamos em
apresentar e discutir, neste trabalho, alguns resultados parciais obtidos por meio de uma
pesquisa colaborativa, com desenvolvimento iniciado no ano de 2011, e ainda em andamento,
em duas turmas de 6ª série, a partir da percepção dos dois professores dessas turmas, e
mostrar que projetos de gêneros textuais, quando construídos de forma crítica, podem
desenvolver a educação linguística por meio de práticas variadas de letramento
promovendo a aprendizagem tanto de professores quanto de alunos.
Nos focamos no ensino da língua escrita, assim como Tinoco (2009, p. 152), com o
intento “de contribuir com o trabalho docente e, especificamente, no tocante ao complexo
processo de ensinar cidadãos a ler e a escrever para agir sobre o mundo”. Sendo assim, os
projetos aqui analisados, mostram tentativas, ainda que iniciais, de aplicar os conhecimentos
adquiridos na formação continuada e construção, em parceria, de projetos de ensino de Língua
Portuguesa tendo os gêneros textuais que desenvolvam habilidades voltadas para a prática
social como foco, ou seja, que possibilitam esse agir no mundo, de que fala Tinoco e tantos
outros autores como Kleiman (1995, 2000), Soares (1999) e Street (1984).
Esses projetos foram construídos a partir dos estudos realizados num projeto maior,
denominado “Por uma formação continuada cooperativa: para o desenvolvimento do processo
educativo de leitura e produção textual escrita no ensino fundamental”, coordenado pela
professora doutora Ana Maria Mattos Guimarães, com o apoio da Capes/Observatório da
Educação, em parceria entre os professores da rede municipal de Novo Hamburgo/RS,
graduandos, mestrandos e doutorandos - bolsistas de iniciação científica - e professoras da
Unisinos, e aplicados em turmas de 6ª série.
Esperamos com esses projetos, aproximar as pesquisas realizadas na universidade às
práticas de sala de aula, visando mudanças efetivas no ensino, voltadas ao crescimento
docente e discente.
3

Para deixarmos claro nossa perspectiva de ensino, faz-se necessário, na primeira parte
do trabalho, contextualizar, através da conceituação de alguns termos usados no
desenvolvimento das práticas realizadas no processo desse projeto, como letramento,
educação linguística, sequência didática, gênero textual e as orientações dos documentos
oficiais para o ensino de língua portuguesa. Na segunda parte, explica-se a metodologia usada
na geração de dados e o contexto em que se encontra esse estudo. Na terceira parte são
apresentados e discutidos os resultados e na quarta parte, fazem-se algumas considerações
finais.

2 “ONDE EU USO ISSO?” – (RE)CONSTRUINDO CONCEITOS


Entendendo que a leitura e a escrita não podem ser pensadas como meio de salvação
humana, como se elas por si só libertassem as pessoas de todo mal, acredito que, do mesmo
modo que Britto (2003), a leitura e escrita possam servir como instrumento para o exercício
da cidadania se forem realizadas criticamente e não só para se dizer “letrado”. A questão é se
constituir letrado, vinculando aí, a leitura e escrita como práticas sociais, que podem levar o
sujeito a quebrar as correntes da submissão, impostas pelas ideologias2 dominantes. A
partir da premissa do senso crítico, então sim, creio que a leitura pode servir para libertar,
como aponta Freire (1970). Sendo assim, este trabalho procura identificar práticas escolares
que desenvolvem atividades de leitura e escrita através de projetos construídos em parceria,
embasados na noção de gêneros (Schneuwly e Dolz, 2004) e ampliando o modelo de
sequência didática da Escola de Genebra3, aliado aos estudos de letramento, que
compreendem a leitura e a escrita como práticas sociais, como necessárias para agir no
mundo.
Os gêneros textuais, de acordo com Schneuwly e Dolz (2004), são instrumentos para
agir em situações de linguagem e são pensados como caracterização dos diferentes discursos
veiculados na sociedade, já estipulados pelo uso social, para que não tenhamos que construir
cada um de nossos enunciados, facilitando assim, a comunicação, conforme a concepção
bakhtiniana exposta por Schneuwly e Dolz (2004), já que, um gênero, como explica Oliveira

2
Ideologias, segundo Chauí (1991), são as explicações dadas para criar a ideia de que todo fenômeno que
acontece no mundo é natural, sem razões lógicas, usadas para favorecer a quem está no poder de alguma
situação, por mascarar a realidade social.
3
A Escola de Genebra é a Universidade onde se desenvolvem as pesquisas de Schneuwly e Dolz sobre o uso de
gêneros didáticos no ensino de línguas, no caso deles, o Francês.
4

(2010), “ é, em suma, um modo próprio de dizer que revela quem fala e de que lugar fala”, ou
seja, são originados das atividades de linguagem e não o contrário, constituindo-se um ponto
de referência concreto para os alunos, um meio para que atinjam a aprendizagem social.
Podemos também considerar os gêneros uma forma de aplicarmos o que a Declaração
Universal dos Direitos Linguísticos propõe como direito linguístico o de “ter conhecimento
profundo do patrimônio cultural” de sua comunidade linguística (art.28), entendendo a língua
como “expressão de uma identidade” (art.7), por entendermos que os gêneros textuais são
uma forma de cultura social que se baseia no uso que o grupo linguístico faz das suas
enunciações e que perpassa as funções da escola.
A princípio, como explicam Schneuwly e Dolz (2004, p. 76), a escola sempre trabalhou
com gêneros, num primeiro momento, criando gêneros especificamente escolares, sem
vínculo com a realidade, de forma fictícia, só para avaliação; depois passaram a ser
naturalizados como se surgissem na situação escolar, sem estudá-los na sua forma, sem
vinculá-los com os exteriores à escola usando em seguida, textos tirados da realidade como
pretexto para atividades tradicionais e em tempos mais atuais, começou-se a pensar nos
gêneros textuais usados na sociedade como foco do ensino na escola, facilitando o domínio de
meios reais para práticas sociais efetivas, refletindo o seu funcionamento, estrutura, questões
linguísticas pertinentes e, principalmente, utilidade social.
Para desenvolver os gêneros na prática de sala de aula, Schneuwly e Dolz (2004)
desenvolveram a ideia de sequência didática, que é um módulo de ensino do gênero textual
que parte de uma apresentação da situação para uma produção inicial e oficinas que propiciam
a aprendizagem das diferentes características do gênero estudado, partindo da escrita dos
próprios alunos na primeira produção, com o intuito de saber as suas dificuldades e
instrumentalizá-los, a fim de atingir o objetivo de produzirem o gênero de texto escolhido
para satisfazer as necessidades sociais da turma, como explica Guimarães (2005). Por isso,
quando planejava seu projeto, a professora Clara4 pensou em qual seria a necessidade social
de seus alunos e, na entrevista, quando perguntada sobre a motivação para a escolha do tema,
diz que o escolheu porque seus alunos “adoram contar tragédias”, na tentativa de “ talvez
fazer com que eles leiam as narrativas de detetive e vejam a realidade deles de uma forma

4
A professora, aqui denominada “Clara”, tem 26 anos, é graduada em Letras Português/Inglês, pela Unisinos, há
3 anos e meio, é professora da rede municipal de Novo Hamburgo e participa do projeto de pesquisa “Por uma
formação continuada cooperativa: o desenvolvimento do processo educativo de leitura e produção textual escrita
no ensino fundamental”.
5

mais lúdica(...)” . O professor Francisco5 escolheu trabalhar com o tema “alimentação


saudável”, pois já haviam abordado esse assunto e sentiu necessidade de aprofundar o
conhecimento dos alunos sobre isso. Percebendo as práticas sociais dos alunos de olharem
muito televisão e prestarem atenção em propagandas, identificou o gênero a ser trabalhado
como forma de colocarem em prática o que vivenciavam com as propagandas.
Em cada etapa dos projetos desenvolvidos, propõe-se construir práticas de letramento,
que, segundo Soares (2003, apud Freitas 2006), são os comportamentos exercidos num evento
de letramento, ou seja, atividades que envolvem leitura e escrita, que levam os professores e
alunos a praticarem a leitura e escrita, aprendendo a lidar com diferentes situações, já que,
segundo Soares (1999, p. 18), o letramento “é o resultado da ação de ensinar ou de aprender a
ler e escrever: o estado ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como
consequência de ter-se apropriado da escrita.” Além disso, nesse processo de construção de
projetos didático de gêneros, procuramos a interação de professores e alunos com o mundo
real, pois de acordo com a mesma autora (p.44), “letramento é o estado ou condição de quem
se envolve nas numerosas e variadas práticas sociais de leitura e de escrita.” Entendo,
conforme a definição de Kleiman (1995), que o letramento tem como um dos seus sentidos o
que Paulo Freire atribui à alfabetização: capaz de levar o analfabeto a organizar
reflexivamente seu pensamento.
Levando em conta também os estudos de Street (1984), temos que as práticas de
letramento são social e culturalmente determinadas e, como tal, os significados específicos
que a escrita assume para um grupo social dependem dos contextos e instituições em que ela
foi adquirida, assim não temos o, mas os letramentos. E no caso da escola, de acordo
com Tinoco (2009, p. 155), “os projetos de letramentos requerem, portanto, textos de
circulação real, trazidos para a sala de aula, para subsidiar ações que serão realizadas fora do
ambiente escolar, e não textos didatizados em função de um conteúdo pré-selecionado para
determinada série.” para que possam realmente contribuir com uma educação linguística que
faça sentido, pois, segundo Travaglia (2007), a educação linguística “é o conjunto de
atividades de ensino/aprendizagem, formais ou informais para tornar-nos bons usuários da
língua, usando os recursos disponíveis para atingir o objetivo comunicativo para interação em

5
O professor, a quem denominamos neste trabalho de “Francisco”, tem 43 anos, é graduado em Letras pela
Unisinos, tem Mestrado em Literatura Portuguesa e Africana pela UFRGS e é doutorando em Literatura
Africana pela UFRGS, é professor da rede de Novo Hamburgo e participa do projeto de pesquisa coordenado
pela Professora Doutora Ana Maria Mattos Guimarães.
6

determinada situação”. Será a educação linguística toda e qualquer forma de


ensino/aprendizagem, dentro e fora da escola, como explicam Bagno e Rangel (2005, p.1):

Entendemos por educação linguística o conjunto de fatores socioculturais


que, durante toda a existência de um indivíduo, lhe possibilitam adquirir,
desenvolver e ampliar o conhecimento de/sobre sua língua materna, de/sobre outras
línguas, sobre a linguagem de um modo mais geral e sobre todos os demais sistemas
semióticos (...) crenças, superstições, representações, mitos e preconceitos que
circulam na sociedade em torno da língua/linguagem (...) o aprendizado das normas
de comportamento linguístico que regem a vida dos diversos grupos sociais cada vez
mais amplos e variados, em que o indivíduo vai ser chamado a se inserir.

Os autores também afirmam que a educação linguística de cada indivíduo começa logo
no início de sua vida, assim, sabemos que quando chegam à escola, todos os alunos já
desenvolveram muito da sua educação linguística e continuam, paralelamente,
desenvolvendo-a fora da escola, porque todas as nossas interações linguísticas propiciam o
desenvolvimento da linguagem. Porém, a parte da educação linguística aprimorada na escola
com mais ênfase, é o letramento, ou seja, as práticas de leitura e escrita, já que este é o foco
da escolaridade, que também não acontecem só na escola. E os professores precisam ter a
sensibilidade de entender que quando chega na escola, a criança precisa primeiro gostar do
que está fazendo. As que ainda não tiveram bons eventos de letramento em casa, precisarão
de tempo para se acostumar, e se as experiências e exemplos se distanciam de sua realidade,
tanto menos elas se sentirão à vontade na escola. Assim também com jovens e adultos.
No projeto da professora Clara6, em que usou de um tema do qual eles falavam muito, a
professora percebeu essa necessidade e conseguiu com que os eventos de letramento da sua
turma tivessem um pouco mais de proximidade com a realidade dos alunos e expressa isso
dizendo: “eles gostaram, porque é uma prática que eles já acompanham, até por eles
acompanharem as notícias da violência que tem na comunidade que eles olham na tv, vêem às
vezes no jornal (...)”. Assim também o professor Francisco procurou incluir na sala de aula
um gênero textual que muitos alunos já conheciam, para que trabalhassem a partir da sua
realidade.
Pensamos que tanto mais rica será a aula se, aproveitando-se da situação da própria
turma, criam-se as atividades para que façam sentido aos alunos, para que, a partir das suas
experiências possam aprimorar a linguagem, e assim fazer bom uso da educação linguística
que estão recebendo. E seguindo o exemplo de Flecha (2006): “Em vez de transformar o

6
Os nomes aqui usados são fictícios pra preservar a identidade dos envolvidos.
7

contexto para provocar um desenvolvimento cognitivo igualitário, pretende adaptar o


currículo ao contexto dado”, já que as atividades desconexas da realidade levam os aprendizes
a não associarem a escrita como outra maneira de se comunicar.
Sabemos que, cada vez mais, é salutar uma reflexão mais aguçada dos alunos sobre sua
condição social para que sejam protagonistas da sua realidade, como propõe o projeto de
Lívia Suassuna, Iran F. Melo e Wanderley Elias Coelho (2007), denominado Construções do
real em discursos literários e documentais, em que nos mostra que um bom projeto de estudo
da Língua Portuguesa inclui a reflexão prática sobre a análise linguística, levando em conta as
condições de produção dos discursos analisados: quem anuncia, para quem, sobre o quê, com
que objetivo e em que situação, mostrando que o uso real do texto do aluno e, não mais o
fazer por fazer, é que gerará o desenvolvimento crítico do aluno, como se dá conta o professor
Francisco a partir de suas experiências no projeto de pesquisa: “realmente o aluno tá
produzindo um texto muito artificial, (...) tá ali fazendo uma narração, uma dissertação, uma
descrição... tá, (e o aluno pode pensar) „mas, e no dia a dia, onde eu uso isso?‟, então é esse
olhar que agora tá diferente.”
A partir da mudança do olhar de professor sobre a aprendizagem do aluno,
desenvolvem-se novas atitudes frente às possibilidades de ensino. Embora tenhamos
consciência das dificuldades de nos adaptarmos ou nos darmos conta da necessidade de uma
renovação no ensino de língua portuguesa, principalmente quando isolados em nosso trabalho
de sala de aula, a partir do primeiro passo, já podemos ter novas percepções de nós mesmos,
como afirma a professora Clara: “é na troca que eu percebo que muitas vezes eu sou aquela
pessoa/aquele professor que eu critico entendeu? Só que, pra tu te dar conta que tu é aquilo
que tu criticas, às vezes é difícil (...)”, difícil, mas como vemos em nossas próprias
experiências, não é impossível nos darmos conta do que somos e do que podemos ser, ou de
como somos e como podemos ser, dando continuidade ao desenvolvimento da nossa educação
linguística.

3 CONTEXTO DA PESQUISA
No projeto de pesquisa “Por uma formação continuada cooperativa: o desenvolvimento
do processo educativo de leitura e produção textual escrita no ensino fundamental”, a partir do
qual tiramos os dados para a realização deste trabalho, foram realizados encontros semanais,
desde fevereiro de 2011, onde os envolvidos na pesquisa puderam estudar textos que
subsidiaram o trabalho desenvolvido, tais como: PCN‟s (1997, pág.17-44), Cerqueira (2010),
Camillo (2007), Travaglia (2007), Gregolin (2007) sobre ensino de Língua Portuguesa; Bagno
8

e Rangel (2005), sobre educação linguística; Lopes (2007), D‟aligna (2007), Beyer (2005),
sobre inclusão; Oliveira (2010), Guimarães (2005), Schneuwly e Dolz (2004), Referenciais
Curriculares do RS (2009, p. 92-102) e Bunzen (2007) sobre gêneros textuais. A partir das
reflexões dessas leituras discutidas, passamos a denominar os projetos desenvolvidos com
gêneros textuais, da forma como o fizemos, de Projeto Didático de Gênero, pois não
poderíamos mais situá-lo como sequência didática, já que é mais flexível e pode abranger até
dois gêneros textuais intercalados.
Para este trabalho, foram escolhidos, aleatoriamente, dois dos cinco primeiros7
professores participantes, com os quais, foram realizadas entrevistas semi-estruturadas,
gravadas em áudio e transcritas por mim. Além das entrevistas, foram analisados os projetos
construídos e aplicados nas respectivas turmas e a aplicação das atividades foram observadas
por mim e pelos bolsistas da graduação e gravadas em vídeo, onde pudemos constatar o ritmo
da aplicação, as reações dos alunos, as estratégias dos professores e o desenvolvimento das
práticas de letramento propostas.
As escolas dos dois professores escolhidos para este trabalho são escolas grandes,
ambas situadas na periferia da cidade cuja secretaria de educação participa do projeto, com o
índice do IDEB abaixo da meta esperada em 2009, uma com média de 4,2 entre 2005, 2007 e
2009 e outra com média de 3,6. As duas escolas são compostas de alunos com famílias
constituídas, em grande número, pelo menos em uma das escolas, de forma não tradicional,
em que uns vivem só com o pai ou só com a mãe ou com avós, outros tem padastro ou
madrasta e a maioria que trabalha tem profissões pouco remuneradas. As duas escolas têm
suas dependências amplas, porém pouco conservadas. Nelas, há espaço para a realização de
atividades extraclasse e de integração, porém, ou são mal-conservados ou não há profissionais
habilitados ou designados para a atividade.
A turma do professor Francisco, conta com 22 alunos, as da professora Clara, tem em
média 30 alunos, porém muitos faltam à aula aleatoriamente, conforme a fala da própria
professora:

Uma coisa negativa é que, como eles (...) não são muito assíduos, alguns eu percebo
a dificuldade assim, numa aula que a gente leu tal trecho do livro, o aluno x, y e z, e
lá o alfabeto inteiro, (...) esses alunos não vieram na escola, e daí na aula seguinte
eles tem que ler aquele trecho e ler o outro, então compromete bastante na
continuidade.

7
Na primeira etapa do projeto de pesquisa, na qual nos encontrávamos até julho de 2011, participavam apenas 5
professores da rede municipal de Novo Hamburgo, que serão os multiplicadores, nas formações realizadas com
outros professores na rede, na segunda etapa.
9

Essa é uma das dificuldades encontradas nas escolas para o bom desenvolvimento dos
alunos, já que estes, em muitas comunidades, faltam bastante, principalmente quando suas
famílias têm poucas condições financeiras. Trabalhar assim fica complicado, pois os
professores são cobrados pela aprendizagem de todos os alunos e, em muitos casos, mesmo a
aula sendo agradável, o aluno não vem e não aprende como poderia, o que pode ser um dos
fatores que desanimam os professores, como aponta a professora Clara: “eu penso bastante –
até quando eu vou continuar sendo professora, porque... às vezes o desafio tá ali e tu não
consegue superar .. e isso é muito frustrante.. pra mim.. assim.. eu.. não imaginava encontrar
tudo isso que eu encontrei.” Mas os professores continuam acreditando no seu trabalho, como
afirma o professor Francisco: “Eu gosto muito dessa interação com o aluno, dessas conversas
(...). Gratificante assim, quando o aluno, chega e conversa contigo „bah, professor,.. gostei
muito da tua aula‟, entende? isso é o melhor de tudo. Tu sabe do carinho que eles têm por ti
(...).” Estamos convencidos de que, para o aluno gostar da aula, gostar do professor, não basta
fazer só o que o aluno quer na aula, mas o que ele precisa aprender para agir no mundo,
quando as coisas fazem sentido tanto para o professor, quanto para o aluno.
Por isso, muitos têm procurado estudar mais para vencer os desafios que se apresentam.
O professor Francisco, por exemplo, em suas respostas, mostrou-se bastante motivado em
buscar mais conhecimento no projeto: “Eu estou no Observatório por realmente uma grande
curiosidade, é... como eu sou da área da literatura e eu sempre... em sala de aula a gente
sempre trabalha muito com questões linguísticas, e eu queria uma atualização em
linguística.”, já a professora Clara diz estar em conflito com a realidade da escola e na busca
de um sentido pra sua prática de sala de aula: “Bom (...) Eu aceitei o convite... porque quando
eu cheguei na escola eu me choquei bastante com a realidade... a princípio não fiquei
satisfeita, fiquei muito chocada, né.” Esse choque de realidade, o qual muitos professores
vivenciam, faz toda a sociedade entrar em conflito de crenças sobre as causas e consequências
das dificuldades da educação.
Toda essa estrutura educacional, exposta de forma deliberadamente deturpada na mídia,
através de programas de TV preocupados em atestar a própria tese às quais antecipadamente
já haviam determinado causas e consequências dos baixos índices do IDEB, é, em verdade, a
face da educação mundial, onde há muitos déficits: de investimento em estrutura física das
escolas, de motivação, remuneração e formação dos professores, de estrutura familiar e
psicológica dos alunos, além de outros tantos problemas escolares, adquiridos pelos ranços
políticos e sociais. Porém, a intenção desse projeto, é mostrar a busca de soluções a partir da
formação continuada dos professores, pois acredito que é preciso que haja uma leitura crítica
10

e atenta dos documentos nacionais e regionais de referência (PCN‟s, Referenciais curriculares


do RS, LDB 9394/96...) pelos professores, para haver uma real reflexão e conscientização do
processo ensino/aprendizagem, pois, além daqueles que não lêem e continuam ensinando da
forma tradicional, há aqueles que lêem e também continuam a ensinar assim, ou porque não
entendem as propostas, ou porque realmente acreditam que o certo é assim. Sinceramente,
neste último caso eu tenho muitas dúvidas se acontece. Porque, por mais trabalho que dê
mudar de atitude, de postura, quando há uma reflexão crítica e consciente sobre o processo
ensino/aprendizagem, dá-se conta de que a forma tradicional não dá conta de cumprir com o
papel principal da escola que é a transformação social, como exposto na fala da professora
Clara: “Ahm, claro que vai vir uma mudança, eu vou tentar mudar e talvez mude pra melhor”,
muitos profissionais, ao investirem no processo de formação, apostam numa mudança, a partir
das reflexões teóricas que fazem.
Podemos constatar que, a partir de uma formação continuada, onde se discute com os
professores as formas de trabalho, e não só os enche de teorias, pode levá-los a um
aprendizado significativo, como demonstra o professor Carlos: “eu acho que eu aprendi a ser
mais crítico, né, aprendi a ser mais crítico, não, mas eu comecei a olhar de outra forma... a
aula, as questões de gramática, assim, digamos, né”, ou pelo menos pode deixá-los mais
abertos a mudanças, como vemos na fala da professora Clara: “o observatório me deixou
assim, meio... me questionando, eu fiquei com muitas dúvidas, porque às vezes tu tem tanta
certeza do que tu faz e daqui a pouco tu não...será que eu faço isso mesmo?” e se as
formações servirem para, deixar os professores com algumas dúvidas a partir das teorias
discutidas, já podemos considerar um primeiro passo dado. O segundo será quando pudermos
ajudá-los a sanar algumas dessas dúvidas, em ações conjuntas.

4 PRA FAZER SENTIDO – ENTENDENDO OS PROJETOS


Os projetos desenvolvidos foram pensados a partir de temas que estavam na vida da
comunidade, na vida dos alunos, no momento de aplicação, assim, a professora Clara optou
pelo gênero narrativa de detetive, por abranger o tema “investigação policial”, recorrente nas
conversas dos alunos, e o professor Carlos optou por folder, para refletirem mais sobre
alimentação saudável, e poderem incentivar mais pessoas a se alimentarem melhor. Ambos
com o foco na leitura e escrita, trabalhando, conforme a necessidade da produção textual, em
cada oficina, um tema referente ao modo de produzir o gênero em questão. Para isso a
professora Clara usou de explicações orais, vídeos do Sherlock Holmes, leitura de um livro
em capítulos, em aula e em dupla, pelos alunos, atividades escritas, exercícios gramaticais,
11

para treinarem as questões demonstradas como dificuldades, na primeira produção dos alunos,
entrevista com um investigador de polícia e, por fim, a produção final, num total de 11
oficinas que ainda não haviam sido todas aplicadas no momento da escrita desse artigo.
A professora relata que teve dúvidas quanto à aplicação das atividades: “Quando eu
pensei em ler o livro eu pensei „será que vai dar certo?‟(...) será que eles vão entender o que tá
acontecendo na história?”, porém, penso que a empolgação dos alunos durante o projeto a
tranquilizou: “quando é que vai ter a aula de detetive de novo?” eles perguntavam e,
provavelmente, por ser escolhido um tema do qual eles gostaram, houve uma adesão da
maioria dos alunos com o trabalho, o que fez a professora constatar que:
Eles ficaram bastante empolgados com a primeira produção, e assim, eu vejo
que nas atividades, às vezes eles reclamam de terem que fazer, mas um pouco de
preguiça, né, mas a parte da leitura do livro eles tão gostando bastante, inclusive, às
vezes tu tem que ficar „(...) é só até a página 20‟ e eles querem ler mais,..eles estão,
às vezes além da página que eu pedi pra eles lerem.

Já o professor Francisco também usou de explicação oral, de definições encontradas na


internet e no dicionário, de recurso de recorte e colagem para a produção inicial, apresentação
e comparação entre materiais impressos, mostra de um esquema de montagem de folder em
um blog de uma gráfica, num total de 6 oficinas, já aplicadas totalmente no momento da
escrita deste artigo.
Esse professor explica que: “a aula de português geralmente é sentar, copiar alguma
coisa do quadro, ver alguma coisa do livro, ou uma leitura, e aí aquilo ali pra eles foi
diferente.”, pois acredito que o trabalho com gêneros textuais, mesmo que sejam aqueles mais
usados pelos alunos, podem trazer mais conhecimentos e vontade de aprender, se estiver
relacionado com a prática social do aluno, como demonstra a fala do professor Francisco:
Essa produção, que eles vêem que são coisas que eles usam no dia-a-dia, que
eles tem contato no dia-a-dia, tanto é que eles mesmos vão respondendo, né, e vão
dizendo onde é que encontram aquilo e eles verem isso sendo usado por outras
pessoas, no sentido de, bom, o folder, vai ser distribuído, no princípio ele ia ser
distribuído na escola, eles iam ver os colegas recebendo, agora vai ser distribuído
aqui (na Unisinos).

Além dos alunos e professores, todas as pessoas que convivem com a comunidade
escolar, fazem parte do processo ensino/aprendizagem, de acordo com a afirmação de Flecha
(2006) “Todo mundo influencia na aprendizagem e todo mundo deve planejá-lo
conjuntamente.”
É nisso que insistem os estudiosos da linguística aplicada: o ensino tem que fazer
sentido. A leitura, a escrita e também a fala têm de ser usadas para a reflexão e ação na
sociedade, portanto, como isso é a base do ensino de língua materna, nada mais coerente do
12

que usá-los na prática, pois como afirma Ortega e Puigdellívol (2006) “A aprendizagem não
se concentra tanto em encher os alunos com um monte de informações, sem saber o que fazer
com elas”, então as atividades podem gerar um conhecimento mais coerente, como afirma o
professor Francisco:
(Se) um outro professor (disser), „agora vocês vão usar um verbo no
imperativo‟ eles vão dizer: „eu sei o que que é‟ (...), mas se alguém disser assim,
„bom, agora nós vamos fazer um folder‟, eles também vão saber o que que é, então
eles tem a aprendizagem, não é uma coisa só, não foi só um conteúdo de gramática
que ele aprendeu (...)

Também não podemos continuar agindo como se as coisas à nossa volta não
estivessem acontecendo, como se os alunos não vivenciassem a realidade e continuarmos
realizando atividades que servem só para avaliação escolar, pois quando vemos que o que
ensinamos aos alunos faz sentido pra eles, acaba fazendo sentido pra nós também, como
responde o professor Francisco ao ser questionado sobre o que ele observou de positivo no
projeto que ele realizou com a turma:
Aquela produção não ficar „bom, eu vou fazer um texto pro professor ler‟,
(...) achei interessante justamente eles verem o produto, assim, não sendo só um
texto, (...)mas verem um produto, todo, pronto, e que ali está... a escrita,a gramática,
tudo o que eles aprenderam tá ali dentro, então eles vêem , „ah, agora tem sentido
aquilo que eu aprendi‟.

Em muitos momentos desse projeto, surgiram muitas dúvidas, assim como imaginamos
que haja dúvidas na prática da maioria dos professores, até porque, nenhum dos dois
professores colaboradores deste trabalho havia trabalhado com este tipo de projeto ainda,
como a professora Clara relata: “Eu eu criava os meus projetos, assim, só que não com tanta
profundidade.”; e o professor Francisco confirma: “projetos(...) grande, assim como esse,
não.” Mas qual a diferença entre o que realizavam antes (e que a maioria dos professores que
trabalham com projetos faz) e o projeto que realizaram agora? A professora Clara diz que:
Talvez, criava projetos menores, acho que essa é a diferença e o
embasamento teórico, (...) tu tem a troca que eu acho que (o que) realmente
diferenciou é que agora tu tem/eu tenho essas pessoas com quem eu converso que
dão sugestões, que a gente tem uma troca, que eu vejo o projeto dele e „ah, esse/isso
deu certo, é legal no dele, eu vou tentar colocar um parecido no meu‟.

Já o professor Francisco relata que:


Às vezes a gente desenvolve projetos, por exemplo, no ano passado eu fiz
um projeto junto com a professora de matemática, aí entrou a professora de artes
também, e aí a gente desenvolveu um projeto sobre poesia (...)a gente procura/eu
procuro sempre trabalhar junto com outro colega, pra não ficar aquela coisa muito
isolada, não gosto muito. (...) mas sempre pequenos projetos.

Assim, as dúvidas vão surgindo e vão sendo sanadas em conjunto, colaborativamente,


cooperativamente, e vamos sempre aprendendo com a prática também, porque nada é pronto,
13

acabado, como foi expresso pela professora Clara: “na hora que tu tá fazendo, por mais que tu
pense, que tu te prepare (...), é o improviso que reina, (...) às vezes sai completamente fora do
que tu te preparou, do que tu imaginou que fosse a aula, e, às vezes a gente não se dá conta
que saiu fora”, mas de acordo com Britto, Santos e Abud (2005) “O especialista preocupado
com o ensino voltado para a educação linguística deve ter claro seu objetivo em cada aula,
sem lançar mão do improviso e da criatividade.” Assim os projetos podem ir melhorando,
tornando a prática escolar mais fácil de entender.
Trabalhar com gêneros textuais, como foi dito, não é transformar o texto em pretexto,
e nem pegar qualquer texto para “puxar um assunto” na aula. Para desenvolver o trabalho com
gêneros, é preciso primeiro pensar em qual situação real os alunos estão vivendo e que pode
servir de fundo para as aulas, de acordo com o interesse ou necessidade deles.
A partir daí, escolhe-se um ou mais gêneros textuais que poderão fazer o aluno pensar
sobre sua situação social e, paralelo a isso, desenvolver suas habilidades de leitura e escrita. A
princípio, pede-se uma produção textual inicial, sem explicação sobre o gênero aos alunos,
mas a partir do que eles sabem sobre o gênero, que servirá de base para as atividades que
desenvolverão o conhecimento linguístico sobre o gênero (estrutura, função, características e
tópicos gramaticais), preparando-os para a produção textual final que servirá de prática social,
conforme o combinado com a turma, ou o planejado pelo/a professor/a. Em seguida são feitas
aulas/oficinas com atividades variadas para ampliar as condições de escrita dos alunos,
desenvolvendo a leitura, interpretação, escrita e conhecimentos gramaticais da língua, a partir
de suas próprias dificuldades e considerando os conhecimentos prévios.
No caso dos projetos analisados, as produções finais das narrativas de detetive
construídas, servem como reflexão dos próprios alunos sobre sua realidades e que podem ser
melhor aproveitadas se forem publicadas em um mural, blog, livro da turma, ou outro meio de
comunicação; já os forders, vão ser entregues para a comunidade, pessoalmente pelos alunos,
para promover o conhecimento sobre a alimentação saudável. O importante é que o aluno
possa ver o resultado do seu trabalho em uma prática social real, para que veja sentido em ler
sobre o assunto, produzir, analisar e reescrever quantas vezes forem necessárias para que
fique de acordo com o objetivo proposto.
Em relação à gramática, sobre a qual muitos se questionam “Como ensinar gramática
quando trabalho com gêneros?” e da qual não podemos, como professores de língua(s)
esquecer, foi trabalhada a partir das necessidades geradas pela escrita dos próprios alunos para
se adequarem ao gênero. A professora Clara, por exemplo, teve de lançar mão de explicações
e exercícios sobre pontuação, discurso direto e indireto, pronomes (para identificar o
14

narrador), adjetivos (para caracterizar os personagens), sujeito e predicado (para análise da


pontuação e estrutura das frases); já o professor Francisco, trabalhou o tópico gramatical
“verbos no imperativo”, conforme a sua própria fala:
Bom, como a gente tava trabalhando verbos, aí então, eles (...) já sabiam que
tinham que colocar ali um verbo no imperativo, né, (...) „ah, tá, de dar uma ordem‟,
(...) o que interessa nesse momento, „bom eu tenho uma palavra que dá uma ordem,
que dá uma sugestão e eu sei o que colocar e eu sei que neste tipo de produção eu
tenho que colocar, porque as pessoas vão ler e entender, se não vai ficar sem
sentido‟.

O que acontece tradicionalmente, é que muitos professores realizam atividades com


um nome mais moderno, pra tentar mudar a cara da aula, mas nosso entendimento é de que,
assim como afirma Cerqueira (2010), não adianta mudar as atividades só no nome, pra dizer
que não é tradicional, tem que ser na prática, para efetivamente serem atividades que fazem
sentido na aprendizagem.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os vários aspectos sobre o trabalho com gêneros textuais que tentamos expor aqui, já
são indícios de que pode ser muito produtivo, quando há vontade, tempo, disposição e/ou
incentivo, pois observamos que desde a leitura dos textos até o planejamento dos projetos,
apresentação aos colegas da pesquisa e aplicação nas turmas, o projeto “Por uma formação
continuada cooperativa: o desenvolvimento do processo educativo de leitura e produção
textual escrita no ensino fundamental” proporcionou até agora, aos próprios professores, a
leitura e escrita como fim social, fazendo-os refletirem sobre suas ações na prática escolar,
como afirma o professor Francisco: “é um tempo de pesquisa, de tu te inteirar, saber como é
que aquilo ali se estrutura, pra depois tu aplicar pro aluno, né, pra ti poder ter as respostas pro
aluno e, não que o aluno tenha que saber tudo aquilo, mas tu tem que saber.” o professor,
então, tem que adquirir postura de pesquisador, concordando com o que Tinoco (2010)
afirma.
Podemos observar, nas formações, que a maioria dos professores ficam felizes em poder
mostrar o que estão realizando em aula, em compartilhar suas dúvidas e anseios. Pensamos
que as próprias escolas poderiam promover espaços assim, mas muitas fazem suas reuniões
rápidas, só pra dar recados administrativos e não dão chance para os professores conversarem
sobre seus projetos, suas pesquisas, enfim, ouvir suas vozes, como a escola espera que os
professores ouçam as vozes dos alunos.
As reflexões sobre os projetos aqui relatados, permitem que se conclua que o trabalho
com gêneros textuais, levando a realidade para dentro da escola, para que o que se produz na
15

escola reflita na realidade, numa troca contínua, tem condições de mudar a sociedade e fazer
com que a aula se torne muito mais interessante, através de atividades contextualizadas, como
a percepção da professora Clara: “eu tô vendo assim, uma adesão maior ao que tá sendo
trabalhado da parte deles, porque eles estão interessados, né, nas atividades, eles gostaram do
livro, eles querem ver os mistérios do livro.” e enquanto o currículo atual se preocupa em
subdividir a língua para ser ensinada em partes, esquecendo o mais importante que é a sua
constituição, as pesquisas feitas nas universidades provam que a língua é melhor entendida
quando estudada na sua integridade, contextualizada.
Sabemos também que a gramática tem papel importante, mas não primordial e nem
sozinha. Ela pode ser trabalhada através de atividades que desenvolvam habilidades para a
produção do gênero estudado, sem usar um texto como pretexto de atividades tradicionais,
mas constituí-lo como parte importante da aprendizagem. Assim, todos os sujeitos envolvidos
no processo ensino/aprendizagem aprendem, ensinam e desenvolvem sua prática social com
maior senso crítico.

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SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

DIALETOLOGIA E RELAÇÕES PÚBLICAS: PROPOSTAS INTERDISCIPLINARES


PARA O ATLAS LINGUÍSTICO BRASILEIRO (ALIB)

Aline Ferreira Lira1 (PPGLg/UFSC/UFAM)


Felício Wessling Margotti2 (PPGLg/UFSC)

RESUMO

O objetivo deste artigo é discutir ações de Relações Públicas que fortaleçam a imagem do
projeto ALiB por meio do estabelecimento de relacionamento com públicos prioritários. Ba-
seando-se em pesquisa bibliográfica, inicialmente apresenta-se o projeto ALiB, para, em se-
guida, expor as características da divulgação científica, da comunicação científica e das Rela-
ções Públicas. Finalmente, é proposto o estabelecimento de um processo de relacionamento
com públicos prioritários, considerando-se desde a identificação dos públicos até a avaliação
das ações propostas. Este estudo aponta para a necessidade de estabelecimento de cooperação
técnica entre o projeto ALiB e cursos de graduação de Relações Públicas para a consecução
de suas propostas.

Palavras-Chave:
Dialetologia. ALiB. Comunicação Científica. Relações Públicas.

ABSTRACT

The objective of this paper is to discuss actions to strengthen the PR image of the ALIBI pro-
ject through the establishment of relationship with its public. This paper is based on literature
search and initially presents the ALIBI project, and then describes the characteristics of scien-
tific communications and public relations. Finally, we propose the establishment of a process
of public relations, from identification to evaluation of proposed actions. This study highlights
the need to establish technical cooperation project between ALIB and undergraduate courses
in public relations to achieve their proposals.

Keywords:
Dialectology. ALiB. Scientific Communications. Public Relations.

1 INTRODUÇÃO
No Brasil, as referências dialetológicas sobre a língua portuguesa têm início no sécu-
lo XIX, em 1826, quando Domingos Jorge de Barros, o Visconde de Pedra Branca, a pedido
do geógrafo Adrien Balbi, desenvolveu as características dialetais do português do Brasil.
Este trabalho integrou o Atlas Etnographique du Globe, organizado por Balbi (MOTA;
CARDOSO, 2006).

1
Professora Assistente do Curso de Relações Públicas da Universidade Federal do Amazonas (UFAM); bolsista
de Doutorado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM) no Programa de Pós-
graduação em Linguística na Universidade Federal e Santa Catarina (UFSC); e-mail: aline@ufam.edu.br.
2
Professor adjunto do curso de Letras da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e professor do Pro-
grama de Pós-Graduação em Linguística desta mesma universidade; e-mail: wfelicio@cce.ufsc.br.
2

Tradicionalmente, a Dialetologia procura descrever dados linguísticos para que se


obtenham informações sobre os falantes em determinado espaço geográfico. Entretanto, Cose-
riu (1982) esclarece que a língua histórica não se resume apenas à variedade espacial. Segun-
do o autor, é necessário considerar três tipos de diferenciação interna da língua: as diferenças
diatópicas (espaço geográfico), as diferenças diastráticas (entre os estratos culturais) e as dife-
renças diafásicas (modalidades expressivas de acordo com as circunstâncias do falante). Al-
guns estudos, a exemplo de Cardoso (2002), passam a ter como fundamento a Dialetologia
Pluridimensional:
A Dialectologia [é] uma disciplina que assume por tarefa identificar, descrever e si-
tuar os diferentes usos em que uma língua se diversifica, conforme a sua distribuição
espacial, sociocultural e cronológica. [...] Dessa forma, idade, gênero, escolaridade e
características gerais de cunho sociocultural dos usuários das línguas consideradas
tornam-se elementos de investigação (CARDOSO, 2002, p. 1).

Desta forma, o estudo das falas passa a ter a preocupação com o levantamento não só
de aspectos regionais, mas também considera características sociais, culturais, de gênero etc.
Lançando mão de um método específico, a Geografia Linguística3, a Dialetologia permite,
através dos atlas linguísticos, uma percepção ampla de uma língua em seus diversos aspectos,
descrevendo determinada realidade linguística.
[Os Atlas Linguísticos] valem pelo que permitem dizer a partir deles com segurança
e objetividade, mas não dizem tudo. Permitem ver muito em extensão, mas com sa-
crifício da profundidade e do pormenor, embora como inventário preliminar consti-
tuam um ponto de partida mais seguro para aprofundamento dos estudos mais exaus-
tivo de áreas menores que nele se delimitam já então partindo não de pressupostos
extralinguísticos, mas de dados da linguística interna, colhidos ao vivo, que frequen-
temente contrariam todos os pressupostos apriorísticos (FERREIRA; CARDOS,
1994, p. 20).

A realização do Atlas Linguístico do Brasil (ALiB) é uma aspiração dos dialetógos


brasileiros, cujos registros remetem a 1952, quando foi publicado o Decreto 30.643, de 20 de
março, onde consta que “o governo brasileiro, ao definir as finalidades da Comissão de Filo-
logia da recém-criada Casa de Rui Barbosa, determinou como a principal delas a criação do
Atlas linguístico do Brasil” (MOTA; CARDOSO, 2006, p.19).
Apesar dos esforços da Comissão vinculada á Casa de Rui Barbosa, o projeto de um
Atlas linguístico do Brasil somente foi retomado em 1996 por um grupo de pesquisadores
diversas universidades brasileiras, durante um seminário sobre Geolinguísitica realizado na
Universidade Federal da Bahia, constituindo-se, então, um comitê nacional para desenvolver

3
“A Geografia Linguística é o método por excelência da Dialetologia e vai se incumbir de recolher de forma
sistemática o testemunho das diferentes realidades dialetais refletidas nos espaços considerados” (CARDOSO,
2002, p. 2).
3

o projeto, com integrantes de diversas universidades brasileiras (MOTA; CARDOSO, 2006).


Desde então, este grupo tem desenvolvido pesquisas de forma que se possa retratar o portu-
guês brasileiro (CARDOSO, 2003).
Com a proposta de cobrir 250 pontos em todas as regiões do país e entrevistar 1.100
informantes, o projeto ALiB é, na verdade, um conjunto de três subprojetos: na primeira fase,
entre 1996 e 2002, o projeto foi concebido e sua metodologia, definida; entre 2001 e 2006,
foram realizados os inquéritos nas capitais, e paralelamente nos demais pontos da rede, tarefa
já realizada em cerca de 90%. A partir de 2008, foi constituído o corpus e realizada a transcri-
ção dos dados. A transcrição e análise dos dados, entre 2004 e 20011, é a última etapa do pro-
jeto (CARDOSO, 2006).
Além de descrever a realidade linguística do Brasil, tem-se como objetivos do Proje-
to ALiB: fornecer subsídios para o ensino/aprendizado da língua portuguesa; estabelecer a
divisão dialetal do Brasil por meio de isoglossas4; compreender o desenvolvimento da língua
portuguesa por meio de estudos interdisciplinares; prestar serviços linguísticos a gramáticos,
filólogos etc; e contribuir para a compreensão na língua portuguesa (ALiB, 2010).

Teses, dissertações e trabalhos monográficos e apresentações em Congressos nacio-


nais e internacionais, analisando os mais diferentes aspectos da língua portuguesa no
Brasil, com enfoque dialetal e sociolinguístico, têm surgido com grande frequência
no momento atual, mostrando que a Dialetologia, antes vista como área menos nobre
da linguística, está tendo papel dos mais relevantes no âmbito dos estudos linguísti-
cos em nosso país (CARDOSO, 2006, p. 60).

Estão ligadas ao Projeto ALiB 19 universidades públicas brasileiras, e seus pesquisa-


dores já produziram 18 artigos científicos, quatro livros, 23 capítulos de livro, 52 apresenta-
ções orais, além de diversos trabalhos monográficos. Até outubro de 2011, já tinham sido rea-
lizados nove workshops e 33 reuniões do Comitê Nacional.
Apesar da produção significativa de pesquisadores da área, particularmente com re-
lação ao ALiB, alguns, a exemplo de Cardoso (2006), consideram que os estudos de Geogra-
fia Linguística ainda não possuem o papel de relevância que lhes caberia nos estudos da Lín-
gua Portuguesa. Conferir relevância a esta área de estudo, por meio do reforço da imagem

4
“Linha virtual que marca o limite, também virtual, de formas e expressões linguísticas. As isoglossas podem
delinear contrastes e consequentemente apontar semelhanças em espaços geográficos (isoglossas diatópicas),
podem mostrar contrastes e mostrar semelhanças linguísticas socioculturais (isoglossas diastráticas) ou ainda
podem configurar diferenças de estilos (isoglossas diafásicas)”. (FERREIRA; CARDOSO, 1994, p. 12).
4

institucional do ALiB e do relacionamento do Comitê Nacional com os diversos públicos 5 de


interesse é um objetivo que pode ser alcançado por meio das Relações Públicas, com o apoio
da Comunicação Científica.
Camargo, Oliveira e Azevedo (2010) propõem o estabelecimento de breves diálogos
entre Comunicação Social e Dialetologia, já que esta última pode contribuir para a análise das
produções midiáticas contemporâneas. Entretanto, o que se propõe aqui neste artigo é justa-
mente o caminho inverso: de que forma a Comunicação Social, particularmente as Relações
Públicas, podem contribuir para que o projeto ALiB alcance seus objetivos e, principalmente,
reforce sua imagem institucional?
Isquerdo (2003) indica que um dos problemas a ser administrado pelo Comitê Naci-
onal tem sido as dificuldades de comunicação e interação entre as equipes. A autora discute,
também, o desempenho do inquiridor a partir de questões teórico-metodológicas e das rela-
ções humanas. Em ambos os aspectos pode-se contar com as contribuições das Relações Pú-
blicas para que os propósitos do Comitê Nacional sejam alcançados.

2 DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA, COMUNICAÇÃO CIENTÍFICA E RELAÇÕES PÚ-


BLICAS
Quando se fala em divulgação científica, é comum que se remeta apenas ao jornalis-
mo científico. Entretanto, Caldas (apud AFONSO, 2008) esclarece que a divulgação científica
é mais ampla que aquele e pode ser feita também por meio de participação em congressos,
aulas, conferências e workshops e publicação de livros e artigos científicos, dentre outros.
Para Tucherman, Cavalcanti e Oiticica (2010), é a Divulgação Científica que possibi-
lita o uso de dispositivos técnicos e retóricos para realizar a mediação entre as descobertas dos
cientistas e a sociedade, considerando, para isso, inclusive, seus processos políticos. Quando
se trabalha com Divulgação Científica, entretanto, opta-se por propagar determinado conhe-
cimento sem se considerar o interlocutor a quem se dirige determinada informação. “Parece
haver uma tendência em informar as pessoas sobre os avanços da ciência e não em dar-lhes
efetivas condições de que compreendam melhor o mundo que as cerca e de se envolverem em
seu processo” (DUARTE, 2004, s.p.).
Duarte esclarece que a divulgação não é o termo nem a perspectiva mais adequada a
se trabalhar: “mesmo compreendida em sua acepção mais ampla, que sugere sensibilizar, mo-

5
Público – “grupo de pessoas que tem impacto numa organização ou é afetado pelas decisões organizacionais”
(STACKS, 2008, p. 64).
5

bilizar. Divulgação remete a tornar público, anunciar, informar. Acho que o nome do jogo é
comunicação” (DUARTE, 2004, s.p.).
E comunicação implica não apenas em transmissão de mensagens, mas interação. E
esta é a palavra-chave para se compreender o conceito de comunicação, pois este é muito
mais abrangente que o conceito de transmissão e de recebimento de informações, embora in-
clua também esses fatores, uma vez que “ela é muito mais ampla, abrangendo todos os conta-
tos formais ou informais que nos transmitem qualquer espécie de experiência exterior, revigo-
rando ou alterando o nosso comportamento” (ANDRADE, 2001, p.103). A Divulgação Cien-
tífica, nesta perspectiva, passa a ser complementar, ou seja, é necessário um sistema de comu-
nicação e de relacionamento com os diversos públicos que identifique e desenvolva “alterna-
tivas para que as questões sobre ciência penetrem no âmago da sociedade” (DUARTE, 2004,
s.p.).
Para alcançar esse objetivo, Duarte (2004) pondera que existem três caminhos: 1. As
organizações de ciência devem incorporar em sua cultura a preocupação com a comunicação;
2. Ao invés da lógica de disseminação de informações, proporcionar à sociedade a apropria-
ção das questões científicas; 3. Incrementar o relacionamento das organizações de ciência
com seus diversos públicos. “Existem mecanismos e processos para que as pessoas conheçam,
envolvam-se, participem, discutam, questionem a ciência e não apenas sejam informadas so-
bre os seus avanços” (DUARTE, 2004, s.p.). Entretanto, esses processos passam ao largo das
práticas científicas e o potencial do uso da comunicação científica ainda é pouco conhecido.

As universidades brasileiras sabem ser necessário divulgar os frutos do trabalho ci-


entífico, tecnológico, cultural e artístico de seus pesquisadores. Mas a maioria ainda
não se conscientizou da importância de possuir, em sua estrutura organizacional, um
sistema planejado de comunicação, apto a difundir de forma eficaz a sua produção
científica (KUNSCH, 1992, p.9).

Há, portanto, por parte do cientista, a consciência de que, ao revelar seu conhecimen-
to produzido, “impulsiona novos estudos, reflexões, descobertas e coopera para o progresso
da ciência” (PAVAN, 2008, p. 43). E, para que esta difusão aconteça de forma eficaz e siste-
mática, desenvolvendo-se mecanismos de relacionamento e aproximação com os diversos
públicos, criando uma cultura de interesse, por parte desses públicos, pela ciência, de forma
planejada e contínua, é necessária a atuação de um profissional de Relações Públicas.
Grunig e Huang (2000) definem Relações Públicas como a “gestão da Comunicação
entre uma organização e seus públicos” (p.4), o que acaba por igualar a gestão da comunica-
6

ção organizacional às Relações Públicas, termo que muitos profissionais da área preferem
usar porque o termo “gestão da comunicação” é mais bem entendido.
O importante, entretanto, não é que se defina a expressão “Relações Públicas”, e sim
que se compreenda que hoje, devido às características do mercado globalizado, da variedade
de fontes e de formas de comunicação, as instituições (inclusive as científicas) precisam esta-
belecer relacionamento com seus públicos estratégicos – empregados, clientes, órgãos gover-
namentais, imprensa, comunidades, sociedade, acionistas, concorrentes etc. E é esta interação
que possibilita às instituições a compreensão das necessidades de seus públicos e vice-versa,
fazendo com que, por meio da negociação, surja um cenário que irá satisfazer ambas as par-
tes.
A natureza e o papel das Relações Públicas é alterar uma situação presente, talvez
desfavorável, para um posicionamento futuro mais coeso com a direção dada ao ob-
jeto social que se pretende modificar. Com um processo, empregado metódica e sis-
tematicamente, o profissional tem o instrumental necessário para efetivar diálogos
duradouros com os diversos grupos de interessados na organização. (FORTES,
2003, p.40).

Como trabalha com a perspectiva de relacionamento das instituições com seus diver-
sos públicos, é papel do profissional de Relações Públicas, inclusive, contornar um problema
recorrente nas várias áreas da ciência: a resistência, por parte dos cientistas, quanto às trans-
formações operadas por jornalistas em seu discurso, o que, no afã de tornar a linguagem mais
acessível, acaba por gerar interpretações equívocas de sua produção (AFONSO, 2008).

3 DA DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA ÀS RELAÇÕES PÚBLICAS: AS CONTRIBUI-


ÇÕES PARA O ALIB
Para que as ações de relacionamento e fortalecimento da imagem de determinada ins-
tituição aconteça de forma efetiva, é necessário o estabelecimento de um programa estratégi-
co, que cumpra todas as etapas do Processo de Relações Públicas (FORTES, 2003). As pro-
postas desenvolvidas para o ALiB neste trabalho, portanto, não poderiam oferecer soluções
imediatas pautadas apenas na experiência de um profissional. É necessário, portanto, que seja
implementado um processo de identificação, avaliação de atitudes e criação de instrumentos e
técnicas de Relações Públicas e sua posterior avaliação:
3.1 Identificação do público – é necessário que o ALiB defina quem são os grupos
com os quais precisa estabelecer e manter relacionamento e transformá-los em públicos, o que
só vai acontecer a partir do momento em que houver interlocução ou, pelo menos, troca de
informações. Inicialmente, os públicos do ALiB seriam: integrantes do projeto; universidades
7

participantes; agências financiadoras; instituições científicas; sociedade; estudantes e profes-


sores de Letras e Linguística; imprensa.
Para garantir a efetividade das ações de relacionamento promovidas pelo ALiB, é
necessário, entretanto, que sejam determinados os públicos prioritários, a quem, inicialmente,
deverão ser concentrados os esforços de comunicação. Sugere-se que o ALiB adote como
públicos prioritários:
3.1.1 Integrantes do projeto - como já observado anteriormente por Isquerdo (2003),
há necessidade de se promover maior integração e sanar as dificuldades de comunicação entre
as equipes do ALiB, o que pode ser feito utilizando-se o trabalho de comunicação interna. Isto
porque os integrantes do projeto ALiB podem ser considerados como o seu público interno,
ou seja, o grupo de pessoas com quem o relacionamento deve ser mais próximo e, principal-
mente, por ser a partir deles que se podem estabelecer relações satisfatórias com os outros
públicos selecionados. Os integrantes do ALiB são fundamentais na criação de mecanismos
de aceitação social do projeto em todos os outros públicos, uma vez que, para estes públicos,
cada integrante do ALiB representa o próprio projeto. Por isso, este público pode representar
o maior multiplicador e formador de opinião favorável para o ALiB.
Desta forma, o trabalho de relacionamento entre o ALiB e os seus públicos deve ser
iniciado por seus integrantes, que, mostrando “orgulho de pertencer” ao projeto poderão con-
ferir o destaque que o projeto merece mediante os outros públicos.
3.1.2 Instituições Científicas e Agências financiadoras – a partir da visibilidade gera-
da pelas ações de comunicação e relacionamento com esses públicos, será possível não só
consolidar a imagem do projeto ALiB, mas também atrair investimentos para os projetos.
3.1.3 Estudantes e professores de Letras e Linguística – considerando-se os objetivos
do projeto ALiB, este público pode ser considerado como cliente, já que é com eles que de-
vem ser compartilhadas as descobertas do projeto. Com relação aos alunos, estes podem ser
considerados, também, futuros integrantes do projeto, desde a graduação até a pós-graduação.
E, ao se desenvolver ações efetivas de relacionamento com este público, garante-se a conti-
nuidade e ampliação das ações do projeto a médio e longo prazos.
3.1.4 Imprensa – por ser formadora de opinião perante a sociedade, é necessário esta-
belecer relacionamento também com este público, o que contribuirá para a divulgação das
ações do projeto ALiB em todo o território nacional. O relacionamento com a imprensa tem
como objetivo Promover um “relacionamento proativo com a imprensa, oferecendo informa-
ções [...] julgadas pertinentes e de caráter de informação e utilidade públicas” (MARTINEZ,
2003, p. 229). É necessário, portanto, que se estabeleça um trabalho de aproximação entre os
8

pesquisadores do projeto ALiB e a imprensa, para quem deverão ser fornecidas informações
relevantes e confiáveis.
3.2 Análise do comportamento do público – isto pode ser feito por meio de pesqui-
sas quantitativas ou qualitativas, que irão determinar as atitudes e as tendências de cada um
dos públicos acima com relação ao ALiB. Esta análise contribuirá para a elaboração de um
planejamento que melhore a interação e a opinião dos públicos com relação ao projeto. A
pesquisa não deve ser apenas um levantamento de opiniões sobre o que os públicos pensam a
respeito das atividades desenvolvidas. É necessário investigar os hábitos culturais e sociais e a
demanda por informações, principalmente com relação aos integrantes do ALiB.
Algumas questões norteadoras devem ser levadas em consideração ao que desenhar a
pesquisa para análise de comportamento do público:
3.2.1 Integrantes do projeto – quais são as barreiras que impedem a comunicação e a
integração entre as equipes? Quais são os motivos de orgulho de pertencer ao projeto ALiB?
Quais são as necessidades de comunicação e relacionamento deste público com relação ao
projeto?
3.2.2 Instituições Científicas e Agências financiadoras – qual o nível de conhecimen-
to dessas instituições sobre o projeto ALiB? Existe consciência, por parte dessas instituições e
de seus comitês, da relevância das pesquisas desenvolvidas? Quais as necessidades de comu-
nicação e relacionamento dessas instituições com relação ao projeto?
3.2.3 Estudantes e professores de Letras e Linguística – existe consciência, por parte
desses públicos, sobre o conhecimento gerado pelo projeto ALiB que pode contribuir com
suas respectivas ações de ensino, pesquisa e extensão? Qual o nível de conhecimento e inte-
resse dos alunos com relação ao projeto ALiB?
3.2.4 Imprensa – em que ocasiões a imprensa já publicou matérias sobre o projeto
ALiB? Que assuntos/pesquisas do projeto podem ser considerados relevantes para publica-
ção? Qual o nível de conhecimento da imprensa a respeito do projeto ALiB?
3.3 Levantamento das condições internas – a partir do momento em que se conhe-
ce quais são os comportamentos e as atitudes dos públicos mencionados as normas e os pro-
cessos do projeto ALiB devem ser investigados para que ajude a explicar a atitude destes pú-
blicos para com a organização. As condições internas não podem conflitar com as expectati-
vas dos públicos. Se isto acontece, é necessário que haja um processo de negociação entre as
partes. Ou seja, é neste momento que iniciará o processo de ajuste entre o projeto ALiB e os
seus públicos prioritários com vistas a um relacionamento que favoreça a imagem da institui-
ção. É neste momento, também, que os instrumentos de comunicação já utilizados pelo proje-
9

to, como o site, precisa ser avaliado do ponto de vista da imagem e do relacionamento com os
públicos.
3.4 Formulação de políticas – as análises realizadas nas fases anteriores definirão se
é necessário reformular as políticas da organização, com o objetivo de se alcançar a compre-
ensão e a boa vontade dos públicos. É nesta fase, também, que é elaborada a política de co-
municação, que irá nortear o processo de planejamento.
3.5 Planejamento – nesta fase, todos os recursos de relações públicas são utilizados
(instrumentos, técnicas, veículos etc.) para que a política, já reformulada, seja seguida. O or-
çamento é elaborado e os prazos de implementação das ações são definidos nesta fase. No
caso do projeto ALiB, é necessário, ao se planejar ações de construção de imagem e de relaci-
onamento com os públicos, considerar os recursos reduzidos para a comunicação. Ações de
custo reduzido ou, de preferência, sem custo nenhum, deverão ser priorizadas.
3.6 Execução – é a fase mais tangível da comunicação em uma instituição, uma vez
que os materiais elaborados para cada um dos públicos passam a ser concretizados nesta eta-
pa. Normalmente, a execução é a etapa mais visível, porque consiste nos instrumentos de co-
municação em si, mas para que o processo de comunicação organizacional cumpra seus obje-
tivos, é necessário que cada uma das fases sejam cumpridas rigorosamente.
3.7 Avaliação – É por meio desta fase que se irá verificar a eficácia das ações plane-
jadas para o projeto ALiB, permitindo que os programas de comunicação previstos sejam
ajustados de acordo com as necessidades dos públicos e as políticas do projeto ALiB. Esta é a
fase que mais comumente é deixada de lado em processos de comunicação, mas que não é
menos importante que as outras. É justamente a avaliação, seja por meio de pesquisas quanti-
tativas ou qualitativas, ou de reuniões de análise, que irá garantir a eficácia do processo de
comunicação.
Além do trabalho planejado de comunicação e relacionamento com os públicos suge-
ridos neste trabalho, existem outras possibilidades de atuação das Relações Públicas no proje-
to ALiB. “O conhecimento prévio de costumes e hábitos da comunidade e de dados históricos
sobre a região pesquisada é de fundamental importância para o bom andamento do trabalho de
recolha dos dados linguísticos” (ISQUERDO, 2003, p.47). Justamente por trabalhar com ati-
tudes e comportamento dos públicos, as Relações Públicas podem contribuir no desenvolvi-
mento deste levantamento. Além disso, ainda de acordo com a autora, é necessário, para um
estudo dialetológico, o levantamento de informações etnográficas, o que pode contar também
com a contribuição das Relações Públicas.
10

Outro aspecto que as Relações Públicas podem contribuir é na questão cultural. Is-
querdo (2003) aponta para questões deste âmbito quando fala de características físicas, con-
vicções religiosas e ideológicas dos entrevistados. Neste aspecto, os conhecimentos culturais
adquiridos pelas Relações Públicas ao longo do curso de graduação e em suas práticas profis-
sionais também podem contribuir sobremaneira no desenvolvimento das entrevistas realizadas
pelos pesquisadores do projeto.
Isquerdo (2003) considera ainda que as relações humanas merecem atenção especial
do entrevistador e ressalta a importância de se estabelecer uma “relação de empatia com o
informante e [tenha] sensibilidade suficiente para abstrair aspectos de sua realidade cotidiana”
(p. 51). Neste caso, o profissional de Relações Públicas pode desenvolver ações de treinamen-
to de forma que se aperfeiçoem estas habilidades nos entrevistadores.

3 CONCLUSÃO
As Relações Públicas possuem ferramentas que podem contribuir com o fortaleci-
mento da imagem do projeto ALiB, o que facilitará a aquisição de recursos para o desenvol-
vimento de suas atividades, além de reforçar a sua imagem perante os públicos prioritários.
Criar autossuficiência comunicativa entre os membros do ALiB e mediar o relacionamento
destes utilizando-se ações estratégicas deve ser o foco central do trabalho de Relações Públi-
cas desenvolvido para o projeto ALiB.
Sugere-se, para a consecução deste trabalho, o estabelecimento de cooperação técni-
ca entre o projeto ALiB e os cursos de Relações Públicas. Radke e Thun (1996) consideram
que “quanto à cooperação técnica, a geolinguística românica apresenta-se com um país em
desenvolvimento” (p. 46). No caso do projeto ALiB, isto é viável; no caso da Bahia, por
exemplo, onde surgiu o projeto, existem uma instituição estadual6 e quatro particulares7 que
oferecem o curso de Relações Públicas e com as quais se pode fazer um acordo de cooperação
técnica que preveja ações de pesquisa e extensão para que as ações propostas neste trabalho
possam ser concretizadas.
Construir uma imagem pública que facilite o relacionamento com os públicos e a
captação de recursos é um objetivo que pode ser alcançado utilizando-se as técnicas de Rela-
ções Públicas.

6
Universidade do Estado da Bahia (UNEB).
7
Universidade de Salvador (UNIFACS); Unidade Bahiana de Ensino, Pesquisa e Extensão (UNIBAHIA); Uni-
versidade Católica de Salvador (UCSAL) e Faculdade Juvêncio Terra (FJT).
11

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SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

DIFERENÇAS ENTRE INPUT E INTAKE:


EVIDÊNCIAS NA AQUISIÇÃO DE PRONOMES INTERROGATIVOS1

Vera Vasilévski (PNPD-PPGLg/UFSC) 2

RESUMO

Com base na asserção de que uma criança de 26 meses e 08 dias que está adquirindo o portu-
guês brasileiro, apesar de exposta a enunciados de complexidade sintática e lexical (input),
deles só retira o que sua maturidade linguística e cognitiva permite (intake), analisa-se a aqui-
sição de pronomes interrogativos, a partir de tais enunciados. Os dados provêm do arquivo
PAU003, disponibilizado em áudio e transcrição fonética em:
http:/childes.psy.cmu.edu/data/Romance/Portuguese/florianopolis.zip. Utilizam-se os indica-
dores de Scliar-Cabral (1977) e, para localização das unidades, usa-se o programa Laça-
palavras (VASILEVSKI e ARAÚJO, 2011), o qual forneceu 254 itens (100%) para trabalho.
Compara-se o uso dos pronomes interrogativos pelos adultos quando se dirigem à criança e
pela criança e quando falam entre si. Exposta a 219 pronomes interrogativos (o_que, do_que,
que, quem, qual), pronunciados por adultos, a criança produz 35 (14%). Ela deixa de produzir
apenas “do_que”, ao qual é exposta 3 vezes. O pronome mais produzido por ela é “que”, 19
vezes, seguido por “quem”, 9 vezes. Quando os adultos falam entre si, produzem “que” ape-
nas 2 vezes, mas, ao falar com a criança, 67 vezes. Quando falam entre si, os adultos produ-
zem 16 (6%) pronomes interrogativos, mas ao falar com a criança, 203 (86%). Desse modo, a
fala dos adultos, quando dirigida à criança, contém bastantes indagações, que revelam estímu-
los para que a criança fale. Ainda, verifica-se que, nessa faixa etária, a criança está apta lin-
guística e cognitivamente para processar e reproduzir a maioria dos pronomes interrogativos.

Palavras-chave:
Pronomes interrogativos. Linguística computacional. Aquisição da língua.

ABSTRACT

By the assumption that a 26 months and 8 days old child, who is acquiring Brazilian Portu-
guese, despite being exposed to statements of syntactic and lexical complexity (input), just
takes from them what his linguistic and cognitive maturity allows (intake), this paper analyzes
the acquisition of interrogative pronouns, based on such statements. Data come from file
PAU003, which is available in audio and in phonetic transcription at
http:/childes.psy.cmu.edu/data/Romance/Portuguese/florianopolis.zip, and we use Scliar-
Cabral’s (1977) indicators. The program Laça-palavras (Vasilevski and Araujo 2011) was
used for recognizing the units, and it provided 254 working items (100%). We compared in-
terrogative pronouns used by adults talking among themselves, and with the child. In addition,
the child’s use was also examined. Exposed to 219 interrogative pronouns (o_que, do_que,
quem, que, qual), uttered by adults, the child produced 35 (14%). The child did not produce
only “do_que” (about what), to which he was exposed 3 times. The pronoun he produces most
is “que” (what), 19 times, followed by “quem” (whom), 9 times. When adults talked to each
other, they produced “que” only two times, while talking to the child, they produced it 67
times. When they talked among themselves, they produced 16 (6%) interrogative pronouns,
but while talking with the child, they produced 203 (86%). Thus, adult speech, when directed

1
Este trabalho apresenta um dos resultados do projeto Produtividade Linguística Emergente, coordenado pela
Profa. Dra. Leonor Scliar Cabral, que muito colaborou na feitura deste artigo.
2
Pós-doutoranda em Linguística Computacional, LAPLE-UFSC/CAPES; e-mail: sereiad@hotmail.com.
2

to children, contains lots of questions, stimulating the child to answer them. It seems that, at
this age, the child is linguistically and cognitively able to process and produce most of the
interrogative pronouns.

Keywords:
Interrogative pronouns. Computational Linguistics. Language acquisition.

1 INTRODUÇÃO
No período em que está adquirindo a língua, desde a primeira palavra com significa-
do até completar sua gramática, a criança internaliza, pouco a pouco, as classes gramaticais, a
começar por substantivos – [ne'ne], ['gow], [ka'ka] – e verbos que impliquem o atendimento
de necessidades imediatas – ['da], ['abi], ['ki] –, então, dêiticos – como ['esi], ['ki] (/a'ki/) – e,
sucessivamente, vai ampliando o léxico de cada classe e adquirindo outras, até produzir repre-
sentantes de todas elas. Já a compreensão excede a produção, “não somente quanto à proce-
dência, mas quanto ao âmbito. Assim, antes que a criança seja capaz de articular enunciados
de dois ou mais itens, já é capaz de entendê-los, dando respostas adequadas que bem demons-
tram esta compreensão” (SCLIAR CABRAL, 1977, p.18). Percebe-se, então, a necessidade de
se realizarem estudos que enfoquem a aquisição de cada classe gramatical, especificamente, a
fim de se conhecer passo a passo como a criança constrói sua gramática.
Nesse sentido, estudos que tratem da aquisição dos pronomes interrogativos se fazem
pertinentes, pois os pronomes interrogativos são estratégicos na comunicação, posto que eles
funcionam como a incógnita, cuja referência será preenchida pelo interlocutor. Ao conseguir
produzi-los, a criança pode interagir com seus interlocutores, mediante palavras que podem
sozinhas representar questões inteiras. Uma das motivações para a realização deste estudo é a
escassez de trabalhos sobre o tema.
A partir disso, este artigo compara – no que tange à exposição aos pronomes interro-
gativos (input) – os registros da fala dirigida a uma criança de 26 meses e 08 dias de idade
com a fala dos adultos entre si. Em adendo, investiga o efeito da exposição sobre o intake da
própria criança, com o propósito de verificar o que a criança consegue recortar do enunciado
do adulto, inferenciando-se, de sua produção, o que ela usa para construir sua gramática. As-
sume-se que, apesar de exposta a enunciados de complexidade sintática e lexical (input), a
criança em fase de aquisição da língua deles só retira – e principalmente só produz – o que
sua maturidade linguística e cognitiva permite (intake), o que resulta em um léxico infantil
diferente do léxico dos adultos, portanto, também em uma gramática diferente. Tal compara-
ção é feita a partir de dados numéricos.
3

2 REVISÃO DA LITERATURA: RETROSPECTIVA E PERSPECTIVA DAS TEORI-


AS DE AQUISIÇÃO DA LÍNGUA
Neste estudo, trabalha-se com um corpus que foi coletado nos anos 1970, com o ob-
jetivo principal de avaliar qual entre dois modelos linguísticos era superior ao outro, para ex-
plicar o conhecimento sintático e semântico da criança nas fases examinadas, o que justifica a
adoção dos modelos de Chomsky e Fillmore (SCLIAR CABRAL, 1977). Desse modo, cabe
explanar sobre esses modelos e sobre a aquisição da língua, bem como atualizá-los no tempo.
Os fatores que intervêm no desenvolvimento da linguagem verbal são o inato, o ma-
turativo e o ambiental (SCLIAR CABRAL, 2003). Um dos primeiros pesquisadores a estudar
a aquisição da linguagem foi Charles Darwin, no século XIX, que se ocupou da filogênese e
da ontogênese, pois, na evolução, ambas deviam ser tratadas. Apesar disso, a ontogênese em
Darwin é pouco conhecida, e ele não fez propriamente uma teoria sobre o tema. As teorias
sobre aquisição da linguagem somente se consubstanciaram em meados do século XX, base-
ando-se muito em teorias linguísticas como a de Chomsky e a de Fillmore que, no entanto,
não são teóricos específicos de aquisição da linguagem.
Os estudos de Chomsky, que se iniciaram nos anos 1950, giram em torno de tentar
explicar, a partir da teoria gerativista, como, em um espaço tão curto de tempo, uma criança
exposta a dados imperfeitos – conversas superpostas dos adultos, às vezes ininteligíveis – dá
como output a esse input a gramática de sua língua. A postura epistemológica de Chomsky a
essa questão é inatista. Primeiramente, ele defendia que as estruturas eram inatas, depois
Chomsky substituiu esse conceito por princípios constitutivos da gramática universal. De
acordo com o modelo inicial, as regras da gramática seriam geradas a partir de um símbolo
axiomático S (sentença), ou seja, uma verdade inquestionável, que não precisa ser provada
empiricamente. Destituída de um componente semântico e sem regras de restrição, a gramáti-
ca gerava cadeias anômalas, como *“a cadeira pensa”, *“a mesa dorme”. Desde 1957, Cho-
msky tem influenciado fortemente as pesquisas em aquisição e processamento da língua, para
não mencionar, evidentemente, a Linguística.
Em contraposição às implicações da centralidade do componente sintático, os seman-
ticistas postularam teorias que centralizavam o componente semântico – sobressaiu a de Fill-
more, com a gramática de casos (1968). Essa teoria mostra os papéis semânticos (roles), o
caso, ou seja, o que é o agente, o que é o objeto, o que é o instrumento, em um marco verbal.
Fillmore argumenta que o papel semântico explica os fenômenos, porque, por exemplo, o
objeto ou até o instrumento pode estar na função de sujeito, como em “O martelo quebrou a
janela” e “A janela quebrou”: o instrumento e o objeto assumem a posição de sujeito, embora
4

não sejam agentes, pois o martelo não pode praticar a ação de quebrar a janela, assim como a
janela não pode praticá-la.
A aplicação a esses dois modelos das medidas da filosofia das ciências, como a da
simplicidade, da coerência interna e da previsibilidade, demonstrou que ambos são inadequa-
dos para explicar os dados do corpus, ou seja, a aquisição da língua pela criança pesquisada –
o sujeito Pá –, bem como a aquisição da sintaxe e da semântica (SCLIAR CABRAL, 1977).
Nos dias atuais, a autora da pesquisa sugere aplicar aos dados o modelo competitivo de aqui-
sição da língua (MACWHINNEY, 2005), por exemplo.
Desde a década de 1970, houve muitas evoluções e deslocamentos teóricos, não so-
mente sobre a questão da centralidade do componente linguístico, como também sobre a de-
limitação das unidades linguísticas a serem pesquisadas. Chomsky priorizou a centralidade da
sentença, da mesma forma, Fillmore priorizou a centralidade do componente semântico. Ape-
sar de a análise do texto já ter sido iniciada pelo Círculo de Praga, somente a partir da década
de 1960 as unidades de análise passaram a ser, por um lado, o discurso (Análise do Discurso),
e, por outro, o texto (Linguística Textual). Em decorrência, os pesquisadores em aquisição da
linguagem passaram a ocupar-se, sobretudo, com estudar o desenvolvimento da competência
comunicativa e pragmática. Isso não quer dizer que as pesquisas sobre a construção da gramá-
tica pela criança e sobre a influência do input confirmar ou desconfirmar as teorias sobre
aquisição da linguagem tenham saído de cena. Essa linha de investigação foi seguida por Ro-
ger Brown, que conduziu a pesquisa mais importante de aquisição da linguagem no século
XX.
Brown (1973) foi bastante influenciado por Piaget (1971, 1999), autor da Epistemo-
logia Genética, ou seja, da gênese do conhecimento, inclusive sobre a linguagem. Piaget divi-
diu a gênese do conhecimento em quatro fases: sensório-motora, pré-operacional (pré-
operatória), operatória concreta e fase operatória formal ou hipotético-dedutiva. Brown tam-
bém abordou as fases de aquisição da linguagem, definidas por ele como pré-linguagem, holo-
frástica (um só item), fase de dois itens, até que, por volta dos 36 meses a 48 meses, a criança
está com sua gramática construída. Para determinar as fases, Brown elaborou medidas, sendo
a principal delas a Extensão Média do Enunciado (EME) – Mean Length of Utterance (MLU)
– segundo a qual o tamanho crescente do enunciado assinala cada fase. Brown parte do prin-
cípio de que existem limites de processamento, principalmente de processamento da memória
de trabalho, e também limites cognitivos. Em virtude disso, quanto mais jovem for a criança,
menor será o número de itens que podem constar em cada enunciado.
5

Então, inicia-se com um item (fase holofrástica), e passa-se ao estágio 1 (quando a


criança está com aproximadamente 24 meses de idade), em que o MLU é 1,45-1,5, e ainda há
muitos enunciados de um item, mas se conta a média de itens por enunciado. Por volta de 18 a
24 meses, surgem frases de dois ou três elementos, ou seja, a sintaxe. Começam a aparecer as
primeiras flexões (plural). As orações negativas são utilizadas por meio do “não” isolado ou
colocado no final, por exemplo, “dormir não”. As interrogativas “cadê” e “onde” são as mais
primitivas. No estágio 2 (aproximadamente 30 a 36 meses), o MLU é em torno de 2,25. No
estágio 3 (aproximadamente 36 a 42 meses), o MLU é 3,5. Finalmente, no estágio 4 (por volta
dos 48 meses), o MUL é 4,0. Assim, para cada fase, há uma medida. O MLU foi comparado
na aquisição das mais variadas línguas, inclusive em línguas não indo-europeias, línguas de
estruturas diferentes, flexivas, não-flexivas. Esse limite de itens por enunciado é universal, e
aumenta à medida que a criança avança na aquisição da língua, seja esta qual for.
A partir disso, afirmar que, por volta dos 4 anos de idade, a criança está com sua
gramática construída significa dizer que a criança já adquiriu o “esqueleto”, metaforicamente
falando, de sua língua, o qual sustenta o corpo que o recobre. Fundamentalmente, essa gramá-
tica é revestida dos paradigmas morfológicos da língua. Uma característica desses paradigmas
em todas as línguas é que são em número pequeno, portanto, limitado. Ainda, qualquer língua
tem um número determinado de elementos por paradigma, e não aceita a entrada de quaisquer
outros elementos nele. Assim, a criança, ao atingir esse limite, adquire o esqueleto da língua,
ou seja, sua gramática. Considera-se, então, que os paradigmas estão fechados. Apesar disso,
já se provou que nessa fase a criança não adquiriu algumas categorias. É o princípio da dis-
tância máxima e mínima nas orações reduzidas (C. CHOMSKY, 1969). Mesmo assim, uma
criança por volta dos 36-48 meses de idade, mesmo que não tenha adquirido toda a competên-
cia gramatical – há pessoas que nunca dominarão certas construções complexas de sua língua
–, já adquiriu o esqueleto fundamental de sua língua, ou seja, está com os paradigmas forma-
dos, com a gramática formada. Desse modo, a aquisição da língua não depende da inteligên-
cia.
O sujeito Pá, então, não estava com sua gramática pronta quando o corpus foi coleta-
do. A gramática foi depreendida pela pesquisadora (SCLIAR CABRAL, 1977), a partir da
produção linguística oral: as regras geravam cadeias compatíveis com o que a criança enunci-
ava em cada fase. Por exemplo, como a criança praticamente não tinha períodos compostos
por coordenação – o “e” que ela produzia era apenas um continuativo – então, ela ainda não
tinha uma gramática que gerasse períodos coordenados. Nessa metodologia, a gramática é
depreendida dos dados, não se hipotetiza a priori que a criança já está com os princípios uni-
6

versais, para deles selecionar os parâmetros que afinem com aqueles da língua à qual a crian-
ça está exposta. A depreensão de uma gramática pelo pesquisador dá-se, pois, a partir dos
dados que o falante produz, e posteriormente poderá confirmar ou desconfirmar propostas
teóricas.
Um dilema metodológico em aquisição da linguagem diz respeito à delimitação dos
estados de língua. Para dar conta da descrição de um estado de língua, da sincronia, Saussure
abstraiu o fator tempo, fazendo um recorte, pois a língua continua se modificando constante-
mente. Para se depreender a gramática de uma criança, evidentemente, para determinar em
que fase ela está, é preciso fazer da mesma forma: um corte temporal. No entanto, isso impli-
ca alguns problemas. As mudanças na criança ocorrem muito mais rapidamente do que as
mudanças que se dão de um estado de língua para outro. Numa criança, as modificações lin-
guísticas são rápidas, e a proposta (SCLIAR-CABRAL, 1977) para dar conta dessas mudan-
ças e até para explicar o que está acontecendo na mente da criança, em que conhecimento da
gramática ela se apoia para produzir uma coisa e não outra, é que na criança convivem três
gramáticas simultaneamente: uma gramática que ela está deixando; a gramática que é predo-
minante; e prenúncios da gramática seguinte. Por exemplo, na primeira fase, do MLU 1,45,
em torno de metade dos enunciados são de um item e a outra metade é de enunciados de dois
itens. Os enunciados de um só item atestam a fase que ela está deixando, os dois itens, a fase
predominante, mas outra medida, o upper bound (enunciado maior que a criança já produz),
demonstra a fase que está por vir ou até outra subsequente: na primeira fase de Pá, essa medi-
da é de cinco itens. Então, ela está deixando a fase holofrástica, mas essa fase ainda está lá,
com resquícios. É a gramática da fase holofrástica.
Na fase de dois itens, começa a sintaxe, a partir da articulação de duas classes grama-
ticais. Antes disso, não existe sintaxe. Observa-se que essas articulações são, por exemplo,
verbo + objeto, e não há predicação do sujeito. Então, a estrutura sintática, por exemplo, não é
frase nominal + frase propositiva. Assim se caracteriza o conhecimento que está predominan-
do, já há uma sintaxe. Ocorrem construções possessivas: [pa'patu ne'ne]. Não há preposição, é
justaposição, e não há determinante. A criança começa a apresentar marcadores de lugar, par-
tículas que começam a marcar o lugar das preposições, por exemplo, já anunciando a fase
subsequente. Desse modo, antes de a gramática estar acabada (paradigmas fechados), convi-
vem três gramáticas inacabadas na criança (SCLIAR CABRAL, 1977).
Por fim, cabe lembrar que, em se tratando de delimitar fases, também se deve levar
em conta que cada criança utiliza diversas estratégias no processo comunicativo, e cada uma
tem seus estilos, decorrentes de sua personalidade. Crianças não adquirem a língua ao mesmo
7

tempo, nem do mesmo jeito. Uma diferença que foi muito estudada, discutida e observada é
que a aquisição da língua decorre da atenção seletiva, ou seja, de para o que a criança direcio-
na sua atenção de forma privilegiada. Algumas crianças direcionam sua atenção, privilegia-
damente mais para um item em relação com a referência. Essas crianças, por exemplo, usam
uma estratégia muito comum, a de apontar: elas usam bastante o denominador, que aparece na
primeira fase: “ó, ó” ou “qué, qué”. Nessas crianças, observa-se, na produção, que os enunci-
ados são mais curtos, constituídos de um só item, de dois itens, mas eles são mais bem articu-
lados fonológica e foneticamente. Já outras crianças são mais globais, direcionam a atenção,
por exemplo, para a entoação, para o enunciado em seu todo. Nesse caso, a criança fala bas-
tante, mas não se entende o que ela está dizendo (SCLIAR-CABRAL, 1977). Assim, a delimi-
tação de fases exige metodologia rigorosa.

2.2 Classe sintática Pronomes


Também cabe uma atenção mais teórica, embora breve, para a classe gramatical do
presente trabalho. Tal definição faz-se necessária, para documentar esta pesquisa e credibili-
zar a classificação feita no corpus. Os pronomes constituem uma classe gramatical de substi-
tutivos, com significação puramente gramatical, pois têm função anafórica, de modo que per-
mitem a recuperação da referência. “Ao contrário do nome, o pronome nada sugere sobre as
propriedades por nós sentidas como intrínsecas no ser [...]” (CÂMARA JR., 1986, p.78).
8

2.2.1 Pronomes interrogativos


Os pronomes interrogativos são incógnitas, cuja referência deverá ser preenchida pe-
lo interlocutor. São utilizados em perguntas diretas ou indiretas, enquanto os indefinidos inde-
terminam a referência. Dentre eles, incluem-se “quem”, “que”, “o_que”, “qual”, “quanto”.
Assim, é redundante dizer que a base para a categorização da palavra como pronome interro-
gativo é sua função no enunciado.

3 METODOLOGIA
Como se percebe, alguns pontos metodológicos foram discutidos na seção anterior.
Parte-se de um corpus coletado mediante gravação (6h), convertida para formato computacio-
nal (wma e mp3) e transcrita em programa próprio, o CLAN (MACWHINNEY, 2010). O
corpus é formado por enunciados orais entre uma criança (alvo) e três adultos: (a mãe (MOT),
a investigadora (INV) e o pai (ISI) – outros adultos comparecem esporadicamente. O corpus
corresponde à terceira fase do sujeito Pá, quando a criança estava com 26 meses e 08 dias, e é
composto por mais de 4.000 enunciados, sendo 713 retirados do corpus da criança para a de-
preensão das gramáticas por Scliar Cabral (1977), conforme os preceitos de Roger Brown
(1973), para fins de comparabilidade com as gramáticas de outras línguas em aquisição. Até
hoje não se encontrou outra saída, no caso de aquisição de linguagem, “do que colher um cor-
pus das crianças estudadas, para depois depreender as gramáticas que dariam conta de tais
enunciados” (SCLIAR-CABRAL, 1977, p.13). Para conferir mais segurança à pesquisa, deve-
se trabalhar com uma massa realmente densa de dados (VASILÉVSKI, 2007), coletada e or-
ganizada sob rígida metodologia, tal como foi feito na coleta e no tratamento do corpus de
trabalho. A metodologia completa pode ser acessada em Scliar Cabral (1977).
Usou-se um programa específico para trabalho com PB – o Laça-palavras – para aná-
lise estatística e qualitativa dos dados. O desenvolvimento do Laça-palavras (VASILÉVSKI e
ARAÚJO, 2011) iniciou-se em 2010 e perdura até o presente, no Laboratório de Produtivida-
de Linguística Emergente (LAPLE) da Universidade Federal de Santa Catarina. Por meio des-
se programa, procedeu-se a tabulação e conferência de todas as classes sintáticas das palavras
presentes no corpus, dentre elas, Pronome Interrogativo, à qual se atribuiu o código pro_int. A
seguir, classificaram-se os enunciados do corpus de acordo com o participante que o enunciou
e a quem cada enunciado se dirigia. As classificações e codificações para essa etapa foram:
diálogo entre adultos (Ad-ad); diálogo entre um adulto e a criança (Ad_chi); e enunciado pro-
ferido pela criança, que sempre se dirigia a um adulto (Chi). Finalmente, cruzaram-se os da-
dos relativos à categoria sintática Pronome Interrogativo com os dados relativos enunciadores.
9

3.1 Classificação dos dados


Como o contexto situacional é importante para a interpretação dos enunciados, o La-
ça-palavras permite visualização de até três enunciados anteriores e três posteriores ao enun-
ciado em análise, para comprovação da classificação atribuída à ocorrência. Desse modo, por
meio do programa, encontraram-se os seguintes pronomes interrogativos, com suas respecti-
vas quantias: “o_que” (61); “do_que” (3); “que” (88); “quem” (90); “qual” (12), o que totali-
zou 254 dados para análise, distribuídos em cinco tipos. Eis alguns exemplos:

Ad_ad
*INV: o_que que é (..)
*INV: que que é isso ?
*INV: a casa de quem é?
Ad_chi
*MOT: que mais ?
*ISI: quem caiu ?
*MOT: qual é ?
Chi
*CHI: o_que (é) isso ?
*CHI: quê ?
*CHI: e qual é esse ?

Cabem esclarecimentos quanto à locução “o_que”. Uma solução para equacionar o


difícil problema da delimitação das locuções, cujos termos vêm ligados por _, é aplicar o teste
da impossibilidade de separá-los pela interpolação de outra palavra. Assim, o teste da comuta-
ção mostrou que “o que” forma uma locução, e se assemelha à forma inglesa what. Do mesmo
modo ocorre com “do que”, que então se torna o pronome interrogativo mais complexo, por
ser composto por preposição + artigo + pronome.
Uma verificação preliminar apontou que “o_que” e “que” são variações do mesmo
pronome, no entanto, como a diferença morfológica entre eles é clara – pois um é composto
por artigo e o outro não –, em respeito à escolha morfológica, optou-se por não agrupá-los.
Após isso, procedeu-se a análise, para verificar o que os números obtidos revelavam.
10

4 ANÁLISE DOS DADOS


Considerando-se a classificação feita, “quem” e “que” ocorrem em quantidades simila-
res, com diferença percentual de décimos de vantagem para o primeiro e, a seguir, vem
“o_que” com bom percentual de ocorrência. Os próximos ocorrem pouco: “qual” chega a 5%
das ocorrências, mas “do_que” ocorre em torno de 1%.

Gráfico 1 – Distribuição quantitativa dos pronomes interrogativos.

qual
5% o_que
quem
24%
35%

do_que
1%

que
35%

Chama a atenção no Gráfico 2 o percentual de pro_int que os adultos usam ao se di-


rigir à criança, em comparação com o percentual de pro_int que usam ao falar entre si. Isso
sugere uma estratégia de ensino para estimular a criança a rotular a experiência. Os adultos
enunciaram 86% (219) dos pro_int, enquanto a criança enunciou 14% (35), ou seja, há per-
centual considerável de produção pela criança.
11

Gráfico 2 – Percentuais de pronomes interrogativos entre participantes.

Chi Ad_ad
14% 6%

Ad_chi
80%

Gráfico 3 – Quantidades de pronomes interrogativos enunciados por adultos e criança.

do_que; 0
qual; 2
o_que; 5
Chi
quem; 9

que; 19

do_que; 3

qual; 10
o_que; 56
Ad
quem; 81

que; 69

-10 10 30 50 70 90

Não se constata relação direta de quantidade entre os pronomes interrogativos enun-


ciados pelos adultos e os produzidos pela criança, pois o pro_int que ela mais ouviu não foi o
pro_int que ela mais produziu. O predomínio de “quê” sobre “quem” confirma os achados
anteriores de que a criança privilegia, no início, o papel do objeto, em detrimento do papel de
agente (SCLIAR CABRAL, 1977). Ainda, cabe assinalar que o [u] que consta na locução
“o_que” tem mínima saliência perceptual e não acresce nada do ponto de vista gramatical ou
12

comunicativo. Em função disso, é valido agruparem-se os pro_int em pronomes interrogativos


objetivos (“do_que”, “o_que”, “que”) e pronomes interrogativos subjetivos (“quem”, “qual”),
para mais bem observar a situação, como mostra a tabela 1.

Enunciador Pro_int_obj Pro_int_subj Relação


(a) (b) a/b
Ad_ad 128 91 1,41
Ad_chi 117 86 1,36
Chi 24 11 2,18

Tabela 1 – Relação entre pro_int_obj e pro_int_subj.

A Tabela 1 mostra que os pronomes interrogativos objetivos sempre ocorrem em


maior quantidade nos enunciados do corpus. A relação correspondente à produção da criança
(24/11) demonstra que, para cada pronome subjetivo produzido, a criança produz em torno de
2 pronomes objetivos. A mesma relação aplicada à fala dos adultos mostra que, tanto ao con-
versarem entre si como na fala dirigida à criança, a relação se mantém semelhante (1,41 e
1,36, respectivamente). Desse modo, além de nos enunciados em geral sempre haver maior
produção de pronomes interrogativos objetivos, destaca-se que a criança os produz mais do
que o dobro de vezes (2,18), como dito, em relação aos pronomes interrogativos subjetivos.
A criança não produziu um dos pro_int a que foi exposta, embora o tenha compreen-
dido nos enunciados em que eles apareceram, uma vez que eles se dirigem a ela. Esse pro_int
que ela não produziu é o mais complexo deles, como mencionado. Entende-se que a criança
compreende esse pronome, porque ela responde satisfatoriamente à indagação em que ele
aparece no corpus:

*INV: do_que que você gosta mais aí;; hein ?


*CHI: uma aí .

Novamente, na resposta, a criança omite a preposição que comparece no pronome in-


terrogativo, exigida pelo verbo “gosta”. Isso demonstra o que ela consegue recortar (intake)
nessa fase.
13

Gráfico 4 – Agrupamento de participantes por pronome interrogativo.

80 76
70 67
60

50 47

Q 40 Ad_ad

30 Ad_chi
19
Chi
20
9 9 10
10 5 5
0 3 0 2 0 2
0
o_que do_que que quem qual
Pro_ Int

A criança é exposta diretamente a todos os pro_int que aparecem no corpus, pois


mesmo os pronomes “qual” e “do_que”, que ocorrem pouco, não ocorrem em enunciados
Ad_ad, mas sim em enunciados Ad_chi.

5 CONCLUSÃO
A comparação proposta neste trabalho mostra que o alto percentual de pronomes in-
terrogativos (pro_int) produzidos pelos adultos ao falar com a criança se deve a estímulos
para que ela fale, interaja com eles e, sobretudo, desenvolva o léxico para referenciar. Cabe
assinalar que vários pro_int enunciados pela criança são em repetição ao adulto, bem como os
adultos, ao falar com a criança, também os repetem.
Nessa faixa etária (26 meses), a criança está madura linguística e cognitivamente pa-
ra processar e compreender todos os pronomes interrogativos a que é exposta, bem como para
reproduzir a maioria desses pronomes. Assim, grande parte do input foi transformado em in-
take, pois se verificou que ele foi compreendido pela criança e quase todo esse input foi pro-
duzido em seus enunciados, à exceção do interrogativo precedido pela preposição, em virtude
de limites linguísticos.
Por fim, cabe dizer que uma análise dos enunciados em si – um a um – complemen-
taria os apontamentos feitos, pois aqui se trabalha, sobretudo, com levantamentos numéricos,
ou seja, agrupamentos. Outras perspectivas enriqueceriam a pesquisa, e cotejos entre elas se-
riam certamente esclarecedores, bem como comparações com estudos feitos com outros cor-
pora. Faz-se relevante desenvolver estudos sobre o tema, pois uma busca em portais eletrôni-
14

cos de periódicos e em buscadores da rede mundial de computadores mostrou que quase nada
há pesquisado e divulgado sobre o assunto especificamente.

6 REFERÊNCIAS
BROWN, R. A first language: the early stages. Cambridge: Harvard University
Press, 1973.

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MIT Press, 1969.

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(1923).

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VASILÉVSKI, V. e ARAÚJO, M. Laça-palavras – programa eletrônico para análise linguís-


tica. v.1. Laboratório de Produtividade Linguística Emergente (LAPLE), UFSC, Florianópo-
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VASILÉVSKI, V. Aspectos histórico-teóricos da Lingüística de Corpus: surgimento, abando-


no, levante e uso. In: GERBER, Regina Márcia e VASILÉVSKI, Vera (Orgs.). Um percurso
para pesquisas com base em corpus. Florianópolis: Editora da Ufsc, 2007.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

ENSINO-APRENDIZAGEM DE LÍNGUA PORTUGUESA POR ALUNOS SURDOS:


UMA ANÁLISE SEGUNDO A TEORIA DE KRASHEN

José Carlos de Oliveira (UFSC)1

RESUMO

O presente trabalho apresenta uma análise do processo de ensino-aprendizagem da Língua


Portuguesa por alunos surdos como segunda língua, a partir da abordagem natural proposta
por Stephen Krashen, considerando a retrospectiva histórica do processo de educação desses
indivíduos. Busca identificar e analisar o papel da aprendizagem implícita e explícita, dentro e
fora da sala de aula e da mediação do professor no processo educacional considerando não
apenas as línguas envolvidas no processo, mas também, fatores culturais e o ambiente em que
tal processo ocorre. Para a transcrição dos dados, buscou-se identificar as bases educacionais
e as abordagens através de questionário escrito e encaminhado via mensagem eletrônica, cujos
participantes variam em: faixa etária, grau de escolaridade e região. Espera-se que a análise
das experiências contribua para os estudos lingüísticos na área de educação de surdos; uma
vez que esses indivíduos se encontram em déficit com relação ao aprendizado da Língua
Portuguesa.

Palavras chave:
Educação de surdos. Abordagens educacionais. Ensino de língua estrangeira.

ABSTRACT

This work presents an analysis of the teaching-learning Portuguese for deaf students as a
second language, from the natural approach proposed by Stephen Krashen, considering the
historical background of the education process of these individuals. Seeks to identify and
analyze the role of implicit and explicit learning, inside and outside the classroom and the
mediation of the teacher in the educational process considering not only the languages
involved in the process, but also cultural factors and the environment in which this process
occurs. For the transcription of data, attempted to identify the educational foundations and
approaches through written questionnaire and sent via e-mail, with participants ranging in:
age, education level and region. It is hoped that the analysis of the experiences contribute to
the linguistic studies in the field of deaf education, since these individuals are in deficit with
relation to the learning the Portuguese language.

Keywords:
Education of the Deaf. Educational approaches. Teaching foreign language.

1 INTRODUÇÃO
O ensino-aprendizagem da língua portuguesa para surdos tem sido tema de diversos
estudos desenvolvidos à luz de diferentes perspectivas teóricas. As quais por muito tempo
levaram a acreditar que as dificuldades de aprendizagem desses indivíduos estavam

1
Graduado em Letras – Inglês; Graduado em Letras Libras; Especialista em Linguística; Mestrando em
Linguística, linha de pesquisa “Língua Brasileira de Sinais”; e-mail: mafortte@yahoo.com.br.
2

relacionadas ao déficit cognitivo imposto pela própria surdez (SVRTHOLN, 1994; VATSON,
1994). Porém, essas teorias não consideravam os surdos enquanto usuários de uma língua de
sinais como sendo esta sua língua natural (primeira língua – L1), e nesse sentido as práticas de
ensino de língua portuguesa para surdos tem sido a mesma usada para os alunos ouvintes,
prática mais conhecida como oralismo.
Outros estudos recentes enfocam a abordagem bilingue que tem como instrumento a
aceitação da surdez enquanto uma diferença, uma cultura, e da língua de sinais na condição de
sua primeira língua. Sendo que a partir desse instrumento se processa o ensino-aprendizagem
da língua portuguesa – L2 para esses indivíduos.
Muitos são os estudos desenvolvidos na área de linguística que visam identificar as
dificuldades dos alunos surdos em adquirir e/ou desenvolver certas habilidades na língua
portuguesa, principalmente as referentes a leitura e escrita. Porém, poucos se preocuparam em
entender como se processa a aquisição de conhecimentos pelo aluno surdo.
Considerando as duas situações apresentadas acima ainda constantes nas salas de aula das
escolas brasileiras, bem como os conhecimentos adquiridos durante a participação na
disciplina de Ensino e Aprendizagem de Língua Estrangeira do curso de pós-graduação em
Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina, optou-se por elaborar o presente
trabalho com o intuito de identificar o papel da aprendizagem explícita e implícita da língua
portuguesa, dentro e fora da sala de aula composta por surdos. Tendo como base para a
análise dos dados coletados e os pressupostos teóricos os apresentados por Krashen na teoria
natural de aquisição de segunda língua, por entender que este é o que melhor a se enquadrar
no processo de aprendizagem da segunda língua pelos surdos.

2 UMA TRAJETÓRIA MARCADA POR CONQUISTAS E FRACASSOS


Ao longo da história da educação, as pessoas surdas sempre ficaram a margem,
tratadas como incapazes de aprender uma língua, ou mesmo de desenvolver qualquer outro
tipo de aprendizado. Era lhes negado o direito à educação e por conseqüência o direito de
expressar suas habilidades e capacidades, assim como o exercício da cidadania.
Na antiguidade, seguindo Aristóteles, a sociedade considerava os surdos como
incapazes de raciocinar pelo fato de não possuírem linguagem, sendo marginalizados e
inclusos entre os deficientes mentais e doentes, muitas vezes condenados à morte. No entanto,
por volta do ano 360 a.C. Sócrates declarou que era aceitável que os surdos se comunicassem
com as mãos e o corpo.
3

Por volta de 700 d.C é que se observa o início do processo de aceitação da surdez e do
sujeito surdo, quando John Beverley ensinou um surdo a falar pela primeira vez. Fato este que
o consagrou como o primeiro educador de surdos.
Durante o século XVII muitos educadores se destacaram no ensino de alunos surdos,
usando o alfabeto e gestos para instruir na escrita. Na mesma época surgem os primeiros
escritos sobre as maneiras de ensinar os surdos a ler e a falar por meio do alfabeto manual,
dentre eles o mais notável foi o Abade Charles Michel de L’Epée que em 1760 fundou a
primeira escola de surdos em Paris. Seu método de ensino era através da Língua Gestual
(língua de sinais). Ele acreditava que os surdos eram capazes de possuir linguagem, podendo
assim receber formação religiosa, porém conseguiu além desse objetivo a formação e
desenvolvimento integral do surdo, tornando-o capaz até mesmo de defender-se legalmente
em tribunais, utilizando-se de método combinado2(SILVA, apud QUADROS 2006 p. 16 -
25).
A decadência no processo administrativo, a redução do número de professores surdos
do Instituto de Surdos de Paris e a fundação de uma escola privada para surdos, onde usava-se
o método oralista, levou a formação de duas frentes ideológicas. De um lado os defensores do
método oralista e de outro lado os defensores do gestualismo, que culminou com a realização
do Congresso de Milão em 1880, cujos princípios elaborados e aprovados para a educação dos
surdos decretou que a Língua Oral deveria constituir o único objetivo do ensino (SILVA,
2006, p.26).
Assim, a pedagogia surda que ora se baseava na metodologia visual e cultural através
de Língua de Sinais nas escolas, foi substituída pela pedagogia corretiva, isto é, em forma de
terapia e os surdos deixam de vender a força de seu trabalho para entrarem num processo de
medicalização da surdez, ficando seu desenvolvimento cognitivo condicionado ao maior ou
menor conhecimento que tinham os alunos surdos da língua oral.
No transcurso de quase um século os surdos resistem às deliberações impostas pelo
Congresso de Milão. Resistência esta originada pela própria dificuldade de aprendizagem
colocando em cheque a abordagem oralista e mesmo com o advento de tecnologias de apoio
como o uso de aparelhos auditivos, por volta de 1960 inicia-se uma reviravolta na história da
educação dos surdos com o advento da comunicação total, tendo como seu expoente os
estudos de Willian Stokoe, que em sua evolução deu origem ao bilinguísmo (STOKOE,
1976). A comunicação total foi baseada no uso de todos os mecanismos necessários à

2
O método combinado centrava-se no uso de gestos (sinais), baseando-se em princípios visuais para educação
dos surdos. Ao surdo é ensinado através da visão, aquilo que às outras pessoas é ensinado através da audição.
4

compreensão e desenvolvimento escolar do surdo e mais tarde fora subdividido em duas


estratégias: o ensino de primeira e segunda língua - no caso dos surdos, compreendem aqui a
Língua de Sinais e a Língua Portuguesa comumente conhecida como prática de educação
bilingue.

2.1 Ensino de Língua Portuguesa para alunos surdos: algumas experiências


A maioria dos alunos surdos chega à escola com uma defasagem linguística
significativa, tanto em Língua Portuguesa como em LIBRAS. Justamente por não possuirem a
compreensão necessária dos conceitos e dos significados das palavras, o que compromete o
seu desempenho acadêmico em relação à leitura, interpretação e à estrutura lingüística de
textos, impedindo, ao mesmo tempo, a boa interlocução e interação com a sociedade.
O desenvolvimento linguístico do surdo acontece quando adquirem a Língua de Sinais
o mais cedo possível, sendo esta sua primeira língua e adquirida de forma natural. Assim,
desenvolvem precocemente seu potencial linguístico, tornando-se aptos ao aprendizado de
uma segunda língua, no caso dos surdos brasileiros, a Língua Portuguesa em sua modalidade
escrita, possibilitando o domínio pleno da linguagem.
Cabe ressaltar que as metodologias de ensino de línguas para alunos surdos, dentro da
abordagem educacional bilingue, não são uniformes em nosso país. Segundo Quadros (2006,
p. 19), há escolas bilingue para surdos em que a língua de instrução é a língua de sinais e a
língua portuguesa é ensinada como segunda língua. Já em outras escolas a Libras é a língua de
instrução e a Língua Portuguesa é ensinada como segunda língua para as turmas das séries
iniciais do Ensino Fundamental. Nas demais séries, a Língua Portuguesa é a língua de
instrução, com a presença de intérpretes de LIBRAS nas salas de aula e o ensino de Língua
Portuguesa, como segunda língua para os surdos, realiza-se na sala de recursos. Em alguns
casos, os serviços de intérprete de língua de sinais estão presentes em sala de aula desde o
início da escolarização, sendo que nas séries iniciais, os intérpretes acabam assumindo a
função de professores, utilizando a linguagem de sinais como língua de instrução. Temos
ainda a situação em outros estados nos quais os professores desconhecem LIBRAS e as
escolas não possuem estrutura ou recursos humanos para garantir aos alunos surdos o direito à
educação, à comunicação e à informação. A autora ressalta que, independentemente do
contexto de cada estado, a educação bilingue depende da presença de professores bilingue.
Assim, pensar em ensinar uma segunda língua pressupõe a existência de uma primeira língua.
Dessa forma faz-se necessário que o professor, ao assumir esta tarefa, tenha conhecimentos de
LIBRAS.
5

Segundo Cavalcante et. al. (2004) algumas escolas do nordeste realizaram mudanças
para inserir a LIBRAS na grade curricular como uma disciplina e a perspectiva de ensino da
Língua Portuguesa, na modalidade escrita, na condição de uma segunda língua. Além da
estruturação do espaço institucional e social da LIBRAS e da Língua Portuguesa, tendo assim,
duas linhas de ações pedagógicas distintas, uma relacionada à questão do ensino de LIBRAS e
a outra ao ensino de Língua Portuguesa, com encontros de formação continuada dos
profissionais envolvidos em ambas as áreas.
Em outros estados, os alunos surdos estão inseridos na escola regular inclusiva, porém
há casos em que não ocorre a presença do profissional intérprete de LIBRAS/Língua
Portuguesa e assim o ensino de L1 e L2 é realizado nos Centro de Atendimento Especializado
aos Surdos – CAES. Em outros casos, existem classes bilingue para surdos dentro da escola
regular, já em grandes centros urbanos, verifica-se a presença de escolas especificamente
voltadas aos surdos nas quais a língua de instrução é a Língua de Sinais, sendo geralmente
ensinada aos surdos desde cedo, através do atendimento no maternal e jardim.

3 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS PROPOSTOS POR KRASHEN


As investigações aplicadas aos estudos referentes os métodos de ensino e
aprendizagem de língua estrangeira apresentam divergência entre os teóricos da área quanto
ao processo de ensino implícito e explícito e o papel do imput, isto é, dos estímulos recebidos
pelo aprendiz.
Krashen, professor emérito da University of Southern California (USC), linguísta e
pesquisador da área de educação, conhecido por sua contribuição para a Linguística Aplicada,
mais precisamente na área de aquisição da segunda língua formulou em 1982 sua teoria de
aquisição de língua estrangeira composta por cinco hipóteses: a distinção entre aquisição e
aprendizagem, a ordem natural, o monitor, o insumo e o filtro afetivo (KRASHEN, 1982, p.
9-56). De acordo com essa teoria, existem dois modos de se processar uma língua: o primeiro,
por aquisição, processo inconsciente e intuitivo no qual o indivíduo é exposto à segunda
língua e a adquire da mesma forma que a primeira, e o segundo, por aprendizagem, processo
consciente e racional no qual o indivíduo se concentra na forma, ambiente típico da sala de
aula. Sendo esta última a de maior importância para o autor, pois segundo ele, é da
aprendizagem que irá surgir uma comunicação fluente e natural.
Alguns críticos como Gregg (1994) e Krahnke (1985), concordam com essa hipótese
acrescentando também a necessidade de se considerar outras variáveis além do aprendizado
de regras, tais como a vontade de se comunicar, a reflexão, o conhecimento, as oportunidades
6

linguísticas e as motivações do indivíduo. Nota-se a necessidade do uso da metalíngua no


processo de ensino-aprendizagem de línguas, levando o aprendiz à reflexão sobre a língua
alvo comparando-a com aspectos linguísticos da língua materna, com o intuito de dar-lhes
suporte ao interagir com a língua alvo em situações distintas.
Krashen afirma que existe pouca modificação no processo de aquisição de L2 em
relação à aquisição de L1 através do processo da hipótese de ordem natural em que algumas
estruturas são adquiridas antes que outras em forma de etapas sucessivas, enfatizando a
aquisição do vocabulário como forma de compreender o mundo. Ao que Bourne (1988)
sugere como sendo dois momentos distintos, pois para ele a aquisição da língua materna é
influenciada pela cultura, situação social, ambiente e vivência de mundo que a criança possui.
Ao contrário da aquisição da segunda língua em que ocorre uma completa
descontextualização da língua que deve ser recriada em sala de aula, cabendo ao professor a
tarefa de enfatizar os tipos de estruturas gramaticais a serem ensinadas e mediar as
informações em ordem adequada, a fim de tornar o insumo compreensível delimitando o
ponto de partida e o ponto de chegada. A aquisição e aprendizagem da língua, portanto, é um
processo sucessivo de etapas, cujo objetivo é levar o aluno a se tornar proficiente na língua
alvo.
Enfatiza-se que a aprendizagem consciente possui sua função especifica na
performance do aluno, especialmente o adulto, no qual o mesmo se utiliza de seu
conhecimento linguístico e de sua capacidade de abstração das regras gramaticais para
elaborar e revisar sua produção num sistema que Krashen denomina “monitoramento”. Isso
consiste em que o aprendiz elabora seus enunciados a partir dos conhecimentos adquiridos e o
monitor funciona como um editor de textos verifica a gramaticalidade do enunciado, o qual
pode ser determinado pelo conhecimento formal que o individuo possui da língua
(KRASHEN,1983).
Porém, é na hipótese de insumo que Krashen coloca as habilidades de compreensão
para explicar o processo em que o aprendiz adquire a língua compreendendo um insumo que
esteja um pouco além do conhecimento já adquirido, a partir de um determinado estágio do
seu desenvolvimento podendo ser estimulada e não ensinada.
Para o autor, os recursos visuais e linguagem simplificada usadas pelo professor como
forma de auxiliar no processo interlocutivo dos aprendizes como ocorre no processo
interlocutivo para as crianças em fase de aquisição de língua materna constituindo-se em
insumo especifico e direcionado, não atende a necessidade geral dos alunos. O ideal seria o
insumo comunicativo fornecido de forma natural sem a preocupação metodológica, de forma
7

lúdica, pois assim o aprendiz adquirirá as informações de que necessita e poderá aplicá-las a
qualquer momento em situações apropriadas em estágios futuros. O que importa aqui é que o
insumo seja compreensível, caso contrário a aquisição não ocorrerá.
Outro fator que influi no processo de aquisição e aprendizagem de línguas é o que
Krashen denomina de “filtro afetivo”, que se constitui como barreira mental que impede o
aprendiz de adquirir a língua, bloqueando a compreensão do insumo fornecido, podendo
afetar também a produção, o que levará o aprendiz a não apresentar em sua performance o que
é de sua competência, cabendo ao professor a tarefa de estimular sua auto-estima com relação
ao aprendizado da língua alvo.
Assim, segundo as propostas pedagógicas de Krashen, o professor deve ser
intermediador daquilo que o aluno lê, facilitando a sua compreensão, o que consiste na fala
compreensível do professor, o qual não se caracteriza apenas no fornecimento de insumo em
quantidade suficiente, mas também nos estímulos ao filtro afetivo mais baixo, compatível
com a necessidade de cada educando.
É importante lembrar que os esforços do professor em tornar o insumo compreensível
ao aluno, só atingirá seus objetivos caso esteja em conformidade com o estágio de
aprendizagem desse aluno, usando o bom senso para intermediar o aprendizado, além de
recursos materiais que se constituem em boa fonte da língua alvo. Outro fator relevante a ser
considerado pelo professor é saber quando e quanto usar da língua materna em sala de aula.
Durante o processo de aprendizagem, o aluno passa também por um período de
“silêncio” que compreende a transição da compreensão do insumo para a produção, não
devendo ser forçado pelo professor e cada um apresenta um período diferente de acordo com
o nível de compreensão e do nível do filtro afetivo, sabendo que o tempo de cada aluno não
interfere na qualidade de sua competência. Quanto mais longo esse período, quanto maior será
a quantidade de informações retidas pelo aprendiz, tanto melhor serão suas respostas à
aquisição da língua.
As atividades gramaticais devem estar focadas na comunicação, tendo por objetivo de
que os alunos tenham condições de lidar com determinados assuntos em situações especificas
da língua. Assim a aquisição do vocabulário tem primazia sobre a gramática, em que as
atividades com foco gramatical e as atividades de aquisição devem levar o aprendiz a se
tornar um monitor na formação de estruturas ideais para a sua produção. Dessa forma,
Krashen (1982) sugere que o ensino da gramática seja adequado à idade e a maturidade
linguística do aprendiz. Portanto, o foco do ensino não deve estar centrado na assimilação de
8

grande quantidade de regras, mas sim da compreensão da mensagem fornecida em sala de


aula.
Na correção dos erros faz-se necessário que o professor tenha o cuidado para não
elevar o filtro afetivo do aprendiz, para isso sua tarefa será de expandir e reformular
automaticamente os enunciados que apresentam problemas, como ocorre em situações reais
de aquisição da língua materna, o que leva o aluno a perceber não só o que estava errado na
sua mensagem, mas também proporciona o aumento do seu vocabulário ou de sua sintaxe,
dependendo da natureza do erro.
Essa prática estimula o aprendiz a produzir e a refletir sobre os próprios erros, pois
apesar de o insumo ser o mesmo a todos, cada um apresenta níveis de desenvolvimento
peculiares, além disso, o processo de avaliação considerando o desenvolvimento de
competências e habilidades sem a aplicação de provas estimula a frequência e a participação
efetiva nas aulas, sem a cobrança para que o aluno produz aquilo que ainda não compete ao
seu estágio de desenvolvimento.
As tarefas de casa e as atividades lúdicas como os jogos devem proporcionar aos
alunos momentos de descontração, o que para Krashen serve para abaixar o filtro afetivo do
aluno, além de motivá-lo a participar nas aulas assegurando a frequência ao curso, isso faz
com que o aluno se sinta atraído ao aprendizado da língua alvo.
Dessa forma, na proposta de Krashen para o ensino de língua, a metodologia deve
considerar o aluno como um ser pensante, enquanto indivíduo já conhecedor de uma língua
que carrega consigo uma bagagem cultural e linguística. Deve levar em consideração o
raciocínio sobre a língua estimulando a reflexão sobre ela, levando o professor a avaliar o
aluno pelo seu desempenho e não pelo seu produto. O que se observa na proposta de Krashen
é a importância dedicada ao insumo, àquilo que o professor oferece ao aluno em sala de aula
ou os estímulos percebidos no ambiente social do mesmo, não enfatizando as atividades de
produção na qualidade de fonte de aquisição.

4 METODOLOGIA
Partindo das leituras e das discussões durante a participação na disciplina de Ensino e
Aprendizagem de língua estrangeira do curso de Pós-Graduação em Linguística elaborou-se
um questionário, buscando identificar as bases lingüísticas dos surdos e as abordagens
educacionais desenvolvidas no processo de ensino e aprendizagem de língua portuguesa, bem
como a reação desses alunos frente às práticas desenvolvidas em sala de aula.
9

O questionário, composto por parte introdutória e oito questões objetivas sobre as


práticas em sala de aula, foi enviado via mensagem eletrônica e cartas entregues em salas de
aula aos alunos surdos, a maioria inserida em cursos superiores de diversas universidades, em
quatro estados brasileiros.
Assim, a partir da teoria de hipóteses proposta por Krashen considerando a
retrospectiva histórica do processo de educação desses indivíduos, buscou-se identificar e
analisar o papel da aprendizagem implícita e explicita dentro e fora de sala de aula, e da
mediação do professor no processo educacional considerando não apenas as línguas
envolvidas, mas também os fatores culturais e o ambiente em que tal processo ocorre.

4.1 Os participantes da pesquisa


Dentre as centenas de mensagens eletrônicas e cartas enviadas, 19 estudantes de
diversos níveis responderam ao questionário, sendo inseridos aqui como participantes da
pesquisa. Os 19 participantes são oriundos de universidades de Santa Catarina, Paraná, Rio
de Janeiro e Mato Grosso do Sul, inseridos em cursos distintos, alguns já formados, na faixa
etária entre 23 e 54 anos, sendo 63% do sexo feminino e 37% masculino.
O período de ingresso na escola varia entre a idade de 2 a 9 anos, sendo a maioria na
faixa de três e quatro anos de idade. O que se observa nos caso de alunos que ingressaram
tardiamente, o fizeram sem conhecimentos lingüísticos, iniciando na escola seu processo de
aquisição da linguagem. Outro fator relevante destacado foi o grau de escolaridade dos pais
que justifica o atraso no processo de aquisição da linguagem em que 42 % dos pais e 37% das
mães possuem apenas o curso primário e alguns deles incompleto.

4.2 Análise dos dados baseados nos pressupostos de Krashen


Nesta sessão, transcreve-se a análise dos dados obtidos considerando as hipóteses
levantadas pela teoria de Krashen. De início observa-se que o processamento da segunda
língua pelos participantes se enquadra no modo aprendizagem, isso por apresentar
característica peculiar principalmente pelo fato de estarem processando línguas de
modalidades distintas. Enquanto a língua de sinais usa o canal gesto-visual, a língua
portuguesa usa o canal oral-auditivo, o que requer modalidades específicas para atingir tal
objetivo considerando as dificuldades desses indivíduos em interagir com a língua alvo, num
processo explícito consciente.
A partir das respostas para a pergunta: “De que maneira você aprendeu o português na
escola? Explique como os professores lhe ensinavam essa língua”, conclui-se que há
10

predominância do ensino tradicional dedutivo enfatizando o vocabulário. Poucas são as


descrições sobre o ensino das estruturas gramaticais e em quase todos os casos, verifica-se a
presença de atividades de ditado via oral em que os participantes relatam suas dificuldades de
interação comunicativa com o corpo docente e discente e do acesso ao entendimento do
significado do conteúdo aplicado em sala de aula.
[...]“Eu aprendi oral que ensinava-me cada palavra de português mesmo sem
significantes”. Outro aspecto observado foi a apresentação de estruturas incompreensíveis
para o surdo, sendo algo fora do contexto de sua realidade por não conseguir estabelecer as
relações de significação contextual. “Fui aluno copista desde a 1ª série até a 5ª série do
antigo primário copiando textos no quadro em que a professora escreveu”. Essas afirmações
são confirmadas na biografia da professora surda Shirley Vilhawa:

[...] Tive que aprender a me comunicar com a professora e tudo que eu não entendia pedia
para ela me explicar em outras palavras, quase todas as palavras que ela apresentava
continuavam sem imagem, sendo assim não conseguia entender o que a mesma dava
referência... Aos poucos fui fazendo algumas amizades e logo fiz um círculo de colegas,
que me ajudava muito na sala de aula, entre elas Eulália e Soraya, que estudamos juntas
desde a primeira a quarta série, como eu não fazia ditado uma delas sempre preparava e
depois passava para eu copiar de seu caderno [...] (VILHALWA, 2009, p. 22).

Como se observa, a situação do contexto curricular-pedagógico em que ocorre a


aprendizagem contradiz a proposta de Krashen na qual o foco do ensino deve estar centrada
na significação e não no conteúdo.
Na segunda questão levantada, “Que pontos positivos e negativos você considera na
metodologia dos professores com os quais você teve aula de português na escola?”, os
participantes apresentaram como pontos positivos: adquirir o vocabulário, se apropriar da
escrita, desenvolvimento da habilidade da leitura, apropriação das estruturas gramaticais
através da construção de frases e conhecimento da cultura inerente à língua portuguesa.
Os participantes que tiveram a oportunidade ao acesso à aprendizagem através da
LIBRAS dentro do qual o currículo é adaptado e a língua portuguesa é ensinada de forma
diferenciada, ressaltam a possibilidade de construir o aprendizado da língua portuguesa tendo
por base a língua materna, e que a convivência com os pares surdos nesses espaços amplia o
conhecimento de mundo em ambas as línguas envolvidas no processo de ensino-
aprendizagem.
Entre os pontos negativos os participantes destacaram: gastos com aulas particulares
para suprir o déficit em sala de aula; simplificação do currículo e do conteúdo de modo
descontextualizado; a fala incompreensível do professor e por consequência acarretava a
dificuldade da compreensão dos conteúdos e a participação efetiva nas atividades propostas
11

em sala, bem como em compreender as estruturas da língua e as classes gramaticais; os


movimentos dos professores em sala não permitiam o acompanhamento das aulas através de
leitura labial. Ter que participar das atividades de ditado nas mesmas condições que os
colegas ouvintes; leitura de textos longos e descontextualizados; repetição e cópias de textos
sem o conhecimento da significação.
Observa-se que os participantes que não tiveram acesso ao aprendizado através da
língua de sinais reconhecem que a língua portuguesa deveria ser ensinada como uma segunda
língua, e concluem que a falta de uma base linguística capaz de assegurar o desenvolvimento
integral da criança, associado a falta de conteúdos adaptados e métodos específicos para o
ensino de línguas para surdos, provoca atraso do aprendizado em comparação com os colegas
ouvintes. Deixando evidente a importância do papel do ambiente e das condições, dos
conteúdos curriculares e do professor no processo de ensino-aprendizagem de línguas.
Outra questão levantada “Quais foram suas maiores dificuldades quando aprendeu a
ler em Português?”, os participantes ressaltaram: a falta de conhecimento do vocabulário;
dificuldade em compreender o texto e o contexto para realizar atividades de compreensão
textual e produção de frases; dificuldade em compreender gíria, metáforas, ambiguidade e a
conjugação verbal; dificuldade em lidar com palavras técnicas e compreender textos
científicos.
Observa-se que essas dificuldades não foram sentidas apenas no início do processo de
apropriação da leitura, constituindo-se num ciclo que acompanha o processo de evolução da
aprendizagem e a cada etapa vencida surge uma nova dificuldade específica do novo estágio
do desenvolvimento do aprendiz.
Alguns participantes que apontaram não possuirem dificuldades com a leitura
ressaltaram a importância do apoio e incentivo dos pais e dos professores; a prática de leitura
de jornais e revistas e de livros de diferentes gêneros; de assistir TV com legenda e o uso do
computador no processo de aprendizagem e aquisição de habilidades.
A resposta referente à quarta pergunta do questionário, “Que tarefas de natureza
gramatical os seus professores de português costumavam propor em sala de aula?” pode ser
classificada em três grupos distintos: No primeiro grupo, aqueles que especificaram as tarefas
como exercícios de completar, por exemplo: “Formar frases com.. de acordo com as palavras
propostas pelo professor” e estudos envolvendo as classes de palavras de modo geral. No
segundo grupo alguns não conseguiram responder a questão, outros colocaram a repetição a
cópia de frases prontas sem compreender as estruturas, o contexto e a significação. O terceiro
grupo não especifica os tipos de tarefas, apenas argumentam que a metodologia do professor
12

aplicada ao ensino de português para os aprendizes surdos é a mesma utilizada para ensinar
aos ouvintes que a estudam como língua materna, enfatizando que não conseguiam alcançar o
aprendizado em sala de aula, buscando mediação complementar fora da escola.
Para a quinta questão “Que atividades de natureza comunicativa os seus professores de
português costumavam propor em sala de aula”, alguns participantes não conseguiram
responder; outros citaram atividades de diálogo tipo perguntas e resposta sobre compreensão
de texto e conhecimentos gerais; leitura oral e produção de diários. Todos enfatizam a
dificuldade de comunicação e a predominância da troca de informações individuais com
colegas ou o professor.
A dificuldade de expressão comunicativa em segunda língua é comum a todos os
aprendizes, mas vale ressaltar que para o aprendiz surdo existe uma barreira maior devido ao
canal comunicativo entre a LIBRAS, sua língua materna e a segunda língua, apresentar
distinções, pois enquanto o primeiro se utiliza do canal gesto-visual, o segundo usa o oral-
auditivo o que resulta em abstracções maiores.
Segundo Krashen (1982, p. 57) as expressões orais e escritas desempenham papel
indireto no processo de aquisição e aprendizagem de segunda língua. Para o autor, o que
importa é o insumo compreensível, isto é, as informações recebidas pelo aprendiz dentro e
fora de sala de aula. De acordo com colocações dos participantes, tais atividades não se
constituem em insumos, uma vez que são baseadas em perguntas, que muitas vezes são
incompreensíveis, o que contradiz a proposta de Krashen ao afirmar que se adquire fluência
na língua não praticando, mas pela compreensão do insumo recebido.
Para a sexta questão “Que estratégias seus professores de português utilizavam quando
você tinha dificuldades na língua?”, alguns participantes chegaram a colocar que os
professores não intermediavam nas dificuldades dos alunos, outros colocaram que o professor
solicitava a leitura e cópia de textos. Outros recorreram a aulas particulares para suprir o
déficit de sala de aula. Os que explicitaram as estratégias apontaram que os professores davam
mais exemplos de frases, desenhavam no quadro as imagens ou mostravam figuras para
auxiliar a compreensão e falavam de forma simplificada. Outros ainda, buscaram alternativas
próprias como estudo com colegas e família, leituras livres, uso de internet e telefone celular,
TV com legenda, pesquisa em dicionários ou recorriam ao apoio dos colegas em sala de aula.
Nota-se que mesmo de modo falho o professor busca intermediar o aprendizado e
proporcionar ao aprendiz a possibilidade de corrigir e estruturar o uso da língua acionando o
seu monitor para a produção independente (ver relato da professora Vilhalwa na página 15
desse trabalho), em outros casos, o próprio aprendiz busca as alternativas em sala através da
13

mediação de colegas para fazer funcionar seu monitor nessa estruturação. Em outro relato da
professora Vilhalwa encontra-se a seguinte passagem:

Tudo que a professora explicava eu não entendia e uma das duas colegas me explicava tudo
novamente até eu entender, iam falando no sentido concreto das palavras ou com apoio de
alguns sinais ou até mesmo usavam mímicas para minha melhor compreensão
(VILHALWA, 2009, p. 23).

Essa afirmação faz com que o professor deixe o seu papel de mediador e passe a ser
apenas transmissor da mensagem tendo o aprendiz a necessidade de um interlocutor do
mesmo nível para tornar o insumo compreensível, estruturar as idéias e acionar seu monitor.
Para a sétima questão sobre a eficácia das estratégias adotadas pelo professor, 32% dos
participantes responderam afirmativamente apontando como aspecto positivo a cooperação
para apropriação das estruturas do português; auxilio à compreensão dos contextos e da
cultura ouvinte e a compreensão do ritmo de aprendizagem do aluno. Há ressalvas nas
colocações dos participantes argumentando que o trabalho dos professores não foi suficiente
em sala de aula devido ao excesso de conteúdo e a falta de um currículo adaptado.
Os demais participantes 68% que apontaram como negativas as estratégias dos
professores, citaram: a falta de conhecimento da LIBRAS e falta de formação dos professores
para trabalhar com alunos surdos; faltou considerar as diferenças individuais de cada aluno; a
metodologia é a mesma aplicada para os alunos ouvintes que estudam o português como
língua materna.
Nota-se que o professor não tem desempenhado seu papel de mediador e de
transmissor de insumo compreensível no processo de aprendizagem comprometendo o
desempenho dos aprendizes da segunda língua.
Outro aspecto observado segundo as colocações dos participantes é de que a prática
dos professores e as condições do ambiente escolar favorecem a alta do filtro afetivo dos
aprendizes, o que para Krashen representa em bloqueio ao aprendizado. São várias as
passagens em que os participantes relatam que eram forçados a realizar as mesmas atividades
nas mesmas condições que os colegas ouvintes, o que acarretava o desejo de desistir do
estudo. O depoimento de um participante ilustra essa situação: ... Por estar na sala por estar,
não via estratégia para minha aprendizagem, eu aprendi com professor particular. Estava na
sala por que é obrigado ir para escola. Tal depoimento pode ser comparado com transcrições
encontradas na biografia da professora Vilhalwa que diz:
14

[...] na hora da leitura era difícil, as palavras não saíam claramente e eu sempre ficava
nervosa na hora da leitura, sentia todos aqueles olhos de meus colegas fixos em minha
pessoa, sentia-me horrível, alguns alunos antes mesmo de eu começar a ler algumas
palavras que tinha treinado no dia anterior, ou estavam com um sorriso irônico ou com uma
cara de pena. Eu não olhava para ninguém, o que queria era sumir daquele lugar
(VILHALWA, 2009, p. 23).

Assim percebe-se a elevação do filtro afetivo dos aprendizes a ponto de estar na escola
apenas por uma obrigação o que torna impossível o aprendizado. Relacionado à questão:
“Como deveria ser uma boa aula de português?”, obteve-se dados que foram classificados em
quatro grupos distintos: modelo de ensino; a presença do professor em sala de aula; tipos de
tarefas a serem desenvolvidas em sala de aula e os tipos de materiais e recursos didático-
pedagógicos a serem utilizados.
O modelo de ensino sugerido pelos participantes é uma abordagem que se aproxime
do processo de aquisição natural com estratégia flexível que seja ministrada a partir da língua
de sinais – LIBRAS. Essa colocação foi feita por 89% dos participantes. Eles alegam que as
línguas envolvidas no processo sendo de modalidades distintas e considerando a dificuldade
de comunicação, há a necessidade de que os aprendizes estejam expostos a um ambiente de
aprendizagem de segunda língua que se aproxime de sua realidade. Outra transcrição da
biografia de Vilhalwa confirma essa passagem:

[...] dentro de minha pessoa eu tinha um desejo de estar numa escola onde as pessoas
fossem surdas iguais a mim, pois sentia que não havia comunicação entre eu e os meus
colegas, pois a maioria era ouvinte e não sabia comunicar comigo, sentia-me isolada
(VILHALWA, 2009, p. 23).

Além da importância do ambiente, o uso da língua materna em momentos críticos


ajuda na compreensão do insumo abaixando o filtro afetivo evitando que o aprendiz sinta
ansiedade por não estar entendendo a mensagem.
O outro ponto relevante apresentado por 89% dos participantes foi a presença do
professor bilingue LIBRAS/Português ou do professor surdo em sala de aula. Tal colocação
se deve ao fato desses professores servirem como modelo de identidade para o aprendiz, mais
precisamente o professor surdo. Tendo conhecimento de ambas as línguas, da cultura e
identidade dos alunos, esses profissionais podem se utilizar mais do bom senso na transmissão
do insumo do processo de avaliação, lembrando o que diz Abreu e Lima (2007, p. 27) de que
a única fonte compreensível de insumo em língua estrangeira (segunda língua) para os alunos
será possivelmente a fala do professor, daí a importância da aproximação de identidade entre
aluno /professor.
15

O ponto apresentado para o tipo de recurso e materiais didáticos a serem usados em


sala de aula, 72% dos participantes citaram materiais visuais. Considerando que o canal de
percepção do aprendiz surdo é a visão, portanto, esses recursos devem ser colocados em
primeiro plano na elaboração do currículo para a sala de aula para que seja uma boa fonte da
língua alvo.
O último ponto apresentado como proposta de ensino-aprendizagem foram os tipos de
tarefas a serem desenvolvidas em sala de aula em que 68% dos participantes citaram a prática
de leitura e 32% colocaram a prática da escrita. Tal proposta condiz com a hipótese de
Krashen que afirma ser o insumo a principal fonte de aquisição e aprendizagem, e a produção
um fator secundário que deve surgir da potencialidade e da necessidade do aprendiz.
O relato da professora Ana Regina de Souza Campello extraído do caderno de
resumos do I Simpósio Internacional de Ensino de Língua Portuguesa confirma essas
opiniões:

A necessidade de elaboração do currículo também mostra a estratégia metodológica,


aspectos sociais, históricos, lingüísticos e psicopedagógicos do ensino-aprendizagem da
língua portuguesa aos surdos, como segunda língua considerando que a Lei de LIBRAS,
número 10.436/02, garante a Língua de Sinais Brasileira como primeira língua da
comunidade Surda. O papel da escola é incentivar o aluno a adaptar uma série de
mecanismos lingüísticos para elaborar idéias, construir argumentos e refutar preconceitos a
fim de desenvolver competências para ler nas palavras escritas através dos sinais pela
professora Surda (CAMPELLO, I SIELP, 2011, P.73).

Como se observa, dentro da metodologia e as abordagens de ensino para que o aluno


surdo desenvolva competências e habilidades na aquisição da segunda língua, é de suma
importância como também o é a elaboração de um currículo que contemple as necessidades
de aprendizagem da comunidade surda.

5 CONCLUSÃO
O desenvolvimento dos processos educacionais no campo de ensino-aprendizagem de
línguas por alunos surdos mostra os retrocessos dos métodos que levam esses alunos ao
fracasso escolar pelo fato de não considerar esses alunos enquanto seres pensantes, já
conhecedor inato de uma língua e que, portanto carrega consigo uma bagagem cultural e
linguística.
As lutas das comunidades de surdos buscaram resgatar as raízes de sua educação
através da pedagogia surda em salas bilíngües. Nas quais a língua de sinais e a língua
portuguesa são ensinadas com metodologias e estratégias distintas, o que sempre enfrentou
resistência por parte das escolas, negando ao surdo sua condição bilingue e exigindo que se
16

submetam ao mesmo processo de aprendizagem dos alunos ouvintes. Poucas são as


experiências que expõem esses indivíduos a um processo de ensino com metodologias
adequadas as suas peculiaridades, capazes de lhes proporcionar um desenvolvimento natural
propício à aquisição e o aprendizado de ambas as línguas.
A escolha da abordagem proposta por Krashen para subsidiar a análise apresentada
neste trabalho se deve ao fato de a mesma apontar caminhos que levam a uma aquisição de
forma natural da segunda língua associando as hipóteses que possibilitam aos professores e
alunos ensinar e aprender, levando cada um a descobrir e desempenhar seu papel nesse
processo de maneira prazerosa e eficaz reconhecida como uma abordagem ideal para a
aprendizagem de alunos surdos.
Outro fator considerado foi a possibilidade da contribuição da teoria de Krashen para
identificar o papel da aprendizagem implícita e explicita dentro e fora de sala de aula e da
mediação do professor no processo de ensino-aprendizagem, não visando uma análise
comparativa opondo os pressupostos teóricos propostos por Krashen à realidade escolar
desses aprendizes.
Na metodologia usada para o trabalho, no que tange a aplicação do questionário
percebeu-se que a estratégia ao elaborar as questões dificultou a compreensão dos
participantes, caso o questionário escrito estivesse acompanhado da tradução em LIBRAS
poderia proporcionar maior clareza dos objetivos propostos. No entanto tal estratégia
possibilitou de imediato identificar a dificuldade dos participantes em compreender a língua
portuguesa escrita, o que não era o objetivo desse trabalho, porém tal conclusão tem efeitos
sobre o conteúdo das respostas fornecidas a cada questão, permitindo identificar a
insuficiência da qualidade do ensino oferecida a esses indivíduos o que reflete negativamente
no desempenho em suas interações sociais.
Dessa forma, a análise dos dados fornecidos pelos participantes mostra um contraste
entre a realidade da aprendizagem com os pressupostos propostos por Krashen, embora, como
foi dito anteriormente, não era o objetivo inicial desse trabalho. Porém, deixa evidente a
explicitação do aprendizado consciente, que para muitos foi considerado um aprendizado
forçado e incompreensível comprometendo o seu desenvolvimento como um todo.
Diante de tal situação, a colocação de vários participantes de que os meios de
comunicação como bate-papo em chats, torpedos em celulares, e-mails, TV com legenda e
leituras livres contribuíram para o aprendizado mais do as aulas em sala, evidencia o papel da
aprendizagem implícita para com o aprendizado desses indivíduos, embora não seja possível a
17

aquisição de todas as estruturas da língua mediante esse processo, criando uma lacuna
provocada pelo insumo incompreensível fornecido em sala de aula.
Em contra partida, as sugestões dos participantes a cerca de como deveria ser uma boa
aula de português para surdos, aproximam-se da proposta de Krashen, pois apresentam as
possibilidades de proporcionar a esses educandos e aos seus interlocutores em sala de aula os
mecanismos necessários à real aprendizagem da língua portuguesa.
Para finalizar, as análises aqui apresentadas são insuficientes para responder a questão
do papel da aprendizagem explicita e implícita dentro e fora de sala de aula e para a
determinação de uma abordagem específica para o ensino de Português para surdos como
segunda língua, porém mostra que da forma como esta se apresenta não permite uma
aprendizagem de fato. Prejudicando a aquisição global de conhecimentos, inclusive de outras
disciplinas, sendo necessário então a continuidade e o aprofundamento do estudo visando o
aperfeiçoamento de metodologias na área de linguística aplicada ao ensino de segunda língua.
Agradecimentos
Sou grato às seguintes pessoas que muito contribuíram ao enriquecimento deste
trabalho: à professora Rosely Perez Xavier que forneceu as bases através dos conteúdos
discutidos durante a participação nas aulas da disciplina de Ensino e aprendizagem de Língua
Estrangeira do Programa de pós-graduação da Universidade Federal de Santa Catarina; ao
professor Tarcísio de Arantes Leite que de forma indireta, contribuiu na orientação do
trabalho, a todos os participantes da pesquisa que contribuíram com as informações
necessárias que resultaram em um trabalho capaz de contribuir com os estudos na área de
linguística aplicada; e a professora Maria de Lourdes Dario Jarros pela valiosa contribuição
em fazer as correções ortográficas e estruturais do corpo do trabalho.

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SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

ENTRE O FRACASSO E O ÊXITO:


HETEROGENEIDADE E DIVISÃO EM DISCURSOS DE SUICIDAS

Larissa Costa Kurtz dos Santos (UFPel) 1

RESUMO

O presente trabalho envolve a análise de cartas e bilhetes de suicídio a partir de pressupostos


da análise de discurso de linha francesa. Reconhecendo o caráter interdisciplinar da AD,
baseamo-nos em conceitos de Pêcheux, Lacan e Authier-Revuz. Procuramos compreender de
que maneiras o suicídio é discursivizado nessas mensagens e que elementos da ordem do
interdiscurso determinam o dizer dos suicidas. Foram observados dois grandes movimentos
discursivos, o discurso do êxito e o discurso do fracasso, no interior dos quais a FD cristã ou
tradicional quase sempre se apresentava como principal influência. Esses discursos por vezes
figuravam juntos dentro de uma mesma sequência discursiva, demonstrando a ambivalência
do sujeito. Contudo, em todas as mensagens, foi possível identificar pistas da heterogeneidade
que constitui o dizer. No espaço da contradição e do equívoco, o sujeito revelou-se
determinado pela ideologia e pelo inconsciente, mas não plenamente assujeitado, por ser
capaz de romper com o mesmo através da polissemia. Revelou-se, ainda, um sujeito
estruturalmente dividido, que está longe de ser fonte intencional de uma palavra homogênea.

Palavras-chave:
Análise de discurso. Suicídio. Discurso do fracasso. Discurso do êxito. Heterogeneidade.
Divisão.

ABSTRACT

This work analyzes suicide notes based on concepts from French Discourse Analysis (DA).
Taking into account the interdisciplinarity of the subject, this study is based on Pêcheux,
Lacan and Authier-Revuz. We attempt to understand in which ways suicide is constructed in
these messages and which elements from the interdiscourse determine the saying of the
subjects. Two large discursive movements were observed: the discourse of failure and the
discourse of success. Within each one, the Christian or traditional discursive formation was
almost always present as a main influence. Such discursive movements appeared, at times,
within the same sequence, putting into evidence the ambivalence of the subject. However, it
was possible to identify in all the messages the heterogeneity that constitutes saying. In the
space of contradiction and the equivocal, the subjects proved to be determined by ideology
and unconsciousness, but not entirely submissive, as they are able to break with the same
through polysemy. Finally, they proved to be structurally divided and far from being the
intentional source of a homogenous word.

Keywords:
Discourse analysis. Suicide. Discourse of failure. Discourse of success. Heterogeneity.
Division.

1
Mestre pela UCPel. Artigo elaborado a partir da dissertação de mestrado de mesmo título, apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Letras, Área de Concentração Linguística Aplicada, em fevereiro de 2011.
2

1 INTRODUÇÃO
O ato de renúncia à própria vida é, há muito, objeto de interesse e perplexidade.
Contudo, não são muitos os trabalhos científicos acerca do suicídio. Embora haja numerosos
levantamentos estatísticos de seus índices, pouco se avançou em termos teóricos. O fato de o
suicídio ser considerado tabu em nossa sociedade representa um obstáculo aos avanços das
pesquisas, já que é bastante difícil o acesso a dados e materiais de análise sobre o tema.
As poucas pesquisas existentes pertencem, em geral, à psicologia, à sociologia e à
psiquiatria. O próprio corpus empírico deste trabalho foi retirado de duas obras que analisam
o suicídio sob ponto de vista das duas primeiras áreas: Dias (1991) e SILVA (1992).
Nosso objetivo é investigar os discursos de cartas e bilhetes suicidas tendo como
base pressupostos da AD, mas também de Jacques Lacan, da psicanálise, e de Jacqueline
Authier-Revuz, do campo da enunciação. Pretende-se identificar os diversos fatores que
determinam o dizer dos suicidas e a produção de efeitos de sentido daí decorrentes.
A metodologia empregada envolveu, primeiramente, a leitura das mensagens à nossa
disposição. Em seguida, realizou-se a seleção dos textos e o recorte dos enunciados que
melhor atendiam aos objetivos da pesquisa, os quais se encontram transcritos no corpo da
análise. Note-se que a transcrição foi literal, conforme disponibilizado nas obras de origem,
inclusive com eventuais desvios de ortografia e pontuação.
A AD não se preocupa com quantidade de dados, portanto o número de sequências
discursivas foi definido tendo por único objetivo fornecer uma amostra representativa daquilo
que se almeja demonstrar com a análise. Essas sequências passam a ser consideradas
sequências discursivas de referência (SDR), e é sobre elas que se desenvolve a análise.

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
2.1 Michel Pêcheux
No âmbito de nossa formação social, encontram-se diversas formações ideológicas,
as quais, por sua vez, desdobram-se em diferentes formações discursivas (FD). Pêcheux toma
emprestado de Foucault este conceito, reelaborando-o. Em sua nova acepção, a formação
discursiva é entendida como “aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de
uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes,
determina o que pode e deve ser dito” (PÊCHEUX, 1988, p. 160).
Conforme esclarece Orlandi (2007), as FD são regionalizações do interdiscurso, um
conceito mais amplo, que representa o já-dito, a memória discursiva. Nas palavras de Pêcheux
(1988, p. 162), trata-se de “„todo complexo com dominante‟ das formações discursivas”.
3

O interdiscurso representa tudo aquilo que foi dito antes, em outro lugar, e que
inevitavelmente determina o que se diz hoje. Na realidade, não existe o ineditismo – em
qualquer dizer, há sempre um aspecto parafrástico, de repetição de dizeres alheios, do qual
geralmente não temos consciência. Conforme esclarece Orlandi (2007, p. 32): “O dizer não é
propriedade particular. As palavras não são só nossas. Elas significam pela história e pela
língua. O que é dito em outro lugar também significa nas „nossas‟ palavras”.
No entanto, o sujeito não tem plena consciência da memória discursiva que atua
sobre seu dizer. Segundo Pêcheux (1988), isso se dá em função de duas formas de
esquecimento. Pelo esquecimento número dois, não temos a noção plena de que poderíamos
dizer algo de outra forma, pois acreditamos que existe uma relação direta e natural entre o
pensamento, a linguagem e o mundo, relação essa que nos “obriga” a dizer aquilo daquele
jeito. Trata-se, contudo, de um esquecimento parcial (semi-consciente), pois muitas vezes
reformulamos nossa fala, utilizando outras palavras, a fim de melhor especificar o que
queremos dizer. Já o esquecimento número um é inconsciente e refere-se à ilusão de que
somos a origem do dizer, quando, na verdade, somos determinados pelo interdiscurso.
Inobstante a influência do já-dito e o caráter repetitivo de tudo o que se diz, não se pode
negar a possibilidade de ruptura. Juntamente com o eixo da repetição ou paráfrase, existe a
chamada polissemia: uma força de ruptura, que traz o deslocamento, o equívoco, o diferente.
Como veio a admitir Pêcheux (2002, p. 56),
todo discurso marca a possibilidade de uma desestruturação-reestruturação dessas
redes [de memória] e trajetos [sociais]: todo discurso é o índice potencial de uma
agitação nas filiações sócio-históricas de identificação, na medida em que ele
constitui ao mesmo tempo um efeito dessas filiações e um trabalho (mais ou menos
consciente, deliberado, construído ou não, mas de todo modo atravessado pelas
determinações inconscientes) de deslocamento no seu espaço: não há identificação
plenamente bem sucedida [...].

O sujeito não é, portanto, plenamente determinado ou assujeitado, caso contrário


nenhuma transformação seria possível. E a linguagem, os sentidos e os sujeitos são
intrinsecamente dinâmicos e inacabados. Portanto, é preciso admitir, como fez Pêcheux, que a
língua é sujeita ao equívoco e que a ideologia é um ritual com falhas. Na realidade, é da
tensão entre processos parafrásticos e polissêmicos que se fazem os sujeitos e os discursos.
4

2.2 Jacques Lacan e o sujeito em AD


A psicanálise lacaniana sempre teve um lugar de destaque na AD, desde a primeira
até a terceira fase da disciplina. Lacan partiu do conceito de divisão psíquica, já formulado no
final do século XIX, para elaborar sua teoria sobre o sujeito, o inconsciente e a linguagem.
A noção de divisão psíquica, mais tarde denominada clivagem da consciência ou
clivagem psíquica, designa que o aparelho psíquico está dividido em instâncias e “que uma
parte dos conteúdos psíquicos do sujeito lhe escapa sob a ação do recalque” (DOR, 1989, p.
101). Segundo Lacan, é através da linguagem (da ordem do significante) que se manifesta o
sujeito em sua estrutura de divisão. Em outras palavras, “o sujeito é dividido pela própria
ordem da linguagem” (DOR, 1989, p. 100).
Sendo assim, a linguagem é permeada por um inconsciente que escapa ao sujeito
falante. Ela é a condição do inconsciente, fazendo com que este se manifeste. Com base nessa
ideia, Lacan formula uma de suas hipóteses fundamentais: o inconsciente é estruturado como
linguagem (DOR, 1989).
Lacan observa, contudo, que o sujeito não figura em seu próprio discurso: ele
desaparece como sujeito para se fazer representar na forma de um símbolo. Com efeito, a
linguagem apenas evoca um real por meio de um substituto simbólico, operando-se uma cisão
entre o real vivido e o que vem significá-lo. Isto é, para que o real seja representado, é preciso
que esteja ausente, porquanto somente o seu substituto simbólico é efetivamente manifesto.
Pode-se dizer, portanto, que o sujeito é alienado na e pela linguagem, inserindo-se nela apenas
como um efeito, um efeito de linguagem, uma representação.
“Não se fala, portanto, ao sujeito. Isso fala dele e é aí que ele se apreende” (LACAN,
1960 apud DOR, p. 114). O “isso fala” refere-se ao sujeito do inconsciente, ou sujeito do
desejo, que é uma parte da subjetividade desse sujeito dividido. Fala, no entanto, de forma
oculta no discurso, sem que o sujeito o saiba.
Esse dizer inconsciente, não intencional, surge de algum outro lugar que não do eu
consciente. Estabelecem-se, assim, dois lugares psicológicos distintos: o eu (self) e o Outro. É
por isso que Lacan afirma que “o inconsciente é o discurso do Outro” (LACAN, 1966 apud
FINK, 1998, p. 20). Fink (1998, p. 26-27) explica de forma simplificada como isso se dá:
As opiniões e desejos de outras pessoas fluem para dentro de nós através do
discurso. Nesse sentido, podemos interpretar o enunciado de Lacan que o
inconsciente é o discurso do Outro, de uma maneira muito direta: o inconsciente está
repleto da fala de outras pessoas, das conversas de outras pessoas, e dos objetivos,
5

aspirações e fantasias de outras pessoas (na medida em que estes são expressos em
palavras).

Ao tratar da configuração do sujeito em AD, Ferreira (2005) explica que este se


encontra no entremeio da linguagem, da ideologia e da psicanálise, sendo afetado
simultaneamente por essas três ordens. Entretanto, por se tratar de um ser-em-falta, ele deixa
em cada uma delas um furo: na linguagem, o equívoco; na ideologia, a contradição; e na
psicanálise, o inconsciente.
Essa falta constitutiva é essencial à AD, pois, “se o sujeito fosse pleno, se a língua
fosse estável e fechada, se o discurso fosse homogêneo e completo, não haveria espaço por
onde o sentido transbordar, deslizar, desviar, ficar à deriva” (FERREIRA, 2005, p. 71). É ela
que dá lugar ao sujeito desejante, assujeitado e que constitui efeito de linguagem.

2.3 Jacqueline Authier-Revuz


Com base nas noções de Lacan, Authier-Revuz elabora o conceito de
heterogeneidade, de “uma palavra heterogênea que é o fato de um sujeito dividido”
(AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 49). A heterogeneidade refere-se à condição do sujeito como
heterogêneo à linguagem que o constitui e ao atravessamento do interdiscurso. Refere-se à
presença do outro no discurso (AUTHIER-REVUZ, 2004).
Authier-Revuz fala em heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva. A
primeira, como o nome indica, pode ser identificada no fio do discurso2 (aspas, discurso
direto e indireto, glosas, etc.), enquanto a segunda não é facilmente perceptível, porém está
sempre presente. A heterogeneidade constitutiva é da natureza da linguagem e, no entanto, vai
além daquilo que a descrição linguística pode dar conta. Embora a presença do outro esteja
em toda parte, nem sempre é possível identificá-la pela análise da superfície do discurso.
As formas de heterogeneidade mostrada não constituem um reflexo fiel da
heterogeneidade constitutiva do discurso. São, na realidade, elementos da representação
fantasmática que o locutor tem de sua enunciação (AUTHIER-REVUZ, 2004). Através delas,
o locutor estabelece um “exterior”, um discurso que reconhece como outro e que termina por
revelar um “interior”, isto é, um discurso que acredita ser próprio. Trata-se de uma ilusão,
pois o enunciador ignora a heterogeneidade constitutiva de todo o seu discurso.

2
Para usar a terminologia de Authier-Revuz, referindo-se à materialidade linguística. Esse termo aproxima-se da
noção pêcheutiana de intradiscurso.
6

A heterogeneidade mostrada pode ser marcada ou não-marcada. A primeira é


perceptível na materialidade da língua e é da ordem da enunciação (discurso direto, aspas,
itálico, etc.), enquanto a segunda é da ordem do discurso (discurso indireto livre, ironia,
alusão, etc.).
O conjunto das formas do heterogêneo mostrado constitui uma espécie de
modalidade enunciativa que Authier-Revuz denomina modalidade autonímica, quando um
dizer retorna reflexivamente sobre um determinado ponto de seu desenvolvimento para
refletir sobre ele.
As formas de modalidade autonímica são formas metaenunciativas, estritamente
reflexivas e opacificantes (AUTHIER-REVUZ, 2004). Na metaenunciação, rompe-se, por um
momento, a impressão do enunciador de que aquilo que diz só pode ser dito daquela maneira
(esquecimento número dois de Pêcheux), pois ele passa a ponderar sobre o signo empregado.
Assim, este ganha o estatuto de uma maneira de dizer, entre outras formas possíveis.
A partir do conceito de modalidade autonímica, a enunciação pode ser dividida em
dois territórios: o da coincidência, em que as palavras têm seu emprego normal, standard,
transparente; e o da não-coincidência, em que o enunciador não deixa a palavra “solta”,
“funcionando sozinha”, pois sente um problema, algo a ser observado, comentado, contornado
(TEIXEIRA, 2000). Authier-Revuz assinala quatro campos de não-coincidência: não-
coincidência interlocutiva, não-coincidência do discurso consigo mesmo, não-coincidência
entre palavras e coisas e não-coincidência das palavras consigo mesmas.

3 ANÁLISE DOS DIZERES DOS SUICIDAS


Cada cultura tem suas crenças e seus valores com relação ao suicídio, oriundos das
experiências sociais. No Brasil, país de tradição católica, a FD cristã parece falar mais alto no
que tange ao suicídio. Com efeito, o suicídio ainda é majoritariamente visto sob o ponto de
vista da Igreja: como um pecado capital e um tabu, do qual se evita falar. Não há dúvidas de
que há discursos em nossa sociedade que mantêm esse saber, em geral, condenando o ato.
Ainda assim, tendo em vista que o sujeito é marcado pela heterogeneidade, diferentes
vozes sociais estão inevitavelmente refletidas no dizer dos suicidas. Ao analisar como o ato
foi discursivizado por eles, identificamos uma tensão saliente entre duas posições conflitantes,
que passaremos a denominar discurso do fracasso e discurso do êxito.
Esses dois movimentos discursivos foram observados logo que se realizou a leitura
dos bilhetes e cartas de suicídio. Percebeu-se que os sujeitos assumiam posições distintas em
relação a si próprios e ao ato de suicídio: uma negativa, permeada por culpa e pessimismo, e
7

outra positiva, marcada por otimismo, confiança e superioridade. Essa noção foi aperfeiçoada
posteriormente através do estudo teórico e de uma análise mais detalhada dos dizeres.
Enquanto alguns textos apresentam a predominância de um desses discursos, em
outros ambos coexistem, estabelecendo relações entre si. Em todos eles, a ideologia, o
inconsciente e a heterogeneidade estão presentes, revelando-se na materialidade linguística de
diferentes maneiras.
Na presente seção, analisaremos algumas dessas maneiras a partir de sequências
retiradas das cartas e bilhetes de suicídio que integram nosso corpus de análise. Uma análise
mais minuciosa e de um maior número de sequências discursivas pode ser encontrada em
minha dissertação de mestrado de mesmo título.

3.1 O discurso do fracasso


No Dicionário Michaelis online, fracasso é definido como: “1 Som de um corpo que
cai; estrépito. 2 Ruído de uma coisa que se parte. 3 Ruína, desgraça. 4 Insucesso, mau êxito”.
Denominamos discurso do fracasso àquele especialmente caracterizado por um estigma de
derrota ou ruína. Apresenta-se quando o suicida constrói seu dizer em torno da ideia de que
“não aguentou” as dificuldades da vida, de que sua existência “não deu certo”. Envolve,
enfim, a noção de ter fracassado como ser humano em seu “projeto de realização”, de ter
falhado com a sociedade e perante Deus.
Nesse discurso, ato do suicídio é frequentemente concebido como um erro ou pecado
do qual o suicida precisa ser perdoado. Em alguns casos, ele mesmo se julga egoísta ou
covarde, porém admite não enxergar outra saída a não ser a morte, pois viver tornou-se
insuportável. Trata-se de uma solução extrema – um último recurso para livrar-se da dor.
O psicoterapeuta Medard Boss analisou a culpa a partir da etimologia da palavra
alemã Schuld (culpa). Esta deriva do antigo alemão Sculd, referindo-se a algo que carece ou
falta na vida do ser humano. Nesse sentido, a culpa reflete uma dívida permanente a um
determinado credor: a criança deve respeito e obediência aos pais, o jovem deve ao professor
as lições, o adulto deve ao Estado a ajuda para o aumento do potencial econômico dos meios
de produção, o fiel está em falta com o cumprimento dos preceitos religiosos e o descrente
deve ao destino o suportar de toda uma vida (BOSS, 1981 apud GARCIA, 2006).
No discurso dos suicidas, a culpa revelada tem relação com uma suposta dívida
perante a sociedade e a religião. O suicida sabe-se transgressor das ordens e proibições
impostas por essas autoridades, e a tensão entre a realidade e as exigências da consciência dão
8

origem ao sentimento de culpa. Assim, a manifestação deste no intradiscurso é também uma


marca da formação ideológica (FI) dominante.
As sequências discursivas de referência listadas a seguir exemplificam processos
característicos do discurso do fracasso, destacados através de negritos e sublinhados.
SDR 1a - Volto derrotada porque não fui capaz de viver, trabalhar e estudar não
foram suficientes para mim.
SDR 2a - Sofro demais, não aguento.
SDR 3a - Não deu para segurar esta barra. Me perdoem.
SDR 4a - Seu J. me desculpe essa minha crueldade fiz isso porque não suporto [...]
SDR 5a - [...] me perdoem. Não dá mais... A minha cabeça está um vulcão... [...]
SDR 6a - Não vou sarar nunca. / Deixe-me morrer em paz. / Desculpem-me.
SDR 7a - Sinto muito, mas eu não tenho outra solução. Tentei aguentar [...]
SDR 8a - Eu sinto não ter correspondido a vocês. [...] / Eu não mereço nenhum
devocês. Sinto muito.
SDR 9a - Me desculpem mas eu não aguento (?) a dores nem o pensamento de
perder minha segunda perna também.
SDR 10a - Desculpa não consegui.
SDR 11a - Por mim, peça desculpas à minha mãe. Diga a ela que eu a amo muito
também porém não encontrei mais nenhuma existência para mim.
Vemos que subjaz a essas sequências a nítida ideia de que todos deveriam ter
suportado o sofrimento e seguido em frente com a vida. Interrompê-la voluntariamente não é,
para nossa sociedade, uma saída digna. Em todas as sequências, o discurso do fracasso
aparece em forma de negação, o que é bastante comum nas mensagens de suicídio.
Na perspectiva semântico-pragmática de Ducrot (1987, p. 207), especificamente da
polifonia, a negação representa uma recusa que “se dá através de um outro enunciador
colocado em cena pelo locutor e ao qual este, na maioria dos casos, se assimila”. Para o autor,
a maior parte dos enunciados negativos [...] faz aparecer sua enunciação como o
choque de duas atitudes antagônicas, uma, positiva, imputada a um enunciador E1, a
outra, que é uma recusa da primeira, imputada a E 2 (DUCROT, 1987, p. 202).
Assim, pode-se dizer que há uma afirmação subjacente a toda negação. Em termos
discursivos, esse enunciado afirmativo provém de um discurso-outro, conforme observou
Indursky, ao analisar o discurso presidencial na época da ditadura. Segundo ela, a negação é
um dos processos de internalização de enunciados oriundos de outros discursos,
podendo indicar a existência de operações diversas no interior do discurso em
análise. Em suma, essa construção evidencia a presença do discurso-outro, no
interior do discurso presidencial (INDURSKY, 1997. p. 213).
9

Da mesma forma, os enunciados dos suicidas indicam, através da negação, a


presença de outro discurso, o qual determina que todos devam ser fortes e resistir às
adversidades da vida até o fim. Essa ideologia tem influência da doutrina da Igreja, que prega
uma atitude de resignação diante da vida, aceitação da vontade de Deus e perseverança no
sofrimento. O bom cristão deve “tomar a sua cruz” a cada dia e nunca desistir, aceitando a
vida que Deus lhe deu e cumprindo da melhor forma possível seu papel na sociedade,
especialmente na família.
Através da negação, aqueles que decidem morrer assumem-se como um fracasso e
uma decepção para aqueles que ficam, pois falharam naquilo que deles se esperava como
“bons cristãos”. O sentimento de culpa comum aos sujeitos manifesta-se claramente nos
pedidos sublinhados nas sequências discursivas. Todos os apelos diretos ou indiretos à des-
culpa (eliminação ou atenuação da culpa) implicam nesse sentimento angustiante que
geralmente se encontra atrelado ao ato do suicídio em nossa sociedade.
Aparentemente, os suicidas julgam-se egoístas por pensar apenas no alívio imediato
de sua dor, em detrimento do sentimento daqueles que os amaram e ajudaram. Note-se,
contudo, que esses vínculos ainda permanecem vivos, já que os valores e as crenças sociais
estão presentes no discurso dos sujeitos, causando-lhes culpa. Por isso, sentem-se no dever de
dar uma explicação, de convencer a sociedade de seus motivos e apelar para a sua
compreensão. Procuram justificar-se expressando a intensidade de seu sofrimento e afirmando
que tentaram resistir, mas não conseguiram. É dessa forma que as negações e os pedidos de
desculpa fazem ouvir a “voz” da ideologia dominante.
É possível que, através dessas estruturas, o sujeito manifeste um desejo de
corresponder às expectativas sociais, demonstrando força, coragem, perseverança e esperança.
Trata-se de um desejo oriundo do desejo do Outro, que flui para e de dentro dos sujeitos
através do discurso, como sustenta Lacan. Ao verem-se incapazes de realizar esse desejo, os
suicidas adotam o discurso do fracasso para expressar sua frustração e justificar seu ato.
Não obstante a preponderância das negações e dos pedidos de desculpa, o referido
processo pode ser observado mesmo na ausência dessas estruturas explícitas:
SDR 12 - Amo vocês / mas estou morrendo aos pouco desde o dia que encontrei
aquela mulher com ele no carro.
A sequência acima se assemelha à SDR 11a no que se refere ao uso dos operadores
de concessão “mas” e “porém”:
SDR 11a - Por mim, peça desculpas à minha mãe. Diga a ela que eu a amo muito
também porém não encontrei mais nenhuma existência para mim.
10

Ao analisar a concessão em estruturas coordenadas “P mas Q”, Oswald Ducrot


(ANSCOMBRE; DUCROT, 1994; DUCROT, 1987) verificou que o operador “mas” tem a
função de introduzir um argumento que direciona para uma conclusão contrária. Enquanto o
enunciado P orienta para uma conclusão r, o enunciado Q orienta para uma conclusão
contrária, isto é, não-r, desqualificando a conclusão r do ponto de vista argumentativo.
O uso de “mas” na SDR 12 indica que os dois enunciados que a constituem
conduzem a conclusões contrárias. Isso significa que, para o sujeito, não se esperaria uma
atitude dessas de alguém que realmente ama os seus, o que implica em uma visão negativa do
suicídio. Contudo, o uso do operador apresenta o elemento concessivo (o enunciado P) como
o argumento mais fraco, de forma a prevalecer o motivo que levou ao suicídio. A grande
decepção da locutora, que lhe causou verdadeira morte em vida, é trazida para explicar o ato.
O mesmo acontece na SDR 11a, em que “porém” é empregado para fortalecer o
enunciado Q: “não encontrei mais nenhuma existência para mim”. Enquanto o enunciado P
leva a uma conclusão (r) contrária ao suicídio: o sujeito não se matará porque ama a mãe, o
seguinte conduz à conclusão não-r: ele se matará porque não tem mais razão para viver.
A oposição estabelecida pelos operadores representa, em termos discursivos, um
contraste entre posições-sujeito diferenciadas. Ambas as sequências foram produzidas por
mulheres que se veem angustiadas por não poderem cumprir a expectativa social de que sejam
conformadas, submissas e dedicadas antes à família do que a si mesmas. Trata-se de uma
expectativa que paira sobre todas as pessoas, mas especialmente sobre o gênero feminino.
Nas sequências discursivas de referência, ao afirmarem sua afeição à família em P,
elas aproximam-se dessa posição de mulheres dedicadas e amorosas, incapazes de colocar
seus interesses egoístas acima da família. Todavia, os operadores introduzem uma posição
conflitante, de mulheres que se preocupam primeiro consigo mesmas, com seus sentimentos e
com o sentido de suas vidas. Esse discurso é permeado por culpa e sentimento de fracasso.
No discurso do fracasso, o atravessamento de discursos-outros no dizer do suicida
pode se dar através de modalizações. Nas SDR 12 e 13, esse processo demonstra a
contradição do sujeito, confirmando que “não há identificação plenamente bem sucedida”
(PÊCHEUX, 2002, p. 56). Senão vejamos:
SDR 12 - Sei que estou tendo uma atitude um tanto egoísta depois de tanto me
ajudarem [...]. Deus aprendi que ele existe, sei que segundo a crença a gente sofre por
aquilo que fez de errado vou pagar por isto.
Embora o sujeito da sequência acima se identifique com a concepção
cristã/tradicional de suicídio, essa identificação não é plena, conforme assinalam as marcas de
11

não-coincidência grifadas. São pontos em que a ideologia falha, numa demonstração de que o
sujeito não é completamente determinado (PÊCHEUX, 1988).
Primeiramente, note-se que o sujeito seleciona o adjetivo “egoísta” para referir-se à
sua atitude de suicidar-se, porém assinala a não-coincidência entre o dizer e a coisa por meio
do modalizador “um tanto”. Ao ver-se diante da tarefa de designar sua atitude (e a si próprio,
por extensão), selecionando um adjetivo (X) que configure o referente visado (x), o sujeito
testemunha a não-coincidência experimentada pelo recurso à modalização que o acompanha e
que passa a ser constitutiva do processo de nominação para o qual o elemento X (signo
disponível na grade da língua) se mostra insuficiente (PAULILLO, 2004).
Como efeito de sentido, marca-se uma distância, um intervalo, entre a palavra X
(egoísta) e o referente x (atitude/suicídio). Nesse caso, X, a palavra tradicionalmente
associada ao suicida, parece ser significado como mais amplo que x, ou forte/negativo demais
para x. É nessa discrepância que emerge a heterogeneidade e, no caso em análise, a
inadequação da concepção proveniente da ideologia dominante. O efeito alcançado provoca,
enfim, um enfraquecimento do discurso do fracasso.
Nos outros segmentos destacados, o enunciador marca a exterioridade da ideologia
ao empregar uma linguagem que atenua seu comprometimento com o conteúdo do que diz.
Em vez de afirmar “Deus existe”, ele apenas diz que “aprendeu” que ele existe, ou seja,
esclarece que essa noção lhe foi transmitida de fora, por outra pessoa.
No lugar de declarar diretamente “sei que a gente sofre por aquilo que fez”, ele
atribui essa previsão à crença dominante, utilizando uma modalização em discurso segundo.
Trata-se de uma forma de discurso relatado em que o enunciado apresenta uma modalização
que remete a outro discurso, caracterizando-o como “segundo”, ou seja, dependente desse
outro discurso (AUTHIER-REVUZ, 1998, p. 135). Ocorre, assim, um abrandando do efeito
asseverativo dos enunciados, pois a origem do conhecimento é assinalada como distinta do
sujeito enunciador, marcando o afastamento deste em relação ao conteúdo do que afirma.
Na carta da SDR 13, a enunciadora R. explicita seu afastamento da FI dominante.
Contudo, esta emerge em seu dizer através de modalizações.
SDR 13 - Tudo deu errado em minha vida. Talvez eu tivesse nascido em hora
errada, tempo errado. Merda! / O que quer que eu faça é errado! / Será que é porque admiro
Hitler, sou anarquista, esquerdista e adepta do comunismo? / Será que é porque minha mãe
nunca se casou? / Porque meu pai era um panaca perfeito?
R. lamenta seu sofrimento e insucesso de forma incisiva e categórica, abrindo mão de
modalizações com efeito de afastamento e utilizando pontos de exclamação para dar ênfase.
12

Por outro lado, modaliza seu dizer ao levantar hipóteses sobre a causa de seu fracasso, sem
comprometer-se plenamente com o que diz, visto que se afasta de suas formações discursivas.
Paulillo (2004) identificou as fórmulas “Talvez P” e “Será que P?”, presentes na
SDR, como modalizações típicas da enunciação vacilante. Segundo a autora, a primeira seria
uma fórmula aproximativa, expressando, ao mesmo tempo, adesão e recuo do sujeito quanto
àquilo que diz. Essa fórmula marca um avanço na busca da coincidência, mas, ao mesmo
tempo, assinala que o processo está incompleto, pois a coincidência ainda não foi alcançada.
A segunda modalização seria uma fórmula suspensiva, que reflete a indecidibilidade
do sujeito naquilo que diz, demonstrando instabilidade. Assim, a fórmula “marca a
impossibilidade de uma aproximação coincidente, pelo acossamento de outro(s) sentidos,
outro(s) dizeres” (PAULILLO, 2004, p. 206).
Apesar da incoerência nos posicionamentos de R. (ao mesmo tempo admirar Hitler,
ser anarquista, esquerdista e adepta do comunismo), há algo de comum entre eles: todos
implicam numa rebeldia contra o sistema estabelecido. E a autora sugere que o erro de sua
vida tenha sido justamente o afastamento dos valores mais tradicionais da sociedade, como a
Igreja, o Estado e a família, em geral defendidos pela direita conservadora.
Seu posicionamento político-filosófico é certamente tido como transgressivo perante
a sociedade. Ao declarar-se admiradora de Hitler, adere a uma figura altamente recriminada
pela maioria defensora da fé cristã e dos direitos humanos. Já o anarquismo e o comunismo
são movimentos contestadores do Estado, contrários ao sistema estabelecido. A família de R.
também não corresponde ao modelo tradicional: sua mãe teve uma filha sem ser casada, algo
recriminado pela Igreja, e seu pai nunca foi um exemplo de “chefe de família”. Aquele que
deveria ser o provedor, protetor e “cabeça” da família é definido como um “panaca perfeito”.
Há uma voz no dizer de R. que a faz conceber tudo isso como a grande causa de seu
insucesso, tal como uma “maldição” decorrente de sua rebeldia. Contudo, ela não pode se
aproximar de todo dessa voz dissidente. Assim, através da fórmula suspensiva “Será que P?”,
a enunciadora marca sua não adesão a P (“é porque admiro Hitler, sou anarquista, esquerdista
e adepta do comunismo”, “é porque minha mãe nunca se casou”, “porque meu pai era um
panaca perfeito”), mas sem rejeitá-lo. A modalização se apresenta como suspensão da
nominação, porque é impossível para R. uma “aproximação coincidente”, diante da presença
de outras FD às quais abertamente se filia. Estas limitam seu discurso, determinando o que
pode e deve ser dito (PÊCHEUX, 1988, p. 160)
13

3.2 O discurso do êxito


O Dicionário Michaelis online define êxito como “1 Saída. 2 Fim, acabamento. 3
Resultado, sucesso final. 4 Resultado feliz, auspicioso. 5 Sorte: Desejo-te bom êxito”. O êxito
é uma saída gloriosa, permeada de felicidade ou realização.
No discurso do êxito, o enunciador demonstra uma visão positiva ou otimista do seu
ato, como sendo corajoso, honroso ou simplesmente sensato. Por vezes, atribui-lhe um caráter
místico, de sacrifício dedicado à pessoa amada.
O suicida pode colocar-se como mártir (alguém que morre em nome de seus ideais,
numa atitude de força e nobreza) e incitar a admiração do interlocutor. Pode, ainda, assumir
uma posição de vantagem em relação aos que deixa para trás, pois ganhará conhecimento do
“outro lado” ou viverá eternamente. Alguns falam como se pudessem exercer influência sobre
o mundo dos vivos. Assim, ameaçam-nos ou prometem ajudá-los e transmitir coisas boas de
onde estiverem. Podem, por fim, elaborar sua morte como um ato final de vingança contra
alguém que lhes causou mal, para infligir-lhe culpa e sofrimento. O suicida sai vitorioso
porque consegue efetivamente “dar o troco” e ter a última palavra.
Em comum a todas essas abordagens tem-se um discurso marcado por uma
concepção de “sucesso final”, de “saída triunfante” e até mesmo de renascimento. O ego é
elevado ao ponto de se observarem indícios de narcisismo em algumas mensagens. Por vezes,
no entanto, o enunciador precisa convencer o interlocutor de seu êxito, empregando
mecanismos de persuasão para combater a negatividade que antecipa a partir de seu
conhecimento da FI dominante.
Passaremos a analisar algumas sequências que exemplificam o discurso do êxito. A
primeira é a única sentença do bilhete deixado por M., um adolescente de 15 anos que se
suicidou com um tiro vestindo roupas e acessórios de estilo punk.
SDR 14 - Mãe - eu não quero ser mais uma ovelha desse sistema (me faça um favor
de me enterrar como estou).
Nota-se que o jovem encontrou na morte uma forma de rebelar-se contra o sistema
de seu tempo, fazendo ouvir a sua voz. Ele deixa clara a motivação de seu ato através do que
Indursky (1997) denomina negação externa: a negação do discurso de uma formação
discursiva antagônica. Por meio dela, ele ao mesmo tempo rejeita e declara a ideologia
dominante, aquilo que a sociedade espera de todos os indivíduos: que sejam “ovelhas”, parte
de um rebanho, sem identidade própria.
14

Na simbologia do cristianismo, Jesus é representado como o “bom Pastor” e os


crentes, como as ovelhas que o seguem. Ovelhas simbolizam mansidão, pois são submissas,
obedientes ao pastor e andam junto ao rebanho, sem se diferenciarem das demais.
É essa concepção que M. rejeita em seu discurso. Ao dizer que não quer ser “mais
uma” ovelha, compara os demais membros da sociedade a este animal de forma pejorativa,
demonstrando enxergá-los como um grupo homogêneo de pessoas subordinadas e sem
personalidade própria. M., por outro lado, declara não querer adequar-se a um sistema que
diverge da ideologia com a qual se identifica. Dessa forma, a negação empregada coloca em
cena discursos ideologicamente adversos, representando a rejeição do discurso do outro.
Em seu imaginário, o jovem toma uma atitude digna de mártir. Ele não se considera
um fracassado, pois não sucumbiu ao sistema e saiu vitorioso na luta de ideais. Por essa razão,
seu dizer enquadra-se no discurso do êxito.
Na próxima sequência, o discurso do êxito se apresenta em moldes bem diferentes da
sequência anterior.
O bilhete onde se encontra a SDR 4a foi escrito para o “Seu J.”. Dirigindo-se a ele, o
autor pede perdão, confessa que se matou porque “não suporta”, faz agradecimentos e encerra
a carta. Nesse trecho, conforme visto anteriormente, seu discurso evidencia o fracasso. Por
outro lado, em um pós-escrito, dirige a terceiros não especificados (provavelmente à
sociedade em geral) um enunciado que funciona na direção oposta:
SDR 15 - Na graça de Deus eu entrego o meu corpo e meu espírito eu não serei
aquele pecador que todos esperam eu sou pelegrino que batalho pela minha vida ganhando o
meu pão de cada dia e agradeço ao senhor J.
Ao falarmos ou escrevermos, sempre temos em mente um destinatário e
modalizamos nosso dizer em função das imagens que temos dele e de nós mesmos. A partir
das formações imaginárias que temos em relação às posições ocupadas por nós e pelo nosso
interlocutor (PÊCHEUX, 1997), procuramos antecipar o outro, fornecendo de antemão
respostas às objeções previstas e levando em conta seu conhecimento, suas convicções, suas
simpatias e antipatias. Antecipamos o sentido que nossas palavras produzirão, manipulando
(ainda que inconscientemente) o conteúdo e a forma do que dizemos para alcançarmos nossas
intenções discursivas, isto é, o efeito persuasivo desejado sobre o destinatário.
No trecho “não serei aquele pecador que todos esperam”, o emprego do verbo “ser”
no futuro do presente, bem como a referência a algo que as pessoas “esperam”, deixam clara a
referência ao futuro do suicida após a morte. Aqui, a antecipação do que os outros vão pensar
é explicitada e baseia-se no conhecimento do enunciador sobre a ideologia socialmente
15

dominante. Esse conhecimento compartilhado é revelado pelo uso do pronome demonstrativo


“aquele pecador” – pois supõe que o ouvinte saiba de que “pecador” se está falando – e pela
oração subordinada “que todos esperam”.
De acordo com Pêcheux (1988, p. 99) as orações subordinadas relativas restritivas
podem representar uma separação entre “o que é pensado antes, em outro lugar ou
independentemente, e o que está contido na afirmação global da frase”. Ou seja, elas
remetem a um pré-construído: uma construção anterior, exterior e independente que se opõe
ao que é “construído” no enunciado.3
Na SDR 15, o pré-construído que irrompe no enunciado refere-se à expectativa social
com relação ao suicida – um saber que “já está lá”, pois é exterior e anterior ao sujeito
enunciador. Na tradição da Igreja, o suicida é um pecador que receberá a devida punição pelo
seu ato. No entanto, o enunciador, pelo uso da negação, recusa esse destino para si.
Diferentemente do que ocorre na SDR 14, porém, a negação não envolve a rejeição
de uma ideologia antagônica, pois o contexto demonstra a filiação do sujeito à FD cristã. O
sujeito apenas rejeita seu enquadramento como “pecador” a ser punido, ainda que a mesma
ideologia da qual se aproxima reserve esse destino ao suicida. Dessa forma, termina por
aceitar a ideologia em alguns aspectos e rejeitá-la em outros, evidenciando a contradição
característica de um ser-em-falta. Ao mesmo tempo em que sofre a influência do
interdiscurso, ele rompe com esses saberes, num processo de polissemia.
Na próxima sequência, a contradição é observada a partir de um ato falho capaz de
revelar diferentes posições-sujeito associadas ao discurso do êxito.
SDR 16 - Creusa isto é para você e o meu amor primo. Creuza você foi a mulher que
me fez perder a minha família. Você não me deu o que eu quiz então eu lhe dou a minha vida.
Aqui, o enunciador dedica à mulher o seu amor e o suicídio. A associação desses
dois elementos demonstra que o suicídio está sendo discursivizado como prova de afeição –
um sacrifício pela pessoa amada, ainda que ela não tenha retribuído à altura desse “amor
primo”. De fato, essa mulher lhe fez mal, causando-lhe a perda da família, o que coloca o
sujeito na condição de um homem injustiçado, cujo afeto não foi devidamente correspondido.
Diante de tal contexto e da referência ao suicídio como ato de “dar a vida”
(expressão associada à doação, generosidade, nobreza, renúncia), a terceira enunciação é
estranha, pois a conjunção conclusiva “então” soa inadequada. Vejamos:
Você não me deu o que eu quis (P), então eu lhe dou a minha vida (Q).

3
Como exemplo, o autor cita a frase “aquele que salvou o mundo morrendo na cruz nunca existiu”, em que há
um pré-construído da FD cristã manifestando-se em um enunciado pertencente à FD marxista.
16

O conectivo utilizado apresenta P como uma justificação de Q. No entanto, essa


relação não é possível se, conduzidos pelo contexto e pela linguagem empregada,
considerarmos o primeiro enunciado como negativo e o segundo como positivo.
Em um discurso que apresenta o suicídio como um sacrifício de amor, esperaríamos
um conectivo que expressasse oposição entre os dois gestos – um que retém tudo e o outro
que dá tudo, até mesmo a vida; um que é mau e outro que é bom. Ter-se-ia, então, algo como:
Você não me deu o que eu quis (P), mas eu lhe dou a minha vida (Q).
A conclusão r, à qual P conduz o destinatário, naturalmente seria algum tipo de
retribuição pelo mal expresso em P. Se, por outro lado, “dar a vida” é um ato nobre, Q quebra
a expectativa de r criada por P, devendo ser introduzido por uma conjunção adversativa.
Todavia, não é isso que se apresenta – tem-se uma relação de conclusão ou
consequência entre as duas orações. Tal ocorrência se explica ao considerarmos que o
enunciador cometeu um ato falho, um acidente em que se usa “uma palavra pela outra” e que
consiste em uma manifestação do inconsciente (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 49). Na SDR, o
enunciador manifestou um desejo inconsciente de vingança, revelando duas posições-sujeito
contraditórias. O suicídio é, sem querer, expresso como retaliação, em função do conectivo
empregado: ela lhe causou mal, então ele lhe fará o mesmo.
Nesse sentido, o enunciador não lhe dá a vida, mas a morte, com toda a culpa e
sofrimento que esta carrega. O equívoco evidencia o contraste entre diferentes posições-
sujeito, de amante apaixonado e de vingador, revelando o sujeito do inconsciente.

3.3 Tensão entre discursos


Nesta subseção, serão analisadas três sequências em que o discurso do êxito e o
discurso do fracasso aparecem de forma muito próxima, estabelecendo relações entre si.
SDR 17 - Querida Mãe! / Este sacrifício é para a senhora! Não seja tão fraca
quanto eu, muito pelo contrário: a senhora está quase conseguindo superar esta barreira.
Nessa sequência, percebe-se que o êxito e o fracasso coexistem e contrastam um com
o outro. No início da carta, o entusiasmo demonstrado com pontos de exclamação, a
referência ao suicídio como um “sacrifício” e a dedicação do ato à mãe certamente lhe
atribuem um caráter positivo. Porém, logo em seguida o sujeito assume posição oposta ao
pedir que sua mãe “não seja tão fraca quanto ele”. Enquanto num primeiro momento o
suicídio é discursivizado como ato de grandeza, ele se torna sinal de fraqueza logo depois.
17

A transição entre o discurso do êxito e o discurso do fracasso estabelece um contraste


que evidencia a divisão do sujeito. Ao mesmo tempo em que este deseja dar um sentido
positivo a seu ato, também quer dissuadir sua mãe de fazer o mesmo.
Semelhante processo ocorre nas SDR seguintes, porém através de marcas distintas:
SDR 18 - Parece covardia, mas só eu sei o quanto é preciso coragem para fazer o
que eu fiz e admitir que não passo de um fracasso, uma derrotada.
SDR 19 - Sei que todos acharão covardia minha ter procurado a morte, porém não
acho que desapareci e sim tento passar para um outro plano, talvez um lugar em que eu me
encontre e não me sinta tão deslocado.
O primeiro enunciado de cada sequência introduz uma provável impressão do
destinatário da mensagem ou da sociedade em geral com relação ao suicídio: de que é um ato
de “covardia”. Os sujeitos são capazes de antecipá-la em função do conhecimento que
possuem da ideologia dominante.
Através da oração modalizadora “Sei que” e do verbo modal “parecer”, eles
reconhecem a legitimidade dessas ideias, mas já sinalizam os enunciados contrários que virão
após a vírgula. Os enunciados seguintes, introduzidos pelos operadores “mas” e “porém”,
predominam sobre os anteriores e são assumidos pelos sujeitos como verdadeiros.
Na SDR 18, ao predominar a declaração de que a enunciadora demonstrou coragem,
e não covardia, ela parece restar em uma posição de virtude e êxito. No entanto, fala de uma
coragem para “admitir que não passa de um fracasso, uma derrotada”. Assim, o complemento
do verbo contrasta com a argumentação anterior, retornando a uma posição de inferioridade.
Percebe-se, na mesma sequência, a presença do discurso do êxito e do discurso do fracasso,
pois, ao mesmo tempo em que o sujeito afasta de si o estereótipo social do “suicida covarde”,
identifica-se com a condição de “suicida fracassado”.
Na SDR 19, “porém” orienta para uma conclusão de que o suicídio não é um ato de
covardia. Contudo, o restante da sequência traz uma série de modalizadores (sublinhados) que
sinalizam a dúvida do sujeito com relação ao seu destino pós-morte.
Retomando Paulillo (2004), as construções “acho que P” e “talvez P” são fórmulas
aproximativas, as quais indicam que a coincidência não foi atingida e que outros dizeres
atuam no discurso. Na SDR 19, a modalização “acho que” suspende o impacto da negação e,
juntamente com “talvez”, admite outros dizeres: o materialista, segundo o qual, ao morrer,
simplesmente desaparecemos e não há vida depois disso, e a FD cristã, pela qual o suicida não
vai para um lugar melhor após a morte, mas recebe a punição dos pecadores.
18

O verbo “tentar”, por sua vez, abre uma brecha para a falha. Em vez de afirmar que,
através do suicídio, efetivamente “passa para outro plano”, o sujeito hesita quanto à crença
manifestada e admite a possibilidade de que nada disso ocorra.
A palavra “tão” é empregada para diferenciar o “outro plano” imaginado da realidade
atual. Note-se que essa diferença não é polarizada na forma deslocado (este plano) x não
deslocado (outro plano). O que o sujeito nega no enunciado não é o adjetivo “deslocado”, mas
apenas o seu grau. Ou seja, a negação incide apenas sobre a igualdade, o que não quer dizer
que o “outro plano” será o oposto deste.
Isso significa que o enunciador não projeta um futuro absolutamente privado do
desconforto que sente em vida, uma eternidade de felicidade e alívio, como é característico do
discurso do êxito. Ele apenas tem a esperança de que não seja “tão” ruim como a realidade
atual, de que ele não se sinta deslocado no mesmo grau em que se sente em vida. Seu dizer dá
espaço, portanto, para que ele ainda se sinta deslocado, isto é, para que seu destino não seja
pleno de alegria.
É nesse jogo de rejeição da ideologia dominante (do que ele antecipa que a sociedade
pensará) e, ao mesmo tempo, de hesitação com relação ao destino feliz que quer sustentar, que
se percebe a tensão entre o discurso do fracasso e o discurso do êxito.

4 CONCLUSÃO
Neste trabalho, viu-se que o suicídio é discursivizado através de dois grandes
movimentos discursivos, que refletem as concepções dos suicidas sobre o seu ato e sobre si
próprios: trata-se do discurso do fracasso e do discurso do êxito. Em ambos os discursos
observou-se uma forte presença da FD cristã ou tradicional, seja para confirmá-la, rejeitá-la
ou questioná-la. Ela é muitas vezes antecipada pelo suicida nos destinatários de suas
mensagens, terminando por determinar seu discurso.
Os discursos do fracasso e do êxito, em suas fortes relações com a ideologia
dominante, revelam-se nos dizeres dos suicidas através de diferentes marcas linguísticas,
dentre as quais se destacou a negação. Na última subseção das análises, verificou-se que os
dois movimentos discursivos podem coexistir em uma sequência discursiva, o que representa
mais uma evidência da não-coincidência que afeta o sujeito.
Observou-se que o dizer dos suicidas é constantemente atravessado por outros
discursos e, em suas palavras, outras palavras já ditas significam. Nesse processo, o equívoco,
a contradição e o inconsciente são revelados, manifestando um sujeito em falta, sempre
desejante e essencialmente clivado.
19

Pode-se dizer que tal condição, característica de todo sujeito, manifesta-se de


maneira acentuada no discurso do suicida. Ao redigir sua mensagem final, este se vê
compelido a dar algum tipo de explicação àqueles que ficam, de modo que seu discurso gira
em torno das concepções que carrega sobre si próprio e sobre o ato do suicídio. O discurso de
si é um lugar prolífico em vacilações e não-coincidências, ante a complexidade de
representação da própria subjetividade (PAULILLO, 2004). Quanto ao suicídio, a dificuldade
de discursivizá-lo deve-se ao fato de ser algo controvertido, predominantemente condenado
pela sociedade brasileira, porém almejado pelo sujeito.
Consideramos a análise de cartas e bilhetes de suicídio sob a perspectiva da AD
bastante oportuna. Primeiramente, porque o suicídio é um fenômeno complexo cujo estudo
requer o recurso a múltiplas áreas de conhecimento, o que é possibilitado pela AD. Além
disso, os discursos analisados representam o desafio de uma nova materialidade discursiva,
distinta daquelas tradicionalmente estudadas pela disciplina. Por fim, esperamos ter oferecido
uma contribuição para os estudos do suicídio dentro de um viés linguístico-discursivo.

5 REFERÊNCIAS
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FERREIRA, Maria Cristina Leandro. Linguagem, ideologia e psicanálise. Estudos da


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20

INDURSKY, Freda. A fala dos quartéis e as outras vozes. Campinas: Editora da Unicamp,
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MICHAELIS MODERNO DICIONÁRIO DA LÍNGUA PORTUGUESA. Disponível em:


<http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues>. Acesso em: 23 nov. 2010.

ORLANDI, Eni P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 7 ed. Campinas: Pontes,


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PAULILLO, Rosana. A enunciação vacilante: formas do heterogêneo no discurso de si.


2004. 266 f. Tese (Doutorado em Linguística) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto
de Estudos da Linguagem.

PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas:


Editora da Unicamp, 1988.

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automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas: Editora da
Unicamp, 1997.

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SILVA, Marcimedes Martins da. Suicídio: trama da comunicação. 1992. 134 f. Dissertação
(Mestrado em Psicologia Social) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

TEIXEIRA, Marlene. Análise de Discurso e Psicanálise: elementos para uma abordagem do


sentido no discurso. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

ENUNCIAÇÃO, SUBJETIVIDADE E AUTORIA:


COMO ESSA APROXIMAÇÃO É POSSÍVEL?

Márcia Elisa Vanzin Boabaid (UFRGS)1

RESUMO

Neste estudo, apresentamos uma reflexão acerca da produção textual, enfocando as relações
entre enunciação, produção textual e a autoria. Faz parte da cultura escolar solicitar aos alunos
que escrevam textos, e essa prática deixa subentendido que é preciso ir à escola para aprender
a ler e a escrever. A escola é vista como o espaço da escrita. Em contrapartida, sustenta-se a
necessidade de o aluno ser autor de seu texto, garantindo à escrita o lugar, por excelência, de
instauração da subjetividade na linguagem. Mas o aluno foi preparado para ser autor de seu
texto? A prática de produzir textos na escola é sinônimo de reproduzir ideias, baseando-se em
um modelo orientado? A justificativa deste estudo decorreu de dois fatores: o primeiro deles-
de ordem prática – em nossa atividade docente, ao analisarmos um texto construído por um
aluno, chama-nos atenção a preocupação com o que o outro (no caso o professor) gostaria que
o eu dissesse (reprodução), e o que o eu realmente quer dizer. O segundo fator determinante
foi entender o texto – neste caso, em sala de aula – como uma das formas de entender a língua
materna. Nosso objetivo é mostrar que a ação que as palavras exercem umas sobre as outras
resulta nos sentidos promovidos pelo sujeito enunciador, que deixa marcas de sua presença no
discurso. Como suporte teórico, valemo-nos dos principais postulados da Teoria da
Enunciação de Émile Benveniste, segundo o qual a enunciação somente existe na perspectiva
do eu (subjetividade) em relação com o tu (intersubjetividade), inseridos numa instância
discursiva única (aqui/agora). Isso quer dizer que o texto, produto da enunciação, será sempre
singular, por representar a vida da linguagem em ação, considerando as marcas de
singularidade do sujeito que se enuncia em tempo e espaço cada vez únicos e irrepetíveis.
Entender a escrita na escola como um espaço enunciativo, implica acreditar que a análise da
produção textual vai além da superfície do texto, uma vez que a produção textual é um espaço
de interação entre um eu e um tu.

Palavras-chave:
Enunciação. Autoria. Produção textual.

ABSTRACT

In this study, we present a reflexion about the textual production, focusing on relationship
between enunciation, textual production and authorship. It is part of school culture to ask
students to write texts, and this practice implies that you need to go to school to learn how to
write and read. The school is seen like a space for writing. On the other hand, supports the
necessity of the student be the author of his own text and, for excellence, the establishment of
subjectivity language. But, the student was prepared to be the author of his own text? The
practice of producing texts in the school is synonymous of reproduce ideas, based on a
oriented model? The justification of this study comes from two factors: the first one – of
practice order - in our teaching activity, when analyzing a text constructed by a student, calls
our attention the preoccupation with what the other(in this case the teacher) would like to see
I writing(reproduction) and what I really wanted to say. The second determinant factor was
understand the text – in this case, at the classroom – like one of the ways to understand the
1
Doutoranda em Letras (UFRGS); e-mail: mvboabaid@yahoo.com.br.
2

mother tongue. Our objective is to show that the action that words exert on each other results
in the directions promoted by the enunciation subject, who leaves marks of your presence in
the discourse. As theoretical support, we make use of the main postulates of Theory of
Enunciation of Émile Benveniste, according to which the enunciation exists only in the
perspective of the self(subjectivity) in relationship with you(intersubjectivity), inserted in a
single instance of discourse(here/now). This means that the text, product of enunciation,
always unique, represents the life of language in action, considering the uniqueness of the
subject marks who states that in time and space ever unique and unrepeatable. Understand the
writing in school as a enunciative space, implies in believing that the analysis of textual
production goes beyond of the text surface, since text production is a space of interaction
between a you and me.

Keyword:
Enunciation. Authorship. Textual production.

1 INTRODUÇÃO
Este texto mapeia a noção de autoria derivada da enunciação, a partir da identificação
das marcas que remetem à enunciação (sujeito, tempo e espaço). O estudo está ancorado na
teoria de Émile Benveniste2 e objetiva compreender como as marcas linguísticas contribuem
para a construção da autoria, e de que forma os recursos utilizados pelo sujeito podem
direcionar o sentido na produção textual. Desta forma, tentaremos mostrar que enunciação e
autoria são conceitos que podem fazer parte da mesma teoria; para tanto, a visão de
enunciação deve considerar, simultaneamente, a produção de discurso, visto como um
acontecimento irrepetível, marcado por um traço pessoal, chamado de singularidade. A
tentativa de elucidar esses conceitos, tornando-os relevantes em conjunto se dará pela análise
de textos produzidos na escola.
Inicialmente nos questionamos a respeito do que é de fato um autor. Para clarear esta
dúvida, imprescindível conhecer a concepção de autor elencada por Barthes:
O autor, quando se acredita nele, é sempre concebido como passado do seu
próprio livro: o livro e o autor colocam-se a si próprios numa mesma linha,
distribuída como um antes e um depois: supõe-se que o Autor alimenta o livro,
quer dizer que existe antes dele, pensa,sofre,vive com ele; tem com ele a mesma
relação de antecedência que um pai mantém com um filho. Exatamente ao
contrário, o scriptor moderno nasce ao mesmo tempo que o seu texto; não está de
modo algum provido de um ser que precederia ou excederia a sua escrita, não é de
modo algum o sujeito de que seu livro seria o predicado;não existe outro tempo

2
No estudo das teorias da enunciação, Benveniste é considerado o primeiro estudioso a propor a diferenciação
da língua propriamente dita do emprego da língua. Este último seria um “mecanismo total e constante” que a
afeta como um todo. O estudioso evidencia a preocupação de explicitar o processo de construção do sujeito,
abordando-o como um evento social que se realiza pela linguagem. Dessa forma, o sujeito, na visão deste autor,
é um sujeito lingüístico, que se constrói pela e na linguagem. Submeteu a enunciação a um aparelho formal,
apresentando um sujeito dono do seu dizer, que se apodera do sistema língua para enunciar. Com a publicação
do artigo “O Aparelho formal da enunciação”(1989), viu-se nele um lingüista que possibilitava a transformação
da língua em discurso, por meio da enunciação.
3

para além do da enunciação, e todo o texto é escrito eternamente aqui e


agora.(BARTHES,2004).

Desta forma, as palavras de Barthes3 traçam caminhos curiosos para pensarmos a


autoria considerando a enunciação, uma vez que falamos para alguém em um determinado
tempo e lugar. Nas palavras de Barthes (1984, p.158-159) o Texto é, radicalmente, simbólico:
uma obra concebida, percebida e recebida em sua natureza simbólica integral é um texto. Em
virtude dessa radicalidade simbólica, o texto engendra uma pluralidade de significações, o que
não implica ter, simplesmente, várias significações, mas executar uma pluralidade de
significações: uma irredutível pluralidade. Ainda, Barthes (2004, p.159) assinala que o texto
não é a coexistência de significações, mas uma passagem, um cruzamento; assim, não
corresponde a uma interpretação, mesmo a uma liberal, mas a uma explosão, a uma
disseminação.
Mas, por que trazer a noção de Barthes quando o assunto é enunciação e autoria?
Primeiramente pelo fato de que o autor consegue mapear o caminho do texto e nos provoca
quanto a quem de fato pode ser reconhecido como autor. O segundo motivo é a dúvida de que
o autor não pode ser entendido como sinônimo de autoria. Assim sendo, é possível afirmar
que autor e autoria não desempenham a mesma função e não representam a mesma “pessoa”.
A interpretação da ideia de Barthes e as nuances da linguística da enunciação, de
Émile Benveniste, são aplicadas pelo linguista Flores (2001, p.59) quando destaca que a
linguística da enunciação toma para si não apenas o estudo das marcas formais no enunciado,
mas refere-as ao processo de sua produção: ao sujeito, tempo e espaço. Assim sendo, é
necessário fazermos um recorte sobre quem é este sujeito e como ele se enuncia para depois
percebermos a enunciação e o sentido, o processo de enunciação e a definição do sentido.
Desta forma, a autoria poderia estar relacionada na marca do nome de autor em
oposição a um nome próprio remetendo a um indivíduo? Considerando-se, também, que o
nome de autor não é mero elemento de um discurso, com uma função gramatical: ele funciona
como um princípio de classificação, de identificação. E ainda: seria a autoria uma relação
construída a partir do discurso? Quais seriam e como poderiam ser organizados os indícios de
autoria na produção de textos escolares?
Todo o falante, em uma situação de comunicação, reconhece a dificuldade e às vezes a
impossibilidade de retomar a palavra alheia e em muitos casos se questiona sobre o que de

3
Não temos interesse na noção de Barthes sobre autor, o olhar que nos importa é sobre „‟autoria‟, pois é nela que
buscamos a essência, o sentido. Para tanto devemos abandonar a noção de autor, ou seja, a ideia de que o sentido
está encerrado em si mesmo.
4

fato o outro proferiu. Isso ocorre porque sempre tentamos compreender a exatidão do que foi
dito, esquecendo, muitas vezes, que nesse entendimento repousa o singular da fala que se quer
reproduzir. Benveniste, o representante da linguística da enunciação, estuda a enunciação, ou
seja, o uso individual que cada um faz da língua, operando os mecanismos que marcam a
passagem do homem à condição de sujeito, definindo este processo como a subjetividade na
linguagem.

2 UM OLHAR SOBRE A TEORIA DA ENUNCIAÇÃO DE BENVENISTE


Émile Benveniste é considerado o linguista da enunciação e, consequentemente, um
dos principais representantes do que se convencionou chamar de teoria da enunciação. Esse
linguista ocupa um lugar singular no contexto histórico em que se intensificam os estudos
enunciativos e é, talvez, o primeiro linguista, dentro do quadro saussuriano, a desenvolver um
modelo de análise da língua especificamente voltado para a enunciação. Aparece, então, como
uma referência forte nos estudos da linguagem, principalmente nos relacionados à enunciação
porque possibilitou a reintegração do sujeito e da subjetividade nos estudos linguísticos, bem
como um considerável avanço em direção aos estudos do discurso.
Sob o rótulo de teorias da enunciação, encontra-se o conjunto de trabalhos que estuda
os fatores e atos que possibilitam a produção de um enunciado. Refletindo sobre questões de
interlocução, intersubjetividade, tempo e lugar, essas teorias buscam evidenciar que o estudo
semântico dos enunciados é insuficiente quando não se leva em conta a enunciação, este
colocar em funcionamento a língua por um ato individual de utilização (BENVENISTE,
1989, p. 82). De um modo geral, as teorias da enunciação preocupam-se com o locutor (o
sujeito da enunciação e como se caracteriza sua emergência no discurso); o interlocutor (para
quem o discurso é produzido e como sua presença se materializa na enunciação); a situação
em que a enunciação é produzida (marca espaço-temporal de produção do discurso) e o
referente do discurso (sobre o quê o discurso trata).
Em Problemas de linguística geral I e II é possível observar, dentre outras coisas, a
forma como a concepção da linguagem, da perspectiva da enunciação e do discurso, que
envolve subjetividade e intersubjetividade de maneira constitutiva. Segundo o autor, o
emprego da língua está relacionado a um mecanismo total e constante que, de uma maneira ou
de outra, afeta a língua inteira. A dificuldade é apreender este grande fenômeno, tão banal que
parece se confundir com a própria língua, tão necessário que nos passa despercebido. O
fenômeno a que ele se refere é a enunciação, ou seja, o fato de se colocar em funcionamento a
5

língua. Se o emprego das formas é algo relativo unicamente à constituição orgânica da língua,
o emprego da língua é algo constituído na relação entre o locutor e a língua. Essa relação, no
entender de Benveniste, produz marcas linguísticas, que ele denominou de caracteres
linguísticos da enunciação. O estudioso evidencia a preocupação de explicitar o processo de
construção do sujeito, abordando-o como um evento social que se realiza pela linguagem.
Dessa forma, o sujeito, na visão deste autor, é um sujeito linguístico, que se constrói pela e na
linguagem.
O conceito de enunciação aparece no aparelho formal da realização da língua e a
enunciação só é realizada quando o locutor se apropria do aparelho formal da língua e enuncia
sua posição de locutor. Os pronomes pessoais e demonstrativos, os advérbios de tempo e
lugar, os tempos verbais, adquirem o estatuto de indivíduos linguísticos, pois nascem de uma
enunciação, isto é, são engendrados de novo cada vez que uma enunciação é proferida, e cada
vez eles designam algo novo. Ainda, o eu, o aquele, o amanhã da descrição gramatical não
são senão os nomes metalinguísticos de eu, aquele, amanhã produzidos na enunciação. É por
meio do aparelho que podemos perceber a apreensão da língua pelo locutor, que pode estar se
referindo a si mesmo, ao seu interlocutor, ao tempo, ou ao espaço da enunciação, e esses
denunciam a presença do locutor em sua própria enunciação. Dessa forma acolhem um centro
de referência interno, ao tempo e ao espaço da enunciação, isso porque a referência é parte
integrante da enunciação.
Benveniste destaca que a enunciação é um acontecimento único e irrepetível e
acontece sempre quando o eu (locutor) assume a língua, dizendo-se eu e dirigindo-se a um tu
– condição que é reversível, num determinado tempo e espaço. É na relação entre as
categorias de pessoa, tempo e lugar que acontece a enunciação. De acordo com Benveniste
(1989), a frase é cada vez um acontecimento diferente; ela não existe senão no instante em
que é proferida e se apaga nesse instante; é um acontecimento que desaparece. Ao produto
dessa enunciação chamamos de enunciado, o qual também é único e irrepetível. Isso significa
dizer que uma palavra sendo pronunciada em momentos diferentes não produzirá o mesmo
sentido, por isso enunciado e enunciação são singulares.
As teorias da enunciação têm como eixo comum a preocupação com o sentido.
Segundo Flores (2001), a linguística da enunciação vê os fenômenos que estuda, sejam eles de
natureza sintática, morfológica ou de qualquer outra, do ponto de vista de seu sentido.
Percebemos que o autor aponta que as teorias da enunciação, cada uma com suas
especificidades, concebem a realização linguística em tempo e espaço determinados e com
referência aos sujeitos que enunciam. Então, depreendemos que os efeitos de sentido
6

pretendidos e os efeitos de sentido produzidos nem sempre são coincidentes. Entre o que o eu
quer fazer saber ao tu e o que o tu interpreta do dizer do eu há mais do que palavras, há visões
de mundo, vivências, particularidades, individualidades, um universo de subjetividade que
pode tanto unir as ideias veiculadas quanto afastar o sentido pretendido.
A linguagem, instrumento de comunicação, está relacionada intimamente ao homem
que a organiza e lhe dá conteúdo. Neste momento resgata a dimensão da linguagem,
acrescenta o mecanismo maior e mais importante que a língua sendo sistema de signos e
inclui a “comunicação” e o “homem” 4. Assim sendo, quando ele, o homem, se apropria dela
passa a ser “sujeito”. Por isso, falar de subjetividade, na teoria benvenistiana, é assinalar que
não atingimos nunca o homem separado da linguagem e não o vemos nunca inventando-a.
Não atingimos jamais o homem reduzido a si mesmo e procurando conceber a existência do
outro (1995, p.285), é assinalar que o homem é constituído na relação com outro homem.
A possibilidade de comunicação advém da inerência da linguagem ao homem. Essa
inerência é a subjetividade, definida pelo linguista como sendo a capacidade do locutor para
se propor como sujeito. Percebemos, então, que “sujeito” é uma categoria filosófica ou
psicológica, tal como diz o próprio autor, a qual encontra lugar em uma categoria linguística,
a pessoa. É esta última que apresenta o centro de interesse para o linguista, pois a pessoa é
expressa pelos seres que se comunicam, a saber, eu e tu, ambos indispensáveis para a
comunicação. Benveniste reforça que a subjetividade é uma propriedade da linguagem e não
das línguas particulares, dado que a categoria de pessoa eu e tu deve existir, de uma forma ou
de outra, em todas as línguas e sublinha que o fundamento da subjetividade está no exercício
da língua (1995, p.288).
A emergência da subjetividade só é possível pelo reconhecimento do outro, o tu, que é
instaurado no mesmo processo em que o eu se propõe, numa implicação mútua. Segundo o
autor, o que diferencia eu de tu é o fato de o primeiro ser interior ao enunciado e exterior a tu,
porém exterior de maneira a não suprimir o caráter humano do diálogo que pressupõe a
reflexividade, ou seja, a sucessão de atos enunciativos com a possibilidade de troca de papéis
eu-tu. É a inversibilidade do par eu-tu, relação que o ele não estabelece com nenhuma das

4
Destacamos que o autor estuda a relação entre os signos no interior do sistema da língua (perspectiva
saussuriana) bem como as relações entre as posições de enunciação do sujeito na língua, ao mesmo tempo em
que enfoca a noção saussuriana de que a língua é um sistema de signos.Benveniste assume as formulações
teóricas de Saussure, quando este diz ser preciso separar a língua da linguagem, mas tenta redimensionar o que é
central no Curso de Lingüística Geral, mas incompleto: a significação, desenvolvida a partir do discurso. Com
isso amplia suas reflexões, originando, o estudo da enunciação. É pela noção de enunciação que Benveniste
redimensiona os estudos de Saussure.
7

duas pessoas propriamente ditas, e por meio da qual se marca no interior da língua a presença
da intersubjetividade. O tu é externo a eu, e não subjetivo, porém condição para o
reconhecimento e, portanto para a existência de eu ser único em cada ato enunciativo.
No momento em que se produz um enunciado, o locutor se revela como sujeito 5 de seu
discurso, fazendo-se representar nele quando assume a pessoa do eu presente em qualquer
língua. O autor parte de um enquadramento que leva em conta a relação entre um eu e um tu,
sendo que este eu é apresentado como um sujeito uno e homogêneo, carregando em si a
responsabilidade da enunciação. O referente da interlocução é designado por um ele,
caracterizado como uma não-pessoa, já que é excluído da enunciação.

Benveniste aponta que o sentido está preso às formas da língua, ou seja, o sentido está
na língua, e não na enunciação. O que depende da enunciação, para o autor, é a referência, a
semantização, a colocação dos signos numa determinada relação com o mundo6. Essa ideia
está contemplada em Flores (1999), quando ele assinala que a enunciação é o modo como um
falante se apropria da língua, relação entre um falante e a língua, ou seja, esse processo de
comunicação decorre do uso e da relação entre o que toma a palavra e a língua. Benveniste
destaca que o sentido de uma frase é sua ideia e o sentido de uma palavra é seu emprego. A
partir dessa ideia, a cada vez particular, o locutor agencia palavras que neste emprego tem um
“sentido” particular. Ele, a nosso ver, constata que o sentido do enunciado é único e
irrepetível, uma vez que ele combina algo de “permanente”, a saber, o emprego das palavras,
a algo de “efêmero”, a saber, a ideia do enunciado. Quando dizemos que determinado
elemento da língua tem um sentido, entendemos a sua realidade como significante.

Precisamos considerar que um ato de enunciação é um ato de co-referência, de


atribuição conjunta dos interlocutores, de sentido às palavras. Então, é somente a partir do ato
de enunciação que se pode pensar no sentido. Isso implica dizer que os significados são
constituídos a cada relação enunciativa, e é por meio da referenciação aos interlocutores, ao
contexto da enunciação e a intersubjetividade que a língua se viabiliza.

5
Benveniste não definiu o sujeito da enunciação, mas no decorrer da leitura de seus textos constrói hipóteses
sobre o sujeito. Desta forma, a noção de “sujeito da enunciação” não se encontra na teoria de Benveniste, mas é
sugerida por Flores (1999, p.202), seguidor dessa teoria: “o sujeito da enunciação é aquele constituído pela
relação intersubjetiva e que possibilita a passagem da intersubjetividade à subjetividade, ou seja, a passagem de
um nível constitutivo para um nível de aparente unidade”.
6
Como se vê, para Benveniste, a referência é constitutiva de cada ato de enunciação, uma vez que ela não se dá
com relação ao contexto ou ao conteúdo, mas, sim, ao próprio sujeito, por isso ela é integrante da enunciação.
Pensar em uma cena enunciativa pressupõe considerar “(...) o próprio ato, as situações em que ela se realiza e os
instrumentos de sua realização” (Benveniste,1989, p. 83).
8

A língua provê os falantes de um mesmo sistema de referências pessoais de cada um


se apropria pelo ato de linguagem e que, em cada instância de seu emprego, assim
que é assumido por seu enunciador, se torna único e sem igual, não podendo
realizar-se duas vezes da mesma maneira (BENVENISTE, 1989, p.69).

O autor registra o meio que diferencia um falante de outro, pontuando que a cada
emprego, muda o enunciador, tornando-se um novo evento. Na enunciação, o indivíduo se
apropria de um sistema que preexiste ao ato enunciativo como algo independente e autônomo,
assim cria novos modos de dizer, que nada deve a ele, apesar da enunciação se valer de
formas e normas já existentes. Em outras palavras, sendo a enunciação única e irrepetível, ou
seja, acontece quando alguém fala (eu) para outro alguém (tu) de algo (ele) e essa condição
nunca ocorre da mesma forma e no mesmo tempo e lugar, o que explica sua singularidade.
Enunciar7 é transformar individualmente a língua - mera virtualidade - em discurso,
sendo que é nessa passagem que se dá a semantização da língua, entendida como uma relação
do sujeito com a língua. É nessa relação do locutor com a língua que se determinam os
caracteres linguísticos da enunciação. O ato individual de apropriação da língua introduz
aquele que fala em sua fala. Esse é um dado constitutivo da enunciação, ou seja, a presença do
locutor em sua enunciação cria um centro de referência interno a partir do qual se criam as
demais relações. Toda enunciação é um acontecimento único, tem um enunciador, um
destinatário, um tempo e um lugar só seus e essas condições não se repetirão jamais juntas.
O sentido será definido quando o homem, usando a linguagem, se institui como
sujeito, e se conhece no mundo pela reversibilidade e pela relação que estabelece com seu
semelhante. Desta forma, o sujeito é o que de fato interessa a linguística da enunciação, pois é
a partir dele que a rede discursiva se estabelece e torna-se a língua-discurso, isso porque
quando o eu se enuncia , constitui-se sujeito no e do mundo, torna-se o ponto de referência em
torno do qual se organizam o espaço e o tempo. O escritor é um sujeito, não uma pessoa; o eu
que assim se manifesta nada mais é que a instância que diz eu: não tem história que não seja
identificada pelo texto e não tem existência fora da linguagem. Neste caso, deve ser entendido
como subjetividade, isso porque não há outro tempo para além da enunciação e todo texto é
escrito no aqui e agora.

7
O colocar a língua em funcionamento por um ato individual de utilização materializa enunciação. A língua
ainda não palavra, mas signo e o uso da língua no discurso, que só podem ser teoricamente separados, porque se
fundem em um só, a língua em uso. As palavras existem na língua como virtualidades, algumas mais vazias,
atualizando-se, a cada vez em que são proferidas, em um referente associado à situação de enunciação; outras,
apresentando noções gerais ou conceitos que se especificam também na instância de discurso.
9

Benveniste sublinha que é na colocação da língua em funcionamento que esta de fato


passa a existir, ou seja, é na atualização da língua – discurso que ela se realiza. Quando o
linguista menciona que em uma frase alguém fala alguma coisa para alguém, reforça a ideia
de que a língua comporta um sistema de dupla significância: o semiótico e o semântico e que
cada um deles exige seu próprio aparelho conceptual. Para explicar a situação privilegiada da
língua, ou seja, a característica de ser seu próprio interpretante e o interpretante de outros
sistemas significantes, fórmula o princípio da dupla significância, e esse privilégio, é uma
consequência da combinação dos níveis semiótico e semântico. O semiótico designa o modo
de significação que é próprio do signo linguístico, no sentido saussuriano, e que o constitui
como unidade, sendo da ordem do estável, do fixo. O semântico é o modo específico de
significância engendrado pelo discurso. No processo de significação, enquanto os elementos
constitutivos do primeiro modo (os signos) devem ser identificados e reconhecidos, os
elementos do segundo (as palavras) devem ser compreendidos, interpretados.
É na definição do quadro formal, onde se realiza a enunciação, que Benveniste faz
aparecer, na própria estrutura da língua, a presença constante de elementos do discurso: o
sujeito e a referência. Ao estudar determinadas formas da língua – como os índices de pessoa
(eu/tu), os índices de ostensão (este/aqui), os tempos verbais – o autor conclui que há
elementos que, emanando da enunciação, não existem senão na rede de indivíduos que a
enunciação cria em relação ao aqui – agora do locutor (BENVENISTE, 1989, p. 82). Este é
um dado constitutivo da enunciação, ou seja, a presença do locutor em sua enunciação cria um
centro de referência interno a partir do qual se criam as demais relações.

3 A ESCOLA E O COMPROMISSO COM A PRODUÇÃO ESCRITA


A escrita é tomada como a expressão do domínio das estruturas linguísticas,
adquiridas por meio do exercício escrito: a produção do texto. Essa atividade registro passou a
ser entendida como escrita na escola, o que a transformou num elemento centralizador das
aulas de língua portuguesa, oferecendo subsídios para que o aluno se instrumentalizasse na
língua, por meio dos recursos que ela mesma oferecesse. Então, a atividade de escrever
passou a ser vista como “ferramenta” que comunica por meio de textos, o que reforça a idéia
de que seu uso é unicamente para a representação. Isso porque é no texto que o aluno mostra o
domínio gramatical da língua e depois da subjetividade8.

8
Quando o autor trata especificamente da subjetividade na linguagem, afirma que a linguagem não pode se reduzir à
comunicação, embora sirva a ela também. A linguagem serve para nos constituir em sujeitos, antes de tudo, e nas palavras de
10

Esta prática afasta o aluno da “produção prazer”9 porque o texto fica sendo
relacionado com a correção da escrita. Devemos desenvolver no aluno o direito de dizer, isso
inclui, também, o direito à palavra escrita, é nesse momento que se intensifica a presença de
um sujeito que se torna autor do seu texto, autor do seu dizer. Então, é necessário que a
produção textual seja a evidência de um sujeito que fala para alguém de algo em tempo e
espaços cada vez únicos e irrepetíveis.
Tendo como referência a teoria Benvenistiana, tomaremos como elementos
indissociáveis a cumplicidade entre sujeito e enunciação, mesmo dentro da regularidade, ou
seja, a visão de sujeito e língua como inseparáveis e a escrita como constitutiva do sujeito. Tal
recorte deixa em evidência que sendo a linguagem condição do homem no mundo, escrever
também é condição para estar na língua.
Pensamos em construir uma analogia entre o ato de produzir enunciado e os efeitos
da enunciação com o „‟efeito dominó‟, uma vez que cada peça em tempo único evoca a
tomada de posição da outra peça, transforma o jogo num novo ato enunciativo, em uma nova
enunciação. Conforme já visto, uma das principais características do texto como atividade
produtiva é o adiamento do sentido: em vez de remeter a um significado, um determinado
significante remete a outro significante, que, por sua vez, remete a outro, e assim
sucessivamente. Daí que o sentido é, constantemente, adiado: não há significado fixo, estável
e unívoco se ele, sempre, dá vazão a uma cadeia de significantes cujo sentido reside em outros
significantes... Assim sendo, a enunciação permite pensar a singularidade10, ou seja, é o que
quer ser mudado, o que resiste ser repetido, mas há o que a constitui em cadeia e isso é o que
convoca o outro. A partir disso, pode-se pensar que o mais importante é a posição do sujeito
na língua, isto é, a relação que estabelece com ela para compor os enunciados: o enunciado é
o produto da enunciação e a traduz nas marcas que carrega.
Mas qual é, de fato, o sentido da autoria no texto escrito? Talvez seja que o primeiro
supõe o ato de escrever, enquanto o segundo seria todo o processo de mobilização da língua
pelo sujeito (enunciação). Para Benveniste, o sujeito não pode falar sem falar de si e, talvez
por isso, o mais importante, para a linguística da enunciação não é propriamente o dito e o seu
conteúdo, o produto, mas o fato de alguém ter dito, o processo.

Benveniste: A subjetividade de que tratamos aqui é a capacidade do locutor se propor como sujeito. Define-se como a
unidade psíquica que transcende a totalidade das experiências que reúne, e que assegura a permanência da consciência (1995,
p. 286).
9
A produção prazer aqui deve ser entendida como o espaço de liberdade e comunicabilidade, em que o aluno ganha voz em
seu dizer e torna-se sujeito do que registra.
10
Podemos chamar essa singularidade de subjetividade, indicadores de subjetividade, dêixes, categoria de
pessoa...
11

É o texto escrito que traduz o sentido daquele que escreve. Quando se fala de autoria,
pensamos em algum traço relacionado à escrita. Também não podemos imaginar que alguém
seja autor, se seus textos não tratam do desafio de imaginar verdadeira a hipótese de uma certa
pessoalidade, de alguma singularidade. Dentre todas as possíveis formas de expressão, dentre
todos os modos de deixar marcas e demonstrar o que se pensa, sente, deseja ou crê, a escrita
teve e tem um papel central ainda não aprendido. Mas, é pelo sentido que identificamos a
posição do sujeito ou pelas formas linguísticas?
Ao escrever o sujeito estará num lugar de mobilização e utilização da língua aonde vai
neste ato de enunciação, utilizar as diversas formas sintáticas para compor o sentido do seu
texto escrito. Não podemos deixar de lembrar que a referência do texto, sempre será o próprio
sujeito, ou seja, o sentido que ele quer imprimir naquele momento11. Como vimos, para
Benveniste (1995) a semiótica se caracteriza como uma propriedade da língua; a semântica
resulta de uma atividade do locutor que coloca a língua em ação. Essa compreensão
demonstra que a composição destas duas modalidades é que vai permitir identificar posição
do sujeito que escreve, ou seja, sua singularidade. Assim, para desenvolver este estudo é
preciso dominar, além do saber até aqui construído, o conhecimento sobre as regularidades da
estrutura da língua, uma vez, que vai possibilitar a identificar os “desvios” da enunciação, os
quais vão “dizer” da alteridade do sujeito.
Um eu, entretanto, não é empregado pelo sujeito a não ser que esteja se dirigindo a
alguém, que será, na alocução, um tu. Essa polaridade das pessoas é, na linguagem, condição
fundamental. Benveniste (1989) considera que, no momento em que se declara eu, o locutor
assume a língua e implanta o outro diante de si, independente do grau que atribua a esse outro.
Desse modo, toda enunciação é, direta ou indiretamente, uma alocução e postula um
alocutário (tu). Nesse momento queremos insistir na pertinência de conceber a escrita
enquanto um objeto de conhecimento que subjetiva e singulariza aquele que escreve. Flores
(2007)12 propõe que o termo autoria fosse identificado como um nó de três pontas: a ponta do
autor, a ponta do leitor, a ponta do texto. Desta forma, o termo autoria seria o processo
simultâneo de autor, leitor e texto no momento da enunciação.
Outro fator importante, a escrita, refere-se ao processo mais global da enunciação. Isso
porque o texto escrito, embora traga implícita a enunciação, se traduz em um enunciado que

11
Pela Teoria da Enunciação, de Benveniste, ”o sentido não pode ser fixado nem previsto. É o ato da enunciação
que confere sentido aos enunciados em uma dada situação de enunciação”.(Flores et al.2008,p.181).
12
Aqui o linguista destaca que o nó de três pontas é uma metáfora imprescindível para o entendimento da autoria,
uma vez que o sentido de cada um se dissolve no sentido do outro e só tem sentido quando todos estão em
relação. Diz que”...Os fios, quando em nó, deixam de existir por si, para ter existência como nó. A autoria é um
nó”.
12

“diz” da posição linguística do sujeito que marca a sua alteridade 13 e o ato de escrever se situa
num entre - lugares entre a enunciação e o enunciado onde se situa a possibilidade da (re)
criação humana marcada pela (re)significação de cada um. Assim, a autoria estaria
relacionada à leitura.
Desta forma, o domínio da leitura exige um esforço construtivo por parte daquele que
lê, pois ativa a relação que ele estabelece com o mundo traduzindo sua subjetividade, ao
mesmo tempo em que exige a capacidade de se propor como sujeito. Há, neste caso,
necessidade de abrigar o sentido geral e o específico, o que contribui para construir uma nova
teia de sentidos. O sujeito quando tenta retomar a enunciação de alguém estabelece uma série
de “tentativas”14 para entender os mecanismos utilizados na construção da cena enunciativa.
Isso ocorre porque cada enunciação pode ter uma multiplicidade de significações, visto que as
intenções do falante ao produzir um enunciado podem ser as mais variadas. Assim sendo, não
teria sentido atribuir-lhe uma interpretação única e verdadeira. Devemos considerar que toda a
atividade de escrita e, consequentemente de interpretação, está baseada nas intenções15 de
alguém ao comunicar-se. Isso não significa que não há uma instância que, de algum modo,
regule a enunciação, que não interaja com as propriedades da escritura.
Ao observarmos uma obra devemos ter em mente que quando o autor mostra sua arte
tem uma intenção, nem sempre a mesma do ouvinte. A leitura, muitas vezes não é nítida, nem
tampouco linear, isso porque o espaço da diferença entre o endereçamento e a resposta é um
espaço social, formado e informado por conjunturas históricas de poder e de diferença social e
cultural. Acreditamos ser no espaço da diferença entre a propositura e a resposta que confere
significado único, pois com sua própria leitura, com seu próprio sentido consegue entrelaçar
teorias e construir sentidos novos e re-significados em nosso cotidiano.
Ao escrever, o sujeito traduz o sentido do mundo para si, constituído nas interações
vividas, quando o outro lê revisita o que o eu construiu e elabora sua compreensão do que leu.
Este processo de retomar o dito desencadeia, naturalmente, a forma singular de interpretar o
que foi enunciado. Esse processo se firma porque a língua em uso consegue materializar o

13
Refere-se ao conceito de valor “positivo e negativo” do signo, fundamental na consideração da língua do
ponto de vista do homem.
14
O termo “tentativas” foi sugerido por Flores (2007, p.264), no texto “Enunciação, Singularidade e Autoria”,
publicado pela Unijuí, quando destaca que a irredutibilidade de dizer 1 recebe marcas específicas no dizer 2,
sublinhando que “o sujeito, quando se engaja no retorno à enunciação de alguém, faz acompanhar essa
representação da outra cena enunciativa de uma série de “tentativas” de cerceamento de sentido do dizer 1, de
buscas pela palavra certa, do que se poderia chamar genericamente de um “não sei bem se foi isso que ele quis
dizer””.
15
A noção de intenção não tem, aqui, nenhuma realidade psicológica, é puramente linguística, determinada pelo
sentido do enunciado, portanto linguisticamente constituída.
13

sentido, construindo em cada ato enunciativo novas significações, isso porque o sujeito, ao
manejar a língua, valendo-se do aparelho formal da enunciação, constrói sentidos, realiza a
língua e o conteúdo veiculado na enunciação, ao mesmo tempo em que cerca o que foi dito a
fim de garantir fidelidade a sua compreensão.
Nas palavras de Flores (2007), o estatuto geral da singularidade enunciativa está
baseada na tentativa de dar direção ao sentido. Podemos concluir que escrever é escrever-se e
por isso os textos escritos serão enunciados sempre únicos e singulares em cada ato
enunciativo? Perguntamos isso porque nos parece intangível, talvez porque o autor registra o
seu sentido no enunciado, o leitor constrói o sentido daquilo que lê no momento da
enunciação, ao mesmo tempo em que busca manter o canal construído e a direção do que
interpreta. É evidente que sim, uma vez que toda enunciação é singular, única e irrepetível.
Quando o autor destaca que cada um constrói um processo de “leitura” ele simplesmente
assegura que depreendemos sentidos, construímos relações com o que lemos, mas tudo isso se
apaga em outro ato de enunciação.
Ainda, que muitas considerações já foram tecidas quando o assunto é autoria, mas,
indiscutivelmente, sempre que pensamos em autoria temos que considerar as relações que o
“sujeito autoral” mantém com a fonte enunciativa, neste caso, o texto enunciado. Distanciar
certas sequências enunciativas de seu contexto para inseri-las em outro põe em função a
autoria. Nessa operação ocorre um distanciamento, providenciado pelo sujeito-autor:
primeiro, porque recorta uma sequência de seu contexto inicial; segundo, porque adota uma
atitude em relação a ela (em muitos casos concorda, rejeita, mas sempre constrói um modo de
interpretação). Neste momento constrói uma instância articulada em função do texto, e esta
existência restringe-se ao ato de leitura, que é, também, ato de produção textual, diminuindo
ou aproximando escritura e leitura, tentando unir leitor e escritor em uma mesma prática de
significação.
Neste sentido é possível entender que até mesmo em uma operação aparentemente
simples pode-se apontar um trabalho de decisão e escolha. Considerando que, se o que está
enunciado se encontra solto, qualquer expressão pode ser extraída, citada, posta entre aspas,
também pode romper com o contexto e engendrar novos contextos. Isso tende a facilitar a
abertura polissêmica16. Assim, mesmo que tenha a marca de um autor, o leitor dela passa a
produzir algo novo quando a insere em outro contexto. E esta seleção pode ser vista como
uma espécie de mecanismo isolador que influi sobre o autor-leitor, uma vez que o leitor é

16
Tratar-se-ia não de um processo, mas do efeito devido às diferentes perspectivas a partir das quais se
observaria um objeto uno, fechado e definido.
14

aquele que faz circular o sentido, que pode observar o plural de que o texto é feito, mas pode,
também, trazer ao texto seu próprio plural.
Em se tratando de escola, não se pode esquecer que há um mediador da produção e,
em geral, leitor privilegiado, que controla e impulsiona o processo de produção de autoria: o
professor. Todo trabalho projetado por um querer-dizer envolve enunciados próximos e
distantes, e, no fluxo da construção discursiva, convoca autores ou, simplesmente, o
“rumor”17 contínuo da língua.
Deixamos evidente aqui que não estamos atribuindo grau de maturidade nem para o
sujeito autor nem para o leitor, mas sim querendo mostrar que essas duas habilidades-leitura e
escrita- são necessárias para a conquista da autonomia autoral. Queremos, apenas, apontar
possibilidades nesse processo. Sendo o texto escrito uma rede em que cada indivíduo escolhe
seus ornamentos fazendo as ligações que julgar necessárias, produzindo a marca, criando seu
estilo singular de interpretação, cada vez único e irrepetível. É neste momento que a autoria
torna-se evidente, pela tentativa de singularizar a língua.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Enunciar é falar, é escrever, é produzir discurso, é produzir forma e sentido. Esse ato
constitui a atividade humana denominada enunciação. Por isso, quando pensamos em ato –
evento enunciativo - devemos ter em mente que alguém os realiza. Assim, trabalhar com a
produção textual é tarefa desafiadora, porque implica conhecimentos que extrapolam as
questões linguísticas. Sem dúvida é tarefa possível e desafiadora: possível à medida que
permite que apliquemos leituras feitas e estudadas ao longo de muitos anos aliados às várias
leituras acerca do tema e desafiador porque não há como não nos maravilharmos diante das
estratégias discursivas que a língua coloca em funcionamento pela ação do homem.
Trabalhar com o tema enunciação é um grande desafio, e soma-se a isso dificuldade de
tecermos considerações acerca da enunciação do outro. Segundo FLORES (2001), a
linguística da enunciação vê os fenômenos que estuda, sejam eles de natureza sintática,
morfológica ou de qualquer outra, do ponto de vista de seu sentido. Percebemos que o autor
aponta que as teorias da enunciação, cada uma com suas especificidades, concebem a
realização linguística em tempo e espaço determinados e com referência aos sujeitos que
enunciam.

17
Entendo por “rumor da língua”, neste contexto, tudo o que pode ser engendrado pelo discurso.
15

Depreendemos que os efeitos de sentido pretendidos e os efeitos de sentido produzidos


nem sempre são coincidentes. Entre o que o eu quer fazer saber ao tu e o que o tu interpreta
do dizer do eu há mais do que palavras, há visões de mundo, vivências, particularidades,
individualidades, um universo de subjetividade que pode tanto unir as ideias veiculadas
quanto afastar o sentido pretendido. É neste viés que deve direcionar nossa leitura tendo como
base a enunciação e, principalmente, o poder de reinterpretar o sentido da língua em uso, num
evento singular.
Enfim, é evidente que a enunciação é única e irrepetível e que a identificação das
marcas de enunciação com a construção do sentido, deve-se à situação de uso das palavras,
em dada situação discursiva. Não devemos e não podemos artificializar o contato dos
indivíduos com a língua. Ao contrário, os professores devem envolver os alunos em situações
concretas de uso da língua, de modo que eles consigam, com criatividade e consciência,
escolher meios adequados aos fins que desejam alcançar. Dentro desta perspectiva do ensino
de língua, podemos afirmar que o texto não pode ser considerado como algo acabado e
independente do contexto que é gerado. Isso significa que, para que o eu e o tu possam se
entender é preciso que seus contextos estejam parcialmente assemelhados e, ao menos em
parte, compartilhados, e que a cada momento de interação esse contexto é alterado e
ampliado, obrigando os parceiros a se ajustarem a uma nova situação discursiva imposta por
um novo momento enunciativo.

5 REFERÊNCIAS

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Buarque de Hollanda.Dissertação de Mestrado.UPF.2006.

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16

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2008.

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2007.

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SAUSSURE, F. de. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 1913.


SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

ESTUDO ANALÍTICO DO PLANEJAMENTO ANUAL DE LÍNGUA PORTUGUESA


EM TURMAS DO ENSINO FUNDAMENTAL II EM
ESCOLA PÚBLICA DE FLORIANÓPOLIS

Roziane Keila Grando (PPGLg/UFSC) 1


Aline Renée Benigno dos Santos (PPGLg/UFSC) 2

RESUMO

Este artigo apresenta o estudo analítico acerca do planejamento anual da disciplina Língua
Portuguesa (LP) do Ensino Fundamental II, de uma escola pública de Florianópolis – Santa
Catarina. Buscamos aqui identificar os processos pelos quais se dá o ensino dessa disciplina
para as turmas de 5 ª a 8 ª série. Apresentamos também um contraste da concepção de lingua-
gem, objetivos, conteúdos, metodologia e avaliação com as teorias atuais sobre o ensino desta
disciplina, a partir de suas unidades básicas: prática de leitura, de produção de textos e de aná-
lise linguística (GERALDI, 2006). Os resultados obtidos evidenciam que o planejamento
apresentado não está em total acordo com o método de ensino mais apropriado da disciplina
de LP. Ou seja, o planejamento escrito pelo professor (a) da Rede Municipal não está ancora-
do nas principais teorias da área em questão.

Palavras-chave:
Planejamento escolar. Disciplina de Língua Portuguesa. Práticas pedagógicas.

ABSTRACT

This article presents an analytical study about an annual school plan of the discipline Portu-
guese II for the Basic Education II - Junior High- of a public school in Florianopolis- Santa
Catarina. We try to identify the process in which the Portuguese teaching takes place at 5 ª up
to 8 ª Grades. We contrast the conception of teaching the objectives, contents, methodology
and evaluation with the current theories of Portuguese Teaching We guide ourselves to pro-
cedure the analysis upon the basic unit of instruction: reading tasks, text production task the
linguistic analysis task (GERALDI, 2006). The results show that the annual plan we have
analyzed doesn‟t fit to actual Portuguese teaching theories. That is, the annual plan written by
the teacher (a) of the Municipal is not anchored in the main theories of the area.

Keywords:
Anual Plan. Discipline of Portuguese. Pedagogical Practice.

1 INTRODUÇÃO
No início do ano letivo, os professores das escolas públicas de nível fundamental e
médio de Santa Catarina reúnem-se em semanas pedagógicas para elaborar, dentre outros do-

1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),
área de concentração Linguística Aplicada. Florianópolis, Santa Catarina, Brasil; e-mail: kei-
la_grando@hotmail.com.
2
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),
área de concentração Linguística Aplicada. Florianópolis, Santa Catarina, Brasil; e-mail: alinerenee@gmail.com.
2

cumentos, o planejamento anual das disciplinas. Nestas, são estabelecidas as diretrizes do


trabalho pedagógico das mesmas. Muitas escolas públicas do município ainda utilizam como
base, os PCNs3 de Língua Portuguesa (BRASIL. SEF, 2002, p. 55), propostas curriculares, e
as diretrizes documentadas pela Secretaria Municipal de Ensino de Florianópolis. Não quere-
mos aqui questionar que não é viável ou interessante para a escola, fazer uso deles, contudo,
entendemos que estes documentos já se encontram em processo de desatualização e necessi-
tam de um novo olhar sobre o ensino, no caso aqui de Língua Portuguesa (LP). Este trabalho
propõe um estudo analítico do planejamento anual dessa disciplina de 5ª a 8ª séries4 apresen-
tado por uma Escola Municipal Básica, localizada na região urbana de Florianópolis - Santa
Catarina. Primeiramente buscaremos apresentar uma retomada da proposta de Geraldi (2006)
sobre a reformulação nas unidades básicas de ensino - a leitura, produção de textos e análise
linguística. Em seguida, para ter um olhar crítico e analítico sobre o planejamento realizado
pelo professor (a), apresentaremos alguns apontamentos acerca dos PCNs, segundo GOMES
(2007). E enfim, faremos uma análise do planejamento referente ao ano letivo de 2010, bus-
cando identificar os processos pelos quais se dão o ensino para estas turmas, contrastando a
concepção de ensino, objetivos, conteúdos e metodologia e avaliação com as teorias atuais
dos estudos sobre ensino de LP (Língua Portuguesa). Para tanto utilizaremos como arcabouço
teórico GERALDI (2006); ROJO (2005); MARCUSCHI (2008); BAKHTIN (1992); entre
outros.
A organização do artigo está da seguinte forma: na seção seguinte, apresentaremos
uma introdução do que propõe Geraldi (2006) acerca das unidades de ensino de LP: leitura,
produção de textos e análise linguística. Na seção 3, conceituaremos planejamento e explana-
remos sobre os PCNs. E por fim, faremos um estudo analítico do planejamento de uma escola
pública de Florianópolis para a disciplina de LP no ano de 2010, 5ª a 8ª série.

2 UNIDADES BÁSICAS NO ENSINO DE LÍNGUA: ESTRATÉGIAS DE LEITU-


RA, ORALIDADE E PRODUÇÃO TEXTUAL
Sabemos que a situação real de sala de aula não é levada em consideração na elabora-
ção dos métodos, e por isso há um distanciamento entre a teoria e a prática. As estratégias

3
Parâmetros Curriculares Nacionais- tem por finalidade indicar uma proposta de reorientação curricular para
secretarias de educação, escolas, e instituições envolvidas com a educação (RODRIGUES, 2003). Indica o ca-
minho que as escolas precisam seguir, e estabelece uma padronização comum do ensino a todos a alunos de
diferentes classes sociais.
4
No planejamento de ensino fundamental II, a escola faz uso da nomenclatura antiga para as séries referente ao
ensino fundamental II, ou seja, não faz a inserção do 9º ano.
3

propostas para o trabalho em sala de aula nem sempre são harmônicas com a realidade enfren-
tada pelos professores. Assim, quando testam as propostas e elas não dão os resultados espe-
rados ou ao menos satisfatórios, há uma grande frustração.
Para se cumprir a prática de ensino de LP, o professor precisa diariamente corroborar à
variadas estratégias de leitura, escuta e produção de texto, as quais possibilitam o desenvol-
vimento da competência comunicativa, tanto oral quanto escrita do aluno (GERALDI, 2006).
Nesse sentido, o autor propõe que o ensino de língua materna seja direcionado aos seguintes
eixos: leitura de textos (dos mais variados gêneros), produção de textos (orais e escritos, dos
mais variados gêneros) e análise linguística (tanto dos textos lidos quanto dos textos produzi-
dos). O foco em questão deve objetivar que o aluno seja levado a refletir sobre o funciona-
mento da linguagem, sendo estimulado a ler com interesse e a produzir a sua própria fala.
Para isso, todas as unidades básicas do ensino de língua materna (leitura, produção de texto e
análise linguística) precisam ser voltadas para, a partir do ensino da modalidade de língua
padrão, aumentar a capacidade comunicativa, e não para inibir a prática e o uso da língua do
aluno. Sendo assim, faremos um rápido esboço do que propõe Geraldi (2006) para estas três
unidades de ensino de língua materna.

2.1 Leitura de textos


Em relação a esta unidade básica de ensino de LP, o autor aponta a estratégia de se
trabalhar com “dois tipos e níveis de profundidade de leitura” (GERALDI, 2006, p. 59), que
se apresentam em textos curtos, como por exemplo, contos, reportagens, crônicas, entre ou-
tros, e também em narrativas longas, como romances e novelas. Sendo que estas últimas pre-
cisariam de um período mais longo de aulas por semanas. O autor aconselha que, em um pri-
meiro momento, nenhuma cobrança seja feita, a fim de que essa não cobrança possa, efetiva-
mente, instigar o gosto pela leitura por parte do educando.
O autor sugere que o desenvolvimento de textos curtos deve ser feito em grupo, uma
discussão entre o professor e alunos, bem como, em aulas com mais de um horário (50 minu-
tos), para que a atividade não seja interrompida. Neste momento a leitura será feita em nível
mais profundo, buscando atingir a interpretação de textos.
É necessário que o professor trabalhe com textos que oportunizem o hábito de realizar
leituras críticas. Nas quais o aluno possa entrar no texto e se posicionar diante da temática
abordada. Depois de instigado o gosto pela leitura, e o contato dos alunos seja maior com os
textos, é necessário apontar passos para que o aluno amadureça a capacidade de leitura crítica
(cf. GERALDI, 2006, p. 64). Dentre as atividades possíveis, a mais utilizada é o roteiro de
4

leitura. E esta pode levar o aluno-leitor a entender a lógica do texto, em suas partes e no seu
todo. Dependendo da abordagem, leva o aluno a compreender não só o que o autor quis dizer,
mas também a refletir sobre o que foi dito, e do jeito como foi dito, ajudando-o no desenvol-
vimento de leitor funcional, pois o trabalho com o texto nos permite a exploração das formas
linguísticas.

2.2 Produção de textos


Depois de lido e estudado o texto e, assim, estimulada a oralidade, a próxima etapa
para o aluno é expressar-se através da escrita. Geraldi (id) chama atenção para o fato de que o
emprego da língua tem sido caracterizado como algo artificial. Para isso não acontecer, é ne-
cessário fugir de temas repetitivos e buscar atribuir sentido à atividade de produção textual,
bem como, dar um destino para o trabalho realizado, não propondo temas comuns em todas as
séries. O autor faz uma sugestão de temáticas para trabalhar com a produção de textos no en-
sino fundamental, com o uso de três horas-aula por semana, sem necessariamente ocupar o
livro didático. Como o planejamento analisado no artigo é de ensino fundamental II, julga-se
importante trazer as sugestões, mas sem a pretensão de sermos exaustivos ou de ansiar ditar
modelos, e sim com a intenção de orientar e indicar alguns caminhos possíveis ao professor
que atua no Ensino Fundamental II.
Na quinta série é proposto trabalhar com textos narrativos, dissertativos, normativos e
correspondência. Para as narrativas, sugere-se a prática com histórias familiares; aos disserta-
tivos, debate oral: “por quê?”; aos normativos, regras de jogos; e, enfim, correspondência fa-
miliar. Na série seguinte, insere-se mais um “tipo” de texto – o descritivo. Com os textos
narrativos é aconselhado um trabalho com histórias do Brasil e noticiários; com os descriti-
vos, trabalhar com aspectos de onde e quando; nos dissertativos - por que foi assim?; nos
normativos - regras de trabalho em grupo; e as correspondências, no âmbito familiar. Enquan-
to para a sétima série a narrativa será focada através dos fatos: comentários, lendas e contos;
nos textos dissertativos, buscando os porquês dos fatos que aparecem nos textos; nos normati-
vos, focando os estatutos de grêmios estudantis; e como correspondência, o ofício. Para a oi-
tava série, o autor indica se trabalhar com temas de economia e política; nos dissertativos,
com a argumentação; nos normativos, verificar o regimento da escola; e nas correspondên-
cias, verificar a carta-emprego.
Considerando que a 9ª série já foi implantada no ensino público, sugerimos que os
professores trabalhem com textos narrativos, voltados para o estilo da ficção científica, ro-
mance histórico; já no que tange aos textos descritivos, dar enfoque para relatos de viagem e
5

testemunhos; para os dissertativos, continuar com a argumentação, focando editoriais e as-


sembléias. Para textos de cunho normativo sugerimos o trabalho com manual de instrução, e
para os de correspondência, a carta de solicitação e a carta pessoal.
Ressaltamos que as temáticas sugeridas podem ser retomadas ou mesmo antecipadas,
dependendo do grau de conhecimento dos alunos. A partir do tipo de texto e da temática tra-
balhada, o professor pode sugerir inúmeras atividades de produção, com variados fins e leito-
res. O importante é que antes de iniciar a escrita, o aluno saiba o que vai escrever, por que vai
escrever e quem será seu possível leitor. Além disso, o aluno precisa estar ciente do gênero
que estará produzindo, conhecendo as suas características típicas, quanto à estrutura; local
onde circula; vocabulário adequado ao contexto. Como sugestão, lembramos da necessidade
do professor oportunizar a reescrita, para o educando poder praticar e também superar as difi-
culdades acerca da estrutura frasal, textual, pontuação, conectivos, concordância, regência,
grafia, entre outros aspectos que possam ter complicado a expressão da escrita.

2.3 Análise linguística


Em relação à questão da análise linguística, Geraldi afirma que, a partir de textos, além
de fazer uso de estratégias variadas com leitura e produção textual, fazendo a construção e a
(des)construção do conhecimento, é fundamental que o professor desenvolva diferentes ativi-
dades, evidenciando os processos de funcionamento linguístico, que são característicos das
diversas formas de organização do discurso. Isso implica analisar as estratégias que assegu-
rem a coesão e a coerência, o domínio do uso do vocabulário de modo criativo e dinâmico,
fazendo a relação entre a classe e a função dos vocábulos na unidade maior que é a frase; fa-
zer o uso de frases que envolvam os processos de coordenação e subordinação; entre outras
atividades desta natureza.
Mas como falamos, é a partir dos textos que é trabalhado o funcionamento linguístico.
Desta forma, sugere Geraldi (2006, p. 73) que “a prática com a análise linguística seja feita a
partir do texto do aluno, a não se exercitar somente, o gosto por terminologias”. O ensino
gramatical só faz sentido se tiver por objetivo auxiliar o aluno nas dificuldades e na aplicação
da atividade, não partir de um texto pronto, “bem escrito”.
Outro cuidado com a prática de análise linguística é de o professor escolher um pro-
blema de cada vez. Selecionar uma das dificuldades do aluno e ensinar por meio delas. As
atividades, de acordo com o autor, poderão ser executadas tanto em pequeno grupo como em
grande grupo, fundamentando a análise através do passo: “partir do erro para a autocorreção”.
A real necessidade da análise linguística é substituir o trabalho da metalinguagem pelo traba-
6

lho da produção, correção e autocorreção de textos produzidos pelos educandos (GERALDI,


2006). Oliveira (2008) afirma que

ensinar a língua portuguesa seguindo a concepção estruturalista significa ensinar


estruturas gramaticais sem nenhuma preocupação com os usos que se fazem delas.
A implicação disso para a sala de aula é séria. Os estudantes são expostos ao estu-
do da nomenclatura gramatical e de formas gramaticais que não fazem parte do fa-
lar do qual eles se apropriaram junto aos seus familiares e amigos. Essas formas
gramaticais são apresentadas como as únicas formas corretas do português. A con-
seqüência disso é o desrespeito para com os falares dos estudantes e a transmissão
da idéia de que eles não sabem português (OLIVEIRA, 2008, p. 14).

Nesse sentido, o leitor deve estar se perguntando em que ponto fica a gramática, e a
modalidade padrão, que ainda é praticada no ensino tradicional? Será ela eliminada das estra-
tégias de ensino? Seguramente não. O ensino de gramática precisa continuar em sala de aula,
ainda a variedade padrão, que é fundamental para a competência da produção escrita. Mas o
que muda é a abordagem. Deve-se buscar o domínio do funcionamento da língua em uso, e
não a prática mecânica da metalinguagem, com um serviço de descrição e classificação. Isto
se fundamenta a partir do que Geraldi aponta como proposta, pois não faz sentido à vida prá-
tica do aluno descrever e classificar, mas sim aprender a escrever e se comunicar em diferen-
tes situações, e para isso, precisa saber quais são os mecanismos que compõem a língua. Ati-
vidades de auto- correção, por exemplo, são situações que podem levar o aluno a compreen-
der as organizações textuais e aprender práticas com a escrita. É importante destacarmos que a
mediação do professor com o aluno neste momento é fundamental, pois o sujeito se constitui
como sujeito no espaço de produção de interlocução.

3 E O PLANEJAMENTO ESCOLAR DE LÍNGUA PORTUGUESA?


Em linhas gerais o planejamento pode ser interpretado como um facilitador e viabili-
zador das atividades a serem desenvolvidas pelos docentes em sua prática diária. Nele se defi-
ne o que se pretende abordar nas aulas, e quais estratégias que serão utilizadas para a aplica-
ção. De acordo com Furasi (1998, p. 45), “o planejamento tem sido utilizado como atividade
em que se preenche um formulário e envia-se para a coordenação de forma a cumprir os seus
objetivos gerais, específicos, conteúdos, estratégias e avaliação”. Terminada esta etapa, é en-
tregue a secretaria, com a sensação de mais uma atividade burocrática cumprida. O autor
afirma que este documento precisa ser concebido, assumido e vivenciado no dia-a-dia da prá-
tica social docente, como um processo de reflexão.
7

Segundo Demerval Saviani (1987, p. 23), "a palavra reflexão vem do verbo latino „re-
flectire‟ que significa „voltar atrás‟ ”. Podemos entender como um processo de (re)pensar, ou
seja, uma ação de retomar, reconsiderar os dados que se tem em mãos, e significar. É estudar
e prestar atenção, analisar com cuidado. Para Furasi (1998), por exemplo, o planejamento de
ensino é

o processo de pensar, de forma "radical", "rigorosa" e "de conjunto", os problemas da


educação escolar, no processo ensino-aprendizagem. Conseqüentemente, planejamen-
to do ensino é algo muito mais amplo e abrange a elaboração, execução e avaliação de
planos de ensino. Sobretudo [...] uma atitude crítica do educador diante de seu traba-
lho docente (FURASI, 1998, p. 45).

O autor lembra também que ao professor redigir, executar e avaliar os planos de ensi-
no, ele deve ser claro e agir criticamente com

a função da educação escolar na sociedade brasileira; da função político-pedagógica


dos educadores escolares (diretor, professores, funcionários, conselho de escola);
dos objetivos gerais da educação escolar (em termos de país, estado, município, es-
cola, áreas de estudo e disciplinas), efetivamente comprometida com a formação da
cidadania do homem brasileiro; do valor dos conteúdos como meios para a forma-
ção do cidadão consciente, competente e crítico; das articulações entre conteúdos,
métodos, técnicas e meios de comunicação; e da avaliação no ensino-aprendizagem
(ibid, p. 51).

Se o plano de ensino visa relevar a função da educação na sociedade, assim como, a


função político-pedagógica e todos os fatores descritos acima, o engajamento do professor ao
elaborar seu planejamento anual, também precisa considerar tais aspectos, pois, o docente
precisará prever como será a sua atuação no cotidiano escolar, envolvendo condições de ação
e interação com seus alunos. Principalmente em se tratando da escolha de conteúdos e méto-
dos no processo de ensino- aprendizagem de LP, a fim de que a aula desta disciplina não se
torne sem relevância na vida dos estudantes.
Em suma, percebemos que a elaboração do planejamento depende da visão de mundo
que os professores possuem, e do mundo que desejam proporcionar para seus alunos. Os quais
estão inseridos na “sociedade brasileira que temos e daquela que queremos, da escola que
temos e daquela que queremos” (id). Dessa forma, acreditamos que o planejamento é um pro-
jeto do que o professor pretende aplicar em seu dia-a-dia, e caso algum dos itens que foram
previstos no documento, não sejam bem sucedidos, que o professor pense e reflita outra forma
de construção do mesmo; (re)avalie suas estratégias, porque é com a prática diária que o pro-
fessor conseguirá saber se suas propostas foram válidas ou não.
8

3.1 Parâmetros curriculares nacionais5


De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) até os anos de 1970, o
processo de ensino e aprendizagem de LP era divido em duas etapas. A primeira era até a cri-
ança ser alfabetizada, aprendendo o sistema de escrita. Já a seguinte começaria quando ela
tivesse o domínio básico dessa habilidade. Ela seria então, levada a produzir textos, notar as
normas gramaticais e ler produções clássicas. Dos anos 80 em diante, o ensino não é mais
visto como uma sequência de etapas, e sim um processo em constante de desenvolvimento. O
aluno é colocado em contato com as dificuldades do conteúdo, desenvolvendo competências e
habilidades necessárias durante a fase. Essa nova concepção apresenta diferenças em relação à
perspectiva anterior. Desde o século XIX até meados do XX, a linguagem era tida como ex-
pressão do pensamento, ou seja, ler e escrever bem eram uma consequência do pensar, e as
propostas dos professores se baseavam na discussão sobre as características descritivas e
normativas da língua. Depois desta fase, foram desenvolvidas pesquisas, onde o método e o
foco de ensino foram repensados (BRITTO, 2002).
Segundo Mortatti (2006), ao se observar a história da alfabetização ao longo do tempo,
nos métodos sintéticos, a estratégia era baseada em técnicas de leitura adotadas desde cedo,
em que os textos literários eram copiados sem levar em conta o contexto e o interlocutor. Ou-
tros métodos utilizados foram os analíticos, em que se buscavam mostrar pequenos textos,
sentenças ou palavras para, então, analisar suas partes constituintes e o funcionamento da lín-
gua. Nesse momento, surgem as propostas construtivistas, levando em consideração a con-
cepção interacionista de linguagem, na qual a leitura e escrita são trabalhadas pelo professor
de forma individual e coletiva. O estudante então é levado a fazer uma prática de reflexão
sobre a língua. Para este fim, são utilizados textos de diversos gêneros, e o trabalho com eles é
feito desde o início da alfabetização até os anos finais.
A partir do que os PCNs propõem, o ensino de LP deve ser norteado pela concepção
de linguagem sociointeracionista. Para Bakhtin (2006, p. 26), “a palavra é o modo mais puro e
sensível de relação social. É, precisamente, na palavra que melhor se revelam as formas bási-
cas, as formas ideológicas gerais da comunicação semiótica”. Sob essa perspectiva, a lingua-
gem é vista como interação, constituída historicamente a partir das relações sociais, a qual
requer um ensino-aprendizagem que leve em consideração as experiências reais de uso da
língua.
9

Segundo Gomes (2007, p. 138), os parâmetros curriculares oferecem as “diretrizes ne-


cessárias para a composição do currículo de acordo com a realidade local de cada escola”,
além disso, propõem os eixos organizadores que se fundamentam na prática social de uso efe-
tivo de linguagem verbal, como atividade discursiva. A autora defende que “no processo de
construção do conhecimento, a LP precisa ser levada para o educando como forma de expan-
são das possibilidades de uso da língua, a qual já é conhecida e dominada na oralidade pelo
aluno. A responsabilidade da escola permanece em ensinar a língua padrão em suas habilida-
des linguísticas básicas, que são falar, escutar, ler e escrever” (GOMES, 2007, p. 138). A au-
tora aponta também que por meio do que é proposto pelos PCNs, uma organização dos conte-
údos a se destacar o que é de trato oral e o que é da escrita, que precisa ser baseada a partir
dos seguintes critérios: levar em consideração os conhecimentos anteriores dos alunos em
relação ao que se pretende ensinar; considerar o nível de complexidade dos diferentes conteú-
dos como baliza do grau de autonomia possível dos alunos; considerar o nível de aprofunda-
mento possível de cada conteúdo, em face à compreensão dos alunos nos diferentes momen-
tos do processo de aprendizagem.
Para o tratamento da oralidade, a Gomes (2007) sugere que o professor planeje ativi-
dades que alcancem os diversos tipos de situações que determinam as habilidades de ouvir e
falar. A prática com a escrita fica melhor entendida quando pensada e abordada em suas parti-
cularidades: o aprendizado da leitura e o aprendizado de produção de textos. Quanto à análise
e reflexão sobre a língua, a autora prevê o ensino e aprendizagem da língua padrão, com o que
é apontado pelos PCNs. Recomenda como atividades permanentes, a observação das regulari-
dades no que tange a sistematicidade da escrita, de aspectos ortográficos ou gramaticais; a
exploração de diferentes formas de transformação de textos; o reconhecimento do tipo de lin-
guagem que é característica de determinados textos; análise de formas de falar e escrever a
mesma coisa; identificação de marcas de oral na escrita e vice-versa; experimentação de mo-
dos de escrever; também a comparação entre diferentes sentidos que um mesmo pode ter, en-
tre outras (id, p. 156).
A partir do que é proposto pelos PCNs, a prática de ensino de LP parte do USO ->
REFLEXÃO-> USO, para trabalhar com Prática de leitura, Prática de escrita e Análise e
reflexão sobre a língua. A seguir, veremos no planejamento apresentado pela escola munici-
pal, se as estratégias propostas para o trabalho em sala de aula se harmonizam com a realidade
do docente prevista no documento.

5
Sentimos a necessidade de apresentar algumas questões dos PCNs, segundo Gomes (2008), e outros autores,
10

4 ANÁLISE DO PLANEJAMENTO
Nesta seção do artigo faremos uma análise descritiva de um planejamento anual. Tra-
ta-se do documento de uma escola pública de Florianópolis. Procederemos com uma amostra
sucinta do planejamento referente ao ano letivo de 2010, identificando os processos pelos
quais se propõe o ensino para as turmas de 5ª à 8ª série do Ensino Fundamental II. Onde for
possível, contrastaremos a concepção de ensino, objetivos, conteúdos e metodologia e avalia-
ção com as teorias presentes atualmente sobre ensino de LP. Utilizaremos Geraldi (2006);
Marcushi (2008), entre outros autores, como referencial teórico.
O plano apresentado pelo(a) professor (a) incorpora em um só documento os objeti-
vos, conteúdos, metodologia e avaliação para todas as turmas do Ensino Fundamental II, ou
seja, de 5ª série à 8ª série. Há que se considerar que o único momento em que o professor (a)
divide as séries é na seção de “Conteúdos” que trata os “gêneros e textos a serem trabalhados
pelas turmas”. É necessário ressaltar aqui, que cada série tem o seu conteúdo específico para
ser ensinado, um foco adequado para ser abordado. Conforme apontamos no item 2 deste arti-
go, o trabalho, por exemplo, com a produção de texto precisa ser específico para cada série.
Geraldi (2006) afirma que na 5ª série a atividade de produção é o texto narrativo, isto
é, o foco é de que os alunos sejam levados a contar histórias. Entre o uso dos textos narrativos
podemos pensar os dissertativos como produção de debate oral. Na 6ª série, dando continui-
dade a metodologia utilizada na 5ª, porém com menos ênfase na narrativa, podemos introduzir
para o exercício de produção da escrita através da leitura, interpretação de textos curtos fo-
cando a história do Brasil e o noticiário da imprensa. A partir somente deste fragmento que
propõe Geraldi (2006), vemos que o foco entre uma turma de 5ª e 6ª série é diferente, o que
nos leva a concluir que um planejamento que preveja conteúdos e objetivos de modo geral,
sem especificidade, poderá ocasionar problemas na prática em sala de aula.

4.1 Na introdução do planejamento analisado


No planejamento apresentado, encontramos como parte introdutória o item “Concep-
ção de ensino de português no ensino fundamental”, no qual o professor (a) busca justificar a
necessidade do uso da escrita e o da linguagem a partir das relações sociais, arguindo que é
com o domínio da linguagem construída historicamente e socialmente, que o aluno poderá

porque no planejamento escolar que será analisado por nós, o professor (a) utiliza os PCNs como suporte teórico.
11

participar da vida social dos indivíduos. Nesta parte do documento, o professor (a) utiliza-se
de documentações como a Proposta Curricular de Santa Catarina para justificar a forma como
aborda o ensino de língua materna, ao invés de fazer uso de teorias que realmente fundamen-
tem a idéia de concepção de LP, como é o caso de teóricos como Geraldi (2006); Meurer,
Bonini e Motta-Roth (2005); Signorini e Bentes (2008); entre outros mais. Entendemos que
estes documentos serviram para oferecer novas propostas para o ensino de LP, e não para em-
basar a elaboração de um planejamento, o papel destes é direcionar o professor às práticas em
sala de aula.

4.2 Objetivos gerais e específicos


Ao elaborar os objetivos, o professor (a) não apresentou os objetivos específicos inse-
ridos nos objetivos gerais, mas separadamente, conteúdo por conteúdo. Ao dividir o tratamen-
to de: “leitura, escrita e análise da língua”, não considera o trato da língua oral. A partir do
que está apresentado no documento, parece-nos que o professor (a) deixa de lado o ensino das
habilidades linguísticas no que se refere ao ato de “falar e escutar”. Sabemos que a comunica-
ção oral pode ter intercambio entre “duas pessoas ou mais podendo, também, não haver inter-
câmbio, que acontece quando alguém fala e outro apenas escuta” (GOMES, 2007, p. 140).
Gomes (2007) relata em seu estudo, uma metodologia do ensino de LP através do que
é indicado pelos PCNs. Aponta que o tratamento com a comunicação oral pode ser encontrado
no diálogo; na entrevista; na reunião-discussão; no estudo de caso; na exposição-participação;
na exposição oral sem intercâmbio (teatro, aula, expositiva, conferência, discurso e sermão).
São várias as sugestões, a prática com estas categorias, levará o aluno a ser melhor preparado
para a exposição oral de apresentação de trabalhos, que tradicionalmente, acontece, nos últi-
mos anos do Ensino Fundamental e do Médio, e futuramente nas situações profissionais
quando na fase adulta (GOMES, 2007).
Em se tratando dos objetivos específicos, introduzidos pelo professor (a) entendemos
que estes se encontram bastante amplos, como por exemplo:

Professor (a): [...] o aluno deverá: Ler para buscar informações; captar significados;
observar recursos gráficos e estilísticos; determinar a função do texto; tema; escolher
a forma textual adequado ao desejo expressivo; buscar o deleite; delimitar espaço,
tempo, enredo, narrador, personagem; reconhecer e utilizar códigos verbais e não
verbais; julgar; refletir; concluir; opinar; escolher, descartar; ampliar; ampliar co-
nhecimentos; expor; relatar; etc.
12

Como primeira sugestão, acreditamos que o verbo no futuro “deverá” possuir uma
carga semântica forte para o contexto dos objetivos. O mais adequado para tal acerto seria
algo como “pretende-se que o aluno saiba:”. De acordo Lajolo (apud GERALDI, 2006), ler
não é decifrar, como num jogo de adivinhações, o sentido de um texto, é a partir do texto ser
capaz de atribuir significado, conseguir relacioná-lo a todos os textos significativos para cada
um, reconhecer nele o tipo de leitura que seu leitor pretendia e, dono da própria vontade, en-
tregar-se a esta leitura, ou rebelar-se contra ela, propondo outra não prevista. Como outro ob-
jetivo específico, o professor (a) sugere que o aluno “deverá”

Professor (a): escrever para apropriar-se do modo de fazer; treinar observando e


tomando consciência das diferenças entre a linguagem oral e a escrita; utilizar os
recursos pertinentes aos gêneros; emitir ponto de vista com base em argumentos;
reescrever para aperfeiçoar, melhorar, clarear, tornar coerente; convencer o interlo-
cutor; comunicar; contestar etc.

Se um escritor que julgamos competente é aquele que sabe construir textos coesos,
coerentes, eficazes e bem articulados, o trabalho com a escrita é fundamental. Desta forma,
conforme aponta Geraldi (2006), precisamos partir da escrita do aluno, e não de algo pronto e
acabado. Assim aluno precisa nesta fase, ser levado a elaborar muitos textos, mesmo não sen-
do capaz de escrever (GOMES, 2007, p. 150). Em toda produção precisa, antes, ser definido
claramente os objetivos. O aluno precisa ser contextualizado da proposta, de forma, a saber,
para que, para quem, onde e como vai escrever e o que vai escrever.
Ao entender que todo indivíduo produz textos ao passo que mobiliza a língua para se
comunicar, acreditamos que as aulas de português podem ser tomadas como prática diária de
comunicação verbal, desenvolvendo a comunicação recorrente, tanto no trato oral quanto por
escrito. Isso porque existe um locutor interessado em dizer algo a seu interlocutor. De acordo
com Bakhtin (1992, p. 279), todas as atividades humanas estão relacionadas ao uso da língua
e estas se efetivam através de enunciados orais e escritos “concretos e únicos, que emanam
dos integrantes de uma ou de outra esfera da atividade humana”. Se um dos objetivos de LP
é ampliar a capacidade de comunicação de nosso aluno, sugerimos que o professor (a) traga
diferentes tipos de textos à sala de aula, criando oportunidades para que o aluno entre em con-
tato e estude variados gêneros textuais, os quais circulam em nosso meio, nas mais diversas
situações sociais.
13

4.3 Sobre os conteúdos a serem trabalhados


Em se tratando dos conteúdos, o professor (a) apresenta a questão da leitura dicotomi-
zando os mais variados tipos de gêneros e a questão das habilidades de interpretação e com-
preensão de textos. Porém o que sabemos é que a leitura deve ampliar a visão de mundo do
aluno e inseri-lo na cultura letrada, estimulando-o a outras leituras; deve permitir a compreen-
são do funcionamento da língua; expandir o conhecimento da própria leitura; informar como
escrever e sugerir como escrever; entre outros. No que tange ao tópico “escrita”, o professor
(a) leva em consideração as questões de “modalidades textuais, coerência, coesão, domínios
da norma padrão e tipos de discurso (narrador e do discurso direto dos personagens)”. Em
“análise da língua” dá-se prioridade não

Professor (a): [...] pelo estudo metalingüístico, mas pela apropriação e reconheci-
mento mais ou menos estáveis de cada gênero, pelo uso consciente e crítico de
acordo com a intenção desejada para a produção; pela necessidade de levar em con-
ta o interlocutor, a situação de comunicação e a esfera em circulação.
A clareza a organização de idéias, a coerência, a coesão, a estrutura textual escolhi-
da serão observadas sistematicamente na exposição oral e na escrita das produções
textuais, levando em conta os efeitos de sentido desejados.
Assim, as classes de palavras, processos de formação, pontuação, concordância
verbal e nominal, regências, acentuação gráfica, ortografia, sintaxe da frase, das
orações e dos períodos, estrutura do parágrafo, discurso direto e indireto e outros
aspectos metalingüísticos que auxiliam a consolidar os conhecimentos que levam à
proficiência e à autonomia leitora serão abordados no estudo de cada gênero [...]

Neste item do conteúdo, num primeiro momento, o professor (a) afirma que a análise
da língua não será feita pelo estudo metalinguístico, contudo, ao terminar suas considerações
citando classes de palavras, processos de formação, pontuação, entre outros, diz que os aspec-
tos metalinguísticos auxiliam a consolidação dos conhecimentos de proficiência e autonomia
leitora. Ou seja, em se tratando da parte da análise linguística apresentada no planejamento,
pode-se perceber um paradoxo na construção das idéias. Pensamos que os aspectos não aju-
dam a consolidar o conhecimento, as questões da metalinguagem são ferramentas que auxili-
am na escrita e na leitura. O fato não é consolidar a proficiência e autonomia leitora, mas uti-
lizar como os mecanismos de construção de sentidos (KOCH e ELIAS, 1999).
Cogitamos que entre as atividades que podem ser sugeridas para a reflexão e análise
linguística merecem destaque a revisão de textos (controlar a qualidade de produção, a se
identificar problemas e aplicar os conhecimentos sobre a língua, analisando a organização das
idéias); também não menos aprender com textos (observando e analisando diversos textos) a
se refletir sobre como foram escritos, que estratégias o autor utilizou para construir o texto
14

como: evitando repetições, quais as características da pontuação, expressões utilizadas para


mudança de lugar, tempo, enfim, focando os elementos de textualidade. (GOMES, 2007)
Tanto a ortografia quanto os aspectos gramaticais não devem ser deixados de lado no
tratamento da análise linguística, e é de se ponderar que a proposta de ensino com base na
reflexão sobre o funcionamento da língua não elimina o ensino das “estruturas”, ou seja, da
fonética, da morfologia e da sintaxe. Este ensino precisa acontecer ao passo em que o conhe-
cimento das estruturas e a reflexão sobre o uso sejam necessários, partindo do que o aluno já
sabe para as dificuldades apresentadas, para que possa ser desenvolvido o emprego da língua.

4.4 Sobre os gêneros e textos


Ainda na seção „conteúdo‟, o professor (a) apresenta um quadro determinando como
deve ser trabalhado o tipo de gênero a ser abordado em cada série do Ensino Fundamental II:

GÊNERO 5ª 6ª 7ª 8ª
Argumentativo Carta pessoal, texto Carta pessoal, de Texto de opinião, Texto de opinião,
de opinião leitor texto de opi- resenha crítica resenha crítica
nião
Narrativo Fábulas Lendas, romance Crônica Conto, teatro, paró-
dia
Expositivo Resumo, entrevista Resumo, sinopse Resumo, esquema, Resumo, sinopse,
sinopse. esquema.
Relato Noticia, entrevista Notícia, memória Notícia, reportagem Notícia, reportagem
Instrucional, descri- Regras de jogo Manual de instru- Leis e estatutos Leis e estatutos
tivo/ prescritivo ção
Literário Poemas Poemas Poemas Poemas
Tabela (1) – Sugestão do professor (a) acerca dos gêneros e textos a serem trabalhados nas séries.
Fonte: Professor (a) - Gêneros e textos a serem trabalhados nas séries (2010).

Primeiramente, apontamos que equivocadamente o professor (a) chama de gêneros


“argumentativo, narrativo, expositivo, relato; instrucional, descritivo/prescritivo; e literário”,
o que Marcuschi (2008, p. 154) conceitua como o conjunto de categorias que é acrescentado
sem tendência a aumentar - tipo textual. E o tipo textual marca uma espécie de construção
teórica, definida através da natureza linguística de sua composição, como aspectos lexicais,
15

sintáticos, tempos verbais, relações lógicas, estilo6. Ele se caracteriza mais propriamente co-
mo sequências linguísticas do que como “textos materializados”, referem-se especificamente
a modos textuais. Sugerimos para este momento, que o professor (a) divida o quadro de forma
a apresentar nele as situações discursivas, a tipologia textual predominante, as habilidades de
linguagem dominantes e, enfim, os gêneros orais ou escritos. Exemplifiquemos na tabela que
segue.

6
O estilo, para Rodrigues (2005, p. 168), trata do uso típico dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da
língua. Em um enunciado, o estilo particular pode ser melhor entendido se for considerada a sua natureza genéri-
ca.
16

Situações discursivas Tipologia textual Habilidades de lin- Gêneros orais ou


predominante guagem dominantes escritos
Leitura poética Expressão poética Elaboração da lin- Poesia
Verso guagem como forma
de expressão da
interpretação pessoal
do mundo
Leitura ficcional Narração Conto maravilhoso,
Imitação da ação pela contos de fada, fábu-
criação de enredo, la, lenda, narrativa de
personagens, situa- aventura, narrativa de
ções, tempo, cenário, ficção científica,
de forma verossímil. narrativa mítica,
anedota, biografia
romanceada, roman-
ce, romance históri-
co, novela fantástica,
conto, paródia, advi-
nha, piada
Documentação e Relato Representação pelo Relatos de experiên-
memorização de discurso de experiên- cias vividas, relatos
ações cias vividas, situadas de viagem, diário
no tempo. íntimo, testemunho,
autobiografia, curri-
culum vitae,ata, notí-
cia,reportagem, crô-
nica social, crônica
esportiva, história,
relato histórico, perfil
biográfico.
Levantamento e Argumentação per- Sustentação, refuta- Aviso, convite, sinais
discussão de proble- suasiva ção e negociação de de orientação, texto
mas tomada de posição. publicitário comerci-
al, texto publicitário
institucional- carta-
zes, slogans, campa-
nhas, folders, carti-
lhas, folhetos.

Tabela (2) – Gêneros textuais mais conhecidos.


Fonte: GARCES (apud GOMES, 2007, p. 123- 124).

Destacamos que os gêneros comentados, assim como as situações discursivas não ter-
minam no que está exposto na tabela, pelo contrário, existem muitas outras possibilidades.
Podemos perceber assim que o professor (a) não demonstra clareza a respeito do que são pro-
priamente gêneros e do que são tipos textuais, o que possivelmente poderá refletir na própria
prática de sala de aula. Alguns exemplos de gêneros textuais indicados por Marcuschi (2008,
p. 156) são o “texto argumentativo- carta textual, carta comercial, bilhete”, entre outros.
Enfocamos ainda no item conteúdo, que o professor (a) utiliza um gênero por série,
como por exemplo, na 5 ª, afirma trabalhar carta pessoal, texto de opinião; na sexta série e
sétima serie - texto de opinião e resenha crítica. Diante disso, o que podemos perceber é que,
17

logo no planejamento de cada série, será trabalhado apenas um gênero por turma, sabendo que
poderiam ser utilizados nos tipos textuais argumentativos, vários outros gêneros tais como
artigo assinado, editorial etc.
É necessário comentar que quando delimita tipo literário, o professor (a) propõe so-
mente trabalhar com poemas em todas as séries do Ensino Fundamental II, desconsiderando
as outras variedades presentes nos textos literários, como conto, crônica e romance. Isso acon-
tece justamente pelo fato do professor (a) propor em seu escrito uma categorização não condi-
zente, conforme já comentamos anteriormente. Sabemos através de estudos bakhtinianos que
as atividades humanas relacionam-se ao uso efetivo da língua, e se efetivam através de enun-
ciados concretos e únicos “que emanam de uma ou outra esfera da atividade humana” (BA-
HKTIN, 1972, p. 279). Embora tais enunciados sejam individuais, concretos e únicos, não
podemos os entender como combinações de formas livres da língua, pois a língua se realiza
no campo das atividades humanas, e estas possuem formas – padrão (em níveis variados) para
poder estruturar os enunciados.
Em seguida do que é apresentado pelo professor, percebemos o paradoxo presente na
construção do discurso deste planejamento, onde ele(a) afirma que “textos do domínio do
narrar, relatar, argumentar e expor e descrever ações devam ser apresentados em todos os
anos de ensino fundamental”, novamente é apresentada uma contraposição de idéias. Rodri-
gues (2003, p. 1266) aponta que “os termos gêneros textuais, gêneros de texto e tipos de tex-
to” assemelham ser utilizados nos PCNs como sinônimos dos gêneros do discurso. Com cui-
dado, indica que união ou não destes aspectos, merecem melhor observação, pois os parâme-
tros definem o que será trabalhado em sala de aula e o contato de um professor que não tenha
clareza destes conceitos com o que é sugerido pelos documentos poderá causar uma certa con-
fusão:

O trabalho com a linguagem em sala de aula torna-se ainda mais problemática,


pois, ao invés de esses termos funcionarem como norteadores do trabalho do pro-
fessor, são elementos que causam confusão teórico-metodológica (RODRIGUES,
2003, p. 266).

A nosso ver, esta pode ser uma causa da confusão estabelecida no planejamento por
parte do professor (a), já que, como comentamos anteriormente, as bases teóricas apontadas
no planejamento são os PCNs e as Propostas curriculares presentes em documentos da Secre-
taria de Educação do município de Florianópolis. Acreditamos também, que isso tudo, reflete
18

o ensino de uma disciplina que ainda está em busca da composição de um currículo, quanto ao
objeto e ao conteúdo. Conforme Rojo (2008),

[...] se enfatizarmos a formação geral do jovem como protagonista da coisa pública,


como um leitor e produtor crítico, replicante de discursos (...) não cuidaremos mais,
na composição do currículo, da seleção de objetos ou conteúdos a serem estudados,
ainda que gêneros textuais/discursivos, mas de que práticas sociais letradas, e cida-
dãs podem ser favorecidas, (..) por meio do uso e da compreensão de discursos si-
tuados (ROJO, 2008, p.100).

Sendo assim, Rojo (2008) faz-nos entender que atualmente o que se busca é a “rearti-
culação” do conceito de gêneros do discurso/ texto - no campo didático, que está marcado por
dois lados: de um, o resgate de uma perspectiva política aristotélica no ensino “para a coisa
pública” e de outro, um conceito novo rearticulado em função de práticas escolares já conhe-
cidas.

4.5 Acerca da metodologia


Entre os itens apontados na metodologia, selecionamos alguns para a análise. O pri-
meiro é quanto à escolha do “gênero como objeto de ensino”:

Professor (a): A noção de gênero será tomada como objeto de ensino. A diversidade
de textos e gêneros será contemplada não apenas em função de sua relevância social,
mas também pelo fato de que textos pertencentes a diferentes gêneros são organizados
de diferentes formas. (grifo do professor)

Rojo (2005) diferencia “teoria de gêneros do texto” de “teoria dos gêneros do discurso ou dis-
cursivos” e afirma ainda que

os trabalhos que estou classificando como adotando uma teoria de gêneros de texto
tendiam a descrever um plano descritivo intermediário - equivalente a estrutura ou
forma composicional - que trabalha com noções da linguística textual (tipos, protóti-
pos, sequências típicas etc.) e que integrariam a composição dos textos do gênero. A
outra vertente, a dos gêneros discursivos, tendiam a relacionar os aspectos da materia-
lidade linguística determinados pelos parâmetros da situação de enunciação – sem a
pretensão de esgotar a descrição dos aspectos linguísticos ou textuais, mas apenas res-
saltando as “marcas lingüísticas” que decorriam de/ produziam significações ou temas
relevantes no discurso (ROJO, 2005, p.92).

Sugerimos ao professor (a) que ao enunciar a noção de gênero a ser adotada, restrinja
para “gêneros de discurso/texto” conforme a autora acima explicita. Outro item que nos cha-
mou atenção, positivamente, foi o que trata da aplicação de uma “avaliação diagnóstica”,
19

através do modelo GESTAR II7, que funciona como ferramenta e, determina os conhecimen-
tos já adquiridos pelos alunos, através das falhas ou lacunas deixadas por eles. Desta forma,
através de tais falhas, o professor pode ter como parâmetro o que o aluno já conhece e aquilo
que o aluno precisará aprender.

Professor (a): Uma Avaliação Diagnóstica será aplicada em todas as turmas, apro-
veitando-se do modelo proposto pelo GESTAR II, no intuito de melhor efetivamen-
te determinarmos os conhecimentos prévios/ adquiridos e os por adquirir dos alunos
envolvidos. Esta avaliação será a baliza a nos apontar as intervenções necessárias
para o aprimoramento das capacidades e habilidades que visam à autonomia e pro-
ficiência dos cidadãos envolvidos.

No outro item, seleção dos gêneros e textos a serem trabalhados fica evidente que o
professor (a) faz uso de um livro didático e que a maioria dos “gêneros e textos” será con-
templada de acordo com o que está no livro.

Professor (a): A seleção dos gêneros e textos a serem trabalhados está contemplada,
em sua maioria, no livro didático escolhido pela escola Português: uma proposta
para o letramento, de Magda Soares, Editora Moderna. A escolha por esse livro le-
vou em conta a seleção de textos e gêneros cujo domínio de leitura ou de escrita
consideramos fundamental a uma participação social mais efetiva e qualificada. A
tendência será por trabalhar seguindo os passos detalhados pela autora em confor-
midade com a maturidade da turma. Como são textos de difícil compreensão indi-
vidual, a interação e o modelo de leitura serão constantes por parte do professor (a).

Quando sugere-se que a maioria está contemplada no livro, isso nos leva a pensar, e
convidarmos o professor (a) também a refletir, até que ponto tais textos estão em conexão
com a realidade dos alunos. Na outra seção, é apontado que em cada série desenvolverá, ou
dará continuidade, ao projeto de leitura: “construindo a competência leitora” desenvolvido
desde o ano de 2007. Em seguida, é falado sobre a leitura a “[...] ida do aluno à biblioteca será
orientada e estimulada a cada 15 dias, o aluno poderá escolher o livro que desejar, ou procurar
o livro solicitado pela professora e deverá realizar a atividade escrita ou oral sobre a leitura
conforme as orientações passadas” dizendo que a “consciência da escolha do material por
parte do educando é importante como a leitura feita”.
De acordo com Geraldi (2006), é importante que o aluno adquira o gosto de ler pelo
prazer de ler “e não em razão de cobranças escolares”, em um primeiro momento, talvez, a
exigência de leitura por parte do professor (a) para com os alunos, em ter de fazer as ativida-

7
Gestar II é um curso de aperfeiçoamento para professores de LP oferecido pela Secretaria do Estado de Santa
Catarina.
20

des escritas ou orais, não consistam em trabalho instigante para os alunos, e sim um trabalho
de exigência escolar. Desta forma é necessário um cuidado a se observar até que ponto as ati-
vidades com a leitura sejam estimulantes ou não.
Nas seções posteriores, são propostas “aulas expositivas e dialogadas, com suportes
em fotocópias, cartazes etc. para facilitar ao aluno o acesso aos conhecimentos e saberes ne-
cessários à construção de sua autonomia leitora” e “a sala informatizada será utilizada como
suporte de leitura de lendas, e contos africanos, fábulas e mitologia, em site, previamente
identificados”.
Em suma, o que pudemos perceber na metodologia é um apego maior no tocante à
leitura, enquanto a escrita e a análise linguística são pouco comentadas, ou diríamos, quase
nada. Em algumas das seções, existem resquícios da atividade com a escrita, porém o restante
só fala da metodologia em prática de leitura em sala de aula. Se se fala em leitura, como será
relacionada a atividade de produção de texto e a reflexão sobre a língua? Que estratégias de
aplicação serão abordadas por este professor (a)?
Acreditamos que faltou detalhar melhor a escrita e análise linguística no planejamento
quanto à metodologia, pois esta se mostra de forma muito genérica no que tange à aplicação
dos conteúdos. Sugerimos, por exemplo, no processo da leitura, a leitura de um texto curto em
que o professor proponha uma análise, observando os argumentos apresentados, a tese defen-
dida no texto e a comparação do vocabulário empregado. Esta forma é o que Geraldi (2006, p.
94) sugere como “Leitura – estudo do Texto”. Isto representaria assim um processo de leitura
muito mais reflexivo e autônomo do que ler pelo simples fato de ler.

4.6 Avaliação
Na avaliação a professora fala dos instrumentos avaliativos (exercícios, tarefas, leitura
em classe e extraclasse, participação, pesquisa, provas, ditados, apresentações, entre outros) e
prevê que o aluno “deverá”:

Professor (a): demonstrar que compreende os textos nos gêneros trabalhados; atri-
buir sentidos, posicionando-se criticamente; ler de modo independente textos fami-
liares; compreender e estabelecer relações entre os segmentos de um texto e entre
este e outros textos; articular conhecimentos prévios a informações textuais a dedu-
zir informações implícitas; produzir textos nos gêneros previstos considerando-se
suas especificidades; escrever textos coerentes e coesos; revisar o próprio texto; re-
digir, utilizando a norma culta e os padrões da escrita, observando as variedades
linguísticas, as regularidades da língua, a ortografia, o parágrafo, pontuação, regên-
cia etc.
21

Ao lermos este fragmento, questionamo-nos de que forma será dada a avaliação. Con-
tínua, diagnóstica ou formativa? O professor (a) não deixa evidente o cuidado com os alunos
que não conseguirem atingir o rendimento satisfatório na prova, se o procedimento será atra-
vés de recuperação parcial, total. Julgamos algo importante a se tratar em um planejamento.
Também em se tratando de atividades, apontar como que serão desenvolvidas.
O último detalhe observado no planejamento anual é a falta do item “referências”.
Questionamo-nos em que o professor (a) se baseou para afirmar que “textos pertencentes a
diferentes gêneros são organizados de diferentes formas”. Além do livro “Português: uma
proposta para o letramento” qual outra fonte utiliza para dar aula para seus alunos? Fica a
sugestão de o professor (a) ao redigir seu planejamento anual, que exponha os livros nos quais
se baseará para a elaboração das atividades que serão desenvolvidas em sala, como também o
arcabouço teórico que subsidia os conceitos utilizados por ele a serem ensinados aos alunos.

5 CONCLUSÃO
Diante do exposto, a análise em torno do planejamento mostrou que o professor (a) ao
elaborar a introdução de seu planejamento diz fazer uso dos parâmetros curriculares nacionais
e das diretrizes constantes na Secretaria Municipal de Ensino de Florianópolis, ratificados
pelas propostas curriculares de Florianópolis. No entanto, ao lermos Gomes (2007), percebe-
mos que o planejamento do professor (a) apresenta apenas alguns recortes dessas diretrizes,
sem maiores aprofundamentos teóricos específicos. Em função disso, o professor (a) não leva
em consideração as o papel do outro e da interação com o outro no processo de construção de
práticas, discursos e concepções letradas (ROJO, 2001).
Outro fator resultante da análise do documento foi verificar que o que se fala em teoria
sobre o ensino de LP, ainda tem muito a ser pensado e desenvolvido na prática. Observamos
que o planejamento não está em total acordo com a literatura apresentada neste trabalho, pois
encontramos um documento que reflete falhas, as quais julgamos próprias do sistema que a
Disciplina de Língua Portuguesa está inserida e é orientada.

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et. All]. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

EVENTOS DE LETRAMENTO E PRÁTICAS DE LETRAMENTO:


IMPLICAÇÕES E ABORDAGENS

Andressa da Costa Farias (PGET/UFSC) 1

RESUMO

Este texto tem como objetivo apresentar as implicações e abordagens referentes aos eventos
de letramento e práticas de letramento que são conceitos específicos dentro do quadro teórico
dos novos estudos de letramento. Diversos teóricos embasam discussões sobre os novos
estudos de letramento, tais como: Heath (1983), Street (1985), Kalman (1999), Gee (1999),
Soares (2003), Kleiman (2005), entre outros. Pretende-se apresentar como foram abordados
tais conceitos a partir das leituras realizadas e dos seminários apresentados na disciplina
“Usos Sociais da Escrita- Letramento e Alfabetismo” do programa de Pós-Graduação em
Linguística na UFSC, ministrada pelo professor Dr. Marcos Baltar, da qual participei como
estudante no 1º semestre de 2011. O esclarecimento e a tomada de consciência dos conceitos
e da história de eventos de letramento e de práticas de letramento podem vir a contribuir
substancialmente para tornar o processo de alfabetização bem como o ensino da língua
portuguesa mais significativos aos próprios educadores.

Palavras-chave:
Letramento. Eventos de letramento. Práticas de letramento.

ABSTRACT

The aim of this work is to present the implications and approaches referring to events and
practices of literacy, which are specific concepts in the theoretical scene of the new studies
about literacy. Many researchers support the ideas about the studies on literacy, such as:
Street (1985), Heath (1983), Kalman (1999), Gee (1999), Soares (2003), Kleiman (2005), and
others. It is intended to present the way such concepts were developed based on the readings
and the seminars presented in the subject “Social Uses of Writing – Literacy and
Alphabetism”, in the Linguistics Post-Graduate Programme, from UFSC, taught by Prof. Dr.
Marcos Baltar, which I attended as student in the 1º semester 2011. The explanation and the
comprehension of the concepts and the history of events and practices of literacy can
substantially contribute to make the literacy process as well as the Portuguese language
teaching more expressive and meaningful to the educators.

Keywords:
Literacy. Events of Literacy. Practices of literacy.

1 INTRODUÇÃO
Desde o início da disciplina “Usos Sociais da Escrita- Letramento e Alfabetismo”, a
investigação sobre Novos Estudos de Letramento (NLS) dominou as discussões acadêmicas.
No entanto, percebi que mesmo após a leitura dos textos indicados e solicitados pelo
professor, os estudantes (inclusive eu), quando indagados sobre tais conceitos, inicialmente se

1
Mestranda do Programa de Pós Graduação em Estudos da Tradução na UFSC; e-mail:
andressa21@yahoo.com.br.
2

confundiam para explicá-los. A partir desta observação surgiu a hipótese de que tais
dificuldades ocorressem a partir do valor semântico de cada palavra isoladamente.
Letramento, por exemplo, não é uma palavra claramente definida nos dicionários, ainda que
nas edições mais recentes se encontre o verbete, segundo dicionário eletrônico Houaiss (2007)
como:

1. Representação da linguagem falada por meio de sinais; escrita. 2. Alfabetização


(processo).3. Conjunto de práticas que denotam a capacidade de uso de diferentes
tipos de material escrito (déc.1980).

Já a palavra prática, segundo o dicionário Aurélio (2009, p.1614) tem uma gama de
definições das quais podemos citar:

S.f 1.Ato ou efeito de praticar. 2.Uso, experiência,exercício. 3. Rotina; hábito.


4.Saber provindo da experiência;técnica. 5. Aplicação da teoria. 6. Discurso rápido;
conversação; conferência.7.Licença concedida a navegantes para comunicarem com
um porto ou uma cidade.8.Filos. Práxis (2).[Cf.pratica, do v.praticar.].

E no dicionário Houaiss (2001, p.2278) a palavra possui tais conceituações:

1. Ato ou efeito de fazer (algo); ação, execução, realização, exercício. 2. O que é


real, não é criação teórica; realidade. 3. Práxis. 4. Execução de alguma coisa que se
planejou. 5. Execução rotineira de alguma atividade. 6. Capacidade, advinda da
experiência, de fazer algo com perfeição; perícia, técnica, hábito, treinamento. 7.
Maneira usual de fazer ou de agir; hábito. 8. Modo de agir característico de
determinado grupo; uso, costume, convenção. 9. Período em que alunos de certos
cursos deixam as salas de aula e têm contato direto com a profissão que escolheram;
estágio. [...].

A palavra evento, por sua vez, no dicionário Aurélio (2009, p.848), possui as
seguintes definições:

S.m.1.Sucesso, acontecimento 2.Eventualidade 3.Qualquer acontecimento de


especial interesse (espetáculo, exposição, competição,etc), capaz de atrair público e
mobilizar meios de comunicação 4.Estat.Ocorrência, num fenômeno aleatório, de
um membro de um determinado conjunto que se define a priori; acontecimento.
5.Astrofís.Um ponto no espaço-tempo de quatro dimensões 6.Fís.Part. Conjunto de
dados que representa uma interação entre partículas. E no dicionário Houaiss (2001)
os seguintes conceitos: 1. acontecimento geral.observável; fenômeno.2.
Regionalismo: Brasil. Acontecimento (festa, espetáculo, comemoração, solenidade
etc.) organizado por especialistas, com objetivos institucionais, comunitários ou
promocionais. 3. Eventualidade (acontecimento inesperado). 4. Rubrica:cosmologia.
Ponto no espaço-tempo provido de quatro dimensões. 5. Rubrica:estatística.
Realização de possível alternativa de um fenômeno probabilístico; acontecimento.6.
Fis. PART série de dados que caracteriza uma interação entre partículas. 7.
Rubrica:linguistica. Fato, ação, processo, expressos por um verbo ou por um
substantivo deverbal que denota ação.

A despeito do que sistematizam e normatizam os dicionários de uso geral, na medida


em que os seminários iam avançando nesta disciplina acadêmica e que a teoria dos NLS ia
3

sistematicamente sendo discutida, percebi que tanto letramento, prática de letramento e


eventos de letramento configuram um entendimento novo que está além do que pode ser
definido e contemplado por dicionários. Trata-se de campo do saber específico dentro da
Linguística com contribuições importantes da Antropologia, da Etnografia e da Sociologia.
Tais conceitos - eventos de letramento e práticas de letramento - pela relevância social que
evocam, merecem estar presentes em reflexões que ultrapassam a sala de aula. Eis aí, então, o
motivo do desenvolvimento deste artigo, que visa abordar tais conceitos circunscrevendo-os
na área dos Novos Estudos de Letramento.

2 NOVOS ESTUDOS DE LETRAMENTO


Segundo Stromquist (2001), vários acadêmicos da linguística e da antropologia
(HEATH, 1983; STREET, 1984, 1993, 1995; GEE, 1996; GEE ET AL., 1996; BARTON,
1984; BARTON E HAMILTON,1998) constituíram os NLS. Tais estudos, conhecidos com
uma abordagem sociocultural, procuram mostrar que as habilidades letradas podem ser
adquiridas independentes do contexto social no qual as pessoas vivem. Mediante pesquisa de
cunho etnográfico, os estudos foram desenvolvidos principalmente em países de origem
inglesa. Através do emprego de entrevistas abertas e observação, os NLS descobriram que
indivíduos com vários graus de incapacidade para ler e escrever desenvolvem práticas que
lhes permitem lidar com demandas sociais que envolvem as habilidades de leitura e escrita.
No Brasil há diversos estudiosos e pesquisas sobre a linguagem sensíveis ao que os
Novos Estudos de Letramento têm descoberto. E assim também desenvolvem ou
desenvolveram suas pesquisas nesta perspectiva. Podemos citar neste grupo Soares (2003),
Kleiman (2005), entre muitos outros.
Muitos pesquisadores dos NLS citam Freire (1972) como referência naquilo que este
quadro teórico expõe. Dentre estes Street (2003) e também Kleiman (2005). Segundo Street
(2003), a contribuição de Freire (1972) para o NLS seriam os relatos sobre os programas de
letramento que permanecem enraizados naquilo que denominou como a teoria “bancária” do
letramento. Tais programas serviriam para um discurso de “eficácia” medida através de
estatísticas referentes aos resultados em termos de qualificações, freqüência, etc.
Para Freire (2005), a concepção “bancária” do letramento é aquela em que a educação é
centrada no papel do educador. Este possui a tarefa de “encher” os educandos dos conteúdos
de sua narração. A educação se torna, nesta condição, um ato de depositar, em que os
educandos são os depositários e o educador o depositante de conteúdos escolares. Tal
concepção é fortemente criticada por Freire que enfatiza que a Educação deve se basear num
4

processo dialógico de aprendizado entre educandos e educadores. Propõe que a palavra deve
servir para leitura do mundo, a leitura crítica da palavra deve ser transformadora de mundos.
Eis aí sua contribuição para letramento na medida em que aproxima a alfabetização como
algo que deve ser mediado pelo mundo, pelo envolvimento social dos sujeitos envolvidos no
processo. Kleiman resgata a contribuição de Freire para o Letramento no texto que segue.
Ângela Kleiman é uma referência em pesquisa sobre letramento. Para esta pesquisadora,
o conceito de letramento a partir de uma perspectiva histórica foi incitado por Paulo Freire
quando da utilização do termo “alfabetização” com um sentido próximo ao que se tem
atualmente sobre letramento, para designar uma prática sociocultural do uso da língua escrita
que se transforma ao longo do tempo. Pois, a relação das pessoas com a escrita se transformou
na medida em que esta foi considerada direito de todos e que a tecnologia tem dado suporte a
seus usos.
Tal mudança se faz sentir na escola, pois se espera que a criança escreva com sentido
no caderno e no computador e também saiba fazer uso da Internet. Logo, a partir da década de
80 vários pesquisadores precisavam de um termo que abarcasse esses aspectos sócio-
históricos do uso da escrita. Aí, então, esclarece Kleiman, surge o termo letramento para se
referir ao conjunto de práticas de uso da escrita que além de incluir as práticas escolares vai
além delas.
Então, “Letramento” é um conceito que vai além do usado na escola, está presente no
cotidiano, já que as paisagens estão permeadas pela escrita através de anúncios, cartazes,
legendas de transporte urbano. Evidenciando, deste modo, os múltiplos espaços que a escrita
ocupa na sociedade. Logo, ainda segundo Kleiman (2005), o conceito de letramento surge
como uma forma de explicar o impacto da escrita em todas as esferas de atividades e não
somente nas atividades escolares. Este conceito, porém, já entrou no discurso escolar através
de documentos como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), os que discutem currículo
no país. Outra pesquisadora que podemos citar como referência neste assunto é Magda
Soares.
Soares (2003) define letramento como um processo distinto de alfabetização; no
entanto, ressalta que a alfabetização e o letramento são interdependentes e indissociáveis. A
alfabetização é definida como a aquisição da tecnologia da escrita e o letramento, a
participação em práticas sociais de escrita. A alfabetização, porém, não precede e nem é pré-
requisito para o letramento visto que um analfabeto pode ter certo nível de letramento ao fazer
uso da leitura e da escrita através de outros já alfabetizados. Mas acrescenta que o uso efetivo
e competente da tecnologia da escrita está fortemente atrelado ao letramento, que implica
5

habilidades como: ler e escrever para atingir diferentes objetivos, interpretar e produzir
diversos tipos e gêneros textuais, orientar-se pelos protocolos de leitura, saber usar a escrita
para encontrar ou fornecer informações e conhecimentos, ter interesse e prazer em ler e
escrever.
A partir das colocações sobre o conceito de letramento dentro dos NLS, passa-se a
desenvolver, então, os conceitos de eventos de letramento e práticas de letramento.

3 EVENTOS DE LETRAMENTO
Stromquist (2001) expõe que o conceito de “eventos de letramento” foi proposto por
Heath (1982) em referência às ocasiões concretas nas quais a língua escrita está vinculada à
natureza das intervenções dos participantes, suas estratégias e seus processos interpretativos.
Citaremos a seguir definições de outros autores para compor este entendimento.
Os eventos de letramento são definidos por Street (2003) como algo que permite aos
pesquisadores e aos demais profissionais da educação, focalizar uma situação específica em
que as coisas estejam acontecendo, em que se possa vê-las. Um evento clássico de letramento
seria aquele em que se pode visualizar um acontecimento que envolva a leitura e/ou a escrita e
do qual é possível determinar as suas características. Um exemplo como o evento de
letramento acadêmico, e outros tais: pegar um ônibus, sentar numa barbearia, negociar um
caminho, etc. A ressalva que faz é do emprego deste conceito de maneira isolada e descritiva.
Tal atitude não contribui do ponto de vista antropológico sobre as formas que os significados
são construídos. Pois, ainda segundo este autor existem convenções e suposições subjacentes
ao redor do evento de letramento, que fazem com que ele funcione. Já em Gee encontraremos
a seguinte definição para eventos de letramento:
“(...) qualquer evento que envolva documento impresso, como a negociação em
grupo de significado em textos escritos (e.g. um anúncio), „procura guiada‟ em
livros de referência, registros de escritos familiares na Bíblia e muitos outros tipos
de situações em que livros ou outros materiais escritos são utilizados para a
interpretação e interação.” (GEE,1994, p.64)

Já Kleiman (2005) define eventos de letramento de maneira bem didática. Expõe que os
eventos de letramento ocorrem quando uma ou mais pessoas são mobilizadas para uma
determinada situação a partir de textos escritos. Cita como exemplo quando um grupo procura
chegar a um determinado endereço (um dirige, outro lê o mapa, outro lê as placas), ou ainda,
quando alguém que não sabe escrever dita uma receita para outra pessoa que sabe escrever.
E Hamilton (2000) procura deixar visível o conceito quando apresenta os agentes
envolvidos nos eventos de letramento, tais como: participantes, ambientes, artefatos e
6

atividades. Deste modo os participantes são as pessoas que podem ser vistas interagindo com
textos escritos. As circunstâncias físicas imediatas em que a interação se dá ocorrem nos
ambientes. Os artefatos incluem os textos e as demais ferramentas materiais envolvidas na
interação e as atividades são as ações realizadas pelos participantes no evento.
Assim, a partir do que expõe os diversos autores citados é possível definir os eventos de
letramento como todas as atividades que envolvem a leitura e escrita de modo visível na
sociedade. A seguir será definido o conceito de práticas de letramento.

4 PRÁTICAS DE LETRAMENTO
As práticas de letramento são definidas segundo Street (2003) como um conceito
mais amplo que abarca as categorias de natureza cultural e social de um evento de letramento.
A ampliação resulta do fato do que se trazem para um evento de letramento conceitos,
modelos sociais relacionados à natureza que o evento possa ter que o fazem funcionar, e que
lhe dão significado. Eis aí a importância da pesquisa etnográfica quando se faz pesquisas que
envolvam eventos de letramento, pois não basta apenas observá-los; é preciso entender a
lógica de funcionamento deles e, para isso, é necessário falar com as pessoas, ouvi-las e
associar a experiência a outras coisas que possam também estar fazendo.
Ao discutir a leitura de jornais com adolescentes da área urbana nos Estados Unidos,
Heath constatou que grande parte da atividade deles não era considerada em suas
mentes como sendo letramento, a tal ponto que uma pesquisa superficial teria
perdido o significado de suas reais práticas de letramento, e levado quem sabe a
rotular aqueles adolescentes como sendo não-leitores, ou até mesmo a insultá-los
chamando-os de “iletrados”, como aconteceu em grande parte da cobertura dada
pela imprensa ao focalizar aquela área. (STREET, 2003, p.08).

Já Stromquist (2001) coloca que o conceito de “práticas de letramento” foi proposto


por Street em 1993 e amplia a noção de eventos de letramento incluindo modelos e eventos
culturais que ajudam a dar forma ao modo como os comportamentos e os significados que os
acompanham são relacionados ao uso da leitura e escrita. Há autores que se preocupam em
deixar este conceito compreendido através de categorizações.
Este é o caso de Hamilton (2000), por exemplo, que categorizou eventos e práticas
de letramento. Expõe que diferentemente dos eventos de letramento, as práticas de letramento
não possuem os constituintes visíveis. São os participantes ocultos que as pessoas ou grupos
envolvidos na produção, circulação, compreensão e regulação dos textos escritos. O discurso,
ou seja, o domínio de práticas dentro das quais o evento acontece considerando seu sentido e
propósito social. Além disso, as práticas de letramento envolvem também todos os recursos
trazidos para a prática como saberes, habilidades, valores, sentimentos, compreensão,
7

propósitos, relação de poder. E também, e por fim, as rotinas que facilitam ou regulam as
ações, ou seja, quem irá ou não engajar-se nas atividades.
Os conceitos de eventos de letramento e as práticas de letramentos podem ser analisados
a partir de modelos de letramento. Esses modelos foram apresentados por autores como
Hamilton (2000) e Street (2003) como: modelo autônomo de letramento e modelo ideológico
de letramento.
O primeiro seria aquele em que concebe o letrado como erudito/escolarizado, e também
em que a escrita é autônoma, ou seja, existe independente de determinantes sociais, culturais
ou históricos. Já o modelo ideológico entende a escrita a partir de seu uso social e aí não
concebe o letrado como o erudito. Conceitua a escrita a partir dos determinantes históricos ou
socioculturais. A análise apresentada sobre os conceitos de eventos de letramento e práticas
de letramento neste artigo pende para o letramento ideológico.
No entanto, algumas pesquisas vislumbram uma aparente dicotomia entre os modelos
autônomo e ideológico de letramento. Na medida em que um envolve o outro e vice-versa.
Então é necessário deixar claro que as implicações e exemplificação de cada modelo de
letramento adotado não será foco de discussão e problematização deste estudo.
Para finalizar estes dois importantes conceitos (eventos de letramento e práticas de
letramento) dentro do NLS, Hamilton (2000) propõe a metáfora de um iceberg refletido na
água, onde, resumidamente, a parte de cima desta imagem seriam os eventos de letramento, a
parte visível da leitura e da escrita. E a parte submersa deste iceberg (não visível) seriam as
práticas de letramento que implicam os modos de vida, os valores, as ideologias que
permeiam a sociedade.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
É muito importante a reflexão sobre a relevância da discussão sobre os conceitos
eventos de letramento e práticas de letramento dentro do quadro teórico dos Novos Estudos de
Letramento. E é somente a partir deste quadro teórico que eles são compreendidos, uma vez
que não têm relação direta com os conceitos tomados de forma isolada, como se constatou
inicialmente ao buscar o significado deles em dicionários.
Tais conceitos evocam antes a noção de letramento que visa discutir o uso social da
escrita. E discutir a escrita a partir de uma noção social faz com que se discuta também o
papel da escolarização, da alfabetização, da aquisição da aprendizagem, tornando este
processo de ensino melhor contextualizado. Pois, a Escola é uma agência social de letramento
e está incluída dentro de uma dinâmica maior de organização social. A sociedade moderna se
8

caracteriza, sobretudo por ser uma sociedade grafocêntrica, ou seja, dominada pela escrita nas
mais diferentes formas e manifestações, independentemente dos modelos de letramento que
adotam.
Logo, os autores apresentados no decorrer deste artigo apontam em suas pesquisas que
a escrita está ou deve estar diretamente relacionada ao contexto social, histórico e de
aprendizagem dos sujeitos. Logo, trazer à tona a conceituação de eventos de letramento
(atividades em que a escrita está presente) e de práticas de letramento (a forma como
diferentes culturas entendem este processo da escrita, valorizações, ideologias) é primordial
para desenvolver a investigação em torno da escrita visando tornar mais significativo o
processo de alfabetização e o ensino da língua materna para os educadores e, sobretudo aos
educandos. E é a partir deste contexto que entra a contribuição teoria e prática dos chamados
gêneros textuais. Mas, esta é uma análise que merece ser desenvolvida num próximo estudo.

6 REFERÊNCIAS

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4º edição. Curitiba: Ed.Positivo, 2009.

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Literacies GEE, James Paul.: Ideology in Discourses. Londres: taylor & Francis, 1994.

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literacy as social practice. In: BARTON, David; HAMILTON, Mary; IVANIC, Roz (Org.).
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HOUAISS. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Objetiva, 2007.

KLEIMAN, Ângela. Letramento nos anos iniciais fascículo 1. Preciso ensinar o


letramento? Não basta ensinar a ler e escrever? Brasil – CEFIEL, 2005.

SERRANI, Silvana. (Org.) Letramento, discurso e trabalho docente. Vinhedo: Editora


Horizonte, 2010.
9

SOARES, Magda. Letramento. Um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica,


2003.

STREET, Brian. Abordagens alternativas ao letramento e ao desenvolvimento.


Teleconferência Unesco - Brasil - sobre letramento e diversidade. [S.l.], outubro de 2003.

STREET, Brian. Abordagens alternativas ao letramento e desenvolvimento.


Teleconferência Unesco Brasil sobre „Letramento e Diversidade‟, outubro de 2003.

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In: JONES, Marilyn Martin; JONES, Kathryn. Multilingual Literacies: reading and writing
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STROMQUIST, Nelly P. Convergência e divergência na conexão entre gênero e letramento:


novos avanços, Educação e Pesquisa. Revista da Faculdade de Educação da USP, 27: 02,
jul-dez 2001, p.301-320.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

FATORES PRAGMÁTICOS NA COGNIÇÃO RETÓRICA:


A FICÇÃO COMO APARATO SIMULADOR NA TOMADA DE DECISÃO

Rodrigo Bueno Ferreira (PPG/UFPR)1


Aristeu Mazuroski Jr (PPG/UFPR)2
Maurício Fernandes Neves Benfatti (PPG/UFPR)3

RESUMO

O conceito de risco pode ser entendido como a possibilidade de um acidente e suas


conseqüências, sendo a percepção de risco um processo cognitivo dos indivíduos diante de
situações de perigo, visando ações de esquiva, comportamentos compensatórios ou
modificações do ambiente, já que organismos vivos tendem ao afastamento daquilo que lhes
ameace a sobrevivência. Por sua vez, a ficção é um complexo processo mental realizado por
suspensão da realidade, cálculos inferenciais, simulações, suposições, intuições e
probabilidades. Argumentamos, portanto, que a competência ficcional é um aparato que
possibilita operações subjetivas e analíticas com a finalidade de preservação do organismo,
sendo uma faculdade constitucional do comportamento e das tomadas de decisão dos seres
humanos. Propomos também que a competência ficcional permite que o organismo, por um
lado, simule situações futuras e possíveis resultados e, por outro lado, ela permite a
construção de narrativas visando a explicação do evento ocorrido a si mesmo e aos seus pares.
Para elucidarmos esta hipótese, nos propomos à explanação destes fenômenos por vias das
bases naturalísticas, antropológicas, psicológicas, lingüísticas e comunicacionais, que
convergem na abordagem da pragmática cognitiva.

Palavras-chave:
Pragmática cognitive. Ficção. Simulação. Risco. Tomada de decisão.

ABSTRACT

The definition of “risk” proposes a relation between the possibility of an accident and its
consequences, determined by the perception of the same risk as a cognitive process triggered
in dangerous situations. The expected course of action in such dangerous context would show
itself as compensatory behaviors of safety, situational modifications and dodging or
avoidance, being those some natural human reactions to survival hazards. At the same time,
the definition of “fiction” involves a complex mental process, characterized by suspension of
disbelief, inferential computation, mental simulations, suppositions, intuitions and
probabilities. In this work, we argue that fictional competence or ability is a tool that allows
subjective and analytical computations, aiming to preserve the organism. That would be a
constitutional and inherent faculty of behavior and decision-making in human beings. We also
argue that fictional competence allows the organism to simulate future situations and possible
outcomes, bringing together facts and stories, building narratives and explaining situations

1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras/Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Paraná
(UFPR), vinculado ao grupo de pesquisa Linguagem e Cultura e bolsista da Capes. Possui trabalhos relacionados
à Pragmática e aos fenômenos da comunicação literária; e-mail: ruod_rik@ymail.com.
2
Psicólogo, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Letras/Estudos Linguísticos da Universidade
Federal do Paraná (UFPR), vinculado ao grupo de pesquisa Linguagem e Cultura e bolsista da Capes. Possui
trabalhos relacionados à Pragmática e ao comportamento humano; e-mail: aristeumj@gmail.com.
3
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Letras/Estudos Linguísticos da Universidade Federal do
Paraná (UFPR), vinculado ao grupo de pesquisa Linguagem e Cultura e bolsista da Capes. Possui trabalhos
ligados à Pragmática e à manifestação musical de seres humanos; e-mail: mfbenfatti@yahoo.com.br.
2

and events to itself and to the group. We search for answers and support through the study of
naturalistic, anthropological, psychological, linguistic and communicative sources,
converging on the cognitive pragmatics studies.

Keywords:
Cognitive Pragmatics. Decision-making. Fiction. Risk; Simulation.

1 INTRODUÇÃO
A narrativa ficcional se apresenta como uma fonte de reflexão muito propícia para a
pragmática cognitiva. Algumas características do mundo ficcional têm despertado
ponderações que podem ser centrais para a compreensão ampliada da comunicação
inferencial. Temas como o reconhecimento da intencionalidade do narrador, o processo
interpretativo e o estabelecimento do ato comunicativo intrigam teóricos e motivam diversas
pesquisas em diferentes abordagens. Há, porém, uma questão a qual consideramos que deva
ser tratada primordialmente nestes estudos: o caráter atrator que a ficção exerce sobre os seres
humanos.
O potencial atrativo que a ficção exerce sobre nossa espécie faz com que dediquemos
uma quantidade de tempo considerável de nossas vidas às narrativas sem aparente
compromisso com a realidade, como literatura, mitologia, narrativas orais, cinema, novelas,
teatro, piadas, etc. Uma abordagem que explique esta questão pode elevar o nível do debate
que circunda este assunto e talvez permita vislumbrar uma nova noção sobre problemas que
as áreas que se dedicam aos processos ficcionais até então não se dedicaram a responder.
Portanto, neste texto introdutório, nos lançaremos a algumas hipóteses do porquê de os seres
humanos consumirem abundantemente narrativas ficcionais, mesmo quando diante da
possibilidade que têm de se apegarem à fontes de informações verdadeiras.
Para tanto, apresentaremos algumas considerações que têm sido feitas sobre o papel
que a ficcionalidade exerce na vida humana, numa discussão que emana do processo
evolutivo do nosso desenvolvimento cognitivo em uma abordagem que nos permita
compreender a narrativa ficcional por um viés naturalístico.
O que sugerimos neste trabalho é que um dos possíveis atratores que a ficção exerce
sobre seres humanos é que ela um aparato que possibilita operações cognitivas de simulação
de situações possíveis. Então a competência ficcional se caracteriza como um recurso que
opera pela suspensão da realidade, permitindo que, por exemplo, em situações de risco, diante
da percepção do risco, possamos prever eventuais circunstâncias e seus possíveis resultados.
Deste modo para que na tomada de decisão rumamos à salvaguarda, haja vista a tendência à
3

esquiva que indivíduos aspiram quando em situações que lhes comprometa a integridade,
seguindo na direção da preservação em sua tomada de decisão diante de situações de perigo.
Também discutiremos a idéia de “suspensão voluntária da descrença”, presente na
teoria literária, complementando alguns critérios que esta noção não permite responder.
Ademais, para propormos esta discussão da ficção como um aparato simulador da cognição,
operando por vias da suspensão da realidade, suposições, intuições, abduções e inferências,
nos sustentamos em alguns conceitos que a abordagem da pragmática e as ciências cognitivas
nos têm permitido.

2 A COGNIÇÃO RETÓRICA
Muito embora a retórica nunca possa ser descartada como uma característica da
interação comunicativa, a linguística contemporânea (com sua habilidade de encarar a
linguagem como cálculo) parece ter colaborado para uma derrocada da observação acadêmica
sobre elementos prosódicos. Afinal, tarefa nada fácil é a de se propor ao escrutínio de objetos
que parecem impossibilitar uma observação formal. No caso da retórica, como levar ao
laboratório ou observar diretamente em campo elementos tão sutis como os que fazem a
diferença quando o interesse principal é o de argumentar (e não necessariamente ser realista)?
Isso porque há na argumentação um forte apelo a questões psicológicas que possibilitam um
não comprometimento dos interlocutores com a realidade. De certa forma, argumentar não
implica em estar certo, mas sim em levar aos outros acreditarem nisso. Nesse sentido, a
argumentação parece ser invariavelmente relativa a nossas capacidades pragmáticas, visto que
sempre se situam no campo da aposta comunicativa (SPERBER, 2007). Mesmo em situações
dramáticas, nas quais a argumentação não é apenas uma questão de escolha, as pessoas têm
que tomar decisões baseadas naquilo que suas próprias consciências lhe mandam. Em
julgamentos, por exemplo, por mais que as promotorias públicas se esforcem em acumular
tantas provas quanto forem possíveis, a não ser que o réu assuma a culpa ao longo do
julgamento, condenações sempre podem ser atribuídas injustamente. Não faltam exemplos de
condenações indevidas (inclusive as de execução) que ocorrem porque determinadas
informações cruciais não estavam acessíveis às pessoas durante o julgamento.
Exposto simplesmente dessa maneira, não é difícil de notarmos porque faltam
adeptos da idéia de que a capacidade retórica seja correlativa à capacidade à linguagem e que
ambas as características tenham co-evoluído. O aparente descompromisso da retórica com a
realidade é um grande problema para qualquer que pretenda assumir que tal capacidade possui
uma história evolutiva, visto que tal característica é quase um contra-senso dentro da idéia de
4

adaptação biológica. Afinal, qual é o benefício de uma capacidade cognitiva que pode levar
tribunais a condenarem pessoas honestas e inocentes? No entanto, a despeito disso, a
pragmática tem sido terreno fértil para o desenvolvimento da ideia de que aspectos retóricos
envolvidos na efetivação da comunicação são elementos intrínsecos ao processamento de
linguagem. Isso porque elementos retóricos podem ser descritos dentro do âmbito das
informações contextuais inerentes à manifestação de linguagem. Neste sentido, o papel
desempenhado pelo processamento de informações contextuais pode ser observado como um
dos principais debates dentro da discussão semântico-pragmático.
Foi Grice quem primeiramente propôs que a sensibilidade ao contexto era inerente à
atividade conversacional. No entanto, muito do empenho de tal filósofo recaiu sobre a
aceitação generalizada de que a sensibilidade aos contextos é uma característica secundária
aos processamentos estruturais. Inferir as coisas do mundo é, segundo este viés, decorrente da
percepção de que a estrutura processada apresenta alguma característica defectiva. Assim, o
princípio cooperativo (GRICE, 1975) é originalmente concebido como um conhecimento
social tácito do qual decorreriam as máximas conversacionais de Grice. Para a filosofia da
conversação deste autor, cooperar comunicativamente equivale a reconhecer os propósitos
comunicativos nos quais os indivíduos estão imersos. Especificamente no caso da retórica
ficcional, tal postura demanda que os interlocutores operem no limite da cooperação, visto
que a ficção requer deliberadamente a inobservância de uma possível máxima conversacional
de qualidade. Afinal, a ficção não deve ser compreendida com a manifestação estrita do que
um autor considera ser verdade. O engajamento em atividades ficcionais por ambas as parte
de uma interlocução não requer que as pessoas acreditem na verdade da história narrada.
Tooby e Cosmides (2001) propõem que o engajamento em atividades ficcionais pode
ter uma funcionalidade adaptativa que reside na ampliação das perspectivas frente às
possíveis demandas cotidianas. Nossa proposta de observação da retórica como fruto de
evolução biológica vai na mesma direção apontada por estes autores, mas para tanto, é
necessário que exploremos uma alternativa ao modelo tradicional de sensibilidade aos
contextos corroborada na proposta da pragmática de Grice. Desta forma, Sperber e Wilson
(1995) propõem um modelo alternativo de comunicação humana no qual a sensibilidade aos
contextos não é secundária aos processamentos estruturais, muito pelo contrário, é concebida
como orientadora dos processamentos estruturais. Para estes autores, a comunicação não é
apenas cooperativa, visto que antes ela é concebida como coordenada. Assim, se
tradicionalmente se aceita que a linguagem gera linguagem, a abordagem cognitiva de
Sperber e Wilson sugere que o gatilho da linguagem é interativo. A comunicação é descrita
5

como um sistema dinâmico e emergente, fruto da percepção individual dos contextos em que
indivíduos estão imersos. Ou seja, a linguagem não é tida como um sistema autônomo, mas
sim uma capacidade que emerge de vários sistemas cognitivos especializados e selecionados
devido às funcionalidades criativas decorrentes da orientação inferencial da cognição humana.
Desta forma, a sensibilidade ao contexto e o engajamento ficcional podem ser
descritos como atividades adaptativas não porque estamos pré-programados a tal, mas sim
porque tendemos a perceber tais atividades como potencialmente relevantes na tarefa de
derivar informações oriundas do mundo. Quer dizer, conceber um viés cognitivo para a
comunicação humana demanda um esforço em compreendê-la como um esforço individual
para a promoção coletiva e coordenada de determinados comportamentos em detrimento de
outros. Ou seja, requer compreender a racionalidade adjacente à cognição comunicativa como
uma competência social (MERCIER e SPERBER, 2011). Segundo este viés, os benefícios
individuais que obtemos da nossa racionalidade são efeitos secundários da principal função de
tal capacidade: a persuasão. Do ponto de vista cognitivo, transmissões de informação
persuasivas são onerosas, afinal, nunca podemos descartar a participação de um interlocutor
trapaceiro em nossas conversações diárias. Aliás, é exatamente essa possibilidade de trapaça
por meio da linguagem que parece permear as interações comunicativas. A razão, vista por
esta lente, não é uma capacidade individual que apenas necessita de um período de maturação,
visto que as interações entre seres humanos é que são concebidas como os gatilhos do
comportamento racional.
Parece inegável que linguagem e racionalidade possuem uma relação intrínseca.
Quando falamos, não apenas transmitimos informações, mas fazemos isso com a intenção de
promover determinados comportamentos em detrimento de outros possíveis. Uma espécie
comunicativa como a nossa tem de arcar as consequências de tal capacidade de manipulação
do comportamento alheio. Os mecanismos cognitivos envolvidos na efetivação da
comunicação não podem apenas se contentarem com as informações contidas nas estruturas
informativas. A detecção da trapaça linguística, por exemplo, vai muito além da decodificação
linguística e depende fortemente de fontes de informações que extrapolam o discurso
linguístico. Este aspecto demonstra que a cooperação comunicativa não é um mero altruísmo,
mas sim uma coordenação de atividades entre indivíduos que argumentam e que sabem que
assim fazem os outros interlocutores do mundo. Tal característica permeia a comunicação e
deixa marcas indeléveis, visto que é na argumentação que podemos observar mais nitidamente
outra característica comunicativa: a criatividade. Neste sentido, inferir informações
potencialmente relevantes é uma característica individual de lidar com estruturas do mundo e
6

que, a priori, não necessita nem de interação tampouco de criatividade. No entanto,


inferências comunicativas nos evidenciam que lidar com enunciações demanda um esforço
criativo de ambas as partes da interlocução. Há criatividade na escolha da forma em que
pensamentos se transformam enunciações, assim como os ouvintes de uma enunciação são
chamados a atuar de maneira criativa (o que dá brecha, inclusive, para que nem todos os
trapaceiros cometam trapaças sem serem percebidos).
É neste sentido de compreender a atividade comunicativa por trás da atividade
ficcional como capacidade dotada de retórica e de criatividade que concebemos plausível a
afirmação de que a interação ficcional é uma função adaptativa de seres humanos. Assim,
como indivíduos de uma espécie fadada a interagir criativamente, os comportamentos e estilos
de vida que adotamos são amplamente variáveis tanto em função como em forma. Fato que
demanda o desenvolvimento de estratégias individuais para a promoção do bem-estar. É neste
âmbito de interação, criatividade e comunicação é que a atividade ficcional pode render
benefícios adaptativos à nossa espécie, fomentando não apenas o compartilhamento de
contextos diversos que por si só são pouco evidentes, mas também a predisposição ao
engajamento criativo frente a demandas sociais.

3 PERCEPÇÃO DE RISCO E TOMADA DE DECISÃO COMO FATORES


CULTURAIS
De acordo com Peter Bernstein (1997), A etimologia da palavra “risco” remete a
risicare, em seu significado original “ousar”. A característica de ousadia implica em uma
opção, e não uma fatalidade. Em tal conotação original, o risco, portanto, não envolvia apenas
prejuízo. Como consequência de uma opção também pode acontecer um ganho. Isso atribui
uma dimensão social e cultural ao risco, sendo que ele constrói a realidade através de suas
decisões. Dessa forma, podemos considerar duas dimensões do risco: 1) uma propriedade
objetiva de uma decisão tomada, com consequências benéficas ou adversas e 2) uma
construção social e cultural do indivíduo e do grupo. Os mecanismos na tomada de decisão
não envolvem apenas quantificações numéricas de risco, mas também valores sociais e estilos
de vida praticados pelo grupo, que podem variar inclusive na mesma cultura. O risco até pode
ser quantificado de forma objetiva, mas a tomada de decisão com base no risco é praticada
sobre valores altamente subjetivos, rejeitando a causalidade determinística.
A concepção de “percepção do risco” neste trabalho passa por um processo cognitivo
que prevê perigos e riscos, levando o indivíduo a evitá-los ou minimizá-los através de ações
de esquiva, comportamentos compensatórios ou modificações no ambiente (RENN, 1997).
7

Mas esta percepção de risco, como dissemos, não é processada de forma objetiva; ela ocorre
de acordo com vários fatores particulares e subjetivos do indivíduo. Uma das definições mais
abrangentes sobre percepção de risco lida com a forma como os indivíduos em geral analisam
o perigo, geralmente de forma intuitiva (SLOVIC, 1987). A decisão sobre o nível de ameaça
ou perigo presente no ambiente leva então o indivíduo a operar neste meio, elevando ou
diminuindo o perigo real presente. Como decorrência natural da necessidade de auto-
preservação, organismos vivos procuram evitar os riscos ou situações perigosas, já que isso
ameaça em maior ou menor grau a sua sobrevivência e capacidade de reprodução. Trabalhos
recentes de pesquisadores evolucionistas (ERMER et al., 2008, p.106) mostram que mesmo as
decisões que parecem irracionais - se considerados apenas padrões matemáticos de ganho-
perda - são ecologicamente ou contextualmente racionais. Ou seja, tais decisões são
produzidas por um sistema computacional construído para adquirir performance adaptativa
em tarefas que foram recorrentes no processo de evolução humana.
O comportamento de evitar ou assumir riscos é profundamente influenciado pelo
histórico de comportamentos do organismo em questão: um comportamento que levou a uma
consequência desastrosa ou pelo menos indesejável tende a ser evitado no futuro; de forma
similar, uma situação ambiental que gerou um desastre ou consequência indesejável também
tende a ser evitada pelo indivíduo. Tais concepções se fundam em conceitos arraigados na
Psicologia Social Cognitiva, remetendo à proposta de Lewin (1935), de que a investigação da
percepção que as pessoas possuem do mundo à sua volta permite uma melhor compreensão
do seu comportamento do que as descrições objetivas dos estímulos ambientais; na mesma
linha clássica de investigação, Allport, Vermon e Lindzey (1960) já apontavam que as raízes
do comportamento social estão relacionadas com as percepções individuais presentes ou até
mesmo com a imaginação das suas presenças no ambiente. Dessa forma, comportamento de
risco e tomada de decisão não são efetuados apenas com base nos cálculos objetivos frente à
situação, mas influenciados por toda sua bagabem histórica e cultural. A tomada de decisão no
ser humano é um processo guiado pelo risco presente na ação em questão. Na concepção
tradicional que predominou até a segunda metade do século vinte, os processos de avaliação
do risco eram atribuídos apenas a sistemas peritos ou científicos, sendo que percepção
individual ou do grupo “leigo” era considerada irrelevante (KOLLURU et al. 1996).
Atualmente, tanto a avaliação científica como a percepção do indivíduo leigo são
consideradas como partes componentes da avaliação de risco.
Escolhemos falar em percepção do risco porque acreditamos nas individualidades do
aparelho sensório particular de cada indivíduo. Um indivíduo que seja daltônico, por exemplo,
8

possui uma particularidade no seu aparelho sensório (não distingue cores) que o leva a ter
uma percepção diferente do mundo em relação àqueles que não são daltônicos; se o indivíduo
não reconhece a cor vermelha – normalmente associada com "perigo" em uma sinalização -
ele pode estar consideravelmente mais exposto aos riscos do que uma pessoa que reconhece
esta cor e estaria atenta aos perigos por causa da identificação da cor. Este é apenas um
exemplo para ilustrar como a percepção de risco varia de indivíduo para indivíduo, em acordo
com os dados sensoriais que ele tem à disposição. O processamento diferenciado dos dados
sensoriais leva, consequentemente à uma percepção e linha de ação também diferenciadas, de
indivíduo para indivíduo.
Os estudos sobre risco também passaram a focar atualmente a mudança de
comportamento frente ao risco, e a emergência dos processos de tomada de decisão frente à
situação de ameaça. O estudo desenvolvido por Ross e Ferreira-Pinto (2000) diz respeito à
situação de risco, descrevendo a situação na qual o comportamento de risco ocorre e que pode
iniciar ou promover o envolvimento direto com o perigo. Por exemplo, uma situação de risco
para prática de sexo inseguro pode incluir o uso de drogas, pressão de amigos, colegas e
conhecidos, ambiente pouco conhecido, falta de preservativos, falta de dinheiro, isolamento
ou estimulação; cada uma das variáveis descritas na situação de risco pode levar ao
comportamento de risco de sexo inseguro, que promove o envolvimento direto com o perigo
das doenças sexualmente transmissíveis. Tais fatores apontam para a importância fundamental
do contexto para o engajamento em comportamentos de risco. Lima (1998) indica que é
comum que comportamentos de risco variem de contexto para contexto, ou seja: o mesmo
indivíduo pode evitar ou adotar um mesmo comportamento de risco, dependendo da situação
ambiental. Adicionalmente, mesmo na permanência da situação ambiental, o indivíduo pode
adotar um comportamento de risco anteriormente evitado. Tal dado indica que a variação no
comportamento de risco e tomada de decisão pode ser explicada pelo contexto – outras
pessoas presentes, sugestões e pressões contextuais, uso de drogas, afetos gerados pelo
contexto e pelo passado recente, por exemplo. Assim, as narrativas que o indivíduo constrói
ou replica ao longo de sua vida também podem ser importante fator na tomada de decisão.
Pesquisas como a de Fischer e Guimarães (2002), apontam para o fato de que a percepção
sobre as fontes de risco do indivíduo submetido ao processo de tomada de decisão tende a
convergir com a análise de risco dos especialistas. Entretanto, o indivíduo não consegue
conceituar objetivamente o risco, que se caracteriza como difuso ou misturado com outras
fontes de risco. Além disso, na situação real (e não na hipotética prevista pelo especialista),
outros fatores e até mesmo outros riscos emergentes podem interferir na tomada de decisão.
9

Já apontamos anteriormente para o fato de que a percepção de risco raramente é


construída de forma apenas objetiva e racional, e ela se constrói e consolida a partir de
diversos fatores: individuais, grupais, sociais, culturais e ideológicos (LIMA, 1998;
THIELEN, 2002). Endler & Magnusson (1976) indicam que a percepção que o indivíduo tem
do ambiente também será fator preponderante em como ele vai lidar com a situação. A
percepção da situação dependerá da estrutura e conteúdo desta, mas também será construída
por variáveis individuais tais como o tom afetivo da situação, estratégias de competição e as
habilidades do indivíduo. Segundo Ermer, Cosmides e Tooby (2008, p. 115), várias espécies
desenvolveram um sistema motivacional, ativado por fatores presentes no ambiente, e que
regula o quanto o organismo se envolverá ou não em atividades de risco. Em tais espécies, a
chance de envolvimento em atividades de risco pode ser regulada, por exemplo, pela
existência no ambiente de outro organismo competindo por recursos: um competidor de
mesmo nível percebido elicia maiores comportamentos de risco do que um competidor cujo
nível percebido é maior ou menor que o nível próprio do organismo. Os experimentos dos
autores corroboram a hipótese de que tal mecanismo de decisão ativado por fatores
ambientais, e cuja evolução obedeceria aos mesmos fatores de pressão evolutiva, estaria
presente na arquitetura cognitiva do ser humano. Acontecerá a percepção de situações comuns
e únicas, correspondentes a entendimentos sociais e culturais partilhados quando comparados
com o mundo privado do indivíduo. A percepção da situação como um todo é uma
característica pessoal tanto quanto é uma característica do cenário. As diferenças na percepção
podem acontecer principalmente com respeito a características tais como idade, gênero e
cultura. Lima (1998, p.18) também considera os fatores interpessoais na percepção de risco.
Fica patente em tal concepção a diferenciação entre um risco percebido pelo
indivíduo (como ele vê a situação) e o risco aceito (como ele de fato se comporta na situação).
Um dos autores que apresenta a idéia de equilíbrio entre o risco percebido (a percepção do
risco) e risco aceito (o comportamento de risco) é o psicólogo Gerald Wilde, cuja teoria
propõe a homeostase, termo este que “não se refere a um resultado final, fixo e invariável ou a
um estado fixo e imutável (...), mas a um tipo particular de processo dinâmico que adapta uma
produção atual a um objetivo” (WILDE, 2005, p.9). Tal homeostase se refere a um processo
de equilíbrio dinâmico, no qual os limites de riscos que o indivíduo está disposto a aceitar
flutuam constantemente, mas sempre dentro de um limite máximo, que seria a soma de todos
os riscos que o indivíduo assume ao mesmo tempo. Desta forma, um indivíduo pode, por
exemplo, escolher arriscar os seus proventos no mercado de ações, mas vai adotar uma
postura mais cautelosa no seu trabalho diário, a fim de preservar sua fonte de renda principal.
10

Esses mecanismos de compensação caracterizam a homeostase na Teoria da Homeostase do


Risco. Gerald Wilde também afirma que “quando os benefícios esperados do comportamento
de risco são percebidos como altos, e os custos esperados são percebidos como relativamente
baixos, o nível tolerado de risco será mais alto” (2005, p.32). Este conceito é fundamental na
teoria e possui um admirável poder explicativo para o comportamento humano de arriscar-se.
Esta é a maior contribuição da Teoria da Homeostase do Risco para o estudo do
comportamento humano: o indivíduo constantemente ajusta os seus comportamentos para que
se adequem à sua percepção muito particular do que são níveis "seguros" e níveis "inseguros"
de risco. Narrativas e histórias compartilhadas entre os membros de um grupo podem ser
epidemiológicas, no sentido de estimular ou desestimular o comportamento de risco de vários
membros frente à situações similares, alterando percepções de risco particulares e ajustando o
nível “seguro” de cada membro.

4 A FICÇÃO COMO APARATO SIMULADOR


Temos até aqui demonstrado alguns dos processos que a cognição humana tende a
assumir no nível da interação com seus pares, por intermédio da retórica, e com o mundo, por
meio da percepção. Queremos evidenciar ainda como alguns destes artifícios cognitivos,
manifestos na relação do indivíduo, agora com o mundo ficcional, estimulam o
processamento inferencial para organizar sua maneira de lidar com o mundo real. Sugerimos
que a competência ficcional é um aparato que possibilita as operações inferenciais para a
tomada de decisão diante das situações que lhe oferecem riscos, como expusemos
anteriormente.
Ao se tratar dos universos ficcionais, uma noção acadêmica bem aceita entre os
estudiosos da arte é a idéia de “suspensão voluntária da descrença”, quesito elementar para as
artes como a literatura, o cinema, o teatro, etc. Umberto Eco apresenta este conceito da
seguinte maneira:

A norma básica para se lidar com uma obra de ficção é a seguinte: o leitor precisa
aceitar tacitamente um acordo ficcional, que Coleridge chamou de “suspensão da
descrença”. O leitor tem de saber que o que está sendo narrado é uma história
imaginária, mas nem por isto deve pensar que o escritor está contando mentiras. De
acordo com John Searle, o autor simplesmente finge dizer a verdade. Aceitamos o
acordo ficcional e fingimos que o que é narrado de fato aconteceu (ECO, 1994, p.
81).
11

Partindo da suspensão da descrença, Eco explica como temos de assinar um acordo


com o autor e estar dispostos a aceitar, por exemplo, que o lobo fala, na história de
Chapeuzinho Vermelho, mas, porém, quando o lobo come Chapeuzinho, é natural que
pensemos no comportamento da protagonista como o de uma menina como todas as outras e o
de sua mãe como uma adulta responsável e preocupada. Assim, aceitamos que o lobo fale,
mas construímos os personagens da mesma forma como acontece no mundo de nossa
experiência, sendo que para imaginarmos o mais impossível dos mundos, precisamos adotar o
mundo real como pano de fundo. Portanto, é necessário saber uma porção de coisas sobre o
mundo real para presumi-lo como pano de fundo correto do mundo ficcional. Deste modo,
Eco assume que mundos ficcionais têm a função de nos familiarizar às leis físicas do universo
e com atos que realizaremos um dia, significa dar sentido às coisas que aconteceram,
acontecem ou acontecerão no mundo real, servindo de uma suposta ansiedade por qual somos
tomados ao dizer algo de verdadeiro sobre o mundo (1994, p. 93).
Já nesta abordagem da teoria literária de Umberto Eco podemos supor que se o
mundo ficcional tem a função de nos familiarizar a eventos possíveis, sem que seja
necessariamente o mundo físico em que acontecem tais eventos. De fato, para que estas
intervenções da imaginação sejam possíveis, é suposto que o sucesso do empenho cognitivo
nestas operações só é realizado porque algum sistema de suspensão da realidade é atuante.
No entanto, como aponta Boyer (2007, p. 247), a suspensão da descrença per se não
é suficiente para explicar a complexidade da atividade cognitiva empregada na ficção. Uma
resposta ampliada a esta questão pode ser encontrada na hipótese de que a imaginação
humana evoluiu para permitir que seres humanos transcendam os limites físicos do aqui e
agora, permitindo com que criem técnicas e objetos inteiramente novos, sendo que esta
transcendência da imaginação é possível porque ela trabalha principalmente suspendendo
alguns princípios que normalmente condicionam processos inferenciais. Segundo Boyer, a
imaginação humana não fornece apenas vôos imaginários pelo mundo da fantasia, mas é
envolvida na produção de representações altamente estáveis e prevê razoavelmente situações
possíveis. A narrativa ficcional tende a ser limitada a um número de temas recorrentes, apesar
das enormes diferenças culturais e históricas. Contrariamente a outros domínios, como a
música, o vestuário e culinária, as produções narrativas de outras culturas são de fácil
compreensão e apreciação. A principal razão é que por mais exóticas que possam ser, é
possível que identifiquemos gêneros e artifícios retóricos muito familiares. Afinal, os temas e
situações das narrativas estão muito próximos das preocupações evolutivas, tais como
proteção contra predadores (ou pseudo-predadores como o Lobo Mau), investimento conjugal
12

adequado na escolha entre parentes e não parentes, custo nas relações de adoção entre órfãos e
padrastos e compatibilidade da identidade cultural para seleção de companheiro.
No caso de situações indesejadas, com finais trágicos, por exemplo, tendemos a
imaginar como teria sido nosso passado se aquele evento não tivesse ocorrido, como seria
nossa vida presente e, ainda, imaginar como poderia ser um futuro diferente, não fosse as
conseqüências da tal acontecimento. Isto nos remete ao que expusemos anteriormente, ao
explicarmos como o comportamento de evitar ou assumir riscos é profundamente influenciado
pelo histórico de comportamentos do organismo em questão, ou seja, uma vez que alguma
conduta levou este organismo a uma consequência desastrosa ou indesejável, ela tende a ser
evitado no futuro; situações ambientais, de forma similar à tomada de decisão, quando nos
oferecem condições de desastre ou resultado de perda, também sinalizam que devem ser
evitadas pelo indivíduo. Tais situações podem ser percebidas, evitadas ou, no mínimo,
inferidas pelo indivíduo de pelo menos três maneiras, para evitar o risco: i) em algum
momento já ter sido exposto a alguma situação de risco semelhante; ii) ter presenciado, ou
visto, alguma situação em que um outro indivíduo sofreu danos; iii) ter recebido de outra
pessoa instruções sobre situações que lhe possa causar danos.
Este terceiro caso é que temos identificado como manifesta nas narrativas ficcionais,
porquanto seres humanos representam as possíveis vivências humanas a fim de representar a
outros seres humanos quais seriam os “enredos” pelos quais a vida pode tomar rumo. Estas
representações possibilitam, então, com que indivíduos infiram as melhores alternativas para
as tomadas de decisão, já que dispõem nas narrativas uma espécie de “manual de instruções”,
que pode ser recuperado de suas memórias.
Um ponto de partida útil para o levantamento desses modelos é observar que para a
maioria das pessoas na maioria das culturas humanas, a ficção é de grande interesse em
virtude de suas propriedades miméticas. Os seres humanos vivem em um "nicho cognitivo" na
medida em que, mais do que qualquer outra espécie, dependem de informações,
especialmente em informações fornecidas por outros seres humanos, e em informações sobre
outros seres humanos. Como corrobora Pinker (2008, p. 108), apesar do caráter abstrato da
informação, ela tende a ser relevante para a identificação do passado e futuras relações causais
de itens, estados cerebrais ou imagens que a contenham. Afinal, se a informação nunca fosse
transmitida com alguma fidelidade entre os indivíduos o conhecimento jamais se acumularia
numa sociedade, e a própria linguagem seria inútil. Esta dependência significa que são
cruciais as disposições mentais que ajudam a manter representações ricas e flexíveis sobre os
outros, seus objetivos e de seus estados mentais.
13

Na afirmação de Tooby e Cosmides (2001), a mente humana é bem-sucedida em


ações dependentes do acesso a informações precisas sobre o mundo. Assim, os organismos
devem ter uma tendência à obtenção de informações precisas, e a distinção entre informações
verdadeiras e falsas devem ser importantes na determinação se a informação é absorvida ou
desconsiderada. Conseqüentemente, o processamento computacional depende continuamente
do monitoramento e restabelecimento dos limites dentro dos quais cada conjunto de
representações permanece útil. Isto nos permite resolver problemas como suposição e
raciocínio contrafactual, visto que os sistemas inferenciais que evoluíram podem ser
rigorosamente aplicados a proposições e a possíveis resultados avaliados.
De acordo com Sperber (1985), seres humanos lembram-se mais facilmente de uma
narrativa do que de um texto. O que torna algumas representações mais difíceis – de
interiorizar, lembrar ou externalizar – do que outras, isto é, mais complexas, é a organização
da cognição humana e das habilidades comunicativas. Na tradição das narrativas orais, as
representações culturais são facilmente lembradas. Aquelas representações mais complexas ou
são esquecidas ou são transformadas por um processo de simplificação, antes de atingir um
nível de distribuição cultural. Utilizando o mesmo exemplo de Chapeuzinho Vermelho,
Sperber explana a narrativa como uma representação pública que é construída como uma
representação mental, sendo tais construções ou recuperações de estados mentais
propiciadoras de que indivíduos modifiquem seu ambiente físico para produzirem
representações públicas. Esta modificação do ambiente pode fazer com que outros indivíduos
construam representações mentais próprias, podendo ser armazenadas e recuperadas
posteriormente, e, por sua vez, outros indivíduos podem acessá-las para modificar o ambiente,
e assim sucessivamente, estabelecendo então dois processos de representações:
i) os intra-processos subjetivos de pensamento e memória;
ii) os processos subjetivos em que as representações de um sujeito afetam outro sujeito
através da modificação de seu ambiente físico comum.4
Através da intersecção estabelecida entre estes dois processos da interação do
indivíduo com suas representações mentais e suas representações públicas, podemos apontar
na direção dos inter-processos subjetivos, que se referem aos inputs e outputs cerebrais, ou
seja, à interface cérebro-ambiente, por serem, em parte, de natureza psicológica, e, em parte,
de natureza ecológica. Então, narrativas de ficção acabam se caracterizando como estímulos
de representações mentais derivadas de representações públicas e, ao mesmo tempo,

4
Segundo Sperber e Wilson (2001, p. 80), o ambiente cognitivo do total de um indivíduo é uma função do seu
ambiente físico e das suas capacidades cognitivas.
14

representações públicas derivadas de representações mentais. Os inter-processos subjetivos


permitem com que o indivíduo abduza as situações que a ele se apresentam no mundo e infira
quais são as conseqüências possíveis de cada ação, permitindo a ele que calcule o risco e o
ganho na tomada de decisão.
Pelas vias da Relevância (1986), sabe-se que todos os seres humanos vivem no
mesmo mundo físico e derivamos informações deste ambiente comum buscando as melhores
representações mentais possíveis. Não construímos todas as mesmas representações, por um
lado, devido às nossas diferenças dos ambientes físicos mais reduzidos e, por outro lado,
devido às nossas capacidades cognitivas. As capacidades perceptuais variam em eficácia de
um indivíduo para outro e do mesmo modo as capacidades inferenciais, visto que falam
línguas diferentes, dominam conceitos diferentes, memórias diferentes e experiências
diferentes, podendo, portanto, construir diferentes representações.
Deste modo, a competência inferencial que nos permite as simulações de situação
possíveis, como nas narrativas, é manifesta de modo idiossincrático. Ou seja, a caracterização
que Eco (1994, p.98) faz da narrativa ficcional, como algo que deve ser preenchida pelo leitor
com aquilo que é objetivo para que se construa a narrativa, pode ser entendida a partir das
idiossincrasias guiadas por nossas expectativas de relevância, digo, aquilo que achamos
necessário formular como pano de fundo para a narrativa, obedecendo aos critérios de
objetividade exigidos pela obra. Nossas expectativas de relevância são o que preenchem todo
o restante da obra que se nos apresenta inacabada. O filtro do nosso cérebro é suficientemente
eficiente para nos fazer prestar atenção somente naquilo que convém, o que é relevante. Se
realmente completamos ou preenchemos a aquilo que é vago ou inacabado na narrativa
conforme nossas expectativas de relevância, não estamos muito longe do procedimento que
tendemos em situações corriqueiras da vida real.
A narrativa da pequena Chapeuzinho Vermelho, então, poderá se apresentar em
variadas versões, devido ao alto grau idiossincrático manifesto nas narrativas pelas
representações mentais que delas fazemos, no entanto, as representações públicas expressas
na história continuarão remetendo aos fatores de uma dada cultura, devido aos fatores
ecológicos que permitem a percepção e alteração do ambiente cognitivo dos indivíduos.
Como exemplo, temos a ocorrência de que desde crianças temos a capacidade de, na ausência
de um adulto, invocar a história de Chapeuzinho e avaliarmos se compensa ou não nos
aventurarmos a entrar numa floresta, nos arriscarmos ao confronto com animais selvagens ou
mesmo de seguir na direção de qualquer evento desconhecido. Esta capacidade de alteração
de nossos ambientes psicológicos via inferências para simular possíveis situações é o que nos
15

guiou ao que aqui denominamos aparato simulador. Nos termos de Eco (1994, p. 58), o
processo de fazer previsões constitui um aspecto emocional necessário da leitura que coloca
em jogo esperanças e medos, bem como a tensão resultante de nossa identificação com o
destino das personagens. Cremos que seja difícil negar tais esperanças e medos quando os
próprios personagens de uma narrativa são protagonizados por nós em situações que nos
comprometem a sobrevivência.
Portanto, numa perspectiva epidemiológica, as narrativas são distribuídas
culturalmente sobrecarregadas de elementos ecológicos, mas estes elementos podem ser
manipulados psicologicamente por indivíduos que alteram seus enredos conforme seus
ambientes cognitivos, seus valores e suas crenças. Nesta direção, podemos explicar por vias
pragmáticas como é que as narrativas se estabelecem como um artefato humano, mas também
como o humano é alimentado pelas narrativas a que é exposto.
Cremos que seja coerente a sugestão de que tendemos à criação e apreciação
ficcional porque ao invertamos narrativas com alguma finalidade retórica preventiva,
admitido o que até aqui temos proposto que: narrativas ficcionais são protagonizadas por seres
humanos5 e suas decisões diante das situações que se lhes apresentaram; a ficcionalidade é
uma espécie de registro de possíveis situações que aconteceram, acontecem ou acontecerão
com as pessoas, adquirindo um caráter preventivo na tomada de decisão; são compartilhadas e
podem assumir um nível epidemiológico de compartilhamento entre o indivíduo e seus pares.

5 CONSIDERAÇÕES
A comunicação das narrativas ficcionais talvez ainda não esteja muito perto de ser
explicada em sua totalidade, mas cremos que com esta abordagem aproximativa que o viés
cognitivo permite, do processo ficcional como um aparato simulador operando por vias
inferenciais, pode ser uma alternativa profícua para as questões que são levantadas ao
falarmos da ficcionalidade como um atrator para os seres humanos.
Acreditamos ter esclarecido neste trabalho como a ficção pode ser um relevante
recurso de preservação da espécie, por apresentar um repertório acessível de situações
possíveis que podem guiar o indivíduo na tomada de decisão. Porém, em suma, o que fica
claro é que tanto a percepção do risco, a tomada de decisão, a narrativa ficcional e os
processos inferências que guiam o indivíduo na direção da modificação do ambiente físico são
guiados pela sensibilidade aos contextos e por suas interações.

5
Mesmo nas fábulas, caracterizadas por serem protagonizadas por animais, as personagens são animadas e
aludem a seres humanos por recursos antropomórficos.
16

Se realmente nossa hipótese mostra-se plausível, o que nos ocupa e estimula na


continuidade de sua investigação, temos algumas importantes conjeturas a serem feitas por
intermédio dos campos da pragmática, da psicologia e da literatura, no tocante a uma maior
reflexão sobre a ficção como um sistema de inferência para a preservação do indivíduo ou da
possibilidade do aumento da eficiência das decisões rumo à preservação através dos exemplos
protagonizados nas narrativas. Estas questões motivam pesquisas futuras, às quais ainda nos
pretendemos lançar.

6 REFERÊNCIAS

ALLPORT, Gordon Willard; VERNON, Philip Ewart; LINDZEY, Gardner. Study of values:
manual. Boston, MA: Houghton Miffin Co., 1960.

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SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

GÊNEROS ORAIS E SEQUÊNCIA DIDÁTICA: ESTRATÉGIAS


METODOLÓGICAS PARA TRABALHAR O DEBATE
NAS AULAS DE LÍNGUA MATERNA

Paula Isaias Campos-Antoniassi (PPGLg/UFSC) 1

RESUMO

O ensino de Língua Portuguesa deve ser pautado por práticas condizentes com a realidade do
aluno, sempre buscando a criticidade e a formação de cidadãos conscientes de seus deveres
para com a sociedade. Para isso, se faz necessário trabalhar os mais diversos gêneros na esfera
escolar. Além de produzir textos escritos, a escola deve, também, trabalhar o gênero oral com
seus alunos a fim de que possam comunicar-se de forma mais eficiente e em várias situações,
fazendo com que eles se apropriem deste gênero tão pouco trabalhado. Cabe ao professor
desenvolver metodologias que mostre ao alunado sua possibilidade de falar e se fazer ouvir.
Este trabalho tem por finalidade, nos moldes das sequências didáticas propostas por
Schneuwly e Dolz, apresentar uma sequência didático-metodológica de trabalho com gêneros
orais nas aulas de Língua Portuguesa do Ensino Médio. A proposta é trabalhar com debate,
apresentando aos alunos a argumentação e contra-argumentação. É necessário ressaltar, no
entanto, que este artigo não visa comprovar a eficiência da sequência proposta realizando-a
em sala de aula, apenas apresentar uma metodologia possível para que o trabalho com gêneros
orais na esfera escolar aconteça de forma efetiva, eficiente e pautada nas práticas sociais.

Palavras-chave:
Gêneros Discursivos. Gêneros Orais. Sequência Didática. Debate.

ABSTRACT

The teaching of Portuguese language should be guided by practices consistent with the reality
of the student, always seeking the criticality and the formation of citizens aware of their duties
to society. For this, it is necessary to work the most diverse genres in the field school. In
addition to producing written texts, the school must also work the oral genre with their
students so that they can communicate more efficiently and in various situations, so that they
take so little of this genre worked. It is the teacher to develop methodologies that show the
student his or her ability to speak and be heard. This study aims, in the manner of teaching
sequences proposed by Schneuwly and Dolz, present a teaching sequence and method of
working with oral genres in the classes of the Portuguese Language School. The proposal is to
work with the debate, presenting students with the arguments and counter-argument. It should
be noted, however, that this article is not intended to prove the efficiency of the proposed
sequence-performing in the classroom, can only present a methodology for working with oral
genres in the sphere of education happen effectively, efficiently and based on social practices.
Mestranda em Linguística Aplicada. E-mail: paula.isaias@gmail.com

Key-words:
Genres. Oral Genres. Teaching Sequence. Debate.

1
Mestranda em Linguística Aplicada; e-mail: paula.isaias@gmail.com.
2

1 INTRODUÇÃO
O ensino de Língua Portuguesa é alvo de controversas e discussões ao longo dos
anos. Alguns professores ainda utilizam o texto como pretexto para ensinar a gramática
normativa, outros se utilizam de tipologias textuais, pois acreditam que é a melhor forma de
trabalhar o texto como unidade básica do ensino da língua.
Atualmente, o debate sobre o ensino de língua portuguesa acontece permeado por
opiniões e conceitos sobre gêneros discursivos ou textuais. O trabalho com estes gêneros deve
ser privilegiado na escola, mas muitos professores não sabem como fazer, uma vez que
muitos não tiveram formação para trabalhar desta forma.
Os gêneros discursivos podem ser orais, escritos, sendo que ambos devem estar
presentes no dia a dia da escola, no entanto, neste artigo, tratarei da importância do gênero
oral para a formação de um aluno crítico e consciente.
Primeiramente, irei elencar alguns conceitos que permeiam a teoria a respeito de
gêneros, diferenciando-os de tipos textuais, diferença esta que se faz essencial quando se
pensa em uma mudança de atitude na escola.
Após isso, dissertarei sobre os gêneros discursivos e sua configuração nas aulas de
Língua Materna, a forma que eles devem assumir ao entrar no âmbito escolar e o porquê de
serem trabalhados. Ainda pensando em sala de aula, trarei a importância de se trabalhar o
gênero oral, gênero este que fica, às vezes, à margem do ensino de LM.
Por fim, trabalhando o gênero oral, elencarei algumas possibilidades do trabalho
com o debate, uma vez que acredito ser este uma potencialidade para o trabalho com
argumentação em sala de aula, podendo dar novos rumos ao trabalho com oralidade e sendo
significativo para educadores.

2 CONCEITUANDO
O trabalho com gêneros discursivos, ou textuais, tem sido bastante discutido nas
Universidades e tentar conceituá-lo é uma tarefa complexa e que não cabe no momento.
Muitos autores criaram conceitos para gêneros e é a partir destes conceitos que vamos
trabalhar.
Para Bakhtin (2003 [1952/53]), falamos e interagimos por meio de enunciados,
sendo que “cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua
elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados”. Isto significa que a estabilidade
relativa de um gênero permite que a forma seja alterada, sem que a função de determinado
gênero se modifique.
3

Um exemplo disso é uma receita de bolo. Normalmente, a receita segue um


padrão: lista de ingredientes, seguidos do modo de fazer, sendo que este último pode ser
dividido, no caso do bolo, em massa, recheio e cobertura.

Fonte: www.tempuradeangu.blogspot.com

No entanto, há variações. Pode-se ir direto ao modo de fazer listando os


ingredientes, é possível contar uma história ao longo da receita, o que vemos muito em blogs
culinários e mais, há vídeos especializados em mostrar uma receita. Tais vídeos são diferentes
de programas de televisão, em que a apresentadora lista os ingredientes e ensina a fazer. Estes
vídeos são recheados de alegorias, música, momentos lúdicos, fazendo a receita e contando
uma história ao mesmo tempo.

Fonte: www.pimentanoreino.com.br (receita de pudim de leite condensado)


4

Os exemplos com receitas culinárias foram utilizados apenas para demonstrar a


relativa estabilidade dos enunciados. Os enunciados foram diferentes, mas não deixaram de
ser uma receita – mesmo uma sendo de bolo e a outra de pudim!
Marcuschi (2010), além de conceituar os gêneros – para ele, textuais – vai além e
os diferencia de tipos textuais. Sendo tipos textuais uma expressão usada para
Designar uma espécie de sequência teoricamente definida pela natureza linguística
de sua composição [...]. Em geral, os tipos textuais abrangem cerca de meia dúzia de
categorias conhecidas como: narração, argumentação, exposição, descrição,
injunção. (p. 23)

E a expressão gêneros textuais


como uma noção propositalmente vaga para referir os textos materializados que
encontramos em nossa vida diária e que apresentam características
sociocomunicativas definidas por conteúdos, propriedades funcionais, estilo e
composição característica. [...] Alguns exemplos de gêneros textuais seriam:
telefonema, sermão, carta comercial, carta pessoal, romance, bilhete, reportagem
jornalística, aula expositiva, reunião de condomínio, notícia jornalística,
horóscopo, receita culinária, bula de remédio, lista de compras, cardápio de
restaurante, instruções de uso, outdoor, inquérito policial, resenha, edital de
concurso, piada, conversação espontânea, conferência, carta eletrônica, bate-papo
por computador, aulas virtuais e assim por diante. (grifos do autor) (p. 23-24)

Com esta explanação, é possível perceber a diferença evidente entre os tipos


textuais e os gêneros textuais, sendo que, para aqueles, há a predominância de “sequências
linguísticas típicas como norteadoras” (MARCUSCHI, 2010, p. 25) e nestes, o que predomina
são “os critérios de ação prática, circulação sócio-histórica, funcionalidade, conteúdo
temático, estilo e composicionalidade (ibdem).
Ainda levando em consideração as diferenças entre tipo textual e gênero textual,
podemos inferir o fato de que um gênero pode ser composto por vários tipos textuais. Em uma
carta pessoal, por exemplo, em que a filha que mora longe escreve à mãe. A menina pode
iniciar a carta contando algo que tenha acontecido (narração) e, dentro desta história, a filha
comece a descrever o lugar em que aconteceu (descrição). Conhecendo a mãe e seus valores,
a garota pode pensar que a mãe não vá concordar com seu ponto de vista, passa então a
argumentar em favor de si mesma, tentando convencer a progenitora que está coberta de razão
(argumentação). Assim, percebemos que os gêneros textuais são mais amplos e abarcam a
cultura, o ambiente, o contexto sócio-histórico de quem enuncia.

3 OS GÊNEROS E A AULA DE LÍNGUA MATERNA


5

O ensino de Língua Portuguesa, doravante LP, tem sido transformado a partir de


pesquisas sobre o que é realmente efetivo e necessário nas práticas de linguagem. Sabe-se,
hoje, que o professor deve pautar sua prática no texto e na realidade do aluno. De nada adianta
trazer orações descontextualizadas e pedir que façam análises sintáticas e menos ainda quando
estas orações estão em um plano completamente diferente do que os alunos vivem.
Paulo Freire sempre enfatizou a necessidade de partir da realidade do alunado,
pois só assim o ensino vai tornar-se efetivo e a prática será ressignificada. Para isso, é
necessário que o ponto de partida do ensino de LP seja o texto e que ele não seja trabalhado
como pretexto para o ensino de oração subordinada, por exemplo.
Trabalhar o texto desta forma significa trabalhar com gêneros textuais,
contextualizando o aluno e trazendo propostas pedagógicas que realmente signifiquem algo.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais (1998) – PCNs - trazem instruções sobre a prática
educacional e atentam para o fato de que o processo de ensino e aprendizagem de LP seja
pautado em situações de interação, com atividades que procurem recriar situações
enunciativas de outros espaços, que não o escolar, e tem sempre como objetivo ensinar.
Guimarães (2006) aponta o trabalho de Scheuwly e Dolz, evidenciando que o
ensino por meio de gêneros deve ser realizado a partir daqueles que circulam em outras
esferas – não apenas a escolar – mas que tenha o objetivo de ensinar, sem deixar de ser,
contudo, forma de comunicação.
Enfim, os documentos oficiais e a pesquisa de vários autores renomados só fazem
aumentar a certeza de que a prática docente deve ser situada tendo por base o texto como
unidade de ensino. Sendo o texto esta unidade é possível concluir que o ensino de gêneros é
de suma importância nas aulas de Língua Materna, cabendo ao professor selecionar aqueles
que mais se adéquam à realidade de seus alunos e trabalhar com afinco a fim de fortalecer a
criticidade e empoderar seu alunado, no sentido de que eles possam tomar para si o direito de
fala e domínio discursivo.

4 GÊNEROS ORAIS EM SALA DE AULA


A sala de aula deve ser um ambiente em que diversos gêneros são trabalhados
com a perspectiva de ensinar, mas sem deixar de lado a função comunicativa dos gêneros,
como já fora afirmado anteriormente. Segundo Schneuwly e Dolz (2004), é preciso colocar os
alunos em uma situação de comunicação, mas que isso tenha sentido a eles, pois só assim o
alunado irá dominar o gênero trabalhado como ele realmente é. Para os autores, é interessante
trabalhar com gêneros que os alunos ainda não conhecem, não dominam, não há necessidade
6

– e nem seria interessante – trabalhar gêneros conhecidos ou já estudados pelos alunos. Por
isso a necessidade de conhecer seu aluno, sua realidade, o que ele sabe e o que ele ainda não
estudou são tão importantes no processo de ensino e aprendizagem.
Trabalhar a função comunicativa do gênero só é possível, no entanto, pois na
escola este é uma variação do gênero de referência. Por exemplo, o gênero notícia faz parte do
processo de ensino/aprendizagem para que os alunos consigam escrever uma notícia ou até
mesmo ler uma notícia em um jornal e saber que gênero é. No entanto, a notícia para o
jornalista tem outra função: é através dela que o profissional irá repassar suas notas,
observações, ponto de vista a respeito do que fora pesquisado.
É preciso atentar, com isso, que o trabalho com gêneros na escola não pode ser
apenas com o motivo de ensinar, é preciso que a prática seja situada, pois somente com
sentido os alunos conseguirão dominar e reconhecer os gêneros que encontrarão no cotidiano.
A criança chega à escola com um bom domínio da oralidade, muito antes de
aprender a ler e escrever, ela recita poemas e conta histórias, mas com o passar dos anos
letivos, o trabalho escolar com a oralidade deixa de ser ponto crucial no processo de ensino,
passando à marginalidade deste processo. No artigo “O oral como texto: como construir um
objeto de ensino” de Schneuwly, Dolz (2004) – com a colaboração de Haller –, os autores
entrevistaram professores a respeito do trabalho com oralidade em sala de aula e 70% dos
destes afirmaram que trabalham a oralidade em sala de aula com leituras em voz alta de textos
escritos. Ou seja, os professores não trabalham a argumentação, por exemplo, apenas a leitura
para que esta se dê de forma mais eficaz.
Isso pode ser explicado de algumas formas: 1) o professor não sabe como
trabalhar a oralidade; 2) o docente trata a oralidade como inferior a escrita, marginalizando
aquela em detrimento desta, dentre outras possíveis explicações.
Para que estas questões sejam minimizadas, os PCNs tratam o trabalho com a
oralidade em sala de aula com bastante cuidado, privilegiando gêneros que façam uso das
práticas de escuta e leitura de textos, prática de produção de textos orais, evidenciando que tal
prática não é ensinar a falar, mas sim desenvolver o domínio dos gêneros que apóiam a
aprendizagem escolar de LP.
Outra questão levantada pelos documentos oficiais é o domínio dos gêneros da
vida pública, como debate, teatro, palestra. Schneuwly e Dolz (ibdem) evidenciam que
algumas profissões exigem o domínio do oral em público, como advogados, políticos, e que é
função da escola auxiliar no preparo destes futuros profissionais, sem deixar de objetivar o
que deve ser ensinado. Não se pode, simplesmente, fazer do espaço escolar um curso de
7

oratória, é preciso que características do oral a ser ensinado sejam bem determinadas, sem
tentar contrapor com a escrita formal, diminuindo a importância daquele.
Bastante importante lembrar-se da necessidade de tornar o ensino significativo e
isso é conseguido, sem dúvidas, com o ensino de gêneros orais. As crianças e adolescentes
precisam tomar para si o direito de fala, precisam conhecer turnos de fala e desenvolver
capacidades argumentativas para que sejam ouvidos e reconhecidos como cidadãos críticos
que são.

5 DEBATE E SUAS POTENCIALIDADES


Inicialmente, pensei em planejar uma sequência didática nos moldes propostos
por Schneuwly e Dolz, a fim de trabalhar o gênero debate em sala de aula. No entanto, após
algumas reflexões, percebi que a sequência estaria vazia de realidade. Os alunos não
existiriam, de fato, nem seus problemas, sua comunidade, suas aspirações.
Sendo assim, apesar de discorrer sobre as sequências didáticas, não tornarei este
trabalho com gêneros orais algo fechado, que não possa ser mudado. Elencarei algumas
potencialidades de trabalho com o gênero debate. Tais potencialidades foram pensadas nos
alunos que já tive. Alunos que convivi durante pouco tempo, mas que consegui apreender
suas necessidades, suas vontades e a realidade daquela comunidade.
A sequência didática defendida por Schneuwly e Dolz é tratada como um
conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de
um gênero textual oral ou escrito [...] e tem a finalidade de ajudar o aluno a dominar
melhor um gênero de texto, permitindo-lhe, assim, escrever ou falar de maneira mais
adequada numa dada situação de comunicação. (DOLZ et al,2004, p. 97)

Em linhas gerais, uma sequência didática se desenvolve seguindo alguns passos,


como os que se seguem:
 Apresentação da situação: a tarefa, que os alunos irão realizar, é escrita de
maneira detalhada;
 Produção inicial: os alunos elaboram um primeiro texto acerca do gênero a ser
trabalhado. Este momento serve para avaliar o conhecimento dos alunos e
ajustar o que será trabalhado a seguir;
 Módulos: atividades ou exercícios que auxiliarão os alunos no domínio do
gênero e,
 Produção final: o aluno irá por em prática o que aprendeu e ela serve para que
o professor avalie o crescimento de seus alunos.
8

Não vamos nos ater a estes passos com mais afinco uma vez que não é o tema
deste trabalho. A intenção foi mostrar que a sequência didática pode ser um aliado na prática
docente, desde que o professor trabalhe com projetos que façam sentido a seu alunado.
Seguindo este raciocínio, a ideia agora é elencar algumas atividades que podem
ser trabalhadas em sala de aula a fim de priorizar os gêneros argumentativos, em especial, o
debate.
A mídia, em geral, principalmente em períodos eleitoreiros, usa dos debates com a
finalidade de mostrar á população as ideias e valores de cada candidato. Esta é a visão que a
imprensa quer passar, no entanto, sabemos que não é bem assim. Um exemplo claro disso foi
o debate entre os, então, presidenciáveis Lula e Collor, em 1989. A imprensa, como um todo,
reprisou o debate por inúmeros dias, mas editando-o, colocando as melhores partes do Collor
e enfraquecendo a figura do candidato petista. Infelizmente, este é o modelo de debate que
nossos alunos têm. Um debate belicoso, em que adversários não discutem apenas pontos
controversos, mas sim tentam ridicularizar o oponente de toda forma.
É preciso que nós, professores, apresentemos aos nossos alunos outra forma de
debater. Uma forma que valorize as opiniões de cada um, mesmo que contrárias, e que
fortaleçam seus argumentos e auxiliando-os na criação de tais argumentos.
Uma das potencialidades do trabalho com o debate em sala de aula é este: criar e
significar os argumentos de cada aluno. Por meio destes argumentos, os alunos conseguirão
expressar os valores e regras sociais que orientam o comportamento de cada um.
O objeto do debate é sempre uma questão social controversa, em que diferentes
opiniões são elencadas e todos, juntos, buscam por uma solução coletiva. Outra
potencialidade: a tentativa de encontrar uma solução faz com que os alunos escutem seus
oponentes, apreendam seus argumentos e ressignifiquem suas identidades e valores.
Cabe ao professor mostrar a seus alunos, por meio de um projeto com debate, que
nossas opiniões podem mudar e que nem sempre opiniões diferentes são contraditórias, basta
achar um meio termo para que se consiga vislumbrar a solução.
O trabalho com a argumentação é de suma importância na escola. Por meio dela,
nossos alunos conseguirão ser mais incisivos em seus pontos de vista, sem deixarem-se levar
por ideologias sem sentido, sendo passíveis de mudança de opinião. Este trabalho oral
auxiliará, também, na produção de textos escritos, uma vez que, ao preparar o debate, os
alunos irão se posicionar, ouvir outras opiniões e irão organizar suas ideias a fim de
convencerem o oponente.
9

Além de todo esse potencial elencado, o debate na escola serve, também, para
conscientizar criticamente nossos alunos. Através de temas sociais controversos, eles irão
pesquisar e tomar posições, sendo assim, é importante debater assuntos que façam nossos
alunos crescerem enquanto cidadãos, discussões sobre namoro na escola, por exemplo, não
trará ressignificação de identidade. Os professores encontram aparatos teóricos bastante
interessantes nos temas transversais propostos pelos PCNs.
É preciso debater criticamente na escola, orientar que os alunos podem mudar de
opinião, auxiliar no processo argumentativo de cada um e trabalhar a consciência das crianças
para não aceitarem/acreditarem em tudo que a mídia coloca no ar. Com um trabalho assim,
com certeza, os alunos filtrarão tudo o que recebem e serão mais firmas em seus valores e
crenças, não „caindo na conversa fiada‟ da mídia golpista.

6 CONCLUSÃO
O trabalho com gêneros textuais é de suma importância nas aulas de Língua
Materna. Para que o ensino de linguagem seja realmente efetivo se faz necessário trabalhar
com práticas situadas e que façam sentido aos alunos, que os faça crescer e que tenha
significado real ante ao contexto que vivem.
Pensar as potencialidades de trabalho com um gênero, no caso o debate, é elencar
possibilidades. No entanto, é impossível tratar a educação sem pautar nossas escolhas,
enquanto docentes, no que é significativo para os alunos e que ressignifique suas identidades.
Para isso, é importante saber que mudanças devem existir de acordo com cada
realidade, elencar possibilidades de trabalho que satisfaçam os anseios dos alunos e que os
faça crescer enquanto estudantes e cidadãos.
Alguns pesquisadores acreditam que o trabalho com a oralidade não deve ser
primordial na escola, uma vez que nossos alunos precisam ler e escrever com mais afinco e
que, com o trabalho com estas duas práticas, a oralidade será privilegiada, de alguma forma.
Não sigo esta linha de raciocínio.
Acredito ser possível trabalhar com estas três frentes, auxiliando nosso aluno na
leitura, trabalhando produção textual com afinco e planejando atividades orais que
privilegiem a argumentação.
A partir disso, é possível inferir que a prática docente pautada nestas linhas irá
gerar crescimento para os alunos e, com certeza, modificará os caminhos que levam a
educação.
10

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MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros Textuais: definição e textualidade. In: DIONÍSIO,


Angela Paiva; MACHADO, Anna Rachel; BEZERRA, Maria Auxiliadora (orgs), Gêneros
textuais e ensino. São Paulo: Parábola Editorial, 2010. P. 19-38

Receita de Bolo de Fubá, disponível em www.tempuradeangu.blogspot.com, acesso em 20


de setembro de 2011.

Receita de Pudim de Leite Condensado, disponível em www.pimentanoreino.com.br,


acesso em 20 de setembro de 2010.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

“ICH TRINKE GERADE WASSER” OU “ICH BIN AM WASSER TRINKEN”?:


ABORDAGEM SEMÂNTICO-FORMAL SOBRE O DILEMA DO PROGRESSIVO
(PROG) NO ALEMÃO.

Mágat Nágelo Junges1 (PPGLg/UFSC)

RESUMO

Neste artigo, aborda-se a construção da tão polêmica forma da perífrase gramatical


(doravante, PROG) do alemão, cujo foco está na preposição local “an” desta língua. Seus
objetivos são: 1º Apresentar a forma do progressivo (PROG) como um componente universal
nas línguas naturais; 2º Descrevê-la brevemente nas línguas germânicas ocidentais; 3º
Estabelecer-lhe uma semântica; 4º Analisar o papel e a contribuição dos NPs em sentenças
com o PROG; 5º Refletir sobre o ensino-aprendizado dessa forma gramatical no alemão como
língua-estrangeira no Brasil. Sua metodologia diz respeito a uma abordagem semântico-
formal para o fenômeno. As questões que norteiam este artigo são: Há de fato o PROG no
alemão e em seus dialetos? Qual é a sua semântica? Qual é a contribuição dos NPs que
ocorrem nele? Deve-se ainda ensiná-lo em aulas de alemão como língua estrangeira (LE) no
Brasil? Uma vez que o PROG é de fato empregado por falantes nativos do alemão,
desencadeia-se tal discussão.

Palavras-chave:
A tão polêmica forma gramatical progressiva no alemão (PROG). Alemão como língua
estrangeira no Brasil. Sua semântica. O papel e a contribuição dos NPs em sentenças com o
PROG.

ABSTRACT

This paper aims to bring up the building of the much discussed progressive grammatical form
(PROG) in German, whose focus lays on the German local preposition “an”. Its main goals
are: 1st Present the progressive form (PROG) as a universal component in natural languages;
2nd Briefly describe the PROG in the West-Germanic Languages; 3rd Establish a semantics for
the PROG; 4th Analyze the role and the contribution of NPs in sentences with the PROG; 5th
Reflect on the teaching of this grammatical form in German as a Foreign Language in Brazil.
Its methodology embraces a theoretical approach of the phenomenon according to Formal
Semantics. The questions that guide this paper are: Is there in fact PROG in German and its
dialects? What is its Semantics? What is the contribution of NPs? Shall we teach the PROG in
Foreign German classes in Brazil? Since the PROG is actually used by German native
speakers, it would be at least relevant to deal with it.

Keywords:
Progressive grammatical form in German (PROG). German as a Foreign Language in Brazil.
Its Semantics. The role and contribution of NPs in sentences with the PROG.

1
Titulação em Letras - Alemão (UFSC) e mestrando em Linguística (PPGLg/UFSC/CNPq); e-mail:
magat.nj@hotmail.com.
2

1 INTRODUÇÃO
Neste artigo, investiga-se a formação e a produção da perífrase verbal, o progressivo
(PROG), no alemão. Para tanto, descreve-se, primeiramente, a perífrase verbal como um
componente universal das línguas naturais, nos termos de princípios e parâmetros de
Chomsky (1968), e de acordo com a abordagem do progressivo, segundo autores como
Portner (2005), Emmel (2005), Van J. Pottelberge (2004) e Barrie & Spreng (2006, 2007). O
segundo passo consiste em tratar do PROG, partindo de exemplos das línguas germânicas
ocidentais modernas. O terceiro visa estabelecer uma semântica para o mesmo. O quarto trata
do papel e da análise dos NPs no PROG-alemão. E o último procura levantar a discussão da
sua inclusão no ensino e aprendizagem do alemão como língua estrangeira (LE) no Brasil.
Parte-se do princípio de que se o PROG é uma estrutura em fase de gramaticalização no
alemão, por que não abordá-la em sala de aula?
O artigo, portanto, está segmentado da seguinte maneira: 1. O progressivo PROG
como um componente universal nas línguas naturais; 2. O PROG nas línguas germânicas
ocidentais modernas; 3. Estabelecendo uma semântica para o PROG no alemão; 4. Análise do
papel e da contribuição dos NPS no PROG-alemão; 5. O PROG-alemão deve ser ensinado nas
aulas de alemão como LE no Brasil?

2 O PROGRESSIVO (PROG) COMO UM COMPONENTE UNIVERSAL NAS


LÍNGUAS NATURAIS
Nós, falantes nativos do português brasileiro (PB), sabemos seguramente como
expressar a progressividade na nossa língua. Para isso, utilizamo-nos do verbo auxiliar “estar”
(verbo que carrega a informação gramatical conjugado na primeira pessoa do singular “eu”)
+ “um verbo” que carrega a informação lexical (por exemplo: “comer”), marcado
morfologicamente com a terminação do gerúndio -ndo + objetivo direto, por exemplo, “a
maçã”). Assim temos: “Estou comendo a maçã”. Já, no inglês, utiliza-se a forma –ing,
expressa estruturalmente, segundo Emmel (2005, p. 16), para marcar a progressividade.
Portanto, o que se concebe exatamente por progressividade ou por progressivo? De acordo
com Portner (2005, p. 151; tradução minha): “O ponto mais básico para tratar do significado
do progressivo é que ele indica que um evento está em curso no momento indicado pelo
tempo.” Para o autor (ib.), “[...] sentenças progressivas descrevem estados.”
Realizada a definição do progressivo, percebe-se que tanto o PB quanto o inglês
possuem os seus próprios recursos linguísticos para empregarem o progressivo, isto é, os
princípios linguísticos subjacentes a ambas as línguas são os mesmos, são universais, segundo
3

Chomsky (1968), porém, os parâmetros, as marcações morfológicas e estruturais são


particulares a cada uma delas.
Por outro lado, não se observa, a priori, qualquer inadequação do progressivo
empregado no PB. Por exemplo, com verbos estativos como “amar”, que indica uma relação
entre dois ou mais indivíduos (ex.: “Estou amando novamente”), e “saber” (ex.: “Estou
sabendo a matéria.”), servem adequadamente para expressar o progressivo. Assim como
verbos transitivos como “comprar” ou “chamar” (exs: “Márcio está comprando uma casa.” e
“Flávia está chamando sua mãe.”), utilizamo-lo sem problemas. Entretanto, quando tratamos
do PROG no alemão ou em dialetos e línguas derivadas do alemão, “quebramos a cabeça”,
como diz o jargão.
Passamos, portanto, para o desenvolvimento do PROG nas línguas germânicas
ocidentais modernas, e, em seguida, no alemão.

3 O (PROG) NAS LÍNGUAS GERMÂNICAS OCIDENTAIS MODERNAS


As línguas germânicas ocidentais modernas, como o holandês, o baixo alemão, o
frísio2, e as línguas-filhas do alemão, como o Afrikaans, falado na África do Sul, e o alemão
da Pensilvânia, falado nos EUA, possuem em comum uma construção progressiva
preposicional. Nessa construção, segundo Pottelberge (2004, p. 02; tradução minha):

A respectiva forma do verbo germânico para sein [ser/estar, em alemão] funciona


como verbo conjugado numa relação com um sintagma preposicionado, que é
formado por uma preposição, cuja estrutura é etimologicamente idêntica e remete à
preposição germânica *ana. Esse sintagma preposicionado consiste por sua vez de
um artigo definido e de um infinitivo substantivado. (...) Funcionalmente, a
formação nessas seis línguas também é, em princípio, a mesma: Essas formações são
[assim] sistemáticas a cada infinitivo (com mais ou menos restrições semânticas, e,
às vezes, restrições sintáticas também). (Grifos meus)

Exemplos de sentenças progressivas nessas línguas com o verbo transitivo direto


“ler” são apresentadas pelo autor (ib.; tradução minha):

(1) Alemão padrão: Ich bin am Lesen. (Grifo meu)


(2) Baixo alemão: De Vögel was an’t Singen, as of he’t betahlt kreeg.
(3) Holandês: Ik ben aan het lezen. (Grifo meu)
(4) Frísio ocidental: Der is ien oan it sjongen.
(5) Afrikaans: Ek is aan die lees. (Grifo meu)

2
No texto do autor, somente o frísio ocidental é abordado.
4

(6) Alemão da Pensilvânia: Ich bin am lese. (Grifo meu)

De acordo com as sentenças acima, o alemão padrão e o alemão da Pensilvânia se


utilizam da mesma estrutura morfológica e sintática, composta pelo verbo finito (sein) +
preposição locativa (an) + artigo definido cliticizado = (am) + V infinitivo principal, que
carrega a informação lexical, Lesen/lesen, 1ª p.sing3. Em suma: [Vfin. sein + am + Vlex.

Lesen/lesen]. Nas demais línguas, observa-se, portanto, estruturas semelhantes as dessas duas.
Além disso, o autor (ib., p. 04; tradução minha) alerta para o fato de que:

(...) a criação e o desenvolvimento da construção progressiva remetem a um período


relativamente tardio, no qual o alemão e o holandês, embora sejam como de costume
línguas intimamente relacionadas, eram, no entanto, línguas independentes. Por este
motivo, essas construções progressivas preposicionadas representam uma nova
característica dessas línguas, ou seja, um traço adquirido, que se desenvolveu depois
da dissolução da unidade [germânica]. (Acréscimo meu)

Essa construção, para ele (ib., p. 04 e 06; tradução minha), é parte de um paradigma
de construções preposicionadas decorrentes de um desenvolvimento paralelo por parte dessas
línguas. Elas pertencem a classe das semelhanças secundárias das línguas germânicas
ocidentais, que englobam o Perfekt (o tempo passado composto no alemão padrão), tanto nas
línguas germânicas como nas românicas, além da ditongação das vogais  e , por
exemplo.
Abordada brevemente a criação do PROG nas línguas apresentadas, passa-se, no
próximo capítulo, para o estabelecimento de sua semântica.

4 ESTABELECENDO UMA SEMÂNTICA PARA O (PROG)


O tratamento da perífrase verbal progressiva no alemão costuma causar inquietações
linguísticas, assim como discussões a seu respeito. Neste capítulo, tentar-se-á estabelecer uma
semântica para o fenômeno.
Como apresentado, as seis línguas germânicas ocidentais modernas utilizam em
comum uma construção progressiva preposicionada formada por um PP, que originalmente
possui sentido locativo. Segundo Pottelberge (2004, p. 11; tradução minha): “Aos típicos

3 Estrutura sintática baseada em Emmel (2005, p. 19) para o bei-PROG utilizado em Pomerode (SC): “Uma
análise preliminar superficial, abstraindo a recorrência do verbo sein (=ser), seria a de que se trata de um PP em
que a preposição P (núcleo) governa um NP de forma [NP dem [N[V]]], onde o núcleo lexical do NP é um verbo
no infinitivo que foi convertido em um nome neutro (dativo) por processo morfológico. Modelo de estrutura
recorrente apresentado pela autora: [sein: verbo finito “ser”: carrega a informação gramatical] + [bei + dem =
beim: preposição dativa e artigo definido neutro cliticizado] + [V_en: infinitivo verbo principal que carrega a
informação lexical].”
5

modelos de desenvolvimento também pertencem categorias temporais que surgem


predominantemente de categorias espaciais.” Além disso, “a pesquisa tipológica aceita
especialmente que uma construção com um significado espacial ou locativo cria o ponto de
partida para a gramaticalização do aspecto progressivo.” (Ib.)
Emmel (2005, p. 121), na sua tese de Doutorado, apresenta os três tipos de sintagmas
verbais que servem para a expressão da progressividade e que se valem de um cópula como
auxiliar, nos quais o alemão se enquadra no grupo II: preposição + artigo + infinitivo.
Juntamente à preposição outrora locativa [an], emprega-se o artigo definido, que
representa o DP declinado no caso dativo singular masculino ou neutro, e que assim formam
uma cliticização gramatical. De acordo com Pottelberge (Ib., p. 189; tradução minha): “A
fusão da preposição [an] + artigo definido [dem] está se transformando em uma partícula
gramatical das mais expressivas.” Isto é, ela “ganha vida” ao ser interpretada como uma
forma gramatical própria na língua, que já se encontra em pleno processo de gramaticalização
avançada, e que é empregada em todo o território alemão. Além disso, Zifonun et al. (1997, p.
1880 apud ib., p. 192; tradução minha) denominam o elemento [am] como uma partícula
progressiva – um am-Phrase.
Além da formação do PP, emprega-se um verbo que carrega a informação lexical da
sentença, e que é precedido pelo verbo finito e de existência [sein] – ser/estar. Assim, uma
sentença trivial com essa estrutura gramatical do PROG no alemão padrão, por exemplo,
seria: Ich bin am Trinken. (BARRIE & SPRENG, 2007, p. 02) Vale lembrar que construções
gramaticais como essa são encaradas a partir de uma perspectiva interna de aspecto, que
descreve o desenvolvimento de um evento em curso.
Parte-se, neste momento, para a descrição e a análise dos NPs em construções
progressivas no alemão.

5 ANÁLISE DO PAPEL E DA CONTRIBUIÇÃO DOS NPs NO PROG-ALEMÃO


O desenvolvimento linguístico paralelo entre o holandês e o alemão contribuiu para a
criação e para o desenvolvimento do PROG4 em ambas as línguas. De acordo com Pottelberge
(Ib., p. 04; tradução minha): “As construções progressivas preposicionadas representam uma
nova característica das línguas germânicas ocidentais, isto é, uma característica adquirida, que

4 Partindo do princípio de que o PROG se tornou uma nova categoria verbal e aspectual no alemão, na
Gramática alemã uden, na sua 2 ed, de 19 , ele é tratado como uma forma colonial, que também foi abordada
da mesma forma por outros autores como J. Erben (19 2, p. 0 ), W. Eichler e K- . nting (19 8, p. 2 ).
Porém, este cenário foi mudando, até que a ed da mesma Gramática, de 1988, passou a tratá-lo como uma
possibilidade de ser empregado na fala. Assim, K. Ebert, O Krause e A Reimann afirmam que o PROG é
aceitável em todo o território alemão. (POTTELBERGE, 2004, p. 183; tradução minha)
6

se desenvolveu logo depois da formação da unidade (germânica).” Neste sentido, em


consonância com a literatura linguística germânica, Brons-Albert (1984 apud
POTTELBERGE, 2004, p. 186) parece ter sido o primeiro que percebeu que o PROG-alemão
não aparece somente na região alemã da Renânia (Rheinland), mas como também na língua
padrão. No entanto, além de o PROG não ser bem aceito pelas gramáticas normativas alemãs,
que o menosprezam e o encaram como um meio assistemático e de pouca importância para
atribuir a Aktionsart (SOMMERFELDT & STARKE, 1988, p. 55 apud ib., p. 184; tradução
minha), ele também não permite o emprego de objetos, segundo G.O (1960 [1922, p. 380
apud ib., p. 184; tradução minha), o que pode ser posto seguramente em cheque, pois é
comum se observar construções transitivas e incorporações com o PROG-alemão na
literatura.5 Se tal construção pode ser de fato gramatical, necessita-se, portanto, de uma
abordagem para a mesma.
A abordagem atribuída ao fenômeno, segundo Barrie & Spreng (2007; tradução
minha), apresenta características e restrições sintático-semânticas. De acordo com eles (Ib.,
2006, p. 01 tradução minha): “O alemão exibe uma construção que compartilha muitas
características com incorporação de outras línguas.” E, tratando-se de incorporação nominal,
Waggelaar (1986 apud ib.; tradução minha) afirma que:

A incorporação nominal é frequentemente considerada um traço exótico,


principalmente documentado nas línguas indígenas americanas. O mesmo processo,
entretanto, ocorre no holandês. A mesma construção ocorre no frísio, porém, até
onde eu sei, não em outras línguas germânicas. O holandês e o frísio podem ser
exceções, a respeito disso, na Europa.

A partir disso, o autor afirma que apenas nessas línguas é que há incorporação. Por
outro lado, talvez ele aceite que haja o PROG, também. Exemplos de Pottelberge (2004),
apresentados no cap. 2 (p. 04), mostram que além do alemão, mais outras cinco línguas
germânicas ocidentais modernas o possuem. Sendo assim, introduz-se um exemplo do PROG-
alemão apresentado por Barrie & Spreng (2007, p. 02), que aspectualmente é similar a
estrutura progressiva do inglês. De acordo com os autores (Ib.; tradução minha), tal estrutura
possui o verbo ser/estar [sein], partícula [am] e a forma infinitiva do verbo principal: “Ich bin
am trinken.” (“Estou bebendo.”) e “Ich bin [am Wasser]6 trinken.” (“Estou bebendo água.”).
O primeiro exemplo apresenta a estrutura sem incorporação, já o segundo com a

5
Na próxima página, são apresentados exemplos.
6 “Krause (2002 apud BARRIE & SPRENG, 2006, p. 01; tradução minha) mostra que os complementos em
construções progressivas com verbos transitivos são obrigatoriamente incorporados.”
7

incorporação. Contudo, segundo os autores, citando a Gramática alemã Duden (200 ): “É


normativamente assumido pelas gramáticas tradicionais que o alemão não possui nenhuma
forma progressiva gramaticalizada.”
Divergências à parte, novamente apoiando-se em Pottelberge (2004, p. 205; tradução
minha e grifos meus), sintaticamente o PROG-alemão só pode ser absolutamente empregado
com verbos intransitivos. Complementos, assim como objetos diretos (acusativos) e PPs estão
excluídos [do seu emprego]. Normativamente, não se pode dizer em alemão, por exemplo:
*“Ich bin [ein Haus] am Bauen.” ou *“Sie ist [nach Hause] am Gehen.”; Especialmente,
PPs com uma preposição lexical fixa não aparecem. Exemplo: *“Sie sind [über etw]. am
Nachdenken.” Um emprego absoluto seu também proíbe sentenças infinitivas com ou sem a
preposição “zu”. Exemplo: *“Als ich ankam, war er am Drohen, ihn auf Schadenersatz zu
verklagen.”
Mas, semanticamente, só podem ser empregadas construções que expressam
progresso temporal (“Verbalhandlung”, em alemão). Sentenças como *“Er ist am Bleiben.”
e *“In diesem See sind jährlich mehrere Kinder am Ertrinken.” não são permitidas em
alemão, porque não se sabe em que sentido é que o verbo “bleiben” (“ficar/permanecer”) e
parte da sentença “jährlich in diesem See ertrinken” (respectivamente, “anualmente afogam-
se neste mar”) são compreendidas no decorrer do progressivo, ao contrário de um
“ficar/permanecer” (“bleiben”) durativo ou geral.
Retornando ao primeiro exemplo apresentado, se acrescentado um PP como [“in der
Küche”], “na cozinha”, a sua estrutura, a sentença se torna *agramatical. (BARRIE &
SPRENG, 2007, p. 03; tradução minha). Portanto, não se pode/deve dizer em alemão 7: “*Ich
bin am Wasser [in der Küche] trinken.” (“Estou bebendo água na cozinha.”) Outra construção
que também não é permitida em alemão, de acordo com os autores (Ib., 2006, p. 02), é com
verbos dativos, por exemplo, [“helfen”], “ajudar”. Portanto, a seguinte sentença também não
pode/deve ser produzida em alemão: “*Ich bin am [[kleinen Kindern] helfen].” (“Estou
ajudando as criancinhas?/criancinhas.”)
Além disso, o PROG-alemão, de acordo com os mesmos autores (Ib., 2006; tradução
minha), possui tais características: a) “Se o nome incorporado é massivo, as formas no
singular são aceitáveis. Já se é contável, são marginais.” A sentença, “?Ich bin am [Apfel]
essen.”, seria gramatical em alemão? Eis a questão!; b) O nome incorporado não pode ser
definido. Exemplo: *“Ich bin am [[das] Wasser] trinken.”; c) Somente o caso nominativo

7 “O alemão é uma língua de SOV, por isso, não fica imediatamente claro se o nome é que se incorporou ao
verbo ou se é o objeto do verbo que fica simplesmente à sua esquerda.” (Ib., p. 02-03; tradução minha).
8

aparece no nome com adjetivos. O caso acusativo estrutural e o dativo inerente não são
possíveis. Exemplo: *“Ich bin am schwarz-[en] Pffeffer kaufen.” (“Estou comprando pimenta
escura.”) Porém, “Ich bin am schwarz-er Pffeffer kaufen.” é uma sentença gramatical em
alemão.
A apresentação de todos esses exemplos serve como reflexão para o artigo proposto.
Nota-se que eles são citados e apontados pelos autores como gramaticais ou agramaticais, no
entanto, faltar uma explicação teórica consistente que aborda o porquê de eles não poderem
ser produzidos na língua. Pode-se facilmente se indagar por que a introdução de um PP entre a
partícula [am] e o verbo lexical não é permitida em alemão. Essa restrição não está clara, a
priori. Isso também vale para o nome-acusativo incorporado à estrutura verbal. Por que não se
pode dizer *“Ich bin am schwarz-[en] Pffeffer kaufen.”, mas sim“Ich bin am schwarz-er
Pffeffer kaufen.”? Que motivações e parâmetros sintático-semânticos existem para a sentença-
acusativa não poder ser proferida em alemão? Esta forma, além do mais, é aceitável, ou seja, é
gramatical em todo território alemão?
Por fim, se transferirmos esses exemplos para um contexto de alemão como LE no
Brasil, indaga-se, também, como se pode apresentar, explicar e aplicar este mecanismo
gramatical em sala de aula. Como fazer isso? Os exemplos citados são somente alguns de
todos os outros existentes na literatura alemã sobre o tema. Como aqui se trata de um breve
artigo, não se obterá a resposta para as perguntas acima. No entanto, este pode servir como
motivação para que futuras pesquisas tragam-no à toa e discutam-no francamente, tanto sob
uma perspectiva sintática quanto semântica formal, e por que não pragmática? Há contextos
discursivos (específicos) em que o PROG-alemão pode ou não pode ser empregado?

6 O PROG-ALEMÃO DEVE SER ENSINADO NAS AULAS DE ALEMÃO COMO


LÍNGUA ESTRANGEIRA (LE) NO BRASIL?
A partir de toda a explanação realizada sobre o PROG-alemão, parte-se,
consequentemente, para uma discussão semântico-didática que precisa ser levantada: O
progressivo deve ser ensinado nas aulas de alemão como língua estrangeira (LE) no Brasil?
Leva-se em conta que no Brasil há mais de um dialeto do alemão falado por
descendentes de alemães, um bom exemplo disso é o caso do bei-PROG empregado no
alemão padrão de Pomerode, em Santa Catarina/Brasil, apresentado por Emmel (2005). Além
disso, o fato de o alemão se utilizar da perífrase verbal para marcar progressividade, assim
como o frísio e o holandês, por exemplo, parte-se do princípio de que os seus falantes, por
alguma razão, necessitam desse recurso linguístico para expressarem um evento que esteja em
9

curso no exato momento de fala, o que parece que não ser em vão, embora o alemão possua o
[gerade] para este fim. Por isso, o conhecimento linguístico de uma classe, traço, morfema,
etc, de uma dada língua natural não pode ser “deixado por baixo dos panos”, permitindo-se a
expressão, como se aparentemente fosse “feio” utilizá-lo (-a), ainda mais quando se trata de
um contexto de língua estrangeira. Não se advoga aqui de beleza ou elegância, mas sim de um
emprego gramatical vivo na língua. Deixamos a passarela para os estilistas, pois são eles
quem entendem de moda.
Portanto, essa questão reforça a tese de que o PROG-alemão é empregado no alemão
padrão como também em seus dialetos, e que deveria ser reconhecido, aplicado e ensinado
pelos professores de alemão como LE no Brasil. Para isso, espera-se que eles se interessem
pelo tema e que assim possam passá-lo adiante, fazendo com que o seu estudante brasileiro de
alemão tenha conhecimento deste rico mecanismo semântico-sintático, que pode ser utilizado
por ele/ela, quando necessário.

7 REFERÊNCIAS

BARRIE & SPRENG. Noun incorporation and the progressive in German. Article in Press.
In: LINGUA, 1407, 15 p. Disponível em: <www.sciencedirect.com>. Acesso em: 2008.

______. Noun incorporation in German. Disponível em:


<http://homes.chass.utoronto.ca/~bspreng/NIK_handout.pdf>. Acesso em: 23 de fevereiro de
2001.

EMMEL, Ina. "Die kann nun nich, die is’ beim treppenputzen!˝ O progressivo no alemão de
Pomerode - SC. 2005. 270 f. Tese (Doutorado) - Curso de Pós-graduação em Linguística,
Departamento de Pós-Graduação em Linguística (PGL), UFSC, Florianópolis, 2005.

PORTNER, Paul H. What is meaning? Fundamentals of Formal Semantics. Oxford:


Blackwell Publishing, 2005.

POTTELBERGE, Jeroen Van. Der am-Progressiv: Struktur und parallelle Entwicklung in


den kontinentalwestgermanischen Sprachen. Tübingen: Gunter Narr Verlag, 2004.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

INCLUSÃO LINGUÍSTICA DE SURDOS NO ENSINO SUPERIOR


ATRAVÉS DA EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

Vanessa de Oliveira Dagostim Pires (PPGLA/ UNISINOS)1

RESUMO

O presente artigo investiga o ensino de Língua Portuguesa para surdos através da educação a
distância na modalidade on-line, considerando as pesquisas relacionadas à inclusão linguística
do aluno surdo no ensino superior (Nascimento, 2008; Moura e Harrison, 2010). Além disso,
serão discutidas as poucas políticas de inclusão existentes neste sentido, e o fato do grupo de
alunos surdos e deficientes auditivos incluídos na educação superior em nosso país
representar 31% do total de alunos portadores de alguma necessidade especial nesta
modalidade de ensino (Brasil, 2009). Propõe-se um curso de Língua Portuguesa (LP) para
surdos universitários on-line, cuja primeira língua seja a língua de sinais (LS), através da
plataforma Moodle, que será constituído de um conjunto de oficinas que oferecerão subsídios
para o aluno conhecer e ser capaz de produzir o gênero Resumo Acadêmico (Machado,
Lousada e Abreu-Tardelli, 2004). O objetivo central deste estudo, que está em
desenvolvimento, será entender como os sujeitos surdos podem aperfeiçoar seus
conhecimentos sobre língua portuguesa, através da observação da co-construção de
aprendizagem de língua entre surdos em um ambiente virtual de aprendizagem (Donato, 1994;
Dagostim, 2009) e da análise da interação entre os aprendizes, através das ferramentas
disponibilizadas na plataforma do ambiente virtual de aprendizagem - chats educacionais,
fóruns, diários de bordo e atividades - que apresentarem evidências de construção de
aprendizagem em LP. Através destas análises, pretende-se compreender como se dá a
construção do conhecimento de gêneros escritos em Língua Portuguesa por alunos surdos,
usuários de LS.

Palavras-chave:
Educação Inclusiva. Ensino de Língua Portuguesa para Surdos. Surdos.

ABSTRACT

This project investigates the Portuguese teaching language for deaf people through distance
education in online mode, considering the linguistics research related to the inclusion of deaf
students in college education (Nascimento, 2008; Moura and Harrison, 2010). Besides it will
be disscuss the few policies of nclusion in this sense, and the fact that the group of deaf and
hearing impaired students in college education included in our country represent 31% of all
students with any special needs in this type of education (Brasil, 2009). It is proposed an e-
learning Portuguese language course, that is being developed with college deaf students,
whose first language is Sign Language (LS), through Moodle platform. It will consist in a set
of workshops that offer subsidies to the student know and be able to produce the Academic
Summary genre (Machado, Lousada, Abreu and Tardelli, 2004). The goal of this study is to
understand how the deaf people can improve their knowledge of Portuguese, by observing the
co-construction of learning a language among the deaf in the virtual learning environment
(Donato, 1994; Dagostim, 2009) and the analysis of the interaction between learners, and the
tools available through the virtual platform - educational chats, forums, diaries and activities -
that show evidences of learning in building LP. Through this analysis, it is intended to

1
Doutoranda em Linguística Aplicada (UNISINOS); Mestre em Linguística Aplicada (UNISINOS). Graduada
em Letras (UFRGS); e-mail: vanessadagostim@gmail.com.
2

comprehend how the knowledge of the construction of written genres in Portuguese for deaf
students , users of LS, occurs.

Keywords:
Inclusive education. Portuguese teaching language for deaf people. Deaf people.

1 INTRODUÇÃO
O objetivo deste artigo é entender como estão ocorrendo as políticas e práticas de
educação linguística de surdos no ensino superior, considerando bibliografia especializada e
questionários de alunos surdos incluídos em sistemas de ensino superior em diversas regiões
do país. Para tanto, este artigo será dividido em cinco partes: primeiramente apresentaremos o
conceitos de educação línguística; na sequência, conceituaremos a educação inclusiva e como
ocorre a inclusão de alunos surdos no ensino superior de acordo com os conceitos já
apresentados. Depois será realizada a análise dos dados e, finalmente, a conclusão.
Para um melhor entendimento deste trabalho, cabe esclarecer alguns conceitos. O
termo “surdo” se refere à indivíduos que pertencem à comunidade surda, participam de
práticas culturais desta comunidade e, principalmente, são usuários de línguas de sinais. O
termo “Deficiente Auditivo” se refere àqueles sujeitos que, possuindo uma diminuição
auditiva, fazem uso de recursos como oralização, tratamentos fonoarticulatórios, aparelhos
auditivos, implantes cocleares, entre outros, e não estão inseridos na comunidade surda.
Compreende-se que a questão de inclusão do aluno surdo no ensino superior trata-se, antes de
mais nada, de uma tarefa da educação linguística, remontando à Bagno e Rangel (2005)
quando a definem:
Entendemos por educação linguística o conjunto de fatores socioculturais que,
durante toda a existência de um indivíduo, lhe possibilitam adquirir, desenvolver e
ampliar conhecimento de/sobre a linguagem de um modo mais geral e sobre todos
os demais sistemas semióticos […] Inclui-se também na educação linguística o
aprendizado das normas de comportamento linguístico que regem a vida dos
diversos grupos sociais, cada vez mais amplos e variados, em que o indivíduo vai ser
chamado a se inserir (BAGNO; RANGEL, 2005, p. 63).

A educação linguística tem, portanto, como uma de suas atribuições, o aprendizado de normas
de comportamento linguístico de diferentes grupos ao qual o indivíduo vai ser chamado a se
inserir, ou se incluir, ao longo de sua vida. Considerando que a questão da diferença surda é
uma diferença predominantemente linguística e cultural do que orgânica, as instituições
devem prover meios de acesso e educação linguística para que estes sujeitos possam transitar
em todos os grupos sociais que almejarem. O reconhecimento legal da Libras uma língua
oficial do país reforça a ideia de um país multilíngue, cujos falantes devem ter seus direitos
reconhecidos.
3

A primeira mudança no sistema de ensino superior, a partir da Lei da Acessibilidade nº 10098


de 19/12/2000, é o direito dos alunos surdos contarem com um intérprete de Libras em sala de
aula, em todas as disciplinas. Em muitas instituições, acredita-se que este profissional acabará
com todas as dificuldades dos alunos surdos no ensino, e que apenas a sua presença basta.
Harrison e Nakasato (2010) citam a pesquisa de Lacerda (2002), que relata a ilusão que
muitas escolas têm de que a tradução da aula para a Libras eliminaria o não entendimento da
língua falada e igualaria os alunos surdos aos alunos ouvintes. Os professores destas
instituições, por desconsiderarem a condição de seus alunos surdos, esperam que, com a
tradução para a Libras, todos os conceitos e teorias que são facilmente compreendidos por
seus alunos ouvintes também o sejam pelos alunos surdos, que não recebem a mesma
quantidade e qualidade de informações no seu cotidiano.
Outra preocupação encontrada na inclusão dos alunos surdos ocorre com o ensino de
Língua Portuguesa para estes indivíduos, considerada, em sua modalidade escrita, como L2,
ou Língua Adicional, termo que parece-se mais coerente com esta modalidade de ensino, visto
que existem diferentes contextos de aquisição linguística na realidade dos surdos.
Embora seja “condição dada no ensino superior, que o processo de letramento esteja completo
quando os alunos entram no ensino médio” (HARRISON; NAKASATO, 2010, p. 65), devido
a trajetória de dificuldades de acesso à educação especializada e ao desenvolvimento
linguístico pleno que acompanham a vida escolar da maioria dos alunos surdos, estes chegam
à educação universitária com enormes dificuldades de leitura e escrita em língua portuguesa.
Sendo assim, estes alunos têm o direito de receber um ensino de língua portuguesa
diferenciado, que leve em conta as suas diferenças linguísticas:

Art. 13. O ensino da modalidade escrita da Língua Portuguesa, como segunda


língua para pessoas surdas, deve ser incluído como disciplina curricular nos cursos
de formação de professores para a educação infantil e para os anos iniciais do ensino
fundamental, de nível médio e superior2, bem como nos cursos de licenciatura em
Letras com habilitação em Língua Portuguesa.
Parágrafo único. O tema sobre a modalidade escrita da língua portuguesa para
surdos deve ser incluído como conteúdo nos cursos de Fonoaudiologia. (BRASIL,
2005 - artigo 13 do Decreto 5.626 de 2005).

Assim, o ensino de LP/S (Língua Portuguesa para Surdos) deve ser objeto de
pesquisa e ensino em cursos de licenciatura de Letras e de Pedagogia, com o objetivo de se
compreender como ocorre o processo de aprendizagem da LP, alfabetização e letramento dos
surdos. Apesar desta recomendação, os currículos de ensino superior ainda não estão

2
Grifo da autora.
4

adequados a esta recomendação. O referido decreto também recomenda que seja oferecido
professores bilíngues de Libras e Língua Portuguesa a instituições de educação infantil,
ensino fundamental, médio e superior (conforme artigo 14), oportunizando que os surdos
tenham acesso a essas duas línguas durante toda a sua vida escolar.
Em relação à condição linguística dos alunos surdos incluídos no sistema de ensino
superior, Nascimento (2008) realizou um estudo a respeito dos aspectos da organização de
textos produzidos por universitários surdos, analisando um corpus de quinze textos,
produzidos entre os anos de 2005 e 2006 por indivíduos surdos, universitários, residentes das
cidades de Recife e Olinda (PE). Dos quinze participantes da pesquisa, um não é oralizado e
usuário de Libras, e um é somente oralizado, sem fazer uso da Libras; os outros treze
participantes são todos oralizados e usuários de Libras, estando, portanto, na condição de
bilíngues. Os textos foram produzidos a partir de um pedido de avaliação a respeito da
satisfação da assistência recebida por parte da instituição de ensino superior, em forma de
depoimento avaliativo (semelhante uma carta-resposta), direcionado ao coordenador do curso
no qual estudavam. Em relação a esses aspectos verbais observados no corpus analisado,
foram encontradas várias ocorrências específicas de textos produzidos por surdos. Uma delas
é a omissão de verbos e de conectores (em maior número), como em: “Intérprete muito ajuda
para surdos tambem # preocupado” - provável omissão do verbo estar (NASCIMENTO,
2008). Também foram observadas sequências de verbos que fogem aos padrões sintáticos do
português e verbos com status de nomes e inadequações de flexões verbais, em 14 textos
analisados. O único texto em que não ocorreu este tipo de problema também não forneceu
subsídio suficiente para ser analisado, visto se tratar de um texto mais sucinto e menos linear,
em que o autor lançou mão de esquemas e tópicos. Os enunciados em que a ocorrência dessas
inadequações foi menor foram aqueles em que o sujeito era a primeira pessoa do singular.
Algumas inadequações são comuns também em textos de ouvintes, como, por exemplo, na
sentença “A comunicação com os funcionários foram o suficiente para mim”, em que a o
verbo “ser” concordou com “funcionários”, ao invés de “a comunicação”, que era o sujeito da
frase. Também foi encontrada uma inadequação quanto ao modo verbal, que ocorre
comumente em produções de ouvintes, em “por isso eu tenho esperança que o diretor resolve
para colocar mais cursos”, em que o verbo resolver é conjugado no presente do indicativo,
quando o modo gramaticalmente correto seria presente do subjuntivo (resolva).

A pesquisadora também encontrou no corpus a grafia atípica de alguns vocábulos.


Tal ocorrência não é exclusiva no uso de segmentos verbais, mas recorrentes na produção
5

escrita de surdos usuários de Língua de Sinais (LS) em todo o seu processo de letramento.
Nos textos do corpus foram encontrados enunciados como “estam bom”, “quermos um sala”,
“agradito o Direito”, por exemplo. A grafia atípica de alguns vocábulos não é justificada pela
interferência da Libras, mas sim ao desconhecimento do sistema fonológico do português,
devido a condição inerente do sujeito surdo. Em sua pesquisa sobre a leitura dos surdos,
Botelho (2002) narra algumas práticas que coincidem com as ocorrências encontradas no
corpus:
Palavras graficamente semelhantes eram confundidas, como, por exemplo, “vão” e
“não”, “lago” e “lado”, e a frase “vão até o lago” transformava-se em “não até o
lado”. Mesmo quando a frase não fazia o menor sentido, não havia estranhamento. E
nos raros momentos em que havia alguma perplexidade, ignoravam-na e seguiam
adiante. Talvez intuíssem a impossibilidade de construir o sentido, mas não sabiam
como fazer diferente daquela forma que convertia-se em não-leitura. Esse conjunto
de circunstâncias tornava impossível a construção do sentido, e quando lhes
perguntava o que podiam me explicar sem recorrer ao texto, não sabiam dizer,
porque não haviam entendido (BOTELHO, 2002, p.143).

As dificuldades enfrentadas pelos surdos ao lerem e produzirem textos escritos em


LP, como estas demonstradas por Nascimento (2008), resultantes de processos educativos
deficitários e que não garantiram uma inclusão real e efetiva, são grandes barreiras para o
ingresso e a permanência destes no ensino superior.

2 EDUCAÇÃO INCLUSIVA
A educação inclusiva, como conhecemos atualmente, nasceu oficialmente em 1994,
na Declaração de Salamanca, que a conceitua da seguinte maneira: “educação Inclusiva é uma
abordagem desenvolvimental que procura responder às necessidades de aprendizagem de
todas as crianças, jovens e adultos com um foco específico naqueles que são vulneráveis à
marginalização e exclusão” (Unesco, 1994). Como marginalização entende-se todo risco que
algumas crianças e jovens correm de ser colocados à margem das oportunidades educacionais,
seja por pertencerem a classes econômicas desfavorecidas ou por possuírem alguma
necessidade especial educacional, por exemplo.
No âmbito nacional, a resposta à Declaração de Salamanca veio rapidamente, através
da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de 1996, que recomendava que todas as
crianças deveriam estar em escolas regulares, preferencialmente. Tal legislação trouxe
grandes mudanças nos sistemas escolares, com um grande número de matrículas nas escolas
públicas, e a criação de um cenário educacional desafiador, como nunca se havia visto antes.
Como consequência do aumento do número de alunos incluídos na educação básica, a
educação superior também começou a sofrer alterações. Algumas destas mudanças estão
6

sendo acompanhadas pela legislação. Em 2005, uma série de leis foram regulamentadas
através do decreto 5626, como a inserção do ensino da Libras como disciplina curricular
obrigatória em cursos de licenciatura e fonoaudiologia, a princípio. As instituições têm
encontrado diversas maneiras para ofertar esta disciplina, pois o decreto não determina o
número de horas ou créditos que a disciplina deva ter, que profissional deve ensiná-la, quais
conteúdos e pré-requisitos são necessários para esta disciplina. Conforme Moura e Harrison
(2010, p. 336)),
A introdução da Libras como disciplina curricular na Universidade traz mais do que
apenas o ensino de uma língua, pois há a necessidade de que todos os envolvidos
nessa aprendizagem compreendam a especificidade do Surdo, não apenas com
relação à sua língua, mas também com relação à sua cultura e forma de estar na
sociedade. Apenas a compreensão desses aspectos possibilitará uma atuação que
contemple a singularidade dos sujeitos Surdo.

Outro aspecto que trouxe mudanças no ensino superior foi a oferta de condições de
acessibilidade para todos, independentemente de sua necessidade especial de educação; no
caso dos surdos, a necessidade de oferecimento de intérprete de Libras em sala de aula e
acessibilidade em todos os setores da vida acadêmica (o aluno precisa ter acesso à biblioteca,
laboratórios de informática, monitorias, setores de atendimento ao acadêmico, secretarias dos
cursos, coordenações, centros de estudantes, entre outros).

3 A INCLUSÃO DOS SURDOS NO ENSINO SUPERIOR


A partir do Censo da Educação Superior do ano de 2009, desenvolvido pelo Inep 3, as
universidades passaram a incluir informações mais individualizadas sobre seus alunos,
incluindo, então, dados sobre as necessidades especiais educativas deles, no Censo
denominadas de “deficiência”, como cegueira, surdez, deficiência física, deficiência múltipla,
baixa visão, deficiência auditiva4, surdocegueira e deficiência intelectual/ mental. Os alunos
surdos matriculados no ensino superior (reunindo neste grupo, os classificados como
portadores de deficiência auditiva e os surdos)5 representam o maior grupo inclusivo neste
sistema de ensino em 2009, com 31% do total de alunos portadores de alguma necessidade
especial, segundo os dados do Censo da Educação Superior 2009 (conforme gráfico 1). De

3
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira.
4
Deficiente Auditivo (D.A.): termo usado na legislação, documentos oficiais. Definição técnica: perda parcial
ou total bilateral, de 25 (vinte e cinco) decibéis (db) ou mais, resultante da média aritmética do audiograma,
aferida nas frequências de 500HZ, 1.000HZ, 2.000Hz e 3.000Hz. Em oposição ao termo “surdo”, o D.A. não
está inserido na cultura surda e não utiliza a língua de sinais.
5
Os alunos dos dois grupos (surdos e deficientes auditivos) foram reunidos devido à falta de critérios para a
classificação destes alunos nos dados do Censo, por parte das universidades, ao contrastarmos os dados prestados
com dados de universidades que temos contato.
7

acordo com este Censo, 20.019 alunos matriculados na graduação são portadores de algum
tipo de necessidade especial, o que corresponde a 0,34% do total de alunos do ensino superior
no país.
Apesar disso, faltam políticas públicas suficientes para uma efetiva inclusão dos
sujeitos surdos no ensino superior, além de conhecimento, por parte dos docentes, a respeito
da legislação e metodologias adequadas para o ensino de surdos. No caso destes indivíduos, a
diferença linguística é a primeira e principal barreira enfrentada para a efetiva inclusão.

Gráfico 1 – Distribuição do tipo de deficiência dos alunos portadores de deficiência na Educação Superior –
Brasil – 2009
Fonte: Censo da Educação Superior de 2009/MEC/Inep/Deed

Com o objetivo de discutir se o que é colocado pela legislação em relação à inclusão


dos surdos no ensino superior está sendo obedecido pelas instituições, Moura e Harrison
(2010) realizaram uma pesquisa em universidades de São Paulo que tinham alunos surdos em
seus quadros discentes, entrevistando estes alunos, seus professores e intérpretes. As
pesquisadores conseguiram contatar 19 professores de diferentes cursos – Artes do Corpo,
Pedagogia, Matemática, Administração e Direito – que responderam questões a respeito do
cotidiano em sala de aula com aluno surdo e intérprete, metodologias, processo de inclusão e
dificuldades enfrentadas. De acordo com os relatos, nenhum dos professores foi orientado
sobre como deveria agir com o aluno surdo, e alguns relataram o total estranhamento ao
8

depararem-se com a presença do intérprete no primeiro dia de aula. A falta de compreensão


em relação à Libras também preocupa alguns professores, por não saberem se o que está
sendo interpretado corresponde ao seu discurso, uma vez que o intérprete não é especialista na
área em que está interpretando. Os professores também responderam não saber como agir em
relação a sua didática em sala de aula, desde posicionamento de seu corpo, velocidade da fala,
uso de materiais didáticos e atividades pedagógicas. Em relação ao aproveitamento acadêmico
dos alunos surdos, a maioria dos professores contatados considerou um aproveitamento ruim,
que se deve, em parte, “à questão pouco ventilada relacionada à escrita dos alunos Surdos”, de
acordo com as autoras. Eles também relataram não haver nenhum contato, fora da sala de
aula, com os alunos surdos ou com os intérpretes, e não souberam responder sobre qual é a
função do intéprete educacional, se ajuda ou não o aluno fora da sala de aula.
As pesquisadoras também entraram em contato com 3 intérpretes destas universidades, que
responderam aos questionários, que envolviam perguntas a respeito da inclusão do aluno que
atendiam com demais colegas e professores, sobre o contato dos intérpretes com os
professores e com os alunos surdos. Os intérpretes responderam que raramente foram
procurados fora da aula pelo professor para esclarecer alguma dúvida, e que sentem que
muitos alunos surdos têm vergonha de fazer perguntas e intervenções em sala de aula.
Por último, foram aplicados os questionários a 6 alunos surdos das universidades. Eles
relataram que não houve preparo algum para a sua entrada na instituição, e para todos eles, o
intérprete é figura essencial nos seu cotidiano. Porém, alguns alunos relataram insegurança
quanto à fidelidade da interpretação, desconfiando que ela esteja sendo resumida pelo
intérprete. Eles percebem, também, a falta de conhecimento, por parte dos professores, da
forma como o surdo aprende, da preparação antecipada do material e da necessidade da
utilização de materiais visuais. Eles também relataram a inflexibilidade que os professores
demonstravam em relação à correção linguística das provas realizadas em língua portuguesa,
e do desejo de realizarem provas em sua língua materna, a Libras.
As autoras salientam a necessidade de que a Universidade debata seriamente as questões
relacionadas à inclusão do surdo, as quais compreendemos serem principalmente de ordem
linguística:

De maneira bem simples o que se encontra hoje em dia no discurso de muitos


profissionais é que o Surdo não tem culpa de não ter aprendido a língua escrita. A
culpa é do sistema educacional que não soube realizar bem a sua função. O resultado
seria a aceitação do português “Surdo” em que o que seria avaliado seria o conteúdo
e não a forma. [...] A partir dessa discussão, a Universidade deverá adotar uma
sistemática de trabalho em que essa forma de expressar o português Surdo será ou
9

não aceita, assim como a possibilidade de realizar as provas em Libras. Essa decisão
será então passada para todos os envolvidos, inclusive aos alunos antes de prestar
vestibular. Todos têm que estar cientes das exigências: Surdos, Intérpretes e Profes-
sores para que mal entendidos sejam evitados e para que o melhor possa ser feito
para que uma real inclusão aconteça. A falta de conhecimento do professor pode
levar àquilo que não desejamos para nenhuma universidade: a inclusão
perversa que finge que inclui para apenas cumprir o papel de dar um
certificado que pouca serventia terá para um profissional despreparado.
(Moura e Harrison, 2010, p. 353 – grifo nosso).

Como sugestão para uma efetiva inclusão no ensino superior, Harrison e Nakasato
(2006) citam o trabalho que é desenvolvido, neste sentido, nos Estados Unidos e na
Colômbia. Em ambos, os alunos surdos que desejam cursar uma universidade recebem
respaldo para se qualificarem na leitura e escria da língua majoritária, considerando que o
domínio desta é indispensável para a real independência deste indivíduo. Nos Estados Unidos,
a Gallaudet University, famosa universidade de surdos americana, oferece um trabalho que
incentiva seus alunos a desenvolverem a proficiência em inglês através da promoção de
cursos especiais de inglês como segunda língua por um ano, antes de iniciarem os cursos nas
faculdades escolhidas, com o objetivo de melhorar a leitura e escrita em textos acadêmicos,
suporte que é mantido ao longo da vida universitária do acadêmico. Semelhantemente, na
Colômbia, os alunos surdos também têm a possibilidade de realizarem um curso de um ano
antes da entrada formal na graduação, para aprimorarem seus conhecimentos na língua escrita
(HARRISON; NAKATO, 2006, apud MOURA; HARRISON, 2010).
Em meu projeto de tese de doutorado em Linguística Aplicada, em andamento,
também proponho o uso da educação a distância para o oferecimento de cursos de Língua
Portuguesa para Surdos. O objetivo central deste projeto será entender como os sujeitos
surdos podem aperfeiçoar seus conhecimentos sobre língua portuguesa, através da observação
da co-construção de aprendizagem de língua entre surdos em um ambiente virtual de
aprendizagem (DONATO, 1994; PIRES, 2009) e da análise da interação entre os aprendizes,
através das ferramentas disponibilizadas na plataforma do ambiente virtual de aprendizagem -
chats educacionais, fóruns, diários de bordo e atividades - que apresentarem evidências de
construção de aprendizagem em LP. Através destas análises, pretende-se compreender um
pouco mais como se dá a construção do conhecimento de gêneros escritos em Língua
Portuguesa por alunos surdos, usuários de Libras como LS, considerados em alguma medida
letrados na língua majoritária, pois encontram-se cursando o ensino superior. Compreender
melhor como se dá esse processo de ensino-aprendizagem é fundamental para a elaboração de
propostas de materiais e metodologias de ensino para esta área.
10

4 EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
Tomo a definição de educação a distância definida pelo artigo 1° do decreto 5.622:
“caracteriza-se a educação a distância como modalidade educacional na qual a mediação
didático-pedagógica nos processos de ensino e aprendizagem ocorre com a utilização de meios e
tecnologias de informação e comunicação, com estudantes e professores desenvolvendo
atividades educativas em lugares ou tempos diversos”.
A proposta de utilização de um ambiente virtual de aprendizagem (AVA) pressupõe que,
nesse universo, há uma grande interação entre usuários com um propósito social, o que subjaz
uma concepção de língua que leva em conta o contexto, o propósito e os interlocutores
envolvidos, e proporciona que os textos manipulados pelos aprendizes possuam um real sentido
na vida deles. Além disso, diversas pesquisas têm demonstrado a grande aceitação dos recursos
tecnológicos no ensino de surdos, assim como a utilização dos mesmos em processos de ensino-
aprendizagem de línguas.
O Ambiente Virtual de Aprendizagem foi escolhido por vários motivos. O primeiro é a
possibilidade de alcançar um grande número de aprendizes espalhados por uma grande região
geográfica, o que é especialmente necessário na educação de surdos, visto que a comunidade
surda, diferente de outras comunidades bilíngues, não está reunida em um espaço geográfico, mas
distribuída por todo o território, seja nos grandes centros urbanos ou nas áreas rurais.
Outra motivação para a escolha dessa modalidade de ensino foi a possibilidade de uso de
inúmeras ferramentas acessíveis aos surdos: “Um dos maiores impactos da Educação a Distância
(EAD) na cultura do ensino e da aprendizagem se refere à inclusão das pessoas surdas e
com necessidades especiais, deste modo tornando a Engenharia de Acessibilidade uma área
de importância crescente.” (Amorim e Silva, 2009). Um grande exemplo que temos do uso desta
tecnologia na educação de surdos são os cursos de Graduação em Letras-Libras oferecidos pela
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) 6
A utilização do AVA também estimula o uso da língua portuguesa escrita pelo aprendiz,
visto que a maioria das atividades realizadas serão de leitura e produção de textos, utilizando
recursos como fóruns de opiniões, diários virtuais, escrita coletiva de textos, realização de testes
de múltiplas escolhas, vídeos legendados, entre outros.

6
Iniciativa interessante da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) foi a criação, em 2006, do curso de
graduação em modalidade à distância Letras/LIBRAS, destinado a instrutores surdos de Libras, surdos fluentes
em língua de sinais (para o curso de Licenciatura) e ouvintes fluentes em língua de sinais que tenham
concluído o ensino médio (para o curso de Bacharelado).
11

Por ser um recurso totalmente interativo, o AVA possibilita a aprendizagem coletiva dos
aprendizes, principalmente nos fóruns de opiniões e na ferramenta Wiki 7, que oportuniza a escrita
e reescrita coletiva de textos. A importância de práticas de aprendizagem coletiva já foram objeto
de estudo em minha dissertação de mestrado, concluída recentemente (Pires, 2009). O trabalho
“Andaimento coletivo como prática de ensino-aprendizagem de língua portuguesa para surdos”
demonstrou que práticas de andaimento coletivo no ensino de língua portuguesa para surdos
geram estratégias facilitadoras de aprendizagem de LP e contribuem para o desenvolvimento do
aprendiz, tornando-o mais autônomo e solidário.
Por último, considera-se também outras vantagens existentes no ensino a distância, como
baixo custo, dispensa de deslocamento, possibilidade do aprendiz estipular seus próprios horários
de estudos (nas atividades assíncronas), respeitando o ritmo de aprendizagem de cada indivíduo.

4. 1 Dados preliminares
Para a seleção dos alunos que participariam do curso de extensão, foi solicitado aos
interessados que enviassem, via correio eletrônico, um questionário com dados pessoais e
acadêmicos dos candidatos e uma produção textual com o tema “por que você quer participar
deste curso?”. A princípio, 12 (doze) alunos foram selecionados, e mais 3 (três) foram
convocados posteriormente. As inscrições foram recebidas entre junho e julho de 2011.
Através dos dados dos questionários, como tempo de uso da Libras, tipo de acessibilidade
oferecida pela instituição de ensino, presença ou não de tradutor/intérprete de Libras em aula,
será feito um primeiro mapeamento a respeito da educação linguística destes indivíduos.

A partir da análise de dez fichas de inscrições já selecionadas para realização do


curso, que atualmente está sendo desenvolvido, foi montado o quadro a seguir, para uma visão
prévia do perfil dos mesmos.

7
A ferramenta Wiki possibilita a escrita colaborativa. Todos os participantes interagem e constroem
coletivamente uma página Web, inserindo novos elementos ou editando o seu conteúdo.
O histórico detalhado das participações pode ser acessado pelo professor e pelos participantes.
12

Perfil dos alunos inscritos (primeira análise)

Aluno(a) Sexo Idade Tempo Curso Grad ITLS Outros


Libras recursos

Aluno 1 F 21 10 Pedagogia (P) Sim Não

Aluno 2 M 30 19 Pedagogia (EAD) Sim Não

Aluno 3 F 29 28 Letras Libras (EAD) Sim Sim

Aluno 4 M 33 16 Letras Libras (EAD) Sim Sim

Aluno 5 M 22 13 Química (P) Sim Não

Aluno 6 F 25 22 Marketing (P) Sim Não

Aluno 7 F 24 6 Letras (P) Sim Sim


(legendas
para filmes)

Aluno 8 M ? ? Administração (P) Sim ?

Aluno 9 F 25 8 Letras Libras (EAD) Sim Sim

Aluno 10 F 39 Sempre Pedagogia (EAD) Sim Não

Tabela 1 – Perfil dos alunos inscritos.

Os nomes dos alunos foram retirados para proteger sua privacidade. Como uma
primeira análise, podemos visualizar que eles têm, em média, 27,5 anos. Metade dos perfis
analisados são de alunos provenientes de universidades públicas, e a maioria está inscrita em
cursos de licenciatura (sendo 4 em Letras e 3 em Pedagogia). A metade dos alunos também
cursa a universidade em cursos semi-presenciais ou a distância, com o advento da educação
on-line. Todos os alunos relatam receber serviço de interpretação em Libras da Universidade
onde estudam, e 4 deles relatam que contam com outros recursos de acessibilidade além do
intérprete (quando citam estes recursos, os alunos de EAD citam os materiais visuais, textos e
apresentações que recebem como material de apoio ao curso), como, por exemplo, o uso de
legendas em vídeos.

5 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Apesar do número crescente de surdos no ensino superior, conforme o Censo da
Educação Superior tem mostrado, muitas instituições ainda não estão preparadas para uma
inclusão efetiva destes indivíduos, conforme mostrou a pesquisa de Moura e Harrison (2010),
13

desrespeitando seus direitos educacionais e linguísticos, o que prejudica seu desenvolvimento


acadêmico. É urgente que instituições de ensino superior se preocupem com a questão da
inclusão dos surdos, seja desenvolvendo projetos de pesquisa e extensão relacionados à língua
de sinais, educação para surdos e ensino de língua portuguesa como língua adicional, ou
oferecendo serviço de intérpretes de Libras e outros recursos importantes, para que estes
cidadãos possam ter, através da inclusão linguística, maiores condições de acessibilidade em
suas vidas profissionais e acadêmicas.

6 REFERÊNCIAS
BAGNO, Marcos; RANGEL, Egon. (2005) Tarefas da educação lingüística no Brasil.
Revista Brasileira de Lingüística Aplicada, v. 5, p. 63-82.

BOTELHO, P. Linguagem e letramento na Educação dos surdos: Ideologias e práticas


pedagógicas. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. 160 p.

BRASIL. Universidade Federal de Santa Catarina. Curso de Licenciatura e


Bacharelado em Letras Libras. Disponível em: <http://www.libras.ufsc.br> Acesso em 20
nov. 2008.

BRASIL. Lei Federal nº10098 de 19 de dezembro de 2000. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L10098.htm Acessado em 25 de set. de 2011.

BRASIL. Lei Federal nº10436 de 24 de abril de 2002. Disponível em: http://


www.fiemg.com.br/ead/pne/leis/10436.PDF Acessado em 20 de mai. de 2009.

BRASIL. Decreto Federal no. - 5.626 de 22 de dezembro de 2005. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/LEIS/L10098.htm Acessado em 20 de mai. de 2009.
BRASIL. Ministério da Educação. INEP. Diretoria de Estatísticas Educacionais. Resumo
Técnico Censo da Educação Superior 2009. Brasília: INEP, 2009.

HARRISON, K.M.P. e NAKASATO, R. Educação universitária: reflexões sobre uma


inclusão possível. In: Lodi,Harrison e Campos (org) Leitura e escrita no contexto da
diversidade. Editora Mediação. Porto Alegre, 2010. 3 ed.

MOURA e HARRISON. A inclusão do surdo no ensino superior: mito ou realidade?


Cadernos de Tradução. UFSC. v. 2, n. 26, 2010.

NASCIMENTO, G. R. P. do. Aspectos de organização de textos escritos por universitário


surdos. Tese de doutorado. Universidade Federal de Pernambuco. CAC. Linguística, 2008.

PIRES, V. O. D. Andaimento coletivo como prática de ensino-aprendizagem de língua


portuguesa para surdos. Dissertação de Mestrado. PPG Linguística Aplicada. Universidade
do Vale dos Sinos, 2009.
14

HARRISON, K.M.P. e NAKASATO, R. Educação universitária: reflexões sobre uma


inclusão possível. In: Lodi,Harrison e Campos (org) Leitura e escrita no contexto da
diversidade. Editora Mediação. Porto Alegre, 2010. 3 ed.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

INTÉRPRETE SURDO DE LÍNGUA DE SINAIS BRASILEIRA: O NOVO CAMPO


DE TRADUÇÃO / INTERPRETAÇÃO CULTURAL E SEU DESAFIO

Ana Regina Campello (UFSC)1

RESUMO

Essa pesquisa trata da nova modalidade de tradução/interpretação de línguas de sinais com


intérpretes Surdos, observando a norma surda (Stone, 2010). Recentemente surgiu esse novo
campo de tradução no contexto educacional do ensino a distância: o da tradução e
interpretação do ator/tradutor e finalmente e intérprete de uma língua de sinais para outra
língua de sinais (SEGALA, 2010; SOUZA, 2010). Estas atividades de tradução e
interpretação têm sido desempenhadas por surdos bilíngues intermodais. Exatamente por
representar um novo campo de estudo, este projeto estará analisando sua constituição.

Palavras-chave:
Libras. Tradução. Interpretação. Ensino a distância.

ABSTRACTS

This research deals with the new type of translation / interpretation of sign language
interpreters to deaf, deaf observing the norm (Stone, 2010). Recently did this new field of
translation in the educational context of distance education: the translation and interpretation
of the actor / translator and interpreter and finally a sign language sign language to another
(Segal, 2010; Souza, 2010). These activities of translation and interpretation have been
performed by Deaf bilingual intermodal. Just because it represents a new field of study, this
project will be reviewing its constitution.

Keywords:
Libras. Translation. Interpretation. Distance education.

1 INTRODUÇÃO

As traduções realizadas por Surdos no Curso de Letras Libras EAD e as interpretações


realizadas por Surdos de uma língua de sinais internacional (língua de sinais americana – ASL
- ou língua de sinais internacional – LSI) apresentam características específicas que
diferenciam das traduções e interpretações realizadas pelos intérpretes de Libras. Isso
começou a ser identificado na Inglaterra em contextos similares de tradução ou interpretação
de língua de sinais (Stone, 2010). No Brasil, os intérpretes Surdos iniciaram estas atividades
diante das necessidades que foram surgindo. No entanto, não há muitas produções nestes
campos de tradução e interpretação de línguas de sinais. Os trabalhos de Segala (2010) e
Souza (2010) são os primeiros a analisar as formas de tradução que se apresentam no contexto

1
Professora do Departamento de Artes e Libras e do Programa de Pós-Graduação de Estudo de Tradução da
UFSC; e-mail: anaregina@cce.ufsc.br.
2

específico do Curso de Letras Libras EAD, da UFSC, em que tradutores surdos atuam
sistematicamente na tradução de todos os textos em que a língua fonte é a Língua Portuguesa
e a língua alvo é a Língua Brasileira de Sinais (Libras). Percebe-se que há muitas coisas
interessantes a serem analisadas e que podem contribuir efetivamente para a formação de
tradutores e intérpretes de língua de sinais, tanto Surdos, quanto ouvintes. A presente pesquisa
situa-se neste contexto e apresenta a perspectiva de iniciar uma trajetória nestes campos de
atuação. Também justifica-se realizar esta pesquisa, uma vez, que a língua de sinais passou a
ser reconhecida como língua nacional por meio da Lei 10.436 de 2002 regulamentada pelo
Decreto 5.626 de 2005. Neste decreto, ainda, consta explicitamente a função da tradução e
interpretação de língua brasileira de sinais e a formação de profissionais nestas áreas. A UFSC
conta com os cursos de formação destes profissionais e passa a produzir pesquisas que
fomentam esta formação. A exemplo, apresenta-se o presente projeto de pesquisa.

Os objetivos gerais da pesquisa são os seguintes:


a) dentificar os registros existentes sobre a atuação de Intérpretes Surdos no Brasil;
b) analisar o desempenho/performance e identificar os elementos lingüísticos, culturais e
sociais que caracterizam a norma Surda nas traduções e interpretações realizadas por
Surdos.

1.1 Organização da pesquisa


Nos capítulos seguintes, estarei apresentando questões pertinentes a serem discutidas e
consideradas para o desenvolvimento da presente pesquisa. No primeiro capítulo, considero
importante situar a experiência do “repetidor” dos Surdos, uma função que encontramos
registros a respeito no tempo imperial instituto de Surdos-Mudos. Também será destacada a
experiência e atuação dos Intérpretes Surdos nos cursos, palestras e eventos internacionais.
Estas experiências, estarei apresentando a partir do meu lugar, enquanto Surda, por meio das
minhas narrativas das pessoas Surdas, e experiências vividas dos Surdos Intérpretes dentro da
comunidade surda. Estarei discutindo o perfil, o desempenho/performance e a identificação
linguística (tradução cultural) que influenciaram e escolha dos sinais no ato de tradução e
interpretação.
No capítulo 2, denominado de “Identificação Linguística” apresento o que justifica a
realização da minha pesquisa, visto que até o presente momento não há registros desta
tradução cultural. Através das narrativas dos Intérpretes Surdos e interlocutores, instrumento
3

metodológico, de coleta de dados, problematizar-se-á a origem de tradução cultural e seu


desenvolvimento a partir de identificação linguística.
No capítulo 3, denominado de “Forma de Tradução / Interpretação”, e que se
apresenta uma análise da forma de tradução / intepretação; o uso das línguas em eventos,
tradução cultural e serviço de tradução e interpretação, e o estudo e revisão teórica de alguns
autores, tais como Jakobson (1992), Schogt (1992), QUADROS (2004), STONE (2009),
AVELAR (2009) e SOUZA (2010).
No capítulo 4, denominado de “Aspectos a serem considerados”, apresento as
propostas de análises da tradução cultural e seus performances como tradutor/intérprete da
Língua de Sinais Brasileira para a Língua de Sinais Americana e Língua de Sinais
Internacionais, capítulo que irá representar o “reconhecimento” do trabalho dos Intérpretes
Surdos.

2 O SURGIMENTO DE INTÉRPRETE SURDO DE LÍNGUA DE SINAIS


O papel de Intérprete Surdo de Língua de Sinais Brasileira e seu exercício já vêm
desde 1875, quando Flausino Gama era “repetidor” (FELIPE, 2000) na sala de aula do
Imperial Instituto de Surdos Mudos. Durante o trajeto do papel de Intérprete Surdo tem o seu
destino obscuro já que a produção sobre esta função está localizada nos arquivos raros da
Biblioteca do Instituito Nacional de Educação de Surdos - INES, no Rio de Janeiro. Fora do
contexto educacional, muitos Surdos já exerceram suas funções fora das situações
educacionais, tais como: tradução / interpretação aos Surdos no Serviço Social / Psicologia,
em CABERJ do BANERJ. No entanto, somente em 1993 há o reconhecimento do uso do
Intérprete Surdo da modalidade interlingual (no sentido de JAKOBSON, 1992)2 no espaço
acadêmico. Isso acontece na UFRJ, quando foram promovidos os cursos no pré – II
Congresso Latino Americano de Bilingüismo (Língua de Sinais / Língua Oral) para Surdos.
Os cursos elaborados pelos professores Surdos: americano Ken Mikos e sueco Mats Jonsson
foram traduzidos / intepretados pelo intérprete Surdo de ASL - Libras, Nelson Pimenta de
Castro.
Também tivemos este tipo de atuação em 2010, por ocasião do V Congresso Deaf
Academics, realizado na UFSC. Nesta ocasião, tivemos vários intérpretes Surdos fazendo a
interpretação simultânea da ASL para a Libras, assim como também da LSI para a Libras. A
LSI é um sistema de sinais internacionais com o objetivo de melhor entendimento o uso de

2
Jakobson (1992) afirma a tradução interlingual, que é a interpretação de signos verbais por meio de alguma
outra língua.
4

várias línguas de sinais, para criar uma língua fácil de aprender e de se comunicar. É uma
língua que surgiu a partir dos encontros das lideranças surdas européias e passou a ser usada
sistematicamente em eventos internacionais.
Com o surgimento do Curso de Letras Libras, a atividade de tradutor / ator de língua
de sinais (QUADROS, 2008, AVELAR, 2010, SOUZA, 2010) propulsionou a carreira de
tradução no AVEA, produzindo Normas Surdas de Tradução – Deaf Translation Norm
(STONE, 2009) em nível acadêmico, desempenhadas quase que exclusivamente por pelos
tradutores/atores Surdos bilíngues para o Ambiente Virtual de Ensino e Aprendizagem –
AVEA e para os DVDs. Além disso, no desenvolvimento de algumas disciplinas, também
houve a tradução / interpretação nestas modalidades, por exemplo, a atuação pioneira de uma
intérprete Surda na disciplina de Análise do Discurso, de Letras Libras, turma 2006. A
adequação de normas, função e de novo campo de trabalho foi tomando corpo e passou a ser
reconhecida, culminando na inclusão de candidatos Surdos para a realização do Exame
Prolibras na qualidade de tradutores/intérpretes de línguas de sinais, a partir de 2009.

3 IDENTIFICAÇÃO LINGUÍSTICA
A definição da comunidade Surda que reforça o sentido histórico, linguístico e cultural
constituído de pessoas Surdas onde são inseridas em várias áreas, pois os Surdos ocupam em
vários espaços. Neste contexto objetiva-se também que todos conheçam para que possam
integrar-se a essa comunidade, com isso deixarão de serem minorias e será um todo. A
comunidade está dividida em vários setores, mas os espaços que mais ocupam são os três
principais: familiar, escolar e social, por isso reflete-se sobre a importância da língua de sinais
para a comunidade surda. As pessoas ouvintes usam a audição como funcionamento auditivo
pela habilidade nos atos do ouvir e do falar. Acontece o mesmo com as pessoas Surdas que
usam as mãos como funcionamento visual pela habilidade nos atos do ver e do sinalizar.
Os Surdos usam a língua de sinais brasileira envolvendo o corpo todo, no ato da
comunicação. Sua comunicação é do viso-gestual e produz inúmeras formas de apreensão,
interpretação e narração do mundo a partir de uma cultura visual. A cultura visual vem da
“experiência visual” (Perlin, 1998) que é um “espaço de produção” (Quadros, 2007) da
constituição dos Surdos que apresenta seus diversos artefatos, como: língua de sinais, história
cultural, identidade, pedagogia, literatura, artes, trabalho, tecnologia, teatro, pintura, e outros.
5

Complementando com o Quadros (2007) de que “o artefato cultural tem validação enquanto
sustenta o pertencimento cultural”3.
Para captar as mensagens e sua tradução / interpretação exige uma profunda reflexão,
como escreve Luklin (p. 44, 2005):
Escutar uma comunidade que usa um código lingüístico distinto do nosso, buscando
uma imersão nos aspectos culturais que cercam o diálogo, o monólogo, as narrativas
em grupo, as arquiteturas da justiça e do rumor, as expressões peculiares, a gíria, a
definição de gêneros, não é tarefa que possa ser cumprida pelo sentido exclusivo do
ouvir. O olhar passa a ser fundamental. Ela colabora para o descentramento do
sujeito moderno obrigando o uso do corpo de forma diferente dos nossos códigos
cotidianos. Implica uma mobilidade dos olhos, da cabeça, do rosto, das mãos, dos
braços, organizados de forma diferente. Solicita uma agilidade de percepção, uma
plasticidade do cérebro.

Ao interpretar / traduzir, o tradutor e o intérprete Surdo transportam a experiência


visual aquilo o que foi vivenciado ou conhecido por meio da língua de sinais, selecionando o
“final” da história para dar ao “ponto de partida” no começo da fragmentação desta história,
através de tradução cultural que tratarei a seguir.
A tradução cultural, segundo Walter Benjamin4 (1980, IV.1, p. 9 -21) define como um
reenquadramento conceitual da tradução na sua relação com língua, texto e cultura, assumida
como metáfora que designa o problema central da condição pós-colonial. Isso quer dizer que a
cultura passa a ser um elemento de “identificação linguística” (MARTINS, 2004) como um
lugar ou um espaço que não é constante de passagem entre as duas línguas: falada e
sinalizada, de passagem de identidades Surdas, de desestabilização das referências culturais
orais e visuais, um espaço de intervalo de tempo antes do qual determinado ato não pode
efetuar-se na negociação de sinais, não uma totalidade fechada.
Sobre Cultura, a palavra vem do latim que significa “cultivo agrícola”, e para a
comunidade Surda, o sentido pode ser traduzido o cultivo da linguagem, da identidade e da
língua de sinais. Há muitas discussões para o conceito de cultura, e escolhemos uma definição
definido por Strobel (2008) e do Echeverria (1998), que diz:
[...] da mesma forma, um ser humano, em contato com o seu espaço cultural, reage,
cresce e desenvolve sua identidade, isto significa que os cultivos que fazemos são
coletivos e não isolados. A cultura não vem pronta, daí porque ela sempre se
modifica e se atualiza, expressando claramente que não surge com o homem sozinho
e sim das produções coletivas que decorrem do desenvolvimento cultural
experimentado por suas gerações passadas (STROBEL, 2008, p.19). Mediada ou
indireta que cultiva a dimensão formal e dramática das ocupações próprias da vida
cotidiana' (ECHEVERRIA, 1998, p.132).

3
Quadros, Ronice & Perlin, Gladis. O debate sobre o surdo e a inclusão. Versão preliminar do material de
formação docente – SESI. p.16, 2007.
4
Traduzida pela Maria Filomena Molder
6

A cultura é uma construção de identidade e de língua comunitária, de reprodução de


gerações passadas através da dimensão meta-visual da existência, que passa pelo natural, mas
o transforma, sendo uma entranhável. Essa construção é política e de identitária, num sentido
amplo de polis, de grupos mais ou menos coesos de seres humanos, que criam iconicidade e
de sinalários próprios e convencionados e que serão percebidos como parte arragaida durante
a sua existência.
Como fazer uma tradução cultural com os sinais e sua expressão? Quanto de uma
cultura da fonte pode ser traduzido através de sinais que originaram em outra cultura diferente
do alvo? Em que sentido a teoria da tradução pode ser aplicada e performances culturais que
incluem, além das expressões que são produto de outros níveis de linguagem? Por que os
interlocutores Surdos se interessam mais com as expressões e informações dos Intérpretes
Surdos? Como em A tarefa do tradutor, de Benjamin, o que é essencial de uma cultura não é o
enunciado que se comunica, mas aquilo que excede a comunicação. Na tradução cultural na
abordagem da Masutti (2008) consiste a cultura como significantes abertos, isto é, as
percepções de corpo, movimento e olhar como fundamentos constituivos do tradutor /
intérprete de língua de sinais. A outra abordagem desenvolvida pelo Segala (2010) que
descreve o papel do tradutor intermodal e intersemiótico pelas raízes culturais e uma boa
experiência na vida social em ambas as línguas, e que deve conhecer profundamente as várias
nuances das duas culturas, encarando não só a estrutura linguística, mas também a vida
cultural de uma sociedade. Para complementar, Quadros e Souza (2008, p.1) explicitam que:
Somado a isso, pretendemos considerar também a relevância da tradução para se
construir espaços híbridos interculturais, pois, no caso desse curso, a Língua
Brasileira de Sinais é a língua de instrução, embora ainda os textos-fonte estejam na
versão escrita da Língua Portuguesa.

Segundo Walter Benjamin5 (1980, IV. 1, p. 9 -21), a tarefa do tradutor cultural ao


tentar fazer com que uma cultura não somente se busca a tradução da língua, mas amplia-se o
leque e busca-se traduzir a cultura do interlocutor nas suas distintas níveis de habilidades. O
que importa é a busca do outro espaço, ou seja, tentar intermediar o entre-lugar, o espaço
entre as duas culturas em questão para que estas informações possam chegar ao público alvo.
Para isso, na tradução cultural entre fonte-alvo há uma ligação evidente no uso da
semântica e a tradução. O autor Schogt (1992) explica que há transferência do significado da
fonte e a outra do significado do alvo. Mas as teorias da semântica e da tradução ainda estão
em estudo sobre significado, seu nível e da comunicação entre indivíduos que falam a mesma

5
Traduzida pela Maria Filomena Molder
7

língua. Portanto este projeto de pesquisa, em futuro próximo, poderá contribuir mais a área de
tradução.
O interesse do interlocutor pelo Intérprete Surdo e seu desempenho / performance só
acontecem quando o Intérprete recebe uma mensagem e a interpreta. Se seguir as regras
gramaticais, utilizar as expressões faciais/corporais e tiverem o mesmo sinalário, a mensagem
chega sem grandes mudanças, mas, caso houver mudanças de elementos estranháveis
(dependendo do contexto cultural) a tradução / interpretação podem ser inseridas em outros
aspectos da gramática da língua de sinais, como descrição imagética, exemplificação, com a
finalidade de esclarecer o conteúdo da tradução.
A metodologia será baseada nas estratégias metodológicas por Williams e Chesterman
(2002, apud SOUZA, 2010) que na investigação “procura por novos dados, novas
informações derivadas da observação de dados e do trabalho experimental; e ainda, procura
evidências que dêem suporte ou não confirmem hipóteses, ou gerem outras”. Por isso, esta
metodologia será aplicada no estudo de caso observacional, descritivo e analítico em
tradução, com o objetivo de descrever o nosso caso: desempenho da tradução / interpretação
cultural do tradutor / intérprete Surdo. Isso consiste em avaliar os dois intérpretes / tradutores
Surdos na sala de aula através do vídeo conferência no ato da tradução / interpretação de
língua de sinais brasileira para língua de sinais americana e vice versa. As ferramentas serão
utilizadas através de gravação de vídeo por câmeras digitais, sala de aula (ou estúdio onde
será realizada a vídeo conferência) e presença dos professores-mediadores.

3 FORMA DE TRADUÇÃO / INTERPRETAÇÃO


O que motiva os Intérpretes Surdos a sua forma de tradução e de interpretação?
As narrativas pessoais serão recolhidas dos intérpretes surdos que, normalmente, falam
sobre o quanto os tradutores surdos são hábeis na comunicação da informação para surdos.
Alem disso, eles mencionam de forma recorrente o contraste entre os tradutores e intérpretes
surdos e os tradutores e intérpretes ouvintes. Entre os aspectos comumente ressaltados, listo
os seguintes:
a) o conflito de entender a tradução “aportuguesada”;
b) não possuir os aspectos culturais da comunidade Surda.
c) Os intérpretes não-surdos não tem base da língua de sinais americana, nem da língua de sinais
internacionais e dificuldade de fazer tradução cultural da comunidade Surda;
d) Não tem base completa da língua de sinais da comunidade Surda;
e) Dificuldade de entender a soletração rítmica;
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f) Os intérpretes não-surdos têm dificuldade de usar as descrições imagéticas.

Esta pesquisa, portanto, estará coletando as narrativas desses tradutores surdos para
verificar as razões que os levam a falar sobre isso dessa forma. O objetivo será identificar as
representações e as razões que as justificam a partir dos próprios tradutores.
A tradução / interpretação exige formação, pois envolve vários fatores, entre os quais,
o fato de estarmos diante de línguas de diferentes modalidades, as culturas que se traduzem
nestas línguas; as formas de apresentar os conceitos em cada uma destas línguas. Dessa
forma, deve-se levar em consideração também a performance do Intérprete Surdo, conforme o
depoimento da Sueli Ramalho (abril, 2011):

A atuação da Profa. Ana Regina sendo surda, tranquilamente passou a ter seu papel
de mediadora na comunicação com as pessoas surdas, demonstrando a capacidade,
qualidade e a habilidade natural com conhecimento da estrutura gramatical da
língua de sinais, sem perder valores culturais e costumes da comunidade surda.

No caso da capacidade e transmissão do conteúdo, Sueli Ramalho comenta


novamente:
A mesma capacidade da atuação, transmissão do conteúdo, entendimento mútuo, é
homogêneo por tratar da mesma língua materna, não pode ser comparada com uma
pessoa não nativa da língua, como todo existem exceções, mas não há dúvida que a
maioria pessoas não surdas que considera conhecedor desta língua não conseguem
ser bom mediador quando estão tentando transmitir para o surdo do que está sendo
dito, ao contrário do surdo mediador que tem se esforçado em quebrar a barreira e
alcançado o aprendizado de duas línguas.

Sueli Ramalho, uma tradutora surda, acredita a capacidade laboral das pessoas Surdas
em serem Intérpretes / Tradutores de Língua de Sinais Brasileira, como vemos os
comentários:
Atualmente já contamos com várias pessoas surdas que tem essa capacidade de
transmitir, e a Profa. Ana Regina aos poucos tem quebrado do paradigma que a
sociedade majoritária tem colocado limitações aos surdos que não teriam condições
de poder estar neste patamar.

A mesma tradutora reafirma a sua eficácia do uso da língua:

Não há dúvida que o aprendizado do surdo acerca a segunda língua e posteriormente


ser o mediador é muito mais eficaz do que pessoa não surda aprender a segunda
língua e tentar ser o melhor mediador.
9

Jakobson (1992) afirma que a tradução tem três diferentes maneiras de interpretar o signo
visual. Ele pode ser traduzido em outros signos da mesma língua, em outra língua, ou em
outro sistema de símbolos não visual. Esses três tipos de tradução podem ser:
a) tradução intralingual, que é uma interpretação de signos verbais por meio de outros
signos da mesma língua. De um signo, dentro de uma mesma língua, usa tanto outro
signo como outros recursos mais ou menos sinônimos, homônimos, polissemia,
descrição imagética para uma circunlocução. Um signo ou expressão idiomática só
pode ser completamente interpretado por meio de uma combinação equivalente de
unidades de códigos, no caso da função dos atores/tradutores do AVEA e dos DVDs
da Letras Libras;
b) a tradução interlingual, que é a interpretação de signos visuais por meio de alguma
outra língua - não há equivalência completa entre códigos, as mensagens podem servir
como interpretações adequadas de códigos ou mensagens estrangeiras. O mais
frequente é a tradução de uma língua, dentro de uma outra, substitui mensagens em
uma língua, não por unidades de códigos separados, mas por mensagens inteiras em
algumas outras línguas. Tal tradução é um discurso direto, ou seja, o tradutor
recodifica e transmite a mensagem recebida de uma outra fonte. Então, a tradução
envolve duas mensagens equivalentes em dois códigos diferentes, em duas línguas
diferentes, como é o caso da língua de sinais brasileira para língua de sinais americana
e vice versa. O depoimento José Arnor (Rio Grande do Norte) complementa a sua
justificativa da tradução interlingual:

Achei que legal, sim o que mais importante é visualização mas é complicado pq
quando ela falar de ASL agente entender mas não conseguir contexto mas por
exemplo sinal ja conheço mas so sinal sim o resto não por isso precisar interpretação
ASL outra coisa quando palestrante na hora sinalização mas não consegui por que
complicado na hora bimodal na hora eu vejo complicado precisar fechar a boca. eu
conseguir entender ok? Ana Regina interpretou será importante juntos sim pq ASL
não conheço bem qualquer momento precisar sim não é por causa gestual nada ver
com isso precisar esta aqui presença interprete pelo surdos sim não precisar ouvinte
pq já formação asl se surdos entendi coisa ASL. Ela explico dedalhe tudo mas
Tradução foi ótimo Ana Regina entendi tudo mas eu vejo comparação Melanie
diferente sinalização alguns conheço sinal mas não conseguir contexto ok?

c) e a tradução intersemiótica, que é uma interpretação de signos visuais por meio de um


sistema de signos não visuais.

E a tradução cultural traduzido e interpretada pelos Intérpretes Surdos? Por isso, a


tradução cultural é considerada pelo presente projeto como fundamental, pois capta a língua
10

de sinais, e a língua portuguesa como línguas imersas na cultura, destacando principalmente


do uso da tradução e que a mesma ocorre, na maioria das vezes, voluntariamente, porque não
se decide naquele exato momento que se vai traduzir determinado sinal ou expressão, mas ela
ocorre sem que percebamos, mesmo que mentalmente, o que não deixa de ser uma forma de
tradução.
Então, é de suma importância que novos estudos continuem sendo feitos com relação
ao que vem a ser o uso da tradução nas aulas de língua estrangeira realmente, e o que pode ser
definido como tradução para que o ensino/aprendizagem de línguas seja melhorado.
Destacamos a importância da análise a diferença cultural de dois tradutores de língua
de sinais como pesquisa preliminar inicial da análise. A metodologia adotada será de
comparação entre as performances e de tradução de dois tradutores de língua de sinais
brasileira (Libras) e de língua de sinais americana (ASL) da música “Imagine” de John
Lennon6.
Logo, ao observarmos tais performances e, com base da metodologia da língua alvo, e
serão analisados as seguintes aplicações e adaptações nos procedimentos tradutórios (Giles,
1995 e 2009) de modo geral, que são:
a) a informação na língua alvo contém a mensagem (M) apresentada na língua fonte;
b) a língua alvo apresenta os três tipos de informação analisados: informação
contextualizadora (FI), informação induzida ou motivada por questões linguísticas
(LII) e a informação pessoal (PI).

Especificando o procedimento tradutório do Giles (1995 e 2009):

1) Mensagem – na língua fonte pode gerar sentenças diferentes na língua alvo, que podem
ser consideradas, com legitimidade, traduções.
2) Informação contextualizadora (FI) – a informação está atrelada ao acréscimo de
informação para ajustar, compor, enquadrar e emoldurar o significado da mensagem, como o
propósito de contextualizar o significado sugerido no texto da partida para o leitor de chegada.
3) Informação induzida ou motivada por questões linguísticas (LII) – refere ao tipo de
informação adicionada por questões de adaptação ao sistema linguístico de chegada. Isso,
quer dizer, que os ajustes são demandados pelo sistema linguístico e não por decisão

6
Sites: http://www.youtube.com/watch?v=ZDsjIA8-r44 e
http://www.youtube.com/watch?v=4fBh2Tcb1E4&feature=related
11

profissional ou intérprete por questão de convenções e regras de uso prático na língua de


chegada.
4) Informação pessoal (PI) – informações adicionadas à mensagem e diretamente
associadas ao estilo do tradutor / intérprete , ou a outras idiossincrasias que revelam sua
personalidade, seu contexto sócio-cultural ou em relação do grau do conhecimento do leitor
de texto.

Na análise preliminar, poderemos observar o quadro abaixo:

Informação
Informação Induzida ou Informação
Língua Mensagem Contextualizada por questões pessoal (PI)
- FI linguísticas -
LII

a) Inclusão da
gravura do
cantor para
mostrar quem é
quem do cantor;
b) Uso do a) Regras e
Através de pronome convenções da
leitura de letras pessoal para LSB;
LSB da música referir o autor b) Sinais Nenhum
da música; específicos da
c) Gravura do LSB de acordo
Mundo para com a música;
entender o c) Uso de
contexto; classificadores
d) Informação
mais clara e
explícita;
e) Tradução
mais
contextualizada
com a cultura
Surda

a) Regras e
convenções do
SEE (Signing
Exaclt English
– Inglês
12

ASL Através de uso a) Tradução sinalizados); Nome da


sonoro pelo mais b) O sinal tradutora
instrumento contextualizada “futuro”
fone de ouvido com a cultura aparece no
Ouvinte início da
sinalização;
c) Inclusão do
sinal “vida” o
que não
constava no
texto

Concluindo que os dois tradutores utilizam a mensagem (M) bem preservada, sendo
que a tradutora da LSB usou as informações contextualizadas (FI) bem claras para expressar
melhor o sinalário (léxico). Evidencia a tradução de acordo com a cultura Surda.
A tradutora de ASL não preservou e não utilizou a informação induzida (LII) ou
motivada por questão linguística para chegar às informações ao público alvo, por utilizar o
léxico em mesmo sinalário de modo preservado e convencional. Não evidencia a tradução da
cultura Surda mesmo usando a língua da comunidade surda norte-americana (SEE) que
mostra a distinção da ASL da comunidade Surda. Para comprovar a teoria de que a tradutora
na tradução de ASL não condiz à cultura surda (Strobel, 2008 e Bahan, 2009) como
demonstra a crítica de um usuário no youtube:

Great video! Your signing is really fluid. My only suggestion would be to be careful
that you don't switch from ASL to PSE or SEE. Some of your signed sentences seem
to be an exact translation of the English words, which does not work in ASL. Nice
job otherwise, though!

Outra crítica fundamental:

This version is also different because there is not set way to sign a song. You
interprete the lyrics not translate it.

Isso demonstra que a cultura Surda e sua música exige mais performance para atingir
de fato a cultura Surda que, segundo Bahan (2009) “Before talking about deaf culture and
what is culture, let us talk about sensory worlds.!Sensory worlds help us make sense of Deaf
Culture.”7
No futuro da pesquisa serão consideradas as informações que apresentam alterações,
dentre outros fatores, por conta de efeitos de modalidade das línguas em contato nas traduções
7
Tradução: “Antes de falar sobre a cultura surda eo que é cultura, vamos falar sobre o mundo sensorial! Mundo
sensorial nos ajudar a fazer o conceitoda Cultura Surda.”
13

ou outros fatores, tais como, o fato de estarmos trabalhando com a interpretação simultânea
que envolve limitações relacionadas com o tempo de processamento da informação.
O presente estudo caracteriza-se com um estudo de caso observacional, descritivo e
exploratório da tradução de dois tradutores, que analisará os resultados da tradução entre as
duas línguas de sinais. Este estudo é um dos primeiros trabalhos realizados neste campo
específico de tradução no Brasil.

4 ASPECTOS A SEREM CONSIDERADOS


Mais uma vez, é possível ver esse momento com muito otimismo e expectativa. E
pensar que a Libras já é legalizada, e que já são instituídos os direitos dos surdos (apesar de
estar tudo no começo) e agora também legalizada a profissão do intérprete, temos uma nova
geração abraçando e acreditando nesse legado. Como diz no site do Marildo José Nercolini
em 18/07/05:
A tradução cultural coloca uma questão fundamental para os dias de hoje: como
entender/compreender uma cultura que não seja a minha? Como conviver com esse
Outro, tendo presente o que nos aproxima e o que nos afasta, os conflitos e o
diálogo. Não é uma interpretação para minha cultura do que seja o Outro, muito
menos sua versão aceitável/palatável. A tradução cultural implica um contato
cultural profundo entre duas ou mais culturas. Aproximar-se e deixar-se tocar pelo
desconhecido, mesmo correndo-se o risco do enfrentamento, do conflito, parece ser
uma maneira mais profícua e certamente mais trabalhosa de tradução cultural.
Possibilidade-impossibilidade: a tradução trabalha nesse limiar: entre a
impossibilidade da tradução total e completa e as muitas possibilidades de diálogos,
aproximações, tentativas melhores sucedidas, embates...

Neste tipo de situação, a formação de um intérprete / tradutor de língua de sinais


profissional, acadêmico e reconhecido é necessário na área de tradução. O meu trabalho como
pesquisadora é analisar aspectos e específicos que possam contribuir para algo, por exemplo,
a formação de tradutores e intérpretes Surdos de língua de sinais.

5 REFERÊNCIAS

AUBERT, Francis Henrik. As (in)fidelidades da tradução: servidões e autonomia do


tradutor. Campinas: Unicamp, 1994.

CAMPELLO, Ana Regina. Intérprete surdo de língua de sinais brasileira: o novo campo
de tradução / interpretação cultural e seu desafio. Projeto de Pesquisa de Pós-Graduação de
Estudos de Tradução. Florianópolis: UFSC, 2011.

BAHAN, Benjamin. Sentidos e Cultura: Explorando Orientações Sensoriais. IN: MOURA,


Cecília et alii. Educação para Surdos: Práticas e Perspectivas II. São Paulo: Santos
Editora, 2011. p.95-121.
14

FELIPE, T. A. De Flausino ao Grupo de Pesquisa da FENEIS – RJ. Anais do V Seminário


Nacional do INES. . Rio de janeiro: INES. 2000: 87- 89. http://www.deaf-
interpreter.com/index.php

JAKOBSON, Roman. On Linguistic Aspects of Translation. In: Shulte, Rainer; Biguenet,


John. (Editores) Theories of Translation: an anthology of essays from Dryden to Derrida.
Chicago e London : The University of Chicago Press, 1992, p.144-151.
MASUTTI, Mara. A formação de tradutores/Intérpretes de Língua de Sinais em
perspectiva. Caderno de Resumo. Universidade Federal de Ouro Preto. ABRAPT. X
Encontro Nacional de Tradutores e IV Encontro Internacional de Tradutores: MG, 2008.

QUADROS, Ronice Muller de, O tradutor intérprete de língua brasileira de sinais e


língua portuguesa – Brasília, 2004.

SEGALA, Rimar. Tradução Intermodal e Intersemiótica/Interlingual: Português brasileiro


escrito para a Língua Brasileira de Sinais. Programa de Pós-gradução de Estudos de Tradução.
Florianópolis: UFSC, 2010.

SOUZA, Saulo Xavier. Tradução para a Língua brasileira de Sinais: descrição de


performances observadas no curso de Letras-Libras. Programa de Pós-graduação no Estudo
de Tradução. UFSC: Florianópolis, 2010.

TEIXEIRA, Marlene. Análise de discurso e psicanálise: elementos para uma abordagem do


sentido no discurso. Porto Alegre: Edipucrs, 2000. 210 p.

VASCONCELLOS, Maria Lucia e BARTHOLAMEI JR, Lautenai Antonio; Estudos da


Tradução I / Unidade 2 – Florianópolis 2008. Disponível em: <http://www.deaf-
interpreter.com/index.php>.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

MANUTENÇÃO DE LÍNGUAS “MINORITÁRIAS” NO VESTIBULAR – UM


DESCOMPASSO COM AS POLÍTICAS LINGUÍSTICAS?1

Ina Emmel (PGET/UFSC)2

RESUMO

A presente comunicação se situa no âmbito conflituoso da compreensão das complexas


implicações de político-linguísticas que respeitam a formação identitária, no nosso caso
específico a sul-brasileira, atreladas ao ambiente escolar, mais precisamente, junto à porta de
acesso à Universidade - as línguas estrangeiras no vestibular. Vamos nos concentrar em uma
discussão atual sobre a manutenção (ou não!) das línguas alemão e italiano (mas também o
francês) no vestibular da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), questionando os
argumentos que sustentam sua eliminação e enfatizando razões para a sua manutenção
(defendendo, inclusive, a ampliação da oferta atual), tendo por base, primordialmente, a
pluralidade linguística alóctone sul-brasileira, e a questão dos direitos linguísticos universais,
e também dentro de uma perspectiva plural que é própria do mundo globalizado e onde nossa
universidade certamente se insere. A discussão é amparada ainda por uma postura histórica da
UFSC, que desde a sua fundação sempre promoveu instanciações plurilinguísticas, atendendo
demandas provindas da sociedade catarinense e sul-brasileira. Se a política lingüística é, de
acordo com Calvet (2007, p. 86), “em última análise, da alçada dos decisores, nenhuma
decisão pode ser tomada sem uma descrição precisa das situações (...), e tampouco sem que se
levem em consideração os sentimentos linguísticos, as relações que os falantes estabelecem
com as línguas com as quais convivem (...)”. É essa descrição que se pretende fazer nesse
trabalho.

Palavras-chave:
Política Linguística. Vestibular UFSC. Línguas minoritárias.

ABSTRACT

This paper aims to discuss the complex implications in educational environments related to
linguistic politics that respect identity formation in southern Brazil. More precisely, we will
focus on the foreign languages offer in the entrance examinations to public universities. There
is a recent discussion about the maintenance (or not!) of languages like German, Italian and
also French at the entrance exam to study at UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina).
We will analyze the arguments given by the central administration to eliminate those
languages (maintaining only English and Spanish) and emphasize reasons to continue to offer
them and even to extend the actual number of foreign languages which the candidates can
choose from. We sustain our point based on the linguistic plurality which still characterizes
the South of Brazil, mainly following The Universal Declaration of Linguistic Rights and also
taking into account the traditional plurilinguistic policies and heeding minority demands and
inclusion policies which were always present along the history of our university.

1
Quero agradecer às Profas Glória Gil, Silvana Gaspari e Maria José Damiani Costa (DLLE/UFSC) e Izabel
Seara (DLLV/UFSC) pelas valiosas contribuições.
2
Professora do Departamento de Língua e Literaturas Estrangeiras (DLLE/UFSC) e da Pós-Graduação em
Estudos da Tradução (PGET/UFSC), doutora em Linguística (PPGLg/UFSC); e-mail: inaemmel@hotmail.com.
2

Keywords:
Linguistic Politics. Vestibular UFSC. Minority Languages.

1 SITUANDO A DISCUSSÃO
Alguns aspectos gerais sobre políticas linguísticas marcam o início da discussão que se
pretende desenvolver no presente artigo, para, em seguida, concentrar a abordagem no que acontece
na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC em relação às situações linguísticas
diversificadas presentes no âmbito de sua atuação e às possíveis mudanças que estão sendo
discutidas em órgãos deliberativos da mesma, especificamente em relação às línguas do vestibular.
Parte-se de uma concepção de que estamos diante de uma prática política e de que esta está atrelada
a intervenções sobre situações concretas de uso e promoção de línguas.

2 PANORAMA GERAL
Primeiramente, a globalização nos compele a procurar uma integração sociolinguística
verdadeira e profunda, aceitando todas as línguas sem restrição nenhuma, respeitando os direitos
linguísticos plenos de todos os grupos, maiorias e minorias, tais como apregoados pela “Declaração
Universal dos Direitos Linguísticos”, promulgada em julho de 1996.
Em segundo lugar, cabe o registro de que no Brasil, apesar de devastador glotocídio em seus
500 anos de história, ainda existem, como é sabido, mais de 210 línguas, das quais 180 são
autóctones (indígenas) e aproximadamente 30 são alóctones (de imigração), o que caracteriza o
nosso país como naturalmente multilíngue. Além disso, “a história nos mostra”, assim diz Oliveira
(2000, p. 90), “que poderíamos ter sido um país ainda mais plurilíngue, não fossem as repetidas
investidas do estado (e das instituições aliadas, ou ainda a omissão de grande parte dos intelectuais)
contra a diversidade cultural e linguística”. Ainda de acordo com Oliveira (2007, p. 7), no prefácio
da tradução para o português da obra de Calvet (2007), no Brasil, desde os tempos coloniais, a
ideologia da „língua única‟ talvez tenha camuflado essa realidade plurilíngue existente em nosso
país, o que parece ter limitado as questões empíricas e teóricas levantadas pelos estudiosos das
políticas linguísticas. Sabe-se, no entanto, que o sul do Brasil, contexto onde se inscreve a UFSC, é
intensamente marcado por essa pluralidade linguística alóctone ainda nos dias atuais, um verdadeiro
reservatório de potenciais falantes de línguas ditas „minoritárias‟.3

3
No caso específico do alemão, segundo Kaufmann (2003, p. 29), fora da Europa, não existe lugar no mundo
com mais falantes dessa língua do que no sul do Brasil.
3

3 RECONHECIMENTO DAS „LÍNGUAS BRASILEIRAS‟


Nesse sentido, vale lembrar que, desde 2006, está sendo elaborado o Livro das Línguas do
Brasil (organizado pelo IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e o IPOL -
Instituto de Política Linguística, em conjunto com uma comissão da Câmara dos Deputados e do
Congresso Nacional)4, para esse patrimônio cultural imaterial. Assim, não apenas se reconhece
essa pluralidade, mas a mesma também passa a ser oficialmente registrada. No entanto, a
reivindicação pelo direito a essas línguas, identificando nelas um papel e um lugar na sociedade
talvez ainda continue sendo bastante tímido.
Por outro lado, embora a Constituição de 1988 já conceda aos índios o direito às suas
línguas, inclusive no aparato escolar, respectivamente através dos artigos 210 e 213, e também já
regulamentado pela nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 (artigos 78 e 70),
a extensão desses mesmos direitos às outras minorias linguísticas ainda não está devidamente
institucionalizada. Mas, como é sabido, já existem iniciativas bastante elaboradas nesse sentido, a
saber, os projetos de educação bilíngue desde as séries iniciais, e até mesmo na educação infantil,
principalmente nas fronteiras com países hispânicos, e igualmente em algumas escolas em
comunidades de colonização germânica e italiana. Esses projetos, em sua maioria, são coordenados
ou assessorados pelo IPOL (Instituto de Política Linguística), que por sua vez é foi fundado e por
muitos anos dirigido pelo Dr. Gilvan Müller de Oliveira, professor da UFSC (CCE/DLLV),
especialista em Política Linguística com reconhecimento nacional e internacional.
Em termos sul-brasileiros, a integração com o MERCOSUL já ampliou marcadamente a
contemplação do espanhol como língua estrangeira (LE) nas grades curriculares, o que se reflete
evidentemente em uma procura maior por essa língua, se comparado com o alemão, o francês e o
italiano. O inglês, evidentemente, continua incólume em seu posto de língua franca, a preferência
nacional como LE também em nossos currículos.

4 SITUAÇÕES PLURILÍNGUES NA UFSC


A demanda para ampliar o leque de ofertas de línguas estrangeiras em nossos currículos
escolares para além do inglês e do espanhol, com o intuito de atender demandas internas das
comunidades de formação identitária não-lusas parece ter sido uma preocupação da UFSC desde a
sua criação. Primeiro, por criar as licenciaturas para cinco diferentes línguas, formando mão-de-
obra especializada capaz de atender a demandas diferenciadas em termos linguísticos. E por manter
uma política de oferta diversificada de ensino de línguas estrangeiras em seu Colégio de Aplicação,

4
Portarias IPHAN N° 586, de 11 de dezembro de 2006 e IPHAN N° 274, de 03 de setembro de 2007.
4

possibilitando aos seus alunos do ensino de fundamental e médio a escolha entre quatro línguas
estrangeiras (a saber: inglês, espanhol, francês e alemão).
Em um segundo momento, para exemplificar a participação ativa da UFSC na discussão
específica de defesa e promoção das línguas de imigração mais representativas no sul do Brasil,
houve um Projeto Piloto desenvolvido ao longo de quatro anos, durante a década de 80, em parceria
com a Secretaria de Educação do Estado de Santa Catarina, no contexto de reintrodução de línguas
estrangeiras modernas nas escolas de SC, em atendimento às prerrogativas da LDB (Lei de
Diretrizes e Bases) (quanto a uma segunda língua estrangeira). O projeto proporcionou formação
(em caráter emergencial) para professores de Língua Estrangeira atuantes nas mais diversas
localidades de nosso Estado, e, além disso, tinha também como objetivo proporcionar campo de
trabalho para os licenciados, uma vez que a Secretaria acenava com a possibilidade de abertura de
concursos públicos.
Passada mais de uma década, percebeu-se que continuava existindo uma demanda local
reprimida nas comunidades de colonização estrangeira em termos de oferecimento de línguas em
todas as escolas. Além disso, como muitos desses professores de língua estrangeira já atuantes não
tinham formação superior plena (uma exigência do Ministério da Educação) e não poderiam se
deslocar para a capital para obtê-la, no início dos anos 2000, e aí nos parece mais interessante ainda,
a UFSC novamente foi pioneira e montou outro grande projeto, dessa vez de formação superior
extra-campus (MAGISTER LETRAS), respectivamente, nas localidades de Jaraguá do Sul e
Ibirama (para 2 turmas de 40 alunos de Licenciatura Letras-Alemão) e de Rodeio e Criciúma (para
2 turmas de 40 alunos de Licenciatura Letras-Italiano), respeitando as especificidades étnico-
linguísticas de cada região.
A UFSC inovou igualmente com a introdução do Curso de Letras-LIBRAS, o primeiro do
Brasil, o que demonstra mais uma vez o quanto a nossa Universidade está comprometida em
atender o que preconiza a “Declaração Universal dos Direitos Linguísticos”, marcadamente para as
minorias linguísticas. Este curso já formou a sua primeira turma em 2010 e atende atualmente, em
duas turmas na modalidade EaD, mais 782 alunos, sendo também oferecido novamente na
modalidade presencial, onde 52 alunos estão matriculados em duas turmas.
Para não elencar apenas as instanciações de promoção de formação de professores de
línguas consideradas minoritárias, a UFSC está incentivando igualmente a formação universitária
extra-campus de professores de língua espanhola e inglesa. Em 2007, por exemplo, foi criado o
curso Licenciatura Letras Espanhol, na modalidade a distância, no qual estão matriculados
5

atualmente 280 alunos, já contemplados os da segunda turma. Ainda em 2009 iniciou o Curso de
Letras Inglês, atualmente com 116 alunos, também na modalidade EaD.5
Em linhas gerais, todas essas iniciativas da UFSC levam a crer que ela é uma universidade
comprometida com a promoção de um plurilinguismo, respeitando um equilíbrio entre todas as
línguas, administrando o status de cada uma delas nos diferentes contextos em que se insere a
instituição, cumprindo, portanto, sua função social.
Mas a gestão plena desse plurilinguismo parece estar diante de uma contradição quando
inserida no presente debate em torno das línguas oferecidas no vestibular, onde se questiona a
viabilidade de manutenção de todo o leque atual (alemão, francês, italiano, espanhol e inglês).

5 RELEITURA DOS ARGUMENTOS DA UFSC


Passamos agora para a análise dos documentos fornecidos pela Pró-Reitoria de Ensino de
Graduação, em 22 de outubro de 2008, mostrando a oferta de línguas estrangeiras nos vestibulares
de todas as universidades federais brasileiras, bem como um documento contendo os levantamentos
estatísticos dos candidatos inscritos por língua nos vestibulares da UFSC nos oito anos
antecedentes. Esses dados, evidentemente, são de domínio público e podem ser acessados pelo site
da universidade, no link da COPERVE (Comissão Permanente do Vestibular). Através de uma
leitura mais apurada desses documentos, talvez com óculos especiais que nos são concedidos pela
prática docente de línguas estrangeiras (no nosso caso é o alemão) aqui na UFSC, atrelando isso a
questões identitárias locais, bem como com certa familiarização com políticas linguísticas, o que
talvez nos autorize a dimensionar mais detalhadamente as implicações de uma tomada de decisão
dos órgãos centrais em propor uma redução dessa oferta para apenas o inglês e o espanhol.
Entre as universidades federais elencadas, observa-se que realmente poucas apresentam
opções de línguas estrangeiras em seus vestibulares que vão além do inglês, espanhol e francês.
Mas são exatamente as universidades federais mais representativas do Sul do Brasil que oferecem
também o alemão e o italiano (UFPR, UFRGS e a UFSC evidentemente). Parece-nos que a opção
por essa oferta específica, especialmente nos vestibulares das universidades do sul do Brasil, seja
coerente com as prerrogativas dos PCNs que prevêem que, nos currículos escolares, a segunda
língua estrangeira esteja de acordo com a realidade local/regional. No caso de Santa Catarina,
certamente o italiano e o alemão fariam (ou devem fazer) parte deste leque. Desse modo se dá a
chance ao vestibulando de optar por uma língua com a qual ele se identifique mais, um direito que
lhe é conferido pela Constituição Federal e pela Declaração Universal dos Direitos Linguísticos,

5
Dados obtidos no registro do CAGR/DAE/UFSC, em outubro de 2011.
6

mesmo que essa língua não atinja uma “representatividade” significativa em termos estatísticos
(consequentemente talvez não justificável economicamente), se comparada com línguas como o
inglês e o espanhol.
No caso específico da UFSC, com a sua política de inclusão de minorias nos últimos
vestibulares (sistema de cotas), o fato de, no seu vestibular de 2008, apenas 1,28% dos inscritos
(394) terem optado pelas línguas alemão, francês ou italiano não deveria constituir uma “minoria
outra”, para a qual os parâmetros de inclusão não deveriam valer. Os critérios de inclusão são
outros, mas o que está por trás certamente não é.
A UFSC oferece cinco licenciaturas em língua estrangeira moderna, um número bastante
considerável e que vai ao encontro das demandas multiculturais e linguísticas que caracterizam o
nosso país, bem como das tendências globais. Nesse sentido, a manutenção e mesmo a ampliação
do leque de línguas oferecidas nas suas mais diferenciadas instâncias discursivas não deveriam ser
limitadas logo no vestibular, que é, afinal, a porta de acesso, o seu cartão de visitas.
Se a UFSC se articula, além das línguas já citadas, em um amplo leque de línguas
estrangeiras, por exemplo, na oferta de Japonês, Chinês, Português para Estrangeiros e LIBRAS nos
cursos extracurriculares, no âmbito do Programa PET também para cinco línguas, igualmente nos
mais diversos intercâmbios multinacionais (ver listagem dos convênios na página do
SINTER/UFSC), nos convênios de negócios, na assessoria à formação de escolas bilíngues, no
estreito relacionamento com o IPOL, na abertura de possibilidades de estágio para os seus
licenciados em línguas estrangeiras, na oferta de licenciaturas à distância, principalmente a de
Letras-LIBRAS com toda sua repercussão de inclusão, entendemos que não deve ser justamente no
vestibular que toda essa pluralidade passe a ser restringida.
Em uma das tabelas fornecidas pela COPERVE, aparecem as médias obtidas pelos alunos
inscritos nas respectivas línguas estrangeiras em seu vestibular, mostrando que, nos oito anos antes
de 2008, as médias alcançadas em alemão, italiano e francês superam as obtidas em espanhol e
inglês. A comissão responsável pelo levantamento estatístico sugere que isso talvez seja indício de
uma possível “vantagem” aos candidatos que optam por essas línguas. Pensamos que as razões para
tal deveriam ser melhor pesquisadas antes de se tomar uma decisão no sentido de eliminar essas
línguas do vestibular pelo simples fato de parecer que o aluno que opta por elas leve vantagem em
relação aos tantos que optam por inglês e espanhol. Se esse critério fosse válido, também poder-se-
ía considerar “uma vantagem” para aqueles alunos que fizeram um segundo grau regular em relação
àqueles que cursaram uma escola técnica, por exemplo, onde pouca ênfase é dada às ciências
7

biológicas e da terra. Isso sem considerar o abismo de “vantagens” entre aqueles provindos de
escolas públicas em relação àqueles que estudaram em escolas particulares.
Em mais outra tabela fornecida aparecem os dados referentes às opções de língua estrangeira
de vestibular dos inscritos nas habilitações em Letras Alemão, Letras Francês e Letras Italiano,
novamente indicando que a opção pelas respectivas línguas é bastante baixa. No entanto, se
pensarmos que o quesito língua específica não é nem exigido para os ingressantes nessas
habilitações (basta ver o Edital), esse argumento também não se sustenta. Novamente nesse aspecto
poderíamos apelar para os direitos constitucionais do vestibulando e para a Declaração Universal
dos Direitos Linguísticos, uma vez que a opção por querer estudar uma determinada língua não está
atrelada à condição de se valer de outra para conseguir ter acesso a isso.

6 CONCLUINDO
Acreditamos que as considerações gerais apontadas no começo deste documento em relação
à importância do plurilinguismo em nível mundial e local (mais precisamente na UFSC) na
atualidade, assim como as observações em relação aos documentos e a análise mais criteriosa dos
dados estatísticos fornecidos pela administração do vestibular da UFSC constituem claras
evidências de que as línguas alemã, italiana e francesa devam ser mantidas no vestibular da UFSC,
e, inclusive, ampliadas.
Já a possibilidade de exposição desta argumentação no âmbito de um evento como este
certamente contribuirá para que os colegas da UFSC e das outras universidades nas quais a oferta de
línguas “minoritárias” ainda acontece nos seus respectivos vestibulares fiquem atentos para que as
tomadas de decisão para sua eliminação (é, afinal, uma tendência inegável, e infelizmente parece
estar associada principalmente a questões econômicas)6 não deixem de passar por uma discussão
mais ampla, envolvendo nela pessoas comprometidas com os direitos linguísticos plenos da
comunidade em geral. Na UFSC tivemos a chance de nos fazer ouvir no fórum deliberativo
enquanto voz do Departamento de Língua e Literatura Estrangeiras e de todo o Centro de
Comunicação e Expressão, mais o Colégio de Aplicação. Talvez em um lance de pura sorte, cujos
detalhes não cabem ser explorados aqui. Mas acreditamos que, uma vez que nos posicionamos
enquanto departamento a favor da manutenção das línguas alemã e italiana (por razões identitárias,
por terem um papel e um lugar inegável na sociedade catarinense e sul-brasileira) e também a

6
Em Santa Catarina, por exemplo, a ACAFE, fundação responsável pelo vestibular aplicado em 16
universidades e fundações universitárias catarinenses, em 2005, retirou de seu vestibular as línguas alemão,
francês e italiano, sem qualquer consulta à comunidade, simplesmente alegando razões financeiras.
8

francesa no nosso vestibular, nos tornamos visíveis e podemos contribuir, tanto em termos teóricos
como políticos, no desenrolar dessa discussão.
Calvet (2007, p. 36) chama a atenção que na política linguística há também política e que as
intervenções na língua ou nas línguas têm um caráter eminentemente social e político. E ele nos
lembra que “se as ciências raramente estão ao abrigo de contaminações ideológicas, a política e o
planejamento linguístico não escapam à regra.” Entendemos que algumas escolhas que
aparentemente pouca relação têm com o que classicamente entendemos por “política linguística”
podem sim disparar efeitos marcantes nos sentimentos linguísticos, nas relações que os falantes
estabelecem com as línguas de seu convívio diário, na própria função das línguas. Existe afinal um
laço estreito entre língua e sociedade.

7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CALVET, L.-J. As políticas linguísticas. Coleção: Na Ponta da língua 17. Tradução: Duarte,
I. O., Tenfen, J., Bagno, M. São Paulo: Parábola Editorial, 2007.

DE OLIVEIRA, G. M. Prefácio. In: CALVET, L.-J. As políticas linguísticas. São Paulo:


Parábola Editorial, 2007, p.7-10.

KAUFMANN, G. Deutsch und Germanistik in Brasilien. In: Jahrbuch für Internationale


Germanistik 35(1), 2003, p.29-39.

LEI nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (LDB) Disponível em:


<http://www.senado.gov.br/sf/legislacao/const/con1988/CON1988_05.10.1988/CON1988.ht
m> Acesso em: 07 out. 2011.

DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS LINGÜÍSTICOS. Disponível em:


<http://www.unesco.pt/cgi-bin/cultura/docs/cul_doc.php?idd=14>. Acesso em: 07 out. 2011.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

MEMÓRIA, MEDO E SILÊNCIO: A SITUAÇÃO DOS DESCENDENTES DE MI-


GRANTES ITALIANOS DO VALE DO RIO DO PEIXE/SC

Maristela Fatima Fabro (PPGSP /UFSC)1

RESUMO

O medo requer silêncio como enunciação. Em Santa Catariana está situado o Vale do Rio do
Peixe que durante o Estado Novo (1937-1945), sofreu forte ingerência da política nacionalista
brasileira. Isso interferiu de modo decisivo na vida dos descendentes de migrantes italianos
daquela região que tiveram a sua identidade étnica e cultural “arrancadas”. O Estado, em re-
definição, objetivava gerar nos migrantes estrangeiros uma nova identidade “a brasileira” em
zonas de colonização estrangeiras. Para atingir o objetivo de impor a língua nacional, o inter-
ventor, Nereu Ramos tomou diversas medidas de cunho repressivo (coerção física direta) e de
domínio (educação) para que a língua portuguesa substituísse a língua dos “estrangeiros”.
Este trabalho objetiva apresentar pesquisa via memória indicando como estas medidas, hoje,
entre os remanescentes da experiência, reverberam e tem como tática o silêncio. Corolário de
pesquisa de mestrado, os resultados indicam uma tensão ainda, hoje, existente nos idosos en-
trevistados corporificada no medo e na negação da memória daqueles momentos.

Palavras-chave:
Memória. Medo. Língua Italiana.

ABSTRACT

Fear requires silence as enunciation. Santa Catarina is situated in the Vale do Rio do Peixe
that during the Estado Novo (1937-1945), was strongly interfered by brazilian nationalist po-
litical. This has interfered in a decisive way the lives of descendants of Italian migrants in the
region that had their ethnic and cultural identity "plucked". The State, in reconstruction,
aimed to generate in foreign migrants in areas of foreign colonization a new identity, "the
brazilian" one. To achieve the goal of imposing a national language, the intervening, Nereu
Ramos, took various measures of repressive nature (direct physical coercion) and domain (ed-
ucation) to replace the Portuguese language to the foreigners. This paper aims to present re-
search via memory indicating how these measures remains until today the remanants of expe-
rience and has reverberating silence as a tactic. Corollary master's research, the results indi-
cate a tension that exists until today in the interviewed elderly embodied in fear and denial of
the memory of those moments.

Keywords:
Memory. Fear. Italian language.

1
Maristela Fátima Fabro é graduada em licenciatura e bacharelado em Ciências Sociais pela Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC), especialista em Ciência da Educação, pela Universidade do Sul de Santa
Catarina (UNISUL), mestre e doutoranda em Sociologia Política PPGSP pela Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC); bolsista (CAPES/REUNI); e-mail: maristelafabro@hotmail.com.
2

1 APRESENTAÇÃO
O presente artigo tem como objetivo avaliar as implicações causadas pela imposição
da cidadania “brasileira” nos descendentes de migrantes italianos instalados no Vale do Rio
do Peixe em Santa Catarina.
No meio oeste catarinense está situado o Vale do Rio do Peixe, uma região com forte
migração de descendentes de italianos e alemães que passaram a ser considerados “inimigos
internos” por manterem a sua cultura de origem italiana.
O período destacado em nossos estudos para esta análise são os anos de 1937 até 1945,
durante o Estado Novo. O Presidente brasileiro era Getúlio Vargas, que comandava o país
com “mão de ferro”. Um de seus objetivos era garantir a soberania nacional, nacionalizando o
país. Para isso, tomou diversas medidas que afetariam, principalmente, a vida dos estrangeiros
que residiam no sul do país e que não usavam a língua portuguesa para se comunicar.
Em Santa Catarina, Getúlio Vargas nomeou para seu interventor Nereu Ramos que
ajudou a promover a nacionalização, principalmente, na área educacional, utilizando a escola,
o professor e os inspetores escolares.
Dessa maneira, a política de nacionalização que atingiu a educação foi uma das princi-
pais medidas do governo de Getúlio Vargas durante o Estado Novo e interferiu de modo deci-
sivo na vida dos migrantes italianos e seus descendentes. Muitos já haviam nascido em solo
brasileiro, contudo, mantinham a cultura e a língua materna italiana.
Assim, por consequência, o medo de falar a língua italiana passou a ser o cotidiano
dos migrantes e descendentes estrangeiros instalados no sul do país, muitos passaram a não
mais sair de suas casas e a evitar falar em lugares públicos.
Este trabalho objetiva apresentar pesquisa via memória, indicando como estas medi-
das, ainda hoje, reverberam sobre os remanescentes da experiência e que usam como tática o
silêncio.
Por corolário de pesquisa de mestrado, os resultados indicam, nos dias de hoje, a exis-
tência de uma tensão entre os idosos entrevistados, resquícios do medo sofrido naquele perío-
do. Foram realizadas 16 entrevistas, sendo 4 homens e 12 mulheres, com idade entre 72 a 80
anos. Sob a orientação da professora Drª Elizabeth Farias da Silva e está inserido na temática
do Núcleo de Pesquisa “Projetos globais e o estranho. Situações locais e o diverso”, registrado
junto ao CNPQ.
3

2 O CONTEXTO DO ESTADO NOVO: BREVE EXPOSIÇÃO


Em 10 de novembro de 1937, com a efetivação do Golpe de Estado brasileiro, Getúlio
Vargas dá início à nacionalização do país, destacando-se entre seus objetivos o fortalecimento
do Estado-Nação e a soberania nacional, dentre outros.
Aquele contexto de valorização extrema do nacional fez com que Getúlio Vargas se
utilizasse de diversos meios para alcançar seus objetivos, dentre eles “moldar os verdadeiros
brasileiros”.
Desse modo, “Construir o nacionalismo era, ao mesmo tempo, desconstruir as dife-
renças e proceder a uma seleção na formação da cidadania brasileira”. (SCHWARTZAMAN;
BOMENY; COSTA, 1984, p. 150).
Esses estrangeiros que haviam imigrado inicialmente para o Brasil, com o objetivo de
suprir a falta de braços para trabalhar na lavoura e “[...] promover uma regeneração dos males
atribuídos ao expressivo contingente de negros e mestiços na composição da população brasi-
leira [...] dando assim um lugar ao branqueamento desta mesma população” (FALCÃO, 1999
p. 169), passaram a ser considerados um perigo para a total nacionalização do país. Eles man-
tinham a cultura e a língua falada em seu país de ascendência, neste trabalho representados
pelos de origem italiana.
Não falar a língua nacional passou a ser umas das maiores preocupações do governo
brasileiro e catarinense. Os migrantes e descendentes geralmente distantes das cidades, for-
mavam suas colônias e mantinham a cultura materna.
Outro fator preocupante para os governante é destacado por Santos (2000, p. 28-29):
“A expansão do nazismo, o receio de controle do Sul do País pela Alemanha e a deflagração
da Segunda Guerra Mundial exacerbaram as perseguições”, como consequência alguns mi-
grantes e descendentes foram presos ou sofreram represálias por parte dos brasileiros pelo
motivo de manterem sua identidade étnica.
Assim, para impor a língua nacional Nereu Ramos, o interventor catarinense, tomou
diversas medidas de cunho repressivo (coerção física direta) e de domínio (educação) para
que a língua portuguesa substituísse a língua dos “estrangeiros”. Dessa maneira, as decisões
políticas sobre a língua nacional e seus usos foram impostas a uma geração de crianças em
idade escolar.
4

3 O VALE DO RIO DO PEIXE: CONTEXTOS


O Vale do Rio do Peixe está situado no meio oeste de Santa Catarina,2. O povoamento
do oeste catarinense deu-se por diversos processos, dentre eles destacam-se, a Guerra do Con-
testado e a construção da estrada de ferro São Paulo – Rio Grande do Sul.
A Guerra do Contestado foi uma disputada por terras entre os estados de Santa Catari-
na e Paraná. Essa região era composta por posseiros e os antigos construtores da estrada de
ferro. O conflito findou-se no ano de 1916, como consequência, foram definidos os limites
daquela região e criados os municípios de Cruzeiro/Joaçaba e de Chapecó (PIAZZA; HÜBE-
NER, 1983).
Outro fator que favoreceu a colonização foi a construção da estrada de ferro que ligou
Rio Grande do Sul a São Paulo, pela empresa Brazil Railway Co., conhecida como Sindicato
Farqhar. Para a construção, a empresa recebeu como pagamento quinze quilômetros de terras
ao longo dos trilhos. O início da construção foi no ano de 1908 e, em primeiro de setembro
de 1910, foram inauguradas as estações da Barra de São Bento (Luzerna) e de Herval (Herval
d‟ Oeste) que receberam muitos migrantes oriundos do Rio Grande do Sul, atraídos pelas pro-
pagandas de venda de lotes de terra (UNC - Museu do Contestado, 2007; HEINSFELD,
1996).
Com o esgotamento da fronteira agrícola das velhas colônias no estado do Rio Grande
do Sul e a oferta da chamada nova fronteira em Santa Catarina, a migração se intensificou e
fez com que muitas famílias mudassem para o meio oeste com o objetivo de se manterem
unidas pela proximidade das terra, o que não acontecia mais no estado vizinho.
Santa Catarina passou a ser escolhida pelas características semelhantes das encontra-
das no Rio Grande do Sul, uma região pouco povoada, com muitas terras e produtividade a
oferecer a quem quisesse trabalhar e prosperar (RADIN, 2003; HEINSFELD, 1996, NODA-
RI, 2009).
Heinsfeld (2001) grifa que a colonização do Vale do Rio do Peixe ocorreu por inter-
médio da pequena propriedade agrícola e reforça que ocorreram migrações com outras carac-
terísticas étnicas e culturais, tal como, a alemã, de outras regiões do Estado e de outros esta-
dos brasileiros.
Esses novos municípios foram surgindo em terras que ficavam próximas ao curso do
Rio de Peixe e, na sua margem esquerda, têm-se os trilhos da Estada de Ferro São Paulo – Rio

2
Nomes atuais dos municípios. É composto por diversos municípios destacando-se: Joaçaba, Herval D´Oeste,
Caçador, Rio das Antas, Videira, Tangará, Luzerna, Lacerdópolis, Pinheiro Preto, Piratuba, Capinzal, dentre
outros.
5

Grande do Sul, que passa em terras catarinenses. O mapa 1 mostra o traçado da estrada de
ferro, cortando o estado de Santa Catarina e seguindo o curso do Rio do Peixe.

Mapa 1: Vista Parcial do estado de Santa Catarina que é cortado pelo Rio do Peixe e pela Malha Viária da Estra-
da de Ferro
Fonte: Santos (2000, p. 17)

Fiori (1991, p. 100) relata que, “No Estado de Santa Catarina, os núcleos populacio-
nais de imigrantes estrangeiros desenvolveram-se, quase sempre, relativamente isolados geo-
graficamente e distantes do contato com as populações brasileiras”, assim, a língua materna
permaneceu como língua falada; muitos desconheciam a língua portuguesa. Com a implemen-
tação da política de nacionalização, a escola passa ter outra função, a de “moldar uma nova
cidadania” para os nascidos em solo brasileiro que ainda mantinham outra cultura, outra lín-
gua.

4 A ESCOLA NACIONALISTA
Para “moldar os estrangeiros” e fazer com que eles se tornassem os “verdadeiros brasi-
leiros”, a escola foi utilizada. A manipulação dos corpos e mentes, a introdução da educação
física para “moldar o corpo” e o ensino dirigido, fundamentais para a nacionalização das cri-
anças descendentes de migrantes europeus não ibéricos.
Fiori (2003, p. 13) aponta: “a política imigratória nacional, todavia, não incluía preo-
cupações educacionais, e, assim, as zonas de colonização estrangeira apresentavam-se caren-
tes de estabelecimento públicos de ensino [...]”.
6

Muitas famílias que chegavam a Santa Catarina vinham com filhos, muitos, em idade
escolar. Assim, com a formação das pequenas vilas, havia a necessidade de construção da
igreja, do cemitério e da escola.
Desse modo, os próprios migrantes eram os responsáveis pelas escolas e o professor
era alguém da própria comunidade. Seyferth (1999, p. 292), aponta que a escola alemã tinha
como finalidade, “[...] atender às necessidades de ensino elementar de uma população estran-
geira, mas aos poucos tomou uma feição étnica, assumida na configuração da etnicidade como
instrumento da germanidade e perpetuadora da língua e cultura alemã”. Reforça, “nessa pers-
pectiva, objetivava educar os filhos dos imigrantes como cidadãos brasileiros pertencentes à
etnia (ou nação) alemã, dando-lhes uma consciência étnica [...]”.
Assim, as crianças educadas em escolas mantidas pelos migrantes, aprendiam a língua
os costumes do país de ascendência, sendo esse um fator de interesse cada vez maior na cria-
ção de escolas particulares que se proliferaram em zonas de colonização estrangeiras. Nesse
sentido, segundo Monteiro (1979, p. 2) “[...] para milhares de brasileiros, o desconhecimento
de nossa língua, de nossa história, de nossa geografia, de nossa cultura”.
Segundo Campos (2008, p. 240) em Santa Catarina, o interventor Nereu Ramos, ado-
tava uma posição centralizadora, que tinha por eixo central de sua política, a normalização da
língua sobre imigrantes, e grifa que “se pode identificar, na prática de imposição do uso da
língua nacional, os elementos de um verdadeiro culto à linguagem”.
Esses fatores faziam com que a nacionalidade brasileira fosse desconhecida para mui-
tos migrantes e descendentes. Muitos pais só aceitavam se os professores fossem da mesma
origem, garantindo o repasse da cultura do seu país de origem (CAMPOS, 2008).
As primeiras medidas de nacionalização ocorrem no início dos anos 30, segundo des-
taca Seyferth, (2003, p. 57) “A campanha de nacionalização brasileira planejava „erradicar as
influências externas‟ através da assimilação compulsória dos descendentes de imigrantes, que
se encontravam etnicamente diferenciados”, atingindo assim todas as etnias não brasileiras, ou
seja, “abrasileirar uma população considerada estrangeira, à força, se necessário”.
Em Santa Catarina, o Interventor Nereu Ramos, sancionou de diversos decretos esta-
duais, impôs maior eficiência na nacionalização do ensino, o principal método utilizado foi a
proibição do ensino da língua de origem dos migrantes, o qual tinha o sua validade assegurada
pelo Decreto-Lei nº88, de 31 de março de 1938, que estabelecia as normas relativas ao ensino
primário, em escolas particulares no Estado. (PIAZZA; HÜBENER, 1983).
Seyferth (1999, p. 211) reforça sobre o processo de nacionalização:
7

A campanha educativa além da escola incluía, portanto, outras formas de incutir


„sentimentos de brasilidade‟, como palestras cívicas em clubes, estímulo à formação
de grupos de escoteiros, exposição de retratos de heróis nacionais e diversas autori-
dades, frases de efeito („Quem nasce no Brasil é brasileiro ou traidor‟) afixadas em
prédios públicos, hospitais, sedes de associações recreativas etc., e serviço militar
obrigatório em local distante da comunidade étnica.

Os livros de leitura, com ensino dirigido didaticamente ao bom aluno, apresentavam


textos direcionados ao seu desenvolvimento, destaca-se: o texto número 25 do Primeiro Li-
vro de Leitura3 (1945):

Boas qualidades e defeitos das crianças


O menino aplicado ouve tudo o que diz o professor e por isso aprende com facilida-
de.
O menino leviano e vadio nunca presta atenção às palavras do professor; cuida mais
de observar as moscas do que estudar as lições; ficará por isso ignorante.
O menino delicado sabe agradecer às pessoas que lhes fazem algum favor ou lhe dão
algum presente; cumprimenta as pessoas mais velhas; é um menino amável.
O menino grosseiro não agradece os favores que recebe; nem cumprimenta as pes-
soas de respeito; é um menino desagradável.
O menino serviçal gosta de ajudar aos outros, o menino egoísta cuida só de si.
O menino discreto não fala torto e a direito e sabe guardar segredos.
O menino agradecido lembra-se sempre do favor que lhe fizeram e é amigo da pes-
soa que lhe faz bem.
O menino ingrato esquece-se dos benefícios que recebe e não gosta do seu benfeitor.
O menino que chega à escola à hora certo, é pontual.
O menino descuidado chega sempre atrasado à escola e não prepara as lições.
(s/a, p. 34-35, destaques do autor)

Outro exemplo é a Lição 29 do Primeiro Livro de Leitura (1945), que descreve:

Ao entrar na aula.
Bom dia! Bom dia!
Começa o labor,
Produz alegria
Do estudo o fervor,
Meu mestre, meu guia,
Meu bom professor!
Ninguém de improviso
Consegue saber.
Na vida é preciso,
Lutar, aprender,
Quem fica indeciso
Não pode vencer.
É vão todo o ensino
Que a Deus não conduz;
Por isso me inclino,
Pedindo que a luz
Do auxílio divino
Me tragas Jesus!
(AFONSO CELSO, p. 43).

3
Foi mantida a escrita original do texto.
8

Do Terceiro Livro (1939), foi retirada a lição 36:

Oração Pela Pátria


Deus, que tantas nações creaste,
Que tantos povos glorificaste,
Na longa história que o mundo encerra!
O‟ Deus clemente, não desampares
O amor que habita em nossos lares!
Cobre de bênçãos a nossa terra!
Terra de sol, de estrêlas e de rosas,
Quando dormes, feliz, em plácido abandono,
O Cruzeiro do Sul das noites gloriosas
Abre os braços de luz, para benzer-te o sono!
O‟ Deus, que fazes a vida e a morte!
Torna essa Pátria ditosa e forte
Dos verdes campos à verde serra!
E reine eterna felicidade
Em cada vila, casa cidade
E cada aldeia da nossa terra!
Terra de infinitos céus e gigantes montes,
Quando dormes, exhausta, em plácido abandono,
O Cruzeiro do Sul, dourados horizontes,
Abre os braços de luz, para benzer-te o sono!
O‟ Deus, a Pátria será contigo...
E se a bandeira correr perigo
Entre os funestos clarões de guerra,
O‟ Deus, ó fonte dos bens supremos,
Pela bandeira nós morreremos,
Beijando a terra da nossa terra!
Terra das nossas mães! Pátria bendita e pura,
Quando dormes, feliz, em plácido abandono,
O Cruzeiro do Sul, que sôbre ti fulgura,
Abre os braços de luz, para benzer-te o sono!
(ORESTES GUIMARÃES JÚNIOR, 1939, p. 62).

Capelato (1998, p. 228-229) cita várias lições do livro “O Brasil é bom4” que eram di-
recionadas ao propósito de reeducar as crianças:

Na lição 11 do livro “O Brasil é bom”, colocou-se a pergunta: “O imigrante é um


mal?” A resposta dizia:
Não o imigrante que trabalha no campo, que exerce atividade agrícola, é um colabo-
rador da riqueza nacional. O imigrante que ensina seu filho a falar a nossa língua a
ser um bom brasileiro merece nosso respeito e a nossa estima. Só não merecem o
nosso respeito e nossa estima os que se converterem em elementos de perturbação da
vida nacional, exercendo atividades políticas proibidas pela Constituição do Brasil.
O Brasil é dos brasileiros. O Brasil recebe e acolhe os estrangeiros, mas não quer
inimigos debaixo de seu teto. Brasileiros, tenhamos orgulho do Brasil! O Brasil é
bom. (destaques do autor).

4
Não foi localizada autoria da obra e data de publicação do mesmo. “O Brasil é bom” é uma obra de caráter
didático, descrito por Capelato, O Brasil é bom, DNP, 1938.
9

Desse modo, Durkheim (1978, p. 41) grifa que, a educação é o meio em que a criança
é preparada para garantir a sua existência, é essencial no desenvolvimento de toda uma socie-
dade, e que:

A educação é ação exercida, pelas gerações adultas, sobre as gerações que não se
encontram ainda preparadas para a vida social, tem por objetivo suscitar e desenvol-
ver, na criança, certo número de estados físicos, intelectuais e morais, reclamados
pela sociedade política, no seu conjunto, e pelo meio especial a que a criança, parti-
cularmente, se destine.

Segundo Durkheim (1984, p. 69): “[...] muito longe da educação ter por objectivo úni-
co e principal o indivíduo e seus interesses, a educação é antes do mais, o meio pelo qual a
sociedade renova perpetuamente as condições próprias de sua existência”. E reforça:

A educação não se limita a desenvolver o organismo individual no sentido traçado


pela natureza, em evidenciar potencialidades ocultas que apenas anseiam revelar-se.
Ela cria no homem um „homem novo‟, e este é constituído por tudo quanto de me-
lhor há em nós, por tudo quanto faculta valor e dignidade à existência. Esta virtude
criadora é, aliás, um privilégio especial da educação humana. (Durkheim, 1984, p.
71).

Nesse sentido, percebe-se a importância da escola e da educação como meio de inter-


ferência a favor dos ideais nacionalistas de Getúlio Vargas. Essa ação imposta sob os corpos
das crianças nas escolas moldou “o novo cidadão”. Assim, Machado (2008, p. XX) aponta:

A ação sobre o corpo, o adestramento do gesto, a regulação do comportamento, a


normalização do prazer, a interpretação do discurso, com o objetivo de separar,
comparar, distribuir, avaliar, hierarquizar, tudo isso faz com que apareça pela pri-
meira vez na história esta figura singular individualizada – o homem – como produ-
ção de poder. Mas também, e ao mesmo tempo, como objeto de saber.

Foucault (1986, p. 125) reforça sobre o uso do corpo como um “objeto e alvo do po-
der” e reforça que “Encontraríamos facilmente sinais dessa grande atenção dedicada então ao
corpo - ao corpo que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil
ou cujas forças se multiplicam” e que:

A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e di-


minui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra:
ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma <<aptidão>>, uma <<capa-
cidade>> que ela procura aumentar; inverte por outro lado a energia, a potência que
poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita. Se a exploração
econômica separa força e produto do trabalho, digamos que a coerção disciplinar es-
tabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação
acentuada. (FOUCAULT, 1986, p. 127).

Os professores nas escolas públicas utilizavam a língua nacional para o ensino. Com o
decreto 88 – já mencionado – alterou-se o ensino nas demais escolas, os professores tiveram
10

que se adaptar. Caso a escola não cumprisse a lei, ela seria fechada e em muitos casos aberta
outra em seu lugar.
Para garantir que fossem cumpridas as normas criou-se o cargo de inspetor escolar,
suas funções eram: de visitar, fiscalizar e orientar todas as escolas nos aspectos administrati-
vos e pedagógicos, além de fiscalizar e garantir que o ensino fosse realizado em língua nacio-
nal. (FIORI, 1991). A criação da Inspetoria Geral de Escolas Particulares e Nacionalização do
Ensino está descrita no Decreto-Lei 124 de 18 de junho de 1938.
Para os entrevistados os inspetores escolares deixaram lembranças, como relata Zelinda
(2010): quando “[...] vinha o inspetor daí nós ganhava réguada se não fazia como ele queria.
Se falava em italiano na escola ele brigava”. Mafalda (2010) relata: “Vinha o inspetor que
vinha ver, o inspetor vinha ver as provas. O inspetor dizia que na margem não se escreve, ele
era brabo, exigente”. Duzolina (2010) lembra que:

O inspetor escolar era muito brabo, ele repreendia ela, porque ela (a professora des-
cendente de italianos) não sabia pronunciá bem, um dia ela foi ler uma frase e leu e
errou a pronuncia, o inspetor repreendeu ela e ensinou falar correto. Sotaque em ita-
liano, uma palavra que não soube pronunciar, ela tinha pouco estudo, era pouco es-
tudada, mas era a única que tinha.

Segundo destaca Campos (2006, p. 19) “A prática interventora do Estado junto à soci-
edade foi tomada como parte do movimento dirigido para modificar comportamentos e senti-
mentos dos indivíduos na sua vida cotidiana. [...] Isso implicou uma nova relação estabelecida
entre o Estado e a sociedade”, esse movimento nacionalista atingiu diversas instituições, des-
taca-se a família, a escola, os espaços de trabalho e o lazer.
Assim, as crianças foram aprendendo a nova língua e ensinando em casa, contudo, os
mais idosos tinham maiores dificuldades em aprender o novo idioma. Desse modo, o silêncio
e o medo passaram a fazer parte de cotidiano destes “estrangeiros”.

5 O MEDO E O SILÊNCIO
Segundo Seyferth (2003, p. 57), muitos imigrantes e descendentes passaram a se iso-
lar, com medo de prisões ou represálias pela descendência estrangeira e por falarem outra
língua que não a nacional.
Segundo Fáveri (2005, p. 43): “Em Santa Catarina, como em todo o país, alemães,
italianos, japoneses e descendentes foram alvos suspeitos na mira da população e da polícia, o
que oportunizava, então enfrentamentos étnicos”.
11

Muitos adultos passaram a evitar o contato em locais públicos com os brasileiros, como
comunicar-se em outra língua fosse um crime5. Perazzo (2009, p. 26) grifa que “Em busca
desse projeto nacional-moderno, de cunho autoritário e nacionalista, o Estado Novo identifi-
cou e perseguiu aqueles que foram considerados „perigosos à segurança nacional”.
A proteção dos pais para com os filhos era evidente, assim como o medo e a preocupa-
ção com a represália por parte das autoridades e dos próprios brasileiros. Percebe-se nos rela-
tos dos entrevistados:
Pedro (2009):“O pai exigia que nós não falassem em italiano ou falasse bem baixi-
nho na vila, em casa tudo em italiano”.
Luíza (2010) conta que sua mãe dizia para aprender a falar em brasileiro.
Zelinda (2010) rememora que a mãe dizia para ele se cuidar.
Mafalda (2010): “A mãe dizia para cuidar porque o cara vinha escutar; podia ser
preso”.

A utilização do poder via coerção física, foi um dos modos encontrados para que o po-
der local, por meio de seus “espiões”, garantisse a nacionalização de todos os estrangeiros.
Como conta a entrevistada Inês (2010): que o homem espiava à noite, mas de dia era amigo
de sua família. Os espiões estavam a todo o tempo escutando atrás da porta, pelas frestas ou
pelas janelas; qualquer pessoa que falasse em língua que não fosse a portuguesa era entregue
ao inspetor de quarteirão. Outros relatos dos entrevistados:

Duzolina (2010): “eles ficavam vigiando”.


Inês (2010) “Não se podia falar em italiano, tinha espiões que vinham escutar se a
gente falava em italiano, ou se ouvia o rádio em italiano. Ele espiava e ia contar de-
pois pro delegado. A gente tinha um medo! Quando escurecia, a mãe mandava fe-
char bem a casa”.
Mafalda (2010): “Lembro do nego que vinha escutar na janela do lado da rua para
escutar se falavam em italiano e a rádio. Sim, tinha tempo lá que tinha proibido falá
em italiano, mas a gente em casa falava mesmo [...].”
Hortência (2010): “O pai encostava a orelha no rádio para ninguém de fora ouvir o
que ele estava escutando, ele tocava tudo nóis pro quarto. O pai dizia que podia ca-
sar com tudo as raças menos com negro”.
Alcides (2010): “Tinha um metido a bandidão um não podia falar em italiano que
ele entregava”. Assim alguns descreveram o “espião” como sendo um homem sim-
ples, mas o que chamou atenção da entrevistadora foi o sentimento de raiva expresso
ao falarem do espião negro.
.
Desse modo, Fabro (2010, p. 147-148) aponta que: “O sentido do silêncio que passou a
ocorrer dentro das casas das famílias de imigrantes e de seus descendentes foi o modo encon-
trado para que pudessem garantir a sua liberdade fora de casa perante a sociedade”. Assim,
reafirma Filomena (2010) “As pessoas tinham medo de sair de casa, medo de falá na cidade, a
gente tinha o português muito ruim, a gente falava muito mal”.

5
Orlandi (2009, p. 113) escreve que havia o conceito de crime idiomático criado no Estado Novo que se apoiava
em decreto do Estado sobre a língua que deveria ser falada. Ver Decreto-Lei 88 de 31 de março de 1938.
12

Silenciar foi à tática encontrada por muitos; apenas ouvir ou sussurrar; essa foi a media-
ção para um momento tão delicado. Orlandi (1992, p. 31-32) descreve sobre a política do si-
lêncio, o silenciamento:

Aí entra toda a questão do „tomar‟ a palavra, „tirar‟ a palavra, obrigar a dizer, fazer
calar, silenciar, etc.
Em face dessa sua dimensão política, o silêncio pode ser considerado tanto como
parte da retórica da dominação (a da opressão) como de sua contrapartida, a retórica
do oprimido (a da sua resistência).

Assim, como o silêncio, que dura até hoje: a memória restringe os fatos que são conta-
dos, a lembranças dos fatos acontecidos no passado muitas vezes traz dor e tristeza. Dessa
maneira, Orlandi (1992, p. 51) o “[...] o silêncio não é interpretável, mas compreensível”, esse
silêncio atingiu inclusive os espaços privados e as relações mais íntimas dos lares e das rela-
ções familiares.
Segundo Orlandi (1992, p.52), “Compreender o silêncio é explicar o modo pelo qual ele
significa”. Explicar o silêncio refletido na necessidade de sobrevivência. A campanha nacio-
nalista por meio da força atingiu seu objetivo de impor uma nova cidadania para os conside-
rados “estrangeiros”.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decorrer desta pesquisa analisamos os fatos acontecidos durante o Estado Novo
(1937-1945) em Santa Catarina, com destaque para o Vale do Rio do Peixe, uma região com
forte migração de alemães e italianos.
Com o Estado Novo (1937-1945) veio à política de nacionalização imposta pelo presi-
dente Getúlio Vargas. Em Santa Catarina, sob o comando do Interventor Nereu Ramos utili-
zou diversas medidas de cunho repressivo e de domínio para que todos seguissem as “regras”
demandas pelos governantes.
As medidas educacionais foram repassadas às escolas e às novas gerações de descen-
dentes de migrantes estabelecidas em Santa Catarina. O objetivo era impor a cidadania brasi-
leira às crianças utilizando a sala de aula como instrumento. Assim, ocorreu a utilização do
corpo como “objeto de poder” e a disciplina ia incutindo esses novos ideais.
O fator mais incômodo era a língua falada de ascendência dos migrantes. O poder de
imposição dos diversos decretos estaduais fez com que a língua nacional substituísse gradati-
vamente a língua estrangeira.
Os mais novos iam aprendendo em sala de aula e repassando às gerações mais velhas,
que já não estavam mais na escola. Os mais idosos tiveram maior dificuldade na aprendiza-
13

gem, como consequência, para evitar prisões e represálias, muitos ficavam restritos as suas
casas. Os que tinham necessidade de ir à cidade ou de se comunicar com outros brasileiros
foram obrigados a aprender a nova língua rapidamente.
Assim, a utilização do poder via coerção física, ocorrida sobre as gerações de estran-
geiros aqui nascidos, por meio de seus “espiões”, foi um dos modos encontrados para que o
poder local realizasse a nacionalização do país.
Nessa questão de quem tem o poder e de quem podia falar, muitos utilizaram como tá-
tica ou defesa o silêncio, um silêncio que por muitas vezes perdurou não só no tempo, mas na
rememoração durantes as entrevistas. Assim, utilizando Orlandi (1992, p. 33, destaque do
autor) [...] o silêncio não fala. O silêncio é. Ele significa. Ou melhor: no silêncio, o sentido é.”
As decisões políticas sobre seus usos em Santa Catarina, fez com que esse novo brasi-
leiro fosse emergindo dentro de uma cultura e deixasse a sua língua de ascendência para falar
a língua nacional. Isso foi seguido à risca por muitos, os pais passaram a falar e a ensinar aos
filhos somente a língua portuguesa.
Desde 20 de dezembro de 1996 com Lei n° 9.394 o Estado-Nação brasileiro assume a
pluralidade cultural, no Capítulo II, artigos 266, entretanto, ironicamente os remanescentes de
um período de autêntica pluralidade cultural não querem relembrar e/ou falar sobre ele.
Dessa maneira, a complexidade deste passado contido nas memórias de muitos des-
cendentes de migrantes sobreviventes e testemunhas do período podem ser analisadas neste
trabalho graças ao medo e decorrente silêncio. Os entrevistados da pesquisa demonstraram o
que era ser considerado um “estrangeiro” durante o período nacionalista via o sentido do si-
lêncio.

7 REFERÊNCIAS
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______, Cyntia Machado. Santa Catarina, 1930: da degenerescência à regeneração. Floria-


nópolis: Ed. da UFSC, 2008.

6
Art. 26. Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional comum, a ser complemen-
tada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas caracterís-
ticas regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela.
§ 4º O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a for-
mação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e européia.
§ 5º Na parte diversificada do currículo será incluído, obrigatoriamente, a partir da quinta série, o ensino de pelo
menos uma língua estrangeira moderna, cuja escolha ficará a cargo da comunidade escolar, dentro das possibili-
dades da instituição.
14

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e no peronismo. Campinas, SP: Papirus, 1998.

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LDB – Lei de Diretrizes e Bases <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9394.htm>.


Acesso em: 31 ago. 2010.

Livros de Leitura

PRIMEIRO Livro de Leitura. Série Fontes. Florianópolis. Tip. Livraria Central. 1945.

TERCEIRO Livro de Leitura. Série Fontes. Florianópolis. Tip. Livraria Central. 1939.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

MEMORIAL ACADÊMICO: UM EXERCÍCIO DE INTERPRETAÇÃO E DE


LEITURA CONCEITUAL BAKHTINIANA1

“Quanto mais leio tenho a impressão de que tudo está aí dentro, do perfume mais discreto da vida ao
sabor pleno e forte de seus frutos mais pesados”.

Rainer Maria Rilke

Régis Bueno da Silva (UFSC) 2

RESUMO

A linguagem, no pensamento bakhtiniano, vem a ser uma prática entre sujeitos e suas relações
com a história e não um sistema estável, pois ela estabelece um lugar na história das
formações ideológicas e daqueles que fazem parte dela, ou seja, a formação de um campo
epistemológico que leva em conta a teoria do sujeito e do sentido como produção e/ou
produtos na/da/pela linguagem. Portanto, convencido de que a Filosofia Bakhtiniana da
Linguagem é um lugar epistemológico de intensa construção e reconstrução de atos únicos,
irrepetíveis e insubstituíveis, propondo um deslocamento em direção de uma pesquisa, de uma
busca constante de dispositivos ou possibilidades dos/das quais se originam o(s) sujeito (s) e
o(s) sentido(s), organizei este artigo em duas partes. A primeira sobre o conceito de exotopia e
as categorias de distanciamento exotópico – a relação entre autor e herói. A segunda diz
respeito à análise da parte introdutória do memorial acadêmico – gênero discursivo, apoiado
na modalidade da escrita autobiográfica –, enfatizando a relação exotópica na autobiografia. É
importante ressaltar que este artigo não é uma análise plenamente elaborada, mas antes um
exercício de interpretação e de leitura conceitual, isto é, algo que foi vivenciado
academicamente como uma escolha epistemológica de pesquisa para área das Ciências da
Linguagem.

Palavras-chave:
Filosofia bakhtiniana da linguagem. Exotopia. Escrita autobiográfica. Memorial acadêmico.
Gênero discursivo.

RÉSUMÉ

La conception du langage chez Bakhtin prend en compte la pratique entre les sujets et ses
relations avec l’histoire et pas un système estable, car il établi un espace dans l’histoire des
formations idéologiques et ceux qui y font partie, c’est-à-dire: la formation d’un champ
épistémologique qui met en évidence la théorie du sujet et du sens en tant que production
et/ou produits dans/ du/ par le langage. Donc, la Philosophie Bakhtinienne du Langage est un
milieu épistémologique d’intense construction et reconstruction de actes uniques, répétables et
irremplaçables, proposant un déplacement en direction d’une recherche incessante de
dispositifs ou possibiltés duquels ou desquelles s’originent le (s) sujet(s) et les sens, j’ai
organisé cet article en deux moments. Le premier à propos du concept d’exotopie et les
catégories d’éloignement exotopique – le rapport entre héros et auteur. La deuxième concerne
à analyse de l’introduction du mémorial académique – genre discursif de l’écriture

1
Artigo elaborado na disciplina Bakhtin e o Círculo: dialogismo e polifonia, ministrado pela Prof.ª Drª Beth
Brait e Prof.ª Drª Norma Campos Discini, do Departamento de Semiótica, da Universidade de São Paulo.
2
Mestre em Letras (UFSM). Professor no Departamento de Língua e Literatura Vernáculas da Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC); e-mail: bsiger@yahoo.com.
2

autobiographique – en mettant en évidence la relation exotopique dans l’autobiographie. Il est


important de dire que cet article n’est pas une analyse achevée, mais avant tout un exercice
d’interprétation et de lecture conceptuelle, c’est-à-dire, avant toute chose, un vécu et/ou
expérience académique en tant que choix épistémologique de recherche dans le domaine de
Sciences du Langage.

Mots-clé:
Philosophie bakhtinienne du langage. Exotopie. Écriture autobiographique. Mémorial
académique. Genre discursif.

1 INTRODUÇÃO
Convencido de que a Filosofia Bakhtiniana da Linguagem é um lugar epistemológico
de intensa construção e reconstrução de acontecimentos (atos) únicos, propondo um
deslocamento em direção de uma pesquisa, de uma busca constante de dispositivos ou
possibilidades dos/das quais se originam o(s) sujeito (s) e o(s) sentido(s), organizei este artigo
em duas partes: a primeira sobre o conceito de exotopia e as categorias de distanciamento
exotópico – a relação entre autor e herói. A segunda parte diz respeito à análise da parte
introdutória do gênero discursivo memorial acadêmico, enfatizando a relação exotópica.
Foi o teórico da linguagem Tzvetan Todorov quem traduziu do russo para língua
francesa a expressão exotopie quando organizava e sistematizava as obras de Mikhail Bakhtin
para o Ocidente, mais precisamente para o contexto francês hexagonal (AMORIM, 2008). A
expressão, por definição dicionarizada, significa “o desdobramento de olhares a partir de um
lugar exterior; olhar externo; visão que o outro tem de mim e que não posso ter”. Já
etimologicamente a palavra exotopia é formada pelo prefixo "ex" que significa fora e "topos"
que significa. Esse conceito, do pensamento bakhtiniano, de se posicionar, de estar em um
lugar exterior tem sua origem na obra Pour une philosophie de l’acte, porém o texto de
referência é “O autor e o herói”, que faz parte do livro Estética da Criação Verbal
(AMORIM, 2008).
A criação estética pressupõe duas entidades constitutivas: a do autor e do herói3. O
autor, segundo Bakhtin, caracteriza-se pela sua objetividade estética, pois vê e sabe tudo e o
todo do herói, isto é, o todo da criação estética, inclusive da obra. Já o herói é aquele que se
orienta pela objetividade ético-cognitiva e seus atos estão no acontecimento aberto da vida e
não da arte. A objetividade estética, própria ao autor, configura-se como uma força

3
Neste trabalho, os conceitos-chave bakhtinianos têm como referência a edição e tradução brasileira de 1992 da
obra Estética e criação verbal. Na edição e tradução do russo para língua portuguesa, tais conceitos-chaves são
denominados como o autor e a personagem. Portanto, para os trabalhos vindouros de pesquisa e formação
docente levaremos em consideração a edição e tradução de 2010, de Paulo Bezerra.
3

centralizadora e de acabamento da objetividade ético-cognitiva. Nessa relação de forças e


tensões, a criação estética é marcada por um gesto fundamental: a exotopia. Tal gesto
caracteriza-se pela tensão entre dois lugares: um, em que o sujeito vive e olha de onde vive, e
o outro de tentar mostrar o que vê do olhar do outro sujeito. O gesto exotópico é que dá o
acabamento e não aprisionamento; “é um ato generoso de quem dá de si” (AMORIM, 2008,
p. 97). Portanto, a exotopia é a relação necessária e constitutiva entre autor e herói - duas
consciências que não se coincidem - e, consequentemente, promovendo acontecimento
estético.
Bakhtin adverte que a relação exotópica em uma obra pode se apresentar, em
momentos diferentes, com intensidades maiores ou menores de exotopia, de acabamento. Mas
antes de passarmos aos três casos típicos de recuo/distanciamento que propõe Bakhtin, é
preciso, muito brevemente, mencionar que a relação exotópica, que designa uma posição
temporal, se constitui pela relação espacial e não pela contradição entre elas: a criação de um
lugar de representação discursiva do herói e do autor. O herói vive “o acabamento aberto da
vida”, uma relação sempre inacabada e para frente, isto é, a sua perspectiva; o seu olhar é
sempre o que está ao seu alcance: o horizonte. O herói não tem consciência de sua própria
existência. Tudo é aleatório e inacabado. Já o autor - aquele que tem consciência do todo -
está posicionado exteriormente, fornecendo uma visão do outro (herói) que é acessível a si
próprio e jamais ao outro: o ambiente. Portanto, o tempo e o espaço fazem parte da
constituição do herói como todo significante. Neste percurso breve sobre a respeito desse
conceito-chave – exotopia – ainda, é fundamental levar em consideração o que assera Bakhtin
(1992, p. 35), a saber :

[...] a exotopia é algo para se conquistar e, na batalha, é mais comum perder a pele
do que salvá-la, sobretudo quando o herói é autobiográfico, embora, esse não seja o
único caso; costuma ser tão difícil situar-se de fora daquele que é o companheiro do
acontecimento quanto fora daquele que é o adversário; tanto faz situar-se dentro do
herói, ao seu lado ou à sua frente, todas são posições que, do ponto de vista dos
valores, desnaturam a visão e não contribuem para completar o herói e lhe assegurar
o acabamento; em todos esses casos, os valores da vida triunfam sobre aqueles que
são depositários. A vida do herói é vivida pelo autor numa categoria de valores
diferente daquela que ele conhece em sua própria vida e na vida dos outros –
participantes reais do acontecimento ético aberto, singular e único, da existência –, é
pensada num contexto de valores absolutamente diferente.

Retomamos, então, as três categorias de distanciamento exotópico. A primeira


corresponde ao herói da confissão que tem domínio absoluto sobre o autor; ambos se fundem.
O caráter romanesco está ausente, inexistente. Para Bakhtin, “o autor não encontra, entre seus
4

próprios valores, um ponto de apoio estável e convincente fora do herói” (1992, p. 37). Na
segunda categoria, o autor tem domínio do herói e o princípio de acabamento está presente. A
relação autor e herói tende, em parte, a uma proximidade do herói consigo mesmo. Essa
categoria é a autobiografia, uma espécie de triunfo sobre a confissão, “um cotejo possível
com um diário íntimo” (DISCINI, 2009). Segundo Tezza, na autobiografia “o portador da
unidade da vida (herói) e o portador da unidade da forma (autor) pertencem ao mesmo mundo
de valores” (1996, p. 298). Portanto, a relação é de cunho axiológico. E a terceira categoria
diz respeito ao herói lírico que delibera ao autor o poder máximo de sua existência estética,
isto é, “o herói é seu próprio autor” (BAKHTIN, 1992, p. 192); ele pensa e organiza a vida do
herói com muita segurança como “num ato de cognição: a autor se aproxima do herói como
de um objeto de cognição” (DISCINI, 2009).
Como segundo estágio das reflexões anteriores, vamos fazer um breve exercício de
interpretação e/ou análise para trabalhar a relação exotópica na parte introdutória do memorial
acadêmico - gênero discursivo, apoiado na modalidade da escrita autobiográfica.
Primeiramente, definiremos memorial acadêmico no âmbito da produção textual/discursiva
acadêmica e, depois, analisaremos dois exemplos de memorial acadêmico.
O memorial acadêmico, gênero autobiográfico, tem sido considerado um instrumento
de avaliação para fins de concurso de ingresso na IFES, na promoção na carreira universitária
- professor titular ou livre-docente - e de exames de seleção ou de qualificação em cursos de
pós-graduação. Recorri ao manual Metodologia do trabalho acadêmico (2002), escrito por
Antônio Joaquim Severino, professor de Filosofia da Educação da Faculdade de Educação da
USP, para obter uma definição mais precisa e acadêmica sobre memorial acadêmico. Para o
autor do manual, o memorial, em linhas gerais, tem como finalidade articular a trajetória
acadêmico-profissional do pesquisador e/ou docente. Porém, mais adiante afirma que o
memorial “constitui, pois, uma autobiografia, configurando-se como uma narrativa
simultaneamente histórica e reflexiva” (SEVERINO, 2002, p. 175). Quanto ao processo de
produção e/ou escritura, o autor do memorial deve dar conta dos fatos e acontecimentos da
trajetória acadêmico-profissional, fazer uma avaliação das perdas e das contribuições das
etapas, situar os fatos e os acontecimentos no contexto histórico-cultural não só por sua
vontade ou omissão, mas por outras “determinações entrecruzadas de muitas outras variáveis”
(SEVERINO, 2002, p. 175).
No que tange, ainda, ao processo de elaboração do relato autobiográfico, é muito feliz
e revelador o que afirma Severino (2002, p. 175-176), a saber:
5

A história particular de cada um de nós se entretece numa história mais envolvente


da nossa coletividade. É assim que é importante ressaltar as fontes e as marcas das
influências sofridas, das trocas realizadas com outras pessoas ou com as situações
culturais.

E quase no fim do texto de Severino a definição de memorial assume o papel de uma


peça – nem autoelogio, nem de autoflagelo – que encena uma trajetória real, autêntica e tecida
de altos e baixos, de conquistas e de perdas (2002, p. 176). Para finalizar, ainda sobre a
elaboração do relato autobiográfico, o autor do manual conclui que a história do autor e/ou
herói – só para usar as categorias bakhtinianas descritas na seção anterior deste artigo - deve
ser “relatada com autenticidade e criticamente assumida, nossa história de vida é nossa
melhor referência” (2002, p. 176).

2 MEMORIAL ACADÊMICO: UM EXERCÍCIO DE INTERPRETAÇÃO E DE


LEITURA CONCEITUAL-DISCURSIVA DA RELAÇÃO EXOTÓPICA
Passaremos agora a uma análise da relação exotópica em dois memoriais. Um deles foi
apresentado ao departamento de Teoria da Comunicação da Escola de Comunicação da
Universidade Federal do Rio de Janeiro no concurso público de provimento do cargo de
professor titular de Teoria Crítica da Cultura em 1993 e co-publicado recentemente pelas
editoras Língua Geral e Carpe Diem. O outro foi apresentado ao Departamento de Ciências
Sociais da Universidade Federal de São Paulo no concurso público de provimento do cargo de
professor adjunto de Teoria Política em 2009. Em linhas gerais, tanto o primeiro quanto o
segundo são apresentados através de uma narrativa autobiográfica. Os episódios (fatos) da
infância, da adolescência, da fase adulta (família, filhos), da relação com os livros, das aulas,
da formação acadêmica (graduação e pós-graduação), das publicações (artigos, ensaios,
livros, etc.), dos aconteciementos socio-econômicos e culturais do país possibilitam estruturar
formalmente o trajeto intelectual. Tudo é narrado com rigor e afeto, transformando-se, muitas
vezes, em uma história de vida emocionante. O resultado são duas narrativas que, juntas,
podem nos mostrar a dimensão do trabalho intelectual desenvolvido tanto da docente-
pesquisadora experimentada e reconhecida na área da Teoria Crítica da Cultura quanto do
docente-pesquisador que inicia suas atividades na docência de ensino superior.
Quanto à relação exotópica – visão que o outro tem de mim e que não posso ter – os
dois memoriais, tanto do primeiro quanto do segundo, nomeiam o outro na parte introdutória
de suas narrativas, isto é, aquele que pode me ajudar ou dar uma noção de quem sou eu,
alguém transcedente a mim - o ambiente de que falamos anteriormente na relação exotópica -,
6

invistindo como autor na busca, no acabamento a partir de um outro que não está tão próximo
quanto o autor e herói autobiográfico.
O primeiro constrói, através do seu autor e/ou herói autobiográfico, sua
argumentação, afirmando seu apreço pelo gênero autobiográfico no que diz respeito à
avaliação institucional para docentes candidatos ao cargo de professor titular e toda mudança
promovida academica e administrativamente, a saber: “gosto de escrever relatórios; meu
encanto pelo gênero - e/ou apreensão – forma intrigante; o memorial, neste novo contexto,
pede um gesto capcioso; a impudência da escrita autobiográfica” (HOLLANDA, 2009, p. 27-
28). Tal preocupação ganha mais relevância quando as questões recaem sobre importância
repentina do memorial acadêmico para avaliar o capital intelectual do postulante ao cargo de
professor titular e, não muito distante temporalmente, considerado pela tradição literária como
gênero menor. Só depois de um longo passeio retórico, nomear o outro, pela figura do
filósofo e epistemólogo francês Georges Gusdorf, para ter o domínio daquilo que deveria
escrever sobre si mesmo, isto é, como deveria dar acabamento ao seu herói; de sua posição de
autor com a do herói. E para isso, afirma que “me restrinjo à noção gusdorfiana de que o
gênero autobiográfico representa a expressão da autoridade individual no reino da
linguagem.” (HOLLANDA, 2009, p.30) Mas cabe lembrar que “todo signo, inclusive o da
individualidade, é social”, nas palavras de Bakhtin (1995, p. 59). Portanto, o herói que está
sendo construído discursivamente é, antes de tudo, um ser social, ideológico e refratário a
qualquer acabamento interno.
O autor do memorial acadêmico declara: “sinto que a autobiografia revela fraturas,
intervalos, não de espaço e tempo ou entre individual e social, mas, sobretudo, uma clara
divergência entre forma e conteúdo de seu discurso” (HOLLANDA, 2009, p. 30). Acredito
que, nesse momento, o processo exotopia começa a ganhar forma e relevância, pois a
objetividade estética - propriedade do autor - configura-se como uma força centralizadora e de
acabamento da objetividade ético-cognitiva de propriedade do herói. Mais adiante, sempre
sob olhar de Gusdorf, também questiona sobre o distanciamento entre escritor (autor) e o
sujeito (o “eu”, o herói) requerido pela escrita autobiográfica e revela o seguinte: “O sujeito
que escreve é, portanto, suposto conhecer-se e o processo deste conhecimento é, na verdade,
um processo de diferenciação entre ele e os outros”. (HOLLANDA, p. 31). Ou ainda:
“Procuro localizar de que lugar da ordem simbólica vem esta visão de história de vida”.
Ainda sob o ponto de vista gusdorfiano, as reflexões do autor do memorial acadêmico,
sobre a composição do herói, tomaram o rumo da interferência e do poder que poderia
provocar a escrita autobiográfica no que diz respeito ao público e ao privado do herói na
7

narrativa. Observamos o que revela o autor: “Como, no momento, procuro uma forma de me
situar enquanto sujeito neste memorial, percebo, com uma certa perplexidade, as tensões que
experimento entre minha vida particular e minha atuação pública”. (HOLLANDA, 2009, p.
31). Nas próximas linhas e parágrafos seguintes faz algumas observações sobre as
autobiografias femininas, mas são comentários, reflexões, enfim, possibilidades de
interpretações.
No último parágrafo da parte introdutória, o autor do memorial primeiro conclui que a
sua posição como herói pode ocupar vários lugares na narrativa, vejamos: “Tenho a sensação
de que, em princípio, nesse memorial, poderia escolher me colocar em qualquer posição,
tomar qualquer partido.” (HOLLANDA, 2009, p. 32). Esta afirmação revela, pela primeira
vez, o deslocamanto da posição de autor para a posição de herói da narartiva autobiográfica,
confirmando, assim, o que assevera Bakhtin sobre a definição de herói autobiográfico: “O
herói empreende determinar a si mesmo, a autoprojeção do autor se entranhou na alma do
herói e nas suas palavras”. Tal deslocamento não siginifica a troca de posições e, sim, a
possibilidade de uma grande proximidade entre autor e herói; são quase (grifo nosso)
intercambiáveis (TEZZA, 1996, p. 298). Segundo, o modelo gusdorfiano não é um modelo a
ser seguido, pois o autor do memorial não se reconhece no referido modelo proposto pelo
filósofo e epistemólogo francês e tantopouco tem o talento epistolar das autoras Virgínia
Woolf, Anis Nin e Gerturde Stein. Da refutação do modelo gusdorfiano e da produção
autobiográfica feminina, o autor nomeia seu herói como sendo uma professora universitária
de carreira e postulante ao cargo de professor titular: “É nesta categoria que posso definir
minha posição nesta narrativa”. (HOLLANDA, 2009, p. 32). E terceiro, o autor do memorial
rende-se à escrita autobiográfica, pressupondo uma relação esteticamente produtiva a partir de
um olhar interno (imanente) até a criação de uma ficção como resultado final daquilo que
deve ser contruído ao longo de suas memórias, isto é, duas consciências - autor e herói - que
não são intercambiáveis e tendo como resultado o acontecimento estético. “Toda
autobiografia é necessariamente ficcional. Este memorial não conseguirá ser uma exceção”.
(HOLLANDA, 2009, p. 32), assevera o autor. Portanto, a criação de um lugar de
representação discursiva e ética do herói e do autor pressupõe tanto uma relação temporal
quanto uma relação espacial - constitutiva e não contraditórias - para acabamento estético.
No segundo memorial acadêmico, o autor do memorial acadêmico nomeia já nas
primeiras linhas o pintor austríaco Friedrich Stowasser, mais conhecido por Hundertwasser,
para estabelecer o acabamento estético que pretende dar ao seu herói autobiográfico com a
seguinte frase: “O pintor austríaco Hundertwasser disse, certa vez, que o cientista, o
8

revolucionário, o místico e o artista têm muita coisa em comum, pois não estão satisfeito com
o mundo e querem transformá-lo” (COMPARATO, 2009, p. 1). Mas logo em seguida
manifesta: “Gosto muito desta frase. Mal comparado, pois não sou nem revolucionário, nem
místico e muito menos artista, a frase me inspira e entusiasma, pois ela une os vários
interesses a que já me dediquei até aqui” (COMPARATO, 2009, p. 1).
A partir da afirmação do autor em questão, observo que nem as posições socioculturais
profissionais nem mesmo a ideia da insatisfação com o mundo e da transformação dele são os
paradigmas e/ou eixos que poderiam estabelecer um lugar, um olhar exterior, mas, sim, o seu
interesse, a sua curiosidade, o seu espírito de investigação sobre diferentes lugares
“epistemológicos”. Nas primeiras linhas do memorial, o autor revela que seu herói poderá
requerer, para fins de acabamento estético, “novas formas de acabamento que ele próprio
destrói com sua autoconsciência” (Bakhtin, 1992). Creio que a relação exotópica se
constituirá em um constante deslocamento dialético.
Nos parágrafos seguintes, com uma leitura mais atenta, fica patente que o princípio de
auto projeção do autor será de um herói autobiográfico que sempre está à procura de algo.
Esse caráter investigativo, de pesquisa vem de muito cedo: “desde a infância vivi rodeado de
livros por todos os lados. Filho de pais professores e grandes leitores, aprendi desde cedo a
disputar o meu espaço com os livros e apreciá-los” (COMPARATO, 2009, p. 1). No que
tange à sua formação acadêmica, vejamos o que autor diz: “Creio que a área de humanas seja
mesmo aquela que o destino me reservou, apesar de um desvio nada desprezível pela área de
exatas”. (COMPARATO, 2009, p. 1). A partir desta afirmação, o autor reitera a posição do
herói como aquele que olha para dois lugares e propõe, talvez, um terceiro onde há a
possibilidade de se constituir, de se construir e/ou se desconstruir. Não há a negação total,
nem aceitação confortável, mas talvez as duas áreas - humanas e exatas - fossem dois eixos
com (auto) projeção de um terceiro. Mais adiante essa postura de herói bipartido – no sentido
daquele que olha simultaneamente para frente e para trás - entre dois lugares epistemológicos
fica mais evidente pela dupla nacionalidade parental - “Pelo lado materno, eu e minhas duas
irmãs herdamos a língua francesa e a cultura europeia” (COMPARATO, 2009, p. 2) - pela
valorização de duas culturas diferentes - “aprendemos a valorizar as artes e a literatura,
testemunhas de realidades e visões de mundo diferentes como a brasileira e a francesa”
(COMPARATO, 2009, p. 2) - pela educação básica bilíngue - “Educados na Escola bilíngue
Liceu Pasteur” (COMPARATO, 2009, p. 2) - e convívio familiar no exterior - “a cada viagem
à Europa para encontrar a família francesa” (COMPARATO, 2009, p. 2).
9

No percurso da análise da parte introdutória, intrigava-me o fato de a auto projeção do


autor sob herói se apresentar e se resolver tão sinteticamente, tão “la juste mesure”. Vejamos
o que induz o autor do memorial: “formados pelo método cartesiano que privilegia a clareza
da argumentação e o raciocínio lógico” (COMPARATO, 2009, p. 2). Tal postura não reside
na diferença entre as histórias de vida, seja ela pública (acadêmica) ou privada; ou na postura
retórica sobre as reflexões oriundas da escrita autobiográfica como a posição do herói, do
público e do privado, a questão do gênero e seus limites e, sim, no método de exposição e na
argumentação originários de uma formação europeia, mais precisamente francesa, que
enfatiza a clareza e a ordem.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Cabe lembrar que a interpretação e a construção desse recorte teórico e de análise
estão somente na sua fase inicial e esperando novas contribuições e sugestões teóricas, mas
considero, a partir do pensamento bakhtiniano, o gênero discursivo memorial, levando em
conta as contribuições de Severino (2002), como uma arena onde lutam e se defrontam
valores sociais contraditórios. E não peça, pois a imagem me parece muito harmônica - os
valores e os papéis já estão instaurados e definidos - e quando se fala de discurso como signo
ideológico nada é harmônico e, sim, dialético, significante e concreto. Levo em conta,
também, que o ato de escrever e/ou assinar um memorial é reconstituir o sentido da vida. Não
querendo pecar por exagero, diria reconstituir a própria existência do ser no mundo, pois o
sujeito humana e historicamente – seja autor, seja herói - define-se como uma instância
discursiva e ética, isto é, o lugar da fala (> da palavra> do discurso> da biosemiose) como
centro organizador e formador de efeitos de sentido. No pensamento bakhtiniano, a linguagem
vem a ser uma prática entre sujeitos e suas relações com a história e não um sistema estável,
pois ela estabelece um lugar na história das formações ideológicas e daqueles que fazem parte
dela, ou seja, a formação de um campo epistemológico que leva em conta a teoria do sujeito e
do sentido como produção e/ou produtos na/da/pela linguagem.
Para finalizar, é importante ressaltar que este não é um trabalho plenamente elaborado,
mas antes um exercício de interpretação, de leitura conceitual que retomei e de certa forma,
deu continuidade a algumas leituras, anotações e reflexões feitas a partir da experiência
docente, isto é, algo que foi vivenciado academicamente como uma escolha epistemológica de
pesquisa e formação de docentes.
10

4 REFERÊNCIAS

AMORIM, Marília. Cronotopo e exotopia. In: Brait, Beth (Org.). Bakhtin: outros conceitos-
chave. São Paulo: Contexto, 2008, p. 95-114.

BAKHTIN, Mikhail. O problema do herói na atividade estética. In: BAKHTIN, Mikhail.


Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 25-42.

_____. A forma espacial do herói. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São
Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 43-113.

_____. (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1995.

COMPARATO, Bruno Konder. Memorial circunstanciado. São Paulo: Mimeo, 2009.

DISCINI, Norma Campos. Tópicos do pensamento bakhtiniano em operacionalização


analítica (V). São Paulo: Mimeo, 2009.

HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Escolhas: uma autobiografia intelectual. Recife/Rio de


Janeiro: Carpe Diem; Língua Geral. 2009, pp. 27-32.

RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. Tradução de Paulo Rónai. São Paulo:
Editora Globo, 1996.

SEVERINO, Antonio Joaquim. Metodologia do trabalho científico. São Paulo: Cortez,


2002.

TEZZA, Cristovão. Sobre O autor e o herói - um roteiro de leitura. In: FARACO, Carlos A.
(org.). Diálogos com Bakhtin. Curitiba: 1996, pp. 273-303.

VOLOSHINOV, Valentin Nikolaevich. Le discours dans la vie et le discours em poésie. In:


TODOROV, Tzvetan. Mikhail Bakhtin: le principe dialogique. Suivi de Écrits du Cercle de
Bakhtine. Paris: Seuil, 1981.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

1
MUDANÇA LEXICAL NA ÁREA SEMÂNTICA DE BRINCADEIRA INFANTIL:
PESQUISA GEOLINGUÍSTICA REALIZADA NAS SEIS ZONAS DE MANAUS

Soraya Paiva Chain (PPGLg/UFSC/UFAM)1

RESUMO

Ao se observar como as crianças, em Manaus, denominam hoje uma dada brincadeira infantil,
que nas décadas anteriores a esta recebia, na cidade, uma outra denominação, resolveu-se
investigar o fato por meio de entrevistas anotadas. O objetivo desta pesquisa geolinguística é
mostrar que a brincadeira infantil em questão não é mais nomeada, na comunidade de fala,
Manaus, com o mesmo item lexical utilizado nas décadas anteriores. É nomeada, agora, com
o item lexical utilizado pelos falantes dos estados do Rio de Janeiro e São Paulo. O estudo foi
realizado nas seis zonas da capital amazonense. Em cada zona foi selecionada uma escola e
nela foram feitas oito entrevistas. Dos 48 alunos entrevistados, metade tem de 6 a 10 anos e
são do 1º ao 5º ano escolar e, a outra metade tem de 11 a 14 anos e são do 6º ao 9º ano. Nas
entrevistas, foi utilizada a questão de nº 167 do Questionário Semântico Lexical do Atlas
Linguístico do Brasil (AliB), que indaga sobre o nome da brincadeira em que as crianças
riscam uma figura no chão, formada por quadrados numerados, joga uma pedrinha e vão
pulando com uma perna só. Com o levantamento das denominações dadas pelos 48
informantes, foram registradas três para essa brincadeira, sendo que o item lexical amarelinha
foi obtido como primeira resposta em 100% das entrevistas. Macaca, que era o termo
utilizado pelos manauaras nas décadas anteriores, foi obtido como segunda resposta somente
em 2,083% das entrevistas e, como forma sugerida em 12,5%. Não foi surpresa constatar a
mudança do léxico nomeador da brincadeira infantil analisada. Ela pode ter ocorrido por
conta do contato com pessoas que fixam residência em Manaus, vindas, do RJ e SP, dentre
outros estados, e/ou da mídia, com a apresentação de programas infantis, produzidos nestes
estados.

Palavras-chave:
Brincadeira infantil. Macaca. Amarelinha. Geolinguística. Manaus.

ABSTRACT

Observing how children, in Manaus, nominate a given determined child's game today, which
in the last decades had another name, I decided to investigate such a matter by taking notes
through interviews. The objective of this geolinguistics research is to show that the childish
game in question is no longer named in the speech community, Manaus, with the same lexical
item used in previous decades. It is named now, with the lexical item used by speakers of the
states of Rio de Janeiro and Sao Paulo. The study was accomplished in the six zones of the
Amazon capital. In each zone was selected one school and eight interviews were made in it.
Out of the 48 respondents students, half of them are 06 to 10 years old and are the 1st through
5th grade school and the other half are 11 to 14 years old and are from 6th to 9th grade. In the
interviews, It was used the question number 167 from Lexical Semantic Questionnaire of Lin-
1 Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC) e Professora da Universidade Federal do Amazonas (UFAM); e-mail: sorayachain@ufam.edu.br.
2
guistic Atlas of Brazil (Questionário Semântico Lexical do Atlas Linguístico do Brasil –
AliB), which asks about the name of the game on which children scratch a figure on the
ground, consisting of numbered squares, and throw a stone and skip with just one leg. With
the removal of the names given by the 48 informants, It was registered three names for this
game, and the lexical item amarelinha was the first response in 100% of the interviews.
Macaca, which was the term used by manauaras in previous decades, was the second answer
in just 2,083% of the interviews and, as a way suggested by 12.5%. It was no surprise to see
the changing of the nominator lexicon of childhood play analyzed. It may be due to contact
with people who take up residence in Manaus, coming, from Rio de Janeiro and Sao Paulo,
among other states, and/or of the media, that present children's programs produced in these
states.

Keywords:
Childsh game. Macaca. Amarelinha. Geolinguitics. Manaus.

1 INTRODUÇÃO
Observando a palavra manga nas sentenças abaixo,
1. Maria manga de João.
2. João está com uma manga cortada.
pode-se verificar que na sentença 1 a palavra manga é verbo e, na 2, manga é substantivo,
porém não dá pra saber se manga é 'fruta' ou 'parte da vestimenta'.
De acordo com Oliveira (2008), o contexto desambiguiza as palavras polissêmicas.
As sentenças, em que elas são proferidas, não são isoladas, são proferidas dentro de um
contexto.
Então, se João estiver comendo algo com faca na mão, manga vai significar a 'fruta'
cortada que João está comendo, mas se a sentença for proferida por Maria, que é estilista,
enquanto dá uma última analisada nos seus manequins, antes de eles estarem na passarela,
manga vai significar 'parte da camisa' de João.
Manga, além de polissêmica (dois ou mais significados, que não têm relação entre si,
em contextos diferentes), pode ser tratada também como homônima (significados diferentes,
que têm relação entre si, com a mesma grafia – homógrafas – e/ou com a mesma pronúncia –
homófonas).
Oliveira (2008, p. 20) diz que “os homônimos podem ter a mesma forma gráfica e a
mesma forma fonológica, o que os caracteriza como homônimos perfeitos”. Manga, então, é
um homônimo perfeito, pois tem-se mais de um significado, sem relação, para ela com a
3
mesma grafia e a mesma pronúncia.
Decidir se um vocábulo é polissêmico ou homonímico é uma questão difícil até
mesmo para os semanticistas e lexicógrafos.
Em Lyons (1987, p. 143) é proposto que “a única forma de resolver, ou talvez
delimitar, o problema tradicional da homonímia e polissemia é abandonar totalmente os
critérios semânticos, na definição do lexema, contando apenas com os critérios sintáticos e
morfológicos”. Assim, manga se transformaria em manga¹ (verbo P3, Id, Pr), manga² (fruta) e
manga³ (parte da camisa), ou seja, três palavras.
Já Lehrer (apud Oliveira 2008, p. 111-112) desvia-se da distinção entre homonímia e
polissemia, abordando o significado por meio dos campos lexicais, ou seja, “nas teorias do
campo, o problema de distinguir entre homonímia e polissemia é evitado porque as palavras
que pertencem a campos lexicais diferentes serão tratadas como palavras diferentes [...]”.
Manga, 'uma fruta', pertence ao campo das comidas, manga, 'parte da vestimenta', pertence ao
campo das roupas e, manga, 'ação de zombar', pertence ao campo dos verbos. Um campo
lexical é constituído por palavras que pertencem a uma mesma área de conhecimento.
Partindo de uma perspectiva diatópica, que investiga a mudança linguística em
determinados espaços geográficos, pesquisou-se a mudança lexical no campo semântico de
brincadeira infantil, obtida junto a 48 falantes, nascidos em Manaus, distribuídos pelas 6
zonas da comunidade de fala analisada – a cidade de Manaus –, tomando como base a questão
167 do Questionário Semântico-Lexical do Atlas Linguístico do Brasil.
Obteve-se como nome da brincadeira os itens lexicais 'amarelinha', 'macaca' e
'macaquinha'. Descontextualizado, 'macaca' pode ser animal, 'amarelinha' pode ser cor no
diminutivo e 'macaquinha' pode ser animal no diminutivo e vestimenta.
Mas, de acordo com Oliveira (2008), contextualizado, sabe-se se 'amarelinha' retrata
a brincadeira infantil ou a cor no diminutivo.
Ou então, de acordo com Lyons (1987), que sugere o abandono dos critérios
semânticos, considerando os sintáticos e os morfológicos, tem-se macaca¹ (brincadeira
infantil) e macaca² (animal).
Ou ainda, de acordo com Lehrer (apud Oliveira 2008), tem-se 3 palavras diferentes
por se tratar de campos lexicais diferentes: macaquinha, 'uma brincadeira infantil', pertence ao
campo das brincadeiras; macaquinha, 'nome de animal no diminutivo feminino', pertence ao
4
campo dos animais e; macaquinha, 'roupa feminina', pertence ao campo das indumentárias.
Além da polissemia e da homonímia, há também a sinonímia. O significado em
Lyons

[…] pode ser descritivo, expressivo e social; e muitos lexemas combinam pelo
menos dois deles, senão três. Se a sinonímia for definida como identidade de
significado, poderemos dizer que os lexemas são completamente sinônimos (em
uma certa faixa de contextos) se, e somente se, tiverem o mesmo significado
descritivo, expressivo e social (na faixa de contextos em questão). Poderão ser
descritos como absolutamente sinônimos se, e somente se, tiverem a mesma
distribuição e forem completamente sinônimos em todos os seus significados e
contextos de ocorrência (1987. p.111).

Consoante a isto, pode-se dizer que amarelinha, macaca e macaquinha são lexemas
sinônimos, mas não completamente sinônimos, pois seus significados expressivo e social não
são equivalentes, e muito menos absolutamente sinônimos, pois não são intercambiáveis em
todos os contextos de ocorrência. Pode-se então observar que amarelinha, macaca e
macaquinha são sinônimos incompletos, segundo a nomenclatura de Dubois et alli (2009).
O objetivo desta pesquisa é mostrar que a comunidade de fala – Manaus –,
influenciada tanto pela mídia, através de programas infantis produzidos principalmente no Rio
de Janeiro e em São Paulo, quanto pelo contato com imigrantes, vindos de outras regiões do
país para fixar moradia nesta cidade, não usa mais o item lexical que denominava a citada
brincadeira infantil nas décadas anteriores a esta. Utiliza, agora, para tal brincadeira, o mesmo
item lexical que as comunidades de fala das cidades do Rio de Janeiro e São Paulo usam.

2 ALGUMAS INFORMAÇÕES SOBRE AS SEIS ZONAS DA CIDADE DE MANAUS


Manaus é dividida pela prefeitura da cidade em seis zonas administrativas. São elas:
Norte, Sul, Centro sul, Leste, Oeste e Centro Oeste. Estão representadas na figura que segue,
respectivamente, nas cores amarela, vermelha, laranja, azul escuro, azul claro e verde.
5
Figura I - As seis zonas administrativas da cidade de Manaus.

(Imagens de bairros de Manaus. Disponível em < http:


//www.manausonline.com/images/mapa_bairros2.gif > Acesso em: 04 set. 2010).

Cada zona compreende um número de bairros, que, no total, somam 56. Estão
representados na figura abaixo.

Figura II - os bairros da cidade de Manaus.

(Imagens dos bairros de Manaus. Disponível em < http://i63.photobucket.


com/albums/h137/joaobbb/mapa_bairros_manaus.gif > Acesso em: 04 set. 2010).
6
ZONA NORTE ZONA SUL ZONA CENTRO SUL ZONA LESTE ZONA OESTE ZONA CENTRO OESTE

44- Col. Santo 1- Centro 37- Flores 23- Coroado 6- São Raimundo 36- D. Pedro I
Antônio 2- Aparecida 38- Parque 10 32- Distrito Industrial 7- Glória 15- Planalto
45- Novo Israel 3- Presidente Vargas 39- Aleixo 33- Mauazinho 8- Santo Antônio 16- Alvorada
46- Col Terra Nova 4- Praça 14 de Janeiro 40- Adrianópolis 34- Col. Antônio Aleixo 9- Vila da Prata 17- Redenção
47- Santa Etelvina 5- Cachoeirinha 41- N. Sra das Graças 35- Puraquequara 10- Compensa 18- Bairro da Paz
48- Monte das 19- Raiz 42- São Geraldo 52- Armando Mendes 11- São Jorge
Oliveiras 20- São Francisco 43- Chapada 53- Zumbi dos Palmares 12- Santo Agostinho
49- Cidade Nova 21- Petrópolis 54- São José Operário 13- Nova Esperança
22- Japiim 55- Tancredo Neves 14- Lírio do Vale
24- Educandos 56- Jorge Teixeira 50- Ponta Negra
25- Santa Luzia 51- Tarumã
26- Morro da Liberdade
27- Betânia
28- Col. Oliveira Machado
29- São Lázaro
30- Crespo
31- Vila Buriti

Segundo a ARSAM – Agência Reguladora dos Serviços Públicos do Estado do


Amazonas – “a cidade de Manaus, atualmente, possui em torno de 420 áreas residenciais,
abrangendo conjuntos, condomínios, invasões e loteamentos” (Divisão administrativa da
cidade de Manaus. Disponível em < http://www.arsam.am.gov.br/novo/?q=node/163 > Acesso
em: 29 set. 2010).
A Zona Norte de Manaus é a segunda maior região da cidade e, na última década, foi
a que mais cresceu em termo populacional; ocupa a maior área do município, mais de 6000
km²; tem o maior bairro da cidade, a Cidade nova, que abriga mais de 210 mil moradores; e é
constituída por seis bairros. Esta zona apresenta um dos piores índices de educação do
Amazonas, mas loca um dos melhores colégios do estado, a Escola Estadual Dulcineia Varela.
Nessa região reside grande quantidade de pessoas de baixa renda que chegam de outros
municípios do Amazonas ou de outras cidades do país.
A Zona Sul de Manaus é a região com o maior número de bairros, são 17. Nessa
zona temos o Centro, bairro mais agitado da cidade, com o Teatro Amazonas, símbolo do
município, e um dos mais importantes teatros brasileiros, além de ser o mais belo; há também
os bairros mais antigos da cidade, Colônia Oliveira Machado, Educandos, entre outro; O
Japiim é o bairro mais populoso desta zona, com uma população de aproximadamente 58.616
habitantes para uma área de 420.000 hectares. Essa zona, talvez pelo fato de alguns de seus
bairros serem banhados pelo Rio Negro, loca pessoas vindas de outros municípios do
Amazonas.
A Zona Centro Sul é a região mais nobre da cidade, além de ser a que possui o maior
número de prédios. Ocupa uma área pequena do município, no total não chega a 1000 km e,
7
grande parte dela pertence ao Estado. É a zona mais urbanizada e a que apresenta os menores
problemas sociais, com uma população de quase 200.000 e renda média de quase R$ 4.000
por habitante – dados do IBGE 2008. Estão localizados nesta zona os quatro maiores
shoppings centers de Manaus: o maior de toda a região norte – o Manauara Shopping; o
segundo maior e mais antigo da cidade – o Amazonas Shopping; e o Millenium Center,
considerado um dos shoppings mais luxuosos do norte do país. Esta é uma das zonas que mais
abriga pessoas mais abastadas advindas de outras cidades do Brasil.
A Zona Leste de Manaus é a maior região da cidade e forma com a Zona Norte a
macrozona conhecida como “zona de crescimento”. Pessoas menos abastadas, advindas de
outros municípios do Amazonas ou de outras cidades do país fixam residência em uma destas
zonas. Nesta zona estão localizados o maior centro comercial do município e alguns dos
bairros mais populosos, além de ser a zona mais populosa da cidade. A ocupação da Zona
Leste é diversa, há tanto bairros ricos, quanto bairros pobres. Há, nela, dois shoppings centers,
o maior hospital do estado – o Pronto Socorro João Lúcio Pereira Machado – e a maior
maternidade da Região Norte – a Maternidade Ana Braga. É também nesta zona que está
situado o Campus da UFAM – considerada a primeira universidade brasileira – que cobre uma
área de aproximadamente 600 hectares, com floresta primária, floresta secundária e áreas
desmatadas com plantações.
A Zona Oeste de Manaus ocupa quase 2000 km do município. Os bairros dessa
região são os mais próximos do Rio Negro. O maior bairro dessa zona é a Compensa que
abriga mais de 70 mil moradores. A Zona Oeste possui uma população muito diversificada,
pois nela está localizado o bairro mais luxuoso da cidade, a Ponta Negra, que, além de ser um
dos cartões-postais do município, é um bairro turístico, com condomínios e prédios
luxuosíssimos, anfiteatro, hotel, restaurantes, estacionamento e muito mais. Este bairro é
procurado por pessoas abastadas que vêm de outras cidades fixar residência em Manaus. Em
contra-partida, vemos no bairro Tarumã o crescimento de favelas e uma infra-estrutura
precária, observada com a falta de asfalto, água e eletrificação. Fora a Ponta Negra, os outros
bairros banhados pelo Rio Negro (Tarumã, Santo Agostinho, Compensa, Santo Antônio, São
Raimundo e Glória) abrigam grande parte de pessoas vindas de municípios vizinhos, talvez
por intermédio do rio.
A Zona Centro Oeste de Manaus é uma das regiões mais bem localizadas da cidade.
8
Ocupa quase 1500 km do município. O maior bairro desta zona é o Alvorada, que abriga
quase 70 mil moradores. Há também o Bairro da Paz e o Dom Pedro I, que, dentre outros são
bairros nobres. Este último possui uma das maiores praças de alimentação da cidade e um dos
maiores e melhores hospitais da Região Norte, o Instituto de Medicina Tropical de Manaus,
conhecido como Hospital Tropical. Essa zona possui apenas 5 bairros de classes médias e
altas, vários conjuntos, avenidas de grande fluxo e comércio bem desenvolvido. Quase não há
favelas. Igualmente a Zona Centro Sul abriga pessoas com mais recursos, vindas de outras
cidades do país, principalmente das regiões Sudeste e Sul.
Vê-se então que Manaus é uma cidade plural, cheia de riquezas e de pobrezas, mas é
uma cidade maravilhosa, a capital do estado do Amazonas, que fica no centro da maior
floresta tropical do mundo e possui uma área de 11.401 km², sendo 229.504 km² de perímetro
urbano.

3 DADOS DO ALAM SOBRE O LÉXICO DA BRINCADEIRA INFANTIL


ANALISADA
O Atlas Linguístico do Amazonas – ALAM –, em seu Questionário Semântico-
Lexical, apresenta a questão 78 que pergunta “qual a brincadeira em que as crianças riscam
uma figura no chão, formada por quadradinhos numerados, jogam uma pedrinha (mímica) e
vão pulando com uma perna só?”.
Os dados do ALAM foram coletados em 9 municípios do Amazonas (Barcelos, Tefé,
Benjamin Constant, Eirunepé, Lábrea, Humaitá, Manacapuru, Itacoatiara e Parintins) por
meio de entrevistas feitas com 6 informantes de cada município, sendo 3 do sexo feminino e 3
do sexo masculino.
Para cada uma das três faixas etárias consideradas (18 a 35; 36 a 55; 56...) foi
entrevistado um informante de cada sexo.
Na Carta Semântico-Lexical de número 82 do ALAM, estão representadas as
respostas obtidas da questão 78. De nenhum entrevistado de todos os municípios, obteve-se o
item lexical 'amarelinha' como resposta.
Dos 54 entrevistados, 38 não souberam nominar a brincadeira, 15 a nominaram com
o item lexical 'macaca' e 1 informante a nominou com o item lexical 'saci'.
9
4 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Para a realização deste trabalho, utilizou-se a Geografia Linguística que, de acordo
com Coseriu (1982 apud BRANDÃO, 1991, p. 11), é
[…] o método dialetológico e comparativo […] que pressupõe o registro […] de
formas linguísticas (fônicas, lexicais ou gramaticais) comprovadas mediante
pesquisa direta e unitária numa rede de pontos de determinado território, ou que,
pelo menos, tem em conta a distribuição das formas no espaço geográfico
correspondente à língua […]

Os dados aqui apresentados foram coletados em entrevistas feitas com 48


informantes, nascidos em Manaus, distribuídos pelas seis zonas da cidade.
Foram entrevistados 8 informantes de cada zona, sendo 4 do sexo masculino e 4 do
sexo feminino.
Metade dos 48 informantes está na faixa etária de 6 a 10 anos de idade e são do 1º ao
5º ano escolar. A outra metade está na faixa etária de 11 a 14 anos e são do 6º ao 9º ano.
As entrevistas foram realizadas em Escolas Estaduais, sendo uma escola de cada
zona da cidade.
Zona Norte – Escola Estadual Júlio César de Moraes Passos, no bairro Cidade Nova.
(bairro de número 49 da figura II)
Zona Sul – Escola Estadual Balbina Mestrinho, no bairro Cachoeirinha (bairro de
número 5 da figura II)
Zona Centro Sul – Escola Estadual Anderson de Menezes, no bairro Parque 10
(bairro de número 38 da figura II)
Zona Leste – Escola Estadual Rilton Leal Filho, no bairro Armando Mendes (bairro
de número 52 da figura II)
Zona Oeste – Escola Estadual Antônio Encarnação Filho, no bairro Lírio do Vale
(bairro de número 14 da figura II)
Zona Centro Oeste – Escola Estadual Francisca Botinelly Cunha e Silva, no bairro
Dom Pedro II (bairro de número 36 da figura II)
O estudo tem como objetivo investigar a variação lexical relativamente à
denominação da brincadeira infantil na qual se desenham formas quadradas ou retangulares
no chão e a criança joga uma pedrinha e vai pulando nas formas, ora com uma perna só, ora
com duas pernas. As entrevistas foram feitas com a pergunta: qual o nome da brincadeira em
10
que as crianças riscam uma figura no chão, formada por quadradinhos numerados, jogam uma
pedrinha e vão pulando, ora com uma perna só, ora com duas pernas?, baseada na questão 167
do Questionário Semântico Lexical do Atlas Linguístico do Brasil (ALiB).
As respostas obtidas foram analisadas e descritas com base nas variáveis
extralinguísticas: sexo e faixa etária/escolaridade dos informantes.

5 ANÁLISE E DISCUSSÃO SOBRE A MUDANÇA LEXICAL


Foram obtidos, com o levantamento das denominações dadas pelos 48 informantes
das seis zonas de Manaus, 100% das respostas válidas, registrando três denominações para a
brincadeira infantil que foi pesquisada.
O item lexical 'amarelinha' aparece como primeira resposta em 100% das entrevistas;
'macaca' e 'macaquinha' aparecem como segunda resposta, cada uma dada por apenas um
entrevistado; e, dentre as formas sugeridas, seis dos entrevistados disseram que conhecem o
item lexical 'macaca' como também denominador da mesma brincadeira infantil, nomeada
primeiramente por eles como 'amarelinha'.
Em todas as seis zonas de Manaus, o item lexical 'amarelinha' apresentou-se de
forma categórica na primeira resposta. Como segunda resposta, há um registro de 'macaca' na
zona norte e um registro de 'macaquinha' na zona sul. Como forma sugerida, 'macaca' é
registrada três vezes na zona leste, duas vezes na zona oeste e uma vez na zona sul.
Foram descartadas as informações obtidas em relação a algumas formas sugeridas
por se apresentarem inadequadas a esta pesquisa. Em todas as entrevistas, depois de obter-se a
primeira resposta, a resposta espontânea, e inquirir uma segunda resposta, a resposta
adicional, sugeria-se itens lexicais, utilizados, para denominar a mesma brincadeira infantil,
em outras cidades/estados brasileiros, tais como: 'macaca' (Manaus, Belém); 'amarelinha' (RJ,
SP, PR, GO, MG); 'sapata' (fronteira do RS com Argentina); '(a)cademia' (Recife); 'avião'
(Maceió); 'pula macaco' (Salvador).
Como exemplo de respostas descartadas tem-se: 'macaca' – animal; 'academia' – local
de fazer atividades físicas; 'avião' – transporte aéreo.

Quadro 1 - Distribuição diatópica dos itens lexicais, de acordo com as zonas manauaras.
11
1ª resposta 2ª resposta formas s ugeridas

Norte amarelinha macaca

Sul amarelinha macaquinha macaca

Centro Sul amarelinha

Leste amarelinha macaca

Oeste amarelinha macaca

Centro Oeste amarelinha

O quadro 1 mostra a hegemonia do item lexical 'amarelinha' em todas as zonas


manauaras e apresenta dois outros itens lexicais (macaca e macaquinha) que ainda são
lembrados espontaneamente como segunda resposta e, um dentre estes (macaca) também é
lembrado, se sugerido.
Observam-se, então, os resultados da pesquisa, considerando as variáveis
extralinguísticas: sexo e faixa etária/escolaridade.
Os gráficos I e II apresentam resposta espontânea, segunda resposta e forma
sugerida, considerando a variável extralinguística sexo, nas seis zonas manauaras.

Gráfico I – Distribuição diatópica dos itens lexicais que designam a brincadeira infantil
analisada, considerando a variável extralinguística sexo masculino nas seis zonas de Manaus.

100

amarelinha

macaca

macaquinha

12,5
0
Z. Norte Z. Sul Z. Centro Sul Z. Leste Z. Oeste Z. Centro Oeste
12

Gráfico II – Distribuição diatópica dos itens lexicais que designam a brincadeira infantil
analisada, considerando a variável extralinguística sexo feminino nas seis zonas de Manaus.

100

amarelinha

macaca

macaquinha

37,5

12,5
0
Z. Norte Z. Sul Z. Centro Sul Z. Leste Z. Oeste Z. Centro Oeste

Pode-se observar que ainda há registro do item lexical 'macaca' na fala dos
manauaras. Essa resistência ocorre mais em falantes do sexo feminino, conforme gráficos I e
II.
Observa-se também um registro de 'macaquinha' (talvez forma carinhosa de
denominar a brincadeira 'macaca' no diminutivo) em apenas 12,5% dos entrevistados do sexo
feminino, como segunda resposta.
Os gráficos III e IV apresentam resposta espontânea, segunda resposta e forma
sugerida, considerando as variáveis extralinguísticas faixa etária/escolaridade, nas seis zonas
manauaras.

Gráfico III – Distribuição diatópica dos itens lexicais que designam a brincadeira infantil
analisada, considerando as variáveis extralinguísticas faixa etária (6 a 10 anos)
e escolaridade (1º ao 5º ano) nas seis zonas de Manaus.

100

amarelinha

macaca

macaquinha

37,5

0
Z. Norte Z. Sul Z. Centro Sul Z. Leste Z. Oeste Z. Centro Oeste
13

Gráfico IV – Distribuição diatópica dos itens lexicais que designam a brincadeira infantil
analisada, considerando as variáveis extralinguísticas faixa etária (11 a 14 anos)
e escolaridade (6º ao 9º ano) nas seis zonas de Manaus.

100

amarelinha

macaca

macaquinha

25
12,5
0
Z. Norte Z. Sul Z. Centro Sul Z. Leste Z. Oeste Z. Centro Oeste

O que se observa em relação à faixa etária/escolaridade é que, na faixa etária mais


jovem, os entrevistados informam que conhecem a denominação 'macaca', através das formas
sugeridas e somente na zona leste.
Na faixa etária mais velha, observa-se que apenas 12,5% das respostas obtidas em
duas zonas (norte e sul) apontam 'macaca' e 'macaquinha', respectivamente, como segunda
resposta e, como forma sugerida, 'macaca' aparece com 25% na zona oeste e com 12,5% na
zona sul.
Percebe-se, com isso, que os falantes mais velhos conhecem mais o item lexical
'macaca', como denominador da brincadeira analisada, que os mais jovens e, na maioria das
vezes, mesmo os mais velhos só o reconhecem, quando lhes é sugerido.

Gráfico V – Distribuição diatópica dos itens lexicais que designam a brincadeira infantil
analisada de 100% das entrevistas nas seis zonas de Manaus.

100

amarelinha

macaca

macaquinha

37,5
25
12,5
0
Z. Norte Z. Sul Z. Centro Sul Z. Les te Z. Oeste Z. Centro Oeste
14
Figura III - Distribuição diatópica das respostas obtidas em todas as entrevistas.

100,00%

100,00% 12,50%

25,00% 0,00%

0,00%

100,00%

37,50%

100,00% 0,00%

0,00% 100,00%

0,00% 0,00%
0,00%

100,00%

12,50%
12,50%

O que se percebe no gráfico V, e que foi colocado na figura III (mapa) para melhor
visualização e compreensão, é que o item lexical 'amarelinha' que é, nos estados do RJ, SP,
PR, GO e MG, o denominador da brincadeira infantil analisada neste trabalho, já é também o
denominador absoluto dessa mesma brincadeira em Manaus (isso também pode ser observado
nos gráficos anteriores), pois é a primeira resposta dada por 100% dos entrevistados de todas
as zonas da cidade.
Já o item lexical 'macaca', que era, em Manaus, o denominador dessa brincadeira
infantil nas décadas anteriores a esta e, segundo o ALAM, é o denominador da brincadeira em
outros municípios amazonenses, aparece como segunda resposta, somente em uma zona
(norte) e, somente em 12,5% das respostas desta zona. Na zona sul, obteve-se o item lexical
'macaquinha' em 12,5% das respostas. Pode ser que 'macaquinha' (macaca no diminutivo) seja
uma forma carinhosa de denominar a brincadeira.
Talvez a incidência do denominador 'macaca/macaquinha' ocorra nas zonas norte e
sul pelo fato de esta obter alguns bairros próximos ao Rio Negro e por isso locar pessoas
vindas de outros municípios do estado e, aquela por ser a maior zona da cidade e a que mais
15
recebeu e ainda recebe pessoas de baixa renda, vindas dos municípios vizinhos e de outras
cidades do país, que vêm fixar moradia em Manaus.
O denominador 'macaca' também é obtido em 37,5% das entrevistas da zona leste,
em 25% da zona oeste e em 12,5% da zona sul, como forma sugerida, ou seja, quando
sugerida pelo inquiridor, o inquirido a reconhece.
A zona leste é, como se viu, a maior região da cidade, além de ser a mais populosa e
abrigar os bairros mais populosos. É também uma das zonas que mais abriga pessoas vindas
de outros municípios do Amazonas, talvez por isso é a que apresenta a maior incidência de
reconhecimento do item lexical 'macaca', como forma sugerida. Já a zona oeste, que apresenta
a segunda maior incidência de reconhecimento do item lexical 'macaca', como forma sugerida,
é a região que agrega os bairros mais próximos ao Rio Negro e, talvez, por intermédio do rio,
abriga grande parte de pessoas vindas dos municípios vizinhos. É também a região que possui
o bairro mais luxuoso da cidade, a Ponta Negra, e, neste, residem pessoas abastadas, vindas de
outras regiões do país, como sul e sudeste. A denominação 'macaca', como forma sugerida,
também aparece, só que com menor incidência, na zona sul de Manaus.
As zonas centro sul e centro oeste são, respectivamente, a região mais nobre e a
região mais bem localizada da cidade. São zonas que abrigam pessoas mais abastadas, em sua
maioria, vindas principalmente das regiões sul e sudeste do país. Pode ser por conta disso que
não foi registrado nenhuma ocorrência de outro item lexical para a brincadeira analisada, fora
o item 'amarelinha', obtido unicamente como primeira resposta nestas duas zonas.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Através desta pesquisa de caráter geolinguístico, pode-se observar que o item lexical
'macaca', que denominava a brincadeira infantil analisada neste trabalho, nas décadas
anteriores a esta, na capital amazonense, foi substituído pelo item lexical 'amarelinha', que é o
denominador da dada brincadeira nos estados do RJ, SP, PR, GO, e MG.
Pela análise dos dados coletados nas entrevistas e pelas informações obtidas sobre as
seis zonas de Manaus, pode-se concluir que o item 'amarelinha' substituiu o item macaca na
capital amazonense. Essa substituição lexical, certamente, deve-se ao fato da migração de
pessoas que vieram de outras regiões do país para fixar moradia em Manaus, e à influência da
mídia, com a apresentação de programas infantis, produzidos principalmente no eixo Rio de
16
Janeiro e São Paulo.

7 REFERÊNCIAS

ARSAM. Divisão administrativa da cidade de Manaus. 22 set. 2008. Disponível em <


http://www.arsam.am.gov.br/novo/?q=node/163 > Acesso em: 29 set. 2010

BRANDÃO, Sílvia Figueiredo. A Geografia linguística no Brasil. São Paulo: Ática, 1991.

COMITÊ NACIONAL DO PROJETO ALIB. Atlas linguístico do Brasil. Questionários


2001. Londrina: Uel, 2001.

CRUZ, Maria Luiza de Carvalho. Atlas linguístico do Amazonas. Cartas Fonéticas e Cartas
Semântico-Lexicais. Vol. II. Tomo II. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004.

______. Atlas Linguístico do Amazonas. Questionário Semântico-Lexical. Vol. II. Tomo I.


Rio de Janeiro: UFRJ, 2004.

DUBOIS, Jean et alli. Dicionário de linguística. 11. ed. São Paulo: Cultrix, 2009.

IMAGENS DE BAIRROS DE MANAUS. Disponível em <


http://i63.photobucket.com/albums/h137/joaobbb/mapa_bairros_manaus.gif > Acesso em: 04
set. 2010.

______. Disponível em < http://www.manausonline.com/images/mapa_bairros2.gif > Acesso


em: 04 set. 2010.

LYONS, John. Linguagem e linguística: uma introdução (tradução). Rio de Janeiro, LTC,
1987.

OLIVEIRA, Luciano Amaral. Manual de semântica. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Zona Centro Oeste (Manaus). Disponível em <


http://pt.wikipedia.org/wiki/Zona_Centro-Oeste_(Manaus) > Acesso em: 27 set. 2010.

______. Zona Centro Sul (Manaus). Disponível em <


http://pt.wikipedia.org/wiki/Zona_Centro-Sul_(Manaus) Acesso em: 27 set. 2010.

______. Zona Leste (Manaus). Disponível em <


http://pt.wikipedia.org/wiki/Zona_Leste_(Manaus) > Acesso em: 27 set. 2010.

______. Zona Norte (Manaus). Disponível em <


http://pt.wikipedia.org/wiki/Zona_Norte_(Manaus) > Acesso em: 27 set. 2010.

______. Zona Oeste (Manaus). Disponível em <


17
http://pt.wikipedia.org/wiki/Zona_Oeste_(Manaus) > Acesso em: 27 set. 2010.

______. Zona Sul (Manaus). Disponível em <


http://pt.wikipedia.org/wiki/Zona_Sul_(Manaus) > Acesso em: 27 set. 2010.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

NARRATIVA E APRENDIZAGEM:
DIFERENÇAS NA CONCORDÂNCIA VERBAL

Lidiomar José Mascarello (PPGLg-UFSC)1

RESUMO
Os principais objetivos dessa pesquisa são: verificar se há diferenças significativas entre
concordância e não concordância no uso do sistema verbal na narrativa escrita de crianças que
vivem em ambientes socioculturais distintos; identificar como a narrativa pode favorecer o
processo de aprendizagem de metalinguagem e como o contexto sociocultural interfere nesse
processo de aprendizagem. Propõe-se aliar conceitos da Psicolinguística, da Linguística
Cognitiva e da Sociolinguística, pois o grande desenvolvimento da ciência e os resultados por
ela apresentados, mais particularmente da neurociência e das ciências sociais, indicam que
não é possível desvincular o processo de aprendizagem da leitura e escrita dos usos sociais da
linguagem da capacidade individual dos sujeitos. O ponto de partida da pesquisa foi
principalmente a tomada de conhecimento das pesquisas de Scliar-Cabral, a leitura das obras
de Pinker e estudos da Sociolinguística. Foram pesquisados dois grupos com 52 alunos cada
um em duas instituições de ensino, sendo uma instituição privada e outra pública. Foram
analisadas 1190 sentenças, 595 de cada grupo, retiradas das narrativas escritas pelos alunos. A
partir dos resultados obtidos na análise quantitativa e qualitativa verificamos que existem
diferenças significativas determinadas pelo aspecto socioeconômico cultural, mas que, no
entanto, na escrita dos alunos a variação da concordância verbal não é muito diferente entre os
dois grupos.

Palavras-chave:
Narrativa. Níveis socioculturais. Produção escrita. Variedades sociolinguísticas.

ABSTRACT
The main objective of this research is to verify if there are differences between verbal
agreement and non-agreement during the use of verbal system in written narrative by children
who live in different sociocultural environments, as well as identify how narratives can ease
the process of metalanguage learning and in which ways the sociocultural context interferes in
this learning process. The proposal here is to join concepts that are related to
Psycholinguistics, Cognitive Linguistics and Sociolinguistics because the development in
science and the results presented by this development - specially in neurosciences and social
sciences - show that it is not possible to unlink writing and reading learning process and the
social uses of language from the individual competence of the one involved in this process.
The start point of this research includes: the study developed by Scliar-Cabral, the reading of
Pinker’s work and some studies on sociolinguistics. In order to accomplish our objective, the
students were divided in two groups of 52 children each, one of them belonging to a public
school and the other to a private one. Each group wrote narratives and this research analyzed
1190 sentences extracted from that narratives (595 of each group). From the results obtained
with quantitative and qualitative analysis, we verified that there are meaningful differences
related to sociocultural aspects but there was not a great variation in verbal agreement in the
writing production of the two groups.

1
Mestre em Linguística pela Pós-Graduação em Linguística da UFSC; e-mail: lidiomarjose@gmail.com.
2

Keywords:
Narrative. Sociocultural levels. Written production. Sociolinguistics varieties.

1 APRENDENDO A USAR VERBOS


Segundo Pinker (2008, p.40/41) a linguagem verbal é constituída por um conjunto de
microcosmos, isto é, são muitas as características que precisam ser levadas em conta ao tentar
defini-la, e o sistema verbal constitui um microcosmo que funciona de certa forma como um
quebra-cabeça: é preciso saber o lugar exato de cada peça para não ter problemas na
montagem e no resultado final. Esse microcosmo se constitui do significado dos verbos, das
possibilidades de cada verbo ser utilizado em sentenças e como as crianças são capazes de
decifrá-los. Para solucionar o problema da montagem do quebra-cabeça, Pinker afirma que
devemos estar atentos a todos os conteúdos que envolvem a cognição, portanto não são
pontos isolados que proporcionarão as melhores respostas.
Ainda de acordo com o mesmo autor,
[...] a mente humana é capaz de interpretar um cenário específico de diversas
formas e cada interpretação é constituída em torno de algumas idéias básicas, como
“fato”, “causa”, “mudança” e intenção. Essas ideias podem ser metaforicamente
estendidas para outros domínios, como quando contamos os fatos como se eles
fossem objetos ou quando usamos o espaço como metáfora para o tempo. (2008,
p.41)

A mente humana é dotada de capacidade para solucionar problemas, das mais diversas
magnitudes, desde coisas rotineiras como, por exemplo, ver, ouvir, lembrar, falar (quando não
houve disfunções) dentre outras atividades cotidianas, até os sofisticados sistemas de
engenharia. No entanto, segundo Pinker (2008, p. 43) “a compreensão do funcionamento
dessas faculdades mentais é uma fronteira para a ciência moderna.” Dentre as faculdades
mentais destaca-se a linguagem, que vem recebendo um lugar especial nos estudos das
ciências principalmente da neurociência e da neurolinguística.
A linguagem ocupa a parte central nas relações interpessoais e se manifesta de
inúmeras formas, o que por si já é surpreendente, mas mais surpreendente é a forma como se
aprende a linguagem.
Os bebês nascem sem saber uma palavra da língua que se está falando a sua volta. E,
em apenas três anos, sem benefício de aulas, a maioria está tagarelando, com um
vocabulário de milhares de palavras, domínio da gramática do vernáculo oral e
proficiência com o padrão de som (PINKER, 2008, p.43).

As crianças se utilizam da língua e são capazes de utilizar os códigos com bastante


segurança, sem se sentirem intimidadas e demonstram compreender coisas que à primeira
vista não fazem o menor sentido. E para ser capaz de fazer isso a criança precisa ter feito uma
3

boa análise do discurso dos adultos e não apenas decorar ou tentar memorizar o que esses
falam. A criança aprende algumas regras e as utiliza, primeiro fazendo algumas
generalizações, o que pode provocar estranhamento aos ouvidos dos adultos.
É bastante surpreendente perceber que uma criança ao fazer essas generalizações não
está só tentando comunicar-se, ela está segundo Pinker, resolvendo um problema de indução:
“observar uma amostra limitada de fatos e estruturar uma generalização que englobe o
conjunto infinito de onde os fatos são tirados” (2008, p.44). As crianças, e qualquer ser
humano, não conseguem simplesmente arquivar todas as frases que ouvem e tentar se utilizar
posteriormente dessa memória como uma lista a ser consultada, assim como não é possível
arquivar todas as palavras que diariamente são descobertas.
Para que haja êxito na comunicação a criança deve ser capaz de “extrair um conjunto
de regras que lhe permitirá compreender e expressar novos pensamentos e fazê-lo de uma
maneira coerente com os padrões de discurso utilizados pelas pessoas em sua volta.”
(PINKER, 2008, p. 45).
Entende-se, portanto que a linguagem é de certa forma um sistema integrado, único,
mas constituído por vários componentes e que, para entender o processo de aprendizagem da
criança, é útil separar esses componentes. Pinker (2008, p.46) defende que cada um desses
componentes se relaciona com sistemas cerebrais que “comandam a boca, o ouvido, a
memória da pessoa para palavras e conceitos, os planos sobre o que dizer e os recursos
mentais para atualizar o conhecimento com apreensão do discurso.”
Para Scliar-Cabral (2002), a aquisição da morfologia verbal é fundamental para a
aquisição da gramática de qualquer língua. MacWhiney (apud SCLIAR-CABRAL 2002),
“evidenciou que a aprendizagem inicial da morfologia verbal envolve itens rotineiros ou
amálgamas.” Já Tomasello (1992), também citado pela mesma pesquisadora, propôs a
hipótese da Ilha Verbal, isto é, cada verbo é marcado individualmente “(formas flexionais
congeladas)”.
O que se percebe é que os verbos são ricos em possibilidades e ao mesmo tempo ricos
em particularidades. As conjugações e as flexões são organizadas em paradigmas, nos quais
cada verbo normalmente tem uma única forma primitiva, mas existem os irregulares que
segundo Pinker (2008, p. 59) “assumem uma posição na matriz mental” e no início do
processo de aquisição as crianças não conseguem perceber algumas formas agramaticais que
essas exceções podem gerar, pois suas construções verbais, diferentes das conjugações, não se
organizam em compartimentos regulares.
4

Ao dar-se conta das diferenças estruturais, a criança vai descobrindo novas


possibilidades na língua, estabelecendo novas regras e novas generalizações. Esse processo de
descobertas acontece de forma natural na aquisição da linguagem verbal oral, e o tempo para
cada criança realizar esse processo, ainda que muito semelhante, pode ter variações, mas na
aprendizagem da escrita precisa ser sistematizado e ensinado (principalmente porque
normalmente a variedade linguística aprendida na escola não é a mesma da utilizada em casa,
realidade comum nas escolas brasileiras) e uma das dificuldades básicas decorrentes é que a
criança tende a reproduzir na escrita aquilo que ela fala, decorrendo daí algumas dificuldades,
uma vez que nem tudo o que é licenciado na fala é licenciado na escrita da mesma forma e em
todas as circunstâncias. Inicia-se ai um novo processo de aprendizagem sobre a língua, que é
o da aprendizagem da leitura e da escrita. Nesse momento a narrativa pode fazer a diferença,
pois ela já está presente na vida dos sujeitos.

1.1. A Narrativa escrita, um meio para mostrar conhecimentos


O conceito mais básico nos diz que para que se constitua uma narrativa é necessário
que existam o narrador, os personagens, o espaço, o tempo e o enredo, portanto, toma-se
como principio que as narrativas são mediadoras e não fins, em si mesmas. Por isso, ao serem
inseridas em um contexto de ensino de língua materna, não parecem categorias isoladas ou
destituídas de cotidianeidade, ainda que seja possível categorizá-las de diversas formas, como
por exemplo: narrativas literárias, ficcionais e factuais não situadas. Ao longo da nossa vida,
vivemos em meio a muitas narrativas. Desde muito cedo, ouvimos histórias de nossas
famílias, de como era a cidade ou o bairro há muito tempo atrás; como eram nossos parentes
quando mais novos, como éramos quando bebês e assim por diante. Ouvimos também
histórias de medos, de personagens fantásticos, de sonhos. Enfim, ouvimos, contamos, lemos,
assistimos a, imaginamos histórias. A narrativa permite a ativação de processos como criação
de cenários, estruturação de espaços mentais, mesclagem conceptual2, capacidade de
percepção, de categorização e abstração, em outras palavras, é um recurso linguístico que
tenta reviver eventos ocorridos ou imaginados. Muitas vezes esse limite real/fictício é
indefinível, mas tanto narrativas factuais quanto ficcionais se fazem presentes em todas as
populações, tanto na modalidade oral quanto na escrita. Nas populações ágrafas, apenas na
modalidade oral:

2
Os espaços mentais são constructos teóricos projetados para modelar e indicar organização cognitiva de alto
nível (FAUCONNIER, 1994, p. 31). E a mesclagem conceptual, para a linguística cognitiva, é uma operação
cognitiva que envolve projeção de elementos selecionados de, no mínimo, dois espaços de input, resultando em
integração conceptual. (AZEVEDO, 2006, p.37)
5

[...] as narrativas orais encontradas em muitas populações ágrafas não resultam do


efeito reversivo dos textos escritos e sim do fato de a memória humana ser
programada para registrar os episódios vividos e ou transmitidos pela coletividade
oralmente. (SCLIAR-CABRAL, 2003, p. 26).

Como veículo para transmissão cultural, a narrativa de “modalidade escrita tem caráter
mais permanente, por isso mais eficiente que a modalidade oral nesse quesito” (SCLIAR-
CABRAL, 2003, p. 33).
Pesquisas demonstram que, quando começam a frequentar a escola, as crianças já
desenvolveram esquemas que lhes permitem compreender e produzir histórias que influem na
memorização dos acontecimentos relatados e na complementação que elas fazem de relatos.
Ver por exemplo, Mandler 1979; Mandler, Scribner, Cole e Deforest, 1980; Mandler, Stein e
Trabasso, 1984 (apud LANDSMANN, 1998), Scliar-Cabral. 1982; 1983; 1984. Muitos
autores chegam a afirmar que a organização narrativa é a “metáfora orientadora” (GERGEM e
GERGEM, 1986, apud LANDSMANN, 1998), isto é, as narrativas são responsáveis para que
a orientação do aprendizado seja estruturada em uma instituição ou mais livre no cotidiano,
através da qual os fenômenos podem ser compreendidos, em quase todas as idades e culturas.
A narrativa se tornou um objeto privilegiado para compreender os processos organizacionais
da sociedade, formação da psique, a constituição de valores culturais e suas transições.
Segundo Barthes (1976, p. 19-20), a narrativa contempla uma vasta diversidade de
ocorrências da vida humana:
Inumeráveis são as narrativas do mundo. Há em primeiro lugar uma variedade
prodigiosa de gêneros, distribuídos entre substâncias diferentes como se toda
matéria fosse boa para que o homem lhe confiasse suas narrativas: a narrativa pode
ser sustentada pela linguagem articulada, oral ou escrita, pela imagem fixa ou
móvel, pelo gesto ou pela mistura ordenada de todas estas substâncias; está presente
no mito, na lenda, na fábula, no conto, na novela, na epopéia, na história, na
tragédia, no drama, na comédia, na pantomima, na pintura, no vitral, no cinema, nas
histórias em quadrinhos, no fait divers, na conversação. Além disto, sob estas formas
quase infinitas, a narrativa está presente em todos os tempos, em todos os lugares,
em todas as sociedades; a narrativa começa com a própria história da humanidade;
não há em povo algum sem narrativa; todas as classes, todos os grupos tem suas
narrativas.3

A capacidade de narrar está integrada num conjunto de habilidades desenvolvidas


pelas crianças durante o processo de aquisição da linguagem que as acompanha por toda vida,
pois a narrativa indica a capacidade de produzir textos e supõe conhecimentos de regras
culturais e sociais do grupo a que a criança pertence e que são acionadas no momento da

3
GONÇALVES, A. C. História, imagem e narrativas. No 6, ano 3, abril/2008 Citação disponível
em:<http://www.historiaimagem.com.br> . Acesso em 03 dez 09.
6

comunicação. “Para participar efetivamente de interações verbais a criança precisa entender


que a comunicação não se faz através de palavras e frases isoladas” (SOARES, 1999, p. 227).
A participação na comunicação se dá de forma mais significativa e completa quando a criança
compreende e consegue configurar estruturas denominadas textos, ou seja, quando os objetos
discursivos são vinculados a um universo de referência. Para que isso ocorra é necessário que
o sujeito desenvolva uma capacidade de uso da linguagem que envolve o desenvolvimento de
competência textual e a capacidade de elaborar estratégias e planejamento, envolvendo
também habilidades cognitivas e metacognitivas para executar esses planos. Isso ocorre antes
no plano da oralidade do que na escrita.

1.2 Materiais e Métodos


Para realizar essa pesquisa iniciou-se no final do ano de 2008 uma proposta de estudo
sobre concordância verbal em narrativas de crianças em processo de alfabetização que vivem
em contextos socioculturais distintos. A partir daí buscou-se a viabilidade de desenvolvimento
da mesma, tendo como primeiro passo a aprovação do projeto junto ao comitê de ética e junto
a Secretaria Municipal de Ensino, uma vez que a pesquisa envolveria um estabelecimento
público de ensino. Ao mesmo tempo, iniciaram-se a procura e os contatos com os
estabelecimentos de ensino público dos bairros de Florianópolis. A partir da aceitação foram
realizadas várias reuniões com a direção das escolas bem como com a coordenação
pedagógica e a secretária (no estabelecimento de ensino público, na instituição privada tudo
foi tradado com a direção e a coordenação pedagógica) para a preparação e elaboração do
material necessário para a comunicação aos pais e aos alunos.
Antes de aplicar os testes para a coleta de dados, foi realizada uma visita às turmas que
participaram da pesquisa, tanto na instituição de ensino público quanto na privada. Nesse
contato o pesquisador foi apresentado à turma pela coordenadora pedagógica, os alunos foram
comunicados sobre o trabalho que seria realizado e a maioria se mostrou favorável e disposta
a cooperar. Em uma segunda visita à turma, foram enviados os comunicados de
esclarecimentos aos pais, os mesmos assinaram e as crianças os trouxeram e os devolveram à
professora que repassou ao pesquisador, pois neles estava também a autorização para o filho
participar do exercício. Na terceira visita foi entregue o questionário sociocultural para a
coleta de dados informativos para a identificação de algumas características específicas de
cada família; os mesmos foram recolhidos no dia da realização do exercício e do teste e
finalmente em um quarto contato foram aplicados o exercício e o teste.
Na aplicação do teste seguiram-se os seguintes passos:
7

 Aplicação do exercício com parte da história de Chapeuzinho Vermelho (pequeno diálogo);


 Conferiu-se o exercício feito para verificar se todos conseguiriam realizar o teste;
 Aplicação do teste.
Comandos dados na aplicação: Vocês vão receber uma história, eu vou ler o início e a
cada balãozinho que aparecer na sequência vocês vão ter tempo para escrever as falas dos
personagens como se fossem os próprios personagens. Vamos ver se vocês entenderam bem,
nós vamos primeiro fazer um exemplo com a história da Chapeuzinho Vermelho, como
exercício treino.
[...] a Chapeuzinho Vermelho chegou à casa da vovó. Toc! Toc! Toc! (bateu na porta).
A vovó (lobo) perguntou: (aqui os alunos completam a sentença).
Realizados os passos 1 e 2, iniciou-se o 3 com o seguinte comando: Vocês estão
recebendo as folhas com uma história que vocês não conhecem , vocês comecem a ler e
coloquem nos balões as falas dos personagens como eles dizem, se vocês não compreenderam
alguma coisa levantem o braço para eu explicar. Prontos? Então podem começar. Ainda antes
da aplicação foi realizada uma pesquisa piloto com o intuito de testar os instrumentos da
pesquisa.
Participaram do estudo 104 (cento e quatro) crianças de ambos os sexos, com idade
entre 8 e 12 anos que concluíram o 3º (terceiro) ano do Ensino Fundamental, sendo 52
(cinquenta e dois) sujeitos de nível socioeconômico cultural baixo, estudantes de escola
pública e residentes na periferia de Florianópolis, São João do Rio Vermelho, e 52 (cinquenta
e dois) sujeitos de nível socioeconômico cultural alto, estudantes de escola privada residentes
na região central de Florianópolis. Como cada uma das duas escolas pesquisadas tinha mais
de duas turmas de alunos que concluíram o terceiro ano e estavam iniciando o quarto ano, as
turmas foram escolhidas a partir da disponibilidade e aceitação da professora regente e da
disponibilidade dos alunos e não seguiu nenhum critério classificatório. Não foram levadas
em conta a metodologia e a atuação do professor.

2 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS DAS PRODUÇÕES NARRATIVAS DOS


ALUNOS
Na análise das narrativas escritas dos alunos consideramos como fatores não
linguísticos a sua realidade socioeconômica cultural, e os fatores linguísticos observados
foram: a posição do sujeito em relação ao verbo se era anteposto ou posposto, o traço humano
8

do sujeito [+humano] e [-humano]4, a saliência [+ saliência] e [- saliência]. É importante


ressalvar que no português brasileiro escrito revisado não ocorre variação com sujeito simples
plural: é bem difícil isso ocorrer. Esta variação pode ocorrer quando o núcleo do sujeito é
plural. Via de regra, a concordância de número verbo/sujeito é regida pelo traço morfológico
de número do núcleo do sujeito. Scherre & Naro (2007) apontam outras condições, como, por
exemplo, sintagma nominal encaixado, mas aqui não será tratado.
Para o tratamento quantitativo dos dados, utilizaram-se os programas computacionais
conhecidos na literatura pertinente como GoldVarb, na sua versão 2001 e Excel 2007. O
programa GoldVarb fornece como produto final pesos relativos associados aos diversos
fatores dos grupos de fatores variáveis independentes considerados, bem como a seleção
destes grupos em função de sua relevância estatística. Os valores indicam o efeito que cada
um dos fatores tem sobre as variantes do fenômeno que foi analisado.
Analisamos 1190 (mil cento e noventa) sentenças, dados escritos e consideramos 09
(nove) grupos de fatores para serem controlados:

(1) Concordância e não concordância verbal, variável dependente


(2) nível socioeconômico cultural
(3) instituição de ensino
(4) traço humano do sujeito
(5) sujeito nulo e sujeito expresso/preenchido
(6) posição do sujeito
(7) saliência
(8) pessoas gramaticais
(9) erros grafêmicos que interferem na concordância.

4
Conforme explica Scliar-Cabral (2011), "Contrastando com o que realmente aconteceu no gênero factual, o que
predomina no gênero conto de fadas é a função imaginativa no sentido definido por Halliday (1975, p. 20): “... a
função da linguagem através da qual a criança, ela mesma, cria um ambiente”. Em consequência, os contos de
fadas usualmente começam com fórmulas mágicas do tipo “Era uma vez", as quais suspendem o tempo e o
aspecto factuais em favor do tempo e espaço fictícios, bem como por uma entoação peculiar, marcada por chaves
bem contrastantes.
Eles também terminam por fórmulas mágicas do tipo “E então viveram felizes para sempre”, quando os
participantes retornam ao real. Esse mundo imaginário admite a violação de traços semânticos. “Existem
violações consistentes e extraordinárias dos traços semânticos mais altos, tais como [-animado] e [-humano],
quando as pedras podem falar e a maioria do tempo os animais são personagens”. Em consequência disso
atribuímos valor de [+humano] aos animais personagens.
9

Dizemos que tem concordância quando o sujeito está concordando com o verbo, por
exemplo, em: “nós vamos passear pelo zoológico”, e dizemos que não há concordância
quando o sujeito e o verbo não obedecem às mesmas regras, por exemplo, em: “eu que ver os
leões”. Em relação a este fator linguístico obtivemos como resultados de concordância e não
concordância em relação a variável nível socioeconômico cultural o que podemos observar no
gráfico 01:

Gráfico 01 – Concordância Verbal.

Das 1190 (mil cento e noventa) sentenças analisadas constata-se que há uma média de
87% (oitenta e sete por cento) de concordância e 13% (treze por cento) de não concordância.
Entretanto se observarmos os grupos separadamente constata-se que o grupo NSEC-alto
apresenta 9% (nove por cento) de não concordância e o grupo NSEC-baixo apresenta 18%
(dezoito por cento) de não concordância.
Em relação ao tipo de instituição, escola privada e escola pública os dados são os
mesmos dos anteriores.
Conforme definido na nota 03, o traço mais humano é o que se refere aos seres que
adquirem aspecto de humanidade na narrativa, por exemplo, em: “você vai cair”, você é o
pronome de tratamento que indica condição humana, enquanto o traço menos humano é tudo
o que se refere a outros seres ou eventos, por exemplo, em: “a estrada vai acabar no
precipício”, estrada é o nome que se refere a algo não humano.
Em relação a este fator, grupo 04, traço humano do sujeito [+ humano] e [- humano]
observa-se no gráfico 02 os seguintes dados:
10

Gráfico 02 – Traço do sujeito [+humano]/[-humano].

Ao observar o traço humano do Sujeito, constata-se que em 89% (oitenta e nove por
cento) dos casos em que o sujeito apresenta o traço [+humano] ocorre concordância,
diferenciando-se do traço [- humano] que cai para 73% (setenta e três por cento) a
concordância. Este dado vai para a mesma direção dos estudos de Scherre & Naro (1998) e
Naro & Scherre (2000). Os autores evidenciam que, se o sujeito plural for [-humano], a
presença de marca de plural no verbo é menos provável e, se [+humano], o plural explícito é,
relativamente, mais provável.
Consideramos como sujeito nulo a sentença onde não está explicitamente manifesto o
sujeito, por exemplo, em: “vamos comesar a brincar” e como sujeito preenchido sentenças em
que o sujeito aparece explicitamente, por exemplo, em: “eu quero ir ver as girafas”.
Em relação a este fator, grupo 05, sujeito preenchido e sujeito nulo obtivemos os
seguintes resultados:

Gráfico 03 – Preenchimento do sujeito.

Em 970 (novecentos e setenta) ocorrências com sujeito expresso 88% (oitenta e oito
por cento) das ocorrências tiveram concordância e 12% (doze por cento) das ocorrências não
11

tiveram concordância. Em relação ao sujeito não expresso, 74% (setenta e quatro por cento)
das ocorrências fizeram concordância e 26% (vinte e seis por cento) não concordaram.
O fator posição do sujeito diz respeito ao local da sentença em que o sujeito está
situado em relação ao verbo da mesma sentença. Temos, portanto anteposição em: “você
quase caio no precipício”, onde você na posição de sujeito está expresso antes do verbo cair.
Temos posposição do sujeito em: “chegou visitas” onde visitas é o sujeito do verbo chegar e
está expresso na sequência da sentença depois do verbo.
Em relação a este fator, grupo 06, posições do sujeito observam-se os seguintes
resultados:

Gráfico 04 – Posição do Sujeito.

Observa-se que quando o sujeito é anteposto, a probabilidade de concordância é


maior: os dados apontam para 89% (oitenta e nove por cento) de concordância e diminui a
concordância para 70% (setenta por cento) quando o sujeito está posposto ao verbo. Estes
resultados reafirmam o que foi apontado por Lemle e Naro (1977), Lira (1986), Berlinck
(1988) e Monguilhott (2001).

Gráfico 05 – Saliência.
12

Consideramos aqui como saliência a desinência exclusiva de cada verbo para cada
pessoa gramatical, em cada tempo da conjugação verbal. Temos mais saliência, portanto em:
“você vai cair”, vai é exclusivo de terceira pessoa no presente do indicativo e temos menos
saliência em: “você estava tão alegre”, estava tanto pode referir-se a primeira ou a terceira
pessoa do imperfeito do indicativo.
Quanto a este fator, grupo 07, ver saliência no Gáfico 5.
Observa-se que, em 93% (noventa e três por cento) das ocorrências onde aparece [+
saliência] ocorre concordância verbal, diferente dos 72% (setenta e dois por cento) das
ocorrências onde se vê a presença de traço [- saliência]. Os estudos de Naro (1981) já faziam
alusão a este traço linguístico e afirmavam que a presença ou a ausência de acento na
desinência e a quantidade de material fônico que diferencia a forma singular da forma plural
interferem na concordância verbal. Os dados de Monguilhott (2001) ao pesquisar variação de
concordância verbal de terceira pessoa também apontam para a mesma direção.
O fator pessoas gramaticais diz respeito as pessoas utilizadas como referencias para
organizar as sentenças, temos por exemplo, p1 em: “eu quero ir ver os elefantes”, p2 em: “Tu
tás gorda em”, p3 em: “Deixa ele vim”, p4 em: “Nós vamos ver mais animais”, p5 em: não
foram encontrados registros nos dados, p6 em: “eles estão presos”, para estabelecer a pessoa
do discurso estabelecemos como ponto de partida a terminação do verbo.
Quanto a este fator, grupo 08, pessoas gramaticais, têm-se os seguintes dados:

Gráfico 06 – Pessoas Gramaticais.

Ao observar os dados, constata-se que foram utilizadas 28 (vinte e oito) sentenças com
tu na segunda pessoa e destas, 86% (oitenta e seis por cento) foram utilizadas sem
concordância. Outro dado mais discrepante é em relação a não marcação do sujeito, 100%
(cem por cento) de uso com concordância, referentes à marca de infinitivo ou ao gerúndio. O
uso da primeira pessoa eu apresenta 94% (noventa e quatro por cento) de uso com
13

concordância, o uso da terceira pessoa ele apresenta 84% (oitenta e quatro por cento) de
concordância, o uso da primeira pessoa do plural nós apresenta 87% (oitenta e sete por cento)
de concordância, o uso da terceira pessoa do plural eles apresenta 76% (setenta e seis por
cento) de concordância e a segunda pessoa do plural não foi utilizada, confirmando o que
muitos autores defendem: que o vós está em desuso no português brasileiro.
Em relação aos erros grafêmicos podemos observar que são consequentes de
diferentes causas e são de diferentes naturezas5. Estão grafadas incorretamente as seguintes
sentenças: “Os bicho ento enrolado socoro”, “uma pessoa que sipota co a gete”, “eu vo coloca
você no andado”, “Eu estro adado legau”, “Eu vo tenta pega ele”, “Ele vai cai”. A grafia
incorreta, principalmente dos verbos aumenta a não concordância.
Quanto a este fator, o grupo 09, erros grafêmicos observa-se:

Gráfico 07 - Erros grafêmicos.

Quando as sentenças são grafadas corretamente obtêm-se 92% (noventa e dois por
cento) de acertos na concordância e quando ocorrem erros de grafia na marcação de pessoa e
número ou modo temporal ocorrem 90% (noventa por cento) de erros de concordância.

2.1. Análise qualitativa dos dados


Ao analisar os dados, um dos aspectos que nos chamou atenção é a quantidade de
erros grafêmicos que são cometidos pelas crianças. Podemos observar que 90% (noventa por
cento) das sentenças que são grafadas incorretamente provocam erro de concordância, esses
erros são variados e por vezes difícil de categorizá-los.

5
Consideramos, com fim de padronização, que a ausência de r na forma infinitiva (exemplo: vo tenta pega), a
ausência de s na indicação de plural em p4 (exemplo: nós vamo) e ausencia de am em p6 (exemplo: eles voltaro)
como erro grafêmico e ausência de concordância, embora teorias variacionistas considerem o segundo e o
terceiro casos com presença de concordância.
14

Muitos dos erros de concordância resultam da transcrição fonética imperfeita dos


enunciados como as crianças os percebem sem aplicar as marcas grafêmicas que seriam
necessárias. Outro fato corrente no português brasileiro é o uso do você como segunda pessoa
do discurso, mas como terceira pessoa gramatical, o qual aparece constantemente nos textos
das crianças. Tais erros acontecem em diferentes situações.
A marca do infinitivo, por exemplo, raramente é expressa, principalmente nos alunos
provenientes de Nível sociocultural mais baixo, o que pode ser interferência direta da fala
desta variedade, pois os diálogos no texto são representações de fala dos personagens6:
293. eu vou bota o filhote aqui.
363. [...]para brinca conosco;
819. você ia cai do penhasco;
930 eu vo coloca você no andado;
933. ele vai cai;
990 nossa que legal eu vou chama os meus amigos
Outra dificuldade que é possível constatar a partir dos dados é que as crianças são
alfabetizadas pelos nomes das letras e raramente é trabalhado o valor dos grafemas. É possível
identificar fenômenos como:
964. pro que eu não to quo cede.
1012. que ia quair no precipício, o aluno aprendeu que depois do uso de q é necessário
usar u e ai ele generaliza a regra. , e também aprendeu “c”, pelo seu nome e não pelo valor /k/
antes de vogais [+post].
Ao observar as sentenças, abaixo, verifica-se o uso do infinitivo no auxiliar enquanto o
verbo principal deveria ir para o gerúndio:
601/602. Ele tar falavam que o macaco era um bicho esperto méis.
607/608. Filho sabe que aquele menino tar oleto par voce.
Não há concordância de tempos e modos nas orações subordinadas, de acordo com a
regra gramatical deveriam ir para o subjuntivo.
Nas sentenças:
619. (eles) inta ficaro féis;
620. eles vol(ta)ro para o zoligico;
960. as girafa gostava de brinca muito;

6
O uso do infinitivo e do imperativo é questionado pela sociolinguística se pode ser considerado erro, principalmente nos
diálogos narrativos que tendem a representar a fala dos personagens.
15

Verificamos que é uma tentativa de transcrição fonética da variedade sociolinguística,


dos alunos em que o verbo ficar no presente do indicativo muitas vezes é conjugado como: eu
fico, tu fica, ele fica, nois fica, eles fica e no perfeito do indicativo: eu fiquei, tu ficô, ele ficô,
nois fiquemo, eles ficaro (na última ocorrência, fic é o radical, a é vogal temática, ra é
indicação de modo temporal, em que /a/ é assinalada por o, indicação número pessoal
(ra+o=ro).
O mesmo ocorre com “as girafa gostava” temos uma frase iniciada com marcação de
plural e o verbo conjugado no singular, pois nesta variedade sociolinguística temos: eu
gostava, ce(você) gostava, nós gostavo/gostava e eles gostava.
Tal evento é um sinal claro de que algumas variedades sociolinguísticas discrepam
mais da variedade padrão do português brasileiro do que outras, e, isso implica maior
empenho e maior sensibilidade do professor alfabetizador7, ou seja, um trabalho com mais
delicadeza e cuidado para evitar a exclusão do aluno que se utiliza desta variedade para se
comunicar oralmente, mas precisam passar a utilizar na comunicação escrita a nova variedade
que estão aprendendo.
Nas sentenças:
737. talvez eles põem nós no jornal, um que tal?
759. talvez nós poderíamos viajar.
O uso de talvez indica dúvida, é dubitativo, por esta razão exige que a concordância
seja feita com o subjuntivo e não com o presente do indicativo ou futuro do pretérito.
Em:
771. ai minha nossa, nos tamo na fossa;
957. eu kiria vê a girafa;
959. Eles tavo conversando cos amigo de eles;
970. eles disseram i agora;
1161. nós vamos axalo;
Temos ai, entre outros problemas de concordância, uma tentativa de escrita fonética
desta variedade sociolinguística. Em todo o corpus percebe-se uma tentativa constante do uso
da escrita fonética o que indica que ainda existem dificuldades na escrita em consequência de
uma alfabetização pouco eficiente, ao ser alfabetizado pelo nome das letras o aluno faz
confusão em contextos de uso que exigem dele um maior conhecimento linguístico.
Outra construção comum e que independe do nível sociocultural:

7
Tudo isso depende também em grande parte da formação e da capacitação do professor.
16

888. deixa ele vim;


Ocorre neste caso uma neutralização do infinitivo em favor da primeira pessoa do
pretérito perfeito simples do indicativo.
São comuns também erros de concordância provocados pela não distinção entre o uso
dos pronomes tu e você, principalmente no modo imperativo afirmativo, na maioria dos casos
usam você durante a escrita do texto e o verbo na segunda pessoa confundindo com o presente
do indicativo. Em virtude do uso cada vez mais difundido do você como segunda pessoa do
discurso, embora seja a terceira pessoa gramatical, confundem-se cada vez mais os usos, as
formas da segunda e da terceira pessoas gramaticais confunde o uso dos pronomes. Como no
instrumento de iliciação propositadamente se usou uma história em quadrinhos em que os
personagens dialogam, o fato foi muito observado:
630. ola me dá um abraço;
635. olha a rua leão;
638. olha o penhasco leoa;
Em: 935. Você vio as pessoas?
Ocorre ai uma generalização da regra do grafema o em final de vocábulo,
representando /u/ átono, embora no exemplo se trate do ditongo /iw/.
Em: 958. Ele qui ria vê o leão
Ocorre neste caso uma segmentação do verbo e ao realizar a segmentação acaba com a
unidade verbal e deixa de expressar o que realmente havia sido previsto.
Em: 1088 eu se perdi;
O aluno usa o verbo de forma correta, mas comete erro de concordância pronominal, o
que revela mais um traço comum da sua variedade sociolinguística: eu se perdi, tu se perde,
ele se perdeu, nos se perdemo, eles se perdero, (não é nosso objeto de estudo, mas indica
variação sociolinguística).
Verificamos com isso e comprovamos que realmente existem diferenças
sociolinguísticas e que o grupo com nível sociocultural baixo se distancia mais da variedade
padrão do português brasileiro e em segundo lugar, percebemos que este mesmo grupo
apresenta maiores problemas de alfabetização, muitos ainda não estão alfabetizados indicando
assim precariedade na alfabetização, pois ocorre pouco trabalho de metalinguagem com os
alunos. Os dados indicam que as crianças precisam ser mais bem preparadas tanto na pré-
escola quanto nos anos iniciais e a metodologia de alfabetização precisa ser modificada. É
uma falácia insistir em que os alunos devam escrever como falam: isso pode ocorrer numa
17

fase inicial do processo, mas o ensino/aprendizagem não pode se contentar com isso, sob pena
de a escola estar produzindo um excluído do mercado de trabalho.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao concluir este estudo, verifica-se, a partir dos dados analisados que as principais
dificuldades das crianças em adequarem o sistema de flexão verbal na produção escrita
ocorrem em função da alternância das pessoas do discurso e da forma de tratamento
principalmente na segunda pessoa do singular: ora utilizam tu ora você, dificultando inclusive
a análise, pois, ora o verbo concorda com um ora com outro dos pronomes. E outra
dificuldade é em relação ao núcleo do sujeito singular e plural das sentenças. Essa era uma
das preocupações iniciais e a outra era identificar se existem diferenças significativas entre
produções escritas das crianças provenientes de nível socioeconômico cultural baixo (NSEC
baixo), estudantes de escola pública e residentes na periferia de Florianópolis e crianças de
nível socioeconômico cultural alto (NSEC alto), estudantes de escola privada e residentes na
região central de Florianópolis. Em relação a esta segunda preocupação os dados mostraram
que a diferença no aspecto da concordância verbal entre os dois grupos é significativa. Em
relação ao grupo NSEC alto os dados mostraram que ocorrem 91% (noventa e um por cento)
de concordância e em relação ao grupo NSEC baixo os dados indicam 82% (oitenta e dois por
cento) de concordância, resultando em um percentual de 9 (nove) pontos de diferença entre os
gupos. Esse resultado responde nossa questão: Qual dos dois grupos se aproxima mais da
norma padrão da variante escrita do Português do Brasil no que se refere à flexão verbal? E
confirma a nossa hipótese:
Hipótese 1 - Os morfemas flexionais de pessoa e número do sistema verbal na
variedade sociolinguística de Nível Socioeconômico Cultural baixo (NSEC baixo) e de escola
pública discrepam mais da norma padrão escrita do português do Brasil que os da variedade
sociolinguística de Nível Socioeconômico Cultural alto (NSEC alto).
Não tivemos como fazer uma nova aplicação dos testes nas mesmas turmas para
verificar a segunda hipótese:
Hipótese 2 - As crianças que estão aprendendo a escrever cometem mais desvios no
uso da pessoa e número do sistema verbal da norma padrão escrita do português do Brasil e os
diminuem após maior tempo de escolarização.
Além das preocupações iniciais e das hipóteses, o objetivo era verificar se há
diferenças significativas de concordância e não concordância no uso do sistema verbal na
narrativa escrita de crianças que vivem em ambientes socioculturais distintos; identificar
18

como a narrativa pode favorecer o processo de aprendizagem de metalinguagem e como o


contexto sociocultural interfere nesse processo de aprendizagem.
Os dados desta pesquisa apontam para diferenças socioeconômicas culturais bem
significativas entre as famílias dos dois grupos (que são aspectos não linguísticos).
Em relação aos aspectos linguísticos obteve-se uma diferença de variação significativa
entre os dois grupos (NSEC alto X NSEC baixo).
Os dados linguísticos controlados, no entanto, vão na mesma direção de outras
pesquisas realizadas, reforçando que em relação ao traço, o [+humano] favorece a maior
concordância e o traço [-humano] favorece a maior variação e não concordância. A posição
do sujeito antes do verbo também favorece a concordância e a posição depois do verbo
favorece a ocorrência de maior variação e não concordância.
O mesmo ocorre com o grupo saliência, quanto [+saliência] menor a variação e maior
a concordância, quanto [-saliência] maior a variação e a não concordância.

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SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

O APAGAMENTO DO SCHWA DO FRANCÊS NA PERSPECTIVA DA


FONOLOGIA GERATIVA: UMA ANÁLISE BASEADA NA GEOMETRIA DE
TRAÇOS E NA FONOLOGIA AUTOSSEGMENTAL

Maria Eugênia Gonçalves de Andrade (PPGLg/UFSC)1

RESUMO

A língua francesa compreende certas particularidades em sua pronúncia tal como o caso do
apagamento do „E-mudo‟ (também chamado de e caduco, instável, entre outros termos) o qual
é representado pelo fonema /ə/ em francês, conhecido também como Schwa. Antes de tudo,
considera-se que a maneira de pronunciar as palavras que contêm essa vogal pode variar e
dessa forma, a instabilidade fonética do Schwa dá-se pelo fato de que em uma mesma palavra
pode ocorrer sua realização (ex. semaine, samedi) ou seu apagamento (ex. s'maine, sam'di).
Em fonologia, depois dos numerosos ensaios partindo da fonologia descritiva e seus
desenvolvimentos ulteriores, certos fonólogos atuais tentam dar conta da problemática ligada
ao Schwa através das novas teorias fonológicas. O enquadramento fonológico dessa vogal
francesa ainda é muito impreciso visto que grande parte da literatura da área a concebe com
dificuldades para definir precisamente: (i) sua terminologia; (ii) seu timbre, quando é
realizado; (iii) seu status no sistema fonológico do francês. Assim, importa para esse trabalho
– uma síntese da retrospectiva do estudo do Schwa e do seu apagamento – contribuir com a
apresentação de seus aspectos fonológicos a partir de uma análise calcada na Geometria de
Traços e na Fonologia Autossegmental baseando-se na perspectiva da Fonologia Gerativa.

Palavras-chave:
Schwa. Apagamento. Fonologia Gerativa. Geometria de Traços. Fonologia Autossegmental.

RÉSUMÉ

La langue française comprend certaines particularités dans sa prononciation tel est le cas de
l‟effacement du „E-muet‟ (il est aussi appelé comme e-caduc, e instable, entre autres) lequel
est représenté par le phonème / en français, aussi connu comme Schwa. Avant tout, on
considère que la façon par laquelle on prononce les mots qui contienne cette voyelle peut
varier et de cette manière, l‟instabilité phonétique du Schwa est due au fait que, dans un même
mot, il peut être réalisé (ex. semaine, samedi) ou être effacer (ex. s'maine, sam'di). En
phonologie, après les nombreux travaux partant du cadre de la phonologie descriptive et de
ses développements suivants, certains phonologues actuels essayent de rendre compte de la
problématique du Schwa à travers les nouvelles théories phonologiques. L'encadrement
phonologique de cette voyelle française est encore assez imprécise car la plupart de la
littérature la conçoit avec des difficultés pour définir précisément : (i) sa terminologie ; (ii)
son timbre, quand elle est réalisée ; (iii) son statut dans le système phonologique français.
Ainsi, il vaut pour ce travail-ci – une brève synthèse de la rétrospective de l'étude du Schwa et
de son effacement – contribuer avec une présentation de ses aspects phonologiques à partir
d'une analyse dans la Géométrie des Traits et dans la Phonologie Autossegmental basée sur la
perspective de la Phonologie Générative.

1
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de Santa Catariana
(UFSC), área da Teoria e Análise Linguística, orientanda da Profa. Dra. Izabel Christine Seara; e-mail:
ecrivezamarie@yahoo.fr.
2

Mots-clé:
Schwa. Effacement. Phonologie Générative. Géometrie de Traits. Phonologie
Autossegmental.

1 INTRODUÇÃO

Nós professores, nos colocamos na pele do estudante ao qual nós falamos de um « e-


mudo que se pronuncia »? Na vida corrente, alguém que está morto não ressuscita.
Mas o « e » que se diz mudo, quer dizer „morto‟ em francês atual, parece, contudo,
poder ressuscitar! Não se trata mais de um fato racional, mas de um ato de fé.
(Anedota 24. WIOLAND, 2005, tradução nossa)

A língua francesa compreende certas particularidades em sua pronúncia tal qual é o


caso do apagamento do „E-mudo‟ (também chamado de e caduco, instável, entre outros
termos) o qual é representado pelo fonema /ə/ em francês, conhecido também como Schwa.
Antes de tudo, considera-se que a maneira de pronunciar as palavras que contêm essa
vogal pode variar e dessa forma, a instabilidade do schwa dá-se pelo fato de que em uma
mesma palavra pode ocorrer sua realização (ex. semaine „semana‟ ; samedi
„sábado‟ ) ou seu apagamento (ex. s'maine ; sam'di ) sem que
isso comprometa o sentido semântico do enunciado. Como prefere Wioland (1991), essa
vogal assombra os manuais de pronúncia do francês e, em vista de uma perspectiva didática,
pode ser perigosa visto que essa vogal se mantém “muda” na pronúncia que ela deveria
representar.
A queda do E-mudo – ou seu apagamento – é um dos fenômenos fonológicos mais
correntes em francês moderno, cuja discussão se desenvolve há décadas e que desencadeia
outros tantos processos fonológicos já observados.
Como releva Racine (2008, p. 12), os estudos não parecem ter avançado mais do que
há trinta anos. Aos trabalhos descritivos tradicionais foram dadas novas abordagens nos
domínios da sociolinguística e da psicolinguística. Em fonologia, depois dos numerosos
ensaios partindo da fonologia descritiva e de seus desenvolvimentos ulteriores, certos
fonólogos atuais tentam dar conta da problemática ligada ao Schwa através das novas teorias
e em particular uma mais recentes, a Teoria da Otimização apresentada por Prince &
Smolensky em 1991 na Conferência de Fonologia da Universidade do Arizona.
3

2 A IDENTIDADE DO SCHWA EM FRANCÊS


Primeiramente, nós temos como objetivo apresentar os aspectos fonológicos do
Schwa em francês atualmente. Nós não iremos, entretanto, tentar estabelecer qual é a
definição mais apropriada de seu status fonológico, pois sua natureza rebelde e complexa o
impede de pertencer, ou mesmo obedecer, a um conjunto de pequenas regras previamente
estabelecidas.
Além disso, levantamos um estudo recente sobre a questão do Schwa francês que
reuniu, baseado nos estudos de Henriette Walter (1990), quatro fatores principais que
concernem sua situação:

a) suas relações com a forma escrita das palavras, sempre presente no espírito dos
locutores; b) seu caráter facultativo em um certo número de formas orais (venir,
petit, fenêtre etc.); c) sua realização fonética, quando ela é pronunciada, variável
segundo os indivíduos; d) enfim, a diferença que existe entre a conservação dessa
vogal nos usos meridionais e a situação flutuante nos usos do norte, ao menos no
que concerne os monossílabos e a primeira sílaba dos polissílabos. (WALTER, 1990
apud RACINE, 2008, p. 12)

Ora, se considerarmos que a maneira de pronunciar as palavras que contém essa


vogal pode variar em função de sua instabilidade fonética devido ao fato que ela pode ser
realizada (ex. semaine, samedi) ou então pode ser apagada (ex. s‟maine, sam‟di). Assim,
outros fatores estão imbricados nessa variação. No que diz respeito ao contexto linguístico
onde ela aparece (LÉON, 2007) em palavra lexical:

(1) (a) Em posição inicial precedida de consoante – ex. semaine;


(b) No interior de palavra – ex. médecin;
(c) Monossílabos – ex. je, ne, le, que etc.
(d) Final de polissílabos – ex. vedette, retraite etc..

No que diz respeito ao grupo rítmico, existem três possibilidades onde a vogal pode
aparecer, a saber:

(2) (a) Em início de grupo rítmico – ex. Je ne reste pas;


(b) No interior de um grupo rítmico – ex. Je ne resterai pas;
(c) No final de grupo rítmico – ex. Je reste.
4

Para dar conta da variabilidade dessa vogal, é preciso assinalar que existem fatores
internos e externos que podem governá-la e que são essencialmente caracterizadas não só pelo
contexto linguístico no qual a vogal aparece e a velocidade com que se fala, como também o
contexto situacional no qual o indivíduo está inserido (momento de conversação com
maior/menor intimidade, apresentação de trabalho, conferência, etc.), a idade do falante, a
região de onde veio e suas influências na sua construção idiossincrática.
O enquadramento fonológico do Schwa do francês ainda é muito impreciso visto que
grande parte da literatura da área a concebe com dificuldades para definir precisamente: (i)
sua terminologia – pode-se chama-lo de „e-mudo‟, „e-instável‟, „e-caduco‟, em casos mais
raros „e-feminino‟, entre outros; (ii) seu timbre, quando é realizado; (iii) seu status no sistema
fonológico do francês.

2.1 Denominação terminológica


Normativamente, o Schwa é representado segundo o Alfabeto Fonético Internacional
pelo símbolo //. Este símbolo corresponde à vogal média, central e neutra que existe em
outras línguas, como o português europeu (PE), por exemplo. Exceto que, no francês
moderno, esse // pode estar ausente não somente na pronúncia em certos contextos, mas
ainda ele é apagado na grafia.
Na tentativa de ilustrar o ponto e o modo de articulação dessa vogal em francês, faz-
se necessário dispô-la no trapézio vocálico pode facilitar a compreensão da sua relação com
as outras vogais:
5

Figura 1 - Quadro vocálico das vogais francesas


Fonte: Confeccionado pela autora e inspirado em Wioland (1991)

Já no que diz respeito ao timbre do Schwa, P. Léon (1978; 2007) assinala que, de
acordo com os valores frequenciais do mesmo, o  oscila entre suas duas vogais vizinhas,
as médias anteriores arredondadas e  do francês, e estabelece os seguintes valores: 
F1 = 375 Hz e F2 = 1600 Hz;  F1 = 550 Hz e F2 = 1400 Hz;  F1 = 500 Hz, F2 = 1500
Hz e F3 = 2500 Hz.
Léon aponta também que, para melhor compreender a relação entre os sons , 
e , é preciso lembrar que, por definição, o Schwa é uma vogal não acentuada na grafia e
que, no francês, somente as vogais com acento gráfico são realmente abertas ou realmente
fechadas. Sendo assim, essa vogal se situa em um continuum entre  e , estando mais
próximo do  do que do fato que caracteriza sua complexidade instável.
Dessa maneira, o comportamento que é próprio a essa vogal gerou uma
multiplicidade de termos, como se pode observar no levantamento feito por Racine (2008):

Como essa vogal se emudece em certas posições, o termo “e-mudo” rapidamente se


impôs. Hoje, ela é frequentemente designada pelos termos “e-mudo”, “e-caduco”,
“e-instável” ou ainda, muito raramente, “e-feminino”. Ela é igualmente nomeada
“schwa”, “chva” ou “cheva”, termo adotado e transcrito do hebreu e que significa
“néant” [(zero)] em referência à sua particularidade de nem sempre estar presente no
sinal acústico. De uma maneira geral, constata-se que os manuais da fonética
francesa assim como as descrições tradicionais usam mais os termos “e-mudo”, “e-
caduco”, “e-instável”, enquanto o termo “schwa” está mais reservado à fonologia.
(RACINE, 2008)
6

Por outro lado, os foneticistas utilizam o termo „e-mudo‟ graças à particularidade


que esse „e‟ pode “cair” da pronúncia como as folhas de outono, mas que balançam nos
galhos em certos momentos (MARTINET, 1972 apud BERRI, 2006). Observa-se em La
Grammaire d’aujourd’hui : guide alphabétique de linguistique française (ARRIVÉ, GADET
et GALMICHE, 1986 apud RACINE, 2008) que o termo „e-caduco‟ está ligado aos
fenômenos suscetíveis à queda e que, em certos contextos, não se manifestam na cadeia da
fala, mas ficam marcados na ortografia. Já o termo que leva „mudo‟ está reservado ao caso em
que um grafema jamais vai ter manifestação oral, como o caso da letra „h‟ em dehors >
que se opõe a dors > , por exemplo.
Para Léon (2007), o termo „e-mudo‟ não é apropriado já que essa notação só se
aplica nos casos em que o // não se pronuncia. Em revanche, Carton (1974, p.64) propõe a
ideia na qual o // nem sempre é „mudo‟ porque ele pode ser pronunciado, ele tampouco é
„neutro‟ visto que, em francês, ele é anterior e labializado, nem „instável‟, pois é estável
quando presente, nem „caduco‟, pois um som não “cai”, mas se emudece em determinadas
circunstâncias.
Esse autor ainda acrescenta que mesmo em se tratando de uma realização fonética, já
que esse „e‟ é pronunciado, ou ainda das circunstâncias que favorecem seu apagamento, a
situação é tão complexa que todos os termos que se encontram para tentar definir essa vogal
são, na maioria, inadequadas.
Assim, de acordo com a proposta desse artigo – uma análise fonológica do seu
apagamento – preferimos adotar o termo Schwa. Vale lembrar também, que esse termo
designa então mais um comportamento fonológico complexo, o que o distingue das outras
vogais francesas, do que as circunstâncias fonéticas nas quais o apagamento dessa vogal é
favorecido.

2.2 O Schwa é um fonema?


Em razão do comportamento atípico do Schwa, Léon (2007) explica que essa vogal
tem um papel marginal na fonologia do francês contemporâneo, pois encontramos somente
casos particulares em que ela pode opor-se às outras vogais, ou ainda à ausência de vogal,
como nos exemplos a seguir: le haut  e l'eau ; ou diante de „h‟, como vimos
anteriormente, dehors > que se opõe a dors > .
Ainda é importante relevar que a grafia „e‟ sem o acento ortográfico pode
corresponder a um Schwa, ou a uma vogal média não arredondada // ou //, ou pode servir
7

para distinguir umas das outras: o singular do plural, em le garçon a les
garçons , prends-le  a prends-les ; ou o presente do
passado composto, em je disa j'ai dit  ou , il se dit  a il s'est
dit  ou ; ou em formas lexicais do mesmo modo que apresentamos
anteriormente dessus  a déçu (LÉON, 1978, p. 68).
Em contrapartida, Martinet (apud CARTON, 1974) só o concebe como um
“lubrificante fônico”, pois a oposição // : Ø (zero fônico) se neutraliza em todas as
posições exceto em uma: “e-mudo” só um fonema de verdade em dado contexto inicial.
Walter (apud CARTON, p. 65) explica que esse fonema se confunde cada vez mais com a
série anterior arredondada, dado o fato que isso a torna cada vez menos instável.
Percebemos que no argumento de Martinet (1972 apud RACINE, 2008), ele rejeita a
ideia de que o Schwa é um fonema, pois não vê necessidade em postulá-lo como tal somente
para permitir dar conta de certas oposições. Nessa perspectiva, o Schwa não poderia ser
apresentado no nível fonológico, mas introduzido como epêntese em curso de derivação.
Entretanto, para dar conta disso, ele propõe uma regra na qual diz que todo fonema
consonântico do francês é realizado foneticamente [C] quando se encontra entre duas
consoantes e [C] em todos os outros. Ora, é só tomarmos como exemplo algumas palavras
para perceber que essa regra não pode ser válida em todos os outros contextos, como proposto
por Martinet. Por exemplo: appartement, aprise e établissement jamais serão realizadas
foneticamente como *[], * e *.
Contudo, o fato de não poder definir os contextos fonológicos nos quais a inserção
do Schwa é permitida ou impedida constitui um forte argumento a favor da sua presença na
estrutura subjacente. Para Verluyten (1988 apud RACINE, 2008), parece impossível que uma
teoria fonológica dê conta desse tipo de oposição sem conferir ao Schwa um status de fonema.
Ao que parece, considera-se essa vogal como uma unidade semelhante a qualquer outra.
Sendo assim, o Schwa, como todas as outras vogais francesas, é submetido a certas regras
fonológicas que governam sua distribuição. Podemos considerá-lo fonema, igualmente, se
levarmos em conta a condição básica necessária para a obtenção desse status: ele está presente
na representação subjacente, no nível dos segmentos.
Racine expõe também que, na proposta de Blanche-Benveniste e Chervel (1969), o
Schwa seria representado ora como um fonema em certos contextos, ora uma vogal epentética
em outros. Sabe-se que a língua francesa, assemelhando-se ao português, permite somente um
número restrito de grupos consonânticos em onset silábico inicial como, por exemplo, /-/
8

(em croissant), /-/ (em glande), /-/ (em grande), /-/ (em pluie) e /-/ (em blouse).
Assim, temos os exemplos das palavras pelouse, pelote e peluche e, nesses casos, ele recebe o
status de fonema por oposição concomitante às palavras como pluie, plaisir, plateau.
Ainda na proposta desses autores, nos outros casos o Schwa seria epentético quando
situado entre duas consoantes que, em constituindo um grupo consonântico não permitido em
onset silábico incial, os Schwas das palavras fenêtre e leçon são derivações de um processo de
epentêse uma vez que eles não podem se opor às palavras que começam por */-/ ou */-/.
Léon (2007) deixa clara sua posição quando assume que, na maior parte do tempo,
quer o Schwa esteja presente ou não, isso não muda o sentido semântico da mensagem e de
fato, muito dificilmente, encontrar-se-ia uma oposição que criasse um par mínimo. Ele admite
somente uma oposição entre o Schwa e uma ausência do som, chamado como o zero fônico
(Ø), permitindo opor pelage a plage, ou belon a blond.

3 O APAGAMENTO DO SCHWA E TEORIAS FONOLÓGICAS


Racine (2008) explica que, provavelmente, foi na perspectiva fonológica que o
Schwa foi mais estudado considerando que, para os fonólogos que se interessam à
problemática dessa vogal, a finalidade desses estudos é dupla: de um lado, eles devem
oferecer um inventário de contextos nos quais esse elemento aparece ou não, de outro, eles
devem estabelecer as condições gerais que permitem prever sua presença ou sua ausência nas
palavras e enunciados.
Importa para esse artigo expor uns dos principais tratamentos fonológicos propostos
que representassem o fenômeno do apagamento do Schwa, restringimo-nos, então, aos
contextos em que ele aparece em início de palavra precedido por consoante e no interior.

3.1 O Schwa na perspectiva da Fonologia Gerativa


The Sound Pattern of English (SPE) de Chomsky e Halle (1968), obra que se tornou
referência para a fonologia no século 20, é um modelo do tipo transformacional e unilinear
calcado na economia e na simplicidade e fundamentado em noções de regras ordenadas,
derivações e ciclos. Alguns autores consideram que a teoria do SPE redefiniu o lugar da
fonologia na gramática das línguas.
Em suma, na concepção dessa teoria, a fonologia é uma das componentes da
gramática e sua função consiste em atribuir uma forma fônica à estrutura de superfície
(surface structure) produzida pelas regras transformacionais.
9

Chomsky e Halle (1968) abordam igualmente o problema representacional e


derivacional buscando conhecer a natureza das unidades e das estruturas de base considerando
as regras que relacionam os diferentes níveis de representação. Esse modelo propõe dois
níveis de representação fonológica, o primeiro – subjacente – é o nível fonológico no qual se
expressam as oposições entre os fonemas. Sendo o traço a unidade de base, SPE defende que
cada língua utiliza um subconjunto de traços distintivos posto em outro conjunto, maior e
universal, permitindo dar conta da fonologia de qualquer língua. Sendo assim, pode-se dizer
que cada fonema de uma língua natural pode ser definido por uma matriz de traços distintivos
que se opõem a outros por um ou mais desses traços. No segundo nível, as representações
fonológicas subjacentes se relacionam à interpretação fonética das orações por um conjunto
de regras derivacionais que podem modificar, acrescentar ou apagar traços ou fonemas
inteiros em um contexto dado (CHOMSKY, 1973 [1970]).
Assim, na teoria de Chomsky e Halle no que se definem as regras fonológicas, é
possível compreender esse processo interpretativo das orações dentro do componente
fonológico através da fórmula:

A → B / C __ D

Neste sentido, A é a representação da descrição estrutural que se transforma em


B no contexto em que ocorre a mudança, ou seja, o contexto entre C e D (C__D). Portanto, lê-
se essa fórmula da seguinte maneira: o elemento A se reescreve como o elemento B no
contexto entre os elementos C e D.
Segundo Racine (2008), Dell (1973) é o primeiro a oferecer um inventário mais
detalhado e completo acerca dos contextos nos quais o Schwa aparece ou não. Esse autor
considera o Schwa como uma unidade idêntica às outras, ou seja, essa vogal está sempre
presente na representação subjacente. Ele traz como exemplo de regras fonológicas, que
governam sua distribuição na estrutura de superfície, os sintagmas “la fenêtre” e “une fenêtre”
as quais terão as seguintes representações:

(3) (a) La fenêtre 


(b) Une fenêtre 
10

Para que as representações subjacentes se transformem em representações fonéticas


de superfície como “la f‟nêtre” e “une fenêtre”  as regras seriam as
seguintes:

 → Ø / V#C__
 → Ø / VC__

Podemos traduzir a regra como “o Schwa não se realiza foneticamente quando a


palavra que precede termina por uma vogal e quando se encontra em sílaba inicial precedida
de uma única consoante” (DELL, 1973, 1985 apud RACINE, 2008).
Racine (2008) explica que esse mesmo autor desenvolveu uma série de regras que
dessem conta do fenômeno do apagamento em outros contextos dentro da perspectiva da
fonologia gerativa, mas interessa para esse artigo expor algumas delas em contextos internos
em que o Schwa aparece. Nesse sentido, encontramos no trabalho de Racine (2008) três das
principais regras estabelecidas por Dell em 1973, observando alguns critérios (os Schwas
entre parênteses são facultativos e os sublinhados são obrigatórios):

Em sílaba inicial de palavra seguido por uma pausa, o Schwa nunca se apaga quando
é precedido por duas consoantes ou mais (ex. prenez tout). Ele pode ser apagado
facultativamente quando é precedido por uma única consoante, exceto se ele for
precedido e seguido de uma obstruente não contínua [ou plosiva] [...]; esta vale bem
mais para os monossílabos do que para a sílabas iniciais de polissílabos: r(e)venez
demain, m(e)sure-moi cette planche, v(e)nez ici, j(e) stérilise cette seringue, c(e)la
ne fait rien [...], debout sur une table, te casse pas la tête, de quoi tu te plains?
(DELL, 1973 apud RACINE, 2008, tradução nossa).

Para dar conta também desses contextos em que o Schwa é precedido de uma única
consoante e que, no entanto, não se apaga, o autor assume uma regra única, que no entanto dá
conta somente dos casos em que o Schwa se apaga, e não nas quais ele se mantém. Ele
considera que o Schwa é suscetível à queda quando precedido de consoante [+son] [+cont] e
se manteria (ou dificultaria mais seu apagamento) entre consoantes [-son] [-cont], em sílaba
inicial seguida ou não de pausa. Para tanto, Dell (1973 apud RACINE, 2008) expõe a seguinte
regra que desse conta então desses contextos:
11

(4)
C ____# [+son]
[+cont]
 → Ø
[+son] ______
[+cont]

(5) Aplicando a regra em sílaba inicial de polissílabos:


→ Ø / V#C__
la f(e)nêtre:  > []
la p(e)tite: lapit > [lapit]
une fenêtre: yn > [yn]

No caso em que o Schwa é precedido por mais de uma consoante, e dependendo das
características fonológicas dessas consoantes, o apagamento é praticamente nulo, quando não
é facultativo, como é o caso também em que ele aparece em interior de palavra como pode-se
verificar em (5), (DELL, 1973 apud RACINE, 2008).
(6) Aplicando a regra no interior de polissílabo:
→ Ø / VC__
Méd(e)cin :  > [ > 

Detey, Durand, Laks & Lyche (2010, pp.191-192) assumem que, segundo pesquisa
recentes sobre as variedades do francês falado, na posição V#C__CV (como em la s(e)maine
ou em tu f(e)rais), o Schwa se mantém em variedades do francês de Midi, ao contrário do que
postulam os manuais de pronúncia do “Francês Standart”, no qual o apagamento do Schwa é
muito frequente nesse contexto.
Já no interior de polissílabos, Detey et al (2010) dizem que em palavras como
tell(e)ement, o Schwa se mantém menos em variedades novas, como do Pays Basque, do que
na variedades de Languedoc, por exemplo.
12

Do ponto de vista fonológico, parece, então, que a posição final não-acentuada2 é


mais fraca (mais propícia ao apagamento) que a posição interna e que, por sua vez, é mais
fraca do que em início de palavra.

3.2 O Schwa e a Fonologia Autossegmental


O modelo da Fonologia Autossegmental caracteriza-se por ser um modelo
multilinear (ou não-linear) que surge a partir da segunda metade da década de 70 nos
trabalhos de Kahn (1976) e Hooper (1976). Entretanto, como releva Cristófaro-Silva (2007), a
incorporação desse modelo ao da Fonologia Gerativa começou gradativamente na década de
80 nos trabalhos de Clements e Keyser (1983). Esse modelo encaixa-se, então, dentro dos que
analisam a importância da sílaba na fonologia.
Kikuchi (2001) lembra que esse modelo autossegmental propõe que a análise
fonológica é mais bem explicitada quando se incorpora a sílaba como constituinte.
No caso do fenômeno do apagamento, há inúmeros trabalhos que assumem que
“apagamento” está ligado não só ao ritmo, como também as estruturas das sílabas. Cristófaro-
Silva traz alguns conceitos de Biondo (1993) quanto ao que é postulado por esse modelo:

Uma representação subjacente para cada forma a ser analisada; níveis organizados
hierarquicamente; e princípios gerais que atuam autonomamente em cada nível e
regras particulares, selecionadas e ativadas diferentemente em cada língua
(CRISTÓFARO-SILVA, 2007, p. 205).

Assim, nesse modelo de fonologia, a representação da estrutura interna da sílaba


básica é apresentada como abaixo:

(7)
σ
Onset Rima

Núcleo Coda

Ainda segundo essa autora, a silabificação primária deve ter informações das regras
particulares de cada língua derivando-se então de uma representação superficial para cada
palavra.

2
„Sílaba não-acentuada‟ corresponde à „sílaba aberta‟.
13

(8) Ilustração da estrutura interna da sílaba na palavra mer (mar) em esquema


adaptado de Durand (1993) citado por Racine (2008). Esquema da esquerda ilustra as
posições puras e o da direita as posições CV:

Sílaba Sílaba

Nível silábico Onset3 Rima Onset Rima

Núcleo Coda Núcleo Coda

Nível esqueletal X X X C V C

Nível segmental    R  R

Segundo Racine (2008), é a partir do modelo de fonologia autossegmental CV que


vai permitir a Encrevé (1998) dar um tratamento fonológico não só ao apagamento do Schwa,
como também analisar o fenômeno da liaison em francês. Nesse sentido, sua proposta segue
em representar somente o nível esqueletal marcados como „X‟. Racine (2008) ressalta que o
interesse em utilizar a representação do nível esqueletal é que o nível intermediário permite
relações assimétricas entre as unidades dos diferentes níveis. Lembrando a representação das
vogais longas (das línguas tonais) ou das consoantes africadas que podem ser representadas
por um segmento único em duas posições contíguas do esqueleto. Essa representação permite
também de fixar mais de uma unidade no nível segmental, o que serviria para os ditongos, por
exemplo (CRISTÓFARO-SILVA, 2007).
Já Tranel (1987 apud RACINE, 2008) propõe que pode haver uma posição no nível
esqueletal sem correspondente no nível segmental, o que o autor vai chamar de “segmento
flutuante”, no âmbito da fonologia CV, em que se encaixaria o Schwa suscetível a queda.
Partindo dessa noção, Racine (2008) ressalta que, dessa forma, esse elemento está
presente no nível segmental com uma posição esqueletal correspondente mas não ligada por

3
Na tradução de Durand (1973), citado por Racine (2008), o autor optou por utilizar “ataque” no lugar de
“onset”.
14

uma linha de associação aos níveis superiores. Isso quer dizer que esse elemento está, então,
representado na forma subjacente de uma palavra, mas não está associada nem ao nível
esqueletal, nem ao nível silábico. É o que Encrevé (1988 apud RACINE, 2008) chama por
“autossegmento flutuante” dando a seguinte definição:

Para nós, um autossegmento flutuante é uma unidade de uma linha autossegmental


(de qualquer natureza) que não está ancorado no esqueleto. Nós consideramos dois
estados: o estado da forma de uma palavra (ou eventualmente de um morfema) no
léxico e o estado dessa forma na cadeia verbal de um enunciado (ENCREVÉ, 1988
apud RACINE, 2008, tradução nossa).

Dessa forma, Encrevé considera também que haverá diferentes tipos de tratamentos
dependendo da natureza do Schwa. Nesse caso, ele faz distinção, primeiramente, entre os
Schwas que aparecem em final de palavra e os internos. Em segundo lugar, os de
monossílabos, e de polissílabos.
Como dissemos anteriormente, importa para esse trabalho mostrar as representações
que os estudiosos das teorias fonológicas têm mostrado a respeito do tratamento do
apagamento do Schwa. Por isso, é válido lembrar que o trabalho de Racine (2008) que reuniu,
fundamentalmente, os principais modelos fonológicos pelos quais esse fenômeno foi
estudado, traz também as representação do Schwa em sílaba inicial e no interior de
polissílabos propostas por Encrevé (1988). Nesse caso, dentre muitos exemplo, exploramos os
das palavras petit e casserole, tais quais estão dispostos nos esquemas abaixo:

(9)4 Representação da palavra petit:


A R A R

N N C

X X X X X

        

Racine ressalta que o caso do autossegmento flutuante somente se aplica ao primeiro


caso do Schwa, em que ele é facultativo e aparece em primeira sílaba de polissílabo. Sendo

4
Os esquemas de (9) a (14) aqui apresentados são de Encrevé (1988) e foram adaptados por Racine (2008).
15

assim, ele é representado na forma lexical como um elemento flutuante, postulando que ele se
encontra em uma posição que não se associa no esqueleto.
Já quando o Schwa se realiza foneticamente, a consoante precedente está fixa no
ataque, como pode-se ver no exemplo abaixo:

(10) Representação da palavra petit quando o Schwa se realiza foneticamente:

A R A R

N N C

X X X X X

        

No caso em que o Schwa não tem realização fonética, a posição da rima se esvazia e
a consoante seguinte ancora-se junto da consoante precedente, ambas na mesma posição de
ataque.

(11) Representação da palavra p’tit quando o Schwa não se realiza foneticamente:


A R

N C

X X X X

       

Para o segundo tipo de Schwa, aquele que se encontra no interior de polissílabos,


Racine toma o exemplo de Encrevé da palavra casserole, na qual o Schwa muito dificilmente
se realizaria, dado seu contexto na palavra. Ele é precedido de uma sequência VC e precedido
de uma sequência CV, ou seja, encontra-se no contexto VC__CV. Segundo esse autor, esse
Schwa não se realiza foneticamente na pronúncia do francês não-meridional e, portanto, essa
palavra teria uma proposta de representação que passa por constituintes silábicos Rima e
16

Núcleo flutuantes não ligados acima da posição esqueletal a qual não corresponde a nenhum
elemento na linha segmental (RACINE, 2008):

(12) Representação da palavra cass(e)role:

A R A R A R R

N N N C N

X X X X X X X X

      

Em caso muito excepcional em que o Schwa se realiza nesse contexto, a palavra teria
a seguinte representação:

(13) Representação da palavra cass(e)role quando há realização fonética do Schwa:


A R A R A R R

N N N C N

X X X X X X X X

      

Pode-se perceber, que nesse caso, a consoante que precede o Schwa, quando ele se
realiza, vai ligar-se por uma linha de associação ao nível silábico, pois então, cumprirá seu
papel na periferia da sílaba, sendo que o Schwa ocuparia então o núcleo da mesma.
Já em se tratando do caso mais comum em que o Schwa não se realiza
foneticamente, a posição da Rima ficaria vazia e apaga-se. O que ocorre com a queda do
Schwa é que a consoante precedente, não tendo como se ligar ao nível silábico por uma linha
de associação, passa a assumir a posição de Coda da sílaba que precede.
17

Encrevé apresenta dois esquemas para o apagamento do Schwa nessa posição. No


primeiro, a consoante que ocupa a posição de ataque se mantém nessa posição e é a consoante
da sílaba seguinte, no caso o /que assume a posição de ataque junto ao /s/, nesse caso.
No entanto, torna-se difícil estabelecer onde termina a primeira sílaba e começa a
segunda, por exemplo, no primeiro esquema a silabação seria / (CV.CCVC). Não
que essa possibilidade não exista, mas, de fato, parece mais tranquilo assumirmos a silabação
/(CVC.CVC). Nesse sentido, é válido mostrar o segundo esquema de Encrevé
(1988) adaptado de Racine (2008):

(14) Representação da palavra cass(e)role quando há realização fonética do Schwa:


A R A R R

N C N C N

X X X X X X X

     

À guisa de conclusão, é interessante ilustrar na representação desse modelo quando o


Schwa será sempre realizado foneticamente. Relembramos os casos em que é precedido de
mais de duas consoantes, como é o caso da palavra brevet:
(15) Representação do caso em que o Schwa sempre se realiza:

A R A R

N N C

X X X X X X
          


18

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Primeiramente, podemos considerar que a problemática ligada ao Schwa ainda
apresenta divergências em considerar seu status quanto fonema. Porém, como vimos ao longo
desse trabalho e de acordo com os autores apresentados, parece impossível analisar o
fenômeno do apagamento dessa vogal sem concebê-la como fonema, pois ela está presente
nas formas subjacentes.
Já com a apresentação das propostas que estudam o apagamento do Schwa segundo
os modelos fonológicos calcados na Geometria de Traços e na Fonologia Autossegmental,
demonstrou um viés interessante para o entendimento desse fenômeno.
Sobre os esquemas de Encrevé reunidos no trabalho de Racine (2008) sob a
perspectiva da Fonologia Autossegmental, podemos considerar que essa proposta apresenta
um tratamento mais refinado e menos generalizado dos contextos em que ele aparece e de
como sua posição na representação na superfície, no nível dos segmentos, tem ligação com a
forma subjacente das palavras, sendo que foram estabelecidos diferentes tipos de Schwa para
cada contexto analisado.
Outro ponto que é válido relevar está ligado ao acesso à literatura da área. Em se
tratando de um número considerável de obras que tratam da problemática do Schwa por mais
de décadas, ainda encontra-se dificuldades para acessar essas obras ainda que em língua
original, muito mais em português. Mesmo assim, a partir de um apanhado de teorias,
sobretudo com a tese de Racine (2008), foi possível fazer esse breve panorama sobre esse
fenômeno tão recorrente na língua francesa.
Em um segundo momento, seria interessante partir desses princípios fonológicos
para se fazer um estudo mais detalhado, por exemplo, dos contextos que precedem e seguem o
Schwa, como fatores internos e linguísticos que podem condicionar o apagamento da vogal.
Um tratamento acústico e estatístico também poderia contribuir com dados afim de
estabelecer mais concretamente alguns “tipos” de Schwa, na tentativa de explicar
fundamentalmente sua instabilidade em certos momentos e sua estabilidade em outros.

5 REFERÊNCIAS

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CHOMSKY, Noam. Current issues in linguistics theory. Paris, Mouton, 1970.

CHOMSKY, Noam; HALLE, Morris. Principes de phonologie générative. Trad. Encrevé.


Paris, Seuil, 1973.
19

CLEMENTS, G. N. The Geometry of Phonological Features. In: Phonology Yearbook, 2,


1985.

CRISTÓFARO-SILVA, Thaïs. Fonética e Fonologia do Português: roteiro de estudos e


guia de exercícios. 9a edição. São Paulo: Contexto, 2007.

DETEY, Sylvain; DURAND, Jacques; LAKS, Bernard; LYCHE,Chantal. Les variétés du


français parlé dans lé espace francophone: Ressources poru l’enseignement. Paris:
Éditions Ophrys, 2010.

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KIKUCHI, Luci. Vogais Altas e Glides no português brasileiro e no Inglês Britânico.


Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte, UFMG, 2001. Disponível em:
http://www.projetoaspa.org/cristofaro/orientacao/ma/concluida/kikuchi_ma_2001.pdf Acesso:
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RACINE, Isabelle. Les effets de l'effacement du Schwa sur la production et la perception de


la parole en français. Thèse de doctorat: Univ. Genève, 2008.
Disponível em: <http://archive-ouverte.unige.ch/unige:602>. Acesso: agosto de 2011.

WALTER, Henriette. La phonologie du français. Paris: PUF, Le linguiste, 1977.

WIOLAND, François. Pononcer les mots em français. Paris: Hachette, 1991.

_____. François. La vie sociale des sons du français. Paris: L'Harmattan, 2005.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

O ENSINO FUNDAMENTAL DE NOVE ANOS: UM ESTUDO INTRODUTÓRIO


SOBRE OS LIMITES E DESAFIOS ENFRENTADOS POR ESCOLAS PÚBLICAS DE
TRÊS MUNICÍPIOS DA REGIÃO DA AMUREL, SC

Maria Sirlene Pereira Schlickmann (PPGCL/UNISUL) 1

RESUMO

O processo de implementação do ensino fundamental de nove anos (Lei nº. 11.274/2006) tem
sido um dos grandes desafios da educação brasileira atualmente. Este estudo objetiva apresen-
tar algumas reflexões que tenho desenvolvido a partir de estudos realizados com alunas do
Curso de Pedagogia da Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL, acerca da implan-
tação do ensino de nove de anos na região da AMUREL. O foco desta apresentação serão três
escolas públicas, de três municípios da região AMUREL, cujos nomes serão preservados. São
objetivos: a) conhecer como estas escolas se organizaram para receber as crianças de seis anos
no Ensino Fundamental; b) levantar as principais dificuldades encontradas por estas escolas
no processo; c) conhecer os limites e desafios encontrados por elas no processo de implanta-
ção e implementação do ensino fundamental de nove anos. O quadro teórico de referência,
para análise dos dados, levará em conta estudos sobre o processo de alfabetização e letramen-
to como processo discursivo. Para a coleta dos dados fez-se uso da pesquisa de campo com
entrevista estruturada. Em termos de relevância para a área, o presente trabalho visa contribuir
com algumas reflexões para os estudos desse campo temático.

Palavras-chave:
Ensino Fundamental de nove anos. Alfabetização. Letramento.

ABSTRACT

Nowadays, the process of changes in Elementary School to implement duration of nine years
(based on Law nº 11.274/2006) had been one of large challenges in Brazilian Education. This
study shows some observations developed from studies made with students that attend Facul-
ty Education at Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL about the implementation
of nine years curriculum in the region of AMUREL. The focus of this presents are three pub-
lic schools from three different towns of AMUREL whose names will be preserved. The pur-
poses are: a) knowing how these schools organized themselves to receive six years old chil-
dren in Elementary School; b) taking main difficulties found by these schools in the process;
c) knowing limits and challenges found by them in during the implementation process of nine
years curriculum in Elementary School. The theoretical board of reference for data analyses
will be based on studies about literacy as discursive process. To take data we used field re-
search with structured interview. This study find give some contributions to this thematic
field.

Keywords:
Elementary School. Nine years curriculum. Literacy.

1
Professora do Curso de Pedagogia da UNISUL. Pedagoga. Mestre em Ciências da Linguagem. Doutoranda do
Programa de doutorado em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL; e-
mail: maria.schlickmann@unisul.br.
2

1 INTRODUÇÃO
A história da alfabetização é a história da
escola! E se quisermos dar outro rumo à
vergonhosa história da alfabetização em
nosso país, é à história da escola que temos
que dar outro rumo – é a escola que
temos de transformar.

Magda Soares

O processo de implementação do ensino fundamental de nove anos (Lei nº.


11.274/2006) tem sido um dos grandes desafios da educação brasileira atualmente, movimen-
tando, cada vez mais, a academia e a comunidade educacional em torno do debate, que estuda
o reflexo das primeiras experiências vivenciadas pelas crianças de seis anos no Ensino Fun-
damental.
Como a legislação é bastante recente, mesmo onde o ensino fundamental com du-
ração de nove anos foi implantado logo que a lei foi aprovada ainda não foi possível as crian-
ças completarem o ciclo dos nove anos na escola – ou seja, não é possível até o momento fa-
zer uma avaliação consistente do processo com crianças e professores / escolas que estão vi-
venciando o ciclo. Apesar disso os estudos realizados até aqui já apontam alguns elementos
significativos para o estudo do tema.
Em termos de justificativa para receber as crianças mais cedo na escola, entende-
se que
[...] a adoção de um ensino obrigatório de nove anos iniciando aos seis anos de idade
pode contribuir para uma mudança na estrutura e na cultura escolar. [No entanto, é
importante reafirmar que] [...] não se trata de transferir para as crianças de seis anos
os conteúdos e atividades da tradicional primeira série, mas de conceber uma nova
estrutura de organização dos conteúdos em um Ensino Fundamental de nove anos,
considerando o perfil de seus alunos. [Neste sentido] O objetivo de um maior núme-
ro de anos de ensino obrigatório é assegurar a todas as crianças um tempo mais lon-
go de convívio escolar, maiores oportunidades de aprender e, com isso, uma apren-
dizagem mais ampla (BRASIL, 2004, p. 15).

Cabe, no entanto, destacar a importância de respeitar a infância das crianças no


seu desenvolvimento e nos seus direitos, entendendo que esse período do ensino fundamental
deve considerar debates e encaminhamentos que garantam os nove anos de trabalho escolar
incluindo a nova idade com a devida clareza – ou seja, de que o que temos é um ano a mais no
início do ensino fundamental e não no final, pois para os educadores e escolas, a compreensão
é de que temos um ano a mais no final, e desta forma, o currículo deve ser antecipado: o que
antes era conteúdo da primeira série agora passa a ser conteúdo do primeiro ano. Isso é um
grande equívoco.
3

Neste trabalho, trago algumas questões e reflexões sobre a implantação do ensino


fundamental de nove anos em três municípios da região da Associação dos Municípios da
Região da Laguna – AMUREL2, extraídas de três pesquisas desenvolvidas com alunas do
Curso de Pedagogia da UNISUL, sendo dois TCC (trabalhos de conclusão de curso orientados
por mim) e um projeto integrador desenvolvido na disciplina de Alfabetização e Letramento.
Para tanto, proponho como objetivos: a) conhecer como as escolas se organizaram
para receber as crianças de seis anos no Ensino Fundamental; b) levantar as principais dificul-
dades encontradas pelas escolas no processo de implantação do ensino fundamental de nove
anos; c) conhecer alguns dos limites e desafios encontrados por elas no processo de implanta-
ção e implementação do ensino fundamental de nove anos.
O quadro teórico de referência, para análise dos dados, levará em conta estudos
sobre o processo de alfabetização e letramento como processo discursivo. Para a coleta dos
dados fez-se uso da pesquisa de campo com entrevista estruturada e registro fotográfico.
Em termos de estruturação, o presente trabalho está assim organizado: na primeira
parte farei uma breve retrospectiva para apresentar a base legal do ensino fundamental de no-
ve anos; na segunda parte apresentam-se alguns conceitos que vão subsidiar as reflexões aqui
propostas; na terceira parte serão apresentados os dados da pesquisa com uma reflexão analí-
tica sobre os mesmos, seguida das considerações finais.

2 COMO TUDO COMEÇOU: UMA BREVE RETROSPECTIVA - BASE LEGAL

Crianças: iguais são seus deveres e direitos.


Crianças: viver sem preconceito é bem melhor.
Crianças: a infância não demora, logo, logo vai passar,
Vamos todos juntos brincar.
TOQUINHO

A partir do ano de 2005, com a alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação


Nacional, no Brasil, um novo horizonte surge para o Ensino Fundamental, que passa a ter
nove anos de duração. Muito se discutiu, especialmente através de movimentos organizados,
estadual e nacionalmente, no sentido de fazer a crítica sobre a lei do ensino fundamental com
nove anos de duração e, consequentemente, sobre o ingresso mais cedo das crianças no Ensi-

2
A partir de agora passarei a utilizar apenas a sigla AMUREL para me referir à Associação dos Municípios da
região da Laguna.
4

no Fundamental, o que foi muito interessante porque contribuiu para que as pessoas pudessem
ter mais esclarecimentos sobre o processo. Paralelamente ao debate, o governo federal, atra-
vés do Ministério da Educação, preparou vários documentos para orientar estados e municí-
pios na operacionalização desse desafio: receber as crianças com seis anos no Ensino Funda-
mental.
Objetivando situar o leitor neste contexto, a seguir, numa visão panorâmica, apre-
sento uma retrospectiva da base legal do ensino fundamental de nove anos, no Brasil.
Primeiramente, é importante dizer que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional – Lei nº 9.394/96 – já apontava para a ampliação do Ensino Fundamental. A Lei nº
10.172/2001, ao aprovar o Plano Nacional de Educação/PNE, estabeleceu a implantação pro-
gressiva do Ensino Fundamental de nove anos, tornando-se meta para a Educação Nacional. A
inclusão das crianças de seis anos de idade no Ensino Fundamental está ancorada, então, na
meta de assegurar um tempo mais longo de convívio escolar, oferecendo maiores oportunida-
des de aprendizagem e, com isso, educação de qualidade.
Em 16 de maio de 2005, a Lei nº 11.114 altera a LDB e torna obrigatória a matrí-
cula das crianças de seis anos de idade no Ensino Fundamental. Porém, o Conselho Nacional
de Educação esclarece sua posição vinculando a obrigatoriedade da matrícula aos seis anos de
idade à ampliação da duração desta etapa para nove anos, através dos Pareceres nº 06/2005 e
nº 18/2005, que orientam a matrícula no Ensino Fundamental, e da Resolução nº 03/2005, que
fixa normas nacionais para a ampliação do Ensino Fundamental.
No dia 6 de fevereiro de 2006, a Lei nº 11.274 altera a LDB e amplia o Ensino
Fundamental para nove anos de duração, tornando obrigatória a matrícula das crianças de seis
anos de idade no ensino fundamental, fixando o ano de 2010, prazo máximo, para implanta-
ção da lei nos sistemas de ensino estaduais e municipais.
Em Santa Catarina, o Decreto nº 4.804, de 25 de outubro de 2006, dispõe sobre a
implantação do Ensino Fundamental com duração de nove anos nas escolas da rede pública
estadual, a partir de 2007, com ingresso na 1ª série de crianças a partir dos seis anos de idade
completos. Em consequência desse Decreto, a Instrução Normativa nº 22, de 20 de novembro
de 2006, da Secretaria de Estado da Educação, dispõe sobre a duração de nove anos para o
Ensino Fundamental, com matrícula obrigatória aos seis anos de idade nas escolas da rede
pública estadual de Santa Catarina. O Conselho Estadual de Educação, através da Resolução
nº 110, de 12 de dezembro de 2006, dispõe sobre a duração de nove anos para o Ensino Fun-
damental, amparado pelas Leis Federais nº 11.114/2005 e nº 11.274/2006.
5

Em 2006 e 2007, o Conselho Nacional de Educação manifestou-se sobre a ampli-


ação do Ensino Fundamental para nove anos de duração, através de vários Pareceres. Porém,
devido às inúmeras dúvidas sobre o assunto, principalmente em relação às questões de ordem
pedagógica, o Conselho Nacional de Educação pronunciou-se novamente, por meio do Pare-
cer CNE/CEB nº 04/2008, aprovado em 20 de fevereiro de 2008. Este parecer fez orientações
mais detalhadas para os três anos iniciais do Ensino Fundamental com duração de nove anos;
vários aspectos foram esclarecidos e alguns procedimentos pedagógicos recomendados.
Em 9 de dezembro de 2009, foi aprovado o Parecer nº 22/2009 do CNE/CEB, que
orienta sobre as Diretrizes Operacionais para a implantação do Ensino Fundamental de 9 (no-
ve) anos. Depois, em 7 de julho de 2010, foi aprovado o parecer CNE/CEB nº 11/2010, que
trata das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental de 9 (nove) anos. Este
parecer abordou tópicos como: a) o direito à educação como fundamento maior das Diretrizes;
b) oferta de uma educação com qualidade social; c) princípios norteadores; d) matrícula e
carga horária; e) as múltiplas infâncias e adolescências; f) a ampliação dos objetivos em face
do seu alunado; g) currículo – os componentes curriculares obrigatórios do Ensino Fundamen-
tal, organizados em relação às áreas de conhecimento; h) a reinvenção do conhecimento e a
apropriação da cultura pelos alunos; i) o projeto político-pedagógico; j) a gestão democrática
e participativa como garantia do direito à educação; l) a relevância dos conteúdos, integração
e abordagens do currículo; m) a entrada das crianças de 6 (seis) anos no Ensino Fundamental;
n) a necessidade de recuperar o caráter lúdico da aprendizagem; o) a organização dos três
primeiros anos do Ensino Fundamental em um único ciclo; p) a docência solidária, esforço
conjunto dos professores; q) a avaliação como redimensionadora da ação pedagógica, que
deve assumir um caráter processual, formativo e participativo, ser contínua, cumulativa e di-
agnóstica.
Em 13 de julho de 2010, com a aprovação da Resolução nº 4, o Conselho Nacio-
nal de Educação/Câmara de Educação Básica, definiu Diretrizes Curriculares Nacionais Ge-
rais para todas as etapas e modalidades da Educação Básica. A Resolução CNE/CEB nº 1, de
14 de janeiro de 2010, e depois a Resolução CNE/CEB nº 6, de 20 de outubro de 2010, defi-
nem Diretrizes Operacionais para a matrícula no Ensino Fundamental e na Educação Infantil,
determinando que a data-corte para a entrada no Ensino Fundamental de 9 (nove) anos é 31 de
março e que, excepcionalmente, no ano de 2011, crianças que tivessem frequentado a pré-
escola por 2 (dois) anos ou mais poderiam ser matriculadas no Ensino Fundamental, ainda que
completassem 6 (seis) anos após 31 de março. Ou seja: a partir de 2012, para entrar no Ensino
Fundamental, as crianças terão de ter seis anos completos.
6

Em 9 de novembro de 2010, o Conselho Estadual de Educação de Santa Catarina


aprovou a adequação da Resolução nº 110/2006/CEE/SC, tendo em vista a edição do Parecer
nº 22/2009/CNE/CEB, Resolução nº 1/2010/ CNE/CEB, Resolução nº 6/2010/CNE/CEB, que
tratam do Ensino Fundamental de 9 (nove) anos, através do Parecer nº 225 e da Resolução nº
64/2010.
Para a implantação dessa Lei, além de toda a indicação da própria legislação –
como, por exemplo, a lei 9394/96 –, foi muito forte o argumento de que as crianças que per-
manecerem mais tempo na escola, chegando mais cedo no Ensino Fundamental, também
aprenderão mais e melhor. Neste sentido, o próprio MEC assim se posiciona: “[...] avalia-se
que o modelo educacional vigente não provocou mudanças efetivas de comportamento
para construir uma cidadania solidária, responsável e comprometida com o País e com seu
futuro”. (BRASIL, 2004, p. 8, grifo meu).
E é com o objetivo de ampliar a escolaridade, qualificando o processo, que, entre
outros argumentos, é aprovada a lei de ampliação do Ensino Fundamental. Na verdade, não
estamos falando de nenhuma novidade, visto que, em outros países3, a criança já passa mais
tempo na escola; aliás, quando vão estudar no exterior, muitos brasileiros precisam completar
carga horária para poder validar seu estudos.
São objetivos do MEC com a política de ampliação e implantação do Ensino Fun-
damental de nove anos:

a) melhorar as condições de equidade e de qualidade da Educação Básica; b) estrutu-


rar um novo ensino fundamental para que as crianças prossigam nos estudos, alcan-
çando maior nível de escolaridade; c) assegurar que, ingressando mais cedo no sis-
tema de ensino, as crianças tenham um tempo mais longo para as aprendizagens da
alfabetização e do letramento (BRASIL, 2009a, p. 5).

A partir desses objetivos o MEC, de certa forma, reconhecendo a fragilidade do


sistema educacional brasileiro, define os princípios que deverão nortear, no Brasil, todo o
trabalho do Ensino Fundamental de nove anos. São eles:

3
A Lei nº 4.024, de 1961, estabelecia quatro anos; pelo Acordo de Punta Del Este e Santiago, o governo brasi-
leiro assumiu a obrigação de estabelecer a duração de seis anos de ensino primário para todos os brasileiros,
prevendo cumpri-la até 1970. Em 1971, a Lei nº 5.692 estendeu a obrigatoriedade para oito anos. Já em 1996, a
LDB sinalizou para um ensino obrigatório de nove anos, a iniciar-se aos seis anos de idade. Este se tornou meta
da educação nacional pela Lei nº 10.172, de 9 de janeiro de 2001, que aprovou o PNE. Cabe, ainda, ressaltar que
o Ensino Fundamental de nove anos é um movimento mundial e, mesmo na América do Sul, são vários os países
que o adotam, fato que chega até a colocar jovens brasileiros em uma situação delicada, uma vez que, para con-
tinuar seus estudos nesses países, é colocada a eles a contingência de compensar a defasagem constatada (BRA-
SIL, 2009a).
7

a) A escola como polo irradiador de cultura e conhecimento: este princípio também está
sintonizado com a própria lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n.
9394/96), Art. 1º: “A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem
na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e
pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifesta-
ções culturais”.

b) O desenvolvimento do aluno é a principal referência na organização do tempo e do es-


paço da escola: é apenas um ano a mais, mas que pode fazer uma grande diferença na
vida da criança, pois elas estão chegando mais cedo na escola e necessitam viver a in-
fância e ter seus direitos respeitados. Daí a necessidade de pensar os espaços das insti-
tuições educativas de forma a garantir os direitos fundamentais da criança. É impor-
tante destacar que este espaço precisa ser pensado a partir do desenvolvimento da cri-
ança, das suas necessidades nessa fase da vida.

É preciso, portanto, não esquecer que as crianças são diferentes e que possuem
tempos diferentes para aprender.

O ser humano é ser de múltiplas dimensões; Todos aprendem em tempos e em rit-


mos diferentes; O desenvolvimento humano é um processo contínuo; O conheci-
mento deve ser construído e reconstruído processualmente e continuamente; O co-
nhecimento deve ser abordado em uma perspectiva de totalidade; É importante uma
gestão participativa, compartilhada e que tenha como referência a elaboração coleti-
va do Projeto Político-Pedagógico, contemplando a ampliação do Ensino Fundamen-
tal; A diversidade metodológica e a avaliação diagnóstica, processual e formativa
devem estar comprometidas com uma aprendizagem inclusiva, em que o aluno, den-
tro da escola, aprenda de fato (BRASIL, 2009a, p.12).

E é a partir da definição dessa política que todo o processo deve ser organizado.
Porém, é preciso ter clareza do processo, especialmente em termos de organização curricular,
para não repetir, no primeiro ano, as mazelas das tradicionais primeiras séries. Para pensar
este tempo e espaço, é necessário, então, que o educador faça alguns questionamentos acerca
do tema e da estrutura necessária para atender essa faixa etária. Afinal, toda mudança também
precisa mexer com a estrutura tradicional da Educação Básica, de forma a garantir a perma-
nência da criança na escola. É preciso, então, se perguntar: Quem é essa criança que chega aos
seis anos no ensino fundamental? Que necessidades ela tem? Do que ela gosta? Como se rela-
ciona (com os colegas, com os adultos – entre os atores do processo)? Como ela aprende?
Como organizar / pensar os espaços e tempo para recebê-la com seis anos na escola? O que e
como “ensinar”? O que está garantindo (ou garante) a permanência da criança na escola? O
que dizer e fazer com a criança de seis anos no ensino fundamental?
O documento do MEC, norteador do Ensino Fundamental de nove anos, assim se
posiciona sobre a organização da escola para receber as crianças dessa faixa etária:
8

Sobre a questão espacial [...] uma questão de fundo: qual a finalidade dessa organi-
zação? Será que esse espaço escolar, da forma como usualmente tem sido organiza-
do, promove um agrupamento dos alunos favorável à dinamização das ações peda-
gógicas? Ao convívio com a comunidade? À reflexão dos professores? Existiriam
outros modos de estruturar o espaço da escola que possibilitassem a interação das
crianças e adolescentes em conformidade com suas fases de socialização? Sobre os
currículos e programas escolares – Via de regra, os currículos têm sido tratados
como um programa, considerado, de modo geral, como uma organização de conteú-
dos numa determinada sequência e utilizando um determinado critério. Seria essa a
única possibilidade de se conceber o currículo? Será que a abordagem dos saberes
parte do conhecimento que os alunos trazem do seu grupo social? Que usos as pes-
soas fazem desses saberes em suas vidas? (BRASIL, 2009a, p.9).

É neste contexto que as instituições educacionais são convidadas a pensar / orga-


nizar / re-estruturar / ressignificar os espaços e tempos da escola, de forma que as crianças
possam viver a infância mais plenamente e que possam viver uma escola que as respeite inte-
gralmente. Dito de outra forma, este pode ser o “grande” momento de romper com a lógica da
escola e construir, a partir de discussões já realizadas na Educação infantil, uma nova organi-
zação do cotidiano para o Ensino Fundamental, o que talvez seja o maior ganho que podemos
ter/querer com a implantação e implementação desta lei. É como nos diz

[...] Rubem Alves, quando afirma que “a criança tem de parar de pensar o que estava
pensando e passar a pensar o que o programa diz que deve ser pensado naquele tem-
po”. Daí que emergem as questões sobre a necessidade de se repensar a organização
do tempo escolar, acompanhando as mesmas inquietações de Rubem Alves: “o pen-
samento obedece às ordens das campainhas? Por que é necessário que todas as cri-
anças pensem as mesmas coisas, na mesma hora e no mesmo ritmo? As crianças são
todas iguais? O objetivo da escola é fazer com que as crianças sejam todas iguais?
(BRASIL, 2009a, p. 9).

E então? Como “desconstruir” a lógica da escola? Poderíamos pensar que o Ensi-


no de nove anos, se compreendido em seu fundamento, pode se tornar um caminho para o
rompimento do paradigma de escola nos moldes da educação tradicional, de forma que as
crianças possam criar, recriar e “pintar” o tempo de criança do seu jeito, permitindo-se viver a
infância mais intensamente?
Em meio a todo esse debate, a partir da aprovação da lei, estados e municípios
começam toda uma mobilização para a implantação, nos seus sistemas de ensino, do ensino
fundamental com nove anos de duração.

[...] é preciso ressaltar que a formação de uma cidadania solidária, responsável e


comprometida com a construção de um projeto nacional de qualidade social, assegu-
rando o acesso, a participação e a permanência de todos na escola, é uma responsa-
bilidade de todas as instâncias de governo, do Ministério da Educação, das secretari-
as estaduais e municipais de educação e da sociedade civil (BRASIL, 2009a, p.12).
9

Em termos de nomenclatura, de acordo com a idade correspondente, desde o iní-


cio do processo, o MEC sugeriu que fossem utilizados os seguintes conceitos:

Etapa de Ensino Faixa-etária prevista Duração


Educação infantil Até cinco anos de idade
Creche Até três anos de idade
Pré-Escola 4 e 5 anos de idade
Ensino Fundamental Até 14 anos 9 anos
Anos iniciais De 6 a 10 anos 5 anos
Anos Finais De 11 a 14 anos 4 anos

Tabela 1 – Nomenclatura das turmas que compõem o Ensino Fundamental de Nove Anos.
Fonte: MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Ensino Fundamental de Nove Anos: Orientações Gerais. Brasília: Mi-
nistério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2004, p. 155. Adaptado.

Com essa orientação, os municípios passaram a elaborar seus próprios documen-


tos, buscando normatizar o processo de implantação da nova Lei. Em geral, a partir de 2007,
passaram a vigorar no país dois “modelos” de organização: o modelo vigente, de oito anos,
estruturado em séries – as crianças que iniciaram os estudos nesse modelo devem seguir até a
conclusão do Ensino Fundamental; e o “modelo” de nove anos – as crianças que chegaram à
escola a partir da implantação da nova lei (2007), iniciando o primeiro ano aos seis anos de
idade, estudam sob esse modelo4.
Em termos de organização curricular, a orientação do MEC também foi para que o
currículo fosse adaptado5. As escolas deveriam, então, pensar o currículo para os nove anos, e
a primeira preocupação deveria ser no sentido de organizar o currículo para as turmas de seis
anos – afinal, as crianças permanecerão um ano a mais no início do processo, e não no final6.

4
Os municípios e escolas, lócus desta pesquisa, implantaram o Ensino Fundamental de nove anos no primeiro
ano de implantação da lei (2007 e 2008).
5
Para aprofundar as discussões sobre currículo e planejamento, ver Moretto (2007) e Sacristan (2000).
6
Vale lembrar, também, que no ano de 2008 o Ministério da Educação e a Secretaria de Educação Básica orga-
nizaram a publicação “Indagações sobre Currículo”. Trata-se de cinco livretos, que abordam os seguintes temas:
“Currículo e Desenvolvimento Humano”, “Educandos e Educadores: seus direitos e o currículo”, “Currículo,
Conhecimento e Cultura”, “Diversidade e Currículo” e “Currículo e Avaliação”. As escolas públicas de todo o
Brasil receberam, no ano de 2009, este documento, que busca embasar teoricamente discussões a respeito da
organização curricular, abrangendo diferentes perspectivas para que os professores, escolas e profissionais da
educação possam refletir e elaborar as propostas curriculares do seu sistema de ensino, registrando-as em seu
Projeto Político-Pedagógico. Neste sentido, o Ministério da Educação e a Secretaria de Educação Básica pro-
põem aos envolvidos neste processo “[...] uma reflexão: para quem, o que, por que, e como ensinar e aprender,
reconhecendo interesses, diversidades, diferenças sociais e, ainda a história cultural e pedagógica de nossas esco-
las. Posicionamo-nos em defesa da escola democrática que humanize e assegure a aprendizagem. Uma escola
que veja o estudante em seu desenvolvimento – criança, adolescente e jovem em crescimento biopsicossocial;
que considere seus interesses e de seus pais, suas necessidades, potencialidades, seus conhecimentos e sua cultu-
ra” (BRASIL, 2008b, p. 7).
10

Para que o leitor deste texto possa saber de onde partir para organizar o currículo
para o ensino fundamental de nove anos, na sequência, ainda que sem aprofundar, pois não é
o foco aqui, apresento, alguns conceitos chave para contribuir com as reflexões sobre um cur-
rículo para o ensino de nove anos.

3 SUBSÍDIOS TEÓRICOS: ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO – PONTO DE


PARTIDA
Para pensar uma proposta pedagógica para as crianças do primeiro ano/série o
educador precisa considerar que a leitura e escrita são práticas sociais e isso envolve conceber
as crianças num universo letrado. As propostas pedagógicas para essa faixa etária devem estar
alicerçadas na concepção de alfabetização com letramento, no alfabetizar letrando. Para Soa-
res,

Ter-se apropriado da escrita é diferente de ter aprendido a ler e a escrever: apren-


der a ler e escrever significa adquirir uma tecnologia, a de codificar em língua escri-
ta e de decodificar a língua escrita; apropriar-se da escrita é tornar a escrita “pró-
pria”, ou seja, é assumi-la como “propriedade” (2006, p. 39).

Associada a essa ideia, o eixo da proposta pedagógica para o primeiro ano do en-
sino de nove anos de duração estará alicerçado no princípio do alfabetizar letrando – alfabeti-
zação e letramento (SOARES, 2006).
Embora na turma de seis o currículo deva estar pautado no alfabetizar letrando é
importante diferenciar alfabetização e letramento de forma que os professores possam ter a
clareza de que o “letramento é [...] o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e es-
crever; o estado ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como conse-
quência de ter-se apropriado da escrita (SOARES, p. 18)”, enquanto que “alfabetização é a
ação de alfabetizar, de tornar-se „alfabeto‟, ou seja: no dizer de Soares (2006) “Alfabetizar é
tornar o indivíduo capaz de ler e escrever” (p.31).
Esta é a concepção que vai permear o currículo do primeiro ano do ensino funda-
mental de nove anos de duração. Vale ressaltar que no primeiro ano desse currículo a priori-
dade é a dimensão social do letramento; nesta dimensão “o foco se desloca para a dimensão
social, o letramento é visto como um fenômeno cultural, um conjunto de atividades sociais
que envolvem a língua escrita, e de exigências sociais de uso da língua escrita (SOARES,
2006, p. 66)”, o que, no dizer de Soares, caracteriza o processo de leitura e escrita como práti-
11

cas sociais, e são essas práticas que, pelo eixo das diferentes linguagens da ludicidade, devem
ser exploradas no primeiro ano do ensino fundamental, de forma que a criança possa ampliar
suas referências e seu vocabulário, ao mesmo tempo em que entra no universo da cultura es-
crita. Vale ressaltar também, que quando a criança chega para a escola ela já traz consigo ex-
periências, podendo vivenciar práticas sociais de leitura e escrita. Neste sentido,

[...] a criança que ainda não se alfabetizou, mas já folheia livros, finge lê-los, brinca
de escrever, ouve histórias que lhe são lidas, está rodeada de material escrito e per-
cebe seu uso e função, essa criança ainda é „‟analfabeta”, porque não aprendeu a ler
e escrever, mas já penetrou no mundo do letramento já é, de certa forma, letrada
(2006, p. 24).

Uma outra questão importante é que temos diferentes níveis de letramento (SOA-
RES, 2006), o que leva-nos a reafirmar a importância do primeiro ano como espaço de ampli-
ar as linguagens e, consequentemente, o nível de letramento das crianças.
Porém, isso não foi compreendido e nem estudado pelos educadores e equipes pe-
dagógicas das escolas. Em geral, o que aconteceu nos municípios e escolas onde o ensino
Fundamental de nove anos de duração foi implantado, foi uma antecipação do currículo da
primeira série para o primeiro ano, como veremos a seguir, em pesquisa realizada junto a três
municípios da região da AMUREL.

4 REFLEXÃO SOBRE OS LIMITES E DESAFIOS DE ESCOLAS PÚBLICAS DA


REGIÃO DA AMUREL – SC
Iniciando a reflexão, apresento, na sequência, alguns dados que irão contribuir para
que possamos conhecer um pouco como as escolas se organizaram para receber as crianças de
seis anos no ensino fundamental. Os estudos realizados com orientandas de Trabalho de Con-
clusão de Curso e na disciplina de Alfabetização e Letramento do Curso de Pedagogia da Uni-
sul mostram que, em geral, as escolas não se prepararam (ou não tinham como fazê-lo) para
para responder a esse desafio. Vejamos os relatos a seguir:

A implantação do ensino de nove anos foi simplesmente jogada nas escolas, pois
não houve preparo nem capacitação para os profissionais que estão em regência. A
decisão foi tomada em instância superior e as escolas tiveram que acatar as ordens
(coordenador pedagógico C, 2008); A decisão foi tomada e a escola teve que execu-
tar, não houve discussões (coordenador pedagógico B, 2008 ); Em instância superior
recebeu a decisão com muitas dúvidas e expectativas em relação as orientações que
caberiam a escola receber dos órgãos competentes (Coordenador Pedagógico D).
(MEDEIROS, 2008, p. 29)
12

Note-se que estes relatos são da coordenação pedagógica da escola, porém os pro-
fessores reiteram o relato da coordenação pedagógica. Disseram eles:

Professor A - A decisão foi tomada por instâncias superiores, houve polêmicas e só


foi acatada a ordem, a nova lei; Professor B – A decisão foi tomada a distância e a
escola teve que executar esta decisão sem muitos palpites e opiniões; Professor C –
foi tomada por instâncias superiores, mas não foi implantado na íntegra. Professor D
– A mudança simplesmente entre nós professores não foi anunciada (MEDEIROS,
2008, p.29).

Sobre as principais mudanças no processo as professoras assim se manifestaram:

Professora A – Eu, apesar de saber como trabalhar com estas crianças devido a mi-
nha experiência na educação infantil, senti muita dificuldade, porque nossas profis-
sionais não viam desta forma que se falava, mas sim cobravam o currículo antigo e
tu tinha que apresentar o resultado da tal nota, da tal leitura e que iria haver reprova-
ção. Sofri muito, acho que as crianças também (sob pressão); Professora B – A mai-
or mudança é que a criança inicia sua educação infantil aos 6 anos; Professora C –
As mudanças são muitas, principalmente na aprendizagem, as dificuldades de nós
professores é que enquanto não houver mudança no currículo, não se tem prática pe-
dagógica certa a ser aplicada; D – Minha prática continua a mesma pois o currículo é
o mesmo (MEDEIROS, 2008, p. 31).

A pesquisa de Medeiros (2008) mostra com clareza o despreparo da coordenação


pedagógica da escola e dos seus docentes. Ficou evidente que as crianças foram matriculadas
e, em alguns casos, os professores sequer foram comunicados, nem a coordenação pedagógica
tinha elementos suficientes para orientar os docentes no processo.
Em pesquisa realizada em 2009, por Maurício, também de trabalho de conclusão
de curso, já foi possível perceber uma tentativa de compreensão do processo. Nessa pesquisa
o foco foi a organização curricular. Nosso interesse era saber como as escolas estavam se or-
ganizando em relação ao currículo7.
Segundo Maurício (2009), observa-se que a proposta pedagógica das três escolas
pesquisadas (escola “A”, “B” e “C”8) está sendo reformulada, porém percebeu-se, por parte
dos docentes, muita confusão, o que reflete diretamente em sua atuação pedagógica; eles têm
dúvidas sobre como realizar os encaminhamentos, quais conceitos / conteúdos trabalhar, que
metodologia utilizar, etc. Neste sentido, foi visível a necessidade de capacitação dos docentes,
em especial dos alfabetizadores, que estão atuando no ensino fundamental de nove anos.

7
Essa pesquisa foi realizada no município de Tubarão e abrangeu três escolas desse município (uma da rede
pública estadual, uma municipal e uma particular).
8
Esclareço que, na pesquisa de Maurício (2009), as escolas A e B são públicas e a escola C pertence ao sistema
municipal, mas é uma escola da rede particular de ensino.
13

Ainda quanto ao currículo, as escolas A e B fazem uso de propostas prontas, envi-


adas para a escola pelos seus sistemas de ensino, pelos órgãos normatizadores / reguladores da
educação. A escola C organizou sua própria proposta, participativamente, com o envolvimen-
to da equipe gestora da escola e dos professores.
No que tange à nomenclatura, as turmas da escola municipal e particular aderiram
à seguinte terminologia: “anos iniciais” e “anos finais” do Ensino Fundamental. A escola da
Rede Estadual manteve a nomenclatura utilizada anteriormente à implementação da Lei nº.
11.274/2006, “série”. Não houve alinhamento no que se refere à nomenclatura utilizada para
se referir às turmas de Ensino Fundamental das escolas do Município de Tubarão. Este de-
pende da organização de cada sistema de ensino. Vale destacar que as escolas vinculadas ao
sistema municipal de ensino, em Tubarão, estão alinhadas no que se refere à nomenclatura.
Ao observar a prática docente de alguns professores em turmas de primeiro ano do
Ensino Fundamental de nove anos, foi possível perceber:

Escola A: a professora observada está concluindo seu curso de graduação e se reve-


lou pesquisadora a respeito das questões que envolvem a ampliação do Ensino Fun-
damental, deste modo em sua prática foi possível perceber o desenvolvimento de au-
las mais contextualizadas com utilização de algumas atividades lúdicas e outras vol-
tadas à alfabetização com letramento. Na escola C as estratégias utilizadas pela pro-
fessora em sua prática docente são pautadas pelo respeito às necessidades da infân-
cia, deste modo os alunos tem acesso a atividades lúdicas, mediadas pela professora,
ou livres, desenvolvidas em alguns momentos específicos. Observa-se deste modo,
que as Escolas A e C (...) estão desenvolvendo algumas estratégias semelhantes, pa-
ra proporcionar aos alunos do primeiro ano maiores oportunidades de aprendizagem.
Partindo para a realidade da Escola B, já se encontra uma situação oposta: a profes-
sora trabalha há muitos anos com turmas do Ensino Fundamental e viu-se desafiada
desenvolver novas estratégias para lidar com os alunos de seis anos, deste modo é
possível observar em suas aulas alguns indícios de atividades com aspectos mais
tradicionais (MAURICIO, 2009, p. 78).

Como podemos observar, embora as professoras dessas escolas tenham a consci-


ência da necessidade de pensar a especificidade das crianças com seis anos, suas práticas ain-
da são atravessadas pelas marcas do modelo de escola vivenciado tradicionalmente, ou seja,
do que, historicamente, tem sido a prática pedagógica dessas professoras. No entanto, essas
práticas denotam / produzem diferentes efeitos de sentido9. Temos aqui o que Pêcheux (apud
ORLANDI, ano, p. 20) diz significar “a inscrição dos efeitos da língua na história”. Esta é
uma afirmação que carrega sentidos que atravessam a nossa história, em especial da realidade

9
“Isso porque apesar de a língua ser a mesma gramaticalmente, ela não é a mesma do ponto de vista discursivo,
isto é, da sua realização, por causa das interferências desses fatores externos; quem fala, para quem se fala, de
que posição social e ideológica se fala (BRANDÃO, ano, 1993, p.7)”.
14

das escolas nos dias atuais. É o discurso pedagógico10 impregnado da concepção tradicional,
da mecanização do processo que continua atravessando as ações cotidianas dos docentes,
mesmo com a implantação da nova lei.
A seguir, um comentário em que é possível perceber com maior clareza esta ques-
tão:

Através da presente pesquisa, torna-se possível concluir que embora as instituições


escolares públicas pesquisadas tenham reorganizado, em maior ou menor intensida-
de, seus currículos, ou estejam fazendo uso das propostas de conteúdos a serem de-
senvolvidas durante o ano letivo, que foram encaminhadas prontas às escolas por
seus sistemas de ensino, nem todas as escolas estão planejando a ação docente dos
professores com estratégias voltadas a contemplação dos elementos previstos com a
implementação do Ensino Fundamental de Nove Anos (MAURICIO, 2009, p. 81).

Sobre o currículo e as concepções de alfabetização que orientam as suas práticas,


quando indagados sobre suas concepções, os docentes, em pesquisa realizada pelas alunas do
curso de Pedagogia – Educação Especial – PARFOR11 responderam da seguinte maneira:

Professor 1: “Através do reconhecimento de que a criança já possui um saber com-


plexo da língua e de vários recursos expressivos que ela contém, aproveitando sua
vivência, coloca-se em prática de alfabetização dentro da sua realidade.” Professor
2: “Sociointeracionista, na qual decido o objetivo que quero alcançar, que tipo de
aluno quero formar, interagindo socialmente.” Professor 3: “Utilizo a concepção
sociointeracionista, preocupando-se com as necessidades de cada aluno, utilizando
sempre a flexibilização do currículo e suas adaptações para um bom ensino.” Pro-
fessor 4: “Não subestimo meus alunos, pois sei a capacidade de cada um, costumo
trazer o cotidiano, assim eles conseguem ter mais clareza no aprender.” Professor 5:
“O professor precisa considerar as diferenças individuais e sua relação com a apren-
dizagem, desse aspecto considera-se: o cuidado com a motivação para a identifica-
ção da diferença, as diferenças essenciais e origens das características individuais”.
Professor 7: “Uma alfabetização voltada para o que o aluno já sabe, partindo desse
princípio trabalhamos os conteúdos” (MATEUS et alii, 2011).

Estas manifestações demonstram a fragilidade do conhecimento das professoras


sobre a base epistemológica que orienta suas práticas. Embora possamos perceber que elas
mencionam uma concepção, deixam a impressão de que têm este conceito automatizado, mas
na verdade não demonstram ter incorporado esta concepção de forma a poder subsidiar suas
ações pedagógicas. Mais uma vez ficam evidenciadas as marcas do discurso pedagógico do-
minando o vocabulário das professoras, que repetem um discurso institucionalizado.

10
O conceito de discurso pedagógico utilizado neste texto está baseado no texto de Orlandi (1987) O discurso
pedagógico: a circularidade.
11
O PARFOR é um programa do governo federal que tem por objetivo promover a formação inicial de profes-
sores para a Educação Básica. A sigla significa: Plano Nacional de Formação dos Professores da Educação Bási-
ca: PARFOR.
15

Um de nossos objetivos junto às professoras era saber sobre as dificuldades en-


contradas no processo. E elas assim se manifestaram:

Professor 1: “Alfabetizar não é vencer o livro e nada valerá se o conteúdo não for do
interesse do aluno.” Professor 2: “Conseguir o apoio da família (nas tarefas princi-
palmente) para auxiliar os alunos.” Professor 3: “Desenvolver estratégias que sejam
adequadas para cada aluno, pois todos tem suas particularidade e nem todos apren-
dem da mesma forma.” Professor 4: “Falta de colaboração da maioria dos pais, prin-
cipalmente.” Professor 5: Não respondeu. Professor 6: “Salas cheias e um único al-
fabetizador.” Professor 7: “A maior dificuldade com certeza é a sala lotada e pouco
material pedagógico (MATEUS et alii, 2011).”

Novamente temos um discurso automatizado e que, apoiado no discurso pedagó-


gico, busca justificar as suas dificuldades. É um discurso atravessado pelas marcas do discur-
so pedagógico.

Figura 2 – Sala de aula da 1ª série da escola X.


Fonte: Pesquisa realizada para o projeto integrador desenvolvido na disciplina de alfabetização e letramento,
Curso de Pedagogia – Licenciatura em Educação Especial - PARFOR, UNISUL, 2011-A. Foto: Arquivo pessoal
prof. Maria Sirlene Pereira Schlickmann.

Um dos grandes desafios para a gestão do Ensino Fundamental com duração de


nove anos é qualificar os docentes para o processo de alfabetização na perspectiva do alfabe-
tizar letrando. Ainda é comum encontrarmos práticas como essa subsidiando o trabalho dos
docentes na escola (Ver Figura 2).
Outro grande desafio que a escola precisa enfrentar é quanto à reestruturação dos
espaços. Perguntadas sobre mudanças que a escola ainda precisa promover na escola, uma
professora assim se manifestou: “Mobília inadequada para a 1ª série (alunos), material didá-
16

tico, sem parque, etc. (MATEUS et alii, 2011)”. Esta afirmação foi corroborada por todos os
sujeitos pesquisados quando perguntados se o espaço físico e mobiliário foram adaptados, o
que é indicativo de que as instituições não pensaram em nenhum momento sobre a adequação
do mobiliário e espaço lúdico para a entrada das crianças de seis no ensino fundamental.
Fonte: Professores da rede estadual, 2011. Pesquisa realizada parta o projeto integrador desenvolvido na disci-
plina de alfabetização e letramento, Curso de Pedagogia – Licenciatura em Educação Especial - PARFOR, UNI-
SUL, 2011-A.

Diante das respostas dos professores e em visita às escolas pesquisadas, observou-se


a utilização de apenas um tipo padrão de mobília a atender às diversas faixas-etárias.
Detectou-se a seguinte situação em uma das escolas que está funcionando em prédio
emprestado: de manhã em uma sala de aula, os alunos atendidos são da 3ª série do
ensino fundamental. À tarde, são os da 1ª série do bloco alfabetizador e, à noite, são
os alunos do ensino médio. No entanto, a mobília é a mesma. Nessa situação de um
mobiliário padrão único de utilização dos espaços escolares surge um dos principais
problemas do mobiliário escolar: a sua inadequação para diversas faixas-etárias que
o utilizam. No contexto da escola pública pesquisada, quem, conseqüentemente, so-
fre mais com a inadequação do mobiliário escolar são os alunos das Séries Iniciais
do Ensino Fundamental e em especial os de 1ª e 2ª séries. (...) Constatou-se na pes-
quisa, que esta se apresenta de forma difícil para as crianças por ser, também, dema-
siadamente alta para sua estatura. Assim, as crianças posicionam-se na borda do as-
sento e ficam visivelmente “penduradas” na mesa durante a realização das tarefas
escolares, como se pode observar na figura abaixo (MATEUS et alii, 2011):

Figura 3 – Sala de aula de uma primeira série.


Fonte: Pesquisa realizada para o projeto integrador desenvolvido na disciplina de alfabetização e letramento,
Curso de Pedagogia – Licenciatura em Educação Especial – PARFOR, UNISUL, 2011-A. Foto: Arquivo pessoal
prof. Maria Sirlene Pereira Schlickmann.
17

Nota-se, na foto, que os pés da criança ficam pendurados; ela não consegue alcançar o
chão. A carteira é padrão para todas as turmas e a criança não consegue ter uma postura ade-
quada.

5 ALGUMAS PALAVRAS FINAIS


Ao finalizar essa reflexão podemos dizer a partir dos achados da pesquisa: a) os
professores estão sentindo bastante dificuldade para se adaptar no ensino fundamental com
duração nove anos de duração; b) não há, nesse momento, nas instituições pesquisadas, dife-
renças entre o trabalho pedagógico desenvolvido com as crianças de seis anos e de sete anos;
c) embora em algumas instituições tenhamos indicativo de um repensar das propostas peda-
gógicas, os professores não têm clareza sobre os conceitos e conteúdos que devem ser traba-
lhados nos cinco primeiros anos do ensino fundamental; d) um dos grandes desafios para a
gestão do Ensino Fundamental de nove anos é qualificar os docentes para o processo de alfa-
betização na perspectiva do alfabetizar letrando; e) há necessidade de repensar a lógica da
escola, seus espaços e o cotidiano do Ensino Fundamental; f) garantir desde a formação inicial
uma formação consistente para o professor alfabetizador, considerando o ensino fundamental
com nove anos de duração.
Enfim, as reflexões aqui apresentadas são introdutórias. Temos muito para pes-
quisar e estudar sobre todo este processo. De toda forma, acredito que fica para nós educado-
res o desafio de “reinventar” a escola de forma que esta possa tornar-se um espaço da infância
e para as infâncias.

6 REFERÊNCIAS

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cação Infantil.1998b.

BRASIL. Resolução CNE/CEB nº 2, de 7 de abril de 1998. Institui as Diretrizes Curricula-


res Nacionais para o Ensino Fundamental. 1998c.
18

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res da Educação Infantil. 1999.

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______. Conselho Nacional de Educação. Resolução CEB Nº. 3 de 3 de agosto de 2005b.

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______. Ampliação do Ensino Fundamental para Nove Anos: 3º relatório do programa.


Brasília: Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica, 2006b.

______. Indagações sobre o currículo: Currículo e desenvolvimento Humano. Brasília: Mi-


nistério da Educação. Secretaria de Educação Básica, 2008b.
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orientações para o trabalho com a linguagem escrita em turmas de crianças de seis anos de
idade. 1º edição. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2009a.
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19

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SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: A Autêntica,


2006.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

O FUNCIONAMENTO DA LÍNGUA SOBRE O PLANO DIGITAL 1

Paulo Henrique Simon (PPGL/UPF) 2

RESUMO

Nesta abordagem, mobilizo uma reflexão sobre o discurso construído no meio digital, o qual
vem mudando o comportamento de indivíduos, a partir da materialidade escrita nas redes so-
ciais. Em um mundo cada vez mais conectado e estreitado pela internet, a tecnologia facilitou
o acesso à informação e revolucionou o modo como os indivíduos se comunicam. Da simples
função de aproximar amigos em lugares distantes à capacidade de mobilizar pessoas, as redes
sociais têm sido o canal de uma nova percepção da realidade e uma experiência exclusiva
responsável por modificar o comportamento comunicativo da sociedade. Para tanto, o traba-
lho de análise se incorpora a partir da escrita constituída no Facebook, no qual tenho como
objetivo evidenciar a existência de uma falsa cristalização de que a rede social foi responsável
por revolucionar a comunicação entre as pessoas. Tendo em vista a especificidade do artigo,
delimitamos alguns conceitos fundamentais para o percurso que desejamos realizar, como as
condições de produção em relação à ordem da língua, posição sujeito e o inconsciente. Assim,
identifico nesse exercício de análise, os sistemas que se constituem a partir da escrita, for-
mando-se canais, permitindo outros usuários se inscrever no discurso materializado do outro,
no plano eletrônico que estudamos.

Palavras-chave:
Sujeito. Materialismo. Facebook.

ABSTRACT

This approach mobilizes a reflection on the discourse constructed in the digital environment,
which is changing the behavior of individuals, from the written material on social networks.
In a world increasingly connected and enhanced by the Internet technology has facilitated
access to information and revolutionized the way individuals communicate. The simple func-
tion of close friends in distant places to the ability to mobilize people, social networks have
been the channel of a new perception of reality and a unique experience responsible for modi-
fying the communicative behavior of society. To this end, the work of analysis is incorporated
from the writing made on Facebook, where I aim to highlight the existence of a false crystal-
lization of the social network was responsible for revolutionizing communication between
people. Given the specificity of the article, some fundamental concepts delimited to the route
we want to accomplish, the conditions of production in relation to the order of language, sub-
ject position and the unconscious. Thus, I identify in this exercise, the systems that are from
the writing, forming channels, allowing other users to enroll in the discourse of the other ma-
terialized, we studied the electronic plan.

Keywords:
Subject. Materialism. Facebook.

1
Projeto de Pesquisa Língua, sujeito e ideologia: O imaginário sobre língua construído pela/na mídia, coorde-
nado pela professora Dr. Carme Regina Schons, professora do Mestrado em Letras da Universidade de Passo
Fundo-UPF; e-mail: crschons@gmail.com; fone: (54) 9998-7648.
2
Graduação em Letras pela UPF-Universidade de Passo Fundo (2010). Aluno do mestrado em Letras na modali-
dade de disciplina isolada; e-mail: paulo.henriquesimon@gmail.com; fone: (54) 9926-0851.
2

1 INTRODUÇÃO
Neste trabalho, desenvolvemos um estudo sobre o discurso construído no meio digital,
espaço este que imaginamos configurado por um plano, de estrutura superficial e que se torna
complexo a partir do momento em que o sujeito se inscreve ao materializar seu pensamento
pelo uso da língua não oral. Ao modo que se faz imprescindível afirmar que a tecnologia faci-
litou o acesso à informação e revolucionou a sistemática comunicativa entre indivíduos, iden-
tificamos um modelo de língua substancial, de forte enraizamento e fixidez, produto que é
responsável por ocasionar discussões, interferências e mobilizações em rede eletrônica. Da
simples função de aproximar amigos em lugares distantes à capacidade de mobilizar pessoas,
as redes sociais têm sido os canais que trouxeram consigo uma nova forma de realização indi-
vidual pelo uso da palavra.
Nesse processo, a nova geração de sujeitos, automaticamente projetados pela língua do
circuito eletrônico, demarca sua presença nos espaços virtuais em um parâmetro de medida a
nivelar informações e mobilizar agentes do ciberespaço em torno de fatos reais do cotidiano.
Evidentemente, este recurso é disponibilizado por uma rede que lidera a preferência de uma
grande parcela de internautas. Falo do Facebook, o qual tem como objetivo reconfigurar a
internet, transformando os hábitos de navegação, na extensão em que “os usuários dessa rede
conseguem conduzir suas discussões e tomar decisões baseadas nas recomendações de seus
amigos e contatos” (Revista Info, 2011, p. 22).
Para tanto, o trabalho de análise se estrutura materialmente na escrita constituída no meio
digital, onde buscamos entender como o (in)consciente se organiza em relação à ordem da
língua na sua materialidade textual em que percorre no mesmo sentido o silencio pelo (não)
dizer e pelo uso da palavra como unidade padrão, resultante do comportamento dos sujeitos
que nesse espaço estão inseridos. Assim, identifico nesse exercício linguístico, uma superfície
que materializa esse discurso impensável, lançado com deslizes e descontroles sobrepostos às
características estruturais da fala.
Para desenvolver este estudo, recorro primeiramente a um dispositivo de funcionamento
sincrônico e essencial à língua: A materialidade histórica, que me faz transitar pela Análise do
Discurso (AD). Logo, o Facebook é uma das redes, onde encontramos uma nova geração de
sujeitos, a geração Y, entendida como a geração saúde, a qual possui instinto para aprender
tarefas cotidianas, padronizadas às preferências desse agrupamento de sujeitos e que com ela
se identificam. Por um lado, são perfis que as empresas gostariam de ter: imponentes tecnó-
logos; rápidos, desafiantes e inovadores. Por outro, uma epidemia gerencial: obcecados pelo
crescimento profissional buscam status e destaque social em um período curto de tempo. Pos-
3

sivelmente virtudes encarceradas na mente dos criadores do TheFacebook: O americano


Mark Zuckerberg e seus três colegas, Dustin Moskovitz, Eduardo Saverin e Chris Hughes.
Preocupados com a funcionalidade do site e sua utilidade buscavam uma forma de torná-lo
atrativo, tratava-se de um espaço social, limitado apenas aos estudantes da Universidade Har-
vard, lançado em fevereiro de 2004, ganhou adeptos em outras universidades e pela simplici-
dade do tom azul marinho, conquistou usuários no mundo inteiro.
De fato, tratava-se de uma revolução. Nesse processo, ao considerar o efeito histórico,
apoio-me na obra de Ben Mezrich intitulada por Bilionários por acaso: A criação do Facebo-
ok publicada em 2010, para mencionar que esse site, se originou dentro de uma universidade
que foi eleita em dois mil e três, como a melhor instituição de ensino superior do mundo por
ofertar uma formação de excelência aos seus alunos. No ano seguinte, em 2005, conforme
fonte selecionada passou a representar o cenário de uma memória sobre a forma de ganhar
dinheiro e perder a inocência, provocada pelo interesse dessa geração, em garantir a decola-
gem para a fama. Assim outros acadêmicos participantes dessa aliança elitizada, inseridos em
outras universidades, acabaram aderindo à migração para o site e, a partir disso, o mundo in-
teiro começou a “curtir” a necessidade de inscrever-se pela língua nesse campo incalculável e
de falsa noção à liberdade.
Além disso, o segundo fator que causa questionamentos, nessa investigação, eleva o es-
tudo mobilizado aqui no que diz respeito aos dizeres que responsabilizam e referem o Face-
book como “o site de relacionamentos que revolucionou a maneira como as pessoas se comu-
nicam.” No entanto, é inegável a existência de uma falsa cristalização de que a comunicação
foi revolucionada; e pela AD, se engana o indivíduo que pensa assim, isso porque imagina-
mos a disposição de três engrenagens fundamentais, se pensarmos a relação de língua que se
estabelece essencialmente entre dois sujeitos. Vejamos o organograma (1) que representa esse
imaginário:
4

Organograma (1)

Para entender essa formulação que apresentamos, vale relembrarmos que não há como
pensar a língua sem a existência dos sujeitos. Nessa construção, imaginamos três engrenagens
sobre uma superfície em que o modo (1ª engrenagem) define-se pela forma em que a língua se
nivela entre os indivíduos. Ao validar o meio (o plano do Facebook) cria-se automaticamente
uma condição (2ª engrenagem), quando se condiciona a comunicação, imediatamente ocorre o
desempenho (3ª engrenagem deste plano) entre os sujeitos. Nesse espaço, seguindo formula-
ções de Pêcheux (1969) sobre imaginário, A e B ocupam um determinado lugar na estrutura
da mensagem que também se condiciona em nosso trabalho como discurso não oral/não ver-
balizado, resultante de um processo mental e que, segundo a ótica da AD, transforma-se em
um produto que reveste os efeitos de sentidos em rede.
Ao se constituir um efeito de sentido, valida-se uma materialidade fragmentada que dá
margem a circulação de mensagens instantâneas e explicitadas. Por isso fundamental é trazer
uma citação de formulação de Orlandi no artigo “Discurso e Textualidade”, o qual é parte
constituinte do livro Análise de Discurso em que a autora diz o seguinte:

As condições de produção incluem pois os sujeitos e a situação. A situação, por sua


vez, pode ser pensada em seu sentido estrito e em sentido lato. Em sentido estrito ela
compreende as circunstâncias da enunciação, o aqui e o agora do dizer, o contexto
imediato. No sentido lato, a situação compreende o contexto sócio histórico, ideoló-
gico, mais amplo. Se separarmos contexto imediato e contexto em sentido amplo é
para fins de explicitação, na prática não podemos dissociar um do outro, ou seja, em
toda situação de linguagem esses contextos funcionam conjuntamente (2006, p.15).
5

Na citação, entendemos que Orlandi considera as condições de produção em duas pers-


pectivas. Na primeira, notamos que se trata de um contexto imediato de produção. Na segun-
da, compreende a condição de produção ao levar em conta o processo histórico, seja ele do
sujeito ou do espaço que condiciona tal produção. Assim considerando a ordem da língua e os
sujeitos que por ela se inscrevem, torna-se impossível dissociar o contexto imediato do con-
texto de sentido amplo, pois trata-se de uma automação linguística em que o sujeito constitui
estágios de fragmentação ao que condiz a produção material das palavras.
Como vimos, essa produção é tão instantânea quanto à velocidade de conexão que o dis-
curso possibilita ao estabelecer a perfeita ligação entre dois indivíduos pelo uso da língua, isto
porque o modo, a condição e o desempenho se diferem de sujeito para sujeito. Por mais que
exista um plano, essa triplicidade processual ocorrerá de forma heterogênea, única e irreversí-
vel em que cada um dos indivíduos interados no processo comunicativo, se submete ao dis-
curso do outro, sem esquecer é claro, do papel que ocupa no posicionamento da materialidade
produzida, compartilhada e finalizada.
Para darmos continuidade neste estudo, abordamos na próxima seção, as condições de
produção resultante de um processo automático discursivo, em risco de uma velocidade in-
controlável na consonância às características da fala. No entanto, vale salientar que trata-se de
um processo resultante do inconsciente do indivíduo, que não se verbaliza, mas que se silen-
cia e posteriormente se materializa sobre o plano azul marinho do Facebook.

2 DA SUPERFÍCIE ELETRÔNICA À RELAÇÃO DE SUPERFICIALIDADE ENTRE


SUJEITOS
Na conexão de subsídios teóricos e na delimitação dos arquivos sobre língua digital, é
inegável não assumirmos a imaturidade de dados existentes para a investigação que proponho
aqui. Ao avanço em que formulamos a língua e a referenciamos como um processo de auto-
mação aplicável à técnica disposta pelas ferramentas que dinamizam a movimentação do dis-
curso em rede e estreitam as relações entre sujeitos, torna-se importante entender o valor sim-
bólico sobre “estreitar”, não como uma facilidade de encontrar terceiros sujeitos, que pela
relação da história, um dia se conheceram/desejam se conhecer, mas como uma incumbência
superficial na forma de se relacionar sobre/pela língua com outros indivíduos.
No espaço de superficialidades, entendemos que este delimita o sujeito no pronuncia-
mento de suas palavras. No entendimento, se houver um imaginário existirá uma ideologia.
Considerando a sustentação material defendida por Pêcheux (1988):
6

[...] enquanto “as ideologias têm uma história própria” uma vez que elas têm exis-
tência histórica e concreta, a “ideologia em geral não tem história”, na medida em
que ela se caracteriza por “uma estrutura e um funcionamento tais que fazem dela
uma realidade não-histórica, isto é, omni-histórica, no sentido em que esta estrutura
e este funcionamento se apresentam na mesma forma imutável em toda história, no
sentido em que o Manifesto define a história como “ história da luta de classes, ou
seja, história das sociedades de classe” (p.151).

Identificam-se duas concepções que se movimentam em sentidos opostos pela Análise


do Discurso: A neutralidade e a criticidade. A neutralidade parte da organização de ideias, de
pensamentos e visões de mundo, orientadas sobre um nivelamento discursivo político. No
sentido contrário, a criticidade é considerada como um instrumento de desempenho a persua-
são de convencimento, habilidade esta, interligada pelo uso da voz e pelo reconhecimento
facial do indivíduo que utiliza a língua para mascarar sua identidade. Assim pela imutabilida-
de, ou seja, por não se mostrar disposto a mudança, o sujeito manifesta-se silenciosamente
inscrevendo-se pela ideologia que segue, sem perceber que ela o assombra na condição pro-
posta no momento da produção.
De levante, a língua se torna dura no ofuscado espaço de superficialidades; é um produto
da língua psíquica – língua esta que não fala - cristalizada internamente na integridade consti-
tutiva do indivíduo. Assim falando de mensagem, o qual é o produto da comunicação, inte-
gramos ela na AD, a qual passa do processamento de mensagem para o processamento de
discurso. Tal processamento permite o desempenho do sujeito ao inscrever-se por essa língua
na superfície eletrônica. Além disso, é cabível destacar que não falamos de um discurso su-
perficial e sim de um discurso que se projeta sobre um plano superficial.
Tratando-se desse plano, o raciocínio do sujeito se desestabiliza quando posiciona o ma-
terialismo (o enunciado composto por palavras) sobre o Facebook, pois ao condicionar a lín-
gua nesse espaço, o fragmento materializado passa a ser um produto que emitirá aos outros
(re) produtores da linguagem, efeitos de sentido heterogêneos, o qual é um mero reflexo de si
(do próprio enunciador) enquanto manifestar capacidade para individualizar e exteriorizar seu
modo de pensar. Também veremos (como será ilustrado mais adiante) que no modo como o
discurso vem a ser produzido em rede, este estará marcado por deformações propositais e que
identifica um deslize em que o produto incorpora características da oralização.
Por isso, para quem não entende o funcionamento da língua, além da limitação das gra-
máticas, também não compreende essa arte de fachada explícita nos modelos digitais que
muitas vezes deixa cego, o protagonista que a “utiliza”. A existência de uma justificativa no
movimento que precisa de velocidade para que seja possível sentir o risco de desafiar a ilimi-
7

tada rede discursiva, se dá no momento em que reconhecemos seus criadores. São eles: o uni-
versitário Mark Zuckerberg e seus três colegas, Dustin Moskovitz, Eduardo Saverin e Chris
Hughes.
De imediato, dispenso a necessidade de reconhecê-los na sua individualidade e sim, des-
taco a precisão organizacional desse processo pela história de criação da engenhosa ferramen-
ta comunicativa, recorrendo a um fragmento recortado da obra intitulada por “Bilionários por
acaso: A criação do Facebook’’ publicada em 2010 por Ben Mezrich, para melhor entender-
mos os efeitos de sentido que se projetam através do uso da língua, no qual abordo o recorte
(1) extraído da página 128, para ilustrar de forma fragmentada parte da história dessa rede:

Recorte (1)

Na materialidade selecionada, é explícito que a rede social. (Hoje o Facebook) pertence


a uma classe representada pelo mercado universitário. Claramente este grupo faz parte de uma
elite organizada que estabelece uma política regulamentadora para garantir a liberdade de
circulação da língua, resultante de um processo intelectual em que identificamos sentidos de
total descontrole, utilizada para mobilizar outros sujeitos em torno de um molde linguístico ao
intuito de restringir as relações de estado entre sujeitos.
Nessa restrição, identificaremos possibilidades de interferência de sentidos, seja ela oca-
sionada pela participação em um discurso nomeando o sujeito ou ocultando-o, como o fiel
autor de um enunciado, no plano ilimitado e superficial, mas que aproxima os sujeitos pelo
essencial uso da língua.

3 A INTERFERÊNCIA PELAS MATERIALIDADES


Nesta terceira parte do nosso trabalho, selecionamos alguns recortes que permitem ilus-
trar o modelo linguístico que abordamos aqui. Tendo em vista que o discurso, sobre a super-
fície do Facebook é na verdade um produto que constitui um imaginário sobre o enunciador,
vale relembrar que ele está diretamente ligado as condições de produção que segundo Orlandi
(2001) incluem os sujeitos e a situação. Nesse processo, a produção se dará pela existência de
uma língua que não fala, mas que se materializa eletronicamente, pois aflora-se uma falsa
8

noção de que o espaço condicionado pela existência da rede social é secreto e fechado aos
olhos de outros indivíduos que a utilizam como uma zona de conforto.
Brutalmente, a língua eletrônica acontece em duas perspectivas: Na primeira perspectiva
veste o sujeito em sua integridade como se fosse o resultado se sua incontrolável fala. Na se-
gunda possibilita o acesso ao plano discursivo, para manifestar o interdiscurso que o deixa
incapaz de revelar o que está psicanaliticamente organizado em mente. Assim, a rede social
de Zuckerberg nivela o sujeito, quando este alcança uma altura satisfatória para declarar o que
pensa em rede, no espaço indicado no seguinte recorte:

Recorte (3)

Conforme ilustrado pelo recorte acima, o sujeito se depara com o “feed de noticias”.
Considerando a tradução e o posicionamento da palavra em uma sentença da língua inglesa,
feed assume o papel de verbo ou substantivo que significa alimentar/alimentação. Ao entender
o fato do fragmento se materializar e adquirir um formato com uma palavra de ordem portu-
guesa forma-se uma sentença composta por um segundo idioma. Assim quando se alimenta
alguém, sacia-se a fome de um determinado indivíduo. Nessa conjuntura, o efeito de saciar a
fome, nivela-se no mesmo sentido de satisfazer o sujeito pelo uso da palavra.
Nesse estágio, ocorre um processo que transita entre o (in)consciente e a fala do indiví-
duo estabelecendo-se às escuras uma comunicação composta de falhas e deslizamentos, pois
ela se revela como se fosse o resultado da fala. No entanto na fala, o discurso não se estabiliza
e muito menos se materializa, pois não se dispõem de uma base que assegure a imutabilidade
da fala. Já no plano eletrônico, se dispõem dessa base, só que os sujeitos que a utilizam, não
percebem o ato falho que tendem a cometer. Voltando ao recorte (3) existe a possibilidade de
o usuário compartilhar o seu status, uma foto, um link, um vídeo ou até mesmo compartilhar
uma pergunta visando mobilizar outros usuários.
Por isso ao considerar essas possibilidades, algo chama a atenção quando refiro-me a
seguinte pergunta: “No que você está pensando agora?” (conforme ilustrado no terceiro recor-
9

te). Tendo em vista o funcionamento da língua em rede, o usuário ao clicar sobre o espaço
indicado para escrever seu status não percebe que a pergunta desaparece (conforme é ilustra-
do pelo recorte 4) e nesse exato momento a língua vira uma ferramenta brutal para o próprio
sujeito que a utiliza, pois o botão “compartilhar” assume a mesma função de “materializar”
uma informação de cunho pessoal, um discurso que na verdade se projeta com tropeços e des-
cuidos como se fosse a produção de uma fala descontrolada:

Recorte (4)

Ao observar o recorte (3) e compará-lo com o recorte (4), é perceptível a engenharia


comunicativa que se faz presente na condição de produção das discursividades. Infelizmente
não poderemos ver todos os detalhes que expõem o sujeito de tal modo. Mas releva-se o plano
que revolucionou o modo comunicativo entre sujeitos, justamente por possibilitar a comuni-
cação, “o discurso mais do que transmissão de informação (mensagem) é efeito de sentidos
entre locutores. (M. Pêcheux, 1969), isto porque assumimos um olhar diferenciado sobre es-
ses detalhes que estão escondidos, pelo modo como as ferramentas se fazem dispostas sobre
esse genial plano.
Tendo em vista que o efeito de sentido acontece pelas palavras vinculadas nos enuncia-
dos e sem querer esses enunciados formam pequenos textos, recorremos ao artigo: O estatuto
do texto na história da reflexão sobre a linguagem, o qual é parte constitutiva do livro Dis-
curso e Texto: Formulação e Circulação dos Sentidos, onde Orlandi defende que:

A mudança de terreno produzida pela Análise de Discurso permitiu-me deslocar a


noção de texto, redefini-la, pensando ao mesmo tempo um outro estatuto para a no-
ção de autor, deslocando também a relação entre escrita e leitura. Isso nos permitiu
ultrapassar o estigma histórico da separação Retórica/Dialética/Gramática, em que
se oscila permanentemente ao longo dessa história , entre Ciência e Saber. (pág 86,
2005)

O conjunto de teorias que separa a relação entre retórica (entendida como a arte de falar
bem), dialética (a contradição de ideias) e a gramática (considerada um modelo reflexivo para
desempenhar corretamente a língua) se dilaceram em ar, no momento em que o mecanismo da
10

língua entra em funcionamento na rede eletrônica, isto porque a condição e a relação de pro-
dução que se fazem presente sobre o tom azul marinho do Facebook, exige, sem querer, um
modelo linguístico totalmente oposto à tríplice apresentada, pois o “lugar” (este formado pelas
ferramentas que possibilitam o mecanismo da língua) onde os sujeitos declaram suas contra-
dições vem condicionado e desestabilizado, tornando-se inconveniente construir uma materia-
lidade retórica e baseada na gramática.
Ao deslocar a relação entre escrita e leitura, percebemos um pequeno texto fragmentado.
A justificativa que encontramos para comprovar tal existência está na materialidade eletrônica
que dá margem a origem de outras textualidades no momento de “Curtir” ou “Comentar” o
texto composto na rede digital que estudamos. Conforme prometemos anteriormente, identifi-
camos no recorte a seguir um efeito de ocultação do real sujeito, pela sua própria inscrição no
discurso que não o pertence. Para entender melhor esse funcionamento, referencio abaixo,
pelo pseudônimo de “Sujeito I” o recorte (5) que exibe o seguinte:

Recorte (5)

No fragmento representado pelo quinto recorte, o sujeito apropria-se de uma parte dos
versos da música Quelqu’um M’a Dit da cantora Franco-Italiana Carla Bruni, para exteriorizar
seu pensamento. No entanto, para causar um efeito inaugural, o sujeito I exterioriza e ativa o
cristalizado em seu interdiscurso para realizar uma inferência. Esta inferência dá corpo à pre-
sença de causa, no entanto seu discurso se bloqueia, pois tendo em vista que a coleta desse
material foi realizada posteriormente a sábado, (Domingo, 17 de julho de 2011), a materiali-
dade transposta em língua portuguesa, evita que se faça referência a autêntica autoria.
Além disso, o sujeito delimita o seu lugar em rede, no momento em que sua foto resume
uma personalidade e o demarca no espaço sobre a sua escrita. Incapaz de criar um discurso
próprio a partir do que é pensado no momento que adapta a verdadeira (re)produção material
do interdiscurso, a condição e o modo como a produção se finaliza, faz com que a materiali-
dade se projete com pontuações irregulares e ocasionadas com diferentes propósitos. Esses
11

propósitos só podem ser apontados pela ideologia (irrevelável) que domina o sujeito no exato
momento em que (re)produz o texto que o realiza.
Independente do efeito, nenhum outro usuário aparece para se interferir na materialidade
posta em rede e muito menos, se faz referencia a qualquer outro indivíduo no texto apresenta-
do. Na tentativa de entender outro modelo de produção existente, selecionamos um segundo
recorte, em que encontramos características lingüísticas parecidas com o que foi apontado
anteriormente, no entanto na existência a seguir, o pseudônimo de sujeito I3 faz referência a
um outro pseudônimo de sujeito II, na tentativa de mobilizá-lo para uma atividade, de cunho
particular, em que este é nomeado no discurso, coberto incessantemente pelo silêncio sobre o
propósito articulado do primeiro usuário. Vejamos como isso ocorre no recorte (6)

Tendo em vista que o sujeito II participa de uma atividade prazerosa identificada por
“saborear uma pizza”, (sentença anunciada pelo sujeito I) entendo que ele permanece em si-
lêncio para a segunda atividade (“dá uma geral no apê”) indício que aponta a necessidade da
realização de uma limpeza no apartamento ocupado pelos dois sujeitos que nessa materialida-
de estão inseridos. Assim considerando a funcionalidade da língua sobre este plano, nota-se
que o segundo sujeito não se submete ao interdiscurso imposto pelo representante desta “fa-
la”. Assim o segundo sujeito, se subjetiviza ao (ato) simbólico na história do que não lhe dá
prazer. Em outras palavras, trata-se de uma convocação informal pelo circuito do Facebook.
Infelizmente, ao processo de análise que se finaliza aqui, sabemos que é impossível
abordar em torno da língua, toda a completude de mecanismos existentes no engenhoso espa-
ço. No caso do nosso corpus, constituído pelas materialidades discursivas selecionadas da
rede social, conseguimos perceber que nesse processo, se dispersa um modelo de língua in-
domável e coberta pela interferência do sujeito e de sentidos. Ao entender a materialização

3
Salienta-se que o Sujeito I não é o mesmo sujeito do recorte(6)
12

dessa língua, é imprescindível que se faça cautela no momento do pronunciamento, pois as


palavras ali presentes emitirão uma frequência que mobilizará outros indivíduos pela intensi-
dade de “curtir” e “comentar” o discurso do outro, ou até mesmo de estudá-lo – como nesta
eventualidade - em que elencamos o uso do discurso, à idealização do que está internamente
(des)organizado no inconsciente do sujeito.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Todo esse conjunto de ideias que trouxemos até aqui tem um propósito. Esta intenção
se deve a tentativa de mobilizar novos estudos em relação ao plano eletrônico abordado, pois
ao considerar a imaturidade de dados existentes sobre a rede social, que hoje vem reconhecida
por “revolucionar a maneira como as pessoas se comunicam”, gera polêmica na medida em
que os sujeitos se inscrevem nesse plano (de superficialidade) para exteriorizar o pensamento
através de atos lingüísticos, os quais materializam o modo comportamental através da exterio-
rização no ilimitado espaço da internet.
Como resultado parcial desta pesquisa, possível é identificar que essa língua isola por
partes o indivíduo através de uma conjuntura linguistica de automação interpretativa e frag-
mentada. Essa nova tecnologia de linguagem (se é que podemos chamar assim) ao conside-
rarmos sua disposição global nos mais diversos aparelhos eletrônicos como computadores,
tablets e celulares, se difunde em relações superficiais em que intrincam-se a autenticidade de
notícias do cotidiano real do sujeito que nessa conjuntura se encontram.
Radicalmente, esse efeito, é uma manifestação de um processo discursivo pensado na
condição sócio-histórica, que produz um efeito de sentido determinado pelo modo como se dá
a relação e a condição para a produção do discurso. Ao relembrar que o Facebook, nasceu
pela alimentação das informações de um jornal interno da Universidade Harvard que não
atingiu a mesma proporção na altura em que a rede social conseguiu atingir, dou-me conta de
que o espaço eletrônico perdeu a forma de “virtual”, para “digital” no processo em que a lín-
gua transformou-se em um sinônimo de dispersão.
A partir disso, ocorre uma situação discursiva em que o sujeito dá à sua materialidade,
a dimensão que mede a intensidade da palavra e o efeito que ela pode causar, quando mobiliza
outras extensões. Fundamentalmente falamos de uma tríplice transição entre mente, língua e
materialidade o qual possui um vínculo diretamente conectado com a exterioridade do contex-
to social que o circunda nas características inerentes da personalidade individual do sujeito.
13

5 REFERÊNCIAS

ORLANDI, Eni Pulcinelli. Análise do discurso: Princípios e procedimentos. Campinas, São


Paulo: Pontes 3ª edição, 2001

_____. Análise de discurso. In: ORLANDI, Eni; LAGAZZI-RODRIGUES, Suzy (Org.). Dis-
curso e textualidade. Campinas, SP: Pontes, 2006.

_____. Discurso e Texto: Formulação e Circulação dos Sentidos. Campinas, São Paulo: Pon-
tes 2ª edição, 2005

MEZRICH, Ben. Bilionários por Acaso: A criação do Facebook - Uma história de sexo, di-
nheiro, genialidade e traição. Tradução de Alexandre Matias. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2010.

PECHEUX, Michel. Semântica e Discurso: Uma Crítica à Afirmação do Óbvio. Tradução de


Eni Pulcinelli Orlandi. Unicamp, 1998.

_____. Sobre a (des)construção das teorias lingüísticas. In: Cadernos de tradução. 2ª. ed., n.
4, Porto alegre: Instituto de Letras/UFRGS, p. 35-55, out. 1998.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

O LEITOR DE UMA PALAVRA, UMA NOVA APRENDIZAGEM

Ricardo Hecker Luz (PPGL/UFSC)1

RESUMO

Tese em Linguística Aplicada avaliou dois estímulos iniciais de aprendizagem: o alfabeto


(letras isoladas) e uma palavra escrita (grafemas em sequência de palavra oral conhecida pelo
aprendiz). O estímulo do alfabeto depende de experiências letradas anteriores, o que torna
muito difícil a aprendizagem para sujeitos sem essa vivência. As letras isoladas seriam vistas
como variáveis matemáticas e totalmente incompreensíveis pelo aprendiz iniciante analfabeto.
O aluno pode receber até 10 mil perceptos visuais, auditivos e cognitivos com o alfabeto antes
de ser oferecida a leitura de uma palavra escrita. Esse fato justificaria a dificuldade de
aprendizagem de vários estudantes. Com uma palavra escrita, identificou-se um novo tipo de
aprendizagem inicial da leitura, que não exige experiência letrada anterior. O leitor de uma
palavra relaciona apenas três perceptos: “bola”=/‟bla/ → um auditivo /‟bla/, um visual
(“bola”) e um cognitivo (=). A leitura lexical cria novos caminhos sinápticos na mente do
aprendiz iniciante analfabeto, conectando o percepto visual da palavra escrita “bola” com o
percepto auditivo /‟bla/ na área de Wernicke. Eles passavam a ler uma palavra e entendiam,
parcialmente, o funcionamento do sistema alfabético. Esses achados talvez sejam relevantes
para aprimorar o ingresso de crianças no mundo da leitura e da escrita na educação infantil e
no ensino fundamental. A ideia seria uma aprendizagem mais fácil e mais alegre para o aluno
e uma prática pedagógica mais eficiente para o professor, no início desse processo.

Palavras-chave:
Leitor de uma palavra. Início da aprendizagem da leitura. Linguística aplicada. Aquisição da
linguagem. Cognição.

ABSTRACT

Linguistic thesis availed two initial stimuli of learning: alphabet (isolated letters) and a
written word (sequence of graphemes of oral word known by the learner). Alphabet stimulus
depends of before literacy experiences – that turns very hard the learning for subjects without
this experience. Isolated letters would be seen as math variables and totally incomprehensible
by unliterary beginner learners. The student can receive until 10.000 cognitive, visual and
auditory percepts before the teacher offer the reading of a written word. This fact would
justify the difficulty of many students. With a written word, the researcher identified a new
kind of early reading that did not need any before literacy experiences. One word reader
relates only three percepts: “bola”=/‟bla/ [“ball”=/‟baw/] → one auditory /‟bla/ [/‟baw/],
one visual “bola” [“ball”] and one cognitive (=). Lexical reading creates new synaptic ways in
the mind of unliterary beginner learners. It connected the visual percept of the written word
“bola” [ball] with the auditory percept /‟bla/ [/‟baw/] at Wernicke‟s area. They read one
word and understood partially the alphabet system operation. These findings may be relevant
to improve the way children get in the reading and writing world in the school – childhood
education and fundamental teaching. The idea would be a more easy and a more happy
learning to the student and a more efficient pedagogical practical to the teacher in the begging
of this process.

1
Doutor em Linguística, ênfase Linguística Aplicada; e-mail: ricluz17@yahoo.com.br.
2

Keywords:
One word reader. Early reading learning. Applied linguistics. Language acquisition.
Cognition.

1 PRÓLOGO
Neste artigo, reúnem-se aspectos mais relevantes da pesquisa de doutorado em
Linguística Aplicada (LUZ, 2010). A análise permitiu um novo olhar para o início da leitura
com o conceito de leitor de uma palavra. Novos estímulos foram desenvolvidos e aplicados
com 20 crianças para ensinar a leitura. Esses alunos não haviam se apropriado da noção
central do sistema escrito, o enigma da leitura. A ideia era auxiliar os estudantes a
compreenderem esse conceito fundamental. Um teste de leitura com três palavras e uma frase
simples bola vaca gato O menino come. (SCLIAR-CABRAL, 2003), por exemplo, foi
aplicado em 91 sujeitos dos 118 alunos que frequentavam o primeiro ano do ensino
fundamental de uma determinada escola. Os pais e os responsáveis pelos participantes
assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para Pesquisas com Seres
Humanos. O uso de fotos também foi consentido.
O teste mostrou habilidades iniciais distintas: não leitor de palavra escrita; leitor de
uma palavra; leitor de algumas palavras; e leitor de palavras e de uma sentença. Não por
acaso, a interação com os 20 estudantes não leitores (17% da população na classe investigada)
se restringiu a três palavras e uma frase. A avaliação da leitura em seus estágios iniciais
possibilitou um insight que direciona, intuitiva e pragmaticamente, a construção do conceito
desenvolvido nesta pesquisa. O aprofundamento no primeiro passo dessa aquisição favorece
alternativas pedagógicas para o entendimento desse enigma, muitas vezes incompreensível
para alunos analfabetos e com poucas vivências de letramento e de oralidade no ambiente
familiar.
A análise técnica dos segmentos isolados apontou a possibilidade de estudantes
receberem as 26 letras como variáveis matemáticas, já que não se referem a nenhuma palavra
conhecida pela criança. Liga-se coisa alguma com nada. Desde a primeira exposição do
alfabeto até a formação de sílabas, computaram-se cerca de 10 mil perceptos: os visuais (a, b,
c...), os auditivos (/‟a/, /‟be/, /‟ce/) e os cognitivos (a=A; a=/‟a/). As noções de nomes de
letras, relações entre maiúsculas e minúsculas, bem como de vogais e consoantes, não seriam
nada simples e nada óbvias para quem se inicia no mundo da leitura e da escrita – apesar de
serem óbvias para os alfabetizados, como os professores. O artigo não contém detalhes desta
3

análise. Para os interessados em detalhes, remeto para o livro O leitor de uma palavra (LUZ,
2011b).
O olhar do jornalista, por formação e prática, influenciou o recorte do objeto de
estudo. A premência de achar um título para um texto qualquer, impõe a busca do ponto mais
relevante para abrir “a matéria”. Essa vivência ajudou a procurar os aspectos salientes na
perspectiva do aprendiz iniciante, o entendimento do enigma da leitura: a transformação do
oral em escrito e do escrito em oral. Além disso, uma experiência como professor de língua
inglesa possibilitou uma empatia com adolescentes (ensino médio) e crianças (educação
infantil e fundamental), ao motivá-los e envolvê-los em uma interação significativa para eles.
“Ninguém domina ciência alguma, nem se faz virtuoso, de golpe. [...] Não há quem
tenha prescindido do auxílio livresco e de professores” (HECKER 1944, p.19), o que
certamente foi o caso, incluindo-se também as crianças com quem houve interação neste
processo. Segundo Abreu (2010), a cognição humana engloba linguagem, memória,
raciocínio lógico, emoções e motivações – a capacidade de processar informações e de reagir
a tudo que se percebe no mundo e dentro de nós mesmos. Esses processos estão presentes no
ensino e na aprendizagem da leitura. A dualidade entre empiria e especulação foi mediada
pela fenomenologia e pela biologia, para analisar aspectos pragmáticos e teóricos no primeiro
passo da aprendizagem da leitura. Os estímulos podem ser vistos como inputs, que guardam
algum grau de condicionamento behaviorista; e se processam na mente, provocando algum
grau de especulação cognitiva. Kandel (2009) retoma a dicotomia teórica semelhante entre o
biológico (inato) e o ambiental (empírico); o primeiro de Immanuel Kant (1724-1804) com o
conhecimento a priori; e o segundo de John Locke (1632-1704) com o conhecimento da
experiência.
[...] vimos que as duas visões tinham mérito – na verdade, se complementavam. A
anatomia do circuito neural é um exemplo simples do conhecimento a priori
kantiano, ao passo que as mudanças por força das conexões específicas do circuito
neural refletem a influência da experiência (KANDEL 2009, p. 227).

O conceito de Leitor de uma palavra talvez seja o aspecto mais relevante da pesquisa
realizada. Esse achado talvez possa representar uma complementação às estratégias
tradicionais, para aprimorá-las e facilitar o trabalho de quem ensina e de quem aprende a
leitura. Um novo olhar e um novo conceito para o problema da aprendizagem da leitura
buscam uma contribuição efetiva para os sujeitos que interagem nessas instituições, nos
momentos iniciais dessa apropriação.
4

[...] enquanto só conheço uma relação num único caso particular, tenho dela apenas
um conhecimento individual, portanto apenas intuitivo. Mas, logo que identifico a
mesma relação em pelo menos dois casos distintos, tenho um conceito de toda a sua
espécie, portanto um conhecimento mais profundo e mais perfeito
(SCHOPENHAUER, 2010, p. 121).

Na investigação, foram observados 20 sujeitos, sem computar os estudados na


educação infantil, mais 25 alunos – meninos e meninas de 3, 4 e 5 anos de idade. Para Arthur
Schopenhauer (1788-1860), portanto, esse número seria suficiente para que o conceito de
Leitor de uma palavra valesse para toda a espécie.

Figura 1: A “leitura” no livro do mundo 2


Fonte: Luz 2011b

Para Schopenhauer (2010, p. 45), os pensadores leem as coisas diretamente no livro


do mundo, e essa leitura seria superior à advinda dos livros e da erudição: “[...] só eles sabem
propriamente do que falam, conhecem as coisas de lá em seu contexto e sentem-se em casa
naquele lugar”. Intuitivamente, talvez tenha feito isso, o que nos leva ao pai da ciência
moderna. Para Galileu Galilei (1564-1642), o conhecimento da realidade deveria se basear na
rigorosa observação dos fenômenos físicos na natureza e não seguir autoridades estabelecidas
(apud OSTROWER 1998).

A filosofia está inscrita neste grande livro que está para sempre aberto diante de
nossos olhos: o Universo. Mas o livro não poderá ser lido a não ser que tenhamos
aprendido sua linguagem e nos familiarizado com os caracteres em que está escrito.
É a linguagem matemática, e suas letras são triângulos, círculos e outras formas
geométricas, sem as quais é humanamente impossível entender uma só palavra
(GALILEI apud OSTROWER 1998, p. 36).

A leitura no livro do mundo é realizada “no primeiro segundo do primeiro minuto da


aprendizagem”. Um estímulo (com Abc) partiu dos segmentos isolados, com a identificação
das letras e dos nomes para 118 crianças na escola pesquisada. Para 98 delas (83%), essa

2
Interação na educação infantil, realizada em 2010, não discutida no presente trabalho. Foto da professora
Cristina Diem Reis.
5

prática proporcionou a apropriação da leitura na continuidade do processo, contudo fracassou


com os 20 sujeitos estudados (17%). Eles receberam um outro estímulo (sem Abc), que
partiu de uma palavra escrita e de pistas orais para a criança descobrir o som de uma
determinada sequência de grafemas. A comparação foi feita apenas no grupo que recebeu os
dois estímulos. O olhar está direcionado para as crianças que não aprendem a leitura com
métodos tradicionais, com o objetivo de entender e explicar as dificuldades desses estudantes.

COM ABC – Início com o alfabeto → estímulo → reflexo na mente → resposta da criança →
resultado → não lê uma palavra escrita → criança não entende o enigma da leitura

SEM ABC – Início com a leitura → estímulo → reflexo na mente → resposta da criança →
resultado → lê uma palavra escrita → criança entende o enigma da leitura
Figura 2: O efeito do estímulo
Fonte: Luz (2010)

Essa pressuposição sobre o efeito dos estímulos iniciais caracteriza o aspecto


distintivo entre uma abordagem e outra. A leitura inicial (lexical) é medida por meio de uma
associação direta da forma visual com a forma oral: “bola”=/‟bla/, por exemplo. Com o
alfabeto, deixa-se a leitura para o fim; com uma sequência de grafemas, coloca-se a leitura no
início do processo. Essas opções são escolhas dos alfabetizadores, não dos alunos, e
trabalham diferentes habilidades letradas, com ênfases pedagógicas distintas.
Em um processo como a alfabetização, o primeiro passo representa apenas o início
de uma longa caminhada. Diversos fatores atuam juntos, simultaneamente e sucessivamente,
em complexas relações cognitivas, sociais, pessoais, biológicas e emocionais. A
aprendizagem real transcende os aspectos teóricos, biológicos e culturais, ou os sintetiza de
forma ainda não desvendada pela ciência. Com a pragmática dos estímulos alternativos,
obtiveram-se informações relevantes para a discussão teórica, referendada na biologia e na
interação do indivíduo com o meio.
A convicção principal é que o ensino da leitura e da escrita pode ser aprimorado por
meio de estímulos de saber como. A apresentação do alfabeto parece fundamentada no nada,
no vazio de saber que. A leitura e a escrita devem se servir do conhecimento da oralidade e de
mundo das crianças3, uma base existente em sua mente, e do uso efetivo dessas habilidades.
As letras, enquanto segmentos isolados, só existem em “vazios” mentais, pois não se referem
a nada. Já uma sequência de letras de uma palavra conhecida se refere à oralidade e a um
esquema de mundo específico. Assim, o novo conhecimento da linguagem escrita “bola”, se
relaciona com o conhecimento de mundo do aprendiz, que já ouviu e já falou muitas vezes
3
Sujeitos ouvintes. Isso não se aplica a sujeitos surdos.
6

/‟bla/, fundamenta-se, portanto, no que já existe na mente da criança. Há leitura somente em


contexto cultural com elementos portadores de significado, segundo os estudos clássicos do
estruturalismo (SAUSSURE, 1973).
As crianças tinham habilidades diferentes. Algumas não liam nada, outras liam
somente algumas palavras e as mais aptas conseguiam ler frases. A transição inicial com o
segmento isolado e com uma palavra escrita pode trazer esclarecimentos relevantes para
facilitar o processo de ensino e aprendizagem. Por isso, buscou-se novas explicações para os
fatos estudados, como o conceito de Leitor de uma palavra. A análise dos estímulos se serviu
de dois objetos principais: os cadernos do professor e de um aluno (com abc); e a interação do
pesquisador com os sujeitos investigados, gravada em áudio (sem abc). A partir desses
objetos se contextualizou o ambiente (escola) e o ser vivo (aprendiz), tendo considerado o
estímulo pedagógico adotado como uma ponte entre o professor/escola e o aluno (LUZ,
2010). A análise evidenciará possíveis efeitos cognitivos das duas abordagens no contexto da
leitura de uma palavra escrita.
Não se assume uma definição de leitura, ou de leitor, ou mesmo de alfabetização, na
medida em que o recorte proposto apenas tangencia essas habilidades. Pontua-se, no corpo da
Tese (LUZ, 2010), que não é possível uma única definição que contemple as variadas
dimensões formais (código) e de sentido de um texto escrito. Quantas etapas e regras
precisam ser superadas para considerar uma pessoa leitora? É difícil definir com precisão. O
processo é complexo, caracterizado por uma gradiência no domínio de diferentes habilidades.
Portanto, o recorte da investigação procura iluminar o início desse processo de aquisição de
habilidades letradas, para tornar mais simples e mais alegre a inserção das crianças no mundo
da leitura.
O processamento mental por meio de sinapses explicaria o conceito de Leitor de uma
palavra. O processo envolveria pelo menos oito passos: olha a palavra escrita (1); recorta-a
(2); processa a imagem (3); cria um percepto no córtex visual da palavra escrita (4);
estabelece conexão sináptica com um item oral na área de Wernicke (flecha que sai do córtex
visual e vai para a área de Wernicke) (5); relaciona a forma visual com a forma oral específica
na área de Wernicke no contexto de uma palavra (6); estabelece conexão sináptica com a área
de Broca (fascículo arqueado liga área de Wernicke com a área de Broca), ligada ao caminhos
anteriores (palavra escrita=palavra oral) (7); e por fim, a criança produz o som adequado a
que se refere a palavra escrita (8): “bola”=/‟bla/. As flechas da Figura 3 seriam as novas
sinapses estabelecidas na mente do aprendiz – o leitor de uma palavra – e talvez uma prova
inquestionável da existência biológica desse fenômeno cognitivo. Este tipo de sinapse não é
7

possível com o estímulo do alfabeto, de forma tão direta e simples. Por isso, muitos
estudantes têm dificuldade para aprender a leitura no contexto escolar.

O córtex auditivo O córtex visual


trabalha na audição atua na leitura
de palavras de palavras

A produção da linguagem A percepção da linguagem [escrita]


é controlada pela área resulta da convergência de
de Broca. informações auditivas e visuais
na área de Wernicke

Fascículo arqueado conecta


a área de Wernicke com a área de Broca

Figura 3: As sinapses na leitura da primeira palavra


Fonte: Kandel 2009, p.142

2 ESTRATÉGIA DE PESQUISA

Durante um evento nos Estados Unidos, um astrofísico norte-americano interagiu


brevemente com a artista brasileira Fayga Ostrower e a definiu como uma pessoa com a
mente aberta para novas possibilidades, com a imaginação e a capacidade de relacionar dados
de maneira diferente, intuindo contextos globais, em que tais dados poderiam se encaixar em
uma nova visão da realidade (OSTROWER, 1998). Essa postura, sem dúvida, reflete uma
maneira interessante de se realizar pesquisas científicas, o que se buscou com o presente
trabalho.
Merleau-Ponty (1990) acredita em uma descrição plena e isenta da experiência por
meio da fenomenologia, a qual possibilitaria uma harmonização do subjetivo (olhar para
dentro) com o objetivo (olhar para fora). Não houve um aprofundamento característico da
fenomenologia nos sujeitos, com a ênfase sendo deslocada para os estímulos a que estavam
expostos os estudantes. Características desse viés metodológico estão presentes na
8

investigação: ser radicalmente empírica; evitar pré-definições; ser holística; ser qualitativa,
interpretativa e descritiva; ser verificável em termos da própria experiência; valorizar os
insights; e buscar a compreensão, o significado das coisas (STEVENS 1990) no início da
aprendizagem da leitura.
O interdisciplinar aparece como um princípio novo de reorganização das estruturas
pedagógicas e se caracteriza por uma atitude feita de curiosidade, de abertura, de aventura, de
intuição sobre as relações existentes, que escapam à observação comum. O interdisciplinar é
algo que se vive a partir de fatos reais e envolve o interesse e o respeito pela voz do aluno –
características de estudos aplicados – segundo Venturi (2006). Ao investigar o início da
leitura, também se estudam os sujeitos que aprendem, o que amplia a perspectiva de Maturana
e Varela (1995) adotada nesta pesquisa, em que o ser biológico interage com o meio para a
aprendizagem por meio do fazer.
Bakhtin (2006) explicita sobre a metodologia das ciências humanas com o
conhecimento da coisa e o conhecimento do indivíduo. Para o autor, o primeiro seria a coisa
morta, dotada de aparência, que só existe para o outro e pode ser totalmente revelada por um
ato unilateral do outro (o cognoscente). O segundo seria a ideia de Deus em presença de Deus,
o diálogo, a interrogação e a prece. “O indivíduo não tem apenas meio e ambiente, tem
também horizonte próprio [...] O objeto das ciências humanas é o ser expressivo e falante.
Esse ser nunca coincide consigo mesmo e por isso é inesgotável em seu sentido e significado”
(BAKHTIN 2006, p. 394).

Aqui o cognoscente não faz a pergunta a si mesmo nem a um terceiro em presença


da coisa morta, mas ao próprio cognoscível. [...] A coisa morta não existe no limite,
é um elemento abstrato (convencional); em certa medida, qualquer totalidade (a
natureza e todas as suas manifestações relacionadas à totalidade) é pessoal.
(BAKHTIN 2006, p. 394).

Para Schopenhauer (2010), o espírito guarda o que lhe interessa, isto é, o que diz
respeito a seu sistema de pensamentos e o que se adapta a suas finalidades.

[...] apenas a partir da convicção da verdade e [da] importância de nossos


pensamentos surge o entusiasmo que é exigido para buscar sempre, com incansável
perseverança, a expressão mais clara, mais bela e mais vigorosa
(SCHOPENHAUER, 2010, p.112).

Nessas perspectivas, se realizou uma pesquisa qualitativa sobre o primeiro passo no


ensino da leitura, incluindo a experiência do pesquisador como “alfabetizador” de algumas
palavras. Bastante usada em Psicologia e Educação, esse tipo de investigação descreve a
experiência por meio do estímulo aplicado diretamente pelo pesquisador (LUZ, 2010), em
9

contexto interativo com a situação de estudo para entender os fenômenos na perspectiva dos
sujeitos participantes. O primeiro estímulo (A) foi aplicado por três professores durante o
primeiro semestre, em cinco turmas de alfabetização. O segundo estímulo (B) foi aplicado
pelo pesquisador em 12 atendimentos, 10 individuais e 2 coletivos, no mês de setembro de
2007.
As discussões se fundamentam nos aspectos processuais (biológicos, mentais,
linguísticos e cognitivos) da leitura e da escrita, para apontar adequações e inadequações dos
estímulos. A pesquisa de campo envolve revezes, difíceis de prever ou mesmo controlar.
Dessa forma, a interação no mundo real da sala de aula gerou modificações relevantes no
design da pesquisa, bem como implicou coleta de dados e informações que não puderam ser
contemplados na tese e neste artigo.

2.1 Pesquisa de campo


A primeira atividade de coleta de dados foi um teste de leitura com as crianças,
elaborado pelo pesquisador. Era perguntado se ela sabia ler. Se respondesse sim, pedia-se para
ela ler três palavras e uma sentença. Se ela respondesse não, perguntava-se se ela queria tentar
ler. O teste durava cerca de um minuto e foi aplicado em 91 sujeitos em 2007, e em 81 em
2008. O objetivo inicial era avaliar o conhecimento dos alunos em relação à leitura para
possibilitar uma comparação mais efetiva na aprendizagem, com diferentes estímulos para o
ensino da leitura.
Para fins de pesquisa, se considerava “leitor” quem conseguisse ler uma única
palavra. Naquele momento, havia apenas o objetivo de distinguir diferentes habilidades
iniciais. Essa classificação seria uma intuição de que a leitura de uma palavra poderia ser
representativa para o aprendiz e para categorizar dois grupos principais: quem lia uma palavra
e quem não lia. Os sujeitos receberam sucessivamente os estímulos A e B. O primeiro foi
aplicado no começo do ano letivo de 2007; e o segundo, nos dias 4 e 20 de setembro do
mesmo ano, como dito.

ABCDEFGHIJKLMNOPQRSTUVWXYZ
abcdefghijklmnopqrstuvwxyz
Figura 4: Estímulo A – o alfabeto e os segmentos isolados
Fonte: Luz (2010)

bola, carro, vaca e O menino corre.


Figura 5: Estímulo B – palavras escritas e uma frase
Fonte: Luz (2010)
10

A primeira etapa da alfabetização se inicia com o conhecimento das letras,


especialmente, por meio de seus nomes e das grafias maiúsculas e minúsculas (Estímulo A).
A Análise do Material Didático computou 19 atividades desenvolvidas pelo professor (LUZ,
2011a). Na primeira aula, ele relacionou as letras maiúsculas com as letras minúsculas, por
meio de números. Essa atividade não envolve a leitura ou a escrita, e trabalha de forma
periférica o conhecimento necessário para a aprendizagem da leitura. Os professores
acreditam que a alfabetização se inicia com o conhecimento das letras, especialmente, por
meio de seus nomes. Talvez, por isso, eles tenham enfatizado essas questões no primeiro dia
de aula. Essa exposição reflete também como a linguagem escrita é trabalhada na pré-escola,
apenas com letras maiúsculas, o que torna necessário esse tipo de atividade de transição
(relação) das maiúsculas para as minúsculas. Um balanço geral das atividades, no início do
ano, mostra que os paradigmas prevalentes da escola não se mostram coerentes com os
processos linguísticos, cognitivos e biológicos envolvidos na aprendizagem da leitura. E,
mesmo assim, a maioria das crianças aprende a ler ao final do ano letivo – o que não foi o
caso dos 20 sujeitos estudados.
A tela do computador serviu como ponto de partida para o Estímulo B, que se
restringe a uma só relação, a decodificação lexical, ou global: “bola”=/‟bla/ na primeira
atividade didática. A representação para bola (/‟bla/) já existe na mente do aprendiz. As
mesmas crianças que não aprenderam a leitura com o estímulo A, não tiveram dificuldades de
se apropriar da leitura lexical de algumas palavras escritas – o que pode apontar uma
estratégia inicial mais adequada para o ensino da leitura.

2.2 Sujeitos
O pesquisador atendeu 20 crianças (cinco turmas), e nove sujeitos eram repetentes.
Quinze dessas crianças responderam ao Teste do Abc sem abc, descrito mais adiante, para
checar o grau de internalização dos enunciados trabalhados: palavra; sílaba; e frase. Essas
crianças representaram 17% dos alunos e foram identificadas como não leitores pela escola e
pelo pesquisador.
A Tabela 1 apresenta as crianças que receberam atendimento individual e coletivo,
com informações sobre a idade, o sexo, os acertos nos testes do Abc sem abc, com alguns
detalhes relevantes da prática pedagógica, descritos nas seções seguintes, de acordo com a
ordem cronológica das aulas ministradas. A aprendizagem da leitura considerou a checagem
dos conteúdos, feita logo após a aula. Assim, a situação anterior dos sujeitos era de NL (não
11

leitor de uma palavra), e passaram a L1p (leitor de uma palavra) após a aula ministrada pelo
pesquisador.
Essa diferença caracterizaria a habilidade inicial na apropriação da leitura, o
entendimento do enigma da leitura: letras representam sons e palavras escritas representam
palavras faladas. Nesta tabela, não foram levados em conta os conhecimentos das práticas
pedagógicas das aulas assistidas pelos alunos, que poderiam contribuir e influenciar os
resultados obtidos. Não há como realizar essa distinção. Entretanto, consideram-se
elucidativos os presentes dados para analisar diferentes enunciados e as habilidades
envolvidas em sua apropriação.

Tabela 1: Sujeitos atendidos


Suj. Id. Rep. Sex Ant. Aula Dep. Atend. Ac.
(S) (A) (min.) (%)

A 7 sim M NL - L1p Ind. -


B 7 não F NL 7 L1p Ind. 71
C 7 não M NL 10 L1p Ind. -
D 6 não F NL 6 L1p Ind. 86
E 8 sim F NL 6 L1p Ind. 79
F 8 sim M NL 6 L1p Ind. 29
G 9 sim M NL 6 L1p Ind. 29
H 8 sim M NL 5 L1p Ind. 71
I 7 sim F NL 5 L1p Ind. 86
J 9 sim F NL 5 L1p Ind. 86
K 7 não M NL 30 L1p Col. 100
L 7 não F NL 30 L1p Col. 86
M 7 não M NL 30 L1p Col. -
N 8 sim F NL 30 L1p Col. 100
O 7 não M NL 30 L1p Col. 71
P 8 sim M NL 30 L1p Col. 64
Q 7 não M NL 30 L1p Col. 79
R 7 não M NL 30 L1p Col. 100
S 7 não F NL 30 L1p Col. -
T 7 não M NL 30 L1p Col. -
Fonte: Luz (2010)

O aspecto relevante seria o fato de que todos leram, ou apontaram a palavra escrita
adequada, ao ouvirem a forma oral dita pelo pesquisador, ao final da interação. Já os 15
sujeitos que responderam ao teste, dois meses depois, não houve uma única situação em que
não lessem pelo menos duas palavras (bola e carro). A tabela também mostra os sujeitos que
se desviaram da amostra (F e G), indicando que o estímulo da leitura não foi efetivo para
esses alunos na leitura de sílabas e de frase.
12

Figura 6: A primeira palavra lida pelo aprendiz iniciante


Fonte: Luz (2010)

Logo após a experiência inicial, foi feita a checagem da internalização das palavras
lidas pelas crianças. Quando encerrava a atividade de leitura da frase, era avisado de que iriam
fazer uma brincadeira para ver se haviam aprendido a ler aquelas palavras. Nos primeiros
atendimentos individuais, solicitava-se que a criança lesse o que estava escrito; depois,
utilizava-se outra estratégia com as demais crianças por meio do apontamento. Eram
apresentadas as três palavras e a sentença na tela do computador e pedia-se para a criança
apontar para “bola”, “vaca” e “carro”... (de forma aleatória), o mesmo em relação a “O”,
“menino” e “corre”.
Todos acertaram a atividade, alguns leram a frase após a identificação das palavras
aprendidas, no 11º atendimento, no dia 20 de setembro de 2007, pela manhã, que serviu de
base para a análise realizada neste artigo. Não houve desvios na checagem de aprendizagem.
Em seguida, foram repassadas mais algumas atividades: desenho da bola e escrita da palavra
“bola”, o que foi repetido com as demais palavras. Ao final, distribuíram-se figuras
relacionadas às palavras e à frase. As crianças recortaram e colaram as figuras e as palavras
escritas em seus cadernos. A ideia era dar uma pista visual para elas identificarem o som
daquelas palavras escritas. O tempo gasto para ensinar a leitura lexical de três palavras e de
uma frase foi de 10 minutos. Com as atividades didáticas adicionais, chegou-se a pouco mais
de 30 minutos de aula.
Os estímulos e a própria prática pedagógica se alteraram ao longo desse processo. No
primeiro atendimento individual, partiu-se do segmento escrito para o segmento oral, de “bo”
para /‟b/, o que seria uma leitura “lexical” da primeira sílaba, como descrito a seguir. O
mesmo foi feito para “la”=/‟la/; para depois chegar a “bola”=/‟bla/. Havia também a
checagem da via sublexical com o logatoma “tuxa” (SCLIAR-CABRAL, 2003), que deveria
ser lido com /‟tua/. Nos atendimentos coletivos, se partia de “bola” e, com uma
contextualização oral, se ofereciam pistas para a criança “descobrir” o som daqueles símbolos
escritos “bola” e desconhecidos pela criança em termos de leitura, ou seja, relação entre
palavra escrita e palavra falada (ouvida).
Houve uma inversão completa na didática utilizada. No primeiro atendimento, o
pesquisador “ensinou” a leitura de uma sílaba, sem referência a uma palavra oral; no último, a
criança “descobriu” o som a que a palavra escrita se referia. O pesquisador já não “ensinou”
13

ao aprendiz os sons que as letras escritas representavam. Com a referência oral no léxico
mental da criança, o sujeito “advinhou” o som e relacionou o oral com o escrito. Este fato
evidencia que a experiência modificou a estratégia inicial, por meio da percepção do
pesquisador sobre o que era mais fácil ou mais difícil para o aprendiz.

2.2.1 Atendimentos individuais

bo=/‟b/; la=/‟la/→bola=/‟bla/
Figura 7: Prática inicial no primeiro atendimento
Fonte: Luz (2011b)

Com o sujeito A, a aula não foi gravada. Com o B, a prática se iniciou com o
pesquisador informando que ia dizer o que estava escrito “nessas duas letrinhas”, “bo”: /‟b/.
A criança leu as palavras com alguma dificuldade e lentidão, o pesquisador ajudou no final da
sentença, na palavra “corre”. C teve mais dificuldades, não memorizou, tentava adivinhar
sempre. Conseguiu ler as sílabas iniciais “bo” e “ca” de “bola” e “carro”. Acertou a
brincadeira proposta pelo pesquisador em que deveria dizer “ca” para completar a palavra
“vaca”: /‟va/... /‟ka/. Com D, a prática se iniciou com os segmentos silábicos. Ele teve
dificuldade na leitura do logatoma “tuxa”, e o item foi retirado da prática pedagógica. Os
demais foram lidos adequadamente. Essa sequência “tuxa” não referia palavra da oralidade, o
que tornava difícil a leitura lexical, pois uma pseudopalavra não integra o léxico oral do
aprendiz. Apenas quem tivesse desenvolvido a via sublexical leria adequadamente o
logatoma, mas provavelmente não seria lido lexicalmente pela falta de referência oral.

tuxa=/‟tua/→sem referência oral


Figura 8: Maior dificuldade para a leitura lexical
Fonte: Luz (2011b)

E não memorizou bola e vaca; apenas carro na primeira releitura; com ajuda,
lembrou as outras palavras e a frase. Com F, houve o primeiro teste com apontamento ao final
da aula, não mais a leitura das palavras aprendidas. G lembrou as palavras e a frase,
apontando adequadamente. I não apresentou situações relevantes. H acertou todas “de
primeira”, depois de ensinada a leitura das palavras, bem como na checagem da
aprendizagem. J conseguiu ler as letras como sílabas /‟b#‟la/, mas não acessou sozinha o
sentido de “bola”, lendo /‟bla/, na primeira apresentação. Fez as operações dos segmentos
isolados “b” + “o”=/‟b/, o mesmo para “la”, mas não conseguiu ler. Em seguida, com ajuda,
conseguiu ler adequadamente as palavras e a frase. Os atendimentos foram gravados, exceto
14

um, na sala de atendimento de crianças com necessidades especiais, no andar térreo da escola
pesquisada.

2.2.2 Atendimentos coletivos

bola=/‟bla/→ bo=/‟b/; la=/‟la/


Figura 9: Prática inicial no atendimento final
Fonte: Luz (2011b)

O 11º atendimento teve cinco alunos (duas meninas e três meninos), um repetente, e
quatro responderam o teste do Abc sem abc, aplicado no final do ano. Todos eles
identificaram as palavras ensinadas no computador. Os atendimentos foram gravados em sala
de aula normal, no primeiro andar. K, L, M, N e O participaram das atividades propostas pelo
pesquisador, lendo as palavras, realizando os apontamentos adequadamente. O mesmo
ocorreu no 12º, com cinco crianças (uma menina e quatro meninos), dois repetentes: P, Q, R,
S e T. A diferença fundamental foi que, nesse último grupo, havia um leitor que leu as
palavras apresentadas na tela do computador – o que alterou a prática pedagógica prevista.
Esse sujeito Y foi retirado da população investigada, pois era leitor de algumas palavras.

2.3 Teste do Abc sem abc


O teste da aprendizagem da prática do Abc sem abc, aplicado em novembro de 2007,
envolveu quatro habilidades: emparelhar figura com palavra escrita (3 itens) e frase escrita
(1); leitura de palavras isoladas (3) e de sentença (1); leitura de sílabas (4); e escrita de palavra
(1) e de frase (1). Esses instrumentos foram desenvolvidos e aplicados pelo pesquisador para
checar o grau de internalização das palavras ensinadas. O total foi de 14 questões, 12 de
leitura e 2 de escrita. A primeira era o emparelhamento de figura com a palavra escrita (frase
inclusive), 4 itens; depois, leitura das mesmas palavras e frase, 4 itens, sem apoio da figura;
em seguida, leitura de sílabas, 4 itens; por fim, escrita de uma palavra e de uma sentença a
partir de uma figura. Os testes ilustram aspectos pragmáticos para o processamento mental da
leitura e foram criados e aplicados pelo próprio pesquisador.
15

vaca bola carro O menino corre.


Figura 10: Teste 1 – Emparelhar figura e palavra
Fonte: Luz (2011b)

bola carro vaca O menino corre.


Figura 11: Teste 2 – Leitura de palavras e frase
Fonte: Luz (2011b)

bo ca la va
Figura 12: Teste 3 – Leitura de sílabas
Fonte: Luz (2011b)

Figura 13: Teste 4 – Escrita de palavra e frase


Fonte: Luz (2011b)

O teste ficou restrito ao que foi ensinado, não foi checada qualquer ampliação do
conhecimento. Esse instrumento foi criado, rapidamente, no sentido de se ter dados
específicos sobre a experiência. Essa premência pode ter provocado alguns problemas, mas
forneceu elementos interessantes para analisar a aprendizagem da leitura. Um teste específico
com os elementos da sentença “O”, “menino” e “corre” poderia esclarecer melhor o
processamento da sentença, comparando o desempenho lexical isolado com a sequência de
três itens lexicais. Todavia, essa comparação não pôde ser efetuada.
A amostra abrangeu 75% da população investigada. Os participantes repetentes (6)
representam 40% dos sujeitos; os demais (9), 60%. Nenhum deles sabia ler uma palavra.
Após a vivência pedagógica com os paradigmas da leitura, que variou de 5 min a 30 min, elas
saíram “lendo” algumas palavras. Identificavam e recortavam visualmente a palavra escrita e
sabiam associar ao respectivo som da palavra oral das palavras ensinadas pelo pesquisador.

2.4 Discussão dos resultados


Os resultados possibilitaram informações relevantes sobre o processamento de
diferentes tipos de enunciados no início da aprendizagem: palavra; sílaba; e frase. Os 15
sujeitos tiveram bons resultados nos testes realizados, em novembro, especialmente na leitura
de “bola” e “carro”, 15 acertos para 15 sujeitos, e um pouco menos com “vaca”, 13 acertos
para 15 sujeitos. O Estímulo B desenvolveu a via lexical da leitura para três palavras escritas.
16

Os dados indicam a maior complexidade de processamento da frase, que exige habilidades


que transcendem a via lexical, usada com sucesso para palavras isoladas – o que funcionou
bem para a palavra e para a sílaba não pareceu adequado para a frase. O acesso lexical
favoreceu a escrita de uma palavra (80% de acertos).

Acertos por Teste


16
14
12
10
8
6
Série1
4
Sujeitos
2
0
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14
Questões Formuladas

Figura 14: Checagem do Abc sem abc na amostra


Fonte: Luz (2010)

Os acertos nas 14 questões do teste, por sujeito, mostraram claramente as


dificuldades da amostra: leitura de frase; leitura de sílaba átona final; e escrita de frase: itens
8, 11 e 14. A igualdade gráfica entre o grafema “l” (ele minúsculo) com o grafema “I” (i
maiúsculo), a proximidade com o numeral “1”, e a dificuldade de recorte do som líquido de /l/
do segmento “bola” e “la” na cadeia da fala e relacioná-lo ao grafema “l” podem explicar essa
dificuldade. Outro aspecto seria o fato de ser a segunda sílaba lida na palavra, não sendo tão
saliente quanto a primeira em termos sonoros e visuais: bola, bola, carro, vaca; /‟vaka,
„bla, ‘caRo, „bla/. Duas conclusões surgem dessas evidências: a leitura da sílaba inicial e
tônica é mais fácil para o aprendiz iniciante e a leitura da sílaba final e átona é mais difícil
para o aprendiz iniciante. Portanto, a saliência visual (aparecer primeiro) e sonora (tonicidade)
parecem fatores importantes para explicar os escores na leitura de “bo”, “ca” e “va” e de “la”.
Tanto a facilidade (12, 12, 11), como a dificuldade (6), para a leitura da sílaba, decorreria da
posição na palavra escrita, bem como de fatores fonológicos como a tonicidade.

/‟bla/→bola→decodificação ajuda na codificação


Figura 15: Relação som e a palavra escrita
Fonte: Luz (2011b)

Nos testes efetuados, 100% da amostra leram adequadamente as palavras “bola” e


“carro”. Esse processo indica uma via lexical ortográfica na memorização, o que certamente
facilitou a aprendizagem da leitura e boa produção escrita (80%). Os resultados sugerem uma
relação direta entre palavra oral e palavra escrita: a recepção “bola”=/‟bla/ (leitura) ajudar
na produção /‟bla/= “bola” (escrita). No caso da frase, contudo, essa relação direta não foi
17

observada, já que a decodificação lexical não basta para a leitura de palavras novas, exigindo
também a via sublexical.

/‟omi‟nino‟kRi/→O menino corre. →codificação


mais complexa e sem ajuda da decodificação lexical
Figura 16: Situação diferente de processamento

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A ideia de um Leitor de uma palavra coloca em cheque definições de leitura e de
educação, bem como os papéis do educando, do educador e da própria escola. A
aprendizagem da leitura envolve diferentes etapas e habilidades específicas em cada uma
delas. A ordem dos estímulos e a forma de apresentação da linguagem escrita podem acelerar
(facilitar) ou frear (dificultar) a aprendizagem do enigma da leitura. Os processos são muito
complexos, tanto os biológicos e cognitivos, quanto os sociais e culturais. Existe o querer
individual, expresso por seus valores e atitudes; existe o querer social, expresso por suas
instituições e restrições.
As evidências apresentadas sugerem o trabalho com signos orais (palavras) e sua
forma visual, escrita, desde o primeiro segundo do primeiro minuto da aprendizagem, e não
com meros sinais incompreensíveis. As letras isoladas não podem ser consideradas um uso
social desta expressão humana: não são palavras, não são sentenças, não são textos. Não
expressam um sentido qualquer, nada além de serem letras, que podem ser usadas em
palavras, sentenças e textos. O sorriso e a alegria das crianças ao lerem algumas palavrinhas
continuam na lembrança...

Figura 17: Maria (3 anos), Gustavo (4)4 e Elias (5)


Fonte: Luz (2011b)

Essas fotos da pré-escola, no Jogo de Memória, são semelhantes às expressões


espontâneas das crianças que conseguiram ler uma palavra escrita pela primeira vez, de forma
autônoma e independente. O enigma da leitura foi desvendado rapidamente. A capacidade de

4
Gustavo se tornou leitor fluente aos 4 anos.
18

relacionar o escrito com o falado seria representativa para o aprendiz iniciante. “Agora sei
ler”, poderia pensar sobre essa conquista pessoal. O sorriso largo da primeira leitura de uma
palavra escrita dimensiona “o entendimento do código” e a alegria dessa apropriação por
quem não conseguia antes. A autoestima, a atenção e a participação das crianças indicam
possibilidades novas de pesquisa e de aprendizagem na escola: a leitura lexical como a
entrada principal para o letramento na educação infantil e na educação fundamental.

A maior parte dos cientistas que tentaram seguir caminhos relativamente novos em
suas pesquisas, com toda a dificuldade e a frustração que esses caminhos impõem,
relatam que foram advertidos a não correr riscos. Para a maioria de nós, essas
recomendações contra o impulso de seguir adiante apenas instigam o espírito de
aventura (KANDEL, 2009, p.450).

“No final das contas, temos que confiar em nosso inconsciente, em nossos instintos,
em nosso anseio criativo” (KANDEL, 2009, p.169). Essas palavras de um prêmio Nobel5
ajudam a caracterizar as dificuldades e os desafios da investigação científica, especificamente
sobre as intuições iniciais obtidas na aplicação de testes de leitura para criar um conceito novo
e caracterizar um tipo de aprendizagem diferente e desconhecido: a primeira leitura de uma
palavra escrita por um aprendiz iniciante.

4 REFERÊNCIAS

ABREU, A. S. Linguística Cognitiva, uma visão geral e aplicada. Cotia: Ateliê Editorial,
2010.

BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

HECKER, P. Espiritismo – tese. Porto Alegre: Livraria Continente, 1944.

KANDEL, E. R. Em busca da memória, o nascimento de uma nova ciência da mente. São


Paulo: Companhia das Letras, 2009.

LUZ, R. H. O leitor de uma palavra: uma reflexão teórica sobre a prática de estímulos
iniciais de aprendizagem. 2010. Tese (Doutorado em Linguística) – Universidade Federal de
Santa Catarina, Florianópolis, 2010.

_______. Abc sem abc, aprendizagem inicial da leitura na escola. Praia do Rosa: Edição
do autor, 2011a.

_______. O leitor de uma palavra, uma nova aprendizagem. Praia do Rosa: Edição do
Autor, 2011b.
5
Eric Kandel recebeu o Prêmio Nobel em 2000 (Fisiologia ou Medicina), juntamente com Arvid Carlsson e Paul
Greengard por contribuições sobre a transdução de sinais neurais, que transformaram a compreensão do
funcionamento cerebral.
19

MATURANA, H. R.; VARELA, F. G. A árvore do conhecimento. Campinas: Editorial Psy,


1995.

MERLEAU-PONTY, M. Merleau-Ponty: Resumo de Cursos Psicossociologia e Filosofia.


Campinas: Papirus, 1990.

OSTROWER, F. A sensibilidade do intelecto, visões paralelas de espaço e tempo na arte e


na ciência, a beleza essencial. Rio de Janeiro: Campus, 1998.

SAUSSURE, F. Curso de Lingüística Geral. São Paulo: Cultrix, 1973.

SCHOPENHAUER, A. A arte de escrever. Porto Alegre: L&PM, 2010.

SCLIAR-CABRAL, L. Guia prático de alfabetização. São Paulo: Contexto, 2003.

STEVENS, G. The reasoning Architet. New York: McGraw-Hill, 1990.

VENTURI, M. A. Aquisição da língua estrangeira numa perspectiva de estudos aplicados. In:


DEL RÉ et al. Aquisição da Linguagem: uma abordagem psicolingüística. São Paulo:
Contexto, 2006.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

O PROCESSO INFERENCIAL NO DISCURSO JORNALÍSTICO

Alessandra Bassi (PPGLg/UFSC)1

RESUMO

O presente artigo2 busca analisar as inferências existentes no texto/reportagem jornalístico que


tem como título “Dunga ironiza imprensa na entrevista coletiva” divulgado pelo jornalista
Tadeu Schmidt, no dia 20 de junho de 2010, no programa Fantástico, ao vivo da África do
Sul, local onde estava sendo realizada a Copa do Mundo. Para a análise, o texto foi transcrito
conforme o que foi divulgado no site do Globo Esporte, preservando assim a prosódia de cada
falante e a realização gramatical dos envolvidos no acontecimento, a fim de trazer mais
realismo ao episódio posto em avaliação. O quadro teórico da pesquisa baseia-se em
CHIERCHIA (2003), DUCROT (1987), FREGE (1978), GRICE (1978), ILARI & GERALDI
(1985), LEVINSON (1983) e MOURA (2000; 2007). O estudo em questão tem o objetivo de
demonstrar que todo sentido, até mesmo o literal, inclui informações implícitas de diferentes
graus. O ato de compreensão desses enunciados envolve vários processos inferenciais, o que
significa dizer que o leitor crítico deve estar atento não só às questões de ordem lógica, como
também às questões discursivas e/ou retórico-argumentativas, que ocorrem nos diferentes
tipos de textos e que são fundamentais para a construção do sentido.

Palavras-chave:
Inferência. Interpretação de texto. Discurso jornalístico.

ABSTRACT
This article explores the inferences that exist in a journalistic text/report which is entitled
“Dunga ironiza imprensa na entrevista coletiva” published by journalist Tadeu Schmidt, on
June 20, 2010 in Fantastic program, live from South Africa, where it was being held the
World Cup. For the analysis, the text was transcribed as it was released at the site of the
Globe Sports, thus preserving the prosody of each speaker and the grammar realization of the
involved in the event, in order to bring more realism to the episode put into evaluation. The
theoretical research is based on CHIERCHIA (2003), DUCROT (1987), FREGE (1978),
GRICE (1978), ILARI & GERALDI (1985), LEVINSON (1983) and MOURA (2000; 2007).
This study aims to demonstrate that every sense, even the literal, includes implicit information
of different degrees. The act of understanding of these statements involves several inferential
processes, which means to say that the critical reader should be attentive not only to questions
of logical order, as well as question discursive and/or argumentative-rhetorical, that occur in
the different types of texts and that are fundamental for the construction of the meaning.
Keywords:
Inferences. Text interpretation. Journalistic speech.

1
Mestranda em Linguística do Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de Santa
Catarina – UFSC; e-mail: alefof@yahoo.com.br.
2
Este artigo foi realizado como trabalho final para a disciplina de Semântica I, desenvolvida sob orientação do
Prof. Dr. Heronides Maurílio de Melo Moura – Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade
Federal de Santa Catarina – UFSC.
2

1 INTRODUÇÃO
Na construção de qualquer enunciado, estão presentes termos que orientam a
construção dos sentidos. Por isso, pretende-se, neste artigo, analisar como se dá o processo
inferencial do sentido de certos elementos discursivos presentes ou ausentes no texto,
enfocando para isso o desenvolvimento do raciocínio a partir de inferências3.
Sabe-se que a linguagem humana não admite apenas uma interpretação direta, pois é
preciso levar em consideração o meio de interação social e a negociação de sentidos do texto.
Segundo Moura (2007, p. 33) “saber ler um texto é saber fazer inferências corretas ou
plausíveis que cada trecho do texto propicia”. Desse modo, todo processo de leitura pressupõe
uma troca de informações, uma interação por intermédio de operações estratégicas usadas
para a decifração de conteúdos implícitos.
Conforme Moura (2007, p. 33), “[...] a partir da interpretação de uma proposição, os
falantes devem também delimitar as proposições inferidas a partir dessa interpretação. Ou
seja, os falantes interpretam não apenas o que foi dito, mas também o que se infere a partir do
que foi dito”. Assim, todo o trabalho de interpretação de um texto passa pela decodificação
desses implícitos textuais, que não podem passar despercebidos a um leitor competente.
O presente estudo vai abordar algumas noções, conceitos e exemplos de significado,
sentido, pressuposição, acarretamento e implicatura. O objetivo deste trabalho é identificar as
inferências presentes e/ou transmitidas pela mídia televisiva que exige, para compreensão das
informações, um contexto linguístico, informacional e social.
Para análise, foi selecionado um texto/reportagem do programa Fantástico, da Rede
Globo de Televisão. Deve-se salientar que a análise será feita levando em conta o discurso de
defesa da imprensa que relatou o fato ocorrido, ou seja, a análise mostra um só ponto de vista.
O corpus em questão foi divulgado e escrito pelo jornalista Tadeu Schmidt, onde o mesmo faz
críticas quanto ao comportamento do ex-técnico da seleção brasileira de futebol (Dunga) em
uma entrevista coletiva à imprensa. O noticiário televisivo em questão é um dos mais
assistidos, por apresentar um perfil de produção e pautas com temáticas voltadas ao cotidiano.
No texto em análise, a discussão está voltada para a presença de inferências
semânticas no discurso e a necessidade de contexto para a compreensão das informações
apresentadas pelo meio de comunicação de massa.

3
Inferências são proposições, conteúdos semânticos, que derivam por alguma regra de outra proposição (cf.
MOURA, 2000; CHIERCHIA, 2003).
3

2 SENTIDO E SIGNIFICADO
Na construção e análise de um dado discurso, as noções de sentido e significado, a
intencionalidade, a carga ideológica e o contexto em que se insere este discurso são
determinantes para a compreensão do texto.
Segundo Orlandi (2001, p. 19), “[...] a noção de interpretação passa por evidente
quando na realidade, cada teoria lhe dá um sentido diferente de acordo com os diversos
métodos praticados”. Daí a importância da interpretação na (re)construção do discurso
jornalístico, pois sem a interpretação não se cria e não se identifica sentido no discurso.
Para que se compreenda melhor o processo de criação de sentidos e estabelecimento
de significados, é importante saber que existem alguns conceitos que circundam a palavra
“significado”, tais são: a significação literal, morfológica e da palavra; significado como
compreensão social de um dado conceito; significado como compreensão pessoal de um
conceito, que varia de acordo com o interlocutor; entre outros.
Possenti (2002) aborda a enunciação a partir de um efeito de sentido e este sentido é
construído a partir de um discurso em que se insere. Assim, o sentido4 de uma palavra não é o
que lhe é atribuído morfologicamente, mas o que é construído através da memória discursiva
que se inscreve nele próprio e entre os interlocutores envolvidos no processo de construção e
transmissão da informação.
Conforme Moura (2000, p. 62) “[...] é preciso levar em conta não apenas o sentido
(meaning) de cada palavra, mas também o significado (sense), determinável a partir da
especificação de uma situação. Assim, a cada situação específica de produção de um
enunciado, teríamos um significado diferente para o enunciado” 5. O autor apresenta ainda,
um exemplo de Pinkal (1995, p. 11):

(1) Eu fui o primeiro europeu a pôr os pés na América.

Para este exemplo têm-se três situações: a primeira, na qual Cristóvão Colombo é o
falante e a enunciação ocorre em janeiro de 1493. Desse modo, o significado para o enunciado
exemplificado corresponderia a algo como „Cristóvão Colombo esteve na América antes de
janeiro de 1493‟; a segunda situação, na qual o viking Erikson pronuncia essa mesma
sentença em 972, o significado para o mesmo enunciado exemplificado seria algo como „O
viking Erikson esteve na América antes de 972 e nenhum europeu esteve antes dele‟; já a

4
Para Frege (1978), o sentido é a forma de apresentação do objeto.
5
Grifos do autor.
4

terceira situação, se especificar que foi Cabral quem produziu esse enunciado depois de
chegar ao Brasil, a sentença se torna falsa. De outro modo, o enunciado produzido pelo viking
Erikson é verdadeiro se considerarmos as pesquisas históricas sobre o assunto. Assim, a
sentença produzida por Colombo seria falsa. Então, se o segundo significado é verdadeiro, o
primeiro e o terceiro significados são falsos.

[...] temos um elemento fixo na interpretação das sentenças e um elemento variável.


O elemento variável é a situação de enunciação (envolvendo fatores dêiticos como
pessoa, tempo e lugar da enunciação). Assim, o sentido de uma sentença pode ser
descrito, tecnicamente, como uma função de situações a significados. Em outros
termos, calculamos o significado de uma sentença a partir do sentido dessa sentença
e da situação em que ela é produzida. (MOURA, 2000, p. 63).

Conforme o autor, a referência, aquilo de que se fala, não é obtida a partir do sentido,
mas por intermédio do significado, calculado a partir de certa situação de enunciação. Há,
com isso, o sentido propriamente dito, de um lado, e o significado, de outro.
Um fato muito comum na enunciação jornalística ocorre quando o contexto
considerado pelos interlocutores não é suficiente para a compreensão integral do enunciado
apresentado em um dado momento. Se isso acontecer, o receptor não terá a compreensão dos
dados prevista ou necessária, gerando alterações na captação e/ou construção do sentido do
discurso.
A polissemia é uma das formas mais evidentes e comuns desta distorção, embora ela
possa também se dar através de fragilidades na absorção e dedução de pressupostos. Segundo
Chierchia (2003, p. 62-3), “[...] algumas palavras têm mais de um significado e é isso que as
torna ambíguas. Este fenômeno também é conhecido como polissemia. Ora, as sentenças
podem revelar-se ambíguas mesmo que não haja nelas nenhuma palavra polissêmica” 6.
Através da polissemia, em muitos discursos é possível obter distintas interpretações das
informações. A presença da polissemia no discurso jornalístico pode vir a ser sanada pela
totalidade do discurso, mas este esclarecimento não acontece em todas as manifestações
discursivas.

3 PRESSUPOSIÇÃO
As informações pressupostas que se baseiam em informações recuperadas
linguisticamente não podem ser negadas pelo emissor e nem desconsideradas pelo leitor que
interpreta um texto, pois estão inseridas na própria língua. Desse modo, é fundamental que

6
Grifos do autor.
5

sejam verdadeiras, porque é a partir delas que se constroem as argumentações, pois caso
forem falsas, todo o raciocínio decorrente delas também será. Como afirma Ducrot (1987), os
pressupostos são o pano de fundo da conversação.
Moura (2000, p. 13), de acordo com Ducrot (1987), denomina de “[...] conteúdo
posto a informação contida no sentido literal das palavras de uma sentença e de conteúdo
pressuposto ou pressuposição7 às informações que podem ser inferidas da enunciação dessas
sentenças”. Então, com base nisso, pode-se afirmar que o conteúdo posto depende do
conteúdo pressuposto e aceitando a verdade do posto, deve-se aceitar também a verdade do
pressuposto8.
Segundo Ilari & Geraldi (1985), a pressuposição pode ser definida como um tipo
complexo de acarretamento, pois é uma relação mais forte já que resiste aos efeitos de
negação, assim, a negação do posto não altera o pressuposto.
Conforme Chierchia (2003, p. 186), “[...] as pressuposições de uma sentença são
condições que um contexto deve satisfazer para que essa sentença possa ser usada
apropriadamente (seja assertando-a, negando-a, criando por meio dela uma hipótese etc.)” 9.
De acordo com Moura (2000, p. 16), “a negação do posto não afeta a necessidade de
se aceitar como verdadeiro o pressuposto”. Vejamos isso através da negação do exemplo:

(2a) João deixou de fumar.


(2b) João não deixou de fumar.

Pode-se notar que mesmo negando a informação contida no posto, o pressuposto é


válido. Desse modo, continua-se, para o exemplo (2), com o pressuposto de que João fumava
antes. Assim, não importa se João ainda continua fumando ou não o faz mais, pois ainda é
verdade que João fumava antes. Desse modo, esta informação faz parte do conhecimento
compartilhado10 dos interlocutores.
Quando um pressuposto é definido no componente semântico, ele é inferido a partir
do sentido literal de certas palavras de uma sentença, que têm por função ativá-los. O papel
dessas palavras é recuperar certas pressuposições que se considera como fazendo parte do
conhecimento compartilhado dos interlocutores. As descrições definidas, por exemplo, são

7
Grifos do autor.
8
A abreviatura de pressuposto é pp.
9
Para Chierchia (2003, p. 186), uma definição informal seria: “A pressupõe B sse (= se e apenas se) B deve ser
dada como certa em todo o contexto no qual A é usada”.
10
“O conhecimento compartilhado é formado por um conjunto de proposições que são aceitas tanto pelo falante
quanto pelo ouvinte” (MOURA, 2000, p. 17).
6

expressões que fazem uma descrição de certo ser. Seu uso pressupõe a existência do ser a que
ela está se referindo. Este tipo de pressuposição também pode ser chamado de pressuposto de
existência. Os verbos factivos são verbos que introduzem fatos que são dados como certos.
Alguns exemplos deste tipo de verbo são: lamentar, sentir, compreender e saber. Existem dois
subtipos de verbos factivos: os epistêmicos e aqueles que indicam sensações ou emoções. Os
verbos implicativos são os verbos como: conseguir e esquecer.
Os verbos de mudança de estado são os verbos que, como o nome já diz, alteram de
estado. Exemplos deste tipo de verbo: deixar e começar. As expressões e/ou verbos iterativos
pressupõem que a ação indicada pelo verbo já tinha acontecido em algum outro momento. As
expressões temporais como não poderia ser de forma contrária, denotam tempo. Alguns
exemplos destas expressões são: depois de e antes de. E, por fim, as sentenças clivadas, onde
uma sentença é dividida em duas orações com o propósito de destacar certo constituinte da
sentença, enfatizando-se esta informação. “Elas têm a forma: (não) foi o (x) que (oração)” (cf.
Moura, 2000, p. 21).
A noção de pressuposição, como se pode observar, vai além do conteúdo
informacional da sentença, pois envolve as suas condições de uso na relação com o discurso.
A informação pressuposta é condição de emprego da oração que a pressupõe. A
pressuposição, então, é também um mecanismo de atuação no discurso. Assim, através do que
escolhe apresentar como pressuposto, o falante direciona a conversa. Para negar uma
pressuposição, o falante tem que mudar significativamente de direção a conversa.

4 ACARRETAMENTO
A hiponímia é uma relação de sentido entre palavras tal que o significado de uma
está incluído no significado da outra. A noção de hiponímia pode ser estendida para
sentenças. Assim, chega-se à noção de acarretamento. Veja os exemplos em (3):

(3a) Rose possui um liquidificador.


(3b) Rose possui um eletrodoméstico.
A situação descrita em (3a) inclui a situação descrita em (3b), porque, (3a) é
hipônima de (3b) ou (3a) acarreta (3b). Segundo Moura (2007, p. 34), “[...] se a proposição p
é verdadeira, então a proposição q é necessariamente verdadeira. Ou seja, aceitar a verdade de
p leva o falante a aceitar também a verdade de q”. Portanto, uma sentença acarreta outra
sentença se a verdade da primeira garante a verdade da segunda, mas a falsidade da primeira
não garante a falsidade da segunda, pois esta pode ser verdadeira ou falsa.
7

Chierchia (2003, p. 191) compara a noção de pressuposição com a de consequência,


ou seja, acarretamento. Para esse fim, apresenta a seguinte definição para a ideia de
acarretamento: “Para todo instante t, em que as sentenças A e B forem consideradas – B é uma
consequência de A sse A for verdadeira em t, B também o será”.
Define-se, assim, a noção de acarretamento fazendo-se uso do conceito de verdade,
visto que se trata de uma relação de consequência entre sentidos. Em outras palavras,
sempre que as sentenças (4a) e (4b) forem verdadeiras, (4c) também será verdadeira.

(4a) Dunga é brasileiro.


(4b) Dunga é técnico de futebol.
(4c) Dunga é um técnico de futebol brasileiro.

O acarretamento é um tipo de implicação, mas mais significante, pois dizer, por


exemplo, que (4c) implica (4b) é apenas sugerir que (4a) é verdadeira. No entanto, há uma
diferença básica entre a inferência por acarretamento e a inferência por pressuposição. Veja o
que acontece quando se nega a sentença (5a), como em (5c), abaixo:

(5a) Verônica tem um poodle em casa.


(5b) Verônica tem um bicho de estimação em casa.
(5c) Verônica não tem um poodle em casa.

A inferência contida em (5b) não é necessariamente verdadeira, pois a relação de


acarretamento entre duas proposições a e b só pode ser definida a partir da verdade de a, mas
não a partir da falsidade de a. Assim, se a é falsa, b pode ser tanto verdadeira, quanto falsa.
Moura (2000, p. 16) afirma que o acarretamento

[...] estabelece uma relação de condição entre duas proposições a e b. A proposição


a é uma condição (suficiente, mas não necessária) para a verdade de b. Por outro
lado, dadas duas proposições a e b, onde a pressupõe b, a não é uma condição para
b. A proposição b já deveria ser aceita como verdadeira pelos interlocutores
independentemente de a ser verdadeira ou não. (MOURA, 2000, p. 16).

Para facilitar o raciocínio, volta-se ao exemplo (5), pois se Verônica tem um poodle,
ela tem um bicho de estimação. Mas, se Verônica não tem um poodle, ela poderia ter um gato
siamês como bicho de estimação.
8

5 IMPLICATURA
Conforme Moura (2007, p. 35), “uma implicatura é uma inferência de natureza
puramente pragmática, ou seja, depende do conhecimento do mundo e pode ser anulada. O
acarretamento e a pressuposição não podem ser anulados, mas uma implicatura pode”.
De acordo com Chierchia (2003, p. 193-4) as implicaturas

[...] nascem da interação de fatores propriamente gramaticais (como o significado


literal de uma expressão) e fatores extragramaticais (como os princípios que regem a
conversação, o uso razoável de conhecimentos factuais específicos etc.). Nas trocas
conversacionais, as implicaturas desempenham um papel importante. Elas estão na
base de fenômenos como a ironia e a metáfora. (CHIERCHIA, 2003, p. 193-4).

Para Ilari & Geraldi (1985, p. 76), “o uso do termo implicatura se deve ao desejo de
distinguir dois fenômenos linguísticos: o fenômeno do acarretamento (ou implicação), em que
se infere uma expressão com base apenas no sentido literal de outra; e (a implicatura), em que
a derivação de um sentido passa obrigatoriamente pelo contexto conversacional”.
Entre os implícitos que não podem ser previstos apenas com base no sentido literal
estão as implicaturas conversacionais de Grice (1978). Os implícitos só podem ser detectados
por uma avaliação global da situação em que o ouvinte tenta recuperar as várias intenções do
falante.
Segundo Grice (1978), aquilo que dizemos deve não apenas possuir um sentido, em
conformidade com a nossa competência semântica11, mas deve também ser relevante, assim,
uma sentença deve ser pragmaticamente adequada ao contexto, de acordo com as máximas
conversacionais.
Grice (1978) admite que, numa interação, os interlocutores estão envolvidos em um
processo de (co)construção do sentido de uma mensagem. Assim, todo sentido é fruto de uma
interação e construir juntos a comunicação depende da aplicação e obediência a algumas
máximas conversacionais, que são quatro, a saber: as máximas da relevância, da qualidade,
da quantidade e do modo.
Essas máximas estipulam que o que é dito deve ser relevante para a situação –
máxima da relevância; deve ser verdadeiro – máxima da qualidade; o que é dito deve ser da
melhor forma a ser bem entendido, isto é, evite ser prolixo, confuso, rebuscado – máxima da
quantidade; e só diga coisas que tenham relação com a situação, assim, seja claro e ordenado
– máxima do modo.

11
“Existe uma competência semântica que nos leva a perceber os nexos de significado entre duas ou mais
sentenças, e como o sentido de uma deriva do sentido da outra” (cf. CHIERCHIA, 2003, p. 172).
9

Conforme Moura (2007, p. 35), “se alguma dessas máximas é desrespeitada por um
falante ao enunciar uma proposição p, então os interlocutores são levados a buscar outra
proposição q, que justifica o uso de p. A proposição q, inferida a partir das máximas
conversacionais, seria a implicatura de p, enunciada pelo falante”.
Tem-se um exemplo como em (6), para ilustrar tal situação:

(6) Como ela é modesta!

Se uma sentença como (6) é dita para alguém que acaba de contar vantagem sobre si
mesma, trata-se de uma ironia. Portanto, pode-se inferir por implicatura que a pessoa sobre
quem se proferiu tal frase não é modesta, desobedecendo, assim, a máxima da qualidade, pois
no posto (o que é dito) desta sentença a verdade não está contida.
Tal análise nos leva a concluir que, para se ter o quadro interpretativo do sentido, os
termos apenas apontam para uma determinada direção e o quadro situacional confirma ou não
o raciocínio.
Moura (2007, p. 36) afirma que “as implicaturas são muito importantes na leitura de
um texto, pois num texto nem tudo é dito explicitamente pelo autor. Além disso, implicaturas
exploram conhecimento do mundo, que também é essencial na interpretação”.
Como se observa, existem implícitos cujos sentidos dependem de interpretação das
circunstâncias contextuais, feita pelos interlocutores. Esses implícitos subentendidos são de
ordem pragmática e demandam raciocínios inferenciais a partir da situação do discurso.

6 ANÁLISE DO TEXTO
Muitas vezes a informação repleta de inferências pragmáticas faz com que a
transmissão de um fato jornalístico acabe transmutando-se em informação
predominantemente superficial e de compreensão falha. É possível visualizar este fato no
texto analisado, que tem como título “Dunga ironiza imprensa na entrevista coletiva” e foi
divulgado pelo jornalista Tadeu Schmidt, no dia 20 de junho de 2010, através do telejornal
Fantástico, ao vivo da África do Sul, local onde estava sendo realizada a Copa do Mundo. O
texto também se encontra disponível, em forma de vídeo, no site do Globo Esporte12.

12
Ver http://globoesporte.globo.com/futebol/copa-do-mundo/noticia/2010/06/dunga-xinga-drogba-e-depois-
ironiza-imprensa-na-entrevista-coletiva.html
10

Cabe salientar, antes mesmo da leitura do texto selecionado para a pesquisa, que este
foi transcrito conforme o que foi divulgado no site do Globo Esporte, preservando assim a
prosódia de cada falante e a realização gramatical dos envolvidos no acontecimento, a fim de
trazer mais realismo ao episódio posto em avaliação.
O texto é o seguinte:

Dunga ironiza imprensa na entrevista coletiva


Com 'sangue quente', treinador sussurra ofensas ao jornalista após a partida.

Por Tadeu Schmidt

O técnico Dunga no comando da seleção há quase quatro anos, não apresenta nas
entrevistas, um comportamento compatível com a imagem de alguém tão vitorioso no esporte.
Com frequência usa frases grosseiras e irônicas. Hoje, depois de uma vitória incontestável,
mais uma vez foi assim.
O episódio aconteceu quando o jornalista da TV Globo Alex Escobar, que
conversava comigo no telefone, balançou a cabeça por discordar da frase em que Dunga
acusava os jornalistas de terem pedido que Luís Fabiano fosse tirado do time titular, depois
do primeiro jogo da Copa contra a Coréia do Norte. Era a segunda resposta de Dunga na
entrevista oficial da FIFA com os técnicos. Quando falava sobre o caso de Luís Fabiano, o
treinador interrompeu a resposta para interpelar o jornalista.

Dunga: Algum problema?


Alex Escobar: Eu?
Dunga: É.
Alex Escobar: Não estou nem olhando para você, Dunga. Estou olhando para cá.
Dunga: Pensei que tinha...
Alex Escobar: Não, não...
Dunga: Então tá.

Em seguida, ficou balbuciando palavrões que vazaram no sistema de som da sala de


entrevistas. Xingamentos gratuitos. No intervalo de 30 minutos entre o início e o fim da
coletiva o técnico foi irônico outras vezes. Sempre tendo a imprensa como alvo.
11

Dunga: Não adianta a gente dar muito tempo livre, porque se tá livre pra sair vocês vão
atrás deles, então quer dizer que não é folga, é trabalho. Então é melhor eles ficar lá,
relaxar, tranquilo, esperando o próximo jogo. Quem tem contusão a gente tentar recuperar o
mais rápido possível né, e tentando lapidar cada jogador que cada um precisa.

No fim, ainda irritado, Dunga se levantou e continuou pronunciando outros


xingamentos e palavras impublicáveis. Um comportamento incompatível com a posição que
ocupa no comando da seleção.
O que precisa ficar claro, em mais este episódio, é que torcemos muito para que a
seleção chegue à conquista de mais um título mundial. E que a preocupação do jornalismo da
Rede Globo, sempre foi a de levar a melhor informação a você telespectador.
Independentemente de quem esteja no comando.

Proceder-se-á à análise do texto frase por frase, no entanto, as sentenças não serão
avaliadas quanto às descrições definidas, os pressupostos de existência e às máximas de
relevância, pois estas últimas fazem-se onipresentes, visto que, sempre que se fala algo já
existe certo consenso de que o que está sendo dito seja relevante. Desse modo, nem todas as
sentenças do texto serão analisadas com todas as inferências existentes, assim, serão
analisadas somente as inferências que estão mais evidentes em cada sentença.
Deve-se salientar, também, que os jogadores e o técnico presentes no texto, fazem
parte do conhecimento compartilhado das pessoas que estavam acompanhando a Copa do
Mundo de 2010. Inicia-se então a análise:

1º Parágrafo

Primeiro período: “O técnico Dunga no comando da seleção há quase quatro anos, não
apresenta nas entrevistas, um comportamento compatível com a imagem de alguém tão
vitorioso no esporte”.
Neste período há um pressuposto, um posto e uma implicatura. O pressuposto é o de
que existe um comportamento compatível que é esperado de alguém que tem uma carreira de
vitórias no esporte. O posto é que o técnico Dunga não apresenta este comportamento. A
implicatura é a de que os telespectadores sabem do relacionamento conturbado de Dunga com
a Rede Globo. A máxima conversacional usada é a máxima da quantidade, pois com um
12

número reduzido de palavras o autor do texto disse todas as informações necessárias para o
entendimento do mesmo.

Segundo período: “Com frequência usa frases grosseiras e irônicas”.


Encontra-se nesta sentença um acarretamento desencadeado pelo verbo “usa” no
presente do indicativo que expressa uma ideia de hábito. A máxima utilizada é a da
quantidade.

Terceiro período: “Hoje, depois de uma vitória incontestável, mais uma vez foi assim”.
Depara-se, nesta frase, com um posto, um pressuposto e uma implicatura. O posto é
o de que nem mesmo com uma vitória incontestável, Dunga é menos grosseiro e irônico. O
pressuposto é o de que houve uma vitória para a qual não caberiam críticas. No entanto,
podemos inferir, por implicatura, que, pelo tom do jornalista13 e pela forma com que as coisas
estavam acontecendo na Copa do Mundo, a expressão “vitória incontestável” seria uma
ironia, pois, além disso, sabe-se que um dos gols marcados foi feito com a ajuda de uma das
mãos de um jogador, então, a vitória seria passível de críticas. A máxima usada nesta frase é a
da quantidade.

2º Parágrafo

Primeiro período: “O episódio aconteceu quando o jornalista da TV Globo Alex Escobar, que
conversava comigo no telefone, balançou a cabeça por discordar da frase em que Dunga
acusava os jornalistas de terem pedido que Luís Fabiano fosse tirado do time titular, depois do
primeiro jogo da Copa contra a Coréia do Norte”.
Nesta sentença têm-se um posto, um pressuposto e uma implicatura. O posto é o de
que Dunga atribuiu a culpa aos jornalistas pelo pedido de retirada de Luís Fabiano, depois do
primeiro jogo da Copa do Mundo contra a Coréia do Norte. O pressuposto é o de que alguém
solicitou a retirada de Luís Fabiano do time titular. A implicatura é a de que a mídia
influenciaria nas decisões do técnico. A máxima utilizada nesta sentença é a máxima do
modo, pois as informações postas no texto estão claras e seguem uma ordem.

13
Conhece-se o tom com que o jornalista proferiu o texto, porque este foi transcrito do vídeo postado no site da
Rede Globo, que foi o local de onde o texto em análise foi retirado.
13

Segundo período: “Era a segunda resposta de Dunga na entrevista oficial da FIFA com os
técnicos”.
Neste período há um pressuposto e uma implicatura. O pressuposto é o de que existe
uma entrevista oficial da FIFA (Fédération Internationale de Football Association). A
implicatura é a de que no início da coletiva, o técnico já demonstrava seu comportamento
agressivo. A máxima usada é a da quantidade.

Terceiro período: “Quando falava sobre o caso de Luís Fabiano, o treinador interrompeu a
resposta para interpelar o jornalista”.
Existe nesta frase um pressuposto e uma implicatura. O pressuposto é o de que houve
uma interpelação do técnico para o jornalista. A implicatura é a de que o treinador da seleção
brasileira de futebol nem finalizou a sua resposta, quando se sentiu intimidado pelo gesto de
Alex Escobar e, então, começou a questionar este jornalista. A máxima presente é a da
qualidade, pois está dito nesta frase a verdade, como podemos verificar ao assistir o vídeo.

Propaga-se o diálogo do técnico de futebol (Dunga) e do jornalista da TV Globo


(Alex Escobar) não para análise, mas para conhecimento e/ou contextualização.

Dunga: “Algum problema?”


Alex Escobar: “Eu?”
Dunga: “É”.
Alex Escobar: “Não estou nem olhando para você, Dunga. Estou olhando para cá”.
Dunga: “Pensei que tinha...”
Alex Escobar: “Não, não...”
Dunga: “Então tá”.

3º Parágrafo

Primeiro período: “Em seguida, ficou balbuciando palavrões que vazaram no sistema de som
da sala de entrevistas”.
Encontram-se nesta frase um pressuposto e um acarretamento. Há um pressuposto de
que o que Dunga falava eram palavrões, o que se pode questionar, pois quando algo é
balbuciado e/ou sussurrado nem sempre é audível, como é o caso neste vídeo que esta sendo
14

analisado. O acarretamento é o de que Dunga continuou agredindo a imprensa com palavrões.


Nesta frase, têm-se a máxima da qualidade e a da quantidade, sendo que, há uma
desobediência em relação a esta última, pois há mais informações do que somente as
necessárias.

Segundo período: “Xingamentos gratuitos”.


Existem neste período dois pressupostos. O primeiro é o de que Dunga estava
xingando os jornalistas; e o segundo é o de que Dunga estava xingando sem motivo algum. A
máxima presente neste período é a da qualidade, pois corrobora com o dito.

Terceiro período: “No intervalo de 30 minutos entre o início e o fim da coletiva o técnico foi
irônico outras vezes”.
Há nesta sentença um pressuposto e uma implicatura. O pressuposto é o de que o
técnico já tinha sido irônico antes e a implicatura é a de que, mesmo sendo um intervalo curto
de tempo, o técnico ainda teria sido agressivo várias vezes. Têm-se, nesta sentença, as
máximas da quantidade e da qualidade, sendo que nesta última, a verdade é preservada.

Quarto período: “Sempre tendo a imprensa como alvo”.


Este período contém um pressuposto, que é o de que Dunga está sempre atingindo a
imprensa. A máxima da qualidade é desrespeitada, pois talvez o treinador de futebol não
tenha o propósito de atingir a imprensa todas as vezes que é entrevistado pela mesma.

Divulga-se outro trecho em que Dunga ironiza e/ou critica a imprensa, quanto ao
comportamento desta perante os jogadores. Este fragmento de texto foi transcrito tal qual sua
realização e não será colocado em análise. Serve, portanto, para situar o leitor quanto ao
episódio em questão.

Dunga: “Não adianta a gente dar muito tempo livre, porque se tá livre pra sair vocês vão atrás
deles, então quer dizer que não é folga, é trabalho. Então é melhor eles ficar lá, relaxar,
tranquilo, esperando o próximo jogo. Quem tem contusão a gente tentar recuperar o mais
rápido possível né, e tentando lapidar cada jogador que cada um precisa”.
15

4º Parágrafo

Primeiro período: “No fim, ainda irritado, Dunga se levantou e continuou pronunciando
outros xingamentos e palavras impublicáveis”.
Nesta frase há um pressuposto de que o conteúdo da fala de Dunga era xingamentos
e palavras impublicáveis. Têm-se a máxima da quantidade e da qualidade, sendo que esta
última é desrespeitada, pois não se sabe realmente se o treinador de futebol pronunciava
xingamentos e/ou palavras impublicáveis, pois estas estão inaudíveis no vídeo.

Segundo período: “Um comportamento incompatível com a posição que ocupa no comando
da seleção”.
Neste período há um pressuposto e uma implicatura. O pressuposto é o de que uma
pessoa que está no comando da seleção deve ter um comportamento que é esperado pelo
cargo. A implicatura é a de que Dunga deveria comportar-se de uma forma amigável e solícita
com a imprensa, já que ele está ocupando um cargo de muita importância e responsabilidade,
o de treinador da seleção brasileira de futebol. A máxima conversacional usada é a da
qualidade.

5º Parágrafo

Primeiro período: “O que precisa ficar claro, em mais este episódio, é que torcemos muito
para que a seleção chegue à conquista de mais um título mundial”.
Nesta sentença há um posto e uma implicatura. O posto é o de que a imprensa deseja
que a seleção brasileira de futebol conquiste mais um título mundial. A implicatura é a de que
se pode pensar que a TV Globo torce contra a seleção, para que a derrota evidencie a
incapacidade de Dunga. A máxima utilizada é a da quantidade.
A TV Globo, muito perspicaz, percebe que existe o pressuposto de que ela poderia
torcer contra a seleção, por esta ser comandada por Dunga. A imprensa14, então, procura
desconstruir este pressuposto, descolando a seleção de seu técnico.

Segundo período: “E que a preocupação do jornalismo da Rede Globo, sempre foi a de levar a
melhor informação a você telespectador”.

14
Usa-se o termo imprensa, não com o objetivo de abarcar toda a imprensa atual, mas somente a que proferiu o
texto que está sendo analisado.
16

Têm-se nesta frase um pressuposto, um posto e uma implicatura. O pressuposto é o


de que a Rede Globo sempre teve a preocupação com a qualidade da informação que leva ao
telespectador. O posto é o de que a Rede Globo vai continuar dessa forma. A implicatura é a
de que a Rede Globo quer passar uma imagem de confiabilidade e isenção jornalística. A
máxima usada é a da quantidade.

Terceiro período: “Independentemente de quem esteja no comando”.


Há neste período uma implicatura, que é a de que a imprensa se preocupa em
corroborar a sua imagem de ética profissional, de neutralidade jornalística, afirmando que a
Rede Globo não se envolve em desavenças pessoais. A máxima utilizada é a da quantidade.

7 CONCLUSÃO
Percebe-se que a compreensão dos textos/reportagens, muitas vezes, vai além do
significado daquilo que é pressuposto, momento em que se realizam as implicaturas.
Todo sentido, mesmo o literal, inclui informações implícitas em diferentes graus.
Podem ser consideradas implícitas todas as informações veiculadas de forma que o falante
não se comprometa diretamente com sua verdade. Essas conclusões são “inferidas” a partir
dos enunciados ou da situação. Há os casos que incluem pressuposição e acarretamento e
outras inferências a partir de operações discursivas que dependem do contexto para se orientar
o sentido.
O ato de compreensão desses enunciados envolve, portanto, diferentes processos, o
que significa dizer que o leitor crítico deve estar atento não só às questões consideradas de
ordem lógico-demonstrativa, como também às de ordem valorativas, que podem ocorrer em
diversos gêneros e tipos de discursos.
Com a análise e exemplificação que se fez no texto analisado, pode-se concluir que
as inferências são construídas em dois níveis (semântico e pragmático) e exercem diversas
funções no discurso jornalístico.

8 REFERÊNCIAS

CHIERCHIA, Genaro. Semântica. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003.

DUCROT, Oswald. O dizer e o dito. Campinas, SP: Pontos, 1987.

FREGE, G. Lógica e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Cultrix/EDUSP, 1978.


17

GRICE, P. Lógica e argumentação. In: DASCAl., M. Pragmática, v. IV. Campinas:


Unicamp, 1978.

ILARI, R. & GERALDI, J. W. Semântica. São Paulo, SP: Editora Ática, 1985.

LEVINSON, S. Pragmatics. Cambridge: Cambridge Press, 1983.

MOURA, H. M. de M. Significação e Contexto. Florianópolis: Insular, 2000.

_____. Leitura de textos e inferências. In. UFPB, João Pessoa, PB: Editora Universitária,
2007. ESPÍNDOLA, Lucilene . SOUZA, M. E. V. de S. (Orgs.)

ORLANDI, Eni. Discurso e Texto: formulação e circulação dos sentidos. São Paulo: Pontes,
2001.

PINKAL, M. Logic and Lexicon. Dordrecht: Kruwer, 1995.

POSSENTI, Sírio. Ainda sobre a Noção de Efeito de Sentido. In: GREGOLIN, Maria do
Rosário; BARONAS, Roberto (Orgs). Análise do Discurso: as materialidades do sentido. São
Carlos, SP: Claraluz, 2002.

SCHMIDT, Tadeu. Dunga ironiza imprensa na entrevista coletiva. Disponível em:


http://globoesporte.globo.com/futebol/copa-do-mundo/noticia/2010/06/dunga-xinga-drogba-
e-depois-ironiza-imprensa-na-entrevista-coletiva.html. Acesso em: 20 de junho de 2010 –
21h, 32min e 3seg.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

OS TIPOS ORACIONAIS E OS ATOS DE FALA:


UMA ABORDAGEM INTERLOCUTIVA

Hilma Ribeiro de Mendonça Ferreira (UERJ)1


Maria Teresa Tedesco Vilardo Abreu (UERJ/CapUERJ)2

RESUMO

O presente trabalho se propõe a demonstrar como são definidos os tipos de orações nas
gramáticas de Língua Portuguesa, ressaltando a importância dos propósitos enunciativos
desencadeados a partir da abordagem gramatical. Tal estudo se dá pela identificação do tema
referente às orações declarativa, interrogativa, imperativa e exclamativa e o esquema
categórico desenvolvido a partir de SEARLE (2002). O esquema de análise desenvolvido pelo
autor pode desenvolver novas perspectivas acerca do estudo das orações, de modo a salientar
a questão dos propósitos enunciativos dos falantes. Para tanto, o presente estudo utiliza os
subsídios teóricos desenvolvidos a partir da Pragmática Interlocutiva, ressaltando as
contribuições de ASTIN (1962) e SEARLE (1969) que, quando incorporadas à analise do
estudo das orações nas principais gramáticas de Língua Portuguesa, ampliam e aprofundam a
visão acerca do tema. Fazemos, para tanto, uma incorporação dos tipos oracionais ao esquema
categórico desenvolvido na Pragmática, a fim de aprofundar tal componente sintático. As
perspectivas desenvolvidas no trabalho podem oferecer mais abrangência, com respeito à
descrição de itens gramaticais, cuja caracterização seria mais interessante mediante um estudo
de cunho interlocutivo.

Palavras-chaves:
Orações. Gramáticas. Autores. Atos de fala.

ABSTRACT

This study aims to demonstrate how are defined the types of prayers in Portuguese grammars
highlighting the importance of the enunciative objectives triggered from the grammatical
approach. This study is opportune because of the identification of the theme related to
declarative, interrogative, exclamatory and imperative prayers and the categorical scheme
developed from SEARLE (2002). The analytical framework developed by the author can
develop news perspectives on the study of prayers in order to highlight the issue of the
purpose statement of the speakers. To this end, this study uses the theoretical support from
developed by Interlocutive Pragmatics, highlighting the contributions of AUSTIN (1962) and
SEARLE (1969) that, when incorporated into the analysis of the study of prayers in the
Portuguese grammars, expand and deep the vision about the subject. We, to this end do an
embodiment of the types of the enunciates scheme developed in Pragmatics, in order to
develop such a syntactic component. The perspectives we talk at this work can offer more
coverage, with respect to the description of this grammatical item, whose characterization
would be more interesting through a study of stamp interlocutive.

Keywords:
Prayers. Grammars. Authors. Speech acts.
1
Doutoranda em Língua Portuguesa (UERJ) e professora de Ensino Fundamental do Município de Angra dos
Reis; e-mail: hilmaribeirorj@yahoo.com.br.
2
Professora dos programas de graduação e pós-graduação (UERJ) e do CAp-UERJ; e-mail:
teresatedesco2011@hotmail.com.
2

1 INTRODUÇÃO
Embora os estudos referentes às ações interlocutivas tenham se firmado,
propriamente, apenas após a emergência da “Teoria dos atos de fala” de AUSTIN (1962),
podemos identificar a preocupação dos autores acerca das formas enunciativas nas gramáticas
de Língua Portuguesa antes da propagação desse enfoque teórico.
Iniciamos o estudo abordando as definições do conceito de oração presentes em ALI
(1964), por considerarmos tal autor como sendo uma referência do pensamento linguístico no
país. Nesse caso, também mencionamos, de forma introdutória, a questão acerca da
importância da interlocução na abordagem de temas referentes à estrutura oracional, tais
como: interjeição, vocativo e imperativo, que foram aprofundados mais adiante, na seção de
análise dos tipos de oração, do presente trabalho.
Em seguida, tais colocações ALI (1964) foram cotejadas com outros conceitos,
encontrados nas gramáticas pesquisadas. Após essa primeira análise dos esquemas conceituais
das orações, fazemos uma explanação acerca dos tipos oracionais elencados por RIBEIRO
(1919), ALI (1964) ROCHA LIMA (1976), BECHARA (1977) e CUNHA (1978).
A partir dessas colocações dos tipos oracionais, fazemos um cotejo com as categorias
dos atos de fala propostas por SEARLE (2002), que considera algumas formas gerais da
enunciação, segundo as quais os falantes conseguem interagir, tais ações interlocutivas estão
concentradas nos atos: assertivo, diretivo, compromissivo, expressivo e declarativo.

2 O CONCEITO DE ORAÇÃO SEGUNDO AS GRAMÁTICAS


Ao iniciar o capítulo de Sintaxe de sua “Gramática Histórica da Língua Portuguesa”,
ALI (1964, p. 265) procura refletir sobre o conceito do que vem a ser “Proposição em geral”.
Para tanto, começa esse capítulo com a seguinte frase do glotólogo Brugmann (apud ALI,
1964, p. 265) “definição do conceito da proposição que seja realmente aceita, não existe”. Tal
citação nos levou a pensar acerca da dificuldade de definição do que vem a ser “oração” 3 ,e,
consequentemente, nos demonstrou algumas peculiaridades em torno do conceito não
pensadas, anteriormente. Nesse caso, ALI (1964) refere-se às dificuldades, a partir da
natureza linguística do que vem a ser “oração”, mencionando as visões discrepantes dos
estudiosos ao tratarem das “interjeições”,” vocativos”, “verbos impessoais” e” imperativos”.
Ainda citando Brugmann, observa que sua obra procurou analisar “as relações entre as

3
Quando utilizamos o termo “oração” nos referimos também à “proposição”, “frase” ou “sentença”, uma vez
que as gramáticas pesquisadas apresentam esses quatro termos para tratar do mesmo tema.
3

condições psíquicas e as formas oracionais que as exprimem”, ressaltando que não existia,
ainda, gramáticas que incluíssem tais relações no capítulo referente à oração.
Essa dificuldade, a nosso ver, apenas reflete a ineficácia na abordagem de certos
itens, vistos, apenas, por sua constituição linguística e estrutural, sem que tais componentes
sejam pensados de acordo com sua natureza interlocutiva. Isso se dá porque, nesse caso, os
fenômenos mencionados são reflexos do direcionamento interlocutivo dos falantes, em certas
situações comunicativas muito particulares. A emotividade, os papéis sociais, as condições de
produção e os interesses discursivos envolvidos na utilização desses recursos podem, nesse
caso, auxiliar na abordagem de tais fenômenos, cujas peculiaridades são aprofundadas,
sobretudo no estudo da “categoria diretiva” e dos atos indiretos, que serão objeto de análise
desse ensaio, mais adiante.
Voltando a ALI (1964), após mencionar essa dificuldade na descrição gramatical, em
seguida, o autor se debruça no que vem a constituir as duas grandes abordagens acerca do
conceito de oração, que diz respeito à dos “gramáticos” e à dos “psicólogos”.
Segundo ele, os autores divergiram em muitos aspectos, ressaltando essas duas visões
principais sobre as orações, que são: a visão gramatical – com respeito à lógica na utilização
dos recursos lingüísticos – e a visão psicológica – que vê na oração o processo mental de
juntar conceitos a objetos do mundo exterior –.
Sendo assim, ALI (1964) procura orientar sua visão do conceito, a partir dessas duas
vertentes teóricas, assumindo um posicionamento particular acerca do que vem a ser oração.
Tais abordagens mostram, para o autor que,

Estas considerações permitem concluir que para o gramático, para o lingüista, é de


pouca monta acrescentar à definição da oração cousas próprias do domínio da lógica
e da psicologia e que levam os pensadores a enredar-se nos meandros da metafísica.
Não é essencial averiguar rigorosamente o que se passa no intelecto dos indivíduos
falante e ouvinte como pontos de partida e chegada do pensamento; o que importa é
assinalar que um indivíduo transmite a outro o conhecimento de um fato por meio de
certa combinação de palavras, ou, ainda, por uma só palavra. (1964, p. 266)

A partir dessas considerações iniciais de ALI (1964), podemos considerar que, um


conceito condizente, do que venha a ser “oração” perpassa por diferentes aspectos lógicos e
psíquicos. Contudo, podemos concluir que a transmissão de determinado conteúdo
comunicativo por meio de estruturas gramaticais oracionais, que podem ser conhecidas pelos
interlocutores por meio de palavras ou, até mesmo, por uma única palavra ou expressão é o
que vem a distinguir a “oração”. A intenção do falante, nesse caso, recebendo o arcabouço
estrutural próprio da gramática de determinada língua, é o que constitui, a nosso ver, a oração.
4

Encontramos em RIBEIRO (1919, p. 206) a seguinte definição para “sentença”:


“sentença é uma coordenação de palavras ou mesmo uma só palavra formando sentido
perfeito, ex.: “As abelhas fazem mel – cães ladram – morro”. Nesse caso, o autor está
alinhado ao pensamento de ALI (1964), quando não especifica um quantitativo para definir
oração, que pode ser uma palavra ou mais.
Outro autor que esboça uma reciprocidade com o conceito de ALI (1964) é ROCHA
LIMA (1976). No capítulo referente à “Teoria geral da frase e sua análise”, esse autor inicia a
abordagem dos aspectos referentes à frase conceituando-a da seguinte forma: “Frase é a
expressão verbal de um pensamento. Pode ser brevíssima, constituída às vezes por uma só
palavra, ou longa e acidentada, englobando vários e complexos elementos.” (ROCHA LIMA,
1976, p. 203). Nesse caso, o autor estipula que a frase possui um aspecto psicológico,
afirmando-a como “a expressão verbal de um pensamento” e também que sua estrutura
sintagmática poderá ser grande, constituída de vários elementos, ou pequena, possuindo
apenas uma única expressão.
No capítulo de sintaxe da “Moderna Gramática Portuguesa”, BECHARA (1977)
insere uma nova noção no estudo das orações, quando a define como sendo uma “unidade do
discurso”, fazendo uma alusão à visão discursiva na definição do conceito de oração, com
isso, estabelece elementos diferenciados no estudo oracional. Observe: “A oração encerra a
menor unidade de sentido do discurso com propósitos definidos, utilizando elementos de que
a língua dispõe de acordo com determinados modelos de estruturação oracional”.
(BECHARA, 1977, p. 194)
Ao fazer tal colocação, a abordagem sintática ganha elementos discursivos, uma vez
que para o autor, a oração constitui-se de elementos menores do discurso dos indivíduos, que
será definido por meio de estruturas lingüísticas próprias do idioma, e que completariam, o
“todo” de sentido, de determinado discurso, ao ser enunciado em certa situação interlocutiva.
Em seguida, o autor também aborda o conceito de “cadência melódica” o que irá
constituir uma importante característica para distinguir os diferentes tipos de oração. De
acordo com o autor, para que determinada estrutura lingüística possa ser caracterizada como
oração, existirá a delimitação da “pausa” e da “unidade de sentido”. Nesse caso, o autor
também se alinha a ALI (1964), com respeito à extensão e ao propósito comunicativo como
sendo definidores da oração.
Por outro lado, seu ponto de vista acerca da constituição lingüística do que vem a ser
oração é enriquecido pelo aspecto da “entoação”. Segundo o autor, “simples vocábulos como
João, absurdo!, Vá!, Sim!, constituem orações completas desde que ocorram entre duas
5

pausas, e formam unidades de sentido se ocorrerem entre dois silêncios.” (BECHARA, 1977,
p. 194)
Ainda com respeito à melodia, outro autor que insere o ponto de vista fonêmico é
CUNHA (1978). De acordo com ele, as frases seriam as “verdadeiras unidades da fala”
(CUNHA, 1978, p. 85), e, é dessa forma que esse autor inicia o capítulo referente aos termos
da oração em sua “Gramática do português contemporâneo”. Nesse caso, CUNHA (1978)
coaduna-se ao pensamento de BECHARA (1977) ao estipular a noção de “entoação” ao
estudo oracional. Para CUNHA (1978), o fim do enunciado é caracterizado por uma melodia,
podendo ser ou não organizada por um verbo.
Esse autor estipula que, quando a frase contiver verbo, a melodia será cortada por
uma pausa mais forte, que virá depois dele. Quando a frase não contiver verbo, ela será
caracterizada apenas pela melodia, o que constituirá, então, seu principal elemento distintivo.
Veja:
A frase é sempre acompanhada de uma melodia, de uma entoação particular. A
melodia caracteriza o fim do enunciado e, nas frases organizadas com verbo,
anuncia geralmente a pausa forte que vem depois dele. É o caso, por exemplo, das
seguintes:
Cai o crepúsculo. / Chove/
Sobe a névoa... / A sombra desce.../
Cai a tarde muda e calma.../
(Da Costa e Silva)
Quando a frase não possui verbo, a melodia é a única marca por que podemos
reconhecê-la. Sem ela, frases como:
Atenção! Que tristeza! Noite linda!
seriam simples vocábulos, unidades léxicas sem função, sem valor gramatical.
(CUNHA, 1978, P. 85)

CUNHA (1978) considera, portanto, que a frase é uma unidade da fala, e seu
conteúdo sonoro seria, por esse ponto de vista, o principal elemento distintivo. Dessa forma,
sua concepção de oração sobrepõe, para além do conteúdo psicológico e linguístico, a questão
melódica, que refletirá, por conseguinte, os propósitos comunicativos dos falantes.
Nesse caso, para CUNHA (1978) e BECHARA (1977), a forma como as orações são
pronunciadas distinguem os tipos básicos das orações, o que constituirá nossa análise a partir
de então.
Tendo nos debruçado um pouco acerca do tema, começaremos a analisar como os
tipos de orações são retratados em algumas das principais gramáticas de Língua Portuguesa,
procurando aliar aos conceitos encontrados em tais obras com os pressupostos defendidos por
SEARLE (2002) ao distinguir os atos de fala.
6

3 ORAÇÕES E ATOS DE FALA


Iniciamos a demonstração das gramáticas acerca do tema com a proposta de
RIBEIRO (1919). Para o autor, existem cinco tipos de orações: declarativa, imperativa,
condicional, interrogativa e exclamativa. Esses tipos de oração serão diferenciados mediante
sua semântica própria.
Dessa forma, a colocação do autor, no início do século, ao afirmar que
“relativamente à sua significação as sentenças são declarativas, imperativas, condicionaes,
interrogativas e exclamativas” (RIBEIRO, 1919, p. 269) demonstra similaridade com a visão
pressuposta pela teoria dos atos de fala, no que diz respeito ao critério semântico para
categorização das ações interlocutivas.
De acordo com essa abordagem teórica, existem certas peculiaridades discursivas
que podem categorizar as ações dos falantes em determinados grupos semânticos. Nesse caso,
nos referimos a SEARLE (2002), uma vez que segundo o autor, existem cinco maneiras
gerais de usar a linguagem:
Dizemos às pessoas como as coisas são (Assertivos), tentamos levá-las a fazer
coisas (Diretivos), comprometemo-nos a fazer coisas (Compromissivos),
expressamos nossos sentimentos e atitudes (Expressivos) e provocamos mudanças
no mundo através de nossas emissões lingüísticas (Declarações). (SEARLE, 2002,
introdução, p. X)

O estudo oracional, já no início do século XX, com a gramática de RIBEIRO (1919),


demonstra possuir uma similaridade com a visão defendida por Searle, cerca da qual existem
certas categorias que refletem as maneiras de enunciar determinados conteúdos semânticos.
Um pouco mais tarde, ALI (1964) apresenta um aspecto interessante sobre orações.
Em sua “Gramática secundária da Língua Portuguesa”, o autor afirma que a oração é “a
combinação de palavras (às vezes uma só palavra) com que nos dirigimos a alguém” (ALI,
1964, p. 125). Nesse caso, a nosso ver o autor também demonstra similaridade com a
dimensão interlocutiva de estudo das orações, uma vez que segundo ele, a oração é o
instrumento utilizado pelos falantes “para se dirigirem a seus interlocutores”, o evidenciando,
portanto, a partir dos tipos de orações certas “intenções” interlocutivas.
Esse autor discrimina quatro tipos de oração: declarativa (ou expositiva),
interrogativa, imperativa e optativa, que podem ser ainda classificadas como afirmativa ou
negativa, de modo que, “A oração é afirmativa quando não contém negação, e negativa
quando encerra alguma expressão como não, nunca, ninguém, jamais, etc.” (ALI, 1964, p.
125). Nesse caso, os tipos de oração também encerrariam determinado juízo de valor –
7

negativo ou afirmativo –, por parte do falante, redimensionando outros conteúdos discursivos,


a serem considerados por seu interlocutor.
Dessa forma, embora as categorias não sejam completamente correspondentes aos
modos enunciativos evidenciados por SEARLE (2002), contudo, podemos admitir que haja
uma similaridade entre os pontos de vista.
Nesse caso, tanto RIBEIRO (1919) quanto ALI (1964), representantes do “período
científico” das gramáticas no Brasil, demonstram haver determinadas intenções na produção
verbal dos falantes, a partir das diferentes orações. É importante considerarmos tais autores,
na medida em que, eles são representantes desse período inicial, ocorrido entre 1881 a 1941.
Tal momento alicerçou as “bases fundadoras” para os estudos gramaticais (Cf. CAVALIERE,
disponível em www.ser.fclar.unesp.br/alfa), sendo, portanto, fundamental para o
desenvolvimento do pensamento gramatical no país.
Sendo assim, as colocações feitas pelos dois autores seriam, a nosso ver, os
principais elementos que culminaram, mais adiante, com o surgimento da teoria dos atos de
fala, primeiro em Austin, cujo trabalho se ocupou da distinção dos enunciados constativos e
performativos (Cf.: AUSTIN, 1962); e, em seguida, com a categorização e aprofundamento
do tema com o estudo dos atos de fala por Searle (Cf.: SEARLE, 1969).
Continuando nossa pesquisa acerca das orações nas gramáticas de Língua
Portuguesa, nos debruçamos, a partir de então, nos estudos de outros autores, do chamado
“período linguístico”, que corresponde ao momento compreendido de 1941 aos nossos dias.
Encontramos em CUNHA (1978) um terceiro elemento respeito ao estudo das
orações. Para o autor, a “melodia” será um fator fundamental na conceituação do vem a ser
oração e, tal componente irá apontar a distinção dos tipos de orações. A classificação das
orações, em sua “Gramática do português contemporâneo” é investigada a partir do conceito
de “entoação oracional”, cuja abordagem é vinculada à investigação do “grupo fônico”4.
Segundo ele, “a unidade melódica é o segmento mínimo de um enunciado com
sentido próprio e com forma musical determinada. Os seus limites coincidem com os do
grupo fônico. Podemos, pois, considerar o grupo fônico o equivalente da unidade melódica”
(CUNHA, 1978, p. 116). Ou seja: a unidade melódica oracional se constitui pelo agrupamento
dos grupos fônicos de determinada proposição. Essa unidade melódica irá ser configurada de
formas diferenciadas, o que caracterizará os três tipos de orações elencados por Celso Cunha,
a saber: a declarativa, a interrogativa e a exclamativa.

4
O grupo fônico é o conjunto de grupos acentuais (segmento de frase que se apóia em um acento tônico
principal) compreendido entre duas pausas de fala. (1978, p. 116)
8

Esse tipo de estudo melódico também pode ser encontrado em BECHARA (1977).
O tema referente às orações inicia o capítulo de sintaxe de sua gramática, e, nessa parte, o
autor também promove uma elucidação acerca do aspecto melódico da entoação oracional.
Além dos três tipos de oração elencados por CUNHA (1978), o autor ainda inclui a “entoação
suspensiva ou pausal” como sendo outra categoria de entoação interlocutiva. Nesse caso, a
terminologia utilizada por ele ainda se utiliza do termo “assertiva” ao invés da “declarativa”
de CUNHA (1978), e, outro aspecto interessante é que, esse autor não fala de “orações” e sim
de “entoações” assertiva, interrogativa e exclamativa, o que demonstra o caráter de
importância da melodia no estudo do modo de dizer dos indivíduos, para BECHARA (1977).
Essas diferenças na constituição das enunciações serão provocadas pela forma de
pronunciar os grupos fônicos, de acordo com CUNHA (1978), fator que irá distinguir as
orações declarativa, interrogativa e exclamativa.
Tal aspecto lingüístico do estudo das orações, caracterizado por uma entoação
peculiar a cada tipo de enunciado, também é um elemento discutido por SEARLE (2002) no
estudo dos atos de fala. Para o autor, existem tipos característicos de entoação que irão diferir
os modos enunciativos básicos.
Tendo examinado alguns aspectos referentes às caracterizações dos tipos de orações
e alguns elementos gerais da constituição dos atos de fala a partir das gramáticas de Língua
Portuguesa, nos deteremos, a seguir, na abordagem particular de cada um desses tipos,
procurando analisar alguns aspectos enunciativos importantes, a nosso ver, para o cotejo com
as categorias dos atos de fala. Pretendemos verificar, na seção a seguir, se existem relações
entre os tipos de orações elencados nas gramáticas de Língua Portuguesa, e os modos pelos
quais os interagentes organizam suas diferentes ações enunciativas. Tal comparação poderá
demonstrar que certos aspectos da teoria dos atos de fala são fenômenos lingüísticos que
podem ser considerados no estudo das orações, a fim de aprofundar esse item na abordagem
gramatical.

3.1 Oração declarativa


No caso da oração declarativa, a ação realizada pelo falante consiste em asseverar
determinado conteúdo informativo a seus interlocutores. Esse seria, a nosso ver, o
componente discursivo primeiro da categoria assertiva, conforme evidenciado por SEARLE
(2002). Para o autor,
O propósito dos membros da classe assertiva é o de comprometer o falante (em
diferentes graus) com o fato de algo ser o caso, com a verdade da proposição
9

expressa. Todos os membros da classe assertiva são avaliáveis na dimensão de


avaliação que inclui o verdadeiro e o falso (SEARLE, 2002, p. 19).

Fazer com que o interlocutor assuma determinado conteúdo informativo como sendo
plausível é o que torna esse tipo de anunciado aceitável, do ponto de vista interlocutivo.
Começamos nossa explanação citando a “Grammatica Portugueza” (sic) de
RIBEIRO (1919). Na abordagem do estudo da “Sentença declarativa”, o autor caracteriza este
tipo de oração como sendo aquela que “declara ou assevera uma cousa. Ex: O dia está quente”
(RIBEIRO, 1919, p. 207).
Esse autor não acrescenta outras caracterizações acerca da declarativa, contudo,
ainda subdivide essa categoria em afirmativa, ocorrida “quando uma cousa é, ex: O dia está
quente”; e negativa quando assevera que uma cousa não é, ex: o dia não está quente”.
Tanto na declarativa afirmativa, quanto na negativa, conforme demonstrado pelo
autor, o que ocorre é o desejo de determinado falante de garantir a seu interlocutor que certo
fato pode ser considerado como afirmativo ou negativo. O falante, no caso desse tipo de ação,
geralmente, deseja achar um interlocutor disposto a acatar o que ele afirma ou nega, em sua
asserção; o que faz com que a visão desse autor esteja coadunada com o tipo assertivo de
Searle.
ALI (1964, p. 125) atribui à oração declarativa o papel interlocutivo de informar
acerca de determinado fato. Sendo assim, o “conteúdo informativo” desse tipo de oração é
focalizado pelo autor. Nesse caso, a declarativa corresponde ao tipo de ação que se propõe a
narrar os acontecimentos, atribuir valores às coisas que o falante deseja comunicar a seus
interlocutores.
Poderíamos também, se quisermos relacionar as diferentes ações interlocutivas aos
modos de organização discursiva, afirmar que a declarativa corresponderia, nesse caso, à
narração. Isso porque, tal modo de organização do discurso tem por característica predispor ao
falante os recursos lingüísticos necessários para que ele possa “contar”, “relatar” determinado
fato a seus interlocutores.
Já no caso dos estudos referentes à entoação da oração, encontrados em CUNHA
(1978) nos faz verificar que, no caso da declarativa, ocorre um início fraco e uma subida na
entoação, no meio da frase. Essa subida irá ocorrer de acordo com o exemplo do autor,
quando há um pronunciamento dos elementos vocabulares mais expressivos da frase,
indicadores dos principais conteúdos informativos, atribuídos aos elementos da proposição.
Observe o exemplo a seguir:
10

dão pri
ti se com
mul me
A
(CUNHA, 1978, p. 117)

Nesse caso, os vocábulos “multidão” e “comprime” recebem subidas melódicas de


igual intensidade, o que demonstra a igualdade de atribuição de valores comunicativos aos
dois vocábulos. Se tentarmos fazer um paralelo com essa característica lingüística da oração,
com a proposta de SERLE (2002, p. 19), acerca do “ato assertivo”, verificamos que, segundo
o autor, a veracidade do que está sendo dito é o quesito principal, distintivo desse tipo de ato
de fala. No exemplo dado por CUNHA (1978), verificamos que a veracidade do conteúdo da
informação é o que fica acentuado na linha melódica oracional.
Dessa forma, ao enunciar esse tipo de proposição, o falante concentrará seu empenho
em fazer com que o ouvinte compreenda o conteúdo preposicional de determinada oração, de
modo a se comprometer com a veracidade do que está sendo enunciado. Os juízos de valor a
respeito do que está sendo dito, – se falso ou verdadeiro – irão ser atribuídos, também, nesse
tipo de oração, pela força melódica presente nos vocábulos principais. E o que o falante está
dizendo, o valor atribuído ao conteúdo preposicional o compromete discursivamente com seu
ouvinte.
Dessa forma, as atribuições semânticas aos membros da oração assertiva precisarão
dar conta de salientar esse aspecto discursivo. Ou seja: no ato assertivo, a necessidade de o
falante atribuir tal critério de veracidade ao conteúdo preposicional irá promover uma
configuração lingüística específica desse tipo de ato de fala, o que pode explicar, portanto, a
acentuação igualitária dos membros da oração “multidão” e “comprime”, no exemplo dado
por CUNHA (1978).
Ao estudarmos a entoação melódica da declarativa em Celso Cunha, verificamos, por
isso, certas características dessa oração que podem ser cotejadas com a natureza discursiva do
ato assertivo. A ênfase melódica dos termos, nesse caso, pode demonstrar a força ilocutória do
ato assertivo, que estará condicionada à veracidade da colocação do falante.
BECHARA (1977) também estuda a entoação na discriminação dos tipos oracionais.
Entretanto, não existem maiores acréscimos a serem feitos para demonstrar a presença dos
aspectos do ato assertivo, na exposição sobre esse tipo de oração.
11

3.2 Oração exclamativa


A oração exclamativa é responsável por indicar diferentes ações, relativas à emoção
do falante, no momento em que produz o seu enunciado. Desse modo, o sentimento do
indivíduo faz com que ele produza sua fala com diferentes matizes semânticos, que poderiam,
entretanto, ser elencados no grupo do “ato expressivo”, de acordo com SEARLE (2002, p.
23). Para ele, existem certos paradigmas de verbos tais como: agradecer, congratular,
desculpar-se, dar pêsames, deplorar, dar boas vindas, etc., que estariam no campo da
emotividade.
Os sentimentos do falante, nesse caso, são os responsáveis pela transmissão desses
diferentes nuances semânticos, que são transmitidos pelo locutor, por meio de certos recursos
linguísticos. Esse tipo de oração tem, portanto, na emotividade um fator discursivo muito
importante, podendo ser ela superior ao conteúdo proposicional em si, de modo que, tal
conteúdo linguístico fica sujeito à carga emotiva desejada pelo falante.
No estudo das orações, de acordo com as diferentes visões dos gramáticos estudados,
encontramos algumas definições para “oração exclamativa”, que seria, a nosso ver, a classe de
oração que procura evidenciar o nível das ações pressupostas pelo tipo “expressivo”, proposto
por SEARLE (2002). Nesse caso, verificamos nos autores pesquisados as seguintes definições
para “oração” exclamativa: “Sentença exclamativa é que exprime um sentimento ou opinião
relativa, asseverada ou por asseverar, ex: “Quão estúpido é elle (sic)! – Que guerra vai haver!”
(RIBEIRO, 1919, p. 210)
Na colocação de RIBEIRO (1919), a exteriorização de determinada opinião, de forma
contundente, é o fator que motiva a elaboração desse tipo de oração. Diante de sua percepção,
observamos que o “conteúdo informativo” é motivado pela emotividade do falante, que irá
corroborar em suas colocações acerca do que ele pensa sobre determinado fato do presente, ou
do futuro.
Para ALI (1964), a “aspiração” e o “desejo” são os sentimentos motivadores desse
tipo de enunciado. Observe a descrição do autor acerca da oração exclamativa, que está
elencada juntamente com os outros tipos, quando o autor demonstra as formas de
direcionamento discursivo usados pelo falante, que ocorre, quando eles irão se dirigir a
alguém: “Para manifestar-lhe uma aspiração, um desejo (oração OPTATIVA), ex: Queira
Deus!/Deus permita! (ALI, 1964, p. 125)”.
Para esse autor, a emotividade é vista como uma atitude de anseio ou pretensão,
sentimentos emitidos pelos indivíduos ao proferirem esse tipo de oração. Nesse caso, tanto
ALI (1964) quanto RIBEIRO (1919) referem-se a algum tipo de sentimento como fatores de
12

motivação do emprego desse tipo de oração. O mesmo ocorre em ROCHA LIMA (1976), ao
demonstrar que a oração exclamativa seria movida por uma necessidade de o locutor
manifestar determinado “estado de alma”. Veja:

Exclamativa – com a qual exteriorizamos principalmente o nosso estado de alma


(admiração, repulsa, irritação, desprezo, etc.):
Ah! Senhor, que grande médico!
Que raio escuro!
Bem feito!
(LIMA, 1976, p. 204)

Nessas três gramáticas, encontramos uma menção a determinados tipos de


sentimentos para a execução desse enunciado, sendo tais emoções, todas mais alinhadas ao
tipo de ato expressivo, conforme SEARLE (2002). Entretanto, dos autores pesquisados,
encontramos em BECHARA (1977) uma concepção da oração exclamativa mais abrangente,
elencando um número maior de sentimentos, e, o que nos chamou a atenção foi que esses
sentimentos dizem respeito tanto ao ato “expressivo”, quanto ao “diretivo”, aquele
responsável por enunciar pedidos, comandos e ordens. O autor parte do ponto de vista da
entoação para apontar esses dois tipos de ações interlocutivas.Veja:
A linha melódica da exclamação só tem também a parte ascendente. Ela traduz um
enunciado expresso com acentuado predomínio emocional para comunicar,
acompanhada ou não de mímica, dor, alegria, espanto, surpresa, cólera, súplica,
entusiasmo, desdém, elogio, gracejo. A entoação exclamativa também é empregada
para exigir a presença ou a atenção de alguém (João! Menino) ou para traduzir
ordens e pedidos (Corra! Salte!). A entoação exclamativa pode combinar-se com os
tipos enunciados anteriormente. Compare-se a resposta João (da pergunta parcial:
Quem estuda?) com João para chamar ou atrair a atenção e com João?! Quando a
pergunta envolve um sentimento de surpresa. Simbolizamos a entoação exclamativa
com [!] (BECHARA, 1977, p. 195).

Diante da colocação de BECHARA (1977), podemos verificar algumas


características interessantes para o emprego de uma oração exclamativa. O autor, ao
caracterizar esse tipo de oração por sua entoação, agrupa sentimentos e atitudes diferenciados,
todos cabidos nesse tipo de melodia entoacional. O “acentuado predomínio emocional” é o
fator que irá distinguir esse tipo de entoação, que possui, dessa forma, tanto essa característica
da ação linguística, podendo, portanto, ser uma tentativa de exposição do ato expressivo,
como uma forma de entoação do ato diretivo, aquele usado para ordenarmos ou pedirmos aos
interlocutores que façam certas cosias.
A visão do autor da entoação exclamativa sobrepõe, portanto, as classes de oração
“exclamativa” e “imperativa” no mesmo tipo de nível linguístico, que será traduzido por sua
forma de pronunciamento. Esse fato é interessante, na medida em que, tanto BECHARA
13

(1977) quanto CUNHA (1978) não inserem a oração imperativa como sendo uma categoria
enunciativa. Entretanto, quando descrevem a entoação exclamativa também agrupam, de
forma secundária, esse modo de enunciação.
Para CUNHA (1978), a entoação exclamativa estará ligada ao nível de emotividade
de quem fala, sendo que, a sílaba mais forte do enunciado, irá distinguir três tipos de gráficos
para explicar essa entoação. Compare os exemplos e gráficos do autor (CUNHA, 1978, p.
120), acerca dessa forma de enunciação:
O primeiro gráfico corresponde ao seguinte exemplo: “Deus de minha alma!”, que é
pronunciado de forma ascendente, por conta da pronuncia mais forte estar presente na
primeira palavra, gerando, portanto, a seguinte curva melódica:

O segundo gráfico corresponde à entoação da exclamativa quando a sílaba mais forte


for a final. O exemplo: “ Meu amor!” possui esse tipo de entoação, tendo a seguinte curva
melódica:

Os exemplos: “Sai da frente!” e “Todo o mundo!!!” têm sílabas fortes pronunciadas


no meio da oração, o que produz uma entoação com o começo ascendente e final descendente,
o que produz uma representação gráfica diferenciada, de acordo com a seguinte curva
melódica:

O que podemos apreender do estudo dos dois autores é que a entoação, no caso do
estudo da oração exclamativa é muito complexa, podendo agrupar diferentes tipos de emoção,
por parte do falante. Também esse tipo de entoação, por fazer menção a atitudes discursivas
diversas, a partir do tom emotivo de quem fala, irá oferecer três tipos de entoação, conforme
CUNHA (1978) expõe. Tal fator explicaria as maneiras diversas de ação interlocutiva, pela
gradação de sentimentos que vão da exclamativa à imperativa. Nesse caso, a marca desse tipo
de entoação é representada pelo ponto de exclamação (!), comum também a esses dois tipos
de oração.
O estudo das orações, à luz da teoria dos atos de fala, expressivo e diretivo poderia,
nesse caso, elucidar certos aspectos discursivos do uso dos vocativos, interjeições e
imperativos, conforme mencionado por ALI (1964, p. 265), anteriormente, e que dariam uma
nova perspectiva a tais fenômenos linguísticos.
O que ocorre, no caso da curva melódica, é uma gradação no uso das ações, que vão,
desde o externar um desabafo ou uma apreciação acerca de determinado fato, como no
14

exemplo “Deus de minha alma!”, que poderia representar uma “Interjeição”; passando pela
questão do chamamento de alguém, de forma afetuosa, como no caso do exemplo “Meu
amor!”, podendo ser considerado um “Vocativo”; até chegar ao nível da ordenança ou pedido
verificada nos exemplos “Sai da frente!” e “Todo o mundo!!!”, podendo ser tais exemplares
considerados como usos do modo “Imperativo”. O interessante é ressaltar que a questão da
melodia irá demonstrar os tipos de emotividade do falante, estando tais sentimentos inseridos
nas categorias dos atos “expressivo” e “diretivo’. Entretanto, o estudo de tais ações se torna
complexo, devido ao fenômeno dos “atos de fala indireto”, que será contemplado, mais
adiante, no presente ensaio.

3.3 Oração imperativa


A oração imperativa, de acordo com as gramáticas pesquisadas, é aquela responsável
por enunciar ordens, pedidos ou exortações em determinados contextos interlocutivos. Esse
tipo de oração, em primeira instância, está associado ao modo Imperativo de utilização do
verbo, uma vez que por meio desse modo, o falante irá fazer certas exortações a seus
interlocutores.
Essa associação da oração imperativa com o verbo é uma das primeiras
características de que nos lembramos a respeito desse tipo de oração. Tal peculiaridade é
demonstrada com a caracterização dessa sentença na gramática de RIBEIRO (1919). Observe:
Sentença imperativa é aquela por meio da qual se ordena, se requer ou se pede que
se faça alguma cousa. Seu kharacteristico (sic) é o uso do verbo no modo
imperativo, ex.: “Traze fogo – Despacha-me esta petição – Livrae-me (sic) deste
susto ” (RIBEIRO, 1899, p. 210)

A associação do verbo no modo imperativo com a oração imperativa, em si, é uma


questão importante a ser pensada, consistindo em uma das razões motivadoras das pesquisas
acerca dos atos de fala, iniciados em AUSTIN (1955) e aprofundada, posteriormente, em
SEARLE (1969).
Isso porque, o uso de certos verbos que, ao serem pronunciados, efetivariam certas
ações, como “prender”, no enunciado “Você está preso”, ao ser proferido por uma autoridade
policial, por exemplo, motivou o estudo acerca do uso desses verbos. Contudo, mais adiante,
houve um maior aprofundamento dos estudos, que passaram a ser feitos não a partir dos
verbos, mas dos diferentes tipos de enunciados.
Dentre os atos elencados por SEARLE (2002), evidencia-se que o diretivo
caracteriza-se, interlocutivamente, por possuir um “propósito ilocucionário que consiste em
tentativas do falante de levar o ouvinte a fazer algo” (SEARLE, 2002, p. 21), sendo tal
15

característica compatível com a oração possuidora de verbo no imperativo. Dessa forma, o


uso de uma força ilocutória de ordenança, traduzível pelos diferentes tipos de ações, como:
pedir, suplicar, desafiar, ordenar, rogar, etc., seria o motivo para usar-se, discursivamente,
esse tipo de enunciado.
No estudo das orações, de acordo com as gramáticas pesquisadas, percebemos, já,
uma descrição desse tipo de oração como um todo, e não apenas de acordo com o “modo” do
verbo. Nesse caso, as gramáticas analisadas fazem uma demonstração acerca da enunciação,
propriamente, e não do verbo utilizado. Observe, a seguir, outras definições de utilização da
oração imperativa.
Para Said Ali, esse tipo de enunciado é usado pelo falante para: “...exortá-lo a praticar
ou deixar de praticar um ato (oração IMPERATIVA), ex.: Afasta-te. / Não chores. (ALI, 1964, p.
125)”
O uso desse tipo de oração, para o autor, se presta ao “ato de exortar” determinado
interlocutor a praticar ou não uma ação, sem que haja, nessa caracterização, uma menção ao
verbo no modo imperativo.
Essa mesma característica da oração imperativa, se prestando a persuadir,
interlocutivamente, alguém a fazer ou deixar de fazer algo é vista na caracterização de
ROCHA LIMA (1976). Segundo ele,
(oração) imperativa – com a qual exortamos alguém a praticar ou deixar de praticar
um ato:
Meia volta!
Não saia daqui.
Honrarás pai e mãe.
(ROCHA LIMA, 1976, p. 204)

O ato de exortar seria, portanto, a principal ação demandada por esse tipo de oração.
Entretanto, a exortação, característica do ato da categoria diretiva, poderá se apresentar de
formas diferenciadas, como “tentativas muito tímidas, como quando o convido a fazer algo ou
sugiro que faça algo, ou podem ser tentativas muito veementes, como quando insisto em que
faça algo” (SEARLE, 2002, p. 21).
Talvez por ter essa peculiaridade, esse tipo de enunciado pode ser bastante eclético,
possuindo traços lingüísticos como a presença do modo imperativo, relacionado ao ato de
exortar, como outros recursos interlocutivos para que sejam feitos os diferentes tipos de
pedidos. O que percebemos, por outro lado, hodiernamente, é uma perda dessa característica
interlocutiva do modo imperativo, no caso de empregá-lo para fazer exortações, podendo tal
modo adquirir outras forças ilocutórias, como, por exemplo, aconselhar, instruir, recomendar
ou indicar.
16

Acerca da oração imperativa, um fato interessante encontrado na gramática de


BECHARA (1977) consiste na inserção do ato diretivo no estudo da “entoação exclamativa”,
conforme visto na seção anterior. Isso porque o autor afirma que “ a entoação exclamativa
também é empregada para exigir a presença ou a atenção de alguém (João! Menino) ou para
traduzir ordens ou pedidos (Corra! Salte!)” (Cf. BECHARA, 1977, p. 195). Dessa forma, o
estudo do “enunciado imperativo” corrobora a visão do autor, segundo a qual tal ato estaria
inserido na entoação exclamativa. Essa inserção da categoria diretiva na oração exclamatica
vem a denotar a importância dos níveis de emotividade, por parte do falante, no emprego
desse tipo de oração.
Outra questão importante a ser pensada, também, com respeito a esses níveis da
oração imperativa (e do ato diretivo) pode ser analisada a partir do uso de orações declarativas
e interrogativas. Isso porque, ao se dirigir ao interlocutor com vistas a exortá-lo a praticar
determinada ação, o locutor poderá lançar mão dessas orações, que são entendidas com o
intento interlocutivo presente na oração imperativa.
Nesse caso, SEARLE (2002) expõe acerca do uso de atos indiretos, que seriam
aqueles usados pelos locutores para realizarem ações primárias por meio de outros atos
interlocutivas secundários. O uso de ações interrogativas e assertivas como forma de realizar
uma ação diretiva é estudado pelo autor, que discrimina algumas formas de uso interlocutivo
da oração imperativa (ato diretivo), eis alguns dos grupos evidenciados por ele:
Grupo 1: sentenças relativas à habilidade de “O” para realizar “A” – ex: Você pode
alcançar o sal?
Grupo 2: Sentenças relativas ao desejo ou vontade de “F” de que “O” faça “A” – ex:
Eu gostaria que você fosse agora.
Grupo 3: Sentenças relativas a O fazer A – ex: Você vai parar de fazer essa
tremenda algazarra?
Grupo 4: Sentenças relativas ao desejo ou disposição de O de fazer A – ex: Você
estaria disposto a fazer uma carta de recomendação para mim?
Grupo 5: Sentenças relativas às razões para fazer A – Você tem que ser mais polido
com sua mãe.
Grupo 6: Sentenças que encaixam um desses elementos em outro; também,
sentenças que encaixam um verbo ilocucionário diretivo explícito num desses
contextos – ex.: Seria demais se eu sugerisse que você talvez pudesse fazer menos
barulho? (SEARLE, 2002, capítulo 2 – Atos de fala indiretos)

O uso de orações na forma assertiva e interrogativa para que o locutor faça pedidos e
ordens é, portanto, um fenômeno interlocutivo importante a ser considerado no estudo das
orações, já que tais enunciados são feitos com a estrutura linguística de determinado tipo de
oração, com a finalidade enunciativa de outro.
17

3.4 Orações interrogativas


Vimos, na seção anterior, que certos propósitos interlocutivos essenciais da oração
imperativa – pedir, ordenar ou solicitar – podem ser feitos, de forma indireta por meio de uma
pergunta. Contudo, para além do propósito de se requerer determinado pedido ou ordem, feito
por meio de perguntas, o uso das orações interrogativas para, simplesmente, perguntarmos aos
interlocutores sobre determinado assunto seria a característica discursiva primeira da oração
interrogativa, segundo os gramáticos pesquisados.
Nesse caso, o intuito do uso desse tipo de oração seria, fundamentalmente,
investigativo e indagativo. E, tal propósito interlocutivo é o que caracteriza os enunciados
interrogativos nas gramáticas estudadas. Destacamos, a seguir, o que dizem os autores a
respeito desse tipo de enunciado.
Para RIBEIRO (1919), “Sentença interrogativa é a que se emprega para fazer
perguntas, ex.: “Está chovendo?”” (RIBEIRO, 1919, p. 210). Essa seria, portanto, a
característica interlocutiva principal desse tipo de oração, que estaria a serviço, portanto ao
propósito indagativo e investigativo, por parte do locutor.
O mesmo ponto de vista também é defendido por ALI (1964), pois, para o autor a
oração interrogativa serve para
... pedir uma informação (oração INTERROGATIVA), ex.:
As férias começaram?
Sabes a lição?
Quem bate?
Trabalhas? (ALI, 1964, p. 125)

Assim como para ROCHA LIMA (1976), pois, para o autor, frase interrogativa é
“aquela (...) com a qual perguntamos alguma coisa:/ Como? / Porque fugiste de mim? /
Quanto lhe devo? (ROCHA LIMA, 1976, p. 204)
Esses três autores observam no enunciado interrogativo o propósito interlocutivo de
questionar, pedir ou convidar o interlocutor a realizar determinada ação. Dessa forma, a
oração interrogativa estaria, assim como a imperativa, inserida na categoria do “ato diretivo”,
aquele que agrupa diferentes ações, todas usadas para se requerer determinada atitude do
interlocutor. Por outro lado, ao observarmos os exemplos dados nas gramáticas, vemos que
existe uma atenuação no emprego de um questionamento feito por uma oração interrogativa.
Isso porque, na interrogativa o que ocorre é, em linhas gerais, um propósito convidativo,
diferente do que ocorre na oração imperativa, por exemplo.
Outro ponto de vista interessante, com respeito à oração interrogativa dá-se por meio
da análise da “entoação”. De acordo com a perspectiva da entoação, existirão tipos
18

diferenciados de orações interrogativas, cujas formas de entoação e elementos lingüísticos


irão corroborar em formas oracionais diferenciadas. Nessa linha de estudos, vemos em
Evanilo Bechara um maior aprofundamento desse tipo de oração. O autor distingue a
“interrogação geral”, aquela ocorrida quando a resposta dada usa “sim” ou “não”; daquela
“interrogação parcial”, que seria feita a partir de um termo da oração. Para ele,

Na primeira a resposta se resume ou se pode resumir em sim ou não e a parte


ascendente da entoação é mais acentuada; na segunda, a pergunta é feita, em geral,
por vocábulos especiais de interrogação e a resposta é dada por vocábulo ou reunião
de vocábulo. (BECHARA, 1977, p. 195).

Nessa mesma perspectiva, observamos que, para CUNHA (1978), existem três tipos
de interrogação, a primeira e a segunda, cujas melodias são iguais à da oração declarativa,
apenas distinguindo-se a parte final e uma terceira, que possui três tipos de entoação. Na
declarativa ocorre uma leve descida e nas interrogativas, uma subida no tom de voz. Observe
o exemplo: pri
dão com me?
ti se
mul
A
(CUNHA, 1978, p. 117)

O autor ainda destaca que o uso de um pronome interrogativo no início de uma


oração, com a mesma entoação, também irá gerar um tipo de interrogativa. Como, por
exemplo: “Quem lhe deu esse livro? Quando o verei novamente?” (CUNHA, 1978, p. 118).
Nesse caso, a linha melódica seria similar a da declarativa, e, existe um terceiro tipo de
interrogativa, que seria a direta e indireta, que ocorre

Por meio de um período composto, em que a pergunta está contida numa oração
subordinada de entoação final descendente. Exemplos:
Diga-me quem lhe deu esse livro.
Não sei quando o verei novamente.
(CUNHA, 1978, p. 119)

Nesse caso, o autor distingue esses tipos de oração por meio dos modos de entoação
e também pelo sinal de pontuação, pois, os dois primeiros tipos, denominados de
“interrogação direta” possuem como marca gráfica o ponto de interrogação (?) e, no último
caso, ocorre o ponto final (...). A distinção desses tipos de interrogativa nos mostra, também,
que Celso Cunha alinha-se ao fenômeno pressuposto pelos atos ilocutórios indiretos, aqueles
ocorridos por meio de uma ação mascarada por outra. O estudo das interrogativas, então,
19

corrobora a inserção desse tipo de oração na grande categoria do ato diretivo, conforme
postulado por SEARLE (2002), já que, tanto sob a forma de pedido, indagação, quanto sob a
forma de imposição, o que ocorre, é a tentativa de levar o interlocutor a praticar determinada
ação.
Dessa forma, o estudo dos atos indiretos elucida, portanto, fenômenos como o uso de
perguntas como forma de imposição, e o uso de imposições, como formas de perguntar.
Assim, uma análise mais profunda das orações imperativa e interrogativa, à luz da categoria
diretiva e do ato ilocutório indireto, ilumina um pouco nosso entendimento a respeito, por
exemplo, da perda da “força ilocutória da imposição” mediante o uso do modo Imperativo,
fenômeno discursivo comum, hodiernamente.

4 CONCLUSÃO
O estudo das orações busca caracterizar as formas enunciativas básicas, pressupostas
pelas formas de posicionamento do locutor, diante de seu ouvinte. Os cinco autores
reconhecem, em comum, quatro maneiras de reportamento interlocutivo por meio das
seguintes orações: declarativa, exclamativa, imperativa e interrogativa. Tais enunciados
conferem com formas de ações interlocutivas, de acordo com as categorias dos atos
ilocutivos, conforme elencados por SEARLE (2002).
Para esse autor, existem modos de utilização da linguagem, que estariam dentro de
cinco perspectivas interlocutivas distintas, o que configurariam as categorias de atos
assertivos, diretivos, compromissivos, expressivos e declarações. O esquema categórico do
autor pode elucidar os diferentes matizes de sentido requeridos no emprego discursivo das
orações, fato que explicaria a complexidade de análise das orações interrogativa e imperativa,
cujo emprego estaria associado à categoria diretiva, tanto direta, quanto indireta.
É mister uma atenção quanto ao emprego interlocutivo das orações, no campo da
descrição gramatical, o que redimensionaria as categorias existentes, de modo a explicar
diferentes formas de emprego das orações. Tal abordagem também elucidaria questões
referentes às formas enunciativas básicas, fato que poderia ser considerado no estudo acerca
das tipologias discursivas narrativa, descritiva, argumentativa e injuntiva, que, a nosso ver,
são apenas um desdobramento macrodiscursivo das formas básicas da enunciação,
pressupostas pelos diferentes atos de fala.
20

5 REFERÊNCIAS

ALI, Said. Gramática histórica e Gramática secundária da Língua Portuguesa. Edição


revista e atualizada. Brasília. Editora Universidade de Brasília, 1964.

AUSTIN, John L. How to do things with words. Cambridge, Massachusetts: Harvard


university press, 1962.

BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 22 Ed. São Paulo, Companhia


Editora Nacional, 1977.

CAVALIERE, Ricardo. Uma proposta de periodização dos estudos linguísticos no Brasil.


Revista ALFA. Disponível em www.ser.fclar.unesp.br/alfa

CUNHA, Celso. Gramática do português contemporâneo. 7 Ed. Belo Horizonte, Editora


Bernardo Álvares S.A., 1978.

LIMA, Carlos Henrique da Rocha. Gramática normativa da língua portuguesa. 18ª Ed. Rio
de Janeiro, Livraria José Olimpio Editora, 1976.

RIBEIRO, Júlio. Grammática Portugueza. 13 Ed. Rio de Janeiro. Editora Francisco Alves,
1919.

SEARLE, John. Speech acts: an essay in the philosophy of language. New York:
Cambridge university press, 1969.

______ . Expressão e significado: estudo da teoria dos atos de fala. 2a ed. São Paulo,
Martins Fontes, 2002.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

PANORAMA ENTONACIONAL DAS MODALIDADES DECLARATIVAS


E INTERROGATIVAS TOTAIS DO FRANCÊS:
NATIVOS E APRENDIZES BRASILEIROS DE FLE

Sara Farias da Silva1 (PPGLg/UFSC)

RESUMO

A presente pesquisa tem como objetivo principal analisar o comportamento entonacional de


aprendizes de Francês Língua Estrangeira (FLE). Esses aprendizes brasileiros, nascidos em
Florianópolis (SC-Brasil), têm formação no curso de Letras-Francês da Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC) e hoje são professores de FLE. Para descrever o comportamento
entonacional desses sujeitos, comparamos os seus perfis entonacionais aos de nativos da lín-
gua francesa oriundos da cidade de Paris (França). No total, trabalhamos com um corpus de
240 frases, nas quais foram observados o contorno entonacional na região de pré-núcleo e
núcleo de sentenças declarativas e interrogativas. Os dados são representados em gráficos
gerados automaticamente com o auxilio de sripts e as etiquetagens das vogais das sentenças
foram realizadas através do software Praat. Essa pesquisa está inserida no projeto AMPER
que visa formar um banco de dados de fala das línguas românicas. Ao comparar os perfis en-
tonacionais dos informantes, foi observado que: em relação à duração, os informantes brasi-
leiros (feminino e masculino) apresentaram maiores contrastes de duração entre vogais tôni-
cas e átonas nos enunciados. Essa característica não foi observada nos dois informantes fran-
ceses. Em relação à frequência fundamental, os informantes brasileiros apresentaram elevação
de pitch na vogal última tônica do primeiro grupo rítmico na modalidade declarativa, contor-
no semelhante ao apresentado por Léon (2007), Moutinho e Zerling (2002) e Vaissière
(1997), para o padrão francês; porém, em relação aos informantes franceses, essa elevação se
mostrou bem mais abrupta nos contornos dos brasileiros. Com referência ainda à frequência
fundamental, os franceses,na região de núcleo dos enunciados, sempre apresentaram o espe-
rado para o francês: nas sentenças declarativas, um contorno final descendente e, nas interro-
gativas totais, uma subida abrupta de pitch sobre a última vogal tônica do enunciado. Para a
modalidade interrogativa, o contorno final dos enunciados dos informantes brasileiros são
similares aos dos franceses, porém o informante brasileiro apresenta a subida abrupta de pitch
sobre as duas últimas vogais dos enunciados, o que se diferencia do padrão francês cuja subi-
da seria apenas na última tônica.

Palavras-chave:
Entoação. Declarativas e interrogativas totais. Informantes florianopolitanos e parisienses.

RÉSUMÉ

Le but principal de cette recherche est celui d’analyser le comportement de l’intonation des
apprentis du Français Langue Étrangère (FLE). Ces apprentis brésiliens nés à Florianópolis
(Brésil), ont suivi une formation supérieure en Lettres-Français, à l’Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC) et sont aujourd’hui professeurs de FLE. Pour décrire le contour
intonationnel de ces individus, nous les avons comparés à ceux des français natifs provenant
de la ville de Paris (France). Il s’agit d’une étude attachée au projet AMPER, qui décrit la
prosodie des langues romanes et qui utilise un corpus de phrases déclaratives et interrogatives
totales.

1
Mestre em Linguística pela PGL/UFSC; e-mail: foliesara@gmail.com.
2

Les phrases du corpus peuvent se constituer de 8 à 13 voyelles, présentant des syntagmes


avec ou sans extension, adjcetivale ou prépositionnelle, comme Le canard regarde le chat
dormeur ou Le colobri regarde le chat de Toronto. Au total, nous avons utilisé 240 phrases,
dans lesquelles nous avons observé le contour intonationnel dans la région du pré-noyau et du
noyau des pharses déclaratives et interrogatives. Les données sont représentées dans des
graphiques générés automatiquement à l’aide de quelques scripts et les étiquetages des
voyelles ont été réalisés à travers le software Praat. À partir des voyelles nous avons analysé
deux paramètres acoustiques (durée et fréquence fondamentale). En comparant les contours
des informateurs, nous avons remarqué que les informateurs brésiliens (de sexe féminin et
masculin) ont présenté des constrastes plus importants par rapport à la durée entre les voyelles
toniques et atones des énoncés. Cette caractéristique n’a pas été retrouvée chez les deux
informateurs français. Quant à la fréquence fondamentale, les informateurs brésiliens ont
présenté une élévation du pitch sur la dernière voyelle tonique du premier groupe rythmique
dans la modalité déclarative. Ce contour ressemble au contour présenté comme référence en
français par Léon (2007), Moutinho et Zerling (2002) et Vaissière (1997); cependant, par
rapport aux informateurs français cette élevation s’est avérée beaucoup plus brusque dans les
contours des brésiliens. En ce qui concerne encore la fréquence fondamentale, dans la région
du noyau des énoncés, les français ont toujours présenté le contour attendu pour la langue
française : un contour final descendant dans les phrases déclaratives et une élavation abrupte
du pitch sur la dernière voyelle tonique de l’énoncé dans les interrogatives totales. Pour la
modalité interrogative, le contour final des énoncés des informateurs brésiliens ressemble à
ceux des français, néanmoins l’informateur brésilien présente une montée abrupte du pitch sur
les deux dernières voyelles des énoncés, ce qui diverge de la norme française dont l’élévation
ne se ferait que sur la dernière tonique.

Mots-clé:
Intonation. Déclaratives et interrogatives totales. Informateurs florianopolitains et parisiens.

1 INTRODUÇÃO
A pesquisa aqui proposta terá como objetivo analisar o comportamento entonacional
dos aprendizes brasileiros de Francês Língua Estrangeira (FLE). Esses aprendizes brasileiros,
nascidos em Florianópolis (SC-Brasil), têm formação no curso de Letras-Francês da Univer-
sidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e hoje são professores de FLE. Para descrever o
comportamento entonacional, comparamos a entoação desses professores de FLE com a ento-
ação de nativos da língua francesa oriundos da cidade de Paris (França).

1.1 Aprender uma língua


Quando aprendemos uma língua estrangeira, é outro mundo que se desvenda. Muito
mais do que o léxico, a sintaxe ou a melodia, as línguas são portadoras de traços culturais. O
aprendizado de uma língua estrangeira modifica a percepção que temos da vida, do outro e de
nós mesmos.
3

No caso de uma segunda língua (L2), é importante conceber que a exposição a mate-
riais linguísticos autênticos (filmes, livros, cinema, etc.) provavelmente determinará a quali-
dade do input recebido. Percebemos que esses inputs recebidos pelo aprendiz, no que concer-
ne à prosódia2, parte intrínseca do aprendizado de uma L2, refletem uma entoação, e a melo-
dia da língua, nesse caso o francês, é subjacente às questões linguísticas dessa Língua Estran-
geira (LE).
A prosódia é adquirida muito cedo pela criança em sua língua materna e constitui um
componente importante da oralidade. Salientamos que mesmo se dominarmos muito bem os
fonemas de uma LE ainda precisaremos deixar de projetar na LE o sistema acentual e a entoa-
ção da nossa Língua Materna (LM) para alcançar a proficiência de um nativo. Um aprendiz
que articula de maneira equivocada os sons de uma LE, assim como aquele que não acentua
as sílabas corretamente ou aquele cuja entoação não corresponde à entoação da língua alvo
terá um sotaque, ou um accent, nessa língua.
A importância dos estudos prosódicos em uma LE é evidente conforme Flege e Bohn
(1989) dizem, pois muitos aprendizes de LE apresentam um sotaque mesmo depois de terem
atingido um grau elevado de experiência e de conhecimentos sobre a língua alvo. Vaissière
(1991) acrescenta que esse sotaque ocorre pela falta de conhecimento prosódico da língua
aprendida e que, a partir das diferenças estruturais de cada língua, é possível dizer que a LM
pode criar interferências entonativas na produção de uma L2.
O objetivo principal do aprendiz é se comunicar e se fazer compreender pelos nativos
da língua alvo. Ao aprendermos uma segunda língua, a comunicação oral, normalmente, é o
enfoque principal do aprendizado, sobretudo no que concerne à pronúncia. A maioria dos mé-
todos didáticos (MERIEUX e LOISEAU 2004, GIRARDET e CRIDLIG, 2001, AUGE, PU-
JOLS e MARLHENS, 20043) utilizados no curso de Letras-Francês da UFSC aborda a pro-
núncia, apresentando o panorama dos fonemas da língua francesa bem como as regras gerais
de uso (pronúncia), tais como “la liaison 4” e “ l’enchaînement 5” ou juntura.

2
A prosódia é definida como um ramo da linguística que estuda a descrição (aspectos fonéticos) e a represen-
tação formal (aspectos fonológicos) dos elementos da expressão oral, tais quais: os acentos, os tons e a entoa-
ção, cuja manifestação concreta da fala, está associada às variações da frequência fundamental (f0), da dura-
ção e da intensidade. Di Cristo (2000).
3
Métodos usados durante a formação dos informantes brasileiros que participaram do nosso estudo.
4
Fenômeno fonético realizado pelos nativos do francês que ocorre em fronteira de palavras.
5
Juntura é uma fronteira entre dois segmentos, sílabas, morfemas, sintagmas, ou frases. A juntura tem valor
demarcativo, delimitativo e deve ser classificada entre os elementos supra-segmentais ou prosodemas. É sim-
bolizada foneticamente pelo sinal + ou #. Permite distinguir em francês l’essence e les sens (Dubois, 2006)
4

Mas, como abordar na comunicação oral os variados acentos da língua francesa se


não existe um francês único, idêntico em todos os lugares francófonos? Mesmo na França, de
Lille a Marseille, de Quimper a Strasbourg, fala-se com sotaques distintos. Se o francês varia
no espaço, ele também muda com o decorrer do tempo. Não se fala mais exatamente o mesmo
francês no mundo francófono. É a mistura de uma língua comum, o francês, que estabelece a
francofonia6.
Ao perguntarmos aos nossos informantes aprendizes de FLE do curso de Letras-
Francês da Universidade Federal de Santa Catarina se eles, durante o aprendizado de FLE,
receberam informações sobre o universo prosódico da língua francesa, a resposta não foi das
mais motivadoras.
O aprendizado mais recorrente citado pelos aprendizes estava relacionado às vogais.
No nível segmental7, a vogal /y/8 do francês, bem diferente de qualquer som do português
brasileiro, foi citada como um som difícil de ser produzido e por isso bem trabalhado em sala
de aula e nas atividades de pronúncia dos métodos didáticos já citados. Segundo Alcântara
(1998), essa vogal é o primeiro som adquirido pelos aprendizes brasileiros de FLE, pois re-
presenta uma maior ocorrência no léxico da língua francesa. Essa impressão dos alunos da
UFSC, e conforme Alcântara (1998) converge com Rochet (1995), que, em um estudo expe-
rimental sobre a pronúncia dos estudantes brasileiros de FLE, verificou que os estudantes, ao
tentarem produzir a vogal alta anterior arredondada do francês /y/, aproximavam-se mais da
vogal /i/ do português para em seguida realizarem corretamente esse som.
As vogais nasais //, // e // 9, que segundo Pagel e Wioland (1991) são as vogais ne-
cessárias para a comunicação falada em francês, também foram mencionadas pelos estudantes
como uma prática recorrente nas atividades de áudio dos métodos já citados.
Em relação ao nível suprassegmental10, o aprendizado, segundo os alunos, estava na altura
melódica em frases interrogativas, tanto nas totais (sim-não) quanto nas lexicais (aquelas que

6
. A francofonia é o conjunto de países ou regiões que tem como língua materna ou língua usual o francês.
(JOUBERT 1997)
7
Nível segmental é referente ao segmento. Segmento é o termo usado na linguística para fazer referência a qual-
quer unidade discreta que possa ser identificada fisicamente ou auditivamente, no fluxo da fala (Crystal,
1997)
8
A vogal [y] pode ser encontrada nas palavras tu/lune/sur/vocabulaire e é considerada um dos sons mais difí-
ceis da língua francesa para um estrangeiro produzir.
9
Existe também uma quarta vogal nasal, [], porém ela não foi incluída, pois segundo Léon (2010) não apre-
senta mais oposição fonológica e não é produzia nos dias atuais ou pelas novas gerações francófonas.
10
Conforme Crystal (1997) o suprassegmental refere-se a um termo mais amplo, pois pode ser definido como
um efeito vocal que se estende por mais de um segmento de som em um enunciado.
5

apresentam a expressão est-ce que) ou nas interrogativas que apresentam inversão sujeito ver-
bo (tu viens/ viens-tu?). Contudo, é oferecido nesse curso, de forma optativa, a disciplina de
fonética do francês. Essa disciplina permite aos alunos um aperfeiçoamento do conteúdo foné-
tico apresentado até então de forma genérica nas disciplinas desse curso. Se já é difícil encon-
trarmos atividades que englobem a pronúncia de uma L2, é mais difícil ainda que abordem
esse universo prosódico.
Nossa contribuição será analisar, através de dois parâmetros acústicos (duração e frequên-
cia fundamental), a curva entonacional de aprendizes brasileiros de FLE com a curva entona-
cional dos nativos franceses de Paris, comparando-as.

1.2 Projeto AMPER e a seleção das cidades

O projeto Atlas Multimédia Prosódico do Espaço Românico (AMPER)11 tem, como


principal objetivo, o estudo da organização prosódica das variedades faladas no espaço
dialetal românico. Esse projeto é coordenado por Michel CONTINI e Jean-Pierre LAI do
Centro de Dialectologia da Universidade de Grenoble (3) (França). Define-se como um
programa de geolinguística dialetal cuja finalidade é formar um banco de dados que repre-
sente as entoações de falantes das línguas românicas que possibilitem análises comparati-
vas.
Para contribuir com essa proposta, projetamos um estudo que a visa comparar os
padrões entonacionais do francês de falantes de duas cidades de dois países em continentes
diferentes: Paris (França) e Florianópolis (Brasil).
A cidade de Florianópolis foi escolhida por ter um curso de Letra e Literatura Fran-
cesa formando futuros professores de FLE, o que possibilita comparar o perfil entonacional
desses professores brasileiros de FLE.
A imigração multicultural na cidade de Paris favorece um mosaico cultural e lin-
guístico (DA SILVA, 2005) com diferenças acentuadas no que diz respeito à língua falada.
Por isso a escolha de gravar com parisienses de origem e de família parisiense em um con-

11
O Atlas Multimédia Prosódico do Espaço Românico (AMPER) visa contemplar, além das variedades do Por-
tuguês Europeu (PE) e do Português Brasileiro (PB), outras línguas românicas, tais como o italiano, o fran-
cês, o castelhano e o galego, pretendendo-se o seu alargamento relativamente a esta família de línguas. O
AMPER-POR (Atlas Multimédia Prosódico do Espaço Românico para o Português) é coordenado pela pro-
fessora Lurdes de Castro Moutinho, do Centro de Investigação de Línguas e Culturas da Universidade de
Aveiro. A coordenação geral do AMPER é da responsabilidade dos professores Michel Contini e Jean-Pierre
Lai, do Centro de Dialectologia da Universidade de Grenoble (3), França. O projeto AMPER pode ser con-
sultado no endereço eletrônico: http://pfonetica.web.ua.pt/
6

texto acadêmico. Essa gravação foi realizada no Laboratoire de Phonétique et Phonologie


– Sorbonne-Nouvelle, coordenado pela professora Jacqueline Vaissière.
O francês falado no meio acadêmico pode ser classificado como padrão (DETEY et
al, 2010) e, por muitas vezes, é esse o reproduzido em contextos acadêmicos brasileiros de
ensino, como por exemplo, nos áudios de materiais didáticos e no curso universitário, foco
da presente pesquisa.

1.3 A pesquisa

O trabalho desenvolvido para esse estudo foi constituído de análises comparativas


dos perfis entonacionais de falantes parisienses e aprendizes brasileiros de FLE.
Neste estudo, investigou-se os padrões entonacionais de dois informantes, nativos
de Florianópolis, aprendizes de FLE, comparando-os com os padrões entonacionais de dois
falantes nativos de Paris com base na metodologia do projeto AMPER.
Essa metodologia propõe a elaboração de um corpus constituído de uma série de
sentenças nas modalidades declarativa e interrogativa total que obedece a variados critérios
linguísticos. Esse corpus consiste em um conjunto de sentenças, baseadas em imagens. O
Projeto AMPER possui esse corpus já montado para várias línguas (italiano, português eu-
ropeu e brasileiro), no entanto, para o francês ainda não havia um corpus montado. Assim,
esse estudo, além de nos iniciar na pesquisa prosódica, nos permitiu a montagem desse
corpus para a língua francesa.
Esse corpus é composto de 102 frases nas modalidades: declarativa e interrogativa
total (frase que pode ter sim/não como resposta). O sintagma nominal sujeito, assim como
o que complementa o verbo, possuem extensões adjetivais e preposicionais. As gravações
foram feitas a partir de imagens que induzem os informantes a produzirem as frases deseja-
das, pois, em pesquisas sobre a entoação, tem-se observado que, quando se objetiva dados
de fala mais natural, a coleta de dados deve ser considerada, uma vez que a maior parte dos
dados até aqui obtidos se baseiam na fala controlada pela leitura. Tal entoação que apresen-
ta características relativas à leitura, não pode muitas vezes ser generalizadas para a fala
natural. Outro ponto problemático é a impossibilidade de comparação entre as diferentes
línguas. Os dados coletados são estruturalmente e lexicalmente bastante diversos impossi-
bilitando tal comparação. Em função dessas dificuldades, alguns pesquisadores (CONTINI,
2007; MOUTINHO et al. 2007; SEARA e FIGUEIREDO-SILVA, 2007; dentre outros)
7

têm buscado estratégias de coleta de dados que evitem a leitura e que possam ser represen-
tativos da fala estimulada visualmente.
Tivemos a participação de quatro informantes e traçamos um mesmo perfil, a saber:
dois homens e duas mulheres, idades entre 28 e 31 anos, naturais das cidades pesquisadas,
dois falantes do francês, língua materna, no caso de Paris, e dois de francês língua estran-
geira, no caso de Florianópolis.
Para realizar esse estudo, apresentaremos a seguir algumas definições para os ter-
mos prosódia e entoação e para os seus parâmetros acústicos, enfoque principal da nossa
pesquisa.

2 PROSÓDIA E ENTOAÇÃO
Compreender a definição de prosódia implica um olhar sobre a origem do termo, que
vem do latim e significa, para João Nunes de Andrade (1841 apud MATEUS 2004) e também
para Houaiss (2009), acento tônico, quantidade de sílabas. Anteriormente, tem origem no gre-
go, pros-ôdia, que significa o canto, mas também significa o acento tônico.
Atualmente, os estudos sobre a prosódia tornam-se mais refinados. Para Moraes
(1999), a prosódia refere-se à parte da fonética e da fonologia que se ocupa dos elementos que
acompanham a sucessão de sons (fonemas) que são normalmente transcritos pelos grafemas
na ortografia.
São do domínio da prosódia os estudos sobre a entoação, os tons e a acentuação da
língua: a acentuação e os tons se aplicam às palavras e se situam no nível lexical de um
enunciado, enquanto a entoação se aplica sobre uma sequência de palavras e se situa no
nível do enunciado.
A definição de prosódia ainda é um campo de discussão amplo e complexo. Da nossa
parte, concordamos com Vaissière (1997), quando diz que a prosódia engloba os fenômenos
de variações na atualização dos fonemas. Essas variações podem ser descritas: (i) sobre o pla-
no acústico, que nesse caso descreve a evolução da curva de f0, a duração e a intensidade dos
segmentos; (ii) sobre o plano perceptual, descrevendo a percepção do ritmo das frases e da
melodia, seu acento, sua entoação e (iii) sobre o plano funcional, que apresenta a função lin-
guística dessas variações.
Para Di Cristo (2000), a prosódia é definida como um ramo da linguística que estu-
da a descrição (aspectos fonéticos) e a representação formal (aspectos fonológicos) dos
elementos da expressão oral, tais quais: os acentos, os tons, a entoação, cuja manifestação
8

concreta da fala está associada às variações da frequência fundamental (f0), da duração e da


intensidade.
Para um linguista, os estudos prosódicos e entonacionais estão ligados a quase todos os
domínios da linguística, visto que os parâmetros prosódicos – intensidade, variação melódica,
duração de frase, etc. – pertencem ao sistema linguístico.
De modo geral, é comum que a palavra “entoação” nos remeta à maneira como um indi-
víduo fala, e normalmente está ligada ao tom em que essa fala foi proferida (alegre, dolorido,
irônico, amigável, etc.). Nesse primeiro momento, a entoação, conforme Léon (2007) e Vais-
sière (1997) assume um papel quase universal no contexto emocional primário do ser huma-
no.
A entoação é uma categoria da linguística que pode ser encontrada em cada sistema de
acordo com um conjunto específico de traços prosódicos ou suprassegmentais.
Moraes , refere-se, então, ao termo como “modulações melódicas no nível da frase”
(MORAES, 1998). Léon (2007) também afirma que a entoação por muito tempo foi negligen-
ciada até assumir um importante papel linguístico.
Para o nosso trabalho, ressaltamos que a definição mais importante da entoação é relativa
à função diferenciadora que a entoação apresenta a partir da curva entonacional de frequência
fundamental nas frases declarativas e interrogativas totais analisadas neste estudo.

2.1 Frequência fundamental


A grande maioria das línguas possuem fenômenos linguísticos universais, acusticamente
isso também é visível, ao analisarmos a frequência fundamental (f0). De acordo com Vaissiè-
re (1997), a maioria das línguas apresentam um movimento de F0, a declinação progressiva
em direção ao fim da frase, uma leve subida em início de frase e um leve abaixamento final.
Esses fenômenos são considerados em geral como um fato fisiológico da linguagem (VAIS-
SIÈRE, 1997) e o francês e o português fazem parte dessa universalidade acústica.
Conforme comentado, o parâmetro mais significativo para os estudos sobre entoação é a
frequência fundamental. Para Behlau (2001), essa frequência corresponde à velocidade na
qual uma forma de onda se repete por unidade de tempo, o que é indicado por ciclos por se-
gundo (c/s), ou seja, por Hertz (1 Hz corresponde a 1 c/s). A frequência fundamental de um
indivíduo é determinada fisiologicamente pelo número de vibrações que as pregas vocais fa-
zem em um segundo, ou seja, pelo número de ciclos glóticos que se repetem. Portanto, qual-
quer ajuste que reduza os ciclos glóticos vai interferir também na f0.
9

2.2 Duração

A duração é medida em milissegundos e é considerada uma extensão de um som em


um dado momento de fala. Podemos medir a duração a partir de segmentos da fala e de sua
velocidade. Como vamos analisar nossos dados a partir de vogais, lembramos que normal-
mente as vogais abertas são em geral mais longas do que as vogais fechadas, por causa do
tempo necessário da abertura da boca. Uma vogal pronunciada, normalmente é mais longa, ou
seja, apresenta maior duração, em contextos posteriores a uma consoante sonora do que quan-
do ela está ao lado de uma consoante surda (VAISSIÈRE, 1980).
No caso do francês, citamos o exemplo de Wenk & Wioland (1982) que mostram que
a duração silábica varia consideravelmente e esses autores acabam concluindo que as caracte-
rísticas de duração têm pouco a contribuir com as categorias do ritmo determinadas pela im-
pressão perceptiva da fala, mas que, na prosódia, a duração é o parâmetro mais importante.
Na presente pesquisa, daremos enfoque à duração, pois acreditamos, assim como
Vaissière (1980), que em estudos que comparam a entoação de uma língua com outra, os pa-
râmetros acústicos mais relevantes a serem analisados são a frequência fundamental e a dura-
ção dos segmentos.
3 METODOLOGIA
Definimos, para esta pesquisa duas cidades para a coleta de dados: Paris (França) e
Florianópolis (Brasil). Paris foi escolhida por ter o francês como língua materna e pelo acesso
que tivemos ao Laboratório de Fonética e Fonologia da Universidade Sorbonne-Nouvelle (Pa-
ris 3) para realizar as gravações necessárias com os informantes franceses. A cidade de Flori-
anópolis teve sua escolha baseada na investigação do perfil entonacional de aprendizes de
FLE da UFSC, para, em seguida, compará-lo ao perfil entonacional do francês. Teremos um
total de quatro informantes, dois de cada cidade e de ambos os sexos.

3.1 Sujeitos da pesquisa


Para a escolha dos informantes, optamos por obedecer a um mesmo perfil com as se-
guintes características: idade entre 28 e 31 anos; ambos os sexos; nível universitário comple-
to. Todos são naturais das cidades aqui pesquisadas.
O informante brasileiro da cidade de Florianópolis possui Licenciatura em Letras-
Francês, e ocupa hoje um cargo de professor de francês em um curso extracurricular de lín-
guas estrangeiras da UFSC. Realiza também um doutorado em Literatura pela mesma institui-
ção. A informante brasileira também formada no mesmo curso de Letras-Francês, é doutoran-
10

da em Linguística e durante seis anos foi professora do curso extracurricular de francês tam-
bém na UFSC. O informante francês realiza seu doutorado no Laboratório de Fonética e Fo-
nologia da Universidade Sorbonne-Nouvelle (Paris 3) e é nascido em Paris. A informante
francesa também está no doutorado em Antropologia na mesma universidade e também nas-
ceu na cidade de Paris.

3.2 Corpus da pesquisa


Para a realização dessa pesquisa, foi elaborado um corpus, baseado nas estratégias me-
todológicas do Projeto AMPER. Esse corpus apresenta frases que obedecem a critérios lin-
guísticos pré-estabelecidos. O corpus utilizado é uma readaptação do corpus já adaptado para
o português brasileiro (PB), elaborado por Jussara Abraçado de Almeida Antônio (UFF) e
João de Moraes (UFRJ).
A construção do corpus implicou uma readaptação considerando a estrutura de acentu-
ação da língua francesa. Tem-se, nessa língua, o acento que recai sempre na última sílaba do
grupo rítmico, enquanto, no PB, a região de acento está localizada sobre uma das últimas três
sílabas das palavras, oxítona (última sílaba), paroxítona (penúltima sílaba) e proparoxítona
(antepenúltima sílaba). Daí a necessidade de uma readequação.
A readaptação deu-se a partir de uma pesquisa e de testes realizados com outros in-
formantes para observar o enquadramento aos critérios levados em conta para a elaboração
desse corpus (DA SILVA, 2008). Era preciso que ele desse suporte à investigação entonacional
aqui realizada e também à avaliação comparativa entre a língua francesa, de Paris, e dos pro-
fessores de FLE, de Florianópolis.
Optamos então de montar sentenças com palavras que fossem constituídas de uma,
duas ou três sílabas, sendo elas sintagmas nominais sujeito ou complemento. O verbo que,
para o PB, é gostar, passa a ser regarder.
Assim, conforme já proposto na metodologia do projeto AMPER, as gravações são
guiadas por imagens contendo figuras que se referem aos personagens, um verbo fixo (regar-
der), adjetivos e sintagmas preposicionados.
O corpus, então, contém um total 102 sentenças, sendo 51 compostas por frases decla-
rativas e 51 por interrogativas totais, conforme modelos e etiquetagens apresentados no Qua-
dro 3.2.
11

Q
Quadro 3.2 - Modelo de sentenças e de código para etiquetagem das sentenças

No que concerne às gravações, são consideradas de fala semi-controlada, uma vez que
realizadas a partir de imagens que resultariam em frases nas modalidades: declarativas e inter-
rogativas totais com estrutura sintagmática: sujeito + verbo + complemento, podendo haver
extensões.
A seguir, nas Figuras 3.1, têm-se exemplos das imagens lidas pelos informantes.

Figura 3.1 - Modelo de estímulo visual para a gravação das frases. Modalidade: interrogativa
total constituída de sujeito (com extensão preposicionada) + extensão + verbo + complemen-
to: Le chat de Paris regarde le colibri

Após a coleta de dados, demos continuidade às cinco etapas da metodologia AMPER,


12

quais sejam: (i) armazenar os dados em arquivos sonoros, (ii) agrupar as sentenças por moda-
lidades, (iii) identificar cada enunciado de acordo com o código já proposto pelo projeto AM-
PER, (iv) segmentar e etiquetar as vogais, (v) escolher as sentenças semelhantes, isto é, sen-
tenças que possuem o mesmo número de vogais para a obtenção automática das médias da
frequência fundamental e da duração, plotadas em gráficos separadamente, cruzando apenas
as duas modalidades.

4 DISCUSSÃO E RESULTADOS
Para discutirmos os dados optamos em trabalhar com 20 frases, nas modalidades: de-
clarativa e interrogativa total de cada informante. Fizemos a média das três repetições de cada
frase, e os gráficos de duração e frequência fundamental representam essa média. No total,
temos 80 sentenças, sendo avaliados, para cada uma delas, os parâmetros acústicos: duração e
frequência fundamental.

4.1 Comparação da duração da frequência fundamental dos informantes masculinos


brasileiro e francês nas modalidades declarativa e interrogativa total
Iniciaremos nossa comparação apresentando as semelhanças e as diferenças entre es-
ses dois informantes concernentes à duração e à frequência fundamental.
Em relação às vogais tônicas, ambos os informantes apresentam duração média mais
elevada nas vogais tônicas de cada enunciado, seja nos declarativos ou nos interrogativos.
O informante brasileiro apresenta maior contraste de duração entre tônicas e átonas em
cada grupo rítmico, exibindo entre as vogais uma grande oscilação na duração se comparadas
às vogais do informante francês. (veja Figuras 4.1)

Figura 4.1 - Comportamento da duração média (em ms) das vogais interrogativas (azul escuro
(BR) e azul claro (FR)) do enunciado Le canard ravissant regarde le chat.
13

Figura 4.2 - Histograma das durações (em ms) dos informantes: francês e brasileiro respecti-
vamente na frase Le colibri regarde le chat.

Já, em relação ao comportamento da duração na parte final das sentenças os informan-


tes apresentam uma curva bem similar em ambas às modalidades, ou seja, nesse grupo final, a
relação entre tônicas e átonas parece semelhante (Figura 4.2 e 4.3).

Figura 4.3 - Comportamento da média de duração (em ms) das vogais declarativas e interro-
gativas dos informantes: francês e brasileiro respectivamente na frase Le colibri re-
garde le chat.

Agora vamos analisar o comportamento da curva de f0 nas modalidades: declarativa e


interrogativa dos informantes brasileiro e francês.
Em relação ao contorno inicial de f0, dos enunciados declarativo e interrogativo, o in-
formante francês desenha uma curva entonacional semelhante nas duas modalidades até o
final do primeiro grupo rítmico. Já o informante brasileiro exibe com maior frequência curvas
diferentes para ambas as modalidades. Na modalidade declarativa, o informante brasileiro
apresenta já de início na primeira vogal do enunciado uma elevação de pitch (sobre o deter-
minante le). Isso pode ser verificado na Figura 4.13, a seguir. Essa é a diferença mais marcan-
te entre os dois informantes, uma vez que o francês apresenta essa elevação de pitch no de-
14

terminante em apenas uma de suas produções, enquanto o brasileiro a apresenta em todos os


seus enunciados. Observamos ainda que, para o brasileiro, na vogal tônica desse primeiro
grupo rítmico, há uma subida somente na declarativa, porém é uma subida bastante abrupta.
Para o francês, essa elevação de pitch ocorre nas duas modalidades, mas não de forma abrup-
ta, conforme se pode constatar pelos exemplos exibidos na Figura 4.4.

Figura 4.4 - Gráfico curva de f0 do informante francês (à esquerda) e do brasileiro (à direita)


da modalidade declarativa (vermelho) e interrogativa (azul) da sentença Le canard regarde le
chat.

No final da curva entonacional, o informante francês apresentou em nossos dados o


contorno característico do francês: na declarativa um contorno de f0 descendente nas três úl-
timas vogais do último grupo rítmico, diferente da interrogativa que exibe um contorno as-
cendente neste grupo rítmico final, apresentando uma subida apenas na última vogal tônica do
enunciado (Figuras 4.4 e 4.512). Ambos os contornos finais, segundo Léon (2007), Moutinho e
Zerling (2002) e Vaissière (1997), são característicos do francês. O informante brasileiro tam-
bém apresentou similaridade quanto à curva entonacional final na modalidade interrogativa:
há uma subida abrupta de pitch no final do enunciado, mas essa elevação inicia-se na penúl-
tima vogal e não na última conforme se esperaria para o padrão entonacional do francês (Fi-
guras 4.4 e 4.5). Na modalidade declarativa, o informante francês apresenta um contorno final
que decresce continuamente, já o brasileiro apresenta uma descida abrupta de pitch na última
vogal tônica do enunciado declarativo (Figuras 4.4 e 4.5).
Exibimos também a curva de f0 em outro modelo de gráfico, no qual as curvas do
francês e do brasileiro estão sobrepostas e separadas a partir da modalidade.. Por esse gráfico,
podemos observar com mais clareza os dados discutidos na comparação entre os informantes.
15

Figura 4.5 - Curva entonacional dos informantes masculinos no enunciado Le canard regarde
le chat , separadas pela modalidade.

Agora, se compararmos o comportamento apresentado pelo informante brasileiro no


que concerne ao contorno de f0, veremos que suas produções apresentam uma maior variação
enquanto, para o francês, verificamos uma curva sem grandes oscilações.

4.2 Comparação da duração e da frequência fundamental das informantes femininas,


brasileira e francesa, nas modalidades declarativa e interrogativa total
Nessa segunda comparação, continuaremos apresentando as semelhanças e as diferen-
ças relacionadas às produções realizadas pelas nossas informantes femininas em ambas as
modalidades: declarativa e interrogativa.
Em relação ao parâmetro duração referente à informante brasileira e à francesa, pode-
mos concluir que ambas apresentam duração mais elevada nas vogais tônicas de cada enunci-
ado se comparadas com as vogais átonas. Pelas sobreposições do comportamento da duração
nas duas modalidades, apresentadas na Figura 4.6, podemos dizer que as duas informantes
apresentam uma grande similaridade tanto na região de pré-núcleo quanto na de núcleo em
praticamente todas as suas produções.

12
Na Figura 4.4, apresentamos sobreposição de curvas de f0 para a comparação dentre as modalidades, enquanto
na Figura 4.5, a sobreposição das curvas f0 é mostrada para comparação entre os informantes.
16

.Figura 4.6 - Comportamento da duração média das vogais declarativas (vermelho (BR) e rosa
(FR)) e interrogativas (azul escuro (BR) e azul claro (FR))) do enunciado Le canard
regarde le chat da informante brasileira e francesa.

A diferença entre as duas está ainda na duração do determinante do primeiro grupo


rítmico que, para a brasileira, tem maior duração do que as sílabas átonas em suas adjacên-
cias, diferentemente da francesa que vai crescendo em duração até a tônica final desse grupo
rítmico. (Figura 4.7). Esse fato, no entanto, nas produções da informante brasileira, não é tão
frequente quanto se mostrou para o informante brasileiro..

.Figura 4.7 - Comportamento da duração média das vogais declarativas (vermelho (BR) e rosa
(FR)) e interrogativas (azul escuro (BR) e azul claro (FR)) do enunciado Le chat de
Toronto regarde le colicbri e Le colibri regarde le chat timide, respectivamente,
das informantes brasileira e francesa.

Agora vamos a análise comparativa do comportamento da curva de f0 nas modalidades:


declarativa e interrogativa das informantes, brasileira e francesa.

Figura 4.8 - Curva de f0 das informantes francesa e brasileira do enunciado Le colibri regarde
le chat.

Em relação ao contorno inicial da f0, no que diz respeito ao pré-núcleo das declarati-
vas e interrogativas, a informante brasileira e a francesa desenham uma curva entonacional
17

semelhante nas duas modalidades até o final do primeiro grupo rítmico: elevação de pitch na
última sílaba tônica: padrão característica do francês, confirmando assim o padrão já des-
crito por Léon (2007), Moutinho e Zerling (2002) e Vaissière (1997) para a região de pré-
núcleo.
No final dos enunciados declarativos, as informantes apresentam um contorno final
descendente, porém a informante brasileira aparenta uma descida mais abrupta de pitch do
que a informante francesa, mas sempre apenas na última sílaba tônica da região nuclear.
Já, para as frases interrogativas totais, as informantes, brasileira e francesa, apresentam
uma curva descendente no início do segundo grupo rítmico e, ao final do enunciado sobre a
sílaba tônica final, ocorre uma subida abrupta de pitch. Esse contorno final é característico do
francês (Figura 4.8), para ambas as informantes.
Aqui percebemos que a informante brasileira apresenta um perfil melódico bastante
próximo daquele apresentado pelos franceses, o que não se pode dizer em relação ao perfil
melódico do brasileiro, quando produz sentenças declarativas e interrogativas na língua fran-
cesa. Esse informante parece influenciado pelo movimento melódico resultante da variação de
acento lexical do PB.
Observando a ficha social dos informantes brasileiros, notamos que há uma diferença
na experiência da língua, vivenciada pela brasileira que morou por alguns meses no país da
LE. No entanto, outras análises necessitam ser realizadas, levando em conta fatores como, por
exemplo, a experiência no país da LE, para que possamos complementar os resultados aqui
apresentados.
Concluímos esse artigo, mas não a pesquisa aqui iniciada, uma vez que ela suscitou
uma enorme curiosidade sobre um aspecto que vem sendo pouco explorado nos estudos acer-
ca da interlíngua francês-português – o suprassegmento – a prosódia e a entoação e os fatores
linguísticos e sociais que podem influenciar na sua aquisição em LE.

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SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

PRÁTICAS DE LETRAMENTO NO LIVRO DIDÁTICO DE LÍNGUA


PORTUGUESA: DIFERENÇA ENTRE AQUISIÇÃO E PRÁTICA

Vanessa Wendhausen Lima (UNISUL-PPGLg/UFSC) 1

RESUMO

O debate recente sobre educação brasileira tem sido sobre possíveis formas de qualificar o
ensino. Assim, muito se tem discutido sobre o papel do letramento quanto ao alcance dessas
melhorias. No entanto, aqui, deixa-se de lado essa ideia de letramento autônomo (STREET,
1984), que confere à simples aquisição deste, a chave para um mundo melhor e, propõe-se
pensar sobre as práticas de letramento trazidas pelos livros didáticos de Língua Portuguesa.
Mais que adquirir, é preciso praticá-lo em sociedade, porém segundo McLaren (1988), há
uma distância significativa entre os atos de aquisição e de prática do letramento. Neste artigo,
analisa-se a forma como os livros didáticos trabalham o letramento no ensino fundamental e,
se incentivam práticas de letramentos locais e/ou aplicação destas fora dos muros da escola,
haja vista que ensinar requer valorizar as práticas de letramento locais. Para isso, fez-se uma
comparação, de base qualitativa, de dois livros didáticos aprovados pelo Programa Nacional
do Livro Didático (PNLD) na última década, utilizando como base as ideias de letramento
autônomo e ideológico de Street (1984), bem como da noção de prática de letramento, de
Barton e Hamilton (1998).

Palavras-chave:
Práticas de letramento. Livro didático. Ensino-aprendizagem.

ABSTRACT

The recent debate about Brazilian education has been on ways of qualifying teaching.
Therefore, it has been discussed about the literacy on the scope of these improvements.
However, here, let aside the idea of autonomous literacy (Street, 1984), which gives the
simple acquisition of the key to a better world, and proposes to think about the literacy
practices brought by Portuguese teaching textbooks. Rather than get, you should practice it in
society, but according to McLaren (1988), there is a significant distance between the
acquisition and practice acts of literacy. In this article, we analyze the way that textbooks have
worked the literacy at basic education, whether to encourage the local literacy practices and /
or application of those outside the school walls, given that teaching requires valuing those
local literacy practices. Thus, it was a comparison of qualitative basis, two textbooks
approved by the Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) at the last decade, building
on the ideas of autonomous and ideological literacy Street (1984), as well as notion of literacy
practices, Barton and Hamilton (1998).

Keywords:
Literacy practices. Teaching textbooks. Teaching and Learning.

1
Mestre e doutoranda em Ciências da Linguagem/UNISUL, com estágio sanduíche pela PPGLg/UFSC; e-mail:
vwlima@gmail.com.
2

1 INTRODUÇÃO
O trabalho com o letramento no ensino fundamental tem gerado acaloradas
discussões, diversos cursos de aperfeiçoamento, além de inúmeras obras publicadas, tomando
por base os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), publicados em 1998. Apesar do debate,
permanece a distância entre as sugestões metodológicas dos PCN, as práticas instituídas pelos
livros didáticos e o trabalho diário do corpo docente. Algo que se deve, frequentemente, ao
despreparo ou desconhecimento de instrumentos que permitam a utilização de práticas locais
de letramento em favor do ensino em sala de aula. O propósito deste artigo não é atribuir
culpa, mas sim constatar um problema persistente, mesmo depois de mais de uma década de
atuação dos PCN.
Conforme Paulo Freire (2011) uma educação efetiva precisa atravessar os muros
escolares, se abrindo para o mundo. A natureza humana parte da convivência social e, por
isso, para o autor, a educação não pode se limitar às salas de aula e aos livros didáticos. A
educação libertadora consiste em permitir que um indivíduo se distancie e se veja no centro de
seu próprio projeto educativo, fazendo com que assim, haja uma reflexão sobre seu papel e
seu lugar no mundo. Frente a isso, é preciso que os professores pensem no processo educativo
como uma valorização das práticas sociais que envolvem a vida de seus alunos e do mundo a
sua volta.
Em função disso, este artigo pretende analisar como dois livros didáticos de Língua
Portuguesa, aprovados pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) nos últimos anos,
trabalham com as práticas de letramento. Identificar se há uma valorização das práticas de
letramento locais ou se continuam trabalhando com as práticas dominantes. Entender e
analisar os objetivos de livros didáticos que, mesmo ancorados nos PCN, ainda assim,
incentivam a aquisição do letramento em vez de valorizar as práticas locais dos estudantes.

2 OS NOVOS ESTUDOS DO LETRAMENTO


A ideia que se tem encontrado hoje como central para uma educação inovadora e
de qualidade é a de que a alfabetização e o letramento andam juntos no que se refere ao
desenvolvimento do indivíduo em sociedades textualizadas. Sabe-se da importância dos dois
para a convivência em sociedade, porém a ideia de aquisição, tanto do código quanto do
letramento, tem sido igualada a uma aquisição cognitiva, individual e que não tem mostrado
resultados efetivos no que diz respeito ao desenvolvimento do letramento.
O desenvolvimento do letramento está mais relacionado aos grupos sociais e ao
que estes grupos fazem com seus textos, escritos ou orais, do que ao ensino propriamente dito.
3

O letramento é consequência do trabalho ou da convivência com uma cultura textualizada e,


especialmente, com o uso que tal cultura faz dos textos. Mais que uma habilidade individual e
cognitiva, o letramento é social e seu lugar é na interação. Segundo Barton e Hamilton (1998,
p. 3), apesar de estar primariamente relacionado ao que as pessoas fazem, o letramento deve
ser visto como uma atividade localizada no espaço que existe entre o pensamento e o texto.
Para os autores, o ponto focal da teoria social do letramento é o que as pessoas fazem com o
letramento: as atividades sociais, os pensamentos e os significados por trás dessas atividades
além dos textos utilizados em cada atividade, ou seja, a teoria social do letramento preocupa-
se com as práticas relacionadas à escrita, em toda e qualquer atividade da vida social.
Os primeiros estudos do letramento surgiram no início da década de 80 quando
Sylvia Scribner e Michael Cole publicaram The Psychology of Literacy, em 1981; e depois,
com a obra Literacy in theory and practice, de Brian Street, em 1984.
Scribner e Cole (1981) aplicam sua pesquisa numa aldeia africana e, chegam à
conclusão de que o letramento deve ser interpretado de maneira mais geral que a competência
escrita; assim como a escolarização parece estar mais para o nível da metalinguagem
competente. Concluem também: as consequências cognitivas do letramento estão ligadas ao
envolvimento em uma cultura letrada, e não diretamente às habilidades desenvolvidas de
leitura e escrita.
Já a obra de Street (1984), onde sugere que o letramento seja visto sob dois
aspectos, o autônomo e o ideológico, lança as bases para os Novos Estudos do Letramento
(doravante NEL). Para entender as bases dos NEL, é preciso entender também que o sentido
do termo literacy abrange a alfabetização e o letramento, conforme comumente disseminado
no Brasil:

Literacy é o estado ou condição que assume aquele que aprende a ler e escrever.
Implícita nesse conceito está a idéia de que a escrita traz consequências sociais,
culturais, políticas, econômicas, cognitivas, linguísticas, quer para o grupo social em
que seja introduzida, quer para o indivíduo que aprende a usá-la (SOARES, 2006, p.
17).

É possível perceber uma relação entre esta e a concepção de alfabetização


libertadora de Paulo Freire, que já na década de 60, empreendia um método de alfabetização
que previa um ensino além do código, primava pela libertação da consciência do indivíduo.
Freire entendia que o ato de alfabetizar deveria significar o ato de permitir a libertação.
“Aprender a ler é aprender a dizer a sua palavra. Aprender a dizer a palavra é aprender a ler o
mundo” (FREIRE, 1987, p. 20).
4

Este método foi amplamente utilizado no cenário nacional, porém, com o golpe
militar de 1964, por conta desse método libertador, Freire foi preso e exilado. O governo
militar se preocupava com o alcance que o método Paulo Freire possuía, pois sua concepção
de alfabetização estava diretamente relacionada ao direito de efetivo exercício da cidadania.
“O método de Paulo Freire é, fundamentalmente, um método de cultura popular: conscientiza
e politiza” (FIORI, 1987, p. 21).
Na abordagem freireana, nega-se que o analfabeto seja passivo, ou apenas um
depositário de conhecimentos, a chamada educação bancária. Para Freire (1987), o analfabeto
pode ser um sujeito ativo, um sujeito participativo de seu próprio processo educativo. Sujeito
pensante que discute, age e, principalmente, decide. Fundamental é a leitura que se faz do
mundo, leitura que permite que o indivíduo seja capaz de alcançar o conhecimento ou mesmo
de se reconhecer no centro de sua aprendizagem e de sua história. Além disso, ao se colocar
no centro de seu processo educativo, o estudante pode enxergar e refletir sobre seu lugar e seu
papel no mundo.
Seguindo tal linha e considerando os estudos do letramento, é possível pensar: “a
palavra de ordem nos estudos sobre o letramento que se voltam para a transformação da
ordem social é „empowerment through literacy‟, ou seja, potencializar através do letramento”
(KLEIMAN, 1995, p. 8). Atualmente, são os NEL que permitem este olhar social, enxergando
o letramento não como habilidade adquirida, mas sim como uma prática social.

2.1 Letramento como prática social


O letramento deve ser concebido como ação cultural e social concreta constituído
por, pelo menos, uma das seguintes atividades: escrita, leitura e fala sobre texto escrito ou
sobre produções semióticas. Segundo Barton e Hamilton (1998, p. 3), para compreender a
essência do letramento é preciso analisá-lo através de um olhar social, assim como localizá-lo
nas interações sociais, que é exatamente onde tais práticas ocorrem. Este olhar permite que se
entenda o letramento como prática social.
Para Barton e Hamilton (1998, p. 6), a noção de práticas de letramento é básica à
Teoria Social do Letramento, pois ela se apresenta como um conceito poderoso para definir as
relações entre as atividades de leitura e escrita e as estruturas sociais em que estão inseridas.
“Práticas de letramento são as formas culturais de utilização da escrita nas quais os indivíduos
moldam suas vidas” (idem). Em um sentido mais simples, práticas de letramento são o que as
pessoas fazem com o letramento.
5

De forma a caracterizar o letramento como prática social, Barton e Hamilton


(1998) apresentam seis proposições que permitem a visualização das atividades de leitura e
escrita, bem como das estruturas sociais que as envolvem:
a) Letramento pode ser melhor compreendido se visto como um cenário de práticas sociais;
estas podem ser inferidas a partir de eventos mediados por textos escritos.
b) Há diferentes letramentos associados a diferentes áreas da vida.
c) Práticas de letramento são padronizadas por instituições sociais e relações de poder e
alguns letramentos se tornam mais dominantes, visíveis e influentes que outros.
d) Práticas de letramento são intencionais e envolvidas por objetivos sociais e práticas
culturais.
e) Letramento é historicamente situado.
f) Práticas de letramento mudam e novas práticas frequentemente são adquiridas através de
processos de aprendizado formal e significativo.
Outro conceito básico à Teoria Social do Letramento é o de evento de letramento.
Ainda conforme Barton e Hamilton (1998, p. 7) os eventos de letramento são atividades em
que a escrita assume um importante papel. Eventos são episódios observáveis que resultam de
e são moldados por práticas de letramento, o que permite salientar o caráter contextualizado
do letramento. Os eventos de letramento podem ser definidos como concretos, já as práticas
de letramento são abstratas.
Considerar o letramento como prática social abre caminho ao debate dos modelos
de letramento de Street (1984). Street trabalha com duas concepções de letramento que podem
ser consideradas dominantes em uma sociedade: o modelo autônomo e o modelo ideológico
de letramento. O modelo autônomo de letramento pressupõe que há apenas uma forma de se
desenvolver letramento, levando à crença de que letramento está diretamente relacionado ao
progresso ou à mobilidade social. De outro lado, há o modelo ideológico de letramento, no
qual as práticas de letramentos são determinadas social e culturalmente, permitindo que a
escrita assuma diferentes significados, dependendo apenas dos contextos e instituições em que
foi adquirida.

2.1.1 Os modelos autônomo e ideológico de letramento


Como mencionado, a noção de prática de letramento é essencial à concepção
social de letramento. Para Street (1984) as práticas de letramento são culturais, discursivas e
determinantes para a produção e interpretação de textos, em contextos específicos. Assim, se
as práticas de letramento apresentam relação de dependência com seu contexto, então essa
6

relação se estenderá também, à carga ideológica desse contexto, impedindo, assim, que se dê
um tratamento neutro ou técnico a tais práticas. No entanto, pensar o letramento dessa
maneira implica pensar que as pessoas, uma vez que aprendam o código escrito, estarão aptas
a transitar em qualquer contexto letrado. A essa abordagem, Street (1984) chama de modelo
autônomo de letramento.
Esse modelo pressupõe que a escrita, de forma autônoma e independente do
contexto social que condiciona seu uso, terá fortes efeitos sobre outras práticas sociais e/ou
cognitivas, ou seja, o desenvolvimento cognitivo, econômico e a ascensão social. Já no que
tange à escola, o modelo autônomo se define como a capacidade de ler e escrever, em que ler
significa ser capaz de decodificar as palavras e escrever ser capaz de codificar a língua dentro
do texto (GEE, 1998, p. 27).
É possível perceber que parte das escolas tem suas práticas de ensino apoiadas
nesse modelo. “O processo de interpretação estaria determinado pelo funcionamento lógico
interno ao texto escrito, não dependendo das reformulações estratégicas que caracterizam a
oralidade” (KLEIMAN, 1995, p. 22). Aqui, a divisão oral/escrito ainda se faz presente e, em
sociedades nas quais o letramento escrito não aparece, o fato é visto como uma lacuna a ser
preenchida. Adquirir letramento significaria adquirir lógica e raciocínio crítico. Por conta
disso, surge a ideia de que mobilidade social, progresso e civilização estão associados ao
letramento: letrar-se é ascender socialmente.
No entanto, os teóricos dos NEL apoiam suas pesquisas no modelo ideológico de
letramento, ou seja, um modelo em que “as práticas de letramento, no plural, são social e
culturalmente determinadas, e, como tal, os significados específicos que a escrita assume para
um grupo social dependem dos contextos e instituições em que ela foi adquirida”
(KLEIMAN, 1995, p. 21). Essa é a natureza social do letramento, considerando leitura e
escrita como práticas sociais e olhando para tais práticas, não apenas como atividades com um
fim em si mesmas (tal como no modelo autônomo de letramento), mas como atividades que
servem a um propósito.
Segundo Terzi (2006, p. 6), este modelo não se desvincula do contexto cultural e
social no qual é construído, bem como do significado que as pessoas atribuem à escrita e das
relações de poder que regem os seus usos, de modo que a junção desses fatores resulta em
letramentos múltiplos que variam de comunidade para comunidade, por conta das condições
socioeconômicas, culturais e políticas que as influenciam. É importante salientar que, para a
autora, optar por esse modelo exige que não se ensine apenas a tecnologia da escrita, mas que
se ofereça a oportunidade de entendimento das situações sociais de interação em que os textos
7

circulam, além dos significados dessas interações para indivíduos e comunidades (TERZI,
2006, p. 5).

2.2 O letramento no livro didático de Língua Portuguesa


É possível perceber que, seguindo as sugestões metodológicas dos PCN, os livros
didáticos de Língua Portuguesa publicados recentemente, tentam trabalhar aspectos que
contemplem a produção/escuta/leitura textual e análise linguística, observando os eixos do
uso e da reflexão. No entanto, nosso foco aqui é perceber como as práticas de letramento são
trabalhadas em dois desses livros. Entendo que o trabalho com o letramento deve ser
priorizado, porém acredito que as práticas cotidianas das comunidades escolares devem ser
privilegiadas em função de um engajamento, apropriação e pertencimento por parte de
estudantes e mesmo professores.
A tarefa de valorizar os letramentos locais deve partir do livro didático, já que este
tem sido utilizado como um “manual” de trabalho por muitos professores. Além disso, um
professor que decide ir além do livro didático, necessariamente, amplia sua carga de trabalho
e, essa possibilidade faz com que muitos professores optem por seguir exclusivamente o que
está explícito nos livros didáticos. Assim, é fundamental que os próprios livros tragam
sugestões de trabalho que envolvam as práticas de cada comunidade escolar, abrindo espaço
para a identificação local e permitindo, assim, que alunos e professores se vejam como o
centro de seu processo de ensino e aprendizagem.

3 ENTENDENDO O OBJETO
3.1 Os livros
A análise se deu com base em duas unidades de dois livros didáticos. Em uma
unidade, o gênero trabalhado foi o artigo de opinião e, na outra, o artigo de opinião.
Fundamentado na ideia libertadora de Paulo Freire para a educação, que via a educação como
uma janela para o mundo e, não acreditava na possibilidade de um ensino fechado às paredes
de uma sala de aula, procuro estabelecer as ligações da prática incentivada pelo livro didático
com a realidade dos alunos. De posso dessas possíveis ligações, tento perceber e mensurar
quais são os aspectos da realidade dos alunos valorizados e, se o são.
Para isso, opto por analisar dois livros publicados recentemente e, aprovados pelo
Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Um dos livros (identificado a partir daqui
como “Livro A”) é intitulado “Português”, da coleção Para Viver Juntos. Foi publicado em
2009 e é destinado ao 9º ano do Ensino Fundamental. As autoras desse livro são as
8

professoras: Greta Marchetti, mestre em Letras pela Universidade de São Paulo (USP); Heidi
Strecker, licenciada em Letras e em Filosofia; e Mirella L. Cleto, licenciada em Letras,
também pela USP. O segundo livro analisado (Livro B) refere-se à obra “Tudo é linguagem”,
das professoras Ana Borgatto, pedagoga e mestre em Letras; Terezinha Costa Bertin, mestre
em Ciências da Comunicação; e Vera Lúcia Marchezi, mestre em Letras. Publicado em 2010,
destina-se aos alunos de 9º ano, também.
O “Livro A” é uma publicação das Edições SM, pertencente ao Grupo SM que é
gerido pela Fundação SM. Com sede nos Estados Unidos, o Grupo atua pela Espanha e
América Latina, chegando ao Brasil em 2004. Já o “Livro B” é uma publicação da editora
Ática, empresa nacional que pertence ao grupo Abril Educação e atua no mercado editorial
desde 1965.
No “Livro A”, que conta com nove unidades de trabalho, os gêneros trabalhados são:
o conto psicológico; o conto social e conto de amor; a crônica esportiva e reportagem
(unidade de análise); o artigo de divulgação científica e verbete de enciclopédia; o texto
dramático e roteiro; o conto e propaganda; a resenha crítica; a propaganda; e a revisão. No
entanto, o “Livro B”, apesar de pertencer ao mesmo ano (9º ano), trabalha gêneros diferentes,
quais sejam: a crônica e conto; o romance; a entrevista; o editorial; o artigo de opinião
(unidade de análise); e o manifesto.

3.2 As unidades de análise


O “Livro A” inicia a unidade trazendo um breve resumo do que será estudado.
Assim, explica: “Os fatos atuais do mundo esportivo são analisados pela crônica esportiva,
gênero em que se misturam jornalismo e literatura. Neste capítulo, você estudará as
características desse gênero textual e depois as comparará com as características de outro
gênero fundamental no jornalismo: a reportagem.” Aqui, o problema é que apesar do
conhecimento prévio que supõe que os alunos possuam, não é possível que uma introdução ao
tema, seja feita de forma tão direta e tão simplista.
Seguindo pela unidade, que trabalha os gêneros crônica esportiva e reportagem, é
possível perceber uma equiparação inadequada entre os gêneros, pois não há comparações
possíveis entre a crônica esportiva e a reportagem. Aquele utiliza de situações do cotidiano
pra montar um cenário, às vezes, fictício. Neste, é feita uma extensão de notícias prévias, um
trabalho mais intenso e, espera-se, profundo de determinado ângulo de um acontecimento.
Em seguida, o livro traz uma crônica esportiva, escrita por José Geraldo Couto, para
a Folha de SP, em 2007, por ocasião da vitória das meninas brasileiras do futebol sobre as
9

americanas. Porém, o autor da crônica começa seu texto fazendo referência ao filme “Quanto
mais quente, melhor” (1959) que tem Marylin Monroe como protagonista. O fato é que, nas
questões para a discussão do texto, por ser um manual do professor, traz as respostas (básicas
e simples) sem entrar no campo do debate. Considerando que o livro dos alunos não possui as
respostas marcadas, pode ser feita uma leitura superficial do texto, não compreendendo, por
exemplo, a complexidade do tema futebol feminino numa sociedade machista. Apesar disso, o
foco deste trabalho não é discutir sobre questões sociais de gênero, mas sim mensurar as
valorizações (ou não) das práticas locais de letramento.
Quando permite um “aquecimento” para a produção de uma crônica esportiva, o
livro sugere que os estudantes leiam um quadro sobre os jogos Pan-americanos e escrevam
sobre o fato da jogadora Marta ter sido convidada a marcar seus pés na calçada da fama, no
Maracanã. Ao solicitar a produção de uma crônica esportiva, mostra duas imagens e pede que
os estudantes se imaginem jornalistas de um jornal de circulação nacional e escrevam um
texto sobre algum episódio esportivo recente.
É perceptível que a unidade lança mão de formas adequadas à produção textual,
como no planejamento do texto, sugerindo que os estudantes pensem sobre os quais são
leitores, qual linguagem adequada para esse público, qual o tamanho reservado a este texto
em questão, a definição do conteúdo e do tom do texto e, por fim, o que será destacado na
crônica (atuação dos esportistas, qualidades de alguém específico, desempenho do árbitro).
De certa forma, o livro se vale de bons operadores de produção textual, a fim de permitir um
pensamento mais crítico sobre o leitor, porém, ao solicitar um texto para um jornal de
circulação nacional, impede que os estudantes pensem ou escrevam sobre um esporte de sua
comunidade ou da própria escola.
Quanto ao “Livro B”, faz uma introdução à unidade, apresentando o que será
estudado, dizendo: “Gênero – artigo de opinião: a intencionalidade e as escolhas de
linguagem, a estrutura do texto argumentativo: tipos de argumento.” Em seguida, adentra o
tema utilizado para gerar textos e debates: “Sorria, você está sendo filmado”.
Nessa unidade é possível encontrar alguns aspectos de trabalho problemáticos e
extremamente distantes da realidade nacional. O texto introdutório ao tema da unidade se
refere às tecnologias de controle, onde tudo é visto e gravado. Publicado na revista Carta
Capital, porém escrito por um correspondente de Londres, lança mão de siglas em inglês,
fazendo, inclusive, referências ao governo britânico, comparando britânicos e chineses,
citando leis inglesas. Apesar de comum também aos brasileiros, o tema “você está sendo
filmado” está distante de muitos de nós, distante de nossa realidade. Um texto relativamente
10

longo (quatro páginas) que precisou de um vocabulário de meia página, tamanha a dificuldade
e distância do tema aos alunos brasileiros, independentemente de região, idade ou classe
social.
Em seguida, para a discussão sobre o texto, ainda faz referências à cultura inglesa.
Traz, inclusive, o mapa do Reino Unido e permanece discutindo sobre a realidade cultural
inglesa, sem menção ou aproximação à realidade brasileira ou mesmo, à história local.
Após uma interpretação problemática, o livro propõe o estudo da estrutura do texto
argumentativo. Para isso, solicita ao estudante o reconhecimento de expressões do texto que
representem as finalidades dos títulos de cada bloco. A atividade se concentra na identificação
de partes estruturais de um artigo, sem aprofundar a ideia, sem permitir ou levantar o debate
sobre a real finalidade de um artigo de opinião. Apenas ao final da atividade, os alunos são
incentivados a dar sua opinião sobre o assunto, porém, novamente, sem incentivar o debate
sobre o controle versus a privacidade.
Após essa atividade, o livro traz mais dois artigos sobre o tema. Um favorável e
outro contrário ao uso exacerbado da tecnologia. Os dois publicados na Folha de SP, em
2004. Como atividade, pede uma comparação sobre a estrutura dos artigos. A atividade
proposta é puramente mecânica, solicitando que os alunos apenas preencham um quadro,
destacando a opinião, os argumentos e a conclusão de cada artigo, transcrevendo trechos dos
artigos.
Depois dessas atividades, extremamente vazias e problemáticas, define: “O artigo de
opinião é um texto que expõe o ponto de vista, a opinião de quem o assina – um jornalista ou
um colaborador de um veículo de comunicação. É um gênero de grande importância social,
pois permite a manifestação de opiniões de pessoas de vários segmentos da sociedade. O
artigo de opinião procura debater questões que suscitam polêmica.”
Apesar dos problemas destacados, é preciso salientar a proposta de debate, feita pelo
livro sobre a questão do controle dos pais sobre os filhos, quanto ao uso do celular. Não fosse
a não solicitação de um debate sobre o tema ou o não incentivo ao pensamento crítico, poderia
ser um tema interessante, porém os alunos precisariam ter sido bem preparados quanto à
exposição de suas opiniões. O que não aconteceu.
Por fim, a atividade de produção de artigo de opinião, ao final da unidade, pede que
os estudantes escrevam um artigo de opinião sobre o uso das tecnologias. Usa como base
inicial, um texto publicado no Estado de SP, citando George Orwell e o surgimento do
Grande Irmão (romance de 1984). Pede uma interpretação de texto e, em seguida, solicita a
produção de um artigo sobre o tema. Não fossem os problemas apresentados anteriormente,
11

como não incentivar os alunos a buscarem sua realidade, seria uma atividade interessante,
entretanto, o livro não permite a localização das práticas. Se pensarmos que, por exemplo, no
interior de grandes estados, como os do nordeste, não há sequer água, o que dizer de celulares
com câmeras, internet sem fio e/ou câmeras de vigilância, o livro está totalmente fora dessas
realidades. De fato, o livro não permite a atualização das práticas.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O primeiro livro, das Edições SM, mostra uma posição dominante chegando a um
país emergente trazendo a luz. Utiliza de exemplos distantes da realidade da criança,
mostrando-se como detentor do saber levando o conhecimento a um espaço em
desenvolvimento. Já o segundo livro, da Editora Ática, é uma produção de uma tradicional
editora no mercado dos livros didáticos. Ainda que esteja “tentando” se adequar às sugestões
metodológicas dos PCN, trabalhando na forma de sequência didática, mantém a já
ultrapassada atividade de “preencha as lacunas” em seu roteiro de trabalho.
É importante salientar que os dois livros trabalham com sequência didática,
estabelecendo um cenário, produzindo módulos de trabalho, avaliando e reescrevendo até
chegar a um produto final, porém falha em alguns desses estágios tornando inócuo todo o
trabalho.
O tratamento dado ao letramento nessas duas unidades é claro. O livro incentiva a
aquisição dos gêneros, mas não trabalha nem com a realidade dos alunos e, tão pouco,
valoriza as práticas locais para as atividades em sala de aula. Esse trabalho mostra uma ideia
de aquisição do letramento, como aquisição de uma habilidade que fará o aluno progredir na
vida. Fazendo-o crer que produzir uma reportagem ou um artigo aos moldes propostos pelos
livros estará lhe assegurando o trânsito em sociedade.
Quando se valoriza as práticas locais, permite-se que o aluno pense sobre seu lugar
no mundo, já que as práticas a que ele já está tão familiarizado também são vistas como
importantes num local valorizado como a escola, a sala de aula. De acordo com Freire (2011,
p. 72), o indivíduo não pode ser visto como “mero espectador do processo, mas cada vez mais
sujeito” e, através da análise dessas unidades, é possível perceber, nitidamente, que o livro
mantém o aluno como um simples espectador.

5 REFERÊNCIAS

BARTON, D.; HAMILTON, M. Worlds of literacy. Clevedon: Multilingual Matters, 1998.


12

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros


curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: Língua Portuguesa.
Brasília: MEC/SEF, 1998.

FIORI, E. M. Aprender a dizer a sua palavra. In: FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido.
25. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 25. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

______. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.

GEE, James Paul. Social linguistics and literacies: ideology in discourses. 2. ed. London:
Falmer Press, 1998.

KLEIMAN, A. B. (Org.). Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a


prática social da escrita. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1995.

SCRIBNER, S.; COLE, M. The psychology of literacy. Cambridge: Harvard University


Press, 1981.

SOARES, M. Alfabetização e letramento. São Paulo: Contexto, 2006.

STREET, B.V. Literacy in theory and practice. Cambridge: Cambridge University Press,
1984.

TERZI, S. B. Mudanças na concepção de escrita de jovens e adultos em processo de


letramento. Revista Brasileira de Linguística Aplicada, Belo Horizonte, v.5, n.1, p. 185-211,
2006. Disponível em: http://www.cereja.org.br/arquivos_upload/sylviaterzi.pdf . Acesso em
25 abr. 2011.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

REFLETINDO SOBRE O FENÔMENO DA PRESSUPOSIÇÃO1

Carlos Antônio Magalhães Guedelha (UFSC/UFAM)2

RESUMO

O objetivo básico deste artigo é tecer considerações a respeito do fenômeno linguístico da


pressuposição. O quadro teórico que sustentou a pesquisa foram as reflexões de Ducrot (1977;
1987), ampliadas por Ilari e Geraldi (2002), Moura (2006) e Oliveira (2009). Focalizamos
alguns conceitos relevantes apresentados por esses pesquisadores, como “conteúdo posto”,
“conteúdo pressuposto” e “conhecimento compartilhado”, e os exemplificamos através de
manchetes do jornal A Crítica, de Manaus/AM, em sua versão eletrônica. Além disso,
destacamos os testes básicos que podem ser usados para avaliar o valor de verdade de
pressupostos em uma sentença. Por fim, discorremos sobre a diferença entre pressuposto e
subentendido, apresentando-os como duas diferentes formas de implícitos. O estudo
comprova que a escolha de palavras e recursos retóricos na organização de um texto nunca é
um ato gratuito. Retiradas de seu estado de dicionário e lançadas na intrincada rede dos
contextos que são as interações humanas, as palavras perdem a sua neutralidade e se
transformam em veículos potenciais de ideologias. A análise das manchetes permite
confirmar que nas entrelinhas dos discursos há pressupostos que, focalizados no seu conjunto,
refletem a ideologia a partir da qual o enunciado foi construído.

Palavras-chave:
Pressuposição. Conhecimento compartilhado. Subentendido.

ABSTRACT

The main objective of this paper is making considerations about the linguistic phenomenon of
presupposition. The theoretical basis which supported the research were Ducrot’s reflections
(1977: 1987), expanded by Illari and Geraldi (2002), Moura (2006) and Oliveira (2009).
Some relevant concepts presented by these researchers were focused, such as “posited
content”, “presupposed content” and “shared knowledge”, examples of which were shown
through on line news on the newspaper A Crítica, of Manaus/AM. Furthermore, basic tests
were outlined which may be used to evaluate the truth value of presuppositions in a sentence.
At last, the difference between presupposition and implicit was shown, presenting them as
two different forms of implicits. The study shows that the choice of words and rhetoric
recourses on a text organization is never a free act. Taking out from their dictionary state and
cast over an intricate net of contexts that constitute the human interactions, words lose their
neutrality and are transformed into potential vehicles of ideologies. The analyses of these
newspaper news allow the conclusion that in the interplay of discourses there are
presuppositions that, if focused in their conjunction, they reflect the ideology from which the
utterance has been built.

Key-words: Presupposition. Shared knowledge. Implicit.

1
Este trabalho foi desenvolvido com o apoio do Governo do Estado do Amazonas por meio da Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas, com a concessão de bolsa de estudo.
2
Professor da Universidade Federal do Amazonas e doutorando em Linguística pela Universidade Federal de
Santa Catarina; e-mail: cguedelha@gmail.com.
2

1 INTRODUÇÃO
O objetivo do presente artigo é desenvolver um estudo a respeito do fenômeno
semântico da pressuposição, tendo como ponto de partida as reflexões estabelecidas por
Ducrot (1977; 1987) e ampliadas por Ilari e Geraldi (2002), Moura (2006) e Oliveira (2009).
Focalizamos alguns conceitos relevantes apresentados por esses pesquisadores, como
“conteúdo posto”, “conteúdo pressuposto” e “conhecimento compartilhado”. Para
exemplificá-los, selecionamos dez manchetes do jornal “A Crítica”, de Manaus, em sua
versão eletrônica3. Além disso, destacamos os testes básicos para avaliar o valor de verdade
de pressupostos em uma sentença, o que Oliveira (2009) chama de “condições de felicidade”
no proferimento da sentença.
A descoberta da pressuposição como realidade linguística contribuiu decisivamente
para a pulverização da antiga concepção de que as línguas naturais, como códigos, permitem
expressar todos os seus conteúdos de forma explícita. O conhecimento de que a pressuposição
desestabiliza essa concepção ultrapassada significou, no entendimento de Rector (1980), a
passagem da semântica do enunciado (produto) para a semântica da enunciação (processo). A
esse respeito, cabe destacar que Ducrot procurou mostrar que a língua não pode ser definida
como um código, um instrumento de comunicação, conforme defendia Saussure. Ela deve ser
considerada, pelo contrário, “como um jogo, ou melhor, como o estabelecimento de um jogo
que se confunde amplamente com a vida cotidiana” (DUCROT, 1977, p. 12).
Para Ducrot (1977, p.12), o fenômeno da pressuposição é responsável pelo
surgimento, no interior da língua, de “todo um dispositivo de convenções e de leis, que deve
ser compreendido como um quadro institucional a regular o debate dos indivíduos”.
Ducrot (1987, p. 20) E deixa bem claro que o pressuposto

é apresentado como uma evidência, como um quadro incontestável dentro do qual a


conversação deve necessariamente inscrever-se, ou seja, como um elemento do
universo do discurso. Introduzindo uma ideia sob forma de pressuposto, procedo
como se meu interlocutor e eu não pudéssemos deixar de aceitá-lo.

Com estas palavras, instaura a ideia de que a realidade linguística da pressuposição


lança os interlocutores numa relação de cumplicidade forjada na própria interlocução, e
confere à língua o caráter inerente de uma arena de debates e o lugar por excelência do
confronto de subjetividades. Oliveira (2009, p. 28), comentando essa perspectiva de Ducrot
sobre a língua, que se realiza como um jogo ou debate, reitera que “não falamos para trocar
informações sobre o mundo, mas para convencer o outro a entrar no nosso jogo discursivo,

3
Todas as manchetes encontram-se no seguinte endereço eletrônico: www.acritica.com.br
3

para convencê-lo da nossa verdade”. Acrescenta ainda que “não falamos sobre o mundo,
falamos para construir um mundo e a partir dele tentar convencer nosso interlocutor da nossa
verdade, verdade criada pelas e nas nossas interlocuções”.

2 CONTEÚDOS POSTO E PRESSUPOSTO


Moura (2006), também analisando as ideias de Ducrot, ressalta dois conceitos
fundamentais no estudo da pressuposição: o conteúdo posto, que diz respeito à informação
contida no sentido literal das palavras de uma sentença; e o conteúdo pressuposto, ou
pressuposição, que engloba informações que podem ser inferidas da enunciação dessas
sentenças. Ele explica que “o conteúdo pressuposto de uma sentença não é afirmado nessa
sentença, mas inferido a partir dela” (MOURA, 2006, p. 13).
É isso que Ducrot (1987) preceitua: que o conteúdo de um enunciado se reparte
arbitrariamente em posto e pressuposto. Assim, para ele o pressuposto é inerente ao enunciado
que o veicula. Defende que o pressuposto pertence ao enunciado, mas de um modo diferente
do posto, uma vez que o posto preenche as linhas do discurso, enquanto o pressuposto reside
nas suas entrelinhas.
Tomemos como exemplo, a manchete (1) abaixo,
(1) “UFAM abre inscrições para o PSC 2012.” (22 de agosto de 2011)

O conteúdo posto é que iniciaram-se as inscrições para o PSC (Processo Seletivo


Contínuo). E o conteúdo pressuposto é que as inscrições não estavam abertas anteriormente. É
o uso do verbo “abrir” (abre), com sua acepção de mudança de estado, que desencadeia o
pressuposto presente em (1).
Mas como é que se desencadeia a pressuposição em um enunciado? que artifícios
linguísticos permitem fazê-lo? Segundo Moura (2006) e Oliveira (2009), a língua conta com
dispositivos especializados na função de ativar conteúdos pressupostos, isto é, expressões que
apontam para a existência de pressupostos no enunciado. Entre os referidos dispositivos
linguísticos, também chamadas de gatilhos pressuposicionais, destacam-se os verbos factivos
(que demandam orações substantivas como complementos. O verbo factivo sugere que o
sujeito da enunciação – o locutor – se compromete com a verdade da proposição que a oração
subordinada encerra.), os verbos implicativos (resultativos), os verbos de mudança de estado,
as expressões iterativas (pressupõe fato repetido, já acontecido antes) e as expressões
temporais. São recursos que nos obrigam a perceber, nas entrelinhas do enunciado,
4

informações que não estão expressas nas linhas do texto mas são evocadas ou sugeridas.
Como exemplificação, observemos as manchetes a seguir e o quadro que as representa:
(2) “D’Alessandro e Bolívar reconhecem que não estão chutando no gol” (9 de julho
de 2011 - adaptado).
(3) “Candidato do P-SOL consegue liminar para participar de debate” (28 de
setembro de 2010).
(4) “Ponte bilionária vira diversão para a garotada” (29 de agosto de 2011).
(5) “Solto pela PF, Pedro Paulo reassume o governo do AP.” (20 de setembro de
2010).
(6) “Manaus nunca mais terá apagão, diz Lula.” (27 de novembro de 2010)

Enunciado conteúdo pressuposto gatilho pressuposicional


(2) D’Alessandro e Bolívar não estão “reconhecem” – verbo factivo
chutando no gol
(3) o candidato havia solicitado uma liminar “consegue” – verbo implicativo
para participar de debate
(4) a ponte não era lugar de diversão para os “vira” – verbo de mudança de estado
garotos antes
(5) Pedro Paulo já foi governador do AP “reassume” – verbo iterativo
(6) Manaus já teve apagão antes “nunca mais” – expressão temporal
Quadro 1 – Pressupostos e gatilhos.

Além dos gatilhos listados acima, há dois outros que são bastante expressivos: as
descrições definidas e as sentenças clivadas. As descrições definidas, conforme Moura (2006,
p. 17), “são expressões que fazem uma certa descrição de um ser específico”, ou seja,
desempenham um papel semelhante ao dos nomes próprios, por sua natureza identificativa.
“O uso de uma descrição definida pressupõe a existência do ser a que ela se refere. Esse tipo
de pressuposição é chamado também de pressuposto de existência” (MOURA, 2006, p. 17).
As descrições definidas são sempre sintagmas nominais (encabeçados por um artigo definido
e tendo um substantivo como núcleo), que identificam um referente no mundo. É o que
acontece, por exemplo, em (7), (8) e (9):
(7) “Os primeiros 100 dias do novo governador do Amazonas.” (9 de abril de 2011)
(8) “Relator pede absolvição do prefeito de Parintins.” (29 de novembro de 2010)
(9) “Candidato do P-SOL consegue liminar para participar de debate.” (28 de
setembro de 2010).
Nessas três manchetes, as expressões definidas foram utilizadas em substituição aos
nomes próprios específicos, como mostra o Quadro 2:
5

enunciado pressuposto de existência descrição definida


(7) Existe alguém que é o novo governador do o novo governador do Amazonas
Amazonas
(8) Existe alguém que é prefeito de Parintins o prefeito de Parintins
(9) Existe alguém que é candidato do P-SOL (o) candidato do P-SOL
Quadro 2 – Descrições definidas.

As sentenças clivadas também são especializadas em ativar pressupostos. Trata-se


de construções em que “uma sentença simples é dividida em duas orações a fim de destacar
um certo constituinte da sentença, enfatizando-se a informação relativa a esse constituinte”
(MOURA, 2006, p. 21). A fórmula das sentenças clivadas é: “(não) foi SN que SV”, sendo
SN sintagma nominal e SV sintagma verbal. Nesses casos, o SV dispara sempre uma
pressuposição, como nos exemplos que seguem (os exemplos não constituem manchetes de
jornal):
(10) Foi a Maria que limpou as vidraças.
(11) Não foi o meu filho que jogou pedra no cachorro.
(12) Não foi Vidas Secas livro que a turma leu este ano.

Em cada um dos três enunciados acima, há uma informação anteriormente


conhecida, dada como certa (SV), e uma nova informação que é fornecida (SN). É exatamente
essa informação dada como certa que constitui a pressuposição, como se pode ver no quadro
3:

Enunciado Pressuposto informação nova


(10) alguém limpou as vidraças foi a Maria

(11) alguém jogou pedra no cachorro não foi o meu filho


(12) a turma leu algum livro no este ano não foi Vidas Secas
Quadro 3 – Sentenças clivadas.

3 TESTES DE PRESSUPOSIÇÃO
O adjetivo é uma das classes de palavras mais produtivas na construção de
pressuposições. Nesta sessão, exemplificaremos isto através da análise da manchete (13)
abaixo:
(13) “Manacapuru registra novo deslizamento de terras.” (12 de novembro de 2010)
Ancorados em Ilari e Geraldi (2002), podemos perceber que a mensagem veiculada
por este enunciado circula em dois níveis.
6

No nível mais superficial, temos uma informação no plano literal. A manchete nos
informa que houve um deslizamento de terras em Manacapuru (um dos municípios do
Amazonas). Este é o conteúdo posto; no segundo nível, somos levados a considerar outra
afirmação, que não participa do eixo sintagmático (não está expressa explicitamente na
sintaxe do enunciado) mas ajuda a compor o eixo paradigmático (é evocada ou sugerida).
Assim, podemos inferir a partir de (13) que já aconteceu deslizamento de terras antes em
Manacapuru. Este é o conteúdo pressuposto.
O que se percebe pela análise de (13) (o que é prontamente confirmado pelo texto da
reportagem), é que o seu enunciador – o jornalista – pretendeu muito mais do que comunicar
o fato situado no primeiro nível. Ao utilizar o adjetivo “novo”, ativou um gatilho de
pressuposição que conduz o leitor a pensar sobre o fato de que não é a primeira vez que
Manacapuru registra um deslizamento de terras. Dessa forma, a manchete nos permite
vislumbrar:
a) um tempo anterior à enunciação (passado) em que houve deslizamento(s) de terra
em Manacapuru;
b) um tempo da enunciação (presente) em que o tremor de terras volta a acontecer
naquela cidade.
Para insistir mais um pouco na realidade da pressuposição no enunciado em análise
(a manchete do jornal), continuamos dialogando com Ilari e Geraldi (2002, p. 61), para quem
“uma frase pressupõe outra toda vez que tanto a verdade quanto a falsidade da primeira
implicam a verdade da segunda”. Observemos, a esse respeito, a bipartição de (13):
(14) “Manacapuru registra novo deslizamento de terras.”
(13a) Já houve deslizamento de terras em Manacapuru anteriormente.
Parece evidente que, se negarmos (13) afirmando (13b)
(13b) Não é verdade que Manacapuru registrou um novo deslizamento de terras
essa negação não afeta o conteúdo de (13a). Assim sendo, considerando que a negação afeta
o conteúdo declarado de uma sentença, mas não afeta o conteúdo pressuposto, e que (13a) não
é afetado pela negação de (13), podemos concluir que (13a) não é um conteúdo declarado,
mas encerra uma pressuposição. Ou seja: a informação pressuposta (13a) permanece intacta
ainda que se questione a veracidade do enunciado de (13), pois ela é dada ao leitor, pelo
jornalista, como indiscutível.
Conforme Moura (2006) e Oliveira (2009), há outras formas de testar o valor de
verdade de pressuposições em um enunciado, além da negação. Na verdade, o teste pode ser
realizado por qualquer uma das peças de um conjunto de estruturas conhecido como “família
7

pressuposicional” ou “P-Família”: a negação, a interrogação, a dúvida e a estrutura hipotética


(condicional) “se A, então oração principal”. Façamos todos esses testes com (13) e (13a),
sendo (13a) um conteúdo pressuposto de (13):
(13) “Manacapuru registra novo deslizamento de terras.”
(13a) Já houve deslizamento de terras em Manacapuru anteriormente.

(13a) é
estrutura representação Enunciados anulada?
Negação Não é verdade que Não é verdade que Manacapuru registrou novo NÃO
(13) deslizamento de terras
Interrogação (13)? Manacapuru registrou novo deslizamento de terras? NÃO
Dúvida Duvido que (13) Duvido que Manacapuru registrou novo NÃO
deslizamento de terras
Hipótese Se (13), então... Se Manacapuru registrou novo deslizamento de NÃO
terras, então a população deve estar preocupada.
Quadro 4 – Teste de valor de verdade: P-Família.

É possível constatar que o conteúdo pressuposto (13a) não se altera em nenhum dos
testes acima. Em todos eles, mantém-se intocada a informação (não declarada explicitamente,
é claro) de que não é a primeira vez que Manacapuru registra deslizamento de terras. Essa
informação implícita resiste quando negamos, questionamos, duvidamos ou formulamos
hipótese a respeito da proposição.
Ilari e Geraldi (2002) fazem referência a dois enfoques que a linguística tem
estabelecido em relação ao fenômeno da pressuposição. O primeiro está relacionado à
pressuposição como “uma condição de emprego da oração que a pressupõe” (ILARI e
GERALDI, 2002, p. 63). Isto significa que o jornalista não estaria utilizando apropriadamente
(13) se não confiasse na verdade de (13a) e se não tivesse razões para acreditar que (13a) é, de
alguma forma, conhecido pelo seu interlocutor (o leitor do jornal) previamente ao uso de (13).
O segundo enfoque diz respeito à pressuposição como “um mecanismo de atuação no
discurso” (ILARI e GERALDI, 2002, p. 63). O jornalista, como locutor, sabendo que as
afirmações pressupostas não são passíveis de negação, utiliza-as como recurso para
estabelecer limites à “conversação” e para direcioná-la. Desse modo, o jornalista que escreveu
(13) está, de fato, conduzindo o seu leitor a acreditar, compulsoriamente, que Manacapuru já
registrou deslizamento de terras antes. O jornalista tem consciência de que uma refutação por
parte do leitor em relação a isso equivale a tornar polêmica a “conversação”, podendo
inclusive travar o diálogo proposto.
Dessa forma, detectar o(s) pressuposto(s) em uma leitura é de fundamental
importância para o leitor, pois esse recurso argumentativo não é posto em discussão pelo autor
8

do texto, fato que deixa o leitor refém do pensamento do autor e o leva até mesmo defender
opiniões que não são necessariamente as suas.

4 CONHECIMENTO COMPARTILHADO
Ainda em relação a (13), esse conhecimento prévio de que o jornalista se serve em
sua enunciação corresponde ao que Moura (2006) denomina de conhecimento compartilhado:
um conjunto de proposições aceitas como verdadeiras pelos indivíduos envolvidos em um
contexto de enunciação, ou seja, o locutor e o interlocutor. Trata-se do que Oliveira (2009)
chama de fundo conversacional: conjunto de discursos previamente existentes num
determinado contexto de interação.
Analisando por esse ângulo, confirmamos que a validade do proferimento de (13)
pelo seu locutor, a felicidade desse proferimento (Oliveira, 2009) depende da existência de
(13a) no conhecimento compartilhado (ou no fundo conversacional) entre esse locutor e seus
interlocutores (os leitores). Em outras palavras, é necessário que os leitores assumam (13a)
como um proferimento verdadeiro para que o diálogo tenha curso.
Imaginemos que um leitor conteste (13) enunciando (13f):
(13f) Não é verdade que Manacapuru registrou novo deslizamento de terras, pois
nunca houve deslizamento de terras antes na cidade.
Nesse caso estaríamos diante de uma situação problemática, com a polêmica
instaurada e o diálogo travado. O conteúdo pressuposto não estaria sendo computado como
um elemento constituinte do conhecimento compartilhado. Vale dizer que se trataria de um
proferimento inexistente no fundo conversacional, o que acarretaria prontamente um enorme
prejuízo à conversação, pois se o pressuposto é falso, o conteúdo posto do enunciado não tem
valor de verdade.

5 PRESSUPOSTO NÃO É SUBENTENDIDO


Há pessoas que confundem pressuposto com subentendido, ou tomam os dois modos
de implícito como sendo uma coisa só. Mas quando nos reportamos a Ducrot, constatamos
que ele insistentemente demarca os traços que diferenciam esses dois fenômenos. Em sua
“distinção entre pressuposto e subentendido” (DRUCOT, 1987), argumenta que:
a) O pressuposto insere-se no componente linguístico, enquanto o subentendido é
mais uma questão de retórica;
b) O pressuposto mantém estreita ligação com as construções sintáticas, enquanto o
subentendido dificilmente denuncia filiação sintática;
9

c) O pressuposto situa-se num passado em relação ao presente da enunciação,


enquanto o subentendido ocorre num momento posterior ao ato de enunciação, como um
acréscimo da interpretação do ouvinte/leitor;
d) O pressuposto é parte integrante do sentido dos enunciados, enquanto o
subentendido diz respeito à maneira pela qual o sentido deve ser decifrado pelo destinatário.
O subentendido, segundo Ducrot (1987), está sempre excluído do sentido literal do
enunciado, ao qual se opõe sempre. Ele é externo ao enunciado e só aparece quando um
interlocutor, em um momento posterior à enunciação, reflete sobre o próprio enunciado.
Por exemplo, imaginemos a seguinte cena: João está sozinho em sua casa e recebe, a
contragosto, a visita indesejável de um colega, e este demora-se demais em ir-se embora.
Depois de algum tempo, João, já muito contrariado, olha para o relógio repentinamente e
profere (14):
(15) Puxa! Já estou atrasado para o trabalho!
Suponhamos que com isso João está sugerindo ao colega que vá embora de sua casa.
Mas não o faz de forma direta, apenas insinua. Ao proferir (14), João esconde-se atrás do seu
próprio enunciado para não se comprometer. Caso o colega fique ressentido e reclame de estar
sendo expulso por João, este pode muito bem contrapor que em momento algum mandou que
ele fosse embora, que em momento algum teve intenção de expulsá-lo, sob a alegação de “eu
não disse nada disso, você é que tá entendendo desse jeito. Eu apenas falei que estou atrasado
para o trabalho.”
Neste cenário, estamos diante de um subentendido, que leva em conta as
circunstâncias da enunciação, as condições de ocorrência externas ao enunciado. Ducrot
(1987, p. 42) considera que, ao construir enunciados com subentendidos, “o locutor apresenta
sua fala como um enigma que o destinatário deve resolver” e deixa a responsabilidade para o
destinatário. Ou seja, “ao enunciar algo que pode ser subentendido, pode ter a intenção de
transmitir a informação que deseja, mas sem se comprometer. Assim, não diz explicitamente,
mas dá a entender, deixa subentendida alguma informação; deixa-a camuflada para não se
comprometer”. Dessa forma, o subentendido, por possibilitar dizer uma coisa aparentando não
a dizer ou não a querer dizer, é inteiramente debitado para o ouvinte/leitor. Ducrot (1987, p.
42) lembra que “a linguagem oferece exemplos frequentes dessa atitude, certamente muito
hipócrita”. A hipocrisia decorre da atitude dissimulada do locutor.
10

6 CONCLUSÃO
As considerações que fiz neste artigo mostram que a língua não pode ser concebida
reducionalmente como uma estrutura autônoma ou como um simples código a serviço da
comunicação, como apontava Saussure. Ao contrário, ela se realiza como um espaço de
interação entre indivíduos e veicula não apenas mensagens explícitas, mas também – e em
grande medida – conteúdos implícitos que denunciam intenções e subintenções do falante,
fato que pode ser facilmente comprovado pela abordagem da pressuposição. Não raro, um
enunciado veicula mais informações nas suas entrelinhas do que nas suas linhas. As
informações implícitas que inevitavelmente emergem dos enunciados denunciam a
necessidade de se olhar para a língua como um jogo interativo como preceituou Ducrot (1977;
1987).
Isso significa que no discurso as palavras jamais são utilizadas em estado de
dicionário, imersas em sua situação de neutralidade. Como o signo linguístico é
essencialmente ideológico, não há neutralidade na linguagem. Dizemos com Citellli (2000, p.
29) que podemos “ler a consciência dos homens através do conjunto de signos que a
expressa”. Retiradas de seu estado de dicionário e lançadas na intrincada rede de contextos
que são as interações humanas, as palavras perdem a sua neutralidade e passam a ser veículos
potenciais de ideologias. A escolha de palavras e recursos retóricos na organização de um
texto nunca é um ato gratuito, não se trata da seleção de meros recursos formais, estilísticos
ou estéticos. Ao contrário, “o modo de dispor o signo, a escolha de um ou outro recurso
linguístico revelaria múltiplos comprometimentos de cunho ideológico” (CITELLI, 2000, p.
26).
O arrazoado acima é plenamente confirmado pelo fenômeno linguístico da
pressuposição. Insistimos em que além das várias informações explícitas, que são perceptíveis
na superfície textual, um enunciado pode conter informações implícitas que não devem ser
ignoradas. Há expressões explícitas que desencadeiam os pressupostos que, focalizados no
seu conjunto, refletem a ideologia a partir da qual o enunciado foi construído.

7 REFERÊNCIAS
CITELLI, Adilson. Linguagem e persuasão. 14. ed. São Paulo: Ática, 2000. (Princípios)

DUCROT, Oswald. Dizer e não dizer. Princípios de semântica lingüística. São Paulo:
Cultrix, 1977.

–––––––. O dizer e o dito. Trad. Eduardo Guimarães. Campinas, São Paulo: Pontes, 1987.
11

ILARI, Rodolfo; GERALDI, João Wanderley. Semântica. 10. ed. São Paulo: Ática, 2002
(Princípios).

MOURA, Heronides Maurílio de Melo. Significação e contexto: uma introdução a questões


de semântica e pragmática. 3. ed. Florianópolis: Insular, 2006.

OLIVEIRA, Roberta Pires de. Semântica. In: MUSSALIM, Fernanda; BENTES, Anna
Cristina (Orgs.). Introdução à lingüística: domínios e fronteiras. vol. 2, 6. ed. São Paulo:
Cortez, 2009.

RECTOR, Monica. Manual de semântica. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1980.


(Linguística e Filologia).
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

REGULARIZAÇÃO DO SISTEMA VERBAL PELA CRIANÇA

Richard Fernando de Souza Costa (PPGLg/UFSC)1


Leonor Scliar-Cabral (PPGLg/UFSC)2

RESUMO

Exemplos de regularização de verbos irregulares são evidências de que uma criança de 26


meses e 08 dias ao adquirir o PB já começa a dominar o sistema verbal. O método é de amos-
tragem e, quanto às fontes e instrumentos, retiraram-se dados do arquivo PAU003 da tese de
Scliar-Cabral, disponíveis em: http://childes.psy.cmu.edu/ data/Romance/ Portuguese/ floria-
nopolis. zip. Para a identificação utilizaram-se os indicadores de Mattoso Câmara Jr. (1970) e
Scliar-Cabral (2005). Para localizar os verbos, usou-se o programa Laça-Palavras (VASI-
LEVSKI e ARAUJO, 2010). Discutiremos quatro amostras de regularização do sujeito Pá: eu
potu (em vez de usar o tema do presente do auxiliar poder, a criança regulariza a partir do
tema do infinitivo e a dessonorização de /d/ pode ser devida a uma assimilação parcial regres-
siva de /p/); eu sabo (em vez de usar o tema do presente do saber, que é irregular, a criança
regulariza a partir do tema do infinitivo); punher (em vez de usar o tema do infinitivo de pôr,
que é irregular, a criança o regulariza. O mais interessante: ela restaura a vogal temática da 2ª
conjugação, bem como a nasalidade. O levantamento da 1ª vogal do radical /o/ para /u/ é pre-
visível, pois, no infinitivo, se encontra em posição pré-tônica); em eu fazeu (ao contrário de
usar a 1ª pess. sing. do pret. perf. do ind. que é irregular, a criança regulariza em favor do te-
ma igual ao do infinitivo).

Palavras-chave:
Regularização. Aquisição e processamento da linguagem. Português brasileiro. Projeto
CHILDES.

ABSTRACT

Overgeneralization of irregular verbs is an evidence that a 2;2,8 years old child, while acquir-
ing Brazilian Portuguese, already begins to grasp the verbal system. Data were taken from
Scliar-Cabral’s dissertation (1977), available at http://childes.psy.cmu.edu/ data/Romance/
Portuguese/ florianopolis. zip. Mattoso Câmara Jr.’s (1970) and Scliar-Cabral’s (2005) verbal
structural indicators were used. A software, developed by Vasilévski e Araújo (2010), helped
identify the searched lexical items. Four samples of overgeneralization will be presented and
discussed: eu potu (instead of using the present tense stem form of poder [can], the child regu-
larized the verb based on the infinitive stem form, and unvoiced /d/ (the last process may be
due to a partial regressive assimilation of /p/); eu sabo (instead of using the present stem form
of saber [to know], which is irregular, the child regularizes from the infinitive stem form);
punher (instead of using the infinitive stem form of pôr [to put], which is irregular, the child
regularizes it. Most interestingly, the child restores the thematic vowel from the 2nd conjuga-
tion, as well as the nasality. Rising the 1st stem vowel /o/ to /u/ is predictable, since its posi-
tion in the infinitive is in the unstressed syllable); and eu fazeu (instead of using the 1st person

1
Laboratório de Produtividade Linguística Emergente (LAPLE) – Universidade Federal de Santa Catarina/CNPq
CCE/Bloco B/Sala 227 – Florianópolis – SC – Brasil; e-mail: rich.hard.costa@gmail.com.
2
Laboratório de Produtividade Linguística Emergente (LAPLE) – Universidade Federal de Santa Catarina/CNPq
CCE/Bloco B/Sala 227 – Florianópolis – SC – Brasil; e-mail: lsc@th.com.br.
2

past perfect tense of fazer [to make], which is irregular, the child regularizes the verb in favor
of the infinitive stem).

Keywords:
Overgeneralization. Language acquisition and processing. Brazilian Portuguese CHILDES
Project.

1 INTRODUÇÃO
No presente artigo, discute-se um trabalho em aquisição da linguagem pela criança,
vinculado ao banco mundial de dados de estudos em aquisição da linguagem, o Projeto
CHILDES. Mais especificamente, trata-se de uma análise de quatro enunciados do sujeito Pá,
nos quais há evidências de que uma criança de 26 meses e 08 dias, ao adquirir o português
brasileiro, já começa a dominar o sistema verbal.

1.1 Oposição básica entre as teorias de aquisição da linguagem


Preliminarmente, faz-se necessário revisar uma oposição e distinção fundamental
entre duas das maiores teorias de aquisição da linguagem: a teoria gerativista ou inatista, e a
teoria comportamentalista ou behaviorista e, posteriormente, revisar o Modelo de Competição
que visa sintetizar ambas as teorias.

1.1.1 Gerativismo ou inatismo


Segundo a hipótese gerativista ou inatista (CHOMSKY, 1957; 1965; 1968; 1975;
1986), a cognição não interfere na aquisição da linguagem, pressupondo a existência de um
mecanismo inato, responsável por controlar o processo de aquisição, denominado Gramática
Universal (GU), composta de um sistema de princípios e parâmetros inato e herdado biologi-
camente. Os princípios são as propriedades comuns subjacentes a todas as línguas, compatí-
veis com o que os circuitos cerebrais centrais e periféricos da linguagem são capazes de pro-
cessar, enquanto os parâmetros constituem um conjunto dentre os quais quem está adquirindo
uma língua seleciona aqueles que com ela afinam, descartando os demais, como ocorre, por
exemplo, com as categorias fonológicas e fonéticas e suas combinatórias obrigatórias e possí-
veis (SCLIAR-CABRAL, 2004). Entre os princípios, encontram-se as propriedades substanti-
vas, como as classes sintáticas e os traços semânticos ([+/- animado] e fonéticos ([+/-voz], por
exemplo) e formais, ou seja, as propriedades hierárquicas e combinatórias entre as classes
sintáticas e entre os traços.
A noção de criatividade da linguagem, que faz com que uma criança seja capaz de
compreender e produzir uma sentença jamais ouvida se insere nesse arcabouço teórico. Sendo
3

os princípios e parâmetros inatos, a aquisição de uma língua não seria determinada pelos es-
tímulos verbais aos quais a criança estivesse exposta, uma vez que eles são imperfeitos, in-
completos, cheios de pausas e hesitações, e se daria através de um mescanismo também inato
de aquisição da linguagem, no inglês, denominado por Chomsky de Language Acquisition
Device. Uma criança não adquire a linguagem apenas imitando os enunciados pronunciados
pelas pessoas ao seu redor, ou por feedback, conforme o paradigma estímulo-resposta, ou es-
tímulo-resposta-recompensa.
Ao contrário, o processo de aquisição da língua está fundamentado na detonação que
o input provoca no LAD, resultando como output a gramática que, por seu turno, permitirá
compreender e produzir os enunciados da referida língua.

1.1.2 Comportamentalismo ou behaviorismo


O modelo comportamentalista ou behaviorista se divide em duas correntes:

 O comportamentalismo metodológico, de John Watson (1913), segundo o qual os


organismos (as pessoas) ajustam-se aos ambientes, respondendo aos estímulos do
seu meio.
 O comportamentalismo radical, de B.F. Skinner (1957), no qual as pessoas res-
pondem ao seu meio, mas também operam dentro de seu meio a fim de produzir
certas consequências.

Para os comportamentalistas, a concepção de linguagem é definida como um com-


portamento ou hábito aprendido, a partir da interação da pessoa com o input fornecido pelo
meio.
Consequentemente, a aprendizagem da língua (os comportamentalistas não utilizam
o termo ―aquisição‖), para os comportamentalistas, ocorre por meio da experiência desenvol-
vida pela criança com a língua materna, e assim a aquisição é determinada tanto pela qualida-
de quanto pela quantidade de input ao qual a criança se encontra exposta, assim como pela
consistência do reforço tanto positivo (no caso de o comportamento ter sido aprovado), quan-
to punitivo (no caso de o comportamento ter sido rejeitado), o que provoca, por seu turno, um
comportamento aversivo.
4

1.1.3 Convergência
O Modelo de Competição (MacWHINNEY, 2005) foi desenvolvido como uma teoria
unificada de aquisição tanto da 1ª quanto das 2ªs ou mais línguas. Em sua formulação amplia-
da, o modelo postula que cada um dos mecanismos cognitivos que controla a ativação de re-
presentações na língua-alvo (ou, no caso de estudantes de uma segunda língua, na língua ma-
terna), compete com outro(s) dentro da mente do sujeito durante a aquisição e o uso da língua.
Por definição, o Modelo de Competição é uma teoria emergentista. Ao invés de ver a
aquisição da língua como um processo baseado em mecanismos inatos, ou como dependente
total da experiência do sujeito com a língua ou da influência do meio, o Modelo de Competi-
ção considera a aquisição como um processo que consiste de uma série de processos cogniti-
vos em competição, que interagem com o sinal analógico: a linguagem.
Ao aplicar os processos cognitivos gerais ao estímulo da linguagem na presença de
um ambiente rico e estimulate, é possível realizar a conexão entre símbolos intrinsecamente
sem sentido (palavras e sentenças) aos seus referentes, permitindo a inferência de sentido.
Assim, além de se valer de mecanismos tradicionais de processamento de informação, o Mo-
delo de Competição postula que a aquisição da língua deva ser incorporada e situada para que
a criança possa derivar sentido das palavras.
A aprendizagem, no Modelo de Competição, é visualizada como um processo de res-
sonância baseado nos conflitos, no armazenamento e no suporte para a aquisição de novos
mapeamentos. De acordo com a Hipótese da Perspectiva (MacWHINNEY, 1977, 1999), a
gramática é vista como um conjunto de instrumentos que marcam o curso da perspectiva atra-
vés de cinco domínios cognitivos: a percepção direta, a dêixis espaço-temporal, a ação causal,
os papéis sociais e os sistemas de crença. Dentro de cada um desses domínios os falantes con-
troem modelos mentais nos quais um ator humano opera num mundo simulado de espaço,
tempo, causa e papéis sociais, quando é possível unificar vários níveis diferentes da cognição
numa só narrativa ou curso conversacional.

1.2 O papel do input


Uma criança de 26 meses 08 dias, ao adquirir o português, embora estando exposta a
enunciados sintática e lexicalmente complexos (input), destes só extrai o que a sua própria
maturidade linguística e cognitiva permite (intake).
Ao investigar o intake — especificamente aquilo que a criança é capaz de derivar pa-
ra realizar sua própria produção, aquilo que ela utiliza para construir sua própria gramática —
observa-se que ela não copia os enunciados dos adultos ipsis litteris, mas captura aquilo que
5

possui maior saliência perceptual para ela, segundo o Modelo de Competição e, assim, o afina
com o seu desenvolvimento cognitivo e linguístico, depreendendo os princípios que permitem
gerar novas formas — o que é atestado pela regularização. O léxico infantil resulta diferente
do léxico dos adultos.

1.3 O sistema verbal do português brasileiro


Convém revisar a estrutura canônica do verbo no português brasileiro, descrita por
Mattoso Camara Jr. (1970, p. 94),

T (R + VT) + SF (SMT + SNP),

a saber: o tema (T) resulta da adição da vogal temática (VT) ao radical (R), e o sufi-
xo (SF) resulta da adição do sufixo modo-temporal (SMT) ao sufixo número-pessoal (SNP),
ambos morfemas acumulativos.
Exemplo:
Amávamos

amá- (T) [am- (R) + -á- (VT)] + [-va- (SMT pret. imp. do ind.) + -mos (SNP 1ªPPL)]

A esta estrutura axiomática foi proposto um acréscimo essencial: o suprafixo (SPF),


além da categoria de aspecto. A discussão da qual derivou este acréscimo pode ser encontrada
no seguinte excerto do artigo Aquisição da Morfologia Verbal no PB:

A tendência a apagar a consoante final das palavras – quer pela deriva nas posições
ocupadas pelas consoantes menos contínuas (fenômeno observado já na formação do
português europeu), quer na consolidação da tendência no PB, atingindo o arquifo-
nema que abrange as consoantes mais contínuas e mais coronais – ocasionou a perda
da informação que tais segmentos carregavam de assinalar o sufixo número-pessoal
(na maioria dos casos) e de assinalar um modo, o infinitivo.
Em decorrência, a informação redundante propiciada pelo acento tornou-se essenci-
al, determinando o enriquecimento da proposta de Mattoso Câmara Jr. com o acrés-
cimo do suprafixo, como pode ser observado na oposição entre as 2ª/3ª pessoas do
singular do presente do indicativo e o infinitivo na 1ª conjugação (a mais frequente
entre as três conjugações): ―pula‖ e ―pulá(r)‖. Propõe-se, ainda, a introdução da ca-
tegoria de aspecto no sufixo modo-temporal, que passa a ser SMTA. A fórmula da
estrutura verbal do PB passa a ser:

T (R + VT) + SF (SMTA + SNP + SPF)

(SCLIAR-CABRAL, L. & MacWHINNEY, B., 2005, p.3).


6

Com base nesta estrutura, pelos exemplos que serão apresentados e discutidos a se-
guir, podemos concluir que a criança demonstra ter depreendido do intake os seguintes pa-
drões morfológicos:

 as vogais temáticas da 1ª e 2ª conjugações;


 o papel do acento (suprafixo);
 as regras de derivação da 1ª pessoa singular do presente do indicativo, da 3ª pes-
soa do singular do pretérito perfeito do indicativo e do infinitivo dos verbos regu-
lares;
 a diferença entre perfectivo e imperfectivo.

2 METODOLOGIA
Parte-se de um corpus de dados reais coletados mediante gravação (6h), convertida
para formato computacional (.wma e .mp3) e transcrita em programa próprio o CLAN (Ma-
cWHINNEY, 2010), formado por enunciados orais entre uma criança (alvo) e três adultos (a
mãe (MOT), a investigadora (INV) e o pai (ISI). Outros adultos comparecem esporadicamen-
te. O corpus corresponde à terceira fase do sujeito Pá, quando a criança estava com 26 meses
e 08 dias, e é composto por mais de 4.000 enunciados, sendo 713 retirados do corpus da cri-
ança para a depreensão das gramáticas por Scliar Cabral (1977), conforme os preceitos de
Roger Brown (1973), para fins de comparabilidade com as gramáticas de outras línguas em
aquisição. Até hoje não se encontrou outra saída, no caso de aquisição de linguagem, ―do que
colher num corpus das crianças estudadas, para depois depreender as gramáticas que dariam
conta de tais enunciados‖ (SCLIAR-CABRAL, 1976, p.13). Para conferir mais segurança à
pesquisa, deve-se trabalhar com uma densa massa de dados, coletada e organizada sob rígida
metodologia, tal como foi feito na coleta e no tratamento do corpus de trabalho.
Usou-se um programa específico para trabalho com PB – o Laça-palavras – para aná-
lise estatística e qualitativa dos dados. O desenvolvimento do Laça-palavras (VASILÉVSKI e
ARAÚJO, 2011) iniciou-se em 2010 e perdura até o presente, no Laboratório de Produtivida-
de Linguística Emergente (LAPLE) da Universidade Federal de Santa Catarina. Por meio des-
se programa, procedeu-se a tabulação e conferência de todas as classes sintáticas das palavras
presentes no corpus, dentre ela, os verbos, que foram categorizados em três categorias: @v
para verbos regulares, @va para verbos auxiliares, e @vi para verbos irregulares. Ao classifi-
7

car todos os verbos do corpus, o pesquisador se defrontou com quatro verbos regularizados
pela criança, que deveriam ser categorizados como @v, tal como a criança implicitamente o
fez, mas que, no entanto, na gramática do adulto entram ou como @va, ou seja, um auxiliar
servil, com formas primitivas distintas (poss-, pode-, pude-, pode-, pos), acrescidas de duas
irregularidades (pus, pôs), ou como @vi, nos outros três exemplos de verbos irregulares que a
criança regularizou, conforme as formas primitivas distintas, respectivamente sei, sabe-, sou-
be-, sabe-, sabi-; ponh-, puse-, po-, pos (mais as formas irregulares pus, pôs), faç-, fize-, faz-,
fei- (mais as formas irregulares fiz, fez).

3 APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS


As quatro amostras de regularização de verbos são as seguintes:

 eu potu

Em vez de usar o tema do presente do auxiliar poder, a criança regulariza a partir do


tema do infinitivo e a dessonorização de /d/ pode ser devida a uma assimilação parcial regres-
siva de /p/;

 eu sabo

Em vez de usar o tema do presente do saber, que é irregular, a criança regulariza a


partir do tema do infinitivo;

 punher

Em vez de usar o tema do infinitivo de pôr, que é irregular, a criança o regulariza. O


mais interessante: ela restaura a vogal temática da 2ª conjugação, bem como a nasalidade. O
levantamento da 1ª vogal do radical /o/ para /u/ é previsível, pois, no infinitivo, se encontra
em posição pré-tônica. Pode-se notar também que esta regularização remete à forma quase
verbatim do ponere latino, porém, a regularização foi feita a partir da 1ª pessoa do singular do
presente do indicativo, ponho.

 eu fazeu
8

Ao contrário de usar a 1ª pess. sing. do pret. perf. do ind. que é irregular, a criança
regulariza em favor do tema igual ao do infinitivo.

4 CONCLUSÃO
As evidências empíricas são resultados importantes para as teorias de aquisição da
linguagem. Ao comprovar que a criança é capaz de regularizar formas verbais sem nunca ter
ouvido adultos realizando estas mesmas regularizações, podemos compreender melhor como
é realizada a produtividade linguística, que não depende apenas da memorização icônica, mas,
sim, da depreensão de regras. Com as evidências da regularização, confirma-se que uma cri-
ança começa a dominar o sistema verbal, ao depreender os seus padrões morfológicos.

5 REFERÊNCIAS
MacWHINNEY, B. The CHILDES Project: Tools for Analyzing Talk. Carnegie Mellon
University, March 29, 2010. Disponível em: <http://childes.psy.cmu.edu/>. Acesso em: out.
2011.

CAMARA JR., J.M. Estrutura da língua portuguesa. 2. ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 1970.

SCLIAR-CABRAL, L. Declínio da percepção categorial fonética inata no primeiro ano de


vida. Letras de Hoje, 39 (3), pp. 79-87, 2004.

SCLIAR-CABRAL, L. A explanação linguística em gramáticas emergentes. Tese de Dou-


torado em Linguística, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1976.

SCLIAR-CABRAL, L. & MacWHINNEY, B. Aquisição da Morfologia Verbal no PB. Con-


greso Internacional ALFAL 14 Memorias. 2005, 1(1) os 80-89.

FINGER, I. & QUADROS, R.M.de. Teorias de aquisição da linguagem. Editora da UFSC:


Florianópolis, 2008.

VASILÉVSKI, V. e ARAÚJO, M. Laça-palavras – programa eletrônico para análise linguís-


tica. v. 1. Laboratório de Produtividade Linguística Emergente (LAPLE), UFSC, Florianópo-
lis, 2010/2011.
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SANTA CATARINA NO MAPA DO AMPER:


UM ATLAS PROSÓDICO EM CONSTRUÇÃO

Vanessa Gonzaga Nunes1 (PPGLg/UFSC)

RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo principal apresentar um panorama do Projeto AMPER
em Santa Catarina e perspectivas de pesquisas futuras. O AMPER (Atlas Multimédia Prosódi-
co do Espaço Românico), programa científico de geolinguística dialetal, objetiva estudar e
comparar as entoações de algumas das variedades das línguas românicas. Em Santa Catarina,
empreendemos um estudo que visa descrever e comparar os padrões prosódicos de falantes
das cidades Blumenau, Chapecó, Lages e Florianópolis, de colonização alemã, italiana, gaú-
cha e açoriana, respectivamente. As regiões selecionadas são as já pesquisadas pelo Atlas
Linguístico Etnográfico da Região Sul (ALERS) e pelo Projeto de Variação Linguística Ur-
bana do Sul do País (VARSUL), o que facilita e contribui com a nossa pesquisa. Até o presen-
te momento analisamos o comportamento entonacional dos falares florianopolitano e lageano.
Descrevemos as configurações melódicas da frequência fundamental, duração e intensidade,
buscando as semelhanças e as diferenças entre os dois falares em questão. Uma análise cui-
dadosa sobre as curvas de pitch apontou semelhanças e diferenças entre os dois dialetos, bem
como em relação à literatura consultada. Os testes perceptuais realizados a partir de arquivos
de áudios ressintetizados revelaram que o florianopolitano é capaz de distinguir o seu próprio
falar e que é capaz de identificar as modalidades declarativas e interrogativas.

Palavras-chave:
Prosódia-entoação. Falares catarinenses. AMPER.

RÉSUMÉ

Ce travail de recherche vise présenter un panorama du Projet AMPER dans l’État de Santa
Catarina et les perspectives des recherches futures. L’AMPER (Atlas Multimédia Prosodique
de l’Espace Romain), programme cientifique de geolinguistique, vise étudier et comparer les
mélodies de quelques varietés de langues romanes. À Santa Catarina nous avons réalisé une
étude dont le but est de comparer les modèles prosodiques des individus de Blumenau, Cha-
pecó, Lages et Florianópolis. Ce sont des villes colonisées par des alemands, italiens, gaúchos
et des açoriens, respectivement. Les régions sélectionnées sont déjà interrogées par l'Atlas
linguistique d'ethnographique de la région du Sud (ALERS) et par le Projet de Variation Lan-
guistique Urbaine du Sud du pays (VARSUL), ce qui facilite et contribue à notre recherche.
Jusqu'à présent, nous avons analysé le comportement de l’intonation de florianopolitanos et
de lageanos. Nous avons décrit les contours mélodiques de la fréquence, la durée et l'intensité
fondamentale, en cherchant les similarités et les différences entre les deux dialectes en questi-
on. Une analyse minutieuse sur le terrain de courbes montrent les similitudes et les différences
entre les deux dialectes, ainsi que par rapport à la littérature. Les tests perceptuels à partir des
fichiers d’audios resynthétisés ont révélé que les florianopolitanos sont capables de distinguer
son propre discours et qui sont capables d'identifier les formes déclaratives et interrogatives.

Mots-clé:
L'intonation. La prosodie, Le parler de Santa Catarina. L’AMPER.

1
Doutoranda do programa da PGLg/UFSC; e-mail: vanessagnunes@yahoo.com.br.
2

1 INTRODUÇÃO
Estudos da área da fonética entendem a importância das funções linguísticas da ento-
ação, mas aparentemente as pesquisas ainda estão fortemente alicerçadas nas características
individuais dos fonemas, na violação das regras fonotáticas do PB, nas influências dos seg-
mentos vizinhos, nas alofonias que tentam dar conta das variantes dialetais e em todas as pos-
síveis interferências que modifiquem aquilo que consideramos padrão na língua.
A prosódia vai aos poucos ganhando seu espaço, mas ainda é estudada à luz de mo-
delos teóricos distintos entre si e que não se permitem comparação. Segundo Moutinho et al.
(2003), poucos são os trabalhos de campo realizados no âmbito da caracterização das estrutu-
ras prosódicas de diferentes regiões dialetais, que possibilitam uma análise comparativa de
resultados e que confirmam as variedades prosódicas.
A classificação do acento de vocábulos independentes já é por si só um tema polêmi-
co e complexo se considerarmos que as palavras não se constituem na fala aos moldes da sua
representação subjacente. São enormes as chances de uma palavra proparoxítona sofrer uma
síncope ou apócope, transformando-se em uma paroxítona, por exemplo. Inserida em uma
sentença gramatical as palavras estão sujeitas a processos fonológicos e ganham um acento
frasal.
A entoação, com todos os seus parâmetros, certamente tem valor informacional pre-
ponderante no padrão acentual e na comunicação que esse padrão, amplo e variável, possibili-
ta. Considerando a importância dos estudos em prosódia, o presente trabalho tem como obje-
tivo principal apresentar um panorama do Projeto AMPER em Santa Catarina e perspectivas
de pesquisas futuras, em prol de um atlas linguístico que contemple as variações entonacio-
nais do estado.

1.1 O Projeto AMPER


No Colóquio Internacional de Dialetologia, que aconteceu em Bilbao, em 1992, os
linguístas presentes discutiram sobre o número incipiente de trabalhos consagrados ao acento
e à entoação nos domínios lexicais. Além disso, os poucos estudos que se dedicavam às varie-
dades românicas não eram facilmente comparáveis. O pesquisador Michel Contini propõe
então um Atlas linguístico prosódico, ainda que houvesse plena consciência dos problemas a
serem enfrentados, ou melhor, mesmo desconhecendo ainda como enfrentá-los. Com a ajuda
de um de seus orientandos, com formação na engenharia e com o engajamento de Jean Pierre
Lai, engenheiro de estudos do Centro de Dialetologia de Grenoble, foi possível desenvolver o
3

projeto que passou a ser chamado de AMPER (Atlas Multimédia Prosódico do Espaço Româ-
nico), a partir do fim dos anos 90.

O projeto, dirigido então por Michel Contini, passou a explorar o fenômeno da entoa-
ção, na produção de diversos falantes. Havia necessidade então de mesmo método de análise
que permitisse uma comparação de seus resultados. Assim, nasceu oficialmente em 2001, o
Projeto AMPER2, que pode ser definido como um programa científico de geolinguística diale-
tal, que visa, então, o estudo de um dos aspectos menos conhecidos do fonetismo das varieda-
des românicas: a entoação. Ele pretende ser um repositório de dados que revelem as entoações
de falantes das línguas românicas e, a partir daí, investigar as variações entre elas (CONTINI
et al., 2002).

Contini (2007) afirma que os estudos instrumentais consagrados à prosódia têm uma
centena de anos, mas nenhum deles, até o momento, foi capaz de ser comparado a outros.
Ainda segundo ele, a prosódia é um parâmetro negligenciado, uma vez que a perspectiva geo-
linguística e as análises de variabilidade prosódica ficavam sempre a parte dos grandes estu-
dos voltados para os atlas linguísticos nacionais ou regionais.

Assim, aos poucos o Projeto AMPER vai agregando pesquisadores que têm o objetivo
comum de comparar e organizar as semelhanças e as diferenças entre as variedades Români-
cas. Segundo Moutinho et al. (2009), não se pode negar a importância que os estudos compa-
rados assumem..

Apesar de terem seguido percursos autónomos desde há vários séculos, são, no en-
tanto, ainda hoje visíveis algumas semelhanças de natureza linguística, sempre jus-
tificadas por razões de natureza histórica e nunca por uma influência mútua, mais
que não fosse pela sua proximidade geográfica. (MOUTINHO et al. .2009: 68)

Trata-se de um projeto muito abrangente, o que exige a adoção de critérios que deli-
mitem os corpora e a padronização da metodologia, de maneira que as comparações possam
ser viabilizadas. Primeiramente, os corpora devem respeitar a proposta do AMPER, manten-
do estruturas sintáticas próximas e com o mesmo tipo acentual. Todas as pesquisas devem

2
O Atlas Multimédia Prosódico do Espaço Românico (AMPER) visa contemplar, além das variedades do Por-
tuguês Europeu (PE) e do Português Brasileiro (PB), outras línguas românicas, tais como o italiano, o francês, o
castelhano e o galego, pretendendo-se o seu alargamento relativamente a esta família de línguas. O AMPER-
POR (Atlas Multimédia Prosódico do Espaço Românico para o Português) é coordenado pela professora Lurdes
de Castro Moutinho, do Centro de Investigação de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro. A coordena-
ção geral do AMPER é da responsabilidade dos professores Michel Contini (Grenoble – França) e Antônio Ro-
mano (Turim-Itália), do Centro de Dialetologia da Universidade de Grenoble (3), França. O projeto AMPER
pode ser consultado no endereço eletrônico: http://pfonetica.web.ua.pt/
4

considerar a faixa etária e o grau de escolaridade dos informantes. As gravações devem ser
realizadas da mesma maneira, segundo um corpus de fala estimulada visualmente. Para cada
frase, um mesmo número de repetições, tanto para as declarativas quanto para as interrogati-
vas. É preciso que seja averiguada a estrutura sintática das frases, de maneira que estejam
igualadas e aptas a serem comparadas. As vogais serão analisadas acerca dos valores de fre-
quência fundamental, medidas de intensidade e duração. Faz importante ressaltar que a fala
espontânea, apesar da sua veracidade, implica características contextuais que são ligadas as
emoções do contexto comunicacional. Além disso, seria impossível realizar comparações en-
tre os vários falares do espaço românico. Por outro lado, o corpus lido não permite o registro
das estruturas entonativas “naturais” de uma língua e também favorece um achatamento da f0,
parâmetro primordial para análises em prosódia (LAI, 2004). Assim, esses fatores foram deci-
sivos para que a equipe adotasse um corpus fixo, obtido a partir de estímulos visuais (Lai,
2004).
Atualmente, o AMPER já conta com a participação de inúmeros pesquisadores dis-
tribuídos na França, Itália, Portugal, Brasil, Espanha, Romênia e regiões adjacentes, organiza-
dos em oito comitês, responsáveis pela seleção de áreas dialetais e coleta de dados. O objetivo
maior do AMPER é a elaboração de um atlas dialetal multimídia que compreenda uma gama
de variedades prosódicas românicas que representem as distintas línguas descendentes do la-
tim.
Em 1998, Lurdes de Castro Moutinho, professora na Universidade de Aveiro, enga-
ja-se no Projeto Amper. Assim o AMPER-POR visa descrever e analisar falares de diferentes
regiões de Portugal. O corpus foi adaptado para o português europeu, nos mesmos moldes do
AMPER.
O AMPER-POR é então introduzido também no Brasil, a partir de convites feitos pe-
la coordenadora do AMPER-POR, Lurdes de Castro Moutinho. O corpus utilizado para o PB
é uma adaptação do corpus base do português europeu, realizada por Jussara Abraçado de
Almeida (UFF) e João Antônio de Moraes (UFRJ). No Brasil, participam, atualmente, 15 es-
tados3.
O corpus também segue as orientações do AMPER, sendo as sentenças compostas
basicamente de sujeito + verbo + objeto, podendo haver extensões adjetivais ou de sintagma
preposicionado, conforme exemplo:
 O Renato gosta do pássaro./?

3
Amazônia, Acre, Rondônia, Roraima, Minas Gerais, Maranhão, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Bahia, Pará, Rio
de Janeiro, Espírito Santo, Santa Catarina e São Paulo.
5

 O pássaro gosta do bisavô pateta./?


 O bisavô gosta do Renato de Mônaco./?

1.1.1 O Projeto AMPER em Santa Catarina


O projeto AMPER-POR, desenvolvido no estado de Santa Catarina, coordenado pela
professora Izabel Christine Seara, tem quatro regiões selecionadas como campo de pesquisa
(ver Quadro 1). As regiões selecionadas são as já pesquisadas pelo Atlas Linguístico Etnográ-
fico da Região Sul (ALERS) e pelo Projeto de Variação Linguística do Sul do País (VAR-
SUL).

Regiões Selecionadas Colonização


Florianópolis Açoriana
Lages Gaúcha
Blumenau Alemã
Chapecó Italiana
Quadro 1- Regiões selecionadas para as pesquisas do AMPER-POR/SC.

Assim, as coletas em Santa Catarina prevêem dados de quatro regiões e cada uma de-
las com informantes de ambos os sexos, com escolaridade de nível médio e superior (ver
Quadro 2). Ao todo, espera-se poder trabalhar com 20 informantes, sendo 10 com escolarida-
de básica (ensino médio) e 10 com nível superior. Dezesseis deles são de regiões urbanas e
quatro do interior. Quatro dos sujeitos provenientes de Lages e Florianópolis, das regiões ur-
banas, já estão gravados e etiquetados, compondo a Base de Dados do Projeto AMPER
(http://pfonetica.web.ua.pt/AMPER-POR.htm). Esses quatro são os informantes da presente
pesquisa.

PONTOS DE INQUÉRITO

Florianópolis Florianópolis Lages Blumenau Chapecó


Urbana Interior Urbana Urbana Urbana
Códigos BB01 BB03 BB11 BB13 BB21
Nível básico Nível básico Nível básico Nível básico Nível básico
Mulher Mulher Mulher Mulher Mulher
BB02 BB04 BB12 BB14 BB22
Nível básico Nível básico Nível básico Nível básico Nível básico
Homem Homem Homem Homem Homem
BB05 BB07 BB15 BB17 BB25
Nível superior Nível superior Nível superior Nível superior Nível superior
Mulher Mulher Mulher Mulher Mulher
BB06 BB08 BB16 BB18 BB26
Nível superior Nível superior Nível superior Nível superior Nível superior
Homem Homem Homem Homem Homem
Quadro 2- Detalhamento do corpus para o projeto AMPER.
6

1.1.1.1 Sobre as cidades da pesquisa


O AMPER em Santa Catarina se propõe a analisar os falares de quatro regiões que
perceptualmente se distinguem e que identificam regiões distintas do estado. São elas:

 Florianópolis

Florianópolis localiza-se no centro-leste do estado de Santa Catarina (Fig.1), na regi-


ão Sul do país e é banhada pelo Oceano Atlântico. Possui, segundo o IBGE, a partir do senso
realizado em 2009, uma população de 408.161 habitantes. Teve como seus primeiros habitan-
tes os índios tupi-guaranis e no século XVI, recebeu a visita de várias embarcações de falantes
da língua castelhana, foi fundada por bandeirantes paulistas na segunda metade do séc. XVII,
mas a antiga Nossa Senhora do Desterro só passa a ter vida urbana após a colonização açoria-
na.
Hoje a população de Florianópolis, reconhecida pela sua “fala acelerada”, é bastante
diversa, embora a maioria tenha origens portuguesas. Também são relevantes numericamente
os descendentes de alemães e italianos que chegaram à cidade no século XX. Com a econo-
mia voltada para o comércio e para o turismo, acredita-se que a ilha ganhe cerca de 10 mil
novos moradores por ano vindos de todos os lugares do mundo, acrescentando, misturando e
modificando nossa maneira de falar.

Figura 1- Localização de Florianópolis, no centro-leste de Santa Catarina, conforme a representação


no mapa.

 Lages

Lages está localizada no Planalto Serrano, a 225 km de Florianópolis (Fig.2). É, em


área, a maior cidade do estado catarinense com cerca de 170.000 habitantes. A vila que daria
origem a Lages foi fundada em 1766, pelo bandeirante paulista Antônio Correia Pinto de Ma-
cedo, mas originalmente pertencia à Espanha e servia como estalagem para a rota comercial
7

entre o Rio Grande do Sul e São Paulo, principalmente na passagem do gado dos campos gaú-
chos para abastecer os trabalhadores da extração de ouro em Minas Gerais. A colonização
deu-se a partir de italianos, portugueses, espanhóis e alemães e as principais atividades eco-
nômicas são fruticultura, a pecuária e o turismo rural.
Mas a que se deve a imagem do lageano, seu modo de falar, de vestir e de cultivar as
tradições, tão atrelada à do gaúcho, sendo essa uma cidade catarinense? Segundo Miranda
(2001), a partir da década de 40, a pecuária deixa ser a principal atividade econômica da regi-
ão e dá espaço à madeireira. A nova prática promissora atraiu agricultores e profissionais libe-
rais das terras vizinhas. Os fazendeiros, vendo suas terras “invadidas”, passaram a afrontar os
madeireiros que, por sua vez, procuraram solidificar sua cultura fundando Centros de Tradi-
ção Gaúcha, e assim consolidando seu espaço. O modelo cultural construído em Lages asse-
melha-se ao do que estava se efetivando no Rio Grande do Sul, de onde vieram representantes
para auxiliar os fundadores a propagar seu modo de vida.

Figura 2- Localização de Lages, Planalto Serrano, no mapa de Santa Catarina.

 Blumenau

Situada no Nordeste de Santa Catarina, Blumenau (Fig.3) tem hoje uma população
de cerca de 300.000 habitantes e é conhecida em todo o Brasil como uma das cidades com
maior influência germânica em sua cultura e história. Colonizada no início por alemães, se-
guidos de italianos e poloneses, também recebeu habitantes do Vale do Rio Tijucas, descen-
dentes de portugueses. Mesmo assim, as cidades da microrregião incorporaram principalmen-
te a cultura alemã e italiana. A cidade guarda fortes características européias, preservadas,
principalmente pelas festas tradicionais e manifestações culturais fomentadas pelo turismo.
Com 159 anos Blumenau mantém sotaques diferentes, influência das várias etnias que torna-
ram a região rica na diversidade dos falares.
Segundo Fritzen (2008), algumas escolas ainda recebem crianças, que no momento
do seu ingresso falam somente o alemão ou são bilíngues. Embora o alemão hoje seja ainda
8

língua de interação em várias comunidades de Blumenau, a língua é estigmatizada e as pesso-


as que a falam são associadas, não raro, à categoria social e étnica colonos alemães, em um
sentido pejorativo da expressão. Ainda, segundo a autora, em Blumenau e outras regiões de
imigração alemã no sul do país, a língua alemã, até a década de 1940 desfrutava de posição de
prestígio, legitimada por agências de letramento como escolas, igreja e imprensa. Dados do
censo demográfico do IBGE de 1940 dão uma idéia clara da situação linguística dessa época
no município de Blumenau: 97% da população usava o alemão cotidianamente, no mínimo,
no âmbito familiar. O alemão falado em Blumenau tinha uma referência no padrão escrito da
língua (imprensa e literatura), era ensinado nas escolas e empregado nas aulas de doutrina
(FRITZEN 2008).

Figura 3- Localização de Blumenau, região nordeste, no mapa de Santa Catarina.

 Chapecó

O Município de Chapecó (Fig.4), localizado no oeste do estado, conta hoje, com


aproximadamente 180 mil habitantes. A colonização substancial ocorreu quando os desbrava-
dores se estabeleceram para explorar os recursos naturais, em especial a araucária. Nesse con-
texto, foram de fundamental importância as empresas colonizadoras, incentivadas pelo Estado
a fim de ocupar efetivamente a região. A madeira retirada das florestas era transportada em
balsas, nos períodos de cheia do rio Uruguai, até a Argentina, onde era comercializada. Esse
impulso atraiu colonos oriundos do Rio Grande do Sul, que fundaram "Xapeco", em 1917.
Por volta de 1940, iniciaram-se os grandes fluxos de imigrantes, provenientes do Rio Grande
do Sul, de etnia alemã, italiana e polonesa. Esses colonos e seus descendentes seriam os res-
ponsáveis pela caracterização da cultura e da arquitetura europeia atualmente presentes em
Chapecó.
9

Ainda podemos perceber certas particularidades linguísticas da população de descen-


dentes de italianos residentes em Chapecó, variantes essas, muitas vezes, recriminadas pelos
próprios membros da comunidade local. “Não são raras as ocasiões em que se percebem as
imitações debochadas da fala dos italianos, que misturam palavras ou trocam fonemas, na
comunicação em português. Esses descendentes são, na maioria dos casos, a quarta geração
dos imigrantes que vieram para o Brasil no início do século XX. Embora exista essa distância
temporal e a língua dos antepassados, dialetos do Norte da Itália, praticamente não se mani-
feste mais, algumas características próprias desses dialetos ainda estão presentes, passando de
geração a geração (SPESSATO e GÖRSKI, 2003)”.

Figura 4- Localização de Chapecó, região oeste, no mapa de Santa Catarina.

Como podemos observar a partir desta breve descrição das cidades cujos falares pre-
tendemos analisar e comparar se tratam de regiões de colonizadores distintos, mas que muito
já cresceram e evoluíram e possivelmente muito já perderam das suas características linguísti-
cas. Nossas análises pretendem descrevê-las de forma que possamos observar se ainda existe
ou não traços de tais colonizações e também compará-las, visando observar suas diferenças e
também suas semelhanças, que podem ser frutos da circulação e homogeneização dos povos.

1.2 Objetivos
Assim, tem-se como objetivo primeiro reconhecer mais profundamente as caracterís-
ticas prosódicas das sentenças declarativas e interrogativas totais, descrevendo os padrões
entonacionais das quatro regiões a serem estudadas, ampliando os estudos prosódi-
cos/entonacionais em Santa Catarina e assim contribuindo com o projeto AMPER e com os
estudos que comparam a prosódia das variantes dialetais das diferentes línguas naturais. Além
disso, esse trabalho objetiva, através de testes perceptuais, averiguar como se dá a identifica-
ção da sua própria produção e das demais regiões, no que diz respeito à distinção das modali-
dades.
10

1.3 Metodologia
O corpus compreende a gravação de uma série de frases que obedecem a critérios
linguísticos previamente estabelecidos no Projeto AMPER-POR. As gravações para a produ-
ção das sentenças, consideradas de “estímulo visual”, são realizadas a partir de imagens que
indicam frases declarativas e interrogativas com estrutura sintagmática: sujeito +verbo+ com-
plemento, podendo haver extensões. Essa metodologia que se baseia em estímulos visuais,
evita a situação de leitura e suas implicações, conduzindo o informante à produção das frases
pretendidas. Cada figura que compõe a mensagem se refere a um personagem (Renato, pássa-
ro, bisavô), uma ação (verbo gostar), um adjetivo (pateta, bêbado, nadador) ou um sintagma
preposicionado (de Mônaco, de Veneza, de Salvador).

Figura 5- Modelo de estímulo visual para produção de frases. Modelo declarativo composto de sujeito
proparoxítono +verbo paroxítono+ complemento oxítono: “O pássaro gosta do bisavô.”

Figura 6- Modelo de estímulo visual para produção de frases. Modelo interrogativo composto de su-
jeito paroxítono + extensão oxítona +verbo paroxítono+ complemento proparoxítono: “O Renato na-
dador gosta do pássaro?”
11

O corpus tem um número variável de sílabas que vai de 10 a 14, dependendo das ex-
tensões. Ele tenta contemplar todas as possíveis combinações acentuais (sujeito oxítono -
complemento oxítono; sujeito oxítono - complemento paroxítono; sujeito paroxítono - com-
plemento proparoxítono e assim por diante.). O único elemento que não varia a posição acen-
tual é o verbo, que é sempre paroxítono.
Trata-se de uma metodologia que gera automaticamente, com o auxílio de sripts e
etiquetagens manuais através do software Praat4, gráficos de frequência fundamental, de dura-
ção e de intensidade. Os histogramas de duração e de intensidade reúnem os dados de declara-
tivas e interrogativas, a partir de uma média de ocorrências, ou seja, podemos comparar o
comportamento das duas modalidades inter-informantes. Gera também arquivos de áudio to-
nais sintetizados com base nas médias de f0, podíamos, finalmente, testar nossa hipótese de
que não precisamos de palavras ou de marcadores regionais para identificar uma modalidade
ou que um falante é de uma localidade e não de outra. Isso quer dizer que os arquivos tonais
gerados pela metodologia do AMPER seriam suficientes para identificarmos modalidades e
diferenças dialetais.

1.4 Pré-resultados de uma pesquisa em andamento


Até o presente momento com a participação de 4 informantes, sendo um homem e
uma mulher de Florianópolis, que têm segundo grau completo e idades entre 35 e 45 anos e
um homem e uma mulher, com as mesmas características, porém naturais de Lages. O corpus
total para informante de nível médio de escolaridade é composto de 66 frases declarativas e
interrogativas totais com número de vogais (sílabas) variando entre 10 e 14, que são repetidas
3 vezes, totalizando 198 sentenças por informante. Trabalhamos com um recorte do corpus
total, selecionamos então 44 sentenças (declarativas e interrogativas totais) por informante,
totalizando 528 frases, que podiam ter 10, 13 ou 14 vogais.
Nossos dados, de maneira geral, corroboram com estudos anteriores. As curvas me-
lódicas dos informantes masculinos estão de acordo com o padrão descrito por Moraes &
Abraçado (2005). Para as declarativas observa-se a realização de um movimento de f0, em um
nível médio, até a pré-tônica, ou seja, essa é a posição de proeminência e, sobre a tônica final
uma subsequente descida. Esse foi o padrão encontrado para curvas melódicas que possuíam
oxítonas ou paroxítonas em região de núcleo. Ainda de acordo com os autores supracitados,

4
Software obtido livremente no endereço: www.praat.org. Foi desenvolvido por David Weenink e Paul Boe-
rsma, do Departamento de Ciência Fonética da Universidade de Amsterdã.
12

outras realizações foram encontradas, como o alinhamento da subida melódica para pós-
tônicas, principalmente em contexto de proparoxítonas em posição forte. Mas, também apu-
ramos alinhamento para a esquerda, saindo dos limites do vocábulo núcleo. Da mesma forma,
no geral, as interrogativas totais produzidas pelos informantes masculinos, apresentaram pro-
eminência na tônica e posterior queda. Na região de núcleo, as diferenças entre sentenças de-
clarativas e interrogativas é estatisticamente significativa.
Outros estudos, como os de Moutinho et al, (2005); Abraçado et al, (2007), Bernardo
et al (2007) descrevem as declarativas do PB com um contorno globalmente descendente com
ocorrência de picos nas vogais tônicas. Uma das realizações possíveis das informantes femi-
ninas vai ao encontro desta descrição, principalmente as produções concernentes à informante
florianopolitana. A informante lageana alternou suas realizações em declarativas, ora colo-
cando a proeminência de pré-tônica do vocábulo núcleo, ora colocando na tônica.
De acordo com esses autores, as interrogativas são descritas como tendo um contorno
semelhante ao da declarativa, exceto a partir da vogal pré-tônica da palavra final, na qual o
movimento se inverte, evidenciando-se uma descida da pré-tônica e uma forte subida na vogal
tônica final. Neste caso podemos dizer que as interrogativas produzidas pelas informantes
femininas também seguiram, no geral, esse padrão.
Abraçado et al (2007) fazem menção ao comportamento inesperado das proparoxíto-
nas, relatando um queda brusca de f0, muito distinta as curvas ascendentes apresentadas nas
outras posições. Os nossos dados também revelaram que esse tipo acentual apresenta frequen-
temente realizações diversas intra e inter-informantes. Para o informante florianopolitano,
podemos encontrar pico na tônica das declarativas, na sílaba que a antecede ou na pós-tônica.
O lageano realiza picos nas tônicas, mas geralmente apresentando proeminência na região de
onset da tônica, revelando um alinhamento mais antecipado.
As informantes femininas também realizam proparoxítonas em posição de núcleo de
forma distinta. Para as interrogativas, a florianopolitana realiza a proeminência na pós-tônica
e a lageana na tônica. Além disso, a configuração intrassilábica faz com que as curvas tenham
alinhamentos diferentes.
Entretanto, encontramos também outros comportamentos que se distanciam dos pa-
drões encontrados na literatura. Ainda que as descrições de Abraçado et al (2007) sejam se-
melhantes aos comportamentos por nós encontrados, percebemos que os gráficos apresenta-
dos pelos autores são bastante distintos dos referentes aos nossos informantes. A região de
pré-núcleo, por exemplo, do falante carioca tem valores bem distintos para declarativas e in-
terrogativas, o que não ocorre nas produções dos nossos informantes. De acordo com os auto-
13

res, “no SN sujeito, a declarativa apresenta sempre valores de f0 inferiores aos da interrogati-
va”, e esse padrão não se estabelece para nossos informantes. Além disso, percebemos que os
alinhamentos das regiões de núcleo se mostraram muito distintos. Temos, por exemplo, no
pico da declarativa, alinhamento à direita no falar carioca e alinhamento à esquerda nos fala-
res florianopolitano e lageano.
A respeito da duração, podemos fazer inferências entre a produção de florainopolita-
nos e lagenos, mas, em relação ao padrão apresentado por Abraçado et al (2007), observamos
que as características da região de núcleo, do falar carioca se assemelham ao falar lageano e
do florianopolitano. Para oxítonas em posição de núcleo, por exemplo, percebemos que, na
produção do carioca e do lageano, a tônica da interrogativa é maior do que a tônica da decla-
rativa. O mesmo ocorre com as paroxítonas no falar carioca e no falar florianopolitano. Per-
cebemos que, no entanto, na produção do florianopolitano, a tônica da declarativa é maior do
que as correspondentes na modalidade interrogativa.
Acreditamos que os comportamentos dos contornos melódicos estão fortemente rela-
cionados com a posição do acento no vocábulo em região de núcleo. Mas, isso não significa
que não haja variação na curva melódica.
Para enriquecer nossa pesquisa realizamos testes perceptuais com foco na entoação
das localidades pesquisadas. Os testes foram realizados com os seguintes objetivos: (a) pri-
meiramente observar se há discriminação dos sujeitos a partir de suas curvas entonacionais e
(b) observar se o falante florianopolitano identifica as duas modalidades aqui estudadas na
produção do lageano. Acreditamos que o teste perceptual revelou que o florianopolitano é
capaz de distinguir o seu próprio falar. Os participantes tiveram 85% de acertos, ou seja, dis-
criminaram os falares distintos que lhes foram apresentados e apenas 14% de equívocos. E, no
geral, os florianopolitanos não tiveram dificuldades de distinguir as modalidades na fala do
lageano. No entanto, como prevíamos, o maior índice de erros (40%) ocorreu com interroga-
tivas que foram interpretadas como declarativas, demonstrando que pode haver um estranha-
mento diante das interrogativas produzidas pelos lageanos. Possivelmente isso ocorre porque
o lageano realiza as sílabas tônicas ou as de proeminência mais longas do que as do floriano-
politano. Essa extensão permite o movimento de subida e um de descida dentro da própria
sílaba.
Os dados do informante masculino florianopolitano que apresentou uma série de
apagamentos em posições diversas nas sentenças, o que nos leva a crer que seria improvável
que o informante compensaria com consoantes ou pausas. Testes estatísticos revelaram que
esses apagamentos influenciam na taxa de elocução. A informante florianopolitana, que tam-
14

bém realizou mais apagamentos do que a lageana produz vogais mais longas, o que poderia
ser considerado uma compensação das quedas. As pesquisas futuras que pretendem ampliar o
número de informantes nas quatro cidades previstas no projeto devem contemplar o ritmo, já
que ele parece ser um importante parâmetro na distinção de falares regionais.

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SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

TECIDO NA LÍNGUA DE SINAIS:


B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S

Carla Morais (IFSC)1

RESUMO

B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S é o objeto desta pesquisa. Trata-se de
uma produção na Língua Brasileira de Sinais do Instituto Nacional de Educação de Surdos. A
pesquisa identifica a representação cultural a partir da experiência visual presente em cada
personagem. O nome das personagens na Língua Portuguesa se diferencia do nome visual das
personagens na Língua de Sinais. No sentido de tornar mais clara a questão, recorre-se às
configurações de mãos, ao corpo, ao olhar, às expressões faciais e à escrita de sinais. A
construção, a partir dos parâmetros visuais, resultou no nome visual de cada personagem.
Identifica-se ainda que, na referida produção, as personagens desse reconto e recriação não
são surdos. Apresento a Língua de Sinais como celebração e vitória do povo surdo,
subalternizado mediante a tentativa de aniquilar tudo que estivesse fora do projeto de
dominação colonial e que não fosse condizente com uso de um código uniforme, constituído
por comodidade administrativa para governar um país ou um império. Os sujeitos em foco são
surdos, a contadora de histórias é surda e, possivelmente, o/a espectador/a seja surdo/a. E
todos transitam na fronteira entre a língua portuguesa e a língua de sinais.

Palavras-chave:
Conto. Reconto. Língua de sinais. Nome visual.

ABSTRACT

The object of this research is S-N-O-W W-H-I-T-E A-N-D T-H-E S-E-V-E-N D-W-A-R-F-S, a
production of the National Institute of Deaf Education in Brazilian Sign Language. The
research identifies the cultural representation of the visual experience present in each
character. The names of the characters in Portuguese are different from the visual names of
the characters in Sign Language. In order to clarify this issue, we use hand configurations, the
body, the look, facial expressions and sign writing. The construction, based on the visual
parameters, results in the visual name of each character. It is also identified in this production,
that the characters of this retelling and recreation are not deaf. I introduce Sign Language as a
celebration and victory of deaf people, undervalued by the attempt to annihilate everything
that was outside the project of colonial domination and that was not consistent with the use of
a uniform code, consisting of administrative convenience to guide a country or an empire. The
subjects in focus were deaf, the storyteller was deaf, and possibly the members of the
audience were deaf. And all were passing the frontier between Portuguese and Sign
Language.

Keywords:
Tale. Retelling. Sign language. Visual name.

1
Mestre em Literatura (2010/UFSC), aperfeiçoamento em Educação Profissional e Tecnológica Inclusiva
(2010/IFMT - Cuiabá), especialista em Educação de Surdos (2008/IFSCSJ), graduada em Ciências Sociais
(1989/PUCSP). Atualmente é TAE do Instituto Federal de Educação Tecnológica de Santa Catarina/Campus
Palhoça Bilíngue LIBRAS/Português; e-mail: carlam@ifsc.edu.br.
2

1 INTRODUÇÃO
B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S, uma produção na língua
brasileira de sinais do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES),2 recontada por
sujeitos surdos, identifica a representação cultural a partir da experiência visual presente em
cada personagem. O nome das personagens na língua portuguesa se diferencia do nome visual
das personagens na língua de sinais. No sentido de tornar mais clara a questão, recorre-se às
configurações de mãos, ao corpo, ao olhar, às expressões faciais e à escrita de sinais. A
construção, a partir dos parâmetros visuais, resultou no nome visual de cada personagem.
Identifica-se ainda que, na referida produção, as personagens desse reconto e recriação não
são surdas. Apresento a língua de sinais como celebração e vitória do povo surdo,
subalternizado mediante a tentativa de aniquilar tudo que estivesse fora do projeto de
dominação colonial e que não fosse condizente com o uso de um código uniforme, constituído
por comodidade administrativa para governar um país ou um império. Os sujeitos em foco são
surdos, a contadora de histórias é surda e, possivelmente, o/a espectador/a seja surdo/a. E
todos transitam na fronteira entre a língua portuguesa e a língua de sinais.

2 B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S


No lugar onde nasci,3 ouvíamos as lendas da Amazônia contadas no final da tarde,
geralmente por adultos. Atualmente percebe-se que se tratava de contadores de histórias da
comunidade que nos reuniam para brincar ao entardecer. Todos os dias, além das narrativas,
havia as cantigas de roda e brincadeiras que tornavam aquele momento esperado por nós com
entusiasmo. Outro momento das recordações da infância são as preparações para as festas
juninas e as fogueiras montadas em frente às casas nos meses de junho/julho, apesar do calor.
As histórias da comunidade eram as lendas do guaraná, do boto, da cobra grande, da
vitória-régia. Crescemos aprendendo a respeitar a mata, a conviver com seus mistérios e a
pedir licença para a mãe-d’água antes de tomar banho no rio Negro. Quando trafegávamos de
barco ou canoa, rezávamos para que a cobra grande não aparecesse, não virasse a embarcação
e não morrêssemos afogados/as.
As fronteiras entre o povo da “cidade” e o povo do “interior” de Manaus existiam.

2
Órgão federal criado em 1857, vinculado ao Ministério da Educação. Em sua missão institucional, consta a
produção, o desenvolvimento e a divulgação de conhecimentos científicos e tecnológicos na educação de surdos.
Também assessora a Política Nacional de Educação, na perspectiva de promover e assegurar o desenvolvimento
global da pessoa surda, sua plena socialização, o respeito às diferenças e o acesso a seus direitos. Considerada
uma instituição especializada na educação de surdos, promove uma educação bilíngue por meio da língua
brasileira de sinais e da língua portuguesa. (Informativo Técnico Científico Espaço, INES-RJ, n. 28, 2007).
3
Manaus, Amazonas.
3

Vivíamos na cidade e, quando íamos visitar os parentes, dizíamos que íamos para o interior.
Com isso pode-se considerar que na infância vivenciamos o cruzamento de fronteiras entre a
diferença do povo da mata e a diferença do povo da cidade.
Na “cidade” contradições se apresentavam. Apesar de ouvirmos as lendas da
Amazônia, era inconveniente comentar sobre nossa ascendência. Apesar de o rio nos oferecer
inúmeras espécies de peixes, comê-los era motivo de embaraço para algumas famílias. Não se
localiza a partir de que momento, naquela época, passou a valer a ideia de que comer carne
vermelha era melhor. Na cidade havia luz elétrica, médicos, livros, televisão, telefone, óperas
apresentadas no Teatro Amazonas, em cujo interior era somente era permitido transitar
descalços.
No interior, a luz era de lampião e tínhamos as narrativas, as cantigas, os/as
curandeiros/as. A comunicação entre os sujeitos distantes ocorria por cartas ou mensagens
enviadas pelas navegações. Comia-se peixes pescados na hora. De dia, íamos de um lugar
próximo a outro de canoa. E quando isso ocorria à noite, a iluminação da lua era suficiente.
Assistíamos a apresentações de peças de teatro dos habitantes daquele lugar em um local de
chão batido, coberto com palha trançada de folhas de palmeira.
A Bela Adormecida, Chapeuzinho vermelho, Rapunzel, Cinderela, Os três porquinhos,
Branca de Neve e os sete anões e tantas outras histórias infantis foram por nós conhecidas por
meio dos livros que nossos pais nos incentivavam a ler em voz alta. Os livros infantis,
acompanhados de um minivinil, eram arrumados em uma estante à disposição para leitura. Os
livros pertenciam aos habitantes da casa, não tinham dono, não havia o hábito de escrever a
quem pertenciam. Esse momento pode ser considerado como o segundo cruzamento de
fronteiras, ou seja, as lendas da Amazônia, com seus heróis e heroínas de cabelos e olhos
escuros, e os contos advindos da Europa, com seus heróis e heroínas de cabelos claros e olhos
azuis. No lugar das ocas, castelos; no lugar do pescador, que geralmente retornava com uma
história da cobra grande, o caçador; no lugar da narrativa oral, a leitura.
De acordo com Stuart Hall (1997, p. 28), as fronteiras da regulação cultural e
normativa são ferramentas poderosas que deliberam sobre quem atua de modo semelhante e
de acordo com as normas e conceitos, e desencadeiam a estranheza ao “outro”, fora das
fronteiras do discurso e das regras. Os sistemas classificatórios que regulam nossas condutas e
delimitam cada cultura definem os limites entre a semelhança e a diferença, entre o sagrado e
o profano, entre o que é ou não aceitável em relação ao comportamento, as roupas, os
pronunciamentos, as atitudes, o “normal” e o “anormal”, o “limpo” e o “sujo”.
Nesse sentido, o índio já não podia se deslocar da aldeia para a cidade com seu “jeito
4

de ser índio”, nem se comunicar na sua língua. Suas ações pela manutenção de sua terra eram
noticiadas como selvagens. Vivenciávamos relatos de viúvas que choravam, contando como
seus respectivos maridos morreram durante a missão de civilizar índios, apesar de terem
levado na missão, conforme acreditavam, o açúcar e o espelho, que seriam os presentes mais
adorados pelos índios. Tupã passou da condição de sagrado para profano. Comer com garfo e
faca era civilizado e comer com a mão ou com a colher passou a ser considerado inaceitável.
Os povos subalternos, dentre eles o povo indígena e o povo surdo, possuem em
comum a subjugação ou subalternização dos saberes, a tentativa de apagamento da língua, a
representação como selvagem, como incapaz, e não são bem-vindos em seu próprio território.
Os conceitos de cultura e relação de poder são complexos, dinâmicos e instáveis,
principalmente quando se tem por princípio a homogeneização de grupos sociais a partir do
grupo dominante, que tenta neutralizar a produção de sentidos de organismos que estão à
margem. Dentre outros povos, os indígenas e os surdos foram subalternizados na língua e na
literatura.
A experiência com comunidade surda4 do Instituto Federal de Santa Catarina, com a
língua de sinais, as leituras, as capacitações, a experiência vivida na infância e as reflexões
sobre os povos subalternos e suas produções literárias podem ser consideradas como
motivação para realizar a pesquisa que ora se apresenta em forma de artigo.
Durante as leituras sobre as condições de vida e sobrevivência de surdos/as, uma
curiosidade se acentuou. A pergunta que emergiu foi: esses sujeitos, durante toda a história da
humanidade, padeceram pela desqualificação da língua e, consequentemente, pela crença da
sua incapacidade?
A vontade se aguçou durante a leitura da obra de Oliver Sacks, que faz referência ao
livro de Nora Ellen Groce5 sobre Martha's Vineyard, em Massachusetts, em 1690, habitada
por colonos surdos/as, onde a condição de ser surdo por hereditariedade perdurou por 250
anos. Uma em cada quatro pessoas nessa ilha era surda, e toda a comunidade se comunicava
na língua de sinais. “Ser surdo é uma questão de vida. Não se trata de uma deficiência, mas de
uma experiência visual. Experiência visual que significa a utilização da visão em substituição
total à audição, como meio de comunicação”. (PERLIN E MIRANDA, 2003, p. 218).
Os subsídios de Groce sobre as condições de vida dos/as surdos/as da referida ilha
desencadeiam a reflexão a respeito das representações usuais sobre o/a surdo/a – isolado/a,

4
Perlin e Miranda (2003, p. 224) consideram que, na comunidade surda, participam surdos/as, filhos/as de
surdos/as e simpatizantes. No IFSC/CPB, atualmente, trabalham professores e professoras surdos/as e ouvintes,
há intérpretes de libras/português e há alunos e alunas surdos/as.
5
Everyone here spoke Sign Language: hereditary deafness on Martha's Vineyard.
5

apartado/a e imbecil. Nesse lugar não se vivenciava essas representações. Pensando a


literatura oral como prática antiga e presente em todos os povos, provavelmente os/as
surdos/as de Martha's Vineyard não foram alijados da língua, da condição de ser surdo e da
literatura.
Philip (1998, p. 10) afirma que há contos de fadas no mundo inteiro, e suas tramas se
reproduzem com os mesmos pormenores e com o mesmo requinte em diferentes áreas
geográficas. Semelhantes aos sonhos, as imagens emergem em sequência mágica. O início do
conto com “Era uma vez...” expressa à alusão a um mundo similar aos sonhos; a realidade se
modifica. Nesse mundo, os animais falam, a criança se transforma em herói e “tudo pode estar
de pernas para o ar”. Esses contos reúnem elementos essenciais, infindáveis, mágicos, com o
poder fazer uma princesa envenenada retornar à vida posteriormente ao beijo de um príncipe.
Isso tudo se insere no maravilhoso. Sem ele, o conto é incompreensível (JOLLES, 1971, p.
202).
Os contos antes de serem reunidos em livros, foram narrados por séculos “ao pé do
fogo no mundo inteiro.”(PHILIP, 1998, p. 8) As referências indicam a narrativa falada,
portanto ouvida. Sánchez (1990), Sacks (1990) e Lodi (2005) destacam que as pessoas surdas
de famílias ricas e as pessoas surdas de famílias pobres não tiveram as mesmas oportunidades
educacionais a partir do século XVI. Esse dado será importante para refletir sobre a
participação dos sujeitos surdos nas conversas ao pé do fogo.
Em relação à participação de surdos/as nas narrativas orais, Masutti (2007, p. 93)
considera-as como um elemento essencial na construção do imaginário. Desde tenra idade, as
crianças ouvintes são expostas a contos e relatos. Essa situação não se assemelha à maioria
dos sujeitos surdos, que é excluída de narrativas assinaladas pela oralidade, em face do
aparato monolinguista construído nas relações sociais e que impede a circulação de língua e
linguagens.
Desde a Antiguidade até meados do século XX, a língua de sinais foi subalternizada. A
exigência legal de alfabetizar pessoas surdas desencadeou metodologias visando
possibilidades de comunicação desses sujeitos com recursos da leitura, da escritura, do
alfabeto manual, da leitura labial e da fala. Esses eram considerados os meios socialmente
mais aceitáveis que os sinais. Essa situação se reconfigurou a partir da década de sessenta,
quando William Stokoe (1919-2000) comprovou para a comunidade científica dos Estados
Unidos que a língua de sinais americana é uma língua natural e que os sinais são símbolos
abstratos, complexos e com estrutura interna. Sua pesquisa contribuiu mundialmente para que
pesquisadores se voltassem para as línguas de sinais em seus respectivos países.
6

B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S nos reporta a uma língua
proibida por cem anos e envolve sujeitos cujos antepassados foram coibidos de se
comunicarem por meio dela. Trata-se de uma língua visual e espacial, natural, criada,
desenvolvida e transmitida de geração em geração. A simultaneidade dos aspectos gramaticais
é uma das imposições e delimitações que estabelecem sua diferença estrutural com as línguas
orais. As modalidades de recepção e produção das línguas visuais e orais se diferenciam, mas
cada qual possui potencialidades para criar sentidos a partir de suas estruturas subjacentes.
Os aportes teóricos de Zumthor foram significativos para contemplar as B-R-A-N-C-A
D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S, “que um texto seja reconhecido por poético ou não,
depende do sentimento que nosso corpo tem. Necessidade para produzir seus efeitos; isto é,
para nos dar prazer. [...] Quando não há prazer – ou ele cessa – o texto muda de natureza”
(2007, p. 35). A emoção ao contemplar essa produção na língua de sinais desperta em nós a
vontade de recriar e recontar. Adiciona-se a isso, que se trata de uma elaboração artística de
uma instituição de ensino público para surdos e de uma contadora de histórias surda.
O referencial teórico de Jolles (1971) permite abordar sobre o “conto” e não “contos
de fadas” ou “contos maravilhosos”: a trajetória do conto em seu princípio, destinado aos
adultos e posteriormente adequado ao público infanto-juvenil. Para isso, foram valiosas as
contribuições de Bettelheim (1980), Bortolussi (1985), Coelho (1987), Jolles (1971), Arroyo
(1968), Philip (2001) e Almeida (2004). Não há divergências entre os autores citados neste
parágrafo de que se cultivava o conto muito antes de ser dado a ele o seu status de gênero
literário. Eles apontam o maravilhoso como originado da literatura oral popular, abordam que
os contos surgiram destinados aos adultos e posteriormente foram dedicados às crianças, são
fontes de uma literatura escrita oriental e propagaram-se pelo mundo, de geração em geração.
Portanto, foram contados e recontados por séculos e posteriormente, foram reunidos em
livros. Onde quer que se vá ao planeta terra, haverá contos.
Bortolussi (1985) ressalta que a definição do conto não pode ser uma forma única e
categórica e propõe a pluralidade de estudos desse gênero, por meio da história, da crítica e da
teoria literária, cada um com seus conceitos e métodos diferenciados. Portanto, não será eleito
o caminho de definição do conto, tampouco suas categorizações.
Coelho (1987), Arroyo (1968), Bettelheim (1985) e Bortolussi (1985) discorrem sobre
narrativas surgidas entre os povos da Antiguidade, que, incorporadas, misturadas, modificadas
se difundiram pelo mundo. As modificações ocorreram com acréscimo de elementos,
tornando as narrativas significativas, em vista dos costumes e das regras estabelecidas
socialmente. O argumento de que há contos em diferentes posições geográficas se verifica a
7

seguir:
Se perseguirmos, numa viagem através dos textos (muitos dos quais nasceram
séculos antes de Cristo), passaremos pelas sábias e místicas regiões da Índia ou do
misterioso Egito; defrontaremos a bíblica Palestina do Velho Testamento e a Grécia
clássica; entraremos pelo Império Romano adentro, descobrindo-o como o grande
mediador/divulgador que foi no Ocidente, de toda a sabedoria mágica gerada no
Oriente, Ao mesmo tempo descobriremos as migrações narrativas realizadas na
Pérsia, Irã, Turquia e principalmente na luxuriosa Arábia, cuja ênfase na
materialidade sensorial mais plena vai se contrapor ao espiritualismo gerado pela
imaginação sonhadora dos celtas e bretões.
Já na idade média, veremos como todo esse lastro pagão choca-se, funde-se ou
deixa-se absorver pela nova visão do espiritualismo cristão e transformado, chega ao
Renascimento [...] Até que, finalmente, na passagem da era clássica para a
romântica, grande parte dessa antiga literatura maravilhosa destinada aos adultos é
incorporada pela tradição oral popular e transforma-se em literatura para crianças.
(COELHO, 1987, p. 15)

O conto Branca de Neve foi publicado com esse título pelos irmãos Grimm em 18236.
Em algumas versões, os fiéis companheiros da heroína são ladrões. Acrescenta Philip que
Walt Disney (1901-1966), em 1937, apresentou o primeiro desenho animado de longa-
metragem intitulado Branca de Neve e os Sete Anões e nomeou os anões: Mestre, Zangado,
Dunga, Dengoso, Soneca, Feliz e Atchim. Na narrativa de Philip, a madrasta ordena ao
caçador tirar a vida de Branca de Neve na floresta e que comprove isso entregando-lhe o
coração e o fígado. Tendo em vista que o caçador não cumpriu a ordem da madrasta, entregou
os órgãos de um filhote de javali à rainha, que os comeu. Esse conto finaliza com a punição
da madrasta, forçada a calçar um sapato em brasa e dançar com ele até a sua morte (PHILIP,
1988, p. 122-125).
Em Branca de Neve, dos irmãos Grimm, em Branca de Neve e os Sete Anões, de Walt
Disney, e em B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S, se apresenta a vaidade, a
luta pelo poder da beleza, a metamorfose da madrasta em bruxa, os animais (o corvo, a pomba
e a coruja), o rei, a rainha, o servidor representado pelo caçador, uma terra não determinada,
um tempo e um lugar não determinados, o espelho como objeto que responde às perguntas da
madrasta.
B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-TE A-N-Õ-E-S é fruto da literatura oral, que,
segundo Patrini (2005, p. 105), se transmite de indivíduo a indivíduo, de povo a povo. O
conto se constituiu como algo imprescindível à vida dos seres humanos, e estes, com o
decorrer do tempo, o elegeram pela experiência. Nesse contexto, Branca de Neve foi
compilado da narrativa oral do povo alemão pelos irmãos Grimm e publicado em 1823. Walt

6
Arroyo (1968, p. 31), argumenta que “Branca de Neve” e outras histórias presentes em Kinder- und
Hausmärchen, dos irmãos Grimm, já haviam sido publicadas por Charles Perrault.
8

Disney, em 1937, apresentou o primeiro longa-metragem, intitulado Branca de neve e os sete


anões, nomeando os anões. Em 2006, o INES produziu esse conto na forma artística e na
língua de sinais. Há semelhanças e diferenças em cada variante apresentada, porém não houve
a intenção de aprofundá-las.
Em Branca de neve e os sete anões e em B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E
A-N-Õ-E-S, apresentam-se, não em sua totalidade, as características dos contos celtas
alistadas por Coelho (1997) e por Bussato (2003): o excessivo espiritualismo, o poder
feminino, a inclinação ao sobrenatural, o fascínio por regiões distantes com lagos misteriosos
e com névoa, a adoração à natureza dotada de forças místicas, as lendas em que personagens
heróicos possuem encantamento emblemático, as mulheres divinas ou diabólicas, os anões e
as anãs, os seres monstruosos, os seres gigantescos, os objetos com poderes extraordinários e
os reinos fantásticos. Os anões, o espelho como oráculo, o castelo, a madrasta diabólica, a
bruxa, a floresta distante para onde Branca de neve fugiu e foi acolhida, o príncipe e o triunfo
da heroína, aparentemente possuem uma semelhança com os contos celtas.
A palavra apresentada em letras maiúsculas separadas por hífen (B-R-A-N-C-A D-E
N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S), significa que a contadora de histórias realizou a
soletração do alfabeto manual da LIBRAS. A mesma palavra ou nome da personagem
anteriormente soletrada no alfabeto manual pode aparecer o nome Branca de Neve,
significando que não foi realizada a soletração manual e sim uma referência que permite a
contextualização, seja no nome visual, seja na palavra sinalizada7.
Na pesquisa, a língua de sinais é compreendida como celebração, luta e resistência de
um povo subalternizado no que diz respeito à língua e à literatura. O referencial teórico de
Mignolo (2003) contribuiu para a abordagem da imposição de uma língua nacional e de uma
literatura nacional como estratégias de dominação para assegurar a constituição de
comunidades imaginadas homogêneas. Isso permite que se reflita sobre o Congresso de Milão
ocorrido em 1880, que proibiu a língua de sinais e impôs a fala.
O CD-ROM produzido pelo INES foi realizado por uma contadora de histórias
proficiente na língua brasileira de sinais. Possui legendas na língua portuguesa, e a música de
fundo As quatro estações, de Antonio Vivaldi esse fatores demonstram que seus idealizadores
tiveram a preocupação com expectadores comunicantes ou não da língua de sinais. Parte de
mim a iniciativa de considerar B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S como

7
Wilcox e Wilcox (2005, p. 40) consideram que os sinais são semelhantes às palavras faladas, escritas ou
sinalizadas. São blocos de construção que formam a base das línguas.
9

uma tradução da língua portuguesa para a língua de sinais e a narradora como contadora de
histórias profissional. Reflito sobre o espaço da tradução em um país, o Brasil, onde a maioria
das pessoas ouvintes se comunica pela fala na língua portuguesa e pessoas surdas se
comunicam pela língua de sinais.
A convivência com a comunidade surda despertou o desejo de abordar a importância
do nome visual como uma construção a partir de parâmetros visuais. Cada personagem é
apresentado no início do vídeo pela contadora de histórias com um nome visual. A estratégia
de escrever o nome na língua portuguesa seguido do nome visual na escrita de sinais8 visa
demonstrar que possivelmente há diferenças entre eles.
O nome da autora na língua portuguesa é Carla e seu nome visual, na língua de sinais,
envolve configuração de mãos, movimento e locação. Alguns personagens da narrativa,
apresentados logo no início do vídeo, o nome visual envolve a configuração de mãos, o
movimento e locação, com o acréscimo da expressão facial. Na comunidade surda a
configuração de mão R realizada no espaço à direita na posição horizontal, toca no lado
direito do rosto, logo abaixo dos olhos e arrasta-se num movimento curto para fora do rosto.
O R faz parte de seu nome de batismo, e o ato de passar a configuração de mão em R abaixo
dos olhos evidencia as olheiras. Esse é o nome visual da autora.
É comum que cada sujeito ouvinte se apresente dizendo seu nome na língua
portuguesa. Nessa mesma linha, é comum que na comunidade surda, os participantes se
apresentem com a soletração do nome de batismo na língua portuguesa, seguido de seu nome
visual na língua de sinais.
Os aportes teóricos dos estudos pós-coloniais me auxiliaram na reflexão sobre o fato
de o sujeito surdo transitar entre fronteiras de línguas. Ao conviver com a língua de sinais e a
língua portuguesa, esse sujeito convive com outros em uma relação de heterogeneidade
cultural. Esse foi um fator que permitiu refletir sobre a soletração manual presente em B-R-A-
N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S. Quadros e Karnopp (2004) conceituam a
soletração manual como uma representação da ortografia da língua falada ou escrita que
envolve a sequência de configuração de mão que corresponde à sequência de letras do
alfabeto que formam palavras escritas da língua portuguesa. Ao lado do referencial de
Mignolo (2003) sobre Arguedas9 e sobre Anzaldúa,10 compreende-se que a soletração manual

8
Não será realizada neste artigo, abordagem sobre a escrita de sinais. A publicação completa da pesquisa
está disponível em http://editora-arara-azul.com.br/novoeaa/disssertacao-emso-de-mestrado-3/
9
Tupac Amaru Kamaq Taytanhisman.
10
Bordelands/La frontera: The New Mestiza.
10

é um ponto de encontro entre a língua brasileira de sinais e a língua portuguesa.


Mignolo (2003) avalia a utilização de palavras castelhanas com declinações quíchuas e
de palavras castelhanas escritas segundo a pronúncia dos índios e mestiços por Arguedas,
como também faz referência a Anzaldúa que escreve em espanhol, inglês e nahuatl. Com isso
o autor aborda o linguajamento como interação entre indivíduos que estabelecem uma
oportunidade de língua e o bilinguagismo11 como um modo de denunciar a colonialidade do
poder e do saber.
De acordo com Quijano (1997) a colonialidade do poder se institui por meio: da
classificação e reclassificação da população do planeta; de uma estrutura operacional
institucional para administrar as classificações, ou seja, o aparato do Estado, universidades,
igreja, etc.; espaços definidos e adequados para objetivos; por fim, de uma perspectiva
epistemológica para articular o sentido e o perfil da nova matriz de poder e a partir da qual
canalizar a nova produção do conhecimento. A colonialidade do poder envolve todo o globo,
inclusive a divisão continental – África, América, Europa – e organiza a produção de
conhecimento e seu aparato classificatório.12 Em relação aos sujeitos surdos que incluem a
soletração manual da língua portuguesa em meio às palavras sinalizadas, provavelmente
denunciem também a colonialidade do poder e do saber.
A língua de sinais é arte em movimento, uma coreografia circular, uma poesia cuja
tensão corporal inscreve os ritmos que reaproximam os corpos das sensações da dança. Para
sentir a dança, é preciso se libertar das travas dos olhos que estão engessados pelo som e pelas
estereotipias culturais (MASUTTI, 2007, p. 89). A contadora de histórias surda reconta na
língua de sinais, para uma câmara, um conto da literatura oral. Patrini (2005), Bussato (2004)
e Bettelheim (1998) proporcionaram a compreensão de que narrar é uma arte e uma prática
cultural amparada pela memória, que conserva as narrativas de geração em geração.
A partir das considerações sobre a leitura da imagem, apresenta-se uma abordagem
sobre recepção, com o envolvimento das sensações corporais. Esse reconto e recriação na arte
em movimento possui um público surdo/a. Nesse processo, emerge a diferença da experiência
visual que abarca todo tipo de significações, representações e/ou produções, no campo
intelectual, linguístico, ético, estético, artístico, cognitivo e cultural (SKLIAR, 1999, p. 11). O
sujeito espectador/a é surdo/a e, para não perder a história, não fia ou tece enquanto lê13; não

11
Mignolo (2003, p.359) acrescenta sua preferência ao bilinguajamento e ao bilinguagismo e não ao
bilinguismo, tendo em vista que seus aportes teóricos versam sobre o que se encontra além do som, da
construção gramatical e do dicionário, e além da obrigação de saber duas línguas.
12
Quijano (1997, citado por Mignolo, 2002, p. 41).
13
A elaboração do parágrafo se refere à leitura do ensaio de Benjamin (1994).
11

pode realizar as duas coisas ao mesmo tempo, porque sua comunicação é visual.
A contadora de histórias surda não está em uma praça pública narrando para o/a
espectador/a surdo/a. Ela se encontra diante de uma câmara que filma sua arte em movimento
e com os recursos indispensáveis a esse ato. O/a espectador/a surdo/a que contempla a
imagem em uma tela, talvez não perceba que ações foram necessárias para que o produto final
chegasse às suas mãos.14
B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S é uma produção híbrida. Por
conseguinte, o/a surdo/a contador/a ou espectador/a é híbrido e realiza a leitura do texto
sinalizado em uma moldura. Nesse processo do prazer de ler, estão envolvidos o corpo e as
palavras sinalizadas, que se traduzem em configurações de mãos acompanhadas das
expressões faciais e corporais. Em sua contemplação, provavelmente o/a espectador perceberá
que todas as personagens do objeto da pesquisa não são surdos/as. Pensar a identidade nos
dias atuais envolve um posicionamento de um movimento contínuo em relação às formas por
meio das quais é representada nos diferentes sistemas culturais. “A identidade é sempre
híbrida porque ela se constrói no espaço relacional, em que o sujeito é atravessado por toda
uma gama contraditória e conflitante de elementos linguísticos e culturais” (BHABHA, apud
SOUZA, 2004, p. 119).
A utilização do termo “hibridismo” na crítica pós-colonial assinala as culturas
ponderadas como mistas e diaspóricas. Não se trata de uma alusão à constituição racial mista
de uma população, e sim um termo para a coerência cultural da tradução que se manifesta nas
diásporas multiculturais e em comunidades minoritárias e mistas do mundo pós-colonial. A
posição ambivalente do dentro/fora é localizada em todos os lugares e determina a lógica
cultural composta e irregular pela qual a chamada “modernidade” ocidental pulsa as áreas
geográficas desde o princípio da ideação globalizante européia (HALL, 2003, p. 74). Ainda
segundo o pensamento do autor, o hibridismo não se refere a indivíduos híbridos, que podem
ser contrastados como os “tradicionais” e “modernos”, como sujeitos plenamente formados.
Trata-se de um processo de tradução cultural inquietante, tendo em vista seu caráter
inconcludente; portanto, permanece irresoluto.
O hibridismo não é simplesmente apropriação ou adaptação, é um processo que se
exige das culturas uma revisão de seus próprios sistemas de referência, normas e valores, pelo
distanciamento de suas regras habituais ou “inerentes” de transformação. Ambivalência e
antagonismo acompanham cada ato de tradução cultural, pois negociar com a “diferença do

14
O parágrafo foi elaborado com os aportes teóricos de Patrini (2005) e Benjamin (1994).
12

outro” revela uma insuficiência radical de nossos próprios sistemas de significado e


significação.15
O hibridismo significa um momento dúbio e ansioso, de transição, que acompanha
qualquer modo de mudança social sem o compromisso de um encerramento sublime ou
transposição das condições complexas inerentes a essas transformações. O hibridismo objetiva
apresentar as discrepâncias a serem transpostas, não obstante as relações de proximidade, de
poder ou atitudes a serem contraditas, os valores éticos e estéticos a serem traduzidos, mas que
não transcenderão ilesos no processo de transferência.
Realizada a abordagem acerca do hibridismo, retoma-se à explanação de que assim
como não houve a intenção de direcionar o olhar para terminologias dos contos, também não
houve o anseio de divisões terminológicas de literatura.16
Cinderela surda e Rapunzel surda, produções literárias que apresentam a narrativa na
língua portuguesa e na escrita de sinais, apesar de provavelmente pouco conhecidas, foram
fundamentais para refletir sobre ver e ouvir em B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-
N-Õ-E-S. Cinderela surda proporcionou uma abordagem sobre a importância de Charles
Michel l’Épee (1712-1789) e de Paris, para o povo surdo. Rapunzel surda enfatiza a interação
entre personagens surdas e personagens ouvintes.
Mesmo que poucos sujeitos surdos conheçam a escrita de sinais, sugere-se que se
inicie um movimento de ampla divulgação e incentivo a sua aprendizagem, desde a educação
básica, com a literatura produzida na língua de sinais como elemento de incentivo e
celebração da língua. A mesma comunidade surda que, por anos, reivindicou o
reconhecimento da língua de sinais deve promover ações para o reconhecimento da escrita de
sinais. Além desses fatores, as escolas, as associações e os locais em vias públicas, onde os
sujeitos surdos se encontram, poderiam promover eventos com o conto que se transmite de
sujeito a sujeito, de povo a povo e permaneceria na memória do sujeito surdo associado ao
incentivo de recontar e recriar.
Os clássicos são livros que desempenham uma influência especial assim como se
impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória,
mimetizando-os como inconsciente coletivo ou individual. Contudo, a emoção que advém da
leitura pela primeira vez de um clássico se diferencia na juventude e na maturidade. A
juventude comunica a ação de ler como a qualquer outra experiência um sabor e uma

15
Esse parágrafo e o seguinte foram elaborados com o referencial teórico de BHABHA, 1997 citado por HALL,
2003, p. 75.
16
Compagnon (2011) e Casanova (1999).
13

autoridade reservados. Na maturidade, as minúcias e os significados provavelmente sejam


mais considerados.17
As leituras da juventude podem ser pouco proveitosas pela sofreguidão, desatenção,
inexperiência das instruções para o uso e pouca vivência. Elas podem ser ao mesmo tempo
formativas, na medida em que concedem uma configuração às experiências futuras, municiam
padrões que permitem comparações, categorizações, valores, conglomerados que prosseguem
ainda que nos relembremos raro ou nada do livro que lemos na juventude. A releitura do livro
na idade madura possivelmente ocorra semelhantemente ao reencontro com formas que
compõem as nossas estruturas essenciais e cuja procedência se perdeu. A existência de um
tempo na maturidade destinado a reler os livros considerados mais importantes na juventude
se apresenta em Calvino (2007), como uma atitude respeitável. Os livros, ao mesmo tempo
em que permanecem, se transformam, tendo em vista uma perspectiva histórica diferente. A
releitura envolve que passou um tempo, mudanças e acréscimos de experiências
provavelmente ocorreram no/a leitor/a que reler. O autor aprecia esse reencontro com o livro
como um novo acontecimento.18
Os clássicos, como livros que transportam as marcas das leituras que antecederam à
nossa e os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram, não
essencialmente ensinam algo que não conhecíamos. Pode ocorrer de nos depararmos com
alguma coisa que sabíamos ou acreditávamos saber, contudo ignorávamos que um clássico
poderia abordar. Mesmo assim, se trata de um deslumbre que resulta em contentamento.
Geralmente essa situação se apresenta com a descoberta de uma procedência e de uma
pertinência. Cada um de nós possui uma biblioteca ideal do que considera como clássicos.
Calvino (2007, p. 12) avalia que ela deveria conter uma parte de livros que já foram por nós
lidos e que nos contaram e outra parte de livros que almejamos ler e pressupomos recontar.
As considerações de Calvino (2007) permitem a reflexão de que o primeiro contato
com a narrativa Branca de neve e os sete anões ocorreu na infância, por meio do livro, e ficou
guardada na memória. Naquela época, provavelmente mesmo sem os aportes teóricos de
Jolles (1971) sobre a disposição mental do conto, ou seja, “a ideia de que tudo deva passar-se
no universo de acordo com a nossa expectativa”, o sentimento de justiça foi maior do que
perceber as minúcias.
O reencontro na maturidade ocorreu com Branca de neve e os sete anões novamente
no livro e com B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S em vídeo, na língua de

17
Calvino (2007, p. 10).
18
Calvino (2007, p. 11).
14

sinais. Nesse momento, a emoção teve como companheiros a observação dos pormenores e os
artefatos culturais do povo surdo. Nesse sentido, considera-se que se trata de um novo
acontecimento. As duas produções em livro ou em vídeo trazem as marcas das leituras que
precederam a essa e aos vestígios que deixaram nas culturas pelas quais passaram. Porém,
com o diferencial que, nos deparamos com questões anteriormente ignoradas e o
contentamento se misturou a novas sensações.
Acrescida de leituras que não se apresentam na pesquisa, a nova sensação na releitura
dos clássicos destinados aos adultos e posteriormente às crianças é a banalização do mal. O
universo diabólico se apresenta em B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S
representado pela madrasta má, vaidosa, que não admite a beleza da enteada.
Na cena da transformação da rainha em bruxa admite-se que o olhar se direcionou à
perfeição do desempenho e criatividade da contadora de história. A bruxa não está vestida de
preto, nem seu nariz é enorme e possui uma verruga na ponta. Sua expressão facial é
sorridente de contentamento, tendo em vista que fará uma porção mágica em seu caldeirão
para envenenar Branca de neve por meio de uma maçã. A bruxa não se desloca até à casa dos
anões montada em uma vassoura. Ela rema a noite inteira um pequeno barco. Toda essa
contemplação foi desprovida da ideia de que o mal se tornou comum na literatura destinada às
crianças.
B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S, Cinderela surda, e Rapunzel
surda abordam a representação do mal. Possivelmente o sentimento de justiça predomina a
ponto de não se perceber a sua permanência nas narrativas. Os aportes teóricos de Jolles
(1971) desencadearam a reflexão sobre uma possível narrativa da literatura oral sem a
contenda entre o bem e o mal. Provavelmente a literatura oral demonstre que o bem e o mal se
apresentam desde a criação do mundo e que a vitória do mal é momentânea; no final triunfa o
bem.
Em relação a recontar e recriar, a referência de Sacks (1990) ao livro de Nora Ellen
Groce sobre Martha's Vineyard, somada à condição de ser surda e à celebração da língua de
sinais, foram fundamentais para pensar na possibilidade do reconto e recriação de
B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S.
Sacks (1990, p. 50) observa que, na pesquisa de Ellen Groce sobre a ilha Martha's
Vineyard, os moradores mais antigos lembravam com carinho de parentes, vizinhos e amigos,
sem relatarem que eram surdos. Esse fato emergia a partir da pergunta realizada pela
pesquisadora se a pessoa a quem se referia o entrevistado era surdo ou surda. A resposta era
dada após um momento para reflexão seguido da resposta: “Ele/Ela era mesmo surdo/a” e
15

eram apenas considerados como amigo, vizinho, pescador, não como deficiente, especial,
isolado da sociedade. Ainda segundo o autor, os surdos em Martha's Vineyard amavam,
casavam, trabalhavam, pensavam e escreviam. Mesmo depois da morte do último surdo
morador da ilha, aqueles que não eram surdos preservaram a comunicação na língua de sinais.
A partir das considerações do autor acima, refletie-se sobre a possibilidade de recontar
e recriar B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S com a possibilidade de que
não se faça uma diferenciação entre personagens surdos e personagens ouvintes e que todos se
comuniquem na língua de sinais. As considerações de Wilcox e Wilcox (2005, p. 88) de que
para os sujeitos há pelo menos dois tipos, ou seja, “nós” e “eles”; que as crianças iniciam a
vida com a ideia de que, todos são iguais, porém, com o passar dos anos, elas começam a
perceber que há diferenças sobre quem somos “nós” e quem são “eles”.
A “virada cultural” que contribuiu para a mudança radical do paradigma da
homogeneização cultural desencadeou o entendimento da diferença cultural e das relações de
poder, possibilitando a interpretação da cultura sob outro olhar, ou seja, não há uma única
cultura e sim culturas. O entendimento da multiplicidade cultural permitiu a desconstrução do
conceito homogêneo, único e determinante de cultura e de identidade. Nesse sentido, a
literatura produzida na língua de sinais, a partir do caráter híbrido das sociedades, precisa
incentivar a convivência com a diferença.
Na abordagem sobre Arguedas, que utiliza palavras castelhanas com declinações
quíchuas e palavras castelhanas escritas segundo a pronúncia dos índios e mestiços, e sobre
Anzaldúa que refaz o quadro das práticas linguísticas e literárias escrevendo em espanhol, em
inglês e em nahuatl, Mignolo (2003) avalia que o linguajamento 19 do escritor e da escritora
situa a interação entre indivíduos e se estabelece como oportunidade de língua.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os sujeitos surdos produzem literatura a partir da visão de mundo da experiência
visual. O significado não é fixo e acabado, os caminhos que se pretende percorrer nem sempre
são propiciados pelas situações, que se apresentam como uma caixa de surpresa.
B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S e foi contemplada por inúmeras vezes,

19
O linguajamento situa a interação entre indivíduos, entre seres humanos em vez de ideias preexistentes. O
encontro entre a pessoa, o eu, seres humanos, organismos vivos se estabelece como oportunidade de língua.
(MIGNOLO, 2003, 315)
16

cada uma com um objetivo diferente, ou para ter a certeza de que aquilo que foi visualizado
poderia ser visto de outra maneira em outro momento.
Seguindo as referências de James ([19-]) de que a contemplação sugere que um par de
olhos observa, diferencia, aprecia, assimila – “um vê mais onde o outro vê menos, vê preto
onde outro vê branco, vê grande onde outro vê pequeno, vê grosso onde outro vê fino” –
solicitou-se auxílio dos colegas de trabalho para a elaboração do nome visual. Na realidade,
outros pares de olhos contribuíram para muito além do que o nome visual.
As considerações aqui apresentadas não estão impregnadas de fixidez. É possível que
algo venha a ser modificado a cada leitura. A oposição binária surdo/ouvinte, língua
portuguesa/língua de sinais, experiência visual/experiência do som, durante um período foi
incômoda e continua sem resolução na ação de refletir, de escrever e na prática profissional. O
sujeito que convive com essas duas línguas e constantemente se desloca de um mundo surdo
para um mundo ouvinte em um curto espaço de tempo, vive no espaço da tradução, penetra e
retira-se da diferença de um para a diferença do outro. Por mais simples que seja a
experiência, percebe-se no cotidiano o quanto é difícil “negociar com a diferença do outro”
(BHABHA, 1998).
As narrativas do povo surdo permitem a compreensão da vitória da língua de sinais
presente atualmente em vias públicas, na mídia, na universidade, nas escolas de educação
básica, nos restaurantes, nos bares, nos aeroportos. As tentativas de apagar a língua de sinais
dos sujeitos surdos não vingaram. O motivo, quem sabe, se situe “nas forças milenares nas
lembranças de uma língua cravada no corpo”. (MIGNOLO, 2003, p. 307). Os sujeitos surdos
provavelmente apreciam recontar e recriar contos da literatura oral. A celebração da língua de
sinais e o orgulho de ser surdo se apresentam em suas produções, seja através de vídeos
produzidos por meio institucional, seja por vídeos produzidos por uma filmadora e
disponibilizados em suas páginas via internet. Em qualquer uma das produções, o conto
sobrevive em um povo que se comunica com os olhos, com as expressões faciais, com as
mãos, por que não dizer, com o corpo.

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17

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18

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Fenerich. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

UM ESTUDO DESCRITIVO DA RELAÇÃO ENTRE O CONHECIMENTO


TEÓRICO E A PRÁTICA DOCENTE NO ENSINO DE PRODUÇÃO TEXTUAL

Mirella de Oliveira Freitas (UFT)1

RESUMO

Esse artigo apresenta uma análise da relação entre conhecimento teórico e prática docente na
rede pública de ensino de Palmas-TO, no que se refere a correção e avaliação de textos em
língua materna. Dentre os objetivos propostos, buscou-se identificar os critérios utilizados
pelos professores na correção e na avaliação de textos de tipologia dissertativa, bem como
determinar o grau de percepção desses profissionais frente a falhas de estrutura textual. A
metodologia de pesquisa empregada partiu da análise descritiva e quantitativa de textos
produzidos pelos próprios professores, bem como de redações por eles corrigidas e avaliadas.
O estudo também se pautou nas respostas dadas por esses docentes a um questionário que lhes
possibilitava registrar informações com vistas a se auto-avaliarem a partir de sua formação e
de suas práticas. Destaca-se que os professores revelaram ter conhecimento teórico limitado, o
que lhes restringe a capacidade de produzir, de corrigir e de avaliar textos. As diretrizes
teóricas que nortearam o trabalho partem dos conceitos de texto, textualidade, coerência,
coesão e fatores pragmáticos, propostos por teóricos da Linguística Textual, como Travaglia
(2002, 2003), Costa Val (2006), Van Dijk (1981) e Van Dijk e Kintsch (1983). Assim,
esperou-se contribuir com a área da educação e de formação de professores, cooperando
também para melhorias no processo ensino-aprendizagem de língua materna, ao serem
abordados os desafios que permeiam o ensino da produção textual.

Palavras-chave:
Produção de texto. Critérios de correção. Formação docente.

ABSTRACT

This article presents an analysis of the relationship between theoretical knowledge and
practical teaching in public schools in Palmas, Tocantins. It is about texts correction and
evaluation in mother tongue. Among the proposed objectives, we sought to identify the
criteria used by teachers in the correction and evaluation of dissertations, as well as determine
the degree of perception of these professionals in the face of failures textual structure. The
research methodology employed was based on the descriptive and quantitative analysis of
texts produced by teachers themselves, as well as essays corrected and evaluated by them.
The study also was based on answers given by these teachers to a questionnaire that allowed
them to record information, aiming at self-evaluation from their training and their practices.
The teachers found they have a limited theoretical knowledge, which restricts their ability to
produce, to correct and to assess texts. We based on the concepts of text, textuality,
coherence, cohesion and pragmatic factors, proposed by theorists of the Textual Linguistics as
Travaglia (2002, 2003), Costa Val (2006), Van Dijk (1981) e Van Dijk e Kintsch (1983).
Thus, it was expected to contribute to the education and to the training of teachers, working
also for improvements in teaching and learning of mother tongue and addressing the
challenges that permeate the teaching of text production.

1
Mestre em Linguística pela Universidade Federal de Uberlândia, com ênfase em Texto e Discurso. Professora
Assistente da Universidade Federal do Tocantins, Centro de Engenharias Civil e Elétrica; e-mail:
mirellafreitas@uft.edu.br.
2

Keywords:
Essay. Correction criteria. Teacher training.

1 INTRODUÇÃO
Devido ao seu caráter muitas vezes polêmico, a sala de aula tem funcionado como
palco de pesquisa no que se refere aos conflitos que permeiam o ambiente da educação nos
dias atuais. Nesse cenário, as questões abordadas relacionam-se ao processo ensino-
aprendizagem, bem como à formação de professores. Quando se trata de ministrar aulas de
língua materna e, principalmente, de produção textual, alguns paradigmas já se encontram
estigmatizados nos discursos de muitos profissionais, sobressaindo-se aqueles relacionados
aos fatores que dificultam ou que impedem o bom trabalho em sala de aula.
As dificuldades são evidentes, levando muitos a desistirem da profissão. Porém, há
docentes que veem a pesquisa acadêmica e a formação continuada como meios para se
aprimorar o processo educacional, aprofundando-se o conhecimento teórico e metodológico.
Para esses profissionais, as mudanças necessárias no processo ensino-aprendizagem
envolvem, também e principalmente, o indivíduo pesquisador e atuante, bem como o nível e a
qualidade da formação dos profissionais. Assim, por compartilharmos essa mesma opinião,
propomo-nos a investigar a sala de aula de língua materna a partir da figura do professor, mais
especificamente no que concerne às aulas de redação2.
Para esse fim, reunimos um grupo de professores da rede pública de ensino de
Palmas-TO em um projeto de extensão cujo objetivo geral era, por meio de discussões
teóricas e atividades práticas de produção, correção e avaliação de textos, contribuir para o
aprimoramento do ensino de língua materna, com ênfase no trabalho com a macroestrutura
textual. Também intencionávamos avaliar as habilidades desses profissionais ao corrigirem
textos, a partir de falhas textuais e lingüísticas por eles identificadas em produções de alunos.
Os objetivos específicos compreenderam promover o aperfeiçoamento da formação teórica do
docente e implementar atividades didáticas e metodológicas de ensino-aprendizagem de
Língua Portuguesa, com foco em produção de textos.
Para tanto, foi trabalhada com os professores a correção de textos diversos, todos eles
de tipologia dissertativa e produzidos no contexto de sala de aula. Tratou-se de rico material
de análise, uma vez que nos permitiu identificar quais os critérios empregados por esses
profissionais nas correções de textos, bem como avaliar o grau de percepção e de

2
Não fazemos aqui a diferenciação proposta por alguns estudiosos entre os termos “produção de texto” e
“redação” (GERALDI, 1997). Nesse trabalho, são empregados como vocábulos equivalentes, envolvendo
aspectos semânticos e pragmáticos, muito além de meros elementos linguísticos (COSTA VAL, 2006).
3

conhecimento dos docentes acerca de falhas quanto ao emprego de elementos que devem
constituir a estrutura de uma dissertação. Também, a partir da produção textual desses
profissionais, pudemos compreender o conhecimento que tinham de instâncias semânticas e
de aspectos pragmáticos e formais, conforme postulados de Costa Val (2006).

2 O TEXTO E A CONTINUIDADE DOS SENTIDOS: A COERÊNCIA TEXTUAL


SOB A PERSPECTIVA DOS GÊNEROS
Antes de definirmos critérios de correção e de avaliação das produções, bem como
antes de determinarmos as falhas que não poderiam constituir as redações e que deveriam ter
sido percebidas pelos professores, é importante que tenhamos claro o conceito de texto.
Segundo preceitos teóricos de Costa Val (2006), Halliday e Hasan (1976) e Bernárdez (1982),
o texto é a unidade linguística básica de comunicação, sendo essencialmente de caráter
pragmático. É estruturado conforme a intenção do falante, a situação em que este se insere e
segundo ainda um conjunto de regras linguísticas. Assim, apresenta características sociais,
semânticas e comunicativas, devendo apresentar coerência profunda e superficial, conforme a
intenção do falante  de comunicar, divertir, persuadir etc.. Além disso, é importante
ressaltar que não consiste em sentenças, mas é estruturado e realizado por elas,
independentemente de sua extensão3.
O texto caracteriza-se como sendo um todo significativo, uma unidade semântica que
equivale à coerência. Só é considerado como tal porque há uma relação de continuidade entre
o conhecimento prévio ativado e as expressões que compõem a superfície textual. Trata-se,
portanto, de um princípio de interpretabilidade que aponta para o fato de que a coerência não
está no texto, mas se constrói a partir dele, em uma situação concreta e específica de atividade
verbal, durante um processo de interação entre locutor e interlocutor. Além disso, para Van
Dijk (1981) e Van Dijk e Kintsch (1983), a coerência envolve fatores pragmáticos (dentre os
quais incluímos a intencionalidade, a informatividade, a situacionalidade, a aceitabilidade e a
intertextualidade, conforme proposto por Marcuschi (1983, p. 16)), sintáticos (que equivalem
à coesão), semânticos (que se referem às relações entre significados dos elementos e
envolvem também os elementos repetidores e substituidores da coesão textual) e estilísticos
(ligados ao estilo ou registro lingüístico).

3
Tal concepção de texto influencia bastante a correção de redações, tendo em vista que determinará o aspecto a
que o professor conferirá maior relevância ao penalizar as falhas cometidas pelos alunos no momento da escrita:
se a fatores formais ou se a elementos pragmáticos e semânticos.
4

Logo, o texto é assim definido por ser coerente, pelo fato de os elementos da
superfície textual direcionarem o leitor à interpretação e à construção do sentido local e
global4. Além disso, nesse estudo, partimos do pressuposto de que a análise da coerência
somente pode ser desenvolvida considerando-se a situação de comunicação, o produtor, o
interlocutor e, principalmente, o texto de que se trata. Esses fatores, portanto, encaminham a
análise desenvolvida para um trabalho paralelo e conjunto com os gêneros textuais.
Nessa perspectiva, tomamos por base o conceito proposto por Bakhtin (2000): os
gêneros são tipos relativamente estáveis de enunciados, elaborados e empregados nas diversas
esferas sociais. Ainda, segundo o autor, manifestam características bem próximas no que se
refere a sua composição, seu objetivo e seu estilo. Apresentam-se, pois, de forma peculiar,
considerando-se a própria temática e até o estilo verbal, e organizam-se para atender
condições e finalidades específicas, conforme a esfera da atividade humana em que se
inserem.
Dessa forma, compreendemos que seja necessário observar o atendimento às
características do gênero com que trabalhamos para determinarmos se algo é coerente ou não
para um determinado texto. Para tanto, nós consideramos a redação um gênero: um texto para
ser avaliado quantitativa e/ou qualitativamente e por meio do qual se mede o conhecimento
linguístico e textual do produtor. Segundo Marcuschi (2003), trata-se de um gênero que
constitui o discurso pedagógico, figurando junto a outros que compõem o livro didático, como
as instruções para produção textual, as explicações e os exercícios, por exemplo. Apenas a
partir dessa concepção de gênero podemos definir ou reconhecer lacunas permitidas,
vocabulário e construções gramaticais adequados, demarcar o que uma redação pode ou não
apresentar em sua composição escrita, o que corresponde ou não a uma incoerência.
Ainda, conforme postulados de Travaglia (2002, 2003), entendemos que o gênero
redação pode apresentar subtipos, como a redação de vestibular. Mas, fato é que, no contexto
social, certificamos que todos os textos produzidos para fins avaliativos são denominados
“redação”. Além disso, em uma grande parte das situações de avaliação e classificação de
candidatos  com exceção da escola, que varia sua proposta conforme a seriação , exige-
se, dentre outras habilidades, aquela relacionada ao texto de tipologia dissertativa,

4
Van Dijk (1981) e Van Dijk e Kintsch (1983) diferenciam dois níveis de coerência: local (relacionada a frases,
parágrafos e trechos do texto) e global (no que se refere ao sentido único pretendido). Estabelecem ainda quatro
tipos de coerência local: pragmática, estilística, semântica e sintática. A partir dessa diferenciação, definimos o
que seria adequado ou inadequado em uma redação escolar de tipologia dissertativa.
5

argumentativo stricto sensu ou não stricto sensu (TRAVAGLIA, 2003)5, o que justifica nossa
opção por abordarmos esse tipo de texto no referido estudo.
A partir dessa perspectiva teórica, a redação assume função específica e caracteriza-
se pela unidade de sentido, por sua organização a partir de relações formais, semânticas e
pragmáticas, desempenhando função sócio-comunicativa e interacional. Deve, então, ser um
todo completo quanto a aspectos formais (construções verbais em geral e elementos de
coesão), cujas pistas linguísticas levem à produção do significado, propiciando a comunicação
efetiva. O texto deve, pois, ter unidade temática e estrutural, com frases dispostas em boa
seqüência e bem estruturadas, o que constitui reflexo da competência linguístico-discursiva de
quem o elabora. Quanto à linguagem, o exigido, no geral, é a língua padrão culta. Mas podem
ser empregados recursos linguísticos adequados ao contexto de comunicação, aos objetivos e
ao destinatário. Logo, assumimos que quaisquer construções truncadas e ausências de
informações básicas prejudicam a coerência do texto em um nível global ou local,
correspondendo a falhas.

3 O DESAFIO DOCENTE: UMA ANÁLISE DA PRÁTICA DE CORREÇÃO DE


TEXTOS NO ÂMBITO ESCOLAR
Ao tratarmos de correção e avaliação de textos, é inevitável que nos deparemos com
o questionamento quanto a ser ou não possível a imparcialidade em algo tão subjetivo.
Contudo, temos como certo que, desde que tenhamos conhecimento teórico linguístico-textual
 o que se espera de um professor de língua materna  e critérios de correção bem
definidos, não há como nos prendermos à subjetividade. A Linguística Textual tem se
debruçado a descrever e a apontar, específica e detalhadamente, as qualidades do bom texto.
Além disso, ainda que se argumente que não tenhamos como fugir completamente da
subjetividade, tal fato não implicaria discrepâncias tão evidentes como as percebidas no
contexto escolar de maneira geral.
As acentuadas discordâncias quanto a notas atribuídas a textos ficaram evidentes na
primeira fase do referido projeto de extensão. Os sujeitos participantes passaram pela
experiência de corrigir e avaliar redações, a fim de que pudessem ser eles mesmos avaliados
em sua prática. Para tanto, receberam textos que deveriam ser corrigidos segundo os
respectivos critérios que adotavam em suas aulas de língua materna/redação. Ao final dessa

5
Essa nomenclatura foi proposta por Travaglia (2003), segundo a perspectiva do produtor do texto quanto à
imagem que ele faz do interlocutor: como alguém que concordará ou não com o que lerá. Preferimos e
empregamos essa diferenciação tendo em vista que partimos do pressuposto de que qualquer ato de linguagem é,
em si, argumentativo.
6

etapa, compreendemos que cada docente se prendeu a um sistema de avaliação próprio,


subjetivo, não adotando parâmetros de análise bem definidos, nem mesmo respaldados em
teoria linguística, conforme se observa nas justificativas apresentadas por uma das professoras
que participaram do estudo. Trata-se de notas por ela prescritas a oito textos que leu, corrigiu
e avaliou:

 Texto 1: Zero, porque o mínimo de linhas era 20 e o aluno escreveu apenas 16.
Também porque faltou a conclusão.
 Texto 2: 5,0, porque faltou desenvolver melhor as ideias.
 Texto 3: 5,0, porque houve repetição de termos, as ideias estavam redundantes e
houve generalizações.
 Texto 6: zero, porque as ideias estão sem nexo.
 Texto 7: 5,0, porque faltou clareza e objetividade.
 Texto 8: 5,0, porque faltou desenvolver as ideias.

A princípio, deparamo-nos com justificativas vagas e generalizantes. Além disso, os


valores restringiram-se a números inteiros, múltiplos de 5, cujas porcentagens equivaleram a 0
ou 50%. Assim, questionamo-nos em que circunstâncias os textos poderiam ter recebido
outras variações de nota, como 4,0 ou 6,5, por exemplo.
Quanto aos critérios norteadores da correção e avaliação, partindo do primeiro texto,
vemos que a exigência quanto ao número de linhas caracteriza-se como sendo uma variável
dependente de outros fatores. Ou seja, o aluno pode ou não cumprir com essa determinação
ora imposta pelo professor, embora se trate de uma escolha que poderá implicar variação no
resultado da nota, principalmente se o critério adotado for de caráter quantitativo.
Percebemos ainda que a professora penaliza os alunos com cinco pontos exatos por
motivos distintos. Por exemplo, para ela não há diferença entre um texto que deixou de
desenvolver as ideias (texto 8) e outro que as tenha desenvolvido parcialmente (texto 2)  o
que pressupomos pelo uso do adjetivo “melhor”. De igual modo, um texto cujas informações
não estejam claras (como o 7) é avaliado com nota equivalente. Além disso, o sistema de
correção aplicado nesse contexto abre margem para que se questione em que medida a
repetição de termos leva também a uma nota cinco (texto 3), uma vez que se volta a aspecto
formal lingüístico, enquanto as outras justificativas ora apresentadas para tal nota pautaram-se
em fatores pragmáticos. Não há, portanto, uma diferenciação de peso entre constituintes de
ordem semântica, formal e pragmática. Logo, não se privilegia o texto como sendo
efetivamente caracterizado pela unidade de sentido.
De igual modo, a professora conferiu nota zero ao texto 6, julgando as ideias estarem
desconexas. Novamente, não fica claro em que magnitude se deu essa incoerência de forma
7

que culminasse em tal nota. Ao que podemos depreender, o aluno abordou a temática
proposta, o que torna pouco provável o fato de ele não ter mostrado conhecimento algum no
uso da gramática e de elementos de coesão, por exemplo. Assim, parece-nos que se trata de
uma prática de correção que não se embasa em critério específico e detalhado; ainda, seu
objetivo é apenas destacar as falhas, não valorizando demais aspectos do trabalho.
Essa mesma volubilidade em critérios adotados, bem como a evidente ausência
destes pôde ser percebida nas respostas dadas pelos professores ao questionário auto-
avaliativo e explanatório que aplicamos ao final do projeto. O objetivo era avaliar os
resultados alcançados e, além disso, apresentava oito questões que exigiam respostas
discursivas, visando a investigar a auto-imagem que os professores tinham de sua formação e
de suas práticas diárias em sala de aula.
Todo o grupo de participantes reconheceu que o projeto contribuiu para aperfeiçoar-
lhe o conhecimento específico, capacitando-o a produzir e a corrigir textos com mais
segurança. Dentre as justificativas apontadas para tanto, algumas nos chamaram a atenção por
permitir-nos visualizar as concepções teóricas e a prática dos referidos docentes. Pudemos
comprovar efetivamente que muitos dos professores não adotavam critérios fixos e
específicos para corrigirem textos, o que fica claro nos seguintes excertos, explicitados em
resposta à questão “O projeto contribuiu para aperfeiçoar o seu conhecimento? Justifique?”.

O projeto contribuiu porque, a partir de agora, ao avaliar uma redação, adotarei


critérios.

A capacitação proporcionou-me reconhecer a necessidade da utilização de critérios


para correção das produções textuais, o que faz com que eu mantenha uma certa
coerência na prática.6

As respostas ao questionário também deixaram claro que os docentes veem seu


conhecimento específico como deficiente, reconhecendo a necessidade de se capacitarem:

Agora sei como fazer uma boa correção e reconheço que produzir é um
trabalho árduo.

Uma crítica construtiva: eu gostaria de ter produzido mais textos para


melhorar a minha habilidade e sanar meus erros.

[...] o tempo foi muito curto e preciso também aprender a produzir textos.

6
Grifo nosso.
8

Os professores, então, reconhecem que precisam se preocupar com uma formação


mais específica e de ordem prática, voltada para o trabalho com a língua materna para melhor
executarem as atividades que já estão desenvolvendo cotidianamente, em meio a várias
dificuldades. Hoje, o que nos preocupa é a qualidade desse trabalho, enquanto tais
profissionais não recebem a formação que o ato de ensinar requer.
Ainda com relação às atividades de correção de textos para se verificarem os critérios
empregados pelos docentes, como resultado geral, as notas dadas por diferentes professores a
um mesmo texto foram muito divergentes e, em alguns casos, paradoxais. Por exemplo, não
há como explicar nota zero e oito conferidas a uma mesma redação. Em outros casos, houve
variação compreendida entre zero e dez pontos, conforme mostrado no gráfico 1 a seguir.
Portanto, caso tenham sido empregados, os critérios foram bastante volitivos, sem
embasamento teórico.

Gráfico 1 – Variação de nota para três textos, corrigidos por dezesseis professores diferentes.

Ao contrário do que ocorreu, considerando que os professores corrigiram os mesmos


textos, cremos que as notas atribuídas a cada um destes deveriam ser pelo menos próximas,
independentemente de critérios específicos. Conforme é consenso em algumas bancas de
avaliação de redações, é aceitável  e naturalmente esperado  um desvio de 20% da nota
máxima, sendo este para maior ou para menor.
Assim, para comprovarmos a teoria de que só há tamanha discrepância de notas entre
os corretores se estes não se atentam para critérios que realmente abranjam o texto como
unidade comunicativa, distribuímos uma redação a quatro professores, para que fosse por eles
corrigida e avaliada segundo critérios distintos  Texto 1. Nessa circunstância, tratava-se de
profissionais com experiência em bancas de correção de textos de processos seletivos e,
9

portanto, familiarizados com a definição de critérios e com a necessária obediência a eles.


Além disso, um dos docentes era doutor e três, mestres em Linguística; ou seja, pressupomos
que tenham formação adequada que os capacite a tal incumbência.

Texto 1 – Rir é o melhor remédio

Rir de situações que causam vexame é uma maneira de fugir um pouco da


realidade. Já pensou em ler um jornal ou revista em que todos os textos são escritos
em prosa? Existem várias formas de transmitir uma mensagem.
O leitor observador está sempre atento as mais variadas formas de
comunicação. E dentre estas formas existe a charge que transmite a notícia de forma
trágica e cômica ao mesmo tempo.
Quando lemos algo que nos leva a sorrir dos nossos próprios erros e
atropelos, leva-nos a repensar melhor e a observar os acontecimentos de forma mais
crítica.
O leitor é levado a concluir determinado assunto de forma deturpada ou
positiva. Isso depende da leitura de mundo que tem em relação ao assunto.
Não basta apenas sorrir de algo, mas analisar o que está por trás ou seja,
nas entrelinhas de uma charge ou qualquer outra forma de comunicação.

A temática proposta para essa redação foi a mesma determinada para o vestibular da
Universidade Federal do Tocantins – UFT, para ingresso em 2011/1, a partir de uma coletânea
de quatro gêneros textuais (artigo científico, tira humorística, charge e notícia): “A
contribuição do riso tragicômico para a formação do cidadão”. No caderno de provas,
constava a seguinte proposição: “Em geral, as charges e tirinhas, comumente utilizadas nos
meios de comunicação de massa, provocam no leitor o riso tragicômico e, consequentemente,
uma indignação. Você acredita que esse riso tragicômico pode vir a contribuir para a
formação de um cidadão mais consciente do seu papel diante dos problemas brasileiros?
Argumente.”
Ao lermos o texto 1, deparamo-nos com vários problemas locais: repetições de
vocábulos; ideias fragmentadas, não relacionadas em alguns trechos e incompletas;
inadequações semânticas; ausência de elementos coesivos e de pronomes outros; inadequação
ao contexto de produção (houve trecho de diálogo com o leitor, por exemplo); parágrafos mal
estruturados, além de outras diversas falhas gramaticais. No plano global, há um problema
mais grave, referente ao próprio desenvolvimento da temática proposta. Todos esses desvios
são abordados pela teoria do texto e, por isso, não se poderia deixar de reconhecê-los, a partir
de um conhecimento efetivo de língua materna e de estrutura textual.
Para que os docentes procedessem à correção e avaliação do texto supracitado,
escolhemos ainda, aleatoriamente, cinco critérios avaliativos distintos. Solicitamos aos
referidos profissionais que empregassem, cada qual, um dos critérios por nós definidos e que
10

fizessem a correção com base nos variados parâmetros, avaliando a produção em 10 (dez)
pontos.
Primeiramente, tomamos os parâmetros disponibilizados pelo ENEM – Exame
Nacional do Ensino Médio, aos quais o público tem acesso. A nota final é a média entre cinco
fatores específicos: 1. Modalidade escrita; 2. Tema e tipo de texto; 3. Coerência; 4. Coesão; 5.
Proposta de intervenção. Para cada um dos tópicos, podem ser atribuídas notas 25%, 50%,
75% ou 100% de adequação7. Para nossa análise, apenas desconsideramos o último item
avaliado na referida prova, tendo em vista que é bastante peculiar a tal processo e não implica
textualidade. Além disso, vale ressaltar que a nota mínima do aluno em cada aspecto será
25%, ou seja, nunca zero. Significa que, desde que aborde a temática proposta, o mínimo
conhecimento que o produtor do texto apresentar será considerado e avaliado.
Por sua vez, o segundo critério definido não se caracteriza como essencialmente
quantificador no que concerne à quantidade de falhas; é mais generalizante, abordando o texto
em sua completude de estrutura e sentido:

 (Zero) Fuga total ao tema (o tema não é sequer citado) / tipo de texto divergente
/ texto com número de linhas abaixo do mínimo exigido.
 (1-3) Redação com graves problemas estruturais / muitos erros gramaticais
graves / tema tangenciado ou apenas citado / ideias absolutamente vagas e
superficiais.
 (4) Estrutura deficiente / ideias superficiais ou sem exemplificação / texto cheio
de exemplos, sem argumentação / erros gramaticais /paragrafação
desequilibrada / confusão na exposição de idéias (ausência de clareza).
 (5-6) Texto comum / erros gramaticais / períodos longos / ideias sem
aprofundamento / falta de nexo entre as partes / ausência de tese / estrutura
razoável.
 (7) Texto bom, bem organizado / abordagem correta do tema / momentos de
qualidade / poucos erros gramaticais / clareza na exposição das ideias /
argumentos com explicação /presença de conectivos.
 (8-9) Texto ótimo / excelente abordagem do tema / parágrafos bem distribuídos
/ períodos de tamanho variado / coesão bem feita / ideias diferenciais /
explicações profundas / exemplos curtos e ilustrativos / quase total ausência de
erros.
 (10) Texto perfeito (que, muitas vezes, não se encaixa no padrão) / ausência
(quase) total de erros gramaticais ou estruturais / argumentação aprofundada e
seqüencial, inversão de recursos comuns (brincadeiras com lugares-comuns ou
citações, por exemplo) / título adequado / construções frasais sofisticadas /
pensamento inteligente.8

7
Em “Modalidade Escrita”, avalia-se a correção gramatical e o padrão escrito do idioma. Em “Tema e Tipo de
Texto”, se o produtor atendeu ou não a proposta, produzindo uma dissertação argumentativa, com linguagem
impessoal e objetiva e estrutura organizada. Em “Coerência”, o propósito argumentativo do texto: se as ideias
estão bem encadeadas, conduzindo a conclusões lógicas. Por fim, em “Coesão”, observa-se a capacidade do
candidato de ligar as frases e os parágrafos, sem repetições excessivas ou desnecessárias.
8
Disponível em: < http://gramaticaelinguagem.blogspot.com/2010/06/modelo-de-folha-de-redacao-para.html>.
Acesso em: 27 set. 2011.
11

Como podemos observar, nesse último critério empregado  e perceberemos o


mesmo no critério a seguir , há uma margem destinada ao que haveria de “subjetivo” na
correção textual. Assim, se o texto em análise estivesse realmente muito ruim, o docente
poderia variar a nota entre um e três pontos, por exemplo.
Quanto ao terceiro critério, é o mesmo adotado em uma escola da rede particular de
ensino de Palmas-TO (Colégio Oswaldo Cruz – COC). A nota final equivale à soma dos
créditos alcançados em cada item. Porém, mais uma vez, desconsideramos a adequação à
leitura da coletânea, por, como já explicitado, não ser um fator de textualidade. Logo,
aplicamos as devidas regras de proporcionalidade, de forma que a nota final fosse resultado
também de uma produção avaliada em dez pontos.

a) Adequação ao tema
 Fuga total (zero)
 Mínima articulação das ideias em relação ao tema (de 0 a 0,5)
 Articulação limitada de ideias em relação ao tema (de 0,5 a 1,0)
 Uso satisfatório das ideias em relação ao tema e indicação de autoria (1,0 a 1,5)
 Extrapolação o recorte temático e evidências de autoria (1,5 a 2,0)

b) Adequação à leitura da coletânea


 Desconsideração ou cópia da coletânea (zero)
 Uso mínimo ou excessivo de elementos da coletânea (0 a 0,5)
 Utilização parcial ou superficial da coletânea (paráfrase) – leitura ingênua (de 0,5
a 1,0)
 Uso satisfatório das informações da coletânea – intertextualidade (1,0 a 1,5)
 Leitura crítica e extrapolação dos elementos da coletânea (1,5 a 2,0)

c) Adequação ao gênero textual


 O texto não corresponde ao gênero escolhido (zero)
 Ausência de projeto de texto (0 a 0,5)
 Uso limitado dos caracterizadores do gênero escolhido e de indícios de próprio
texto (0,5 a 1,0)
 Emprego dos caracterizadores do gênero escolhido e projeto de texto definido
(1,0 a 1,5)
 Ótimo emprego das características estruturais do gênero. (1,5 a 2,0)

d) Adequação à modalidade padrão da língua portuguesa


 Problemas generalizados que comprometem a leitura (zero)
 Desvios sistemáticos da modalidade escrita; predominância indevida de
oralidade (0 a 0,5)
 Desvios recorrentes da modalidade escrita e marcas indevidas de oralidade (0,5 a
1,0)
 Uso satisfatório dos recursos lingüísticos (1,0 a 1,5)
 Excelente uso dos recursos lingüísticos; manejo competente da modalidade (1,5
a 2,0)

e) Coesão/Coerência
 Texto caótico, sem organização, sem sentido (zero)
 Uso inapropriado dos elementos de articulação do texto; problemas recorrentes
na articulação de ideias (0 a 0,5)
12

 Desvios no emprego de elementos da articulação textual, problemas lógico-


semânticos não recorrentes (0,5 a 1,0)
 Pontuação apropriada, ausência de problemas lógico-semânticos e relacionados a
articuladores (1,0 a 1,5)
 Domínio de pontuação, articulação textual e recursos estilísticos (1,5 a 2,0)

Por fim, elegemos como quarto critério os parâmetros propostos e empregados


(noutro momento) pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU, em seus processos
seletivos para ingresso no ensino superior  vestibular e PAIES (Programa Alternativo de
Ingresso no Ensino Superior). Trata-se de quatro itens gerais como foco de análise: 1)
estrutura textual – avaliada em 4,0 pontos; 2) coesão – avaliada em 2,0 pontos; 3) progressão,
informatividade, situacionalidade – 3,0 pontos; 4) correção gramatical – 1,0 ponto. Cada falha
nos três primeiros itens deveria ser penalizada em 0,2; em conhecimento gramatical, 0,1 por
desvio da norma. A perda de nota deveria limitar-se aos respectivos créditos destinados a cada
item. Mais uma vez, embora sendo fator avaliado pela referida instituição, no contexto do
presente estudo, deixamos de considerar a obrigatoriedade da paráfrase relacionada à
coletânea.
Submetendo-se o texto aos referidos professores e respectivos critérios, recebeu as
seguintes notas: 6,25; 5,5; 5,5; 6,3. Como vemos, houve uma discrepância máxima de oito
décimos, dentro do limite de 20% de variação que propusemos como aceitável. Mas, para
segurança nos resultados, optamos por repetir o processo com uma segunda produção, de
igual temática e submetida aos mesmos quatro critérios. Trata-se do texto a seguir:

Texto 2 – O riso tragicômico.

Atualmente, vivemos numa sociedade onde o riso, se torna cada vez mais
necessário, como forma de dissipar toda indignação que passamos diante das
impunidades que ocorrem diariamente nas grandes metrópoles. Quando ligamos a
TV e vemos os índices alarmantes de bandidos que estão a, todo momento,
cometendo crimes e ficando sempre impunes. Só nos resta rir dessa situação e esse
riso é o famoso tragicômico, assim, a tragédia está diante de nossos olhos com o
descaso que a nossa sociedade vive atualmente.
Logo, quando tentamos eleger um político acreditando que sua postura
será digna de nos representar e assim garantir nossos direitos perante o país, ficamos
decepcionados e a cada nova eleição somos gradualmente desacreditados da política
atual. O que vemos em nosso país é que não há uma política de credibilidade que
faça com que a população possa voltar a rir com as vitórias que verdadeiramente
merecem.
Assim, temos que ter uma postura de pensar no que realmente interessa ao
nosso pais e a nós mesmos e procurarmos fazer nossas escolhas de forma mais
planejada e crítica. E, num futuro muito próximo possamos olhar para o cenário
político e não mais ficarmos inconformados com a situação que nos faz rir dessa
forma.
13

Uma vez corrigido e avaliado o texto, foram atribuídas as seguintes notas, nessa
ordem, segundo cada um dos critérios: 4,5; 6,0; 4,0; 5,3. Novamente, a variação de nota
permaneceu dentro da porcentagem de 20%, alcançando discrepância máxima de dois pontos.
Portanto, a partir dessa experiência desenvolvida, pudemos confirmar que critérios
de correção de textos devem sempre ser bem definidos. Além disso, exatidão e clareza devem
lhes ser característicos, a fim de se conferir certa homogeneidade no momento de os
professores de língua materna reconhecerem e penalizarem falhas em textos de alunos. Para
tanto, os parâmetros devem ser estabelecidos a partir de concepções teóricas que vislumbrem
o texto como unidade comunicativa, estruturado a partir de aspectos pragmáticos, semânticos,
sintáticos e estilísticos, elementos estes a serem avaliados distintamente.
Além disso, conforme comprovamos em Freitas (2006), a maior parte dos problemas
em redações está no nível textual, de discurso, o que merece atenção por parte dos corretores.
Assim, quanto mais superficial a correção, ou seja, em nível de frase, maior a probabilidade
de serem feitas marcas no corpo da redação, o que inviabiliza o aprendizado do aluno quanto
à estruturação de textos. Ao contrário, devem-se focar aspectos pragmáticos e semânticos,
procedendo-se a uma correção interativo-dialógica, que favorece a revisão do texto por parte
do aluno e leva a efeito uma aprendizagem profícua (RUIZ, 2010).
Por fim, qualquer que seja o critério de correção empregado pelo avaliador, deverá
apresentar pertinência, confiabilidade e adequação, atendendo aos quatro requisitos que Costa
Val (2006) propôs para que um texto seja considerado coerente e coeso: continuidade,
progressão, não-contradição e articulação. Portanto, no geral, o professor deve avaliar se o
produtor é capaz de organizar idéias, de estabelecer relações, de interpretar dados e fatos, de
elaborar hipóteses explicativas para conjuntos de dados relativos a quaisquer áreas de
conhecimento e de empregar a norma culta (ou outra adequada, conforme o contexto de
produção). Se avaliamos tais habilidades, não há como nos desviarmos tanto de um parâmetro
apropriado e justo, tendo em vista que as exigências básicas para os gêneros são, conforme
Bakhtin (2000), “relativamente estáveis”, pautadas em parâmetros propostos socialmente,
bem como por respeitados estudiosos da Linguística Textual.

4 UMA ANÁLISE DA PRODUÇÃO TEXTUAL DOS DOCENTES


Até então, com base nas correções de textos, as discrepâncias nas notas apenas nos
apontavam haver problemas quanto a critérios empregados ou devido à ausência deles. Tal
fator foi mesmo determinante, conforme pudemos também comprovar a partir de entrevistas
14

não estruturadas, bem como em respostas ao questionário auto-avaliativo respondido por cada
docente.
No entanto, ainda nos restava verificar em que medida a correção também era
influenciada pelo conhecimento teórico de cada professor. Ou seja, o grau e a qualidade da
formação desses profissionais poderiam, de igual modo, dificultar ou facilitar o processo de
distinção de falhas nos escritos dos alunos (ou mesmo nas próprias produções). Assim, além
de os professores se empenharem nas correções de textos de tipologia dissertativa, pedimos a
eles que também redigissem uma dissertação a partir de duas temáticas propostas.
Objetivamos verificar o conhecimento de língua desses profissionais, bem como a habilidade
de escrita de cada um deles. Partimos do pressuposto de que, sendo graduados e licenciados
em curso superior, habilitados para ministrar aulas de língua materna e, portanto, para corrigir
textos, deveriam apresentar conhecimento satisfatório de estruturação textual, muito além de
um nível mediano, a fim de que conseguissem identificar falhas nos textos de seus alunos e
orientá-los de forma adequada no processo ensino-aprendizagem.
Com esse fim, procedemos à correção das produções, segundo os critérios
quantitativos ora empregados pela UFU (em vestibular e PAIES), conforme já explicitado
anteriormente. Nossa opção se justifica tendo em vista que tal sistema de avaliação confere
maior peso à elaboração de um texto coerente, que favoreça a construção do sentido a partir
de informações relevantes. Afora os fatores pré-definidos pela instituição, os produtores
foram também avaliados segundo o número de linhas por eles escrito. Para o contexto
específico desse estudo, foi exigido um mínimo de 20 linhas nas produções textuais, sendo o
produtor penalizado em 0,5 (cinco décimos) por linha que deixasse de escrever aquém do
mínimo proposto. Não exigimos que fossem retomados explicitamente os textos motivadores
da temática. Além disso, as redações caracterizadas por fuga ao tema e/ou que não
respondessem a questão proposta receberiam nota zero, não sendo avaliadas nos demais
quesitos.
Os professores poderiam escolher entre duas temáticas. A primeira, do vestibular
2011/2 da UFT, cuja proposta era, a partir de um texto informativo e um gráfico, elaborar um
texto dissertativo-argumentativo sobre a superficialidade da leitura na era digital. A segunda
correspondia à proposta B da prova discursiva do processo seletivo da UFU, 2011/2: “Como
anda a saúde no Brasil?”. Interessante ressaltar que esse último processo apresentou como
textos motivadores apenas gráficos de levantamentos oficiais sobre a realidade da saúde no
Brasil. Embora o contrário não sendo exigido, 50% (cinquenta por cento) dos produtores que
optaram por essa última proposta desconsideraram por completo a coletânea. Ou seja, os
15

professores, no geral, não se pautaram nos dados para conferirem maior teor argumentativo às
suas produções. Também não interpretaram valores percentuais nem relacionaram gráficos
para embasar seus argumentos.
Como resultado dessa etapa da pesquisa, 80% dos docentes não alcançaram nota
igual ou superior a 7,0. As notas variaram de 3,0 a 8,1. É relevante destacar que o fato de a
correção ser quantitativa não sofreu grande interferência do número de linhas escritas pelos
participantes. Para a nota 6,8, por exemplo, houve textos de 28 e de 20 linhas. A maior nota
foi dada a uma redação de 21 linhas. Ou seja, privilegiou-se, efetivamente, o texto como
unidade comunicativa, cujas informações deveriam estar articuladas, apresentando
continuidade, progressão e não-contradição. Além disso, havendo um limite de créditos a ser
descontado em cada item, o produtor não seria prejudicado pela forma de avaliação escolhida.
De igual modo, já comprovamos que, independentemente dos critérios adotados, a média
tende a se manter para um mesmo texto.
Feitas as devidas análises, comprovamos que a discrepância anteriormente
encontrada nas correções justificava-se também pelo próprio nível de habilidade dos
profissionais no que se refere ao uso da língua na escrita. Tal fato pôde ser visualizado ainda
no momento da correção dos textos, em fase anterior de nossa pesquisa. Naquele momento,
uma das professoras, por exemplo, afirmou utilizar critério quantitativo na correção de textos.
Porém, quase não fez marcas nas redações por ela corrigidas, arbitrando notas. Mais grave
que isso, não se atentou para a temática que os textos deveriam abordar e não fez leitura
efetiva das ideias que os alunos defenderam. Assim, para três dos textos corrigidos, ela
atribuiu notas 9,3 (nove e três), 8,4 (oito e quatro) e 3,0 (três). Em contrapartida, esperava-se
zero para esses textos devido a não atenderem à temática proposta. Além disso, as notas que
essa docente deu aos dez textos por ela avaliados apresentaram discrepância que variou de 2,6
a 9,3 pontos, sempre a maior em relação à nota esperada que serviu como parâmetro de
variação. Ou seja, a referida docente não mostrou formação adequada para identificação de
falhas de ordem textual, o que pôde ser comprovado também pela sua produção:

Texto 3 – Como anda a saúde no Brasil?

E notório que a saúde no Brasil tem como base a qualidade. E de grande


beneficio para o nosso país, para tal vem ocorrendo envestimentos nas instituiço-es9
nos profissionais e alimentação.
Houve mudanças na alimentação das pessoas com a preocupação e sendo
controlada por nutricionista e com isso o cidadão ficará mais saudaveis.

9
Para ilustrar a forma como a produtora do texto fez a separação silábica ao final da linha.
16

Alem disso o governo Federal vem dando suporte para essa mudança
ampliando os hospitais ja existente e deixando-os seguro de que as pessoas tenham
confiança na saude do nosso país.
As secretárias dos estados e municípios oferecem aos profecionais em
exercicios capacitação para aprimoraren de suas práticas, e assim contribuir para o
bom êxito da saúde no Brasil.
Vale ressaltar que a comunidade so ganhou o melhor nesta nova proposta,
trasendo esperanca para o povo brasileiro com estas condições de vida cada vez
superando com a redução de mortalidade infantil, saneamento basico cada ano
melhorando nos seus municipios não podemos esgecer das assistencia médica.
Diante disso, acredita-se necessário que haja componentes básicos ja
citado e de total apoio e compromi-sso de toda comunidade familiar sendo a parte
maior carente trabalhando desda primeira semana de gestação ate a fasse do
amamentação, o brasil estava sendo um país vergonhoso quando fálavamos em
saúde com a atenção dos governantes melhorau bastante e sendo alguns projetos
copiados por outros países.

Tal qual ocorreu nessa produção, os demais textos também se caracterizaram por
uma série de problemas, explicitando dificuldades em maior ou menor grau entre os
professores:
 Estrutura – As notas variaram de 0,0 a 3,0, com média de 2,3. Destacamos os
problemas relacionados a fuga ao tema, trechos truncados, contradições, ideias
fragmentadas e não desenvolvidas de forma a configurar argumentação
proficiente. No geral, os textos não exploraram devidamente o teor
argumentativo das temáticas, bem como não justificaram posicionamentos
defendidos.
 Coesão – A nota média foi 1,3, com variação entre 0,8 e 1,8. Sobressaíram-se
problemas quanto ao emprego de tempo e modo verbais e ausência de elementos
coesivos.
 Progressão, informatividade e situacionalidade – Não mereceu tamanho destaque,
alcançando nota média de 2,4.
 Conhecimento gramatical – A nota média foi 0,1; graves e reincidentes
problemas de ortografia e pontuação; em menor proporção, falhas de
concordância verbal e nominal.

A partir dessa avaliação geral, constata-se que os textos dos professores alcançaram
nota média de 6,2. Ilustra um cenário que levanta grande preocupação, se considerarmos que,
no geral, na rede de ensino regular, a nota mínima exigida dos alunos é 6,0 para aprovação. Se
a média de nota obtida pelos docentes aproximou-se do mínimo, significa que existem muitos
profissionais cuja avaliação estaria abaixo disso e, ainda, tal cenário também implica que pode
haver alunos mais capacitados que os próprios docentes no que se refere à escrita. Além disso,
17

há escolas regulares e processos seletivos diversos em que se exigem 70% como


aproveitamento mínimo.
Outro fator que merece relevância é a qualidade das aulas ministradas por esses
profissionais. Se aquele que é considerado “perito” na área está no limite da nota esperada,
não está apto a orientar os discentes de forma que esses possam fazer progressos quanto ao
conhecimento de língua materna e de estruturação de textos. Dessa forma, questionamos se
esses profissionais estão preparados para auxiliar na formação do aluno de forma que este
escreva bem, com coerência e clareza, e esteja apto para participar de processos seletivos e
seja aprovado em seleções de concursos ou para ingresso em um curso superior, ao passar por
uma avaliação da habilidade escrita.
Assim, evidenciamos que as deficiências quanto a correção e escrita encontradas na
formação dos professores reforçam a visão que se tem sobre o cenário de fracasso que figura
hoje no ambiente escolar brasileiro, pois a formação deficiente acaba por interferir nas aulas
ministradas. Na atualidade, há vários materiais didáticos propondo procedimentos
metodológicos com a finalidade de se motivar os alunos para a escrita. Porém, a carência de
conhecimento por parte dos professores e até mesmo a falta de credibilidade no ensino
impede-os de incrementarem a prática de ensino e aprendizagem na sala de aula. A maioria
dos professores acaba se restringindo a solicitar textos, a corrigi-los e a devolvê-los, sem
quaisquer considerações relevantes para o aprendizado do aluno e sem que esse processo
culmine em aulas voltadas para conteúdos de estruturação textual. Isso quando os docentes
fazem a correção dos textos que solicitam, tendo em vista que são responsáveis por muitas
turmas e por centenas de alunos, o que inviabiliza o processo.
Logo, nesse contexto educacional, é quase impossível se esperar que, nas aulas de
produção textual, sejam feitos esclarecimentos a respeito do que seja efetivamente o texto, de
como se proceder a fim de se alcançar a progressão textual, de como organizar ideias, enfim, a
parte mais complexa da produção, a macroestrutura, não é abordada como deveria, conforme
ficou claro também nas respostas ao questionário respondido pelos professores. Alguns
professores afirmaram ser este conteúdo de difícil repasse. Muitos não sabem nem mesmo
como o fariam.
Assim, esse cenário está em plena conformidade com o que defende Luft (1999, p.
24 apud HERREIRA, 2000). Segundo o autor, Machado de Assis não entendia de gramática.
Já o inverso ocorre com o clássico professor de Português, que se diz entendedor de tudo a
esse respeito, massacrando com nomenclaturas, regras e exceções. Em compensação, escreve
mal (quando escreve) e esquece-se de que ensinar a língua é fazer falar e escrever com clareza
18

e eficiência. Soma-se ainda a esse contexto a falta de organização do aluno para desenvolver o
tema, problema este que, sem aulas de qualidade e direcionadas para esse aspecto, não é
solucionado. Por fim, se o texto é desenvolvido em sala, há o problema da escassez do tempo;
mas, em quaisquer circunstâncias, o professor lida com a desmotivação dos estudantes, com a
desinformação e, para agravar, com a falta de conhecimento de critérios de organização do
texto.
Portanto, considerando que a maioria das redações docentes avaliadas não alcançou
média acima de 70%, é perceptível o fato de que os professores carecem ainda de
conhecimento voltado para a estruturação de textos. É preciso, pois, que os cursos superiores
de licenciatura em ensino de língua materna (sejam eles em Letras ou mesmo Pedagogia)
implementem ações de forma a propiciar uma prática efetiva de produção e correção de textos
durante os próprios cursos, o que significa ir além de orientações didáticas e pedagógicas
restritas à teoria. Instruir os professores apenas quanto a aspectos metodológicos quando, na
verdade, não apresentam conhecimento teórico sequer sobre o conteúdo constitui hábito
improdutivo.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo desenvolvido a partir do projeto de extensão voltado a produção, correção e
avaliação de textos contribuiu para ratificar que boa parte dos professores de língua materna
encontra dificuldades para realizar correções de textos e também para desenvolver suas
próprias produções textuais. Ficou evidente que muitos dos profissionais envolvidos no
projeto criam estilos próprios de correção, muitas vezes levando em conta o grau de ensino, a
série, a faixa etária e o nível sócio-econômico dos alunos. Contudo, a partir desses fatores,
relativizam a correção, adotando essencialmente a subjetividade como parâmetro norteador.
Entendemos que esse seja efeito da formação universitária no que se refere às licenciaturas
em ensino de língua materna. Dessa forma, a graduação deixa a desejar quanto à parte prática
da produção textual e, consequentemente, quanto ao ensino da escrita, o que culmina com a
adoção de estilos estritamente individuais e sem vínculo com a teoria.
Estritamente quanto às correções de textos, segundo Serafini (1998), se os critérios
variam entre os professores, confirma-se a arbitrariedade que existe hoje na prática de
avaliação. Tal fato não deveria ocorrer, tendo em vista que em nada favorece a aprendizagem
por parte do aluno; comprova que os cursos de formação deixam muito por ser feito quanto à
formação para as aulas de produção textual. Segundo a autora, talvez não seja por
incompetência ou descaso, mas porque o momento é de transição. No caso da área com a qual
19

lidamos, são ainda constantes os embates entre a Linguística e a Gramática. De igual modo, a
prática docente em língua materna acaba por se tornar conflituosa, abarcando, muitas vezes,
variadas e divergentes concepções.
Logo, os cursos voltados para formação de professores de língua materna devem
reconhecer o compromisso que as instituições de ensino têm com tais profissionais,
oferecendo-lhes formação adequada, baseada na teoria e na prática, e que lhes faça constatar
que produzir não é apenas escrever de forma correta, mas, sobretudo, organizar as idéias sobre
determinado assunto. De igual modo, faz-se urgente que os profissionais reconheçam que a
correção que fazem dos textos de seus alunos, as marcações que registram, são o retrato da
concepção que cada um tem acerca de texto, de língua e de ensino.

6 REFERÊNCIAS

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São Paulo: Martins Fontes, 2000.

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Aprender e ensinar com textos de alunos. Vol. 1. São Paulo: Cortez, 1997. p. 17-24

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RUIZ, Eliana Donaio. Como corrigir redações na escola: uma proposta textual-interativa.
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20

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VAN DIJK, T.; KINTSCH, W. Strategies in discourse comprehension. Nova York:


Academic Press, 1983.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo

UMA PROPOSTA DE ANÁLISE DE ERROS NA INTERLÍNGUA

Chris Royes Schardosim (PGLg/UFSC) 1

RESUMO

Este trabalho insere-se em uma pesquisa de doutorado no campo da Linguística Aplicada,


dentro da linha de pesquisa Ensino e aprendizagem de línguas estrangeiras iniciada em
2011/1. Para realizar esta pesquisa tomo por base o modelo de Análise de Erros e de alguns
pressupostos da Análise da Interlíngua, principalmente a partir de Durão (1999; 2004; 2007).
O objetivo é analisar algumas das dificuldades que se deixam ver na interlíngua escrita de
estudantes de espanhol que são falantes nativos da variante brasileira do português. Os
sujeitos da pesquisa são estudantes de língua espanhola como língua estrangeira no curso de
Licenciatura em Letras - Espanhol na modalidade presencial da Universidade Federal de
Santa Catarina. Os dados foram coletados no primeiro semestre letivo de 2011 e servem como
amostragem das dificuldades a serem averiguadas na pesquisa. Nesta comunicação será
apresentada e discutida uma breve análise de três textos produzidos por dois alunos do último
semestre de língua espanhola no tocante ao uso dos artigos. Nesta explanação também será
discutido o que caracteriza a interlíngua desses aprendizes, evidenciando como a análise de
erros pode contribuir no processo de ensino e aprendizagem de língua estrangeira.

Palavras-chave:
Análise de Erros. Análise de Interlíngua. Espanhol como Língua Estrangeira.

RESUMEN

Este trabajo está insertado en una investigación de doctorado en el campo de la Lingüística


Aplicada, en la línea de investigación Enseñanza y aprendizaje de lenguas extranjeras con
inicio en 2011/1. Para la realización de esta investigación parto de la base del modelo de
Análisis de Errores y de algunos presupuestos de la Análisis de la Interlengua, principalmente
a partir de Durão (1999; 2004; 2007). El objetivo es analizar algunas de las dificultades que se
pueden observar en la interlengua escrita de estudiantes de español hablantes nativos del
portugués de Brasil. Los participantes de esta investigación son estudiantes de lengua
española como lengua extranjera en el curso de grado Licenciatura en Letras – Español en la
modalidad presencial de la Universidad Federal de Santa Catarina. Los datos fueron
recolectados en el primer semestre de clase de 2011 y sirven como toma de muestras de las
dificultades a ser verificadas en la investigación. En esta ponencia será presentada y discutida
un breve análisis de tres textos producidos por dos alumnos del último semestre de lengua
española con respeto al uso de los artículos. En esta oportunidad también se discutirá lo que
caracteriza la interlengua de esos aprendientes, mostrando como el análisis de errores puede
contribuir en el proceso de enseñanza y aprendizaje de lengua extranjera.

Palabras-clave:
Análisis de Errores. Análisis de Interlengua. Español como Lengua Extranjera.

1 INTRODUÇÃO
Este trabalho originou-se com o propósito de constituir uma apresentação vinculada à

1
Mestre e Doutoranda em Linguística; e-mail: chrisletras@gmail.com.
2

proposta do Grupo de Trabalho intitulado “Ensino e aprendizagem de língua estrangeira”,


coordenado pelas professoras Adja Balbino de Amorim Barbieri Durão, Maria Inês Lucena e
Rosely Perez Xavier durante o Simpósio Internacional Linguagens e Culturas: Homenagem
aos 40 Anos dos Programas de Pós-Graduação em Linguística, Literatura e Inglês da
Universidade Federal de Santa Catarina, realizado em Florianópolis entre 4 e 7 de outubro de
2011.
O objetivo desta proposta é descrever, ainda que de forma breve, a pesquisa de
doutorado que começou a ser desenvolvida em 2011/1, no campo da Linguística Aplicada e
no contexto da linha de pesquisa Ensino e aprendizagem de línguas estrangeiras, do
Programa de Pós-graduação em Linguística desta Universidade.
Os questionamentos iniciais que originaram este projeto de pesquisa de doutorado
surgiram como resultado de minha experiência como professora de língua espanhola como
língua estrangeira na Educação Básica e como tutora de Educação a Distância no curso de
Licenciatura em Letras Espanhol da UFSC, contexto esse que vem me permitindo
observar empiricamente que uma das dificuldades dos alunos que estão aprendendo outro
idioma e se formando como professores é agir na língua, a partir de uma postura
epilinguística e metalinguística (GERALDI, 1997), isto é, agir com plena consciência de
seus conhecimentos nos dois idiomas (língua materna e língua estrangeira) e de suas
limitações.
A partir de minha atuação no magistério ao longo desses anos, percebi que alguns
colegas que se tornaram professores de língua espanhola como língua estrangeira (LE)
contemporaneamente a minha formação não tinham desenvolvido a proficiência esperada
para um professor do idioma estudado. Durante alguns anos, ensinei a língua espanhola
como LE na educação básica, ocasião na qual pude perceber que meus alunos nesse nível
tinham dificuldades que, curiosamente, eram as mesmas que observava quando meus
colegas licenciados usavam a língua espanhola. No contexto das tutorias da licenciatura
antes mencionada, a percepção foi a mesma: alunos que estão a ponto de concluir o curso
de graduação em Letras-Espanhol manifestavam as mesmas dificuldades antes referidas.
Quando comecei a elaborar meu projeto de Doutorado, no final de 2010, visando
ao ingresso no Programa, comecei a ler sobre Linguística Contrastiva (doravante LC), e
deparei-me com o termo Interlíngua. Ao explorar o significado desse termo e ao travar os
primeiros contatos com aquela teoria, fui entendendo que tanto meus alunos da educação
básica – aprendizes de espanhol como LE –, quanto os alunos da Licenciatura em Letras
Espanhol – aprendizes de espanhol como LE para ensiná-la –, assim como meus colegas
3

de graduação em realidade manifestavam, em sua maioria, não um estágio avançado de


espanhol, mas estágios intermediários de aquisição/aprendizagem da língua espanhola.
Essas etapas pelas quais os aprendizes passam, as quais permitem que se analisem as
características que se deixam ver em cada uma delas são chamadas de Interlíngua. Um dos
fenômenos mais característicos desse construto linguístico é a presença da interferência da
língua materna para a língua alvo.
A escolha pelos construtos do modelo de interlíngua (DURÃO, 2007), dentro da
LC, para tentar analisar os erros presentes na interlíngua de aprendizes que tem o
português como língua materna e o espanhol como língua estrangeira parece-me ser
acertada, haja vista a importância dos resultados que pesquisas empíricas baseadas nesses
construtos oferecem aos professores de idiomas. Considero que esta proposta de pesquisa
é relevante não apenas pela carência de pesquisas nesse campo, como já demonstrou em
seu estudo Benítez Pérez (apud DURÃO, 2004b), mas também por considerar que essa
teoria oferece instrumentos adequados para fazer frente a essa tarefa.
Um breve levantamento de dissertações e teses sobre o tema confirma o número
reduzido de trabalhos na área. Santos Gargallo (2004, p. 392) lista, em nota de rodapé, 14
teses de doutorado defendidas em universidades da Espanha entre 1991 e 2002, nas quais
se desenvolvem análises de erros, entre as quais está incluída a tese da orientadora de
minha pesquisa. No entanto, em língua portuguesa há ainda poucas teses defendidas até o
momento sobre o tema. Para melhor evidenciar esse fato, relato que em busca na
Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações 2, realizada em outubro de 2011, a
partir do termo “interlíngua”, localizei 60 trabalhos, sendo somente 6 teses e 9
dissertações sobre a interlíngua de brasileiros aprendizes de espanhol como LE
disponibilizadas até o momento.
Ao fazer esse relato, pretendo evidenciar que o objetivo principal deste trabalho é
mostrar as análises iniciais de três (3) textos produzidos por dois (2) alunos falantes de
português como língua materna (LM) do último semestre de língua espanhola no curso de
Licenciatura em Letras Espanhol na modalidade presencial desenvolvidas no campo do
uso dos artigos, especialmente o artigo neutro. Pretende-se julgar a adequação desses textos
no tocante aos parâmetros de um gênero textual específico, a saber, o artigo de revista, e,
também caracterizar a interlíngua desses aprendizes, evidenciando como a análise de erros
pode contribuir para o processo de ensino e aprendizagem desta língua estrangeira.

2
Disponível em: <http://bdtd.ibict.br>.
4

2 PERCURSO TEÓRICO
Como se trata de uma pesquisa em seu estágio inicial, no momento o embasamento
teórico da mesma restringe-se aos trabalhos de Baralo Ottonello (2004), Durão (2004a,
2004b, 2007), Loose (2006), Santos Gargallo (2004) e Vez (2004), todos desenvolvidos
em torno da Linguística Contrastiva. Além desses construtos, tomarei também trabalhos se
centram na perspectiva da teoria de gêneros textuais, como Dolz (et al, 2004) e Kleiman
(2007).
Para iniciar o trabalho propriamente dito, descreverei brevemente a base teórica da
Linguística Contrastiva. A Linguística Contrastiva dois modelos de análise e uma vertente
com tendência a vir se caracterizar como teoria, as quais se complementam num
continuum (GUILLEMAS apud DURÃO, 2004b, p. 10). Os dois modelos são o Modelo de
Análise Contrastiva (AC) e o Modelo de Análise de Erros (AE); já a vertente teórica foi
denominada por Durão (2007) como Análise de Interlíngua (AI). Esse conjunto de
pressupostos teóricos é frutífero e vem sendo constantemente atualizado, usufruindo dos
os avanços das ciências da linguagem. Vejamos brevemente esses três estágios que
marcaram a LC.
A primeira vertente da LC foi o Modelo de AC, fundado sobre três componentes:
linguístico, psicológico e pedagógico (DURÃO, 2007, p. 11). Esse modelo tenta prever os
possíveis erros dos alunos, com o objetivo de tentar impedir que cheguem a acontecer,
mediante ensino do tópico. Acreditava-se que a LM interferia na aprendizagem da LE
quando havia diferença entre LM e LE. Com o surgimento das ideias de Chomsky, o
modelo sofreu críticas (DURÃO, 2007, p. 13-4).
Após essas mudanças no cenário da ciência da linguagem, estabeleceu-se o modelo
de AE, que identifica e cataloga os erros. A partir de Corder (1967 apud DURÃO, 2004b)
passa a servir de respaldo ao ensino da LE, visando superar algumas limitações da AC.
Parte da Teoria de Aquisição Linguística de Chomsky, dos conceitos de competência e
performance, aos quais Corder (1967) relaciona erros sistemáticos e erros não
sistemáticos. Soma-se o conceito de competência comunicativa de Hymes (1972, apud
DURÃO, 2004b) à teoria sócio-cognitiva e interacionista de Vygotsky (2009 apud
DURÃO, 2004b). Na AE houve uma mudança em relação ao erro, que passou de ser
mostra de fracasso a indicativo de aprendizagem. Há, inclusive, em Durão (2007, p. 16-
20), uma listagem detalhada dos cinco critérios da AE para classificar os erros:
linguístico; gramatical; etiológico; pedagógico; comunicativo. Por receber críticas em
5

relação às especificidades do modelo, houve um novo movimento e é aí que se chega à


Análise de Interlíngua.
A interlíngua é assim nomeada por Selinker (1972 apud DURÃO, 2004b) que
postula uma „estrutura psicológica latente‟ que entra em funcionamento quando os
aprendizes iniciam o estudo de uma LE. Essa estrutura contém cinco processos
psicológicos centrais e quatro processos secundários. Para Baralo Ottonello (2004, p. 373)
a interlíngua é um sistema linguístico independente, com especificidade, sistematicidade e
caráter transitório, que evolui, tornando-se cada vez mais complexo. Ainda para essa
autora, a interlíngua apresenta transferência (que pode ser positiva ou negativa),
fossilização, permeabilidade e variabilidade, e uso de estratégias de aprendizagem. Durão
(2004b, p. 19) coloca esses fatores como características da interlíngua, acrescentando a
sistematicidade e de ser passível de ver-se afetada pelo fenômeno plateau (DURÃO,
2004b, p. 19), que ocorre quando os aprendizes deixam de melhorar sua produção por
acreditarem ter alcançado um nível que lhes permite a comunicação, o que pode gerar
fossilizações.
Sobre a interferência da LM, Ellis (1994 apud MARTÍN MARTÍN, 2004, p. 268)
explica que existem três grupos de fatores que intervêm na aprendizagem de uma LE:
externos; internos; individuais. Baralo Ottonello (2004, p. 377) resume essa questão como
uma estratégia disponível para compensar a carência de conhecimento da LE. Fernández
(apud DURÃO, 2004b) aponta alguns usos da LM no processo de ensino-aprendizagem de
LE: trazer conhecimentos da LM para facilitar a compreensão de determinado assunto em LE,
checar a compreensão e comparar estruturas. Nesta pesquisa irei comparar estruturas,
observando a correlação entre os artigos e a existência em espanhol do artigo neutro, que tem
a função de, quando colocado antes de adjetivo ou advérbio transformar estas categorias
gramaticais em substantivos, conferindo um caráter delimitador ou enfático.
Durão (2007) vai defender o uso do termo Análise de Interlíngua (AI) por
considerar a interlíngua como um modelo teórico, mas continua usando o termo
interlíngua para referir-se ao construto dos alunos. Baralo Ottonello (2004) usa o termo
interlíngua indiferentemente para os dois usos. Aqui vamos fazer a diferenciação entre o
modelo teórico e o construto, assumindo com Durão (2007, p. 28) que “la interlengua, en
su acepción de producto lingüístico de aprendices de lenguas no nativas, abarca el
6

continuum que se constituye desde que empieza el contacto del aprendiz con la lengua
meta, hasta que avanza a una etapa en la que, al menos en teoría, LM y LO coexisten.3”.

3 A ANÁLISE DE ERROS NA INTERLÍNGUA


Para esta pesquisa, juntar-se-ão construtos teóricos do Modelo de Análise de Erros
e da vertente teórica de Análise de Interlíngua. A análise de interlíngua não foca só nos
erros, foca no estágio da aprendizagem. E é esse estágio que se observou no momento da
análise da produção escrita do aluno da 7ª fase da graduação em Letras Espanhol a partir
do modelo de Análise de Erros na Interlíngua.
Faz-se necessário, neste momento, discutir brevemente a noção de erro. No modelo
de AE a visão sobre erro mudou, passando de indesejado, transgressão, desvio; para
tolerável, positivo, indício do desencadeamento do processo de aprendizagem por
influência dos postulados mentalistas de Chomsky, estendidos da LM para a LE (DURÃO,
2007, p. 15). Portanto, nesta pesquisa, erro é o desvio de uso da língua em relação à norma
gramatical estabelecida. É importante frisar que, por tratar-se de uma pesquisa de AE na
IL, o desvio será visto como índice do processo de aprendizagem e se buscará as razões e
as estratégias que levam ao erro e à resolução dele. Santos Gargallo (2004, p. 392 -3)
apresenta essa noção de erro como desvio em relação à norma da língua objeto,
envolvendo aspectos linguísticos, contexto e cultura.

4 UMA VISÃO SOBRE GRAMÁTICA


O centro da análise será o uso do artigo neutro em espanhol. Nesse idioma há o
artigo masculino el, o artigo feminino la, as respectivas formas no plural los e las, que
definem e concordam com os substantivos, e o artigo neutro lo, que substantiva adjetivos
e advérbios. Os estudantes brasileiros de espanhol como LE costumam usar lo como artigo
masculino pela redução da forma plural e da influência da forma em português (DURÃO,
2004a).
A dificuldade do artigo neutro lo consiste em usá-lo equivocadamente como artigo
definido masculino singular. Por exemplo, na frase do português O carro é do meu pai
fica em espanhol El coche es de mi padre. O que acontece muito nos textos dos alunos é
escrever Lo coche, fazendo a oposição do artigo definido feminino com o artigo neutro.
Além disso, lo tem mais de um uso: pode ser pronome complemento direto para substituir

3
Peço a permissão do(a) leitor(a) para manter as citações em língua espanhola conforme o original.
7

o objeto direto (Compré el libro. Lo compré.). Mas a dificuldade que ser quer observar
nesta pesquisa é a troca do artigo definido masculino el pelo artigo neutro lo.
Analisando a descrição gramatical para este objeto, percebe-se que, além do já
constatado acima, há causas históricas para essa troca. Becker (1999, p. 28) afirma que
“"el artículo neutro lo – legítimo orgullo de la lengua castellana – no tiene forma propia en
las demás lenguas neolatinas. Se ha producido en ellas la confusión gráfica entre el neutro y el
masculino.". Alvar (2000, p. 292-4) descreve peculiaridades formais, funcionais e valores
significativos para o artigo neutro.
Durão (2005) analisa as dificuldades que ocorrem sistematicamente na interlíngua
de estudantes brasileiros da graduação em Letras, aprendizes de espanhol, em relação ao
uso dos artigos definidos. Especialmente em relação ao uso do artigo neutro, a autora
afirma que “en la IL de brasileños aprendices de español son abundantes enunciados en
los que el uso del artículo neutro es erróneo” (DURÃO, 2005, p. 142). O exemplo citado
é: Lo libro era realmente muy bueno.
Esse uso está incorreto porque em espanhol não se admite o artigo neutro antes de
substantivo por não haver substantivo neutro nesse idioma. Durão (1994a, p. 122-3)
afirma, ao analisar o uso equivocado do artigo neutro por falantes do português aprendizes
do espanhol, que considerando o aspecto formal não há artigo neutro em português para
substantivação, mas considerando o aspecto semântico há sim a substantivação através do
artigo masculino singular determinado. A dificuldade consiste em que o aprendiz
brasileiro precisa distinguir entre a forma masculina e a forma neutro no uso, já que são
coincidentes morfologicamente.
Sobre o uso equivocado de lo, Durão (2007, p. 16-9) explica que do ponto de vista
linguístico, há um erro por falsa seleção; do ponto de vista gramatical, um erro ortográfico
e morfológico; do ponto de vista etiológico, além de ser intralinguístico, pode ser também
transitório ou permanente (fossilizado ou fossilizável) e do ponto de vista pedagógico,
pode ser de compreensão, produção, coletivo, oral e escrito.
Loose (2006), em sua dissertação de mestrado sobre o papel da instrução explícita
na aprendizagem de espanhol por brasileiros, aplicou testes a 23 alunos estudantes da
segunda fase da graduação em Letras Português e Espanhol antes e após instrução. Os
testes consistiam em um texto com tarefas de compreensão e de completar lacunas. Os
dados apontaram que na sentença El niño se fue a su casa somente 23% utiliza o artigo
definido masculino corretamente e que após a instrução o nível de acerto aumenta p ara
54% (p. 69). Já nas frases onde o artigo a ser completado era o neutro, a diferença de
8

acerto entre antes da instrução e depois é muito maior. Em uma frase onde o lo deveria ser
colocado antes de um adjetivo, 40% completaram corretamente antes da instrução e 70%
depois (p. 68). Esses dados apontam que os alunos compreendem a utilização do artigo
neutro em espanhol, mas que a dificuldade está na interferência da língua materna em
utilizar o artigo definido masculino el.

5 UMA VISÃO SOBRE O TEXTO


Nesta pesquisa o texto é visto, ao mesmo tempo, como uma habilidade linguística,
uma forma de expressão e um instrumento que possibilita a observação do processo de
aprendizagem. Embora Kleiman (2007, p. 4) trate do letramento no ensino de língua
materna, concordo com a autora que “[...] é na escola, agência de letramento por excelência
de nossa sociedade, que devem ser criados espaços para experimentar formas de participação
nas práticas sociais letradas”.
Essa visão de ensino e aprendizagem de texto como prática e não somente como
habilidade vem ao encontro da metodologia utilizada nas coletas de dados realizadas, já
que não foram estabelecidos conteúdos a priori, e sim um levantamento a posteriori,
observando e analisando os erros apresentados por esses grupos de futuros professores. É
dessa forma que ocorre o processo de ensino-aprendizagem: os conteúdos são estudados
na medida da sua necessidade, não como um princípio organizador, e sim como o “ alvo:
ele representa os comportamentos, procedimentos, conceitos que se visa desenvolver no aluno.”
(KLEIMAN, 2007, p. 5). Justamente por situar-se no contexto de formação de professores,
a fala de Kleiman (2007, p. 21) se encaixa com os propósitos desta pesquisa ao falar da
formação de professores como agentes de letramento.
Corroborando com essa visão de escola e de ensino, a maneira como Dolz (et al,
2004) tratam o ensino do texto é trazida para cá. Na pesquisa piloto o gênero textual
proposto foi artigo de revista 4, da forma como Dolz (et al, 2004, p. 97) nomeiam de
sequência didática. Afirmam esses autores que “os textos escritos ou orais que produzimos
diferenciam-se uns dos outros e isso porque são produzidos em condições diferentes”.
Explicam que as diferenças encontradas permitem constatar regularidades. Essas
regularidades – características comuns aos textos – podem ser chamadas de “gêneros de
textos, conhecidos de e reconhecidos por todos, e que, por isso mesmo, facilitam a
comunicação”. Esses autores explicam ainda que a finalidade de uma sequência didática,

4
Esclarecendo: o artigo de revista referido aqui não é o artigo acadêmico, com fins de publicação. É um texto
breve, informativo e de entretenimento, com conselhos de moda, saúde e beleza.
9

tal como foi proposta na coleta de dados desta pesquisa, é a de “ajudar o aluno a dominar
melhor um gênero de texto, permitindo-lhe, assim, escrever ou falar de uma maneira mais
adequada numa dada situação de comunicação. [...] As seqüências didáticas servem,
portanto, para dar acesso aos alunos a práticas de linguagem novas ou dificilmente
domináveis.”

6 DESCRIÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS


Para a metodologia da tese tomo por base os procedimentos metodológicos
organizados por Santos Gargallo (2004). Para sistematizar uma pesquisa dentro do campo
teórico da LC, Santos Gargallo (2004, p. 397) apresenta uma tabela de critérios a serem
definidos após terem-se claros os objetivos da pesquisa.
Seguindo esses critérios, foram definidos alguns itens: a) o laboratório será a sala
de aula; b) o instrumento principal (SANTOS GARGALLO, 2004, p. 401) para a
expressão escrita será redação de tema assinalado; c) como instrumentos complementares
para a compilação dos dados houve um questionário e observação participativa da
investigadora; d) o perfil do sujeito foi tabulado por idade, origem, língua materna, língua
estrangeira e semestre. Santos Gargallo (2004, p. 406) apresenta ainda uma tipologia de
causas dos erros, da qual serão utilizados os tipos interferência, tradução,
hipergeneralização e aplicação incompleta das regras da língua meta.
Com o intuito de confirmar ou refutar as hipóteses desta pesquisa, uma pesquisa
piloto foi realizada com os alunos matriculados na disciplina Língua Espanhola VII,
cursada no primeiro semestre de 2011 no curso de Licenciatura em Letras Espanhol da
Universidade Federal de Santa Catarina. Mais adiante será analisado porque as hipóteses
foram confirmadas parcialmente. A discussão e análise de alguns dos dados desta pesquisa
piloto serão feitas a seguir.
Foi elencado como objeto de pesquisa o uso do artigo neutro por dois motivos: é
conteúdo estudado pelos alunos em semestres anteriores e foi uma dificuldade apresentada
pelos estudantes no 6º semestre de língua na modalidade a distância, oferecida também
pela UFSC. Foi feito um mapeamento, a partir do livro texto, dos conteúdos estudados em
cada um dos seis semestres de língua realizados até o presente momento na educação a
distância.
Desse levantamento, depreendeu-se que o artigo neutro foi estudado somente em
duas disciplinas, mais precisamente nos semestres 1 e 4 do curso. Nos semestres 2 e 3 o lo
aparece somente como pronome complemento direto, sem que haja o estabelecimento de
10

qualquer relação com a coincidência da forma. Esses dados levam a crer que não houve
trabalho suficiente com esse aspecto gramatical, facilitando a ocorrência de interferências
da língua materna, tornando-o passível de fossilização.
Os dados que foram coletados no primeiro semestre letivo de 2011 servem como
amostragem dos problemas a serem averiguados na pesquisa. Aqui serão apresentados e
discutidos os dados levantados de três textos produzidos por duas alunas do último semestre
de língua espanhola que se referem ao uso do artigo neutro e à adequação de seu texto aos
parâmetros do gênero textual artigo de revista, como foi especificado anteriormente.
As duas participantes cujas produções serviram para esta análise estavam na 7ª fase do
curso de Licenciatura em Letras Espanhol da UFSC. Este é o último semestre de língua e falta
apenas um semestre para a conclusão do curso. Os alunos matriculados na disciplina
Língua Espanhola VII já cursaram 6 semestres da disciplina língua espanhola, além de
outras disciplinas, tais como literatura (espanhola e hispano-americana), pedagogia e
linguística, entre outras.
A partir do questionário aplicado no início da coleta de dados depreenderam-se as
informações relatadas a seguir. Os participantes da pesquisa selecionados para a análise
neste texto são duas meninas, com idade de 22 e 23 anos, brasileiras falantes de português
como LM, residentes na região metropolitana de Florianópolis. A participante 1 (P1) tem
22 anos, conhece o idioma inglês mas se declara com pouco conhecimento nessa língua.
Na infância não escutava outro idioma além do português, trabalha há um ano com o
ensino de língua espanhola, gosta de línguas estrangeiras, acredita que o espanhol é uma
língua útil para o futuro, em ascensão e com oportunidades de trabalho. Pensa que sua
maior dificuldade no espanhol é a gramática e a maior facilidade é a pronúncia. A
participante 2 (P2) tem 23 anos, conhece o idioma inglês e se declara proficiente nessa
língua. Na infância não escutava outro idioma além do português, trabalha há um ano
como secretária, não utilizando o idioma espanhol no cotidiano profissional. Gosta da
língua espanhola porque lhe parece bonita e interessante, para ela estudar línguas
estrangeiras é interessante para ampliar o conhecimento, acredita que o espanhol é uma
língua útil para o turismo e a comunicação internacional porque é falada nos países
vizinhos. Pensa que sua maior dificuldade no espanhol é o vocabulário e o fato de ser
parecido com o português, e as maiores facilidades são a pronúncia e a compreensão.
Essas participantes e seus textos foram eleitos para essa análise, dentro de um
corpus composto de produções textuais de 25 alunos, pelas características apresentadas e
pelos objetivos deste trabalho. Cada participante da pesquisa piloto escreveu três textos
11

em língua espanhola. O primeiro em março, a partir de um texto com dicas para a saúde; o
segundo em abril, a partir de um texto descrevendo sintomas e prevenção de doenças; e o
terceiro, em maio, reescrevendo o segundo texto. Os três textos foram orientados para ser
escritos no formato artigo de revista de entretenimento, como assinalado acima.
A P1 escreveu o texto 1 (T1) dentro do esperado para o formato orientado, com
linguagem acessível, frases simples, informações para o leitor, contextualizando o tema.
Sobre o uso dos artigos, todas as ocorrências de artigos definidos e indefinidos estão
corretas. Aparece um uso do artigo neutro e está empregado corretamente. O texto 2 (T2)
também está com todos os artigos, inclusive duas ocorrências do artigo neutro, utilizados
corretamente. O texto 3 (T3) também está dessa forma. É interessante observar que nos
três textos o artigo neutro somente aparece em expressões como: lo que pasa e lo que
consiga. Para Gómez Torrego (2002, p. 72) no exemplo anterior o artigo neutro precede
orações inteiras, substantivando-as. O autor destaca, porém, que “en estos casos, la forma
lo es un pronombre que actúa como núcleo de un grupo nominal.”. Portanto essas
expressões não serão objeto de análise aqui.
A P2 escreveu o T1 dentro do esperado para o formato orientado, com linguagem
acessível, porém com frases mais complexas e parágrafos mais longos. Ainda assim
estabeleceu um diálogo com o leitor, oferecendo informações e explicações sobre o tema,
contextualizando-o. Sobre o uso dos artigos, todas as ocorrências de artigos definidos e
indefinidos estão corretas. Aparecem três ocorrências do artigo neutro, sendo uma com
expressão do mesmo tipo do S1, uma substantivando adjetivo (a lo largo) e uma
retomando expressão anterior (lo sabe). Há ainda duas ocorrências do pronome
complemento direto (se lo pode y se lo cuide), que não são objeto desta pesquisa. O T2
também está com todos os artigos corretos. Há uma ocorrência do artigo neutro
substantivando adjetivo (lo necesario). As outras ocorrências são do pronome cuja forma
coincide morfologicamente. No T3 também aparece somente essa ocorrência citada no T2.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nossa hipótese foi parcialmente confirmada, afinal essas alunas apresentam, em
sua maioria, um uso adequado do artigo neutro. O único erro encontrado foi do mesmo
tipo do citado por Durão (2007) e Loose (2006). Por causa dos resultados obtidos nesta
análise, o objeto desta pesquisas será alterado, visto que as ocorrências de uso inadequado
do artigo neutro foram muito baixas.
12

À luz dos dados verificados constatou-se que a interlíngua desses alunos está
próxima da língua-alvo, apresentando poucos erros sistemáticos. Isso é fator positivo no
processo de ensino e aprendizagem de ELE. Pode-se, a partir disso, pensar em estratégias
para interferir em outros âmbitos, nos quais as dificuldades apresentem-se como mais
marcantes, já que essa – o uso do artigo neutro – foi considerada como irrelevante.
Esse fato – a mudança no tema da tese, sem alteração da base teórica – foi
frutífero, já que possibilitou amadurecimento do propósito da pesquisa. Realizar a
pesquisa piloto ainda no início do processo foi de grande valia para reorientar as leituras
em relação ao objeto da pesquisa e reafirmar a base teórica.

8 REFERÊNCIAS

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o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. et al.
Gêneros orais e escritos na escola. Trad. e org. de Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro.
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DURÃO, Adja Balbino de Amorim Barbieri. (Org.) Linguística contrastiva: teoria e


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GOMEZ TORREGO, Leonardo. Gramática didáctica del español. 8. ed. corregida y


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13

KLEIMAN, Ângela B. Letramento e suas implicações para o ensino de língua materna.


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LOOSE, Roberta Egert. O papel da instrução explícita na aquisição/aprendizagem de


estruturas do espanhol por falantes do português. Dissertação de Mestrado.
Universidade Católica de Pelotas, 2006. Disponível em: <http://www.ucpel.tche.br/poslet/
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MARTÍN MARTÍN, José Miguel. La adquisición de la lengua materna (L1) y el


aprendizaje de una segunda lengua (L2)/lengua extranjera (LE): procesos cognitivos y
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lengua (L2)/lengua extranjera (LE). Madrid: SGEL, 2004. p. 261-286

SANTOS GARGALLO, Isabel. El análisis de errores en la interlengua del hablante no nativo.


In: SÁNCHEZ LOBATO, Jesús; SANTOS GARGALLO, Isabel. (Orgs.) Vademécum para
la formación de profesores: enseñar español como segunda lengua (L2)/lengua extranjera
(LE). Madrid: SGEL, 2004. p. 391-410
SUMÁRIO GERAL

Sumário de Literatura

52. A ALEGORIA TROPICALISTA E O ROCK NO BRASIL DOS ANOS 70 – Tiago Hermano


Breunig

53. A AMOREIRA: A MORTE NOS CLÁSSICOS INFANTO JUVENIS – Cristian Rolin de


Moura e Roberta Cantarela

54. A HERANÇA MÍTICA DO INTÉRPRETE DE SAMBAS-ENREDO - Luciano Carvalho do


Nascimento

55. A MIMESE DO SIMULACRO COMO ESTRATÉGIA DE IRRISÃO EM MACHADO DE


ASSIS – Daniela Soares Portela

56. A ÚMIDA CLAUSTROFOBIA DA MANAUS DE HATOUM – Fernanda Müller

57. A VELHA, O GUINDASTE, O OVO E A CADEIRA - Djulia Justen

58. A VISÃO DA MORTE NA OBRA LITERÁRIA DE TOMÁS MARTÍNEZ,


ESPECIALMENTE NO ROMANCE PURGATORIO – Lidia Beatriz Selmo de Foti

59. A VOZ DO CLOWN - Nara Marques Soares

60. ADAPTAÇÃO EM DEBATE: RESGATES E ANÁLISE DE UM MATADOR EM CARTAZ -


Samantha Borges

61. ANA CRISTINA CESAR, SUPLEMENTADORA DE DRUMMOND – Luiza Ribas

62. ANÁLISE DO DISCURSO E PSICANÁLISE: POSSÍVEIS CONVERGÊNCIAS ENQUANTO


CAMPOS DE INVESTIGAÇÃO DISCURSIVA - Adriana de Oliveira Limas Cardozo e
Maurício Eugênio Maliska

63. ARLT COM BAUDELAIRE: A MORAL DO BRINQUEDO RAIVOSO – Gastón Cosentino

64. “BOM DIA AVENIDA”: APONTAMENTOS MUSICAIS SOBRE A EXPERIÊNCIA DA


MODERNIDADE NO RIO DE JANEIRO DAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XX -
André Rocha Leite Haudenschild

65. BORGES ENTRE SCHOPENHAUER E NIETZSCHE: REFLEXÕES ESTÉTICAS A PARTIR


DE “HISTORIA DEL TANGO" – Miguel Angel Schmitt Rodriguez

66. CLARICE LISPECTOR, UMA ESCRITURA TANTÁLICA – Maiara Knihs

67. CONSIDERAÇÕES COMPARATIVAS SOBRE A PERSPECTIVA “POLÍTICA” ENTRE A


OBRA PRIMEIRAS VIAGENS DE ERNESTO CHE GUEVARA E O FILME DIÁRIOS DE
MOTOCICLETA DE WALTER SALLES - Cristiano Mello de Oliveira

68. DANTE, DURANTE, DEPOIS… - Gizelle Kaminski Corso

69. EDGARDO COZARINSKY: A IMAGEM EXILADA – Valdir Olivo Júnior


SUMÁRIO GERAL

Sumário de Literatura

70. ELEGIAS URBANAS – A LUTA - Rubens da Cunha

71. ENTRE A MORTE, FUNÇÕES E GESTOS: O AUTOR E A FILOSOFIA – Joachin Azevedo


Neto

72. FOTOGRAMAS DE CINEMA E POESIA: CRUZ E SOUSA – O POETA DO DESTERRO -


Rosana Kamita

73. IMIGRAÇÃO E COLONIZAÇÃO ALEMÃ: REPRESENTAÇÕES NA LITERATURA


BRASILEIRA – Cristiane Roveda Gonçalves

74. INTERTEXTUALIDADE TEMÁTICA: A MORTE EM DRÁCULA DE BRAM STOKER E NA


BÍBLIA SAGRADA – Iliane Tecchio

75. LITERATURA E CINEMA EM ZAZIE DANS LE MÉTRO - Luciana Wrege Rassier

76. LOS SIETE LOCOS DE ROBERTO ALRT E LEOPOLDO TORRE NILSSON: DO LIVRO À
TELA - Janete Elenice Jorge

77. MÁRIO DE ANDRADE, QUEM ÉS TU? – Ana Lucia Matiello

78. MEU NOME É CHACAL – Renata Gonçalves Gomes

79. MORTE E 'PULSÃO NARRATIVA' EM WALTER BENJAMIN – Júlio Bernardo Machinski

80. NA MEDIDA DO IMPOSSÍVEL: A POÉTICA INTERSEMIÓTICA DE TORQUATO NETO –


Lizaine Weingärtner Machado

81. NOTAS SOBRE A ILUSÃO CINEBIOGRÁFICA: UM OLHAR SOBRE A TRAJETÓRIA DE


AMEDEO MODIGLIANI - Marcio Markendorf

82. O ANIMAL SIMBÓLICO: ACERCA DA PROBLEMÁTICA DA ANIMALIDADE NA


LITERATURA E NA FILOSOFIA – Rodolfo Piskorski

83. O BURRINHO PEDRÊS – O TRUQUE - Alair Ribeiro Silva

84. O CHORO NO TRAVESSEIRO E TE AMO SOBRE TODAS AS COISAS, DE LUIZ VILELA:


PALAVRAS E SILÊNCIOS - Yvonélio Nery Ferreira e Marília Simari Crozara

85. O DIÁRIO COMO ÚNICA CHANCE DE SOBREVIVÊNCIA: HOSPÍCIO É DEUS, DE


MAURA LOPES CANÇADO - Louise Bastos Corrêa

86. O NARRADOR E A CÂMERA: A AMBIGUIDADE ORGÂNICA DA ARTE EM MORTE EM


VENEZA - Lorena Bernardes Barcelos e Chanely Silva Ricarte

87. O TEATRO CONTRACULTURAL DO LIVING THEATRE – Roberta Cantarela

88. O TER LUGAR DA LINGUAGEM NAS GALÁXIAS BABÉLICAS – Diego Cervelin


SUMÁRIO GERAL

Sumário de Literatura

89. OS DISCURSOS RELIGIOSO E FOLCLÓRICO EM O BOM DIABO, DE MONTEIRO


LOBATO- Marilia Simari Crozara e Yvonélio Nery Ferreira

90. TENDÊNCIAS DISCURSIVAS NO ROMANCE AFRICANO CONTEMPORÂNEO - Rafaella


Cristina Alves Teotônio

91. UMA APROXIMAÇÃO DE IDEIAS ENTRE LITERATURA E CINEMA: CRIANÇAS


SELVAGENS, LEITORES IDIOTAS E ALGUNS SONHADORES - Fernanda A. S. do Canto
e Roberta Cantarela

92. WALY – HÉLIO: VOZ E CORPO – Bruna Machado Ferreira

93. WALY SALOMÃO: o fazer poético como persona de si mesmo – Gabriela Cristina
Carvalho
SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo

A ALEGORIA TROPICALISTA E O ROCK NO BRASIL DOS ANOS 70

Tiago Hermano Breunig1 (PPGL/UFSC)

RESUMO

A compreensão do Tropicalismo pelos intelectuais no Brasil o remete, desde a sua


consolidação na cultura brasileira, a uma forma de representação associada com a alegoria. E
o que se pode imediatamente reter da concepção da alegoria tropicalista condiz com o fato de
constituir uma representação, por um lado, moderna e, por outro, nacional. Assim, a alegoria
se aproxima de uma atualização das representações do Brasil, tanto que Carlos Basualdo
afirma que o Tropicalismo pretende “pensar a identidade nacional brasileira como um
processo aberto, em desenvolvimento permanente” e, para tanto, o rock se configura “como
meio de atualizar e potencializar a produção musical no Brasil” pela incorporação de seus
elementos. Embora a incorporação do rock seja compreendida como processo, como observa
Basualdo, o Tropicalismo preserva algo das noções de forma e de formação que caracterizam
os nacionalismos, na medida em que pretende “fundar”, ao seu modo, “a identidade nacional”.
E a “retomada da „linha evolutiva‟”, proposta por Caetano Veloso e desenvolvida criticamente
por Augusto de Campos no processo de institucionalização da MPB o comprova, de modo
que a alegoria se associa, assim, ao tempo do evolucionismo vazio, do progresso linear da
historiografia historicista. Se o Tropicalismo, conforme a natureza da alegoria, sintetiza
dialeticamente as polaridades representadas, por um lado, pela MPB e, por outro, pelo rock,
interessa como o rock, por sua vez, produz um contradiscurso da identidade nacional por meio
de um procedimento que se nega a operar logicamente ou dialeticamente, o que constitui o
objeto do presente trabalho.

Palavras-chave:
Rock. Tropicalismo. Nacionalismo.

ABSTRACT

Since its consolidation in the Brazilian culture, the Tropicalism is designed by intellectuals as
a form of representation associated with allegory. The tropicalist allegory conception consists
in a representation, on the one hand, modern, and, on the other hand, national. Thus, the
allegory seems as an update of Brazil's representations, so that Carlos Basualdo says that the
Tropicalism intends to think the Brazilian national identity as an open process in continuous
development and, therefore, the incorporation of the rock elements on it serves as a mean of
updating the musical production in Brazil. Although the incorporation of the rock is
understood as a process, as mentioned by Basualdo, the Tropicalism preserves notions of
form and formation that characterize nationalisms, since it intends to found the national
identity in its own way. And this is evidenced by the resumption of the evolutionary line
proposed by Caetano Veloso and critically developed by Augusto de Campos in the process
of institutionalization of MPB (Brazilian Popular Music), in a way that the allegory is
associated with the linear progress of historicist historiography. If, on the one hand, the
Tropicalism, according to the dialectical nature of the allegory, synthesizes the polarities
represented by MPB and by the rock, on the other hand, the rock produces a counter-discourse
of national identity through a procedure that refuses to operate logically or dialectically,
which is the subject of this work.

1
Doutorando em Literatura; bolsista do CNPq; e-mail: thbreunig@gmail.com.
2

Keywords:
Rock. Tropicalism. Nacionalism.

A compreensão do Tropicalismo pelos intelectuais no Brasil o remete, desde a sua


consolidação na cultura brasileira, a uma forma de representação associada com a alegoria.
Segundo Christopher Dunn (2007, p. 66), “Roberto Schwarz foi o primeiro a comentar como
a alegoria moderna”, tal como conceitualizada por Walter Benjamin, ou seja, como “um modo
de representação” que “resiste a categorias totalizadoras transcendentes”, “era desenvolvida”
no Tropicalismo.
Com efeito, a partir da concepção benjaminiana de alegoria, Roberto Schwarz (1978,
p. 74) compreende o Tropicalismo como uma “submissão de anacronismos” ao moderno, cujo
resultado consiste em uma “alegoria do Brasil”. Com a “alegoria tropicalista”, em que se
combinam indistintamente o passado e o presente, o arcaico e o moderno, os tropicalistas,
segundo Roberto Schwarz (1978, p. 78), “alegorizam a „ideia‟ intemporal de Brasil”.
Christopher Dunn (2007, p. 66-69) conclui que o Tropicalismo, conforme o concebe Roberto
Schwarz, “representava o Brasil como um absurdo”, ao apresentar as suas contradições “como
emblemas de identidade nacional”.
O que se pode imediatamente reter da concepção da alegoria tropicalista condiz com
o fato de constituir uma representação, por um lado, moderna e, por outro, nacional. Assim, a
alegoria tropicalista representa algo como uma atualização das representações do Brasil.
Tanto que Carlos Basualdo (2007, p. 13-15) afirma que o Tropicalismo pretende “pensar a
identidade nacional brasileira como um processo aberto, em desenvolvimento permanente” e,
para tanto, o rock se configura estrategicamente “como meio de atualizar e potencializar a
produção musical no Brasil” pela incorporação de seus elementos no contexto da tradição
musical brasileira.
Embora a incorporação de elementos do rock deva ser compreendida como o
processo mesmo, em detrimento do seu resultado, como observa Carlos Basualdo (2007, p.
15), o Tropicalismo contraditoriamente preserva algo das noções de forma e de formação que
caracterizam os nacionalismos, com suas normas e valores comuns, na medida em que
pretende “fundar”, ao seu modo, “a identidade nacional”. E a “retomada da „linha evolutiva‟”,
proposta por Caetano Veloso e desenvolvida criticamente por Augusto de Campos, no
processo de institucionalização da MPB o comprova definitivamente.
3

Acontece que, paradoxalmente, a alegoria tropicalista se associa, assim, ao tempo


iluminista do progresso linear, o tempo do evolucionismo vazio. Walter Benjamin (1994, p.
229) compreende o progresso, como o concebe a historiografia historicista, como uma
“marcha no interior de um tempo vazio”. E ao acompanhar a referida marcha, o Tropicalismo
se reduz a uma alegoria... de carnaval, de modo que, na marcha pelas avenidas do Brasil, o
bloco tropicalista da historiografia historicista se confunde com o cortejo triunfal, cujos
despojos constituem “o que chamamos bens culturais”. (BENJAMIN, 1994, p. 225) Afinal,
“não existem”, como questiona Benjamin (1994, p. 223), “nas vozes que escutamos, ecos de
vozes que emudeceram?”
Um recuo no tempo permite constatar que, desde os anos 1920, as propostas musicais
marioandradianas visavam a uma “continuidade nacional”, no interior da qual as
manifestações musicais exerceriam “uma função verdadeiramente nacional e social” (COLI,
1998, p. 24). Assim se estabelece a proposta de nacionalização musical marioandradiana,
sobretudo a partir dos tempos ditatoriais do Estado Novo, sob o qual adquire um aspecto
conflituoso. Apesar de se direcionar ao campo musical erudito, a proposta marioandradiana
parece germinar no campo musical popular e, a despeito da nacionalização do samba no
Estado Novo, florescer efetivamente nos anos 1960 e 1970, sobretudo depois dos
acontecimentos de 1964 e 1968.
Desde que “nossos compositores podem conceber normas caracteristicamente
brasileiras” (ANDRADE, 1976, p. 80), o que conferiria a “entidade” manifesta pela
incorporação de caracteres musicais convencionalmente nacionais, a tradição que se
estabelece a partir do pensamento musical marioandradiano fundamenta os paradigmas por
meio dos quais se pode reconhecer uma “„especificidade musical‟ brasileira” (SANDRONI,
2001, p. 20), traduzida por determinadas figuras que supostamente conteriam um significado
nacional:

Se a noção de forma e, sobretudo, de formação prevista pela proposta de


nacionalização musical implica a formação e a fixação dos caracteres musicais constitutivos
da “entidade” musical brasileira, que informariam a MPB, implica, ironicamente, o conceito
marioandradiano de “deformação”. Os processos de “deformação” pelos quais elementos
4

musicais estrangeiros passam no Brasil consistem em uma “deformação que transforma fontes
exclusivamente estrangeiras numa organização que sem ser propriamente original” se torna,
segundo o pensamento mariandradiano, “caracteristicamente nacional” (ANDRADE, 1976, p.
93).
Em detrimento da forma e da formação prevista e precedida pelo processo de
deformação a partir da formação e da fixação dos caracteres musicais constitutivos de uma
musicalidade brasileira elaborada discursivamente a partir do pensamento marioandradiano, o
rock no Brasil dos anos 1970 recorre, contraditoriamente, a processos de deformação. A
deformação dos paradigmas que informam a MPB pelo rock no Brasil funda um discurso que
problematiza a naturalidade dos ritmos brasileiros por meio de uma contradição que
desnaturaliza conceitos de valor evidentes.
Assim, se no Brasil se forma um sistema cultural diferenciado para o sistema musical
em torno da MPB e se, como afirma Marcos Napolitano (2001), a configuração do conceito
de MPB ocorre a partir do Golpe de 1964 e se consolida em 1968, depois do Tropicalismo, o
conceito se estabelece como uma instituição cultural capaz de atribuir uma identidade
nacional e popular, bem como legitimar a hierarquia cultural. O processo instituinte ocorre
concomitantemente ao debate em torno do engajamento musical como redimensionamento
com a tradição com fins de popularização e afirmação nacional em contraposição ao rock,
compreendido como o outro contra o qual se afirma a identidade nacional e como a contraface
do golpe de 64, ao passo que a MPB permaneceria associada aos discursos de autenticidade,
de origem, etc.
Em outras palavras, enquanto o duvidoso conceito de MPB mantinha uma “certa
função de „defesa-nacional‟” (SANDRONI, 2004, p. 29), ironicamente consoante ao projeto
cultural do Estado, o rock no Brasil dos anos 1970 produz sentidos a partir da incorporação de
caracteres preestabelecidos nos discursos acerca do que se compreende como nacional. Nesse
sentido, ao confrontar os aspectos constitutivos da cultura brasileira e da identidade nacional
presentificados na MPB, o rock, no Brasil, suspende a dicotomia entre o nacional e o
estrangeiro ou a MPB e o rock, conservando, no entanto, os opostos da polaridade que
sustenta o discurso musical nacionalista.
No Brasil, o advento do rock and roll remonta a meados dos anos 1950, com as
interpretações e traduções brasileiras dos originais provenientes dos Estados Unidos,
eventualmente adaptadas com instrumentos populares ou regionais, como o acordeom, a
exemplo da versão instrumental de “Rock around the clock”, de Bill Haley and his Comets,
composta pelo acordeonista Frontera em 1955, como que confirmando a contraditoriedade
5

interna que caracteriza o rock, conforme Richard Middleton (1990). Antes, portanto, de o
Tropicalismo promover o “deslocamento dos instrumentos” da Jovem Guarda para a MPB,
como constata Augusto de Campos (2008, p. 154), o rock desloca instrumentos e sonoridades
de manifestações musicais regionais e populares do Brasil. E se o deslocamento constatado
por Augusto de Campos “tem, em si mesmo, um significado”, certamente o tem os
deslocamentos propostos pelo rock no Brasil. Apenas em 1957, ano de que datam as primeiras
composições brasileiras em ritmo de rock, a guitarra seria utilizada em um rock composto por
Betinho e seu Conjunto.
A consolidação do rock and roll no mercado musical brasileiro provoca o
aparecimento de compositores e versionistas de sucessos do ritmo para a interpretação de
cantores brasileiros, bem como de bandas instrumentais influenciadas pelos ritmos da surf
music, do twist e do hully-gully. Se desde o seu advento no Brasil, o rock and roll se
confronta com um oposicionismo moral e politicamente orientado, o sucesso da Jovem
Guarda, nos anos 60, potencializa o dilema nacionalista compartilhado pela ideologia do
Estado e da oposição ao Estado desde o Golpe de 1964, quando se radicaliza a polarização
que dividiu a sociedade brasileira, de modo reducionista, entre o “nacional-populismo” e o
“nacional-desenvolvimentismo”, ambos nacionalistas, portanto, confirmando o aspecto
invariavelmente nacionalista que caracteriza a cultura no Brasil nos anos 1960. E esse quadro
se agrava com o decreto do AI-5 em dezembro de 1968.
Na medida em que dialoga com os aspectos constitutivos da cultura brasileira e da
identidade nacional, presentificados na MPB, por meio da relativização da dicotomia
instaurada no discurso nacionalista musical, o rock no Brasil dos anos 1970 permite, portanto,
entrever as suas contradições. Assim, Raul Seixas, por exemplo, suspende a referida
dicotomia ao comparar os ritmos do rock and roll e do baião, respectivamente intercalados nas
estrofes da canção:
6

Let me sing, Let me sing


Let me sing my rock and roll
Let me sing, Let me swing
Let me sing my blues and go
7

Tenho quarenta e oito quilos certos


Quarenta e oito quilos de baião
Não vou cantar como a cigarra canta
Mas desse meu canto eu não abro mão2

Ao ceder ao dois por quatro do baião, “Let me sing, let me sing” apresenta um
significativo rompimento do compasso quatro por quatro do rock, que subverte o ritmo e
produz sentido ao compreender a metade do compasso quatro por quatro no interior de um
compasso dois por quatro, como graficamente representado pela partitura:

em que se manifesta, portanto, o paradigma que se caracteriza fundamentalmente pela


recorrente contrametricidade na quarta semicolcheia do compasso dois por quatro, que
antecede e fundamenta a construção dos discursos acerca da musicalidade popular brasileira,3
sobretudo a partir da autoridade do pensamento musical marioandradiano, que a denomina
“síncope legítima” ou “característica” e a julga portadora de uma “especificidade musical”
brasileira. Afinal, o referido paradigma estrutura o ritmo do baião:

A singularidade de Raul Seixas enquanto representação do rock brasileiro para a


historiografia da MPB, no mesmo momento em que o rock emudece diante da demanda por
um discurso de identidade nacional, se deve a uma relação com a “musicalidade tradicional da

2
SEIXAS, Raul. Let me sing, let me sing. In: SEIXAS, Raul. Let me sing my rock’n’roll. São Paulo:
Independente, 1985. 1 disco sonoro. Lado A, faixa 1 (3min 15s).
3
O referido paradigma se caracteriza pela imparidade proveniente da mistura de unidades binárias e ternárias
que, segundo Carlos Sandroni, consta em manifestações musicais de diferentes lugares do continente americano
onde se importaram escravos. Esse paradigma se difunde em toda parte no lundu do final dos oitocentos, de
modo que as figuras resultantes do paradigma constituem formas largamente empregadas nas composições
brasileiras do XIX e do XX. Cf. SANDRONI, 2001, p. 30.
8

MPB”, em cuja historiografia aparece como precursor do “rock brasileiro” (ALBIN, 2003, p.
352),4 mesmo a despeito de abdicar da tradição da MPB: “Eu nunca fui muito ligado a essa
coisa de raiz da música popular”, afirma Raul Seixas (BAHIANA, 1980, p. 84). Raul Seixas
recusa a tradição da MPB e a sua continuidade representada pelo Tropicalismo ao negar a
“retomada da „linha evolutiva‟”, proposta por Caetano Veloso no debate promovido e
publicado pela Revista Civilização Brasileira, cujo objetivo era entender e equacionar os
novos desafios compreendidos em termos de engajado ou alienado dispostos com a crise
promovida pelo sucesso comercial da Jovem Guarda:

Acredite que eu não tenho nada a ver


Com a linha evolutiva da música popular brasileira
A única linha que eu conheço
É a linha de empinar uma bandeira5

O referido debate foi publicado em maio de 1966, mesmo ano, portanto, do disco
“Jovem Guarda”, da dupla Roberto e Erasmo Carlos. No debate, Caetano Veloso defende a
continuidade de uma tradição musical brasileira nos termos de uma “retomada da linha
evolutiva” que poderia oferecer “uma organicidade para selecionar e ter um julgamento de
criação” (VELOSO apud BARBOSA, 1966, p. 378). A partir das palavras de Caetano Veloso,
Augusto de Campos (2008, p. 144) transforma a “linha evolutiva” em palavra de ordem em
seus artigos, interpretando a mesma sob o signo da antropofagia de Oswald de Andrade e,
musicalmente, como a “abertura experimental em busca de novos sons e novas letras.” E ao
estabelecer uma ponte discursiva entre a defesa da “linha evolutiva” de Caetano Veloso e o
Tropicalismo, Augusto de Campos (2008, p. 145) postula a inutilidade do nacionalismo diante
da “intercomunicabilidade universal”, a partir da qual Caetano acabaria “com a
„discriminação‟ musical entre MPB e jovem guarda.”
A necessidade de negar uma continuidade com o Tropicalismo se apresenta como
uma necessidade de afirmar o rock como um lugar discursivo e, por conseguinte, social.6 A

4
Com uma preocupação evidentemente historicista, Ricardo Cravo Albin incluiu Raul Seixas em sua
historiografia da MPB como o “primeiro artista a misturar sistematicamente o rock com ritmos brasileiros,
principalmente o baião – e isso ainda na Bahia, onde foi o primeiro músico a correr chão tocando guitarra
elétrica”. Cf. ALBIN, 2003, p. 287.
5
SEIXAS, Raul. As aventuras de Raul Seixas na cidade de Thor. In: SEIXAS, Raul. Gita. São Paulo: Philips,
1974. 1 disco sonoro. Lado A, faixa 3.
6
Raul Seixas (1996, p. 14) mesmo o confirma: “Sou tão baiano como Cae e Gil (...), mas não vim com o
Tropicalismo (...) eu sempre estive no rock”. Raul Seixas (1996, p. 186) ainda menciona os tropicalistas em
escritos esparsos, como “Ser Caetano no final? Esse é o auge que eu posso chegar? Não.” E em poemas que ora
tematizam o sucesso do compositor proveniente de Santo Amaro da Purificação: “O guia cita Caetano,
mostrando Santo Amargo” (SEIXAS, 1996, p. 66), ora problematizam as contradições da MPB e do discurso de
unidade nacional, ironizando as formas difundidas nos festivais (Cf. SEIXAS, 1995, p. 14). Vale lembrar que a
9

negação da tradição da MPB pelo rock no Brasil, contrariamente ao Tropicalismo que,


segundo Marcos Napolitano (2001, p. 240), “encerrou uma fase de institucionalização da
MPB, através de uma estratégia paradoxal: negando-a (em seu sentido restrito), contribuiu
para ampliar e consolidar novo estatuto assumido pela sigla, dentro da hierarquia cultural
como um todo”, instaura um lugar para o rock que, se se associa a uma narrativa e a uma
tradição, condiz com a tradição e a narrativa do rock and roll.
O procedimento que relativiza o rock aos ritmos regionais e populares brasileiros se
apresenta como intervenção no debate sobre a MPB, discutido em termos de nacionalidade no
quadro da polarização social no limite da politização cultural sofrida na sociedade brasileira.
Nesse sentido, o sujeito da canção, ao mesmo tempo em que problematiza a naturalidade dos
ritmos brasileiros pela contradição que desnaturaliza conceitos de valor evidentes,
contraditoriamente naturaliza a relação do corpo com o ritmo, seja do rock, seja da MPB.
Assim, enquanto o sujeito da canção em Raul Seixas estabelece uma relação do seu
corpo com o ritmo do baião, ao equiparar a sua massa corporal, correspondente a exatos
quarenta e oito quilos, a uma mesma medida do respectivo ritmo, o sujeito da canção da
banda Perfume Azul do Sol associa recorrentemente o mesmo ritmo a um aspecto da
fisiologia que se apresenta como fundamental para a manutenção da vida do sujeito. O sentido
do verso “o baião é minha respiração” se completa nos versos de outra canção, em que o
baião e o forró constituem o sangue do sujeito da canção, cujos versos “carrego triângulo e
zabumba e levo no sangue o baião”, de “O abraço do baião”, somam-se aos transcritos abaixo:

letra de “Alegria, Alegria”, como observa Zuza Homem de Mello (2003, p. 203), seria inspirada numa
composição feita dois anos antes e com a qual Caetano Veloso satirizava ao alienados de Salvador: “A letra era
inspirada no seu „Clever Boy Samba‟ – feito dois anos antes para um show no boate Anjo Azul e jamais gravado
– e satirizava os alienados de Salvador: „Pela rua Chile eu desço/ sou belo rapaz/ cabelo na testa fecha muito
mais [...] as brigittes vão passando [...] no Farol da Barra/ em falta de Copacabana...‟.”
10

Eu quero abraçar este mundo


Mas quero com um braço só
Pra no outro levar a viola
E no sangue levar o forró7

A afirmação em torno dos ritmos constitutivos da MPB, no entanto, contrasta com


um fundo falso, qual seja, o rock. Assim, a despeito da forma musical que se depreende da
melodia, formada precisamente por uma figura representativa da “entidade” do cancioneiro
popular brasileiro expresso por caracteres musicais convencionalmente nacionais, a referida
afirmação se apresenta como uma contradição. A despeito de um processo de construção, por
vias da naturalização, de uma tipologia musical brasileira representativa de uma entidade
dotada de “fisiopsicologia” apropriada, para a qual concorre o ritmo, como quer o pensamento
marioandradiano, o rock no Brasil produz um discurso que o associa a um sentido
supostamente natural, proveniente da fisiologia e da biologia. Ao se associar ao corpo e
contrariar a naturalidade nacional, o rock transcende a nacionalidade e, por conseguinte, o
preceito nacional da MPB, que afinal se revela como uma construção discursiva.
Enquanto as convenções musicais que informam os paradigmas da MPB adquirem
significados ao se associarem a uma concepção do “tipicamente brasileiro”, o rock, ao
incorporar as respectivas convenções musicais, como no recorrente emprego do paradigma
que se caracteriza pela contrametricidade na quarta semicolcheia do compasso dois por
quatro, problematiza os seus significados, sobretudo os relacionados com o problema da
nacionalidade.

7
PERFUME AZUL DO SOL. O abraço do baião. In: PERFUME AZUL DO SOL. Nascimento. São Paulo:
Chantecler, 1974. 1 disco sonoro. Lado A, faixa 5 (2min 53s).
11

Em uma canção datada de 1971, o problema da nacionalidade aparece associado ao


emprego de uma forma musical que, embora transcrita no compasso quatro por quatro,
representa a mesma figura formada por “colcheia entre duas semicolcheias”, concebida como
signo de brasilidade:

A respectiva forma musical representa o ritmo do cateretê, empregado em “Hoje


ainda é dia de rock”:

Eu tô doidin por uma viola


Mãe e pai de doze cordas e quatro cristais
Pra eu poder tocar lá na cidade
Mãe e pai esse meu blues de Minas Gerais

E o meu cateretê lá do Alabama


Mesmo que eu toque uma vezinha só
12

Eu descobri acho que foi a tempo


Mãe e pai que hoje ainda é dia de rock8

Ao se apropriar de um ritmo considerado nacional a partir de premissas musicais


associadas ao ritmo do rock, a canção opera uma deformação que a letra, por meio de uma
variedade da linguagem empregada no interior do estado de Minas Gerais, explicita nos
versos em que equipara o “meu blues de Minas Gerais” ao “meu cateretê lá do Alabama”,
subvertendo as origens dos ritmos dos seus respectivos estados. Na medida em que os
contrastes constituem temas recorrentes para o sujeito da canção interpelado por polaridades
contrastantes, o sujeito, cuja descoberta de que “hoje ainda é dia de rock” ocorre “olhando o
milho verde” e “ouvindo a mula preta”, aparece (des)situado entre as polaridades
contrastantes.
Outra canção, denominada “Corta Jaca”, cuja letra questiona a unidade do ritmo –
“„tão pensando que isso é rock and roll?” – submete ritmicamente o acento do compasso
quatro por quatro do ritmo do rock and roll ao acento do compasso dois por quatro do ritmo
do xote:

A letra problematiza os contrastes que fundamentam os discursos folcloristas, como


o rural e o urbano, o passado e o presente, conjeturando que “Cortar jaca na cidade não é mole
não”:

8
SÁ, RODRIX E GUARABIRA. Hoje ainda é dia de rock. In: SÁ, RODRIX E GUARABIRA. Passado,
presente, futuro. São Paulo: Odeon, 1971. 1 disco sonoro. Lado A, faixa 6 (2min 19s).
13

Aonde foi parar minha boiada


Meu sertão meu preto velho me oriente por favor
Eu gosto de ver você bonita
Mas no meio da fumaça o meu cigarro já apagou
Falar que tão chegando até na lua... 9

Ao submeter o acento do compasso quatro por quatro do ritmo do rock and roll ao
acento do compasso dois por quatro do ritmo do xote, a canção produz um shuffle com o
acento do ritmo do xote. O shuffle caracteriza o ritmo tercinado do blues e do rhythm and
blues, dos quais se origina o rock and roll, que abandona o modelo tercinado pela
dinamização do ritmo. Ao deformar ambos os ritmos, portanto, “Corta Jaca” apresenta um
shuffle caracterizado por uma sonoridade que se poderia denominar, apenas
contraditoriamente, “tipicamente brasileira” ou “caracteristicamente nacional”, uma vez que
neutraliza a identidade, sobretudo quanto a aspectos de nacionalidade:

O shuffle acima difere, portanto, do shuffle tradicional do rock and roll,


caracterizado pela cometricidade do modelo tercinado que constitui o ritmo do blues e do
rhythm and blues, exatamente como aparece na seguinte canção dos Mutantes:

9 ARNALDO & A PATRULHA DO ESPAÇO. Corta jaca. In: ARNALDO & A PATRULHA DO ESPAÇO.
Elo perdido. São Paulo: Vinil Urbano, 1988. 1 disco sonoro. Lado A, faixa 3 (3min 55s). O termo que denomina
a canção remete a um passo tradicional do samba e se homonimiza com uma canção de Chiquinha Gonzaga que
se populariza com a letra de Machado Careca, a qual afirma que impera quem “sabe cortar a jaca nos requebros
de suprema perfeição”. No entanto, uma letra posterior indica o duplo sentido do termo, revelando o sentido
sexual que se confunde com o ritmo: “Sou a jaca saborosa...”.
14

Muito tempo eu andei contra o vento


Mas agora é hora de mudar
Pois o contrário de nada é nada
E assim não se sai do lugar

Aqui interessa reter dos versos, que neutralizam as polaridades opostas de uma
oposição, o gesto que, talvez aludindo aos versos de Caetano Veloso – “Caminhando contra o
vento...” – e consoante ao ritmo que o sustenta, pretende, ao refutar a “linha evolutiva” da
MPB representada pelo Tropicalismo, fundar um lugar enunciativo ao rock and roll no Brasil,
como confirma o refrão:

E se você quiser saber onde eu fico é só me escutar


Rock’n’roll yeah! Rock’n’roll yeah!
Rock’n’roll yeah! Rock’n’roll yeah!10

10
MUTANTES. O contrário de nada é nada. In: MUTANTES. Tudo foi feito pelo sol. Rio de Janeiro: Som
Livre, 1974. 1 disco sonoro. Lado B, faixa 3.
15

Com efeito, o referido gesto prolifera entre as bandas de rock no Brasil dos anos
1970, a exemplo dos versos de uma canção registrada no primeiro disco da Patrulha do
Espaço depois de Arnaldo Baptista, datado de 1978:

Eu vou pra qualquer lugar


Aonde eu possa tocar
E não quero pensar muito pra onde eu vou
Mas onde estiver eu sou mais rock and roll11

Os versos dos Mutantes, no entanto, compreendem a possibilidade de uma


interpretação particular, qual seja, a de uma mudança do Tropicalismo para o rock and roll,
fundamentada no verbo „mudar‟: “Muito tempo eu andei contra o vento, mas agora é hora de
mudar...”, tal como reaparece nos versos de uma canção do disco seguinte, gravado ao vivo
em 1976:

Viajando para rock and roll city


Sinto muito mas não vou escutar
Estou voando para rock and roll city
Não espere que eu não vou mais voltar
Estou mudando para rock and roll city
E não há nada que me faça parar12

Afinal, se no final dos anos 1960 os Mutantes integram o Tropicalismo, a partir dos
anos 1970, abdicam do movimento de continuidade da tradição da MPB e afirmam uma
identidade propriamente roqueira, como exprime o sujeito da canção, de modo que o
abandono dos ritmos brasileiros, conforme Carlos Calado (1995, p. 300) reduz a banda a
“uma sombra de si mesma”.
No processo de polarização, enfim, que, concomitantemente ao processo de
nacionalização do samba nos anos 1930, considerado ritmo nacional mantenedor da
identidade nacional, dividiu a sociedade brasileira, o Tropicalismo, conforme a natureza da
alegoria,13 sintetiza dialeticamente as polaridades, culturalmente representadas nos anos 1960,
por um lado, pela MPB e, por outro, pelo rock.

11
PATRULHA DO ESPAÇO. Role da estrada. In: PATRULHA DO ESPAÇO. Dossiê volume 1: 1978/1981.
São Paulo: Independente, 1997. 1 disco sonoro.
12
MUTANTES. Rock‟n‟roll city. In: MUTANTES. Ao vivo. Rio de Janeiro: Som Livre, 1977. 1 disco sonoro.
13
Ao diferenciar o símbolo e a alegoria, Walter Benjamin (1984, p. 187) afirma que “a alegoria não está livre de
uma dialética correspondente”, de modo que o estudo da forma do drama barroco alemão revela “a violência
desse movimento dialético”: “O amplo horizonte que Görres e Creuzer atribuem à intenção alegórica, enquanto
história natural, pré-história da significação ou da intenção, é de natureza dialética. A relação entre o símbolo e a
alegoria pode ser compreendida, de forma persuasiva e esquemática, à luz da decisiva categoria do tempo, que
esses pensadores da época romântica tiveram o mérito de introduzir na esfera da semiótica”.
16

Se, como sugere Middleton (1990, p. 18), o rock and roll se caracteriza por uma
contraditoriedade interna e por se inserir entre as polaridades no interior da contradição de
modo a organizar o problema de maneira particular, a MPB, por outro lado, pelo sentido de
nacionalidade que adquire, constitui uma polaridade da contradição. A MPB articula a
oposição de uma cultura nacional a uma cultura estrangeira ao delimitar uma autenticidade
que supostamente se realiza nas manifestações populares e regionais que reafirmariam a
identidade nacional, contribuindo para o estabelecimento de um paradigma firmado na
nacionalidade. E o Tropicalismo, ao sintetizar dialeticamente as oposições, confirma o
referido paradigma preservado pela MPB. Afinal, como afirma Napolitano (2001, p. 343), a
pluralidade e as contradições, “como em todo processo de institucionalização de uma
determinada expressão cultural”, “tendem a se perder”.
A partir do processo de incorporação de caracteres preestabelecidos nos discursos
acerca do que se compreende como nacional, o rock, ao problematizar as polaridades
contrastantes representadas pelo rock e pela MPB, potencializa as polaridades, mas as
equiparando, sem ser indiferente, no entanto, ao que as diferencia. O rock no Brasil dos anos
1970 produz, assim, por meio de um procedimento que se nega a operar logicamente ou
dialeticamente, um discurso sobre a identidade, sob o signo de uma contradição
permanentemente contradita.
Para tanto, o rock apresenta recorrentemente o seu sujeito (des)situado entre as
polaridades contrastantes, o eu e o outro, o urbano e o rural, o presente e o passado, o rock e a
MPB, de modo que o sujeito afirma e nega a identidade a partir de um lugar no qual a
polaridade aparece e desaparece. E ao problematizar a unidade convencionada a partir de uma
identidade nacional e uma cultura brasileira, fundamentada na contraposição com o outro, o
rock representa o aparecimento e o desaparecimento de cada categoria e, por conseguinte, da
possibilidade de unidade de cada categoria.

REFERÊNCIAS

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origem até hoje. 2. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.

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17

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NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na


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SCHWARZ, Roberto. Cultura e política: 1964-1969. In: SCHWARZ, Roberto. O pai de
família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

SEIXAS, Kika (org.). Raul Rock Seixas. São Paulo: Globo, 1995.

SEIXAS, Raul. O baú do Raul. 23ª ed. São Paulo: Globo, 1996.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo

A AMOREIRA: A MORTE NOS CLÁSSICOS INFANTOJUVENIS1

Cristian Rolin de Moura2 (PPGL/UFSC)


Roberta Cantarela3 (PPGL/UFSC)

RESUMO
Nos clássicos infantojuvenis sempre houve em seu cerne a moral como temática. Entre elas, a
moral da morte, encenada em clássicos como A Sombra, Roberto do Diabo e Tereza Bicuda.
No entanto, a morte nunca esteve tão presente, de forma tão cruel como em A Amoreira, conto
alemão dos Irmãos Grimm, datado do século XVIII. A narrativa de tradição oral coletada e
descrita pelos Irmãos Grimm é marcada pela brutalidade do infanticídio e pela ingenuidade do
pai, que se torna canibal sem sabê-lo. O assassinato do menino por sua madrasta e a vingança
do morto são o enredo desse conto e a amoreira que oculta o segredo será o túmulo da
assassina. Assim, nota-se que esta história infantil traz em sua trama elementos sobre a vida e
a morte, que este estudo pretende analisar. Dessa forma, este trabalho é subsidiado pelos
estudos da literatura infantil, a partir dos debates teóricos de Ferraz.
Palavras-chave:
A Amoreira. Conto infantojuvenil. Morte.

ABSTRACT

In classic Children’s and Youth Literature always there were at its core a moral and a
thematic. Among them, the moral of death, performed in such classics as The Shadow, Devil's
Roberto and Teresa Bicuda. However, death has never been so present, so cruelly as in the
The Mulberry Tree, the German Brothers Grimm Tale, dating from the eighteenth
century.The story of oral tradition collected and describedby the Brothers Grimm is marked
by the brutality of infanticide and the ingenuity of his father, who becomes a cannibal without
knowing it. The murder of the boy by his stepmother and vengeance of the dead are the plot
of this tale and the mulberry tree that hides the secret will be the grave of the murderer. Só, it
is noted that this children's story brings plot on the life and death, this study intends to
investigate. Thus, this work is subsidized by the studies of children's literature, from the
theoretical arguments of Ferraz.

Keywords:
The Mulberry. Children's and Youth Tale. Death.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Até hoje se discute qual é o papel da Literatura, o que podemos dizer é que o
conceito de literatura não está fechado, ainda mais se tratando de Literatura Infantojuvenil.
Mas de início, pontuamos a negação da ideia de que a Literatura Infantojuvenil seja uma

2
Discente do Programa de Pós-Graduação em Literatura – Nível Mestrado, da Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC); email: christhiam_moura@hotmail.com.
3
Discente do Programa de Pós-Graduação em Literatura – Nível Doutorado, da Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC); email: robertaphoenix@yahoo.com.br.
2

espécie de subliteratura ou um gênero inferior. Nosso ponto de vista é corroborado por Salma
Ferraz (2007), que afirma parecer estranho falar em Literatura Infantil, Literatura Feminina,
Literatura Negra, Literatura Homossexual, pois tudo é literatura e sendo literatura estas
divisões são meramente metodológicas. Ainda segundo Ferraz (2007), ou o texto é literatura
que prende a atenção do leitor em geral, independente de faixa etária, orientação sexual,
etnias, ou não é literatura.
Na literatura dita infantojuvenil há os contos maravilhosos dos Irmãos Grimm. Entre
esses contos há obras como A amoreira, que se estabelece num entre-lugar, pois não é
estudada em sala de aula por causa do seu teor violento, no entanto, essa se localiza entre os
contos infantojuvenis, o que causa inquietação, e nos estimula a questionar: qual a esfera
moral em que esse conto citado pode ser trabalhado? Ou se poderia ser visto em outro
patamar de análise, como um conto que se remete a crianças do século XVIII, mas que
atualmente o seu papel moralizante perde seu teor, pois nele há elementos que fogem do
universo infantil que se propõem atualmente?
E assim, partindo da posição teórica de Ferraz (2007), optamos por contemplar o
conto maravilhoso A amoreira, dos Irmãos Grimm, não como um conto infantil, como era
proposto no seu momento histórico de criação, ou como pode ser visto por outros teóricos,
mas sim, apenas como literatura, aquela que interessa ao leitor.

2 IRMÃOS GRIMM
Os escritores Wilhelm Grimm (1786-1859) Jacob Grimm (1785-1863) foram os
responsáveis por coletar e adaptar as mais diversas histórias para o universo infantil, tiradas
da literatura de tradição oral. Tais histórias fizeram parte do folclore da cultura alemã. A
priori, estes contos e lendas eram destinados aos adultos por sua alta carga de eroticidade e
violência, vale lembrar, que a ideia de infância não tinha a mesma dimensão que tem hoje.
Com a compilação dos Irmãos Grimm, os contos ganharam traduções para o mundo infantil.
Uma divisão aceita para estes contos são: Contos de encantamento, Contos
maravilhosos, Fábulas, Lendas, Contos de enigma ou mistério e Contos jocosos. (FERRAZ,
2007, p. 223). O que nos interessa para a análise deste trabalho é o conto maravilhoso, sendo
que o maravilhoso se expressa em sua categoria através da intervenção do sobrenatural, do
inexplicável, sem causar estranhamento.
3

3 A AMOREIRA, O CONTO MARAVILHOSO


O conto selecionado para esta pesquisa, A amoreira, dos Irmãos Grimm, foi
escolhido devido à pujança de elementos, como a morte, a violência, a vingança, a estrutura
familiar, o canibalismo, e a ingenuidade do pai; estas características criam uma rede de
sentidos que são naturalizadas pelo maravilhoso.
O maravilhoso, para Todorov (1975, p. 174), é um gênero que aparece internalizado
como natural, o “que implica que estejamos mergulhados num mundo de leis totalmente
diferentes das que existem no nosso; por este fato, os acontecimentos sobrenaturais que se
produzem não são absolutamente inquietantes”. (TODOROV, 1975, p. 179 e 180). A
concepção de Todorov (1975) pode ser aplicada para uma das divisões dos contos dos Irmãos
Grimm, os contos maravilhosos.
Já segundo Diatkine (2007), os contos maravilhosos são

[...] histórias familiares, feitas para que possa ser expressa a ambivalência
habitualmente oculta. Quer o aspecto ameaçador e detestado da mãe seja exposto,
muitas vezes fazendo ela morrer no parto (o que, de resto, era norma no século
passado) e substituindo-a por uma madrasta muito má ou bruxa – à qual se opõe um
personagem benéfico protetor, fada boa, madrinha, tia, ou um dispositivo mais
simbólico como as três crianças que são a contrapartida benéfica das três damas da
noite –, quer o pai mande o filho correr o mundo para mostrar seu valor, pondo em
risco a sua vida, ou é substituído em seu papel fecundante por uma árvore
maravilhosa que ressuscita o herói (conto “A amoreira”), tudo isso remete
claramente às fantasias inconscientes dos pequenos leitores, às angústias pré-genitais
e às diversas formas do complexo de Édipo. (DIATKINE, 1997, p. 02).

Conforme este psicanalista, os contos maravilhosos promulgam ansiedade e aflições


do leitor. Seguindo esta análise, o corpus deste trabalho é um espelhamento dos conflitos do
inconsciente.
Já para Mata; Mata (2006, p.19), “A ação heroica exige sacrifício, maturidade,
superação da dor e do sofrimento, persistência, coerência. O conto maravilhoso, em última
instância, sempre narra um renascimento”. O exemplo disso, na trama, é o filho assassinado
que engana a morte renasce ao final, surgindo da terra no meio do fogo e da fumaça.
Os autores continuam “Ser “feliz para sempre” significa vencer a morte. E se morte
já é coisa séria o suficiente, vencê-la é questão de competência mágica, determinada pela
proximidade com o sagrado” (MATA; MATA, 2006, p. 19). Desse modo, o enredo d’A
amoreira estabelece o maravilhoso quando a criança falecida se torna pássaro que canta a
morte. Enfim, o “conto maravilhoso, é o luminoso que torna possível negar a visão trágica da
vida.” (MATA; MATA, 2006, p. 19).
4

3.1 O enredo
As personagens principais da história são o filho, a irmã, Marleninha – a única
nominada, a madrasta e o pai. Já as personagens secundárias são a mãe – falecida na abertura
do conto só tendo a função de geradora, o ourives, que presenteia o ressuscitado pássaro-
menino com a corrente de ouro, o sapateiro e família, que lhe entregam um par de sapatos e os
trabalhadores do moinho, que o presenteiam com a mó, a finalizadora da vingança.
A trama do conto inicia-se de forma previsível, bem como, a maioria dos contos do
gênero. Havia um homem muito rico casado com uma mulher belíssima. Porém, ainda não
tinham filhos por mais que desejassem. Certo dia, a mulher descascava uma maçã em baixo
da árvore de amoreira, que ficava em frente à casa. Ao se distrair, acabou cortando o dedo e o
sangue escorreu pela neve. Ao olhar o sangue sobre a neve desejou um filho tão alvo como a
neve e tão rubro como o sangue. Como é observado por Diatkine, a [...] mesma gota de
sangue na neve e a árvore maravilhosa parece fecundar a mãe. A continuação do conto é uma
narrativa dupla, uma de pura alegria por parte da amoreira, a outra, a triste história resumida
no famoso lamento [o canto do pássaro]. (DIATKINE, 1997, p. 09)
O começo deste conto assemelha-se muito com A Branca de Neve e os Sete Anões,
com a diferença que em A amoreira o desejo da mãe é pelo filho do sexo masculino.
Grávida a mãe passa mal ao comer as frutas da amoreira e falece no parto, mas feliz.
O seu último pedido foi ser enterrada embaixo da árvore. A sua morte está ligada diretamente
à amoreira assim como o nascimento de seu filho, o que coloca a árvore como centro pulsante
da história.
O viúvo casa-se com outra mulher, com quem tem uma filha, Marleninha – nome
derivado de Madalena, nome bíblico hebraico, que pode significar amável. O pai assume um
papel de submisso, manipulado pelas artimanhas da madrasta, um ingênuo que não toma
posicionamento.
5

Figura 1 - A amoreira – Vincent Van Gogh

Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:The_Mulberry_Tree_by_Vincent_van_Gogh.jpg

Segundo Diatkine, e seu estudo sobre A amoreira, afirma:

O personagem paterno está no centro da ação, mas sobre ele é mantido silêncio.
Cada leitor pode imaginar o que quiser, ou não representar nada sobre esse
personagem central se suas disposições internas o levarem a deixar qualquer
imagem paterna no campo pré-consciente. (DIATKINE, 1997, p. 04)

Esse silêncio confirma a falta de expressão da figura do pai dentro do conto, e


mesmo, em outros contos como em João e Maria, em que a madrasta convence o marido a
enviar os enteados à floresta.
Em A amoreira, a madrasta não sentia amor pelo enteado, obcecada pela ideia que a
filha ficasse com toda herança, ela deseja a morte do menino. Quando há a oportunidade ela
utiliza.

Quando o menino entrou ela lhe disse, com fingida doçura: “Meu filho, queres uma
maçã?” e lançou-lhe um olhar ar revezado. “Oh, mamãe” disse o menino “que cara
assustadora tens! Sim, dá-me a maçã.” “Vem comigo” disse ela animando-o, e
levantou a tampa “tira tu mesmo a maçã.” Quando o menino se debruçou para pegar
6

a maçã, o demônio tentou-a e paff! ela deixou cair a tampa cortando-lhe a cabeça,
que rolou sobre as maçãs. (GRIMM, 2011, s/p)

Ao longo da história, várias vezes as mulheres foram retratadas como as responsáveis


pelos infortúnios da humanidade. Eva e Pandora são exemplos disso. Aqui cabe ressaltar que
o objeto deste estudo tem aspectos presentes na atualidade, comprovado com a presença da
temática da mulher-vilã em nossas narrativas contemporâneas. Caso das telenovelas, que
ainda hoje seguem a mesma receita dos contos dos Irmãos Grimm escritos há mais de três
séculos. Na maioria das vezes é sempre uma mulher que assume o papel de antagonista, o
homem pode até compactuar ou ajudá-la, mas é a mulher que trama e faz acontecer as
barbáries.
O texto literário grimminiano nos informa que o Demônio despertava os piores
pensamentos na madrasta, tanto que a tenta segundos antes do assassinato. Porém, segundo
Cousté (1996, p. 72), autor de A Biografia do Diabo, o Diabo tem suas limitações, não pode
obrigar ninguém a fazer aquilo a que, por natureza ou circunstância, já não esteja de algum
modo disposto. Sendo assim, o Diabo não pode ser acusado de ser o instigador do assassinato,
já que, estava no ímpeto da madrasta matar o infante.
Ao querer dar fim ao corpo, a madrasta o cozinha em molho cambeche e o serve no
jantar para o pai, que o devora “Oh mulher, como está gostosa esta comida! Dá-me mais um
pouco.” Mais comia mais queria comer, e dizia: “Dá-me mais, não sobrará nada para vocês;
parece que é só para mim.” (GRIMM, 2011, s/p). E jogando os ossinhos debaixo da mesa
praticava o canibalismo devorando o próprio filho.

Marleninha, por que choras?” perguntou ele. “Teu irmão voltará logo. Oh mulher,
como está gostosa esta comida! Dá-me mais um pouco.” Mais comia mais queria
comer, e dizia: “Dá-me mais, não sobrará nada para vocês; parece que é só para
mim.” E comia, comia, jogando os ossinhos debaixo da mesa. Marleninha foi buscar
seu lenço de seda mais bonito, na última gaveta da cômoda, recolheu todos os ossos
e ossinhos que estavam debaixo da mesa, amarrou-os bem no lenço e levou-os para
fora, chorando lágrimas de sangue.” (GRIMM, 2011, s/p)

Marleninha, a meia irmã, ao seguir as ordens da mãe, esbofeteando o irmão já morto


sem o saber, acaba assumindo a culpa. No entanto, é a personagem mais amável do conto,
atua como contraponto do temperamento da mãe. É ela quem leva os ossos do menino até a
amoreira, possibilitando sua ressurreição.
Da ação de Marleninha,

A amoreira começou então a se mover, os ramos se apartavam e se reuniam de novo,


como quando alguém bate palmas de alegria. Da árvore se desprendeu uma nuvem e
7

dentro da nuvem parecia ter um fogo ardendo; do fogo saiu voando um lindo
passarinho, que cantava maravilhosamente e alçou vôo rumo ao espaço; quando
desapareceu a amoreira voltou ao estado de antes e o lenço com os ossos havia
desaparecido. (GRIMM, 2011, s/p)

O maravilhoso transparece na figura do pássaro. A situação não é inquietante, pois, é


o maravilhoso se promulgando. Assim, a morte dá espaço à vida e da árvore saiu um
belíssimo pássaro que entoava uma música linda:

Minha mãe me matou,


meu pai me comeu,
minha irmã Marleninha
meus ossos juntou,
num lenço de seda os amarrou,
debaixo da amoreira os ocultou,
piu, piu, que lindo pássaro sou! (GRIMM, 2011, s/p)

Um detalhe importante a ser pontuado é que ao longo da história a madrasta é


chamada pelo menino de mãe, e o menino, de filho por ela, já que era este o dever da
madrasta, tornar-se mãe, o que não se concretiza no conto.
Em relação à música, o pássaro solfejava a canção aos personagens secundários já
citados anteriormente. Destas personagens, ele conseguiu os presentes necessários para seu
retorno ao seio familiar e executar sua vingança.

3.2 Sobre a morte e o mal


A morte quase sempre esteve presente e associada ao mal na literatura universal, os
grandes escritores valeram-se destes elementos tão fortes e indecifráveis para enriquecer suas
obras. Nas palavras de Ferraz:
O mal sempre esteve presente na literatura para crianças. Destacamos aqui o
Lobo destruindo a casinha dos três porquinhos, as terríveis madrastas da
Branca de Neve, da Gata Borralheira e de Joãozinho e Maria, o arguto Lobo
Mau e a ingênua Chapeuzinho Vermelho, e a Fada Má da Cinderela. Numa
das versões da Branca de Neve, sua madrasta, como castigo, é obrigada a
dançar com sapatos de ferro aquecidos. Existirá no mundo universo mais
diabólico do que o universo das chamadas estórias pra crianças? (FERRAZ,
2007, p. 222-223)

Ferraz, (2007, p.223) responde esta questão propondo outro questionamento. A


autora coloca em cheque se terá existido universo mais maléfico que o das chamadas histórias
para criança. Tal questionamento é muito pertinente para esta análise, pois fato é que o mal e
a morte são presentes na literatura que é criada para o mundo infantil. Exemplos disso são
8

Roberto do Diabo, de Ricardo Azevedo, Tereza Bicuda, de Ciça Fittipaldi, O Arquediabo


Belfegor, de Niccoló Machiavelli; e O Diabo no Campanário, de Edgar Allan Poe. Há
também o terrível Capitão Gancho em Peter Pan, a rainha de copas em Alice no país das
maravilhas e as diabólicas madrastas em A gata borralheira e A Branca de Neve, que em uma
versão escrita por Giambattista Basile, quem manda matar a menina é a própria mãe, e como
castigo, a morte vem ao seu encontro, pois é obrigada a calçar sapatos de ferro em brasa e
dançar até a morte. Diante disso, podemos concluir que o universo literário sempre esteve
familiarizado com o “mal” e com a “morte”.
A amoreira não é exceção, ela transita tanto pelo mal quanto pela morte. Em sua
trama, a morte é deflagrada três vezes, o falecimento da mãe, o infanticídio e a morte da
madrasta.
O mal acompanha a morte, a madrasta ao decaptar a criança e cozinhá-la encena a
maior maldade do conto. Contudo, quando chega a sua morte, a vingança nao é vista como
malígna. O que cria uma contradição, já que a vingança carrega elementos maléficos, ou seria
a vingança algo benéfico, a justiça?
A questão moral que incita o conto pode ser ambígua e ampla, pois ela permeia entre
uma orbe que perpassa várias cógnitas religiosas, pedagógicas e históricas. Entretanto, o conto
em sua estrutura narrativa não se debruça a questionar em nenhuma ótica algum juízo de
valor.
Apesar de não ser trabalhada a profundidade psicológica das personagens, que são
planas, a morte não causa grande choque. A meia irmã chora, mas logo em seguida se resígna,
a madrasta não sente remorso, apenas teme o canto do pássaro e o pai é ausente de qualquer
sentimento em relação a morte do filho por não o saber.
O grande impacto que a morte causa no final do conto é a morte da madrasta. O
pássaro após ganhar a mó, joga-a sobre a mulher assassina. O que chama atenção é a
indiferença dos membros da família perante ao esmigalhamento da “rainha do lar”. Após a
sua morte, o menino ressurge, e todos felizes, se reúnem à mesa para ceiar. Resta uma
pergunta, eles comerão o molho cambeche feito pela madrasta?
A morte causa nuances contraditórios, ela é dúbia. Em um momento, ela é elemento
de tristeza e objeto de vingança, no caso do infanto, e em outro, no caso da morte da
madrasta, ela é elemento de felicidade.
Deste modo, percebemos que o conto A amoreira sobressai entre os outros contos
dos Irmãos Grimm, pela sua carga violenta que é representada pelos dois assassinatos.
9

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Literatura está num espaço de discussão, ela está sempre em reformulação,
ganhando novas concepções, desse modo, ela não está fechada, muito pelo contrário, está
suscetível a receber contribuições e interpretações de seus teóricos.
Quando o assunto é Literatura Infantojuvenil, e os inúmeros rótulos, que a ela são
atribuídos, é importante pontuar que se trata de Literatura, e sendo Literatura, é o que nos
interessa, independente de que quem sejam seus leitores ou possíveis divisões metodológicas.
A amoreira, conto maravilhoso dos Irmãos Grimm, causa uma certa inquietação,
justamente por apresentar um texto nada “infantil”, embora esteja assim “rotulado”. A
quantidade de mortes e o teor violento que o enredo apresenta expõem um mundo em que a
doçura e ingenuidade não são muito perceptíveis.
Sendo assim, os elementos como a violência, o canibalismo, o assassinato, a
vingança e principalmente a morte, que estão no cerne da trama, são vistos como temas
densos para o universo infantojuvenil; contudo, em A amoreira, esses motes são construídos
de forma peculiar por se consistirem em um conto maravilhoso em que o fantástico não causa
espanto, o que nos pode causar assombro ao final é a naturalização da morte, que é tratada
sem assombro pelos personagens.

5 REFERÊNCIAS

BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1980.

COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: teoria – análise – didática. São Paulo: Ática,
1997.

DIATKINE, René. As linguagens da criança e a psicanálise. Ide (São Paulo) [online]. 2007,
vol.30, n.45, pp. 35-44. ISSN 0101-3106.

FERRAZ, Salma. O Diabo na literatura para crianças. Linguagens: Revista de Letras,


Artes e Comunicação, Blumenau, v. 1, n. 3, p.220-238, 2007. Disponível em:
<http://proxy.furb.br/ojs/index.php/linguagens/issue/view/127/showToc>. Acesso em: 10
outubro 2011.

GRIMM, Irmãos. A amoreira. Disponível em


<http://pensamentosemformadepoesia.blogspot.com/2011/06/amoreira-conto-dos-irmaos-
grimm.html>. Acesso em 10 de out. de 2011.

LAJOLO, M. Literatura: leitores e leitura. São Paulo: Moderna, 2001.


10

MATA, Sergio; MATA, Giulle Vieira da . Os irmãos grimm entre romantismo, historicismo e
folclorística. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais. Abril/ Maio/ Junho de 2006
Vol. 3 Ano III nº 2 ISSN: 1807-6971 .Disponível em: <http://www.revistafenix.pro.br>.

NASCIMENTO et al. Morte e Criança. Rev. Min. Enf., 3(1/2):68-74, jan./dez., 1999.

TODODOV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. Trad. CASTELLO, Maria Clara


Correa. São Paulo: Perspectiva S. A., 1975. (Coleção Debates).
SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo

A HERANÇA MÍTICA DO INTÉRPRETE DE SAMBAS-ENREDO

Luciano Carvalho do Nascimento (PPGL/UFSC)1

RESUMO

O trabalho propõe uma reflexão acerca de uma possível herança mítica da atividade do
intérprete de sambas-enredo. Para tal, articulará leituras do diálogo platônico “Íon” e da peça
homônima de Eurípedes, em cotejo com as considerações de Michel Foucault sobre tais textos
e as de Paul Zumthor sobre performance. O objetivo é apontar pontos de confluência entre o
trabalho vocal do intérprete, sua performance, e aspectos discursivos dos dois textos clássicos
gregos, a fim de advogar a genealogia mítica desses cantores modernos.

Palavras-chave:
Samba-enredo. Intérprete. Íon. Performance.

ABSTRACT

This paper proposes an analysis towards a possibly mythic inheritance of the sambas-enredo
singer´s activity. It articulates interpretations of the platonic dialogue “Ion” and the
homonymous drama by Euripides. Those studies are compared to Michel Foucault
considerations upon such texts, and Paul Zumthor´s conceptions on performance. The main
goal is to highlight the confluences between the vocal work of the performer, his performance
itself, and discursive aspects of the two classic Greek texts in order to defend the mythical
genealogy of those modern singers.

Keywords:
Samba-enredo. Performer. Íon. Performance.

1 PRIMEIRAS PALAVRAS
O trabalho aqui apresentado é uma proposta de reconstrução genealógica. Pretende-
se apontar uma linha evolutiva que ligará, de maneira simbólica, a figura do intérprete de
sambas-enredo das escolas de samba do Rio de Janeiro às personagens clássicas Íon de Éfeso,
Íon de Delfos e Orpheu, todas da tradição mítica-literária greco-romana.
O estudo contará, ainda, principalmente, com as observações de Paul Zumthor (1993;
1997) sobre o conceito de performance, e com as considerações de Michel Foucault (2010)
sobre os dois textos clássicos (de Platão e de Eurípedes) que falam, respectivamente, do
rapsodo de Éfeso e do suposto patriarca dos iônios.
Vale salientar, ainda, que a noção de voz que norteia todo este trabalho é aquela
apresentada por Souza (2009, p. 15): a “dimensão subjacente ao discurso, contraparte
temporal e material da enunciação (…) no instante em que, embora soante, ela [a voz] não se
articula a qualquer cadeia significante, a não ser na linha da pura virtualidade”.

1
Mestre em Letras Vernáculas – Língua Portuguesa (UFRJ); e-mail: lucprof@globo.com.
2

Passemos, então, à defesa de nossa proposta.

2 DESFIANDO O NOVELO DA HISTÓRIA


O intérprete do samba-enredo é um rapsodo, um descendente de Íon de Éfeso, o
exímio declamador dos versos de Homero. É Platão quem nos apresenta o diálogo do cantor
com Sócrates2. No texto clássico, Íon aparece confuso por não compreender o motivo de sua
mestria só se evidenciar quando a matéria de sua arte eram as palavras do poeta da Ilíada e da
Odisseia. Sócrates procura mostrar a ele que, em essência, o que o movia não era a técnica,
mas a paixão.
Entretanto, diferentemente do seu ancestral grego, cabe ao puxador de samba algo
mais que declamar/cantar versos com paixão e entrega. Ele deve influenciar, afetar – na
plenitude do sentido filosófico do termo – uma multidão de foliões, e levá-los a se sentirem
mais do que apenas convidados a cantar com ele. Eles precisam ser impelidos a acompanhá-lo
com fibra, e afinados. Não adianta que o cantor seja apenas bom; ele tem que catalisar o
esforço de cada integrante da escola em torno da letra do samba-enredo que ela defende.
Todos devem ser atores de uma mesma performance.
Pode-se antever que essa não é uma missão fácil. Mas também não é impossível. Em
certa medida, ela é simplificada por alguns aspectos subliminares que determinam seu
sucesso, além de fermentarem o caldo artístico-cultural de que o espetáculo das escolas é
resultado. Um desses aspectos é o fato de a cena do desfile das escolas evocar o legado de
uma forte tradição oral.
Foge ao escopo deste trabalho fazer uma revisão mais pormenorizada das origens do
samba e das escolas, mas sua gênese urbana e popular não é nenhum segredo. Reunidos em
fundos de quintal, becos e botecos, aqueles que entrariam para a História como os primeiros
sambistas não tinham por prática se valer da escrita, em primeira mão, para compor seus
sambas. Essas composições surgiam na maioria das vezes de improviso, em meio a conversas,
almoços, cultos religiosos de matriz africana etc, em ambientes, enfim, onde a oralidade
prevalecia3. Só depois eram registrados no papel.
Esse caráter predominantemente oral se fez presente também na dinâmica dos
primeiros desfiles carnavalescos, ao ponto mesmo de os sambas cantados nos desfiles terem
apenas uma parte fixa, pré-estabelecida. Era uma espécie de refrão, entoado em coro pelas

2
Texto disponível em <http://www.consciencia.org/platao_ion.shtml>, acesso em 12/09/11.
3
Para maiores informações sobre a gênese do samba e das escolas de samba, ver Mussa & Simas (2010);
Aquino & Dias (2010); Brasil (2007); Araújo (2003).
3

“pastoras”, as mulheres da escola. A outra parte da música era composta sempre de


improviso, cantada em solo por dois cantores, cada um a seu turno. Esses elementos ficavam
colocados um à frente e outro atrás da agremiação (na época, umas 40 ou 50 pessoas), e
tinham que ter voz potente, pois não havia sistema de amplificação (cf. ARAÚJO, 2003).
São esses cantores os ancestrais dos atuais puxadores de samba. Agora, não são mais
improvisadores; o samba de enredo é composto, na íntegra, meses antes do carnaval. A rigor,
depois que o GRES Estação Primeira de Mangueira amplificou a voz de um de seus cantores
(José Bispo Clementino dos Santos, o Jamelão, em 1952), a apresentação vocal do samba das
escolas evoluiu para o formato atual, em que há um intérprete oficial, auxiliado por de 4 a 6
outros cantores (cf. ARAÚJO, 2003), e a participação contínua de todos os componentes
desfilantes passou a ser um ideal a se alcançar.
Walter Ong (1998) aponta algumas características das culturas orais que também se
podem ver nos desfiles das escolas. Nessas culturas é bastante frequente a recorrência a
fórmulas prontas, lugares-comuns e clichês. Tais padrões – formais e temáticos – que Ong
chama de “memoráveis”, possibilitam a retenção e a difusão de pensamentos mais
complexos. Também é uma constante nesses ambientes socioculturais o recurso ao ritmo e à
repetição na expressão das ideias.
Ora, como já se falou aqui, na origem os sambas de enredo tinham refrão e uma parte
improvisada; atualmente, não há improviso, mas, além de agora a maioria das composições
contarem com dois refrões, elas todas são cantadas continuamente por mais de uma hora
durante o desfile. E falam dos temas mais diversos, da vida de personagens históricos a
biomedicina, passando por guerras, revoluções, artes etc. Está aí uma prova de que a
repetição aludida por Ong é um componente essencial na tessitura do samba-enredo, pois é
uma constante em todas as fases da evolução da manifestação cultural de que essa obra é
produto.
A repetição é componente essencial, marca indiscutível de oralidade, mas não a
única. No samba há, também, é óbvio, o ritmo, elemento intrínseco a qualquer gênero
musical. Está aí, ainda, mais um fator que aproxima o intérprete de samba-enredo do Íon de
Platão: nos primórdios, ele cantava o refrão em coro com a comunidade e depois compunha
instantaneamente a outra parte da música em solo, sempre a partir da mesma pulsação rítmica
percussional. Hoje em dia ele canta à exaustão a mesma letra de samba, mas as variações
rítmicas (as “paradinhas” da bateria, por exemplo) que o acompanham são cada vez mais
frequentes. Isso aumenta a importância de uma interpretação viva, firme e segura, executada
por uma “voz guia”, que todos devem ser levados a acompanhar, como encantados.
4

Falando em “encanto”, na tradição mítica grega há um personagem cuja música


(tanto a vocal quanto a instrumental, com sua lira) tem poder “encantatório”: Orpheu. O
semideus, filho de Apolo e Calíope, fazia as águas dos rios pararem, amolecia os rochedos, e
acalmava as feras com o som das melodias divinais que criava (cf. BRUNEL, 1997 4). Foi o
dom que herdou de seu pai, o deus da luz, da música e da poesia.
Também o “Íon”, do drama de Eurípedes, era filho de Apolo com uma mortal –
Creusa, de Atenas. Segundo Foucault (2010, p 73), essa narrativa está na base da tentativa
política de legitimação da ascendência etnográfica dos atenienses sobre os iônios (ou jônios).
É, ainda segundo o pensador francês, uma drama em cujo centro está a questão da busca da
verdade, do estabelecimento da paresía, o direito à palavra, a ser franco (id). Era isso que Íon
buscava quando, convidado a ir para Atenas, quis ainda mais descobrir suas origens – ele,
que, julgando-se enjeitado, não sabia quem eram seus pais.
Entretanto, um aspecto que Foucault ressalta no drama é especialmente importante
para o trabalho aqui desenvolvido: o fato de Apolo, por ter seduzido a mortal e não ter
assumido a paternidade de seu filho, estar proibido de se pronunciar sobre aquela relação
espúria. É por Hermes, o mensageiro dos deuses, que se toma conhecimento dos
acontecimentos e da intervenção do deus Sol. Mesmo no oráculo, Apolo não fala diretamente
sobre o assunto a Xuto – o marido de Creusa – apenas orquestra o encontro que promoverá o
retorno de Íon à casa de sua mãe.
Esse aspecto interessa particularmente a este estudo porque é um indício da
impossibilidade de um deus tomar a palavra (logo, projetar sua voz) no momento inadequado.
Sua autoridade não pode ser ameaçada pela mentira. Ele não pode ser flagrado em erro, não
deve assumir sua fraqueza. Afinal, é um deus. O mesmo se dá em relação aos seus filhos,
Orpheu e Íon. Suas vozes também têm momento e local certos para se mostrarem.
O primeiro, semideus virtuoso, na versão mais difundida do mito, é morto por
bacantes enciumadas pelo fato de Orpheu, após a morte de sua amada Eurídice, desejar
devotar apenas a ela os sons de sua lira e de seu canto. Era inconcebível que música tão bela
louvasse apenas o amor àquela mortal. O segundo, tendo tomado consciência de sua
ascendência ateniense, assumindo sua paresía, foi quem tomou a palavra da justiça e da lei,
executando a primeira reforma da constituição ateniense.
Fica claro, assim, que aos filhos de Apolo é dado como herança o dom da voz que
encanta. Seja pela arte, seja pela lei, a voz desses semideuses tem o poder de agregar, de

4
Segundo o mesmo autor, em algumas versões do mito Orpheu aparece ligado também a Dionísio, de cujas
proezas seria cantor. Entretanto, aventurar-se por mais essa senda não é tarefa para tão poucas páginas.
5

aglutinar em torno de si aqueles a quem alcança.


Ora, já possível, então, começar a reconhecer como a figura do intérprete de sambas-
enredo é, em grande medida, uma projeção das imagens míticas dos dois “Íon”, e, por
consequência, do legado de Apolo, o deus a que eles próprios estão relacionados.
Concordando com Platão, aceita-se que o mistério da excelência da declamação de
Íon – de Éfeso – não está na técnica, mas na paixão e na entrega. Homero, o autor dos versos
prediletos do rapsodo, é “a forma audível do inaudível, é a voz sonora da Musa muda”
(CAVARERO, 2011, p. 118), é o tradutor que possibilita aos homens, limitados por sua
memória falha, tomar ciência dos fatos ocorridos em Troia. Eles não poderiam suportar o
“relato absoluto” de todos os eventos, tal como a deusa pode fazê-lo; só ao poeta é dada a
capacidade de sintetizar o que a visão e a audição privilegiadas da filha de Mnemósine lhe
transferem a fim de instruir os homens.
Assim, pode-se dizer que Íon é “um intérprete do intérprete”. É, por via indireta,
outro porta-voz da Musa, e, como tal, também está imbuído de divindade. Platão chega
mesmo a falar em uma “possessão” do rapsodo, numa espécie de transe em meio ao qual se
daria sua atuação. Emprestando sua voz ao poeta, o rapsodo põe-na, por extensão, a serviço
de toda a tradição oral popular grega, das muitas versões que, amalgamadas, dão forma à
grande narrativa que passará para a História como “a” história de Troia e de seus
personagens.
É o papel de cantor de narrativas orais, da tradição popular que liga o intérprete de
sambas-enredo tanto ao rapsodo de Éfeso quanto aos dois filhos humanos de Apolo, Íon e
Orpheu. O puxador dá voz a versos que contam contos, fábulas, causos. Mas faz isso de
maneira muito peculiar, a partir de matéria muito especial.
Como o nome diz, o “samba-enredo” é mais que um simples samba: é um enredo.
Um texto que, embora não seja obrigatoriamente narrativo, traz em seu DNA as
micronarrativas ocultas que ensejaram suas composição, seleção e veiculação na passarela, in
loco. O puxador dá vida plena e instantânea àquela obra, e ela, por sua vez, dá materialidade
sonora a uma parte significativa do resultado do trabalho de alguns milhares de pessoas. Ela é
a expressão verbal das esperanças de sucesso de milhares de foliões que desfilam
acompanhando a voz guia, na – suposta – interpretação “padrão” daquela composição
musical.
Esse samba é uma espécie de trilha sonora especialmente composta para apresentar o
enredo defendido pela agremiação. Ele surge nas quadras das escolas, após longas e acirradas
disputas; torna-se o hino a ser entoado por elas no sambódromo, e, muito comumente, define
6

o registro mnemônico do ano carnavalesco, unidade do “tempo ritual” que a festa de Momo
engendra (CAVALCANTI, 2006). Em última instância, ele é a materialização lítero-musical
(cf. OLIVEIRA, 2002) da história recente do grupo social que a agremiação carnavalesca
representa: a comunidade.
O intérprete é o porta-voz dessa história, dessa gente. Daí advém muito do respeito a
ele devotado. Por isso é tão comum o envolvimento afetivo da comunidade com o samba e
seu intérprete: os dois a representam, são seu discurso e sua voz. Também por isso não é
acaso que o léxico evoque a metáfora da guerra. Ela permeia toda a história da competição
entre as agremiações, incluindo-se as divergências político-ideológicas que sempre servem de
moldura para qualquer fenômeno social.
A noção de “disputa” é conceptualizada5 no dia a dia, como “luta”, ou “guerra”, e
não apenas no que diz respeito ao samba. São comuns expressões como “guerra contra a
balança” para se falar em dietas; jogos em geral viram “batalhas” – como a dos Aflitos, tão
viva no imaginário futebolístico gaúcho –; e, sempre que alguém é acometido por doença
grave, diz-se que a pessoa está “lutando pela vida”. Até na bíblia a expressão surge, pois,
segundo São Paulo (2Tim: 4,7), é preciso “combater o bom combate”.
Assim, num ambiente de competição declarada como sempre foi o caso da
apresentação das escolas de samba, é natural que a metáfora da guerra surja com frequência
nas falas das pessoas e nas expressões cristalizadas daquele campo discursivo.
E, se existe uma “guerra”, existem soldados anônimos, e também grandes
comandantes, grandes heróis. É deles o dever de incitar os homens à batalha e de manter-lhes
o ânimo. A eles cumpre a tarefa de dar a ordem final de ataque. É desses grandes líderes que
emana o “grito de guerra” que desperta a fúria combativa de seus exércitos. O puxador de
samba é um desses grandes líderes.
Assim, hoje, além do imortal “Olha a Beija-flor aí, gente! Chora cavaco!” de
Neguinho da Beija-Flor de Nilópolis, já são famosos o “Alô, Povão, agora é sério! Segura!”,
de Nego; o “Olha a Imperatriz6 chegando!”, de Dominguinhos do Estácio; e, muito
especialmente, o “Arrepia, Salgueiro!”, de Quinho. Mesmo o “Minha Mangueira!”, do já
finado Jamelão – grito que teve vida curta, pois surgiu em 2002 e o último ano de atuação do
intérprete foi 2006 –, foi mantido nas gravações oficiais do samba-enredo da Estação
Primeira de Mangueira nos anos subsequentes à morte daquele que foi chamado de “a voz do

5
A noção de metáfora como processo cognitivo basal é um dos sustentáculos da Linguística Cognitiva.
Especificamente sobre o tema, é possível ler “Metáforas da vida cotidiana” de George Lakoff & Mark Johnson
(Campinas: Mercado das Letras, 2002).
6
O nome da escola pode mudar, conforme o caso, mas o grito é sempre o mesmo.
7

samba”. São essas expressões que, como já se disse aqui, arregimentam uma multidão de
foliões, tanto no asfalto quanto nas arquibancadas7 e identificam os intérpretes no mundo do
samba.
Quando o grito de guerra é emitido, momentos antes do início do desfile de cada
agremiação, dá-se o grande paradoxo: o espaço carnavalizado (cf. Bakhtin, 1999), marcado
pela descontração e pela quebra das convenções, deve, sem perder suas características
essenciais, travestir toda organização e disciplina que hoje o espetáculo das grandes escolas
de samba demanda. Em resumo, é preciso que a irreverência do ânimo dionisíaco mascare a
sisudez do show business.
É precisamente nesse momento que a figura do intérprete do samba-enredo ganha
vulto e se aproxima da imagem de Orpheu. Relativamente dispersos em meio à frouxidão das
regras intrínseca ao próprio carnaval, a escola precisa canalizar toda a empolgação dos
componentes em proveito de um canto ritmado e em uníssono. Quem os guia nessa
empreitada é a voz “potente”, sempre presente à frente das escolas, a que Araújo (2003) faz
referência: a do puxador.
Potente, mas, principalmente, vibrante. Virtuosa. Uma virtuosidade, que, segundo
Valente (2003, p. 41), além de estar ligada à virilidade e à coragem, deve ser exibida, pois “o
público que o aplaude [ao artista virtuoso] está interessado antes na demonstração de suas
proezas técnicas, que na qualidade das obras que executa.”
Então, não é ir muito longe pensar que, ao par de apresentar a própria agremiação, o
grito de guerra é uma maneira musical de o cantor expor aos integrantes da escola e ao
público sua virtuosidade. Até porque esse grito sempre é emitido pelo intérprete em solo, não
importa quantos cantores auxiliares ele tenha ao seu lado. É uma ação solitária, e, portanto,
corajosa e viril como deve ser a atuação de um herói combatente, ou de um semideus:

A figura do virtuose também ganha ímpeto ao se alimentar de formas arcaicas do


imaginário: quando manifesta semelhanças ao pensamento grego antigo, tempo em
que se acreditava na existência de semideuses, rebentos da união entre um mortal e
um deus. Segundo as crenças de então, os semideuses teriam necessariamente posto
à prova sua capacidade sobre-humana, em algum momento de sua vida. Também
semideus, o virtuose está acima do homem comum e, no ritual de sua performance,
submete-se a provações. Sua performance é a realização de um feito heroico
solitário – uma vez que não conta com interlocutores à sua altura. (…) Arrebatado,
na sua manifestação apaixonada, avassaladora, leva seu público à vertigem.
(VALENTE, 2003, p. 43)

7
E no entorno da avenida também, pois há público fora do sambódromo, em arquibancadas montadas na Av.
Presidente Vargas, e em cima de árvores ou viadutos das proximidades. Esse público não vê a escola na avenida,
quando muito pode vê-la na concentração, mas ouve o canto que vem do sistema de som da Sapucaí, capaz de
chegar onde a vista não alcança.
8

Assim pode-se compreender mais claramente parte do poder agregador exercido pelo
intérprete de samba-enredo sobre os componentes da escola e sobre o público, em especial no
momento do grito de guerra. Esse brado é o primeiro dos instrumentos com que ele, o cantor
virtuoso, afeta o imaginário das pessoas para adquirir a condição de ídolo, de modelo a ser
seguido.
Esse é um forte indício da ancestralidade mítica que este trabalho advoga em favor
do puxador de samba (o primeiro, já exposto anteriormente nestas páginas, é sua relação com
o rapsodo Íon, com Homero e com a Musa). Agora, vê-se endossada, pelas palavras de
Heloísa Valente, a hipótese de uma ligação arquetípica entre o cantor das escolas de samba e
Orpheu, o filho de Apolo. Ambos semideuses, ambos herdeiros do Deus da Música, eles
teriam também em comum o poder divinal de encantar as pessoas com a simples exibição da
própria voz.
Voltando ao início do desfile, o que se percebe é que cada componente, encantado
pelo som da voz do puxador, hipnotizado por seu grito de guerra, quiçá também em transe
(como Platão diz que o próprio intérprete está durante a performance), cada componente deve
se sentir, ele mesmo, naquele momento, e a um só tempo, uma espécie de duplo do puxador e
metonímia da agremiação em desfile.
Inspirados pelo cantor oficial, todos começam a cantar o samba ainda na
concentração, enquanto se dirigem para a passarela; ao entrarem na rua Marquês de Sapucaí,
quando de fato inicia a apresentação, é necessário cantar, de preferência todo o tempo, a
plenos pulmões, no ritmo certo, e dançando com animação (em terminologia específica,
“evoluindo”); toda a energia dos componentes deve estar aplicada nisso, que deve parecer um
comportamento espontâneo, natural, advindo da empolgação que o samba gera. O puxador
precisa provocar tudo isso; e se cada componente o acompanha, então ele alcançou o
objetivo: foi a escola quem fez. A harmonia foi perfeita. A performance, nota dez.
Para que tal sensação se produza com mais força, colabora ainda, sobremaneira, a
disposição das arquibancadas e dos camarotes do sambódromo. Aquelas estruturas tornaram a
rua Marquês de Sapucaí um corredor, um tipo de arena linear, um anfiteatro horizontal
concebido para que o espetáculo se dê em pleno movimento, fluindo harmonicamente entre
dois pontos imaginários, fontes do poder mágico de ligar e desligar a realidade e o sonho.
Esse arranjo certamente colabora para que os espectadores saiam do espetáculo com a
sensação de que tudo aquilo “foi um rio que passou” em suas vidas, como tão bem
metaforizou Paulinho da Viola.
Esse fluxo se dá, em maior ou menor grau, a cada desfile, porque, como diz
9

Finnegan (2008), “a performance cantada é evanescente, experiencial, concreta, emergindo na


criação momentânea dos participantes”. Logo, mesmo que a tarefa do intérprete do samba-
enredo seja um tanto simplificada por toda gama de oralidade latente no espetáculo, pela
empatia da comunidade com o samba, ou pelo natural estado de euforia em que os foliões se
encontrem, mesmo contando com toda essa “ajudinha”, a tarefa do puxador não é fácil.
É mesmo necessário ser quase um deus para cumpri-la.

3 À GUISA DE CONCLUSÃO
A rede de ilações que as páginas anteriores trazem não pretende, em absoluto,
esgotar o tema. Elas são, antes, um convite à reflexão sobre alguns fatores que contribuem
para a tarefa do intérprete de sambas-enredo – o cantor de um gênero musical tombado pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (BRASIL, 2007) como bem imaterial
da cultura brasileira – no momento de sua execução. Em poucas palavras, o objetivo era
apresentar uma possível genealogia mítica do puxador de samba-de-enredo.
Para tal, mostrou-se o vínculo entre esse cantor contemporâneo o o rapsodo Íon,
apresentado por meio do diálogo platônico que tem seu nome. Falou-se, também, da relação
do intérprete dos sambas com outro Íon, o de Delfos e de Atenas, dado a conhecer por um
drama de Eurípedes e pelos comentários de Michel Foucault acerca da peça.
Assim, por não ter sido muito ambicioso, o objetivo deste texto deve ter sido
alcançado.

4 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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enredo e os movimentos sociais. Rio de Janeiro: Ed. Ciência Moderna Ltda., 2009.

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BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense-


Universitária, 1997.

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Rabelais. São Paulo: Hucitec/ UnB, 1999.

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<http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=940>, acesso em 04/09/10.

CAVALCANTI, M. L. V. C. Tempo ritual: o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro.


In: Terceira margem – Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura.
10

Pensando o carnaval na academia. Rio de Janeiro: UFRJ/CLA, Pós-graduação, ano X, no.


14, 2006, p. 27-39.

CAVARERO, A. Vozes plurais – Filosofia da expressão vocal. Belo Horizonte: Editora


UFMG, 2011.

FINNEGAN, R. O que vem primeiro: o texto a música ou a performance? In: MATTOS, C.


N. et alli (Orgs.). Palavra Cantada. Rio de Janeiro: 7 Letras 2008, 15-43.

FOUCAULT, M. O governo de si e dos Outros. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

LAKOFF, G.; JOHNSON, M. Metáforas da vida cotidiana. Campinas: Mercado das Letras,
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Brasileira, 2010.

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PLATÃO. Íon. Texto disponível em <http://www.consciencia.org/platao_ion.shtml>, acesso


em 12/09/11.

SOUZA, P. Michel Foucault – O trajeto da voz na ordem do discurso. Campinas: Ed. RG,
2009.

VALENTE, H. A. Os cantos da voz: entre o ruído e o silêncio. São Paulo: Annablume, 1999.

_____. As vozes da canção na mídia. São Paulo: Via Lettera/ Fapesp, 2003.

ZUMTHOR, P. A letra e a voz – A “literatura” medieval. São Paulo: Cia. das Letras, 1993.

_____. A poesia oral. São Paulo: Hucitec, 1997.


SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo

A MIMESE DO SIMULACRO COMO ESTRATÉGIA DE IRRISÃO


EM MACHADO DE ASSIS

Daniela Soares Portela (FAPESP)1

RESUMO

Os cinco últimos romances de Machado de Assis debatem os princípios da estética realista


sob a perspectiva da desnaturalização cultural da relação entre realidade empírica e signo
verbal. Ao propor o encurtamento dos capítulos como técnica narrativa de expressão de uma
realidade fragmentada, Machado rompe com o ilusionismo da totalidade do projeto de
inventário realista, bem como das propostas filosóficas do século XIX: a medicina
experimental de Claude Bernard, o positivismo de Augusto Comte, a evolução de Darwin,
enfim, a ideia de um tempo evolutivo e totalizante, pelo qual a história da humanidade
pudesse ser explicada e controlada como num sistema de regras imutáveis e previsíveis
(AUERBACH, 1997). A destruição da verossimilhança narrativa por ―um morto que escreve,
caso de Brás Cubas, ou um vivo desmemoriado que lembra, caso de Dom Casmurro‖,
(Hansen, 2008, p.151) permite a Machado encenar a inversão das convenções consideradas
―verdadeiras‖ pelos leitores. Além disso, na relação entre os dois últimos romances, Machado
propõe uma questão de veridicção: nenhuma das passagens citadas em Esaú e Jacó como
partes constitutivas do Memorial de Aires podem ser encontradas no livro publicado de fato
em 1908. Há, apenas, simulacro de uma mimese artística em que a referência efetuada desloca
a significação do representado para outro signo. Por fim, Quincas Borba, cujo título refere-se
propositalmente a um filósofo louco, ou a um cachorro, insere a questão realista no cerne da
metafísica, como uma discussão pré-socrática pela qual a unidade dos nomes é incapaz de
suportar a diversidade das coisas.

PALAVRAS-CHAVE:
Machado de Assis. Realismo. Inovação estética. Capítulo curto.

ABSTRACT

The last five novels of Machado de Assis discuss the principles of realist aesthetics, the
relationship between empirical reality and the verbal sign, from the perspective of cultural
denaturalization. In proposing shorter chapters as a narrative technique to express a
fragmented reality, Machado breaks the illusion of the entirety of the project of realist
inventory, as well as the philosophical proposals of the nineteenth century: the experimental
medicine of Claude Bernard, the positivism of Auguste Comte, Darwinian evolution, in short,
the idea of an evolving time and totality, in which the history of mankind can be explained
and controlled as a system of immutable and predictable rules (AUERBACH, 1997). The
destruction of narrative verisimilitude by ―a dead man who writes, as in the case of Bras
Cubas, or a forgetful living man who remembers as in Dom Casmurro (Sir Dour)‖ (Hansen,
2008, p.151) allows Machado to stage the inversion of the conventions considered ―true‖ by
readers. Additionally, in the relationship between the last two novels, Machado proposes a
question of verediction: none of the passages cited in Esau and Jacob as constituent parts of
Counselor Aires's Memoirs can be found in the book that was actually published in 1908.

1
Pesquisadora de Pós-doutorado do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da USP, com
financiamento da FAPESP; e-mail: soares-portela@uol.com.br.
2

There is only a semblance of artistic mimesis in which the stated reference changes the
meaning of the represented to another sign. Finally, Quincas Borba (Philosopher or Dog?),
with a title that deliberately refers to a crazy philosopher or a dog, raises the realist question at
the heart of metaphysics as a pre-Socratic discussion in which the unit of names is unable to
support the diversity of things.

KEYWORDS:
Machado de Assis. Realist aesthetics. Aesthetical innovation. Shorter chapters.

Em análise sobre O imortal, conto machadiano publicado entre 15 de julho a 15 de


dezembro de 1882, na revista A Estação, Hansen (2006, p. 57) propõe que Machado de Assis
sistematiza um processo inventivo em que autores ficcionais escrevem textos improváveis ou
inconfiáveis. Essa estratégia, visível de forma sobrejacente em quatro dos cinco romances de
chamada fase realista do autor carioca, objetivava transforma[r] a matéria social de seu
tempo, relativizando e destruindo a representação fundamentada no pressuposto da
adequação entre os signos, os conceitos e as estruturas da realidade objetiva. (HANSEN,
2006, P. 61).
Machado não ignorava que a ciência funciona como sustentáculo ideológico do
poder. Em O alienista, novela publicada originalmente também na revista A Estação: Jornal
Ilustrado para a Família, entre outubro de 1881 e março de 1882, quando o barbeiro Porfírio
vence a revolução que empreendera em Itaguaí, ao invés de prender Simão Bacamarte,
confessa ao antigo opositor que o novo governo não tinha ainda por si a confiança dos
principais da vila, mas o alienista podia fazer muito nesse ponto. (ASSIS, 1962, vol. II, p.
277). E resume sua proposta indecente de cumpliciato com a frase: Unamo-nos, e o povo
saberá obedecer (ibidem). Alegoricamente, o que se propõe é a cooperação entre força militar
(tanto que a revolução teve como saldo onze mortos e vinte e cinco feridos) e a ciência que a
justifica e explica. Assim, consolida-se o tripé sobre o qual a ficção machadiana se debruça,
como um ácido que corrói e fragiliza suas bases: o poder, o discurso da ciência que lhe dá
suporte e a violência, hífen que desenha a ponte entre os dois termos.
Ainda em O alienista, a relação entre poder, violência e ciência é problematizada, à
medida que o barbeiro considera natural o saldo da revolução e o médico, mais curioso do que
desolado, inútil. Mas a inutilidade é um critério de classificação apenas da violência explícita,
pois aquela praticada por Simão, (aprisionar dois terços da cidade num sanatório), e que
motiva a barbárie sangrenta executada por Porfírio, é justificada cientificamente. Simão era
médico, quase um pastiche do discurso mecanicista de Claude Bernard. O efeito estético desse
3

jogo de cenas, espaço onde a representação é posta em perspectiva, cria uma relação de fundo
e plano em que circulam discursos que almejam o status da verdade, disputam espaços, se
avaliam com critérios arbitrários e, ao fazer isso, levam, em última instância, a que o leitor
também o faça. Ao encenar a representação da ciência desaprovando a violência do poder
político, produzido pela lógica criada pelos discursos filosóficos do século XIX, O alienista,
assim como o humanitismo de Quincas Borba, satirizam não o homem, mas aquilo que os
homens falam do homem (TEIXEIRA, 2008 p. 110). Há, ainda, outro desdobramento
especular da representação: à medida que Simão observa Porfírio e o avalia, o leitor observa e
avalia os dois signos em atuação. A lógica cartesiana empregada pelo médico de forma
absurda para avaliar o discurso quase fantástico de sustentação de um poder político
fraudulento e estúpido se evidencia para o leitor, e dessa forma, confere à ficção a
legitimidade crítica que subtraiu da política e da ciência.
Essa mise-en-abyme (RICARDOU, 1971) evidencia que Machado era consciente das
diferenças entre duas formas de poder que regulam o sistema social: o poder da força violenta
e o poder da naturalização de estratos culturais como discurso dominante, ou seja, a
universalização de categorias particulares como universais, em outros termos, o poder
legítimo que justifica seu exercício através de um aparato de regras, (ROSENFIELD, 2004,
p. 138).
Ao desvendar o aparato arbitrário que cria os discursos de legitimidade das ações
políticas, Machado aproxima o discurso da história e da ciência dos modelos constitutivos dos
discursos da ficção. Mas essa aproximação não é isenta de hierarquia. A ficção, que não se
pretende como representação mimética da realidade empírica, por meio do abuso dos modelos
de representação do fantástico, acaba por denunciar o absurdo da legitimidade dos discursos
sociais que almejam o status de verdade. Sendo assim, há uma inversão das categorias
classificatórias das funções sociais desses discursos, à medida que a ciência ganha status de
ficção. O resultado dessa inversão seria uma espécie de falsificação do discurso científico,
lido como verdadeiro pela sociedade oitocentista.
Mas esse processo de falsificação da discurseira científica do XIX tange ainda uma
questão prática, para além da metafísica (se a linguagem é ou não capaz de representar a
essencialidade das cosias, sua ―verdade intrínseca‖). Num país colonial de analfabetos, o
processo da alfabetização coletiva é muito precário e a circulação literária esbarra nos
entraves mais rudimentares: a dificuldade de suporte para os textos dos escritores, ou a
dificuldade material de quem fosse buscar o sustento na literatura. Em Memórias Póstumas,
Machado parece ironizar essa situação. Nesse mesmo país em que o jornal era o principal
4

veículo de circulação literário, a preparação para que o leitor fosse capaz de modificar a
leitura desatenta e superficial do folhetim para a leitura reflexiva e pausada do livro, parece
ser uma das principais preocupações do escritor carioca. Ou seja, a mobilização narrativa em
Machado exige um leitor diferente daquele de Alencar. Não mais engendrado numa
receptividade de entretenimento, mas que participa ativamente do processo de produção de
sentido do livro, como um adversário competente num jogo de xadrez2. Esse leitor, que joga,
é o mesmo que saberá ler as assimetrias sociais3 do corpo do país onde está inserido. O livro
machadiano não apenas representa a fragmentação da cultura; mobiliza o leitor para aprender
a interagir com ela e formar um sentido a partir dela. Tem uma função pedagógica naquilo
que seria o processo de individualização do leitor diante da hegemonia de sentido da cultura
nacional.
É possível que fosse um projeto consciente de Machado individualizar seus leitores
por meio do objeto livro, ensinando-os a funcionar nessa estrutura de sentido fragmentada. Ou
seja, há em Machado, pelo menos no Machado da maturidade, posterior ao período da
publicação de O jornal e o livro (1859), um projeto claro de que o livro é um objeto de
construção de sentido individual e social.
Como construção individual, é repositório de uma herança cultural. Porque o autor
carioca desconfia das teorias cientificistas do XIX, podemos supor que tivesse substituído o
determinismo genético pela herança cultural, sobre a qual supunha atuar. Ora, supondo ainda
que a herança cultural seja capaz de oferecer ao homem respostas aos sentidos procurados, ela
atua na construção da individualidade humana de forma ambivalente. Quando encontramos
sentidos determinados pela cultura, encontramos junto a nossa atuação de busca desse sentido.
Quando encontramos a resposta, temos, junto com ela, o encontro com aquilo a que se
responde e a responsabilidade de incorporar esse sistema na nossa percepção da realidade.
Nesse sentido, o encontro com a cultura do livro é paradoxal. Pois, na leitura, o homem
encontra-se com a resposta que procura, mas encontra-se também consigo mesmo
respondendo.

2
Veja sobre isso, a seguinte passagem de Esaú e Jacó: Ora, aí está justamente a epígrafe do livro, se eu lhe
quisesse pôr alguma, e não me ocorresse outra. Não é somente um meio de completar as pessoas da narração
com as idéias que deixarem, mas ainda um par de lunetas para que o leitor do livro penetre o que for menos
claro ou totalmente escuro.
Por outro lado, há proveito em irem as pessoas da minha história colaborando nela, ajudando o autor, por uma
lei de solidariedade, espécie de troca de serviços, entre o enxadrista e os seus trebelhos. (ASSIS, 1962, V. I, p.
964).
3
Sobre isso ver: Bosi, A. Figuras do narrador machadiano. In: Cadernos de Literatura Brasileira, n. 23/24, jul
2008, Instituto Moreira Salles, São Paulo.
5

Se a responsabilidade é o traço que define o processo de individualização humana, a


irresponsabilidade é o eixo de encenação entre leitor e livro da obra machadiana. Para
Baptista, (1998), o livro machadiano não responde às expectativas do leitor, reformula-as.
Mais ainda: Machado teria um projeto estético de mimetizar em suas obras realistas, no corpo
do livro, uma pedagogia da leitura ―irresponsável‖ e contumaz, como os vermes que roem as
páginas de Dom Casmurro, sem se preocuparem em responder por que o fazem. Nesse
sentido, a materialidade do livro acaba por trair a leitura convencional do próprio livro. Entre
os argumentos que sustentam essa posição, podemos lembrar a questão da errata na obra
machadiana. Ao mesmo tempo em que corrige um erro de impressão, ou de expressão do
autor, ela denuncia o erro que poderia ter passado despercebido pelo leitor. Essa estratégia
perversa de enunciação, que põe em evidência o que gostaria de apagar (a errata, a priori,
deveria desautorizar o erro cometido), funciona como um eixo nexivo: remete para o erro
cometido, direcionando a atenção do leitor dentro do espaço físico do livro (somos levados a
voltar às páginas para encontrar o erro mencionado pela errata), mas também articula uma
nova direção de leitura (reler o todo, modificando uma parte que foi desqualificada). Desta
forma, o processo de leitura da obra é evidenciado, enquanto a sequência do enredo perde a
possibilidade de leitura evolutiva.
Se a compreensão da realidade humana depende da percepção que o homem pode ter
dela, essa percepção, por sua vez, depende do repertório cultural que ele herda de sua
comunidade.
Já que o leitor machadiano é alguém para quem o sentido não se oferece
gratuitamente, mas sim se constrói, há que se ressaltar que a imaginação funcionará como
elemento catalisador desse processo. A imaginação do leitor machadiano deve ordenar um
projeto de leitura necessariamente pessoal. A ordem em que os capítulos serão lidos, a
possibilidade de ser obediente ou não aos ordenamentos do autor/defunto, pular ou reler
capítulos, estabelecem uma relação de autonomia e ao mesmo tempo liberdade criativa em
relação ao sentido do livro que se quer construir. Memórias Póstumas de Brás Cubas
funciona, no mínimo, com uma dupla articulação: o desenvolvimento do enredo e o
desenvolvimento da leitura. Basta observamos os capítulos e frases que servem como
ordenamento do ato da leitura. São eles que instigam o leitor a substituir a leitura sequenciada
e linear, por outra intercalada e irregular (tanto sob o ponto de vista da velocidade, já que há
capítulos que literalmente ―emperram‖ o processo, quanto do ponto de vista do manuseio do
livro, pois o livro deve ser montado enquanto objeto). Se por um lado temos a representação
concreta da leitura ativa, para a qual Machado quer preparar o leitor, e para isso deve subjugá-
6

lo insistentemente à noção de autonomia do objeto livro, por outro, esse processo cria no
leitor a possibilidade de autonomia na produção do sentido diante de uma realidade
apresentada. Ou seja, à medida que o leitor descobre que pode montar a realidade livro que
será lida, pode transferir, por analogia, essa forma de raciocínio para a decodificação dos
sentidos de uma realidade que, assim como o livro, apresenta-se como um poliedro de
possibilidades de sentidos. Apoiaremos a nossa argumentação em duas análises; a primeira de
Silva (2006) e a segunda de Yela (1998).
Para o crítico brasileiro, o leitor machadiano é multiforme e tem a virtualidade do
movimento. Isso porque:

Às vezes o autor nos convida a não saltar um capítulo (ver o começo do capítulo
XVII, bem como o começo do terceiro parágrafo do capítulo CXXI), às vezes,
desconfia que saltamos e nos aconselha a ler o que pulamos (ver cap. LXXV). No
cap. XVI nos remete ao capítulo XIV; no XVII, ao II e, no CXXXI, ao CL. No
XXXVII pede-nos para relermos o capítulo XXVII; no capítulo LXI, dirige nosso
olhar para o XXV; no LXII, relembra-nos o capítulo XXIII. Todo o capítulo LXVIII
(―O vergalho‖) faz-nos voltar ao começo do capítulo XI (―O menino é o pai do
homem‖); o capítulo CX (31) repercute invertidamente o capítulo LXXXIII (13),
enquanto o CV confirma as leis anunciadas no capítulo LI. Esta mobilidade (que o
leitor apressado costuma recusar), que constitui uma virtualidade no domínio
concreto das páginas do livro, não fica atrás da mobilidade temporal e ontológica: o
leitor pode estar no futuro, como o bibliômano, no presente da leitura e da escrita, e
no passado do próprio herói. Pode ser ainda, e paradoxalmente, uma irrealidade,
uma impossibilidade. (SILVA, 2006, P. 56-57).

A leitura solicitada pela prosa realista machadiana está muito próxima daquilo que
seria a concepção de formação da individualidade humana proposta por YELA, (1998, p.
109), uma vez que o ato de leitura machadiano representa ―virtualmente a mobilidade
temporal ontológica‖, como afirma Silva (ibidem). Se a leitura constitui-se na totalidade de
tempo que o livro leva para ser decifrado e nas possibilidades (quase infinitas) de ordenação
das ações do leitor nesse lapso de tempo, para Yela, a leitura constitui-se numa grande
metáfora das inúmeras formas de disciplinar a experiência de vida do homem.

Nisso consiste ser homem (...). Consiste em imaginar – desde os fundamentos das
leis que ordenam a favor ou contra as circunstâncias de sua vida – até um projeto
que dê sentido a ela, em desenvolvê-lo ou modificá-lo, para aproximar-se,
conscientemente ou de forma confusa, de quem se deseja ser, através das ações que
são executadas, apropriando-se e fazendo pessoal e próprio, em alguma parte, o
mundo em que se vive, a obra que se faz e a ação que se executa. 4

4
Em eso consiste ser hombre (...). Consiste em imaginar − desde el sustento que esas leyes le deparan
− um proyecto que dé sentido a sua vida, em prosseguirlo o modificá -lo al haz y al envés de las
circunstancias, em intentar ir aproximandose a quien, confusa o lúcidamente, se quiere ser, a través de
lãs acciones que por la vida ejecuta, apropiándose y haciendo personal y suyo, em alguma parte, el
mundo em que vive, la obra que hace y la acción con que actúa. YELA, (1998, p. 109)
7

Ora, o livro de Machado se configura num objeto móbile que pode ser montado, de
acordo com a leitura escolhida e transformar-se no objeto que montarmos. O leitor
machadiano não é um simples leitor, mas sim, nos ecos de Padre Vieira, aquele que lê, ou
seja, aquele que excuta o ato de leitura, que constrói fisicamente pelas escolhas deliberativas
da ordenação das páginas, aquilo que vai ler. Se considerarmos o livro (como Machado o
considera) o veículo de perenização e circulação do conteúdo cultural que humaniza a
sociedade, ao possibilitar uma leitura reorganizada pela montagem das partes que o leitor fará
do texto, Machado propõe implicitamente que a leitura da realidade deve ser racionalmente
construída pelo leitor.
Se em Memórias Póstumas de Brás Cubas, o autor carioca chama a atenção para
algo diferente na invenção do artefato ao propor que a estrutura da obra de arte literária é
semelhante à de um quadro − o texto é o conjunto de linhas dispostas num suporte, assim
como um quadro é o conjunto de traços e cores dispostos numa tela − em Quincas Borba, o
estudo do suporte indica uma proposta contrária às Memórias Póstumas de Brás Cubas sobre
a natureza fenomenológica da literatura, mas que também refuta, de forma eficiente, as
propostas realistas: a literatura pode sobreviver na memória dos homens para além do seu
suporte, embora esse determine o conteúdo gráfico que será oferecido ao leitor. Essa
sobrevivência depende da suposição de que um texto que circula por meio da oitiva, como era
o caso dos romances publicados em folhetim no século XIX, persiste na memória coletiva de
um público consumidor específico, embora possa sofrer (e de fato sofra) variações próprias ao
sistema de transmissão oral da mensagem.
Embora o processo de reescrita do romance ─ em que as inúmeras variações
ocorridas entre a versão do folhetim para o livro são evidentes ─ possa ter sido motivado por
aquilo que Saraiva (2008, p. 211) entendeu como uma espécie de consciência do público
receptor de cada veículo material, ou seja, por essa percepção crítica, na transição do folhetim
para o livro ―Machado ajusta a narrativa a uma nova materialidade, privilegiando a concisão e
o envolvimento ativo do receptor‖, o resultado estético dessa passagem é significativo para o
projeto literário machadiano. Porque, apesar de muito diferentes, tanto Quincas Borba
folhetim, quanto a versão em romance, levam o mesmo título e a mesma assinatura de autoria.
Essa decisão editorial não pode ser ignorada. Em relação ao título, o resultado estético é um
questionamento metafísico; em relação à autoria, o artefato inventivo aponta para o
8

esfacelamento da noção de propriedade da arte burguesa. Essa ideia, retomada de forma


determinante em Dom Casmurro, é explicitada pelo próprio narrador:

Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas
no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo. Dom veio por ironia,
para atribuir-me fumos de fidalgo. Tudo por estar cochilando! Também não achei
melhor título para a minha narração; se não tiver outro daqui até o fim do livro, vai
este mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo rancor. E com
pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é sua. Há livros que
apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto. (ASSIS, 1962, v. III, p.807)

Postos dessa maneira, a máxima de Dom Casmurro e seu reflexo especular trazem
consequências importantes para o entendimento da percepção machadiana de arte que se opõe
à originalidade e à organiciade românticas da arte burguesas. Da mesma forma que uma obra
pode ser o aproveitamento coletivo de estratos culturais diversos sob um mesmo título, esses
estratos culturais coletivos, ou diversos, embora trazendo variações em relação a um enredo
determinado, podem ser agrupados sob um mesmo título. Como a obra é composta por
extratos diversos, a assinatura perde a identidade singularizada e passa a ser coletivizada.
Embora as mudanças ocorridas da primeira para a segunda versão de Quincas Borba
sejam muitas e significativas, possibilitando à Saraiva (ibid.,p. 213-214) levantar a hipótese
de que ―para Machado, a escrita da primeira versão é um exercício em que ele testa os rumos
que pretende dar à narrativa, criando em seus leitores, expectativas que não desenvolve, como
se simulasse o atendimento às convenções romanescas do folhetim para, simultaneamente,
romper com elas‖, a fábula de Quincas Borba se cristaliza na recepção do público como uma
história única e não diversificada. É evidente que esse é o processo próprio de recepção de
uma sociedade iletrada, acostumada com a circulação de fatias de ficção pela oralidade.
Apesar das variações, o público abstrai uma unidade que singulariza um autor específico e um
enredo que possibilite suportar um título. Essa hipótese permite afirmar que para a assinatura
Machado de Assis de Quincas Borba, que não corresponde à mesma de Dom Casmurro ou de
Memórias Póstumas de Brás Cubas as diferentes disposições gráficas de um livro não alteram
de forma determinante o seu significado, comprovando que a obra de arte não é o seu suporte,
ainda que ele seja decisivo para sua significação. A obra Quincas Borba publicada em
folhetim leva a mesma assinatura e o mesmo título do livro Quincas Borba, assim como o
cachorro, de pelos cor de chumbo no livro e cor de café no folhetim, estabelece uma relação
de equivalência. Talvez isso explique o fato de que Memórias Póstumas de Brás Cubas
publicado em folhetim é quase o mesmo que o publicado em livro, porque a assinatura
Machado de Assis corresponde a uma outra proposta estética. Mas a primeira versão de
9

Quincas Borba, publicada durante cinco anos no suplemento Jornal Ilustrado para a Família,
da revista A Estação, sofre inúmeras modificações, embora o livro saia na sequência ao
término da publicação seriada (a publicação em jornal termina em 15 de setembro de 1891, a
publicação do romance se dá no mesmo ano). Isso indica que Machado já reescrevia o
romance enquanto a publicação em jornal ainda saía. Entre essas modificações, indicamos a
supressão de um capítulo que havia no folhetim e parece chave para interpretar a concepção
machadiana sobre a relação entre realidade e representação discutida neste romance:

Aqui está o nosso Rubião no Rio de Janeiro. Vês aquella figura de pé, com os
polegares mettidos no cordão atado do chambre, à janella de uma linda casa da praia
de Botafogo? É o nosso homem. Olha para a enseada; faz comsigo a reflexão de que
se todo o mar fosse assim era um espelho. Depois lança os olhos pela praia, de uma
ponta a outra; a casa delle fica mais ou menos no centro. Não conhece nada tão
bonito: uma ordem circular de casas e jardins, deante de uma bacia de agua quieta,
montanha ao fundo, como um panno de theatro ( ASSIS, 1977, p.22).

Ora, essa passagem parece retomar a crítica feita em 1878 ao Primo Basílio, de Eça
de Queirós: não é possível que o realismo seja a reprodução fiel da realidade, porque a
linguagem é incapaz, por essência, de reproduzir a realidade empírica. O signo não é a coisa.
Mesmo que Eça de Queirós fosse capaz de dizer ―o número exato dos fios de que se compõem
um lenço de cambraia ou um esfregão de cozinha‖ (ASSIS, 1962, v. III, p. 904), há uma
diversidade substancial de fios de cambraia que a nomeação com a forma simbólica ―fios de
cambraia‖ é incapaz de suportar. Quincas Borba, cujo título refere-se propositalmente a um
filósofo louco, ou a um cachorro, insere a questão realista no cerne da metafísica, como uma
discussão pré-socrática pela qual a unidade dos nomes é incapaz de suportar a diversidade das
coisas (a impossibilidade de um só conceito ser capaz de nomear a diversidade dos seres). A
crise da linguagem realista irrompe quando a relação cultural entre linguagem e representação
da realidade empírica passa a ser desnaturalizada.
Mas ―como todo mar não é assim‖, a relação não é dada de forma especular, porque
―o pano do teatro‖ nos alerta para o fato de que a linguagem inventa a realidade seguindo
regras artificiais e intencionais. Quincas Borba elabora um contínuo processo de irrisão que
desloca a relação mediada entre o signo e seu referente, propondo uma dimensão
perspectivista de leitura, uma vez que o folhetim, o livro e a suposta transmissão oral do
enredo em sessões de oitiva funcionam numa relação de fundo e forma, em que a presença de
um dos suportes aparece num primeiro plano onde as existências dos outros ficam suspensas.
Em síntese, o livro apresentado soma-se às variáveis formas de transmissão do enredo e vai
além disso, uma vez que a versão em folhetim aproveita, também, as matérias extensivas e as
10

imagens que compunham o campo de visão da página em que o capítulo vinha impresso. Esse
aproveitamento singulariza a assinatura do autor (mesmo que pela inversão) como um sujeito
inserido no contexto burguês de produção literária num mercado em que a literatura é mais
um produto destinado a consumidores específicos.
Assim como Ponson du Terrail incorporava as notícias dos jornais fait divers para a
composição do seu lendário herói rocambolesco, e embora Machado de Assis afirme nunca
ter lido rocambole (ASSIS, 1962, v.III, p.356), o que não o impede de ter participado de
oitivas durante a infância, o autor fluminense não apenas alimenta seus romances de
publicação seriada com o próprio suporte em que veicula sua literatura, como parece ter
predileção pelos ―fatos diversos‖, que não podem ser nomeados segundo um catálogo
conhecido de referências, numa sociedade aparentemente subordinada à política higienista e
progressista dos anos 70 do século XIX.
Essa política inclui determinantes de práxis sociais, divulgadas pelos veículos
impressos, como revistas e jornais. Além dos textos escritos, no século XIX ―the readers had
in their field of vision the continuation of the serialized narrative and other textual and
pictorial elements, all bound together by the same editorial principles‖, 5 (SILVA, 2010, p. 3).
Entre esses elementos, estavam, por exemplo, seção de modas e anúncios que incentivavam a
prática da filantropia. O leitor que lesse Quincas Borba submetia-se não apenas às ―Les Lois
de l’limitation‖ (TARDE, 1895), mas também à irrisão dessas convenções, à medida que
Machado as incorporava no corpo de sua narrativa para evidenciá-las como práticas
extemporâneas e fora de lugar no contexto brasileiro. Basta lembrar que a filantropia
praticada por Sofia é motivada por um desejo de ascensão social e oriunda de um
comportamento condenável que inclui a sedução de Rubião, para explorá-lo e deixá-lo
suscetível à exploração do marido Palha.
Quando Meyer afirma que ―Quincas Borba saiu publicado em folhetins, mas não é,
nunca foi romance-folhetim (grifos da autora, MEYER, 2005, p. 16) ela pressupõe uma
delimitação conceitual para aquilo que abrange o romance folhetim para além de sua
estruturada fragmentada, publicada em fascículos, geralmente hebdomadários. ―Romance
rocambolesco‖ (ibid. p. 59), ou ―Romance industrial‖ (ibidem) que pode ―provocar uma
explosão de assinaturas‖ (ibidem). De forma específica, seria o tipo de romance praticado por
Dumas: ―mergulha o leitor in media res, diálogos vivos, personagens tipificados, e tem senso

5
―os leitores tinham em seu campo de visão a continuação da narrativa serializada e outros elementos textuais e
pictóricas, todos unidos pelos mesmos princípios editoriais‖. (Tradução livre)
11

do corte de capítulo. Não é de espantar que a boa forma folhetinesca tenha nascido das mãos
de um homem de teatro‖. (ibid, p. 60)
Essa ambição pelo lucro, que motiva escritores como Dumas, Eugène Sue e Ponson
du Terrail acaba interferindo no processo de criação de tais romances. Dumas, consagrado
criador de peripécias industriais teria criado um método pra aumentar seus rendimentos
profissionais: diálogos monossilábicos numa época em que os escritores eram pagos pelos
jornais por linha produzida. Depois da revisão de contrato, proposta pelos editores do ―Le
Siècle‖, outra saída mercadológica: matar os personagens inúteis e trabalhar com um elenco
mais conciso, para facilitar a produção. (MEYER, 2005, p. 61).
Embora do ponto de vista do conteúdo, Machado tenha realmente ignorado os clichês
folhetinescos, tecnicamente ele trabalha muito bem com aquilo que parece ser essencial: o
corte, a fragmentação da história, as estratégias de postergação e retomada de enredo. Esse
domínio técnico fica mais evidente quando comparadas as duas versões de Quincas Borba: a
que saiu em fascículos (entre 1886 e 1991) e aquela publicada em livro (no final de 1891).
Para resolver a evidente perda do suspense na passagem do fragmento de jornal ao todo do
livro, a principal estratégia usada foi a intensificação do caráter corrosivo do discurso
narrativo. Essa corrosão parece focar duas problemáticas pertinentes ao Brasil oitocentista: a
imersão de grande parte da intelectualidade nacional no projeto nacionalista-determinista
proposto pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, e a forte determinação da cultura
francesa nas produções artísticas do período.
Em relação à influência dos paradigmas franceses como discursos ideológicos que
dominavam a cena cultural brasileira do século XIX, o escritor carioca insere-se numa tensão
entre os cânones francês e inglês que promove um distanciamento das bases do nacionalismo
romântico, segundo Guimarães (2008) e cria um efeito de abismo na relação entre a obra
machadiana e o repertório literário da época, uma vez que o próprio paradigma inglês é
fragmentado e refratário aos modelos continentais, como indica Passos (2000, p. 18):

Apenas a Inglaterra resistiu à miragem gálica. Aliás, é conveniente ressaltar-se um


ponto. Muito de que se fazia de novo, sob o ponto de vista intelectual, era originário,
no século XVIII, da própria terra de Shakespeare. Locke, Hume, Newton e as
instituições sociais inglesas eram muito caras aos olhos dos enciclopedistas, haja
vista, por exemplo, a obra de Montesquieu e Voltaire.
O resto da Europa se mostraria ávido em partilhar do gosto francês.

Portanto, um passeio pelos ensaios machadianos, dispersos pela extensa obra do


escritor, formados por diversas ervas que resultam numa salada, como insinua a epígrafe de
12

Montaine que abre ―Páginas Recolhidas‖, ―Quelque diversité d’herbes qu’il y ayt, tout
s’enveloppe sous le nom de salade‖ (ASSIS, 1962, v. II, p. 574) propõe duas questões que
serão retomadas em toda a carreira do polígrafo brasileiro: a irrisão dos discursos ideológicos
de seu tempo histórico e a tensão entre aproveitamento do cânone literário francês e ruptura
com esse modelo.
A partir de 1830, começa a produção de um tipo de romance de folhetim que engloba
todo o segundo império francês: o romance de série ou ciclo, preconizado por M. Lecoq e
Émile Gaboriau, cuja marca de identidade era criar um protagonista que atua também nas
próximas narrativas. Desta forma, ―o leitor que espera de um dia para outro sua ração
cotidiana já pode enfrentar o fatídico fim sem susto: seu herói haverá de voltar em outra série
de aventuras‖, (MEYER, 2005, p. 95-96). O romancista se profissionaliza e torna-se um
operário da indústria de massa de comunicação. Coincidentemente, Quincas Borba não
apenas traz a marca desse ciclo no texto (embora dessacralizada, uma vez que o filósofo que
sobrevive ao fim de Memórias Póstumas de Brás Cubas é executado nos primeiros capítulos,
restando apenas, ironicamente como suposto personagem que empresta o nome à narrativa, o
cachorro Quincas Borba), mas também a estrutura de um romance feito para o mercado.
Soma-se a essa afetação de mercantilização do romance, o fato de que o veículo em
que foi publicado (A Estação – Jornal Ilustrado para a família) ser um produto jornalístico
muito atrativo para o principal público consumidor de romances do período, as mulheres
burguesas. Além disso, a estrutura narrativa, assim como o período em que o romance é
contextualizado (segundo império francês), funcionam como índices que apontam uma
estratégia de antropofagia machadiana de todo o contexto de produção e circulação de seu
produto.
É exatamente no governo fraudulento de Napoleão III que as aventuras
rocambolescas de Ponson du Terrail se desenvolvem. Esse mesmo governo ilícito, cuja
imagem e identidade serão perseguidas de forma obsessiva por Rubião, até a loucura
aniquiladora. Governo que deixa de ser governo para tornar-se índice literário, para ser
esvaziado de todo sentido existencial:

Poucos dias depois, [Rubião] morreu... Não morreu súbdito nem vencido. Antes de
principiar a agonia, que foi curta, pôs a coroa na cabeça, — uma coroa que não era,
ao menos, um chapéu velho ou uma bacia, onde os espectadores palpassem a ilusão.
Não, senhor; ele pegou em nada, levantou nada e cingiu nada; só ele via a insígnia
imperial, pesada de ouro, rútila de brilhantes e outras pedras preciosas. O esforço
que fizera para erguer meio corpo não durou muito; o corpo caiu outra vez; o rosto
conservou porventura uma expressão gloriosa.
— Guardem a minha coroa, murmurou. Ao vencedor...
13

A cara ficou séria porque a morte é séria; dous minutos de agonia, um trejeito
horrível, e estava assinada a abdicação (ASSIS, 1962, P. 804).

Capítulo trágico, de representação da extinção humana sem amparos religiosos


(embora o espiritismo estivesse surgindo no período e tenha sido tantas vezes depreciado por
Machado). Repleto de negativas, de definições por oposição: não morreu súdito, não morreu
vencido, não morreu logo, não era um chapéu velho, não era uma bacia. Era nada. O signo
esvaziado de qualquer referente empírico, sem qualquer possibilidade para que o espectador
ao menos possa ―palpar a ilusão‖. Embora localizado no final do livro, capítulo central da
obra de negativas de Machado, em que o processo de esvaziamento dos referentes empíricos
do leitor torna-se dispositivo de projeto literário. Nenhuma das formas reconhecidas de
sentido pode ser aproveitada como repertório para a decodificação da cena.
Além disso, as relações temporais de causa e consequência também são esvaziadas.
No primeiro período, a consequência (morte de Rubião) traz como causa a marca da
reticência. A explicação do fato é substituída pelos advérbios de modo (negativo): nem como
súdito nem como vencido. Advérbios que no contexto também são vazios, uma vez que
Rubião morreu como nada, e desta forma, inúmeros outros advérbios de modo (ou nenhum)
teriam a mesma funcionalidade no texto. Não morreu súdito nem vencido, mas também não
morreu soberano nem vencedor.
Curiosamente, a imprensa francesa associa a figura de Napoleão III ao herói
rocambolesco de Ponson du Terrail. ―La Lune de 17 de novembro de 1867 traz na figura de
capa um terrível desenho de Napoleão III com a legenda: Portrait authentique de Rocambole,
ilustrando um violento editorial‖ (MEYER, 2005, p. 118).
Rocambole, na França, como extensão alegórica de Napoleão III e Rubião, no Brasil,
como paródia deste monarca, num processo abissal de representação distorcem, como num
contínuo de reflexão poliédrica a relação entre significante e significado. Nessa distorção,
Machado de Assis refuta a submissão à cultura francesa e propõe uma nova relação com o
cânone: de consciência criadora em que o sentido imposto é esvaziado para ser preenchido,
mesmo que seja pela ridicularização das práticas sociais de seu tempo.
Ao esgotar essas práticas, Machado esvazia o significado da cultura matriz,
tornando-a apenas um significante, vestido pela língua que usurpa a identidade nacional, pois
corrói uma das matrizes de organização lógica da cultura brasileira: a escrita simbólica. Em
longo ensaio publicado em 24 de março de 1873, ―Notícia da atual literatura brasileira,
instinto de nacionalidade‖, Machado propõe que uma das funções do escritor é a de ir
―depurando a linguagem do povo e aperfeiçoando-lhe a razão‖, (ASSIS, 1962, v. III, p. 809).
14

Para isso, deve evitar o exagero de modismos populares, mas principalmente ―a excessiva
influência da língua francesa‖, (Ibid., p. 808). Isso porque embora ―a França seja a rainha da
Europa‖, (Ibid., p. 943), para além de portar-se como um agente do sistema, alguém que
produz um produto para o mercado, inserido num contexto de reprodução em série da arte,
Machado constrói uma trajetória intelectual baseada na reforma social, e na discussão das
bases que sustentam ideologicamente o sistema em que está inserido, partindo do princípio de
que ―Todas as coisas estão em gérmen na palavra (...), pois desde o gênesis, o verbo é a
origem de todas as reformas‖, (ibid., p. 963), portanto a assimilação subserviente de qualquer
tradição cultural, mesmo que reine na Europa, é sempre um desafio de resistência a quem
deseja colocar-se como livre pensador.

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SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo

A ÚMIDA CLAUSTROFOBIA DA MANAUS DE HATOUM

Fernanda Müller1 (CA/UFSC)

RESUMO

Já nas primeiras leituras dedicadas a Relato de um certo Oriente, a casa é apontada como ele-
mento chave para a interpretação, arquitetura imaginária que visa inventariar as perdas emo-
cionais. Em Dois irmãos, a supremacia da casa como símbolo maior dos desajustes prevalece,
mas é atenuada na mescla com o universo da cidade. De modo mais marcado, a casa agora se
expande com a busca de lugares públicos e questões de cunho externo passam a interferir nas
relações familiares, a exemplo do Ciclo da Borracha, do desembarque de imigrantes, dos anos
de Ditadura Militar no Brasil ou da criação da Zona Franca de Manaus. O objetivo deste tra-
balho, ao tomar este caminho, é pensar como Milton Hatoum, apesar de recusar o rótulo da
biografia, inclusive ao não se apegar a uma identidade libanesa unívoca, molda um discurso
fragmentado e multifacetado para tentar unir – ou dispersar – o turbilhão que sufoca as perso-
nagens na úmida claustrofobia de sua Manaus. Se a opção é pela subtração de parte da memó-
ria pessoal e do espaço particular em prol de problemas comuns à esfera social, o pendor so-
ciológico e histórico implica a composição de um mosaico amazônico datado, sobre o qual
tecemos nossas reflexões.

Palavras-chave:
Imigração. Exílio. Manaus. Milton Hatoum.

ABSTRACT

Since the first readings dedicated to Relato de um certo Oriente, the house is identified as key
element for the interpretation, imaginary architecture that aims to inventory emotional losses.
Dois irmãos more than Relato shows the supremacy of the house as a symbol of greater mal-
adjustment, but it is attenuated in the mix with the city universe. In a more marked way, the
house is now expanding to the pursuit of public places and issues of external nature begin to
interfere in the family relationships, such as the Ciclo da Borracha, the landing of immigrants,
the years of military dictatorship in Brazil or the creation of Zona Franca de Manaus. The
objective of this work is think about Milton Hatoum, while refusing the biography model,
including by not cling to a uniquely Lebanese identity, casts a fragmented and multi-faceted
speech to try to unite - or spread - the whirlwind that is suffocating personages in the damp
claustrophobia of his Manaus. The option is subtraction of personal memory and private space
in favor of social problems, that historical and sociology tendency results in the composition
of a Amazon mosaic dated, on which we weave our reflections.

Keywords:
Imigration. Exile. Manaus. Milton Hatoum.

1 MOSAICO AMAZÔNICO
O envolvimento com a casa evocado pelos narradores de Milton Hatoum em suas
primeiras obras é marcado pela presença de sobrados que dialogam com a rua, por portões e

1
Doutora em Literatura pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura da UFSC, com bolsa do CNPq. Profes-
sora do Colégio de Aplicação da UFSC; e-mail: fernanda@ca.ufsc.br.
2

janelas que se voltam para a cidade, aparentemente abertos, convidativos, matriarcais. O que
não significa que a casa tenha se libertado do seu lado conflituoso e opressor: ela persiste co-
mo pólo irradiador de tensões, lugar de contaminação dos corpos, que tenta atrair e manter
junto a si, atitude que igualmente os força para fora de seus limites. As razões para tanto e a
sua própria organização em cada uma das obras é que mudam.
Em uma das primeiras leituras dedicadas a Relato de um certo Oriente, a apresenta-
ção do crítico Davi Arrigucci Júnior, notamos como a casa é apontada como um elemento
chave para a leitura: “O romance é aqui uma arquitetura imaginária: a arte de reconstruir, no
lugar das lembranças e vãos do esquecimento, a casa que se foi. Uma casa, um mundo.”
(ARRIGCCI JR., 1999, p.330). A supremacia deste elemento como fonte maior dos desajustes
seria atenuada na obra seguinte, Dois irmãos, na qual o ambiente doméstico mescla-se mais
intensamente ao universo da cidade: a casa expande-se com a busca dos lugares públicos, bem
como questões de cunho externo passam a interferir no ambiente doméstico.2 Assim, subtrai-
se parte da memória pessoal e do espaço particular, em prol de problemas comuns à esfera
social. Diferentemente do que ocorre em outras obras que tematizam a imigração, como La-
voura arcaica, em que espaço e tempo pertencem a uma esfera mais simbólica, não podendo
ser estabelecidos com precisão, o pendor sociológico e histórico dos narradores de Hatoum
implica na composição de um mosaico amazônico datado.
Pano de fundo do primeiro romance, em Relato de um certo Oriente nos deparamos
com numerosas famílias tradicionais, reunidas para serem fotografadas nos jardins dos casa-
rões ou no convés dos transatlânticos. Trata-se de uma alusão a um Brasil colonial já em fran-
co declínio no restante do país, mas cujo processo de modernização ainda tardaria algumas
décadas para alcançar os rincões mais ao Norte, onde continuava a imperar o monopólio e o
poderio dos grandes mandatários: “Na manhã em que visitei Emir no coreto da praça”, relata
Dorner, “eu me encaminhava para a moradia de uma dessas famílias que no início do século
eram capazes de alterar o humor e o destino de quase toda a população urbana e interiorana,
porque controlavam a navegação fluvial e o comércio de alimentos.” (HATOUM, RCO, 1989,
p.61).
Este primeiro período é marcado pela estagnação da cidade. Próspera nos tempos áu-
reos do Ciclo da Borracha, quando imigrantes nordestinos foragidos do “deserto criado”, o

2
Há que se destacar, no que se refere às representações da casa e da cidade, a última obra do autor, A cidade
ilhada, na qual vemos não uma cidade, mas várias, darem origem a um painel amazônico. Não há uma única
Manaus, mas uma sucessão de paisagens geográficas e humanas particularizadas e sobrepostas umas às outras.
(Cf. HATOUM, Milton. A cidade ilhada. São Paulo: Cia das Letras, 2009).
3

sertão das queimadas, se instalaram nos seringais com o sonho de enriquecer, entregando-se a
uma vida miserável e solitária no “deserto natural”, a floresta. Referência de escrita para Mil-
ton Hatoum, Euclides da Cunha investigara esta problemática em 1905, quando chefiou uma
expedição pelo Rio Purus, a qual lhe permitiu radiografar a situação em que vivia o seringuei-
ro, concluindo ser ele “o homem que trabalha para escravizar-se”.3 Estes miseráveis que vivi-
am em uma situação crítica ganhariam, dessa maneira, um de seus maiores porta-vozes, capaz
de revelar o que havia por traz dos milhares de dólares gerados pela exploração do látex, re-
servados a uns poucos comerciantes e ostentados por meio de grandes obras exibidas na capi-
tal manauara.4
Os resquícios da época de grandezas, em que empresas da Inglaterra foram responsá-
veis, entre outras coisas, pela instalação do porto de Manaus, o Manaus Harbour, e em que a
exploração econômica rebaixou homens a uma condição miserável e desumana ainda ecoam
pelos romances de Hatoum. Assim, o período de luxo, em que as famílias abastadas manda-
vam seus filhos estudar na Europa, e a arquitetura local era inspirada nos estilos Art nouveau e
Neoclássico, com destaque para o Teatro Amazonas ou o Mercado Municipal Adolpho Lis-
boa, construídos com materiais exclusivamente europeus (DAOU, 2000), contrasta com o ar
interiorano e limitado que a cidade adquiriria nas primeiras décadas do século XX, após a
perda de sua maior fonte de renda para os seringais da Malásia.5 Ainda controlada por grandes
comerciantes que detinham o monopólio da navegação e da exploração da borracha, da juta
ou do comércio de alimentos, esta Manaus provinciana recebe levas de imigrantes do interior

3
As considerações de Euclides da Cunha viriam a público apenas quatro anos depois, em 1909, na edição pós-
tuma À margem da história. (Cf. CUNHA, Euclides. À margem da história. P. 278. In: _____. Obras comple-
tas. Ed. Afrânio Coutinho com estudos de O. Souza Andrade. Manuel Bandeira, Gilberto Freyre, Araripe Júnior,
Afrânio Peixoto, Nélson Werneck Sodré, Francisco Venâncio Filho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. 2 vol.).
4
O interesse de Milton Hatoum pela obra de Euclides da Cunha salta aos olhos, sendo declarado em entrevistas e
palestras, como a concedida durante o evento Euclides da Cunha 360º, Ciclo da Amazônia. Há também um conto
intitulado “Uma carta para Bancroft” em que o autor de Os sertões é, de algum modo, transformado em persona-
gem, autor de um documento encontrado pelo narrador em visita a uma biblioteca norte-americana (Cf. HA-
TOUM, Milton. Euclides da Cunha foi um gênio verbal. Estadão.com.br/Tv Estadão. Palestra concedida no
evento Euclides da Cunha 360º, Ciclo da Amazônia. Disponível em: <http://tv.estadao.com.br/videos,milton-
hatoum-euclides-da-cunha-foi-um-genio-verbal, 68591,253,0.htm?pagina=4> . Acesso em 06 set. 2010; HA-
TOUM, Milton. Uma carta de Bancroft. In: _____. A cidade ilhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
P.23-28).
5
Warren Dean esclarece como se dá este processo que culminaria com o cultivo da árvore originária da bacia
hidrográfica do Rio Amazonas, a Hevea brasiliensis, na Malásia. Os ingleses, que carregaram as mudas do Bra-
sil, investiram no plantio das seringueiras e no aprimoramento de técnicas de extração do látex, tornando-se os
principais responsáveis pela quebra do monopólio brasileiro. Embora restassem a ferrovia Madeira-Mamoré e
algumas cidades, como Porto Velho e Guajará-Mirim, heranças do período de ouro da exploração, a crise eco-
nômica provocada pelo término do Ciclo da borracha deixaria marcas profundas em toda a Região Amazônica,
entre as quais destacou-se a queda na receita dos estados, o alto índice de desemprego, o êxodo rural e urbano e o
completo abandono de sobrados e mansões após a falência de seus donos. Alem disso, o autor confere especial
destaque à completa falta de expectativas em relação ao futuro para os que insistiram em permanecer na região.
(DEAN, Warren. A luta pela borracha no Brasil: um estudo de história ecológica. Tradução de Cid Knipel
Moreira. São Paulo: Nobel, 1989).
4

devastado e de estrangeiros empobrecidos ou ameaçados por conflitos bélicos, entre os quais


destacam-se os de origem árabe, responsáveis pela instalação do comércio varejista na região.
Apesar dos narradores descreverem plantas, animais e receitas típicas, Manaus é des-
pida de exotismo nos romances. A cidade imaginária encravada na mata mostra-se singular-
mente parecida com qualquer região periférica e pobre do planeta. Como salienta Maria Zilda
Cury: “tentacular e devoradora, exibe a degradação dolorosa de sua população nativa. Os ho-
mens, confundidos ao lixo urbano, a cidade transformada no corpo em chagas de seus habi-
tantes”. (CURY, 2000, p.71). Este quadro persiste em Dois irmãos, no qual a estagnação e a
decadência começam a dar lugar a um projeto nacional de modernização do país e, juntamente
com ele, da capital manauara. O ápice desta fase seria a criação da Zona Franca de Manaus
(ZFM), em 1967, e, posteriormente, do Pólo Industrial de Manaus (PIM), a partir de 1972.
Com incentivos fiscais para toda a Amazônia Ocidental – que incluía os estados do
Amazonas, do Acre, de Rondônia e de Roraima –, visavam dotar a região de condições que
permitissem o desenvolvimento e a segurança local em razão do isolamento econômico a que
ficaram relegados com a desvalorização da borracha; além de garantir proteção a uma região
de riquezas naturais e posição estratégica cobiçadas. Assim, Manaus, que até a década de
1960 era uma pacata cidade de 300 mil habitantes, passa a crescer em ritmo acelerado, até
atingir a notória cifra de 1,7 milhões nesta última década (IBGE, 2010). A mudança econômi-
ca, como era de se esperar, gerou grandes transformações urbanas e sociais, que acarretaram
em sérias consequências ao modificar as feições da cidade. Nael, o narrador de Dois irmãos,
lamenta a paradoxal selvageria envolvida no processo de modernização esterilizante operado
na capital, observando que

[...] atracados no Manaus Harbour, os grandes cargueiros achatavam barcos e cano-


as, ocultando o horizonte da floresta. No centro da praça não havia mais a multidão
de pássaros que encantava as crianças. Agora o aviário que tanto me fascinara estava
silencioso. Sentados na escadaria da igreja, índios e migrantes do interior do Ama-
zonas esmolavam. (HATOUM, DI, 2007, p. 179-180)

O novo ciclo econômico ganha maior relevo no romance com as modificações ope-
radas na cidade. Tais transformações acarretam nos destinos individual, familiar e coletivo
que se veem cruzados, quando não postos em choque. Ilustração desta predisposição do nar-
rador pelo confronto é o episódio em que a narra a demolição do tradicional bairro manaura
que submergia na superfície do Negro. Tendo acolhido ex-seringueiros desprovidos de renda
e castigados pela falta de moradia, a construção da Cidade Flutuante, como ficou conhecida,
iniciara-se em 1920 e se consolidaria na década de 1960, dando origem a uma espécie de
“bairro anfíbio”, cuja derrubada é representada no segundo romance de Hatoum.
5

A inviabilidade do lar é estendida, por conseguinte, à cidade como um todo, ao seu


progresso que destrói os espaços de convivência mútuos e maltrata as pessoas em favor de
“uma cidade do futuro”, em uma espécie de crítica à destruição das memórias pessoal, famili-
ar e urbana.6 Logo, não é mais a natureza ou o burburinho da cidade que penetram a casa, mas
o turbilhão de acontecimentos políticos, militares e sociais que se fazem audíveis: o espanca-
mento do professor no coreto da praça que se repete entre os irmãos sob a soleira da porta,
para então ganhar as ruas novamente nas mãos de policiais; as salas e os quartos ocupados
pelo clima de instabilidade ou euforia econômica; as personagens tomadas de assalto, atônitas
diante da destruição de parte da cidade, numa marcha que afasta os moradores do rio rumo à
nova periferia, desmatando sempre, floresta adentro.
A fim de realizar esta cartografia, problematizando a passagem de uma estagnação
provinciana até a modernização violenta operada pela ditadura militar, notamos a presença de
uma peça-chave nos sobrados. A começar por Relato de um certo Oriente que, ambientado no
Amazonas a partir do início do século XX, portanto, algumas décadas após a abolição da es-
cravatura, evidencia resquícios de uma fase mal superada. Aqui, não é o escravo ou o agrega-
do que ganha relevo como o ser fora do lugar num mundo ribeirinho. Este papel, responsável
por descortinar a vida privada das famílias, com a inserção de personagens vindas de fora, é
delegado à empregada, cunhantã trazida da mata, que marca o início e o final de um período
em que, ao imiscuírem-se na capital manauara, não são os costumes tradicionais que prevale-
cem, sejam eles estrangeiros ou locais, mas a mescla de tradições, hábitos, arquitetura, reli-
gião e sangue, entre antigos moradores da região, imigrantes não nacionais e índios.
Presente tanto em Relato de um certo Oriente quanto em Dois irmãos, é digna de no-
ta a maneira como os imigrantes árabes que então povoavam Manaus reproduziram, a seu
turno, o tratamento secularmente oferecido aos serviçais naquelas paragens, revelando uma
forma de exploração que começava a entrar em lento declínio, apesar de ser visível ainda ho-
je, sobretudo nas regiões Norte e Nordeste do Brasil. Prova de que a Lei Áurea fora ignorada,
ou antes, de que a escravidão fora assimilada a seu modo ao penetrar pelo Delta do Amazo-
nas, Dorner, então um homem vivido, oferece uma síntese dos valores locais ao assegurar que
o privilégio naquelas terras não decorria apenas da posse de riquezas, mas do reinado de uma
6
Posteriormente, em Cinzas do Norte e em Órfãos do Eldorado, o topos da casa seria novamente explorado.
Com algumas alterações, todavia: no terceiro romance de Hatoum a mãe deixa de ser emblema da casa, é o pai,
Jano, uma espécie de barão da juta, o responsável por manter a casa erguida e cuja queda simboliza o fim deste
tipo de exploração comercial, hierarquia familiar e moradia residencial. Em Órfãos do Eldorado, por sua vez,
embora a casa não seja investida de uma identificação tão acentuada num primeiro momento, perdê-la significa
perder-se no mundo, não encontrar mais um porto seguro. Ou seja, a casa é sempre empregada como uma forte
ilustração do destino de todos, espelho da família, acenando para sua fortuna, declínio, ruína ou perda, sem ne-
cessariamente remeter ao acolhimento ou à proteção, tanto no tempo presente quanto no da memória.
6

estranha forma de escravidão: “– A humilhação e a ameaça são o açoite; a comida e a integra-


ção ilusória à família do senhor são as correntes e golinhas.” (RCO, p.88).
De fato, a liberdade dos índios, considerada o “motor” da história colonial, com a le-
gitimação de sua posse, arrastou-se por séculos através de mal disfarçadas tentativas de cate-
quizá-los e civilizá-los a fim de torná-los “úteis” (PERRONE-MOISSÉS, 1992, p.118). Desde
Pombal, uma retórica mais secular de “civilização” vinha se agregando à da catequização,
conforme sublinha Manuela Carneiro da Cunha. E “civilizar” era submeter às leis e obrigar ao
trabalho, elevando os índios a uma condição propriamente social, isto é, aceitável como “hu-
mana”, fosse impedindo a entrada de estrangeiros e trazendo mais índios da floresta para
atender aos interesses dos moradores locais, fosse explorando o látex antes da chegada de
imigrantes nordestinos ou servindo nas casas de família. Mudando de governo ou de políticas
indigenistas persiste, em todo caso, um cenário em que a escravidão dos índios foi abolida
várias vezes, em particular no século XVII e XVIII. Ou seja, a própria abolição foi várias ve-
zes abolida legalmente, mas nunca efetivamente (CUNHA, M., 1992, p.146)
Hakim, a quem fora dirigida a sentença do ex-fotógrafo sobre a condição escrava das
serviçais, percebia a verdade contida na fala do então professor ao referir-se aos serviçais pre-
sentes em parcela considerável dos lares.7 Em sua própria casa, notava “um esforço da parte
de Emilie para manter acesa a chama de uma relação cordial com Anastácia Socorro” (RCO,
p.89), o que contrastava com as interdições impostas diariamente:

[...] as lavadeiras e empregadas da casa não recebiam um tostão para trabalhar, pro-
cedimento corriqueiro aqui no norte. Mas a generosidade revela-se ou se esconde no
trato com o Outro, na aceitação ou recusa do Outro. Emilie sempre resmungava por-
que Anastácia comia “como uma anta” e abusava da paciência dela nos fins de se-
mana em que a lavadeira chegava acompanhada por um séquito de afilhados e sobri-
nhos. Aos mais encorpados, com mais de seis anos, Emilie arranjava uma ocupação
qualquer: limpar as janelas, os lustres e os espelhos venezianos, dar de comer aos
animais, tosquear e escovar o pêlo dos carneiros e catar as folhas que cobriam o
quintal. Eu presenciava tudo calado, moído de dor na consciência, ao perceber que
os fâmulos não comiam a mesma comida da família, e escondiam-se nas edículas ao
lado do galinheiro, nas horas da refeição. A humilhação os transtornava até quando
levavam a colher de latão à boca. (RCO, p.85-86).

Decorridas algumas décadas, em Dois irmãos a relação entre patrões e empregada


tem seu conflito amenizado, mas ainda persiste a exploração e a assimetria. Domingas e so-
bretudo seu filho, Nael, “Podia freqüentar o interior da casa, sentar no sofá cinzento e nas
cadeiras de palha da sala. Era raro eu sentar à mesa com os donos da casa, mas podia comer a

7
Tema recorrente na prosa do autor, em um texto intitulado “Segredos da Marquesa” vemos a mesma questão
ser elaborada de forma sintética: “As mães comuns não permitiam que „indiozinhos‟ convivessem com seus
filhos, mas não podiam viver sem as mãos serviçais desses mesmos „indiozinhos‟.” (Cf. HATOUM, Milton.
Segredos da marquesa. Entre livros, São Paulo, ano 3, n. 31, p. 42-43, nov. 2007, p.42).
7

comida deles, beber tudo, eles não se importavam.” (DI, p.60). Esta melhor disposição não
significa, como foi dito, o fim da servidão, visto que os empregados não eram livres para par-
tir e permanecem sem receber, ainda que acumulassem funções. A lida doméstica, a cozinha e
a criação dos filhos do casal, antes a cargo de várias escravas, passam a ser concentradas em
muitos casos sob os ombros de uma única pessoa.8
Nesse ínterim em que se nega a posse, mas a prática a efetiva, as crianças, vistas co-
mo mais modeláveis, eram as maiores vítimas. As órfãs eram arrebanhadas na mata, compra-
das de seus pais por bagatelas ou raptadas a força, tanto para alimentar a prostituição infantil
quanto para serem posteriormente revendidas às fazendas ou aos sobrados. Dois irmãos
exemplifica bem o drama desse contingente humano ao retratar Domingas, que perdera a mãe
e o pai ainda criança, ser levada da aldeia para internarem-na em um convento contra a pró-
pria vontade. Ali, como outrora as servas domésticas eram escolhidas na senzala entre as me-
lhores escravas, “as mais limpas, mais bonitas, mais fortes, menos boçais e mais ladinas”9, as
índias eram selecionadas. Domingas narra em detalhes o dia em que, após anos de reclusão,
lhe ordenaram que tomasse “um banho de verdade”, lavando a cabeça, cortando as unhas dos
pés e das mãos, para que, limpa e cheirosa, fosse negociada com Zana, para cuidar dos afaze-
res no sobrado:

“Trouxe uma cunhantã para vocês”, disse a irmã. “Sabe fazer tudo, lê e escreve di-
reitinho, mas se ela der trabalho, volta para o internato e nunca mais sai de lá.” En-
traram na sala, onde havia mesinhas e cadeiras de madeira empilhadas num canto.
“Tudo isso pertencia ao restaurante do meu pai”, disse a mulher, “mas agora a se-
nhora pode levar para o orfanato.” Irmã Damasceno agradeceu. Parecia esperar mais
alguma coisa. Olhou para Domingas e disse: “Dona Zana, a tua patroa, é muito ge-
nerosa, vê se não faz besteira, minha filha”. Zana tirou um envelope do pequeno al-
tar e o entregou à religiosa. (DI, p.57).

Os orfanatos de então reproduziam a um só tempo alguns elementos presentes nos


conventos e nas casas coloniais. Ali o catolicismo era uma das ferramentas para ensinar o
respeito aos patrões, bem como o temor aos castigos divinos, uma poderosa arma contra quem

8
Resquícios da casa-grande, a relação entre senhores e escravos domésticos é caracterizada como mais próxima
no Brasil do que em qualquer outra parte da América. O estreitamento de laços devido à convivência diária, por
conseguinte, não é uma aberração, mas uma das características de um sistema de exploração que a passagem da
escravidão para formas de semi-escravidão não elimina de todo. Como salienta Gilberto Freyre: “A casa-grande
fazia subir da senzala para o serviço mais íntimo e delicado dos senhores uma série de indivíduos – amas de
criar, mucamas, irmãos de criação dos meninos brancos. Indivíduos cujo lugar na família ficava sendo não o de
escravos mas o de pessoas de casa. Espécie de parentes pobres nas famílias européias.” FREYRE, Gilberto.
Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil: casa-grande & senzala. In: Intérpretes do Brasil. Coord.
seleção e prefácio Silviano Santiago. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002. p.453.
9
“Ladina” era o termo empregado no Brasil desde o século XVII para distinguir as negras já cristianizadas e
abrasileiradas daquelas recém chegadas da África ou mais resistentes no sentido de preservar sua cultura de
origem. (FREYRE. Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil: casa-grande & senzala. Ibid., p.453).
8

pensasse em fugir: “Deus vai castigar, diziam.” (DI, p.56). As tentativas de fuga, mesmo que
muitas vezes frustradas, eram frequentes, porque o apego das índias a sua aldeia natal era
simplesmente ignorado. Como se não possuíssem um passado, o lugar de origem era negado
aos povos nômades. Manuela Carneiro da Cunha enfatiza que “contrariamente ao que malici-
osamente se apregoa, os índios, errantes ou não, conservam a memória de seus territórios tra-
dicionais” (CUNHA, M., 1992, p.142), de modo que a impossibilidade de retorno os lança na
traumática situação de exilados.
De arquitetura horizontal, espalhada, as enormes cozinhas, vastas salas de jantar;
numerosos quartos para filhos e hóspedes; capela e puxados para acomodação dos filhos ca-
sados, também sofrem modificações: os casarões, ao mudarem-se para as vilas, compactam-se
no terreno, voltando-se para cima, ganhando as feições da casa-nobre ou do sobrado, antes
senhoril do que burguês. A diminuição drástica da quantia de aposentos e anexos sinaliza o
menor número de moradores e trabalhadores, visto que uma série de funções passa a ser dele-
gada a terceiros. Além disso, a proximidade da cidade, do comércio, das outras casas, da ma-
triz e do mercado, como pondera Freyre, diminui a complexidade das antigas relações sociais,
estabelecidas e controladas antes em um único ambiente. A nova morada não esquece, contu-
do, o seu passado colonial, aclimatando a senzala aos novos tempos. Reerguida no ambiente
urbano, nomeada de “quarto para criados” ou de “dependência das empregadas”, designa os
pequenos e precários puxados no fundo do terreno:

Domingas, a cunhantã mirrada, meio escrava, meio ama, “louca para ser livre”, co-
mo ela me disse certa vez, cansada, derrotada, entregue ao feitiço da família, não
muito diferente das outras empregadas da vizinhança, alfabetizadas, educadas pelas
religiosas das missões, mas todas vivendo nos fundos da casa, muito perto da cerca
ou do muro, onde dormiam com seus sonhos de liberdade. (DI, p.50).

Em detrimento de sua condição, ou melhor, em função dela, o papel exercido nas


tramas é o de uma espécie de elo entre o mundo da cidade e o interior da casa. Anastácia So-
corro, que trabalhava para Emilie, está presente nos momentos mais importantes da vida fami-
liar: é a primeira a perceber o letramento de Soraya Ângela, a enviada à Parisiense para co-
municar a trágica morte da menina, bem como a mediadora responsável por trazer o marido
da patroa de volta após os desentendimentos do casal. Dando sequência à linhagem materna,
sua filha é quem recebe a narradora após o regresso a Manaus e, nesse sentido, chama a aten-
ção para um traço que compartilha com as demais: a servidão e as reticências. Em resposta ao
bombardeio de perguntas da filha adotiva de Emilie “ela soltava um grunhido e confinava-se
novamente no seu mutismo ancestral” (RCO, p.11).
9

Domingas, por sua vez, é a “guardiã da casa”, a “empregada e cozinheira de muitos


anos”, a “cúmplice no momento das orações”, de modo que ao chegar a velhice Zana empre-
gava um elogio duvidoso dizendo que era “sua escrava fiel”. Ao lado de Halim, é a principal
informante de Nael, em cuja narração periférica somos apresentados a um outro lado da cida-
de e a uma faceta diversa da família: enquanto Omar visitava as rodas sociais com a mãe, os
cafés, os encontros de senhoras, os bailes de carnaval e os espetáculos da capital; Domingas
brincava com Yaqub nos navios encalhados em igarapés lamacentos. Posteriormente, também
conduz o leitor pelas águas, guiando-nos rio acima, acuada por cenas de pobreza e desamparo
de vidas indigentes como a dela, lutando contra a própria torrente de lembranças infelizes.
Entre as quatro paredes do sobrado, é ela quem descortina o lado oculto dos que ali residem: o
fervor amoroso dos patrões, a história da cicatriz do mais velho, as madrugadas de bebedeira
do Caçula, a briga derradeira entre irmãos, além de revelar outras vergonhas familiares, pois,
como assinala Nael: “Vivia atenta aos movimentos dos gêmeos, escutava conversas, rondava
a intimidade de todos. Domingas tinha essa liberdade, porque as refeições da família e o bri-
lho da casa dependiam dela.” (DI, p.20).

2 SOBRADOS & PUXADOS


Ao oferecerem seu ângulo de visão, os serviçais ganham importância nas tramas,
mudando o foco da história e permitindo que tracemos um paralelo com outra empregada im-
portante na literatura. Leitor assíduo e admirador confesso de Gustave Flaubert, afora tradu-
tor, juntamente com Samuel Titan Júnior, dos contos que integram Três contos10, o meio sécu-
lo de servidão de Félicité, protagonista de “Un coeur simple”, pautado por uma sequência de
infortúnios e perdas nos auxiliam a observar certas convergências e particularidades entre a
metrópole e a colônia. Devastadas por estas personagens que transitam entre a periferia e o
centro, vemos descortinarem as suas costas o bairro pobre onde nasceram, além do quintal dos
fundos onde vivem. Ladeando o muro em uma zona de transição, de contato entre o dentro e o
fora, estas personagens não perdem de vista a casa e o seu interior, que inclui não apenas a
cozinha ou a área de serviço, mas abarca até a intimidade do quarto do casal. 11 O resultado é

10
Além de “Um coração simples”, a trilogia planejada pelo escritor francês é integrada pelos contos “A legenda
de São Julião Hospitaleiro” e “Herodíade”. (FLAUBERT, Gustave. Três contos. Tradução de Milton Hatoum e
Samuel Titan Júnior. São Paulo: Cosac Naify, 2004).
11
Em entrevista concedida à revista Caros amigos, Hatoum revela a origem de sua estreita relação com a litera-
tura francesa, sugerindo a influência de sua professora particular de francês, responsável por guiá-lo na leitura
dos contos de Flaubert quando garoto, traduzindo Um Coração Simples que, em suas palavras: “foi fundamental
pra mim tanto que uma personagem de Dois Irmãos, a Domingas, é inspirada nesta Felicité do Coração Simples.
E isso me tocou tanto que 35 anos depois eu traduzi esse livro com um amigo, estão lá três contos.” (Cf. HA-
10

que, se por um lado vemos repetir-se o mesmo ambiente estreito, marcado por contingências
materiais, por outro, o lugar central de sua condição subordinada é revelado pela narração em
constante trânsito.
Como não eram inteiramente donas de si mesmas, de seus corpos, não é de se estra-
nhar que seus filhos fossem tratados como assunto de família, cabendo aos patrões decidir o
seu destino. Este é o caso de Nael. Diferentemente de Paul e Virginie, as crianças aos cuida-
dos de Félicité, ou mesmo de Soraya Ângela e dos irmãos adotivos, os três vigiados por Anas-
tácia Socorro, o narrador ressente-se do roubo de sua infância, sobretudo na omissão de sua
história pessoal:

Eu não sabia nada de mim, como vim ao mundo, de onde tinha vindo. A origem: as
origens. Meu passado, de alguma forma palpitando na vida dos meus antepassados,
nada disso eu sabia. Minha infância, sem nenhum sinal da origem. É como esquecer
uma criança dentro de um barco num rio deserto, até que uma das margens a acolhe.
Anos depois, desconfiei: um dos gêmeos era meu pai. Domingas disfarçava quando
eu tocava no assunto; deixava-me cheio de dúvida, talvez pensando que um dia eu
pudesse descobrir a verdade. (DI, p.54).

Tal qual na história de Moisés, o menino que desce as águas do rio para ser salvo da morte, o
anonimato é condição necessária para assegurar a permanecia de Nael na casa. Na manuten-
ção do segredo estava a permissão de ficar junto à mãe. Morar no quartinho dos fundos, entre-
tanto, não era garantia de aceitação, integração e muito menos liberdade. Mesmo contando
com alguma independência, desde pequeno “trabalhava em casa, ajudava na faxina, limpava o
quintal, ensacava as folhas secas e consertava a cerca dos fundos. Saía a qualquer hora para
fazer compras, tentava poupar minha mãe, que também não parava um minuto. Era um corre-
corre sem fim.” (DI, p.60-61). Como tampouco ele recebia qualquer dinheiro pelos afazeres,
sua subsistência estava atrelada aos restos da casa, como relembra ao afirmar que a partida de
Yaqub fora providencial, pois, “Além dos livros usados, ele deixou roupas velhas que anos
depois me serviriam” (DI, p.30).
Os chamados da rua interferem na rotina do menino que se torna uma ponte entre o
sobrado, a vizinhança e a cidade. Desempenhando os afazeres do tradicional moleque de re-
cados, cabe-lhe perambular a fim de suprimir as lacunas de uma comunicação ainda incipien-
te, buscando produtos e pagando contas nas lojas, bem como vasculhando pela vizinhança as
últimas fofocas. Louco para descansar, longe das vozes, das ameaças e das ordens, sua única

TOUM, Milton. Milton Hatoum: o escritor exigente da literatura contemporânea. Entrevista concedida a Hamil-
ton Octavio de Souza, Lúcia Rodrigues, Renato Pompeu e Tatiana Merlino. Caros amigos, São Paulo, ed. 156,
mar. 2010).
11

pausa era o período que passava na escola, isto quando conseguia ir à aula, uma vez que seus
estudos não eram prioridade na casa:

Eu contava os segundos para ir à escola, era um alívio. Mas faltava às aulas duas,
três vezes por semana. Fardado, pronto para sair, a ordem de Zana azarava a minha
manhã na escola: “Tens que pegar os vestidos na costureira e depois passar no Au
Bom Marché para pagar as contas”. Eu bem podia fazer essas coisas à tarde, mas ela
insistia, teimava. Eu atrasava as lições de casa, era repreendido pelas professoras,
me chamavam de cabeça-de-pastel, relapso, o diabo a quatro. (DI, p.65).

Seu esforço para estudar tinha uma razão de ser. Tal qual acontecera com os negros alforria-
dos que, como pondera Freyre, sem nenhuma espécie de assistência por parte do Estado ou
dos ex-patrões, depararam-se após a abolição com abusos por parte de uma monocultura lati-
fundiária ainda mais absorvente e esterilizante do que o antigo regime, e ainda mais feudal na
exploração de um proletariado de condições menos favorável de vida do que a massa escrava,
o futuro ao ser liberto dos sobrados amazonenses não era promissor. A liberdade da semi-
escravidão doméstica dos indígenas limitou-se em muitos lugares a um agravamento da ex-
ploração, quando não resultou em total desamparo.
O sentimento de exílio medido por trocas de posição similares que muitas vezes
ocorrem entre senhores e escravos, conforme sublinhado por Julia Kristeva, implica em dizer
que todo nativo sente-se mais ou menos estrangeiro em seu lugar supostamente “próprio”.
Neste contexto, o valor metafórico do termo estrangeiro conduz o sujeito a um embaraço refe-
rente à sua identidade sexual, nacional, política e profissional, para em seguida empurrá-lo
para uma identificação, certamente casual, mas não menos intensa – com o outro: “Assim,
estabelece-se entre os novos „senhores‟ e os novos „escravos‟ uma cumplicidade secreta, que
não tem, necessariamente, conseqüências práticas na política ou na jurisprudência [...], mas
cava uma suspeita, sobretudo no nativo: será que estou realmente em casa? Será que sou eu ou
serão eles senhores do „futuro‟?” (KRISTEVA, 1994, p.27).
Sem gozar da sorte de um bom nascimento, ignorado pelo Estado e privado da eira e
da beira dos sobrados, o segundo romance de Hatoum aponta a dimensão deste problema
através da personagem de Calisto, o curumim meio parrudo que vivia no cortiço dos fundos e
cuidava dos animais dos Reinoso. Após o declínio desta que era uma das famílias mais ricas
da cidade, o rapaz deixa a mansão, abandonado à própria sorte. Homem feito, mas sem ampa-
ro nem preparação, acena para Nael e Domingas no porto: “Descalço, só de calção, ele espe-
rava uma ordem para descarregar caixas de produtos eletrônicos. Eu não sabia que ele traba-
lhava aos domingos no porto. Calisto se livrara das garras de Estelita Reinoso, mas agora ti-
nha de agüentar outro peso.” (DI, p.180).
12

O futuro do vizinho só reforça a dificuldade de superar a condição servil imposta pe-


los sobrados a esse enorme contingente de personagens periféricas e exiladas. O estudo é,
pois, uma porta estreita, mas pela qual Nael teima em passar, compreendendo ser esta a única
possibilidade de emancipação, de existência autônoma após livrar-se dos sobrados tentacula-
res. Longe da servidão junto às famílias ou da exploração do trabalho braçal nas ruas, Nael
sintetiza: “Eu ia conseguir isso: o diploma do Galinheiro dos Vândalos, minha alforria.” (DI,
p.30). Desejo de ser livre de quem compreende que pertence à família sem fazer parte dela,
circulando pela casa toda, mas recolhendo-se nos fundos para dar mostras do caráter ambíguo
das relações mais íntimas. Apesar da ênfase que as matriarcas dão aos laços de sangue, estas
personagens revelam a existência de uma abertura para o ambiente externo. Assim, o contato
com o outro e com a cidade é introduzido ou, no mínimo, mediado, por quem traz a floresta,
as compras e as fofocas para dentro de casa, sendo forçado a compartilhar até a própria rede,
não quando querem, mas quando os de casa assim o determinam.

3 MURALHA VERDE
A fim de concluir a análise do espaço doméstico e sua influência sobre as persona-
gens nos dois romances em questão, faz-se necessário averiguar a parte externa das moradas.
Após adentrar nos sobrados e puxados conduzidos pelos serviçais manauaras, é o momento
oportuno para pensarmos no bosque e na mata, no quintal e no jardim, não como formas de
preenchimento do terreno ou da narrativa, mas como lugares que se somam aos demais ambi-
entes para conferir novas significações à existência das personagens.
Nos romances de Milton Hatoum em análise a mata é conservada à distância, pene-
trando nas casas apenas através da narração de terceiros. Mostra-se mais próxima da monoto-
nia das grandes planícies ou das paisagens oceânicas que alteram até mesmo a percepção da
passagem do tempo, como bem observou Euclides da Cunha (CUNHA, 1995, p.278). En-
quanto muralha verde, a floresta Amazônica mantêm-se longe das divisas do quintal, é antes
um obstáculo que limita não tanto as casas, quanto a cidade como um todo, como confirma,
mais uma vez, o olhar perspicaz de Dorner. Com espírito de bandeirante, ou melhor, de natu-
ralista, o viajante alemão fazia incursões exaustivas em que se embrenhava por meses na flo-
resta. Relutante em aceitar o temor de Hakim e de tantos que se limitavam a contemplá-la,
sonhando com a outra margem do rio como algo distante, inatingível: “observava que o mora-
dor de Manaus sem vínculo com o rio e com a floresta é um hóspede de uma prisão singular:
aberta, mas unicamente para ela mesma. „Sair dessa cidade‟, dizia Dorner, „significa sair de
um espaço, mas sobretudo de um tempo‟. (RCO, p.82).
13

Entrar e sair da floresta, por conseguinte, não faz parte da rotina dos moradores que
vivem dentro da cidade, do seu dia a dia, mas é como se fosse um ritual de passagem para
quem entra ou sai de Manaus, obrigado-o a desvencilhar-se da mata e do rio, infinitos para o
olhar distante. Em Relato de um certo Oriente, a filha adotiva opta por sobrevoar a cidade a
noite para vê-la lentamente imergir da escuridão, da floresta e do rio. Temia, talvez, o impacto
de um arrebatamento profundo diante da mata, como o experimentado pelo pai quando de-
sembarcara ali pela primeira vez, presenciando o místico despertar da floresta:

Ansioso, esperei o amanhecer: a natureza, aqui, além de misteriosa é quase sempre


pontual. Às cinco e meia tudo ainda era silencioso naquele mundo invisível; em
poucos minutos a claridade surgiu como uma súbita revelação, mesclada aos diver-
sos matizes do vermelho, tal um tapete estendido no horizonte, de onde brotavam
miríades de asas faiscantes: lâminas de pérolas e rubis; durante esse breve intervalo
de tênue luminosidade, vi uma árvore imensa expandir suas raízes e copa na direção
das nuvens e das águas, e me senti reconfortado ao imaginar ser aquela a árvore do
sétimo céu. (RCO, p.73).

Reforçando a ideia de que Manaus é “uma perversão urbana” tendo em vista seu pe-
rímetro em constante alargamento, a cidade tenta domar o terreno, contornando as casas com
uma natureza domesticada, seja escolhendo as espécies a serem cultivadas, seja amansando os
animais. As matriarcas perambulariam por esses espaços até o final de suas vidas: Emilie se-
ria, inclusive, encontrada desfalecida em meio às plantas, enquanto Zana é obrigada a renun-
ciar a esse espaço, “onde a copa da velha seringueira sombreava as palmeiras e o pomar culti-
vados por mais de meio século” (DI, p.09). Símbolo recorrente e de múltiplos sentidos, na
tradição cristã o jardim representa o paraíso terrestre, uma vez que no Gênesis o paraíso era
um jardim cultivado por Adão. Paralelamente, entre os muçulmanos, após morrerem os eleitos
vão para as moradas paradisíacas, terras onde, segundo o Islã, Alá é o jardineiro. Por ter sua
vegetação obediente às leis e à vontade do homem, o jardim simboliza o poder desse homem,
a cultura em oposição à natureza selvagem, a reflexão em oposição à espontaneidade, a ordem
contra a desordem, a consciência contra o inconsciente. Aparenta-se, pois, ao oásis e à ilha,
remetendo ao frescor, à sombra e ao refúgio, razões pelas quais é bastante encontrado na tra-
dição islâmica de tapetes não-figurativos, como o do próprio pai em Relato de um certo Ori-
ente.
Como nos claustros dos mosteiros ou nas casas orientais, as construções são sempre
pontuadas por jardins que apartam quem está dentro dos olhares alheios. Essa prática, que tem
raízes nas tentativas de afastar as mulheres da família dos demais, é visível na primeira obra
de Hatoum, em que Soraya Ângela e Samara Délia experimentam o lado protetor desse espa-
ço. A menina surda-muda que vivia reclusa no quarto só tinha permissão da mãe para ocupar
14

o jardim. Hipnotizada, tangencia cada canto daquele mundo natural na companhia das outras
crianças, magnetizada particularmente pela fonte de pedra, mas também pelas formas dos
bichos e pelo aroma e textura das plantas, conforme rememora a narradora: “[...] às vezes,
Soraya me ajudava e era curiosa a sua maneira de colher os jambos e as papoulas umedecidas
pelo sereno. Permanecia um tempão a mirar a polpa desse coração de veludo que é o jambo;
as papoulas, as orquídeas e as flores ela cheirava demoradamente e mais tarde intuí que o odor
e o olhar compensavam de certa forma a ausência dos dois sentidos.” (RCO, p.15). Samara
Délia experimentaria o jardim como claustro após perder a filha e recolher-se no espaço da
loja, quando recebe um pequeno jardim, cultivado nos fundos da Parisiense para a filha pelas
próprias mãos do pai, como sinal de perdão.
Os quintais lavrados nas tramas também são indício do lado mais matriarcal das ca-
sas, cujas feições prevalecem neste espaço em que as grandes mães procuram aninhar seus
rebentos. Adquirindo nesses momentos a forma de um corpo sedutor ou de um coração angus-
tiado, ansioso por impedir a partida dos filhos, constrói-se a falsidade do puro acolhimento.
Afinal, em oposição às imagens idealizadas no imaginário coletivo, em que o frio terrível do
inverno é aplacado pelo calor da lareira, é contra o calor abafado de Manaus e a rotina em
constante aceleração que a casa oferece seu remanso: o quintal sombreado e perfumado, re-
cendendo a frutas e a flores da mata. Simulacro do bem-estar, a imagem não resiste a um
olhar mais atento, visto que a maior parte do tempo não está em sintonia com o interior tumul-
tuado dos cômodos, tampouco com os corpos agitados e em conflito.
Em Dois irmãos, a floresta ainda seria penetrada por um olhar menos arguto que o de
Dorner. Antes um entrave para o desenvolvimento da cidade que a devasta para abrir novos
bairros, é o rio quem acaba por destacar-se, percorrido nas caçadas ao filho fugitivo, desem-
bocando em pequenos cais, vilas, aldeias e ilhas ribeirinhas. As histórias da floresta também
não são fantasiadas pelas palavras da empregada, mas congeladas no ato de esculpir, no gesto
que lentamente deixa de dar formas a pássaros e bichos, para compor um “reino de fantasma-
gorias”. Do lado de fora do sobrado o leitor depara-se com algo que parece um misto de jar-
dim e de bosque, entre cujas árvores se distinguem ao longo de toda a narrativa uma em espe-
cial: a imensa seringueira, plantada bem no meio do quintal. Não por acaso, em um romance
que faz várias alusões aos descaminhos da modernização de Manaus, ao seu passado portuário
e a seu crescimento desordenado que afasta as pessoas do rio de modo irreconciliável, é à
sombra da árvore-símbolo da Amazônia, cuja exploração selou dois períodos importantes na
história da Região Norte do Brasil, que o destino do sobrado desenrola-se, bem como sobre
sua proteção, que alcançava o quartinho dos fundos, que o narrador redige a saga familiar.
15

Perdendo o olhar na árvore, Halim rememorava a antiga paixão pela mulher e os


desgostos causados pelos filhos. Para pensamentos semelhantes, preocupada com Yaqub e
convencida de que os gêmeos nasceram perdidos, Domingas também se aproximava da serin-
gueira, não com o olhar, mas com o corpo que ali recostava. Além disso, era nesses galhos
que a empregada lamentava ver o carneiro ensanguentado ser pendurado para preparar as
iguarias da culinária oriental. Em seus troncos, ambos os gêmeos brincavam quando crianças,
antes que a rivalidade os envenenasse. Mas é Omar quem mais se aproxima desta árvore, algo
maternal posto que leitosa. Na sua casca busca alívio para a coceira da sífilis, noticiando o
incremento da prostituição nos subúrbios de Manaus. Na copada, encontra um mirante, de
onde observava a movimentação da casa e o trabalho de bichos nocivos e plantas daninhas
que arruinavam suas tentativas desleixadas de jardinar a natureza. E, finalmente, em suas raí-
zes Omar se refugiaria, acocorado, após desafiar o pai morto na sala. O outro filho, Yaqub,
renunciando à aldeia em favor da metrópole, afasta-se daquela seringueira, mas depara-se
com outra, um irônico duplo da árvore que, como ele próprio, se ergue imponente e bem
aclimatado em meio à cidade de São Paulo: “De vez em quando, ao atravessar a praça da Re-
pública, parava para contemplar a imensa seringueira. Gostou de ver a árvore amazônica no
centro de São Paulo, mas nunca mais a mencionou. As cartas iam revelando um fascínio por
uma vida nova, o ritmo dos desgarrados da família que vivem só.” (DI, p.44).
Em meio a esta galeria não falta o derradeiro confronto dos gêmeos que, indo ao en-
contro do grande temor de Halim, ocorre dentro do quintal, embaixo da velha sombra. E
mesmo no fim, fim da família, da casa e da narração, quando Omar invade o refúgio de Nael
em meio às trovoadas de um temporal, é a seringueira torta que, somada à rede ausente e a
entrada desmanchada da casa, evocam o tempo perdido:

Aproximou-se do meu quarto devagar, um vulto. Avançou mais um pouco e estacou


bem perto da velha seringueira, diminuído pela grandeza da árvore. Não pude ver
com nitidez o seu rosto. Ele ergueu a cabeça para a copa que cobria o quintal. De-
pois virou o corpo, olhou para trás: não havia alpendre, a rede vermelha não o espe-
rava. Era um olhar à deriva. (DI, p.197-198)

Em meio às plantas, ao jogo de luz e escuridão entre o sol e as árvores, os vultos encobertos
surpreendem-se estupefatos. Sombrear, que pode ser sinônimo de tranquilidade bem como de
tornar-se menos claro, de entristecer-se e mesmo de causar danos, mostra-se um campo se-
mântico recorrente. Na floresta, na mata, no bosque ou no jardim, os romances em estudo
permitem que uma gama de sentimentos sejam revelados neste espaço em que o significado
do sombrear aponta para inúmeras derivações. Ora revelando a ambivalência dos sentimentos,
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ora privilegiando um dos pólos, notamos a luz, o raciocínio e a concentração perderem espaço
gradativamente para a mancha escura que dissemina o devaneio e a loucura, o estranho e o
incompreensível. Obscurecimento causado pelo tempo que, pontilhado de passagens doloro-
sas, aponta para o esgarçamento de laços rotos, rumo à decadência, ao abandono e à ruína,
individual e familiar.
Tal é o caso da narradora de Relato de um certo Oriente, que acresce ao vazio exis-
tencial a ausência do convívio materno e a perda de pessoas queridas. Resulta daí que a casa,
outrora cheia de barulho e vida, morada da família com seus quatro filhos, mais os dois adoti-
vos e uma neta, repleta de bichos e plantas, volte a ser palco de conflitos cotidianos e histórias
interrompidas, resgatando os desencontros, as brigas e a solidão, só que no plano da memória
e do texto, na tentativa de encontrar essas vivências que imobilizavam a personagem no pas-
sado: “A conversa com os animais, os sonhos de Emilie, o passeio ao mercado na hora que o
sol revela tantos matizes do verde e ilumina a lâmina escura do rio. Na fala da mulher que
permanecera diante de mim, havia uma parte da vida passada, um inferno de lembranças, um
mundo paralisado à espera de movimento.” (RCO, p.11).
O tempo decorrido transformara a casa em um reduto da solidão, resultado da partida
de Hakim, que a mãe permite, mas nunca aceita; da tragédia ocorrida com Soraya Ângela; da
morte do pai; da fuga de Samara Délia; do abandono dos irmãos revoltados e do distancia-
mento dos filhos adotivos. Todos, de um jeito ou de outro, estrangeiros no próprio lar, foram
impelidos a buscar outras paragens, exceto a matriarca que, marcada pelas despedidas desde o
tempo de imigrante, aguarda na casa o momento da própria partida: “– Os daqui morrem em
casa, não nos hospitais” (RCO, p.113), respondera com voz ríspida ao filho após o atropela-
mento da neta.
Homi Bhabha coloca em destaque o estranhamento vivenciado pelo indivíduo que se
desloca de seu lugar original, partindo da noção de casa, que se expande até adquirir uma no-
ção de mundo. Viveríamos, pois, uma forma de estranhamento inerente àquele primeiro rito
de iniciação extraterritorial e intercultural iniciado ao abandonar nossas casas. Assim, os re-
cessos do espaço doméstico tornariam-se os lugares das invasões mais intrincadas da história.
Nesse deslocamento, as fronteiras entre casa e mundo se confundem e, estranhamente, o pri-
vado e o público tornam-se parte um do outro, forçando sobre nós uma visão que é tão dividi-
da quanto desnorteadora (BHABHA, 2005, p.30). Com a morte de Emilie este cenário é con-
cretizado de modo literal, uma vez que o lugar já em ruínas tem decretado seu fim, como le-
mos no trecho: “A casa está fechada e deserta, o limo logo cobrirá a ardósia do pátio, um dia
as trepadeiras vão tapar as venezianas, os gradis, as gelosias e todas as frestas por onde o
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olhar contemplou o percurso solar e percebeu a invasão da noite, precipitada e densa.” (RCO,
p.155). Calmamente, na casa onde a ausência crescia como uma planta virulenta, o vazio dei-
xado pela morte faz brotar o último cântico.
Em Dois irmãos a degradação da família também se repete, deixando marcas na resi-
dência que “foi se esvaziando e em pouco tempo envelheceu.” (DI, p.184). Tal personificação
da morada familiar ecoa na epígrafe do romance, uma estrofe do poema “Liquidação”, de
Carlos Drummond de Andrade (ANDRADE, 2002, p.943). Como o poeta que relembra a Ita-
bira de outrora, com seus retratos e fantasmagorias, a imagem da casa perdida ressurge com
força. Tal qual aquela, vendida com todas as lembranças, móveis, pesadelos, pecados, bater de
portas, vento encanado, vista do mundo e imponderáveis, a matriarca Zana é forçada a deixar
sua residência depois da morte do marido e do confronto dos filhos. Sem contar com a morte,
precisa assinar os papéis de venda no hospital, desfazendo-se do lugar que para ela “era quase
tão vital quanto a Biblos de sua infância: a pequena cidade no Líbano que ela recordava em
voz alta, vagando pelos aposentos empoeirados até se perder no quintal” (DI, p.09).
O “quase tão vital” é pleno de significados, uma vez que a casa no Brasil, apesar de
todo o valor afetivo proveniente das décadas passadas ali, não apaga as lembranças nem a
equipara à anterior, no Líbano. Ao unir a memória da outra casa, o texto mistura ambas as
perdas das quais Zana nunca se recuperou, exilada que fora pela segunda vez. Afirma o narra-
dor que a casa começara a desmoronar após a morte de Halim. Com a certeza da venda, todos
ali são tomados por um mal estar que acarreta no abandono prévio daquele lugar. Desiludida,
Zana negligencia este espaço, desistindo de manter qualquer ordem: “Não abria mais as jane-
las dos quartos, nem me mandava limpar o quintal nem o piso do alpendre. Osgas e besouros
mortos cobriam o pequeno altar empoeirado, os azulejos da fachada estavam encardidos, a
imagem da santa padroeira, amarelada”. (DI, p.187). Ainda assim, a matriarca recusa-se a
entregar a casa enquanto pode. Finalmente, já hospitalizada, assina a venda: “Ela chorou, co-
mo se sentisse uma dor terrível. Nunca mais voltou. Deitou-se em outro quarto, longe do por-
to, no lar que não era para ela.” (DI, p.189).
Descuidada, vendida e posteriormente desfigurada, a casa da família que se desman-
chara lentamente recebe destino similar ao dos que lá habitaram, igualmente em consonância
com os novos rumos tomados pela cidade: as plantas morreram ou foram arrancadas. Os azu-
lejos com a imagem da santa padroeira, polidos durante anos como testemunho de uma religi-
osidade cultuada no dia a dia, são arrancados, substituídos por néons que anunciam quinqui-
lharias e badulaques importados. Permanece intocado apenas o pedaço de terreno nos fundos,
com sua meia-água que abrigava os empregados. E junto com a seringueira que sombreia esta
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parte do terreno, fica de pé Nael, o menino mestiço criado nos fundos, sem pai nem identida-
de, que, de acordo com Zana, “só existia como rastro dos filhos dela” (DI, p.28). Halim, em
sua lucidez reticente, distingue mais claramente o lugar do neto bastardo: mais do que Yaqub,
Omar ou Rânia, na mistura de cores, origens e tradições, era ele o verdadeiro “filho da casa”.
Ironia maior, parte de excluídos como o garoto rejeitado ou a filha adotiva o olhar que narra a
história de todos, únicos sobreviventes interessados em dar alguma forma aos anos e às per-
das. Lúcidos ou não, mostram-se dispostos a reconstituir a história destas casas e destas famí-
lias que, apesar de não integrarem-nos plenamente, são também a sua e a de uma Manaus per-
dida na memória. Em álbuns de família amarelados, tratados de história ou política, igualmen-
te ficção, poeira e poesia.

4 REFERÊNCIAS

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CUNHA, Euclides. Obras completas. Ed. Afrânio Coutinho com estudos de O. Souza An-
drade. Manuel Bandeira, Gilberto Freyre, Araripe Júnior, Afrânio Peixoto, Nélson Werneck
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CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia
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CURY, Maria Zilda Ferreira. De orientes e relatos. In: SANTOS, Luis Alberto Brandão; PE-
REIRA, Maria Antonieta. Trocas culturais na América Latina. Belo Horizonte: EdUFMG,
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DEAN, Warren. A luta pela borracha no Brasil: um estudo de história ecológica. Tradução
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FLAUBERT, Gustave. Três contos. Tradução de Milton Hatoum e Samuel Titan Júnior. São
Paulo: Cosac Naify, 2004.

FREYRE, Gilberto. Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil: casa-grande


& senzala. In: Intérpretes do Brasil. Coord. seleção e prefácio Silviano Santiago. Rio de Janei-
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HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
19

_____. Dois irmãos. São Paulo: São Paulo: Cia das Letras, 2000.

_____. Segredos da marquesa. Entre livros, São Paulo, ano 3, n. 31, p. 42-43, nov. 2007.
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_____. Euclides da Cunha foi um gênio verbal. Estadão.com.br/Tv Estadão. Palestra concedi-
da no evento Euclides da Cunha 360º, Ciclo da Amazônia. Disponível em:
<http://tv.estadao.com.br/videos,milton-hatoum-euclides-da-cunha-foi-um-genio-verbal,
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_____. Milton Hatoum: o escritor exigente da literatura contemporânea. Entrevista concedida


a Hamilton Octavio de Souza, Lúcia Rodrigues, Renato Pompeu e Tatiana Merlino. Caros
amigos, São Paulo, ed. 156, mar. 2010.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. IBGE Cidades@: Manaus-


AM: estimativa da população para 2009. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/cidadesat/
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KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Tradução de Maria Carlota Carvalho
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PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação in-


digenista do período colonial (séculos XVI a XVIII). In: CUNHA, Manuela Carneiro da
(Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras; Secretaria Munici-
pal de Cultura; FAPESP, 1992.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo

A VELHA, O GUINDASTE, O OVO E A CADEIRA

Djulia Justen1 (UFSC)

RESUMO

Uma velha, o guindaste que vê o ovo, a cadeira: estes objetos, mencionados nos textos da
escritora Clarice Lispector, são objetos arruinados, por excelência. A ruína se dá neles por
serem privados de uma perspectiva utilitária e por procurar uma identidade com o objeto
através do olhar, destituindo uma oposição entre sujeito e objeto, interior e exterior, ativo e
passivo.

Palavras-chave:
Ruína. Olhar. Objeto. Clarice Lispector.

ABSTRACT

An old woman, the crane that sees the egg, the chair: these objects mentioned on Clarice
Lispector‟s texts are objects in ruin par excellence. They are ruined by deprivation of an
utilitarian perspective and by her search for identification with the thing through gazing,
crushing any opposition between subject and object, inside and outside, active and passive.

Keywords:
Ruin. Gaze. Object. Clarice Lispector.

1 UM PARÊNTESIS DE RUÍNAS
Ao examinar a cidade de Havana como ruinólogo, o escritor cubano Antonio Jose
Ponte apresenta cenas de um viver entre ruínas, de um estado de arruinamento. Cito duas
observações:
Os cubanos custavam a se desfazer dos restos guardados há anos, já sem utilidade.
Após meses de chuva que havia encharcado casas e ruas, era preciso que jogassem fora tudo o
que não lhes serviam mais. Os objetos eram guardados como coisa de valor: uma casca de
ovo, a sola despregada de um sapato, uma lanterna estragada. “Si en vida útil nos habían
servido, deberían acompañarnos como restos. Más adelante quizás ganasen resurrección.”
(PONTE, 2007, p. 145).
A cidade perdia o hábito de reconstruir: a cada desabamento dos prédios se
fabricavam vazios de parques e praças. É o arruinamento de Havana. O estado de ruína se dá
por danos definitivos, quando não há como recuperar o objeto em vias de desaparecer, nem

1
Mestranda em Teoria Literária pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura (PGL) da Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC), membro do Núcleo de Estudos Benjaminianos (NEBEN), participante do curso de
formação em psicanálise pela Maiêutica Florianópolis - Instituição Psicanalítica; e-mail:
djuliajusten@gmail.com.
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restituí-lo ao uso. Mas, mais do que reconhecer uma arquitetura em ruínas ou vestígios dela, a
ruína se dá como uma questão do olhar, daquilo que por seu estado irrevogável só podemos
colocar nossos olhos. “Las ruinas constituyen un modo de mirar, tanto pesa el ellas la actitud
de quienes las contemplan.”(PONTE, 2007, p. 175.) E na ruína, uma pulsão do olhar: se
encontram a órbita vazia do olho com os buracos da ruína, um esvaziamento de que não há o
que complete, não há o que satisfaça, é uma pura falta, o desejo de desejar num jogo de olhar
que só remete ao vazio.
A partir deste parêntesis de ruínas do escritor cubano, percebo duas questões nos
objetos clariceanos: a da utilidade e a do olhar. Uma velha, o guindaste que vê ovo, a cadeira:
penso nos objetos sob os quais Clarice manteve sua atenção como objetos arruinados, por
excelência, por serem destituídos de uma perspectiva utilitária e por procurar uma identidade
com a coisa através do olhar, destituindo uma oposição entre sujeito e objeto, entre interior e
exterior, entre ativo e passivo.
O estado irreversível do corpo humano, a ruína da velhice. Era um objeto
abandonado a velha de “A partida do trem”. Todos já estavam habituados a Dona Maria Rita
como um móvel velho. Era um embrulho passado de mão em mão: a filha public relations lhe
deu um beijo seco, a deixou na estação e foi embora antes do trem partir. Como a coisa, ela
era uma solitária, nada tinha a fazer no mundo, só sabia ser velha. O ser só da coisa, ficava o
dia todo sozinha. Percebeu que depois de velha só a viam de relance, ela começava a
desaparecer. Falava consigo mesma, já que ninguém lhe dirigia a palavra. Seus pensamentos
eram mergulhos no nada. Mas sentia orgulho por não precisar de ajuda nem mesmo para o
banho, para se arrumar ou para comer. Sua vida era um tédio que nem perspectiva de morte
tinha, a morte era grande feito que nunca chegava. Não servia para nada, nem mesmo para
Deus, pensava. Como a coisa, ela era involuntária. Ficou espantada com a atenção e
delicadeza de Ângela Pralini, que sentava à sua frente no trem. Ângela era uma fugida, fugia
do pensamento, do raciocínio, da inteligência do amado Eduardo. Ele só sabia olhar para
dentro, para o entendimento, para o pensamento. Eduardo ouvia música com o pensamento, só
sabia entender. Ângela era atrás do pensamento, Ângela orgânica: queria olhar para fora, para
o mundo das coisas. “Existem passarinhos, Eduardo! Existem nuvens, Eduardo! Existe um
mundo de cavalos e cavalas e vacas. Desculpe, Eduardo, mas não quero morrer.”
(LISPECTOR, 1999a, p. 24.)
A ruína de Dona Maria Rita em frente a Ângela Pralini, a voz sem voz de Um sopro
de vida (Pulsações). O autor silencia neste texto para que Ângela possa falar. Mas do que fala
ela? Sobre sua interioridade de discurso, sua subjetividade? Ângela conta uma história de
3

amor, de sofrimento? De amor, só se for pela coisa, pelos objetos. Ângela anjo, nem homem
nem mulher, nem humano nem bicho: Ângela-coisa. “Anjo não nasce nem morre. Anjo é um
estado de espírito.” (LISPECTOR, 1978, p. 24.) Quem sabe seja Ângela tal qual o Angelus
Novus, como a imagem que Walter Benjamin faz do anjo da história. (BENJAMIN, 1994, p.
226.) O anjo vê na cadeia de acontecimentos uma catástrofe. Ele deseja acordar os mortos e
juntar as ruínas, mas o vento o impede de fechar as asas, tempestade do progresso que vê a
história como uma sucessão cronológica, progresso que produz em massa objetos, que os
consome através do uso, da função dos objetos. Será Ângela o Angelus Novus que trará a boa
nova do mundo dos objetos, que os recolherá dos destroços do progresso através do olhar, que
vê a coisa na coisa e não apenas pela sua utilidade? Pois, o livro de Ângela é o livro das
coisas.
Ângela faz a confissão da coisa, de todos os objetos na ficção de Clarice.

O objeto — a coisa — sempre me fascinou e de algum modo me destruiu. No meu


livro Cidade Sitiada eu falo indiretamente do mistério da coisa. Coisa é bicho
especializado e imobilizado. Há anos também descrevi um guarda-roupa. Depois
veio a descrição de um imemoriável do relógio Sveglia: relógio eletrônico que me
assombrou e assombraria qualquer pessoa viva no mundo. Depois teve a vez do
telefone. No „Ovo e a Galinha‟ falo do guindaste. É uma aproximação tímida minha
da subversão do mundo vivo e do mundo morto ameaçador. Não, a vida não é uma
opereta. É uma trágica ópera em que num balé fantástico se cruzam ovos, relógios,
telefones, patinadores de gelo e o retrato de um desconhecido morto no ano de 1920.
(LISPECTOR, 1978, p. 102.)

No seu livro das coisas, Ângela não humaniza os objetos ou lhes dá atributos
humanos. A coisa não precede qualificação, predicado. A coisa é. “A coisa é propriamente
estritamente coisa. A coisa não é triste nem alegre: é coisa. A coisa tem em si um projeto. A
coisa é exata. As coisas fazem um barulho: chpt! chpt! chpt! Uma coisa é um ser vivente
estropiado. Não há nada mais só do que uma coisa.” (LISPECTOR, 1978, p. 104.) Os objetos
do livro de Ângela não dizem nada, não tem bocas para falar. Das coisas só resta o silêncio, o
silêncio dos objetos, silêncio que não cria nada. Não é um silêncio que se torna signo, não está
no lugar de outra coisa, não quer significar. Silêncio de coisa é silêncio de mais alto grau, ou
seja, de grau nenhum. É silêncio enquanto silêncio. “Noite alta fazia tal silêncio. Igual ao
silêncio de um objeto pousado em cima da mesa: silêncio asséptico de „a coisa.‟”
(LISPECTOR, 1978, p. 105 e 106.)
A identidade que Ângela busca com os objetos é através do olhar. Mas não o olhar
que busca apreendê-lo para dele compreender o seu em si, o seu interior. “Nada do que vejo
me pertence na sua essência. E o único uso que faço delas é olhar.” (LISPECTOR, 1978, p.
98.) É no olhar que os objetos olham os objetos. Ângela percebe o seu rosto como um objeto.
4

“Meu rosto é um objeto tão visível que tenho vergonha. Entendo as belas mulheres árabes que
têm a sabedoria de esconder nariz e boca com um véu ou um crepe branco. Ou roxo. Assim
ficam assim de fora apenas os olhos que refletem outros objetos.” (LISPECTOR, 1978, p.
106.) É suposto o olhar do outro, mais do que apenas olhamos numa perspectiva ativa, mas
que também somos olhados pelas coisas, o ativo e o passivo de olhar se cambiando. Em “A
casa, o íntimo, o secreto”, o psicanalista francês Gérard Wacjman reflete sobre esta suposição
de um olhar que habita o espaço humano e foi por este olhar que constituiu sua morada: o
homem não buscou se abrigar apenas para se proteger da ação do tempo e da natureza, mas
por supor que há um olhar do outro, que sente olhado pelo outro. “Porque somos
fundamentalmente seres mirados en el espetáculo del mundo, siempre hay outro que en algún
lado nos mira.” (WACJMAN, 2006, p. 96.) Esse olhar das coisas não procura uma relação de
reciprocidade, um fim, um entendimento. “O ovo me vê, ovo me medita? Não, o ovo apenas
me vê. É isento da compreensão que fere.” (LISPECTOR, 1999b, p. 207.) Este olhar lançado
aos objetos e que os objetos nos dirigem parte de não ficar fixo em contextos, em funções, em
questão de utilidade: é um jogo de olhar que só remete ao vazio deste olhar.

Descobri uma nova maneira de viver. Creio que a chave está em ver a coisa na coisa,
sem transbordar dela para frente ou para trás, fora de seu contexto. O resultado de
um processo tão novo de olhar o momento que passa seria muitas vezes estranhar a
coisa como se pela primeira vez a víssemos. Olhar a coisa na coisa hipnotiza a
pessoa que olha o ofuscante objeto olhado. Há um encontro meu e dessa coisa
vibrando no ar. Mas o resultado desse olhar é uma sensação de oco, de vazio,
impenetrável e de plena identificação mútua. (LISPECTOR, 1978, p. 124)

Pois, olhar o objeto e ver apenas a sua utilidade é não ver a coisa “Quem se
aprofunda num ovo, quem vê mais do que a superfície do ovo, está querendo outra coisa, está
com fome.” (LISPECTOR, 1999b, p. 207.) Objeto velho, objeto abandonado, objeto reposto.
E objeto visto é aquele que tem utilidade, que serve a alguma função. Na percepção de
Ângela, os objetos estão cansados de serem vistos desta maneira. “Porque é óbvio que a coisa
está urgentemente pedindo clemência por exagerarmos o seu uso.” (LISPECTOR, 1978, p.
101 e 102.) Que a coisa esteja cansada do nome que foi dado a ela: um nome fixo,
cristalizado, de relação unívoca com a sua função. Um nome útil para que possa ser
interpelado. Que a coisa tenha um nome, mas que nesse nome não haja uma relação entre
nome e coisa, como aponta Blanchot em um dos seus fragmentos em itálico de El paso (no)
más allá: um diálogo circular, em que não se sabe quem fala, diálogos inconclusos, não
dirigidos, não há uma cena em que se dê tais falas. Nesse diálogo aberto, nessa conversa
infinita, sempre retomando a frase anterior e dispersando-a, é que percebo este nome sem
5

nome dado às coisas. Que as coisas tenham nome, mas que nunca se saiba tal nome para que
não sejam chamadas. Um nome que tem um espaço em branco, um nome vazio, um nome
como exterioridade, sem relação com a coisa. Cito o diálogo blanchotiano:

— „Les daríamos un nombre.‟


— „Tendrían uno.‟
— „El que le diésemos no sería su verdadero nombre.‟
— „Sin embargo, sería capaz de nombrarlos.‟
— Capaz de informar que, el día en que se considerasen listos para ello, habría un
nombre para su nombre.‟
— „Un nombre tal que no daría lugar a que se sintiesen interpelados por él, ni
tentados de responder a él, ni siquiera jamás nombrados por dicho nombre.
— „¿No hemos supuesto, sin embargo, que tendrían uno que sería común a todos
ellos?‟
— „Lo hemos supuesto, pero sólo para que pudiesen pasar desapercibidos con más
comodidad.‟
— „Pero entonces ¿cómo sabremos que podemos dirigirnos a ellos? Están lejos,
¿sabe?‟
— „Para eso tenemos los nombres, más numerosos y más maravillosos que todos
aquellos que se utilizan normalmente.‟
— „No sabrían que es su nombre .‟
— „¡Cómo iban a saberlo! No tienen nombre‟” (BLANCHOT, 2003, p. 37)

Que a coisa tenha nome, mas que não seja chamada. O que acaba com uma noção
utilitária dos objetos, destituindo-os de um nome que apenas remeta a sua função. É a revolta
da coisa. Entre tantos objetos arruinados, é pelo guindaste, aquele que vê ovo, que a revolta da
coisa é anunciada. Pois, os objetos de Clarice, ao serem destituídos de uma função, ao
deixarem de serem vistos apenas pela sua utilidade, são objetos arruinados, têm o caráter de
ruína que deixou de ter uso, que já não presta. É estropiado, abandonado. E neste vazio do que
é arruinado colocamos nossos olhos. “Então vejo que o guindaste terá filhos e um dia
povoarão a terra. Que será um mundo dos objetos. Mas os objetos não querem ser mais
objetos. É a revolta da coisa.” (LISPECTOR, 1978, p. 115.) Objetos cansados de serem
objetos como são vistos cotidianamente, apenas pela sua utilidade. E a cadeira? Ela não tem a
mesma sorte dos restos que os cubanos não queriam se desfazer. “Quem terá inventado a
cadeira? Alguém com amor por si mesmo. Inventou então maior conforto para seu corpo.
Depois séculos e nunca mais ninguém prestou realmente atenção a uma cadeira, pois usá-la é
apenas automático.” (LISPECTOR, 1999a, p. 93.)

2 REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. “Tese 9 de Sobre o conceito da história” In: Obras escolhidas: Magia e
Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1994.
6

BLANCHOT, Maurice. El paso (no) más allá. Tradução de Cristina Peretti. Barcelona:
Paidós, 1994.

LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida (Pulsações). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.

_____. Onde estivestes de noite. Rio de Janeiro: Rocco, 1999a.

_____. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999b.

PONTE, Antonio Jose. “Un parêntesis de ruínas” In: La fiesta vigilada. Anagrama:
Barcelona, 2007.

WACJMAN, Gérard. “La casa, lo íntimo y lo secreto” In: RECALCATI, Massimo et al. Las
tres estéticas de Lacan (Psicoanálisis y arte). Buenos Aires, Ediciones del Cifrado, 2006.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo

A VISÃO DA MORTE NA OBRA LITERÁRIA DE TOMÁS MARTÍNEZ, ESPECI-


ALMENTE NO ROMANCE PURGATORIO. 1

Lidia Beatriz Selmo de Foti 2 (UFPR-SEPT)

RESUMO

Este artigo visa contribuir com a proposta de trabalho do grupo “literaturas estrangeiras mo-
dernas: visões da morte na literatura”. Os romances e alguns ensaios de Tomás Martínez, em
especial o romance Purgatorio (2008) e o ensaio Lugar Común la muerte (1993) tornam-se
objeto deste trabalho, por meio da análise de como o tema visões da morte se insere na obra
literária do autor argentino. Escrito pouco antes da morte do autor, Purgatorio contém fatos
autobiográficos e reflexões sobre a vida, a morte e o purgatório. Desde o título, o romance nos
remete à Divina Comédia, obra de Dante, dialogando, ainda, com outros autores, o cinema, a
história e os meios de comunicação. A protagonista Emilia e o narrador alter-ego do autor
vivem no purgatório, ou antessala da morte; nesse espaço indefinido entre a vida e a morte,
Emilia espera pelo ser amado “desaparecido” durante a ditadura militar argentina, enquanto o
narrador/autor, no aguardo do seu próprio fim, vai tecendo reflexões sobre a vida e a passa-
gem do tempo. Na obra de Martínez, história e filosofia convivem, levando o leitor a refletir.
Com a análise empreendida e o aproveitamento do conceito de dialogismo empregado por
Bakhtin, o estudo aqui realizado concorre para a confirmação da relevância do tema da morte,
que há séculos se faz presente na literatura mundial, espelhando sua atemporal importância
para o ser humano.

Palavras-chave:
Literatura estrangeira moderna. Visões da morte, Purgatório. Dialogismo. Atemporalidade da
morte.

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo contribuir con la propuesta de trabajo del grupo “Literaturas
extranjeras modernas: perspectivas sobre la muerte en la literatura”. Este trabajo analiza cómo
se procesa el tema de la muerte en la obra novelística y ensayística del autor argentino Tomás
Eloy Martínez, en especial en la novela Purgatorio (2008) y en el ensayo Lugar Común la
Muerte (1993). La novela fue escrita un poco antes de la muerte del autor y contiene hechos
autobiográficos y reflexiones sobre la vida, muerte y el purgatorio. Desde el título la novela
nos remite a la Divina Comedia de Dante, y dialoga al mismo tiempo con otros autores, el
cine, la historia y los medios de comunicación. La protagonista Emilia y el narrador alter ego
del autor viven en el purgatorio, o antecámara de la muerte, Emilia esperando por el ser ama-
do “desaparecido” durante la dictadura militar argentina, mientras el narrador/autor en com-
pás de espera de su propio fin, va tejiendo reflexiones sobre la vida y el pasaje del tiempo. En
la obra de Martínez, historia y filosofía conviven, conduciendo al lector a reflexionar. Este
análisis tiene como embasamiento teórico el concepto de Dialogismo preconizado por Bajtín,
el estudio aquí realizado contribuye para la confirmación de la importancia del tema de la
muerte que por siglos se hace presente en la literatura mundial, reflejando su importancia
atemporal para el ser humano.

1
A VISÃO DA MORTE NA OBRA LITERÁRIA DE TOMÁS MARTÍNEZ, ESPECIALMENTE NO RO-
MANCE PURGATORIO. Tema da morte proposto pelo grupo de trabalho de literatura estrangeira moderna.
2
Prof.ª Ms., do Setor de Ensino Profissionalizante e Tecnológico da Universidade Federal do Paraná- SEPT-
UFPR; email: lidia.beatriz@ufpr.br.
2

Palabras llave:
Literatura extranjera moderna Las perspectivas sobre la muerte, Purgatorio. Dialogismo.
Atemporalidad de la muerte.

1 INTRODUÇÃO
Martínez teve sempre inquietações sobre o tema da morte e escreveu uma série de
ensaios recopilados na sua obra “Lugar Común la muerte”. Nas considerações finais escreve:

Hace ya tiempo descubrí, no sin sorpresa, que los azares del periodismo me acerca-
ban con persistencia al tema de la muerte. Hacia 1965 supe en Hiroshima y Nagasa-
ki, que un hombre puede morir indefinidamente y que la muerte es una sucesión no
un fin [...]3 (MARTÍNEZ, 1983, Contracapa)

Apesar de Tomás Eloy Martinez ser mais conhecido pela sua obra dedicada ao “ro-
mance histórico”, ou “ novo romance histórico” (LUCKACS, 2000), como nas suas obras “La
novela de Perón” de 1985 e “Santa Evita” de 1995, cuja temática retrata um período da histó-
ria argentina de meados do século XX e suas personagens mais representativas da política,
seus últimos romances em especial “Purgatorio”, requerem uma leitura mais profunda para
sua interpretação. Ou seja, além do Leitor-empírico (ECO, 1994), que faz uma leitura a de
primeiro nível ou superficial, e interpreta, por exemplo, “Purgatorio” como um romance que
fala da repressão do governo militar e dos desaparecidos, o Autor-modelo desta obra necessita
do Leitor- modelo e de leitura a nível mais profunda, do leitor como coautor da obra do Au-
tor-modelo através de suas inferências.

[...] Usando uma metáfora criada por Jorge Luis Borges [...]um bosque é um jardim
de caminhos que se bifurcam. Mesmo quando não existem num bosque trilhas bem
definidas, todos podem traçar sua própria trilha, decidindo ir para a esquerda ou para
a direita de determinada arvore e, a cada arvore que encontrar, optando por esta ou
aquela direção. (ECO, 1994, p. 12)

[...] O leitor- modelo de uma história não é o leitor empírico. O leitor empírico é vo-
cê, eu, todos nós, quando lemos um texto. (ECO, 1994, p. 14)

[...] Quem determina as regras do jogo e as limitações? Em outras palavras, quem


constrói o leitor-modelo? “o autor”] (ECO, 1994, p. 17)

Mas, ao adentrarmos nos bosques da ficção nos é permitido fazer uma leitura de se-
gundo nível, como Leitores-modelo e perceber o dialogismo (BAKHTIN, 1998) com cânones
da literatura como, A Divina Comedia de Dante Alighieri, dentre outras obras da cultura oci-
3

dental. As leituras sucessivas do romance nos permitem perceber como se estabelece este diá-
logo entre o romance “Purgatorio” de Tomás Martínez e com quais obras literárias e cultu-
rais.
O narrador/autor o romance nos fornece pistas sobre suas inquietações, da solidão
do homem moderno e sobre as pulsões de vida e morte. Martínez e suas personagens encon-
tram-se na Vida que não é vida e a morte que não é morte, o autor ao aguardo de sua cura de
uma doença terminal ou sua morte, a sua protagonista do romance Emilia a espera do ser
amado no purgatório em vida. As reflexões sobre este tema aparecem diversas vezes no texto
como no parágrafo a seguir:

[…]¿Sólo quince? Lo busco aun desde antes de haberlo conocido. Ahora espero que
él me busque a mí. Este domingo pasado, en el sermón de la misa, el padre Flanna-
gan habló del purgatorio. La Iglesia católica creía que el purgatorio era la purifica-
ción que necesitan las almas imperfectas para entrar en el paraíso. Se enseñaba que
aceptar los tormentos como un acto de amor a Dios y todas las formas de penitencia
y de castigo eran el purgatorio. Era así antes, ya no. Ahora la Iglesia es más toleran-
te, dijo el padre. El purgatorio es una espera de la que no se conoce el fin.[…]4
(MARTÍNEZ, 2008, p.97)

1.1 Dialogismo entre a obra de Martínez, Purgatório, e a cultura ocidental


Tomás Eloy Martínez como Autor-modelo dialoga desde o título com a obra de Dan-
te Alighieri. O leitor-modelo ao fazer uma leitura de segundo nível vai encontrando as pistas
da obra e como possuidor de conhecimentos da cultura ocidental percebe o dialogar entre o
romance e obras canônicas da cultura como a Divina Comedia de Dante Alighieri, a bíblia, e
etc. Quando o dialogo é com o cinema, Martinez utiliza o recurso da paródia (BAKHTIN,
1997), para tanto, faz referencia a estética do nazismo para um suposto filme para promover,
durante o governo militar, a Argentina e o futebol. Ou seja, compara dois holocaustos, onde a
morte prevalece. O Dr. Dupuy, eminência parda e conselheiro dos comandantes militares ar-
gentinos, procura Orson Wells e lhe propõe dirigir um filme para promover o mundial de
1978, nos moldes dos filmes de propaganda nazista de Leni Riefenstah. A negativa de Wells
faz alusão aos desaparecidos de forma sutil e satírica ao realizar uma mágica com o sumiço de

3
Há muito tempo descobri, não sem surpresa, que os azares do jornalismo me aproximavam com persistência ao
tema da morte. Aproximadamente em 1965 soube em Hiroshima e Nagasaki, que um homem pode morrer inde-
finidamente e que a morte é uma sucessão, não um fim.
4
Somente quinze? Procuro por ele ainda antes de ter-lo conhecido. Agora espero que ele me procure.Este do-
mingo que passou, no sermão da missa, o padre Flannangan falou do purgatório. A igreja católica acreditava que
o purgatório era a purificação que necessitavam as almas imperfeitas para entrar no paraíso. Ensinava-se que
aceitar os tormentos como um ato de amor a Deus e todas as formas de penitencia e de castigo eram o purgató-
rio. Era assim antes, já na. Agora a igreja é mais tolerante, falou o padre.O purgatório é uma espera da que não se
conhece o fim.
4

um relógio de marca que milagrosamente reaparece propõe que se o governo fizer o mesmo
com as pessoas desaparecidas realizara o filme.

[...] Dupuy teve que recomeçar diversas vezes. Wells não conhecia o futebol, não
tinha ouvido falar do Campeonato mundial, sua imagem da Argentina era somente
um horizonte de pampas.[...] MARTINEZ (2008, p.125) .

Aparecem também referencias Shakespeare falando do passado amargo que já termi-


nou como no parágrafo a seguir:

[...] Simón por fin le habla: All yet seems well; and if it end so meet,/ The bitter past,
more welcome is the sweet. “Y sin embargo, todo parece estar bien”, traduce Emilia.
“Si así termina todo, cuanto más amargo es el pasado, más bienvenida es la felici-
dad.” Shakespeare, ¿no? Tu inglés es muy bueno. ¿Cómo aprendiste? La televisión,
contesta él. (MARTÍNEZ, 2008, p.42-43)5

As idéias filosóficas, como as metáforas do tempo que passa lentamente exemplifi-


cada nos rios, há rios secos e sem vida, ou rios que ficam detidos, que significam a vida detida
no tempo do casal Emilia-Simón, como no trecho a seguir onde os protagonistas observam
que o rio “não se move” como a vida parada no purgatório.

[...] Simón no aparta la mirada del río. El sol, al iluminarlo de lleno, lo desdibuja.
Pasa sobre su cuerpo como una gran goma de borrar. Ella también contempla la co-
rriente que se mueve sin apuro hacia el mismo espacio ciego que la espera delante,
plegándose en algo que no sabe si es luz u oscuridad, yéndose a la orilla donde suce-
den las historias. (MARTÍNEZ, 2008, p.142)6

Vários autores utilizam o caudal das águas para representar o fluxo da vida e a passa-
gem do tempo ou como na tradição ocidental a passagem para o Paraíso na travessia do rio
Letes (DA ROCHA, 2003).
Martínez (2008), em passagens metalingüísticas destaca a importância dos mapas
quando escreve: “Los mapas son copias imperfectas de la realidad”, ou ainda “Los mapas
son ficciones mal escritas”(p.16).O protagonista Simón ficou por muito tempo perdido “desa-
parecido’ desenhando mapas de ilhas que despareciam ou mudavam de lugar sempre tentando
retornar.

5
(...) Simon, falou finalmente: All yet seems well; and if it end so meet,/ The bitter past, more welcome is the
sweet. “E, no entanto, tudo parece bem", traduz Emilia. "Se assim termina todo, quanto mais amargo é o passa-
do, mais bem-vinda é a felicidade." Shakespeare, certo? O seu Inglês é muito bom. Como você o aprendeu? Na
televisão, ele respondeu. (Idem, p.42-43)
6
Simón não aparta o olhar do rio. O sol, ao iluminá-lo a pino, o desfigura. Passa sobre o corpo como uma grande
borracha de apagar. Ela também contempla a corrente que se move sem ter presa em direção ao mesmo espaço
cego que a espera mais a frente, encolhendo-se em algo que não sabe se é luz ou escuridão, indo ao bordo onde
acontecem as histórias.
5

1.1.1 Diálogo entre Purgatório de T. Martínez e o Purgatório de Dante.


Segundo Bakhtin todo discurso está permeado do discurso do outro, ou seja, todo
discurso não é original, pois reflete a palavra do outro. O dialogismo aparece neste romance
desde o título “Purgatorio” que é homônimo de segundo livro do poema narrativo de Dante. O
poema narrativo de Alighieri, A Divina Comédia, está composto por 100 cantos; o livro Pur-
gatório é composto por 33 cantos que narram em forma de Odisseia a viagem do Dante, guia-
do pelo poeta romano, Virgílio. O poema está dividido dois níveis de ante purgatório que fica
diante de uma alta montanha (o purgatório propriamente dito) que chega até o céu passando
pelas chamas da purificação, as almas devem ultrapassar os diferentes estágios para atingir o
Paraiso. É um esquema com base metamorfoses que as personagens devem passar que guiam
a obra de Martínez. Para tanto, o autor recorre a versos do poema de Dante nas epígrafes dos
cinco capítulos de seu livro.
Outro recurso utilizado por Martínez são os epigrafes que aparecem em cada capítulo
da obra e fazem referencia a um verso do poema de Dante. Por exemplo, no primeiro capítulo
escolhe Viendo la sombra como um cuerpo sólido7p.11, começa com o reaparecimento de
Simón Cardoso depois de trinta anos num café de New Jersey, as circunstâncias, o local, tudo
nos faz pensar que é fruto da imaginação desesperada de Emilia. Curiosamente Simon ainda
tem a aparência de quando desapareceu. Emilia vive no purgatório onde sente que não há
vida sem Simón, numa espera infinita pelo ser amado.
Emilia se sente no purgatório que não há vida sem Simón na espera infinita pelo ser
amado ou o paraíso e, num fluxo de consciência se pergunta: “Quizás he muerto ya, se dice
Emilia, y lo que estoy viendo es mi infierno o mi purgatorio”, (p.77)8, ou como nos versos
seguintes “Aquel color que me escondía el infierno”9, e em outro parágrafo reflexiona sobre a
sua vida.

[…]Quel color che l’inferno m i nascose. Conozco el verso, es uno de los más
repetidos de todo el poema: “Aquel color que me escondía el infierno”. Nada en
Emilia es un azar, de modo que al escribir esa línea estaba aludiendo a una historia

7
Vendo as sombras como um corpo solido.
8
Emilia se diz, talvez, eu estou morta já, e estou vivendo no inferno ou no meu purgatório.
9
. Aquela cor que me escondi o inferno.
6

escondida que la quemaba por dentro pero que no quería olvidar [...]10 (MARTÍ-
NEZ, 2008, p.266-267).

[…]Pensó que se trataba de una alucinación y recordó un verso de Dante que había
leído en la escuela: Poi piovve dentro all’alta fantasia. Era verdad: en su imagina-
ción llovía, pero el agua caía tan rápido que las formas se le escapaban apenas apa-
recían. Vio a Simón precipitándose en una hoguera, pero ésa era también una ima-
gen medieval de Dante.[…]11 (MARTÍNEZ, 2008. p.36)

[...] Tal vez, eu já morri, se diz Emilia, e o que estou vivendo é meu inferno o meu
purgatório. Cada ser humano, pensa, está condenado a deter-se para sempre num re-
lâmpago de tempo do que jamais poderá sair. Ela, então foi atingida pela eternidade
nesse trem de subúrbio [...] (MARTÍNEZ, 2008, p.77)

Passo a seguir a fornecer um estudo comparativo entre a obra poética de Dante


Alighieri, A divina Comedia, e o romance de Martínez, Purgatorio. As epigrafes deste último
nos permitem estabelecer a relação entre as obras sua temática e desenvolvimento de cada
capítulo.

Tabela 1: Comparativa entre a obra de Dante, Martinez e a tradução brasileira.

Tomás Eloy Martínez Dante Alighieri A divina Comedia


(T.E.M.) A Divina Comedia- Purgató- Tradução em português
Purgatorio rio
Epígrafes por capítulo Verso Verso
1)- Viendo la sombra como un - trattando l'ombre come cosa -tratar sombras, quais cor-
cuerpo sólido;(Canto XXI, solda. pos, pretendo. XXI, 136
136) Reaparição de Simón. E Verso pertencente a As portas
o relato de pessoas miseráveis do purgatório. XXI, 136:-
e loucas como mortos vivos
deixadas no rio El Abra- Tu-
cumán, AR. p.56/57

10
Conheço este verso, é um dos mais repetidos em todo o poema: “Aquela cor que me escondia o inferno”. Nada
em Emilia é ao azar, de maneira que ao escrever essas líneas estava fazendo referencia a uma história escondida
que lhe queimava por dentro, mas, que não queria esquecer [...].
11
Pensou tratar-se de uma alucinação e lembrou um verso de Dante que tinha lido na escola: Mais chove dentro
da alta fantasia. Era verdade: na sua imaginação chovia, mas, a água caia tão rápido que as formas escavam as-
sim como apareciam. Ela via Simón jogando-se na fogueira, mas, essa era também uma imagem medieval de
Dante. (MARTÍNEZ, 2008)
7

Tomás Eloy Martínez Dante Alighieri A divina Comedia


(T.E.M.) A Divina Comedia- Purgatório Tradução em português
Purgatorio
Epígrafes por capítulo Verso Verso
2-Dama solitaria que iba - Guidavaci una voce che canta- Voz peregrina ouvi, que ali can-
cantando; Canto XXVII, 40 va – XXVII, 55. (O numero do tava: XXVII, 55.
Descrição da solidão de Emi- verso não coincide, mas sim o
lia, odisséia em busca do ser canto)
amado. O autor/narrador a
conhece.
3- Vi espíritus andando entre Na sétima cornija. Canto XXV, -Vi nas chamas espíritos andan-
las llamas; XXV, 124. Emi- 124- e vidi spirti per la fiamma do. XXV, 124
lia permanece casta/ loucura andando. Como a chama que
da mãe. Simón diz: Os mor- sempre acompanha o fogo, a
tos não temos lembranças. forma vazia segue o espírito
Corrupção destruição de para todo lugar, e por isto nós a
documentos comprometedo- chamamos de sombra.
res pelas chamas.
4- Crees y no crees, y lo que -Che crede e non, dicendo «Ella -Maravilha: ora crê, ora duvida,
es no es; (Tema da ditadura è... non è...», Canto VII, 12 E diz- É certo ou minha vista
militar e desaparecidos e É o vale onde residem os espíri- mente? Canto VII, 11,12 Neste
Wells, mágicas, bruxos, tos que somente no fim da vida canto há a busca pela luz e como
OVNIs) Fala de um cientista elevaram seu pensamento a os penitentes desejam o Paraíso,
que falava que curava o cân- Deus. não têm vontade de subir guia-
cer atrás da lua Júpiter, Ga- dos pelas trevas, pois podem
nímedes.). VII, 12 estar rumando para o abismo.
5-Este rumor del mundo es -Non è il mondan romore altro -Eis almas lentamente em quan-
sólo um soplo; Resumo da ch'un fiato. Canto XI,100. O tidade, acercam-se; a mais alta-
história argentina de final de orgulho é o tema principal, as disse o guia- Canto XI, 100,101
século XX, ditadura, Viagem almas devem ser humildes.
impossível do casal Simón- Aparecem personagens impor-
Emilia por o rio Raritan. tantes da historia italiana da
Final aberto. época.

Fontes: Martínez (2008) – primeira coluna; Da Rocha (2003)


segunda coluna; Alighieri (2003) – terceira coluna.

2 CONCLUSÃO
A pergunta que deriva do grupo de trabalho “Literaturas estrangeiras modernas: vi-
sões da morte na literatura é quais são as pulsões e inquietações que levam o narrador/autor a
8

pesquisar ou escrever sobre este tema. A resposta talvez possa ser encontrada dentro de nós
mesmos e na solidão do homem moderno que apesar da tecnologia está cada vez mais isolado
no seu mundo. Para os leitores é um tema pungente e interessante de explorar.Como diz ECO
(1993), tanto o Leitor-empírico como o Leitor – modelo criam ou são co-autores junto com o
autor-modelo ou o Autor- empírico da obra ao fazer inferências determinadas pelo seu conhe-
cimento de mundo.
“Purgatório” de Tomás Eloy Martínez reúne todas estas inquietações e pulsões desde
o ponto de vista religioso da tradição judaico-cristã, o aspecto histórico, e dos cânones da cul-
tura ocidental. Para as pessoas de fé ou “piadosas” como diz Martínez a discussão é se existe
ou não o purgatório ou somente o céu e o inferno. Entretanto, mesmo as pessoas que não
acreditam nas religiões como confessa o autor/narrador conhecem os temas filosóficos da
morte e as teorias apresentadas como, por exemplo, na bíblia e na Divina Comedia de Dante.
O homem pós-moderno discorda desses cânones ou os contesta, porém, dentro da
cultural mundial a sua existência e importância não pode ser negada. Assim, podemos obser-
var que obras como as de T. E. Martínez não questionam a existência do purgatório, mas se
ele é deste mundo, e é vivenciado durante a vida e não depois da morte. O autor/narrador e os
protagonistas do romance vivem no limbo entre a vida e a morte em uma espera sem fim, co-
mo a espera vivida pelo sobrevivente da Bomba de Hiroshima entrevistado pelo autor no Ja-
pão. O romance nós faz também reflexionar e perceber a vigência de uma obra como a Divina
Comedia que tem mais de cinco séculos.

Dante e seu Poema". Pintura de Domenico di Michelino (1460).


Imagem pertencente à Corbis Image Collections
Fonte: http://www.stelle.com.br/pt/index_comedia.html
9

3 REFERÊNCIAS

ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Tradução: José Xavier Pinheiro. Versão para ebook:
e-Books do Brasil, 2003. Disponível em
<http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action&co_obra=2
203>. Acesso em 30 setembro 2011.

AUERBACH, Erich. Mímesis, A representação da realidade na literatura ocidental, Edi-


tora Perspectiva, SP, Brasil, 1994.

BAKTHIN, M. Questões de literatura e da estética a teoria do romance. Tradução A. For-


noni Bernardi, 4ed. SP. UNESP, 1998.

_____. Os gêneros do discurso. In: Estética da Criação Verbal. 2. ed. São Paulo: Martins
Fontes,1997.

BAUNGARTEN, C. O novo romance histórico brasileiro. Via Atlântica, 2000.

BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. Companhia das Letras, 6ª Edição, SP, 2000.

BURKE, P. A escrita da História, novas perspectivas, SP, UNESP, 1992.

CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos, São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. : Nacional, 1967.

DA ROCHA, Helder. A Divina Comédia: Poema Épico de Dante Alighieri, 2003. Disponí-
vel em: <http://www.stelle.com.br/pt/index_comedia.html>. Acesso em 29 setembro de 2011.

ECO, Umberto. Seis Passeios pelos Bosques da Ficção, 1932, Tradução: Feist, Hildegard, 3º
Edição, Companhia das Letras, São Paulo, SP, 1994.

LUCKACS, G. A teoria do romance, Tradução J. M. Mariani. SP. Suas cidades, 2000.

MARTÍNEZ, Tomás Eloy. El vuelo de la Reina, Alfaguara S.A, Bs. As., 2007.

_____. La Novela de Perón, Editora Planeta, Bs. As., 1996.

_____. Purgatorio, Alfaguara S .A, Bs. As., 2008.

_____. Lugar Común la muerte, Bruguera, Bs. As., 1993.

_____. Santa Evita, Biblioteca del Sur Editora Planeta, Bs. As, 1995.

MENTON, SEYMOR. La novela histórica de la América latina 1979-1992, México, Fondo


de la Cultura económica, 1993.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo

A VOZ DO CLOWN

Nara Marques Soares (UFSC)1

RESUMO

O ensaio analisa a figura do Clown na música (Clown-falante) como alguém que não se
submete aos jogos de interdição da ordem do discurso. Ao compreender essa ordem, o clown-
falante inverte o jogo para fazer aparecer suas regras, de modo a desafiá-las. Assim, o
trabalho analisa primeiramente alguns tipos de clowns através dos tempos, tendo em vista a
relação entre a voz e o gesto clownesco. A partir daí, analiso algumas vozes de clowns que
(re)apareceram na música popular brasileira na segunda metade do século 20 (individuais ou
em grupos como Mutantes, Secos e Molhados, Mamonas Assassinas, Kraunus Sang e
Pletskaya (Tangos e Tragédias), Língua de Trapo, Premeditando o Breque).

Palavras-chave:
Clown. Ordem do Discurso. Voz.

ABSTRACT

This essay analyzes the figure of the Clown in music (the speaker clown) as someone who
does not submit himself to the game of interdiction in the order of the speech. As soon as he
understands the order, the speaker clown changes the game in order to show its rules, and to
challenge them. So, this work firstly analyzes some kinds of clowns in history, regarding the
relationship between the clown‟s voice and gesture. Then I analyze the voices of some clowns
that (re)appeared in Brazilian popular music in the second half of the 20th Century (either
individuals or groups, such as Mutantes, Secos e Molhados, Mamonas Assassinas, Kraunus
Sang and Pletskaya (Tangos e Tragédias), Língua de Trapo, Premeditando o Breque).

Keywords:
Clown. The Order of the Speech. Voice.

1 A VOZ DO CLOWN
No primeiro filme falado de Charles Chaplin, Tempos Modernos, de 1936, Carlitos
precisou mostrar sua voz. A voz foi ouvida em uma única cena, em uma canção. Imagino o
quanto o público esperou ansioso por sua voz. Tendo perdido a “cola” com a letra da canção,
Carlitos joga com palavras sem sentido e reforça, pela fala, a sua posição de clown. O
ambiente, a música e as palavras soltas de sentidos são italianas; acompanhamos o sentido
pela mímica; e a fala e os gestos nos remetem ao mundo da Commedia dell'arte. Tudo isto
atualizado por um clown inglês, ingênuo e desajeitado, que a partir daquele momento se vê
inserido no contexto da indústria cinematográfica sonora americana.

1 Nara Marques Soares é doutora em Literatura pela UFSC; e-mail: naramarqs@hotmail.com.


2

Mesmo com todas as transformações exigidas pelo mundo moderno, podemos ver
que os palhaços adaptam-se e refiguram-se, mantendo características fundadoras. Toda a
mágica, a destreza, a coragem, o equilíbrio, a agilidade, a sensualidade, levada a extremos e
misturada aos seus opostos (realidade, falta de jeito, covardia, desequilíbrio, ataxia e não-
sensualidade) fazem dos palhaços seres de um outro mundo, não regido pelas normas do
mundo terrestre. Nesse mundo-circo o palhaço é o soberano que dita a principal lei:
transgredir as leis humanas e criar um jogo entre ilusão e verdade. Assim como o palhaço
consegue transgredir as leis da física quando, por exemplo, joga um objeto para cima e este
objeto não cai. Ou da química, quando coloca água num balde e ao jogar na platéia, do balde
sai confete, isto não é diferente quanto à linguagem e à fala. O que muitas vezes os
aproximam dos gestos dos loucos, dos sábios ou dos profetas, ou seja, gestos que não são
regidos pela razão lógica ou pelas regras das linguagens que nosso mundo acostumou-se a
ouvir e compreender facilmente, por terem sido institucionalizadas para fins utilitários e
práticos.
Foucault diz que a vontade de verdade “não cessa de se reforçar” através de
procedimentos de exclusão e interdição dos/nos discursos. “Sabe-se bem que não se tem o
direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer
um, enfim, não pode falar qualquer coisa”2. A palavra proibida (principalmente no discurso
da sexualidade ou no da política), a segregação da loucura (que afasta discursos inúteis) e a
vontade de verdade (que serve para a disciplina e o controle das sociedades) são os três
grandes sistemas de exclusão que, interligados, controlam e mantêm a ordem do discurso (das
e para as instituições de poder).
Ao analisar instâncias de poder e saber que reforçam esta ordem, Foucault busca
evidenciar vozes excluídas, principalmente daqueles considerados loucos, criminosos,
hereges. Ao longo da civilização ocidental teremos alguns outros personagens que, não dentro
destas classes de excluídos, dedicaram-se à transgressão destas ordens dos discursos. A meu
ver, uma destas figuras é o clown.
Os clowns parecem, historicamente, não submissos aos jogos de interdição. Ao
compreender esta ordem do discurso, eles invertem o jogo para fazer aparecer suas regras, de
modo a desafiá-las. Afinal o “palhaço é tradicionalmente a figura do rei assassinado.

2 FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo, Edições Loyola, 2003, p. 9.


3

Simboliza a inversão da compostura régia nos seus atavios, palavras e atitudes. (...) é como
que o reverso da medalha, o contrário da realeza”3.
Muitos tipos de clowns surgiram, desapareceram e reapareceram de acordo com a
urgência do dizer verdadeiro. Ao exporem este reverso da compostura régia, alguns palhaços
correram risco de vida, assemelhando-se em alguns aspectos aos filósofos da Grécia antiga,
em especial aos Cínicos.
Jean Starobinski afirma que o palhaço ganhou força enquanto mito no Romantismo,
entre 1830 e 1870. Trata-se de uma “mitologia substitutiva”, porque os mitos da época eram
heróis pagãos ou bíblicos que a partir da crescente inspiração circense adquirem outros
aspectos. Assim as artes começam a contrapor deuses e palhaços, e o circo e seus jogos
cênicos começam a ser palco para discussões sobre ilusão e verdade 4. Segundo ele, nesse
sincretismo romântico da imagem do palhaço há traços de figuras mais antigas, como “uma
certa imagem do Sócrates irônico (...), os bufões do Renascimento; a Loucura, que Erasmo
elevou à cátedra; (...) os clowns de Shakespeare”, incluindo também “o cinismo „à la
Diógenes‟, do qual muitos artistas do século XVIII criaram uma máscara”5.
Ao colocar nesta relação o cínico Diógenes, Starobinski faz ver um modo de vida
também romântico da parte dos artistas, uma incorporação mais efetiva entre arte e artista, tal
qual os cínicos propuseram: incorporar a filosofia à maneira de viver, em atitudes e posturas
políticas mais evidentes.
Em suas últimas aulas no Collège de France, Foucault fala dos cínicos gregos e de
suas experiências de vida como uma experiência estética na prática do dizer verdadeiro.
Como já disse, interessa a Foucault localizar, na tradição da “vontade da verdade”, rupturas
dos limites de exclusão e interdição na ordem dos discursos. E então poderíamos pensar na
aproximação de um dos mais tradicionais palhaços, o bobo da corte, com a corrente filosófica
dos cínicos gregos, por sua autonomia, pela autorização que tinham de governantes para
dizerem tudo o que pensavam. Lembrando que o bufão e o bobo da corte da idade média
atuavam na vida cotidiana como palhaços em tempo integral e como um modo de vida.
Esta aproximação pode ser percebida também na fala de Starobinski quando se refere
à ironia socrática, aquela que tende a confundir o interlocutor dogmático com questões

3 CHEVALIER, J. GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. Rio, José Olympio, 1991.


4 STAROBINSKI, J. Retrato del artista como saltimbanqui. Madrid: Abada Editores, 2007. p. 11. “Esta
assunção inesperada de um tema da pintura de gênero supõe uma mudança de heróis e uma espécie de alegre
desafio lançado à noção mesma de herói”.
5 STAROBINSKI, J. Retrato del artista como saltimbanqui. Madrid: Abada Editores, 2007. p. 14-15. [Tradução
minha.]
4

dissimuladamente ingênuas, às vezes resultando no “alargamento progressivo das


consciências” 6
Ao apropriar-se da ironia, o corpo do clown (a roupa, o conjunto dos gestos, a voz)
intensifica sua provocação aos discursos institucionalizados, multiplica a desordem, torna
imediatamente ridículos os mais variados temas e situações. Foi esse misto entre o ridículo, o
sentido irônico, o dizer verdadeiro e a loucura que me chamou a atenção em canções de certos
grupos da MPB, alguns formados e ativos nos anos de plena ditadura militar no Brasil.
Minha análise desses grupos se concentra na relação entre a voz e o gesto clownescos
neste jogo de um dizer verdadeiro. Entre os grupos que analiso estão Mutantes, Secos e
Molhados, Kraunus Sang e Pletskaya (personagens de Tangos e Tragédias), Língua de Trapo,
Premeditando o Breque e Mamonas Assassinas.
Ao escolher a música como objeto de pesquisa, é claro que não estarei trabalhando
com o clown-mímico, e sim com o clown-falante. As cambalhotas, os tiques, as expressões
faciais, o colorido, o jeito desengonçado, entre outras características dos clowns-mímicos
precisam ser vistos na voz do clown-falante, enquanto desafio aos sistemas de exclusão.
Há uma série de palhaços para se analisar: bobos da corte, bufos, momos, histriões,
truões, saltimbancos, arlequins, pierrôs, todos eles ainda se espalham pela cultura ocidental e
conquistam um grande espaço também na indústria cultural. Cada um deles vem recebendo
heranças distantes e redefinindo-se de acordo com uma urgência local.
O clown inglês teve sua origem em um tipo específico de palhaço, como podemos
ver comentado na tradução de Hamlet por F. Carlos Medeiros:

No século XVI, o clown era o camponês ingênuo e estúpido; mais tarde, foi
personagem de uma pantomima. Não tinha o significado de palhaço. O termo
português colônio [colono], aliás usado em linguagem teatral, traduz bem o
significado do vocábulo inglês7.

Assim, o termo clown nasce do palhaço ingênuo para transformar-se, posteriormente,


num termo genérico que pode englobar todos os outros palhaços. Mas esse clown-ingênuo é
ainda um dos mais presentes em nossa cultura, pelos contrastes (por exemplo, o rural-urbano)
que ele pode proporcionar, principalmente se colocado ao lado do seu oposto, o clown-
esperto. A espontaneidade infantil e a falta de conhecimentos do matuto são um prato cheio

6 MOISÉS, M. Dicionário de termos literários. São Paulo, Cultrix, 1978. pp. 294-295. Grifo nosso.
7 Nota de F. Carlos de Almeida C. Medeiros, in: SHAKESPEARE, W. Hamlet. São Paulo. Abril Cultural, 1981.
p. 257.
5

para situações estranhas (a ele) na cidade grande, onde a figura do clown-ingênuo pode tornar-
se a de um ser estúpido.
Essa ideia da lentidão do pensamento se reflete na lentidão do movimento corporal,
com o clown-glutão (guloso, gordo, preguiçoso, lento) em contraposição ao clown-ágil
(flexível, magro, ativo, rápido). Tanto a agilidade quanto a ataxia (falta de coordenação dos
movimentos do corpo) podem ser elementos característicos das palhaçadas.

O mundo do teatro popular cultivou ao mesmo tempo as maravilhas da agilidade e o


cômico da estupidez. (...) Se o clown inglês, no teatro do séc. XVI, é o herdeiro do
diabrete medieval Vício, que tem por vezes a vivacidade infatigável, ele é também
(por sua etimologia que remonta a clod = torrão de terra) o rústico, o tosco, o ser de
compreensão lenta, o desajeitado que realiza todo ao revés tudo o que se lhe pede.
Na linguagem da caracterológica alquimista, o clown ágil corresponde ao tipo
mercurial, enquanto que o clown estúpido exprime a gravidade da terra. 8

Do jogo dessas dualidades extremadas, o mito do clown se amplia. O clown-ingênuo


pode ter sido o grande responsável pela origem do clown-vítima, aquele que acaba sofrendo
conseqüências desastrosas por seu despreparo para a vida. O clown-apaixonado, o clown-
sofredor, o clown-trágico carregam consigo o reflexo das armadilhas existenciais. Já o clown-
ágil pode estar mais próximo dos palhaços que conseguem saltar sobre essas armadilhas da
vida. Constroem defesas para burlar a morte e a insanidade do mundo. O triunfo (mesmo que
passageiro) do clown-ágil se dá, principalmente, por sua consciência e flexibilidade para viver
nesse mundo insano. Ao assumir a loucura da existência, o clown se confunde com o louco.
Assim, um dos principais exemplos do clown-ágil é o clown-louco, que possui como
característica marcante a liberdade (e a agilidade) de linguagem, tanto verbal quanto corporal.
Por trás de sua loucura, esse palhaço esconde a lucidez capaz de tornar o espelho dos homens
translúcido. As suas palhaçadas são recheadas de loucas verdades.
Não é assim tão fácil reproduzir os procedimentos do clown-mímico dada a estrutura
poética do clown-falante, porém eles possuem similaridades entre gestos e palavras.
Claudine Amiard-Chevrel faz um levantamento de procedimentos clássicos9 da
clownização dos personagens de teatro, que nos ajuda nesse sentido. São eles: simples gestos
e lágrimas, jargões, incoerências (non-sense), acumulação verbal, invenção e virtuosidade
verbais, jogos de palavras e trocadilhos, inversão de fórmulas rituais. Desenvolvo então minha
leitura com base nesses procedimentos clássicos, adaptando-os para a música.

8STAROBINSKI, J. op. cit. p. 58-59 [tradução minha].


9 AMIARD-CHEVREL, Claudine. "La cirquisation du théâtre chez Maíakovski", in: Du cirque au théâtre.
Paris, L'Age d'Homme. s/d. p.114-118.
6

Gritos e lágrimas aparecem claramente, por exemplo, no grito do clown-louco, dos


Mutantes (em Balada do louco): “Se eu posso pensar que deus sou eu, e bruuu” .
Ou na música Aos pedaços, do show Tangos e Tragédias, onde o palhaço mantém
por muito tempo a última nota, podendo sugerir uma analogia com a agilidade corporal do
clown-mímico (provando que a voz também é flexível).
As lágrimas aparecem em alguns clowns-trágicos desse mesmo grupo, através de
uma voz lacrimosa em várias canções.
O outro procedimento, muito usado para brincar com algumas gírias profissionais, é
o uso de jargões. Para as pessoas que não possuem conhecimento em determinadas áreas,
esses jargões tornam-se uma linguagem confusa e engraçada. Confusões típicas, por exemplo,
em situações simples que o clown-mímico transforma em um incidente grave. A
especialização de conhecimentos tão cara a ciência tem pouca serventia ao clown; por
exemplo, quando representa um médico ou um bombeiro e acaba piorando a situação do
paciente ou da vítima. É um prato cheio para o deboche com os “tipos” profissionais.
Como no caso de “A vingança do hipocondríaco” (Língua de Trapo), que brinca com
os jargões médicos:

“É que ele me receitou


Sulfato de neomicina
Mais xilometazolina
Pra curar meu resfriado
(...)
Eu resolvi receitar fenilciclohexilacético
Que além de ser antisséptico
Não tem contra-indicação”

Além dos termos médicos, outro tipo de jargão preferido, pelo palhaço (brasileiro), é
o econômico, como em “Melô da economia” (Premeditando o Breque), que ainda aproveita
para brincar com a linguagem jornalística, dizem eles:

Jonas, o exame da conjuntura.


Veja Júlio, numa análise coerente a reversão é inexorável, isto é,
os insumos básicos afinal se descapitalizarão”

As incoerências e as atitudes non-sense talvez sejam as formas de expressão mais


próximas do clown-louco. Na fala, estão muito próximas do delírio verbal. Mas, para o clown-
louco, muitas vezes, o que parece ser non-sense esconde apenas uma maneira diferente de agir
e falar. Neste caso, do Mamonas Assassinas, verso por verso, as ideias são ligadas seguindo
7

uma lógica de pensamento estranha à comum, como se o eu-lírico estivesse pensando alto.
Assim, ao falar a palavra cão, vem à lembrança o mês de vacinação.

A polícia é a justiça de um mundo cão


Mês de agosto sempre tem vacinação
Na política, o futuro de um país,
Cala a boca e tira o dedo do nariz.

A acumulação verbal talvez seja um dos procedimentos de linguagem mais


tradicionais no mundo do clown-mímico, já que é caracterizado pela repetição de gestos ou
gracejos (muitas vezes com uma quebra de ritmo de uma acumulação verbal por outro
palhaço. Lembremos de Os trapalhões. Por exemplo, quando Dedé “prega uma peça” em
Zacarias, Zacarias repete a atitude engraçada com Muçum. Mas quando Muçum tenta aplicar
a brincadeira em Didi, esse não se deixa enganar, pois quase sempre faz o papel do clown-
esperto). Assim, na transposição, do clown-mímico para o clown-falante, esse procedimento
se mantém vivo, mas nesse caso com a repetição das palavras e estrofes.
Temos “Sabão Crá-Crá”", do grupo Mamonas Assassinas, que faz a variante com as
vogais em cré-cré, cri-cri etc
Ou, no caso da “Aquarela da Sbórnia”, de Tangos e Tragédias, onde o público é
chamado para completar a estrofe com a expressão gaucha “bá”, mas com uma pegadinha ao
final:

Nós nascemos na Sbórnia... Bá!


A Sbórnia era ligada ao continente por um istmo... Istmo.

(quando o público completa a segunda estrofe ainda com “bá” e eles param a música
para explicar que a segunda estrofe é com “istmo”)

O clown-falante ultrapassa as limitações do mundo real pelas formas gramaticais e


consegue nos mostrar também piruetas, malabarismos e acrobacias dos palhaços saltimbancos
pelo “impossível” da fala, pela invenção e virtuosidade verbais.
É na invenção de palavras e na descrição de imagens “inimagináveis”, que o clown
se arrisca e, muitas vezes, cria um novo vocabulário. Misturando a língua inglesa com a
portuguesa, Os Mamonas Assassinas, na música “1406”, cantam:

MONEY que é GOOD nóis não HAVE (HEAVY)!


Se nóis HAVasse nóis não tava aqui PLAYando
Mas nóis precisa de WORKá.
8

Assim, nas imagens “inimagináveis”, os grupos usam e abusam da criatividade,


brincando com ilusão e verdade, e nesse caso, o clown-mágico toma conta do espetáculo. Em
“Vida de cachorro”, dos Mutantes, os cães “humanizados” podem passear de “patas” dadas. A
música que começa como um panfleto da época, “vamos embora companheiro”, transforma-
se numa singela canção onde o eu-lírico se revela um cachorro apaixonado:

Vamos embora companheiro, vamos


Eles estão por fora do que eu sinto por você
Me dê sua pata peluda, vamos passear
Sentindo o cheiro da rua

Ou na imagem do clown-apaixonado que passa a “Lua de mel” em Cubatão


(Premeditando o breque), cantando emocionado:

Sons de sirenes, como um sino a soar


e no embalo das tosses
um mutante a cantar

Os jogos de palavras e o uso dos trocadilhos na criação poética, dentro dos padrões
clownescos, multiplicam os sentidos de uma palavra, aproximando-a daquele clown-mímico
de dupla face: metade do rosto pintado de expressão feliz e a outra metade triste. Temos o
verso, por exemplo: “Partido Verde ao meio” da canção “Berlim Bom-fim”, do Tangos e
Tragédias.
Assim também vejo o uso de trocadilhos, no título “Balão trágico”, canção do
Premeditando o breque, que parodia o grupo infantil Balão Mágico. Ou o “Régui Spiritual”
(Língua de trapo), que quer se referir ao ritmo Reggae, mas que acaba trocando a palavra pelo
imperativo “Regue [sua alma]”.
No caso da inversão das fórmulas rituais, o que podemos encontrar é o
aproveitamento de uma situação clichê modificada pelo palhaço. Na fala podemos ver, por
exemplo, o uso de uma expressão bem conhecida, podendo mesmo ser um ditado, que é
transformada causando um estranhamento com o familiar. Como temos na forma infantil de
revidar um xingamento: “Você é feia! — Mais feia é quem me diz. Eu sou feia, mas eu sou
feliz”. Assim, na inversão, os Mutantes cantam:

Mais louco é quem me diz


Que não é feliz

Dos Secos & Molhados temos, na voz do clown-vítima, a música “O patrão nosso de
cada dia”, ironizando a oração ao “Pai nosso”.
9

Também podemos ver uma virtuosidade nessas inversões de fórmulas no caso do


Mamonas Assassinas, que mistura dois ditados: “Pau que nasce torto morre torto” com “Ele
joga água fora da bacia”, e forma um terceiro: “pau que nasce torto mija fora da bacia”.

***

Para finalizar, sabemos que alguns desses procedimentos de linguagem não são
exclusivos dos clowns, e podem ser constitutivos de qualquer poesia, mas, quando o clown se
apropria deles, percebemos que o resultado dessa apropriação é a desordem dos discursos
institucionalizados. A maneira como são explorados tornam os mais variados temas e
situações ridículos frente a outras formas poéticas. Parece-nos que o importante é ridicularizar
usando toda a ironia possível, numa manifestação discursiva classificável não exclusivamente
como crítica, artística, política, irônica etc.

2 REFERÊNCIAS

AMIARD-CHEVREL, Claudine. “La cirquisation du théâtre chez Maíakovski”, In: Du


cirque au théâtre. Paris: L'Age d'Homme. s/d. pp.103-120.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2003.

SHAKESPEARE, William. Hamlet. São Paulo: Abril Cultural, 1981.

STAROBINSKI, Jean. Portrait de L'Artiste en Saltimbanque. Genève: Editions d'Art


Albert Skira/ Paris: Flammarion. 1970.

STAROBINSKI, Jean. Retrato del artista como saltimbanqui. Madrid: Abada Editores, 2007.

CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 7ª edição. Tradução


de Vera da Costa e Silva. Rio de Janeiro, José Olympio, 1991.
ISAACS, Alan e MARTIN, Elizabeth org. Dicionário de Música. Rio de Janeiro, Zahar,
1985.

MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo, Ed.Cultrix, 1978.


SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo

ADAPTAÇÃO EM DEBATE:
RESGATES E ANÁLISE DE UM MATADOR EM CARTAZ

Samantha Borges1(PPGLetras/UFSM)

RESUMO

O artigo tem como objetivo realizar um resgate de algumas teorias desenvolvidas acerca do
tema adaptação literária para o meio audiovisual. Para isso são apresentadas as ideias de
autores como Stam, Clüver e Comparato. Como forma de exemplificar as teorias debatidas,
faz-se a análise da adaptação do livro O Matador, de Patrícia Melo. A obra foi transformada
no filme O Homem do Ano, em 2002, dirigido por José Henrique Fonseca e roteirizado por
Rubem Fonseca. O enfoque da análise é a proximidade de alguns elementos da obra com a
linguagem cinematográfica, como a velocidade da narrativa, que propicia a adaptação. Além
disso, também é observado que a reformulação, na produção fílmica, de fatos e personagens
do texto literário contribui para a construção de um novo olhar sobre o objeto trabalhado.
Através da apreciação comparativa entre a narrativa literária e a cinematográfica chega-se a
reiteração de algumas teorias arroladas, em especial de que literatura e cinema mostram um
diálogo intertextual e intermidiático, que enriquece a produção cultural contemporânea.

Palavras-chave: Adaptação. O Matador. O Homem do Ano.

RESUMEN

El artículo tiene como objetivo realizar un rescate de algunas teorías desarrolladas acerca del
tema de adaptación literaria para el medio audiovisual. Para eso son presentadas las ideas de
autores como Stam, Clüver y Comparato. Como forma de ilustrar las teorías debatidas, se
hace el análisis de la adaptación del libro O Matador, de Patrícia Melo. La obra fue
transformada en la película O Homem do Ano, en 2002, dirigido por José Henrique Fonseca y
roterizado por Rubem Fonseca. El enfoque del análisis es el acercamiento de algunos
elementos de la obra com el lenguaje cinematográfico, como la velocidad de la narrativa, que
propicia la adaptación. Además, también se observa que la expresión, en la producción
fílmica, de hechos y personajes del texto literario contribuye para la construcción de una
nueva mirada sobre el objeto trabajado. A través de la apreciación comparativa entre las
narrativas literaria y cinematográfica se llega a la reiteración de algunas teorías incluidas, en
especial de que la literatura y el cine muestran un diálogo entre textos y entre medias, que
enriquece la producción cultural contemporânea.

Palabras-clave: Adaptación. O Matador. O Homem do Ano.

1 INTRODUÇÃO
O artigo apresenta primeiramente um resgate de algumas teorias e debates suscitados
pela recorrente busca e utilização de histórias narradas pela literatura para sua transposição ao

1
Graduada em Comunicação Social - Hab. Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Maria e Mestranda
em Estudos Literários, pela mesma instituição; e-mail: borges.samantha@ymail.com.
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meio audiovisual. O assunto suscitou inicialmente intensas discussões sobre a hierarquia


supostamente existente entre literatura e produtos culturais audiovisuais, como filmes,
novelas, videoclipes. Devido à concepção de que os meios de comunicação de massa estavam
diretamente ligados à alienação e ao mero entretenimento de seu público, e em contrapartida
de que a literatura, em especial a ditada pelo cânone, estaria acima dessas características, por
muito tempo a adaptação foi julgada como um produto inferior àquele que lhe deu origem.
Aos poucos, no entanto, através de novos paradigmas teóricos como a
intertextualidade debatida por Kristeva e Genette, a partir da teoria do dialogismo de Bakhtin,
o diálogo entre diferentes linguagens textuais passou a ser considerada. Além do mais, a
ascensão da mídia e o crescimento de sua relevância e influência sobre produtos culturais
tornaram necessária uma aproximação entre os estudos de comunicação e os estudos
literários. Novos termos se fizeram presente, como o hibridismo (hoje sendo mais aceito pela
comunidade acadêmica o termo intermidialidade), interartes, entre outros. Através dessas
concepções inovadoras, a ideia de que literatura e outras artes estão interligadas e promovem
um jogo de influências entre si, passa a fundamentar a teoria sobre adaptação.
Para que o artigo não permanecesse apenas no plano teórico, buscou-se um objeto de
análise que pudesse exemplificar as teorias debatidas. Assim, em um segundo momento, o
artigo se detém sobre a adaptação da obra O Matador, de Patrícia Melo, lançado no ano de
1995. O filme baseado no texto literário é O Homem do Ano, de 2002, que teve direção de
José Henrique Fonseca e roteiro de Rubem Fonseca. A análise comparativa visa elucidar de
que maneira a fundamentação teórica sobre adaptação se faz presente nesse produto cultural,
além de reiterar o ponto de vista de autores como Stam, Clüver e Comparato, de que literatura
e cinema se relacionam através de uma via de mão dupla, em que características narrativas
dialogam entre si, construindo um painel cultural mais rico para o leitor/telespectador.

2 BREVE HISTÓRICO SOBRE ADAPTAÇÃO LITERÁRIA PARA O MEIO


AUDIOVISUAL
O uso da adaptação de textos em diferentes suportes não é fenômeno recente, mas a
literatura encontra, no cinema e no avanço dos meios de comunicação, uma nova forma de
exposição. O cinema, desde o seu surgimento, utiliza grandes obras literárias como fonte de
temas e histórias para o processo de criação cinematográfico. De clássicos como Hamlet e
Romeu e Julieta (Shakeaspeare), Madame Bovary (Flaubert), Orgulho e Preconceito (Jane
Austen) e Robinson Crusoé (Defoe) – todos com mais de uma adaptação para as telas do
cinema -, a superproduções contemporâneas como O Senhor dos Anéis (J. R. R. Tolkien),
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Harry Potter (J. K. Rowling), Ensaio sobre a cegueira (Saramago) e O Pianista (Szpilman), a
literatura tem se mostrado fonte inesgotável de histórias que podem ser transcritas para o meio
audiovisual, pois literatura e cinema “constituem dois campos de produção sígnica distintos
cuja relação pode se tornar possível em razão da visualidade presente em determinados textos
literários, permitindo sua transformação em películas” (CURADO, 2007, 01-02).
Ao longo da história das adaptações, a crítica defende que seu uso, em especial, para
meios de comunicação de massa, na verdade, vulgariza o texto literário, transformando-o em
mero produto de mercado, como afirmado por Habermas

no domínio muito amplo da cultura de consumo, são as consideração ditadas pela


estratégia que determinam não somente a escolha, a difusão, a apresentação e o
condicionamento das obras, mas também a sua produção como tal (HABERMAS,
apud AVERBUCK, p. 181).

Em geral, os críticos procuram justamente demarcar um limite de valor entre


literatura e mass media, - em especial, cinema e televisão, maiores promotores das adaptações
- destacando a superioridade do texto literário. Como afirma Robert Stam, “a retórica padrão
comumente lança mão de um discurso elegíaco de perda, lamentando o que foi „perdido‟ na
transição do romance ao filme”. Stam desenvolve o que ele define como seis “preconceitos
primordiais” quando se trata de adaptação, que seriam a antiguidade, o pensamento
dicotômico, a iconofobia, a logofilia, a anti-corporalidade e a carga de parasitismo. Através
desses pressupostos, é possível compreender um pouco do convencionalismo que permeia a
concepção de adaptação. Segundo Stam, a antiguidade diria respeito à consideração de que a
arte literária é superior a artes contemporâneas; o pensamento dicotômico de que a literatura
perde valor ao ser adaptada ao cinema; a iconofobia a um preconceito quanto à imagem ou às
artes visuais; a logofilia enquanto supervalorização da cultura do livro; a anti-corporalidade
que causaria uma espécie de aversão à constituição das personagens de um livro agora em
“carne e osso” através da imagem; e por fim o parasitismo colocaria em questão a apreciação
de que a adaptação “é menos do que o romance porque se constitui em uma cópia da história
literária, e menos do que um filme por não ser um filme „puro‟” (STAM, 2003, p. 21).
De fato, esses preconceitos se tornaram senso comum quando o assunto é adaptação,
principalmente quando o tema é colocado dentro das discussões mais radicais sobre os meios
de comunicação, como a teoria da sociedade do espetáculo, de Guy Debord, que atomiza o
poder de alienação cultural provocado pelo avassalador impacto de um novo paradigma
cultural movido pelo imagético. Já Bakhtin, com suas “palavras sagradas” e sua valorização
da palavra escrita, eleva o livro a um status social que dificilmente será mantido ao ser
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transposto para uma linguagem meramente audiovisual. Entretanto, é justamente o mesmo


Bakhtin que traz à luz o conceito de dialogismo, através do qual o texto não deve ser
entendido como algo isolado, pois tanto sua produção quanto sua recepção “dialogam” com
outras esferas de constituição individual, social e cultural.
É partindo do prisma de Bakhtin – do dialogismo – que Kristeva cria sua concepção
de intertextualidade, também corroborada por Genette, a partir da década de 60, com os
estudos do Estruturalismo e Pós-estruturalismo. É a partir daí que a hierarquia estabelecida
canonicamente entre literatura e meios de comunicação começa a ser desconstruída

A semiótica estruturalista das décadas de 1960 e 1970 tratava todas as práticas de


significação como sistemas compartilhados de sinais que produzem „textos‟ dignos
do mesmo escrutínio cuidadoso dos textos literários, abolindo, desta forma, a
hierarquia entre o romance e o filme (STAM, 2003, p. 21).

Através da teoria da intertextualidade, a obra literária perde sua “aura” de


originalidade absoluta, incitando a ideia de que a narrativa não se encerra em si, mas se abre a
diferentes leituras e textualidades. Começa a se levar em conta toda uma estrutura complexa
de pré-textos, para-textos e outras concepções, incluindo aí a premissa de que a identificação
dessa rede de relações intertextuais em geral “não pertencia apenas a uma literatura isolada e
frequentemente relacionava-se ao âmbito de outras artes e mídias” (CLÜVER, 2006, p. 14).
É também Bakhtin que lança mão do conceito de hibridismo na relação entre
literatura e outras artes e mídias, termo que ganha vulto junto a teorias contemporâneas. Para
Bakhtin, a intenção da originalidade fica em segundo plano, já que o próprio discurso da
literatura é, em si, uma “construção híbrida”, e assim, a adaptação “pode ser vista como uma
orquestração de discursos, talentos e trajetos, uma construção „híbrida‟, mesclando mídia e
discursos, um exemplo do que Bazin na década de 1950 já chamava de cinema „misturado‟ ou
„impuro‟” (STAM, 2003, p. 23).
Ao encontro da concepção de hibridismo, em que se esmaecem os limites de discurso
entre os campos culturais, Derrida desenvolve a sua teoria desconstrucionista que desconstitui
os “contextos de fundação e hierarquias associada à presença/ fundação/origem, tais como as
que são expressas pelos pares oral/escrito, ficcional/verídico, cópia/original” (MIGUÉNS,
2007, p.247). Para Derrida, não há e nunca houve origem, logo a ideia de cópia entendida
como modelo inferior a algo “original” não se sustenta.
Esses novos olhares sobre as relações entre campo literário e campo da comunicação
ajudam a originar – em especial, a partir da década de 90, nos Estados Unidos - os Estudos
Culturais, que surgem como uma corrente teórica que consolida a possibilidade de a
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adaptação ser vista como um meio de diálogo entre diferentes campos da cultura. Ganha força
a teoria da Intermidialidade que defende que “literatura e cinema devem ser entendidos como
mídias que se inter-relacionam de modos diversos, dentro de um universo midiático bastante
amplo, que inclui mídias diversas” (MÜLLER, 2007, p.78 ). Segundo Müller, por ser tanto a
literatura, quanto o cinema, expressões artísticas de dominância na sociedade contemporânea
“interessa compreender os processos de mutação, transformação, transferência, tradução,
adaptação, citação, hibridação entre as duas mídias e, ainda, entre outras mídias” (MÜLLER,
2007, p.78). Schimidt também destaca a relação que se criou entre estudos literários e estudos
midiáticos a partir do pós-estruturalismo que, segundo o autor, provocou uma ruptura com a
tradição filológica e hermenêutica.

A transformação dos estudos literários em estudos textuais juntamente com uma


expansão de fenômenos temáticos de textos literários em direção a outros produtos
midiáticos (filmes, vídeos, comerciais de TV, videoclipe, etc) transformou os
estudos literários em um tipo específico dos estudos de mídia (SCHMIDT, apud
MÜLLER, 2007, p.80).

Se a escola norte-americana concentrou seus esforços na teorização dos Estudos


Culturais e encontra no par cinema/literatura uma das mais expressivas fontes de análise
intermididiática, no Brasil, Macunaíma (Mário de Andrade), Lavoura Arcaica (2001),
Memórias Póstumas de Brás Cubas (Machado de Assis) são apenas alguns exemplos de obras
consagradas no campo da literatura, que foram adaptadas e se tornaram filmes. Mas em terras
tupiniquins a televisão é quem, em especial, se “enamora” das obras mais expressivas da cena
literária nacional para enriquecer suas produções. Destacam-se na programação da TV
brasileira dois formatos televisivos que utilizam largamente a literatura como base de suas
tramas. Um é a telenovela, produto audiovisual transmitido pela televisão em capítulos
diários, com duração em média de seis meses. Em geral, visa o mero entretenimento e através
dela se tem não mais a imaginação do receptor a serviço da recriação do que é lido, mas sim
uma imagem pronta, unida ao som.
Quando falamos em minissérie – o outro formato que mais se utiliza de livros como
fonte de suas produções -, encontramos também um produto audiovisual pronto, porém com
duração bem mais curta, que fica em torno hoje de 30 a 50 capítulos. Esse número variou
muito ao longo do tempo. A primeira minissérie da Rede Globo foi ao ar em 1982, com
apenas oito capítulos. Durante a década de 80, em geral as tramas não ultrapassavam os 20
capítulos, sendo que esse número só aumentou a partir da década de 90, quando a minissérie
adquiriu status de superprodução. Alguns estudiosos vêem a minissérie como uma forma de
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quebrar a mesmice da programação televisiva e atualmente ela é realmente feita através de


grandes produções, com capítulos mais caros do que os de novelas e talvez por isso seja
considerada por alguns como “a elite da programação televisiva”.
Sandra Reimão, em pesquisa entre os anos de 1986 a 2000, destaca a presença de 26
adaptações literárias somente no formato minissérie, para a televisão brasileira. Já entre os
anos de 1982 a 2006, foram produzidas 75 minisséries na televisão brasileira, sendo 60 pela
Rede Globo de televisão e 15 pela extinta TV Manchete. Das 75 produções, 30 tiveram como
fonte obras literárias. Para Reimão, merece destaque no processo de adaptação a mudança de
suporte físico, que propicia “uma passagem de sinais e símbolos gráficos assentados em papel
para um conglomerado de imagens e sons, captados e transmitidos eletronicamente”
(REIMÂO, 2004, p.107). Já para Doc Comparato, a adaptação vai além de uma simples
mudança de suporte, transmitindo a ideia de “transubstanciação” entre literatura e outras
mídias

Adaptação é uma transcrição de linguagem que altera o suporte linguístico utilizado


para contar a história. Isso equivale a transubstanciar, ou seja, transformar a
substância, já que uma obra é a expressão de uma linguagem. Portanto, já que uma
obra é uma unidade de conteúdo e forma, no momento em que fazemos nosso
conteúdo e o exprimimos noutra linguagem, forçosamente, estamos dentro de um
processo de recriação (COMPARATO, 2000, p.330)

Assim como no cinema, a televisão, um dos meios de comunicação de massa mais


populares do país, busca, na literatura, uma espécie de “enriquecimento cultural”, como se a
telenovela “buscasse extrair um pouco da legitimidade através do „peso cultural‟ dos autores
adaptados” (REIMÃO, 2004, p. 20). O carisma e o prestígio de personagens e histórias
consolidados entre o público leitor seria transposto ao público telespectador, seja ele de uma
novela ou de um filme adaptado, pois “assim, estaria, em tese, assegurado o sucesso das
películas provenientes de textos já consagrados” (CURADO, 2007, p.02). Porém, mesmo com
a ingênua intenção de obter proveito de uma história consolidada, películas, telenovelas e
minisséries, não passam incólumes pela (nova) visão de um diretor

Ainda que pautados nas obras literárias, os diretores imprimem, na película, suas
crenças, seus objetivos e sua estilística. Assim, eles buscam ou aproximar, ou
traduzir, ou equivaler, ou dialogar, ou corresponder, ou adaptar o texto literário ao
cinematográfico, observando as possibilidades de imbricamento de um meio com o
outro, tendo em vista aquilo que desejam expressar (CURADO, 2007, p.02-03).

Inevitavelmente, portanto, o texto adaptado se transformará. Personagens são


modificados e tramas são alteradas para que o novo produto se encaixe a outra lógica
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contextual, sem necessariamente se manter enquanto reprodução do romance. Leitores e


telespectadores muitas vezes esperam “ver” o que “leram”, mas a verdade é que a “adaptação
mantém uma lealdade com a sua inspiração, mas precisa ser julgada como sendo ela mesma,
outra e distinta forma de drama televisivo” (DORNELLES, 2007, p.141). Para que ocorra
uma adaptação, é necessário, primeiramente, que a narrativa escolhida seja adaptável, explica
Doc Comparato. É o roteirista, inclusive, que estabelece didaticamente, diferentes graus de
adaptação “com base no maior ou menor aproveitamento dos conteúdos da obra original”
(COMPARATO, 2000, p. 331).
Doc Comparato distingue cinco níveis de adaptação. O primeiro diz respeito à
adaptação propriamente dita, quando se busca no audiovisual ser o mais fiel possível à obra.
Mantém-se ao máximo a fidelidade para com personagens, enredos e ambientes, entretanto é
importante destacar que “este tipo de trabalho não é uma mera ilustração audiovisual, mas que
é preciso ultrapassar os limites da fidelidade para se conseguir um roteiro correto e eficaz”
(COMPARATO, 2000 p.331-332). Já nas adaptações baseadas em permitem algumas
modificações, como mudança de nome de alguns personagens, porém é possível reconhecer
ainda a fidelidade ao texto. Quando alguma produção audiovisual é inspirada em, é possível
observar que se utilizou de uma personagem ou situação dramática de uma obra, para criar
uma história com uma estrutura diferente, mas que mantém tempo e espaço fiéis ao original.
Já na recriação, o roteirista não mantém muita fidelidade à obra, podendo alterar aspectos de
tempo, espaço e personagens e mantendo apenas o plot (parte central da ação dramática)
principal. E por fim, na adaptação livre, observa-se a fidelidade apresentada em uma
adaptação propriamente dita, tendo assim a fidelidade também bastante mantida. A diferença
está no fato de que o roteirista explora mais agudamente um dos aspectos dramáticos da obra
original. Comparato enfatiza, ao descrever esses níveis de adaptação, que “o material
adaptável apresenta-se sob diversas formas; mas a primeira questão que devemos colocar é se
a obra é realmente suscetível de adaptação” (COMPARATO, 2000, p. 335).
No âmbito acadêmico da comunicação, tem ficado clara a posição de que a
adaptação, como o próprio termo sugere, é uma releitura, uma adequação, uma transformação
de um texto literário em outra coisa, concepção que vai ao encontro de que “um livro é um
livro, uma peça é uma peça, um artigo é um artigo, um roteiro é um roteiro. Uma adaptação é
sempre um roteiro original. São formas diferentes. Simplesmente como maçãs e laranjas”.
(Field, 1995, p.185). No campo das letras e da literatura, se ainda há alguma resistência, ao
mesmo tempo se reconhece que a aceitação em relação a adaptações já evoluiu bastante. Em
busca de um meio termo, é preciso compreender, antes de tudo, que a adaptação existe, está
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instalada nos processos de criação audiovisuais e, portanto, não deve ser ignorada ou ainda
julgada a partir de paradigmas que não se enquadram mais tão harmonicamente na realidade
de um mundo em que tudo é “inter”: intertextual, intermidiático e interligado.

3 UM MATADOR EM CARTAZ: A LINGUAGEM QUE FACILITA A ADAPTAÇÃO


O cinema brasileiro contemporâneo tem trazido à tona obras literárias com
características que propiciam a adaptação, fator mais relevante nesse processo, segundo
Robert Stam. Essa literatura com características inovadoras se torna alvo da produção
cinematográfica, porque são livros que apresentam uma linguagem vibrante e fragmentada,
aproximada da freqüência de videoclipes e filmes e que ainda se apresentam em combinação
com discursos de outras áreas, em especial a publicitária, como ocorre no trecho abaixo, em
que até mesmo a estrutura do parágrafo deixa de ser linear:

Beijei Arlete e saí feliz, pensando que passei a maior parte da minha vida querendo
ser outro cara.
Mappin,
venha correndo,
Mappin,
chegou a hora,
Mappin,
é a liquidação!
Quando eu era garoto, adorava ouvir a música do Mappin. Videocassete Gradiente,
quatro cabeças, controle remoto. Garantia Gradiente de um ano. Limpeza automática
das cabeças. À vista cento e sessenta ou duas de oitenta. Famílias, brinquedos,
prestações, crediários. Aproveite! Gosto de ir ao Mappin. Últimos dias da promoção.
Acompanha rack. Jogos de cama. Promoção. Tudo para o seu carro, venha correndo.
Promoção. Mappin. Passei os olhos procurando uma vendedora bonita. (MELO,
2003, p. 10)

As obras em geral se inserem em contextos contemporâneos, desnudando o


submundo das metrópoles urbanas. Alguns exemplos de livros que podem ser incluídos nesse
panorama são Carandiru, Cidade de Deus e Tropa de Elite, todos transformados em películas
que alcançaram relativo sucesso, tanto nacional, quanto internacional. E insere-se aí também o
livro O Matador, de Patrícia Melo (1995). A obra conquistou prêmios na França (Deux
Océans) e na Alemanha (Deutsch Krimi) e teve seus direitos vendidos para a Inglaterra,
Alemanha, França, Itália, Espanha e Holanda, entre outros países. No ano de 1999, O
Matador foi incluído na lista da Time Magazine, entre os cinquenta “Latin-American Leaders
for the New Millennium”.
O livro apresenta uma narrativa ansiosamente veloz, centrada nas impressões mentais
do protagonista em relação a sua trajetória. O suburbano Máiquel, morador da periferia do
Rio de Janeiro, tem sua personalidade transformada ao perder uma aposta de futebol e ser
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obrigado a tingir os cabelos de loiro, como forma de pagamento ao jogo. Ao se ver diante do
espelho, Máiquel se sente um novo homem: o jovem que antes se julgava insignificante
perante o mundo e a vida, dá lugar a um personagem poderoso, capaz de realizar tudo o que
pretensamente desejar, incluindo a partir daí dois elementos que não faziam parte de sua
rotina - dinheiro e morte. Ao chegar ao bar em que estão os parceiros da aposta, Máiquel é
alvo de risos e chacotas do marginal Suel, o que o leva a cometer seu primeiro assassinato. O
fato se torna o estopim para sua vida como assassino profissional, já que ao invés de ser visto
como bandido é ovacionado como o mais novo herói de sua comunidade: moradores e polícia
local agradecem por sua coragem de matar Suel, que vivia a tirar a paz da localidade.
Ao ganhar fama, Máiquel é procurado por Dr. Carvalho, o dentista que resolve seus
problemas bucais em troca de mortes encomendadas, efetuadas pelo protagonista. É assim que
Máiquel se torna o líder de uma rede de poder paralelo, através da qual a justiça não é feita
pelo poder policial – desmascarando a debilidade do poder público -, mas sim pelo Matador.
O enredo, além de apresentar a violência e a corrupção como pano de fundo, também se vale
do apelo sexual para mostrar uma narrativa crua, desvinculada de modelos morais mais
tradicionais. A mistura sexo – sangue dá o tom de uma história de cadência alucinante, que
tira o fôlego do leitor, ao ser transcrita em uma linguagem que narra uma sucessão de
aconteceres, no fluxo do pensamento da personagem. Uma linguagem incessante, sem pausas:

No ônibus, a caminho do bar do Tonhão, quase vomitei na nuca do passageiro no


banco da frente. Maldita Novalgina. Fiquei pensando se não tinha um jeito de
resolver o assunto sem ir até lá. Não tinha, Desci do ônibus, o dente me porrinhando,
andei duas quadras até chegar no bar do Tonhão. De cara, as coisas começaram a dar
errado. Cledir estava sentada no balcão e, ao me ver, correu na minha direção, com
voz de choro, veio implorar para que eu desistisse daquela bobagem. E eu que tinha
pensado em nunca mais ver a Cledir. Uma boa oportunidade, pensei. Cledir
soluçava, implorava, não faça isso, não estrague a sua vida. Tudo bem, Cledir, não
precisa chorar, você tem razão. Apartamento com dois dormitórios, sem entrada,
aproveite. Não vou duelar. Móveis para cozinha. Vou me casar com você. Tudo para
o seu lar. Vou trabalhar direito naquela loja de carros usados, vou melhorar minha
'vida. Mude para o melhor. Coisas boas passaram pela minha cabeça, mas eu não
disse nada disso para Cledir. Eu disse: nem fodendo (MELO, 2003, p. 14).

Esse modelo de linguagem favorece sua transformação em um produto audiovisual,


já que se aproxima do fluxo imagético que é mais rápido que a linguagem escrita em geral,
além de facilitar o uso de recursos do mundo cinematográfico como o corte na sequencia da
narrativa e o flashback. Dessa forma, a obra O Matador, se configura como produto cultural
com grande potencial para a adaptação fílmica, fato que ocorre no ano de 2002, com o
lançamento da produção O Homem do Ano, do diretor José Henrique Fonseca e roteirização
de Rubem Fonseca.
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3.1 Adaptação: nem tudo que está no livro está no filme, nem tudo que está no filme está
no livro
Se o livro O Matador apresenta uma narrativa de ritmo tão veloz que chega a
aproximar-se do compasso de uma linguagem cinematográfica, o leitor que assiste ao filme
tem a impressão de que a película, ambiguamente, perde um pouco dessa velocidade. Assim
como defendido por autores como Stam e Doc Comparato, a história lida nas páginas do livro
é modificada e se transforma em um novo produto cultural. Mas, mesmo que o leitor tenha em
mente que estará diante de um produto diferente, a primeira impressão certamente é a de que a
velocidade da palavra escrita, ao menos nos momentos iniciais do filme, superou o ritmo da
imagem. Essa impressão inicial vai sendo suplantada no decorrer do longa-metragem, que ao
se aproximar do ápice da história vai adquirindo o ritmo mais frenético apresentado no livro,
com sequencias que valorizam uma montagem de cenas mais fragmentada e cortes mais
explícitos.
Além disso, vários recursos são utilizados pela produção do filme, para adequar a
história contada no livro, a uma versão cinematográfica. O protagonista permanece sendo o
fio-condutor da narrativa e a voz em off se mostra como a alternativa para representar em
áudio a narração em primeira pessoa apresentada no romance, como ocorre logo na primeira
cena do filme, em que, enquanto a câmera mostra um plano geral - que localiza o público em
um cenário urbano - Máiquel inicia um discurso em off:

Figura 1 - Cena inicial do filme O Homem do Ano


Fonte: www.youtube.com (acesso em 15 set. 2011)
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Concomitante à cena inicial, segue a voz em off de Máiquel:

Antes da gente nascer, alguém, talvez Deus, define direitinho como é que vai foder a
sua vida. Essa era a minha teoria. Deus só pensa no homem na largada, quando
decide se sua vida vai ser boa ou ruim. Quando não tem tempo, faz uma guerra, um
furacão e mata uma porrada de gente, sem ter que pensar em nada. Mas em mim, ele
pensou. 2

O texto transcrito é praticamente idêntico ao encontrado na obra, tendo sofrido


pequenas alterações nas frases. A ordem da narrativa, no entanto, é alterada. O livro inicia no
momento em que Máiquel está no salão, fazendo sua transformação e o texto utilizado para a
cena inicial da película aparece somente na página catorze de O Matador. Essa modificação
dá ao filme um começo impactante, mostrando que o diretor conseguiu captar a tensão central
de Máiquel e transformá-la na primeira apresentação da personagem ao telespectador.
Já em relação aos outros personagens, no entanto, há a predominância de algumas
modificações. Talvez a mais marcante delas tenha sido a transformação de duas personagens
em uma só: no livro, a personagem que realiza a transformação da cor dos cabelos de Máiquel
é a cabelereira Arlete e a moça que se tornará sua esposa no decorrer do enredo é Cledir. Já no
filme, Arlete não é apresentada ao público, sendo que Cledir assume em sua identidade tanto a
figura de Arlete, quanto de si própria. Cledir é a cabeleira que torna Máiquel loiro e também
quem se tornará sua esposa. A ausência de Arlete provoca o apagamento de uma das cenas
mais fortes do livro: o estupro de Cledir, efetuado pelo protagonista do romance, elemento
que acaba por amenizar a personalidade conturbada de Máiquel.
Outro ponto relevante apresentado no livro e ausente no filme é a relação de Máiquel
com seus sapatos. No livro, o protagonista destaca em sua narração a vergonha que sente dos
sapatos velhos e desgastados que usa, em contraste a riqueza e opulência de um mundo do
qual se sente inicialmente como intruso indesejado “Os meus sapatos fodidos sobre o tapete
cor de creme ficaram mais fodidos ainda, a fofura do tapete realçava a feiúra do meu sapato”
(MELO, 2003, p.61). Já no filme, essa particularidade não é apresentada. E assim como esse
detalhe da narrativa literária é omitida, diversas outras são recriadas. No livro a personagem
Suel é descrita como negra: “Suel era um negro de foder” (Ibid, p. 13), porém no filme é
representado pelo ator Wagner Moraes, que é branco; a personagem Gabriela, filha do Dr.
Carvalho, no romance possui 15 anos e aparece na trama bem mais constantemente que no
filme, no qual possui 17 anos e surge em poucas cenas, que não detalham seu vício em

2
Disponível em www.youtube.com
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drogas; Máiquel tinge os cabelos de cor escura no final do filme, fato que não ocorre na obra
literária.
Todos esses elementos que diferenciam a película do romance corroboram com a
classificação de Doc Comparato. O filme insere-se na categoria de baseado em, em que existe
ainda uma identificação fidedigna da produção fílmica à obra que serviu de inspiração, porém
elementos do enredo podem ser modificados, omitidos, recriados, assim como ocorre na
adaptação de O Matador. O formato ainda reitera a riqueza de leituras que podem ser
desenvolvidas sobre determinado objeto literário, desconstruindo a ideia de que literatura é
algo estanque e que o jogo de intertextualidades e intermidialidades que pode ser realizado
através dela é inferior ao seu elemento original.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Através do artigo buscou-se resgatar algumas discussões teóricas sobre o tema
adaptação. Primeiramente relegado a um nível mais baixo que a literatura, o produto
adaptado, em geral filmes, novelas e minisséries televisivas, passa a ser tratado como um
objeto outro, impossibilitando a hierarquização cultural, em que literatura seria algo superior a
materiais audiovisuais. A partir daí tomam vulto teorias sobre intertextualidade, interartes e
intermidias, que passam a dar suporte teórico a uma área de pesquisa tão polêmica.
Através da adaptação em análise no artigo, é ressaltado que não somente o cinema se
vale da literatura, mas que esse caminho é de mão dupla. No romance O Matador,
características da linguagem cinematográfica são facilmente identificáveis, como a velocidade
da narrativa, a mescla de linguagens coloquiais e publicitária, que ajuda a construir
imageticamente na mente do leitor elementos do mundo contemporâneo; e linguagem e
identidades das personagens apresentadas de maneira fragmentada, facilitando a concepção de
montagem e cortes existente na produção fílmica. Tais características ajudam a constituir uma
literatura que se desvia de uma concepção clássica de narrativa, em geral mais linear e
cadenciada.
O filme O Homem do Ano, mostra ao telespectador – em relação ao texto literário
que lhe serviu de base - uma nova e uma mesma história. Na película são apresentadas
diversas recriações sobre a narrativa literária, porém, o eixo essencial da obra de Patrícia
Melo é mantido, sendo possível ao telespectador que leu o livro, identificar o enredo de O
Matador nas cenas protagonizadas por Máiquel. A adaptação, portanto, se mostra como
produto capaz de enriquecer o repertório do leitor/telespectador, trazendo a tona um olhar
diferenciado sobre a narrativa.
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5 REFERÊNCIAS

AVERBUCK, Ligia (org.). Literatura em tempo de cultura de massa. Ed. Nobel, 1984.

BALOGH, Ana Maria. Conjunções – disjunções – transmutações da literatura ao cinema


e à TV. São Paulo: Annablume, ECA-USP, 1996.

COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. 2ª Reimpressão.


Ed. UFMG, 2003.

COMPARATO, Doc. Da criação ao roteiro. 4º Edição. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 2000.

DORNELLES, Beatriz, HAUSSEN, Dóris Fagundes. Estudos contemporâneos da


comunicação. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2007.

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14

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estética da telenovela. Tese de doutoramento apresentada à UFRJ, 1995.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo

ANA CRISTINA CESAR, SUPLEMENTADORA DE DRUMMOND

Luiza Ribas (UFSC) 1

RESUMO

A intenção deste trabalho é ler a marginália de Ana C. inscrita no exemplar do livro Reunião
de Carlos Drummond de Andrade, a partir daquilo que Jacques Derrida chamou de
suplemento quando discutiu, por efeitos de leituras de Rousseau, um procedimento de leitura
e de escritura que partia de uma lógica de substituição, representando a falta anterior de uma
presença. O suplemento não tem sentido próprio, ele é externo e pura atribuição de
significação que tenta compensar uma ausência, ele é uma experiência simbólica que faz parte
de um jogo de autoafecção (em que tudo o que toca é também tocado) e é também
contraditório, porque tenta restituir um impossível. Ainda intenta-se construir uma espécie de
unidade que identifique o tipo de leitura que Ana Cristina operou neste estudo de Drummond,
enquadrando seus comentários em uma conformidade que, longe de querer igualar todas as
marcas, quererá afirmar uma decorrência frequente de comentários que, acredita-se, são
convertidos posteriormente em escritura.

Palavras-chave:
Ana Cristina Cesar. Carlos Drummond de Andrade. Marginalia. Suplemento. Imagem.

RESUMÉE

L’intention de ce travail est de lire les notes marginales dans l’exemplaire du livre Reunião de
Carlos Drummond de Andrade à partir de ce que Derrida a appelé supplément quand il a
discuté, par effet des études Rousseau, un procédure de lecture e d’écriture qui a eu par
présupposé une logique de substitution, qui représentait une manque antérieur d’une présence.
Le supplément n’a pas un sens propre, il est extérieur et pas plus que pure attribution de
signification qu’essaye de compenser une absence, il est une expérience symbolique qui fait
partie d’un jeu d’auto-affection (dans le quelle tout ce qui touche est aussi touché) et il est
aussi contradictoire, car il veut rembourser un impossible. L’intention de ce travail est encore
essayer une construction de certaine unité qui puisse identifier le type de lecture qu’Ana
Cristina a fait dans son étude de Drummond, de cette façon, il faut mettre en cadre ses
commentaires sans avoir intention de les égaler mais en essayant de les affirmer en tant que
possibilités de futures écritures.

Mots-clé:
Ana Cristina Cesar. Carlos Drummond de Andrade. Notes marginales. Supplement. Image.

1 O TRABALHO ELE-MESMO
Este trabalho é parte de outro bem maior que venho desenvolvendo no meu mestrado
em Literatura, tanto aqui quanto lá (e é preciso que se mantenha isto em foco durante todo o
caminho) é ler a marginália de Ana C. inscrita no exemplar do livro Reunião de Carlos

1
Mestranda em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Santa Catarina; e-mail:
luiza.ribas@gmail.com.
2

Drummond de Andrade 2, a partir daquilo que Jacques Derrida chamou de suplemento quando
discutiu, por efeitos de leituras de Rousseau, um procedimento de leitura e de escritura que
partia de uma lógica de substituição, representando a falta anterior de uma presença:

O suplemento, sempre será mexer a língua ou agir pelas mãos de outrem. Tudo aqui
é reunido: o progresso como possibilidade de perversão, a regressão em direção a
um mal que permite ausentar-nos e agirmos por procuração. Por escrito. Esta
suplência sempre tem a forma dos signos. Que o signo, a imagem ou o representante
tornem-se forças e façam “mover-se o universo”, este é o escândalo.

O suplemento não tem sentido próprio, ele é externo e pura atribuição de significação
que tenta compensar uma ausência, ele é uma experiência simbólica que faz parte de um jogo
de auto-afecção (em que tudo o que toca é também tocado) e é também contraditório, porque
tenta restituir um impossível. Derrida complementa, ainda:

A auto-afecção é uma pura especulação. O signo, a imagem, a representação que


vêm suprir a presença ausente são ilusões que são o troco. À culpabilidade, à
angústia de morte e castração acrescenta-se ou antes assimila-se a experiência da
frustração. Ocasionar a mudança: em qualquer sentido que seja entendida essa
expressão descreve bem o recurso ao suplemento.

Nada mais apropriado para designar a operação com a qual Ana Cristina leu Carlos
Drummond de Andrade: as notas dela não são feitas aletoriamente ou se encontram
desconexas de um “sentido maior”, mas se inscrevem de maneira a destacar (sublinhar,
colocar asteriscos, flechas...) aquilo que parece ter “saltado aos olhos” (o que me faz pensar
no punctum barthesiano, e que me rendeu uma discussão mais detida lá no trabalho de
qualificação do mestrado); as anotações se dão, ainda, em vários níveis de compreensão e
interpretação, daí o fato de a lógica do suplemento se instaurar, aqui, como a operação por ela
encontrada. Como em um jogo em que se recomeça a partida toda vez (puro gasto de energia),
procedo aqui da mesma forma: tento operar um suplemento do suplemento, reabrindo as
possibilidades de potência e de sentido nestas tantas ausências (o impossível) da escritura
acumulada de Drummond com Ana Cristina.
Nas páginas 82 e 83 do Reunião, figuram os poemas Anoitecer e o começo de Nosso
tempo, o livro é A Rosa do Povo, no primeiro poema há apenas uma palavra anotada e
sublinhada: medo, palavra esta que bem se pode compreender face ao tom sombrio de um
anúncio de morte, de um silêncio e de uma sombra enunciados no poema. Logo em seguida,
tem-se o Nosso tempo, e aí sim Ana se detém em uma leitura mais alentada, pode-se dizer isso
2
As páginas do livro nas quais constam as anotações de Ana podem ser conferidas nos anexos do final deste
trabalho.
3

desde que se nota que as linhas estão numeradas e que existem, ainda, várias outras marcas
como setas, asteriscos, grifos e afins. O poema de Drummond se divide em 8 partes, já na
primeira, Ana anota: metonímia: recurso que evita o panfleto (palavras abstratas), o que faz
notar que a leitura dela não se dá apenas de maneira impressionista em que bastariam
destaques de passagens eleitas, ou ainda, em sentido “vampirizador”, ao contrário, pode-se
bem dizer que Ana Cristina estudou Drummond em um tipo de movimento que conciliou uma
estratégia de leitura em vários níveis. Algumas considerações são, portanto, apenas
registradas como um destaque intrínseco do poema, outras parecem ser elucidativas (dizem
respeito ao vocabulário ou a algum recurso de escrita) e outras, ainda, surgem quase como
sínteses de leitura, como por exemplo, esta do final da primeira parte do Nosso tempo: única
possibilidade de falar explodia, que se referencia à última estrofe. Há também um grande
número de referência a outros poemas do mesmo livro (e de outros) que parecem querer ligar
(por “tema”?) uns aos outros quase como compondo um único e enorme poemão.
No verso 20, ainda do Nosso tempo, Drummond escreve mas eu não sou as coisas e
me revolto, ao que Ana C. escreve mais abaixo: je me révolte donc nous sommes, numa
referência direta a uma das mais conhecidas citações do livro de Albert Camus L’homme
révolté escrito em 1951, no romance, Camus indica que o “homem revoltado” é aquele que
diz não e afirma ainda que este não representa uma fronteira, um limite:

frontière à partir de laquelle un autre droit lui fait face et le limite. Ainsi, le
mouvement de révolte s'appuie, en même temps sur le refus catégorique d'une
intrusion jugée intolérable et sur la certitude confuse d'un bon droit, plus exactement
l'impression, chez le révolté, qu'il est “en droit de”. La révolte ne va pas sans le
sentiment d'avoir soi-même, en quelque façon, et quelque part, raison. C'est en cela
que l'esclave révolté dit à la fois oui et non. Il affirme, en même temps que la
frontière, tout ce qu'il soupçonne et veut préserver en delà de la frontière. Il
démontre, avec entêtement, qu'il y a en lui quelque chose qui “vaut la peine de...”
qui demande qu'on y prenne garde. D'une certaine manière, il oppose à l'ordre qui
l'opprime une sorte de droit à ne pas être opprimé au-delà de ce qu'il peut admettre.
[…] La conscience vient au jour avec la révolte.

Para além de esta marcação indicar o tipo de leitora que Ana Cristina Cesar foi,
articulando e movimentando livremente sua biblioteca, parece também o caso de afirmar que
ela era um pouco este l’homme révolté cuja consciência vem à luz com a revolta, quero dizer
que Ana parece estar sempre num lugar à beira, no limite, na fronteira; as leituras e as
escrituras por ela realizadas não fazem senão ser a realização material de um corpo sempre
tensionado que diz oui et non ao mesmo tempo, que está sempre jogando com as
possibilidades. Tudo está inscrito no corpo, puro atravessamento de linguagem, uma massa de
significantes passíveis de significação. Mais: a partir do ponto em que se admite que a
4

materialidade do corpo é aquela do poema, é possível resignificar toda escritura de Ana tanto
quanto defender uma visão de que o suicídio tenha sido a forma coerente de se inscrever e se
confundir com o poema finalmente (embora não seja, aqui, esta a intenção).
Esta visão do homem revoltado corrobora ainda o que Drummond diz logo em
seguida no verso 21: Tenho palavras em mim buscando canal, que Ana sublinha num gesto
que só faz imaginar esse corpo (de novo) cheio de palavras, cheio de potência, todo abertura.
Para continuar defendendo que a leitura/escritura de Ana é uma coisa só-corpo, pode-se
apontar para a segunda parte do poema que começa com o verso este é tempo de divisas,
tempo de gente cortada, de onde parte a anotação de Ana: divisa: representações (bandeira,
partido, exercício, etc) / limite (sectarismo); de novo se tem um indício de uma operação com
o poema que se dá na carne, no mais profundo do eu em que as representações são as formas
pelas quais se pode manifestar a divisa, mais ainda: simbolizá-las. Simbolizando, então, o
limite, se dá para este lugar cujo único atrativo é a impossibilidade de lhe atravessar, uma
presença (presença para ausência) que quer dizer que se fica sempre do lado de cá. A divisa,
entretanto, neste caso, é de tempo; como se é que se faz para colocar uma representação
(bandeira, partido, exercício, etc) no tempo? E mais: por se dividir o tempo, se divide
também as pessoas, que partem com mãos viajando sem braços em obscenos gestos avulso. O
tempo, a divisa, o limite e a representação (linguagem, poesia) se encontram, então,
referenciados no corpo deste sujeito poético cindido e fragmentado, avulso.
Mais adiante, na terceira estrofe da parte 2, Drummond escreve símbolos obscuros se
multiplicam a que Ana puxa uma seta e escreve poesia?. Esta interrogação pode ser dos
elementos mais importantes entre os outros contidos neste poema, já que é possível ler aí uma
concepção da própria poesia e do fazer literário para Ana Cristina. Aqui recorro a uma
referência dela mesma que parece ser resultado de leitura do que da dúvida virou exercício:

te livrando:

castillo de alusiones
forest of mirroirs

anjo
que extermina
a dor

“Te livrando” da verdade, então? Te libertando e também “pondo em livro”,


institucionalizando? O castelo de ilusões e a floresta de espelhos fazem lembrar um tipo de
perdição que encontra referências em Jorge Luis Borges e sua Biblioteca de Babel sem fim (e
5

em tantos outros contos dele) assim como na “floresta de símbolos” de Baudelaire. O espelho
em questão implica uma teoria da imagem, uma floresta de espelhos, mais ainda, indica uma
teoria da imagem que leve em consideração todo o jogo que se tem de reflexos em ilusões.
Se se concebe a imagem como aquilo pertencente ao sensível (tanto quanto a cor, o
som, o gosto, o cheiro), querendo, desta forma, inferir que ela nos interpela e nos constitui
como sujeitos o tempo todo, recorre-se, assim, ao texto de Emanuele Coccia no qual ele
afirma que é a partir deste sensível (desta imagem) que se pode penetrar nas coisas e nos
outros. Desta maneira, com o espelho se teria como um sensível de si, uma imagem de
representação e identificação independente do sujeito ele mesmo:

O sensível tem lugar apenas porque, para além das coisas e das mentes, há algo que
possui uma natureza intermediária. Esse corpo intermediário se faz conhecer, em
todas as suas propriedades, no espelho; simultaneamente exterior aos sujeitos e aos
objetos, é nele que estes transformam o próprio modo de ser e se tornam fenômenos,
e aqueles colhem o sensível que precisam para viver [...]. No espelho, o sujeito não
se torna objeto para si mesmo, mas se transforma em algo puramente sensível, algo
cuja única propriedade é o ser sensível, uma pura imagem sem corpo e sem
consciência. No espelho tornamo-nos algo que não conhece e não vive, mas que é
perfeitamente cognoscível, sensível, ou melhor, é o sensível por excelência.

A imagem não é apenas transmissível, mas também apropriável, o que significa que
ela pode ser um dos modos pelos quais os sujeitos se mimetizam uns aos outros. Nestes
espelhos todos da floresta de Ana (no castelo de alusões), o que não faltam são imagens (tão
infinitas!) para apropriação, para mimetização, para que se perca e se reencontre incontáveis
vezes. Mas no poema, ela está te livrando de que? Quase como uma explicação, tem-se na
página anterior do A teus pés:

Minha boca também


está seca
deste ar seco do planalto
bebemos litros d’água
Brasília está tombada
iluminada
como o mundo real
pouso a mão no teu peito
mapa de navegação
desta varanda
hoje sou eu que
estou te livrando
da verdade

Impossível não lembrar de Jacques Lacan e de sua concepção sobre o Real (aquele
que não cessa de não chegar) e de retomar o que venho dizendo sobre a escritura de Ana
como aquela que se inscreve no corpo. O mapa da navegação, através do qual é possível se
encontrar e se locomover, é o peito do outro; a sede que não se sacia independentemente da
6

quantidade de água que se tome é quase um não conseguir falar por uma boca amarrada de
secura (é possível aqui que se remeta ainda a vários outros poemas de Ana em que se lê esta
dificuldade em falar, como, em um exemplo evidente, é o caso daquele que diz: não consigo
falar nem escrever fluentemente (assim parece)); a vista que se tem é do alto de uma varanda,
é uma contemplação de longe, o sujeito não se encontra envolvido nas coisas que vê, e é tudo
mentira, quer dizer: da verdade se poupa, do segredo se esquece, do enigma se desvia... há
sempre este inatingível se apresentando e se negando à apreensão, o que se sabe é aquilo que
o corpo diz na forma de um sintoma, de um sentir, o Real, diz Lacan, é “ou totalidade ou
instante evanescido. [...] é sempre o choque com alguma coisa”.
Em outros trechos do Nosso tempo, Ana faz anotações que poderiam ser destacadas
por conta da atenção dela em relação àquilo que acontecia no Brasil (e no mundo) tanto no
sentido histórico quanto literário, na parte 4 do poema ela escreve à margem direita:
Graciliano Ramos, Memórias do Cárcere: o outro texto da mesma época e problemática e
depois, na parte 5: o negócio na marcha do mundo capitalista. Estas duas anotações indicam a
familiaridade de Ana com os processos culturais e políticos da época corroborando o fato de
alguns dos críticos de então terem identificado A Rosa do Povo como sendo o livro mais
político de Drummond. Este destaque mais político é dado por Ana até o final neste poema,
quando na última parte (8), ela escreve: poema = arma / destruição do capitalismo anúncio
da utopia, com o que completa (mas viveremos p. 134), retomando o poema que leva este
título e fazendo com que os dois se conversem quase em eco.
Tal é o procedimento de operação de leitura que Ana adota: o labirinto das afecções
não para nunca de ativar e de ser ativado.
7

anexo 1

anexo 1b
8

2 REFERÊNCIAS

ANDRADE, Carlos Drummond de. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008.

BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

CAMUS, Albert. L’homme révolté. Paris: Folio, 1951.

CESAR, Ana Cristina. A teus pés. São Paulo: Ática, 1999.

COCCIA, Emanuelle. A vida sensível. Florianópolis: Cultura & Barbárie, 2010.

DERRIDA, Jacques. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 2011.

LACAN, Jacques. Escritos. São Paulo: Perspectiva, 2008.


SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo

ANÁLISE DO DISCURSO E PSICANÁLISE: POSSÍVEIS CONVERGÊNCIAS


ENQUANTO CAMPOS DE INVESTIGAÇÃO DISCURSIVA

Adriana de Oliveira Limas Cardozo1 (PPGCL/UNISUL)


Maurício Eugênio Maliska2 (PPGCL/UNISUL)

RESUMO

O presente trabalho busca provocar convergências entre Análise do Discurso e Psicanálise


como possíveis campos de investigação discursiva. Esta proposta pretende ser uma
articulação entre esses dois domínios buscando principalmente suas convergências. Para isso,
parte-se de um pressuposto que concebe a teoria do discurso e a teoria psicanalítica como
escritas literárias e discursivas. O que se pode ler em ambas é a tessitura de um dizer que não
se inscreve no saber científico, muito pelo contrário, é talvez a sua crítica. Fundamentalmente,
esses domínios bordejam a literatura na medida em que exploram os significantes que as
representam de uma perspectiva estética em que o dizer é (e)feito de artifício, mais próximo
da arte literária do que dos parâmetros rígidos e fixos de uma ciência positivista. A rigor, a
proposta desse trabalho tenta passar em revista alguns conceitos fronteiriços entre Análise do
Discurso e Psicanálise, tais como, interpretação, efeitos de sentido e inconsciente, mostrando
principalmente suas convergências, sem desconsiderar suas diferenças. Esse intuito encontra
seu ápice ao mostrar que é desde uma perspectiva literária que esses campos se enredam numa
escrita quase poética sobre o discurso. O próprio discurso, ao mesmo tempo objeto e
“instrumento” de investigação, é construído por uma escrita que recupera a metáfora, o dizer
polissêmico e a opacidade da linguagem. Os conceitos pertencentes a esses campos podem ser
costurados e enredados num pressuposto que transita entre o ético e o estético.

Palavras-chave:
Psicanálise. Efeito de sentido. Análise do Discurso. Literatura.

RÉSUMÉ

Le présent travail cherche à provoquer les convergences entre la psychanalyse et l'analyse du


discours en tant que possibles champs discursifs de recherche. Cette proposition est destinée à
être un lien entre ces deux domaines cherchant leurs convergences. Pour ce faire, on part de
l'hypothèse que les conçoit, la théorie du discours et la théorie psychanalytique, comme une
écriture littéraire et discursif. Ce que nous pouvons lire dans le tissu des deux est une parole
qui est en dehors de la connaissance scientifique, ou tout au contraire, est peut-être sa critique.
Fondamentalement, ces champs touchent la littérature en ce qu'ils explorent les signifiants qui
représentent un point de vue esthétique, dans laquelle la parole est l’effet de l'artifice, plus
proche de l'art littéraire que des rigides et fixes paramètres d'une science positiviste.
Strictement parlant, l'objectif de ce article tente de revoir certains concepts situés à la frontière
entre l’analyse du discours et la psychanalyse, comme par exemple, l'interprétation, effets du
sens et l'inconscient, en particulier, montrant sa convergence, sans ignorer leurs différences.
Cette position trouve son apogée à montrer que dans une perspective littéraire est que ces
champs sont empêtrés dans un écrit presque poétique sur le discours. Le discours lui-même, à
la fois objet et «instrument» de la recherche, est construit par une écriture qui récupère la

1
Doutoranda no Programa de Pós Graduação em Ciências da Linguagem da Unisul; e-mail:
adriana.limas@unisul.br.
2
Professor, Doutor, no Programa de Pós Graduação em Ciências da Linguagem da Unisul; e-mail:
mmaliska@yahoo.com.br.
2

métaphore, la polysémie et l'opacité du langage. Les concepts appartenant à ces domaines


peut être cousu et piégés dans une hypothèse que fait la transitions entre l'éthique et
l'esthétique.

Mots-clés:
Psychanalyse. Effet de sens. Analyse du discours. Littérature.

1 INTRODUÇÃO
Este trabalho objetiva refletir sobre as possíveis convergências teóricas entre a
Psicanálise e a Análise do Discurso (AD). Para tanto, parte-se de um pressuposto que concebe
a teoria do discurso e a teoria psicanalítica como escritas literárias e discursivas, destacando-
se os conceitos de interpretação e efeito de sentido, como próprios das duas propostas de
análise, partindo-se do princípio de que tanto a Psicanálise quanto a AD trabalham com certa
noção de sujeito, e que consequentemente, o discurso é tanto sua manifestação como sua
constituição. Cabe esclarecer, que por haver esta convergência teórica torna-se possível
trabalhar com as duas vertentes enquanto método para análise discursiva. Desta forma, há um
intercruzamento de conceitos entre as referidas teorias.
Quanto ao discurso psicanalítico, Jacques Lacan (2008) articula sobre o que marca a
Psicanálise enquanto um campo que busca um saber sobre o inconsciente e suas
manifestações. Irá afirmar ainda que a psicanálise também se constitui de um discurso que
produz efeitos. Para o autor, a condição de seriedade que permeia um discurso é
particularmente exigível numa técnica cuja pretensão é que o discurso tenha consequências.
Ou seja, a Psicanálise fará efeito sobre um analisante se ele se submeter ao discurso
psicanalítico. Neste sentido, o autor argumenta que mesmo num campo extremamente
positivista como o da Física, há um discurso prenhe de consequências, pois a energética nem
sequer é concebível senão como consequência de um discurso (LACAN, 2008).
Em continuidade a paráfrase acima:

Isso importa ao mesmo tempo em que a física implica a existência de um físico [...]
estou dizendo que é o discurso da física que determina o físico e não o contrário.
Nunca houve físico verdadeiro até que esse discurso prevalecesse. (LACAN, 2008,
p. 32).

Conforme o exposto, um discurso só poderá ser uma referência discursiva na medida


em que delimita e cria identificações para determinada posição de sujeito, que busca construir
um saber ou uma identificação subjetiva através de seus representantes. Seguindo este escopo
lacaniano, de que é o discurso da física que determina o físico e não o contrário, pode-se
inferir, segundo o autor, que esta “fórmula” é válida para outras identificações discursivas,
3

incluindo-se aí a Psicanálise. Portanto, é o discurso da Psicanálise que determina o


psicanalista, e não o contrário; assim como é o discurso histérico que determina a histérica; é
o discurso poético que determina o poeta. Enfim, neste ponto visualizamos o discurso como
formador de um campo e não há nenhuma espécie de essência do campo que não esse
discurso, essa narrativa sobre ele próprio.
Ainda com relação ao discurso, Lacan (2008, p. 79) afirma que

a partir do momento em que se sustenta um discurso, o que surge são as leis da


lógica, isto é, uma coerência refinada ligada à natureza do que é chamado de
articulação significante. É isso que faz com que um discurso seja ou não sustentável,
pela estrutura do que é chamado signo, e que tem haver com o que é comumente
chamado de letra, para contrastá-la com o espírito. As leis desta articulação, eis o
que domina inicialmente o discurso.

Neste sentido, o autor ainda esclarece que o discurso lacaniano, quando retoma
Freud, baseia-se no que através da criação da Psicanálise se mostrou ser distinto do discurso
filosófico e próximo de um discurso literário. Prova disso é o fato de Freud buscar na
Literatura elementos de uma narrativa psíquica, como por exemplo, em Édipo Rei, Gradiva,
Hamlet, entre outros, como forma de metaforizar a teoria psicanalítica e deixar seu discurso
mais próximo da Literatura.
Neste sentido, o discurso freudo-lacaniano se diferencia do discurso filosófico, pois
bem mais do que se servir de um discurso para fixar no mundo sua lei e na história suas
normas, conforme insiste o dizer filosófico, segundo Lacan (2008, p. 157), o discurso
psicanalítico se coloca nesse lugar em que o sujeito pretensamente pensante percebe desde
logo que só pode se reconhecer como (e)feito de linguagem.
Concebendo então a lógica supracitada ─ a Psicanálise e a Análise do Discurso como
campos discursivos e considerando que elas se constituem enquanto discursos que possuem
como premissas o efeito de linguagem, ou ainda os efeitos de sentido produzidos pela
linguagem e pelo discurso ─ argumenta-se, de acordo com Teixeira (2005, p. 65), que é por
uma teoria da subjetividade de natureza psicanalítica que Pêcheux institui e articula seu
projeto: no materialismo histórico, na Linguística, e na teoria do discurso. Assinala-se ainda
que a Psicanálise não se encontra ao lado da AD, mas a atravessa justamente nos três campos
assinalados pelo autor. Este atravessamento permite entender o discurso como um efeito de
sentido que é interpretado como algo que está implícito e articulado à noção de sujeito e da
constituição subjetiva através da linguagem.
O efeito de sentido para a Psicanálise e para a AD coincide em aspectos próprios
referentes à subjetividade e ao seu direcionamento discursivo, já que compartilham da
4

existência de um inconsciente que insiste em se fazer presente, e que pode haver um manejo
deste através da construção em análise de algo que produza efeitos na vida do sujeito, porém
podem também ser pensados ainda quanto a sua forma singular. No contexto analítico, Freud
e Lacan irão articular o efeito de sentido a intervenção do analista, que pode ser pensado
através do ato analítico como a quebra do sentido e uma possível mudança subjetiva.

2 O EFEITO DE SENTIDO E A INTERPRETAÇÃO NA PSICANÁLISE E NA


ANÁLISE DO DISCURSO
O efeito de sentido é para a Psicanálise uma produção especifica entre analista e
analisante, necessitando desta forma de um contexto próprio para que este ocorra. Para tanto,
cabe esclarecer as diferenças e possíveis convergências para os campos discursivos da
Psicanálise e da Análise do Discurso, no que se refere a esta construção.
Para Freud (1937), o efeito de sentido é o resultado de uma intervenção analítica que
possui como premissa a construção em análise. O autor irá diferir a interpretação da
construção analítica, embora a interpretação tenha o mesmo objetivo de uma construção: o
efeito que produz na relação do sujeito com seu sintoma. A diferença é que a interpretação
ocorre de forma isolada do material clínico. Já a construção, articula o fragmento esquecido
com o fragmento presente causando um efeito de reparo de uma lembrança. Assim, provoca
efeitos, como algo novo ou como uma descoberta tocando o paciente e provocando as reações
mais diversas.
A interpretação analítica, por tratar de um material isolado, que escapa ao sujeito,
possui sua importância na clínica de forma singular, pois trabalha com o que foi dito ou não-
dito, porém de forma mais flexível. Uma interpretação não possui o objetivo de reconstruir a
história do sujeito, mas de revelar que algo de inconsciente surge nos gestos e atos do paciente
de forma inesperada e que ao mesmo tempo, refere-se a um conteúdo que busca um sentido
ou uma “quebra” de sentido. Nesta proposta freudiana, todo analista deve conduzir seu
trabalho de forma que auxilie o paciente a ter acesso a um conteúdo parcialmente inacessível
e, portanto, sem sentido, e que construa um direcionamento nos efeitos que uma intervenção
possa resultar.
A interpretação tem sentido ou procura uma quebra? Como, pela atividade do eu,
qualquer palavra gera sentido, poderíamos pensar que a intervenção pode ser
qualquer coisa, contudo falar do sem-sentido não é o mesmo que falar sem sentido,
ou seja, não devemos confundir o “tratamento do sem sentido”, com o tratamento
sem-sentido. (REMOR, 2008, p.219)
5

Segundo ainda Remor (2008), Lacan irá afirmar em seu seminário RSI, que o sentido
é uma parte da lúnula resultante da intersecção entre Imaginário (I) e Simbólico (S). Esta
relação lacaniana refere-se ao sentido, e não ao efeito de sentido, mas auxilia a localizar no
entendimento psicanalítico do que se entende por sentido e do que se entende por não-sentido,
inacessível e, portanto, inconsciente. Tanto o sentido quanto o não-sentido ─ ou aquilo que
toma o lugar deste (sintoma, sonhos etc) ─ pode provocar efeito de sentido, já que se articula
com a intervenção do analista.
Conforme a Figura 1, o sem-sentido está no registro do Real, e o sentido, conforme
indica a seta, está localizado na intersecção entre o Imaginário e o Simbólico. O efeito de
sentido ocorre, segundo Remor (2008), na sua leitura de Lacan, com o sentido gerado no
analisante, que muitas vezes vai contra o sentido, sai do sentido e consequentemente da lógica
que pode ser entendida como consciente.

Sem sentido I

S
sentido

Figura 1 – Nó borromeu representando os três registros e seu entrelaçamento.


Fonte: elaborado pelos autores deste artigo (2011).

Para a AD, o sentido pode ser pensado, segundo Possenti (1997), conforme Pêcheux
propõe, como um efeito de sentido, ou seja, não se trata de conceber o sentido na sua vertente
linguística, como sendo a contraparte do significante, mas como um efeito da enunciação do
significante. O papel da enunciação é mais relevante do que o papel do significante. Assim,
falar de discurso é mais do que falar de sentido, é falar de efeito de sentido.
A literatura psicanalítica e a discursiva convergem neste ponto, sendo que possuem
esta função de articular possibilidades quanto a um encontro “possível” entre o sentido e o
sem sentido. Esta possibilidade de encontro é para Lacan (2008) o que favorece a busca ou a
tentativa do sujeito em atribuir sentido para a repetição, que é movida por um Real, e,
6

portanto, da ordem do sem sentido. Na práxis analítica, a repetição é definida por Freud como
o retorno de uma experiência infantil atualizada através do sintoma ou da transferência
analítica. Inicialmente a repetição causa um estranhamento no sujeito, ao perceber que algo se
repete em sua história, nas suas relações afetivas e parentais. O conteúdo que mobiliza esta
repetição é definido por Lacan como o real que insiste em produzir efeitos na vida do sujeito
em análise.

Esse real, onde o encontramos? É, com efeito, de um encontro, de um encontro


essencial que se trata do que a psicanálise descobriu de um encontro marcado, ao
qual somos sempre chamados a um real que escapole [...] Primeiro a tiquê que
tomamos emprestada do vocabulário de Aristóteles em busca de sua pesquisa da
causa. Nós a traduzimos por encontro do real. O real está para além do autômaton,
do retorno, da volta, da insistência dos signos ao qual nos vemos comandados pelo
principio do prazer. O real é o que vige sempre por trás do autômaton. (LACAN,
1988, p.55, itálico do autor).

Nesta passagem, Lacan deixa clara a articulação entre a possibilidade do encontro do


real com a repetição, resgatando os conceitos de tiquê e autômaton da literatura aristotélica
como forma de propor uma compreensão destes conceitos. A tiquê representa o encontro do
real através do retorno, articulado pelo autor como autômaton. Assim, mesmo que não haja
sentido no real, pois ele escapa ao sentido, algo dele escapa a esta lógica e acaba produzindo
efeitos, sendo definido por Lacan como uma “possibilidade” do encontro do sem sentido com
o sentido, que não está capturado pela palavra, mas pela possibilidade de um retorno.
O efeito de sentido, desta forma, é para a AD e para a Psicanálise algo que esta além
da palavra, embora abarque a concepção de significante, e que cada significante pode produzir
um sentido, nem sempre o significante produz efeito de sentido, já que o efeito esta
relacionado a um contexto mais amplo, implícito em uma enunciação, ou na história do
sujeito, além do lugar em que um discurso se origina e para quem se destina. O sem sentido,
também pode provocar um efeito de sentido, desde que esteja em um contexto discursivo
próprio para sua escuta.
Cabe enfocar que para Balieiro e Gallo (2002, p. 95), na AD, a linguagem é tomada
como prática ─ mediação, recurso simbólico e não instrumento de comunicação, não
ocorrendo uma ligação direta entre as coisas do mundo e a linguagem, sendo ambas diferentes
em sua natureza. Sujeito e sentido não existem por si sós. Desta forma, precisam de um
contexto discursivo para existir, para se articularem e provocar consequentemente um efeito
de sentido.
Este contexto discursivo pode ser articulado a metáfora, que por ser uma mediação
do recurso simbólico, atribui um sentido a construção discursiva que visa articular o que se
7

pode referir de sem sentido. Por sua essência, para a AD, a metáfora serve como um exemplo
da possibilidade do encontro entre o sentido e o sem sentido.

Os sentidos só existem nas relações de metáfora, dos quais certas formações


discursivas vêm a seu lugar mais ou menos provisório: as palavras, expressões,
proposições, recebem seus sentidos das formações discursivas nas quais se
inscrevem. (ORLANDI, 2007, p. 21).

Conforme a citação acima, o sem sentido que é articulado à metáfora, produz um


efeito de sentido inesperado em um discurso, pois embora não estejam claros compõem uma
formação discursiva e, portanto, estão inseridos e imbuídos de sentidos. O silêncio pode
ocupar este lugar metafórico, conforme Orlandi (2007), que infere não haver sentido sem o
silêncio, que por sua vez é fundante e revela a incompletude da linguagem.
A psicanálise também surgiu desta perspectiva, onde o sintoma, por exemplo, é uma
metáfora silenciosa do insuportável da linguagem, resultando assim que tenhamos acesso ao
mecanismo psíquico do sujeito do inconsciente. Este sujeito que está assujeitado a um
inconsciente que busca permanecer inacessível, mas que está permeado pela linguagem (ou
por sua falta), e que, portanto falha.
Neste sentido, Lacan (2007, p.144) irá afirmar que se há um inconsciente, a falha
tende a querer exprimir alguma coisa, que não é somente o que o sujeito sabe, uma vez que o
sujeito reside na divisão dirigida pela relação de um significante com outro significante. A
falha exprime a vida da linguagem, pois está articulada a um corpo, que é composto por furos,
e que está na ordem do real.
Ao retomar Milner (1987), Ferreira (2000, p. 26) infere que é pelo real da língua e
consequentemente pelo inconsciente que aparecem sintomas inscritos na ordem da língua, ou
seja, é na falta de palavras que a idéia de ausência, defeito, insuficiência, imperfeição
aparecem. Esta concepção de língua afetada pelo real permite perceber o equivoco e os fatos
que estão representados no simbólico, o que lhe é próprio.
Na língua, o “sem sentido” embora esteja sempre presente, se confunde com o
sentido parcial revelado pelas metáforas, pelos equívocos, pela falta de palavras, que mostram
e revelam o não controle sobre este mecanismo tomado como próprio e como instrumento da
comunicação conforme identificação da cultura. Em sua obra O amor da Língua, Jean-Claude
Milner (1987) infere que a língua é o que o inconsciente pratica, prestando-se a todos os jogos
imagináveis para que a verdade, no domínio da palavra, fale. Retomando o discurso de Lacan,
em Telévision, onde o referido autor afirma que a verdade não se diz toda, e isto porque
faltam palavras. A verdade enquanto não toda atinge o Real.
8

A língua, desta forma, é uma construção do sujeito, para inscrever sua condição de
faltante na cultura, partindo-se do princípio que a língua é faltante por si só. Toca o Real
naquilo que é possível fazer um laço de representação, insistindo em buscar um sentido,
produzindo efeitos na vida do sujeito, e sendo ao mesmo tempo inatingível.
O efeito de sentido, quando produzido, rompe com o movimento de busca incessante
pelos sentidos, impulsionando os analistas, sejam psicanalistas ou analistas do discurso, a
atravessarem um percurso na compreensão destes efeitos de sentidos provocados pela sua
prática, convocando-os a pensar sobre a falta e sobre o sem sentido como oriundos de um
mecanismo que não se apreende, apenas se tem acesso pelas suas manifestações.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As possíveis articulações entre a literatura psicanalítica e a discursiva (AD) ocorrem
onde a interpretação que se produz articulada a um discurso é manejada e possui um objetivo
de revelar justamente o que as palavras que compõem o material discursivo ─ seja pela fala
de um analisante, seja através de um texto produzido ─ acabam não dando conta de revelar.
A convergência maior entre as referidas teorias encontra-se no efeito de sentido que
mostra o quanto a subjetividade pode ser tocada e ao mesmo tempo inatingível em sua
completude, pois o efeito de sentido é sempre parcial e articulado a uma particularidade de
um sujeito que permite se mostrar, pois escapa a seu controle.
A confecção deste trabalho objetiva proporcionar uma perspectiva de aproximação
da Psicanálise e da Análise de Discurso de linha francesa, pois ambas possuem o alicerce do
sujeito em sua prática, possibilitando olhares/escutas/leituras diversificadas sobre um mesmo
objeto: o sujeito e suas representações metafóricas. Como já abordado neste trabalho, é pela
metáfora que as articulações teóricas se aproximam de forma mais efetiva.
Desta forma, ambas constroem possibilidades, seja pela via da análise pessoal, seja
pela prática de análise textual, buscando um lugar de compreensão da heterogeneidade
constitutiva e do inconsciente. As posições subjetivas assumidas pelas duas teorias revelam
sua característica investigativa diante da falta, que se inicia em Freud e se atualiza na
linguagem.

4 REFERÊNCIAS

BALIEIRO, C; GALLO, S. Escrita e surdez: Uma proposta discursiva. In: Linguagem


Escrita: Referenciais para a clínica fonoaudiológica. São Paulo: Plexus, 2002.
9

FERREIRA, M. Da ambigüidade ao equívoco: a resistência da língua nos limites das


sintaxes e do discurso. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2000.

FREUD, S. Construções em Análise (1937). Edição Standard Brasileira das Obras


Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XXIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

LACAN, J. O Seminário, Livro 16: de um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Editora Zahar,
2008.

_____. O Seminário, Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise. Rio de


Janeiro: Editora Zahar, 1988.

_____. O Seminário, Livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2007.

MILNER, J-C. O amor da língua. Porto Alegre: Artes médicas, 1987.

ORLANDI, E. Autoria, Leitura e Efeitos do Trabalho Simbólico. São Paulo: Pontes, 2007.

POSSENTI, S. Sobre as noções de sentido e de efeito de sentido. Cadernos da F.F.C. v.6, n.


2. São Paulo: 1997.

REMOR, C. A. M. Efeito de Sentido. Revista de Ciências Humanas. Florianópolis,


EDUFSC, v. 42 n. 1 e 2, p. 217 – 226, abr e out. de 2008.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo

ARLT COM BAUDELAIRE: A MORAL DO BRINQUEDO RAIVOSO

Gastón Cosentino1 (PPGLg/UFSC)

RESUMO

A seguinte comunicação tenta pôr em diálogo alguns aspectos da obra El juguete rabioso
(1926) do escritor argentino Roberto Arlt, com textos de Charles Baudelaire, quem ensaiou,
entre outras coisas, uma protéica conexão entre o sujeito que brinca e seu brinquedo. Esco-
lhemos relacionar a literatura com a figura ―jogo‖ por seu poder ultrapassador dos limites e
sua pulsão associada à vontade de liberação, num sentido de propor incessantemente outras
regras: inventar para recriar o jogo. Por outra parte, a inquietude de analisar a obra desde esta
perspectiva sustenta-se, além do mais, na possibilidade de tentar prover seu próprio conjunto
de ferramentas, com a posta ―em jogo‖ destas leituras e outras para indagar o texto; ler-lo na
manipulação da constelação criada pelo ―brinquedo raivoso‖, experimentar suas mutações. O
percurso desenvolve-se a partir da análise e problematização da noção de ―desejo‖ como eixo
dinamizador do trabalho. A desmontagem do termo desejo na obra está conectada com o se-
gundo momento de análise: o lugar e o papel da invenção arltiana. Ali trabalharemos desde
uma perspectiva de ―invenção como jogo‖ ou ―invenção em jogo‖, capaz de distensionar os
termos ―Homo faber/ Homo ludens‖, que, em última instância, possibilitarão a aparição do
terceiro e último eixo a tratar: a traição. Este último elemento é fundamental, enquanto repre-
senta e enlaça as transgressões que envolvem tanto o personagem central, como a escrita
mesma.

Palavras-chave:
Roberto Arlt. Literatura rioplatense. Teoria literária. Baudelaire

ABSTRACT

The following communication tries to implement some aspects of the work El juguete rabioso (1926)
by the Argentine writer Roberto Arlt, with texts by Charles Baudelaire, who experimented with,
among other things, a proteic connection between the subject and ―who plays the toy‖. We chose to
relate the literature with the figure "game" by its power exceeded the limits associated with the drive
and its willingness to release a ceaselessly to propose other rules: up to recreate the game. On the other
hand, the concern to analyze the work from this perspective it is argued, moreover, the possibility of
trying to provide its own set of tools to put "in play" and other such readings to interrogate the text,
read handling it in the constellation created by the "toy rage", try their mutations. The course is devel-
oped from the analysis and questioning the notion of "desire" as the axis driving the work. Disassem-
bly of the term desire in the work is connected with the second stage of analysis: the place and role of
the invention arltiana. Ali will work from a perspective of "invention as a game" or "invention in the
game," capable of distension the terms "Homo-faber / Homo-ludens", which ultimately will bring
about the appearance of the third and last axle to treat: the betrayal. The latter is crucial, as it repre-
sents and embraces the transgressions involving both the central character, such as writing it.

Keywords:
Roberto Arlt. River Plate Literature. Literary Theory. Baudelaire.

1
Gastón Cosentino formou-se em Castelhano, Literatura e Latim pelo ISP Joaquín V. González - Buenos Aires,
Argentina. Atualmente estuda Mestrado em Literatura na Universidade Federal de Santa Catarina - Florianó-
polis, Brasil, sob a orientação da Professora Dra. Liliana Reales e com o apoio financeiro do CNPq; e-mail:
florespanhol@gmail.com.
2

1 INTRODUÇÃO
Em princípio, escolhemos relacionar literatura com a noção de jogo por seu poder ul-
trapassador dos limites (HUZINGA, 2008), sua pulsão associada à vontade de liberação, num
sentido de propor incessantemente outras regras; inventar para re-criar o jogo. Assim, vemos
como amostra, algumas incrustações que na obra de Roberto Arlt são constantes infiltrações
do jogo:

“Desde afuera oíase el canto triste de una rueda de niños:


La torre en guardia.
La torre en guardia.
La quiero conquistar2.”(1993, p.77)

Essas implicações lúdicas têm ressonâncias em Charles Baudelaire, quem no ensaio


Morale du joujou3, publicado em Le Monde littéraire o 17 de abril de 1853, adverte, entre

2
Graciela Korolik, em sua investigação sobre os jogos tradicionais argentinos, e que, sugestivamente, delimita
entre o começo do século XX e os anos 1940, diz a respeito desse tempo que é uma data na qual o jogo expe-
rimenta uma mudança muito importante, provocada pelo desenvolvimento e o crescimento da indústria do
brinquedo: o passo desde o brinquedo artesanal ao brinquedo mecânico ou eletrônico. Neste sentido, a refe-
rencia lúdica que propõe Robeto Arlt poder-se-ia explicar a partir do que propõe Korolik, quem coloca: ―[...]
La Torre en guardia (tiene) una coreografía y reglas algo más complicadas. Se elegían para jugarla al Rey, a
los soldados y a dos niñas, que cumplían el papel de "torre", colocadas frente a frente y con las manos enla-
zadas. Una niña giraba alrededor de ellas y se suscitaba este diálogo cantado:

Niña: La Torre en guardia,/ la torre en guardia,/ la vengo a destruir.


Torre: Pues yo no temo,/ pues yo no temo,/ ni a ti ni a tus soldados.
Niña: Me voy a quejar,/ me voy a quejar,/ al gran Rey de Borgoña.
Torre: Pues vete a quejar,/ pues vete a quejar,/ al gran Rey de Borgoña.

Al recibir esta respuesta la niña se dirigía al Rey, que se encontraba con sus soldados y solicitaba ayuda:

Niña: Mi Rey, mi Príncipe,/ mi Rey, mi Príncipe,/ te vengo a suplicar.


Rey: Mi capitán, mi coronel,/ ¿qué es lo que me pides?
Niña: Lo que te pido, lo que te pido,/ es parte de tu guardia.
Rey: Pues vaya mi guardia,/ pues vaya mi guardia,/ la torre a destruir.

Los "Soldados" se lanzaban sobre la "torre" y trataban de destruirla separándole las manos, para lo cual se divi-
dían a su vez en dos bandos que forcejeaban tomados de la cintura.‖ In: KOROLIK, Graciela. Historia de
Juegos Tradicionales de Argentina. Retablo de los juegos infantiles: Disponível em:
http://www.acanomas.com/Historia-Juegos-Tradicionales-de-Argentina/1348/Retablo-de-los-juegos-
infantiles.htm Acesso em: 24 maio 2011.
3
BAUDELAIRE, Charles. Morale du joujou. In: Oeuvres Complètes (III) L’Art Romantique. Paris: Michel
Lévy Frères libraries éditeurs, 1868.
3

outras coisas pertinentes para nosso trabalho, uma íntima conexão entre o sujeito que brinca e
seu brinquedo:

Tous les enfants parlent à leurs joujoux; les joujoux deviennent acteurs dans le
grand drame de la vie, réduit par la chambre noire de leur petit cerveau. Les
enfants témoignent par leurs jeux de leur grande faculté d'abstraction et de leur
haute puissance imaginative. Ils jouent sans joujoux. (BAUDELAIRE, 1868,
pp.141-142)

Neste sentido, pareceria que as alusões ao jogo na obra arltiana só aparecem manifes-
tadas por meio destas incrustações específicas, por exemplificar, cantos de crianças; mas,
quem brinca, o jogador, respira através do texto mesmo. Do mesmo modo, há uma coisa mui-
to interessante que coloca ao passar Baudelaire na passagem citada, a saber, que os brinque-
dos devem atores ou agentes dentro do grande drama da vida (BAUDELAIRE, 1868, p. 141);
como uma espécie de extensão metamorfoseada do sujeito que brinca. Acaso o personagem
arltiano, Silvio Astier, poderia ser considerado, ao mesmo tempo, como uma extensão do seu
próprio jogo?; ora, simplesmente, a transformação experimentada do seu jogo, o protagonista
que devem brinquedo (raivoso), um pau na roda da engrenagem da vida quotidiana.
O périplo do personagem de El juguete rabioso percorre o escrito em sintonia com
uma oferenda lúdica não alinhada com a alternativa. Ele não trabalha com o resto que os
acontecimentos deparam-lhe. O caminho de Silvio Astier não é paralelo ao que padece. Ele
defasa o jogo mesmo, como um sujeito que interfere com sua obra o motor dessa alternância.
A possibilidade de ter e não ter, ausência e presença, ganhar e perder: mecânica elementar do
jogo. Nada de buscas frenéticas de realização, senão intermitências.
Huizinga, em outro momento de seu texto, coloca alguns julgamentos que podem
funcionar como enlace entre o desejo –como complexo– e o jogo. De alguma maneira a ne-
cessidade é ultrapassada pela entidade do jogo:

No jogo existe alguma coisa ―em jogo‖ que trasciende as necessidades imediatas da
vida e confere um sentido à ação. Todo jogo significa alguma coisa. [...] Seja qual
for a maneira como o considerem, o simples fato de o jogo encerrar um sentido im-
plica a presença de um elemento não material em sua própria essência. [...] O jogo se
acha ligado a alguma coisa que não é o próprio jogo. (HUIZINGA, 2008, p. 3-4)
4

2 VARIAÇÕES SOBRE UM BRINQUEDO RAIVOSO


A intuição de Roberto Arlt acerca de um dispositivo que se liga ao conceito do de-
sejo como máquina, ―como fábrica‖4 (no sentido de invenção, não de origem), ―produção‖5
(em um sentido de processo), e ―não como teatro‖6 (representação) contamina-se de um dos
fluxos semânticos possíveis e mais potentes sobre a imagem que sugere o título ―brinquedo
raivoso‖7. O artefato arltiano apresenta-se como um brinquedo difícil de manipular, indômito,
que não se deixará possuir nunca, indócil, mas um jogo que move o sujeito a criar formas para
modificá-lo e experimentá-lo em fluxos intermitentes de presença e ausência, os quais possi-
bilitarão uma dinâmica que devenha percurso do sujeito urbano: “Entonces yo soñaba con ser
bandido y estrangular corregidores libidinosos; enderezaría entuertos, protegería a las viu-
das y me amarían singulares doncellas. Necesitaba un camarada en las aventuras de la pri-
mera edad […]‖ (ARLT, 1993, p. 35).
Nas coordenadas propostas, brota um brinquedo para brincar8, não levado ―a sério‖9,
não para ser seu dono. O processo em El juguete rabioso está por cima da possessão, do obje-
to em si. A imagem que convoca esta impossibilidade de retenção ou posse é a raiva.
É oportuno refletir brevemente acerca desta condição ―raivosa‖ (enquanto doença) e
propor três considerações para aprofundar nossa análise na imagem dada através do título:
brinquedo raivoso. A primeira questão é perguntarmos: qual é a natureza dessa raiva? A se-
gunda, um pouco mais arriscada e nutriente, é pensar a relação entre raiva e hidrofobia. Nutre
nossa curiosidade advertir que, nos sintomas mais evidentes da raiva, aparece a hidrofobia

4
DELEUZE, Gilles. O Abecedário de Gilles Deleuze. Descrição de entrevista realizada por Claire Parnet, dire-
ção de Pierre-André Boutang, 1988-89.
5
Ibid.
6
Ibid.
7
Tradução ao português de El juguete rabioso, título do primeiro romance de Roberto Arlt.
8
Segundo o Dicionário Houaiss, o verbo brincar tem entre suas acepções:
5. não dar importância, não levar (algo) a sério
Ex.: brincou (com a oportunidade que lhe foi dada) e agora chora
6. intransitivo agir com leviandade ou imprudência
Ex.: tanto brincou ao volante, que acabou mal
9
Huizinga observa que o jogo tem as seguintes características básicas: uma atividade livre, tomada consciente-
mente como não-seria e exterior à vida habitual. Capaz de absorver ao jogador de maneira total. Atividade
desligada de todo e qualquer interesse material. In HUIZINGA, Johan. Homo ludens. São Paulo: Perspectiva,
2008, p. 16.
5

(medo à água) em primeiro lugar e, por conseqüência, a intolerância às coisas brilhantes10.


Será que essa intolerância raivosa está relacionada com os brilhos e fulgores da incipiente
modernidade ou, simplesmente, do cobiçado bem material por antonomásia11? O terceiro pon-
to — quiçá o mais eminente, aliás, não menos interessante— é a relação da raiva com o campo
semântico da animalidade. Num texto de Charles Baudelaire, que forma parte dos poemas em
prosa, Le Spleen de Paris, chamado ―O brinquedo do pobre‖12, narra-se um fato inquietante.
Duas crianças de estratos sociais bem diferenciados olham-se mediados pela grade de uma
casa. Um dos meninos, rico em roupas e brinquedos, não presta atenção a suas fortunas. Ele
olha com suma atenção o brinquedo do outro menino, trás da grade, na rua. O brinquedo de
esta última criança é um rato vivo13. Acaso nosso brinquedo raivoso não pode cobrar a forma
do rato do menino pobre de Baudelaire?
Agora bem, a imagem provida pelo título da obra pode funcionar, assim sendo, como
crítica e/ou premissa. O brinquedo raivoso é capaz de devir tanto um desejo que se resiste à
domesticação, um aquietar prazeroso, assim como, também, o ofuscamento produzido pelas
coisas apenas cintilantes, efêmeras, que se esgotariam no encanto velando com sua aparição a
diligência do protagonista em relação com o dinheiro: “No hable de dinero, mamá, por favor.
No hable, cállese” (ARLT, [1926] 1993, p. 77). Nessa linha de análise, é muito significativo o
trabalho crítico de Ricardo Piglia em relação à figura da economia na obra de Roberto Arlt.
Por outra parte é possível enlaçar invenção com desejo, já que desejar é construir,
como expõe Deleuze:

O desejo sempre foi para mim, se procuro o termo abstrato que corresponde a dese-
jo, diria: é construtivismo. Desejar é construir um agenciamento, construir um con-
junto [...] O desejo se estabelece sempre, constrói agenciamentos, se estabelece em
agenciamentos, põe sempre em jogo vários fatores. [...] Um desejo é isso, é constru-
ir. (1988-89, p.37)

O brinquedo de Arlt, em tanto objeto, nunca será para ser tido; comporta-se sempre
como fugitivo. O que se escapa desde os primórdios, o brinquedo que não se deixa apresar; a

10
O Dicionário da Real Academia Espanhola (RAE) diz ao respeito: rabia. Del lat. rabies. 1. f. Pat. Enferme-
dad que se produce en algunos animales y se transmite por mordedura a otros o al hombre, al inocularse el vi-
rus por la saliva o baba del animal rabioso. Se llama también hidrofobia, por el horror al agua y a los objetos
brillantes, que constituye uno de los síntomas más característicos de la enfermedad.
11
Em referencia ao ouro, metal precioso, e sua constelação de significado.
12
Le jojou du pauvre.
13
[…] A travers ces barreaux symboliques séparant deux mondes, la grande route et le château, l'enfant pauvre
montrait à l'enfant riche son propre joujou, que celui-ci examinait avidement comme un objet rare et inconnu.
Or, ce joujou, que le petit souillon agaçait, agitait et secouait dans une boîte grillée, c'était un rat vivant ! Les
parents, par économie sans doute, avaient tiré le joujou de la vie elle-même. […]
6

lei do brinquedo e sua transgressão. A raiva corre, desloca o próprio jogo. Desde o título, é
um brinquedo que queima ou mancha; ardente. Qual é o brinquedo que não se deixa ter ja-
mais? Um brinquedo raivoso. Uma imagem perdurável a força de sua impossibilidade. Uma
das coisas mais encantadoras da imagem proposta por Arlt, brinquedo raivoso, é a impossibi-
lidade de secioná-la para explicá-la. Uma imagem-borboleta, diria Didi-Huberman (2009).
“La vida puerca”, título primário da obra, pode-se entrecruzar com o título definiti-
vo do romance, El juguete rabioso. Brinquemos com o título para desengessar seus sentidos:
A vida raivosa; o brinquedo porco; a raiva da vida; o porco brinquedo; o brinquedo porco-
espinho, etc. Jogar a imagem/jogar com a imagem.
Alem do já exposto, os teóricos da forma e da imagem, segundo Didi-Huberman
(2009, p. 15) não falam de êxtase, senão como processos; como atos, e não como coisas, em
relação a suas abordagens. O brinquedo raivoso, longe de se apresentar como um objeto (ou
como um objeto somente) surge à maneira de um ato cuja performatividade faz dele um ins-
trumento e/ou um agente; um artefato que desloca a categorização possível. Em outra linha de
análise, a união do animal com o jogo, a través de uma leitura metonímica que toma como
ponto de partida a raiva, propõe um encontro primitivo com a noção mesma de jogo (ver Hui-
zinga). Nesta perspectiva lemos uma operação viável desde o título: a animalização do objeto
ou a coisificação animal. Dita questão materializa a segunda perspectiva adotada, a respeito
das significações do brinquedo raivoso, quais sejam, seguindo as teorizações de Didi-
Huberman em torno à imagem, assim como não há imagem sem imaginação (2009, p. 15),
não há brinquedo sem jogo. Nesta linha de análise, o jogo instável proposto pela escrita arltia-
na é anunciado ou antecipado pelo título. O jogo dispõe os objetos, outorga-lhes valor simbó-
lico e duração, validade. O jogo é o fio que entrelaça as contas do colar escritural de Roberto
Arlt. Sem esta pré-disposição, as armadilhas multiplicam-se e o texto converte-se em uma
angústia tormentosa por não atingir nada do que se propõe. O jogo, seguindo a Roger Caillois
(1987), nada se propõe em termos tradicionais ou de realidade quotidiana. O jogo em tanto
condição do próprio jogo não precisa do aspecto teleológico. A capacidade, por outra parte,
metamórfica da imagem brinquedo raivoso explica, em parte, a vigência e a renovação do
sentido. Interessante paradoxo oferece a imagem brinquedo raivoso, no sentido que um brin-
quedo é sempre suscetível de manipulação14. A raiva –como assinalamos anteriormente–

14
O dicionário Houaiss diz a respeito do termo ―manipulação‖: 1 ato de tocar, segurar ou transportar com as
mãos. / 2 Derivação: por extensão de sentido. manejo, utilização. Ex.: m. de instrumentos de precisão. / 3 De-
rivação: por extensão de sentido. em espetáculos de mágica, série de movimentos das mãos, feitos com des-
treza. / 4 Uso: pejorativo. manobra oculta ou suspeita que visa à falsificação da realidade. Ex.: m. de dados
estatísticos. / 5 Uso: pejorativo. manobra pela qual se influencia um indivíduo, uma coletividade, contra a
7

alheia, distancia, quebra o contato entre o sujeito e o objeto. Arlt promove com o título de sua
obra um fazer agir ―una criatura del paso y del deseo, del movimiento y el consumo‖ (2009, p.
20) A propósito da espécie de abordagem que coloca Didi-Huberman, a ―imagen borboleta‖
que ― [...] En todo caso esa cosita que revolotea y nos cautiva, es reconocida y tomada por
criatura del deseo. A menudo, Eros es representado con una mariposa en la mano‖ (2009, p.
25). Mais adiante, diz Didi-Huberman:

El ser que mariposea hace al menos dos cosas: para empezar, palpita y se agita con-
vulsivamente, su cuerpo va y viene sobre sí mismo, como en un baile erótico o en un
trance. Luego, el ser que mariposea yerra y se agita al tun-tun, arrasando su cuerpo
de aquí para allá en una especie de exploración inquieta, en una especie de búsqueda
de la que decididamente ignora cuál es el objetivo final. En esta danza hay algo de la
inestabilidad fundamental del ser, una huida de ideas, un poder absoluto de la libre
asociación, un mandato del salto una ruptura constante de las soluciones de conti-
nuidad‖. (Didi-Huberman, 2009, p. 27)

Assim, o percurso do Silvio Astier é uma espécie de ―borboleteo‖, borboleta de cida-


de, no sentido que seu vagar, em definitiva, não procura outra coisa que deixar acontecer seu
desejo. Acrescenta Didi-Huberman:

Es por ello que de la mariposa o del mariposeador se dice con malicia que lo derro-
chan todo sin fundar jamás nada sólido. […] La mariposa/variante/alternante carac-
teriza una de las pasiones humanas que ninguna ley moral debería restringir. […]
Mariposeo, ese vagabundeo aéreo desde el punto de vista de una verdadera estrate-
gia del deseo concebido como utopía política […] Así pues, mariposear: bailar con
el propio deseo hacia y contra todo. Suscitar, por aquí y por allá, una aparición posi-
ble. (2009, p. 28)

A união instável entre o brinquedo e a raiva contamina o desejo, faz que a alternância
injeção/rejeição movimente as peças desta maquinaria lúdica arltiana. É a ilusão a que man-
tém viva a chama do desejo, a ilusão/inludere, a posta em jogo da vida: ―la mariposa no desa-
parece […] en la llama de una vela, sino para hacer de su ausencia un largo transporte psí-
quico, una obsesión, una supervivencia, un deseo reconfigurado‖ (2009, p. 29).
Como será possível, no texto arltiano a invenção/re-invenção do jogo? Novamente, o
protéico texto A imagem borboleta proporciona-nos uma passagem que poderia servir como
chave de leitura. Coloca Didi-Huberman a propósito de uma visão de Walter Benjamin: ―Que-
ría convertirse en una imago (borboleta) para que la imago le permitiera acercarse antes de
que todo retornara a su lugar con el gesto fatal de la captura, por el cual el cazador volvería a
ser humano y la víctima animal‖ (2009, p. 59).

vontade destes. /6 Rubrica: farmácia. operação manual de produtos químicos; preparação de fórmulas farma-
cêuticas etc.
8

Ao parecer há uma instância na qual é possível habitar o desejo (a presença /


ausência) Este será quiçá o espaço do devir-animal deleuzeano.

3 A MORAL DO BRINQUEDO RAIVOSO

Or, ce joujou, que le petit souillon agaçait,


agitait et secouait dans une boîte grillée,
c’était un rat vivant !
Charles Baudelaire

A experiência de movimentar a obra de arte a partir do jogo sustenta nossa tentativa


crítica. Lemos com Baudelaire que o nexo entre a vida e a arte é liberado a partir do jogo,
mais especificamente, por médio do contato com o brinquedo (BAUDELAIRE,1868, p. 143).
De alguma maneira, no brinquedo estaria a bactéria15 da arte. Entretanto, a nosso ver, o texto
El juguete rabioso de Roberto Arlt, não expõe só isso; surge na própria narrativa uma pro-
blematização dessa passagem –ou quase fusão– entre jogo e arte. O jogo, enquanto operação,
apresenta-se como um refúgio da invenção artística. A raiva do brinquedo –a fúria potencial
da arte– manifestasse como sintoma da escrita na obra arltiana. Os cortes funcionam como
investidas que atravessam o personagem e deslocam o fluxo narrativo: novamente, a submis-
são da arte por força do trabalho para sustentar a vida elementar posterga a pulsão do jovem
criador, do rudimentar artista. Porém, o texto é prolífico em constelações que envolvem a di-
mensão artística, sua cromática e seus instrumentos expostos sempre que haja ocasião:

Con un pretexto u otro, Enrique llevaba el muchacho a la vidriera de la calle, para


que le cotizara precio de ciertos artículos, y si no había gente en el despacho yo
prontamente abría una vitrina y me llenaba los bolsillos de cajas de lápices, tinteros
artísticos, y sólo una vez pudimos sangrar de su dinero a un cajón sin timbre de
alarma, y otra vez en una armería llevamos un cartón con una docena de cortaplu-
mas de acero dorado y cabo de nácar. (ARLT, 1993, p. 46)

Por outra parte, pode se ler que Baudelaire adverte uma sorte de ruptura entre o mun-
do da infância e o adulto16, que é análoga –a nosso entender– à que se da entre ilusão17 e cul-
tura, o mundo não-sério/sério, entre a transgressão e a norma. Esta crise se condensa e se ab-

15
Escolhemos o termo ―bactéria‖, por sua relação com a idéia de contato, contágio, contaminação, frente às
formas ―germe‖ ou ―causa‖, claramente associadas à noção de origem.
16
Lembremos que no começo do ensaio, Baudelaire justapõe o mundo maravilhoso dos brinquedos ao desencon-
tro com o mundo adulto. No momento que a senhora Panckoucke insta a que o pequeno Baudelaire escolha
um brinquedo de sua sala mágica, o menino pega o mais belo e caro. A mãe indignada pela indiscrição do
menino, fala para ele que procure um brinquedo menos pretensioso. (1898, p. 139)
17
Como coloca Huizinga, na etimologia da palavra ilusão, do latim in-ludere está a pertinente noção para nosso
trabalho ―em jogo‖.
9

sorve na imagem e no texto ―brinquedo raivoso‖18. A raiva –se existisse e adquirisse forma–
seria contra a normalização da imaginação, frente ao mundo, por exemplo, do trabalho, que
abole o tempo para sonhar: uma condena constante ao mundo do ócio criativo.
Silvio é um artista-inventor –nós diríamos, também, construtor– e sua fama no bairro
começa com a fabricação de um canhão19. Este objeto é descrito com a ênfase, detalhe e es-
perteza de uma criança que ensina sua obra acabada:

Mi culebrina era hermosa. Cargaba proyectiles de dos pulgadas de diámetro, cuya


carga colocaba en sacos de bramante llenos de pólvora. Acariciando mi pequeño
monstruo, yo pensaba: —Este cañón puede matar, este cañón puede destruir— y la
convicción de haber creado un peligro obediente y mortal me enajenaba de alegría.
(ARLT, 1993, p. 39)

É curiosa que a idéia de morte e destruição20 é inofensiva em termos positivos, funci-


ona como parte do jogo de Silvio Astier. Os artifícios violentos obram como açoitadas de ca-
tch21; embora isso bata como um “cross a la mandíbula”22. É um poder interior que cresce,

18
As leituras de El juguete rabioso que puseram o acento na falta da figura paterna no lar de Silvio Astier para
operar a partir desse lugar uma maquinaria crítica da obra, também podem se nutrir do elemento lúdico. Wal-
ter Benjamin no texto História cultural do brinquedo coloca que ―[...] na segunda metade do século XIX, [...]
percebe-se como os brinquedos se tornam maiores, vão perdendo aos poucos o elemento discreto, minúsculo,
sonhador. [...] Então a criança ganha o próprio quarto de brinquedos, somente então uma estante na qual po-
de, por exemplo, guardar os seus livros separados dos livros pertencentes aos pais? [...] uma emancipação do
brinquedo põe-se a caminho; quanto mais a industrialização avança, tanto mais decididamente o brinquedo se
subtrai ao controle da família, tornando-se cada vez mais estranho não só às crianças, mas também aos pais‖
(BENJAMIN, 2002, pág. 91-92). Será possível pensar que essa falta começa com uma distância progressiva;
um hiato social que começa a permear os objetos –metamorfose e fusão dos próprios sujeitos. Um corte ab-
rupto entre o mundo da infância e do adulto instala, também, outra problemática arltiana, a través do protéico
brinquedo raivoso.
19
Silvio Astier narra a construção do seu brinquedo artesanal desta maneira: ―A ciertos peones de una compañía
de electricidad les compré un tubo de hierro y varias libras de plomo. Con esos elementos fabriqué lo que yo
llamaba una culebrina o ―bombarda‖. Procedí de esta forma: En un molde hexagonal de madera, tapizado in-
teriormente de barro, introduje el tubo de hierro. El espacio entre ambas caras interiores iba rellenado de
plomo fundido. Después de romper la envoltura, desbasté el bloque con una lima gruesa, fijando al cañón por
medio de sunchos de hoja de lata en una cureña fabricada con las tablas más gruesas de un cajón de kerose-
ne.‖ (ARLT, 1993, pág. 38-39)
20
Em relação à destruição, Walter Benjamin, no seu escrito O caráter destrutivo, joga algumas luzes que ajudam
a pensar o fenômeno da criação no ato da destruição e as concomitâncias com o agir de Silvio Astier na cida-
de: ―O caráter destrutivo conhece apenas uma divisa: criar espaço; conhece apenas uma atividade: abrir ca-
minho. Sua necessidade de ar puro e de espaço é mais forte do que qualquer ódio. O caráter destrutivo é jo-
vem e sereno. Pois destruir rejuvenesce, porque afasta as marcas de nossa própria idade; reanima, pois toda
eliminação significa, para o destruidor, uma completa redução, a extração da raiz de sua própria condição. O
que leva a esta imagem apolínea do destruidor é, antes de mais nada, o reconhecimento de que o mundo se
simplifica terrivelmente quando se testa o quanto ele merece ser destruído.‖ In: BENJAMIN, Walter. Docu-
mentos de cultura, documentos de barbárie: escritos escolhidos. Tradução Celeste H. M. Ribeiro de Sousa (et
al.). São Paulo: Cultrix/Edusp, 1986, pág.187-188.
21
Roland Barthes no ensaio O mundo do catch, que ele mesmo destaca como a arte da simulação, escreve: ―Mui-
ta gente acha que o catch é um esporte ignóbil. O catch não é um esporte, é um espetáculo, e é tão ignóbil as-
sistir a uma representação da Dor no catch como ao sofrimento de Arnolfo ou de Andrômaca. [...] O verda-
deiro catch, impropriamente chamado catch-amador, realiza-se em salas de segunda classe, onde o público
adere espontaneamente à natureza espetacular do combate, como o público de um cinema de bairro. Essa
10

ainda quando o mundo diário pareça cair. Não há uma gota de sangue na obra, mas as ima-
gens estão povoadas de efetiva crueza. A imaginação e a ilusão arltiana são instrumentais tão
poderosos e aguçados como os usados na vida comum. Essa poderosa arma cresce em termos
de expectativas, de fantasia; assim mesmo, mais uma vez, o novo brinquedo revela a íntima
conexão com o jogador e a metamorfose que outorga sempre a possibilidade de ser outro:

El día que ensayamos el cañón fue famoso. Entre un macizo de cinacina que había
en un enorme potrero en la calle Avellaneda antes de llegar a San Eduardo, hicimos
el experimento. Un círculo de muchachos me rodeaba mientras yo, ficticiamente
enardecido, cargaba la culebrina por la boca. Luego, para comprobar sus virtudes
balísticas, dirigimos la puntería al depósito de cinc que sobre la muralla de una
carpintería próxima la abastecía de agua. Emocionado acerqué un fósforo a la me-
cha; una llamita oscura cabrilleteó bajo el sol y de pronto un estampido terrible nos
envolvió en una nauseabunda neblina de humo blanco. Por un instante permaneci-
mos alelados de maravilla: nos parecía que en aquel momento habíamos descubier-
to un nuevo continente, o que por magia nos encontrábamos convertidos en dueños
de la tierra. (1993, p. 39-40)

Numa outra passagem do ensaio baudelairiano acerca do brinquedo o autor destaca o


poder simbólico do jogo como configuração de práticas e cenários complexos, como por
exemplo, da prática bélica dos adultos. O que surpreende a Baudelaire do sujeito que brinca é
a possibilidade de criar em solidão um mundo de relações e valores a partir de elementos ín-
fimos e triviais; além do mais de uma das coisas mais importantes, a saber, que a idéia de vi-
tória é sempre incerta:

Et les enfants qui jouent à la guerre ! non pas dans les Tuileries avec de vrais fusils
et de vrais sabres, je parle de l'enfant solitaire qui gouverne et mène à lui seul au
combat deux armées. Les soldats peuvent être des bouchons, des dominos, des pions,
des osselets; les fortifications seront des planches, des livres, etc., les projectiles,
des billes ou toute autre chose; il y aura des morts, des traités de paix, des otages,
des prisonniers, des impôts. J'ai remarqué chez plusieurs enfants la croyance que ce
qui constituait une défaite ou une victoire à la guerre, c'était le plus ou moins grand
nombre de morts. Plus tard, mêlés à la vie universelle, obligés eux-mêmes de battre
pour n'être pas battus, ils sauront qu'une victoire est souvent incertaine, et qu'elle
n'est une vraie victoire que si elle est pour ainsi dire le sommet d'un plan incliné, où

mesma gente, em seguida, indigna-se pelo fato de o catch ser um esporte falseado (o que, aliás, deveria res-
tringir a sua ignomínia). O público não se importa nem um pouco que o combate seja ou não uma farsa — e
ele tem toda a razão. Entrega-se à primeira virtude do espetáculo: abolir qualquer motivo ou conseqüência; o
que lhe interessa é o que se vê, e não no que crê. [...] O espectador não se interessa pelo progresso de um des-
tino, mas espera a imagem momentânea de certas paixões. O catch exige, portanto, uma leitura imediata de
significados justapostos, sem que seja necessário ligá-los.‖ In: Barthes, Roland. Mitologias. Tradução: Rita
Buongermino. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009, pág. 14-15
22
Expressão de Roberto Arlt que aparece no prólogo à obra ―Los lanzallamas‖ e que já há funcionado quase
como uma definição própria da escrita do escritor argentino por parte da crítica: ―[...] El futuro es nuestro,
por prepotencia de trabajo. Crearemos nuestra literatura, no conversando continuamente de literatura, sino
escribiendo en orgullosa soledad libros que encierran la violencia de un ―cross‖ a la mandíbula. Sí, un libro
tras otro, y ―que los eunucos bufen‖. In: Arlt, Roberto. Los lanzallamas. Novelas completas. Buenos Aires:
Losada, 2008, pág. 386.
11

l'armée glissera désormais avec une vitesse miraculeuse, ou bien le premier terme
d'une progression infiniment croissante. (BAUDELAIRE, 1868, p. 142-143)

A seriedade, rasgo antitético do jogo, é ocupada pelo espaço do dinheiro23. Por essa
causa, o sujeito arltiano arremessa ludicamente para desacreditá-lo: “Así vivíamos días de sin
par emoción, gozando el dinero de los latrocinios, aquel dinero que tenía para nosotros un
valor especial y hasta parecía hablarnos con expresivo lenguaje.” (ARLT, 1993, p. 52).
Mais adiante, no mesmo ensaio, Baudelaire faz uma espécie de taxonomia do brinquedo. Na
divisão que ele propõe destacam-se os ―brinquedos bárbaros ou primitivos‖24; os brinquedos
vivos25; os ―brinquedos científicos‖26; até chegar à última categoria de ―brinquedos com al-
ma‖. O interessante é que a maquinaria exposta no romance arltiano perpassa estas três divi-
sões. Os brinquedos científicos, aqueles que para Budelaire não são nem bons nem maus, são
caros a Silvio Astier-inventor, mas sua condição social faz com que sua inventiva obre a partir
de elementos simples e rudimentares, que o inclinam ao grupo de brinquedos bárbaros. Em
última instância, a possibilidade de pensar um ―brinquedo com alma‖ em Roberto Arlt é arti-
cular uma aparelhagem que acaba movimentando um brinquedo raivoso.
As invenções de Silvio Astier podem se comportar como brinquedos, no sentido que
eles fogem dos usos presumivelmente sérios, em termos de conduta social aceitável. Pense-
mos, para exemplificar, nos seus canhões, seu assinalador automático de estrelas fugazes, sua
máquina de escrever que recebe o que se dita, etc. O que se inventa poderia pertencer aos
brinquedos científicos de Baudelaire, sobretudo por sua exaustiva explicação de funcionamen-
to –uma complexidade que põe em tensão a humilde condição social do inventor–; detalhes

23
¿Estás triste, mamá? /—No —contestó. /De pronto: — ¿Querés que lo hable al señor Naydath? Podés aprender
a ser decorador. ¿No te gusta el oficio? / —Es igual. /—Sin embargo, ganan mucho dinero...
Me sentí impulsado a levantarme, a cogerla de los hombros y zamarrearla, gritándole en las orejas: — ¡No hable
de dinero, mamá, por favor...! ¡No hable... cállese...! Comprendió mi silencio agrio, y el alma se le cayó a los
pies. Quedóse alelada, más pequeña, y sin embargo estremecida del rencor que aún le gritaba por mis ojos —
¡No hable de dinero, mamá, por favor... no hable... cállese! In: Arlt, Roberto. El juguete rabioso. Buenos Ai-
res: Espasa Calpe, 1993, pág. 77
24
Em relação ao brinquedo bárbaro ou primitivo, escreve Baudelaire: ―Et même, analysez cet immense mundus
enfantin, considérez le joujou barbare, le joujou primitif, où pour le fabricant le problème consistait à
construire une image aussi approximative que possible avec des éléments aussi simples, aussi peu coûteux
que posible […] C'est le joujou à cinq sous, à deux sous, à un sou. - Croyez-vous que ces images simples
créent une moindre réalité dans l'esprit de l'enfant que ces merveilles du jour de l'an, qui sont plutôt un
hommage de la servilité parasitique à la richesse des parents qu'un cadeau à la poésie enfantine?‖ (1853, pág.
143-144)
25
Nesta passagem, Baudelaire faz intertexto com outro escrito de sua autoria, O brinquedo do pobre. O texto
forma parte dos poemas em prosa contidos no livro O spleen de Paris (1869).
26
A respeito do brinquedo científico, escreve Baudelaire: ―Il est une espèce de joujou qui tend à se multiplier
depuis quelque temps, et dont je n'ai à dire ni bien ni mal. Je veux parler du joujou scientifique. Le principal
12

que funcionam como uma desesperada tentativa que legitime a imaginação, que incessante-
mente é posta a prova27 por o mundo adulto, os chefes, as instituições, a esfera do poder:

[…] Yo soy medio inventor, me hubiera encontrado en mi ambiente.


— ¿Y qué ha inventado usted? Pero entre, siéntese —habló un capitán incorporán-
dose en el sofá.
Respondí sin inmutarme: —Un señalador automático de estrellas fugaces, y una
máquina de escribir en caracteres de imprenta lo que se le dicta. Aquí tengo una
carta de felicitación que me ha dirigido el físico Ricaldoni.
No dejaba de ser curioso esto para los tres oficiales aburridos, y de pronto com-
prendí que les había interesado.
—A ver, tome asiento —me indicó uno de los tenientes examinando mi catadura de
pies a cabeza—. Explíquenos sus famosos inventos. ¿Cómo se llamaban?
—Señalador automático de estrellas fugaces, señor oficial. (ARLT, 1993, p. 120-
121)

Ao mesmo tempo, há uma apreciação muito atraente que coloca o texto baudelairia-
no em relação à interação jogador/brinquedo. O sujeito age sobre o seu brinquedo28, é movi-
mentado a escolher o objeto a partir do desejo, entre outras forças (BAUDELAIRE, p. 145).
Isso pode se conectar novamente com a idéia de desejo enquanto produção. O desejo movi-
menta(-se), o sujeito opera com o objeto, mas quando o sujeito aborda o objeto, este já foi
transformado por ele. Ressaltemos que no mesmo texto Baudelaire celebra o contato que faz a
imaginação quando inventa a partir de rudimentos comuns. Entretanto, o que o escritor fran-
cês não descarta –o que se comporta como uma porta aberta– é a possibilidade de que o brin-
quedo obre sobre o sujeito.
Agora bem, embora os embates da lógica do progresso não cessem de atingir o cons-
truto de Silvio Astier, a fuga que propõe o discurso do sujeito esquiva a norma fixada para
uma vida exitosa dentro do marco social aceitável:

défaut de ces joujoux est d'être chers. Mais ils peuvent amuser longtemps, et développer dans le cerveau de
l'enfant le goût des effets merveilleux et surprenants. (1853, pág. 145-146)
27
Em outra ocasião, não só é avaliada a inventiva de Silvio Astier, senão que é instada a funcionar de maneira
prática: ―—El amigo Demetrio me ha dicho que ha inventado usted no sé qué cosas. Por los cristales de la
mampara penetraba gran claridad solar, y un súbito recuerdo de miseria me entristeció de tal forma que vacilé
en responderle, pero con voz amarga lo hice.
—Sí, algunas cositas... un proyectil señalero, un contador automático de estrellas...
—Teoría... sueños... —me interrumpió restregándose las manos—.
Yo lo conozco a Ricaldoni, y con todos sus inventos no ha pasado de ser un simple profesor de física. El que
quiere enriquecerse tiene que inventar cosas prácticas, sencillas. (ARLT, 1993, p. 97)
28
Diz literalmente o texto de Baudelaire: ―Je crois que généralement les enfants agissent sur leurs joujoux, en
d'autres termes, que leur choix est dirigé par des dispositions et des désirs, vagues, il est vrai, non pas
formulés, mais très réels. Cependant je n'affirmerais pas que le contraire n'ait pas lieu, c'est-à-dire que les
joujoux n'agissent pas sur l'enfant, surtout dans le cas de prédestination littéraire ou artistique. ‖ (1853, pág.
145)
13

—No me importa no tener traje, ni plata, ni nada —y casi con vergüenza me confe-
sé: —Lo que yo quiero, es ser admirado de los demás, elogiado de los demás. ¡Qué
me importa ser un perdulario! Eso no me importa... Pero esta vida mediocre... Ser
olvidado cuando muera, esto sí que es horrible. ¡Ah, si mis inventos dieran resulta-
do! Sin embargo, algún día me moriré, y los trenes seguirán caminando, y la gente
irá al teatro como siempre, y yo estaré muerto, bien muerto... muerto para toda la
vida. (p. 126-127)

A invocação inflamada de Silvio está unida com o desejo íntimo de não passar pela
vida sem experimentar o risco de viver o próprio jogo, de pôr em jogo a vida29; o esquecimen-
to para o artista é análogo a não ter deixado sua marca, não ter obrado. O descobrimento, a
invenção, a criação – e mesmo assim a traição – são os sinais de que o sujeito está vivo e pre-
parado para batalhar contra os que “[...] ne connaissent pas et ne permettent pas les moyens
poétiques de passer le temps” ou frente às atitudes “[...] de personnes ultra-raisonnables et
anti-poétiques‖ (BAUDELAIRE, 1868, p. 147) Assim mesmo, permanece longe de nossa
interpretação a emboscada de pensar novamente em termos de ―desejo como falta‖. Lemos os
desejos de Silvio Astier como tentativa desesperada de proteger seu espaço de criação. A
imortalidade do sujeito arltiano está na obra que sempre está desfeita: “¡Ah, si se pudiera des-
cubrir algo para no morir nunca, vivir aunque fuera quinientos años!” (ARLT, 1993, p. 127)

4 REFERÊNCIAS

ARLT, Roberto. Novelas completas. 1. ed. Buenos Aires: Editorial Losada, 1981.

_________. El juguete rabioso. Colección Austral. Biblioteca de Literatura Hispanoamerica-


na. Edición de Ricardo Piglia. Buenos Aires: Espasa Calpe, 1993.

BARTHES, Roland. Mitologias. Tradução: Rita Buongermino. Rio de Janeiro: DIFEL, 2000.

BAUDELAIRE, Charles. Morale du joujou. In: Oeuvres Complètes (III) L’Art Romantique.
Paris: Michel Lévy Frères libraries éditeurs, 1868.

BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo: Edi-
tora 34, 2009.

CAILLOIS, Roger. Los juegos y los hombres: la máscara y el vértigo. México: Fondo de
Cultura Económica, 1986.

DELEUZE, Gilles. O Abecedário de Gilles Deleuze. Descrição de entrevista realizada por


Claire Parnet, direção de Pierre-André Boutang, 1988-89. Disponível em:
www.tomaztadeu.net. Acesso em: 24 agosto de 2011.

29
Assim como acontece na língua portuguesa com uma das acepções do verbo ―jogar‖ (Houaiss, 2009), a saber,
―expor à sorte, aventurar, arriscar‖, em espanhol há uma expressão coloquial que versa: ―jugarse la vida‖, no
sentido de arriscar absolutamente todo, inclusive a própria vida.
14

DIDI-HUBERMAN, Georges. La imagen mariposa. BArcelona: Mudito & Co., 2009.

_________. Documentos de cultura, documentos de barbárie: escritos escolhidos. Seleção


e apresentação Willi Bolle. Tradução: Celeste H. M. Ribeiro de Sousa (et al.). São Paulo:
Cultrix/Edusp, 1986.

HUIZINGA, Johan. Homo ludens. São Paulo: Perspectiva, 2008.

KOROLIK, Graciela. Historia de los juegos tradicionales de Argentina. Retablo de los


juegos infantiles, Buenos Aires. [s.d.] Disponível em: http://www.acanomas.com/Historia-
Juegos-tradicionales-de-Argentina/1348/Retablo-de-los-juegos-infantiles.htm// Acesso em: 24
agosto de 2011.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo

“BOM DIA AVENIDA”:


APONTAMENTOS MUSICAIS SOBRE A EXPERIÊNCIA DA MODERNIDADE NO
RIO DE JANEIRO DAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XX

André Rocha Leite Haudenschild (PPGL/UFSC)1

RESUMO

O ensaio pretende tecer algumas considerações sobre a relação simbiótica entre os fenômenos
culturais e tecnológicos do Rio de Janeiro das primeiras décadas do século XX, fenômenos
tão caros à pioneira indústria fonográfica nacional: o gramofone e, principalmente, a cultura
do rádio. Em franco processo de modernização da vida urbana nacional cujos poderes
públicos orquestraram violentas reformas na paisagem da capital como sintomas de uma
“nova barbárie” civilizatória, serão abordadas algumas das canções que souberam traduzir em
suas poéticas a experiência da modernidade deste período. Deste modo, entenderemos a então
Capital Federal da República como uma “cidade de sonho”, como diria Walter Benjamin,
cujos sonhos emanavam do corpo coletivo das novas técnicas industriais que, longe de
abolirem o mito, geraram seus próprios mitos.

Palavras-chave:
Experiência. Rio de Janeiro. Música popular.

ABSTRACT

This essay aims to make a few remarks about the symbiotic relationship between the cultural
and technological phenomena at Rio de Janeiro in the early decades of the twentieth century.
Phenomena so dear to the new national music industry: the gramophone, and especially, the
radio culture. In stark modernization of urban life, whose national government orchestrated
violent reforms in the landscape of the capital as symptoms of a "new barbarism" of
civilization, will address some of the songs that translate in their lyrics the experience of
modernity in this period. Thus, we will understand the Federal Capital of the Republic as a
"dream city" according to Walter Benjamin, whose dreams came from the collective body of
new manufacturing techniques that, far from abolishing the myth, generated its own myths.

Keywords:
Experience. Rio de Janeiro. Popular music.

1 INTRODUÇÃO

Todo universo visível não passa de um depósito de imagens e signos aos quais a
imaginação dará um lugar e um valor relativos; é um tipo de pasto que a imaginação
precisa digerir e transformar (Baudelaire apud RIMBAUD, 1994, p. 159).

Em novembro de 1905, após 46 anos do início das obras de urbanização de


Paris comandadas pelo Barão Haussmann, é inaugurada a primeira etapa da “Avenida

1
Mestre em Literatura pela UFSC, realizando doutorado na mesma instituição acadêmica com bolsa de pesquisa
fornecida pela CAPES; e-mail: arsolar@gmail.com.
2

Central” da Capital Federal da República, a cidade do Rio de Janeiro. Um fato que


representaria a abertura de um novo caminho para diversos aspectos modernizantes da cultura
brasileira, uma violenta metamorfose da vida urbana que irá pautar as primeiras décadas do
século XX. Comandadas respectivamente pelos poderes nacionais e municipais de Rodrigues
Alves e Pereira Passos, as obras de reformulação da capital estavam em sintonia com os
preceitos de “modernização, embelezamento e saneamento” (CHIAVARI, 1985, p.589),
lemas que pautavam também a fisionomia de diversas metrópoles nas Américas de Nova
Iorque à Buenos Aires, valendo notar que na capital argentina seria também emblemático o
projeto de construção da suntuosa “Avenida de Mayo” em 1903. Nesse sentido, a Capital da
República do início do século XX espelha a Paris do Segundo Império: “O que aconteceu em
Paris de 1850 a 1870, sob o impulso do barão Haussmann, e fez Baudelaire dizer que a forma
de uma cidade mudava mais rapidamente que o coração de um mortal, viveu-se no final do
século em muitas cidades latino-americanas” (RAMA, 1985, p.97). Assim como Haussmann
rasgara o antigo núcleo medieval de Paris com amplas avenidas direcionadas em todos os
sentidos, a Capital da República vinha sendo alterada: “A remodelação do centro do Rio de
Janeiro responde a um projeto político preciso, gerado, segundo Jeffrey Needell, pela elite
paulista, disposta a fazer da capital a „vitrine do regime e das ligações mais eficientes de uma
ressurgente economia neocolonial‟” (FABRIS, 2000, p.26)2.
A modernização da paisagem urbana nas Américas está diretamente relacionada à
substituição da deambulação pelos caminhos das vielas tortuosas, pela amplidão da “vida
vertiginosa” das avenidas, como já notava João do Rio: “Agora é correr pra frente. Morre-se
de pressa para ser esquecido dali a momentos: come-se, escreve-se, ama-se, goza-se como um
raio...” (DO RIO, 1911, p. 09). Um movimento radical de mudanças da vida cotidiana que
pode ser comparado à iconoclastia do “caráter destrutivo”: “O caráter destrutivo só conhece
um lema: criar espaço; só uma atividade: despejar” (BENJAMIN, 1987, p. 236). Em meio ao
processo de modernização da vida nacional, além dos diversos morros naturais da paisagem
tropical carioca que seriam destruídos para servirem de aterros aos novos boulevards e às

2
A Revista Fon-Fon, de outubro de 1914, traz um comentário que ilustra com perfeição a coexistência de um
Brasil que se pretendia moderno com um outro ainda bem arcaico: “O Rio é a cidade de contrastes. Sai-se da
Avenida Rio Branco e cai-se em vielas dos tempos coloniais. Vêem-se nas nossas ruas senhoras ricamente
vestidas, homens no rigor da moda e misturados com eles, na mais franca promiscuidade, indivíduos imundos,
de camisas e meias desbotadas, esfarrapados e descalços. De um lado ouvem-se frases de cortesia entre gente
bem-educada e do outro palavrão e obscenidades atiradas a esmo pelo pessoal da lira. (...) e o olhar paira à
esquerda, descortina-se lá ao alto, a dois passos da formosa artéria [a Avenida], um trecho de África. Reparem.
Tem-se a impressão de ver ali pertinho Dakar ou São Vicente.” (apud FABRIS, Op. cit., p.46). Valendo notar
que, em 1912, a Avenida Central passa a se chamar Avenida Rio Branco, em homenagem ao patrono da
diplomacia brasileira falecido naquele mesmo ano.
3

avenidas à beira-mar, outras atitudes enérgicas por parte das autoridades públicas são também
sintomas desta propalada barbárie civilizatória:

[...] Se a picareta derrubara o velho espaço e as velhas arquiteturas, caberia aos


legisladores erradicar aquelas manchas de „anti-civilização‟ que empanavam o brilho
da grande artéria e, por extensão, do novo Rio de Janeiro. É em nome do progresso e
do embelezamento que são proibidos o comércio ambulante, a circulação de cães
sem coleira, fogueiras, fogos de artifício, balões; que mendigos e desocupados são
recolhidos a prisões e asilos; que a exposição de mercadorias só é permitida nas
vitrines; que são banidos os quiosques, pontos de encontro de „vadios‟ (...); que são
promulgadas normas reguladoras do comportamento da população, que vão da
proibição de urinar e cuspir na rua até a repressão policial de manifestações como o
carnaval, o samba, o entrudo e o candomblé (FABRIS, Op. cit., p. 22).

Segundo o cronista e compositor, Orestes Barbosa, o Rio daqueles tempos era um


verdadeiro “laboratório de emoções”, pois a nova metrópole teria “o dom de refinar os
elementos culturais aqui aportados” e seria capaz de “criar a alma e o ritmo musical” de nosso
povo (BARBOSA, 1978, p. 14). Por este viés, podemos olhar para a capital tropical como
uma “cidade de sonho” (uma Traumstadt, como diria Benjamin), cujos sonhos emanam do
corpo coletivo das novas técnicas industriais que, “longe de abolirem o mito, formam também
um sonho, geram os seus próprios mitos” (ROUANET, 1993, p. 67). Com a construção da
Avenida Central, as concorridas lojas da antiga Rua do Ouvidor logo seriam desbancadas pela
suntuosidade de sua sucessora: a Rua do Ouvidor seria cortada ao meio e alguns de seus
prédios demolidos para dar passagem à nova avenida. Em 1905, a revista Kósmos despedia-se
da artéria central: “Sobre teu destino pesa a melancolia das dinastias que se extinguem. A
Avenida já te ofusca” (apud MAGALHÃES JR., 1955, p. 23).
A capital do início do século já era o terceiro porto americano em volume de
comércio, superado apenas por Nova Iorque e Buenos Aires, respectivamente, mas sua
estrutura urbana era ainda precária, urgindo modernizá-la - segundo seus administrantes - em
diversos de seus pontos estratégicos: a reforma do cais do porto (da Praça Mauá até o Canal
do Mangue), a demolição dos “pardieiros” provocando a desapropriação de centenas de
habitações e a abertura da Avenida Central que “rasgaria de mar a mar o antigo centro
comercial, criando uma rede de conexões entre o porto, as ferrovias, o comércio atacadista e
varejista”, provocando o desafogamento do centro em um movimento alegórico cujo
espetáculo seria “a mola-mestra da nascente burguesia brasileira” (FABRIS, Op. cit., p.27).
Os versos iniciais da canção “A Favela vai abaixo” (1927), composta por Sinhô e gravada por
Francisco Alves, explicita o “bota abaixo” empreendido pela demolição de uma parte
4

significativa do morro da Providência3: Minha cabocla, a Favela vai abaixo / Quanta


saudade tu terás deste torrão / Da casinha pequenina de madeira / Que nos enche de carinho
o coração [...].
A chegada das últimas novidades tecnológicas ao Brasil no início do século XX foi
um verdadeiro turbilhão de curiosidades: desde o ineditismo da circulação dos primeiros
“fordes-bigodes” nas principais capitais nacionais à substituição dos discos cilíndricos dos
velhos fonógrafos pelos gramofones de discos de cera. Em 1913, o slogan do gramofone
Fortephone (fabricado pela recém-instalada Fábrica de Discos Odeon e vendido pela gloriosa
Casa Edison de Frederico Figner, aberta na Rua do Ouvidor em 1897), anunciava “a ilusão
perfeita do teatro em casa”, enquanto o modelo concorrente da Casa Standard (uma
representante da norte-americana Columbia Phonograph) anunciava seus gramofones como
“as mais perfeitas máquinas falantes”. Até que, a partir da metade da década de 20, os
gramofones de manivela começaram a ser suplantados pelas “vitrolas ortofônicas” acionadas
eletricamente (as “eletrolas”).
Com a crescente ampliação do mercado nacional de discos, inicia-se, na virada dos
anos 20 aos 30, a era dos discos obtidos com o emprego do sistema elétrico, quando então
desaparecem as primeiras marcas nacionais de discos e o mercado fonográfico passa a ser
dividido entre as multinacionais americanas Victor e Columbia, e a alemã Odeon
(TINHORÃO, 1981, p.28-30). Segundo Walter Benjamin: “O capitalismo foi um fenômeno
da natureza que submeteu a Europa a um Traumschlaf, a um sono povoado de sonhos e
provocou a reativação de forças míticas” (apud ROUANET, 1993, p.67). Um sonho coletivo
que, assim como se manifestou nos ícones culturais do século XIX em Paris (a moda, o
interior, as passagens, os museus, as exposições universais, etc), pode ser encontrado nos
inúmeros ícones tecnólogicos do Rio de Janeiro das primeiras décadas do século XX, como o
gramofone, o rádio e o cinematógrafo4.

3
Em 1897, o morro da Providência abrigou os soldados que voltaram da Guerra de Canudos, durante a qual
ocuparam um morro chamado Favela, na Bahia. A partir da associação do nome "favela" com os soldados, o
morro popularmente passou a ser conhecido como morro da Favela. A ocupação deflagrou-se entre o final do
século XIX e o início do XX, quando vários cortiços e habitações populares do centro foram devastados e a
população pobre, transferida para os morros nas adjacências do centro. Em 1910, o morro da Favela era
considerado o lugar mais violento do Rio de Janeiro. O nome favela estendeu-se a outros morros e, a partir dos
anos 20, as ocupações de morro passaram a ser chamadas “favelas”. Disponível em:
http://www.morrodaprovidencia.com.br/index.php/2011/07/17/historia-morro-da-providencia/historia-do-morro-
da-providencia/ Acesso em 15/08/2011.
4
O olhar arguto de João do Rio observa a aurora da modernidade no Rio de Janeiro da primeira década do século
XX, conforme um trecho de sua crônica “O velho mercado”: “O que nos resta mais do velho Rio antigo? (...) O
Rio, cidade nova – a única talvez no mundo – cheia de tradições, foi-se delas despojando com indiferença. De
súbito, da noite para o dia, compreendeu que era preciso ser tal qual Buenos Aires, que é o esforço despedaçante
de ser Paris, e ruíram casas e estalaram igrejas, e desapareceram ruas e até ao mar se pôs barreiras. Desse
5

2 O RÁDIO: “A CHAVE QUE LHE ABRE O MUNDO”


Em Sete de Setembro de 1922, acontece a avant-première do rádio no Brasil na
“Exposição do Centenário da Independência”, organizada na capital em meio à tumultuada
transição do governo de Epitácio Pessoa para o de Artur Bernardes, antecedida pela trágica
repressão da insurreição do Forte de Copacabana, e inaugurada com o discurso do então
presidente da República em transmissão radiofônica5. Porém, somente no ano seguinte, é que
se daria oficialmente a inauguração da primeira rádio nacional pelo escritor e antropólogo,
Roquete Pinto - a “Rádio Sociedade do Rio de Janeiro”, época em que acontece o incremento
da venda dos aparelhos receptores de rádio por todo o país - a Philips os anunciava como: “A
chave que lhe abre o mundo”. Segundo Hobsbawm, o rádio está entre os três mais importantes
veículos de massa do início do século passado, acompanhado do jornal impresso e do cinema
falado.

[...] É difícil reconhecer as inovações da cultura do rádio, pois muito daquilo que ele
iniciou tornou-se parte da vida diária... [...] A mais profunda mudança que ele trouxe
foi simultaneamente privatizar e estruturar a vida de acordo com um horário
rigoroso, que daí em diante governou não apenas a esfera do trabalho, mas a do
lazer. Contudo, curiosamente, esse veículo – e, até o surgimento do vídeo e do
videocassete, sua sucessora, a televisão – embora essencialmente centrado no
indivíduo e na família, criou sua própria esfera pública. Pela primeira vez na
história, pessoas desconhecidas que se encontravam provavelmente sabiam o que
cada uma tinha ouvido (ou, mais tarde, visto) na noite anterior: o grande jogo, o
programa humorístico favorito, o discurso de Winston Churchill, o conteúdo
noticiário” (HOBSBAWM, 1999, p.194-195).

Assim, esse novo veículo de comunicação seria capaz de mexer massivamente com a
vida mental de toda uma coletividade de modo que boa parte da comunidade urbana passa a
viver acordada em um mesmo sonho coletivo: o novo mundo das notícias, das propagandas,
das rádionovelas e das músicas de sucesso recém-lançadas6. Como um arauto da civilidade, o
rádio chega aos rincões mais longínquos da vida nacional, irradiando as vozes auráticas da
vida metropolitana: “Pois é da natureza característica da metrópole que sua vida interior
transborde em ondas para uma vasta área nacional ou internacional. [...] A característica mais

escombro surgiu a urbs conforme a civilização, como a carioca bem carioca, surgiu da cabeça aos pés o reflexo
cinematográfico do homem das outras cidades” (DO RIO, 1909, p.214-215).
5
Para se realizar a construção dos pavilhões deste importante evento nacional, foi necessária a total destruição
do antigo Morro do Castelo, em tempo recorde para a época, por parte do prefeito Carlos Sampaio, com o que se
conquistou uma larga faixa de aterro na Baía da Guanabara (a atual Esplanada do Castelo). (MURCE, 1976,
p.17).
6
A novidade do rádio sintetiza com primor a “dialética do despertar” benjaminiana: “Levando às últimas
conseqüências a teoria de Freud, Benjamin vê no sonho coletivo o entrelaçamento de duas instâncias, uma que
produz imagens de desejo e outra que censura e dissimula essas imagens, uma instância que quer o novo e outra
que quer perpetuar o existente, uma que impulsiona em direção ao despertar histórico e outra que eterniza o sono
(ROUANET, Op. cit. p.68).
6

significativa da metrópole é essa extensão funcional para além de suas fronteiras físicas”
(SIMMEL, 1979, p. 21). Afinal, o rádio conseguirá trazer a vida pública para o aconchego da
vida familiar com a força demolidora de uma nova realidade edulcorada pelas melodias de
uma “sereia invisível” instalada no meio da sala. Sendo que a mídia radiofônica, por ainda
não conter imagens como sua dileta sucessora (a televisão), irá desempenhar um papel crucial
no imaginário coletivo nacional da primeira metade do século XX: o mundo se tornando
ficção e a ilusão se tornando realidade. Como constataria alguns anos mais tarde uns dos
“homens de rádio” mais respeitados à época do Estado Novo, Genolino Amado, em carta
endereçada ao próprio Presidente Vargas, em 1942:

[...] Concentrado em sessenta e poucas estações, o rádio conquistou um público


talvez maior do que o da imprensa, devendo-se notar que ainda em 1938 o número
de aparelhos receptores já ia além de um milhão. Sendo talvez maior, este público é
certamente mais influenciado, não só pelo encantamento especial da palavra falada,
pelo seu fácil dom de convencer e emocionar, como também e principalmente
porque, não obstante suas deficiências culturais, o rádio não passou pelo longo
processo de descrédito que sofreu a imprensa a serviço das explorações politiqueiras
da velha República. O leitor do jornal é quase sempre um cético a respeito da
opinião dos articulistas, enquanto o ouvinte do rádio é quase sempre um crente na
opinião transmitida pelos locutores (apud SILVA, 2008, p. 55-56).

Vale lembrar que esse depoimento está em franca sintonia com o papel do rádio
como um veículo educativo de massa, como já pregava Roquete Pinto desde sua inauguração,
em 1922, assim como um “autoritário” veículo formador da opinião pública nacional (como
bem sabia os censores da política cultural do Ministro Capanema desde o golpe getulista, em
1937). E ainda não se sabia o valor daquilo que viria a ser chamado algumas décadas mais
tarde de “jabá‟: o preço e os favores excusos que a indústria fonográfica nacional gastaria (e
ainda gasta) para lançar seus produtos musicais nas rádios e TVs atuais.

3 A CANÇÃO POPULAR URBANA COMO CATALIZADORA DE TRADIÇÕES


ANTAGÔNICAS
A capital da República deve ser entendida como o locus de uma modernidade
excludente, afinal suas novidades não estavam igualitariamente ao alcance de todas as classes,
entretanto foi esta modernidade urbana que propiciou a mistura de diversos gêneros e de
formas, principalmente, às do campo da música popular - um campo de forças dimensionado
simultaneamente por uma tradição ancestral e outra moderna:

[...] Ancestral, pois remedia à africanidade reinventada pela experiência americana


da escravidão. Moderna, na medida em que era produto do disco, dos modismos
musicais e do encontro propiciado pelos espaços urbanos. A boemia foi o local
7

privilegiado desse encontro sociomusical, e o samba, seu filho dileto, pois permitiu
que a elite moderna mergulhasse na cultura popular urbana, afastando-se das formas
ritualizadas e solenes que pautavam a assimilação do popular. E havia o outro lado
dessa relação: as classes populares mestiças também absorviam elementos da cultura
de elite branca, suas formas poéticas e musicais, filtradas por outras tradições
culturais e por outras técnicas de execução e performance.
Desse encontro, em parte fortuito, mas também provocado e estimulado por uma
nova elite cultural, filha do modernismo, nascerá a grande tradição do samba,
sinônimo de música nacional e popular (NAPOLITANO, 2007, p. 22).

A partir das primeiras décadas do século XX, a música popular urbana vai ganhando
uma dimensão cada vez mais presente na vida nacional, como já apontava Mario de Andrade
em seu “Ensaio sobre a música brasileira” (1928), para o caráter transformador da canção
popular em seu poder sinestésico e “dinamogênico”:

Mas a música possui um poder dinamogênico muito intenso e, por causa dele,
fortifica e acentua estados-de-alma sabidos de antemão. E como as dinamogenias
dela não têm significado intelectual, são misteriosas, o poder sugestivo da música é
formidável. [...] É de dinamogenia sempre agradável porque resulta diretamente,
sem nenhuma erudição falsificadora, sem nenhum individualismo exclusivista, de
necessidades gerais humanas inconscientes. E é sempre expressiva porque nasce de
necessidades essenciais, por assim dizer interessadas do ser e vai sendo
gradativamente despojada das arestas individualistas dela à medida que se torna de
todos e anônima (ANDRADE, 1962, p. 41-42).

Por este viés da recepção musical a canção popular ganha um caráter de


legitimidade espontânea, sendo o seu compositor alçado à condição de um engenhoso criador,
capaz de interpretar as “necessidades essenciais” de toda uma coletividade nacional7. Além
disso, neste momento histórico a fronteira entre o repertório folclórico e as criações autorais
começa a se estabelecer definitivamente com a crescente indústria fonográfica. Como, por
exemplo, a canção “Pelo telefone” (1917), que é tida como o primeiro samba gravado
(registrado como de autoria de Donga e Mauro de Almeida, mas criado coletivamente na
antológica “Casa da Tia Ciata”, por João da Mata, Pixinguinha, Sinhô, Hilário, Germano, e
também, por Donga e Mauro de Almeida), cuja composição conta em sua segunda parte com
a contribuição de uma cantiga folclórica “Olha a rolinha”: Ai, se a rolinha / Sinhô, sinhô / Se
embaraçou / Sinhô, sinhô / É que a avezinha / Sinhô, sinhô / Nunca sambou / Sinhô, sinhô... E

7
Ao comentar sobre a “visão modernista” do projeto musical andradiano, Luiz Tatit afirma que “Mário
reconhecia a importância de se contar com uma música popular consistente para qualquer projeto nacionalizante
da música culta” (TATIT, 2004, p. 36). Entretanto, para Wisnik, o nacionalismo musical de Mário de Andrade
tem um caráter centralizador e paternalista: “Ao projetar a hegemonia da música erudita (bebida no ethos
popular folclórico) sobre a música popular-comercial urbana e as inovações mais radicais da vanguarda
européia... [...] o nacionalismo brasileiro estava adotando sem saber a última solução platônica para a questão da
cultura frente ao avanço crescente da indústria cultural” (WISNIK, 1982, p. 138). Ou seja, o projeto musical de
Mário de Andrade não dimensionava a força demolidora e criativa, e, por isso mesmo ambivalente, da incipiente
indústria fonográfica nacional.
8

a canção celebra o espírito carnavalesco dos foliões: O chefe da folia / Pelo telefone / Manda
me avisar / Que com alegria / Não se questione / Para se brincar [...], cujos versos seriam
convertidos parodicamente, naquele mesmo ano, pelo compositor João da Mata, fazendo
alusão à tolerância da polícia municipal frente à proibição da jogatina: O chefe da polícia /
Pelo telefone / Mandou-me avisar / Que na carioca / Tem uma roleta / Para se jogar [...].
Vale notar que, ainda na década de 20, alguns dos sambas reivindicados como de autoria do
exímio “pianeiro” Sinhô (José Barbosa da Silva) eram originários de algumas canções de
domínio público ou de outros compositores menos conhecidos8.
Vale notar o questionamento historiográfico sobre as origens do samba como
um fenômeno cultural expressivo de nossa música popular urbana é até hoje tema de debate
acalorado entre nossos pesquisadores. Concorda-se inicialmente que o samba teria nascido de
duas fontes germinais: da influência do maxixe provindo dos redutos dos baianos que haviam
migrado para a capital nacional no século XIX, sendo os músicos freqüentadores da “Casa de
Tia Ciata” seus precursores e divulgadores9, assim como, o samba oriundo do bairro do
Estácio de Sá, que teria uma marcação rítmica mais acentuada e sincopada, e que seria
posteriormente definido como o “verdadeiro samba”. A diferença rítmica entre estes dois
sambas está no fato de que o último estaria mais adaptado às necessidades carnavalescas dos
sambistas, o que permitiria o passista cantar, dançar e desfilar ao mesmo, de modo que, até
então, o samba tinha um ritmo ainda muito “amaxixado” (CUNHA, 2004, p. 137-138).
Com o advento nacional do rádio a partir da década de 20, a música popular urbana -
leia-se, o samba, principalmente - vai encontrar um canal de difusão que servirá para
disseminar um dado cultural fundador: a indústria do disco e a disseminação da cultura do
rádio - ambas geradoras de uma nova experiência urbana que mudará a fisionomia cultural do
país e irá compactuar dos ares da constituição de um nacionalismo cada vez mais presente nas
letras de suas canções10. Como fenômeno cultural alçado à condição de mercadoria, “dado o

8
Para Edigar de Alencar, nesta época “a música popular era terra de ninguém. Não havia o direito autoral e
geralmente se fazia dono da composição musical o mais esperto, que andasse mais ligeiro. Era corrente o
conceito atribuído a Sinhô: „Samba é como passarinho, é de quem pegar‟” (ALENCAR, 1981, p. 67).
9
Segundo Muniz Sodré (1998), o papel fundador das “casas das tias baianas” na constituição do samba carioca é
essencial, pois elas seriam “matriciais”, no sentido de “útero”, lugar de gestação das expressões culturais e
sociais negras; centro das redes de relação estabelecidas entre os grupos negros, não somente no interior do
próprio grupo, mas também pelo contato com as camadas dominantes da sociedade carioca.
10
O brasilianista Brian McCann, em “Hello Hello Brazil: popular music in the making of modern Brazil” (2004),
desenvolve com propriedade a tese da incidência fundamental do papel do rádio como veículo de nacionalização
do samba a partir dos anos 30. A intervenção política crescente do Estado Novo no controle do rádio através das
ações do DIP (Departamento Nacional de Propaganda, do Governo Vargas), “correspondia a uma estratégia de
buscar reconhecimento do samba como paradigma de música popular de „bom gosto‟, símbolo de e síntese da
brasilidade musical” (NAPOLITANO, 2007, p. 38).
9

seu caráter de bem cultural cujo consumo por parte das camadas popular e média urbanas é de
franco crescimento desde começos do século” (SILVA, 2008, p. 49), a canção popular vai-se
consolidar cada vez mais como uma catalizadora de tradições antagônicas provindas
simultaneamente do morro e da cidade:

[...] o samba moderno é o fenômeno cultural de um país que se modernizava, que


queria ter um projeto de nacionalidade expresso por meio de um bem cultural
moderno, e para tanto, não era possível convocar apenas uma parte da sociedade
brasileira para concluir tal tarefa. O samba moderno não poderia ser feito apenas
pelo (ou no) morro, ou apenas pela (ou na) cidade, ele precisava de dois universos
culturais agindo mutuamente para sua criação e difusão (FENERICK, 2002, p. 13).

Como sabemos, as décadas de 30 e 40 são consideradas como a “Era de Ouro” do


rádio e da música popular brasileira com o estabelecimento definitivo das estações
radiodifusoras nas principais cidades do país, fato que irá contribuir decisivamente para a
consolidação da indústria fonográfica nacional11. Com a revelação de um infindável número
de compositores e cantores extremamente populares, o mercado da música popular brasileira
amplia-se vertiginosamente a cada ano. Os primeiros cantores de rádio que se destacaram
como verdadeiros astros populares, nos anos 20 e 30, são: Mário Reis, Francisco Alves, Aracy
de Almeida, Silvio Caldas, Vicente Celestino, Carlos Galhardo, Carmen Miranda, entre
muitos outros. Ou seja, a união da indústria cultural nacional com os veículos de comunicação
será pautada por uma refinada simbiose. Desde o franco comércio das partituras para piano
nas últimas décadas do século XIX, estabeleceu-se uma estreita vinculação entre a produção
de nossa música popular e as atividades industriais e mercantis do capitalismo: “A
dependência de um produto cultural em relação aos meios de comunicação destinados a
divulgá-lo, determina um crescente poder de influência dos segundos sobre o primeiro”
(TINHORÃO, 2001, p.166). Deste modo, o rádio, muito além do jornal impresso, foi um dos
primeiros veículos de comunicação de massa capaz de consolidar uma agressiva indústria
cultural em âmbito nacional, cuja “implantação de uma sociedade de consumo relaciona-se
com a implantação da indústria cultural do país” (AGUIAR, 1989, p. 04). Desde as antigas
valsas vienenses e as primeiras bandas de jazz, aos programas de calouros transmitidos

11
Em 1936, estreava como narrador esportivo, na Rádio Cruzeiro do Sul, do Rio de Janeiro, o compositor Ary
Barroso. Neste mesmo ano, os ouvintes brasileiros vivenciaram o surgimento do noticiário A Voz do Brasil.
Criado durante o governo de Getúlio Vargas e tendo como objetivo principal informar sobre os atos do governo,
tinha como objetivo fazer que estas informações atingissem todo o território nacional, algo facilitado pelo fato de
que a transmissão do programa, em rede nacional, passou a ser obrigatória para todas as emissoras do país a
partir de 1938. In: O Rádio: um novo componente nos lares brasileiros. Disponível em:
<http://iecom.dee.ufcg.edu.br/~museudofuturo/modules/mastop_publish/?tac=21> Acesso em 22/05/2011.
10

diariamente, houve uma íntima relação entre a voracidade do mercado e a formação cultural
de seus ouvintes e actantes, como pondera Jairo Severiano:

O rádio, a gravação elétrica do som e o cinema falado foram tão valiosos para a
música popular, que, pode-se dizer, o século XX musical começou na década de
1920. No caso da música popular brasileira, a evolução da radiofonia, da indústria
fonográfica e, um pouco depois, da produção de filmes musicais carnavalescos, foi
primordial não só para o aproveitamento das novas gerações, como também para
que nossos músicos, cantores e compositores adquirissem uma consciência
profissional e aprendessem a se valorizar. Realmente, no acanhado meio em que
viviam, dependendo quase que exclusivamente do teatro de revista para se
sustentarem, eles eram, na maioria, pouco mais do que amadores ingênuos e mal
remunerados. Por outro lado, ao mesmo tempo que esse pessoal perdia a inocência e
começava a desfrutar de todo um conjunto de oportunidades para crescer artística e
profissionalmente, suas canções, além de mais bem gravadas, ganhavam os ares
através das ondas radiofônicas e as telas dos cinemas, para rapidamente se tornarem
conhecidas em toda parte (SEVERIANO, 2008, p.103).

4 OS “SUJEITOS DO SAMBA” COMO MEDIADORES SOCIOCULTURAIS


Pode-se entender a importância dos primeiros compositores e sambistas desta época
como a de mediadores socioculturais entre a herança comunitária do samba e a identidade da
nova música popular urbana em formação: “narradores que se somam às fontes fonográficas
para a construção de uma experiência e memória” (BRAGA, 2002, p. 103), tais mediadores
podem ser entendidos como “sujeitos do samba”12. Para a atual antropologia urbana, a
possibilidade de lidar com vários códigos e de transitar comunicativamente entre grupos
sociais distintos, daria a esses indivíduos específicos a condição de agentes de transformação
e de mediadores (VELHO, 1994). Entre estes mediadores germinais estão, por exemplo,
Sinhô, Heitor dos Prazeres, Donga, Pixinguinha, Caninha e João da Baiana, entre outros.
Assim como, provindos de uma segunda geração, os sambistas compositores da turma do
Estácio, Brancura, Baiaco, Nilton Bastos, e Ismael Silva. Já partir dos anos 30, temos Assis
Valente, Noel Rosa e Ataulfo Alves, entre uma lista infindável de diversos outros criadores,
sendo alguns mais e outros menos canonizados por nossa historiografia musical.
Um samba que ilustra bem a força vital destes mediadores socioculturais como o
“reconhecimento de uma cidadania” (WISNIK, 1982, p. 161) é a canção “Não tem tradução”
(1933), composto por Noel Rosa:

12
Pode-se entender a perspectiva ambivalente do “sujeito do samba” como a de um cidadão que desliza
malandramente entre o morro e a cidade com muita perspicácia: [...] Enquanto o nacionalismo musical quer
implantar uma espécie de república musical platônica assentada sobre o ethos folclórico (no que será subsidiado
por Getúlio), as manifestações populares recalcadas emergem como força para a vida pública, povoando o
espaço do mercado em vias de industrializar-se com os sinais de uma gestualidade outra, investida de todos os
meneios irônicos do cidadão precário, o sujeito do samba, que aspira ao reconhecimento da sua cidadania mas a
parodia através de seu próprio deslocamento (WISNIK, 1982, p. 161)
11

O cinema falado / É o grande culpado / Da transformação


Dessa gente que sente / Que um barracão / Prende mais que o xadrez //
Lá no morro / Se eu fizer uma falseta / A Risoleta desiste logo do francês / E do
inglês
A gíria que o nosso morro criou / Bem cedo a cidade aceitou e usou
Mais tarde o malandro deixou de sambar / Dando o pinote
Na gafieira / Dançar o fox-trote //
Essa gente hoje em dia / Que tem a mania / De exibição
Não entende que o samba / Não tem tradução / No idioma francês
Tudo aquilo que o malandro pronuncia / Com voz macia é brasileiro / Já passou de
português //
Amor lá no morro / É amor pra chuchu
As rimas do samba / Não são “I Love you”
E esse negócio de alô / Alô boy e alô John y / Só pode ser conversa de telefone

A letra desse samba consegue concentrar as transformações de identidade de alguém


que foge do morro pra “dançar o fox-trote” na gafieira, realizando um trânsito entre dois
espaços distintos: o morro e a cidade (“o barracão” e “o cinema falado”, como duas
metonímias antagônicas). O “cinema falado” pode representar o despertar coletivo para a
grande novidade de uma “cidade de sonho” como um novo fetiche da modernidade, cujos
cidadãos se libertam da concretude cotidiana do “barracão” para o mundo sedutor do “cinema
falado” (vale lembrar que o cinema falado chega ao Brasil, ou melhor, apenas em São Paulo e
no Rio de Janeiro, em 1929). Em seguida, o sujeito lírico vai ao morro e constata que a
linguagem da qual ele também faz uso (a “gíria que o nosso morro criou”) está sendo
reapropriada pela cidade, enquanto o malandro vai deixando de sambar pra “dançar o fox-
trote”: a inversão dialética dos valores do morro e da cidade. Eis a mistura de dois espaços
racializados, relativizando a onipresente luta de classes na metrópole. As duas estrofes finais
são bem pertinentes e conclusivas, pois “essa gente com mania de exibição” (entenda-se, a
classe dominante) não pode entender “tudo aquilo que o malandro pronuncia”. Afinal, a
linguagem do samba (sua “voz macia” e malandra) não poderá ser traduzida e muito menos
reapropriada culturalmente pela elite imperialista, seja ela portuguesa, francesa, ou americana.
Aqui, a “voz macia” do “sujeito do samba” mora “lá no morro” e, muito além de
“portuguesa”, ela é “brasileira” - vide a crescente representação do nacionalismo na canção
popular deste período -, enquanto as outras vozes só podem ser mesmo uma “conversa de
telefone” domesticada pelas convenções sociais, pois na constituição da identidade deste
sujeito poético deslizante é preciso sempre reafirmar suas manifestações populares genuínas,
esteja ele no Morro da Favela ou em plena Avenida Central. É a impossibilidade de tradução
autenticando a origem de sua tradição.
12

Outro samba deste período que ilustra com maestria os trânsitos culturais entre o
morro e a cidade é “Isso não se atura” (1935), composta por Assis Valente e gravada por
Carmen Miranda, que se inicia com os versos:

Isso não se atura, meu bem / Lá em Cascadura /


Lá em Cascadura / Isso não se atura... //
A Madame Butterfly / Diz que Beethoven é seu querido
Quando ouve a batucada / Põe o dedo no ouvido
Diz que o samba é coisa “pau” / Faz barulho, inté se zanga
Mas à noite, toda prosa / Dança samba na Kananga [...]

De um ponto de vista periférico, pois Cascadura é um bairro da Zona Norte carioca,


o sujeito lírico satiriza a “Madame Butterfly” como representante simbólica da classe
dominante (em alusão à gueixa protagonista da ópera de Puccini), que durante o dia detesta
ouvir “a batucada”, mas à noite vai “toda prosa dançar samba na Kananga”. Ou seja, a mulher
que dissimula ter uma cultura erudita e importada como cultura reflexa típica da elite nacional
deste período, porém, o que ela gosta mesmo é da festa dionisíaca do carnaval (pois a
“Kananga” era o nome de um antigo e renomado bloco carnavalesco carioca, a “Sociedade
Familiar Dançante Kananga do Japão”). Como a tradução de seu nome próprio pode nos
sugerir: uma “borboleta” capaz de realizar sua própria metamorfose ao cair nos requebros do
samba. Deste modo, o sujeito poético utiliza-se dos “meneios irônicos do cidadão precário”
(WISNIK, Op. cit., p. 161) como afirmação de uma identidade que se pretende cada vez
menos erudita e mais popular13. Não estaria aqui novamente o “sujeito do samba” diluindo o
confronto inevitável da luta de classes, ao deslizar felinamente entre o morro e a cidade?
A fúria construtora da modernização da capital nacional receberia um renovado vigor
como o início da Era Vargas, a partir da década de 30, assim como, a ampliação desmedida do
espaço urbano da nova metrópole. O samba "Praça Onze" (1942), composto por Herivelto
Martins e Grande Otelo, a partir de um tema sugerido pelo inesquecível ator mineiro: o fim da
antiga Praça XI - locus fundador da maior festividade coletiva da Capital Federal, o Carnaval,
cujos desfiles se institucionalizariam a partir de 1933 – para a construção da nova Avenida
Presidente Vargas.

13
Por este viés, podemos entender melhor os instigantes questionamentos de Hermano Vianna, em O Mistério
do Samba: “Como uma elite que até então ignorava o brasileiro passa a se interessar e, mais do que se interessar,
valorizar “coisas” como o samba, a feijoada (que pouco a pouco se transforma em prato nacional, apresentado
com orgulho para os estrangeiros que aqui aportam) e a mestiçagem (principalmente entre brancos e negros)?
(...) Como pôde um fenômeno, a mestiçagem, até então considerado a causa principal de todos os males
nacionais (via teoria da degeneração), “de repente” aparecer transformado, sobretudo a partir do sucesso
incontestável e bombástico de Casa-grande e senzala, em 1933, na garantia de nossa originalidade cultural e
mesmo de nossa superioridade de “civilização tropicalista”?” (VIANNA, 1995, p. 31).
13

Praça XI (1942) / Herivelto Martins e Grande Otelo

Vão acabar com a praça XI


Não vai haver mais escola de samba, não vai
Chora tamborim, chora o morro inteiro
Favela, Salgueiro, Mangueira, Estação Primeira
Guardai os vossos pandeiros, guardai
Porque a escola de samba não sai...

Adeus minha praça XI, adeus


Já sabemos que vai desaparecer
Leva contigo a nossa recordação
Mas ficarás eternamente em nosso coração
E algum dia nova praça nós teremos
E o teu passado cantaremos...

A Praça XI, desde a virada do novo século XX passa “a ser o principal território de
congraçamento de classes sociais menos privilegiadas, e lugar de eventos e festas musicais
majoritariamente negras. [...] É natural que a associação imediata da Praça Onze com algum
grupo social seja feita com o grupo negro, já que as ligações da Praça com o processo de
formação do samba e das raízes negras do gênero musical são inevitáveis” (ROLIM, 2007, p.
67). O impacto das obras de intervenção na cidade provocou o deslocamento de imensas
massas da população mais pobre em direção aos subúrbios, ao Campo de Santana e ao bairro
da Cidade Nova, localizado no entorno à Praça XI, localidade que havia resistido às picaretas
reformistas de Pereira Passos14. Segundo Muniz Sodré, foi por esse motivo que se
reaglutinaram na Praça XI as forças de socialização unificadas com a destruição das outras
freguesias de vida comunitária, à maneira de uma polis (apud ROLIM, Op. cit., p. 24). Ou
seja, a Praça XI, assim como a quase mítica “Casa da Tia Ciata”, pode ser entendida também
como um locus matricial do encontro dos mediadores socioculturais do samba carioca.
Notável que o tema da remodelação do espaço público seria retomado por essa
mesma dupla de autores, com o samba "Bom dia Avenida” (1944), cuja letra pedia licença

14
Na década de 1930, a Prefeitura do Distrito Federal planejou obras de modernização da região, o que incluíam
a construção de uma nova artéria rodoviária que melhorasse o acesso do centro à zona Norte. Com isso, a Praça
11 de Junho foi grandemente reduzida. Pelo projeto, os quarteirões entre as ruas Senador Eusébio e Visconde de
Itaúna seriam demolidos para a inauguração da Avenida Presidente Vargas. Em 1941, começaram as demolições,
que desalojaram centenas de famílias e que acabariam por derrubar 525 prédios, entre eles algumas construções
históricas, como as igrejas de São Pedro dos Clérigos e de São Joaquim. Atualmente, o local abriga um espaço
para shows de música popular, conhecido como o “Terreirão do Samba”, onde também se encontra eregido um
monumento a Zumbi dos Palmares. Fonte: “Praça Onze”. Disponível em:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Pra%C3%A7a_Onze> Acesso em 22/09/2011.
14

para a passagem da referida Avenida Presidente Vargas, que se estenderia do centro


nevrálgico da capital em direção à beira-mar e à zona Sul:

Bom dia Avenida (1944) / Herivelto Martins e Grande Otelo

Lá vem a nova avenida


Remodelando a cidade
Rompendo prédio e ruas
Dos nossos patrimônios de saudade
É o progresso, e o progresso é natural
Lá vem a nova avenida dizer a sua rival
Bom dia Avenida Central

A união das escolas de Samba respeitosamente


Faz o seu apelo 3200 de selo
Requereu e quer saber
Se quem viu a Praça Onze acabar
Tem direito a avenida em primeiro lugar
Bem se vê quer depois inaugurar

A voz do “sujeito do samba” anuncia civilizadamente (ou ironicamente?) a


naturalização do progresso: É o progresso / e o progresso é natural. Inaugurada em 1944, a
nova avenida já vinha sendo construída desde 1941 com o objetivo de interligar a Avenida
Central aos demais acessos à cidade. Vale lembrar que, entre 1937 e 45, o então prefeito
Henrique Dodsworth, promoveu diversas alterações na paisagem carioca: a demolição do
Cassino e do Teatro do Passeio Público, o alargamento da Rua 13 de Maio, e a criação das
avenidas Brasil e da Presidente Vargas (em 1940, o Rio de Janeiro já contava com 1 milhão e
750 mil habitantes). Literalmente “remodelando a cidade” e “rompendo prédios e ruas”, a
avenida ganha ares inanimados ao “dizer à sua rival”: “-Bom dia, Avenida Central!”. E os
patrimônios arquitetônicos e culturais seriam a materialização de uma “saudade” coletiva,
dando à canção uma instigante dupla face. Enquanto em “Praça XI” há uma despedida
saudosa da paisagem urbana em vias de extinção, aqui esta saudade vira uma espécie de
euforia civilizada com o caráter dialético da destruição que também significa inovação, vide a
citada alegoria benjaminiana do “caráter destrutivo”: “Nenhum momento é capaz de saber o
próximo que traz. O que existe ele converte em ruínas, não por causa das ruínas, mas por
causa do caminho que passa através delas” (BENJAMIN, 1987, p. 237).

5 DA ERA DA ELETRICIDADE À IDADE MÍDIA: NOVOS VELHOS PARADIGMAS

O homem não termina com os limites de seu corpo ou a área que compreende sua
atividade imediata. O âmbito da pessoa é antes constituído pela soma de efeitos que
emana dela temporal e espacialmente. Da mesma maneira, uma cidade consiste em
seus efeitos totais que se estendem para além de seus limites imediatos (SIMMEL,
1979, p. 21).
15

A mutação desenfreada do espaço público e a aceleração do tempo como forças


sinestésicas do choque da modernidade, provocadas principalmente pelos adventos
tecnológicos da era da eletricidade nas primeiras décadas do século XX, (como o bonde, o
cinema, o rádio, entre outros), podem nos conduzir às férteis reflexões sobre os dilemas de
nossa atual Idade Mídia. Há exatamente um século de distância destes tempos, a atual
sociedade do capitalismo avançado parece viver sintomas bem parecidos. Afinal, desde Marx
sabemos que o fetiche das mercadorias ronda os sonhos de consumo da humanidade, cujos
produtos parecem cada vez mais dotados de significados e de espírito aurático, pois “a
exploração não é apenas econômica, é também cognitiva” (BUCK-MORSS, 1999, p. 279).
Ao nos voltarmos para os primórdios da década de XX na metrópole do Rio de
Janeiro, estaremos iluminados por uma notável reorganização dos sistemas simbólicos e
perceptivos das coletividades na sociedade metropolitana: [...] O recondicionamento dos
corpos e a invasão do imaginário social pelas novas tecnologias adquirem, portanto, um papel
central nessa experiência de reordenamento dos quadros e repertórios culturais herdados,
composta sob a presença dominante da máquina no cenário da cidade tentacular
(SEVCENKO, 1992, p. 18). Se transpormos para essa citação a palavra “computador” no
lugar de “máquina”, entenderemos melhor esta reflexão transhistórica. Ora, hoje estamos
rodeados de terminais digitais com suas telas de alta definição por todos os lados, onde todas
as informações disponíveis (ou quase todas) podem ser acessadas em um mero clicar de
dedos. A cultura digital, a cibercultura, é uma realidade que está reordenando novas formas de
sociabilização da vida humana, quer você esteja dentro ou fora dela. Além disso, o
computador parece querer engolir o mundo do rádio, do cinema e da televisão, como já
profetizava McLuhan, “os meios (de comunicação), como extensões de nossos sentidos,
estabelecem novos índices relacionais, não apenas entre os sentidos particulares, como
também entre si, na medida em que se interrelacionam” (MCLUHAN, 1969, p. 72).
Entre a euforia e anestesia, ou seja, entre o desvario coletivo com um novíssimo
meio digital capaz de demolir nossas noções de tempo e espaço, e a alienação solitária do
“homem unidimensional”, como assim a entendia criticamente Marcuse, somos convidados a
revirar essa nova caixa de Pandora por todos os seus lados. Desmistificá-la cuidadosamente
para que ela não nos aprisione negativamente, no sentido de entendermos a ambivalência de
seu significado simbólico e real como se estivéssemos olhando para uma “cidade dos sonhos”
do início do século XX. Afinal, “a metrópole moderna recebe uma representação ambivalente
16

como o local de origem de um caos avassalador e a matriz de uma nova vitalidade


emancipadora” (SEVCENKO, Op. cit., p. 18). Para tanto, basta não nos hipnotizarmos por
sua luz e darmos boas vindas ao mar caudaloso da cibercultura. Ao vivermos o ineditismo
desta era midiática, nossos novos (velhos) paradigmas parecem ainda os mesmos.

6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Mestrado, Departamento de Estudos Literários, IEL. Campinas: UNICAMP, 1989.

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18

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São Paulo: Editora Brasiliense, 1982.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo

BORGES ENTRE SCHOPENHAUER E NIETZSCHE:


REFLEXÕES ESTÉTICAS A PARTIR DE “HISTORIA DEL TANGO"

Miguel Angel Schmitt Rodriguez1 (FURB/UFSC)

RESUMO

Em 1954 o escritor argentino Jorge Luis Borges publica na segunda edição de “Evaristo
Carriego” uma sintética “Historia del Tango”. Reivindica, nesse texto, a noção
schopenhauriana de que a música é a expressão artística que se sobrepõe pela força não
representativa: “la música prescinde del mundo; podría haber música y no mundo”. Nietzsche,
em seus primeiros escritos sobre a arte trágica dos gregos, também atribui à música um
caráter especial. Em “A visão dionisíaca do mundo”, compreende que somente ela tem a
capacidade de vencer o “poder da aparência”. Agora, sabe-se já que as semelhanças de
pensamento entre os dois filósofos possuem um limite. Justamente aonde se configura essa
fronteira gostaríamos de inserir o texto de Jorge Luis Borges. Pois, em “Historia del Tango”,
mesmo fazendo referência a Schopenhauer, não nos parece que haja acordo quanto à
compreensão estética do “filósofo pessimista”. O tango, enquanto expressão da “Vontade”, é
exaltado como transmissor da “belicosa alegria cuya expresión verbal ensayaron, en edades
remotas, rapsodas griegos y germânicos”. De maneira que longe de ser um convite à expiação,
o tango antigo se apresentaria mais como uma expressão que possibilita o gozo estético
oriundo de um estado de êxtase. Nas palavras do escritor argentino, tratava-se de uma
“orgiástica diablura”.

Palavras-chave:
Borges. Schopenhauer. Nietzsche.

RESUMEN

En 1954 el escritor argentino Jorge Luis Borges publica en la segunda edición de “Evaristo
Carriego” una sintética “Historia del Tango”. Reivindica, en este texto, la noción
schopenhaureana de que la música es la expresión artística que se sobrepone por la fuerza no
representativa: “la música prescinde del mundo; podría haber música y no mundo”. Nietzsche,
en sus primeros escritos sobre la arte trágica de los griegos, tambien atribuí a la música un
carácter especial. En “A visão dionisíaca do mundo”, compreende que solamente ella tiene la
capacidad de vencer el “poder da aparência”. Ahora, sabe-se ya que las semejanzas de
pensamiento entre los dos filosofos posue un límite. Justamente donde se configura esa
frontera nos gustaria inserir el texto de Jorge Luis Borges. Pues, en “Historia del Tango”,
mismo haciendo referencia a Schopenhauer, no nos parece que haya acuerdo quanto a la
compreensión estetica del “filosofo pesimista”. El tango, enquanto expresión de la
“Voluntad”, es exaltado como transmisor de la “belicosa alegria cuya expresión verbal
ensayaron, en edades remotas, rapsodas griegos y germânicos”. De manera que lejos de ser un
convite a la expiación, el tango antíguo se apresentaria más como una expresión que posibilita
el goze estetico oriundo de un estado de extase. En las palavras del escritor argentino, tratava-
se de una “orgiástica diablura”.

1
Graduado em História pela UFSC, possui mestrado na área de concentração de História Cultural pela mesma
instituição; aluno do curso de Licenciatura em Letras-Espanhol EaD – UFSC; leciona as disciplinas de História
Moderna e Teoria da História II no curso de graduação em História da FURB; e-mail:
miguel_rodriguez82@hotmail.com.
2

Keywords:
Borges. Schopenhauer. Nietzsche.

1 INTRODUÇÃO
O apreço que o escritor argentino Jorge Luis Borges tinha pela filosofia de
Schopenhauer é bem conhecido entre os críticos e estudiosos de sua obra. Por diversas vezes
costuma-se recordar as palavras de seu ensaio autobiográfico – publicado originalmente em
1970 na revista The New Yorker - que indica o momento em que o jovem leitor tomava
contato com a obra do filósofo alemão:

Mientras vivíamos en Suiza empece a leer a Schopenhauer. Hoy, si tuviera que


elegir a un filósofo, lo eligiría a él. Si el enigma del universo puede formularse en
palabras creo que esas palabras están en su obra. Lo he leído muchas veces en
alemán, y también traducido, en compañía de mi padre y su íntimo amigo
Macedonio Fernández. (BORGES & GIOVANNI, 1999, p. 46).

Nessa passagem o escritor deixa uma marca clara, muito forte, de devoção,
justificando os trabalhos de críticos que procuraram pensar a literatura do autor argentino em
vínculo constante com o pensamento do “filósofo pessimista”. Nesse sentido, Iván Almeida -
pesquisador argentino e co-fundador do Centro Borges, antigamente sediado na Universidade
de Aarhus na Dinamarca - destaca, em seu ensaio “De Borges a Schopenhauer”, a importância
do tema da música no pensamento de ambos os autores. Demonstra como é recorrente na obra
do escritor argentino a idéia schopenhauereana de que a música prescinde do mundo. Sendo
uma “representação sem representante” a música se eleva como fenômeno estético que fala
mais diretamente sobre a “coisa em si”, sobre a “vontade” (ALMEIDA, 2004, p. 105).
Nietzsche, filósofo que Borges declarava não ter grandes simpatias2, também foi um
admirador entusiasta da filosofia de Schopenhauer. É certo que logo em seus primeiros
escritos já se pode observar divergências em certos aspectos, mas é inegável a importância
que Schopenhauer teve para o rumo das suas preocupações filosóficas. Em julho de 1866, em
Leipzig, envolto nas atividades de estudo e pesquisa desenvolvidas na recém fundada
associação de filologia, Nietzsche confessava ao seu ex-colega Hermann Mushacke: “desde

2
Em entrevista a Richard Burgin no final da década de 60, Borges teria dito: “... los he leído [os livros de
Nietzsche] en alemán y he disfrutado mucho con ellos. Pero sin embargo, no sé por qué, nunca he sentido
simpatía por él como hombre, no? Por ejemplo, siento gran simpatía por Schopenhauer, o por otros muchos
escritores, pero en el caso de Nietzsche siento que hay algo duro en él – y no diré fatuo – quiero decir que como
persona no tiene la menor modestia” (BORGES, 1974, p. 123).
3

que Schopenhauer nos há quitado de los ojos las vendas del optimismo, nuestra mirada es más
aguda. La vida es más interesante, aunque pierda en belleza”. (NIETZSCHE, 2005, p. 397).
Pois bem, o objetivo, a partir de agora - depois de termos destacado a importância da
figura de Schopenhauer para Borges e Nietzsche - será o de interpelar um ensaio borgeano
que compõe a segunda edição de “Evaristo Carriego”, publicada 1954, intitulado “Historia del
tango”. Nesse ato, no entanto, não se quer obter aquela recôndita verdade que se revelaria
após o esforço honesto do investigador. A intenção direciona-se mais na tentativa de colocar
esse texto em movimento junto às reflexões estéticas de Schopenhauer e Nietzsche expostas,
principalmente, no terceiro livro de “O mundo como vontade e representação” e no ensaio
sobre “O nascimento da tragédia”, respectivamente. Declaramos, portanto, nos afastar da
tradição da crítica literária que, nas palavras de Noé Jitrik, “intenta descifrar un “querer decir”
que estaría más allá de lo dicho” (JITRIK, 2010, p. 86). Nesse sentido, são esclarecedoras as
palavras do escritor americano Ralph Waldo Emerson, expostas no ensaio “Spiritual Laws”:

You have observed a skilful man reading Virgil. Well, that author is a thousand
books to a thousand persons. Take the book into your two hands and read your eyes
out, you will never find what I find. If any ingenious reader would have a monopoly
of the wisdom or delight he gets, he is as secure now the book is Englished, as if it
were imprisoned in the Pelews´ tongue. (EMERSON, 1940, p. 200).

A reflexão de Emerson convida o pensamento a romper as fronteiras entre ficção e


realidade e nisso abandona a crença acerca do referente. Acreditamos que Borges e
Nietzsche3, bem como Schopenhauer, não veriam problema algum na proposição do ensaísta
americano. Nós, no percurso de nossa investigação, não poderíamos ignorar tal pensamento
ao trabalhar os textos de autores que em diversos momentos pareceram compactuar nesse
ponto crucial.

2 A MÚSICA COMO EXPRESSÃO DA VONTADE


Pode-se dizer que Schopenhauer é o grande responsável pela divulgação da idéia de
que a música é a arte que supera todas as outras por “falar” mais diretamente sobre a
“vontade”. Em seu “O mundo como vontade e representação”, o filósofo passa pelos
conceitos da “Idéia” platônica e da “coisa em si” kantiana para identificar na “vontade” a
essência íntima do mundo, em geral, e dos seres, em particular. Uma proposição inegociável

3
A esse respeito Borges teria dito, em São Paulo: “Emerson disse que um livro, quando está fechado, é uma
coisa entre outras coisas. Mas quando o seu leitor o abre, então ocorre o fato estético, e esse fato estético pode
não ser ou não deve ser exatamente o que o autor sentiu, mas algo novo, isto é, cada leitor é um criador – um
colaborador, em todo o caso, do texto (BORGES, 2000, p. 267).
4

para Schopenhauer é o entendimento de que não conhecemos as coisas em si, mas tão
somente as suas representações, que são os resultados da objetivação da vontade. A música
pode ser a expressão de uma “vontade” ainda não objetivada e, portanto, mais “original”. A
literatura, bem como as artes plásticas, poderia tão somente representar a “vontade” por meio
da produção de imagens, por tanto, estaria impossibilitada de tocar na “essência” das coisas.
Tudo isso fica muito claro através da leitura do terceiro livro de “O mundo como vontade e
representação”, quando ao falar sobre a importância da música o filósofo enfatizava:

Ela (a música) está colocada completamente fora das outras artes. Já não podemos
encontrar nela a cópia, a reprodução da idéia do ser tal como ele se manifesta no
mundo; e, por outro lado, é uma arte tão elevada e tão admirável, tão própria para
comover os nossos sentimentos mais íntimos, tão profunda e inteiramente
compreendida, semelhante a uma língua universal que não é inferior em clareza à
própria intuição!”. (SCHOPENHAUER, 1999 2001, p. 269).

Esta compreensão, que distingue a música frente às outras artes, parece ter sido bem
compreendida também por Borges e Nietzsche. Ivan Almeida, como já o dissemos
anteriormente, destacou a presença dessa idéia em diversos momentos na literatura do autor
argentino. Nós a percebemos com clareza no texto que será alvo de nossa observação neste
artigo. Em “História del tango”, ensaio adicional da segunda edição de “Evaristo Carriego”,
Borges cita o pensamento de que “la música no es menos inmediatamente que el mundo
mismo” para justamente acusar os limites das palavras na tentativa de expressar a idéia que
tantos poetas quiseram aclarar: “la convicción de que pelear puede ser una fiesta”. Nietzsche,
por sua vez, assimilou o ensinamento de Schopenhauer acerca da música, desde muito cedo.
Na conferência pública pronunciada no início de 1870 intitulada “O drama musical grego”,
por ocasião da ocupação do cargo de professor na Universidade de Basiléia, o jovem filósofo
declarava:

A palavra age primeiramente sobre o mundo dos conceitos e somente a partir daí
sobre os sentimentos; e de maneira freqüente ela não alcança absolutamente, pela
distância do caminho o seu alvo. A música, por outro lado, toca o coração
imediatamente, como verdadeira linguagem universal, inteligível por toda parte.
(NIETZSCHE, São Paulo: 2005, p. 66).

Também no ensaio sobre “A visão dionisíaca do mundo”, do mesmo ano, Nietzsche lançava a
pergunta “Quem vence o poder da aparência e a despontencializa até o símbolo?” para mais
uma vez destacar o caráter eminente da música. (NIETZSCHE, 2005, p. 31).
Desta forma, vemos que tanto Borges quanto Nietzsche aceitam a proposição
schopenhaureana com relação à prevalência da música. Mas o que está em jogo, no final das
5

contas, nessa proposição, é o entendimento de que a “vontade” é força que gera as coisas no
mundo. Agora, essa força não segue uma direção predeterminada, ela não possuí um desígnio
e, portanto, não se subordina a nenhum objetivo que não fosse o seu próprio movimento
incessante. E é nesse sentido que música e vontade se coincidiriam, e por esta razão
Schopenhauer declarou que: “o mundo poderia chamar-se tanto uma encarnação da música
quanto uma encarnação da vontade”. (Schopenhauer, 2005, p. 276). De maneira que a arte,
em geral, e a música, em específico, possibilitaria a expressão dessa força originária.
Pois bem, até aqui Schopenhauer, Borges e Nietzsche estariam de acordo. No
entanto, perceber-se-á que a condenação da “vontade” realizada pelo “filósofo pessimista”
fará com que a arte receba uma função totalmente distinta daquela que será pensada pelo
escritor argentino e o “filósofo trágico”.

3 A MÚSICA ENQUANTO EXPIAÇÃO OU ÊXTASE DA VIDA


Sabe-se que a interpretação de Schopenhauer sobre os percursos da existência é de
um pessimismo irreversível. Thomas Mann já destacou a idéia de que para o filósofo a vida é
um eterno sofrer em decorrência da procura pela realização dos desejos da “vontade”. Como
essa força desejante não objetiva um destino teleológico, a cada desejo satisfeito se nos
apresenta a necessidade de cumprir outros dez. De sorte que a solução para tamanha desgraça
se apresenta no que o filósofo chamou de “negação da vontade”. Ou seja, a procura de uma
vivência livre dos desejos e egoísmos mundanos. Daí a simpatia, tantas vezes comentada, do
filósofo pelo pensamento oriental, em específico pelo budismo.
A arte adquire, nesse contexto, uma importância tremenda. Pois ao procurar
expressar a “Idéia” original do ser, nos desviaria do mundo confuso das representações
fenomenais. Vemos que Schopenhauer se distância de Platão nesse ponto, pois atribui maior
importância para o conhecimento intuitivo dos sentimentos do que o conhecimento abstrato
dos conceitos. É assim que a obra de arte do gênio artista se coloca como elemento primordial
na busca pela contemplação da vontade originária isenta de objetivação. E, pelas razões já
expostas, a música é, dentre as artes, quem possibilita com maior eficácia esse momento de
expiação das penas. No último parágrafo do terceiro livro de “O mundo como vontade e
representação” o filósofo tornava isso claro com as seguintes palavras:

O prazer estético, a consolação através da arte, o entusiasmo artístico que apaga as


penas da vida, esse privilégio especial do gênio que o indeniza das dores de que ele
sofre na proporção em que sua consciência é mais clara, que o fortifica contra a
solidão pesada a que está condenado no seio de uma multidão heterogênea, tudo isto
resulta de que, [...] por um lado, “a essência” da vida, a vontade, a própria existência
6

é uma dor constante tanto lamentável como terrível; e de que, por outro lado, tudo
isto, encarado na representação pura ou nas obras de arte, está liberto de toda dor e
apresenta um espetáculo imponente. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 281).

Nietzsche se afasta da proposta de salvação schopenhauereana já desde a publicação


de seu estudo sobre “O nascimento da tragédia”. No elogio que tece aos gregos antigos, não
ignora, no entanto, o fato de que eles tenham tido conhecimento da lei de Sileno - semideus da
mitologia e amigo de Dionísio, para quem o melhor, em primeiro lugar, era não ser e em
segundo, em sendo, deixar de sê-lo o quanto antes. Ocorre que para Nietzsche essa foi a
grande qualidade dos helenos que se perdeu desde Sócrates: saber encarar de frente essa
realidade por meio da arte e do pensamento trágico; na confluência das forças apolíneas e
dionisíacas. Portanto, é no coro da tragédia ática - momento em que o lirismo e a música se
fazem presentes – que reside a possibilidade de exaltar a vida apesar do seu caráter
essencialmente trágico.

Es este coro el que brinda consuelo a ese heleno tan especial, profundamente dotado
tanto para el sufrimiento más sutil como para el más grave; ese heleno cuya acerada
mirada había ya penetrado en la terrible tendencia destructiva de la llamada Historia
Universal, así como en la crueldad de la naturaleza hasta el punto de correr el riesgo
de anhelar la negación budista de la voluntad. A éste lo salvará el arte, y a través del
arte será la vida quien lo salve... para sí misma. (NIETZSCHE, 2010, p. 88).

De maneira que vemos a música deixar de querer ser um “calmante da vontade”, uma
“consolação provisória”, para se tornar elemento de afirmação do querer viver. Portanto, ela
deixaria de ser um mecanismo de expiação da vida para possibilitar um momento de puro
êxtase. E aqui, finalmente, chega o instante de alocar o ensaio borgeano sobre a “Historia del
tango”.

4 O TANGO PRIMITIVO, UMA FORÇA ESTÉTICA DE EXALTAÇÃO DA VIDA


Já destacamos a menção que Borges faz a Schopenhauer no seu ensaio sobre a
“Historia del tango” no sentido de postular que a música prescinde das palavras para
expressar a própria “vontade”. Agora, é muito evidente, no texto do escritor argentino, a
ausência daquele sentimento de pesar e temeridade frente a essa mesma “vontade”.
Destaca-se, nesse sentido, a declaração do autor que exalta: “La música es la
voluntad, la pasión; el tango antiguo, como música, suele directamente transmitir esa belicosa
alegría cuya expresión verbal ensayaron, en edades remotas, rapsodas griegos y germanos”.
(BORGES, 1999, p. 136). Serão as características sexuais e belicosas, portanto, que se
destacaram naquela expressão artística nascida nos lupanares em finais do século XIX.
7

Características essas que seriam as disposições próprias aos homens. Aqui se percebe que o
autor não sofre com aquela idéia declarada por um dos personagens de “Tlon, Uqbar, Orbis
Tertius” que advertia: “los espejos y la cópula son abominables, porque multiplican el número
de los hombres”. (BORGES, 2005, p. 16).
De maneira que, em “Historia del tango”, encontra-se insinuada a compreensão de
que a vida é uma disposição de forças, e de que o conflito e as batalhas das quais os homens
participam não devem ser recriminadas por um tom moralizante. Não à toa o autor relaciona
uma série de citações literárias que sugerem que o “jogo das espadas” pôde, em tempos
passados, ser compreendido como uma festa.
É na evolução das letras que passam a acompanhar a musicalidade do tango,
entretanto, que Borges identifica o processo de decadência e extinção dos elementos festivos
que expressavam a força e a potência do viver. O tango elevado à categoria de gênero
nacional domesticará os impulsos mais genuínos e desinteressados característicos da valorosa
coragem.
Nitidamente, vamos vislumbrando uma compreensão estética da arte que se afasta de
Schopenhauer e aproxima-se de Nietzsche. Pois não existe, nas considerações do autor, aquela
condenação da “vontade” e aquele desejo de aniquilação dos impulsos da vida. Pelo contrário,
o que se evidencia é uma repulsa pelo triunfo das forças que expulsaram os elementos mais
rebeldes da primitiva expressão artística:

La milonga y el tango de los orígenes podían ser tontos o, a lo menos, atolondrados,


pero eran valerosos y alegres; el tango posterior es un resentido que deplora con lujo
sentimental las desdichas propias y festeja con desvergüenza las desdichas ajenas
[...] En el tango cotidiano de Buenos Aires, en el tango de las veladas familiares y de
las confinterías decentes, hay una canalleria trivial, un sabor de infamia que ni
siquiera sospecharon los tangos del cuchillo y del lupanar.

De sorte que o declínio do tango primitivo poderia ser pensado em relação com o
declínio da arte trágica, como exposto por Nietzsche no seu estudo sobre o “Helenismo e
pessimismo”. O espírito de vingança socrático, que não é capaz de admirar as forças
desprovidas de objetividade teleológica, teria uma vez mais banido a índole não apolínea que
convivia naqueles tangos antigos. Vejamos como, nesse sentido, as palavras de Nietzsche
adquirem uma força sintomática:

Una vez que el elemento optimista penetra en la tragedia, no puede menos de invadir
paulatinamente todas sus regiones dionisiacas y conducirlas de manera irreversible a
su autodestrucción... y de ahí hasta dar el salto mortal en el espectáculo teatral
burgués. (NIETZSCHE, 2010, p. 128).
8

Percebe-se, assim, como aquela expressão artística que um dia poderia ter servido
para dar a certeza de já termos sido valentes - e por essa razão termos como dever exercer a
coragem uma vez mais – perder sua qualidade de expressão da força e da exaltação da vida.
Lamentavelmente, nas palavras do escritor argentino, o tango que “Antes era una orgiástica
diablura hoy es una manera de caminar”.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Queremos concluir nossa reflexão trazendo, de súbito, um fragmento de
Anaximandro e outro de Heráclito. São eles chamados pela tradição de filósofos pré-
socráticos. Nós preferimos fugir à tradição e, junto à Emmanuel Carneiro Leão, chamá-los de
pensadores originários. O primeiro registro:

De onde pro-vêm as realizações, re-tornam também as desrealizações: pois, de


acordo com o vigor da con-signação, elas con-cedem umas às outras articulação e,
com isto, também consideração pela des-articulação, de acordo com o estatuto do
tempo. (ANAXIMANDRO, 2005, p.39).

Para entendermos essa postulação, entretanto, temos que fazer referência à suposta
solução que Anaximandro teria dado para o problema da origem. Nesse sentido,
diferentemente de Tales, ele não reivindicou a expressão de uma substância natural, tendo
preferido afirmar que a origem de todas as coisas é o “ilimitado” ou o “indeterminado”. Por
isso, tendo saído do “indeterminado”, todas as coisas a ele deveriam retornar. E nesse sentido,
todas as coisas pagariam um preço por terem se objetivado, sendo o tempo o responsável por
essa condenação.
Em meio a esse postulado, que bem se assemelha à lei de Sileno, destacamos o
segundo registro, o de Heráclito, que nos fala: “O tempo é uma criança, criando, jogando o
jogo de pedras; vigência da criança” (HERÁCLITO, 2005, p. 73).
Parece-nos que as posturas frente às funções estéticas da arte aqui debatidas
encontrariam nesses fragmentos suas possibilidades de aproximação e afastamento. Em
Anaximandro vemos o pensamento de Schopenhauer concebendo a música como expressão
da “vontade”, que bem se pode compreender como o “indeterminado”. Agora, frente à
condenação dessa mesma “vontade”, advogada pela idéia de que o tempo fará com que
paguemos a culpa pela objetivação, temos Heráclito que nos fala do tempo como “vigência da
criança”. Aí conseguiríamos vislumbrar o sorriso sincero de Borges e Nietzsche,
9

compreendendo a arte não como expiação, e sim como promulgador da delícia do ser
enquanto devir. Seria possível, nesse caso, enxergarmos beleza mesmo na tragédia.

6 REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Iván. De Borges a Schopenhauer. Variaciones Borges, Pittsburgh, n.17, p. 103-


141, jan. 2004. Disponível em: http://www.borges.pitt.edu/sites/default/files/1706.pdf

ANAXIMANDRO, PARMÊNIDES, HERÁCLITO. Os pensadores originários. Trad.


Emmanuel Carneiro Leão e Sérgio Wrublewski. 4 ed. Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2005.

BORGES, Jorge Luis. “Borges em São Paulo”. Trad. CECHELERO, Vicente &
HOSIASSON, Laura In: Borges no Brasil. São Paulo: UNESP, 2000.

BORGES, Jorge Luis & GIOVANNI, Norman Thomas. Autobiografia. Trad. Marcial Souto
Y Norman Thomas di Giovanni. Buenos Aires: Ateneo, 1999.

BORGES, Jorge Luis. Evaristo Carriego. Madrid: Alianza, 1999.

_____. Ficciones. Buenos Aires: Emecé, 2005.

BURGIN, Richar. Conversaciones con Jorge Luis Borges. Trad. Manuel Coronado. Madrid:
Taurus, 1974.

EMERSON, Ralph Waldo. Espiritual Laws. The complete essays and other writings of
Ralph Waldo Emerson. New York: The modern library, 1940.

JITRIK, Noé. La belleza de las cosas. In: JITRIK, Noé. Verde es toda teoria: literatura,
semiótica, psicoanálisis, linguística. Buenos Aires: Líber Ediciones, 2010. p. 83-87.

NIETZSCHE, Friedrich. A visão dionisíaca do mundo e outros textos de juventude.


Tradução de Marcos Sinésio Pereira Fernandes & Maria Cristina dos Santos de Souza. São
Paulo: 2005.

NIETZSCHE, Friedrich. Correspondencia: Friedrich Nietzsche.Vol. I. Edição dirigida por


Luis Enrique de Santiago Guervós. Madrid: Trotta, 2005.

NIETZSCHE, Friedrich. El nascimiento de la tragedia. Trad. Germán Cano Cuenca.


Madrid: Gredos, 2010.

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. Rio de Janeiro:


Contraponto, 2001.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo

CLARICE LISPECTOR, UMA ESCRITURA TANTÁLICA1

Maiara Knihs (PPGL/UFSC)2

RESUMO

A escritura de Clarice Lispector é uma busca do impossível. O posicionamente ético explícito


nos textos, ou seja, a consciência do vazio da modernidade, faz com que a sua literatura não
apresente uma resposta, mas sim uma reflexão, talvez, uma saída ambígua que envolve
principalmente o problema do sujeito e, intrisecamente relacionado a ele, o problema do
tempo. O propósito inicial deste trabalho é pensar a noção de escritura de Clarice a partir do
texto Um sopro de vida (pulsações), para apontar que nesta noção existe um reiterado
pensamento sobre o terror, o não-sentido e, portanto, o esvaziamento do eu. Para tanto,
retomo Nietzsche como um dos primeiros modernos à descontruir uma visão autonomista da
literatura e María Zambrano, filósofa espanhola leitora de Nietzsche, que pensa o fragmento e
entende a palavra como retorno, variação. Partindo dessa ideia anautonômica da literatura que
impossibilita interpretar Nietzsche, Zambrano ou Lispector, na medida em que acontecimento
artístico ou filosófico se equipara com a vida, sugiro que os monólogos desencontrados, não
diálogos, de Um sopro de vida apontam para um não reconhecimento de um ser mediador e
que, portanto, nesta rede composta pela técnica, pelo capitalismo não há espaço para a
subjetividade. A subjetividade só é possível no fluxo contínuo e no recorte, a isto Foucault
chamou biopolítica.

Palavras-chave:
Clarice Lispector. Um sopro de vida (pulsações). Busca do impossível.

ABSTRACT

Clarice Lispector's scripture is a quest for the impossible. The ethical position expressed in
her texts, namely, the awareness of modernity’s emptiness, makes her literature not
to provide an answer, but a reflection, perhaps, an ambiguous exit which involves mostly the
problem of the subject, and intrinsically related to it, the problem of time. The initial
purpose of this work is to think the notion of Clarice’s scripture from the text Um sopro de
vida (pulsações), to point out that in this notion there is an oft-repeated thought about the
terror, the non-sense, and therefore, the emptying of the self. For this, I resume Nietzsche as
one of the first moderns to deconstruct an autonomist vision of literature and
María Zambrano, Spanish philosopher and Nietzsche reader, who thinks the fragment and
understands the word as return, variation. Based on this anautonomic idea of literature that
makes it impossible to interpret Nietzsche, or Zambrano or Lispector, insofar as philosophical
or artistic events equates with life, I suggest that mismatched monologues, not dialogues, of a
breath of life point to a lack of mediator’s recognition and, therefore, this network comprised
of technology, of capitalism there is no room for subjectivity. Subjectivity is only possible
in continuous flow and in trimming, this Foucault called biopolitics.

1 O adjetivo tantálico, como será esclarecido no decorrer do trabalho, é uma retomada do mito de Tântalo, feita a
partir de um texto de Virgilio Piñera, publicado em 1947, na Revista Orígenes, entitulado “Notas sobre Literatura
Argentina de hoy”, no qual o autor afirma que a literatura latino-americana é tantálica, palavra utilizada na
acepção de excesso de ornamentos.
2 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina; e-mail:
maiaraknihs@yahoo.com.br.
2

Keywords:
Clarice Lispector. Um sopro de vida (pulsações). Quest for the impossible.

Gostaria de trabalhar e deixar trabalhar o texto Um sopro de vida (pulsações) de


Clarice Lispector. Explorar a potência deste texto é o objetivo deste trabalho que pretende, de
modo mais geral, apontar como ali aparece um pensamento sobre a ética contemporânea, mais
especificamente, a partir da consciência do vazio de sentido da modernidade presente no texto
clariciano.
Um sopro de vida (pulsações), como a maioria dos textos de Clarice, traz imbricado
muitas questões tipicamente filosóficas, tais como a origem, o nascer, o ser, o tempo, o
morrer, o egoísmo, a liberdade, a escritura. Tipicamente filosóficas se acatarmos
provisoriamente a separação entre a filosofia e a literatura cristalizada no ocidente a partir de
Platão. No entanto, como veremos, a própria maneira pela qual Clarice Lispector trabalha
estas questões na sua escritura – o caráter fragmentário e excessivo, a atualidade filosófica, a
refinada densidade poética – opera um apagamento da fronteira entre o logos e a poesia. O
texto de Clarice, reitero, exige uma leitura que se distancie de uma concepção autonomista e
que, portanto, assuma uma postura política na medida em que são criadas relações com a
cultura, com a vida. Entendida deste modo, a literatura atua como um campo de
possibilidades ou virtualidades, não como um fato, mas como potência.
Logo de início, Clarice nos avisa que a sua literatura é uma potência dinâmica. O
livro publicado postumamente, em 1978, organizado pela amiga dos últimos anos Olga
Borelli, traz na primeira página uma frase que, de alguma maneira, é a chave de leitura de
toda a obra clariciana: “Quero escrever movimento puro”. Esse desejo de movimento puro
que se apresenta mais enfaticamente em textos como Água-Viva e Um sopro de vida
(pulsações) está intimamente ligado àquilo que Clarice queria como literatura. As pulsações, o
ritmo do coração, o ritmo do movimento incorporam, isto é, devolvem ao corpo, ao sensível,
o pensamento sobre a própria linguagem.
Assim como a frase de abertura, as quatro epígrafes do livro dão conta de apresentar
as questões que serão retomadas e desdobradas ao longo do texto. A primeira, tomada do livro
sagrado Gênesis, retorna ao título e à frase inicial trazendo o movimento, implícito no sopro,
enquanto produtor de vida, e, certamente, dando um caráter sagrado a este movimento: “Do
pó da terra formou Deus-Jeovah o homem e soprou-lhe nas narinas o fôlego da vida. E o
homem tornou-se um ser vivente.(Gênesis 2,7)” A origem da vida do homem, segundo a
3

crença judaico-cristã, é proveniente do sopro, de um movimento vital que irá, a partir do


nascimento até a morte, ser repetido incessantemente naquilo que chamamos respiração. A
questão da origem, seja ela do homem, ou de qualquer outra coisa, perpassa a literatura de
Clarice Lispector e, segundo seu biógrafo Benjamin Moser, a acompanha desde criança até o
fim da vida, seja nas aulas de religião com o professor Moysés Lazar, seja no seu Objecto
gritante, Água-viva:

Mas há perguntas que me fiz em criança e que não foram respondidas, ficaram
ecoando plangentes: o mundo se fez sozinho? Mas se fez onde? em que lugar? E se
foi através da energia de Deus - como começou? será que é como agora quando
estou sendo e ao mesmo tempo me fazendo? É por esta ausência de resposta que
fico tão atrapalhada. (LISPECTOR, 1973, p.21)

Respostas, de fato, não se apresentaram e nem foram apresentadas, mas a escritura


foi se delineando uma saída, um contorno ao vazio original. Retomando Nietzsche, Clarice
traz a segunda citação de abertura “A alegria absurda por excelência é a criação”. A alusão ao
filósofo, para além da questão da criação, problema central do livro, que em Nietzsche
relaciona-se concomitantemente à arte e à vida, nos remete ao grande ato nietzschiano: a
morte de Deus. Sem Deus, o ator do sopro, sobra apenas o movimento puro. Sem Deus, não
há nada que assegure uma relação entre o objeto de conhecimento (a natureza, o mundo) e o
sujeito cognoscente. O mundo vira um caos que não se dá a conhecer. O sujeito tão pouco tem
um fundamento. Diante deste caos, deste vazio de um sentido essencial, o escritor pode se
posicionar, esteriotipadamente, de dois modos: de modo desafiador – a típica posição
vanguardista – em que se pressupõe uma luta com antecessor, a fim de fundar um sistema que
se firma sempre às custas do precurssor; ou de modo lamentativo, em que se lamenta o
sentido perdido. Clarice, nesta alusão a Nietzsche, dá pistas da sua consciência da ausência do
pai fundador e, portanto, assume que não há mais espaço para as vanguardas, ou seja, não há
mais negação de um passado, nem um presente que busca construir um futuro.
A posição de Clarice, certamente, não é a do desafio, nem a do lamento e isto ela
aponta desde a primeira frase do livro que diz: “ISTO NÃO É UM LAMENTO, é um grito de
ave de rapina”. (LISPECTOR, 1999b, p.13). A sua posição é de uma escritura neutra, uma
escritura por excelência do presente.
A reivindicação do presente ou do instante-já, assim como todos os “problemas” em
Clarice, varia, aparece e reaparece de distintas maneiras. Gostaria de privilegiar, em Um sopro
de Vida (pulsações), a ideia de tempo atrelada ao sonho. O livro marcado por páginas em
branco, frases desconexas e curtas, poucas vírgulas, mas muitas interrogações e reticicências,
4

tudo isso dentro de dois grandes monólogos intercalados, o do Autor e o de sua criação,
Ângela Pralini, encena repetidas vezes o espaço-tempo do sonho. Ao leitor é dada a sensação
desconfortável de estar acordado, mas sonolento, a ponto de perder a consciência, passivo
receptor das imagens pungentes que ali se apresentam, fantasmas que o atravessam. Sensação
que no final da vida a própria Clarice viveu enfaticamente. Viciada em tranquilizantes e
antidepressivos, ingeria-os em doses cavalares, muitas vezes, assustando seu psicanalista, Dr.
Jacob David Azulay, que ao fim optou por abandonar a análise e, à relação de paciente,
ofereceu uma relação de amizade. Daí Clarice conheceu Andréa Azulay, autora da terceira
epígrafe do livro, filha de nove anos de seu amigo que a fascinou desde o início pela sua
inteligência e inocência. A frase-epígrafe da menina diz: “O sonho é uma montanha que o
pensamento há de escalar. Não há um sonho sem pensamento. Brincar é ensinar ideias”
Andréa Azulay.
Ao trazer concretamente o sonho, Clarice dispõe o lugar pelo qual o livro envereda.
Uma possibilidade de leitura, esta que irei armar, permite entender o livro como uma
reivindicação do próprio sonho, seja pela epígrafe de Andréa, seja pela denominação da
segunda e da terceira partes do livro, a saber, “O sonho acordado é que é a realidade” e
“Como tornar tudo um sonho acordado?”, seja pela fala dos personagens que reiteradamente
imergem e emergem no sonambulismo direta ou indiretamente:

AUTOR.- Escrevo como se estivesse dormindo e sonhando: as frases desconexas


como no sonho. É difícil estando acordado, sonhar livremente nos meus remotos
mistérios. Há uma coerência – mas somente nas profundezas. Para quem está à tona
e sem sonhar as frases nada significam. Se bem que embora acordados alguns
saibam que se vive em sonho na vida real. O que é a vida real? os fatos? não, a vida
real só é atingida pelo que há de sonho na vida real.
Sonhar não é ilusão. Mas é o ato que uma pessoa faz sozinha.
Eu – eu quero quebrar os limites da raça humana e tornar-me livre a ponto de grito
selvagem ou “divino”. (LISPECTOR, 1999b, p.76)

O personagem Autor aqui se coloca em processo, numa espécie de viagem em que se


vai do racional ao sensível, às entranhas, de um estado humano para outro a-humano, o sonho
aparece como uma espécie de metamorfose para o sentir. Antes de adentrar nos
desdobramentos do sonho em Clarice, no entanto, gostaria de trazer a quarta e última epígrafe
do livro assinada por ela mesma: “Haverá um ano em que haverá um mês, em que haverá uma
semana em que haverá um dia em que haverá uma hora em que haverá um minuto em que
haverá um segundo e dentro do segundo haverá o não tempo sagrado da morte transfigurada.
Clarice Lispector”. Nesta última passagem a questão do tempo se torna explícita e o anseio de
um tempo que não é o cronológico, mas antes um não tempo, é encenado.
5

O SONHO, UMA REALIDADE DO FORA


Qualquer um pode sonhar acordado se não mantiver acesa demais a consciência.
(Clarice Lispector, Um Sopro de vida (pulsações))

O sonho, assim como entende María Zambrano no livro Los sueños y el tiempo, é
atemporal, ou melhor, está fora do tempo da consciência que é sempre sucessivo. Na sua
análise do sonho, uma sorte de fenomenologia do sujeito fora do tempo, Zambrano afasta-se
da interpretação dos sonhos freudiana, bem como da fenomenologia de Husserl, pois não
interpreta nem reduz a uma fenomenologia, mas antes, injeta vida, recria uma imagem do
sonho que possibilita repensar duas questões principais: o tempo e o ser.
Falar de ser e de tempo no pensamento do século XX reverbera o pensamento de
Heidegger. Ortega y Gasset, mestre de Zambrano, havia se manifestado criticamente em
relação à obra de Heidegger que aparecera em 19273, afirmando que ali não havia uma
recolocada da questão do ser. Apesar da importância de Ser e Tempo no pensamento de
Ortega, principalmente no que diz respeito a uma tomada de consciência do que significa
fundamentar, de modo ontológico, uma filosofia sobre a ideia de vida, foi sua discípula que,
sem rechaçar Heidegger, levou a cabo a crítica de seu mestre. Zambrano devolveu a reflexão
sobre o ser para a esfera da alteridade, ao seu contexto ético, à ideia de sujeito fixo e acabado,
Zambrano oferece a alternativa de um sujeito que “va más allá de donde está, que tiende a ser
más allá de lo que es, que se sobrepasa” (ZAMBRANO, 2006, p.22).
Esta noção de sujeito que se oferece como alternativa à fenomenologia de Heidegger
pode ser entendida a partir da ideia de sonho e está totalmente imbricado na noção de um
certo tempo. Para compreender o sonho em Zambrano é necessário, antes de mais nada,
colocá-lo em relação à vigília. Sonho e vigília são a mesma coisa de dois estados diferentes,
respectivamente a pré-história e a história, ou ainda, a pré-consciência e a consciência. O
sonho, importante ressaltar, não é oposto à realidade. Existe sim a realidade do sonho e a
realidade da vigília, o que as diferencia é o tempo. Na realidade da vigília o tempo flui
linearmente, na do sonho, o tempo linear desaparece. Segundo Zambrano, este tempo linear é
onde se situa conscientemente o sujeito, onde ele age ativamente, portanto, no sonho
desaparece este sujeito ordenador. Os sonhos, nas palavras de Zambrano, “descobren al

3
Ortega y Gasset manifesta-se oralmente sobre este assunto em 1929 no curso “O que é a filosofia?”. É em 1932,
contudo, que escreve defendendo que em Ser e Tempo não há um repensar a questão do ser, não se fala em
nenhum lugar sobre o ser, somente de modo escolástico, unicamente se definem diferentes sentidos de Ser.
(ADÁN, Oscar. María Zambrano y la pregunta por el "ser". Aurora: papeles del Seminario María Zambrano,
pág 59-79, ano: 1999, número 1.)
6

sujeto, lo sorprenden mientras yace privado del tiempo, de esse tiempo de la consciencia
donde él puede actuar, donde encuentra la realidad adecuada a su liberdad: realidad
fragmentaria e continua; libertad condicionada”. (ZAMBRANO, 2006, p.61)
O sujeito descoberto expõe a passividade do homem, nele desaparece o tempo cronos
e, com ele, o sujeito uno, centrado, vigililante de suas fronteiras. Neste sentido, o sonho é
revelador. Revela ruínas. O sonho é o outro da vigília, o negativo. O sonho é o lado das
sombras em oposição à vigília que é o lado onde o homem alcança sua máxima claridade e
evidência, em que a objetividade parece proporcionar o controle, em que há uma ilusão de
iluminação total até que de repente cai-se no abismo do fora do tempo e ali, no retorno ao
não-nascido, há uma experiência de vida enquanto devir.
A importância do sonho, no entanto, é antes a importância da passagem do sonho
para vigília e da vigília para o sonho. Não é à toa que María frisa o despertar e o cair no sono.
Diz Zambrano: “[s]i el despertar es un arrancarse, el momento de entrar en el sueño es un
abismarse de la conciencia que se sumerge como se fuera reabsorbida. Son los movimientos
del cuerpo los que toman, si así puede decirse, su lugar.” (ZAMBRANO, 2006, p.101). Cada
despertar, cada acordar é um renascimento, um recordar de algo esquecido, um aparecimento
de algo oculto, sempre pelas vias corpóreas. E este nascimento não é outra coisa que o pensar.
Assim sendo, a vida é repleta de múltiplos nascimentos, o que leva a concluir que toda
reveleção é uma repetição – característica de um tempo que cessa de voltar. María afirma que
quando o eu é despossuído e cai no sono, a psique entra em ruínas, vem abaixo, se desaba. Por
isso a ruína é a imagem perfeita do sonho; o sonho é a vida, diz Zambrano, a ruína é a cidade
e a cultura.
O sonho-vigília de Zambrano, leitora de Nietzsche, importante lembrar, apesar de
guardar sutis distinções, tem muitas afinidades com o dionísico-apolíneo do filósofo alemão,
ainda que María subverta a imagem central. Em Nietzsche, mais especificamente em O
nascimento da tragédia, fala-se de duas forças que irrompem na natureza e que estão ligadas
ao contínuo desenvolvimento da arte: o apolíneo e o dionisíaco. Apolo é a expressão do
principium individuatonis, isto é, da observação das fronterias do indivíduo, da medida, do
autoconhecimento, já a ruptura a este princípio, também chamada de êxtase ou Uno-
Primordial, estaria na essência do dionisíaco, cuja analogia aludida é a embriaguez, isto é, a
desmedida, o excesso. Interesssante notar que a defesa de Nietzsche é de uma arte que
convive este dois elementos, que, portanto, não separa o irracional do racional, o dionisíaco
do apolíneo ou, no caso que aqui estamos tentando armar, a vigília do sonho.
Sim, é possível afirmar que o sonho tal como definiu Zambrano está para este atrás
7

do pensamento que Nietzsche apresentou no dionisíaco, bem como está para aquilo que
Clarice, reiteradas vezes, chama de pré-pensamento. Segue um trecho ilustrativo dessa
abordagem:

Antes de pensar, pois, eu já pensei. Suponho que o compositor de uma sinfonia tem
somente o “pensamento antes do pensamento”, o que se vê nessa rapidíssima ideia
muda é pouco mais de uma atmosfera? Não. Na verdade é uma atmosfera que,
colorida já com o símbolo, me faz sentir o ar da atmosfera de onde vem tudo. O pré-
pensamento é em preto e branco. O pensamento com palavras tem outras cores. O
pré-pensamento é o pré-instante. O pré-pensamento é o passado imediato do
instante. Pensar é a concretização, materialização do que se pré-pensou. Na verdade
o pré-pensar é o que nos guia, pois está intimamente ligado a minha muda
inconsciência. O pré-pensar não é racional. É quase virgem. (LISPECTOR, 1999b,
p.18.)

Neste trecho, Clarice explicitamente vincula o pré-pensar ao fora da linguagem e o


pensar, ao racional e à linguagem. O fora da linguagem é um lugar impossível,
necessariamente passamos pela língua, que no seu traço facista, nos obriga a falar. No entanto,
a literatura pode apontar para este lugar - chame-se de vazio, de sonho, de dionisíaco -
enquanto gesto que trapaceia a língua, a literatura é um bordar em torno do nada. No caso do
livro Um sopro de vida (pulsações) esta é a grande revelação possibilitada pela reivindicação
do sonho enquanto realidade, ou de um tempo anacrônico ou de um sujeito esvaziado: a
criação se dá nesta repetição, neste acontecimento diário da queda no sonho. A literatura
ensaia tocar naquela dimensão inalcançável do sonho quando o movimento é salientado.
Afinal, na queda no sonho, como lembra Zambrano, “la respiración, de hecho, disminuye,
viene a ser la protagonista del ser vivo”.(ZAMBRANO, 2006, p.101) A marca da origem, do
sopro vital, é a mesma da crição clariciana: a respiração - um ritmo infinito pautado pela
batida do coração.
Talvez tenha sido precipitado eleger a questão da criação como central em Um sopro
de Vida. Se assim o faço, é porque considero que entrelaçada nela aparecem questões tão
importantes quanto, como é o caso da questão da subjetividade. Neste texto, o personagem
Autor cria uma personagem – Ângela Pralini - e mantém uma espécie de diálogo com ela.
Tanto o autor quanto Ângela falam não necessariamente dialogando, mas antes,
monologando, o próprio Autor em relação a isso se questiona: “AUTOR.- Isso afinal é um
diálogo ou um duplo diário? (LISPECTOR, 1999b, p.36). Nestes solilóquios aparecem
reiteradamente a questão, tanto para um quanto para o outro personagem, do quem ou o que
sou eu e, também, do quem ou o que é o outro.
8

Até onde vou eu e em onde já começo a ser Ângela? Somos frutos da mesma
árvore? Não – Ângela é tudo que eu queria ser e não fui. O que é ela? ela é as ondas
do mar. Enquanto eu sou floresta espessa e sombria. Eu sou no fundo. Ângela se
espelha em estilhaços brilhantes. Ângela é a minha vertigem. Ângela é a minha
reverberação, sendo emanação minha, ela é eu. (LISPECTOR, 1999b, p.30)

Eles se confudem, se identificam, se diferenciam, e, sobretudo se misturam com a


própria Clarice. Uma das falas de Ângela poderia ser confundida com uma entrevista dada por
Clarice, afinal Ângela começa a falar de outros textos seus, dando referências que facilmente
se identificam aos textos de Clarice, diz Ângela:

O objeto – a coisa – sempre me fascinou e de algum modo me destruiu. No meu


livro A cidade sitiada eu falo indiretamente no mistério da coisa. Coisa é bicho
especializado e imobilizado. Há anos também descrevi um guarda-roupa. Depois
veio a descrição de um imemorável relógio chamado Sveglia: relógio eletrônico que
me assombrou e assombraria qualquer pessoa viva no mundo. Depois veio a vez do
telefone. No “Ovo e a Galinha” falo no guindaste. É uma aproximação tímida minha
da subversão do mundo vivo e do mundo ameaçador. (LISPECTOR, 1999b, p. 104-
105)

Seu biógrafo Moser afirma que esta mistura de identidade é uma característica de
seus últimos livros. Para ele, no caso de Um sopro de vida, “tanto Ângela como o personagem
masculino do Autor que Clarice interpõe entre ela própria e Ângela são Clarice Lispector,
muito mais do que o foram suas criaturas anteriores” (MOSER, 2011, p.605). Certamente
personagens como Martim, Joana ou G.H. se identificavam com Clarice, mas o Autor e
Ângela são mais ousados e, em certa medida, mais transparentes nesta identificação. Nesse
sentido, caberia assumir então que jamais poderia haver diálogo entre os personagens,
somente solilóquios, numa espécie de fala que ecoa.
É importante ressaltar com isso que não se trata de dizer que este é o mais
autobiográfico dos livros, antes disso, este é o livro que mais explicitamente vai colocar em
jogo a questão da subjetividade, apontando sempre para um problema que envolve a
alteridade, uma vez que o eu é também sempre outro ou, muitas vezes, somente é. Isso quer
dizer que Clarice nunca aponta para um sujeito dado como pronto prévia e definitivamente.
As subjetividades que aparecem, longe de absolutas, tal qual um sujeito cartesiano ou mesmo
kantiano, estão sempre vinculadas a uma emergência na linguagem:

ÂNGELA - Falando sério: o que é que eu sou?


Sem resposta.
[...] Eu sou nome. Eis a resposta. [...] (LISPECTOR, 1999b, p.45)

O Autor num trecho mais adiante fala:

AUTOR - [...]
9

Eu não existiria se não houvesse palavras.


Ângela parte da linguagem à existência. Ela não existiria se não houvesse palavras.
(LISPECTOR, 1999b, p.83)

O que está em jogo aqui é um sujeito em emergência, não preexistente ou absoluto,


um sujeito que, sobretudo a psicanálise, ajudou a descobrir, um sujeito esvaziado. Michel
Foucault sobre este assunto, no livro A verdade e as formas jurídicas, além de reconhecer a
psicanálise e o marxismo como metodologia para análise da história e da formação de
subjetividades, mostra como as práticas sociais, principalmente as práticas jurídicas ou
judiciárias, engendram domínios de saber que não somente fazem aparecer novos objetos,
novos conceitos, novas técnicas, mas também fazem nascer formas totalmente novas de
sujeitos e de sujeitos de conhecimento. Foucault defende que a relação entre poder e saber,
entre poder político e o conhecimento, diferentemente da maneira como se cristalizou na
cultura ocidental, guarda uma íntima relação e, portanto, pensando em meados do século XX,
numa sociedade em que a vigilância, o controle e a correção são uma dimensão fundamental
das relações de poder, de conhecer, caberia questionar que formas de sujeitos podem emergir
ali, ou ainda, que discursos o corpo tem de assumir para vir a ser um sujeito.
Para pensar nestas questões, relembro que Clarice nasceu em meio a uma guerra, sua
família veio ao Brasil fugindo do extermíno dos judeus que já cavalgava rapidamente no leste
euroupeu e prefigurava o genocídio de proporções ainda maiores feito pelo nazismo décadas
posteriores. Ainda jovem, no início do ano de 1945, recém-casada, mudou-se para uma
Europa ainda em guerra, instalou-se na Itália, onde presenciou o caos, a fome, a miséria do
homem, pedaços de homens, bem ali onde há dois mil florecia a magna Roma também sob
pena de grandes atrocidades, as grandes guerras púnicas, os assassinatos e traições, sempre
em busca da superação da Idade de Ferro para a chegada na Idade de Ouro, o retorno ao
paraíso: “AUTOR.- Vivemos em fin de siècle, nos esgotando em decadência – ou estamos na
Idade de Ouro? estamos à beira de uma eclosão. À beira de conhecer a nós memsos. À beira
dos anos 2000.” (LISPECTOR, 1999b, p.89)
Por um lado, o momento em que Clarice vivia, não permitia mais a crença em
qualquer paraíso; o Estado fabricava cadávares; exigia-se da política, da arte, da filosofia uma
recolocação das questões. Clarice se posicionou, escreveu sobre esvaziamento dos sentidos.
Assim escreveu na primeira parte de Um sopro de Vida: “Eu queria escrever um livro. Mas
onde estão as palavras? Esgotaram-se os significados.” (LISPECTOR, 1999b, p.16.)
Diferentemente do texto clariciano, no Brasil, o momento pós-guerra mais do que
10

nunca ainda estava marcado pela crença no futuro. Fundava-se no centro do Brasil uma
capital que em homenagem à velha Roma, ou no afã de um dia ser tão próspera quanto a
pátria longínqua, ganhou o nome do Brasil na língua latina e datou sua fundação no mesmo
dia da fundação mítica da cidade antiga, berço da civilização latina. O fundamento, o pai, e o
progresso regem os meados do século no país tropical. Nesse período, Clarice volta a morar
no Brasil, não muito tempo antes do golpe por parte dos militares. A angústia da falta de
sentido das coisas é ainda encrementada pela censura que coibia toda e qualquer expressão
que pudesse ser interpretada contrária ao Estado. O Autor, antes de criar Ângela Pralini,
manifesta sua vontade de escrever e apesar da boa vontade diz: “Se não digo a verdade é
porque esta é proibida”. (LISPECTOR, 1999b, p. 18)
Em uma crônica publicada no dia 18 de outubro de 1969, intitulada O menino à bico
de pena, Clarice traz uma belíssima imagem da formação do sujeito perante a Lei, a
linguagem, quando fala sobre a passagem do infante à fala:

Um dia o domesticaremos em humano, e poderemos desenhá-lo. Pois assim fizemos


conosco e com Deus. O próprio menino ajudará sua domesticação: ele é esforçado e
coopera. Coopera sem saber que essa ajuda que lhe pedimos é para seu
autossacrifício.Ultimamente ele até tem treinado muito. E assim continuará
progredindo até que, pouco a pouco – pela bondade necessária com que nos
salvamos – ele passará do tempo atual ao tempo cotidiano, da meditação à
expressão, da existência à vida. Fazendo o grande sacrifício de não ser louco.
(LISPECTOR, 1999a, p.241)

Esta passagem, que representa a entrada no mundo da luz, da razão, pode também,
caso se foque na passagem em si, assim como fez Giorgio Agamben, ser entendida como uma
experiência da modernidade. A experiência de infância é justamente esta passagem ou a
potência de se ir da fala à não fala, caminho que é sempre de mão dupla. A experiência de
infância é afim da experiência de vida do sonho acordado, é a experiência do humano.
Talvez caberia melhor falar de humano e não mais de sujeito. Quando o Autor cria
Ângela a partir de um reflexo, de uma imagem, nos obriga a pensar que numa sociedade
espetacular como a nossa, tudo é coisa, tudo é imagem, inclusive o próprio sujeito: “TIVE
UM SINHO NÍTIDO inexplicável: sonhei que brincava com o meu reflexo. Mas me reflexo
não estava num espelho, mas refletia uma outra pessoa que não eu”.(LISPECTOR, 1999b, p.
27). Se todas as coisas são imagens no tempo presente, então só existe o fantasma, não mais a
coisas em si.
11

O DESEJO DA COISA
ÂNGELA - Eu quero simplesmente isto: o impossível. Ver Deus.
(Clarice Lispector, Um Sopro de vida (pulsações))

No ano em que o regime franquista venceu a guerra civil espanhola, María Zambrano
exilou-se no México, onde escreveu, em um momento que, segundo ela, escrever parecia
impossível, o livro Poesía y Filosofia. Na sua poética releitura de tradição platônica, a partir
dos textos do próprio Platão, manifesta a necessidade mútua de poesia e pensamento. Já 1939,
Zambrano defende uma ética do pensamento que aponta para a razão poética. A partir daí,
portanto, o pensamento ético habita as zonas intermediárias, os interstícios, as passagens,
soleiras, ou antes co-habita os dois lados sem pertencer a nenhum, portanto as fronteiras são
dissolvidas, as autonomias são destruídas. Daí que pensar jamais será interpretar, mas sim
transitar. Daí que toda e qualquer autonomia cai, seja da área de conhecimento, seja de gênero
textual. O que é Um sopro de vida (pulsações)? Um romance? Um diário? Um conto? Tudo
isso. Para aludir a Derrida, o texto clariciano participa de vários gêneros, mas não pertence a
nenhum.4
Nestes anos que Zambrano desenvolvia suas ideias sobre o posicionamento ético e o
localizava numa escritura neutra, muito próxima da escritura de Clarice Lispector5, ela entrou
em contato com um grupo de intelectuais cubanos que mais tarde, em 1944, fundaria, com sua
participação ativa, uma revista chamada Orígenes, uma das revistas culturais mais

4Jacque s Derrida no fragmento Loi du genre do livro Parages: l'hypothèse que je soumets à votre discussion
serait la suivante : un texte ne saurait appartenir à aucun genre. Tout texte participe d'un ou de plusieurs genres,
il n'y a pas de texte sans genre, il y a toujours du genre et des genres mais cette participation n'est jamais une
appartenance. (DERRIDA, J. Parages. p.264)
5
Algumas afinidades entre Clarice Lispector e María Zambrano foram apontadas por Myriam Jiménez
Quenguan, no livro Clarice Lispector y Maria Zambrano: El pensamiento poético de la creación, publicado em
2009. Neste livro, a autora aponta afinidades filosóficas e poéticas entre Zambrano e Lispector, principalmente
no que tange a criação sustentando a tese de que ambas são escrituras antropofânicas, termo que resgatou de
Rayuela de Julio Cortázar. Diz Myriam:
Un soplo de vida es escritura antropofánica. Entiendo como antropofanía lo que Julio Cortázar (1914-1984)
quiso señalar cuando propuso dicho termo en Rayuela (1963), al referirse a la manifestación del hombre. En la
obra de Cortázar se encuentra el término en una nota de su personaje - alter ego - Morelli, él desea crear un
texto para insinuar valores nuevos, una escritura cómplice, no convencional, abierta y que lleve como método la
ironía y la autocrítica.[...] La antropofanía propone un texto más humano y un lector activo, copartícipe, creador.
La palabra procede del griego y significa manisfestación del hombre” (QUENGUAM, 2009, p.85-86)
Se por um lado pode-se entender o texto de Clarice como não convencional, aberto, tendo a discordar
veementemente do método da ironia e autocrítica, método aliás que a própria Myriam defendia, em páginas
anteriores, ser inexistente ou ser um não método: “No existe entonces un método concreto, su “método” es no
tener método, no defiende ninguna forma de logocentrismo, principio o unidad” (QUENGUAM, 2009, p.58)
12

importantes em Cuba. Orígenes abriu um espaço marginal para a crítica de arte e permitiu o
desenvolvimento e maturação das obras de seus colaboradores, como é o caso da figura
central, José Lezama Lima.
A revista que pluraliza a origem no nome, balizada pelas ideias estéticas de Lezama,
devolve à literatura a dimensão corpórea das sensações sobretudo pela retomada de uma
escritura barroca. Orígenes abre a ferida da questão da origem tratada desde dois mil anos
atrás basicamente de duas maneiras: ou algo se origina do seu oposto - o irracional do racional
e assim por diante – ou, para a vertentente metafísica, a coisa de mais alto valor origina da
coisa em si, do âmago. Orígenes não se posiciona nem na dualidade, nem na essência, ao
trazer o corpo, a variação e a multiplicidade para a literatura, faz da origem uma irrupção
muito próxima do sonho zambraniano. Vale lembrar que o sonho é lugar originário,
primordial da vida humana, dali o homem nasce.
É a partir da ideia de um artigo desta revista latino-americana tão próxima
politicamente de Clarice, e também obviamente de Zambrano sua colaboradora, que gostaria
de finalizar este ensaio. Colaborador não tão presente devido seus desentendimentos pessoais,
mas também suas diferenças estético-religiosas com Lezama, Virgilio Piñera escreve um texto
em 1947 sobre a literatura da Argentina, mas que acaba funcionando, assim como pretendo
mostrar, como um diagnóstico da literatura latino-americana contemporânea.
Piñera, no seu balanço da literatura argentina, afirma que esta é uma literatura
tantálica, que seus escritores são tantálicos. Virgilio retoma o mito de Tântalo, aquele que
preso ao fundo de um lago, deseja a água, mas não consegue beber, deseja os frutos à
margem, mas não consegue alcançá-los, no entanto, não deposita em Deus a causa desta
condição – talvez uma provocação ao católico Lezama - mas antes a própria história. Para
Piñera, que atribui um valor pejorativo ao tantalismo, o escritor latino-americano tal qual
Tântalo tenta, ou deveria tentar, mas não consegue tocar a coisa. O cubano, então, esclarece
que este tantalismo reside na ornamentação. A ornamentação sem finalidade é perniciosa,
diria Piñera, que enfaticamente afirma que na América Latina, de um modo geral, busca-se
por uma fórmula formal do mundo e não uma forma em si, ou seja, opta-se por uma saída que
ele entende ser meramente técnica, não espiritual.
Non basta ser brillante, poseer gran poder combinatoria, saber multiplicar el adorno
a extremos sobrehumanos, dominar el idioma o idiomas; al último fondo de la
conciencia hay que partir y asentarse en una realidad muy real, que procurándonos
cifras, llaves,conclusiones y respuestas las va, también, a otorgarlas al lector, para
non dejarlo a insólita, extraña situación de un mundo dado gratuitamente, y en el
que, repetimos, siempre se va a preguntar por lo que el autor dejó oculto. (PIÑERA,
1947, p.42.)
13

O ornamento, o caráter tantálico desta literatura, só faz com que a realidade escape
cada vez mais. Então, Piñera, em tom de lamento, diz que, apesar de paradoxal, nosso
alimento, e ao usar a primeira pessoa do plural se inclui na classe dos latino-americanos
tantálicos, é nossa própria cadeia: se engana aquele que pensa que o tantálico vai morrer de
inanição ou de sede, ao contrário, a impossibilidade o alimenta.
Piñera lastima a falta de espírito e o exceso formal desta literatura, e nesse sentido
diz que existe uma literatura na américa, mas ela ainda não é. Na crença em um pai, que não
se diferencia muito de Deus, Piñera espera o dia que o tantalismo ceda espaço à essência
espiritual. Os exemplos máximos da literatura tantálica na Argentina são Macedonio
Fernández, Oliverio Girondo e, talvez o mais tantálicos deles, Jorge Luis Borges.
Se considerarmos este um diagnóstico da literatura latino-americana em meados do
século passado, poderíamos dizer que foi um diagnóstico muito atual e certeiro, no entanto, a
valoração dada a ele parece ter sido equivocada. Piñera usou tantálico enquanto sinônimo de
impotência do espírito, exigiu do excesso formal ou da ornamentação uma razão, um motivo
que não poderia mais existir, uma vez que o tempo da vanguarda se exauriu, a relação de
causa – consequência também já inexiste. Aproveitemos, então, o diagnóstico e revisemos a
valoração. Diante de um mundo sem sentido, uma saída é apontar para este vazio. Uma
maneira de apontar para este vazio é o tantalismo, escrever um texto com coisas
desnecessárias, com excesso, repetições, avances e retrocessos, variações de uma mesma
coisa, barroquismos, pinduricalhos, espaços em branco tudo aquilo que Clarice fez em Um
sopro de vida (pulsações). “O livro de Ângela” que constitui um livro dentro livro nada mais
é que a reverberação em si, as infinitas imagens da coisa que varia, mas inexiste: “O livro que
a pseudoescritora Ângela está fazendo vai se chamar de “História das Coisas”. (Sugestões
oníricas e incursões pelo inconsciente)” (LISPECTOR, 1999b, p.102) O que Piñera não se
deu conta é que os desejos de Tântalo são impossíveis. Só o impossível move o desejo. A
coisa está ausente. Clarice tinha consciência desta impossibilidade e desta ausência, e por isso
o procedimento neobarroco do seu texto é, sobretudo, ético.

Eu que apareço neste livro não sou eu. Não é autobiográfico, vocês não sabem nada de mim. Nunca te disse e
nunca te direi quem sou. Eu sou vós mesmos
Clarice Lispector

REFERÊNCIAS

ADÁN, Oscar. “María Zambrano y la pregunta por el "ser"”. Aurora: papeles del Seminario
María Zambrano. Ano1, n. 1, 1999. p. 59-79.
14

AGAMBEM, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história.


Nova ed. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2005.

DERRIDA, Jacques. Parages. Paris, Galiléé, 1986.

FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. [Trad. Roberto Cabral de Melo


Machado e Eduardo Jardim Morais] Rio de Janeiro: NAU Editora, 2003.

LISPECTOR, Clarice. Água Viva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.

_____. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999a.

_____. Um sopro de vida (pulsações). Rio de Janeiro: Rocco, 1999b.

_____. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

MOSER, Benjamin. Clarice, uma biografia. [Trad. José Geraldo Couto] São Paulo: Cosac
Naify, 2011.

NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. [Trad. J.


Guinsburg] São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

PIÑERA, Virgilio. “Notas sobre Literatura Argentina de Hoy”. Revista Orígenes. Ano 5, n.
13, junho/1947. p. 40-45.

QUENGUAN, Myriam Jiménez. Clarice Lispector y María Zambrano: El pensamiento


poético de la creación. Madrid: Horas y horas, 2009.

ZAMBRANO, Maria. El Hombre y lo divino. 2 ed. México: FCE, 1973.

_____. Filosofía y Poesia. México: FCE, 1987.

_____. Los sueños y el tiempo.Madrid: Ediciones Siruela, 2006.

_____. El pensamiento vivo de Séneca. Madrid: Cátedra, 2010.


SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo

CONSIDERAÇÕES COMPARATIVAS SOBRE A PERSPECTIVA “POLÍTICA”


ENTRE A OBRA PRIMEIRAS VIAGENS 1 DE ERNESTO CHE GUEVARA2 E O
FILME DIÁRIOS DE MOTOCICLETA DE WALTER SALLES3

Cristiano Mello de Oliveira (UFSC)4

RESUMO

O presente trabalho deseja tecer considerações comparativas entre a obra literária Primeiras
Viagens, do escritor Ernesto Che Guevara e o filme Diários de Motocicleta, do cineasta
Walter Salles. Iremos analisar, sobretudo, quais elementos deixaram de existir da obra
literária para adaptação do filme buscando levantar especificidades centradas no objeto da
perspectiva política de ambas. Outrossim, buscaremos tecer algumas reflexões sobre a
problemática da arte da adaptação entre literatura e cinema. O corpo teórico desse artigo visa
a dialogar sobre os efeitos da adaptação com os seguintes autores: André Bazin, Tânia
Pellegrini, Robert Stam, Lúcia Nagib, Marcos Rey. A contribuição investigativa para esse
breve artigo visa despertar o interesse dos estudiosos tanto no campo da literatura como do
cinema em aprofundar temas nessa mesma perspectiva, assim como ampliar os diálogos ainda
escassos entre tal dicotomia de estudo.

Palavras-chave:
Primeiras Viagens. Diários de Motocicleta. Adaptação. Walter Salles. Ernesto Che Guevara.
Cinema. Literatura.

ABSTRACT

This paper wants to make considerations comparative literary Travel First, the writer Ernesto
Che Guevara and The Motorcycle Diaries movie from filmmaker Walter Salles. We will
consider, especially where there are no longer elements of the literary adaptation of the movie
trying to get focused on specific object of the political perspective of both. Also, we try to
make some reflections on the problems of the art of adaptation between literature and cinema.
The theoretical body of this article aims to talk about the effects of adjustment with the
following authors: Andrew Bazin, Tania Pellegrini, Robert Stam, Lucia Nagib, Marcos Rey.
The investigative contribution to this brief article is intended to arouse the interest of scholars
both in the field of literature as movie themes to deepen in the same context, as well as
broaden the dialogue between this dichotomy still scarce in the study.

1
Notas de Viaje foi o relato que Ernesto escreveu após sua viagem, utilizando trechos extraídos do seu diário. O
texto foi transcrito e publicado postumamente pela viúva cubana de Che, Aleida March. Supostamente, trata-se
de uma versão autêntica e integral do original. A obra foi publicada em inglês pela primeira vez em 1995, com o
título The Motorcycle Diaries.
2
Ernesto Guevara de la Serna nasceu em 14 de junho de 1928 em Rosário, Argentina, em uma família de maior
nível social econômico. Seus pais foram transigentes com ele porque desde pequeno padecia de forte asma, que
lhe exigia conter as energias, o que acentuou seu gosto pela leitura. Quando concluiu o colégio, em 1946,
mudou-se para Buenos Aires, onde trabalhou como laboratorista de solo e começou a cursar engenharia, mas em
1947, mudou-se para medicina. Jogava rugby e xadrez e viajou de moto 4.500 km para conhecer seu país. Em
1951, trabalhou como enfermeiro em navios mercantes, sempre sem deixar de estudar. No fim desse ano, partiu
de moto com seu amigo Alberto Granado, em uma viagem de oito meses pala América do Sul, o que ajudou a
encontrar sua vocação. (ANDERSON, 1996, p. 274)
3
Salientamos que o presente estudo foi inspirado no artigo “Crônicas de viagens e a representação das cidades
na obra Primeiras Viagens, de Ernesto Che Guevara”, ao qual tive a oportunidade de apresentar no Simpósio
Internacional de Literatura Argentina”.
4
Pesquisador CNPq - Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); e-mail: literariocris@hotmail.com.
2

Keywords:
The Motorcycle Diaries. First Travel. Adaptation. Walter Salles. Ernesto Che Guevara.
Cinema. Literature.

1 INTRODUÇÃO

E a adaptação nunca é meramente uma cópia: ambos,


fonte e adaptação, estão enredados em múltiplos
repertórios, gêneros e intertextualidades.
(Robert Stam)

Quando começou os preparatórios e as filmagens para o lançamento do aplaudido


filme “Diários de Motocicleta”, do cineasta Walter Salles5, após um intenso preparo de
terreno fílmico no tocante aos assuntos de roteiro, seleção de locações, seleção de atores,
figurinos e remontagem histórica e geográfica – com a maior movimentação e
espetacularização que a indústria cinematográfica latino-americana exerceu em meados do
ano de 2004 foi notório uma intensa curiosidade do público assíduo de seus filmes um leve
questionamento sobre os efeitos de como representar acontecimentos tão remotos da década
de 1950 para a atualidade e inserir características contextuais políticas de época. Não é por
menos que, ao aparecer pronto e energizado nas grandes telas do cinema a película causou
uma grande reviravolta de audiência em todos aqueles espectadores que estavam buscando
um filme de excelência como foi o caso deste.6
Em entrevista O filme por Walter Salles As palavras do diretor sobre o longa
Diários de Motocicleta, o cineasta ao ser questionado pela sua atração em relação ao
desenvolvimento do projeto do próprio filme responde entusiasticamente: “Foi o fato de
Diários de Motocicleta revelar uma geografia humana e física que pertence à América Latina
e ser, ao mesmo tempo, a história de dois jovens em busca de seu lugar dentro dessa
realidade.” (SALLES, 2007, p.47) Com efeito, percebemos que essa atitude de revelação de
dois jovens ainda em fase de amadurecimento intelectual, político e social submete a uma
maior atenção para fins de descobrimento e coragem do próprio cineasta. E para concluir diz:

5
O cineasta Walter Salles nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 12 de abril de 1956. Filho do falecido
embaixador e banqueiro Moreira Salles e Elizinha Moreira Salles, irmão do também cineasta João Moreira
Salles. Morou em Washington dos 3 aos 6 anos de idade, estudou na França até os 13, voltou ao Brasil para
graduar-se em economia na PUC-RJ e novamente retornou aos Estados Unidos para fazer mestrado em
comunicação audiovisual na Universidade da Califórnia.
6
“O bem-sucedido batismo de fogo no cinema americano foi uma aposta arriscada de ambos – produtor e
cineasta. O filme retrata um ícone cultural e político. Esse fato teve grande apelo, mas impôs um desafio à altura,
que foi corresponder às enormes expectativas de quem espera uma explicação sobre o personagem complexo em
que Che se transformou. Como síntese de um comportamento rebelde e engajado, sua figura até hoje é
inconteste. Do ponto de vista político, está longe de representar uma unanimidade – especialmente nos Estados
Unidos” (STRECKER, 2010, p. 82)
3

“O filme pode ser visto como uma viagem iniciática, uma jornada através de um continente
que definiria, tanto no âmbito emocional quanto no político, quem esses jovens se tornariam.”
(SALLES, 2007, p.47) Ou seja, podemos perceber nos dois depoimentos a necessidade de
explorar o lado social e fraterno de ambos os protagonistas, porém o vocábulo “político” está
colocado com demasiada intenção interessada e alimentará o nosso mote e recorte dado ao
objeto que aqui estamos pesquisando.
Reticências à parte, e respeitada a vontade do cineasta carioca em relação aos
comentários do próprio filme, na entrevista, Salles ainda tece algumas considerações
importantes e, ao que me parece, pertinentes sobre o modo inventivo e de criação. Ao dizer
que o propósito do filme era enfatizar o lado social-político e fazer com que esses
protagonistas pudessem pertencer àquela história, ele reitera o fator do dinamismo político ter
sido um condicionante bastante preponderante e aponta algumas projeções daquilo que seria a
formação de outros acontecimentos e episódios. A partir daí, notamos o possível paralelo
entre o desenrolar de um enredo que segue em concordância com os fatos históricos e
políticos das nações da América Latina, já que, segundo o pensamento de Salles, “Trata-se de
um filme histórico que se conjuga no presente. A situação social é muito parecida com a
escrita nos dois diários - „Notas de viaje‟, de Guevara, e „Con Che”. 7, ressalta o cineasta.
Curioso notar que, desde o seu lançamento, em 2004, o filme Diários de Motocicleta
se afirmou como marco distinto, colocando sua direção e roteiro, Walter Salles, entre os
melhores cineastas brasileiros. 8Afinal, o filme forneceu expressão cultural às questões do
conhecimento da obra humanística, política e social de Ernesto Che Guevara e seu
companheiro de viagem Alberto Granado que a sociedade ainda não conhecia ou apenas
rotulava suas personalidades pelo jogo do senso-comum. O rotulamento inconsciente do
público em geral sempre caía nas tentações de enxergar o protagonista como apenas um
sujeito aventureiro, guerrilheiro e revolucionário, sem antes saber que ele possuía toda uma
carga de sentimentos humanistas relacionados à sua própria existência. Aliás, a temática
humanística e social, tal como abordada por Salles, logo se tornou solo fértil para novos
9
filmes que ele mesmo deveria produzir e projetar, tais como On the Road. Alguns outros,
como Na Natureza Selvagem (2007), de Sean Penn, evidencia ou contaram com o leve toque
de correlação do filme de Salles.

7
SALLES, Walter. Entrevista ao filme Diários de Motocicleta. Disponível em:
<http://www.confrariadecinema.com.br/reportagem_corpo.jsp?id=25> Acesso em 20/01/2011.
8
“A repercussão internacional do filme foi imensa, mesmo que Walter não estivesse inteiramente seguro de sua
recepção. Foi visto por 12 milhões de espectadores, sendo 900 mil no Brasil. Conquistou mais de 50 prêmios
internacionais e uma recepção crítica comparável a de Central do Brasil.” (STRECKER, 2010, p. 83)
9
Filme que será lançado no ano de 2011 em parceria com Francis Ford Coppola.
4

Walter Salles não somente atualiza a história da obra Primeiras Viagens, mais ainda
tenta emular e modernizar as técnicas narrativas utilizadas nos diários escritos por Ernesto
Che Guevara. Diferentemente de outras adaptações da vida e da obra de Ernesto Che
Guevara10, Walter Salles não elimina o lado fraterno e personalíssimo de ambos os
protagonistas: Guevara e Granado. A exemplo de uma técnica estabelecida no começo do
filme, Salles reiteradas vezes provoca as cenas de amizade entre Guevara e Granado, assim
como o sentimento solidário para com os moradores das localidades visitadas por eles.
Dirigindo e trabalhando à maneira de Guevara, Walter Salles ainda tematiza, reflexivamente,
os obstáculos, as dificuldades, para que esses aventureiros possam estabelecer uma maneira
possível de lutar contra as carências financeiras e o fortalecimento das amizades, exatamente
como Guevara falara sobre as principais barreiras de conseguir realizar com proeza e
superando tudo aquilo com destreza e determinação. Enquanto Guevara enfatizava nos seus
escritos a natureza híbrida e paisagística da visão de mundo sobre uma motocicleta, enraizada
em valores aventureiros e libertadores, Walter Salles, em seu filme, também exercita o
mesmo, porém com um caráter mais ousado e humanístico.
Como afirma o ensaísta Robert Stam, na epígrafe introdutória deste artigo, a
adaptação jamais pode ser entendida como uma cópia da fonte, ou seja, à medida que o
intermediador cultural resolve realizar a adaptação do objeto almejado, acaba passando
também a interagir com outros meios e mídias. Ao utilizar o vocábulo “enredados”, Stam
propicia o estudioso/pesquisador a refletir sobre o processo de mescla e fusão das formas
artísticas. Por outro lado, a seleção desses objetos implica num direcionamento mais criterioso
e de projeção aos cuidados do cineasta. Em contrapartida, a adaptação parte da premissa de
aproveitar tudo aquilo que está circunstanciado e traz para dentro do seu contexto, buscando
aspectos intertextuais como fator preponderante de seu fortalecimento. Por esse motivo, uma
determinada adaptação acabe abarcando aspectos de outras mídias, sejam literárias ou não
para complementar as possíveis lacunas, assim como buscar novos ajustes para fins de
originalidade e projeção perante o produto final.
Diante de tal perspectiva, possivelmente podemos orquestrar a seguinte
problemática: como a obra literária Primeiras Viagens pode ser comparada com o filme
Diários de Motocicleta? Como ocorre esse efeito de adaptação das palavras para as imagens?
Quais são as principais problemáticas na arte da adaptação? Quais foram as
influências/correlações tanto na obra literária como no filme? Quais seriam as diferenças de

10
Várias adaptações contemplam a semelhante temática: O filme Che!, de 1968, da norte-americana Twentieth
Century-Fox, estrelado por Omar Sharif como Che Guevara.
5

personalidade entre o escritor Ernesto Che Guevara e o cineasta Walter Salles? Quais são as
imagens e cenas cortadas ao longo do filme? Como ocorre a categoria tempo e espaço da obra
11
literária para a película cinematográfica? Quais são os dizeres dos personagens pelo viés
político que desaparecem ou aparecem no próprio filme? Ao argumentarmos e questionarmos
através desse breve elenco de questões, seremos capazes de levantar e provocar outros estudos
e investigações possíveis, assim como compreender analiticamente todo o contexto
problemático da adaptação da obra literária Primeiras Viagens para o filme Diários de
Motocicleta.
O presente estudo terá a finalidade de explorar e canalizar aspectos importantes do
efeito operatório da adaptação da obra literária Primeiras Viagens em comparação ao filme
Diários de Motocicleta pelo viés da perspectiva política. Isto é: o recorte a ser realizado será
verificar como a obra literária utiliza da linguagem política e como o filme se utiliza dessa
artefato para a sua adaptação. Neste breve trabalho visamos contribuir com as nossas
considerações bibliográficas sobre o efeito da adaptação entre a literatura e o cinema
problematizando os aspectos dos principais teóricos e autores. Resta explicitar que a
contribuição desse estudo objetiva/projeta atingir um possível diálogo pela perspectiva
política da obra literária Primeiras Viagens para com o filme Diários de Motocicleta.
Salientamos que não desejamos realizar um estudo profundo sobre os aspectos da adaptação e
do eixo comparativo de ambas as obras (livro e filme), mas contemplar algumas dessas
diferenças pelo viés político provocando novas discussões. Seria tarefa desproporcional aos
limites de um artigo breve.

2 CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONCEITO DE ADAPTAÇÃO – DISCUSSÃO


PROBLEMÁTICA?
Quem percorre a maioria dos textos vinculados à eclosão do movimento de
adaptação da obra literária para a imagem cinematográfica constata a recorrência de um
esforço metodológico e conceitual por parte dos críticos literários e cineastas de impor e
privilegiar o seu viés de produção/experiência para aquilo que desejem aproveitar para a sua
12
respectiva arte. A expressão “adaptação” ganha e soa como uma espécie de senha que

11
“No entanto, a narrativa literária está irremediavelmente presa à linearidade do discurso, ao caráter
consecutivo da linguagem verbal, e só pode representar a simultaneidade descoberta pelo novo conceito de
tempo de modo sucessivo. Assim, o que ela cria é uma série de artifícios e convenções (recursos de composição
e modos narrativos que a teoria da literatura procura mapear), destinada a criar a ilusão do simultâneo, buscando
fazer com palavras o que o cinema faz com as imagens.” (PELLEGRINI, 2003, p. 23)
12
Lógico que não podemos generalizar essa afirmação e essas assertivas. Apenas um juízo, a meu ver, e não
dogmático sobre a minha experiência de leitura a esse manancial teórico. Refiro-me aqui aos textos lidos e
6

informa sobre quem a usa: é um agente cultural que necessita da fonte verbal para compor a
sua cadeia de imagens. Na verdade, esse “agente” precisa de uma sensibilidade aguçada,
assim como uma vasta experiência, tanto na literatura como no cinema, para compreender e
diagnosticar as distintas ferramentas que remarão ao seu favor: tempo na narrativa, enredo,
personagens, cenário, acontecimentos e episódios, que lhe possam ser úteis para alcançar os
seus devidos moldes e encaixes. 13No entanto, isso ocorre tão despercebidamente que as duas
categorias de arte (Literatura e cinema), parecem ser meramente semelhantes e equivalentes
uma à outra: definir a sensibilidade para cada adaptação é colocar-se em oposição ao critério
de dizeres polêmicos e formulação de opiniões de juízo. Nesse embate, literatos e cineastas
ocupam a mesma berlinda: o sombrio universo da faculdade de escolha e opção.
É sabido que toda adaptação requer um condicionamento de leitura e intenção crítica
criativa para a seleção daquilo que interessa ao cineasta ou ao agente cultural. A dicotomia
estabelecida entre a faculdade de escolha e a opção mais direcionada nem sempre comportam
maneiras semelhantes de pensar e projetar, já que impõe aspectos de amplitude pessoal e da
formação intelectual desse próprio agente. Durante essa atitude de crivo ou jogo problemático
de ser resolvido cabe a esse mesmo agente agir conforme a sua experiência e a vontade ao
qual deseja atingir ou projetar. Funciona como uma espécie de transgressão ou violação para
com a fonte produzida na transformação do roteiro cinematográfico. Neste sentido, o roteiro
ganha o tônus necessário para a devida contemplação do tema proposto sem dilacerar o
conteúdo autônomo da própria obra literária, ou seja, o roteirista transpõe aquilo que seleciona
e refaz pela sua experiência e habilidade buscando recriar aquelas palavras para a
representação de imagens do próprio filme. Em suma, no interesse do roteirista as páginas do
livro em uma leitura cinematográfica precisam evocar cenas e episódios que deixariam muita
palavra à margem de sua real importância creditada à literatura.

trabalhados durante a disciplina da Professora Dra Rosana Kamita, no seu curso “Literatura e Cinema: o roteiro
cinematográfico”, ofertado no segundo semestre de 2010. Especificamente foram trabalhados os textos
HUTCHEON, Linda. A Theory of Adaptation. New York: Routledge, 2006; EISENSTEIN, Sergei. A forma do
filme. Trad. Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Zahar, 1990; PELLEGRINI, Tânia [et al]. Literatura, cinema e
televisão. São Paulo: Editora Senac São Paulo: Instituto Itaú Cultural, 2003; ---. “Teoria e prática da adaptação:
da fidelidade à intertextualidade”. In: Ilha do Desterro, Florianópolis, nº 51, jul/dez. de 2006, p. 19-53; WOLF,
Sérgio. Cine-literatura: ritos de pasaje. Buenos Aires: Paidós, 2004; XAVIER, Ismail (org.). A experiência do
cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilmes, 1983. ---. O cinema no século (org.). Rio de Janeiro:
Imago, 1996.
13
“O termo para adaptação enquanto „leitura‟ da fonte do romance, sugere que assim como qualquer texto pode
gerar uma infinidade de leituras, qualquer romance pode gerar um número infinito de leituras para adaptação,
que serão inevitavelmente parciais, pessoais, conjunturais, com interesses específicos. A metáfora da tradução,
similarmente, sugere um esforço integro de transposição intersemiótica, com as inevitáveis perdas e ganhos
típicos de qualquer tradução.” (STAM, 2008, p. 27)
7

Curioso e instigante notar que seleção, criatividade, apreciação, gosto pelo objeto
literário e cinematográfico são os termos que definem um bom roteirista. A questão surge
naturalmente: Como funciona essa conjuntura um tanto complexa? Seleção por escolher os
episódios narrativos literários mais essenciais ao imagético do filme. Criatividade por saber
criar e inventariar novos lances que nem sempre aparecem no texto literário. Apreciação
corresponde à sensibilidade e ao jogo emotivo que envolve aquele roteirista mais solto as
amarras das tradições já pregadas. Por último, o interesse em colocar na berlinda literatura e
cinema como duas artes que se relacionam amplamente, ou seja, uma depende da outra de
forma harmônica. Elementos que de todo modo exponencia a empreitada cinematográfica e
artística. De maneira geral, essa seria uma síntese, grosso modo, das categorias indispensáveis
a todo roteirista interessado em penetrar no universo arriscado mais ousado da dicotomia:
literatura e cinema.
Não é descabido pensar-se que na história do cinema brasileiro um rol de obras
literárias se encaixa nesse perfil da adaptação e do leque variado entre a forte presença da
palavra e da imagem – desde a o chamado Cinema Novo até a nossa contemporaneidade –
representando filmes reelaborados pela mente do roteirista e do cineasta – mantendo certo
grau de parentesco no entrelace Literatura e cinema - exemplifico algumas aqui14: Memórias
Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis e adaptado por André Klotzel, O Coração das
Trevas, de Joseph Conrad e adaptado por Francis Ford Coppola, Brasil, um país do futuro, de
Stefan Zweig e adaptado por Gustavo Nieto Roa, entre outros que se dispuseram a resgatar o
valor da palavra através das imagens. Tais adaptações fortaleceram o eixo cultural entre
literatura e cinema, reatualizando novas maneiras de pensar sobre essa dicotomia tão
problemática. Alertamos que não pretendemos explorar/aprofundar tais obras.
Por coincidência ou ironia do destino do objeto que estamos buscando dialogar e
arquitetar novas postulações, o protagonista e autor da obra Primeiras Viagens, Ernesto Che
Guevara, era fanático por literatura desde criança15, e preferia sempre as palavras do que as

14
A importância de arrolar estes nomes (literatura e cinema), a meu ver, está relacionada com a possibilidade de
enxergarmos outros horizontes comparativos, com menor e maior grau, ao que aqui estamos exercendo nesse
breve artigo.
15
No mesmo espírito de balanço sobre algumas remisciências de leitura de Guevaro são passadas em revista
movimentos implícitos algumas colocações importantes na respectiva obra: “Era óbvio que ele [Guevara]
recorria a todas as fontes à sua disposição. Suas citações sobre o marxismo foram extraídas do Mein Kampf e
continham passagens que revelaram a obsessão por Hitler com uma conspiração judeu-marxista. Pra seus
esboços de Buda e Aristóteles, utilizou Uma Breve História do Mundo, de H.G. Wells, enquanto A Antiga e a
Nova Moralidade Sexual, de Bertrand Russel, foi sua fonte sobre amor, patriotismo e moralidade sexual. Mas as
teorias de Sigmund Freud obviamente o fascinaram, e Ernesto citou A Teoria Geral da Memória a respeito de
tudo, desde sonhos e libido até narcisismo e complexo de Édipo. Outras citações vieram de Jack London, sobre
sociedade, e de Nietzche, sobre a morte. [...] Sua escolha de obras de ficção começou então a se deslocar para
8

imagens. Guevara devorou vários romances durante a sua longa trajetória de viagem dos
8.000 quilômetros na América Latina. Uma explicação cabal para essa paixão pela literatura
seria sua densa crise de asma em sua juventude a qual fez que Guevara ficasse muito mais
redimido em casa e buscasse o auxílio da leitura como fator de entretenimento. Fato curioso
foi ter tirado uma fotografia em plena guerra boliviana, onde o escritor medita seu cansaço
físico através de uma leitura em cima de uma árvore. Em contrapartida, o cineasta e diretor
do filme Diários de Motocicleta, Walter Salles, era fanático por cinema, desde os tempos em
que residia na capital francesa. Salles era freqüentador assíduo das salas de cinema em Paris.
16
Ora, se juntássemos a paixão do protagonista argentino com a do cineasta brasileiro
teríamos um grande fortalecimento e fator da produção de um excelente meio cultural: uma
majestosa fonte e uma grandiosa adaptação, e podemos postular, sem grandes pretensões, que
de fato isso ocorreu.
Outros exemplos que tornam mais saliente o valor da palavra e da imagem
cinematográfica se espraiam de diferentes modos, tanto na obra literária como no filme, um
deles é evocado quando Guevara resolve visitar o grandioso escritor Dr Hugo Pesce na cidade
de Lima no dia 12 de maio de 1952. Algumas indicações de leitura são extremamente válidas
durante essa visita: “Este é de Mariategui ... também tem de ler César Vallejo.” Um outro
notório exemplo seria o próprio diário que a todo o momento é esboçado por Gael García
Bernal no papel de Guevara em atitudes meditativas no decorrer de alguns episódios. A “voz
off” constituída durante o desenrolar dos episódios também reforça a idéia da leitura dos
diários escritos por Guevara. Em contrapartida, na obra literária Primeiras Viagens é possível
notarmos que muitas frases e diálogos se constroem em forma de narrativas fílmicas e
imagéticas. Exemplo nítido dessas passagens ocorre no episódio que Guevara descreve a
geografia da cidade de Bariloche, nos Andes da Argentina, utilizando palavras e expressões

livros com um maior conteúdo social. Na verdade, na opinião de seu amigo Osvaldo Bidinosd Payer, para
Ernesto Guevara “tudo começava com a literatura”. Por volta dessa época [1945-1946], ele e Ernesto estavam
lendo as mesmas obras de autores como Faulkner, Kafka, Camus e Sartre. Em poesia, Ernesto lia os poetas
republicanos espanhóis Gárcia Lorca, Machado e Alberti, e as traduções para o espanhol de Walt Whiltman e
Robert Frost, embora seu favorito absoluto continuasse sendo Pablo Neruda.” (ANDERSON, 1997, p. 57) Ao
leitor/pesquisador mais interessado no respectivo assunto (Leituras realizadas por Ernesto Guevara) aconselho a
leitura do capítulo “Ernesto Guevara, rastros de leitura”, In: O último leitor, de Ricardo Piglia. São Paulo: Cia
das Letras. 2006.
16
“Os primeiros filmes que vi, e dos quais me recordo, passavam todos no mesmo cinema. Eu tinha 6 ou 7 anos
de idade e fui morar por um período de sete anos na França. Embaixo do apartamento, onde morava, havia uma
sala de cinema que passava programas duplos. Os primeiros filmes que vi foram westerns, não somente de Ford,
Hawks, Anthony Mann, mas também os primeiros filmes de Sergio Leone, por exemplo.” (NAGIB, 2002, p.
416) “Se me apaixonei por cinema, foi pelo que senti a over certos filmes na tela grande, mas também pelo fato
de que não senti aquela emoção sozinho. Ou seja, também me encantei pelo aspecto coletivo do cinema. Poder
dividir toda uma gama de sensações suscitadas por um bom filme com outros espectadores é um privilégio que
só o cinema pode oferecer.” (SALLES, s.p.)
9

poéticas, reforçando a tese da contemplação e da sublimidade da literatura nos seus escritos.


Em suma, obra literária e filme convergem em redes mútuas onde palavra e imagens ganham
e perdem espaço nos seus respectivos meios.
Não estando impregnado à palavra, como o livro, o filme Diários de Motocicleta
precisa e assume, numa adaptação, selecionar e disseminar os recursos linguísticos pelos
variados componentes da enunciação cinematográfica: diálogos dos atores, fotografia,
cenário, figurino, etc. Toda essa conjuntura necessita adquirir autonomia e projeção frente aos
desafios impostos pelo roteirista e a direção. Se fôssemos aqui mencionar o oficio do
roteirista, de autoria de José Rivera, que acabou realizando com satisfação e impacto o
trabalho difícil de atirar no lixo alguns episódios e casos, além de mesclar e fundir tantos
outros. Crivo indispensável para garantir um bom desencadear das ações e dos
acontecimentos que acontecem na obra literária, mas não necessariamente ocorrendo no
próprio filme. No que toca especificamente à formação do caráter político e social, o filme se
distingue por esta que talvez seja seu atributo mais notável: ofertado ao elenco.
No artigo “Narrativa verbal e narrativa visual: possíveis aproximações”, a estudiosa
Tânia Pellegrini realiza algumas considerações sobre a simultaneidade das imagens de um
filme em comparação à tentativa da tessitura literária executar o mesmo. Fazer com que essa
literatura realize a tentativa de alcançar a pertinência de um filme. De linguagem verbal para
visual. Ou seja, a autora tenta explicar que a literatura precisa confeccionar recursos para que
possa provocar esse efeito simultâneo de imagens ao qual somente o cinema possuía a
facilidade e a habilidade. Para isso, Tânia discorre: “[...] ela cria uma série de artifícios e
convenções (recursos de composição e modos narrativos que a teoria da literatura procura
mapear), destinada a criar ilusão do simultâneo, buscando fazer com palavras o que o cinema
faz com as imagens.” (PELLEGRINI, 2003, p. 23) Ora, fica nítido que a linguagem verbal
utiliza de variados artifícios para compor aquilo que o cinema consegue atingir através das
imagens.
Experiência subjetiva e interpretação personalizada correspondem a um nível de
consciência por parte da técnica de adaptação. Entretanto, a distância da narrativa literária e
da narrativa cinematográfica alimenta matizes de diferentes categorias que supostamente
parecem ser facilmente entendida, no entanto, a problemática maior desse assunto ainda
reside na tentativa de compreensão do sujeito que está adaptando a obra, assim como parte do
público que verá a versão final e responderá pelo seu próprio critério. Ou seja, não adianta o
agente cultural (cineasta ou literato) ter a vontade de realizar alguma adaptação, sem antes ao
menos premeditar a recepção dessa obra por parte do público leitor ou espectador. Em suma, a
10

relação de interdependência tanto do produto como do público receptor deverá sempre ser
tratada com um olhar sensível e atento para o jogo de expectativas que virá adiante quando for
lançada a adaptação.
Por outro lado, no artigo “Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar
do cinema”, o crítico Ismael Xavier aborda a mesma questão de forma análoga e dissertativa
no sentido de compreender que uma adaptação tende a inclinar pela livre interpretação da
obra literária para o roteiro ou o próprio filme. Com efeito, cada cineasta terá a sua peculiar
maneira de refletir sobre a obra literária diferentemente para com outros que estão ao seu
redor, provocando assim novas formas de aceitação ou não daquilo que precisa transpor de
palavras para imagens. Xavier comenta que: “A fidelidade ao original deixa de ser o critério
maior de juízo crítico, valendo mais a apreciação do filme como nova experiência que deve
ter sua forma, e os sentidos nela implicados, julgados em seu próprio direito”. (XAVIER,
1983, p. 50) Ou seja, para o crítico literário ou do cinema não será mais papel preponderante o
impulso de verificar a lealdade em contraposição a outros e demais fatores.
Seguindo a mesma linha e viés, teremos a obra A literatura através do cinema, do
teórico Robert Stam, que dialoga em demasia com a temática da adaptação da obra literária
para o filme. Após recuperar alguns dizeres reflexivos de Truffaut e André Bazin, sobre os
efeitos da adaptação em vários níveis, o crítico Stam conclui e coloca o seguinte diagnóstico
que ajuda a balizar as possíveis etapas que deverão ser observadas por aquele empreendedor
roteirista ou cineasta mais atento. “A questão da adaptação está situada no ponto de
convergência de uma série de fatores cruciais: a especificidade cinematográfica, a
reflexividade modernista e as relações interartes e intersemióticas.” (STAM, 2008, p. 334) A
enumeração refletida pelo teórico é pautada em técnicas seletivas que empregam de forma
desencadeada os principais elementos balizadores ao qual irão projetar o raciocínio fílmico e
abarcar novos entendimentos para a formulação de novas adaptações. Para complementar
todo esse rol de fatores, podemos verificar a reflexão mais detalhada da terminologia
“adaptação” realizada pelo roteirista Marcos Rey que ao longo de variadas experiências,
enquanto escritor de roteiros acumulou novas maneiras e olhares para saber trabalhar com
diversas mídias e meios de arte como fator integrante e muitas vezes indissociável para
alcançar o objetivo pretendido. Vejamos alguns detalhes, quase em forma de depoimento da
citação:

A adaptação não precisa necessariamente conter tudo que está no livro. Mesmo
livros com muita ação têm capítulos monótonos ou vazios. O que importa é que ela
seja uma inteiriça, redonda, completa, sem evidenciar amputações, cortes por falta
de tempo, saltos desconcertantes e buracos entre as seqüências. A adaptação requer
11

uma planificação mais exigente do que a criação porque implica numa


responsabilidade maior, principalmente quando se trata duma obra conhecida,
passível de confrontos (REY, 1989, p. 59).

A longa citação justifica-se porque através dela tem-se uma síntese precisa e
reflexiva daquilo que aqui estamos discutindo. Os vocábulos “inteiriça” e “redonda”
utilizados por Marcos Rey resgatam a problemática da complexidade que o sujeito que está
adaptando algo deve conduzir para tal perspectiva, e certamente isso se tornará um fator
indispensável para sua total articulação e sucesso. Outrossim, sugere que a conjuntura dessa
adaptação deverá evidenciar algo integro e completo. Ao mesmo tempo que resgata a
dimensão da sua complexidade, pois trata de um problema para o qual não teríamos uma
solução definitiva. Sob esse prisma, a adaptação, de uma maneira geral concerne que sua
potencialidade recupera todo um acervo circunstancial de componentes artísticos que ajudam
e auxiliam a complementar o aparato como um todo. Passamos a investigar algumas dessas
características através da análise da própria obra literária Primeiras Viagens ao filme Diários
de Motocicleta. Movimento que tentaremos rastrear sobre o nosso objeto a seguir.

3 ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE AS CARACTERÍSTICAS DO FILME DIÁRIOS


DE MOTOCICLETA
Feito o esclarecimento de alguns conceitos que consideramos importantes para a
compreensão do assunto proposto, retornamos o nosso olhar para algumas características do
filme. O filme Diários de Motocicleta tematiza a vida de dois jovens aventureiros argentinos
(Che Guevara - Gael García Bernal - Alberto Granado - Rodrigo de La Serna17) em busca do
descobrimento de suas personalidades e da própria vida. A duração do filme é de 130
minutos, apresentando mais do que um relato original de uma jornada, mais a descoberta de
uma pessoa e sua real função na sociedade latino-americana dos anos 50. Podemos postular
que sobre as possíveis influências e ressonâncias da obra Primeiras Viagens para o plano da
adaptação, poderíamos sugerir que se encontra no filme Easy Rider (Dennis Hopper) e O
Capital (Karl Marx), ou seja, prosa de viagens revolucionárias com uma boa pitada de
aventura libertária frente aos obstáculos da vida resumiriam. Talvez, seja por esse motivo,
tem-se dito e escrito, em mais de uma ocasião, que a coluna que sustenta a vértebra da
filmografia de Walter Salles é o espírito de liberdade e aventura, a importância disso tudo na
representação imagética e de sua fixação cinematográfica.

17
Segundo o diretor Walter Salles: “Rodrigo está sempre pronto para nos surpreender, mesclando humor e
drama de um modo único. Havia também uma incrível coincidência, que eu percebi somente após tê-lo escalado:
ele é primo de segunda grau de Ernesto Guevara de la Serna.” (SALLES, p. 46)
12

Na verdade, Diários de Motocicleta não é uma simples adaptação, mas sim um


empreendimento cinematográfico grandioso e pesado em busca de resgatar os aspectos
geográficos percorridos por Guevara e Granado, diante da tamanha exuberância de cenários
escolhidos por eles e recuperados pela magia e destreza do cineasta Walter Salles. 18 Ora, não
devemos nos furtar que o filme resgata uma investigação geográfica e histórica muito
importante para a compreensão do cenário de época. Todo esse amalgama paisagístico é
enriquecido de cores locais, intempéries exóticas, enfim apresentando com bastante
19
originalidade e ousadia uma fotografia notória. O filme ainda visa recuperar,
primordialmente, o lado humano, fraterno e sentimental do protagonista Ernesto Che Guerava
e suas virtudes enquanto jovem em busca do seu auto-descobrimento. Não foi à toa que o
filme resgatou a ênfase em cenas mais íntimas de Guevara, mostrando o seu lado mais
vocacionado aos sentimentos sociais e humanos. No filme Guevara se apaixona, chora, sorri
em demasia, especula conhecimentos eruditos de suas fiéis leituras, faz vários amigos, enfim
evoca toda a sua solidariedade para com aqueles ainda menos privilegiados. Em suma, se
defrontam com pensadores latino-americanos como Mariategui e conjugam resquícios da
cultura inca norte-chilena e peruana.
A adaptação de Walter Salles entremeia os intertextos do romance de viagens com
experiências e práticas vividas extraídas do próprio cotidiano observado das distintas cidades
visitadas por Guevara e Granado. Variadas vezes o cotidiano das personagens frente aos
desafios são transcorridos entre o vai-vem necessários de uma viagem em cima da outra. Não
foi por acaso que Salles precisou refazer toda a trajetória já traçada pelos protagonistas de
Primeiras Viagens, reforçando ainda mais a tese de época e período histórico já estabelecido
nos anos de suas viagens pelo continente latino-americano.20 Dessa forma, Salles reencontrou

18
Em entrevista sobre as principais locações empreendidas pelo cineasta Walter Salles, ele responde: “Nós
filmamos em mais de 30 locações na Argentina, no Chile e no Peru. Suportamos temperaturas que variavam de
bem abaixo de zero nos Andes a mais de 45 C na Amazônia. Nós usamos as locações originais pelas quais
Ernesto e Alberto viajaram o máximo possível. A maioria das locações mais remotas, na realidade, não dói
drasticamente modificada pelo que chamamos de “progresso”. E quando não podemos usar uma, tentamos
encontrar alternativas que fossem bem semelhantes aos locais pelos quais nossos amigos rodaram com La
Poderosa. A extensa pesquisa foi conduzida por Carlos Conti, nosso diretor de arte, foi muito importante nesse
sentido.” (SALLES, 2007, p. 48)
19
Sobre o conteúdo da fotografia e o efeito daquilo que aqui estamos discutindo vale aqui citarmos as notórias
contribuições de Walter Benjamin: “A fotografia nos mostra essa atitude, através dos seus recursos auxiliares:
câmara lenta, ampliação. Só a fotografia revela esse inconsciente ótico, como só a psicanálise revela o
inconsciente pulsional. Características estruturais, tecidos celulares [...] Mas ao mesmo tempo a fotografia revela
nesse material os aspectos fisionômicos, mundos de imagens habitando coisas mais minúsculas, suficientemente
ocultas e significativas para encontrarem um refúgio nos sonhos [...]” (BENJAMIN, 2010, p. 94).
20
Para adaptar a obra literária Primeiras Viagens de Che Guevara, Salles desloca a história no tempo e no
espaço, situando-a no presente e permutando o cenário de quase todas as cidades visitadas nas viagens do ano de
1951. As locações utilizadas durante o contexto das filmagens são escolhidas com exatidão e fidelidade ao
itinerário do próprio livro. Neste cenário já alterado para simular o contexto de época, é possível notarmos
13

a possível montagem do cenário que estava visando representar e, sem dúvida, precisou
reelaborar aquilo que foi dito nos diários sobre as respectivas cidades com os locais atuais.
Se resolvêssemos brevemente explorarmos o título do filme poderíamos dizer que
Diários e Motocicleta impõe uma espécie de alegoria que anuncia tanto a busca de uma
liberdade frente ao vocábulo motocicleta já imortalizado por outros aventureiros e cineastas,
assim como uma autonomia que é evidenciada pela sede de radiografar o continente latino-
americano. A existência de dois sentidos, um literal e outro figurado, é indispensável para
provar que Diários de Motocicleta implica em liberdade e conjuga ares de rebeldia e
revolução. Ou seja, aspectos simbólicos que remetem imaginarmos uma liberdade longe do
capitalismo. Além disso, o título faz eco para aquelas anotações (Diários) de natureza não
obrigatória, mas espontânea e sem compromisso para as circunstâncias ao redor. Anotações
vivenciadas e tidas ao frescor daquilo que ocorre quase que instantâneo com os protagonistas
Guevara e Granado. Em contrapartida, o título da fonte literária Primeiras Viagens remete a
pensarmos em categorias de algo principiante ou algo ainda imaturo, tomamos como exemplo
bastante similar o título da obra de literatura de viagens, O turista aprendiz, do escritor
modernista Mário de Andrade.
Superada a dicotomia estabelecida pelo jogo dos significados e conotações, podemos
postular que o filme é recheado de imagens paradisíacas e exóticas, lugares inóspitos, onde a
natureza humana tampouco conhece ou pisou, que juntando tudo isso acabam se contrapondo
a um olhar mais nostálgico de impressões que certamente marcaram a memória desses
protagonistas. A fotografia21 poética contempla lugares nos distintos países visitados:
Argentina, Chile, Peru, Bolívia e Venezuela, enobrecendo ainda mais o eixo cultural
geográfico. Por isso, o pano de fundo ou cenário recompõe a mesma paisagem de época. “No
cinema, existem recursos ilimitados que permitem utilizar esses meios com eficiência
redobrada, particularmente em se tratando do cenário ou fundo.” (MUNSTERBERG, 1989, p.
31) Pensados nesses termos, paisagem, exuberância nas imagens exóticas, intervenção social
e política compõe um mesmo modelo, que parece ter sido cuidadosamente imbricado e
relacionado por Walter Salles para quem filmar requer e significa representar politicamente a
relação das duas personagens com a sociedade da época. Não poucas vezes, Salles comparou
o seu cinema como uma necessidade das “[...] escolhas emocionais e políticas que temos que

algumas partes da cidade de Buenos Aires com plenas características de outrora, guardando os anseios do
passado e da nostalgia que remontava o período vivenciado por Guevara e Granado. O efeito desse deslocamento
é correspondido também pela série de figurinos tradicionais, carros de época, linguagem de época, utilidades do
cotidiano, enfim toda uma conjuntura que remonta o período correspondente.
21
A fotografia do filme ficou a cargo do fotógrafo Eric Gautier.
14

22
fazer na vida, sobre a margem do rio que elegemos e pela qual vale a pena lutar.”, que se
exibe ou se apropria das circunstâncias históricas e políticas da nação.
Na verdade, a produção cinematográfica de Walter Salles já possui um viés
direcionado a filmes que remontam à trajetória de viagens e aprofundam a temática
humanística social. Central do Brasil (1998), Abril Despedaçado (2000), Terra Estrangeira
(1996), abordam a movimentação das pessoas por terras um tanto desconhecidas e pouco
exploradas, assim como evocam novas maneiras de explorar o lado humano das personagens
e seus coadjuvantes. Outro fator importante é que a maioria dos filmes de Salles possui uma
função presente com o gênero documentário. Vistos em conjunto, esses filmes parecem
descrever uma trajetória semelhante ao que ocorre em Diários de Motocicleta, personagens
em busca de uma identidade e a auto-descoberta. Por exemplo, ao tomarmos a produção de
Central do Brasil, podemos verificar que a quantidade de semelhanças e alusões encontradas
corresponde ao eixo das aproximações solidárias sociais e das viagens. A protagonista Dora,
escrituraria de cartas na Central do Brasil, resolve empreitar e levar o menino Josué a
conhecer seus familiares através de uma longa viagem inusitada rumo ao Nordeste do Brasil.
23

Uma breve digressão se faz necessária: ao tomar o relato de Ernesto Che Guevara ao
pé da letra, em lugar de aproximar-se do documento, Diários de Motocicleta se entrega
decididamente à imaginação e a ficção, no caso a narrativa de viagens e de aventuras ao redor
da América Latina. A lista de escritores de literatura de viagens que utilizam a palavra de
forma imagética é grandiosa e insistem na subsequente descoberta das terras ainda
desconhecidas e guarnecidas de mistérios e segredos. Poderíamos até postular em dizer que
tanto a obra como o filme já parodiam uma série de registros desses famosos escritores de
literatura de viagens. Como se sabe, era grandioso e denso o grau de inventividade que
impregnava as estórias e narrativas dos principais viajantes à moda Hans Staden, Humbold,
Charles Darwin, e o ficcionista Júlio Verne em torno dos relatos impressionados sobre a fauna
e flora exótica do continente latino-americano.

22
SALLES, Walter. Grandes líderes da história. Che Guevara. Saiba porque o mito continua vivo. São Paulo:
Arte Antiga Editora. 2007, p. 47,
23
“O humanismo de Walter Salles não é um humanismo escolástico. Ele não transforma em metáforas seus dois
personagens – uma mulher que escreve cartas para analfabetos na Central do Brasil e um garoto sem pai. São
pessoas de carne e osso, dois zumbis sociais que encontram vida juntos e forjam uma ética após vagar pelo
deserto, o sertão periférico. Fora do centro, portanto, onde a ética já morreu. Reside ai uma imprecisão
terminológica. Não morreu foi assassinada a porretadas por poderosos que desprezaram tudo aquilo que não é
espelho.” (FILHO, 2003, p. 284)
15

4 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE AS CARACTERÍSTICAS DA OBRA


PRIMEIRAS VIAGENS
De modo geral, Primeiras Viagens é afiliada ao gênero da “Literatura de viagens” –
24
na verdade, o título original de Ernesto Che Guevara era “Mi Primer Gran Viaje” – cujos,
representantes mais distintos são Marco Pólo e Júlio Verne. A literatura de viagens está, pois,
em jogo nesses limites que articulam uma sociedade com o seu respectivo passado e o ato de
diferenciar-se dele; nessas linhas que riscam a imagem de uma atualidade, interagindo com
seu outro, modificando ou atenuando, paralelamente, a volta de momentos no passado. O
narrar do viajante nem sempre é imaginar radicalmente comunidades e sociedades, mas
compreendê-las e questiona-las ao longo da sua trajetória. Utilizar essas características para
substanciar o estilo de uma prosa de viagens não foi característica exclusiva de Guevara.
Júlio Verne atuou com bastante perspicácia quando escreveu as suas primeiras epopéias em
terras exóticas e situadas em extremos distantes, basta verificarmos na sua obra Os
conquistadores.
Exatamente por esse estilo altamente confessional e híbrido que a obra Primeiras
Viagens pode ter sido um tanto complexa para ser adaptada por parte do cineasta Walter
Salles, já que se depara com uma série de ousadias e desafios estilísticos e retóricos. Podemos
postular que uma dessas ousadias tem a ver com o uso que Guevara faz da linguagem
guarnecida por situações arcaicas de época, ou das gírias e dos regionalismos praticados pelas
observações nas distintas cidades que visitou na Argentina e na complexidade da América
Latina como um todo, para expressar os modos de vida provinciana ou até mesmo para se
referir a algo que hoje não existe ou caiu em desuso. Exemplos? Numa das cenas, Walter
Salles lida com o desafio da linguagem regionalista ao representar o protagonista Guevara
quando resolve solicitar alojamento na casa de um morador nas proximidades da cidade de
Bariloche: ele faz com que Guevara fale utilizando as características de época: “Estamos
viajando pelo país para pesquisar com a esperança de curar algumas das mais terríveis
doenças do século 20 [...]” 25A técnica utilizada por Salles permite uma espécie de prática de
verossimilhança ao contexto de época e ainda por cima constrói o personagem à maneira
simulando novas formas autênticas de encarar a linguagem como algo de extrema importância
para o devido sucesso da cena rodada.

24
Os manuscritos dos diários de viagem de Ernesto Che Guevara e Alberto Granado foram originalmente publi-
cados pelo jornalista e documentarista italiano Gianni Mina com o título de “Mi Primer Gran Viaje”.
25
Trecho tirado do filme no momento em que os protagonistas Guevara e Granado estão buscando um
alojamento provisório na casa de um morador da cidade de Bariloche.
16

Tanto a obra literária quanto a adaptação de Primeiras Viagens fornecem instigantes


exemplos de alguns dos imprevisíveis circuitos da mescla de textos ou intertextualidade
fílmico-literárias. É notório encontramos trechos narrativos na obra que criem flashes ao
espectador do filme sobre outros enlaces de produção cultural paralela realizada em harmonia
na mesma década ou anos anteriores. Neste caso, temos a seguinte cronologia de textos em
distintas línguas e mídias que reforçam a tese da fusão das fontes: a obra literária foi
publicada a primeira vez por um jornalista e documentarista italiano, Gianni Mina, com o
título de “Mi Primer Gran Viaje”, seguido pelo roteiro em espanhol para o filme elaborado
por José Rivera em 2003, seguida do próprio filme em 2004. O título original The Motorcicle
Diaries provavelmente fazendo alusão a liberdade e a consagração dos filmes anteriores que
remetem a essa temática de aventuras: Easy Rider, etc.
Por outro lado, os títulos dos filmes sugerem e ressoam a outras características de
liberdade que os cidadãos norte-americanos já pregavam neste mesmo período época, ou
ainda aos temas de aventura e busca da descoberta humana tão enfatizada na mesma época
que permeiam a obra Primeiras Viagens e o filme Diários de Motocicleta. Descoberta que
será um dos motes principais para a progressão dos episódios e dos acontecimentos. Tanto a
obra literária, quanto ao filme, nascem na natureza desses eventos, corroborados pelo fato de
ambos: escritor e cineasta, serem originários de aventuras e viagens, tendo assim intimidade
maior para escreverem e dirigirem o livro e o filme. Em suma, podemos postular que
Diários de Motocicleta cumpre um daqueles casos relativamente preciosos em que uma
adaptação sem dúvida acaba aprimorando o título-fonte.
Embora Ernesto Che Guevara tenha escrito os diários ou prosa de viagens em vários
meses de improvisação e ao mesmo tempo argúcia para o registro dos episódios que
vivenciavam, a obra Primeiras Viagens foi o produto de uma preparação longa e
aperfeiçoada. O próprio Guevara defendia as diversas e contundentes influências que alegou
ao longo da escrita e que ele simplesmente escrevia segundo o ritmo das tradições de Horácio
Quiroga, Jack London, Júlio Verne e outros escritores que remontavam os registros de
viagens e prática social do humanismo, ou seja, a tradição da “literatura sociológica e das
viagens”. Provavelmente, tais autores complementavam a lacuna estilística que Guevara
desejasse alcançar ou angariar, já que faziam parte do seu metier de bom escritor e autodidata
explorar essas técnicas narrativas para a composição dos seus registros de viajante.
Em última análise, Salles também capta a sensação passageira do diário de viagens e
multiperspectiva da obra Primeiras Viagens. A representação dos compromissos políticos
mesclada com a facilidade do uso da palavra, por exemplo, alterna entre a perspectiva de
17

Guevara, imaginando esses protocolos e encontros, e a do seu fiel amigo Alberto Granado,
que interage pela facilidade de comunicação e audácia para cativar as pessoas. Aliás, o
aspecto carismático de Granado é trabalhado com bastante perspicácia pelo ator Rodrigo de
La Serna buscando outorgar uma ousadia para com a aceitação e parceria dos pares e entes
políticos queridos. Em suma, a palavra é um elemento presente e participativo no filme
enquanto instrumento que permite articular e dar força a uma grandiosidade de
acontecimentos durante o desenvolvimento do enredo.
Na verdade, mais do que um caráter carismático e persuasivo, o certo é que tanto a
“palavra” e a “imagem” de Guevara como a de Granado ofertaram um arquétipo para os
outros continentes, a raiz e a essência de heróis revolucionários comparados a Hitler, Nelson
Mandellla, entre muitos outros ilustres. A este patamar da história, os personagens Guevara e
Granado ficaram a par de antecipar outras duplas de aventureiros que posteriormente fariam o
mesmo sucesso e relevância. Com efeito, Walter Salles utiliza um dispositivo intertextual
especificamente cinematográfico para ilustrar o lado social de Ernesto Che Guevara antes de
suas aproximações com seus pares e amigos. Na obra Primeiras Viagens, a vida de Guevara
passa diante dele numa série de episódios que são registrados pelo lado da necessidade de
proximidade com aqueles que iriam transformar a sua personalidade. Esses registros
contemplam aquele olhar sublime e cristalizado para com tudo que surgia de novo ao seu
redor. O filme, por sua vez, apresenta e evoca o que Guevara chama de uma “busca pela
geografia humana” através de um leque de cenas que justificam essa procura do conhecimento
e da sociabilidade das pessoas.
Por outro lado, o protagonista Guevara, por sua vez, é socialmente ambivalente. Por
um lado, apesar de seu status de homem de aventuras aparentemente descomprometidas, ele
confronta os homens de poder para tentar ao menos resgatar os oprimidos, embora nunca
deixando de flertar com aqueles mais burgueses. Ao que tudo indica, Guevara sofrera muitas
influências da leitura da obra O tacão de ferro, do escritor Jack London, onde por
coincidência o jovem personagem protagonista de nome Ernesto surpreende o leitor com seu
jogo ambivalente e audaz de lutar pela implantação do socialismo nos Estados Unidos da
América. No entanto, essa aproximação de Guevara nem sempre vinga créditos favoráveis ou
consegue lograr êxito durante o desenrolar da narrativa e do próprio filme, já que algumas
tentativas de sociabilidade tornam-se frustradas ao longo do percurso e de sua trajetória.
Exemplo notório é quando Guevara tenta angariar alojamento provisório por apenas uma
noite na casa de um cidadão local no Sul da Argentina. A tentativa acaba ficando na
18

frustração, já que o morador faz pouco caso e resolve ignorar o pedido dos protagonistas
forasteiros.
Diga-se de passagem, podemos postular que Walter Salles conseguiu transmitir a
capacidade de conduzir o filme através dos fenômenos políticos e sociais que evocam uma
nova maneira peculiar de conhecer a personalidade de Guevara. Ou seja, ampliou um pouco
mais o conteúdo apenas referencial e de registro da própria obra Primeiras Viagens. Tais
fenômenos são remontados através de episódios marcados de aventura e efeito de risco. A
representação político- social estabelecida por Salles através do roteiro de José Rivera é
desestabilizada não apenas em termos de meio imagético, mas também em termos da
aproximação de Guevara e Granado frente aos obstáculos e dificuldades que toda viagem
exige a um peregrino mais preparado ou menos. Talvez a obra literária tenha deixado passar
muito desses episódios em branco ou não houve necessidade de registrar todos esses detalhes.
Por alguns desses motivos é possível notarmos que o enredo é entrelaçado de acontecimentos
que remontam a tese de um filme que busque defender o ideal daqueles menos favorecidos e
esquecidos pela sociedade capitalista.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Recapitulando, observamos que Primeiras Viagens, de Ernesto Che Guevara, escrito
em 1951-52 e adaptado para o cinema somente cinco décadas mais tarde, representou a
audácia e a ousadia do movimento de registro das crônicas de viagens e foi um forte precursor
(nem sempre reconhecido como narrativa ou literatura) daquilo que seria o documento mais
testemunho, social e histórico da viagem de dois homens, tidos como revolucionários, que
fizeram parte da história da América do Sul. Por isso, podemos postular que, similarmente ao
contexto cronistico estabelecido pelos primeiros espanhóis que chegaram e conquistaram
territórios da Argentina, Peru e Chile, Guevara e Granado inspiraram-se, possivelmente,
através desses elementos chaves da cultura de viagens para compor os seus respectivos
diários.
Poucas vezes um filme como Diários de Motocicleta realizou com tanta sagacidade e
brilhantismo as expectativas políticas e sociais da adaptação quanto à versão de Primeiras
Viagens, de 1952. Como fez o romance em sua própria época, o filme também cristalizou uma
grande diversidade de energias culturais de maneira reatualizada para o seu momento
histórico. Como a prosa de viagens escrita por Guevara, que fez convergir as aproximações
sociais ao conteúdo das referências extraídas do contexto das localidades que visitavam ao
redor da América Latina, a adaptação acaba condensando o lado humanístico dos
19

protagonistas com o viés político e social das circunstâncias que os cercavam. Filmado
durante os anos de 2003 à 2004 que começou com a nova ascensão do cinema brasileiro
frente as políticas de incentivo a cultura, Diários de Motocicleta compõe um raro exemplo de
como a adaptação realiza um salto para a crítica social e política num contexto de extrema
relevância para a desmistificação que Che Guevara foi apenas um aventureiro ou um líder
revolucionário.
Restaria ainda assinalar que Diários de Motocicleta oferece assim uma versão
atualizada da identidade da América Latina, sintonizada antes com o espírito social e
aventureiro que com as propostas utópicas dos anos 50, embora centre o mesmo momento
fundador das nações latino-americanas. Pode-se dizer, no entanto, que, em vários sentidos, o
filme Diários de Motocicleta, dirigido por Salles com a colaboração preponderante do
roteirista José Rivera, conseguiu se equiparar à obra de origem, colocando o ensaísta ou o
crítico cultural diante da tarefa de encontrar, na adaptação literário-cinematográfica, as
técnicas correlatas e igualmente bem sucedidas em ambas as obras. Como sugestão,
poderíamos começar pelo aspecto mais autêntico do livro que é a forma de como esses
registros são realizados. Primeiras Viagens surpreende, antes de tudo, por apresentar que
grande parte da América Latina evidencia registros culturais distintos não apenas parecidos,
mas desconhecidos de boa parte da crítica cultural vigente.
No presente artigo, tentamos chamar atenção para a discussão problemática e
polêmica da relação entre a literatura e adaptação pelo viés político na obra Primeiras
Viagens e o singular filme Diários de Motocicleta: obras baseadas indiretamente no espírito
consagrado revolucionário dos protagonistas Ernesto Guevara e Alberto Granado; dupla que
acumulou experiência e ousadia para empreender conquistas sociais ao redor da geografia
latino-americana; escritos e registros que outorgaram pessoas a inventariar outros modos de
realização cultural em torno desse material; escritos que não sabiam sequer se tornariam
cinematográfico ou mesmo seriam transformados em adaptações que reproduziriam a
nostálgica viagem de 1951. Vimos também como se comporta a leitura da narrativa pelo olhar
social e político comparado com aquilo que foi transformado em filme pelo mesmo viés de
análise. Outrossim, vimos a dicotomia da Literatura e do cinema explorada em forma de
considerações reflexivas, buscando problematizar esse assunto ainda tão complexo e polêmico
que por excelência ainda não se confirmou nas suas múltiplas teorias conceituais.

6 REFERÊNCIAS

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20

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VERNE, Julio. Os conquistadores. São Paul: L&M Pocket, 1998.

WOLF, Sérgio. Cine-literatura: ritos de pasaje. Buenos Aires: Paidós, 2004.


SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo

DANTE, DURANTE, DEPOIS…

Gizelle Kaminski Corso1 (PPGL/UFSC)

RESUMO

As adaptações, segundo Linda Hutcheon (2011), são uma forma de homenagear as


obras/textos que as precederam. Seu crédito e reconhecimento às adaptações (sem restrições
de gênero) ocorre em virtude da compreensão de que as adaptações são centrais para a imagi-
nação humana em todas as culturas. De acordo com a autora, à medida que recontamos histó-
rias, adaptamos com o propósito de agradar a um novo público. Recontar, então, quase sem-
pre significa adaptar, ajustar. Nesse sentido, as adaptações colaboram para a “sobrevivência”
de textos clássicos (Calvino, 2001), e um exemplo é a animação Dante’s Inferno, desenvolvi-
da e lançada pelas empresas Visceral Games e Electronic Arts, em 2010, baseada na primeira
parte – Inferno – da Divina Commedia, de Dante Alighieri. Assim, nesta comunicação, apre-
sento uma análise dessa animação, recorrendo às concepções teóricas de Linda Hutcheon
(2011) a respeito da adaptação, apresentadas em Uma teoria da adaptação.

Palavras-chave:
Adaptação. Dante’s Inferno. Divina Commedia.

ABSTRACT

Adaptations, according to Linda Hutcheon (2011), are a way to honor texts/works that pre-
ceded them. Her credit and recognition to adaptations (no gender restrictions) is due to the
realization that adaptations are central to the human imagination in all cultures. According to
the author, as people retell histories, they adapt for the purpose of pleasing a new audience.
Retelling, thus, in most of the times means adapt, adjust. In this sense, adaptations collaborate
to the “survival” of classical texts (Calvino, 2001), and one example is the animation Dante’s
Inferno, developed and launched by the companies Visceral Games and Electronic Arts, in
2010, based on the first part – Inferno – Divine Comedy of Dante Alighieri. Thus, in this arti-
cle, I present an analysis of this animation using the theoretical concepts of Linda Hutcheon
about the adaptation, presented in A theory of adaptation.

Keywords:
Adaptation. Dante’s Inferno. Divine Comedy.

Repetir, repetir até ficar diferente


Repetir é um dom de estilo
Manoel de Barros. In: Uma didática da invenção

1 DANTE
Dante Alighieri, poeta florentino, é primordialmente conhecido como o espírito en-
genhoso que escreveu uma das obras máximas (cf. BLOOM, 2001) da literatura ocidental: a

1
Doutoranda em Literatura e professora substituta do Departamento de Metodologia de Ensino, na área de Lín-
gua Portuguesa, da Universidade Federal de Santa Catarina; e-mail: gikacorso@gmail.com.
2

Commedia, que, por conta de Boccaccio, em 1555, passou oficialmente a ser chamada pelo
título de Divina Comédia.
Sua obra foi escrita em versos, está estruturada em três partes: Inferno, Purgatório e
Paraíso; cada uma delas representa um reino além-tumba, e estão divididas em cem cantos,
que possuem número variável de versos decassílabos (10 sílabas métricas), e oscilam entre
115 versos, no mínimo, e 160, no máximo. O Inferno2 possui 34 cantos (o primeiro é introdu-
tório); o Purgatório e o Paraíso, 33 cantos cada. O impecável sistema da terza rima (ABA,
BCB, CDC, …) convém à fixação da fala, ao seu movimento. Desse sistema, vale dizer que
uma estrutura praticamente padrão rege a organização dos versos.
Na estrutura narrativa, culpa e pena possuem íntima relação e a gravidade delas au-
menta à medida que os peregrinos avançam para o centro da Terra. Dante se vale dos critérios
aristotélicos de juízo moral, classificando as almas de acordo com a forma e o modo pelos
quais, pecando, excederam ao seguir os instintos naturais ou ofenderam os outros. No Purga-
tório ordena progressão oposta a do Inferno: do mais grave para o menos grave; conforme a
lei moral, as almas espiam, uma a uma, os sete vícios capitais antes de ascender ao Céu. No
Paraíso, os beatos ficam mais ou menos próximos de Deus de acordo com o grau de sua feli-
cidade ou realização eterna.
Dante Alighieri, segundo Bloom (2001), é autor de leitura obrigatória e é o mais
agressivo e polêmico dos grandes escritores ocidentais, chegando a, inclusive, “apequenar”
Milton nesse sentido. Porque seu poema é uma profecia e se assume como uma espécie de
Terceiro Testamento, porém sem se servir ao Velho e ao Novo – e assim a Divina Commedia
assume o status de uma nova Escritura, na qual se encontra a mais espetacular invenção de
ousada exuberância de Dante – Beatriz –, condição angelical e projeção de sua assinatura,
originalidade e singularidade. Mesmo assim, Dante continua sendo poeta, não teólogo, inseri-
do na categoria de um “alegorista cristão”. Eis a razão de Bloom afirmar que “A teologia não
é sua regra, mas seu recurso, um entre muitos” (2001, p. 82). Porque, também, Dante é a mais
viva de todas as personalidades da página impressa, “Tomou para si a última palavra, e en-

2
Dante situa o Inferno embaixo de Jerusalém, em forma de cone, constituído por uma imensa cratera escavada
nas profundezas do globo terrestre – causada pela queda do céu do corpo de Lúcifer – o anjo rebelde. As almas
são distribuídas em nove círculos concêntricos ao castigo eterno, e suas penas, divididas em quatro grandes se-
ções, estão baseadas na relativa doutrina aristotélica: Incontinência (luxuriosos, gulosos, avaros e pródigos, Ira-
cundos e rancorosos e heréticos), Violência e bestialidade (contra o próximo, contra si próprio e contra Deus),
Fraude (sedutores-rufiões, aduladores-lisonjeadores, simoníacos, magos-adivinhos, traficantes, hipócritas, la-
drões, maus conselheiros, cismáticos-intrigantes, falsários), e Traição (contra parentes, contra pátria, contra hós-
pedes, contra benfeitores). Lúcifer (Dite) encontra-se no último círculo do Inferno, e o movimento de suas asas
mantém o centro do Inferno congelado. No Inferno, o poeta italiano encontra Homero, Ovídio, Paolo e Frances-
ca, Ulisses, Conde Ugolino, Brunetto Latini (seu mestre), entre inúmeros outros.
3

quanto o lemos, não queremos discutir com ele, sobretudo porque desejamos ouvir e visuali-
zar o que ele viu para nós” (BLOOM, 2001, p. 93).
Benedetto Croce, em texto escrito por volta da década de 20, intitulado La poesia di
Dante (1948), percebe em Dante a figura de um homem de ação, partícipe ao seu modo da
crise italiana e europeia entre o fim do século XIII e início do século XIV. Segundo este críti-
co italiano, “a poesia de Dante é principalmente, e se poderia dizer quase unicamente, a poe-
sia da Commedia, porque na Commedia ele une de uma só vez a plena originalidade e a exce-
lência artística”,3 e visualiza no poema um entrelaçamento entre o opus poëticum, o opus phi-
losophicum e o opus practicum, bem como entre sentimentos e fantasias, atos de fé e de reli-
giosidade, censuras da política florentina e da Igreja e do Império, dos princípios italianos e
estrangeiros, sentenças e vinganças, símbolos, alegorias.
O ensaísta contemporâneo Gianfranco Contini, em Un’idea di Dante (1999, p. 77),
compreende no poeta um homem da Idade Média que, em vez de se limitar a glossar os ditos
memoráveis, uso comum das escolas, produz e lapida seus próprios versos e rimas. O crítico
italiano acrescenta que “o ideal da Divina Comédia não está voltado para uma „vida melhor‟,
mas para um além-tumba melhor”4 e reconhece que é a única obra de arte da Idade Média
Europeia ainda linguisticamente viva. A experiência direta, o raciocínio e a argumentação, são
fonte de conhecimento tanto quanto a sabedoria humana. Além disso, o poeta medieval se
justifica sempre como sábio e como profeta, pois contribui para a fonte do saber e é um reve-
lador porque age como tal sobre os destinos da humanidade.
Dante continua a agir sobre os destinos da humanidade porque sobrevive, de uma for-
ma ou de outra, na contemporaneidade. E sobrevive por ser lido, relido, recontado, ressignifi-
cado, reformulado, reforçado, restaurado, refeito, remodelado, reescrito. Enfim, Dante é adap-
tado, é ajustado, é homenageado porque, segundo a pesquisadora Linda Hutcheon (2011) – de
quem tratarei no próximo tópico –, as adaptações são/podem ser, também, uma forma de se
prestar homenagem a autores e obras.

2 DURANTE
Em 2006, Linda Hutcheon publicou A theory of adaptation, livro traduzido recente-
mente para a língua portuguesa. A pesquisadora pauta sua proposta de uma teoria da adapta-

3
“la poesia di Dante è principalmente, e si potrebbe dire quasi unicamente, la poesia della Commedia, perché
nella Commedia egli giunse tutt’insieme alla piena originalità e all’eccellenza artística” (CROCE, 1948, p. 27).
4
“l’intenzione della Commedia non è volta ad “una vita migliore”, ma a un aldiquà migliore” (CONTINI, 1999,
p. 70).
4

ção prioritariamente nas adaptações efetuadas para o cinema,5 mas não perde de vista outros
“formatos” (adaptações literárias para jovens leitores, para o teatro, para a ópera, para o vide-
ogame, por exemplo). Seu crédito e reconhecimento às adaptações (sem restrições de gênero)
ocorre em virtude de sua confiança, no sentido de que a adaptação

é (e sempre foi) central para a imaginação humana em todas as culturas. Nós não
apenas contamos, como também recontamos nossas histórias. E recontar quase sem-
pre significa adaptar – “ajustar” as histórias para que agradem ao seu novo público
(HUTCHEON, 2011, p. 10).

Como até então não existia uma teoria da adaptação, Linda Hutcheon, sem imposi-
ções, aventura-se em “uma teoria”, como o próprio título do livro evidencia e, nas páginas
iniciais levanta uma problemática interessante: “as pessoas continuam cunhando novas pala-
vras para substituir a simplicidade confusa do termo “adaptação” (HUTCHEON, 2011, p. 39).
Seu livro é uma espécie de manifesto em prol das adaptações. Em seus exercícios de
definição, ao notar que o termo é tanto usado para o “produto” quanto para o “processo”, a
estudiosa canadense procura esboçar um paralelo entre adaptações e paródias,6 dizendo:

Tal como as paródias, as adaptações têm uma relação declarada e definitiva com tex-
tos anteriores, geralmente chamados de “fontes”; diferentemente das paródias, toda-
via, elas costumam anunciar abertamente tal relação. A valorização (pós-)romântica
da criação original e do gênio criativo é claramente uma das fontes da depreciação
de adaptadores e adaptações. No entanto, essa visão negativa é, na realidade, um
acréscimo tardio ao velho e jovial hábito da cultura ocidental de emprestar e roubar
– ou, mais precisamente, de partilhar – diversas histórias (HUTCHEON, 2011, p.
24).

Assim, no momento em que um trabalho é chamado “adaptação”, sua relação com o


original, ou mesmo com outros textos a que faz referência, já está patentemente anunciada.
No entanto, as adaptações custam a ser vistas com “autonomia”, e têm sido estudadas por
muito tempo pelo viés comparatista,7 permeado principalmente pelo critério da “fidelidade”
ao texto fonte.

5
Das diversas categorias de Premiação do Oscar, existe a de “Melhor roteiro adaptado”, por meio da qual são
premiados os melhores roteiros de adaptações cinematográficas, baseados geralmente em romance, peça de tea-
tro ou conto. A essas reflexões, vale acrescentar a pergunta de Linda Hutcheon, por ela respondida em seguida:
“Por que, de acordo com as estatísticas de 1992, 85% de todos os vencedores da categoria de melhor filme no
Oscar são adaptações? Por que as adaptações totalizam 95% de todas as minisséries de 70% dos filmes feitos
para a TV que ganham Emmy Awards? (2011, p. 24).
6
A respeito da “paródia” vide: HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia. Tradução de Teresa Louro Pérez.
Lisboa: Ed. 70, 1989.
7
A esse respeito, Linda Hutcheon faz uma ressalva interessante: “parece que adaptar Romeu e Julieta para uma
forma de arte elevada, como a ópera ou o balé, é algo mais ou menos aceitável, ao passo que adaptar a peça para
5

E o que viria a ser o caráter de fidelidade que permeou/sustentou o trabalho de mui-


tos comparatistas? Preservar as características originais, ser fiel à essência do texto, poderiam
responder alguns. E novas perguntas possivelmente instalar-se-iam no sentido de o que vem a
ser a essência e de como reconhecê-la em uma adaptação. “Fidelidade”8 e “essência”, em mi-
nha opinião, não são elementos indicativos, critérios de análise, para nortear as adaptações E
se as adaptações são frequentemente comparadas a traduções, Linda Hutcheon procura escla-
recer uma diferença: “Assim como não há tradução literal, não pode haver uma adaptação
literal” (2011, p. 39).

3 DEPOIS
Tendo por base reflexões de Linda Hutcheon a respeito da adaptação, apresento uma
análise da animação cinematográfica Dante’s Inferno (Visceral Games e Electronic Arts,
2010),9 baseada em jogo homônimo para videogame, inspirado na primeira parte do poema, o
Inferno.
Segundo Linda Hutcheon, o fenômeno da adaptação poderia ser norteado por três as-
pectos: a formal entity or product (uma entidade formal ou produto, transposição anunciada e
extensiva de uma ou mais obras em particular; transcodificação), a process of creation (um
processo de criação, que envolve tanto uma (re)interpretação quanto uma (re-)criação, e pode
ser chamado de apropriação ou recuperação) e a process of reception (um processo de recep-
ção, forma de intertextualidade). Ao considerar o fenômeno da adaptação [também] como um
processo de criação, Hutcheon atribui-lhe autonomia própria; não possui débito para com o
original, supera-o no sentido de ser uma “obra nova” que repete, porém, com variação. E se,
segundo Hutcheon, “proximidade” e “fidelidade” não precisam ser, necessariamente, o foco
de análise, meu foco de análise, é justamente perceber como o Inferno da Divina Commedia é
reapresentado pela perspectiva da criação, o qual envolve um processo de reinterpretação,
recriação, recuperação, tendo em vista que adaptadores são, primeiramente, leitores, depois
intérpretes e, por último, criadores, inclusive por usarem material diverso ao de Dante.
O Dante deste século, o desta adaptação, é um cavaleiro templário das Cruzadas que
pratica inúmeras atrocidades em sua vida, dentre elas a de trair Beatriz, cometendo o pecado

um filme – especialmente no caso de uma versão modernizada como Romeu + Julieta (1996), de Baz Luhrmann
–, não o é” (2011, p. 23).
8
Certa fidelidade é aceitável para que haja o reconhecimento da história e, consequentemente, o reconhecimento
do texto em questão como adaptação.
9
Sob a direção de Victor Cook, Mike Disa, Sang-Jin Kim, Shuko Murase, Jong-Sik Nam, Lee Seung-Gyu.
6

da tentação, acreditando que suas falhas seriam absolvidas por terem sido empreendidas em
nome da Igreja. Além disso, é um Dante que fala inglês, transculturado, vem de um contexto
biográfico diferente do poeta florentino.
Aqueles que esperam encontrar a imagem conhecida de Dante, homem franzino, de
estatura mediana, de rosto fino e alongado, com nariz aquilino, túnica longa, ramos de louro
na cabeça – imagens que encontramos nas ilustrações de Sandro Botticelli, datadas do século
XV, e posteriormente, nas de Gustave Doré, no século XIX, ilustrações que se responsabiliza-
ram por instaurar no imaginário coletivo a figura do poeta italiano –, vão ser surpreendidos
com a de um guerreiro medieval, montado em um cavalo, corpulento, de armadura no peito.
Virgílio, aquele que guia Dante na peregrinação infernal, é seu companheiro, mas muda de
figura, assim como Dante, à medida que avançam nos círculos.10
Na animação, quando Dante foi para as Cruzadas, prometeu amor eterno à amada,
assim, Beatriz fez uma aposta com Lúcifer, acreditando que Dante nunca a trairia. Como ele a
traiu, sua alma [a de Beatriz] foi levada como presa para o Inferno para se tornar a mais nova
noiva de Lúcifer. De iluminada alma dos céus, Beatriz poderia vir a se tornar a companheira
maléfica e diabólica de Lúcifer, a rainha do Inferno, aquela que seria a responsável pela proli-
feração demoníaca a toda eternidade, procedendo a Helena de Tróia, Salomé e Cleópatra, que
também foram noivas do comandante infernal. A diferença de Beatriz para com aquelas que a
precederam está na pureza do seu espírito.
Neste sentido, podemos perceber que, de um modo ou de outro, esta adaptação está
“envolvida” pela “aura” benjaminiana. Embora sua sobrevivência ocorra por meio de uma
nova proposta, uma nova situação, que envolva fala, som e imagem, não ambiciona apenas
retratar, mas criar novos “mundos”, por meio de uma transposição de recursos, meios e espa-
ços, apresenta novos/outros modos de ver, de reler. O retorno a Dante e à Divina Commedia,
na maioria das vezes, é imediato.
Ainda, é importante ressaltar um aspecto interessante: esta animação é baseada no
jogo homônimo para videogame, criado pelas mesmas produtoras; ou seja, sua fonte primeira
não são os versos de Dante, mas o jogo Dante’s Inferno, que é inspirado nos versos do poeta
italiano. Para aqueles que tão-somente conhecem o jogo, e desconhecem a existência do poeta
e de sua obra, a animação será sempre retomada apenas como um encadeamento, uma articu-

10
Na animação cinematográfica, segundo meu levantamento, Dante possui cinco “avatares” cada qual de acordo
com o percurso referido a seguir: (1) Anteinferno e Limbo, (2) Do Segundo ao Quinto Círculos, (3) Sexto e
Sétimo Círculos, (4) Oitavo Círculo e (5) Nono Círculo, e Virgílio, quatro, cuja sequência é a mesma, excetuan-
do-se o do Nono Círculo, no qual Dante encontra-se sozinho para enfrentar Lúcifer.
7

lação narrativa do jogo, uma continuidade. Neste caso, a animação é uma adaptação do jogo, e
não diretamente uma adaptação da Divina Commedia.
Segundo Hutcheon, “no fim, o público é quem deve experienciar a adaptação como
uma adaptação” (2011, p. 229) e isso significa reconhecê-la como tal e conhecer o texto
adaptado para que a experiência de uma faça movimentar a experiência do outro; para expe-
rimentar um texto como adaptação é preciso vivenciar o palimpsesto. Mas pode acontecer de
o leitor conhecer a adaptação como um original.
Durante uma aula no curso de Pedagogia, inquirida a respeito de meu objeto de pes-
quisa, respondi às alunas do que se tratava e, vendo um natural espanto no semblante de cada
uma, adicionei à resposta algumas perguntas: vocês já ouviram falar da Divina Commedia?
Sabem do que se trata? Conhecem o autor que a escreveu? Para minha surpresa, apenas uma
das alunas tinha ouvido falar do texto, mas não sabia do que se tratava, muito menos quem o
havia escrito. Para elas, então, a animação O Inferno de Dante poderia ser um original visto
como um original, ou apenas uma adaptação do jogo e, possivelmente, o nome de Dante ser
tão-somente remetido e associado ao personagem de Reynaldo Gianecchini, na oportunidade
em que interpretou Dante Florentino na novela Sete Pecados, de Walcyr Carrasco, exibida
pela rede Globo no período de 18 de junho de 2007 a 15 de fevereiro de 2008. Com isso, pre-
tendo dizer que, muitas vezes, o reconhecimento de uma adaptação como uma adaptação está
naturalmente condicionado à bagagem, experiência, vivência de leitura do leitor.
O Dante-personagem da animação tem, ainda, o poder de libertar algumas almas do
Inferno para o céu por meio de preces e orações, o que constantemente irrita Lúcifer. Não
existe preocupação, por parte dos produtores, de apresentar dados sólidos, de procedências
históricas, de questões acerca da biografia de Dante, e isso, na minha opinião, não é, de forma
alguma, pré-requisito para encarar a animação. No Limbo, ou Primeiro Círculo do Inferno,
onde estão as almas que não puderam escolher Cristo porque nasceram antes de seu advento,
ou porque morreram antes do batismo, Dante descobre que teve um filho com Beatriz. É nesse
episódio que se percebe a liberdade dos criadores de conceberem Beatriz como figura huma-
na, esposa de Dante, e não mais como figura salvífica.
No Quarto Círculo, dos avarentos e pródigos, vêm à sua mente recordações de seu
pai, Alighiero di Bellincione, que é apresentado no longa como um homem mesquinho, egoís-
ta, glutão, violento, que batia na mãe de Dante.
Um aspecto interessante é a ironia presente na frase proferida por Dante a Virgílio,
após ser acometido pelas lembranças de seu pai: “Acredita que na minha juventude queria ser
um poeta? Mas tudo o que sabia era violência” (Dante’s Inferno, 2010). Esta afirmação pode,
8

provavelmente, sinalizar ao espectador um/o afastamento, a existência de um alter, de outro


Dante, que não o poeta-personagem. Ou seja, o Dante do longa, da animação, elaborado com
base no personagem do jogo para o videogame, não é o Dante-poeta-personagem que conhe-
cemos na Divina Commedia, mas alguém que, apenas quando jovem, pensou em ser poeta. E
o fato de dizer isso ao poeta latino, de resgatar dos recônditos de sua memória esse anseio não
consumado, revela que o personagem, pela violência vivenciada no âmbito familiar, resolveu
partir para a luta, tornando-se, assim, um Templário, um cavaleiro de Deus, um Dante, que
não Alighieri.
Dante ultrapassa sozinho as dez valas do Oitavo Círculo, Malebolge, reservado aos
fraudulentos, na tentativa de impedir a união de Lúcifer com Beatriz, mas não obtém sucesso.
Beatriz, enfeitiçada e transformada em criatura maléfica, torna-se a digna consorte de Lúcifer
e principia, então, a gladiar com Dante, cobrindo o guerreiro de labaredas de fogo. O cavalei-
ro templário, quase sucumbindo, pede perdão à adorada e, mostrando a cruz que dela recebera
de presente, continua: “Eu a trouxe de volta para você. Aceita outra vez o amor de Deus.”
(Dante’s Inferno, 2010). Comovida, o feitiço de Lúcifer se desfaz, Beatriz perdoa Dante, acei-
ta o amor divino e, desta forma, é levada aos céus por um anjo. Virgílio reaparece, pela última
vez, para orientar Dante a enfrentar Lúcifer, no Nono e último Círculo do Inferno, reservado
aos traidores. O mestre, o guia, não o conduz até o Purgatório, mas até a entrada do último
círculo, e se despede neste momento, deixando Dante sozinho para enfrentar o demônio. O
poeta luta ardorosamente contra o monstro, mas apenas consegue vencê-lo quando se ajoelha
e ora a Deus para que o perdoe por seus pecados.
Não é por conta de suas diferenças que a animação seja inferior, menor, trata-se de
ver nessa adaptação – animação – leituras possíveis; leituras que tiveram por base um texto
literário, tangenciadas por escolhas, seleções, inclusões e exclusões. Vir depois, ser segundo,
conforme Hutcheon (2010, p. 13), “não significa ser secundário ou inferior; da mesma forma,
ser o primeiro não quer dizer ser originário ou autorizado”.
E se atribuí como título a esta comunicação, “Dante, Durante, Depois”, não posso
deixar de fazer uma ressalva atenta para aqueles que desconhecem alguns dados biográficos
prováveis do poeta italiano: Dante não é apenas Durante por conta de sua denominação inici-
al, possivelmente em homenagem ao avô materno, Durante degli Abati – mais tarde abreviado
para Dante, em 1266 – (cf. Lewis, 2002), mas é, também, Depois, é repetido, é recriado, é
adaptado até ficar diferente.
9

4 REFERÊNCIAS

ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Tradução, comentários e notas de Italo Eugenio


Mauro. São Paulo: Editora 34, 2009.

_____. La Divina Commedia. A cura di Emilio Pasquini e Antonio Quaglio. Garzanti: Tori-
no, 2005.

BLOOM, Harold. O cânone ocidental: os livros e a escola do tempo. Rio de Janeiro: Objeti-
va, 2001.

CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2001.

CONTINI, Gianfranco. Un’Idea di Dante. Torino: Piccola Biblioteca Einaudi, 1999.

CROCE, Benedetto. La Poesia di Dante. Bari: Laterza, 1948.

DANTE‟S INFERNO. Victor Cook / Mike Disa / Sang-Jin Kim / Shuko Murase / Jong-Sik
Nam / Lee Seung-Gyu (dir.). EUA / Japão / Singapura / Coréa do Sul, DVD, 90 min., 2010.
DVD (90 min). Título original: Dante‟s Inferno: An Animated Epic.

GENETTE, Gerard. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Tradução de Luciene Guima-


rães e Maria Antônia Ramos Coutinho. FALE/UFMG: Belo Horizonte, 2006.

HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Tradução de André Cechinel. Florianópolis:


Editora da UFSC, 2011.

LEWIS, R. W. B. Dante. Tradução de José Roberto O‟Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo

EDGARDO COZARINSKY: A IMAGEM EXILADA

Valdir Olivo Júnior (PGL/UFSC) 1

RESUMO

Apoiado no conceito de ―imagem dialética‖ de Walter Benjamin e nas problematizações de


Gilles Deleuze ao conceber o cinema como um todo aberto, este artigo propõe uma reflexão
sobre o fragmentário como característica essencial na leitura de textos de Edgardo
Cozarinsky. A grande potencialidade da montagem nos textos de Cozarinsky não está no
resultado final do texto como um todo –como se preocupava Eisenstein ao conceber a
montagem como passível de um todo fechado— mas nas pequenas células do relato,
composto de imagens e partes exiladas. O texto, seja literário ou fílmico (Barthes), concebido
como ruína, um relato mutilado, peças de um quebra-cabeça que nunca poderá ser
completado.

Palavras chave:
Edgardo Cozarinsky. Exílio. Ruína.

RESUMEN

Con base en el concepto de ―imagen dialéctica‖ de Walter Benajamin y las


problematizaciones de Gilles Deleuze acerca del cine concebido como un todo abierto, este
artículo, propone una reflexión sobre lo fragmentario como característica esencial en la
lectura de textos de Edgardo Cozarinsky. La gran potencialidad del montaje en los textos de
Cozarinsky no está en el resultado del texto como totalidad –como se preocupaba Eisenstein
al concebir el montaje como pasible de un todo cerrado– pero en las pequeñas células del
relato, compuesto de imágenes y partes exiliadas. El texto, tanto literario como fílmico,
entendido como ruina, un relato mutilado, piezas de un rompecabezas que nunca podrá
completarse.

Palabras clave:
Edgardo Cozarinsky. Exilio. Ruina.

1 A IMAGEM EXILADA
Quiero agregar que si en esa tierra que llaman la patria está el padre, y en la lengua
es la madre quien opera, en estos gestos de la escritura, de la lectura, de
traducciones enfrentadas en los espejos deformantes de varios idiomas, el exilio del
que se hablar y que habla es del hijo (COZARINSKY, 2007, p. 163, 164)

Ao filmar o exílio e desde o exílio, Edgardo Cozarinsky, desenvolve um cinema da


ruína e da fragmentação, tanto do filme como do sujeito. Seus filmes possuem uma estrutura
similar a de um ―jogo de espelhos‖ ou de um cristal girante. Em Cozarinsky ele gira por si
mesmo, imerso em uma superfície opaca, seus lados interrogam a História, o próprio texto
fílmico e também a existência. Não se trata de uma caixa chinesa, na qual uma instância

1
Doutorando em Teoria Literária (PGL/UFSC); e-mail: valdir.olivo@gmail.com.
2

englobaria e encerraria outra, mas de um ―brincar com reflexos‖ que se abrem e não se
fecham; por mais que as imagens ou reflexos se relacionem entre si, existe uma abertura que
sempre apela para um ―fora‖, um extracampo, que se lança ao limiar, que é o limiar do texto,
mas também o limiar da linguagem e do sujeito.
Instância similar a da sequência do palácio dos espelhos em A dama de Xangai
(1948), na qual há uma proliferação de centros e vetores, de forma que cada plano é um golpe
recebido e um golpe deferido. Se no filme de Orson Welles os personagens devem quebrar os
espelhos para recuperarem sua atualidade roubada, em Cozarinsky os espelhos não se
rompem, mas se revelam enquanto espelhos, ou melhor, se o espelho se rompe é para
aumentar sua potencialidade reflexiva, expandindo as dimensões e interrogações do cristal.
O espelho é o lugar do significante sem significado fixo, da ausência de sentido, da
palavra/imagem que não significa, mas reflete significados, girando no vazio. Se, como diria
Giorgio Agamben, ―uma definição de homem de nosso ponto de vista específico poderia ser
que o homem é o animal que vai ao cinema. Ele se interessa por imagens mesmo tendo
reconhecido que não são seres verdadeiros.‖ (AGAMBEN, 2004, p. 02), a imagem é lugar do
vazio, do referente2 ausente.
Para Agamben existem duas condições transcendentais da montagem, são elas a
repetição e o corte. Repetir é um retorno como possibilidade daquilo que foi, de maneira
análoga à memória que restitui ao passado sua possibilidade podendo transformar o real em
possível e o possível em real, fazendo com que o não-consumado torne-se consumado. Ao
refletir sobre o corte Agamben compara o cinema à poesia, como hesitação entre a imagem e
sentido, entre o som e sentido; o corte suspende a palavra ou a imagem de seu sentido para
exibi-la como pura imagem, a ―potência de corte que trabalha a imagem ela mesma, que a
subtrai ao poder narrativo para expô-la enquanto tal‖ (AGAMBEN, 2004, p. 02). De forma
que o corte exila a imagem, e dessa forma filmar é exilar, é transforma o referente em
fantasma3.

2
Apóio-me em Barthes e defino referente como sendo ―não a coisa facultativamente real a que remete uma
imagem ou um signo, mas a coisa necessariamente real que foi colocada diante da objetiva, sem a qual não
haveria fotografia [ou cinema neste caso]‖ (BARTHES, 1984, p. 1144-115)
3
Isto fica evidente com o ―embalsamento‖ de Santiago feito por João Moreira Salles. No caso de Santiago
(2006) o exílio do personagem não se explica pelo fato de ele ser um imigrante argentino que trabalhou por
década como mordomo na casa da família Moreira Salles, mas pela sua condição anacrônica, Santiago é um
colecionador de fantasmas, possuía mais de trinta mil páginas de histórias de dinastias todas datilografadas,
separadas, amarradas e catalogadas. Ao final do documentário Moreira Salles revela certo vazio ao tentar filma a
história de Santiago, explica essa distância afirmando que durante toda a filmagem ele não era apenas um diretor
e Santiago um personagem, mas que durante toda a filmagem ele nunca deixou de ser o filho do dono da casa e
Santiago o mordomo. No entanto, essa distância está também em uma sacralização de Santiago e do passado;
para aproximar-se mais de Santiago e perder-se em seu exílio talvez fosse necessária uma profanação do
3

[Filmar] É um deslocar(-se) sem apagar a trajetória. É deixar rastro, ou melhor, é


produzir rastro. Assim como escrever, propõe David Oubiña, ―filmar es siempre um
desarraigo. Sólo es posible escribir sobre aquello que se vuelve una obsesión
porque se ha extraviado definitivamente. Sólo es posible filmar para conquistar el
valor irremediable de una ausencia. (GUIMARÃES SOARES, 2010, p. 01)

Uma das formas do vazio (da ferida) é a do exílio, não no sentido de um exílio que
―ocupe o vazio‖ e tape o buraco, classificando assim o vazio como exílio. Mas sim de um
exílio entendido como processo a partir do qual podemos ―ler o vazio‖ e reabrir discussões
sobre categorias vigentes rompendo a relação entre bem comum e política, existe uma
multiplicidade de ―bens‖ de forma que a política não pode assumi-los, talvez sua única
possibilidade seja assegurar a abertura para diversas modalidades de ―bens‖.
A fragmentação de Cozarinsky não se dá num sentido dialético que busque se inserir
em um sistema mais vasto, mas sim no sentido de ―fora do todo‖, exige do pensamento uma
descontinuidade. O fragmentário em Cozarinsky é a procura de uma forma, procura de uma
procura.

De esas ruinas que se dispersan en el momento mismo de nombrarlas seria vano


esperar el retrato de un individuo que desaparece, talvez sea su condición de añicos
de desechos que cautivarían la atención del improbable espectador que a ellos
pudiese asomarse. Fragmentos de un relato mutilado, piezas aisladas de un
rompecabezas que ya nunca podrá completarse.4

A lógica fragmentária de seus textos é a da justaposição de textos, imagens e tempos,


é o tempo da ausência de tempo. Um passado mais presente que o próprio presente, há mais
de um tempo como justaposição. Ressaltando ainda mais a fragmentação do sujeito,
estrangeiro e exilado no mundo. A dimensão cristalina dos textos de Cozarinsky é o lugar por
excelência do anacronismo, há nele diferentes linhas temporais que não param nunca de se
bifurcar e se entrecruzar, onde passado e o presente se misturam, pois ―a contemporaneidade
tem o seu fundamento nessa proximidade com a origem que em nenhum ponto pulsa com
mais força do que no presente‖ (AGAMBEN, 2009, p. 69). Em Cozarinsky o tempo surge em
estado bruto, no curto-circuito entre presente e passado.
A escrita fragmentária não é um resto de totalidade quebrada, ela deve ser entendida
a nível de força e não forma. É o lugar do significante sempre vazio, da imagem especular. O
espelho é o lugar do significante sem significado fixo, da ausência de sentido, da palavra que
não significa, mas reflete significados, girando no vazio. É o lugar por excelência do exílio.

personagem e de seus arquivos, o que não ocorre no documentário. Ao filmar Santiago Moreira Salles filma
também toda a fantasmagoria que compõe a vida do mordomo e faz dele também parte dessa fantasmagoria.
4
Transcrição parcial da narração presente no capítulo intitulado ―Último viaje‖ do filme Apuntes para una
biografía imaginaria (2010).
4

Para além do exílio da infância – a criança que se vê no espelho e percebe-se separada do


corpo da mãe – a relação com o espelho é a dimensão da alteridade. É ele que mostra a
exterioridade do corpo revelando-o enquanto imagem, que é captada por aquilo que Deleuze
denomina ―centro de indeterminação‖5 (a ―interioridade‖ de Nancy) e que por isso opera do
exterior ao interior, mediado e mediando as relações com o outro, mas também revela a
interioridade que se faz através o olhar do outro. De forma que ele é o lugar do vazio, o
abismo existente entre corpo e imagem – distintos, mas indiscerníveis–, entre o ―eu‖ e o
outro.
Em Cozarinsky a imagem vinda do exílio é livre da massa, se destaca como corpo
sempre diferente e estrangeiro. Se o simulacro soviético, o ―nós socialistas‖ do antigo cinema
soviético, opta pela manutenção da categoria - nesse sentido a mumificação de Lênin recobra
uma significância bastante paradigmática – Cozarinsky postula o desmembramento da
categoria de povo e decomposição do corpo enquanto imagem e texto optando pelo
fragmentário. Antes de ser todo, a montagem em Cozarinsky é parte, ou melhor, descasca o
real até mostrar a imagem como nada, como pura imagem.
Os textos de Cozarinsky se encontram na margem oposta de um cinema que busque
configurar uma categoria de povo, seja como representação. Daí a importância que a figura
emblemática de Ernst Jünger encontra eu seus textos. Jünger, soldado alemão condecorado da
Primeira Guerra e que na Segunda Guerra estabeleceu residência na França com a tropa de
ocupação nazista.

Alguien que no es nazi, pero que por un sentimiento de lealtad a un ejército donde
veinticinco años antes vivió sus primeras y embriagadoras aventuras se deja enviar
como parte de las fuerzas de ocupación a un país cuya cultura comparte.
(COZARINSKY, 2000, p. 91)

Cozarinsky constrói uma nova história, não canônica, que busca o diferente, o
singular, história que ressalte a característica paradoxal de um escritor dividido entre a
lealdade ao exército e o amor à cultura. Há pelos menos duas referências a Jünger em textos
de Cozarinsky. A primeira delas é o filme La guerre d’ um seul homme (1981), um dos
primeiros filmes do diretor, baseado nos Diários parisienses de Jünger. Neste filme, narra o
fato de Jünger ter recebido uma casa da família do general Stauffenberg, responsável por
planejar a ―operação Valquíria‖. E a segunda referência a Jünger surgirá em um texto de 1998

5
Para Deleuze o centro de indeterminação é o lugar da afecção. É uma coincidência do sujeito com o objeto, ou
a maneira pela qual o sujeito se percebe a si próprio, ou melhor, se experimenta e se sente ―de dentro‖ (terceiro
aspecto material da subjetividade). Ela reporta o movimento a uma ―qualidade‖ como estado vivido (adjetivo).
(DELEUZE, 1985, p. 87)
5

com motivo de sua morte6, semanas antes de completar 103 anos de idade. Interessante
apontar que o mote do soldado nazista que recebe uma recompensa por se opor ao regime será
retomado também em seu filme intitulado Crepúsculo rojo (2003), na figura do fantasma do
pai que narra ao filho como teria recebido a pintura das mãos de uma família de judeus que
teria supostamente salvado do holocausto.
Jünger é um exilado, não se sente um membro do exército e tampouco pode adequar-
se totalmente a Paris, pois não deixa de amar seu país natal. Cozarinsky enxerga o escritor em
sua complexidade e indiscernibilidade, não o vê como ―povo‖ como no caso do cinema
político ou como membro do disciplinado e uniformizado corpo do exército nazista. Dessa
forma, propõe a pergunta: ―la mentira íntima del hombre de cultura, que cree rescatar una
parcela de independencia personal, ¿es acaso menos mezquina que la mentira grosera,
colectiva, de la propaganda?‖ (COZARINSKY, 2000, 91). A valorização de Jünger ocorre
justamente pelo que ele representa como complexidade histórica e ética e dessa forma ele
contrapõe a ―mentira íntima‖, a independência pessoal de Jünger, à massificação da
propaganda ou, talvez pudéssemos dizer, de um cinema de propaganda.
Em Cozarinsky, Jünger é aquele que nos olha diretamente nos olhos e nos indaga
como espelho, até onde não estamos absorvido em nossa sobrevivência pessoal, alheios à
catástrofe que não cessa?

Es posible que pocos lectores posean la dosis necesaria de ascetismo y


desesperanza como para tenerlo entre sus autores preferidos. Sus Diarios
parisienses, sin embargo, son uno de los desafíos mayores, de los textos más
exigentes que nos puede legar este siglo que agoniza. Como Baudelaire su autor
tiende un espejo no solicitado al lector, mientras susurra: ―Hypocrite lecteur, mon
semblable, mon frère‖. COZARINSKY, 2000, p. 93)

2 APUNTES SOBRE APUNTES


Em seu penúltimo filme, Apuntes para una biografía imaginaria (2010), o sujeito da
biografia é imaginário, feito de pequenos fragmentos ou, para falar com Walter Benjamin,
feito de ―imagens dialéticas‖.

Método de trabalho: montagem literária. Não tenho nada a dizer. Somente a


mostrar. Não surrupiei coisas valiosas, nem me apropriei de formulações
espirituosas. Porém, os farrapos, os resíduos: não quero inventariá-los, e sim fazer-
lhes justiça da única maneira possível: utilizando-os. (BENJAMIN, 2006, p. 502).

A contemporaneidade de Cozarinsky está justamente no anacronismo de sua


contaminação, que é também a contaminação do documentário pela ficção ou vice-versa,

6
Texto intitulado ―Ernst Jünger‖ publicado em COZARINSKY, Edgardo. El pase del testigo. Buenos Aires:
Sudamericana, 2000.
6

contaminação da história canônica unindo aspectos pessoais à história universal, ou melhor,


desconstruindo a história canônica para reconstruí-la partindo de lembranças, imagens de
filmes, gravações anônimas, como um cinematógrafo interior. Isso justamente é o que vai
sugerir num dos capítulos (se é que podemos chamar assim) de seus Apuntes, intitulado,
―Paris 1942: reciclajes‖, que está subdividido em duas partes. Na primeira parte vemos
imagens de filmes que serão reciclados e transformados em ceras de sapato e esmaltes para
unha; na segunda parte, são restos humanos como cabelos que se transformarão em
cobertores, blusas, sapatos. Tudo isso acontece através de uma terceira reciclagem, a feita
pelo diretor ao retomar essas imagens da década de 1940.
Dessa forma, o passado e o presente se misturam, o passado é o presente que é
revelado através destes fragmentos, que se decompõem para dar origem a novas substâncias,
sapatos, cobertores, mas também novos filmes. Estabelecendo novas relações não
cronológicas e sim crônicas. Como uma doença crônica o tempo se agita no interior da
imagem e dos personagens devorando ou sendo expelido de seus corpos aprisionados a um
passado fluido.
De forma que, em lugar de um todo orgânico e completo, os textos de Cozarinsky
possuem uma dimensão cristalina. Para Gilles Deleuze, no cinema moderna o regime
orgânico dá lugar ao regime cristalino, caracterizado pelos cortes irracionais e
reencadeamentos que substituem o modelo de realismo e verdade. O tempo não é mais
subordinado ao movimento como representação indireta, a nova imagem é o lugar do tempo
em estado bruto, do curto-circuito entre presente e passado.
A imagem deixa de ser uma representação indireta do tempo para mostrar o tempo
em estado puro, ocasionando, por tanto, uma transformação no conceito de montagem.

A nova montagem em lugar de compor imagens-movimento para que delas saia


uma imagem indireta do tempo, ela decompõe as relações numa imagem-tempo
direta de tal maneira que dela saiam todos os movimentos possíveis. (DELEUZE,
2007, p. 159)

Cozarinsky cria o que talvez pudéssemos chamar imagem-decomposição, como


representação direta do tempo. Os movimentos possíveis da imagem-decomposição se
encontram na propriedade do movimento decomposto em se reorganizar e se transformar em
um novo movimento.
Uma justaposição ou uma compenetração do velho e do novo de forma que o
movimento se subordina ao tempo e o passado se encontra inserido no presente. Dessa forma,
a montagem na imagem-decomposição se revela sob três aspectos.
7

Primeiro na relação entre os planos, entre o passado e o presente que passa, é a


relação que podemos estabelecer entre as imagens do passado quando são interrompidas para
dar lugar a os quatro capítulos de ―Luz de un cuerpo‖ distribuídos pelo filme. Esses
personagens em primeiro plano quase imóveis prefiguram como corpos-memória. O primeiro
plano para Deleuze é o lugar por excelência da imagem-afecção como potencialidade pura, o
primeiro plano é o rosto quando suspendida suas funções individualizantes e socializantes e
dessa forma ―o primeiro plano faz do rosto um fantasma, e o entrega aos fantasmas‖
(DELEUZE, 1985, p. 129), são fantasmas por onde o passado, presente e futuro se encontram.
Dessa forma, a imagem do primeiro plano, nas sequências de ―Luz de um cuerpo‖,
além de suspender, ou melhor, ausentar as funções mais básicas do rosto transforma o corpo
em pura matéria do afeto, em virtualidade, o corpo dá lugar ao fantasma. Os close-ups devem
transformar o personagem em artigo de consumo, imagem multiplicadora, preenchendo com
luzes e maquiagens criando a imagem da presença não da pessoa individual, mas do corpo
desejado, tanto pela câmera como pelo telespectador, um corpo ausente. Como a criação da
mulher que nunca existiu de Kuleshov.7
Em segundo lugar está a relação dos passados entre si: Saigon três dias após o fim da
Guerra do Vietnam, a comemoração feita por americanos e soviéticos na praça vermelha de
Moscou, etc. E em último lugar está a relação entre os passados e o presente contraído que os
evoca, ainda que esse presente seja incerto e flutuante. No entanto, poderíamos desde já
ressaltar a existência de um presente exterior ao filme pelo fato de em plena discussão sobre a
nova constituição francesa, marcada pelo aumento da idade de aposentadoria e a expulsão dos
ciganos romanos, Cozarinsky traz em seu filme imagens do Memorial da Deportação filmado
em 1966, onde a deportação dos ciganos dialoga com a deportação de judeus franceses a
campos de concentração alemães.
A imagem-decomposição é o lugar por excelência do anacronismo, a comunhão e os
resíduos da velha história e a origem da nova, fazendo com que a nova história nasça de um
ponto até então desconhecido, comprometendo dessa forma qualquer leitura originária, pois a
origem não é mais a coisa da qual tudo provém, mas sim um bloco de imagens que traz em si
todo o anacronismo do velho que compõe o novo que ao mesmo tempo já começa a se
decompor transformando-se novamente em origem, pois ―a contemporaneidade tem o seu
fundamento nessa proximidade com a origem que em nenhum ponto pulsa com mais força do
que no presente‖ (AGAMBEN, 2009, 69). Também é através da decomposição e

7
O experimento de Kuleshov consistia em filmar uma mulher penteando o cabelo em um toilette, as partes
filmadas: rosto, braços, pernas, mãos eram de mulheres diferentes que foram unidas através da montagem.
8

recomposição que Cozarinsky profana os arquivos, deslocando-os de seu lugar canônico e


restituindo ao uso comum, libertando os fantasmas e toda fantasmagoria da história, pois ―os
mortos sempre voltam e fazem vítimas.‖
Se antes dizia que o presente é flutuante isso se deve ao fato de não haver um
presente oferecido a vista como é o caso, por exemplo, de Orson Welles com Cidadão Kane
ou da maioria das biografias que se localizam primeiramente em determinado ponto fixo para
então partir rumo ao passado que se atualiza em imagens-lembranças8. No caso de Kane o
ponto fixo é sua morte ou um presente sonoro que conduz a história através de uma voz off.
Porém no caso de Cozarinsky, esse centro fixo desaparece, o passado em Apuntes para una
biografia imaginaria é como a água que serve de elemento de transição entre os planos, um
passado líquido em um mar de recordações que vão e vêm, onde as construções entre
passados se fazem através de alternativas. Mais do que a memória de uma pessoa ou
personagem o filme também é uma ―memória-mundo‖, uma memória errante, ausente.
Dessa forma, ao filmar o exílio Cozarinsky extrapola a categoria de povo ou nação,
restam apenas fragmentos, fantasmas que contam uma nova história uma histórica messiânica.
Uma história que surge como única resposta frente à inexorabilidade da catástrofe.
Como diria Benjamin, ―a primeira etapa deste caminho será aplicar à história o
princípio da montagem e descobrir na análise do pequeno momento individual o cristal do
acontecimento total‖ (BENJAMIN, 2006, p. 503). No entanto, para Cozarinsky o
acontecimento parece nunca ser total ou completo, ou melhor, o acontecimento ―ya nunca
podrá completarse‖. Cada plano é um ―corte móvel‖ de um todo que é sempre aberto, passível
de conexões variáveis e infinitas, já que toda imagem se mostra como expressão da duração e
do virtual.
Segundo Cozarinsky há um texto em que Alberto Tabbia faz um elogio aos
fragmentos, um culto as ruínas. No texto, Tabbia relembra que nos antigos cineclubes de
Buenos Aires era comum que os filmes chegassem mutilados, versões incompletas, restos de
filmes célebres, este fato despertava nas pessoas que iam assistir uma espécie de nostalgia em
ver o filme completo. Quando anos depois, viajando pelas cinematecas do mundo, ele
encontrava os filmes completos a impressão nunca era tão forte. Dessa forma Tabbia
comparava esses fragmentos à Venus de Milo:

8
Para Gilles Deleuze a imagem-lembrança é diferente do passado como virtualidade pura, no passado se
encontra a ―lembrança pura‖ que será atualizada como imagem-lembrança, por tanto está é o encontro entre o
atual e o virtual. (DELEUZE, 2007, p. 121-122)
9

'¿Quién puede pensar que sería más interesante con los brazos?'; y dice que las
ruinas hacen trabajar la imaginación, que nos dan la intuición de un mundo
desaparecido, y al mismo tiempo, la falta de algo o el estado de ruina es un
memento mori. Estos textos me hicieron pensar mucho en esa experiencia del cine
relacionada con la infancia, el cine que te hace funcionar como de a pedacitos,
frente a la televisión que es un continuum ininterrumpido donde no hay mucho
llamado a la imaginación. En una película hay una cuestión de sintaxis que está
organizada de otra manera: aunque vieras diez minutos, cuarenta minutos de La
pasión de Juana de Arco o de Vampyr, esos fragmentos te hacían funcionar, te
daban una intuición de las capacidades del cine.9

Dessa forma talvez pudéssemos afirmar que a grande potencialidade da montagem e


do cinema de Cozarinsky não seja o resultado final do filme como um todo, como vê
Eisenstein10, mas as pequenas células do relato, composto de imagens e partes exiladas. O
filme como ruína, peças de um quebra-cabeça que nunca poderá ser completado. O paradoxo
da montagem parece estar no que é mostrado como pedaços de filmes e de imagens que serão
construídos através da justaposição de imagens e no que não é mostrado como corte de uma
realidade jamais alcançada.
Nas últimas páginas do romance Lejos de dónde (2009) de Edgardo Cozarinsky há
um momento em que Federico, o personagem principal da segunda parte, ouve de seu amigo
diamantista uma anedota em que narra a história de certo rapaz judeu que ao emigrar para a
América deixa em Galitzia ou Besarábia sua mãe que chora sem consolo e pergunta: ―hijo
mío ¿por qué te vas tan lejos? El hijo, ya lejos de allí en el pensamiento, tal vez con un
sentido innato de la relatividad, responde: ¿Lejos? ¿Lejos de dónde?‖ (COZARINSKY, 2009,
p. 149).
Isto mostra a própria condição de Federico, o protagonista do romance, como filho
de uma alemã que trabalhou em Auschwitz e foge passando-se por judia até chegar a Buenos
Aires, onde ele nascerá como fruto de um estupro e crescerá acreditando ser judeu sem nunca
conhecer sua origem.

9
Trecho extraído de http://www.tijeretazos.net/Acrobat/Abecedario%20Cozarinsky.pdf
Está reportagem realizada em Paris, no dia 7 de dezembro de 2001, por Teresa Orecchia, foi publicada
integralmente no número 621, correspondente a março de 2002, da revista espanhola ―Cuadernos
hispanoamericanos‖
10
Eisenstein talvez seja o primeiro em conceituar um ―princípio da montagem em geral‖, assumindo-a não como
uma especificidade unicamente cinematográfica, mas também inerente à própria literatura, como sugere ao
analisar e comparar a montagem em pinturas, poemas e no conceito de ―palavra portmanteau‖ desenvolvido por
Lewis Carrol. No entanto, ele vê a montagem fílmica como passível de um todo fechado, através daquilo que
denomina ―imagem generalizada‖: ―O que a compreensão da montagem implica essencialmente? Neste caso,
cada fragmento de montagem já não existe mais como algo não-relacionado, mas com uma dada representação
particular do tema geral, que penetra igualmente todos os fotogramas. A justaposição destes detalhes parciais em
uma dada estrutura de montagem cria e faz surgir aquela qualidade geral em que cada detalhe teve participação e
que reúne todo os detalhes num todo, isto é, naquela imagem generalizada, mediante a qual o autor, seguido pelo
espectador, apreende o tema.‖ (EISENSTEIN, 2002, p. 18)
10

Em Cozarinsky, mais que um tema recorrente, o exílio é o material mesmo do qual


emergem seus filmes e livros, porém não se trata de conceber o exílio como dialetizável entre
um ir e regressar, entre a expulsão do paraíso e seu regresso, onde a condição do exílio seja
transitória. O exílio em Cozarinsky parece ser a própria condição da existência e a existência
a condição do exílio.
Federico, assim como Jünger, são em Cozarinsky, personagens que problematizam e
demonstram a impossibilidade e a insustentabilidade de categorias tais como identidade,
povo, nação e também como reinvindicação do impossível, como um gesto político de minar
a democracia como igualitária, mas mostrar a existência como sendo ao mesmo tempo
singular-plural.
De forma que pensar o exílio em Cozarinsky é pensá-lo como próprio, não como
propriedade, mas como abertura para o outro, como proximidade na distância. O espelho
enquanto espelho é a potencialidade de não ver nele somente a imagem de si, mas vê-lo na
sua capacidade de refletir simultaneamente o ―eu‖ e o ―outro‖ em uma mesma imagem como
diferentes, mas indiscerníveis.

3 REFERÊNCIAS

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historia. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2007. Tradução ao espanhol: Silvio Mattoni.

AGAMBEN, Giorgio. O cinema de Guy Debord. Tradução de Antônio Carlos Santos, texto
fotocopiado (a partir de Image et memoire: écrits sur l’image, la danse et le cinéma.
Paris: Desclée de Brouwer, 2004).

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009.


Tradução ao português: Vinícius Nicastro Honesko.

AGAMBEN, Giorgio. Profanaciones. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2005. Tradução ao


espanhol: Flavia Costa y Edgardo Castro

BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. Tradução ao
português: Júlio Castañon Guimarães.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. Tomo I. Tradução:
Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2008.

_____. Obras escolhidas. Charles Baudelaire. Um lírico no auge do capitalismo. Tomo II.
Tradução ao português: Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2008.

_____. Walter. Passagens. Trad. do alemão: Irene Aron. Tradução do francês ao português:
Cleonice Paes. UFMG: Belo Horizonte, 2006.
11

BUCK-MORSS, Susan. A tela do cinema como prótese de percepção. Florianópolis:


Cultura e barbárie, 2009. Tradução ao português: Ana Luiza Andrade

COZARINSKY, Eduardo. Borges em/e/ sobre cinema. Tradução ao português: Laura J.


Hosiasson. São Paulo: Iluminuras, 2000.

COZARINSKY, Edgardo. El pase del testigo. Buenos Aires: Sudamericana, 2000.

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_____. Edgardo. La tercera mañana. Barcelona: Tusquets, 2010.

_____. Edgardo. Maniobras nocturnas. Buenos Aires: Emecé, 2011.

DELEUZE, Gilles. Imagem-movimento. Tradução ao português: Stella Senra. São Paulo:


Brasiliense, 1985.

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_____. Sergei. A forma do filme. Trad. Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.

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_____. Jean-Luc. La comunidad enfrentada. Tradução ao espanhol: J. M. Garrido. Buenos


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_____. Jean-Luc. La existencia exiliada. Archipiélago. Madrid: Arco, n. 26-7, inv. 1996.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo

ELEGIAS URBANAS – A LUTA

Rubens da Cunha (PPGL/UFSC)1

RESUMO

Elegias Urbanas, do poeta catarinense Marco Vasques, é um livro breve 25 elegias que
trazem reflexos de um homem perdido dentro da urbanidade, recheado de um desespero
contumaz diante da percepção de que não há um lugar individual, idealizado, mas apenas o
lugar dentro da cidade em ruínas, dentro de uma humanidade aparentemente morta. Este
artigo aborda diálogo entre a escrita deste poeta e as idéias propostas por Walter Benjamin no
livro Passagens, sobretudo em relação a Charles Baudelaire, tais como o tédio, o eterno
retorno, a flânerie, o fetiche da mercadoria, as relações do poeta com a cidade, a melancolia
produzida por essas relações. O artigo tem como intuito apontar alguns caminhos que possam
permitir a relação dialética entre passado e presente e assim entender como os poemas de
Vasques travam uma luta ferrenha com a contemporaneidade e quais são as diferenças e
semelhanças com a luta de Baudelaire no século XIX.

Palavras-chave:
Walter Benjamim. Passagens. Poesia Contemporânea.

ABSTRACT

Elegias Urbanas, written by Marco Vasques, is a book with 25 elegies bringing reflections
about a lost man inside urbanity and full of despair standing before a perception that there is
not an individually or designed place, only a place inside of town and a seemingly dead
humanity. In this article there is a discussion about the dialogue between the poet writing and
the ideas proposed by Walter Benjamin in the book Passagens, especially in relation to
Charles Baudelaire, such as boredom, eternal return, flânerie, the commodity fetishism,
poet's relations to the city, melancholy produced by these relationships. The intention in this
article is to point out some ways that would enable a dialectical relationship between past and
present and so understanding how Vasques poems waging a relentless struggle at the
contemporary world and their differences and similarities with the Baudelaire struggle in the
nineteenth century.

Keywords:
Walter Benjamin. Passages. Contemporaneous Poetry.

1 PASSAGENS – O CONFRONTO COM O VAZIO

Enquanto tu caminhas pelas ruas, te pergunto: e a entranha?


Hilda Hilst

Passagens, de Walter Benjamin, é um livro diferenciado de todos os outros, um pré-


livro, uma tentativa que não se realizou dentro da forma convencional. Susan Buck-Morss
1
Doutorando em Literatura; e-mail: rubensdacunha@gmail.com.
2

(2002, p. 75) defende a ideia de que ao estarmos diante das Passagens “confrontamo-nos com
um vazio”. Trata-se de um trabalho constituído de fragmentos e que, no entanto, demonstram
muito da produção intelectual de Benjamin.
Willi Bolle (2007, p. 1146) levanta duas possibilidades para a função dessa coletânea
de fragmentos: a primeira seria olhar Passagens como uma coletânea provisória de textos,
algo que seria dispensado caso o projeto original de Benjamim tivesse sido concluído; a
segunda seria pensar Passagens como um grande banco de dados que tem valor permanente,
que oferece formas inovadoras de se escrever a história.
Assumindo a segunda possibilidade como algo mais efetivo e mais criativo, pois o
que era, a principio, um livro inconcluso, tornou-se um grande banco de dados, que é “um
dispositivo essencialmente móvel e dinâmico, voltado para um trabalho produtivo de
construção, desconstrução e nova construção, envolvendo a participação ativa dos leitores”
(BOLLE, 2007, p. 1152). Bolle (2007, p. 1151) chama a atenção ainda para um trecho de
Benjamin comparando o homem “a um painel de comando no qual há milhares de lâmpadas;
ora apagam-se umas, ora outras, e acendem-se novamente”. Ao se fazer a substituição da
palavra homem por passagem encontra-se a mais exata concepção do que seja o projeto das
Passagens.
Partindo desse conceito, esse trabalho pretende acender algumas lâmpadas das
Passagens e seguindo um dos princípios capitais de Benjamin (2007, p. 505 - Teoria do
Conhecimento, Teoria do Progresso [N 1, 1] [N 1, 6]) “a imagem no agora da
cognoscibilidade” que “lampeja” e ao lampejar capta o ocorrido, adapta os fragmentos do
passado para a atualidade. Compreendendo que a

a atualidade não é, para Benjamim, a categoria mundana que se refere àquilo que
brilha à superfície, ao aggiornamento efêmero, ao up to date borbulhante, calculado
e imposto. O conceito tem nele contornos mais fundos, místicos, e implica uma
iluminação súbita do passado pelo presente, motivada por uma afinidade eletiva e
despoletada por uma explosão de sentidos que põe a nu secretas e imprevisíveis
coincidências entre presente e passado. (BARRRENTO, 2006, p. 19)

Além disso, Benjamin queria apresentar a história do século XIX como se fosse
“mundo de coisas sonhadas” (TIEDEMANN, R. in: Benjamin, W. 2007, p. 17). Susan Buck-
Morss no ensaio “La ciudad como mundo de ensueños y castástrofe”, ao analisar o final da
guerra fria, afirma que a ruína era algo sem fronteiras, presentificava-se tanto no mundo
capitalista quanto no mundo socialista, assim, parafraseando Benjamin, Buck-morss( 1999, p.
3

276) diz que as ruínas antiquadas de um passado recente aparecem como resíduos de um
mundo de sonho, de fantasia, portanto, não deveria ser surpresa se essa caracterização do
século XIX, feita por Benjamin, servisse para o nosso próprio tempo. Para Buck-Morss
Passagens tinha uma função política, cujo objetivo não era o de representar, mas de dissipar o
sonho. “Benjamim queria apresentar a história passada do coletivo do mesmo modo que
Proust apresentou a sua história pessoal: não há vida como ela era, nem a vida recordada, mas
a vida como foi esquecida” (1999, p. 277)
Assim, a partir do livro Elegias Urbanas de Marco Vasques será analisado como este
poeta contemporâneo estabelece as suas relações com a urbanidade e como alguns temas
abordados por Benjamim nas Passagens se presentificam neste livro.

1.1 Fragmentos essenciais para entender a modernidade


Passagens, monumental projeto de Walter Benjamim, é um trabalho que o ocupou
por 13 anos e do qual, segundo Rolf Tiedemann (2007, p. 13) na introdução à edição alemã,
resultou a maioria dos trabalhos mais importantes escritos na sua última década de vida. No
período entre 1927 até a sua morte em 1940, Benjamin (2007, p. 499-500 [Teoria do
Conhecimento, Teoria do Progresso] [N 1, 1] [N 1]) montou uma coletânea de fragmentos de
textos próprios e alheios, organizados em arquivos temáticos (konvolute), que além de pensar
o conhecimento como lampejo e o texto como “um trovão que segue ressoando por muito
tempo”, tinha também como phatos a ideia de que não há época decadente, de que é sempre
necessário lançar um olhar positivo sobre o período histórico estudado.
Ainda segundo Rolf Tiedemann (2007, p. 14-16):

Os fragmentos das passagens propriamente ditas podem ser comparados ao material


de construção de uma casa da qual apenas demarcou-se a planta ou se preparou o
alicerce. [...] Ele procurou apresentar a história do século XIX, construindo-a não de
maneira abstrata e sim como “comentário de uma realidade”

Quando se fala sobre essa apresentação da história do século XIX não se trata do
século todo, mas sim de um período que vai entre 1830 e 1870, especificamente na cidade de
Paris, uma das cidades mais importantes do mundo na época, a ponto de Benjamim chamá-la
de a “capital do século XIX”. Os acontecimentos nesses quarenta anos são determinantes para
estabelecer “o perfil essencial da história da Modernidade” e esse perfil é estabelecido por
Benjamin captando elementos que o mundo concreto fornecia. O “comentário de uma
4

realidade” transborda dos arquivos temáticos que abordam entre outros assuntos a moda, a
construção em ferro, as exposições universais, as ruas de Paris, a fotografia, as passagens, os
panoramas, os espelhos, o interieur, a prostituição, o jogo, além de alguns tipos sociais tais
como a prostituta, o jogador, o colecionador, o flâneur. Pode-se observar também um olhar
sobre o espírito que permeava a época com konvolute cujos temas são o tédio, o ócio e a
ociosidade, bem como um olhar apurado sobre os personagens mais importantes do período:
Marx, Fourier, Grandville, Blanqui, Haussmann, e principalmente aquele que Benjamim
considerava o representante do papel de herói moderno: Charles Baudelaire2. De acordo com
Susan Buck-Mors (2002, p. 26): “o objetivo de Benjamin era levar tão a sério o materialismo
que os próprios fenômenos históricos chegariam a falar. O projeto era testar „o quão concreto
se pode estar em conexão com a história da filosofia‟”
Definir o tema das Passagens não é simples. Para Willi Bolle, (2007, p. 1141) “a
tarefa de esclarecer inicialmente qual é o tema está imbricada com as questões do título da
obra, as diversas fases de sua elaboração e o gênero ou estatuto do texto.” Em relação às fases
pode-se detectar, de acordo com Bolle, quatro fases, já Susan Buck-Morss estabelece apenas
três fases. A fase inicial, ou o “primeiro esboço”, acontece entre 1927 e 1929 e a pretensão de
Benjamim era fazer um ensaio de revista intitulado “Passagens Parisienses: uma Feeria
Dialética”. O ensaio não foi escrito. A segunda fase ocorre entre 1934 e 1937 Benjamin
organiza um grande arquivo com anotações suas e alheias, planejando a publicação de um
livro. Buck-Morss (2002, p. 78) relata esse processo:

Trabalhando diariamente na Bibliothèque Nationale de Paris, lia amplamente sobre


as fontes do século XIX, guiado pelos temas das notas anteriores. A acumulação de
notas de pesquisa exigia, por razões puramente práticas, uma reorganização
fundamental. Elaborou um sistema de arquivo onde os primeiros temas se
transformavam em palavras-chaves sob cujo título se montava a documentação
histórica.

Em 1935, Benjamim fez uma exposição de suas intenções no texto intitulado “Paris,
a Capital do Século XIX” apresentado ao Instituto de Pesquisa Social em Nova York e
reescrito no ano de 1939, em francês, na tentativa de conseguir um mecenas americano. As
duas solicitações não conseguem êxito. Essas exposições continham seis capítulos: I) Fourier

2 BENJAMIN, W. Charles Baudeleire - Um lírico no auge do capitalismo. “Pois o herói moderno não é herói –
apenas representa o papel de herói. A modernidade heroica se revela como uma tragédia onde o papel do herói
está disponível.” p. 94.
5

ou as passagens; II) Daguerre ou Dioramas; III) Grandville ou as Exposições Mundiais; IV


Louis Philipe ou o Interior; V) Baudelaire ou as Ruas de Paris; VI) Haussmann ou as
Barricadas. O primeiro exposé foi submetido por Adorno “a uma crítica radical, apontando
equívocos no conceito de „imagem dialética‟ e a necessidade de rever o plano inteiro”
(BOLLE, 2007, p. 1146). Benjamin reconhece os equívocos, mas não consegue tempo
suficiente para se dedicar ao livro Passagens, pois estava incumbido pelo Instituto a escrever
dois artigos: um estudo sobre Eduard Fuchs e o famoso ensaio sobre a obra de arte na era da
reprodutibilidade técnica.
No último período é que surge a divergência entre Willi Bole e Susan Buck-Morss
quanto às fases de produção das Passagens. Para a estudiosa americana, os quatro anos entre
1937 e 1940 constituem um período apenas, já Bolle divide esse período em dois, sendo que o
primeiro ocorre entre 1937 e 1938. Benjamin, com a proposta de escrever um artigo sobre
Baudelaire, projeta por sua vez um livro, cujo modelo seria o trabalho das Passagens, e que se
denominaria “Baudelaire – Um poeta lírico no auge do capitalismo”. Projetado para ter três
partes, Benjamin só escreveu a parte do meio que se chamou “A Paris do Segundo Império em
Baudelaire”. O livro não foi concluído porque este texto não foi aceito pelo Instituto de
Pesquisa Social. Por fim, acontece a quarta e mais dramática fase de “construção” das
Passagens, entre 1938 e 1940, ano da morte de Benjamim 3. Nesse período o autor se vê
envolto em questões financeiras, o início da II Guerra Mundial, a invasão alemã à França, a
necessidade de fuga, entre outros problemas, fazem com que Benjamin não consiga concluir

3 No site do Núcleo Brasileiro de Estudos Walter Benjamin há o seguinte relato sobre os dias finais de Walter
Benjamin. “Em 23 de maio de 1940 é proclamada uma segunda ordem do governo francês, ordenando aos
“alemães, aos habitantes do Saarland e de Dantzig” e aos outros “estrangeiros de nacionalidade indeterminada
mas de origem alemã” que se reúnam num outro estádio perto de Paris. [...] Benjamim consegue ainda fugir de
Paris de trem para Lourdes, nos Pirineus, [...] consegue, de fato, um visto de trânsito através da Espanha e de
Portugal para embarcar para os Estados Unidos. Não consegue, porém, um documento essencial: um visto
francês de saída da França. Não sendo mais alemão aos olhos dos alemães – já que foi destituído da cidadania
alemã em 1939 -, não sendo francês – já que não conseguiu a naturalização -, só lhe restava este estatuto de
“estrangeiro de nacionalidade indeterminada mas de origem alemã. Decide, então, tentar sair do país
ilegalmente”. A travessia é cansativa e dolorosa para Benjamim, já muito doente. “na fronteira com a Espanha,
perto de Port Bou, [...] Benjamin e outros que estavam com ele [...] são avisados que não podem passar e que
devem voltar para a França [...] pois não têm os documentos necessários: falta o visto de saída da França, o visto
de trânsito através da Espanha não é suficiente. Desesperados e exaustos, ainda conseguem permissão para
passar a noite do dia 25 ao dia 26 de setembro num pequeno hotel, que se chama Hostal International. No dia 26,
de manhã cedo, Benjamin chama Hanny Gurland e lhe diz que tomou na noite anterior a dose letal de morfina
que sempre trazia consigo. Agoniza o dia inteiro. [...] Morre pelas dez da noite. O médico diagnostica uma
“hemorragia cerebral” como a causa do óbito. Hanny Gurland cuida ainda de pagar uma vaga no cemitério por
cinco anos, mas não assiste à inumação porque, finalmente, consegue com os seus companheiros uma
autorização do chefe da polícia local para passar a fronteira e seguir rumo a Portugal.” in:
http://www.uesc.br/nucleos/nbewb/biografia.html. Acesso em 22 Jan. 2010.
6

nem o projeto Passagens, nem o livro sobre Baudelaire, mas ainda consegue escrever o artigo
“Sobre alguns temas em Baudelaire” e um de seus principais textos, intitulado “Sobre o
Conceito de História”, nascido em boa parte de um dos arquivos temáticos de Passagens,
nominado “N – Teoria do Conhecimento, Teoria do Progresso.”
Quanto ao gênero em que se insere Passagens, para Bolle (2007, p. 1144):

é e continua sendo uma das prioridades dos pesquisadores, como mostram os


debates. [...] As denominações usadas por Benjamin e pelos estudiosos das
Passagens abrem um rico leque de possibilidades de enfoque [...] que desembocam
sobre questões-chave teóricas e metodológicas de como organizar o saber histórico e
como escrever a história.

A primeira fase pode ser caracterizada como Esboço, termo usado por Benjamin no
período, pois se trata de algo provisório, que ainda não está terminado. No início de 1934, o
filósofo denomina seu projeto de “Coletânea”. Tanto o esboço, quanto a coletânea são
constituídos de fragmentos, que parece ser a denominação mais acertada, pois “aplica-se a
cada um dos materiais e notas, excertos, resumos, citações, trechos de outros textos, em suma,
as Passagens” (BOLLE, 2007, p. 1145).

2 ELEGIAS URBANAS: A LUTA

Y lo peor es que sobrevivimos


sobrevivimos siempre
al amor a la ruina
a la incesante sorpresa de la muerte
avanzo entre despojos
y sé que lo terrible
es que volvemos a ser felices
Selva Casal

Retomando o pathos que movimentou Benjamim no projeto das Passagens, de que


não há época decadente, como olhar as ruínas e a mercantilização do nosso tempo sem a
perspectiva da decadência? sem a perspectiva da comparação com um passado irrecuperável e
que parecia ser tão melhor, tão mais fácil?
Baudelaire (1995, p. 187) no poema em prosa “As janelas” diz:

Aquele que olha de fora através de uma janela aberta, não vê nunca tantas coisas
quanto aquele que olha uma janela fechada. Não há objeto mais profundo, mais
misterioso, mais fecundo, mais tenebroso, mais radiante do que uma janela
iluminada por uma candeia. O que se pode ver à luz do sol é sempre menos
7

interessante do que o que se passa por detrás de uma vidraça. Nesse buraco negro ou
luminoso vive a vida, sonha a vida, sofre a vida.

O presente pode ser comparado a essa janela fechada, misteriosa, tenebrosa,


fascinante, difícil de definir, de conceituar, pois estamos imersos nele, estamos vivendo a
vida, sonhando a vida, sofrendo a vida. Não há o filtro do tempo, as transformações são
constantes e atenuadas cada vez mais pela tecnologia, pelo fluxo de informações, pela rapidez
com que fatos, palavras, imagens transitam pelo mundo. Como todas as gerações, estamos
vivendo na busca pela felicidade, que segundo Agamben, (1999, p 66) tem como
característica ser “exigível a qualquer momento e em qualquer ocasião”. Benjamin também se
pronuncia em relação à felicidade dizendo que nossa imagem de felicidade é “marcada pela
época que nos foi atribuída pelo curso da nossa existência.” e que a “imagem de felicidade
está indissoluvelmente ligada à da salvação”. A felicidade seria interpretar o mundo à luz de
nossas necessidades, de se conseguir equalizar todo o sopro do passado, todo aquele
“encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa” e então conseguir se
ouvir o apelo do passado, que não pode ser “rejeitado impunemente” (Benjamin, 1994 p. 221-
222). Ao referir-se sobre livros de história Benjamin (2007, p. 523) afirma: “o
contemporâneo que reconhece por meio deles há quanto tempo a miséria que se abate sobre
ele vem sendo preparada [...] adquire uma alta opinião a respeito de suas próprias forças. Uma
história que assim o instrui não o entristece; ao contrário, ela lhe fornece armas”.
Um dos livros de poemas lançados no Brasil, bem na metade da primeira década do
século XXI, foi Elegias Urbanas4, de Marco Vasques5, editado pela Bem-Te-Vi, enpreende

4 A elegia é um gênero de poema que remonta ao século VII a.C., e Clonas é tido como o mais antigo autor de
poesia elegíaca. Originalmente a poesia girava em torno de diversos temas, em que a voz do poeta se coloca mais
frequentemente em cena exortando, lamentado, apontado a condição humana em suas facetas de miséria e
beleza, mas sempre permeando o tema com tons tristes, funéreos. O poeta inglês Coleridge considerava a elegia
uma forma “natural to a reflective mind” (CUDDON, 1982, p. 242) e essa mente reflexiva é uma das vigas
mestras que sustentam as Elegias Urbanas.
5 Marco Vasques, Nasceu em Estância Velha, RS, em 1974. Atualmente reside em Florianópolis, SC e trabalha
na Fundação Catarinense de Cultura. É poeta, contista, cronista, bacharel em Filosofia pela Universidade Federal
de Santa Catarina. Mestrando em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina. Atuou como
colaborador do caderno de cultura Anexo do jornal A Notícia e do jornal Leitura & Prazer da Editora da
Universidade Federal de Santa Catarina. Foi articulista de literatura do jornal Ô Catarina da Fundação
Catarinense de Cultura e do jornal literário Rascunho do Paraná. Atualmente é colaborador do Caderno de
Cultura do jornal Diário Catarinense. Tem publicado também os livros de poemas Cão no Claustro (2002,
Letradágua, Joinville, SC), Elegias Urbanas (2005, Bem-te-vi, Rio de Janeiro, RJ), Flauta sem boca (2010,
Letras contemporâneas, Florianópolis, SC). Em 2005 publicou também o livro de contos Harmonias do Inferno
(edição do autor, 2005, Florianópolis, SC). Entrevistou os principais escritores brasileiros contemporâneos e
puiblicou três volumes com entrevistas: Diálogos com a literatura brasileira – volume I (2004,
EdUFSC/Movimento, SC/RS), Diálogos com a literatura brasileira – volume II (2007, EdUFSC/Movimento,
8

em suas 25 elegias um esforço poético contra o gigantismo atual da sociedade capitalista,


cujos tentáculos estão cada vez mais resistentes e articulados no trabalho de sufocar qualquer
tentativa de revolta ao status quo vigente. Então, da mesma forma que o que resta ao homem
contemporâneo é não se entristecer ao perceber o peso da miséria e fazer disso a sua arma
para continuar, o poeta Marco Vasques assume para si a carga violenta de lutar contra o
estado firme e assustador da sociedade atual. Seu livro é a exposição desse embate: suas
causas, suas consequências. Reflexos de um homem perdido dentro da urbanidade, recheado
de melancolia, de um desespero contumaz diante da percepção de que não há um lugar
individual, solitário, sonhado, mas apenas o lugar dentro da cidade em ruínas, dentro do
trânsito, do caos, dentro de uma humanidade aparentemente morta ou indiferente. O homem
exposto nos poemas de Vasques é uma criatura urbana que recicla este caos, que se dilacera
diante da ruína, essa epilepsia da paisagem, como diz Jean-Paul Curnier (1994, p. 106), que
tem na ausência de divisas, de fronteiras entre o que seja naturalizado ou desnaturalizado, o
que seja humano ou inumano a sua forma de contemporaneidade: “não mais sabendo o que é
flor / plastico aço pedra ou cimento /[...] / eis o homem contemporâneo”, diz uma das elegias
(VASQUES, p. 22). Na apresentação, o poeta e editor da revista Babel, Antonio Demarchi
(2005, p. 7) confirma esse embate com o vazio:

a vida urbana, em sua rotina, padece amputada de experiências e de ritos que deem
sentido, situação que causa anestesiamento e o espanto de se descobrir „ainda a
respirar‟, após apalpar-se a face no espelho e auscultar-se num estetoscópio. Em
lugar do homem o que há é um espantalho oco.

Um dos tipos emblemáticos estudados por Benjamim nas Passagens é o flâneur,


Segundo Benjamin (2007, p. 462 - [O Flâneur] [M 1, 4] ) no konvolut “O Flâneur”:

Paris criou o tipo do flâneur. É estranho que não tenha sido Roma. Qual a razão? Na
própria Roma, o sonho não percorreria ruas pré-traçadas? E não está aquela cidade
demasiadamente saturada de templos, praças cercadas e santuários nacionais, para
poder entrar inteira no sonho do transeunte, como cada paralelepípedo, cada tabuleta
de loja, cada degrau e cada portão? É possível explicá-lo em parte também pelo
caráter nacional dos italianos. Pois não foram os forasteiros, mas eles, os próprios
parisienses, que fizeram de Paris a terra prometida do flâneur, a “paisagem
construída de pura vida”, como Hofmannsthal certa vez chamou. Paisagem – é nisso
que a cidade de fato se transforma para o flâneur. Ou mais precisamente: para ele, a
cidade cinde-se em seus pólos dialéticos. Abre-se para ele como paisagem e fecha-se
em torno dele como quarto.

SC/RS). Diálogos com a literatura brasileira – volume III (2010, Movimento, RS). Possui contos e poemas
publicados nas revistas Agulha, Babel, Coyote, Blau, e Cult. Editor da Revista de Literatura e Arte Osiris.
9

O flâneur tinha a cidade como paisagem, como espaço para o “refúgio do proscrito”,
“entorpecente do abandonado” (BENJAMIN, 1994, p. 51), o lugar ideal para se exercer a
solidão, para ser mais que um passeador filosófico, ser um lobisomem, ser caminhante atento,
mas, ao mesmo tempo, suspeito, observado e observador, cujo exemplo inicial se encontra no
conto de Poe, “O Homem na Multidão”, em que o narrador, depois de observar vários tipos
nas ruas, fixa-se em um “um semblante (o de um velho decrépito, de uns sessenta e cinco anos
de idade), um semblante que de imediato se impôs fortemente à minha atenção, dada a
absoluta idiossincrasia de sua expressão.” a ponto de segui-lo por horas, até chegar a
conclusão de que “este velho [...] é o tipo e o gênio do crime profundo. Recusa-se a estar só.
É o homem da multidão.”6 A partir desse conto, Benjamim (2007, p. 465 [O Flâneur] [M 2,
8]) expõe a dialética da Flânerie: “de um lado, o homem que se sente olhado por tudo e por
todos, como um verdadeiro suspeito; de outro, o homem que dificilmente pode ser
encontrado, o escondido”.
Baudelaire (1996, p. 65) em “As massas” diz

O andarilho solitário e pensativo tira uma embriaguez singular desta universal


comunhão. Aquele que desposa facilmente a massa conhece gozos febris, dos quais
serão eternamente privados o egoísta, trancado como um cofre, e o preguiçoso,
internado como um molusco. Ele adota, como suas, todas as profissões, todas as
alegrias e todas as misérias que a circunstância lhe apresenta.

A imagem de uma multidão assustadora, violenta, se tornou fundamental para


Baudelaire. Se por um lado ela assumia flânerie como forma de se imiscuir, de pertencer
completamente à multidão, por outro, existia nele a sensação de que não o abandonava a sua
natureza humana. Baudelaire se mistura à multidão “intimamente, para, inopinadamente,
arremessá-la no vazio com um olhar de desprezo”(BENJAMIN, 1994, p. 121), talvez somente
assim Baudelaire poderia “desposar a massa” e continuar um solitário, afinal, ele “amava a
solidão, mas a queria na multidão”(BENJAMIN, 1994, p. 121). Essa aproximação, ou
“ambivalência”, foi um dos eixos centrais dos poemas de Flores do Mal. sobretudo aqueles
contidos no capítulo “Quadros Parisienses” em que personagens da cidade são vistos e
descritos por Baudelaire de tal forma que a proximidade gera uma identificação, a ponto de
quase não haver mais distância entre o poeta e o objeto poetizado mas também eleva-se a
carga de exposição da condição humana, pois o mergulho de que o homem baudelairiano faz

6 POE, E. “O homem na Multidão” in: www.ufrgs.br/proin/versao_2/textos/homem.rtf. Acesso em 10 Out. 2011.


10

na multidão “é como em um tanque de energia elétrica”(BENJAMIN, 1994, p. 125). Acontece


um choque, a experiência do choque.
No livro Elegias Urbanas, Vasques (2005, p. 17) propõe a rua também como cenário
que fornece ao poeta seus personagens:

“[...] e eu que saí de casa / de olhos vendados / vi homens tristes nas esquinas / e
mulheres baratas à minha espera / seios tatuados com cifras / de todos os dinheiros /
dependurados em fios elétricos / prontos para o choque dos corpos suados / dos
homens que abrem valetas / na rua onde serão enterradas / suas próprias carnes / [...]
Eu que saí de casa / de olhos vendados vi tudo isso e muito mais.”

A crença de Baudelaire de que “gozar a massa é uma arte” e que “o poeta goza deste
incomparável privilégio de poder ser, a bel prazer, ele próprio e outrem, como almas errantes
que buscam um corpo, ele entra, quando quer, na personagem de cada um, somente para ele
tudo está vacante”, (Baudelaire, 1996, p 65), se tornou um passado onírico para o poeta de
agora que está engolido demais pelas ruínas do mundo capitalista, a ponto de sair de casa
“com os olhos vendados” e, mesmo assim, ser obrigado a ver o que não quer ver, ser obrigado
a partilhar as coisas que atravessam as ruas “sem sangue e sem riso” (Vasques, 2005, p. 17).
Coisas e pessoas que se mercantilizam de forma constante na sua frente. O ato de “sair com
olhos vendados” assume as vezes de paliativo, mas é ineficiente, pois a visão da urbanidade já
está impregnada na memória, mais até, está impregnada é na memória da pele 7 como uma
ruína. Nenhuma artimanha impede que o poeta veja “tudo isso e muito mais”.
Em Baudelaire a rejubilação pelos vícios seus e alheios e o esplender pelas virtudes
avistadas nas ruas advinham do spleen. De acordo com Olgária Matos (1997, p. 1135):

O spleen como ideal constitui, para Baudelaire, um campo existencial e político,


spleen e ideal são entidades espirituais e também a intenção que visam: o passado,
no spleen, o futuro, no ideal. Com isto, Baudelaire evita o pessimismo e o niilismo,
porque o poeta busca valores.

Para Benjamim, Baudelaire queria reconhecer no mundo o bem e o mal, no mundo


das Elegias Urbanas o mal, ou o niilismo, abre vantagem, “e nas vias fetos caminham / em
direção ao nada” (VASQUES, 2005, p.15). Na leitura de Olgária Matos (2007, p. 1137) “o
indivíduo contemporâneo é alguém cujo o mundo próprio esvaziou-se de valores ou no qual
os próprios valores degradaram-se”. Esse esvaziamento, detectado por Benjamin quando

7 Expressão tirada da letra “Memória da pele” de Waly Solomão e musicada por João Bosco: “Bate é na
memória da minha pele / Bate é no sangue que bombeia / Na minha veia.”
11

pensa o início da transformação do ser humano, como força de trabalho, em mercadoria, se


aprofunda substancialmente na contemporaneidade. No início, essa transformação estava
aliada ao prazer que o flâneur sentia nas ruas:

Na atitude de quem sente prazer assim, deixava que o espetáculo da multidão agisse
sobre ele. Contudo o fascínio mais profundo desse espetáculo consistia em não
desviá-lo, apesar da ebriedade em que o colocava, da terrível realidade social. Ele se
mantinha consciente mas de maneira pela qual os inebriados “ainda” permanecem
conscientes das circunstâncias reais. [...] Para o flâneur, um véu cobre essa imagem.
A massa é esse véu; ela ondeia nos “franzidos meandros das velhas capitais”. Faz
com que o pavoroso atue sobre ele como um encantamento. Só quando esse véu se
rasga e mostra o flâneur „uma dessas praças populosas que, durante os combates,
ficam vazias de gente‟ – só então, também ele, vê a cidade sem disfarces.
(BENJAMIN, 1994, p. 55-56)

O poeta de agora não possui mais o véu, ele não consegue mais ver a cidade com o
disfarce da multidão, o prazer se esvaneceu, a mercadoria se impôs feérica, a máxima “tempo
é dinheiro” virou o sustentáculo da ética do nosso tempo, a busca de um sentido para a vida
perde espaço diante das leis do mercado, das imposições da sociedade capitalista e seu ritmo
frenético. Aprofunda-se o tempo da monotonia que é o “tempo estagnado, é a temporalidade
que se exprime na ansiedade de „matar o tempo‟ (MATOS, 1997, p. 1134). Já não há mais
separação entre cidade e multidão, e “nunca fez tanta falta uma mão solta / na tarde de
domingo / para escalar um coração que chora” (VASQUES, 2005, p. 35). Já não há mais
espaço para a flânerie desocupada e poética. O andar pela cidade agora se faz aos tropeços,
lutando contra os buracos, a indiferença, a desconfiança e está cada vez mais condenado à
inexistência diante da supremacia dos automóveis, essa espécie de casa, ou de ruína, sobre
quatro rodas. Interessante notar que Benjamim percebeu, a princípio uma dissonância entre o
“prazer” descrito por Baudelaire e uma passagem de Engels bastante reveladora da condição
urbana das cidades do período, especificamente, as inglesas:

O próprio tumulto das ruas tem algo de repugnante, algo que revolta a natureza
humana. Essas centenas de milhares de pessoas de todas as classes e situações, que
se empurram umas às outras, não são todas seres humanos com as mesmas
qualidades e aptidões e com o mesmo interesse em serem felizes?... E, no entanto,
passam correndo uns pelos outros, como se não tivessem absolutamente nada em
comum, nada a ver uns com os outros; e, no entanto, o único acordo tácito entre eles
é o de que cada um conserve o lado da calçada à sua direita, para que ambas as
correntes de multidão, de sentidos opostos, não se detenham mutuamente; e, no
entanto, não ocorre a ninguém conceder ao outro um olhar sequer. Essa indiferença
brutal, esse isolamento insensível de cada indivíduo em seus interesses privados,
avultam tanto mais repugnantes e ofensivos quanto mais esses indivíduos se
comprimem num espaço exíguo. (In: Benjamin, 1994, p. 54)
12

A descrição de Engels continua sendo um retrato fiel das nossas cidades atuais. Nota-
se, claro, que esse distanciamento, esse isolamento dilatou-se devido a questões como a
insegurança, a concorrência, o individualismo exacerbado que se tornou a tônica dos tempos
atuais. Benjamin justifica a obscuridade causada pelo “prazer” baudelairiano de se achar em
uma multidão com a ideia de que o que realmente fala na voz de Baudelaire é a mercadoria, é
o homem, como força de trabalho, transformado em mercadoria. A geração de Baudelaire
estava iniciando esse processo de transformação, ou conforme Benjamin (1994, p. 55) afirma,
era o “início do declínio”, um dia teriam que se

defrontar com a natureza mercantil de sua força de trabalho. Esse dia, porém ainda
não chegara. Até então, se assim se pode dizer, podiam ir passando o tempo. Como
na melhor das hipóteses, o seu quinhão podia temporariamente ser o prazer, jamais o
poder, o prazo de espera que lhes concedera a História se transformava num objeto
de passatempo. Quem sai em busca de passatempo, procura o prazer.

Assim, parece que agora há uma união entre as duas coisas: a visão de Engels sobre
a indiferença nas cidades permanece vigente e a mercadoria passou a ser a espinha dorsal das
nossas relações, ou seja, nos defrontamos com nossa natureza mercantil, estamos imersos na
produção e no consumo, sustentáculos do sistema capitalista. Estamos sem tempo para o ócio
ou para qualquer pausa que não tenha fundo consumista, ou conforme Olgaria Matos (2007, p.
1135) “a modernização comprime o tempo no desejo de consumo ilimitado [...] embora
aparentemente diversos, abulia e agitação constituem dois aspectos do tempo presente: „as
duas atitudes possuem um traço comum: a reificação de si‟” E mesmo a busca pelo
“passatempo” pela diversão é permeada pela mercadoria e pela indiferença. É como se não
houvesse mais tempo para „humanidades‟ e fosse preciso preencher os espaços vazios com
consumo, e fosse preciso unificar-se com a mercadoria, até mesmo para poder suportar a
ausência do véu da multidão e assim criar uma nova forma de prazer. Essa parece ser a nossa
grande e maior ruína.
Segundo Mario Perniola (2006. p. 58):

cada vez más, de hecho, tenemos la impresión de que entre el hombre y las cosas se
haya producido um proceso de recíproca osmósis, por el cual el primeiro se ha
convertido em algo parecido a las segundas, y viceversa, las segundas han asumido
características cada vez más humanas. Esta doble transferencia no afecta solamente
al ámbito del conocer y del obrar, sino también al del sentir, el la vastedad de sus
acepciones, desde la sensibilidad a la emotividad, desde la escucha a la afectividad.
Por um lado las cosas sienten em nuestro lugar, por outro nosotros estamos dentro de
13

un proceso de coisificación más radical y profundo del que hemos conocido em el


pasado, porque afecta a la experiencia em su aspecto más inmediato y más íntimo.

Coisificar-se é nosso processo atual. Estamos vivenciando o trânsito entre o humano


e a coisa, já sem fronteiras definidas, sem separações que estabeleçam prioridades,
preferências, superioridades, sobretudo do homem em relação à coisa ou à natureza.
Movimento percebido por Drummond no irônico poema “Eu, Etiqueta”8 em que o poeta vê a
derrocada do homem:

Por me ostentar assim, tão orgulhoso / de ser não eu, mas artigo industrial, / peço
que meu nome retifiquem. / Já não me convém o título de homem. / Meu nome novo
é Coisa. / Eu sou a Coisa, coisamente.

A luta antevista em Elegias Urbanas é uma luta pelo resgate do título de homem, é
uma tentativa de se “descoisificar”, pois o homem passa a ser um espelho na cidade, refletir e
ser refletido nas coisas, nas mercadorias, assemelhar-se ao espaço urbano a ponto de se
mimetizar com ele: “eu sou filho da urbanidade / navego pelas artérias de concreto / com a
mesma empáfia dos automóveis / com a mesma tristeza metálica das placas solitárias / com o
cínico anseio de sucesso” (VASQUES, 2005, p. 25). Ao não se reconhecer mais, ou se
reconhecer apenas como coisa, como cenário, como mercadoria, o homem perde o referencial,
já não se diferencia mais como “humano”. A melancolia proeminente nas páginas de Elegias
Urbanas vem dessa não aceitação da ausência de fronteiras entre humano e coisa: a dupla
transferência, do homem à coisa, da coisa ao homem, para usar uma expressão de Perniola
(2006, p 58), é sentida, no entanto dificilmente aceita: “um homem procura as mãos numa
gaveta / para apalpar a face no espelho / encontra um estetoscópio e ausculta a si mesmo /
espantado por ainda respirar.” (VASQUES, 2005, p 26). É uma luta também contra a
aparência, a superfície, o mundo visual em que

só contam, portanto, as percepções visuais. Textos, luzes, setas, pregos, cartazes, que
surgem como presenças icônicas, autoritárias; fetiches: são nossos índices naturais.
Outra percepção qualquer - auditiva, olfativa, etc – desaparece na cidade de hoje,
cuja única prática é rápida, motorizada. (SARDUY, 1979, p. 134)

É um mundo de olhos. Dos olhos. Tudo se torna objeto para ser visto, consumido,
inclusive as ruínas do passado mítico, os pedaços da cidade que sobreviveram e que agora são

8 ANDRADE, C. D. In: http://projetos.educacional.com.br/paginas/pp/47080001/3854/t132.html. Acesso em 26


Set. 2011.
14

consumidos como espaço de fetiche. Um mundo em que a aura dissipou-se. Os outros


sentidos se atrofiam, os olhos tomam conta dos sentidos, e por isso, o reinado da aparência, da
casca em detrimento ao cerne, ganha cada vez mais espaço. Georg Simmel, citado por
Benjamin (2007, p. 477 - [O flâneur] [M 8a, 1]), no começo do século XX já antevia esse
predomínio da visão:

Aquele que vê sem ouvir fica muito mais... inquieto que aquele que ouve sem ver.
[...] As relações entre os homens nas grandes cidades ... caracterizam-se por um
acentuado predomínio da atividade da visão sobre a da audição. E isso ... antes de
tudo, devido aos meios de comunicação públicos. Antes do desenvolvimento que
tiveram, no século XIX, os ônibus, as ferrovias e os bondes, as pessoas não tinham a
ocasião de poder o de dever se olhar mutuamente durante minutos ou horas seguidas
sem se falar.

Se flâneur estava vestido de multidão, usava todos os sentidos nas suas investigações
pelas cidades, pois estava sempre “em plena posse de sua individualidade”(BENJAMIN,
2007, p. 473 [O flâneur] [M 8a, 1]) e tinha como fantasmagoria, “a partir dos rostos, fazer a
leitura da profissão, da origem e do caráter” (BENJAMIN, 2004, p 473 - [O flâneur] [M 6,
6]) dos observados, o esfacelamento progressivo deste comportamento substituiu as múltiplas
sensações dos sentidos físicos pela hegemonia da visão. Essa mudança, ou substituição altera
o posicionamento do indivíduo na cidade. Já não há mais possibilidade de identificá-lo, de
personalizá-lo por suas características, seus traços e marcas. A coletividade engole o
indivíduo, dissolve-o na massa. Sob o impacto da visão, o indivíduo perde-se na distância e se
torna anônimo e sem identidade (FERRARA, 2000, p. 89). Além da reificação de si, o
indivíduo se tornou uma estatística, um número na cédula de identidade e CPF. Vasques
(2005, p. 34) detecta a irreversibilidade dessa nova ordem: “2.715.502 1 ou 808951239-91 /
nenhuma voz carne ou sangue é capaz de alterar / a minha fisionomia numérica no mundo” e,
claro, desespera-se: “nunca uma pele me foi tão áspera / nunca a palavra rangeu como sino
fúnebre / parecendo cicuta na voz noturna.” Esse desespero advém do fato de que o indivíduo
que permeia Elegias Urbanas é alguém numerado, digitalizado pelos sistemas de controle,
mas que ainda tateia em si um rosto, uma possibilidade de identificação menos fria. Simmel
(1976, p. 170), outro pensador visionário percebia que o homem moderno estava se tornando
cada vez mais um “elo em uma enorme organização de coisas e poderes que arrancam de suas
mãos todo o progresso, espiritualidade e valores, para transformá-los de sua forma subjetiva
na forma de uma vida puramente objetiva”. Em Elegias Urbanas, um dos enfrentamentos é
justamente contra essa objetivação contumaz do homem, por isso há também um desejo
15

latente de se recuperar a aura perdida, ou a auréola perdida, numa referência a um dos poemas
em prosa de Baudelaire. Benjamin (1985, p. 170) diz que a aura é

uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única


de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja. Observar em repouso, numa
tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho, que projeta sua
sombra sobre nós, significa respirar a aura dessas montanhas, desse galho.

Baudelaire descreveu o declínio da aura, segundo Benjamin (1994, p 141), de forma


cifrada, de forma que expõe “olhos que haviam por assim dizer perdido a capacidade de
olhar”, pois o poeta sabia que naquele período histórico o olhar mítico, o olhar arcaico, que
via a aura das coisas é uma ilusão, uma fantasmagoria. Surge assim aquela que viria a ser a
única experiência possível: a experiência vivida do choque, que se contraporia a experiência
autêntica. Esta, para Benjamin (2007, p. 640. [Ócio e Ociosidade] [m 2a, 4], estava associada
à ideia de continuidade, de sequência, enquanto a experiência pelo choque, ou a vivência é
individual, atomizada e fantasmagórica.
Benjamim (1984, p. 170) detecta o declínio da aura na modernidade quando o
homem moderno tem como preocupação fazer as coisas ficarem mais próximas, assim se
torna mais irresistível “a necessidade de possuir o objeto, de tão perto quanto possível, na
imagem, ou antes, na sua cópia, na sua reprodução”. Chega-se novamente no consumo, seja
do objeto em si, seja de sua reprodução, já não é mais um valor de culto, mas um valor de
exposição, não apenas dos objetos e suas cópias, mas do próprio corpo, da própria aparência.
Para a ensaísta portuguesa Maria João Cantinho (2010, p. 88), com a consciência do declínio
da aura acontece a experiência do choque:

Dizer perda de experiência significa dizer também experiência do choque


[Chockerlebnis], visto que toda a experiência do homem moderno do século XIX
nos aparece à luz dessa impossibilidade de uma experiência autêntica. A experiência
do choque nasce e desenvolve-se, par a par com a consciência do declínio da aura
[...], declínio que faz nascer um mundo ilusoriamente transfigurado, permitam-nos a
expressão, “fantasmagorizado”, mediante a necessidade de tornar suportável a
9
história arruinada, num mundo marcado pelo fetiche da mercadoria.

Novamente a mercadoria fetichizada impondo-se, dominadora, à vida do homem


moderno. A experiência de captar a aura se perde nesse processo de mercantilização das

9 CANTINHO, M J. O anjo melancólico – ensaio sobre o conceito de alegoria na obra de Walter Benjamin. p.
88, in: http://br.monografias.com/trabalhos-pdf902/o-anjo-melancolico/o-anjo-melancolico.shtml. Acesso em: 01
Out. 2011.
16

coisas e do próprio homem, pois uma das bases para se captar a aura era olhar e, ao ser visto,
revidar o olhar: “perceber, a aura de uma coisa significa investi-la do poder de revidar o
olhar.” (BENJAMIN, 1994, p. 140). Benjamin (1994, p. 144) também detecta um paradoxo
em Baudelaire, quando este escreveu:

Perdido neste mundo vil, acotovelado pelas multidões, sou como o homem fatigado
cujos olhos não veem o passado, na profundidade dos anos nada além do desengano
e da amargura, e, à sua frente, senão a tempestade, onde não está contido nada de
novo, nem ensinamentos nem dores

Já não é mais o flâneur que fala, já não é mais o homem que via a multidão como um
ser com impulsos próprios, com alma, aquela multidão que o havia fascinado a ponto de
querer se casar com ela. Um sentimento de impotência faz com que Baudelaire se volte contra
a multidão, determinando “o preço que é preciso pagar para adquirir a sensação do moderno”
(apud BENJAMIN, 1994, p. 145).
O homem de Elegias Urbanas deseja resgatar a aura perdida, mesmo que
ilusoriamente, mesmo que a própria aura também já tenha se transformado em mercadoria,
para isso ele grita contra a multidão esmagadora, grita contra a coisificação de si e dos seus
pares a ponto de perder seu próprio corpo, suas próprias sensações, e se tornar um receptáculo
de sonhos alheios: “eu não sou mais minha carne e meu sonho / [...] eu sou filho do sono
insano de cada homem.” (VASQUES, 2005, p 40) A experiência do choque também se dá
diante da consciência de sua despersonalização.
Numa definição do que é o homem Paul Valery (apud BENJAMIN, 2007, p. 448
[Cidade de sonho e morada de sonho, sonhos de futuro, niilismo antropológico, Jung] [K 9,
3]) afirma: “O homem só é o homem na superfície. Levante a pele, disseque: aqui começam
as máquinas. Depois, você se perde numa substância inexplicável, estranha a tudo o que você
conhece e que é, entretanto o essencial.”
Pensando a humanidade atual como um objeto automatizado, mercantilizado, faz
com que o homem em Elegias Urbanas deixe de ser a si próprio para ser filho da insanidade
alheia, mas também faz com que ele parta em busca dessa substância essencial que há
embaixo do homem-máquina-mercadoria. Tal substância pode ser inexplicável, ou até mesmo
inalcançável nesses tempos pós-modernos, mas este homem empenha-se na busca, como se
abaixo da máquina houvesse a humanidade perdida, a humanidade mítica a ser resgatada. É
por essa busca que ele deseja um mundo marcado pelo lúdico, pelo silêncio atemporal:
17

estou farto de represas / e procuro nos classificados uma notícia assim / ontem se viu
na avenida algo inaudito / todas as mulheres carregavam buquês de flores nas
cabeças / todos os homens as esperavam / de ventres abertos / não houve grito berro
nem carros / ontem o mundo silenciou / as televisões foram desligadas e não houve
suicídio / ontem a terra parou sua rotação. (VASQUES, 2005, p. 49)

O desejo de uma desaceleração completa na vida, até o ponto em que tudo pare e
silencie, em que os movimentos automáticos de produção e consumo cessem, em que as
relações, os sentimentos, a vida não seja mais uma mercadoria comum no rol das horas. Há
também um desejo de se lutar contra o eterno retorno, a repetição contínua e contumaz de
situações que jogam o homem sempre num estado de inquietação, e ao se perceber
impossibilitado de uma mudança, surge a desesperança, o desespero, em alguns acontece a
indiferença, o tédio total.
Blanqui, em L’Eternité par les Astres: Hypothese Astronomique. um escrito
visionário, citado por Benjamim (2007, p. 155, [O Tédio, Eterno Retorno] [D 7; D 7a] afirma:

O futuro reverá sobre bilhões de terras a ignorância, as tolices, as crueldades de


nossas velhas eras! Na hora presente, a vida inteira de nosso planeta, do nascimento
até a morte, é vivida em parte aqui e em parte lá, dia a dia, em miríades de astros-
irmãos, com todos os seus crimes e suas desgraças. O que chamamos de progresso
está enclausurado em cada terra e desaparece com ela. Sempre e em todo lugar, no
campo terrestre o mesmo drama, o mesmo cenário, sobre o mesmo palco estreito
uma humanidade barulhenta, enfatuada de sua grandeza, acreditando ser o universo
e vivendo em sua prisão como numa imensidão, para logo desaparecer com o globo
que carregou com o mais profundo desprezo.

Essa visão aterradora de um mundo que se repete, que gera uma “atualidade
eternizada”, contra a qual a luta é sempre vã, atravessa as páginas de Elegias Urbanas, mas
mesmo assim existe uma luta, afinal é preciso resgatar, manter, frutificar ainda “alguma
delicadeza não mercantil”(VASQUES, 2005, p. 62). Se Baudelaire tinha o spleen “como
dique contra o pessimismo” e se nele a tristeza “permaneceu apenas no tête-a-tête claro e
sombrio do sujeito consigo mesmo” (BENJAMIN, 2005, p. 152-153), a luta de Vasques é
mais ferrenha, porque mais próxima da consciência dos excrementos do mundo como
alimento tanto para si, como para seus iguais10.
Na elegia inicial do livro, Vasques (2005, p. 13) visualiza o mundo prenhe de morte
em que o contato com a multidão é um incômodo gerador de uma bagagem difícil de carregar:

10 “O mundo… vive de si mesmo: seus excrementos são seu alimento.” Nietzsche. In: BENJAMIN, W
Passagens. [O Tédio, Eterno Retorno] [D 8, 4] p. 155.
18

“e a bagagem que nos sobra / são metais agudos asfalto / faixas prédios advertências / placas
ossos vozes e verbos / que ressoam no ouvido / e se transformam em campânula / eclâmpsia /
morredouro do sentido.” Assim, tem que se carregar nas costas não apenas a multidão, mas
toda a cidade, cidade-multidão mercantilizada, alheia e indiferente, presa a seus desejos de
consumo, uma cidade grávida com eclâmpsia, sem noção da gravidade de seu estado. Se a
luta de Baudelaire, como herói, é “justamente contra os sonhos fantasmagóricos da sociedade
imersa num imenso sonho coletivo” e ele encarregou-se

de aniquilar esses sonhos, destruindo essas fantasmagorias com a violência do


esgrimista ou herói moderno, denunciando-os, erguendo o estandarte da sua lírica
alegórica contra os espectros de uma sociedade decadente e iludida com as suas
crenças [...] Usando a técnica do esgrimista, mediante minúsculas improvisações que
funcionam como pequenos choques que anulam a falsa continuidade da experiência,
fazendo explodi-la do seu interior (CANTINHO, 2010, p. 95).11

Em Vasques, a luta não é tão delicada quanto a esgrima, nem tão honrada.
Assemelha-se mais à luta corporal, o vale-tudo nos seus inícios quando o único impedimento
era colocar os dedos nos olhos do adversário12, ou seja, não cegá-lo, deixá-lo ver e ver-se
completamente entregue à luta sem chances de vitória, mas com instinto suficiente para
continuar lutando: “no aborto dos órgãos só varia / a estupidez humana em aperfeiçoar / os
acordes da vida / quando se está condenado a / tocar sempre a mesma nota,” (VASQUES
2005, p. 24) quando se está condenado a lutar a mesma luta, a viver tudo de novo, a remexer-
se num passado sempre presente, a saber que Blanqui (Apud BENJAMIN, 2007, p. 154) [O
Tédio, Eterno Retorno] [D 7; D 7a]) estava certo quando disse que “todo ser humano é, pois,
eterno em cada um dos segundos de sua existência”. Conviver com essa verdade e também
com uma cidade em que não há mais o véu da multidão, em que tudo e todos formam uma
única humanamercadoria e tentar separar de novo esses dois elementos, mesmo que
quixotescamente, mesmo sabendo que tudo é uma “antropofagia absurda”(VASQUES, 2005,
p. 43) é o combate no qual o homem de Elegias Urbanas está inserido desde as primeiras

11 CANTINHO, M J. O anjo melancólico – ensaio sobre o conceito de alegoria na obra de Walter Benjamin.. p
95 in: in: http://br.monografias.com/trabalhos-pdf902/o-anjo-melancolico/o-anjo-melancolico.shtml. Acesso 12
Set. 2011.

12 “A proposta inicial do vale-tudo, como o nome sugeria, era fazer uma batalha realmente feroz entre os
combatentes. As lutas não tinham limite de tempo e não era incomum ela acabar quando um participante saía
carregado do ringue. Os lutadores sequer usavam luvas no começo das competições e um dos únicos
impedimentos era colocar o dedo nos olhos dos adversários.” in
http://www.abril.com.br/noticia/diversao/no_192417.shtml. Acesso em 12 Set. 2011.
19

páginas até o verso final quando pronuncia de forma enfática: “eu sou o guardador de
sombras” (VASQUES, 2005, p. 62).

3 REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. Ideia da prosa. Lisboa: Cotovia, 1999.

BARRENTO, João. O arco da palavra. São Paulo: Escrituras, 2006.

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20

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Cendeac: Murcia, 2006.

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SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo

ENTRE A MORTE, FUNÇÕES E GESTOS: O AUTOR E A FILOSOFIA*

Joachin Azevedo Neto1 (PPGH/UFSC)

RESUMO

No ensaio A morte do autor (1988), Barthes postula que é a linguagem que fala; não o autor.
Em 1969, na conferência O que é um autor?, Michel Foucault discorre, entre outros temas,
sobre a função de autor, gestada no fim do século XVIII, que converte os escritores em
instauradores de discursividades. Na obra Profanações, o filósofo italiano Giorgio Agamben,
considerado um dos grandes interlocutores contemporâneos do pensamento de Foucault,
retoma a discussão associando o conceito de gesto ao de autoria. Este trabalho pretende
discutir as aproximações e tensões entre a postura desses três pensadores sobre a noção de
autoria e, desse modo, contribuir para os debates que propõem um diálogo entre a literatura e
a filosofia.

Palavras-chave:
Autor. Barthes. Foucault. Agamben.

ABSTRACT

In the essay The Death of the Author (1988), Barthes posits that it is language which speaks,
not the author. In 1969, the conference What is an author?, Michel Foucault discusses, among
other things, depending on the author, conceived in the late eighteenth century, which
converts the writers in a foundational discursive. In the book profanity, the Italian philosopher
Giorgio Agamben, one of the major stakeholders of the contemporary thought of Foucault,
the discussion takes the concept of associating the act of authorship. This paper aims to
discuss the approaches and tensions between the attitude of these three thinkers on the notion
of authorship and thus contribute to the discussions which propose a dialogue between
literature and philosophy.

Key-words:
Author. Barthes. Foucault. Agamben.

O conceito de autor é um termo que provocou mais divergências e polêmicas do que


consensos entre os principais pensadores do século XX. Seja como for, os debates que
almejaram destituir o privilégio dado, em demasia, ao arquiteto da escrita e eleger, em seu
lugar, a linguagem como principal foco dos estudiosos da literatura gestaram reflexões ainda
muito atuais. Pretendo aqui abordar as aproximações e tensões, que podem ser mapeadas,
entre Roland Barthes, Michel Foucault e Giorgio Agamben em torno da noção de autor. De
*
Este ensaio é fruto de algumas leituras sugeridas pela professora Bernardete Flores, durante a disciplina de
Teoria e Metodologia da História, ligada ao PPGH da UFSC.
1
Doutorando em História Cultural pelo Programa de Pós-Graduação em História da UFSC; orientando da Profª.
Drª. Maria de Fátima Fontes Piazza; bolsista da CAPES; e-mail: joaquimmelo@msn.com.
2

modo geral, essa aproximação entre filosofia, literatura e história – realizada por esses
pensadores – é indispensável para se compreender os rumos contemporâneos que os estudos
literários tomaram.
Formado em Letras Clássicas, Gramática e Filosofia, Barthes ganhou visibilidade,
inicialmente, enquanto intelectual estruturalista ligado ao pensamento do linguista Saussure.
Porém, é interessante salientar que sua trajetória acadêmica foi marcada por uma reviravolta.
Barthes assumiu uma postura crítica em relação à teoria literária de meados do século XIX,
exaltadora da biografia e historicidade da obra e que no final do século tornou-se intimista;
bem como no que diz respeito à ânsia estruturalista, do começo do século XX, em
homogeneizar todas as coisas em categorias, inclusive os textos.
Ao realizar esse movimento autocrítico em relação a sua atuação no estruturalismo,
Barthes recontextualizou sua obra e foi enquadrado no rol dos críticos pós-estruturalistas. É
dentro desse quadro de renovação que o conjunto de ensaios, reflexões e provocações
reunidos sob o título de O rumor da língua foi publicado em 1988, no Brasil.
Em “A morte do autor”, Barthes inicia seu ensaio citando a novela Serrasine, de
Balzac. Até que ponto os personagens seriam representantes do pensamento do escritor? Para
Barthes, é preciso pensar a escrita como o campo da performance e não da genialidade. O
autor é uma construção moderna e o positivismo foi a corrente intelectual que conferiu maior
importância a autoria, em um momento de supervalorização do prestigio individual. Barthes
critica, portanto, a relação feita entre vida do autor e texto. É a linguagem que fala, não o
autor.
Mallarmé e Proust vão ser os pioneiros, na literatura, em buscar priorizar a
linguagem ao invés da autoria. O surrealismo também contribuiu para a dessacralização da
figura do autor. Para Barthes, o livro não é gestado antes de sua escrita. Todo ato de escritura
é uma prática performática, ou seja: é um ato que reside no espaço do aqui e agora. O autor é
responsável por misturar as escritas, fazendo uma bricolagem de textos diferentes. Deste
modo, um escrito remete a outro, em uma intertextualidade infinita. Thomas de Quincey
usava um complexo dicionário de grego clássico para escrever. Essa constatação, para
Barthes, evidencia a inexistência de nexos entre escrita e vida. O escritor não escreve a partir
de suas impressões e sentimentos, mas de imitação de signos já emitidos.
Por isso, a literatura deveria ser chamada de escritura e o autor encontrará seu
reinado não na obra, mas por meio dos pareceres emitidos pela crítica. É preciso, portanto,
apagar o autor e dar visibilidade ao leitor. Mais ainda: conforme indica o próprio título do
ensaio posterior, “A morte do autor”, é preciso partir “Da obra ao texto”. Essa mudança em
3

operação estaria sendo proporcionada, nas Letras, pelo advento da interdisciplinaridade.


Substituir o termo “obra” pela ideia de “texto” significa dizer que a obra é materialidade, está
nas estantes das livrarias e bibliotecas e o texto é linguagem, está vivo e palpitante nos
discursos. Enquanto a obra estaciona nas prateleiras, o texto atravessa várias obras.
O texto se torna assim paradoxal, pois usa a linguagem, enquanto discurso, para
debater os próprios limites da linguagem. Sejamos mais concisos: a obra se fecha sobre seu
significado e o texto pode abrir-se para um infinito de significados. O texto não é fechado,
unilateral, pelo contrário: possui uma pluralidade esferográfica. A metáfora ideal para que a
ideia de texto possa ser mentalizada é a passagem bíblica do homem possuído por vários
demônios: o texto possui uma legião de referências por trás de seu corpus e pode ser muitos
ao mesmo tempo.
O autor, para Barthes, não mantém uma relação paterna com o texto, mas uma
relação lúdica. É preciso exercitar a leitura sem a preocupação com a presença do pai do
texto. Praticar o ato da leitura como forma de consumo leva o leitor ao tédio. O tédio é gerado
quando não existe uma forma de interação entre leitor e texto. O texto está ligado ao prazer. 2
O prazer do texto reside em um postulado utópico: diferentemente da sociedade, na
linguagem textual não existem hierarquias. As linguagens, os discursos circulam livremente.
Ler é um prazer de consumo na sociedade moderna. Apesar de reconhecer que sua teoria do
texto é insuficiente para alicerçar um novo campo de conhecimento, Barthes propõe que as
metalinguagens devem ser destruídas.
Essas reflexões de Barthes foram decisivas para o surgimento das teorias da
recepção, que valorizavam o papel do leitor e da leitura no campo da literatura. A postura
polêmica do autor e sua escrita repleta de sensualidade, marca de um estudioso fascinado pelo
Marquês de Sade, também demonstram que é possível pensar filosoficamente sem se valer de
uma linguagem asséptica. Usar Barthes como guia para incursões na teoria da literatura e da
linguagem é permitir-se estar na companhia de um pensador para o qual o saber deveria
possuir um sabor.
O texto “O que é um autor?” foi apresentado, inicialmente, por Foucault em 1969 em
uma conferência na Sociedade Francesa de Filosofia. Foucault irá iniciar sua apresentação
rebatendo as críticas que sofreu quando publicou As palavras e as coisas. O filósofo foi

2
Na pequena obra O prazer do texto (2008), Barthes detalha melhor o que entende ser essa relação entre fruição,
leitura e escrita. Para esse estudioso da Literatura, os textos mais atrativos são aqueles que apresentam uma aura
de neurose. Ler seria um momento de entrega, de prazer e deleite e não uma prática passiva. Desse modo, para
Barthes, o crítico literário seria um perverso porque induz o leitor a tornar um mero voyeur. Basicamente, o
prazer do texto é semelhante ao provocado pela deriva e até mesmo o enfado diante de uma leitura é uma forma
de fruição marginal.
4

acusado de não explorar devidamente o pensamento de Marx e colocar lado a lado autores de
contextos completamente diferentes.
Foucault se defende dizendo que não buscou reproduzir o pensamento dos autores
que citou e nem enquadrá-los em uma família, em um conceito. A ideia era compreender suas
práticas discursivas. Embora considere válido refletir sobre os processos que instauraram a
crítica que fazia a alusão ao homem e a obra, Foucault quer se ater a relação entre texto e
autor.
Qual a importância do autor? Essa pergunta significa pensar que a escrita basta a si
mesma e se desdobra infinitamente até levar ao desaparecimento do sujeito. Se na Grécia
Clássica, a escrita imortalizava os heróis; nas sociedades modernas, o autor faz o papel de
morto no jogo da escrita. Por exemplo, para o filósofo, autores como Flaubert, Proust e Kafka
são exemplos de como “(...) O sujeito que escreve despista todos os signos de sua
individualidade particular” (FOUCAULT, 2011, p. 269).
A noção de autor está intimamente associada à de obra. Enquanto um autor polêmico
como o Marquês de Sade não fosse considerado enquanto tal, os papeis que ele preencheu e
assinou não tinha valor literário algum. Aqui entra em cena uma questão deixada de lado por
Barthes: a de que o trabalho editorial é repleto de lacunas e dilemas. Por meio de escolhas, é o
editor que impõe o que deve ser considerado como a obra de um autor.
Essa denominação de autor funciona quando ao mencionarmos o nome de
Aristóteles, por exemplo, isso equivale a uma descrição de um conjunto de obras e não de
uma pessoa. Acionar o nome de um autor permite agrupar, reagrupar e relacionar um conjunto
de textos. O nome de autor aciona um tipo de discurso que concebe um certo status a palavra
de quem é instituído como tal. A função de autor é gestada no fim do século XVIII, quando o
benefício da propriedade engloba o campo da literatura. Também, nesse período, o discurso
transgressor era associado diretamente ao indivíduo que o elaborou.
A crítica literária moderna definiu o autor a partir de uma apropriação feita dos
princípios da exegese cristã. São Jerônimo definiu os critérios básicos da autoria: constância;
coerência teórica; unidade estilística e contexto. Dito de modo enfático: buscar compreender o
texto por meio da biografia do autor – de sua evolução, maturação, influências – como foi
feito pela crítica do século XIX é uma prática de exegese cristã. Embora o autor imprima no
texto marcas de sua pessoalidade, nos romances são comuns a invenção de alter egos. A
pluralidade dos egos é acionada para gerar os discursos que instauraram a função de autor.
Ao conceituar a noção de função do autor, Foucault nos convida a enxugar as
lágrimas que poderiam brotar de nossos olhos diante da morte do sujeito. A função de autor
5

está ligada ao universo jurídico e institucional. O autor não é apenas aquele que elabora um
texto. Existem os autores transdiscursivos: aqueles que criam teorias, tradições, disciplinas
acadêmicas. Freud e Marx a partir dos discursos que criaram, estabeleceram possibilidades
infinitas para o surgimento de novos discursos. Como instauradores de discursividade, Marx e
Freud elaboraram conceitos e técnicas de analise que são apropriadas e recepcionadas para
além de seus próprios discursos. As obras de Freud não criaram uma ciência, mas é o discurso
científico que usa essas obras como se usasse um sistema de coordenadas.
O retorno, o reexame dos textos científicos: os textos de Freud e Marx acabam sob, a
ótica de um pesquisador, modificando a própria psicanálise e o marxismo. A relação de um
autor com seu texto não vai ser idêntica a relação que os adeptos de seu conhecimento
fundante irão travar com suas obras. A função “autor” não classifica apenas textos, mas
também obras, disciplinas.
É importante destacar que essas reflexões de Foucault (2011, p. 287) estão
interligadas com a sua proposta mais geral de repensar os privilégios cedidos ao sujeito
moderno. Com essa postura – ao contrário dos desconstrutivistas fanáticos que realizaram
uma leitura enviesada e panfletária do filósofo3 – Foucault não desejou aniquilar o sujeito das
Ciências Humanas, mas retirá-lo do papel central da ordem dos discursos e colocá-lo como
uma construção instituída, ele próprio, por vários discursos.
O autor não seria um gênio, mas um instaurador de discursividades. O autor pode se
fragmentar em vários ao longo de suas guinadas intelectuais. Portanto, diante do público e de
debatedores como Jacques Lacan, assim Foucault finaliza sua conferência: que importa quem
fala?
O filósofo italiano Giorgio Agamben é considerado, pela comunidade acadêmica
contemporânea, como um dos principais atualizadores do pensamento de Michel Foucault e
Walter Benjamin. Porém, é importante salientar que o diálogo entre Agamben e Foucault não
é aquele do tipo subserviente. O próprio pensador italiano fez questão de deixar claro seu
posicionamento quando refletiu sobre um conceito caro a Foucault: o de dispositivo.4

3
Uma crítica mais detalhada e aprofundada sobre essa apropriação radical e equivocada da postura
desconstrutivista, ostentada por intelectuais como Derrida e Foucault, feita no âmbito brasileiro pode ser
encontrada na obra Positivismo e desconstrução nas Américas, de Leyla Perrone-Moisés.
4
Em “O que é um dispositivo?”, Agamben salienta que o termo dispositivo é um conceito-chave para a
compreensão da obra de Foucault. Por mais que o filósofo francês tenha evitado se valer de categorias gerais
como Estado, Soberania, Poder etc. seu pensamento não esteve livre da presença desses conceitos operativos
generalizantes. Se a noção de dispositivo possui dimensões de sentidos jurídicos, militares e tecnológicos,
Agamben amplia o alcance dessa terminologia para conceituar qualquer coisa que “tenha (...) a capacidade de
capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as opiniões e os discursos
dos seres viventes” (AGAMBEN, 2009, p. 40).
6

Um dos caminhos metodológicos de Agamben é situar o lugar e o momento em que


determinadas ideias foram gestadas. Embora reconheça que possua uma imensa dívida com o
pensamento foucaultiano, Agamben (2009, p. 39-40) postula que existe um instante em que a
fala de autor se confunde com a de seu intérprete. É chegada, assim, a hora de “abandonar o
texto que está analisando e de proceder por conta própria” e é dentro dessa premissa que o
pensador nos convida a “abandonar o contexto da filologia foucaultiana” e ampliar a ideia de
dispositivo de acordo as demandas de nosso próprio tempo.
Que demandas seriam essas? Há de se convir que sejam as exigências políticas e
morais contemporâneas. Em uma das respostas dadas a um questionário de Guy Scarpetta, em
1971, Barthes (1988, p. 90-1) refuta o socialismo, adotado por intelectuais de sua época, como
Sartre e Camus e diz simpatizar, de modo reticente, com o resto que sobra entre o
imperialismo e o socialismo; algo ainda não nomeado.
Em 1984, Foucault (2006, p. 249) postulou que a “função de um intelectual não é
moldar a vontade política dos outros”. Assim, tentando sempre nas suas entrevistas realizar
um ajuste de contas com seus leitores, o filósofo francês pondera que aqueles que reduziram
seu pensamento a ideia de que o papel dos saberes seria, meramente, o de mascarar o poder e
que as verdades, bem como o real são inexistentes não tiveram a capacidade de compreendê-
lo. Lidar com os saberes e com as análises no campo universitário deve servir para modificar
nossas próprias concepções e hábitos engessados. Sendo assim, para Foucault, nada impediria
os intelectuais de exercerem suas aspirações políticas no terreno multifacetado da cidadania.
Já para Agamben, a geração de acadêmicos que está crescendo em meio aos ditames
do século XXI tem como principal tarefa “arrancar dos dispositivos – de todo dispositivo – a
possibilidade de uso que os mesmos capturaram. A profanação do improfanável é a tarefa
política da geração que vem” (AGAMBEN, 2007, p. 79). Essa premissa me parece
indispensável para um entendimento mais eficaz da noção de autor como gesto, que está no
cerne das várias reflexões da obra Profanações.
Primeiramente, é preciso um pouco de cautela para se perceber o que significa falar
em gestos para o filósofo italiano. Não é apenas no ensaio “O autor como gesto” que esse
termo é evocado por Agamben. Esse termo está diluído em todo o corpus da obra
Profanações e funciona como os poros que oxigenam as propostas desse autor. Por exemplo,
em “Genius”, o estilo dos autores consagrados é marcado pelo domínio de um gesto que
consegue afastar a presença do caráter do escritor de sua escrita. Já em “Magia e felicidade”,
os gestos trazem em si toda uma aura mágica. Os gestos seriam essas ações espontâneas e
enigmáticas que conseguem ultrapassar os limites da linguagem.
7

Na obra Além do visível: o olhar da literatura, Karl Schollhammer tece algumas


reflexões que estão interligadas com as discussões até aqui abordadas. Ao falar sobre a
amizade entre o polêmico e transgressor escritor Georges Bataille e o crítico de arte Maurice
Blanchot, Schollhammer endossa sua tese sobre a atualidade das discussões que versam sobre
os elementos pitorescos e expositivos da literatura e os elementos retóricos ou narrativos da
pintura. Para este teórico da literatura,

O gesto é aqui definido como o que sobra da ação de escrever, da obra e da


intenção comunicativa e transitiva, pois o gesto é indeterminado e
inesgotável, a soma das razões, pulsões e indolências que envolvem a
atmosfera da ação. Simultaneamente, o gesto abole a distinção entre causa e
efeito, motivação e alvo, expressão e persuasão, mas também confunde a
relação entre o gesto do artista e o artista do gesto. (SCHOLLHAMMER,
2007, p. 106)

Acredito que essa seja uma concepção de gesto também partilhada por Agamben,
sobretudo por se tratar de uma reflexão inspirada a partir de posturas que transgrediram as
fronteiras que, arbitrariamente, separam os reinos da escrita e da imagem. A paródia, por
exemplo, seria um modelo estilístico profanador por excelência. Ao discorrer sobre a
literatura italiana, Agamben menciona que esta é constituída por inúmeras obras regidas sob a
tutela deste gênero narrativo. A divina comédia é citada, assim, como um arremedo das
sagradas escrituras. A literatura satírica, portanto, é um bom exemplo de como a postura
burlesca do autor pode ser interpretada como um gesto profanador. Nesses tipos de escrita,
geralmente os papéis são invertidos: não é o autor que deve emitir a palavra final ao leitor,
mas é o próprio leitor que é provocado a orientar ou corrigir o autor.
Em “O autor como gesto”, Agamben inicia suas considerações justamente trazendo
para o debate a conferência de Foucault discutida no meio deste texto. Porém, para além das
funções de organizadores de disciplinas e criadores de discursividades, o autor é aquele que
por meio de um único gesto pode transitar livremente entre a ética e a trapaça.
Em La potencia del pensamiento, Agamben (2007, p. 268) reconhece sua dívida com
a ética que permeia os escritos filosóficos de Walter Benjamin. A ética, baseada na tradição
grega, seria concebida como a doutrina da felicidade. Um autor como Benjamin, arquiteto de
um pensamento labiríntico, não possuía uma visão melancólica da história influenciada pela
sua condição de judeu em uma sociedade eugenista. Para Agamben, a consciência da
catástrofe pode levar a felicidade. Recordar o que nunca foi visto, dever paródico da memória
histórica, em prol de um presente mais pleno é uma forma de redenção do passado.
8

A trapaça estaria no cerne da postura que coloca em jogo, nas tramas narrativas,
vidas que nunca existiram. São vidas jogadas, não realizadas. É em meio aos jogos que as
fraquezas podem se tornar astúcias e virtudes e o poder pode se voltar contra seu agente.
Segundo Agamben (2007, p. 61), agora em Profanações, “o autor nada pode fazer além de
continuar, na obra, não realizado e não dito. Ele é o ilegível que torna possível a leitura, o
vazio lendário de que procedem a escritura e o discurso”. Usar a personalidade do escritor
para mapear suas obras ou para expô-la como a chave da compreensão de seus escritos é algo
pouco profícuo.
A subjetividade do autor não deve ser aprisionada pelo dispositivo que o mesmo
almejou transgredir. Assim, o autor deve ser usado para a compreensão dos gestos pelos quais
os indivíduos se valem da linguagem, enquanto dispositivo, para burlar a própria lógica dessa
linguagem. Ao retirar o autor da condição sacralizada de cânone e convocá-lo para violar a
lógica que destina sua escrita “ao consumo ou à exibição espetacular”, Agamben (2007, p. 71)
concretiza seu valioso elogio da profanação.
Entre a morte, funções e os gestos, o autor continua sendo essa fantasmagoria que
assombra a literatura moderna. Do positivismo que destinou ao lugar de autor uma vaga no
panteão dos raros escolhidos até a constatação de que o leitor exerce um papel fundamental no
universo literário, o debate sobre os vínculos entre o vivido e o narrado continua em aberto. O
romance moderno foi extremamente bem sucedido ao representar pensamentos, sentimentos e
discursos. Tal empreitada foi possível graças aos domínios das técnicas de narração dos
autores. Em nosso tempo, a necessidade mais latente entre esses mestres do enredo seria a de
ampliar tanto a noção de discurso como de mundo vivido, de realidade, colocando, assim,
seus leitores diante de todas as possibilidades que podem ser abertas pela potência do
pensamento.

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2008.
9

_____. O rumor da língua. Tradução de Mário Laranjeira. São Paulo: Editora Brasiliense,
1988.

FOUCAULT, Michel. O que é um autor?. In: Ditos e escritos III: Estética: literatura e
pintura, música e cinema. Tradução de Inês Barbosa. Rio de Janeiro: Forense, 2011.

_____. O cuidado com a Verdade. In: Ética, sexualidade, política. Tradução de Elisa
Monteiro & Inês Barbosa. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

SCHOLLHAMMER, Karl. Além do visível: o olhar da literatura. Rio de Janeiro: 7Letras,


2007.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo

FOTOGRAMAS DE CINEMA E POESIA:


CRUZ E SOUSA – O POETA DO DESTERRO

Rosana Kamita (UFSC)1

RESUMO

Neste texto serão abordadas as relações entre literatura e cinema através da transposição às
telas dos poemas simbolistas de Cruz e Sousa no filme Cruz e Sousa – O Poeta do Desterro,
de Sylvio Back. Em uma adaptação, haverá aqueles que cobrem uma “fidelidade” à obra
literária, assim como existem os que esperam justamente o contrário, uma subversão ao
original, uma nova proposta. Portanto, não há uma orientação específica que afiance a “boa”
adaptação. Porém, o debate em torno do assunto é a garantia de que a aproximação entre
literatura e cinema é um campo fértil para várias análises.

Palavras-chave:
Literatura. Cinema. Adaptação.

ABSTRACT

In this paper we will discuss the relationship between literature and cinema through the
transposition to the screen of the symbolist poems from Cruz e Souza in the movie Cruz e
Souza- The Banished Poet, by Sylvio Back. In an adaptation, there will be those that demands
a "loyalty" to the literary work, as there are those who expect just the opposite, a subversion
of the original, a new proposal. Therefore, there is no specific orientation that ensure "good"
adaptation. But the debate over the issue is ensuring that the rapprochement between literature
and cinema is an interesting area for various reviews.

Keywords:
Literature. Cinema. Adaptation.

1 INTRODUÇÃO
A relação entre a literatura e o cinema tem sido calcada em inúmeras dificuldades e
durante este texto as críticas a essa aproximação serão discutidas. No entanto, a partir do
momento em que essa proximidade se efetiva de maneira positiva, o que se vê é o
enriquecimento mútuo das duas linguagens, as quais possuem suas especificidades e ao
mesmo tempo afinidades, como o demonstra o filme em questão Cruz e Sousa – O Poeta do
Desterro (1999), com direção de Sylvio Back. Ao se aproximar as duas manifestações, não há
o intuito de compará-las, ainda menos subordiná-las em uma pretensa hierarquização, mas
analisar os pontos de convergência que as unem, em que aspectos se afastam, o prazer estético
que advém de sua união.
O resultado final da união entre literatura e cinema na maior parte das vezes divide
opiniões, incita reações diversas devido às escolhas feitas pelo idealizador do filme que
2

podem não atender às expectativas do público. Em uma adaptação às telas, haverá aqueles que
cobrem uma “fidelidade” à obra literária, uma transposição fiel da mensagem literária, assim
como existem aqueles que esperam justamente o contrário, uma subversão ao original, uma
nova proposta. A ponderação entre esses dois extremos seria a tentativa de se captar a
essência do texto literário, associada às possibilidades que o cinema oferece, o que também
não é tarefa fácil. Portanto, não há uma orientação específica que afiance a “boa” adaptação.
Porém, o debate em torno do assunto é a garantia de que a aproximação entre literatura e
cinema é um campo fértil para várias análises.
É importante destacar que cinema e literatura utilizam sistemas expressivos diversos,
logo, a comparação entre as duas vertentes não é o melhor caminho. Ao expressar que o filme
distanciou-se da obra literária, seria necessário tentar definir de que maneira esse
distanciamento ocorreu. Para alcançar a proximidade com o espírito da obra, a correlação
visual pressupõe alterações, reinvenções, escolhas entre acrescentar ou suprimir determinados
acontecimentos, enfim, um novo olhar através de uma nova linguagem. O paradoxal é que não
há então motivo para se questionar sobre fidelidade ou traição, uma vez que se tornam modos
diversos de produção artística.
O roteiro seria a primeira forma de aproximação do filme com a literatura,
estabelecendo um nexo entre ambos. No entanto, as relações entre eles enveredam a outros
caminhos, como os que se referem ao desenvolvimento da estética do cinema e à indústria
cinematográfica. Dependendo dos objetivos em relação a uma adaptação será o
encaminhamento dado à mesma.
André Bazin em “Por um cinema impuro. Defesa da adaptação”, 2 refletiu sobre a
questão com um viés favorável ao hibridismo de linguagens. O autor expõe que o cinema de
início foi tentado a utilizar o teatro, o que gerou intensas críticas, devido ao apego excessivo à
arte mais antiga. Nesse sentido, a obra literária recebia uma maior consideração, pois os
filmes não se limitariam ao “teatro filmado”, mas teriam que transitar entre propostas mais
distantes do ponto de vista estético.
A influência entre as linguagens data de longo tempo, mas no caso do cinema, Bazin
ressalta a discrepância entre uma arte jovem e artes consagradas através da História. Assim,
pode-se perceber nessa relação uma certa tutela. Não nos esqueçamos, no entanto, da época
em que essas idéias foram abordadas, elas fazem parte de um contexto distante algumas
décadas das atuais discussões, o que, ressalte-se, não inviabiliza a contemporaneidade de

1
Prof.ª Dr.ª Rosana Kamita; e-mail: rosanack@yahoo.com.br.
2
In: BAZIN, André. O Cinema: Ensaios. Trad. Eloísa De Araújo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 1991.
3

muitos de seus argumentos. Nesse caso específico, o cinema tinha um tempo relativamente
curto de existência. Insere-se também nessa conjuntura, o posicionamento de muitos daqueles
que se dedicavam ao cinema: “Notemos em primeiro lugar que a adaptação, considerada mais
ou menos como quebra-galho mais vergonhoso pela crítica moderna, é uma constante da
história da arte.” (BAZIN, 1991, p. 84). O autor adverte, porém, que a aproximação do
cinema com a literatura não reflete, em si, que o resultado possa ser positivo ou negativo. Há
nuanças que percorrem essa imbricação:

Na verdade os verdadeiros obstáculos que devem ser vencidos, na hipótese de tais


adaptações, não são de ordem estética; não dependem do cinema como arte, mas
como fato sociológico e como indústria. O drama da adaptação é o da vulgarização.
[...] É absurdo indignar-se com as degradações sofridas pelas obras-primas literárias
na tela, pelo menos em nome da literatura. Pois, por mais aproximativas que sejam
as adaptações, elas não podem causar danos ao original junto à minoria que o
conhece e aprecia; quanto aos ignorantes, das duas uma: ou se contentarão com o
filme, que certamente vale por outro, ou terão vontade de conhecer o modelo, o que
é um ganho para a literatura. (BAZIN, 1991, p. 93).

O autor manifesta-se favorável ao diálogo entre cinema e literatura, considerando


que isso seja proveitoso para as duas artes envolvidas. Muitos vão aos cinemas atraídos pela
literatura, digamos, subjacente, enquanto outros, seduzidos pelo filme, recorrem à leitura do
livro.
Bazin destaca que a fidelidade ou não à obra literária levada às telas não se restringe
a uma questão de liberdade ou subserviência ao texto original, mas também aos propósitos
que regem a produção cinematográfica. Em tempos de um público que ainda se mantinha
muito próximo da expectativa do puro entretenimento, por vezes tornava-se uma opção do
diretor uma adaptação “leve”, que facilitasse a compreensão do filme. Nesse caso, a literatura
servia tão somente de “caução ao filme, de reservatório de idéias e de garantia de qualidade”.
(BAZIN, 1991, p. 93). Apesar de solicitar que não “apedrejemos” esses “fabricantes de
imagens”, escreve: “Quando se filma Madame Bovary em Hollywood, por maior que seja a
diferença de nível estético entre um filme americano médio e a obra de Flaubert, o resultado é
um filme americano standard que só tem, afinal, o mal de se chamar ainda Madame Bovary.”
(BAZIN, 1991, p. 94). Necessário enfatizar que os conceitos de bons ou maus filmes
realizados a partir de adaptações literárias são subjetivos e raramente consensuais. O ponto de
vista de quem emite o parecer é que determinará se um filme alcançou ou não seu objetivo.
4

2 CRUZ E SOUSA – O POETA DO DESTERRO


O filme enfatiza a figura do poeta João da Cruz e Sousa o qual não teve o
reconhecimento merecido em vida (e talvez nem mesmo depois de sua morte). O escritor
negro nascido em Nossa Senhora do Desterro (atual Florianópolis) sofria o preconceito por
sua cor e por sua capacidade artística. O filme mostra a sua vida, desde a terra natal até o Rio
de Janeiro, onde permaneceu entre os anos de 1890 a 1898.
Os espectadores se deparam com algumas subversões a esquemas mais tradicionais
da linguagem cinematográfica. Não há os diálogos que comumente surgem nos filmes, o que
os personagens falam refere-se quase que exclusivamente aos poemas e cartas de Cruz e
Sousa. O filme se desenvolve através da dramatização dos poemas, os quais foram dispostos
de forma a contar a história do escritor. No entanto, novas vertentes se abrem a partir desse
percurso principal, e aí se estabelece o elo mais forte entre literatura e cinema. Transpor para
a linguagem cinematográfica as possibilidades que evocam versos simbolistas é de resultado
imprevisível. E sempre, mas nesse caso especificamente, o papel do espectador é relevante, no
sentido de compreender que uma nova manifestação artística se dá com o filme, e deixar-se
desprender dos poemas escritos para considerar as possibilidades da recriação visual.
A história é narrada de uma forma não-linear, as sequências são dispostas sem uma
ordem cronológica que “facilite” o entendimento. Isso de certa maneira leva o espectador a se
comprometer mais com o filme e aproximar-se de Cruz e Sousa. Transpor vida e obra do
poeta catarinense para o roteiro foi um desafio, no entanto, desafio ainda maior foi o de
concretizar essas idéias em frente às câmaras, fazer com que elas passassem a ter uma
existência “concreta”. A força da palavra permanece, mas além dela passam a coexistir
cenários, figurinos, música, iluminação, ou seja, diferentes linguagens em busca de harmonia.

3 O ROTEIRO
Em 2000 foi publicado o livro com o roteiro de Cruz e Sousa – O Poeta do Desterro,
filme lançado no ano anterior. É uma edição em português, inglês, espanhol e francês. 3 No
roteiro, a “montagem” dos poemas vai além da decupagem técnica. Em Cruz e Sousa – O
Poeta do Desterro, os diálogos se constituem quase que exclusivamente em poemas e cartas
do escritor.
A história de Cruz e Sousa é contada através de suas próprias palavras, de seus
versos reveladores da intensa aproximação entre escritor e eu-lírico. O diretor enfrentou o

3
Os responsáveis pelas traduções foram: Steven F. White (inglês), Walter Carlos Costa (espanhol) e Leonor
Scliar-Cabral e Marie-Hélène Catherine Torres (francês).
5

desafio de transpor às telas a figura desse poeta atormentado, declamando seus versos
contundentes, revelando em suas cartas a grandeza literária paradoxalmente à miséria social
em que vivia. O autor de versos como – “Os miseráveis, os rotos / São as flores dos esgotos. /
São espectros implacáveis / Os rotos, os miseráveis. / São prantos negros de furnas / Caladas,
mudas, soturnas. / São os grandes visionários / Dos abismos tumultuários.” – era o mesmo
que relatava ao amigo Nestor Vítor: “Mas o pior, meu amigo, é que estou numa indigência
horrível, sem vintém para remédios, para leite, para nada, para nada! Um horror! Gavita diz
que eu sou um fantasma, que anda pela casa.” (MUZART, 1993, p. 117).
A transposição da poesia ao cinema equivale a superar muitos obstáculos; ao tentar
uma aproximação maior com os espectadores que não conhecem Cruz e Sousa, distancia-se e
frustra as expectativas daqueles que cultivam poesia e esperavam mais do filme. Se, ao
contrário, aproxima-se dos espectadores-leitores, distancia-se do público em geral e arrisca-se
a um cinema elitista. Nesse sentido, nem sempre o filme alcança o objetivo de uma relação
harmoniosa entre cinema e literatura. A dificuldade maior enfrentada foi a de basear a quase
totalidade dos diálogos em versos e cartas de Cruz e Sousa. A escrita do roteiro dessa forma
fez com que o cineasta tivesse por vezes que sacrificar o entendimento dos espectadores que
não conhecem o poeta simbolista. Mas o filme não se dispõe a ser didático, pois a intenção
não é a de uma aula de literatura, e, nesse sentido, a valorização dos versos saiu fortalecida.

4 ESTROFES VISUAIS/PALAVRA E IMAGEM


O início do filme Cruz e Sousa – O Poeta do Desterro apresenta o escritor já morto
em um vagão de carga, retornando de Minas Gerais, aonde tinha se transferido juntamente
com sua esposa Gavita, tentando resgatar a saúde perdida por causa da tuberculose. O cadáver
aparece maltrapilho, aniquilado. Esse primeiro impacto já adianta a densidade do filme e de
certa maneira, a forma como a história será encaminhada.
A seguir, serão apresentadas sequências selecionadas para se refletir sobre o filme. A
primeira delas mostra como o cineasta apresenta o poeta aos espectadores e os recursos aos
quais recorre para apresentá-lo.

Sequência II

Interior. Noite. Terreiro de candomblé.

Surge o ator que interpreta Cruz e Sousa defronte a um espelho do camarim,


preparado-se para entrar em cena. Ele ensaia o versos, repetindo-os, do poema que
dirá adiante. Pelo reflexo do espelho, o vislumbre de um terreiro de candomblé.
Cercado de filhos de santos (homens e mulheres paramentados), Cruz e Sousa, de
calça e camisa brancas, o corpo respingado de sangue, é submetido a uma sessão de
6

passes. Tambores, atabaques, incenso, velas, flores – o pequeno terreiro é de chão


batido, o ambiente é de nítida pobreza. Sentado defronte ao babalorixá (pai de
santo), Cruz e Sousa acompanha os búzios que são jogados para ele. Não há público
presente, mas o clima é de comunhão. Cruz e Sousa parece estar entrando em transe.
A idéia é a do ator em busca do personagem. Ouvem-se estrofes do poema “O
Assinalado”, seguidas de fala do babalorixá:

CRUZ E SOUSA

Tu és o louco da imortal loucura,


O louco da loucura mais suprema.
A terra é sempre a tua negra algema,
Prende-te nela a extrema Desventura.
Tu és o Poeta, o grande Assinalado
Que povoas o mundo despovoado,
De belezas eternas, pouco a pouco.

Na natureza prodigiosa e rica


Toda a audácia dos nervos justifica
Os teus espasmos imortais de louco!

BABALORIXÁ

“João, meu filho, o babalaô falou


através de Ifá (adivinho), que nenhum
sofrimento nesta vida é vão. Nenhuma
lágrima se perde. A vida humana, João,
é apenas uma preparação para a
verdadeira vida.
[...] (BACK, 1999, p. 10-11)

Essa sequência mostra a dificuldade do ator que interpreta Cruz e Sousa de encontrar
o tom de um personagem que, mesmo morto, ainda vive através de seus versos, expondo por
meio da literatura a angústia pela sensação de não-pertencimento a uma sociedade oitocentista
rigidamente hierarquizada. Estado de alma que, contraditoriamente, contribuiu de certa
maneira para a sua arte, talvez o sofrimento o tenha tornado melhor poeta.
A cena em que Cruz e Sousa aparece com a roupa respingada de sangue remete à
idéia do sacrifício, da vítima que será imolada em oferecimento a uma entidade como uma
forma de agradá-la. E através do jogo de búzios, o babalorixá prevê as muitas dificuldades
pelas quais o poeta passará. O espectador pressente que Cruz e Sousa será “sacrificado” para
que a ira de um “deus social” seja aplacada e todos possam retomar a “normalidade” de suas
existências.
Os letreiros que vêm a seguir trazem informações biográficas do escritor. Esse
recurso foi necessário, uma vez que não se pode subentender que todos conheçam Cruz e
Sousa, então seria uma forma de garantir um mínimo de informações para situar o espectador
em relação ao filme. Como a sua vida assume grande relevância para a narrativa fílmica, esses
7

dados essenciais adquirem um papel utilitário. Ainda assim, a opção por mostrar uma
trajetória não-linear dificulta para quem não tenha um prévio conhecimento sobre o poeta.
Nessas informações básicas, pode-se perceber a postura adotada pelo cineasta no
encaminhamento do filme, uma vez que destaca “a segregação racial e social” e a inveja que
despertava em outros o talento e a criatividade artística de um negro em fins do século XIX,
cujo destino deveria estar muito mais próximo de uma humilde existência do que às glórias
literárias. No entanto, havia exceções nessa sociedade retratada. No filme aparecem os amigos
de Cruz e Sousa – Nestor Vítor,4 Araújo Figueiredo,5 Oscar Rosas6 e Virgílio Várzea7 – que
acompanham o poeta e se solidarizam com seu sofrimento. Em suas participações, surgem
declamando excertos dos poemas ou lendo as cartas enviadas pelo poeta, nas quais ele
expunha a vida de misérias que levava juntamente com a família; as doenças, tanto a
alienação de sua esposa Gavita quanto a tuberculose que o mataria, e também pedidos de
auxílio financeiro.
No entanto, quando o poeta aparece no terreiro de candomblé, ele se distancia desse
mundo dos descendentes europeus e da literatura de Rimbaud e Mallarmé e se aproxima de
sua herança africana, em um sincretismo demonstrado no filme.
A próxima sequência trata do inconformismo do poeta pela indiferença com que é
tratado pela sociedade tradicionalista da época, que se recusava a reconhecê-lo enquanto
escritor.

Sequência XXXII

Interior. Dia. Poço.

Cruz e Sousa encontra-se afundado num poço, age como se estivesse preso,
debatendo-se para sair. Olhando para a câmara, faz candente balanço existencial.
São trechos da prosa poética “O Emparedado”.

CRUZ E SOUSA

... Mas que importa tudo isso?! Qual é


a cor da minha forma, do meu sentir?
Qual é a cor da tempestade
de dilacerações que me abala? Qual a
dos meus sonhos e gritos? Qual a
dos meus desejos e febre?
Artista?! Loucura! Pode isso ser se tu
vens dessa longínqua região desolada,
lá do fundo exótico dessa África

4
O paranaense Nestor Vítor dos Santos (1868-1932) dedicou-se ao magistério, à política e à literatura.
5
Juvêncio de Araújo Figueiredo (1864-1927), poeta catarinense.
6
Oscar Rosas Ribeiro d’Almeida (1864-1925), escritor catarinense.
7
O catarinense Virgílio Várzea (1863-1941) publicou em co-autoria com Cruz e Sousa o livro Tropos e fantasias
(1885).
8

sugestiva, gemente!
[...]
Civilizações e Sociedades... Mais
Pedras, mais pedras! E as estranhas
paredes hão de subir – longas, negras,
terríficas! Hão de subir, subir, subir
mudas, silenciosas, até às Estrelas,
deixando-te para sempre perdidamente
alucinado e emparedado dentro do teu
Sonho... (BACK, 1999, p. 62-63)

O poeta tentava se estabelecer como escritor em uma sociedade que não se dispunha
a aceitá-lo, fato que dificilmente poderia ser revertido nesse momento histórico. O título do
filme, Cruz e Sousa – O poeta do Desterro, evoca não apenas o antigo nome da cidade de
Florianópolis, mas a solidão, o degredo, o banimento do poeta. Ao distanciar-se de seu
“papel”social, o de filho de escravos com toda a carga que isso acarreta, Cruz e Sousa
desafiou a ordem vigente.
As dificuldades de aceitação de sua cultura e capacidade artística o encaminharam a
um exílio dos meios literários, ao “emparedamento” racial, social e intelectual. No filme, ele é
apresentado com suas contradições, fraquezas, anseios; evitou-se apresentar Cruz e Sousa
como um mito. É uma decisão que não apela à comiseração do espectador, mas encaminha a
reflexão sobre as nuanças que marcaram vida e obra do escritor.

5 CONCLUSÃO
Desde o início, o cinema se aproximou da literatura através do teatro, do romance, do
conto e inclusive da poesia, como se pôde constatar neste texto. Permanecem ainda, a cada
vez que obras literárias são levadas às telas, (pré) conceitos a partir do diálogo estabelecido
entre literatura e cinema. O resultado desse embate depende de muitos aspectos, como aqui
tivemos oportunidade de refletir, dentre os quais o talento de escritores e cineastas, os
objetivos ao se recorrer à literatura para produzir um filme e a transposição da linguagem
literária para a linguagem cinematográfica, além da importância do roteiro, o qual permeia
essa passagem.
O enriquecimento mútuo da literatura e do cinema reserva a cada um a possibilidade
de conservar suas próprias especificidades. O que esteticamente é favorável à literatura, não
será necessariamente ao cinema, assim como o cinema dispõe de diferentes recursos que a
linguagem literária não possui.
Tanto a literatura quanto o cinema foram beneficiados com a adaptação para as telas
da vida e obra do poeta simbolista e vários aspectos relevantes dessa aproximação foram aqui
9

destacados, assim como houve a oportunidade de, a partir dessas análises, refletir sobre o
escritor Cruz e Sousa.

6 REFERÊNCIAS

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Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.

AUMONT, Jacques. As teorias dos cineastas. Trad. Marina Appenzeller. Campinas, SP:
Papirus, 2004. [Coleção Campo Imagético].

BACK, Sylvio. Cruz e Sousa – o Poeta do Desterro [Roteiro]. Colaboração: Rodrigo de


Haro. Rio de Janeiro: 7Letras, 2000.

BAZIN, André. O Cinema: Ensaios. Trad. Eloísa De Araújo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense,
1991.

CARRIÉRE, Jean-Claude. Prática do roteiro cinematográfico. São Paulo: JSN, 1996.

MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. Poesia e vida de Cruz e Sousa. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1975.

MUZART, Zahidé Lupinacci (introd. e org.). Poesia Completa / Cruz e Sousa.


Florianópolis: FCC: FBB, 1993.

NAGIB, Lúcia. O cinema de retomada: depoimentos de 90 cineastas dos anos 90. São
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OLIVEIRA, Anelito de. “O avesso do visível”. DC Cultura, sábado, 04 de junho de 2005, p.


13.

RAMOS, Fernão Pessoa (org.). Teoria contemporânea do cinema. São Paulo: Editora Senac
São Paulo, 2005. Vols. I e II.

RODRIGUES, João Carlos. O negro brasileiro e o cinema. Rio de Janeiro: Globo: Fundação
do Cinema Brasileiro-MINC, 1988.

SOARES, Iaponan e MUZART, Zahidé Lupinacci (orgs.). Cruz e Sousa: no centenário de


Broquéis e Missal. Florianópolis: Ed. da UFSC. FCC ed., 1994.

SOUSA, João da Cruz e. Evocações [ed. fac-similar]. Florianópolis: Fundação Catarinense de


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STAM, Robert. Introdução à Teoria do Cinema. Trad. Fernando Mascarello. Campinas, SP:
Papirus, 2003.

XAVIER, Ismail (org.). A experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Edições Graal:
Embrafilmes, 2003. [3ª edição revista e aumentada].
10

FILME

Título Original: Cruz e Sousa – o Poeta do Desterro, 35 mm, longa-metragem


País de Origem: Brasil
Ano: 1999
Duração: 86 minutos
Diretor: Sylvio Back
Elenco: Kadu Carneiro, Maria Ceiça, Léa Garcia, Danielle Ornelas, Guilherme Weber,
Jaqueline Valdívia, Carol Xavier
SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo

IMIGRAÇÃO E COLONIZAÇÃO ALEMÃ:


REPRESENTAÇÕES NA LITERATURA BRASILEIRA 1

Cristiane Roveda Gonçalves 2 (PPGL/UFSC)

RESUMO

Neste ensaio é examinada a presença da temática da imigração e colonização alemã em


narrativas que a descrevam o período compreendido entre os anos de 1850 e 1950 no Vale do
Itajaí, em Santa Catarina. O objetivo central é apresentar um levantamento das obras de ficção
que utilizam este tema para desenvolverem seus enredos, especialmente romances em que se
destacam o imigrante e o colonizador, escritos e publicados a partir da segunda metade do
século XX. Este ensaio propõe também mostrar aproximações e distanciamentos, de forma
comparativa, entre os romances a O guarda-roupa alemão e Jornada com Rupert.
Desenvolveu-se este trabalho dentro da tradição da Literatura Comparada, com enfoque
especial para reflexões teóricas entre literatura e memória. A metodologia utilizada foi a
pesquisa de caráter aberto qualitativa e bibliográfica com uma abordagem teórico-crítica.
Desta forma o ensaio focaliza as relações entre retratos de época, resgates, marcas da história,
fronteiras e limiares entre ficção e história além de articular uma discussão entre ficção e
confissão.

Palavras-chave:
Colonização alemã. Literatura comparada. O guarda-roupa alemão.

ABSTRACT

In this essay it examines the presence of the theme of immigration and colonization German
narratives that describe this period between the years 1850 and 1950 in the Vale do Itajaí,
Santa Catarina. The main objective is to present a survey of works of fiction that use this
theme to develop their plots, especially novels that stand out in the immigrant and the
colonizer, written and published from the second half of the twentieth century. This essay also
show similarities and differences, in a comparative way, among the novels German’s
wardrobe and Jouney with Rupert. This work was developed within the tradition of
comparative literature, with special focus on theoretical reflections between literature and
memory. The methodology used was the open nature of qualitative research and literature
with a critical-theoretical approach. Thus the test focuses on the relationship between portraits
of the time, redemptions, brand history, thresholds and boundaries between fiction and history
as well as a joint discussion between fiction and confession.

Keywords:
German colonization. Comparative literature. German’s wardrobe.

1
Este ensaio constitui parte da pesquisa de Mestrado em Literatura Brasileira Memórias da colonização: ficção e
realidade em O guarda-roupa alemão, de Lausimar Laus.
2
Especialista em Estudos Literários e mestranda em Literatura Brasileira do Programa de Pós-graduação em
Literatura da UFSC; e-mail: rovedagoncalves@uol.com.br.
2

1 MUITAS HISTÓRIAS, UMA MESMA COLONIZAÇÃO


Fábio Lucas em seus estudos sobre o caráter social do romance brasileiro pergunta se
“será uma tradição no país, de cultura de formação, romances com a temática da imigração”
(1970, p. 62). Com efeito, muitos escritores brasileiros trataram desse tema, criando enredos
em que atuam estrangeiros. Desde Aluizio de Azevedo com O Cortiço em que atuavam
imigrantes portugueses, seguido depois pelos modernistas: Graça Aranha, com Canaã
destacando a presença de alemães; Oswald de Andrade com Marco zero, retratando a
imigração japonesa e de Alcântara Machado que em Braz, Bexiga e Barra Funda retratava os
imigrantes italianos de São Paulo.
No entanto percebe-se que esses romances são publicações datadas do final do século
XIX e início do século XX, momento histórico no qual os romancistas brasileiros pareciam
estar muito preocupados com as questões pertinentes à identidade nacional. A representação
de personagens que se deslocaram no espaço acontecerá na literatura brasileira, com mais
ênfase e variedade, no século XX, especialmente a partir da década de 1930 com os romances
de cunho regionalista ou de caráter social.
Cabe aqui então apresentar um panorama da literatura produzida no Brasil, no século
XX com a temática da imigração, seja de caráter confessional ou de representação de um
outro, de uma outra alteridade. O repertório de títulos é vasto, mas para confirmar que o tema
da imigração é amplamente utilizado na ficção brasileira podemos citar Érico Veríssimo,
Fausto Wolf, Milton Hatoun, Moacyr Scliar, Samuel Rawet, Nélida Piñon, José Pozenato,
Miguel Sanches Neto, Ana Miranda, Raduan Nassar. Estes autores com seus romances
prolongaram a tradição de seus antepassados ou ainda nos revelaram a experiência de sua
própria imigração.
Tendo em vista o grande o número de obras de ficção que apresentam a imigração
como tema central, o objetivo desta comunicação é focalizar a imigração alemã no sul do
Brasil, com especial destaque para a cidade de Blumenau. Na literatura alicerçada no Vale do
Itajaí3 encontram-se exemplos de romances que fazem referência à imagem do colonizador
como esteio para o desenvolvimento econômico e cultural do estado de Santa Catarina. Entre
eles podemos citar Desafio dos olhos azuis de Evaldo Pauli, Verde Vale, As Brumas dançam
sobre o espelho do rio, No tempo das tangerinas e Cruzeiros do Sul de Urda Alice Klueger,
Quadrilátero de Adolfo Boos Junior, além do mais recente Marcelino Nanmbrá, o manumisso
Godofredo de Oliveira Neto. São romances em que a temática da imigração alemã é elemento
3

de desenvolvimento do enredo: neles os imigrantes de origem alemã são personagens que


procuram manter a tradição familiar à custa da própria felicidade.
Neste cenário, os romances O Guarda-roupa alemão, de 1975, da escritora itajaiense
Lausimar Laus e Jornada com Rupert, de 2008, do Líbano/brasileiro Salim Miguel serão os
romances a serem abordados nesta comunicação. Foram escolhidos por serem exemplos
representativos de ficção que retrata a imigração e colonização pelos alemães, de uma região
específica do Brasil e pelo diálogo que se estabelece entre os personagens centrais das duas
narrativas.
A problemática cultural que se arma atualmente está marcada pelas discussões de
identidade dentro dos grupos sociais. A construção de determinada identidade está baseada na
memória pessoal e ou na memória de outro, e ainda talvez, na imaginação. A literatura presta-
se como recurso capaz de disseminar tal memória e assim contribuir para formação de uma
identidade cultural, ou ainda fortalecer uma mítica, acentua-se os traços que diferenciam os
homens. Nas palavras de Zygmunt Bauman

a identidade só nos é revelada como algo a ser inventado, e não descoberto; como
alvo de um esforço, um objetivo; como uma coisa que ainda se precisa construir a
partir do zero ou escolher entre alternativas e então lutar por ela e protegê-la lutando
ainda mais – mesmo que, para que essa luta seja vitoriosa, a verdade sobre a
condição precária. (BAUMAN, 2005, p.21-22).

Neste sentido pode-se dizer que identidade é algo em constante movimento, é uma construção
por meio de fatores externos e internos à cultura e ainda ao próprio homem. Assim a
literatura, como expressão artística do homem, foi o meio utilizado para retratar as
particularidades da identidade germânica/brasileira presente em Blumenau pelos ficcionistas
Lausimar Laus e Salim Miguel.
As relações que se estabelecem entre estudos históricos e literários contribuem para
delinear como a figura mítica do imigrante e colonizador europeu, neste trabalho
especificamente o imigrante alemão, construiu uma identidade local, tornando-se referência
de população civilizada e culturalmente superior. O que se percebe no século XX,
especialmente no momento pós Segunda Guerra Mundial, é a tentativa de contar a história da
imigração alemã no Vale do Itajaí através da literatura pelas mais diversas publicações. Como
por exemplo, a implementação da revista Blumenau em Cadernos que em seu primeiro
número em novembro de 1957, afirma no texto de abertura:

3
A região do Vale do Itajaí compreende os seguintes municípios catarinenses: Blumenau, Brusque, Gaspar,
Indaial, Ibirama, Itajaí, Ituporanga, Rio do Sul, Rodeio, Taió e Timbó.
4

a que viemos,[...]para tornar conhecida a história do município, mais estimada e


venerada a memória dos homens que fizeram a sua grandeza atual e para que o
exemplo desses pioneiros sirva de orientação e de estímulo aos que, na hora que
passa, trabalham por que o nosso futuro não seja menos glorioso que o nosso
passado. (grifos nossos).

Ou pelas publicações comemorativas das datas festivas como, por exemplo, o dia do
imigrante em 25 de julho, ou a comemoração da Fundação de Blumenau em 2 de setembro,
ou ainda mais recentemente pelas publicações destinadas aos turistas que visitam Blumenau
no mês de outubro durante a realização da Oktoberfest4. Considerando que “as histórias
narradas servem também para contar a história do espaço de vida comunitário e a dimensão
local da existência e da sociabilidade” (TEDESCO, 2004, p.306), é desse modo que
produzem-se representações e auto-identificação, personalização e participação no espaço e
na história local.
Em termos gerais, a imigração só acontece em virtude de algum evento que provoque
alguma mudança na vida do homem. O fenômeno migratório é, em princípio, “um
deslocamento de pessoas no espaço e, antes de mais nada, no espaço físico” (SAYAD, 1998,
p. 15) As mudanças que ocasionam o deslocamento dos indivíduos estão ligadas aos
problemas que enfrentam em seu espaço de origem, estes na maioria das vezes são
econômicos, étnicos ou religiosos.
Alfredo Bosi destaca que “os tipos de colonização distinguem-se em dois processos:
o que se atém ao simples povoamento, e o que conduz à exploração do solo” (BOSI, 1992, p.
11-12). Com efeito, a história da imigração no Brasil, que teve início em 1530 com a criação
das capitanias hereditárias e o sistema de sesmarias, tinha como intenção primordial ocupar o
litoral brasileiro para, na sequência, iniciar a exploração das terras. Essa imigração se
intensificou no século XVIII com a melhoria do transporte marítimo, com a escassez de mão
de obra e com a necessidade de preservar as terras brasileiras de uma possível invasão
espanhola. Assim, a imigração para o Brasil e a colonização das novas terras “reforçam o
princípio básico do domínio do homem sobre a natureza” (BOSI, 1992, p. 19-20) e a
preservação dos bens da cobiça de invasores.
Sabemos também que entre as causas para a imigração europeia, no século XIX,
estava “o processo de industrialização, englobando a modernização dos transportes e as

4
Segundo o site oficial desta festa, a Oktoberfest “é inspirada na Oktoberfest de Munique, a versão
blumenauense nasceu da vontade do povo em expressar seu amor pela vida e pelas tradições germânicas. Sua
primeira edição foi realizada em 1984.” Disponível em: <http://www.oktoberfestblumenau.com.br>. Acesso
em: 13 jun. 2011.
5

transformações técnicas e sociais na agricultura, que propiciou uma incrível mudança no


cotidiano de milhões de europeus” (MACHADO, 1999, p. 43). Outro aspecto a ser salientado
foi o modo irregular como ocorreu esse processo de desenvolvimento. Aliaram-se a isso os
problemas agrários e as constantes invasões dos territórios germânicos para formar o
panorama que desencadeou o processo de imigração dos alemães para o Brasil.
A imigração alemã no Vale do Itajaí, mais especificamente em Blumenau, é
lembrada e festejada hoje, século XXI, como um fato decisivo para o desenvolvimento e
destaque de Santa Catarina no cenário nacional. Os registros históricos dão conta de que, em 2
de setembro de 1850, o Dr. Hermann Bruno Otto Blumenau aportou na foz do ribeirão Garcia
com mais 17 imigrantes alemães. Estes primeiros imigrantes que desembarcaram em
Blumenau foram alojados em galpões, esperando a demarcação de seus lotes e a construção
de suas casas. A mata fechada, o clima úmido e a presença hostil dos índios eram os
principais problemas dos colonizadores, entretanto “iam-se conformando com a situação e
ativaram-se, corajosamente, ao trabalho” (SILVA, 1995, p. 47).
A colonização alemã no Brasil teve relação direta com os interesses brasileiros de
instalar no Brasil agricultores livres e civilizados, na tentativa de tornar o país desenvolvido e
industrializado, conforme afirma Giralda Seyferth (1990, p. 10). Outro objetivo do governo
brasileiro foi “fixar camponeses em pequenas propriedades, criando assim uma classe média
rural, praticamente inexistente” (KLUG, 1994, p. 33). Desse modo, as primeiras colônias
foram fundadas no Brasil, a partir da segunda metade do século XIX, motivadas talvez pela
“necessidade de pacificação dos silvícolas trazendo-os à civilização”.5

2 ABRINDO O GUARDA-ROUPA
O guarda-roupa alemão narra parte da história de Blumenau, cidade do interior
catarinense, situada no Vale do Itajaí colonizada por imigrantes alemães a partir de 1850. A
história é contada inicialmente pelo personagem Homig, último dos Ziegel, no enredo do
romance ele tem a tarefa de abrir uma gaveta do guarda-roupa que foi trancada pela bisavó
Ethel. Preparando-se para realizar a tarefa de abrir a gaveta Homig rememora passagens de
sua vida, relembra os momentos com a avó índia e com a bisavó alemã. Ao longo de uma
tarde, sentado à frente do guarda-roupa, as lembranças tomam conta do velho Homig que
assim nos apresenta a história não oficial de Blumenau e a formação de uma cidade
colonizada por imigrantes alemães. Partindo das memórias voluntárias e involuntárias, além

5
Expressões amplamente utilizadas pela imprensa oficial de Blumenau, entre os anos de 1950 e 1980.
6

da leitura de diários íntimos, percebemos as relações que se estabeleceram na transformação


do espaço do campo para a construção de uma cidade urbana e modernizada. Ainda neste
cenário Homig será capaz de expressar como as experiências com a guerra, a violência, a
velhice e a morte contribuem para a formação de uma identidade cultural.
Tomado pela emoção não consegue cumprir o pedido de sua bisavó, abrir a gaveta do
armário e revelar o segredo da família. Com o auxílio do primo Ralf o enigma é revelado:
Ethel, a Grossmutter, mata sua filha Hilda para impedir o nascimento de um filho mestiço,
assim manteria a ordem na família alemã e os costumes seriam preservados. Em carta, a mãe
afirma que só cometeu tal crime por convicção e princípios, não havia espaço para remorso.
Com a saúde debilitada e com o segredo revelado Homig morre no final do romance.
No romance tomamos contato com um painel das relações entre os imigrantes
alemães e os luso-brasileiros, além, da referência direta aos índios, através da imagem da avó
Sacramento. Neste painel é possível também visualizar as particularidades de uma colônia
europeia que se instala no continente americano na segunda metade do século XIX e início de
século XX, momento de transformações tanto na Europa quanto no Brasil.
Uma das características presentes em O guarda-roupa alemão é o uso dos diálogos
através do discurso direto, como o romance é a narrativa de um encadeamento de lembranças
o uso deste recurso torna o texto mais veloz. Característica também marcante no romance é a
escrita fonética dos vocábulos alemães abrasileirados, e as marcas do sotaque regional criadas
pela ambiguidade do uso dos idiomas português e alemão. As lembranças do narrador Homig
se cruzam não só no campo espacial da memória, mas também no campo linguístico, visto
que em casa se falava o idioma alemão, na escola só se podia falar português e com a avó
índia a língua afetiva era o francês, idioma que a índia Sacramento aprendera no colégio de
freiras onde fora criada. Considerando essas particularidades linguísticas há nas edições mais
recentes do romance um pequeno glossário para facilitar o entendimento das expressões
peculiares à região representada.
No romance a cidade de Blumenau é vista como um lugar diferente, com
características muito próprias, como por exemplo, a limpeza das ruas, os jardins sempre
floridos, os jovens trabalham desde muito cedo ajudando na lavoura ou como operários nas
indústrias. Esta percepção se dá com a chegada da professora Lula à cidade. De Itajaí, cidade
do litoral catarinense e de colonização açoriana, Lula sai para ir para Blumenau, lá ela será
num primeiro momento a professora particular dos filhos do casal Schmidt, mais tarde
assumirá a escola oficial do governo brasileiro. Até o aparecimento da personagem Lula no
romance não fica tão evidente que a língua alemã é predominante entre os outros personagens,
7

com suas impressões de professora é que tomamos conhecimento deste aspecto. Em diálogo
com a senhora que a hospeda nos primeiros dias em que está em Blumenau Lula relata que
“precisava de muita fibra para conter essa força de um contingente linguístico, com tão pouca
gente falando a língua da pátria” (Laus, 2006, p.34).
É significativo que a obra de Lausimar Laus surge na década de 70, tempo em que as
correntes da arte modernista já estão sedimentadas no Brasil. A leitura crítica do momento
histórico feita por Fábio Lucas lembra que “o Modernismo pugnou por uma linguagem
coloquial e por um aproveitamento mais intenso do cotidiano, quer na poesia, quer na prosa”
(1989, p. 100). Mas afirma também que “no após-guerra a força do Modernismo começa a ser
contida e, ao mesmo tempo, o cuidado formal volta a preocupar os escritores, já saciados com
as liberdades excessivas dos primeiros momentos da radicalização modernista” (1989, p.104).
Assim, para se entender melhor as relações estabelecidas entre os imigrantes alemães
e seus descendentes com os luso-brasileiros é relevante lembrar como a língua representa a
principal característica do nacionalismo, pois é veículo de entendimento6. No romance a
autora transcreve a fala coloquial dos luso-brasileiros especialmente nos momentos em que
eles estão conversando sem a presença de algum personagem de origem germânica. O
discurso coloquial é apresentado, por exemplo, pelas palavras do personagem Zeca que traz
notícias dos parentes da personagem tia Clara, que vivem em Itajaí, são elas: “dejahoje”, “sê”,
“inhora”, “N’inhora”, “trasantonte”, “vim”, “eles não deixa”, “sinhora”, “ficá”, “tá”, “dizê”,
“erna” (LAUS, 2006, p.36-37). Todas essas palavras são grafadas como a forma de linguagem
coloquial, porém não representam empecilho para a compreensão da mensagem que o
personagem de origem humilde traz da cidade de Itajaí.
O isolamento das colônias não permitia a assimilação de outras culturas, sendo
assim, o caráter homogêneo da língua foi um fator que permitiu a manutenção dos costumes
sociais, no entanto foi também preponderante para que tais colônias fossem vistas como a
tentativa de se criar uma Alemanha nos trópicos. No romance tia Clara, brasileira de Itajaí na
tentativa de apaziguar a discussão sobre o uso do idioma alemão explica à filha e à sobrinha
que “os brasileiros aqui são pouca gente. Eles [os alemães] são a maioria. E se a gente fosse
para a terra deles, será que também não preferia falar a língua da gente?” (LAUS, 2006,
p.105). Situação esta que se confirma historicamente visto que, nas primeiras décadas de
colonização, os imigrantes estavam engajados na luta pela sobrevivência, num meio selvagem
e difícil, e, portanto, sem possibilidades de produção intelectual (HUBER, 1993, p. 14).

6
Giralda Seyferth discute amplamente este tema em seus estudos sobre a imigração alemã no Vale do Itajaí.
8

Para Stuart Hall “dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em


diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente
deslocadas” (2006, p.13), e essa leitura pode ser aplicada aO guarda-roupa alemão,
concordando que identidade não é algo dado, mas uma condição forjada a partir de
determinados elementos históricos e culturais. Podemos notar que a identidade cultural local
da região de Blumenau foi construída através das escolhas de seus colonizadores antepassados
em consonância com as evoluções tecnológicas e com a modernização da cidade. A região
que num primeiro momento fora espaço de colonização rural, agora, nas primeiras décadas do
século XX, visualiza a industrialização rápida e crescente:

olhava o rio, o rio manso, onde os sargaços e as flores de aguapé viajavam,


imitando as nuvens que iam para o sul. A volta do rio lá embaixo, a fumaça que se
elevava da chaminé da fábrica de malhas Hering. (LAUS, 2006, p. 103)

Mais que contar a história da família Ziegel e revelar o segredo da bisavó alemã
Ethel, Lausimar Laus da voz a vários personagens que ao longo de seus relatos são capazes de
contar as transformações que a cidade sofreu ao decorrer de quase cem anos, como o já citado
exemplo da industrialização, além dos aspectos culturais e de caráter social.

3 NA JORNADA COM RUPERT


Se O guarda-roupa alemão é escrito por uma autora mulher, brasileira, nascida na
região que é destaque no romance; em Jornada com Rupert temos um autor homem, Salim
Miguel, nascido no Líbano e emigrado para o Brasil nos primeiros anos da infância. Depois
de viver sua adolescência no município catarinense de Biguaçu, mudou-se para Florianópolis
onde, nas décadas de 1940 e 1950, integrou o movimento modernista nas artes catarinenses: o
Grupo Sul.
Salim Miguel já havia relatado sua própria experiência como emigrante libanês no
romance Nur na escuridão, neste relato o autor exercita ficção histórica. Porém é com a
narrativa sobre a família do descente de alemães é que tomaremos contato com mais um
retrato da colonização do Vale do Itajaí.
Lançado em 2008, Jornada com Rupert é a narrativa do dia a dia do clã Von
Hartroieg através das recordações de Rupert. Com 30 anos, sem nunca ter constituído sua
própria família, decide sair do interior de Santa Catarina e ir para o Rio de Janeiro encontrar a
namoradinha de infância Ilze. A viagem de trem se transforma em uma verdadeira jornada
para o autoconhecimento. Através de sua jornada interior conhecemos o que viveu e o que
9

deixou de viver, somos apresentados às expectativas frustradas da família de origem


germânica.
O romance tem início juntamente com a chegada do Dr. Blumenau com os
imigrantes alemães em 1870. A narrativa está concentrada em dois núcleos familiares que nos
primeiros tempos vivem da caça, da pesca e de pequenas lavouras. A terra é promissora e os
planos são ambiciosos, porém com a partida do fundador da colônia para Alemanha em 1884
a tristeza abate aqueles que aqui permaneceram.
A família de Rupert desenvolve-se economicamente rápido como a cidade, que já em
1880 fora emancipada a condição de município. O grupo familiar é composto por pai, mãe e
quatro filhos: Fritz, o mais velho e submisso às ordens do pai; Rupert, boêmio e imprevisível;
Karla, a única filha mulher com temperamento forte, às vezes revoltada; além do Caçula, filho
mais jovem que no romance não é nomeado, foi levado pelas águas do rio em uma das
enchentes que periodicamente assolam a cidade. À medida que Rupert se deixa levar pelas
lembranças ele nos apresenta os conflitos de uma família que tem como motivação a
preservação dos costumes herdados dos antepassados colonizadores.
Rupert é o personagem central da narrativa de Salim Miguel, porém é a partir das
cartas da namorada de infância Ilze que ele terá coragem para iniciar sua caminha rumo ao
seu autoconhecimento. Ilze é filha do fotógrafo Gunther, aos três anos ela perde a mãe e o
irmão no parto. Para suprir a falta da mãe Gunther contrata uma governanta, também de
origem germânica, para educar a menina. A menina cresce e logo passa a fazer parte de um
triângulo amoroso: Rupert filho de família rica e Hermann operário e arrimo de família vão
dividir as atenções da jovem. No entanto ela não se prende a nenhum dos meninos, ruma para
o Rio de Janeiro junto com um jornalista da revista O Cruzeiro que está de passagem porb
Blumenau. O mesmo jornalista, antes de partir, presenteia Rupert com o romance de Graça
Aranha Canaã.
Salim Miguel divide seu romance em capítulos curtos, a narrativa é ágil. Em certos
momentos Rupert é tomado por flashes com a presentificação do passado da imigração. O
jovem vê, como num filme, as passagens mais significativas da imigração e colonização da
cidade:
Num passe de mágica o cenário se transmuta diante de seus olhos: ali estão os
desbravadores, os colonos chegando, subindo rio acima. Agora, as casas que se
erguiam altaneiras deram lugar às antigas choupanas; as fábricas já não mais ali
estão; nem as ruas e as praças. Diante de Rupert a mata virgem de um século atrás.
(MIGUEL, 2008, p. 49).
10

O romance de Salim Miguel é a história de ascensão e queda da família Von


Hartroieg, o casarão ainda resistia à margem do rio, porém a família chegara aos anos 1940
aos pedaços. Aspecto este que é similar em O guarda-roupa alemão, Rupert e Homig são
homens frustrados, que não puderam ou não conseguiram dar a suas vidas a mesma
importância que os descentes dos imigrantes alemães tentam dar continuidade.

4 MEMÓRIA E IDENTIDADE CULTURAL


Nas criações de ambos os ficcionistas encontramos as miudezas da vida diária de
personagens fortemente ligados ao ambiente no qual estão inseridos, aspectos que compõem a
formação de uma identidade, visto que “é o banal que constitui uma identidade para nossos
hábitos diários” (KRISTEVA, 1994, p. 11). Os descendentes germânicos trouxeram seus
hábitos e costumes da Alemanha, no entanto, a natureza e as relações que se estabeleceram
modificaram de alguma forma seu modo de vida. Pode-se afirmar que as experiências e as
escolhas motivaram a construção de uma identidade cultural própria da região retratada tanto
no romance de Lausimar Laus quanto na narrativa de Salim Miguel.
Nos dois romances encontramos a narrativa da história da colonização e a formação
de uma comunidade de origem predominantemente alemã, no Vale do Itajaí. Porém em
Jornada com Rupert conhecemos esse passado pelas recordações do personagem Rupert, já
em O guarda-roupa alemão é através do olhar das mulheres que fizeram parte desta formação
que somos levados a conhecer suas histórias. Confirmando as palavras de Lygia Fagundes
Telles “que a ficção feita por mulheres tem suas características próprias, é mais intimista,
mais confessional: a mulher pode se revelar, se buscar e se definir [...]” (TELLES, 1997, p.
57), no romance de Lausimar Laus isso é marcante, considerando que a autora conhecia
plenamente a região retratada. Além disso, sua biografia se confunde com a obra, visto que,
por exemplo, Lausimar tinha uma avó índia nascida em Blumenau.
Por fim cabe ressaltar que não há como narrar uma história oficial definitiva,
justamente por não poder atingir com total abrangência todas as dimensões de um fato em
determinado tempo. Homig e Rupert, agora diante de suas memórias voluntárias e
involuntárias, percebem e compreendem como a colônia se modificou a partir das
experiências de cada um dos personagens que fizeram parte dessa história. Destarte, não há
como narrar uma história total da colonização, mas, ao contrário, cada objeto, cada fragmento
merece descrições exaustivas.
Consequentemente, não há como o historiador dar conta de todas as pequenas
nuanças de um fato histórico. Não há também como narrar a memória pessoal ou alheia sem
11

algum envolvimento emocional; os fatos são narrados a partir de uma escolha que está no
tempo presente. E é exatamente aí nesse espaço que o autor ficcional e a literatura encontram
o modo de legitimar suas experiências.

5 REFERÊNCIAS

A que viemos. Blumenau em cadernos. Blumenau: nº 1, tomo 1, p. 1, Nov. 1957.

BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

HUBER, Valburga. Saudade e esperança, o dualismo do imigrante alemão refletido em


sua literatura. Blumenau: Editora da FURB, 1993.

KLUG, João. Imigração e luteranismo em Santa Catarina: a comunidade alemã de


Desterro. Florianópolis: Papa Livros, 1994.

KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

LAUS, Lausimar. O Guarda-roupa alemão. 4ª. ed. Florianópolis: Editora da UFSC, 2006.

LUCAS, Fabio. O caráter social da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970.

MIGUEL, Salim. Jornada com Rupert. Rio de Janeiro: Record, 2008.

MACHADO, Paulo Pinheiro. A política de colonização do Império. Porto Alegre: UFRGS,


1999.

SAYAD, Abdelmalek. A imigração. São Paulo: Edusp, 1998.

SEYFERTH, Giralda. Imigração e cultura no Brasil. Brasília: Editora UnB, 1990.

SILVA, José Ferreira da. O Dr. Blumenau. Florianópolis: EDEME e Paralelo 27, 1995.

TEDESCO, João Carlos. Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e


narração. Passo Fundo: UPF; Caxias do Sul: EDUCS, 2004.

TELLES, Lygia Fagundes. A mulher escritora e o feminismo no Brasil. In: SHARPE,


Peggy (Org.). Entre resistir e identificar-se: para uma teoria da prática da narrativa
brasileira de autoria feminina. Florianópolis: Editora Mulheres, 1997. p. 57 - 63.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo

INTERTEXTUALIDADE TEMÁTICA:
A MORTE EM DRÁCULA DE BRAM STOKER E NA BÍBLIA SAGRADA

Iliane Tecchio1 (PGET/UFSC)

RESUMO

Este artigo tem por objetivo discutir intertextualidades concernentes à temática da morte na
obra Drácula (1897) de Bram Stoker (1847-1912) confrontada à Bíblia Sagrada. Para fazê-lo,
foram selecionados excertos nos quais se percebem as relações intertextuais. O propósito é
pôr em evidência as analogias entre os dois textos visando, com isto, sublinhar o fato de que
nenhuma literatura é totalmente particular por apresentar traços e influências de outras obras.

Palavras-chave:
Bram Stoker. Drácula. Bíblia Sagrada. Intertextualidade .Morte.

ABSTRACT

The aim of this article is to draw attention to intertextuality in relation to the theme of death in
the work of Dracula (1897) written by Bram Stoker (1847-1912) confronted to the Bible. To
do so, we selected excerpts in which the intertextual relations could be perceived. The
purpose is to highlight the similarities between the texts in order to underline the fact that any
literature is unique for the reason that it illustrates influences of other works.
Keywords:
Bram Stoker. Dracula. Bible. Intertextuality. Death.

1 INTRODUÇÃO
Aceitando o postulado de que a intertextualidade se apresenta como um fenômeno
onipresente no texto, mas que é de fundamental importância para o processamento deste, tanto
na relação inter como entre línguas, neste artigo apresenta-se um estudo sobre
intertextualidade, tendo como corpora o romance Drácula (1897) de Bram Stoker (1847-1912)
e a Bíblia Sagrada. A discussão se desenvolve com vistas à temática da morte abordada
através de excertos comparáveis, selecionados nas respectivas obras.
As reflexões que nortearam este estudo se fundamentam, principalmente, nos
apontamentos teóricos sobre intertextualidade desenvolvidos por Kristeva (1978), Barthes
(1988), Hatim e Mason (1990), Koch (2007) e, Ritva Leppihalme (1997). Naturalmente,
evocam-se referências diversas acerca das duas obras em questão.
Por meio do conceito de intertextualidade, noção desenvolvida por Kristeva na
década de 60, passaremos a aceitar que, além das relações com referentes extras textuais, um
texto só existe em relação a outros textos. De acordo com Kristeva (1978, p. 38), pensar o

1
Doutoranda do curso de Pós-Graduação em Estudos da Tradução pela Universidade Federal de Santa Catarina.
Orientador: Prof. Dr. Ronaldo Lima (CCE/PGET/UFSC); e-mail: ilianet21@yahoo.com.br.
2

texto em seus componentes intertextuais equivale à pautá-lo na sociedade e na história, isto é,


“[...] uma consciência de textos anteriores ao nível das variadas manifestações sociais,
literárias, artísticas, políticas que o precederam”. Essa relação pode ser tanto de conformidade
como de oposição aos esquemas textuais preexistentes. Nas palavras de Ingedore Villaça
Koch (2007, p. 59), a intertextualidade pode ser entendida da seguinte maneira:

Todo texto é um objeto heterogêneo, que revela uma relação radical de seu interior
com seu exterior; e, desse exterior, evidentemente, fazem parte outros textos que lhe
dão origem, que o predeterminam, com os quais dialoga, que retoma a que alude, ou
a que se opõe.

Hatim e Mason (1990, p. 125) explicam que a intertextualidade exerce uma função
ativa e implica a visão de que os textos nunca são totalmente originais ou específicos de
determinado autor. De acordo com os pesquisadores, a teoria da intertextualidade parece nos
levar para duas diferentes direções: por um lado, temos a importância do texto anterior, como
afirmação que um texto literário, por exemplo, não pode ser considerado como uma entidade
anônima, mas dependente de uma construção intertextual. Por outro lado, com foco na
intenção comunicativa como precondição da inteligibilidade do texto, a intertextualidade
parece indicar que um texto anterior pode apenas ser considerado em termos de sua
contribuição para a evolução do texto que está sendo construído.
Perceber a intertextualidade não é uma tarefa elementar. Para que este
reconhecimento seja possível, isto é, para que o leitor possa reconhecer referentes externos na
obra que está lendo, ele precisa possuir conhecimento linguístico, enciclopédico, histórico,
cultural, das leituras realizadas sobre “as coisas do mundo”, e utilizar-se destes dados para
realizar a conexão entre textos - o texto que tem em mãos e outro(s) que o precederam. Os
efeitos intertextuais que evocam outros textos permitem diversificados efeitos de sentido e
interpretação ampla e variada, como ressalta Vasconcellos (1998, p. 210): “[...] já que não são
explicitados, ressaltam de alusões muitas vezes sutis e correspondências e confrontos
deixados à performance do leitor”. O leitor é instigado a reconhecer referentes intertextuais e
estabelecer confronto entre textos, uma ação capaz de criar diferentes leituras.
Posto isto, com intuito de apontar relações intertextuais relacionadas à temática da
morte nos encontros entre Drácula e a Bíblia Sagrada, julgamos ser necessário iniciar citando
algumas informações sobre estas obras, a fim de partilhar com o leitor as análises e
interpretações realizadas e, ao mesmo tempo, proporcionar a este o estabelecimento de
próprias conclusões e interpretações a partir do exposto neste estudo, e/ou ao que
3

posteriormente venha a “descobrir” para enriquecer sua experiência de leitura, e tornar o texto
que está lendo “a garden of bright image”. (RUOKONEN, 2010, P. 21).

2 A BÍBLIA SAGRADA
Segundo John Drane (2009, p. 09) a Bíblia é um dos grandes clássicos da literatura
mundial e não é apenas um livro, mas toda uma biblioteca. Como todo acervo, assinala Drane,
reúne em um só livro vários escritos por autores diferentes, em épocas distintas e com
propósitos diferenciados. A Bíblia apresenta contos, leis, epístolas, decretos reais, orações,
canções, instruções, mensagens proféticas, narrativas históricas, dados estatísticos, bem como
ensinamentos religiosos. O pesquisador aponta que ainda que as histórias desta obra possam
ter ocorrido há muito tempo atrás, até hoje ainda são lidas com entusiasmo por milhões de
pessoas mundo afora.
No texto “O fascinante universo bíblico” Scliar (2005, p. 10) relata que a Bíblia foi
traduzida em 2.167 idiomas e dialetos, teve edições que totalizaram mais de 2 bilhões de
exemplares apenas no século XX, está ao alcance de 85% da humanidade e é lida há cerca de
3 mil anos, e por isso, escreve o pesquisador, “merece, com justiça, o título de maior best-
seller de todos os tempos”. De acordo com o escritor podemos ler a Bíblia de diversas
maneiras. Em primeiro lugar, podemos ver nela um guia ético-espiritual, uma fonte de
disposições e de ensinamentos de caráter fundamental religioso. Em segundo, podemos ler a
Bíblia como um documento de caráter histórico, expressão de uma cultura milenar e, ainda,
como um conjunto de textos literários. Conclui o escritor:

De qualquer modo... é impressionante a disseminação destes textos. Como se


explica que um livro que começou a ser escrito há quase três mil anos, ainda tenha
tantos, e às vezes tão importantes, leitores? Uma pergunta tanto mais significativa
quando se considera que textos envelhecem... A Bíblia é uma exceção. Trata-se de
um livro eminentemente legível, mesmo em tradução, e mesmo nos dias atuais, uma
fonte de sabedoria e ensinamento até para pessoas não religiosas. (SCLIAR, 2005, p.
12)

Ao tratarmos da Bíblia como literatura, é necessário esclarecer os componentes da


proposição. “Bíblia” pode ser definida como um termo que o cristianismo utiliza para referir-
se ao seu livro sagrado, unindo as escrituras canônicas do judaísmo e a literatura própria do
movimento cristão nascente. A palavra provém do grego ta bíblia, os livros. Acredita-se que
foi usada pela primeira vez pelos cristãos como referência ao Antigo Testamento na segunda
Carta de Clemente de Roma aos Coríntios, por volta de 150 d.C. No século V d.C. o sentido
foi estendido para toda a Escritura. No século XIII d.C. ta bíblia, entendida como declinação
4

neutra plural, foi substituída pela forma feminina singular, passando a significar “o livro”,
forma que se generalizou pelo uso latino do termo. Nessa última acepção foi assimilada pelas
línguas modernas do Ocidente.
Gabel e Wheeler (2003, p.27) assinalam que a Bíblia não é um livro no sentido
comum do termo, mas uma antologia, ou seja, um conjunto de seleções de uma biblioteca de
escritos religiosos e nacionalistas produzidos ao longo de um período de cerca de 1000 anos.
Para esta confecção muitas mãos contribuíram ao longo de séculos. Alguns colaboradores
eram autores originais, a maioria dos quais perdeu a identidade na névoa do passado. Alguns
eram redatores que compilaram, revisaram e combinaram materiais literários para formar os
conjuntos que acabaram por se tornar os livros bíblicos que hoje figuram nos nossos cânones.
A Bíblia está dividida em duas grandes partes: o Antigo Testamento e o Novo
Testamento. O Antigo Testamento (AT), que é de fato a “Bíblia hebraica original” (DRANE,
2009, p. 09), apresenta os livros escritos a partir do século XV a.C. até o nascimento de Cristo
e consiste nos escritos sagrados da fé judaica, o judaísmo. Contém a história do povo de Israel
e suas reflexões, a Lei de Deus oferecida à Moisés e prepara o evento da vinda de “Jesus
Cristo”. O Novo Testamento (NT) é formado por uma coleção de textos escritos no primeiro
século depois de Cristo. Explica o evento “Jesus Cristo”, isto é, versando sobre a vida e as
obras de Jesus, a criação e a expansão da Igreja, além de documentos de formação do povo
cristão. Na época do NT, de acordo com Drane (2009, p. 13), as escrituras hebraicas eram
amplamente lidas em grego, numa tradução conhecida como Septuagina e foi esta tradução
que organizou os livros na ordem como se apresentam hoje.
Importante sublinhar que, embora a Bíblia esteja dividida em duas grandes partes, se
percebe referências intertextuais entre o AT e o NT, bem como entre os livros da mesma
parte. Kock at. al. (2007, p. 18) pontua que a intertextualidade temática é encontrada em
textos que partilham temas e servem de conceitos e terminologias próprios. Em relação à
temática da morte, encontramos citações no livro do Gênesis, Jó, Salmos, Provérbios,
Eclesiastes, Isaías, Eclesiastes, Mateus, Romanos, Coríntios, entre outros. Vejamos alguns
exemplos.
Em Jó 11,20: “Quanto aos injustos, os olhos dele ficarão cegos, e não encontrarão
escapatória. A esperança deles será o último suspiro”; 38, 17: “Já mostraram a você as portas
da morte, ou por acaso você já viu os portais das sombras?”. No livro dos Provérbios 14, 12:
“Ás vezes um caminho parece reto para alguém, mas acaba levando para a morte” e em 16,
25:”Há caminhos que parecem retos, mas acabam levando para a morte”. Em Romanos 8,6:
5

“Os desejos dos instintos egoístas levam à morte, ao passo que o desejo do Espírito, leva para
a vida e a paz”. No livro I Coríntios 15,55: “Morte, onde está a sua vitória? Morte, onde está o
teu ferrão?”.
O número de exemplos é vasto, e nas palavras de Malanga (2005, p. 191): “A
questão da intertextualidade bíblica, merece, por si só, vários estudos e pesquisas”. Segundo a
pesquisadora, esta intertextualidade dos autores bíblicos se deve a vários fatores. Em primeiro
lugar, os livros mais antigos, tornando-se sagrados, eram lidos e valorizados pelos autores
mais recentes. Algumas idéias e expressões deviam ser correntes entre os povos em forma de
expressões ou provérbios. Igualmente, os costumes e as leis faziam parte do cotidiano e da
vida social das pessoas. O fator fundamental complementa Malanga, é que os textos bíblicos,
conforme foram sendo produzidos passaram a fazer parte da vida religiosa e literária do povo
hebreu. A intertextualidade da Bíblia reflete isso.

3 DRÁCULA
Drácula, obra prima do escritor irlandês de Bram Stoker (1847-1912), publicada
originalmente em língua inglesa em 1897, tem sido estudada e investigada por pesquisadores
em diferentes países e diversificadas áreas do conhecimento: história, artes, e principalmente
literatura e, posta à disposição dos leitores através de vários gêneros textuais como:
quadrinhos, jogos de computador (um dos mais conhecidos é o RPG), adaptações
cinematográficas e teatrais, séries televisivas, entre outras. Estudos sobre a obra podem ser
acessados em material impresso ou por meio eletrônico e, basta passarmos os olhos nos
arquivos de bibliotecas e em sites de pesquisa via internet, para que, com assombro, nos
depararmos com uma grande quantidade de informações e estudos em relação à obra.
No Brasil, o romance tem sido repetidamente publicado por várias editoras em
sucessivas edições, sob vários formatos: a L&PM Editores de Porto Alegre, a Editora Record
do Rio de Janeiro, a Edibolso e o Círculo do Livro de São Paulo publicaram a tradução de
Theobaldo de Souza, em uma versão integral a partir do original em inglês. A Edibolso lançou
uma versão adaptada por Robert H. K. Walter do texto de Teobaldo de Souza para a edição
em formato de bolso. As editoras Garnier, Rio Gráfica, Tecnoprint e Ediouro do Rio de
Janeiro publicaram edições resumidas ou condensadas.
O nome com o qual Bram Stoker batizou sua obra Dracula (Drácula na língua
portuguesa) trata-se provavelmente de uma alusão à figura de um nobre do séc. XV conhecido
por Vlad III, Vlad Tepes (ou Tsepesh que em romeno significa empalamento), Vlad o
6

Empalador ou ainda Vlad Dracul: um Príncipe do século XV que, por traz das tradições na
Romênia, conforme relatam Raymond T. McNally e Radu Florescu (1995:13), foi
personagem de muitas histórias de horror: “Um governante cujas crueldades foram de uma
escala tal que a má reputação vinda do seu túmulo chegou ao Ocidente. Um autêntico ser
humano tão horripilante quanto um vampiro de ficção e cinema”. De acordo com os
historiadores (1995, p.18) os nomes Dracul e Drácula e suas variações em diferentes línguas:
Dracole, Draculya, Dracol, Draculea, Draculious, Draculia, Tracol, são na verdade apelidos e
ambos têm dois significados: Dracul com significados de “mal” e “dragão”. DRÁCULA,
termo que se popularizou para definir VLAD III, tem sua etimologia ligada ao morfema
DRAC que em moldávio (língua da região da Moldávia) tanto tem o significado de DRAGÃO
quanto de DIABO:
DRAC: dragão ou diabo
Sufixo A: filho de_
A edição da obra de Bram Stoker selecionada para este estudo apresenta-se dividida
em vinte e sete capítulos. As ações envolvem nove principais personagens que contribuem
para a narrativa através de suas vozes anunciadas em diários, cartas, editoriais de jornais e
outras formas: Conde Drácula, Jonathan Harker; Mina Murray, Lucy Westenra, Dr. Jack
Seward, Professor Van Helsing, Arthur Holmwood (Lorde Godalming), Quincey Morris e
Renfield.
O romance tem início com o Jonathan Harker´s Journal (Diário de Jonathan
Harker). A personagem Jonathan é caracterizada na obra como um jovem advogado e, na
ocasião, procurador e funcionário do escritório imobiliário do Sr. Hawkins em Londres, que
está a caminho para a Transilvânia para intermediar negócios com o Conde Drácula. Drácula
pretende comprar imóveis na Inglaterra com intenções de se mudar para lá. Percebe-se através
da narrativa, estruturada na forma de gênero epistolar, que o motor da obra está relacionado à
caça e morte de Drácula. Um fato que precisa ser concretizado como justificado nas palavras
da personagem Van Helsing: “Nosso insucesso simplesmente nos converterá... prestem
atenção... converterá cada um de nós em outros tantos seres iguais a ele”. (STOKER: 2007, p.
352).
Durante a narrativa Drácula, já morando em Londres, deixa um rastro de destruição e
morte por onde passa. Entre suas vítimas, Lucy, que acaba se transformando em um
Nosferatu, semelhante ao seu criador. O grupo então decide matá-la utilizando o método para
eliminar estes seres: decepar a cabeça e cravar uma estaca no coração. Em seguida, outra
7

personagem, Mina, mulher de Harker, também é atacada e obrigada a beber o sangue de


Drácula, ritual que os faz ficar ligados espiritualmente. O grupo, então, incansavelmente, sai à
caça do vampiro. Encontram-no em um caixão sendo transportado por ciganos a caminho da
Transilvânia, local em que se situa o castelo de Drácula. Van Helsing e outros personagens
conseguem emboscar Drácula. Tem início uma batalha entre os ciganos e o grupo de
caçadores.
A caçada chega ao fim: com o relato de Mina sobre a morte de Drácula: “(...)
flamejou um sibilante golpe da cortante lâmina empunhada por Jonathan. (...) E numa perfeita
sincronização, o aguçado falcão do Sr. Morris trespassou o coração do monstro”. (p. 546). A
obra termina com uma nota escrita por Jonathan Harker sete anos após o ocorrido, na qual ele
cita o período de bem-aventurança e um questionamento sobre se alguém acreditaria em “tão
singular história”. Diante desta dúvida de Harker, Van Helsing responde: “Não carecemos de
provas, não pedimos a ninguém que acredite em nós! (...)”. (STOKER, 2007, p. 549).

4 A TEMÁTICA DA MORTE EM DRÁCULA E NA BÍBLIA SAGRADA


Abordando Drácula de Bram Stoker vemos como na sociedade do século XIX, mais
especificamente na Inglaterra na era Vitoriana - um período marcado por revoluções
industriais, científicas e tecnológicas, e pela forte valorização social da medicina na
identificação, prevenção e combate de doenças contagiosas - uma busca incansável por
respostas para tudo o que é desconhecido e a ciência sendo tratada como uma solução aos
problemas que a sociedade se confrontava, na esperança de que, os males até então
desconhecidos, poderiam ter uma explicação racional através da intervenção do homem,
representado na obra pelo Dr. Van Helsing.
Assim, neste fin de siécle, Stoker apresenta a sociedade sua obra na qual defronta o
leitor em um corpo a corpo com a temática da morte, retratada como um mal. Mal este
representado pela personagem Drácula, que precisa ser combatida para um “final feliz”, para
o “bem geral da sociedade”, como um feito necessário para que a existência não seja
contaminada e um fim igualmente necessário para a paz, para reacender a esperança de dias
melhores na conturbada sociedade, principalmente em Londres no século XIX, como relata
Bresciani na introdução do seu livro “Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da
pobreza”:

Nenhuma questão se apresenta mais carregada de compromissos para os literatos do


séc. XIX do que a multidão. Num momento que o hábito da leitura se espalhava por
8

todas as classes sociais, esse público em formação fazia uma exigência: encontrar
sua imagem nos romances que lia. (...) As populações de Londres e Paris
encontram-se com sua própria modernidade através dessa exteriorização: admiração
e temor diante de algo extremamente novo. (...) Espanto, indignação. Fascínio,
medo: são reações diferenciadas apontando para estratégias de identificação bastante
solidárias a uma intenção de controle dessa presença desconcertante. (BRESCIANI,
2004).

Refletindo sobre a temática da morte como abordada na obra Drácula e realizando


um paralelo intertextual com a Bíblia Sagrada, através da identificação de referências alusivas
ao tema da morte, percebe-se uma certa influência das tradições judaico-cristãs na obra de
Stoker, vejamos:

i. a referência ao pó como início e fim da vida:

Gn. 3,19: Você é pó, e ao pó voltará.


Ecl. 12,7: Então o pó volta para a terra de onde veio, e o sopro vital retorna para
Deus que o concedeu.

[...] seu corpo já inerte se desfez em pó e desapareceu de minha vista. (STOKER,


2007, p. 546).
[...], logo seu corpo começava a desaparecer, transformado no primitivo pó, [...].
(STOKER, 2007, p. 539).

ii. a morte não é o “fim”:

Gn. 3,4: Então a serpente disse para a mulher: “De modo nenhum vocês morrerão”.
2Cor. 4,17-18: Pois a nossa tribulação momentânea é leve, em relação ao peso
extraordinário da glória eterna que ela nos prepara. Não procuramos as coisas
visíveis, mas as invisíveis, porque as coisas visíveis duram apenas um momento,
enquanto as invisíveis duram para sempre.

Há sempre uma razão geral para que as coisas sejam como são. (STOKER, 2007, p.
36).
Teremos antes de curtir as mais atrozes amargurar antes de alcançar a bem-
aventurança.
Na verdade nada existe que possa ser qualificado de absoluto ou definitivo,
inclusive aquilo que supomos ser o fim de alguma coisa. (STOKER, 2007, p. 281).
9

iii. a morte como partida para uma vida melhor; para o alcance da paz:

Gn. 15, 15: Quanto a você, irá reunir-se em paz com seus antepassados [...].
Is.26,19: Mas os teus mortos hão de reviver e seus cadáveres se levantarão. Os que
dormem no pó vão acordar e cantar, pois o teu orvalho é um orvalho de luz, e a terra
das sombras dará a luz.

Ela agora repousa na paz de Deus e a sua alma já está com ele. (STOKER, 2007, p.
324).
Meu único consolo é que nos entregamos nas mãos de Deus. Só mesmo em respeito
a esta fé é que a morte se torna mais justificável que a própria vida, e isto, num certo
sentido, liberta-nos de todos os martírios. (STOKER, 2007, p. 520).
[...] na consumação da morte, estampara-se em seu rosto uma sensação de paz, como
eu jamais imaginara que ainda pudesse comportar. (STOKER, 2007, p. 546).

Os exemplos acima permitem amplas interpretações, uma vez que, as leituras são
singulares, cada qual interpreta do seu ponto de vista formado a partir do material resultante
do conhecimento literário, histórico, linguístico, cultural, das experiências de vida. Por certo,
nossa compreensão da morte (se é possível inferir que haja uma “compreensão” no sentido
hermenêutico), se baseia nestes conhecimentos e ainda nas crenças adquiridas com o convívio
em um dado contexto familiar e social.
Dada a publicação da obra Drácula, se faz importante pontuar que em relação à
temática da morte e as discussões a ela relacionadas, o declínio da crença após vida atingiu
seu clímax no início do século XVII com a disseminação do ateísmo, ceticismo e
racionalismo pela França, Inglaterra e América. A publicação da Origem das Espécies de
Darwin (1859) modificou o pensamento sobre a imortalidade da alma, uma vez que, se a vida
humana é produto de geração espontânea, então os seres humanos não possuem um espírito
divino ou alma imortal. As teorias de Darwin incentivaram as pessoas a procurarem
explicações científicas para os fenômenos sobrenaturais como a sobrevivência da alma.
Na história do cristianismo, a morte tem sido explicada como a separação da alma
imortal do corpo mortal. Esta crença que na alma e que ela sobrevive após a morte pode ser
observada através de ritos cristãos como a oração pelos mortos, indulgencias, purgatório (um
lugar onde as almas dos mortos são purificadas pelo sofrimento antes de ascenderem ao
paraíso) e a intercessão dos santos. A citação da serpente “De modo nenhum vocês morrerão”
(Gn 3,4) tem sobrevivido ao longo da história humana até nossos dias, alimentada,
10

provavelmente, na necessidade de segurança, de respostas concretas em fase do desafio que a


morte representa.
A crença na imortalidade da alma, também é percebida no documento teológico “A
confissão de Fé” resultado da Assembléia de Westminster (1643-1648). O documento,
formado por 33 capítulos e considerado um clássico do pensamento presbiteriano, apresenta
no capítulo 32 o título: “Do estado do homem depois da morte e da ressurreição dos mortos”,
como citamos a seguir2:

1. Os corpos dos homens, depois da morte, voltam ao pó e veem a corrupção; mas as


suas almas (que nem morrem, nem dormem), possuindo uma substância imortal,
voltam imediatamente para Deus que as deu. As almas dos justos, sendo então
aperfeiçoadas em santidade, são recebidas nos mais alto dos céus onde contemplam
a face de Deus em luz e glória, esperando a plena redenção de seus corpos; e as
almas dos ímpios são lançadas no inferno, onde permanecerão em tormentos e em
trevas espessas, reservadas para o juízo do grande dia. Além destes dois lugares
destinados às almas separadas de seus respectivos corpos, as Escrituras não
reconhecem nenhum outro lugar.
2. No último dia, os que estiverem vivos não morrerão, mas serão transformados;
todos os mortos serão ressuscitados com os seus próprios corpos, e não outros,
embora com qualidades diferentes, e se unirão novamente às suas almas, para
sempre.

Muitos conceitos, estudos, pontos de vista, que tentam explicar o fenômeno da


morte, poderiam ser citados. Mas o intuito deste estudo, não está em discutir idéias sobre a
morte, mas em demonstrar influências culturais, tradicionais, literárias na criação de uma
obra. Drácula, o vampiro imortalizado pelo cinema, pela literatura, pela televisão, representa
na obra o mal que só tem uma solução para combater: a morte. Através dos excertos,
percebemos que Stoker mata seu vampiro não como um castigo, mas como uma alternativa
para uma vida melhor, como o retorno para a origem, para o encontro da paz, para a vida
eterna, como sublinhada através dos excertos bíblicos exemplificados neste estudo.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo procuramos mostrar que um texto se constrói na medida em que interage
com outros textos, isto pressupõe a idéia de que um texto não existe em “isolamento” e que
não pode ser completamente apreciado em “isolamento”. Este postulado implica afirmar que o
conceito de intertextualidade ultrapassa o contorno dos textos, resultando em um tecido
ilimitado de associações e conexões, e que são dependentes da sensibilidade e dos

2
Fonte: http://www.alchimac.com/2010/01/confissao-de-fe-de-westminster-164346.html
11

conhecimentos prévios do leitor para que venha a perceber as conexões entre textos,
realizando, assim, um melhor diálogo com este, como pontua Barthes:

Um texto é feito de escrituras múltiplas, oriundas de várias culturas e que entram


umas com as outras em diálogo, em paródia, em contestação: mas há um lugar onde
essa multiplicidade se reúne, e esse lugar não é o autor, como se disse até o presente,
é o leitor: o leitor é o espaço mesmo onde se inscrevem, sem que nenhuma se perca,
todas as citações de que é feita uma escritura: a unidade do texto não está em sua
origem, mas no seu destino, mas esse destino não pode mais ser pessoal: o leitor é
um homem sem história, sem biografia, sem psicologia: ele é apenas esse alguém
que mantém reunidos em um único campo todos os traços de que é construído o
escrito. [...] Para devolver à escritura o seu futuro, é preciso inverter o mito: o
nascimento do leitor deve pagar-se com a morte do Autor. (BARTHES, 1988, p. 70).

Evidencia-se, dessa maneira, o quão imprescindível é considerar o fenômeno da


intertextualidade como fator influente na criação e interpretação de um texto. No caso da obra
Drácula, o entendimento tanto micro como macro textual depende, sem dúvida, dos
conhecimentos literários, históricos e culturais do leitor. Em relação à temática da morte,
quando Stoker a representa como sendo um retorno ao pó, para o encontro da paz, como uma
partida e não como um fim específico como apontamos através dos excertos, um leitor que
tenha um conhecimento, não necessariamente total, da Bíblia Sagrada, adquirido através das
leituras realizadas, bem como, de diferentes situações presenciadas ao longo do seu convívio
social, melhor entenderá as relações entre os textos e, a influência dos preceitos judaico-
cristãos na obra de Stoker.

6 REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. A morte do autor. In: BARTHES, Roland. O Rumor da Língua.


Tradução de Mario Laranjeira. São Paulo: Editora Brasilense, 1988, p. 65-70.

BÍBLIA SAGRADA. Tradução de Ivo Storniolo e Euclides Martins Balancin. São Paulo:
Paulus, 1990.

BRECIANI, Maria Stella Martins. Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza.
São Paulo: Brasiliense, 2004.

DRANE, John. (org.). Enciclopédia da Bíblia. São Paulo: Loyola, 2009.

GABEL, John B.; WHEELER, Charles B. A Bíblia como Literatura. 2ª ed. Tradução de
Adail Ubirajara Sobral e Mana Stela Gonçalves. São Paulo: Loyola, 2003.

HATIM, Basil, MASON, Ian. Discourse and the translator. London and New York:
Longman, 1990.
12

KOCH, I. G. V. O texto e a construção dos sentidos. 9ª ed. São Paulo: Contexto, 2007.

KOCH, I. G. V.; BENTES, A. C.; CAVALCANTE, M. M. Intertextualidade: diálogos


possíveis. São Paulo: Cortez, 2007.

KRISTEVA, Julia. Semiótica do Romance. 2ª ed. Lisboa, Portugal: Arcádia, 1978.

LEPPIHALME, Ritva. Culture bumps: an empirical approach to the translations of


allusions. Great Britain: WBC Book Manufactures LTDA, 1997.

MALANGA, Eliana Branco. A Bíblia hebraica como obra aberta: uma proposta
interdisciplinar para uma semiologia bíblica. São Paulo: FAPESP, 2005.

MCNALLY T, R.; FLORESCU, Radu. Em busca de Drácula e outros Vampiros.


Tradução: Luiz Carlos Lisboa. São Paulo: Mercuryo, 1995.

RUOKONEN, Minna. Cultural and textual properties in the translation and


interpretation of allusions. Turun Yliopisto – University of Turku, 2010. Disponível em
http://www.doria.fi/bitstream/handle/10024/66203/AnnalesB330Ruokonen.pdf?sequence=1.
Acesso em setembro de 2011.

SCLIAR, M. O fascinante universo bíblico. Biblioteca EntreLivros. A Bíblia muito além da


fé, ano 1, n. 2, 200, p. 10-19.

STOKER, Bram. Drácula. Tradução de Theobaldo de Souza. Porto Alegre: LPM, 2007.

VASCONCELLOS, Paulo Sérgio. Arte Alusiva na Poesia Latina. Boletim do CPA.


Campinas, no. 5/6, jan./dez., 1998, p. 204-222.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo

LITERATURA E CINEMA EM ZAZIE DANS LE MÉTRO

Luciana Wrege Rassier1 (PGET/UFSC)

RESUMO

Zazie dans le métro, de Raymond Queneau, publicado em 1959 (tradução de Paulo Werneck:
Zazie no metrô. São Paulo: Cosac Naify, 2009) caracteriza-se pelo questionamento da identi-
dade das personagens, pela ousadia criativa da linguagem, pela força dos diálogos e pela es-
cassez de descrições. Grande sucesso de público e de crítica, essa obra foi transposta ao cine-
ma por Louis Malle em 1960, em um filme que se tornou um dos maiores sucessos de bilhete-
ria na sua carreira – trabalho no qual o cineasta francês não aderiu à estética da Nouvelle Va-
gue e utilizou recursos típicos do desenho animado. Em 2008, Clément Oubrerie lançou seu
romance gráfico homônimo. No presente trabalho proponho-me a analisar o diálogo entre o
romance, o romance gráfico e o filme através das seguintes questões: quais são as modalida-
des de transposição da linguagem literária às linguagens cinematográfica e gráfica? Em que
medida as obras de Louis Malle e de Clément Oubrerie, eminentemente visuais, dialogam?
Que tratamento ambos dão à questão identitária, marcante no texto de Raymond Queneau?

Palavras-chave:
Literatura e cinema. Identidades. Zazie dans le métro.

RÉSUMÉ

Dans Zazie dans le métro, de Raymond Queneau, publié en 1959 (traduction en brésilien de
Paulo Werneck: Zazie no metrô. São Paulo: Cosac Naify, 2009), la problématique identitaire,
le langage osé et créatif, la qualité des dialogues et la parcinomie de descriptions occupent le
premier plan. Cette œuvre, qui a reçu un accueil très favorable de la part des spécialistes et du
grand public, a été adaptée au grand écran par Louis Malle en 1960. Dans ce film, qui fut l‟un
des plus grands succès de billetterie du cinéaste, Malle n‟a pas utilisé les ressources de
l‟esthétique de la Nouvelle Vague, leur préférant certains procédés typiques des dessins
animés. En 2008, Clément Oubrerie a sorti sa bande dessinée homonyme. Dans ce travail je
me propose d‟analyser le dialogue établit entre le roman, la bande dessinée et le film à partir
des questions suivantes : comment le langage littéraire est-il traduit en langage
cinématographique et en langage graphique ? Dans quelle mesure les œuvres de Louis Malle
et de Clément Oubrerie, éminemment visuelles, dialoguent ? Comment y est traitée la
problématique identitaire, si importante dans le texte de Raymond Queneau ?

Mots-clefs:
Littérature et cinéma. Identités. Zazie dans le métro.

1
Docente e pesquisadora junto ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução (UFSC); co-diretora do
Pôle de Recherches Interuniversitaires sur les Pays de Langue Portugaise (Universidade de Rennes 2, Fran-
ça); membro do Centre de Recherches en Histoire Internationale et Atlantique (Universidades de Nantes e de
La Rochelle, França) ; tradutora literária; e-mail: luciana.rassier2010@gmail.com.
2

1 INTRODUÇÃO
Zazie dans le métro, de Raymond Queneau, publicado em 1959 (tradução de Paulo
Werneck: Zazie no metrô. São Paulo: Cosac Naify, 2009) caracteriza-se pelo questionamento
da identidade dos personagens, pela ousadia criativa da linguagem, pela força dos diálogos e
pela escassez de descrições. Grande sucesso de público e de crítica, essa obra foi transposta ao
cinema por Louis Malle em 1960, em um filme que se tornou um dos maiores sucessos de
bilheteria de sua carreira – trabalho no qual o cineasta francês não aderiu à estética da Nou-
velle Vague e utilizou recursos típicos do desenho animado. Em 2008, Clément Oubrerie lan-
çou seu romance gráfico homônimo. No presente trabalho proponho-me a analisar o diálogo
entre o romance, o romance gráfico e o filme através das seguintes questões: quais são as mo-
dalidades de transposição da linguagem literária às linguagens cinematográfica e gráfica? Em
que medida as obras de Louis Malle e de Clément Oubrerie, eminentemente visuais, dialo-
gam? Que tratamento ambos dão à questão identitária, marcante no texto de Raymond Quene-
au?

2 “O PAI DE ZAZIE”: UM INTELECTUAL FORA DE SÉRIE


A fim de compreender o projeto litérário que deu origem a Zazie dans le métro, é
necessário retraçar, ainda que de modo bastante sucinto, o percurso de Raymond Queneau
(1903-1976), cuja produção, extensa e variada, engloba romances, poemas, letras de música,
roteiros de cinema e ensaios.
Ávido pelas promessas de renovação das vanguardas, esse intelectual francês curio-
so, insolente e brilhante se interessa em 1920 pelo dadaísmo, e, entre 1924 e 1929, freqüenta
os surrealistas. Em 1960, Queneau é um dos co-fundadores do grupo conhecido como OuLiPo
(Ouvroir de Littérature Potentielle), composto por literatos e matemáticos que criam regras,
por vezes fórmulas, a partir das quais escrevem. Em Esthétique de l’Oulipo, Hervé Le Tellier
sublinha a constante evolução das noções utilizadas pelo grupo e propõe o seguinte perfil de
seus membros:

A pedra fundadora do grupo será a exploração do vínculo entre matemática e litera-


tura, um vínculo que se declinará, ao longo dos quarenta e seis séculos oulipianos –
pois o Oulipo considera cada ano um século –, em torno de noções móveis e em evo-
lução: estrutura, imposição, diretiva, axiomática, manipulação, combinatória, pro-
cesso, procedimento, etc. Queneau, zombeteiro, teria definido os oulipianos como
“ratos que constróem o labirinto do qual propõem sair”. Mas os oulipianos não lem-
bram apenas o roedor frenético e obstinado. Eles também têm algo do colecionador
3

e do enciclopedista (ainda que seu campo de pesquisa – e seu interesse – sejam irri-
sórios aos olhos de alguns). (LE TELLIER, 2003, p. 7 – tradução minha)2.

Um dos exemplos mais conhecidos das técnicas oulipianas é indubitavelmente o


S+7, explicado por Jean Lescure em « La méthode S+7 (cas particulier de la méthode
M ± n) », cujo primeiro parágrafo traz a definição de tal método:

O método P ± n, que propomos inicialmente sob a forma ainda limitada conhecida


como S+7 (forma que deu nome ao método), consiste em substituir em um texto
existente (de qualidade literária ou não) as palavras (P) por outras palavras de mes-
mo gênero que as seguem ou as precedem no dicionário, a uma distância variável
medida pelo número de palavras. Assim, S+7 significa simplesmente que substituí-
mos todos os substantivos de um texto pelo sétimo que a ele se segue em um dado
léxico (LESCURE, 1973, p. 139 – tradução minha)3.

Outro procedimento é o lipograma, texto no qual a utilização de uma determinada


letra do alfabeto é probida. Georges Perec, que proscreveu a vogal “e” – a mais freqüente da
língua francesa – de seu romance intitulado precisamente La Disparition (1969), conclui um
breve texto, “Histoire du lipogramme”, sublinhando o interesse desse procedimento em rela-
ção à supressão de um determinado fonema ou de uma determinada palavra: “Nesse sentido, a
supressão da letra, do signo tipográfico, do suporte elementar, é uma operação mais neutra,
mais decisiva, algo como o grau zero da restrição, a partir do qual tudo se torna possível”
(PEREC in s.a., Oulipo : la littérature potentielle, 1973, p. 88 – tradução minha)4. Outras
propostas do grupo que, na época, não passavam de elocubrações teóricas, hoje em dia são
declinadas na vídeo-poesia ou no cinema, como é o caso dos “textos anaglíficos” de François
Le Lionnais:

Os textos literários são sempre planares (e, em geral, lineares), ou seja, dispostos em
uma folha de papel. Poderia-se fazer textos cujas linhas se situariam em um espaço
de três dimensões. Sua leitura exigiria óculos especiais (uma lente vermelha e uma

2
« La pierre fondatrice du groupe sera l‟exploitation du lien entre mathématique et littérature, un lien qui va se
décliner, au cours des quarante-six siècles oulipiens – car l‟Oulipo compte chaque année pour un siècle –,
autour de notions évolutives et mobiles: structure, contrainte, consigne, axiomatique, manipulation,
combinatoire, procédé, procédure, etc. Queneau, plaisamment, aurait défini les oulipiens comme des « rats
qui construisent le labyrinthe dont ils se proposent de sortir ». Mais les oulipiens ne tiennent pas que du
rongeur frénétique et acharné. Ils ont aussi quelque chose du collectionneur et de l‟encyclopédiste (leur
domaine de recherche – et son intérêt – fût-il dérisoire aux yeux de certains) ». (LE TELLIER, 2003, p. 7).
3
« La méthode M ± n, que l‟on propose d‟abord sous la forme encore limitée dite S+7 (forme qui a donné à la
méthode son nom), consiste à remplacer dans un texte existant (de qualité littéraire ou non) les mots (M) par
d‟autres mots de même genre qui les suivent ou les précèdent dans le dictionnaire, à une distance variable
mesurée par le nombre de mots. Aussi S+7 veut dire simplement que l‟on remplace tous les substantifs d‟un
texte par le septième qui le suit dans un lexique donné ». (LESCURE, 1973, p. 139).
4
« En ce sens, la suppression de la lettre, du signe typographique, du support élémentaire, est une opération plus
neutre, plus nette, plus décisive, quelque chose comme le degré zéro de la contrainte, à partir duquel tout
devient possible ». (PEREC, 1973, p. 88).
4

lente verde) segundo o procedimento dos anaglifos que já foi utilizado para repre-
sentar figuras geométricas e cenas figurativas no espaço. (LE LIONNAIS, 1973,
p. 285 – tradução minha)5.

Esses exemplos ilustram a perspectiva que Raymond Queneau adota ao elaborar seu
projeto literário. De sua vasta produção, citarei apenas três títulos, bastante representativos do
espírito oulipiano6. O primeiro deles é Exercices de style (“Exercícios de estilo”, de 1947),
livro no qual a mesma estória, breve e banal, é contada de 99 modos diferentes. Esse jogo
abarca registros como: carta oficial, interrogatório, telegrama; texto filosófico, metafórico,
onírico, gustativo, olfativo; registro vulgar; versos livres, versos alexandrinos, soneto, ode,
tanka7. O segundo é uma obra de poesia combinatória, Cent mille milliards de poèmes (“Cem
trilhões de poemas”, de 1961). Esse objeto-livro é composto por dez sonetos, sendo cada ver-
so impresso em uma faixa de papel, o que oferece ao leitor a oportunidade de compor seus
próprios sonetos. O título da obra evoca a impressionante quantidade de combinações possí-
veis entre os quatorze versos desses dez poemas (1014). O terceiro título é precisamente a obra
mais conhecida e mais popular de Raymond Queneau, o romance Zazie dans le métro (1959).

3 (DES)CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA EM ZAZIE


Zazie é uma garota de cerca de dez anos, insolente e desbocada, que passa duas noi-
tes em Paris sob a responsabilidade de seu tio Gabriel, a fim de que sua mãe possa se ausentar
com o namorado. Além de amigos do tio, Zazie encontra outras pessoas durante sua deambu-
lação na capital francesa, que a leva ao mercado das pulgas. A menina demonstra uma fixação
pelo metrô, que quer conhecer a qualquer preço. Mas uma greve atrapalha seus planos, e a
única vez em que ela o toma, ao final do romance, é quando a transportam dormindo até a
estação de trem, onde sua mãe a espera para retornarem à cidadezinha onde moram.
Essa narrativa segue a tendência de renovação da linguagem literária e de descons-
trução dos fundamentos canônicos do romance, presente em várias obras do período que se
seguiu à Segunda Guerra Mundial e que foi ampliada pelo advento do Nouveau Roman. No

5
« Les textes littéraires sont toujours planaires (et même généralement linéaires), c‟est-à-dire disposés sur une
feuille de papier. On pourrait faire des textes dont les lignes se situeraient dans un espace à 3 dimensions.
Leur lecture exigerait des lunettes spéciales (un verre rouge et un verre vert) selon le procédé des anaglyphes
qui a déjà été utilisé pour représenter des figures de géométrie et des scènes figuratives dans l‟espace » (LE
LIONNAIS, 1973, p. 285).
6
Para uma visão de conjunto da obra de Raymond Queneau, remeto às cronologias bio-bibliográficas elaboradas
por Claude Debon (2003, p. 222-230) e por Jacques Jouet (1989, p. 173-184).
7
O tanka é um poema japonês de 31 sílabas repartidas em 5 versos, os quais têm respectivamente, 5, 7, 5, 7 e 7
sílabas.
5

entanto, como indica Roland Barthes no ensaio “Zazie et la littérature” (1964), que se tornou
referência incontornável no estudo dessa obra8, à primeira vista Zazie dans le métro segue a
estrutura tradicional do gênero romanesco: “Do ponto de vista da arquitetura literária, Zazie é
um romance bem-feito. Nele encontramos todas as „qualidades‟ que a crítica gosta de enume-
rar e louvar [...]. Ali está toda a técnica do romance francês, de Stendhal a Zola” (Barthes,
2009, p. 177-178). Porém, como demonstra Barthes, sob esta aparência tradicional Queneau
instaura uma instabilidade incessantemente renovada: muito do que o narrador afirma se reve-
la inexato; a continuidade espacial é problematizada, os hábitos e os julgamentos, parodiados.
Os personagens, multifacetados, são envoltos em ambigüidade. A “escrita fonética” dá visibi-
lidade ao “neo-francês”, à língua tal qual é falada, opondo-a à norma culta, já esclerosada.
Do ponto de vista identitário, vários personagens são emblemáticos, além de Zazie.
Citarei apenas três deles. Gabriel, que é um homem alto e forte mas também bastante sensível
e vaidoso, trabalha em um cabaré onde dança vestido de mulher, sob o pseudônimo de Gabri-
ella9. Zazie passa boa parte do romance perguntando-se se seu tio é “hormossecsual”, sem
saber ao certo o que a palavra significa. A identidade da companheira de Gabriel, Marceline,
também é uma das incógnitas do romance: trata-se de uma mulher ou de um homem? Há
também um personagem que adota diferentes personalidades: Pédro Surplus/Bertin Poiri-
er/Trouscaillon/Arun Arachide.
Aliás, é precisamente esse “sujeito” – tal é a designação que o narrador lhe atribui
nos primeiros capítulos – que questiona a identidade sexual de Gabriel, notadamente em dois
episódios. O primeiro é quando vai à casa do tio de Zazie, atrás dela e do pacote com um par
de calças jeans que ela lhe roubou:

O sujeito dizia assim: Ah, isso, precisa ver, espero que a menina não tenha me afa-
nado o meu pacucho. E Gabriel sugeria: Talvez o senhor não tenha trazido. Trouxe
sim, dizia o sujeito, pois é, a garota me afanou, agora a cobra vai fumar.
- Que esculacho – disse Zazie.
- Ele não vai embora? – perguntou suavemente Marceline.
- Não – disse Zazie. – Olhalá, agora ele resolveu atacar o titio às suas custas.
Na verdade, dizia o tipo, pode ter sido a sua mulher que me afanou o pacucho. Vai
ver que a sua mulher ela também está a fim de usar djins. Isso com certeza não, dizia
Gabriel, com certeza não. Como é que você sabe?, replicava o sujeito, ela pode ter
tido a idéa, com um marido que tem jeitão de hormossecsual.
- Quê que é hormossecsual? – perguntou Zazie.
- É um homem que usa calça jeans – disse suavement Marceline. (QUENEAU,
2009, p. 56-57).

8
Esse texto foi incluído como posfácio na edição brasileira da obra (In: QUENEAU, 2009, p. 177-188).
9
No romance, as descrições físicas dos personagens são raríssimas; o caso de Gabriel constitui uma exceção: “O
sujeitinho examinou o gabarito de Gabriel e pensou: é um armário [...]”; “E se erguendo num salto com uma
leveza tão singular quanto inesperada, o colosso deu alguns passinhos de balé [...]”. (QUENEAU, 2009, p. 8;
137).
6

O segundo episódio é quando conversa com Gridoux, cuja sapataria fica ao lado do
prédio onde mora Gabriel:

- O titio é uma titia.


- Não é verdade – berrou Gridoux –, não é verdade, eu proíbo o senhor de dizer isso.
[...] O Gabriel – proferiu Gridoux solenemente –, o Gabriel ele é um cidadão hones-
to, honesto e honrado. Além do mais, todo mundo gosta dele aqui no bairro.
- Uma sedutora.
- O senhor está me enchendo o saco, afinal de contas, com esses seus ares superio-
res. Estou repetindo que o Gabriel não é uma tia, está claro, sim ou não?
- Então prova – disse o outro.
- Não é nada difícil – respondeu Gridoux. – Ele é casado.
- Isso não prova nada – disse o outro [...](QUENEAU, 2009, p. 69).

A dúvida sobre a identidade de Marceline é semeada no romance de maneira bem


mais sutil: nos episódios que acontecem no apartamento onde mora com Gabriel, suas ações e
falas são pautadas pelo advérbio “suavemente”, que também caracteriza um personagem-
chave que aparece ao final do romance. Designado como “o manipulador do elevador de car-
ga” e como “o lampadóforo”, ele salva Gabriel e Zazie de Arun Arachide, que comanda o
esquadrão armado que os ameaça. Além de retirá-los do restaurante e de guiá-los até o metrô,
esse “sujeito” decide levar a menina até a estação de trem, onde sua mãe, Jeanne, a espera:

Pouco depois, vinha Zazie, acompanhada por um sujeito que levava a malocha dela.
- Olha só! – disse Jeanne Lalochère. – Marcel.
- Como você pode notar.
- Mas ela está dormindo em pé!
- Eles aprontaram. [...] Tô indo. Témais, menina.
- Tchau – disse Zazie, muito ausente. (QUENEAU, 2009, p. 171).

Além do prenome Marcel, há outro indício da identidade masculina desse persona-


gem no texto original em língua francesa: Zazie despede-se do “sujeito” com a frase “Au re-
voir, meussieu” (QUENEAU, 2010, p. 240 – grifo meu)10.
No extremo oposto à sutileza do jogo estabelecido entre Marceline-Marcel, temos a
metamorfose ambulante representada por Pédro Surplus/Bertin Poirier/Trouscaillon/Arun
Arachide, personagem que explicita a própria instabilidade identitária, como nesse diálogo
com Gridoux, no oitavo capítulo:

- O senhor talvez queira saber o meu nome, por ezemplo?


- Quero – disse Gridoux –, isso aí, o seu nome.
- Pois é, não sei.

10
Na tradução brasileira essa indicação desaparece: “Tchau – disse Zazie, muito ausente” (QUENEAU, 2009,
p. 171).
7

Gridoux levantou a vista.


- Muito engraçadinho, hein – ele disse.
- Nada disso, não sei.
- Como assim?
- Como assim? Assim: não decorei. (silêncio). [...] Por acaso a gente precisa decorar
o próprio nome? [...] Mas o que é mais forte no meu caso – retomou o sujeito – é
que eu não sei nem se antes eu já tinha um.
- Um nome?
- Um nome. (QUENEAU, 2009, p. 71-72).

Outro exemplo é a fala do ameaçador Arun Arachide, no capítulo 18, que evoca os
diversos papéis que desempenha:

[...] sou eu, Arun Arachide. Eu sou eu, o que vocês conheceram e às vezes mal reco-
nheceram. Príncipe deste mundo e de diversos territórios conexos, me compraz per-
corer meus domínios em aspectos variados, tomando as aparências da incerteza e do
erro que, aliás, me são próprios. Policial primário e desfalcado, vagabundo noctinau-
ta, indeciso caçador de viúvas e órfãs, essas fugidias imagens me permitem endossar
sem medo os riscos menores do ridículo, da estapafurdice e da efusão sentimental
[...]. Mal tido como desaparecido por suas consciências leves, reapareço em triunfo e
inclusive sem modéstia nenhuma. (QUENEAU, 2009, p. 167-168).

De modo análogo, certos lugares são objeto de ressignificação constante. No capítulo


inicial, durante o percurso de táxi entre a estação e o apartamento de Gabriel, diferentes mo-
numentos são designados como sendo o “Panthéon”, enquanto que no capítulo seguinte Ga-
briel e Zazie passam do bar-restaurante situado no subsolo à sala de jantar do apartamento
sem que indicação alguma seja dada ao leitor (QUENEAU, 2009, p. 12-14; 19).
Já que o questionamento identitário – da própria linguagem, da liguagem literária,
dos personagens e dos lugares – é um dos motores do projeto literário de Queneau em Zazie
dans le métro, cabe refletir sobre o tratamento dado a essa questão nas obras homônimas de
Louis Malle e de Clément Oubrerie.

4 (RE)CRIAÇÃO DE ZAZIE : FILME E QUADRINHOS


Louis Malle (1932-1995) é um dos cineastas franceses mais consagrados11. Antes de
filmar “Zazie dans le métro” (1960), ele trabalha como assistente de Jacques Cousteau em “Le
monde du silence” (1955) – documentário que obtém a Palma de ouro no Festival de Cannes
– e faz “Ascenseur pour échafaud” (1957) e “Les amants” (1958), que se tornariam obras
clássicas. No caso de “Zazie”, o que inicialmente seria um filme modesto em preto e branco
acaba se transformando em uma produção em cores, com um orçamento altíssimo. O cineasta
não emprega as rupturas que a Nouvelle Vague propõe no modo de filmar a cidade, na utiliza-

11
Site oficial do cineasta : http://louismalle.ice.spill.net/index2.php?dr=lm. Acesso em 30/09/2011.
8

ção da voz em off, na montagem, na interpretação do atores. As inovações de Louis Malle


incluem a utilização da película Eastman 60 e a montagem de cerca de 500 planos (quase qua-
tro vezes mais que a média dos filmes), além de procedimentos típicos do desenho animado –
principalmente na cena em que Zazie é perseguida por Pédro Surplus: aceleração e desacele-
ração dos movimentos; perseguição de carros em alta velocidade durante a qual Zazie tira as
mão do volante para melhor atrapalhar seu inimigo; uma bomba, jogada de mão em mão até
explodir no rosto do perseguidor; um fio de telefone que é na verdade um pavio; o velho tru-
que da corrida interrompida para que o perseguidor fotografe o perseguido – esquecendo por
instantes seu objetivo –; o jogo de esconde-esconde entre manequins que se parecem com
Zazie, etc. Todos esses recursos contribuem a (re)criar visualmente o dinamismo, o caráter
lúdico e paródico do romance de Queneau. Aliás, em algumas cenas de exterior, painéis com
letras azuis e vermelhas são incorporados ao cenário, criando uma unidade visual mas tam-
bém remetendo sutilmente à obra literária12. Ao mesmo tempo, Malle emancipa-se do roman-
ce através de escolhas como a supressão do narrador.
No que tange à questão identitária, a interpretação de Philippe Noiret cria um Gabriel
emblemático por sua dualidade. Já Marceline-Marcel, a companheira de Gabriel, é nomeada
Albertine-Albert, em uma alusão ao personagem inspirador do amor homossexual do Marcel
de Em busca do tempo perdido. A atriz, Carla Marlier, encanta por sua beleza andrógina.
Além disso, Louis Malle utiliza os mesmos figurantes ao longo do filme, criando um desdo-
bramento identitário que funciona como um fio condutor.
Lançado em DVD pela coleção Arte vidéo (2005), o filme de Louis Malle, graças a
sua qualidade e modernidade, suscita o interesse o público e colabora para que o texto de
Queneau continue a ser lido. Outra prova desse interesse sempre renovado é a publicação, em
2008, do romance em quadrinhos homônimo de Clément Oubrerie.
Clément Oubrerie (1966) – que já ilustrou mais de 40 obras dirigidas prioritariamen-
te ao público “juvenil” – se tornou conhecido graças ao prêmio de “Melhor álbum de estréia”
do consagrado Festival Internacional de História em Quadrinhos de Angoulême, que recebe
em 2006 por Aya de Yopogon. Esse romance gráfico, que conta a vida da jovem Aya e de suas
amigas no final dos anos 1970 na Costa do Marfim, se inspira na vivência da própria autora,
Marguerite Abouet (1971), e é o primeiro de uma série de álbuns.
Em um texto bastante elucidativo publicado em seu blog, Oubrerie afirma que, ao ser
convidado pela prestigiosa editora Gallimard a criar um romance gráfico a partir de uma obra

12
Esse grafismo é retomado na capa mas também como marca d‟água no interior das páginas duplas da belíssi-
9

literária, escolhe Zazie dans le métro e decide desvencilhar-se, na medida do possível, das
propostas das duas obras visuais já existentes: o filme de Louis Malle (1960), cujo Gabriel
interpretado por Philippe Noiret julga emblemático ao ponto de ser “invasivo” em seu imagi-
nário de ilustrador, e a edição ilustrada por Jacques Carelman (QUENEAU, 1966), que consi-
dera submissa demais ao texto literário. Oubrerie define nesses termos a diferença entre ilus-
tração e adaptação:

Ilustrar é acompanhar o texto, integral ou não, através de imagens que respeitam tan-
to quanto possível seu sentido, ao passo que ao adaptar tem-se a liberdade (e a res-
ponsabilidade) de escolher, modificar, transpor, reescrever; em suma, transformar a
obra original em outra obra, não menos original mas que, sobretudo, não é igual
(OUBRERIE, 2009 – tradução minha).

O ilustrador deixa claro que o romance gráfico é um gênero à parte, com suas pró-
prias regras e imposições, dentre as quais estão a extensão da obra (cerca de oitenta páginas,
cada uma com oito a dez quadrinhos), o ritmo rápido da evolução da trama e a extensão limi-
tada dos diálogos. Conseqüentemente, a supressão de episódios e de diálogos do texto original
se torna inevitável. Além disso, Oubrerie opta por eliminar o narrador. Quanto ao tratamento
da arte, ele afirma haver optado pela sobriedade, evitando competir com a “exuberância ver-
bal” de Queneau. Ele compara sua obra a um filme:

Minha escolha foi uma filmagem com um orçamento baixo, com alguns atores cuja
interpretação é comedida, alguns figurinos e cenários naturais. Meu filme respeita ao
máximo os efeitos de surpresa que são a força vital da história, e acrescenta algo a
seu modo, indo na contra-corrente (OUBRERIE, 2009 – tradução minha).

Oubrerie decide não solucionar ambigüidades como o homossexualismo de Gabriel e


não antecipar fatos como a ambigüidade sexual de Marceline, que só é sublinhada ao final do
romance. Aliás, sua Marceline, além de extremamente feminina, é negra, escolha que justifica
argumentando que nada em Zazie dans le métro indica que Marceline seria branca. Ele ainda
lembra que, nos anos 1950-1960, as casas noturnas de Saint-Germain também eram freqüen-
tadas por negros, dentre os quais vários músicos de jazz. Para o ilustrador, o fato de Queneau
freqüentar esse meio boêmio permite imaginarmos que Gabriel, por seu perfil e seu trabalho
como cantor transvestido, também o faria.
Por pertencer a uma época em que os leitores já estão saciados ou mesmo fartos do
acúmulo de efeitos especiais, a obra de Oubrerie privilegia o figurativo, evitando o fantástico.

ma edição brasileira da Cosac Naify (Queneau, 2009).


10

Se, por um lado, o romance gráfico privilegia certa sobriedade visual, por outro, as-
sim como o filme, ele reserva um lugar de destaque para o “neo-francês” e para a ambiguida-
de identitária de Gabriel/Gabriella, Marceline/Marcel e Pédro Surplus/Bertin Poiri-
er/Trouscaillon/Arun Arachide. O romance gráfico de Clément Oubrerie funciona de modo
especular em relação ao filme de Louis Malle, enfatizando escolhas na transposição da lin-
guagem literária à linguagem visual, sejam elas convergentes ou divergentes. Habilmente,
Oubrerie não busca retomar nos anos 2010 procedimentos considerados revolucionários nos
anos 1960. Trata-se, em ambos os casos, de “transcriações” que dialogam com o romance de
Raymond Queneau, do qual se aproximam e se afastam, mas cujo estatuto de obra questiona-
dora da linguagem e da realidade preservam.

5 REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. Zazie e a literatura. In : QUENEAU, Raymond. Zazie no metrô.


Tradução de Paulo Werneck. São Paulo: Cosac Naify, 2009, p. 177-188.

_____. Zazie et la littérature. In : BARTHES, Roland. Essais critiques. Paris : Seuil, 1964,
p. 125-131.

DEBON, Claude. Repères biographiques. In : DEBON, Claude (org.). Dossier Raymond


Queneau. Europe, Paris, n.888, p. 222-230, abr. 2003.

JOUET, Jacques. Repères chronologiques ; orientation bibliographique. In : JOUET, Jacques.


Raymond Queneau. Paris : La manufacture, 1989, p. 173-184.

LE LIONNAIS, François. Textes anaglyphiques. In : s.a., OULIPO: la littérature potentielle.


Paris: Gallimard, 1973, p. 285.

LE TELLIER, Hervé. Esthétique de l’Oulipo. Bordeaux : Le Castor Astral, 2006.

LESCURE, Jean. La méthode S+7 (cas particulier de la méthode M ± n). In : s.a., OULIPO:
la littérature potentielle. Paris: Gallimard, 1973, p. 139-144.

OUBRERIE, Clément. Zazie dans le métro. Paris : Gallimard jeunesse, 2008.

PEREC, George. Histoire du lipogramme. In : s.a., OULIPO: la littérature potentielle. Paris:


Gallimard, 1973, p. 73-89.

QUENEAU, Raymond. Zazie dans le métro. Paris: Gallimard, 2010.

_________. Zazie dans le métro. Ilustrações de Jacques Carelmann. Paris : Gallimard, 1966.

_________. Zazie no metrô. Tradução de Paulo Werneck. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
11

6 REFERÊNCIAS FILMOGRÁFICAS

Zazie dans le métro. Louis Malle, 1960, Nouvelles Éditions de Films (NEF), 88min.

7 SITES INTERNET

Blog de Clément Oubrerie, texto postado em 12/04/2009:


http://clementoubrerie.blogspot.com/search/label/zazie. Acesso em 30/09/2011.

Site oficial de Louis Malle: http://louismalle.ice.spill.net/index2.php?dr=lm. Acesso em


30/09/2011.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo

LOS SIETE LOCOS DE ROBERTO ALRT E LEOPOLDO TORRE NILSSON:


DO LIVRO À TELA

Janete Elenice Jorge1 (PPGL/UFSC)

RESUMO

O presente artigo tem como proposta discutir os romances Los siete locos (1929) e Los Lan-
zallamas (1931) do escritor argentino Roberto Arlt e o filme Los siete locos (1973) do diretor
também argentino Leopoldo Torre Nilsson. Levando em consideração que ambas as narrati-
vas são diferentes, uma escrita e outra fílmica, pretende-se debater algumas características
presentes nos romances do escritor argentino que também podem ser visualizadas no filme e
discutir seus pontos de confluência. Não pretendemos adotar a literatura como ponto de refe-
rência dominante, mas como uma espécie de ―fonte de inspiração‖ para criação de outra obra
de arte em mídia diferente. O objetivo principal é observar como foi realizada a transposição
do texto para o outro tipo de mídia, para isso discutiremos o conceito de transposição utiliza-
do por Sergio Wolf em seu estudo Cine/Literatura: Ritos de pasaje e verificaremos alguns
recursos que o diretor Leopoldo Torre Nilsson utilizou para representar no filme algumas ca-
racterísticas presentes nos romances de Arlt. Primeiramente apresentaremos o escritor, os ro-
mances e o cineasta para em seguida analisar e comentar algumas características do livro e do
filme.

Palavras-chave:
Literatura. Cinema. Los siete locos.

RESUMEN

El presente artículo tiene como propuesta discutir las novelas Los siete locos (1929) y Los
Lanzallamas (1931) del escritor argentino Roberto Arlt y la película Los siete locos (1973)
del director argentino Leopoldo Torre Nilsson. Teniendo en cuenta que ambas narrativas son
diferentes, una escrita y la otra cinematográfica, se pretende debatir algunas de las caracterís-
ticas presentes en las novelas del escritor argentino que también se pueden observar en la pe-
lícula y discutir sus puntos de confluencia. No tenemos la intención de adoptar la literatura
como punto de referencia dominante, sino como una especie de "fuente de inspiración" para
crear otra obra de arte en diferente media. El objetivo principal es ver cómo se realizó la
transposición del texto en otra media, para eso discutiremos el concepto de tranposición utili-
zado por Sergio Wolf en su estudio Cine /Literatura: Ritos de pasaje y verificaremos algu-
nos recursos que el director Leopoldo Torre Nilsson utilizó para representar en la película,
algunas de las características presentes en las novelas de Arlt. En primer lugar presentaremos
al escritor, las novelas y el director de cine, para luego, analizar y comentar algunas caracte-
rísticas del libro y la película.

Palabras Clave:
Cine. Literatura. Los Siete Locos.

1
Doutoranda em Teoria Literária pela UFSC; e-mail: janfloripa@gmail.com.
2

1 INTRODUÇÃO
Primeiramente apresentaremos o escritor, os romances e o cineasta para em seguida
analisar comparativamente e comentar algumas características do livro e do filme. Roberto
Arlt, argentino de origem imigratória, era filho de Karl Arlt, um militar alemão, e de Ekathe-
rine Iobstraibitzer, uma camponesa italiana de Trieste. Novelista, contista, dramaturgo e jor-
nalista, o escritor que nasceu no dia 26 de abril de 1900 no bairro de Flores, subúrbio de Bue-
nos Aires, cursou a escola primária até o terceiro ano, em seguida entrou para a Escuela de
Mecanica de la Armada de onde foi expulso por má conduta. Publicou seu primeiro romance,
El juguete rabioso, em 1926, livro que evoca a capital da Argentina. Neste mesmo período
começa também a escrever para os jornais El mundo e Crítica e suas colunas diárias, conhe-
cidas como Aguafuertes Porteñas, aparecerão entre 1928 e 1935, para mais tarde serem reu-
nidas em livro que levou o mesmo nome. Em 1935, a serviço do jornal El mundo, Arlt viajou
para Espanha e África ocasião em que escreveu suas Aguafuertes Españolas. Chegou a visi-
tar o Chile e o Brasil, porém sempre viveu em Buenos Aires, cidade que servirá de inspiração
para sua narrativa. Escreveu quatro romances: El juguete rabioso (1926), Los siete locos
(1929), Los lanzallamas (1931) e El amor brujo (1932) além de contos, crônicas e peças de
teatro. Roberto Arlt morreu de um ataque cardíaco, aos 42 anos, no dia 26 de julho de 1942
em Buenos Aires e sua obra foi reconhecida pela crítica argentina quase uma década após seu
falecimento.
Leopoldo Torre Nilsson nasceu em Buenos Aires em 5 de maio de 1924. Foi escritor
e um dos diretores mais importantes do cinema argentino. Começou a trabalhar com o cinema
juntamente com seu pai o também diretor Leopoldo Torre Rios, auxiliando-o durante 10 anos
como ajudante de direção. Em 1949 realiza seu primeiro longa-metragem em co-parceria com
o pai, o filme chamou-se El crimen de Oribe, uma adaptação do romance El perjurio de la
nieve, de Adolfo Bioy Casares. Em 1956 produziu o filme Graciela baseado no romance de
Carmen Laforet Nada, para em seguida realizar algumas adaptações de Beatriz Guido, sua
esposa, o que lhe rendeu reconhecimento internacional. Entre seus filmes se destacam: La
casa del ángel (1957), La caída (1959), El ojo de la cerradura (1964), e Piedra libre
(1975). Esses filmes retratam a hipocrisia da pequena burguesia argentina, o puritanismo fe-
minino, a crítica aos valores da sociedade argentina, mesma temática que permeou Los siete
locos (1973). O diretor também adaptou outras obras literárias de diferentes temáticas como
Martín Fierro (1968) e o melodrama Boquitas Pintadas (1974) de Manuel Puig, faleceu em
8 de setembro de 1978 em Buenos Aires.
3

Os romances Los siete locos e Los Lanzallamas são os mais conhecidos entre os
textos de Roberto Arlt e também os mais estudados pela crítica e Leopoldo Torre Nilsson rea-
lizou a transposição desses textos a um filme. Utilizamos o termo transposição de acordo com
a definição de Sergio Wolf em seu estudo Cine/Literatura: Ritos de pasaje onde o crítico
comenta que essa denominação é mais pertinente ―porque designa la idea de traslado pero
también la de transplante, de poner algo em outro sitio, de extirpar ciertos modelos, pero pen-
sando en otro registro.‖ (WOLF, 2004, p. 16)
Segundo Sergio Wolf há outros termos para designar esse processo que envolve texto
literário e filme, tais como adaptação e tradução, entretanto o crítico decide pelo termo
transposição porque segundo ele, a palavra adaptação tem uma implicância médica e outra
material:

―médica en la medida en que la literatura haría las veces del objeto díscolo, inasible
o inadaptable, aquello que no consigue integrarse a un sistema. De modo comple-
mentario, entonces, el cine sería lo establecido, el formato rígido y altivo que exige
que todo se subordine a él de la peor manera; en síntesis, el statu quo. O más aún: la
literatura sería un sistema de una complejidad tal que su pasaje al territorio del cine
no contemplaría más que pérdidas o reducciones, o limitaciones que desequilibrarían
su entidad. (...) Material porque se trataría de una adecuación de formatos o, si pre-
fiere, de volúmenes. La cuestión se plantea en términos de que el formato de origen
– literatura – ―quepa‖ en el otro, que adopte la forma del otro formato ―cine‖: que
uno se ablande para ―poder entrar‖ en el otro, que adopte la forma del otro.‖
(WOLF, 2004, p. 13)

Neste caso, o termo adaptação implicaria uma hierarquia entre os dois sistemas, já o
termo tradução também não seria pertinente porque remete a idéia de uma equivalência entre
a linguagem literária e a linguagem fílmica. Sendo assim, adotaremos o termo transposição
para discutir o processo que leva o livro à tela.
O filme segue a mesma história dos romances, entretanto muitas cenas foram suprimi-
das ou condensadas devido a extensão do texto de Arlt. Los lanzallamas dá continuação a
história de Los siete locos, entretanto, os dois livros podem ser lidos independentemente um
do outro. O primeiro romance está organizado em três grandes capítulos divididos por 34 sub-
títulos e o segundo romance está organizado em quatro grandes capítulos e um epílogo, divi-
didos em 31 subtítulos, somando um total de aproximadamente 500 páginas. O filme tem du-
ração de 118 minutos e é dividido em 12 capítulos.
Os livros, assim como o filme, contam a história de Remo Erdosain, um sujeito de
classe baixa atormentado pela falta de dinheiro e perspectivas diante da vida que leva. No
intento de mudar sua condição social, utiliza-se de seus dotes de inventor e se une ao Astrólo-
go e a outros personagens na perspectiva de formar uma sociedade secreta que tem como ob-
4

jetivo maior mudar a sociedade através de uma revolução financiada por uma rede de prostí-
bulos distribuídos por Buenos Aires. Erdosain na maior parte do romance caminha angustiado
pelas ruas de Buenos Aires e critica os valores da pequena sociedade burguesa, a crueldade do
capitalismo, as relações entre homens e mulheres, a mecanização do indivíduo diante da in-
dústria e sua maquinaria e o poder do dinheiro em dissolver os sentimentos e o caráter das
pessoas. O protagonista casa-se com Elsa e vive infeliz, trabalha em uma companhia açucarei-
ra onde comete o furto de 600 que é descoberto e pode levá-lo para a cadeia caso não consiga
devolver a quantia.
A trama se desenvolve diante da angústia do personagem em conseguir o dinheiro para
devolver aos patrões. A angústia é uma das principais características do personagem arltiano e
se apresenta em Los siete locos e Los lanzallamas como essencialmente ligada ao espaço
urbano. Esse sentimento nascerá da ―inadecuación entre las aspiraciones del hombre y un en-
torno inhóspito, agudizada por una coyuntura política que favorece la exclusión, la marginali-
dad y la pérdida de toda referencia ideológica o religiosa‖ (RENAUD, 2000, p. 704) e moverá
os personagens na narrativa. Quase todas as ações de Erdosain são pautadas pela angústia e
Leopoldo Torre Nilsson tentará expressar essa angústia na tela. Esse sentimento que toma
conta do homem na multidão metropolitana, em menor ou maior grau, traça na narrativa arlti-
ana a difícil relação do protagonista com o tempo. Erdosain recorda um passado perturbador,
imagina um futuro sem perspectivas e se debate em um presente desprovido de qualquer âni-
mo, está abandonado ao poder do entorno.
Analisando a transposição literária dos romances de Roberto Arlt no filme de Leopol-
do Torre Nilsson percebemos muitos pontos de contato entre as obras e pretendemos comen-
tar alguns deles. Inicialmente apontaremos o grau de parentesco entre as duas: o filme leva o
mesmo nome do livro, os nomes dos personagens são idênticos e os contextos são iguais. A
dramatização dos acontecimentos tem o mesmo tom no livro e no filme, a baixa iluminação
nas cenas e a escolha de cenários que representem interiores decadentes colaboram para
transmitir a sensação de pesadelo que a narrativa escrita proporciona.
No que diz respeito às falas dos personagens percebemos que o filme reproduz trechos
inteiros do discurso apresentado no livro. Entretanto, alguns capítulos da narrativa escrita são
construídos por longos diálogos entre Erdosain e o Astrólogo, personagens principais da tra-
ma, há também uma predominância do monólogo interior durante todo o texto. O diretor su-
primiu grande parte dessas falas, porém utilizou trechos inteiros retirados do discurso do livro
modificando o contexto.
5

A estrutura narrativa das duas obras é linear, são apresentadas diversas situações, mas
todas têm correlação uma com a outra, mesmo que a cena ou o capítulo seguinte remeta a um
novo ambiente ou situação. No filme não aparecem elementos de transição entre as cenas, a
mudança de plano é feita por corte ocorrendo a substituição brutal de uma imagem por outra.
De acordo com Marcel Martin ―o corte é empregado quando a transição não tem valor signifi-
cativo por si mesma, quando corresponde a uma simples mudança de ponto de vista ou a uma
simples sucessão na percepção, sem indicar (em geral) tempo transcorrido nem espaço percor-
rido – e sem interrupção (também em geral) da trilha sonora.‖ (MARTIN, 2003, p. 87)
Também não há presença de um narrador ou voz-off no filme, todas as falas são reali-
zadas pelos personagens em cena. Entretanto, no livro as vozes narrativas mudam, inicialmen-
te observamos um narrador em terceira pessoa, há diálogos entre os personagens e em certo
momento da narrativa, o leitor identifica um narrador-comentador que diz ter ouvido toda a
história do próprio Erdosain, ou seja, a voz narrativa que até então parecia não participar dos
fatos narrados, se apresenta como um personagem onisciente.
Acreditamos que o que mais difere nos livros e no filme é a representação da cidade.
Roberto Arlt é considerado um escritor urbano por excelência e em seus textos a cidade se
destaca como protagonista da ficção. Buenos Aires é o nome com o qual o escritor batiza a
cidade que emerge de sua escritura, inspirada na capital da República Argentina, a urbe arltia-
na se ergue no texto à medida que o leitor avança na leitura. A cidade criada por Arlt possui
odores, formas, cores, vozes e identidade específicas e essas características aparecem permea-
das por uma atmosfera infernal onde perambulam os humilhados personagens arltianos. Ruas
em constante movimento, arranha-céus, fumaça, luzes de néon, torres de energia, cabos de
alta tensão, ferro, cimento, gases, uma variada gama de cores, objetos e estruturas pontiagu-
das, são alguns dos inúmeros elementos que o texto arltiano oferece ao leitor para que ele per-
ceba a inquietação desta Buenos Aires alucinada, angustiada e caótica que só existe no papel,
uma cidade muito além daquela que Roberto Arlt presenciou em 1930.
Arlt construirá uma cidade de onde se desprenderão os personagens e suas vozes. Des-
crita como uma Babilônia, a Buenos Aires arltiana é uma paisagem inacabada, caótica, em
crescente construção. O espaço urbano está saturado de símbolos (materiais, formas, cores)
que irão se impor como características muito relevantes à representação. Neste labirinto de
ruas e construções inacabadas, quase nada é por acaso e quase tudo nos remete ao conflito
produzido entre o homem – enquanto personagem – e a cidade. A urbe arltiana irá expressar
muito mais que o conjunto de instituições burocráticas e convenções sociais, ela expressará
também os ânimos, o ―estado de espírito‖ dos habitantes dessa cidade. A arquitetura urbana
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irá refletir na existência do indivíduo e isso será essencial na construção da narrativa arltiana.
À medida que a paisagem urbana sofre transformações os personagens e o discurso também
se modificam.
A cidade assim construída nos romances de Arlt levantará a seguinte pergunta: como
Leopoldo Torre Nilsson representará a cidade assim descrita filmando a Buenos Aires dos
anos setenta? Arlt imaginou uma Buenos Aires muito a frente da cidade que vivenciou nos
anos 30 e as características da paisagem urbana com seus inúmeros e ameaçadores arranha-
céus não correspondem o mesmo cenário do filme. A cidade arltiana se aproxima muito da
moderna cidade de Fritz Lang no filme expressionista Metrópolis (1927) que descreve muito
bem a mecanização da vida. Em Los siete locos as engrenagens e maquinarias da cidade mo-
derna são fortemente interiorizadas, Erdosain se vê mutilado, perfurado, torturado, invadido
por ameaçadoras estruturas metálicas, a angústia se corporifica, transforma-se em dor física.
Segundo Maryse Renaud (2000, p. 706), a cidade percebida dessa maneira está distante da
celebração futurista da modernidade, da exaltação vanguardista, mas muito próxima da som-
bria visão dos expressionistas alemães onde o típico personagem arltiano se parece estranha-
mente ao patético homem, que tem a cabeça rodeada por uma cidade alvo de um apocalíptico
terremoto, do quadro Eu e a cidade, de Ludwig Meidner.
Leopoldo Torre Nilsson não filmou os inúmeros arranha-céus, mas soube trabalhar
com maestria o sentimento de angústia e sufocamento que a paisagem e a vida na cidade pro-
porcionam e isso é percebido no primeiro capítulo do filme. Na primeira cena alternam-se a
imagem de Erdosain caminhando pela cidade com a imagem da tentativa do mesmo de comu-
nicar-se através de um vidro. O rosto do personagem aparece através de uma superfície desfo-
cada, talvez uma vitrine de um café, tão comum nas ruas de Buenos Aires. Erdosain tenta fa-
lar algo, sua face parece aterrorizada, parece gritar, porém seu grito é som inarticulado, na
grande cidade ninguém pode ouvi-lo, ninguém é capaz de perceber seu desespero, é refém da
paisagem. A cena criada consegue transmitir a sensação de sufocamento que a cidade causa, a
angústia do personagem e sua impotência diante da dificuldade de verbalizar sua dor.
Nas duas narrativas o leitor/expectador pode observar exposição dos sentimentos dos
personagens, no livro Arlt utiliza-se do monólogo interior e através dele Erdosain se revela
um ser extremamente atormentado. O personagem tem consciência de que o sofrimento não
cessa, de que é impossível viver segundo os próprios desejos, todos estão fadados a rastejar
pela cidade, a humilhação atingirá seu limite e a tristeza nunca cessará. De acordo com Bea-
triz Sarlo ―Arlt no encuentra en ningún lado las reservas de entusiasmo reformador que permi-
te castigar a los culpables y premiar a los honrados‖ (SARLO, 2007, p. 234).
7

Leopoldo Torre Nilsson para proporcionar ao expectador a visualização da interiorida-


de dos personagens recorre constantemente ao enquadramento dos rostos em primeiro plano,
destacando o foco nos olhos. Marcel Martin comenta que ―sem dúvida, é no primeiro plano do
rosto humano que se manifesta melhor o poder de significação psicológico e dramático do
filme, e é esse tipo de plano que constitui a primeira, e no fundo a mais válida, tentativa de
cinema interior.‖ (MARTIN, 2003, p.39)
É visível que os olhos de Erdosain estão cheios de angústia e desespero, percebemos
isso quando o personagem olha para Elsa, quando caminha na cidade, quando conversa com
os outros personagens. O personagem fala com os olhos e, neste caso, seria interessante desta-
car a boa atuação de Alfredo Alcón. O rosto fala mais que as palavras, a gargalhada de Erdo-
sain na mesa quando Elsa lhe propõe trabalhar na fábrica de raviólis demonstra uma ironia
quase cruel, o desprezo que os olhos do personagem demonstram pela mulher beira a uma
aversão. Outras sutilezas que expressam o estado psicológico dos personagens são demons-
tradas com closes rápidos em pequenos gestos e tanto no livro quanto no filme Erdosain justi-
fica seu comportamento e suas ações com a angústia que sente diante de sua existência.
No livro percebemos que o trabalho aterrorizador da angústia, no psíquico e na vida
sócio-econômica de Erdosain, começa na infância com os castigos impostos pelo pai, irá con-
tinuar assolando o personagem na escola, ao sentir-se diferente dos outros garotos aos que
imaginava não sofrerem castigos impostos pela família, percorre a adolescência onde a angús-
tia e a humilhação configuravam-se sob o signo da masturbação, neste caso a angústia é enfo-
cada através de um aspecto sócio-econômico, Erdosain se entregava aos prazeres que sua
condição social e financeira lhe negava, masturbava-se ―queriendo aniquilar sus remordimien-
tos en un mundo del que nadie podía expulsarlo, rodeándose de las delicias que estaban aleja-
das de su vida‖ (ARLT, 2000, p. 114).
O casamento dará continuidade ao processo da angústia na juventude do protagonista e
é importante lembrar que na narrativa arltiana o casamento e o amor são incompatíveis. De
acordo com Diana Guerrero (1986) o casamento na narrativa de Arlt é estruturado da seguinte
maneira: a relação entre os namorados se desenvolve sob a vigilância da futura sogra, que
delegada pela sociedade ―controla el cumplimiento de su sentido de antesala mentirosa y do-
rada desde la cual se accede a la vida pequeño-burguesa‖ (p. 51).
No filme a crítica ao casamento também é feroz e o diretor demonstra isso em uma
cena bem específica onde a câmera narra, as palavras proferidas pelos personagens tornam-se
secundárias diante do impacto da fotografia. Trata-se de uma cena do capítulo 2, onde logo
após casar-se Erdosain volta para casa depois de um dia de trabalho e encontra a esposa fa-
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zendo o jantar. Ao entrar na cozinha ele olha para tábua onde Elsa está cortando a carne, ela
vira-se para ele com as mãos ensangüentadas e tenta arrumar o cabelo, a câmera dá um close
nos olhos de Erdosain, na carne e nas mãos ensangüentadas da mulher. O movimento de câ-
mera denominado travelling para a frente diz muito mais sobre o que o personagem observa,
de acordo com Marcel Martin esse recurso é ―de longe o movimento mais interessante, sem
dúvida por ser o mais natural: corresponde ao ponto de vista de um personagem que avança
ou então à projeção do olhar para um foco de interesse‖ (MARTIN, 2003, p. 49). A maneira
como é utilizado o foco e como é organizada a seqüência de closes na atividade doméstica
executada pela esposa, faz uma forte crítica ao casamento e ao papel que a mulher deve ocu-
par como esposa.
O diretor também expõe com sarcasmo e humor ácido a maneira como o casamento é
visto como ―bom negócio‖ na cena em que Erdosain pede para casar-se com a filha da dona
da pensão. O personagem está no banho e pede para chamar a futura sogra, antes de ela entrar
no quarto espalha grande quantia de dinheiro pela cama e, assim que a mulher entra, pede
conselho sobre com quem casar-se. A mulher olhando o dinheiro, fala que ele tem que ter
cuidado com a escolha, que as mulheres da cidade não são sérias, é quando Erdosain a inter-
rompe e diz que está pensando em casar com sua filha. A dona da pensão então afirma que a
garota é muito jovem, só tem 15 anos, mas olhando o dinheiro sobre a cama aceita o pedido.
Erdosain beija a garota e deixa cair a toalha de banho antes que ambas se retirem, as expres-
sões faciais dos personagens exalam crueldade e hipocrisia e a cena apresenta notável teatrali-
dade.
Erdosain, sabendo que jamais seria capaz de corresponder às expectativas da esposa
também dedica o tempo de que dispõe ao seu lado para humilhá-la, até que Elsa decide aban-
doná-lo e vai embora com o Capitão. Neste momento a angústia que o protagonista carrega
constantemente adquire maior proporção, e há uma inversão nos papéis, Erdosain não mais
humilha, se sente humilhado.

Para mostrar essa inversão de papéis o diretor utiliza um recurso muito interessante
chamado plongée uma filmagem de cima para baixo ―que tende, com efeito, a apequenar o
indivíduo, a esmagá-lo moralmente, rebaixando-o ao nível do chão, fazendo dele um objeto
preso a um determinismo insuperável, um joguete da fatalidade‖ (MARTIN, 2003, p. 41). Na
cena que está no capítulo 6, Elsa está deixando Erdosain para ir embora com o Capitão, a câ-
mera então uma única vez o filma de cima para baixo transmitindo a sensação de que ele é
inferior a Elsa. É um dos únicos momentos do filme em que Elsa parece superior ao marido.
9

O filme também apresenta algumas elipses, técnica que tem a capacidade de sugerir,
―tal capacidade de evocação em meias-palavras é um dos segredos do espantoso poder de
sugestão do cinema (…) Mais comumente a elipse tem por objetivo dissimular um instante
decisivo da ação para suscitar no espectador um sentimento de espera ansiosa, o chamado
suspense, que os diretores americanos tanto prezam‖ (MARTIN, 2003, p. 73/78). Percebemos
elipse quando Erdosain fala para Elsa que está estudando a fórmula de um gás mortal, a mu-
lher pergunta se ele teria coragem de matar alguém e ele responde que talvez sim. Quando o
Astrólogo lhe presenteia com uma arma suspeitamos que o protagonista cometerá um assassi-
nato, mais tarde ele acaba assassinando a filha da dona da pensão em que morava. Outra elip-
se acontece quando Erdosain pregunta para Elsa se ela teria se casado se soubesse anterior-
mente que o casamento era preparar bifes e cozer camisas, ela diz que não e ele pergunta o
que ela faria então, e Elsa responde que teria um amante. Quando então cenas adiante Erdo-
sain abre a porta de casa e visualizamos Elsa sentada à mesa com um homem bem vestido de
pé ao lado, percebemos imediatamente que ele é seu amante e que a mesma deverá abandonar
o marido.
Há várias características que aproximam o filme do livro. Observando as falas perce-
bemos que o diretor provavelmente utilizou o texto na criação do roteiro, muitas falas são
idênticas, muitas cenas seguem a mesma descrição do livro, a mais marcante é o episódio do
assassinato da garota por Erdosain. A sequência dos atos é igual a do livro, toda a cena foi
reproduzida conforme descreve o narrador.
Particularmente, a impressão que nos repassou o filme, foi a mesma da leitura, Leo-
poldo Torre Nilsson manipulou no filme elementos como a ironia, o sarcasmo e o grotesco.
Esse último elemento tem sua riqueza interpretativa porque é um dos ―modos aglutinantes
privilegiados, una de las formas de operar la síntesis, una de las maneras de unir lo que apare-
ce fragmentado, disperso y uno de los recursos a los que se echa mano para lograr ese efecto
cuasi-cómico o semi-trágico.‖ (ZUBIETA, 1987, p. 99)
Pode-se considerar como grotesco na escritura arltiana a transmutação de aconteci-
mentos graves em acontecimentos quase cômicos. Evidentemente que o texto arltiano não
pode ser classificado como cômico no sentido denotativo da palavra, até mesmo porque o
efeito produzido pela comicidade que emerge em alguns momentos do relato não alivia as
tensões e não conforta devido a sua relação com um tipo de humor ácido, negro, cruel. Ana
María Zubieta (1987) define este deslocamento trágico/cômico no texto arltiano como ―efeitos
de relato‖ que segundo ela são produzidos, demarcados e mobilizados pelo grotesco tornando-
10

se estes os pontos condensadores da síntese final, da união do desregrado, da junção do que


não é conexo.
Um exemplo de como os efeitos de relato irão agir em Los siete locos e Los lanzal-
lamas é como Erdosain se refere ao assassinato da jovem. Observe-se a seguir, as palavras de
Erdosain no fragmento retirado de Los Lanzallamas, as mesmas são pronunciadas no filme:

El asesino permaneció un tiempo incontrolable acurrucado en su ángulo. Si algo


pensó, jamás pudo recordarlo. De pronto, un detalle irrisorio se hizo visible en su
memoria, y poniéndose de pie exclamó, irritado: —¿Viste?… ¿Viste lo que te pasó
por andar con la mano en la bragueta de los hombres? Estas son las consecuencias
de la mala conducta. Perdiste la virginidad para siempre. ¿Te das cuenta? ¡Perdiste
la virginidad! ¿No te da vergüenza? Y ahora Dios te castigó. Sí, Dios, por no hacer
caso de los consejos que te daban tus maestras. (ARLT, 2000, p. 587)

Erdosain, ao exclamar para o cadáver da garota que se não tivesse colocado as mãos
em sua braguilha dentro do trem não teria sido assassinada, desloca o sentido trágico do acon-
tecimento para um sentido quase cômico. A gravidade e a violência do assassinato da garota
são minimizadas diante das palavras vulgares do protagonista, interage em seu discurso uma
dualidade onde estão presentes tragédia e humor, da combinação desses dois elementos na
mesma proporção emerge o grotesco arltiano que ―permite la manipulación dual sin perderse
en ella porque da lugar a la síntesis, a la unión, a la convivencia de sentidos‖ (ZUBIETA,
1987, p. 106). O filme utiliza-se do grotesco da mesma maneira, o close na expressão do rosto
da garota após ter recebido o tiro (a mesma sorri), o modo como ela parece levitar após cair
ensangüentada na cama, o discurso de Erdosain após o assassinato também são capazes des-
pertar um riso aflito no espectador.
Outro fato interessante observado é que Leopoldo Torre Nilsson escolheu representar
a história dos romances arltianos, suprimindo cenas, sem, no entanto, acrescentar nenhum fato
que não estivesse no livro. O diretor conta toda a história de Los siete locos e utiliza o mesmo
final de Los lanzallamas, sendo que essa seria uma excelente oportunidade para recriar um
final para a história de Los siete locos. Como a história é separada em livros diferentes, o
primeiro livro, aquele que leva o título do filme, não apresenta um fim claro, fica indefinido, o
expectador pode imaginar qualquer desenlace para a história, entretanto o diretor preferiu uti-
lizar o final criado por Arlt.

Já comentamos que Beatriz Sarlo proferiu que ―ninguém sai consolado de um romance
de Arlt‖ e Leopoldo Torre Nilsson também não optou por nos consolar no final do filme, es-
11

colheu a poética do fracasso, tão própria da escritura arltiana. Jean Claude-Carrière comenta
que:

Quantas vezes poderíamos dizer, referindo-nos a nós mesmos ou a outros, que um


filme não chegou realmente a ser visto? Por muitas razões, algumas não muito claras
e outras que não podemos admitir, nós vemos com deficiência. Recusamo-nos a ver,
ou então vemos algo diferente. Em todo filme, há uma região de sombra ou uma re-
serva do não visto. (CARRIÉRE , 1995, p. 10)

Acreditamos que a afirmação de Carrière contempla tanto o cinema quanto a literatu-


ra e as obras estudadas neste artigo testam nossos olhos para ver além da grafia ou da ima-
gem, demonstrando que a técnica tanto na escrita, quanto no cinema, podem servir de aportes
para novas leituras críticas sobre obras de arte, leituras menos castradoras e reducionistas. A
transposição literária resultará em outra forma de expressão artística onde nada se perde, a
nova obra não será nem igual, nem melhor, nem pior, uma obra autônoma guiada apenas pela
inventividade e criatividade do autor.

2 REFERÊNCIAS

ARLT, Roberto. Los siete locos – Los lanzallamas, edición crítica. 1. ed. Colección Archi-
vos 44. Nanterre Cedex, 2000.

CARRIÉRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. Tradução: Fernando Albagli,


Benjamín Albagli – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.

GUERRERO, Diana. Arlt: El habitante solitario. 2. ed. Buenos Aires: Catálogos, 1986.

MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Tradução: Paulo Neves, São Paulo: Brasi-
liense, 2003.

SARLO, Beatriz. Escritos sobre literatura argentina. 1ª ed. Buenos Aires: Siglo XXI Edito-
res Argentina, 2007.

WOLF, Sergio. Cine-Literatura: ritos de pasaje. Buenos Aires: Paidós, 2004.

ZUBIETA, Ana Maria. El discurso narrativo arltiano: intertextualidad, grotesco y utopía.


1. ed. Buenos Aires: Hachette, 1987.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo

MÁRIO DE ANDRADE, QUEM ÉS TU?

Ana Lucia Matiello (PPGL/UFSC)1

RESUMO

O presente estudo tem como base o poema “Tu”, de Mário de Andrade, publicado
inicialmente em “Pauliceia Desvairada”, livro de 1922. Analisando o poema em questão,
temos uma relação do poeta com a cidade de São Paulo, com seus colegas modernistas às
vésperas do grande evento do grupo, a Semana de Arte Moderna, e principalmente com seu
colega Oswald de Andrade, que publicou tal poema antes mesmo do próprio Mário, em artigo
que gerou grande polêmica na época. Veremos na poesia de Mário de Andrade importante
diálogo com o movimento expressionista alemão e como temas que estão no poema aparecem
em ensaios do autor. Tal trabalho se insere na linha de pesquisa Teoria da Modernidade, que
tem por objetivo apresentar uma leitura da dos primeiros anos do século XX no quadro
literário.
Palavras-chave:
Modernismo. Poesia. Expressionismo.

ABSTRACT

This study is based on the poem "Tu," by Mario de Andrade, which was first published in
"Pauliceia Desvairada" in 1922. Analyzing the current poem, we verify the poet's relationship
with the city of São Paulo, with his modernist colleagues on the eve of the great group's event,
the Modern Art Week, and especially with his colleague Oswald de Andrade, who posted this
poem before even Mario himself, in an article that generated great controversy at the time. We
will see in the poetry of Mario de Andrade important dialogue with the German expressionist
movement and how themes that are in the poem appear in trials of the author. This work is
part of the research line of the Modernity Theory, which aims to present a reading of the early
years of the twentieth century within the literary framework.

Keywords:
Modernism. Poetry. Expressionism.

É de 1917 o primeiro livro de Mário de Andrade, “Há uma gota de sangue em cada
poema”, publicado sob o pseudônimo de Mário Sobral, composto por 12 poemas que retratam
uma “viagem” pelos cenários, ou pelos escombros, deixados pela 1º Guerra Mundial. Este
livro é considerado pela crítica uma obra simbolista (embora destoasse dos temas comuns da
poesia deste movimento) e acabou sendo renegado pelo autor nas décadas sequentes de 20 e
30, porém resgatado no volume “Obra Imatura” em 1942.
É em 1922, no entanto, que são ouvidos os poemas considerados modernistas de
Mário de Andrade. Alguns são lidos na Semana de Arte Moderna, que acontece no Teatro

1
Mestranda em Literatura Brasileira do Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de
Santa Catarina, sob orientação da professora Dra. Susana Scramim; e-mail: anamatiello@gmail.com.
2

Municipal de São Paulo, no mês de fevereiro, e publicados em dezembro do mesmo ano.


“Pauliceia Desvairada” é uma “partitura” da cidade de São Paulo, casa do poeta, uma
composição de bairros, ruas e paisagens paulistas. O poema que encerra o livro é o roteiro de
uma opereta, confirmando essa ideia de cantar os mais diversos espaços (a partitura envolve o
roteiro vocal e instrumental de um espetáculo) que tem como palco de apresentação a
esplanada do Teatro Municipal, a cidade de São Paulo, contando com “cinco mil
instrumentistas dirigidos por maestros” (ANDRADE, 1979, p.52).
A dinâmica utilizada pelo poeta na dedicatória do livro é interessante para
entendermos todo o projeto de “Pauliceia Desvairada”, uma vez que a obra é dedicada de
Mário de Andrade a Mário de Andrade, do poeta a ele mesmo, afirmando que ele próprio é “o
seu Guia, o seu Mestre, o seu Senhor” (ANDRADE, 1979, p11). O paradoxo inicia com o
“Prefácio Interessantíssimo”, em que uma escola é fundada, o “Desvairismo” (o poeta
apresenta-se no prefácio como louco e aproxima o lirismo da loucura, afirmando que são
vizinhos) e é efemeramente encerrada ao longo das 18 páginas que compõe o prefácio. O
poeta admite que o prefácio é, apesar de interessante, inútil. E cria todos os preceitos que
especificam a fundação desta “louca” escola, as fontes de estudo, as “teorias-avós que bebeu”
(ANDRADE, 1979, p.14) para que ela pudesse existir. Uma sucessão de teorias e citações
(por vezes sem fonte expressa) compõe o ensaio, escrito para, nas palavras do poeta,
“justificar o que escrevi” (ANDRADE, 1979, p.14) em “Pauliceia Desvairada”. Podemos
visualizar uma escola inédita, Mário de Andrade mestre de si, criando uma teoria que seja
capaz de conter os seus poemas, ancorada em pensamentos de outras tendências,
principalmente de vanguardas que estavam “borbulhando” na Europa. “Sinto que o meu copo
é grande demais para mim, e inda bebo no copo dos outros” (ANDRADE, 1979, p. 17) afirma
o poeta no seu prefácio.
Segundo Telê Ancona Lopez, a ligação de Mário de Andrade com as vanguardas
européias (citadas no prefácio e contidas nos poemas) é densa e profunda, pois ele está a
passar por características de várias delas em prol da construção de sua visão modernista. A
influência pode ser exemplificada no texto do “Prefácio Interessantíssimo”. Do dadaísmo,
estaria a escrita do próprio prefácio, que funda e define uma antiescola que zomba de si
própria, em que o poeta reconhece: “Aliás, muito difícil nesta prosa reconhecer onde termina
a blague, onde principia a seriedade” (ANDRADE, 1979, p.14). Do futurismo, o poeta extrai
as técnicas, entre elas a versificação livre e a ausência de rimas, e admite essa conexão: “Não
sou futurista (de Marinetti). Disse e repito-o. Tenho pontos de contacto com o futurismo”
(ANDRADE, 1979, p.16). Do impressionismo, o poeta traz a representação das paisagens e
3

cenas paulistanas, trabalhadas com pinceladas soltas encobertas pela garoa, fumaça, neblina.
E admite ser sua obra pertencente ao impressionismo, mesmo que isso seja considerado erro:
“Livro evidentemente impressionista. Ora, segundo modernos, erro grave o Impressionismo”
(ANDRADE, 1979, p.14).
Mas é também do expressionismo que podemos encontrar matizes do poeta; segundo
Lopez, sua leitura do expressionismo alemão (que se deu entre 1919 e 1921) “contribuirá para
a exploração da ideia de uma nova lógica, aquela que aceita a visão do chamado primitivo e
que concorrerá particularmente para seu mergulho no „pathos‟ do homem” (LOPEZ, 1981,
p.94). Transpondo para palavras do poeta no seu prefácio, “O nosso primitivismo representa
uma nova frase construtiva” e “Somos na realidade os primitivos duma era nova”
(ANDRADE, 1979, p.15).
A partir das características apresentadas no “Prefácio Interessantíssimo”, temos a
sucessão de poemas, que estão a demonstrar os métodos do poeta e suas reflexões. O
neologismo “arlequinal” está em diversos poemas, como “Inspiração”, “O Trovador”, “Rua
de São Bento”, “Paisagem n.1”, “Ode ao burguês”, “Tristura”, enfim, em nove dos vinte e três
poemas que compõe o livro. Arlequim, personagem da Commedia del’arte, teatro de rua da
Itália do século XV, representava o feliz e trapaceiro amante, bufão que quer divertir cheio de
sarcasmo, com uma roupa composta por retalhos de seda coloridos em forma de losangos, a
caminhar pelas ruas em busca de sua conquista, Colombina. Segundo Telê Ancona Lopez, o
uso deste símbolo estava em voga nesta década. Aparece, por exemplo, no livro “Carnaval”,
de Manuel Bandeira; no poema “As máscaras” de Menotti del Picchia; em Martins Fontes,
“Arlequinada”; além da influência do poeta italiano Soffici, do qual Mário de Andrade
possuía, em sua biblioteca, uma antologia com textos de diferentes épocas e gêneros híbridos
datada de 1918 e chamada “Arlecchino”.
Para Lopez, “o traje de losangos aglutina a variedade da vida metropolitana do
século XX” (LOPEZ, 1981, p.90), uma junção de retalhos, pedaços diferentes de tecido
tentando formar uma unidade, uma única vestimenta. É um traje de cinza e ouro, segundo o
terceiro verso do poema. Ainda pensando a sociedade paulista por meio desta representação,
complementa:

Analisando o traje teórico de arlequim que veste “Paulicéia Desvairada”, pode-se


ver no jogo dos ajustes um componente básico da vanguarda que é o estético
procurando exprimir uma verdade de caráter social, contestando as relações
estabelecidas na sociedade, na medida em que toda a absorção do material europeu
pode ser amarrada a duas preocupações fundamentais do autor: o desejo de
4

modernidade e a necessidade de participação nos destinos do mundo, sempre


pensando na realização do homem. (LOPEZ, 1981, p.86).

O presente trabalho tem como objetivo apresentar uma leitura do poema “TU”, o 17º
poema de “Pauliceia Desvairada”. Faz-se necessário, nesse sentido, pensar, além do livro
(apresentado até aqui como um todo), as peculiaridades que envolvem a publicação do poema,
o que é indispensável para a leitura que será proposta.
Retornando da Europa em 1912, Oswald de Andrade traz consigo o Manifesto
Futurista, publicado no jornal francês Le Figaro no dia 20 de fevereiro de 1909, escrito pelo
poeta Filippo Tommaso Marinetti, e a repercussão das palavras do italiano na Europa da
época. O manifesto exaltava a “coragem, audácia e rebelião” como essenciais para a poesia,
em detrimento a uma literatura que estava composta por “imobilidade pensativa, o êxtase e o
sono”. O objetivo era louvar a velocidade, acabar com museus e bibliotecas, e a poesia “deve
ser concebida como um violento assalto contra as forças ignotas, para reduzi-las a prostrar-se
perante o homem”. (MARINETTI, 2011).
Por volta de 1920, a palavra Futurismo circulava na cidade de São Paulo,
principalmente entre as elites intelectuais, que estabeleciam uma espécie de diálogo através de
artigos nos principais jornais que circulavam na cidade (podemos citar Oswald de Andrade,
no Jornal do Commercio, Monteiro Lobato2, em O estado de São Paulo, Menotti del Picchia,
no Correio Paulistano, entre outros). Segundo Brito, analisando os eventos que antecederam
a realização da Semana de Arte Moderna,

Os modernos não se declaram dentro da escola de Marinetti, e há, mesmo, os que a


combatem, mas são todos considerados futuristas pelos inimigos das novas
tendências. Os modernos são encaixados à força – e até contra a vontade – dentro do
futurismo. (BRITO, 1997, p.157-158)

Como podemos perceber, o titulo “Futurista” acabou virando um rótulo para


qualquer artista que estivesse disposto a repensar a arte e a literatura no Brasil de 1920.
Menotti del Picchia, no início de 1921 no jornal Correio Paulistano, publica os primeiros
poemas “futuristas” segundo seu conceito, alguns escolhidos de Agenor Barbosa, algumas
traduções do italiano Govoni, além de fragmentos do próprio Marinetti. Com isso,
2
Interessante acrescentar que Monteiro Lobato liderou uma polêmica considerada o estopim do movimento
modernista quando, em 1917, por ocasião de uma exposição da pintora Anita Malfatti (recém chegada dos
Estados Unidos, onde fora aluna de Homer Bross), publica um artigo chamado “Paranóia ou mistificação?” (O
Estado de São Paulo, 29/12/1917) , no qual critica severamente a obra da artista e principalmente as inovações
apresentadas nas suas obras. Lobato tinha prestigio na sociedade paulista e por isso, seu artigo surtiu muito
efeito, ocasionando até a devolução de diversas obras que haviam sido compradas. Oswald de Andrade foi o
único a defender Malfatti por escrito, no Jornal do Commercio, em 1918. Mário de Andrade visitou várias vezes
a exposição e acabou se tornando amigo da pintora.
5

praticamente aceita para o grupo a denominação de futuristas, que para Brito “é adotada por
eles mais por motivos polêmicos do que por uma filiação absoluta e profunda à escola lançada
pelo italiano” (BRITO, 1997, p.221). Abro aqui um “parêntese” para inserir um fato que será
de grande relevância para a apresentação do poema em questão. O encontro efetivo entre
Mário de Andrade e Oswald de Andrade deu-se em 1917, em 21 de novembro. Elói Chaves,
membro da secretaria de Justiça de São Paulo, pronunciava, nesta data, por motivo de uma
campanha pela participação do Brasil na 1º Guerra Mundial, um discurso patriótico no
Conservatório Dramático e Musical. Mário de Andrade foi encarregado de proferir um
pequeno discurso, em nome do Conservatório (no qual ministrava aulas de História da Arte).
Oswald de Andrade ficou impressionado ao ouvir o discurso e, julgando-o belo, demonstrou
interesse em publicá-lo no Jornal do Commercio, no qual era repórter. Deste encontro surgiu
a amizade entre os dois, que seriam, anos mais tarde, a “cabeça” do movimento modernista.
Em 27 de maio de 1921, no próprio Jornal do Commercio, Oswald de Andrade
publica um artigo chamado “O Meu Poeta Futurista”, no qual lança a poesia e o poeta Mário
de Andrade. No artigo, Oswald de Andrade não cita o nome do chamado futurista: “Não
posso lhe contar o nome simples. Proibiu-o o casto, o bom, o tímido. Contar-lhe-ei a figura e
a arte”. (ANDRADE, 1992, p.21). E, listando as principais inovações literárias da época e a
coragem de seus autores, o jornalista dá maior ênfase ao futurista a que se refere,
descrevendo-o como um extremista entre o pavor e a coragem, o que o conduziria a “forças
sensacionais”. (ANDRADE, 1992, p.21). Assim anuncia o poeta-assunto de seu artigo: “Ele é
o autor de um supremo livro neste momento literário. Chamou-o Pauliceia Desvairada –
cinquenta páginas talvez da mais rica, da mais inédita, da mais bela poesia citadina. Querem
ouvir?” (ANDRADE, 1992, p.23). Na sequência, apresenta-se o poema “TU”, o escolhido por
Oswald de Andrade para apresentar o “futurista” que é comparado a Paul Fort e ao italiano
Govoni, grandes símbolos do movimento futurista europeu.
O artigo, como era comum na época, ganha uma estrondosa repercussão. O rótulo de
“futurista” faz Mário de Andrade sofrer muitos vexames, que chegam até a desistência de
alunos de suas aulas no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, porém, os versos
publicados dão a ele uma visibilidade muito grande na sociedade intelectual paulistana. O
professor ganha direito de resposta no próprio Jornal do Commercio, e escreve um artigo
chamado “Futurista?!” em 06 de junho do mesmo ano. E torna-se incisivo no motivo da
rejeição do rótulo aplicado por Oswald de Andrade: “Não, o nosso poeta não se liga ao
futurismo internacional, como não se prende a escola alguma” (ANDRADE in BRITO, 1997,
6

p.233). Continua frisando suas intenções de ser um poeta livre de ligações literárias com
escolas:

O poeta de “Pauliceia Desvairada” não é um futurista e, principalmente, jamais se


preocupou em “fazer futurismo”. Ele consente que o chamem de extravagante,
original, atual, maluco, do “domínio da patologia” (frase já estereotipada pelos
zoilos) mas não admite que o prendam à estrebaria malcheirosa de qualquer escola.
(ANDRADE In: BRITO, 1997, p.234)

E é na “Pauliceia Desvairada” que o autor corrobora com a polêmica de filiar-se ou


não a uma escola fundando a sua própria, o Desvairismo. É importante frisar, depois da
apresentação desses fatos prévios à publicação do poema em questão, que este foi o escolhido
por Oswald de Andrade como o “cartão de visitas” de Mário de Andrade. O ano do
lançamento é 1921, às vésperas da organização do grande evento do movimento modernista, a
Semana de Arte Moderna. Oswald de Andrade dá atenção especial a esse poema, pois o
escolhe para ser o primeiro a ser debatido e fazer conhecido o “novo futurista”.
Essa polêmica, segundo Brito, fez com que Mário de Andrade se mostrasse
comprometido com a causa do grupo de modernistas que estava se consolidando. Segundo o
crítico, o poeta era:
Mais culto, melhor informado, leitor dos italianos e franceses modernos, admirador
deles, discutidor atilado de teorias e estéticas, conhecedor estudioso das letras
nacionais, o seu destino era a liderança e para ela foi arrastado. No balanço das
atividades modernistas de 1921, cabe lugar à parte, e destacado, a Mário de Andrade
(BRITO, 1997, p.250).

O poema “TU”, que está, antes mesmo de sua publicação em “Pauliceia Desvairada”
no artigo de Oswald de Andrade, é composto por 8 estrofes, cada qual com número variado de
versos, não rimados.
O poema traz no título o pronome pessoal de segunda pessoa do singular “tu”, que se
refere à pessoa com quem falamos, ao receptor ou interlocutor. Por meio deste título,
podemos intuir que este pronome pode estar se referindo ao leitor, que é tratado como o
receptor do poema. Outra hipótese pode ser levantada, pelo assunto que os versos tratam: “tu”
pode se referir a poesia, que é exaltada e comparada na sequência de versos do poema. E o
pronome pode ainda estar se referindo à própria cidade de São Paulo, pois o poema está a
tratar de algo que é, para o poeta, sua paixão e sua mulher, o que tanto, neste contexto, pode
ser tanto a poesia quanto a cidade.
Na primeira estrofe do poema, composta por 5 versos, a poesia é tida como um
“bocejo entre dois galanteios”(verso 4). Estamos diante de uma fase de transição da poesia,
que está entre as atenções corteses dos passadistas (parnasianos) e de uma nova fase, que está
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sendo propagada pelos modernistas; uma poesia renovada, com novas dicções, temas, formas.
O poema em questão não chega a ser uma expressão consolidada como um “grito”: está ainda
a bocejar, a iniciar sua ascensão, e mantém seu “Espírito de fidalga” (verso 3), de nobreza, da
poesia “anterior”. Assim também como a cidade de São Paulo, se pensarmos que ela está
passando por grandes transformações em sua estrutura e na sociedade, que está aderindo
novas maneiras de pensar a arte.
A poesia-cidade é, para Mário de Andrade nesta estrofe, uma mulher, formada por
uma mistura paradoxal de asfalto e lama. São as oposições de uma poesia que está sendo
escrita em uma cidade capaz de agregar, nesta época, uma concomitância entre a antiga São
Paulo e a nova era tecnológica, com o asfalto tomando conta das “lamas de várzea” (verso 9).
A poesia é mulher inserida na sua dama e senhora, a Pauliceia, apelido carinhoso para São
Paulo. As torres de São Bento são a localidade escolhida para representar mais uma vez os
avanços da cidade, pois a bolsa de valores estava ali localizada. A poesia é capaz de ser “mais
longa/que os pasmos alucinados” (versos 6 e 7) dos investidores, maior que as transações
financeiras em pleno avanço da São Paulo de 1920. A mulher-poesia-cidade é insulto nos
olhos e convites na boca (versos 10 e 11), destoa da forma da poesia de “tradição”, ofendendo
os olhos que não encontram a forma perfeita, e ao mesmo tempo convocando novas bocas,
“louca de rumores” (verso 11) para que se abram em uma nova poesia.
A terceira estrofe, composta por 5 versos, é a que traz o verso que será analisado com
atenção especial: o verso 14, que tem o crepúsculo como cenário de uma poesia ardente. Esta
imagem pode ser lida como a absorção de características do movimento expressionista
alemão, sobre o qual Mário de Andrade estava estudando a partir de 1918. Este ponto será
trabalhado adiante. No verso 12, a poesia é chamada de “costureirinha”, e logo a seguir, no
verso 13, 5 adjetivos pátrios estão ligados por hífens, como se fosse uma linha transpassando
as nacionalidades que se misturam nesta poesia. Cada ponto alinhavado existe por si só, mas
estão interligados por um mesmo fio de linha, condutor. Essa metáfora pode ser a
representação do que o “Prefácio Interessantíssimo” se propôs: a partir de diferentes “pontos”,
diferentes movimentos da literatura, fundar uma escola, que interliga tendências diferentes em
um mesmo conjunto, em uma mesma “costura”.
Na quarta estrofe, a poesia-cidade é comparada a Lady Macbeth (verso 17), uma das
principais personagens da trama de seiscentista de Shakespeare (SHAKESPEARE, 2000). A
“Lady” é o apoio do marido (Macbeth) na realização de crimes, principalmente no assassinato
do Rei, com a intenção de comandar o reino da Escócia. É, para o eu-poético, madrasta e irmã
(verso 19), ao mesmo tempo distante como uma madrasta, e próxima como uma irmã que
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divide o mesmo sangue. Essa mulher enigmática é a poesia-cidade neste verso, pois logo a
seguir, nos versos 18 e 22, repete-se “Pura neblina da manhã”. São Paulo ficou conhecida por
ser a “terra da garoa”, uma espécie de neblina, fina chuva que cobre a cidade, deixando a
visibilidade obscurecida. E a neblina está em uma espécie de entre, assim como o bocejo, de
forma que não se consolida nem como tempo ensolarado nem como chuva torrencial. Estamos
justamente na fase de transição, fase enigmática como a personagem Lady Macbeth.
Importante lembrar uma das passagens emblemáticas do texto de Shakespeare, a frase que
finaliza o primeiro ato da peça, em que três bruxas já estão preanunciando a chegada de
Macbeth, então chefe do exército, ao posto de Rei: “São iguais o belo e o feio; andemos da
névoa em meio” (SHAKESPEARE, 1997, p.07), em que também está a ideia de névoa, como
na São Paulo de Mário de Andrade. O verso 20 sela essa fase, pois os sentidos estão sendo
triturados crescentemente, em uma incerteza que deixa inquietos os sentimentos do eu-poético
quanto à cidade e à poesia. Ainda, no verso 21, outra localidade de São Paulo é lembrada:
Moji. Provavelmente, o poeta está falando de Moji-Mirim, uma vez que cita também a cidade
de Paris e em sua arquitetura, a cidade paulista possui uma igreja, a Matriz de São José,
réplica da Catedral parisiense de Notre Dame.
Nos primeiros três versos da quinta estrofe estão declarados sentimentos de gosto e
de amor a desejos de crime, ambições retorcidas e pesadelos taciturnos, predicados que estão
estranhamente colocados nessas frases. Poderíamos intuir que o gosto pela poesia-cidade é
algo que ultrapassa as convenções e, inclusive, que transpõe o controle consciente do eu-
poético, principalmente no verso 25, último da estrofe, em que o pesadelo triste, que é
incontrolável e não desejado, é amado.
Na sequência, o poeta faz referência a dois autores. Quando fala em Canaã, alude ao
romance de 1902 de Graça Aranha, considerado a primeira obra simbolista do Brasil. Faz
menção a Edgar Allan Poe, escritor norte americano, considerado pela crítica, por ter sido
traduzido por Baudelaire ao francês, o precursor da poesia simbolista. Graça Aranha, em seu
livro, apresenta a vida de dois imigrantes alemães em terras brasileiras, em uma colônia no
estado de Espírito Santo. Ambos convivem com a cultura e os costumes dos colonos nativos e
expõem suas opiniões sobre a convivência, tendo Milkau opinião geralmente favorável aos
brasileiros e Lentz contrárias, discutindo, entre outros assuntos, a expressão de nacionalidade,
bem como a incapacidade do povo nativo de desenvolver o território do Brasil. Este livro é
considerado pela crítica um representante do que seria o “pré-modernismo”, pois apresenta
assuntos que seriam retomados com vigor pelos modernistas duas décadas mais tarde. Quanto
ao simbolismo, Brito afirma que teve influência no movimento, apesar de não ser reconhecido
9

por Oswald de Andrade e nem por Mário de Andrade. Para ele, o simbolismo “é mais uma
etapa, um intervalo, um momento de passagem que constitui antes solução de continuidade no
desenvolvimento literário nacional. Um período cinzento que, no entanto, viria facilitar o
surgimento da corrente modernista posterior” (BRITO, 1997, p.15). Importante lembrar que
neste mesmo ano, 1921, Graça Aranha retorna da Europa, onde exercia serviços de
diplomacia, e vem ao encontro das ideias modernistas, aderindo ao grupo e auxiliando
(também financeiramente) a realização da Semana de Arte Moderna.
No verso que fecha a estrofe (verso 27), a menção continua sendo a Edgar Allan Poe.
O famoso feche das estrofes do poema “O corvo” (POE, 2011), “Never more”, Nunca mais. E
a referência é também ao norte americano na próxima estrofe (verso 20), no qual encontramos
o nome de Emilio de Meneses, poeta boêmio e satírico, que parafraseou a primeira tradução
brasileira do poema “O corvo” feita por Machado de Assis, transformando o poema em 18
sonetos. O verso trata do insulto feito pelo poeta à memória de Poe, o “enquadramento” do
poema na forma suprema do parnasiano, o soneto.
A sétima estrofe, composta por 4 versos, vai também fazer menção a Poe, desta vez a
um conto publicado pela primeira vez em 1843, “O gato preto” (verso 30). O conto relata um
crime, em que o marido assassina sua esposa em um acesso de raiva e ciúmes do gato preto de
estimação, e esconde seu corpo em uma parede no subsolo da casa. Com a morte da mulher, o
gato acaba desaparecendo, e é encontrado pela polícia, que, ao rastrear a casa a procura do
corpo, ouve um miado que vem de dentro da parede. E assim encontra o corpo, denunciado
pelo gato que ficou preso junto a sua dona. Essa mulher poesia-cidade é o gato preto, o fiel
companheiro(a) das aspirações do poeta, presente até no inconsciente, nas paredes do sonho
medonho (versos 31 e 32). Por fim, os últimos 4 versos estão novamente trazendo a questão
da poesia-cidade estar em um lugar não bem definido, uma mulher entre a nobreza e a
servidão (verso 34), que está a prender o eu-poético até mesmo inconscientemente (verso 35),
sempre presente, em “todas as auroras do meu jardim!”.
Após esse apanhado geral do poema “Tu”, vamos nos deter no verso 14, um verso
significativo para a leitura que está sendo proposta. Segundo Tele Lopez (curadora do arquivo
de Mário de Andrade), o poeta estava tendo contato com a corrente expressionista alemã
desde 1918, e é esta influência que será tratada como leitura do verso em questão.

O expressionismo (ARGAN, 1992) enquanto corrente artística surge na Europa com


dois centros, desenvolvidos no ano de 1905: um Francês (Grupo dos Fauves, ou feras) e um
alemão (Grupo Die Brucke, ou a ponte), que mais tarde tornaram-se o “Cubismo” na França
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(1908) e a corrente “O cavaleiro azul”, na Alemanha. A origem comum é a tendência


antiimpressionista das duas facções, que se propõe a produzir uma atitude volitiva com
relação à sensitiva do impressionismo. O expressionismo, assim como o impressionismo, se
propõe um movimento realista, uma arte engajada que tende a incidir sobre a situação
histórica, que deve ser conscientemente sentida pelo artista; ao estabelecer essa relação
concreta com a sociedade, o movimento pressupõe o trabalho com a comunicação. Para o
estudioso de arte Henri Bergson, que exerceu forte influência sobre dois grupos
expressionistas da época, a consciência é, no sentido mais amplo, a vida; não apenas uma
representação imutável do real, mas uma comunicação entre sujeito e objeto.
Segundo Argan, a relação que os expressionistas mantêm com a história tende a
ultrapassar o passado, utilizando a herança apenas como meio de superação. Além disso,
apesar de ter características específicas de cada país de origem, França e Alemanha, os dois
grupos não podem ser considerados de intencionalidade nacionalista. Nas palavras do autor,

Cada uma das correntes (francesa e alemã) tende a abarcar e resolver dentro de si as
exigências da outra: superar os conteúdos históricos, contudo, não significa colocar-
se fora e acima da história, e sim sentir que uma história moderna não mais pode,
não mais deve ser uma história de nações (ARGAN, 1992, p.228).

Os temas recorrentes do expressionismo artístico alemão estão ligados à vida


cotidiana, à rua, às pessoas. Estas cenas, porém, estão representadas de maneira rude, como se
o artista estivesse inaugurando um estilo, fazendo algo que nunca havia feito anteriormente,
fugindo da representação da natureza tal e qual, o que tínhamos no impressionismo. A razão
da recusa de toda linguagem já constituída se dá, segundo Argan, pela não existência de
palavras que tenham um significado imediato, mas apenas sons que passam a assumir
significados. E complementa, explicitando a relação: “O expressionismo alemão pretende ser
precisamente uma pesquisa sobre a gênese do ato artístico: no artista que o executa e, por
conseguinte, na sociedade a que ele se dirige”. (ARGAN, 1992, p.237).
O expressionismo compreende a técnica como trabalho, mas não no sentido do
industrial, que seria o trabalho racional. É um trabalho realizado de maneira não-racional pelo
artista, por meio da prática, que se traduz em uma atitude moral, a obra. Para tanto, uma das
formas preferidas de trabalho dos artistas deste grupo é a xilogravura, técnica arcaica e
artesanal, que exige um molde de madeira sólida escavado, e a aplicação de tintas sobre o
relevo, e então, a prensa do molde sobre o papel. O uso de tal técnica também tem referência
na arte primitiva, escolhida pelos expressionistas para representar o estado puro da arte, que
pode ser encontrado na arte de civilizações autênticas.
11

Mário de Andrade inicia seu contato com o expressionismo alemão por volta do ano
de 1918, quando começa a colecionar uma revista alemã, a Deutch Kunst und Dekoration, que
reunia trabalhos de artistas plásticos e textos teóricos do movimento. Segundo Lopez, sua
curiosidade pelo expressionismo pode ter sido incitada pela exposição que Anita Malffati
realizou em 1917. Nessa revista, estão discussões sobre deformação da natureza, belo da arte
e belo da natureza, conquistas da arte primitiva e sua expressão. Segundo a autora, “Paulicea
Desvairada” possui características explicitas do movimento, principalmente em poemas como
“O Trovador”, em que o verso final, “Sou um tupi tangendo um alaúde”, está de acordo com a
valorização da arte primitiva. Nas palavras de Lopez,

A ideia de uma arte voltada para o social, que no expressionismo literário ambiciona
fazer da palavra uma ação, voltada para a reformulação do mundo e reconhecendo a
existência de um vinculo natural entre o artista e a humanidade, inclina-se para o
universal, na medida em que está propondo um homem novo. (LOPEZ, 1991, p.95)

Entre 1920 e 1921, Mário de Andrade adquiriu uma antologia de poesia


expressionista alemã organizada por Kurti Pintus. Desta poesia, retirará, segundo Lopez, o
programa estético e a influência da temática de “Paulicea Desvairada”. Nesta coletânea,
podem ser encontradas diversas anotações marginais de Mário de Andrade, em poemas de
autores como Van Hoddis, Leonhard e Trakl. Um dos lugares comuns da poesia desta época,
produzida em meio a rumores pesarosos e angustiantes de guerra, é a figura do crepúsculo, a
hora em que o sol está se pondo, entre o dia e a noite. A utilização da palavra que nomeia este
“instante” é colocada de maneira diferente pelo poeta da “Pauliceia Desvairada”, pois no
verso 14 os “ardores crepusculares” são ainda mais ardentes, o que é uma contradição, uma
vez que o sol ardente é o do meio do dia e não o do seu final.
Partindo desta constatação, podemos ler no verso de Mário de Andrade uma
realidade que é ultrapassada, a representação de um real que desobedece as convenções da
natureza, em que o fenômeno, o crepúsculo, corresponde ao efeito desta hora na natureza. E
Mário de Andrade está pensando, nesse período, as correntes impressionistas e
expressionistas, como podemos perceber no texto “Debussy e o Impressionismo”
(ANDRADE, 1993), publicado neste mesmo 1921 de “Pauliceia Desvairada”. Neste texto está
uma reflexão sobre a escola a que pertence o músico francês com o qual o poeta se identifica,
o chamado impressionismo musical, e a partir do que apresenta sobre o músico, podemos
perceber sua ligação com o que considera exímio em suas composições, características que
estão transpostas em seus poemas, principalmente no verso em questão.
12

Para Mário de Andrade, a obra do músico não é apenas a “expressão insulada, a


liberdade de credos, a sensação mais primitiva do eu, sem coordenações, sem análise, sem
crítica” (ANDRADE, 1993, p.104), características do impressionismo. É um ir além, para o
que o poeta acredita ser impossível enquadrar, encontrar “um lema concretizador: cada artista
é uma escola” (ANDRADE, 1993, p.104). Desta colocação, temos em mente a fundação de
uma escola própria para o livro em questão, por meio do “Prefácio Interessantíssimo”, já
discutido anteriormente.
O impressionismo musical é, para o poeta, uma designação que “não é somente
inexpressiva, mas bastante inexacta” (ANDRADE, 1993, p.106) do compositor de La Mer. E
explica melhor trazendo uma passagem do livro “Der Expressionismus”, de Hermann Bahr,
crítico de arte alemão, que discute as diferenças entre impressionismo e expressionismo:

O impressionismo é a destruição do homem clássico. O impressionista, no acto de


visão, procura tanto quanto possível pôr de parte tudo o que o homem ajunta do seu
próprio ou ao encanto externo. O impressionista só aceita do homem a participação
da retina. [...] Assim o impressionista quer surpreender a natureza, antes mesmo que
ela seja modificada pela percepção humana e desce à primeira sensação visual para
apanhar o exterior, quando penetra em nós, no momento em que fere a nossa retina,
no instante da sensação (ANDRADE, 1993, p.105).

O que defende Mário de Andrade é que a obra de Debussy não pode ser avaliada
com a realidade da primeira impressão; suas composições não se propõem a descrever, pelo
contrário, sua obra desdenha o descritivo. É uma “inteligência da primeira impressão”
(ANDRADE, 1993, p.107) que se exige para que a obra possa ser compreendida. Essa
inteligência, que transpõe a simples impressão da retina, que não faz além de comparar a obra
com a natureza, é o que Mário de Andrade está a representar quando nos coloca um
crepúsculo ardente, que só pode ser compreendido em uma instância que ultrapasse as
convenções de natureza e que proponha uma vida especifica e diferente para a obra de arte (a
música e a poesia). Ao aproximar Debussy do expressionismo e inserir em seu poema versos
como “gosto dos teus ardores crepusculares/crepusculares e por isso mais ardentes” (versos
14 e 15), está chamando atenção para uma vida artificial, que só pode acontecer dentro da
obra e por isso não pode ser comparada à vida vivida, tal qual acontece na natureza.
Neste sentido, outro exemplo interessante a se apresentar é o poema “Danças”
(ANDRADE, 1979, p.157), de 1930, em que as palavras obedecem a passos de dança na
página, e cada passista é, na parte III, um pronome. Estão a dançar
EU/ELE/TU/NÓS/ELES/VÓS. E nos dois últimos versos desta seção do poema, há a
13

exclamação interrogação, seguida da resposta: “Que somos nós!?/Pronomes pessoais”


(ANDRADE, 1993, p.161).
Temos, portanto, um Mário de Andrade que está a pensar a vida de maneira distinta
entre a vivida e a possível no poema, o que o faz ser um autor muito explorado, porém ainda
pouco entendido, apesar de quase um século nos separar do inicio de suas publicações.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Mário de. Paulicea Desvairada. In: Poesias completas. São Paulo (SP): Editora
Martins, 1979.

_____. Remate de Males. In: Poesias completas. São Paulo (SP): Editora Martins, 1979.

_____. Debussy e o Impressionismo. Arca Revista Literária Anual. Florianópolis-SC,


Paraula: v.1, p.100-117, 1993.

ANDRADE, Oswald de. Estética e Política. São Paulo (SP): Globo, 1992.

ARANHA, Graça. Canaã. São Paulo (SP): Ática, 1997.

ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna: do iluminismo aos movimentos contemporâneos. São
Paulo: Companhia das Letras, 1992.

BRITO, Mário da Silva. História do Modernismo Brasileiro: Antecedentes da Semana de


Arte Moderna. 6a. ed. Rio de Janeiro (RJ): Civilização Brasileira, 1997.
LOPEZ, Telê Ancona. Arlequim e modernidade. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros,
nº 21, São Paulo, 1981. Disponível em
http://www.ieb.usp.br/revista/revista021/rev021telelopez.pdf, acesso em 30 jan. 2011.

MARINETTI, Felippo. Manifesto Futurista. Disponível em


http://www.dhnet.org.br/desejos/textos/futurista.htm, acesso em 28 jan. 2011.

POE, Edgar Allan. The raven. Tradução de Fernando Pessoa. Disponível em


http://www.helderdarocha.com.br/literatura/poe/pessoa1.html, acesso em 02 fev.2011.

SHAKESPEARE, William. Macbeth. Porto Alegre: L&PM, 2000

ANEXO 1
TU
1 Morrente chama esgalga,
2 mais morta inda no espírito!
3 Espírito de fidalga,
4 que vive dum bocejo entre dois galanteios
5 e de longe em longe uma chávena da trave bem forte!
14

6 Mulher mais longa


7 que os pasmos alucinados
8 das torres de São Bento!
9 Mulher feita de asfalto e de lamas de várzea,
10 toda insultos nos olhos,
11 toda convites nessa boca louca de rubores!

12 Costureirinha de São Paulo,


13 ítalo-franco-luso-brasílico-saxônica,
14 gosto dos teus ardores crepusculares,
15 crepusculares e por isso mais ardentes,
16 bandeirantemente!

17 Lady Macbeth feita de névoa fina,


18 pura neblina da manhã!
19 Mulher que és minha madrasta e minha irmã!
20 Trituração ascensional dos meus sentidos!
21 Risco de aeroplano entre Moji e Paris!
22 Pura neblina da manhã!

23 Gosto dos teus desejos de crime turco


24 e das tuas ambições retorcidas como roubos!
25 Amo-te de pesadelos taciturnos,
26 Materialização da Canaã do meu Poe!
27 Never more!

28 Emilio de Meneses insultou a memória do meu Poe...

29 Oh! Incendiária dos meus aléns sonoros!


30 tu és o meu gato preto!
31 Tu te esmagaste nas paredes do meu sonho!
32 este sonho medonho!...

33 E serás sempre, morrente chama esgalga,


34 meio fidalga, meio barregã,
35 as alucinações crucificantes
36 de todas as auroras do meu jardim!
SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo

MEU NOME É CHACAL

Renata Gonçalves Gomes1 (UFSC)

RESUMO

Pretende-se neste artigo fazer uma leitura das escrituras biográficas do poeta Chacal, Posto 9
e Uma história à margem. Para tanto, coloco em confronto a teoria de Josefina Ludmer a
partir da ideia de Literatura Pós-autônoma, em que as escrituras contemporâneas são e não
são literaturas ao mesmo tempo, com a teoria de Alvaro Lins, em que lê a biografia como uma
verdade documental através da história. Com isso, proponho ler, a partir de Ludmer, as
biografias a fim de pensá-las como narrativas, como criação ficcional, tentando manter um
distanciamento para que a leitura crítica dos escritos de Chacal não fique comprometida por
conta do discurso do poeta. Como afirma Ana Cristina Cesar a respeito das escrituras extra-
literárias: é preciso evitar "fúrias biografistas".

Palavras-chave: Chacal. Biografia. Teoria Literária.

ABSTRACT

The aim of this article is to read the biographical writings of Chacal, Posto 9 e Uma história à
margem. For this, the theory of Josefina Ludmer - about the idea of Post-autonomous
Literature, which is that the contemporary writings are and are not literatures at the same time
- is confronted with Alvaro Lins's theory, which reads the biography as a documental verity
through history. Therewith, I propose the reading of Chacal's biographys, through Ludmer, to
think them as narratives, as a fictional creation. Also, it is a study to try keeping a detchament
of Chacal's writings for not compromised the critic reading by the poet's speech. As Ana
Cristina Cesar affirms in relation to the extra literary writings: it is necessary to avoid
"irrational biographical uses"

Keywords: Chacal. Biography. Literary Theory.

Josefina Ludmer em seu ensaio "Literaturas Pós-Autônomas" constrói uma leitura


das escrituras contemporâneas a partir da ambivalência de serem e não serem literaturas, pois
são ao mesmo tempo ficção e realidade; e afirma:

Tomam a forma do testemunho, da autobiografia, da reportagem jornalística, da


crônica, do diário íntimo, e até da etnografia (muitas vezes com algum “gênero
literário” enxertado em seu interior: policial ou ficção científica, por exemplo).
(LUDMER, 2010, s/p.)

Com isso, a partir da leitura das escrituras contemporâneas ligadas a uma "realidade
cotidiana" - realidade que não quer ser representada, pois já é pura representação - Ludmer
nega uma oposição entre literatura e história e propõe um território "sem foras". Se as

1
Bacharel em Letras Inglês e Literaturas (UFSC) e mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura
(PPGL/UFSC); e-mail: gomex10@hotmail.com.
2

escrituras contemporâneas podem tomar tanto a forma de testemunho quanto de autobiografia,


é possível pensar, portanto, a partir de Ludmer, a biografia como literatura, como criação, sem
compactuar com a ideia que por muito a colocou em um lugar em que ou era literatura ou era
registro. Neste sentido, torna-se impossível pensar a biografia nos termos de Alvaro Lins, por
exemplo, crítico literário da primeira metade do século XX. Lins expõe:

Acredito que à biografia romanceada cabe a perturbação que desceu sobre uma
questão já resolvida e que nada tinha de complicada. A história era julgada uma arte
apenas na sua expressão, na forma, na construção, no estilo. Em essência, no seu
conteúdo, nos fatos, a história deve ser, em rigor, história. Nunca poderá ser
romance porque o seu caráter principal é a exatidão, a fidelidade, a veracidade.
(LINS, 1964, p. 353)

Alvaro Lins, portanto, vai tratar a biografia como uma ciência da documentação, vai
pensar essa documentação como uma verdade absoluta trazida pelos fatos históricos, pela
história. Se há criação na biografia, para o crítico, ela se revela apenas no estilo da escritura
em si. À época, Lins rebatia o estudo do biógrafo Edgar Cavalheiro, que dizia trabalhar como
romancista. Lins tenta argumentar que a história carrega uma verdade pura e, por isso, não
sustenta uma leitura da criação romanceada. Porém, pensar em verdade, segundo Badiou
(2002) só é possível se entendermos que toda verdade - verdades, no plural, e não apenas uma
verdade - é um processo que se inicia a partir de um acontecimento e que este, revela o vazio
da situação. Diz Badiou:

É desse vazio que o sujeito se constitui como fragmento do processo de uma


verdade. É esse vazio que o separa da situação ou do lugar, inscreve-o em uma
trajetória sem precedentes. É verdade, portanto, que a experiência do vazio, do lugar
como vazio, fundamenta o sujeito de uma verdade; mas essa experiênca não
constitui nenhum domínio. No máximo pode-se dizer, de maneira absolutamente
geral, que um sujeito qualquer é o militante de uma verdade. A escolha que vincula
o sujeito à verdade é a escolha de continuar a ser. Fidelidade ao acontecimento.
Fidelidade ao vazio. (BADIOU, 2002, p. 76)

Portanto, pensar a história como fundamento de uma possível única verdade e, ainda,
a biografia como veículo para exposição dessa verdade histórica, através de uma escritura
documental, não seria possível nem para Ludmer, nem para Badiou.
Apesar de não estarem em diálogo direto, confronto os trabalhos de Josefina Ludmer
e Alvaro Lins para ler a produção contemporânea de Chacal, poeta tão prolixo à biografias.
Dentre quatorze livros publicados ao longo de 40 anos dedicados à atividade de poeta e
cronista, dois livros são autobiografias, são eles Posto 9 e Uma história à margem.
3

Em Posto 9, a biografia de Chacal é escrita em conjunto com a biografia do point de


encontro na praia de Ipanema, no Rio de Janeiro. A narrativa tem o espaço bem definido:
Chacal só sai de Ipanema quando está, na infância, em Copacabana, e nos anos 90, na Gávea.
Os lugares da capital fluminense marcam o personagem e constroem uma identidade do poeta
para com a cidade. O livro foi financiado pela Secretaria de Cultura da Prefeitura do Rio de
Janeiro, o RioArte, e saiu pela coleção "Cantos do Rio", da qual outros locais da cidade
carioca completavam a coleção de memórias, como, por exemplo, Leblon, por Geraldo
Carneiro, Lagoa, por Carlos Heitor Cony, Baixo Gávea, por José Almino, Leme, por Arthur
Poerner, entre outros que criaram uma identidade da cidade através de memórias "coletivas".
O Posto 9 foi, desde os anos 70, para Chacal, um lugar dominante. Era lá, segundo as
próprias memórias de Chacal em seu livro Posto 9, edição da coleção Cantos do Rio
financiada pela RioArte, que ficava sabendo sobre um novo "bico" para conseguir algum
dinheiro, era aonde conhecia os novos artistas e aonde surgiam ideias para novos projetos.
Foi no Posto 9 que o grupo Nuvem Cigana "bombou", segundo Charles (SERGIO COHN,
2007, p.18), e foi lá também que a ideia de fazer a revista O Carioca, editada por Chacal na
década de 90, surgiu.
O RioArte, órgão da Secretaria de Cultura da cidade do Rio de Janeiro, financiador
principal da coleção "Cantos do Rio", não se restringiu ao financiamento apenas desta
específica obra de Chacal, Posto 9: a revista O Carioca e o projeto CEP 20.000, sarau
"performático" em que poesia, música, vídeos, teatro e experimentações diversas acontecem
uma vez ao mês, no Rio de Janeiro, liderada por Chacal - o mediador das apresentações. Este
financiamento do RioArte nos projetos de Chacal (CEP 20.000, O Carioca e Posto 9) não me
parece uma coincidência, me parece uma continuidade de um trabalho do RioArte em que
mantinha "equipes de profissionais, sempre com o objetivo de informar e divulgar temas
relacionados à Cultura Carioca. Efetuava também apoio e incentivo permanente à pesquisa e a
divulgação da produção de produtos culturais de qualidade para a cidade do Rio de Janeiro,
como por exemplo, através do Programa de Bolsas, cujos artistas selecionados, recebem
bolsas mensais, que viabilizam a produção de livros, publicações, CDs, peças de teatro,
eventos culturais, exposições e interferências urbanas, que falam da nossa gente e da nossa
realidade", segundo o relatório de inspeção do RioArte e da Fundação Rio, acessada em
(http://www.tcm.rj.gov.br/Noticias/1056/RIOARTE.pdf). No entanto, o RioArte foi extinto
em 2006 pelo prefeito do Rio de Janeiro, na época, Cesar Maia, afirmando que o decreto
26.210, baseado na lei 237/82, em que fazia com que o RioArte passasse de autarquia para
sub-secretaria, era inválido. O projeto CEP 20.000, porém, continuou sendo financiado pela
4

Prefeitura do Rio de Janeiro. Não tenho a intenção, aqui, em aprofundar as questões que
certamente envolveria a relação entre mercado e literatura a partir desses projetos de Chacal
financiados pela Prefeitura. O interesse maior é em relação à proposta de construir uma
"cultura carioca", o que buscaria uma tentativa de identificar, através da cultura, uma
identidade da cidade.
Sobre a narrativa de Posto 9 há uma montagem de depoimentos compondo o que
parece ser uma "memória coletiva" em relação à praia, e Chacal, que é personagem e
narrador, insere vários outros personagens narradores em seu texto no fim do livro, dedicando
um espaço a eles intitulado "Povo do Nove". Chacal, nesta apresentação, diz:

Tem pessoas que tem mais horas de Nove que gaivota de vôo. Outras são ocasionais
como golfinhos. Elas têm um jeito carioca de ir, de estar na praia. São testemunhas e
atores desses quase 25 anos de Posto Nove. Pessoas que têm maresia na alma e
salitre nos ossos. (CHACAL, 1998, p. 54)

Seguido de escrituras de Armando Freitas Filho, Chico Alvim, Eudoro Augusto,


Beto Brown, Guilherme Levi, entre outros, esta pequena apresentação revela duas das
principais características da obra biográfica: 1) a posição dos personagens como testemunhas
e atores ao mesmo tempo; 2) a identificação dessas personagens com a cidade carioca através
do Posto 9, ponto de encontro, acima de tudo, de curtição e desbunde durante as décadas de
60 e 70.
Já a biografia Uma história à margem, lançada em 2010 - doze anos após o
lançamento de Posto 9 -, possui uma forte posição do poeta em se marcar como personagem a
partir da negação de seu nome, Ricardo Duarte de Carvalho. Sua história começa a partir de
“como virou Chacal”, e diz:

Aos 14 anos (...). Foi mais ou menos por essa época que Chacal se superpôs ao meu
nome cristão. (...) Depois de um treino, me atrasei no vestiário, e quando cheguei à
cantina do ginásio do Mourisco, onde a seleção treinava, a rapaziada comia quieta.
Diante do silêncio exclamei: "Que onda chacal!". Era uma gíria da época que não
lembro mais o significado. Devia ser o mesmo que onda careca, onda por fora,
devagar. Fato é que Serginho achou engraçado e levou para a turma da praça.
(CHACAL, 2010, p.13-14)

Porém, muito antes das escrituras biográficas, a questão da construção de um


personagem para o próprio poeta já tinha sido inserida através de seu pseudônimo, que fora
usado pela primeira vez em seu segundo livro Preço da Passagem, de 1972, que
particularmente interessante, revela a vida de seu alter ego Orlando Tacapau.
5

Em seu primeiro livro Muito Prazer, Ricardo, Chacal não aparece, quem estréia é
apenas Ricardo. Na segunda edição de seu primeiro livro, em edição comemorativa de 25
anos pela editora Sette Letras, Chacal resolve se apresentar sem Ricardo e torna o livro,
apenas, Muito Prazer. Retira seu nome e torna-se anônimo, nem sequer acrescenta depois do
"muito prazer" seu pseudônimo Chacal. Seria um atestado de anonimato que o pseudônimo-
apelido causa? O "poeta-lobo" explica:

PS: Na primeira edição do "Muito Prazer", por paranóia ou não, fui aconselhado a
assinar Ricardo, meu nome cristão. Assim era a capa: "Muito Prazer, Ricardo". Hoje
as coisas aparentemente mudaram. (CHACAL, 1997, p.10)

A explicação de Chacal insinua uma preocupação fundamentada no regime militar da


década de 70. Se teria ou não algum problema em assinar o livro com o pseudônimo Chacal
não se sabe, porém após a ditadura o poeta se diz mais confortável para assinar como Chacal e
também para explicar a causa.
Em Uma história à margem, ainda, Chacal relata seu início de juventude pelas, raras,
leituras de literatura e linguística e marcando todos aqueles que, no meio literário ou cultural,
foram significativos para sua carreira poética – característica que, segundo a teórica Sylvia
Molloy, está em várias autobiografias latino-americanas, a marcação do escritor como leitor -.
Chacal é pura construção, onde tudo se confunde entre memória, criação e antologia poética.
Chacal, que construiu um vasto discurso através de entrevistas e memórias,
possibilitaria uma leitura dessa produção com o que dizia Fernando Pessoa, em seu poema
"Autopsicografia", sobre o poeta ser um fingidor? "O poeta é um fingidor/ Finge tão
completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente." (2009) e assim por
diante?
Ana Cristina Cesar, em um curto ensaio-resenha de título "O poeta é um fingidor"
para o caderno "Livros" do Jornal do Brasil, em 1977, lê as questões da correspondência, da
biografia, do documento a partir do, até então, lançamento da publicação das cartas do poeta
romântico brasileiro Álvares de Azevedo. Segundo Ana, relembrando Fernando Pessoa e
Mário de Andrade, é na literatura que a contradição do discurso fingidor torna-se potência,
numa atitude em que para falar, seja necessário fingir. Porém, o cuidado para com o conteúdo
extraliterário, no caso, as correspondências, é ressaltado por Ana para que não haja "fúrias
biografistas" e, portanto, confusão entre os escritos literários e extraliterários. Nesse sentido,
não se trata de comparar os fingimentos na literatura com as "verdades" reveladas através das
6

escrituras ou discursos extraliterários, mas sim, de tratar os supostos "documentos" como


problemas literários.
Sylvia Molloy, em seu Vale o escrito, a escrita autobiográfica na américa hispânica,
questiona o problema da indefinição de gênero literário da autobiografia. Para a teórica, é
evidente a ambiguidade que as autobiografias estabelecem: ora têm valor documental, ora
valor ficcional, o que torna mais beneficioso tanto para o biógrafo quanto para o leitor, é tratá-
la como documento. O valor documental, escrevendo a história pessoal através da história,
evita as reflexões sobre as complexidades da memória, porém mascara a criação ficcional que
a autobiografia também revela.
Em Uma história à margem, por exemplo, a biografia é criada a partir não só de uma
narrativa relacionada às memórias de Chacal, como também a partir de sua poesia. Algumas
das memórias, divididas em pequenos textos de, no máximo, duas páginas cada, são ilustradas
com poemas não-inéditos, causando estranheza pela tentativa de condução da leitura desses
poemas a uma leitura biográfica-documental. A narrativa de certos fragmentos, de certas
memórias, encaminham ao leitor desatento uma leitura biográfica do poema que vem em
sequência. Em um trecho da narrativa entre os títulos "Turma da Pracinha" e "Bob Dylan",
Chacal diz:

Nessa época, 64, eu ia às domingueiras no Olímpico Club na rua Pompeu Loureiro.


Tensão no ar. As turmas iam lá pra brigar. A turma do Barão, a turma da Miguel, a
turma da Constant. Turmas de rua de Copacabana. Lá tocava de vez em quando um
rock irresistível. Todo mundo dançava. Tinha acabado de ser lançado. Era um
compacto. De um lado. "Paint it Black". Do outro, o hino: "(I can't get no)
Satisfaction)". Até hoje fico em pé quando toca. (CHACAL, 2010, p.16-17)

E logo em seguida à este trecho, conclui com o poema "Guitarrinha ranheta"2:

aquela guitarrinha ranheta


debochada desbocada
my generation
satisfaction

aquela minha felina


cuba sarro cocaína
do you wanna dance
don't let me down

aquela ginga jenipapo


elástica solta rasteira

2
A última versão publicada deste poema, no livro Belvedere (2007), o poeta modificou seu título, deixando-o
"Guitarrinha ranheta". Em sua primeira versão, e segunda, nos livros América (1975) e Drops de abril (1983), o
poema se chamava "My generation".
7

i'm free
like a rolling stone

aquele clima da pesada


cheiro de porrada no ar
street fighting man
jumping jack flash

aquele som de fuder


orelhas pra que te quero
who knows
straight ahead (CHACAL, 2010, p.16-17)

Ou como, por exemplo, no trecho "Ouro Preto a pé", também do livro Uma história
à margem, em que Chacal tenta explicar seu poema - do livro a vida é curta pra ser pequena -
através de sua própria vida, de um acontecimento biográfico. Chacal diz que a viagem à
cidade de Ouro Preto, durante o Festival de Inverno, no qual apresentava uma palestra, rendeu
um bom poema. Além de previamente qualificar o poema, o poeta também o justifica pelos
fatos biográficos. Eis a explicação e, em seguida, o poema:

Acordei ainda na névoa do amanhecer, como de hábito, e fui dar uma caminhada
pela cidade, E o poema foi pintando na cabeça. Parecia Gullar. E sempre que isso
acontece, fico feliz. Integrei o poeta ao poema. Veio o refrão, vieram algumas
estrofes. Era um poema sobre Ouro Preto qye já não invocava suas igrejas, sua
inconfidência, seu passado colonial. Era a Ouro Preto de hoje e falava da hora boa
pra se criar. Os surrealistas também acreditavam nela. (...) Ele já tinha o refrão e as
estrofes. Depois, no Rio, fiz os acertos necessários, dando a estrutura final.
(CHACAL, 2010, p.174)

ouro preto a pé

antes que o dia acorde


bater perna
pisar pedra
em ouro preto

antes que a névoa se dissipe


e o sol se levante
com sua horda de caixas automáticos
com sua falange de extratos bancários
bater perna
pisar pedra
em ouro preto

antes que o inexorável tilintar


das caixas registradoras
me leve a perguntar à balconista
quanto é
bater perna
pisar pedra
em ouro preto
8

vagar a esmo
numa romaria sem rumo
sem credo sem dor
vagar...

II

antes que dado e andré


viviane guilherme nilson
ericson pedro helena fabiano
acordem de seus sonhos
de sons em chamas
de rima e luz
de revolução e plenitude
pisar pedra

antes que o barullho das ondas


acorde cláudia e josé
e o mar manche de azul
e vertigem a manhã
no apartamento da rua duviver
bater perna

antes que o dia acorde


bater perna
pisar pedra
em ouro preto

III

antes que os armarinhos


despejem suas coisas
quinquilharias infinitas
o nada que é tudo
em ouro preto
pisar pedra
bater perna

antes que o passarinho


da máquina de tirar retrato
levante seu vôo
do ninho das retinas
e venha decifrar códigos

e definir contornos
bater perna
pisar pedra
em ouro preto

andar sem destino


andar por andar
andar por aí
andar...

IV

antes que o dia acorde


bater perna
pisar pedra
em ouro preto
9

antes que o dia...


bater...
pisar...

bater pisar bater pisar


bat... pis... bat... pis...
bat... pis... bat... pis...
pelas ruas
nas calçadas
de ouro preto (CHACAL, 2002, p. 11-13)

Além da explicação do poema através de sua própria vida, Chacal ainda coloca-se ao
lado de poetas brasileiros que nada têm em comum com a poesia do poeta carioca, como é o
caso de Ferreira Gullar e, possivelmente - ao falar dos surrealistas e a relação com Ouro Preto
-, de Murilo Mendes, poeta que tem um livro inteiro dedicado à cidade barroca, o
Contemplações de Ouro Preto. Ainda, este é um poema que abre o livro a vida é curta pra ser
pequena, livro que - para Chacal - quer representar seus 50 anos de vida, comparando-se a
Manuel Bandeira, poeta que dedicou o livro Lira dos Cinquent'anos também pelo mesmo
motivo, e tem o primeiro poema intitulado "Ouro Preto". Há por parte de Chacal, além de
uma tentativa de consagração através de seu próprio discurso - como que querendo convencer
a todos de que sua poesia se sustenta assim como a de grandes poetas consagrados do cânone
brasileiro -, uma tentativa exagerada pela explicação de seus poemas através de sua vida.
A leitura dos poemas de Chacal como ilustração de suas memórias acaba
empobrecendo os próprios poemas, lê-los a partir de uma perspectiva biografista, como me
parece estarem expostos junto às memórias, limitam-os a uma explicação baseada apenas na
vida do autor. Assim como Ana Cristina disse, o importante é fazer o uso inteligente da
biografia sem se deixar cair no comparativismo simplório entre o literário e o extraliterário. O
interessante, neste caso, é pensar a biografia Uma história à margem como narrativa e
também antologia poética, potencializando sua literariedade, pensando a biografia como
narrativa e forma literária. A intenção, aqui, é justamente problematizar a insistência por uma
leitura baseada no discurso do próprio poeta, é ler as biografias a fim de pensá-las como
narrativas literárias, tentando manter um distanciamento para que a leitura crítica não fique
comprometida por conta do discurso do poeta

REFERÊNCIAS

BADIOU, Alain. Pequeno Manual de Inestética. Trad. Marina Appenzeller. São Paulo:
Estação Liberdade, 2002.
10

CESAR, Ana Cristina. Crítica e ficção. São Paulo: Editora Ática, 1999.

CHACAL. Drops de abril (coleção Cantadas literárias). São Paulo: Brasiliense, 1983.

______. Muito Prazer. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1997.

______. Posto 9 (coleção Cantos do Rio). Rio de Janeiro: Delume, 1998.

______. Uma história à margem. Rio de Janeiro: Editora 7 Letras, 2010.

LINS, Alvaro. O relógio e o quadrante. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964.

LUDMER, Josefina. Literaturas pós-autônomas, in Sopro, n. 20, trad. Flávia Cera.


Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2010.

MOLLOY, Sylvia. Vale o escrito, a escrita autobiográfica na américa hispânica, trad.


Antônio Carlos Santos. Chapecó: Argos, 2004.

PESSOA, Fernando. O Poeta é um fingidor. São Paulo: Globo, 2009.


SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo

MORTE E 'PULSÃO NARRATIVA'1 EM WALTER BENJAMIN

Júlio Bernardo Machinski2 (UNICAMP/CNPq)

RESUMO

Este artigo focaliza aspectos ligados às reflexões desenvolvidas por Walter Benjamin a
respeito da construção do relato ficcional e/ou histórico no viés das relações entre a
circunstância e imagem da morte e a narração. Para tanto, propomos a leitura de alguns textos
de Benjamin que focalizam situações, quadros e episódios em que a morte e a ação de narrar
estão inter-relacionadas. Persegue-se aqui a ideia de uma teoria da pulsão narrativa
considerada por Benjamin na leitura de outros autores/narradores da modernidade (em
especial, Marcel Proust e seu Em busca do tempo perdido), além de se rastrear tais marcos
teóricos nos escritos do próprio Benjamin. Ainda que tangencialmente, esta breve análise da
teoria narrativa benjaminiana espera poder contribuir para o debate contemporâneo a respeito
das (im)possibilidades de relato que cercam a literatura de testemunho dos grandes conflitos
bélicos do século XX.

Palavras-chave:
Walter Benjamin. Pulsão narrativa. Morte.

RESUMÉE

Le présent article se concentre sur les aspects liés aux réflexions développées par Walter
Benjamin sur la construction de rapports fictifs et historiques biais dans les relations entre
l'état et l'image de la mort et la narration. À cette fin, nous proposons de lire certains textes de
Benjamin qui se concentrent sur des situations, des images et des épisodes dans lesquels la
mort et l'acte de narration sont interdépendants. Poursuit ici l'idée d'une théorie de la pulsion
narratif considérée par Benjamin dans la lecture d'autres auteurs/narrateurs de la modernité
(en particulier, Marcel Proust et son livre À la recherche du temps perdu), en plus de suivre
ces cadres théoriques dans les écrits de leurs propres Benjamin. Bien que tangentiellement,
cette brève analyse de la théorie narratif de Benjamin espère contribuer au débat
contemporain sur les (im)possibilités de reporting entourant la littérature témoignages des
grandes guerres du XXe siècle.

Mots-clés:
Walter Benjamin. Pulsion Narratif. Mort.

1
O conceito é de Jeanne Marie Gagnebin, que considera existir uma “teoria da pulsão narrativa” perpassando a
obra de W. Benjamin e que pode ser interpretado como a perene necessidade humana do contar histórias,
especialmente, diante das situações que ameaçam a possibilidade da narrativa (seja ela histórica, ficcional ou
crítica) – como a iminência da morte -, ou o que Benjamin, na Tese VI de “Sobre o conceito de história”
classificou como o “instante do perigo” - momento propício para o historiador resgatar a imagem do passado.
Cf. BENJAMIN, W. Obras escolhidas I: magia e técnica, arte e política. 7.ed. São Paulo: Brasiliense, 2008.
p. 224. [Na obra supracitada, o tradutor, Sergio Paulo Rouanet, emprega a expressão “momento de perigo”.
No presente escrito, valemo-nos da tradução das teses realizada por J.M.G. e Marcos Lutz Müller, a mesma
que foi utilizada na leitura das teses feita por Michael Lövy em seu livro Walter Benjamin: aviso de incêndio.
São Paulo: Boitempo, 2005. Cf. p. 65].
2
Doutorando em Teoria e História Literária; email: jmachinski@yahoo.com.br.
2

1 INTRODUÇÃO

Agora, enquanto todo mundo dorme, ele continua


debruçado sobre sua mesa, fixando a folha de papel
com o mesmo olhar com que acaba de registrar os
objetos, esgrime com seu lápis, sua pena, seu pincel,
jorra ao teto a água do vaso, enxuga a pena em sua
camisa, apressado, violento, ativo, como se temesse que
as imagens lhe escapassem [...].

BAUDELAIRE, “O pintor da vida moderna”

Analisar e comentar a obra de Walter Benjamin, indiferentemente do ponto de vista


que se assuma, não constitui tarefa das mais fáceis para o leitor de qualquer época, pois, ela
representa um conjunto bastante vasto de reflexões que, conforme apontam seus
comentadores mais dedicados, provêm de um substrato cultural que inclui contribuições de
diversas correntes do pensamento filosófico, teológico, político e artístico: desde a tradição
judaica, o cristianismo, o marxismo e o materialismo histórico reinterpretados, o Barroco, o
Romantismo e o Surrealismo até as considerações pioneiras sobre a indústria cultural ou a
cultura de massas em diálogo com seus colegas da Escola de Frankfurt.
É justamente essa heterogeneidade de campos discursivos explorados por Benjamin
um dos fatores responsáveis pelas múltiplas e, às vezes, divergentes interpretações de sua obra
ou das diferentes classificações de seu papel intelectual. Seria ele, conforme as preferências
de seus destinatários, um crítico literário (Hannah Arendt), um historiador da cultura
(recepção francesa) ou devemos considerá-lo sob o estatuto de filósofo autêntico, embora não-
convencional (Scholem e Adorno)?3 Desconfiamos do peso de tal questão para o valor da obra
em si; embora se trate, é verdade, de uma obra que chegou até nós inacabada e constituída de
forma, muitas vezes, fragmentada, propondo um amálgama de gêneros que mistura as
fronteiras entre literatura, crítica, relato histórico e filosofia, em textos permeados de imagens
e metáforas conceituais, muitas vezes, de difícil alcance. Entretanto, talvez seja aí mesmo, na
travessia desses territórios discursivos, que se encontre um de seus méritos de escrita e seu
real valor. Afinal, em carta de Benjamin ao seu amigo Gershom Scholem, de 20/01/1930, ele
manifesta que uma de suas intenções (nem um pouco modesta, diga-se de passagem)
enquanto autor era, justamente, a de “Recréer la critique comme genre”4.

3
Ver a introdução do livro de Michael Löwy: “Romantismo, messianismo e marxismo na filosofia da história
de Walter Benjamin”. p.13.
4
Cit.: BOLLE, W. Fisiognomia da metrópole moderna: representação da história em Walter Benjamin. 2. ed.
São Paulo: Edusp, 2000. p. 150.
3

Dentre as diferentes questões exploradas por Benjamin, na presente leitura vamos


nos ater a alguns aspectos relacionados às reflexões empreendidas por esse autor a respeito da
atividade narrativa, da construção do relato ficcional e/ou histórico, mais especificamente, das
relações entre a circunstância e imagem da morte e a (necessidade de) narração. Nosso estudo
apoia-se, principalmente, na leitura de dois textos paralelos em que Benjamin sugere a perda
da capacidade narrativa relacionada com a diminuição da possibilidade de experiência
humana autêntica no mundo moderno. São eles os conhecidos ensaios: “Experiência e
pobreza” (1933) e “O narrador” (1936). Nossos comentários comportarão, ainda, a leitura de
alguns textos extraídos do segundo volume da tradução brasileira das Obras escolhidas de
Benjamin que focalizam situações, quadros e episódios em que a morte e a ação de narrar
estão inter-relacionadas.
Conforme indica o título do presente trabalho, procuraremos perseguir aqui a ideia de
uma teoria da pulsão narrativa considerada por Benjamin na leitura de outros
autores/narradores, bem como em sua própria obra.

2 NO RASTRO DAS PULSÕES NARRATIVAS

O nome que o homem atribui à coisa repousa sobre a


maneira como ela se comunica a ele.

W. BENJAMIN, “Sobre a linguagem em geral e a


linguagem do homem”

Benjamin inicia o texto “Experiência e pobreza” relembrando uma parábola presente


nos antigos livros de leitura escolar em que um velho, em seu leito de morte, transmite a seus
filhos, de forma delicadamente trapaceira, aquilo que deve ter sido sua maior experiência de
vida: o valor do trabalho. Benjamin ressalta que o significado da experiência ainda conseguia,
naquela época, ser repassado aos mais jovens. Dentre as formas dessa transmissão, ele destaca
aquela em que histórias eram contadas diante da lareira aos membros mais novos da família.
Entretanto, vale lembrar que, para Benjamin, há uma distinção importante nas formas como o
homem conduz a sua vida em termos daquilo que ele é capaz de tornar significativo ao longo
de sua existência e que se tornará a base de sua memória futura – capaz de ser revivida nos
meandros da lembrança e do esquecimento – e que, de forma alguma, reduz-se à reprodução
de gestos cotidianos, à aquisição de comportamentos habituais ou ao cumprimento da rotina a
que se viram obrigados os indivíduos a partir da Era Industrial. Willi Bolle (2000, p. 132-
133), em seu estudo sobre o retrato fisiognômico que Benjamin fez da metrópole moderna,
4

sintetiza essa clássica distinção da seguinte maneira: “Ao tipo de memória morta, apegada à
'vivência' (Erlebnis), o crítico opõe, como formas autênticas de memória, a 'experiência'
(Erfahrung) e a 'rememoração' (Eingedenken)”. No prefácio escrito para o primeiro volume
da tradução brasileira das Obras escolhidas de Walter Benjamin, intitulado “Walter Benjamin
ou a história aberta”, Jeanne Marie Gagnebin, também tendo em vista os dois textos aqui
focalizados, aborda essa contraposição de conceitos, situando-os em relação às preocupações
teóricas do filósofo quanto ao enfraquecimento da Erfahrung no mundo capitalista moderno:

Nos textos fundamentais dos anos de 1930, […] Benjamin retoma a questão da
“Experiência”, agora dentro de uma nova problemática: de um lado, demonstra o
enfraquecimento da Erfahrung no mundo capitalista moderno em detrimento de um
outro conceito, a Erlebnis, experiência vivida, característica do indivíduo solitário;
esboça ao mesmo tempo, uma reflexão sobre a necessidade de sua reconstrução para
garantir uma memória e uma palavra comuns, malgrado a desagregação e o
esfacelamento do social. (BENJAMIN, 2008, p.9)

Na sequência de seu ensaio, Benjamin indaga sobre o paradeiro daquelas práticas da


tradição narrativa e sobre onde estariam os sujeitos capazes de ainda contar histórias,
continuar a transmissão da experiência da forma como ela exige.
É a partir do período da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) que Benjamin irá
diagnosticar uma diminuição gradativa da experiência, paradoxalmente, no mesmo período
em que aquela geração viveu uma das “mais terríveis experiências da história”. À diminuição
da experiência segue-se certa falência da linguagem que Benjamin localiza na impossibilidade
de relato pelos sobreviventes devido à experiência de choque vivida no conflito, acrescido da
drástica transformação do cenário social, da industrialização crescente que quase aniquila
fisicamente o sujeito e o deixa abandonado em meio aos escombros:

Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos viu-se
abandonada, sem teto, numa paisagem diferente em tudo, exceto nas nuvens, e em
cujo centro, num campo de forças de correntes e explosões destruidoras, estava o
frágil corpo humano. (BENJAMIN, 2008, p.115)

A morte da vinculação entre experiência humana e patrimônio cultural – ligada ao


aspecto degradante do desenvolvimento tecnicista – configurará, segundo Benjamin, uma
nova barbárie. A resposta dada pela arte - ainda que vazia de interioridade - reside em refazer-
se a partir do pouco que sobrou; recriar-se se adaptando ao novo cenário, como na aliança
com a engenharia, empenhada em reerguer as cidades a partir do cimento, do aço e do vidro -
esse “material tão duro e tão liso, no qual nada se fixa”: não há mais mistério, não há mais
experiência individual, então, não há mais motivos para esconder o interior. Os últimos
5

estertores do indivíduo burguês, seu protesto quando algum objeto se perdia ou se quebrava,
deviam-se ao pressentimento que, segundo Benjamin, seus vestígios estavam sendo abolidos
deste mundo.
Se a nova configuração urbana repele a presença do homem e impede que ele
imprima nela as suas marcas, se a satisfação de seus desejos restringe-se ao universo dos
sonhos – esse lapso de tempo quase vida, quase morte -, a necessidade de contar a história
permanece em meio à pobreza de experiências; e, talvez, até recrudesça diante da extinção
crescente das possibilidades de existência e realização, ainda que isso exija a invenção de
novos nomes, de uma nova língua.

3 POTÊNCIA E DEBILIDADE NA ARTE DE NARRAR

Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que


possam ser, em momento oportuno, transmitidas como
um anel, de geração em geração?

W. BENJAMIN, “Experiência e pobreza”.

Escalaram o Etna.
O esforço da escalada
Fez com que se calassem. Nenhum sentiu falta
Das palavras sábias.

Brecht, “A sandália de Empédocles”. In: Manual para


habitantes das cidades.

Os dezenove fragmentos que constituem o ensaio “O narrador” têm início com


considerações que dialogam diretamente – transcritas, em algumas passagens, de forma literal
- com as reflexões já desenvolvidas em “Experiência e pobreza”.
Prescrever, extinguir e abolir são algumas das variantes verbais utilizadas por Walter
Benjamin no intuito de sinalizar a morte (a “queda”, o “fim”, nos termos benjaminianos)
gradual de uma faculdade humana de vital importância na formação e preservação da
memória ou patrimônio cultural: a capacidade de narrar e de trocar experiências.
Investigando as formas como determinados sujeitos atingiram certa plenitude na
capacidade narrativa, Walter Benjamin sugere que, se o deslocamento espacial através das
viagens de aventuras ou de negócios é importante meio para que o narrador colha
experiências diversas que servirão de matéria às suas narrativas futuras (tornar familiar o
distante), por outro lado, um mínimo de sedentarismo, de fixação numa determinada
6

comunidade faz-se indispensável para que ele disponha do tempo necessário para organizar os
elementos de sua experiência e reelaborar o conteúdo da tradição (apropriar-se também do
passado). Benjamin localiza na figura do artesão medieval tais condições - a experiência do
nomadismo (o “marinheiro mercante”) e a do sedentarismo (o “lavrador”) - pois, antes de ser
mestre artífice em sua oficina ele havia tido a oportunidade de, no passado, atuar como
aprendiz volante. Assim Benjamin resume o quadro acima descrito:

Se camponeses e homens do mar tinham sido os velhos mestres da narração, a


condição de artífice era sua academia. Nela se unia o conhecimento do lugar
distante, como o traz para casa o homem viajado, com o conhecimento do passado,
da forma como este se oferece de preferência ao sedentário. (BENJAMIN, 1969,
p.58)

Como se sabe, a civilização industrial e seus novos modos de produção iriam causar
a extinção irreversível das antigas condições de formação do narrador tradicional.
Benjamin chama a atenção para a utilidade da narrativa enquanto portadora de
sabedoria, pois, ela estaria ligada à possibilidade de transmitir e receber conselhos e, dessa
forma, dar continuidade a uma história que se desenvolve no presente. Além disso, Benjamin
identifica uma orientação para o interesse prático como traço característico de muitos dos
narradores autênticos. Entretanto, assim como a experiência, também a sabedoria estaria em
declínio no tempo de desenvolvimento da técnica anunciando, negativamente - como o fez de
outra forma e mirando outras paisagens a teoria pós-moderna – o fim das grandes narrativas:

O conselho é de fato menos resposta a uma pergunta do que uma proposta que diz
respeito à continuidade de uma história que se desenvolve agora. Para recebê-lo
seria necessário, primeiro de tudo, saber narrá-la. […] O conselho, entretecido na
matéria da vida vivida, é sabedoria. A arte de narrar tende para o fim porque o lado
épico da verdade, a sabedoria, está agonizando. (BENJAMIN, 1969, p. 59)

Esse estado de coisas não deveria ser visto, segundo Benjamin (1969, p. 59), como
um fenômeno resultante da modernidade, mas antes como “uma manifestação secundária de
forças produtivas históricas seculares que aos poucos afastou a narrativa do discurso vivo, ao
mesmo tempo em que tornava palpável uma nova beleza naquilo que desaparecia”.
O surgimento do romance moderno assinala, para Benjamin, o início de um processo
que culminaria no declínio da narrativa. A distância entre o romance e o gênero épico (e seu
fundo de tradição oral) deve-se, segundo o autor, à dependência material daquele em relação
ao livro. A narrativa, enquanto conjunto de saberes acumulados e que podem ser revividos por
quem a escuta já não é mais possível porque o romance é fruto de um indivíduo solitário,
7

apartado de sua audiência e que, por isso, perdeu a capacidade de dar conselhos. Por sua vez,
a invenção da imprensa, forma de comunicação por excelência na sociedade capitalista, bem
como a exigência de verificabilidade das informações reforçaria o desaparecimento da
atividade narrativa, pois, as notícias veiculadas por ela vêm com as explicações dadas de
antemão. À atemporalidade da narrativa, à permanência de seus efeitos e aos desdobramentos
de seus sentidos ao longo dos tempos (Benjamin exemplifica essas características com uma
história de Heródoto sobre o rei egípcio Psamenita), opõe-se o momentâneo, a fugacidade e o
imediatismo da notícia: “Se a arte de narrar rareou, então a difusão da informação teve nesse
acontecimento uma participação decisiva”. (BENJAMIN, 1969, p. 61)
A perpetuação da arte do narrar depende da predisposição de quem se entregue a
escutá-la; e isso exige uma pausa no ritmo de vida, certa quietude sábia que Benjamin nomeia
de tédio. Entretanto, aqui não devemos confundir “tédio” com a acepção comum dessa
palavra no contexto da língua portuguesa no sentido de fastio, enfado ou apatia; ou, ainda,
como algo “tedioso”, no sentido de que desagrada. Trata-se, antes, de um tédio
produtivo/construtivo na forma da recepção promovida pela ociosidade, algo que parece estar
mais próximo do ennui ou do spleen baudelaireano, um taedium vitae5. No tableaux “Paris, a
cidade no espelho” (subintitulado “Declaração de amor dos poetas e artistas à 'capital do
mundo'”), em que Benjamin transforma a capital francesa num imenso salão de biblioteca,
temos a descrição de uma situação capaz de esclarecer certo sentido desse tédio que também
pode ser tomado como sinônimo de ócio. No texto em questão, a atividade de leitura é a
correspondente da atitude de escuta da narrativa:

De todas as cidades não há nenhuma que se ligue mais intimamente ao livro que
Paris. Se Giraudoux tem razão e se a maior sensação de liberdade humana é flanar ao
longo do curso de um rio, então aqui a mais completa ociosidade, e portanto a mais
prazerosa liberdade, ainda conduz livro e livro adentro. Pois sobre os desnudos quais
do Sena há séculos se deitou a hera de folhas eruditas: Paris é um grande salão de
biblioteca atravessado pelo Sena. (BENJAMIN, 1994, p.195)

Como o ritmo de produção industrial na vida moderna pouco tempo prevê para a
contemplação e para esse tédio formador, as narrações enfraquecem, visto que, o homem não
tem mais condições para entregar-se e gravar em si as histórias que lhe são contadas a fim de
recontá-las promovendo, assim, as “múltiplas renarrações”. É um estado de coisas que nos
remete à comparação que Georg Lukács estabelece em Teoria do romance entre a
fragmentariedade e individualismo do mundo moderno, retratado no romance, e o aspecto de

5
Cf. BOLLE, W. Op. cit., p. 129.
8

integração e totalidade do mundo clássico presente na poesia épica. Conforme observa o


escritor e ensaísta italiano Ítalo Calvino a respeito da Odisséia, o esquecimento é a maior
ameaça à atividade de narração:

Ulisses não deve esquecer o caminho que tem de percorrer, a forma de seu destino:
em resumo, não pode esquecer a Odisséia. Porém, mesmo o aedo que compõe
improvisando ou o rapsodo que repete de cor trechos de poemas já cantados não
podem olvidar se querem “dizer o retorno”; para quem canta versos sem o apoio de
um texto escrito, esquecer é o verbo mais negativo que existe; e para eles “esquecer
o retorno” significa olvidar os poemas chamados nostoi, cavalo de batalha de seu
repertório. (CALVINO, 2002, p. 18)

Algumas pistas de uma teoria da pulsão narrativa podem ser entrevistas naquilo que,
inspirado por bela imagem metafórica, Benjamin diz sobre o envolvimento entre narrador e
coisa narrada. A narração de histórias, vista tradicionalmente, não se contenta em ser
referencial, objetiva, apresentando os fatos em si. Ao colocar a narrativa nos termos (bastante
sugestivos) de uma “forma artesanal de comunicação”, Benjamin mostra que quem conta
deixa suas marcas pessoais naquilo que é contado, pois, a narrativa

Mergulha a coisa na vida de quem relata, a fim de extraí-la outra vez dela. É assim
que adere à narrativa a marca de quem narra, como à tigela de barro a marca das
mãos do oleiro. A tendência dos narradores é começarem sua história com uma
apresentação das circunstâncias em que eles mesmos tomaram conhecimento
daquilo que segue, quando não as dão pura e simplesmente como experiência
pessoal. (BENJAMIN, 1969, p. 63)

Visando assinalar a diferença existente entre o modo de produção na organização pré-


capitalista do trabalho, centrada na atividade artesanal, e o ritmo acelerado do processo de
trabalho na sociedade industrial, J. M. Gagnebin aponta que o artesanato ainda permitia “uma
sedimentação progressiva das diversas experiências e uma palavra unificadora” e traça um
paralelo entre esse modo manual do fazer e a atividade narrativa:

O ritmo do trabalho artesanal se inscreve em um tempo mais global, tempo onde


ainda se tinha, justamente, tempo para contar. [...] de acordo com Benjamin, os
movimentos precisos do artesão, que respeita a matéria que transforma, têm uma
relação profunda com a atividade narradora: já que esta também é, de certo modo,
uma maneira de dar forma à imensa matéria narrável, participando assim da ligação
secular entre a mão e a voz, entre o gesto e a palavra. (BENJAMIN, 2008, p. 11)

4 A MORTE E A PULSÃO NARRATIVA

A morte aparece em turnos tão regulares como o


homem da foice nas procissões de meio-dia no relógio
9

das catedrais.

W. BENJAMIN, “O narrador”.

O narrador é o homem que poderia deixar a mecha de


sua vida consumir-se integralmente no fogo brando de
sua narrativa.

Idem.

A atualidade do pensamento de Benjamin ressalta quando ele discorre sobre a


mudança que a imagem da morte (na qual estava incluída a ideia de eternidade) sofreu no
período pós-Revolução Industrial. Vejamos como Benjamin descreve essa mudança:

E no decorrer do século XIX a sociedade burguesa produziu, com ritos higiênicos e


sociais, privados e públicos, um efeito secundário que talvez tenha sido seu objetivo
principal, embora inconsciente: oferecer às pessoas a possibilidade de se furtarem à
visão dos moribundos. Morrer, outrora um processo público e altamente exemplar
(pense-se nas imagens da Idade Média, nas quais o leito de morte se
metamorfoseava num trono, de encontro ao qual, através das portas escancaradas da
casa mortuária o povo ia-se apinhando) – morrer, durante a Era Moderna, é cada vez
mais repelido do mundo perceptível dos vivos. (BENJAMIN, 1969, p. 64)

Como, na vida moderna, tudo deve ser abreviado e executado no menor intervalo de
tempo possível, a narrativa também é abreviada e repele a visão do eterno. Em sentido
contrário ao que Benjamin tem em vista quando utiliza o conceito de eterno, olhando para a
nossa presente realidade, vemos que o que persiste e se persegue a todo custo pela maioria das
pessoas é o mito da 'eterna juventude'. Aquilo que Benjamin vinha observando na transição do
século XIX para o século XX, e que poderíamos resumir como o afastamento ou apagamento
da imagem ou da idéia da morte, funciona hoje como um dos motores mesmo da máquina
social, especialmente em termos econômicos. O paradigma do estilo juvenil arrombou portas
e tornou-se imperativo em todos os setores da vida moderna: artes, economia, política,
educação, família etc. Como sugerem alguns filósofos, psicólogos e sociólogos
contemporâneos, o tabu do sexo foi substituído de vez, nas últimas décadas do século XX,
pelo tabu da morte (e relendo Benjamin podemos nos dar conta de como esse processo veio se
desenvolvendo há tempos). Os traços da velhice física - para muitos, sinônimos de
“experiência” e “sabedoria” - devem ser apagados a qualquer.
Conservam extrema atualidade as observações a seguir, quando Benjamin (1969, p.
64) aborda o destino daqueles que perdem vida ativa no sistema: “Em espaços que ficaram
purificados de morte os cidadãos hoje são habitantes enxutos de eternidade e, quando seu fim
se aproxima, eles são dispostos pelos herdeiros em sanatórios ou hospitais”. Na sequência de
10

suas observações Benjamin identifica uma autoridade do conhecimento de si que está na base
da narrativa e que só pode ser adquirida por aquele que está ameaçado, no momento em que
todo o “inesquecível” a respeito de si emerge do íntimo e reclama voz - e que lemos como a
pulsão narrativa diante da morte:

No entanto não é só o saber ou a sabedoria do homem, mas acima de tudo sua vida
vivida – a matéria de onde surgem as histórias – que assume forma transmissível
primeiro naquele que morre. Da mesma maneira como no íntimo do homem entra
em movimento, com o correr da vida, uma sequência de imagens – que consiste nos
pontos de vista da própria pessoa, entre os quais sem se aperceber ele encontra a si
mesmo – aos seus gestos e olhares incorpora-se de repente o inesquecível e
transmite, a tudo que lhe disse respeito, a autoridade de que até o mais miserável pé-
de-chinelo dispõe diante dos vivos, na hora de morrer. Esta autoridade está na
origem da narrativa. (BENJAMIN, 1969, p. 64)

Podemos interpretar a passagem acima como sendo a representação da plenitude da


capacidade narrativa – animada por uma pulsão de relatar os acontecimentos e percepções
envolvidos numa existência – que só é alcançada quando a vida está chegando ao fim. É um
sentimento similar o que parece animar a escritura do fragmento de “Le peintre de la vie
moderne”, de Baudelaire, utilizado como epígrafe deste texto: o escritor, o pintor, o poeta
esgrimindo o “seu lápis, sua pena, seu pincel” de forma apressada, violenta e ativa, “como se
temesse que as imagens lhe escapassem”.
Tais passagens parecem traduzir a ânsia involuntária que se apodera do sujeito de
recuperar através da rememoração o que foi acumulado durante a vida nos momentos que
ameaçam o seu existir – uma condição que parece estar bem próxima da descrição daquilo
que recebe, no campo da neurociência, o nome de Experiência-de-Quase-Morte (EQM) e que
se refere a situações reais que põem a vida em risco (uma ameaça de infarto, um acidente
automobilístico, um desastre natural, um incêndio), que é quando se diz, na linguagem
corrente, que “a vida passa diante dos olhos, numa fração de segundos, como um filme”6. A
certa altura do texto “O corcundinha”, Benjamin procura descrever exatamente esse processo,
comparando-o com aqueles familiares “livrinhos” em que, folheando-os rapidamente, criamos
um movimento artificial de determinada cena, mecanismo que está na base da projeção
cinematográfica (conforme também faz notar Benjamin) e, em versão atualizada, na
montagem dos chamados “filmes de animação"7:

6
Vale atentar para o fato de que o discurso médico não empregue algum termo mais comum da área como
“sintoma”, “reação” ou “resposta” para nomear tais situações, mas sim, “experiência”.
7
Lembremos que, etimologicamente, a palavra anima significa 'alma'. Nesse sentido, o que o cinema de
animação e os referidos impressos procuram fazer é dar vida ao inanimado.
11

Penso que isso de “toda a vida”, que dizem passar diante dos olhos do moribundo,
se compõe de tais imagens que tem de nós o homenzinho. Passam a jato como as
folhas dos livrinhos de encadernação rija, precursores de nossos cinematógrafos.
Com um leve pressionar, o polegar se movia ao longo da superfície de corte; então
se viam imagens que duravam segundos e que mal se distinguiam umas das outras.
Em seu decurso fugaz deixavam entrever o boxeador em ação e o nadador lutando
contra as ondas. (BENJAMIN, 1994, p. 142)

O que Benjamin (1969, p. 64) propõe a seguir, em consonância com o curso natural
de uma vida, também faz lembrar certos romances (especialmente, aqueles que podem ser
situados na categoria de 'romance de formação') em que o narrador só atinge uma idéia mais
clara de si quando a narrativa chega ao fim, quando ele já esta de posse plena da sequência de
imagens que formaram sua experiência e que, geralmente, coincide com sua velhice avançada,
a morte natural ou o suicídio (isso quando não é o caso de o jogo ficcional proposto pelo autor
apresentar um narrador já morto, como é o paradigma clássico, no quadro da literatura
brasileira, das Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis): “A morte é a
sanção de tudo o que o narrador pode relatar. Ele derivou sua autoridade da morte. Em outras
palavras: ela é a história natural a que suas histórias remetem”. Para fins de comparação,
poderíamos pensar na figura de um turista (e sabemos que, na literatura, incontáveis vezes, a
vida de um personagem é retratada como uma jornada, uma viagem por determinados espaço
e tempo) e seu impulso em contar sobre as situações vividas, as paisagens avistadas: seu
relato de tal viagem só conquistará completude quando ela tiver atingido o seu término.
É justamente quando morre alguém que nos é familiar, com quem tivemos a
oportunidade de trocar experiências (e que, por isso, não nos é indiferente) que nos sentimos
subitamente tomados pela pulsão narrativa em relação à história pessoal daquela pessoa.
Todos aqueles que puderam partilhar da convivência com o ser agora ausente também sentem
a necessidade de rememorar os episódios vividos ao lado dele e que podem compor as suas
versões pessoais com vistas a contribuir na reconstituição de tal história que é, então, de certa
forma, revivida na ausência (nesses momentos, as capelas mortuárias metamorfoseiam-se em
verdadeiros auditórios de recitais narrativos memorialísticos). Tal constatação parece
confirmar a ideia muito disseminada na obra de Benjamin (notadamente, nas teses de “Sobre
o conceito de história”) de que aquilo que existiu uma vez no passado, mesmo quando deixou
poucos rastros, reclama não cair no esquecimento. Além disso, do que pode ser interpretado
da visão de Benjamin sobre o processo histórico, os mortos – e com eles o passado – deixam
algo inconcluso no espaço da esperança que não se realizou.
Se for verdade que, enquanto leitores, adquirimos maior capacidade de interpretação
de uma obra quando não estamos mais colados à vida do autor, isto é, após sua morte, isso
12

parece também ser válido em relação à distância que se faz indispensável para uma boa
análise entre o observador e o objeto de sua análise. Conforme apontou Jean Marie Gagnebin
durante os seminários do curso8 que ensejou este trabalho, os escritos biográficos de
Benjamin foram produzidos de um lugar sempre distante do tempo/espaço descrito: as
imagens da infância, por exemplo, são recuperadas na vida adulta, o que permite uma visão
mais ampla da própria infância (e Benjamin vai insistir no futuro que vinha sendo preparado
naqueles momentos resgatados do passado, mas que, só agora, no momento da recordação
distanciada, isso se torna plenamente perceptível); os momentos em que foram produzidos os
retratos narrativos de Paris/Berlim/Moscou, por sua vez, nem sempre coincidem com o
período em que autor esteve nessas cidades. É por isso que Gagnebin afirma que, em tais
momentos, Benjamin porta-se, também ele, como um viajante e que esses textos poderiam ser
considerados como “escritos do exílio”. Como Benjamin sabe (e o conhecimento da teoria
freudiana da psicanálise contribui para isso) que seria vã a tentativa de recompor o passado
exatamente como a imagem que se apresenta no momento da recordação, o esquecimento
também toma parte nesse processo narrativo porque o passado permanece aberto (saturar o
passado, tentando preencher todas as lacunas é algo que se presta à monumentalização desse
passado, algo que Benjamin combatia como, por exemplo, em sua revisão sobre a recepção da
obra de Goethe no contexto alemão). Outro autor que se dedicou intensamente ao trabalho de
investigação dos mecanismos da narrativa, Paul Ricoeur (autor de Tempo e narrativa), previa
que era preferível falar-se de um “trabalho de memória”, ao invés de “dever de memória”,
pois a ideia contida nessa última expressão seria correspondente às atribuições do Estado ao
eleger, proteger e celebrar seus heróis.
Em um ensaio que apresenta a comparação entre as diferentes formas de reelaborarão
da matéria de memória nas obras Infância Berlinense, de Benjamin, e Em busca do tempo
perdido, de Marcel Proust, Peter Szondi ressalta o caráter de abertura do passado na obra do
primeiro. Apesar de nos vermos obrigados a suprimir alguns trechos em virtude dos limites
deste trabalho, a citação serve para nos ajudar a melhor compreender esses dois modos de
busca pelo tempo perdido:

Proust busca o passado para, na sua coincidência com o presente – uma coincidência
acompanhada pelas respectivas experiências de cada momento – escapar do tempo, e
isso significa, antes de tudo, escapar do futuro, de seus perigos e ameaças que, em
último caso, são a própria morte. Benjamin, ao contrário, busca no passado o futuro

8
GAGNEBIN, J. M. “A filosofia da história de Walter Benjamin e o debate narrativo e histórico
contemporâneo”. Curso ministrado no Programa de Pós-Graduação em Teoria e História Literária do
IEL/UNICAMP, fev-jul/2011.
13

mesmo. [...] Ao contrário de Proust, Benjamin não quer se libertar da temporalidade,


não é sua intenção contemplar a coisa em sua essência anistórica; ele aspira ao
conhecimento e à experiência histórica; o passado ao qual ele se volta não é fechado,
mas aberto e guarda junto a si a promessa de futuro. O tempo verbal de Benjamin
não é o pretérito perfeito, mas o futuro do pretérito em todo o seu paradoxo: ele é
futuro e, mesmo assim, passado. (SZONDI, 1996)

Em trabalho também dedicado à análise do romance proustiano, Gagnebin procura


resumir o projeto do autor de Em busca do tempo perdido em termos que dialogam de perto
com as reflexões de Szondi:

Trata-se, no fundo, de lutar contra o tempo e contra a morte através da escrita – luta
que só é possível se morte e tempo forem reconhecidos, e ditos, em toda a sua força
de esquecimento, em todo o seu poder de esquecimento, em todo o seu poder de
aniquilamento que ameaça o próprio empreendimento do lembrar e do escrever.
(GAGNEBIN, 2006, p. 146)

Tais considerações nos permitem perceber que, se há uma teoria da pulsão


narrativa animando a obra de Walter Benjamin, ela também está na base do projeto literário de
Marcel Proust.
Em outros termos, analisando alguns episódios que interrompem a jornada de
Ulisses durante a Odisséia e que poderiam comprometer a própria narração, Calvino também
irá tratar sobre esse passado que também é futuro como o válido para a memória comum:

O que Ulisses salva do lótus, das drogas de Circe, do canto das sereias, não é apenas
o passado e o futuro. A memória conta realmente – para os indivíduos, as
coletividades, as civilizações – só se mantiver junto a marca do passado e o projeto
do futuro, se permitir fazer sem esquecer aquilo que se pretendia fazer, tornar-se
sem deixar de ser, ser sem deixar de tornar-se. (CALVINO, 2002, p. 13)

No texto “Nº 113. Sala de Refeições”, de Rua de mão única, Benjamin (1994,
p. 13) descreve um sonho no qual se vê no gabinete de trabalho de Goethe, recebe de presente
deste um pequeno vaso e toma lugar ao lado direito dele numa mesa que reservava lugares
também para os seus antepassados. As sugestões contidas nas imagens desse sonho relatado –
e que incluem outras mais – já permitiram que elas fossem interpretadas de diferentes
maneiras. Sem querer explorá-las detidamente, no tocante ao que temos tratado até aqui, o que
este fragmento parece trazer de mais significativo faz-se em termos de representar
figurativamente como se constrói uma tradição literário-narrativa: o local em que Benjamin se
vê e a atitude de quem o habita (Goethe está sentado diante da mesa de escrever,
escrevendo); o presente recebido (os narradores legam histórias aos seus descendentes, assim
como a obra de grandes escritores exercem influência sobre sucessivas gerações); o lugar que
14

se ocupa; os que vieram antes e que também teriam sido convidados – tais elementos parecem
estar a sugerir a comunicação entre as diferentes gerações. Se assim for, o vaso poderia ser
visto como a experiência compartilhada por aquele que, conforme visto anteriormente, atingiu
a autoridade propiciada pela morte? Certamente, nesse sonho está retratado o contato do
narrador moderno com a tradição. Na análise do mesmo texto, lembrando as figuras narrativas
da Divina Comédia, Willi Bolle identifica uma espécie de viagem do escritor ao reino dos
mortos:

Seguindo modelos clássicos de descida ao reino das sombras, como Virgílio ou


Dante, também o escritor da Modernidade entra em contato com o mundo dos
mortos. Um de seus meios é o sonho. No estado de sono, espécie de mimese da
morte, o sonho é o meio que torna possível atravessar de uma só vez as imensas
distâncias até os tempos arcaicos. (BOLLE, 2000, p. 309)

Embora Benjamin diagnostique em tom de lamento a morte gradativa da


tradição oral (histórica, folclórica, literária, moralizante, enfim, formadora), ele sabe que na
época moderna qualquer conhecimento – ou conselho – só tem chance de ser transmitido e
conservado nos moldes e suportes da cultura escrita. Willi Bolle reflete sobre essa questão
numa passagem que retoma algumas considerações levantadas na análise anterior sobre “Sala
de refeições”:

O meio por excelência contra o esquecimento é a escrita, instrumento de anotar


experiências que precisam ser preservadas, como a sapientia veterum. A literatura
como meio de comunicação entre todos os escritores que já viveram, não apenas
estabelece uma continuidade entre as gerações, mas cria um tipo de informação e
tempo extremamente concentrados. Na obra de um autor, na forma de um livro, no
espaço de uma biblioteca, ela tem sua expressão cristalina. (BOLLE, 2000, p. 310)

Daí que o seu fazer crítico incorpore uma problematização radical da própria
prática, pois, Benjamin deixou indicações de que teria perseguido, ao longo de seu trabalho
intelectual, uma forma que permitisse abertura ao diálogo, ao exercício comparativo e de
interpretação. O sucesso alcançado em tal aspecto talvez possa ser comprovado pelo fato de
que sua obra, depois ter vindo a público, animou e continua animando até hoje um grande
número de reflexões, debates e pesquisas que sobre ela estão voltados, isto é, as questões por
ele propostas continuam atuais. Conforme nota J. M. Gagnebin (2006, p. 49) no início de
“Memória, história e testemunho”, um dos capítulos de Lembrar escrever esquecer: “O
pensamento de Benjamin se ateve a questões que ele não resolveu e que ainda são nossas,
questões que sua irresolução, precisamente, torna urgentes. Talvez nossa tarefa consista em
colocá-las de forma diferente”.
15

Em outra imagem de pensamento da mesma obra citada anteriormente, “Vestiário de


máscaras”, Benjamin (1994, p. 65) também irá tratar sobre a potência da narração diante de
um episódio de morte. Entretanto, dessa vez, o foco de atenção não recai sobre aquele que
morre, mas sim sobre o portador da notícia de tal fato:

Quem transmite a notícia de uma morte, considera-se muito importante. Sua


sensação faz dele – contra qualquer razão – um mensageiro do reino dos mortos.
Pois a comunidade de todos os mortos é tão imensa, que mesmo quem apenas
transmite a notícia da morte, a sente. Ad plures ire significava, entre os latinos,
morrer. (BOLLE, 2000, p. 308)

Sentir-se “um mensageiro do reino dos mortos”: é como se aquele que dá a


notícia da morte portasse um recado dado por quem já não dispõe mais de voz 9. Bolle, que,
antes de nós, também fez a sua interpretação do mesmo fragmento, reitera aí o aspecto da
tradição literária:

Alegoricamente falando, o escritor que ancora sua obra na tradição é um mensageiro


profissional de “notícias do reino dos mortos”. A expressão latina ad plus ire – usada
como eufemismo para “morrer” - vale, na imagem de pensamento benjaminiana,
também em seu sentido original, formado segundo o paradigma grego: “ir para onde
está a maioria”. É a comunidade dos mortos, mais numerosa que a dos vivos.
(BOLLE, 2000, p. 308-309)

Embora algumas passagens das reflexões que procuramos desenvolver aqui


possam ter sugerido uma nostalgia ligada ao desaparecimento das formas narrativas
tradicionais – armadilha que atrai numa leitura inicial e se feita muito próxima das questões
mais aparentes nos textos de Benjamin, ao mesmo tempo em que distanciada da própria visão
do autor sobre a tradição literária – pensamos que não era o intuito de Benjamin a tentativa de
ressuscitar os modos de narração de passado, pois, a drástica transformação do cenário social
ocorrida no alvorecer do século XX exigia novos modos de dizer o presente ou, como propôs
J. M. Gagnebin (2006, p. 53), “a ideia de uma outra narração, uma narração nas ruínas da
narrativa, uma transmissão entre os cacos de uma tradição em migalhas”10. Nós, leitores que
vivenciamos outras mudanças neste alvorecer de outro século, sabemos que a narrativa

9
No início da década passada, o cineasta brasiliense Marcelo Masagão dirigiu um documentário singular, sem
narração oral alguma, cujo roteiro baseava-se tão somente numa sequência de imagens e legendas, um desfile
de personagens históricas famosas e anônimas, muitas delas representantes do que Benjamin consideraria a
“classe dos vencidos” e, entre esses, estavam também as vítimas da Shoah. Significativamente, a cena final
do filme é um passeio silencioso entre as passagens estreitas de um imenso cemitério. Nós que aqui estamos,
por vós esperamos: esse é o título do filme. Considerando a possibilidade de abertura na interpretação desse
título e substituindo-se o pronome 'vós' pelo seu homônimo 'voz', ampliam-se em muito as possibilidades
semânticas de leitura, o que pode iluminar, também, a passagem citada do texto benjaminiano.
10
GAGNEBIN, W. Op. cit., p. 53.
16

continua sendo renovada. O que permanece inalterado é a pulsão narrativa: a necessidade de


contar a história.
Para o meu pai, Jaques José,
pela experiência narrada.

5 REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I: magia e técnica, arte e política. 7.ed. São Paulo:
Brasiliense, 2008.

_____. Obras escolhidas II: rua de mão única. 5.ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

_____. O narrador: observações sobre a obra de Nicolai Leskow. [Traduzido do original


alemão Über Literatur. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1969] (material fotocopiado)

BOLLE, Willi. Fisiognomia da metrópole moderna: representação da história em Walter


Benjamin. 2. ed. São Paulo: Edusp, 2000.

CALVINO, Ítalo. As odisséias na Odisséia. In: Por que ler os clássicos? São Paulo:
Companhia das Letras, 2002.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. O rumor das distâncias atravessadas. In: Lembrar, escrever,
esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2006.

LÖVY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. São Paulo: Boitempo, 2005.

SZONDI, Peter. Esperança no Passado – Sobre Walter Benjamin. Trad. Luciano Gatti.
[“Hoffnung Im Vergangenen - Über Walter Benjamin”. In: _____. Schriften II. Frankfurt:
Suhrkamp, 1996]. (material fotocopiado)
SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo

NA MEDIDA DO IMPOSSÍVEL:
A POÉTICA INTERSEMIÓTICA DE TORQUATO NETO

Lizaine Weingärtner Machado1 (PPGL/UFSC)

RESUMO

O presente estudo consiste na análise da obra de Torquato Neto, fragmentada e abundante na


multiplicidade de temas e veículos, tendo como objeto de pesquisa os livros póstumos Os
últimos dias de Paupéria, primeira edição reduzida e também a versão ampliada, e os dois
volumes de Torquatália, exemplares que reúnem a maior parte da obra torquatiana já
divulgada. A pesquisa centra-se na poética intersemiótica de Torquato Neto, incluindo suas
canções (poesias cantadas), a partir de sua relação com a Tropicália e a contracultura de modo
geral, considerando sua produção no jornalismo, na música e no cinema underground. Para
tanto, o trabalho objetiva identificar diálogos e conceitos presentes na obra multifacetada de
Torquato e analisar o vínculo existente entre a persona do poeta e o mito vampírico, já que o
vampiro tropicalista (de capa preta no verão carioca) era a marca registrada do poeta, e
também a metáfora do escorpião e a imagem drummondiana de anjo torto, conceitos
amalgamados à figura do poeta piauiense.

Palavras-chave:
Poesia, Contracultura. Tropicália. Mito Vampírico. Torquato Neto.

RESUMEN

El presente trabajo consiste en el análisis de la obra de Torquato Neto, fragmentada y


abundante en la multiplicidad de temas y vehículos. El objeto de investigación está basado en
los libros póstumos Os últimos dias de Paupéria, primera edición reducida, además de los
dos volúmenes de Torquatália, ejemplares que reúnen la mayor parte de la obra torquatiana
ya divulgada. La investigación está fundamentada en la poética intersemiótica de Torquato
Neto, incluyendo sus canciones (poesías cantadas) a partir de su relación con la Tropicália y la
contracultura de una manera general, considerando su producción en el periodismo, en la
música y en el cine underground. Para ello, el trabajo pretende identificar diálogos y
conceptos presentes en la obra multifacetada de Torquato y analizar el vínculo existente entre
la persona del poeta y el mito vampírico, ya que el vampiro tropicalista (utilizaba capa negra
en el verano de Rio de Janeiro) era la marca registrada del poeta, y también la metáfora del
escorpión y la imagen drummondiana de ángel torto, conceptos amalgamados a la figura del
poeta de la provincia brasileña de Piauí.

Palabras-clave: Poesía. Contracultura. Tropicália. Mito Vampírico. Torquato Neto.

Chego, às vezes, a suspeitar que os poetas, os


verdadeiros poetas, são uma espécie de erro na
programação genética. Aquele produto que saiu com
falha, assim, entre dez mil sapatos um sapato saiu meio
torto. É aquele sapato que tem consciência da
linguagem, porque só o torto é que sabe o que é o
direito. (Paulo Leminski)

1 Mestranda em Literatura (PPGL/UFSC); e-mail: lizainewm@yahoo.com.br.


2

A poesia é o cerne da produção de Torquato Neto, afinal, segundo o próprio poeta, “a


poesia é a mãe das artes & das manhas em geral” (NETO, 2004, p.173), no entanto, a obra
torquatiana apresenta várias vertentes, há uma multiplicidade de temas e meios, que se
constitui de modo multifacetado, e sua obra traduz uma voz em constante transição, que,
segundo Paulo Andrade em Torquato Neto: uma poética de estilhaços, “[...] revelam a crise
do sujeito em meio à realidade estilhaçada, marcada pela intensa transformação dos
movimentos político culturais dos anos 60.” (ANDRADE, 2002, p.121-2).
Assim sendo, Torquato torna-se figura fragmentária, que marca os anos 60-70 do
século XX, atuando na música, na literatura, no jornalismo e no cinema underground,
caracterizando uma verdadeira “[...] busca poética sem margem, intersemiótica e não
especializada, que experimenta todas as linguagens e os veículos de comunicação.”
(MACHADO, 2005, p.12), caráter que o ligaria, intimamente, ao movimento da Tropicália2,
que levou a frente a utilização de diferentes veículos de criação: a música, principalmente,
mas também teatro, cinema, literatura e artes visuais.
Como é, Torquato, espécie de introdução escrita em 1973 por Augusto de Campos,
que consta nas duas edições de Os últimos dias de paupéria3, livros póstumos de Torquato,
é, segundo o autor, em Balanço da bossa e outras bossas, um “[...] recado, em mala direta,
de poeta para poeta.” (CAMPOS, 2008, p.337-8), em que Augusto salienta a produção
musical de Torquato descrevendo o mistério das letras de música (poesias cantadas)
torquatianas: “estou pensando/ no mistério das letras de música/tão frágeis quando escritas/

2 Utilizo o termo Tropicália pautando-me pela consideração de Augusto de Campos em Balanço da bossa e
outras bossas: “[...] prefiro falar em Tropicália, em vez de Tropicalismo, como sempre preferi falar em
Poesia Concreta em lugar de Concretismo […]. 'Ismo' é o sufixo preferentemente usado pelos adversários dos
movimentos de renovação, para tentar historicizá-los e confiná-los.” (CAMPOS, 2008, p.261).
3 Torquato nunca organizou sua obra em um livro, assim, como aponta Paulo Leminski em Os últimos dias de
um romântico, “como Buda, Confúcio, Sócrates ou Jesus, Torquato não deixou livros.” (LEMINSKI, 1982,
p.06). A primeira edição de sua obra, Os últimos dias de paupéria, foi lançada em 1973 na urgência de
homenageá-lo, logo após seu suicídio. A pequena edição foi publicada acompanhada de um compacto
simples com a gravação de duas de suas composições: Três da madrugada, interpretada por Gal Costa, e
Todo dia é dia D, interpretada por Gilberto Gil.
A segunda edição, bastante ampliada, foi publicada após dez anos de sua morte, em 1982. Ambas as
edições foram organizadas por Ana Maria Duarte, mulher do poeta e mãe de seu único filho, e pelo amigo
Waly Salomão, que batizara a obra e ajudara a selecionar o material que Torquato colocara fogo
anteriormente e que Ana salvara, como aponta Waly: “Ana e eu fizemos Os últimos dias de paupéria,
pegamos o rescaldo do incêndio, as folhas chamuscadas, o que tinha sobrado do incêndio, e fizemos o livro
[…] com o pensamento nas novas gerações. Uma ideia utópica, uma forma boba e ingênua de crendice, mas
que fez com que a obra que ele tinha realizado e renegado passasse para as novas gerações.” (SALOMÃO,
2006, p.82).
Torquatália, terceira e última edição de sua obra, de título inspirado num texto manifesto que o próprio
Torquato escreveu em 1968 para o jornal O Estudo, foi lançada em 2003 em dois volumes (Geleia Geral e Do
lado de dentro), reunindo boa parte da produção torquatiana como seus textos, poemas, letras, enfim, a
produção poética que consta nas duas edições de Os últimos dias de paupéria acrescida de material, até
então, inédito.
3

tão fortes quando cantadas”, desse modo, não por acaso, Torquato evidenciou uma nova
estirpe de poetas nos anos 70: os letristas.
Todo dia é dia D (1971), letra bastante significativa de Torquato, gravada por
Gilberto Gil, apresenta a metáfora do escorpião: “Um escorpião encravado/ Na sua própria
ferida/ Não escapa, só escapo/ Pela porta da saída/ Todo dia é o mesmo dia/ De amar-te,
amorte, morrer/ Todo dia menos dia/ Mais dia é dia D”, e salienta a imagem de que, segundo a
lenda, o escorpião mata e também suicida-se com seu próprio veneno, se estiver sem saída,
num círculo de fogo, por exemplo. Além disso, como explicita André Bueno, em Pássaro de
fogo no terceiro mundo: o poeta Torquato Neto e sua época, a letra evidencia o momento
em que o círculo se fecha mostrando “[...] Thanatos vencendo Eros, a imaginação derrotada
pela morte instalada no poder. A viagem de ida encontrando a viagem de volta, o fim no
começo, o começo no fim, a imagem do escorpião cercado pelo fogo da História mordendo a
própria ferida impondo-se, soberana.” (BUENO, 2005, p.173).
Com base nisso, suicídio, nascimento e morte de Torquato sob o signo de escorpião
tornaram essa metáfora amalgamada à imagem do poeta assim como a de anjo torto, que
figura em Let's play that (1972), composição de Torquato musicada por Jards Macalé, que tem
Poema de sete faces de Carlos Drummond de Andrade, uma das suas principais influências,
como referência. Os versos “Quando eu nasci, um anjo torto/ desses que vivem na sombra/
disse: Vai Carlos! ser gauche na vida” do poeta itabirano encontram-se com “Quando eu
nasci/ um anjo louco muito louco/ veio ler a minha mão/ Não era um anjo barroco/ Era um
anjo muito louco, torto/ Com asas de avião/ Eis que esse anjo me disse/ Apertando a minha
mão/ Com um sorriso entre dentes/ Vai bicho desafinar/ O coro dos contentes/ Vai bicho
desafinar/ O coro dos contentes/ Let's play that”. Desse modo, a letra torquatiana enfoca o
anjo torto, como o anjo drummondiano, mas também vidente e louco, que segue “desafinando
o coro dos contentes”, alusão ao O Guesa (estrofe 61 do Inferno de Wall Street) de Joaquim
de Sousândrade, que caracterizaria a postura de Torquato nas artes em que produzia.
A estética do fragmento torquatiana, pioneira no jornalismo brasileiro, caracterizou
seu estilo, efetuado por meio da montagem/colagem/bricolagem, e se acentuou,
principalmente, na sua mais duradoura coluna, Geleia Geral4, que, segundo o organizador de
Torquatália, terceira edição de sua obra, foi “no contexto da grande imprensa, engessada de
diversas formas pela censura, […] mais do que um oásis de liberdade, uma aberração.”

4 Geleia Geral é também uma composição de Gil e Torquato, que teve o título inspirado pela frase proposta do
poeta e crítico Décio Pignatari, que após uma discussão com o escritor Cassiano Ricardo, que sugeriu que os
poetas concretos precisariam diminuir seu posicionamento inflexível em relação à experimentação formal na
Revista Invenção, teria dito “na geleia geral brasileira alguém tem de exercer as funções de medula e osso!”.
4

(PIRES in NETO, 2004, p.18). Neste sentido, em plena era da ditadura e do desbunde,
Torquato alfineta em sua Geleia Geral, no artigo pessoal intransferível, de modo irônico, uma
de suas principais marcas: “E fique sabendo: quem não se arrisca não pode berrar. Citação:
leve um homem e um boi ao matadouro. O que berrar mais na hora do perigo é o homem, nem
que seja o boi. Adeusão.” (NETO, 2004, p.227), assim, dessa maneira, Torquato exerce um
papel bastante considerável na geração tropicalista “desbundada mas letrada”, segundo Ana
Cristina Cesar, que inclui nomes importantes como Waly Salomão, Rogério Duarte, Jorge
Mautner entre outros, afinal, é com essa geração em geral e com Caetano, principalmente, que
“[...] dança no Brasil a questão da militância na cultura, o compromisso do engajamento
político cultural, seus fantasmas sérios.” (CESAR, 1999, p.235), como considera Ana
Cristina.
A década de 70 é feita de anos pesados, fase bastante repressiva da ditadura militar,
imposta em 1964, em função disso, Mario Cámara aponta em El caso Torquato Neto:
diversos modos de ser vampiro en Brasil en los años setenta, que “no caben dudas que los
primeros años de 1970 son años de vampiros en Brasil.” (CÁMARA, 2011, p.9), pois esses
seres míticos, sombrios e reclusos, representariam o momento político, mas também da arte e,
consequentemente, dos artistas desse período, sufocados pela repressão, que levaria muitos
deles ao exílio forçado ou ironicamente voluntário.
Cabe aqui ressaltar, no entanto, que a figura vampírica marcara demais épocas nas
artes, podendo-se mencionar o clássico Drácula (1897) de Bram Stoker na literatura e
também as suas consequentes adaptações fílmicas, como a de Nosferatu, uma sinfonia de
horror (1922) de Friedrich Wilhelm Murnau, que adaptou livremente a obra de Stoker por não
possuir os direitos de Drácula. Neste contexto, as representações maléficas figuravam como
uma forma de enfrentar e afrontar as sociedades puritanas do século XIX e XX e enfocar uma
busca, despudorada e amoral, pelo prazer, que, no contexto dos anos 60 e 70 no Brasil, “[...]
pareció apostar a un 'seamos el mal del mal', lo cual nos devuelve, en principio, a la adopción
de lo mostruoso como ética y estética de la existencia.” (CÁMARA, 2011, p.18), como aponta
Cámara.
A canção Vampiro (1958), de Jorge Mautner, que aparecera pela primeira vez no
filme de sua direção O demiurgo (1970), filmado em Londres durante o exílio, e,
posteriormente, gravada por Caetano Veloso no disco Cinema Transcendental (1979) e pelo
próprio autor em Árvore da vida (1988) já declarava: “Eu uso óculos escuros/ para minhas
lágrimas esconder/ e quando você vem para o meu lado/ ai, as lágrimas começam a correr”,
faceta vampírica que, de certa forma, se aproxima da figura de Torquato que “escondia-se”
5

por trás da capa preta e dos óculos escuros no verão carioca e, assim, incorporou, segundo
André Bueno, “[...] humor à persona de vampiro tropical, passeando à beira-mar no Rio de
Janeiro, muito longe da gelada Transilvânia. Humor e escracho.” (BUENO, 2005, p.63), que
ao transitar pelas ruas e praias movimentadas do Rio Janeiro, também se assemelharia a figura
do flâneur vagando entre os transeuntes, pois como alude Walter Benjamin, o flâneur é
também e “[...] acima de tudo alguém que não se sente seguro em sua própria sociedade. Por
isso busca a multidão; e não é preciso ir muito longe para achar a razão por que se esconde
nela.” (BENJAMIN, 2000, p.45).
Neste contexto, outro exemplo brasileiro da presença do mito vampírico em nossas
artes é o da canção Doce Vampiro (1979) de Rita Lee, que sugere: “Venha me beijar, meu
doce vampiro/ Na luz do luar/ Venha sugar o calor/ de dentro do meu sangue, vermelho/ Tão
vivo tão eterno, veneno/ Que mata a sua sede/ Que me bebe quente/ como um licor/
Brindando a morte e fazendo amor” e o da produção literária do curitibano recluso Dalton
Trevisan, autor de O vampiro de Curitiba, obra de 1965, que enfatiza o protótipo de vampiro
já que, segundo o autor, “[...] No fundo de cada filho de família dorme um vampiro.”
(TREVISAN, 1998, p.11). Em função disso, é possível aproximar a canção de Mautner e a de
Rita Lee com a obra de Trevisan, pois ambos aludem ao vampiro de pulsão sexual acentuada,
como pode ser dimensionado em “[...] ó curvas, ó delícias ‒ concede-me a mulherinha que aí
vai. Em troca da última fêmea pulo no braseiro ‒ os pés em carne viva. Ai, vontade de morrer
até. A boquinha dela pedindo beijo ‒ beijo de virgem é mordida de bicho-cabeludo. Você grita
vinte e quatro horas e desmaia feliz.” (TREVISAN, 1998, p.14), ou seja, tanto o vampiro de
Mautner, que suspira na canção: “[...] eu fico embriagado de você/ eu fico embriagado de
paixão/ no meu corpo o sangue não corre, não, corre fogo e lava de vulcão”, quanto o doce
vampiro de Rita Lee e a personagem Nelsinho dos contos de Trevisan enfocam o erotismo, de
“[...] una voluntad de contagio.”(CÁMARA, 2011, p.48), como define Cámara, e acabam por
entremear pulsões de vida (Eros) e de morte (Thanatos).
Para além dessas referências vampíricas, Torquato, figura emblemática dos anos 70
repletos de vampiros, protagonizou o filme Nosferato no Brasil (1971) de Ivan Cardoso e,
assim, a imagem do vampiro Nosferato tornou-se uma das marcas registradas do poeta
piauiense, corroborando com a ideia de Nosferatu vampirizado, segundo Décio Pignatari, já
presente na composição musicada por Caetano Veloso, Ai de mim, Copacabana (1968), que já
apresentava um elemento vampírico: “Você olha nos meus olhos e não vê nada/ é assim
6

mesmo/ que eu quero ser olhado”.5


O filme marginal de Cardoso, filmado em super 8mm, assim como o Nosferatu de
Murnau, era também um filme mudo, misto de “terror” e comédia, que por ter sido filmado à
luz do dia, por limitações técnicas e financeiras, trazia a advertência: “onde se vê dia, veja-se
noite.” Com base nisso, Haroldo de Campos define o filme de Cardoso no ensaio Nosferato,
publicado no Jornal Correio da Manhã, como “[...] Uma festa antropofágica de linguagem.
Que deixa a marca: o dente do vampiro (de matéria plástica) na jugular esclerosada do cinema
sério.” (CAMPOS, 1972) e Mario Cámara aponta a personagem de Torquato como um “[...]
vampiro tropical, que pasea su erotismo por las playas de Copacabana y que no inspira terror
em la platea, […] Desde esa nueva platea, marginal e inoperante, se pueden leer, como lo hace
Haroldo, las sobredeterminaciones culturales que carga sobre sí la figura del vampiro, que
dada su multiplicidad escapa a cualquier alegoría.” (CÁMARA, 2011, p.29).
A arte múltipla de Torquato, no entanto, ainda carrega um certo peso, fruto da morte
antecipada e da “loucura”, estereótipo solidificado pelas passagens de Torquato por
sanatórios, que apontam o poeta, ingenuamente, como o artista que “[...] transferiu para seu
corpo as contradições e os limites postos pela História de seu tempo. Incapaz de habitar a
contradição, morreu a morte romântica. A morte errada. Nesse exato sentido, suicidado pela
sociedade.” (BUENO, 2005, p.40), como aponta André Bueno. No entanto, a visão de Bueno
soa desajustada ao suscitar a ideia de um ingênuo romântico e desesperado que “morreu a
morte errada”, pois analisando a obra torquatiana, detidamente, se percebe que nela havia um
projeto político cultural: ocupar espaço, forma pouco convencional, mas compreensível, pois,
como aponta Luiz Carlos Maciel em Nova Consciência: jornalismo contracultural —
1970-72, “se há uma intenção política na contracultura, ela se manifesta de maneira
totalmente nova e não convencional.” (MACIEL, 2009, p.79-80), onde, como o próprio
Torquato sinaliza em literato cantabile: o “Primeiro passo é tomar conta do espaço. Tem
espaço à beça e só você sabe o que pode fazer do seu. Antes, ocupe. Depois se vire.” (NETO,
2004, p.304) e, assim, conforme Silviano Santiago aponta em Uma literatura nos trópicos,
“A poesia volta a estar nos fatos e nos acontecimentos, nas peripécias inusitadas de uma vida
em perigo.” (SANTIAGO, 2000, p.198).

5 A imagem vampírica que se tem de Torquato foi construída a partir de sua relação com o cinema, no entanto,
além de sua marcante atuação no filme de Ivan Cardoso, Torquato tinha notória relação de afeição com o
cinema, cinéfilo que era. Escrevia críticas de cinema em suas colunas, criava polêmicas em função delas,
como, por exemplo, o embate do cinema underground ou udigrudi “contra” o cinema novo. Ademais, atuou
em alguns (poucos) filmes e atuou e dirigiu o filme O terror da vermelha, rodado em Teresina, sua cidade
natal, em 1972, filme que não chegou a montar (a montagem foi realizada pelo amigo Carlos Galvão,
amparado pelas orientações deixadas por Torquato), enfim, como vemos, o cinema foi, sem dúvida, uma
parte importantíssima em sua geleia geral.
7

Em função dessas leituras, pode-se pensar no caráter autodestruidor de Torquato, às


vezes, tão mal e/ou demasiadamente enfatizado, que o levaria ao suicídio na noite de seu 28º
aniversário, como o caráter destrutivo de Walter Benjamin, que manifesta-se em favor da
destrutividade em oposição a homens que nada produzem ou que zelam apenas pelo (próprio)
bem-estar; conforto e comodidade, que Benjamin denomina “homens-estojo”, considerando
que “o caráter destrutivo é o inimigo do homem-estojo. O homem-estojo busca sua
comodidade, e a caixa é sua essência. O interior da caixa é a marca, forrada de veludo, que ele
imprimiu no mundo.” (BENJAMIN, 1986, p.187).
Neste contexto, afrontando a “sociedade aveludada” e pautando-se em seu projeto
político cultural, Torquato abre caminhos, assim como aponta Benjamin ao considerar que “o
caráter destrutivo conhece apenas uma divisa: criar espaço; conhece apenas uma atividade:
abrir caminho, sua necessidade de ar puro e de espaço é mais forte do que qualquer ódio.”
(BENJAMIN, 1986, p.187), o poeta segue realizando o que lhe parecia primordial, desafinar o
coro dos contentes, e em virtude disso, Torquato registra em mais conversa fiada, artigo da
coluna Geleia Geral, “E agora? Eu não conheço uma resposta melhor do que esta: vamos
continuar. E a primeira providência continua sendo a mesma de sempre: conquistar espaço,
ocupar espaço. Inventar os filmes, fornecer argumentos para os senhores historiadores que
ainda vão pintar, mais tarde, depois que a vida não se extinga. Aqui como em toda parte:
agora.” (NETO, 2004, p.286).
Como vemos, Torquato vê caminhos em toda (p)arte, assim como o opositor dos
conformados, como considera Benjamin, em virtude disso, a vida (ou encurtamento dela) é
apenas um dado na obra do artista piauiense sincrético e multimídia, que, como aponta
Leminski, em Os últimos dias de um romântico, produz de um modo em que “[...] não se
escreve só com palavras. Grava-se com o corpo, o gesto, a atitude, o comportamento,
sartreanamente, com as escolhas globais. […] a peripécia contextual que cerca seu fazer e
seus feitos: a gesta total, o ser-signo inteiro.” (LEMINSKI, 1982, p.06).
Em suma, a obra torquatiana é composta de modo assistemático, transitando em
diferentes meios e linguagens: poesia, letras de música (poesias cantadas), jornal e cinema,
como vimos, e, desse modo, como salienta Leminski, grande era a arte de Torquato, “[...]
poeta das elipses desconcertantes, dos inesperados curtos-circuitos, mestre da sintaxe
descontínua, que caracteriza a modernidade.” (LEMINSKI, 1982, p.06). Ademais, a obra de
Torquato, fragmentária por definição, em certa medida, se inter-relaciona por meio de
relações e diálogos inter e intratextuais, percebidos no conjunto da obra, que sugere o desejo
de não totalidade, optando sempre por uma construção poética diversa e estilhaçada
8

englobando palavra, som e imagem.

REFERÊNCIAS
ANDRADE, Paulo. Torquato Neto: uma poética de estilhaços. São Paulo:
Annablume/Fapesp, 2002.

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9

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SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo

NOTAS SOBRE A ILUSÃO CINEBIOGRÁFICA: UM OLHAR SOBRE A


TRAJETÓRIA DE AMEDEO MODIGLIANI

Marcio Markendorf1 (UFSC)

RESUMO

Este trabalho pretende explorar alguns aspectos de um campo do fazer biográfico, o das
cinebiografias, até então pouco explorado pelos Estudos Literários e, assim, contribuir
produtivamente com novos estudos para a Linha de Pesquisa Literatura e Memória. O
empreendimento mostra-se fecundo principalmente no que se refere à interrogação crítica de
três questões centrais: a conformidade, o papel do cinema na manutenção e/ou formatação do
imaginário público acerca da vida de um sujeito; a ficcionalização, como os diferentes
intermediários discursivos do projeto audiovisual contribuem para a transformação de
personalidades em personagens romanescas; a duração, de que forma as limitações de tempo
do projeto biográfico audiovisual sujeitam os roteiros a um consenso narrativo. Ao estabelecer
um comparativo com os procedimentos discursivos das biografias tradicionais, as de papel, o
exame do objeto cinebiográfico tenciona explorar outros dispositivos da ilusão biográfica
denunciada por Pierre Bourdieu em ensaio antológico. Muito embora o corpus da pesquisa
reúna um número maior de biopics de artistas, o recorte proposto para esta comunicação, por
razões metodológicas, focalizará o debate na narrativa do filme Modigliani – paixão pela vida
(Modigliani, 2004, 128 min), dirigido e roteirizado por Mick Davis.

Palavras-chave:
Cinebiografia. Biografia. Ilusão.

ABSTRACT

This paper aims to explore some aspects of the biopic, object of study still to be explored by
Literary Studies, and contribute productively to new researches on Literature and Memory.
The project appears to be particularly fruitful to the interrogation of three critical issues:
compliance, the role of cinema in the maintenance and/or formatting the public imagination
about the life of a subject; fictionalization, how the different intermediate discursive in
audiovisual project contribute to the transformation of personalities in novelistic characters;
time projection, how the time constraints of the biographical project audiovisual scripts
subject to a consensus narrative. By establishing a comparison between the traditional
biographies of discursive procedures, the examination of the biopic intends to operate other
devices on the biographical illusion denounced by anthology Pierre Bourdieu's essay. Despite
the large number of available biopic for the purposes of this communication, for
methodological reasons, the discussion will focus on the narrative of the film Modigliani –
paixão pela vida (Modigliani, 2004, 128 min), directed and scripted by Mick Davis.

Keywords:
Biopic. Biography. Illusion.

1
Doutor em Teoria da Literatura pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de
Santa Catarina; e-mail: marciomarkendorf@uol.com.br.
2

1 AMEDEO, AMANTE
Uma biografia, por princípio, é uma história de vida contada do princípio ao fim,
segundo uma linha temporal linear de acontecimentos. Pierre Bourdieu (2006, p. 184),
tratando da representação biográfica, afirma ser esta forma narrativa um composto consistente
de sequências (crono)lógicas e inteligíveis, discurso no qual se apresenta um sentido para a
existência. De acordo com o sociólogo francês, por meio de certos procedimentos discursivos
seria possível construir artificialmente a fantasia de significância para uma trajetória de vida.
A ilusão biográfica do discurso, portanto, deve ser compreendida como um espaço em que a
coerência ganha potência e uma estrutura compacta de começo-meio-fim. David Mamet
(2001), por sua vez, afirma que a organização de eventos em uma linha inteligível faz parte da
qualidade natural do ser humano de dramatizar. Assim, por meio de um impulso de análise
causal, eminentemente retrospectivo, somos levados a interpretar situações banais – um jogo
de futebol, por exemplo – como acontecimentos armados em uma estrutura ternária
(apresentação/desenvolvimento/resolução), similar a dos roteiros. É segundo esta
hermenêutica que o disperso e o caótico receberiam alinhamento e organicidade.
O relato cinematográfico não explora o mesmo montante informativo de uma
biografia devido à especificidade da imitação dramática, em franca oposição durativa à
narração, aspecto este responsável por circunscrever uma história de vida em cerca de duas
horas. Aristóteles (1996, p. 39), ainda no século V a.C., advertiu que a unidade de ação não
era consequência da presença de um só herói na trama, “pois a um mesmo homem acontecem
fatos sem conta, sem deles resultar nenhuma unidade” e, sim, da seleção dos episódios e do
arranjo dado às ações. Seguindo por essa via, qualquer cinebiografia é a expressão de uma
poética de recorte e de emolduramento, sendo constituída por meio da seleção e conexão de
eventos significativos de um grande amontoado. O filme Modigliani – paixão pela vida
(Modigliani, 2004, Mick Davis) secciona de um todo completo2 apenas os momentos
compactos dos dois últimos anos de vida do pintor italiano, nascido em 1884 e morto em
1920.
A unidade de ação, produzida com o auxílio da delimitação temporal, organiza um
complexo narrativo orgânico que, como leva a crer o subtítulo brasileiro, apresenta o aflorar
do pathos amoroso. O acréscimo sugerido ao título original, entretanto, não é de todo correto,

2
Nas adaptações cinematográficas de romances, por exemplo, é frequente a supressão de uma série de incidentes
e peripécias para o equilíbrio das unidades de tempo e ação. Em se tratando de contos, pelo contrário, é comum o
acréscimo de elementos narrativos e o enriquecimento da trama original.
3

visto que o comportando apresentado pelo artista é mais marcado pela displicência para
consigo mesmo e menos pelo ânimo sugerido. Mesmo com a saúde em risco por conta de uma
tuberculose mal-curada na infância, o Modigliani da ficção não deixa de beber, fumar e
drogar-se imoderadamente. E, embora o foco do roteiro esteja no relacionamento amoroso e
não no fazer artístico, o artista também não toma a esposa como a razão de sua vida, condição
que justificaria a paixão destacada. O maior conflito da história, aliás, é a vida boêmia versus
uma vida estável e bem-sucedida.
Importa destacar também que esta cinebiografia é a compacta história de uma
personalidade, o retrato romantizado de um gênio ou, no mínimo, o de um artista genioso. E
se não parte dele o amor – na interpretação de Andy Garcia de um Modigliani fictício – o
sentimento ao menos repousa em Jeanne Hébuterne, isto é, na performance da atriz Elza
Zylbertein. Aliás, é uma prerrogativa do universo das cinebiografias o par amoroso ser o foco
dramático por constituir esta emoção, antes de tudo, um fermento mítico universal3. Edgar
Morin (2005, p. 131) percebe-a como tema central da felicidade moderna, arquétipo tão
atrativo das massas que chega a assumir o caráter de uma obsessão de consumo. Não fosse a
personalidade famosa em questão, chamariz principal da história, o filme seria o relato do
encontro de um homem e uma mulher e, também, dos efeitos negativos da paixão – o suicídio
como ação desintegradora da ausência. O destaque conferido ao amor, portanto, faz parte de
uma estratégia sedutora da psique das massas imposta deliberadamente pelos estúdios. As
cinebiografias, além disso, quase sempre representam uma relação opositiva entre o amor e a
carreira, pois um não pode co-existir com o outro. Para Michel Chion (1989, p. 172), este
sentimento é o bem mais comumente antagonizado com outros, produtor de um dilema
interior que procura reforçar a crença popular do “não se pode ter tudo” e estimular emoções
profundas no espectador.
O filme preocupa-se em construir o tom emotivo desde o início, por meio da retórica
de uma mulher arrebatada: “Você sabe o que é o amor? O amor de verdade? Você já amou
tanto que se condenou à eternidade no inferno? Eu já”. Esta fala de Jeanne Hébuterne é
proferida antes de ela atirar-se da janela do quinto andar, dando fim não apenas à própria vida,
mas a do segundo filho que esperava de Modigliani. O discurso é dirigido para alguém de fora
do universo diegético, o espectador, constituindo este um recurso característico de narrativas
autoconscientes de sua natureza fictícia. No jogo do parecer ser, a atriz Elza Zylbertein

3
Talvez seja para sublinhar este traço muitos dos subtítulos de cinebiografias: Eclipse de uma paixão (Arthur
Rimbaud e Paul Verlaine), Sylvia – paixão pelas palavras (Sylvia Plath e Ted Hughes), O brilho de uma paixão
(John Keats e Fanny Brawne), A paixão de Camille Claudel (Camille Claudel e Auguste Rodin).
4

empresta seu corpo para dar substância e movimento dramático a uma personagem baseada
em traços de uma Jeanne Hébuterne real. Logo, a persona da película em verdade nunca
existiu, constituindo apenas uma invenção coerente por parte do autor-diretor, da câmera, da
atriz.
De acordo com os fatos, Jeanne realmente saltou para a morte um dia após o amado
ter morrido. Entretanto, diferentemente do que consta no universo diegético, Modigliani não
veio a falecer em virtude do agravamento da já debilitada saúde em vista de uma agressão
física. Tampouco este evento aconteceu ao mesmo tempo em que o artista vencia uma fictícia
competição de pintores na qual participavam Pablo Picasso, Diego Rivera, Maurice Utrillo,
Moise Kisling, Chaïm Soutine. Talvez não seja redundante destacar que os quadros da mostra
nunca existiram e apenas servem, em sua maioria, para refletir componentes subjetivos dos
seus pretensos realizadores4. O único quadro que parece ter sido pintado de fato é Jeanne, de
Modigliani, obra cercada de uma história anedótica no universo diegético para amarrar à
trama o tom lírico.
Segundo consta na narrativa, Modigliani apenas pintaria os olhos da modelo Jeanne,
deixando de lado sua opção estética pela face de máscara, quando conhecesse a alma dela,
penetrando em seu coração. É o que acontece na montagem de ações paralelas do filme: ao
mesmo tempo em que o artista é agredido por dois homens, os quadros dos competidores são
descortinados. Enquanto aplaudem sua obra, pontuada pelo choro-surpresa de Jeanne, as mãos
de Modigliani avançam, ensanguentadas, em direção aos agressores, agarrando o ar antes de
caírem no chão sem força. O close-up nos olhos da pintura, a voz over de Modigliani, ao
modo de um recall memory thoughts5, e a banda sonora não permitem ser perdido o
“momento sentimental” do filme por uma falha mnemônica do espectador. Quanto a esse
aspecto, de modo distinto das biografias, as cinebiografias procuram estimular as emoções do
público, mesmo que à custa da apresentação de eventos que não correspondem à realidade.
A cena da agressão física está imersa em uma imagem de pecado venial e de ironia
trágica. Desejando fazer uma surpresa a Jeanne com uma certidão de casamento, Modigliani
vai até a prefeitura conseguir o documento. Ele dorme nos bancos de tão exausto que estava

4
Diego Rivera apresenta um quadro chamado México, pontuando seu lugar de origem; Picasso, como
homenagem irônica ao personagem que lhe faz oposição, pinta Modigliani; em razão do internamento em um
hospital psiquiátrico, realizado pela família à força, por conta do comportamento agressivo do artista-alcóolatra,
Utrillo apresenta Loucura; Kisling pinta Medo, aparentemente sem constituir qualquer informação sobre o
personagem; Soutine elabora Minha vida (?), pretenso quadro da sua série de pinturas com peças de carne em
decomposição.
5
Procedimento técnico no qual há uma voz over, sobreposta à cena, expressando a lembrança de alguma fala
pontual da história envolta em eco dramático. É algo muito próximo de um discurso indireto livre, invasão na
mente da personagem produzido em narrativas de onisciência seletiva.
5

do trabalho em cima do quadro da competição. Quase perde a chance do registro, não fosse a
cumplicidade da atendente-artista, também uma pintora, possivelmente do estilo fim-de-
semana, e que nunca ouvira falar de Modigliani. Para comemorar a riqueza do amor (e a
riqueza vindoura do prêmio), ele para em um bar. Muitas doses de bebida depois, sem
dinheiro para pagar, e atrasado para a exposição competitiva, parte do lugar sem maiores
explicações. É seguido por dois capangas, a mando do balconista-vilão, para receber a dívida
e/ou para aprender uma lição. Modigliani apanha violentamente, tem seus bolsos revistados e
sua certidão de casamento rasgada. Quem o consola momentaneamente é seu alter-ego
infantil, imagem nostálgica do Modigliani criança, sob a leveza da queda de flocos de neve
azuis.
David Mamet (2001, p. 33), criando um paralelo entre as ficções biográficas e as
narrativas ficcionais, sugere que para o espectador é mais fácil identificar-se com a busca por
um documento secreto do que com uma cientista, como Marie Curie, procurando identificar e
compreender o elemento químico rádio. Sendo assim, “para serem eficazes, os elementos
dramáticos têm de ter precedência – e acabarão por tê-la – sobre quaisquer fatos biográficos
„reais‟”, razão por que os diretores de biografias dramatizadas sempre recorrem à ficção
(MAMET, 2001, p. 33). O caso de artistas e escritores6 é ainda mais particular já que são
personalidades de um universo laboral interior, lento e pouco afeito à representação externa
no meio audiovisual. Por isso, para Mamet (2001, p. 33), pouco importaria ao espectador
saber sobre a descoberta do rádio, o que importa no cinema é descobrir como, na
cinebiografia de Marie Curie, o cão da heroína morreu.
A licença dramática é procedimento legítimo no processo de adaptação
cinematográfica de biografias ou na filmagem de roteiros biográficos. Por meio dela a
teatralização da vida de uma personalidade pode assumir camadas de ficção responsáveis por
construir uma força-personagem, isto é, a vida do sujeito é estilizada e esquematizada da
mesma forma que os personagens de um romance. A ficcionalização, nesse sentido, ainda que
apoiada na simplificação de uma complexa identidade, possibilita à história destacar um traço
mistificador de um sujeito. Além disso, devido à facilidade de circulação e consumo de uma
obra audiovisual, em contraste com uma obra escrita, o cinema contribui para a formatação
coletiva de uma imagem biográfica. No caso deste filme sobre Modigliani, o que permanece

6
Acabam se tornando clichês as cenas marcadas por time lapses, montadas como uma longa passagem de tempo,
nas quais o artista ou pintor passam horas de cenho franzido, olhando para a tela, o papel ou o nada, produzindo
obras pouco insatisfatórias, invariavelmente rasgadas/destruídas, antes de serem apresentados felizes com um
trabalho aprovável.
6

na recordação biográfica do espectador é mais o sujeito alcoólatra que o pintor; mais uma
mulher apaixonada que um homem apaixonado.
Por outro lado, o traço positivo deste roteiro é não recorrer a uma fórmula monótona
e artificial, na qual haveria uma construção alternada de cenas de criação artística e de intriga.
O foco dramático na personalidade e não na arte do pintor colabora para a humanização do
mito artístico, reforçando a qualidade de biografia imaginária de um casal. Ademais, como
sugerem os manuais de roteirização, o desfecho emerge da própria história e não de elementos
extemporâneos, fato que justificaria a opção de acrescentar um agravante à morte natural do
pintor. As cenas de apresentação diegética da tela Jeanne – especialmente a história romântica
criada em torno dela – e do registro documental do matrimônio criam o enlace e a
reconciliação da vida da modelo e do artista; o caráter ébrio do personagem, por sua vez,
realiza um percurso ambíguo – de caracterização divertida (alívio) e de contraponto dramático
(tensão), de construção de forças (amizade) e de destruição de linhas (trajetórias de vida).
A economia narrativa das cinebiografias adota procedimentos característicos a uma
caricatura sem, entretanto, apelar para o grotesco ou o cômico. Quando muito, é um riso sério.
Trata-se da construção de um perfil plano, constituindo a ênfase de certo traço
comportamental uma forma de exagero. Uma obra biográfica escrita pode não se
comprometer tão estreitamente em semelhante estereotipia, mas sua estrutura narrativa, pela
natureza do meio, abriga estratégias romanescas. O limite de duração da obra audiovisual,
seguindo tal contraste, é causa suficiente para justificar alguns expedientes de roteirização.
Por um lado, o efeito positivo do caráter unitário (tempo, ação, personagem) da obra
cinebiográfica é potencializar o efeito catártico de uma história de vida sobre o público; por
outro, o efeito negativo está no consumo ingênuo da ilusão de uma biografia real, isto é, na
recepção tranquila de um espectador que ignora a natureza ardilosa do discurso ficcional.
Como pontua Mamet (2001, p. 33), no universo dramático, assim como no sonho, “o fato de
algo ser „verdade‟ é irrelevante; só nos importa se aquilo é pertinente para busca do herói (a
busca de um MacGuffin) tal como é declarada a nós” (com grifos no original). A
verossimilhança e a coerência interna na ficção biográfica, portanto, assumem o caráter de
verdade fatual, sobretudo porque a “verdade tem sempre estrutura da ficção” (HISGAIL,
1996, p. 12).
Para os Estudos Literários o que estaria em jogo nas diferentes produções biográficas
são os graus de “distanciamento da verdade” – algo próximo ao conceito platônico de mimesis
– promovidos pela imitação dramática, níveis acumulados a partir de diferentes intermediários
no processo. Pode-se dizer que na cadeia da fantasia cinebiográfica há este percurso
7

hipotético: realidade > memória (documentos de 1º e 2º graus) > interpretação do biógrafo >
discurso escrito > adaptação do livro para roteiro > interpretação do diretor > interpretação
dos atores > edição do filme. As biopics, como também são chamadas, não são mais
problemáticas que a contraparte de papel por contar com mais agentes conversores da história
de vida em discurso, mas pela capacidade de formatação do imaginário. Na verdade o perigo
não está na potência do cinema enquanto veículo difusor de falsas imagens – espécie de teatro
de sombras – e, sim, no modo ingênuo de consumir os simulacros de vida. O modelo
ocidental e pós-moderno de civilização, baseado na imagem, privilegia mais o cinema que a
literatura, de modo que o filme, hoje, desempenha uma função nuclear já ocupada pelo
romance séculos atrás.
A adaptação cinematográfica de uma obra ou a livre interpretação de uma vida
parece assumir um tom farsesco no registro de episódios vividos, sem qualquer necessidade
de conexão causal, como preferiria Roland Barthes ao propor os biografemas (PERRONE-
MOISÉS, 1985, p. 09 – 10). Compactuando ligeiramente destas “verdades poéticas”, as
cinebiografias efetuam o desfilar organizado de fragmentos biográficos, contrapondo-se à
escrita, com a qualidade de fotobiografemas cinemáticos.
Em Modigliani – paixão pela vida além deste tom ainda há uma atmosfera fantástica,
criada pela aparição do garoto Modigliani para o adulto Modigliani – presença reguladora de
comportamento que funciona, além de alter-ego, alegoria do superego, expressão do grilo-
falante social. Com a morte do artista no fim da narrativa, o jovem Modi simbolicamente
assina o leito de morte do adulto como se esta fosse a última e derradeira obra dele. Essa
imagem alucinatória – possível fruto do desregramento dos sentidos provocado pelo álcool e
pelo haxixe – dramatiza concretamente a consciência, da mesma forma que as condições da
Natureza criam expressão romântica do espelhamento interior/exterior e subjetivo/objetivo: a
triste solidão na chuva; a briga na tempestade; a quase-morte e o enterro na neve.
A narrativa biográfica escrita exige, a princípio, um gesto de amor a si mesmo
(autobiografia) ou pelo outro (biografia) para a realização de um longo projeto de trabalho
(resgatar a memória, remontar a história). Ainda que a construção de um todo significativo
abarque pequenas ficções, o peso maior do texto ainda é a natureza referencial. A biografia
cinematográfica, de outra sorte, opta pelo lirismo ao pinçar dois fios narrativos entrelaçados –
a carreira e o amor – estratégia que colabora, também, para ampliar o público-alvo:
admiradores, interessados e curiosos românticos. O apelo a uma história de amor é sempre
uma premissa deste comércio de vidas encarnadas por atores conhecidos.
8

Assim, em meio a eventos que não existiram, quadros que nunca foram pintados,
palavras jamais proferidas, este filme apresenta um mundo de gênios arrogantes e
egocêntricos. Na efervescência cultural de Paris do início do século XX encontramos o que
parecem ser grupos rivais, frequentadores do Café de La Rotonde: de um lado, Pablo Picasso,
Max Jacob, Jean Cocteau e Gertrude Stein; de outro, Modigliani, Utrillo, Soutine, Léopold
Zborowski. Não fossem artistas, pareceriam gangues. O café é o elo que permite o encontro
providencial de todos os personagens-artistas. Essa unidade de lugar, contrariando a
possibilidade da livre movimentação onisciente, mantém relação direta com a unidade de
ação. Tempo, espaço, ação e personagem são simplificados nas cinebiografias – expedientes
claramente alinhados com as prescrições aristotélicas – constituindo um modus faciendi que
funciona como vingança das biografias de papel: a facilidade do meio apenas pode operar por
simplificação narrativa.
Logo, se não pode conformar uma imagem potente de uma personalidade, ao menos
as cinebiografias podem enformar o caráter mítico. A cena do encontro com o mestre Auguste
Renoir, cumpridora de uma função arquetípica na diegese, realça dramaticamente um traço
negativo de Modigliani, porque o “mentor” caracteriza-o como um louco. No filme, em voz
over, antecipando a cena do enterro do artista, Renoir “recorda” uma visão particular do
italiano:
Eu o vi dançar uma vez, perto da estátua de Balzac. Seu rosto estava bonito; seus
passos, graciosos. Pavoneando-se com a música, ele sorria. Ele foi tudo o que eu já
fora. Roubei aquele momento e guardei-o na memória para estar lá e me confortar
nos meus dias finais (DAVIS, 2004).

Contribuindo para esse traço aurático em torno da alma do artista, está a sombra da
rivalidade – espécie de maldição de Jeanne lançada em Picasso – e apresentada na
legendagem narrativa do fim da película: o artista espanhol, em seu leito de morte, antes de
expirar, teria pronunciado o nome do antigo oponente.
A estrutura do roteiro mostra claramente o caráter emocional de ficção biográfica
misturada à biografia ficcional. As duas pontas da história são amarradas com um desfecho
circular porque o começo da história – Jeanne em “conversa com o espectador” – retoma o
conflito sobre o amor. Ao dar continuidade à cena inicial, interrompendo o longo flashback, a
narrativa dá ao espectador a oportunidade de perceber melhor o arco dramático dos
personagens, ou seja, sua mudança de condição ao longo da trama – do positivo ao negativo,
da vida à morte. Elza-Jeanne, antes do salto mortal, pede ao público compreensão para seu
9

gesto suicida, cumplicidade estimuladora do emocional do receptor: “Eu quero que todos
saibam e tentem entender e me perdoar. Por favor”.
A biografia cinematográfica, feita de inúmeras telas-rasuras7 e por um coletivo de
mediadores discursivos, portanto, poderia ser encarada como um gesto palimpséstico. Cada
qual, em sua função produtiva (roteirista, diretor, ator, editor, etc.), escreve uma nova história
por cima da antiga. Por fim, o material final das biopics é um exercício puro de dramatização
no qual prevalece como elementos estruturadores essenciais a concentração (unidade
narrativa) e a emocionalização (participação emocional do espectador). Mamet (2001) afirma
ser o material humano dessas ficções mais importante que o traço profissional, talvez porque
qualquer foco na atividade laboral aproximasse a história mais do gênero documentário que
dramático. No caso desta película pode-se pensar, ainda, na produção intencional de certo
“efeito Van Gogh”, descrito por Mario Pujó (p. 90) como a curiosidade por uma infeliz
biografia muito superior ao apreço pela obra de um artista. E de fato é disto que se trata a
história de vida Modigliani/Andy, Jeanne/Elza, Deus/Mick: uma bisbilhotice ficcional.

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MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX: neurose. Tradução de Mauro Ribeiro
Sardinha. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.

7
No filme há uma provocação feita por Pablo Picasso a Modigliani que ilustra tal imagem. Picasso afirma ao
rival que – na falta de telas para trabalhar – teria usado uma pintura de Modigliani, dada ao espanhol por Jeanne.
A pintura sobre a pintura constituiria um gesto palimpséstico.
10

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Barthes. 2. ed. Coleção Encanto Radical. O saber com sabor.
São Paulo: Brasiliense, 1985.

PUJÓ, Mario. Vincent & James: loucura e criação. In: HISGAIL, Fani (org.). Biografia:
sintoma da cultura. São Paulo: Hacker Editores/Cespuc, 1996. p. 83 – 102.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo

O ANIMAL SIMBÓLICO: ACERCA DA PROBLEMÁTICA


DA ANIMALIDADE NA LITERATURA E NA FILOSOFIA

Rodolfo Piskorski (PPGL/UFSC)1

RESUMO

É possível delinear o problema teórico do animal como o marco da fronteira tênue entre
filosofia e literatura, se pensarmos no papel central que a figura da animalidade exerce em
cenas primevas tanto filosóficas quanto literárias. Passando pela definição filosófica do
humano (e da política) como uma relação com o animal, e adentrando na problemática do
signo que contrapõe um elemento inteligível à sua expressão sensível, como uma alma
humana a um corpo animalesco, revisitamos frequentemente a animalidade como uma
questão limítrofe que oferece a problematização dos campos filosófico e literário. Não só
podemos pensar a distinção filosofia/literatura como uma distinção humano/animal –
passando também pela possibilidade de a literatura ser uma filosofia animalizada – como a
figura do animal também permite pensar com afinco as diversas problemáticas da teoria
crítica contemporânea que comunicam o literário com o filosófico, como a biopolítica, a crise
do humanismo, a diferença entre os sexos, a definição de tecnologia, a questão da deficiência,
a ética da vulnerabilidade e os direitos humanos e animais.

Palavras-chave: Animalidade. Teoria literária. Biopolítica. Direitos animais. Pós-


humanismo.

ABSTRACT

It is possible to conceive of the theoretical problem of the animal as what draws the fine line
between philosophy and literature, if one foregrounds the crucial role that animality plays in
philosophical and literary primal scenes. From the philosophical definition of the human (and
of politics) as a relationship to the animal, and moving on to the problematics of the sign
which opposes an intelligible element to its sensible expression – as a human soul to an
animal body – one constantly revisits animality as a frontier issue which offers the possibility
of questioning the fields of philosophy and literature. Not only can one think the distinction
between philosophy and literature as a human/animal difference – approaching the possibility
of literature’s being an animalized philosophy – but the animal also permits thinking through
many issues in contemporary critical theory which bridge the literary and the philosophical,
such as biopolitics, the crisis in humanism, sexual difference, the definition of technology, the
question of disability, an ethics of vulnerability, and both animal and human rights.

Keywords: Animality. Literary theory. Biopolitics. Animal rights. Posthumanism.

No famoso trecho da Política que estabelece a distinção entre logos e phoné,


Aristóteles define o ser humano em contraposição ao animal como sendo um animal político,
uma vez que nós, diferentemente dos animais, temos a razão (logos) e não somente a voz
animal (phoné) e por isso podemos, além de externar nossas sensações de prazer e dor como

1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Literatura da UFSC; e-mail: rodolfopiskorski@gmail.com.
2

os outros animais, também conhecer e falar sobre o bem e o mal ( ARISTÓTELES apud
AGAMBEN, 2007, p. 15).
Se a razão determina o caráter político do humano, isso também demonstra a dívida
do conceito da política para com uma noção de animalidade. As ―metáforas‖ pastorais da
política como forma de rebanho, em que um líder controla e domestica seus súditos, são
antiquíssimas (SLOTERDIJK, 2000, p. 44), assim como as teorizações acerca da origem da
política e do Estado como o contrato social original, quase todas emaranhadas em uma
complexa explicação de como o homem saiu da natureza e entrou para a cultura. Se Hobbes
cita que o homem é um lobo para o homem, justificando a necessidade de um Estado para se
frear os impulsos humanos animalescos e resgatá-lo do estado da, Rousseau, por sua vez,
critica a teorização da origem do Estado baseada em um pano de fundo animal da existência
humana natureza (DERRIDA, 2009, p. 11). Apesar de criticar a analogia pastoral, Rousseau
ainda assim insere o início da política em um estado puro de natureza humana quase mítico,
indistinguível de um caráter animal (DERRIDA, 1976, p. 165-268).
Conforme aponta Derrida, no momento em que parece possível contrapor a esfera
política humana a uma esfera animal supostamente não-política, a soberania se assemelha a
uma forma de ―monstruosidade mitológica, fabulosa e não-natural‖ (DERRIDA, 2009, p. 24,
tradução minha), assim como o Leviatã de Hobbes é o monstro artificial animalesco criado
pelo homem que serve de analogia para o Estado (Ibidem, p. 47). Da mesma forma, quando
Platão tenta demonstrar a distinção entre filosofia e mito no Fedro, a verdade da filosofia
acaba se encontrando enraizada na mitologia, na medida em que Platão traz mais de um mito
para poder explicar através de ―metáforas‖ a natureza maléfica da escrita (DERRIDA, 1981,
p. 75). Que a escrita, em todo seu potencial de impureza gramatológica, atraia o mitema atesta
para a construção da filosofia como sempre já uma forma de discurso (logos) higienizado,
mas com uma fonte mitológica.
Essa relação tensa entre humano e animal que encontramos nas distinções entre
natureza e política e entre filosofia e mito se deve, mais do que tudo, ao funcionamento da
linguagem em jogo nessas distinções e ao contato complexo entre homem e animal que se dá
dentro delas. O filósofo alemão Ernst Cassirer, em uma variação do tema aristotélico do
animal político, cunhou o termo ―animal simbólico‖ para nomear o ser humano, que se
diferenciaria dos outros animais por ser capaz de simbolizar. Mas não seria o próprio animal
não-humano o animal ―simbólico‖ que fornece o símbolo para que o animal humano se torne
ele mesmo simbolizante?
John Berger, em seu interessante artigo ―Why Look at Animals?‖, defende a idéia de
3

um ―animal simbólico‖ ao argumentar que a diferença entre indivíduo e espécie, entre um leão
e o Leão, se configurou como a primeira dualidade conceitual do pensamento humano. Da
mesma forma, o pensamento abstrato e simbolizante do homem se organizou, segundo
Berger, através de pinturas rupestres de animais, pintadas com sangue animal (1991, p. 7).
Essa estrutura dicotômica originária entre espécie e indivíduo encontra uma
reformulação facilmente identificável no diagrama platônico dual de mente e corpo, forma e
matéria, potência e atualidade. Ainda mais relevante é a retransformação a que esse diagrama
passa com o advento da teoria do signo — o significado abstrato e inteligível se relaciona com
o significante material e sensível como uma forma ideal a uma manifestação corpórea. A
dualidade implícita nesse sistema — a dicotomia corpo e alma — tem seus sentidos
supervisionados e organizados pela distinção imemorial entre humano e animal. Antes mesmo
de ser uma distinção entre dois tipos de seres vivos, essa cisão se dá mais propriamente no
momento em que se fundam os conceitos de corpo e alma. Porém, essa dualidade sempre já
encontra sua analogia ideal na diferença entre animal corpóreo e humano espiritual.
A dimensão do significado do signo linguístico (seja ele tomado como psiquismo ou
como a coisa-em-si no mundo) se apresenta sempre fiada à fala, à respiração, à alma e à
mente, conceitos construídos já em oposição ao animal que desde sempre apresentou ao ser
humano seu corpo banalmente material, biológico e efêmero — apenas um substituto para a
verdade do animal, ou seja, o que ele representa, a sua espécie. Na relação historicamente
complexa entre significado e significante, ou entre mundo e mímese, encontra-se espreitando
a problemática de uma tentativa incansável de definir a diferença entre humano e animal.
Se o homem é um animal simbólico, talvez sua simbolização seja resultado
justamente da relação com o animal-símbolo que lhe permitiu o conceito de signo. Aliás,
como o próprio sintagma ―animal simbólico‖ revela — da mesma forma que outros como
―animal político‖ — a definição do humano se sustenta pela relação que se da entre os dois
termos da expressão. Como Berger aponta,

O que distinguiu o homem dos animais foi a capacidade humana para o pensamento
simbólico, a capacidade que era inseparável do desenvolvimento da linguagem na
qual as palavras não eram somente sinais, mas significantes para algo que não elas
mesmas. Mas os primeiros símbolos eram animais. O que distinguiu o homens dos
animais surgiu de seu relacionamento com eles. (1991, p. 9)

Se a literatura representou por muito tempo justamente a manifestação mais


sofisticada e avançada do pensamento simbólico humano, reforçando a linha divisória entre
humano e animal e nos distanciando dos seres supostamente não-linguísticos, pode-se
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também afirmar que o próprio processo literário de produção de significados é, em si,


possibilitado pelo ―animal simbólico‖, mesmo que a literatura, enquanto discurso humanista
de construção de identidade nacional e superioridade civilizatória, tenha reproduzido
continuadamente o discurso da espécie para se afastar dos animais e de certos seres humanos.
Como demonstrou Derrida em A Farmácia de Platão e em outras ocasiões, a
filosofia tenta se posicionar não como discurso simbólico, mas método de aproximação da
verdade através do logos. Aliás, a simbolização representa para a filosofia o perigo do
afastamento da origem do sentido, a ameaça da substituição da coisa pela palavra, da fala pela
escrita, em um movimento que Derrida chama de suplementaridade. Que a escrita trai a
inescapável suplementaridade que há até mesmo da filosofia pode ser observada no
tratamento platônico da escrita — representando o mal supremo do suplemento, a escrita
exige, por motivos sistemáticos, que Platão a aborde repetidamente através de mitos
simbólicos.
Dentro do sistema filosófico ocidental e platônico, a significação é concebida como
acesso à origem do valor, simbolizada pela fala, pelo pai e por Deus. Consequentemente, seus
substitutos, a escrita, o filho e o ser humano mortal, são considerados inferiores, a não ser que
constantemente exibam o desejo de retornar a origem e respeitá-la (DERRIDA, 1981, p. 75,
passim). Novamente, o afastamento da origem espiritual do valor é codificada em termos
corporais e materiais (a escrita é física, a fala é etérea), duplicando e alimentando a distinção
humano/animal como forma e arquétipo da dualidade mente/corpo.
Obviamente, nem todo pensamento filosófico ou significação literária está fadado a
reprimir o conceito de animalidade. É perfeitamente possível filosofar sobre o animal ou
escrever literatura sobre ele. A questão seria até que ponto esses discursos são capazes — ou
estão dispostos — a reconhecer e expor o papel que o animal simbólico exerce para sua
estruturação. Além da óbvia tensão dialética que estabeleceria que nós filosofamos como os
animais não o fazem e que escrevemos literatura como eles não podem, existe um relação
íntima entre o episteme animal e os discursos filosófico-literários. Esse episteme não precisa
se configurar como a possibilidade de um ponto de vista literal de um animal real — apesar de
essa questão também ser crucial. Mesmo que o animal seja um conceito apenas linguístico e
cultural, seu episteme ainda é importante. Como animal real ou animal simbólico, ele é menos
uma forma de organizar e mais uma força de organização.
Ou de desorganização, se levarmos em conta seu potencial de desestruturar a auto-
imagem de um logos que deseja sempre retornar à origem do sentido. Como arrisca Derrida,
―o pensamento do animal, se pensamento houver, cabe à poesia, eis aí uma tese, e é disso que
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a filosofia, por essência, teve de se privar. É a diferença entre um saber filosófico e um


pensamento poético‖ (DERRIDA, 2002, p. 22). Tal pensamento animal, além de ser
considerado literalmente, pode também se configurar como o episteme animal que Derrida
argumenta ser ignorado por boa parte da filosofia ocidental, um episteme que talvez seja o
responsável pela simbolização.
Assim, o conceito da animalidade, além de se apresentar como uma questão crucial
para a filosofia e a literatura, talvez represente o limite entre elas. Não é de surpreender que as
questões mais instigantes e urgentes que mobilizam o que podemos chamar de teoria crítica,
esse campo povoado por filósofos e teóricos da literatura, estão quase todas emaranhadas com
a grande problemática de o que, enfim, é o animal. Tentarei sublinhar rapidamente o papel
crucial da animalidade em algumas das questões mais interessantes e relevantes do debate
teórico atual ao meu ver, assim como arriscar uma leitura inicial desse papel.
A questão atual mais obviamente atravessada por problemáticas da animalidade
talvez seja a da biopolítica. A politização da vida animal do ser humano através da
administração e gerenciamento de sua produção e extinção já foi revelada, como por Foucault
e Agamben, ser uma marca típica da modernidade política. A divisão clássica da vida entre
zoé e bios — ou entre uma mera vida biológica e uma vida ―qualificada‖ —, na qual somente
a segunda seria de interesse da polis, parece ter perdido o sentido ou, como defende Ludueña,
esta distinção nunca realmente teve os efeitos que imaginamos (2010, p. 18-19).
Se a política, desde sempre ou pelo menos desde a Modernidade, se compromete em
incluir e gerenciar a vida humana como vida animal, que tipo de conceitos estruturam essas
esferas de vida animal e vida humana-mais-que-animal? De que forma a biopolítica — ou
zoopolítica, como defende Ludueña — entende o ser vivo animal no momento em que
identifica uma vida animalesca no ser humano? Como funciona essa divisão da vida humana
em duas e de onde se retiram os sentidos que as organizam? Se o ser humano é construído
pelos processos biopolíticos ao se politizar sua vida animal e organizar seu nascimento e
morte, como são possíveis as definições de humano e animal? Ou seja, o animal se encontra
ao mesmo tempo dentro e fora do humano: ele é definido pela sua diferença da humanidade,
mas essa sempre já é animal e só é produzida como humanidade por um processo politizante
de sua animalidade.
As teorias biopolíticas de Ludueña e Sloterdijk, por exemplo, apesar de suas leituras
profundas e minuciosas, parecem não se incomodar com essa aporia na definição da
animalidade, em que ela já existe pressuposta antes mesmo de o humano ser fundado
politicamente. É possível que essa aporia seja resultado do modo específico em que o
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problema da animalidade foi formulado culturalmente e que ela não seja transponível sem se
abandonar o próprio conceito de animal (ou também o de humano). Mas ainda assim é
produtivo explorar essa aporia enquanto questão teórica sistemática. Se Agamben defende
que os fenômenos inquietantes do século XX só poderão ser compreendidos na chave da
biopolítica, é possível que isso também implique o questionamento explícito de o que quer
dizer a zoé e de onde vem o conceito do animal (PENNA, 2005, p. 41).
Dos acontecimento preocupantes relacionados à biopolítica, Agamben enfatiza o
nazismo e o advento dos campos de concentração. O fascismo do século XX coloca em
evidência a relação entre biopolítica e os direitos humanos e a forma como ambos se
entrelaçam com a problemática da animalidade. O caráter biopolítico dos direitos humanos
pode ser observado, segundo João Camilo Penna, no surgimento do direito internacional e das
políticas humanitárias depois do fim da Segunda Guerra e da ―descoberta‖ dos campos de
concentração. Segundo ele, a humanidade — conceito distinto do ―homem‖ — surge
juntamente com o sintagma ―crimes contra a humanidade‖ que é cunhado em Nuremberg
(Ibidem, p. 39).
Tais crimes contra o status do humano, como demonstram os testemunhos dos
campos analisados por Penna e Agamben, sempre se configuram como uma relação complexa
entre humano e animal. As memórias sobre Dachau do escritor Robert Antelme apontam para
o papel da animalidade na formulação do conceito de humanidade no pós-guerra:

O resultado de nossa luta terá sido apenas a reivindicação arrebatada e quase sempre
solitária de permanecer, até o fim, homens. […] A colocação em dúvida da
qualidade de homem provoca uma reivindicação quase biológica de pertencimento à
espécie humana. Ela serve em seguida à meditação sobre os limites desta espécie,
sobre a distância da ―natureza‖ e sua relação com ela, sobre uma certa solidão da
espécie portanto e para terminar, sobretudo, serve para conceber uma visão clara de
sua unidade indivisível. (ANTELME apud PENNA, 2005, p. 39)

Ou seja, podemos entender que os direitos humanos do pós-guerra surgem como uma
forma de biopolítica que, não se contentando em politizar a vida animal do ser humano,
procura também naturalizar sua vida política. O que tornou os homo sapiens em humanos —
segundo Ludueña e Sloterdijk, tecnologias políticas de domesticação da vida animal humana
— precisa agora ser naturalizada como parte da própria espécie biológica humana, fazendo
com que a politização invada ainda mais a vida nua supostamente animal do ser humano.
A esfera dos direitos humanos da biopolítica revela que a zoé humana que é
politizada sempre é — ou sempre foi — passível de ser encarada como simples animalidade.
Os direitos humanos ignoram a aporia da relação humano/animal ainda mais ao tentar
7

demarcar em termos justamente naturais essa divisão que deveria, por definição, ser ultra-
biológica. Como Antelme demonstra, para a biopolítica dos direitos humanos, a humanidade
enquanto espécie é indivisível, o que resulta no fato de ela ser absolutamente divisível das
outras espécies enquanto animais. Os direitos humanos se baseiam, em última análise, na
ausência de direitos dos animais. O crime dos campos foi tratar humanos como animais. E
seus sobreviventes expõem seu óbvio status de humano como defesa, pois a biopolítica não
entende nada além dessa confusa distinção. ―Somos todos humanos, afinal‖ parece ser a
defesa biopolítica dos humanos massacrados.
O movimento por direitos dos animais, por sua vez, representa possíveis estratégias e
posturas que se intercalam de modos diferentes com os direitos humanos. As mais familiares
são as que defendem basicamente a aplicação dos direitos humanos tal como eles se
encontram a alguns animais específicos, pelo fato de eles supostamente contarem com os
traços que aparentemente concedem direitos aos humanos. Essa postura não entra em conflito
com os direitos humanos biopolíticos pois não realmente discute ou questiona a divisão
humano/animal, apenas a retraça em outro lugar. Não só os judeus exterminados e os negros
escravizados, dizem os ativistas, mas também os primatas aprisionados e golfinhos caçados
são humanos. Somos todos humanos, afinal. Essa postura, enfim, não encara a real questão da
exclusão da vida animal dos direitos humanos pois, como fica muito claro, os primatas seriam
também humanos.
A estratégia de direitos animais inclusivos, por outro lado, muitas vezes é tratada
com hostilidade, pois quase sempre surge ao lado de uma crítica da dignidade humana
intrínseca à vida do homem, conforme é defendida pelos direitos humanos. Essa dignidade
inerente ao humano, defende essa visão, é produto direto de uma objetificação dos animais.
Aliás, ainda mais profundamente, se não fossem os animais e como são tratados, não haveria
a possibilidade de se pensar um tratamento digno e especial ao ser humano. Curiosamente,
essa postura polêmica também decide ignorar a aporia da divisão humano/animal, e prega um
continuísmo moral ou ate mesmo biológico.
Porém, essa mesma postura não precisa necessariamente minar os princípios dos
direitos humanos. Pois, como defendia o Nobel de Literatura Isaac Singer, os direitos animais
podem ser também entendidos como ―a forma mais pura de defesa da justiça social, porque os
animais são os mais vulneráveis de todos os oprimidos‖ (SINGER apud FOER, 2009, p. 173).
Como o testemunho de Antelme revela, o tratamento indigno dos humanos nos campos trazia
sempre à tona a vida indigna matável dos animais. Os direitos animais vistos por esse ângulo
defendem que, se não houvesse abuso animal, o extermínio ou crueldade para com os
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humanos seria impensável.


A relação entre dignidade humana e direitos animais se revela também no que
podemos chamar de crise do humanismo ou pós-humanismo. Termo bastante complexo,
muitos datam seu nascimento ao pensamento de Heidegger exposto em sua Carta sobre o
Humanismo, apesar de o filósofo alemão ser famoso por pensar os animais em termos
humanistas (SLOTERDIJK, op. cit, p. 22). Retornando ao caráter linguístico e literário da
questão do animal simbólico, podemos reconfigurar a possibilidade pós-humanista de uma
―Carta dos Direitos Animais‖ que defenderia a justiça social como uma problemática
gramatológica.
Podemos reler atualmente a Gramatologia de Derrida como uma tentativa pós-
humanista de entender a relação que se estabelece entre o vivo e a sua morte através da
linguagem. Derrida foca sua análise na escrita, por sua má fama de algoz da verdade da fala,
mas toda linguagem se apresenta como uma forma de escrita que abre o vivo para o
espaçamento, para o outro e para a morte. Os pronunciamentos de Derrida defendendo um
animal também linguístico já são famosos. A aceitação da desapropriação e da violência que
são impostas por toda linguagem apontam para uma crítica da dignidade humana que, se
entrelaçada com a ideia de um animal linguístico, possibilita uma política dos direitos
humanos que não se preocuparia com a divisão humano/animal.
Tal reconfiguração derridiana da linguagem como desapropriante e não como
ferramenta para a reapropriação da presença resulta também em uma bem-vinda reformulação
da problemática da tecnologia. A questão tecnológica está atravessada por animais, passando
pelo mito do uso exclusivo humano das ferramentas, pelas vestimentas animais e pela escrita
como arquétipo de toda técnica. Como vimos, a escrita revela um movimento de
suplementaridade que pode sempre ser referido à substituição mente/corpo, Deus/homem,
humano/animal, espécie/indivíduo.
Se toda linguagem é tecnológica, todo ser vivo comunga da tecnologia como
ferramenta e como alteridade que permite, ao mesmo tempo que bloqueia, o acesso ao mundo.
As questões inquietantes postas pelos ciborgues do trans-humanismo podem ser reformuladas
se pensarmos que a tecnologia sempre fez parte do vivo, que os órgãos são tecnológicos e que
tanto a tecnofilia quanto a tecnofobia são posturas problemáticas. A tecnofilia peca por não
entender que a tecnologia não representa o controle humano do mundo (pelo contrário) e a
tecnofobia não entende que ela não virá para destruir o mundo, ela sempre esteve aqui.
A questão tecnológica pode ser lida de forma mais produtiva ao se articular
gramatologia, psicanálise lacaniana e pós-humanismo ciborgue. Se a entrada na ordem
9

simbólica — a ascensão à linguagem — constitui a subjetividade ao nos roubar da


completude e do sentido e ao nos deixar exposto à Lei da Linguagem, a teoria gramatológica
de Derrida aponta que tal trauma edipiano deve ser vivenciado como a relação primordial de
todo vivo com a falta, uma relação que possibilita a linguagem e a relação com a alteridade.
Comumente essa falta é redistribuída de modos complexos entre humanos e animais. Apesar
de supostamente só o humano apresentar essa falta originária (a nudez, a consciência da
morte, a linguagem), são os animais que são construídos como seres deficientes.
A falta e o vazio produzidos pela entrada na ordem simbólica são comumente
ignoradas através da crença na reapropriação da presença que se dá por meio da fala, de uma
linguagem que nega sua violência, da imagem no espelho, e, finalmente, através da equação
do falo com o pênis. O falo, acima de tudo, é o que dissimula a falta essencial do ser
linguístico e o que cria a ilusão da presença, do poder e da dignidade intrinsecamente humana.
Por conta disso, Derrida defende que a subjetividade humana se estrutura como um
carnofalogocentrismo, ou seja, como um alinhamento da negação da falta através do falo com
o deslegitimização da dignidade animal.
Por isso mesmo a própria noção de diferença sexual pode ser pensada através da
problemática da animalidade. A equação de falo e pênis que define a masculinidade clássica
em oposição ao feminino e que permite ocultar a falta é o que constrói o mito do ser humano
como senhor de sua linguagem e de seu exterior. Kaja Silverman, em seu Male Subjectivity at
the Margins (1992), defende que uma renúncia do falo e a aceitação do trauma da castração
por parte do sujeito masculino é o que permite realmente uma reconfiguração feminista da
diferença sexual. Da mesma forma, pode-se dizer que tal trauma da castração é exatamente a
desapropriação exigida do vivo pela linguagem e por toda tecnologia, a qual estabelece a
vulnerabilidade da vida.
Reconhecer a vulnerabilidade de todo vivo como parte da estrutura da relação com o
mundo, através de um pensamento pós-humanista, gramatológico, feminista e de pós-
deficiência, é o que pode possibilitar que o conceito da animalidade seja produtivo para
diversas questões e que ele mesmo seja radicalmente alterado.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. 1995. Tradução de
Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2002.

BERGER, John. Why Look at Animals? In: About Looking. 1980. First Vintage
International Edition. New York: Vintage, 1991.
10

DERRIDA, Jacques. Of Grammatology. 1967. Tradução e prefácio de Gayatri Chakravorty


Spivak. Baltimore: John Hopkins University, 1976.

________. Dissemination. 1972. Tradução de Barbara Johnson. Chicago: University of


Chicago, 1981.

________. O animal que logo sou (a seguir). 1999. Tradução de Fábio Landa. São Paulo:
UNESP, 2002.

________. The beast and the sovereign: Volume 1. 2008. Tradução de Geoffrey
Bennington. Chicago: University of Chicago, 2009.

FOER, Jonathan Safran. Comer Animais. Tradução de Adriana Lisboa 2009. Rio de Janeiro:
Rocco, 2011.

LUDUEÑA-ROMANDINI, Fábian. La comunidad de los espectros. Antropotecnia:


Zoopolítica del transhumanismo. Buenos Aires: Miño e Dávila, 2010.

PENNA, João Camilo. ―Sobre Viver (Entre Giorgio Agamben e Primo Levi)‖. Outra
Travessia. n.º 5. Florianópolis: UFSC, 2005.

SILVERMAN, Kaja. Male Subjectivity at the Margins. Routledge, 1992.

SLOTERDIJK, Peter. Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger
sobre o humanismo. Tradução de José Oscar de Almeida. São Paulo: Estação Liberdade,
2000.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo

O BURRINHO PEDRÊS – O TRUQUE

Alair Ribeiro Silva1 (UFMG)

RESUMO

No fio condutor do conto primeiro de Sagarana, de João Guimarães Rosa, O Burrinho Pedrês,
é possível observar o desenrolar de um jogo de baralho tradicional no sertão e nos gerais,
regiões onde se situam os personagens do autor. Jogo de estratégias, de sinais, de blefes e de
astúcias, o truco, ou truque, faz parte das tradições dos interiores brasileiros. No conto, o
narrador utiliza um roteiro passível de ser observado num jogo de truco. A partir de um fato
que aconteceu em sua terra natal, Cordisburgo: uma enchente num riacho que matou um
grupo de vaqueiros, Rosa escreve o conto. O texto deixa pistas do arcabouço que sustenta a
trama, e é no encalço dessas pistas que se descobre o jogo de baralho. Estudando as pegadas
encontradas no conto pode-se chegar a uma espécie de história subjacente sobre o jogo de
truco. Foi estudando o jogo e estudando as pistas no conto que vislumbrei a interferência que
esse lazer do sertão teve na obra de Guimarães Rosa. Riobaldo, do Grande Sertão: Veredas,
proibiu o truco entre os jagunços quando virou Urutu Branco, o chefe.

Palavras-chave:
Literatura. Sete-de-Ouros. Baralho. Blefe. Morte.

RESUMÉE

Dans le leitmotiv de la première histoire de Sagarana, de João Guimarães Rosa, O Burrinho


Pedrês, vous pouvez observer le comportement d'un traditionnel jeu de cartes dans le sertão e
dans les gerais, le lieu où se passent les romans de l'auteur. Jeu de stratégies, de signes, de
bluffes et d‘astuces, le truco fait partie des traditions de l'intérieur brésilien. Dans cette
histoire, le narrateur s‘utilise de la feuille de route qui peut être vu dans un jeu de truco, à
partir d‘un fait de ce qui s'est passé dans leur ville d'origine, Cordisburgo: une inondation
dans un ruisseau qui a tué un groupe de cow-boys. La nouvelle laisse des traces dans le cadre
qui soutient le texte, et était à la poursuite de ces pistes qu`on découvre le jeu de cartes. En
étudiant les empreintes trouvées dans le conte, on peut supposer une sorte d'histoire sous-
jacente sur le jeu de truco. L‘étude du jeu et l'étude des indices dans l'histoire m‘a conduit a la
conclusion sur l'ingérence dans l'œuvre de Guimarães Rosa du jeu de cartes. Riobaldo, do
Grande Sertão: Veredas, a interdi le Truco entre les jagunços lors qu'il se a tranformé dans
l'Urutu Branco, le chef.

Mots-clés :
Litérature. Sete-de-Ouros. Jeu de cartes. Bluff. Mort.

1 O FIO CONDUTOR DO CONTO


Imagine um manual de instrução, uma planta baixa de um romance, com todas as
divisões, e que a você, escritor, bastaria levantar as paredes, encher os quartos e decorar a
casa, com inclusão de janelas-floreiras, quadros, enfeites, castiçais... Em cada quarto moraria
uma história. Haveria a sala (que você construiria) onde as histórias dos quartos se reúnem

1
Jornalista, mestrando em Linguística Aplicada; e-mail: alair71@gmail.com.
2

para montar novas histórias, novas tramas, atá-las – as histórias dos cômodos – uma às outras
para dar um fio condutor. Veja as portas por onde o estilo entra e sai, as janelas que são
usadas por personagens insidiosos, as naturezas vistas de cada vão aberto da casa, o telhado
que pode ocultar o céu ou não. Enfim um arcabouço, um esqueleto de romance que bastaria
rechear com as letras formadoras de palavras e frases... e pronto.
Com um esquema assim montado e o material para levantar as paredes dessa planta
baixa, que seria a história a ser contada, parece até que fica mais fácil escrever um romance,
um bom romance, uma novela, um conto.
Esse artigo tem a pretensão de mostrar a trama, a planta baixa, o fio condutor de ―O
Burrinho Pedrês‖, conto primeiro de ―Sagarana‖, de João Guimarães Rosa, que, como ele
mesmo confessou em carta a João Condé 2 , foi sugerida a partir de uma história real de
afogamento de vaqueiros na enchente de um riacho em sua terra natal, Cordisburgo, em
Minas Gerais. ―Como já disse, as histórias eram doze: I) - O BURRINHO PEDRES - Peça
não-profana, mas sugerida por um acontecimento real, passado em minha terra, há muitos
anos: o afogamento de um grupo de vaqueiros, num córrego cheio‖.
O alicerce do conto estava posto, restava levantar as paredes. Nas suas andanças pelo
sertão e pelos gerais, as histórias, os ―causos‖ à beira de um fogão de lenha, no balcão de uma
vendinha qualquer, nas malas de sonhos de um mascate de ocasião ou nas varandas de uma
fazenda, acompanhados de algum carteado, jogos de baralho tradicionais nesses interiores,
Guimarães Rosa, com seu inseparável caderninho tudo olhava, tudo observava e tudo anotava.
Riobaldo, o narrador de Grande Sertão é testemunha desse hábito: ―O senhor enche uma
caderneta...‖ (ROSA, 1985, p.557). Nessa faina, perpetuava, dava ares de infinito ao que ia se
acabando, com a cidade invadindo o sertão e o asfalto ocultando as veredas.
Não posso me furtar de citar aqui parte da proposta de debate que o coordenador do
Grupo de Trabalho 19: Literatura e discurso, dr. Pedro de Souza, no Simpósio Internacional
Linguagens e Culturas: Homenagem aos 40 anos dos Programas de Pós-graduação em
Linguística, Literatura e Inglês da UFSC. Depois de propor ―investigar o modo pelo qual um
processo discursivo torna-se um acontecimento literário‖, o professor observa que ―pela
enunciação literária, há um jogo que se passa pelo modo de fazer texto e pela maneira com
que fora do texto este jogo se faz‖. Parece se referir a O Burrinho Pedrês e o jogo de truco.
Antônio Cândido, em artigo sobre o recém-lançado Sagarana, observa bem esse
findar, ao considerar que era

2
Carta de Guimarães Rosa a João Condé, revelando segredos de Sagarana, publicada na edição de Sagarana de
1984, pela Nova Fronteira.
3

natural, em meio semelhante, o alvoroço causado pelo sr. Guimarães Rosa, cujo
livro vem cheio de "terra", fazendo arregalar os olhos aos intelectuais que não
tiveram a sorte de morar ou nascer no interior (digo, na "província" ) ou aos que,
tendo nela nascido, nunca souberam do nome da árvore grande do largo da igreja,
coisa bem brasileira. Seguro do seu feito, o sr. Guimarães Rosa despeja nomes de
tudo - plantas, bichos, passarinhos, lugares, modas – enrolados em locuções e
construções de humilhar os citadinos. "Irra, que é talento demais", como o deputado
português, mal comparando. (CANDIDO, 1946, site)

Por onde andou, Guimarães Rosa presenciou o jogo de truco no sertão e nos gerais, e
então montou o esqueleto de seu conto O Burrinho Pedrês, a partir das manhas, artimanhas e
mutretas desse popular e matreiro carteado.
As pistas, os rastros deixados explicitamente no conto são dois: o nome do burrinho,
Sete-de-Ouros: ―Vinha-lhe de padrinho jogador de truque a última intitulação, de baralho, de
manilha‖ (ROSA, 1980, p. 3); e o grito que Francolim, o braço direito e parceiro do Major
Saulo, deu contra o adversário e potencial ganhador do jogo, Silvino: ―... e meu revólver pode
parir cinco filhotes para mamar no couro de quem trucar de-falso‖. (ROSA, 1980, p. 62) As
outras pistas são as estratégias, os sinais, os blefes, gritos e ameaças que existem tanto no
conto como no jogo, com a natureza participando intensamente de um e de outro.

2 MANUAL BÁSICO DO TRUCO MINEIRO


Inicialmente, um manual básico do jogo de truco, ou truque, nome menos usado.
Manual básico porque jogar truco é uma arte, um aprendizado longo e difícil, um desafio que
se impõe a cada parceiro que se apresenta. Manual básico porque tornar-se um bom jogador
de truco carece de muito viajar, de muito conhecer, da ciência e do conhecimento do outro,
que só a vivência proporciona. E, sobretudo, carece de se ter um parceiro fixo, de todo jogo e
de toda hora, porque o conhecimento só vem da convivência, do estar dia a dia, de ser
parceiro fiel.
Antes, faz-se necessário uma diferenciação dos dois tipos de truco mais conhecidos
no Brasil: o truco paulista e o truco mineiro. Interessa, para esse artigo, o mineiro das gerais, o
do sertão, o de Guimarães Rosa. As estratégias do jogo são similares, mas, enquanto no truco
mineiro os naipes das cartas maiores – as manilhas – são fixas, no paulista elas são decididas
no início do jogo pela escolha de um naipe que definirá essas manilhas. Manilha vem do
francês manille, que ―é o nome algumas cartas de certos jogos‖, segundo o Grande Dicionário
de Francês/Português de Domingos de Azevedo. Manille é também o nome de um jogo de
cartas.
4

O baralho tradicional, (esse artigo adota o Copag3, site, que existe no Brasil desde o
início do século XX) tem 52 cartas, treze de mesma numeração ou figuras, com os quatro
naipes diferentes: ouro, espada, paus e copas. Para o jogo de truco, os 8, 9 e 10 são excluídos,
ficando 40 cartas, quatro de cada uma, assim distribuídas: Ás, 2, 3, 4, 5, 6, 7, valete, dama, rei.
O Ás equivaleria ao 1; o valete, ao 8; a dama, ao 9 e o rei, ao 10.
Para o truco mineiro, as cartas assumem os seguintes valores, em ordem decrescente,
da mais valiosa para as menos: Zape (quatro de paus), Sete-de-Copas, Espadilha (ás de
espada), Sete-de-Ouros – são as chamadas manilhas – o quarteto poderoso – depois vêm os 3,
os 2, os ases, os reis, as damas, os valetes, os 7, os 6, os 5 e os 4 (as de menor valor que, no
máximo, podem empatar uma com a outra).
Se se bem reparar, entre as cartas de maior valor, as numéricas, o Sete-de-Ouros – a
última das manilhas – é o meio, onde a virtude gosta de ficar, o fiel da balança, a carta que
une as maiores às menores, pois o burrinho ―... Sete-de-Ouros detesta conflitos‖. (ROSA,
1980, p. 7).
Embaralhado, o pacote é cortado pelo adversário da direita e a distribuição de cartas,
três para cada um dos quatro jogadores, começa pelo adversário da esquerda, que vai ser o
primeiro a jogador. Quem embaralhou é o último. Os quatro jogadores, parceiros dois a dois,
tomam lugar à mesa alternadamente com os adversários. Assim os parceiros A e B, são
separados pelos adversários C e D que por sua vez... vice-versa.
O jogo é rápido, uma rodada de três, é vitorioso quem ganhar duas mãos. Se empatar
a primeira rodada, ganham os parceiros que fizerem a terceira. Então a segunda rodada perde
totalmente o valor: ganhar ou perder a segunda rodada não quer dizer nada. Só a terceira é que
vale. Isso, frise-se, em caso de empatar a primeira rodada. O jogo é calado em termos de
consultas, pode-se zoar o adversários, contar ―causos‖ durante o jogo, mas não passar
informações ou pedir sugestões sobre as cartas, sob pena de perder os pontos da rodada.
Rosa (1984, p. 575) comprova esse converseiro no jogo popular no sertão e nos
gerais ao dar voz ao jagunço-chefe Riobaldo Tatarana, antes do ataque final aos hermógenes:

Razão disso meava uma confiança, a mais, eu escutando satisfeito aquelas bobices
com que eles porfiavam: – Caranguejinho, sem cachaça tu vai?‖ – ―Eh, não: tu!
Vai saudar o gado!‖ Pelos risos e debiques que divertissem, de todos eu percebia a
forte certeza. Cada cada-um, dali a pouco, ia ser perigoso, de nele se encostar, feito
um sapo que espirra. – ―Que te falo: amarra o burro, que a carga é sua...‖ –
―Minha, a carga está salva... Mal a bem, oxente, quero é ver o que vou ver...‖Assim
se zé-zombavam. Aos ditos ditados, feito estivessem jogando um truque, sem
baralhos nenhuns.

3
Disponível em http://www.copag.com.br.
5

Jogo de sagacidades e espertezas, as grandes vitórias do jogo de truco podem vir do


blefe: o jogador desafia os adversários sem ter cartas (é o trucar de-falso) e para isso usa da
intimidação, do grito e do convencimento para fazê-lo correr da jogada.
A intimidação – a gritaria do truco, o subir na cadeira, na mesa, na árvore, os socos
na mesa, a gritaria ecoada pelo parceiro, as trovas inventadas, as rimas improvisadas podem
assustar o jogador menos avisado e fazendo-o duvidar de suas cartas. ―Quanto exagero que
há‖ (ROSA, 1980, p. 8), critica o Sete-de-Ouros.
Em Grande Sertão: Veredas, várias referências ao jogo são feitas, e uma delas
comprova o berreiro, a intimidação do outro pelo que trucava: ―Ao que se jogava truque, e
douradinha e douradão, por cima do couro de rês‖ (ROSA, 1984, p. 185). Riobaldo Tatarana,
agora o grande chefe, o Urutu Branco, conta para seu interlocutor que ―a gente tinha baralhos,
se jogou, rouba-monte e escopa, porque truque eu não consentia, por achar que me faltava
floreado rompante para os motes gritos, que nesse endiabrado jogo compertencem; e mesmo
por achar vadiado, para a minha chefia.‖ (ROSA, 1984, p. 537)
Havia receio, por parte do chefe Urutu Branco, de ver sua autoridade estremecida
pela intimidação que algum dos contendores pudesse lhe impingir, se suas cartas não fossem
as maiores, o que é passível de acontecer num jogo de azar e de inteligência como é o truco.
Além disso, sabia que lhe ―faltava floreado rompante para os motes gritos‖ desse ―endiabrado
jogo‖.
Para ilustrar, três dos gritos que podem acontecer e acontecem no jogo: ―Subi no toco,
caí de costa. Truco seu bosta‖. O adversário tem três opções: correr do desafio e assim perder
um tento; aceitar o desafio e correr o risco de perder ou ganhar três tentos; subir o tom do
desafio e da aposta – ―seis, ladrão de mio‖ – e ganhar ou perder 6 tentos. Na réplica, se o
desafiante primeiro correr do ―seis‖, vale o truco: perde três tentos; se aceitar, pode subir para
―9, fio de uma boa mãe‖. Os tentos eram marcadores dos pontos e podiam ser milho, feijão,
qualquer outra semente ou mesmo pedrinhas.
Guimarães Rosa (1984, p. 553) faz referência novamente a esse jogo no momento do
ataque ao jagunço Hermógenes:

Só chamei João Concliz: — ―Agora é agora...‖ E joguei a rumo. — ―Lá vai a obra!‖
Meu cavalo cavalo saíu às cabeçadas. Todos atrás de mim, no arranque; e era o
mundo mesmo. Gritei de sussús: — Vale seis — e toma nove! ...‖ — nas grimpas da
voz... E eles meus, gritando tão feroz, que semelhavam sobre-vindos sobre o ar.
6

O grito de guerra do ataque aos hermógenes é o grito de desafio do jogo de truco.


Apesar de não gostar da gritaria, o Urutu Branco intuiu que esse grito do baralho levaria seus
homens a um galope arrasador sobre o inimigo e o usou.

3 O JOGO, O BURRO, O CONTO


No conto, o major Saulo, fazendeiro, chefe dos vaqueiros e dono do Sete-de-Ouros,
embaralha os acontecimentos, depois que seu braço direito e olheiro, Francolim Ferreira,
chega para ele e diz: ―O que é, é que sei, no certo, mas mesmo no certo, que Silvino vai matar
o Badú, hoje‖ (ROSA, 1980, p. 15). Era o truco. O Major carecia de saber se era blefe ou se o
vaqueiro Silvino, que ―está com ódio do Badú...‖ (ROSA, 1980, p.14), tinha cartas para o jogo.
―Na minha Fazenda ninguém mata outro. Dá risada, Francolim!‖ (ROSA, 1980, p. 15),
sentencia o Major, que não acreditou muito na informação de seu parceiro nesse jogo de
morte que se anuncia: Francolim ―nem sempre traz sossego‖ (ROSA, 1980, p. 34).
A causa do ódio de Silvino é que Badú tomou-lhe a namorada, então o vaqueiro
namorador passou a ser o trunfo do jogo entre o Major Saulo e Silvino: ganhasse o primeiro,
Badú estava salvo, ganhasse o segundo, era a morte. Mas o jogo joga-se em quatro. Entra
Francolim, como parceiro do patrão, e Tote, como parceiro de Silvino, de quem era mano.
Embaralhado os acontecimentos pelo major, a mão de mando, cabe a Silvino cortar o
baralho no lugar certo e justo, para passar as cartas boas para o parceiro e as ruins para o
adversário: ―João, corta-pau! João, corta pau‖, (p. 62) anuncia o passarinho à beira do riacho
da Fome, o da enchente, enchendo Manico – um dos vaqueiros que montou no burrinho – de
medos e receios: ―Eu não entro!‖ (ROSA, 1980, p. 63). Não entrava no riacho nem no jogo,
pois à tensão na terra, correspondia uma tensão no céu prenunciando tragédias em cima e em
baixo. No jogo de truco, o parceiro pode não entrar em determinada jogada e ―passar‖,
descartando um carta sem mostrá-la. Manico passou.
Jogadores de truco crêem piamente que quem sabe jogar, vê nos olhos do adversário
se ele vai aceitar ou correr do truco. Se ele vislumbra que vai correr, truca no escuro, sem
sequer olhar as cartas que recebeu, por isso é preciso olhar nos olhos, procurando,
pressentindo, assimilando qualquer tipo de sinal. ―A gente precisa é de não apartar os olhos
dos olhos deles...‖ (ROSA, 1980, p. 43) ensina o vaqueiro Raymundão ao Major Saulo, que
estava à cata de indícios se o Silvino estava blefando ou ia fundo no jogo de morte.
Apesar de ser proibido falar do jogo de truco propriamente dito, – falar durante o
jogo e contar outros ―causos‖ pode: são estratégias para distrair e conhecer os adversários –
os sinais não só são permitidos como são essenciais entre os parceiros para um tentar passar
7

para o outro o que tem em mãos, ou em mente. Além de ser permitidos, os sinais têm um
padrão para os iniciantes ou para parceiros que não se conhecem. Só que eles são também
acessíveis aos adversários que, atentos, passam a saber da jogada da outra dupla.
Esses os sinais quase sempre se referem às quatro grandes cartas, as manilhas zape,
sete-de-copas, espadilha e Sete-de-Ouros. São combinados entre os parceiros antes de se
sentarem à mesa para disputar o troféu. Alguns desses sinais: para o zape – pisca-se para o
parceiro; um levantar de sobrancelha pode indicar um sete-de-copas; o espadilha pode ser
revelado num franzir de nariz e passar a língua nos lábios pode anunciar o Sete-de-Ouros.
Era atrás desses sinais dos homens que o Major estava. Mas a exuberante natureza de
Guimarães Rosa também estava emitindo sinais de uma chuva, que se espalhou miúda e
ameaçadora por todo o conto, com a mesma força que a sentença de morte se imiscuiu nos
recados espalhados daqui e dali e que o jogo a toda hora deixava entrever. Cabia aos
contendores, sobretudo aos cabeças das duplas, Major Saulo e Silvino, ler nas entrelinhas a
dupla ameaça que paira no ar. Os céus e os homens conspiravam contra a paz do Major Saulo
e sua autoridade impassível: ―só no verde dos seus olhos é que pula o menino do riso‖ (p.15).
De resto ele estava atento, nada lhe escapava.
Cândido, (1946, site), no artigo já citado, viu bem o menino do riso nas atitudes de
major de ―O Burrinho Pedrês‖: ―O Sr. Guimarães Rosa – cuja vocação de virtuose é inegável
– parece ter querido mostrar a possibilidade de chegar à vitória partindo de uma série de
condições que conduzem, geralmente, ao fracasso‖.
Essa assertiva vem a calhar também para o jogo de estratégia e de blefes do truco.
Literalmente com a faca e o queijo (Badú) na mão, Silvino não só iria afrontar a autoridade do
major como iria levar com ele o troféu da vitória sobre o mais forte, o dono do mando: o
patrão.

4 A CARTADA FINAL
Uma das jogadas mais brilhantes do major foi ordenar a seu parceiro Francolim
trocar seu belo e alto cavalo pelo burrinho Sete-de-Ouros que estava com Manico e mandá-lo
dar uma volta. Sem ter entendido, Francolim obedece contrariado e vai montado no burrinho,
sinalizando aos adversários que ele não era de nada, não tinha cartas nem trunfos. Sabedor da
capacidade de olheiro do parceiro, o major nem precisou dar instruções. No truco não se fala,
a não ser para enganar os adversários, dar pistas falsas ou blefar. O burrinho Sete-de-Ouros
era um engodo e um blefe. É importante conhecer o parceiro, saber de suas potencialidades e
limitações, mas, sobretudo, é vital buscar sinais, sinais concretos, não apenas suposições, que
8

efetivamente comprovem a possibilidade de a ameaça de morte se concretizar: ‗―Escuta,


Francolim: ‗não é nas pintas da vaca que se mede o leite e a espuma!‖‘ (ROSA, 1980, p. 17)
Há um jogo de sinais no conto e foram esses sinais, de blefe ou não, que o major
buscou e, ao mesmo tempo, blefou, enganando o adversário, quando mandou Francolim no
Sete-de-Ouros, como quem está com medo do jogo e tirando autoridade do parceiro e braço
direito.
É preciso lembrar que o Sete-de-Ouros era miúdo. Os pés de Manico quase
arrastavam no chão quando montou nele. Nessa posição, mais baixo, Francolim via os alforjes
nos cavalos ao nível dos olhos. Não precisava olhar para baixo, (alertaria os adversários)
como faria se estivesse num cavalão e foi assim que viu a bagagem de Silvino, sem despertar
suspeitas. O major quer saber o que Silvino está levando de bagagem: ―... é mais do que
nenhum outro...‖ (ROSA, 1980, p. 46), relata-lhe o fiel escudeiro. Um sinal importante.
Para saber se a jogada de Silvino era para valer ou era blefe, o major, depois de ver o
ataque de um touro a Badú, arranjado por Silvino, para matá-lo, sinalizando com um lenço
vermelho, chamou o vaqueiro Raymundão. Entre ―causos‖ e conversas, quis saber se
pendenga entre Silvino e Badú podia se arruinar? Então viu sinais, viu estratégias, viu o jogo
jogado: matula cheia; lenço vermelho que vaqueiro não usa; briga com o irmão Tote, de quem
cobrou adiantado, fora do combinado, dinheiro que ele lhe devia; venda das suas quatro vacas,
sem oferecê-las ao patrão, de quem usava os pastos, como é dos costumes, porque estava
pensando em voltar para sua terra e se casar. Eram sinais falsos, que Silvino passava para os
adversários, de que já havia se sossegado, feito as pazes com o irmão e parceiro Tote, até
―gostando de saber das coisas que eu estive contando ao Badú também...‖ (ROSA, 1980, p.
42).
Certo de que Silvino não blefava, mas ciente de que não convencera o Major,
Francolim volta à carga: ―... o Silvino vai matar o Badú, hoje!‖ (p. 38). ―E se o Badú matar
Silvino, Francolim?‖ (ROSA, 1980, p. 40). Era o major estudando o jogo e jogando também,
tentando saber das cartas do parceiro, para decidir que rumo tomar no truco.
O major ia garimpando os blefes, as estratégias, os engodos e começava a ver que o
parceiro vigiava os trunfos dos adversários, tinha boas cartas e boas razões para desafiar
Silvino, que também era cioso de seu jogo e suas possibilidades.
A boiada atravessara o riacho da Fome e os vaqueiros fizeram a entrega. Na volta,
sem bois, estavam anunciados a enchente e o jogo da morte. Grave, o major passa uma missão,
a mais importante do conto, o truco, ao seu capataz:
9

―Francolim, escuta: eu tenho um mandado sério, para você cumprir, com toda a regra, porque
sei que você é o meu homem para isso. Espera. Boca fechada e olho aberto, na volta,
Francolim. Eu resolvi ficar hoje no arraial, com a família, e você vai vir com os vaqueiros,
trazendo na algibeira autoridade minha. Olha lá, Francolim, como é que você arranja as coisas,
sem ninguém desconfiar de nós... — Nem que eu morra em nome da lei, na palavra do senhor,
seu Major! (...) — É para vigiar o Silvino, todo o tempo, que ele quer mesmo matar o Badú e
tomar rumo. Agora, eu sei, tenho a certeza. Não perde os dois de olho, Francolim Ferreira!
(ROSA, 1980, p. 46)

Vale repetir destacando: “Olha lá, Francolim, como é que você arranja as coisas,
sem ninguém desconfiar de nós...”. desconfiar de quê? O que estava às escondidas e que não
podia vir às escâncaras, se eram o major e seu capataz dando ordens e sendo obedecidos? Era
a estratégia do jogo de truco, os trunfos das cartas, o jogo anunciado e o troféu Badú. Os
adversários não podem desconfiar de que nós temos cartas e sabemos que eles tem. É olho no
olho e vigiar para fazer a jogada certa.
Dando poder e confiança ao parceiro, sabedor do perigo dos adversários que estavam
com boas cartas, apesar do medo de Tote que tentou, sem sucesso, demover o irmão do jogo,
o Major Saulo sopesou os sinais, os blefes, as tramas e os engodos e topou a parada para
ganhar, e garantiu o parceiro que deu o grito intimidatório do truco, agora já do alto de seu
alazão e investido do poder pelo major-patrão-parceiro de truco: ―Não é caso de briga, Silvino,
porque alguma razão Francolim tem. — Alguma, não! Razão inteira, porque estou
representando seu Major, por ordem dele, e meu revólver pode parir cinco filhotes, para
mamarem no couro de quem trucar de-falso!” (ROSA, 1980, p.62)4
O Major sondou o jogo. Conversou, foi alertado por Francolim da cartada do
adversário Silvino: mata hoje Badú. Bisbilhotou para ver se era blefe e soltou o Sete-de-Ouros.
A dupla era imbatível – sete-de-ouros e zape. Pelo menos para quem sabe jogar. Sondou Tote,
sondou Raymundão, sondou Manico e deu as ordens: solta o Sete-de-Ouros que ele vão
mostrar as cartas. E mostraram. E perderam.
Francolim ainda advertiu Silvino: Não truca de-falso não que eu tenho o zape, o
Major. Silvino trucou e perdeu. Sete-de-Ouros – carta e burro – foi decisivo na vitória contra
o blefe que se avolumava no riacho já cheio. A enchente não pegou a última manilha de
surpresa: havia outra manilha para garantir.
As outras cartas, os perdedores, a enchente os descartou. Sete-de-Ouros mostrou sua
superioridade no jogo, garantiu Francolim, a salvo, (ele agarrou no rabo do burrinho durante a
enchente e foi desgarrado com um ―meio coice‖ que o deixou na margem), e o troféu Badú –
bêbado – ele levou para casa.

4
Negrito meu. É o grito do truco para intimidar Silvino.
10

5 REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Domingos. Grande dicionário Francês/Português. Lisboa: Livraria Bertrand,


1975.

CÂNDIDO, Antônio. O Jornal, Rio de Janeiro, 21 jul. 1946. Disponível em


<http://www.klickescritores.com.br/pag_imortais/rosa_fort1.htm>.

_____. Grande Sertão: Veredas. RJ: Editora Nova Fronteira, 1984.

_____. Sagarana. RJ: Livraria José Olympio Editora, 1980.

_____. Sagarana. SP: Nova Fronteira, 1984.

ROSA, Vilma Guimarães. Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai. Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1983, p. 331 a 337.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo

O CHORO NO TRAVESSEIRO E TE AMO SOBRE TODAS AS COISAS, DE LUIZ


VILELA: PALAVRAS E SILÊNCIOS

Yvonélio Nery Ferreira1 (UFAC; PPGL/UFSC)


Marília Simari Crozara2 (UFU)

RESUMO

Costuma-se atribuir ao silêncio posição secundária no processo de linguagem e o status de


vazio, falta de comunicação ou ainda de sentido. Apesar disto, não há mera passividade ou
apenas caráter negativo no silêncio, mas sentido múltiplo e possível que abre espaço para a
compreensão do sujeito. Ao observar uma obra literária que possui a marca do silêncio, pode-
se notar que há a instauração de significados nas relações entre os personagens, o que pode
acarretar um desbravamento da condição tanto intrínseca quanto extrínseca do ser. Estar em
silêncio não é abdicar da condição de falante, mas assumir um posicionamento contrário
àquele imposto pelo mundo moderno que transforma o homem em ser da comunicação
esvaziado de sentido. É notório o incômodo causado pelo silêncio na maioria dos sujeitos, que
vêem tal condição com angústia e insatisfação, buscando preencher esse buraco com o
contínuo ruído de um tagarelar sem fim que nada significa verdadeiramente. É pensando em
tais questões que faremos uso do tema silêncio, com o objetivo de apontar alguns dos
discursos suscitados por ele nas novelas Choro no travesseiro e Te amo sobre todas as coisas,
de Luiz Vilela.

Palavras-chave:
Discurso. Narrativa. Silêncio. Luiz Vilela.

ABSTRACT

It is common to attribute to silence a secondary position in language process and emptiness,


lack of communication or lack of meaning status. Nevertheless, there is not mere passivity
neither negative character in silence: it has multiple meanings ant possibly it opens an
opportunity to know the subject. When we observe a literary book that has the silence mark,
we can note that there is an instauration of meanings in the relationship between the
characters and this can cause a clearing of both intrinsic and extrinsic condition of being.
Being silent means not to abdicate the speaker condition , but to assume a contrary position to
what is imposed by modern world, which transforms man into an empty communication
being. It is known the annoyance caused by the silence in most subjects who consider this
condition with anguish and dissatisfaction, seeking to fill this blank with the continuous noise
of an endless babble signifying nothing. Based on these questions we propose to use the
silence theme, aiming to point some of the discourses raised by it in the novels “Tears on the
pillow” and “I love you over everything”, from the Brazilian writer Luiz Vilela.

Keywords:
Discourse. Narrative. Silent. Luiz Vilela.

1
Professor de Teoria Literária e Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade Federal do Acre, Campus
Floresta, Centro Multidisciplinar, Cruzeiro do Sul – Acre. Doutorando em Literatura – UFSC; e-mail:
yvonery@hotmail.com.
2
Mestre em Linguística – UFU; e-mail: mariliascz@yahoo.com.br.
2

1 NOTAS SOBRE O SILÊNCIO


Todo acontecimento discursivo está imerso em um conjunto de relações espaço-
temporais responsáveis pelas condições que tornam um discurso possível. Neste âmbito, não
há possibilidade de existência enquanto realidade autônoma, pois o sujeito é um ser múltiplo,
potencialmente pleno de vozes que tanto harmonizam quanto desestabilizam sua essência, que
se encontra em permanente (des)construção, marcadamente interligada a diversas relações
ideológicas oriundas das interpessoais.
Pensar esse fenômeno ideológico é fundamental para entender não só como se
organizam as relações entre os sujeitos, mas também para compreender a consciência
individual, uma vez que, como afirma Mikhail Bakhtin (1999, p.35) “deve ela própria ser
explicada a partir do meio ideológico e social”, pois “a consciência só se torna consciência
quando se impregna de conteúdo ideológico e, consequentemente, somente no processo de
interação social” (BAKHTIN, 1999, p. 34).
O homem é, por excelência, um ser discursivo que reflete uma realidade em
decorrência de suas possibilidades de comunicação. Tendo em vista esse processo, é inegável
que ele fala de diversas maneiras, sonhando, acordado, cantando, até mesmo em silêncio. Esse
ato é natural e essencial, pois, segundo Martin Heidegger (2003, p.7), “A linguagem pertence,
em todo caso, à vizinhança mais próxima do humano.”, representando uma atitude diante da
própria vida e de suas múltiplas relações com o mundo e com outros sujeitos.
No que tange ao campo da literatura, deve-se atentar para o fato de que o silêncio
também é uma linguagem, uma forma de comunicação – característica marcante das relações
entre os personagens, como por exemplo nas narrativas de Luiz Vilela. A partir da atividade
interacional, observa-se uma constante na narrativa do autor mineiro, a incompletude nos atos
de comunicação. A linguagem se torna falha, chegando ao ponto das personagens negarem a
utilização do diálogo. Com isso, o sujeito entra em processo de introspecção e isolamento do
mundo, incapacitando o diálogo e, consequentemente, a possibilidade de ter no outro um
mediador, responsável pelo estabelecimento de conexões entre objetividade e subjetividade.
Nota-se, com base nas relações estabelecidas entre os personagens, o medo da
solidão; a necessidade; a falta de comunicação, expressas a partir do diálogo e da
introspecção; a linguagem simples; os contrapontos entre passado e presente, juventude e
velhice como características imprescindíveis para a estruturação e compreensão das narrativas
de Luiz Vilela. Pensar esses subsídios narrativos é adentrar um mundo em que há um
constante questionamento da existência, marcada por momentos de extrema desilusão e
frustração dos anseios do homem.
3

No aspecto condizente à compreensão das relações interpessoais e da consciência


individual, tem-se que a palavra passa a desempenhar papel fundamental no que tange à
comunicação na vida cotidiana. A palavra perpassa os sujeitos, constituindo as especificidades
dos discursos e, por assim dizer, a essência do homem, por ser uma representação universal da
linguagem. Esses discursos, sejam expressos fisicamente – fala, gestos e outros – ou
interiormente – em pensamento –, são uma forma de comunicação, podendo designar o
interior que se exterioriza ou vice-versa.
As relações entre os personagens de Vilela demonstram que a partir das
possibilidades de comunicação, os indivíduos revelam seus anseios, desejos, angústias,
inquietações e diversos outros sentimentos, deixando surgir toda a bagagem subjetiva contida
nos atos de interação, formadores da identidade do indivíduo. Portanto, observa-se que
mesmo incomodados eles só podem identificar-se a partir dos outros, os grandes responsáveis
pela conduta do eu.
A ideia de si é marcada profundamente pela presença que o outro causa no eu,
projetando sua própria representação. Há, então, segundo Paul Ricoeur (1991, p. 14) “a
alteridade em um grau tão íntimo, que uma não se deixa pensar sem a outra, que uma passa
bastante na outra”, em que o eu passa a ser, gradativamente, considerado outro, uma vez que
constitui-se como outro. Um eu não consegue mais se pensar sem o outro e dizer si não é mais
dizer eu, criando uma interrelação indissociável entre o eu e o outro.
A relação dialógica, baseada no processo interacional eu – outro, está presente tanto
no diálogo quanto em sua negação, fato que representa uma forma de se entender, de se dizer
e de ser dito, no entanto, o medo da rejeição leva, por vezes, ao cerceamento dos diálogos na
obra de Vilela. Há uma linha muito tênue que separa a verbalização – a comunicação sonora,
dentre outras – e o silêncio, fazendo com que as especificidades de cada uma dessas
atividades dialógicas seja única e significante para o sujeito. Por isso, falar não é a prova de
que a comunicação se tenha instaurado, porque ela também se efetiva no silêncio que pode ser
abordado a partir de diferentes perspectivas, desde uma obrigação externa até uma
necessidade interna do próprio indivíduo.
Em vários momentos da história da humanidade o homem se viu coagido a silenciar-
se, a Religião e o Estado, por exemplo, sempre representaram fortes instâncias repressoras e
impositoras de silêncio. A Igreja Católica, em diversos estágios de sua trajetória, como na
Idade Média e na Contra Reforma, impunha seu poder torturando, matando – silenciando –
inúmeros indivíduos que se opusessem às suas diretrizes: supostos bruxos, estudiosos, pessoas
de outras religiões que se negavam à conversão, como os judeus, dentre tantos outros.
4

Em outra perspectiva, o silêncio pode ser visto, a partir de um viés religioso na busca
do inefável, encontrado além da fronteira das palavras com uma ruptura da linguagem. Como
afirma George Steiner (1990, p.30), “O mais elevado e puro grau do ato contemplativo é
aquele em que se aprendeu a abandonar a linguagem”. Esse comportamento pode ser
observado em algumas metafísicas orientais, como o Taoísmo e o Budismo, em que a alma
ascende “dos grosseiros obstáculos da matéria, através de domínios de percepção que podem
ser transmitidos por linguagem sublime e exata, rumo a um silêncio cada vez mais profundo”
(STEINER, 1990, p. 30).
Há que se fazer uma diferenciação entre o silêncio e o mutismo, pois ambos possuem
significações bem diferentes. O mutismo, segundo Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2002,
p.834) “pode estar relacionado a uma impossibilidade de compreensão motivada por fatores
diversos, fazendo com que haja uma obstrução na passagem do entendimento de si e do
mundo”. Já o silêncio, pode representar o rompimento de obstáculos e a abertura de caminhos
que levam ao entendimento do ser que se silencia, pois silenciar-se também é comunicação e
movimento da alma humana acompanhado de pensamentos.
Diante disso, nota-se na narrativa de Vilela que seus personagens, mesmo estando
em silêncio, instauram um diálogo interno que representa um incessante pulsar de vozes
evidenciadoras de sentimentos provenientes dos contatos entre o eu e o outro, demonstrando a
influência de múltiplos interlocutores na constituição da realidade do sujeito. O silêncio não
indica inércia da atividade mental nem a paralisação das inúmeras vozes interiores. Além de
envolver grandes acontecimentos, o silêncio abre passagem para incomensuráveis revelações:
a comunicação pode vir do silêncio.
Costuma-se atribuir ao silêncio posição secundária no processo de linguagem e o
status de vazio, falta de comunicação ou ainda de sentido. Apesar disso, não há mera
passividade ou apenas caráter negativo no silêncio, mas sentido múltiplo e possível que abre
espaço para a compreensão do sujeito. Ao observar uma obra literária que possui a marca do
silêncio, pode-se notar que há a instauração de significados nas relações entre os personagens,
o que pode acarretar um desbravamento da condição tanto intrínseca quanto extrínseca do ser.
Estar em silêncio não é abdicar da condição de falante, mas assumir um
posicionamento contrário àquele imposto pelo mundo moderno que transforma o homem em
ser da comunicação esvaziado de sentido. É notório o incômodo causado pelo silêncio na
maioria dos sujeitos, que vêem tal condição com angústia e insatisfação, buscando preencher
esse buraco com o contínuo ruído de um tagarelar sem fim que nada significa
verdadeiramente.
5

No início do século passado Álvaro de Campos retratou esse mundo de barulhos


como elemento propulsor de sentido em "Ode triunfal". Sentir-se no mundo é compreender-se
enquanto motor de uma máquina, ver-se como tal, completo e infalível, em uma constante
exaltação dos ruídos modernos:

Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!


Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
a todos os perfumes de óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável! (CAMPOS: 2001, p. 73-74)

Segundo Santiago Kovadloff (2003, p. 10) "A palavra que acolhe o silêncio não se
funda em um ato voluntário. Ela é, ao contrário, fruto de um arrebatamento. É vocação, é
resposta a um chamado. Impõe-se, sobretudo, como inapelável necessidade a quem depois a
organiza como enunciado". É a partir de tais perspectivas que passamos a uma leitura das
novelas O Choro no travesseiro e Te amo sobre todas as coisas, de Luiz Vilela, na busca de
pontuar alguns discursos instaurados nas relações entre os personagens.

2 O CHORO NO TRAVESSEIRO E O SILENCIAMENTO DO PASSADO


Uma narrativa cuja poesia emana das coisas mais simples, assim é a novela O choro
no travesseiro, do escritor mineiro Luiz Vilela. Roberto, narrador-protagonista, a partir de um
processo memorialístico, narra momentos de sua adolescência na cidade interiorana onde
nasceu. Ali, com uma turma de amigos, o ponto de encontro diário era no Rei da sinuca, local
de descobertas fundamentais que mudaria significativamente o modo de pensar e agir do
protagonista.
Dentre os convivas havia Nicolau, indivíduo introspectivo, que passava os dias
costumeiramente no mesmo local, bebendo cerveja, comento petiscos, lendo literatura russa,
com seu cão ao lado, raramente jogava com os outros. Foi ele o responsável por despertar o
interesse de Roberto pela literatura, levando-o a ler avidamente autores russos, para Nicolau
os únicos que valiam a pena, pois "quem os lia não precisava ler nenhum outro" (VILELA,
1994, p. 18).
Nas palavras do narrador, os encontros no Rei da sinuca, antes destinados ao jogo e
ao "papo fiado", passaram a ter como foco as conversas com o amigo, "Era principalmente
para encontrar Nicolau que eu agora ia ao salão. Chegava mais cedo, porque essa hora ainda
6

não havia quase ninguém, e ele já estava lá, em sua mesa. E conversávamos então,
apaixonadamente, sobre aqueles livros e aqueles escritores" (VILELA, 1994, p. 21).
Com as leituras e as conversas cotidianas, a figura de Nicolau passou a ser exaltada
veementemente, nele era vista a superioridade intelectual que poucos possuíam, "Claro, ele
não era todo mundo, estava acima da multidão, em alturas que só uns poucos podiam atingir.
Eu queria estar lá também, queria estar ao lado de Nicolau, ao lado dos poucos, dos solitários
e incompreendidos, dos rebeldes, dos malditos." (VILELA, 1994, p. 18).
Ao pensar esta novela, se faz mister refletirmos a figura enigmática de Nicolau.
Alcoólatra, de família rica, mas renegado tanto pelos familiares quanto pelos moradores da
cidade devido seu comportamento. Este personagem carrega uma série de discursos
silenciados ou silenciadores que se refletem mutuamente nas poucas formas de expressão
articuladas por ele. Em si, estão silenciadas as vozes sociais, familiares, dentre outras
marcadas pela crítica, pela recusa em aceitar suas maneiras desregradas ante as regras vistas
como normais pela sociedade.
Estas vozes parecem calar fundo em Nicolau, transfigurando-se em silêncio exterior
extravasado no excesso de bebida, comida e, por que não, de leituras, em uma tentativa de
autoconhecimento. Apesar da aparente tranquilidade, internamente pressupõe-se a existência
de um turbilhão de vozes, propulsoras de pensamentos ácidos e amargos acerca das mazelas
características da existência humana.
Há, em Nicolau, uma constante aparência de indiferença, ele está sempre
desarticulando a fala dos outros personagens. Os questionamentos, as afirmações e as
opiniões são respondidos com comentários rápidos e diretos, responsáveis por silenciar o
outro, o que poderia configurar, possivelmente, uma forma de autodefesa. Estes momentos
parecem retirar do silêncio sentimentos ocultos que assumem voz e postura na conduta de
Nicolau e silenciam o outro, a partir de um processo concomitantemente dual e paradoxal.
Como podemos notar, Nicolau é um sujeito cercado por escudos, quase inatingível,
teso em suas posturas e aparências. Roberto em alguns momentos comenta sobre o olhar do
amigo, "era o olhar de um solitário, de uma pessoa que já penetrara em certos abismos da
alma e não tinha com quem compartilhar isso" (VILELA, 1994, p. 16).
Esses momentos de introspecção de Nicolau são responsáveis por passagens
narrativas de significativo teor poético, como no trecho que se segue (VILELA, 1994, p. 25-
26):

Vi-o assim, aproximando-me sem que ele notasse − e então senti que ele
estava perdido: senti que ele estava já do outro lado, sozinho, como um homem
7

sozinho na outra margem de um rio imenso que ninguém pode atravessar; e nem eu,
nem mesmo eu, com toda minha amizade e devoção, podia chegar até ele e fazer
alguma coisa.
"Oi, Nicola", eu disse, e só então ele se voltou e me viu.
Sentei-me à mesa.
"Estava aqui olhando, disse ele, falando devagar; "é interessante: há solidão
até nas coisas; numa chuva, por exemplo..."

Pensar a solidão das coisas é refletir sobre sua própria solidão calcada nos silêncios
norteadores de seu comportamento. Ambas as solidões se fundem como forma de interação
intransponível aos que o cerca, mas compreendida e admirada pelo narrador. Essa relação do
eu com as coisas suscita em Nicolau outro sentimento, a compaixão, não explicitada enquanto
conceito, pois quando perguntado por Roberto sobre a definição do termo, o amigo explana,
"Não sei; não sei definir compaixão; mas eu sei o que ela é: quando a gente chega a sentir
compaixão até por uma barata, até por uma folha de árvore, até mesmo por um botão de
camisa..." (VILELA, 1994, p. 27).
Na fala de Nicolau temos novamente uma dualidade, ele apresenta a compaixão nas
coisas, mas poderíamos dizer que este sentimento piedoso se estende para sua própria tragédia
pessoal. Seria um processo de autopiedade consigo, camuflado no impulso altruísta de ternura
para com o sofrer das coisas, que é o seu sofrimento e silêncio recolhido, pois segundo David
Le Breton (1997, p. 149-150):

O recolhimento é uma das modalidades que o silêncio oferece aos que nele se
instalam por momentos. Retorno sobre si, capacidade de se deixar invadir pela
paisagem ou pela solenidade do local. Emoção de se sentir pertencer plenamente ao
mundo, levado pela emoção da atmosfera reinante. O silêncio proporciona uma
densidade que transforma a consciência e mesmo, às vezes, a modifica. O homem
alarga o sentimento da sua presença e tem por momentos a intuição do fim possível
da separação que, contudo, renasce à primeira palavra dita. [...] O silêncio põe o
mundo em suspenso, conserva a iniciativa do homem, deixando-o respirar a cama de
um sopro que nada faz andar depressa.

O silêncio de Nicolau está em seu recolhimento, que o faz afastar-se do mundo e


voltar-se a si. Somente no silêncio e na interação com as coisas ele pertence verdadeiramente
a algo. São estes momentos que proporcionam a ele a separação do mundo familiar e social,
guiados por regras nas quais ele não se enquadra, do mundo interior, como já dito,
intransponível.
No desenrolar da narrativa, Roberto relata o momento o qual, tendo que acompanhar
a família, se muda para São Paulo. Antes de partir, faz um acordo com Nicolau, este deveria
diminuir a bebida e a comida para emagrecer, em troca, Roberto comprometeu-se a visitar
livrarias com o objetivo de encontrar novos livros e autores russos para enviar ao amigo.
8

Semanalmente cartas eram trocadas, Nicolau dizia beber e comer menos e Roberto
enviava as obras, mas de uma hora para outra as cartas do amigo não chegavam mais ao
narrador, que ainda insistiu por um tempo sem obter resposta. Certo dia fica sabendo que
Nicolau estava cada vez pior, bebendo mais e mais, fato que gera enorme angústia em
Roberto, como explicitado no trecho que se segue (VILELA, 1994, p. 41):

Escutei a notícia, e um pouco depois fui para o quarto. Fechei a porta. Não queria
que ninguém entrasse. Queria ficar sozinho − sozinho com meus sentimentos, meus
pensamentos, minhas lembranças. No escuro do quarto, deitado com o rosto no
travesseiro, eu chorei: chorei de raiva, de decepção, de desamparo. Meu coração,
machucado, se extravasava em lágrimas e em exclamações abafadas contra o
travesseiro: "Então bebe, bebe; caia na rua, morra de beber. É isso que você quer,
né? Então morra, morra!"

O choro no travesseiro pode simbolizar uma a tentativa de silenciamento do passado,


um desejo de calar as vozes que emanavam da lembrança de um momento feliz marcado por
um trato não cumprido. Era a vontade de não mais fazer parte deste passado, então Roberto
diz, "No dia seguinte decidi esquecer Nicolau: esquecer Nicolau, O Rei da Sinuca, Frederico,
os companheiros de jogo, a cidade, tudo − e até mesmo os escritores russos" (VILELA, 1994,
p. 41). Desde então passou a disfarçar sua decepção em desprezo, mesmo com a notícia da
morte do amigo, dizendo não sentir nenhum choque.
Após doze anos Roberto retorna à cidade natal e se vê novamente caminhando pela
rua da infância e adolescência, observando a mudança do local. Em meio às lembranças,
figurava a expectativa de rever o antigo ponto de encontro, sem saber se o mesmo ainda
existia. Ao avistá-lo, sobe as escadas e, ao entrar, se depara com Frederico, o dono, que o
reconhece, ambos conversam durante um tempo sobre o passado e os que ali conviviam.
Dentre os anseios de Roberto, estava o de saber onde estava a antiga placa do Rei da
Sinuca que ficava pendurada em frente ao estabelecimento e que havia sido trocada, assim
como inúmeros outros móveis do local. A placa sempre fora representação do tempo
convivido ali, objeto símbolo de encontros e desencontros, como o fim do primeiro romance
do narrador.

Foi num fim-de-semana, sob aquela placa, que acabou meu primeiro amor.
Parados na esquina, domingo à noite, depois do cinema, Evinha e eu estávamos em
silêncio; então, olhando para o alto, eu disse:
"Gosto dessa plaquinha..."
Era só uma declaração de amor ao salão; mas ela me perguntou:
"Mais do que de mim?"
"É".
"É mesmo?"
9

Eu não quis olhar para ela, mas sabia que seus olhos verdes estavam fixos em
mim, muito abertos, tentando compreender a inesperada brutalidade daquela
resposta.

Notamos que a placa era a última lembrança a ser silenciada. Ao descobrir que ela
ainda estava guardada no depósito do bar, Roberto pergunta se Frederico não quer vendê-la,
mas o dono do estabelecimento diz que a daria com o maior prazer e assim o fez. Após algum
tempo de conversa, Roberto se despede e vai embora para o hotel. Na mesma noite retorna
para São Paulo e, ao chegar na capital paulista, observa que "o embrulho precioso ficara em
alguma parada de ônibus, levado por algum ladrão ou algum distraído" (VILELA, 1994, p.
50), sendo impossível sua recuperação, silenciando mais um elemento que o remeteria a seu
passado.

3 TE AMO SOBRE TODAS AS COISAS: DUALIDADE E SILÊNCIOS


A novela Te amo sobre todas as coisas, de Luiz Vilela, possui como personagens
únicos Max e Edna. Ele, no aeroporto a espera de um avião que está atrasado, se encontra
com ela, com quem havia rompido um relacionamento amoroso. Esta narrativa se desenvolve
a partir desse encontro, em que Edna tenta, a todo custo, obter respostas e, consequentemente,
entendimento sobre o fim de seu relacionamento com Max.
A história se desenrola a partir de diálogos ásperos, ao melhor estilo de Vilela, em
que mentiras e verdades, sedução e agressão, se interligam nas falas de personagens fortes,
dispostos a levar seus propósitos até o fim. São duas vontades opostas, ele decidido a manter
o fim do relacionamento; ela na busca de compreensão deste fim. O crescimento da tensão é
eminente, e a demora do avião só o faz aumentar, chegando ao ponto de uma guerra
declarada, em que tudo pode acontecer, até o momento final, da chegada o avião, quando,
contrariando todas as expectativas, Max vai embora e as ameaças de Edna não se
concretizam.
Em meio a diálogos aparentemente banais, que parecem mais um tagarelar sem
sentido, notamos a abordagem de temas caros ao homem moderno, condizentes com seu
modo de ser e de estar na sociedade. Faz-se então necessário observar as relações que se
(des)fazem nos (não) ditos de Max e Edna, notando que o diálogo com o outro traz, nas
palavras, um silenciamento responsável por suscitar questões cruciais tais como as
enfermidades típicas do século XX e XXI: a solidão e a depressão.
Os relacionamentos amorosos são marcados por um discurso fantasioso, baseado na
ilusão do desejo a despeito da realidade dos fatos. O que se vive é diferente do que se
10

imagina, gerando descontentamento. O discurso amoroso real é silenciado pelo fantasioso e


quando a realidade emerge, os conflitos se instauram. O "mar de rosas" não existe, a doce
ilusão de momentos românticos permanentes é sobreposta por raros instantes de satisfação,
pois o mundo moderno não viabiliza ao indivíduo a possibilidade de se comprazer
plenamente.
O conflito maior se instaura na medida em que a novela encaminha para a finalização
de um relacionamento e este ocorre apenas pela vontade de uma das partes, quando a
realidade imposta por Max silencia o discurso elaborado por Edna. Ambos se encontram na
defesa de seus discursos, cada um tentando silenciar o discurso do outro, ele, impassível em
sua posição e ela inconformada, pois tudo o que havia planejado e imaginado se desfez em
decorrência do rompimento amoroso.

Andaram algum tempo em completo silêncio. Então, de repente, ela abanou a


cabeça num gesto de inconformismo.
− Quê que foi? − ele perguntou.
− É horrível...
− Quê que é horrível?
− Será que há na terra coisa pior que um amor que acaba?
Ele não falou nada.
− Há?
− Claro que há, Edna.
− O quê, por exemplo?
− O quê? Muitas coisas: guerra, fome, inundações... Tudo isso é pior.
− Pois eu não acho.
− Porque você não está em nenhuma dessas coisas; se você estivesse...
− Para mim nada é pior do que um amor que acaba; nada.
(VILELA, 1994, p. 32)

Ao ler esse diálogo, compreendemos que o funcionamento do silêncio certifica o


movimento do discurso presentificado nas falas de Max e Edna. Ela, no processo imaginário
do amor; ele, no contato com o real. Institui-se, então, o jogo de disparidades simultâneas,
responsáveis pelo estabelecimento de diferentes formações discursivas3, na relação entre
múltiplos sentidos, fazendo suscitar uma possível "falta" de sentido na fala do outro.

3
Atentemos para a definição de formação discursiva proposta por Foucault (1995): No caso em que se puder
descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre
objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (...),
diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva – evitando, assim, palavras demasiado
carregadas de condições e conseqüências, inadequadas, aliás, para designar semelhante dispersão, tais como
“ciência”, ou “ideologia”, ou “teoria” ou “domínio de objetividade”. (FOUCAULT, 1995, p.43-44) Dessa
maneira, podemos conceber por formação discursiva o sistema de manifestação verbal resultante da constituição
sócio-histórica dispersas nos sentidos dos enunciados. Assim, vê-se a alteração de sentido de um enunciado
conforme sua condição histórica – ou seja, dos sentidos construídos na História, em aspectos distintos, tais como
o social, o econômico e o cultural –, evitando a concepção equivocada de que o sentido é imanente ao discurso.
Essa questão possibilita-nos uma reflexão sobre a formação discursiva como organizadora de grupos de
enunciados em sua historicidade.
11

Nos dizeres de Eni Puccinelli Orlandi (2007, p. 23-24):

Se a linguagem implica silêncio, este, por sua vez, é o não-dito visto do interior da
linguagem. Não é o vazio sem história. é o silêncio significante. [...] Significa que o
silêncio é a garantia do movimento de sentidos. Sempre se diz a partir do silêncio. O
silêncio não é pois, em nossa perspectiva, o 'tudo' da linguagem. Nem o ideal do
lugar 'outro', como não é tampouco o abismo dos sentidos. Ele é, sim, a
possibilidade para o sujeito de trabalhar sua contradição constitutiva, a que o situa
na relação do "um" com o "múltiplo", a que aceita a reduplicação e o deslocamento
que nos deixam ver que todo discurso sempre se remete a outro discurso que lhe dá
realidade significativa.

No excesso enunciativo de Edna há o silenciamento do discurso da modernidade. Ela


tenta a toda prova se esquivar da possibilidade de sofrimento já instaurada em si, mas ainda
obscura, oculta pelo desejo de não aceitar a realidade. O silêncio já se presentificou no vazio
imposto pelas palavras de Max que designaram uma nova realidade ainda não condizente com
os anseios de Edna. É esta perspectiva o cerne da falta de sentido para a visão que ela tem do
amor, é isso, também, que se silencia no texto.
A expressão título da obra remete a inúmeras outras possibilidades de discurso. Amar
sobre todas as coisas indica a relação do amor com os sacrifícios que esse sentimento implica.
A relação amorosa encontra-se no plano ideal, apenas no campo da hipótese, não da realidade.
Pensa-se no que é bom e transforma a pessoa amada em um ideal divino constante, imutável e
quando a organização que se pensava já estabelecida se desestabiliza encontramos o que
ocorreu com Max e Edna. O amor idealizado chocou-se com os problemas da realidade,
instituindo entre os personagens a tensão que os deixou entrincheirados, cada um defendendo
seu discurso e tentando silenciar o discurso do outro, causando uma forma de apagamento
discursivo.
Importante observar que o título da obra remete ao discurso religioso contido no
Antigo Testamento, de forma mais específica ao primeiro mandamento do Decálogo e
considerada a Lei de Deus pelo cristianismo que diz, "Amar a Deus sobre todas as coisas".
Aos olhos de um cristão que segue os mandamentos, o título da obra representaria uma
subversão à principal lei divina, como observado nestas palavras de Edna (VILELA, 1994, p.
17):

− A única coisa que eu realmente ligo − disse, − a única coisa que eu... Ah,
Você sabe...
Ele balançou a cabeça.
− Eu te adoro, Max. Você não sabe o quanto eu te adoro. Te adoro mais que
tudo. Te adoro mais que Deus.
− Olha... Isso é pecado, hem? 'Amar a Deus sobre todas as coisas'...
− Pois eu te amo sobre todas as coisas.
− Deus é muito ciumento...
12

− Deus é um chato, isto sim.


Ele riu.
− Deus vive metendo o nariz onde não é chamado.
− De fato...
− Deus é um desmancha prazeres.
− É − ele disse, − pelo que eu estou vendo, suas relações com Deus não
andam as melhores...
− Não, não andam, nunca andaram. Minhas relações com Deus nunca foram
boas.
− Por quê?
Ela sacudiu os ombros:
− Incompatibilidade de gênios...

Esta 'subversão' ao discurso religioso a partir da supervalorização do discurso


amoroso pode ser visto como forma de silenciar o que é tido como sacro para o cristianismo.
Há a inversão do que é sagrado, pois na narrativa o ser amado, no caso Max, é mitificado e
divinizado, forma de supressão do desejo de uma felicidade interminável, de um prazer
infindável, do erotismo insaciável de Edna.
Como podemos observar, a obra Te amo sobre todas as coisas é perpassada por
discursos reveladores dos anseios e desejos do homem moderno, e a busca de completude, a
partir do amor, o ponto central e inalcançável. Na eminência da solidão, Edna tenta impor seu
sentimento ante o fim do relacionamento. Tal fato, dentre outros, demonstra que o discurso
amoroso, desenvolvido no enredo, suscita diversas formas de silêncio.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Silêncio, falta de sentido? Não. Como podemos rapidamente observar, o silêncio é
elemento constitutivo da linguagem, ele perpassa as palavras de forma ativa e significante. O
discurso não pode existir sem sua presença, pois como aponta Le Breton (1997, p. 17) "o
silêncio não é um resíduo, uma escória a ser rejeitada, um vazio a preencher". Portanto, o que
buscamos aqui foi uma leitura das novelas O choro no travesseiro e Te amo sobre todas as
coisas, de forma a destacar alguns dos inúmeros discursos constituídos a partir do silêncio.
Para tanto, foi imprescindível observar como se dão as relações entre os personagens e o
mundo circundante, para então compreender as vozes que permeiam os silêncios que
perpassam os seres, as coisas e suas linguagens.

5 REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 9ª ed. São Paulo: Hucitec, 1999.

CHEVALIER, Jean ; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: (mitos, sonhos,


costumes, gestos, formas, figuras, cores, números), colaboração de André Barbault [et al.]:
13

coordenação Carlos Sussekind; tradução: Vera da Costa e Silva...[et al.]. 3ª ed. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1990.

HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista,


SP: Editora Universitária de São Francisco, 2003.

KOVADLOFF, Santiago. O silêncio primordial. Tradução de Eric Nepomuceno e Luiz


Carlos Cabral. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003.

LE BRETON, David. Do silêncio. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.

ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas,


SP: Editora da UNICAMP, 2007.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP: Editora da


UNICAMP, 2007.

STEINER, George. A linguagem e o silêncio: ensaios sobre a crise da palavra. São Paulo:
Companhia das letras, 1990.

VILELA, Luiz. O choro no travesseiro. São Paulo: Atual, 1994.

_____. Te amo sobre todas as coisas. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.


SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo

O DIÁRIO COMO ÚNICA CHANCE DE SOBREVIVÊNCIA:


HOSPÍCIO É DEUS, DE MAURA LOPES CANÇADO

Louise Bastos Corrêa1 (UFRJ)

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo analisar a escrita de Maura Lopes Cançado como forma
de sobrevivência. O texto apresenta um discurso que segue o fluxo de consciência, narrando-
nos o dia-a-dia nessa instituição tão aterrorizante que é o manicômio. Nesse livro, a autora nos
apresenta um documento de vida trágica e sofrida, cuja autenticidade é capaz de provocar
grande mal estar até mesmo entre aqueles que não se interessam por esse tipo de conflito. Por
isso, ao se deparar com essa ferida social que é a loucura, o leitor corre o risco de ser inteira-
mente absorvido pela narrativa, podendo assim, comover-se com as angústias da protagonista.

Palavras-chave:
Loucura. Literatura. Escrita.

ABSTRACT

This article aims to analyze the writing of Maria Lopes Cançado about the surviving in mad
houses. The paper presents a discourse that follows the stream of consciousness, telling us
how terrifying is living inside an insane asylum. In this book, the author presents us a docu-
ment of tragedy and suffering wich the authenticity is capable of causing great unease even
among those who are not interested in this type of conflict. Therefore, when faced with this
social wound that is madness, the reader is likely to be wholly absorbed by the narrative, thus
being able to feel touched by the anguish of the protagonist.

Keywords:
Madness. Literature. Writing.

1 INTRODUÇÃO
Segundo o filósofo Michel Foucault em História da loucura, publicado em 1972,
não é de surpreender que as casas de internamento tenham o aspecto de prisões, que as duas
instituições sejam mesmo confundidas a ponto de se dividir os loucos indistintamente entre
umas e outras. Neste livro o autor nos coloca diante da trajetória dos excluídos, que tem início
na Idade Média com os leprosos, mendigos e portadores de doenças venéreas, até meados do
século XIX com a institucionalização do conceito de loucura. O filósofo define como o espa-
ço asilar foi construído e de que forma isso refletiu nos perfis dos internos. A partir dessa de-
finição – a construção do espaço geográfico da instituição – far-se-á uma ponte entre o espaço
físico do hospício e a construção ficcional do mesmo, tendo como suporte o texto literário.

1
Mestranda em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); e-mail: louisebcor-
rea@yahoo.com.br.
2

Para tal investigação utilizaremos o estudo do espaço hospício em uma obra da Lite-
ratura Brasileira: Hospício é Deus, de Maura Lopes Cançado, escrito em 1959 e publicado em
1968 enquanto a autora esteve internada pela segunda vez no Centro psiquiátrico Pedro II.
Atualmente, Instituto Municipal Nise da Silveira, localizado no bairro do Engenho de Dentro,
na cidade do Rio de Janeiro. O presente trabalho visa mostrar como em um espaço de clausura
e sufocamento foi possível arranjar mecanismos de sobrevivência: a escrita.
Maura Lopes Cançado escreveu o romance durante o período em que esteve interna-
da pela segunda vez no hospital psiquiátrico do Engenho de Dentro, por conta de ter sido di-
agnosticada como esquizofrênica. Ao iniciarmos a leitura, somos advertidos pelo prefacio de
Reynaldo Jardim que nos alerta sobre o teor do texto:

Mais que um prefácio isto é uma advertência: este é um livro perigoso, feito para
comprometer irremediavelmente sua consciência. A tranquilidade dos que se julgam
impunes e lúcidos, dos que ainda não sabem, porque ainda não olharam para dentro
de si mesmos, que Deus também pode ser o inferno, ou o hospício. (CANÇADO,
1979, p.10)

Afirmação que nos assegura da profundidade e da complexidade do material que te-


remos em mãos.
O texto apresenta um discurso que segue o fluxo de consciência, narrando-nos o dia-
a-dia nessa instituição tão aterrorizante que é o manicômio. Nesse livro, a autora nos apresen-
ta um documento de vida trágica e sofrida, cuja autenticidade é capaz de provocar grande mal
estar até mesmo entre aqueles que não se interessam por esse tipo de conflito. Por isso, ao se
deparar com essa ferida social que é a loucura, o leitor corre o risco de ser inteiramente absor-
vido pela narrativa, podendo assim, comover-se com as angústias da protagonista. Abaixo
podemos observar no trecho do livro Literatura e loucura, de Monique Plaza, o que me refiro
quanto ao estranhamento que a loucura nos causa:

A onda lírica esbatia-se em nós à vista de uma realidade dura e chocante. A ênfase
deslocava-se da loucura-viagem, da loucura-mensagem, para as complexas misérias
do hospital psiquiátrico; mais ainda, centrava-se sobre a incompreensão “dos que es-
tão de fora”, ou seja, também na nossa. Hesitávamos entre duas temáticas contradi-
tórias. A primeira insistia na selvageria da repressão sofrida pelo louco, na arbitrari-
edade dos critérios da loucura, na loucura do mundo; A segunda afirmativa: a viola-
ção dos limites por parte do louco atrai em resposta uma violência de que é preciso
realçar a tristeza e admitir o caráter inevitável. Estamos dilacerados entre estas duas
posições, identificando-nos simultaneamente com o louco que se queixa do mundo e
com o mundo que se queixa do louco. (PLAZA, 1986, p.12)

De uma maneira um pouco ingênua, é possível então, acreditar que com a leitura,
somos capazes de resgatar das trevas aquela voz por detrás do texto, trazendo-a de volta ao
3

universo protegido da lei e dos direitos do qual o autor do livro foi privado. O autor sobrevive
através da palavra escrita, se a mesma não conseguisse reproduzir parte de seus pensamentos
e sensações em um papel ela seria apenas mais uma interna que talvez nem tomássemos co-
nhecimento. A loucura, segundo Monique Plaza, evocaria um mundo confuso os sobressaltos
de um pensamento que perde os seus limites e ri demais ou desespera sem motivos
Escrever um diário, aqui, seria uma tentativa – não uma solução – de salvaguardar
uma identidade perdida desde o momento em que se despiu a roupa de cidadão e vestiu-se o
uniforme desbotado dos doentes do hospício, pois a loucura estaria marcada na impossibilida-
de de toda partilha e de todo encontro. Por isso, como uma maneira de proteger-se da ameaça
de estilhaçamento provocado pelo internamento e pela loucura, para que fosse possível sus-
tentar um mínimo de dignidade, Maura Lopes Cançado decide escrever. E mais uma vez nas
palavras de Monique Plaza, podemos dizer que um texto está sempre cheio de promessas.
Sempre esperaremos dele o enunciado do sentido, num duplo registro. Por isso, podemos di-
zer que um texto exprime, revela, organiza o pensamento do autor.
A entrada no hospício, a nudez imposta nesta passagem para o mundo isento das
ameaças do fora, retira também qualquer possibilidade de afirmação ou de legitimidade das
vozes que de dentro dele emergem. Mas como proteger-se agora da paralisia daqueles que não
tem nome, nem lugar? Como podemos observar no trecho abaixo, a interna-autora descreve
de forma breve, porém com extrema intensidade o que siginifica para mesma tal espaço de
clausura:
Estou de novo aqui, e isto é ____________ Por que não dizer? Dói. Será por isto que
venho? – Estou no Hospício, deus. E hospício é este branco sem fim, onde nos ar-
rancam o coração a cada instante, trazem-no de volta, e o recebemos: trêmulo, exan-
gue – e sempre outro. Hospício são as flores frias que se colocam em nossas cabeças
perdidas em escadarias de mármore antigo, subitamente futuro – como o que não se
pode ainda compreender. São mãos longas levando-nos para não sei onde – paradas
bruscas, corpos sacudidos se elevando incomensuráveis: Hospício é não se sabe o
que, porque Hospício é deu. (CANÇADO, 1979, p. 29-30)

Ao pronunciarmos a palavra “Hospício”, qual seria a primeira imagem que nos vem
à cabeça? Um lugar sombrio e cinza, espaço de malucos, abandono e descaso. Pois bem, par-
tindo dessa questão, e considerando que essas respostas são verdades absolutas, e consideran-
do o trecho selecionado acima, o que teríamos seria um espaço construído sob uma forte carga
semântica, pois, só ao pronunciarmos a palavra – hospício – percebemo-nos transtornados. E,
a partir dessa idéia, podemos levantar uma questão importante: é possível identificarmos uma
diferença significativa entre o espaço ficcional que toma como base uma experiência vivida
daquele mesmo espaço construído apenas enquanto espaço ficcional puro e simples?
4

O mundo do manicômio será o mundo do confinamento, da reeducação para o bom


funcionamento da sociedade além dos muros, e, esses teriam como função, separar o mundo
de dentro do mundo de fora. E, se é um local – espaço próprio de um grupo específico – de
desencanto, em que momento surge o fazer literário? Como a literatura se apoderou do tema
para constituir seu fazer poético? Como a autora abordará esse espaço?
Em Maura Lopes Cançado, a ficção se apóia em sua própria experiência, ela percorre
caminhos tidos como mais realistas. Apresentar-se-á o dia-a-dia dessa instituição de forma
conturbada, apontando os horrores aos quais são submetidos os doentes: eletrochoque e clau-
sura, por exemplo. Para ela não há mais esperança e sua única forma de salvação é a escrita
do diário, pois assim não naufragará em sua eternidade, como ela mesma irá narrar:

Meu diário é o que há de mais importante para mim. Levanto-me da cama para es-
crever a qualquer hora, escrevo páginas e páginas – depois rasgo mais da metade,
respeitando apenas, quase sempre, aquelas em que registro fatos ou minhas relações
com as pessoas. Justamente nestas relações está contida toda minha pobreza e super-
ficialidade. (p. 132)

Ainda segundo Foucault, no livro A ordem do discurso, ao longo da historia, o louco


nunca teve sua fala considerada e era através de suas palavras que se reconheciam os desvari-
os do louco. Ou seja, o espaço literário passou a ser legitimado como uma das formas de se
expressar ou de falar sobre aquilo que tanto incomoda a sociedade: os excluídos, nesse caso,
os loucos.
Maura Lopes Cançado tentará exprimir os seus sentimentos e desejos mais secretos.
A loucura propriamente não causa pânico, mas sim, essa sensação de eternidade, uma infinita
ansiedade por algo que estaria por vir:

De novo: o que me assombra na loucura é a eternidade/ Ou: a eternidade é loucura/


Ser louco para mim é chegar lá/ Onde? – pergunto vendo dona Marina/ As coisas
absolutas, os mundos impenetráveis. Estas mulheres, comemos juntas. Não as co-
nheço. Acaso alguém tocou o abstrato? (p. 29)

E, assim, a autora constrói sua narrativa seguindo o fluxo de suas angus-


tias e medos. No trecho em destaque, podemos dizer que o autor que chamamos
louco parece-nos “lá” demasiado presente. Segundo Monique Plaza, “o autor não
constrói um mundo de possíveis porque o possível se tornou para ele uma realida-
de intangível”.
5

2 CONHECENDO UM POUCO MAIS DE MAURA


Maura Lopes Cançado nasceu nas proximidades de Patos de Minas em São Gonçalo
de Abaeté, no interior do estado de Minas Gerais, em 1930. De uma grande e tradicional famí-
lia mineira, Maura era a oitava filha de um rico fazendeiro e de uma dona de casa. O relato
sobre sua família desassossega e arrebata, não somente pelos fatos que a família passou, mas
também pelo que Maura sonhou. Costuma-se centrar o horror da história dos Cançado na lou-
cura. O primeiro a apresentar resquícios esquizóides foi o irmão João. O que se sabe dele é
que foi acometido pela loucura devido a uma meningite quando tinha quatro anos. Morreu aos
quatorze. Foi difícil para a família aceitar sua morte, principalmente para a pequena Maura.
Porém, todos esses retratos são menos importantes se comparados ao papel que os
pais tiveram na educação e na vida de Maura. Eram descendentes das aristocratas famílias
mineiras Álvares da Silva, Maciel, Ribeiro Valadares, Vasconcelos Costa. A mãe, mulher de
uma quietude inquietante, como o próprio nome, Santa, sugere, apresenta em si a marca de
uma sociedade que calava as mulheres e as colocava sob o mando dos maridos. Exemplo de
mulher amada, respeitada e cuja voz fora reprimida pela férrea sociedade mineira de então, a
jovem Maura vem para se contrapor a essa figura tradicional feminina, tentando assumir o
controle da própria vida numa sociedade em que simplesmente não se podia ser e nem falar o
que se pretendia. A mãe foi sua cúmplice até o final: quando ocorreu a divisão da herança
deixada pelo pai, entregou sua parte aos filhos ficando quase sem nada.
Em seguida, mudou-se para Belo Horizonte juntamente com Maura. A menina
amou o pai e o respeitou, admirou a mãe nos pequenos gestos de doçura e na sua doação ao
outro. Nesta jornada, a jovem se contrapõe ao caminho trilhado pela mãe, buscando seguir seu
próprio instinto. Santa vivia para o marido e este a amou até a morte. Sabe-se que o pai exer-
ceu uma grande influência na vida da escritora: na sua infância, Maura o acompanhava nas
viagens e nos passeios pelos campos da fazenda. Maura sempre foi sua protegida. Mesmo nas
brigas com as irmãs menores, o pai tomava seu partido e castigava as outras. Na adolescência,
quando Maura decidiu se entregar à aventura de um casamento com um jovem aviador de
dezesseis anos, foi tomado pelo desespero. Para que Maura não concretizasse o casamento, o
pai lhe prometia a realização de todos os desejos, mas nada foi capaz de reverter sua decisão.
Aos catorze anos, com a total desaprovação da família e principalmente do pai, co-
mo já dissemos anteriormente, Maura se casa com um jovem de dezesseis anos. Seu casamen-
to durou justo doze meses, pois ela logo deixou o esposo, interrompendo assim o matrimônio.
Mas desse breve casamento nasceu Cesarion Praxedes, que desde pequeno ficou sob os cui-
dados da avó. A escritora não tinha um instinto materno apurado, ela amava seu filho, mas
6

sempre que estava muito próxima dele, brigava, chegando a tratá-lo mal, como fazia com to-
dos os que a cercavam.
Um pouco antes da sua ida ao Rio de Janeiro, houve um fato que indicia o seu des-
controle mental. Maura tinha paixão pela aviação. O pai, para satisfazê-la, comprou-lhe um
avião teco-teco. Alguns amigos da escritora dizem que ela havia emprestado o tal aviãozinho
a um colega, que o derrubara sobre uma casa. Ao final do desastre, Maura teve que mandar
reconstruí-la. Outros, no entanto, diziam que foi a própria Maura quem despencou proposita-
damente com o avião, para que pudesse sentir de perto os desvarios, as angústias, as ameaças
da morte. Em se tratando de Maura Lopes Cançado, isso era bem possível.
Empobrecida, Maura decide se mudar, em 1952, para o Rio de Janeiro levando a
mãe e o filho juntos. É neste novo ambiente que se dará a sua iniciação literária e, ao mesmo
tempo, suas internações psiquiátricas, que refletiam o seu total descompasso social, a sua ina-
dequação aos padrões estabelecidos. As entradas em manicômios foram muitas. Maura, às
vezes, neles se refugiava por vontade própria, outras, no entanto, decorreram de ordens judici-
ais. Durante as internações, surgiram algumas hipóteses de homicídios. O primeiro teria ocor-
rido no final dos anos 60 ou início dos 70, durante sua internação na Casa de Saúde Dr. Eiras,
lugar em que Maura teria assassinado uma colega de reclusão que estava grávida. Carlos Hei-
tor Cony, escritor que a conheceu durante os anos vividos no Rio de Janeiro, em artigo ao
jornal Folha de S. Paulo, do dia 15 de Junho de 2007, relata que “em duas de suas crises mais
violentas, matou uma enfermeira e um namorado, cumpriu pena em presídios psiquiátricos,
foi liberada por parecer de médicos que a examinaram e por juízes que a absolveram”.
Maura se dirige ao Rio de Janeiro com a grande esperança de que lá seria
o lugar ideal de sua aceitação social, de liberdade e de reconhecimento intelectual por parte da
elite literária. A escritora surge em um cenário de efervescente transformação. Faz-se necessá-
rio definir as estratégias que garantiriam essa empreitada ficcional. A começar pela própria
vida da autora, repleta de inexatidão de fatos, de dados, de datas, pontos que propiciam o con-
vite à fabulação. Até mesmo o diagnóstico da esquizofrenia lança uma dúvida sobre a veraci-
dade da narração, uma vez que a utilização da loucura poderia também ser uma estratégia
ficcional muito consciente. Até mesmo a escolha de um espaço como o hospício contribui
para a característica ficcional da obra, uma vez que sugere uma grande proliferação de signos
alusivos à imaginação.
7

3 DO NAUFRÁGIO À RESSUREIÇÃO PELA ESCRITA


Para os internos de um hospital psiquiátrico o espaço é claustrofóbico e constante-
mente comparado à prisão, lugar onde a ordem e a previsibilidade do cotidiano não permitem
surpresas. A cura neste espaço sombrio, cujos uniformes cinzas contribuem para a construção
de um cenário depressivo só será possível se o doente descobrir artimanhas para fugir dessa
eternidade que é a loucura. E, para a autora, parte de sua salvação ocorrerá pela escrita, ou
seja, o fazer literário. Através da escrita, a autora encontra mecanismos de sobrevivência. E
segundo Monique Plaza:

A loucura pode penetrar na escrita sem suscitar a rejeição do leitor, quando é posta à
distância, aclimatada2. Um autor tem duas possibilidades para produzir um texto so-
bre a loucura que não seja julgado louco: pode testemunhar a sua própria loucura,
dar conta, de forma crítica, das divagações e dos prazeres que ela lhe trouxe, ou
construir uma ficção literária onde a aventura da loucura se instala e se desenrola.
(1986, p.113)

Fez-se necessário neste trabalho, portanto, mapear a geografia do hospício, em suas


diferentes imagens, para elaborar através do diálogo, a obra ficcional e a leitura crítica. Atra-
vés de um aprofundamento maior acerca da origem do espaço, de como ele veio se modifi-
cando ao longo da historia, será possível entender como ele chegou a essa construção atual.
Na escrita de seu diário, em que traça a trajetória de sua loucura e assume a identi-
dade da louca, a autora exercita a liberdade da palavra literária, e então linguagem artística e
linguagem da loucura se infiltra uma na outra. Nas páginas iniciais de Hospício é Deus, a au-
tora-narradora apresenta um mergulho no passado, no qual o medo e a insegurança ocupam
papel central, e atribui à sua remota infância, de onde recompõe sua formação psicológica, a
gênese de sua loucura. Para isso, ela remonta às concepções morais íntimas em choque com
dificuldades e obstáculos que enfrenta a fim de chegar à maturidade. A sexualidade reprimida
e o temor religioso levam-na a um profundo complexo de culpa que lhe provoca atitudes ex-
tremas, como se deitar no chão e gritar desesperadamente, como se a expulsar de si, com esse
comportamento, “algo escuro, indefinível, insuportável” (p. 25).
À medida que a narrativa evolui, é possível arriscar que do ponto de vista moral, sua
loucura representa o fracasso em relação aos modelos sociais de comportamento. Em diversos
momentos de sua trajetória, a personagem mostra a loucura como um rótulo imposto social-
mente por representar um desvio dos padrões estabelecidos no espaço conservador e taciturno
das Minas Gerais, além da punição com o estigma da mulher livre, divorciada, o que incomo-

2
Grifo meu.
8

da à época por ela pertencer a uma das mais tradicionais famílias mineiras. Se na infância e
adolescência a desmedida insatisfação com tudo ao seu redor se ameniza com refúgio nos
sonhos, na vida adulta os sonhos são substituídos pelo mergulho em um estado de total des-
compromisso e irresponsabilidade, representado pela loucura.
Então a personagem busca o hospício como um lugar fora do mundo e a loucura co-
mo uma proteção contra esse mesmo mundo onde fracassa em todos os seus movimentos por
autonomia e liberdade. O hospício é, assim, uma oportunidade de introspecção e encontro
consigo própria. Mas, paradoxalmente, esse mundo desejado, romanticamente idealizado, e
transmutado no espaço físico do hospício vai ser repudiado como espaço hostil, porque lugar
do convívio indesejável com pessoas aquém de seu nível social, cultural, intelectual.

O autor foi louco: isso, ele reconhece. Mas a loucura representa para ele qualquer
coisa de ambíguo. Por um lado, ela é uma experiência vivida, mas que, enquanto ele
a vivia, teve todos os sentidos menos o de loucura. Por outro lado, ela é uma noção
organizadora, que ele deve, custe o que custar, integrar. A loucura é, pois, para um
autor um estado fora da lei, e um campo de significação obrigatório. 3 (PLAZA,
1986, p.116)

Outro exemplo da dubiedade de seu discurso, é que mesmo após repudiar a violência
com que as internas são tratadas no manicômio, ela admite que algumas delas merecem real-
mente ser castigadas, devido a seu comportamento irascível. Já em outras passagens, ela des-
creve terna e poeticamente as cenas das loucas dançando livres e alucinadas nos pátios e te-
lhados. Ainda que sua maior crítica seja à moral da elite burguesa mineira, da qual participa
como membro e como intelectual, e inevitavelmente assume os valores, a obra vem reproduzir
sua visão de mundo.
Debatendo-se entre seu mundo particular – a partir do qual extraem seus parâmetros
de elocução – e a consciência das deficiências desse mundo, a visão que a narradora constrói
do hospício coloca a maioria daquelas personagens em perversa situação de inferioridade: “As
mulheres são geralmente burras e sou inteligente” (p. 149). A discriminação continua na divi-
são das internas em doentes mentais e loucas e, a partir disso, da formulação de seu próprio
conceito de loucura. Nessa separação, as doentes mentais encontram- se em nível abaixo das
loucas, que são aquelas que ela acredita terem alcançado um estágio espiritual elevado; aque-
las que, já tendo superado a esfera material do mundo, ingressaram em um estado de completa
inocência, grandeza, liberdade, dignidade.

3
Grifo meu.
9

Pertencente a um mundo letrado, Maura Lopes Cançado já detém a palavra silencia-


da, o que leva a se expressar com preconceito quando representa sua loucura como um desa-
juste psíquico, ou doença mental, uma vez que a verdadeira loucura, que ela tanto glamouriza,
vista na realidade do pátio das loucas enche-a de asco e leva-a ao desespero, como podemos
observar no fragmento abaixo no qual a interna descreve uma passagem de seu dia a dia na
instituição:

Não sei exatamente o número. Mais ou menos trezentas mulheres. Mal se entra no
refeitório se sente o cheiro. Cheiro de gente, gente sem se lavar. Algumas mulheres
denunciam nos vestidos manchados de sangue a higiene exigida e desprezada aqui.
E o cheiro. Cheiro de mulheres. Mulheres menstruadas e sem asseio. Procuro comer
as pressas, sem mastigar, os olhos baixos evitando ver. Geralmente é quase infalível,
há uma ou mais brigas. Voa tudo pelos ares: pratos, colheres, copos de leite. Algu-
mas doentes sobem nas mesas, metem os pés nos pratos das outras. Comidas pelo
chão, guardas gritando. Arrrrrr. Sempre aparecem homens, guardas ou doentes, se-
guram as doentes mais agitadas, torcem-lhes os braços para trás, dão-lhes gravatas,
deixando-as roxas, sem respiração. As guardas andam tontas, soltando guinchos e
berros. Mas quando a doente está presa, puxam-lhes os cabelos, ajudando a empurrá-
la para o quarto-forte. (CANÇADO, 1979, p.50)

A partir da escrita de Maura, percebemos que o encarceramento a que está submeti-


da, não diz respeito somente à internação concreta em um hospital psiquiátrico, mas a uma
experiência primeira e subjetiva que pretendo abordar. O “hospíciodeus”, aqui em jogo, é
também a experiência de perder o seu lugar no mundo quando já não é possível o reconheci-
mento de uma identidade fixa. Sem esta inserção no “mundo dos normais”, não haveria outra
possibilidade senão aquela de se estar encarcerado em um hospício?
É um corpo que já não sente cuja rigidez aproxima-o de uma existência sem pulsa-
ções, como a dos minerais, e afasta-os de sua humanidade. Para fugir a clausura do “hospício-
deus” que invade a subjetividade é preciso desligar-se completamente do corpo. Fugir então é
deixar de sentir? A experiência de confinamento é a marca preponderante da escrita de Maura
Lopes Cançado. Passando grande parte da sua vida internada em hospícios e Casas de Saúde
Mental – desde os dezoito anos, até o seu falecimento, em 1993 -, é impossível falar em Mau-
ra Lopes Cançado sem associar seu nome a essa experiência de internamento. Pouco se sabe
sobre a sua vida fora dos muros do manicômio e livre dos diagnósticos psiquiátricos.
No entanto, sua escrita não pára de se afirmar como o lugar onde é possível encontrar
modos de fuga para este aprisionamento que a sufoca desde muito cedo. É através da escrita
que Maura julga poder encontrar uma maneira de fazer com que as suas palavras ultrapassem
estes muros altos que a cercam. Para isso, necessita que alguém se disponha a recebê-las do
outro lado, não deixando que se percam no vácuo, outro risco, não menos premente, seria o de
10

criar, através da postura transgressora de Maura, um ícone, ignorando os diversos questiona-


mentos que a sua escrita coloca ao próprio reconhecimento de alguma possível identidade,
imersa como está na experiência do internamento e da loucura.
Torna-se necessário, portanto, o questionamento do lugar do leitor diante desta escri-
ta que, apesar de autobiográfica, exige a presença do outro para que possa existir. Aproximar-
se do diário de Maura Lopes para conhecer melhor a biografia da escritora, estabelecendo
uma conexão causal entre vida e escrita, dificulta a entrada do leitor como participante do seu
projeto de evasão. Isto porque, como veremos tanto a biografia de Maura, quanto a sua escri-
ta, impedem que se possa distinguir com clareza um percurso linear no qual as fronteiras entre
experiência vivida e narrativa possam ser facilmente delimitadas. E ao descrever a experiência
de loucura, o romancista encontra outras pontes para o nosso universo familiar: o sonho, o
tédio, a paixão, a cólera, a dor, a angústia, o riso louco, a depressão.
Maurice Blanchot exerceu grande influência em todo o pensamento literário do sécu-
lo XX. Em sua definição de “Espaço Literário” este aparece como o espaço do impessoal,
onde reina a ausência de tempo e onde já não é possível falar em uma primeira pessoa. Para
Blanchot, escrever uma obra literária é justamente “quebrar o vínculo que une a palavra ao
eu”, colocando em questão a própria idéia da literatura como o espaço da revelação da interio-
ridade de um sujeito, propondo justamente o inverso.
O escritor é aquele que se coloca em um lugar solitário onde: “aí onde estou só, não
existe ninguém, mas o impessoal está: o lado de fora, como aquilo que antecipa e precede,
dissolve toda a possibilidade de relação pessoal”. Este “fora”, que Blanchot enuncia, e que
tantas questões geraram no debate filosófico e literário da segunda metade do século XX, po-
de ser entendido justamente como o lugar que excede os limites da interioridade, tão valoriza-
da pelo indivíduo do século XIX, onde a consciência, antes entendida como unidade transcen-
dente e fundadora do sujeito, não pode alcançar. O fora surge a partir da própria experiência
da linguagem, que não se limita à soberania de um “eu’ que fala, mas o excede, arremetendo-
o contra um espaço vazio. Toda uma linhagem da literatura moderna, ao libertar a linguagem
do tema da expressão, a teria emancipado também do domínio da interioridade, identificando-
se assim com a sua própria exterioridade.
Diante desta perspectiva, a escrita de diários íntimos, prática comum entre muitos es-
critores, é entendida por Blanchot como uma forma de resolver a repugnância que estes têm
em abandonar a si mesmo e ingressar no domínio da ausência de tempo que é a literatura. O
diário funcionaria como um memorial que o escritor mantém para não se perder totalmente:
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“daquele que ele é quando não escreve, quando vive sua vida cotidiana, quando é um ser vi-
vente e verdadeiro e não agonizante e sem verdade”.
A escrita autobiográfica, sobretudo a prática de escrita de um diário, pode funcionar,
nesse sentido, como um espaço pouco ortodoxo, no qual seu estatuto problemático enquanto
obra literária constitui um modo privilegiado de questionamento das fronteiras que aprisiona-
riam outros gêneros de escrita através de uma hermenêutica totalizadora.
O leitor, neste caso, não pode querer interpretar através de uma verdade exterior ao
texto, mas deve estar disposto a se lançar em uma experiência na qual se arrisca a não poder
reconhecer mais as fronteiras entre interioridade e exterioridade, dentro e fora, literatura e
vida. Para isso, será necessário o abandono das dicotomias e do olhar conservador que deter-
mina fronteiras rígidas entre os saberes e que torce o nariz para tudo que escape estas delimi-
tações.
Ao apontar a realização de um diário intimo como resultado de um duplo malogro,
Maurice Blanchot sinaliza que estes dois universos de escrita não podem ser separados por
uma linha estanque. O fracasso a que se refere o crítico derivaria de um impasse irresolúvel
que enfrenta o diarista: se por um lado, como vimos, o escritor lança mão de um diário por
não querer perder-se de si mesmo, servindo-se assim desta “âncora que raspa o fundo do coti-
diano e se agarra às asperezas da vaidade”, por outro pretende salvar-se lançando mão do pró-
prio recurso do esquecimento que é a escrita. “Escrevemos para salvar os dias, mas confiamos
sua salvação à escrita que altera o dia”, escreve Blanchot.
O hospício ocupava, portanto, a dupla função de impedir a livre circulação do louco
no espaço urbano e de criar um espaço onde estes poderiam ser medicalizados; onde a doença
seria neutralizada, sendo possível a sua reintegração. Na obra Hospício é Deus, falar em recri-
ação faz com que tenhamos que nos remeter à sua biografia, pano de fundo de sua obra, mar-
cada, sobretudo pelo caos da rebeldia, da intolerância e da loucura. Como seria abordar sua
própria vida em matéria literária? Podemos observar no trecho abaixo:

Hoje, no meu diário, vou dirigir-me a mim mesma, falando como se o fizesse com
outra pessoa. É divertido. Muito mais divertido do que conversar com outrem. Pode-
rei chorar de pena da gente, ou meter coisas nesta cabeça rebelde, Maura. Chorar de
pena da gente. Isto tem acontecido muitas vezes, mas sempre vejo a menina, e não
sou mais uma menina (CANÇADO, 1979, p. 123).

A inserção de elementos autobiográficos no corpus textual/ficcional de Maura suscita


questionamentos, inicialmente pela identidade entre o sujeito Maura Lopes Cançado e os vá-
rios “eus” que vemos serem desdobrados em sua obra. Apesar dos variados disfarces narrati-
12

vos, os mais diversos papéis são assumidos pela autora durante a cena ficcional, o que nos
leva a dizer que o sujeito uno, na obra, é destruído.
O questionamento que se levantou confere um deslocamento no objeto de estudo do
louco real para o louco literário, o autor, cuja mentalidade não pode ser avaliada. Tais loucos
literários se inscreveram no âmbito sociológico por se convencerem de que lhes cabia uma
tarefa social, para tanto exercitaram o trabalho de acordo com as formas da inteligibilidade,
interligando suas hipóteses e ideologias. Para isso foi necessário colocar as causas da loucura
em seu contexto cultural e social. Alguns textos tornam-se parte de um grupo por comparti-
lhar os mesmos pensamentos; outros, no entanto, “permanecem no tecido social como corpos
estranhos” (PLAZA, 1986, p. 53), estranheza que se dá nas relações entre autor-texto e texto-
leitor.
Através da imagem distorcida de um mundo em crise, Hospício é Deus constrói e es-
pelha outra realidade articulada segundo uma lógica muito própria, pois sua tessitura dá senti-
do ao estado patológico da protagonista. Esse modo diferenciado de funcionamento lógico e,
por vezes, propositadamente ilógico, trouxe à luz o paradigma de uma dimensão interpretável
da loucura. O colapso simbólico promovido pelas memórias da personagem Maura propicia à
autora a remontagem de um novo mundo linguístico, repleto de fragmentações discursivas,
representações de um eu multifacetado, refletido nas vozes que povoam a narrativa, mobili-
zando a imaginação do leitor em seu papel de co-autor. Loucura é circularidade, é eternidade.
Toda a marca da loucura é potencializada na obra em questão porque a linguagem utilizada e
transforma em um universo simbólico sublimado.

4 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES (QUASE) FINAIS


Quando tudo leva a acreditar que somente a escrita autobiográfica de Maura perfaz o
intuito ficcional, a autora usa a loucura como principal subterfúgio narrativo. E na presença da
loucura, a autora desliga-se das normas sociais, e dá vazão a uma incansável voz que cisma
em acompanhá-la ao longo de sua temporada no manicômio. Essa voz seria o diferencial de
Maura para as demais internas: transformar a experiência aparentemente vivida em uma cria-
ção literária.
É importante acompanhar a loucura como um elemento paradoxal presente no diário
de Maura, pois ao mesmo tempo em que a aprisiona aos muros do hospício, levando-a a uma
segregação social, acaba por libertá-la para o mundo dos sentidos, para as percepções interio-
res, abrindo parte das sensações para o aparato imaginativo, uma de suas principais caracterís-
ticas.
13

As próprias personagens do diário Hospício é Deus, figuras construídas através da


observação de suas colegas de manicômio, sofrem tanto quanto a narradora os freios da pri-
são. No entanto, elas não conseguem expor sua realidade, pois não possuem a mesma condi-
ção de extravasamento de Maura, que é a escrita. A insanidade paralisa as personagens, amar-
ra-as a uma situação de total falta de desenvolvimento, aproximando-as do limiar da morte. É
por isso que, para essas personagens fabuladas pela narrativa de Maura, não se vê uma saída
humanizadora, elas parecem que nunca serão reintegradas à sociedade. Na verdade, aguarda-
rão sempre, no interior do manicômio, o fim que lhe foi traçado, ou seja, a morte.
Nesse labirinto discursivo que configura a obra, envolvida que está por um emara-
nhado de palavras que dizem e aparentam dizer sempre um algo a mais, é que se busca inves-
tigar a escrita, para que assim se possa reconhecer os gestos de silêncios e ouvir até o mais
audível grito de socorro, que usam a linguagem como forma de manifestação. Como resultado
da escrita híbrida na qual se amalgamam silêncio e loucura é que se concebe o diário, e o pri-
meiro elemento que contribui para o entrecruzamento desses elementos é a teia intertextual
que ele apresenta.

5 REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2008.

BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.

CANÇADO, Maura Lopes. Hospício é Deus. Rio de Janeiro: Record, 1979.

FERNANDES, Mariana Patrício. Vida surgida rápida, logo apagada – extinta. A criação
de estratégias de fuga do hospício na escrita de Maura Lopes Cançado. Dissertação de
Mestrado. PUC-RIO.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2002.


_____. História da loucura. São Paulo: Perspectiva 2008.
_____.Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 2004.
PLAZA, Monique. A escrita e a loucura. Coleção Margens. Estampa: Lisboa, 1986.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo

O NARRADOR E A CÂMERA: A AMBIGUIDADE ORGÂNICA DA ARTE


EM MORTE EM VENEZA

Lorena Bernardes Barcelos (UFG)1


Patrícia Chanely Silva Ricarte (UFSC)2

RESUMO

Realizamos, neste trabalho, uma análise dos procedimentos internos da novela Morte em
Veneza, de Thomas Mann, e de seu homônimo fílmico, de Luchino Visconti, a fim de
vislumbrar a ambiguidade orgânica, intrínseca ao processo de representação da literatura e do
cinema. Para tanto, procuramos compreender como o sentido ideológico da obra literária, que
se constitui pelo dialogismo e pelo narrador heterodiegético de Mann, é resguardado, na obra
de Visconti, pela câmera enquanto aparelho de base do cinema.

Palavras-chave:
Morte em Veneza. Thomas Mann. Luchino Visconti. Narrador. Câmera.

ABSTRACT

In this paper, we analyse the internal procedures of the novel Death in Venice,
by Thomas Mann, and his namesake film, by Luchino Visconti, in order to foresee the organic
ambiguity, inherent to the process of representation in the literary work and in the film. To
this end, we seek to understand how the ideological sense of the literary work, that is through
the dialogism and the Man‟s heterodiegetic narrator, is hedged in the Visconti‟s work
through the camera while the film base unit.

Keywords:
Death in Venice. Thomas Mann. Luchino Visconti. Narrator. Camera.

Da relação depende tudo. E se quiseres dar um


nome mais adequado a ela, chama-a
“ambiguidade”.

(Adrian Leverkühn, Dr. Fausto).

1 IMAGENS DA AMBIGUIDADE
Para o narrador da novela Morte em Veneza, de Thomas Mann, a ambiguidade da
arte está assentada sobre a contradição que caracteriza a forma, a qual seria ao mesmo tempo
moral e imoral. Segundo este narrador, a solidão do artista, que “acarreta o original, o ousado,
o estranhamente belo, [...] também acarreta o errado, o desproporcional, o absurdo e proibido”
(MANN, 1979, p. 112). No filme em que adapta essa obra de Mann para o cinema, Luchino

1
Mestre em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Goiás (UFG); e-mail:
lorenabbarcelos@gmail.com.
2
Doutoranda em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); e-mail:
patcharicarte@yahoo.com.br.
2

Visconti, ao criar um amigo para o solitário músico Gustav von Aschenbach (Dirk Bogarde),
parece querer dar voz em sua película aos pensamentos do narrador da novela alemã. Através
dos diálogos entre Aschenbach e seu amigo Alfred (Mark Burns), Visconti proporciona a seu
filme um tom dramático que, na obra literária de Mann, é garantido pela interferência do
narrador nos pensamentos e conjecturas do protagonista. Mas, enquanto no livro o ataque do
narrador aos preceitos de Aschenbach são indiretos, sinuosos, permeando toda a narrativa de
modo intermitente, na obra cinematográfica, o julgamento do amigo sobre a postura do artista
é direto e incisivo: “Diga-me: sabe o que há sob o seu modo de agir? Mediocridade!”(Cf.
VISCONTI, 1971).
Essa acusação contra o famoso músico alemão, que também poderia ser proferida
pelo narrador criado por Mann, se refere especialmente à concepção de arte de Aschenbach,
que, no livro, não é músico, mas um escritor. Essa substituição, no entanto, da literatura pela
música, que constituem a profissão do artista na obra literária e cinematográfica,
respectivamente, em nada altera a caracterização de Aschenbach como adorador da moral
naquilo em que ela exalta “a sabedoria, a verdade e a dignidade humana”. Em um dos
fervorosos diálogos com Alfred, o Aschenbach músico confirma sua crença na beleza como
produção do espírito: “a beleza nasce, espontaneamente. Sem a ajuda do nosso trabalho, ela
preexiste à nossa presunção como artistas. [...] A criação de beleza e pureza é um ato
espiritual” (Cf. VISCONTI, 1971).
Para Alfred, o amigo do músico, “seu erro é considerar a vida, a realidade, como uma
limitação”. Para o moralista Aschenbach, “a realidade só nos perturba e degrada”. Portanto, os
artistas “não podem esperar que a vida ilumine seu alvo ou que o fixe” (Cf. VISCONTI,
1971). Além disso, para um homem que procura resgatar o sentido clássico da arte, a
obscuridade do real, causada por sua patente ambiguidade, deveria ser excluída não somente
de sua obra, mas também da própria vida. Todavia, no filme de Visconti, o amigo do músico
lhe adverte que a ambiguidade é uma característica da própria arte: “a arte é ambígua. E a
música é a mais ambígua das artes. É ambiguidade tornada ciência” (Cf. VISCONTI, 1971).
A ambiguidade da música se assentaria na arbitrariedade das séries de combinações
matemáticas imprevistas e inesgotáveis que o artista pode realizar nesta arte.
Em Morte em Veneza, a figura de Tadzio, o belo rapaz cuja perfeição se assemelhava
à das esculturas gregas (Cf. MANN, 1979, p. 113), pode ser tomada como símbolo dessa arte
marcada pela ambiguidade, na medida em que nesta personagem se encarna também o mal
que contamina a alma de Aschenbach. Tadzio, tanto na novela de Mann como no filme de
Visconti, representa a aparência apolínea que, de acordo com a teoria de Nietzsche, encobre o
3

fundo dionisíaco da natureza. O loiro adolescente polonês assemelha-se à estátua de Apolo, o


resplandecente deus da luz, da ordem e das artes. Mas os cachos rebeldes e o traje despojado
do rapaz remetem aos perigos de Dionísio, a divindade da embriaguez e do caos.
Seduzido pela beleza de Tadzio, Aschenbach deixa aflorar o cerne dos seus instintos.
Aliás, “[n]ão estava escrito que o sol desviava nossa atenção do intelectual para coisas
sensuais?” (MANN, 1979, p. 135) – lembra-nos o narrador da novela. Através da visão de
Tadzio, nosso artista passa a conhecer uma “estranha comunicação criadora do espírito com o
corpo” (MANN, 1979, p. 137). No filme, a discussão em flash back com Albert, defensor da
produção sensual de beleza, serve para indicar a transformação operada em Aschenbach pela
perturbadora descoberta que teve em Veneza.
Embriagado de paixão pelo belo rapaz, Aschenbach se rende à bela e perigosa cidade
do Mediterrâneo, por cujas ruelas sujas rondava o mal na forma da peste asiática. Certamente,
foi nos becos podres de Veneza, numa das suas assíduas perseguições ao jovem, que o artista
contraiu a doença fatal, chegando ao auge da degenerescência. Na exótica Veneza,
Aschenbach, representante da apolínea civilização da belle époque européia, sofre o golpe
titânico da natureza primitiva que estaria no interior de todo ser humano. Essa natureza, que,
conforme a explanação de Nietzsche (1992, p. 69), é “contradição e dor, porque é poder de
criação e de metamorfose”.
Veneza é “a bela, aduladora e suspeita” cidade, “meio conto de fadas, meio
armadilha para forasteiros, em cujo ar pútrido a arte efervescia luxuriosamente outrora (Cf.
MANN, 1979, p. 273). Além dessa antítese centrada no espaço, as duas obras trazem
metáforas que refletem sobre o tempo, como a que nos é oferecida na cena do filme em que,
diante da ampulheta do quarto do hotel, Aschenbach se remete à ampulheta da infância e
expressa um pensamento sobre o tempo que, na verdade, é um pensamento sobre a morte: “o
último momento, quando não há mais tempo... quando não há mais tempo para pensar” (Cf.
VISCONTI, 1971). Para Adrian Leverkühn, protagonista de Mann em Dr. Fausto, "os
fenômenos mais interessantes da vida têm provavelmente sempre esse aspecto duplo de
passado e futuro; talvez sejam progressivos e regressivos ao mesmo tempo. Revelam a
ambiguidade da própria vida” (MANN, 2000 , p. 273). A fuga de Aschenbach para Veneza
representa esse estágio de angústia, em que o artista se depara com a morte e, ao mesmo
tempo, com a vida, que desde sempre renunciara. Heidegger afirma que: “na angústia
deparamos com o nada juntamente com o ente em sua totalidade” (HEIDEGGER, 1996).
Em ensaio sobre o filme de Visconti, Anatol Rosenfeld (1994), um dos mais
importantes leitores de Thomas Mann no Brasil, afirma que, ao ter excluído quase totalmente
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a dimensão mítica da novela, deixando de marcar as personagens simbólicas que anunciam a


morte (o velho janota do navio, o “gondoleiro-Caronte”, o cantor popular, bem como o
estranho de Munique e a cena inicial da novela, ambientada no cemitério dessa cidade alemã),
o diretor italiano renunciou a reproduzir a estrutura antitética da obra literária, assentada na
“tensão entre a análise racional, característica da consciência moderna; e a visão mítica da
consciência arcaica”.
Para o referido autor, o filme de Visconti “ameaça cair – sem de fato jamais cair – no
realismo um pouco raso do mero caso psicopatológico individual, ao passo que na novela o
caso singular, religado ao mito, se torna arquetípico” (ROSENFELD, 1994, p. 188).
Rosenfeld parece, de certa forma, censurar o diretor por, segundo ele, ter renunciado os
momentos que conferem à novela alemã multivocidade perturbadora. No entanto, tenta
justificar a manutenção de Visconti “no nível de um realismo, assim mesmo amplo,
suficientemente ambíguo e de grande potencialidade sugestiva” pela possível “influência das
interpretações de Lukács que tendem a comprimir Thomas Mann no leito de Procrusto do
realismo tradicional” (ROSENFELD, 1994, p. 189).
Aqui, não pretendemos entrar no mérito, como o fez Rosenfeld (1994, 189-190), de
questionar até que ponto o filme italiano pode competir, “em profundeza e importância”, com
a novela alemã, na medida em que este trabalho não consiste em medir o grau de erudição de
ambas as obras. Ressaltamos a autonomia tanto do filme quando da novela como obras
pertencentes a diferentes tipos de arte, possuindo cada uma delas o seu alto valor tanto para o
cinema quanto para a literatura, respectivamente.
A nosso ver, a questão da ambiguidade apresenta-se, no filme e na novela, não
apenas como o tema da tensão entre vida e espírito, como já aponta Rosenfeld em vários
escritos sobre Thomas Mann. O que propomos, além das imagens que apontam para a antítese
da existência, é o enfoque da ambiguidade como elemento orgânico da arte. Procuramos
entender como se processa, na novela Morte em Veneza e no seu homônimo fílmico, a
ambiguidade da mímesis artística. Para tanto, ateremo-nos especialmente à função do narrador
e da câmera, elementos centrais do processo de representação da literatura ficcional e do
cinema, respectivamente, visto que o enfoque desses dois elementos nos permite estabelecer
uma reflexão acerca dos procedimentos específicos da arte literária e da arte cinematográfica.

2 O NARRADOR E A CÂMERA
Na obra de ficção literária, as funções do narrador não se esgotam no ato
enunciativo. Como protagonista da narração, ele é detentor de uma voz observável ao nível do
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enunciado por meio de intrusões, vestígios mais ou menos discretos da sua subjetividade, que
articulam uma ideologia ou uma simples apreciação particular sobre os eventos relatados e as
personagens referidas. A voz do narrador traduz-se em opções bem definidas quanto à
situação narrativa adotada e ao nível narrativo em que se coloca. A partir de tais
condicionamentos, o narrador configura o universo diegético pela utilização que faz de signos
e códigos narrativos: organização do tempo da narrativa, regimes de focalização, etc. De
forma sintética, pode-se dizer que o narrador é a entidade por que passam e em função de que
se resolvem todos os fundamentais sentidos que emanam do relato.
Em Morte em Veneza, de Thomas Mann, os procedimentos de focalização do
narrador heterodiegético implantam, no discurso narrativo, uma espécie de embate entre a
visão de mundo (que aqui pode ser designada mais estritamente como concepção da arte) do
protagonista Aschenbach e a do próprio narrador. O narrador desta novela não é imparcial.
Ele acompanha friamente o definhar do escritor Aschenbach, apontando com certa ironia cada
passo dado por ele no caminho de degradação que culmina na morte. O narrador parece fazer
questão de mostrar como Aschenbach provocou a própria ruína. Além disso, por situar-se
num nível extradiegético (relata a história de seu exterior) e num tempo ulterior aos fatos
narrados, esse narrador não se aflige com a trajetória angustiante do protagonista, pois está
resguardado pela certeza de que nada mais pode ser feito para modificar o desfecho da
história, ainda que ele, o narrador, o quisesse. Assim, ele opera a focalização onisciente, a
qual faz com que seu conhecimento da diegese não tenha limites, já que ele pode, inclusive,
penetrar no espaço psicológico do protagonista, através do discurso indireto livre.
Entendendo-se a objetividade narrativa como um limite inatingível, o narrador
heterodiegético protagoniza, de modo mais ou menos visível, intrusões que traduzem juízos
específicos sobre os eventos narrados. Entre as suas próprias opções ideológico-afetivas e as
que reconhece nas personagens, o narrador heterodiegético tenderá a articular um “diálogo”
que, na obra narrativa, pode revestir-se de grande tensão e complexidade.
No filme, uma das maneiras encontradas por Visconti para expressar a visão de
mundo do narrador de Mann foi a criação da personagem Alfred, cuja concepção artística se
antepõe à faceta classicista do protagonista. A partir do flash back das conversas com o
amigo, no meio da cena em que o músico vê Tadzio pela primeira vez, o filme faz aflorar o
conflito interno que, inconscientemente, já se operava em Aschenbach mesmo antes de este
chegar a Veneza e que agora, com a visão da beleza em pessoa, lhe vem à consciência.
Os diálogos com Alfred, no entanto, fazem parte do plano discursivo. Eles
constituem uma linguagem mais literária, teatral, que propriamente cinematográfica. No
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âmbito da mensagem filosófica (estética) do filme, as discussões entre Aschenbach e Alfred


podem servir para a criação de um certo dialogismo. Mas tais discussões são um recurso
herdado da própria literatura, e podemos, inclusive, classificá-lo, através da narratologia,
como recurso hipodiegético: uma história secundária contada dentro da história principal. Se,
para a discussão temática da ambiguidade, podemos explorar tanto o conteúdo das conversas
entre o músico e seu amigo – certamente baseadas em outras obras de Mann e na concepção
neo-realista de Visconti – , para a análise dos procedimentos orgânicos ou internos do cinema,
tal conteúdo não nos servirá tanto.
Na arte do cinema, o papel central no processo de representação é realizado pela
câmera, que, de acordo com Jean-Louis Baudry (1983), “ocupa, ao mesmo tempo, uma
posição extrema, distanciada tanto da „realidade objetiva‟ como do produto final, e uma
posição intermediária no processo do trabalho que vai do material bruto ao produto final”
(BAUDRY, 1983, p. 385). Para Baudry, os aparelhos ópticos, cujo advento provocou o
descentramento do universo humano, o fim do geocentrismo (Galileu), paradoxalmente, com
a invenção da câmera escura, trazem uma “elaboração da produção pictórica de um novo
modo de representação, a perspectiva artificialis, que terá como efeito o recentramento – ou,
pelo menos, um deslocamento do centro – indo se fixar no olho, o que significa assegurar a
instalação do „sujeito‟ como foco ativo e origem do sentido” (BAUDRY, 1983, p. 384).
Assim, continua Baudry (1983, p. 384):

Sem dúvida, poder-se-ia questionar o lugar privilegiado que as máquinas óticas


parecem ocupar no ponto de cruzamento da ciência com as produções ideológicas.
Pode-se perguntar, pois, se o caráter técnico das máquinas óticas, diretamente
relacionado à prática científica, não serve para mascarar não só seu emprego nas
produções ideológicas, mas também os efeitos ideológicos que elas mesmas são
suscetíveis de provocar. Sua base científica lhes assegura uma espécie de
neutralidade e evita que se tornem objeto de um questionamento.

Não podemos, portanto, nos preocupar exclusivamente com as influências ou os


efeitos do produto final do cinema – o filme – e com seus conteúdos (o campo do
significado), permanecendo indiferentes com relação às determinações dos dados técnicos de
que este produto final depende. É necessário atentarmos para o fato de que: “entre a „realidade
objetiva‟ e a câmera (lugar de inscrição), entre a inscrição e a projeção, situam-se algumas
operações, um trabalho que tem por resultado um produto final” (BAUDRY, 1983, p. 384-
385).
De acordo com Baudry (1983, p. 385), entre as duas etapas de produção
cinematográfica – a decupagem e a montagem – se opera uma “mutação do material
7

significante”. “A especificidade cinematográfica”, diz Baudry, “se refere [...] a um trabalho,


isto é, a um processo de transformação”. A análise de Baudry se opõe à crença idealista de
que não existiria intervenção humana na reprodução mecânica do mundo exterior. Para
Baudry, a câmera é o “olho do sujeito”.
Nesse sentido, “o efeito ideológico que disso resulta se define por uma relação com a
ideologia inerente à perspectiva”. Tal efeito, similar ao da pintura renascentista de cavalete, se
baseia na ilusão idealista da plenitude e da homogeneidade do ser. “Se a construção pictórica
dos gregos havia respondido à organização da cena fundada na multiplicidade de pontos de
vista, já a pintura da Renascença elaborará um espaço centrado [...] cujo centro, coincidindo
com o olho, será denominado “sujeito” por Jean Pellerin Viator” (BAUDRY, 1983, p. 387).
A câmera possui uma visão monocular que provoca “uma espécie de jogo de
reflexão”. Tal visão monocular, “fundada sobre o princípio de um ponto fixo a partir do qual
os objetos visualizados se organizam, [...] circunscreve em troca a posição do „sujeito‟, o
próprio lugar que este necessariamente deve ocupar” (BAUDRY, 1983, p. 387-388).
No filme de Visconti, a visão monocular da câmera cinematográfica, nos termos em
que é definida por Baudry, “falará”, portanto, de modo diverso daquele utilizado na novela de
Mann, em que o dialogismo do narrador heterodiegético suscita o discurso polifônico. O que
se busca no cinema é a unidade de sentido, isto é, uma consciência do real centrada num olhar
fixo. Se, na novela, temos uma focalização onisciente de um narrador de conhecimento
ilimitado, que, diante da dúvida do protagonista, mantém-se impassível, como se já soubesse
de cor o destino que o aguarda, no filme, é o olhar fixo de um sujeito transcendental, que, por
trás da câmera, reconstitui o movimento, através do deslocamento do aparelho óptico, e
escolhe a trajetória e o sentido do que é mostrado ao espectador.
Mas, se há escolha, é porque o deslocamento, as tomadas da câmera supõem uma
multiplicação de pontos de vista. É necessário que se opte por um percurso, por um sentido
único. Além da decupagem, o procedimento realizado pela câmera, a montagem também
possui papel decisivo na estratégia ideológica produzida pelo cinema. Ela determina o sentido
que será transmitido ao espectador na projeção, na medida em que organiza, em função da
unidade de sentido, as fatias da realidade, que, através do deslocamento da câmera (que não é
mais a simples objetiva fotográfica), provocam a neutralização ou anulação da posição fixa do
olho-sujeito.
Na projeção, ao se restabelecer a unidade de sentido, restabelece-se também a
consciência, ou seja, o olho do sujeito, que é “liberado [...] por uma operação que transforma
imagens sucessivas, descontínuas [...], em continuidade, movimento, sentido”. De acordo com
8

Baudry, como o olho que se desloca no cinema não está mais entravado em um corpo pelas
leis da matéria e pela dimensão temporal, não havendo limites assinaláveis para seu
deslocamento, o mundo não se constituirá somente através deste olho, mas para ele. O
espectador do cinema se identifica com a posição da câmera, “aquilo que não é visível, mas
faz ver, faz ver a partir do mo-ver que o anima – obrigando-o a ver aquilo que ele, espectador,
vê” (BAUDRY, 1983, p. 390). De acordo com Baudry (1983, p. 395):

Pouco importa, no fundo, as formas do enunciado adotadas, os “conteúdos” da


imagem, desde que uma identificação ainda permaneça possível. Aqui, delineia-se a
função específica preenchida pelo cinema como suporte e instrumento da ideologia:
esta passa a constituir o “sujeito” pela delimitação de um lugar central (seja o de um
deus ou de um outro substituto qualquer)”.

No filme de Visconti, o olhar da câmera paira sobre as personagens. O olhar da


câmera não pode ser confundido com o olhar de Aschenbach. A câmera olha por cima: ela nos
faz ver o que se passa com o protagonista. Através dela, não vemos somente o que
Aschenbach consegue ver. Nós vemos o que ele vê, mas também o vemos vendo.
Objetivamente, Aschenbach consegue ver o mundo à sua volta (Veneza) e o centro deste
mundo (Tadzio). Identificados com o olho da câmera, e não com o do protagonista, vemos
Veneza, Tadzio e também vemos Aschenbach, que, tendo saído do seu estado de alienação,
através da visão da beleza viva, agora consegue ver o mundo e os entes que o cercam.
Entretanto, se Tadzio é “estátua e espelho”, ou seja, se ele é a máscara apolínea que
revela o fundo do ser, através da sua visão, Aschenbach volta-se para o próprio interior. Mas
nós não podemos ver seu interior, esse plano subjetivo, através das imagens construídas pelo
aparelho ótico do cinema. Por isso, não podendo mostrar com as imagens o que sua
personagem trazia na alma – algo que Mann conseguiu por meio das palavras – Visconti o
expressa através da música de Gustav Mahler, a música, cujo “profundo segredo”, segundo
Serenus Zeitblom, em Dr. Fausto, “é o segredo da identidade” (MANN, 2000).
O filme do italiano apresenta algumas referências que indicam um grande
conhecimento da obra do escritor alemão, como podemos observar no próprio nome do navio
que leva o músico Aschenbach a Veneza: Esmeralda, o mesmo nome da prostituta que, no
romance Dr. Fausto, de Mann, contaminara com sífilis o protagonista, o compositor Adrian
Leverkühn. Esmeralda também é o nome da prostituta a quem Aschenbach recorre no filme.
Em Dr. Fausto, cujos temas, pela via da ambiguidade, estão incrivelmente
relacionados entre si, Esmeralda, a jovem húngara, simboliza o contato de Adrian com o
proibido. Vinculada à Hetaera Esmeralda, a borboleta que, através do mimetismo, aparenta
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ser uma folha – objeto de especulação do pai de Adrian – , essa prostituta, instrumento do
Diabo, vem a ser símbolo da própria música, cujos mistérios desde cedo Adrian desejou
desvendar. Foi Esmeralda quem, como uma espécie de afrodisíaco, teria desinibido o espírito
de Adrian para a música. Logo depois do contato com ela, o rapaz decide entregar-se por
completo à arte musical.
Visconti, a nosso ver, tenta reproduzir em sua obra a equação thomasmanniana
concentrada no simbolismo de Esmeralda: arte = natureza = mal. Essa equação se assemelha
ao princípio das relações funcionais, que encontramos em Diderot, para quem “tudo o que
vemos, conhecemos, percebemos, escutamos [...] existe em nós, sem que o saibamos” (Apud
COSTA LIMA, 1995). Para Diderot, a arte deveria estabelecer as mesmas relações que
encontramos entre os seres existentes na natureza: “O gênio é o indivíduo excepcional, sem
cuja intervenção não se saberia o que há. Sua função na arte é exemplar: por ele,
intuitivamente, i. e., pondo entre parênteses o conceito, a obra estampa relações que doutro
modo se desconheceriam”.
A nosso ver, o caráter transcendental do olho-sujeito constitutivo do sentido que,
implicitamente, movimenta a câmera, permite ao cineasta italiano conservar a ironia
thomasmanniana, o distanciamento do artista que, na condição de outsider, se esforça por
contrapor em sua obra a vida ao espírito, “num jogo de dialética altamente ambígua”, como
menciona o próprio Rosenfeld (1994). Portanto, se Visconti renunciou à antítese – tão cara a
Rosenfeld – entre razão e mito, configurada na novela, por outro lado, adaptou a obra de
Mann a uma arte cujo aparelho de base, a nosso ver, não fica devendo ao narrador
heterodiegético no que se refere à estratégia ideológica.

3 REFERÊNCIAS

BAUDRY, Jean-Louis. Cinema: efeitos ideológicos produzidos pelo aparelho de base. Trad.
de Vinícius Dantas. In. XAVIER, Ismail (org.). A experiência do cinema. Rio de Janeiro:
Edições Graal: Embrafilmes, 1983, p.383-399.

COSTA LIMA, Luiz. Mímesis e vida. Rio de janeiro: Editora 34, 1995.

GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa. Trad. de Fernando Cabral Martins. Lisboa: Veja,
Editora Annablume/UniABC, 2000.

HEIDEGGER, Martin. Os pensadores. Trad. de Ernildo Stein. São Paulo: Nova Cultural,
1996, vol. XVL.

MANN, Thomas. Morte em Veneza. Trad. Maria Deling. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
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NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad. de J.


Guinsburg. 2. ed. São Paulo: Companhia das letras, 1992.
ROSENFELD, Anatol. Thomas Mann. São Paulo: Perspectiva: Editora da Universidade de
São Paulo; Campinas: Editora da Universidade de Campinas, 1994.

VISCONTI, Luchino. Morte em Veneza. [Filme-video] 1 cassete VHS, 130 min. color. son.
Produção: Alfa Cinematografia, Itália, 1971.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo

O TEATRO CONTRACULTURAL DO LIVING THEATRE

Roberta Cantarela 1 (PPGL/UFSC)

RESUMO

Este trabalho tem como objeto de estudo o Living Theatre, grupo experimental de teatro,
fundado em 1947 por Julian Beck e Judith Malina nos Estados Unidos e que nas décadas de
60 e 70 teve um papel fundamental na inovação das práticas do teatro com a quebra dos
paradigmas de criação do teatro ocidental dentro de um cenário contracultural e ainda
influenciados pelos estudos de Artaud, o grupo passou para o um teatro mais plástico e
oriental. O seu teatro revolucionário causou perseguição ao grupo, que iniciou uma trajetória
de apresentações em mais de 20 países, sendo o Brasil um desses. Living se estabeleceu no
Brasil nos anos de 1970 e 1971, onde teve várias peças montadas até o momento em que o
Regime Ditatorial Brasileiro prendeu o grupo por um suposto porte de drogas, o que acarretou
a sua expulsão do país. E é sobre esse momento que este estudo parte para compreender os
passos do grupo experimental e seu desempenho como um movimento da contracultura que a
Ditadura Brasileira freou. Desse modo, pretende-se analisar o Living Theatre como
manifestação contracultural no Brasil ditatorial.

Palavras-chave:
Living Theatre. Teatro. Contracultura.

RESUMEN

Este trabajo tiene como objeto de estudio el Living Theatre, grupo experimental de teatro,
fundado en 1947 por Julian Beck y Judith Malina en los EEUU. En las décadas de 60 y 70, el
grupo tuvo un papel fundamental en la innovación de las prácticas del teatro con la quiebra de
los paradigmas de creación del teatro occidental dentro de una escena contracultural, y aún,
bajo la influencia de los estudios de Artaud, el grupo pasó a hacer un teatro más plástico y
oriental. Su teatro revolucionario resultó en persecución al grupo que inició una trayectoria de
presentaciones en más de 20 países, siendo Brasil uno de ellos. Living se estableció en Brasil
en los años 1970 y 1971, en donde tuvieron varias obras montadas hasta el momento en el
cual el Régimen Dictatorial Brasileño arrestó al grupo por un supuesto porte de drogas, lo que
resultó en su expulsión del país. Y es sobre ese momento que este estudio parte para
comprender los pasos del grupo experimental y su desempeño como un movimiento de la
contracultura que la Dictadura Brasileña frenó. De ese modo, se pretende analizar el Living
Theatre como manifestación contracultural en el Brasil dictatorial.

Palabras-clave:
Living Theatre. Teatro. Contracultura.

1
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC;
e-mail: robertaphoenix@yahoo.com.br.
2

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O teatro contemporâneo acendeu muitas discussões sobre a forma de criação teatral,
entre elas o teatro político de Brecht e o da crueldade de Artaud. Estes dois autores
influenciaram significativamente o teatro mundial, destacando o grupo Living Theatre,
surgido nos Estados Unidos, na década de 40, que elaborou peças e espetáculos com base
nessas teorias, até provocar métodos singulares de criação. Esse grupo apresentou um teatro
ligado arte corporal e plástica, não apenas ao texto. A sua prática teatral influenciou outros
grupos, como Teatro Oficina, e em pleno período ditatorial concebeu um teatro contracultural.
E com a sua vinda ao Brasil, o Living Theatre concebeu as suas peças tanto na favela
quanto na prisão, marcando um teatro inovador e próximo da realidade nacional, que vivia em
plena Ditadura Militar. As peças produzidas no Brasil nesse período e o trabalho teatral do
grupo representam um momento único na dramaturgia nacional, o que vale um olhar analítico
e crítico à sua obra.
Nesse sentido, que é imperativo este trabalho revisite esse tempo histórico no teatro,
visto que, poderá evidenciar os procedimentos de criação e de encenação que o grupo Living
Theatre desenvolveu, marcado por um momento único na história cultural, a contracultura.

Fotografia 1 - Fundadores do grupo Living Theatre Judith Malina e Julian Beck.


Fonte: Arquivo pessoal de Toby Marshall.
3

O teatro consiste como uma manifestação cultural de grande importância no âmbito


artístico e histórico-social. Desde os primeiros espetáculos realizados no Brasil, o que se
percebe, como ponto recorrente, é a dificuldade encontrada pelos artistas em desenvolverem
as suas idéias, em fazer seu espetáculo de forma abrangente.
E para se libertar das amarras de uma política de apresentações, o Living se distingue
por ser um representante do movimento da contracultura, o que se pode entender sobre “A
contracultura, que enquanto movimento social existiu no período entre 1969 e 1974,
sobrevive hoje apenas como um simulacro do movimento original: um produto da indústria
cultura [...] nos anos 70 do século XX, as práticas sociais contraculturais tentaram, mas não
conseguiram, criar uma cultura alternativa.” (COELHO, 2005, p. 44). No entanto, como se
pretende mostrar neste trabalho, Living pode se considerado um grupo que conseguia mudar
as diretrizes do teatro ocidental e atualmente continua a manter princípios ligados aquela ideia
contracultural, que dita por Coelho (2005) não “vingou”.
Living Theatre foi e ainda é, um sinônimo de um momento histórico no meio
contracultural anos 60 e 70, principalmente. Sabendo que, a contracultura se baseia em:

Rupturas e inovações radicais em arte, ciência, espiritualidade, filosofia e estilo de


vida. Diversidade. Comunicação verdadeira e aberta e profundo contato interpessoal,
bem como generosidade e a partilha democrática dos instrumentos. Perseguição pela
cultura hegemônica de subculturas contemporâneas.Exílio ou fuga. As contracultura
são movimentos de vanguarda transgressivos. O apego contracultural à mudança e à
experimentação inevitavelmente leva à ampliação dos limites da estética e das visões
aceitas. (GOFFMAN; JOY, 2007, p.49).

A contracultura abrangeu um movimento com bases universais, o nomadismo do


Living é um exemplo que as manifestações se manterem em trânsito, apesar da situação
política brasileira, o grupo se apresentou no Brasil em vários momentos, proclamando a
contracultura no modo de atuar, de viver. “A contracultura foi um movimento internacional,
que teve a sua ramificação brasileira. [...] Mas, exatamente ao contrário do que se chegou a
proclamar, a contracultura se expandiu no Brasil não por causa, mas apesar da ditadura.”
(RISÉRIO, 2005, p. 26) Grifos do autor.
Grupos como Living Theatre foram de extrema significação para a expressão artística
do teatro em modo geral e também para o Brasil, ele foi formado numa época de limitações
ainda maiores, de censura e pouca compreensão, e ainda assim, esses artistas realizaram
grandes feitos, no que diz respeito à divulgação do teatro e da sua defesa enquanto arte.
Pensando no momento histórico, o Living marcou como um grupo contracultural:
4

O Living ficou conhecido como o grupo mais importante da contracultura, ao


efetivar um estilo de vida que mesclava, com intensidade, uma interrelação entre
arte e vida, organizando-se não como uma companhia teatral, mas como um
agrupamento espontâneo de pessoas que optaram pelas afinidades existenciais e a
substituição da vida familiar pela comunitária, o que resultou na denominação de
hippies e beatniks aos seus integrantes, por fazer coincidir o ideal teatral com sua
maneira de viver. Um modo de ser que, ao estreitar-se com o teatro, alcançou
patamares de forte integração entre os planos da criação artística e aqueles
desenvolvidos no dia a dia, chegando mesmo a confundir-se, de maneira explosiva e
anárquica [...] (MOSTAÇO, E.; CARLI, T.A. s/ano, p. 2).

O grupo possibilitava a inversão dos conceitos e ideais defendidos pelo teatro


ocidental e eles propiciaram a realização de espetáculos voltados a uma parcela ignorada do
povo, a favela, o presídio, que antes talvez não tivessem acesso nem condições de conhecer
tal arte. É conhecido que suas dificuldades não foram poucas, no entanto esse grupo
conseguiu realizar um legado de peças e encenações históricas que caracterizam dentro do
cenário da contracultura, como exemplar.
Na situação brasileira contracultura significou “[...] alargamento e aprofundamento
da consciência e da sensibilidade antropológicas no Brasil, produzindo rachaduras
irreparáveis no superego europeu de nossa cultura.” (RISÉRIO, 2005, p. 30) Para este efeito,
o trabalho do Living é modelar, pois foi desestabilizador do que se entende por teatro
ocidental, o que refletiu no cenário mundial, como no brasileiro.
É importante salientar que todos os feitos desse grupo foram de extrema importância
e de significativa relevância, pois ajudaram a construir uma nova linha de estudo no teatro,
além de fornecer bases para que se pudesse realizar uma arte criada para o povo e pelo povo.
5

Fotografia 2 - Encenação do Living na rua.


Fonte: Arquivo pessoal de Toby Marshall.

2 UM OLHAR DA TEORIA TEATRAL


Bornheim (2007, p. 09) descreve que as questões do teatro contemporâneo são bem
complexas, “errado, contudo, andaria quem disso inferisse que se trata de um teatro pobre,
sem imaginação, desprovido de recursos maiores”. O autor analisa que a situação do teatro é
rica, com uma multiplicidade de experimentos como o teatro nunca tinha vivenciado
anteriormente, caso do teatro de Brecht.
O mencionado autor continua “e é precisamente esta pujança que torna a realidade
teatral problemática, complexa, e mesmo caótica. O grande problema está em captar a sua
unidade, ou estabelecer os critérios básicos que possibilitem uma visão orgânica e unitária do
conjunto” (2007, p. 09-10). Esse é um problema que Bornheim elenca, caracteriza que a
dificuldade está mais na forma de investigar um teatro amplo, que tem um espaço libertário de
expressão.
Segundo Bornheim (2007) uma das questões que qualifica o teatro dos séculos
passados, que esse era dominado pelo texto, deixando em segundo plano, outros aspectos
referentes ao teatro. O autor cita alguns autores contemporâneos que inovaram como
Stanislavski, Pirandelli e Brecht, esboçando um teatro atual que abrangeu não só a
importância do texto, mas também de outras técnicas, como o desempenho do ator em cena.
Bornheim (2007) aponta para quatro facetas da “crise” no teatro, resultante da
historicização da consciência, a primeira delas, é surgimento do papel do diretor em cena.
Outra face é o tipo teatro-museu, em que grupos teatrais têm apenas a preocupação de montar
espetáculos com uma fidelidade histórica. O autor aponta que um antídoto é reelaborar o texto
antigo a consciência contemporânea, criando uma peça nova.
A terceira faceta é a conjuntura dos fundamentos estéticos do teatro, que apresenta a
sua profunda crise, que apesar de ser um laboratório de experiências, buscando novos
horizontes, ainda está presa a tradição teatral.
A relação entre o palco e o público, é o quarto problema que o teórico pondera, que
revela a verdadeira função do teatro, qual é o seu sentido como arte e suas condições de
realização.
Desse modo, Bornheim (2007, p. 35) situa um ponto de partida para se analisar o
teatro contemporâneo, pois “o problema da função que possa ter o teatro permanecerá um
problema enquanto não for encontrada viabilidade para restaurar a unidade do fenômeno
6

teatral”. O autor assinala o niilismo ocidental como um causador da crise do teatro, “o


problema da função do teatro não pode ser resolvido apenas em termos do teatro, ele depende
de soluções profundas, que afetam a toda estrutura sócio-cultural do mundo em que vivemos”
(BORNHEIM, 2007, p.35).
Só mudando a estrutura do pensar ocidental é que haverá uma modificação plena no
teatro, enquanto não ocorre essa mudança integral, há grupos como Living Theatre, ligados ao
teatro oriental, que provocam um novo olhar ao teatro, com a participação do público na
criação da peça, invocando um ator criativo, no sentido físico e plástico, elaborando peças de
forma coletivas. Assim, apresentando um teatro vivaz, que volta a origem da função artística
do teatro.
Dessa forma, o olhar dessa pesquisa parte da observação da problemática no teatro
discutida por Bornheim (2007), e que partir dessa discussão é mais fácil compreender o
trabalho do grupo teatral Living Theatre. O grupo tinha a preocupação de abarcar os
elementos que marcam o seu teatro como singular desde o modo de criação e na montagem do
espetáculo. Dessa forma, conforme Salles,

Para o Living, fazer teatro é intervir incisivamente na vida das pessoas, com
elementos catalisadores que possam subvertê-las a cada instância. O teatro é uma
forma poética de realizar imagens palpáveis que honre os sentidos e aspirações e
enalteça a sensibilidade, que esclareça a situação da humanidade, tornando-a mais
sensível e mais nobre e, fundamentalmente, que o teatro cumpra uma função social
nas vidas, tanto de quem faz teatro como para quem é espectador. (SALLES, 2004,
p. 147).

Nas origens até o momento contemporâneo no teatro elaborou-se várias teorias,


técnicas e métodos para sua composição. Entre essas, Artaud (2006) na sua obra O teatro e o
seu duplo, publicado em 1938, arguiu sobre a necessidade da libertação do teatro das amarras
que o prendiam ao convencional, a limitação do texto. Na sua compreensão, o teatro
Ocidental ficou ligado à palavra, e para Artaud (2006, p. 78) o teatro não deve ser apenas
psicológico, mas sim plástico e físico.
O que se evidenciou a partir do Teatro da Crueldade (Primeiro Manifesto) que
Artaud (2006, p. 104) primava à restauração do teatro como um reflexo da magia, dos ritos,
dos sonhos.
Nas palavras de Roubine (2000, p.165) o modelo artaudiano propunha colocar o
espectador em transe. O modelo puro das teorias de Artaud, para Roubine, ficou no plano do
utópico. No entanto, grupos como Living Theatre seguiram um modelo semelhante, mesmo
7

que em primeiro momento não conhecessem as teorias de Artaud, mas, do utópico, fizeram o
real.

3 LIVING THEATRE
Julian Beck e Judith Malina - aluna de Piscador, encenador que trabalhou com
Brecht -, fundaram e iniciaram as atividades do Living Theatre em 1947, um grupo nova-
iorquino de teatro Off - Broadway que nos seus primeiros anos de vida encenou, obras de
Brecht, Lorca, Gertrudes Stein, Picasso, T. S. Eliot, W. H. Auden, Strindberg, Jean Cocteau,
Pirandello e Racine, entre outras.
Na década de 60, após perseguição política fecharam a sede do grupo em Nova York,
o que fez o grupo migrar para Europa – período nômade do Living, mesmo sendo um grupo
de origem americano, havia diversos integrantes oriundos de vários lugares do mundo, da
Austrália a Portugal. O que revigora a fala de Deleuze (1985, p. 74) “Não é na periferia (pois
não há mais periferia) que se formam novos nômades”.
O grande salto artístico do grupo ocorreu em 1964, quando em estada na Europa o
grupo produziu sua primeira criação coletiva, Mysteries and smaller pieces, no ano seguinte
outra criação Frankenstein, e em 1968 a sua obra coletiva mais célebre Paradise now.

Fotografia 3 - Imagem da peça Paradise Now.


Fonte: http://www.bigbridge.org/fictwswofford.htm

A convite de José Celso do Teatro Oficina, o grupo veio ao Brasil em 1970, em São
Paulo, onde produziu e encenou O legado de Caim, um ciclo de peças de teatro de rua, Bolo
8

de Natal para o Buraco Quente e o Buraco Frio, performance na Favela Buraco Quente; em
1971, as peças Seis sonhos sobre minha mãe, peça com filhos de operários e já em Minas
Gerais, Sonhos dos Prisioneiros, peça criada na colônia penal em Ribeirão das Neves.
Trabalhando com estes grupos, o Living adentrou para a realidade brasileira.
Em Minas Gerais, o grupo foi preso por porte ilegal de maconha, no julgamento
acabaram inocentados, mas enquanto presos chamaram atenção internacional, o que fez o
Governo Ditatorial expulsar o grupo do Brasil, com a concepção de que o grupo denegria a
imagem do país na mídia internacional.
Da experiência da prisão, o grupo criou a peça Sete meditações sobre o
sadomasoquismo político encenada periodicamente pelo grupo até hoje. De acordo com Salles
(2004),

Este fato repercutiu nos EUA e a passagem do Living pela prisão acabou sendo um
meio de agir e denunciar as injustiças. Os companheiros de cela sugeriram como
falar das torturas sofridas na prisão e solicitaram que os componentes do Living
contassem ao mundo o que haviam vivenciado na prisão.O trabalho do Living tinha
um forte teor de denúncia social. Em resposta a este fato da prisão, criaram a peça
Sete Meditações Sobre o Sadomasoquismo Político, que estreou em 1973 nos EUA.
Obviamente a peça tratava de violência com um texto sobre a repressão policial e a
tortura por choques elétricos no pau-de-arara. Era representativa das muitas formas
de tortura praticadas, não só pelo governo do Brasil, mas como do Chile, México,
Paraguai, Irã, etc. (SALLES, 2004, p.145).
9

Fotografia 4 - Cartaz da Peça Sete meditações sobre o sadomasoquismo político.


Fonte: http://www.ernestodesousa.com/espolio/?p=2128

Na injusta estada na prisão Judith Malina relatou em seu diário as várias situações
pelas quais passou dentro do cárcere da Dops (Delegacia de Ordem Política e Social) em
Minas Gerais. Desse modo, a sua fala além de caracterizar a sua aflição individual, ela reflete
um momento histórico tanto do grupo Living Theatre quanto de diversas pessoas que foram
presas pela Ditadura Militar por motivos obscuros, como acusação de subversão. O Diário de
Judith Malina publicado em 2008 juntamente com arquivos da Dops sobre a prisão do grupo
esclarecem esse momento histórico, em que a “palavra armada” calou a “palavra artística”.
10

Fotografia 5 - Capa do livro Diário de Judith Malina (2008) – foto tirada atrás
das grades na prisão em Minas Gerais
Fonte: http://www.cultura.mg.gov.br/?task=interna&sec=5&cat=18&con=1459

Apenas em 1990, Judith Malina volta ao Brasil, depois de revogado o decreto de


expulsão, e no ano de 2007, o Governo Brasileiro a premiou com a Ordem do Mérito
Cultural, por prestar serviços a cultura nacional. Thomas Gerald entrevistou Judith Malina
quando esta recebeu o prêmio:

THOMAS – No início da década de 60, o teu teatro revolucionou o mundo. Na


década de 70, você estava confinada numa prisão em Minas Gerais. Hoje, você
tem liberdade para viajar e berrar. Mas adianta?

MALINA – Quero abraçar o mundo com as pernas, com os braços. Amo tudo isso,
amo estar viva e percebo que o mundo inteiro é um fracasso. Temos de rir.

(http://geraldthomasblog.wordpress.com/2008/10/04/7911/)

A fala de Malina mostra um pouco do temperamento dessa diretora e atriz incrível


que dou sua vida aos palcos, marcada pela prisão, ela levou da experiência carcerária a
criação, a produção de peças o que por si exibe mais ainda o seu talento.
Sobre o Living, atualmente eles tem uma sede própria em Nova York, onde encenam
peças criadas pelo grupo.
Assim, olhando as concepções da situação do teatro contemporâneo de Bornheim
(2007) e da teoria de Artaud, entende-se que as produções e os modos como o grupo teatral
Living Theatre construiu as obras referidas desse momento singular da consciência cultural
11

coletiva, é um divisor de água na cultura teatral, por ser renovador, plural, obsessivamente
acentuado pelas vicissitudes de sentidos que Artaud defendia.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A contracultura foi um movimento que lançou bandeiras em variadas direções, mas
com intuito de alargar e não estreitar a arte, o conhecimento. No seio dessa agitação, em
destaque, Living Theatre desempenhou um papel importante nesse cenário caótico de uma
revolução cultural, mas retardada pelos grilhões da incompreensão de um governo militar que
o expulsou do Brasil e o acusando de subversivo.
Mas a compreensão e o “resgate” desse tempo histórico, e também do trabalho desse
grupo, fará que a obscuridade reinante naquele momento, se amargue na lembrança, mas que
a ribalta do movimento contracultural seja lembrada.
Living Theatre, tanto no seu desempenho teatral quanto na sua concepção política
contracultural foi de derradeira significação para a expressão artística do país, além da criação
coletiva e dos métodos inovadores, eles apontaram para uma revolução no teatro que
transformou a história do teatro nacional, num período contracultural, no entanto, ditatorial.

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de Marzo, 1999. p. 91-197

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O TER LUGAR DA LINGUAGEM NAS GALÁXIAS BABÉLICAS

Diego Cervelin1 (PPGL/UFSC)

RESUMO

O presente trabalho pretende estabelecer uma releitura do livro Galáxias, escrito por Haroldo
de Campos entre 1964 e 1976, destacando os movimentos que perfazem o texto da viagem
enquanto abertura de uma experiência da comunicabilidade. Nesse sentido, a preocupação
metalingüística que permeia a construção do texto por fluxos e refluxos de significantes
aplicados à superfície da página segundo um paradigma de composição por corte e montagem
parece desvelar não um núcleo original da língua, mas, antes, uma intenção de significar. Essa
dinâmica, para além de se limitar ao paradigma construtivo do texto, também parece apontar
para uma dimensão onde experiência do desejo e experiência da pós-utopia vanguardista
trazem à tona a consideração da linguagem em suas conexões fantasmáticas. Suspendendo o
mero apego comunicativo da linguagem, as Galáxias indicam um percurso onde o cânone e o
seu fora se indiferenciam em uma tentativa de usar a linguagem enquanto possibilidade de
experiência – babélica. Essas considerações têm como pano de fundo especialmente o
pensamento de Giorgio Agamben e Emanuele Coccia sobre a experiência da linguagem
enquanto uma instância medial na qual surge um processo que opera ambivalentemente sobre
uma dinâmica de desejo e criação de sentido. Além disso, a proliferação dos significantes e o
uso de neologismos, arcaísmos e xenoglossias ao longo dos fragmentos galácticos parecem
carregar consigo uma operação na qual também está em jogo a possibilidade do
esquecimento, ou melhor, de um processo de obnubilação (cf. Araripe Jr.).

Palavras-chave: Galáxias. Linguagem. Esquecimento.

RESUMEN

El presente trabajo intentará establecer una relectura del libro Galáxias, escrito por Haroldo
de Campos entre 1964 y 1976, atentando para los movimientos que presentan el texto de viaje
en cuanto apertura de una experiencia de comunicabilidad. En ese sentido, la preocupación
metalingüística que está en el medio de la construcción textual a través de flujos y reflujos de
significantes aplicados sobre la superficie de la página segundo un paradigma de composición
por corte y montaje parece desvelar no exactamente un nucleo original de la lengua, sino una
intención de significar. Esa dinamica, no se limitando al paradigma constructivo del texto,
también parece indicar una dimensión donde la experiencia del deseo y la experiencia post-
utópica de la vanguardia presentan la consideración del lenguaje en sus conexiones
fantasmáticas. Suspendiendo la mera noción comunicativa del lenguaje, Galáxias indica una
percursividad donde el cánon y su afuera restan indiferentes en un tentativo de usar el
lenguaje en cuanto posibilidad de experiencia – babelica. Esas consideraciones parten del
pensamiento de Giorgio Agamben y Emanuele Coccia sobre la experiencia del lenguaje como
medialidad en la cual surge un proceso que opera tanto en una dinámica del deseo cuanto el la
creación de sentido. Más allá de eso, la proliferación de los significantes y el uso de
neologismos, arcaismos y xenoglosias a lo largo de los fragmentos del libro parecen indicar
también una operación en la cual está en juego la posibilidad del olvido, o mejor, de un
proceso de obnubilación (cf. Araripe Jr.).

1
Mestrando em Teoria Literária (PPGL/UFSC); e-mail: cervelin.diego@gmail.com.
2

Palabras-llave: Galáxias. Lenguaje. Olvido.

Na “álealenda” (frag. 13)2 das Galáxias de Haroldo de Campos, a “selva de símbolos


também / selvaggia” (frag. 14) apresenta uma figuração da viagem que é tanto plurívoca
quanto pluridimensional. Nesse sentido, a aleatoriedade, ou melhor, a contingencialidade que
permeia a relação do sujeito com o mundo se inscreve na linguagem através de um processo
que privilegia, no plano construtivo, a formação das palavras por derivações e composições
em aglutinação e justaposição de significantes – sejam eles da língua portuguesa ou não. A
plasticidade e a movimentação do processo viajante incluem, dessa maneira, um impulso
“camaleoplástico” (frag. 13) de adição, sobreposição e encavalgamento de vozes e palavras,
de fatos e suas discursividades. O visto e o ouvido, o imaginado e o escrito se
multidirecionam e multipolarizam ao sabor de uma tensão que, carregada de desejo, se dispõe
tanto ao relato quanto ao ente produtor de uma experiência do mundo enquanto transitividade.
Assim, nesse entremeio experiencial do texto galáctico, com suas dobras, redobras e
desdobras, com seus “kiklos de palavras” (frag. 14), sobre a superfície plana da página branca
surge uma “babelbarroca” (frag. 13), elevando-se e desmoronando simultaneamente sobre um
eixo singular e plural.
Em uma instância analítica mais óbvia, o processo viajante das Galáxias, permeado
pela emergência constelacional de Mallarmé, perpassa três formulações ou títulos da
experiência do deslocamento: a) a Odisséia homérica em seu trânsito extraordinário e heróico;
b) o Ulysses joyceano em seu perambular pelo cotidiano no limiar do escatológico; c) a
viagem dos escritores modernistas para a Europa ou para as cidades históricas de Minas
Gerais ao longo dos primeiros vinte anos do século XX. Nesse sentindo, confundindo o relato
de um deslocamento espacial ou temporal com a experiência da formulação do texto, as
Galáxias se voltam, em sua construtividade textual, tanto para o visto quanto para o
imaginado. Nesse caso, o papel da linguagem aí – que pode parecer forçado e forçoso, quando
não artificial – adquire um papel capital. Nem relato heróico, nem mera narratividade do
cotidiano e muito menos busca por uma essencialidade ou por sua negação, lanço a hipótese
de que as Galáxias delineiam um processo onde emerge o pensamento de uma situação em
que a experiência babélica se ressurge confundindo os caminhos do museu e tornando-o
poroso, sem, no entanto, questionar muito possivelmente o caráter cultual da cultura.

2
Indicamos desde já que, em relação aos pequenos trechos e citações recolhidos de Galáxias, preferimos apenas
assinalar os fragmentos de onde provêm.
3

O formante de abertura das Galáxias, “e começo aqui”, jogando com o acaso –


“arremeço” – e com a tentativa do seu controle – “meço” –, apresenta uma intenção explícita
que aposta, primeiramente, na possibilidade de uma revelação pautada pela dinâmica do ser.
Assim, seguindo a máxima mallarmeana – “Tout, au monde, existe pour aboutir à un livre” –
expressa em Le livre, instrument spirituel, as idas e vindas do texto deveriam formular um
percurso capaz de apresentar “um livro onde tudo seja não esteja seja um
umbigodomundolivro / um umbigodolivromundo”. A própria repetição anafórica da
conjunção “e”, ao longo de todo o primeiro fragmento daria “ao movimento uma escansão de
versículo bíblico. Gênese (bere’shith) do livro” (Campos, 2004a, p. 119). Nesse caso, quando
o texto apresenta a série “e descanto / a fábula e desconto as fadas e conto as favas pois
começo a fala” (frag. 1), o horizonte galáctico pareceria procurar fazer experiência de certa
mística da linguagem que a tradição judaica transmitiu ao Ocidente. Conforme Gershom
Scholem (1999, p. 9) aponta “a Revelação, segundo o conceito didático da Sinagoga, é um
processo acústico, não visual, ou algo ocorrido, no mínimo, numa esfera que está relacionada
metafisicamente com o processo acústico, sensível”. O caráter místico da linguagem, segundo
o mesmo pensador (Scholem, 1999, p. 10), repousaria na “convicção de que a linguagem, o
médium no qual o espírito do homem se concretiza, possui um lado interior” secreto e
determinado pelo seu “caráter simbólico”. Fazendo do texto uma reflexão sobre o começo da
fala, o processo que se afigura ao longo dos fragmentos se exporia enquanto desvelamento e
concretização da materialidade do signo (cf. Lima, p. 339). E seria possível, então, entrever
nas Galáxias um movimento que resolveria a disjunção entre a “variedade na unidade” e a
“unidade na variedade” das “coisas como se passam no olho e no ouvido” (Campos, 1964, p.
112), revelando-as epicamente. Mas o “tornassol viagem de maravilha” (frag. 1) que se
apresenta nas Galáxias, indica-se algo que escapa à consideração épica e, no fluxo e refluxo
dos significantes, faz com que Odisseu surja enquanto “oudisseu” (frag. 48) – cuja grafia
comporta uma oscilação entre “um Odisseu marcado pelos caminhos que se bifurcam diante
do „ou‟” e uma possível pergunta “ou disse eu?”. A viagem entre essas oscilações
desdobradas, por sua vez, se faz “oudisséia [...] tautofágica [...] tautodisséia” (frag. 48).
Girando sobre o eixo de sua busca enclausurada pela linguagem enquanto começo e recomeço
repetidos – até mesmo no nível do significante –, a “aoléuviagem áleaviagem” (frag. 10),
expõe a “lenda fechada em copas”, que “não-diz desdiz só dá voltas” (frag. 47). Ou ainda,
cujo caráter se expõe ainda mais decisivamente no trecho inicial do fragmento 35 das
Galáxias:
4

principiava a encadear-se um epos mas onde onde onde sinto-me tão absconso
como aquela sombra tão remoto como aquele ignoto encapelar-se de onda
quantas máscaras até chegar ao papel quantas personae até chegar à
nudez una do papel para a luta nua do branco frente ao branco
o branco é uma linguagem que se estrutura como a linguagem seus signos
acenam com senhas e desígnios são sinais estes signos que se desenham
num fluxo contínuo e de cada pausa serpeia um viés de possíveis em
cada nesga murmura um pleno de prováveis o silabário ilegível formiga
como um quase de onde o livro arrulha a primeira plúmula do livro viável
que por um triz farfalha e despluma e se cala insinuo a certeza de um
signo isca ex-libris para o nada que faísca dessa língua tácita

Entre o sentir-se “tão absconso” e o “nada que faísca dessa língua tácita”, a viagem
galáctica expõe, antes, que o ingresso na linguagem – e na escritura – não é um gesto neutro,
mas introduz no sujeito um princípio de divisão infinito (cf. Agamben, 2010, p. 110)3, no qual
surgem não mais do que mascaramentos – ecos imemoriais de um impulso primevo que
sempre está aí, continua aí como promessa e dívida do homem de cultura (culto e cultuoso).
Nesse sentido, a explicação veiculada pela linguagem não surge aplacando a dúvida sobre
uma constituição de tonalidade metafísica, nem revelando um conteúdo mais original – e, por
isso mesmo, mais verdadeiro – que resta escondido. Conforme a própria etimologia do termo
explicatio indica, na viagem que se faz com a linguagem, só há desdobramentos (cf. Perniola,
p. 23), que, a cada instante, nos colocam diante da abertura de um “comêço em eco no soco de
um comêço em eco no oco eco de um soco” (frag. 1). As palavras em eco produzindo
paronomásias, ou seja, as palavras-rimas, que estruturam a corrente gráfico-sonora de uma
mesma série apresentando os movimentos especulares – mas não menos especulativos – das
Galáxias, estabelecem uma unidade operativa que se faz no nível do significante, mas não
exatamente naquele de um significado inequívoco:

la parola-rima [...] è, infatti, innanzitutto un paradossale punto di indecibilità fra un


evento eminentemente assemantico (la consonanza) e un elemento per eccellenza
semantico (la parola). Nel punto in cui la rima attestava la sconnessione fra suono e
senso, fra l‟intelligenza e l‟orecchio, sta ora isolata un‟unità puramente semantica,
che smentisce l‟attesa della consonanza solo per ridestarla successivamente e
adempierla là dove è quasi impossibile udirla (se non silenziosamente, «per forza di
scrittura»). Il corpo della poesia appare, così, percorso da una duplice tensione [...]:
una che tende a divaricare al massimo, con ogni mezzo, suono e senso e l‟altra,
inversa, che mira a farli coincidere, una che cerca di distinguere puntualmente i due
grembi e l‟altra che vorrebbe inverarne l‟impossibile confusione (Agamben, 2010, p.
39).

3
O efeito do ingresso na linguagem apresenta uma configuração exemplar no seguinte trecho do fragmento 14,
“ma non dove”, escrito em 21 de fevereiro de 1965: “kiklos de palavras / o texto entretecendo entretramando
entrecorrendo pontos pespontos / dispontos texturas o estelário estepário de palavras costurando ávidas /
suturando texturando urdilando ardilário vário laços de letras lábeis / tela têxtil telame aranhol aranzol de arames
manhas de ramos ranhos / de aranhas letras sestras lépidas letreiros selva de símbolos também / selvaggia e aí
estou aí fui aí sou eu ou outro eu mesmo ninguénheu ou outro”. Grifo nosso.
5

Nesse sentido, diante do “semelhante semelhando no dissemelhante” (frag. 8), o efeito


unitário que reside no encadeamento dos significantes através de um desdobramento de letras
sobre a página parece comportar, antes de qualquer outra coisa, aquelas duas formas que,
segundo Agamben, co-existem na raiz indo-européia indicativa do uno. Ou seja:

similis, che esprime la somiglianza, e simul, che significa «nello stesso tempo». Così
accanto a similitudo (somiglianza) si ha simultas, il fatto di essere insieme (da cui,
anche, rivalità, inimicizia), e accanto a similare (rassomigliare) si ha simulare
(copiare, imitare, da cui, anche, fingere, simulare) (Agamben, 1996, pp. 79-80).

Com as palavras-rima e a proliferação quase nauseante das paronomásias, o texto


galáctico também se tece através do encavalgamento da glossolalia 4 – o uso de palavras
estranhas e cujos significados não nos são evidentes – à da xenoglossia – o uso de sons e
termos estrangeiros deslocados de sua discursividade original. Nesse sentido, as viagens
criadas e/ou descritas na movimentação dos cinqüenta fragmentos, além de comportarem o
gesto hesitante do “babelbêbado” (frag. 10), também surgem permeadas por um fluxo
“polivozbárbaro”, um fluxo de vozes plurais que barbarizam a linearidade do possível
percurso de compreensão:

mais uma vez junto ao mar polifluxbórboro polivozbárbaro polúphloisbos


polyfizzyboisterous weitaufrauschend fluctissonante esse mar esse mar
esse mar esse texto esse martexto por quem os signos dobram marujando num
estuário
de papel num mostruário num monstruário de papel múrmur-rúmor-remurmunhante
escribalbuciando você converte esses signos-sinos num dobre numa dobra
de finados enfim nada de papel estes signos vocês os ergue contra tuas
ruínas ou tuas ruínas contra estes signos balbucilente sololetrando a
sóbrio neste eldolorido feldorado latinoamargo tua barrouca mortopopéia (frag. 45)

Glossolálica e xenoglóssica, a viagem proposta por Haroldo de Campos ao longo desse mar
“fluctissonante” dos idos dos anos 70 torce os significantes de um modo tal que eles ecoem
sobre a página um balbucio – uma barbárie. Conforma Agamben (2010, p. 66) já nos havia
assinalado, a glossolalia e a xenoglossia “sono la cifra della morte della lingua: esse
rappresentano l‟uscita del linguaggio dalla sua dimensione semantica”. Qual seria, então, a

4
“Glōssa significa «parola estranea alla lingua d‟uso, termine oscuro, di cui non s‟intende il significato» [...] La
glossolalia non è, dunque, un puro proferimento di suoni inarticolati, ma un «parlare in glosse», cioè in parole di
cui non si conosce il senso [...] Se io non conosco la dýnamis (anche questo è un termine grammaticale, che
significa: valore semantico) della parola [...] sarò, rispetto a chi parla, un barbaro e colui che parla in me sarà un
barbaro [...] se io pronuncio parole di cui non intendo il significato, colui che parla in me, la voce che le
proferisce, il principio stesso della parola in me sarà qualcosa di barbaro, che non sa parlare, non sa quel che
dice. Parlare-in-glossa significa, cioè, far l‟esperienza, in se stessi, di una parola barbara, che non si sa;
esperienza di un parlare «infantile» [...] in cui l‟intelletto resta «senza frutto»” (Agamben, 2010, pp. 64-65).
6

experiência com a palavra que as Galáxias nos mostram no fluxo contingencial da


“áleaviagem” (frag. 10)? A operação sobre a letra, não bastando para a emergência resolutiva
do significado, faz com que os fragmentos abram ao discurso o pensamento de um espaço
que, na poética medieval, se chamava ditado da poesia. Em outros termos, trata-se aí da
“esperienza dello stesso avvento originario della parola” (Agamben, 2010, p. 62). Nesse
sentido, a experiência do ter lugar da linguagem se desdobra enquanto barbarização do evento
lingüístico, onde a palavra “diventa qui qualcosa di alieno e di «barbaro» [...] secondo il
significato proprio del termine barbaros, un essere non dotato di logos, uno straniero che non
sa veramente intendere e parlare” (Agamben, 2005, p. 106). A linguagem, dessa maneira, em
uma murmuração que já nos estava indicada pelo menos desde Aristóteles, se presta tanto ao
falso quanto ao verdadeiro (cf. Heller-Roazen, 2003, p. 12) – “verdade é o mesmo que /
mentira ficção tesoura e lira” (frag. 50), nos diz Haroldo – e surge como puro querer-dizer.
As Galáxias, apostando na possibilidade que reside nesse querer-dizer do fluxo
significante, radicalizam um movimento dessubjetivante que permanece implícito nos mais
simples atos de palavra (cf. Agamben, 2005, p. 107). Nesse processo, quem fala não é o
indivíduo, mas a língua mesma (cf. Agamben, 2005, p. 109), expondo ao mesmo tempo não
mais do que a instância indicial da linguagem5 – “selva de símbolos também / selvaggia e aí
estou aí fui aí sou eu ou outro eu mesmo ninguénheu ou outro” (frag. 10). “Falando” através
do jogo entrecortado dos significantes espacializados na página praticamente como imagens,
o texto se perfaz enquanto veículo de uma voz que não mais está aí e cujo significado ainda
não é apreensível (cf. Agamben, 2008, p. 49). Assim, o processo de construção do texto
através das séries paronomásicas acaba por expor à consideração de

un‟intenzione di significato distinta dal mero suono e, tuttavia, non ancora


significante [...] Non, quindi, propriamente di fonosimbolismo si tratta, ma di una
sfera, per così dire, al di qua o al di là del suono, che non simbolizza nula, ma,
semplicemente, indica un‟intenzione di significato, cioè la voce nella sua purezza
originaria: indicazione che non ha il suo luogo né nel mero suono né nel significato,
ma potermmo dire, nei puri grammata, nelle pure lettere (Agamben, 2010, p. 66).

5
Conforme Agamben (2005, pp. 107-108) nos lembra, “Uno dei princìpi acquisiti dalla linguistica moderna è
che la lingua e il discorso in atto sono due realtà assolutamente scisse, fra le quali non esistono né transizione né
comunicazione [...] D‟altra parte, ogni lingua dispone di una serie di segni (che i linguisti chiamano shifters o
indicatori dell‟enunciazione, fra i quali, in particolare, i pronomi «io, tu, questo», gli avverbi «qui, ora ecc.»)
destinati a permettere all‟individuo di appropriarsi della lingua per meterla in funzione. Carattere comune di tutti
questi segni è che essi non possiedono, come le altre parole, un significato lessicale, definibile in termini reali,
ma possono identificare il loro senso solo attraverso un rimando all‟istanza di discorso che li contiene [...]
L‟enunciazione non si riferisce, cioè, al testo dell‟enunciato, ma al suo aver luogo e l‟individuo può mettere in
funzione la lingua solo a patto di identificarsi nell‟evento stesso del dire e non in ciò che, in esso, viene detto”.
7

Os desdobramentos das Galáxias, no entanto, não param por aí e apontam para uma
consideração residual da linguagem, que percebe o sem sentido que permeia a atividade
escritural como a própria possibilidade de apresentar algum sentido:

o que eu mais vejo aqui neste papel é o vazio do papel se redobrando escorpião
de palavras que se reprega sobre si mesmo e a cárie escancárie que faz
quando as palavras vazam de seu vazio o escorpião tem uma unha aguda de
palavras e seu pontaço ferra o silêncio unha o silêncio uno unho escrever
sobre o não escrever e quando este vazio mais se densa e dança e tensa
seus arabescos entre escrito e excrito tremendo a treliça de avessos
branco excremento de aranhas supressas suspensas silêncio onde o eu se
mesma e mesmirando ensimesma emmimmesmando filipêndula de texto extexto
por isso escrevo rescrevo cravo no vazio os grifos desse texto os garfos
as garras e da fábula só fica o finar da fábula o finir da fábula o
finíssono de quem em vazio transvasa o que mais vejo aqui é o papel que
escalpo a polpa das palavras do papel que excalpo os brancos palpos do
telaranha papel que desses fios se tece dos fios das aranhas surpresas
sorrelfas supressas pois assim é o silêncio e da mais mínima margem
da mais nuga nica margem de nadanunca orilha ourela orla da palavra
o silêncio golfa o silêncio glória o silêncio gala e o vazio restaura
o vazio que eu mais vejo aqui neste cós de livro onde a viagem faz-se
nesse nó do livro onde a viagem falha e falindo se fala onde a viagem
é poalha de fábula sobre o nada é poeira levantada é ímã na limalha (frag. 31)

Entre o “escrito” e o “excrito”, o texto postula o aparecimento da “treliça de


avessos” de onde emerge, irrevogavelmente, “o finar da fábula o finir da fábula”. A viagem,
dessa maneira, traz consigo a consideração de que a fiação, a ficção – “a trama das relações
estabelecidas, através do próprio discurso, entre aquele que fala e aquele do qual ele fala”
(Foucault, 2006, p. 210) – é o seu sentido mais “finíssono”. Mas, além disso, o
ensimesmamento da viagem metalingüística se mostra enquanto ensimesmamento – ou
reflexão – daquele silêncio tão densamente reiterado pela palavra “excrita”, silêncio que sai
do texto dançando. É assim que nesse sem sentido, ou melhor, nesse sentido esvaziado de sua
univocidade, a epopéia deslinda em “um baedecker de epifanias” que, ao mesmo tempo, “é
uma epifania em baedecker” (frag. 8). Em outros termos, o livro de viagens – o guia,
“baedecker” – que apresenta seu sentido possível no fazer-se do “liber figurarum” (frag. 38),
através do corte e montagem do significante, desvelando à materialidade do signo a sua
constituição de resíduos. Expondo-se assim, por outro lado, elas também são portadoras de
um magnetismo tão denso e carregado que chega a produzir intervalos de brilho: “cintila de
centelha [...] lumínula de nada” (frag. 1), “poeira levantada é ímã na limanha” (frag. 31),
“formas non per color ma per lume parvente plasma luminoso fuor di / color” (frag. 33).
Nesse sentido, o brilho das Galáxias irradia ao longo do texto dispondo-se ao pensamento do
8

fato de que os homens usam a linguagem para expor a marca de uma experiência em um
mais além do próprio conteúdo comunicado (cf. Agamben, 2007, p. 66).
Esses movimentos delineados através da (des)ordem dos significantes, veículos de
uma fala bárbara, atingem e golpeiam a superfície da página6 especulando um paraíso que
adquire a consistência daquele exposto no fragmento 33 das Galáxias. Aí, o “labirintoandar”
da viagem “suspende a poeira” da “escritura legível numa língua / flamíssona”, onde “seu
paraíso era spezzato partido também feito / de fragmentos e crollava caía como uma torre
derrupta si rischia di” (frag. 33). A queda é imagética e, em sua caída, suspende e expande
pontos luminosos – “punti luminosi”. Escrito entre 17 e 27 de janeiro de em 1968, o episódio
é interessante, logo de cara, por tratar de um momento bem explicitamente “museológico” da
viagem: desdobrando uma série de figuras decadentes, o fragmento retoma o episódio em que
Haroldo de Campos visitou Veneza e o poeta Ezra Pound, em Rapallo (cf. Campos, 2010, pp.
191-203), na costa genovesa, em fins da década de 50. Nesse sentido, o “mármore ístrio
enegrecendo na sombra” com o qual o fragmento se inicia pode evocar a velhice de Pound
em sua decrepitude balbuciante de quem se tornou “molto stupido reclinado no sofá” (frag.
33). De outro modo, segundo um movimento quase reflexo e analógico, o fragmento agrega à
decadência do poeta a figura de uma torre que cai. Mas não podemos saber exatamente de
qual torre se trata. Desenrolando-se em torno do ambiente veneziano, o incidente pode se
referir ao colapso do campanário da Basílica de São Marcos, em 12 de julho de 1902. Por
outro lado, transubstanciado também pelo contato com a “matéria do paradiso de dante”
(frag. 33), a operação do texto parece carregar consigo uma sugestão dantesca que explicaria,
ou seja, desdobraria a fragmentação exercida sobre o significante, fazendo-a incidir sobre o
episódio da torre de Babel e sobre a consideração da experiência de linguagem exposta nas
Galáxias.

6
Esses golpes mantêm certa familiaridade com a consideração feita pelo crítico Gonzalo Aguilar (2005, pp. 321-
322) em relação ao neobarroco de Haroldo de Campos: “Os procedimentos que Sarduy havia erigidos como
neobarrocos, em seu famoso ensaio “O Barroco e o Neobarroco”, podem ser aplicados sem muita dificuldade
aos poemas em prosa de Haroldo: o esbanjamento, o artifício (com suas substituições, proliferações e
condensações) e a paródia [...] Talvez o que poderia ser considerado como o núcleo barroco da escritura latino-
americana seja, além dos apontados por Sarduy, a consideração da linguagem como realidade última sobre a qual
se exerce uma violência. Essa violência foi interpretada por Walter Benjamin como uma pretensão de chegar às
fontes da linguagem, e explicaria certas características estilísticas do que se denominou neobarroco. O signo
como resto material, ruínas, adquire o caráter de um hieróglifo ou uma pedra inerte, à qual o poeta trata de
insuflar vida ou sentido. E esse sentido não provém de uma garantia externa (o sujeito), mas se trata de „uma
produção de sentido que vem antes, ou procede de fora do sujeito‟ (Sarduy)”.
9

Segundo o teórico Daniel Heller-Roazen (2010, p. 184), a narrativa da torre de


Babel, presente no capítulo IX, versículos 1 a 9, do Gênesis (Bere’shit)7, traz um problema
que se refere ao modo de execução do julgamento divino, ou seja, como a terra inteira teria
passado de uma língua a várias. A confusão causada pela pluralidade lingüística e o
conseqüente espalhamento dos homens, nesse sentido, não teriam como origem uma
produção divina que diferenciaria a língua primeira daquelas nascentes:

Estritamente falando, Deus não produz a pluralidade de idiomas que a partir de


então dividirá os homens da terra: nada, ao que parece, é acrescentado à “língua
única” que precede a torre para fazê-la múltipla. Ao mesmo tempo, porém, o relato
bíblico da punição não indica em lugar algum que a vontade divina intervém para
retirar um elemento comum da língua original da humanidade: nada é subtraído do
idioma uno dos homens, que permitisse sua dispersão. É talvez nesse sentido que se
deva entender o verbo hebraico usado para caracterizar a ação divina dirigida contra
os construtores de Babel [...], que não implica nem adição, nem subtração. Deus,
diz-nos o Livro do Gênesis, “confundiu” a língua da terra, e o resultado do seu ato
não foi criação ou destruição, mas, simplesmente, um estado de confusão geral
(Heller-Roazen, 2010, pp. 184-185).

Retomando a etimologia apresentada pelo exegeta bíblico alexandrino do século I, Filo Judeu,
Daniel Heller-Roazen (2010, p. 185) considera que a confusão “não é o mesmo que
meramente destruir, nem simplesmente criar”, mas implica a destruição de qualidades
primitivas “em vista da criação de uma substância única e diferente”. Diante disso, a confusão
babélica evocaria o contrário daquela imaginada por Filo Judeu, na medida em que “a punição
dos construtores babélicos não levou a uma união e dissolução da pluralidade dos elementos
em „uma nova substância‟” (Heller-Roazen, 2010, p. 185). A resposta ao questionamento
sobre que tipo de confusão poderia ter transformado um idioma em muitos o teórico encontra
em uma passagem do tratado sobre a linguagem De vulgari eloquentia I, IX, 6-7, onde Dante
se refere ao esquecimento da língua anterior:

Dicimus ergo quod nullus effectus superat suam causam, in quantum effectus est,
quia nil potest efficere quod non est. Cum igitur omnis nostra loquela, preter illam
homini primo concreatam a Deo, sit a nostro beneplacito reparata post confusionem
illam que nil aliud fuit quam prioris oblivio, et homo sit instabilissimum atque
variabilissimum animal, nec durabilis nec continua esse potest, sed sicut alia que
nostra sunt, puta mores et habitus, per locorum temporumque distantias variari
oportet (Alighieri, 2010, pp. 1220, 1222)8.

7
Esse mesmo texto foi transcriado por Haroldo de Campos e publicado no livro Éden. Um tríptico bíblico, de
2004.
8
“Diciamo dunque che nessun effetto, in quanto tale, supera la propria causa, perché niente può produrre ciò che
già non è. E poiché ogni nostra lingua, tranne quella concreata da Dio nel primo uomo, è stata ricostruita a nostro
beneplacito, dopo quella confusione che non fu altro che oblio della lingua precedente; e poiché l‟uomo è un
animale instabilissimo e mutevolissimo; non può essere né durevole né persistente, ma al pari delle altre cose
10

Dessa maneira, entendida como esquecimento da língua pré-babélica – onde o nome designa a
plenitude e a univocidade das coisas –, a confusão decorrente do juízo divino assinalaria o
princípio mítico da diversidade lingüística, marcando uma experiência de duplicidade
irredutível. A linguagem nascente, por assim dizer, “constituiria não apenas a reconstituição
da anterior, mas também, paradoxalmente, sua desconstituição. Ao falar, já teríamos desde
sempre começado a esquecer, mesmo – ou especialmente – quando não o soubéssemos”
(Heller-Roazen, 2010, p. 188). Replicando-se, então, a consideração dantesca sobre Babel ao
longo das próprias operações que constituem o movimento galáctico, encontramos um
elemento a mais que marca um excesso no pensamento da linguagem como veículo da
presença original, onde o signo parece transcender – por uma sorte de crença – aquela barra
que, desde Saussure, separa o significante de seu significado. Esquecida a língua da
comunicação plena, a consideração dos homens pós-babélicos passa a ter que lidar com a
duplicidade que marca o estatuto da presença no Ocidente. Aliás, se o próprio autor das
anotações que deram origem ao Curso de Lingüística Geral, também já havia percebido a
arbitrariedade subjacente na relação entre significante e significado 9, o jogo encadeado pelas
Galáxias também parece comportar uma nesga da experiência demasiadamente humana de
sua mais própria instabilidade e variabilidade10.
O mesmo fragmento 33 ao qual fazia referência traz um significante curioso:
“obnubilando”, ou seja: “rosa-ouro pontiúnculos de irisado mosaico nuvem e obnubilando à
luz- / sombra o mosaico é um livro de renda de ouro e ocelos de pavão / um livro que se

umane, come i costumi e le abitudini, necessariamente varia con la distanza nello spazio e nel tempo” (Dante,
2010, pp. 1221, 1223).
9
«La legge veramente ultima del linguaggio, almeno per quanto osiamo dirne, è che non c‟è mai nulla che possa
risiedere in un solo termine, e questo a causa del fatto che i simboli linguistici sono senza relazione con ciò che
debbono designare, dunque che a è incapace di designare qualcosa senza l‟aiuto di b, e parimenti b senza l‟aiuto
di a, ovvero che tutti e due non valgono che per la loro differenza reciproca, o che nessuno dei due vale, sia pure
per una parte qualunque di sé (per esempio «la radicce», ecc.), altro che per questo stesso plesso di differenze
eternamente negative» (Saussure apud Agamben, 2006, pp. 183-184).
10
Não deixa de ser interessante notar que, na transcriação do episódio babélico, Haroldo de Campos usa o verbo
“babelizar” onde normalmente surge “confundir”: “Eis a terra § uma língua-lábio una §§§ / E palavras § unas //
2. E eis § no que viajaram para o Oriente §§§ / E se depararam com um vale §§§ na terra de Shinar § / e pararam
lá // 3. E disseram § um para o outro § vamos § / pô-los os tijolos §§ no fogo § e afogueá-los §§§ / E o tijolo para
eles § foi como § pedra-de-apoio §§ / e a massa de argila §§ foi para eles § argamassa // 4. E eles disseram §
vamos § / construamos para nós uma cidade § e uma torre § / e seu topo no céu §§ e façamos para nós § um
nome §§§ / Ao inverso § seremos dispersos sobre a face de toda a terra // 5. E baixou Ele-O Nome §§ / para ver a
cidade § e a torre §§§ / Que construíram § os filhos-constructos do homem // 6. E disse Ele-O Nome § / um povo
uno § e uma língua-lábio una § para todos §§ / e isto § só o começo do seu afazer §§§ / E agora § nada poderá
cerceá-los §§ / no que quer § que eles maquinem § fazer // 7. Vamos § baixemos §§ / e lá babelizemos § sua
língua-lábio §§§ / Que § não entenda §§ um § / a língua-labio do outro // 8. E os dispersou Ele-O Nome § de lá §
/ sobre a face de toda a terra §§§ / E eles cessaram § de construir a cidade // 9. Por isso § chamou-se por nome §
Babel §§ / pois lá § babelizou Ele-O Nome § / a língua-lábio de toda a terra §§§ / E de lá § dispersou-os Ele-O
Nome §§ / sobre a face § de toda terra” (Campos, 2004b, pp. 81-83).
11

ilumina e decora em fina escritura legível numa língua flamíssona”. A obnubilação teve entre
nós uma conceituação que foi apresentada em fins do século XIX pelo crítico Araripe Jr. –
assim como Haroldo, ele também era um leitor especialíssimo de Gregório de Matos. Mas
além dessa primeira coincidência, encontramos uma segunda, que pode apontar os reflexos de
uma tênue linha de fuga no projeto matemático-mecânico do concretismo. Essa segunda
coincidência está no fato de que a obnubilação, tal qual considerada por Araripe Jr., se refere
à experiência sensorial – ou animal – daquele europeu que viaja para o Novo Mundo:

Consiste este phenomeno na transformação por que passavam os colonos


atravessando o oceano Atlantico, e na sua posterior adaptação ao meio physico e ao
ambiente primitivo. Basta percorrer as paginas dos chronistas para reconhecer esta
verdade. Portuguezes, francezes, hespanhoes, apenas saltavam no Brazil e
internavam-se, perdendo de vista as suas pinaças e caravellas, esqueciam as origens
respectivas. Dominados pela rudez do meio, entontecidos pela natureza tropical,
abraçados com a terra, todos elles se transformavam quasi em selvagens; e se um
nucleo forte de colonos, renovado par continuas viagens, não os sustinha na lucta,
raro era que não acabassem pintando o corpo de genipapo e urucú e adoptando
idéias, costumes e até as brutalidades dos indigenas (Araripe Junior, 1910, pp. 37-
38).

A obnubilação expõe ao homem uma instância de cognoscibilidade que não se dá sem uma
especial relação com a imagem. Aquém ou além da procura de algo que deveria ser revelado,
aquilo que vem encoberto como que por uma nuvem – uma obnubilationis – faz considerar
uma existência que se abre – e multiplica suas possibilidades – ao agregar parcelas e
fragmentos de mundo que são, a princípio, totalmente alheias. Esse evento supranumerário,
esse aparecimento tão frondoso que ofusca a visão e entorpece o cálculo da razão, nos expõe,
então, não mais ao pensamento do ser, mas sim aos seus modos de ser11. Nesse sentido, diante
da experiência da obnubilação, original é o movimento que se expõe ao um “vértice vórtice”
(frag. 12) onde o processo de conhecimento se perfaz enquanto vivência que não se constrói
pela afirmação prévia do sujeito em contraposição ao objeto, mas que se processa enquanto
houver vida em uma instância estranha a ambos, o meio, tornando possível a existência do
mundo enquanto imaginação (cf. Coccia, 2010, pp. 22-24) – aprofundamento da animalistas.
Dessa maneira, a viagem galáctica, diante do mundo, faz-se “pulverulenda em viagem
delenda pelo / oco da viagem” (frag. 30) e o texto, “com seus turnos de branco esse
diurnoturno rodízio de vazio e pleno de cala e fala de fala e falha” (frag. 31), expõe-se como
espaço onde podem surgir sentidos (e uso o termo na sua acepção sensorial também). Objeto e

11
“Talvez chamemos de vida somente aquilo que pode relacionar-se consigo mesmo na forma de um costume,
de uma moda: vivente é aquilo que não tem uma substância, mas que adere à própria substância apenas através
de um costume, de uma moda. Vive apenas aquele que não tem um ser, mas apenas modos de ser” (Coccia,
2010, pp. 78-79).
12

sujeito se perfazem enquanto movimento “escrevivo escrevivente” (frag. 31). O percurso da


viagem, portanto, não desvela um signo senão em sua duplicidade de significante e
significado, reiterando a barra que os separa pela multiplicação em fragmentos. A significação
completa e total do mundo não se esgota, não se resolve. Pelo contrário, a significação se
dissolve em poeira “rosa-ouro puntiúnculos de irisado mosaico nuvem e obnubilando à luz- /
sombra o mosaico é [...] um / livro que se ilumina e decora em fina escritura legível numa
língua / flamíssona” (frag. 33). Em outros termos, hesitando entre som e sentido ou
produzindo um efeito de tromp l’oeil que passa pelo visto e atinge o ouvido, os giros que
compõem o movimento das Galáxias fazem das palavras fragmentos e restos de uma
decomposição de significantes que se recompõem diferencialmente segundo a dinâmica da
“dobra que vai ao infinito” (Deleuze, 2005, p. 13). As palavras se formam e deformam como
cacos e resíduos de uma unidade que não volta12 e, assim, não apontam para o ser, senão para
os modos de ser. É com essa matéria desgastada que os textos de Galáxias especulam o
caráter medial da linguagem delineando um mosaico – “o mosaico sempre estivera ali
soletrado / em pequenas pedras soletrando-se em pequenas pedras” (frag. 12). Pedaços de
frases ouvidas ao longo de viagens às mais diferentes regiões do globo juntando-se a
considerações ensimesmadas sobre a arte poética ou refletindo-se em citações entrecortadas
de textos mais antigos, os fluxos e refluxos das palavras se fazem ver na superfície das
páginas estabelecendo o aparecimento de instantes “jaguarfúlguros” (frag. 12).
Assim, se Haroldo de Campos (2004c, p. 257-258) dizia que sua relação com a
tradição era antes musical do que museológica, ressaltando a conexão desses termos com
aquele grego que definia a “musa” – do qual também teria derivado “mosaico” –, as Galáxias
delineiam o percurso textual que se abre a uma apreciação musical... “cacofônica”, por assim
dizer. Nesse sentido, as palafras fragmentadas – ou, então, os cacos da linguagem – com que o
texto se formula e reformula enquanto música e mosaico trazem consigo uma experiência da
“musa” que converte poesia em filosofia e filosofia em poesia. Conforme nos lembra
Agamben (2008, p. 97), “musa” é o nome que os gregos davam à experiência da
inaferrabilidade do lugar originário da palavra. A escrita poética, dessa maneira, canta o
descanto, ou seja, “trova l‟introvabile” (Agamben, 2008, p. 97). Mas, além disso, fazendo do
texto um mosaico de palavras flexionando-se e refletindo-se, Haroldo de Campos também nos
indica que ao canto e seu descanto também se agrega a decantação dos resíduos como uma
possibilidade de fazer sentido ao sem sentido da viagem. Ou seja, nessa viagem onde “o que /

12
Os fragmentos remetem a um sentido “di frantumi, di resti di un‟unità perduta, come in Isidoro XX, 2, 18:
fragmenta, quia dividitur, ut fracta” (Agamben, 2010, p. 81).
13

conta não é o conto mas os desvios e desacordes” (frag. 40), o texto “sacode esporos e pólens
numa germinação de fécula apodrecida e matéria albuminal” e, com esse gesto “translumina
essa linguamorta” (frag. 50). Não mais do que um querer-dizer onde a voz se retrai sem que
um significado complete a sua ausência, a linguagem se expõe enquanto medium (cf. Coccia,
2010, p. 19) cuja consistência não coincide com a daquele que nomeia nem com a aquela do
nominado. Nesse âmbito medial configurado pela linguagem, o deslocamento galáctico
pelo(s) mundo(s) apresenta a significação como um tornar-se imagem, um “fazer experiência
desse exílio indolor em relação ao próprio lugar, em um espaço suplementar que não é nem o
espaço do objeto nem o espaço do sujeito, mas que deriva do primeiro e alimenta e torna
possível a vida do segundo” (Coccia, 2010, p. 23). Flexionando a cisão imemorial da língua,
torna-se possível perceber que o “paraíso era spezzato partido também feito / de fragmentos”.
Não transcendendo, a mesma instância fragmentária que obnubila a visão do paraíso – “avrà
quasi l‟ombra della vera costellazione” (frag. 50) – permite um movimento imaginativo em
que a “mente quase-íris se emparadisa” (frag. 50). Isso quer dizer, então, que o movimento
não cessa e, não cessando, se abre à possibilidade de fazer um sentido. Assim, no fim do livro,
uma tarefa de pensamento também se expõe imaginativamente apontando que “no fim deste
um um outro é já mensageiro do / novo no derradeiro que já no primo se ultima” (frag. 50)13.

REFERÊNCIAS

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Einaudi, 2008.

________________. Categorie italiane. Studi di poetica e di letteratura. Roma – Bari:


Editori Laterza, 2010.

13
A consideração de que a viagem não se esgota, ou seja, de que a significação não se esgota encontra outra
formulação em “Le don du poème”, escrito em 23 de março de 1985: “um poema começa / por onde ele termina:
/ a margem de dúvida / um súbito inciso de gerânios / comanda seu destino // e no entanto ele começa / (por onde
ele termina) e a cabeça / grisalha (branco topo ou cucúrbita / albina laborando signos) se / curva sob o dom
luciferino – // domo de signos: e o poema começa / mansa loucura cancerígena / que exige estas linhas do branco
/ (por onde ele termina)” (Campos, 1985, p. 38).
14

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SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo

OS DISCURSOS RELIGIOSO E FOLCLÓRICO EM O BOM DIABO, DE


MONTEIRO LOBATO

Marilia Simari Crozara (UFU) 1


Yvonélio Nery Ferreira (UFAC; PPGL/UFSC)2

RESUMO

Irreverente, talentoso, irônico, apaixonado, idealista, sonhador, radical, contraditório. Esses


podem ser adjetivos que direcionam uma caracterização de Monteiro Lobato frente aos
problemas sociais e à arte brasileira. Em sua obra podemos observar o entrecruzamento de
vários discursos, dentre eles o religioso e o folclórico, como observado na obra Contos da Tia
Nastácia, publicada em 1937, uma antologia de historietas populares narradas pela
personagem título da obra lobatiana a pedido de Pedrinho e da boneca Emília. Nesta obra o
neto de Dona Benta solicita à boneca que questione à avó o que seria folclore, com a resposta
de Dona Benta, Pedrinho reflete sobre e esclarece a Emília seus intentos frente a criada negra,
que desfia os contos populares aos moradores do sítio que, interpelam e os criticam, tornando
cada vez mais tensa a relação discursiva entre os apreciadores dos contos populares. Nesse
trabalho artesanal de Monteiro Lobato, observamos que no conto "O bom diabo" o amansar
da maldade e a desmitificação da bondade se compenetram, viabilizando, a partir da simetria
entre São Miguel e o Diabo, pensar em que medida esses sentimentos constituem o ser
humano e a sociedade ocidental. Portanto, buscaremos mostrar como se constituem os
discursos religioso e folclórico na história infantil "O bom diabo", de Monteiro Lobato.

Palavras-chave:
Literatura infantil. Discurso religioso. Cultura brasileira. Monteiro Lobato.

ABSTRACT

An irreverent, talented, ironic, passionate, idealistic, dreamy, radical and contradictory writer.
These are some adjectives that can be attributed to Monteiro Lobato in front of social
problems and Brazilian art. In his books we can observe we see the interweaving of various
discourses including the religious and the folkloric ones, as in Aunt Nastacia‘s tales,
published in 1937, an anthology of popular tales told by the character Aunt Nastacia, at the
request of the boy Pedrinho and the doll Emilia. In this book, Pedrinho asks Emilia to
question the grandmother Mrs. Benta what is folklore. When she answers, Pedrinho reflects
on her words and tells Emilia that he intends to ask the black maid to tell them popular tales
to the residents of the Yellow Woodpecker Ranch. After the tales are told, the children
criticize the stories and the discourse relationship become more and more tense. In this
Lobato‘s artisanal work, the tale ―The good Devil‖, we observe that the taming of evil and the
goodness demystification are shown. From the symmetry between Saint Michael and the
Devil, it is possible to think in which extension these feelings constitute the human being and
the occidental society. So that, this paper aims to show how the religious and folkloric
discourses constitute the child tale ―The good Devil‖, from Monteiro Lobato.

1
Mestre em Linguística – UFU; e-mail: mariliascz@yahoo.com.br.
2
Professor de Teoria Literária e Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade Federal do Acre, Campus
Floresta, Centro Multidisciplinar, Cruzeiro do Sul – Acre. Doutorando em Literatura – UFSC; e-mail:
yvonery@hotmail.com.
2

Keywords:
Child Literature. Religious discourse. Brazilian culture. Monteiro Lobato.

1 NOTAS SOBRE LITERATURA INFANTIL


Pensar a literatura infanto-juvenil é refletir sobre a evolução da família burguesa e o
status adquirido pela criança na sociedade e no âmbito doméstico no decorrer deste percurso.
É questionar o modo como à esta literatura foram atribuídas características de inferioridade se
comparada à literatura geral. É indagar acerca das funções iniciais de sua origem e as que a
ela hoje são destinadas.
O papel exercido pela criança no seio da família não é o mesmo ao longo da história.
Na Idade Média, a organização familiar estava pautada no sistema de linhagens e clientela,
atrelada à estrutura feudal, buscando a preservação da propriedade e a transmissão de
heranças. Para tanto, o casamento representa um dos principais instrumentos de manutenção
deste sistema, fazendo com que fosse recorrente a exclusão dos laços afetivos, para se atender
aos anseios de um grupo. Excluí-se, deste processo, as noções de privacidade e de vontade
individual, o chefe da família a guiava a partir de seus interesses, demonstrando, assim,
fraqueza dos laços afetivos que deveriam ligar pais e filhos.
Neste contexto, à criança não era destinada nenhum tipo de atenção específica por
parte dos pais que, por vezes, as tratavam como iguais, fazendo-as participar de modo
igualitário da vida adulta. Estavam presentes no trabalho, nas festas, nas guerras, nas
execuções, dentre outros eventos, compartilhando de todos os momentos naturais da
existência humana. As crianças eram constantemente negligenciadas, tratadas com brutalidade
e hostilidade, o afeto era algo escasso, atitudes também responsáveis pelos altos índices de
mortalidade infantil.
Um bom exemplo do descuido que a família tinha com as crianças era a presença
constante das amas-de-leite, muitas vezes, as únicas responsáveis pela manutenção alimentar
e educacional nos primeiros anos de vida. Ou seja, este papel não era reservado à mãe, que só
tomará para si a função materna no século XVII, quando ocorrem mudanças profundas na
estrutura familiar, propiciando a elevação da mulher no ambiente doméstico.
O século XVII marca o fim de inúmeras condutas seguidas na Idade Média. Ocorre a
centralização do poder nas mãos de um governo absolutista, consequentemente, há o
enfraquecimento dos grupos de parentesco e a abolição do poder baseado no feudalismo. É o
momento de ascensão do Estado Moderno e da burguesia como mantenedora deste Estado a
partir de uma aliança entre o poder político centralizador, a camada burguesa e o capitalismo,
3

ocasionando o surgimento de uma nova ideologia familiar, erigida no individualismo, na


privacidade e na promoção do afeto.
Há, segundo Regina Zilberman e Lígia Cademartori Magalhães (1974, p. 06), dois
momentos diferenciados neste processo:

(...) no século 17, a organização é fortemente patriarcal e recebe grande influência e


estímulo dos protestantes, já que os pastores viam a criança como um indivíduo que
somente podia ser domado pela educação religiosa rígida, cabendo aos pais este
papel de sujeição da vontade infantil; no século 18, os pequenos e as mulheres
gozam de maior liberdade, de modo que a família exibe a imagem de uma parceria
interna, dominada pelo liberalismo e calor afetivo, e não pelo poder paterno e a
obediência hierárquica.

Mas, é no século XVIII que ocorrerá uma verdadeira valorização da infância,


ascendendo as crianças ao cerne das observações. Os infantes passam a ser vistos como um
grupo de caráter especial, diferente dos adultos, com características individuais. Para tanto,
necessitavam de tratamento diferenciado, o que desencadeou a criação de instituições
especializadas como as escolas, responsáveis agora pela inserção e união entre as crianças e o
mundo.
Neste contexto burguês e absolutista, a família reestrutura-se, adquirindo status
diferenciado do observado na Idade Média. "A criança burguesa encontra-se plenamente
integrada no contexto familiar, uma vez que este foi solidificado para resguardá-la" (Op. Cit.,
p. 09). Com isso, o agente desta proteção passa a ser a personagem materna, ocasionando uma
ascendência da mulher na organização doméstica. Vale ressaltar, apenas na vida doméstica,
pois fora dela a mulher e a criança são excluídos da esfera pública, espaço reservado ao
homem.
O surgimento da Literatura Infantil está intimamente ligada à esse processo de
ascensão da família burguesa e mudança de tratamento dado às crianças. Foi nitidamente um
tipo de escrita que decorreu das exigências próprias de seu tempo. Esta nova organização
familiar necessitava de uma expressão literária específica para seus filhos que precisavam se
(in)formar. Pensando nisso, observa-se que há um caráter pedagógico na origem da produção
literária destinada à criança, mas esse é apenas um dos vários aspectos tangíveis à este forma
de produção e que não pretendo aprofundar aqui. Procurarei, então, a partir do exposto,
apresentar algumas marcas típicas dos textos infantis.
A natureza literária do texto infantil o coloca além dos objetivos pedagógicos
comprometidos com a legitimação das instituições, costumes e crenças que a geração adulta
quer legar à infantil. A literatura propicia uma reorganização das percepções do mundo,
4

possibilitando experiências existenciais da criança, provocando a formação de novos padrões


e o desenvolvimento do senso crítico.
Quando se pensa no adjetivo ‗infantil‘ que acompanha o substantivo ‗literatura‘,
particulariza-se a questão dessa literatura em função do destinatário estipulado: a criança. É
um tipo de texto escrito para a criança e lido por ela, mas escrito por um adulto. Mesmo
estabelecendo essa relação de um ser que domina, o adulto, e um que é dominado, a criança,
em termos de escrita e leitura, a literatura infantil se configura não só como instrumento de
formação conceitual, mas, também, de emancipação da manipulação da sociedade. A
literatura surge como um meio de superação da dependência e da carência por possibilitar a
reformulação de conceitos e a autonomia do pensamento.
O caráter formador da literatura infantil vinculou-a, desde sua origem, a objetivos
pedagógicos, que por muito tempo silenciou no texto questões relativas à sexualidade, ao
racismo, à segregação das mulheres, e à outras mazelas da sociedade e de seus jogos de poder.
Era um discurso monológico que não abria brechas para interrogações, para o choque de
verdade, para o desafio de diversidade. Nessa história, os pais são os modelos a serem
seguidos, a alternativa é obedecer e seguir um modelo imposto.
A literatura infantil tem como parâmetro contos consagrados pelo público mirim de
diferentes épocas. No século XVII, Charles Perrault coleta contos e lendas da Idade Média e
adapta-os, constituindo os chamados contos de fadas. Nos século XIX outra coleta de contos é
realizada pelos irmãos Grimm, por Christian Andersen. Outros importantes são Collodi,
Lewis Carrol, Frank Baum, dentre outros.
Vários fatores na obra de Charles Perrault são apontados como elementos básicos da
literatura infantil como a preocupação como didático e a relação com o popular. A análise dos
contos de Perrault requer um enfoque interdisciplinar sendo que os problemas que suscita não
se restringem à teoria da literatura, à sociologia, à psicanálise ou ao folclore, mas à união
desses enfoques.
Já a literatura infantil brasileira inicia sob a égide de um dos mais destacados
intelectuais: Monteiro Lobato, ao mesmo tempo prestigiando o gênero e fazendo com que, por
muito tempo, a literatura infantil brasileira vivesse à sombra de seu nome. Com isso,
processa-se no Brasil, em virtude de sua formação histórica, uma confluência cultural em que
ao nativo se acrescenta o pensamento estrangeiro, não se tratando de uma união, mas uma
segregação, fazendo desenvolver, assim, dois tipos de cultura no Brasil: uma europeia, elitista,
livresca; outra popular, nativa, agráfica. O escritor brasileiro, formado pelo pensamento
europeu, via seu país de fora.
5

Monteiro Lobato concilia o que é brasileiro com as inevitáveis contribuições da


cultura estrangeira. Era um Lobato inquieto perante a situação nacional nos diferentes
âmbitos. Há a valorização da tipificação humana, como em Jeca Tatu, estabelecendo uma
ligação entre a literatura e as questões sociais. É um nacional sem ufanismos, mas com olhos
críticos aos problemas da sociedade brasileira. Os livros infantis de Lobato criam um mundo
que não se constitui num reflexo do real, nas na antecipação de uma realidade que supera os
conceitos e os preceitos da situação histórica em que é produzida.
Em outra perspectiva, nota-se que o esforço de compreensão crítica do passado
permite, em suas histórias, um redimensionamento do presente que, por sua vez, torna
possível a prospecção, ou seja, o olhar para o futuro. Hans Robert Jauss (1994) postula que o
leitor é uma força histórica e criadora e que a obra pode ser apreciada a partir do papel ativo
que ela possibilite a seu destinatário. A leitura de textos poéticos à criança em fase de
alfabetização, por exemplo, não só aproxima o livro como fonte de conhecimento e de prazer,
como exerce papel importante na formação da expressão verbal.
A narrativa de que há um perigo iminente ameaçando as personagens não faz com
que a criança se esconda. Essa independência entre o que é percebido e a ação é fruto de um
longo processo de desenvolvimento. As ações narradas referem-se a uma situação que não é
vista e que só é concebida no imaginário, local onde pode-se apontar figuras recorrentes,
como fadas, príncipes, princesas, reis, rainhas, seres mitológicos, animais falantes e, até
mesmo, o Diabo. Aliás, essa figura aparece de forma variada em diversos textos destinados ao
público infantil.
Com fundamento nos diversos aspectos apresentados acerca da origem e
características da literatura infantil que se pretende observar como a imagem do Diabo
aparece no conto O bom diabo presente na obra Contos da Tia Nastácia, de Monteiro Lobato
(1995). Para tanto, antes da abordagem sugerida, se faz necessário alguns breves
apontamentos a respeito da forma como se construiu um imaginário da figura do Diabo na
cultura ocidental.

2 O DIABO E A CONSTRUÇÃO DE UM IMAGINÁRIO


Para apresentar alguns aspectos acerca da construção da figura do Diabo nos
basearemos em pressupostos teóricos de Gerald Massadié (2001), em História geral do
Diabo: da antiguidade à idade contemporânea e Carlos Roberto F. Nogueira (2000), em O
Diabo no imaginário cristão.
6

No prefácio do livro História geral do Diabo: da antiguidade à idade


contemporânea, o autor, Gerald Messadié, comenta, de forma irônica, inúmeras referências
feitas a partir da figura do Diabo, a começar ressaltando que o Diabo era uma personagem
política, uma vez que várias autoridades atribuíam e ainda atribuem características de Satanás
a outros políticos. Além disso, há uma banalização à figura do Diabo que ocorre nas ameaças
feitas a crianças, o que poderia gerar dúvidas sobre a existência desta personagem.
Elemento importante a se questionar ao abarcar a figura do diabo é a existência do
mal e da tentação anteriores ao Diabo, fato sem resposta, ou a resposta estaria em Deus,
segundo o Antigo Testamento3, criador do bem e do mal. O que parece é que era preciso que
Deus tivesse o seu simétrico, para que não lhe fosse atribuídos os males da humanidade. É
como se participássemos de uma guerra incessante contra o Mal, que sustenta um grande
fanatismo e exerce uma influência política considerável.
Nossa história oficial e ocidental – judaico-cristã – começa com uma perda, a do
paraíso, aqui já poderíamos apontar diversas questões referentes à interferência do Diabo,
como inveja da criação de Deus. Mas o que é fato, são as várias contradições no livro Gênesis
no que se refere à figura da serpente e a perda do paraíso, eram pessoas que não sabiam o que
era o Mal antes de experimentar o fruto proibido e que o pecado de Adão e Eva era praticado
o ato sexual, o que seria inevitável estando eles nus no paraíso.
Há outros pontos falhos na Bíblia como o fato de o Senhor ter criado a serpente e não
tê-la castigado por seu ato tentador. No A. T., Deus brinca com seu poder de criação e
destruição; Ele cria e destrói a seu bel prazer. Variadas são as passagens em que Ele resolve
extirpar suas criaturas da face da terra. Toda a criação paga pela decepção divina, que é alheio
a qualquer noção de perdão.
Observa-se que em várias passagens do A. T. a figura do Diabo é extremamente
fraca e banal – Gênesis, Livro de Jó, Livro de Isaías, dentre outros –, ele estava longe de ser o
anjo caído, o rebelde infame com comissuras nos lábios, o inimigo confesso de Deus. O
Judaísmo não representou nem os demônios nem Satanás como inimigos de Deus, mas como
seus servidores e aliados.
Em outros momentos, o Diabo parece agir por conta própria, como em As Crônicas.
Deus é no A. T. o Bem e o Mal e o Diabo seu servidor. No Livro de Henoc, os demônios são
anjos que não se rebelaram contra Deus, mas que se apaixonaram por mortais e que desceram
à Terra para se unirem a eles, história que está em contradição com todas as outras do A. T..

3
Para referências ao Antigo Testamento será utilizada a abreviação A.T.
7

Apesar das contradições, o Diabo está presente na tradição judaica e foi dela que o
Cristianismo o retirou, fazendo com que o Novo Testamento 4 fosse habitado pela
malevolência do Diabo e dos demônios em inúmeros episódios.
É a partir da Grande Crise do Judaísmo que o Diabo é definido como inimigo
confesso de Deus e a divisão do mundo é consumada entre Deus e o Diabo. Isso não foi uma
invenção judaica, pois foi inicialmente formulado no século VI antes da era cristã pelo
Mazdeísmo: entre os Iranianos após Zoroastro. Os judeus tinham ido buscar na Mesopotâmia
o esquema do Gênesis e possivelmente o dualismo Deus-Diabo. A partir de então, o Diabo
tinha assegurada uma longa vida.
Massadié, aponta a retomada da passagem do N. T. em que, após o seu batizado,
Jesus é tentado pelo Demônio. O batizado de Jesus é colocado como inútil e blasfematório,
uma vez que este foi concebido pelo Espírito Santo e o batismo cristão destinava-se à
redenção da falta original. A tentação é apresentada de forma contraditória em alguns
Evangelhos e apresenta alguns problemas: Deus reserva a seu próprio filho uma provação,
assim como a Jó; Satanás é ignorante, pois sabe que Jesus é filho de Deus e não adiantaria
tentá-lo; os milagres de Jesus, ele os faz para seus discípulos, mas se recusa a fazer para o
Diabo. Segundo Messadié, mais um momento nada original, sustentando a marca essênica.
Por intermédio de Jesus, a partir dos ensinamentos dos ascetas de Quoumrân, que o
Diabo, não o Satanás do Judaísmo do A.T. se transmitirá ao Cristianismo. Retoma-se uma
ideia do essenismo, a de que juntando finalmente o Diabo, o advento de Deus, o fim dos
tempos, o Apocalipse, será acelerado. O Diabo aparecerá no N.T. a partir de possessões
violentas e Jesus é o responsável por expulsar esse Demônios. Além disso, o Diabo será
identificado com a doença, sendo caracterizado como espírito sujo. Observa-se, então, que no
A.T. os atos de Satanás têm motivo, mas no Novo, este se comporta com ações erráticas em
diversos episódios.
Pode-se observar que a Igreja, desde sua origem, deu ao Mal a sua genealogia,
afirmando que Satanás é o chefe da força das trevas que teria se revoltado contra Deus e
arrastado anjos inferiores. A partir de então, surgem várias versões sobre a queda do Diabo e
dos anjos. Mas em um retorno ao A.T., tem-se que, se Satanás existiu desde sempre e se ele é
contemporâneo da criação, já não há necessidade de fazer intervir a hipótese da sua queda.
Em vários momentos, como no Livro de Jó, Deus e o Diabo estariam em pé de igualdade.

4
Para referências ao Novo Testamento será utilizada a abreviação N.T.
8

Para o Judaísmo o Diabo não é uma figura de grande relevo, mas o Cristianismo não
seria nada sem a Redenção que modifica consideravelmente o papel de Satanás. A Igreja teve
que ensinar a várias populações a figura do Diabo. Portanto, nota-se que há diversas questões
não resolvidas pelo Cristianismo, pois ninguém nunca soube dizer de onde vinha este Satanás,
como surgiu realmente o mal. O que se sabe é que Satanás foi supervalorizado com o objetivo
de alavancar o Cristianismo.
Carlos Roberto F. Nogueira, em O Diabo no imaginário cristão, deixa clara a
importância vital do papel desempenhado pelo demônio e seus agentes, afirmando que era
necessária para a coletividade cristã a existência e a encarnação do Mal para que o Bem
surgisse como graça suprema, ou seja, a história do Diabo confunde-se com a história do
próprio Cristianismo.
O nascimento do Cristianismo inicia um longo processo onde as tradições chocam-
se, interpenetram-se, amoldam-se, para repeli-lo ou para recebê-lo e revesti-lo de toda uma
bagagem mística que convive paralelamente ao corpo doutrinário oficial. A demonologia que
aparece nos textos apócrifos é retomada de forma ligeiramente modificada no N. T., daqui por
diante, Satã é o grande adversário, tendo por missão combater a religião que acaba de nascer;
Satã será o inimigo implacável de Jesus e seus discípulos. O universo inteiro passa a ser
pintado como dividido entre dois reinos, o de Cristo e o do Diabo. Pouco a pouco, o Espírito
do mal passa a integrar o dogma central do cristianismo, o da queda do homem, do pecado
original e da redenção pela morte do Messias na cruz. Contudo, não há na mentalidade dos
cristãos dos primeiros tempos a mesma fascinação mórbida que povoará de fantasmas
demonolátricos os teólogos da Baixa Idade Média.
Enquanto o Paganismo ainda teve força social, enquanto se pretendeu converter à fé
os povos que não conheciam o Cristianismo ou a ele resistiam, o homem da Igreja dialogou e
argumentou em favor de suas crenças. Quando a cristianização foi absoluta e a autoridade
eclesiástica teve o poder a seu serviço, a postura mudou. O mundo passou a se dividir em duas
partes claramente definidas e antagônicas: a constituída pelos que cultivavam o Bem e as
virtudes e aquela formada pelos que cultivavam o Mal e seus vícios.
Os primeiros séculos da Idade Média representam um mundo em conflito entre a
mais alta espiritualização e a mais grosseira crueza mundana. O homem é personagem de um
drama que tem sua origem na trágica dicotomia entre o representado e o vivido, não podendo
pensar no Bem sem antes pensar no Mal.
Em meio a tudo isso, começa-se a ser elaborada nas consciências cristãs a ideia de
sociedades secretas de adoradores do diabo. A angustiante preocupação com o poder de Satã e
9

suas cortes leva os homens da Igreja a identificar no seio da comunidade cristã aquelas que
concorrem para aumentar o poder maligno. O Diabo torna-se mais respeitado e poderoso que
nunca. Fazem-se pactos com ele, nos quais homens entregam suas almas em troca da
satisfação de qualquer tipo de desejo. Satã torna-se o Grande Destruidor, o arquiinimigo,
dotado de numerosos e apavorantes poderes frente aos quais o homem está indefeso, a não ser
pelos avisos de Deus e a constante ajuda dos ministros da Igreja.
A presença constante do Diabo faz surgir uma nova linha de especulação, com a
autoridade de ciência – a demonologia –, e os teólogos passam a se preocupar em estabelecer
o seu perfil de caráter, num esforço para auxiliar a Cristandade a reconhecer o Inimigo e se
precaver contra ele.
Quanto ao modelo o qual o Diabo é representado tem-se a forma animal ou mesclado
de formas humanas e animais, salientando sua natureza bestial. O grande modelo que
influenciou toda uma iconografia diabólica foram as clássicas imagens de Pã e dos sátiros.
No fim da Idade Média os demônios povoaram o mundo em profusão e vários
teólogos e filósofos buscaram encontrar numericamente sua quantidade e variados são os
resultados. Assim, o Reino do Diabo aparecia como uma vasta e organizada monarquia
presidida por Satã e secundada por príncipes, duques, marqueses, condes e prelados. Mas a
ameaça cotidiana do Maligno trazia consigo um outro terror, o da aparição de um outro
monstro do Mal: o Anticristo.
O Anticristo era a contrapartida maligna do Cristo. Um todo bondade e luz, o outro,
maldade e escuridão; um nascido de uma virgem, o outro de uma prostituta. A crença
incorpora-se ao Cristianismo, e seus adeptos passam a afirmar que o retorno de Jesus em toda
a sua glória e majestade seria precedido pelo homem do pecado, o filho da perdição. A
palavra Anticristo apareceu no N. T., nas epístolas de João, era usada para atacar desvios
doutrinários dentro do rebanho cristão.
O início da Modernidade a Europa ocidental é marcado por um incrível medo do
Diabo. O Renascimento herdou os conceitos e imagens demoníacas que foram determinados e
multiplicados no decorrer da Idade Média, mas lhes emprestou uma coerência, uma
importância e uma difusão jamais alcançadas. Medo que estava associado à espera do fim do
mundo, e a ferocidade alucinante do Demônio se explica pela proximidade da catástrofe final.
Os Demônios tudo podem, e sua presença nos discursos religiosos é muito maior que a de
Deus.
Por sua vez, o Romantismo transformará o Demônio no símbolo do espírito livre, da
vida alegre, não contra uma lei moral, mas segundo uma lei natural, contrária à aversão por
10

este mundo pregada pela Igreja. Satanás significava liberdade, progresso, ciência e vida. O
demoníaco era sinal de paixão. Com isso, a partir de 1850 o ocultismo experimentou um
grande florescimento, derivado diretamente da exaustão do otimismo liberal. Essa discussão
pode ser percebida na obra O Fausto, de do filósofo alemão Goethe e, recortando essa alusão
romanesca da demonologia e do fantasmagórico, aponta-se a obra Macário, de Álvares de
Azevedo.
Já no século XX, a geração do sexo, drogas e rock n‘ roll, trará em seu
amadurecimento uma extraordinária revivescência do ocultismo, atingindo seu clímax no
período 1968 – 1973. Várias foram as seitas e os rituais praticados em nome do Diabo. Na
década de 1960 em diante houve um desenvolvimento constante das seitas exotéricas e do
satanismo, que a crise de sobrevivência e valores que aflige os homens senão em escala
mundial, ao menos em escala ocidental que proclama a necessidade da saída esotérica e
mesmo a grande inovação dos últimos tempos.
Portanto, estas rápidas explanações baseadas nos textos de Massadié e Nogueira
buscaram fazer um histórico para demonstrar o modo como a figura do Diabo é inserida no
imaginário cristão e, por consequência, no imaginário ocidental, influenciando, também, sua
produção literária, uma vez que o Diabo torna-se figura constantemente retomada em diversos
textos, tanto aqueles destinados a adultos, quanto os infantis, como observaremos a partir da
leitura feita do conto O bom diabo presente na obra Contos da Tia Nastácia, de Monteiro
Lobato (1995).

3 UM BOM DIABO?
Irreverente, talentoso, irônico, apaixonado, idealista, sonhador, radical, contraditório.
Esses podem ser adjetivos que direcionam uma caracterização de Monteiro Lobato frente aos
problemas sociais e à arte brasileira.
Conforme Alfredo Bosi (2001, p.216), Lobato, além de crítico de Anita Malfatti e do
Movimento Modernista de 1922 também – e, contraditoriamente – ―(...) encarnou o
divulgador agressivo da Ciência, do progressismo, do ‗mundo moderno‘, tendo sido um
demolidor de tabus, à maneira dos socialistas fabianos, com um superávit de verve e de
sarcasmo.‖ É desse lugar irreverente da arte lobatiana que pontuaremos a importância de
questões como à demonologia na literatura infanto-juvenil.
Assim, a obra História de Tia Nastácia, publicada em 1937, corresponde a uma
antologia de historietas populares narradas pela personagem título da obra lobatiana a pedido
de Pedrinho e da boneca Emília. Na primeira parte dessas narrativas, o neto de Dona Benta
11

solicita à boneca que questione à avó o que seria folclore e, para essa questão, a menina de
pano recolhe a seguinte resposta:

Dona Benta disse que folk quer dizer gente, povo; e lore quer dizer sabedoria,
ciência. Folclore são as coisas que o povo sabe por boca, de um contar para o outro,
de pais a filhos — os contos, as histórias, as anedotas, as superstições, as bobagens,
a sabedoria popular, etc. e tal. (p.07)

Dessa percepção ―cientificista‖ da cultura de uma sociedade que Pedrinho reflete e


esclarece à Emilia seus intentos frente à criada negra: ―(...) Tia Nastácia é o povo. Tudo que o
povo sabe e vai contando, de um para outro, ela deve saber. Estou com o plano de espremer
tia Nastácia para tirar o leite do folclore que há nela.‖ (p.07)
Dito isso, da mesma maneira que Sherazade conta as histórias de sua cultura árabe ao
Sultão para delongar a própria vida, Nastácia também o fará a Pedrinho e aos demais
ouvintes, sob a égide didática do folclore brasileiro. Assim, a personagem desfia os contos
populares aos moradores do sítio que, interpelam e os criticam, tornando cada vez mais tensa
a relação discursiva entre os apreciadores dos contos populares. É nessa moldura que se
encontra a história O bom diabo.
A narrativa de Nastácia aqui versa sobre a má sina do filho de uma rainha: morrer
enforcado. Vendo a tristeza que assolava a família real, o jovem optou por isolar-se a fim de
que tal fado não se cumprisse aos olhos dos seus. Tomada a decisão, o personagem apossou
de uma soma de dinheiro para prover a viagem.
No caminho dessa peregrinação rumo ao seu destino, o príncipe deparou-se com uma
capela de São Miguel em ruínas, havendo, nela, a imagem do Santo e do diabo. Vendo-a
daquela maneira, providenciou a restauração do local, porém o pintor deixou a imagem do
diabo sem a reforma solicitada, fato exigido pelo príncipe.
Após esse instante da narrativa, o personagem continua o seu caminho e se abriga na
casa de uma senhora idosa que, ao vê-lo contar as divisas que possuía, julgou-o
equivocadamente e o denunciou como um ladrão, motivo pelo qual o jovem foi preso e
condenado à forca.
Paralelo a esse fato narrado, Tia Nastácia também explica que, no dia da execução da
sentença, o anjo chama a atenção do diabo, visto que ele não fora ter para com aquele que o
prestigiara.

— Então, estás agora bonito, hein diabo?


— É verdade. Pintaram-me inteirinho.
— E não sabes quem consertou esta capela e nos pintou?
12

O diabo não sabia; o santo contou-lhe a história do príncipe que passara por ali, e
disse mais que esse pobre moço fora preso, processado e julgado, e naquele mesmo
dia ia ser erguido a uma forca por causa das intrigas de certa velha.

Interessante, esse fato, pois ao mesmo tempo em que o Santo pode ser visto sob a
ótica da dessacralização no que tange a delação da velha, atitude esta advinda do convívio
com o demônio, também o fato pode ser enunciado como uma das representações simbólicas
do Arcanjo no discurso cristão. Parafraseando Chevalier em seu Dicionário de Símbolos
(p.84), S. Miguel é um dos arcanjos que simbolizam o juízo final, a justiça divina. Na
iconografia cristã, um dos elementos representativos de sua figura corresponde à balança,
ilustrativa da pesagem quanto ao merecimento justo das almas.
A despeito do que reza o senso comum (e cristão?), é o diabo quem resolve a
situação do jovem preso injustamente. Lobato, dessa maneira, leva a personagem periférica a
um patamar de superioridade.

O diabo não quis ouvir mais. Pulou num cavalo e foi voando à casa da velha;
agarrou-a e levou-a ao rei, fazendo-a confessar toda a sua maquinação contra o
moço. O rei deu ordens para que soltassem o preso e o trouxessem à sua presença.
O diabo montou no cavalo e voou para a prisão onde o príncipe ia ser enforcado, e
apresentou ao carrasco a ordem de soltura. O carrasco entregou-lhe o condenado,
que lá se foi com o diabo para o palácio do rei.

Assim, descobre-se por meio da presença do bom diabo a denunciação caluniosa5 da


mulher. Essa atitude justa do personagem frente à da velha pode ser entendida como o que
Dona Benta chama de o "amansar da maldade" e ao que Pedrinho atribui às descobertas
darwinistas:

— Pois gostei! — gritou Emília. — Está aí uma historinha que descansa a gente
daquelas repetições das outras. E mais que tudo gostei da camaradagem entre o
santo e o diabo.
— Sim — disse dona Benta. — Como os dois vivessem na mesma capela, sozinhos,
acabaram em muito bons termos, como se vê na história. O diabo é o símbolo da
maldade, mas até a maldade amansa quando em companhia da bondade. De viverem
juntos ali na capelinha, o santo e o diabo se transformaram em amigos, e os bons
sentimentos de um passaram para o outro.
— Influência do meio! — gritou Pedrinho, que andava a ler Darwin.
Narizinho confessou que gostava muito das histórias com o diabo dentro, e disse que
todas elas confirmavam o dito popular de que o diabo não é tão feio como o pintam.

Uma referência interessante que Tia Nastácia faz ao chamar a atenção da


personagem Narizinho bem como dos demais ouvintes, corresponde à relação estabelecida
5
A título de esclarecimento, entendemos que, na denunciação caluniosa, ―(...) o agente, além de atribuir,
falsamente, à vítima a prática de um delito, leva ao conhecimento da autoridade, mediante o delatio criminis, o
fato, provocando a instauração de inquérito policial ou de ação penal em vão, haja vista que restará provado que
a vítima (...) é inocente (SIQUEIRA, 2006, p.01)‖.
13

entre o diabo e o animal utilizado para simbolizá-lo, o cão. Tal simbologia é questionada pela
personagem Emília:

— Mas isso é história, menina. História é mentira. O "cão" é "cão". Não muda de
ruindade.
— Se o cão é cão, viva o diabo! — gritou Emília. — Não há animal melhor, nem
mais nobre que o cão. Chamar ao diabo cão, é fazer-lhe o maior elogio possível.

Segundo Chevalier (2002, p....) o simbolismo do cão pode ser entendido por meio
dos aspectos antagônicos que o constitui, independente da cultura na qual ele se encontre.
Entretanto, é uma figura surpreendente ao se pensar a representação do cão ou mesmo do lobo
como uma forma esotérica de sabedoria na qual se visualiza o sacrifício como um meio
atingir a elevação espiritual.
Pensando em toda a construção de sentido elaborada durante a narrativa e o
fechamento de que “cão” é “cão”, estabelecendo ―um silogismo elogioso‖ à figura imagética
do diabo, podemos sugerir que, assim como o cão está ligado aos cuidados e à companhia do
percurso existente entre a vida e a morte, à sexualidade sensível, ao ciúme, ao caráter
medicinal e à fidelidade que possui, o diabo também o está. Narizinho tem razão: o diabo não
pode ser tão feio quanto o pintam. ―Coisas‖ do folclore.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tomaremos, novamente, os dizeres de Tia Nastácia, frente ao ‗causo‘ enunciado:
―Mas isso é história, menina. História é mentira. O "cão" é "cão". Não muda de ruindade.‖
Com efeito, o deslindar dessa ficção permitiu-nos observar pontualidades quanto à origem da
literatura infantil e da imagem do Diabo presente no imaginário ocidental por meio dos
Contos da Tia Nastácia (1995).
Nesse trabalho artesanal de Monteiro Lobato, é possível dizer que o amansar da
maldade e a desmitificação da bondade se compenetram, viabilizando, a partir da simetria
entre São Miguel e o Diabo, pensar em que medida esses sentimentos constituem o ser
humano e a sociedade ocidental.
Esse estudo da demonologia sob o escopo da literatura infantil em Lobato pontuou a
imagem do cão como um dos aspectos da figura do Diabo, inserida tanto no imaginário
cristão quanto no ocidental o que permite vislumbrar o entendimento folclórico brasileiro
dessa figura e a maneira como ele pode ser apresentado ao público infantil, seja pelo aspecto
místico mostrado por Tia Nastácia, seja pelo científico, apontado pela personagem Pedrinho.
14

Mas são histórias; ficções para ensinar a viver. Por meio dessas falsas verdades,
adultos e crianças experimentam sua cultura, repensam seu lugar histórico e constituem um
posicionamento mais além dos acontecimentos e dos costumes circundantes.

5 REFERÊNCIAS

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1983.

CADEMARTORI, Lígia. O que é literatura infantil. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986.

CARVALHO, Bárbara Vasconcelos. A literatura infantil: visão histórica e crítica. São


Paulo: Global, 1989.

CHEVALIER, Jean e Alain Gheerbrant. Dicionário de símbolos: mitos, costumes, gestos,


formas, figuras, cores, números. 17ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.

LOBATO, Monteiro. Histórias de Tia Nastácia. São Paulo, SP: Editora Brasiliense, 1995.

MESSADIÉ, Gerald. História Geral do Diabo – Da Antiguidade à Época Contemporânea.


Trad. Alda Sophie Vinga. Portugal: Europa-América, 2001.

NOGUEIRA, Carlos Roberto F.. O diabo no imaginário cristão. Bauru, SP: EDUSC, 2000.

PALO, Maria José & OLIVEIRA, Maria Rosa D.. Literatura infantil: voz de criança. São
Paulo: Ática, 1992.

SIQUEIRA, Julio Pinheiro Faro Homem de. A diferença entre calúnia e denunciação
caluniosa. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1079, 15 jun. 2006. Disponível em:
<http://jus.uol.com.br/revista/texto/8520>. Acesso em: 28 ago. 2011.

ZILBERMAN, Regina; MAGALHÃES, Lígia Cademartori. Literatura infantil:


autoritarismo e emancipação. São Paulo: Ática, 1974.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo

TENDÊNCIAS DISCURSIVAS NO ROMANCE AFRICANO CONTEMPORÂNEO

Rafaella Cristina Alves Teotônio (PPGLI/UEPB)1

RESUMO

A tendência que se reflete nas literaturas africanas é a reinscrita de suas nações, no que
corresponde a marcante representação de suas culturas e histórias no texto literário. Mas como
acontece esta migração do histórico, social e cultural para as obras dos escritores africanos?
Será que ainda se busca o resgate errôneo de uma identidade puramente africana? Ou
simplesmente tais obras estão inseridas dentro do contexto em que são escritas, revelando,
portanto, as querelas sociais e culturais de seus países? Este trabalho pretende discutir tais
questões com o intuito de analisar o etos discursivo das obras de três escritoras africanas
contemporâneas: As alegrias da maternidade da nigeriana Buchi Emecheta, Ventos do
apocalipse da moçambicana Paulina Chiziane e Meio sol amarelo da nigeriana Chimamanda
Ngozie Adichie. Tais obras refletem o cotidiano de guerras que tiveram sua erupção mais ou
menos na mesma época, e é justamente o olhar dessas autoras que estará sendo analisado para
compreender a problemática discursiva do romance africano dentro das questões identitárias
de suas nações. Com o aporte teórico de Maingueneau (2001), M. Bakhtin (1992) e Antônio
Candido (2010) busca-se chegar a compreensão e discussão acerca das produções literárias
africanas.

Palavras-chave:
Literatura africana. Discurso. Identidade.

ABSTRACT

The trend is reflected in African literature is reinstated to their nations, which corresponds to
the remarkable representation of their culture and stories in literary text. But as this migration
history, social and cultural benefit to the works of African writers? Does she stillseeks to
recover an erroneous purely African identity? Or just such works are includedwithin the
context they are written, revealing, therefore, social and cultural quarrels of their countries?
This paper discusses these issues in order to analyze the discursive ethos of the works of three
contemporary African writers: The joys of motherhood of the Nigerian Buchi Emecheta,
Winds of Apocalypse of Mozambican Paulina Chiziane, Half yellow sun of Nigerian
Chimamanda Ngozi Adichie. These works reflect the daily wars that had its eruption at about
the same time, and it is just the look of these authors that is beinganalyzed to understand the
problematic discourse oof the African novel of identity ussues intheir nations. With the
theoretical basis of Maingueneau (2001), M. Bakhtin (1992) and Antonio Candido (2010)
seek to reach understanding and discussion of African literary productions.

Keywords:
African literature. Speech. Identity.

1
Mestranda da PPGLI/UEPB; e-mail: faelacristina@hotmail.com.
2

1 EM BUSCA DE IDENTIDADES
Observando a crítica que se escreve acerca das literaturas africanas, sempre
encontramos uma palavra: identidade. Tal palavra se insere num mundo de questionamentos
sobre o discurso das obras africanas, entre os quais a questão do resgate da identidade das
sociedades em que estas literaturas emergem parece ser o ponto central. Poderíamos entender
que tal questão é repetida pela condição da situação das literaturas pós-coloniais. O universo
social em que se criam estas literaturas apela para a diversidade de identidades, tais quais as
do colonizador e do colonizado, e a junção destas identidades no período em que vivemos na
contemporaneidade, sendo o confronto entre tradição e modernidade a característica mais
observada no interior da temática identidade.
A proposta deste artigo é observar justamente se os autores africanos
contemporâneos ainda apelam para uma escrita muitas vezes panfletária que pretende compor
ou resgatar uma identidade africana ou se simplesmente o contexto da obra literária, como
conceituou Dominique Maingueneau (2001), interfere significativamente na produção das
obras desses autores. Para tanto, será observado três obras que poderiam dialogar, pensando
na dinâmica da Literatura Comparada, pois se assemelham em espaço, personagens e história.
Estas obras são Ventos do apocalipse (1999) da escritora moçambicana Paulina Chiziane,
Meio Sol amarelo (2008) da nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie e As alegrias da
maternidade (2002) da também nigeriana Buchi Emecheta. Tais obras são ambientadas em
situações de guerras em que as personagens femininas são as protagonistas.
Compreendendo que ―o contexto da obra literária não é somente a sociedade
considerada em sua globalidade, mas, em primeiro lugar, o campo literário, que obedece as
regras especificas‖ (MAINGUENEAU, 2001, p.27), este trabalho tentará analisar o campo
literário em que são criadas estas obras, para compreender, portanto, porque a temática da
identidade, seja ela, entre uma proposta de resgate ou apenas entre uma problemática que
questiona a diversidade cultural das sociedades africanas, é tão discutida nos romances
contemporâneos africanos.
Se observarmos que a crítica literária atual privilegia o aspecto sociocultural em suas
análises literárias, as obras africanas são então pedras valiosas para as críticas que se
influenciaram significativamente pelos Estudos Culturais. Posicionadas em sociedades que
viveram as lutas por independência, o período colonial e pós-colonial, as literaturas africanas
inscrevem em suas obras os problemas que sofreram seus países, são estas narrativas que
compõe um discurso acerca da nação, como considerou Stuart Hall (2006, p.50-51)
3

As culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas


também de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um discurso – um
modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a
concepção de nós mesmos (...) as culturas nacionais ao produzir sentidos sobre a
nação, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses
sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que
conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas.

Influenciados pelo sentimento nacionalista, aqui não no sentido político excessivo


que esta palavra geralmente é usada, mas no sentido de pertencer à nação, os autores africanos
que vivenciaram, sendo cidadãos de seus países, os problemas sociais, econômicos e culturais,
e seguindo o caminho natural que as literaturas pós-coloniais seguiram ao tentar construir uma
representação mais fiel de suas sociedades, com o intuito de estabelecer um olhar verdadeiro
sobre suas culturas acostumadas a serem vistas pelo olhar do colonizador, escreveram
narrativas que tinham e ainda tem seu potencial crítico acerca de suas culturas. Muitos desses
autores tiveram assumidamente uma postura política ao escrever suas obras, como por
exemplo, o angolano Luandino Vieira, que usou como arma na luta pela independência a
literatura.
Estas manifestações literárias nacionalistas são comuns a todas as literaturas que
emergiram no pós-colonialismo, é a partir deste momento que os escritores tomam conta de
seu papel social, como abordou Antônio Candido (2010) em Literatura e Sociedade. Assim
também ocorreu no Brasil no século XIX, com o exagero nacionalista dos Românticos e com
a antropofagia dos Modernos. Em África, no período pós-independência a literatura tentou
elaborar uma identidade africana, numa espécie de resgaste após o extermínio de muitos
costumes pelo colonizador, logo depois, com as guerras civis que tentaram instaurar governos,
essa literatura nacionalista se acentuou, se tornando arma para a revolução, hoje vivemos um
período em que as literaturas africanas se encontram em tentativa de questionar a
modernização de maneira que o nacionalismo exacerbado e a rejeição aos costumes do
colonizador não sejam os pontos de partida, o elogio a diversidade caracteriza muitas obras
africanas contemporâneas.
Porém, o discurso produzido pelos autores africanos não pode ser somente analisado
como uma questão política de construção ou reconstrução de uma identidade africana, alguns
anos já se passaram após a luta pelas independências dos países africanos, e mesmo que estas
lutas tenham deixado marcas profundas que trazem consequências até hoje, os problemas
sociais da África também são outros e também não podem ser vistos com os mesmos olhos
que foram vistos décadas passadas. Se ainda se fala de problemáticas de identidade nas
literaturas africanas é porque não somente os autores têm pretensões políticas em suas obras,
4

o que seria reduzir a qualidade estética de suas criações, fazendo com que sejam vistos
somente por suas temáticas sociais e não como autores em sua totalidade. Se o discurso das
literaturas africanas ainda é o social, e como não seria, pois qual literatura está fora da
sociedade? Como Maingueneau (2001, p. 27) observa ―o escritor alimenta sua obra como
caráter radicalmente problemático de sua própria pertinência ao campo literário e à
sociedade‖, é simplesmente porque os escritores africanos observam o mundo que os cerca de
uma maneira que é impossível de não aprisiona-lo de alguma forma em suas obras. Este
campo literário de que fala Maingueneau (2001, p.28) se baseando em Pierre Bourdieu, é o
lugar em que está o escritor, portanto, ―A existência social da literatura supõe ao mesmo
tempo a impossibilidade de se fechar sobre si e a de se confundir com a sociedade ―comum‖,
a necessidade de jogar com e nesse meio-termo‖, ora se não é realmente isto que fazem as
literaturas africanas.

2 NO UNIVERSO DAS NARRATIVAS


Para compreender como o contexto influencia significativamente as obras
contemporâneas africanas este artigo observará três romances de temáticas parecidas, mas que
foram escritos em momentos diferentes. Ventos do Apocalipse (1999) é o romance da
renomada escritora moçambicana Paulina Chiziane, a estória narra a guerra civil que se
perpetuou em Moçambique por mais de quinze anos, os povos Mananga e Macuácua vivem
um conflito interno em suas aldeais onde a seca, a fome, a guerra e o êxodo marcam a vida
dos personagens: Sianga, régulo da aldeia Mananga que tenta se aproveitar das desgraças da
guerra para corromper os outros da comunidade; Minosse, mulher sofrida, que apanha do
velho Sianga, seu marido, e é culpabilizada pela desgraça de sua família; Wusheni, filha de
Minosse e Sianga, que tenta quebrar o fado, desafiando seu destino ao tentar fugir com
Dambuza; Emelina, personagem enlouquecida pela fome de amor e pela fome trazida pela
guerra.
Em Meio sol Amarelo (2008), romance da nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, o
retrato de uma época de duras transformações na Nigéria é feito por Chimamanda Ngozi
Adichie com minúcia, caracterizada num grupo de personagens diversos, tão híbridos quanto
a nação nigeriana. A narrativa gira em torno das irmãs gêmeas Olanna e Kainene, vindas de
uma família poderosa no país, elas vão viver situações que revelam a complexidade sócio-
cultural do país em meio a sangrenta guerra de Biafra que tentou instituir uma nova república
separada da Nigéria nos anos de 1960.
5

No romance de Buchi Emecheta, As alegrias da maternidade (2002), a estória


da sofrida Nnu Ego revela a condição das mulheres nigerianas durante os anos de 1940 em
que a Nigéria era colônia britânica, década em que eclode também a Segunda Guerra
Mundial, numa sociedade em que a reprodução era praticamente a única função feminina, os
sentimentos de dor e de alegria são misturados na vida da protagonista ao gerar e perder
filhos, vivendo exclusivamente para a maternidade.

3 VIDAS, OBRAS, DISCURSOS


Ao escrever uma obra o autor se coloca e insere nela parte da vida que leva, seja
explicitamente ao compor um manifesto a partir de uma narrativa literária, em que seu
discurso virá carregado de intenções, ou sem a pretensão de mudar nenhuma consciência,
tendo a arte pela arte, é impossível não transmitir uma opinião, não descrever algo de seu
cotidiano, seja em tons, cheiros, gostos ou sentimentos. A obra não escapa de seu criador,
nem mesmo o criador escapa da criatura. Como fala Maingueneau (2001, p. 47) ―A vida do
escritor está à sombra da escrita, mas a escrita é uma forma de vida. O escritor ―vive‖ entre
aspas a partir do momento em que sua vida é dilacerada pela exigência de criar, em que o
espelho já se encontra na existência que deve refletir‖. Este relacionamento do escritor com
sua obra recebe o nome de Bio/grafia.
Em entrevista a Patrick Chabal (1994), Paulina Chiziane assume o seu sentimento
feminista, mesmo não concordando que suas obras sejam também, ela confirma que ao
escrever se esforça para que sua escrita seja a voz feminina contra o patriarcado e a reflexão
acerca da condição da mulher moçambicana e africana. Sua voz feminista e feminina não se
desvincula da mensagem de suas obras.

As próprias mulheres, quando escrevem, muito poucas vezes se debruçam sobre os


problemas como mulheres. Em Moçambique, como em qualquer parte da África, a
condição da mulher, a sua situação, o tipo de oportunidades que tem na sociedade, o
estatuto que tem dentro da família, na sociedade, é algo que de facto merece ser visto.
Porque as leis da tradição são muito pesadas para uma mulher [...] Então, eu posso dizer, de
certo modo – não gosto muito de dizer isso mas é uma realidade – é um livro feminista.
Portanto minha mensagem é uma espécie de denúncia, é um grito de protesto. (CHIZIANE
apud CHABAL, 1994, p. 298).

Ao criar Ventos do Apocalipse (1999), Paulina Chiziane já era a primeira mulher


moçambicana a publicar um romance, preferindo ser chamada de contadora de estórias, seu
olhar crítico acerca da sociedade moçambicana vem das particularidades de sua criação,
natural de Manjacaze e criada no subúrbio de Maputo, a autora só teve acesso a Língua
portuguesa na escola, sua avó lhe contava estórias, como demanda a boa tradição africana, sua
6

língua materna é o chope, enquanto que em Maputo a língua em que se falava em sua época
era o ronga. Seu pai, resistente ao regime colonial e a assimilação portuguesa, nunca falou o
idioma do colonizador dentro de casa. Chiziane nasceu em meio a esta miscigenação de traços
e valores, tradicionais, modernos, coloniais e pós-coloniais e é neste universo hibrido o lugar
em que ela começa escrever e descrever.
O ambiente rural e tradicional da narrativa de Ventos do apocalipse (1999) constrói
personagens brutos e cultivadores dos costumes da tradição de seus povos, a seca que maltrata
a aldeia dos Managa também influencia na rudeza e secura dos personagens de Paulina
Chiziane. É neste espaço em que velhos e jovens, mulheres e homens, mães e pais chegam ao
êxtase das manifestações de seus sofrimentos, consequentes da guerra, ou do machismo de
uma sociedade patriarcal que impõe uma condição de culpa e obrigação às mulheres, como
podemos observar na angústia de Minosse, seja pelo amor proibido pela tradição e pelo
preconceito entre Wusheni e Dambuza, ou do êxodo à aldeia dos Macuacuá.
A autora utiliza este espaço localizado no período pós-independência em que a
tradição e a modernidade se confrontam para dar corpo às discussões acerca da sociedade
moçambicana que está dividida por costumes vindos do cristianismo, do islamismo e das
religiões africanas nos ambiente do Norte e Sul do país, traço forte de sua escrita é a busca
pelo diálogo entre esses dois espaços de Moçambique, ―a problemática Norte versus Sul, isto
é, a separação Campo versus Cidade, gerando processos de transculturação que ligam o
passado e o presente numa clara desconstrução do tecido social‖ (VICTORINO, 2007, p.
352).
Em Ventos do apocalipse publicado em 1999, a discussão acerca dos males da
colonização estrangeira e dos valores da tradição só sugere um discurso situado no período
em que a sociedade africana depois do Acordo de Paz de 1992, começou a repensar acerca do
nacionalismo exacerbado trazido pela FRELIMO (Frente de Libertação Nacional), Chiziane
assim como Mia Couto, escritores oriundos deste período pós-independência, tentaram expor
em suas obras os caminhos rizomáticos traçados pela pós-colonização, como observa João
Paulo Borges Coelho (2009, p. 65-66) ―Instala-se novamente a perplexidade. Alguns falam
em crise de uma literatura até então dependente de uma história almejada e pela qual lutava
(primeiro momento), ou que, de certa forma, lhe era oferecida ―de bandeja‖ (segundo
momento)‖. A cena em que mbelele, ritual tradicional da chuva é discutido pelos habitantes
da aldeia dos Mananga revela a discussão entre tradição e modernidade.
— A expressão sublime de submissão e humilhação é mbelele.
— O mbelele? Que vergonha! Mulheres nuas com traseiro de melancia a exibir as
mamas aos pássaros e o cu aos gafanhotos faz chover? Que vergonha!
7

— a nudez das fêmeas é a súplica da chuva; o sangue dos justos e inocentes é o


reconhecimento das nossas culpas. É tempo de mbelele. (p. 58-59).

Em outro diálogo percebemos a perda de valor no ritual pela influência do cristianismo:


Mulheres rebeldes; por que não responderam ao chamamento quando tribunal as
convocou?
- Eu não posso participar no mbelele, o meu marido não me deixa.
- Eu também não posso, sou professora. Com que respeito o povo me confiará a
educação dos filhos depois de me ver nua a cantar, a correr como louca e a revolver
sepulturas?
- Para mim é uma questão de fé. Que a seca é um castigo supremo, isso sim, mas a
chuva é uma acção de graças da Divina Providência. O mbelele é contra os
princípios da fé cristã (VA, 1999, p.94).

Portanto, o espaço da narrativa (topografia), o tempo (cronotopia) situado dentro e


fora da obra influencia o discurso trazido por Paulina Chiziane. O discurso produzido por essa
cena é neutro, nela a revelação de uma não-posição sobre a situação contemporânea de seu
espaço se instala na discussão entre os personagens. O que se percebe nos livros de Chiziane é
que ela não é a favor de purismos, porém, não enxerga a eliminação completa das tradições
como boa solução, seu discurso é neutro, porque se quer neutro. Nele não há solução porque a
questão dos entraves entre a globalização e os valores tradicionais culturais dos países pós-
coloniais não foram solucionados, e os purismos e nacionalismos exagerados já estão em
ruínas. A neutralidade no discurso de Chiziane é a estratégia que a autora tem para colocar em
discussão tais questões, para propor uma reflexão que não se acabará ao fechar o livro.
Podemos observar que o cenário de ambas as narrativas é a guerra, este espaço não é
somente um lugar em que as personagens são inseridas, a guerra influencia a vida dos
personagens os pondo em situações de fome, pobreza, violência, desamparo. Não é somente
palco das narrativas, é moldura para os quadros apresentados pelas escritoras. Segundo
Maingueneau (2001, p.123) a cenografia se refere a situação de enunciação da obra e está
articulada em topografia (espaço) e cronografia (tempo).
Meio sol amarelo (2008), narrativa situada nos anos de 1960, durante e pós guerra de
Biafra, a solidariedade e consciência exercida pelos personagens é influenciada pelo ambiente
aterrorizante da guerra, na cena em que Olanna e sua irmã Kainene se reencontram, depois de
algum tempo de separação, levadas pelo destino que as colocou de volta juntas no momento
difícil de sobrevivência, Kainene diz ―Há certas coisas que são tão imperdoáveis que tornam
outras facilmente desculpáveis‖ (ADICHIE, 2008, p.402), ela fala da condição imperdoável
da guerra que anula completamente o rancor que ela trazia da irmã por ter se relacionado com
seu namorado Richard anos atrás, ―A obra traça assim enlaçamentos, mostrando ao leitor um
8

mundo que reivindica a própria cenografia que o instaura e nenhuma outra‖


(MAINGUENEAU, 2001, p.132).
Na romance Meio Sol amarelo (2008) é possível perceber que os horrores da guerra
de Biafra não é o único espaço em que vivem os personagens, narrativa não-linear, a obra de
Chimamanda Ngozi Adichie começa com a chegada de Ugwu, jovem vindo de uma aldeia
próxima a Nsukka, cidade universitária da Nigéria, para trabalhar na casa do catedrático
Odenigbo, maravilhado com a modernidade encontrada na casa de seu patrão. Longe do
ambiente rural de Ventos do Apocalipse, Adichie cria um romance em que as diversidades de
tipos compõem uma África bem diferente da que os ocidentais são acostumados a ver. Na
primeira parte do livro a guerra é somente uma sombra que atormenta os personagens,
inseridos em discussões diversas que versam entre o amor quase proibido entre Olanna,
intelectual de família nobre, que estudou na Inglaterra, pelo professor de ideias
revolucionárias Odenigbo, vindo de uma aldeia com rígidos valores tradicionais, tais valores
levam a sua mãe a tentar impedir o seu casamento com Olanna. Kainene é uma moça
indiferente a sociedade em que vive, rica como sua irmã, administra os negócios do pai como
nenhum empresário homem faria, se relaciona com Richard, inglês tímido, aspirante a
escritor, que se encanta pela África e por Kainene.
Tais situações são cenários para as relações dos personagens que evocam mais uma
vez a discussão acerca do encontro entre tradição e modernidade, no livro de Adichie, a
África é uma África moderna, longe da selva e dos animais selvagens, mas controlada por
elites ricas, refúgio de estrangeiros encantados ou aspirantes a bons empregos, revolucionários
que lutam por liberdade, mulheres independentes, valores tradicionais corrompidos, jovens
maravilhados com o progresso. É quase impossível resumir aqui as diversidades de relações e
de personagens encontrados em Meio Sol Amarelo. Mas se há um ponto central que enlaça os
personagens e que dialoga com as outras obras apresentadas é justamente o processo de
modernização sofrido pelas sociedades africanas durante os períodos colonial e pós-colonial.
Como podemos perceber pela impressão da mãe de Odenigbo acerca de Olanna por ela ter
estudado em faculdade,

―Eu soube que o tempo todo, quando ela era criança, sempre houve uma empregada
para limpar o ike, depois que ela terminava de cagar. E, para completar, os pais
mandaram ela estudar na faculdade. Por quê? Muito estudo acaba com qualquer
mulher, todo mundo sabe disso. Faz ela ficar com a cabeça inchada e aí começa a
insultar o marido. Que tipo de mulher ela vai ser, me diga?‖ A mãe do Patrão ergueu
uma ponta dos panos para enxugar o suor da testa. ―Essas moças que fazem
faculdade vão atrás dos homens até ficarem com o corpo inútil. Ninguém sabe se
ainda podem ter filhos‖ (ADICHIE, 2008, p.119).
9

Seria então Adichie, escritora bem mais atual que as outras que traz uma nova visão
da África que não chega a ser totalmente diferente das demais , mas que se difere por trazer
personagens negros que são ricos e escolarizados, mostrando uma elite negra em que nas
obras mais antigas parece não existir. Revelar uma outra cara da África é a proposta da jovem
escritora Chimamanda Ngozi Adichie.
Em As alegrias da maternidade (2002), situada nos anos de 1940, publicada pela
primeira vez em 1976, os costumes tradicionais da etnia igbo na Nigéria revelam a dura
condição sofrida pelas mulheres, Nnu Ego ao se casar pela primeira vez espera ansiosa pelo
seu primeiro filho, mas ela não consegue engravidar, o que torna sua vida um sofrimento, pois
nos costumes de sua etnia a mulher infértil não é aceita na sociedade e principalmente no seio
familiar, podendo o marido manda-la embora ou troca-la por outra esposa quando bem quiser.
Seu marido, então arranja outra esposa, no principio da poligamia, esta esposa consegue
engravidar facilmente e Nnu Ego se ver rejeitada,
Quando esta gravidez se tornou evidente, Nnu Ego começou a fechar-se cada vez
mais consigo própria. Mirava-se de alto abaixo na intimidade da sua cabana,
apalpando o corpo, firme e igual aos de todas as outras mulheres novas, mas sentia a
falta da suave e fluida sensação de maternidade‖ (EMECHETA, 2002, p. 49).

Ambientando um espaço em que a diversidade cultural é comum, os escritores


africanos tendem, em seus escritos, revelar esta complexidade cultural que emana de suas
nações, com intuito de resgatar ou com o simples objetivo de representar e discutir
literariamente os problemas e questões que povoam seus países. As literaturas africanas
demonstram uma relação intrinsecamente profunda com o ―real‖ e com a realidade de suas
sociedades, mas não é por isso que devam ser vistas como literaturas que se preocupam
fundamentalmente com o politico, se as literaturas africanas tem como enfoque a sociedade
africana e suas particularidades é porque suas obras estão inseridas essencialmente em uma
realidade, que por ser obscura aos olhos do critica literária ocidental é marginalizada, segundo
M. Bakthin (1992, p. 203), ―pode-se colocar que a obra de arte é um acontecimento artístico
vivo, significante, no acontecimento único da existência, e não uma coisa, um objeto de
cognição puramente teórico, carente de um caráter de acontecimento significante e de um
peso de valores‖, portanto, reduzir o valor estético das obras africanas pelo caráter forte
identitário que elas refletem é apenas uma estratégia de silenciar tais literaturas e não
reconhecerem seu valor pela sua diferença.
O mundo que se encontra nos livros africanos torna-se um mundo irreconhecível
para os ocidentais que esperavam, talvez, encontrar o universo selvagem, exótico e estranho
10

que as construções calcadas na visão eurocêntrica descreveram e difundiram. Este mundo


―desconhecido‖, ―negado‖ ou ―indiferente‖, é o espaço que os escritores africanos tentam
apresentar para os olhos imperialistas e ocidentalizados. O que se percebe ao estudar a cultura
africana, é que, a literatura é chamada a posicionar-se e a assumir um papel no quadro das
profundas e rápidas transformações pelas quais a África tem passado. Rosário (2010, p. 128),
em referência direta a Moçambique, defende que:
Tratando-se de um país e de uma sociedade em construção, a sua literatura tende a
participar desse processo. E dada a natureza visionária de que se reveste, é claro que
a literatura vai assumir um protagonismo de vanguarda no debate de idéias e nas
propostas de vias para a formação da consciência sobre a realidade social, na
sedimentação dos valores.

A ironia que Buchi Emecheta usa para narrar a vida de uma mãe que dedicou sua
vida inteira a maternidade para no final morrer sozinha e desamparada é um artificio para
trazer de forma crua a realidade das mulheres nigerianas no período dos anos de 1960, a falta
de flexibilidade das tradições, o quadro de pobreza da Nigéria durante o período de
colonização, a condição das mulheres,
Certa noite, depois de assim vaguear, Nnu Ego deitou-se à beira do caminho,
supondo que chegara a casa, e ali morreu em silêncio, sem filho ou filha que lhe
segurasse a mão nem voz amiga que lhe falasse. Na verdade, por ter andado sempre
tão atarefada a contruir as suas alegrias de mãe, nunca criara suas amizades
(EMECHETA, 2002, p. 320).

A literatura de autoria feminina na África revela a manifestação do desejo de


mudança e de entendimento das sociedades do continente africano, no que concerne a
condição de vida das mulheres desse continente, e a questão política e cultural de suas nações,
como aponta Inocência Matta (2007, p.422):
(...) proponho que se persiga a trajectória literária de mulheres cuja produção não
apenas teve um papel fundamental na construção de um imaginário de resistência
fundacional das diversas nacionalidades, ainda quando a escrita literária era
subsidiária da construção da nação política e cultural, como na transformação desse
sistema no período pós-colonial.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O discurso produzido pelas literaturas africanas não pode ser somente avaliado como
um discurso político, instalado em suas sociedades com a pretensão de mudar situações
sociais ou politicas, não pode ser marginalizado por dar enfoque ao ambiente em que nascem,
percebemos com essa discussão, com base em Maingueaneu (2001), Bakhtin (1992) e
Candido (2010) que a obra de arte influencia o meio ao mesmo tempo que é influenciada por
ele, que faz parte desse meio, que não está fora dele como uma coisa, um objeto acoplado em
11

sua exterioridade, é parte significativa, essencial e se constitui junto e a partir da sociedade,


ambas, arte e vida nascem a partir da criação do artista.
As obras africanas não podem mais ser marginalizadas, não podem ter seus
conteúdos reduzidos esteticamente, se o enfoque social que se dá a essas literaturas acaba
sendo o ponto central para a crítica literária não é somente pelo conteúdo destas literaturas,
mas também pelo rumo que tomou a teoria literária ao se unir aos Estudos Culturais. Portanto,
o discurso que estas literaturas produzem, ao abordar em suas obras o confronto trazido pelo
processo de modernização aos países africanos no período do pós-colonialismo é apenas um
discurso que se insere em suas narrativas pela vivência dos autores em sociedades que se
situaram nas delicadas tensões do pós-independência, nos períodos de guerra, no surto de
globalização. Um discurso que nasce sendo contribuído e contribuindo para o meio em que
emergem, colocando os paradigmas romanescos em face de atualização, sendo e tendo que
ser, portanto, literaturas esteticamente diferenciadas e modernas, por suas peculiaridades e por
trazerem a diferença como objeto de ascensão.
O lugar que as literaturas africanas irão ocupar, neste ambiente em que se encontra a
crítica literária, com seu cânone ocidental desgastado, só poderá ser descoberto depois de um
bom tempo de atualização das teorias literárias, mas com certeza não será um lugar já
predestinado ou fixo, terá que ser um lugar diferente, para que se insira confortávelmente a
diferença de seus discursos.

5 REFERÊNCIAS

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Meio sol amarelo. Tradução – Beth Vieira. São Paulo:
Companhia das Letras, 2008.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Marins Fontes, 1992.

CANDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2010.

CHABAL, Patrick. Vozes Moçambicanas: Literatura e Nacionalidade. Lisboa: Vega,


1994.

COELHO, Paulo Borges. E depois de Caliban? A história e os caminhos da literatura no


Moçambique contemporâneo. In: África – Brasil: Caminhos da língua portuguesa.
Organização: Charlotte Galvez, Helder Garmes, Fernando Rosa Ribeiro. Campinas, SP:
Editora Unicamp, 2009.

CHIZIANE, Paulina. Ventos do apocalipse. Lisboa: Editorial Caminho, S/A 1999.

EMECHETA, Buchi. As alegrias da maternidade. Lisboa: Editorial Caminho, S/A 2002.


12

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 4 ed. Rio de Janeiro: DP&A,


2000.

MATTA, Inocência. Mulheres de África no espaço da escrita: a inscrição da mulher na sua


diferença. In: MATA, Inocência; PADILHA, Laura Cavalcante. A mulher em África: Vozes
de uma margem sempre presente. Edições Colibri. Lisboa, 2007.

MAINGUENEAU, Dominique. O contexto da obra literária. São Paulo: Martins Fontes,


2001.

ROSÁRIO, Lourenço do. Moçambique: história, culturas, sociedade e literatura. Belo


Horizonte: Nadyala, 2010.

SCHMIDT, Simone Pereira. Paulina Chiziane: Para ler Moçambique no feminino. In: África
& Brasil: Letras em laços, volume 2/ organizadoras Carmen Tindó Secco, Maria do Carmo
Sepúlveda, Maria Teresa Salgado. – São Caetano do Sul, SP: Yendis Editora, 2010.

VICTORINO, Shirlei Campos. A geografia da guerra em Ventos do apocalipse de Paulina


Chiziane. In: MATA, Inocência; PADILHA, Laura Cavalcante. A mulher em África: Vozes
de uma margem sempre presente. Edições Colibri. Lisboa, 2007.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo

UMA APROXIMAÇÃO DE IDEIAS ENTRE LITERATURA E CINEMA:


CRIANÇAS SELVAGENS, LEITORES IDIOTAS E ALGUNS SONHADORES

Fernanda A. S. do Canto1 (PPGL/UFSC)


Roberta Cantarela2 (PPGL/UFSC)

RESUMO

Três ideias principais e a necessidade de compor um Atlas. Encontrar a relação entre imagens,
perceber o eco que existe entre ideias, que se expande e encontra outras ideias. Um painel
aberto de relações heterogêneas. Dois filmes de François Truffaut, duas formas de idiotia e
contaminação social encontradas em obras literárias e no cinema; e também alguns sonhado-
res de Bertolucci, que desejam tanto a idiotia quanto a contaminação.

Palavras-chave:
Cinema. Literatura. Atlas.

ABSTRACT

Three main ideas plus the need to compose an Atlas. Find the relationship between images,
see the echo that exists between ideas, expanding and find others. An open panel of heteroge-
neous relations. Two films of François Truffaut, two forms of idiocy and social contamination
found in works of literature and film, and also some of Bertolucci's dreamers who want both
idiocy and contamination.

Keywords:
Film. Literature. Atlas.

“An image is not strong because it is brutal or fantastic,


but because the association of ideas is distant and true.”
Jean-Luc Godard (1987)

1 ATLAS DE IMAGENS EM MOVIMENTO


Toma-se como ponto de partida a análise de dois filmes realizados por François Truf-
faut – O garoto selvagem (1970) e Fahrenheit 451 (1966) – procurando não apenas traçar
relações entre eles, mas também algum tipo de afinidade com obras literárias, que são por
vezes referenciadas em ambos os filmes. Em O garoto selvagem (1970), Truffaut sustenta seu
discurso nos relatórios do médico Jean Itard sobre uma criança selvagem no século XVIII; já
em Fahrenheit 451, é o livro homônimo escrito por Ray Bradbury em 1953 o que provoca

1
Formada em Design Gráfico pela Universidade Federal de Santa Catarina; Mestrado em Artes Visuais na
Universidad de Castilla-La Mancha, Espanha; e-mail: nandadocanto@gmail.com.
2
Discente do Programa de Pós-Graduação em Literatura – Nível Doutorado, da Universidade Federal de Santa
Catarina – UFSC; e-mail: robertaphoenix@yahoo.com.br.
2

essa relação. Mas quais são essas relações? Se pode definir um termo para este encontro entre
obras, como adaptação, tradução, apropriação? E que tipo de relação ocorre quando são obras
cinematográficas que se nomeiam e se invocam entre si? No caso de The Dreamers (2008), de
Bernardo Bertolucci, se fazem referências diretas a cenas de outros filmes, assim como seus
personagens brincam de interpretar a outros, e acontecimentos reais são revividos nessa fic-
ção, onde imagens atuais e do passado se unem e se chocam, construindo uma montagem de
diferentes tempos que se encontram numa mesma data.
Toma-se como guia a noção de montagem, proposta pelo historiador de arte Georges
Didi-Huberman quando analisa o Atlas Mnemosyne, de Aby Warburg. De 1924 a 1929, War-
burg trabalha em um projeto que pode ser definido como uma série ou um quadro de fotogra-
fias, no qual coexistem diversas imagens, de diversos momentos e contextos, e cuja conexão
não é definida nem definitiva, não está atrelada ao tempo nem ao leitor que as vê; é uma rela-
ção que acontece entre imagens, por afinidade ou contraste.

Figura 1 – Sala de leitura da Kunstwissenschaftliche Bibliothek Warburg de Hamburgo.


Fonte: Didi-Huberman (2009, p. 415).

As imagens agrupadas nesses grandes painéis são móveis, penduradas com pequenas
pinças facilmente manipuláveis. Quando Warburg encontrava a organização que queria, foto-
grafava o painel tal como estava, e voltava a começar. Há sempre uma nova montagem por
3

fazer, um outro jeito de olhar, um novo caminho a ser recorrido e mais relações por estabele-
cer. Portanto, as imagens no painel funcionam como „ordens de realidade heterogêneas‟, que
constroem um espaço comum sobredeterminado e que já não podem localizar-se no espaço-
tempo habitual. (Didi-Huberman, 2010, p. 40) Entre essas imagens desencontradas no tempo,
se produz una conivência inesperada, que por um processo de montagem da memória permite
reativar, multiplicar e reler indefinidamente os tempos nesse jogo de contrastes e complemen-
tos das imagens.
Com essa abordagem anacrônica e heterogênea, se intenta resgatar o método warbur-
giano de montagem, reconhecendo nele as vantagens e dificuldades ao se pensar em obras tão
díspares, porém tão intimamente relacionadas. Também se faz presente a ideia de eco propos-
ta por Gilles Deleuze (1999), de que as ideias presentes em uma obra podem produzir um eco
até encontrarem outra obra, muito distante no tempo dessa primeira, mas mantendo um ali-
nhamento, uma reverberação que acontece entre ambas. Essa ideia também foi utilizada por
Walter Benjamin (2008, p. 75) ao assumir que a tarefa do tradutor consiste em encontrar uma
intenção que desperte na obra traduzida um eco da obra original, e que seja capaz de „repro-
duzir na própria língua a ressonância de uma obra da língua estrangeira‟.

2 A PRIMEIRA IMAGEM: CRIANÇAS SELVAGENS

Figura 2 – Uma criança selvagem.


Fonte: Truffaut (O garoto selvagem, 1970).
4

Crianças selvagens são aquelas que se perdem, são abandonadas ou ficam reclusas da
sociedade durante a infância, desenvolvendo um mínimo de aptidões sociais. Entre os séculos
XIII e XVIII foram relativamente comuns os relatos de aparecimento de crianças selvagens
em vilas ou cidades na Europa, embora ainda hoje existam casos, geralmente ocasionados por
negligência familiar. O caso mais recente é de Oxana Malaya3 (Оксана Малая), uma jovem
encontrada em 1991 em uma zona rural da Ucrânia. Oxana viveu grande parte da sua vida na
companhia de cães, adaptando-se a seus hábitos e posturas. Como costuma acontecer em ca-
sos similares, Oxana foi encaminhada a uma clínica para deficientes mentais.
Essas crianças geralmente apresentam um quadro semelhante àqueles definidos como
“oligofrenia profunda causada por trauma”, que é o mais alto nível de debilidade mental clas-
sificado. A palavra oligofrenia (olígos = pouco; phrěn → phrenós = espírito, inteligência)
passou a ser utilizada quando o termo idiota se tornou pejorativo. Idiota tem o sentido de in-
divíduo particular em sua origem, já que um idiota era aquele que não participava da vida
pública, que somente se importava com seus próprios assuntos.
A exemplo desse indivíduo pouco participativo, derivou-se a classificação dos esta-
dos de debilidade intelectual e social, evidenciados na fase de desenvolvimento do indivíduo.
Assim como os deficientes mentais, as crianças selvagens apresentam dificuldades de apren-
dizado e adaptação, não têm pudores com relação a vestuário, nem com hábitos de higiene.
Victor de Aveyron foi uma criança selvagem encontrada na França em 1798. Ele ti-
nha cerca de 11 anos quando encontrado e seu nome lhe foi dado devido a sua facilidade em
atender às palavras que tinham a letra o tônica. Sem saber como trata-lo, e acreditando que
tivesse problemas na audição, o garoto foi levado a uma instituição de surdos-mudos em Pa-
ris, sendo posteriormente adotado pelo médico Jean Itard, diretor da instituição. Durante os
cinco anos que conviveu com o garoto, o médico publicou um artigo e um relatório sobre seu
desenvolvimento, sempre atentando para sua inserção social. Os escritos de Itard propõem a
experimentação, a observação e o estabelecimento de cinco proposições principais de apren-
dizagem para seu tratamento.

Primeira proposição: Atrai-lo para a vida social, tornando-lha mais suave do


que a que levou até então e, sobretudo, mais parecida com a vida que acabava
de deitar.
Segunda proposição: Despertar a sensibilidade nervosa com os estimulantes
mais enérgicos e às vezes pelas emoções mais vivas da alma.
Terceira proposição: Alargar a esfera das suas ideias criando-lhe necessida-
des novas e multiplicando as suas relações com os seres que o rodeiam.

3
Informações encontradas no documentário Wild Child: The Story of Feral Children. EUA: Discovery Chan-
nel, 2002.
5

Quarta proposição: Levá-lo ao emprego da palavra, determinando o exercício


da imitação pela fel imperiosa da necessidade.
Quinta proposição: Exercitar, durante algum tempo, sobre os objetos das suas
necessidades físicas, as mais simples operações do espírito, determinando
imediato a aplicação sobre objetos de instrução. (ITARD, 2000)

Os escritos de Jean Itard e suas ações como médico são rememorados no filme O ga-
roto selvagem (1970), de François Truffaut. No filme, a maior parte das falas e vozes em OFF
do médico consistem em citações diretas dos seus relatórios, e é o próprio diretor quem o in-
terpreta. Os acontecimentos são apresentados linearmente, desde a captura do garoto por
campesinos de uma vila até os avanços que Itard consegue no treinamento de reintegração
social de Victor. Nota-se algo interessante na ambientação das cenas: em vez de observar de
que forma o garoto entra em contato com a sociedade e a reconhece como sua, o que se vê nas
imagens é uma espécie de contágio social progressivo, do bosque totalmente isolado até a
casa familiar, como se fosse a sociedade que tivesse que entrar no garoto, por meio dessa evo-
lução linear de lugares que o selvagem é obrigado a permanecer.

Figura 3 – A contaminação social.


Fonte: Truffaut (O garoto selvagem, 1970).

Na Figura 3 estão algumas passagens desse recorrido. O primeiro fotograma fecha a


cena de apresentação do garoto selvagem. Ele aparece sentado no alto da árvore, meneando a
cabeça para frente e para trás. A câmera se distancia gradativamente e fecha neste plano aber-
to, perdendo a silhueta do garoto em meio à natureza. No fotograma 2, vê-se a vila onde o
capturaram. Ali, pessoas vivem em contato com o bosque e com animais domesticados. Há
uma relação muito próxima e dependente da natureza, ainda que controlada.
Já na instituição de surdos-mudos em Paris (fotogramas 3, 4 e 5), as vistas gerais
mostram uma frondosa árvore ao centro, um lago artificial e jardins cuidados, em composição
6

com o enorme edifício que fecha a cena e aparece sem fim detrás da paisagem. Também mos-
tra o muro, que corta o vértice esquerdo do plano e delimita o espaço habitável, controlado.
Os médicos discorrem sobre o futuro do novo paciente, protegidos por grandes jane-
las, e deste ponto privilegiado observam ao garoto selvagem exposto à chuva, apenas coberto,
e meneando o corpo de um lado ao outro.
O último fotograma pertence às cenas rodadas no interior da casa de Itard, onde o
contágio social é tanto externo como interno, de forma subjetiva, na aquisição de alguns mo-
dos e condutas, na expressão de desejos a outros seres humanos e na decisão em vestir-se para
proteger-se do frio. O sintoma máximo desta contaminação social se dá quando Victor se es-
capa de volta à natureza sem se desfazer de suas roupas. A decisão de já não despir-se mais
aponta para a contaminação social sem retorno.

3 A SEGUNDA IMAGEM: OS LEITORES IDIOTAS


Como continuidade possível desse raciocínio, passo à análise do filme Fahrenheit
451 (1966), também de François Truffaut, realizado quatro anos antes de O garoto selvagem.
Nesse filme, assim como no livro homônimo, a sociedade aboliu o hábito de leitura, proibiu
sua existência e deu aos bombeiros a função de queimá-los.
Para distrair e entreter as pessoas, está a televisão mural, com uma programação dita
familiar, educativa e interativa. Aqui seria possível compor as duas primeiras imagens do pai-
nel warburgiano que se propõe: de um lado, a satisfação dos espectadores da televisão mural
em conseguir unir uns poucos conceitos, ou dar respostas corretas a perguntas realizadas num
programa da televisão; de outro, a alegria expressada pelo menino selvagem em responder
bem a testes de concentração e refinamento auditivo. Mais que um painel sobre o cinema, a
literatura e suas relações, seria um painel sobre a contaminação. Um contágio baseado na co-
modidade e na recompensa, que vai pouco a pouco dominando os seres selvagens, parte sedu-
zidos pelo jogo, parte pela facilidade em seguir o que já está dado.
7

Figura 4 – Tratamentos para contaminação social.


Fonte: Truffaut (Fahrenheit 451, 1966 e O garoto selvagem, 1970).

No filme e no relato de Itard, se conta que o garoto selvagem nunca chorava. En-
quanto foi selvagem, e no curto período que esteve no instituto de surdos-mudos não chorou.
Ao conviver com o médico, em sua própria casa, volta a conhecer a sensibilidade dos sons,
dos tons de voz e com isso, reaprende a chorar. Isto é, aprende a responder a um estímulo com
a expressão correta e aceitável. Em Fahrenheit 451, as pessoas também não choram. Só se
aceita chorar ou emocionar-se nos momentos indicados pela mídia, quando se exige uma de-
monstração externa de sensibilidade, relativa a outra coisa que não a própria vida. Se chora
por dolo, por uma falsa sensação de piedade e de humanidade. Se chora por satisfação desse
sentimento. Se chora como triunfo, como demonstração da compreensão de certos códigos.
Entre os relatos sobre o garoto selvagem e a concepção dessa sociedade futurista ali-
enada pela mídia existe uma ideia em comum, que fica evidente nos filmes de Truffaut. Aqui
se pode falar do eco, dessa reverberação que não está presente em um ou outra obra, mas que
se configura entre elas, como a extensão de um chamado, que reverbera e se faz notar, mas
sempre de forma alterada.
Como já comentado anteriormente, as relações entre imagens não são fechadas, nem
definitivas. Contudo, o ato de prestar atenção a uma e outra imagem pode produzir encontros
muito curiosos e inesperados. Em Fahrenheit 451, antes de queimarem toda uma biblioteca,
um livro é escolhido e salvo do fogo. Ele traz na capa o nome de Gaspar Hauser, que foi uma
criança selvagem encontrada na Alemanha no século XIX.
Há outros ecos possíveis: enquanto o garoto selvagem é um ser apartado da socieda-
de até os 11 anos, que carece de fala e comportamentos sociáveis, a sociedade de Fahrenheit
451 é totalmente o contrário. Nela os livros são proibidos, e aqueles que leem são considera-
dos seres não-sociáveis. Entretanto, Montag, o protagonista, o herói, o bombeiro combatente
8

dos livros e portanto, ser sociável, passa por uma mudança abrupta de postura, apartando-se
da sociedade a qual pertencia e atuava. Ele se torna um ser selvagem, não um “homem-
animal” mas um “homem-livro”, que se preocupam em repetir para si os livros que decora,
numa tentativa que, se não os salva da destruição do fogo, tem a esperança de salvá-los do
esquecimento.
No fim das contas, há duas formas de idiotés muito similares nessas imagens: o leitor
é o selvagem em Fahrenheit. E essa nova relação entre imagens leva a outro questionamento,
até que ponto ser considerado selvagem ou idiota depende da natureza do indivíduo, escolha
ou contexto?
Aqui mais imagens são invocadas. São livros, filmes, desenhos e ilustrações que ten-
tam dar conta dessa barbárie. São imagens que também resultaram desse eco, que reverberam
e se alinham como resposta social, como tentativa de adaptação, de tradução, de compreensão.
Porque, por mais que haja uma exclusão social, imposta no caso do selvagem e consciente no
do leitor, ambas as figuras continuam ligadas à sociedade, não podendo simplesmente desapa-
recer ou passar despercebidas. A criança selvagem vira tema de estudos pedagógicos, é des-
crita em textos acadêmicos e interpretada em filmes e desenhos animados; já a figura do leitor
rebelde é perseguida e morta, numa busca e captura espetacular, forjada pela televisão mural.
Enquanto o garoto selvagem nasce para a sociedade quando lhe dão um nome e uma história,
a figura de Montag morre socialmente, numa irrefutável transmissão ao vivo.

Figura 5 – Novas imagens para o Atlas.


Fonte: Reitherman (Mogli - o menino-lobo, 1967) e Truffaut (Fahrenheit 451, 1966).
9

4 A TERCEIRA IMAGEM: ALGUNS SONHADORES


E o que acontece quando a contaminação é buscada? Em The Dreamers, dirigido por
Bernardo Bertolucci em 2003, os personagens procuram se contaminar. Sua história começa
na cinemateca francesa, em fevereiro de 1968. Durante uma manifestação contra o seu fecha-
mento, Mathew, um jovem americano, conhece aos irmãos Isabelle e Theo. Paralelo a esse
evento, Jean Pierre Kalfon e Jean Pierre Léaud interpretam a si mesmos e releem o manifesto
escrito por Jean-Luc Godard naquela ocasião. Esse momento dista 35 anos da real manifesta-
ção, numa reconstituição que se alterna com imagens documentais de época. Áudio e imagem,
originais e recriados, são justapostos na montagem do filme. Nessa sequência também temos
um eco, de uma ideia que começa naquelas gravações documentais em 1968 e chega até a
ideia desse filme. Um caminho evidente, marcado pelas imagens mas cuja construção se dá
fora delas, entre elas.

Figura 6 – A montagem do painel da história [fotogramas].


Fonte: Bertolucci (The Dreamers, 2003).

Num segundo momento, quando perguntada sobre sua origem, Isabelle responde:
“Eu cheguei a este mundo nos Champs-Élysées em 1959. Nas calçadas dos Champs-Élysées.
Minhas primeiras palavras foram „New York Herald Tribune‟”, e sua voz é acompanhada pela
música tema do primeiro longa-metragem de Jean-Luc Godard. Os planos seguintes já são um
eco entre Isabelle e Patricia. A personagem de Jean Seberg em À bout de souffle (Acossado,
1959) caminha nos Champs Elisée vendendo jornais.
Isabelle nasce para esta sociedade das imagens junto com a nouvelle vague e sua
existência é também uma espécie de eco desse cinema. Todo o filme é traspassado pela exis-
tência de outros filmes, e da relação de seus personagens com estes outros. Após o fechamen-
to da cinemateca, Matthew passa seus dias na casa onde moram os dois irmãos com seus pais,
10

que estão ausentes. Lá eles provocam encontros entre a ficção e a vida mesma, tentando viver
na própria pele aquelas cenas mais marcantes, fundamentais, clássicas para eles.
Isabelle propõe que os três formem uma “banda à parte” para reviver a famosa cena
da corrida no Louvre, de 1964, na qual os personagens de Godard quebram o recorde mundial
de atravessar o museu correndo, no menor tempo possível. O desafio em The Dreamers é es-
tabelecer um novo recorde. Nesse sentido, as cenas de Banda a parte (1964) são montadas
alternadamente com as cenas de The Dreamers, em grande afinidade visual, como sombras ou
fantasmas que se sobrepõem.

Figura 7 – A montagem do painel da história [fotogramas],


Fonte: Bertolucci (The Dreamers, 2003).

As vidas desses sonhadores são cheias de fantasmas; fantasmas do cinema, da litera-


tura e da história. A casa antiga onde passam boa parte do tempo tem corredores labirínticos,
tomados de estantes, e estas, abarrotadas de livros. Mas diferente dos “homens-livros” de
Fahrenheit 451, em The Dreamers não há apenas um repetir incessante com o fim de memo-
rizar. Há um intento de confrontar e atualizar imagens, de fazê-las próprias, de habitá-las.
Dessa forma, suas imagens tornam consciente esse eco que vem de outro lugar, de fora da
obra e que só se faz presente em sua relação com ela.

“En esta óptica de reaparición fantasmal, las imágenes mismas serán conside-
radas como lo que sobrevive de una dinámica y de una sedimentación antro-
pológicas que han devenido parciales, virtuales, porque en gran medida han
sido destruidas por el tiempo. La imagen [...] debería considerarse, por tanto,
en una primera aproximación, como lo que sobrevive de un pueblo de fan-
tasmas. Fantasmas cuyas huellas son apenas visibles y, sin embargo, se en-
cuentran diseminadas por todas partes” (Didi-Huberman, 2009, p. 36)

As imagens de filmes anteriores voltam a este como fantasmas, como os familiares


mortos que sussurram uma afinidade e uma direção a seguir. São imagens migratórias, que
funcionam parecido àquelas dispostas no Atlas Mnemosyne, de Aby Warburg, no qual os pai-
néis de imagem não terminam de se reconstituir e ressignificar. Colocadas lado a lado, num
11

painel ou numa mesa de operações sempre aberta, as unidades visíveis dão passo a um siste-
ma de múltiplas relações, correspondências e analogias; imagens migratórias, que se misturam
em lugares e tempos heterogêneos e cujas relações são tão livres que podem ser construídas
nas aproximações entre qualquer tipo de imagem e texto. Basta que existam ideias que façam
eco em outras ideias.

5 COMO TENTATIVA DE CONCLUSÃO


Não há como concluir este ensaio, no sentido de fechar ideias, de chegar a um resul-
tado definitivo. As aproximações possíveis –e por isso foi escolhido este termo e não outro –
entre ideias na literatura e no cinema estão sempre abertas e poderiam ser revisadas, contras-
tadas e relidas de diversas maneiras. Então, de que forma se deve descobrir os fantasmas?
Como „descompartimentar‟ a imagem e o tempo que levam consigo? Essas perguntas também
se sentem como ecos, que já se encontravam no Atlas Mnemosyne de Warburg e talvez ve-
nham de muito antes. Como Didi-Huberman (2009) sugere, tudo é questão de estilo e de tem-
po, e nesse trato com fantasmas somente as imagens podem ser consideradas como o que so-
brevive. Pensando nas improdutivas discussões terminológicas ou na tentativa de transposição
impossível entre cinema e literatura, a única conclusão que se chega é que onde existem fron-
teiras para o pensamento, lá se devem estabelecer vínculos e criar painéis abertos.

6 REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. A tarefa do tradutor. Belo Horizonte, MG: Fale/UFMG, 2008. Susana
Kampff Lages (Trad.)

BERTOLUCCI, Bernardo. The Dreamers [Os sonhadores]. Película. França/Reino Uni-


do/Itália: Fox Searchlight Pictures, 2003. 115 min.

BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451. EUA: Ballantine Books, 1953.

DELEUZE, Gilles. O ato de criação. Folha de São Paulo, São Paulo, 27 jun. 1999. Disponí-
vel em: <http://filoczar.com/filosofia>. Acesso em: 06 out. 2011.

DIDI-HUBERMAN, Georges. ATLAS ¿Cómo llevar el mundo a cuestas? Madrid: Museo de


Arte Contemporáneo Reina Sofia, 2010.

DIDI-HUBERMAN, Georges. La imagen superviviente: historia del arte y tiempo de los


fantasmas según Aby Warburg. Madrid: Abada Editores, 2009.

GODARD, Jean-Luc. À bout de souffle [Acossado]. Película. França: Inc., 1959. 87 min.

GODARD, Jean-Luc. Bande à part [Banda à parte]. Película. França: BFI, 1964. 97 min.
12

GODARD, Jean-Luc. King Lear [Rei Lear]. Película. EUA: The cannon group, 1987. 90
min.

ITARD, Jean. Da educação de um homem selvagem ou dos primeiros desenvolvimentos físi-


cos e morais do jovem selvagem do Aveyron. In: BANKS-LEITE, Luci; GALVÃO, Izabel.
(Orgs.) A educação de um selvagem: as experiências pedagógicas de Jean Itard. São Paulo:
Cortez Editora, 2000.

REITHERMAN, Wolfgang. The Jungle Book [Mogli – o menino lobo]. Desenho animado.
EUA: Walt Disney Pictures, 1967. 78 min.

TRUFFAUT, François. Fahrenheit 451. Película. EUA: Universal Pictures, 1966. 112 min.

TRUFFAUT, François. L'Enfant sauvage [O garoto selvagem]. Película. França: United


Artists, 1970. 83 min.
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WALY SALOMÃO: O FAZER POÉTICO COMO PERSONA DE SI MESMO


Gabriela Cristina Carvalho1 (PPGL/UFSC)
Tudo o que é profundo ama a máscara
Nietzsche

RESUMO

A poesia de Waly Salomão aparece como máscara, como composição elaborada e não como
causalidade natural; teatralizada, mas com diluição de limites entre a vida e o palco, entre a
sola e a tela. É atuando com uma espontaneidade construída, que Waly atravessa e reelabora o
cotidiano com hibridismos e estilhaçamentos do texto por uma coloquialidade estilizada. A
leitura aqui proposta objetiva apontar na produção literária de Waly Salomão, alguns aspectos
que indicam a poesia como produção de si mesmo.

Palavras-chave:
Poesia. Máscara. Apolíneo/dionisíaco.

ABSTRACT

The Waly Salomão‟s poetry appears as a mask, as an elaborated composition not as a natural
causality; dramatized, but with the dilution of limits between life and stage, between sole and
screen. Is performing with a built spontaneity, that Waly crosses and reworks the daily routine
with hybridisms and shatters of text with stylized colloquiality. The reading proposed here
aims to point in the literary production of Waly Salomão some aspects that indicate the
poetry as production of himself.

Keywords:
Poetry. Mask. Apollonian/Dionysian.

“Minha alegria (…) é filha bastarda do desvio e da desgraça” (SALOMÃO, 1996, p.


41)! É assim que a poesia de Waly Salomão se apresenta. Como farsa, no sentido daquilo que
provém do drama, do trágico. Uma “alegria” que proveniente do desvio e da desgraça já
aparece “falseada”, não como falso no sentido daquilo que não é verdadeiro ou mentiroso,
mas mascarada, como se existissem camadas sobre camadas, que arranjam toda a significação
poética. Essa poesia exclama, gritando ou se fazendo performática, ela mostra o poeta como
atuante, como persona. Procuro, aqui, fazer uma leitura de alguns textos que fazem parte da
produção literária de Waly Salomão apontando alguns aspectos que indicam o seu fazer
poético como produção de si mesmo.
Para Waly, é na superfície do poema que essa “alegria”, que é a própria existência,
pode subir, ressurgir e aparecer. Em seu fazer poético são diluídos os limites entre a vida e o

1
Mestranda em Literatura (PPGL/UFSC) na área de concentração Literatura Brasileira, bolsista do CNPq,
vinculada à linha de pesquisa “Textualidades Contemporâneas”; e-mail: gabrielaccarvalho@hotmail.com.
2

palco, entre a sola e a tela. Essas fronteiras borradas podem ser percebidas como se, para
Waly, a vida para ser encarada e possível de ser vivida precisasse ser sentida como um teatro,
em cada gota de sangue, em cada punhado de terra.

Barroco

Mundo e ego: palcos geminados.

Quero crer que creio


E finjo e creio
Que mundo e ego
Ambos
São teatros
Díspares
E antípodas.

Absolutos que se refratam /difratam…


Espelhos estilhaçados que não se colam.

Entanto são
Ecos de ecos que se interpenetram
Partículas de ecos ocos, partículas de ecos plenos que se conectam
Aí cosmos são cagados, cuspidos e escarrados pelo opíparo caos
E o uso do adjetivo está correto
Pois que o caos é um banquete.
Fantasmas de óperas.
oooooooooooooooooRatos de coxias.
ooooooooooooooooooooooooooooooAtos truncados.

Há uma lasca de palco2


oooooooooooooooooem cada gota de sangue
oooooooooooooooooem cada punhado de terra
ooooooooooooooooooooooooooooooooooooode todo e qualquer poema.
(SALOMÃO, 2004, p.11)

Talvez aqui seja possível promover um diálogo entre a poesia walyniana e a imagem
do eterno retorno3 proposta por Nietzsche, como um ciclo de todas as coisas, que se repete
incondicional e eternamente e que não tem um começo ou um fim. A vida, já teatralizada, é
matéria prima de sua poesia, ao mesmo tempo em que a poesia é matéria prima de sua vida.
Esse reflexo do inacabado4 é perceptível em outros momentos da poesia de Waly, que ao

2
Os versos de Waly apontam uma referência intertextual ao título do primeiro livro de poemas de Mário de
Andrade “Há uma gota de sangue em cada poema”, publicado em 1917.
3
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Ecce homo: de como a gente se torna o que a gente é. Porto Alegre: L&PM
Pocket, 2008. Eterno retorno – conceito nietzschiano citado em Ecce homo, mas desenvolvido de maneira mais
aprofundada em outros textos seus como A gaia ciência e Assim falou Zaratustra.
4
Curioso, se formos pensar em relações de procedimento, é o fato de que um dos pseudônimos que Waly usou
foi “Waly salut au monde”, que se for pronunciado em língua francesa encontra assonância com seu sobrenome
Salomão, assim como “Waly Sailormoon”, outro pseudônimo, que podemos entender, também, como máscaras.
3

concluir um texto voltava a acrescentar novas linhas ou versos. O próprio Hélio Oiticica já
observava algo parecido no texto de Waly:

Waly, você sabe o que que me lembra esse negócio de quando você considera o fim
de uma coisa e de repente você continua, acrescenta mais um? Isso me lembra um
problema da escultura (...) em relação a Brancusi, que todo o problema da escultura
moderna era absorver o pedestal. (...) A maneira dele [Brancusi] absorver o pedestal
era através da soma feita pela sobreposição de pedestais. (OITICICA apud
SALOMÃO, 2003, p. 201-202)5

Contudo, o inacabado também pode ser entendido como uma sobreposição de


máscaras. São máscaras sobre máscaras, que recondicionam e reformulam o texto, subtraindo
dele qualquer linearidade, qualquer começo ou fim. É nesse sentido da matéria informe, que
podemos aproximar a escrita de Waly ao que nos diz Deleuze sobre o escrever, quando
anuncia que “escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e
que sempre extravaza qualquer matéria vivível ou vivida. É um processo, quer dizer, uma
passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido. A escrita é inseparável do devir.”
(DELEUZE,1997, p.11). Mas como em Waly o fazer poético parece atuar como produção de
si mesmo, podemos estender o devir da escrita, de que Deleuze nos fala, a um ensaio
existencial, a uma existência em devir, uma atuação em devir.
É atuando com uma espontaneidade construída que Waly atravessa e reelabora o
cotidiano com hibridismos e estilhaçamentos do texto por uma coloquialidade estilizada. A
escrita de Waly Salomão é marcada pelo signo da máscara, da persona, é um fazer-se
personagem numa tentativa de escapar a qualquer vitimização, de sempre se reinventar.
“Você tem que ter sempre tanques de reserva, possibilidades inusitadas, inexploradas, de se
abastecer do sonho.”6
Foi praticando uma possibilidade inexplorada que nasceu o seu primeiro escrito:
“Apontamentos do Pav Dois” (1972), texto que surgiu como uma libertação de sua escrita,
ainda que de forma paradoxal, já que foi escrito durante sua prisão no Carandiru. A prisão
representou para Waly uma liberação de um escrever acumulado, “uma represa que precisava
sangrar” (SALOMÃO, 2005b, p.85), já que desde a infância tentava escrever. Podemos, aqui,

Mas o interessante é que, no caso de “Waly salut au monde” podemos reconhecer o “salut au monde” como o
título de um dos poemas de Walt Whitman, que publicou somente um livro, Leaves of Grass, ao qual sempre
acrescentava novos poemas a cada edição, fazendo de seu livro uma obra sempre inacabada.
5
Extrato de Héliotapes sobre Um minuto de comercial de Waly, lado B, New York, 1971
6
Em entrevista a Heloísa Buarque de Holanda disponível no site:
http://www.heloisabuarquedehollanda.com.br/?p=724
4

evocar novamente Deleuze quando explora os elementos motivadores da escrita, em sua


compreensão o escritor

(...) goza de frágil saúde irresistível, que provém do fato de ter visto e ouvido coisas
demasiado grandes para ele, fortes demais, irrespiráveis, cuja passagem o esgota,
dando-lhe, contudo, devires que uma gorda saúde dominante tornaria impossíveis.
Do que viu e ouviu, o escritor regressa com os olhos vermelhos, com os tímpanos
perfurados. Qual saúde bastaria para libertar a vida em toda a parte onde esteja
aprisionada pelo homem e no homem, pelos organismos e gêneros e no interior
deles? A saúde como a literatura, como a escrita, consiste em inventar um povo que
falta. (DELEUZE, 1997, p.14)

Em “Apontamentos do Pav Dois” fica em evidência a teatralização dos gestos. O que


se vê aqui é uma realidade transformada, não há um real último, todos são personagens.
“Você transforma o horror, você tem de transformar, e isso é vontade de quê? De expressão,
de que é isso? Não é a de se mostrar como vítima.” (SALOMÃO, 2005b, p.85)

Não tenho porque chorar. Alguns detentos tomando banho de sol em cima
dos sacos de aniagem. a bunda na cuca de todo mundo. o fumo na moita.

O ventre amargo do profeta lendo as pedras antediluvianas. mundo


subterrâneo. mundo inferior. reino dos mortos. quebrar o ferrolho do reino dos
mortos, sons que ainda não estão no tempo. torre de fogo. água viva.

O profeta vivo dentro de uma cova e escorrendo em esferas alheias a sua


própria individualidade tanto no espaço como no tempo, incorporando à sua
experiência acontecimentos que, lembrados e relatados à luz clara do dia, deviam
propriamente ser postos na 3ª pessoa. Mas, que queremos dizer com esse
“propriamente”? Será o eu de uma pessoa uma coisa aprisionada dentro de si
mesma, rigorosamente enclausurada dentro dos limites da carne e do tempo? Acaso
muitos dos elementos que o constituem não pertencem ao mundo que está na sua
frente e fora dele? A ideia de que cada pessoa é ela própria e não pode ser outra não
será algo mais do que uma convenção que arbitrariamente deixa de levar em conta
as transições que ligam a consciência individual à geral?

Individualidade aberta (imitação, sucessão).

Dans un realisme de la rivage: Após cagar não limpe o cú com gazeta


esportiva que Pelé entra com bola e tudo.

Um filme político – a granfina esquerdistex de Nelson Rodrigues.

(PAPO TER

RÍVEL DA

MORTE) (SALOMÃO, 2003, p.63-64)


5

Poeta e profeta se confundem quase que num ato falho, em que o poeta pode se
realizar como profeta, mas há, ainda mais, uma relação de complementaridade e não de um
gesto acidental: “Sem ser profeta e sem profetismo, a voz do poeta é voz clamando no
deserto, se é que se pode excluir profetismo desse tipo de fala, e ao mesmo tempo a gente tem
de continuar tocando. Ser poeta é um tipo de ilusão, um lunatismo, mas é uma demência
similar à de qualquer pessoa dada a livros (...).” (SALOMÃO, 2005b, p.84)
Essa dupla missão poeta/profeta pode encontrar ecos de assonância com o
pensamento nietzschiano a respeito das divindades das artes Apolo e Dionisos. Para
Nietzsche, não há oposição entre Apolo e Dionisos, ambos coexistem em complementação. O
deus Dionisos leva à experimentação dramática da existência, experimentação exacerbada dos
sentidos, vertigem e excesso, aniquilando fronteiras de uma existência estagnada, invoca o
prazer da ação, a inspiração. É em Apolo que se encontra o poder da ilusão, poder de criar
ficções, redimensionando a vastidão cotidiana, produzindo máscaras e transformando o
horror.
No fazer poético de Waly, esse duplo caráter do espírito apolíneo e do espírito
dionisíaco existem ao mesmo tempo, na medida em que seu texto, enquanto forma, reflete
uma erudição, um cuidado com o belo, que condiz mais com o deus das faculdades criadoras
de formas, o deus da iluminação, o apolíneo; já enquanto gesto, o texto walyniano se
aproxima muito mais da embriaguez, do êxtase arrebatador, do dionisíaco.

Exterior

Por que a poesia tem que se confinar?


às paredes de dentro da vulva do poema?
Por que proibir à poesia
estourar os limites do grelo
oooooooooooooooda greta
oooooooooooooooda gruta
e se espraiar em pleno grude

ooooooooooalém da grade
do sol nascido quadrado?

Por que a poesia tem que se sustentar


de pé, cartesiana milícia enfileirada,
obediente filha da pauta?
Por que a poesia não pode ficar de quatro
e se agachar e se esgueirar
para gozar
– CARPE DIEM! –
fora da zona da página?

Por que a poesia de rabo preso


6

sem poder se operar


e, operada,
oooooooopolimórfica e perversa,
não pode travestir-se
oooooooocom os clitóris e balangandãs da lira? (SALOMÃO, 1998, p.55)

A essa junção do espírito apolíneo com o dionisíaco, Nietzsche chamaria de “obra


superior”:

Esses dois instintos impulsivos andam lado a lado e na maior parte do tempo em
guerra aberta, mutuamente se desafiando e excitando para darem origem a criações
novas, cada vez mais robustas, para com elas perpetuarem o conflito deste
antagonismo que a palavra “arte”, comum dos dois, consegue mascarar, até que por
fim, devido a um milagre metafísico da “vontade” helênica, os dois instintos se
encontrem e se abracem para, num amplexo, gerarem a obra superior que será ao
mesmo tempo apolínea e dionisíaca (...). (NIETZSCHE, 2004, p.19)

Waly viveu intensamente essa perspectiva de mundo trágico, negando certezas e


absolutismos, explorando o caráter dinâmico da vida. “Como eu sou barroco, sei que a vida é
um teatro” 7, partilhando do culto da opacidade e não da transparência. Em seu texto “O
suicídio enquanto paráfrase ou Torquato Neto esqueceu as aspas ou Torquato Marginália
Neto” fica clara essa preferência pelo opaco, pela máscara:

Corre país afora uma lenda-crença de que só se pode confiar em quem olha para o
interlocutor direto nos olhos. Pouco importa se a criatura olhada quer dizer fisgada
careça de lente de contato ou sofra de catarata ou de algum outro problema ótico ou
até mesmo não mais possua olhos. O ótico aqui se converte em ético pois os olhos
nos olhos dissiparia qualquer nesga de sombra de alma, transpassaria qualquer névoa
psicológica. Os olhos nos olhos seria a extrema notação canônica da representação
idealista de um espelho desanuviado da natureza ou da sociedade ou da intimidade
ou da linguagem. Quem não olha nos olhos do outro, bom sujeito não é. Seja mania
nacional ou legado da cristandade, esse raio x introspectivo Torquato Marginália
Neto recusou. Seus versos cantam o opaco oposto:

„Você olha nos meus olhos e não vê nada. É assim mesmo que eu quero ser olhado‟.
(SALOMÃO, 2005a, p.68-69)

Vem sempre à tona a máscara, a opacidade como possibilidade de existência, de não


ser pego de surpresa, assim como o desejo de ser “poeta polifônico”8, de deixar que suas

7
Em entrevista a Heloísa Buarque de Holanda disponível no site:
http://www.heloisabuarquedehollanda.com.br/?p=724
8
SALOMÃO, Waly. Algaravias. São Paulo: Ed. 34, 1996, p. 79.
7

vozes sobreponham-se umas sobre as outras, como camadas, sempre na tentativa de mascarar
a dor. No caso de Waly e de uma grande parte dos artistas de sua geração, convém considerar
que vida e obra estavam amalgamados, imersos num processo de vir a ser. Não há como
desconsiderar o contexto sociopolítico da época em que surgiram seus primeiros escritos, a
ditadura militar, a opressão, as torturas, o exílio, como marcas em suas produções e por vezes
até impulsionadoras da arte. Nas palavras do próprio Waly: “Os melhores talentos da minha
geração. Jail and mental hospital” (SALOMÃO, 2003, p.110)

Mal secreto

Não choro
Meu segredo é que sou
Rapaz esforçado
Fico parado, calado, quieto
Não corro
Não choro
Não converso
Massacro meu medo
Mascaro minha dor
Já sei sofrer
Não preciso de gente
Que me oriente

Se você me pergunta:
Como vai?
Respondo sempre igual:
Tudo legal

Mas quando você vai embora


Movo meu rosto do espelho
Minha alma chora
Vejo o Rio de Janeiro
Comovo, não saldo, não mudo
Meu sujo olho vermelho
Não fico parado
Não fico calado
Não fico quieto
Corro, choro, converso e tudo mais
Jogo num verso
Intitulado o mal secreto (SALOMÃO, 2008, p.142)

É pela experiência das múltiplas máscaras, pela concepção de mundo como espaço
de representação, que a manifestação dionisíaca parece sobressair no fazer poético de Waly,
sobressair não de maneira a se tornar mais importante, mas mais visível, como uma primeira
impressão que nos envolve, tendo em vista que
8

(...) o real e verdadeiro Dionisos, o único Dionisos, aparece numa pluralidade de


figuras ou máscaras de heróis combatentes, e ao mesmo tempo fica enredado as
malhas da vontade particular. O deus manifesta-se então, pelos seus atos e pelas suas
palavras, como um indivíduo exposto ao erro, sujeito ao desejo e ao sofrimento.”
(NIETZSCHE, 2004, p.67-68)

Tal como se percebe em Waly, Nietzsche entende o resultado da existência como


uma aparência que esconderia uma realidade outra, alcançada pela máscara: “Todo o homem
que for dotado de espírito filosófico há de ter o pressentimento de que, atrás da realidade em
que existimos e vivemos, se esconde outra muito diferente, e, que por consequência, a
primeira não passa de uma aparição da segunda.” (NIETZSCHE, 2004, p. 20)
É tendo a poesia como o axial, que na escrita de Waly a vítima não é mais a pessoa
vitimizada, mas apenas alguém que desenvolve o papel da vítima, atua e usa a máscara da
vítima. “Na vida, se a via fica estreita, você tem sempre que descobrir como seguir. Isso para
mim foi uma dolorosa, longa, sofrida vereda que busquei: a de ultrapassar a província.”9

Mascarado avanço

Ela desinfla o mal-estar


na civilização.
Ela prescinde da felicidade
dos bem-postos na vida.
Quanto mais na lida diária
o Tedium Vitae preside
tanto mais
eu e ela nos fundimos extáticos,
crentes da seita dos dervixes girantes.
Eu, com ansiosa solicitude,
agarro qualquer boia
- destroço seja joia -
e comando o lupanar do lumpensinato da ilusão.
E, ela, que papel cumpre?
Ela imprime descomunal animação
à falange
das minhas máscaras. (SALOMÃO, 2001, p.107)

Sua poesia aparece como composição elaborada e não como causalidade natural,
como uma teatralização, como um meio de exibição, mas perdendo qualquer subjetividade
fixa e exemplar. É com uma sabedoria trágica da vida que se pode avançar. Assim, também

9
Em entrevista a Heloísa Buarque de Holanda disponível no site:
http://www.heloisabuarquedehollanda.com.br/?p=724
9

Deleuze, referindo-se a Nietzsche, defende a teatralização do filosófico, que Deleuze


denomina como um teatro da vontade de potência e do eterno retorno, da repetição:

No teatro da repetição, experimentamos forças puras, traçados dinâmicos no espaço


que, sem intermediários, agem sobre o espírito, unindo-o diretamente à natureza e à
história; experimentamos uma linguagem que fala antes das palavras, gestos que se
elaboram antes dos corpos organizados, máscaras antes das faces, espectros e
fantasmas antes dos personagens – todo o aparelho da repetição como „potência
terrível. (DELEUZE, 1988, p.35)

Talvez seja, justamente, por compreender em sua escrita uma “linguagem que fala
antes das palavras”, que Waly rejeite o espontâneo, o natural e prepare a sua fala, não
permitindo que ela escorra de maneira desregrada “minha poesia está cada vez mais
construída e elaborada – e menos montada sobre a verve verbal. Me considero quase antítese
da escritura automática dos surrealistas”10. Como observou, também, Antonio Cicero
concluindo que para Waly “nada poderia ser mais oposto à sua concepção antinaturalista e
anti-espontaneísta de poesia do que a escrita automática” (CICERO, 2005, p.48)
Novamente a manifestação apolínea se faz presente, no fazer rebuscado, na busca
pela elaboração da forma, mas ao mesmo tempo permitindo que o dionisíaco também se
manifeste, passando longe de uma construção parnasiana. Dionisos e Apolo parecem estar em
uma dança sincronizada no fazer poético de Waly, nenhum avança mais do que o outro e
ambos se complementam. O uso da máscara como fuga do espontâneo, que mais ainda é a
fuga de uma vitimização, daquilo que é caótico e sofrível, é o elemento que impulsiona e
instaura a poesia walyniana.
Portanto, esse fazer poético é como “um diamante gerado pela combustão, como
rescaldo final de um incêndio” (SALOMÃO, 1996, p 41), como se do caos, interior e exterior
a si, nascesse sua poesia. É o próprio Waly quem parafraseia Nietzsche escrevendo: “fazer: do
meu caos interior estrelas a brilhar no firmamento”. (SALOMÃO, 2008, p.44)

REFERÊNCIAS

CICERO, Antonio. Finalidades sem fim: ensaios sobre poesia e arte. São Paulo: Companhia
das Letras, 2005.

DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1997.

10
Fala transcrita na sinopse do livro Lábia, disponível no site da editora Rocco:
http://www.rocco.com.br/shopping/ExibirLivro.asp?Livro_ID=85-325-0847-2
10

_______________. Diferença e repetição, Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de


Janeiro: Graal, 1988.

SALOMÃO, Waly. Algaravias. São Paulo: Ed. 34, 1996.

________________. Lábia. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

________________. O mel do melhor. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.

________________. Me segura q’eu vou dar um troço. 2. ed. Rio de Janeiro. Biblioteca
Nacional/Aeroplano Editora, 2003.

________________. Pescados vivos. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.

________________.Armarinho de miudezas. Rio de Janeiro: Rocco, 2005a.

________________.Contradiscurso: do cultivo de uma dicção da diferença. In: RISÉRIO,


Antonio et al. Anos 70: Trajetórias. São Paulo: Iluminuras, 2005b.

________________. Gigolô de bibelôs. Rio de Janeiro: Rocco, 2008.

________________. Entrevista a Heloisa Buarque de Holanda. Disponível em:


<http://www.heloisabuarquedehollanda.com.br/?p=724> acesso em 02/09/2011.

________________. Sinopse do livro Lábia. Disponível em:


<http://www.rocco.com.br/shopping/ExibirLivro.asp?Livro_ID=85-325-0847-2> acesso em
02/09/2011

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A origem da tragédia. São Paulo: Centauro, 2004.

__________________________. Ecce homo: de como a gente se torna o que a gente é. Porto


Alegre: L&PM Pocket, 2008.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo

WALY – HÉLIO: VOZ E CORPO

Bruna Machado Ferreira1 (PPGL/UFSC)

RESUMO

O trabalho propõe a análise comparativa entre as trajetórias do poeta Waly Salomão e do


artista plástico Hélio Oiticica, apontando para um encontro que passa por questões centrais no
contexto das manifestações de contracultura no Brasil, no final da década de 60 e início de 70:
o corpo como suporte, plataforma, palco - formador e formatado pelo discurso - da produção
artística; o rompimento das barreiras entre vida e obra, arte e não-arte, erudito e popular; o
objeto diário, o cotidiano apropriado como obra; o caráter mimético das formas artísticas,
conferindo pluralidade à produção; a tendência ao fragmento, o trecho, o aforismo. Destaca-
se, em ambos, a herança antropofágica oswaldiana, tanto na noção de síntese como no aspecto
(inter) nacional da arte; além do caráter dionisíaco, em contraposição ao apolíneo, abordado
por Nietzsch. Compreender, através desse diálogo, a produção artística como vivência direta e
experimentação do corpo.

Palavras-chave:
Waly Salomão. Hélio Oiticica. Corpo. Poesia. Artes plásticas.

ABSTRACT

This paper proposes a comparative analysis of the trajectories of poet Waly Solomon and
artist Helio Oiticia, pointing to a meeting that goes through the central issues in the context of
counterculture in Brazil in the late 60th and early 70th: the body as support, platform, stage –
formatting and being formatted by discourse – of artistic production; the breaking of barriers
between life and work, art and non-art, classical and popular; the daily object appropriated as
work of art; the mimetic character of art forms, giving plurality to the production; the
tendency to fragment, the aphorism. It stands out in both the cannibalistic heritage of Oswald
de Andrade, so much in the synthesis notion as on the (inter) national aspect of art; besides the
Dionysian character, as opposed to the Apollonian, approached by Nietzsche. Try to
understand, through this dialogue, the artistic production as direct experience and body
experimentation.

Keywords:
Waly Solomon. Helio Oiticica. Body. Poetry. Arts.

1 INTRODUÇÃO

Waly Salomão, ao ser convidado a participar do evento promovido pelo Itaú Cultural,
Anos 70 – Trajetórias2, em 2001, afirmou a importância de Hélio Oiticica para realização do

1 Mestranda do PPGL da UFSC; e-mail: brunamferreira@gmail.com.


2 Evento realizado no Itaú Cultural - São Paulo, em outubro de 2001, que reuniu várias manifestações do
panorama cultural da década de 70. Na área de literatura, o endereço eletrônico do Itaú Cultural apresentou a
antologia virtual Anos 70: As Margens da Poesia, reunindo 108 poemas de 29 escritores, entre eles Torquato
Neto, Waly Salomão, Ana Cristina César, Jorge Mautner, Paulo Leminski, Alice Ruiz, José Simão, Touchê e
Regis Bonvicino. No espaço físico da exposição, a sala especial Literatura Marginal e Facsímile completou a
proposta de recriar o ambiente cultural do período, com exemplares de livros e revistas de poesia, de Chacal,
2

seu primeiro livro, Me Segura Qu'eu Vou Dar um Troço:

Eu mostrava esse tal Apontamentos do Pav Dois3 a todo mundo, a torto e a direito.
Mais a torto, porque sou mais dado a andar com os tortos do que com os direitos,
mas nenhum retorno surgia e eu distribuía entre Rio e São Paulo cópias e cópias e
cópias ou então a mesmíssima suja e nauseabunda cópia, até que um dia pelo sim
pelo não, mostrei uma ao Hélio e dias depois ele já estava sentado na prancheta
diagramando aquilo para mim, enquanto eu desaparecia no vasto mundo. Um belo
dia, quando eu liguei assim ao deus-dará, porque eu não tinha pouso certo, ele então
reclamou comigo, me deu um esbregue e disse assim: você sumiu, achei o texto bem
denso, já estou aqui diagramando... (SALOMÃO, 2005, p. 141).

As trajetórias, arte e vida (ou a única trajetória decorrente da fusão de ambas, já que
essa separação não faz muito sentido nos dois), de Waly Salomão e Hélio Oiticica se
aproximam em vários momentos. Amizade, parcerias criativas. Da convivência no exterior
(Estados Unidos - Nova York) aos Babilaques de Waly, trabalho que unia escrita e
plasticidade, sob forte influência do movimento Neoconcreto, é possível estabelecer um
diálogo.

Performance, em definição comum, é uma forma de arte que associa elementos do


teatro, artes visuais e música, onde as relações entre arte e vida cotidiana, além do
rompimento das barreiras entre arte e não-arte, constituem preocupações centrais. Hélio
Oiticica utilizou o termo “comportamento-corpo” para definir sua produção nos anos 60,
fortemente marcada pelos Bólides vidros e caixas, Penetrável Tropicália e os Parangolés4.
Em meio a ideia de performance e happening, propunha e defendia que a obra de arte deveria
ter participação direta do público. Seus Parangolés, “capas para dançar”, colocavam o corpo
como elemento essencial/integrante da obra – para ganhar forma e movimento deveria ser
vestido por uma pessoa – em meio a cores, ideias de dança e participação/vivência coletiva.
Onde se pode estabelecer uma relação direta entre Hélio e Waly, esse corpo como questão
central na produção artística (como suporte, plataforma, palco, formador e formatado pelo
discurso); no rompimento das barreiras vida e obra, arte e não-arte, erudito e popular; na
vivência e experimentação como criação artística; no objeto diário, o cotidiano apropriado
como obra; no caráter mimético das formas artísticas, conferindo pluralidade à produção.

Cacaso e Nicolas Behr, entre outros representantes da chamada poesia marginal.


3 Apontamentos do Pav Dois é um dos textos que compõem o primeiro livro Me Segura Qu'eu Vou Dar um
Troço, lançado em 1972.
4 Waly Salomão, em seu poema-canção intitulado Remix Século XX, faz referência a ambos os termos:
Tropicália, Parangolé.
3

2 CORPO, EXPERIÊNCIA E VIVÊNCIA


Sandro Ornellas, em seu artigo Waly Salomão e o teatro do corpo, destaca a voz
como materialização corporal na obra do poeta:

Essa voz que mina o texto e lhe conforma é a marca de uma alteridade que o
sistema-escrita prefere excluir. Em nome do corpo civilizado, em nome da paz
social, em nome de Deus, a violência da palavra fundadora – tão impregnada do e
própria ao mundo da oralidade – é banida. Mas Waly a reabilita em sua escrita
tumultuária, dir-se-ia que o corpo não sussurra em seu texto, mas grita, se contorce,
toca seu instrumento até que o ouçam e reajam à sua presença. Esse é o principal
traço da vocalidade no texto de Waly: a potência da voz corpórea que o impregna e o
movimenta, fazendo-o verdadeiramente existir junto, mas não dentro, à visualidade
diagramada da página, aspirando à condição de música. (ORNELLAS, 2008, p.
135).

Tanto em suas aparições em público, como na prosa, música e poesia, uma invadindo
a outra, uma mimetizando a outra, Waly se colocava de corpo inteiro. Na “escrita
automática”5 do seu primeiro livro (Me Segura), a voz que se fragmenta e assume vários
personagens para teatralizar6 o horror da prisão: o Marujeiro da Lua (Sailormoon, também um
dos heterônimos de Waly), Investigador Humanista, Agente-Mor, Agente Loira Babalorixá de
Umbanda. No poema que se transforma em música ou vice-versa, é a voz que assume o ritmo
afro-baiano dos atabaques (Ornellas aponta a influência do oriki, texto sagrado pertencente às
tradições orais africanas dos Iorubá, de evocação, elogio e ritualização, próprio de um Orixá)
e grita para se libertar das amarras das convenções literárias.

Exterior

Por que a poesia tem que se confinar


às paredes de dentro da vulva do poema?
Por que proibir à poesia
estourar os limites do grelo
da greta
da gruta
e se espraiar em pleno grude
além da grade
do sol nascido quadrado?

Por que a poesia tem que se sustentar


de pé, cartesiana milícia enfileirada,

5 Escrita automática carrega aqui a ideia de Bataille no texto La religión surrealista, no sentido de dar mostras
de insubordinação, levar a cabo a destruição da personalidade, esquecer-se de si: “quien se sienta
cómodamente, se olvida completamente de quién es para escribir al azar en un papel en blanco las locuras
más vivaces que aparecen en su cabeza, puede no conseguir nada en el plano del valor literario; no tiene
importancia, conoció, hizo la experiencia de la posibilidad de la ruptura sin excepciones con el mundo donde
actuamos para alimentarnos, donde actuamos para cubrirnos y protegernos” (BATAILLE, 2008, p. 48)
6 Antônio Cícero, ao caracterizar a poesia de Waly Salomão, utiliza o termo “teatralidade” (que o próprio Waly
elegeu), em detrimento de “carnavalização” (que será utilizado, aí sim, para definir o comportamento do
poeta), seja o da concepção bakhtiniana, seja do senso comum relacionado à brasilidade.
4

obediente filha da pauta?

Por que a poesia não pode ficar de quatro


e se agachar e se esgueirar
para gozar
– CARPE DIEM! –
fora da zona da página?

Por que a poesia de rabo preso


sem poder se operar
e, operada,
polimórfica e perversa,
não pode travestir-se
com os clitóris e balangandãs da lira?
(SALOMÃO, 1998, p. 55)

É a reconfiguração, reformatação da arte - arte como “forma revolucionária” (dos


versos “sem forma revolucionária/não há arte revolucionária”, de Maiakóvski, presente ainda
nos manifestos vanguardistas Plano-piloto para poesia concreta e Manifesto Música Nova).
Como Oiticica pretendia, com o corpo, além do quadro de cavalete (o fenômeno da demolição
ou simples negação deste), além do museu, para as ruas. É a ideia defendida pelo artista em
seu artigo Tropicália, de 1968: “(…) o mito da tropicalidade é muito mais do que araras e
bananeiras: é a consciência de um não-condicionamento às estruturas estabelecidas, portanto
altamente revolucionário na sua totalidade. Qualquer conformismo, seja intelectual, social,
existencial, escapa à sua ideia principal” (OITICICA, 2007a, p. 241).
A poesia fora da página, não restrita à linha, o corpo como lugar de fala e escrita.
Multifacetado, multimascarado, multirreferencial. Esse movimento faz parte do
comportamento de vanguarda instaurado no contexto cultural da década de 60 no Brasil.
Segundo o crítico inglês Guy Brett (2005, p. 152) “o impulso da vanguarda no Brasil nesse
período era, tanto quanto „conter o caos‟, liberar os paradigmas de ordem herdados por
intermédio do influxo de vivências”.
A vivência e experimentação (como impulso criativo e linguagem) constituem o
cerne dessa produção, fato que pode ser percebido pela preferência de Hélio pelo termo
experiência no lugar de arte, sendo este último “cheio de conotações passadas”7. Waly
começou a escrever quando da sua prisão (início de 1970), por porte de maconha, no
complexo do Carandiru: “A primeira, do Carandiru, eu já vinha acumulando, era uma represa
que precisava sangrar, e a prisão, ver o sol nascer quadrado, eu repito essa metáfora gasta,
representou para mim a liberação do escrever, que eu já tentava desde a infância, e está no Me
Segura” (SALOMÃO, 2005, p. 143).

7 Em Vivência do Morro do Quieto, escrito em 26 de dezembro de 1966.


5

O livro citado, mais especificamente o texto Apontamentos do Pav Dois, representou


um movimento de libertação. A experiência da prisão foi o estopim criativo. Como o
personagem de Homero, que se prende ao mastro do navio para passar ileso ao canto das
sereias, Waly se agarra à escrita para “atravessar” o visto e ouvido no Carandiru: “Início da
viagem, Ulisses dentro do barco (tapando os ouvidos contra as sereias): - meu barco vai partir
num mar sem cicatrizes” (SALOMÃO, 2008, p. 69). Do corpo aprisionado, o desejo da mente
livre. Com uma prosa caracterizada pelo fluxo de consciência, faz relatos, cria personagens,
ironiza, desenvolve uma série de artifícios para evitar o processo de vitimização: “um sujeito
em estado de choque, que assume a natureza daquilo que o choca, como uma defesa mimética
contra o choque” (FOSTER, 1996, p.165). Sentir, com o corpo, para criar.
No artigo de 1966, intitulado Vivência do Morro do Quieto, que assim se inicia, “de
repente, algo que se encontra latente em nós como que se revela”, Hélio Oiticica relata como
a “subida” ao Morro do Quieto foi responsável pela gênese da então futura exposição Nova
Objetividade:

O sol já se punha, mas o dia estava ainda claríssimo (18h de verão no Rio), e a
própria topologia do morro que estava a meus pés, que eu “caminhava” ao subir,
como que evocava essa gênese; então cheguei a algo: essa ideia da 'Nova
Objetividade' como um conceito, um pensamento, não seria uma experiência
restringida à minha, como até então quisera eu, ou ao menos teorizava, mas algo que
acontecia num grupo, que se constatava em experiências independentes, individuais
que brotavam ao redor. Essa vivência, tão fundamental, num lugar para mim
essencial, me causou momentaneamente uma vertigem (não das 'alturas', nem
provocada por tóxicos, mas semelhante a estas) – jamais, por estranho que seja, tal
me ocorrera (…). (OITICICA, 2007b, pp. 219-220).

A Nova Objetividade Brasileira aconteceu no Museu de Arte Moderna do Rio de


Janeiro (MAM-RJ) em abril de 1967, e contava com a participação de nomes ligados ao
Grupo Neoconcreto como Lygia Clark, Pedro Escosteguy, Lygia Pape, Raymundo Colares,
Antonio Dias, dentre outros. O catálogo da exposição trazia um texto de Hélio Oiticica,
intitulado Esquema Geral da Nova Objetividade, no qual ele apontava itens essenciais para a
discussão da arte que estava sendo (re) pensada naquele momento, como a tendência para o
objeto ao ser negado e superado o quadro de cavale; participação do espectador; tendência a
uma arte coletiva e tomada de posição em relação a problemas políticos, sociais e éticos.
Perpassava todos eles o caráter vivo e orgânico da arte, como o destaque dado pelo artista ao
trabalho desenvolvido por Lygia Clark, que culminava “numa 'descoberta do corpo', para uma
'reconstituição' do corpo', através de estruturas supra e infra-sensoriais, e do ato da
participação coletiva” (OITICICA, 2007c, p. 225).
Em seu livro Lábia, publicado em 1998, Waly escreveria um poema dedicado à
6

Lygia Clark, fazendo referência ao caráter lúdico, sensorial e coletivo da obra da artista, com
clara alusão a sua obra "A Casa é o Corpo", apresentada pela primeira vez em 1968 no
MAM–RJ, uma instalação de oito metros, que possibilitava a passagem das pessoas por seu
interior, para que tivessem a sensação de penetração, ovulação, germinação e expulsão do ser
vivo.

MAR MANSO SERENO


mar manso sereno,
reverberas a teoria do caos:
raivas blasfêmias dentro de mim.
ondina,
marulhas langor e melancolia
na praia brava do núcleo mais egóico do meu ego
que baba iconoclastia
na crista da onda intumescida
por piratarias literárias
e marés cheias de ânsias suicidas
e cóleras homicidas.

mar manso sereno,


tal qual um eco invertido
ou um tubo cavado na concavidade da onda monstra:
eis o saca-rolha
para engarrafadas células dos ultramicroscópicos vírus
das mais disparatadas insânias.

água morninha, bolsa de líquido amniótico,


precipitas em mim o recorrente delírio de ser um embrião
de tubarão feroz
que se estertora a serrilhar
sua própria placenta protetora.

mar manso sereno


(hipérbole do lodo-salsugem uterino):
engendras medusas incestuosas
vaginas dentadas
e virtuais assassinas puerperais.

'O jogo e a realidade.'


O jogo elide sujeito e objeto.

'O jogo e a realidade."


O amor elide sujeito e objeto.

'O jogo e a realidade.'


O jogo do amor elide sujeito e objeto.

mar manso sereno


provocas tempestades
no copo d'água cheio de conversa fiada e fuxico
- panos grosseiros de nossas vestes ordinárias.
escura crescente cheia minguante
vida sublunar.
(SALOMÃO, pp. 41- 42)

A experiência – coletiva ou individual - como suporte da arte faz surgir o artista


7

multifacetado, de expressão anárquica, que se aproxima do popular, seja pela linguagem, pela
presença do morro e carnaval carioca, da incorporação do marginal (a bandeira-estandarte
“Seja marginal, seja herói” de Oiticica homenageando o bandido Cara de Cavalo); revela o
potencial dionisíaco da arte. Waly, em suas aparições/apresentações em público, encarna o
próprio sátiro nietzschiano:

Assim surge aquela figura fantástica e aparentemente tão escandalosa do sábio e


entusiástico sátiro, que é concomitantemente 'o homem simples' em contraposição ao
deus: imagem e reflexo da natureza em seus impulsos mais fortes, até mesmo
símbolo desta e simultaneamente pregoeiro de sua sabedoria e arte – músico, poeta,
dançarino, visionário, em uma só pessoa. (NIETZSCHE, 2010, pp. 58-59).

Figura esta que poderia também ser traduzida pela frase “A Mangueira sou eu”, de
Oiticica, reconhecendo em si o pulsar ritmado da bateria no ensaio da quadra da Escola de
Samba Estação Primeira de Mangueira, a arquitetura vertiginosa das favelas;
simultaneamente, aprendendo a virar passista, “digerindo” (a maneira antropofágica
oswaldiana) movimentos de arte internacionais como Pop e Op Art, demolindo qualquer
barreira entre artista e público.

3 SÍNTESE
Além fronteiras (agora geográficas de fato), borrando as linhas que separam as várias
formas de arte, Hélio e Waly se encontraram em Nova York na década de 70. Enquanto o
primeiro levava o Parangolé ao metrô nova-iorquino, o outro produzia os Babilaques, que ele
se negaria a chamar de poemas visuais (por achar a expressão insuficiente para compreender a
inter-relação de linguagens composta por texto, desenho, colagem, planos, textura, cor, luz,
ângulos, corte, imagens impressas e objetos do cotidiano), e descreveria como uma
“experiência de fusão da escrita com a plasticidade”. A série composta por poemas escritos
em cadernos e fotografados em situações e suportes vários em Nova York, Rio de Janeiro e
Salvador entre 1975 e 1977, evocava “o caráter ESTRUTURAL da experiência:
PLURALIDADE de significados” (SALOMÃO, 2007, p. 21). O poeta, refletindo o artista
plástico, definiu a produção como “performance poético-visual” e assim explica o título:

BABILAQUE é uma palavra não dicionarizada, não tem o seu sentido definido pelo
dicionário; carrega, portanto, possibilidades virtualmente infinitas. Contém em si
uma libertação do sentido literal stricto sensu, enquanto dispara diversos sentidos
embutidos no seu interior. Palavra polissêmica, de forte carga rítmica moderna,
porém não modernosa, e claramente não destinada a ser somente uma gíria
provinciana, localista e efêmera de um gueto. (SALOMÃO, 2007, p. 21).
8

Mais uma vez aparece o corpo, aqui como suporte físico, de fato, da escrita. No que
poderia ser considerado um primeiro momento do trabalho, uma foto da mão do artista a
frente de um “cenário” composto por autênticos suvenires cariocas (pratos pintados com
papagaios, palmeiras, o Pão de Açúcar e o Cristo Redentor). Na mão está escrito um poema
curto: “Conheço o Rio de Janeiro/ Como a palma da minha mão/ Cujos traços desconheço”. A
fotografia, de autoria de Bina Fonyat, foi apresentada no evento organizado pelo artista
plástico Carlos Vergara no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1971, intitulado
Exposição. De caráter experimental, o acontecimento reuniu artistas que até então não haviam
participado de qualquer exposição de arte, representando um momento bastante significativo
na relação de Waly com as artes plásticas.
Destaca-se, no poema acima, uma espécie de haicai, a tendência - herança
oswaldiana - à síntese. Silviano Santiago, que utiliza o termo curtição8 para caracterizar essa
geração que surgiu no cenário cultural no final da década de 60, início de 70, e seria
identificada como contracultura (marcada pelo Tropicalismo na música, Cinema Marginal,
Teatro Oficina), aponta como característica a valorização do trecho em detrimento do todo:

Não é por acaso que estamos de novo diante daquele mesmo fragmentário que foi a
marca registrada de Machado de Assis, de Oswald de Andrade e, um pouco mais
longe, de Nietzsche. O aforismo contém a verdade. O trecho aparece trabalhado,
bordado, rendado, pedindo portanto apreensão sintética (o fragmento) e ao mesmo
tempo analítica (o bordado). Com isso também se perde a noção de continuidade
narrativa, tão importante para a estética que nasceu com o século histórico por
excelência que foi o XIX. A continuidade no e do texto, o discursivo, só faz sentido
se se pensa dentro de uma lógica linear e unívoca, em que o contraditório é expulso
em favor da dicotomia seletiva, do pensamento que se expressa em termos de
forquilha e de opção. (SANTIAGO, 2000, p. 131).

Em Oiticica, é o fragmento sintético, de matriz essencialmente oswaldiana, que surge


por si e ganha mobilidade e engajamento social nos Parangolés e Bólides – “Da adversidade
vivemos”; “Incorporo a revolta”; “Estamos famintos”; “Seja marginal, seja herói”. Em Waly é
o fragmento que emerge da totalidade da prosa em forma de fluxo de consciência; seja sob a
forma de um trecho tomado por inteiro de uma obra já existente e conhecida, mimetizado no
texto do próprio autor (Tristes Trópicos de Lévi-Strauss em Me Segura Qu'eu Vou Dar um
Troço); seja sob a forma de aforismo nietzschiano (onde o poeta se confunde com o profeta):

8 Silviano Santiago utiliza o termo no artigo intitulado Os abutres, de 1972, em que analisa a então recente
geração da contracultura. A curtição, “sensibilidade de uma geração, sensação, estado de espírito, conceito
operacional, arma hermenêutica, termômetro, barômetro, divisor de águas etc”, seria a nova forma de se
pensar as manifestações artísticas da época. Ela, segundo Silviano, desloca a leitura e “inaugura um novo
reino de gozo, de deleite, de fruição, de prazer estético” (SANTIAGO, 2000, p. 131).
9

“Todo aquele que constrói 'novo céu' achou a força no seu próprio inferno” (SALOMÃO,
2008, p. 32).
A utilização do fragmento como recurso provoca no leitor, ou participador (termo
utilizado por Hélio em detrimento de espectador) o estranhamento e o efeito lúdico,
aparentemente contraditórios e inconciliáveis, uma vez que um remete ao afastamento,
enquanto outro indica envolvimento, proximidade. O estranhamento, tão caro ao teatro épico
de Brecht e ao cinema de Glauber, aparece, em Waly, como um rompimento na escrita,
extinguindo qualquer possibilidade de linearidade, tirando o leitor da zona de conforto. Logo
após esse primeiro movimento, o leitor é chamado de volta à obra, para recolocar/reposicionar
trechos, ou (re) montar jogos de palavras propostos

PAPO TER
RÍVEL DA
MORTE
(SALOMÃO, 2008, p. 19)

Como o artista plástico propondo ao público que vista as “capas para dançar”,
adentre o Penetrável Tropicália, colocando os pés descalços na areia; ou se acomode
confortavelmente em uma das caixas do Bólide Ninhos Éden: “se alcança no pleno desenrolar
das potencialidades criadoras e é o espaço de lazer não-repressivo” (SALOMÃO, 2005, p.
81).
Ainda caracterizando a chamada geração da contracultura, Silviano Santiago destaca
o seu aspecto não verbal, assim justificando o consequente efeito atrasado da curtição em
âmbito literário:

Tal atraso tem sua razão de ser no fato de a nova geração olhar com tremendo pouco
caso a comunicação verbal e de considerar ainda com violento desprezo o que se
define hoje como escritura. E também porque, do ponto de vista sociológico,
estejamos diante de uma geração que curte o gregário, estando pois impossibilitada
de aceitar a regra maior para a leitura do texto literário, a solidão. (SANTIAGO,
2000, p. 129).

Concorda-se com o crítico quando, em seguida, ele coloca a “desmistificação” e


“dessacralização” dessa escritura como processo recorrente, mas admitir o aspecto coletivo
como obstáculo para a leitura é problemático, uma vez que é evidente e constante a referência
de Waly, em seus escritos e discursos avessos a “paper prontinho e bonitinho”, às inúmeras e
variadas influências literárias que passam, além do mestre modernista, matriz ideológica e
10

estética, Oswald de Andrade, por Nietzsche, Guimarães Rosa, Gertrude Stein, Ezra Pound,
Gregório de Matos, os poetas concretos Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari,
Lévi-Strauss, dentre outros. A leitura, desde a infância em Jequié, Bahia, sempre aparece nos
relatos do artista como movimento libertador, essencial para romper com a “coisa tacanha”, o
provincianismo da cidade de interior. Há que se considerar ainda a formação na Universidade
Federal da Bahia quando esta passava pela reforma instalada pelo então visionário reitor
Edgar Santos, que trouxe para trabalhar como professores e colaboradores, artistas e
pensadores envolvidos com as ideias de vanguarda e experimentação, como a arquiteta e
designer italiana Lina Bo Bardi, o músico e artista plástico suíço Walter Smetak, o maestro
alemão Hans J. Koellreuter, a polonesa Yanka Rudzka, professora de dança contemporânea,
entre outros.

Formação esta que culminou no lema “Experimentar o experimental”9, cunhado por


Hélio Oiticica. Desembocou na Tropicália, das “polinizações cruzadas”, onde Oiticica
escreveu: “A pureza é um mito”. Inspirado pela obra, Caetano Veloso compôs a canção
inaugural da vertente musical tropicalista, e depois vestiu o Parangolé. Waly, em ensaio,
definiria a Tropicália como um “frutuoso caso de amor paradoxal” entre São Paulo e Bahia.
Hélio-Waly seria um frutuoso caso de amor entre Rio de Janeiro e Bahia, materializado em
Aspiro ao Grande Labirinto, livro póstumo do artista plástico organizado por Lygia Pape,
Luciano Figueiredo e o próprio Waly, e na obra onde o poeta declara sua admiração pelo
artista plástico, Helio Oiticica, qual é o parangolé - e outros ensaios. Para Waly, Hélio foi
“num todo múltiplo, totalidade indivisível vida/obra”. Assim foram ambos, criando uma
linguagem artística multi, pluri, (inter) nacional. Artistas da metamorfose, camaleônicos. Em
uma expressão cara a Lévi-Strauss, autêntico “perfume queimado dos trópicos”.

4 REFERÊNCIAS

BATAILLE, Georges. La religión surrealista. Buenos Aires: Las Cuarenta, 2008.

BRETT, Guy. Brasil Experimental. Rio de Janeiro: Contracapa, 2005.

CÍCERO, Antonio. A falange de máscaras de Waly Salomão. In: CÍCERO, Antonio.


Finalidades sem fim. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

FOSTER, Hal. The Return of the Real. Londres: MIT Press, 1996.

9 Título do texto de Hélio Oiticica escrito em 1972, publicado no catálogo do Grupo Frente e Metaesquemas.
Galeria São Paulo, 20 de março a 21 de abril de 1989.
11

NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. São Paulo: Companhia das Letras,


2010.

OITICICA, Hélio. Tropicália. In: BASUALDO, Carlos (Org.). Tropicália – Uma Revolução
na Cultura Brasileira. São Paulo: Cosac Naify, 2007a.

OITICICA, Hélio. Vivência do Morro do Quieto. In: BASUALDO, Carlos (Org.). Tropicália
– Uma Revolução na Cultura Brasileira. São Paulo: Cosac Naify, 2007b.

OITICICA, Hélio. Esquema Geral da Nova Objetividade. In: BASUALDO, Carlos (Org.).
Tropicália – Uma Revolução na Cultura Brasileira. São Paulo: Cosac Naify, 2007c.

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129 - 143, jul./dez., 2008.

SALOMÃO, Waly. Lábia. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

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SALOMÃO, Waly et al. Babilaques: alguns cristais clivados. Rio de Janeiro: Contra Capa
Livraria; Kabuki Produções Culturais, 2007.

SANTIAGO, Silviano. Os abutres. In:_____. Uma literatura nos trópicos. Rio de Janeiro:
Rocco, 2000.
SUMÁRIO GERAL

Sumário de Inglês

94. A MODERNIDADE LÍQUIDA ENQUANTO CONTEXTO SÓCIO-CULTURAL DAS


LENDAS URBANAS - Giana Targanski Steffen

95. ANÁLISE DA TRADUÇÃO DO FILME INFANTIL "DEU A LOUCA NA CHAPEUZINHO"


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96. ANALYZING THE REPRESENTATION OF FEMALE CHARACTERS IN ISSUE #0 OF


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97. AS IMPRESSÕES DOS ALUNOS DE CURSOS TÉCNICOS SOBRE O USO DE ATIVI-


DADES MEDIADAS POR COMPUTADOR NAS AULAS DE INGLÊS – Gisele Luz Cardoso

98. BODIES THAT MATTER?: MULTIMODAL DISCOURSE ANALYSIS OF JUNIOR


MAGAZINE’S FRONT COVER - Fábio Santiago Nascimento

99. BRAZILIANNESS VERSUS ENGLISHNESS: THE MYSTERIOUS CASE OF NATIONAL


IDENTITY AND HISTORICAL REPRESENTATION IN O XANGÔ DE BAKER STREET, A
PARODY OF SHERLOCK HOLMES – Mateus da Rosa Pereira

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101. ENTRE-LUGAR DE CALIBAN EM X-MEN: INTERSECÇÃO ENTRE ESTUDOS PÓS-


COLONAIS E ESTUDOS SOBRE DEFICIÊNCIA – Gislaine Aparecida Bahls

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ENCE GENERATION AND READING COMPREHENSION: PILOT STUDY INSIGHTS -
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NA ABREVIAÇÃO DE NOME PRÓPRIO - Clésia da Silva Mendes Zapelini e Sandro Braga

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106. SEM MIM NO MEIO, QUERIDO, VOCÊ NÃO SERIA NADA”: HETERONORMATIVI-
DADE QUESTIONADA EM HEDWIG: ROCK, AMOR E TRAIÇÃO – Claudia Santos Mayer

107. THE LOST VOICES OF THE CARIBBEAN? REVISITING J.M. COETZEE’S FOE AND
JEAN RHYS’ WIDE SARGASSO SEA – Renata Lucena Dalmaso

108. THE USE OF LANGUAGE IN POLITICS: A CRITICAL DISCOURSE ANALYSIS OF


OBAMA’S SPEECH IN THE LIGHT OF SYSTEMIC FUNCTIONAL GRAMMAR -
Andreana Marchi
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A MODERNIDADE LÍQUIDA ENQUANTO CONTEXTO SÓCIO-CULTURAL DAS


LENDAS URBANAS

Giana Targanski Steffen1 (UFSC/CNPQ)


RESUMO

O presente trabalho visa apresentar uma discussão do contexto sócio-cultural onde surgem e
são retransmitidas as Lendas Urbanas quando estudadas sob a perspectiva da Linguística
Sistêmico-Funcional. Para tanto, é necessário primeiro uma introdução do que são essas
Lendas, e uma explicação do papel que, de acordo com estudos de Folclore, elas parecem
assumir na sociedade. Sigo então com uma discussão do entendimento de língua enquanto
sistema semiótico, conceito básico para que possamos entender a proposta de análise textual
que nos oferece a Linguística Sistêmico-Funcional de Halliday (2004) e que utilizo como base
para o estudo discursivo de tais Lendas. Por fim, relaciono a função social que as Lendas
Urbanas parecem assumir na sociedade globalizada atual com o contexto de Modernidade
Líquida de Bauman (2001), apontando que quando tais Lendas surgem como relatos de
advertência, elas cumprem com o papel de nos avisar sobre os perigos amorfos e iminentes
inerentes à liquidez da forma de modernidade atual.

Palavras-chave:
Lendas Urbanas. Análise Crítica do Discurso. Lingüística Sistêmico Funcional. Modernidade
Líquida.

ABSTRACT

The present paper intends to present a discussion of the socio-cultural context where Urban
Legends arise and circulate, following the perspective of Systemic Functional Linguistics. In
order to do so, a brief introduction to Urban Legends and to the role they play in society will
be necessary. I follow, then, with a discussion of the concept of language as a semiotic
system. Finally, I relate the social function that Urban Legends seem to assume in current
globalized society to Bauman‟s (2001) Liquid Modern times, pointing out that whenever such
Legends arise as bogus warnings, they fulfill the function of warning us against the risks
imminent to the current form of Liquid Modernity.

Keywords:
Urban Legends. Critical Discourse Analysis. Systemic Functional Linguistics. Liquid
Modernity.

1 INTRODUÇÃO
Lendas urbanas (LUs) são histórias fabulosas, de eventos incomuns e que algumas
vezes apresentam tom de humor. As LUs não são necessariamente falsas, mas em geral
possuem caráter sensacionalista ou exagerado, e muitas vezes são baseadas em fatos ou
preocupações reais (HARRIS, 2006; BERENBAUM, 2001). Em sua grande maioria,
apresentam personagens e enredo, com elementos de mistério, horror e medo, sendo
apresentadas como relatos de advertência (HARRIS, 2006).

1
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Inglês da UFSC e bolsista CNPQ; e-mail: steffen@cce.ufsc.br.
2

Muitos pesquisadores preferem o termo „lenda contemporânea‟, já que a maioria das


lendas alegam ser recentes, ou „contemporâneas‟ àquele que as conta. Essas lendas tratam na
verdade de temas modernos (namoro, tecnologia, violência, doenças contagiosas), e não de
materiais tradicionais (princesas, bruxas, ogros). Elas são sempre contadas como algo que
realmente aconteceu com alguém conhecido, ou „um amigo de um amigo meu‟, e variações
das mesmas narrativas podem ser encontradas em inúmeros locais diferentes, em momentos
diferentes, mas sempre contendo as mesmas implicações morais (DIFONZO & BORDIA,
2010).
A origem dessas lendas parece estar nos campi universitários Americanos na década
de 60. Originalmente transmitidas oralmente, as LUs costumam apresentar uma „virada‟
irônica que funciona como mensagem simbólica (DONAVAN, MOWEN &
CHAKRABORTY, 1999). Um exemplo bastante conhecido dessas narrativas iniciais, que
eram contadas e usualmente se passavam em torno dos ambientes universitários, é a lenda „os
arranhões no teto do carro‟. Conta a lenda que um casal de namorados estaciona o carro em
um local afastado, em meio a árvores, procurando por alguma privacidade. Em um dado
momento o rapaz deixa o veículo para urinar e não volta mais. A namorada, assustada,
começa a escutar arranhões no teto do carro, mas tem medo de deixar o veículo e espera
amanhecer. Quando ela finalmente sai do carro para procurar ajuda, encontra seu namorado
enforcado em cima do carro, eram os seus sapatos que arranhavam o teto, enquanto ele
desesperadamente tentava se equilibrar nas pontas dos dedos para evitar a morte. Como
podemos ver, o contexto em que a história acontece e é contada é o mesmo, o ambiente de
jovens universitários. Brunvand (1981) nos explica que essa lenda transmite a lição moral
„evite situações perigosas‟, e lida com o tema do medo fora da segurança familiar ou da
instituição escolar, especialmente para mulheres jovens.
Recentemente, a Internet se tornou o meio preferido de difusão dessas lendas
(DONAVAN, MOWEN & CHAKRABORTY, 1999). Assim, o contexto aonde elas são
difundidas deixa de ser tão claro. Passam a existir lendas (quase ou possivelmente) globais, a
respeito de marcas internacionais, como é o caso da lenda em que um menino morre após
consumir Coca-cola e pastilhas Menthos; sobre o medo das novas doenças infecciosas, como
na historia da pessoa que é contaminada com AIDS após sentar em uma seringa contaminada
no cinema; ou até mesmo sobre o medo do próprio mundo virtual, como nas inúmeras
histórias de pessoas que iniciam um namoro virtual e acabam brutalmente assassinadas.
Sendo assim, passa a ser difícil definir o contexto de uma lenda a partir de um local
geográfico específico aonde acontecem ou a partir de uma situação geradora específica.
3

Vários estudiosos dessas lendas sugerem que a motivação principal destas é encontrar ou
produzir significados. Atualmente, quando os sistemas de significado tradicionais, como a
igreja, a vizinhança e a escola se tornam cada vez menos influentes, procuramos nossos
significados e valores nessas narrativas (DIFONZO & BORDIA, 2010).
As Lendas Urbanas na era da Internet surgem ou são retransmitidas, então, em
contextos aonde significados podem ser construídos através da contação de histórias, aonde as
partes da vida podem ser interpretadas como entretenimento (DIFONZO & BORDIA, 2010).
O contexto das LUs é a necessidade de significado, de promover valores culturais e morais, de
lidarmos com os nossos medos verbalmente (oral ou grafologicamente). Assim, mesmo que
tais narrativas sejam migratórias, no sentido de que elas são sempre localizadas em tempo e
espaço próximo de quando são retransmitidas, proponho que seu contexto na era virtual não
mais pode ser explicado em termos de comunidades geográficas específicas aonde elas
surgem. O contexto global da Modernidade Líquida é o meio ideal para essas lendas, e elas
serão retransmitidas em qualquer comunidade que participe da necessidade de construção
daqueles significados dos quais cada lenda trata individualmente. Enquanto lendas referentes
ao terrorismo são bastante comuns nos Estados Unidos após o fatídico Onze de Setembro,
dificilmente elas chegam aos países da América Latina; Lendas sobre grandes corporações,
como por exemplo o conto em que os hambúrgueres do Mcdonalds são feitos de minhocas,
são mais comuns em países em desenvolvimento aonde o medo do controle de tais
corporações sobre a vida diária de cada indivíduo é mais acentuado.
Contudo, o tema mais comum das Lendas Urbanas modernas é o medo do outro. Seja
o outro o turista que trás para o nosso ambiente insetos ou plantas assassinos (como na
história do Norte Americano que visita o Brasil e leva para casa um inseto que se alimenta do
cérebro de humanos) ou o vagabundo, aquele que está ao nosso redor e em quem temos medo
de confiar (como a vendedora da Avon que bate na nossa porta, oferece um perfume - na
verdade um tipo de droga - para a cliente/vítima experimentar e assim poder roubar itens de
valor de sua casa). Esse é o medo global que permite o surgimento de tais narrativas.

2 A LÍNGUA COMO SISTEMA SEMIÓTICO


A visão de língua enquanto sistema semiótico adotada atualmente pela Lingüística
Sistêmico Funcional é possível apenas enquanto resultado de constantes mudanças no
entendimento dos conceitos de língua, texto e discurso que acompanham o processo de
transição da Modernidade para a Pós-modernidade ou de continuidade da Modernidade para a
Modernidade Líquida. A diferença entre os conceitos de Pós-modernidade e Modernidade
4

Líquida será discutida adiante. Por hora, interessa compreendermos o papel da lingüística
nesse processo.
O Pós-Modernismo lingüístico tem suas origens no movimento do estruturalismo, e
em sua contra-reação, o pós-estruturalismo. O estruturalismo pode ser visto como um dos
últimos estágios do Modernismo, ou como o imediato precursor do Pós-Modernismo. Levi-
Strauss (1963), antropólogo estruturalista, argumentou que todos os padrões culturais
humanos, desde a arquitetura até a língua, seguiam as regularidades das estruturas
matemáticas. Essas regularidades, no entanto não são qualitativas, mas em padrões de
possíveis combinações e simetria. Seguindo essa mesma suposição, Jean Piaget (1970) notou
que para desenvolver conceitos básicos na educação, como os conceitos de tempo, espaço e
quantidade, as crianças construíam as mesmas operações das quais precisavam para entender
o mundo. Inspirados por lingüistas modernos que encontraram regularidades matemáticas nas
estruturas (CHOMSKY, 1965) e nos sistemas sonoros lingüísticos (JAKOBSON, 1962), os
estruturalistas passaram a entender que a língua e a cultura poderiam ser estudadas dentro das
ciências matemáticas.
Os Pós-Estruturalistas, por sua vez, não estavam interessados em encontrar
regularidades lingüísticas. O seu interesse estava em como o discurso é construído de modo a
reforçar ou desafiar os padrões de ordem, lingüística e cultural, que se impõe sobre ele. A
língua passa a ser vista não mais como um conjunto de códigos matemáticos que podem se
desdobrar em um número finito de combinações e significados, mas em uma ferramenta
adaptável ao uso necessário.
Isso fica claro no trabalho de Foucault (1969), que mostra ser inviável aos
historiadores reconstruírem um passado real. Ele argumenta que o discurso histórico é um
discurso do presente, nos auxiliando hoje a compreender os passos da atividade humana
através dos tempos. Como podemos notar, o conceito de discurso adotado por Foucault não
inclui apenas a língua, mas tudo aquilo que utilizamos para compreender o mundo. Para ele,
as noções de nação, self, normalidade e família, entre outros, são construções culturais e
históricas. O foco assim deixa de ser os fenômenos que a ciência investiga, e passa a ser o
modo como a ciência produz ou reproduz significados através de seus discursos.
Sendo assim, o que caracteriza a visão de linguagem seguida na presente discussão é
o foco no significado, e não mais na estrutura. O interesse passa a ser em como um texto
produz significados, e o próprio conceito de texto é expandido de modo a incluir textos não
lingüísticos. Como nos lembra Lemke (1994), uma paisagem é o texto que um geólogo
5

analisa. A língua, um sistema de convenções arbitrárias, soma-se a inúmeros outros sistemas


de produção de significados.
É a partir dessa mudança de foco, aonde “a gramática de uma língua não é um
código, não é um conjunto de regras para se produzir sentenças corretas, mas um recurso para
se construir significados”2 (HALLIDAY, 1978, p. 192), que surge o conceito de „recurso
semiótico‟. Van Leeuwen (2005) explica que esses recursos são “as ações e artefatos que
usamos para nos comunicar, sejam eles produzidos fisiologicamente – com nosso aparato
vocal; com os músculos que utilizamos para criar expressões faciais e gestos, etc. – ou por
meio de tecnologias – com uma caneta, tinta e papel; com hardware e software de
computadores; com tecidos, tesouras e máquinas de costura, etc.”3 (p. 3).
Vale notar a diferença entre esse conceito de recurso e o conceito de signo discutido
por Saussure (1974). Ele parte da divisão entre langue (língua) e parole (discurso). Para ele, a
língua é um sistema de valores que está depositado como produto social na mente de cada
falante de uma comunidade, possui homogeneidade e por isto é o objeto da lingüística
propriamente dita. Diferente da parole (discurso) que é um ato individual e está sujeito a
fatores externos, muitos desses não lingüísticos e, portanto, não passíveis de análise. Assim,
os signos lingüísticos na concepção de Saussure têm significados pré-estabelecidos e que não
são afetados ou modificados de acordo com o seu uso, diferentemente da idéia pós-
estruturalista aonde os signos possuem um potencial semiótico teórico que se efetiva ou
modifica quando estes são utilizados em um contexto social específico.
O conceito de recurso semiótico, então, faz parte de uma lingüística Pós-Moderna
com foco na função, e não na forma dos textos. É neste contexto que surge a Lingüística
Sistêmico Funcional, trazendo o conceito de Estratificação que veremos a seguir.

3 A LINGÜÍSTICA SISTÊMICO FUNCIONAL E A TEORIA DA ESTRATIFICAÇÃO


A Lingüística Sistêmico Funcional (LSF) se baseia na noção de que o uso da língua é
um modo de ação social histórica e culturalmente situada. Sendo assim, o texto e suas
significações não podem ser dissociados do contexto em que ocorrem. A linguagem é então
“um sistema semiótico complexo que contém vários níveis ou estratos”4 (HALLIDAY &

2
Minha tradução do original: “the grammar of a language is not a code, not a set of rules for producing correct
sentences, but a resource for making meanings”.
3
Minha tradução do original: “the actions and artefacts we use to communicate, whether they are produced
physiologically – with our vocal apparatus; with the muscles we use to create facial expressions and gestures,
etc. – or by means of technologies – with pen, ink and paper; with computer hardware and software; with fabrics,
scissors and sewing machines, etc.”
4
Minha tradução do original: “a complex semiotic system with several levels or strata.”
6

MATTHIESSEN, 2004, p. 24). Esses estratos são a fonologia, a lexicogramática, a semântica,


o contexto de situação e o contexto de cultura.
Sempre que fazemos uso da língua, todos esses níveis são acionados ao mesmo
tempo, mesmo que inconscientemente. Assim, os elementos semânticos (significados) que
produzimos são realizados pelas nossas escolhas lexicogramaticais (de vocabulário e de
estrutura) que por sua vez são realizados pela fonologia (ou grafologia no caso de textos
escritos). Por outro lado, as nossas escolhas lexicogramaticais dependem dos contextos de
situação e cultura aonde o texto é produzido.
Para que se possa explicar a estrutura das escolhas lexicogramaticais, ou do texto em
si, a LSF nos oferece a Gramática Sistêmico Funcional (HALLIDAY & MATTHIESSEN,
2004). Enfatizando o caráter multifuncional dos textos, tal gramática entende que os textos
realizam simultaneamente três funções. A função ideacional trata do modo como a língua
representa aspectos do mundo, quais são os processos, participantes e circunstâncias em um
texto (a análise trata, assim, em termos da gramática tradicional, dos verbos, sujeitos e
predicados). A função interpessoal está relacionada ao modo como o texto constrói as
relações entre os participantes e como as crenças, valores e atitudes de tais participantes são
apresentadas (análise de modalização e formalidade, por exemplo). Por fim, a função textual
se refere ao modo como o texto está estruturado de modo a apresentar, ou não, aspectos de
coesão e coerência.
O contexto de situação pode ser explicado em termos do registro de um texto
(HALLIDAY & MATTHIESSEN, 2004). O registro é composto de três variáveis: o campo,
as relações e o modo. O campo está relacionado com o que está acontecendo, qual a atividade
que está sendo realizada. No caso das Lendas Urbanas atuais, o campo é o de uma
comunicação escrita mediada através de e-mail, aonde o texto é um relato de um evento e
aviso de possível perigo. As relações se referem aos papéis assumidos pelos participantes na
comunicação. Na versão pós-moderna das LUs, transmitidas e retransmitidas através de e-
mail, as relações incluem o remetente/informante, e o destinatário. O remetente oferece
informação não requisitada, mas que pressupõe ser válida, o que implica em uma relação de
poder, já que ele possui uma informação válida que o destinatário supostamente desconhece.
O modo trata do canal, modalidade e meio de veiculação do texto. Os e-mails que transmitem
tais lendas são monólogos, e apesar de escritos, normalmente são informais. O papel da língua
é constituinte, já que sem ela, esta comunicação não existiria.
Para poder explicar o modo como textos, produzidos em contextos de situação
específicos, são possibilitados ou restringidos pelo contexto de cultura; e para compreender o
7

modo como esses textos reafirmam ou desafiam esse contexto cultural aonde acontecem, a
lingüística tem feito uso de estudos interdisciplinares. Afinal, concordamos com Saussure que
estes fatores externos, culturais, não são passíveis de análise lingüística.
Entretanto, a interdisciplinaridade se dá a partir do objeto lingüístico de análise. Se o
objeto tem relação com estudos feministas, por exemplo, a perspectiva fenomenológica pode
nos ajudar a entender o modo como as definições patriarcais de mundo fazem parte de um
discurso hegemônico masculino. Quando um objeto faz referência a relações sociais de poder,
a teoria da Estruturação de Giddens pode desvelar as prescrições de papéis e distribuição de
recursos na sociedade. As lendas urbanas, contudo, são possibilitadas e restringidas por um
contexto global bastante amplo, parte da continuidade que se dá entre a Modernidade e a
Modernidade Líquida, como veremos a seguir.

4 O CONTEXTO SOCIO-CULTURAL DAS LENDAS URBANAS: MODERNIDADE


LÍQUIDA
O termo Modernidade Líquida (BAUMAN, 2001) se refere a presente condição
humana, em contraste com a forma sólida de modernidade anterior. Enquanto o termo pós-
modernidade parece implicar em uma rejeição da modernidade, uma proclamação de um
„fim‟, Bauman (2001) vê o fenômeno como uma reorganização de temas e categorias. Para se
entender esse processo, precisamos considerar a mudança de uma modernidade definida,
territorializada, nacionalizada, para uma modernidade globalizada, nômade, migratória,
sofrendo os efeitos (positivos ou negativos) da Internet e das novas tecnologias.
Enquanto em sua forma sólida, a Modernidade envolvia o controle sobre a natureza,
a hierarquia, regras, controle e categorização, tudo na tentativa de „organizar‟ o caos da
experiência humana. Contudo, Bauman (2001) argumenta que isso nunca foi alcançado.
Mesmo quando a vida está organizada em categorias, sempre há grupos que não podem ser
separados do todo ou controlados. Um exemplo disso está no que Bauman (1998), baseado na
filosofia de Jacques Derrida, chama de „o estranho‟: aquela pessoa que está presente, mas não
nos é familiar. Por um lado, em economias consumistas, o estranho pode nos chamar a
atenção com sua diferente culinária, música, modo de vestir ou até mesmo incitando o
turismo. Mas „o estranho‟ também tem o seu lado negativo. Já que não pode ser controlado ou
categorizado dentro da nossa (muito relativa) ordem estabelecida, ele também é objeto de
nossos medos, ele é o potencial assaltante, o criminoso, aquele que está fora dos limites da
nossa sociedade, mas dentro do mesmo limite geográfico, e portanto é constante a sua
ameaça. Em um mundo aonde conhecemos nossos amigos e nossos inimigos, a ameaça do
8

estranho é “mais assustadora do que aquela que se pode temer da parte do inimigo”
(BAUMAN, 1994, p. 157), já que essa nos é desconhecida.
Nesta nova situação, instituições sociais já não têm mais tempo de se solidificar e
servir como referência para as ações humanas; as instituições tradicionais, como a igreja ou a
escola, perdem a sua importância. Assim, os indivíduos precisam encontrar novas maneiras de
reorganizar suas vidas. Quando a igreja perde o seu poder, por exemplo, o „Divino‟ perde a
sua força, e resta para os indivíduos assumirem o poder sobre seu próprio destino. Alguns
conceitos tradicionais, como o de „carreira profissional‟, perdem a sua estabilidade e os
indivíduos precisam estar sempre prontos para se readaptarem, abandonar compromissos e
seguir oportunidades de acordo com a sua situação atual. Na Modernidade Líquida, então, os
indivíduos necessitam planejar suas ações em condição de incerteza constante.
A cultura, nessa perspectiva, pode ser definida como “a organização social de
significados, interiorizados de modo relativamente estável pelos sujeitos em forma de
esquemas ou representações compartilhadas, e objetivados de formas simbólicas, tudo isso em
contextos historicamente específicos e socialmente estruturados”5 (GIMENEZ, 2009). Mas
quem são e aonde estão esses sujeitos? A identidade individual se dá a partir da noção de
quem somos e quem são os outros. Isso implica em comparações quanto aos recursos
culturais que são valorizados por nós e pelos outros sujeitos. Contudo, essa valorização é
apenas relativamente estável, o que resulta em possíveis mudanças no que consideramos a
nossa identidade individual em diferentes momentos de vida, e também nos grupos aos quais
nos associamos. Segundo Bradley (1997, citado em GIMENEZ, 2009, p. 14), podemos ter
além de identidades ativas, identidades potenciais – aquelas possíveis mas que estariam
„dormindo‟, esperando serem ativadas; e identidades politizadas que servem de base para as
ações coletivas. Assim, os grupos aos quais nos associamos são criados e desfeitos de acordo
com as nossas identidades momentâneas. Como diz Hall (2003, p. 13), a identidade é
“formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos
representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam.”
A identidade coletiva, então, aparece como um acontecimento, e não como um efeito
natural do mundo social; ela se refere a adesão a um modelo cultural que incorpora
determinados rituais, práticas e artefatos culturais. Do mesmo modo que a identidade
individual, a coletiva também se dá a partir da diferenciação com os outros grupos

5
Minha tradução do original: “La organización social de significados, interiorizados de modo relativamente
estable por los sujetos em forma de esquemas o de representaciones compartidas, y objetivados em formas
simbólicas, todo ello em contextos históricamente específicos y socialmente estructurados”.
9

identitários, e da manutenção dessa diferença por um período de tempo. Contudo, a fronteira


entre diferentes identidades culturais coletivas não é geográfica, mas quanto aos itens
culturais que são mais ou menos valorizados: “Os centros de produção de significado e valor
são hoje extraterritoriais e emancipados de restrições locais” (BAUMAN, 1999, p. 9). Mais
uma vez, temos espaço para mudanças. Como discute Gimenez (2009, p. 19), “as culturas
estão em contínua mudança pela inovação, pela expansão, pela transferência de significados,
pela fabricação de autenticidade ou pela „modernização‟”6.
Muitas dessas mudanças se dão a partir da hibridização cultural. A circulação de
elementos culturais fora das fronteiras geográficas aonde se originaram não é novidade. A
diferença hoje está na velocidade da mobilidade humana e dos contatos interculturais. Essa
hibridização, entretanto, não resulta em um movimento de criação de uma única cultura
híbrida, pois de modo a manter a sua própria identidade (e vale lembrar que identidades são
estipuladas a partir da diferença) tais relações são estruturadas para que a diferença cultural
não deixe de existir. Segundo Featherstone (1994, p. 8), “a lógica binária que busca
compreender a cultura através dos termos mutuamente exclusivos de
homogeneidade/heterogeneidade, integração/desintegração, unidade/diversidade deve ser
descartada”. Assim, um mesmo sujeito pode se vincular a diferentes culturas e até mesmo
territórios de uma só vez, sem perder a sua referência cultural original. Mesmo que programas
de televisão, comerciais e narrativas, entre outros, possam hoje atravessar o mundo em
questão de segundos, a resposta daqueles indivíduos que recebem essas informações não é
uniforme, já que cada um deles lê esses textos a partir de contextos e práticas culturais
diferentes (FEATHERSTONE, 1994).
Com tudo isso, o conceito de identificação assume nova relevância. Segundo Hall
(2000, p. 106), a identificação é construída “a partir do reconhecimento de alguma origem
comum, ou de características que são partilhadas com outros grupos ou pessoas, ou ainda a
partir de um mesmo ideal.” Em outras palavras, enquanto a identidade é o elo que nos liga a
nós mesmos, a identificação é o que nos liga aos outros. No mundo globalizado da Internet,
aonde a distância perde a sua importância, podemos nos identificar com características de
membros dos mais diversos grupos sem perder as nossas características identitárias
individuais.

6
Minha tradução do original: “lãs culturas están cambiando continuamente por innovación, por extraversión, por
transferência de significados, por fabricacion de autenticidad o por „modernización‟”
10

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em tempos de medos líquidos, aonde as nossas inseguranças não possuem forma
específica e o estranho mora ao nosso lado, é compreensível a difusão de Lendas Urbanas que
surgem como relatos de advertência, nos avisando dos perigos amorfos e iminentes do
mundo. Como diz Spivak (1994, p. 188), “a escritura é uma posição em que a ausência7 do
autor na trama é estruturalmente necessária. A leitura é uma posição em que eu (ou um grupo
de “nós” com quem partilho um rótulo identificatório) faço dessa anônima trama a minha
própria, encontrando nela uma garantia da minha existência enquanto eu mesma, uma de
nós.” Assim, através do medo representado nas LUs, nos identificamos com os outros – e
todos os outros que partilham de nossos medos, não importando o quão longe
geograficamente eles estejam.
Neste contexto global aonde a Internet rompe as fronteiras físicas da comunicação, as
lendas não surgem mais em um contexto/espaço específico, mas se reproduzem em qualquer
espaço social que ofereça as características necessárias para o seu surgimento e reprodução.

6 REFERÊNCIAS

BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998.

_____. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1999.

_____. Modernidade líquida. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001.

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BRUNVAND, J. H. The vanishing hitchhiker: American urban legends and their


meanings. New York, WW Norton and Company, 1981.

CHOMSKY, N. Aspects of the Theory of Syntax. Cambridge, MA: MIT Press, 1965.

DiFONZO, N. & BORDIA, P. Rumor, Gossip and Urban Legends. Diogenes 213:19- 35,
2010.

DONAVAN, T.; MOWEN, J. & CHAKRABORTY. Urban Legends: The word-of-mouth


communication of morality through negative story content. Marketing letters 10:1 23-34,
1999.

FEATHERSTONE, M. Cultura global: nacionalismo, globalização e modernidade.


Petrópolis: Vozes, 1994.

FOUCAULT, M. The Archeology of Knowledge. New York: Random House, 1969.

7
Grifo original do autor.
11

GIMENEZ, G. Cultura, identidad y memória: materiales para uma sociologia de los


processos culturales em lãs franjas fronterizas. Frontera norte, 21:41, 2009.

HALL, S. Quem precisa de identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu (Org) Identidade e
diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de janeiro, DP&A, 2003.

HALLIDAY, M. A. K. Language as social semiotic. Edward Arnold, London, 1978.

HALLIDAY, M. A. K.; MATTHIESSEN, C. An introduction to Functional Grammar.


Oxford: Hodder Arnold, 2004

HARRIS, T. How urban legends work. Retirado de http://people.howstuffworks.com/urban-


legend1.htm; em 05 de dezembro de 2006.

JAKOBSON, R. Fundamentals of Language. The Hague: Mouton, 1962.

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impasses. Rio de Janeiro, Rocco, 1994.

VAN LEEUWEN, T. Introducing Social Semiotics. New York, Routledge, 2005.


SUMÁRIO GERAL Sumário de Inglês Aba de anexos para salvar artigo

ANÁLISE DA TRADUÇÃO DO FILME INFANTIL "DEU A LOUCA


NA CHAPEUZINHO" ("HOODWINKED")
Marília Gomes Teixeira1 (PPGL/UFPE)

RESUMO

O presente trabalho objetiva analisar a tradução dos itens lexicais da legenda do filme "Deu a
louca na Chapeuzinho" ("Hoodwinked", Weistein Co.,2005). A partir do questionamento das
crianças, entre 6 e 7 anos, do 2º ano da Escola Internacional de Aldeia (Recife - PE), foram
extraídos alguns dos fragmentos do filme considerados de difícil compreensão por parte das
mesmas. Em seguida, propusemos traduções mais simplificadas e com maiores de serem
compreendidas pelo público em questão.

Palavras Chave:
Tradução das legendas. Público infantil. Universo linguístico infantil.

ABSTRACT

The current work aims to analyze the translation of the lexical items of the subtitles of the
film "Hoodwinked" ("Deu a louca na Chapeuzinho"). From the questions made by the
children around 6 and 7 years, students of the second year of Escola Internacional de Aldeia
(Recife - PE), some of the fragments of the movie (considered difficult to understand by
them) were extracted. Further, we suggested more simplified translations, with more chances
to be understood by this public.

Keywords:
Translation of subtitles. Infant viewers. Children's linguistic universe.

1 INTRODUÇÃO
Entre os meios de comunicação social, o cinema é hoje um instrumento muito
difundido e apreciado pela humanidade, propondo uma reflexão sobre os mais variados
assuntos da realidade ou apenas entretendo, como uma fuga da atribulada vida cotidiana.
Ademais, dele partem mensagens que influenciam no comportamento, na formação
intelectual e cultural podendo até mesmo condicionar as escolhas do público, sobretudo os
jovens.
Sendo uma atividade com enorme potencial de lucro e de difusão cultural, a indústria
cinematográfica voltou o foco para o público infantil, de maneira que o consumo dos produtos
aumentasse, por meio de elementos persuasivos e que estimulam a imaginação, tornando-se
assim, fundamental seduzir e entreter plateias infantis.

1
Graduada em Letras pela UFPE, Especialista em Metodologia da Tradução pela FAFIRE e mestranda em
Linguística pela UFPE; e-mail: marilia_gteixeira@hotmail.com.
2

Desta forma, haja vista o desenvolvimento das produções cinematográficas de


animação nas últimas duas décadas, na qual destacam-se os filmes originariamente em língua
inglesa, vale ressaltar a importância da tradução de tais obras, especialmente daquelas cujo
foco é o público infantil.
Neste caso, o tradutor tem um papel que vai além de apenas transpor significados,
mas levar em consideração o universo linguístico das crianças e traduzir de maneira que elas
alcancem a plenitude do sentido das sentenças e do contexto do filme em sua totalidade.
Para tanto, o profissional deve valer-se de teorias tradutórias a fim de maximizar sua
produção; ter um bom conhecimento do universo linguístico infantil, no intuito de fazer as
escolhas adequadas e que se enquadrem na compreensão do público em questão, uma vez que
a obra infantil, mesmo que dirigida à criança, é de invenção do adulto. A mensagem é
transmitida do ponto de vista que este considera mais útil à formação de seus leitores, na
linguagem e no estilo que crê serem adequados à compreensão e ao gosto de seu público.
Cabe ainda ao tradutor fazer adaptações perante diferenças culturais que possam
prejudicar o entendimento do contexto e, por fim, adaptar a legenda ao espaço da tela sem
extrair partes cruciais para a compreensão do total.
No que diz respeito aos aspectos linguísticos, segundo Casanova (1992), a divisão
cronológica do processo de aquisição de vocabulário não é consensual entre os teóricos,
porém, todos estão de acordo quanto as duas grandes etapas: o período pré-linguístico e o
período linguístico, que se subdivide em Primeiro Desenvolvimento Sintático e Expansão
Gramatical Propriamente Dita.
Nossos estudos porém, restringir-se-ão apenas à faixa etária entre seis e sete anos,
fase na qual as crianças já atingiram a Expansão Gramatical Propriamente Dita. Nesta etapa
do desenvolvimento linguístico, como também constata Casanova (1992), as crianças, entre
outras habilidades, já estão aptas a escutar e entender histórias longas e manter o interesse no
enredo.
A opção em se fazer uma análise da tradução do filme "Deu a louca na Chapeuzinho"
("Hoodwinked", Weinstein Co., 2005), deve-se ao fato de o mesmo apresentar alguns
aspectos diferenciais, tanto em termos de animação quanto nas estruturas linguística e
tradutória, os quais serão abordados mais adiante.
O enredo tem o foco no furto de um livro de receitas e as diferentes versões dos
suspeitos sobre o ocorrido. O principal ponto do filme, o que lhe dá tal diferencial, é seu
roteiro. É interessante ao brincar com as expectativas da plateia, isto é, não necessariamente o
lobo é mau e a vovó é uma senhora indefesa. Também ressalte-se a construção do roteiro:
3

contar uma mesma história por vários ângulos diferentes - um para cada personagem
principal. Não é exatamente algo novo no cinema, mas utilizar este artifício em filmes de
animação não é comum. As piadas são uma mistura de humor visual com ironia e os diálogos
são uma mescla da linguagem da história original com uma mais contemporânea.
O filme apresenta trechos que, seja por motivos linguísticos ou de diferenças
culturais, exigem um maior esforço e criatividade do tradutor. O presente trabalho propõe-se a
analisar os elementos, sobretudo os concernentes ao léxico, que contribuem para a existência
de tal dificuldade, objetivando explicar as escolhas tradutórias do profissional e sugerir
alternativas para que a tradução tenha maiores chance de sucesso. Assim, realizaremos uma
análise descritiva e interpretativa da tradução do filme em contraste com a versão original, em
língua inglesa, tendo a legendagem como modalidade tradutória em foco.

2 A INFLUÊNCIA DO CINEMA PARA O PÚBLICO INFANTIL


Muito do que se sabe atualmente sobre pensamentos de povos, épocas e culturas são
conhecimentos obtidos por meio de sua arte: música, teatro, cinema, dança e pintura e poesia,
ressalta Martins (1998). Desta forma, faz-se mister compreender as linguagens destas
manifestações culturais no intuito de interpretá-las e dar-lhes um sentido.
É desta maneira que podemos conceber a arte não apenas como um campo de
atividade social, mas sobretudo como uma forma de manifestar a cultura. Sendo o cinema a
arte em questão, pode-se afirmar que ele trabalha o imaginário, por meio de seu enredo e sua
narrativa, no momento em que mostra os aspectos culturais de uma sociedade. Assim, é
dentro dessa cultura que o cinema trabalha o conhecimento científico, simbólico e imaginário,
mostrando-se bastante influente na formação das crianças, afirma Canclini (1994).
É indubitável, assim, a capacidade formativa dos filmes: por meio deles, as crianças
ampliam seus repertórios culturais e refletem acerca de questões da vida cotidiana. Além
disso, podem contribuir para criar situações importantes, transformando experiências de
mundo em repertório. A contribuição do cinema para as crianças também pode ser percebida
quando relacionada à linguagem escrita e à leitura, uma vez que potencializa o
desenvolvimento da oralidade, da imaginação e da criatividade.
Considerando-se a grande variedade de filmes voltados para as crianças, torna-se
imprescindível uma abordagem acerca da influência que tem o cinema no referido público.
Tal fato, além de ter levado as produções cinematográficas a fazer altos investimentos nesse
ramo, também configura um ponto de debate na realidade hodierna.
4

Em que pesem os benefícios da sétima arte, não se pode deixar de constatar certo
nível de periculosidade existente. Merten (1990) diz que o cinema é um excelente brinquedo,
capaz de dar sentido à fantasia daqueles que o vêem. Este brinquedo, entretanto, alerta o
autor, pode ser perigoso, pois pode impor conceitos e valores no subconsciente. O autor ainda
constata que, em algumas situações, o cinema deixa de ser encantador para se tornar um
instrumento de dominação, podendo influenciar mal o espectador.
Embora seja exagerado interpretar o cinema como algo puramente alienante, a
massificação que atinge os adultos também tem seus efeitos nas crianças, ressalta Fantin
(2006). Os filmes trazem mensagens, conceitos, valores que abordam a noção do bem contra o
mal, as relações de poder, padrões de comportamento e estereótipos, os quais são consumidos
e reproduzidos pelos espectadores. Por outro lado, para Barbero (2001), a massificação não
necessariamente significa alienação. Segundo o autor, o perigo da massificação só existe
quando o espectador não faz uma crítica sobre aquilo a que acabou de assistir.
Não se pode, todavia, ignorar o cinema na realidade de uma criança, sobretudo
porque a mídia configura um importante - embora persistente - papel na difusão da cultura por
intermédio dos filmes. Por se tratar de um artefato cultural com o qual as crianças devem se
relacionar, o cinema pode ser uma alternativa de exercício da capacidade humana. Entretanto,
deve-se ter o cuidado para não restringi-lo como única possibilidade de entendimento da
cultura pela criança, mas sim, ser um complemento em sua formação, defende Fantin (2006).
É essencial (e interessante) observar a relação das crianças para com as películas,
pois isso permite entender a maneira como os interpretam e reagem frente às mesmas. Muitas
vezes, ao terminarem de assistir a um filme, elas imaginam ser as personagens ou passam dias
brincando sobre o que viram, por exemplo. Estas são reações que demonstram inicialmente a
maneira pela qual as crianças interpretaram o enredo e foram por ele influenciadas. A
infinidade de reações, portanto, é um indicador de como podemos entender a compreensão
infantil em relação aos filmes.
Tão intrigante é poder do cinema sobre as pessoas, que até mesmo estudos
psicanalíticos buscam explicar tal influência. Mustenberg (2003) considera que durante um
filme, a experiência do espectador não se restringe à escuridão e à sonoridade, como também
à sua relação com o tempo: o cinema permite que voltemos ao passado ou nos adiantemos
para o futuro, por exemplo, possibilitando-nos ver o filme por diversos prismas e mostrar
fantasias possíveis por meio do encontro entre memória e imaginário.
Outro fator fundamental diz respeito ao ambiente da sala do cinema. A escuridão e o
distanciamento das salas de cinema são aspectos relevantes para a imaginação: fato que
5

dificilmente ocorre quando as crianças assistem a um filme na televisão. A emoção de um


filme pode estar presente tanto nas grandes telas quanto na TV, mas haverá diferenças:
primeiro, porque possuem formas diferentes de significação e de construção; segundo, porque
o cinema envolve o fascínio da sala escura, enquanto a TV faz parte do cotidiano das crianças.
Afora estes fatores, também é considerável saber o que agrada às crianças num filme,
no intuito de termos ciência se a linguagem encontra-se inclusa nesse processo e como pode
ser melhorada a fim de atender às expectativas deste público.
Um estudo comparativo feito por Monica Fantin (2006) com crianças brasileiras e
italianas revela a opinião das mesmas sobre o que consideram ser um bom filme. Tal pesquisa
aponta que os critérios estabelecidos pelas mesmas resumem-se em: ser divertido, possuir
crianças e animais e não ser violento. Algumas ainda mencionaram o aspecto “ser fácil de
entender”, ou seja, o filme deve ter linguagem simples. E ainda que possua uma linguagem
simplificada, não significa, porém, que se isenta de reflexão porque, de acordo com
Buckhingam (1996), as crianças fazem julgamentos críticos e sabem muitas coisas sobre o
que assistem.
É verdade que a compreensão envolve contexto e os modos de ver de cada criança, o
que acarreta interpretações próprias. Porém, em se tratando exclusivamente de linguagem (o
que isenta, portanto, o fator interpretativo) o legendista deve ter a sensibilidade em buscar
minimizar as dificuldades e facilitar a compreensão para que as crianças tenham as mesmas
(ou praticamente as mesmas) condições de entendimento do filme. Como saber, então, o
vocabulário pertinente e mais adequado para esse público? Posto que o foco da mídia,
sobretudo a cinematográfica, volta-se para “o público infantil”, muitas vezes sem delimitar a
faixa etária, pode-se deduzir que os filmes infantis de longa metragem abrangem as idades
entre 6 – idade em que já conseguem acompanhar longos enredos – e 12 anos, que marca o
fim da infância.
Lançar mão do uso de palavras e expressões apropriadas e que aumentem as chances
de melhor compreensão pelo público alvo é papel do legendista, independentemente da faixa
etária para a qual irá traduzir. Uma vez que o público em questão são as crianças com idade
entre 6 e 7 anos, entender como a linguagem se processa e se desenvolve pode auxiliar
bastante o profissional da tradução no momento da legendagem, que poderá agregar
linguagem à técnica sem o comprometimento de ambas.
6

3 O UNIVERSO LINGUÍSTICO INFANTIL - A AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM E O


VOCABULÁRIO DAS CRIANÇAS DE 0 a 7 ANOS
Infância e aquisição de linguagem relacionam-se intimamente. Se considerarmos a
origem da palavra "infância" (do latim, infantae), temos por definição "ainda não falar", "o
que é novo, novidade" e infans, ántis, que significa "que não fala, criança". Desta forma,
pode-se afirmar que infância é a transição do período de infans, que não fala, para o indivíduo
falante.
Embora haja discussões e controvérsias entre as diferentes teorias sobre como as
crianças adquirem a língua materna, faremos um breve registro das principais correntes de
pensamento teórico acerca da forma como as crianças aprendem a falar e estruturam a língua
ao longo da infância.
No intuito de tentar explicar como as crianças aprendem a falar, alguns estudiosos
propuseram teorias baseadas na imitação, como Skinner (1957). Tal corrente fundamentava-se
no comportamento, isto é, a maneira como o ser humano reagia e se portava perante uma
situação era uma resposta a um determinado estímulo.
A concepção da imitação assume que a criança adquire a língua imitando o que ouve,
ou seja, reproduzindo aquilo que um adulto fala. Imitar, porém, pressupõe a reprodução exata,
e não é isso o que ocorre com a criança. Ela dispõe de uma espécie de filtro natural, por meio
do qual seleciona o que ouve e utiliza isso para produzir sua fala particular. Assim, ela filtrará
as estruturas complexas e as reproduzirá a sua maneira (processo o qual alguns autores
nomeiam de "fala criativa"). É verdade que a imitação constitui-se num recurso contribuinte
para a aquisição da linguagem; porém, não explica tal processo.
Na década de 1960, o lingüista americano Noam Chomsky opôs-se ao behaviorismo,
propondo a tese do inatismo, segundo a qual todos os indivíduos já são “equipados” para
adquirirem a linguagem oral. Para o autor, o indivíduo nasce com um dispositivo inato de
aquisição da linguagem.
Ao contrário do que alegam muitos teóricos, Chomsky não ignorou a importância da
interação e do meio no processo de aquisição da linguagem. Tanto, que postulou os conceitos
de competência e desempenho2. É verdade que o autor dedicou seus estudos à língua abstrata,
porém, é equivocado dizer que ele não considerou o papel do meio ambiente na aquisição da
linguagem. A fala daqueles que rodeiam as crianças é essencial para que se inicie o

2
Competência é o conhecimento mental puro de uma língua em particular por parte do sujeito falante.
Desempenho é o uso concreto da linguagem em situações de fala concreto.
7

funcionamento do mecanismo de aquisição, mas isso não é determinante na forma final desse
mecanismo.
Outra abordagem sobre aquisição de linguagem tem um enfoque cognitivista e a
linguagem não é o principal objeto de estudo. Jean Piaget (1971) objetivou estudar o
desenvolvimento cognitivo da criança, pois, para ele, a linguagem é conseqüência do
desenvolvimento da cognição. O autor considera que, cada etapa do desenvolvimento é pré-
requisito para a etapa seguinte, uma vez que a assimilação de algo novo provoca um
“rearranjo” do conhecimento anterior.
De acordo com Piaget, a criança nasce com um conjunto de reflexos inatos, fazendo
uso destes para construir os esquemas sensório-motores, que se baseiam nas percepções
sensoriais e em esquemas motores (bater, morder, pegar, etc). Esses esquemas, por meio das
experiências, se ampliam e se modificam, transformando-se em conceitos práticos (que são a
maneira de agir que a criança aplica para conhecer o mundo e pressupõem o pensamento).
Conforme Piaget, a linguagem surgirá apenas como uma manifestação simbólica,
isto é, como uma capacidade de representar algo através de símbolos, da imagem mental, da
imitação e da linguagem. É nesta fase que se desenvolvem as primeiras estruturas verbais e
fará uso de apenas um símbolo para designar um objeto específico.
Com a passagem da fase do sensório-motor para a fase simbólica, a palavra toma
lugar nas funções mentais e a linguagem assumirá seu papel no desenvolvimento da cognição
infantil, ampliando as habilidades comunicativas. A fase seguinte, é denominada pelo autor de
"pré-operatória", que é caracterizada pela "fala egocêntrica" É por meio desta fala que a
criança pratica uma espécie de monólogo como uma forma de auxílio às suas ações. Assim, o
"falar sozinho" será substituído por meio do contato com adultos até o ponto de a linguagem
se tornar uma função comunicativa. Tal modificação ocorre por volta dos sete anos, idade em
que se tornam perceptíveis os pensamentos lógico e objetivo.
Piaget considera, enfim, que cognição e pensamento precedem a linguagem, pois,
antes de falar, a criança é impulsionada por um tipo de inteligência que a faz querer conhecer
o mundo a sua volta. O processo de conhecimento é desencadeado pela ação, não pela
linguagem.
A partir das leituras das obras de Piaget, o russo Lev Vygotsky discute e opõe-se às
concepções do estudioso francês. Vygotsky afirma que, inicialmente, há uma fase em que a
linguagem é não-intelectual e o pensamento é não-linguístico, isto é, pensamento e linguagem
possuem origens diferentes, mas irão se encontrar em um determinado ponto do
desenvolvimento.
8

Na etapa inicial do desenvolvimento das crianças, o pensamento não-verbal


manifesta-se por meio do manuseio dos objetos. A linguagem não intelectual é a fase em que
existe o balbucio, porém, não há relação com o pensamento. Vygotsky considera que as
primeiras reações de uma criança à fala é que indicam a função social da linguagem. É nesse
estágio inicial que a criança usa a linguagem para "dizer" o que está sentindo e as palavras
servem apenas para substituir objetos e pessoas. Ou seja, para o autor as primeiras palavras
não tem função simbólica, isto é, elas ainda não são signos. Para ele, é por volta dos dois anos
que as trajetórias do pensamento e da linguagem se unem, propiciando novas formas de
comportamento. A fala transforma-se em pensamento, que passa a ser verbalizado.
O foco da abordagem de Vygotsky é o desenvolvimento humano do ponto de vista
socio-cultural, no qual a linguagem ocupa importante espaço. Contrariamente a Chomsky, o
autor considera que a linguagem é social, e não inata, pois é parte da atividade humana sobre
o mundo. E é através desta atividade que os indivíduos tornam-se capazes de associar objetos
visuais aos sonoros e representá-los por meio de símbolos.
Assim, o autor postula que "o desenvolvimento do pensamento é determinado pela
linguagem e pela experiência sociocultural da criança" (VYGOTSKY, 1986). Ou seja, é a
linguagem que torna possível a transmissão do conhecimento e da experiência social e a
interiorização do pensamento social e cultural da comunidade pelo indivíduo.
Independentemente das abordagens dos teóricos mencionados, podemos concluir
que, para uma criança aprender a linguagem oral, basta apenas estar exposta ao meio
linguístico, salvaguardando as raras exceções.
Sabe-se que o desenvolvimento da linguagem inicia-se muito cedo, já dentro do
ventre da mãe, pois as crianças “desde muito cedo, ainda na barriga da mãe, revelam a
capacidade para trabalhar os sons, que serão parte integrante da língua a qual irão dominar”
(COSTA E SANTOS, 2003). Pode-se afirmar, assim, que durante a gestação as crianças estão
se preparando para falar, já que têm certo contato com a língua.
Como visto anteriormente, Casanova (1992) classifica as fases do desenvolvimento
lingüístico em pré-linguístico, que abrange as idades de 0 a 12 meses; e o período lingüístico,
o qual subdivide-se em Primeiro Desenvolvimento Sintático, que engloba as idades entre 12 e
36 meses e a Expansão Gramatical Propriamente Dita, que abrange as idades entre 36 e 54
meses.
Na etapa pré-linguística, o choro é a primeira e principal ferramenta de comunicação
da criança nessa fase, pois é através dele que consegue que suas necessidades sejam
atendidas. Pouco tempo depois, mais ou menos na sexta semana de vida, o bebê utiliza-se de
9

outras formas de comunicação, como o tato, o olhar e o sorriso. No segundo mês, percebe-se
que o choro possui sonoridades distintas e varia de acordo com a necessidade do bebê. A
partir do terceiro mês, a criança é capaz produzir sons vocálicos e guturais. É também nesta
fase que surge o balbucio, no qual ocorrem emissão de sons e duplicidade de sílabas (ex. “pa
pa”). O balbucio progride consideravelmente no quinto e sexto meses, ocorrendo a imitação
dos sons pela criança e perdura até o oitavo e nono meses. Aos nove e dez meses, a criança
fala palavras curtas, sendo majoritariamente aquilo que os adultos dizem. Ela demonstra
grande interesse em imitar sons e gestos no intuito de estabelecer a comunicação, estando
assim mais propensa a aprender a linguagem rapidamente.
É apenas a partir do primeiro ano de vida que a criança faz uso das primeiras
palavras. Trata-se do início da etapa lingüística, na qual a criança emite palavras, mas que
ainda não tem o formato das palavras dos adultos. Também nesta etapa, a criança sabe o
significado de alguns vocábulos e faz uso da linguagem para estabelecer contato.
De um ano e meio a dois, ocorre um enriquecimento da linguagem e o repertório
infantil passa para, em média, 50 palavras. A aquisição de vocabulário passa a ser quase diária
e em geral, as crianças utilizam-se mais de substantivos (por serem as palavras de maior força
denotativa), alguns adjetivos e advérbios.
Um acentuado aumento de vocabulário também ocorre por volta dos dois e três anos.
As crianças fazem uso de verbos, adjetivos e advérbios; entretanto, a maior parte de seu
vocabulário ainda constitui-se de substantivos. Vale ressaltar que é aos três anos de idade que
há uma “explosão” no repertório lingüístico infantil: as frases passam a ser mais elaboradas e
surgem as categorias gramaticais. Tal etapa é frequentemente conhecida como a fase dos
“porquês”, pois é nela que a criança sente a necessidade de obter explicações sobre os
fenômenos que a rodeiam.
Aos quatro e cinco anos, a criança apresenta um comportamento condizente com o
“exigido” pela sociedade, isto é, cumprimentar, pedir por favor e agradecer. A linguagem
deixa de ser uma ferramenta de comunicação imediata e a criança já é capaz de representar
mentalmente objetos e situações, o que facilita o desenvolvimento da linguagem e o intelecto.
A maturidade para aprender cada vez mais uma linguagem abstrata ocorre por volta
dos seis e sete anos. Com essa idade, as crianças demonstram um nível maior de compreensão
de contextos e fazer a relação destes com outros. Também são capazes de relatar
acontecimentos, compreender histórias e perceber críticas e comentários a seu respeito. É o
momento em que desenvolve a consciência sobre si, formando um auto-conceito que
influenciará, futuramente, no desenvolvimento de sua personalidade.
10

É após os sete anos que a criança já adquiriu uma linguagem completa, articulando e
entoando as palavras e compreendendo contextos de maneira adequada. Contudo, acredita-se
que a aquisição da linguagem só se estabiliza na adolescência, sendo a fase em que os
indivíduos são capazes de dominar os aspectos gramaticais mais complexos.
É importante frisar que as etapas do desenvolvimento de acordo com a faixa etária
podem variar entre as crianças, pois cada uma possui seu próprio tempo e aprende conforme
suas capacidades. A linguagem pode ser estimulada por meio de jogos e brincadeiras,
atividades extremamente relevantes para o desenvolvimento e nas quais a criança se mostra
mais colaboradora e aberta à aprendizagem.

4 O PROCESSO DE LEGENDAGEM
Sabe-se que o cinema passou por consideráveis transformações nas duas décadas
seguintes a sua existência e desenvolvendo cada vez mais tecnologicamente. Foi entre 1907 e
1913 que as legendas foram introduzidas para reproduzir os diálogos. Tal recurso propiciava
os espectadores entender o filme, além de reduzir os custos com a exibição, pois era preciso
contratar oradores, os quais transmitiam as mensagens do filme para o público.
As legendas eram produzidas quadro por quadro, assemelhando-se a uma cena do
filme, e tinham um fundo preto, já que não havia tecnologia que possibilitasse a impressão de
legendas nas películas. Inicialmente, as legendas eram explicativas, apareciam antes das cenas
e possuíam longas descrições sobre a cena a seguir. Com o passar do tempo, as legendas mais
curtas foram tomando lugar e, ainda mais importante, surgiram as legendas de diálogo em
1910. Inicialmente, elas foram inseridas antes de uma cena que houvesse diálogo e, em 1913,
foram introduzidas simultaneamente às falas dos personagens, sua forma de hoje.
Assim, tendo em vista que as legendas transmitem por escrito o que foi falado, pode-
se considerar que elas transformam a língua falada em língua escrita; isto é, trata-se de um
produto resultante da retextualização. Todavia, o processo que envolve a legendagem é um
pouco mais elaborado e complexo, pois sua composição passa por uma trajetória linguística
até chegar à forma final, conforme segue:
a) o filme é escrito por um roteirista, havendo, portanto, um original; b) o roteiro será
memorizado pelos atores, que terão que repetir por várias vezes as falas nele contido; c) o
legendista recorrerá ao roteiro escrito para elaborar as legendas, utilizando-se de estratégias
lingüísticas ou mesmo a criatividade para tanto.
Ao observarmos os procedimentos, descritos de maneira simplificada, pode-se
constatar que a feitura das legendas não apresenta uma maior complexidade que a
11

retextualização em se tratando da perspectiva linguística. As etapas desse processo envolvem


estratégias e ajustes da linguagem no intuito de garantir a clareza das mensagens.
Em geral, as legendas trabalham com a relação tempo / espaço simultaneamente. O
tempo é medido em segundos e o espaço, em quantidade máxima de caracteres por linha. O
espaço, porém, varia de acordo com o programa utilizado na feitura das legendas. No cinema,
elas geralmente são compostas de duas linhas com 36 a 44 letras cada e, na televisão,
constituem-se de duas linhas entre 26 e 30 letras. De acordo com Alvarenga (2000), o tempo
médio de leitura de cada legenda de duas linhas, com 30 caracteres, na tela, é de 4 segundos.
O processo de legendagem de um filme ocorre em quatro etapas, as quais serão
descritas a seguir.
1) Tradução: nesta primeira etapa, o tradutor se encarregará de transmitir a
mensagem do filme da língua fonte aos telespectadores por meio de sua tradução. Durante
esse processo, o profissional tem o auxílio do roteiro original e utiliza-se de um computador,
no qual irá criar a legenda, e uma televisão. O uso da TV é indispensável no sentido de ter
uma ideia sobre as sequências das imagens para então organizar as legendas. Ao fazer essa
tradução, o número de caracteres por linha e sua duração constituem os aspectos a serem
considerados. Tal fato exige muita habilidade do profissional, pois ele terá que seguir as
normas técnicas e adaptar sua tradução à legenda.
De acordo com Alvarenga (2000), o tradutor legendista deve ter habilidade com a
língua portuguesa e domínio cultural, bem como a habilidade de saber articular as palavras,
no intuito de compor a legenda sem ruídos na mensagem. Para tanto, faz-se mister a
percepção da cena e uma certa supressão de palavras do diálogo para obter uma legenda
apropriada.
2) Marcação: trata-se de uma fase técnica. A marcação das legendas é a etapa em
que o arquivo mandado pelo tradutor é convertido para o software de legendagem específico.
Constitui-se de duas etapas: na primeira, o marcador indicará o tempo de entrada,
permanência e saída de cada legenda, buscando sincronizar o que está escrito aos diálogos dos
personagens; na segunda, o marcador assistirá ao filme para checar a qualidade da marcação.
3) Revisão: é a etapa em que se faz uma revisão das legendas, com o objetivo de
detectar possíveis erros (gramaticais ou ortográficos) cometidos pelo tradutor.
4) Gravação fina: nesta última etapa, o revisor enviará o arquivo com a marcação e
revisão das legendas já feitas, para o profissional que Alvarenga (2000) denomina legendador.
Este é o técnico responsável pela gravação dos filmes, já fazendo a inserção das legendas.
Depois de feita a nova cópia, já com as legendas gravadas, ela é duplicada em um centro
12

específico, de onde serão feitas mais duplicações para, enfim, serem comercializadas. Assim,
a legendagem envolve as quatro etapas descritas.
Sobre a dificuldade e o tempo de duração das legendas na tela, Leonardo Teixeira
(2002) pontua que “o primeiro passo para se entender o processo de tradução para
legendagem reside na observância de que o tempo necessário para a leitura de uma legenda e
bem maior que o tempo usado para a fala que corresponde aquele texto”. Isto é, a palavra de
ordem da tradução para legendagem é a síntese.
De acordo com o próprio autor, a necessidade de adaptação ocorre até pela própria
natureza do texto legendado. Ao contrário dos textos impressos, num filme, não é possível
retroceder a leitura da legenda para a reinterpretar a mensagem. Trata-se, pois, de um tipo de
texto cuja compreensão deve ser imediata e que não deixe dúvidas no espectador. Também é
importante que as legendas não tomem toda a atenção do leitor a fim de que não seja tomado
muito tempo na decodificação da mensagem.
Convencionou-se que a legenda deve permanecer na tela durante o tempo adequado
para a leitura: nem mais, a ponto de tornar-se cansativa e prendendo a atenção sem
necessidade; nem menos, de maneira que o espectador não chegue a acompanhar os diálogos.
Assim, é de fundamental importância que haja sincronia entre a fala e o que está escrito.
As exigências também estendem-se para o tradutor, que deve respeitar as regras
técnicas acima citadas, ter habilidade de síntese sem prejudicar o sentido original e ter bom
conhecimento da língua para não cometer erros gramaticais e ortográficos. No tocante ao
trabalho do legendista, Monika Pecegueiro (2002) afirma ser uma tarefa que exige muita
dedicação e, sobretudo, concisão.
Apesar das conhecidas dificuldades enfrentadas pelo tradutor/legendista, muitas
críticas são feitas sobre o trabalho destes profissionais. É muito comum ouvir-se comentários
acerca de erros de legendagem tanto entre os leigos quanto entre os próprios legendistas. De
acordo com Alvarenga (2000), até mesmo os profissionais podem não ter ideia das armadilhas
e, sobretudo, das perdas linguísticas que ocorrem e que muitas vezes são inevitáveis por
motivos que transpõem o ato tradutório. Leonardo Teixeira (2002) exemplifica as
particularidades de uma legendagem fazendo uma comparação:

Ao se traduzir um livro, por exemplo, trabalha-se com um texto-base escrito que vai
se transformar em um outro texto escrito, podendo haver as elucidativas “notas do
tradutor”. No caso da legenda, o material fonte é basicamente falado, caracterizado
por elipses, hesitações e traços emotivos e gestuais sempre presentes, configurando
intenções paralelas ao que é efetivamente dito. [...] Entende-se que a legenda não é a
tradução só do texto, mas também das imagens, sempre carregadas de muita
informação. Ritmo de fala e pausas retóricas tem de ser levadas em consideração.
13

Nem sempre é possível, entretanto, aliar a imagem com o texto, o que


acarretará uma desarmonia e até erros. Complementando tal ideia, Mouzat (1997) admite a
existência de erros nas legendas, porém, afirma que não devemos nos ater a eles, mas nas
especificidades intrínsecas à tradução.
O caráter educativo das legendas é questão de extrema relevância para o
tradutor Leonardo Teixeira (2002). Ele pontua que grande parte das pessoas leem apenas os
textos que lhes são oferecidos via legenda e, portanto, o profissional deve evitar ao máximo
estruturas linguísticas complexas e problemáticas. Para o autor, o ideal é que o legendista
tente encontrar um equilíbrio entre o coloquialismo e a informalidade, que muita vezes são
exigidos pelo texto a ser traduzido, assim como seu discurso.
Em se tratando do público infantil, as regras são praticamente as mesmas: o
número de caracteres e a síntese são aplicadas também às legendas voltadas para esses
espectadores. A ABNT NBR 15209:2005 atesta que "para o público infantil, o tempo de
exposição deve ser de 3s a 4s por linha completa. Para esse público específico, as frases
devem ser simples e concisas". A única diferença diz respeito ao tempo de permanência das
legendas, que é um 1s ou 2s maior. A questão da concisão e da simplicidade se aplica às
legendas voltadas pata todos os espectadores, porém, podemos afirmar que a habilidade do
tradutor/legendista de filmes infantis, além das acima citadas, deve voltar-se especialmente à
adequação vocabular. Porque sentem dificuldades quanto à significação de determinados
vocábulos, muitas vezes as crianças não entendem partes cruciais dos filmes ou mesmo uma
piada. O tópico a seguir mostrará alguns exemplos de como o vocabulário poderia ser melhor
pensado e traduzido pelo profissional.

5 ANÁLISE E DESCRIÇÃO DOS DADOS


Já é sabido que as crianças, naturalmente, possuem um vocabulário mais restrito e
simplificado, o que requer que as legendas também o sejam. Algumas questões, como a falta
de prática, exigências técnicas do processo de legendagem ou mesmo a falta de conhecimento
detalhado acerca do vocabulário infantil, muitas vezes levam os legendistas a dificultarem o
entendimento de um filme pelas crianças.
No intuito de exemplificar tais dificuldades, selecionamos o filme infantil -
"Hoodwinked" ("Deu a louca na Chapeuzinho") por ser uma boa demonstração de
legendagem complexa para o público infantil. Ao analisar a legenda, delimitamos 7
fragmentos dificultosos relacionados aos itens lexicais. Tais trechos não passaram por uma
14

seleção aleatória, mas sim, baseando-se nos questionamentos das crianças. Serão feitas a
descrição acerca da escolha do tradutor e uma proposta de tradução com chances de ser
melhor compreendida.

1) (05:18) “And if you get people talking long enough, someone will spill the
beans” = “E se os apertar direitinho, um deles acabará entornando o caldo!”

O delegado urso, um pouco mais incisivo que o detetive, um sapo chamado Nick
Flippers, perde um pouco de sua paciência com os suspeitos. No intuito de acabar logo com o
mistério, afirma que uma pressão psicológica seria suficiente para que os indivíduos falem
tudo o que sabem. Na fala da personagem, há a expressão idiomática "spill the beans", que
significa, segundo o dicionário Oxford, "to divulge a secret, especially to do so inadvertently
or maliciously". Isto é, "contar um segredo, especialmente de maneira maliciosa ou
inadvertida".
A escolha do legendista foi a tradução por outra expressão idiomática: "entornar o
caldo", que expressa a mesma intenção do ditado da língua inglesa. Porém, na mesma
situação do caso acima citado, trata-se de um termo específico e que, provavelmente, é
compreendido por apenas uma pequena parcela dos espectadores. Nossa proposta foi a
substituição da expressão idiomática pelo significado (delatar, dedurar, relatar os fatos).

TRECHO TRADUÇÃO DA PROPOSTA DE


LEGENDA TRADUÇÃO
"And if you get people "E se os apertar "E se os apertar direitinho, vão
talking long enough, direitinho, um deles acabar contando tudo."
someone will spill the acabará entornando o
beans." caldo."

2) (15:33) “I’m singing with glee” = “Eu canto ensandecido”.

Este trecho do filme trata do momento em que Chapeuzinho, perdida no meio da


floresta, caminha até uma casa perto das montanhas. Lá chegando, depara-se com o
proprietário: um bode chamado Japeth, que sofreu uma maldição de uma bruxa - falar
cantando eternamente. Assim, o bode se apresenta à Chapeuzinho, começa a contar sua
história e afirma que, apesar do feitiço, é bastante feliz e por isso diz "I'm singing with glee",
15

traduzido para "Eu canto ensandecido". Acreditamos que o adjetivo "ensandecido" não foi a
melhor opção, pois além não expressar exatamente o sentimento da personagem, é de difícil
compreensão para as crianças. Literalmente, a expressão poderia ser traduzida para "Estou
cantando com alegria". De fato, a expressão no gerúndio "Estou cantando" ficaria longa na
tela, contrariando o princípio da concisão e objetividade das legendas. Assim, a escolha do
verbo "Canto", na primeira pessoa do singular, foi bastante válida. O vocábulo "ensandecido",
porém, poderia ser facilmente substituído pelo advérbio "alegremente", pois expressa
precisamente o sentimento do bode Japeth, tem o mesmo número de sílabas de "ensandecido"
e, o mais importante, é um vocábulo que provavelmente faz parte do universo linguístico das
crianças.

TRECHO TRADUÇÃO DA PROPOSTA DE


LEGENDA TRADUÇÃO
"I'm singing with glee" "Canto ensandecido" "Canto alegremente"

3) (16:20) “That’s why I made this mountain shack my home” = “Por isso essa
tapera é minha casa”.

Continuando sua cantoria, o bode Japeth conta que, devido à maldição que carrega,
preferiu isolar-se em sua simples moradia, na montanha. Na tradução de sua fala, percebemos
que houve a omissão deste termo, provavelmente porque sua inserção resultaria 37 caracteres,
quando o máximo recomendável para uma leitura confortável são 30. Tal omissão, porém,
não prejudica o sentido da mensagem. A dificuldade trata-se da tradução do termo "shack"
(tapera). Por um lado, a escolha por "tapera" foi feliz no sentido de ter o significado ideal para
o filme: "lugar abandonado, mas que fora outrora habitado", segundo a definição do
dicionário Houaiss. De acordo com o dicionário Oxford, porém, tal vocábulo não consta como
opção, mas sim "barracão", "cabana", "choça" e "choupana". Além de ser, aparentemente,
uma expressão pontual (diz-se ser um termo utilizado especificamente no interior do Pará),
podemos afirmar que, excluindo os casos específicos, tal palavra faz parte da cultura de
grande parte das crianças das outras regiões do país.
TRECHO TRADUÇÃO DA PROPOSTA DE
LEGENDA TRADUÇÃO
"That's why I made this "Por isso essa tapera é "Por isso essa cabana é
mountain shack my minha casa" minha casa"
home"
16

4) (28:08) “Is there some kind of shin-dig?” = “Vai fazer um fuzuê?”.

Na tentativa de chegar à casa da vovó, o Lobo pergunta ao coelho Boingo se está


indo corretamente ao seu destino. O coelho, curioso em saber porque o Lobo para lá se
dirigia, logo dispara "Is there some kind of shin-dig?". De acordo com o dicionário Oxford, o
termo "shin-dig" tem por significado "arrasta-pé". A tradução escolhida na legenda,
entretanto, foi "fuzuê". O dicionário Houaiss forneceu as seguintes definições para o
vocábulo: "barulho, motim; confusão, desordem; festa". Em nossa cultura, sabemos que o
arrasta-pé é uma festa específica do período junino. No contexto do filme, então, não seria
uma boa opção manter o tradução literal, também pelo fato de que não há referências nas
imagens que nos remetam a um arrasta-pé. Protestamos a escolha do vocábulo "fuzuê" por
este ter uma conotação de bagunça, desordem, como consta no dicionário. Sugerimos o
vocábulo "festa" por ser de fácil compreensão e por fazer uma melhor alusão a uma reunião
de pessoas que querem se divertir. O verbo que acompanha "festa" também caracteriza a
informalidade da ocasião e da fala do coelho sem soar pejorativo e sem deturpar a pergunta da
personagem.

TRECHO TRADUÇÃO DA PROPOSTA DE


LEGENDA TRADUÇÃO
"Is there some kind of "Vai fazer um fuzuê?" "Vai rolar uma festa?"
shin-dig?"

5) (39:13) “I think it’s safe to say that our thespian friend here knows the least
about anything of anyone else in this room” = “Acho que nosso amigo tespiense
aqui é quem sabe menos sobre tudo”.

Este trecho do filme trata de algo bastante incomum em termos de vocabulário,


especialmente em filmes infantis. O urso delegado conclui que, por tamanha ingenuidade, o
lenhador pouco sabe sobre o desaparecimento do livro de receitas, deixando de ser suspeito. O
lenhador, no filme, é uma figura de um tirolês que sonha em ser ator. Assim, o delegado
profere que "nosso amigo tespiense" não é tão suspeito como imaginava. De difícil
compreensão até mesmo para os mais esclarecidos, o vocábulo "thespian" foi escolhido
minuciosamente pelo roteirista.
17

De acordo com o dicionário Houaiss, tespiense quer dizer "relativo a Téspias, região
da Grécia, ou seu natural ou habitante, téspio." Também em uma pequena observação, diz que
é possível haver uma tradução adaptada do vocábulo em inglês, "thespian", um anglicismo de
origem grega (de Thespis, poeta do séc. VI a. C., conhecido como o pai da tragédia grega) e
refere-se à representação dramática, adquirindo o significado de "ator", provavelmente, no
século XIX. Assim, podemos concluir que o delegado quis apenas dar ao lenhador a alcunha
de ator. Sem dúvida, trata-se de um termo bastante complexo para ser deduzido apenas pelo
contexto. Por se tratar de um vocábulo no mínimo inusitado num filme, especialmente
infantil, restou ao legendista traduzir o termo literalmente e perder a essência da brincadeira
feita pela personagem. Sendo assim, sugerimos a permuta do vocábulo "tespiense",
extremamente pontual e pouco conhecida, pelo contextualizado "ator".

TRECHO TRADUÇÃO DA PROPOSTA DE


LEGENDA TRADUÇÃO
“I think our thespian "Acho que nosso amigo "Acho que nosso amigo
friend here knows the tespiense aqui é quem ator aqui é quem menos
least about anything of sabe menos sobre sabe sobre tudo."
anyone else in this tudo."
room."

6) (41:42) “Time to shred some powder!” = “Hora de esmerilar!”.

Depois de desligar o telefone com sua neta, a vovó Pucket prepara-se para esquiar. Já
pronta e ao sair de casa, exclama consigo: "Time to shred some powder!". Tal expressão é
uma gíria dos praticantes de esqui e snowboard, que literalmente significa "rasgar o pó". Ou
seja, durante a prática destes esportes, o atleta "espalha" a neve para os lados devido à
velocidade com que desce. Assim, "shred" diz respeito ao fato de descer rapidamente e
"rasgando" o gelo e "powder" seria as partículas de neve espalhadas, o "pó". A tradução para
tal expressão sugerida pelo legendista foi "Hora de esmerilar!", o que aponta para uma
intenção do tradutor em manter-se o mais próximo possível às palavras, e não ao significado
da expressão.
"Esmerilar", significa "polir ou despolir com esmeril (uma pedra usada no polimento
de metais)". A associação foi feita pelo tradutor, provavelmente, diz respeito ao fato de que, o
esmeril é transformado em pó antes de ser utilizado para amolar os metais. Na cena do filme,
porém, a legenda não condiz com a cena e não passa a mensagem correta para o leitor.
18

Sugerimos a tradução para "Hora de botar pra quebrar!" porque o esqui e o snowboard não
fazem parte da realidade cultural brasileira e, consequentemente, a expressão "shred some
power". Também, porque a vovó Pucket vai começar a esquiar (e pretende derrotar os
adversários) e finalmente, porque "botar pra quebrar" encaixa-se perfeitamente no contexto
das cenas seguintes.

TRECHO TRADUÇÃO DA PROPOSTA DE


LEGENDA TRADUÇÃO
"Time to shred some "Hora de esmerilar!" "Hora de botar pra
powder!" quebrar!"

7) (56:26) “The only thing your granddaughter is guilty of is flying a swarm of


humming birds without a license” = “Sua neta só é culpada de pilotar um bando de
colibris sem brevê”.

Quando todos já sabem quem é o larápio, a vovó questiona o detetive Nick Flippers
sobre o envolvimento de sua neta no caso. Este, muito gentilmente, afirma que o único erro da
Chapeuzinho é "pilotar um bando de colibris sem brevê". Encontramos nesta sentença um
problema que vai além do campo vocabular. Primeiro, no filme, a Chapeuzinho anda de
bicicleta e chega a "voar" na mesma com a ajuda de pássaros (os referidos colibris). Percebe-
se, por meio da tradução, que o legendista quis ser o mais fiel possível ao original, pois ateve-
se à ação de "voar" na bicicleta. Partindo desse princípio, a transposição dos termos foi bem
sucedida; porém, não é muito acessível ao público. Sugerimos a permuta de "colibris" por
"beija-flor", pois acredita-se que as crianças estejam mais familiarizadas com esta
denominação para o pássaro. O outro termo, "brevê", é demasiado específico: diz respeito a
um tipo de título que atesta a capacidade de um indivíduo pilotar aviões. Entende-se que a
ideia é o fato de a garota estar "voando" e este ser o motivo da escolha do vocábulo "brevê".
Poderíamos ter substituído "brevê" por "carteira de motorista", mas não o fizemos por dois
motivos: primeiro, porque a legenda ficaria longa para a leitura (já existe um termo longo:
"beija-flores"). Segundo, e mais relevante, porque sabe-se que crianças não podem dirigir, ou
seja, não tem permissão para tanto. Desta forma, no intuito de facilitar a compreensão da
sentença sem comprometer seu sentido, optamos a modificar a tradução para "Sua neta só é
culpada de pilotar um bando de beija-flores sem permissão".
19

TRECHO TRADUÇÃO DA PROPOSTA DE


LEGENDA TRADUÇÃO
"The only thing your "Sua neta só é culpada de "Sua neta só é culpada de
granddaughter is guilty pilotar um bando de colibris pilotar beija-flores sem
of is flying a swarm of sem brevê." permissão."
humming birds without
a license."

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho visou identificar e analisar parte da legenda do filme em questão, cuja
tradução é de difícil compreensão para o público infantil. Tal análise visou a confirmar que,
muitas vezes, a tradução da legenda pode comprometer o entendimento das crianças devido
ao vocabulário rebuscado e pela tradução mal pensada dos termos.
As propostas de tradução das legendas provam que o de legendista busca ser fiel ao
contexto, às falas das personagens e às exigências técnicas da elaboração da legendagem;
porém, pecam por negligenciar o caráter mais importante da comunicação entre o leitor e
leitura da legenda: a compreensão plena da mensagem.
Por ser um produto de entretenimento, o cinema, a escolha criteriosa dos itens
lexicais é de extrema relevância para o pleno entendimento da trama, sem ruídos na
comunicação. Desta forma, nossa proposta é de que o tradutor lance mão de uma linguagem
coloquial, popular e sobretudo, simplificada no intuito de uma melhor apreciação e
aproveitamento pelo público infantil.

7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABNT NBR 15290. Acessibilidade em comunicação na televisão. 2005. Disponível em


http://portal.mj.gov.br/corde/arquivos/ABNT/NBR15290.pdf. Acesso em dez. 2010.

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20

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PECEGUEIRO, Monika. O prazer de fazer legendas para filmes. Jornal da PUC - RIO.
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PIAGET, Jean. Linguagem e o pensamento da criança. Trad. Manuel Campos. São Paulo,
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SCARPA, E. Aquisição da linguagem. In: MUSSALIM, F.; BENTES, A. (Org.).


Introdução à Lingüística: domínios e fronteiras. São Paulo, Cortez, 2003.

TEIXEIRA, Leonardo. Tradução para legendagem: Considerações. Artigo Abrates. 2002.


Disponível em http://www.abrates.com.br. Acesso em fev. 2011.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Inglês Aba de anexos para salvar artigo

ANALYZING THE REPRESENTATION OF FEMALE CHARACTERS


IN ISSUE #0 OF TURMA DA MÔNICA JOVEM

Bruna Batista Abreu1 (PPGI/UFSC)


Viviane M. Heberle2 (PPGI/UFSC)

RESUMO

O presente trabalho tem como objeto de estudo a capa e a primeira página da estória da edição
#0 do gibi de circulação nacional Turma da Mônica Jovem. O objetivo é analisar de que
forma as personagens femininas estão sendo apresentadas na mídia selecionada e observar as
representações de feminilidade decorrentes. Para realizar a análise, o arcabouço teórico
utilizado compreende: 1) Gramática do Design Visual (KRESS & van LEEUWEN, 1996,
2006), que é uma extensão da Gramática sistêmico-funcional (HALLIDAY &
MATTHIESSEN, 2004) para o estudo de imagens; 2) Análise Critica do Discurso
(FAIRCLOUGH, 1995; 2003), onde a dimensão intertextual é investigada; e 3) estudos em
gênero social (WODAK, 1997; HEBERLE, 2006). A investigação foi realizada partindo-se da
análise das imagens de acordo com o framework proposto pela Gramática do Design Visual
nas três dimensões de significados (representacionais, interativos e composicionais). A partir
dos resultados obtidos na análise visual, uma análise interpretativa dos dados foi conduzida
com o suporte da Análise Critica do Discurso e Estudos em Gênero Social. Os resultados
apontam para a continuidade de uma série de discursos de feminilidade que se fazem
presentes na sociedade.

Palavras-chave:
Multimodalidade. Mídia. Construção de identidade.

ABSTRACT

The present study investigates the cover and the first page of the story presented in issue #0 of
the Brazilian comic book Turma da Mônica Jovem. The objective guiding the research is to
analyze the way female characters are depicted in the selected media and which
representations of femininity emerge. The theoretical background includes: 1) Grammar of
Visual Design (KRESS & van LEEUWEN, 1996, 2006), which is an extrapolation of
Systemic Functional Linguistics (HALLIDAY & MATTHIESSEN, 2004) to the analysis of
images; 2) Critical Discourse Analysis (FAIRCLOUGH, 1995; 2003), in which the
intertextual dimension is investigated; and 3) gender studies (WODAK, 1997; HEBERLE,
2006). The analysis was carried out first with the description of images, following the
framework proposed by the Grammar of Visual Design, in which the three meanings
dimensions were investigated (representational, interactive and compositional). Then, an
interpretive analysis was conducted with the support of Critical Discourse Analysis and
Gender Studies. Results point to the continuity of a series of discourses of femininity that are
present in society.

Keywords:
Multimodality. Media. Identity construction.

1
Bacharel e Licenciada em Letras/Inglês; e-mail: brunabatistaabreu@gmail.com.
2
Doutora em Letras (Inglês e Literatura correspondente); e-mail: heberle@cce.ufsc.br.
2

1 INTRODUCTION
In August 2008, a new series of comic books entitled Turma da Mônica Jovem was
released in Brazil. It was idealized and created by the Brazilian cartoonist Maurício de Souza.
In this comic book, the classical characters of Turma da Mônica, who are seven-year-old
children, are presented as sixteen-year-old adolescents facing experiences related to this age.
These experiences include aspects related to friendship and love, concerns about the future,
events of going shopping and playing sports, among others.
Before being released, the comic book had a #0 edition that was freely distributed,
attached to other issues of Turma da Mônica. The probable aim of this was to advertise the
new comic book in an attractive way to the customary readers and fans of the gang. In this
special issue, the four main characters (Mônica, Magali, Cebola and Cascão) are presented in
a six-page story in which Mônica is writing in her diary, informing the readers about the
changes (and no-changes) that occurred to herself and her friends as they became adolescents.
Considering the role of this issue in presenting the well-known characters in a
different way, the present study analyzes its cover and the first page of the story following the
Grammar of Visual Design (KRESS & van LEEUWEN, 1996, 2006) to investigate the
representation of the two female characters through Critical Discourse Analysis (henceforth
CDA) (FAIRCLOUGH, 1995; 2003) and gender studies (HEBERLE et al, 2006; WODAK,
1997). The data includes these two parts (cover and story) in order to provide a better
panorama of the issue, but the analysis of the story is restricted to the first page for space
constrains.
As any other media, comic books may exert some degree of power over the lives of
readers, which are, in this case, adolescents. Considering that the main character is a girl and,
therefore, events surrounding her are the most emphasized ones, analyzing the comic book
following a gender perspective appears to be a significant task.
In the following section, the Grammar of Visual Design is presented, followed by the
description of the images in the cover and in the first page of the story. Then, CDA and
gender studies are briefly explained with an interpretive analysis. Finally, the main
conclusions derived from the study are presented.

2 VISUAL GRAMMAR AND THE DESCRIPTION OF IMAGES


One of the theoretical frameworks guiding the present study is the Grammar of
Visual Design (KRESS & van LEEUWEN, 1996, 2006). It is an extension of Halliday‟s
Systemic Functional Linguistics (SFL) theory and method for analyzing written/spoken
3

language (HALLIDAY, 1985, 1994; HALLIDAY & MATTHIESSEN, 2004). For SFL,
language is a semiotic system that offers a set of choices that are made according to the
context of situation in which any given language use occurs in social life. Three
interdependent variables influence the choices: Field (the situation going on), Tenor (the
relationship between the interacting participants) and Mode (the channel of communication)
(EGGINS, 2004). One level below, there is the semantics rank, in which the linguistic choices
are mediated by Ideational (what is being expressed), Interpersonal (how the participants
relate) and Textual (how information is organized) meanings. Finally, more specifically, the
concrete linguistic realizations are expressed through grammatical systems, which provide a
very practical support to carry out such investigation.
In the Grammar of Visual Design (GVD), the same theoretical stances of SFL are
kept, and the methodological procedures are very similar, the difference being the semiotic
code analyzed with some changes in nomenclatures and in the procedures used for analysis.
In Figure 1, the theoretical interrelation and the different labels (in bold for SFL, italics for the
GVD, and normal when it may refer to both) are presented so as to explain Halliday‟s theory
and its connection to visual grammar.
For the analysis of images, three types of meaning (Representational, Interactive and
Compositional, as labeled by the grammar of visual design) are investigated. In relation to
representational meanings, the images are analyzed as portraying both narrative (involving
action, reaction, verbal and mental processes) and conceptual (covert/overt taxonomies,
analytical and symbolic processes) representations. In the interactive meanings, images are
classified according to contact (offer or demand), social distance (ranging from close to
distant), attitude (oblique or frontal angle), power (high, equal or low), and realism (the
modality of the image, whether it is more naturalistic or not, depending on color and level of
details). The compositional meanings look at the information value (left/right, top/down,
centre/margin), framing (marked or unmarked) and salience (high or low, depending on the
contrasts regarding color) (UNSWORTH, 2001).
4

Figure 1 - Halliday‟s theory and its connection to Studies in Multimodality, based on Unsworth, 2001.

In order to investigate the representations of the female characters (Mônica and


Magali) in the cover and of Mônica in the first page of the story, an analysis of the images
(appendix 1 and 2) is carried out following the framework proposed by the GVD (KRESS &
van LEEUWEN, 2006; UNSWORTH, 2001).
In the cover, the four main characters of the group (Mônica and her friends Cebola,
Cascão and Magali) are depicted. Behind them, there is a white background, which points to
the absence of a specific setting. This is because they are the main attraction of the cover. The
contextualization is provided by the title of the comic book (Turma da Mônica Jovem, written
in different font types and colors), and additional rubrics containing the name of the publisher
and other information. Considering that the focus of the present study lies on looking at
female characters, the male ones will be superficially looked at so as to allow for some
comparisons.
In the foreground, the character Mônica is being hugged by Cebola, who is her friend
and the one she is in love with3. Considering the representational meanings of this image,
conceptual and narrative representations are portrayed. The narrative representations are
action and reaction. Mônica is the goal being held by Cebola (transactional process), and the

3
In issue #4, they kiss.
5

actions performed by her are those of moving a leg, raising her right arm to touch him, and,
with the other hand, holding her knapsack containing her teddy rabbit, Sansão. The reaction
process is presented through Mônica‟s look at the reader, and hers and Cebola‟s smiles. The
conceptual representation is unstructured analytical, with Mônica being the possessor of
several attributes, including her clothes, Cebola‟s love, Sansão (which may be also considered
a symbolic attribute), and the comic book, which has her name. Moving to the interactive
meanings, there is a demand, as her eye gaze is directed to the viewer, the social distance is
medium to distant shot, the attitude is mostly an oblique angle, power is equal (eye level
angle), and the realism is low, as there is the absence of contextualization and the images are
drawings (although they are colored, which gives them a more realistic aspect). For Cebola,
the same classification may be considered, the difference being that he is not looking at the
reader (the contact is offer). Finally, in the compositional meanings, Mônica is placed at the
centre of the cover (together with Cebola), and there are no framings, i.e., there are no
specific borderlines separating them from the other characters. In relation to salience, Mônica
and Cebola are strongly salient as they are in the foreground, in a larger size, and the presence
of contrasting colors can be seen (the green in Cebola‟s clothes, the pink in Mônica‟s skirt,
and the blue in her belt and in Sansão).
The character Magali, on the other hand, appears closer to the background as Cascão
is on the background and above. In the representational meanings, both characters are acting
(she is listening to music and roller-skating while he is skateboarding), reacting (smiling and,
in her case, looking at the reader), and involved in unstructured analytical processes, being the
carriers of attributes. The interactive meanings differ in relation to contact: while Magali is
looking directly at the reader, Cascão is not. Besides, she is at the eye level while he is in a
low angle, positioning the reader as in an inferior position). The social distance is represented
with a long shot, and the attitude is an oblique (not frontal) angle for both. The aspect of
realism is also low, for the same reasons mentioned as regards the first image. In relation to
the compositional meanings, there are no specific framings, and Cascão and Magali may be
considered the margins in relation to Mônica and Cebola, because they are not the most
emphasized ones. Finally, the salience they receive is lower, as they are in a smaller size, in a
farther distance, and the contrasts are weaker.
As regards the first page of the story, in the first image the main character, Mônica,
is writing in her diary, as it can be observed in the words Querido diário (Dear Diary). The
diary is written on a laptop. Mônica is relaxing in her bedroom, smiling, laid in her bed,
surrounded by her teddies, a poster, and soft pillows, apparently feeling comfortable. The
6

narrative representations are action, reaction, and mental. The action processes are the
movements in her right leg, her arms bearing her body, and the hands typing. The reaction
processes are in her eyes, looking at the laptop screen, and in her smile, reacting positively.
The mental process occurs through the writing of her diary. Although it is being verbalized in
the written mode, it is something private, the same way as the thoughts are. The reader can
access Mônica‟s diary through her writing. Also related to representational meanings,
conceptual representations can be observed: unstructured analytical, symbolic suggestive, and
covert taxonomy. The unstructured analytical is portrayed by Mônica as the carrier of several
attributes (the bedroom, the bed, the laptop, the clothes, and all the other objects surrounding
her). The symbolic suggestive can be seen by the presence of Sansão, Mônica‟s teddy rabbit
who was always present with her in childhood to defend her from the boys‟ mocking. In this
new edition, when the characters are grown up, the reader can see that Sansão is still present
in Mônica‟s life, a little far (in the shelf), but still there. There is also a drawing of Sansão in
the laptop, which contributes to give this inanimate character new functions in Mônica‟s life.
The covert taxonomy can be seen in the poster, probably representing a band, associating with
teenagers‟ general likes. One of the artists is more emphasized than the other two, which may
signal to his leadership or superior position in the group.
Moving to interactive meanings, the contact is in the form of offer, as the character
does not look directly at the readers. There is far social distance, as a bird‟s eye view, since
Mônica‟s whole body can be seen. However, given the size of the image, it is possible to
observe her bedroom, see her wearing pajamas, read what she writes in her diary, and look at
her possessions, which contributes to a very close and intimate relationship between the
reader and the character. In relation to attitude, the angle is oblique, which may imply some
detachment. It may mean that although the reader had access to all of that intimacy, Mônica
still keeps herself a bit apart, giving attention to what she is doing, not worrying about the
reader (as she is talking to her diary, not to the reader). In relation to power, there is a slightly
high angle, which implies that the reader has some power over the character, i.e, s/he can see
her without her awareness. As regards realism, the story is drawn and in black and white,
which implies little realism. However, the drawings are detailed and the fact that the character
belongs to the readers‟ repertoire of known characters contributes to the continuity of her
imaginary existence in their minds, i.e., it was not necessary to create a new Mônica because
she is already present in their lives.
In relation to compositional meanings, the information value is centre-margin, the
character writing in her diary being in the centre as the main focus of the story. About the
7

framings, these are marked: there are lines limiting the square in which the image is inserted,
and all the objects are separated. As regards salience, it is low, as the white and light grey
colors predominate. The black color is present in the hairs of Mônica and two of the artists in
the poster.
The second image presents the same scene in a different perspective. Therefore, the
representational meanings in relation to the main participant are similar: besides the mental
process, there is a narrative process with action: her legs are moving, her arms are supporting
her body and the hands are typing. The reaction process (Mônica looking at the laptop and
smiling) cannot be considered to be in this image, as it is not shown. The unstructured
analytical representation (Mônica as the carrier of several attributes) is also present in this
image.
In relation to the interactive meanings, major changes are seen. Concerning power,
Mônica is in a slightly low angle, which shifts the power to the character. For attitude, the
angle is very oblique, as she is seen from the back. In terms of social distance, the picture is
still a long shot, and contact takes place as an offer. Therefore, there is a greater distance in
the relationship between the character and the reader. The compositional meanings are kept
the same: centre-margin configuration of the information value and marked frames.
In the third image, the main changes are related to interactive meanings. After the
distance observed in the first and second images, the third puts Mônica very close to the
reader. Although there is a slight oblique angle in relation to attitude, the (almost) close-up
(showing her waist up, very close), and her look at the reader put the character in an explicitly
intimate relation with the reader. Therefore, the reader sees a “panorama” of Mônica in the
three initial images in different perspectives (her front and back, distant, and her face, very
close) so as to be presented to the new character (although she is a known character, she has
grown-up and, therefore, changes have happened to her, and the reader is probably interested
in knowing them). In addition, after having seen her from a distant position, the reader is put
“face to face” with Mônica, who looks at him/her in a very close contact in the third image.

3 CDA AND INTERPRETIVE ANALYSIS OF THE IMAGES


After having classified the images according to the GVD, a critical analysis is carried
out with the support of the imagetic analysis. The stance taken for Critical Discourse Analysis
is the one proposed by Fairclough (1995; 2003), and it involves textual, intertextual, and
sociocultural practice analysis. In this study, the textual analysis was carried out through the
GVD. For the intertextual analysis, the aspect of discourses is investigated, following the
8

guiding questions proposed by Fairclough (2003, p. 193): “What discourses are drawn upon
in the text, and how are they textured together? […] What are the features that characterize
the discourses which are drawn upon?” The questions are answered as regards the
representation of the two female characters of the group of friends (Mônica, the leader, and
Magali, her best friend), and some comparisons with the male characters (Cebola and
Cascão). Then, the sociocultural practice analysis is carried out in order to look at some
higher-level instances that may have influenced the constructions of femininity in the comic
book. Gender studies will be supporting both the intertextual and sociocultural analysis.
According to Fairclough (2003, p. 133), “discourses are ways of representing the
world which can be identified and differentiated at different levels of abstraction”. When
focusing on the analysis of representation, “we can specify the ways of representing in terms
of a range of linguistic features which can be seen as realizing a discourse.” (ibid, p. 129). In
the case of the text analyzed, the visual elements are the ones that realize a specific discourse
of femininity.
In gender studies, the social constructions of masculinity and femininity in direct
correspondence with the individual‟s sex are questioned (HEBERLE et al, 2006). As pointed
out by Wodak (1997), the discourses that circulate in everyday life present men and women as
different, and prescribe them certain behaviors. Women‟s magazines, for instance
(HEBERLE, 1997; 2004; FIGUEIREDO, 1995), impose a set of ideologies that are
discursively presented, including the way a woman should dress, behave and relate to her
male partner. In the cover analyzed, issues related to femininity and masculinity may be
perceived in the way the characters are constructed.
When looking at the perspective of CDA and gender studies, the discourses being
portrayed in the cover present the female characters in a less active position in relation to the
boys, and more intimate with the reader. As observed in the multimodal analysis, the
character Mônica is the goal being held by Cebola, and Cascão is performing a much more
“radical” action than Magali, who is posing and looking at the reader, seeming to have
stopped roller-skating to do so. Cascão, on the other hand, seems not to mind about it, as he
does not look at the reader and continues to do what he was doing (skateboarding). Therefore,
this discourse is textured, on the one hand, through the predominance of unstructured
analytical processes in the girls, who are showing themselves and their attributes, and, on the
other hand, through the predominance of action processes in the boys, who are mostly acting.
In addition, some of the features that characterize the discourse are the attributes carried by
9

the characters, which differ with respect to their hairstyles, clothes‟ colors, accessories, and
the objects each of them holds.
In the first page of the story, on the other hand, Mônica is presented acting – writing
in the diary. However, such practice is strongly associated to a feminine behavior. Such habit
of writing in a diary, although appearing to be something old-fashioned and traditional, is
carried out on a laptop, which gives it a modern tone. The environment in which she is
inserted, her bedroom, is very private, which establishes a close relationship with the reader.
Mônica is comfortably installed in her bedroom, wearing beautiful pajamas, laid on her bed,
by herself, in an intimate moment. The presence of toys, of an adolescent band poster as well
as the decorated slippers and the soft cushions reinforces the femininity aspect.
Moving to the sociocultural practice sphere (with the support of the imagetic
analysis), Mônica is presented as a white, relatively short, and slim girl. In relation to the
cover, her smile, the accessories and clothes used by her give friendly, sensitive and
“feminine” tones. The hug received from Cebola indicates a heterosexual love relationship.
Although it could mean just friendship, the customary readers are familiarized with the
romantic trajectory of the couple: they love each other, but do not assume their emotion to
themselves, which creates an appealing atmosphere.
Furthermore, the possession of a knapsack with the presence of Sansão resembles the
seven-year-old Mônica who would always go around in his company and used him to beat the
boys when necessary. However, Sansão seems to have been re-semiotized, i.e., he is still
present in Mônica‟s life, but having the functions of being her bag, and signaling to a
childlike behavior in Mônica (another positively constructed characteristic for “canonical”
femininity).
In Magali, some features of femininity are also found through the colors of her
clothes, the format of her accessories (for instance, there is a heart in her belt), the hairstyle,
and the delicate movements of her arms. She is also portrayed as a white slim girl, and the
fact that she is roller-skating and listening to music points to some predilection to art.
Differently from skateboarding, an extreme sport that is generally associated to boys, roller-
skating can be related to skating that involves choreographies. In addition, she is positioned in
a somehow introverted way, closing the legs and moving her body backwards, which relates
to the idea that women are supposed to occupy less space and behave in a restrained way.
In relation to the first page of the story, in which only Mônica is presented writing in
her diary, the same observations concerning Mônica‟s status are kept (white, slim, middle-
class). In this new setting in which she is presented the reader has the opportunity of knowing
10

a little more about her reality, the activities she develops in life, her material conditions and
habits. In this first page of the story, several elements related to femininity are depicted, as
pointed out in the interpretive analysis: the soft cushions, decorated slippers, carpet, laptop
and pajama, teddies, and the poster of an adolescent band.

4 FINAL REMARKS
In this study we presented a multimodal critical discourse analysis of the cover and
the first page of the story in Turma da Mônica Jovem issue #0. The images were analyzed
with the support of the Grammar of Visual Design (KRESS & van LEEUWEN, 1996, 2006),
and Critical Discourse Analysis (FAIRCLOUGH, 1995; 2003) and gender studies
(HEBERLE et al, 2006; WODAK, 1997). The female characters were emphasized in the
analysis so as to unveil the way they are constructed and the representations of femininity
depicted.
The main conclusions derived from the investigation point that the female characters
are portrayed as carrying attributes related to the social construction of femininity, which may
refer to the presence of a gendered discourse. This is observed not only because of the
attributes they carry (clothes, objects, hairstyle), but also in relation to the roles they perform
(posing, being passive, and performing activities related to „feminine habits‟, such as writing
diaries). Furthermore, they are presented as closer to the reader, having more proximity and
an intimate relation by looking and smiling in order to demand “that the viewer enter into
some kind of imaginary relation with him or her […] and social affinity” (KRESS & van
LEEUWEN, 1996, 2006, p. 118) both in the cover and in the first page of the story. In
addition, the fact that the female characters are presented as white, middle-class, urban and
slim girls may have had an exclusive and prescriptive tone for those female readers who do
not fit in those characteristics.
In conclusion, by analyzing these two parts of the issue #0 of Turma da Mônica
Jovem, it was possible to observe that the way the characters are represented is also
determined by their sex in conformity with prescribed gender roles. We hope this very brief
analysis can serve as stimulus for further studies regarding the investigation of other issues of
the same magazine or even other comic books, so as to check whether they would corroborate
with the results presented here.
11

5 REFERENCES

EGGINS, S. An introduction to Systemic Functional Analysis. 2. Ed. London: Continuum,


2004.

FAIRCLOUGH, N. Media discourse. London: Arnold, 1995.

____________ Analysing discourse: Textual analysis for social research. USA and
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FIGUEIREDO, D. C. The Use and Abuse of Your Sexual Power: Cosmopolitan and the
creation/maintenance of a conservative view of female sexuality. Unpublished Master
Thesis. Florianópolis: UFSC, 1995.

HALLIDAY, M.A.K. An introduction to functional grammar. London: Edward Arnold,


1985, 1994.

HALLIDAY, M.A.K. & MATTHIESSEN, C. M. I. M. An Introduction to functional


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HEBERLE, V. M. An investigation of textual and contextual parameters in editorials of


women's magazines. Unpublished Doctoral Thesis. Florianópolis: UFSC, 1997.

_____. Revistas para mulheres do século XXI: ainda uma prática discursiva ou de renovação
de idéias? Revista Linguagem em (Dis) curso. Volume 4, nº especial. Palhoça: Unisul, 2004.

HEBERLE, V. M.; OSTERMANN, A. C.; FIGUEIREDO, D. C. Linguagem e Gênero: no


trabalho, na mídia e em outros contextos. Florianópolis: Editora da UFSC, 2006.

KRESS, G. & LEEUWEN, T. van. Reading images: a grammar of visual design. London:
Routledge, 1996, 2006.

UNSWORTH, L. Teaching multiliteracies across the curriculum: changing contexts of


text and image in classroom practice. Buckingham, UK: Open University, 2001.

WODAK, R. Gender and Discourse. London: Sage, 1997.


12

APPENDIX 1
13

APPENDIX 2
SUMÁRIO GERAL Sumário de Inglês Aba de anexos para salvar artigo

AS IMPRESSÕES DOS ALUNOS DE CURSOS TÉCNICOS SOBRE O


USO DE ATIVIDADES MEDIADAS POR COMPUTADOR NAS AULAS DE INGLÊS

Gisele Luz Cardoso (IF-SC/PGI/UFSC)1

RESUMO

O objetivo desta pesquisa foi o de investigar as reações de estudantes de um curso técnico


em Informática a respeito da aplicação de atividades mediadas pelo computador na unidade
curricular de Inglês Técnico. Trinta e quatro alunos adultos do Instituto Federal de Santa
Catarina (IF-SC) foram os sujeitos deste estudo cujos dados foram coletados por meio de
dois questionários online, entrevistas orais e postagens em fóruns no ambiente virtual de
aprendizagem da disciplina, o MOODLE. A análise interpretativista dos dados mostrou que
um curso de Inglês não deve ser delineado completamente com base em atividades mediadas
pelo computador, ou ser oferecido todo em um ambiente com computadores com acesso
livre à Internet. As aulas precisam ser entremeadas com outras atividades em sala de aula
onde a interação face-a-face ocorra com mais intensidade e onde a internet não esteja
disponível incentivando os estudantes a se distraírem com outros assuntos que não dizem
respeito às aulas de Inglês. Com relação à unidade curricular Inglês Técnico, esta pesquisa
constatou que o ensino de língua inglesa não precisa estar atrelado apenas ao ensino de
estratégias de leitura ou leitura e interpretação de textos técnicos. Outras habilidades podem
ser desenvolvidas, inclusive com a incorporação de atividades mediadas pelo computador ao
processo de ensino e aprendizagem. O desenvolvimento das habilidades da compreensão e
expressão oral e escrita juntamente com a utilização do computador conectado à internet
podem aumentar as chances de engajamento dos aprendizes nas aulas de inglês.

Palavras-chave:
Inglês técnico para Informática. Atividades mediadas pelo computador. MOODLE.

ABSTRACT

The objective of this research was to investigate the reactions of students from a technical
course in Computing to the application of computer-mediated activities in the subject of
Technical English. Thirty-four adult students of the Instituto Federal de Santa Catarina (IF-
SC) were the participants of this study. Data were collected through two online
questionnaires, interviews and postings in the MOODLE virtual learning environment.
The interpretative analysis of data showed that an English course should not be designed
completely based on computer-mediated activities, or be offered in an environment with all
computers with free Internet access. Lessons need to be interspersed with other activities in
the classroom where face-to-face interactions occur with more intensity and where the
Internet is not available to avoid encouraging students to be distracted by other matters that
do not relate to the English classes. With regard to the subject Technical English, this
research found that it does not need to be linked to the teaching of reading strategies and
reading and interpretation of technical texts only. Other skills can be developed, including
the incorporation of computer-mediated activities to the teaching and learning. The
development of comprehension skills and oral and written expression with the use of an
Internet-connected computer can increase the chances of engagement of the learners in the
English classes.
1
Mestre em Letras/Inglês (UFSC) e doutoranda do Programa de Pós-graduação em Letras: Inglês e Literatura
Correspondente (PGI) na mesma instituição; e-mail: gisele.luz@ifsc.edu.br.
2

Keywords:
Technical English for computing. Computer-mediated activities. MOODLE.

1 INTRODUÇÃO
O objetivo geral desta pesquisa foi o de analisar as impressões dos alunos de cursos
técnicos sobre o uso de atividades mediadas por computador nas aulas de Língua Inglesa
(LI) apresentada na grade curricular de um curso Técnico em Informática. Foram registradas
as impressões dos aprendizes e identificado o nível de aceitação deles no que se refere à
utilização de atividades mediadas pelo computador realizadas na unidade curricular assim
como o uso, em geral, do computador conectado à Internet nas aulas de LI. Este artigo está
organizado em quatro seções, sendo elas: (1) revisão da literatura; (2) método; (3) conclusão
e (4) considerações finais.

2 REVISÃO DA LITERATURA
2.1 Aprendizagem de Línguas Assistida pelo Computador ou Computer Assisted
Language Learning (CALL)
“Aprendizagem de Línguas Assistida pelo Computador” é uma área de estudo
conhecida em Inglês por CALL ou “Computer Assisted Language Learning”. Pesquisas neste
campo revelam as vantagens e desvantagens do ensino de línguas via Web (SIQUEIRA,
2006). Pode haver malefícios para o professor e aluno devido as suas limitações acerca do
uso das tecnologias digitais, por exemplo. Entretanto, o ambiente digital propicia para o
aprendiz um estudo mais independente já que ele passa a ter mais controle sobre o seu
aprendizado. O professor também tem seu papel alterado. Ele passa a ser professor-
facilitador dos saberes (ROSSI & ARRIGONI, 2004, em SIQUEIRA, 2006) ou orientador do
processo de aprendizagem (BRAGA, 2004, em SIQUEIRA, 2006).
Já para o estudante que é mais tímido, o ambiente digital também pode beneficiá-lo
por não haver contato físico com o professor (BRAGA, 2004, em SIQUEIRA, 2006). Outra
vantagem do contexto virtual, segundo Braga (em SIQUEIRA, 2006) é que dificuldades
pertinentes às aulas presenciais (conversas paralelas, disposição dos turnos de fala, vontade
de aproximação física) são minimizadas no contexto virtual, de uma maneira geral.
Por outro lado, de acordo com Siqueira (2006), há alunos que têm dificuldades em
entender a aprendizagem que ocorre no ambiente virtual. Alguns alunos tendem a acreditar
que são apenas receptores de conhecimentos e não gerenciadores e colaboradores no processo
ensino-aprendizagem. Segundo Moore (1993, em SIQUEIRA, 2006) “a educação tradicional
3

treina o aluno para ser dependente do sistema escolar, dificultando um papel mais ativo na
aprendizagem”.
O professor de línguas é agraciado pelos recursos e vantagens oferecidos pelo
ambiente virtual. Ele pode disponibilizar para seus alunos em plataformas virtuais de ensino e
aprendizagem, por exemplo, conteúdos em diversas modalidades sejam elas visuais, sonoras
ou verbais. Isto pode se dar através de vídeos, textos, imagens, músicas, diálogos, para
atender diferentes tipos de alunos e estilos de aprendizagem. O ambiente virtual também
facilita a repetição de conteúdos e atividades, quando preciso for e promove uma
aprendizagem ativa e autônoma (SIQUEIRA, 2006). Além disso, o ambiente virtual
possibilita que vários materiais sejam arquivados para futuras consultas sem as restrições do
material impresso, como os gastos com impressões e cópias. Portanto, o contexto digital
proporciona mais alternativas de “escolhas para a estruturação de materiais didáticos digitais,
o que pode promover mudanças quantitativas e qualitativas no ensino mediado pelo
computador” (SIQUEIRA, 2006, p. 19).
Aprender ou adquirir uma língua estrangeira (LE) ou segunda língua (L2) 2, mais
especificamente a LI, é uma das exigências da vida moderna já que é a língua usada
oficialmente na comunicação mundial e para uso do computador e da Internet (ARAÚJO,
2009). A aprendizagem desta língua pode se dar num contexto digital, ou seja, através das
ferramentas e recursos proporcionados por um computador conectado à Internet.
As atividades realizadas por intermédio de um computador com acesso à Internet
podem levar os aprendizes de LI a alcançar seu objetivo principal que é o de se aprender uma
L2, além de provocar o aumento da competência tecnológica, o fortalecimento da consciência
cultural e o desenvolvimento de estratégias de aprendizagem (CHAPELLE, 2011).
O ensino de L2 coloca em destaque um traço influente e peculiar da área que é o uso
do computador e da Internet. O computador oferece oportunidades como o recurso de
reprodução de som e imagem em movimento, que nenhum outro meio possui. Além disso,
percursos para adicionar o computador de forma adequada e bem-sucedida ao ensino de LE
passam em grande parte pela habilitação tecnológica dos professores (PORDEUS, 2004) e
dos aprendizes. Assim sendo, diversas pesquisas têm sido feitas no Brasil e em outros países
para se investigar os benefícios do emprego do computador em sala de aula de LE e as
dificuldades apresentadas pelos aprendizes e seus professores ou instrutores.

2
Os termos segunda língua (L2) ou língua estrangeira (LE) são usados sem distinção ao longo deste artigo.
4

As pesquisas sobre ensino/aprendizagem de LI mediados por computador devem


prosseguir no Brasil já que grande parte da população estudantil vem adotando o computador
e suas ferramentas para a aprendizagem de diversos conteúdos, inclusive a aprendizagem de
uma LE. Em contrapartida, os professores também estão sendo exigidos a aprender a lidar e
usar esta ferramenta de modo educativo e motivante. Eles estão percebendo que os seus
alunos têm utilizado o computador e a Internet diariamente tanto para se divertirem como
para fazerem trabalhos escolares. O computador tem se tornado parte da vida dos aprendizes
e está conectado com a educação deles de uma maneira direta já que ajuda no processo de
qualificação que é essencial para o desenvolvimento de habilidades sociais e profissionais.
Tem havido muitas considerações e propostas no Brasil para se usar o computador
como uma ferramenta para a transformação da prática pedagógica ao invés de aplicá-lo
apenas como outro meio ineficaz de produção de conhecimento (CASTRO & ALVES,
2007). Pesquisas realizadas na área do ensino/aprendizagem de LI mediados por
computador têm debatido diversos temas como os benefícios do uso de novas Tecnologias
de Informação e Comunicação (TICs) e também estratégias pedagógicas que podem nortear
um professor de línguas para trabalhar com Internet na sala de aula. As oportunidades
apresentadas para o educador e o para o aprendiz com vistas ao aprimoramento do processo
de ensino para construir sua própria aprendizagem de línguas estão aumentando cada vez
mais. No entanto, pouco tem sido indicado sobre como se dá o processo de interferência
pedagógica de um professor quando este está utilizando a Internet em sala de aula (2004).
Na área de aquisição de uma LE, Chapelle (1996, 2007) mostra certa preocupação
relacionada com a interconexão entre os programas de CALL e o desenvolvimento da
habilidade na língua alvo, visto que o computador oferece uma série de atividades
inovadoras e interativas transmitidas através de Web sites, CD-ROMs e softwares
educacionais na Internet para o aprendizado de uma LE. Ainda segundo a autora, os
profissionais da educação e pesquisadores precisam reanalisar as abordagens para a
aquisição de uma LE, considerando como o desenvolvimento das habilidades linguísticas é
impulsionado pelo contato com a língua alvo, já que os aprendizes são submetidos a
diferentes experiências devido às tecnologias do computador. Os diferentes tipos de
atividades para o aprendizado de uma língua, fornecidas pelas novas tecnologia digitais
aumentam as opções que os professores têm para o desenvolvimento destas atividades e
asseguram condições que beneficiam o processo de aquisição (CHAPELLE, 1996, 2007).
5

2.2 O Letramento Digital (LD)


Letramento não consiste apenas da aquisição do sistema de escrita, mas também, das
práticas sociais de leitura e escrita (TFOUNI, 1988; KLEIMAN, 1995; SOARES, 2002, em
SOARES, 2002). No entanto, os tradicionais conceitos de letramento têm sido reformados
pelas formas digitais (LOTHERINGTON & JENSON, 2011) por causa do rápido
crescimento das tecnologias digitai. De acordo com Soares (2002), estamos vivenciando a
inclusão, na sociedade atual, de novos estilos de práticas sociais de leitura e escrita
possibilitados pelo computador conectado à Internet. São “as práticas de leitura e de escrita
digitais, o letramento na cibercultura” (p. 146), ou, ainda, o “letramento digital” (p. 151). Na
mesma linha que Soares, Lotherington e Jenson (2001) salientam que na geração passada, o
mundo do letramento era baseado no papel. Atualmente, letramento engaja as pessoas em
textos e discursos que atravessam espaço e tempo nas telas dos computadores nas quais é
possível acessar e misturar recursos semióticos que incluem várias línguas. Isto é feito por
nós instantaneamente usando novos meios em constante evolução (p. 226, minha tradução).
Um indivíduo é considerado letrado digitalmente quando possui “habilidades e
competências no uso de novas tecnologias para se comunicar” (ARAÚJO, 2009, p. 441-42).
Resta saber como os estudantes vêm sendo letrados em uma L2 em ambientes intercedidos
pelos computadores nas instituições de ensino; que recursos instrucionais na web estão se
tornando disponíveis para o ensino de LEs nas escolas e qual a qualidade desses recursos
para uma aprendizagem eficiente (ARAÚJO, 2009, p. 441-42).
Uma revisão sistemática sobre letramento no Brasil foi realizada por Mota, Xhafaj e
Cardoso (no prelo). Foram analisados 43 periódicos na área de linguagem e educação, no
período entre 2003 e 2008, sobre letramento no Brasil. Somente duas publicações foram
encontradas acerca de Letramento Digital (LD). Esta é mais uma razão para continuarmos
prosseguindo e contribuindo para as pesquisas sobre LD no nosso país, local em que existe
uma grande população de jovens e adultos aprendendo novos conteúdos através das novas
tecnologias digitais.
O indivíduo é letrado digitalmente ou eletronicamente quando tem a habilidade para
construir sentidos a partir das informações a que é exposto na tela do computador
considerando as práticas de “aprendizagem de como ler e escrever nesse novo meio”
(SHETZER & WARSCHAUER, 2000, p. 173, em ARAÚJO, 2009, p. 443). Por sua vez,
Demo (2007) diz que ser letrado digitalmente significa ser capaz de reconhecer as
informações necessárias no computador, localizá-las, avaliá-las e usá-las efetivamente. Já
Reis (2004) diz que ser letrado digitalmente significa saber como salvar arquivos, enviar
6

informações e trabalhar o texto. Atualmente, os estudantes estão desenvolvendo seu LD de


uma forma multimodal: relacionando o texto às imagens na tela do computador ou ao áudio
(CESTARI, 2004), por exemplo.
A tela do computador ou a “janela” é um novo espaço de produção textual
(SOARES, 2002). O papel e o lápis não são mais as únicas ferramentas disponíveis para se
registrar a escrita. Ao “escrever” ou digitar ou ler na tela do computador, o usuário passa por
processos cognitivos que dão suporte à hipótese de que tais mudanças nas formas de ler e
escrever podem estar configurando um LD, ou seja, um estado ou condição que os usuários
da tecnologia digital adquirem quando desempenham práticas de leitura e escrita na tela de
um computador (SOARES, 2002). Estas práticas se distinguem da leitura e escrita no papel
(SOARES, 2002, p. 151).
Uma das tarefas do professor de línguas do século XXI é o de possibilitar o LD dos
estudantes para que eles funcionem de modo pleno na LE, já que, cada vez mais, os nossos
alunos leem e escrevem usando o computador e se comunicam através dos meios eletrônicos
(WARSCHAUER, 1999, em ALMEIDA, 2004). Mensagens de textos via telefones celulares,
e-mails, chats, são exemplos de práticas sociais ou eventos de letramento que se estendem
para além do tradicional texto impresso (THORNE & BLACK, 2007).
O professor de LE pode integrar o computador/Internet à aprendizagem de LE
usando a editoração eletrônica para a criação de trabalhos; fazendo uso de e-mails e E-chats;
complementando as atividades de aprendizagem presenciais; fazendo pesquisas online;
utilizando ferramentas de busca, criando blogs, wikis, assistindo a vídeos do You Tube, entre
outras atividades (DIAS, 2008), colaborando, deste modo, para o desenvolvimento do LD de
seus estudantes.
Como já citado, os materiais digitais favorecem a integração de diferentes
modalidades: verbal, visual e sonora. Estas modalidades podem ser afrontadas, sobrepostas
ou complementadas ao mesmo tempo. Para lidar com estas modalidades, são necessárias
novas competências. Ler uma imagem não é a mesma coisa que ler um parágrafo. Extrair
informações dentre as diversas representações de modalidade linguística pode não ser tão
simples como parece (BURBULES & CALLISTER, 2000, em SIQUEIRA, 2006, p. 24). Daí
a importância do desenvolvimento do LD ou eletrônico.
Por outro lado, Ferreira (2003, em SIQUEIRA, 2006) salienta que o grau de LD
pode também comprometer o desempenho dos estudantes. Isto porque as frustrações
ocasionadas pelo desconhecimento dos recursos do computador e da Internet podem ser fatais
7

ao engajamento dos alunos. Deste modo, a falta de LD pode ser verdadeiramente um


agravante, ou uma fonte de stress.

2.3 O caso do Inglês Instrumental


English for Specific Purposes (ESP) como esta disciplina é conhecida em Inglês, era
conhecida como Inglês Técnico no Brasil até meados da década de 1970. Um projeto de ESP
liderado pela Profª Dra. Maria A. Celani (PUC-SP) foi iniciado em 1977, no Brasil. Naquele
momento, a maior necessidade dos estudantes de ESP relacionava-se à leitura de textos
específicos das suas áreas de estudo. Consequentemente, foi definido que o foco do ensino
deveria ser na leitura e no desenvolvimento de estratégias de leitura. Então, a disciplina
passou a ser conhecida como Inglês Instrumental (CELANI, 1988, em ALMEIDA, 2004).
Ao longo dos anos, percebeu-se uma certa dificuldade em se organizar um único
material didático ou livro-texto para a disciplina Inglês Instrumental (CELANI, 1988, em
ALMEIDA, 2004) no Brasil, devido às “diferenças de nível de desenvolvimento e
experiência entre os professores, a variedade de cursos específicos a serem atendidos e a
diversidade de níveis de proficiência dos alunos envolvidos” (ALMEIDA, 2004, p. 45).
Segundo Celani (2008), os professores eram guiados a produzir seus próprios materiais de
ensino de acordo com as necessidades locais, sem desmerecer o conhecimento global da
língua. Para Celani (2008), o conhecimento local e global (ou “glocal” knowledge) está se
tornando cada vez mais importante (p. 419).
Ainda de acordo com Celani, há uma falha hoje em dia no Brasil ao se confundir o
ensino de Inglês Instrumental com o ensino de leitura. Para Celani, é um mito dizer que
Inglês Instrumental é igual ao ensino de leitura. Todavia, no Brasil, a leitura de textos
acadêmicos em LI representa a maior necessidade dos estudantes (CRUZ, 2001, em
ALMEIDA, 2004) de nível técnico ou universitário.
Celani enfatiza que a disciplina Inglês Instrumental deve levar em consideração as
razões dos estudantes para aprender a LI e suas necessidades; construir capacidades e
habilidades para propósitos definidos; usar o conhecimento anterior, ou o que os estudantes
trazem com eles para a situação do aprendizado, ou seja, o que os aprendizes têm, fazem e
podem fazer no processo do aprendizado; tornar o uso da língua significativo; quebrar a velha
tradição de memorização e repetição do conhecimento transmitido pelo professor, entre outros
fatores.
Portanto, aprender Inglês Instrumental significa aprender para um propósito e
aprender dentro de uma abordagem que faça com que os motivos para se aprender sejam não
8

só claros como também significativos para os alunos e seus professores de inglês. Conforme
Canagarajah (2005), tornar o processo de ensino e aprendizagem significativo no contexto
escolar é de suma importância em um mundo cada vez mais „„glocal” (em CELANI, 2008,
minha tradução).
A abordagem para a disciplina de Inglês Instrumental não deve ser ditada pelo livro-
texto, que é o que frequentemente acontece. Ela deve ser ditada pelo contexto social
(CELANI, 2008). Neste cenário, conteúdos, ensino, materiais e metodologias de ensino são
determinados pelos interesses, pelo contexto social e pela bagagem cultural dos estudantes. A
língua não é o objeto de aprendizado, mas o resultado, o produto da interação mútua entre o
aprendiz e o mundo lá fora, que, no caso da LI, é um grande mundo cheio de desafios
exigências e limitações (CELANI, 2008, minha tradução).
Pode-se dizer que as habilidades de produção oral, compreensão oral e produção
escrita, em geral, não são contempladas com frequência nas aulas de Inglês Instrumental
devido ao fato de a carga horária desta disciplina ser muito pequena em cursos técnicos ou
universitários. Em suma, não há muito espaço para se praticar as quatro macro-habilidades
envolvidas na competência em uma L2. Por este motivo, na maioria das vezes, atividades de
leitura e estratégias de leitura ainda são as prioridades nestes cursos.
Devido os avanços tecnológicos e à popularização da Internet, novas e mais
modernas tecnologias digitais vêm sido criadas e, como consequência, cada vez mais os
estudantes fazem uso destas novas ferramentas ou meios para pesquisar assuntos diversos e
ler textos específicos de suas áreas de estudo redigidos na LI. Por este motivo, a atualização
da prática de ensino de Inglês Instrumental se torna mandatória. Esta atualização deve ser
dada de forma a refletir esse fato e aplicar as possibilidades introduzidas pelas novas TICs
(ALMEIDA, 2004).
Da mesma forma que os estudantes, os professores também vêm fazendo uso da
Internet, especialmente, para localizar materiais e recursos de ensino para suas aulas de LE
porque eles estão percebendo o papel social da LI e das novas TICs. A maior necessidade dos
estudantes é a de ter acesso à sociedade da informação e satisfazer as necessidades criadas
pelas novas TICs. Isso significa aprender a ler em LI. Então, ensinar a ler em uma instituição
de ensino parece suficiente para satisfazer as necessidades dos estudantes (CELANI, 2008).
Em suma, devido ao histórico do Inglês Instrumental no Brasil, esta disciplina ainda
é confundida com o ensino de leitura somente. No entanto, baseando-se no que Celani
comenta, vimos que este ensino deve ser contextualizado e deve ter um propósito.
9

Tomemos como exemplo o caso dos alunos participantes desta pesquisa. São alunos
jovens que querem aprender a informática básica e, para tal, devem possuir um conhecimento
básico de LI. Este conhecimento deve ser suficiente para que tenham acesso fácil e rápido aos
materiais escritos em LI na área da informática. Além disso, a LI é a língua oficial da Internet
e muito vocabulário da informática é em LI e não é traduzido para o português. Assim, o
professor da disciplina “Inglês Técnico para Informática” deve fazer uso de materiais para
suas aulas que supram as necessidades dos aprendizes, considerando a sua faixa etária. Outra
necessidade primordial de um curso técnico é o de preparar o aluno para uma profissão, no
caso deste estudo, Técnico em Informática, em dois anos, com uma carga horária de apenas
40 horas de LI.

3 MÉTODO
A metodologia que norteou a execução deste estudo será explanada nesta seção.
Antes, porém, é salutar revisar que este estudo teve como objetivo geral analisar as
impressões dos alunos de cursos técnicos sobre o uso de atividades mediadas por
computador nas aulas de Língua Inglesa apresentada na grade curricular de um curso
Técnico em Informática.
Para este fim, registrou-se as impressões dos aprendizes e identificou-se o nível de
aceitação deles no que se refere às atividades mediadas pelo computador propostas pela
professora e realizadas na disciplina assim como o uso geral do computador com Internet nas
aulas de LI.

3.1 Coleta de dados: os questionários, os fóruns e as entrevistas


Os instrumentos utilizados para a coleta de dados foram dois questionários online3
aplicados aos participantes através de uma wikipage (http://teachergiseleifsc.wikispaces.com)4
criada para a disciplina de Inglês Técnico. O objetivo dos questionários era o de fazer uma
sondagem com os participantes para sabermos alguns de seus dados pessoais e para
conhecermos a experiência linguística deles. Foram feitas, também, perguntas para
descobrirmos mais sobre o uso que estes estudantes fazem do computador conectado à
Internet e suas opiniões sobre os materiais utilizados na disciplina de Inglês Técnico. Alguns
participantes foram também entrevistados oral e individualmente ao final desta pesquisa a fim

3
Estes questionários foram elaborados usando uma das ferramentas do Google (http://www.google.com.br/), o
google docs.
4
Uma wiki é uma espécie de Blog onde várias páginas são criadas e pode haver interatividade e interação com os
estudantes. A mencionada aqui foi criada através do site: http://www.wikispaces.com/.
10

de esclarecer-se as respostas aos questionários e as suas postagens nos fóruns 5. Os fóruns


serviam de instrumento de comunicação assíncrona e de interação virtual entre o grupo. Os
alunos recebiam constante feedback da professora sobre suas postagens, atividade que era
voluntária, ou seja, os alunos não recebiam créditos por participarem dos fóruns de discussão.
Semanalmente, os alunos deveriam fazer uma postagem no fórum aberto naquela semana no
MOODLE6. As perguntas dos fóruns tinham como objetivo promover a interação entre a
professora e os alunos e entre os próprios alunos. Os fóruns eram um ambiente onde os alunos
poderiam deixar suas opiniões a respeito das aulas de Inglês Técnico na sala de aula e no
laboratório de informática. Segundo Cummings, Bonk, e Jacobs (2002), os fóruns são uma
ferramenta de comunicação assíncrona online que fornecem um espaço para reflexão e
discussão e têm se tornado um componente comum em cursos presenciais e a distância (em
KOL & SCHCOLNIK, 2008). As discussões nos fóruns permitem um crescimento dinâmico,
um desenvolvimento, e um intercâmbio de ideias entre os alunos. Deste modo, é possível que
eles tenham um respeitável papel no aprendizado dos estudantes (BARBOUR & COLLINS,
2005; WU e HILTZ, 2004, em KOL e SCHCOLNIK, 2008, p. 49).
O e-mail também foi uma ferramenta utilizada para colher dados e promover a
interação entre os participantes desta pesquisa. A ferramenta e-mail dentro do MOODLE
também serve como chat online. Isto quer dizer que durante as aulas, os alunos podem se
comunicar sincronicamente. Como os alunos não podem fazer downloads de programas nos
computadores deste Instituto, eles não podem usar o MSN. Então, eles usam o chat do
MOODLE. Todas as mensagens postadas na ferramenta chat/e-mail são salvas
automaticamente pelo MOODLE servindo, também, como dados. Para fins do presente relato,
somente os dados relacionados aos fóruns, aos questionários e às entrevistas foram analisados.

3.2 O contexto em que ocorreu a coleta de dados


Quarenta alunos de 15 a 43 anos foram os participantes desta pesquisa. Eles estavam
regularmente matriculados no curso Técnico para Informática do Instituto Federal de Santa
Catarina (IF-SC) do campus de Gaspar. A autora deste estudo era a professora de LI deste
grupo. As aulas de LI eram dadas na sala de aula e no laboratório de Informática do instituto.

5
Fóruns foram abertos no ambiente virtual de ensino e aprendizagem da disciplina, viabilizado através da
plataforma virtual de ensino e aprendizagem - MOODLE: http://moodle.gaspar.ifsc.edu.br/login/index.php.
6
MOODLE é acrônimo de "Modular Object-Oriented Dynamic Learning Environment" o qual significa: objeto
orientado para aprendizagem em ambiente dinâmico (virtual). Com o acrônimo MOODLE, foi criado o verbo “to
moodle” que significa navegar sem pretensões ao mesmo tempo em que outras tarefas são realizadas. O
MOODLE é um software livre usado como suporte e complemento à aprendizagem, executado em um ambiente
virtual. O site oficial do MOODLE é: http://moodle.org/ (Disponível em http://moodle.com.br/site/exemplo-02/,
acesso em 26 de set. 2011).
11

O laboratório possui 40 computadores conectados à Internet. Portanto, há um computador


conectado à Internet por aluno e nenhum site tinha sido bloqueado enquanto durou esta
investigação.
De acordo com as respostas dos alunos ao questionário de sondagem, tirou-se
algumas conclusões:
 a maioria dos estudantes (79%), possui computador e Internet em suas
residências e a acessam todo dia;
 62% deles ficam conectados à Internet de uma a três horas por dia;
 32% deles acessam, primeiramente, o MSN e 29% acessam o Orkut assim
que se conectam à Internet em suas residências;
 conversar com amigos através do MSN foi o que 29% dos alunos disseram
que mais gostam de fazer na Internet;
 21% afirmaram que gostam mais de games;
 18% dos alunos gostam mais de conversar com amigos através do ORKUT;
 outros alunos responderam que gostam mais de fazer trabalhos escolares, ler
notícias e textos informativos, enviar scraps (mensagens) para amigos e ler e
escrever e-mails;
 apenas 23% dos participantes, ou seja, dez alunos já estudaram ou estudam a
LI em alguma escola de idiomas;
 todos os estudantes tiveram aulas de LI em suas escolas regulares.

Resumindo, é possível concluir que este grupo de participantes já tem um


conhecimento básico da LI, proveniente de aulas de LI nas suas escolas em anos anteriores
ou no ano corrente, visto que muitos ainda estão cursando o ensino médio (EM) em alguma
escola da região. Também pode-se dizer que esta é uma população de estudantes jovens que
já vieram para o curso Técnico de Informática com um conhecimento básico da LI e de
Informática devido às aulas que tiveram em suas escolas e devido ao constante uso do
computador, o que favorece o desenvolvimento do seu LD.

3.3 Materiais
Na disciplina de Inglês Técnico a professora utilizou, especialmente: (1) uma
apostila organizada por ela mesma na sua versão impressa e digital com diversos links para
sites com atividades em LI, que podem ser feitas online ou sites para consultas; (2) tarefas na
wikipage criada pela professora; (3) tarefas no MOODLE e (4) exercícios complementares
impressos. Estes materiais foram preparados e selecionados especificamente para esta turma,
levando-se em consideração, principalmente os objetivos principais da disciplina Inglês
Técnico7.

7
(1) Ler e interpretar textos da área da informática em Língua Inglesa; (2) construir o saber, acessando as
diferentes tecnologias para a construção da cidadania e a inserção no mundo do trabalho; (3) valer-se da Língua
Inglesa como instrumento de acesso a informações (Ementa da disciplina Inglês Técnico do curso Técnico de
Informática do IF-SC/Campus Gaspar, 2010).
12

Desenvolver o LD dos estudantes para que eles funcionem de modo integral na LE,
foi uma meta a ser alcançada também, já o que é uma das tarefas do professor de línguas do
século XXI segundo Warschauer (1999, em ALMEIDA, 2004). Procurou-se fazer isso através
da integração do computador e da Internet à aprendizagem de LE por meio: (1) do uso de
ferramentas de interação e comunicação assíncronas e síncronas (e-mails e e-chats,
respectivamente); (2) de pesquisas online; (3) de ferramentas de busca; (4) do uso da
wikipage; (5) de vídeos do You Tube e (6) de tarefas no MOODLE, favorecendo novos
eventos de letramento que demandam novas práticas e aptidões de leitura e escrita (ECO,
1996, em SOARES, 2002).

3.4 Análise dos dados da presente pesquisa e discussão


De forma a organizar os dados provenientes das postagens nos fóruns do MOODLE,
as respostas aos dois questionários online, e as respostas de algumas entrevistas orais, optou-
se por compilar e ordenar as postagens e respostas em categorias. A discussão dos dados
coletados será feita a seguir.
Com a finalidade de saber a opinião dos estudantes acerca das atividades mediadas
pelo computador postadas no MOODLE, a professora do grupo solicitou em um dos fóruns
que eles dessem as suas opiniões. Observamos que, em geral, os alunos gostam de trabalhar
com o MOODLE e gostam das atividades propostas pela professora. Porém, um participante
é indiferente. Para ele, tanto faz trabalhar com tarefas no MOODLE ou no papel, conforme
expresso em sua postagem:

Eu gosto das tarefas no MOODLE, mas pra mim é indiferente se for no papel ou no
MOODLE mesmo, eu aprendo das duas maneiras, não tenho preferência por
nenhuma atividade, o que conta é o aprendizado.

A maioria dos estudantes são a favor das atividades publicadas no MOODLE,


conforme as postagens nos fóruns e as respostas de algumas entrevistas a seguir:

...não possuo a apostila impressa, portanto gosto muito dos trabalhos que são
postados no MOODLE, pois posso realizar, praticar e revisar, o material aonde eu
estiver. Outro ponto importante seria mencionar que todo material colocado no
computador não ensina somente o Inglês mas também aprimora outras áreas
(digitação, navegação e busca na Internet por exemplo, que podemos ligar a
Informática Básica).

as atividades do MOODLE são ótimas, faceis de compreender, está disponivel a


qualquer momento, se quisermos refazer em casa ou antes de estudar pras provas,
eu acho muito bom as atividades passadas de assunto em assunto.....
13

...as atividades ... se forem postadas no MOODLE seria bem melhor, pois da para
fazer quando a gente quer, ou até mesmo estudar antes para a prova.

As atividades postadas no MOODLE e as de outros sites que são feitas online


podem até ser iguais as do papel, mas alguns programas de aprendizagem de
línguas dão feedback imediato, o que não acontece nas salas de aula tradicionais
em que os alunos têm que esperar o professor corrigir as atividades.

O MOODLE é importante para sabermos se realmente gravamos e entendemos os


conteúdos. Também é bom para fazermos as atividades com a professora em sala
ou em casa sem o auxílio da professora. Caso haja dúvidas, eu tiro a dúvida com o
professor no IFSC e depois faço a atividade de novo em casa.

Através das postagens dos alunos aqui apresentadas, pode-se concluir que esses
aprendizes já são letrados digitalmente e têm conhecimento básico da LI, já que conseguem
realizar as tarefas no MOODLE sem grandes dificuldades.
Outro ponto que é interessante colocar, é que percebe-se que alguns alunos
compartilham a responsabilidade pela sua própria educação que acontece para além das
paredes da sala de aula, como pode ser comprovado nos comentários anteriores destacados
em negrito.
Perguntou-se aos estudantes em outro fórum a opinião deles sobre o uso do
computador e Internet nas aulas de LI. Cerca de 62% dos participantes deste estudo o
avaliaram de maneira positiva. Eles usaram adjetivos e expressões como:

bom; fácil e nos deixa mais à vontade; importante; ótimo; interessante; bastante
válido; mais prático e rápido; bacana pois eu me sinto mais a vontade, ajuda
muito; é essencial e eficaz.

Vinte e oito postagens foram publicadas neste fórum. Trinta e cinco por cento delas
indicam que utilizar o computador e a Internet nas aulas de LI é bom devido ao fato de os
alunos poderem, principalmente, sanar suas dúvidas acerca do vocabulário novo da LI através
dos dicionários online. Destacamos quatro colocações para ilustrar esta afirmação:

podemos tirar dúvidas diretamente com dicionários on-line;

se nós alunos tivermos alguma dúvida em tal palavra a gente pode pesquisar nos
dicionários on-lines;

é bom por vantagens te poder ter dicionário na hora [...] tudo na hora....

Por volta de 10% dos alunos avaliou positiva e negativamente o uso do computador
e Internet nas aulas de LI, apresentando algumas desvantagens que o acesso livre, simultâneo
e fácil à Internet pode trazer ao rendimento escolar:
14

O uso do computador e da Internet é ótimo em qualquer matéria....é dever do aluno


se ater nos assuntos propostos e não se distrair com coisas incoerentes à matéria
durante o acesso ao computador.

Eu gosto, mais sei q nao é bom. pq por um lado tem muitas pessoas que não
prestao a atençao na aula e ficam em outras coisa. Aí na hora da prova não sabe
nada. ......

O laboratório e a sala de aula, ambos são ótimos ambientes! No laboratório


podemos consultar os dicionários online ...mais na sala de aula também é bom,
pois no laboratório, mesmo com o professor por perto, podemos nos distrair, e
entrar em outros sites, e na sala, obviamente não acontece, e podemos prestar mais
atenção!

Estes alunos criticam este acesso fácil porque os incentiva a fazer outras coisas8
levando-os à distração e à falta de atenção durante as aulas. Há mais chances de eles se
distraírem, no laboratório, apesar de a professora não permitir que eles entrem em sites que
não dizem respeito à disciplina. As respostas das entrevistas também indicam estas mesmas
colocações. Um aluno, ao ser entrevistado, ainda acrescenta:

Acho melhor as atividades no meio virtual porque consigo fazê-las muito mais
rapidamente e eficientemente e também posso tirar dúvidas delas ao mesmo tempo.

Ainda houve mais comentários feitos por alguns estudantes que parecem realçar o
valor, relevância e importância das aulas de Inglês Técnico para Informática no laboratório
de informática. Relembrando, Celani (2008) diz que aprender Inglês Instrumental quer dizer
aprender para um propósito e aprender dentro de uma abordagem que faça com que as razões
para se aprender sejam não só claras como também significativas para os aprendizes.
Acreditamos que as colocações a seguir ilustram bem a definição de LI para fins específicos:

Estamos lidando com a língua com o que estaremos lidando futuramente, ou seja, o
computador;

Ficamos diretamente ligados com o curso de informática aprendendo cada vez


mais recursos;

O curso é de informática então aprendemos exatamente o que vamos usar nas


outras matérias;

Tudo o que é feito através do computador é mais produtivo visto que é um curso de
informática.

A disciplina Inglês Instrumental deve considerar, entre outras coisas, as necessidades


e os motivos dos estudantes para aprenderem a LI, além de construir capacidades e
habilidades para propósitos definidos e tornar o uso da língua significativo. Também deve

8
Como exemplos: jogar games, bater papo com os colegas através da ferramenta chat do MOODLE, ou visitar
sites que não dizem respeito ao assunto das aulas, como a professora deles observa frequentemente.
15

capacitar os alunos a ver razões para aprender e quebrar a velha tradição de memorização e
repetição do conhecimento transmitido pelo professor (CELANI, 2008), como já dito
anteriormente. Através dos comentários dos estudantes, acreditamos que estas características
se fazem presentes nas aulas de Inglês Técnico tratadas aqui.
Os alunos demonstram que eles se sentem à vontade e livres dentro do laboratório:

nos deixa mais à vontade;

eu me sinto mais a vontade;

nos deixa mais livre para tirar algumas dúvidas em relação à aula.

A sensação de conforto facilita e motiva o aprendizado, o que, por sua vez, faz com
que os alunos se engajem mais nas atividades propostas. No entanto, ao mesmo tempo,
também há alunos que preferem o método tradicional de ensino/aprendizagem:

Eu nunca tive aula de inglês em laboratórios de informática antes de começar as


aulas de inglês técnico.

Eu aprendo muito mais as aulas em sala, com a matéria passada no quadro e


atividades no papel.

Como já citado anteriormente, Siqueira (2006) salienta que alguns alunos podem ter
dificuldades em compreender a aprendizagem que ocorre no contexto digital, porque tendem a
acreditar que são somente receptores de conhecimentos, como na educação tradicional e não
administradores do processo de ensino e aprendizagem. A educação tradicional, conforme
Moore (1993, em SIQUEIRA, 2006), habilita o aprendiz a ser dependente do sistema
educacional, o que dificulta um desempenho mais ativo no seu próprio processo de
aprendizagem.
O novo ambiente de aprendizagem, neste caso, para quem está acostumado a ter
aulas em salas de aula ditas tradicionais, deve causar um estranhamento. É imprescindível que
haja uma modificação de paradigma por parte do aluno, quando ele migra para a educação
online. Possivelmente, o aluno acostumado às aulas tradicionais tenha, a princípio, dificuldade
para adaptar-se ao novo ambiente (ALMEIDA, 2004).
Também há alunos que pensam que deve haver um revezamento entre os dois
ambientes:

Prefiro as aulas na sala de aula mesmo, pois há maior interação e atenção dos
alunos, porém não desvalorizando as aulas no laboratório...
16

Então acho que deveríamos revesar, para não haver muita monotonicidade e assim
gerar desatenção dos alunos.

Finalmente, de acordo com as postagens em um dos fóruns e com as respostas ao


segundo questionário online, seis alunos são indiferentes ao ambiente em que as aulas de LI
são realizadas. Estes alunos acham que há vantagens nos dois ambientes:

por mim é indiferente ter aula na sala de aula regular ou no laboratório de


informática. Acredito ser até bastante válido ter aulas de inglês no laboratório de
informática, porque o computador é uma extensa ferramenta de pesquisa para
qualquer área;

as aulas de Inglês Técnico são diferentes quando realizadas na sala de aula e


quando realizada no laboratório de informática. Acredito que aqui no laboratório
temos uma área maior para pesquisa, nos sentimos mais à vontade. Porém, como
em todas as aulas, há determinados alunos que não colaboram, acessam páginas
não recomendadas e perdem o rumo das aulas, já na sala de aula, ficamos mais
atento. Para mim, tanto aqui, quanto na sala de aula é indiferente!

Ao consultarem os dicionários online, os estudantes realizam as atividades mais


rapidamente, pois logo encontram o significado da palavra que procuram. Eles também
pouco pedem auxílio da professora, pois com a ajuda da Internet em geral, ou de sites de
busca (e.g.: Google) eles podem resolver suas dúvidas de uma forma mais independente e
autônoma. Isto foi observado através das respostas dos alunos. Tanto nos fóruns quanto nas
entrevistas, os alunos foram unânimes em dizer que os dicionários on line são uma
ferramenta eficaz e rápida. Daí a vantagem de se trabalhar no laboratório.
Mesmo havendo sugestões de atividades para serem feitas online na wikipage, os
alunos praticamente não as realizam. Em suma, pode-se concluir que a wikipage não foi uma
ferramenta muito atraente para a população deste estudo.
Pode-se concluir também, que o papel mais importante e eficaz da Internet para os
participantes, neste caso, foi: (1) o de proporcionar acesso ao MOODLE que é um ambiente
que propicia interação virtual síncrona e assíncrona; que registra tudo o que o aluno faz
dentro desta plataforma e que serve como fonte de estudo e consulta tanto nas residências
dos estudantes como no ambiente escolar e (2) o de proporcionar acesso a diferentes fontes
de referências, como os dicionários on line e a ferramenta de tradução do Google9 o que

9
A professora deste grupo observou que as fontes mais utilizadas pelos participantes foi o tradutor do Google:
http://translate.google.com.br/ e o dicionário online Michaelis -
http://michaelis.uol.com.br/moderno/ingles/index.php. Todavia, dicionários especializados em termos técnicos
da área da Informática também foram sugeridos pela professora através da sua wikipage -
17

contribui para a autonomia dos participantes e para o desenvolvimento da capacidade de


resolverem sozinhos problemas de entendimento de vocabulário novo e consequente
interpretação de textos.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pretendeu-se trazer contribuições para a área de Ensino e Aprendizagem de LEs com
esta pesquisa. Talvez, a mais importante delas seja a de trazer alguma luz para professores que
veem laboratórios de Informática serem implantados em suas escolas, ou novos e mais
modernos computadores com Internet chegando nos seus ambientes de ensino e
aprendizagem. Aos professores que têm dúvidas de como utilizar as ferramentas do
computador conectado à Internet, estudos como este podem orientá-los no sentido de fazer
com que eles saibam que não estão sozinhos e que devem experimentar os novos recursos sem
medo. Além disso, é importante que saibam que devem orientar os seus estudantes a se
concentrar nas atividades propostas pela professora ao invés de se distraírem com outras
atividades que o acesso livre à Internet proporciona. Para tanto, atividades bem selecionadas e
atrativas, envolvendo a participação e colaboração dos estudantes, garantem o engajamento de
mais alunos nas aulas de LI.
Finalmente, este estudo apresenta resultados de uma pesquisa feita numa comunidade
bem específica situada numa pequena cidade do interior de SC em um ambiente intacto e
natural. As aulas e conteúdos não foram alterados em função desta pesquisa. Portanto, os
resultados aqui apresentados não são fruto de um experimento, mas das observações feitas
pelos alunos e pela professora em um ambiente natural de aprendizagem. Devido a estas
características, esta pesquisa também pode contribuir para pesquisadores da área de CALL
visto que a utilização de novas tecnologias digitais na educação tem incentivado-os a observar
e investigar as mudanças que estão ocorrendo no processo de ensinar e aprender analisando as
práticas de uso da linguagem e de se ensinar com novas tecnologias (ARAÚJO, 2009, p. 442).
Por último, devido a tantas transformações na forma de se ensinar e aprender num
mundo cada vez mais digital ou virtual, é necessário que haja uma revisão da educação em
geral. Revisão esta, segundo Kellner (2004, p. 10, em LOTHERINGTON & JENSON, 2011,
p. 241), que seja feita criticamente olhando o passado e o presente e imaginando um futuro
diferente ao mesmo tempo.

http://dictionary.reference.com/, http://quark.fe.up.pt/cgi-bin/orca/glossario,
http://www.techterms.com/,http://www.clubedohardware.com.br/dicionario/all,
http://www.dicweb.com/index.htm.
18

5 CONCLUSÃO
É importante recordar que este estudo teve como objetivo investigar as impressões
de estudantes de LI com relação à utilização do computador conectado à Internet para
realizarem atividades propostas pela professora.
Para os participantes deste estudo, tanto a sala de aula tradicional, quanto o
laboratório de Informática são ambientes propícios para o ensino e aprendizagem de LI se as
atividades aplicadas tradicionalmente no papel ou no computador forem significativas, com
propósitos específicos e se houver interação.
Esta pesquisa revelou que um curso de LI não deve ser planejado inteiramente com
base em atividades mediadas pelo computador, ou seja, não deve ser oferecido todo em um
ambiente com computadores individuais para cada aluno com acesso livre à Internet. O que
se pode deduzir, através das respostas dos participantes deste estudo, é que as atividades
mediadas por computador possuem benefícios e são muito bem aceitas pelos estudantes, mas
elas devem ser intercaladas com outras atividades mais tradicionais que promovam também
a interação dos estudantes entre eles.
No que diz respeito à disciplina Inglês Técnico, constatou-se que não precisa estar
atrelada ao ensino da leitura e estratégias de leitura somente. O curso de Inglês Técnico pode
ser desenhado de uma forma mais moderna em que outras habilidades que não somente a da
compreensão leitora sejam desenvolvidas. As ferramentas da Web e do computador, por
exemplo, facilitam este investimento porque vídeos em LI podem ser assistidos para se
desenvolver a compreensão oral de assuntos específicos da área dos estudantes.
A incorporação de atividades mediadas pelo computador ao processo de ensino de LI
para fins específicos favorece o desenvolvimento das habilidades principalmente da escuta,
leitura e escrita, aumentando as chances de interação, colaboração, motivação e engajamento
além de levar o ensino de línguas para fins específicos para além dos limites de materiais
impressos, como o livro-texto. Esta reconceptualização do ensino de LI para fins específicos
vem ao encontro do que Celani (2008) denomina como sendo Inglês Instrumental atualmente:
o ensino para além da Língua Inglesa.

6 REFERÊNCIAS

ALMEIDA, D. C. de. Do quadro de giz para a tela do computador: Percepções de


estudantes universitários sobre a utilização de tarefas online em um curso de Inglês
19

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contexts and communities. Annual Review of Applied Linguistics. v. 27, p. 133–60. EUA:
Cambridge University Press, 2008.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Inglês Aba de anexos para salvar artigo

BODIES THAT MATTER?: MULTIMODAL DISCOURSE ANALYSIS OF JUNIOR


MAGAZINE’S FRONT COVER1

Fábio Santiago Nascimento2 (PPGI/UFSC)

ABSTRACT

Homoerotic male magazines are complex semiotic systems composed by different genres that
convey subjectivity „models‟ or masculinities. Among the genres presented in magazines, the
magazine front cover is relevant for attracting readers and also, at the same time, anticipating
the magazine‟s content (MCLOUGHIN, 2000). The objective of this paper is to present a
preliminary analysis of the multimodal discourse of homoerotic male magazines‟ front covers
in order to identify discourses concerning body and health conveyed in these magazines. One
front cover from Junior magazine will be analyzed as a metafunctional construct in the light
of the theoretical frameworks of Systemic Functional Linguistics (HALLIDAY, 1989) and
Social Semiotics (HODGE; KRESS, 1988). Next, I will attempt to interpret results in terms of
magazines‟ contexts of publication as a way to reveal forms of knowledge and belief and
identities and social relationships (FAIRCLOUGH, 1995) constituted in/by multimodal
discourse. A first look at the selected front covers seems to indicate that the model depicted in
the magazine cover is the embodiment of a series of attributes/meanings realized by verbal
language. These attributes are mainly associated with beauty, youth and search for (sexual)
pleasure. In addition, there seems to be an attempt to naturalize such values since the verbal
language emulates a conversational style associated to male gay communities.

Keywords:
Multimodality. Critical Discourse Analysis. Front cover. Junior magazine.

RESUMO

Revistas homoeróticas masculinas são sistemas semióticos complexos compostos por


diferentes gêneros que veiculam “modelos” de subjetividade ou masculinidades. Dentre os
gêneros discursivos presentes nas revistas, a capa da revista possui o papel relevante de atrair
o leitor, ao mesmo tempo em que antecipa o conteúdo da revista (MCLOUGHLIN, 2000). O
objetivo deste trabalho é analisar o discurso multimodal de capas (front covers) de revistas
homoeróticas masculinas, de modo a identificar os discursos sobre corpo e saúde veiculados
nessas revistas. Uma capa da revista Junior será analisada sob as perspectivas teóricas da
Linguística Sistêmico-Funcional (HALLIDAY, 1989) e da Semiótica Social (HODGE;
KRESS, 1988). Em seguida, tentarei interpretar os resultados da análise em função do
contexto de publicação, numa tentativa de desvelar as formas de conhecimento e crença,
identidades e relações sociais (FAIRCLOUGH, 1995) constituídas no/pelo discurso
multimodal. Uma primeira visada sobre as capas parece indicar que o modelo retratado na

1
This paper is a result of the theoretical and analytical discussions carried out in two courses which I
participated during the second term of 2011. The first course, Gender in Language and Literature Studies, was
lectured by Prof. Susana Bornéo Funck and Prof. Débora de Carvalho Figueiredo. The second one, Discourse
Analysis, was lectured by Prof. Viviane Maria Heberle. I am very thankful to them for their valuable reading
suggestions and support given along the courses.
2
PhD candidate at the Graduate Program in English (Linguistics) under the supervision of Prof. Débora de
Carvalho Figueiredo. Member of the Reading and Writing Teaching Research Lab (LABLER) at Universidade
Federal de Santa Maria-RS and the Nucleus of Discourse Practices (NUPDISCURSO) at Universidade Federal
de Santa Catarina-SC. Grantee of the Brazilian National Council of Development and Research (CNPq) –
process no 143262/2011-4; email: fabiosantiagonasc@gmail.com.
2

capa da revista incorpora uma série de atributos/significados construídos pela linguagem


verbal. Esses atributos estão principalmente associados a valores como beleza, juventude e
busca de prazer (sexual). Além disso, parece haver uma tentativa de naturalização desses
valores, pois a linguagem verbal da capa simula um tom de conversa informal geralmente
utilizado em algumas comunidades gays.

Palavras-chave:
Multimodalidade. Análise Crítica do Discurso. Capa. Revista Junior.

1 INTRODUCTION
Since the publication of gay male magazines in the 1980s3, images and
representations of gay males have been widely spread throughout mainstream society. There
is no doubt that such publications have contributed to the important struggle of gay activist
groups for achieving more acceptance and equality within society. Male gay-oriented
magazines are part of the media and „give a voice‟ to these groups, allowing them to
communicate their ideas, to express their opinions and even to claim for social changes in
controversial gay-related issues.
Despite the social significance of gay magazines as sites of information and
visibility for gay communities, representations of gay males conveyed by the media seem to
become increasingly repetitive or even stereotyped. In general, as Lima (2001) suggests, in
his analysis of the extinct Brazilian gay magazine Sui Generis, the „standard‟ image is that of
a well-fit, muscular, stylish, high earning, sexy „macho‟ that both represents a particular way
of being but, at the same, may be part of a hegemonic model of masculinity for male
homosexuals.
Other studies have also pointed to the lack of „diversity‟ in media representations of
homosexuals in different genres (MOITA-LOPES, 2006; COLLING, 2007; ESHREF, 2009;
PEREIRA, 2006; KUHAR, 2006) however, few of these studies have adopted a text oriented
perspective on discourse analysis (FAIRCLOUGH, 1992), especially those studies which
have investigated Brazilian male gay-oriented publications.
In order to carry out a preliminary critical discourse analysis of male homoerotic
magazines4, this paper aims to analyze the multimodal discourse of one magazine front cover.

3 Gay Times, an entertainment mainstream gay magazine, was first published in The United Kingdom in 1984
and can be considered the first one of this genre. However, other gay magazines, more restricted in circulation
and with a different focus on political issues were published earlier, such as Panbladet, a Danish gay magazine
which had its first edition in 1954 and is part of the National Association of Lesbians, Gays, Bisexuals and
Transgenders (LGBT) of Denmark, founded in 1948. http://en.wikipedia.org/wiki/LGBT_Danmark
4
Research proposal Muscles that matter: body and identity construction in male gay magazines submitted to the
Graduate Program in English (Linguistics) at Universidade Federal de Santa Catarina, as a preliminary version
of my future PhD project.
3

Considering that magazines are complex semiotic systems (HEBERLE, 2004) composed by
different texts instantiating different genres (news, feature articles, reader‟s letter, etc.), the
front cover functions as an „advertisement‟ of the magazine and previews its content in an
attempt to persuade readers to buy one magazine rather than another (MCLOUGHIN, 2000, p.
5).
The present chapter consists of five sections besides the introduction. In the next
section (2), I will discuss different concepts (gender, body, sexuality) in order to delimitate
the theoretical scope which grounds my interpretation of preliminary results from the
multimodal analysis. Section 3 presents the theoretical framework adopted for the
linguistic/semiotic analysis of magazine‟s front covers. Section 4 describes some
methodological aspects (analytical categories and criteria for text selection) of the study.
Section 5 presents the multimodal discourse analysis of male gay magazine‟s front covers. In
the last section (6), some relevant aspects of the study will be addressed and future research
directions will be pointed out.

2 BEYOND GENDER: BODY AND SEXUALITY


Traditionally, gender is a grammatical term used to distinguish between participants‟
(persons, animals, etc.) male and female biological sexes. However, in her seminal paper,
Joan Scott argued that gender is no longer a linguistic category, but a historical one, since
words codify meanings which are socially attributed and therefore they have a history (1986,
p. 1053). In her theorization, the author rejected the notion that gender is a matter of fixed
binary oppositions between male and female and assumed that „gender is a constitutive
element of social relationships based on perceived differences between the sexes, and [gender
is] a primary way of signifying relationships of power‟ (1986, p. 1067)5. In this sense, gender
relationships are socially enacted between sexed bodies (male or female) by deployment of
symbols, „grand narratives‟ and normative concepts devised by social institutions; and reflect
the psychological development of subjective identity (1986, p. 1067-1068).
In contrast to Scott‟s theorization on gender, post-structuralist accounts have
criticized the distinction between gender as a cultural construction and sex as a fixed
biological apparatus, arguing that not only gender is performatively produced within cultural
practices (BUTLER, 1990, p. 24) but also sex:

5
My emphasis.
4

Gender ought not to be conceived merely as the cultural inscription of meaning on a


pregiven sex (a juridical conception); gender must also designate the very apparatus
of production whereby the sexes themselves are established. As a result, gender is
not to culture as sex is to nature; gender is also the discursive/cultural means by
which “sexed nature” or “a natural sex” is produced and established as
“prediscursive”, prior to culture, a political neutral surface on which culture acts.
(1990, p. 7)

In other words, the categories of sex and gender function in very similar ways since
both are unstable and are continually (re)constructed through social interactions. It is by
means of cultural processes that people define what is (or what is not) natural in terms of their
sexualities and intimate relationships. Of course, the social construction of gender and
sexuality has implications for the body:

The body posited as prior to the sign, is always posited or signified as prior. This
signification produces as an effect of its own procedure the very body that it
nevertheless and simultaneously claims to discover as that which precedes its own
action. If the body signified as prior to signification is an effect of signification, then
the mimetic or representational status of language, which claims that signs follow
bodies as their necessary mirrors, is not mimetic at all. On the contrary, it is
productive, constitutive, one might even argue performative, inasmuch as the
signifying act delimits and contours the body that it then claims to find prior to any
and all signification. (BUTLER, 1993, p. 30)

In this sense, bodies have come to existence and are shaped, delineated and
controlled through discursive means which are inscribed into a heteronormative order. The
body, thus, is a site of struggle and also the materialization of discourses (legal, medical,
juridical, etc.) that legitimate certain possibilities of owing certain bodies and experiencing
certain forms of sexuality6.
If bodies are (partly) constructed and maintained through discourse, the ideal images
of bodies in the male homoerotic magazine‟s front cover (and also those which are part of the
magazine inside content) should be investigated as „commercialized‟ symbolic goods
produced within the discursive machinery of a specific context of publication in order to
legitimate certain lifestyles in detriment of others. Language (as discourse), thus, is a social
practice that shapes knowledge systems and beliefs and identities and social relationships
(FAIRCLOUGH, 1995), which, in their turn, regulate social interactions, as will be discussed
in the next section.

6
The main title of the article carries this ambiguous sense of the word „matter‟: it refers both to the acts of
reiteration through discursive practices which „matters‟ bodies and, at the same time, the bodies that „matter‟ in
contemporary society, in other words, the bodies who are successfully inscribed into a heteronormative order and
therefore become hegemonic.
5

3 DISCOURSE: LANGUAGE AS SOCIAL PRACTICE


In the present study, I adopt a critically engaged perspective on discourse
analysis, as the one developed by critical discourse analysts such as Norman Fairclough, Ruth
Wodak and Teun van Djik, in an attempt of moving beyond the analysis of language in use.
Especially in the 1970s and early 1980s, research on language focused on the detailed
descriptions of grammar and utterances at the level of sentence with no reference to the ways
language is used to make meaning in society (JAWORSKI; COUPLAND, 1999, p. 3-4). In
contrast, contemporary studies (in a movement towards „contextualization‟ of discourse) have
focused on the relationship between language and social structures (BHATIA, 2004).
In other words, analyzing discourse has become a matter of describing how a
language „functions‟ on the context because language is conceived as a semiotic system for
the construction of possible „realities‟, shaping identities and mediating social relations
among individuals. On the other hand, language is also a mirror of social structures, being
constituted by the very social processes which it is a part of.
Discourse, thus, can be defined as the set of semiotic elements (e.g. words, images,
sounds, etc.) which are „moments‟ of the social practices for language is usually an essential
element of mediation between individuals who take part in human interactions
(CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999, p. 38). However, besides making communication
possible, language also allows people to act together and construe partial representations of
reality (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999, p. 37).
For instance, the text is molded by the event or social practice which it mediates and,
at the same time, the discursive practice (realized by the text) reflects or reproduces a social
practice. The text is the linguistic/semiotic materialization of a social event (genre)
(FAIRCLOUGH, 2003, p. 24), in other words, it is any instance of language (written, spoken,
visual, etc.) which performs a role in a context. The text is a unit of meaning, a particular
combination of signifiers and signifieds which is socially motivated (KRESS, 1987, p. 18).
This unit is composed by different levels of complexity, such as vocabulary (lexicon),
grammar (word phrases), sentences (cohesion) and text structure (FAIRCLOUGH, 1992, p.
75). A text, thus, is a process of choices in the linguistic/semiotic system and, at the same
time, a product of a discursive practice for it reflects ways of acting (discourse, genres and
styles) associated to a given discourse order.
The level of discursive practice, in its turn, refers to the processes of
production, consumption and distribution of texts in society. The nature of these processes is
social and each discourse is produced in specific economic, political and institutional contexts
6

(FAIRCLOUGH, 1992, p. 71). The production and consumption of texts involve the
exploration of discursive conventions associated to an order of discourse and the
interpretation of texts based on background knowledge shared by a given social group.
If the discursive practice involves the selection of semiotic choices for
expressing meanings, at a broader level, the social practice, which is mediated by texts,
constitutes a condition for the realization of the discursive practice and, at the same time, a
result from this practice. For example, magazine producers make choices in terms of language
style, compositional and visual designs, font colors, etc. in order to convey representations
about aspects of the world (ways of being) and social relationships (ways of interacting), but
these choices are not unlimited or free for all, they are constrained by the very nature of the
social practice (in terms of values and beliefs shared by the community of magazine
producers).
In practical terms, Fairclough (1989, p. 2) assumes that ACD has two
interconnected objectives: (1) to point out the significant role of language in the production,
maintenance and change of unequal power relationships in society and (2) to make people
aware of this constitutive role of language, as way to promote social emancipation. For these
reasons, magazine readers should be empowered with linguistic/semiotic skills (in terms of a
multiliteracy7) in order to adopt a submissive reading role (by accepting as natural and
common-sense the representations conveyed in the magazines) or an active one (by critically
evaluating those representations) (WALLACE, 2003, p. 3).

4 METODOLOGY
The present study focuses on the investigation of one male gay-oriented Brazilian
publication8, Junior magazine. The publication was selected according to the following
criteria:
 Highest circulation number
 Monthly publication
 Print media
 Objective – entertainment
 Publication period (2010-2012)

7
See COPE, B; KALANTZIS, M. (Eds.). Multiliteracies: literacy learning and the design of social futures.
London: Routledge, 2000.
8 Other magazines to be included in the research project are Gay Times (U.K.) and Out (U.S.).
7

One magazine cover published on September, 2011 was selected for the following
analysis:

Image 1 – Junior magazine‟s front cover – September, 2011.

The selected cover was analyzed in terms of the choices of meaning in grammar
described both in Halliday‟s Systemic Functional Grammar (1994, 2004) and Kress and van
Leeuwen‟s Visual Grammar (1996, 2004). These choices are organized in terms of three
dimensions of meaning (HALLIDAY, 1989) that constitute both verbal language and images:

 Ideational (or representational) meanings – How language is used to represent


aspects of the inner or physical worlds? (e.g. types of transitivity processes
associated to participants – material, mental, existential, etc. - and types of processes
realized through visuals – narrative or conceptual? classificational, analytical or
symbolic?).
 Interpersonal (or interactional) – How language is used to enact relationships
between participants and readers/viewers? (e.g. degrees of modality in language –
use of modals, modal adverbs, etc. and markers of modality in visuals such as color,
8

illumination – and mood types (declarative, interrogative and imperative) and


participants‟ gaze and social distance in visuals).
 Textual (or compositional) – How the text is organized as a coherent and
cohesive unit? (e.g. which information is given-new, ideal-real?).

5 MULTIMODAL DISCOURSE ANALYSIS


This section presents the multimodal analysis of one front cover from Junior
magazine and it is organized in five minor sections. The first section presents information
about the magazine and its context of production. The later four subsections explore the tree
dimensions of the meaning-making process in the magazine (representations, identities and
social relationships and meaning in composition).

5.1 Junior magazine


Junior is a printed monthly magazine which was released in 2007 in Brazil and is
also distributed in Portugal. On the September 2011 edition, the magazine launched a new
project that includes more pages than earlier editions (around 180 pages) and a new layout
(change in font types), according to suggestions from readers. The magazine consists of
nineteen sections that explore different themes such as tourism, well-being, politics, culture,
in different genres such as interview, magazine article (Dossiê) and reader‟s letter (Cartas).
The magazine belongs to the publishing group responsible for the online gay portal
Mix Brasil which aims to „become a leader among the communication vehicles for the gay
community and a reference in information and cultural activities of GLS interest‟9. The core
mission of the group is „to widen the concept of identity, to create a market and to form up
professionals for the spread of culture and production of entertainment on a gay point of
view‟10 and it lists several values/purposes which guide its publication politics: ethics,
courage, pioneerism, pro-activity, support for LGBT community, commitment, integrity,
personal valuing, originality, „glamour and beauty (inner and mainly outer)‟ 11.
In the next subsections, I analyze one magazine cover from Junior in order to build
some preliminary research hypotheses concerning the construction of representations, social
roles and relationships and layout design through semiotic choices in the magazine cover.
Therefore, the present analysis is partial (because it focuses on one part of the magazine, its

9
Availabe at http://mixbrasil.uol.com.br/institucional/quem-somos. Retrieved on October, 20th, 2011.
10
Idem.
11
Idem.
9

front cover) and does not present quantitative data, not allowing making generalizations about
the socio-discursive practices presented in the magazine.

5.2 Representations: designing models of being


In the magazine cover of Junior, representational meanings are realized through the
combination of the magazine title, a series of small verbal texts and the image of a male
model.
The magazine title, as pointed out by Mcloughin, is „a shorthand way of conjuring up
particular associations in the reader‟s mind‟ (2000, p. 6). The word choice Junior, as
magazine title, is associated to the idea of youth as a positive attribute, in contrast to
professional contexts in which it is usually used to refer to „someone who has a job at a low
level within an organization‟12. The meaning conveyed by the magazine title is reinforced by
the image of a young male model (Erasmo Vianna) who just stands and does not perform any
movement or physical action. The image therefore belongs to the general category of
Conceptual Processes for its emphasis on the representation of a general state of affairs and
the depiction of a „way of being‟ in the world (KRESS; VAN LEEUWEN, 1996, p. 114).
As a conceptual representation, the identity of the represented participant (carrier) is
constructed in terms of: (1) his possessive attributes (black paillette trunk, tattoos and even his
well-built chest and abs) which are part of an unstructured Analytical Process (parts forming
up the whole) (KRESS; VAN LEEUWEN, 1996, p. 89) and; (2) the atmosphere the
participant is inserted into (probably a nightclub or a disco environment because of the
different colors that light his body) which can be interpreted as a attribute that realizes a
Symbolic Suggestive Process (KRESS; VAN LEEUWEN, 1996, p. 111).
All these attributes in the image have an ideological significance because they
construct an idealization of „what is to be a (gay) man?‟ mainly in a Western culture. The
male model depicted in the magazine cover seems to represent the prototype of an ordinary
„young‟ sexy man (between 20 and 35 years old) who is concerned with his personal
appearance and likes flirting, dating and having fun at nightclubs (or perhaps sexual
adventures in love motels).
The meanings conveyed by the image are reinforced by some lexical choices
presented in the small verbal texts (headlines) surrounding it:

12
Available at http://dictionary.cambridge.org/dictionary/british/junior_1?q=junior. Retrieved on November, 1st,
2011.
10

Erasmo Viana (está) em uma noite ensadecida.13


Carrier Circumstantial Attributive Attribute
Process (Circumstance)

Figure 114

In Figure 1, there is a Circumstantial Attributive Process „está‟ (is) which is elliptical


and is establishing a relation between an entity (Erasmo Vianna) and the attribute he holds.
The attribute, in this case, is circumstantial and it is formed mainly by the combination of the
noun „noite‟ (night) and the qualifier „ensadecida‟ (crazy). Especially the word choice
„ensadecida‟ warns the reader that the night experienced by Erasmo Vianna is not an ordinary
life, but it is somewhat transgressive and exciting.
Other lexical features indicate that this sense of transgression and excitement is
related to sex in terms of sexual fantasies and taboo sexual practices:

Example 1 – Friozinho em Ushuaia ou ferveção em Recife?15


Example 2 – Dossiê: homens fardados16

Repórteres gays penetram nas casas de swing HT.17


Actor Material Process: Circusmtance: Place:
Transformative: Motion: Location
Place
Figure 2

(Eu) tenho tesão por um corpo lindo,


habitado por uma alma perversa.18
Carrier Possessive Attribute Circumstance: enhancing: cause
Attributive Process

Figure 3

13
One crazy night. (All Portuguese-English translations in this chapter are under my responsibility).
14
The reason for identifying some clauses as „Figure‟ in the legend (instead of Chart) is due to the use of this
term in Systemic Functional Grammar (HALLIDAY, 2004, p. 169-170) to define a clause experientially,
consisting of „a process [which unfolds through time], participants involved in it and any attendant
circumstances‟.
15
Little cold in Ushuaia or hot action in Recife?
16
Dossier: Men in uniform.
17
Gay reporters penetrate into HT swing houses.
18
I have a hard on for a beautiful body, inhabited by a perverse soul.
11

In Figure 2, the material process „penetram‟ (penetrate) is ambiguous because it


refers to „enter into some place‟, but, at same time, evokes the action performed during sexual
intercourse. Example 5 presents a Possessive Relational Process („tenho‟ - have) with an
elliptical carrier („eu‟ - I) and an attribute („tesão‟ – a hard on) followed by a circumstance
with two noun phrases („corpo lindo‟- beautiful body e „alma perversa‟ – perverse soul) that
emphasize not only unconventional sexual behavior, but also the hegemony of beauty:

Example 3 – „10 modelos lindos‟19


Example 4 – „musos das picapes‟20
Example 5 – DJs bons de ver e ouvir

Perca a pança sem esforço, nem


cirurgia.21
Material Process Goal Circumstance:
manner: means

Figure 4

9 pra dar jeito na sua pele.22


produtos
Goal Material process: transformative Goal
Circumstance: Cause: Purpose (Embedded Clause)

Figure 5

Figure 4 presents an Imperative Mood type sentence in which the reader is strongly
demanded to „lose‟ some weight and get in shape in a very pejorative way („paunch‟). Figure
5 also keeps the same tone in the message with the chosen material process („pra dar jeito‟ –
to fix) used for pointing out nine possibilities of skin treatment.
The semiotic choices used for constructing ideational meanings in the magazine
cover suggest that sexuality, body design, youth and beauty are prerogatives of a gay
„narrative of self-identity‟. The body is represented as a „source of pleasure‟ that should be
„designed‟ and „fixed‟ in order to meet some standard beauty criteria conveyed by the

19
10 beautiful models.
20
Pick-up trucks‟ gods.
21
Lose your paunch without any effort or surgery.
22
9 products to fix your skin.
12

magazine. Therefore readers are supposed to inscribe themselves into „regimes‟ or routines
which may include skin treatment, series of exercises at the gym, health eating habits and so
on (GIDDENS, 1991, p. 61-62). Shaping the body, thus, seems to be an important aspect for
the maintenance of hegemonic masculinities and may improve the performance of an
individual in social interactions (CASTRO, 2003, p. 26).

5.3 Social relationships: designing ways of (inter)acting


Besides conveying representations about aspects of the world, the magazine cover of
Junior also present some semiotic features which constitute a kind of interaction between text
producers and readers (interactive meanings) and the levels of reliability the attribute to their
messages (modality). In visuals, interactive meanings are described in terms of three major
categories: Contact, Social Distance and Attitude.
Contact refers to the way a represented participant addresses the viewer and, in the
selected front cover (Image 1), the interaction is constructed by the model‟s gaze, by looking
at the viewer in order to „demand‟ an action from him. In a way, Erasmo Vianna „seduces‟ the
viewer to join him in his journey across „one crazy night‟ as potential sexual partner. At the
same time, in conceptual terms, the model can be seen as the „ideal‟ image of man that the
reader wants himself to become as already discussed in the previous section.
Social Distance refers to the level of proximity between the represented participant
and the viewer as a way to signal a greater or lesser level of intimacy or formality (KRESS;
VAN LEEUWEN, 2004, p. 124). Image 1 is an example of medium long shot that establishes
a „far social distance‟ between the model and the viewer. The model is depicted from the
waist down in order to allow the viewer to check out his bodily attributes. Therefore, the
model is represented as a „stranger‟ to viewers (in fact, Erasmo Vianna cannot be considered a
well-know public figure in the media, but only a new male model with a promising career in
the fashion business), as any ordinary „guy‟ one may encounter at gay nightclubs and have a
„hook up‟.
Attitude refers to the choice of perspective (angle) as a „possibility of expressing
subjective attitudes towards represented participants‟ (KRESS; VAN LEEUWEN, 2004, p.
129). In a horizontal axis, the participant in Image 1 is depicted from a frontal angle, in a
parallel position with the viewer, and this choice of angle expresses a relationship of
„involvement‟ between the model and viewers. In other words, this choice of angle says
„What you see here is part of our world, something we are involved with‟ (KRESS; VAN
13

LEEUWEN, 2004, p. 136). In the case of gay magazines, a possible message conveyed by
this choice is „What you see here is something that we both want‟.
On the other hand, the height of an angle, in a vertical axis, also expresses subjective
attitudes in terms of the kind of power relationship established between represented
participants and viewers (KRESS; VAN LEEUWEN, 2004, p. 140). In Image 1, the model
and the viewer are positioned at an eye-level vertical angle as a way of expressing relation of
equality, in other words, no power difference between them.
Another aspect in the magazine cover that is important to be considered is how the
image is designed in order to convey a model of reality in terms of modality. Modality is a
resource offered by the linguistic system to signal the degree of truth or credibility we ascribe
to our statements about the world (KRESS; VAN LEEUWEN, 2004, p. 155). In visuals,
modality is expressed in scales of intensity (modality markers) of color, brightness, sharpness,
size, depth, contextualization, representation and/or illumination, which varies according to
the viewer‟s coding orientation.
A coding orientation is a set of criteria shared by a social group for defining its own
„realism‟ (KRESS; VAN LEEUWEN, 2004, p. 158). For instance, Image 1 presents a wide
range of color differentiation, it is quite contextualized (the model is in the corner of a room,
next to a door) and illumination seems natural (since it is possible to find such kind of
illumination in disco environments). This set of semiotic choices characterize Image 1 as
presenting a very high (or maybe the highest) level of modality, according to a photorealistic
coding orientation usually used as standard in print media. In contrast, lower levels of color
differentiation and lack of contextualization and illumination may signal to the viewer that the
visual representation is something improbable or fantastic.
The overall high level of modality expressed by the semiotic choices in Image 1 also
seems to be emphasized by some choices in verbal language. Figures 2 and 3 are instances of
factual information for they present categorical modality (FAIRCLOUGH, 2003, p. 159), in
other words, they are absolute statements about the world. Using categorical modalities in
magazines headlines and titles can be interpreted as a strategy for producing an effect of
dramatization in order to catch the viewer‟s attention (CHARAUDEAU, 2009, p. 91).
Regarding mood choices in language, the magazine cover also presents a clause in
the imperative mood (as already pointed in the previous section), representing the
authoritative voice of the media which demands an attitude from the reader („lose the
paunch‟) and another imperative clause which performs a different function:
14

Example 6 – Todas (elas) bate continência!23

The imperative clause in Example 6 does not actually demand an action (to salute)
from the reader, but consists of an informal way of introducing the topic of discussion („men
in uniform‟) to readers by making reference to a traditional practice in the army. In this
clause, two interesting features are the use of the female gender linguistic mark („todas‟24) to
refer to readers (who are predominantly male) and the disagreement between the elliptical
subject (elas) and the verb form which follows it („bate‟)25. Referring to readers using a
female pronoun can be interpreted as a strategy adopted by the journalist to simulate casual
conversations among some male gays who align their identities with the female gender,
inscribing themselves into a heterosexual matrix.
Besides clauses in the imperative mood, there are also some clauses in the
interrogative mood in the magazine cover:

Example 7 - Eles topam?26

Figure 4 and Example 7 both present clauses in the interrogative mood, but
performing different functions. The former is used to demand information from the reader
who is able to decide which location he prefers to travel to. On the other hand, the latter is not
actually a way of demanding information from the reader, but a rhetorical question which
aims to encourage the reader to wonder if straight males at swing clubs may engage into
homosexual sexual practices. Obviously the magazine provides an answer to the reader.
The overall interpersonal choices in both verbal and visual languages in this specific
magazine cover from Junior suggest the conversationalization (FAIRCLOUGH, 1995, p. 9-
10) of the public media discourse. In other words, popular speech or ordinary language
colonizes into the language of the media as a discursive strategy to „naturalize the terms in
which reality is represented‟ (Fowler, 1991, p. 57 cited by FAIRCLOUGH, 1995, p. 13). Not
only the model in the magazine cover is depicted as „real‟ and „involved‟ with readers, but
linguistic choices also enact a close and „natural‟ relationship between the journalist and the

23
Everybody salute!
24
In Brazilian Portuguese language, the indefinite pronoun everybody is gendered (todas - female ou todos -
male), in contrast to the English language in which it is neutral.
25
According to the prestige linguistic norm in Brazil, a verb must agree in number and person with its subject,
therefore the subject elas (3rd person plural) requires the verb form batem instead of bate (which agrees with the
3rd person singular pronoun ele/ela).
26
Do they accept?
15

magazine reader. The former seems to take the position of someone who gives advices in an
informal register (lose your paunch, 9 products to fix your skin) to a male friend and
participates into his daily routine.

5.4 Composition: designing a meaningful message


When writers and visual designers produce their messages, they not only make
choices in terms of ideational/representational and interpersonal/interactional structures, but
also in terms of how clauses, paragraphs and visuals are integrated into a meaningful whole
(KRESS; VAN LEEUWEN, 2004, p. 176).
In the selected Junior cover (Image 1), the meaning of the layout can be
described in terms of its information value, in other words, how the different positions
occupied by participants in a visual composition construe different meanings. In Image 1,
visual elements are not organized in a horizontal axis (Given-New) or vertical axis (Ideal-
Real), but in a Center-Margin visual structure (KRESS; VAN LEEUWEN, 2004, p. 194).
The model (Erasmo Vianna) occupies a central position in the visual composition
and is surrounded by pieces of verbal language27 which are placed into the margins of the
frame. Through this visual pattern, the model is presented as the nucleus of the information
and the other elements are, in some way, dependent on him. In fact, his body (specifically his
chest) occupies the most central part of the composition and it can be considered a „visual
expression of the divine or some other exalted power‟ (ARNHEIM, 1982, p. 72). In this
sense, Erasmo Vianna is the personification of all those meanings expressed in verbal
language (related to sex, pleasure and beauty) which may constitute a hegemonic model of
(gay) identity conveyed by the magazine.

6 CONCLUSION
The present paper constituted a first attempt to carry out a multimodal critical
discourse analysis of male homoerotic magazines. In order to make a first step towards the
attainment of this objective, one front cover from Junior magazine was analyzed in terms of
how both verbal and visual languages construe representations and social relationships and
how both modes of language are integrated to compose a meaningful message.
Although the results described throughout the paper are preliminary and do not
provide enough ground for making broad generalizations, the analysis served to shed light on

27
The analysis of theme-rheme position in the verbal language presented in the selected cover is not relevant
since most part of the headlines does not constitute into full clauses, but only into noun phrases.
16

the validity of some analytical categories (e.g. the possibility of a center-margin visual pattern
in Junior magazine covers) and their potential interpretative value (e.g. the model depicted as
the embodiment of a hegemonic lifestyle or masculinity which does not „widen the concept of
identity‟ but narrows it and excludes other subjectivities). In addition, the analysis was useful
for making some initial hypothesis concerning the social practices constituted in the magazine
discourse and for pointing out some research directions for further detailed analyses.
Further steps in the research may include: collection of a larger corpus composed by
magazines produced in other countries (U.S. and U.K.), analysis of other genres besides the
magazine front cover (such as letters to the editor, features and advertisements), comparison
of lexico-grammatical features across different genres and magazines and analysis of semiotic
choices in the light of magazines‟ contexts of production, distribution and consumption.
To sum up, the further steps pointed above may provide answers to the following
research questions which guide the broader investigation on discourses of gender, body,
sexuality which the present work is part of:

 How discourses on body, identity, sexuality are constructed in the inter-


semiotic genre chain that composes magazines?
 What intertextual and interdiscourse relations are established between texts and
discourses presented in magazines?
 What lexico-grammatical choices reflect dominant stereotypes of gender,
sexuality, body, identity in magazine‟s texts?
 What social (and gender) relationships are established between represented
participants? How such relationships are realized in texts?
 What semiotic elements in texts are associated to different contexts of culture?
 To what extent the social practices constituted in male homoerotic magazines
are equivalent to those from female magazines?

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SUMÁRIO GERAL Sumário de Inglês Aba de anexos para salvar artigo

BRAZILIANNESS VERSUS ENGLISHNESS: THE MYSTERIOUS CASE OF


NATIONAL IDENTITY AND HISTORICAL REPRESENTATION IN
O XANGÔ DE BAKER STREET, A PARODY OF SHERLOCK HOLMES1

Mateus da Rosa Pereira2 (PPGLET/UFRGS)


RESUMO

O presente artigo investiga a representação da história e a identidade nacional no romance O


Xangô de Baker Street (1995), de Jô Soares, à medida que a caracterização de Sherlock
Holmes evidencia noções de ―ser brasileiro‖ (Brazilianness) versus ―ser inglês‖ (Englishness).
O objetivo é analisar como noções de história e identidade nacional são projetadas na imagem
do detetive inglês, e como essa imagem e essa narrativa são problematizadas, em um diálogo
com os contos originais de Arthur Conan Doyle, principalmente pelo uso da paródia pós-
moderna, segundo definições de Linda Hutcheon (1985, 1988, 1989). O romance subverte o
gênero de detetive, sugerindo uma caracterização de Holmes que pode estar ligada a um
questionamento da autoridade e do poder da história oficial e da ciência positivista.
Entretanto, utilizando o conceito da representação do passado na literatura como a ―pré-
história do presente‖, um termo cunhado por Georg Lukács (1983), a presente análise sugere
que o passado em O Xangô de Baker Street é representado como a história das coisas e a
história de uma elite brasileira, excluindo as vozes populares e a sua participação da narrativa.

Palavras-chave:
Representação histórica. Identidade nacional. Sherlock Holmes.

ABSTRACT
This essay investigates the representation of history and national identity in Jô Soares‘ O
Xangô de Baker Street (1995), as the characterization of Sherlock Holmes in this novel
foregrounds notions of Brazilianness versus Englishness. The aim is to analyze how notions
of history and national identity are projected onto the image of the English detective, and how
this image and narrative are problematized, in a dialogue with the original stories by Arthur
Conan Doyle, especially through the use of postmodern parody, according to Linda
Hutcheon‘s definitions (1985, 1988, 1989). This novel subverts the detective genre, thus
suggesting a characterization of Holmes that may be associated with a questioning of the
authority and the power of the official history and the positivist science. However, by drawing
on the concept of the past representation in literature as the ―pre-history of the present‖, a
phrase coined by Georg Lukács (1983), the close analysis suggests that the past in O Xangô
de Baker Street is represented as the history of things and the history of a Brazilian elite,
thereby excluding people‘s voices and participation from the narrative.
Keywords:
Historical Representation. National Identity. Sherlock Holmes.

1
Este artigo foi inspirado em uma parte da dissertação de mestrado desenvolvida junto ao do Programa de Pós-
graduação em Letras/Inglês e Literatura Correspondente da Universidade Federal de Santa Catarina, defendida
em 2006, intitulada: Representations of Sherlock Holmes in Brazilian and English recent cultural productions: an
analysis of cultural and historical elements associated with national identity.
2
Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; e-mail:
mateusdarosapereira@yahoo.com.br
2

1 BACKGROUND
Sherlock Holmes first appeared in A Study in Scarlet – a novel written by Sir Arthur
Conan Doyle in 1887 and published in the English magazine The Strand. Between then and
1927, Doyle wrote three other novels and five volumes of short stories about Sherlock
Holmes. Influenced by Edgar Allan Poe, who is considered to be the father of modern police
detective fiction, as inaugurated in the short story ―The Murders in the Rue Morgue‖ (1841),
Doyle created the first scientific detective (GÓES, 2005, p. 34). Holmes‘ deductive method
involved observation, formulation of a hypothesis, and its subsequent application. In 1893,
Doyle decided to have Sherlock Holmes dead together with his archenemy professor Moriarty
in the story ―The Final Problem,‖ in order to dedicate his energies to what Doyle considered
more important works – namely, the historical novels. However, led by public outcry, Doyle
brought Holmes back to life in the story ―The Adventure of the Empty House,‖ published in
1903.
According to Paulo de Medeiros e Albuquerque, if we look carefully, we will find
something of Holmes in all detectives that came after him, even in part of the modern
American detective fiction with its ferocious and ultra-womanizer detectives (1979, p. 45).
Ever since the 1880‘s, Sherlock Holmes has become a synonym for the detective persona and
an icon of the English culture, as there have been about 300 re-creations of the Sherlock
Holmes stories, among which more than 150 are filmic adaptations (FERRAZ, 1999, p. 13).
For many years 221b Baker Street London, Holmes‘ address, received several letters
requesting the help of the detective and complimenting his work (ALBUQUERQUE, 1979, p.
48). Today, there is even a museum dedicated to the memory of Doyle‘s fictional character at
the famous address.
In Brazil, the first detective narrative was Mystério, serialized in the newspaper A
Folha, in Rio de Janeiro in the 1920‘s, written collectively by Coelho Neto, Afrânio Peixoto,
Viriato Correia and Medeiros e Albuquerque (GÓES, 2005, p. 31). According to Góes,
nowadays, the detective fiction is a growing genre in Brazil, as most publishers keep detective
series or collections in their catalogs, partly because detective fiction readers are loyal
consumers (2005, p. 31). All of Sherlock Holmes stories are found in Portuguese from several
Brazilian publishers, such as Ediouro, Melhoramentos, and L&PM.
An important historical development in the detective genre was its marriage to
American film noir in the 1940‘s and 1950‘s. The films from this period were marked by
depression, disappointment and pessimism, as evinced in The Maltese Falcon (1941),
considered to be the first hardboiled detective film (SCHATZ, 1981, p. 125). Nowadays,
3

according to Góes, American film noir continues to influence American cinema, as recent
productions illustrate: Curtis Hanson‘s L. A. Confidential (1997), Phillip Noyce‘s The Bone
Collector (1999), and Clint Eastwood‘s Mystic River (2003) (p. 42).
Even though Brazilian cinema has not counted on a tradition of detective film as
prolific as the American, Góes points out that the way has been opened by recent adaptations
of Brazilian detective novels (2005, p. 42). Alain Fresnot directed Ed Mort (1997), adapted
from the homonymous novel by Luis Fernando Veríssimo, Roberto Santucci Filho directed
Bellini e a esfinge (2001), from a novel by Tony Belloto, and Miguel Faria directed O Xangô
de Baker Street (2001), from Jô Soares‘ novel (GÓES, 2005, p. 42). Of these three Brazilian
films, two – Ed Mort and O Xangô de Baker Street – tropicalize their detectives into a parodic
portrayal, mixing humor and genre subversion. While these Brazilian detective films display
great knowledge of the detective genre – from literature and film –, they play with notions of
English or American culture that lie behind traditionally defining detectives such as Sam
Spade (from The Maltese Falcon) or Sherlock Holmes.

1.1 O Xangô de Baker Street: a Historical Novel?


Within this context, this essay focuses on how the images of the fictional character
Sherlock Holmes parodied in O Xangô de Baker Street set in Brazil foreground and
problematize notions of national identity and history. This historical novel can be associated
with postmodernism, as it draws on the well-known character of Sherlock Holmes in order to,
at the same time, underline and undermine detective genre conventions. In this intertextual
play, it challenges the plea for science that characterized the original stories of Sherlock
Holmes, written during the heyday of positivist science at the end of 19th century.
One important theoretical foundation for the following close analysis is Lukács‘
definition of a representation of history in literature as the ―pre-history of the present‖. This
kind of literary representation of the past, according to the author, would help readers
understand the development of the plot as the development of the real historical process, in
line with one of the core intents of realist historical novels (LUKACS, 1983, p. 21). Lukács
defended that the aim of historical novels should be a broad and organic portrait of the past,
and that its characters should represent social trends in order to provide readers with a true
historical experience (LUKÁCS, 1983, p. 72, 74-78).
However, unlike the historical novels analyzed and defended by Lukács, in the
context of post-modernism the representation of the past does not attempt to portray the
historical, social and political movement through literary form so that readers have the feeling
4

that we they are experiencing the past as a pre-condition of the present, according to what
Hutcheon calls historiographic metafiction. Or, if that happens, it is because it is part of a
double process whose first part is the insertion and the second part, which is characteristic and
necessary, shall be undermining and subversion. The representation of history in
historiographic metafiction is always problematized from the point of view of narrative. Its
provisional character suggests the general mistrust in any kind of absolute truth in relation to
the past and the possibility of its communication through narrative. It aims to challenge some
of the assumptions underlying historical statements, such as objectivity, neutrality,
impersonality and transparency of representation, thus calling our attention to the textual and
intertextual nature of novels (HUTCHEON, 1991, p. 125).
The characterization of Holmes and the representation of the past in O Xangô can be
associated with what Hutcheon called postmodernism‘s ―double process of installing and
ironizing,‖ as self-reflexivity and parody problematize official history and detective genre
conventions (HUTCHEON, 1989, p. 93). On the one hand, Brazilian political leaders such as
D. Pedro spring from history textbooks and become their own caricature, weaving a
characterization that is at the same time comic and critical of its intertexts. On the other hand,
the images of Sherlock Holmes deliberately destabilize our assumptions about the detective
persona and his role in society. The dividing line between real and reel life is blurred so as to
problematize notions of a transparent, true access to the past, and to raise the point that the
past can only accessed through texts, representations.
Although some of Lukács‘ theory of the novel may be outdated for analyzing
contemporary literature, the application of both Hutcheon‘s and Lukács‘ sometimes
conflicting views and definitions to a close analysis of a Brazilian novel can be insightful to
put this contemporary novel‘s critical power in perspective, and to evaluate some strengths
and weaknesses of its representations of national identity and history.
Jô Soares‘s first novel, O Xangô de Baker Street (1995) sold about 500,000 copies
just in the first two years after its publication and became a best seller in Brazil. The success
and popularity of the novel is at least partly attributed to Jô Soares‘s persona as a talk-show
host and comedian, as well as to the support that the publication received from Brazilian mass
media (Veja magazine, Isto É magazine, and main newspapers) ( FERRAZ, 1999, p. 18).
The novel is a mix of an historical account of the life of intellectuals, writers, and
aristocracy in 1886 Rio de Janeiro, and an enthralling detective story about a double-crime of
a stolen violin and the mysterious murder of women. According to Salma Ferraz, Jô Soares‘s
novel portrays perfectly the late 19th century Brazil and carnivalizes detective stories
5

following Bakhtin‘s propositions (FERRAZ, 1998, p. 15). Ferraz traces how fictional
characters are mixed with historical ones, and points out that in O Xangô the implicit author
criticizes Brazilian‘s desire to imitate the French (FERRAZ, 1998, p. 23-29). As Ferraz points
out, through humor the novel criticizes the Europeanizing of Brazilians of late 19th century
and contemporary Americanizing trends. Next I will revisit some points raised by Ferraz, and
analyze other aspects regarding the representation of history and national identity in Jô
Soares‘s novel. I will argue that the novel evinces a kind of mistrust regarding politics and
official history, as well as a challenge to the portrayal of a single notion of Brazilian identity.
As a highly self-reflexive narrative, O Xangô draws on many intertexts, which are
often shown explicitly. In case readers wonder how Jô Soares retrieved all the information
about places and personalities, there is a five-page bibliography at the end of the book that
covers a wide range of topics, from the history of Rio de Janeiro to biographies of D. Pedro II
and Sarah Bernhardt, from cuisine to snakes! Besides this piece of extra material, readers also
find excerpts from Brazilian and English newspapers, written to suit the novel. Thus, besides
blurring the boundary between historical novel and detective novella, O Xangô also blends
fiction with elements more commonly found in textbooks and scholarly works (maps,
newspapers, works cited list).
In O Xangô, history is often represented as the history of places rather than the
history of people. As a result, the portrayal of the past is far from what Lukács termed the
―prehistory of the present‖ (LUKÁCS, 1983, p. 61). The book is filled with references to
historic places and old streets, many of which readers can find on a map of Rio de Janeiro
provided on the first pages. Historical details abound along the narrative, concerning the life
of those who attended the court, cafés, and theaters at the time, including famous writers and
artists known to the Brazilian public, such as poet Olavo Bilac and musician Chiquinha
Gonzaga. Together with these, Alberto Fazelli, Salomão Calif, Júlio Augusto Pereira (the
Marquis), and Paula Nei formed a group of bohemians who called themselves the Malta.
Most of the action takes place including one or more representatives of the Malta, as in the
welcome dinner to the French actress Sarah Bernhardt and later in their acquaintance with
Sherlock Holmes. Besides drinking beer and gossiping, the Malta made fun of politicians and
tried to help Holmes to solve the mystery.
While Sarah Bernhardt‘s arrival and stay in Brazil provides the subject matter for the
first half of the narrative, Sherlock Holmes and doctor Watson‘s arrival and investigation, as
well as Holmes‘ romance with Ana Candelária, dominate the rest of the story. However, an
aspect that is constant along the novel is an attempt to provide accurate information about the
6

history of the places where the action is set. In the first chapter, for instance, a description of
the dirty streets around prostitution houses precedes the account of the first murder
(SOARES, 1995, p. 11). In another instance, before commenting on Sarah Bernhardt‘s
opening performance in Brazil, Jô provides us with information on how and by whom the
Imperial Teatro de São Pedro de Alcântara had been remodeled just before the actress arrived
(SOARES, 1995, p. 13). That action often gives place to description in O Xangô is not
surprising. This is relevant not so much because it is a key point in the composition of the
novel, but because it reveals the place that the novel reserves for history.
Despite some distant references to slave rebels and strikes, the plot of the novel does
not articulate the question of what problems affected the people of Rio de Janeiro in 1886,
two years before the abolition of slavery and three years before the proclamation of the
Brazilian Republic. Nevertheless, the downfall of the Brazilian empire is shown as a
necessary step due to the aristocracy‘s tendency to futility and D. Pedro‘s inability to connect
with the social problems of the age. The problem with the representation of history as history
of places in O Xangô is that it seeks to provide Rio de Janeiro with a traceable origin, but it
excludes the people from this historical process. More often than not, people form a kind of
homogeneous audience for the aristocratic and bohemian milieu. This can be evidenced, for
example, when Sarah Bernhardt performs Frou-Frou and ―Brazilians of all classes‖ gathered
to see the French actress (SOARES, 1995, p. 47), or when Sarah goes to the police station
(SOARES, 1995, p. 71-2). In these cases, people from lower classes either praise, ―boo‖ or
make inappropriate comments – like an audience –, but do not participate actively in the story.
In addition to the representation of history as the history of places, the past is also
treated as a set of oddities, as a source of humor in O Xangô. In the second chapter, during
Sarah‘s welcome dinner, for instance, a French chef, Roland Blachard, is introduced to
readers. It was Mr. Blachard‘s task to teach the court good, civilized manners, i.e. manners
that imitated the French. He explained, for instance, that if a person had an incontrollable urge
to spit, he or she should do it on the floor, not on the plate (SOARES, 1995, p. 24). Another
example of the representation of history as a set of oddities can be found in the eighteenth
chapter, when D. Pedro, Holmes and some of the Malta go to the Jockey Club. At this point
Jô Soares quotes some warnings that supposedly would be found at the entrance: ―Pessoas
descalças são proibidas de entrar no prado;‖ ―Matar-se-á qualquer cachorro que ali aparecer;‖
―As corridas só terminam às seis, com as Ave-Marias‖ (SOARES, 1995, p. 269). While the
representation of history as the history of places aims at emphasizing an origin, its ironic
treatment as a set of oddities stresses how strange history is for us, contemporary readers. And
7

to the extent that the history of places excludes the role of people from the historical process,
both ways of representing history can be said to estrange the past from the present.
If, on the one hand, Jô Soares fails to portray the historical crisis of the age through
the complex interplay between the ―above‖ and the ―below‖ of society, according to what
Lukács defended as the ultimate aspiration of the historical novel (LUKÁCS, 1983, p. 49), on
the other, the plot of O Xangô can be associated with its historical moment of production in
the early 1990‘s. Jô Soares articulates in O Xangô a parodic portrayal that evinces the
Brazilian people‘s suspicion and mistrust regarding the authority and seriousness associated
with historical personalities and politicians, a panorama that intensified in the early 1990‘s
after the political scandal that led to the impeachment of Fernando Collor de Mello, the first
civil president elected through direct vote since 1964. In the novel, D. Pedro is depicted as
more interested in love affairs than in political ones, as private interest overcomes collective
projects. In chapter twelve, for example, there is a funny account of how viscount of Ibituaçu
secured this title. During a public opening ceremony of a railroad, emperor D. Pedro would
have accidentally farted, and the prospect viscount, Rodrigo Modesto Tavares, who was
present among the authorities, took advantage of the opportunity, apologizing as if he was the
one who had farted, thus gaining the emperor‘s confidence (SOARES, 1995, p. 165-6). In this
sense the novel raises the point that many great men were in fact great opportunists, and not
necessarily great personalities.

1.2 The parodic characterization of Sherlock Homes with a Brazilian twist


As a Brazilian trans-creation of Conan Doyle‘s Sherlock Holmes stories, O Xangô
enacts the subversion of the detective formula and a parody of the prototype detective. In
Brazil, Holmes faces the crime that he cannot solve and learns a lesson of humility. It is D.
Pedro who explains that to the English detective:

— Em Roma, senhor Holmes, quando César voltava vencedor das batalhas e a


multidão o aclamava, entusiasmada, durante os desfiles do Triunfo, fazendo-lhe
honras de uma divindade, ele costumava ter ao seu lado um escravo sussurrando-lhe
ao ouvido: ―És calvo, velho e barrigudo...‖. Queria, com isso, lembrar-se de que era
apenas humano. A humildade é a mãe de todas as virtudes. Guarde O Canto do
Cisne como o troféu do escabroso caso que não conseguiu resolver. (SOARES,
1995, p. 328)

Drawing on Flavio Rene Kothe‘s A Narrativa Trivial, Ferraz argued that Jô Soares‘ novel
breaks the basic rules of the detective novella in many ways. First, Holmes falls in love with
8

Ana Candelária, and the focus of the narration becomes the romance between the two lovers
(FERRAZ, 1998, p. 33). In compositional terms, rather than an accidental slip into romance,
the detective plot consciously gives place to the romantic one, as Sherlock Holmes‘s shift of
investigative interest demonstrates:

– Delegado, mais do que tudo, uma coisa continua a me intrigar profundamente.


– O que é, senhor Holmes?
– Onde será que eu vou poder encontrar de novo aquela mulata? — respondeu
Sherlock, com o olhar entristecido dos apaixonados. (SOARES, 1995, p. 153)

Ferraz also points out that the novel is too long in relation to the usual detective novellas,
which should preferably be read at once to increase tension. What is more, the detective
counts on supernatural forces to get information about the mystery, which is inadmissible in
detective stories, during the candomblé ritual, when Watson speaks in tongues as a Pomba-
gira, a female deity in the camdomblé religion. A final touch in the subversion of detective
novellas is the end of the narrative, when neither is the killer caught nor the mystery resolved
by the detective (FERRAZ, 1998, p. 100).
Furthermore, O Xangô also parodies Jonathan Demme‘s 1991 film The Silence of the
Lambs, which can be associated with a contemporary development of Sherlock Holmes
detective stories. In Demme‘s film, FBI agent Clarice Starling visits Hannibal Lecter, a
psychiatrist and cannibal, in a mental institution in order to try to understand why and how the
criminal she is chasing behaves. In O Xangô, Sheriff Pimenta and Holmes visit a mental
institution, for the same reason as that of Clarice, to see a cannibal (a psychiatrist like
Hannibal) called Aderbal Câmara. However, contrary to the atmosphere of suspense of The
Silence of the Lambs, in which a tense relationship is established between Hannibal and
Clarice, Holmes‘s visit to Aderbal Câmara results in several jokes (SOARES, 1995, p. 239-
249).
In Brazil, Sherlock Holmes is treated as an English ambassador, and through his
encounter with Brazilian culture issues of national/cultural identity are foregrounded. Ferraz
points out that the English detective goes through a whole process of abrasileiramento (going
Brazilian). Holmes speaks Portuguese, which he learned in Macau, China, with the
Portuguese scientist Nicolau Travessa. He begins drinking coconut water and loves a
Brazilian lunch. Holmes‘ new habits imply that for every prop that was traditionally
associated with his character there is a parodic new one: instead of tea, coconut-water; instead
of cocaine, cannabis; instead of the dark and heavy garment, white and light suit and cape. In
Brazil, Holmes is more relaxed, and even allows himself to be late for appointments. Holmes‘
9

process of abrasileiramento is complete when he goes to a candomblé ritual, where king Obá
Shité III baptizes Holmes as son of Xangô, thus justifying the name of the novel (FERRAZ,
1998, p. 37).
The parody of Sherlock Holmes and his abrasileiramento are contrasted with the
incontrollable desire in the Brazilian characters to imitate European habits and behaviors: ―No
hotel, tudo era importado, da roupa de cama aos palitos‖ (SOARES, 1995, p. 109). Humor
and irony mix in the absurd picture of an Englishman trying to be Brazilian while Brazilians
want to be French. According to Ferraz, the critique implicit in this contrast, regarding
Brazilian identity, is that ―o brasileiro quer ser outro, nunca ele próprio‖ (1998, p. 39).
Holmes‘s search, contact and adoption of Brazilian culture is an expression of the nationalism
that is symmetrically missing in most of the Brazilian characters. For Ferraz, in this
contrastive process whereby Holmes goes Brazilian while Brazilians want to be French
evinces an implicit critique to contemporary Brazilian culture‘s open tendency to anglophilia
and American culture (FERRAZ, 1998, p. 38).
Where I part from Ferraz‘s reading of O Xangô is at her conclusion, that in this novel
Jô Soares manages to ―resurrect the national spirit and the local color‖ of Brazil (FERRAZ,
1998, p. 102). She argues that the process of abrasileiramento that Holmes goes through,
emphasized in contrast with Brazilians‘ desire to be European, foregrounds some essential
characteristics of Brazilian identity (FERRAZ, 1998, p. 102). According to Ferraz, whereas in
Watson‘s interaction with Brazilian culture there is evidence of a break of stereotypes – he
expected to find indigenous people in the streets, and he did not expect to find women with
blue eyes, for instance –, in Sherlock Holmes there is a celebration of nationalism (FERRAZ,
1998, p. 37-38).
However, it seems to me that, in the context of parody, Holmes‘ going Brazilian is
also an ironic feature. For Brazilian readers, the fact that Holmes drinks caipirinha, smokes
marijuana and dresses in white does not allow him to embody any essential spirit of
Brazilianess. For, is there such a thing as an essential, timeless Brazilianess, something that
can be incorporated through a set of props? Moreover, while Holmes‘ initiation in the religion
of candomblé and his knowledge of the Orubá language can be convincing aspects of a
Brazilianess for him, this is nevertheless read ironically, constituting an exaggeration and a
joke. An example of this ironic exaggeration in O Xangô is that even before Holmes sets foot
on Brazilian lands, he already feels like a native:
10

– Meu caro Watson, vejo que você ainda não se acostumou aos trópicos. Em vez de
chá, é melhor experimentar essa água de coco que os marinheiros acabam de trazer a
bordo. Dizem que é refrescante e deliciosa.
– Fico com o chá. Basta a diarréia que tive em Calcutá quando experimentei suco de
manga com leite.
– Watson, às vezes me espanta a sua falta de capacidade de se adaptar às
circunstâncias. Por mim, já me sinto um nativo. (SOARES, 1995, p. 60; my italics)

At the end of the novel, when the detective takes off his Brazilian costume and puts
on his English garment again, the narrative itself is pointing out that Brazilian identity is
plural, that it is irreducible to a set of props or attitudes. If Jô Soares‘ Holmes were to be
associated with any stereotyped character in Brazilian recent history, he would look more like
one of the thousands of tourists who fall in love with Brazil and the Brazilian culture – samba,
carnival, the mulatas, the relaxed way of life – every year.
Although Brazilian identity is shown as nowhere to be found in O Xangô, a character
that embodies some sense of Brazilianess – even though in a perverse way – is the serial
killer, Miguel. Contrasted to the parodic portrayal of a society whose representatives of the
people are absent-minded or opportunists, Jô Soares invests in Miguel the responsibility to
teach Holmes a lesson of humility. It is Miguel who questions the Brazilian‘s francophilia: ―O
francês é uma língua curiosa: ‗profondément, profond dément‘. Prefere o português:
profundamente, profunda mente, mente profunda‖ (SOARES, 1995, p. 37; my italics). He
also criticizes D. Pedro‘s lust and irresponsibility as a governor as this serves as a motive for
his killing of the baroness:

Ele [Miguel] é a mortalha da Grande Prostituta. A Grande Prostituta veio para


contaminar os reis da terra e, assim, perverteu o néscio imperador dos trópicos. (...)
É chegada a hora de abater a Grande Prostituta. A mulher que despertou nele a besta
da luxúria. (SOARES, 1995, p. 321)

The association of Miguel and a perverse reawakening of Brazilian nationalism – here


meaning the desire to defend one‘s motherland – is of course a very fragile one, since Miguel
is mentally ill. What is more, whereas he criticizes Brazilians‘ francophilia, he wants to live in
England (even though there he is not an exemplary citizen, becoming Jack the Ripper). In
addition, whereas he rightly criticizes the emperor‘s political irresponsibility, as a sociopath
Miguel‘s true reason to kill women is that he cannot establish a healthy relationship with
them.
Soares‘s novel O Xangô de Baker Street problematizes notions of history and
responds to Brazilians‘ mistrust in political leaders, especially through the caricature of D.
Pedro II. The Brazilian emperor is represented as completely alienated from the social and
political problems that affected the Brazilian people at the end of the 19th century. D. Pedro‘s
11

only concern in O Xangô is the containment of a scandal that surrounds an expensive gift that
he had given to a girlfriend of his, the baroness of Avaré.
Even though the authority of official history is questioned in O Xangô, especially
through the blurring between fact and fiction and in the caricature of D. Pedro, the portrayal
of the past does not achieve the status of the prehistory of the present. The historical crisis is
abstractly conceived in the plot, as it does not affect the lives of neither the historical
characters nor fictional ones. As discussed previously, the representation of the past severs the
people from the historical process and is reduced to an account of the history of places and to
an account of oddities in O Xangô. Nevertheless, even though the history of places and
history as a set of oddities prevent the past from being represented as the prehistory of the
present, there is in Soares‘ novel a critique manifested through the portrayal of the Brazilians‘
desire to imitate European culture, which can be associated with contemporary Brazilians‘
desire to imitate American culture. To the extent that Holmes is carnivalized in O Xangô, his
characterization functions as the foreign/other capable of giving voice to Brazilian‘s lack of
national pride.
However, Soares‘ novel plays with Holmes‘ exaggerated desire to find the true spirit
of Brazilian culture, as in his clothing, religiousness, and everyday habits. Contrasted with
those Brazilian characters who desire to be civilized like Europeans, Holmes‘ parodic
portrayal is a mix of homage to Brazilian culture and a critique of any definite notion of
Brazilian identity. Moreover, the parody of Doyle‘s Sherlock Holmes and subversion of
detective fiction evince a critique of the detective formula whereby crime is always contained
and guilt always assigned to those who deserve it.

2 REFERENCES

ALBUQUERQUE, Paulo Medeiros e. O mundo emocionante do romance policial. Rio de


Janeiro, 1979.

DOYLE, Sir Arthur Conan. A Study in Scarlet. Free Domain Books from the Classic
Literature Library. Available at: < http://sherlock-holmes.classic-literature.co.uk/a-study-in-
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FERRAZ, Salma. O Jeitinho Brasileiro de Sherlock Holmes: O Xangô de Baker Street.


Blumenau: Universidade Regional de Blumenau, 1998.

______. Na Terceira Margem da História: Noturno, 1894 – Raimundo Caruso. Blumenau:


FURB, 1999.
12

GÓES, Denise. Romance Policial. Entre Livros. Ano I, nº 6 Ed. Oscar Pilagallo. São Paulo:
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HUTCHEON, Linda. The Politics of Postmodernism. London: Routledge, 1989.

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SCHATZ, Thomas. The Hardboiled-detective Film. In: _____. Hollywood Genres:


Formulas, Filmmaking, and the Studio System. McGraw-Hill inc., The University of Texas at
Austin, 1981. 111-49.

SOARES, Jô. O Xangô de Baker Street. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Inglês Aba de anexos para salvar artigo

CHICO MENDES HERÓI:


ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO DA REVISTA VEJA

Martha Júlia Martins de Souza1 (PPGI/UFSC)

RESUMO

O presente estudo investiga o caso Chico Mendes com base na notícia publicado em 2004
pela Revista Veja na internet. A notícia artigo narra a inclusão de Chico Mendes no livro de
heróis da pátria, através da lei sancionada pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva. Chico
Mendes era um seringueiro e ambientalista brasileiro que lutou para preservar Amazônia con-
tra o desmatamento causado pelos fazendeiros que desmatavam com o intuito de manter a
pecuária extensiva na região. Chico Mendes sofreu inúmeras ameaças de morte devido a sua
tentativa de salvar a floresta tropical. Entretanto depois de sua morte, ele continuou a ser lem-
brado por grupo de ativistas políticos, ambientalistas e principalmente pela imprensa interna-
cional que deu ampla atenção ao seu caso. Tendo em mente a relevância política do caso, este
trabalho analisa a notícia baseado na importância da luta de Chico Mendes na luta a favor da
preservação dos recursos naturais. Esse trabalho objetiva analisar os mecanismos linguísticos
e ideológicos presentes no discurso da mídia fomentado pelos preceitos da Análise Crítica do
Discurso (Fairclough, 1995, 2003, 2006) e Linguística Sistêmico-Funcional (Halliday, 2004).

Palavras-chave:
Chico Mendes. Revista Veja. Análise Crítica do Discurso.

ABSTRACT

The present study investigates Chico Mendes’ case based on the news report published in the
internet in 2004 by the Brazilian Veja Magazine. The news report focuses on the inclusion of
Chico Mendes’s name on the book of Brazilian heroes approved by the President Luís Inácio
Lula da Silva. Chico was a Brazilian rubber tapper and environmentalist who fought to pre-
serve the Amazon and protested against the deforestation caused by landowners who cut the
trees down in order to practice the livestock farming, very common in the Amazon region.
Chico Mendes suffered from numerous death threats because of his attempt to save the forest.
After his death, he continued to be remembered by groups of political activists, environmen-
talists, and mainly by the international press that gave broad attention his case. Bearing in
mind the political relevance of the case, this work analyzes the news report considering the
importance of Chico Mendes in preserving the forest. This work aims at analyzing the ideo-
logical and linguistic mechanisms embedded in the media discourse fostered by the theoreti-
cal and methodological precepts of the Critical Analysis of Discourse (Fairclough, 1995,
2003, 2006) and Systemic Functional Linguistics (Halliday, 2004).

Palavras-chave:
Chico Mendes. Veja Magazine. Critical Discourse Analysis.

1
Mestranda da Pós Graduação em Inglês na linha de pesquisa de Análise Crítica do Discurso (UFSC); e-mail:
marthajumartins@hotmail.com.
2

1 INTRODUÇÃO
O discurso da mídia vem atraindo a atenção de vários pesquisadores do Brasil e exte-
rior interessados em investigar a imprensa como grande propagadora de discursos hegemôni-
cos imbricados de crenças e valores socialmente construídos através das relações de poder que
acontecem nas sociedades e refletem suas ideologias no texto midiático (Van Dijk, 1988; Fa-
irclough, 1995; Caldas-Coulthard, 1997; Piasecka-Till, 2002, Rodrigues, 2002). Tendo em
vista o avanço da internet e seu uso como canal propagador de notícias do mundo inteiro, esse
estudo tem como objetivo oferecer uma breve discussão com ênfase no aporte teórico-
metodológico da Análise Crítica do Discurso (Fairclough, 2003; 2006) e da Linguística Sis-
têmico-Funcional (Halliday, 2004) sobre o caso Chico Mendes a partir de em pequeno artigo
vinculado pela Revista Veja e publicado no sítio da revista http://veja.abril.com.br/. O artigo
intitulado Chico Mendes herói datado de Setembro de 2004 noticia a inclusão do seringueiro
Chico Mendes no livro dos heróis oficiais da Pátria através da lei sancionada pelo então Pre-
sidente da República, Luís Inácio Lula da Silva. Em virtude da relevância do caso Chico
Mendes para a sociedade brasileira servindo de mola propulsora para a criação da Lei de Re-
servas Extrativistas e conscientização da necessidade de (re) pensar o meio ambiente e seus
recursos como fonte findável, onde a participação dos governos e da sociedade como um todo
na tomada de decisões acerca da preservação do meio ambiente faz-se necessária para que
seja possível resguardar as gerações futuras do usufruto do bem comum que é a natureza.
Dessa forma, esse trabalho versa sobre os aspectos da metafunção ideacional e dos preceitos
interdisciplinares concedidos pela ACD para focalizar na notícia vinculada pela Revista Veja
sobre Chico Mendes.

2 O CASO CHICO MENDES


Chico Mendes foi assassinado em Dezembro de 1988 em sua casa na cidade de Xa-
puri, no estado do Acre na região Norte do país. Filho e neto de seringueiros, ele manteve a
tradição da família em trabalhar na floresta com a extração do látex, matéria prima da borra-
cha, objetivando uma prática alternativa à mantida pelos donos das terras que destruíam a
mata virgem para dar espaço a cultura da pecuária e agricultura (ALLEGRETTI, 2002).O
crescimento principalmente da atividade pecuarista na região incentivada pelo Governo Fede-
ral deu margem ao aumento de conflitos entre os trabalhadores locais e pecuaristas ávidos por
explorar a região considerada propícia para a prática. Os seringueiros começaram a ser expul-
sos das terras e ameaçados de morte pelos fazendeiros que necessitavam de espaço para dar
vazão à prática da pecuária extensiva nas áreas de floresta. À medida que foram expulsos das
3

terras, os seringueiros prejudicados por não poderem mais trabalhar nos seringais, organiza-
ram-se para protestar sob a liderança de Chico Mendes por melhores condições estruturais no
Estado reivindicando por escolas, hospitais e principalmente terras onde pudessem trabalhar
na extração do látex (ALLEGRETTI, 2002). A técnica conhecida por empate foi a forma en-
contrada pelos trabalhadores locais para reivindicar pela regularização das terras e da ativida-
de seringueira, bem como lutar contra a destruição da floresta. Essa técnica consistia sim-
plesmente em permanecer de pé em frente às árvores para evitar que fossem cortadas por pe-
cuaristas e fazendeiros. Empatar, na linguagem da região amazônica significa impedir, o que
na opinião de Allegretti (2002, p. 235) desencadeou a “organização do primeiro Sindicato do
Acre e da consciência que adquiriram em relação aos direitos de posse” Com isso, os serin-
gueiros da região, entre eles Chico Mendes começaram a ser vistos como entraves ao progres-
so e ao desenvolvimento da região e consequentemente tiveram suas vidas ameaçadas em
decorrência dos inúmeros protestos que impediam os fazendeiros de desenvolverem seus pro-
jetos de base predominantemente econômica na região. É Mary Allegretti, antropóloga que
trabalha com políticas públicas e movimentos sociais na Amazônia desde 1978, que nos traz
em linhas gerais um depoimento de um seringueiro sobre a devastação da mata virgem:

O que se está fazendo com a castanheira e a seringueira é um verdadeiro crime. É


um crime derrubar uma árvore como esta. A seringueira e a castanheira são como se
fossem nossas mães. Quando nossos pais vieram do Nordeste pra cá, tiraram delas o
sustento. Foi com leite de castanha que nos criaram. Foi com leite de seringa que nos
vestiram. (ALLEGRETTI, 2002, p. 276).

Chico Mendes desempenhou papel importante na luta contra o desmatamento da flo-


resta e expulsão dos seringueiros de suas terras, que além de tudo era considerada como fonte
de renda para muitas famílias que estavam estabelecidas na região por várias décadas. Foi
principalmente devido a sua militância, que Chico Mendes deu suporte a causa dos trabalha-
dores locais, através da tentativa de conscientização de fazendeiros, da realização dos empa-
tes, mas principalmente através da curta, porém imponente trajetória como político local, que
viabilizou o diálogo entre as reivindicações dos seringueiros e as autoridades governamentais,
como relembra Allegretti sobre a participação de Chico Mendes na política (2002, p. 251)
“em 1977 foi eleito vereador, exerceu o mandato até 1982 e utilizou o espaço político para,
durante este período, denunciar os conflitos, responsabilizar os governos estadual e federal
pelos problemas de terra, e apoiar o Sindicato na defesa dos seringueiros frente aos fazendei-
ros”.
4

Após sua morte, Chico Mendes ganhou enorme destaque na imprensa internacional,
o que no Brasil serviu para despertar o interesse da imprensa nacional. O caso Chico Mendes,
como ficou conhecido, ecoou nos quatro cantos do mundo, levando a mensagem de respeito e
preservação para com região amazônica tão negligenciada por tantos anos. Nas palavras do
jornalista Zuenir Ventura, autor da série “O Acre de Chico Mendes”, com o qual ganhou os
prêmios Esso de Jornalismo e Vladimir Herzog de Reportagem, a repercussão do caso foi tão
grande na época que até “os fazendeiros lastimam que com sua morte tenha-se criado um már-
tir; os seringueiros choram a perda do mártir” (VENTURA, 2003, p.226); e ele ainda comple-
ta que só posteriormente compreendeu que:

A morte anunciada, o choque provocado no mundo, o sentimento de culpa do pró-


prio país, em especial do governo por não ter feito nada para impedir o crime, a to-
mada de consciência da sociedade para com a questão ambiental, tudo isso acabou
apressando conquistas, obrigando a se fazer depois de sua morte o que Chico não
conseguiu que fosse feito enquanto vivia. (VENTURA, 2003, p. 226).

Em decorrência da morte de Chico Mendes, a especial atenção dada pela imprensa à


causa dos seringueiros acabou por fortalecê-los, de modo que inúmeras são as conquistas que
advêm dessa luta como a criação do Comitê Chico Mendes, onde diversos sindicalistas, ambi-
entalistas, entidades políticas e religiosas puderam reivindicar um julgamento para os assassi-
nos do seringueiro. Dentre outras conquistas alcançadas, a grande vitória decorrente da morte
do seringueiro foi a criação das Reservas Extrativistas, que propicia a regularização fundiária
e o uso dos recursos naturais de forma a respeitar o meio ambiente (ALLEGRETTI, 2002). As
reservas se espalharam pelo país, onde segundo Ventura (2003, p.236) a reserva “Chico Men-
des, a maior delas, passa por cinco municípios (incluindo Rio Branco, Xapuri e Brasiléia)
garantindo a sustentação de 1838 famílias”.
Em dezembro de 1990, os assassinos de Chico Mendes foram condenados a 19 anos
de prisão em um julgamento histórico para o Acre e para o Brasil.
Na seção subsequente serão abordados os pressupostos teóricos que embasam esse
estudo.

3 INTERFACE ENTRE A ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO E O DISCURSO DA


MÍDIA
A Análise Crítica do Discurso (ACD) é uma ferramenta teórico-metodológica que
possibilita uma análise interdisciplinar dos diversos fenômenos discursivos que influenciam
os mais variados textos da sociedade refletindo assim questões relacionadas ao poder, ideolo-
5

gia e dominação presentes na linguagem, ou seja, age como um recurso apto para pesquisas
sociais e que pode ter sua perspectiva ampliada quando associada a outros recursos analíticos
das ciências sociais, o que segundo Fairclough (2003, p.210) “é um método que pode apropri-
ar-se de outros métodos”. O autor entende que a ACD “é a análise das relações dialéticas en-
tre o discurso (incluindo linguagem e outras formas de semioses) e outros elementos das prá-
ticas sociais” (Fairclough, 2003, p. 205), por isso, sua maior preocupação são as diversas mu-
danças e transformações pelas quais as sociedades vêm passando atualmente e dessa forma
investiga como o discurso se insere nas práticas sociais, transformando-se e servindo como
elemento propagador de crenças e valores. Fairclough ainda sugere que os textos como ele-
mentos de eventos sociais “contribuem com as mudanças na educação ou nas relações indus-
triais e assim por diante” (FAIRCLOUGH, 2003, p. 8). Sendo assim, como consequência das
mudanças ocorridas na sociedade, os efeitos ideológicos advindos e inseridos nos textos na
concepção de Fairclough (2003, p.9) “contribui para estabelecer, manter e modificar as rela-
ções sociais de poder, dominação e exploração”.
Uma vez que as diversas práticas sociais pelas quais os indivíduos estão inseridos
podem ser associadas a diversas áreas da vida social, é relevante compreender que tais práti-
cas definem a forma de agir do indivíduo. É ainda através do discurso que se manifesta a re-
presentação da vida social, ou seja, a forma como os atores sociais se posicionam e são repre-
sentados por diversos meios, seja através dos governos, das leis ou da mídia em geral. Dessa
forma, (FAIRCLOUGH, 2003) observa que os três principais aspectos do significado relacio-
nados dialeticamente entre si são a Ação, Representação e Identificação que correspondem
respectivamente às categorias de Gêneros (Genre), Discurso e Estilos, ou ainda (i) ao modo de
agir, (ii) modo de representar, (iii) modo de ser. Entretanto, para o escopo desse trabalho a
análise e descrição dos dados giram em torno do modo de representar, uma vez que o princi-
pal objetivo aqui é investigar a representação do seringueiro Chico Mendes pela Revista Veja,
tendo como base a metafunção ideacional tal como proposta por (Halliday, 2004).
O diálogo entre a ACD e a Linguística Sistêmico-Funcional (LSF) é necessário a fim
de que possam desvendar os mecanismos linguísticos que perpetuem as relações de poder
controle e dominação, tanto nas dimensões semióticas quanto linguísticas, uma vez que ambas
preocupam-se com a relação entre linguagem e diversos aspectos da vida social enquanto mé-
todo e teoria transdisciplinar, onde muitas categorias analíticas utilizadas pela ACD advêm da
LSF, que entende o texto como multifuncional, ou seja, concomitantemente expresso nas três
metafunções. Sendo assim, sob a ótica da LSF, entende-se que as representações, identidades
e relações estão sempre presentes no texto e que a linguagem que está em constante processo
6

de evolução, pode ser considerada um sistema que produz significados, onde é dado ao indi-
víduo a oportunidade de atingir seus objetivos de comunicação e interação com base na in-
fluência do contexto ao qual está inserido.
Segundo Halliday (1973, p.45 citado por Eggins, 2004, p. 352):

Quando interpretamos a linguagem nesses termos (semântico-funcionais), podemos


lançar algum destaque no desconcertante problema de como é que o uso mais co-
mum da língua, nas situações do dia a dia, transmitem tão efetivamente a estrutura
social, os valores, os sistemas de conhecimento, todos os mais profundos e penetran-
tes padrões de uma cultura. Com uma perspectiva funcional da linguagem, podemos
começar a apreciar o modo como isso é feito.

Com base na análise funcional da linguagem, a LSF oferece algo além das diversas
possibilidades de leituras e interpretações de um texto ou como sugere Eggins “os textos são
ricos em significados: eles produzem significados sobre o que está acontecendo e o porquê,
mas também trazem significados sobre as relações e atitudes, sobre distância e proximidade”
(Eggins, 2004, p. 352), tudo isso proporcionado pelos contextos reais da vida em sociedade.
Com relação ao discurso da mídia, Fairclough (2006, p. 97) nos adverte que “os pro-
cessos de mudança acontecem dentro da mídia em massa”, uma vez que a mídia é a grande
responsável não só pelas transformações atuais como também por encurtar distâncias, princi-
palmente em tempos de grandes avanços nas telecomunicações na sociedade contemporânea.
É partir daí que Fairclough (2006) sugere que o processo de mediação está relacionado ao
distanciamento do binômio espaço-tempo, uma vez que a distância física não mais indica im-
possibilidade de comunicação nos dias de hoje. Caldas-Coulthard (1997) entende que a mídia
desempenha papel de relevância em diversas esferas, seja social, política ou educacional e
ainda afirma que “ao serem expostas às notícias, as pessoas fazem conexões e tentam entender
e explicar como os eventos reportados na mídia relacionam-se à sociedade como um todo”
(CALDAS-COULTHARD, ibid, p.11). É através da linguagem que são repassados os discur-
sos discriminatórios, como o discurso racista, sexista, homofóbico, tão presentes em nossa
sociedade, onde uma análise mais acurada só é possível quando a interface entre a linguagem
e as relações de poder e controle são percebidas nesse discurso. O discurso, particularmente o
midiático é formulado a partir de uma forte corrente social e culturalmente construída através
da representatividade de diversas instituições ligadas ao poder, seja o governo, as leis advin-
das de uma determinada gestão, os sistemas de saúde e ensino ou ainda como é sugerido por
Halliday (1978, p.23 citado por Caldas-Coulthard, ibid, p.12):

Em uma teoria da sociedade, a linguagem desempenha um papel central – a lingua-


gem é controlada pela estrutura social e a estrutura social é mantida e transmitida
7

através da linguagem. A cultura molda nossos padrões de comportamento e uma


grande parte de nosso comportamento é mediada através da linguagem.

Fairclough (1995) salienta que tendo em mente que o discurso midiático exerce papel
de agente social uma vez que corrobora com os processos de mudanças sociais e culturais, ele
aponta como de extrema relevância o entendimento dessas mudanças na sociedade, a fim de
que qualquer pessoa seja capaz de analisar criticamente a linguagem da mídia, ou seja, todos
devam ser críticos e letrados no discurso midiático. Para isso, ele ressalta que estar atento ao
discurso da mídia significa entender além do que o discurso propõe, mas indica compreender
o processo de produção como um todo, pois como Caldas Coulthard (ibid) mesma sugere os
produtores da linguagem da mídia fazem parte também das estruturas sociais a qual estamos
todos imersos, ajudando a construir socialmente o significado da notícia, ou nas palavras de
Fairclough:

É importante estar atento ao que lemos em um jornal ou vemos na televisão que não
é uma simples e transparente representação do mundo, mas o resultado de práticas e
técnicas profissionais específicas, que poderiam e podem ser relativamente diferen-
tes com resultados relativamente diferentes. (FAIRCLOUGH, 1995, p.204)

É possível estabelecer um direcionamento da análise com o intuito de direcionar a


análise do texto midiático, sendo que nesse contexto se adequa perfeitamente na investigação
da figura de Chico Mendes tal qual foi retratado pela Revista Veja no ano de 2004. As per-
guntas abaixo são baseadas na proposta desenvolvida por Fairclough (1995, p. 202-203) para
o discurso da mídia de forma geral, artigo de jornal, programa de televisão ou rádio, etc.
a) Como o texto é elaborado, por que é elaborado dessa forma?
b) Que tipos de processos (grupos verbais) e participantes (grupos nominais e
pronominais) estão no texto? Como são categorizados e metaforizados?
c) Que presenças e ausências estão em primeiro e segundo plano na caracteri-
zação do texto?
Dessa forma, é possível estabelecer um arcabouço que viabilize desvendar o discurso
e o que está pressuposto nele, seja de forma implícita ou de forma explícita, uma vez que a
ACD como área interdisciplinar, conforme mencionado previamente, constitui ferramenta
imprescindível para a análise e discussão do discurso da mídia.

4 CHICO MENDES HERÓI: CORPUS DE ANÁLISE


Para Malinowski a compreensão do contexto é indispensável para o entendimento da
análise que está sendo conduzida de forma a garantir a inteligibilidade como um todo (Mali-
8

nowski, 1943 citado em Eggins, 2004). Dessa forma, Halliday afirma que tudo que acontece
no momento que a linguagem está sendo usada influencia no que será produzido com a lin-
guagem (Halliday, 1978; 1985 citados em Eggins, 2004). O contexto de situação se expressa
em três variáveis distintas: Campo (sobre o que é o texto), Relações (sobre o tipo de relações
entre os participantes) e o Modo (sobre como a linguagem contribui na organização do texto).
Assim, temos como corpus para esse artigo a publicação da Revista Veja em meios eletrôni-
cos, através da URL (http://veja.abril.com.br/noticia/arquivo/chico-mendes-heroi) datada do
dia 23 de Setembro de 2004, intitulada Chico Mendes herói que noticia a inclusão do nome de
Chico Mendes à lista do Livro dos Heróis da Pátria, onde dentre ele estão os nomes de outras
figuras ilustres conhecidas no Brasil, como Tiradentes, mártir da Conjuração Mineira e Zumbi
dos Palmares, líder resistente do Quilombo que leva seu nome em sua homenagem. Nesse
sentido, a proposta desse estudo é investigar a forma como o seringueiro e ativista político
Chico Mendes é retratado pela mídia brasileira, com ênfase no artigo da Revista Veja, 16 anos
após sua morte. O objetivo para esse estudo consiste em uma tentativa de compreender como
o caso Chico Mendes ainda repercute na mídia e como a figura de Chico Mendes está ainda
tão presente nos principais contextos que envolvem a temática meio ambiente, floresta ama-
zônica, bem como resistência e avanços dos seringueiros.

5 A REPRESENTAÇÃO DO ATOR SOCIAL ATRAVÉS DA ANÁLISE DA TRANSI-


TIVIDADE
A Linguística Sistêmico-Funcional (LSF) faz uma interface com a ACD contribuindo
na descrição e interpretação da linguagem observando a relação entre texto e contexto tal co-
mo proposta por Halliday & Matthiessen (2004). A LSF propõe um construto que denomina a
linguagem como funcional, uma vez que diz respeito às situações de uso da língua, em inúme-
ras atividades e práticas sociais que indicam o que realmente fazemos com a língua e é tam-
bém sistêmica porque diz respeito a diversas possibilidades de escolhas que se utiliza com o
intuito de gerar significado. Dessa forma, Eggins (2004, p.3) sumariza de forma encadeada
algumas características da teoria sistêmico-funcional utilizada por diversos analistas da lin-
guagem:
a) A linguagem é funcional
b) Sua função é produzir significados
c) Esses significados são influenciados pelos contextos social e cultural, onde
existe troca.
9

d) O processo de uso da linguagem é um processo semiótico, um processo de


produzir significado através das escolhas.
É com base nessas características que Eggins (2004, p.2) vê a LSF como “um mode-
lo útil de descrição e interpretação da linguagem como recurso estratégico de produção de
significado”. É importante compreender que quando produzidos, os textos são expressos si-
multaneamente nas três metafunções, conforme mencionado anteriormente. Para a análise e
compreensão da representação de Chico Mendes focaremos no tipo de significado ideacional
que é representado no nível da léxico-gramática através do sistema de transitividade, que diz
respeito à relação entre as ações e as relações entre participantes e circunstâncias. Nessa estru-
tura, os processos são representados por grupos verbais, enquanto que os participantes são
representados por um grupo nominal e as circunstâncias por um grupo adverbial (Halliday,
2004).
Uma vez que os tipos de processo da oração estão relacionados aos significados e as
funções que estes desempenham, a seguir enumeramos os seis tipos de processos com seus
respectivos participantes: material (Ator+ Meta), mental (Experienciador + Fenômeno), ver-
bal (Dizente + Verbiage) relacional (Portador + Atributo/Valor + Característica), existencial
(Existente) e comportamental (Componente + Fenômeno). Ou ainda na explicação de (Halli-
day, 1985, citado em Simpson, 1993, p.88):

O que significa dizer que uma oração representa um processo? Nossa mais poderosa
concepção de realidade consiste de acontecimentos de: fazer, acontecer, sentir, ser.
Estes acontecimentos estão classificados no sistema semântico da linguagem expres-
sos através da gramática oracional.

Com base nisso é que podemos trabalhar alguns exemplos do artigo da Revista Veja
que trata sobre Chico Mendes.
O participante em destaque na análise das orações é Chico Mendes estando sempre
relacionado ao processo que indica ação, ou seja, o processo material. O exemplo abaixo su-
gere um Chico Mendes agente e paciente.

Tabela 1 – Exemplo 12
O líder seringueiro Francisco assassinado em dezembro de 1988
Alves Mendes Filho, Chico
Mendes,

2
Todas as tabelas têm como fonte o Apêndice que se encontra ao final do artigo.
10

Ator Material Circunstância

Outra forma encontrada no jornal para retratar Chico Mendes é através da identifica-
ção com o grupo social a que pertence. Dessa forma observamos na oração abaixo Chico
Mendes sendo referido como um ambientalista, através da escolha lexical ecologista. A esse
respeito, (Van Leeuwen, 1996 citado em Fairclough, 2003, p.146) esclarece que “quando os
atores sociais são classificados, eles podem ser representados especificamente ou generica-
mente”. Os dados nos mostram que Chico Mendes fora figurado tanto de forma pessoal como
de forma geral conforme os exemplos que se seguem.

Tabela 2 – Exemplo 2

que inclui o ecologista na lista de heróis


oficiais do país.

Material Meta Circunstância

É possível destacar ainda a presença do pronome anafórico na construção do partici-


pante que fora previamente mencionado:

Tabela 3 – Exemplo 3
Ele foi assassinado em Xapuri, pequeno
município amazônico.

Ator Material Circunstância

Dentre as principais características relacionadas aos outros participantes encontrados


no artigo da Revista Veja podemos dizer que:
a) Os participantes que representavam as instituições governamentais (Lula, ONU),
ou seja, que de certa forma denotam poder aparecem como Circunstância, dando ao partici-
pante de maior destaque, Chico Mendes, a posição temática na oração. De acordo com Halli-
day (2004, p.64) “o tema é o elemento que serve de ponto de partida da mensagem; e é isso
que localiza e orienta a oração dentro do seu contexto”.
11

Tabela 4 – Exemplo 4

Chico Mendes, cuja importância na foi reconhecida até pela ONU,


luta pela preservação
da Amazônia

Ator Material Circunstância

b) Como bem nos alerta Fairclough (2003) as generalizações servem para ofuscar os
agentes, ou seja, transpor a responsabilidade de um ato de seu verdadeiro culpado para outro
participante; dessa forma, observamos no exemplo abaixo que os fazendeiros e madeireiros
estão valorados de modo negativo, sendo os únicos responsabilizados pela exploração da mai-
or floresta do mundo, sem a menção a outros agentes que poderiam também ser responsabili-
zados como o governo ou agências de fiscalização do meio ambiente.

Tabela 5 – Exemplo 5

à exploração promovida por fazendeiros e na maior floresta


descontrolada madeireiros tropical do mundo.

Os assassinos aparecem ainda na posição temática relacionados ao processo foram


condenados, sendo então mencionados pelos seus nomes.
c) Chico Mendes aparece ainda no artigo estando relacionado ao presidente
Lula, que em 2004 no auge de seu governo possuía índice de popularidade bastante elevado à
época, fato bastante comentado nos principais jornais do país.

Tabela 5 – Exemplo 5

Lula e Chico se conheceram em 1980, durante um en-


Mendes contro de líderes
sindicalistas.

Para que se possa compreender melhor o caso Chico Mendes através da notícia vin-
culada pela Revista Veja levantamos uma breve discussão acerca dos principais elementos
que se destacam na notícia e que serão abordados à luz da Análise Crítica do Discurso, ferra-
menta transdisciplinar de apoio para nossa análise, uma vez que julgamos necessário pontuar
algumas características marcantes inerentes ao contexto político e social do país.
12

O caso Chico Mendes repercutiu no mundo todo por se tratar de um crime contra um
defensor da floresta e da causa seringueira. A forma como Chico Mendes é retratado na notí-
cia da Revista Veja deixa bastante claro a importância do seringueiro para a luta a favor da
causa dos trabalhadores da floresta, bem como para a preservação da natureza, em que a ima-
gem de Chico Mendes e dos demais participantes envolvidos é construída paulatinamente
através das escolhas feitas no texto midiático. A representação do assassinato, julgamento dos
assassinos e a inclusão de Chico Mendes no livro de herói da pátria revelam o poder de alcan-
ce da notícia relacionada ao assassinato do líder seringueiro e sua luta impulsionada pelo pro-
cesso de mundialização dos fatos. De acordo com Fairclough (2006) os diversos discursos
contribuem para moldar a globalização, processo em si bastante complexo e multifacetado,
gerando mudanças aos discursos propagados pela imprensa. Na notícia da Revista Veja não só
Chico Mendes é descrito como herói da pátria, como também é inserido em um livro em que
outros heróis nacionais estão em destaque, como é o caso de Tiradentes e Zumbi dos Palma-
res, ambos reconhecidos na história do Brasil por defenderem os ideias que acreditavam em
contextos distintos. Chico Mendes como herói é sempre caracterizado como ator social em
ação, em conformidade com Fairclough (2006) que sugere que onde os atores sociais são
principalmente ativos, sua capacidade como sujeito agente, de fazer as coisas acontecerem e
controlar os outros é acentuada. Dessa forma observamos um Chico Mendes reverenciado
pela mídia e principalmente partícipe de novas significações no modo como a lei é conduzida
no país, mesmo que para isso o preço pago tenha sido sua própria vida. Um julgamento histó-
rico é conduzido no norte do país por ser a primeira vez no Brasil que um assassinato de se-
ringueiro é levado até a última instância no pequeno Fórum de Xapuri e que tamanha tendo
sido a repercussão do caso (ALLEGRETTI, 2002, VENTURA, 2003).
Ao passo que Chico Mendes é descrito de forma heroica, os outros participantes en-
volvidos na notícia são reportados em segundo plano, como é o caso das instituições gover-
namentais como a ONU e o Congresso que aparecem sob a forma de circunstâncias, como
simples informações complementares, tirando toda a carga semântica das instituições como a
ONU e o Congresso na tomada de decisões. Simpson (1993, p.90) assim define as circunstân-
cias como “meras informações adicionais que fornecem informações sobre como, quando,
onde e por que”, o que pode vir a refletir as motivações políticas em não enfatizar outras co-
partícipes pela morte de Chico Mendes. De acordo com Van Leeuwen (1996, citado em Fair-
clough, 2003), inúmeras são as motivações que levam a exclusão ou inclusão de atores sociais
em um texto, que decorrem tanto de causas politicamente relacionadas como simplesmente
advém da tentativa de se evitar a redundância ou irrelevância. Em contrapartida, os assassinos
13

de Chico Mendes aparecem classificados (na Circunstância por fazendeiros e madeireiros) e


nomeados (os assassinos, o fazendeiro Darci Alves da Silva e seu pai, Darli Alves) e foram
valorados de modo negativo na notícia, como mostram a Circunstância numa emboscada or-
ganizada por latifundiários e madeireiros e a Meta à exploração descontrolada.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O caso Chico Mendes continua ganhando bastante destaque na mídia, principalmente
na imprensa brasileira que despertou para a importância da luta dos seringueiros na atuação
contra a devastação da floresta, agindo de forma a garantir a preservação da mata nativa e
garantir a maior fiscalização das leis que regulam os trabalhadores que dependem dos recur-
sos da floresta para seu sustento. Chico Mendes, apesar de não ser um caso isolado de serin-
gueiro assassinado na região amazônica, teve uma grande receptividade com sua luta, princi-
palmente fora do país, onde fora premiado por sua atuação na defesa da natureza.
Acreditamos que muito pode ser analisado tanto sobre o caso Chico Mendes quanto
no nível da temática meio ambiente, movimentos sociais na floresta e desenvolvimento sus-
tentável; entretanto, para o escopo desse estudo, limitamo-nos a interpretar os dados relacio-
nados ao artigo publicado na Revista Veja retratando Chico Mendes como herói nacional,
uma vez que a partir da lei sancionada pelo presidente Lula, o seringueiro é oficialmente tido
como herói da pátria, dentre inúmeros outros que trabalharam em prol da defesa do território
nacional e da soberania brasileira. O caso Chico Mendes é infinito em suas possibilidades de
análise, todavia aqui adotamos a perspectiva sob a ótica da Análise Crítica do Discurso e da
Linguística Sistêmico-Funcional para enveredar em uma análise linguística através da trans-
disciplinaridade concedida por ambas as ferramentas.

7 REFERÊNCIAS

ALLEGRETTI, Mary. A construção social de Políticas Ambientais – Chico Mendes e o Mo-


vimento dos Seringueiros. Brasília: UNB, 2002.

EGGINS, Suzanne. An introduction to Systemic Functional Analysis. Londres: Continuum,


2004.

FAIRCLOUGH, Norman. Media Discourse. Londres: Arnold, 1995.

FAIRCLOUGH, Norman. Analysing discourse: Textual analysis for social research. EUA e
Canadá: Routledge, 2003.
14

FAIRCLOUGH, Norman. Language and Globalization. Londres e Nova Iorque: Routledge,


2006.

HALLIDAY, Michael. An introduction to functional grammar. Londres: Hodder Arnold,


2004.

SIMPSON, Paul. Language, Ideology and Point of view. Nova Iorque: Routledge, 1993.

PERRIN, Karen. Chico Mendes herói. Revista Veja, set. 2004. Disponível em:
<http://veja.abril.com.br/noticia/arquivo/chico-mendes-heroi>. Acesso em: set. 2011.

APÊNDICE

O líder seringueiro Francisco Al- assassinado em dezembro de 1988


ves Mendes Filho, Chico Mendes,
Ator Material Circunstância

foi inscri- oficialmente nesta quinta-feira no seleto Livro dos Heróis da Pá-
to tria do Brasil.
Material Circunstância

A inclusão foi determina- por decreto pelo presidente Luiz Inácio Lula da
da Silva, seu companheiro no Partido
dos Trabalhadores (PT).
Meta Material Circunstância Ator (agente passivo)

Em decreto publicado Lula sancionou uma lei aprovada pelo Congres-


no Diário Oficial, so,

Circunstância Ator Material Meta Circunstância

que inclui o ecologista na lista de heróis


oficiais do país.

Material Meta Circunstância

Entre nomes que estão: o imperador Dom Pedro I, os marechais Deo-


constam do livro doro da Fonseca e Duque de Caxias, Joaquim
José da Silva Xavier, o Tiradentes e Zumbi dos
Palmares,

Característica Relacional Portador


15

que liderou um quilombo em Alagoas no sécu-


lo XVII.

Material Meta Circunstância

Chico Mendes,cuja importância na luta pela preservação da Amazônia foi reconhecida


até pela ONU,
Ator

liderou um grupo de serin- que se opôs


gueiros

Material Meta/Ator Material

à exploração descon- promovida por fazendeiros e na maior floresta


trolada madeireiros tropical do
mundo.

Meta Material Circunstância Circunstância

Ele foi assassinado em Xapuri, pequeno municí- onde está enterra-


pio amazônico do,

Ator Material Circunstância

no dia 22 de dezembro de 1988, numa emboscada organizada por latifundiá-


rios e madeireiros.

Circunstância

Os assassinos, o fazendeiro Darci Alves da Silva e seu pai, Darli Al-


ves,

Ator

foram condenados a 19 anos de prisão num julgamento his- que atraiu a


em dezembro de tórico atenção do mun-
1990, do inteiro.

Material Meta Circunstância Circunstância


16

Lula e Chico Men- se conheceram em 1980, durante um en-


des contro de líderes
sindicalistas.

Ator Material Circunstância Circunstância

Juntos, participaram da fundação do Partido dos Trabalhadores.

Ator Material Meta


SUMÁRIO GERAL Sumário de Inglês Aba de anexos para salvar artigo

ENTRE-LUGAR DE CALIBAN EM X-MEN: INTERSECÇÃO ENTRE ESTUDOS


PÓS-COLONAIS E ESTUDOS SOBRE DEFICIÊNCIA

Gislaine Aparecida Bahls1 (PPGI/UFSC)

RESUMO

O objeto escolhido para este estudo consiste em Caliban, um personagem do universo dos X-
Men, das HQs da Marvel, no contexto teórico do “entre-lugar” (SANTIAGO, 1971). Propo-
nho contribuir para a pesquisa sobre o que Nirmala Erevelles caracterizou como um novo
campo de conhecimento: “apenas recentemente estudiosos em ambos os Estudos sobre Defi-
ciência e Estudos Pós-coloniais tem tentado explorar a intersecção entre essas duas áreas de
especialidade” (EREVELLES 2006, apud ALBRECHT, 2006, p. 103 tradução minha). Bus-
cando uma política de alianças, Erevelles ressalta que tal estudo necessita da elaboração de
pontes entre as duas áreas. Esta investigação se propõe a verificar se o mutante desfigurado
Caliban pode ser considerado um ponto de convergência entre essas duas áreas de conheci-
mento se baseando no fato de tanto o “deficiente” quanto o (pós-)colonizado serem constru-
ções dominantes do „Outro‟; ou seja, pretende-se verificar se Caliban pode ser interpretado
como representações de ambos o „Outro‟ Pós-Colonial e do „Outro‟ deficiente.

Palavras-chave:
Estudos Pós-Coloniais. Estudos sobre Deficiência. „Outro‟. Intersecção.

ABSTRACT

The objective of this study consists in Caliban, a Marvel Comics character from the X-Men
universe in the context of „in-betweeness‟ (SANTIAGO, 1971). I intend to contribute to the
investigation of what Nirmala Erevelels defined as a new field of expertise: “(o)nly recently
have scholars in both Disability Studies and Postcolonial Studies attempted to explore the
intersection between these two areas of scholarship” (EREVELLES 2006, apud ALBRECHT,
2006, p. 103). Erevelles highlights that this new field of expertise requires the construction of
bridges between the two mentioned areas. Taking as point of departure for analyses that “(i)t
is engaging Otherness that scholars in both Postcolonial Studies and Disability Studies find
common ground, especially in their deconstructive analyses of how representation, hegemony,
and normativity produce both the postcolonial and the disabled Other” (ibid); this study in-
tends to investigate if the mutant Caliban can be considered a point of convergence between
Disabilty Studies and Post-colonial Studies, or else, if Caliban can be understood as a repre-
sentation of both the Post-colonial „Other” and the disabled „Other‟.

Keywords:
Pos-colonial Studies. Disability Studies. „Other‟. Intersection.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Caliban, personagem das HQ X-Men da Marvel Comics, pode ser interpretado como
representação do “Outro” Pós-colonial e do “Outro” Deficiente. Tal fato torna Caliban objeto

1
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Letras/Inglês e Literatura Correspondente da Universidade Fede-
ral de Santa Catarina; bolsista do CNPq; e-mail: gislaine.mailbox@gmail.com.
2

de estudo potencial para um novo campo de conhecimento, do qual nos fala Nirmala Erevel-
les: “apenas recentemente estudiosos em ambos os Estudos sobre Deficiência e Estudos Pós-
coloniais tem tentado explorar a intersecção entre essas duas áreas de especialidade” (ERE-
VELLES 2006, apud ALBRECHT, 2006, p. 103) tradução minha). Além de apresentar carac-
terísticas que o capacitam a objeto de estudo da Intersecção entre Estudos sobre Deficiência e
Estudos Pós-coloniais, Caliban também se encaixa no contexto teórico do „entre-lugar‟
(SANTIAGO, 1971). Num universo fictício habitado por humanos e mutantes, onde os últi-
mos sofrem preconceito por transgredirem o conceito de „normalidade‟ imposto pela socieda-
de, Caliban não consegue se adaptar nem a um, nem ao outro grupo, constituindo uma „espé-
cie‟ de mestiço-mutante; uma transgressão ainda maior ao conceito de normatividade. Além
disso, tanto o „deficiente‟ quanto o (pós-)colonizado podem ser considerados construções do
„Outro‟ estabelecidas pelo dominante.
Considerando que estudos Pós-coloniais e Estudos sobre a Deficiência serem dois
campos de conhecimento distintos, a questão que surge é de como uma intersecção entre am-
bas se torna possível. A resposta pode ser encontrada na Enciclopédia de Deficiência, no capí-
tulo intitulado Pós-colonialismo:

É no engajamento com o „Outro‟ que estudiosos em ambos os campos de Estudos


Pós-coloniais e Estudos sobre deficiência encontram um ponto em comum, especi-
almente na sua análise deconstrutiva de como representação, hegemonia e normati-
vidade produzem ambos o Outro pós-colonial e o Outro deficiente.” (EREVELLES
2006, apud ALBRECHT, 2006, p. 103 tradução minha).

Portanto, discorrerei brevemente sobre a caracterização de Caliban como o “Outro”


pós-colonial e a seguir apresentarei evidência teórica de que os X-Men podem ser interpreta-
dos como caracterizações culturais de deficiência; evidência a qual alicerçará minha hipótese
que Caliban também pode ser visto como o “Outro” deficiente.

2 CALIBAN DE CHRIS CLAREMONT


A Tempestade de William Shakespeare tem inspirado uma respeitável gama de adap-
tações, no formato de peças de teatro e livros2 e até mesmo filmes de ficção científica3. Logo,
as duas principais editoras de histórias em quadrinhos do mundo, DC Comics e a Marvel Co-
mics não poderiam deixar de produzir suas adaptações das aventuras de Próspero, Ariel e Ca-

2
Alguns exemplos de apropriações A Tempestade de Shakespeare são The Pleasures of Exile (George Lamming,
1960), Une Tempete (Aimé Césaire, 1968) No telephone to heaven (Michele Cliff, 1987).
3
Duas adaptações fílmicas no formato de ficção científica de A Tempestade de Shakespeare são The Forbidden
Planet (1956) e The Tempest (2010).
3

liban. Neil Gaiman é responsável pela novela gráfica The Tempest, a apropriação da obra de
Shakespeare da DC Comics, publicada em 1996 em The Sandman # 75. Escrita por Chris Cla-
remont, Cry Mutant é a apropriação da obra da Marvel Comics, publicada em 1981 em The
Uncanny X-Men # 148. Nessa adaptação debutou o albino e quase grotesco Caliban, persona-
gem do universo X-Men, incompreendido sofre preconceito tanto de humanos quanto de seus
semelhantes genéticos os mutantes também conhecidos como Homo superior (Figura 1).

Figura 1 - “Caliban não quer causar mal a ninguém, ele pensou que ele era único mas
quando ele sentiu outros como ele a idéia de voltar aos esgotos, de viver ... para sempre
... sozinho... se tornou insuportável (minha tradução).” O rosto de Caliban, até então es-
condido atrás de um manto e chapéu, é finalmente revelado: feições disformes, pele
completamente albina e enormes olhos amarelos. No último quadrinho pode-se ser ob-
servado que mesmo a jovem mutante Kitty Pryde teme Caliban por causa de sua apa-
rência.
Fonte: Uncanny X-Men # 148 (1981, p. 20).

No universo criado por Stan Lee4, a raça humana sofreu uma subdivisão devido a um
processo evolutivo natural, o qual culmina com o surgimento do Homo Superior, vulgarmente
conhecidos como mutantes. Os portadores do gene mutante, em massiva maior parte dos ca-
sos, nascem e gozam da infância como “cucos” Homo Sapiens; porém na adolescência a
bomba-relógio genética dispara e poderes especiais afloram acompanhados freqüentemente de

4
Stan Lee concebeu o conceito de mutantes e criou o grupo de super-heróis os X-Men em setembro de 1963.
4

dor física e emocional5. Caliban parece ser uma exceção a essa regra. Enquanto a maioria dos
mutantes nasce com aparência humana e podem conviver na sociedade mesclados aos Homo
Sapiens, mesmo depois que seus poderes terem surgido se assim o escolherem, Caliban nas-
ceu com aparência “anormal”, traindo sua condição mutante desde o momento que chegou ao
mundo. Num mundo que tem preconceito por, teme, e até odeia mutantes, Caliban não encon-
trou outra saída a não ser se isolar nos esgotos da cidade de Nova York.

3 CALIBAN, O ‘OUTRO’ PÓS-COLONIAL


Márcia Cristine Agustini em sua análise baseada em Estudos Pós-coloniais da obra
No telephone to heaven cita a personagem mestiça Clare como estando „na contra-mão da
apregoada „unidade‟ e „pureza‟ imperialista de que nos fala Silviano Santiago.‟(2009 p.1)
Caliban apresenta alguns traços em comum com a heroína de No telephone to heaven. Ambos
percebem que são diferentes da maioria ao seu redor, que não conseguem se encaixar onde
quer que vão e encontram-se em busca angustiante de um lugar ao qual pertençam. Ambos
são mestiços presos entre dois mundos. Clare se encontra presa entre a cultura branca domi-
nante, com a qual entra em contato pela primeira vez quando vai morar com o pai de pele cla-
ra nos Estados Unidos, e a cultura negra da Jamaica, onde vivia quando criança com a mãe de
pele negra e para a qual decide voltar na parte final do romance. Caliban se encontra preso
entre a cultura dos humanos, vulgo Homo Sapiens e a recém descoberta cultura dos mutantes,
vulgo Homo Superior. Entretanto, Caliban também pode ser interpretado como uma Clare ao
contrário. Enquanto Clare, mestiça de pele clara pode passar por branca e ter acesso às vanta-
gens da cultura dominante, Caliban, de aparência assustadora, pele completamente albina e
dono de enormes olhos amarelos é obrigado a viver em auto-exílio nos esgotos de Nova York.
Enquanto Clare decide deixar a Europa e voltar à Jamaica para se unir a um grupo rebelde
como um ato de rebelião contra o poder dominante; Caliban, ao conhecer e ser convidado
pelos X-Men para se unir ao grupo, recusa o convite e volta a se refugiar nos esgotos. Apesar
de tais características contrárias, Clare e Caliban possuem muito mais em comum. Se eles por
acaso viessem a se conhecer e pudessem compartilhar suas experiências, seriam capazes de
dizer um ao outro “sei exatamente como você se sente; também vivo em algum lugar, em um
entre-lugar entre dois mundos distintos tentando encontrar um lugar ao qual eu pertença sem

5
Kitty Pryde, que possui o poder de atravessar objetos sólidos, sofria fortíssimas dores de cabeça quando o gene
mutante foi acionado, ou seja, dias antes de seu poder se manifestar e também as primeiras vezes que esse poder
se manifestou.
5

sucesso”. Caliban, assim como Clare, pode ser visto como caracterização do “Outro” (pós-
colonial) no contexto do entre-lugar proposto por Santiago.
Outro ponto em comum entre No telephone to heaven e a HQ intitulada Cry Mutant!
(Grite Mutante! minha tradução), HQ na qual Caliban aparece no universo Marvel pela pri-
meira vez, é o fato de ambas as obras serem apropriações da peça A tempestade de William
Shakespeare. Agustini ressalta que os países caribenhos produziram várias apropriações da
citada peça durante os anos iniciais pós-independência, entre essas apropriações está No tele-
phone to heaven (02). Tais apropriações, ao tomarem posse do canônico, ao tomarem posse da
história de Prospero que ao chegar à ilha de Caliban escraviza e usurpa do nativo o direito a
terra, ao recontar tal história do ponto de vista do “Outro”, do dominado, tais apropriações
abraçam o ritual antropofágico do povo latino-americano como citado por Santiago (1971).

4 CALIBAN, O ‘OUTRO’ DEFICIENTE


A caracterização, no universo Marvel, de humanos como a cultura dominante e de
mutantes como o „Outro‟ pós-colonial soa lógica, entretanto, a caracterização de mutantes
como o „Outro‟ deficiente pode soar ilógica. Mutantes possuem super-poderes, o que soa
como vantagens, e até desejáveis; enquanto pessoas deficientes possuem características as
quais dificilmente a sociedade consideraria como tal. A seguir, citarei alguns estudiosos que
encontram semelhanças entre encontram semelhanças entre pessoas com deficiência e os
membros do universo dos X-Men.
Jennifer Rinaldi argumenta que „a mutações apresentadas nesta ficção podem ser
avaliadas possivelmente como deficiências, pois elas são diferenças genéticas as quais o con-
texto social falha em acomodar e ao invés trata como desvio do que é normal (2008, p. 01,
minha tradução). Michael M. Chemers afirma que „assim como pessoas deficientes reais, co-
mo um grupo (os mutantes) estão divididos por lealdades, histórias, passados, percepções filo-
sóficas e opiniões bem diferentes sobre o melhor caminho a seguir. Assim como pessoas defi-
cientes reais, eles se sentem alienados pela corrente dominante‟ (2009, p. 02, tradução minha).
Ramona Ilea observa que „como muitas pessoas com deficiência, os mutantes não são com-
preendidos e apreciados por seus companheiros seres humanos ‟ (2009, p. 274, tradução mi-
nha). Martin Mantle para ilustrar seu ponto, cita dois mutantes, um que deseja ser curado o
que logo implicaria viver uma vida „normal‟ e outro que esconde da família sua condição mu-
tante.6 A seguir, Mantle comenta que enquanto tais momentos poderem serem interpretados

6
Apesar de Mantle se referir ao filme, tais exemplos também são encontrados nos HQs.
6

como „ansiedade sobre homossexualidade, também indicam uma preocupação social maior
sobre o „Outro‟, o que inclui a deficiência e a exclusão social que a acompanha (2007, p. 04,
minha tradução). Já que vários estudiosos visualizaram possíveis pontes que unem o „Outro‟
deficiente aos mutantes, não seria inesperado que portadores de deficiência também já tenham
percebido essa possível correlação. Edward W. Siemens, por exemplo, em seu artigo intitula-
do „A dor de ser disléxico‟, relata: „A deficiência da dislexia é dolorosa. Se você se interessa
em ler HQs, então considere os X-Men, os quais são um bando de mutantes descartados da
sociedade por causa de sua natureza bizarra e diferente...‟ (2009, p. 01, tradução minha).
Na minha pesquisa de textos acadêmicos que suportem uma das hipóteses de minha
tese, de que os mutantes da linha narrativa dos X-Men podem ser compreendidos como repre-
sentações culturais de deficiência, encontrei material mais abundante e diverso do que espera-
va a princípio. O texto de Ramona Ilea „Cura Mutante ou Mudança Social: Debatendo Defici-
ência‟ (2009, minha tradução), por exemplo, encontra-se no livro X-Men e Filosofia o qual,
como o título sugere, focaliza em interpretações filosóficas das histórias dos X-Men, seja na
forma de HQs ou filmes. O artigo de Jennifer Rinaldi „X-Men e Deficiência: Estudos sobre
Deficiência Trazidos a Vida em Filme‟ (2008, minha tradução) foi apresentado na Critical
Disability Studies Student Association Colloquia e na Annual Graduate Student Conference em York
em 2008. No periódico on-line sobre media e cultura, MC Journal, encontramos o artigo „Você tentou
não ser um mutante?‟ (2007, minha tradução) escrito por Martin Mantle. No periódico quadrimestral
de Estudos sobre Deficiência Disability Studies Quaterly Michael M. Chemers publicou „Mutatis
Mutandis: Uma Estética sobre Deficiência Emergente em “X-2: X-Men Unidos”‟(2009, mi-
nha tradução). Edward W. Siemens, que escreveu um artigo usando a realidade e dificuldades
de ser mutante para ilustrar seu ponto de vista, não é exatamente um estudioso de cultura, nem
filosofia nem Estudos sobre Deficiência, mas um portador de dislexia que escreve artigos no
intuito de ajudar outros indivíduos na mesma situação e alertar o público em geral sobre o
assunto. Livro, periódico, congressos, filosofia, estudos culturais, estudos sobre deficiência,
desejo de auxiliar o próximo; a consideração dos X-Men como representações culturais de
deficiência parece ter se espalhado no vento, atingido variados solos e criado raízes.
Existe uma razão relevante para eu ter chamar a atenção ao fato que as análises sobre
a caracterização de mutantes como deficientes terem sido conduzidas por diferentes estudio-
sos, estudiosos estes que provavelmente não foram influenciados um pelo trabalho do outro.
Minha dedução não é apenas teórica, pois possui pelo menos uma confirmação de sua veraci-
dade. Ao entrar em contato com Jennifer Rinaldi, perguntei se ela não conheceria outros arti-
gos que poderiam auxiliar na minha pesquisa. Ela comentou ter ouvido algo vagamente sobre
7

um artigo em livro, mas não tinha idéia de que livro ou artigo se tratava. Ou seja, Rinaldi não
sofreu influências de idéias sobre X-Men e deficiência antes de escrever seu artigo, entretanto,
o artigo de Rinaldi apresenta vários pontos em comum com os outros artigos citados. Alguns
pontos em comum identificados entre os artigos analisados foram: movimento eugenista; con-
ceito de normalidade; modelo médico e social de deficiência; comparação da utilização de
sistemas de controle e/ou vigilância impostos em mutantes com os empregados em deficientes
com respectivos exemplos históricos; ambos mutantes e deficientes não quererem ser conside-
rados uma doença a ser curada e preocupação que a „cura‟ possa levar para a sua eliminação.
Apesar de nem todos não apresentarem os mesmos preceitos identificados, pelo menos alguns
pontos em comum foram utilizados por esses autores para fundamentar suas hipóteses.
Minha pesquisa baseia-se nos HQs dos X-Men, enquanto a maior parte dos textos
analisados baseia suas considerações nos filmes sobre esse grupo mutante. Logo, a pergunta
que emerge é se as considerações fundamentadas nos filmes também são validas para os HQs.
Iniciarei minha análise dos pontos em comum entre os artigos estudados, citados no parágrafo anterior,
pelo quesito „sistemas de controle e/ou vigilância‟ para ilustrar e exemplificar que as conside-
rações feitas sobre X-Men a partir de uma perspectiva de Estudos sobre Deficiência se apli-
cam tanto para os filmes quanto para as HQs que discorrem sobre a linha narrativa da Marvel
sobre mutantes. „No primeiro filme da série X-Men‟, nos explica Rinaldi, „o senador Robert
Kelly lidera o pedido de passar o Ato de Registro Mutante, legislação a qual requereria que
mutantes fossem identificados e registrados a fim de controlar a ameaça que eles possam
apresentar. (p. 04, tradução minha). Rinaldi a seguir relata a reação Magneto, líder dos mutan-
tes rebeldes e sobrevivente de campos de concentração. Magneto compara a legislação que
Kelly deseja passar aos subterfúgios usados pelos nazistas no início de suas atividades, „quan-
do „indesejáveis‟ eram obrigados a se registrar, sistema de identificação o qual eventualmente
foi utilizado com o propósito de genocídio.‟ (p. 05 minha tradução). Rinaldi também nos in-
forma que pessoas com deficiências faziam parte da categoria dos „indesejáveis‟ sendo sujei-
tas ao genocídio. Ilea, além de citar os o fato de nazistas terem utilizado de eutanásia e esteri-
lização contra os considerados defectivos, relata outro fato histórico relacionado, porém me-
nos conhecido do público em geral. Em função do movimento eugenista, do qual falarei mais
tarde, nos Estados Unidos em 1932, foram criadas a leis de esterilização; como resultados
vinte mil pessoas com problemas mentais foram esterilizadas a força (p. 280). Enquanto no
filme os mutantes apenas temem o que o Ato de Registro possa acarretar, na HQ que parcial-
mente inspirou o filme citado, Dias do Passado Futuro (Chris Claremont, 1986, minha tradu-
ção) os mutantes vêem seu pior pesadelo se tornar realidade. Num futuro alternativo próximo,
8

o Ato de Registro acaba por dividir a raça humana em três grupos: mutantes, humanos e
anormais; todos vestem o mesmo tipo de macacão cinza, o que trai sua classificação é a letra
maiúscula M, H ou A no peito, referência direta a estrela de Davi usada por judeus na Europa
nazista. Os mutantes, ou „M‟ encontram-se aprisionados em campos de concentração, não
possuem direito nenhum e são obrigados a usar uma espécie de coleira que inibem seus pode-
res. Humanos „normais‟ ou H, possuem relativamente direitos, apesar do medo constante de-
vido aos robôs sentinelas que patrulham as ruas. Os humanos anormais designados „A‟ não se
encontram aprisionados, porém seu estigma os perseguem onde quer que vão, como a heroína
de A Letra Escarlate. Humanos portadores do gene mutante latente são proibidos de se repro-
duzir, já que potencialmente poderiam produzir prole mutante. As considerações atingidas por
Rinaldi e Ilea sobre o Ato de Registro do primeiro filme dos X-Men também são aplicáveis ao
enredo da HQ citada, HQ a qual provê espaço para aprofundar as análises. Por exemplo, o
fato de Humanos „A‟, ou „Anormais‟ não poderem se reproduzir afim de que o gene conside-
rado „defeituoso‟ não se recrie em Dias de um Passado Futuro nos remete aos exemplos cita-
dos por Ilea e Rinaldi sobre a esterilização de deficientes, seja na Europa nazista ou nos Esta-
dos Unidos eugenista dos anos trinta.
Numa cena de X-Men 2, ao ser confrontado por um pai que o acusa de não ter curado
seu filho, o professor Xavier, líder e mentor dos X-Men, ressalta o fato da mutação não ser
uma doença. „Este discurso traz a lembrança um dos debates mais provocativos em Estudos
sobre Deficiência: os efeitos de socialização na linha de definição entre „doença‟ e „diferen-
ça‟‟. (Chemers, p. 03 minha tradução). Em X-Men 3 o senador Warren Warrington II oferece
uma cura para o gene mutante, afirmando que condição mutante se trata de „nada mais que
uma doença. Aqui, como acontece no mundo real, anomalia é mostrada como uma tragédia
pessoal, um peso que deve ser aliviado, uma doença para a qual requere um antídoto‟ (Rinal-
di, 05, tradução minha). A reação dos mutantes ao serem considerados uma „doença‟, tanto na
linha narrativa “Gifted” das HQs Astonishing X-Men (em português, Os Extraordinários X-
Men) quanto no filme por essa narrativa inspirado, é variada. Alguns desejam ser „normais‟,
outros ficam furiosos, como é o caso de Ororo Monroe, ou Tempestade, que não vê nada de
errado ou que precise ser „consertado‟ na sua condição. „Worrington adere ao modelo físico
de deficiência enquanto Tempestade adere ao modelo social. No modelo social, o problema
não é físico. Ao contrário, sociedade cria deficiência ao rotular, manter e negar opções para
certas pessoas. ‟ (Ilea, 279, tradução minha).
O conceito „deficiência não ser doença, mas sim diferença‟ foi abordado por Che-
mers, Ilea, e Rinaldi. Falar nesse tópico, de tanto mutantes como pessoas com deficiência não
9

quererem ser considerados uma doença a ser curada, desencadeia uma transição natural aos
conceitos do modelo médico e modelo social de deficiência, tema abordado por Ilea, Mantle e
Rinaldi. Devido à importância de tais conceitos em Estudos sobre Deficiência, discorrerei
mais sobre eles. Primeiramente, uma definição de deficiência do ponto de vista de Estudos
sobre Deficiência faz-se necessária. „Deficiência é a perca ou limitação de oportunidades que
impedem que pessoas que tem deficiência de tomar parte na vida normal da comunidade ao
mesmo nível dos outros devido a barreiras físicas ou sociais. ‟ (Finkelstein e French, 1993, p.
25, tradução minha). Até os anos 70, o modelo médico predominava, „seu pensamento estava
preservado em abordagens que procuravam contar o número de pessoas com deficiência ou
reduzir os complexos problemas de pessoas deficientes a questões de prevenção médica, cura
ou reabilitação.‟ (Shakespeare, 1997, p.199, tradução minha). Então, a partir da afirmação de
ativistas de deficiência e teóricos de que „pessoas com deficiência são incapacitados pelo sis-
tema social que levantou barreiras a sua participação.‟ (Michael Oliver, 1996, p. 33), o mode-
lo social de deficiência foi elaborado. „O pensamento do modelo social exige remoção de bar-
reiras, legislação de anti-discriminação, moradia independente e outras repostas à opressão
social.‟ (Shakespeare, p.199, tradução minha).
Ainda outros tópicos relevantes identificados (s) nos artigos estudados são: o concei-
to de normalidade, o movimento eugenista e a preocupação que a „cura‟ possa levar à elimi-
nação. Tais conceitos aparentam estar interligados. O conceito de normalidade inspira os eu-
genistas, os quais almejam a eliminação daqueles que não se adequem ao seu conceito do que
seja „normal‟, o que leva por sua vez preocupação com eliminação. Para este estudo, conside-
rarei o conceito de normalidade como definido por Thomson: „Aristoteles revela (...) um con-
ceito de um „tipo genérico‟, normativo, comparado com o qual toda variação corpórea é me-
dida e considerada diferente, derivativa, inferior e insuficiente‟ (1997, p. 281, minha tradu-
ção). Em relação ao conceito de normalidade aplicada aos Estudos de Deficiência, Davis
afirma: „o problema não é a pessoa com deficiência, o problema é a maneira que a normalida-
de é construída para criar o „problema‟ da pessoa deficiente.‟ (1997, p. 9, minha tradução).
Seja direta ou indiretamente, todos os artigos estudados discorrem e/ou estão fundamentados
no conceito de normalidade. Rinaldi menciona que mutantes são tratados como desvios do
que é normal (p. 02, minha tradução) e Ilea indaga como deveríamos acolher diferença física.
(p. 181). Mantle afirma que „esses filmes de super-heróis demonstram que, a fim de falar so-
bre super-habilidade como um desvio do corpo normal, eles se apóiam em scripts de deficiên-
cia como a linguagem de desvio‟ (p. 03, minha tradução). Chemers, entretanto, parece ser o
mais entusiasmado com a maneira que a reação, em X-Men, ao conceito de normalidade: „X-2
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parece prover uma resposta particularmente vívida a este neo-eugenismo, ao invés de demoni-
zar diferença física, X-2 logo cria „uma contra-narrativa de peculariedade como eminência,‟
como descrita por Rosemarie Garland-Thomson em Corpos Extraordinários (1994, p17)‟,
(p.01, tradução minha). Além de Chemers, Ilea também cita o movimento eugenista, o qual
foi responsável pela Lei de Esterilizarão citada anteriormente. O último tópico a ser abordado
é a preocupação que a „cura‟ possa levar para a eliminação. Tanto na linha narrativa „Gifted”
quanto no filme X-Men: The Last Stand os mutantes temem que a cura possa levar a sua ex-
tinção. O aborto seletivo, como de fetos com síndrome de Down, por exemplo, preocupa ati-
vistas de direitos do deficiente. Além de tal atitude sugerir que a vida de um indivíduo porta-
dor da síndrome não vale a pena ser vivida, a longo prazo ocasionaria na extinção de portado-
res da Síndrome de Down. Ambas Ilea e Rinaldi exploram o assunto, e Ilea acrescenta que
implantes auriculares dividem a comunidade surda, já que alguns ativistas também se preocu-
pam que tal „cura‟ possa erradicar a cultura única e rica que os surdos partilham.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não apenas Caliban, mas parece que todo o grupo mutante compartilha do entre-
lugar proposto por Santiago. Nos HQs, desiludidos da procura de um lugar ao qual pertençam,
no qual não sejam diferentes, desvios da normalidade, os mutantes fundam Genosha, um novo
país numa ilha isolada. Entretanto, não se trata de um conceito original, a comunidade surda
já havia concebido a idéia. Enquanto isso, as evidências apontadas neste artigo parecem assi-
nalar que o personagem fictício Caliban engloba uma representação do „Outro‟ pós-colonial
assim como do „Outro‟ deficiente. Espero que um dia ele perceba que não há nada de errado
com ele, mas sim com a sociedade e seus preconceitos, e espero que um dia Caliban deixe o
refúgio escuro dos esgotos e espero que um dia Caliban sinta orgulho de suas diferenças, de
ser diferente, de ser Caliban.

6 REFERÊNCIAS

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11

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X-Men. Dir. Bryan Singer. 20th Century Fox, 2000. Film.

X-Men: The Last Stand. Dir. Brett Ratner. 20th Century Fox, 2006. Film.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Inglês Aba de anexos para salvar artigo

ESTUDOS DA TRADUÇÃO ORIENTADOS AO PROCESSO

Roberto Mário Schramm Jr.1 (PGET/UFSC)

RESUMO

Partindo de uma tendência recente no campo dos estudos da tradução transcendam um caráter
meramente descritivo, queremos propor um programa de estudos da tradução orientado ao
processo. Por orientação ao processo queremos designar um programa de estudos que procure
flagrar o fenômeno da tradução em seu momento de passagem entre uma e outra língua: na
análise da transformação mesma que o texto traduzido opera no texto fonte, na consideração
das perdas, ganhos e estratégias do tradutor em seu momento de, por assim dizer, perigo abso-
luto. Enfocar, portanto, o processo, a transformação, a passagem, o trânsito do significado e o
ressarcimento do significante. Tal programa de estudos pressupõe e se alimenta uma auto-
reflexibilidade da parte do tradutor com relação a sua prática tradutória – visto que, em nossa
opinião, somente ele tem acesso a caixa-preta, ao código fonte de sua tradução: somente ele
pode revelar as relações e processos que motivaram suas soluções tradutórias. Neste sentido,
oferecemos exemplos de nosso programa na análise de nossas próprias traduções. Trata-se de
exercícios transcriativos, que ilustram nossa orientação ao processo.

Palavras-chave:
Tradução. Sociologia da Tradução. Tradução Poética.

ABSTRACT

Grounded on principles and recent trends in Translation Studies – those pointing towards be-
yond merely descriptive translation studies – I wish to (humbly) propose a (tentative) pro-
gramme of process oriented translation studies. By Process Orientation I mean to designate a
“strong programme” of studies, aiming to “surprise” the translation phenomena in the very
instant of its passing through one language to another: analyzing the transformational move-
ment from the translated text towards the source. Focusing on the translational process itself,
in the instant – it could be said – of absolute danger. Such programme presupposes some de-
gree of self-reflexivity, concerning the close relation between the translator himself and his
own translation praxis. I am assuming, however, the access and the agency of the translator
over his translation being a strong point of my programme: only the translator can access the
black box of his own translation, only he could offer a radical unfolding of the process and
networks lying under his work. Concerning this particular, I offer also some examples of my
own transcreative exercises that would illustrate the nature of my alleged process orientation.

Keywords:
Translation. Sociology of Translation. Poetic Translation.

1 INTRODUÇÃO
O que aqui chamarei de orientação ao processo emergiu muito naturalmente de meu
projeto de tradução do Don Juan de Byron – na medida em que passei a investigar com mais
atenção os estudos críticos mais recentes acerca do poeta inglês e de sua epopéia herói-

1
Mestrando; e-mail: robertoschramm@yahoo.com.
2

cômica. Tais estudos foram inesperadamente recompensadores no sentido em que chamaram


minha atenção para um novo direcionamento na avaliação de Byron e do romantismo: uma
orientação para a materialidade do texto byroniano, seus contextos de produção, a análise de
suas variantes, o processo de seu estabelecimento. Nessa direção, a materialidade do texto e a
análise de seu estabelecimento – a herança do neo-historicismo – é o que se tem mostrado
mais útil e presente; que vem informando com mais destaque o meu próprio processo. Tais
concepções concedem espaço de manobra para o tradutor: inúmeras variantes do texto estabe-
lecido, inclusive diversos cantos piratas que circularam nos tempos em que o poema era pu-
blicado anonimamente, em semi-clandestinidade. Tais anomalias e interferências são particu-
larmente interessantes para o tradutor de poesia, na medida em que aborda seu ofício a partir
de um professo transcriativismo; uma má intenção confessa de canibalizar o original, de re-
piratear, re-variar o texto canônico.

2 O MUNDO LÁ FORA (DO TEXTO)


Ironicamente, dentre os comentadores contemporâneos de Byron aquele que tem se
mostrado mais decisivo para o desenvolvimento de minha pesquisa, o tem sido menos no que
se refere ao que efetivamente escreveu sobre o poeta do que à natureza mesma de sua inquiri-
ção e releitura. Não me refiro tão somente a Byron, como como também a todo o romantismo
de língua inglesa. De fato, Timothy Morton apresenta uma perspectiva sedutora na revisão do
legado romântico, como se pode apreciar em seu lapidar Cultures of Taste/Theories of Appe-
tite: Eating Romanticism (2003), onde participa como editor e ensaísta. Título irresistível para
o tradutor antropofágico, o programa de Morton parece instar-nos a um retorno a materialida-
de dos estudos literários, por meio do que ele próprio enseja qualificar, de uma perspectiva
realista e especulativa, voltada para uma concepção do texto literário como matéria vibrante,
diversa, relativamente autônoma, fixada num momento, uma abstração estática de um proces-
so em curso e em recurso. Timothy Morton captura tais processos, retoma conceitos centrais
do romantismo, como aquele – tão onipresente e material em nosso cotidiano – de natureza-
por exemplo, e (des?)constrói, a partir dele, para além de um eco-criticismo, uma Dark Eco-
logy, uma ecologia sem natureza. Eis aqui um ponto a ser levado em conta: a releitura das
obras do romantismo, em sua inter-conectividade multi-sistemática relevada contra os pro-
blemas efetivos de nossa época. Poderia essa minha tradução aprender a assumir tais com-
3

promissos, a ser relevante em tal sentido e, de forma mais ambiciosa, a representar esse fluxo
de idéias, interconexões e intertextualidades?
Morton não se referiu especificamente ao processo de tradução. Contudo, seu realis-
mo especulativo e sua ontologia orientada aos objetos vinham exercendo grande atração sobre
minha própria reflexão acerca do procedimento tradutório – alguma vaga intenção ou espe-
rança mesmo de se pensar tradução sem admitir sua impossibilidade em termos últimos da
transmissão inequívoca do significado, e a difícil problemática da adesão desse significado a
uma referência universal. Ou por outro lado, uma nova aventura rumo aos fenômenos, as coi-
sas em si no interior mesmo da arapuca: existirá algo, enfim, fora do texto? Haverá por aqui
qualquer possibilidade de vislumbrar esse grande nada que (in)existe no impensável exterior
de nossas representações?

3 SOCIOLOGIA DAS ANTS ATAREFADAS


O que se pôde reter dessa vaga esperança foi, ao revisitar o paiduma, as fontes e os
teóricos que informavam – por sua vez – os ensaios de Morton, um encontro inesperado com
Bruno Latour e a Sociologia da Tradução. Nesse ponto as coisas começaram a fazer sentido.
Eu cito (e traduzo) a definição de FENWICK & EDWARDS (2010):

Tradução é o temo que Latour empregou pra descrever o que ocorre quando entida-
des humanas e não humanas agrupam-se, conectam-se; se modificando uma a outra,
de modo a estabelecer ligações (...) Entidades conectadas, eventualmente formam
uma corrente ou rede (network), de coisas e processos, e essas redes tendem a torna-
rem-se estáveis e duradouras. (p.10)

Latour define tradução no interior de sua teoria ator-rede, graciosamente representa-


da pelo acrônimo ANT, do original inglês Actor-Network Theory. Mas o que nos interessa,
além de seu enfoque processual, é a possibilidade expressa de sua concepção no tocante a de-
safiar a estabilidade monolítica do papel e do estatuto do original frente a um processo de tra-
dução literária. Especificamente, esse movimento translacional de entidades (não humanas,
inclusive) inter-agentes, inter-conectantes, que se modificam uma a outra. Que se modificam
senhoras e senhores: uma agência múltipla e que, podemos imaginar, inclua a entidade origi-
nal (o próprio) que é modificada e que se modifica no interior do processo de tradução. Ora,
em minha opinião a agência do traduzido sobre o original consiste exatamente na interferên-
4

cia (e na resultante modificação) do estatuto do original por meio, não do traduzido, mas do
processo tradutório.
Algo ocorre no singular horizonte de eventos que se desdobra entre o original e o
traduzido, que só pode se revelar na passagem entre essa obra originante, seu contexto de
produção, seu texto de porosa dicção, resultante do esforço tradutório e a conexão com o ori-
ginal –com as demais traduções e paráfrases do original, inclusive. Um emaranhado, um
complexo rizomático de vasos inter-comunicantes – nesse ponto a orientação ao processo in-
formada pela ANT, pela sociologia da tradução, parece uma ferramenta adequada para – se
não evitar-se – ao menos contrapor-se à postura messiânica de Walter Benjamin (2010); no
que pretendia resolver essas relações com o adendo esotérico da realização suprema do origi-
nal no esgotamento total de todas as traduções possíveis coexistindo, revelando a pura língua
do original escrita no conjunto de suas re-escrituras.
Receio, todavia, não ter ainda renunciado ao programa de escatologia do porvir que
Benjamin apregoa na tarefa do tradutor. Devo atribuir tal apego romântico a redenção traduto-
lógica do original a meu próprio e incurável romantismo? Porque há uma alternativa, e ela
parece residir precisamente na releitura da noção primitiva de tradução (translation) – transla-
ção, transporte, replicação, – enfim, tradução enquanto um processo de transformação simé-
trica mediada por um eixo qualquer estabelecido. Um processo, contudo: uma passagem, um
tornar-se, um gesto – e daí para uma multiplicidade de gestos, uma rede de passagens, um
emaranhado de processos, eu insisto, intermodificantes. Doravante, essa dimensão processual
informará o vocabulário e o andamento de nosso percurso.
Tentarei doravante inquirir meu projeto de tradução literária – tradicionalíssima em-
presa tradutológica – com vistas a releitura da tradução em sua orientação processual, da tran-
sitabildade mesma, do meio de transporte, da transformação; que encontramos em Latour e,
talvez mais destacadamente, em seu precursor, Michel Serres.

4 CAMINHOS DE HERMES QUE SE BIFURCAM


A orientação ao processo implica na potencial emergência de um emaranhamento de
traduções e traduzidos – o que põe em questão o estatuto do original, ao mesmo tempo em
que complica o do traduzido. Em nossa acepção, a tradução já deixou, há tempos, de ser go-
vernada por um sistema binário, do que se é traduzido e do que se traduz, ou dos contextos
dos idiomas de partida e de chegada. Um desgoverno a ser levado em conta, na medida em
5

que o estudo da tradução, nesse âmbito, não quer mais limitar-se ao estudo do traduzido e sua
relação de origem, mas antes com o próprio processo de traduzir, que se relaciona com o ema-
ranhado original, os sistemas de rizomas que se interpenetram e que (retro)causam a origem,
inventam um ponto de partida, originam o original na mesma medida em que são originadas.
Por outro lado, o conjunto de traduções de obras famosas, as várias vozes que vem juntas em
harmonia eólica atemporal (mas não a-histórica), trans-piram – por assim dizer – incandes-
centes num farol que projeta luz excessiva sobre o original, ofuscando-o em conhecimento
demasiado. Cegos de luz, como no ensaio de Saramago: talvez saibamos demais para sabê-lo.
Mas o que se oculta – creio eu – é o próprio processo de tradução no que tange a sua
dinâmica, ou melhor dizendo, da aparente impossibilidade de capturá-lo em seu acontecer po-
limórfico. Refiro-me a capturá-la (a tradução) em seu momento tradutório, flagrando-a no es-
paçotempo de sua requerida operação hermeneurística de interpretação sonora e invenção se-
mântica; como também de interpretação do sentido do som e re-invenção sonora do sentido.
Ou seja, no momento processual de seu tornar-se. Os estudos da tradução sabem muito sobre
o original e o traduzido – mas nem uma coisa nem outra são a tradução ela própria. Por que,
neste âmbito o objeto do estudo da tradução consiste muito menos no processo do que em seu
suposto ponto de origem. Por que nessa concepção processual – eu parafraseio LATOUR
(2005, p. 128) – ocorre que cada ponto do texto pode tornar-se uma bifurcação, um evento,
ou a origem de uma nova tradução.
A bifurcação originária e originante. A idéia de bifurcação e encruzilhada porosa e
impregnada de sentido, força e significação, já nos elevam para o patamar analítico de Michel
Serres, que dedicou ao fenômeno da tradução o centro de sua obra, exemplificada justamente
pelo deus mensageiro. Hermes, o trickster padroeiro dos ladrões e das traduções. Esse habi-
tante das encruzilhadas é o símbolo máximo da tentativa de focar nesse processo de transfor-
mação, de ressonância. Por que Hermes requer traduções (SERRES, 1982a, p. 134): requer
um processo de trans-formação ( > ), uma maneira pela qual uma coisa pode se tornar outra
ao invés de, quimericamente, ela mesma. Não se trata pois de “original” e/ou de “traduzido”,
mas do vetor transacional da tradução, a flecha de duas pontas que liga uma ponta do proces-
so a outra. O processo ele próprio, o eterno terceiro excluído nas dicotomias de nossa lógica
representacionista.
6

5 A TRADUÇÃO É MULTIVERSO DE ESCÂNDALOS


Quem sabe, então, a teoria da tradução ela mesma, ainda não tenha de fato começa-
do, e tudo o que foi feito até então é ainda a teoria da originação; remida e restrita ao enten-
dimento de como um original se re-origina na tradução enquanto o texto traduzido que se pô-
de estabelecer. Esse traduzido (um outro original ele mesmo,), junto ao qual o sentido do ori-
ginal adere, é fixado na tradução, pela tradução e com a tradução. Nossa perspectiva, contudo,
é de que o estudo da tradução não se origina no original nem no originado, mas naquilo que
de um se transmitiu e re-transmitiu ao outro; na consideração de um sentido plorívoco e mul-
tilateral: multiversal ao invés de universal. O que ao invés de aderir, se desprende.; o que to-
ma ao invés de dar; o que recebe ao invés de oferecer:

“(...)eis então” – eu cito Michel Serres – “o professar-se uma fé que não se


orgulha da falsa honraria da fidelidade. Eu não estou preso, objeto algum possui essa
qualidade cerceadora, que ata alguém a virtude. Eu não pertenço ao primeiro objeto
que me constrange. Estou quebrando o circulo, do toma lá da cá, o circuito do ofer-
ta-se e do receber-se.” (1982b. p. 9)

A tradução como processo, como passagem, como o que está em trânsito. O traduzir
flagrado, que na sua singularidade, não pode ser traduzido por que, no momento em que o fi-
xamos para análise, em que paralisamos seu gesto, em que o estabelecemos como obra tradu-
zida: eis que ele – o processo – fugidio, deixa esvair o conteúdo dinâmico de sua modificada e
modificante processualidade. Apenas a tradução é intraduzível, mas somente no momento (a-
temporal) e no lugar (inconcebível) em que traduz.
Onde esse flagrar a tradução em seu momento de perigo? – Como capturar o seu sal-
to (interlingual) entre dois mundos, calcular a trajetória (diferencial) do arco que descreve a
saraivada de flechas que uns viram partir e outros vêem chegar? (VIVEIROS DE CASTRO,
2011). Onde mais se não na trajetória mesma do tradutor que, numa virada de jogo trikster,
faz autoanálise de sua tradução tomar ares de rigorosíssimo método auto-reflexivo para o es-
tudo da tradução enquanto coisa transformada, e reinventada. Pois quem mais, senão o pró-
prio tradutor tem acesso a caixa preta de sua própria tradução?
Acredito que o tradutor de hoje em dia tem o dever e a tarefa de expor o processo, de
refletir sobre suas escolhas, suas recriações e recreações. Essa é a parte boa – mas cumpre
também expor seus erros, seus pecadilhos com as Belle-Infidelles que moram ao lado, suas
domesticações prevaricantes e inconfessáveis. Ao tradutor cabe abrir o capô do seu sistema
7

binário e – mais do que descrever o funcionamento do mecanismo – cabe a ele diante de sua
perspectiva privilegiada testemunhar acerca de seu processos de transformação do multiverso
processual de sua tradução.

6 UM EPÍLOGO POR EXEMPLO


Tomemos um exemplo daquilo que eu pretendo realizar como análise de um proces-
so de tradução, de orientação ao processo no procedimento mesmo de análise. Verifiquemos
mais detidamente o impacto da rima interna e o conflito entre sua função de delimitação es-
trófica na tradição e sua função estrutural no horizonte do original e tradução de uma oitava
de Byron, conforme propomos:

But Inez was so anxious, and so clear Inez, que tinha seis olhos de águia
Of sight, that I must think, on this occasion, fingia que perdia alguns detalhes:
She had some other motive much more near Juan estar sozinho e sem vigia
For leaving Juan to this new temptation, e Júlia estar por perto pra atentar-lhe.
But what that motive was, I sha'n't say here; só não sei bem dizer por que fazia –
Perhaps to finish Juan's education, Talvez por Don Juan, para educar-lhe,
Perhaps to open Don Alfonso's eyes, Talvez por Don Alfonso, aquela anta,
In case he thought his wife too great a prize. pra mostrar-lhe que a mulher não era santa

(Don Juan, I, ci)

Aqui temos, logo de início, uma grafo-rima, iconica/irônica: águia - vigia - fingia).
A matéria rimada, note-se, resume a função, da personagem D. Inez na trama dessa oitava –
retomando a trama que se começou a urdir na XCVII. No primeiro verso, a rima interna de
Inez -Seis reflete essa transformação que toma a superproteção sempre alerta da mãe Inez,
resolvendo-a nos seis olhos de águia! A transformação, inusitada mas produtiva, nas duas di-
reções que mesmo a tradutologia mais tradicional saberia apreciar – amicíssima que é do bi-
narismo e da dicotomia. Por que de um lado, aquele dos sentidos di-versos e significados re-
versos, do que o verso quer versar, da semântica imaculada de suas dez silabas, a solução –
quase um soluço, em vista da paridade muito próxima da rima – intensifica esse valor de que
nada escapa aos olhos (seis!) dessa mãe coragem/rapinagem.
Mas também naquele plano fônico, do verso como unidade sonora, o jogo de inez -
seis projeta e complica a zona emaranhada desse rizoma. Porque, difusamente, de alguma
8

forma (e ao mesmo tempo em que suporta e intensifica o sentido da sentença que habita o
verso), ela também faz menção ao próprio heroísmo do decassílabo – levando a tona nossa
tese de que a forma significa e contém como é contida. A rima interna culmina no seis, que é
– não por acaso – a sexta sílaba e que cumpre a função do acento tônico principal que com-
preende e caracteriza a assinatura tônica. E a rima intensifica também essa intensidade acen-
tual sonora: demonstra que a rima, a despeito da opinião de muitos2, pode assumir, sim se-
nhor, uma função importante no algo-ritmo acentual, na assinatura e caracterização de uma
medida, mesmo em nosso contexto de versificação silábica. Mais do que isso, ilustra-se aqui o
modo pelo qual desfaz-se essa oposição de som e sentido: o que aqui soa significa, reforça e
modaliza o sentido ao invés meramente adorná-lo. E redime o inusitado da rima icônica, mu-
da, perturbadora em sua função visível apenas, inaudível sempre. Rima para os olhos, muda e
sitiada por material sonoro hostil: o jogo heróico (inez - seis) e depois, já no segundo verso, a
retomada da rimas certas (fingia - perdia) no lugar errado (o começo do verso) que ameaça
descaracterizar a estrofe; inflacionar a oitava real com um cabedal de rimas internas.
Mas, a despeito da campanha do fônico contra o icônico, essa esperada entropia so-
nora absolutamente não ocorre. O sistema permanece em equilíbrio. Note o leitor, que para tal
estabilidade se mantenha, sem dúvida contribui o, paralelismo rigoroso dos pares rimados
Inez - seis e fingia - perdia. O fato de que o perdia reassume no segundo verso a posição e
função do seis faz toda a differance: inadvertida que tenha sido a operação no momento heu-
rístico da invenção re-criadora do verso, não passa despercebida no momento hermenêutico,
anterior e subsequente, de interpretação análise e inventariamento do inventado. Um amplo
emaranhado no diagrama interno de forças sonoras semânticas e iconicas, uma multiplicidade
de flechas/arrows errantes. De inez pra seis, de fingia pra inez, de fingia para perdia, de perdia
para seis, de Águia para detalhes (tão pequenos de nós dois) e para vigia, e contro-verso, o
re-verso da medalha: as flechas que uns vêem partir e os outros vêem chegar.
Há traduções operando no interior mesmo do texto traduzido. A aparência sólida e
monótona da oitava traduzida desfaz-se ao revelar uma rede interna de relações insuspeitadas.

2
Augustin Calvo, inclusive – em graus diversos nos diferentes § sobre a rima em seu catatau.
9

7 REFERÊNCIAS

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lingue: Clássicos da Teoria da Tradução, Volume I, Alemão Português. Tradução Susana
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_____.Hermes: Literature, Science, Philosophy. Josue V. Harari & David F. Bell (Ed.) Balti-
more, The John Hopkins University Press, 1982.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Inglês Aba de anexos para salvar artigo

GENRE EXPECTATION AND ITS INFLUENCE ON EFL BRAZILIAN STUDENTS’


INFERENCE GENERATION AND READING COMPREHENSION:
PILOT STUDY INSIGHTS

Deise Caldart1 (PPGI/UFSC)

ABSTRACT

The present study aims at reflecting upon the partial results of an Applied Linguistics pilot
study, highlighting its important for the evaluation and review of the materials used for data
collection. The research focus was to verify whether different text types – narrative and
expositive – influenced the inference generation of Brazilian students of English as a Second
Language, as well as whether the number of inferences made had any influence on
participants‟ level of comprehension. The pilot study consisted of the analysis of the results
from the Pause Protocol (CAVALCANTI, 1989) adapted by Tomitch (2003) applied to eight
English Master students from UFSC, divided in two groups, during the reading of two texts
written in English (L2), as well as the quantitative analysis of some reading comprehension
questions, a retrospective questionnaire and a readers‟ profile. The inferences generated by
students were transcribed and analyzed according to Narvaez et al.‟s (1999) Inference
Categorization Model. The experience of piloting the materials was very important for two
reasons, firstly because it permitted a better familiarization with the procedures for data
collection, and also because through the pilot study it was possible for the researcher to
become aware of issues that had to be solved before conducting the main research.

Keywords:
Reading Comprehension. Inference Generation. Genre Expectation.

RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo refletir acerca dos resultados parciais de um estudo
piloto em Linguística Aplicada, salientando sua relevância para a avaliação e revisão dos
materiais utilizados na coleta de dados. A pesquisa teve como foco verificar se diferentes
tipos textuais – narrativo e expositivo – influenciam a geração de inferências de estudantes
brasileiros de Inglês como Segunda Língua, bem como se o número de inferências geradas
possui alguma influência no nível de compreensão textual dos participantes. Para a realização
deste estudo piloto foram analisados os resultados obtidos através da aplicação do Protocolo
de Pausa (CAVALCANTI, 1989) adaptado por Tomitch (2003) a oito estudantes do curso de
Pós-graduação em Inglês da UFSC, divididos em dois grupos, durante a leitura de dois textos
escritos em Inglês (L2), além da análise qualitativa de perguntas de compreensão escrita, de
um questionário retrospectivo e um perfil leitor. As inferências geradas pelos estudantes
foram transcritas e analisadas de acordo com o Modelo de Categorização de Inferências
proposto por Narvaez et al. (1999). A experiência do estudo piloto foi de grande importância
por dos motivos, primeiramente por ter proporcionado maior familiaridade com os
procedimentos de coleta de dados, e também porque através dele foi possível perceber
problemas que precisariam ser resolvidos antes de conduzir o estudo principal.

Palavras-chave:
Compreensão Leitora. Geração de Inferências. Expectativa do Gênero Textual.

1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras - Inglês e Literatura Correspondente da UFSC; e-mail:
deise.caldart@hotmail.com.
2

1 INTRODUCTION
Conducting research demands a lot of commitment, from the first steps, such as
deciding the research topic and the hypotheses, to the last ones, such as data collection and
analysis. In the middle of this path are the pilot studies, which need to be carefully prepared in
order to help the researcher to achieve the objectives proposed. According to Van Teijlingen
and Hundley (2001), “The term „pilot studies‟ refers to mini versions of a full-scale study
(also called „feasibility‟ studies), as well as the specific pre-testing of a particular research
instrument such as a questionnaire or interview schedule” (p.1).
As stated by Mackey and Grass, “pilot testing is carried out to uncover any problems,
and to address them before the main study is carried out” (2005, p.43). Pilot studies are
necessary to avoid any further problems, such as materials that do not provide relevant
information, questions that have double meaning, incorrect instructions, among others.
Although it may seem that careful preparation and organization can replace the need of a pilot
study, only after piloting the researcher becomes aware of the problems his/ her procedures,
methods and material may have. Also, data from pilot studies can be useful for the main study
(MACKEY AND GRASS, 2005).
Based on the above, the objective of this paper is to report the experience of
conducting a pilot study, as well as reflecting on the steps for conducting research, improving
the instruments and getting familiarized with the procedures for data collection.

2 CONTEXT OF INVESTIGATION
Studies that investigate the role of inference generation process on reading
comprehension have been increasing in the last decades, especially regarding how it is
influenced by the reading purposes and text genres. Nevertheless, according to Baretta (2008),
the number of studies regarding the narrative type of text as stimuli is much more significant
than the expository one. Moreover, there are even fewer studies that have compared the
effects of both text genres on inference generation process. Furthermore, it is also important
to highlight that most research about how inference generation process is affected by different
reading purposes and text genres were carried out in relation to L1 (First Language), not
second or foreign languages.2
Regarding the above mentioned evidence, the need of filling this gap is the
motivation of my MA thesis, which aims at investigating how the expectation of different text

2
For the purpose of this study, I am not differentiating Foreign Language (FL) from Second Language (SL).
3

genres – a news story and a literary story - influence EFL (English as a Foreign Language)
students‟ process of inference generation. This paper presents the insights of a pilot study,
which aimed at checking materials validity and getting familiarized with the procedures for
data collection.

3 THEORETICAL BACKGROUND

3.1 Inference generation


For social interactions to occur in a satisfactory way, it is necessary that individuals
make inferences regarding each other‟s attitudes, feelings, and words. In this sense, the ability
to generate inferences is mandatory in order to interpret and understand the world. This
assumption is also true concerning reading, once the ability to make inferences about the text
being read is essential for its satisfactory interpretation and comprehension.
The term inference refers to “any information about events, relations, and so on that
the reader adds to the information that is explicitly presented” (VAN DEN BROECK, ET
AL., 1995, p.353). According to Baretta et al. (2009), the ability to generate inferences is “a
constructive cognitive process in which the reader strives for meaning and expands
knowledge by formulating and evaluating hypotheses about the information in the text” (p.
138). The reason why inference generation is mandatory for text comprehension is that it
connects what is printed on the page to the reader‟s previous experiences, helping him/her to
make sense out of the text. So, a reader that is able to connect his/her background knowledge
with the information presented on the text is more likely to comprehend it in a satisfactory
way. As opposed to it, failure in making these connections between the text and their previous
knowledge may cause readers not to remember and even to misunderstand the text
(BARETTA ET AL., 2009). According to Kleiman (1989), there is a great number of studies
that present evidence that what is remembered by the reader afterwards is not what the text
explicitly stated, but the inferences he/she made during reading.
It is important to highlight that the interpretation of a text is probably never going to
be the same for different readers, because their previous experiences are not the same, which
means that the inferences they are going to generate while reading are not going to coincide
either. For this reason, the text is not the starting point of the reading comprehension process,
it is the reader, who creates a new text on every reading, depending on his/her experiences,
and also makes reading a dynamic activity, where he/she can approach and read texts in
several ways, depending on the purpose.
4

3.2 Genre expectation


Bazerman (1994, apud MARCUSCHI, 2011) states that genres are dynamic and
change over time, the reason why it seems to be impossible to catalogue them. There are
genres that are well known because they have been circulating in society for a long time and
seem to be essential for communication, others have just been created due to some new
necessity, and there are also those that were necessary for some time and were after
extinguished. In this sense, genres are not only dynamic (because they can change over time),
but also flexible (because they can be connected to other genres and create new ones). Text
genres also differ among societies, so the rhetoric features of a genre in one culture may not
correspond to its structure in another one.
According to Swales (1990) the term „genre‟, is used to refer to different categories
of spoken or written discourse. He defines genre as “a class of communicative events the
members of which share some set of communicative purposes being communicative vehicles
for the achievement of goals” (p. 58). Marcuschi (2003) states that genres are generally
defined by their function and form, but sometimes it is also possible to define a genre based
on its source. As a result, a same text circulating in distinct mediums is going to be
categorized as pertaining to two different genres.
Distinct text genres may present similar linguistic features. A news story and a
literary story, for example, may both present narrative and descriptive attributes, making it
difficult to ensure the text genres without knowledge of the source. As opposed to it, two texts
pertaining to a same genre may present distinct traits, so one news story may have more
narrative features as compared to another one presenting a greater incidence of expository
characteristics.
More mature and skilled readers are more likely to approach texts differently
depending on their purpose (study and entertainment, for example). It is well acknowledged
among reading researchers that reading purpose and text type are strictly connected. There is
also a growing number of specialists who believe that more skilled readers also approach texts
in distinct ways according to their genres, crating expectations about them (ZWAAN, 1994;
KINTSCH, 1980:87, apud ZWAAN, 1991; MIALL, 2002; GRABE, 2009).
In this sense, knowledge of the genre of a text may facilitate readers‟ approach to it,
because they will already know what to expect from it in terms of structure. So, even though it
is not possible to identify the source of a text, more experienced readers are likely to be able
to recognize specific features of that genre and generate expectations related to it, facilitating
comprehension.
5

4 READING PURPOSES, TEXT GENRES AND THEIR INFLUENCE ON


INFERENCE GENERATION PROCESS: RELATED STUDIES
No reading act is performed without a purpose, and it is acknowledge among reading
specialists that reading purpose influences the way a text is going to be approached.
(AEBERSOLD & FIELD, 1997). Reading in order to study for a text generally demands a
more careful reading than when this activity is performed for pleasure, for example.
Furthermore, there is a close relationship between reading purpose and text type, so the
selection of a narrative text is likely to happen for entertainment purpose, while reading for
study purposes normally determines the choice of an informative text (DAVIES, 1995). In
addition, the reading strategies the reader is going to apply in order to apprehend the meaning
of a text are also influenced by the reading purpose.
Narvaez et al. (1999) carried out a study on how reading purpose influenced
inference generation and comprehension in L1 reading. Their findings showed that
participants reading with a study purpose generated more repetitions, knowledge-based
coherence breaks and evaluative kinds of inferences, than those reading with an entertainment
purpose. As regards the genre of the texts, participants reading narrative texts generated more
explanations and predictions inferences, while more knowledge-base coherence breaks,
evaluations and associations were made by participants reading the expository text. This
research findings revealed that not only the reading purpose, but probably the text type
influence the kinds of inferences readers make.
Zwaan‟s (1994) carried out a study on the effect of genre expectations on text
comprehension. His findings showed that the expectation of reading a specific text genre
influences readers processing resources allocation. Zwaan also found out that reading times
for students reading a literary text were longer, and they also demonstrated better memory for
surface information and poorer memory for situational information than the students reading
the news text, which means that the expectation of a literary genre induced students to pay
more attention to details, that in this text genre tend to make a difference at the end of the
story, as opposed to news texts, where details are not so relevant.
Inference generation while reading different text genres was also studied by
DuBravac and Dalle (2002), who conducted a research regarding narrative and expository
textual inferences on L2 reading. Their findings showed that more inferences were generated
when reading the narrative texts, while more miscomprehension was observed for the
expository ones.
6

Baretta (2009) carried out an ERP study, in order to verify whether inference
generation was influenced by different text types. Her findings suggest that narrative and
expository text types are processed differently by the brain.
Numerous studies have been conducted regarding inference generation process,
especially in the past thirty years. The pieces of research presented above are just a small
portion of these studies.

5 METHOD
5.1 Participants
A group of 8 students from the second year of the English Master Program, from
Universidade Federal de Santa Catarina, participated on this pilot study. The students were all
native speakers of Portuguese, proficient speakers of English as a Second or Foreign
Language. These participants were selected for having a similar profile to the ones who were
going to participate on the main research, i.e., EFL proficient students from the last year of
the Letras Course.
This Pilot Study was conducted in order to check whether the texts, instruments and
procedures for data collection were adequate for the objectives of my thesis. According to
Tomitch (2007), a pilot study can „save‟ a research, because it makes the researcher aware of
the adjustments that have to be performed before conducting the main study, avoiding
problems that can even invalidate it.

5.2 Instruments
Two texts were used, being one narrative and one expository. Although the texts
were from different genres (a news story and a narrative story), when reading any of them,
students should not be able to notice the difference. As the main research intends to check
whether students‟ expectation about the text genre lead them to different inference generation
or not, the selection of the texts was done in a way that the narrative and the expository texts
could be classified in both genres, so, for one of the groups a text was presented as being
expository, while the same text was presented as narrative to the other group, and vice versa.
Both texts selected were authentic, Text A being originally a news story, while Text B
was originally a literary story. The practice text used was a travelogue and was chosen
because it was also used as a practice text by Zwaan (1994). Some presumably difficult words
from the practice text were replaced by synonyms, in order not to scare students about the
7

level of difficulty of the texts. The texts were pre-piloted, with two different participants, in
order to check whether they were really adequate for the objectives of my research.
As stated by Afflerbach and Johnston (1984, apud TOMITCH, 2007), if the
researcher wants the participants to feel the need to verbalize, it is necessary that the
processes become nonautomatic. This state can be reached by using texts containing some
kind of problem for the reader to solve. In both texts used in the pilot study, the problem was
presented in the content of the texts, where readers had to generate inferences in order to
connect ideas among paragraphs.
The Pause Protocol (CAVALCANTI, 1989) was also employed, in the version
adapted by Tomitch (2003), in which participants are asked to verbalize their thoughts
whenever they notice a pause in their reading flow, and also at the end of each paragraph,
where a red dot is placed, to remember them to say something about what they have just read.
According to Tomitch (2007), in order to achieve better results, it is important that a
triangulation of data is carried out, using more than one methodology for data collection, as,
for instance, self revelation (think-aloud) followed by self-observation or self-report. By
means of data triangulation, the researcher is going to feel more confident and is also going to
have more evidence to make generalizations regarding the reading process being researched.
For this reason three instruments were used, besides the Pause Protocol. A reading
comprehension questionnaire, containing both multiple-choice and open ended questions, a
retrospective questionnaire regarding students perception of texts and tasks, and a reader‟s
profile, which intended to collect evidence about students reading habits and behavior.

5.3 Procedures for data collection


After explaining the general purpose of the study, participants received a sheet of
paper with the instructions for the pause protocol, which were read aloud and explained by the
researcher, as advised by Tomitch (2007). The version of the Pause Protocol
(CAVALCANTI, 1989) adapted by Tomitch (2003) was used because it not only avoided the
researcher interference, but also avoided asking the participants information that demanded
reflection.
Participants were allowed to verbalize their thoughts as they felt more confident,
either in English or in Portuguese. The verbalization of both texts was recorded for further
transcription and analysis. As the objective of this pilot study was to test the instruments and
procedures, I did not categorized all the inferences that were generated, but checked whether
8

there was a significant amount of them, and whether they were suitable to be categorized
according to Narvaez et al.‟s (1999) Inference Categorization Model3.
Students were divided in two groups. The first group was asked to read text A and
was told that it is an expository text. Afterwards, this same group read text B and was told that
it was a narrative text. Students from the second group did quite the opposite: they read text A
as if it was a narrative text. Then, they read text B, being told that it was an expository text.
Both texts were read in the same individual session.
As already mentioned, both texts (A and B) were selected in a way that when reading
them, the students believed that they are expository or narrative, depending on the instruction
received. In sum, following Zwan (1994), both texts have to be suitable to be categorized in
both genres.
A practice text (see Appendix A) was used before the experimental texts, in order to
make sure students were going to perform the task as instructed. The practice text was a
passage from a travelogue, which according to Zwaan (1994) is a genre considered to be
somewhere between literary and new stories. This travelogue was previously used by Zwaan
(1994) in his study, also as a practice text. Instructions were read and explained to the
students before reading the texts. They were adapted from Zwaan‟s (1994) (see Appendix A).
Before starting to collect data, the instructions for the Pause Protocol were read and
explained to the students. As the Pause Protocol (CAVALCANTI, 1989) adapted by Tomitch
(2003) was chosen to be used, students were asked to read the texts silently and stop
whenever any thought comes to their mind, verbalizing it. Also, at the end of each paragraph
there was a red sign, indicating that participants had to verbalize about their reading process at
that moment, even if they had already done it. At the end of the text, participants were
instructed to summarize the text and give it an appropriate tile, based on its content and genre.
After reading and verbalizing their thoughts, participants were asked to answer to
some comprehension questions (multiple choice and open-ended) regarding both texts, the
narrative and the expository. Afterwards, students also answered a retrospective
questionnaire, containing questions about their perception of the texts (level of difficulty),
self-evaluation regarding the comprehension questions and any other possible issues. Finally,
participants filled in a readers‟ profile, containing questions about their reading habits and
behavior.

3
Narvaez et al.‟s (1999) Inference Categorization Model classifies inferences in seven categories, being
explanations, associations, predictions, evaluations, text-based coherence breaks, knowledge-based coherence
breaks and repetitions.
9

6 PILOT STUDY INSIGHTS


Even though my pilot study was a small scale one, it made me aware of many issues
that had to be solved before conducting the main research. The first regarded the procedure
for data collection; I realized that one hour individual sections with the participants would be
enough for them to read and verbalize the texts, and answer to the proposed questionnaires.
As regards the think-aloud protocol, Ericsson and Simon (1984/1993, apud
TOMITCH, 2007) state that some participants are going to verbalized more than others and
even feel more comfortable performing this task, the reason why it is important to take into
account the differences among the individuals who are participating of the study. In order to
do so, the questions from the readers profile were improved so as to cover aspects regarding
reading habits, genres familiarity, English reading frequency and critical reading. This
questionnaire is also going to help the data analysis from the pause protocol in the main study,
because a reader that is not used to read a specific genre may have more difficulty in
generating inferences about it, among other clarifications that the profiles may provide.
Another issue that had to be solved regarding the think aloud-protocol was the
language used for verbalization. It was possible to observe that letting participants free to
choose the language they felt more comfortable to speak was not the best option. Participants
who have chosen to verbalize their thoughts in English seemed to have vocabulary and
fluency issues that jeopardized their performance. For this reason, for the main study,
participants are going to read the texts in English, but they are going to be instructed to
verbalize their thoughts in Portuguese. It is acknowledged that code-switching may influence
participants‟ performance, but as the main objective of this study is not to check English
proficiency, I believe this decision is going to have less influence in the results than
participants‟ inability to verbalize.
As regards the reading comprehension questions, some questions were excluded,
included or modified after the pilot study, because I could observe that some of them were too
broad, others allowed double understanding and there were some where it was possible to find
the answer in the question itself. The reading comprehension questions were also useful to
verify if students really comprehended the texts.
The retrospective questionnaire did not need many changes, but the pilot study
allowed me to realize that some students were classifying the level of difficulty of the
instruction text, instead of the first text, so for the main study I made it more explicit in the
instructions.
10

7 FINAL REMARKS
Previous to the Pilot Study described in this paper, a Pre-pilot Study was carried out,
with two different MA classmates, in order to check whether the texts were adequate for the
level of the participants. After collecting data many things had to be adjusted, among which
the Pause Protocol explanation, the inclusion of a practice text, and the fact that students
shouldn‟t be allowed to perform the task alone in the room, because they might forget to
verbalize. As a result, the experience of pre-piloting my study showed me that I had to pilot it
one more time, with all the materials, in order to avoid any problems when conducting the
main research. I believe that the more experience one has in performing a task, the better this
task is going to be performed, and piloting also gave me more confidence not only regarding
the data collection, but also for its further analysis. For this reason, the pilot study described
in this report was conducted, where all instruments‟ validity was tested. After conducting the
pilot study I was able to have a better understanding of my own material and to improve it. I
was also able to confirm van Teijlingen and Hundley‟s statement that “Conducting a pilot
study does not guarantee success in the main study, but it does increase the likelihood” (2001,
p.1).

8 REFERENCES

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perspective on reading rate and surface structure representation. Poetics. North-Holland:
Elsevier Science Publishers B.V., v.20, 1991.
12

APPENDIX A – PRECTICE TEXT

Instructions for Group I: The following text is an excerpt from a news story published
on New Times Newspaper on 1986, by de Volkskrant. Please read this text just as you
would normally read a news story.

 Based on the information presented, give this news story an appropriate title.

Instructions for Group II: The following text is an excerpt from a novel by de
Volkskrant. Please read this text just as you would normally read a literary story.

 Based on the information presented, give this novel an appropriate title.

___________________________________________

His first confrontation with the police dates from winter 1983. He studied to be a stage
director at night-school. During daytime he worked in a studio. The lack of energy was
severe. It was a consequence of megalomaniac investments in the petrochemical industry.
Two measures become simultaneously operative: the energy price was multiplied and the
supply of energy was severely reduced. A propaganda campaign accompanied the cold under
the slogan: 50 percent materials, 100 percent performance. Sorin drew a man cut in two,
wrote the slogan underneath it, and sneaked at night to a factory gate. He placed the drawing,
believing himself unseen. 

The next day, he was picked up from his work. At first, he was treated in a friendly
manner at the police station. He was offered some coffee. During the interrogation, the central
question was by whose order Sorin had pinned up that drawing. Sorin remained silent. They
hit him. He refused to talk. They threatened to cut his wrists. He denied having anything to do
with the drawing. 

They showed him the door. “Just go.” As he walked down the corridor, an officer
grabbed hold of him and knocked him unconscious. When he came round, he lay in the corner
of a cell, his hands and face covered in blood. Two fingers of his right hand were paralyzed;
they had cut the tendons. He then was allowed to go. In the bus people wondered at his blood
covered face and hands. 
SUMÁRIO GERAL Sumário de Inglês Aba de anexos para salvar artigo

PONDO O PONTO: OS POSSÍVEIS EFEITOS DE SENTIDOS NA POSIÇÃO DO


PONTO NA ABREVIAÇÃO DE NOME PRÓPRIO

Clésia da Silva Mendes Zapelini 1 (PPGL/UNISUL)


Sandro Braga2 (UNISUL)

RESUMO

A partir da Análise do Discurso de vertente francesa, observamos como se dá o processo de


aprendizagem do ponto como registro gráfico inerente à modalidade escrita. Buscamos com-
preender o uso do ponto por duas crianças – quatro e cinco anos – estudantes do III Infantil do
Colégio Dehon – Tubarão, Santa Catarina. A análise pautou-se no registro, por parte dessas
crianças, do ponto como sinal gráfico de abreviação de palavra, nesse caso de sobrenomes,
semantizando diferentemente o primeiro nome, já que ambas possuem o mesmo nome pró-
prio. Nosso foco foi marcar como duas crianças com nomes iguais atribuíram sentidos dife-
rentes no registro do ponto ao escreverem os seus nomes e sobrenomes para identificar ativi-
dades realizadas. Os resultados apontam que a forma de abreviar o sobrenome pode remeter a
diferentes gestos de interpretação construídos pelas crianças.

Palavras-chave:
Discurso. Escrita. Ponto final.

ABSTRACT

From Discourse Analysis French line we noted how is the learning process of the point as a
graphic record inherent to the written modality. We seek to understand the use of the point by
two children - four and five years - students from the third Nursery of Dehon School- Tu-
barão, Santa Catarina. The analysis was based on the record, by these children, from the point
as a graphic sign of an abbreviation word in this case of surnames, semanticized unlike the
first name, since both have the same name. We have observed how two children with the
same names attributed meanings in the registry point to write their names and surnames to
identify the activity performed. The results indicate that the way to abbreviate the name may
refer to different acts of interpretation built by the children.

Keywords:
Speech. Writing. Final point.

1 UM OLHAR SOBRE O ACONTECIMENTO EM SALA DE AULA


O trabalho que esboçamos tem como ponto de partida a observação das atividades
realizadas pelos alunos que frequentam o III Infantil (crianças com idade entre 4 e 5 anos) do
Colégio Dehon, em Tubarão, Santa Catarina, durante a aula que ocorreu na tarde de 06 de
setembro de 2011. Mais especificamente nos deteremos a apresentar um acontecimento que

1
Doutoranda do Curso de Pós-Graduação de Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina e
Coordenadora Pedagógica do Colégio Dehon; e-mail: clesia.zapelini@unisul.br.
2
Professor do Curso de Graduação e Pós-graduação da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL); e-
mail: san15@ig.com.br.
2

nos chamou atenção, ou seja, as atividades que envolveram o uso da linguagem verbal e não
verbal. Particularmente, interessa-nos os registros gráficos que envolvem a modalidade escrita
desenvolvidos por duas crianças “Beatriz Almeida – 4 anos – e Beatriz Schuelter – 5 anos”3.
A pesquisa consistiu na observação das atividades propostas pela professora regente
da turma a partir da leitura da história “Descobertas de Miguel”, da autora Marilur-
des Nunes. Ao término da leitura da obra, a professora dialogou com as crianças sobre as des-
cobertas que Miguel havia feito. Em seguida, propôs que as crianças saíssem pelo pátio do
colégio fazendo as suas próprias descobertas, a partir do contexto da história contada. Ao vol-
tar para sala, cada criança foi orientada a desenhar em uma folha A4 suas observações feitas
durante a pesquisa de campo.
O que chamou nossa atenção e nos levou a refletir sobre o uso do ponto foi o modo
como essas duas crianças se apropriam do registro das representações icônicas (desenhos) e
simbólicas (nomes próprios e o próprio ponto). Observemos as imagens abaixo:

Figura 1 – Atividade realizada por Beatriz Almeida.


Figura 2 – Atividade realizada por Beatriz Schuelter.

As duas crianças inseridas neste universo do letramento fizeram o desenho buscando


representar suas descobertas, assim desenharam árvores, borboletas, pessoas, entre outros. Ao
fim da atividade, a professora perguntou para cada criança qual foi a descoberta realizada e
Beatriz Almeida respondeu que “Das árvores caem as folhas” e Beatriz Schuelter falou que
“As árvores são grandes e caem sementinhas com água”. A professora digitou a frase e recor-

3
A observação foi realizada com autorização da professora docente. E temos autorização dos pais das referidas
3

tou, em seguida colou o texto no espaço em branco que havia na folha do desenho, também
colou um retângulo com as palavras “A DESCOBERTA DE ........” e pediu para que cada
criança completasse a frase com o respectivo nome, pois aquela seria a descoberta de cada
criança. Dessa forma, cada criança da sala escreveu o seu nome no espaço. Dessa atividade, a
forma como duas alunas atendem o comando da professora nos chama a atenção: Beatriz
Schuelter coloca o seu nome e abrevia o sobrenome Schuelter apenas com a letra “S” e o pon-
to “.”, embora pareça não saber ao certo que o ponto na gramática significa a abreviação, para
Beatriz o “S.” significa Shuelter. Beatriz Almeida, que está sentada ao lado de Beatriz Schuel-
ter, no momento de registrar seu nome, escreve Beatriz.A, ou seja, o ponto aparece entre o
nome o sobrenome representado pela letra A.
É a partir desse contexto de observação e possibilidades de interpretações inerentes
ao uso do ponto que alguns questionamentos passam a fazer parte de nossas reflexões:

• Podemos dizer que a posição em que foi colocado cada ponto vai em direção dife-
rente do uso do ponto final?

• Como as crianças foram interpeladas diante das oportunidades que as mesmas têm
de observar e participar de atos de letramento em situações cotidianas?

• Quais as orientações que a professora realiza em relação ao uso do ponto?

• Como cada criança mobiliza o ponto diferentemente com marca de singularidade?

• De que forma as duas crianças com nomes iguais atribuíram sentidos no registro do
ponto ao escreverem os seus nomes e sobrenomes para identificar a atividade realizada?

• Podemos dizer que a sequência discursiva que cada uma elaborou tem uma estrutu-
ra que se produziu como acontecimento inerente à entrada no mundo da escrita, mesmo ainda
não estando alfabetizadas?

Diante desses questionamentos, e através de um percurso de leituras e reflexões, par-


timos do posicionamento de que não é nossa pretensão, neste artigo, aplicar teorias em um

crianças para divulgação das imagens, nomes e atividades realizadas pelas alunas.
4

determinado corpus, mas fundamentalmente, analisar o sujeito que se constrói neste universo
do letramento onde parece que as crianças estão inseridas desde o seu nascimento.

1.1 Possibilidade de interpretação a partir de olhares teóricos


Nossas reflexões a respeito do local em que cada criança colocou o ponto e os possí-
veis sentidos atribuídos pelas crianças estão sendo guiadas pelos pressupostos da Análise do
Discurso de “linha” francesa e nos postulados da Teoria Sócio-Histórica do Letramento.
Segundo Pecheux (2002), toda sequência discursiva tem uma estrutura e se produz
em um acontecimento, assim podemos pensar que, a partir do funcionamento imaginário, a
pontuação realiza a mediação entre a língua enquanto estrutura e a língua enquanto aconteci-
mento discursivo. No entanto, para pontuarmos de acordo com a gramática normativa, é-nos
exigido que tenhamos um saber filiado a gramáticas compreendendo o funcionamento da lín-
gua, sobretudo, no funcionamento no registro da modalidade escrita. Mas ao pensarmos na
produção textual de crianças, principalmente no início da aquisição dessa escrita, podemos
perceber que diante de todo universo imaginário da criança o ponto não é apenas marca de um
corte, não serve só para marcar a finalização, mas vai marcar a possibilidade de continuar o
seu texto.
Essa possibilidade no remete ao dizer de Pêcheux (2002, p.53):

Todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si


mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro (a
não ser que a proibição da interpretação própria ao logicamente estável se exerça so-
bre ele explicitamente). Todo enunciado, toda sequência de enunciados é, pois lin-
guisticamente descritível como uma série (léxico-sintaticamente determinada) de
pontos de deriva possíveis, oferecendo lugar à interpretação.

Numa perspectiva histórica, a pontuação é considerada uma invenção tardia. Os si-


nais de pontuação não existiram durante séculos nos textos escritos (ROCHA, 1997). Segun-
do Ferreiro (1996) e Rocha (1997), o ponto surgiu com o objetivo de indicar pausas para res-
pirar durante a leitura em voz alta. Hoje as gramáticas já trazem o ponto enquanto recurso
necessário para a construção da textualidade. Schneuwly (1998) atribui que os sinais de pon-
tuação são essencialmente traços de operações de conexão e, sobretudo, de segmentação do
texto escrito, contribuindo, desse modo, na construção da coesão e da coerência textuais.
No caso de Beatriz Almeida e Beatriz Schuelter, a forma de estruturar o texto vai ser
diferente do que dispõe a gramática normativa, ou seja, o que parece fazer mais sentido é que
os objetivos das meninas não eram demarcar o final do texto ou apenas abreviar. Podemos
ainda dizer que ambas (alunas) fazem uso de uma mesma estrutura da língua para significar
5

diferentemente. Ao ser questionada sobre o nome escrito na folha, Beatriz Almeida menciona
que está colocando o “A” para não misturar a sua atividade com a atividade realizada pela
outra Beatriz. Ao mesmo tempo, enfatiza que colocou um ponto “.” entre Beatriz e Almeida
para que possa separar o nome, o que nos leva a conjeturar um processo de segmentação entre
o final do primeiro nome e a letra “A”. Beatriz Schuelter, por sua vez, afirma que o “S.” signi-
fica Schuelter. Portanto, pontuar depois do “S” pode inferir um ato de incompletude, segundo
Orlandi (2004), um silêncio fundante uma vez que não há sentido sem silêncio, assim a lin-
guagem é categorização dos sentidos do silêncio [...]. Também podemos fazer a mesma alusão
para o modo de registro de Beatriz Almeida, pois quando a aluna diz que colocou o “A” para
identificar a si, para ela, o “A” significa o mesmo que Almeida. Nessa perspectiva, Orlandi
(2008, p. 110) menciona que “as marcas de pontuação podem ser consideradas como manifes-
tação da incompletude da linguagem, fazendo intervir na sua análise tanto o sujeito como o
sentido”. Desse modo, podemos pensar que, tanto para Beatriz Schuelter quanto para Beatriz
Almeida, o ato escrever o nome e sinalizar de algum modo o sobrenome remete a uma forma
mais de identificação do que de autoria propriamente4.
As diferentes manifestações da escrita no cotidiano das crianças podem também ser
interpretadas, de acordo com os estudos de Orlandi (1996), sobre o discurso pedagógico5,
como o professor pode ter influenciado as crianças na escolha dessa marca. Vejamos:

4
Não entraremos, neste artigo, na discussão do seria autoria em sala de aula. Para essa abordagem ver Calil
(2004, 2007), Gallo (2008) e Tfouni (1994, 1995).
5
Orlandi (1996) caracteriza o discurso pedagógico como predominantemente “autoritário”, com base na distin-
ção feita entre três tipos de discurso: “lúdico”, “polêmico” e “autoritário” desenvolvido no seu livro A linguagem
e seu funcionamento: as formas do discurso.
6

Figura 3 – Local em que as atividades ficam expostas até as crianças levarem para casa no final do trimestre.

A imagem acima mostra o espaço em que a professora disponibiliza para que cada
criança, ao terminar suas atividades realizadas em folha A4, possa colocar nesse espaço. Nes-
se caso, o professor mostra a sua compreensão do ponto, enquanto marca apresentada pela
gramática normativa, e as crianças repetem de forma parafrástica esse ato mesmo sem com-
preensão das normas.
A exposição do alfabeto colocado na parede da sala, uma atividade comum nas esco-
las, principalmente nos últimos anos da Educação Infantil, 4 a 6 anos, e, no início da sistema-
tização da escrita nos primeiros anos do Ensino Fundamental, demonstra também que a pro-
fessora, mais uma vez, mostra como ela se posiciona frente às normas gramaticais.
Vejamos:

Figura 4 – Alfabeto exposto na sala e algumas palavras que iniciam com letra
7

Essa mediação do conhecimento está também associada à concepção de letramento6


da professora, assim, os possíveis sentidos atribuídos é resultado de como as crianças perce-
bem e vivenciam as situações em que estão em contato com a escrita, esse sentido orientará
sua relação com a escrita e o conjunto de tarefas escolares que envolvem o exercício da lin-
guagem escrita. Portanto, a relação que elas (as crianças) estabelecem com o nome e o ponto
são experiências vividas no cotidiano do Centro de Educação Infantil, em que vão construindo
um conceito sobre a escrita e atribuindo alguns dos possíveis sentidos.
Vale ressaltar que as práticas que envolvem a linguagem escrita no cotidiano da Edu-
cação Infantil vêm sendo incentivadas e orientadas pelos documentos oficiais do Ministério
da Educação e do Desporto e pela Secretaria da Educação Fundamental (MEC). Um dos pri-
meiros documentos que demarcou claramente o trabalho com a linguagem escrita foi o Refe-
rencial Curricular Nacional7 para a Educação Infantil (Brasil, 1998 -Volume 3.) O Referencial
Curricular Nacional da Educação Infantil (RCNEI,1998), documento destinado a subsidiar o
trabalho nas instituições de Educação Infantil, elaborado pelo Ministério da Educação, conce-
be a linguagem escrita como a compreensão de um sistema de representação e não somente
como a aquisição de um código de transcrição da fala.
O parecer do Conselho Nacional de Educação/ceb nº: 20/2009, aprovado em
11/11/2009, trata da revisão das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil e a
resolução nº 5, de 17 de dezembro de 2009, fixa as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação Infantil e privilegia o espaço para tratar da linguagem escrita enquanto experiências
de narrativas, de apreciação e interação com a linguagem oral e escrita, e convívio com dife-
rentes suportes e gêneros textuais orais e escritos.
A partir da ênfase dada para a linguagem escrita por parte da professora e a partir dos
documentos do MEC, podemos dizer que a professora procura inserir em suas aulas a lingua-
gem escrita, embora não tenha se dado conta sobre a forma como a criança simboliza a sepa-
ração entre palavras e o uso do ponto nas produções.
A ser questionada, a professora menciona que até o momento não explicou o signifi-
cado do uso do ponto. A criança tenta as suas possibilidades de sentidos a partir do que vê o

6
Segundo Corsino (2009, p. 43), “o letramento é um conceito multidimensional que, entendido como um estado
ou uma condição, refere-se a um conjunto de comportamentos variados e de diferentes níveis de complexidade
abrindo-se a uma infinidade de perspectivas de abordagem.”
7
O RCNEI é composto por três volumes: o documento Introdução com informações mais gerais sobre creches e
pré-escolas no Brasil; o volume ligado ao âmbito da Formação Pessoal e Social que trata dos processos relativos
à constituição da identidade e da autonomia pelas crianças; e o terceiro volume, Conhecimento de Mundo, con-
tendo os eixos de trabalho orientados para a construção das diferentes linguagens pelas crianças: Movimento,
Música, Artes visuais, Linguagem oral e escrita, Natureza e sociedade, Matemática.
8

professor fazer constantemente em sala. Para Beatriz Schuelter, o espaço entre o nome Beatriz
e a letra S é um espaço em branco – um silêncio – de sentido que desenha uma materialidade
do texto. Já Beatriz Almeida vai demarcar o espaço com o ponto, porque este ponto serve para
fazer uma demarcação, uma separação da segmentação escrita, assim desenhará outra forma
de materialidade ao texto. Segundo Orlandi (2008, p. 111), “a finalidade é compreender a
relação estabelecida entre a instância do real do sentido (e do sujeito) na ordem do discurso e
a instância imaginária da organização seja das palavras, das frases ou do texto em si.” Dessa
forma, cada criança mobiliza o ponto diferentemente com marca de singularidade, ou seja,
cada uma busca sua posição de sujeito a partir da expressão discursiva de sua singularidade,
não como uma propriedade fixa do sujeito e do discurso, mas como um sempre por advir.
Silva (2010, p. 02) corrobora com este posicionamento quando atribui que:
O sujeito do discurso (inconsciente e desejante) constitui-se no processo discursivo
em que está inserido. Então, sua singularidade é resultante desse processo e de seus
aspectos constitutivos de funcionamento para produção de sentidos, da articulação,
dentro do acontecimento discursivo, da língua, da história e ideologia. Podemos in-
ferir que a singularidade do sujeito discursivo e - como esse mesmo sujeito – um
processo submetido ao histórico e ao ideológico. A marca de singularidade constitui-
se no modo de funcionamento, da língua, no interior da pratica discursiva.

A sequência discursiva que cada criança elaborou tem uma estrutura que se produziu
como acontecimento inerente à entrada no mundo da escrita, mesmo ainda não estando alfa-
betizadas, pois a linguagem escrita é objeto de interesse dessas crianças. O documento de Re-
visão das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 2009) destaca
que o interesse da criança está associado à forma de apresentação da escrita no ambiente em a
mesma está inserida, ou seja, a criança está vivendo em um mundo onde a língua escrita está
cada vez mais presente. Disso, pode-se concluir que as crianças começam a se interessar pela
escrita muito antes que os professores a apresentem formalmente. De acordo com esse contex-
to, podemos inferir que as alunas, Beatriz Almeida e Beatriz Schuelter, ao elaborarem suas
produções escritas, tematizando o uso do ponto, estão simbolizando a partir dessas diferentes
manifestações que as rodeiam e, ao fazer isso, subjetivando-se. Ou seja, ao escrever sobre si
(seus nomes) dizem muito mais de si do que imaginam dizer.

1.2 Considerações Finais


Olhar o ponto pela gramática nos remete a pensar o ponto enquanto recurso necessário
para a construção da textualidade, mas no caso do uso do ponto pelas crianças, Beatriz Al-
meida e Beatriz Schuelter, nos leva a conjeturar o uso do ponto não apenas como marca de
um corte, mas também uma sinalização simbólica de continuidade. O ponto inserido nas duas
9

situações se insere na constituição de outros sentidos que podem ser atribuídos ao texto. Dito
de outro modo, o ponto visto como discurso serve para mostrar como essas crianças se subje-
tivam pela modalidade da escrita, ou ainda, como escrever a letra ou o ponto implica em co-
mo a criança se inscreve nesse processo.
Podemos inferir que ao mesmo tempo em que a criança adentra ao universo do letra-
mento, ela se produz como um sujeito outro, um sujeito capaz de ler (nesse caso de interpretar
o ponto, interpretar uma letra), algo não possível quando a criança detinha percepções apenas
do universo da modalidade oral de sua língua.

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SUMÁRIO GERAL Sumário de Inglês Aba de anexos para salvar artigo

REPRESENTAÇÕES DE PROFESSORES DE INGLÊS DO SOME:


WHAT IT TAKES TO BE A GOOD TEACHER?

Sílvia Cristina Barros de Souza (PPGI/ UFSC)1

RESUMO

Esse artigo propõe discutir as possíveis representações de um grupo de professores de Língua


Inglesa como segunda língua do SOME (Sistema de Organização Modular de Ensino) de
Santarém Pará, um projeto criado em 1980, com o intuito de levar o ensino médio regular
para as comunidades ribeirinhas distantes das cidades, com relação ao ensino e aprendizagem
da língua inglesa e com relação a eles mesmos enquanto falantes. Uma vez que as percepções
que os professores têm da língua em geral podem influenciar diretamente suas práticas
pedagógicas, neste estudo as experiências educacionais, profissionais e pessoais dos
participantes foram consideradas relevantes na construção dessas representações.

Palavras-Chave:
Ensino-Aprendizagem de Língua Inglesa. Representações. SOME.

ABSTRACT

This study aims at discussing possible representations that a group of ESL teachers from
SOME (Sistema de Organização Modular de Ensino) from Santarém, Pará, a project created
in 1980, aiming at providing education up to the rural areas of paraense towns, hold regarding
the teaching and learning of English language and regarding themselves as speakers of the
language. Since the perceptions of these teachers hold of the language in general may
influence their pedagogical practice, in this study educational, professional and personal
background from the participants were considered relevant.

Key-words:
Teaching and learning of the English Language. Representations. SOME.

1 INTRODUÇÃO
Na recente literatura de Linguística Aplicada, no tocante ao ensino da língua Inglesa
no Brasil, a relação entre o que o professor acredita e o que ele realiza em sala de aula tem se
tornado um objeto relevante de investigação, visto que não é possível separar o professor e
sua vida pessoal, suas experiências e suas percepções do mundo a sua volta. Considerando
que a origem de todo conhecimento novo está na crença individual e que damos sentido às
coisas a partir das nossas visões particulares (Lewis, 1990), é possível afirmar que valores e
crenças dos professores constituem sua cultura de ensinar (Richards & Lockart, 1994).
Apesar de bastante discutido, o construto “crença” ainda é, segundo alguns autores,
difícil de ser claramente definido e que pesquisar a crença de professores constitui-se tarefa

1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Inglês e Literatura Correspondente da Universidade Federal de
Santa Catarina, atuante da linha de pesquisa Aprendizagem e Ensino; e-mail: silvia.crisbarros@gmail.com.
2

complexa (Feiman-Nemser e Floden, 1986; Richardson, 1996; Woolfolk Hoy e Murphy,


2001; Donaghue, 2003; Vieira-Abrahão, 2004; Barcelos 2001, 2004). Essa complexidade, de
acordo com Barcelos (2001), muito se deve ao fato da multiplicidade de termos usados para
se referir às crenças sobre aprendizagem de línguas, tais como: “conhecimento prático
pessoal” (1981), “perspectiva” (Janesick, 1982), “conhecimento metacognitivo” (Wenden,
1986), “cultura de aprender línguas” (Almeida Filho, 1993; Barcelos, 1995), “crenças”
(Pajares, 1992; Woods, 1996; Barcelos, 2003) e “representações” (Celani & Magalhães, 2002;
Loureiro, 2003).
Embora os inúmeros termos possam dificultar o entendimento do construto, há de se
levar em consideração que mesmo essa profusão de definições evidencia a importância do
tópico nos estudos de lingüística aplicada (Silva, 2006).
Em uma tentativa de definir “crenças” sobre o ensino e aprendizagem de línguas,
Silva (2005) aponta que:
Crenças são ideias ou conjunto de ideias para as quais apresentamos graus distintos
de adesão (conjecturas, ideias relativamente estáveis, convicção e fé). As crenças na
teoria de ensino aprendizagem de línguas são essas ideias que tanto alunos,
professores e terceiros têm a respeito dos processos de ensino/aprendizagem de
línguas e que se (re) constroem neles mediante as suas próprias experiências de vida
e que se mantém por um certo período de tempo. (Silva, 2005:77).

As crenças também podem ser entendidas como opiniões e ideias a respeito de algo
ou alguém. São pessoais, contextuais, episódicas e têm origem nas nossas experiências, na
cultura e no folclore. São também internamente inconscientes e contraditórias (Barcelos,
2001) e influenciam comportamentos individuais e a maneira como as ações são definidas e
realizadas (Pajares, 1992).
Embora tenham um caráter subjetivo e, portanto, individual, as crenças são
construídas socialmente, tendo no social, no grupo, sua origem e manutenção. (Basso, 2006).
Além disso, faz-se necessário acrescentar que as crenças e práticas dos professores são
moldadas pelos múltiplos papéis que eles exercem em diferentes contextos: (pais/filhos,
colegas, vizinhos) em combinação com outras forças (família, leituras, professores anteriores)
(Malatér, 2005).
Levando em consideração essas definições e mais ainda que a escolha do arcabouço
teórico usado neste artigo deriva de uma opção pessoal, não se tendo como foco discutir
questões terminológicas, o conceito de representações é usado nesta pesquisa qualitativa, na
intenção de descrever as percepções e/ou crenças (doravante representações) de professores
de língua Inglesa como segunda língua em Santarém, Pará, acerca da Língua Inglesa e sobre
eles mesmos enquanto falantes dessa língua. Experiências educacionais, profissionais e
3

pessoais foram consideradas relevantes na construção dessas representações, como dito


anteriormente.

1.1 Representações: O poder das ideias


O conceito de representação que norteia este estudo baseia-se nas ideias de Celani &
Magalhães, 2002, que, fundamentadas em Bakhtin (1953), Habermas (1973), Bronckart
(1997) e Pérez Gomez (2001), concebem representações como:

[...] uma cadeia de significações, construída nas constantes negociações entre os


participantes da interação e as significações, as expectativas, as intenções, os valores
e as crenças referentes a: a)teorias do mundo físico; b) normas, valores e símbolos
do mundo social; c) expectativas do agente sobre si mesmo como ator em um
contexto particular. (p. 321)

De acordo com as autoras, esse conceito engloba crenças sem, no entanto limitá-las
(Freire & Lessa, 2003). Ainda conforme as autoras, as representações contemplam os
contextos social, histórico e cultural dos quais emergem, sem negligenciar questões políticas,
ideológicas e teóricas, (Celani & Magalhães, 2002) e que o entendimento de uma
representação implica “o entendimento de toda a intricada conjuntura que lhe serve de origem
e lhe dá sustentação” (Freire & Lessa, 2003).
Corroborando tais ideias, Loureiro (2003) argumenta que as representações são
criadas e recriadas pela totalidade dos membros de uma determinada formação social, ou seja,
elas são obra coletiva, socializada. O autor afirma também que as representações sofrem
influência da ideologia dos grupos e das classes que dominam a sociedade, haja vista serem
sociais (Loureiro, 2003, p.111).

2 CONTEXTO DA INVESTIGAÇÃO
Esse estudo apresenta os resultados de uma pesquisa qualitativa, conduzida em
Santarém-Pará, que teve como objeto de investigação três professores de inglês do SOME, um
projeto criado em 1980, pela SEDUC-PA (Secretaria de Educação do estado do Pará), em
parceria com a 5ª URE (5ª Unidade Regional de Ensino), situada em Santarém, com o
objetivo de levar o Ensino Médio às comunidades ribeirinhas isoladas das cidades, evitando
assim o êxodo rural e alguns problemas sociais dele derivados, como por exemplo, a
marginalidade e a prostituição nos municípios paraenses, considerados pólos de educação até
então. Atualmente o SOME encontra-se em 88 municípios paraenses, em 345 localidades,
4

com 827 docentes. Os professores de Inglês que atuam no pólo de Santarém e comunidades
vizinhas são, em sua maioria, professores de língua portuguesa.
Vale ressaltar que a opção por este contexto de investigação não se deve apenas ao
fato de que eu mesma pertença a ele, como também ao fato de que poucas pesquisas sobre
formação de professores de língua inglesa foram conduzidas na região amazônica.
Despretensiosamente, até mesmo pelo número reduzido de participantes, pretendo elucidar
algumas representações que são partilhadas pelos colegas de profissão, na convicção de expor
os resultados aos participantes assim que possível.

3 A ANÁLISE
Procurando responder as seguintes perguntas: quais as representações que os
professores têm da Língua Inglesa de um modo geral e quais as representações que os
professores têm enquanto falantes de Língua Inglesa, um questionário aberto com dez
perguntas foi elaborado e enviado por email para os participantes em outubro de 2010.
Baseada nas respostas, uma entrevista semi-estruturada com dezesseis perguntas foi
conduzida, in loco, em janeiro de 2011.
Os dados foram analisados conjuntamente, de forma que foi possível dividir as
representações encontradas em dois subtópicos: os professores de Inglês do SOME e a língua
Inglesa em sua região e os professores de Inglês do SOME e suas práticas pedagógicas. A
seguir, os resultados e alguns dos excertos que confirmam as representações sugeridas.

3.1 Os professores de Inglês do SOME e a língua Inglesa em sua região


3.1.1 A língua Inglesa é vista como símbolo de status e prestígio
“[...] muita gente me conhece como professor de Inglês, se tu chegar aqui nesse
pedaço perguntando todo mundo sabe o professor Domingos, professor de Inglês. E isso
como identidade me deu muito espaço. A gente passa a ser respeitado como profissional.”
3.1.2 Supervalorização do falante nativo
“Quando eu estou perto de um nativo eu não falo, eu procuro aprender, sugar o
máximo dele pra aprender e não dizer que eu sei alguma coisa.”
(Em relação a um falante nativo, como você se sente?) “Deficitário. Onde você
precisa...eu sinto que eu preciso é, estudar mais mas além de estudar eu preciso praticar mais ,
porque a língua inglesa, no meu ponto de vista, nas minhas conclusões, além de
você...nós...não falantes da língua inglesa, nós, nós precisamos , além de estudar, de conhecer
5

a própria língua, em todos os seus sentidos, em todos os seus aspectos, nós precisamos
também praticar, que são dois , duas atividades muito difíceis, conhecer e praticar”.
3.1.3 Professores de Inglês devem falar Inglês
(Como você acha que um professor de Inglês que não fala a língua se sente em
diferentes contextos?) “o sentimento que você tem é de um espaço a ser preenchido. Porque
pra você ser um profissional em qualquer campo, né, do saber, em qualquer área,
você...teoricamente você deve ter um conhecimento mais profundo sobre a área. Então eu ser
um professor e não falar, não usar a língua na melhor performance te deixa um espaço. Eu
sinto um espaço, um vazio, uma lacuna por conta disso”.
3.1.4 A Língua Inglesa é vista como uma língua mundial
“a língua inglesa hoje é a língua mais importante do mundo, é a língua do...é a língua
mundial, né? Então, pra minha vida enquanto profissional ou partícipe da sociedade, é muito
importante eu conhecer essa língua, sendo que ela é...ela está em contato, nós estamos em
contato , constantemente, nosso dia a dia com essa língua, então porque não aprofundar o
conhecimento e aprender cada vez mais”.

3.2 Os professores de Inglês do SOME e suas práticas pedagógicas


3.2.1 Aprender Inglês na escola pública é quase impossível, devido à falta de estrutura
“(...) porque a escola que nós trabalhamos é uma escola as vezes que não oferece
condições, tá? Vamos dizer, um pouco de insalubridade, poeira, são lugares quentes, muito
mal preparados para receber o aluno e o docente também. As lousas às vezes quebradas, às
vezes nem encontramos lousas nessas comunidades, às vezes até problema de encontrar giz e
apoio do corpo da escola, geralmente é agregado, o modular é agregado à escola do
município. Às vezes não tem espaço, a gente fica embaixo das árvores, que já aconteceu
comigo. Dar aula embaixo de uma mangueira...Qual escola eu gostaria de ter, então? Um
espaço apropriado, pelo menos com o mínimo de dignidade, para o educando e o educador,
para que ele possa executar sua aula com qualidade”.

3.2.2 O professor deve estar sempre em busca de aperfeiçoamento


“(...) porque eu sei que eu preciso cada vez mais aprofundar, eu sei que eu preciso
é..melhorar mais, em todos os sentidos, eu acho que o professor hoje, ele nunca pode pensar
que ele tá pronto, ele sempre tem que...no momento que ele pense que ele está pronto, ele não
é um bom profissional. Ele tem que pensar que, sendo da língua inglesa... eu não posso dizer
que eu estou satisfeito, porque senão estou acomodado, eu não serei, não estou sendo um
6

profissional competente naquilo que delegaram a mim como professor, como educador.
Então, eu sempre tenho em mente que eu preciso buscar mais”.
“Sempre tenho me policiado, quando eu vejo que alguma coisa...eu tenho material de
fonética aqui...eu procuro estar sempre olhando...os sons...eu sempre to me policiando”.

3.2.3 Ensinar cultura é importante


“Isso (ensinar cultura de língua inglesa nas aulas) é extremamente necessário. Tem
que explicar a cultura deles, porque são diferentes...eu tenho esse problema na família, meu
cunhado...as vezes tenho que explicar que são culturas diferentes...certos hábitos...que a gente
não adota mas tem que entender. A cultura deles lá a gente tem que passar para os nossos
comunitários, entender as formas de cada um”.
“Hoje tu não é só mais um professor de inglês, tu é também um disseminador de
cultura, de informação...hoje eu me sinto responsável também por isso também, por dar um
aula de inglês de qualidade, preocupado com a realidade do educando, tanto que to
desenvolvendo um material, entendeu? Pra inserir na realidade dele”.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo demonstrou uma forte ligação que os participantes fazem entre o “ser um
bom professor de Inglês” com o “falar inglês”, principalmente falar como um nativo dessa
língua. Uma vez que essa “perfeição” não é alcançada, surgem os sentimentos de
inadequação, frustração e consequentemente, complexo de inferioridade (Fernandes, 2006), o
qual certamente irá influenciar a construção da identidade profissional desses professores.
Outro fato importante é que nesse estudo, essa ligação entre o bom professor de
inglês e a competência lingüística é sempre uma ligação de “falta de”, corroborando com os
dados encontrados em um levantamento de pesquisas envolvendo identidade dos professores
de Inglês no Brasil, conduzidos por El- Kadri (2010). Essa “falta de” deriva diretamente da
comparação contínua com o falante nativo, verdadeiros “donos” da língua e o modelo de
perfeição para muitos professores. Ainda de acordo com a autora, essa comparação desperta
inseguranças e incertezas nos professores.
Alguns estudos conduzidos sobre crenças, percepções e representações de
professores de Inglês no Brasil também elucidaram tais fatos. Nota-se, em sua maioria, uma
substancial e preocupante crise de identidade nesses profissionais, já que perguntas como o
que ensinar em sala de aula, em um mundo cada vez mais globalizado, surgiram. Essa
7

insegurança, envolvendo questões sobre o que saber, o que fazer e como agir (Quevedo-
Camargo & Ramos, 2008), prejudicam não só o processo de construção da identidade
profissional, como também suas práticas pedagógicas.
Apesar de todos os percalços descritos pelos professores envolvidos nesse estudo,
eles se mostraram realizados com a profissão que acolheram muito embora imbuídos da
necessidade de se aperfeiçoar cada vez mais. Os participantes também citam com bastante
freqüência a falta de oportunidade de praticar a língua oralmente e a necessidade que sentem
de uma formação continuada, visto que em nossa cidade a formação de professores de Inglês
ainda é precária.

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ANEXO

Entrevista Semi-estruturada:

1. Qual a sua formação acadêmica como professor de Inglês?


2. Há quanto tempo você leciona Inglês?
3. Que tipo de escola você leciona?
4. Que tipo de escola você gostaria de lecionar?
5. Qual foi sua motivação para se tornar professor de Inglês?
6. De que forma ter aprendido inglês e se tornado um professor influenciou a sua
identidade, quem você é hoje?
7. Qual é o significado ou a importância da Língua Inglesa, no geral e na sua vida
pessoal?
8. Você se sente totalmente à vontade pra falar Inglês?
9. O que dominar a língua significa pra você?
10. Como você acha que um professor de Inglês que não fala a língua se sente em
diferentes contextos?
11. Você já passou por alguma situação em que se sentiu excluído como professor
de inglês?
12. Em relação a um falante nativo de inglês, como é que você se sente?
13. Existe alguma coisa que te deixa insatisfeito em relação ao seu desempenho
oral?
10

14. Você se preocupa com e ensino da língua inglesa nas tuas aulas? Quais
aspectos? Quais metodologias?
15. Como você se vê hoje como professor de inglês e como você gostaria de ser?
SUMÁRIO GERAL Sumário de Inglês Aba de anexos para salvar artigo

“SEM MIM NO MEIO, QUERIDO, VOCÊ NÃO SERIA NADA”:


HETERONORMATIVIDADE QUESTIONADA
EM HEDWIG: ROCK, AMOR E TRAIÇÃO1

Claudia Santos Mayer (PPGI/UFSC)2

RESUMO

O objetivo deste trabalho é iniciar uma discussão sobre a questão da heteronormatividade (e


tentativas de rearticulá-la) no filme musical Hedwig: Rock, Amor e Traição (dir. John
Cameron Mitchell, 2001). Parto da hipótese de que é possível revelar o funcionamento,
naquela diegese, da matriz de relações entre gêneros como descrita por Judith Butler na
primeira parte do capítulo introdutório de seu livro Bodies That Matter: On the Discursive
Limits of “Sex” (1993), através da trajetória da personagem Hedwig. No filme, a artista punk
transexual Hedwig Schmidt conta a história de sua vida através das canções que toca com sua
banda. Neste trabalho, ofereço um resumo da ideia de Butler e estabeleço um diálogo entre tal
ideia e momentos selecionados da vida de Hedwig, ressaltando os pontos em que a estrutura
da matriz heteronormativa é revelada e, ao mesmo tempo, desafiada pela personagem. Este
trabalho situa-se entre produções de Estudos Culturais que relacionam Teorias Queer e
estudos de Cinema e Mídia. Busco com este estudo contribuir para o questionamento da
heteronormatividade e participar das discussões que visam observar a representação das
diferentes sexualidades na cultura popular; no caso específico deste trabalho, da
transexualidade no cinema.

Palavras-chave:
Cinema. Transexualidade. Heteronormatividade.

ABSTRACT

The aim of this work is to give rise to a discussion about heteronormativity (and attempts to
rearticulate it) in the musical film Hedwig and the Angry Inch (dir. John Cameron Mitchell,
2001). I depart from the hypothesis that it is possible to reveal the operation, in that diegesis,
of the gender relations matrix as described by Judith Butler in the first part of the introductory
chapter of her book Bodies That Matter: On the Discursive Limits of “Sex” (1993),
through the trajectory of the character Hedwig. In the film, the transsexual punk artist Hedwig
Schmidt tells her life story through the songs she plays with her band. In this work, I offer a
summary of Butler‟s idea and establish a dialogue between such idea and selected moments of
Hedwig‟s life, highlighting the points in which the structure of the heteronormative matrix is
revealed and, at the same time, defied by the character. This work is located among Cultural
Studies productions that relate Queer Theory and Cinema and Media Studies. With this study,
I intend to contribute to the questioning of heteronormativity and to participate in the
discussions aimed at observing the depiction of the different sexualities in popular culture; in
the specific case of this work, of transexuality in film.

Keywords:
Film. Transexuality. Heteronormativity.

1 A frase “Sem mim no meio, querido, você não seria nada” (minha tradução) vem de da letra de uma das
canções presentes no filme, escritas por Stephen Trask. O trecho citado será discutido a seguir.
2 Mestre em Letras/Inglês pelo Programa de Pós-graduação em Letras/Inglês e Literatura Correspondente da
Universidade Federal de Santa Catarina; e-mail: claudia.mayer@gmail.com.
2

1 INTRODUÇÃO
Judith Butler apresenta a ideia que será utilizada neste artigo já na introdução de seu
trabalho intitulado Bodies That Matter: On The Discursive Limits of Sex (1993). A escolha
desse ponto exato do texto de Butler se justifica porque é nele que a autora torna explícita a
estrutura de nossa sociedade no que diz respeito à sexualidade e ao gênero dos indivíduos que
a habitam—ou daqueles indivíduos que, como discutiremos mais à frente, dela são excluídos.
Pois, como a autora demonstra e é imprescindível compreender, o conjunto de normas que
gera os sujeitos que fazem parte dessa sociedade ao mesmo tempo gera também aqueles que
dela não podem fazer parte. Em resumo, esse conjunto de normas, ou a “matriz de relações
entre gêneros” (1993, p. 3) define quais são os corpos que podem ou não se materializar
durante o processo de formação dos sujeitos. Então, vamos observar a estrutura de que
estamos falando, de acordo com as palavras de Butler.
Em primeiro lugar, é importante termos em mente que a autora vai falar sobre a
materialização dos corpos. Isto é, como tais corpos vão se tornar reais, ou melhor, possíveis.
Por “possíveis”, se quer falar da maneira como esses corpos serão classificados e obterão
reconhecimento, funções e padrões de comportamento de acordo com as normas que são
estabelecidas para cada sexo definido. Segundo ela, a materialização dos corpos é marcada
pelo trabalho conjunto de duas forças: a biológica, por assim dizer, e as práticas discursivas
que envolvem esse corpo biológico através do tempo. As forças que chamo “biológicas”
dizem respeito às configurações físicas de um corpo, ou seja, características como aspecto dos
genitais, hormônios, funcionamento de glândulas, etc. Por exemplo, quando um corpo que
ainda está sendo gerado é examinado e recebe o rótulo de “menino” ou “menina” de acordo
com uma avaliação médica. Entretanto, a autora ressalta que essas configurações físicas não
podem ser dissociadas das práticas discursivas que acompanham essa sexualização do
indivíduo. Para ela, não se pode afirmar que apenas a biologia define o sexo dos sujeitos, da
mesma maneira que apenas as práticas discursivas também não são capazes de fazê-lo.
Tal processo de produção dos corpos, categorizando-os a partir do “sexo” é altamente
regulado, tendo como base um ideal que Foucault chama de “Ideal Regulatório”, conforme
cita Butler (1993, p. 1). Ou seja: existe um “modelo”, uma idealização do que é possível que
esses corpos venham a ser. As consequências desse processo não são definitivas ou imutáveis.
Conforme Butler observa, é necessário que as regras sejam reiteradas, repetidas, o que
significa que o processo nunca está completo. É exatamente neste ponto que começa a ser
possível ver por que o filme Hedwig: Rock, Amor e Traição se torna uma fonte interessante
para a reflexão sobre a sexualização e gendramento dos corpos. Por tal processo ser instável e
3

mutável, ele dá margem a rearticulações que “questionam a força hegemônica da própria lei
regulatória” (1993, p. 2).
Como já dito anteriormente, essa matriz reguladora não produz apenas aqueles
corpos possíveis, ou seja, aqueles que se tornam adequados a esta ou aquela classificação
dentro da categoria “sexo”. Ela também produz aqueles que não são capazes (ou melhor, que
a própria lei regulatória determina não serem capazes) de ser classificados dentro das
categorias que coloca à disposição. Tais corpos, inclassificáveis, povoam uma zona que Butler
chama de inabitável. Esses corpos não conseguem o status de sujeito porque não são
adequados ao ideal regulatório, mas isso não significa que eles deixam de fazer parte da
matriz que os gerou. Na realidade, eles constituem os limites imprescindíveis para o domínio
dos sujeitos possíveis, pois é olhando para esses corpos inclassificáveis que aqueles passíveis
de classificação podem reivindicar seu direito à existência. Ou, nas palavras de Butler, “o
sujeito é constituído através da força de exclusão e desprezo, uma força que produz um
exterior constitutivo para o sujeito, um exterior abjeto, que está, enfim, 'dentro' do sujeito
como seu próprio repúdio fundador” (1993, p. 3).
Após essa explicação, bastante simplificada, talvez seja redundante acrescentar que a
matriz geradora de que falamos é baseada no binômio masculino/feminino, ou seja, na
heterossexualidade. Portanto, as duas classificações possíveis dentro da categoria sexo são ou
“masculino”, ou “feminino”. O ideal regulatório empurra os corpos para essas duas
categorias, e aqueles que ficam de fora e povoam as “zonas inabitáveis” são aqueles corpos
que não podem ser chamados nem de “homem”, nem de “mulher”. Aí estão localizados vários
grupos que Sharon Conwan (2009) classifica como “trans”. Para a autora, essa denominação

cobre identidades (e práticas) que incluem travestis, transexuais, aqueles que


desejam tomar hormônios mas não fazer cirurgia, pessoas intersexuais, artistas drag,
e uma gama de outros para quem nós não temos palavras para, mas que são, de
maneira geral, rebeldes do sexo/gênero. (p. 95)

Esses corpos “trans” que habitam o exterior abjeto, que formam a margem, são
aqueles corpos que Lou Reed convida a conhecer em sua canção quando diz “hey babe, take a
walk on the wild side”3. A personagem Hedwig se aproveita do mesmo convite repetindo
essas palavras para a sua audiência, convidando aqueles que estão assistindo-a contar sua
história, a observar a representação de um elemento desprezado e marginalizado e como esse
elemento se relaciona com as normas, se revolta contra elas e luta pelo reconhecimento de sua

3 REED, Lou. “Walk on the Wild Side”. In: Transformer. Prod. David Bowie, Mick Ronson. RCA Records,
1972.
4

autenticidade pelo mecanismo que o gerou e, ao mesmo tempo, o exclui.


O filme Hedwig: Rock, Amor e Traição (título original: Hedwig and the Angry
Inch) é um filme musical lançado em 2001, adaptado do musical para teatro de mesmo nome,
dirigido e escrito por John Cameron Mitchell e Stephen Trask. O filme conta a história de
Hedwig (John Cameron Mitchell), artista punk transexual de Berlim Oriental. Junto à sua
banda, a Angry Inch (Stephen Trask, Theodore Liscinski, Rob Campbell, Michael Aronov e
Miriam Shor), Hedwig realiza uma turnê pelos Estados Unidos com o objetivo de resgatar a
autoria das canções lançadas por seu ex-amante e atual ídolo pop Tommy Gnosis (Michael
Pitt). Para isso, Hedwig e a Angry Inch seguem as datas e locais da turnê de Tommy tocando
em pequenos estabelecimentos próximos aos locais onde o grande astro se apresenta,
revelando fatos da vida de Hedwig através das letras de suas canções.
A música que Hedwig oferece é um pastiche de vários ícones do rock and roll
associada ao estilo punk da cidade de Nova York nos anos 70. Dentre os ícones do rock que se
pode identificar na música de Hedwig, estão Lou Reed, David Bowie, Iggy Pop,
principalmente, e outros como Patti Smith, Kurt Cobain. A sua aparência remete à estética das
drag queens, ao mesmo tempo que o seu figurino e produção de palco se baseiam na ideia do
“do it yourself”, ou “faça você mesmo”. Para Steve Feffer, (2007), Mitchell se aproveita da
estética punk para conferir autenticidade à personagem, à sua história e à sua música. Feffer
diz que o objetivo de Mitchell era dar à personagem um meio de “fugir da terra da dublagem”
(“break out of the „drag lip-synch land‟” p. 246) e se aproveitar da estética punk do “cantar
mesmo que você não tenha realmente uma voz” (“sing even if you don‟t really have a voice”
p. 246). Assim, Hedwig se utiliza da própria voz em sua busca por visibilidade, ganhando em
autenticidade e controle sobre seu próprio discurso. Feffer também diz que “proclamando
Hedwig 'punk', Mitchell e Trask deslocam o trabalho da fantasia de escapismo temporário do
glam rock, indo em direção à estética punk de que as pessoas podem viver cada dia como seus
próprios heróis” (minha tradução) (2007, p. 246).
Hedwig procura ser uma espécie de heroína em sua busca por reconhecimento. Esse
reconhecimento não é apenas pelo trabalho que lhe foi roubado por Tommy. Ela também está
em busca da própria identidade, e utiliza a sua música para expor a configuração de seu corpo
e, com isso, atingir o reconhecimento de sua existência como sujeito. Durante esse processo, a
personagem explora a materialização do próprio corpo e sua sexualidade, além do espaço que
esse corpo ocupa e a função que realiza dentro do sistema. Como o próprio rock and roll,
conforme explica Feffer, tal sistema tem sua estrutura baseada no heterossexual e no
masculino. O autor escreve que Hedwig “desafia algumas das estruturas discursivas
5

fundamentais da autenticidade do rock, particularmente no que diz respeito a gênero e


identidade” (2007, p. 239, minha tradução). Para ele, a personagem Hedwig é, em si mesma,
um corpo que desafia a “construção do rock como masculino e heteronormativo” (2007, p.
240, minha tradução). Mas a personagem não atinge somente a estrutura do gênero musical,
mas também a estrutura de toda a sociedade em que está inserida devido à realidade de seu
próprio corpo, que ocupa um lugar intermediário dentro do binarismo masculino/feminino.
Conwan (2009) descreve esse lugar intermediário que Hedwig ocupa, destacando as
várias instâncias que impedem a personagem de ocupar um lugar definido dentro das normas
que definem o gênero ou o sexo dos indivíduos. Para ela, Hedwig só ocupa um lugar feminino
pelo fato de vestir-se como mulher e de não possuir um pênis funcional. Entretanto, seu modo
de vestir e de agir é exagerado, como o de drag queens e artistas do glam rock—um espaço
que não é ocupado, de forma geral, por indivíduos naturalizados como femininos. Observando
as relações íntimas e amorosas que a personagem vive, a ambiguidade fica ainda mais
aparente. Um de seus amantes é um sargento marcado pelo estereótipo do militar macho;
outro é um jovem delicado e belo; o último é um homem de voz feminina que sonha em ser
drag queen e com quem Hedwig é o elemento ativo nas relações sexuais. Todas essas
características juntas alimentam uma sensação de fluidez, mobilidade ou indefinição no que
diz respeito à sexualidade de Hedwig. Para Conwan, Hedwig está além das definições de
gênero, e “é tal ideia de estar além que torna Hedwig tão politicamente perturbadora” (2009,
p. 111, minha tradução).

2 HEDWIG E A POLEGADA ENFURECIDA


Hedwig nasceu Hansel Schmidt4, filho único de mãe alemã (Alberta Watson) e pai
(Gene Pyrz) membro das forças armadas norte-americanas, no mesmo ano em que o Muro de
Berlim é erguido. Hansel nasce do lado Ocidental, durante esse momento histórico tão
marcado pela necessidade de delimitações claras que é construída uma muralha para separar
fisicamente os indivíduos entre Leste e Oeste, materializando a Guerra Fria. A mãe e o
menino atravessam para o lado Oriental, e Hansel cresce desejando estar do outro lado do
muro, que representa para ele a liberdade. O menino se alimenta culturalmente do que lhe é
acessível através da rádio e da TV das Forças Armadas norte-americanas, enquanto vive com
a mãe que aceita a falta de liberdade e as restrições impostas pelo regime político em Berlim

4 Neste trabalho, será utilizada a concordância no masculino para se referir a Hansel, o menino da cirurgia de
redesignação sexual, diferenciando-o da personagem Hedwig-trans e da personagem da mãe, que tem o
mesmo nome que a artista. A concordância no feminino será utilizada para a personagem após a cirurgia.
6

Oriental em troca de uma suposta segurança.


Hansel cresce, em suas próprias palavras, um “deslize efeminado”—no original, “a
slip of a girly boy”. Até o final de seus 20 anos, conforme conta durante uma apresentação
com sua banda (00:23:50-00:24:00) , nunca havia beijado outro homem e ainda dividia a
cama com sua mãe. Além disso, havia sido expulso da faculdade. Ou seja, Hansel cresce um
“fracasso”, pois não consegue atingir o modelo esperado do desenvolvimento de um jovem
saudável. Por tudo isso, Hansel se mantém à margem da sociedade e da norma, sem poder ser
categorizado como homem por completo. Entretanto, surge para ele a oportunidade de
atravessar a fronteira entre os gêneros e adequar-se à norma.. Um sargento norte-americano,
Luther Robinson (Maurice Dean Wint), encontra Hansel tomando banho de sol nu, de costas,
perto do muro. O sargento se interessa por ele tomando-o por uma garota, mas Hansel lhe
revela seu pênis e diz-lhe seu nome masculino, Hansel. Então, ainda mais interessado,
Robinson e Hansel iniciam um relacionamento e logo o sargento dá ao jovem a oportunidade
de deixar Berlim Oriental e mudar-se para os Estados Unidos com ele. Mas aquiescer à norma
exige que Hansel “deixe algo para trás”, como lhe diz o sargento (00:29:54). Hansel assumiria
a identidade da mãe, Hedwig Schmidt, e se submeteria a uma cirurgia de redesignação sexual.
Se tudo corresse como planejando, ao adequar-se à categoria do sexo feminino
através da mudança de suas características físicas, Hedwig poderia assumir a identidade e a
função de mulher dentro das relações entre os gêneros, casando-se e usufruindo da liberdade
como sujeito completo e funcional. Dessa maneira, Hedwig atravessaria a barreira de um
gênero para outro e se tornaria adequada para a classificação entre “masculino” e “feminino”5.
Entretanto, para ela a situação se complica porque a cirurgia fracassa. O resultado da cirurgia
de redesignação sexual de Hedwig fica explícito na canção Angry Inch. Nessa canção,
Hedwig conta, detalhadamente, que a abertura que viria a se tornar sua vagina se fecha e ela é
deixada com “genitais de boneca Barbie” (l. 3), e que daquilo que havia sido seu pênis resta
apenas “um montículo de carne” de uma polegada (l. 45-47), a angry inch que dá nome à sua
banda6.
Além disso, Hedwig associa a nova personalidade que assume a um “disfarce” (l.13),
deixando entrever que essa não é a sua personalidade real ou a figura com a qual se identifica.

5 Importante notar que, nessa diegese, atravessar de um polo a outro a fronteira entre os gêneros faria com que
Hedwig se tornasse adequada automaticamente. A posição de uma mulher trans não é problematizada no
filme, talvez porque Hedwig não realiza a transição por completo. Entretanto, é possível também
compreender a falta dessa problematização como um sinal de que a transição é problemática por si só, e
impossível de ser realizada completamente.
6 “Angry inch”: “polegada colérica, em tradução literal. Na versão brasileira do musical para teatro, dirigida
por Evandro Mesquita, é utilizada a versão “Hedwig e o Centímetro Enfurecido”.
7

Essa mudança a que ela é submetida, mais por vontade do imperativo heterossexual do que
sua própria vontade, é associada à violência de ter o corpo amarrado a um trilho por onde um
trem está prestes a passar e ela não pode fugir (l. 22-23). Hedwig é bastante gráfica em sua
descrição física, não deixando margem a nenhuma possibilidade de não ser bem
compreendida. Porém, mesmo sofrendo tamanha violência e abuso, a personagem não deixa
de ver a situação com algum bom humor. Esse humor se revela quando Hedwig faz uma piada
a respeito do seu primeiro dia como mulher após a operação:

When I woke up from the operation


I was bleeding down there.
I was bleeding from the gash between my legs.
My first day as a woman,
and already that time of the month. (l. 37-41)7

Pode-se compreender pelo “bom humor” de Hedwig que ela não quer ser vista como
uma vítima, mesmo depois de revelar a violência que sofreu. O que ela quer é expor sua
realidade, mas não se tornar uma mártir. Em seguida, Hedwig demonstra que existe um
espaço que ela pode ocupar com segurança. Nesse lugar, ela pode ser o elemento ativo de suas
ações, mesmo antes tendo sido levada a tomar decisões drásticas pela vontade de outras
pessoas ou do sistema em que vive. Nos últimos versos dessa canção, ela diz: “stay under
cover till the night turns to black / I got my inch and I'm set to attack”8. Mais uma vez, vem a
ideia do disfarce já presente nos versos anteriores. Entretanto, quando a noite chega, o
disfarce pode acabar e a postura do indivíduo que antes se escondia não é mais de subjeção, e
sim de ataque. Neste trecho também é possível perceber uma ideia que Butler menciona, que é
a do “espectro ameaçador” (1993, p. 3) que, criado pelo repúdio fundador, mantém os limites
visíveis para o sujeito de uma maneira que este não queira desafiá-lo. Hedwig brinca com esse
conceito, colocando-se numa posição entre a sujeição e a revolta contra tal sujeição, e também
se posicionando como uma ameaça ativa, que não só ameaça o sujeito pela sua existência mas
também por sua própria vontade.
A canção Tear Me Down também compartilha desse movimento contrário à subjeção.
Nessa letra, Hedwig admite que tem inimigos e adversários que podem querer destruí-la e
avisa que está indo na direção deles (“now I'm coming for you”—l. 7). Ela também reafirma
os abusos que sofre por causa de sua posição indefinida na sociedade após a cirurgia que dá

7 “Quando acordei da operação / eu estava sangrando lá embaixo. / Eu estava sangrando pelo GASH entre
minhas pernas. / Meu primeiro dia como mulher, / e já esse período do mês” (minha tradução).
8 “Fique escondido até que a noite se torne negra / eu tenho minha polegada e estou pronta para atacar” (minha
tradução).
8

errado: “Now everyone wants to take a stab / and decorate me / with blood, grafitti and spit”9
(l. 14-16). Esse trecho mostra que um indivídio que não goza de autonomia e reconhecimento
dentro do sistema heteronormativo carrega também marcas que o mantém sempre
reconhecível, impedido de se misturar aos sujeitos autênticos. Essas marcas, “sangue, grafite e
cuspe” também podem ser associadas à violência e ao desprezo.
Entretanto, Hedwig utiliza essas marcas para provar a necessidade de sua existência e
afirmar a sua importância. Já nos primeiros versos da canção, a personagem diz ser o novo
Muro de Berlim (l. 2), e mais à frente essa metáfora é explicada quando o Muro de Berlim é
comparado à posição que Hedwig ocupa entre os gêneros. Assim como o Muro dividia o
mundo entre “Leste e Oeste” e “Escravidão e Liberdade” (l. 34-35), Hedwig marca a
separação entre “Homem e Mulher” (l. 36). A importância dessa marca de divisão é oferecida
logo em seguida:

There ain't much of a difference


between a bridge and a wall.
Without me right in the middle, babe
you would be nothing at all. (l. 48-51)10

Esses versos definem a função de Hedwig, ou do exterior abjeto, como o limite


necessário para a constituição do sujeito. A comparação entre uma ponte e um muro pode ser
compreendida como uma metáfora para esse exterior constitutivo e o modo como as duas
zonas definidas por esse limite se comunicam. Tanto a ponte quanto o muro, por existirem,
simbolizam limites, estabelecem a existência de duas zonas distintas. Hedwig atravessou esse
limite tanto quando deixou Berlim Oriental para chegar aos Estados Unidos, quanto como
quando se coloca no palco para revelar sua história e dar visibilidade aos indivíduos que
habitam a zona inabitável. Nesse momento, Hedwig estabelece uma ponte, no sentido de que
estabelece comunicação, entre as duas zonas que necessitam de seu corpo como marcador da
separação e reconhece que, sem esse marcador, aqueles que a desprezam não poderiam se
constituir como sujeitos.
Essas duas canções das quais falamos até agora, Angry Inch e Tear Me Down, são
executadas em locais já insólitos para shows de punk rock, quanto mais para o show de uma
banda cuja líder é uma drag queen transexual que assume uma postura bastante agressiva,
exagerada e sexualizada no palco. A maioria dos clientes dos dois restaurantes onde Hedwig e

9 “Agora todos querem tirar um pedaço / e me decorar / com sangue, grafite e cuspe” (minha tradução).
10 “Não há muita diferença / entre uma ponte e um muro. / Sem mim no meio, querido / você não seria nada”
(minha tradução).
9

a Angry Inch se apresentam se mostram chocados, tapam os ouvidos, reclamam da música e


até mesmo deixam o local. Um deles, inclusive, sai do restaurante gritando “faggot” (“bicha”)
para Hedwig e acaba deflagrando uma briga que envolve todos os presentes. Fica claro que
Hedwig e a Angry Inch lutam para conseguir espaço no mundo musical ao mesmo tempo em
que perseguem os locais onde Tommy Gnosis se apresenta para revelar a história dele com
Hedwig. Além disso, fica também claro que Hedwig e sua banda querem obter visibilidade
para si mesmos não só pelo desejo de sucesso como banda. Durante os shows, o grupo busca
estabelecer contato com o “outro mundo” do qual não fazem parte, tocando sua música para
serem vistos. O som alto impede que eles sejam ignorados, a postura agressiva de Hedwig não
permite que os presentes finjam não vê-la ou não entender a mensagem que ela quer passar.
A canção Wig In A Box também revela a preocupação da personagem em estabelecer
meios de diálogo entre a zona habitada pelos sujeitos possíveis e o exterior constitutivo. A
canção é localizada, dentro da cronologia, logo após o momento em que Hedwig é
abandonada pelo marido militar nos Estados Unidos, logo após ficar sabendo que o Muro de
Berlim foi derrubado. O sargento, que a deixa por outro rapaz jovem, a deixa sozinha em um
trailer com os presentes e cartões que comemoram o primeiro aniversário de casamento do
casal. Hedwig observa fotografias dele e da mãe, que abandonara Berlim e mudara-se para a
“ensolarada Iugoslávia”, como a mãe se refere ao país no cartão que enviara a Hedwig.
Aterrorizada com a nova situação, Hedwig ainda ouve ecoarem em seus ouvidos as
palavras vindas do noticiário de televisão sobre a queda do Muro de Berlim: “All border
crossings are reported to be wide open and thousands are entering the western half of the city
to celebrate the new found freedom. The Berlim Wall has fallen, and the world will never be
the same. The Germans are a patient people, and goof things come for those who wait.”11
(00:36:00-00:36:28). As palavras ditas pelo repórter chegam para assombrar Hedwig, e incutir
nela sentimentos de culpa por não ter esperado mais tempo para ter a sua oportunidade de
obter a liberdade. Entretanto, ela não se deixa abater, e na letra da canção que vem a seguir
revela mais sobre o espaço que ocupa, seus sentimentos e seu posicionamento corajoso em
face à nova conjuntura que se apresenta.
Em primeiro lugar, a letra define o espaço em que Hedwig mora, um parque de
trailers—já por si só um espaço marginalizado. Sozinha, ela começa a cantar acompanhada
pelos acordes que entram pela janela do trailer, tocados pelos músicos que se aproximam.

11 “Reporta-se que todas as passagens estão abertas e milhares estão entrando na parte ocidental da cidade para
celebrar a recém-encontrada liberdade. O Muro de Berlim caiu, e o mundo nunca mais será o mesmo. Os
alemães são um povo paciente, e boas coisas chegam àqueles que esperam” (minha tradução).
10

Deprimida, ela revela qual é a saída que encontrou para não deixar de existir: “I put on some
make up / turn on the tape deck / And pull the wig down on my head” (l. 10-12) 12. É através
de novos disfarces em um mundo de fantasias que Hedwig consegue prosseguir e obter
visibilidade e reconhecimento. Quando se olha no espelho, ela pode ser quem quiser, como
uma participante de concursos de beleza (“Miss Midwest Midnight Checkout Queen”, “Miss
Beehive 1963”—l. 13-14, 27) ou uma artista de TV (“Miss Farrah Faucet from TV”—l. 41-
42). Mas a fantasia acaba, segundo suas palavras, quando “[ela] vai para casa e deita-se na
cama” (l. 15-16, minha tradução) ou quando “acorda e se volta para [si] mesma” (l. 28-29,
minha tradução).
De repente, para sua surpresa, os músicos de sua banda entram pela porta do trailer e
o último a entrar, Yitzhak, lhe oferece uma peruca em uma bandeja. A partir desse momento a
música muda, tornando-se mais alegre e a personagem assume uma postura mais corajosa. Ela
reconhece que, apesar de usar seus disfarces e alimentar um mundo de fantasia, essa foi “a
melhor maneira que [ela encontrou / de ser o melhor que você já viu” (“this is the best way
that I've found / to be the best you've ever seen”—l. 36-37). Com esses versos, a personagem
assume a sua própria personalidade. Uma personalidade fluida, que se mistura com várias
outras e pode tomar diferentes formas e viver várias fantasias. Então, a personagem estabelece
mais uma forma de diálogo entre dois mundos separados ao olhar diretamente para a câmera.
Os limites desafiados e transpostos pela personagem quebram também a quarta
barreira, aquela que separa os artistas em palco do público. A canção então se torna um hino
ao poder que Hedwig adquire através do drag e da música, e esse poder é compartilhado com
os espectadores no momento em que a banda derruba a parede do trailer—assim como o Muro
de Berlim e a quarta parede são derrubado—, que se transforma em palco. Então, todos os
músicos se agrupam para olhar diretamente para a câmera por uma janela e convidam o
público a cantar junto com eles. É utilizado o recurso de karaokê, que coloca a letra da música
na tela e também indica o tempo certo para a execução da letra (o símbolo utilizado para
marcar o tempo é a peruca estilizada, marca da personagem, já mencionada anteriormente). O
último verso da canção demonstra que Hedwig não se arrepende das decisões que tomou nem
do caminho que percorreu. Segundo ela, ela se tornou “this punk rock star of stage and
screen”13 e declara: “I ain't never coming back” (l. 58-61)14.

12 “Eu me maquio / ligo o toca-fitas / coloco a peruca em minha cabeça” (minha tradução).
13 “Esta estrela do punk rock, no palco e na tela” (minha tradução).
14 “Eu nunca voltarei atrás” (minha tradução).
11

3 CONCLUSÃO
O objetivo deste trabalho era iniciar uma leitura do filme Hedwig: Rock, Amor e
Traição através do ponto de vista oferecido por Judith Butler acerca da estrutura
heteronormativa do processo de materialização dos sujeitos. Foi possível perceber nos
momentos discutidos da vida da personagem Hedwig que ela procura desestabilizar as normas
a que está sujeita, em um esforço por rearticulá-las e abrir caminhos para novas autenticidades
e possibilidades para os corpos marginalizados pelo sistema binário masculino/feminino. As
tentativas de rearticulação da personagem são baseadas em obter visibilidade e
reconhecimento para esses corpos abjetos, através da reafirmação de sua existência.
Butler (1993) identifica alguns itens cruciais para a rearticulação das normas de
gênero impostas aos sujeitos (p. 2-3). São eles, em resumo: a) compreender a materialização
dos corpos como um processo dinâmico indissociável das normas que o regem e dos
resultados materiais dessas normas; b) entender a performatividade como um poder
reiterativo, ou seja, a repetição de discursos que regulam e restringem os fenômenos que
produz; c) interpretar o “sexo” não apenas como uma característica biológica em que a
construção do gênero se baseia artificialmente, mas sim como uma “norma cultural que
governa a materialização dos corpos” (p. 3); d) rever a ideia de “assumir” um sexo como um
processo através do qual o sujeito é formado, e não um processo atravessado por esse sujeito;
e) estabelecer uma ligação entre o processo de “assumir um sexo” e a identificação do sujeito,
levando em consideração as possibilidades de identificação—ou des-identificação—possíveis
dentro da matriz regida pelo imperativo heterossexual.
Como pudemos ver, superficialmente, o filme de John Cameron Mitchell nos oferece
a possibilidade de discutir os itens descritos por Butler. Vários outros autores também
exploram as muitas possibilidades de leitura deste filme dentro da busca por rearticular a
heteronormatividade, a representação da diversidade sexual no cinema, na música e em outras
manifestações da cultura popular. Como Conwan (2009) ressalta,

ao nos envolvermos com a representação de sexo/gênero na cultura popular,


podemos iluminar os meios como a sociedade se envolve com (algumas) questões
sócio-políticas e culturais sobre o que significa viver como trans e que filmes trans
podem nos contar alguma coisa sobre os modos como específicos discursos políticos
vêm dominar debates sobre identidade de sexo/gênero. (p. 98, minha tradução)

Tais discursos sócio-políticos e culturais são os alicerces em que se baseia a norma que regula
a materialização dos corpos, a reiteração dessas normas e as possiblidades de rearticulação
que surgem com o tempo. Por isso, justifica-se o estudo das manifestações da cultura popular
12

para compreender a sociedade em que vivemos e as regras que nos são impostas. A riqueza do
trabalho de Mitchell nesse contexto é a possibilidade de análise em diversas frentes, como o
contexto histórico em que a ação está localizada, a utilização do punk rock como instrumento
de empoderamento e autenticidade, a estética drag como identificação, entre outras instâncias
que este trabalho não aborda, mas que esperamos ser trazidas à tona e discutidas tendo como
ponto de partida o diálogo que tentamos iniciar.

4 REFERÊNCIAS

BUTLER, Judith. Bodies That Matter: On The Discursive Limits of “Sex”. Nova York, NY:
Routledge, 1993.

CONWAN, Sharon. “We Walk Among You”: Trans Identity Politics Goes to the Movies.
Canadian Journal of Women & the Law, v.21, n.1, 2009. P. 91-117.

FEFFER, Steve. “Despite All the Amputations, You Could Dance to the Rock And Roll
Station”: Staging Authenticity in Hedwig and the Angry Inch. Journal of Popular Music
Studies, v.19, n.3, 2007. p. 239-258.

MITCHELL, John Cameron (Dir.) Hedwig and the Angry Inch. New Line DVD, 2001.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Inglês Aba de anexos para salvar artigo

THE LOST VOICES OF THE CARIBBEAN?


REVISITING J.M. COETZEE’S FOE AND JEAN RHYS’ WIDE SARGASSO SEA

Renata Lucena Dalmaso1 (PPGI/UFSC)

RESUMO

A apropriação de textos canônicos é uma estratégia comum em termos de literatura pós-


colonial, na medida em que foca na problematização de ideologias e linguagens utilizadas
pelo colonizador ao mesmo tempo em que as subverte. Outro ponto comum é a noção de que
essas re-escrituras trabalham no sentido de dar voz aos personagens que foram silenciados nos
textos canônicos. Este parece ser o caso nos romances Wide Sargasso Sea, de Jean Rhys, e
Foe, de J.M. Coetzee, onde os personagens marginais ou neglicenciados, Antoinette/Bertha e
Friday respectivamente, ganham espaço para se desenvolverem. O que, entretanto, leva à
questão: como exatamente esses personagens ganham uma voz? Em que sentidos é possível
subverter um texto se mesmo na apropriação desse texto os personagens ainda aparecem
como monstrosidades de certa forma? O que espero fazer neste trabalho é justamente analizar
os processos pelos quais esses personagens permanecem em suas posições marginais, como
‗outro‘, nas re-escrituras mencionadas.

Palavras-chave:
Pós-colonial. Re-escritura. Outro.

ABSTRACT

The appropriation of canonical texts is a common strategy when it comes to post-colonial


literature, as it focuses on problematizing the ideological contents and language of the
colonizer by subverting them. What is also common is the notion that these rewritings work to
give voice to those characters that were silenced in the canonical texts. Such appears to be the
case in Jean Rhys‘ Wide Sargasso Sea and J.M Coetzee‘s Foe, where marginal or neglected
characters, Antoinette/Bertha and Friday, respectively, are given a space to develop. This,
however, leads to the question: how exactly are these characters given a voice? In what ways
can you subvert a text if even in the appropriation of that text the characters still appear as
monstrosities in a way? What I hope to do in this paper is to analyze the processes in which
these characters remain othered in the rewritings mentioned.

Keywords:
Post-colonial. Re-writing. Other.

The appropriation of canonical texts is a common strategy when it comes to post-


colonial literature, as it focuses on problematizing the ideological contents and language of
the colonizer by subverting them. What is also common is the notion that these rewritings
work to give voice to those characters that were silenced in the canonical texts. Such appears
to be the case in Jean Rhys‘ Wide Sargasso Sea and J.M Coetzee‘s Foe, where marginal or
neglected characters, Antoinette/Bertha and Friday, respectively, are given a space to develop.

1
PhD candidate at PPGI/UFSC; e-mail: rldalmaso@gmail.com.
2

This, however, leads to the question: how exactly are these characters given a voice? In what
ways can you subvert a text if even in the appropriation of that text the characters still appear
as monstrosities in a way? What I hope to do in this paper is to analyze the processes in which
these characters remain othered in the rewritings mentioned.
First of all I want to clarify exactly what I mean by the term ‗monstrosity‘. Judith
Halberstam says the monster ―announces itself (de-monstrates) as the place of corruption‖,
presumably of humanity or of the human form (2000, p. 2). This place then could be the
mind, the body or even the soul. Generally, the image of the monster has always been
associated with hybridity or deformation, simultaneously close to and distant from humanity,
in sum a paradox (BELLEI, 2000, p. 11). In other words, the monster is the creature that at the
same time sets and crosses the boundaries of what is understood to be human. In this sense,
the concept of monstrosity should be understood as that which unsettles, as that which
generates an uncanny feeling (FREUD, 1976). It is within this context that I propose to
analyze such characteristics as madness, physical deformity, witchcraft, and cannibalism
present in the characters of Antoinette/Bertha and Friday.
From the beginning of the narrative in Wide Sargasso Sea, Antoinette is seen as an
outsider, even in her own land. Daughter to an impoverished family of former slave-owning
glory, she clearly states at the very first sentence that they do not belong: ―They say when
trouble comes close ranks, and so the white people did. But we were not in their ranks‖
(RHYS, 1966, p. 15, my emphasis). Their situation is delicate in a country filled with racial
tension after the emancipation of the slaves, and the family is constantly harassed due to their
fragile social position. If on the one hand they are not accepted in the closed ranks of the
whites, on the other they were despised by the blacks, who refer to them as ―white
cockroaches‖ (1966, p. 20). The violence escalates until it culminates in a fire that burns
down their house. This initial setting is relevant for it establishes the background of
Antoinette‘s character and foreshadows her eventual downfall as the pyromaniac that burns
Thornfield Hall to the ground (even though in Wide Sargasso Sea, she never actually
completes the act described in the pretext Jane Eyre). If the monster is announced as a place
of corruption, as Halberstam claims, the setting in Wide Sargasso Sea is very telling of this
nature. Coulibri State is described as once having been ―large and beautiful as that garden in
the Bible – the tree of life grew there. But it had gone wild‖ (1966, p. 17). In other words, the
place was subjected to corruption, much like its Biblical counterpart.
3

It seems inevitable, given her origins, that Antoinette should follow the same path
and be corrupted into wildness. Or at least that is the assumption that her husband makes. His
perspective is crucial, as the transition from Wide Sargasso Sea‘s Antoinette to Jane Eyre‘s
Bertha takes place through his point of view in the second part of the narrative. It is in this
second part of Wide Sargasso Sea that the two narratives point to a convergence that will
culminate in the third section of the novel, with the reenactment of the events prior to the
burning of Thornfield Hall in Jane Eyre. As Julia Sanders points out, the issue of renaming,
such as Rochester‘s efforts to address Antoinette as Bertha, is particularly relevant here, since
it ―constitutes an attempt [by Rochester] to occlude [Antoinette]‘s genetic links with her
mother and by extension with the family‘s supposed hereditary insanity‖ (2006, p. 102).
Rochester seeks not only to erase all connections with the insane woman, but his efforts to
conceal the marriage from acquaintances and relations in England seems also to indicate a
desire to avoid a link to a Creole descendant: ―Creole of pure English descent she may be, but
they are not English or European either‖ (1966, p. 61).
Rochester‘s description of his wife is clearly related with the monstrous, both in
Wide Sargasso Sea— a ―red-eyed wild-haired stranger who was my wife shouting
obscenities at me‖ (1966, p. 135)—as in Jane Eyre:

a pigmy intellect [. . .] Bertha Mason, the true daughter of an infamous mother. [. . .]


[of a] nature the most gross, impure, depraved I ever saw [. . .] safely lodged in that
third-storey room, of whose secret inner cabinet she has now for ten years made a
wild beast‘s den – a goblin‘s cell. (1992, p. 270, 273, my emphasis)

In both cases Rochester makes a point of distancing the character Antoinette/Bertha from any
trace of humanity or civilization and approximating it to animal and wild characteristics.
Antoinette appears to be monstrous to Rochester even before the events that led to
her breakdown, however. During their honeymoon, the uncanniness in his gaze is already
present: ―her eyes which are too large and can be disconcerting. She never blinks at all it
seems to me. Long, sad, dark alien eyes.‖ (1966, p. 60-1). This supports the assumption that
the monstrosity in Antoinette did not surface with her madness, it was always already there, at
least in his eyes, as he himself lets out: ―when did I begin to notice all this about my wife
Antoinette? After we left Spanish Town I suppose. Or did I notice it before and refuse to
admit what I saw?‖ (1966, p. 61). Perhaps this is the reason this transition needed to be shown
through his point of view after all, to reveal to the reader that the status of Other was already
4

pinned to Bertha Mason long before she was confined in that Thornfield Hall attic. Bertha‘s
story, even in the revisionary text, is not her own to tell.
In Foe, another revisionary text, the character of Friday is the one who cannot tell his
own story. He is not just symbolically mute, like Bertha Mason; the literality of his
muteness—he had his tongue cut out by slave traders or perhaps even by Cruso (the ―e‖ from
Crusoe disappears in Coetzee‘s version) himself as the narrative indicates—is at times both
shocking and monstrous. In this rewriting, the voice is given to a female character and main
narrator, Susan Barton, the second subject of Robinson Cruso on his island, who is
nevertheless also unable to tell Friday‘s story to the world. In this case, it is the physical
deformity of his character that marks his oppression and status as a monstrosity. As Sanders
points out, ―in a reverse move to Jean Rhys‘s desire to give Bertha Rochester a voice in
Antoinette‘s narrative in Wide Sargasso Sea, Coetzee maintains Friday‘s silence until the
close of his novel‖ (2006, p. 111). Cruso‘s version in also told only through Susan, for he
never gets a chance to return to his home country and dies on the way back.
The character Susan tries to discover Friday‘s real story, the one besides what she
was told by Cruso on the island and that she suspects may not be the real one. She wants his
true tale to be told, but as hard as she tries she cannot find a way to communicate with him
beyond the simplest directions, signals and words. Several techniques are employed in the
attempt to establish further communication with Friday: drawing, teaching him how to read or
write, music, dancing, body language. All fruitless, as he remains—whether willingly or
unwillingly stays unclear—silent. Her critique here is that Cruso was mistaken in his
relationship with Friday: ―Cruso would not teach him because, he said, Friday had no need of
words. But Cruso erred. [. . .] For I cannot believe that the life Friday led before he fell into
Cruso‘s hands was bereft of interest‖ (1986, p. 56).
Susan, in the context of the island, it would seem advantageous for Cruso to have a
companion instead of a servant: ―then Cruso might have spoken to Friday after his manner,
and Friday responded after his, and many an empty hour been whiled away‖ (1986, p. 56).
This thought, however, is only in favor of Cruso or herself ―out of loneliness‖, and not
necessarily on Friday‘s behalf. She seems to acknowledge this bias when pondering over the
contradictions of her behavior towards him:

when benevolence deserts me and I use words only as the shortest way to subject
him to my will. At such times I understand why Cruso preferred not to disturb his
muteness. I understand, that is to say, why a man will choose to be a slaveowner.
(1986, p. 77, p. 60-1)
5

If in this ―post-colonial reading of Defoe‘s novel, Crusoe is still the master and
Friday the servant‖, as much as Susan tries to pull away from that pattern and give Friday a
voice, she does not break the relationship between oppressor and oppressed (HELENE e
CORRÊA, 2005, p. 224). Eventually Susan just ends up replacing Cruso as Friday‘s master
and keeper. Even in the revisionary text, Friday‘s head remains under the foot of his colonizer
and rescuer. In a Prospero-like manner, Susan ultimately acknowledges the thing of darkness
in her life as hers: ―A woman may bear a child she does not want, and rear it without loving it,
yet be ready to defend it with her life. Thus it has become, in a manner of speaking, between
Friday and myself. I do not love him, but he is mine‖ (1986, p. 111, my emphasis).
An unwanted progeny of an unloving mother, Friday remains a mystery throughout
the novel. His whole existence is obscure: who is he? Where does he come from? What
happened to his tongue? Why is he so willingly submissive? Has he sexual desire? What is
the ritual performed with the petals? The list of questions goes on and only adds to the general
feeling of uneasiness towards the character. Susan‘s concern is that along with the ability to
speak, Friday may have lost part of his humanity: ―the unnatural years Friday had spent with
Cruso had deadened his heart, making him cold, incurious, like an animal wrapped entirely in
itself‖ (1986, p. 70). Humanity, for Susan, is tied to the concept of communication and
interaction through language, which means that the idea of a lack of speech is correlate with a
lack of humanity, something that can only cause ―shiver[s]‖ to her body (1986, p. 57).
The tension regarding his monstrosity escalates when combined with fears of
cannibalism, such as at the sight of the corpse of a baby by the road:

my thoughts ran to Friday, I could not stop them, it was an effect of the hunger. Had
I not been there to restrain him, would he in his hunger have eaten the babe? [. . .]
part of me knew he was the same dull blackfellow as ever, another part, over which I
had no mastery, insisted on his bloodlust. (1986, p. 106)

The narrator Susan is negotiating here between the choices of stereotypes in this colonial
dichotomy: docile or savage. On the one hand Uncle Tom‘s dull blackfellow, on the other the
cannibal savage of Columbus journeys. As Friday is unable to speak for himself, there is no
third option in representation here. Moreover, since Friday has no story, there is no evidence
that he was ever part in any cannibalistic act. The anxiety over this possibility remains though.
In relation to that, Daniel Defoe‘s Crusoe could only conceive of the natives as being
a ―pitch of inhuman, hellish brutality, and the horror of the degeneracy of human nature‖
precisely because of their cannibalistic habits (2010, p. 141). Furthermore, going briefly back
to Jane Eyre‘s and Wide Sargasso Sea‘s Bertha Mason/Antoinette, the anxiety of cannibalism
6

is also associated with her character: in both novels she is the protagonist of attacks that
involve the biting of human flesh. In Wide Sargasso Sea she bites Rochester‘s arm during an
argument while in Jane Eyre she attacks Richard Mason by biting him brutally on the chest.
The idea of the Other as cannibal is recurring in colonial discourse, particularly in the
Caribbean, as Peter Hulme points out:

Discursively the Caribbean is a special place, partly because of its primacy in the
encounter between Europe and America, civilization and savagery, and partly
because it has been seen as the location, physically and etymologically, of the
practice that, more than any other, is the mark of unregenerate savagery—
cannibalism. ‗Cannibalism‘ – and it will, until satisfactorily made sense of, be held
in those inverted commas – is the special, perhaps even defining, feature of the
discourse of colonialism as it pertained to the native Caribbean. (1986, p. 3)

It is no coincidence then that both novels, Wide Sargasso Sea and Foe, are set in the
Caribbean2 and deal with the issue of cannibalism and the characterization of corrupted
subjects, or monstrosities.
This dichotomy of civilization versus savagery is seen both in the canonical pre-texts
Robinson Crusoe and Jane Eyre, as in their revisionist versions Foe and Wide Sargasso Sea.
The characters of Friday and Bertha, initially marginalized and silenced, may have been
appropriated, but the fact remains that they continue to possess characteristics that mark them
as monstrosities, as Others. Bertha gains a past, but not really a voice, since her transition
from Antoinette to Bertha is told from Rochester‘s perspective. Friday, on his turn, is
symbolically silenced and continues to evoke the fear of the Other even in his closest relation,
his self-proclaimed, albeit unwilling, mother. The impossibility in telling their stories could
have many meanings. For some it ―emphasizes this silence by making Friday tongueless as if
to show that the barrier between oppressor and oppressed is one which is impossible to cross‖
(HELENE E CORRÊA, 2005, p. 224). For others, the final sounds that come through Friday‘s
mouth make him a ―semantic signifier of the island, and all that was suppressed, oppressed, or
repressed in Defoe‘s ‗master-text‘‖ (SANDERS, 2006, p. 112).
In my opinion, Susan Barton summarizes well the paradox of the post-colonial
character within the canon: ―The story of Friday‘s tongue is a story unable to be told, or
unable to be told by me. That is to say, many stories can be told of Friday‘s tongue, but the
true story is buried within Friday, who is mute. The true story will not be heard till by art we

2
Caribbean here is specified by Hulme as ―not the somewhat vague politico-geographic region now referred to
by that term, but rather what Immanual Wallerstein calls ‗the extended Caribbean‘, a coastal and insular region
that stretched from what is now southern Virginia in the USA to the most eastern part of Brazil. Textually this
region incorporates at its northern boundary John Smith‘s ‗rescue‘ by Pocahontas (near Jamestown) and at its
southern boundary Robinson Crusoe‘s plantation (near Bahia)‖ (1986, p. 3-4).
7

have found a means of giving voice to Friday‖ (1986, p. 118, my emphasis). The character in
the colonial discourse is always already mute. The possibility to subvert that silence is done
by emphasizing this muteness rather than undermining it.

REFERENCES

BELLEI, Sérgio Luiz Prado. Definindo o monstruoso: forma e função histórica. Monstros,
índios e canibais: ensaios de crítica literária e cultural. Florianópolis: Insular, 2000.

BRONTË, Charlotte. Jane Eyre. London: Wordsworth, 1992.

COETZEE, J.M. Foe. London: Penguin, 1986.

DEFOE, Daniel. Robinson Crusoe. London: Harper Collins, 2010.

FREUD, Sigmund. The Uncanny. New Literary History 7.3 (Spring 1976): 619-645.

HALBERSTAM, Judith. Skin Shows. Durham: Duke University Press, 2000.

HELENE, Célia Guimarães and Lilian Cristina CORRÊA. J.M. Coetzee's Foe and Daniel
Defoe's Robinson Crusoe: a post-modernist dialogue. In: TOMITCH, Leda et al (Ed.)
Literaturas de Língua Inglesa: Visões e Revisões. Ed. Leda Tomitch, et al. Florianópolis:
Insular, 2005.

HULME, Peter. Colonial Encounters: Europe and the native Caribbean, 1492-1797.
London and New York: Methuen, 1986.

RHYS, Jean. Wide Sargasso Sea. New York: W.W. Norton & Company, 1966.

SANDERS, Julia. Adaptation and Appropriation. New York: Routledge, 2006.


SUMÁRIO GERAL Sumário de Inglês Aba de anexos para salvar artigo

THE USE OF LANGUAGE IN POLITICS: A CRITICAL DISCOURSE ANALYSIS


OF OBAMA’S SPEECH IN THE LIGHT OF SYSTEMIC FUNCTIONAL GRAMMAR

Andreana Marchi1 (PPGI/UFSC)

RESUMO

Tomando como referencial o contexto econômico em que os Estados Unidos se encontravam


no começo do ano de 2008 assim como as primárias do Partido Republicano e Democrata
para escolha dos candidatos a presidência estadunidense no mesmo ano, o presente estudo
analisa o uso da língua em um dos discursos políticos do então pré-candidato Barack Obama.
Mais especificamente, este trabalho tem por objetivo investigar a forma como Obama usa a
língua para ganhar projeção nacional e viabilizar sua candidatura à presidência. Com base na
Gramática Sistêmico-Funcional (HALLIDAY, 1985, 1994; HALLIDAY & MATTHIESSEN,
2004), Análise Crítica do Discurso (FAIRCLOUGH, 1989; 2003), e estudos de análise de
discursos políticos (CHILTON & SCHÄFFNER, 2002; CHILTON, 2004), a autora propõe
uma análise textual de um discurso político de Obama, com o propósito de investigar quais
são as escolhas léxico-gramaticais manifestadas nesse discurso. Além disso, pretende-se des-
velar quais são os participantes ou Atores Sociais aos quais o redator dos discursos atribui
maior capacidade de realizar alguma coisa ou aqueles que ganham voz e podem ser escutados
através dos Processos que o representam. Dessa forma, este trabalho pretende contribuir os
estudos de língua e política.

Palavras-chave:
Primária - Eleição dos EUA 2008. Discurso Político. Gramática Sistêmico-Funcional. Análise
Crítica do Discurso.

ABSTRACT

Taking into account the economic context in which the United States were placed in at the
beginning of 2008 as well as the Primaries of the Republican and the Democratic Party to
choose the presidential nominees at the same year, the present study analyzes the use of lan-
guage in one of the political speeches of the presidential candidate Barack Obama. More spe-
cifically, this study aims at investigating the way Obama uses language to rise to national
prominence and to make feasible his presidential candidacy. Based on Systemic Functional
Grammar (HALLIDAY, 1985, 1994; HALLIDAY & MATTHIESSEN, 2004), Critical Dis-
course Analysis (FAIRCLOUGH, 1989; 2003), and studies on political discourse analysis
(CHILTON & SCHÄFFNER, 2002; CHILTON, 2004), the author proposes a textual analysis
of one of Obama‘s political speech with the purpose of investigating what are the lexi-
cogrammatical choices manifested in such speech. Besides, it intends to unveil what are the
Participants and Social Actors in which the speechwriter gives more ability to accomplish
something or which ones gain voice and can be heard through the Processes they represent.
Thus, this work intends to contribute to the studies on language and politics.

Keywords:
Primary – 2008 USA Presidential Election. Political Speech. Systemic Functional Grammar.
Critical Discourse Analysis.

1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Língua Inglesa pela UFSC e bolsista da Capes; e-mail: andrea-
namarchi@hotmail.com.
2

1 INTRODUCTION
Barack Obama rose to national prominence and American political scenario when he
delivered a remarkable speech at the Democratic National Convention in 2004. At that day, he
was invited to address the keynote to the Democrat Party in Boston. As a candidate to the
Senate, Obama delivered his speech associating his personal and complex life story to a more
broad national identity as it can be seen in this excerpt: ―I stand here knowing that my story is
part of the larger American story, that I owe a debt to all of those who came before me, and
that, in no other country on earth, is my story even possible.‖2 Since then, it seems that
Obama knows how to use language to convey his political message. His image cannot be dis-
associated with his political speeches, because his political path seemed to be built based on
his powerful rhetoric. Because of that, Obama might answer the claim of Chilton & Schäffner
(2002, p. III): ―Human beings are political animals and articulate mammals. The question
arises as in which ways and to what extent these two aspects are linked‖.
Some years later, the former Illinois Senator started his presidential campaign for the
United States. At that time and after eight years of Bush administration, some things have
changed in America. With two wars and an economic crisis, Barack Obama among other can-
didates took advantage of this situation to promote a change in politics.
Therefore, at the beginning of 2008, the people of the United States of America start
the process of selecting a presidential nominee for November general election. This selection
is known as caucuses and primaries and they happen in the fifty states of the nation generally
between January and June. This presidential selection process has always been an event that
catches people‘s attention due to the fact that it shows the preference of American people on
the presidential candidate and it can promote more support to those candidates. Thus Iowa and
New Hampshire are the first states to cast the official votes for the presidential nominations
and according to Singh (2003, p. 119) they ―remain the first important tests of a presidential
campaign.‖
On January 8th, 2008, in the state of New Hampshire, Barack Obama delivered one
of the most memorable speeches in the history of the United States. At that night, he had lost
the New Hampshire primary by a small percentage to Hillary Clinton. She had 39% and he
had 36% of the votes in the New Hampshire Democratic Primary, which is considered the

2
Source: http://www.washingtonpost.com/ac2/wp-dyn/A19751-2004Jul27?language=printer Retrieved October
14th, 2011.
3

"First-in-the-Nation Presidential Primary‖ 3. This is the first part of the process of choosing
which presidential nominee from the Democratic Party will be running the presidential elec-
tion in November against the Republican nominee.
Thus, people from the United States and also some people from other parts of the
world had their attention caught by a speech that was considered inspiring, the one delivered
by someone who had just lost the first battle of the Democratic Primary. Taking this into ac-
count, this particular speech is different in a set of reasons. The most important reason is re-
vealed by the linguistic choices the speechwriter makes in order to carry out the meanings
intended. Mainly, discourse analysis aims at helping us ―explain the relationship between
what we say and what we mean in particular spoken and written contexts.‖ (PALTRIDGE &
WANG, 2010, p.256)

2 THE SPEECH

Senator Obama delivered his concession speech on the night of January 8th, 2008 in
Nashua, New Hampshire. Obama‘s speech was about 12 minutes in length, 1211 words long.
Coming in public with his wife, Obama met his campaign supporters at the Nashua South
School gym, just after the announcement of his loss in the 2008 New Hampshire Primary.
Known as the ―Yes we can Speech‖, the speech is different in many ways, mainly because it
was delivered in such a passionate and confident way that it seems that Obama hadn‘t lost the
first Primary to presidential candidate, Hillary Clinton.
As usual, just after the announcement of elections results, candidates are invited to
address remarks to their audience – campaign supporters, organizers and staff who are joining
the cause. Thus, in this concession speech, Obama starts his address congratulating Hillary
Clinton on her victory and also giving emphasis to the word ‗change‘. Furthermore, he calls
his supporters and electorate to become the new majority. Promising to bring the troops home,
Obama calls citizens and entrepreneurs to free the United States from the tyranny of oil. He
returns to the topic of change again, but at this time highlighting the importance of a stronger
union based on the Americans who changed the course of History, because as he said in the
speech: ―generations of Americans have responded with a simple creed that sums up the spirit

3
Source: http://www.nh.gov/nhinfo/manual.html Retrieved October 14th, 2011.
4

of a people: yes we can‖. And this is the crucial excerpt of the speech in which Obama links
the creed of the American people to the most passionate part of the speech: the last two-
hundred and seventy-one words were delivered in such a poetic tone that became that speech
one of the most notable addresses of Obama.

3 THEORETICAL BACKGROUND
For the purpose of analyzing how the lexicogrammatical choices are construed in
Barack Obama‘s discourse as a speaker and Democratic Party nominee, it is necessary to un-
veil through the Transitivity System (proposed by Halliday in his Systemic Functional
Grammar) the ideational meanings behind the speech – the Participants, the Processes and
Circumstances chosen to construe the text. To reach such a goal, it is essential to micro ana-
lyze the clauses presented in the speech‘s excerpt, because:

The clause of the grammar is not only a figure, representing some process – some
doing or happening, saying or sensing, being or having – with its various partici-
pants and circumstances; it is also a proposition, or a proposal, whereby we inform
or question, give an order or make an offer, and express our appraisal of and attitude
towards whoever we are addressing and what we are talking about. (HALLIDAY &
MATTHIESSEN, 2004, p.29)

Upon analyzing the meaning potential of those clauses, this author intends to shed
some light on how Obama‘s speechwriter portrays the Participants involved in the speech and
how they are represented by the Processes they are linked in. These linguistic evidences can
lead to a better understanding on how ―language plays an important role in designing and le-
gitimizing certain Participants upon choosing specific Processes to represent them.‖
(MARCHI & STEFFEN, 2011, p.9).
Taking these linguistic evidences into consideration, it is crucial to include the ap-
proach proposed by the Critical Discourse Analysis (CDA). This approach sees the interrela-
tion of power and language as they are entirely linked (FAIRCLOUGH, 1989) and also ana-
lyzes the way discourse reproduces social and political issues related to their sociopolitical
structure and context (FAIRCLOUGH, 2003).

4 DATA
Bearing in mind the context presented previously, this author chose an excerpt from
Barack Obama‘s speech delivered at the Primary in New Hampshire, 2008. In this speech, he
made use of the slogan ‗Yes, we can‘, that may be considered a rhetorical device which was
eventually used throughout his entire presidential campaign. This phrase has become one of
5

the most influential in his speeches, because it began punctuating4 many of his addresses as
the candidate of the presidency of the United States in 2008.
With the objective of exploring the lexicogrammatical choices made by the writer of
Barack Obama‘s speech, this author critically analyzes the passage of forty-one clauses (271
words) from the original speech (cf. the Appendix I).

4.1 Analyzing the data


Before analyzing what type of Processes each clause of the speech was representing,
the author organized the clauses by topics. From clause 1 to clause 6, Obama establishes the
creed (Yes, we can) that can be found in one of the most important documents of the United
States politics: the founding documents. From clause 7 to 16, he gives importance to some
important Social Actors who carry the creed throughout the American History. Then, he pre-
sents two historical Social Actors who also adopted ‗yes, we can‘ as a personal and national
creed: President Kennedy and Martin Luther King Jr. (clauses 17 to 20). From clauses 21 to
25, he invites the American citizens upon using inclusive we and construes different meanings
using ‗yes, we can‘ and other important Participants. As the election takes places all over the
nation, Obama brings some realities they will meet when campaigning from clause 26 to 30.
Upon telling that ‗something is happening in America‘, the presidential candidate links this
fact within the spirit of union from clauses 31 to 38. The last three clauses of the excerpt
(clauses 39, 40 and 41) sum up the spirit of union and the American creed established at the
beginning upon pointing out the most important Participant in the election process – the inclu-
sive we.
This textual analysis is based on the four major process types into the Transitivity
System: Material, Mental, Verbal and Relational and each one represent, as Ravelli (2000,
p.35) points out, ―the action around which clause is structured.‖ According to Martin, Mat-
thiessen & Painter (1997, p.114):

The four major process types – material, mental, verbal and relational - cover the
grammatical-semantic ‗space‘ of ‗going on‘ – happenings, doings, sensings, saying,
being, having, etc.; and they constitute a particular ‗theory‘ of this space – a frame-
work for interpreting and representing it by means of clauses in English.

Therefore, this study analyzes the Processes in order to unveil the representation of

4
Source: http://www.guardian.co.uk/commentisfree/belief/2009/jan/20/religion-barackobama Retrieved October
14th, 2011.
6

the Social Actor in the real world, or in other words, to unveil the ideational metafunction
(HALLIDAY & MATTHIESSEN, 2004) of such Participants in Obama‘s speech.

5 DISCUSSION OF ANALYSIS
As far as the Transitivity system is concerned, five out of the six Processes Halliday
and Matthiessen (2004) propose are identified in the selected excerpt of the speech. Besides
the occurrence of four major process types mentioned in the previous section (MARTIN,
MATTHIESSEN & PAINTER, 1997, p.114), there is one that might receive special attention:
the Existential type. It occurs just once and gives emphasis to a universal truth Obama wants
to convey, as it will be discussed in what follows.
It can be identified that most of the Processes are of the Material type – 20 occur-
rences out of 41 clauses. In this respect, 8 of these Material Processes are of the implicit type
and the other 13 are of the explicit type. Relational Processes occur 10 times throughout the
excerpt. The Verbal Type has an incidence of 6 times, and the Mental type can be seen in 4
clauses. Regards the fact that almost 50% of the excerpt is based on Material Processes, it
might be relevant to unveil why such Processes are very prominent and why the Existential
type occurs just once. These findings will be deeply discussed in the following section.

5.1 Establishing an American creed – Yes we can


The first clauses of the speech represent the establishment of an American creed. In
doing so, Obama relates ‗yes we can‘ within a creed. And it seems to be a non-common creed,
because ‗yes we can‘ is placed in a specific Circumstance: written into the founding docu-
ments, as it can be seen in:
Clause 4 – It was a creed written into the founding documents
One can see that Obama legitimizes it when linking this American creed to one of the
most powerful documents ever written in the United States history – the one which establishes
a democratic society. And this democratic society is represented by the founding documents –
the Declaration of Independence written in 1776, and the Constitution of the United States
written in 1787. Thus Obama gives voice to the founding documents when using a Verbal
Process in:
Clause 5 – [the founding documents] declared the destiny of a nation.
It seems that the creed is something very important to the American people, that even
the founding documents reverberate it and hence trace the path of that nation.
7

5.2 Giving voice and agency to Social Actors


Subsequently, Obama gives voice to two Social Actors who helped built the United
States. Upon using the pronoun it, Obama implies that the creed was reverberated by slaves
and abolitionists, and immigrants when they faced strange odds in the American land:
Clause 7 – It was whispered by slaves and abolitionists
Clause 10 – It was sung by immigrants
Due to the fact they believed in the creed, they could accomplish their goals through
Material Processes:
Clause 8 – [slaves and abolitionists] blazed a trail towards Freedom through the darkest
nights.
Clause 11 – [immigrants] struck out from distant shores
Also, he presents another Social Actor who enacted an important goal in:
Clause 12 – [pioneers] who pushed westward against an unforgiving wilderness.
Furthermore, he relates the creed with two other Social Actors – workers and women
– who fought for their rights in the American society. In this sense, he uses Material Processes
to represent that:
Cl. 13/14 – It was the call of workers who organized
Cl. 15/16 – [It was] women who reached for the ballot

5.3 Presenting two historical Social Actors


After giving voice and agency to common Social Actors, Obama presents two other
historical Social Actors. As mentioned before, it seems that President Kennedy and Martin
Luther King Jr. also adopted ‗yes, we can‘ as a personal and national creed, because Obama
also relates their actions through Material Processes to the American creed:
Clause 17/18: [It was] a President who chose the moon as our new frontier
Clause 19: [It was] a King who took us to the mountaintop
The image of the man on the moon is related to the president who believed that this
mission was possible to accomplish: John F. Kennedy. At this point, Obama presents Kenne-
dy as an audacious and visionary president, the one who believed in conquering the moon.
When saying that ‗a president who chose the moon as a new frontier‘, he reinforces this idea
that Americans can do whatever they want, they can choose the new frontier. It also suggests
that America already conquered the world, so the moon became a new frontier due the fact
that a president chose to do it so. As a matter of fact, the United States landed a man on the
moon in 1969, but before that, in 1961, in a mission statement, Kennedy had expressed that "I
believe that this nation should commit itself to achieving the goal, before this decade is out, of
8

landing a man on the Moon and returning him safely to the Earth." O‘Callaghan (1996, p.121)
points out that:

President Kennedy‘s proposal in May 1961 that the United States should send a man
to the moon was eagerly welcomed by politicians and the American people. Soon
work had begun on the Apollo program, as the project was named.

Then, once more, Obama presents another very powerful Participant: Martin Luther
King Jr. In this case, he refers to the clergyman as King and also makes a connection to one of
the most memorable speeches delivered by him: The Mountaintop (considered by some critics
as prophetic5, since it was the last speech delivered by him). Obama refers to the King who
believed that it was possible to reach the mountaintop, perhaps creating a sense of the ‗highest
level‘ of achievement a man or nation can reach. Obama, once more, creates this link between
the main idea of King‘s speech and the creed ‗yes, we can‘:

"Well, I don't know what will happen now. We've got some difficult days ahead. But
it really doesn't matter with me now, because I've been to the mountaintop. And I
don't mind. Like anybody, I would like to live a long life — longevity has its place.
But I'm not concerned about that now. I just want to do God's will. And He's al-
lowed me to go up to the mountain. And I've looked over, and I've seen the Prom-
ised Land. I may not get there with you. But I want you to know tonight, that we, as
a people, will get to the Promised Land. So I'm happy, tonight. I'm not worried
about anything, I'm not fearing any man. Mine eyes have seen the glory of the com-
ing of the Lord." — The Rev. Martin Luther King Jr.6

5.4 Inviting the American citizens to join the cause


It can be implied that Obama uses implicit Verbal Process twice to give voice to
Americans, as it can be seen in the following clauses:
Clause 21 – Yes we can {say yes} to justice and equality
Clause 22 – Yes we can {say yes} to opportunity and prosperity.
In doing so, he gives voice to the inclusive we – not only the ones behind the
election campaign, but the citizens of the United States. It gives a sense of activeness of those
Social Actors, because the creed enables Americans to believe a change is possible.
Then he states that we (the nation, the citizens) can actually do something to
change the political scenario upon using two explicit Material Processes in:
Clause 23 – Yes we can heal this nation
Clause 24 – Yes we can repair this world

5
Source: http://www.npr.org/templates/story/story.php?storyId=89326670 Retrieved October 14th, 2011.
6
Source: http://www.americanrhetoric.com/speeches/mlkivebeentothemountaintop.htm Retrieved October 14th,
2011.
9

It seems that the people of the United States will not only fix the country, but
they will also extend this action to the world.

5.5 Meeting some realities when campaigning and finding similarities among Americans
In order to show social realities and contexts that Obama and his team will
meet when campaigning, he uses two Relational Processes to relate these Social Actors and to
show that there are no differences, because Americans can find similarities:
Clause 28 – the struggles of the textile workers in Spartanburg are not so different than the
plight of the dishwasher in Las Vegas
Clause 29 – the hopes of the little girl who goes to crumbling school in Dillon are the same
as the dreams of the boy who learns on the streets of L.A.

5.6 Building a united society


Obama construes the image of a united society when creating a national strong
involvement from clauses 31 to 37. When using a Mental Process in ‗we will remember
that…‘ (clause 31), Obama uses language to play with the collective imagination. He subse-
quently uses Relational Processes to evoke a sense of unity among Americans, as it can be
seen in:
Clauses 33/34 – [We will remember] that we are not as divided as our politics suggests
Clauses 35/36 – [We will remember] that we are one people
Clauses 37/38 – [We will remember] that we are one nation

5.7 Leaving the idea of ‘change’ implicit


Upon using just one Existential Process, Obama tells that ‗there is something hap-
pening in America‘ (clause 32). As mentioned before, this can be seen as a universal truth
Obama wants to convey, but also it implies that he is not giving it an answer: ‗there is some-
thing happening in America‘ can be seen as an idea of ‗change‘ Obama is leaving implicit.

5.8 Summing up the spirit of union and the American creed


The last three clauses of the excerpt (clauses 39, 40 and 41) sum up the spirit of un-
ion and the American creed established at the beginning of the speech‘s excerpt upon pointing
out the most important Participant in the election process – the inclusive we. It seems that
Obama gives agency to the American citizens when giving them the power to decide the des-
tiny of the nation through the vote.
10

5.9 Repetition of ‘yes we can’


By repeating the creed ‗yes we can‘ throughout the speech (it appears 11 times
in the excerpt), Obama reminds his listeners of the belief American people share. The creed
takes form of a mantra-like in this case, mainly because of its repetition. Also, upon using the
inclusive we, Obama puts emphasis on the creed when delivering his speech. In doing so, he
reinforces the idea that: we are one nation, and this is what we all have in common – a histori-
cal and, perhaps, alive creed that sums up the unity of the country as a guidance to change in
politics.

6 FINAL REMARKS
Upon establishing a creed at the end of the ‗Yes we can Speech‘, Obama gives
voice and agency to those Participants who somehow reverberated the creed and made the
difference in the American society. It seems that he wants to evoke such creed once again, but
at this time he wants the answer in the ballot.
Another important fact is the way he leaves Material Processes implicit in the ‗yes
we can‘ clause. Bearing in mind that the modal verb ‗can‘ means that someone is able to do
something, Obama‘s speechwriter leaves aside an explicit Process in the clause. It might im-
ply that Obama is not promising, but he is stimulating American people to believe it is possi-
ble to change that specific political reality. More than that, they will be able to accomplish it,
because the assertion at the beginning of the clause leaves this possibility: yes, we can. In
doing so, he calls upon the citizens to join the cause and to accomplish the change based on
the American creed.
Generally speaking, the textual analysis led to results that reveal that the main ob-
jectives in establishing a creed, relating characters in the American History, as President Ken-
nedy and Martin Luther King Jr., and finally giving prominence to the spirit of union with the
belief in the creed construed a strong basis to promote change in the subsequent Democratic
Primary. Upon delivering this part of the speech in such a poetic tone, Obama used language
as a powerful resource to enhance his presidential campaign and spread his creed of ‗yes we
can‘ all over the country, conquering not only his adversaries, but receiving a positive answer
that changed the results in the ballot.
11

7 REFERENCES

CHILTON, P. A. Analysing Political Discourse: Theory and Practice. London: Routledge,


2004.

CHILTON, P.A. & SCHÄFFNER, C. Politics as Text and Talk. Amsterdan/Philadelphia:


John Benjamins Publishing Company, 2002.

FAIRCLOUGH, N. Language and power. Harlow: Longman, 1989.

_____. Critical Discourse Analysis. London: Longman, 1995.

_____. Analysing discourse: Textual analysis for social research. USA and Canada:
Routledge, 2003.

FAIRCLOUGH, N.; WODAK, R. Critical discourse analysis. In: T. Van Dijk (Hg.): Dis-
course Studies: A Multidisciplinary Introduction. Vol. 2. London: Sage, s. 258-84, 1997.

HALLIDAY, M.A.K. An introduction to functional grammar. London: Edward Arnold,


1985, 1994.

HALLIDAY, M.A.K.; MATTHIESSEN, C.M.I.M. An Introduction to Functional Gram-


mar (3rd ed.) London: Arnold, 2004.

MARCHI, A. & STEFFEN, G. T. A critical analysis of the representation of women and


youth in Dilma’s and Serra’s speeches in the 2010 presidential election. Accepted paper.
Anais IX Congresso Brasileiro de Linguística Aplicada - UFRJ: Rio de Janeiro, 2011.

MARTIN, J.R.; MATTHIESSEN, C.M.I.M; PAINTER, C. Working with Functional


Grammar. London: Edward Arnold, 1997.

O‘CALLAGHAN, B. An Illustrated History of the USA. Harlow: Longman, 1996.


PALTRIDGE, B. & WANG, W. Researching Discourse. In Paltridge, B. and Phakiti, A.
(Eds.). Continuum Companion to Research Methods in Applied Linguistics (pp. 256–
273), London: Continuum, 2010.

Organizing for America – BarackObama.com (2008, January, 08). Remarks of Senator


Barack Obama: New Hampshire Primary. Retrieved November 26th, 2010 from
http://www.barackobama.com/2008/01/08/remarks_of_senator_barack_obam_82.php

RAVELLI, L. Getting started with functional analysis of text. In L. Unsworth (Ed.), Re-
searching language in schools and communities. Functional linguistic perspectives. (pp.
27-64). London and Washington: Cassel, 2000.

SINGH, R. American Politics and Government: A Concise Introduction. London: Sage


Publications, 2003.

ACKNOWLEDGEMENTS
I would like to thank my advisor, Prof. Viviane Heberle, and my friends from
PPGI/UFSC, Cyntia Bailer and Giana Targanski Steffen, for their support and careful reading.
12

APPENDIX I
Corpus – Yes we can Speech (full transcript)

The following is a transcript of Senator Barack Obama's speech to supporters after the
New Hampshire Primary, as provided by Organizing for America Website – Obama: News
and Speeches. The last part of the speech is in bold which is the excerpt analyzed in this
study.

Remarks of Senator Barack Obama: New Hampshire Primary


Nashua, NH | January 08, 2008

First of all, I want to congratulate Senator Clinton on a hard-fought victory here in New
Hampshire. She did an outstanding job, give her a big round of applause.
You know, a few weeks ago, no one imagined that we'd have accomplished what we did here
tonight in New Hampshire. No one could have imagined it. For most of this campaign, we
were far behind. We always knew our climb would be steep.
But in record numbers, you came out and you spoke up for change. And with your voices and
your votes, you made it clear, that at this moment – in this election – there is something hap-
pening in America.
There is something happening when men and women in Des Moines and Davenport; in Leba-
non and Concord come out in the snows of January to wait in lines that stretch block after
block, because they believe in what this country can be.
There is something happening- there's something happening when, Americans who are young
in age and in spirit – who have never participated in politics before– turn out in numbers we
have never seen, because they know in their hearts that this time must be different.
There's something happening when, people vote not just for party, that they belong to but the
hopes; the hopes that they hold in common – that whether we are rich or poor; black or white;
Latino or Asian; whether we hail from Iowa or New Hampshire, Nevada or South Carolina,
we are ready to take this country in a fundamentally new direction. That's what's happening in
America right now. Change is what's happening in America.
You, all of you who are here tonight, all who put so much heart and soul and work into this
campaign, you can be the new majority, who can lead this nation out of a long political dark-
ness – Democrats, Independents, and Republicans who are tired of the division and distraction
that has clouded Washington; who know that we can disagree without being disagreeable;
who understand, who understand that if we mobilize our voices to challenge the money and
influence that's stood in our way and challenge ourselves, to reach for something better, there
is no problem we cannot solve. There is no destiny that we cannot fulfill.
Our new American majority can end the outrage of unaffordable, unavailable health care in
our time. We can bring doctors and patients; workers and businesses, Democrats and Republi-
cans together; and we can tell the drug and insurance industry that while they get a seat at the
table, they don't get to buy every chair. Not this time. Not now.
13

Our new majority can end the tax breaks for corporations that ship our jobs overseas, and put
a middle-class tax cut in the pockets of the working Americans who deserve it.
We can stop sending our children to schools with corridors of shame and start putting them on
a pathway to success. We can stop talking about how great teachers are and start rewarding
them for their greatness by giving them more pay and more support. We can do this with our
new majority.
We can harness the ingenuity of farmers and scientists; citizens and entrepreneurs to free this
nation from the tyranny of oil, and save our planet from a point of no return.
And when I am President of the United States, we will end this war in Iraq and bring our
troops home.
We will end this war in Iraq, we will bring our troops home; we will finish the job, we will
finish the job against al Qaeda in Afghanistan; we will care for our veterans; we will restore
our moral standing in the world; and we will never use 9/11 as a way to scare up votes, be-
cause it is not a tactic to win an election, it is a challenge that should unite America and the
world against the common threats of the twenty-first century: terrorism and nuclear weapons;
climate change and poverty; genocide and disease.
All of the candidates in this race share these goals. All of the candidates in this race have good
ideas. And all are patriots who serve this country honorably.
But the reason our campaign has always been different, the reason we began this improbable
journey almost a year ago, is because it's not just about what I will do as President, it is also
about what you, the people who love this country, the citizens of the United States of Ameri-
ca, can do to change it.
That's what this election is all about. That's why tonight belongs to you. It belongs to the or-
ganizers and the volunteers and the staff who believed in this journey and rallied so many
others to join the cause.
We know the battle ahead will be long, but always remember that no matter what obstacles
stand in our way, nothing can stand in the way of the power of millions of voices calling for
change.
We have been told we cannot do this by a chorus of cynics. They will only grow louder and
more dissonant in the weeks and months to come. We've been asked to pause for a reality
check; we've been warned against offering the people of this nation false hope.
But in the unlikely story that is America, there has never been anything false about hope. For
when we have faced down impossible odds; when we've been told we're not ready, or that we
shouldn't try, or that we can't, generations of Americans have responded with a simple creed
that sums up the spirit of a people.

Yes we can. (break for cheering) Yes we can. (break for cheering) Yes we can.
It was a creed written into the founding documents that declared the destiny of a nation.
Yes we can.
It was whispered by slaves and abolitionists as they blazed a trail towards freedom
through the darkest of nights.
14

Yes we can.
It was sung by immigrants as they struck out from distant shores and pioneers who
pushed westward against an unforgiving wilderness.
Yes we can.
It was the call of workers who organized; women who reached for the ballot; a President
who chose the moon as our new frontier; and a King who took us to the mountaintop
and pointed the way to the Promised Land.
Yes we can to justice and equality. Yes we can to opportunity and prosperity. Yes we
can heal this nation. Yes we can repair this world. Yes we can.
And so tomorrow, as we take the campaign South and West; as we learn that the strug-
gles of the textile workers in Spartanburg are not so different than the plight of the
dishwasher in Las Vegas; that the hopes of the little girl who goes to a crumbling school
in Dillon are the same as the dreams of the boy who learns on the streets of L.A.; we will
remember that there is something happening in America; that we are not as divided as
our politics suggests; that we are one people; we are one nation; and together, we will
begin the next great chapter in the American story with three words that will ring from
coast to coast; from sea to shining sea – Yes. We. Can.

APPENDIX II

Obama’s Yes we can Speech - excerpt analysis: Transitivity system

cls. 1, 2 and 3
Yes we can. (3x)
ACTOR MATERIAL
cl. 4
It was a creed written into the founding documents
CARRIER RELATIONAL ATTRIBUTE CIRCUMSTANCE
cl. 5
that [the founding documents] declared the destiny of a nation.
SAYER VERBAL VERBIAGE
cl. 6
Yes we can.
ACTOR MATERIAL
cl.7
It was whispered by slaves and abolitionists as they blazed a trail towards Free-
dom through the darkest nights.
VERBIAGE VERBAL SAYER CIRCUMSTANCE
cl. 8
[as they blazed a trail towards Freedom through the darkest of nights.]
ACTOR MATERIAL GOAL CIRCUMSTANCE
cl. 9
Yes we can.
ACTOR MATERIAL
cl. 10
It was sung by immigrants as they struck out from distant shores
VERBIAGE VERBAL SAYER CIRCUMSTANCE
cl. 11
[as they struck out from distant shores]
ACTOR MATERIAL CIRCUMSTANCE
15

cl. 12
and pioneers [pioneers] who pushed westward against an unforgiving wilderness.
SAYER ACTOR MATERIAL CIRCUMSTANCE
cl. 13
Yes we can.
ACTOR MATERIAL
cl. 13/14
It was the call of workers who organized;
CARRIER RELATIONAL ATTRIBUTE
--- --- ACTOR MATERIAL
cl. 15/16
[It was] Women who reached for the ballot;
[CARRIER RELATIONAL] ATTRIBUTE
--- --- ACTOR MATERIAL GOAL
cl. 17/18
[It was] a President who chose the moon as our new frontier;
[CARRIER RELATIONAL] ATTRIBUTE
ACTOR MATERIAL GOAL
cl. 19
and [It was] a King who took us to the mountaintop
[CARRIER REL ATTRIBUTE
ACTOR MATERIAL BENEFICIARY CIRCUMSTANCE
cl. 20
and {he} pointed the way to the Promised Land.
ACTOR MATERIAL GOAL CIRCUMSTANCE
cl. 21
Yes we can {say yes} to justice and equality
SAYER VERBAL VERBIAGE or RECEIVER
cl. 22
Yes we can {say yes} to opportunity and prosperity.
SAYER VERBAL VERBIAGE or RECEIVER
cl. 23
Yes we can heal this nation.
ACTOR MATERIAL GOAL
cl. 24
Yes we can repair this world.
ACTOR MATERIAL GOAL
cl. 25
Yes we can.
ACTOR MATERIAL
cl. 26
And so tomorrow, as we take this campaign South and West.
CIRCUMSTANCE ACTOR MATERIAL GOAL
cl.27 and 28
as we learn that the struggles of the textile workers in Spartanburg
ACTOR MATERIAL CARRIER
GOAL

are not so different than the plight of the dishwasher in Las Vegas.
RELATIONAL ATTRIBUTE
GOAL
cl. 29
that the hopes of the little girl who goes to a crumbling school in Dillon
CARRIER
GOAL
cl. 30
are the same as the dreams of the boy who learns on the streets of L.A.
RELATIONAL ATTRIBUTE
GOAL
cl. 31/32
We will remember that there is something happening in America.
16

SENSER MENTAL PHENOMENON


EXISTENTIAL EXISTENT
cl. 33/34
[We will remember] that we are not as divided as our politics suggests;
SENS MENTAL PHENOMENON
CARRIER RELATIONAL ATTRIBUTE
cl. 35/36
[we will remember] that we are one people
SENSER MENTAL PHENOMENON
CARRIER RELATIONAL ATTRIBUTE
cl. 37/38
[we will remember] we are one nation;
SENSER MENTAL PHENOMENON
CARRIER RELATIONAL ATTRIBUTE
cl. 39
and together, we will begin the next great chapter in the American story
CIRCUMSTANCE ACTOR MATERIAL GOAL
cl. 40
with three words that will ring from coast to coast; from sea to shining sea -
SAYER VERBAL CIRCUMSTANCE
cl. 41
Yes. We. Can.
ACTOR MATERIAL
SUMÁRIO GERAL

Comissões organizadoras

SIMPÓSIO INTERNACIONAL LINGUAGENS E CULTURAS:


HOMENAGEM AOS 40 ANOS DOS PROGAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO
EM LINGUÍSTICA, LITERATURA E INGLÊS DA UFSC
4 a 7 de outubro de 2011
Florianópolis, SC

COMISSÕES ORGANIZADORAS

Organização geral
Marcos Antonio Rocha Baltar (Coordenador Geral)
Marta de Faria e Cunha Monteiro (Secretária)

Adair Bonini
Edair Maria Görski
Felício Wessling Margotti
Izabel Christine Seara
Izete Lehmkuhl Coelho
Mailce Borges Mota
Maria Inêz Probst Lucena
Mary Elizabeth Cerutti-Rizzatti
Rosângela Hammes Rodrigues
Susana Bornéo Funck
Susana Scramim

Carla Regina Martins Valle (Secretária interina)


Maria Letícia Naime Muza (Secretária interina)

1 Comissão de projetos
Marcos Antonio Rocha Baltar (Coordenador)
Adair Bonini
Edair Maria Görski
Izete Lehmkuhl Coelho
Mailce Borges Mota
Maria Inêz Probst Lucena

2 Comissão de finanças
Felício Wessling Margotti (Coordenador)
Aldanei Luci Correa
Ricardo Rocha
Rosângela Hammes Rodrigues
Susana Bornéo Funck
Susana Scramim
Comissões organizadoras

3 Comissão científica
Izete Lehmkuhl Coelho (Coordenadora)
Adair Bonini
Carlos Capela
Christiane Maria Nunes de Souza
Edair Maria Görski
Mailce Borges Mota
Marcos Antonio Rocha Baltar
Marianne Stumpf
Susana Scramim
Tatiana Pimpão

4 Comissão de logística
Lúcia Maria Nassib Olímpio (Coordenadora)
Chris Schardosim
Janete Martins
Patrícia Sachet
Ruan de Souza Mariano
Vanessa Wendhausen Lima

5 Comissão de transporte/translado e hospedagem


Débora de Carvalho Figueiredo (Coordenadora)
Evelise Santos Sousa
Fábio Santiago Nascimento
Heronides Maurílio de Melo Moura
João Carlos da Silva
Lilian Rengel
Ricardo Rocha
Viviane Maria Heberle

6 Comissão de alimentação e ornamentação


Christiane Lazzarotto-Volcão (Coordenadora)
Carla Cristofolini
Eva Christina Orzechowski Dias
Josa Coelho da Silva
Letícia Lemos Gritti
Mariane Antero
Vanessa Gonzaga Nunes

7 Comissão do site
Renato Basso (Coordenador)
Gustavo Lopez Estivalet
Maria Luiza Rosa Barbosa
Wagner Saback Dantas
Comissões organizadoras

8 Comissão de intérpretes
Tarcísio de Arantes Leite (Coordenador)
Carlos Maroto Guerola
Gisele Iander Pessini Anater
Maria Inêz Probst Lucena
Ronice Müller Quadros

9 Comissão de audiovisual
Luiz Felipe Soares da Literatura (Coordenador)
Bruno Cardoso
Fábio Luiz Lopes da Silva
Marcos Antonio Rocha Baltar

10 Comissão de divulgação
Eloara Tomazzoni
Juliana Cemin
Laura Mesquita Baltazar
Lidiomar José
Marta Cristina Ferazza
Marta Scherer

11 Comissão do livro dos 40 anos


Edair Maria Görski (Coordenadora)
Adja Balbino de Amorin Barbieri Durão
Aline Lira
Carla Regina Martins Valle
Felício Wessling Margotti
Heronides Maurílio de Melo Moura
Liliana Reales
Rosângela Hammes Rodrigues
Rubens da Cunha
Susana Bornéo Funck
Susana Scramim
Valentina da Silva Nunes

12 Comisão de editoração
Felício Wessling Margotti
Fernando Floriani Petry
Hellen Pereira Melo
Maiara Knihs
Maria Inêz Probst Lucena
Maria Luiza Rosa Barbosa

13 Comissão cultural/artística
Ruan de Souza Mariano
Milene Peixer Loio
Carla Regina Martins Valle
Comissões organizadoras

14 Comissão de lançamento e venda de livros


Adair Bonini (Coordenador)
Eloara Tomazini
Sabatha Catoia Dias

15 Comissão dos anais do evento


Felício Wessling Margotti
Marta de Faria e Cunha Monteiro
Wagner Saback Dantas
SUMÁRIO GERAL

Como referenciar a obra

SUGESTÕES DE COMO REFERENCIAR A OBRA

1) Incluindo-se os nomes e sobrenomes completos:

MARGOTTI, Felício Wessling; MONTEIRO, Marta de Faria e Cunha; DANTAS, Wagner


Saback (Org.). Anais do simpósio Internacional Linguagens e Culturas: homenagem aos
40 anos dos Programas de Pós-Graduação em Linguística, Literatura e Inglês da UFSC.
Florianópolis: UFSC. Programas de Pós Graduação em Letras, 2011. 1494 p.

2) Suprimindo-se o extenso dos nomes e segundos sobrenomes:

MARGOTTI, F.W.; MONTEIRO, M.F.C.; DANTAS W.S. (Org.). Anais do simpósio


Internacional Linguagens e Culturas: homenagem aos 40 anos dos Programas de
Pós-Graduação em Linguística, Literatura e Inglês da UFSC. Florianópolis: UFSC.
Programas de Pós Graduação em Letras, 2011. 1494 p.

SUGESTÕES DE COMO REFERENCIAR ALGUM DE SEUS ARTIGOS

1) Incluindo-se os nomes e sobrenomes completos:

SILVA, João Almeida. Pesquisas em Linguística, Literatura e Inglês. In: MARGOTTI,


Felício Wessling; MONTEIRO, Marta de Faria e Cunha; DANTAS, Wagner Saback (Org.).
Anais do simpósio Internacional Linguagens e Culturas: homenagem aos 40 anos dos
Programas de Pós-Graduação em Linguística, Literatura e Inglês da UFSC. Florianópolis:
UFSC. Programas de Pós Graduação em Letras, 2011. 1494 p.

2) Suprimindo-se o extenso dos nomes e segundos sobrenomes:

SILVA, J.A. Pesquisas em Linguística, Literatura e Inglês. In: MARGOTTI, F.W.;


MONTEIRO, M.F.C.; DANTAS W.S. (Org.). Anais do simpósio Internacional Linguagens
e Culturas: homenagem aos 40 anos dos Programas de Pós-Graduação em Linguística,
Literatura e Inglês da UFSC. Florianópolis: UFSC. Programas de Pós Graduação em
Letras, 2011. 1494 p.
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Projeto gráfico e editoração
Luciano Patrício Souza de Castro
Daniel Leffa Allebrand

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