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LINGUÍSTICA
Apresentação LITERATURA
PÓS-GRADUAÇÃO
Sumário geral CCE - UFSC
anos
FELÍCIO WESSLING MARGOTTI
MARTA DE FARIA E CUNHA MONTEIRO
WAGNER SABACK DANTAS
(Organizadores)
1ª. Edição
Florianópolis
UFSC / CCE
2011
Catalogação na fonte pela Biblioteca Universitária da
Universidade Federal de Santa Catarina
Inclui bibliografia
ISBN: 978-85-60522-74-3
1. Universidade Federal de Santa Catarina. Programas
de Pós-Graduação em Linguística, Literatura e Inglês
- Avaliação - Congressos. I.Margotti, Felício Wessling.
II.Monteiro, Marta de Faria e Cunha. III.Dantas, Wagner
Saback. IV. Título.
CDU 378.22UFSC
SUMÁRIO GERAL
Apresentação
Sumário de Linguística
Sumário de Literatura
Sumário de Inglês
Comissões organizadoras
Apresentação
APRESENTAÇÃO
Tendo essa breve retrospectiva como pano de fundo, o PPGLg, o PPGI e o PPGL
organizaram o Simpósio Internacional Linguagens e Culturas, realizado no período de 04
a 07 de outubro, no Centro de Comunicação e Expressão (CCE) da UFSC, reunindo
pesquisadores de destaque das áreas de Letras/Linguística que contribuíram com a
história desses programas.
O objetivo deste evento foi produzir reflexões acerca da história dos estudos da
linguagem no Brasil e na região, evidenciando o trabalho realizado pelos pesquisadores
desses Programas de Pós-Graduação nos últimos 40 anos, assim como as suas parcerias
científicas em convênios e projetos interinstitucionais, nacionais e internacionais, além
de debater questões seminais da área por intermédio de mesas-redondas e grupos de
trabalho. Mais especificamente, o evento também teve como objetivos:
Apresentação
Boa leitura!
Sumário de Linguística
Sumário de Linguística
Sumário de Linguística
41. O LEITOR DE UMA PALAVRA, UMA NOVA APRENDIZAGEM - Ricardo Hecker Luz
Sumário de Linguística
49. TECIDO NA LÍNGUA DE SINAIS: B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S -
Carla Morais
RESUMO
Palavras-chave:
Construção [PEGAR OD E]. Gramática emergente. Português brasileiro.
ABSTRACT
From the emergent grammar perspective, I analyze the [PEGAR OD E] construction in
Brazilian contemporary Portuguese. I aim to contribute to the investigation of a grammar
construction little studied in Portuguese, and to provide subsidies for typological analyzes of
similar constructions in other languages. Based on data from different sources, I point that the
[PEGAR OD E] construction, similarly to the English [TAKE NP AND] construction, plays
two roles: the introduction of the direct object of the subsequent verb, and the selection of a
specific referent.
Keywords:
[PEGAR OD E] construction. Emergent grammar. Brazilian Portuguese.
1 INTRODUÇÃO
Em uma perspectiva funcionalista e utilizando dados do português brasileiro
contemporâneo oral provindos de bancos de dados de diferentes regiões do país, abordo a
construção [SUJi PEGAR ODj E SUJi V2 ODj] ou, simplesmente, [PEGAR OD E]. Tenho
como objetivo fornecer subsídios para a análise da(s) função(ões) desempenhada(s) por essa
construção. Vejamos alguns exemplos:
(1) E: É, é, ou sei lá ajudar mais, fazer mais casa pra ensinar profissão pra esses-
F: Mais casa, mais escolas, mais- podiam pôr aí tipo escola profissionalizante, né? Pegar essas
meninada de rua aí, essa piazada aí e ensinar, ensinar a fazer qualquer coisa.
E: Ensinar e empregar.
1
Doutora em Linguística pela UFSC; e-mail: aliceflp@hotmail.com.
2
F: Os índios nunca foram numa escola, quanto- quanto serviço bonito que fazem os índios, né? Então,
porque que não colocam esses- esses piás aí pra ir aprendendo, fazendo esse negócio. Primeira coisa,
podiam fazer sandália, bolsa, cinto, podia ser vendido mais barato, podia ajudar com esse dinheiro,
podiam ajudar escolas mesmo, né? hospitais podiam ajudar. (Banco de Dados
VARSUL/Curitiba/Entrevista 3)
(2) L2: por exemplo... a riqueza... o problema economia... a economia significando a existência de
dinheiro... no caso específico disso... é a existência de recursos materiais... não é a economia... o sistema
econômico... se é agrícola... se é comercial... se é industrial... não é esse problema... porque a economia
de um modo geral quando a gente fala... não fala da riqueza... e sim... da existência ou não de dinheiro...
mas do sistema econômico... agora... aqui no caso... nesse caso que foi empregado aqui... foi de existir
dinheiro... quer dizer... a economia existência de dinheiro... de bens... então... se a riqueza... se a riqueza...
não é sistema econômico ...
L1: eu posso dar um exemplo a você...
L2: então... o que acon/...
L1: na área de educação no Brasil... o maior resultado... o maior sucesso que teve... pelo menos
anunciaram aí... foi o Mobral... exatamente isso que ele está dizendo... pegaram uma grande parcela de
recursos e jogaram na alfabetização... então eu não sei... eu não ...
L2: talvez não tenha sido bem feita (NURC/Rio de Janeiro/inquérito 355 – D2)
Hopper (2001, 2008) analisa uma construção estruturalmente similar no inglês, [SUJi
TAKE NPj AND SUJi V2 NPj] ou, simplesmente, [TAKE NP AND], e defende que se trata
de um complexo verbal transitivo em que o verbo lexical (V2) e seu objeto direto estão em
diferentes orações. Vejamos dois dos exemplos fornecidos pelo autor:
(3) They took the same design as before and enlarged it by including a library and a gymnasium. 2
Eles pegaram o mesmo design de antes e o ampliaram com a inclusão de uma biblioteca e de um
ginásio.
(4) He was also saying I’m going to take that rational mind and hide it.
Ele também estava dizendo que eu vou pegar essa mente racional e escondê-la.
Segundo Hopper (op. cit.), TAKE funcionaria, nesses casos, como uma espécie de
auxiliar verbal que introduz o objeto do verbo pleno imediatamente subsequente. Portanto,
TAKE não remeteria a um evento distinto daquele denotado por esse verbo, apenas ressaltaria
seu objeto, tomando-o como seu argumento.
2
As traduções dos dados do inglês para o português são de minha responsabilidade.
3
Essa proposta parece ser válida para algumas ocorrências da construção [PEGAR OD
E] no português brasileiro. Todavia, é possível notar que, em alguns casos, o verbo PEGAR,
nessa construção, indica uma espécie de seleção, de escolha, de distinção de um referente face
a outros possíveis, o que pode se aplicar também a algumas das ocorrências da construção
[TAKE NP AND] apresentadas por Hopper. Portanto, talvez a construção [PEGAR OD E] e a
construção [TAKE NP AND] desempenhem duas funções distintas, questão para cuja
discussão intento contribuir.
A seguir, sintetizo o referencial teórico ao qual recorro para a análise dos dados
(seção 2), apresento a construção [PEGAR OD E] (seção 3), elenco motivações cognitivo-
comunicativa subjacentes ao uso dessa construção (seção 3.1), descrevo suas propriedades
morfossintáticas (seção 3.2), destaco construções similares em outras línguas (seção 3.3) e
levanto a possibilidade de a construção sob enfoque desempenhar mais de uma função (seção
3.4). Por fim, teço as considerações finais e listo as referências.
3 A CONSTRUÇÃO [PEGAR OD E]
Observemos mais alguns exemplos da construção [PEGAR OD E]:
(5) Porque nós temos o letramento na escola. Então a gente tem que pegar essa linguagem tida como
corriqueira e trazer para a linguagem formal, quer dizer, há a transformação do que era banal e trazer
p‟uma coisa mais elitizada. Porque a linguagem é elitizada, você sabe, a linguagem exigida é elitizada.
(professora de língua portuguesa – cf. RAQUEL, 2007, p. 142)
(6) Eu posso até dizer assim ... é como se ele visse ... ele olhasse pra um lado ... olhasse pra outro e visse
tá aqui a solu/ a solução ... tá nas minhas mãos ... a solução do país tá nas minhas mãos ... a solução dos
meus filhos futuramente tá nas minhas mãos ... mas ele tem medo de enfrentar ... de encarar a realidade ...
de pegar o seu direito de voto e dizer assim ... “eu vou usar essa arma” ... não ... eles se deixa enganar
... se deixa iludir por um dinheiro ... por uma cara bonita ... por um ... por um:: meio de comunicação
como é a televisão ... (Corpus Discurso & Gramática/Natal)
(7) Como você pode... é::... dar alimento à criança... que é a parte da educação... nessa chamado CIEPS...
que eu não gosto nem um pouco... porque eu acho que CIEP e CIAC foram projetos... é:: como diz...
querem dar projetos revolucionários para educação num país que eu acho que você podia pegar um
prédio velho... reformar e manter o fator histórico... o fator... o fator... educacional... investir o tempo
que ia gastar num novo projeto... investir em professores... em educação... se investisse mais nesta parte...
então já é um grande bem... (Corpus Discurso & Gramática - Rio de Janeiro)
Quanto ao exemplo (5), será que primeiro a linguagem é pega, e depois é que é
“trazida” para a linguagem formal? Em (6), será que primeiro o direito de voto é pego, e
depois é que se diz algo sobre ele? Em (7), um prédio velho é pego e após reformado? Não
faria mais sentido interpretarmos a construção pegar essa linguagem tida como corriqueira e
trazer para a linguagem formal como se referindo a um único evento, isto é, „trazer a
linguagem corriqueira para a linguagem formal‟, assim como poderíamos interpretar a
construção pegar o seu direito de voto e dizer assim como se referindo a um único evento,
„dizer assim sobre o seu direito de voto‟? E em (7), não há também um único evento em jogo,
„reformar um prédio velho‟? Ou seja, as construções destacadas em (5), (6) e (7) se refeririam
a um único evento, podendo ser parafraseadas pelo segundo verbo. O mesmo vale para o caso
dos exemplos (1) e (2) apresentados na introdução.
Se considerarmos que, em todos esses exemplos, a primeira oração não faz referência
a um evento que seja independente do evento referido pela segunda oração, então estamos
diante de casos similares aos tratados por Hopper (2001, 2008) com base em dados do inglês,
envolvendo a construção [TAKE NP AND].
6
cotidiana. Elas tendem a ser mais recorrentes em contextos de fala em que se destacam
argumentações e explanações de maior extensão, contextos esses em que em que os falantes
estão convencionalmente autorizados a manter o turno por mais tempo que na conversação e
em que predominam gêneros das esferas argumentativa e explicativa – às vezes monológicos,
como palestras, aulas expositivas, pronunciamentos públicos etc.
(i) A retomada do objeto direto na segunda oração pode ocorrer através de anáfora
pronominal (em (8)), anáfora zero (em (9)) ou com a repetição do sintagma nominal que é o
objeto da primeira oração (em (10)):
(8) Novamente o camarada olhava dizia: “Seu Rosildo, eu num sei como é que o senhor decora tantos
passageiro, tanto dinheiro, tanta senha e devolvia tudinho direitinho”. Quer dizer, era minha a propriedade
e eu fazia os condutor dizia às vezes os menino {inint} ia lá em baixo, né? “Eu vou ver se pego esse
camarada e enrolo ele”. Mas num enrolava não, entrava dez passageiro, dez passageiro no fim do dia eu
sabia quanto tinha feito, e sempre dava exato com eles porque depois que eu fazia num precisava de de
caderno nada, era uma máquina, é um computador. (Banco de Dados VALPB/informante 26)
(9) Agora não acredito que todo o dinheiro que estava investido, seja em- em que papel for, seja em
OVER, em OPEN ou caderneta de poupança, de todas as empresas, sejam pequenas, médias ou grandes
empresas, fosse especulação imobiliária. Porque toda- toda a empresa, qualquer cidadão, eu, você ou
qualquer pessoa, que tivesse um dinheirinho, ou recebesse o seu salário, tratava de aplicar um dinheiro.
Por que? Porque a inflação corroía o seu salário no dia seguinte. Então, não se pode ser contra que o
empresário pega- pegasse o dinheiro dele e colocasse num mercado financeiro, até pra subsistência
da- da empresa. que como é que ele vai pagar o empregado no final do mês se o dinheiro fica parado?
Sem- sem- sem estar aplicado, né? Então eu acho que é aceitável que todos tivessem o seu dinheiro
aplicado. Então eu repito: eu acho que devia ser levantado o que é que o empresário precisa pra
manutenção da sua empresa. Aquilo devia ser liberado pra ele. Até pra não ter recessão. (Banco de Dados
VARSUL/Florianópolis/Entrevista 21)
(10) Agora, depois de ele estar no mal não adianta, porque- o que é que você vê no jornal? Você vê no
jornal o seguinte: "Olha, cinco detentos da- da FUCABEM fugiram e roubaram e assaltaram, tentaram
estuprar." E- e assim está indo esse troço, está- está indo de- de cabo a rabo aí, está- está- está uma
bagunçada, que não dá mais pra entender. Então o que eu digo é o seguinte: Temos que ter a FUCABEM.
Sim. Que podia ser hoje o Abrigo de Menores, mas você pega a criança e escola a criança. Porque na
8
época do Abrigo de Menores, o- o menino não ficava lá- o abrigado não ficava lá, não só andando pra lá e
pra cá e preso, não. Porque hoje na FUCABEM é preso. Pra mim é preso. Que os detentos ficam- o abri-
pra mim é detento! O abrigado- o detento fica lá e fica sendo tratado que nem marginal. Agora, naq- na
época do Abrigo de Menores era o seguinte: garoto ia pra ali, então ele tinha: a hora de futebol, a hora de
aula, a hora de lanche, até a hora de jantar e dormir. Errava! Sim, errou. Então ele tinha o castigo dele.
Tinha! Tinha, que eu lembro, na época. Mas não era tão rigoroso como é o- a FUCABEM hoje. O castigo
era o seguinte: dar cinquenta voltas em- cinquenta voltas em- em volta do- do- do gramado. (Banco de
Dados VARSUL/Florianópolis/Entrevista 2)
(11) I: No palco, isso é ruim, pu0que quem tá, quem tá assistindo é: quem entende muito, observa tudo.
E: Sei. Essa coisa de ser paraibano tem alguma influência negativa para você, nessa sua carreira?
I: Eu acho que não. Não pra mim assim, mays como pra muita gente. Uma veyz, eu escutei aquela
Arlete Sales, que ela é de Recife, ela tava falan0o que ela teve muita dificuldade quando chegou no Rio,
pur causa do sotaque + entendeu? Quem chega no sul hoje para fazê0 teatro e tem sotaque nordestino
você sabe que é discriminado, porque eles num quere0. Agora, eles pegam os atores lá do sul, bota pra
aqui, fazê0 novela no Nordeste e quem é que fala arrastado assim, num sei o quê. + Aqui a gente num
fala daquele jeito. Aquilo dali é ridículo, assim, aquela novela, por exemplo, fala muito arrastado. É uma
coisa [ridícu] ridícula, porque a gente num fala desse jeito. A gente num fala de jeito nenhum. + É uma
coisa assi:m constrangedora pra quem é: + paraibano, principalmente quem é do Nordeste. + É uma coisa
chata. (Banco de Dados VALPB/informante 8)
(iii) O objeto direto da primeira oração pode ser retomado em outra função sintática. Ele pode
ser parte de um adjunto adnominal ou de um complemento nominal na segunda oração, como
em (12) e (13). Ele pode ser também parte de um adjunto adverbial na segunda oração, como
em (14), em que o adjunto adverbial está elíptico, mas é facilmente recuperável:
(12) Então é a maneira que [vem] vem [essa] essa criançada e que amanhã ou depois estão tudo aí nas
ruas. Eu achava assim que parte do governo, cada governo de sua cidade, cada autoridade, se reunir
governos, prefeitos, deputados, tudo assim, fazer [um] uma associação, um conjunto de pegar assim
[essas] [essas] essas mulheres assim e mandar fazer cirurgia em todas elas. Sabe? pra não porem
[<fi>] [<fi>] filhos no mundo pra amanhã serem ladrão, bandidos. Olhe, o que tem, né? [de] de meninos
de rua Isso aí nunca vai acabar, nunca vai ter fim, né? Eu acho que isso aí nunca Eu acho que o
vandalismo, sabe? está uma coisa por demais. (Banco de Dados VARSUL/Curitiba/Entrevista 10)
(13) agora o interessante é que ... quando ela cantava em boates ... as músicas que ela cantava ...
geralmente tinha assim ... aqueles temas de ... é ... por exemplo ... deixa eu lembrar uma das músicas que
tinha ... eu te amo né ... você é o meu homem ... assim ... coisas desse tipo ... e aí no ... quando ela
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começou a reger o coral ... ela pegou as mesmas músicas e mudou um pouco as letras ... né ... no caso
ela dizia ... eu te amo Deus ... mudou assim ... as letras ... era super engraçado né ... (Corpus Discurso &
Gramática/Natal)
(14) I: <Rapay>, o que vale no casamento é o (inint) negócio de casamento eu tenho pra mim que num
vale nada não. O que vale é o procedimento, mais num é? Mulher procedeu bem também, eu sou contra,
condeno isso, aí eu sou contra isso. Homem só nasceu pra casar cum a mulher.
E: Assim, o senhor acha que deveria ter algum castigo pra essas pessoas?
I: Rapaz, eu num sei nem dizer. Que é parada você um homem casar cum outro, a mulher casar cum
outra, eu sou contra isso. Devia pegar uma ilha e botar esse povo separado, né? Num contam que aqui
Tambaba <rapay>, eu conheço, eu caçei muito lá. Mais num era, era mata. Agora diz que é muita tem
uma população E tão dançando nu! Eu só acredito vendo. É uma verdade, tão dançando nu por lá
mesmo? (Banco de Dados VALPB/informante 24)
Em (15), temos um dado do yatye em que o verbo awa (pegar) destaca nutsi (porta)
como detentor do papel semântico de paciente, objeto do verbo iku (fechar). Em (16), temos
um dado do nupe em que o verbo lá (pegar) é um marcador de caso acusativo, isto é, esse
verbo indica que dùku (pote) é o objeto direto do verbo subsequente, là (quebrar). Em (17),
temos um dado do baule em que o verbo fà (pegar) introduz o objeto direto (í swa – sua casa)
do verbo que se segue, klè (mostrar).
3
ANT = anterior, DEF = definido.
10
Esses exemplos são oriundos de línguas de verbos seriais africanas, em que é comum
a gramaticalização de verbos com o significado de PEGAR „tomar algo com as mãos‟ como
marcadores de caso acusativo. Para Hopper (2008), no caso da construção [TAKE AND NP],
também ocorreu um processo de gramaticalização que resultou em serialização verbal, pois
TAKE e o verbo seguinte são empregados em sequência e fazem parte da mesma predicação,
fenômeno que seria marginal no inglês. Nas palavras de Hopper (op. cit., p. 253): “com
frequência, tipos de construções que são centrais e robustas em algumas línguas podem ser
identificadas de um modo mais fraco e rudimentar em outras.”
Contudo, não abordo aqui a possibilidade de a construção [PEGAR SN E]
representar um caso de serialização verbal no português brasileiro, pois a natureza do verbo
PEGAR nessa construção merece análise posterior mais refinada.
Conforme o autor, em (18), we take that concept and apply it corresponde à paráfrase
we apply that concept e a diferença é que, na construção [TAKE NP AND], o objeto de apply
recebe uma introdução mais marcada, aparecendo na primeira oração e sendo retomado
anaforicamente na segunda. O mesmo acontece em (19): I’d maybe take half the class and assess
them at one task corresponde à paráfrase I’d maybe asses half the class at on task.
Segundo essa análise, na construção [TAKE NP AND], TAKE não é verbo pleno e
não faz referência a um evento distinto daquele denotado pelo verbo vindouro, mas apenas
introduz o objeto desse verbo, sem trazer em si traços semântico-pragmáticos mais
específicos. Trata-se, segundo Hopper (op. cit.), de um item gramatical que funciona como
um marcador de caso acusativo.
No entanto, em alguns casos da construção similar em português, [PEGAR OD E],
parece haver uma espécie de seleção, de escolha, de distinção de um referente em relação a
outros possíveis. Retomemos alguns exemplos:
11
(20) Como você pode... é::... dar alimento à criança... que é a parte da educação... nessa chamado
CIEPS... que eu não gosto nem um pouco... porque eu acho que CIEP e CIAC foram projetos... é:: como
diz... querem dar projetos revolucionários para educação num país que eu acho que você podia pegar um
prédio velho... reformar e manter o fator histórico... o fator... o fator... educacional... investir o tempo
que ia gastar num novo projeto... investir em professores... em educação... se investisse mais nesta parte...
então já é um grande bem... (Corpus Discurso & Gramática - Rio de Janeiro)
(21) I: <Rapay>, o que vale no casamento é o (inint) negócio de casamento eu tenho pra mim que num
vale nada não. O que vale é o procedimento, mais num é? Mulher procedeu bem também, eu sou contra,
condeno isso, aí eu sou contra isso. Homem só nasceu pra casar cum a mulher.
E: Assim, o senhor acha que deveria ter algum castigo pra essas pessoas?
I: Rapaz, eu num sei nem dizer. Que é parada você um homem casar cum outro, a mulher casar cum
outra, eu sou contra isso. Devia pegar uma ilha e botar esse povo separado, né? Num contam que aqui
Tambaba <rapay>, eu conheço, eu caçei muito lá. Mais num era, era mata. Agora diz que é muita tem
uma população e tão dançando nu! Eu só acredito vendo. É uma verdade, tão dançando nu por lá
mesmo? (Banco de Dados VALPB/informante 24)
(22) Carro, como tem hoje de plástico, velocípede, nada disso. Cavalo de pau, aquele que a gente pega o
cabo de vassoura [bo] bota um cordão bota um cordão. Quando o vizinho comia uma lata de doce, a gente
ia lá, pegava aquela lata de doce, botava um prego e fazia [esse tipo de] a gente a gente criava a gente
12
criava o o o a brincadeira que a gente quisesse. A gente fazia um tipo de perna de pau. A gente fazia um
tripé assim. Um pau, a gente botava um lado do outro e botava um assim escorando, fazia um tripé, pra
fazer uma perna de pau pra andar em cima, né? (Banco de Dados VALPB/informante 30)
(23) Aí tu juntas tudo isso numa tigela, tudo junto, né? E se tu usares o salame, tu podes acrescentar o
salame na salada, tá? Aí tu- para o molho- para o molho, tu fazes o seguinte: tu pegas a maionese e
juntas com o suco de limão, né? o sal e a pimenta e juntas o açúcar. Depois de feito o molho e a salada,
aí tu juntas tudo, né? botas o molho por cima, né? temperas direitinho, isso aí é o tempero, né? da salada,
e coloca na geladeira por uma hora. (Banco de Dados VARSUL/Florianópolis/Entrevista 1)
(24) As minhas notas sempre eram boas, só que eu gostava de fazer travessura. Ah, gostava. Quando eu
ficava de castigo de ba- atrás do quadro negro, que ele ficava, assim, num canto, né? nós fica- eu pegava
o giz e começava a fazer desenhos. E- mas na escola eu não fazia muito, porque meu pai sempre dizia:
"Se você sair daquela escola por mau criação você não vai pra nenhuma outra. Vai ficar em casa, vai ficar
burra!" Então o meu medo era esse, né? (Banco de Dados VARSUL/Blumenau/Entrevista 5)
(25) Quando os pacientes chegam ... minha filha ... aí que o trabalho aumenta ... porque um quer água ...
aí lá vai eu pegar água ... outro quer café ... lá vai eu fazer café ... uma pessoa só pra várias funções ...
né? (Corpus Discurso & Gramática/Natal)
Não encontrei nenhuma ocorrência isolada de uma oração com PEGAR com o traço
semântico-pragmático de seleção/distinção. De qualquer forma, não parece ser possível que
esse tipo de oração apareça independentemente da oração subsequente, pois, sem ela, a
informação não faria sentido.
Portanto, na construção [SUJi PEGAR ODj E SUJi V2 ODj], independentemente da
presença de um traço semântico-pragmático de seleção/distinção, PEGAR não se refere a uma
ação distinta de um sujeito comum, que é o que ocorre quando PEGAR, com o significado de
4
Em um estudo sobre construções com o verbo PEGAR, obtive 75 dados desse verbo em seu uso lexical com o
significado de „tomar algo com as mãos‟. Desses dados, 62 (83%) apareceram em estruturas coordenadas através
da conjunção E (o que representa a maioria dos casos, e pode ser exemplificada por pega a laranja e descasca)
ou por justaposição (com a presença de pausa entre uma oração e outra – um exemplo: daí ele pegou o picolé...
jogou na cabeça do homem). Apenas 13 dados (17%) foram de PEGAR em orações isoladas (cf. TAVARES,
2011b).
13
„tomar algo com as mãos‟, é o verbo nuclear do primeiro membro de um par de orações
coordenadas. Em decorrência, a construção sob enfoque não pode ser interrompida antes da
conjunção E e ainda assim ser entendida como uma informação distinta. Se fosse
interrompida em sua primeira metade, não haveria interpretação possível.
A indissociabilidade das duas orações que compõem a construção [SUJi PEGAR
ODj E SUJi V2 ODj] mostra que essas orações de fato constituem uma unidade semântica – e,
por tabela, uma unidade funcional, à semelhança da construção [SUJi TAKE NPj AND SUJi
V2 NPj] no inglês. Trata-se, pois, de uma construção constituída por duas partes bastante
integradas.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Concluo apontando que é não é claro se PEGAR, na construção [PEGAR OD E],
desempenha uma única função, a de marcador do objeto direto do verbo subsequente, ou se
desempenha duas funções distintas: em alguns casos, marcaria o objeto direto, e, em outros
casos, indicaria seleção/distinção de um referente em contraponto a outros. Também é
possível que, quando o traço de seleção/distinção esteja presente, ele se some à função de
marcação do objeto direto, configurando uma situação de funções sobrepostas desempenhadas
por uma única construção. Fenômenos de sobreposição funcional são sintomas típicos da
mudança linguística, e, talvez, o caso da construção [PEGAR OD E] possa ser futuramente
explicado considerando-se a questão da gramaticalização.
Hopper (1987) defende que a análise das construções gramaticais em seu habitat, o
discurso, leva a uma visão de gramática como fluida e instável, isto é, como emergente do
contexto discursivo, e inseparável dele (HOPPER, 1987). Nessa ótica, como já mencionei, a
tarefa do linguista é identificar estratégias linguísticas recorrentes no discurso, mapeando
assim as regularidades da língua – a sua gramática.
Foi o que Hopper (2001, 2008) fez ao identificar e estudar a construção [TAKE NP
AND], até então não considerada como gramatical e sequer como construção. No entanto,
trata-se de uma construção frequente, especialmente em gêneros das esferas argumentativa e
explicativa, e cuja estrutura é relativamente fixa – duas características típicas de construções
gramaticais.
Encontrei ocorrências do verbo PEGAR que podem ser recortadas no formato de
uma construção estruturalmente similar a [TAKE NP AND], qual seja [PEGAR OD E]. Essa
construção também é frequente e relativamente fixa em termos estruturais, indícios de que se
trata de uma construção gramatical.
14
5 REFERÊNCIAS
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n. 4, p. 711-733, 2006.
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escrita na cidade do Natal. Natal, RN: EDUFRN, 1998.
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Talmy (Ed.). Syntax and semantics 12: Discourse and syntax. New York: Academic Press,
1979. p. 81-112.
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language. v. 1. New Jersey: Lawrence Erlbaum, 1998. p. 155-176.
_____. Hendiadys and auxiliation in English. In: BYBEE, Joan; NOONAN, Michael (Eds.).
Complex sentences in grammar and discourse: essays in honor of Sandra A. Thompson.
Amsterdam: John Benjamins, 2001. p. 145-174.
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PFÄNDER, Stefan. (Eds.). Constructions: emerging and emergent. Berlin: de Gruyter, 2011.
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PIERREHUMBERT, Janet B. Exemplar dynamics: word frequency, and lexical analysis. In:
BYBEE, Joan; HOPPER, Paul John. (Eds.). Frequency and the emergence of linguistic
structure. Amsterdam: John Benjamins, 2001. p. 137-157.
TAVARES, Maria Alice. Gramática emergente: recorte de uma construção gramatical. In:
SOUZA, Edson Rosa F. (Org.). Gramática, texto e discurso: diálogos possíveis, novas
perspectivas. 2011a. (em avaliação para publicação)
TRAVIS; Catherine E.; TORRES CACOULLOS, Rena. Discourse syntax. Prepared for:
Handbook of Hispanic linguistics. Cambridge: Blackwell. 2010. Draft.
RESUMO
ABSTRACT
The paper discusses lexicon- ethnographic aspects related to cassava practiced in Igarapé
Juruti-Velho, which is located in the Amazon Lower Region in Pará. In general, the
cultivation and consumption of cassava in Amazonia is a semantic and ethnographic field of
vitality, which unfolds and correlates with other aspects of daily life of the people who live
there. Therefore, the aim of this study is to describe the lexicon used by man caboclo by
correlating with the around environmental. To obtain the data, we interviewed 10 people from
Igarapé of Juriti-Velho, which have had experience in planting cassava production and its
derivatives. In the end, we organize a glossary with 222 lexicons in relation to: the names of
cassava cultivated in the region; on the utensils used in the manufacture of cassava products;
in the processes related to cassava cultivation and production of its derivatives and on the
other names that arose regarding the course of the interviews. The research, from the
perspective dialectology, contributed to greater knowledge of Portuguese Amazon.
1
Este trabalho foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas - FAPEAM.
2
Professor da Universidade Federal do Amazonas lotado no Polo Médio Solimões, Campus Avançado de Coari,
e doutorando do Programa de Pós-graduação em Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC;
e-mail: orlandoazevedo@ymail.com.
3
Professor doutor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC; e-mail: wfelicio@cce.ufsc.br.
2
1 INTRODUÇÃO
A cultura da mandioca é praticada como meio de subsistência pelos índios de toda a
Amazônia desde tempos imemoriais, de modo que se tornou um legado para a população
cabocla formada após a colonização portuguesa. São inúmeras as contribuições que a raiz da
mandioca pode oferecer à alimentação de populações autóctones e alóctones na Região
Amazônica. O tubérculo apresenta-se em diferentes formas no cardápio do dia a dia como,
por exemplo, em forma de farinha, que é um complemento alimentar apreciado durante o
almoço e a janta, combinada com carnes de peixes, como tambaqui, jaraqui, pacu etc.
Os caboclos mais velhos dizem que a força de um homem está na farinha que ele
come, pois é ela que dá energia para desempenhar seus trabalhos rotineiros. Do ponto de vista
linguístico, a cultura e o consumo da mandioca na Amazônia constituem uma área semântica
e etnográfica de grande vitalidade lexical, que se desdobra e se correlaciona com outros
aspectos da vida cotidiana dessas populações. Com vistas a descrever aspectos lexicográficos
do homem amazônico relacionados à cultura e ao consumo da mandioca, realizamos algumas
entrevistas com moradores do Igarapé do Juruti-Velho, localidade situada no interior do
Estado do Pará.
2 METODOLOGIA DA PESQUISA
A pesquisa realizada foi do tipo exploratória e de caráter descritivo realizada no
Igarapé do Juruti-Velho, na microrregião de Óbidos, no Estado do Pará. O método etnográfico
empregado visou a descrever diferentes aspectos linguísticos relacionados ao mundo da roça.
Para a realização de tal descrição foram gravadas as informações com 10 pessoas experientes
que trabalharam ou trabalham há anos no plantio da mandioca, na produção de farinha e de
outros produtos derivados. Não fizemos a distribuição da pesquisa por estratificação social,
por ser irrelevante para o propósito deste estudo, uma vez que, por exemplo, um nome de uma
mandioca é o mesmo para homens e mulheres em diferentes faixas etárias.
No relatório de pesquisa foram usadas as iniciais dos nomes das pessoas, que
participaram diretamente das entrevistas, com vistas a assegurar a veracidade das informações
e a preservar suas identidades. Além disso, para facilitar a compreensão da metalinguagem
usada na descrição do léxico, adotamos no glossário as abreviaturas adj. para adjetivo, adv.
para advérbio, v.t.d. para verbo transitivo direto, v.t.i. para verbo transitivo indireto, v.i. para
verbo intransitivo, s.m. para substantivo masculino e s.f. para substantivo feminino. Foram
também usadas aspas em torna de palavras, expressões e citações que caracterizam
a linguagem dos moradores do Igarapé do Juruti-Velho. A partir das informações coletadas,
3
3 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
Entre os trabalhos sem o escopo da análise lingüística, há o de Pezzuti e Chaves
(2009), que descrevem os índios Deni, habitantes da área de interflúvio entre os rios Juruá
e Purus, no Estado do Amazonas, e a relação deles com a natureza e com populações não-
indígenas. Nesse artigo, menciona-se a agricultura dos vegetais que são produzidos na roça,
entre os quais está a da mandioca como um dos alimentos apreciados por essa comunidade
indígena. Chisté et al. (2010) afirmam que o processamento artesanal da mandioca e de seus
derivados nas comunidades rurais do Estado do Pará serve para diminuir a quantidade de
cianeto (HCN, um ácido prejudicial à saúde), tornando os subprodutos consumíveis sem
o risco de envenenamento. Em outro trabalho de Gonzaga et al. (2008) é mencionada
a manipueira, um subproduto da farinha de mandioca (Manihot Esculenta), que tem
propriedade inseticida e que surge como uma possível alternativa no combate e no controle de
pragas da região. Souza et al. (2008) afirmam que algumas características físico-químicas de
mandiocas oriundas do Vale do Juruá, no Estado do Acre, dependem da variedade utilizada
no processamento, e citam alguns tipos como: Paxiubão, Im221, Caboquinha, Panati, Araçá,
Colonial, Branquinha, Mansa e Brava, dentre as quais se destacaram as variedades Araçá,
Colonial e Branquinha como as mais apropriadas para a produção de farinha por apresentarem
alto teor de proteínas e carboidratos na composição.
Fausto (2006) descreveu que no Alto Xingu as mulheres indígenas lavam a mandioca
para retirar a tapioca, do qual fazem beijus; além disso, aproveitam a água residual da
lavagem para fazer uma espécie de mingau doce. O pesquisador cita também os paracanãs,
povo tupi-guarani no Estado do Pará, os quais deixam a mandioca na água durante quatro dias
para amolecer e tufar. Na seqüência amassam a mandioca fazendo bolotas para secarem ao sol
e para diminuir a quantidade de ácido cianídrico (HCN). Após terem certeza de que o líquido
da massa escorreu no moquém (varas postas horizontalmente), iniciam os demais processos
como peneiração e torragem para obterem uma farinha grossa e amarela, que esses índios
chamam de farinha puba. O termo puba na linguagem dos paracanãs significa podre, mole ou
fermentada. Segundo Fausto (2006), existem ainda centenas de variedades de mandiocas que
pertencem ao gênero Manihot e exemplifica o conhecimento que determinado povo indígena
4
tem desta forma: os paracanãs reconhecem apenas oito, sendo uma delas doce; os kuikuros do
Alto Xingu reconhecem em torno de cinqüenta e; na Amazônia central e oriental, as
populações indígenas preferem cultivar mandiocas bravas ou amargas, enquanto na parte
ocidental plantam cultivares doces.
Em trabalhos de cunho etnográfico, encontramos o trabalho de Mattos (2001), no
qual há a definição de etnografia como pertencente ao ramo da antropologia, cuja finalidade
é estudar e descrever aspectos culturais de um grupo, comunidade ou povo; e ele demonstra
que a abordagem etnográfica não deve seguir padrões rígidos ou pré-determinados, pois
depende muito do senso do pesquisador sobre o objeto de estudo. Em outra pesquisa de cunho
etnográfico, apresentamos a de Júnior (2007), em que o autor, ao analisar trinta e sete resumos
de dissertações disponíveis no Banco de Teses on-line da CAPES, encontrou resultados, que
sugeriram a etnografia ser mais empregada como instrumento de análise do que como uma
lógica de investigação em se tratando de pesquisas relacionadas ao Ensino e Aprendizagem de
Línguas estrangeiras.
4
EMBRAPA: http://www.cnpmf.embrapa.br/index.php?p=pesquisa-culturas_pesquisadas-mandioca.php.
Acessado em 15 de agosto de 2010.
5
4.2 O barracão
Ele é feito com “varas” grossas da árvore “cariúba”, as quais são os “esteios” das
bases principais, e de “varas” finas, que são os “caibros” de árvores como “Pau Caboclo”,
“Envira”5, “Moorta”, que recebem a cobertura de “palha”. Na “cumeeira” é colocado um
“jacaré”, que é feito de “palha preta” para evitar que chova no “meio do barracão”. Este pode
ter dimensões pequenas, médias e grandes dependendo da quantidade de famílias que
trabalham nele e da necessidade de ampliação para maximizar a produção de farinha. O lugar
onde se produz farinha e outros derivados pode ser construído permanente ou provisoriamente
próximo à casa dos roceiros ou muito mais distantes nos chamados centros.
a noite em um determinado lugar chamado de “Moitá”, onde passa veado, tatu, paca, cotia,
“catitu” ou “quexada” (os nomes que eles chamam para o porco do mato) ou então aves como
o jacu. Entretanto, a atividade principal que o homem faz é a plantação de mandioca feita
próxima a casa, que fica na “bera” do Igarapé ou então é feita distante nos grandes “centros”.
Além disso, o homem é responsável pela construção da casa, que antigamente era feita de
“palha” e a atualmente é feita de madeira. Embora o homem faça todas essas atividades, ele
participa de outras com menor frequência tais como lavar roupas, cuidar do peixe e fazer
o almoço e a janta. Por outro lado, a mulher cuida dos afazeres domésticos, do filho, mas
“tem” uma participação muita ativa no plantio e na produção da farinha e principalmente na
de seus subprodutos.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da descrição dos dados, alcançamos o escopo da pesquisa que foi conhecer a
linguagem utilizada pelo caboclo em relação à organização de trabalho na roça, às variedades
de mandioca, ao plantio da maniva, aos instrumentos usados para a produção da farinha e de
seus derivados e em relação aos próprios subprodutos da massa da mandioca. Embora se
tenha chegado a uma metalinguagem específica no que diz respeito à cultura da mandioca
praticada nas comunidades do Igarapé do Juruti-Velho mediante a realização de entrevistas
com os moradores locais durante alguns dias da última semana do mês de agosto, a
composição do léxico pode ser maior, de modo que para descrevê-lo e observar o
comportamento lingüístico dos moradores, exigiria mais tempo de contato no barracão, nos
centros e na roça. Apesar disso, a linguagem descrita na pesquisa caracteriza bem o roceiro e
sua relação com a cultura da mandioca, por isso para os propósitos almejados e pela natureza
deste trabalho, os itens lexicais encontrados se bastam, uma vez que são os mais conhecidos
da região. O homem roceiro é detentor de um conhecimento tradicional herdado dos índios
sobre a cultura da mandioca, e se correlaciona com o mundo da roça mediante o uso de um
vocabulário típico, que foi descrito, parcialmente, no corpo do trabalho e acrescentado ao
glossário de termos relacionados à cultura da mandioca no apêndice desta pesquisa.
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6 REFERÊNCIAS
CHISTÉ, Renan Campos et al. Quantificação de cianeto total nas etapas de processamento
das farinhas de mandioca dos grupos seca e d'água. Acta Amaz., Mar 2010, vol.40, no.1,
p.221-226. ISSN 0044-5967.
FAUSTO, C. Uma plantinha venenosa. Ciência hoje, v.39, p.37-39. Rio de Janeiro, 2006.
JÚNIOR, Adail Sebastião Rodrigues. Etnografia e ensino de línguas estrangeiras: uma análise
exploratória de seu estado-da-arte no Brasil. Linguagem & Ensino, v. 10, n. 2. 2 , jul. dez.
2007.
EMBRAPA. http://www.cnpmf.embrapa.br/index.php?p=pesquisa-culturas_pesquisadas-
mandioca.php. Acessado em 15 de agosto de 2010.
APÊNDICE
A
1. Acabar –v.t.d.1. Resultar. 2. Trazer como consequência.
2. Achadinha –s.f.1 É uma variedade de mandioca cultivada na região e de casca na cor
vermelho arroxeada.
3. Aguar –v.t.d.1. Dissolver a tapioca na água para remover o ácido cianídrico (HCN).
4. Ajuda –s.f.1. Variedade de mandioca.
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B
19. Bago –s.m.1. O grão da farinha. 2. O caroço.
20. Barracão –s.m.1. O lugar onde produz a farinha no interior.
21. Batata –s.f.1. A raiz da mandioca. 2. O tubérculo.
22. Batata doce –s.f.1. É uma raiz tuberosa, que dá a coloração rosa ao pajiroba.
23. Beiju cica –s.m.1. O subproduto da mandioca dura, que é colocado diretamente no forno.
24. Beiju d’água –s.m. 1. O subproduto da mandioca mole, ou seja, da mandioca que fica na
água. O beiju é envolto em folhas de bananeira.
25. Beiju de crueira –s.m.1. É o subproduto da mandioca feito com as sobras na peneira, que
depois de colocadas ao sol para secarem são socadas em um pilão, de modo que tornam-
se um pó apropriado para fazer beiju no forno ou sobre outro recipiente levado ao fogo.
26. Beiju de tapioca –s.m.1. O subproduto da mandioca feito geralmente em uma frigideira
sobre o fogo 2. O mesmo que tapioquinha.
27. Beiju de tarubá –s.m. 1. É um beiju grande igual ao do pajiroba, mas com uma única
diferença: é bem assado e é específico para a bebida chamada tarubá.
28. Beiju grosseiro –s.m. 1. É um beiju grande, que adquire a coloração vermelha no forno
e é específico para fazer pajiroba.
29. Beiju pé-de-moleque -s.m.1. O subproduto da mandioca cuja massa precisa ser
escaldada para ligar e ir ao forno envolto em folha de bananeira 2. O mesmo que beiju
peteca.
30. Beiju peteca –s.m. 1. O subproduto da mandioca cuja massa precisa ser escaldada para
ligar e ir ao forno em folha de bananeira. 2. O mesmo que beiju pé-de-moleque.
31. Bera –s.f.1. Variação de beira. 2. A margem do Igarapé do Juruti-Velho.
32. Beradão –s.m.1. Variação de beiradão. 2. A margem do Igarapé do Juruti-Velho.
33. Bodó –s.m.1. Espécie de mandioca de massa amarela e caule alto.
34. Borra amarela –s.f.1. A camada amarela e residual da mandioca que fica sobre
a tapioca.
35. Braba –adj.1. Variação de brava dada à mandioca com muito ácido cianídrico.
36. Braço da maniveira –s.m.1. O pecíolo que liga a folha ao caule.
37. Branca –s.f.1. Variedade de mandioca cuja cor é amarela e é indicada para fazer, além da
farinha, os beijus.
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38. Brebrei –adv.1. A maneira como são arrumadas as mandiocas no paneiro. 2. Só jogado.
39. Broa –s.f.1. É o subproduto da mandioca feito da tapioca.
C
40. Caba –s.f.1. O mesmo que vespa.
41. Cabeça do paneiro –s.f.1. É a forma como são arrumadas as mandiocas maiores
e compridas na parte de cima do paneiro.
42. Caibro s.m.1. É o caule roliço de árvores, o qual é usado na cobertura do barracão.
43. Caissuma –s.m. 1. O mesmo que pajiroba, a bebida tomada no roçado durante o ajuri.
44. Caititu –s.m.1. É o nome da roda grande, onde dois homens a giram para que ela serre as
mandiocas 2. É o nome de um dos porcos-do-mato da região.
45. Caixa –s.f.1. O objeto posto sobre o rolo com dentes cuja função é evitar que a massa
espalhe por todas as direções.
46. Camarãozinho –s.m.1. Espécie de mandioca cujo arvoredo é baixo e a popa é amarela
47. Capinar –v.t.d.1. Cortar o mato, o capim com o terçado.
48. Capoeira –s.m.1. É a roça, que teve todas as suas mandiocas retiradas.
49. Capoeirão –s.m1. É a roça, que teve todas as suas mandiocas retiradas, mas desta vez
o mato já cresceu muito.
50. Carga de burro -s.f.1. Espécie de mandioca com casca marrom e massa amarela.
51. Caribé –s.m.1. É uma espécie de mingau de farinha.
52. Carimã –s.m.1. É a massa da mandioca que depois de lavada, põe-se para secar no forno.
Com ela se faz frito, mingau e beiju.
53. Cariúba –s.f.1. Madeira usada para fazer os esteios do barracão.
54. Carlitozadas –s.m. plural.1. Relativo à família Carlitos, que moram na comunidade
Raifran no Igarapé do Juruti-Velho.
55. Cavalo –s.m.1 O instrumento onde está o conjunto de acessórios usados para serrar
a mandioca 2. O acessório de madeira sobre o qual fica o motor de serrar mandioca.
3. O animal quadrúpede.
56. Caxiri. s.m. 1. O nome indígena para pajiroba, a bebida que os índios costumam cuspir
dentro para que ocorresse a fermentação.
57. Centro –s.m.1 O lugar distante da casa do caboclo, onde ficam a roça, o barracão e o
chavascal.
58. Chamuscar –v.t.d.1. Assar levemente sobre a brasa.
59. Chavascal –s.m.1. É o terreno alagado pelas águas do riacho, onde há muitas palmeiras
como açaizeiros e buritizeiros.
60. Chibé –s.m.1. É a farinha misturada com água natural.
61. Chumbo –s.m. 1. Nome dado à farinha de tapioca que senta no fundo do café por ser de
má qualidade.
62. Coraci –s.f.1. É uma espécie de mandioca de cor branca cultivada na região e é
considerada muito brava para alguns informantes, enquanto outros consideram que não.
63. Coraci amarela –s.f.1. Espécie de mandioca coraci cuja massa é amarela.
64. Coraci branca –s.f.1. Espécie de mandioca coraci cuja massa é branca.
65. Coraci preta –s.f.1. Espécie de mandioca coraci preta, que recebe esse nome devido ao
caule e a casca serem da cor preta.
66. Cozinha de farinha –s.f.1. O mesmo que barracão, o lugar onde se produz farinha.
67. Crueira –s.f.1. É a sobra da massa da mandioca que não passa na peneira.
68. Cuí –s.m.1. Os grãos mais finos da farinha.
69. Cumeeira –s.f.1. O vértice da cobertura do barracão ou a parte mais alta dele.
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70. Cuiapéua –s.f.1. É um instrumento feito de cuia usado para remexer a farinha no forno.
71. Curumim –s.m.1. O nome da planta em cujas folhas são colocados os beijus do tarubá.
D
72. Dar -v.t.d.1. Produzir. 2. Presentear, doar.
73. Decotar –v.t.d.1. O mesmo que cortar as manivas. 2. Tirar as mandiocas do tronco com
o terçado.
74. Demorar v.i.1. Levar tempo para amadurecer.
75. Derribar –v.td.1. Cortar a arvore no tronco. 2. Variação de derrubar.
76. Descascar –v.t.d.1. Remover as cascas da mandioca com a faca, raspador ou terçado.
E
77. Enfornar –v.t.d.1. Levar a massa da mandioca para o forno quente, onde virará farinha.
78. Envira –s.f.1. A fibra de origem vegetal usada no paneiro como alça que é posta na testa
da pessoa. 2. A árvore envira.
79. Empachada –adj.1. Com a barriga empanturrada de comida ou de bebida. 2. Com
a barriga dura ou cheia de vento.
80. Empoar o peixe para fritar –v.t.d.1. O mesmo que empanar com a massa da crueira ou
da farinha o peixe para fritar.
81. Enxada –s.f.1. Utensílio usado para cavar o buraco para onde serão enterradas as
manivas.
82. Escaldar –v.t.d1. Jogar a água quente sobre a massa, a farinha ou qualquer outro objeto.
83. Espalhadera –s.f.1. Variação de espalhadeira. 2. É a pessoa que joga dois pedaços de
maniva no buraco para serem plantados.
84. Espanta-molhe -s.m.1. O nome de um dos centros do Igarapé do Juruti-Velho.
85. Estaca –s.f.1. O caule da maniveira.
86. Estaca grande –s.f.1. Espécie de mandioca com caule longo e com massa branca.
87. Estaquinha –s.f.1. Espécie de mandioca com caule amarelo e com massa amarela.
88. Esteio –s.m.1. O caule roliço e grosso, que sustenta a cobertura do barracão.
F
89. Farinha d’água –s.f.1. A farinha feita com a massa da mandioca que ficou na água
durante alguns dias para amolecer.
90. Farinha da mandioca seca –s.f.1. É a farinha feita unicamente da mandioca dura.
91. Farinha de mistura –s.f.1. É o produto principal da mandioca, que serve como completo
alimentar.
92. Farinha de tapioca. –s.f.1. É a farinha feita com a massa da tapioca.
93. Filhas de mandioca –s.f.plural.1. As mandiocas pequenas.
94. Fofa –s.f.1. O mesmo que farinha.
95. Fora –adv.1. O Igarapé do Juruti-Velho em relação aos centros.
96. Fornada –s.f.1. É o processo de torragem de farinha ligado ao tempo. Por exemplo: Esta
é a minha primeira fornada.
13
97. Fornalha –s.f.1. É a fogueira alimentada com lenha dos roçados e fica embaixo do forno.
98. Forno –s.m.1. É uma chapa de aço em formato circular, onde se torram a farinha e outros
derivados da mandioca.
99. Frito de crueira –s.m.1. É o subproduto da mandioca feito com as sobras na peneira, que
depois de colocadas ao sol para secarem são socadas em um pilão, de modo que viram pó
que pode ser frito no óleo de cozinha.
G
100. Gamela –s.f.1. O recipiente de madeira usada para se lavar as mandiocas.
101. Garera –s.f.1. O recipiente feito do tronco oco de árvore destinado a receber
a mandioca lavada ou a mandioca serrada.
102. Goma –s.f.1 O amido da mandioca. 2. O mesmo que tapioca. 3. A água com tapioca
levada ao fogo adquire uma consistência pastosa e clara.
103. Gravatar -v.t.d.1. Retirar cuidadosamente o toco da mandioca para evitar
o desperdício de massa.
104. Graúda –adj. 1. É o nome dado à mandioca grossa e comprida.
105. Gruta –s.f.1. O local onde a água brota da terra. 2. O local onde passa o riacho nos
centros do Juruti-Velho.
H (Sem dados)
I
106. Iá –s.f.1. Espécie de mandioca de massa e casca brancas.
107. Igarapé –s.m.1. Braço de rio. 2. Rio pequeno.
108. Inajá -s.m.1. Espécie de mandioca cuja maniveira não cresce alta e possui massa
amarela.
109. Impurrar –v.t.d.1. Variação de empurrar. 2. Impelir com violência.
110. Incardida –adj.1. Manchada.
111. Ingrossar –v.i.1. Variante de engrossar. 2. Tornar mais grosso.
112. Interrar –v.t.d.1. Variação de enterrar. 2. Pôr embaixo da terra.
113. Iscaldar –v.td.1. Variação de escaldar. 2. Jogar água quente na massa. 3. Colocar
a massa da mandioca no forno quente para que torre.
114. Ispocar –v.i.1. Variante de espocar. 2. Estourar.
115. Ispremer –v.t.d.1. Variante de espremer. 2. Comprimir para extrair o suco.
J
116. Jacaré –s.f.1. A cobertura feita de palha rocha, que fica no vértice para evitar que
chova no barracão. 2. O mesmo que capote. 3. O animal réptil de sangue frio.
117. Jacitara –s.f.1. A planta que cresce sobre as árvores, da qual se retira a tala para fazer
o tipiti.
14
118. Jacuba –s.f.1. É a mistura de leite líquido com açúcar e com farinha.
119. Jambu –s.m.1. Planta rasteira cujas folhas e caule são fervidos para serem
adicionados ao tacacá.
120. Jerimum –s.m.1. Espécie de mandioca com guia alta e possui a massa amarela
e a casca marrom. 3. Abóbora.
121. Jurutizinho –s.m.1. Espécie de mandioca com caule amarelo e pecíolo vermelho.
122. Judiar –v.t.i.1. Maltratar.
L
123. Lacrau –s.m.1. Escorpião.
124. Lanternazadas –s.f.plural.1. Relativo à família dos Lanternas, que moram na
comunidade Raifran no Igarapé do Juruti-Velho.
125. Largata –s.f.1. Variação de lagarta.
126. Leandra –s.f.1. Espécie de mandioca de vários ramos, que possui a casca e a maniva
vermelhas.
127. Leite de mandioca –s.m.1. É o líquido branco que sai da mandioca quando cortada.
128. Levar v.i. e v.t.d. 1. Demorar. 2. Carregar.
129. Liguenta –adj.1. Mais pegajosa ou grudenta.
M
130. Macaxeira -s.f.1. É uma espécie de mandioca, que pode ser consumida in natura
2. Mandioca mansa.
131. Macaxeira amarela –s.f.1. Espécie de macaxeira com popa e folha amarela
132. Macaxeira manteiga –s.f.1. Espécie de macaxeira com popa branca e com casca
fina.
133. Macaxeira jabuti –s.f.1. Espécie de macaxeira com casca vermelha e popa branca;
134. Macaxeira vermelha –s.f.1. Espécie de macaxeira com popa vermelha e com casca
vermelha.
135. Machado –s.f.1. É o instrumento que tem o cabo de madeira e a lâmina de ferro presa
em uma das extremidades e é usado para partir madeiras para lenhas e para derrubar
árvores no roçado.
136. Mãe da mandioca –s.f. 1. É o nome dado às mandiocas grandes.
137. Mancha de mandioca –s.f. 1. É o nome dado à nódoa provocada pelo leite pegajoso
da mandioca. na roupa.
138. Mandiocona -xpressão usada para se referi à mandioca grande.
139. Manicujá –s.m.1. O buraco onde são colocados os dois pedaços de maniva.
140. Manicuera –s.f.1. Espécie de mandioca apropriada unicamente para fazer tucupi.
2. O subproduto dessa mandioca parecido com uma bebida ou mingau.
141. Maniva –s.f.1. O caule da planta. 2. A árvore da mandioca.
142. Maniveira –s.f.1. A árvore da mandioca
143. Marrequinha –s.f.1. Variedade de mandioca cujo amadurecimento no solo é rápido
e é excelente para produção de tapioca.
144. Massa –s.f.1. É a mandioca depois de serrada.
145. Massapé –s.m.1. É uma espécie de solo argiloso. 2. O mesmo que barro.
146. Menina –s.f.1. Espécie de mandioca com caule grosso e com raízes grandes
15
147. Mingau de crueira –s.m.1. O subproduto da mandioca feito com as sobras deixadas
na peneira, que depois de colocadas ao sol para secarem, são socadas em um pilão, de
modo que pode ser aproveitado em forma de mingau.
148. Mingau de farinha –s.m.1. O suproduto da mandioca em que pode se acrescentado
leite, castanha etc.
149. Miriti –s.f.1. Variedade de mandioca cuja cor é amarela.
150. Misgalha –v.t.d.1. Variante de misgalhar. 2. Reduzir em pedaços menores.
151. Moitá –s.m.1. O lugar na mata onde se espera a caça passar.
152. Moorta –s.f.1. Um das madeiras usadas para fazer os caibros do barracão.
153. Motor serra –s.m.1. A máquina usada para serrar mandioca.
154. Muralha –s.f.1. As paredes feitas de barro que sustentam o forno em cima.
N (Sem dados)
O
155. Olho –s.m.1. É o nome dado no Igarapé do Juruti-Velho para as gemas florais
2. O mesmo que broto 3. O órgão da visão.
156. Olímpia –s.f.1. Espécie de mandioca da cor amarela cujo arvoredo é alto.
P
157. Pá –s.f.1. Utensílio feito de madeira para mexer a farinha no forno.
158. Pagoa –s.f.1. Espécie de mandioca da popa branca e é própria para fazer beiju.
159. Paixão –s.f.1. Variedade de mandioca da cor amarela.
160. Pajiroba. s.m.1. É uma espécie de bebida feita a partir de beijus grandes da massa da
mandioca com a coloração rosa devido a presença da batata doce. 2. É a cachaça de
origem indígena. 3. Caissuma. 4. Caxiri.
161. Paneirada, -s.f.1. É o paneiro cheio de mandioca que se descarrega no barracão ou
na água. 2. É o carregamento de mandioca no paneiro.
162. Paneiro –s.m.1. O utensílio de origem indígena usado para carregar mandioca.
163. Parte –v.t.d.1. Variante de partir. 2. Quebrar-se.
164. Pau caboclo –s.m.1. Madeira usada para fazer os caibros do barracão.
165. Pau do tipiti –s.m.1. É uma vara resistente ao peso das pessoas ou de toras de
madeira cuja função é esticar o tipiti para secar a massa da mandioca em seu interior.
166. Peneira –s.f.1.Utensílio de origem indígena feito de tala de ambé ou de chapa de aço
com furos, por onde passa a massa da mandioca antes de ir ao forno para torrar.
167. Perereca –s.f.1. Espécie de mandioca cuja maniveira é baixa e possui a casca marrom
e a massa branca.
168. Pirão –s.m.1. É a farinha escaldada com, água quente.
169. Plantar em pé – Expressão usada para o plantio inclinado dos dois pedaços de
maniva na cova.
16
170. Plantar deitada – Expressão usada para o plantio de forma horizontal dos dois
pedaços de maniva na cova.
171. Polvilho –s.m.1. É a tapioca seca, da qual se pode fazer biscoito torrado, pão-de-ló
etc.
172. Popa –s.f.1. O mesmo que raiz. 2. A massa da mandioca in natura.
173. Pororoca –s.f.1. É uma variedade de mandioca cultivada na região que possui raízes
grandes.
174. Pororoquinha –s.f.1. É uma espécie de mandioca pequena.
175. Prensa –s.f.1. É o instrumento de secagem da massa da mandioca mais eficiente
devido a maior capacidade de armazenamento.
176. Presta –v.i.1. Variante de prestar. 2. O mesmo que ser útil.
177. Puçanga –s.f.1. É o ato de mastigar o beiju do pajiroba para que a bebida fermente ou
para que fique mais doce.
178. Purridão –s.f.1. Variante de porridão. 2. O mesmo que bêbado.
179. Puxirum –s.m.1. É a reunião de trabalhadores na roça para ajudar alguém a plantar
a maniva, a capinar ou mesmo para fazer o roçado. 2. O mesmo que ajuri ou mutirão.
Q
180. Queroizadas –s.m.plural.1. Relativo à família dos Queiróz, que moram na
comunidade Raifran no Igarapé do Juruti-Velho.
R
181. Raiz –s.f.1. A mandioca. 2. O tubérculo da planta maniveira.
182. Ralo –s.m.1. Objeto com dentes e forma retangular feito de lata de querosene ou de
lata de óleo de cozinha cuja função é ralar a mandioca.
183. Ramalhuda –adj.1. Com vários ramos ou galhos.
184. Raspar –v.t.d.1. Umas das formas de descascar a mandioca.
185. Raspador –s.m.1. Objeto em forma de “U” com uma lâmina presas às extremidades
cuja função é descascar a mandioca.
186. Rastejar –v.t.d.1. O mesmo que esfregar com o toco da mandioca o resto da outra no
ralo.
187. Remo –s.m.1. Objeto feito de madeira usado no casco pelo ribeirinho para se
locomover pelos igarapés e lagos, além de ser usado também para remexer a farinha
no forno.
188. Rodo –s.m.1. O instrumento de madeira com cabo longo inserido em uma peça
retangular cuja função é remexer a farinha no forno.
189. Roça –s.f.1. O terreno onde se planta a mandioca ou outras culturas.
190. Roçado –s.m.1. O terreno destinado a fazer a roça de mandioca ou outras culturas.
191. Roceiro –s.m.1. A pessoa que cultiva culturas em um terreno chamado roça.
192. Rolha - s.f.1. O ouriço de castanha colocado na cabeça do tipiti cuja função
é impedir que a massa derrame.
193. Rosarinho –s.m.1. Espécie de mandioca com casca vermelha, com guia roxa e com
massa amarela.
17
S
194. Santospé –s.m.1. Centopéia.
195. Sociedade -s.f.1. Sistema de partilha de produção de farinha entre o dono da
plantação da mandioca e o interessado.
196. Sevada –adj.1. Variação de serrada.
197. Socó –s.m.1. Espécie de mandioca com massa amarela e caule comprido. 2. A ave.
T
198. Tacacá -s.m.1. É a tapioca adicionada água que quando ferve adquire uma
consistência pastosa e clara, na qual são acrescentados camarão, jambu e tucupi, que
pode ser pimentoso ou não.
199. Tambaqui –s.m.1. Espécie de mandioca com caule roxo e com pecíolo vermelho.
200. Tapaiúana –s.f.1. Espécie de mandioca com vários ramos e possui a casca marrom e
a massa branca.
201. Tapioca –s.f.1. O subproduto da mandioca de cor branca. 2. O amido da mandioca.
202. Tapioquinha –s.f.1. É o beiju feito da massa da tapioca.
203. Tapiriti –s.f.1. O mesmo que massa seca dentro do tipiti.
204. Tapurati –s.f.1. Variação de tapiriti. O mesmo que massa seca.
205. Tarisca –s.f.1. O rolo com dentes 2. Os dentes, que serram a mandioca.
206. Tarubá –s.m.1. É uma bebida pastosa feita na folha da planta chamada curumim.
207. Ter –v.t.d ou modal1. Possuir. 2. Dever.
208. Terçado –s.m.1. Utensílio usado na capinação da roça.
209. Terra de várzea –s.f.1 É uma espécie de solo, que surge nas vazantes das águas
e é muito rico em húmus.
210. Terra rocha –s.f.1. É uma espécie de solo, rico em húmus.
211. Tipiti –s.m.1. Utensílio de origem indígena usado para secar a massa da mandioca.
212. Toco –s.m.1. A parte da mandioca que a liga ao tronco da maniveira.
213. Toco molhe -s.m.1. É a mandioca que ficou na água. 2. A farinha d’água.
214. Traíra –s.f.1. É uma espécie de mandioca cultivada na região cujas folhas são meio
arroxeadas.
215. Tronco –s.m.1. A parte grossa da maniveira junto às raízes da mandioca.
216. Tucumã –s.m.1. Variedade de mandioca cuja cor é amarela. 2. A fruta do
tucumanzeiro.
217. Tucupi –s.m.1. O líquido extraído da massa da mandioca adicionado à água.
218. Tucupi puro –s.m.1. O líquido extraído diretamente da massa da mandioca sem
adicionar água.
U (Sem dados)
V
219. Vai-quem-quer –s.m.1. O nome do centro da família Carlitos no Igarapé do Juruti-
Velho.
18
220. Vala –s.f.1. O buraco cavado com a enxada, onde são enterradas as manivas.
221. Veneno –s.m.1. O ácido cianídrico (HCN).
X (Sem dados)
Z
222. Zolhuda –s.f.1. Espécie de mandioca com caule roxo e a raiz meio amarela.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo
RESUMO
Palavras-chave:
Obstruinte. [+contínua]. [+sibilante]. Traço cultural.
ABSTRACT
This study intends to present language as a particular feature of Santa Catarina island culture.
People‟s background is introduced as a crucial element for the construction of the regional
dialect. Therefore, in order to study the coda position of the segment /S/ in allophonic
distribution, it was necessary to review the historical context of the period. When looking
back at the process of colonization which Brazil went through – started at the 16th century and
lasted until the 18th century, it is possible to understand the European Portuguese linguistic
status in what concerns the [sibilant, +coronal, +anterior] phoneme realization that was
introduced in South Brazil. As a result of the colonization process, the emigration from
Azores to Santa Catarina Island in the 18th century modified the structural organization of the
local society. Other Portuguese varieties were, then, introduced, among them, the [sibilant,
coronal, -anterior] coda, which dominated by degrees the linguistic context. Both allophones
pointed out of [sibilant] in coda are nowadays present in the region. Thus, the Multilinear
Phonological Model and the Geometry of Phonological Features provide the theoretical basis
for explaining the [sibilant] variations.
Keywords:
Culture. Historical Phenomenon. Allophonic distribution. [sibilant].
1
Doutora pela Universidade de Paris III, Sorbonne-Nouvelle; e-mail: teresinha.brenner@ufsc.br.
2
1 INTRODUÇÃO
Este texto se propõe a descrever a alofonia de /S/ em coda [obstruinte, +contínuo,
+sibilante] como traço de cultura na fala de Florianópolis, sobretudo na zona pesqueira. Os
dados do corpus foram coletados através de pesquisas de campo realizadas nas praias de
Florianópolis, com os alunos da Graduação, nas décadas de 80 e 90 até a presente data sob a
direção da Pesquisadora. Os elementos de corpora resultam, também, de coleta de
informações in loco realizada pela autora deste para sua Tese de Doutoramento, bem como se
originam de processo de acompanhamento de trabalhos de alunos.
Os resultados demonstram uma convivência na área pesquisada entre a [+contínua, +
sibilante, -chiante] e a [+contínua, +sibilante + chiante], com prevalência da última. A
pergunta que se impõe reporta-se à causa desta distribuição. Busca-se a resposta em fatores
culturais. Entende-se aqui a cultura como resultante de traços históricos, geográficos, bem
como de marcas de caracterização regional, de organização comunitária, de distribuição do
trabalho, de estrutura familiar, dentre outros.
Enfatiza-se, sobretudo, o processo histórico da região que introduziu, de forma bem
delimitada, as duas variantes em coda: a [+contínua, + sibilante] versus a [+contínua, +
sibilante, +chiante]. Processos outros como sedimentação de cultura regional permitiram que
os dois alofones sobrevivessem, lado a lado: como representante do Português padrão no
território nacional /,/ [+ sibilante], e, no dialeto local, /,/ [+sibilante, +chiante], bem
como /,/, [+ sibilante]. O fenômeno remete, pois, necessariamente à época de colonização
do território nacional.
Os dois grupos consonânticos em foco se particularizam como [+estridente], uma
propriedade de gradiência da sibilância. Faz-se, pois, apelo a uma característica acústica de
ponto de articulação associada a modo para identificar um grupo aparentado em posição de
coda silábica, uma vez que a categoria maior de PontoC [+coronal, ± anterior] não restringe
suficientemente o grupo.
Para descrição da alofonia, selecionam-se os Modelos da Fonologia Multilinear e da
Geometria dos Traços Fonológicos. A interpretação para a classe natural [sibilante] feita neste
trabalho tem, ainda, apoio nas informações diacrônicas referentes a esta categoria na
passagem do latim para o português.
3
2 REVISANDO A HISTÓRIA
Entende-se a língua como elemento de uma cultura, que se organiza e se estrutura na
cultura e se perfaz continuamente dentro dela, mas que tem uma realização e uma
regulamentação própria e independente. Assim, a História constitui um fator que remete a sua
construção e estratificação na linha do tempo.
Santa Catarina situa-se no sul do Brasil, sendo o penúltimo Estado regional. Sua
História insere-se nos moldes da colonização portuguesa com recortes peculiares que a
distinguem das demais antigas províncias. Nos primeiros tempos após a descoberta do Brasil,
esteve associada às incursões de um grande centro de penetração portuguesa, São Paulo e, no
sul, vinculou-se a um vasto território vazio que formava com a Província do Paraguai até São
Pedro do Rio Grande.
Com a emigração açoriana, entre 1748 e 1756, a ilha de Santa Catarina assume uma
nova direção na sua História integrando valores peculiares de outro povo, nova gente à sua
estrutura colonial, afastando-se das lutas riograndenses entre portugueses e espanhóis na
disputa do solo brasileiro.
Para fins aqui delimitados que remetem a um esclarecimento sobre fenômenos
lingüísticos acima expostos, pode-se dividir a História de Santa Catarina em dois momentos:
(a) as peregrinações de viajantes e penetrações portuguesas e paulistanas de entradas e
bandeiras; (b) assentamento da cultura açoriana no litoral de Santa Catarina.
O território ainda era concorrido pelos espanhóis. Além das entradas predatórias dos jesuítas
espanhóis e das que partiam de São Vicente, à caça de índio e de riqueza natural, havia a
perambulação de grupos pacíficos que valorizam o autóctone. Os lagunenses também
organizaram entradas para o Rio Grande do Sul. Foram surgindo, no século XVIII, em toda a
região as fortificações com o intento de defesa e centro de negociações. Mas, no século XVII,
ainda se via um enorme vazio nas terras que se estendiam da Província do Paraguai ao Rio da
Prata (Vellinho).
O território que corresponde ao atual Estado de Santa Catarina, se configurou
conforme o descrito acima referentemente ao processo de conquista da terra brasileira pelos
portugueses na região sul. Do Rio Grande do Sul como de São Paulo provinham excursões de
portugueses, de paulistas tanto predatórias como pacíficas. Pouco a pouco, foram construídas
as fortificações de defesa da terra e com fins de comércio. A história do Rio Grande se
distancia da de Santa Catarina na contingência de lutas entre espanhóis e portugueses na
disputa do solo como a que ocorreu na guerra pela posse da Colônia do Santíssimo
Sacramento, fundada em 1680por Portugal, no Rio da Prata, atual Uruguai.
Na verdade, Santa Catarina não ficou imune às lutas fraternas de portugueses e
espanhóis: entre 1580 e 1640 os dois povos se uniram politicamente, perdendo Portugal sua
soberania. Também houve uma invasão por espanhóis a Santa Catarina na definição final da
posse da Colônia do Sacramento (Caruso & Caruso).
Segundo Caruso & Caruso (p. 60), visando à defesa do litoral português no sul do
Brasil contra a Espanha, Santa Catarina transforma-se, em 1738, em Capitania, com nove
fortificações. O ato político autoriza maior autonomia à região frente às diretivas de São
Paulo. Como explica Furlan (p. 26), os centros mais antigos de povoamento na orla
catarinense foram fundados na segunda metade do século XVII, por grupos provindos de São
Vicente, no litoral paulista. Citam-se São Francisco do Sul, 1640, Nossa Senhora do Desterro,
hoje Florianópolis, 1662; 1675?, e Laguna, 1684.
Portanto, os primeiros investimentos na terra catarinense foram feitos pelos
portugueses do Continente e por portugueses instalados em São Paulo, bem como por seus
descendentes paulistas. Subiram do Rio Grande do Sul entradas organizadas por portugueses,
tentando alguns deles, comércio e construções de feitorias e povoamentos.
político de Região Autônoma desde 1976. Dividem-se em: (a) orientais- Santa Maria e São
Miguel; (b) centrais- Terceira, Graciosa, São Jorge, Pico e Faial; (c) ocidentais- Flores e
Corvo. Seu povoamento por portugueses do Continente e por flamengos se deu por fases
sucessivas a partir de sua descoberta em 1432 (Furlan, p.22-3).
Segundo Avelino de Meneses (Caruso & Caruso, p. 62-9), os Açores representaram
um celeiro agrícola para Portugal. Desde sua colonização no século XV, ofereceram, até o
século XIX, uma farta produção de cereais, do trigo ao milho. Sem condições administrativas,
a Corte Portuguesa estabeleceu um regime de Donatoria, sendo cedidos esses espaços a um
nobre com finalidade de ocupação e administração. A Donatoria, por causas semelhantes
criou as Capitanias, modelo imitado posteriormente para o Brasil. Essa estrutura criou um
regime de grandes propriedades de terras que desigualou o agricultor. Os conflitos sociais
resultantes favoreceram a vinda dos colonos para o Brasil, no século XVIII. O autor também
acredita na miragem brasileira. Registra, ainda, presos e embarcados. Assim, partiram
também alguns remediados, burocratas e „nobres‟. A emigração se fez entre 1748 e 1756. Em
1766, foi criada a capitania Geral dos Açores pelo Marquês do Pombal, centralizando a
administração.
Entende-se que a emigração de açorianos para Santa Catarina, após a fundação da
Capitania de Santa Catarina, em 1738, se deva, ainda, a fatores de fortificação local, em
consequência das lutas entre Espanha e Portugal pela posse de terras na América. Em 1750,
um tratado concede a Colônia do Sacramento, fundada pelos portugueses, aos espanhóis e os
portugueses recebem os Sete Povos das Missões no Rio Grande do Sul. Muita luta e revolta
resultou deste acordo (Caruso & Caruso, p.53-61).
Chegaram à Ilha de Santa Catarina 6000 açorianos. Desses, 1200 foram dirigidos
para o interior do Rio Grande do Sul. Retrata-se uma diversidade de destino dos dois grupos:
um se aclimatou e se organizou na Ilha, tendo uma vida relativamente tranquila. O que partiu
para o interior perdeu suas origens marítimas e, muitas vezes, se desfez na luta contra os
índios. Na verdade, ele foi absorvido pela estrutura do gaúcho (Caruso & Caruso, p. 70-1).
No edital publicado nos Açores, o embarcado deveria receber em sua chegada:
espingarda, facas, tesouras, machado, martelo, sementes, uma égua, duas vacas e Terra, além
de auxílio monetário. Na viagem, as mulheres eram embarcadas nos porões dos navios e eram
proibidas de falar com os maridos e os filhos. Só subiam ao convés nos domingos para assistir
à missa (id. p.72-3).
Para fins de reflexão, pode-se ponderar que os açorianos assentados em Santa
Catarina puderam cultivar seus costumes, crenças, folclores, tradições, deixando às gerações
6
Assim, assinala que dois africados ápico-dentais ] e , como em “paço” e “cozer”,
respectivamente, perduram até por volta de 1500, pois foram perdendo o segmento [oclusivo].
Os dois ápico-alveolares, levemente palatizados , como em “sem”, “saber” e , como em
“coser” resistem até o final do século XVI, em proveito da [sibilante] sem palatização,
conforme o exposto no início do parágrafo. O Norte permaneceu conservador.
Somente a partir do século XVII a africada inicial de sílaba do galego-português //,
originária de „cl, fl, pl‟, do latim, se caracteriza como //, escrita com “ch” ou “x”(
Furlan.ibid), como a derivação de “pluvia”, do latim, em “chuva”. A descrição de onset
conduz à questão da [chiante] em posição de coda silábica. Furlan acena com duas hipóteses
discutidas também por Teyssier (p. 67): a primeira prevê um processo concomitante de
palatização de onset e coda; a segunda concebe a palatização da última como um processo
mais lento compreendido entre o século XVI e a primeira metade do século XVIII. Entendem
a última como mais razoável e mais difundida, tese que a autora deste também corrobora:
surge o fonema [palatal chiante] e, posteriormente, o chiamento aparece na alofonia do
travamento silábico.
Deve ter ficado esclarecido que a primeira etapa de colonização de Santa Catarina se
fez por portugueses do Sul e Centro do Continente. Nessa época, predominava em Portugal a
[sibilante] [coronal,+anterior], o que também justifica os /,/ [alveolar] do Rio Grande do
Sul. Alguns viajantes cultos e aventureiros dos séculos XVI e XVII deviam, provavelmente,
ainda, conservar marcas da palatização na [sibilante], em processo vivo, mas em extinção no
Continente da Europa. Esta reflexão, talvez, justifique a larga presença da [africada, -anterior]
ainda hoje no Rio Grande do Sul e da [+anterior] em Santa Catarina. A hipótese encontra
apoio em Camara (1975, p.55) que afirma que a africada chiante só subsiste dialetalmente
tanto no Brasil como em Portugal.
A [chiante] em coda como traço comum em Portugal registra-se, segundo Furlan
(p.79) apenas em 1736. Trata-se, pois, de processo mais tardio, inovado e irradiado no Centro
e na região Meridional do Continente, bem como em Lisboa. Tanto os Açores como demais
colônias sofreram influências lingüísticas dessas regiões. O chiamento penetrou, sobretudo, os
portos mais importantes da costa brasileira, sob influência da Corte.
Em Santa Catarina, assinala-se a chiante em coda nas áreas de cultura açoriana como
marca delimitativa. Penetra como traço inovador mais tardio. Lembre-se que quando a
imigração chegou no século XVIII, a propriedade [chiante] já era bem difundida na região
Meridional e Central do Continente, bem como na Corte.
8
O processo histórico da Ilha pode, pois, explicar a convivência das duas [sibilante]
em coda, na cultura açoriana atual. Essa área, de caráter conservador, se mostra, hoje, bem
mais reduzida devido à invasão do progresso na região. O português padrão de Santa
Catarina preconiza a [cor, +ant]. Na estratificação social, uma classe média de ilhéus difunde
as tradições da Ilha. Na cultura açoriana de pescadores e rendeiras, figuram os dois elementos,
predominando, na classe mais pobre, o segmento menos inovador.
4 SOBRE O CORPUS
Corpora resulta de pesquisas de campo realizadas pelos alunos da Graduação da
UFSC em praias e áreas de Florianópolis a partir de 1985 até 1990, sob a coordenação da
autora deste. Para fins de Doutoramento, a coleta de dados foi feita pela pesquisadora com
equipe auxiliar. A partir de 1996, as buscas de elementos se efetivam com alunos da
Graduação e da Pós-Graduação da UFSC. Os trabalhos visam ao estudo da fala de
Florianópolis, numa dimensão dialetal.
Para este, foram selecionados dois grupos de alunos da Graduação: (a) o primeiro
com pesquisa na Barra da Lagoa, em 2007/2; o segundo, com viagem de estudos a Santo
Antônio de Lisboa, em 2010/2. Pretende-se corroborar a alofonia da [sibilante, coronal, ±
anterior] na área de cultura açoriana. Antecipa-se que os dados confirmam o exposto acima
referente ao processo histórico na formação dialetal.
Os dados colhidos pelos Graduandos foram armazenados em CD-ROM e digitados
através do alfabeto fonético IPA- International Phonetic Alphabet, SIL Doulus IPA, conforme
segue fielmente abaixo.
Informa-se que, no primeiro grupo, predominou quase que totalmente a variante
[sibilante, +coronal, -anterior] em todos os informantes com, em alguns casos, co-ocorrências
da [+anterior]. No segundo grupo, prevaleceu também a [cor, -anterior]. Assinalam-se, no
entanto, informantes com registro da [cor, +anterior] como estrutura gramatical.
Ilustra-se o afirmado como segue. Seja Grupo1:
(1) Informante A, 62 anos, sexo masculino:
(a)
(b)
(c)
(d)
Co-ocorrências:
9
(e)
(f)
(2) Informante B, 79 anos, sexo masculino:
(a)
(b)
(c)
(d)
(e)
Co-ocorrência:
(f)
(3) Informante C, 60 anos, sexo feminino:
(a)
(b)
(c)
(d)
(e)
Co-ocorrência:
(f)
(4) Informante D, 83 anos, sexo feminino:
(a)
(b)
(c)
(d)
(e) ]
Co-ocorrências:
(f) [#
Seguem dados do Grupo2:
(5) Informante A, 60 anos, sexo masculino
(a)
(b)
(c)
(d) ]
10
Co-ocorrências:
(e)
(f)
(g)
(h) ]
(6) Informante B, 60 anos, sexo masculino
(a)
(b)
(c)
Co-ocorrências dominantes:
(d)
(e)
(f)
(g)
(h)
(7) Informante C, 51 anos, sexo feminino
(a)
(b)
(c)
(d)
(e)
Co-ocorrências:
(f)
(g)
(h)
(i)
(j)
(8) Informante D, sexo masculino
(a)
(b)
(c)
(d)
11
Co-ocorrências dominantes:
(e)
(f)
(g)
(h)
(i) ##
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Interpretou-se, neste trabalho, a língua como elemento fundamental da cultura.
Focalizou-se, como centro, a fala de Florianópolis. Para interpretação desta, selecionou-se
uma classe natural de fonemas consonânticos ,,,, realizados em posição de “coda”
silábica. A história da região articulada à história da língua particularizaram-se como fator
cultural preponderante na descrição da alofonia da categoria [sibilante] na área em estudo.
Uma amostra do corpus colhida por alunos da Graduação da UFSC, em 2007/2, na
Barra da Lagoa, e, em 2010/2, em Santo Antônio de Lisboa, comprova a distribuição
variacional de , , , em coda entre os falantes dessas áreas, com predomínio do
elemento [chiado].
A classificação desses fonemas como [coronal, ±anterior] se coaduna com a
descrição de segmento [palatal] proposta por Clements para a Geometria dos Traços
Fonológicos. Prevê-se um segmento consonântico com articulação secundária, de natureza
vocálica. A análise confirma a descrição estrutural clássica do português. A organização da
classe natural desses segmentos se firma através do traço [sibilante]; o [chiante] opõe
[+anterior] a [-anterior], identificando-se com o último.
Delimita-se a história da região em dois períodos: (a) chegada dos portugueses no
século XVI; (b) imigração açoriana. No primeiro momento, os portugueses organizam
entradas e bandeiras numa região sem fronteiras entre Rio Grande do Sul, Santa Catarina e
São Paulo e no sentido inverso. Tomam posse da terra e criam fortificações, disputando a
rivalidade espanhola. Nesse estágio, a Língua Portuguesa Meridional e do Centro despalatiza
alguns fonemas em proveito da [coronal, anterior, - chiado] e outras palatizações evoluem
para fixação do fonema [coronal, -anterior]. A [chiante] em coda se desenvolve a partir do
século XVIII. Portanto, o travamento silábico se caracteriza como [-chiante] nessa época de
conquista do Brasil. Na posição inicial de sílaba, com certeza, penetraram ainda, algumas
palatizações no sul do Brasil, trazidas por falantes desse período de penetrações históricas.
Após a criação da Capitania de Santa Catarina na primeira metade do século XVIII,
chegou a população açoriana para fortalecer o processo colonizador. O falar dos Açores como
o do Brasil segue os princípios do Português Meridional e Central. Nessa época, o
16
[chiamento] já invadia Lisboa, centro das duas colônias. As áreas de cultura açoriana em
Florianópolis atual comprovam o predomínio da [coronal, -anterior] no fechamento da sílaba,
embora a concorrente [+anterior] subsista em alto registro. Lembre-se, ainda, que o português
padrão regional, disseminado pela mídea, pela burocracia e pelo Ensino se pauta pelo
travamento [+sibilante, coronal, +anterior, -chiante].
Portanto, para análise do fenômeno linguístico- segmento [sibilante] em
“coda”silábica, na área de Florianópolis, fez-se apelo a dois elementos de cultura: a língua e a
história da região.
7 REFERÊNCIAS
CAMARA JR., J. Mattoso. Para o estudo da fonêmica portuguesa. Rio de Janeiro, Padrão,
2.ed., 1977.
CLEMENTS, George N. Lieu d‟articulation des consonnes et des voyelles: une théorie
unifiée. In: Rialland; Laks (Orgs.), Architecture des représentations phonologiques. Paris,
CNRS Editions, 1993.
ELIA, Silvio. Preparação à lingüística românica. Rio de janeiro, Ao Livro Técnico Ed.
FURLAN, Oswaldo (1989). Influência açoriana no português do Brasil em Santa Catarina.
Florianópolis, Ed. da UFSC, 2004.
LADEFOGED, Peter. A course in phonetics. Los Angeles, University of California, 2nd ed.,
1982.
TEYSSIER, Paul. História da língua portuguesa. Trad. Celso Cunha. São Paulo, Martins
Fontes, 1997.
RESUMO
Palavras-chave:
Livro didático. Interculturalidade. Inglês. World Englishes,
ABSTRACT
According to recent studies, English learning and teaching approaches have changed
outstandingly due to the situation of English nowadays (global language and world Englishes)
and the remarkable revolutions occurred in the medias and technology. Such revolutions had
facilitated the contact among people from different languages and cultures. In this context
English teaching and learning should take into account such intercultural situations in order to
turn socio-cultural traits of the speakers into important aspects for the mutual comprehension
and self-valorization. This perspective is component of intercultural communicative
competence (ICC) which has been divulged by several scholars recently, namely Byram
(2002). Oliveira (2010) is one of the advocates of ICC in Brazil and supports the English
teaching based in the development of ICC and respect to the World Englishes. She developed
a checklist to analyze an English text-book in order to identify intercultural approaches and
the representation of varieties of Englishes in the backdrop of the text-book. This article
presents an analysis of two text-book collections: Upgrade by Richmond editors and Prime by
MacMillan. Both collections are suggested by 2011 Text-Book National Program in Brazil
which recommends the text-books that will be adopted in the next year. The analysis is based
1
Mestre em Estudos de Linguagem pelo Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagem (PPGEL) da
Universidade do Estado da Bahia, campus I; e-mail: vesscorp@yahoo.com.br.
2
in the checklist developed by Oliveira (2010) and as conclusion the data revealed that both
collections seems to involve the interculturality into the activities of the book, yet the text-
book needs to take into account the fact that English has now several varieties.
Keywords:
Text-book. Interculturality. English. World Englishes
1 INTRODUÇÃO
Uma enorme gama de materiais didáticos tem incorporado o uso das mídias digitais e
materiais multimídia na contemporaneidade. No entanto, o reinado do livro didático (LD)
parece estar longe do fim, uma vez que este recurso é um dos mais utilizados e difundidos nos
sistemas de ensino na atualidade. De fato, a história do livro didático acompanha a história da
imprensa (PAIVA, 2011) e das publicações. Dada a importância da palavra impressa para a
civilização moderna, o livro didático tem desempenhado um papel proeminente na história da
humanidade, visto que a escola (onde o livro didático é utilizado quase que religiosamente) é,
para muitos estudiosos, um espelho da sociedade (DAMIÃO, 2008).
É possível perceber a ideologia predominante em determinada sociedade e em
determinada época estudando a estruturação (textos, imagens, atividades entre outros) dos
LDs utilizados no período, como mostra Paiva (2011) ao percorrer a trajetória do LD de
inglês no Brasil. A autora nota que os livros do final do século XIX, por exemplo, estavam
recheados de exercícios de tradução nos quais muitas frases tratavam de escravos negros e das
diferenças entre continentes como Europa e África. Vale ressaltar que os LDs tanto
retratavam as ideologias como as reforçava, ajudando a manter o discurso dominante que se
adequava aos valores defendidos e as concepções científicas predominantes na época.
No final do século XIX, o ensino das LE concentrava-se basicamente no estudo da
gramática e da tradução – as LEs eram aprendidas como forma de aumentar e exercitar o
intelecto (BROWN, 2000) – de modo que, as classes mais favorecidas eram, possivelmente,
as que poderiam se ocupar de tal tarefa. Logo, é previsível que os LDs tenham sido
estruturados para atender aos prováveis aprendizes oriundos de famílias mais abastadas.
Seguindo esta linha de pensamento, pode-se afirmar que, mudam-se os paradigmas
sociais, mudam-se os LDs. A partir da década de 60, por exemplo, o conceito do
“politicamente correto” passou a ser difundido para minimizar as desigualdades raciais e
sexuais em um período em que tanto o racismo quanto o preconceito sexual começaram a ser
rechaçados de forma mais veemente e com o apoio de uma parcela da sociedade (HORTA,
2010). Nos LDs de inglês já aparecem imagens de pessoas negras e brancas em diálogos e as
3
dissolução das fronteiras geográficas entre pessoas de países e culturas diferentes, essas
relações, no entanto, podem causar choques e conflitos os quais foram previstos por Delors
(1996). Segundo este autor, para enfrentar as tensões que se formarão no decorrer do século
XXI, devido á globalização, o sentimento de falta de consistência cultural e muitos outros
problemas de ordem social que serão consequências diretas da crescente interdependência
entre povos, a educação precisa ter como alicerces quatro pilares: saber ser, saber fazer, saber
conhecer e saber viver junto. Acertadamente, Delors divulga princípios altamente pertinentes
ao momento histórico atual. No campo de ensino de LE, estes princípios podem ser
percebidos na CCI desenvolvida por Byram (2002) e no Quadro Europeu Comum de
Referência para Línguas (QECRL) construído pelo Conselho da Europa em 2001.
A noção de CCI merece destaque, pois incorpora à CC uma consciência intercultural
que é necessária para lidar com as tensões das quais trata Delors (1996). De fato, a
interculturalidade na educação promove o desenvolvimento desejável da personalidade do
aprendiz no seu todo, bem como o seu sentido de identidade, em resposta à experiência
enriquecedora da diferença na língua e na cultura (CONSELHO DA EUROPA, 2001). A CC
tradicional não abarca tal perspectiva, ou seja, ela ainda está pautada em um modelo distante
dos aprendizes de LE, uma vez que para o ensino comunicativo de línguas o falante dito
nativo é o modelo fornecedor das regras corretas de apropriação e exequibilidade de discursos
na língua inglesa (GENESEE, 1984). Em outras palavras, a concepção de CC manteve o
falante nativo no status de paradigma linguístico de inglês, no entanto, um arcabouço teórico
para ensino e aprendizado de línguas que negligencia a identidade sociocultural dos
aprendizes e falantes, bem como as possibilidades de interação entre diversas culturas, não
contribui para a preparação de cidadãos do mundo globalizado. Por outro lado, se o falante
nativo não é o exemplo de uso linguístico do inglês, quem seria? Essa é uma discussão
complexa e que nem sempre termina em consenso. Muitos estudiosos concordam que o
falante nativo de inglês é cientificamente um ser idealizado com atribuições quase que
mitológicas (DAVIES, 2004; MEDGYES, 1996), além disso, os estudos a respeito da
dispersão do inglês pelo mundo têm mostrado que o paradigma linguístico do falante nativo
tem se tornado cada vez menos adequado para o ensino de LE.
A expansão da LI pelo mundo prova que o inglês não pertence mais aos falantes
nativos (KAPLAN, 1998). Na atualidade existem as referências ao inglês como língua global
(devido à expansão em escala mundial), língua franca (ou seja, uma língua comum entre
vários povos) ou língua internacional (por ser a segunda língua ou língua estrangeira mais
5
A coleção UpGrade foi lançada em 2010 pela editora Richmond e é composta de três
livros (um para cada série do ensino médio) divididos em oito unidades temáticas. Os temas
das unidades são independentes e perpassam pelos assuntos mais comuns na atualidade tais
como: Aquecimento global, obesidade, células tronco, globalização entre outros. As unidades
se dividem de forma a contemplar cada uma das habilidades linguísticas: Reading,
Vocabulary In Use, Grammar In Use e Language In Action (a qual é desenvolvida juntamente
com o áudio). Ao final de cada unidade há a seção In The Job Market, na qual são
apresentadas profissões, muitas das quais exigem um conhecimento de inglês. Esse tipo de
seção tem estado presente em vários LDs da atualidade, o que indica que o ensino de inglês
procura estar em consonância com os objetivos do ensino médio que é a preparação para o
trabalho. A coleção UpGrade demonstra que ao desenvolver LDs de inglês, os autores estão
mais preocupados com o aprendiz e não com os falantes nativos da língua. Este fato está
explícito no quadro 1 do APÊNDICE A, que apresenta a análise da obra com o checklist
proposto por Oliveira (2010). Embora a obra não apresente mais modelos de uso de inglês, ou
melhor, variedades de inglês, é notável a relevância dada a cultura geral brasileira e a
participação de brasileiros falantes de inglês nos textos orais. O LD em questão consegue
incentivar o aluno brasileiro a utilizar o inglês como ferramenta para discutir temas que ele
conhece. Essa proposta está bem próxima da perspectiva intercultural, pois proporciona ao
aprendiz de língua estrangeira refletir sobre o meio sociocultural em que vive. No entanto,
essa não deveria ser a única forma de construção de uma consciência intercultural. Os alunos
deveriam entrar em contato com as variedades de inglês para perceber que os traços
socioculturais dos falantes não nativos não prejudicam a compreensão da LE. Pelo contrário,
as variedades de inglês são a prova visível da globalização linguística. Como fenômeno
global, a imagem de um falante de inglês é imprecisa, por esta razão os estereótipo do falante
nativo também foi suplantado por tipos humanos que representam multiculturalidade. Isto é
notável na obra UpGrade, pois os personagens em sua grande maioria são pessoas de diversas
etnias, idades e sexo. Contudo, o status profissional é marcadamente estereotipado, ou seja, as
pessoas representando profissões (tais como médicos, secretários entre outros) são sempre
brancas. Além disso, alguns grupos étnicos são representados como exóticos (índios e
indianos). De modo geral, o UpGrade está se libertando dos modelos tradicionais de LDs, nos
quais a cultura predominante era a dos países do círculo interno. Os vestígios do
tradicionalismo podem ser percebidos no uso do inglês americano como variedade padrão,
tanto, que os brasileiros que atuam nos textos orais gravados em áudio procuraram ser
altamente fiéis à variedade geral americana.
8
A segunda coleção a ser analisada é Prime, também lançada em 2010 pela editora
MacMillan. Similarmente a Upgrade, a coleção Prime é composta de três livros embora cada
livro possua 12 unidades temáticas. Cada dupla de unidades abordam um tema em comum
que, como nos LDs UpGrade, são assuntos bastante atuais como: Internet, alimentação, meio
ambiente, entre outros. Cada unidade possui seções que estimulam as quatro habilidades
separadamente em receptivas e produtivas: Have Your Say, Reading Beyond The Words, In
Other Words, Practice Makes Perfect, The Way It Sounds e Put It In Writing O livro também
focaliza um gênero textual em cada unidade bem como há um espaço para apresentar uma
profissão no final de cada dupla de unidades. Em cada unidade há o incentivo à autoavaliação
e sugestões de leituras (na Internet, cinema e música) a respeito do tema abordado na unidade.
A coleção Prime propõe ao estudante a reflexão da sua cultura utilizando a LE. Essa
é uma das características que ambas as coleções compartilham, como pode ser observado no
quadro 2 do APENDICE A. No entanto, a abordagem do Prime é bem distinta da coleção
UpGrade. No Prime existe uma representação maior de grupos étnicos diferentes em
contextos socioculturais diversificados. Isso significa que a ocorrência de estereótipos é
bastante reduzida. A obra traz duas unidades para tratar deste assunto e leva o estudante a
refletir sobre a imagem que se tem dos brasileiros e dos típicos falantes de inglês (neste caso
os estereótipos dos falantes de inglês foram o do norte americano e do britânico). A intenção
de desconstruir tais estereótipos seria mais efetiva se a perspectiva do world Englishes, fosse
levada em consideração, pois induziria os alunos a perceberem a existência de outros ingleses
falados e que são altamente marcados pelas características socioculturais dos falantes. Em
outras palavras, o Prime poderia ter estendido a discussão dos estereótipos para os ingleses
falados nos círculos externo e em expansão.
Por outro lado a diversidade cultural e a reflexão sobre hábitos culturais dos diversos
grupos humanos é um ponto forte na coleção Prime. As atividades que incentivam
observações etnográficas exploram as diferenças socioculturais que existem entre etnias,
gêneros, religiões e posições sociais distintas. Vale ressaltar que tais observações não são
motivadas a título de comparação entre culturas, mas sim para assinalar a existência de
maneiras diferentes de se comportar, falar e dirigir-se ao outro. Por fim a coleção Prime, traz
uma proposta bem mais harmônica com a perspectiva da interculturalidade no ensino de
inglês. A maior dificuldade, contudo, é trazer para os alunos brasileiros amostras das
variedades de inglês, já que nos textos em áudio a LI falada é essencialmente norte-
americana. Neste aspecto ambas as coleções se assemelham.
9
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A posição Kachruviana não é nova, ela na verdade vem sendo discutida há bastante
tempo e tem ganhado força com os esforços dos linguistas aplicados da contemporaneidade ao
propor a CCI como meta para o aprendizado de LI. Possivelmente o processo de assimilação
de tais ideias se dê lentamente até suplantar métodos tradicionais enraizados nos sistemas de
ensino e que na maioria das vezes estão instituídos em textos oficiais. Os LDs precisam se
adequar as novas perspectivas, no entanto, é necessário que tais perspectivas sejam também
respaldadas pelos textos oficiais que regem a educação brasileira. Ambas as coleções aqui
analisadas estão próximas do que se espera de LDs de inglês inseridos em um contexto
histórico que exige a construção de uma consciência intercultural. Entretanto, elas precisam
assumir a dimensão sociolinguística da língua inglesa dispersa no mundo e torná-la, pelo
menos, comum a todos aqueles que querem/precisam aprender a LI.
5 REFERÊNCIAS
BACHMAN, Lyle F. A habilidade comunicativa de linguagem (Communicative language
ability). Trad.: Niura Maria Fontana. Revista Linguagem & Ensino, Caxias do Sul, vol. 6, n.
1, p.77-128, 2003.
DAVIES, A. The Native Speaker in Applied Linguistics. In: DAVIES, A.; ELDER, C. (ed.).
The Handbook of Applied Linguistics. United Kingdom: Blackwell Publishing Ltd., 2004,
p. 431-450.
DIAS, R. et al. Prime: inglês para ensino médio.São Paulo: MacMillan, 2010.
HADLEY, A. O. Teaching language in context. 2.ed. Boston: Heinle & Heinle, 1993.
HORTA, Maurício. O que você pode falar, afinal? Revista Superinteressante. Ed. Abril. n.
293. p. 21-22. Julho 2011.
KACHRU, B. B. World Englishes and Applied Linguistics. TICKOO, M.L. (Ed.). Language
and Standards: Issues, Attitudes, Case Studies. Anthology Series. Singapore: SEAMEO,
[s.d.]. p.178-205, 1991.
KAPLAN, Robert. B. Why Teach The World English? Mannual meeting of the conference
on college composition and communication, Chicago, IL, Discurso, 1998.
RICHMOND. Upgrade. AGA, Gisele (Ed.) São Paulo: Editora Richmond. 2010
SILVA, V. E. S.. Futuro professor não nativo de língua inglesa e a proficiência lingüística:
Que relação é essa? 2011. 177f. Dissertação (Mestrado em Estudos de Linguagem) –
Universidade do Estado da Bahia, Salvador. 2011
12
APÊNDICES
QUADRO 1
Upgrade
ASPECTOS INTERCULTURAIS
As atividades do livro refletem as características culturais de vários grupos sociais? Quais?
Do ponto de vista da divisão tradicional de classes o livro parece manter como referência a classe
média e alta. Em termos culturais o livro é bastante diversificado. Há representações culturais muito diferentes.
O livro explora tanto a cultura urbana em relação a musica, artes visuais, cinema, e literatura, quanto a cultura
característica de muitos países que não são exclusivamente os países do circulo interno
As perspectivas políticas, religiosas, e ideológicas de outros grupos sociais são levadas em
consideração? Quais?
O livro não destaca posições políticas ou religiosas, mas está completamente de acordo com
posições ideológicas bastante comuns nos dias de hoje: a ideia do politicamente correto por exemplo e divulga
temas correntes: a globalização, a inclusão social, aquecimento global, bullying, obesidade entre outros. No
livro 2, por exemplo, há uma unidade que trata da África.
As atividades do livro apresentam estereótipos culturais/raciais/ de gênero? Quais? (Caso a
resposta seja SIM, e haja uma quantidade muito grande de estereótipos vale a pena ponderar a adoção
do material.)
Parece que os autores tentaram minimizar a profusão de estereótipos. Mas mesmo assim ainda é
possível encontrá-los. No livro 2, o capitulo 5 trata da África e relaciona o tema somente ao racismo e
escravidão. (embora traga posições interessantes como a de Gilberto Freyre). As pessoas que representam
profissionais liberais são sempre brancas, enquanto negros e latinos representam o exotismo cultural. Estes
estereótipos não estão em grande quantidade e são sutis, o que não invalida a adoção do livro.
Existem atividades que fazem menção à cultura do aluno? De que forma?
Sim, mas de forma bastante geral, o livro faz menção ao cinema brasileiro, ações sociais comuns no
Brasil, a lei Maria da Penha e os avanços tecnológicos do país. Na verdade o livro trata de assuntos do país do
aluno, e procura ser bastante geral sem tratar de problemas específicos do país. O livro passa a tratar do inglês
baseando-se em temas muito atuais.
As atividades levam o aluno a refletir sobre semelhanças e diferenças entre as culturas de
forma não avaliativa? De que forma?
As atividades não levam o estudante a uma atitude comparativa. Pelo contrário, o livro começa pela
temática brasileira para o estudo da língua. Mas, vale ressaltar que o livro importa-se com temas em voga na
atualidade como citados na resposta da questão 3. Alguns temas como índios do Brasil, floresta amazônica,
trabalho voluntário são temas vistos do ponto de especialmente brasileiro.
As atividades ajudam o aluno a desenvolver tolerância e empatia em relação ao outro? De que
forma?
Como o livro possui temáticas especialmente brasileiras, a empatia com o outro é desenvolvida em
nível “intracultural”, ou seja, é evidente a relevância dos aspectos nacionais, incentivando o aluno a olhar para o
seu país por meio do inglês, em algumas poucas unidades há a representação de outros grupos como os
cumbieros da Argentina no livro 1.
Existem atividades que permitem ao aluno fazer observações etnográficas? De que forma?
Há sim, em algumas unidades há atividades pautadas em aspectos culturais de certos locais. Há
textos e atividades sobre índios brasileiros, tribos urbanas, negros africanos, indus, adolescentes, deficientes
físicos entre outros. Embora estes textos não busquem a percepção do outro por meio destes grupos, eles
abrem espaço para observações etnográficas se o professor aproveitar as situações.
VARIEDADES DE LÍNGUA INGLESA
No componente de áudio/video, falantes de países onde a língua inglesa não é a língua
materna estão representados? Quantos?
A grande maioria dos personagens dos textos orais que compõem o áudio ou são brasileiros ou são
norte-americanos.
É possível identificar os falantes pelo sotaque? Como?
Pelo sotaque não. Dá para perceber que há brasileiros falando inglês pela pronúncia bastante
característica de palavras portuguesas.
13
QUADRO 2
Prime
ASPECTOS INTERCULTURAIS
As atividades do livro refletem as características culturais de vários grupos sociais? Quais?
Sim, existe uma grande variedade de grupos sociais representados nas atividades dos livros. Há
grupos de pessoas da Índia, da África, do Brasil, de países da América central e sul entre outros. Em se
tratando da representação de etnias, percebe-se que os diversos grupos étnicos são representados em
diversas situações socioculturais. Ou seja, o negro não está ali apenas na temática escravidão e racismo ou o
indiano não está ali apenas para representar exotismo. No entanto, os temas das unidades em sua maioria são
comuns para pessoas de classes média e alta.
As perspectivas políticas, religiosas, e ideológicas de outros grupos sociais são levadas em
consideração? Quais?
Não situações onde a perspectiva política ou religiosa de determinados grupos sociais deva
sobressair. Mas, há em uma unidade em que o tratamento da perspectiva religiosa e ideológica é levada em
consideração: quando tratam da Formatura, há uma parte em que se trata da formatura tradicional nos EUA e
como as garotas muçulmanas que estudam nos EUA fazem para também comemorarem suas graduações. A
abordagem do tema é interessante pois incentiva um debate cultural, religioso e ideológico. Há também uma
determinada unidade que traz pesquisas e gráficos sobre o tratamento dos os adolescentes norte americanos
em relação a negros, asiáticos e latinos dentro dos EUA, no livro essa discussão começa partindo da postura
de Bush em relação às cotas para grupos minoritários e abrange também ideologias racistas ou afirmativas.
As atividades do livro apresentam estereótipos culturais/raciais/ de gênero? Quais? (Caso a
resposta seja SIM, e haja uma quantidade muito grande de estereótipos vale a pena ponderar a adoção
do material.)
A ocorrência de estereótipos é quase nula. Os autores delimitaram uma unidade (livro 1 unidade 3)
para tratar dos estereótipos, principalmente em se tratando dos falantes de inglês oriundos de países do círculo
interno. Mas a discussão não se estende a outros estereótipos (países dos demais círculos). No mesmo livro a
unidade 2 trata do estereotipo do brasileiro, talvez o aluno seja encorajado a discutir os estereótipos da cultura
brasileira e de países como Inglaterra e EUA.
Existem atividades que fazem menção à cultura do aluno? De que forma?
Há textos que tratam de pontos turísticos do Brasil, mas a cultura brasileira é uma unidade a parte no
livro 1. Em alguns casos o livro faz menção ao cinema e a música brasileira. Na maioria dos casos não há
predominância de determinada cultura nem mesmo a do aluno a qual o livro se destina. Por exemplo, no tema
Nutrição, os hábitos alimentares que foram destaque foram de países asiáticos, africanos e da América central.
Mas, muitos dos hábitos apresentados na obra são mais característicos de pessoas de classe média e alta:
cinema, moda, ir a shoppings, usar cartão de credito, ter mesada, participar formatura com baile, fazer dieta,
sofrer de anorexia ou bulimia entre outros.
As atividades levam o aluno a refletir sobre semelhanças e diferenças entre as culturas de
forma não avaliativa? De que forma?
Como citado na resposta 2, a questão da formatura das muçulmanas nos EUA é um exemplo de
14
consideração das diferenças culturais. É possível que os estudantes exprimam julgamentos de certo ou errado
sobre as restrições do islamismo em relação às mulheres, mas o texto não incentiva essa postura. Na unidade
que trata de Hip Hop por exemplo é bastante ilustrativa pois não considera os adeptos do Hip Hop como um
grupo marginalizado ou restrito a negros. Outra coisa interessante é o texto sobre cortes de cabelos, nessa
atividade vários tipos de corte de cabelo são apresentados não de forma comparativa ou avaliativa (ou
característica de determinado grupo social), mas simplesmente como formas de estilizar o cabelo. Ou seja, o
livro trata com normalidade as diferenças e semelhanças culturais
As atividades ajudam o aluno a desenvolver tolerância e empatia em relação ao outro? De que
forma?
Sim, ainda que precise de uma diversificação maior em termos de representações culturais, o livro
mostra tipos humanos variados em diversas situações e utiliza alguns textos sobre costumes de grupos
específicos. O livro procura não estereotipar o negro ou o indiano. Ou seja, o médico que aparece no texto pode
ser negro, branco ou asiático, assim como o empregado doméstico, o adolescente apaixonado ou a criança da
propaganda. Logo a tolerância é incentivada, principalmente, com uso de imagens nos quais os personagens
não são estereótipos tradicionais.
Existem atividades que permitem ao aluno fazer observações etnográficas? De que forma?
Sim. Há textos com gráficos sobre a situação de negros, asiáticos e latinos nos EUA, há textos que
tratam da cultura e estereotipo de pessoas do Brasil, EUA e Inglaterra entre outros. Há textos que tratam de
muçulmanos americanos. Há diversas situações que podem ser exploradas para observações etnográficas. O
livro não possui atividades especificas para tal.
VARIEDADES DE LÍNGUA INGLESA
No componente de áudio/video, falantes de países onde a língua inglesa não é a língua
materna estão representados? Quantos?
A grande maioria dos personagens dos textos orais que compõem o áudio ou são brasileiros ou são
norte-americanos.
É possível identificar os falantes pelo sotaque? Como?
Pelo sotaque não. Dá para perceber que há brasileiros falando inglês pela pronúncia bastante
característica de palavras portuguesas.
Existem textos que discutem o uso da língua inglesa no mundo? Quantos?
Não
As atividades de pronúncia permitem ao aluno utilizar sua variedade de inglês? Como?
Não há menção ao uso de variedades de inglês. As atividades de escuta geralmente exigem do
estudante a atenção para completar textos com lacunas. Como não há atividades focadas em pronúncia, a
questão da variação do inglês não é aventada na obra.
Existe um modelo de falante nativo subliminar? (eg., existe uma seção para a prática de
pronúncia exibindo um modelo do falante americano/inglês).
Não há exercícios específicos de pronúncia. Mas, está evidente que o livro adota a variedade
predominante nos Estados Unidos, o chamado General American.
As atividades de pronuncia e audição encorajam o aluno a valorizar a sua maneira de falar a
língua de forma inteligível? Como?
Nas atividades de escuta, como dito anteriormente, há a predominância do General American, e os
próprios brasileiros que atuam nos textos orais possuem uma pronúncia idêntica à americana. Não há, pelo
menos de forma evidente, o encorajamento ao uso inteligível do inglês independente de sotaque.
15
1. ANEXO A
Checklist para análise do livro-texto
ORIENTAÇÃO: Para que os aspectos interculturais presentes no livro-texto sejam
considerados relevantes, é necessário que pelo menos um terço do material apresentado em
formato de textos para leitura ou audição faça referência a outras culturas e a outras formas de
ver. As atividades de discussão devem levar o aluno não somente a comparar culturas, mas
também refletir sobre as semelhanças e diferenças. Para as variedades de língua inglesa é
necessário que pelo menos a metade dos falantes apresentados seja membro de outros grupos
culturais onde a língua inglesa é falada, mas não como língua nativa.
Para cada resposta SIM respondida abaixo, o professor deverá levar em consideração
o número de vezes que o item aparece no livro-texto.
ASPECTOS INTERCULTURAIS
1. As atividades do livro refletem as características culturais de vários
grupos sociais? Quais?
2. As perspectivas políticas, religiosas, e ideológicas de outros grupos
sociais são levadas em consideração? Quais?
3. As atividades do livro apresentam estereótipos culturais/raciais/ de
gênero? Quais? (Caso a resposta seja SIM, e haja uma quantidade muito
grande de estereótipos vale a pena ponderar a adoção do material.)
4. Existem atividades que fazem menção à cultura do aluno? De que
forma?
5. As atividades levam o aluno a refletir sobre semelhanças e
diferenças entre as culturas de forma não avaliativa? De que forma?
6. As atividades ajudam o aluno a desenvolver tolerância e empatia
em relação ao outro? De que forma?
7. Existem atividades que permitem ao aluno fazer observações
etnográficas? De que forma?
VARIEDADES DE LÍNGUA INGLESA
1. No componente de áudio/video, falantes de países onde a língua
inglesa não é a língua materna estão representados? Quantos?
2. É possível identificar os falantes pelo sotaque? Como?
3. Existem textos que discutem o uso da língua inglesa no mundo?
Quantos?
4. As atividades de pronúncia permitem ao aluno utilizar sua
variedade de inglês? Como?
5. Existe um modelo de falante nativo subliminar? (eg., existe uma
seção para a prática de pronúncia exibindo um modelo do falante
americano/inglês).
6. As atividades de pronuncia e audição encorajam o aluno a valorizar
a sua maneira de falar a língua de forma inteligível? Como?
RESUMO
Este artigo tem como objetivo analisar o comportamento linguístico de locutores de rádio AM
e FM da região da grande Porto Alegre e da região noroeste quanto aos empregos
pronominais “tu” vs. “você” e “nós” vs. “a gente”. O corpus é formado por gravações de
programas de entrevistas e programas musicais de 5 emissoras da capital e 5 emissoras da
região noroeste do estado. O enfoque teórico e metodológico baseou-se nos princípios da
teoria da variação linguística (LABOV, 1972, 2008). Os resultados encontrados confirmam
estudos anteriores realizados por Vandresen (2000), Abreu (1987) e Loregian (1996), quanto
à predominância do emprego do pronome “tu” na região de Porto Alegre. Por outro lado, os
locutores da região noroeste do estado do Rio Grande do Sul não apresentam na mesma
proporção esse comportamento quanto ao uso pronominal que se constata nas emissoras de
Porto Alegre.
ABSTRACT
This article aims to analyze the linguistic behavior of speakers of AM and FM radio stations
in the Porto Alegre and the northwestern region do to the use of pronoun "tu" vs. "voce"and
"nós" vs. "a gente " The corpus consists of recordings of talk shows and music programs from
five capital’s radio stations and five radio stations from the Northwest region. The theoretical
and methodological approach was based on the principles of the theory of linguistic variation
(LABOV, 1972, 2008). The results confirm previous studies (VANDRESEN, 2000),
(ABREU, 1987) and (LOREGIAN, 1996), regarding the predominance of the use of the
pronoun "tu" in the Porto Alegre region. However, the speakers in the northwest region of the
Rio Grande do Sul state do not present this behavior in the same proportion as far as the
pronouns use that has been observed at radio stations in Porto Alegre.
Keywords:
Language. Radio talkers. Language variation. Radio station.
1 INTRODUÇÃO
O objetivo desse estudo é descrever os tipos de variação pronominais constatados na
linguagem radiofônica a partir de um corpus de gravações de programas musicais e
entrevistas, colhido em emissoras AM e FM da grande Porto Alegre e da região noroeste do
1
Doutor em Linguística e professor da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM/Cesnors; e-mail:
eliasmengarda@yahoo.com.br.
2
Graduada em Comunicação Social – Jornalismo pela UFSM/Cesnors; e-mail: leti.sangaletti@hotmail.com.
2
Rio Grande do Sul, à luz da metodologia variacionista proposta por Labov (1972) e Tarallo
(1990, 2001).
Procurou-se identificar o tipo de uso pronominal usado pelos locutores de rádio, uma
vez que as pesquisas sociolinguísticas identificam que no Sul do Brasil, precisamente em
Porto Alegre, há a predominância do uso de segunda pessoa, ou seja, o pronome “tu”,
enquanto nas demais capitais do país, a tendência é o uso do pronome “você”. A partir de um
conjunto de narrativas radiofônicas (entrevistas) com informantes variados é possível verificar
uma tendência ou predominância de um determinado uso linguístico e que tipo de mudança
linguística pode estar em curso.
Os estudos na perspectiva variacionista assumem que a variação é inerente ao
sistema linguístico. Ou seja, as línguas são heterogêneas (MOLLICA e BRAGA, 2007), e essa
heterogeneidade pode ser explicada a partir das várias normas, tais como o uso de toda uma
região - normas regionais, - do uso de diferentes classes socioeconômicas – normas sociais -,
dos usos em família – normas familiares -, dos usos típicos de certas profissões – normas
profissionais -, dos usos das gerações – normas etárias (AZEREDO, 2008, p. 61).
Alguns estudos relacionados ao emprego pronominal na região sul tornaram-se
referência na literatura linguística. Destacamos o trabalho realizado por Vandresen (2000), em
que demonstra a sobrevivência do pronome “tu” sujeito, com ou sem concordância. Também
o estudo de Abreu (1987) indica que no Paraná é categórico o uso do pronome “você”, mas
com a sobrevivência do possessivo “teu”, “tua” e do clítico “te” associado a você, ao passo
que “seu” ou “sua” ocorre, principalmente, combinado com o tratamento “senhor(a)”. No
mesmo estudo, o autor menciona que em Florianópolis, há um sistema básico de três níveis de
formalidade – “tu” informal, íntimo, solidário, “você” mais formal e “senhor(a)” formal e
respeitoso. Em Curitiba não ocorre o uso de “tu”, mas além do pronome “você” (informal) e
senhor(a) (formal) ocorre uma forma intermediária, sem o uso de pronome de tratamento
(pronome zero), quando o emissor fica em dúvida entre tratamento formal e informal.
Loregian (1996) também confirmou estudos anteriores como os de Abreu (1987) em
que não se constata o uso do pronome “tu” em Curitiba. No entanto, os dados de sua pesquisa
revelaram elevado uso do pronome “tu” em Porto Alegre e Florianópolis, em que 18 e 11
informantes, respectivamente, usaram somente “tu” ao longo de toda a entrevista e os demais
usaram “tu” alternativamente com “você” e “senhor(a)”. Isso significa que o pronome “tu”
ocorreu em todos os 24 informantes destas duas cidades.
O que nos interessa nesse trabalho, especificamente, é verificar se os locutores de
rádio, conscientes de que estão num contexto de comunicação em que o uso linguístico é mais
3
controlado do que os falantes que estão em ambientes informais, por isso, menos controlados,
produzem esse tipo de variação pronominal em que o pronome “tu” predomina, conforme
indicam as pesquisas realizadas com falantes de Porto Alegre. Além disso, nos interessa
analisar e comparar a locução dos locutores de emissoras da grande Porto Alegre com os
locutores de rádio da região noroeste do estado do Rio Grande do Sul, quanto a outros usos
pronominais tais como o emprego dos pronomes “nós” e “a gente”. Estabelecemos como
hipótese que os locutores de rádio, independente do tipo de programa que estejam fazendo
(programa esportivo ou de música, entrevista em estúdio, entrevista externa, jornal falado,
etc.), se aproximem do uso mais padronizado da língua oral, considerando que atuam num
contexto de comunicação que requer, segundo Vanoye (2007), um comportamento linguístico
mais cuidado, ou mais formal da expressão oral.
Diante dessas circunstâncias, deve-se considerar as características ou a natureza do
programa radiofônico, isto é, a que segmento social ou para que tipo de público está sendo
dirigido, haja vista que existe uma variedade bastante grande de programas radiofônicos,
podendo ser popular, como os programas musicais ou de debates, entrevistas, reportagens,
além da participação de radio-ouvintes ao vivo, o que naturalmente, implica em que o locutor
saiba estabelecer uma relação de afinidade com os ouvintes.
Como pode-se observar, as variáveis que interferem na expressão oral são múltiplas
em se tratando de um contexto de comunicação radiofônica, pois, existem programas que são
mais interativos envolvendo o âncora (apresentador) e os diversos repórteres que participam
num dado programa levando ao ar notícias diversas que pode ser ao vivo ou editadas. Nesse
caso, trechos considerados comprometidos quanto a algum tipo de falha tais como má
audição, sobreposição de vozes, pausas demasiadas, etc., podem ser cortados pelo diretor do
programa. Também podemos ter dois ou três locutores debatendo determinado tema que,
dependendo da sua idade, escolaridade e procedência afeta o seu processo comunicativo.
Martinez-Costa e Unzueta (2005) chamam a atenção para a questão dos gêneros em
que a redação de uma notícia, a elaboração de uma crônica, uma entrevista ou um comentário
radiofônico são sistemas formais para apresentar a narração dos conteúdos no rádio. Por isso,
o profissional do rádio deve conhecer os fins, limitações e possibilidades criativas para o
eficaz emprego dos diversos gêneros radiofônicos.
O modo de lidar com os diferentes gêneros radiofônicos (notícia, reportagem, nota,
boletim, comentário, crônica, etc.) determina ou define um tipo de comportamento
comunicativo do locutor em seu programa, passando a dar um caráter particular à presença da
emissora em que atua.
4
Eu canto
Você canta (em alguns dialetos: tu cantas; em outros: tu canta
Ele canta
A gente canta (nós cantamos, ou nós canta)
Vocês cantam
Eles cantam
É certo que haverá programas em que os locutores serão mais formais, dando a
impressão de que estão lendo o texto, como ocorre, por exemplo, durante a locução de um
noticioso. Mas, há também diversos tipos de programas, como os musicais ou os debates em
que predominam a naturalidade e a espontaneidade dos locutores, gerando, assim, uma
relação de maior proximidade com os interlocutores.
Para Gomes (2002) a linguagem radiofônica obedece a critérios como a concisão,
exatidão, objetividade e a simplicidade. Esta deve ser bem articulada e agradável aos
ouvidos. Estes critérios exigem o uso adequado da língua para que se alcancem os objetivos
pretendidos a fim de poder comunicar-se de forma adequada com os ouvintes.
Os estudiosos do rádio, quando referem-se à linguagem, destacam que o radiouvinte
ao contar apenas com audição, significa que o som deverá suprir a falta de imagem. Isto
demanda o uso de uma língua(gem) bem articulada, timbre de voz adequado e capacidade de
expressividade oral fluente para que o ouvinte “veja” através das palavras. Por isso, os
profissionais do rádio precisam aprimorar essa capacidade de comunicação continuamente.
O papel do locutor é fundamental para o sucesso de determinada programação
radiofônica. O locutor deve cultivar sua voz e saber transmitir as mensagens com clareza, tom
de voz adequado e articular bem as palavras. Do ponto de vista dos conteúdos é fundamental
saber ambientar, descrever, narrar e expressar sensações e emoções que estimulam a
imaginação do ouvinte para que ele possa recriar as imagens mentais.
Por isso é importante conhecer a própria voz em termos físicos e acústicos. O locutor
deve saber combinar a velocidade de emissão de voz e administrar as pausas de modo correto
para que o ritmo possa ter variações contínuas em função do significado e o sentido das
mensagens. Muitas vezes a palavra radiofônica precisa ser improvisada. A arte e a técnica da
improvisação sustentam-se em três regras essenciais: não falar sobre temas que não se
conhecem, não fugir do tema e sentir-se à vontade diante do microfone.
Foi pensando nessa dinamicidade que o rádio é capaz de provocar entre locutor e
interlocutor que optamos pela narrativa radiofônica como dado concreto e real para estudar a
língua e os processos de variação. Os programas musicais intercalados com entrevistas e a
participação interativa dos ouvintes em que interagem dois ou três locutores oportunizam a
obtenção de rico material linguístico, proporcionando, desse modo, a possibilidade de
verificar quais são as situações linguísticas que podem apresentar a tendência inovadora.
Também é possível detectar em que medida o centro e a periferia ou interior se identificam ou
contrastam em nível de usos linguageiros.
9
4 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
A questão pronominal no Rio Grande do Sul apresenta características que a
diferencia da maior parte do país, pelo fato de ter como marca principal, o emprego do
pronome pessoal “tu”, enquanto em outros estados observa-se a predominância do emprego
do pronome “você”.
Para estudar o fenômeno da variação linguística, uma das estratégias de coleta de
dados é o uso da entrevista. Tarallo (2001) explica que o uso da técnica da entrevista é uma
situação interativa em que o falante se expressa naturalmente, permitindo ao pesquisador
verificar os usos linguísticos que deseja examinar. No caso da nossa pesquisa, as gravações
das narrativas radiofônicas constituem-se em excelente meio para verificar os usos
linguísticos e as tendências de variação.
Para implementar essa pesquisa foram realizadas dez gravações de programas
radiofônicos da região metropolitana e da região noroeste do Estado do Rio Grande do Sul.
O corpus constitui-se de dez programas:
- Programa “Gaúcha Entrevista” da Rádio Gaúcha AM de Porto Alegre, gravado em
07 de janeiro de 2009. O programa tem 44 minutos e 30 segundos.
- Programa “Tribuna Popular” da Rádio Província FM de Tenente Portela, gravado
em 07 de fevereiro de 2009. O programa tem 1 hora e 30 minutos.
- Programa “Vinil Rock Café” da Rádio Luz e Alegria FM de Frederico Westphalen,
gravado em 07 de fevereiro de 2009. O programa tem 3 horas e 30 minutos.
- Programa “Rádio Reporter” da Rádio Luz e Alegria AM de Frederico Westphalen,
gravado em 13 de fevereiro de 2009. O programa tem duração de 45 minutos.
- Programa “Pretinho Básico” da Rádio Atlântida FM, gravado em 14 de outubro de
2008 em Porto Alegre. O programa tem duração de 1 hora.
- Programa “Sala de Redação” da Rádio Gaúcha FM, gravado em 02 de janeiro de
2009, em Porto Alegre. O programa tem 50 minutos de duração.
- Programa “Manhã Máxima” da Rádio Querência AM, de Santo Augusto, gravado
em 17 de fevereiro de 2009. O programa tem a duração de, aproximadamamente 3 horas e
meia.
- Programa “Frequência Livre” produzido pelos alunos do 4º semestre de Jornalismo
da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM, campus de Frederico Westphalen, na
disciplina de Laboratório de RadioJornalismo III, veiculado em 18 de março de 2009 pela
Rádio Comunitária de Frederico Westphalen com 30 minutos de duração.
10
Ocorrências 58 22 3 5
Ocorrências 71 25 2 6
Ocorrências 21 4 3 2
Ocorrências 5 9 31 39
Ocorrências 1 22 62 21
Ocorrências 7 46 3 25
Ocorrências 1 1 54 32
Ocorrências 2 79 59 31
Ocorrências 6 10 7 8
Ocorrências 3 9 - 1
Tabela 11 - Quadro geral dos usos pronominais “tu” vs. “você/s” e “nós” e “a gente”.
Os dados revelam que não se constata nos locutores do interior a mesma frequência
de uso do pronome “Tu” com apenas 7,0% como ocorre nas emissoras da grande Porto Alegre
que registrou 93%. Os locutores das emissoras da região noroeste enfatizam o uso do
pronome “você” com 68% e o emprego do pronome “tu” com apenas 7,0%. Também é
interessante observar a frequência significativa do uso do pronome “a gente” nas emissoras
do noroeste com 64% em relação às emissoras da grande Porto Alegre com 36%. Os locutores
da região noroeste demonstram um uso pronominal equilibrado entre “nós” 77,0% e “a gente”
64%. Já os locutores da grande Porto Alegre usam bem menos os pronomes “nós” com 23% e
“a gente” com 36%.
Destacamos que o maior número de ocorrências do pronome “tu” deu-se no
programa “O Pretinho Básico”, da Rádio Atlândida FM com 71 ocorrências do pronome “tu”,
totalizando 74% e 25 ocorrências do pronome “você” com 26%. Trata-se de um programa de
entretenimento, apresentado por cinco comunicadores: Alexandre Fetter, que é o comunicador
responsável; Carlos Eugênio Nunes, o Cagê; Maurício Amaral; Marcos Piangers e Porã. Além
de “estrelas móveis”, que são amigos que participam do programa, neste caso, a “estrela
móvel” é o escritor David Coimbra.
A linguagem utilizada pelos locutores é bem variada e espontânea. Há leituras de e-
mails, piadas e comentários sobre os fatos que são notícia no Brasil e no mundo. Como o
15
programa é direcionado a um público mais jovem, verifica-se o uso de gírias e até de palavras
consideradas impróprias, como palavrões ou relacionadas ao sexo.
Em um programa de uma hora, há 70 menções do pronome “tu”, enquanto há apenas
7 menções do pronome “você”, embora 5 delas tenham sido em leituras de e-mail de ouvintes
e 2 em que o comunicador apresenta as empresas que patrocianam o programa. Houve, 9
menções do pronome “vocês”.
6 CONCLUSÃO
Não temos conhecimento de pesquisas que tenham analisado o comportamento
linguístico de comunicadores de rádio, da região metropolitana de Porto Alegre ou de
qualquer outra região do Rio Grande do Sul. As motivações iniciais em analisar a expressão
oral de comunicadores de rádio, a partir das narrativas radiofônicas tem como objetivo
verificar se, de algum modo, os empregos pronominais na região sul apresentam as mesmas
características já detectadas em pesquisas sociolinguísticas publicadas desde a década de
noventa. Nessas pesquisas, constata-se a predominãncia do uso pronomianl “tu” em Porto
Alegre, enquando nas outras capitais brasileiras há a predominância do emprego do pronome
“você”.
A realização de uma pesquisa dessa natureza mostrou que as narrativas radiofônicas
podem constituir-se em excelente material para verificar as tendências de mudança que
afetam a língua. A formação do corpus tornou-se possível pela facilidade em acessar as rádios
de qualquer região do país pela internet. Portanto, a escolha de apenas dez emissoras de
pontos tão distantes do estado do Rio Grande do Sul deve-se em parte, pelo tempo bastante
limitado para o desenvolvimento desse projeto, ou seja, um período de 12 meses. Por isso, era
necessário limitar o corpus pocurando obedecer a alguns critérios em termos de similaridade
dos programas e do público-alvo.
Em nossa pesquisa, o corpus é formado por programas musicais em que interagem
no mínimo dois locutores com a participação de ouvintes e programas de entrevistas. Trata-se
17
de programas em que a naturalidade dos locutores é fundamental para poder verificar em que
medida as variantes linguísticas, no nossos caso, os usos pronominais “tu” e “você”, “nos” e
“a gente” são gerados durante o processo interacional.
Uma primeira constatação mostra que os comunicadores de rádio da grande Porto
Alegre revelam a predominância de uso pronominal “tu”, o que confirma pesquisas anteriores,
como as realizadas por Vandresen (2000), Abreu (1987) e Loregian (1996). Note-se que essa
pesquisa, especificamente é apenas com comunicadores de rádio. Esses dados confirmam o
que as pesquisas realizadas por linguistas já mencionados nesse estudo, têm revelado sobre os
usos pronominais, nesse caso, o pronome “tu”.
Por outro lado, os comunicadores de rádio da região noroeste do estado do Rio
Grande do Sul revelam a predominância pelo emprego do pronome “você/s”. Esse dado é
interessante porque os estudos sociolinguísticos já mencionados, mostram a tendência do uso
do pronome “você” nas capitais brasileiras, mas não sabemos exatamente se isso é uma
tendência em todo o território nacional. Temos as capitais como referência para o uso
predominante do pronome “você”, mas no momento em que analisamos a série de narrativas
dos comunicadores da região noroeste do estado do Rio Grande do Sul, não constatamos a
mesma preodminância que se observa nos comunicadores da grande Porto Alegre que usam
predominantemente o pronome “tu”. Ao contrário, os dados do nosso inventário mostram o
emprego do pronome “você”, confome ilustram as diversas tebelas examinadas na discussão
dos resultados.
Portanto, diante disso, surge o desafio de ampliar a pesquisa com comunicadores de
rádio envolvendo outras regiões do estado sulino. Desse maneira, pode-se detectar se a
tendência de uso pronominal está de fato alterando o tradicional paradigma verbal, como já é
proposto por diversas pesquisas que analisam os fenômenos de variação da língua ao longo do
tempo.
7 REFERÊNCIAS
_____. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: Edições Loyola, 2006.
KATO, M. The distribution of pronouns and null elements in object position in Brazilian
Portuguese. In: W. Ashby et al. (Eds.) Linguistic Perspective on the Romance Languages.
Amsterdan: John Benjamin, 1993. p. 225-236.
RESUMO
Esta pesquisa descreve a performance no domínio do sistema alfabético por parte de alunos
alfabetizados com base nos pressupostos de Emilia Ferreiro. Assim, delineou-se a pesquisa a
partir das seguintes questões-problema: Como se caracteriza a apropriação dos princípios do
sistema alfabético do português do Brasil em se tratando de alunos alfabetizados com base
nos postulados de Emília Ferreiro? No contexto em que esses alunos foram alfabetizados, em
que medida tais postulados foram ressignificados por parte de alfabetizadores? Tomaram-se,
por isso, como base para o aporte teórico as descrições do sistema alfabético do português do
Brasil, referenciando teorizações de Scliar-Cabral (2003a, 2003b); quanto à alfabetização, o
enfoque se deu com base nas teorizações de Emilia Ferreiro (2007 [1984]), Morais (1996) e
Gontijo (2002). A geração de dados contemplou entrevistas com alfabetizadoras e gestores de
duas instituições particulares de Florianópolis, que se autodenominam construtivistas, e
também a realização de testes por meio dos quais foi possível analisar como os 24 alunos do
segundo ano, do Ensino Fundamental, mostravam-se quanto ao domínio do código alfabético.
Teve enfoque qualitativo no que concerne à descrição das concepções da escola e ao trabalho
das alfabetizadoras; e quantitativo, em se tratando dos testes de decodificação e codificação
aplicados aos alunos do segundo ano. Constatou-se, a partir da análise dos dados gerados, que
as escolas participantes de pesquisa ressignificaram suas práticas de ensino tidas como
construtivistas e que os alunos da amostra não apresentam problemas no que diz respeito ao
domínio do sistema alfabético do português do Brasil.
Palavras-chave:
Sistema Alfabético. Alfabetização. Emilia Ferreiro.
ABSTRACT
This study describes the performance of students who were literate based on Emilia Ferreiro's
studies in relation to the domain of the alphabetic system. Thus, the research was outlined
regarding the following research questions: How can the appropriation of the principles of the
Brazilian Portuguese alphabetic system be characterized considering students who were
literate based on the Emilia Ferreiro's ideas? Regarding the context in which these students
were literate, to what extent such theories were resignified by the literacy teachers? To answer
these questions, the descriptions of the Brazilian Portuguese alphabetic system were
considered as a base to the theoretical framework, referring to Scliar-Cabral's theories (2003a,
2003b). For the aspects related to literacy, the focus was based on Emilia Ferreiro's theories
(2007 [1984]), as well as on Morais's (1996) and Gontijo's studies (2002). The data included
interviews with the teachers and the supervisors of two private schools in Florianópolis, who
claims to follow constructivism theories, and also the application of tests by means of which it
was possible to analyze the performance of 24 students in the second year of the elementary
school in relation to the alphabetical code understanding. The study made use of qualitative
approach in relation to the description of the school conceptions and the work of the literacy
1
Mestranda em Linguística do PPGLg/UFSC, na área de concentração de Linguística Aplicada, na linha de
pesquisa: Ensino e aprendizagem da língua materna, e pesquisadora com bolsa de produtividade do CNPq; e-
mail: marialuizarosab@yahoo.com.br ou mluiza2312@hotmail.com.
2
teachers. Also, quantitative approach concerning the decoding and encoding tests applied to
the second year students. Through the data analysis, it was evidenced that the schools which
participated in the research indeed resignified their teaching practices considered as
constructivist and that the students who participated in this sample do not present problems
regarding the domain of the alphabetic system of the Brazilian Portuguese.
Keywords:
Alphabetical System. Literacy. Emilia Ferreiro.
1 INTRODUÇÃO
Este artigo tem como objeto de estudo a apropriação do sistema alfabético do
português do Brasil no que diz respeito ao domínio dos princípios desse sistema por parte de
alunos alfabetizados com base em postulados de Emília Ferreiro. A problematização decorreu
da inferência de que parece haver hoje uma tendência de conceber a aplicação dos postulados
de Emília Ferreiro à alfabetização como causa de problemas relacionados ao a(na)lfabetismo
em escolas brasileiras. Assim, em classes que se autodenominaram ou ainda se
autodenominam construtivistas, crianças chegariam a séries mais avançadas do Ensino
Fundamental com problemas de codificação e decodificação e apresentariam dificuldade em
assimilar que a escrita é uma tentativa de representação, muitas vezes arbitrária, da fala, não
tendo pleno domínio das representações grafêmico-fonêmicas e vice-versa; domínio este que
deveria ser consolidado nos anos iniciais de escolarização básica. Sob essa perspectiva, tais
alunos, em decorrência da aplicação dos postulados de Ferreiro, teriam problemas em relação
à apropriação do sistema alfabético do português do Brasil.
Com base nessa inferência – que advém de percepção empírica e exige estudos
científicos que a legitimem ou não – e defendendo a essencialidade do domínio do código
para o uso social da escrita e da leitura, formulamos as seguintes questões-problema: Como se
caracterizam a apropriação dos princípios do sistema alfabético do português do Brasil em se
tratando de alunos alfabetizados com base nos postulados de Emília Ferreiro? No contexto
em que esses alunos foram alfabetizados, em que medida tais postulados foram
ressignificados por parte de alfabetizadores?
Assim, procuramos identificar, por meio desta pesquisa, se alunos alfabetizados com
base nos postulados de Emília Ferreiro revelam, no período de alfabetização, problemas na
apropriação do sistema alfabético, apresentando lacunas no que diz respeito ao domínio das
relações grafêmico-fonêmicas e fonêmico-grafêmicas que devem ser internalizadas no
processo de alfabetização; o estudo objetivou, por consequência, descrever a performance no
domínio do sistema alfabético por parte desses alunos. Procedemos, ainda, como
3
que elas [as crianças] conseguem fazer por si mesmas”, e a zona de desenvolvimento
proximal (ZDP2) que é determinada “[...] através da solução de problemas sob a orientação de
um adulto ou em colaboração de companheiros mais capazes” (VIGOTSKI, 2003 [1984],
p.111-12). Em outras palavras, o processo de apropriação do conhecimento é, com efeito,
mediado pelo outro na interação social. Enfatizamos, ainda, que
[...] o domínio de tal sistema complexo de signos [linguagem escrita] não pode ser
alcançado de maneira puramente mecânica e externa; ao invés disso, esse domínio é
o culminar, na criança, de um longo processo de desenvolvimento de funções
comportamentais complexas. A única forma de nos aproximar de uma solução
correta para a psicologia da escrita é através da compreensão de toda a história do
desenvolvimento de signos na criança (VIGOTSKI, 2003 [1984], p.140).
Ponto relevante no pensamento desse estudioso russo é que ele concebe a construção
do conhecimento como um processo que se efetiva na interação, num percurso
interpsicológico para intrapsicológico: “[...] no nível social, e, depois, no nível individual;
primeiro, entre pessoas (interpsicológica), e, depois, no interior da criança (intrapsicológica).
Isso se aplica igualmente para a atenção voluntária, para a memória lógica e para a formação
de conceitos. Todas as funções superiores originam-se das relações reais entre indivíduos
humanos” (VIGOTSKI, 2003 [1984], p.75). Importa salientarmos que, sob essa perspectiva,
tanto o contexto sócio-histórico quanto o cultural têm papel preponderante no processo de
aprendizagem da linguagem escrita, uma vez que ela ocorre quando a criança estabelece uma
relação de interação com outras pessoas. Ainda que o pensamento de Vigotski e o de Luria
estejam situados na primeira metade do século XX, o impacto dessas reflexões na educação
brasileira, na década de 1990, foi bastante significativo e se estende até hoje, estando visível
na ancoragem teórica sobre a qual se estruturam as propostas pedagógicas das redes públicas.
No que respeita à alfabetização, o legado desses autores relaciona-se com a preocupação em
empreender um processo de ensino que tenha os usos sociais da linguagem como base.
(2) [...] vem buscando uma apropriação de maior significado para o aluno. Então isso, há algum
tempo atrás, há alguns anos, era bastante comum se respeitar as diferentes fases de
desenvolvimento da criança na apropriação dos conteúdos de escrita e de leitura. À medida que o
tempo foi passando [...] passou-se a entender que também é papel do professor fazer com que esse
9
aluno avance além daquilo que, num determinado momento, ele consegue fazer sozinho. Então,
foge um pouco daqueles pressupostos iniciais que a gente desenvolvia, que era muito pautado na
teoria de Piaget, na qual, para cada faixa etária, determinadas competências e habilidades;
conforme os alunos amadureciam, essas habilidades e competências iam sendo modificadas quase
que naturalmente. Outro ponto é levar em conta a individualidade de cada aluno. Ao mesmo
tempo em que um aluno de determinada faixa etária tem possibilidade de um certo tipo de
aprendizagem, outro já não tem e vice-versa. São vários fatores que acabam interferindo nesse
processo todo. (Coordenadora do Ensino Fundamental I da EA1, entrevista concedida em agosto
de 2009).
(3) É a questão do que é que vem primeiro; nós não discutimos isso. Nós simplesmente
trabalhamos de uma forma tal para que o sujeito possa se apropriar; e, na medida em que ele se
aproprie daquele conhecimento, ele possa se desenvolver e crescer. (Coordenadora do Ensino
Fundamental II da EA1, entrevista concedida em agosto de 2009).
(4) Qual é a grande questão? Que eles entendam o que é um texto, manipular com esse texto – e
que possam fazer uso dessa escrita nas diferentes situações, que ela passe a ser espontânea –
intencionalmente. Essa é a grande questão: o espontâneo da escrita é utilizá-la para fins diversos,
sem que tenha alguém que faça a solicitação de que um aluno escreva, que o aluno passe a
incorporar a escrita à sua rotina. É espontânea nesse sentido: que ela seja uma ferramenta que
ele vai utilizando a todo momento. (Coordenadora do Ensino Fundamental I da EA1, entrevista
concedida em agosto de 2009).
Notamos, no discurso dessas gestoras, que há uma preocupação por parte da EA1 em
sempre buscar embasamentos teóricos que fundamentem sua prática e que promovam uma
melhoria significativa no ensino oferecido por esta instituição, mesmo que isso represente a
adoção de posturas vindas de linhas teóricas diferentes. Essa escola procurou, como sugerem
essas e outras falas das coordenadoras, ressignificar os postulados de Ferreiro à luz de outras
10
(5) Aqui, na escola, o primeiro passo foi ressignificar o papel de professor e o de aluno, como se
dão essas relações. Não, nem é o professor que o é centro do conhecimento, nem é o aluno. É na
relação entre eles que se coloca a possibilidade de novos conhecimentos e com mais significado,
ou de conhecimentos onde cada um teu o seu lugar. Há uma hierarquia sim. [...] O professor tem
que ser, contudo, uma autoridade para sujeitos ativos. Então, esse lugar também passou a ter
outro valor; o professor começou a ter que trabalhar isso com ele mesmo: “ah, é verdade eu
tenho aqui uma importância”. Então, o que é importante é a minha mediação, além da minha
pessoa. Na mediação que eu faço, eu sou o interlocutor dessas mediações todas; eu sou junto com
essas pessoas que comigo aqui estão – no caso, os alunos. (Coordenadora Geral da EA2,
entrevista concedida em setembro de 2009).
(6) Quando os alunos chegam no começo do ano, tem as mais variadas hipóteses de alfabetização.
Tem alunos num processo bem inicial, que ainda estão num processo pré-silábico, silábico; outros
já chegam alfabéticos, com fluência. Então, eu agrupo as crianças de acordo com o nível de cada
um, para estar podendo fazer cada um se desenvolver dentro do seu nível, trabalhando sempre
com o contexto e, a partir disso, ir particularizando: trabalhando com frases, com palavras, com
letras, de acordo com o desenvolvimento de cada um. [...] Às vezes [...] agrupo alunos que já têm
um conhecimento maior com aqueles que estão no começo para haver a troca, um ensinar o
outro; enfim, para ter o questionamento e, para aquele que saber mais, poder estar respondendo
para o que sabe menos. São dessas duas formas que eu trabalho: agrupando por iguais e por
11
diferentes também, para haver a troca. (AM – Alfabetizadora da EA1, entrevista concedida em
agosto de 2009).
(8) No próprio construtivismo; os meus estudos, por exemplo, e aqui da escola, a gente busca
suporte em Piaget, no sociointeracionismo de Vigotski, na Emilia Ferreiro. [...] a construção que
ela fez é muito importante; eu acho que o estudo que ela fez dá uma orientação bastante
importante no sentido de entender como as crianças caminham nessa construção. E outras
leituras complementares também de autores afins, ou construtivistas, ou mais interacionistas, mas
são pessoas que escrevem dentro dessa área. (LA – Alfabetizadora da EA2, entrevista concedida
em setembro de 2009).
Em (9) a preocupação com o domínio do código alfabético nos parece claramente
presente.
(9) Partindo do pressuposto de que a gente começa a sistematização no segundo ano, que a gente
começa a ensinar as crianças a escreverem de acordo com a norma convencional.[...]. Ela exige
muito esforço da própria criança. A leitura e a escrita, ou seja, o processo de alfabetização exige
muito esforço da criança. Então, assim, precisa ter um gosto. Muito embora eles resistam e a
gente precise de um tempo maior para estar organizando esse aprendizado, a criança precisa
gostar. (LA – Alfabetizadora da EA2, entrevista concedida em setembro de 2009).
(10) [...] na alfabetização, o cuidado é que todos possam estar crescendo dentro da sala de aula e
meu objetivo é que lá na metade do ano que os alunos já possam estar numa hipótese alfabética,
se comunicando com a escrita, mas sem a preocupação de corrigir erros ortográficos. O que
importa é a fluência, a construção das ideias, a criatividade e de estar podendo colocar tudo isso
no papel – cada vez mais estruturando para eles [...]. Assim, trabalho pelo contexto; a partir de
um texto que a gente esteja trabalhando, do qual retiro frases e questiono: o conceito de frase, o
que é uma palavra, o que são as letras. Então, de que forma a gente junta as letras para estar
construindo aquela palavra. Tem o alfabeto na sala. Eles têm aquelas letras móveis – que a gente
chama – que eles vão montando as palavras quando é necessário. É construção em cima do
pensamento deles. [...]. (AM – Alfabetizadora da EA1, entrevista concedida em agosto de 2009).
(11) [...] fazendo um recorte, a produção que a gente trabalha mais de forma coletiva no início,
em duplas ou trios, para que tenha mais sentido/significado, que outro possa complementar a
minha ideia; a própria escrita não pode deixar de abordada. E, dentro dela, questões referentes à
língua, como se escreve um texto, para que se escreve um texto; as regras.[...] Com relação às
relações fonêmico-grafêmicas ou grafêmico-fonêmicas e ao próprio sistema alfabético, trabalho
de forma bastante variada no sentido de que a leitura e o texto... é levantando assim...hoje, por
exemplo, eu fiz uma atividade que é assim: a gente estava trabalhando questões de ortografia, o
uso do r e do rr; então, fizemos algumas atividades que envolviam o uso dessas duas letras. [...]
Daí, eles foram dizendo: ah, o “r”, encontramos no começo de palavra. Daí, a gente foi listando
assim: palavras que tinham “r” no começo, palavras que tinham o “r” ou “rr” no meio; qual era
a diferença, para que eles conseguissem entender que como o som...esse fonema tinha a ver com a
posição do “r” na palavra. Isso já é um chão para que, das próximas vezes em que eles forem
escrever “rosa” ou palavras com um ou dois erres, como carro ou caro, eles já têm um suporte
para pensar onde é que esse erre está, né? (LA – Alfabetizadora da EA2, entrevista concedida em
setembro de 2009).
(12) Acho que é fundamental o papel do professor, pois tem que estar sempre atento ao que cada
aluno está produzindo, o que já dá para pontuar num aluno e o que ainda não dá. Então, por
exemplo, na sala em que eu tenho os alunos alfabéticos, que já começam a questionar: „ah, mas
cachorro é com “x” ou com “ch”? É com um erre ou dois erres?‟. Então, para esses alunos, acho
que é fundamental que eu enquanto professora estar dando subsídios para ele avançar nesse
processo de escrita já com a preocupação ortográfica. Já, para quem está no processo inicial, daí
leio a palavra junto e pergunto o que está faltando; olhe, essa palavra tem seis letras, mas você
colocou só quatro. Então, vamos ver o que está faltando. O professor é o mediador, tem que estar
sempre possibilitando o avanço para as crianças. Chegou ali, então vamos mais adiante: agora,
13
vamos fazer mais isso, mais aquilo. Tem que instigar sempre para não deixar estacionado. Já
pensou se tenho um alfabético e deixo de lado, chega no final do ano e muda pouco, né! Tem que
ter intervenção direta do professor. (AM – Alfabetizadora da EA1, entrevista concedida em agosto
de 2009).
Os pares enfocados nos vocábulos do texto lido, no teste de decodificação, para aferir
a performance nas correspondências grafêmico-fonêmicas por parte dos alunos das duas
escolas são os seguintes: 1.//, 2.//; 3.//, 4.//; 5.//, 6.//; 7.//, 8.//; 9.//, 10.//;
11.//, 12.//; 13.//, 14.//; 15.//, 16.//; 17.//, 18.//; 19.//, 20.//; 21.//; 22.//;
23.//, 24.//. Tais pares permitiram que observássemos a destreza com que as crianças
alfabetizandas lidam com a conversão de grafemas em fonemas. O foco não foi, portanto, a
construção de sentidos do texto, mas a decodificação. Além disso, por meio do teste aplicado,
foi possível analisarmos o domínio do sistema alfabético por parte dessas crianças, levando
em conta sua condição de alfabetizandos. Vale lembrarmos que o texto escolhido para o teste
de decodificação foi a fábula “A formiga e a pomba”. Tratava-se, portanto, de um texto
inédito ao qual as crianças ainda não tinham tido acesso. Não houve momento de leitura
silenciosa, ou seja, a criança recebia o texto e, imediatamente, iniciava a leitura oral. De modo
geral, o percentual de acertos foi de 100%.
15
Observação: Os pares enfocados são os seguintes: 1.//, 2.//; 3.//, 4.//; 5.//, 6.//; 7.//, 8.//;
9.//, 10.//; 11.//, 12.//; 13.//, 14.//; 15.//, 16.//; 17.//, 18.//; 19.//, 20.//; 21.//;
22.//; 23.//, 24.//.
Houve, contudo, casos em que computamos 92% de acertos: na escola EA1, esse
percentual ocorreu nos itens 6, 7, 9, 11, 12, 17, 19, 22 e 23; na escola EA2, as ocorrências
foram nos itens 7, 12, 17, 22 e 23. Tais ocorrências se devem à não leitura do item enfocado,
ou seja, a queda do desempenho não ocorreu pelo fato de o aluno não conseguir converter o
grafema em fonema, mas sim por, em um momento de desatenção, perder-se no trecho em
que estava e continuar de um ponto em diante. Veja-se Gráfico 1.
De todo modo, podemos afirmar que os participantes são proficientes em
decodificação. Apresentam, portanto, um bom domínio do código, pois lhes foram dados
subsídios no sentido de conhecerem e de dominarem os “[...] princípios que sustentam o
sistema de leitura e de escrita da língua portuguesa do Brasil” (SCLIAR-CABRAL, 2003b,
p.34), no que respeita ao domínio do código alfabético.
no 7; 92, no 8, 14 e 20; 33%, no 11; e, nos demais, 100%, como pode ser observado no
Gráfico 2.
Vale clarificarmos, aqui, que, na grafia de „queicho‟ em vez de „queixo‟, embora
tenhamos tratado como erro em razão de haver uma questão ortográfica implicada, temos um
contexto em que o valor de conversão do fonema ao grafema é não previsível por ocorrer em
posição intervocálica, com postula Scliar-Cabral (2003a, 2003b), uma vez que ambos os
grafemas podem representar o fonema // dependendo do contexto fonético. Assim, se essa
implicação ortográfica não tivesse sido levada em conta no momento de análise, o resultado
final seria o cômputo de 100% de acerto. Podemos dizer que, embora haja a troca ortográfica,
os participantes parecem ter internalizado que o “ch” é uma das possíveis representações
grafêmicas do fonema //. Salientamos, ainda, que essas relações dependentes de contexto, na
escrita, são mais complexas, especialmente para os alfabetizandos.
Observação: Os pares enfocados são os seguintes: 1.pala, 2.bala / 3.fio, 4.viu / 5.data, 6.dada / 7.caça,
8.casa / 9.cola, 10.gota / 11.queixo, 12.queijo / 13.ralo, 14.raro / 15.domo, 16.dono / 17.molha,
18.mola / 19.minha, 20.milha / 21.caro, 22.carro / 23.pinho, 24.pino.
No item 7, a palavra ditada foi „caça‟, mas alguns alunos grafaram „cassa‟. Nesse
caso, é preciso levar em conta que, em caça/cassa, homônimos na língua, temos a
possibilidade de o fonema // ser representado pelos grafemas “ç” ou “ss". Trata-se, pois, de
uma ocorrência em contexto competitivo, segundo Scliar-Cabral (2003a, 2003b), em que o
17
fonema //, quando ocorre em início de sílaba interna entre vogal ou semivogal, pode ser
representado, antes de vogal [+post], pelos grafemas “ss”, “ç” ou “sç”. Aqui há, novamente,
outra questão ortográfica implicada. Houve, ainda, casos em que, por hipercorreção, os alunos
usaram o grafema “rr" no lugar do grafema “r”, ou seja, ocorreu uma troca de grafemas. É
necessário observarmos que a ocorrência de hipercorreção em „rraro‟ demonstra que a criança
não está sabendo relacionar o grafema ao fonema neste contexto. Em „góla‟, temos o uso do
diacrítico que não é grafema, o que sugere hipercorreção e nos permite inferir a preocupação
da criança em grafar corretamente a palavra.
No caso da ocorrência de „quejo‟, é possível que a criança tenha repetido para si
mesma o vocábulo „queijo‟ que foi ditado e escreveu da forma como, na verdade, pronuncia a
palavra na oralidade. Isso não dá, portanto, para ser considerado um erro porque, neste caso,
há a omissão de um grafema se ela disser „queijo‟, mas, se ela articular „quejo‟, não temos
implicada a omissão, uma vez que a maioria dos falantes tende a monotongar essa palavra, o
que se constitui um caso de variável sociolinguística. Outro aspecto a considerarmos como
questão ortográfica é a grafia „vio‟ em vez de „viu‟, que também é de natureza ortográfica,
especialmente porque o grafema final, no PB, é diferente, mas o fonema é o mesmo – mais
uma vez a possibilidade de hipercorreção. Constatamos que se evidencia, portanto, o que foi
comentado, nas entrevistas, pelas alfabetizadoras: as crianças já dominam o código, mas ainda
apresentam alguns problemas ortográficos, esperados nessa fase da escolarização.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os participantes da pesquisa tiveram um desempenho plenamente satisfatório nos
testes de apropriação do código alfabético no que respeita à decodificação e à codificação.
Entendemos que, no caso específico das classes participantes desta pesquisa, a boa
performance nos testes parece ser fruto – entre outros fatores – de um processo que concilia
elaboração didática a partir das ideias de Emília Ferreiro, com ressignificação em outras
vertentes teóricas – sobretudo as concepções vigotskianas (2003 [1984]) e as teorizações
sobre o sistema alfabético (SCLIAR-CABRAL, 2003a). Percebemos, nessas classes, a
ressignificação do construtivismo por parte das escolas à luz das teorias mencionadas. As
concepções de Ferreiro revelam-se, todavia, presentes nesses espaços, principalmente na
preocupação com os estágios implicacionais de desenvolvimento da escrita, na concepção de
erro como parte do processo de aprendizagem, e na focalização da perspectiva piagetiana do
aprender a aprender.
18
3
Os conceitos de práticas e eventos de letramento não foram especificados neste estudo, mas reconhecemos que
o tratamento desses temas é cuidadosamente discutido na literatura da área.
4
Clare Wood e colaboradores, da Coventry University (UK), têm realizado estudos que investigam a relação
entre tecnologia e aprendizagem da leitura e da escrita. Vale conferir, por exemplo, o seguinte artigo: WOOD,
Clare; PLESTER, Bev; BOWYER, Samantha. Liter8 Lrnrs: Is Txting Valuable or Vandalism? British Academy
Review, issue 14, p. 52-54, November 2009.
19
8 REFERÊNCIAS
PATTON, Michael Quinn. Qualitative evaluation and research methods. 3. ed. London:
Sage Publications, 2002.
RESUMO
Nesta comunicação se apresentarão idéias de especialistas que defendem o que vem sendo
chamado de abordagem lexical, buscando oferecer alternativas possíveis para a aprendizagem
de léxico por parte dos aprendizes de línguas estrangeiras, especialmente de língua inglesa.
Investigam-se propostas recentes a fim de considerar a viabilidade de sua aplicação no ensino.
Os defensores da abordagem lexical tais como Lewis (1993), Hill (2000), Coady e Huckin
(1997), entre outros, vêem no ensino do léxico a saída para levar os alunos ao aprendizado da
língua inglesa de um modo mais centrado em sua ocorrência diária. Segundo a literatura
consultada, a aprendizagem de vocabulário é fundamental para que se chegue efetivamente a
aprender uma língua, uma vez que é através da expansão do vocabulário que o aprendiz
consegue ultrapassar o nível de proficiência intermediária, avançando para a competência
almejada.
Palavras-chave:
Vocabulário. Abordagem lexical. Ensino e aprendizagem.
ABSTRACT
In this paper it will be presented ideas of specialists who defend what has been called lexical
approach trying to present possible alternatives for the lexical learning of the foreign language
students, mainly of English language. Recent proposals are investigated in order to appreciate
if its application is viable for the teaching. The lexical approach advocators, experts such as
Lewis (1993), Hill (2000), Coady and Huckin (1997), and others, see on the teaching of Lexis
the solution to take the students to the learning of English language in a more focused way in
its daily occurrence. According to the reviewed literature, the vocabulary learning is
fundamental for one to effectively come to learn one language, for it is through its expansion
that the learner is able to overcome the intermediate plateau proficiency advancing towards
the aimed competence.
Keywords:
Vocabulary. Lexical approach. Learning and teaching.
1
Estudante de Doutorado do Programa de pós-graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federal de
Santa Catarina.
2
Professora da Universidade Federal de Santa Catarina / Programa de Pós-graduação em Linguística / Programa
de Pós-graduação em Estudos da Tradução / Bolsista de Produtividade do CNPq.
2
1 INTRODUÇAO
A importância deste tema deve-se, em primeiro lugar, à relevância dada ao
vocabulário por todos os que se interessam pelos processos de ensino e aprendizagem de
línguas estrangeiras e, em segundo lugar, à necessidade de apresentar alternativas para os
novos desafios de ensiná-las de modo a torná-la mais coerente com as necessidades práticas
dos aprendizes. É indiscutível a importância do inglês em todo o mundo assim como sua
relevância no mundo acadêmico e de negócios requerendo pessoas preparadas para as
relações em todos os setores que o inglês se faça necessário.
Neste trabalho apresentamos idéias de alguns especialistas da área, tentando oferecer
alternativas mais coerentes para aprendizes que serão usuários da língua, acreditando que o
ensino de vocabulário tem sido, de certa forma, negligenciado na prática docente levada a
cabo ao longo de muitos anos. Investigamos propostas recentes no sentido de conhecer
melhor o que está sendo desenvolvido considerando sua viabilidade para o ensino.
O domínio do léxico da língua é uma das necessidades inquestionáveis do campo de
ensino de línguas. Esse domínio pode garantir uma parcela de sucesso nessa aprendizagem.
Entre as línguas estrangeiras dominar o inglês é um dos requisitos básicos para quem quer se
aventurar na busca de emprego entre outras questões. Contudo, o nível de inglês requisitado
não é aquele que os aprendizes normalmente têm ou aprendem nos bancos escolares.
O número de pesquisas recentes sobre o vocabulário demonstra o grande interesse dos
especialistas sobre o tema. O progresso alcançado se deve aos avanços tecnológicos que põem
a lingüística de corpus como ferramenta indispensável para o estudo da lingüística aplicada.
Suas implicações no ensino de vocabulário da língua inglesa são notáveis.
A abordagem lexical surge como uma proposta inovadora no sentido de aproximar o
aprendiz da competência do falante nativo3. Seus defensores, especialistas como Lewis
(1993), Hill (2000), Coady & Huckin (1997) entre outros, vêem no ensino do léxico a saída
para levar os alunos à aprendizagem da língua inglesa de forma mais centrada em sua
verdadeira utilidade para as necessidades reais de comunicação.
Um desafio é como preparar os professores para ministrar aulas a partir de um enfoque
lexical. O conhecimento do vocabulário básico é determinante para o êxito do aprendiz. Por
3
Neste trabalho entendido como o falante que tem o inglês como sua língua materna ou adquirida. Em alguns
momentos do texto estaremos alternando com a expressão, falante da língua materna ou L1.
3
isso, Coady (1997) afirma que exigir do aprendiz capacidade de compreensão e competência,
quando ele ainda não tem domínio do vocabulário é um paradoxo. A aprendizagem do
vocabulário básico é fundamental para o domínio da língua; é por meio da expansão do
vocabulário que o aprendiz avança do nível de proficiência intermediária para um nível de
competência que lhe permite, realmente, comunicar-se.
O aprimoramento da competência colocacional, ou seja, habilidade de usar as palavras
em combinações corretas e autênticas, a exposição continuada do aprendiz a construções
naturais da língua-alvo, parecem sinalizar positivamente para a absorção e utilização mais
autêntica da língua.
concluindo que todos dão pouca atenção ao vocabulário. Somente as propostas mais recentes
entenderam o papel do vocabulário, tal como nos trabalhos de autores como Nattinger e
DeCarrico (1992) e Lewis (1993; 2000).
Embora o vocabulário tenha sido negligenciado por bastante tempo, nos últimos anos
ele tem se beneficiado com os avanços nos estudos lingüísticos sobre o léxico, das pesquisas
psicolingüísticas sobre o léxico mental, das tendências comunicativistas do ensino de línguas,
que trouxeram o aprendiz para o foco. O que talvez esteja faltando é ter um conhecimento
melhor estruturado sobre o que acontece quando se enfatiza o vocabulário. (Carter e Mc
Carthy, 1988 apud Coady, 1997, p.273).
Coady (1997) lembra ainda que há uma tendência de o professor ensinar da mesma
maneira como foi ensinado. De fato, a atitude do professor em relação ao ensino do
vocabulário é o resultado de suas próprias experiências de aprendizagem, de seus hábitos de
ler ou memorizar palavras, de sua forma de comunicar seus conhecimentos.
Hunt e Beglar (2003) apresentam uma proposta de ensino de vocabulário que
combina três abordagens de aprendizagem e instrução modificadas a partir de Coady (1997),
Hulstijn, Hollander e Greidanus (1996). São elas a aprendizagem acidental, instrução explícita
e desenvolvimento da independência do aprendiz. Há diferenças entre a aprendizagem
acidental e a aprendizagem intencional.
A aprendizagem acidental de vocabulário requer que o professor propicie
oportunidades de leitura e compreensão oral extensiva. A instrução explícita envolve a
necessidade de diagnóstico das palavras que os aprendizes precisam saber, com a
apresentação dessas palavras pela primeira vez e a elaboração desse conhecimento. E o
desenvolvimento da independência do aprendiz envolve a utilização desse vocabulário em
contexto e o treinamento no uso de dicionários. Durão (2010, pg. 26) ressalta a
instrumentalidade histórica dos dicionários, pois “cada vez mais, vêm se destacando seu
emprego como ferramenta de aprendizagem lingüística.”
Hunt e Beglar (op. cit.) explicam que apesar desses procedimentos serem importantes
para a aprendizagem do vocabulário, o nível de proficiência do aprendiz e a situação de
aprendizagem devem ser considerados para determinar o tipo de aprendizagem adequada em
cada momento do processo. Aprendizes iniciantes ou intermediários serão mais beneficiados
se receberem instrução explícita. Aprendizes de nível avançado podem expandir seus
conhecimentos através da leitura e compreensão oral extensiva. O uso do dicionário deve ser
feito desde cedo, pois seus benefícios são imediatos.
5
estocadas nos léxicos mentais. A linguagem se constitui de blocos (chunks) significativos que
quando combinados, produzem textos coerentes e contínuos. Devido à recorrência dessas
combinações, poucas sentenças usadas pelo “falante nativo” são inteiramente novas.
A abordagem lexical surge com base na Lingüística de Corpus, que teve na tecnologia
do computador seu maior aliado. Ao se fazer o estudo comparativo de frases em textos de
todos os tipos descobriu-se que era possível deslocar palavras que mais freqüentemente
ocorriam com outras chamadas palavras-chave e, portanto que tais combinações eram
previsíveis e passíveis de serem ensinadas aos alunos com suas co-ocorrências. A tarefa mais
importante dos aprendizes da língua nessa abordagem é adquirir um vocabulário que os
possibilite avançar de um nível de fluência intermediária (ou platô intermediário) no qual
segundo Lewis (2000), é onde fica a maioria dos alunos, para o avançado.
No nível avançado estão as chamadas colocações que são palavras que mais
freqüentemente ocorrem juntas com as palavras-chave, formando blocos de palavras que
habitualmente se combinam. Não sabendo combinar o vocabulário que possuem, os alunos
acabam por usar a língua em combinações estranhas diferentes das usadas por falantes
nativos. No próximo tópico, apresentaremos o conceito do léxico mental mais
detalhadamente.
- conhecer/saber uma palavra envolve saber sua gramática - as estruturas nas quais é usada
regularmente.
Levando-se em conta o tamanho do léxico mental necessário para que um falante de
nível intermediário possa se comunicar satisfatoriamente deve-se aumentar grandemente a
quantidade de informações oferecidas nos cursos de línguas. Hill (2000) chama atenção para o
imenso número de colocações contidas nos textos e a necessidade de ensiná-las para que os
aprendizes se tornem colecionadores independentes dessas colocações. O léxico mental abriga
as chamadas unidades lexicais que serão detalhadas a seguir.
3.2.1 Colocação
Por meio do conhecimento das colocações habituais de uma expressão percebe-se a
fluência ou não do aprendiz em uma L2/LE. Lewis (1997, p.8) conceitua a colocação como “o
9
fenômeno prontamente observável, onde certas palavras aparecem juntas em textos naturais
com freqüência maior do que simplesmente o acaso”.
Woolard (2000, p.28) destaca que uma das definições para colocação seria a de
“palavras que estatisticamente são mais propensas a aparecer juntas do que ao acaso”, mas
o próprio autor considera esta definição um tanto vaga e abstrata para guiar o aluno a termos
específicos do texto de uma maneira clara e direta. Ele então tenta redefinir o termo
chamando de colocação “aquelas co-ocorrências de palavras, combinações que seus alunos
não iriam fazer por si só, em uma produção de texto”.
Hill (2000) argumenta sobre a existência de um grande número de colocações,
conhecidas e armazenadas por um falante de L1 instruído. Blocos de frases podem ser
encontrados com combinações previsíveis, ou seja, com probabilidade de ocorrer com aquelas
mesmas palavras como “encourage to think, a central feature, for the first X years of my
career, a moment`s thought, has come to play a more and more central part in my thinking,
huge impact, etc”. Segundo o referido autor, apesar do termo “colocação” ser desconhecido
para a maioria de alunos e alguns professores, o problema dos erros de colocação é tão antigo
quanto o próprio aprendizado da língua. Para atingir uma competência comunicativa avançada
os aprendizes precisam ser levados à competência colocacional. A falta dessa competência
leva o aluno a erros gramaticais de muitos tipos. O aprendiz geralmente constrói frases mais
longas por não saber como dizer o que ele quer. Na verdade será improdutivo corrigir os erros
gramaticais se o que lhe falta é a colocação correta. Hill (op. cit.) exemplifica esse problema
dizendo que o aluno poderia inventar a frase “His disability will continue until he dies” por
não saber a colocação correta “He has a permanent disability”. A falta de competência
colocacional pode levar o aluno a combinações estranhas em seus textos, usando verbos fora
de contexto, ou seja, com sentidos diferentes do habitual. Por não saber as colocações mais
importantes de uma palavra-chave, que é central para o que ele está escrevendo, o aluno
apesar de ter boas idéias, pode não conseguir se expressar adequadamente. A abordagem
lexical dá atenção especial às colocações. Lewis (1997a, p.204) diz que “ao invés de
palavras, nós conscientemente tentamos pensar em colocações e apresentá-las em
expressões. Ao invés de tentar dividir as palavras em segmentos menores, há um esforço
consciente de vê-las maiores, de uma forma mais holística.”
A colocação está se tornando rapidamente uma unidade de descrição já estabelecida
nos cursos e materiais de ensino de línguas. Woolard (2000) recomenda, unindo-se ao
10
3.2.2 Palavras
Aprender vocabulário é o pré-requisito mais importante para o aprendizado de
qualquer língua estrangeira. Entender o significado das palavras é básico para a compreensão,
pois as palavras têm significados múltiplos e requerem um contexto para definição. Dechant
(1982, apud Zakaluk, 1982) chama atenção para algumas palavras como, por exemplo, “run”
que tem 109 significados distintos ou a palavra “take”, que tem 76 e a palavra “round”, que
tem 83. Uma palavra considerada fora de seu contexto permite muitas interpretações.
Pesquisas feitas por Goulden, Nation e Read (1990, apud Arnaud e Savignon ,1997)
estimam em cerca de 17.000 famílias de palavras (sua forma base e suas formas derivadas
juntas) o vocabulário médio de um estudante universitário que tem o inglês como L1. Nation
(1990, apud Arnaud e Savignon, 1997) diz que um vocabulário passivo de 2000 das palavras
mais freqüentes cobrirá 87% das palavras presentes em um texto médio. Para o referido autor,
essas 2000 palavras mais freqüentes devem ser ensinadas intensivamente enquanto que as
palavras menos freqüentes não valem o esforço de ensiná-las, pois o tempo de aula é limitado.
11
O que deve ser feito é equipar o aprendiz com estratégias para saber lidar com tais palavras
quando encontradas no texto.
Honeyfield (1977, apud Arnaud e Savignon, 1997) afirma que parece pouco provável
que possamos detectar quais palavras podem ser deixadas de ser ensinadas. O problema
apontado por Nation (op.cit.) é que palavras menos freqüentes, costumam carregar um peso
de informação alto e, portanto causam um grande obstáculo à compreensão de textos, quando
são desconhecidas. Arnaud e Savignon (1997) discordam de Nation (1990). Eles afirmam que
“o conhecimento de palavras raras (ou menos freqüentes) é um alvo valioso, pois capacita o
leitor de L2 a acessar os significados das elocuções sem muito esforço e imediatamente sem
ter que devotar tanta energia a inferência lexical.” (p. 159)
Nation e Coady (1988) evidenciam o fato de a proficiência lexical estar ligada ao
desempenho na leitura. Pesquisas mostram que 3000 famílias de palavras (correspondendo à
aproximadamente 4.800 palavras) são o limiar para a habilidade de leitura. Estudos
comprovam que é necessária a aquisição de doses maciças de vocabulário pelos aprendizes
indo para além das 2000 ou 3000 palavras (Laufer, 1997).
De acordo com Arnaud e Savignon (1997), não se pode esperar que os aprendizes
avançados alcancem um vocabulário igual ao do falante de L1, enquanto que o professor de
línguas, que deve perseguir a competência profissional deve tentar aproximar-se da
competência dos falantes de L1. No desenvolvimento do conhecimento de vocabulário há
evidências fortes de que esse conhecimento está ligado diretamente às habilidades de leitura.
Segundo Grabe e Stoller (2001) os alunos precisam reconhecer um grande número de palavras
automaticamente se eles querem ser leitores fluentes. Reconhecer uma palavra rapidamente é
o resultado do hábito de ler extensivamente e aprender novas palavras. É necessário também
que o aluno seja exposto a novas palavras através da instrução explícita, reconhecendo seu
próprio jeito de aprender e tornando-se um colecionador de palavras novas.
Grabe e Stoller (2001) dão a seguinte categorização no sentido de auxiliar o
professor na seleção de palavras a serem trabalhadas:
1. Palavras que são críticas para compreender o texto e úteis em outros ambientes.
2. Palavras que são necessárias para compreender o texto, mas não particularmente úteis em
outros contextos.
3. Palavras que não são necessárias para compreender o texto, nem particularmente úteis em
outros contextos.
12
4 MATERIAIS DE REFERÊNCIA
4.1 O uso de materiais de referência - o dicionário.
O uso de materiais impressos é parte natural do processo de ensino de línguas. Durão
(2010, p.26) explica que “dentre os objetivos que os dicionários podem cumprir, hoje, cada
vez mais, vêm se destacando seu emprego como ferramenta de aprendizagem lingüística [...]
e acrescentaríamos principalmente os dicionários em seu formato tecnológico dos dias atuais.
A autora explica que
No século XX, após serem fomentados tipos diferenciados de dicionários que
refletem os desenvolvimentos técnicos e científicos das sociedades modernas, a
lexicografia e, conseqüentemente, os dicionários passaram a ser elaborados à luz dos
avanços da Lingüística moderna e da tecnologia, produzindo-se, também, em CD-
rom, em DVD e em versões on-line. (DURÃO, 2010, pg. 25)
13
“I find that the use of computer concordances of key verbs, in addition to improving their
knowledge of subject and object noun collocates, seems to improve their „feel‟ for the
15
finely-differentiated senses of a verb, and hence the range of nouns with which it can co-
occur. ...The great virtue of concordances is that they provide learners with the opportunity
to see lots of examples in day-to-day target language exposure – and to derive from this not
only an awareness of frequent collocates but also the kind of lexical word with which it has
potential to combine.
Essa visão vem reforçar a idéia de Lewis (2000, p.199) de que perceber os exemplos
no contexto sem prática formal ajuda a transformar a informação em conhecimento adquirido.
O autor enumera os seguintes benefícios para a utilização de concordanciadores:
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
No entanto, a exigência para a utilização de uma abordagem como essa é, a nosso
ver, desafiadora, uma vez que, exige do professor uma competência lexical, semelhante à do
“falante nativo”.
É bem verdade que a abordagem lexical emerge como uma proposta promissora, uma
vez que, pretende levar os aprendizes da LE a se comunicarem com a mesma eficiência e
16
6 REFERÊNCIAS
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teacher. In M. Celce-Murcia (Ed.), Teaching English as a Second or Foreign Language.
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SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo
RESUMO
Palavras-chave:
Teoria da Relevância. Teoria da Polidez. Impolidez.
ABSTRACT
1
Programa de Pós-Graduação em Letras – Estudos Linguísticos. Departamento de Letras. Universidade Federal
do Paraná. Curitiba. Paraná. Brasil; e-mail: ju.camila@hotmail.com
2
Programa de Pós-Graduação em Letras – Estudos Linguísticos. Bolsa CAPES REUNI. Departamento de
Letras. Universidade Federal do Paraná. Curitiba. Paraná. Brasil; e-mail: aristeumj@gmail.com.
3
Programa de Pós-Graduação em Letras – Estudos Linguísticos. Bolsa CAPES REUNI. Departamento de
Letras. Universidade Federal do Paraná. Curitiba. Paraná. Brasil; e-mail: mfbenfatti@yahoo.com.br.
2
proposing that interpretation processes share the formal properties of human cognition and the
functional properties of socialization practices as well. The analysis will proceed through the
presentation of some negatively received advertisements - pieces that elicited bad responses
from the audience - arguing that the audience perception of (im)politeness is both a question
of cognitive contextual effects and of historical/social development of behavioral strategies
for the communicative interaction. In such a view, the advertisement could be considered as a
gamble, taking risks of being offensive according to different relevance expectations from
both sides of interaction.
Keywords:
Relevance Theory. Politeness Theory. Impoliteness.
1 INTRODUÇÃO
A linguagem é o mecanismo mais instigante para troca de informações entre os seres
humanos, e é inegável o fato dela possibilitar desde a transmissão de fatos corriqueiros até a
manutenção da bagagem cultural de um povo. Neste sentido, encontramos na Pragmática um
caminho para compreender como as características cognitivas e interações sociais agem sobre
processos comunicativos. Embora tais abordagens pareçam inicialmente incompatíveis e
divergentes, nossa pesquisa parece apontar que ambas priorizam uma intuição interativa em
relação à racionalidade.
Acreditamos na sinergia das duas abordagens para enriquecer a análise já que, no
estudo da Pragmática, atribuímos importância fundamental ao contexto, intenções e
propósitos específicos de falante e ouvinte na construção da interação comunicativa:
A pragmática que vemos, pelo menos em Levinson e naqueles por ele resenhados,
estuda, antes, as apostas de interpretação que desenham uma intenção do falante que
se coloca no e pelo próprio ato de fala (na comunicação). A pragmática estuda a
atribuição de intencionalidades (e as apostas do falante de que o intérprete vai fazer
tal e qual atribuição), e os raciocínios que o falante acredita que seu interlocutor é
capaz de realizar, dada uma ancoragem numa aposta fundamental (seja ela o
princípio de cooperação ou o princípio de caridade). (PIRES DE OLIVEIRA e
BASSO, 2007, p. 25)
Neste trabalho, pretendemos mostrar que há um possível diálogo entre tais teorias,
pois, segundo Godoi (2008) a comunicação acontece graças, por um lado, a um código
compartilhado e, por outro lado, a certos princípios racionais moldados socioculturalmente.
Utilizaremos o discurso publicitário, devido ao fato dos artifícios linguísticos e imagéticos
possuírem uma função específica de informatividade.
4 RELATANDO TEORIAS
Tanto a TR quanto a TP surgem a partir dos estudos de Grice (1975) em “Logic and
Conversation”, que tinha como preocupação central encontrar uma forma de descrever e
explicar os efeitos de sentido que vão além do que é dito. Grice retoma a formulação kantiana
e sistematiza o seu “Princípio de Cooperação” através das máximas e implicaturas. Porém, TR
e TP seguem por caminhos que, até pouco tempo, achava-se não haver condições de ambas
trabalharem juntas; mas, há sim possibilidade de diálogo entre elas.
6
A TR pode ser vista como uma tentativa de desenvolver, de forma mais detalhada, a
máxima de relação de Grice, a qual assume que o proferido tem de ser relevante para o
ouvinte. Diante disto, Sperber e Wilson declaram que a cognição humana é guiada pela
relevância, ou seja, nossa compreensão é direcionada para informações que nos parecem
relevantes.
O modelo de Sperber e Wilson propõe a existência de duas propriedades da
comunicação humana: uma baseada no estimulo ostensivo, por parte do falante, que tem por
finalidade realizar sua comunicação de forma a torná-la relevante para que o ouvinte inicie
seu processo de interpretação; outra parte do comportamento inferencial do ouvinte, criando
uma relação de proporcionalidade entre os efeitos contextuais e o esforço de processamento
mental. Desta forma, segundo Sperber e Wilson (1995, p. 122), “an assumption is relevant in
a context if and only if has some contextual effect in that context”.
Por meio da TP, podemos observar que cada cultura faz uso de estratégias
linguísticas de maneira diferente, e nem sempre é eficaz como previsto no Princípio de
Cooperação de Grice. Por essa razão, Brown e Levinson – complementando o Principio de
Cooperação e ampliando o modelo de face de Goffman (1967), que se refere à imagem
pública que cada indivíduo tem de, e quer para si –desenvolvem sua teoria tendo como base o
desejo de ser apreciado pelos demais (imagem positiva) e o desejo de não ter suas ações
impedidas (imagem negativa). É importante também citar os “atos de ameaça à face” (Face
Threatening Acts ou FTAs), que podem ameaçar a imagem pública de falante e ouvinte, indo
contra os esforços desejáveis na manutenção da imagem.
Para estes autores, o falante sempre utiliza sua racionalidade para escolher estratégias
que tornam a interação um jogo em que o falante está constantemente avaliando sua posição e
a de seu interlocutor, assim como a distancia social, poder relativo, grau de imposição, entre
outros detalhes sociais.
5 VERIFICANDO POSSIBILIDADES
Ao nos depararmos com anúncios publicitários que geraram reações adversas em
públicos específicos, percebemos que a percepção da (im)polidez é tanto uma questão de
efeitos contextuais cognitivos, como de desenvolvimento histórico-social de estratégias
comportamentais de interação comunicativa. Para elucidar esta questão, verificamos os
anúncios do Nissan Tida, do Nissan Frontier e Havaianas Avó.
7
Reinaldo Gutierrez
É bem obvio que a Nissan quer vender seu produto. E não tem nada de criativo
baixar o preço pra vender o que está encalhado, e convenhamos 3 mil R$ de
desconto é uma mixaria pra conquistar um mercado dessa categoria de automóvel.
Então o jeito é atacar o "Best In Class" da categoria, o Focus. Quem não tem
capacidade de "encantar" seu possível publico-alvo atira pra todo lado, tentando
alavancar "qualquer coisa" ou fazer "estardalhaço", mas só vão conseguir fazer mais
propaganda da Ford. Você acha que quem compra Rolex, esta preocupado com a
precisão da hora marcada? Profissionais de Marketing que não leram nem Michael
4
Anúncio pode ser visualizado pelo link – http://www.youtube.com/watch?v=V59htq7Ni2E
5
Com letras violentas, normalmente tendem a criticar a sociedade e a mostrar ao mundo a injustiça. A partir
dessa crítica, pretendem abrir os olhos para a realidade, mesmo que isso atinja diretamente o ouvinte.
8
Porter nem Philip Kotler. Não vamos falar em tecnologia e qualidade, pois ai o
Mercado reconhece que a Ford esta em primeiro lugar. Papagaios de Pirata. Então é
so pra dar risada mesmo. hahahahah!! Engenheiro da Ford. (28.02.2011)6
Danilo Souza
...brasileiro só presta atenção quando o negócio é levado na "brincadeira"...boa
sacada da Nissan!! (26.02.2011)7
Rodrigo Barreira
O Focus lindão é só 3 mil a mais que o Tiida? E ainda vai consumir menos sendo
1.6? HAHAHA! O tiro saiu pela culatra. (11.03.2011)8
Este comercial gerou tanta repercussão que, além da Ford entrar com uma ação no
Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária), a Ford abriu uma ação
criminal contra a Nissan. O presidente da Nissan, Christian Neunier, e diretores da montadora
japonesa são acusados de concorrência desleal, uso indevido da marca e ridicularização dos
funcionários da Ford.9
Os comentários adversos, a respeito desde comercial, mostram que a impolidez neste
caso está na forma de elaboração da mensagem e, o fato de nem todos admitirem como
grosseiro, os ataques diretos a imagem da Ford, nos faz pensar que a sensibilidade aos
contextos é fator determinante para esta avaliação.
6
Relato retirado de: http://exame.abril.com.br/marketing/noticias/nissan-faz-engenheiros-da-ford-cantarem-rap,
acessado em 14.10.2011
7
Relato retirado de: http://exame.abril.com.br/marketing/noticias/nissan-faz-engenheiros-da-ford-cantarem-rap,
acessado em 14.10.2011
8
Relado retirado de http://www.brainstorm9.com.br/20419/advertising/nissan-provoca-ford-com-clipe-de-rap/,
acessado em 14.10.2011.
9
Notícia divulgada em http://carplace.virgula.uol.com.br/ford-denuncia-criminalmente-a-nissan-por-comercial-
dos-rappers-repercussao-ja-e-internacional/
10
Anúncio pode ser visualizado pelo link –
http://www.youtube.com/user/nissanoficial?v=X3yGSJE53kU&feature=pyv&ad=8204950816&kw=poneis%20
malditos#p/c/5E4E125630842627/0/NhSVx47kXY0
9
segmento automobilístico saberá que é uma crítica ao modelo Ranger da Ford, visto que tal
modelo é importado da Argentina.11
Na caminhonete atolada (da concorrência), o motor é representado por um carrossel
todo colorido e gracioso, com uma música que fixa na mente enfatizando o termo “pôneis
malditos”. Ao ponto que, a Frontier passa a imagem de um carro robusto como se fosse,
realmente, um cavalo selvagem.
Com uma questão que coloca o consumidor a questionar-se, a Nissan se faz presente
na memória de todos, inclusive dos que não são potenciais compradores de caminhonetes,
pois ao criar uma comparação intrigante guiada por uma música que marcante, é notório que
todos comentam a respeito.
Partindo para a abordagem social, gerou-se uma polêmica a cerca do termo “pôneis
malditos” (típico caso de associação de significado literal da palavra). Surgiram várias
denúncias que levaram o Conar a julgar se este comercial deveria ser vetado por fazer
associação de figuras infantis – no caso, os pôneis em desenho animado – com a palavra
“malditos”.12
Porém, por unanimidade de votos o processo foi arquivado13, e o comercial tornou-se
um sucesso, prova disto é que Com todo o sucesso alcançado, a ação foi apontada pela Nissan
como uma das mais comentadas em blogs e redes sociais desde a metade do ano passado. Mas
o furor da campanha não se limitou ao branding. Quando o mês de agosto terminou, a picape
Frontier promovida pelo filme já havia batido recorde de vendas no Brasil.14
11
Informação pode ser acessada em http://carplace.virgula.uol.com.br/ford-ranger-chega-a-marca-de-450-000-
unidades-fabricadas-na-argentina/
12
Reportagem extraída de http://exame.abril.com.br/marketing/noticias/poneis-malditos-da-nissan-sera-
investigada-pelo-conar, datada de 04.08.2011.
13
Reportagem completa em http://exame.abril.com.br/marketing/noticias/poneis-malditos-escapa-de-punicao-
do-conar, datada de 29.09.2011.
14
Notícia divulgada em http://exame.abril.com.br/marketing/noticias/nissan-faz-engenheiros-da-ford-cantarem-
rap
15
Anúncio pode ser visualizado pelo link: http://www.youtube.com/watch?v=P69ik25jWsw
10
Em seguida entra Cauã Reymond. A neta o mostra para a avó, que comenta: “você
deveria arranjar um rapaz assim”. Mas a menina assume que deve ser difícil casar com
alguém que é famoso. E, para surpresa de todos, a avó enfatiza que não é para casar, é apenas
para sexo e diz que a neta que é “atrasada”.
Os termos foram considerados inapropriados e a propaganda saiu do ar, mas
continuou no site das Havaianas, isto porque, algumas pessoas se sentiram ofendidas. Ao
divulgar que o comercial continuaria na internet, a empresa sutilmente se isenta da culpa e,
numa jogada genial, chama o público que se escandalizou de ser “atrasado” por se ofender
com uma avó falando sobre esse tema polêmico.
Uma das marcas dos comerciais recentes das Havaianas é o humor, sempre atraindo
a atenção dos interlocutores por meio de situações do dia a dia envolvendo famosos. Porém,
está da “Avó”, aparentemente, foi pouco polida com as avós, mas a intenção não era ser. Os
publicitários julgaram errado a média do pensamento contemporâneo sobre sexo, neste caso,
podemos afirmar que a impolidez surgiu puramente da interação com certo tipo de público.
6 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Ao comparar a forma como os comerciais acima citados utilizam a TR e a TP, é
possível verificar que, na primeira é quando atribuem relevância ou destacam certas
características do produto. Já na segunda, quando a imagem de posse do produto elevaria
status ou poder do comprador. E, dependendo da maneira como a mensagem midiática é
transmitida, podem ocorrer falhas na interpretação “correta” do conteúdo.
No caso do Nissan Tida, a intenção do anunciante é dar relevância à diferença de
preço em relação às potências de motor. Espera-se o que o ouvinte/audiência perceba a
intenção original, a qual seria: “não devo pagar mais caro por um motor de menor potência”.
Porém, tal mensagem só faz sentido se o ouvinte supor que, tirando o preço e o motor, todo o
restante dos carros comparados são iguais. Caso esta não seja a interpretação relevante ao
ouvinte, surgirá a ideia de que o texto é apenas ofensivo, impedindo e distorcendo a
mensagem original. E isso acontece por uma ameaça à face do ouvinte e/ou concorrente.
Se observarmos o comercial da Frontier, teremos a mesma estratégia utilizada no
caso do Tida. Em que, a Nissan, supostamente, apenas que mostrar o comparativo de motores
dos carros, porém, se o ouvinte se ater a pequenos detalhes, encontrará ameaças a face da
11
concorrente. Por exemplo, na frase “te quiero” que remete à concorrente Ranger, por ser
importada da Argentina.
Tanto nas publicidades do Nissan Tida quanto do Nissan Frontier, a impolidez
encontra-se na forma como é apresentada ao público, pois ao observar o contexto cultural em
que tais comerciais estão inseridos, é inegável que há hostilidade nos comentários que fazer a
respeito dos concorrentes. Porém, ao interpretar apenas o conteúdo apresentado como
mensagem informativa, não haverá tal sensação de incivilidade.
Por ultimo, na propaganda das Havaianas, a intenção central era, por meio do humor,
divulgar que as sandálias Havaianas combinam com qualquer ambiente. Mas, a comparação
“do que é aceito ou não” efetuada por uma avó abordando o assunto “sexo”, gerou polêmica.
Pois, uma parte da sociedade acredita que a forma como o sexo foi tratado, agride a imagem
das avós de família, enquanto que a outra parte da sociedade apenas atribuiu relevância a
forma cômica.
Com isto, podemos dizer que: a (im)polidez na publicidade é determinada
socialmente e emerge da sensibilidade aos contextos.
7 REFERÊNCIAS
COOK, Ian; WARREN, Clay; PAJOT, Sarah; SCHAIRER, David; LEUCHTER, Andrew.
Regional brain activation with advertising images. In: Journal of Neuroscience,
Psychology, and Economics, Vol 4(3), Aug 2011, 147-160.
NOWIK, Ewa Karolina. Politeness of the Impolite: relevance theory, politeness and banter.
In: Relevance Studies in Poland, volume 2, eds: A. Korzeniowska, M. Grzegorzewska,
Warszawa, pp. 157-166. 2005.
12
PINKER, Steven. Como a mente funciona. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
AGENTE DE LETRAMENTO:
O PROFESSOR DE LÍNGUA MATERNA DO SÉCULO XXI
RESUMO
Palavras-chave:
Gêneros textuais/discursivos. Oralidade e escrita. Multimodalidade. Agente de letramento.
Ensino de língua materna.
ABSTRACT
This paper proposes reflections on the identity of the language teacher, as a trainer of critical
and engaged subjects, through approaches that include curriculum and teacher training,
literacy, orality and writing, multimodality and text /discursive genres. We understand that the
Portuguese teacher, formed in the traditional paradigm, could give space in the school to
another professional who would act as literacy agent more than a guardian of the mother
tongue (Baltimore, 2010). This literacy agent, paraphrasing Kleiman (2005) in opposite of a
superteacher, would be an organizer of language activities that could reveal to students the
most delightful language studying settings at school, able to coordinate work with the social
uses of writing, discussing with their students new language practices that would allow the
mobilization of new text/discursive genres, oral, written, verbal-visual, multisemiotic
discourse at school environment. However, for the emersion of this professional ethos be
possible is necessary that the matter be discussed and dealt with since the initial formation in
Letter courses of our universities.
1
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Linguística da UFSC; e-mail: leticiamuza@gmail.com.
2
Mestrando do Programa de Pós-graduação em Linguística da UFSC; e-mail: jpvprilla@hotmail.com.
2
Keywords:
Text/discursive genre. Orality and writing. Multimodality. Literacy agent. Mother tongue
teacher.
1 INTRODUÇÃO
Este trabalho propõe reflexões acerca da identidade do professor de língua e
linguagem, sua valorização como “transformador” social e “mediador” de conhecimento,
enquanto formador de sujeitos críticos e cidadãos atuantes em uma sociedade desigual.
Entendemos que o professor de português, formado no paradigma tradicional, poderia dar
espaço, na escola, para um outro profissional que pudesse atuar mais como um agente de
letramento do que como um guardião da língua materna (Baltar, 2010). Esse agente de
letramento, parafraseando Kleiman (2005), ao contrário de um superprofessor, seria um
organizador de atividades de linguagem que descortinassem aos estudantes cenários mais
aprazíveis para o estudo das linguagens na escola, capaz de coordenar trabalhos com os usos
sociais da escrita, discutir com seus alunos novas práticas de linguagem, que permitissem a
mobilização de novos gêneros textuais/discursivos, orais, escritos, verbo-visuais,
multissemióticos no ambiente discursivo escolar. Entretanto, para que seja viável a emersão
desse ethos profissional é necessário que a questão seja discutida e enfrentada desde a
formação inicial nos cursos de letras de nossas universidades e que continue e tenha eco na
formação em serviço. Queremos mostrar a relevância de investimento e políticas públicas na
formação continuada dos professores e a reflexão sobre os currículos das universidades e das
escolas que pensem na formação desse profissional e desse aluno-cidadão. Discutiremos,
dessa forma, abordagens que contemplem currículo e formação de professores, letramento,
oralidade e escrita, multimodalidade e gêneros textuais / discursivos.
2 CURRÍCULO
Inicialmente, paira a pergunta: que currículo é esse que constitue uma forma
mecânica e autoritária de pensar sobre como organizar um programa, proposto pelos
“gestores” e que demonstra falta de confiança na capacidade dos professores, alunos e
comunidade? Os centros e instituições de poder - secretarias de educação, supervisão escolar -
estabelecem o que deve ser feito em classe. Sua maneira autoritária nega o exercício da
criatividade entre professores e estudantes, comandando e manipulando, à distância, as
atividades dos educadores e dos educandos. Observamos que não há prática educativa sem
conteúdo, quer dizer sem objeto de conhecimento a ser ensinado pelo educador e apreendido,
para poder ser aprendido pelo educando. Se pensamos um currículo que valorize a cultura
3
local hibridizada com a cultura global, questionamos sobre que participação têm os
estudantes, os pais, os professores, os movimentos populares na discussão em torno da
organização dos objetos de conhecimento. Além disso, refletimos sobre que conteúdos
ensinar, a quem e a favor de que e de quem, contra o quê e quem, quem é que decide sobre
que conteúdos ensinar e, principalmente, como ensinar.
O objetivo do ensino da linguagem na escola é implementar práticas sociais de
uso da língua. No entanto, o ensino de Língua Portuguesa, marcado por mudanças
consideráveis ao longo dos anos que, segundo Geraldi (2010, p. 79), é:
universidades pensa o ideal sem questionar o real, ficando academia de um lado e escola de
outro.
Um conjunto de medidas governamentais visando à melhoria e normatização do
sistema educacional pauta o cotidiano do professor: Parâmetros Curriculares Nacionais para o
Ensino Fundamental e Médio, Programa Nacional de Avaliação Permanente do Livro
Didático, diversos testes padronizados para avaliar as capacidades de ler, escrever e de usar
conhecimentos matemáticos do aluno da escola pública, como o SAEB, e o ENEM, a
exigência de diploma universitário para poder continuar atuando na escola obedecendo à Lei
de Diretrizes e Bases no. 9394/96 afligem o já tenso e atribulado dia a dia do professor, que
encontra dificuldades para entender a linguagem dos documentos oficiais supostamente a eles
dirigidos e para implementar as propostas dos livros didáticos para ele sugeridos, enquanto
corre o risco de ser exonerado ou substituído caso não volte aos bancos escolares para dar
início à sua formação universitária.
Existe uma discrepância entre o professor/alfabetizador ideal, pressuposto nos
documentos oficiais, e o professor/alfabetizador real, que, até a pouco tempo, era formado em
cursos profissionalizantes de nível médio ou em faculdades particulares de baixo prestígio
acadêmico, com pouca infra-estrutura e sem tradição de pesquisa. A mídia, geralmente
antagônica e crítica do trabalho realizado pelos professores, incrementa os sentimentos de
impotência e frustração entre os educadores, cujas vozes estão sempre ausentes do debate que
lhes diz respeito. Dessa forma, o professor não consegue se ver como protagonista do
processo de ensino e aprendizagem pelo qual é responsável.
A formação continuada de professores é de imensa importância, pois é uma forma
de analisar tanto a escola pública quanto a privada inserida no espaço democrático e propor
uma reflexão sobre o papel do professor como intelectual transformador. Com a intenção de
criar espaços de discussão democrática, refletindo o currículo no espaço social em que está
inserida a escola, para a formação do conhecimento escolar, mediante a socialização e
reflexão sobre as práticas pedagógicas, podemos discutir propostas sobre a construção de um
currículo em rede.
Na construção do currículo, é evidente a necessidade de perceber a
contribuição dos educadores, sua formação inicial e, no exercício da prática docente, sua
formação continuada, pois, estudos de um currículo democrático e de interesse social
dependem da proposta política pedagógica da escola e o espaço social onde está inserida.
Não há como esquecer as contribuições dos professores propostas no exercício de suas
práticas.
5
Observamos que, conforme afirma Marcuschi (2008), hoje, se não podemos mais separar fala
e escrita, pelo menos não podemos mais observar tão distintamente as semelhanças e diferenças entre
fala e escrita, pois há uma nova concepção de língua e texto, um novo objeto de ensino considerando
língua e texto como um conjunto de práticas sociais.
Escrita e fala, além de modos de representação imagética, organizam quase todas as práticas
sociais convencionando-se chamá-las de práticas de letramento ou práticas discursivas, de modo que
estão diretamente relacionadas à realidade do sujeito:
3
Segundo Kleiman (2005, p. 59) A compreensão do funcionamento das modalidades oral e escrita em sociedade
como um contínuo foi primeiramente aludida no texto Integration and involvement in speakin, writing, and oral
literature, do lingüista americano Wallace Chafe, publicado em 1982, no livro Spoken and written language:
exploring orality and literacy, organizado pela sociolinguista americana Déborah Tannen.
8
Assim, é necessário dizer que, fala e escrita não possuem supremacia uma sobre a outra. Isto
quer dizer que não há propriedade negativa ou privilegiada de uma em relação à outra: oralidade e
escrita constituem-se como forma de compreensão e expressão complementares na interação humana.
É possível não só ensinar a escrever textos, como também a se expressar oralmente em
situações públicas e extra-escolares, quando se proporciona na escola múltiplas ocasiões de escrita e
de fala, sem que cada produção se transforme, necessariamente, no objeto de ensino sistemático. Isso
se torna uma realidade, ao criarmos um contexto de produção que permite aos alunos apropriarem-se
das noções, das técnicas e dos instrumentos, necessários ao desenvolvimento de expressão oral e
escrita, em situações diversas de comunicação (Portal do MEC).
Assim, tanto a oralidade quanto a escrita cumprem papéis distintos em seus diferentes
contextos de uso e são imprescindíveis na sociedade atual, podendo ser trabalhadas sistematicamente
na escola para que os alunos desenvolvam sua competência discursiva.
de alunos e de professores das classes populares nas escolas públicas trouxe para a escola
letramentos locais ou vernaculares antes desconhecidos e ainda hoje ignorados. Isso cria uma
situação de conflito entre práticas letradas valorizadas e não valorizadas na escola (Kleiman
1995, 1998).
Hamilton (2002) aponta para o fato de que muitos dos letramentos que são influentes e
valorizados na vida cotidiana das pessoas e que têm ampla circulação são também ignorados e
desvalorizados pelas instituições educacionais. Um exemplo que ilustra tal afirmação são as
redes sociais e informais que sustentam essas práticas letradas: as redes e comunidades
virtuais de que jovens e adolescentes de todas as classes sociais participam permanecem
desconhecidas e apagadas nas escolas, quando não têm seu acesso proibido, como é o caso da
proibição de acesso ao Orkut, Facebook, Twitter, MSN em muitas escolas e universidades
conectadas.
Dialogando com Rojo (2009, p. 106-107) a escola de hoje é um universo onde
convivem letramentos múltiplos e diferenciados, cotidianos e institucionais, valorizados e não
valorizados, locais e globais, vernaculares e universais, sempre em contato e em conflito,
sendo alguns rejeitados ou ignorados e apagados e outros constantemente enfatizados. Nessa
perspectiva, o que significa trabalhar a leitura e a escrita para o mundo contemporâneo? Como
delinear “políticas de letramento ao longo da vida” (Hamilton, p. 2002) que sustentem e
desenvolvam, efetivamente, os recursos, processos e metas que existem e são requeridos na
vida social contemporânea?
Um dos objetivos principais da escola do século XXI é justamente possibilitar que os
alunos possam participar das várias práticas sociais que se utilizam da leitura e escrita –
letramentos- na vida urbana, de maneira ética, crítica e democrática. Para tanto, é necessário
que a educação leve em conta os letramentos múltiplos, considerando os letramentos das
culturas locais de seus agentes – professores, alunos e comunidade escolar - e colocando-os
em contato com os letramentos valorizados, institucionais e universais. Além disso, deve
considerar os letramentos multissemióticos exigidos pelas interações contemporâneas,
ampliando a noção de letramentos para o campo da imagem, do som, de outras semioses que
não somente a escrita. O conhecimento e as capacidades relativas a outros meios semióticos
estão ficando cada vez mais necessários no uso da linguagem, tendo em vista os avanços
tecnológicos. As cores, as imagens, os sons, o design, etc., que estão disponíveis na tela do
computador e em muitos materiais impressos, têm transformado o letramento autônomo
tradicional em um tipo de letramento insuficiente para dar conta dos letramentos necessários
para agir na vida contemporânea.
10
do enredo da história, isto é, o reconhecimento das redes de significados plausíveis para a sua
compreensão.
Por exemplo, o gênero mangá (bem como outros gêneros emergentes/ recentes que
ainda circulam na esfera escolar de maneira “clandestina”, trazidos pelo alunado que os
conhece e explora cotidianamente fora da sala de aula), diante do contexto da disseminação da
informação em um toque, da iconização da cultura e sua transposição para a televisão e para a
tela do cinema, bem como, a sua influência na elaboração dos quadrinhos nacionais (Turma
da Mônica Jovem é um exemplo desse fenômeno) e mundiais, torna-se um evento de
dimensão global que legitima e dissemina parâmetros de comportamento, maneiras
ideológicas do pensar, do agir e do dizer da cultura japonesa (nesse caso), ao mesmo tempo
em que simboliza os mecanismos ideológico-culturais de uma sociedade capitalista. Dessa
maneira, essa cultura pop abrange uma diversidade de leitores de todas as faixas etárias
(crianças, jovens e adultos) que fascinados pela sua linguagem híbrida de leitura acessível e
prazerosa projetam seus sonhos e fantasias, escondem seus medos e frustrações em uma
forma de entretenimento e deleite.
Por serem narrativas icônico-verbais, os mangás, ao serem lidos precisam acionar uma
rede de significações sociocognitivas, o que requer que o leitor seja multiletrado para poder
perceber que esse tipo de texto não é tão inocente quanto parece ser. E isso é uma
característica constante em todos os textos multimodais, hipertextuais e multissemióticos.
Para tanto, propomos a exploração desses textos nas escolas, ancorada em uma prática
pedagógica que possibilite ao aluno, orientado pelo seu professor/agente de letramento, ser
um sujeito crítico e reflexivo sobre os textos que lê e produz, para poder compreender,
interpretar e ressignificar os efeitos de sentido e os significados tanto explícito quanto
implícito nos textos que utilizam tanto linguagem verbal quanto não-verbal.
Assim, tomando novamente como exemplo a narrativa sequencial que é o mangá, a
linguagem fluida e oralizada com suporte nas imagens estilizadas é um mecanismo que seduz
ao mesmo tempo que manipula discretamente seus leitores por meio dos estereótipos sociais
disseminados pelos personagens dessas histórias. Nesse sentido, entendemos que esse gênero
– bem como todos os textos e gêneros com suporte na multimodalidade - se presta a
atividades de letramento escolar por se tratar de uma prática discursiva emergente que está
relacionada à aparição de novas motivações sociais, que são resultantes de novas
circunstâncias de comunicação associadas à produção tecnológica, constituindo assim um
novo ambiente de interação social que precisa ser estudado e didatizado.
12
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Assim, currículo, formação de professores e perspectivas metodológicas fazem parte
de um todo, ou seja, de um projeto-político pedagógico que deverá ser construído
coletivamente em cada espaço de educação.
Não adianta produzirem-se currículos ou técnicas sofisticadas sem o devido
investimento na capacitação do professor e na sua valorização profissional, além de ser
revisto o currículo da formação inicial nas universidades. Diminuir-se-ia, desta forma, a
grande lacuna entre escola e universidade, entre teoria e prática, entre o real e o ideal.
Acreditamos que o professor como agente de letramento é um sujeito multiletrado e
crítico, que leva em consideração a socioistoricidade de seu alunado, um cidadão atuante em
várias esferas sociais (por meio de seu trabalho que ultrapassa as paredes da escola), e
organiza o processo de ensino e aprendizagem da língua materna, como a oralidade e os
textos multimodais.
Um dos objetivos principais da escola do século XXI é justamente possibilitar que os
alunos possam participar das várias práticas sociais que se utilizam da leitura e escrita –
letramentos- na vida urbana, de maneira ética, crítica e democrática. Para tanto, é necessário
que a educação leve em conta os letramentos múltiplos, considerando os letramentos das
culturas locais de seus agentes – professores, alunos e comunidade escolar - e colocando-os
em contato com os letramentos valorizados, institucionais e universais. Além disso, deve
considerar os letramentos multissemióticos exigidos pelas interações contemporâneas,
ampliando a noção de letramentos para o campo da imagem, do som, de outras semioses que
não somente a escrita. O conhecimento e as capacidades relativas a outros meios semióticos
estão ficando cada vez mais necessários no uso da linguagem, tendo em vista os avanços
tecnológicos. As cores, as imagens, os sons, o design, etc., que estão disponíveis na tela do
computador e em muitos materiais impressos, têm transformado o letramento autônomo
tradicional em um tipo de letramento insuficiente para dar conta dos letramentos necessários
para agir na vida contemporânea.
8 REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
GERALDI, João Wanderley. A aula como acontecimento. São Carlos/SP: Pedro e João
Editores, 2010.
_____. Letramento nos anos iniciais fascículo 1. Preciso ensinar o letramento ? Não basta
ensinar a ler e escrever? Brasil – CEFIEL, 2005.
KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T.. Multimodal discourse: the modes and media of
contemporary communication. New York: Oxford University Press, 2001.
LUYTEN, Sonia Bibe. Mangá: O poder dos quadrinhos japoneses. São Paulo: Hedra, 2001.
ROJO, Roxane. Letramentos múltiplos: escola e inclusão social. São Paulo: Parábola
Editorial,2009.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo
RESUMO
Palavras-chave:
Livro didático. Mercado editorial. Sites.
ABSTRACT
The textbook – and in this paper‟s context, the Brazilian Portuguese textbook – endures the
constant transformations that occur in the contemporary world, and still occupies its place as a
consolidated teaching-learning material in Brazilian schools, mainly the public ones. The
Brazilian Portuguese textbooks have as their constitutive feature the fact of being both
educational tool and commercial product, wich determines not only the practices that occur in
the classroom, but also the publishers‟ profitability. While sees the new technologies
development and democratization, the school faces the paradox of teaching through printed
material in a reality where things are online, digital, multimodal and plural. Thus, it is
necessary to think in new genres, with educational purposes, wich take care of nowadays‟
demands. In this context, we aim to analyze in this paper the ways publishers answer the new
demands in linguistic education, analyzing specifically the large websites that have been
presented concomitantly to the textbooks. Theses websites are, allegedly, a way to link the
printed material to the digital technologies. Resuming the notion of literacies and the path
walked by that concept through time, we conclude, in our analysis, that the strategies and
approaches made by those websites are under the desireble level of multiliteracies‟ and multi-
semiotic literacies‟ development.
1
Mestranda em Linguística Aplicada no Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP, sob orientação da
Profª Drª Roxane Rojo; e-mail: fabiana.marsaro@gmail.com.
2
Keywords:
Textbook. Publishing market. Sites.
faz um bom tempo que as tecnologias do letramento não são tão simples quanto a
caneta, a tinta e o papel. E na era da imprensa, assim como antes dela, o letramento
raramente esteve atrelado de forma estrita ao texto escrito (LEMKE, s/p, 2010).
2
Ainda que a citação utilize o termo “letramento”, no singular, destacamos que a perspectiva que adotamos é a
dos letramentos múltiplos, necessariamente no plural, a partir dos novos estudos do letramento (NEL/NLS). Esse
posicionamento será justificado ao longo deste trabalho, uma vez que esse é um de seus propósitos.
3
Torna-se, assim, cada vez mais necessário se pensar em novas propostas, não de suportes e
plataformas apenas, mas de novos gêneros com fins didáticos que possam dar conta das
demandas atuais. Lemke (2010), entendendo a complexidade da tarefa, questiona:
Quais serão as novas tecnologias da informação que poderão apoiar melhor um
paradigma de aprendizagem interativo e fazer uso desses letramentos
multimidiáticos e informáticos que serão genuinamente necessários para todos?
(LEMKE, 2010)
Podemos somar a essa questão muitas outras: Como as editoras vêm lidando com essa
realidade? Existem realmente maneiras de o livro impresso educar para o digital? Por quais
adequações têm passado os LDP para atender às novas demandas do mundo contemporâneo?
Como o mercado editorial encara esse novo público, que é o das crianças e adolescentes da
geração digital? Que pressupostos sobre os letramentos estão implícitos nessas novas (ou
velhas) práticas?
Antes de tentar responder a essas inquietações, ou pelo menos problematizá-las,
consideramos importante nos debruçarmos mais detidamente sobre a noção de letramentos e a
trajetória que o conceito percorreu ao longo do tempo, transformando-se para acompanhar os
impactos profundos dos fatores históricos, sociais e culturais sobre as já complexas relações
entre leitura e escrita na sociedade.
O termo letramento foi utilizado pela primeira vez no Brasil, segundo Kleiman (1995),
em 1986, por Mary Kato, como tradução do vocábulo inglês “literacy”3, procurando dar conta
da noção que hoje para nós é a dos alfabetismos. À época, estava claro que o conceito de
alfabetização, relativo ao processo – aparentemente simples4 – de “construção do
conhecimento sobre a relação entre os sons e as letras” (ROJO, 2009, p. 69) era insuficiente,
uma vez que considerar alguém como analfabeto ou alfabetizado dizia muito pouco sobre o
“estado ou condição” (SOARES, 2003 [1995], p. 29) daquele sujeito e sobre aquilo que ele
3
Ainda hoje usado na língua inglesa tanto para alfabetização quanto os letramentos.
4
As arbitrariedades fono-ortográficas da língua, as relações entre língua oral e língua escrita e as variedades
regionais e sociais são apenas alguns dos complicadores no processo de alfabetização que não é, portanto, “nem
simples, nem transparente e exige um longo trabalho de construção por parte dos alunos e de ensino pelos
professores” (ROJO, 2009, p. 69).
4
era efetivamente capaz de fazer com a leitura e a escrita. Tornou-se necessário, portanto, um
novo conceito, “de natureza sobretudo psicológica e de escopo individual” (ROJO, 2009, p.
45), que permitisse mensurar, entre os indivíduos de uma população, o quão aptos eles
estavam ou não para funcionar em uma sociedade que tinha suas práticas cada vez mais
centradas na escrita, dada a crescente urbanização e industrialização dos países. Passou-se a
falar, então, em níveis de alfabetismo, sendo que estes permitiam medir “o conjunto de
competências e habilidades ou de capacidades envolvidas nos atos de leitura ou de escrita dos
indivíduos” (ROJO, 2009, p. 97), associados aos medidores e índices oficiais, como os da
UNESCO e, no Brasil, mais recentemente, o Indicador de Alfabetismo Funcional (INAF), que
“pesquisa anualmente a capacidade de leitura, escrita e cálculo da população brasileira”
(ROJO, 2009, p. 43).
Mesmo que ampliasse os sentidos não recobertos pelo conceito de alfabetização,
porém, o conceito de alfabetismo, ainda sobreposto ao de letramento – sendo que muitas
vezes os termos eram utilizados como sinônimos – continuava não bastando, pois não atendia
a complexidade do “conjunto de práticas sociais ligadas à leitura e à escrita em que os
indivíduos se envolvem em seu contexto social” (SOARES, 1998, p. 72). Paulo Freire, ainda
nomeando como alfabetização “a capacidade de organizar reflexivamente o pensamento,
desenvolver a consciência crítica e ser capaz de introduzir os sujeitos no processo real de
democratização da cultura e de libertação” (GRIBL, 2009, p. 40), foi um dos pioneiros na
reflexão de cunho social a respeito das práticas que envolviam a leitura e a escrita. Foi-se
percebendo que o alfabetismo funcional, essencialmente adaptativo, seja ao mundo do
trabalho ou da escola, era muito institucional, ligado às necessidades, ao uso, não promovendo
as transformações sociais próprias daquele que seria um alfabetismo crítico, ideológico,
empoderador5. Ainda que continuassem a existir oscilações de nomenclatura6, foi a partir
desse tipo de pensamento que o conceito de letramento foi sendo reformulado, afastando-se
cada vez mais da noção de alfabetismo apenas.
Hoje, podemos dizer que
5
Do inglês “Empowerment.
6
“Soares (2003 [1995]: 41), por exemplo, chega a afirmar que „o neologismo [letramento] parece desnecessário,
já que a palavra vernácula alfabetismo [...] tem o mesmo sentido de literacy‟” (ROJO, 2009, p. 99).
5
Segundo Rojo (2009, p. 98), é a partir da obra de Street (1984), divulgada no Brasil
principalmente por Kleiman (1995), e dos novos estudos do letramento (NEL/NLS), que essas
noções tornam-se mais claras. Num primeiro momento, as pesquisas passam a falar em dois
enfoques diferentes a respeito do letramento: o autônomo e o ideológico. No primeiro
enfoque, a idéia é a de que o letramento, de forma autônoma e institucionalizada, influencia o
desenvolvimento social, cultural e cognitivo dos indivíduos, “ou seja, o contato (escolar) com
a leitura e a escrita, pela própria natureza da escrita, faria com que o indivíduo aprendesse
gradualmente habilidades que o levariam a estágios universais de desenvolvimento (níveis)”
(ROJO, 2009, p. 99). Já o segundo enfoque, o ideológico, numa perspectiva sócio-histórica,
considera
Soares (1998) faz uma distinção parecida, falando em versão fraca e forte do
letramento, noções respectivamente ligadas aos modelos autônomo e ideológico de Street. De
forma semelhante ao autor, Soares (1998) vai propor, segundo Rojo (2009), que a versão fraca
de letramento “é (neo)liberal e estaria ligada a mecanismos de adaptação da população às
necessidades e exigências sociais do uso de leitura e escrita, para funcionar em sociedade”
(ROJO, 2009, p. 99), na raiz, portanto, do conceito de alfabetismo funcional. Já a versão forte,
reconhecendo a variedade e complexidade das diversas práticas sociais vivenciadas pelas
pessoas,
7
O New London Group, formado por teóricos como Bill Cope e Mary Kalantzis, James Paul Gee, Gunther
Kress, Sarah Michaels e Martin Nakata, reuniu-se pela primeira vez em 1996, na cidade de Nova Londres, nos
Estados Unidos. Desse encontro originou-se o manifesto “Uma pedagogia dos multiletramentos: Projetando
futuros sociais”, publicado pela Harvard Educational Review.
7
nós não ensinamos os alunos a integrar nem mesmo desenhos e diagramas à sua
escrita, quanto menos imagens fotográficas de arquivos, videoclipes, efeitos
sonoros, voz em áudio, música, animação, ou representações mais especializadas
(fórmulas matemáticas, gráficos e tabelas etc.) (LEMKE, s/p, 2010).
Assim, voltando ao contexto que apresentamos no início deste trabalho, para que as
pesquisas envolvendo o LDP ganhem relevância é preciso que levem em conta, cada vez
mais, que estamos vivendo uma transição e que, muito em breve, o impresso conviverá ou
dará espaço a um amplo e variado uso de novas tecnologias em sala de aula. Uma vez que a
escola não pode mais ser considerada a principal agência de letramento a que as pessoas estão
sujeitas, é improvável que continue a deixar de lado o entendimento dos mecanismos de
produção, circulação e recepção dos textos contemporâneos, bem como dos letramentos
múltiplos e multissemióticos que os alunos têm praticado para além dos limites institucionais
(BUZATO, 2008, p. 121).
Por isso, a questão principal ao se pensar o LDP hoje, talvez não deva ser mais o que
esse material impresso pode fazer, uma vez que, sozinho, de fato ele pode muito pouco diante
das demandas atuais da educação linguística, quando comparado ao computador ou ao texto
digital, por exemplo. Provavelmente, nossas reflexões sejam mais produtivas se procurarmos
apontar o que o LDP não deve fazer, uma vez que certas estratégias e abordagens podem
acabar por limitar ainda mais as já escassas possibilidades de exploração desse tipo de
material, o que está longe de ser desejável para os milhares de alunos e professores que ainda
o utilizam diariamente, principalmente nas escolas públicas.
Não será sem tensão, porém, que os multiletramentos adentrarão as práticas escolares
via LDP, afinal, podemos dizer que esses materiais
8
Disponível em
http://portal.mec.gov.br/index.php?Itemid=86&catid=205&id=7752&option=com_content&view=article, acesso
em 04 de julho de 2011.
11
indicados aos alunos pelo(s) autor(es) do LDP; e) “Filmes (que envolvem) TIC”, isto é
“filmes que discutem questões ou utilizam elementos relacionadas às TDIC sugeridos pelo(s)
autor(es) dos LDP” (CAIADO, 2010); e f) “Livros paradidáticos relacionados às TIC”,
também indicados pelos autores aos alunos. Nos livros recomendados pelo PNLD/2008,
Caiado (2010) registrou duas novas categorias: g) “Produção de E-gêneros” (como os
exemplos acima citados) e o que a autora chamou de h) Linguagem Digital e que definiu
como a linguagem “utilizada pelos internautas no meio digital” (CAIADO, 2010), embora
consideremos que ela estivesse se referindo especificamente ao internetês.
Contabilizando a frequência das categorias nos LDPs analisados, Caiado (2010) chega
aos seguintes dados:
nas coleções aprovadas no PNLD 2005, a categoria com maior participação de
frequência foi “Sites para Pesquisa” (51,4%), seguida pelas categorias: “Textos de
Sites” (37,5%), “Textos sobre TIC (7,4%)”, “E-gêneros” (2,0%), “Livros
Paradidáticos/TIC” (1,1%) e “Filmes/TIC” (0,6%). Da mesma forma, nas coleções
aprovadas no PNLD 2008, a categoria com maior número de frequência foi “Sites
para Pesquisa” (41,3%), também seguida pela de “Textos de Sites” (29,9%). No
entanto, as seguintes categorias, por frequência, foram: “E-gêneros” (11,1%),
“Textos sobre TIC” (10,6%), “Produção de e-gêneros” (3,7%), “Livros
Paradidáticos/TIC” (1,8%), “Linguagem Digital” (1,6%) e “Filmes/TIC” (0,0%).
(CAIADO, 2010, p. 14).
Ainda que algumas das categorias e métodos utilizados pela autora sejam passíveis de
discussão, os dados que ela apresenta são suficientes para que possamos mostrar como o
trabalho com gêneros essencialmente digitais e/ou multissemióticos é extremamente precário
nos LDP, talvez, principalmente, por ser quase impossível trabalhar as especificidades desses
enunciados tendo como ferramenta somente o material impresso. Não surpreende, portanto,
que predominem textos retirados de sites utilizados como fontes pelos autores, o que não
implica um trabalho com seus contextos de produção e uso.
Um outro exemplo que podemos trazer, representativo de um movimento bastante
frequente das editoras no mercado de particulares, é o das plataformas online que têm sido
propostas concomitantemente aos LD como forma de associar o livro impresso à tecnologias
digitais e, assim, gerar um diferencial frente aos materiais exclusivamente impressos,
utilizados pelos escolar públicas devido às restrições impostas pelo PNLD.
12
Uma breve análise do que oferecem esses portais, entretanto, nos mostra que ainda não
há uma lógica totalmente nova regendo sua produção ou utilização. Tomemos como exemplos
o site da Abril Educação, empresa com grande relevância no mercado de didáticos,
juntamente com os portais das Editoras Ática e Scipione e do Sistema de Ensino SER, que
fazem parte do mesmo grupo.
Site da Abril Educação (http://www.abrileducacao.com.br): O site tem como
função agrupar os links para os portais das editoras que fazem parte do Grupo Abril: Ática,
Scipione e Sistema Ser. Uma das seções principais é a “Nossos Produtos”, na qual constam os
itens Catálogo, Sistema de Ensino e Conteúdo Digital. Chamou-nos bastante atenção a
descrição para essa última subseção: “Conteúdo digital: Os recursos tecnológicos são
poderosos aliados no processo de aprendizagem. Conheça os materiais que oferecemos para
você!”. Voltada para o professor, a área disponibiliza os links dos portais pedagógicos dos
quais o grupo dispõe. No texto, os portais das empresas pertencentes à Abril Educação são
caracterizados como “antenados com as últimas tendências de recursos multimidiáticos no
contexto educacional” e também como “soluções para a melhoria do ensino-aprendizagem”,
de forma a estimular os docentes a conhecê-los e “experimentá-los”. Analisamos esses portais
mais detalhadamente a seguir, juntamente com os sites institucionais das editoras às quais
estão relacionados.
Na Figura 1, podemos notar que no canto superior direito da home há um banner com
os dizeres “Ática Educacional: Um site especial para os professores”. Clicando nesse banner,
temos acesso ao portal pedagógico da Editora (http://www.aticaeducacional.com.br/), cuja
home reproduzimos na Figura 2.
com o auxílio de ferramentas como o Google, inclusive pelo próprio professor, desde que ele
saiba como buscá-los.
Site da Editora Scipione (http://www.scipione.com.br/): Também de caráter
institucional, o site da Editora Scipione tem no menu principal as áreas Catálogo, Scipione
Educação, Casa do Professor, Institucional e Fale Conosco. Essa segunda área dá acesso ao
portal pedagógico da editora que, diferentemente do da Ática, não é um site à parte, mas uma
área integrada à página principal da empresa. A área Scipione Educação
(http://www.scipione.com.br/scipioneeducacao.asp) tem no menu as seções Assessoria
Pedagógica, Oficinas, Galerias, Referências, Artigos, Atividades, Trilhas de pesquisa,
Cadastro de professores, Atualização de Cadastro e Livro do professor. Seguindo a mesma
idéia do site da Editora Ática, o portal da Scipione Educação traz vários conteúdos para o
professor, agrupados em galerias, oficinas e artigos. Como exemplo de oficina, temos a Figura
3, em que reproduzimos a oficina Terra & Universo.
Como podemos observar, a oficina constitui-se por um hipertexto linkado ao site, que
por sua vez tem vários links internos, com informações, imagens e curiosidades sobre um
tema específico. Novamente, não há instruções de como o professor pode utilizar esse
material com seus alunos, ou mesmo de como os alunos podem explorá-lo de forma
independente. Também não há sugestões de ações ou semelhanças com uma sequência
didática, como o termo “oficina” parecia sugerir.
15
Além das informações institucionais, que aparecem com menos destaque, o site
oferece as áreas Artigos, Banco de Imagens, Conversores e Simuladores, Jogos, Notícias da
Educação, Multimídia, Tabela Periódica, Vídeos, Biografias, Galeria Virtual, Sites
Indicados, Provas de Vestibular e Web Aulas (Alunos). De novo voltadas para o professor de
maneira geral, as áreas oferecem conteúdos e ferramentas diversas, que se propõem a auxiliar
o processo de ensino-aprendizagem e o aproveitamento dos materiais impressos. Uma área
que buscamos observar melhor foi a chamada “Galeria Virtual”. Segundo a descrição do site,
a “seção contém mais de mil imagens sobre os mais variados temas para você, professor ou
aluno, enriquecer provas, trabalhos e estudos em geral”. Separadas nas categorias Alimentos,
Animais, Arquitetura, Artes, Ciência & Tecnologia, Corpo Humano, Educação, Energia &
Eletricidade, Esportes, Ferramentas & Objetos, Instrumentos Musicais, Natureza,
Personalidades Histórias, Política, Profissões, Sociedade e Transportes, as imagens não são
muitas e apresentam pouca variedade. Aparentemente retiradas de bancos de imagens livres,
muitas vezes elas apresentam pessoas e situações que não correspondem à realidade brasileira.
Ainda que, uma vez no site, essas imagens possam ser consideradas fontes seguras no que se
refere aos direitos autorais, elas são pouco criativas e provavelmente os resultados são
inferiores aos materiais que poderiam ser encontrados no Google Imagens.
16
A partir da análise dos sites, encontramos uma regularidade nos materiais oferecidos.
Primeiramente, a existência de um portal extra, adicional, exclusivo para os conteúdos
digitais, mostra que as empresas ainda procuram dissociar seus materiais tradicionais das
investidas em novos recursos didáticos. Essa coexistência, de certa forma, reflete a disputa
entre o papel e o virtual que, como vimos, não se restringe aos LD.
A tendência observada foi a de oferecer materiais extras, complementares, não
necessariamente multissemióticos, menos ainda hipermídiaticos, tendo como alvo o professor.
A imagem desse professor, por sua vez, é a de alguém com pouco conhecimento dos
ambientes digitais e que gostaria de (ou se vê obrigado a) encontrar maneiras de estimular e
motivar seus alunos com recursos digitais. Predominam, portanto, os materiais prontos,
formatados para o uso junto com o LD e não há orientações para que os professores façam
buscas autônomas, adaptem os conteúdos fornecidos ou desenvolvam materiais próprios. As
propostas e estratégias desses sites, portanto, ficaram aquém do que seria desejável e
produtivo para o desenvolvimento dos multiletramentos e dos letramentos multissemióticos.
Enquanto Bolter (2002, p. 23), aponta para um movimento contínuo de remidiação
entre as tecnologias, no sentido de que “uma nova mídia [sempre] toma o lugar de uma mais
antiga, emprestando e reorganizando características de escrita da mídia mais antiga para
reformular seu espaço na cultura”, nos sites analisados parece que estamos diante de uma
espécie de "remidiação" ao contrário, ou seja, as editoras remidiando o digital para que ele
passe a ter o estilo e a forma de composição próprias do LD.
Quando nos lembramos que a própria Editora Abril edita também a revista Veja, que
possui um rico acervo online em que estão catalogadas a maioria das edições da revista, com
certeza uma fonte de pesquisa mais variada e interessante que o pobre e limitado banco de
imagens oferecido ao professor no portal SER, por exemplo, que pertence ao mesmo grupo,
seria de se pensar, então, se são mesmo necessários portais desse tipo, ou se conectar as
escolas com banda larga de boa qualidade já não seria suficiente para um trabalho mais
proveitoso com esses novos letramentos. Como Lemke (2010) faz questão de lembrar
imagens visuais e sons e vídeos, [...] que podem acomodar [...] significados densos de
informação topológica” (LEMKE, s/p, 2010).
Chegando ao final deste trabalho, podemos concluir que é praticamente impossível
ignorar as novas demandas para educação. O conceito de multiletramentos, re-elaborado a fim
de acompanhar as profundas transformações que a sociedade tem passado, mostra-nos ser
urgente um ensino-aprendizagem que extrapole o domínio da letra e do papel e que possibilite
formar cidadãos críticos e situados, capazes de agir de forma consciente em suas realidades
sociais e culturais.
Diante das limitações impostas pelo modelo tradicional de ensino e pelo LDP tal qual
se constituiu e se mantém já há algumas décadas, nos vemos instigados a pensar em novos
gêneros e dispositivos com fins didáticos – multimodais, multissemióticos, multiculturais,
digitais, online – que talvez pudessem dar conta dessas novas demandas. Na falta deles,
entretanto, constatamos não haver nem mesmo um diálogo produtivo dos LDP com a
complexidade das interfaces encontradas na internet, das novas relações entre os textos
verbais e as imagens, das cores, do movimento, das novas formas de ler e organizar a
linguagem e de suas ideologias e valores próprios.
Muito disso se deve, não podemos deixar de apontar, ao fato de que a cultura escolar e
a cultura editorial ainda são muito subordinadas às políticas públicas, infelizmente
insuficientes, e à lógica comercial que rege a produção de materiais desse tipo. Finalmente,
esperamos que este trabalho, se não pôde apontar caminhos definitivos, que ao menos tenha
conseguido instigar a busca de novas propostas.
REFERÊNCIAS
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and the remediation of print. Mahwah, NJ: Lawrence Erlbaum, 2002, p. 14-26. 2. ed.
KALANTZIS, Mary; COPE, Bill. Changing the roles of schools. In: COPE, B; KALANTZIS,
M. (Orgs.). Multiliteracies: literacy learning and the design of social futures. New York, NY:
Routhledge, 2006[2000].
REUTERS. Livros digitais são destaque na Feira de Nova York, 2011. Disponível em
http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2011/05/livros-digitais-sao-destaque-da-feira-de-nova-
york.html. Acesso em: 01 jul. 2011.
ROJO, Roxane Helena Rodrigues. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social. São
Paulo, SP: Parábola Editorial, 2009.
ROJO, Roxane Helena Rodrigues. A teoria dos gêneros discursivos do Círculo de Bakhtin e
os multiletramentos. In: DE PAULA, L.; STAFUZZA, G. (Orgs.) Círculo de Bakhtin: inter e
intradiscursividades, Série Bakhtin – Inclassificável, Vol 4. Campinas, SP: Mercado de
Letras, a sair.
SOARES, Magda Becker. Letramento – Um tema em três gêneros. Belo Horizonte, MG:
CEALE/Autêntica, 1998.
STREET, Brian V. Literacy in Theory and Practice. New York: Cambridge University
Press, 1984. Disponível em:
http://www.cambridge.org/gb/knowledge/isbn/item1130587/?site_locale=en_GB. Acesso em:
30 jan. 2011.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo
RESUMO
Palavras-chave:
Redes Sociais. Prática pedagógica. Ensino a Distância.
ABSTRACT
The aim of this study is to investigate and describe some pedagogical possibilities presented
by social networking. We assume that the social networks, vehicular modes of interaction
provided an environment that integrates the human to the technological age, open to the pos-
sibility that teaching occurs even from a distance. This suggests some potential tool for teach-
ing via social network indicating the possibility of using these networks with educational pur-
pose and increases the possibility of teaching practice at a distance. We used an interpretative
qualitative research to collect data and base our research in Levy (1999) that presents study on
types of virtual interaction and collective intelligence based on interactions. As for implemen-
tation and evaluation of teaching and learning in distance education, we found in proposal of
the Silva & Santos (2006). This work is justified by the fact that analyzing the social networks
in their pedagogical possibilities may contribute to increase and diversify opportunities for
teaching practice of teachers in distance mode. With the result of our study, we hope to im-
prove the relationship between teacher and student and teaching-learning process, providing
new alternatives for teachers and students in the context of the virtual classroom and contrib-
ute to the improvement of interactions in the virtual context.
1
Esse trabalho constitui uma vertente de um projeto maior. Trata-se de um projeto para Tese de Doutorado que
se encontra em andamento vinculado ao curso de Pós-Graduação em Mestrado e Doutorado da Universidade
Federal de Uberlândia – PPGEL/UFU.
2
Keywords:
Social Networks. Pedagogical practice. Distance Teaching.
1 INTRODUÇÃO
O advento das tecnologias trouxe consigo a concepção do novo homem e da informa-
ção disponibilizada em alta velocidade via Internet. As tecnologias, nesse contexto, apresen-
tam-se como elo entre esse novo homem a essa enormidade de informação que podem ser
facilmente acessadas ou recuperadas.
A era das tecnologias acaba por delinear um novo perfil de homem, de profissional, de
sociedade, de comportamento e de mercado de trabalho. Esse novo homem se vê preocupado
em acompanhar e assimilar as mudanças provocadas pela revolução tecnológica que altera o
cotidiano, ditando um novo ritmo de vida para a sociedade, impondo novas culturas e propon-
do novas formas de interação.
Como os demais setores, o mercado de trabalho também sofreu modificações bruscas
com o advento das tecnologias. Há a necessidade constante de profissionais capacitados e
formados e que consigam acompanhar todo esse processo. Surge nesse ínterim a figura do
homem dinâmico, multicultural e interativo, mas surge também a idéia de um ambiente ou
lugar em que todo esse processo pode acontecer em um só momento e em um só espaço.
Trata-se do Ambiente Virtual. Disponibilizado na rede da internet e veiculado por
equipamentos de alta tecnologia – computadores, telefonia móvel, aparelhos eletrônicos de
áudio e vídeo – é no ambiente virtual que as diversas interações em suas mais variadas formas
acontecem. É nesse ambiente, também, que o novo homem busca sua formação, capacitação e
acessa e posta informações de modo rápido e sem sair de casa ou do próprio trabalho.
Desse modo, para esse trabalho apresentamos um levantamento com algumas concei-
tuações no que se refere à aplicabilidade pedagógica das redes sociais para o ensino a distân-
cia. Para isso, apresentamos a contextualização do surgimento do ambiente on-line em nossos
dias direcionando o seu uso na educação.
Demonstramos, ainda, que o movimento das tecnologias articulado com as necessida-
des do mercado de trabalho nos leva aos cursos a distância que aparecem como um relevante
recurso que tende a suprir certa carência de profissionais formados e capacitados para assumir
funções no mercado de trabalho.
Em seguida trazemos também informações sobre as redes sociais e seu contexto de
surgimento. Nesse caso, a utilização das redes sociais se torna um artifício para driblar a soli-
3
dão pessoal afetiva, ampliar a rede de relações profissionais; lançar, divulgar, vender e encon-
trar produtos de diversas categorias.
As redes sociais, nesse aspecto, assumem papel de um local virtual em que as pessoas
se encontram para diversos fins: lazer, interação, comércio, marketing, etc., e de acordo com
nossas perspectivas, as redes sociais também podem assumir o papel de um local em que pes-
soas se encontram para fins educativos, sugerindo a possibilidade do uso pedagógico para as
redes sociais. Diante disso, apresentamos um pequeno histórico sobre algumas redes sociais
indicando a data de surgimento, público alvo e objetivo de criação de cada uma delas.
Por fim, indicamos os vieses pedagógicos das redes sociais demonstrando que o uso
das tecnologias depende da forma com que são utilizadas. Nesse caso, dependerá do enfoque
dado pelo professor que poderá encontrar nas redes sociais a possibilidade de ampliar e diver-
sificar sua prática utilizando as redes sociais como recurso pedagógico que possibilita ampla
interação e interatividade.
Para fundamentar nosso trabalho, no entanto, encontramos uma bibliografia bastante
singela, já que até mesmo as redes sociais são recursos muito recentes. Datamos o surgimento
de inúmeras delas do ano de 2003. Sendo assim, estudos sobre acesso para interação e outros
usos ainda estão em processo inicial.
Em relação ao uso das redes sociais com finalidade educativa ainda não encontramos
trabalhos publicados, mas já sabemos que estudos têm sido feitos e acreditamos que em breve
teremos publicações que poderão fundamentar nossos estudos. É justamente essa carência de
produções bibliografias sobre o uso das redes sociais, aliada à indicação da possibilidade de
uso educacional e pedagógico que justifica nossa pesquisa.
O objetivo é demonstrar que as redes sociais podem ser utilizadas como recurso peda-
gógico que possibilita ampliar e diversificar a prática pedagógica do professor atraindo a
atenção do aluno, possibilitando melhor interação professor-aluno e melhorando a qualidade
do processo ensino-aprendizagem. Acreditamos que os resultados de nosso trabalho possam
contribuir para melhoria do processo educacional ao ser mediado via redes sociais.
Por outro lado, o que encontramos foram trabalhos realizados envolvendo as redes
sociais cuja finalidade de uso era comercial e empresarial. Trata-se de estudos que abordam as
redes sociais como meio de comércio em que as utilizam como meio para lançar, vender, di-
vulgar e testar tendências.
Nesse aspecto, as redes sociais se constituem como uma forma de alcance direto e rá-
pido a milhares de pessoas de diversas regiões em tempo recorde. São milhares de acesso ao
mesmo tempo. Essa forma de uso para as redes sociais é tratado no trabalho de Juliette Powell
„33 milhões de pessoas na sua rede de contatos – Como criar, influenciar e administrar um
negócio de sucesso por meio das redes sociais’ publicado em 2010 que traz uma abordagem
amplamente comercial para as redes sociais.
No que se refere à comunicação em espaço virtual nos fundamentamos em Pierre Lévy
que apresenta estudo sobre tipos de interação virtual e inteligência coletiva fundada nas inte-
rações. Em sua obra „Cibercultura‟ publicada em 1999, esse autor traz definições sobre o que
é interação, o que é virtual e sobre o que representa a comunicação através de mundos virtuais
compartilhados, além da nova relação das pessoas com o saber via ambiente virtual.
Já o trabalho de Romeu Tori „Educação sem distância: as tecnologias interativas na
redução de distâncias em ensino e aprendizagem‟ publicado também em 2010 apresenta pres-
supostos não do uso pedagógico para as redes sociais, ma demonstra indícios para que a dis-
tância entre o ensino e a aprendizagem sejam reduzidos.
Segundo ele qualquer atividade de aprendizagem envolve comunicação, que por sua
vez necessita de uma ou mais mídias para se efetivar. Sendo assim, percebemos, nas redes
sociais, ampla possibilidade para se desenvolver relevantes práticas de ensino e a aprendiza-
gem, mediadas pelas redes sociais e seus potentes e atraentes recursos midiáticos.
Outra obra que nos chamou a atenção foi a de Marco Silva, publicada em 2006. Trata-
se da obra „Educação online: teorias, práticas, legislação, formação corporativa’. Essa obra
envolve uma coletânea de vários artigos que trazem relevantes informações sobre teorias e
práticas na educação online e nos serviu de base para nosso estudo.
Essa obra apresenta o processo de educação a distância como mediatizado pelo uso de
tecnologias e reforça a idéia de que ele deve trazer uma dimensão educacional pluridireciona-
da, descentralizada e interdisciplinar. Para esse autor a tecnologia favorece a educação online,
mas que devem prevalecer as visões de diversas áreas de conhecimento.
Devemos ressaltar que Pierre Lévy, Romeu Tori e Marco Silva não apresenta trabalhos
ou estudos sobre o uso pedagógico das redes sociais na educação a distância, mas seus traba-
5
lhos puderam nos direcionar para o contexto das práticas de ensino que acontecem a distância
mediadas por diversas mídias.
Sendo assim, fizemos adaptações e reflexões sobre os pressupostos desses autores que
apresentam diversas possibilidades para que o ensino e também o aprendizado possam ocorrer
a distância. E do nosso lado defendemos que as redes sociais podem também servir ao fim
educacional.
Outra ação que desenvolvemos para a consecução de nosso trabalho foi análises de
diversos cursos a distância que são oferecidos em nossa região. O objetivo era verificar se
algum deles utilizava as redes sociais como recurso pedagógico. Foram analisados um total de
6 cursos a distância: 2 cursos de graduação, 2 de extensão e dois de capacitação.
Entrevistamos, também, alguns tutores desses cursos, cuja finalidade era saber se eles
sentiam faltam de algum recurso que lhes dessem mais liberdade de comunicação com os alu-
nos e se de algum modo eles utilizavam as redes sociais para se comunicar com os alunos.
Foram entrevistados 6 tutores: 1 de cada curso.
Por fim analisamos os dados por meio da pesquisa qualitativa de natureza interpretati-
vista em que o pesquisador recebe também um papel de destaque no processo investigativo
cujos resultados apareceram nas considerações finais desse trabalho.
O contexto do ambiente virtual de ensino permite a postagem de cursos que podem ser
acessados e desenvolvidos a distância, mas também permite o acompanhamento das ações dos
elementos envolvidos no processo de ensino e aprendizagem no curso. Dessa forma, esse am-
biente virtual apresentado traz a idéia da Educação On-line. Trata-se de um mecanismo que
apresenta a internet como o único meio para que o conteúdo do curso seja acessado e possui
como principais características, justamente o que prevê as tecnologias do ensino a distância.
Nesse caso, o ambiente on-line permite velocidade nas trocas de informações, acesso
às informações de modo síncrono e assíncrono, a possibilidade de acompanhamento do de-
senvolvimento do aluno a distância e um alto grau de interatividade entre alunos, professores
e equipamentos.
Outro modelo que surge trazendo inúmeras possibilidades de formação e de treina-
mento a distância é o E-Learning que se constitui como um novo formato de educação tendo a
internet como suporte. Nessa perspectiva, o E-Learning se caracteriza por organizar e dispo-
nibilizar materiais didáticos e outros recursos de mídias na modalidade on-line.
É nesse aspecto que o ambiente virtual reúne em si um novo modelo de educação ofe-
recendo a possibilidade de que tanto o ensino quanto a aprendizagem ocorra em um tempo e
espaço diferentes dentro de um processo educacional que atende inúmeras pessoas de uma só
vez. Dessa forma, o ambiente virtual agrega em si modelos ou paradigmas que agrupam a
Educação a Distância, a Educação On-line e o E-Learning, sendo que o modelo da educação
on-line se constitui como o mais interativo.
Tendo em vista esse aspecto do modelo da educação on-line, é perceptível que essa
modalidade requeira um uso das ferramentas que o compõe de modo a conseguir a ideal auto-
nomia na construção da aprendizagem, mas também, a possibilidade de construção coletiva
do conhecimento. É justamente nesse contexto que se delineia o perfil do novo homem imer-
so na era das tecnologias: autônomo, multicultural, multiprofissional e aberto a novas experi-
ências e aprendizagens.
Lévy (1999) introduz o conceito da cibercultura e adverte que precisa reflexão sobre o
futuro dos sistemas de educação e de formação na cibercultura, já que por meio dela deverá
haver uma renovação dos saberes. Nesse caso, segundo esse autor, deve-se ter cuidado para
com os equívocos que por ventura surgirem na relação entre educação, cibercultura e sua rela-
ção com o saber.
Nesse contexto, Lévy (1999, p. 157) constatou que
7
prioridades profissionais, relega a segundo plano a relação com amigos, parentes e até relaci-
onamentos pessoais. É nesse movimento que muitas pessoas buscam nos ambientes virtuais
possibilidades de se relacionarem sem a necessidade de priorizar uma coisa ou outra, ou seja,
pode fazer tudo isso ao mesmo tempo: trabalhar, se capacitar e se relacionar.
Percebemos que é o ambiente virtual que proporciona todas essas ações e é pela intera-
tividade que se consegue conciliar tudo isso. Portanto, essa interrelação de ações só é possível
no ambiente virtual especialmente nas chamadas redes sociais. Elas são responsáveis pelo
compartilhamento de idéias de pessoas que possuem interesses e objetivos em comum. As
redes sociais promovem a relação entre indivíduos na comunicação mediada por computador.
Segundo Powell (2010, p. 7)
O conceito de rede social recua no passado, para uma época bem antes de a
internet ter sido inventada. Ele se refere a uma comunidade na qual as pesso-
as estão de alguma forma conectadas – por meio de amizade, valores, rela-
ções no trabalho, idéias. Hoje o termo “rede social” também se refere à pla-
taforma web onde as pessoas podem se conectar entre si. É o equivalente on-
line ao arquivo rotatório de contatos de negócios e ao arquivo de fichários
englobados em um único, e está tornando onipresente.
de 350 milhões de usuário espalhados em todo o mundo e é muito utilizado para construir e
manter uma rede pessoal e profissional, para promover produtos para o mercado de massa
música, celebridades e políticos. O Facebook também é utilizado para construir comunidades
entre público mais velho e ainda para descobrir e verificar tendências, tal qual o Mayspace.
Já em relação ao Orkut, Powell (2010) esclarece que ele foi fundado em 2004 e tem
como principal público os usuários da internet de modo geral, e que em sua maioria o público
é brasileiro e indiano. Segundo essa autora, o Orkut também é muito utilizado para promover
produtos para o mercado de massa, música e celebridades para públicos do Brasil e da Índia.
Atualmente, o Orkut e o Facebook estão sempre disputando o espaço de maior e mais visitada
rede social do Brasil. Por ora, percebe-se um empate, já que ambos são os líderes de acesso no
que se refere as redes sociais no Brasil.
Outra rede destacada por Powell (2010) é o Twitter. Segundo essa autora, o Twitter
tem tido uma taxa de crescimento superior a 1000 % por ano. Fundado em 2006 essa rede
social tem como público principal usuário em geral com 30 anos ou mais. O perfil dos usuá-
rios varia entre atletas, políticos, marcas e organizações com ou sem fins lucrativos. A autora
afirma que o Twitter é muito utilizado para descobrir e compartilhar informações em tempo
real por meio de troca pública de envio de mensagens curtas. Ele é utilizado também para
expandir e manter redes pessoais e profissionais, além de construir comunidades.
As redes sociais de modo geral são apresentadas como uma rede de informações que é
movimentada por milhares de pessoas em todo o mundo que ficam conectadas entre si e se-
guem e são seguidos diariamente. De acordo com Powell (2010, p. 14)
As redes sociais permitem que você estenda sua rede para pessoas que estão
fora de sua rede pessoal, mas com quem você compartilha amigos, colegas e
idéias comuns. As redes sociais fornecem as ferramentas para controlar o
fluxo de informações entre você e sua rede, e podem ajudá-lo a extrair mais
dos seus relacionamentos com outras pessoas.
Para Powell (2010) em essência, as redes sociais on-line apenas oferecem novas ma-
neiras de se comunicar. No passado, eram cartas, mas logo depois, passou-se a telefonar. Lo-
go após, surgiram os e-mails e mensagens de texto, e agora a conexão é por meio dos perfis
on-line e por conta deles cria-se a amizade entre uns e outros no Facebook. Essa autora escla-
rece que “as redes sociais não são apenas para alcançar as pessoas – elas são para ficar em
contato. As redes sociais tornam os relacionamentos transparentes e oferecem ferramentas
para ajudar você a se conectar e ficar conectado” (POWELL, 2010.p. 7).
Atualmente, as redes sociais têm assumido fins diversos, dentre eles a abertura de pos-
sibilidades de trabalho e negócio. Muitas empresas e instituições têm utilizado as redes sociais
para expandirem, avaliarem, divulgarem e até venderem produtos. Por outro lado, existem
muitas pessoas que estão em busca de oportunidade de trabalho e negócios. É nesse aspecto
que as redes sociais estão mudando o mundo e a forma de se negociar. Elas atendem a ambos
os lados tanto as necessidades da empresa, quanto às necessidades do cidadão que busca por
colocação no mercado de trabalho.
Há de se considerar, no entanto, a especificidade da rede social e a sua abrangência e
versatilidade. Em nosso levantamento pudemos perceber que as redes sociais têm recebido
diversas aplicabilidades. No geral, as redes sociais têm servido às necessidades de interação
das pessoas. Contudo, percebemos especial enfoque ou tendência de aplicação para os negó-
cios.
Encontramos diversos trabalhos publicados direcionando o uso das redes sociais por
empresas e em empresas que criaram mecanismos para estimular o uso interno. Por outro la-
do, a possibilidade de uso das redes sociais para os negócios tem sido bastante estimulada.
Empresários usam as redes sociais para lançamento, divulgação, avaliação de produtos que
recebem parecer imediato dos milhares de clientes usuários das redes sociais.
As redes sociais, nesse contexto, representam uma possibilidade de acesso direto e
rápido a inúmeros clientes em potencial para os diversos produtos criados e lançados no mer-
cado todos os dias. Todos podem se agregar a elas que estão criando novas oportunidades de
negócios na produção, distribuição e comunicação. Entretanto, por conta de sua relevante pos-
sibilidade de interação e interdisciplinaridade, percebemos indício para a sua aplicabilidade
também na área da educação atuando como recurso didático e pedagógico.
Pelo que pudemos verificar o uso pedagógico das redes sociais proporciona justa-
mente a autonomia do aluno na construção do conhecimento e na busca por informação. Ao
poder interagir com o professor e com os demais colegas num contexto diferente do da sala de
aula, o aluno se sente motivado a buscar pelo conhecimento e a participar das atividades de
modo mais interessado e consciente.
Além disso, o contexto das redes sociais sugere certa ludicidade bastante apreciada
pelo aluno que buscará freqüência e qualidade no acesso e na execução da atividade, além de
13
poder contemplar o ponto de vista de outros colegas e de diversas outras pessoas. O aluno ao
discorrer sobre determinado assunto é levado a aclarar idéias, pois será acompanhado e avali-
ado por inúmeras pessoas.
Esse fato leva o aluno a produzir textos mais elaborados, receber ou fazer críticas,
concordar ou discordar de outras idéias e posturas. Sendo assim, o contexto das redes sociais
favorece a socialização efetiva do aluno que em outras situações não teria tanta liberdade e
tanta autonomia. Ora por timidez, ora por falta de tempo, ora por falta de espaço ou por tantos
outros motivos.
O fato de o aluno poder dizer o que pensa, mas de certo modo, acompanhado por
inúmeras pessoas e podendo saber a opinião de outras pessoas na íntegra sem muito rodeio,
desenvolve a criticidade do aluno, delineando uma personalidade do aprendiz consciente e
que participa do próprio processo de aprender.
As redes sociais tendem a oferecer um ambiente propício ao aprendizado que poderá
ser direcionado e mediado pelo professor cujo papel altera de professor a direcionador, quase
um maestro que ao direcionar as atividades nas redes sociais, o professor pode até criar uma
comunidade de aprendizagem aberta.
O uso de diversas mídias na busca pelo ensino e pelo aprendizado faz das redes soci-
ais um local propício para que o processo ensino e aprendizagem se ambiente. A importância
do uso das mídias na educação tem sido bastante suscitada no contexto educacional. Segundo
Tori (2010, p. 38)
qualquer atividade de aprendizagem envolve comunicação, que por sua vez
necessita de uma ou mais mídias para se efetivar. Nessas atividades podemos
identificar pelo menos três canais de comunicação, uma para cada relação de
distância (aluno-professor, aluno-aluno e aluno-conteúdo) sendo que cada
um deles pode fazer uso de uma ou mais mídias. A seleção da mídia e de seu
conteúdo é uma importante tarefa dentro da modelagem de uma atividade de
aprendizagem.
nicas e processos de seleção e aplicação das mídias nas atividades de aprendizagem (TORI,
2010).
Acreditamos que as redes sociais oferecem possibilidades educativas servindo como
recurso pedagógico de que o professor „antenado‟ ao mundo tecnológico pode lançar mão. O
fato é que mesmo oferecendo tantas possibilidades educativas, as redes sociais, como recurso
pedagógico, tem sido pouco ou nunca utilizado para fins educacionais.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tivemos experiências interessantes ao pesquisar sobre a aplicabilidade pedagógica
das redes sociais na educação a distância. Os resultados demonstraram que dos 6 cursos anali-
sados, nenhum apresentou indícios de utilização das redes sociais como recurso pedagógico.
Apenas 4 deles utilizavam vez ou outra o chat, mas apenas de modo interno à plataforma do
Ambiente Virtual de Aprendizagem.
Dos 6 tutores entrevistados, apenas 1 nos disse que para melhor se comunicar com os
alunos ele utiliza o MSN. Segundo ele, a necessidade de resposta rápida e personalizada, mui-
tas vezes o forçou a buscar outros meios de comunicação. Todos os tutores disseram que sen-
tem falta de outros recursos mais potentes e mais atrativos para se comunicar com os alunos,
mas reclamaram que mesmo que tivessem esses recursos, o tempo para utilizá-los seria outro
fator que comprometeria a interação. Segundo eles, tanto os alunos quanto eles não teriam
tempo para essa interação.
Segundo os tutores, o ideal seria que os cursos oferecessem propostas de atividades
envolvendo as redes sociais, pois se as atividades já fossem planejadas previamente nas ativi-
dades do curso e se os cursos já oferecessem links, direcionado tais atividades, seria bem mais
fácil e envolvente tanto para os tutores, quanto para os alunos. O que normalmente acontece,
segundo eles, é que os cursos já são estruturados previamente e são postados sem nenhuma
abertura para que atividades de interação, pesquisa, discussão pudessem ser levadas para o
ambiente das redes sociais.
Quanto a carência de material publicado sobre a aplicabilidade pedagógica das redes
sociais, acreditamos que ela pode ser explicada pela novidade que ainda se constituem as re-
des sociais, contudo, em breve acreditamos que encontraremos mais publicações. Isso pelo
fato da ampla utilização em todos os níveis sociais da população e pela interatividade e poten-
cialidade de recursos midiáticos que as redes sociais oferecem como suporte tanto para intera-
ção quanto para capacitação.
15
Os diversos fins de utilização nos levam a crer que conectividade das redes sociais
poderá ser utilizada também para ampliar e diversificar a prática de ensino do professor e me-
lhorar a relação entre professor e aluno, além de melhorar o processo ensino e aprendizagem.
Percebemos ampla possibilidade de uso pedagógico para diversas áreas como: Ensino de Lín-
guas, Análise do Discurso, Turnos de Fala, Geografia, História, Pesquisas diversas, Pedago-
gia, Políticas, Jornalismo entre várias outras.
Poderíamos, inclusive, listar uma série de atividades ou planos de aulas utilizando as
redes sociais como recurso pedagógico, entretanto, não é essa a finalidade desse trabalho.
Deixaremos tais ações para um trabalho próximo que envolverá pesquisas e análises de práti-
cas de alguns docentes que já se aventuraram a utilizar pedagogicamente as redes sociais co-
mo suporte didático-pedagógico para atuações tanto em cursos a distância como em cursos
presenciais.
É a interatividade que as redes sociais oferecem que serve de atrativo para o profes-
sor e para o aluno fazendo com que as relações entre ambos se fortaleçam de modo a garantir
qualidade do ensino levando o aluno a construir a aprendizagem significativa. Entretanto,
como todo recurso pedagógico, o uso didático, adequado e producente das redes sociais de-
penderá das concepções e da criatividade do professor que assume um papel de mediador,
planejando atividades interativas e de pesquisa motivando o aluno a utilizar as redes sociais
para participar ativamente do processo ensino e aprendizagem construindo o seu conhecimen-
to.
E se as redes sociais agregam milhares de acesso e se constituem como ponto de en-
contro em que milhares de pessoas se conectam por diversas finalidades, pudemos concluir
que uma dessas finalidades pode ser atividades pedagógicas, curriculares que podem planeja-
das, desenvolvidas e aplicadas pelo professor para atender o aluno fora do contexto espacial,
ou seja, em lugares diversos, tendo como ponto de encontro o espaço virtual das redes sociais.
Sendo assim, as redes sociais podem contribuir para ampliar e diversificar a prática
de ensino do professor nos cursos a distância e o seu uso pedagógico poderia fazer parte do
planejamento compondo o modelo pedagógico do curso já no planejamento.
REFERÊNCIAS
LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999. 264 p.
POWELL, Juliette. 33 milhões de pessoas na sua rede de contatos – Como criar, influenciar
e administrar um negócio de sucesso por meio das redes sociais. Tradução: Leonardo
16
Abramowicz. – São Paulo: Editora Gente, 2010. Título original: 33 million people in the
room: how to create, influence, and run a successful business with social networking.
Rede social. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Rede_social#cite_note-0> Acesso
em: 18 set. 2011.
SILVA, Marco. Educação online: teorias, práticas, legislação, formação corporativa. 2. ed.
São Paulo: Edições Loyola, 2006.
RESUMO
Com o presente trabalho desejo expor como acontece a aquisição da língua brasileira de sinais
(LIBRAS) por discentes universitários que devem obrigatoriamente fazer tal disciplina como
parte curricular. Coloca-se aqui a língua de sinais como segunda língua, visto que se tem a
língua portuguesa como primeira língua do graduando. Tendo este objetivo central, toma-se
por objetivos específicos como se da aquisição de uma segunda língua pelos discentes; como
a língua de sinais se faz presente no meio acadêmico e o que ela representa e quais os
resultados da relação ensino-aprendizagem desta língua. Apresento aqui observações, teorias
comprobatórias e explicações; para isso toma-se por metodologia a pesquisa teórica que
comprove e esclareça como acontece tal aquisição referida neste resumo, além de observações
efetuadas. As contribuições se fazem presente visto que a disciplina de LIBRAS está inserida
como componente curricular obrigatório em cursos de licenciatura e fonoaudiologia, assim
como também presente como disciplina optativa nos demais cursos de graduação.
Palavras-chave:
LIBRAS. Aquisição de segunda língua. Ensino superior.
ABSTRACT
With this paper I wish to state as it is the acquisition of Brazilian Sign Language (LBS) for
university students that must make such a course as part of the curriculum. This raises a sign
language as a second language, since it has the Portuguese language as a first language of the
student. Having this central goal, it becomes as specific goals for acquiring a second language
by students, such as sign language is present in academia and what it represents and what the
results of the teaching-learning this language. I present here observations, theories and
explanations corroborative; to this becomes a method to prove the theoretical research and
discuss this acquisition as it referred to in this summary, and observations made.
Contributions to do this since the discipline of LBS is inserted as a curriculum component
binding in undergraduate and speech therapy, as well as present as in other elective courses
for graduation.
Keywords:
LBS. Second language acquisition. Higher education.
Adquirir uma língua é não somente aprender sobre ela, mas como também conhecer ao
que ela se integra. Isto sendo observado sob o ponto de vista de uma disciplina acadêmica
gerará mais do que entendimento linguístico, ou seja, o graduando não estará a par somente de
uma língua, mas sim de aspectos lingüísticos e culturais de sujeitos que possuem uma língua
visuoespacial: os surdos.
1
Emiliana Faria Rosa; Mestra em Educação; Doutoranda em Linguística (PGLg/USFC); e-mail:
emilianarosa@gmail.com.
2
Ter a língua de sinais no currículo da universidade não gera uma mudança social
somente por essa presença. Somente se os alunos entenderem e aceitarem a língua de sinais é
que teremos uma modificação social. É o caso de alunos que já trabalham como professores e
que já tiveram a experiência em sala de aula com um aluno surdo. Este graduando terá uma
melhor receptividade da LIBRAS do que o aluno que nunca teve contato antes.
A disciplina de LIBRAS é uma tentativa diária de ensinar o respeito e a valorização da
língua de sinais, uma vez que os graduados estarão, atual ou futuramente, em contato diário
com os alunos surdos nas escolas, universidades e no próprio cotidiano. O professor de língua
de sinais deve ser visto como qualquer outro professor, capaz de educar, influenciar e
estimular seus alunos nas descobertas lingüísticas de uma língua naturalmente visuoespacial e
motivadora da possibilidade de interagir com o outro e o mundo em que se vive.
4
Ter a língua de sinais no currículo da universidade não gera uma mudança social
somente por essa presença. Somente se os alunos entenderem e aceitarem a língua
de sinais é que teremos uma modificação social. É o caso de alunos que já trabalham
como professores e que já tiveram a experiência em sala de aula com um aluno
surdo. Este graduando terá uma melhor receptividade da LIBRAS do que o aluno
que nunca teve contato antes (ROSA, 2010).
Fala-se sobre a língua de sinais e sua disciplina, mas ainda há não entendimento sobre
surdo, pois sempre foi visto como “deficiente” até a LIBRAS ser reconhecida; e mesmo com
esse reconhecimento ainda há desconhecimento. A divulgação está acontecendo aos poucos
através de mídia, palestras, cursos de formação e inclusive dentro da universidade através da
disciplina língua de sinais.
O governo acredita efetivar a inclusão social e educacional através da disciplina, a
qual teria função de capacitador a fim de que as pessoas trabalhassem com surdos. Não foi
levado em consideração que para ser fluente na LIBRAS é necessário anos de curso e
convivência com os surdos, pois a língua de sinais é complexa e tem o mesmo status e
dificuldade de aprendizagem e compreensão de qualquer língua oral.
A política educacional será vista como auxiliar em uma mudança social; afinal, a
sociedade não se modifica sozinha, mas sim a partir das relações sociais que nela existem. É a
partir dessa mudança que a sociedade pode conseguir mudar o currículo visando uma
melhoria social e, por conseguinte, educacional. Mudança esta que coloca a LIBRAS como
disciplina curricular.
Atentando a estas afirmações, pode-se “citar que todos os surdos são deficientes
auditivos, mas nem todos os deficientes auditivos são surdos, o que leva a entender que ser
surdo é ser usuário da língua de sinais naturalmente” (PONTIN, 2010).
Sobre aquisição da língua de sinais pelos discentes pode-se dizer que alunos adultos
podem possuir mais dificuldade de aprender uma segunda língua visto que sua primeira língua
é a língua portuguesa, a qual se apresenta na modalidade oral-auditiva; tal língua se difere da
língua em aprendizado que se apresenta na modalidade visuoespacial.
Outro ponto a refletir, em se tratando de aquisição, é a influência de uma língua sobre
outra. É observado que os discentes ao aprenderem a língua de sinais tentam sinalizar esta
5
2
Sinalizantes: pessoas que usam a língua de sinais.
3
Quando falamos de “maturação vencida” significa alunos com idade adulta que pode vir ter a dificuldade de
armazenar novas informações de outras línguas. Estes alunos possuem dificuldade de aprender a LIBRAS,
sinalizá-la ou ainda executar as expressões facio-corporais. Isso porque a maturação linguística no indivíduo “é
capaz de assimilar naturalmente as regras e os princípios que regem o funcionamento dessa língua, dominando-a
na forma e no uso ao fim de algum tempo. Esta faculdade pressupõe um suporte físico e estruturas mentais
exclusivas da espécie humana” (PINTO, 2005).
6
São muitas dúvidas, muitas questões sem resposta confiante. Cada professor leva em
conta muitas coisas na hora de avaliar. Há os que avaliam pela participação e
desenvolvimento durante a rotina de aulas, há os que dão provas, outros trabalhos a serem
apresentados...
Sobre isso Benedetti fala do ensino de LIBRAS a um curso superior, no caso
matemática:
E a parte teórica deve constar todos os textos possíveis como: história da educação
surda, introdução a LIBRAS, cultura e comunidade surda ou abordar somente a introdução
lingüística da língua de sinais? Em qualquer ensino de língua, antes do ensino dela, há vários
fatores que influencia e explica sobre a língua. Para valorizar a parte teórica, é necessário de
mais tempo; o que não é possível já que a disciplina de LIBRAS é ensinada num só semestre
e não há possibilidade de transmitir todas as informações.
Em se tratando da presença da disciplina no currículo acadêmico, a LIBRAS para ser
mais bem aproveitada poderia ser dividida com mais módulos, ao contrário do que apenas um
que se tem hoje em muitas universidades. Entretanto algumas universidades, ou ainda alguns
professores, não vêem essa possibilidade por questões burocráticas ou pessoais.
A aula de língua de sinais não corresponde a somente a prática, sinais soltos ou
expressões. A teoria é essencial para que o discente entenda o motivo de cursar essa
disciplina, além de perceber o que a sociedade mostra como „verdade absoluta‟ e a realidade
da comunidade surda. O aluno, a partir de então, se conscientizará da existência e necessidade
da LIBRAS no meio acadêmico e sócio-educacional.
Essa aceitação é fundamental para que se tenha desenvolvimento e interação na
disciplina tanto no curso de graduação quanto no possível uso da língua de sinais na
sociedade. Em se tratando da aceitação do corpo docente, é preciso acima de metodologias ou
ensinamentos a compreensão de que a disciplina de LIBRAS se relaciona com o contexto real
e diário na sala de aula e da própria sociedade.
7
(...) Para que o docente consiga lidar com todos os fatores que se articula em sua
prática, tem que estar bem preparado, o que nos conduz a uma problemática
recorrente: a formação do educador – que, para alcançar os resultados pretendidos,
nunca pode ser dada como concluída (GOMES, 2003, p. 51).
Pelo que é visto aqui não é fácil de ser resolvidas as observações e dificuldades.
Desafios e necessidades todos se deparam diariamente na sala de aula, o que muda é a forma
como são observados, vivenciados e solucionados. Isso porque “a sala de aula é um ponto de
encontro das diferentes histórias, dos diferentes percursos, dos diferentes saberes (...)”
(SMOLKA, 1989: 41).
Então fica o conhecimento ou reflexão do que seria adquirir a LIBRAS por parte dos
graduandos. Acredita-se que as indagações perante a proposta de inclusão “largada” de
qualquer jeito só para cumprir a lei possuem legitimidade. Fazer uma disciplina de forma
obrigatória e sem se dedicar como necessário não teria fundamento nem absorção do conteúdo
proposto.
A aquisição da LIBRAS não deve ser vista somente pelo lado do discente mas também
pelo professor. É necessário observar que o professor de língua de sinais já em sala de aula
vivencia o que foi exposto neste artigo e tenta de todas as formas equilibra-se entre o que
possui, o que pretende e o que lhe vem de encontro. Os referidos professores tendem a criar
possibilidades para superar as dificuldades e lecionar uma disciplina que ainda engatinha na
universidade.
Conclui-se que adquirir a língua de sinais é mais do que saber sinais básicos desta
língua, mas sim conscientizar-se do que a disciplina significa social, cultural e
linguisticamente para os surdos e as demais pessoas que com eles convivem.
REFERÊNCIAS
ROSA, Emiliana Faria. Professor surdo e meio acadêmico: a vida presente no tempo presente.
In: Anais do VI congresso internacional de educação. São Leopoldo: UNISINOS, 2009.
RESUMO
Este artigo investiga as Small Clauses Livres em português brasileiro, classificadas por Sibal-
do (2009) como um tipo de sentença exclamativa. Mas o que caracteriza uma sentença excla-
mativa? O padrão entoacional dessas sentenças pode ajudar nessa caracterização? Com o ob-
jetivo de responder a essas questões, primeiramente foram aplicados os testes semânticos pro-
postos em Zanuttini e Portner (2003) para a classificação das sentenças exclamativas e, em
seguida, um experimento piloto foi elaborado para comparar o padrão entoacional das SCLs e
de outras sentenças exclamativas. Neste estudo também será apresentada a proposta de Kato
(2007) para a estrutura sintática das Small Clauses Livres com o intuito de verificar se há al-
guma evidência de que o padrão entoacional e a sintaxe estão de alguma forma relacionados.
Palavras-chave:
Small Clauses Livres. Sentenças Exclamativas. Interface fonologia-sintaxe.
ABSTRACT
This paper investigates the Free Small Clauses in Brazilian Portuguese, sorted by Sibaldo
(2009) as a kind of exclamative sentence. But what characterizes an exclamative sentence?
Can the intonation pattern of these sentences help with this characterization? In order to an-
swer these questions, the tests were first applied in the proposed semantic Zanuttini and Port-
ner (2003) for the classification of exclamative sentences, and then, a pilot experiment was
elaborated to compare the pattern of intonation SCLs and other exclamative sentences. This
study will also present the proposal of Kato (2007) for the syntactic structure of the Free
Small Clauses in order to verify whether there is some evidence that the pattern of intonation
and syntax are somehow related.
Keywords:
Free Small Clauses. Exclamative Clauses. Syntax-Phonology Interface.
1 INTRODUÇÃO
O objeto de estudo do presente artigo são as sentenças denominadas Small Clauses
Livres (doravante SCLs), que são estruturas em que o predicado precede o sujeito e em que
não há, aparentemente, nenhuma cópula flexionada e nenhuma marca morfológica de tempo2.
Veja os exemplos apresentados abaixo:
1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPR; email: karinazendron@gmail.com.
2
Embora não haja nenhuma marca morfológica de tempo na superfície, segundo Sibaldo (2009) o tempo presen-
te é entendido subjacentemente.
2
Este artigo será assim dividido: na segunda seção farei uma revisão da literatura so-
bre as SCLs, na terceira seção apresentarei as sentenças que serão testadas, na quarta seção
farei uma rápida revisão do artigo de Zanuttini e Portner (2003) para, em seguida, aplicar os
testes semânticos sobre o corpus, na quinta seção farei uma rápida apresentação dos resulta-
dos de um dos experimentos piloto descritos em Zendron da Cunha (2011) para que, final-
mente, na sexta seção, sejam apresentadas as conclusões.
2 AS SCLS
2.1 Kato (2007)
Kato (1988)3 foi a primeira autora brasileira a trabalhar com as Small Clauses Livres,
termo que ela mesma cunhou4. A primeira observação de Kato (2007) a respeito das SCLs é
sobre a ordem dos constituintes dessa construção, que deve ser sempre Predicado + Sujeito,
caso contrário as sentenças tornam-se agramaticais. Veja os exemplos abaixo (KATO, 2007,
p. 88, ex. 7):
Outra restrição colocada por Kato diz respeito ao tipo de adjetivo que pode acontecer
em uma SCL. Kato afirma que apenas adjetivos individual level podem acontecer nessas
construções:
Como podemos observar no exemplo (3) a construção com o adjetivo individual le-
vel em (3a) é considerada gramatical por Kato, já a construção em (3b), com o adjetivo stage
level é considerada agramatical. Porém, como veremos na subseção 2.2, não é tão claro que
essa restrição seja mesmo válida, a começar pelo exemplo (3b), que parece ser gramatical
3
KATO, M. Free and Dependent Small Clauses in Brasilian Portuguese. Handout apresentado no GT de Teoria
da Gramática, 1988.
4
Na verdade o termo empregado por Kato é Free Small Clauses, traduzido por ela como mini-orações livres,
mas os pesquisadores têm geralmente mantido o termo Small Clause, traduzindo apenas a palavra free.
5
Exemplos retirados de Kato (2007, p. 88, ex. 8).
3
para os falantes do PB, assim como uma série de outras construções com predicado do tipo
stage level.
Kato (2007) também fala sobre a estrutura das SCLs, que ela considera semelhante a
das clivadas:
Dessa forma, é fácil perceber a semelhança entre a SCL em (5) e a clivada em (4),
com a diferença de que na SCL o traço +F está no adjetivo.
A terceira cópula6, segundo Kato (2007, p. 23) pode ser apagada em PF quando está
no início da sentença (a palavra destacada em itálico representa a “terceira cópula”):
Segundo Kato, o que distingue uma sentença clivada finita comum de uma SCL é
que a terceira cópula é apagada e, dessa forma, as SCLs em PB são ordinariamente sentenças
clivadas finitas comuns. Se essa análise estiver no caminho certo, é possível hipotetizar um
mesmo padrão entoacional para as SCLs e para as clivadas (que são, em geral, estruturas de
foco identificacional), que exibem mudança de tessitura após a realização do foco. Para veri-
ficar essa hipótese, apresentarei, na seção (5) um dos experimentos pilotos já descritos em
Zendron da Cunha (2011).
6
O termo „terceira‟ é utilizado para fazer menção a este tipo de cópula, uma vez que Kato (2007) levanta outros
dois tipos de cópula (a cópula atributiva „ser‟ e a cópula stage level „estar‟).
4
tes: Predicado + DP (...)". Para verificar se as SCLs são mesmo sentenças exclamativas, pro-
pus os testes apresentados na seção quatro.
Outra observação de Sibaldo (2009b) que quero salientar no presente artigo é o fato
de que o predicado de uma SCL deve ser restrito à categoria adjetival e que o adjetivo deve
ser graduável, excluindo sentenças como as apresentadas em (7):
Segundo o autor, as sentenças (7a) e (7b) são agramaticais não apenas pelo fato de o
adjetivo não ser graduável, mas também pelo fato de os predicados dessas sentenças serem
adjetivos do tipo stage level, que, segundo Kato (2007), não podem acontecer nas SCLs. En-
tretanto, como já foi comentado em nota na subseção 2.1, essa restrição colocada por Kato
(2007) não parece funcionar em todos os casos. Veja os exemplos abaixo:
3 O CORPUS
Observe a seguir as sentenças que serão utilizadas nos testes semânticos da seção 4 e
no experimento piloto da seção 5:
7
Essa sentença é apresentada como agramatical em Kato (2007, p. 88).
5
(11) Clivadas:
a. É linda que a sua meia é.
b. É horroroso que o namorado da Maria é!
c. É louco que esse homem tá.
(12) SCLs:
a. Linda a sua meia!
b. Horroroso o namorado da Maria!
c. Uma merda as novelas da Globo!
d. Muito bonito o anel da Maria!
4 OS TESTES SEMÂNTICOS
4.1 Zanuttini e Portner (2005)
Zanuttini & Portner (2005), assim como Sadock e Zwicky (1985) 8, dividem os tipos
sentenciais conforme um par que abrange forma gramatical e uso conversacional. Para classi-
ficar as sentenças exclamativas, os autores utilizam essa noção de tipo sentencial. A forma
gramatical apresenta propriedades sintáticas e semânticas como as apresentadas abaixo:
8
SADOCK, J. M.; ZWICKY, A. Speech act distinctions in syntax. In: Language Typology and syntactic de-
scription. Cambridge: Cambridge University Press, 1985, p. 155-196.
9
Neste trabalho não daremos atenção às propriedades sintáticas apresentadas no artigo de Zanuttini e Portner
(2003).
6
xadas na estrutura “Não é surpreendente...”, embora possam ser encaixadas em sua contrapar-
te positiva:
(21) A: A Maria come muito doce? B: *Quanto doce a Maria come! / Eu não sei.
10
O papel de widening nessa análise fica mais claro se relacionado com o conceito familiar de força sentencial
(enquanto membros de vários tipos de orações podem ser associados com a força ilocucionária de exclamar,
apenas os membros do tipo de oração exclamativa são convencionalmente associados com essa força sentencial.)
8
4.2.4 Resultados
O grupo que nomeei “exclamativas prosódicas”, não passa nos testes de factividade,
implicatura escalar e relação pergunta/resposta. Nesse caso, essas sentenças não fazem parte
do grupo das sentenças exclamativas. Veja a aplicação dos testes abaixo:
c. Eu odeio o Léo!
9
Factividade:
A Maria *sabe/*pensa/*pergunta eu odeio o Léo!
Eu não *sei/*percebo eu odeio o Léo!
Implicatura escalar:
*Não é surpreendente que eu odeio o Léo!
É surpreendente que eu odeio o Léo!
Não é surpreendente que eu odeio o Léo?
*É surpreendente que eu odeio o Léo?
Pergunta/Resposta:
A: Eu odeio o Léo! B: *Eu não sei/ *não
A: O que você sente pelo Léo? B: Eu odeio o Léo!
d. Como tu te iludes!
Factividade:
A Maria sabe/*pensa/*pergunta como tu te iludes.
Eu não *sei/*percebo como tu te iludes.
Implicatura escalar:
*Não é surpreendente como tu te iludes!
É surpreendente como tu te iludes!
Não é surpreendente como tu te iludes?
*É surpreendente como tu te iludes?
/Pergunta/Resposta:
11
primeiro momento parece ser um problema. Entretanto, essas estruturas passam nos testes de
implicatura escalar e relação pergunta/resposta.
Se recorrermos ao argumento de Sibaldo (2009), o teste de factividade não nos im-
pediria de classificar as SCLs como sentenças exclamativas, uma vez que as SCLs “(...) são,
como o próprio nome diz, “livres” e não podem ser encaixadas” (SIBALDO, 2009, p, 132).
Essa argumentação do autor é construída sobre a hipótese de que as SCLs são TPs raízes1112.
(24) SCLs:
11
Neste artigo não darei detalhes da proposta de Sibaldo para a estrutura das SCLs, mas caso o leitor tenha inte-
resse pode consultar as referências ao final deste trabalho.
12
Outro argumento é o de Renato Basso (comunicação pessoal) que sugere que o teste de factividade não se
aplica às SCLs já que essas sentenças, aparentemente, não têm valor de verdade, pois expressam uma opinião do
falante e não uma verdade incontestável. Por exemplo, se Maria acha o menino bonito, dizendo “Muito bonito
esse menino”, o João pode não achar o mesmo.
13
5 O EXPERIMENTO
O experimento apresentado nesta seção foi descrito com mais detalhes em Zendron
da Cunha (2011) como o segundo experimento piloto e, originalmente, contém mais sentenças
do que as apresentadas na seção 3 (excluí desse artigo as Small Clauses Dependentes (SCDs)
porque elas não são de interesse no momento).
A metodologia utilizada neste experimento é baseada em Seara e Figueiredo Silva
(2007) que argumentam a favor da coleta de dados de fala semi-espontânea. Para isso, utilizei
a leitura dirigida, ou seja, através do programa Power Point, apresentei ao informante as sen-
tenças inseridas em contextos que favoreciam a interpretação relevante para o propósito desta
pesquisa. As sentenças foram apresentadas em ordem aleatória para que o informante não
ficasse condicionado a repetir a mesma entoação para todas as sentenças. As sentenças testa-
das foram divididas em seis grupos, somando vinte e duas sentenças. Além da primeira grava-
ção, foram feitas duas repetições para garantir a integridade dos dados. Dessa forma, os dados
contabilizaram sessenta e seis sentenças.
Nesse experimento, apenas um informante do sexo feminino, com 30 anos, pós-
graduanda, foi gravada.
Para a gravação foi utilizado o programa Cubase e o microfone Shure KSM 27, com
taxa de amostragem do sinal a 44.100Hz por 16bit. Para a análise dos dados utilizei o PRA-
AT, versão 5.1.38 e do script MOMEL/INTSINT for PRAAT, versão 10.313.
5.1 Resultados
O objetivo de realizar esse experimento foi o de estabelecer um padrão entoacional
para as sentenças exclamativas, dessa forma, as sentenças apresentadas na seção 3 foram tes-
tadas.
As sentenças classificadas como exclamativas prosódicas apresentaram um padrão
entoacional instável, ou seja, em certos momentos o padrão entoacional se aproximava ao das
sentenças clivadas e SCLs e, em outros, ao das declarativas neutras, cf. Moraes (1998, p.
183).
13
Para mais detalhes sobre esses scripts recomendo a leitura de CELESTE, L. C. MOMEL e INTSINT: uma
contribuição à metodologia do estudo prosódico do português brasileiro. 2007. 222f. Dissertação (Mestrado em
Linguística) – Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.
15
Figura 1 – Tela do programa PRAAT com a transcrição da curva de pitch da sentença “Como é lindo aquele
homem!” realizada pelo INTSINT.
A Figura 1 mostra, em azul, a curva de pitch da sentença “Como é lindo aquele ho-
mem”. O foco aparece logo no início da sentença principalmente sobre a palavra „lindo‟, ime-
diatamente após a palavra „como‟, seguido de uma descida considerável da curva azul até o
final da sentença, o que indica que o falante abaixou de forma considerável a sua frequência
fundamental com relação às frequências mais altas e mais baixas do resto da sentença. Obser-
ve que a linha vermelha horizontal que inseri sobre a curva azul deixa mais claro que a parte
final do enunciado é produzida em uma faixa de frequência mais baixa do que a do resto da
sentença, caracterizando o que a fonética acústica chama de mudança de tessitura14.
14
Para falar em mudança de tessitura é preciso primeiro entender o que á a tessitura: “A tessitura refere-se à
extensão da escala melódica usada pelo falante, ou seja, os limites reais onde se situam seus tons mais baixos e
mais altos quando fala. Alguns falantes tendem a ter uma escala melódica mais alta do que outros” (CAGLIARI,
2007, p.128). Entendendo melhor o que é a tessitura podemos falar da variação na tessitura, que ocorre quando a
frequência fundamental é aumentada ou abaixada de forma considerável com relação às frequências mais altas e
mais baixas que o falante costuma usar em sua fala normal. Segundo Cagliari e Massini-Cagliari (2001) essa
mudança na faixa de frequência fundamental costuma ocorrer em ambientes sintáticos bastante precisos.
16
Observe agora que a transcrição de pitch da sentença é feita em três faixas horizon-
tais localizadas abaixo do espectograma. A primeira faixa mostra os valores de F0 da estiliza-
ção feita pelo MOMEL, a segunda mostra a transcrição para símbolos tonais feitas pelo INT-
SINT e a terceira mostra os valores de F0 após os cálculos do INTSINT. Para destacar os va-
lores mais alto e mais baixo de pitch dessa sentença usei quadros vermelhos. Assim, o primei-
ro quadro mostra o valor mais alto da sentença, representando o foco e o segundo quadro
mostra o valor mais baixo da sentença, localizado ao final da sentença. Esses valores mostram
a grande variação que ocorre na tessitura.
As demais sentenças apresentadas em (10), no capítulo três, apresentam padrão ento-
acional bastante semelhante ao que aparece na Figura 1: o acento proeminente localizado logo
em seguida do elemento WH e uma queda da frequência fundamental logo após esse acento,
caracterizando a mudança na tessitura.
Agora analisaremos as sentenças apresentadas em (11), na seção três, as clivadas.
Veja a seguir uma das telas geradas pelo INTSINT para uma produção da sentença (11c):
Figura 2. Tela do programa PRAAT mostrando a transcrição da curva de pitch da sentença “É louco que esse
homem tá!” realizada pelo INTSINT.
Figura 4. Tela do programa PRAAT mostrando a transcrição da curva de pitch da sentença “Muito bonito o anel
da Maria!” realizada pelo INTSINT.
6 CONCLUSÕES
As questões levantadas nesse trabalho foram: (1) o que caracteriza uma sentença ex-
clamativa? e (2) o padrão entoacional dessas sentenças pode ajudar nessa caracterização? Ao
longo deste artigo outras questões foram colocadas a partir da apresentação de propostas co-
mo a de Kato (2007) que atribui para as SCLs a mesma estrutura das clivadas. Além disso,
como o próprio título deste artigo já mostra, quero responder se as SCLs são mesmo sentenças
exclamativas.
Respondendo à primeira pergunta, se tomarmos o argumento de Zanuttini e Portner
(2003), as exclamativas caracterizam-se por serem factivas, por denotarem um conjunto de
proposições alternativas e por ativarem a operação widening (que está relacionada ao “sentido
de surpresa”, “imprevisibilidade”, “grau extremo” das exclamativas). Além disso, Zanuttini e
Portner (2003) propuseram uma série de testes semânticos, os quais foram aplicados ao meu
corpus. Com isso, concluí que são exclamativas as sentenças que classifiquei como exclama-
18
tivas canônicas e SCLs. O grupo que classifiquei como exclamativas prosódicas não passou
nos testes e, portanto, não é considerado um subtipo de exclamativa.
Para responder à segunda pergunta, recorri ao experimento descrito na seção cinco,
que resultou nas seguintes conclusões:
1. Imprecisão no que diz respeito ao padrão entoacional das sentenças classificadas
como exclamativas prosódicas. Essa imprecisão provavelmente é devida ao fato de
que, conforme os resultados dos testes semânticos, essas sentenças não se compor-
tam como sentenças exclamativas;
2. As exclamativas canônicas têm um padrão entoacional muito parecido com o das
SCLs e, uma vez que o acento focal dessas sentenças recai sempre sobre o sintag-
ma WH e após o foco, há um abaixamento na curva de pitch, caracterizando mu-
dança de tessitura.
Com os resultados desses experimentos, reforçamos a ideia de que há uma relação
entre padrão entoacional e sintaxe, uma vez que tanto o foco da sentença quanto a queda da
faixa de frequência fundamental parecem ocorrer em ambientes sintáticos bastante precisos: o
foco recai sempre sobre o adjetivo nas SCLs, entre a cópula e o CP nas clivadas e sobre o
sintagma WH nas exclamativas canônicas; dessa forma, a queda na faixa de frequência ocorre
sempre depois do foco sentencial.
Por fim, o fato de as SCLs e as clivadas apresentarem um padrão entocional tão pa-
recido pode fortalecer a análise de Kato (2007), que defende uma mesma estrutura sintática
para ambas as construções.
7 REFERÊNCIAS
KATO, M. Free and dependent small clauses in Brazilian Portuguese. DELTA, vol. 23, PUC-
SP, São Paulo, 2007. p. 85-111.
MORAES, J. A. Intonation in Brazilian Portuguese. In: HIRST, D. & Di Cristo (Org.). Into-
nation systems: a survey of twenty languages. Cambridge University Press, Cambridge,
1998.
19
SIBALDO, M. A. A sintaxe das small clauses livres do Português Brasileiro. 2009a. 202 f.
Tese (Doutorado em Linguística) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Alagoas,
Maceió.
_____. Qual a estrutura das Small Clauses Livres do Português Brasileiro? In: Revista Le-
tras, Curitiba, n.º 78, p. 125-145, maio-ago. 2009b. Editora UFPR.
RESUMO
A aula de língua estrangeira sempre esteve aberta às inovações que chegam das tecnologias
informáticas e digitais. O ensinar e o aprender na cultura digital estão inseridos também e
principalmente nas aulas de línguas estrangeiras através de espaços virtuais de trabalho. Estes
espaços virtuais mudaram a forma de pensar, de agir, interagir e de aprender. É proposta deste
artigo, analisar a relevância das tecnologias digitais e dos espaços virtuais, que servem como
local de aprendizagem, e as implicações que esses meios oferecem aos processos de ensino e
aprendizagem, mediados pela teoria de Vygotsky. As reflexões e as propostas estão pautadas
na utilização do suporte digital Glogster em aulas de língua espanhola e inglesa como línguas
estrangeiras. O Glogster é uma rede social que permite a criação de cartazes virtuais gratuitos
e interativos, denominados glogs. Os leitores podem interagir com o conteúdo apresentado
nos cartazes virtuais. A utilização deste recurso permite uma maior aproximação da língua
estudada à vida do aluno, pois o aluno sai do âmbito de espectador para o de produtor.
Palavras-chave:
Tecnologias digitais. Vygotsky. Língua estrangeira.
ABSTRACT
Information and digital technology has always been welcomed in the foreign language
classroom. The teaching and learning in the digital age is now also and mainly part of the
foreign language classes due to the use of virtual workspaces. This virtual environment has
changed the way we think, act, interact and learn. Therefore, the aim of this article is to
analyze the relevance and the implications of the use of digital technology and virtual
workspaces in the teaching and learning process. All considerations made in this paper are
supported by Vygotsky’s theory. The reflections and proposals offered here refer to the use of
Glogster in the Spanish and English as a foreign language classes. Glogster is a social
network that allows users to create interactive virtual posters or glogs for free. Unlike regular
posters, glog readers can interact with the content created in the website. By using the
resources provided in this social network, the language being studied gets closer to learners’
real lives once they become not just the spectators but also and mainly the producers.
Keywords:
Digital technology. Vygotsky. Foreign language
1
Professora de Língua Espanhola no Programa de Línguas Estrangeiras da Universidade de Caxias do Sul; e-
mail: simoneviapiana@gmail.com.
2
Professora de Língua Inglesa no Programa de Línguas Estrangeiras da Universidade de Caxias do Sul; e-mail:
ottschulz@gmail.com.
2
1 INTRODUÇÃO
O artigo divide-se em três partes. Na primeira parte, discutiremos o ensinar e
aprender na cultura digital. Na segunda parte, analisaremos a relevância da utilização das
tecnologias digitais e suas aplicações e implicações nos processos de ensino e aprendizagem,
tendo como base a teoria de Vygotsky. Finalmente, na terceira parte, apresentaremos algumas
propostas de interação da língua estrangeira com as tecnologias digitais.
3
Este termo foi cunhado por Mark Prensky (2001) para descrever a geração que nasceu interagindo com as
tecnologias digitais.
4
livros. Este professor faz uso de recursos tecnológicos mais modernos sem, contudo, mudar a
proposta, a metodologia de ensino. De acordo com Fagundes (2010), utilizar os recursos
tecnológicos sem aliar a uma metodologia adequada é “ensinar para torturar, para manter os
alunos na mediocridade”.
Por isso, é preciso compreender que este modelo já não se sustenta mais nesta nova
cultura. Segundo Bairon (2010), “os estudantes hoje são e querem ser criadores de conteúdo,
eles querem aprender desde que possam interagir”.
É claro que para atender as necessidades contemporâneas, o professor,
principalmente o imigrante digital, precisa apropriar-se dessa cultura, isto é, precisa interagir
com estas ferramentas digitais. Ele precisa construir-se com base nas transformações
socioculturais impostas pelo meio, mas precisa, principalmente, entender que o sujeito da
aprendizagem é um sujeito interativo.
Para Schlemmer (2006), precisamos criar ambientes de aprendizagem que
incorporem a nova tecnologia com o propósito de
qual o homem constrói a cultura e a cultura constrói o homem. Por isso, somos sabedores que
o contato com diferentes culturas propicia o desenvolvimento de diferentes funções cognitivas
no homem, ou seja, o desenvolvimento intelectual do homem é determinado histórica e
culturalmente. O homem é moldado pela cultura que ele próprio cria.
Vygotsky (2007), explica que toda a relação do homem com o meio (físico ou social)
é mediada. Este pensador considera dois elementos básicos na mediação: o instrumento
técnico e o signo (ou instrumento simbólico), ambos construídos historicamente. O homem se
desenvolve culturalmente por meio do uso de instrumentos. O instrumento técnico tem a
função de regular as ações do homem sobre os objetos e o instrumento simbólico sobre o
psiquismo. A linguagem, considerada um instrumento simbólico, é o principal mediador no
desenvolvimento cognitivo humano. Conforme aponta Vygotsky,
dos nativos digitais aprende da mesma forma que os imigrantes digitais? O pedagogo francês
Phillippe Meireu (1998, p.37) aponta que,
quais os alunos constroem conhecimento ao mesmo tempo em que melhoram e ampliam não
só a percepção como a cognição.
típico espanhol localizado na Serra Gaúcha. Cabe ressaltar que o material no que se refere à
publicidade do restaurante deve ser todo virtual, ou seja, elaborado através do suporte digital
Glog e de outras ferramentas como jotform, o tondoo, etc.
Para melhor orientar a produção do projeto, o professor precisa estabelecer os passos
do trabalho como: i) escolha de uma cidade ou região da Espanha que dá origem ao
restaurante; ii) pesquisa sobre os alimentos, pratos típicos, costumes, localização geográfica
da região escolhida; iii) criação do nome original e a história do restaurante; iv) construção
do logotipo e slogan do restaurante; v) elaboração do cardápio com fotos e explicação dos
pratos; vii) inserção de vídeos e músicas relativas à comunidades da Espanha pesquisada: viii)
elaboração de um questionário sobre a gastronomia espanhola.
Durante a realização do projeto de trabalho, o professor pode criar um fórum para
que os alunos esclareçam dúvidas, para que postem dicas de sites e de recursos que encontram
para melhorar e facilitar o processo de criação do Glog.
Durante a construção do Glog pelas duplas de alunos, os colegas visualizam o
trabalho realizado pelos outros colegas, interagem compartilhando as descobertas de como
inserir imagens, vídeos, questionários e deixando comentários4, uma vez que para a maioria
dos alunos o recurso Glogster é uma novidade. Para finalizar a etapa no Glogster, os alunos
podem voltar ao Glog inicial, elaborado pelo professor, para responder a um questionário de
auto-avaliação.
Após o término de todos os projetos, os alunos podem compartilhar suas produções
em uma variedade de contextos educativos. Os Glogs podem ser incorporados em um blog,
em uma wiki, ou página da web ou ainda partilhar com outras pessoas, bem como serem
apresentados à classe.
Como conclusão do projeto de trabalho, sugerimos uma mostra culinária de cada
restaurante criado, com o cardápio, seu(s) prato(s) típico(s) e a história do restaurante.
Desta forma, o professor não precisa fazer uso de uma lista de léxico referente aos
alimentos, desprende-se, também, do trabalho de desbravar todas as regras gramaticais por si
só, tampouco necessita dedicar horas e horas frente à turma fazendo exposição sobre as
4
O glogster.edu é uma ferramenta que permite a visualização dos trabalhos de todos os que compõem a sala de
aula virtual do professor.
13
5
Classificação sugerida pelo Quadro Comum Europeu de Referência para as Línguas: aprendizagem, ensino e
avaliação (QCER) para descrever o nível de proficiência na língua, onde A refere-se a Usuário Elementar, B a
Usuário Independente e C a Usuário Proficiente. Cada nível é subdividido em 1 e 2 sendo que o nível 2 indica
uma proficiência superior a do nível 1.
6
http://lisios.glogster.com/mysteries/
14
Pode-se sugerir que, em casa, realizem a tarefa proposta em Can you answer these
questions? adicionada ao Glogster. As perguntas são apresentadas utilizando os recursos
disponíveis no jotform conforme Figura 3
15
Após a realização destas atividades, sugerimos que criem seus próprios glogs sobre
algum lugar ou coisa misteriosa. Podem buscar ideias e informações na Internet bem como
utilizar dicionários online e ou interagir com os colegas solicitando e oferecendo ajuda quanto
à utilização dos recursos.
Sem que o professor precise ensinar de forma explícita aos alunos, conforme
proposto em alguns livros didáticos, o uso da voz passiva, os aprendizes podem fazê-lo
naturalmente ao apontar fatos como a época em que determinada construção foi feita, como e
por quem foi realizada, etc.
Ao final ou mesmo durante a realização do trabalho os alunos podem interagir
deixando sugestões ou comentários ou ainda auxiliando ou pedindo ajuda aos colegas quanto
à utilização dos recursos.
5 CONCLUSÃO
Observamos que as propostas expostas acima permitem que se saia do estudo linear
da sala de aula ou da cópia digital da Internet para ir a um espaço de criação e apropriação do
conhecimento. É na prática, com dados disponibilizados na rede mundial e com os suportes
digitais oferecidos neste ambiente que os alunos podem construir conhecimento, interagir com
o colega, com o meio e com as ferramentas, proporcionando uma aproximação maior às
questões de língua e cultura.
Neste artigo foram feitas algumas reflexões e propostas sobre o uso das tecnologias
digitais nas aulas de línguas estrangeiras. Acreditamos que muito mais poderá ser construído e
compartilhado, uma vez que, o campo é vasto.
16
6 REFERÊNCIAS
7
Podemos dizer que o material autêntico é aquele produzido sem uma explícita intenção didática.
17
MEIREU, Philippe. Aprender... sim, mas como? Tradução Vanise Dresch, 7 ed. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1998.
PRENSKY. Mark. Digital Natives, Digital Immigrants, Part II: Do They Really Think
Differently? In: PRENSKY, Marc. On the Horizon. NCB University Press, Vol. 9 No. 6,
December 2001. Disponível em: http://www.marcprensky.com/writing Acesso em 14 de abril
de 2010.
VYGOTSKY, L. S. A Formação Social da Mente. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo
RESUMO
O presente artigo propõe avaliar como tem ocorrido o emprego das TIC’s nas escolas públicas
de ensino fundamental no norte do Paraná. Para isso, aplicamos, como instrumento de coleta
de dados, um questionário a professores da rede pública das cidades de Londrina e Cambé. O
questionário é composto por seis questões subjetivas e uma subjetiva. Os resultados mostram
que, embora a maioria dos professores acredite que o uso das TIC’s facilita o processo de
ensino-aprendizagem, alguns ainda resistem à sua utilização em sala de aula. Além disso, os
números indicam que a TV Pendrive, fornecida a todas as escolas da rede pública do Paraná e
presente em muitas salas de aula, é utilizada raramente por um número significativo de
professores, os quais não costumam recorrer a recursos midiáticos, como datashow,
retroprojetor e outros.
Palavras-Chave:
Ensino-aprendizagem. Letramento digital. Escola pública. Ensino fundamental.
ABSTRACT
This article proposes to evaluate how the use of information technology and communication
(TIC´s) has been occurred in elementary public schools in northern of Paraná. For this, we
applied as an instrument of data collection, a questionnaire to teachers in public schools in the
cities of Londrina and Cambe. The questionnaire consists of six objective questions and one
subjective. The results show while most teachers believe that the use of TIC´s improves the
process of teaching and learning, some are still resisting using in the classroom. Moreover,
the numbers indicate that TV Pendrive, provided to all public schools in Paraná and present in
all classrooms, it is rarely used by a significant number of teachers, who do not usually use
media resources such as data projectors, and other overhead.
Key-words:
Teaching and learning. Digital literacy. Public school. Elementary school.
1
Professora da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, campus Londrina. Doutora em Linguística e
Língua Portuguesa pela UNESP/Araraquara; e-mail: alessandradutra@utfpr.edu.br ou
alessandradutra@yahoo.com.br.
2
Professora da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, campus Londrina. Doutoranda em Estudos da
Linguagem pela UEL; e-mail: leticia_storto@hotmail.com ou le_storto@yahoo.com.br.
3
Professor da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, campus Cornélio Procópio. Doutor em Educação
pela UNESP/Marilia; e-mail: vanderley@utfpr.edu.br.
2
1 INTRODUÇÃO
A reflexão a respeito das questões que envolvem o processo de ensino e
aprendizagem tem se modificado nas últimas décadas por causa das novas tecnologias, que
estão cada vez mais presentes nas salas de aula. Há uma década, a mídia utilizada em sala
limitava-se ao uso do videocassete, mas hoje os estudantes levam seus próprios computadores
para as aulas, há TV multimídia em muitas escolas públicas e nossos alunos têm cada vez
mais informação a respeito de como empregar os recursos tecnológicos a seu favor. No estado
do Paraná, por exemplo, a rede pública de ensino fundamental e médio recebeu, em suas salas
de aulas, televisores classificados como TV Pendrive (imagem ilustrativa em anexo), ou seja,
televisores de 29 polegadas com entradas para VHS, DVD, cartão de memória e pendrive e
saídas para caixas de som e projetor multimídia. Além disso, cada professor recebeu um
dispositivo pendrive para poder utilizá-la. Com esse dispositivo, o docente pode salvar objetos
de aprendizagem para usar em sala de aula. Além disso, foram disponibilizados na página
eletrônica do Ministério da Educação do governo do estado do Paraná
(http://www.educacao.pr.gov.br/), Portal Dia a Dia Educação, materiais para consulta e uso do
professor, como livro didático4, dissertações e teses, vídeos, áudios, entre outros.
4
Disponível em:
http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/diaadia/diadia/arquivos/File/livro_e_diretrizes/livro/portugues/seed_port_e_book.pdf
3
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
A educação na atualidade vem sofrendo muitas transformações. Uma delas é a
presença nas novas tecnologias de informação e comunicação que permeiam a vida dos
indivíduos sem que, muitas vezes, seja percebida. Com esse advento, o processo de ensino-
aprendizagem e todo contexto escolar precisam se adequar.
4
Pensar em adentrar em uma sala de aula da maioria das escolas do país com giz
apenas não faz mais sentido para os alunos e, também, para os professores. É a tecnologia
atual, que não pode estar ausente das escolas, ou seja, há a necessidade de se repensar no
papel do professor, em sua formação permanente, no uso das novas tecnologias com o intuito
de formar alunos e não apenas para acessar e veicular informações.
Se pensar em educação na atualidade sem a presença das mídias interativas é
algo impossível de se imaginar, por outro lado não é a tecnologia que subsidiará um ensino de
qualidade, que promova o crescimento pessoal e profissional dos indivíduos e que conduza o
país ao crescimento econômico.
Segundo Moran (2009, p. 13), a expectativa é que as novas tecnologias trarão
soluções rápidas para o ensino. Elas permitem ampliar o conceito de aula, de espaço, de
tempo, de comunicação audiovisual, e de estabelecer pontes novas entre o virtual e o visual,
entre o estar juntos e o estarmos conectados a distância. Mas, quem dera ensinar dependesse
somente de tecnologias. Sem dúvida, elas são importantes mais não resolver questões
inerentes ao processo de ensino-aprendizagem. Tais questões são desafios maiores que, nós,
professores, enfrentamos em todas as épocas e particularmente agora em que estamos
pressionados pela transição do modelo de gestão industrial para o da informação e do
conhecimento.
O mesmo autor ainda difere ensino de educação. Segundo ele, o primeiro
organiza-se uma série de atividades didáticas para ajudar os alunos a compreender áreas
específicas do conhecimento, já o segundo, além de ensinar, é ajudar a integrar ensino e vida,
conhecimento e ética, reflexão e ação, a ter uma visão holística de totalidade. A partir desses
conceitos, se formos avaliar o ensino público da atualidade vemos salas numerosas,
professores com excessiva carga horária e jornada de trabalho, salários incompatíveis com o
que seria o ideal, muitos alunos desinteressados, violência presente nas escolas, infraestrutura,
muitas vezes, deficitária, entre outros problemas.
No entanto, é necessário que o professor enfrente os problemas existentes no
contexto escolar e tente colocar em prática seu trabalho no sentido de proporcionar aos alunos
um ensino e uma educação de qualidade. O trabalho com os recursos tecnológicos permearão
5
e proporcionarão subsídios para trabalhar e formar cidadãos nas duas instâncias: no ensino e
na educação. No ensino porque, quando o professor utiliza a informática para implementar
seu trabalho em sala de aula, ele o faz para trabalhar conteúdos de sua disciplina, para que o
aluno adquira conhecimentos específicos de uma ou mais áreas. Ao mesmo tempo, vai
proporcionar ao educando conhecimento tecnológico e, assim, contribuir para a
democratização do acesso à informação. Desse modo, todos os envolvidos têm a oportunidade
de construir conhecimento científico, por meio da interação com os recursos midiáticos, ou
seja, dependendo do trabalho que o professor realiza, integra o aluno à vida, leva-o à reflexão
faz com que ele tenha uma visão de maior totalidade.
O fato das novas tecnologias permearem todo o processo educacional na
atualidade, o papel do professor e todo o percurso trilhado pela linguagem oral e escrita não
podem ser deixados de lado. Behrens (200, p. 74) afirma que na era digital o professor tem a
possibilidade de romper barreiras dentro de sala de aula, na qual se criam possibilidades de
encontros presenciais e virtuais, que levam o aluno a acessar informações disponibilizadas no
universo da sociedade do conhecimento. Segundo a autora, o docente serve-se da informática
como instrumento de sua prática pedagógica, consciente de que a lógica de consumo não pode
ultrapassar a lógica da produção de conhecimento. Nesse aspecto, o computador e a rede
devem estar a serviço da escola e da aprendizagem.
Cabe salientar que o trabalho com os recursos midiáticos não exclui ou descarta todo
o percurso realizado pela linguagem oral e escrita. Além disso, aprendizagem torna-se muito
mais significativa quando parte das situações vividas cotidianamente pelos alunos, os quais
utilizam assiduamente os recursos midiáticos disponíveis, como computadores conectados à
rede mundial, MPs, celulares, entre outros. Eles se sentem mais à vontade ao pesquisar em
textos a partir de links da internet, o chamado hipertexto do que somente em livros
tradicionais. Aprendemos com mais facilidade quando há interesse ou necessidade.
No entanto, ensinar com as novas mídias só será uma revolução se mudarmos
simultaneamente os paradigmas convencionais com os quais estamos acostumados e que
mantêm distantes professores e alunos. Caso contrário, conseguiremos dar um verniz de
modernidade, sem mexer no essencial.
3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Para a realização da pesquisa, foi elaborado um questionário como instrumento de
coleta de dados composto por seis questões objetivas e uma discursiva. Esse questionário foi
prontamente respondido professores do ensino fundamental de escolas públicas de Londrina e
6
sempre ou quase
sempre
às vezes
raramente
nunca
2. Quais ferramentas elencadas abaixo você costuma utilizar? Assinale a frequência e diga o porquê dessa
frequência de uso.
( ) TV pendrive
( ) sempre ( ) quase sempre ( ) às vezes ( ) raramente ( ) nunca
( ) Rádio
( ) sempre ( ) quase sempre ( ) às vezes ( ) raramente ( ) nunca
( ) Datashow
( ) sempre ( ) quase sempre ( ) às vezes ( ) raramente ( ) nunca
( ) Retroprojetor
( ) sempre ( ) quase sempre ( ) às vezes ( ) raramente ( ) nunca
3. Você acredita que o emprego das multimídias facilita o processo de ensino e aprendizagem?
( ) muito
( ) razoável
( ) pouco
( ) nada
9
Nas respostas a essa pergunta, verificamos que: 53% dos docentes questionados
acreditam que o uso de recursos facilita o processo de ensino-aprendizagem; 40% afirmam
que facilita razoavelmente; e 7% acreditam que facilita pouco. Isso demonstra que ainda não
há consenso a respeito das TIC’s em aulas, o que pode diminuir a recorrência de sua
utilização nas escolas.
A questão seguinte buscava determinar o que pensam os professores acerca do gosto
dos estudantes pelo uso das TIC’s.
4. Você considera que os alunos apreciam o emprego de recursos de multimídias em sala de aula?
( ) muito
( ) razoável
( ) pouco
( ) nada
Por quê?
_______________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
Em relação à preferência dos alunos, 53% dos entrevistados afirmaram que os alunos
apreciam muito os recursos e 47% disseram que os alunos apreciam razoavelmente. O
professor P05 afirmou que:
Por fazer parte do cotidiano dos alunos, acredito que eles conseguem se concentrar melhor quando recursos
multimídia são utilizados.
Porque chama mais a atenção, é mais “agradável” do que uma exposição apenas oral.
Essa resposta demonstra a preocupação docente em tornar suas aulas mais atrativas
aos estudantes, auxiliando, assim, o processo de ensino-aprendizagem, já que aluno
interessado ouve e participa mais, aprendendo mais por consequência.
A quinta pergunta era a respeito dos momentos de suas aulas em que as ferramentas
de multimídia são utilizadas pelos docentes.
( ) exemplificação
( ) motivação e/ou fechamento de aula
( ) todo o tempo
( ) outro. Qual? __________________________________________________________________________
explicação de teoria
resolução de exercícios
exemplificação
motivação e/ou
fechamento de aula
todo o tempo
outro
Por meio das respostas, observamos que muitos professores utilizam em mais de um
momento as TIC’s em suas aulas, mas que predomina a sua utilização em explicações, em
exemplificações e na motivação dos estudantes. Surpreendeu-nos o uso pouco expressivo
desses recursos em exemplificações e o número elevado de professores que os utiliza na
exposição teórica.
A questão sexta perguntava a respeito do modo como o professor emprega esses
recursos.
Em relação ao questionamento sobre como esses recursos são utilizados, 93% dos
professores os utilizam como apoio de aula, 6% substituinte a apostilas e livros, 66% na
exibição de exemplificações e 6% em substituição ao quadro.
apoio de aula
substituinte a apostilas e
livros
na exibição de áudio e
vídeo
substituinte ao quadro
outro
Esperávamos não encontrar muitos docentes que utilizassem essas ferramentas para
substituir o quadro ou materiais didáticos. Foi exatamente isso que verificamos. Os
professores, em sua grande maioria, recorrem a esses instrumentos como apoio de aula ou na
exibição audiovisual. O que demonstra um uso adequado do recurso, já que ele não veio
substituir quadro ou material didático, mas acrescentar, estimular, ampliar. Não basta que o
professor empregue TIC’s em aulas, é preciso que ele saiba como e quando empregá-las.
A última pergunta do questionário queria saber se o professor acredita que esses
recursos vão substituir seu papel nas aulas:
Como esperávamos, 93% dos pesquisados afirmaram que tais recursos não
substituem o professor, apenas 7% disseram que eventualmente sim. Muitos docentes
manifestaram a consciência do papel mediador desenvolvido pelos professores, papel esse que
12
não pode ser substituído por instrumentos tecnológicos quaisquer que sejam. O professor P05
defende que:
Não. Acredito que os recursos multimídia auxiliam o trabalho do professor na aplicação e exposição do
conteúdo. Sempre é necessária “a mediação”.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da visão de democratização do acesso às novas tecnologias, praticamente
todas as escolas públicas do Paraná foram equipadas com laboratórios e microcomputadores,
TV’s Pendrive disponíveis para alunos e professores fazerem uso. No entanto, verificamos
que, embora os docentes tenham interesse em aplicar as TIC’s em sala de aula, encontram
alguns percalços, como a falta de conhecimento técnico, falta de tempo para preparo e
pesquisa para elaboração das aulas e também ausência de técnicos especializados para dar
suporte às escolas.
6 REFERÊNCIAS
ANEXO
TV Pendrive
Fonte: http://www.educacao.pr.gov.br/
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo
RESUMO
Este artigo teve como objetivo analisar o fenômeno da aspiração em plosivas surdas /p/ , /t/, e
/k/ no português brasileiro, sob a perspectiva da teoria da Fonologia da Geometria de Traços.
Para isso, foi adotado o sistema de desenho de árvores, proposto por tal teoria, para demons-
trar como esse fenômeno ocorre na produção de fala. Este estudo preocupou-se também com a
problematização de certos aspectos inerentes à aspiração, como duração e traço de ponto de
articulação, levantando hipóteses para a tentativa de agregar tais conceitos à geometria de
traços da aspiração nas mencionadas consoantes.
Palavras-chave:
Plosivas surdas do português brasileiro. Aspiração. Fonologia da Geometria de Traços.
ABSTRACT
The present study aimed at investigating the aspiration feature in voiceless plosives of Brazil-
ian Portuguese /p/, /t/, and /k/ using the theory of geometry of phonological features. In order
to do so, the system of “trees“, proposed for such theory, was used to demonstrate how aspira-
tion occurs in the speech chain. This study was also aimed at discussing some aspects related
to aspiration, such as length e attribution of consonant place (C-Place), and it brings some
hypothetical claims to try to incorporate such aspects into the geometry of features of aspira-
tion.
Keywords:
Voiceless plosives of Brazilian Portuguese. Aspiration. Geometry of Phonological Features.
1 INTRODUÇÃO
As línguas naturais estão continuamente passando por processos de mudanças ao
longo de suas histórias. Com isso, diversos fenômenos linguísticos no âmbito fonéti-
co/fonológico são criados continuamente. É através dos estudos na área de Fonética e Fonolo-
gia que grande parte desses processos é trazida à tona para o meio linguístico e assim podem
ser amplamente estudados e implementados em áreas como aquisição de língua maternal e
língua estrangeira, por exemplo. Podemos pensar também que tais fenômenos podem enrique-
cer estudos na área de sociolinguística e dialetologia, principalmente aqueles que pretender
mapear a riqueza de uma determinada língua, no que tange à variação na produção oral.
1
Trabalho desenvolvido para a disciplina de Fonologia I, ministrada pela prof. Dra. Terezinha M. Brenner, no
PPGLg/UFSC.
2
Aluna de doutorado do PPGLg (UFSC); e-mail: mariantero@gmail.com.
2
2 PLOSIVAS SURDAS
As plosivas surdas são consoantes produzidas com total e momentânea constrição na
cavidade oral, causada pelo movimento de aproximação de articuladores ativos e passivos. No
caso do português brasileiro, estes articuladores podem ser: lábios inferiores e superiores, que
produzem a constrição bilabial das oclusivas bilabiais surda /p/ e sonora /b/; ápice ou ponta da
língua e alvéolos, que formam a oclusão necessária para a produção de oclusivas alveolares
surdas /t/ e sonora /d/; por fim, o último par de oclusivas do PB, surda /k/ e sonora /g/, é pro-
duzido pela oclusão total entre o dorso da língua e a região velar (CLARCK e
YALLOP,1995; LADEFOGED,2001).
Na articulação de tais segmentos, o fluxo de ar egressivo se inicia nos pulmões, pas-
sando pela cavidade subglotal, até atingir a supraglotal, onde é impedido momentaneamente
pelo contato entre os articuladores e é ligeiramente liberado, causando o que é conhecida co-
mo explosão. Porém, a soltura dessa oclusão pode ser dar de maneira gradual, fazendo que
entre o momento da oclusão e a total liberação de ar ocorra um ruído turbulento de ar, causa-
do pelo afastamentto (abdução) das pregas vocais. Esse ruído foi chamado de aspiração e
desta forma definido por Abramson e Lisker (1965).
O fenômeno da aspiração ocorre nas mais variadas línguas, sendo inclusive um pa-
râmetro usado para a diferenciação entre plosivas surdas e sonoras. Vários autores (LISKER e
ABRAMSON, 1964; WINITZ, LARIVIERE e HERRIMAN, 1971, LADEFOGED, 2001)
investigaram a ocorrência da aspiração em plosivas na língua inglesa, especialmente quando
estas consoantes ocorrem em posição de início de palavra. Nessa posição, as plosivas sonoras
3
do inglês são desvozeadas, sendo assim produzidas como surdas, porém sem aspiração. Por
sua vez, as plosivas surdas são produzidas com aspiração, fazendo com que esse fenômeno
seja o principal fator capaz de diferenciar plosivas surdas e sonoras do inglês, em posição de
início de palavra. Desta forma, o fenômeno da aspiração ganhou bastante destaque nas pes-
quisas, em nível segmental, sobre a língua inglesa, especialmente entre as décadas de 1960 a
1990.
Contudo, para o PB, tal fenômeno não havia sido levado em consideração até poucos
anos, quando Klein (1999), num estudo sobre as plosivas no PB, apontou para a provável
ocorrência de uma leve aspiração na produção de plosivas velares surdas.
Pagotto (2004) realizou um estudo sobre a produção de oclusivas alveolares diante
de [i] na região de Florianópolis e propõe que, dentre as várias realizações possíveis para /t/,
produzido diante de [i] ou [], tem-se plosivas aspiradas, sendo estas representadas como [th]
ou [dh].
Tal fato foi também verificado por Alves et al. (2008), que num estudo com fala se-
mi-espontânea de 35 participantes oriundos das mais diversas regiões do Brasil, pôde observar
a existência de uma leve aspiração em todas as plosivas surdas do PB, sendo que a porcenta-
gem de produção de plosivas surdas aspiradas em relação ao total foi de 49% para [p], 57%
para [t] e 82% para [k].
Por fim, Alves (2011) também verificou a existência de uma leve aspiração em plo-
sivas surdas do PB da ordem de 12% do total de plosivas bilabiais produzidas pelos informan-
tes, de 30% das alveolares e 82% de velares, sendo que as diferenças entre plosivas surdas
aspiradas e não aspiradas se mostrou significativa (p <.001). A autora também pode verificar
que, de forma geral, houve uma tendência de produção de um grau maior de aspiração em
plosivas seguidas de vogais altas anteriores [i]e [] e posteriores [u] e [].
Pode-se verificar a partir dos estudos mencionados acima que, apesar de não tida
como uma variante do PB, as plosivas surdas levemente aspiradas aparecem com grande fre-
quência na produção de fala desta língua. Como observado por Silva (2006), parece haver um
continuum entre a produção de plosivas não-aspiradas até a de plosivas africadas, podendo
ocorrer nesse espaço uma grande variação de fenômenos, como a aspiração, a produção de
africadas alveolares [ts] e [dz] e finalmente, africadas palato-alveolares [t] e [d]3.
3
Nos dois últimos casos, as plosivas sofrem processos de palatização quando seguidas pela vogal [i].
4
Raiz Raiz
OC OC OC
V-Place Abertura
Figura 1 – Processo de palatalização de plosivas alveolares diante de vogal alta, segundo a FGT.
Fonte: Cagliari (2002, p. 95).
Figura 2 – Processo de palatalização de plosivas alveolares diante de vogal alta, segundo a Fonologia
Gerativa.
Além disso, a FGT vai propor uma interdependência hierárquica entre os traços, que
irão representar os principais movimentos e processos envolvidos dentro da articulação da
fala, que era vista de forma simplificada pela teoria gerativa.
4
Segundo Cho e Ladefoged (1999), percebe-se acusticamente o fenômeno da aspiração quando o VOT é igual
ou maior a 35 milissegundos. Dependendo da extensão do VOT, esses pesquisadores definem o fenômeno como
leve aspiração(35-55ms), aspiração (56-95ms) e como forte aspiração (acima de 96ms).
7
No que se refere ao nó de raiz, Pagotto (2004) afirma que na aspiração, tal qual na
africação (palatização) no PB descrito em (1), há um processo de Fissão da Raiz, onde o [t] é
representado pelo nó de raiz (Ao) e a fricativa [h] (que representa a aspiração) é descrita no nó
de raiz (Af). Clements e Hume (1995) caracterizam esses segmentos como contour segments,
ou seja, segmentos de contorno, pois esses segmentos são produzidos em sequência que con-
tém diferentes traços.
Em relação ao nó laríngeo, Clements (1985) sugere que a aspiração é marcada com o
traço [spread glottis], que sinaliza que as pregas vocais estão afastadas, como proposto por
Ladefoged e Maddieson (1998) citado acima. A partir desse nó, os demais irão se configurar
de acordo com a consoante oclusiva a ser analisada, que irá se alterar de acordo com (3a), (3b)
ou 3(c). Optamos então por demonstrar o fenômeno da aspiração em consoantes oclusivas
alveolares (de acordo com Pagotto, 2004, p.231), possibilitando assim a comparação com a
8
africação descrita em (1). Cabe lembrar que a descrição da vogal adjacente à oclusiva não foi
agregado, já que a aspiração pode ocorrer em frente a qualquer vogal oral do PB.
(4) /th/
Ao Af
Lar Lar
[-voz] OC [-voz] [spread] OC
[-cont] [+cont]
C-Place
[ cor]
[+ant]
Figura 4 – Modelo de aspiração de oclusiva alveolar surda do PB, segundo a FGT.
Através do modelo proposto, podemos notar que o a aspiração não possuí um traço
de nó de C-Place associado a ela. Há aqui uma questão postulada por alguns autores (Fant,
1993; Pagotto, 2004) que é apenas a diferença entre a pressão supra e subglotal que causa o
afastamento das pregas e, portanto, o relaxamento da glote que vão ocasionar o surgimento da
aspiração. Por essa razão, nenhum traço de ponto de articulação deve ser associado.
Tem-se, desta forma, a produção de uma fricativa aspirada, que já se faz presente na
descrição do fenômeno da aspiração em Fant (1993) e Klatt (1991), onde há a produção de um
segmento fricativo entre o movimento de soltura da oclusão da oclusiva e a produção de um
segmento completamente aspirado, chamado por Fant de “h-like sound”, que é originário da
glote. O autor completa dizendo que os dois segmentos, fricativo e aspirado, podem co-
ocorrer até um determinado ponto, mas o movimento é predominado pelo segmento aspirado,
que vai aumentando, na medida em que o grau de abertura da articulação aumenta, até o início
do vozeamento do som adjacente, que no caso do PB é geralmente uma vogal.
Além da questão de como se representar o traço de C-Place discutido anteriormente,
outras questões podem ser colocadas no que tange à representação da aspiração de acordo
com a FGT. Contudo, é preciso ressaltar que vamos apenas fazer o levantamento dessas ques-
tões, que ainda pouco debatidas na literatura, demandam análises quantitativas apuradas para
que qualquer tentativa de solução seja proposta.
Uma problematização se refere à representação da duração, característica esta que é
intrínseca à aspiração. Apesar de a proposição da FGT está de acordo com os movimentos
articulatórios envolvido na produção de segmentos, no que se refere à questão temporal, a
duração inerente aos segmentos parece não ser representada na maioria das referências na
9
literatura da área. Essa distinção é de extrema importância para a diferenciação das oclusivas
surdas nas mais diversas línguas, já que estas podem variar segundo a duração do VOT e,
consequentemente, a quantidade de aspiração. É o caso, por exemplo, das plosivas surdas em
início de palavra na língua inglesa que, segundo Lisker e Abramson (1964), possuem um
VOT para as da seguinte ordem: 58 ms para [p], 70 ms para [t] e 80 ms para [k], consideradas
plosivas aspiradas, de acordo com as categorias propostas Cho e Ladefoged (1999) acima
citadas. Quando comparada com o PB, podemos perceber que há grandes diferenças entre
esses valores. De acordo com Alves (2011), o valor médio de VOT para [p] foi de 43 ms, de
44ms para [t] e de 57ms para [k], sendo considerada segundo a mesma classificação, uma leve
aspiração.
Clements e Hume (1996) fazem uma tentativa de solucionar a questão. Os autores
propõem que a representação da duração
Um paralelo pode ser feito então entre a proposição desses autores com as categorias
estipuladas para as plosivas surdas por Cho e Ladefoged (1999). Em (7) pode-se perceber que
cada categoria de X, na tier quantidade fonológica, irá corresponder à uma classificação de
oclusiva, que é por sua vez quantificada através de tamanho de VOT.
10
Tabela 1 – Paralelo entre a representação de duração segundo Clements e Hume (1995) e a classifica-
ção de plosivas segundo Cho e Ladefoged (1999).
No entanto, esta ainda é uma forma preliminar de representação, visto que a duração
da aspiração não é binária ou ainda não é de representação qualitativa, mas sim quantitativa.
Cabe a trabalhos futuros a análise da aspiração como um fator distintivo em línguas naturais,
para que tal proposta possa ser validada e incorporada à FGT.
5 CONCLUSÃO
O presente estudo teve como objetivo a proposição de um esquema de árvores, se-
gundo a FGT, para o fenômeno da aspiração em oclusivas surdas do PB, bem como a proble-
matização de questões inerentes ao fenômeno da aspiração como duração e aplicação do traço
C-Place.
A proposta da esquematização segundo a FGT proporciona uma melhor visualização
de fenômenos até pouco tempo vistos apenas sob a ótica da Fonética Acústica, possibilitando
assim que um fenômeno que parece ser recorrente no PB comece a ser visto como uma varia-
ção, tanto quanto o processo de palatização, já assim estabelecido na literatura.
Vimos também que segundo esse modelo, a aspiração em plosivas surdas é aplicada
como um segmento de contorno, que tem a raiz separa em dois momentos: um com a presença
dos traços que compõem a plosiva sob análise e o outro contendo o traço [spread glottis] liga-
do ao nó laríngeo.
Por fim, propusemos a representação de um tempo fonológico (ainda hipotético) que
pode ser inerente à aspiração, quando esta se mostrar distintiva para alguma língua. Para tra-
balhos futuros sugere-se que línguas como Thai, Marathi e Híndi (que possuem três ou quatro
categorias de plosivas) possam ser investigadas com dados quantitaivos para se confirmar se o
grau de aspiração pode ser usado como caráter distintivo entre as plosivas dessas e de outras
línguas.
11
6 REFERÊNCIAS
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sis and synthesis. Proceedings of the 5th international congress of acoustics. Liege: Imp. G.
Thone (Paper A51).
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ALVES, Mariane Antero; DIAS, Eva Christina O. Estudos da produção do VOT em plosivas
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J. (Org.). Anais do Encontro do Círculo de Estudos Linguísticos do Sul, 9, 2010. Palhoça:
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http://www.celsul.org.br/Encontros/09/artigos/Mariane%20Alves.pdf. Acesso em: 08 ago.
2011.
ALVES, Mariane; SEARA, Izabel C.; PACHECO Fernando S.; KLEIN Simone; SEARA,
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CAGLIARI, Luiz Carlos. Fonologia do português: análise pela geometria dos traços. Cam-
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rianópolis. No prelo.
FANT, Gunnar. Speech sounds and features. Cambridge/London: The MIT Press, 1993.
12
KLATT, Dennis. Voice onset time, frication, and aspiration in word-initial clusters. In: J.R.
BAKEN; R.G. DANILOFF (ed.). Reading in clinical spectrography of speech. San Die-
go/New Jersey: Singular Publishing Group Inc. & Kay Elemetrics Corp., p.226-246, 1991.
WINITZ, H.; LaRIVIERE, C.; HERRIMAN, E. Variations in VOT for English word initial
stops. Journal of Phonetics, 3, 41-52.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo
Este artigo é parte de um projeto de pesquisa que investiga a leitura no livro didático de
português. Parte-se de observações de aulas de leitura em uma escola pública, da dificuldade
revelada pelos alunos ao realizar as atividades da aula. Nesta proposta, busca-se discutir a
perspectiva de leitura de um livro didático de língua materna para o ensino fundamental e as
possibilidades de mediação para uma aula de leitura, em uma unidade no eixo específico. As
análises foram feitas à luz de teorias que compreendem a linguagem como interação, a leitura
como processo social e cognitivo de produção de sentido e a mediação como mobilização de
capacidades para um nível ainda não alcançado antes. Confrontou-se o que o livro declara
fazer com o que realmente faz nas propostas e verificou-se a base teórica que sustenta as
atividades.
Palavras-Chave:
Leitura. Livro Didático. Ensino.
ABSTRACT
This article is part of a research project that investigates the textbook reading in Portuguese.
This is based on observations of reading classes in a public school, the students revealed the
difficulty in carrying out the activities of the class. In this proposal, we seek to discuss the
prospect of reading a textbook language for elementary school and the possibilities of
mediation for a reading lesson in a unit in the specific axis. Analyses were made in light of
theories that understand the language as interaction, reading as social and cognitive process of
meaning production and mediation as mobilization of skills to a level not yet achieved
before. We confronted what the book says to do with what really it makes in the proposals
and we verified the theoretical basis that supports their activities.
Keywords:
Reading. Textbook.Teaching.
1 INTRODUÇÃO
São muitas as dificuldades com as quais um professor depara-se ao entrar em uma
sala de aula nos dias de hoje. Ao longo dos últimos anos parece que a tarefa de ensinar tem se
tornado mais complexa por vários motivos. Dentre eles as inovações tecnológicas, o acesso
rápido à informação, as transformações amplas e rápidas por que passam as gerações, por
outro lado, a escola parece estagnada em um modelo que foi pertinente e eficaz há algumas
décadas.
1
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos / Linguística Aplicada pela Faculdade de
Letras da UFMG; e-mail: smclaudia@hotmail.com.
2
―hummm... eu acho ele (livro) bom... é bom... O que eu gosto mais é história em
quadrinho é melhor, eu num gosto muito dos textos não... eles é muito grande. Ahh...
tem algumas perguntas que eu acho difícil.‖ (C, 14 anos)
1.1 Metodologia
A partir de situações como apresentadas por C, ou seja, a partir do que os alunos
declaram sobre o LD e sobre suas dificuldades, o que se pretendeu, em fase preliminar de um
3
2 ALGUNS CONCEITOS
Ao se pensar na dinâmica que envolve sala de aula, é necessário pensar que toda e
qualquer opção metodológica de ensino articula uma visão política, uma visão teórica que se
refletem nas estratégias de sala de aula; envolve uma teoria de compreensão e interpretação de
uma realidade.
Dessa maneira, os conteúdos ministrados, bem como os enfoques, as metodologias, a
bibliografia utilizada, as formas de avaliação, o relacionamento com aluno corresponderão às
opções feitas e se refletirão nas atividades práticas.
Pensando nisso, observa-se que, no caso do ensino, especialmente o de língua
portuguesa, responder a questões como: ―como ensinamos?‖ e ―para quê ensinamos?‖, ajuda a
compreender melhor o processo e as concepções de linguagem possíveis.
A perspectiva atual do sociointeracionismo discursivo, subjacente a documentos e
diretrizes nacionais pode permear as práticas de ensino ou não. O que se justifica pelo
conhecimento ou desconhecimento das teorias de linguagem por parte dos profissionais que
atuam nas salas de aula.
O ser humano é constituído pela linguagem e tem necessidade de se comunicar, num
processo contínuo de interação. Na perspectiva de Bakhtin (1986, 1997), concebe-se que todo
enunciado é dialógico. Dessa forma, o dialogismo é o modo de funcionamento real da
linguagem, é o princípio constitutivo do enunciado. A interação é marca da comunicação
humana, pois todo enunciado constitui-se a partir de outro, é uma réplica a outro enunciado.
Neste trabalho, a linguagem é considerada como atividade de interação e, a leitura,
como processo cognitivo, social e cultural de produção de sentido. Como referencial teórico,
4
são usados pressupostos apresentados por autores como Bakhtin (1997); Bronckart (1999);
Marcuschi (2000, 2002); Cafiero (2002); Coscarelli (2002, 2006); Kleiman (1997), Soares
(2002) entre outros.
Ao longo dos anos e do desenvolvimento de teorias de linguagem (cf. GERALDI,
1985; POSSENTI, 2001; KOCH, 2003, 2006; COSTA VAL, 2004), destacam-se três
perspectivas de linguagem que influenciam ou direcionam concepções e formas de ensino de
leitura. Os autores evidenciam que inicialmente a linguagem foi considerada a expressão do
pensamento: essa concepção subjaz, basicamente, os estudos tradicionais. Ao se identificar a
linguagem como tal, possivelmente seriam ouvidas afirmações de que quem não consegue se
expressar não pensa.
Em outra linha, a linguagem foi considerada instrumento de comunicação. Essa
abordagem vincula-se à teoria da comunicação e concebe a língua como código (conjunto de
signos que se combinam segundo regras) capaz de transmitir ao receptor certa mensagem. Em
alguns livros didáticos, essa é uma concepção observada nas instruções ao professor, nas
introduções, nos títulos, embora em geral seja abandonada nos exercícios gramaticais.
Em uma terceira concepção, a linguagem é considerada uma forma de interação:
mais do que possibilitar uma transmissão de informações de um emissor a um receptor, a
linguagem é vista como um lugar de interação humana, ou seja, por meio dela o sujeito que
fala, pratica ações que não conseguiria praticar a não ser falando; com ela, o falante age sobre
o ouvinte, constituindo compromissos e vínculos que não pré-existiam antes da fala.
Paralelamente ao desenvolvimento das concepções de linguagem, desenvolveram-se
também algumas linhas teóricas sobre a leitura. Estudos apontaram que desde século XIX até
os dias de hoje, a leitura também passou por três momentos. Assim, num primeiro tempo,
enquanto a linguagem era expressão do pensamento, o foco da leitura coube ao autor; o texto
seria exatamente o que o autor queria dizer. Na segunda abordagem, quando a linguagem foi
considerada instrumento de comunicação (código), na leitura, o foco esteve sobre o texto,
considerado responsável e detentor do seu sentido. Num terceiro momento, quando a
linguagem foi vista como forma de interação, o papel do leitor expande-se e ele se torna o
produtor de sentido para o texto, um colaborador que interage com o autor por meio do texto.
Além da mudança de perspectiva houve também um avanço conceitual do termo
leitura. Gough (1972) que se detém ao aspecto mecânico da leitura a considera uma
decodificação serial de um texto dado (reconhecimento de letras, sílabas, palavras e
sentenças). Posteriormente, Goodman (1973) define leitura como um jogo psicolinguístico de
adivinhações. Para o autor, o leitor ao interagir com o texto, capta-o por meio de predições e
5
curriculares oficiais, o programa apresentou uma avaliação das coleções de livros didáticos
nela é considerado que o ensino de Língua Portuguesa, nos quatro últimos anos do novo EF,
deve se organizar de forma a garantir ao aluno:
Observa-se que a linha teórica apresentada no Guia de livros didáticos está respaldada pelos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN, 1998), como também está em consonância com a
teoria de leitura que a considera como um processo interativo de produção de sentido.
O texto previsto para o capítulo três é uma história em quadrinho, antes da leitura 1,
há uma introdução em que são apresentados os elementos da HQ. Na página destacada
anteriormente observa-se a apresentação do autor e da obra da qual o texto foi extraído.
Nas páginas seguintes são relacionadas questões de interpretação na seção ―Para
entender o texto‖. Para este texto, são propostas sete questões (fig.2) que buscam trabalhar o
sentido.
9
3 A AULA DE LEITURA
A aula observada ocorreu de maneira rotineira: a professora fez a introdução do
tema, relembrou algumas características do gênero. Em seguida pediu alunos voluntários para
fazer a leitura oral do texto de introdução e outros para ler os quadrinhos.
Na primeira parte, um aluno lia um parágrafo de forma que quatro alunos leram a
introdução. Para a leitura da história em quadrinhos, cada quadro era lido por um aluno
diferente.
Observa-se que não houve uma leitura silenciosa ou preparatória para esse momento.
Depois de terminar a leitura oral os alunos foram orientados a responder às questões de 1 a 4
da página 87. Neste ponto, é que as dúvidas surgiram. Muitos não conseguiram entender o
que era proposto e em muitos momentos foi possível ouvir ―professora, o que é para fazer?‖;
―professora, o que é para fazer no número 2?‖; ―professora o que é fisionomia?‖; ― como
assim, o que quer dizer nessa letra b do exercício 3, como caracterizar o comportamento?‖
Foram muitas abordagens e os alunos foram incisivos em suas perguntas.
Diante de situações vistas é necessário que sejam repensadas as práticas de sala de
aula também. Na perspectiva de Vygotsky (1986, 1991), a escola e o professor desempenham
papel de excelência na mediação do conhecimento, em fazer com que o aprendiz avance no
conhecimento. Para ele, a construção do conhecimento se dá como uma interação mediada por
várias relações. Ou seja, o conhecimento não está sendo visto como uma ação do sujeito sobre
a realidade, assim como no construtivismo e, sim, pela mediação feita por outros sujeitos.
É notório que quanto mais o profissional souber sobre a mediação, a linguagem, a
leitura, sobre a prática social que as envolvem e compreendê-las como processo interativo,
decisões mais acertadas poderão ser tomadas no dia a dia. Se o professor puder aliar teoria e
prática, mais eficaz será sua intervenção.
As inúmeras aulas de didática e de metodologia de ensino do português dos cursos de
magistério são relembradas quando ensinavam que o professor deveria estimular seu aluno,
fazê-lo se surpreender e se encantar pelo texto, pela leitura. Às vezes, isso podia ser feito com
uma simples introdução, com uma pergunta, ou com uma pequena história. Repensar antigas
práticas, renová-las e aproveitar o que funciona, bem como pesquisar novas e incorporá-las ao
12
dia a dia é parte do processo de reavaliação da prática docente como de qualquer outra
profissão.
O início desta pesquisa e as primeiras observações puderam comprovar a enorme
necessidade de intervenções que possuem os estudantes. Até que ponto isso acontece será
assunto para um trabalho posterior. Fica evidente também a necessidade de o livro didático
apresentar propostas e concepções teórico-metodológicas que estejam em consonância, além
disso, destacam-se o papel do professor, do seu protagonismo e criatividade, bem como da
escola, na mediação e na construção do conhecimento junto com os aprendizes. É possível
acreditar no desenvolvimento pleno e eficaz da proficiência e da competência leitora dos
sujeitos que hoje encontramos no espaço escolar. É possível pensar no desenvolvimento da
linguagem em padrões desejáveis e para além deles. Esforços múltiplos, contudo, são
necessários. Teoria e prática devem e podem concorrer no mesmo território.
4 REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. 2ªed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
BRONCKART, J-P. Atividades de linguagem, textos e discursos. São Paulo: EDUC, 1999.
COSTA, Cibele Lopresti; MARCHETTI, Greta; SOARES, Jairo J. Batista. Para Viver
Juntos: Português, 6º ano: ensino fundamental. São Paulo: Edições SM, 2009.p. 86-88.
COSTA VAL, M. Graça. Texto, textualidade e textualização. In: CECCANTINI, J.L. Tápias;
PEREIRA, Rony F.; ZANCHETTA JR., Juvenal. Pedagogia Cidadã: cadernos de
formação: Língua Portuguesa. v. 1. São Paulo: UNESP, Pró-Reitoria de Graduação, 2004.
p. 113-128.
FREIRE, Paulo. A Importância do Ato de Ler: em três artigos que se completam. 22 ed.
São Paulo: Cortez, 1988.
GERALDI, J.W. Concepções de linguagem e ensino de português. In: SÃO PAULO (Estado),
Secretaria da Educação. Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas. O ensino de
língua portuguesa. São Paulo: SE/CENP,1985. (Língua Portuguesa I)
POSSENTI, Sírio. Sobre leitura: o que diz a análise do discurso? In: MARINHO, Marildes.
(Org) Ler e navegar. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2001. p.19-30.
14
SMITH, F. Understanding reading. New York: Holt, Rinehart and Winston, 1978.
VYGOTSKY, L.S. Formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984.
RESUMO
Este trabalho visa a descrever as ocorrências do sufixo nominativo [-rana] de origem tupi na
formação de palavras em português. Os dados, que serviram de análise, foram retirados de um
questionário semântico-lexical aplicado em oito localidades da região Amazônica, conforme
princípios e método da geolinguística pluridimensional. Concluímos que o sufixo [-rana]
seleciona apenas bases substantivas com referentes da flora e da fauna regional. Além disso,
constatamos que nem todas as palavras do corpus analisado são registradas nos dicionários.
Todavia, não foi possível afirmamos que tal sufixo ainda seja produtivo em português, mesmo
que as palavras ainda não registradas nos dicionários sejam comuns no repertório linguístico
dos pescadores e moradores de rios e lagos amazônicos, onde tais variantes lexicais tenham
sobrevivido em línguas ágrafas e emprestadas ao português falado na região.
Palavras-chave
Morfologia. Derivação sufixal. Sufixo [-rana].
ABSTRACT
This paper discusses the occurrences of the suffix [-rana] of Tupi in the formation of words in
Portuguese. The data, which were used for analysis, were withdrawn from the lexical-
semantic questionnaire applied in eight localities in the Amazon region. We concluded that
the suffix [-rana] selects only substantive grounds in relating to the regional flora and fauna.
However, we noted that some words analyzed in corpus, they are not in dictionaries. Even so,
we could not affirm that this suffix is still productive, because the words that were not found
in dictionaries are common in the linguistic repertoire of fishermen and residents of the
Amazonian rivers and lakes, where such occurrences have survived a long time.
Keywords:
Derivation suffix. Suffix [-rana].
1 INTRODUÇÃO
Este trabalho surgiu a partir da motivação que tivemos ao constatarmos as
ocorrências, no português amazônico, de vocábulos formados com o sufixo de origem
indígena [-rana] (cuja pronúncia é nasalizada: “rana”, e é transcrito foneticamente como
[n]) constantes nas respostas de um questionário semântico-lexical aplicado nas
comunidades e cidades localizadas na região do médio Solimões/AM (respectivamente,
Saubinha, Ariri, Itapéua e as cidades Coari e Codajás) e em duas localidades da região do
1
Professor de Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina; e-mail: wfelicio@cce.ufsc.br.
2
Doutorando em Linguística pela Universidade Federal de Santa Catarina; e-mail: orlandoazevedo@ymail.com.
2
Consideramos que as bases mais comuns a que os sufixos, via de regra, se fixam são
substantivos, adjetivos e verbos (BASÍLIO, 2009, p.34), sendo que a maioria dos processos de
formação de palavras por sufixação muda a classe gramatical da palavra primitiva, e a
produtividade de cada sufixo tem a ver unicamente com o tipo de base (s), que seleciona
como, por exemplo, o sufixo X–vel forma adjetivos com verbos transitivos diretos: amar + -
vel = amável, estimar + -vel = estimável, louvar + -vel = louvável, e rejeita outras bases como
o substantivo homem + -vel = *homemvel e o adjetivo beleza + -vel = *belezável. Se
tivermos a estrutura morfológica de um verbo em X-izar, o sufixo correspondente a forma
3
nominalizada será [-ção]; por outro lado se for X-ecer, o sufixo atuante na formação da nova
palavra será [-mento] (BASÍLIO, 2009, p. 27). Além disso, conforme o contexto de uso, o
falante pode priorizar a formação de palavras a partir da escolha das bases e de sufixos
existentes na língua. Logo, as condições de produção de cada sufixo tem a ver com o contexto
em que é empregado, ou seja, com o ambiente discursivo ou cultural que envolve o usuário da
língua (BASÍLIO, 1993). Por exemplo, tomemos as realizações do vocábulo “não” na
linguagem informal e na linguagem formal, respectivamente: na linguagem falada informal, o
usuário faz as realizações do “não” como “não”, “ não é”, “né” e “nu” com função adverbial
ou como partícula enfática para realçar a negação ou pedir confirmação do interlocutor como
em “-Ele foi pra festa? -Nu foi não, né!”; já na linguagem formal falada ou escrita, com o
mesmo vocábulo “não”, teremos construções tipo “não-lucrativo”, “não-didático”, “não-
jurídico”, “não-escrito” (ALVES, 2006), nas quais o “não” tem a função de servir como
prefixo negativo ao selecionar bases adjetivas e formas participiais com função adjetiva.
Portanto, os sufixos não selecionam qualquer base, podem mudar ou não a classe gramatical
da palavra derivada e são mais produtivos em determinados ambientes discursivos ou
culturais, onde há necessidade de nomeação de novos referentes. Baseado nisso, passamos a
analisar as particularidades do sufixo [-rana], que contribuiu acentuadamente na formação de
novas palavras no português do Brasil, na Amazônia.
bases substantivas de vários níveis semânticos. A maioria dos vocábulos formados com o
sufixo [-rana] é muito conhecida nas variedades do português amazônico como:
3
A etimologia das palavras foi baseada nas definições dos dicionários constantes na referência deste trabalho.
Quanto à forma primitiva da palavra, foi retirada do dicionário Etimológico da Língua Portuguesa.
4
Língua indígena extinta, que era falada pelos astecas e pertencente à família linguística auto-asteca da América
Central e do México Central e Meridional.
5
O termo aua’katl sofreu variação para aguacate em espanhol, que por sua vez se transformou em abacate em
português.
6
Etimologia dada pelo dicionário tupi-português/português-tupi constante na referência deste trabalho.
7
Definição dada pelo dicionário Aulete digital no endereço www.aulete.com.br, acessado em 12.06.2011.
5
Das palavras listadas acima, não foram encontradas nos dicionários de língua
portuguesa Houaiss e Aurélio “abacaxirana, cabaçurana, feijãorana, melanciarana,
piquiarana, orana, uixirana e as variantes bacatiriana e baquitirana (variantes de
abacaterana), oerana (variante de oeirana), saborana (variante de saboarana), siringarana
(variante de seringarana), tabacurana (variante de tabacarana, mas com referentes
divergentes), xirana (variante de uixirana), limorana (variante de limãorana), jutuarana
(variante de jatuarana) e fejurana (variante de feijãorana).
O conteúdo semântico de [-rana] nas formações acima é “semelhante a”, “ igual a”.
Dessa forma, temos: abacaxirana é igual ou semelhante ao abacaxi, abacaterana é igual ou
semelhante ao abacate, abiurana é igual ou semelhante ao abiu, cabaçurana é igual ou
semelhante à cabaça, cajurana é igual ou semelhante ao caju, canarana é igual ou semelhante
à cana, feijãorana é igual ou semelhante ao feijão, jacarerana é igual ou semelhante ao
jacaré, limãorana é igual ou semelhante ao limão, marirana é igual ou semelhante ao mari
(fruta oval comestível na região do médio Solimões), melanciarana é igual ou semelhante à
melancia, piquiarana é igual ou semelhante ao pequiá, pupunhara é igual ou semelhante à
pupunha, siringarana, igual ao semelhante à seringa, tupinambarana8 é igual ou semelhante
ao tupinambá, uixirana é igual ou semelhante ao uixi (fruta comestível em toda região
Amazônica) e urucurana é igual ou semelhante ao urucu. Alguns vocábulos, que não são tão
comuns, merecem atenção especial como oerana, que é forma variante de oeirana de base
“oei” definida da seguinte forma pelo Hoaiss (2009):
substantivo feminino
Rubrica: angiospermas.
1arbusto (Alchornea castanaefolia) da fam. das euforbiáceas, nativo do Brasil (AM,
BA a MT), de folhas coriáceas, serruladas, espinescentes e peninérveas, flores
inconspícuas, em espigas pêndulas e unissexuais, e cápsulas pilosas; uirana
2Regionalismo: Amazonas.
m.q9. 1salgueiro (Salix chilensis)
Na definição da variante oerana feita por uma informante do baixo Amazonas existe
a referência a uma árvore com folhas chatas, que cresce às margens do rio Amazonas, e vai ao
encontro da definição dada pelo dicionário acima. Por sua vez, o vocábulo saboarana foi
classificado como “substantivo feminino, rubrica: angiospermas. Regionalismo: Amazonas.
8
Tupinambarana é o nome da ilha onde está situada a cidade de Parintins no Amazonas, portal de entrada para
o Estado.
9
m. q significa “mesmo que”.
6
– Rapaz, tem. Tem a invira. Tambaqui come siringa, o matrinxã come a invira,
éé... – Essa invira é tipo uma invira mermo? – é uma árvore de pau, que dá invira e
dá essas fruta idêntica essa óh! Prêtinha. Aí tem...tem a cajurana também, que o
tambaqui come. Tem a saboarana, que o tambaqui come também [...] – Aqui só no
logo, a saboarana dá uma fruta assim óh! e a cajura, ela dá agora(...) nessa época
[...] saboarana, ela cai tchuum! ela bem azeda! azeda! azeda! Deusu livre! [...]
Essa, essa, os cara falaru que ela serve de suco.
Quanto ao vocábulo tabacurana, que não foi registrado em nenhum dicionário, tem
uma forte saliência com tabacarana, que o Houais (2009) classifica como sendo,
primeiramente, um substantivo feminino de rubrica angiosperma, mesmo que “fumo-bravo-
do-amazonas (Polygonum hispidum) e; em segundo lugar, como sendo um regionalismo:
Minas Gerais, o mesmo que quitoco (Pluchea quitoc). Mas na definição de um dos
informantes, tabacurana é uma fruta apreciada pelos peixes dos igapós.
O dicionário Tupi-português/português-tupi (MELLO, 2003) define o sufixo [-rana]
como “falso”, ou seja, para que haja o emprego do sufixo [-rana], deve haver um referente
original, por exemplo, existe primeira a “cana” da qual é feito o açúcar e a cachaça, depois
surge novo vocábulo como “canarana”, que pode ser traduzido como “igual a cana”,
“semelhante à cana” ou “falsa cana”, que é um tipo de capim com picos muito comum na
beira dos rios e lagos amazônicos, servindo como pastagem para o gado bovino.
As alternantes “feijãorana” e “fejuarana” são respectivamente de dois referentes: o
primeiro é explicado pelo informante do baixo Amazonas/PA como sendo um feijão do mato
parecido com o feijão verdadeiro, e o segundo é falado pelo informante do médio Solimões
como “um mato que cresce nos campo, é um cipó bravo”.
O vocábulo “siringarana” (variação de seringarana dada pelos informantes do
médio Solimões) “dá no mato bruto, tem leite igual a outra”. É uma espécie de seringa, que
serve de alimento, principalmente, para jatuarana.
10
Mesmo que.
7
– Tem a siringa, né! Que o pexe come. – A siringa barriguda ô a siringaí? –Siringaí
e a siringa barriguda. Tem aa...essa, cumu é essa fruta aqui? -Pupunharana. -
Pupunhara, o marajá, tem o jóuari. [...] e tem a melanciarana, né! Que é uma que cai,
o pexe...o pexe gosta de cumê. -Cumu é essa melanciarana? -Ela é merque uma
melancia, só que ela é bem jitinha assim, só que ela vévi no igapó. [...]. (QSL152)
Diante das facilidades que o sufixo [-rana] tem em estabelecer uma relação
híbrida com a base que seleciona, temos formações como “abacaterana” (do Náuatle
aua’katl mais [-rana] do tupi), “cabaçurana” (do pré-romano cabaça mais [-rana] do tupi),
“canarana” ( do grego kánna mais [-rana] do tupi), “feijãorana” (do latim faseolus mais [-
rana] do tupi), “limãorana” (do persa limon ou laimon mais [-rana] do tupi). Essa tendência
de formações híbridas é encontrada nas palavras que estão dicionarizadas como é o caso de
“limãoranazinho” (diminutivo de limãorana), que obedece à hierarquia de formação com base
+ sufixo [-rana] + sufixo diminutivo (z)inho. Quanto ao domínio semântico das lexias
formadas com o sufixo [-rana] encontradas no português falado amazônico, temos a seguinte
distribuição:
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As formações de palavras com o sufixo [-rana] acontecem com bases substantivas
tanto no português falado amazônico quanto no português escrito, principalmente com
palavras que pertencem ao domínio semântico, sobretudo, de frutas e árvores. Como os dados
foram coletados por meio do QSL, que não teve o propósito de registrar todas as ocorrências
10
desse sufixo, e também devido à imensidão da região amazônica, cujo léxico é em grande
parte de origem indígena, há certamente uma gama maior de palavras a que esse sufixo se
junta. Porém, o corpus, apesar de ser limitado, mostra a tendência do sufixo [-rana] de
somente se fixar a bases substantivas constatado até entre as palavras que já estão registradas.
A maior parte das lexias com sufixo [-rana] encontradas nos dicionários é de referentes da
região amazônica. Com isso, o ambiente que envolve o homem amazônico favorece o
surgimento de léxicos que se referem a elementos da flora e da fauna regional. Entretanto, não
podemos dizer, por mais que não se tenha encontrado todas as palavras do Português falado
amazônico nos dicionários, que o sufixo [-rana] continua sendo requisitado na formação de
novas palavras, pois tais vocábulos que careceram de registro, já existem há décadas, uma vez
que são muito utilizados pelos pescadores e moradores durante as enchentes de rios e lagos
amazônicos.
5 REFERÊNCIAS
ALVES, Ieda Maria. Formações prefixais no português falado in: CASTILHO, Ataliba
Teixera de. (org.) Gramática do português falado. 3. ed. Campinas, SP: Editora da
UNICAMP, 2002.
BASÍLIO, Margarida. Formação e classes de palavras no português do Brasil. 2ª. ed., 2ª.
reimpressão. São Paulo: Contexto, 2009.
CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 4ª. ed. Rio de
Janeiro: Lexicon, 2010.
FERREIRA, Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 2ª. ed. Rio de
Janeiro: Nova fronteira, 1986.
RESUMO
A necessidade de construir o novo (BERMAN, 1999) tem sido considerada uma das bases da
produção do conhecimento e das relações de poder entre sujeitos (FOUCAULT, 1975). A
circulação do saber (o novo), via discurso(s), tem sido determinada pela mídia contemporânea
e pelos discursos oficiais direcionados a professores, os quais refletem e constituem o
imaginário social. A circulação dos discursos não ocorre de forma aleatória; obedece a regras
das „sociedades de discurso‟ (FOUCAULT, 1986). Os enunciados analisados circulam em
todas as mídias e nos documentos oficiais de Secretarias de Educação. Nesta comunicação
centramos nossa atenção num foco de significativa regularidade: os enunciados deônticos. O
caráter deôntico indica certa obrigatoriedade de ação, perceptível nas pistas linguístico-
discursivas e confere uma direção a ser seguida pelo leitor do texto. É típico de práticas
discursivas em que o locutor A (discursos oficiais) diz algo, a partir da assunção de uma
posição-sujeito de saber (pleno), a um interlocutor B (professor) que está posto em uma
posição-sujeito de não-saber e que, portanto, deve seguir determinações emanadas por quem
de direito. O procedimento metodológico pautou-se pela seleção de documentos direcionados
a professores em formação, pela busca de regularidades discursivas de caráter deôntico nesses
documentos e pela análise dessas regularidades. A explicitação de tais regularidades permite
um redirecionamento dos programas de formação continuada de professores.
Palavras-chave:
Deonticidade. Discurso. Identidade. Professores.
ABSTRACT
The need of building the new (BERMAN, 1999) is one of the bases for the production of
knowledge and power relationships among subjects (FOUCAULT, 1975). The spreading of
knowledge (novelty) through discourse has been determined by contemporary social media
and by official discourses, which represent and constitute the social imaginary stance,
addressed to teachers. The spreading of discourses does not happen at random but follow the
rules of „discourse societies‟ (FOUCAULT, 1986). Analyzed enunciations are broadcasted by
all the social media and by documents of the Education Department. Current essay deals with
highly regular focused deontic enunciations. The deontic characteristics forward a mandatory
activity which is perceivable in linguistic-discursive clues and confers a pathway to be
followed by the reader of the text. It is typical of discursive practices that locutor A (official
discourses) says something from the stance of a full knowledge subject-position to
interlocutor B (the teacher) who is conditioned in a subject-position of non-knowledge and
thus has to follow the determinations produced by the lawful constituted subjects.
Methodology is foregrounded on a selection of documents addressed to would-be teachers, on
the deontically discursive regularities in the documents and on the analysis of regularities.
The regularities‟ explicitness favors a re-addressing of programs within the teachers‟
continuous formation.
1
Professora de Língua Portuguesa; e-mail: silviaconeglian@terra.com.br.
2
Keywords:
Deonticity. Discourse. Identity. Teachers.
1 INTRODUÇÃO
Marshall Berman (1999) busca em sua obra “Tudo que é sólido desmancha no ar”
explorar as dimensões de sentido da modernidade. Percorrendo vários caminhos de leitura (de
Goethe, Marx, Baudelaire, Gogol, Dostoievski a Robert Moses) e buscando designar a
experiência vital da modernidade, aponta para a assunção do novo como uma das marcas da
modernidade. O novo, positivado, em todas as esferas da vida, vai se contrapondo ao velho,
ao tradicional. Ao se instaurar essa prática discursiva, o velho é tomado como ultrapassado,
portanto, negativado. Assim, uma nova ordem discursiva (FOUCAULT, 1999) vai se
formando e, para tanto, estratégias de exclusão ou de silenciamento de alguns discursos e de
afirmação de outros vão sendo acionadas.
A circulação do novo como um saber positivado, por meio de discurso(s), tem sido
determinada por diferentes vias. Dentre essas, a mídia contemporânea (VASCONCELOS,
2011) bem como os discursos oficiais direcionados a professores refletem e constituem o
imaginário social, afetam a construção de identidades de professores e de alunos e
determinam uma ordem discursiva tomada como inevitável no espaço em que se presentifica.
Em outras palavra, a circulação dos discursos não ocorre de forma aleatória; obedece a regras
das „sociedades de discurso‟ (FOUCAULT, 1999), instituindo o “verdadeiro de uma época”.
Discursos circulam e afetam os sujeitos, que, por seu turno, fazem circular discursos. E os
professores não estão imunes a isso. Se em pesquisas anteriores buscamos analisar o discurso
da mídia de revistas de entretenimento voltadas ao público feminino como uma prática social
que direciona a produção de enunciados, neste artigo, centramos nossa atenção na
significativa regularidade discursiva de caráter deôntico que trafega na massa discursiva
enunciada para e por professores.
Os enunciados que analisamos estão presentes, também, nas várias mídias e nos
documentos oficiais de instituições educacionais. Nosso objetivo aqui é evidenciar como os
enunciados com caráter deôntico encontram-se emaranhados aos fios dos discursos dirigidos
aos professores. Para tanto, primeiramente, delineamos o que entendemos, neste momento,
por discurso deôntico e sua deonticidade.
3
2 DEÔNTICO E DEONTICIDADE
O caráter deôntico indica uma certa obrigatoriedade de ação, apontada pelo enunciado
que traz certas marcas linguísticas, como veremos adiante. Esses enunciados deônticos
conferem uma direção a ser seguida pelo leitor do texto em que esse tipo de enunciado se
encontra. É típico de práticas discursivas em que o locutor A diz algo, a partir da assunção de
uma posição-sujeito de (suposto) saber (pleno), a um interlocutor B que está posto em uma
posição-sujeito de (suposto) não-saber e que, portanto, deve seguir determinações emanadas
por quem de direito (que tem o – suposto - saber). O interlocutor é, por consequência disso,
um eterno devedor, pois nele sempre algo falta, nele há a explicitação de uma lacuna.
Em outras palavras, o caráter deôntico impõe uma ordem de ação, que supõe uma certa
taxionomia avaliativa do dizer que se reflete no fazer. É uma ordem em duplo sentido:
ordenação como sequenciação e ordenação como obrigatoriedade. Em sequências linguísticas
como as que veremos adiante, os vocábulos “deve ser”, “tem de”, “tem que”, “é preciso”, “é
necessário”, “é bom”, entre outros, são produzidos pelo locutor A, que se assume como
autorizado a dizer “isso” ao locutor B. Esses enunciados, cujos conteúdos proposicionais têm
base nos conceitos de necessário, seguindo a tradição da lógica aristotélica, estabelecem o
valor de verdade.
Ao produzir um enunciado, o locutor aponta, mostra a sua atitude frente a ele. Os
enunciados construídos por “tem de” indicariam algo do tipo: “é necessário, porque é verdade,
portanto você, meu interlocutor, deve seguir, deve obedecer, deve acreditar no que digo”. A
regularidade desse tipo de sequência linguística, que caracteriza os enunciados como sendo
deônticos, permite-nos arriscar a indicação de um efeito de sentido (necessidade) que evita
uma contestação: se é verdade, se é necessário, então não há o que escolher ou dizer. Caso
não haja a concordância do interlocutor em acatar o sentido -significado e direção
(DELEUZE, 1998) -, esse pode ficar fora do circuito discursivo.
Dadas essas considerações iniciais, passemos agora à análise do nosso foco: a
deonticidade no discurso. A perspectiva analítica é a discursiva, que considera do dizer como
acionamento de conjuntos de enunciados que se filiam a formações discursivas sócio-
historicamente marcadas e, portanto, afetadas pela ideologia. O dizer não é transparente, nem
é produzido no vácuo. Os sujeitos ocupam posições que determinam as imagens de si, do
outro e do objeto do qual fala (o referente) (PÊCHEUX, 1975, ORLANDI, 1983)
Vejamos um exemplo:
4
(1) “Dessa forma, fica evidente que ter o objeto da Química como elemento de
pesquisa científica, não é a mesma coisa que aprender o desenvolvimento e
conquistas dessa ciência numa instituição como a escola. Ao professor compete,
então, transformar esse saber do cientista em um saber que possa ser ensinado na
escola; enfim, ao professor compete ensinar Ciência, caracterizando o que
entendemos por Transposição Didática.
Por esse processo, os conteúdos necessitam ser adequados e flexibilizados, inclusive
do ponto de vista da linguagem, uma vez que não se pretende que a iniciação ao
mundo da Ciência seja realizada tendo por referência apenas a terminologia usada
pelos cientistas.” (CP, Conteúdos e Metodologias do Ensino de Ciências I, 2004, p.
22). (negrito-itático nosso)
(2) “Se você refletiu sobre isso, deve concluir que, ensinar sob outra ótica que não
implique o puro repasse de informações, requer uma reestruturação curricular, uma
retomada da formação docente, com base numa outra transposição didática e num
outro contrato didático, nos quais a história e a lógica dos conhecimentos ocuparão
lugar de destaque e nortearão a escolha dos conteúdos a serem ensinados.” (CP,
Conteúdos e Metodologias do Ensino de Ciências I, 2004, p. 23). (negrito- itálico
nosso)
E mais outro:
tanto para a formação inicial como para a formação continuada dos professores.
(SOUZA, 1999, p.5). (negrito-itálico nosso)
Num mesmo segmento lingüístico, o caráter deôntico se evidencia por duas vezes. A
autoridade do Ministério da Educação enuncia o que é preciso a B e, por consequência a C. Se
A indica a B e a C o que é necessário a eles, é porque A enuncia de uma posição que lhe
autoriza tal dizer, e tanto B quanto C são posicionados como aqueles que „devem‟ ouvir e
acatar o dito, pois esse é verdadeiro. É a indicação (direção) de sentido novamente se
instaurando.
O enunciado (4) está na ordem discursiva proposta pela prática científica instaurada na
passagem da época clássica para a modernidade ocidental em que a máthèsis (FOUCAULT,
1976) definiu o solo epistemológico do qual emergiram os discursos considerados
verdadeiros de uma época. O uso do “é preciso saber...” e do “precisa ser...” não possibilita
qualquer debate para a questão, não deixa brecha para o questionamento da validade da
proposição explicitada. Assim, a epistéme da classificação, da ordenação, ambas se
conformam no espaço do verdadeiro de uma época (FOUCAULT, 1999) de se estende até a
atualidade.
(5) “Do que são feitas as coisas que compõem nosso Universo ? Afinal, por que
essa pergunta é tão provocativa e por que respondê-la é tão importante ?
É importante responder a essa pergunta porque é necessário saber interpretar a
natureza e porque o que temos a dizer a respeito da constituição das coisas que
compõem o Universo parecer ser insuficiente diante da diversidade de elementos e
de suas infinitas possibilidades de combinações”. (CP, Conteúdos e Metodologias do
Ensino de Ciências I, 2004, p. 58). (negrito-itálico nosso)
evita o diálogo. Constrói-se, assim, o sentido (significado e direção, de novo) de mão única,
impossibilitando formas outras de dizer e de, portanto, significar.
(7) “Além de perceber a diferença, é preciso que nossos alunos aprendam a respeitá-
la. E esse aspecto só poderá ser possível a partir do momento em que rompermos
com um conceito de cultura baseado no senso comum”. (Caderno Pedagógico,
Conteúdos e Metodologias do Ensino de História I, 2004, p. 20). (negrito-itálico
nosso)
(8) “Nesse sentido, é preciso que o educador abandone o papel de único detentor
do saber e [é preciso que] tente aprender com o aluno e com o mundo. A escola
deve ser o espaço onde os conflitos são trabalhados, e não camuflados. Nessa
perspectiva, o professor deve engajar as crianças para que elas possam viver no
mundo da diferença, respeitando e solidarizando-se entre os diferentes. (...) É
preciso respeitar, conviver e valorizar a diferença, pois isso implica não só uma
melhor qualidade de vida como também de aprendizado”. (Caderno Pedagógico,
Conteúdos e Metodologias do Ensino de História I, 2004, p. 25). (negrito-itálico
nosso)
Neste exemplo (8), os enunciados deônticos aparecem cinco vezes. Essa regularidade
bem evidenciada diz algo. Nas duas primeiras sequências e na quarta, o sujeito é o
educador/professor. Na terceira, é a escola. Na quinta, é indeterminado, ou seja, qualquer um
ou todos. Em relação ao educador/professor, o caráter deôntico dos enunciados se volta para
o modelo a ser seguido (abandonar um papel, tentar aprender com, engajar as crianças).
Trata-se de uma sequência de deveres, de procedimentos a serem cumpridos sem qualquer
possibilidade de dissensão, de problematização. Nessa mesma esteira, a escola também se
torna o espaço onde o dever se cumpre. E finalmente, a todos, indistintamente, a deonticiade
se anuncia. Não há a outra possibilidade de agir a não ser a enunciada no texto.
(9) “A escola tem como missão primordial: Ensinar! Sabemos que escola boa é
àquela que ensina e o aluno aprende. Mas como educadores experientes, sabemos,
também, que, para que isso aconteça de fato, tem que haver comprometimento de
todos os envolvidos: aluno, professor, pais e ou responsáveis, comunidade, poder
público, em fim: T O D O S!
Cada um deve desenvolver muito bem suas funções, para que, além de garantir o
direito do aluno estudar, tenha ele também o direito de permanecer na escola e obter
sucesso no seus estudos. Caso contrário, será mais um, abandonado no meio desse
percurso, vítima de um sistema, cheio de engrenagens emperradas.”
(enunciado produzido por uma professora ao realizar uma tarefa on-line, enviada na
plataforma virtual de um curso de coordenadores pedagógicos. ESCOLA DE
GESTORES, 2011). (negrito-itálico nosso)
7
Neste (9) exemplo, a voz de uma professora ecoa os mesmos enunciados de caráter
deôntico com o “ter que” e o “deve + verbo de ação”. Assim, os documentos trazem essas
regularidades, e os sujeitos que entram no circuito de circulação desses discursos os colocam
adiante, fazendo-os circular ainda mais.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O caráter deôntico dos enunciados aqui analisados evidenciam o jogo discursivo que é
acionado em muitas esferas discursivas, mas especialmente nas práticas educacionais. A
deonticidade se configura, pois, como uma regularidade discursiva que flui nos fios
discursivos dos documentos direcionados a professores. Esses enunciados, que apontam para
o fechamento do dizer, ao colocarem numa ordem, numa direção, num sentido, a continuidade
do fio discursivo, se evidenciam, também, em discursos da mídia de entretenimento e da
mídia voltada a professores. Isso significa dizer que a sutil circulação da deonticiade se faz
presente em muitos fios discursivos que embalam a vida de profissionais da educação,
professores ou não. Isso é bem evidenciado por Costa (2000) que, ao analisar as relações entre
mídia e fabricação de identidades sociais, especificamente na mídia brasileira, voltada para a
constituição de discursos sobre a profissão magistério, tomado como um universo marcado
pelo feminino, embora não trate do caráter deôntico dos enunciados ali presentes, afirma:
No entanto, o que podemos dizer a partir desses poucos casos aqui analisado é que o
acento pedagógico-prescritivo que estaria subjacente aos enunciados deônticos não é
privilégio de discursos midiáticos voltados somente, ou especialmente, para professoras como
já indicado em reflexões nossas em outra publicação nossa (VASCONCELOS, 2011). Ele
ocorre também com regularidade em discursos de vulgarização informacional ou científica
bem como em revistas de entretenimento. Buscando ecoar as palavras de Deleuze (1998),
dizemos com ele que a informação posta, transitada, veiculada é uma forma direcionada de
nos fazer pensar aquilo de se espera que pensemos.
A indicação de sentido (significado e direção) desses dois aspectos aqui analisados são
marcas de um discurso da modernidade em que a ordem e a classificação (FOUCAULT,
8
4 REFERÊNCIAS
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. Trad. Carlos Felipe Moisés e
Ana Maria l. Ioriatti, São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
PÊCHEUX, M. Análise automática do discurso. In: GADET, F. e HAK, T. (Orgs.). Por uma
análise automática do discurso. Uma introdução à obra de Michel Pêcheux,1993, p. 61-161.
RESUMO
Esse trabalho se insere num projeto maior denominado “Por uma formação continuada
cooperativa para o desenvolvimento do processo educativo de leitura e produção textual
escrita no Ensino Fundamental”, do Programa Observatório da Educação/Capes, coordenado
por Ana Maria Mattos Guimarães, do PPGLA Unisinos, que visa a cooperação dos
professores na construção do próprio conhecimento e na reflexão de suas práticas de ensino.
Percebe-se que, apesar de todos os cursos de formação que se seguiram à publicação dos
Parâmetros Curriculares Nacionais pelo MEC em 1997, os princípios ali discutidos ainda não
estão disseminados nas escolas. Percebe-se ainda uma lacuna existente entre o que a academia
produz, o que recomendam os documentos oficiais, e o que efetivamente o professor faz na
sala de aula. Sendo assim, acompanha-se o trabalho de dois professores de Novo
Hamburgo/RS, na elaboração colaborativa e aplicação de projetos de ensino, que têm os
gêneros textuais como articuladores das atividades, analisando como esses professores
articulam as ideias desenvolvidas na academia à sua prática de sala de aula, após participarem
de grupos de discussão das bases teóricas para um trabalho dessa natureza. Por meio de
observação participante, o desenvolvimento dos projetos com os alunos foi gravado em áudio
e vídeo e foram realizadas entrevistas semi-padronizadas com os professores.
Palavras chave:
Prática. Gêneros. Projetos. Formação. Letramento.
ABSTRACT
This work is part of a larger project called "For a continuing cooperative education for the
development of the educational process of reading and writing textual production in
elementary school" of Program of Observatory Education / CAPES, coordinated by Ana
Maria Mattos Guimarães, PPGLA Unisinos, it aims to cooperation in the construction of
teachers' own knowledge and reflection on their teaching practices. It is clear that, despite all
the training courses that followed the publication of the National Curriculum by the MEC in
1997, the principles discussed here are not yet widespread in schools. We can also observe a
gap between what the academy does, what the official documents recommending, and that
effectively makes the teacher in the classroom. Thus, the work is accompanied by two
teachers from Novo Hamburgo/ RS, in the development and implementation of collaborative
teaching projects, which have the text genres as articulators of activities, analyzing how these
teachers articulate the ideas developed in academia to their practice classroom, after
participating in discussion groups of a theoretical basis for such work. Through participant
observation, the development of projects with the students was recorded on audio and video
interviews were conducted with semi-standard teachers.
1
Mestranda em Linguística Aplicada da Unisinos, especialista em Alfabetização e Letramento pelo IERGS,
graduada em Letras/Português pela ULBRA/Gravataí, professora de Língua Portuguesa e Inglesa; e-mail:
lisiraupp@yahoo.com.br.
2
Keywords:
Practice. Genres. Projects. Training. Literacy.
1 INTRODUÇÃO
Em tempos de tantas exigências pedagógicas feitas aos professores, por conta da
necessidade de adequar cada vez mais o que se ensina e se aprende na escola à realidade
social, por meio dos documentos oficiais como Parâmetros Curriculares Nacionais,
Referenciais Curriculares do RS e avaliações governamentais como SAEB, SAERGS,
ENEM, pensa-se mais e mais em como e o quê ensinar em todas as disciplinas,
especialmente, no nosso caso, na de Língua Portuguesa. Por isso, nos preocupamos em
apresentar e discutir, neste trabalho, alguns resultados parciais obtidos por meio de uma
pesquisa colaborativa, com desenvolvimento iniciado no ano de 2011, e ainda em andamento,
em duas turmas de 6ª série, a partir da percepção dos dois professores dessas turmas, e
mostrar que projetos de gêneros textuais, quando construídos de forma crítica, podem
desenvolver a educação linguística por meio de práticas variadas de letramento
promovendo a aprendizagem tanto de professores quanto de alunos.
Nos focamos no ensino da língua escrita, assim como Tinoco (2009, p. 152), com o
intento “de contribuir com o trabalho docente e, especificamente, no tocante ao complexo
processo de ensinar cidadãos a ler e a escrever para agir sobre o mundo”. Sendo assim, os
projetos aqui analisados, mostram tentativas, ainda que iniciais, de aplicar os conhecimentos
adquiridos na formação continuada e construção, em parceria, de projetos de ensino de Língua
Portuguesa tendo os gêneros textuais que desenvolvam habilidades voltadas para a prática
social como foco, ou seja, que possibilitam esse agir no mundo, de que fala Tinoco e tantos
outros autores como Kleiman (1995, 2000), Soares (1999) e Street (1984).
Esses projetos foram construídos a partir dos estudos realizados num projeto maior,
denominado “Por uma formação continuada cooperativa: para o desenvolvimento do processo
educativo de leitura e produção textual escrita no ensino fundamental”, coordenado pela
professora doutora Ana Maria Mattos Guimarães, com o apoio da Capes/Observatório da
Educação, em parceria entre os professores da rede municipal de Novo Hamburgo/RS,
graduandos, mestrandos e doutorandos - bolsistas de iniciação científica - e professoras da
Unisinos, e aplicados em turmas de 6ª série.
Esperamos com esses projetos, aproximar as pesquisas realizadas na universidade às
práticas de sala de aula, visando mudanças efetivas no ensino, voltadas ao crescimento
docente e discente.
3
Para deixarmos claro nossa perspectiva de ensino, faz-se necessário, na primeira parte
do trabalho, contextualizar, através da conceituação de alguns termos usados no
desenvolvimento das práticas realizadas no processo desse projeto, como letramento,
educação linguística, sequência didática, gênero textual e as orientações dos documentos
oficiais para o ensino de língua portuguesa. Na segunda parte, explica-se a metodologia usada
na geração de dados e o contexto em que se encontra esse estudo. Na terceira parte são
apresentados e discutidos os resultados e na quarta parte, fazem-se algumas considerações
finais.
2
Ideologias, segundo Chauí (1991), são as explicações dadas para criar a ideia de que todo fenômeno que
acontece no mundo é natural, sem razões lógicas, usadas para favorecer a quem está no poder de alguma
situação, por mascarar a realidade social.
3
A Escola de Genebra é a Universidade onde se desenvolvem as pesquisas de Schneuwly e Dolz sobre o uso de
gêneros didáticos no ensino de línguas, no caso deles, o Francês.
4
(2010), “ é, em suma, um modo próprio de dizer que revela quem fala e de que lugar fala”, ou
seja, são originados das atividades de linguagem e não o contrário, constituindo-se um ponto
de referência concreto para os alunos, um meio para que atinjam a aprendizagem social.
Podemos também considerar os gêneros uma forma de aplicarmos o que a Declaração
Universal dos Direitos Linguísticos propõe como direito linguístico o de “ter conhecimento
profundo do patrimônio cultural” de sua comunidade linguística (art.28), entendendo a língua
como “expressão de uma identidade” (art.7), por entendermos que os gêneros textuais são
uma forma de cultura social que se baseia no uso que o grupo linguístico faz das suas
enunciações e que perpassa as funções da escola.
A princípio, como explicam Schneuwly e Dolz (2004, p. 76), a escola sempre trabalhou
com gêneros, num primeiro momento, criando gêneros especificamente escolares, sem
vínculo com a realidade, de forma fictícia, só para avaliação; depois passaram a ser
naturalizados como se surgissem na situação escolar, sem estudá-los na sua forma, sem
vinculá-los com os exteriores à escola usando em seguida, textos tirados da realidade como
pretexto para atividades tradicionais e em tempos mais atuais, começou-se a pensar nos
gêneros textuais usados na sociedade como foco do ensino na escola, facilitando o domínio de
meios reais para práticas sociais efetivas, refletindo o seu funcionamento, estrutura, questões
linguísticas pertinentes e, principalmente, utilidade social.
Para desenvolver os gêneros na prática de sala de aula, Schneuwly e Dolz (2004)
desenvolveram a ideia de sequência didática, que é um módulo de ensino do gênero textual
que parte de uma apresentação da situação para uma produção inicial e oficinas que propiciam
a aprendizagem das diferentes características do gênero estudado, partindo da escrita dos
próprios alunos na primeira produção, com o intuito de saber as suas dificuldades e
instrumentalizá-los, a fim de atingir o objetivo de produzirem o gênero de texto escolhido
para satisfazer as necessidades sociais da turma, como explica Guimarães (2005). Por isso,
quando planejava seu projeto, a professora Clara4 pensou em qual seria a necessidade social
de seus alunos e, na entrevista, quando perguntada sobre a motivação para a escolha do tema,
diz que o escolheu porque seus alunos “adoram contar tragédias”, na tentativa de “ talvez
fazer com que eles leiam as narrativas de detetive e vejam a realidade deles de uma forma
4
A professora, aqui denominada “Clara”, tem 26 anos, é graduada em Letras Português/Inglês, pela Unisinos, há
3 anos e meio, é professora da rede municipal de Novo Hamburgo e participa do projeto de pesquisa “Por uma
formação continuada cooperativa: o desenvolvimento do processo educativo de leitura e produção textual escrita
no ensino fundamental”.
5
5
O professor, a quem denominamos neste trabalho de “Francisco”, tem 43 anos, é graduado em Letras pela
Unisinos, tem Mestrado em Literatura Portuguesa e Africana pela UFRGS e é doutorando em Literatura
Africana pela UFRGS, é professor da rede de Novo Hamburgo e participa do projeto de pesquisa coordenado
pela Professora Doutora Ana Maria Mattos Guimarães.
6
Os autores também afirmam que a educação linguística de cada indivíduo começa logo
no início de sua vida, assim, sabemos que quando chegam à escola, todos os alunos já
desenvolveram muito da sua educação linguística e continuam, paralelamente,
desenvolvendo-a fora da escola, porque todas as nossas interações linguísticas propiciam o
desenvolvimento da linguagem. Porém, a parte da educação linguística aprimorada na escola
com mais ênfase, é o letramento, ou seja, as práticas de leitura e escrita, já que este é o foco
da escolaridade, que também não acontecem só na escola. E os professores precisam ter a
sensibilidade de entender que quando chega na escola, a criança precisa primeiro gostar do
que está fazendo. As que ainda não tiveram bons eventos de letramento em casa, precisarão
de tempo para se acostumar, e se as experiências e exemplos se distanciam de sua realidade,
tanto menos elas se sentirão à vontade na escola. Assim também com jovens e adultos.
No projeto da professora Clara6, em que usou de um tema do qual eles falavam muito, a
professora percebeu essa necessidade e conseguiu com que os eventos de letramento da sua
turma tivessem um pouco mais de proximidade com a realidade dos alunos e expressa isso
dizendo: “eles gostaram, porque é uma prática que eles já acompanham, até por eles
acompanharem as notícias da violência que tem na comunidade que eles olham na tv, vêem às
vezes no jornal (...)”. Assim também o professor Francisco procurou incluir na sala de aula
um gênero textual que muitos alunos já conheciam, para que trabalhassem a partir da sua
realidade.
Pensamos que tanto mais rica será a aula se, aproveitando-se da situação da própria
turma, criam-se as atividades para que façam sentido aos alunos, para que, a partir das suas
experiências possam aprimorar a linguagem, e assim fazer bom uso da educação linguística
que estão recebendo. E seguindo o exemplo de Flecha (2006): “Em vez de transformar o
6
Os nomes aqui usados são fictícios pra preservar a identidade dos envolvidos.
7
3 CONTEXTO DA PESQUISA
No projeto de pesquisa “Por uma formação continuada cooperativa: o desenvolvimento
do processo educativo de leitura e produção textual escrita no ensino fundamental”, a partir do
qual tiramos os dados para a realização deste trabalho, foram realizados encontros semanais,
desde fevereiro de 2011, onde os envolvidos na pesquisa puderam estudar textos que
subsidiaram o trabalho desenvolvido, tais como: PCN‟s (1997, pág.17-44), Cerqueira (2010),
Camillo (2007), Travaglia (2007), Gregolin (2007) sobre ensino de Língua Portuguesa; Bagno
8
e Rangel (2005), sobre educação linguística; Lopes (2007), D‟aligna (2007), Beyer (2005),
sobre inclusão; Oliveira (2010), Guimarães (2005), Schneuwly e Dolz (2004), Referenciais
Curriculares do RS (2009, p. 92-102) e Bunzen (2007) sobre gêneros textuais. A partir das
reflexões dessas leituras discutidas, passamos a denominar os projetos desenvolvidos com
gêneros textuais, da forma como o fizemos, de Projeto Didático de Gênero, pois não
poderíamos mais situá-lo como sequência didática, já que é mais flexível e pode abranger até
dois gêneros textuais intercalados.
Para este trabalho, foram escolhidos, aleatoriamente, dois dos cinco primeiros7
professores participantes, com os quais, foram realizadas entrevistas semi-estruturadas,
gravadas em áudio e transcritas por mim. Além das entrevistas, foram analisados os projetos
construídos e aplicados nas respectivas turmas e a aplicação das atividades foram observadas
por mim e pelos bolsistas da graduação e gravadas em vídeo, onde pudemos constatar o ritmo
da aplicação, as reações dos alunos, as estratégias dos professores e o desenvolvimento das
práticas de letramento propostas.
As escolas dos dois professores escolhidos para este trabalho são escolas grandes,
ambas situadas na periferia da cidade cuja secretaria de educação participa do projeto, com o
índice do IDEB abaixo da meta esperada em 2009, uma com média de 4,2 entre 2005, 2007 e
2009 e outra com média de 3,6. As duas escolas são compostas de alunos com famílias
constituídas, em grande número, pelo menos em uma das escolas, de forma não tradicional,
em que uns vivem só com o pai ou só com a mãe ou com avós, outros tem padastro ou
madrasta e a maioria que trabalha tem profissões pouco remuneradas. As duas escolas têm
suas dependências amplas, porém pouco conservadas. Nelas, há espaço para a realização de
atividades extraclasse e de integração, porém, ou são mal-conservados ou não há profissionais
habilitados ou designados para a atividade.
A turma do professor Francisco, conta com 22 alunos, as da professora Clara, tem em
média 30 alunos, porém muitos faltam à aula aleatoriamente, conforme a fala da própria
professora:
Uma coisa negativa é que, como eles (...) não são muito assíduos, alguns eu percebo
a dificuldade assim, numa aula que a gente leu tal trecho do livro, o aluno x, y e z, e
lá o alfabeto inteiro, (...) esses alunos não vieram na escola, e daí na aula seguinte
eles tem que ler aquele trecho e ler o outro, então compromete bastante na
continuidade.
7
Na primeira etapa do projeto de pesquisa, na qual nos encontrávamos até julho de 2011, participavam apenas 5
professores da rede municipal de Novo Hamburgo, que serão os multiplicadores, nas formações realizadas com
outros professores na rede, na segunda etapa.
9
Essa é uma das dificuldades encontradas nas escolas para o bom desenvolvimento dos
alunos, já que estes, em muitas comunidades, faltam bastante, principalmente quando suas
famílias têm poucas condições financeiras. Trabalhar assim fica complicado, pois os
professores são cobrados pela aprendizagem de todos os alunos e, em muitos casos, mesmo a
aula sendo agradável, o aluno não vem e não aprende como poderia, o que pode ser um dos
fatores que desanimam os professores, como aponta a professora Clara: “eu penso bastante –
até quando eu vou continuar sendo professora, porque... às vezes o desafio tá ali e tu não
consegue superar .. e isso é muito frustrante.. pra mim.. assim.. eu.. não imaginava encontrar
tudo isso que eu encontrei.” Mas os professores continuam acreditando no seu trabalho, como
afirma o professor Francisco: “Eu gosto muito dessa interação com o aluno, dessas conversas
(...). Gratificante assim, quando o aluno, chega e conversa contigo „bah, professor,.. gostei
muito da tua aula‟, entende? isso é o melhor de tudo. Tu sabe do carinho que eles têm por ti
(...).” Estamos convencidos de que, para o aluno gostar da aula, gostar do professor, não basta
fazer só o que o aluno quer na aula, mas o que ele precisa aprender para agir no mundo,
quando as coisas fazem sentido tanto para o professor, quanto para o aluno.
Por isso, muitos têm procurado estudar mais para vencer os desafios que se apresentam.
O professor Francisco, por exemplo, em suas respostas, mostrou-se bastante motivado em
buscar mais conhecimento no projeto: “Eu estou no Observatório por realmente uma grande
curiosidade, é... como eu sou da área da literatura e eu sempre... em sala de aula a gente
sempre trabalha muito com questões linguísticas, e eu queria uma atualização em
linguística.”, já a professora Clara diz estar em conflito com a realidade da escola e na busca
de um sentido pra sua prática de sala de aula: “Bom (...) Eu aceitei o convite... porque quando
eu cheguei na escola eu me choquei bastante com a realidade... a princípio não fiquei
satisfeita, fiquei muito chocada, né.” Esse choque de realidade, o qual muitos professores
vivenciam, faz toda a sociedade entrar em conflito de crenças sobre as causas e consequências
das dificuldades da educação.
Toda essa estrutura educacional, exposta de forma deliberadamente deturpada na mídia,
através de programas de TV preocupados em atestar a própria tese às quais antecipadamente
já haviam determinado causas e consequências dos baixos índices do IDEB, é, em verdade, a
face da educação mundial, onde há muitos déficits: de investimento em estrutura física das
escolas, de motivação, remuneração e formação dos professores, de estrutura familiar e
psicológica dos alunos, além de outros tantos problemas escolares, adquiridos pelos ranços
políticos e sociais. Porém, a intenção desse projeto, é mostrar a busca de soluções a partir da
formação continuada dos professores, pois acredito que é preciso que haja uma leitura crítica
10
para treinarem as questões demonstradas como dificuldades, na primeira produção dos alunos,
entrevista com um investigador de polícia e, por fim, a produção final, num total de 11
oficinas que ainda não haviam sido todas aplicadas no momento da escrita desse artigo.
A professora relata que teve dúvidas quanto à aplicação das atividades: “Quando eu
pensei em ler o livro eu pensei „será que vai dar certo?‟(...) será que eles vão entender o que tá
acontecendo na história?”, porém, penso que a empolgação dos alunos durante o projeto a
tranquilizou: “quando é que vai ter a aula de detetive de novo?” eles perguntavam e,
provavelmente, por ser escolhido um tema do qual eles gostaram, houve uma adesão da
maioria dos alunos com o trabalho, o que fez a professora constatar que:
Eles ficaram bastante empolgados com a primeira produção, e assim, eu vejo
que nas atividades, às vezes eles reclamam de terem que fazer, mas um pouco de
preguiça, né, mas a parte da leitura do livro eles tão gostando bastante, inclusive, às
vezes tu tem que ficar „(...) é só até a página 20‟ e eles querem ler mais,..eles estão,
às vezes além da página que eu pedi pra eles lerem.
Além dos alunos e professores, todas as pessoas que convivem com a comunidade
escolar, fazem parte do processo ensino/aprendizagem, de acordo com a afirmação de Flecha
(2006) “Todo mundo influencia na aprendizagem e todo mundo deve planejá-lo
conjuntamente.”
É nisso que insistem os estudiosos da linguística aplicada: o ensino tem que fazer
sentido. A leitura, a escrita e também a fala têm de ser usadas para a reflexão e ação na
sociedade, portanto, como isso é a base do ensino de língua materna, nada mais coerente do
12
que usá-los na prática, pois como afirma Ortega e Puigdellívol (2006) “A aprendizagem não
se concentra tanto em encher os alunos com um monte de informações, sem saber o que fazer
com elas”, então as atividades podem gerar um conhecimento mais coerente, como afirma o
professor Francisco:
(Se) um outro professor (disser), „agora vocês vão usar um verbo no
imperativo‟ eles vão dizer: „eu sei o que que é‟ (...), mas se alguém disser assim,
„bom, agora nós vamos fazer um folder‟, eles também vão saber o que que é, então
eles tem a aprendizagem, não é uma coisa só, não foi só um conteúdo de gramática
que ele aprendeu (...)
Também não podemos continuar agindo como se as coisas à nossa volta não
estivessem acontecendo, como se os alunos não vivenciassem a realidade e continuarmos
realizando atividades que servem só para avaliação escolar, pois quando vemos que o que
ensinamos aos alunos faz sentido pra eles, acaba fazendo sentido pra nós também, como
responde o professor Francisco ao ser questionado sobre o que ele observou de positivo no
projeto que ele realizou com a turma:
Aquela produção não ficar „bom, eu vou fazer um texto pro professor ler‟,
(...) achei interessante justamente eles verem o produto, assim, não sendo só um
texto, (...)mas verem um produto, todo, pronto, e que ali está... a escrita,a gramática,
tudo o que eles aprenderam tá ali dentro, então eles vêem , „ah, agora tem sentido
aquilo que eu aprendi‟.
Em muitos momentos desse projeto, surgiram muitas dúvidas, assim como imaginamos
que haja dúvidas na prática da maioria dos professores, até porque, nenhum dos dois
professores colaboradores deste trabalho havia trabalhado com este tipo de projeto ainda,
como a professora Clara relata: “Eu eu criava os meus projetos, assim, só que não com tanta
profundidade.”; e o professor Francisco confirma: “projetos(...) grande, assim como esse,
não.” Mas qual a diferença entre o que realizavam antes (e que a maioria dos professores que
trabalham com projetos faz) e o projeto que realizaram agora? A professora Clara diz que:
Talvez, criava projetos menores, acho que essa é a diferença e o
embasamento teórico, (...) tu tem a troca que eu acho que (o que) realmente
diferenciou é que agora tu tem/eu tenho essas pessoas com quem eu converso que
dão sugestões, que a gente tem uma troca, que eu vejo o projeto dele e „ah, esse/isso
deu certo, é legal no dele, eu vou tentar colocar um parecido no meu‟.
acabado, como foi expresso pela professora Clara: “na hora que tu tá fazendo, por mais que tu
pense, que tu te prepare (...), é o improviso que reina, (...) às vezes sai completamente fora do
que tu te preparou, do que tu imaginou que fosse a aula, e, às vezes a gente não se dá conta
que saiu fora”, mas de acordo com Britto, Santos e Abud (2005) “O especialista preocupado
com o ensino voltado para a educação linguística deve ter claro seu objetivo em cada aula,
sem lançar mão do improviso e da criatividade.” Assim os projetos podem ir melhorando,
tornando a prática escolar mais fácil de entender.
Trabalhar com gêneros textuais, como foi dito, não é transformar o texto em pretexto,
e nem pegar qualquer texto para “puxar um assunto” na aula. Para desenvolver o trabalho com
gêneros, é preciso primeiro pensar em qual situação real os alunos estão vivendo e que pode
servir de fundo para as aulas, de acordo com o interesse ou necessidade deles.
A partir daí, escolhe-se um ou mais gêneros textuais que poderão fazer o aluno pensar
sobre sua situação social e, paralelo a isso, desenvolver suas habilidades de leitura e escrita. A
princípio, pede-se uma produção textual inicial, sem explicação sobre o gênero aos alunos,
mas a partir do que eles sabem sobre o gênero, que servirá de base para as atividades que
desenvolverão o conhecimento linguístico sobre o gênero (estrutura, função, características e
tópicos gramaticais), preparando-os para a produção textual final que servirá de prática social,
conforme o combinado com a turma, ou o planejado pelo/a professor/a. Em seguida são feitas
aulas/oficinas com atividades variadas para ampliar as condições de escrita dos alunos,
desenvolvendo a leitura, interpretação, escrita e conhecimentos gramaticais da língua, a partir
de suas próprias dificuldades e considerando os conhecimentos prévios.
No caso dos projetos analisados, as produções finais das narrativas de detetive
construídas, servem como reflexão dos próprios alunos sobre sua realidades e que podem ser
melhor aproveitadas se forem publicadas em um mural, blog, livro da turma, ou outro meio de
comunicação; já os forders, vão ser entregues para a comunidade, pessoalmente pelos alunos,
para promover o conhecimento sobre a alimentação saudável. O importante é que o aluno
possa ver o resultado do seu trabalho em uma prática social real, para que veja sentido em ler
sobre o assunto, produzir, analisar e reescrever quantas vezes forem necessárias para que
fique de acordo com o objetivo proposto.
Em relação à gramática, sobre a qual muitos se questionam “Como ensinar gramática
quando trabalho com gêneros?” e da qual não podemos, como professores de língua(s)
esquecer, foi trabalhada a partir das necessidades geradas pela escrita dos próprios alunos para
se adequarem ao gênero. A professora Clara, por exemplo, teve de lançar mão de explicações
e exercícios sobre pontuação, discurso direto e indireto, pronomes (para identificar o
14
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os vários aspectos sobre o trabalho com gêneros textuais que tentamos expor aqui, já
são indícios de que pode ser muito produtivo, quando há vontade, tempo, disposição e/ou
incentivo, pois observamos que desde a leitura dos textos até o planejamento dos projetos,
apresentação aos colegas da pesquisa e aplicação nas turmas, o projeto “Por uma formação
continuada cooperativa: o desenvolvimento do processo educativo de leitura e produção
textual escrita no ensino fundamental” proporcionou até agora, aos próprios professores, a
leitura e escrita como fim social, fazendo-os refletirem sobre suas ações na prática escolar,
como afirma o professor Francisco: “é um tempo de pesquisa, de tu te inteirar, saber como é
que aquilo ali se estrutura, pra depois tu aplicar pro aluno, né, pra ti poder ter as respostas pro
aluno e, não que o aluno tenha que saber tudo aquilo, mas tu tem que saber.” o professor,
então, tem que adquirir postura de pesquisador, concordando com o que Tinoco (2010)
afirma.
Podemos observar, nas formações, que a maioria dos professores ficam felizes em poder
mostrar o que estão realizando em aula, em compartilhar suas dúvidas e anseios. Pensamos
que as próprias escolas poderiam promover espaços assim, mas muitas fazem suas reuniões
rápidas, só pra dar recados administrativos e não dão chance para os professores conversarem
sobre seus projetos, suas pesquisas, enfim, ouvir suas vozes, como a escola espera que os
professores ouçam as vozes dos alunos.
As reflexões sobre os projetos aqui relatados, permitem que se conclua que o trabalho
com gêneros textuais, levando a realidade para dentro da escola, para que o que se produz na
15
escola reflita na realidade, numa troca contínua, tem condições de mudar a sociedade e fazer
com que a aula se torne muito mais interessante, através de atividades contextualizadas, como
a percepção da professora Clara: “eu tô vendo assim, uma adesão maior ao que tá sendo
trabalhado da parte deles, porque eles estão interessados, né, nas atividades, eles gostaram do
livro, eles querem ver os mistérios do livro.” e enquanto o currículo atual se preocupa em
subdividir a língua para ser ensinada em partes, esquecendo o mais importante que é a sua
constituição, as pesquisas feitas nas universidades provam que a língua é melhor entendida
quando estudada na sua integridade, contextualizada.
Sabemos também que a gramática tem papel importante, mas não primordial e nem
sozinha. Ela pode ser trabalhada através de atividades que desenvolvam habilidades para a
produção do gênero estudado, sem usar um texto como pretexto de atividades tradicionais,
mas constituí-lo como parte importante da aprendizagem. Assim, todos os sujeitos envolvidos
no processo ensino/aprendizagem aprendem, ensinam e desenvolvem sua prática social com
maior senso crítico.
6 REFERÊNCIAS
ABUD, Elisabete Francisco; SANTOS, Júlia Maria Correa Lino dos; BRITTO, Luiz Percival
Leme. A educação linguística no ensino de língua portuguesa. IV SEMINÁRIO SOBRE
ENSINO DE LÍNGUA E LITERATURA. COORDENAÇÃO:
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________________. Apud FREITAS, Marinaide Lima de Queirós. Práticas de letramento (s)
escolar de professores formadores de professores e de alunos professores: que relação
17
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www.anped.org.br/reunioes/29ra/trabalhos/trabalho/GT18-2027--Int.pdf, acesso em 07/08/11.
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TRAVAGLIA, Luis Carlos. Gramática ensino plural. São Paulo: Cortez, 2007.
RESUMO
O objetivo deste artigo é discutir ações de Relações Públicas que fortaleçam a imagem do
projeto ALiB por meio do estabelecimento de relacionamento com públicos prioritários. Ba-
seando-se em pesquisa bibliográfica, inicialmente apresenta-se o projeto ALiB, para, em se-
guida, expor as características da divulgação científica, da comunicação científica e das Rela-
ções Públicas. Finalmente, é proposto o estabelecimento de um processo de relacionamento
com públicos prioritários, considerando-se desde a identificação dos públicos até a avaliação
das ações propostas. Este estudo aponta para a necessidade de estabelecimento de cooperação
técnica entre o projeto ALiB e cursos de graduação de Relações Públicas para a consecução
de suas propostas.
Palavras-Chave:
Dialetologia. ALiB. Comunicação Científica. Relações Públicas.
ABSTRACT
The objective of this paper is to discuss actions to strengthen the PR image of the ALIBI pro-
ject through the establishment of relationship with its public. This paper is based on literature
search and initially presents the ALIBI project, and then describes the characteristics of scien-
tific communications and public relations. Finally, we propose the establishment of a process
of public relations, from identification to evaluation of proposed actions. This study highlights
the need to establish technical cooperation project between ALIB and undergraduate courses
in public relations to achieve their proposals.
Keywords:
Dialectology. ALiB. Scientific Communications. Public Relations.
1 INTRODUÇÃO
No Brasil, as referências dialetológicas sobre a língua portuguesa têm início no sécu-
lo XIX, em 1826, quando Domingos Jorge de Barros, o Visconde de Pedra Branca, a pedido
do geógrafo Adrien Balbi, desenvolveu as características dialetais do português do Brasil.
Este trabalho integrou o Atlas Etnographique du Globe, organizado por Balbi (MOTA;
CARDOSO, 2006).
1
Professora Assistente do Curso de Relações Públicas da Universidade Federal do Amazonas (UFAM); bolsista
de Doutorado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM) no Programa de Pós-
graduação em Linguística na Universidade Federal e Santa Catarina (UFSC); e-mail: aline@ufam.edu.br.
2
Professor adjunto do curso de Letras da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e professor do Pro-
grama de Pós-Graduação em Linguística desta mesma universidade; e-mail: wfelicio@cce.ufsc.br.
2
Desta forma, o estudo das falas passa a ter a preocupação com o levantamento não só
de aspectos regionais, mas também considera características sociais, culturais, de gênero etc.
Lançando mão de um método específico, a Geografia Linguística3, a Dialetologia permite,
através dos atlas linguísticos, uma percepção ampla de uma língua em seus diversos aspectos,
descrevendo determinada realidade linguística.
[Os Atlas Linguísticos] valem pelo que permitem dizer a partir deles com segurança
e objetividade, mas não dizem tudo. Permitem ver muito em extensão, mas com sa-
crifício da profundidade e do pormenor, embora como inventário preliminar consti-
tuam um ponto de partida mais seguro para aprofundamento dos estudos mais exaus-
tivo de áreas menores que nele se delimitam já então partindo não de pressupostos
extralinguísticos, mas de dados da linguística interna, colhidos ao vivo, que frequen-
temente contrariam todos os pressupostos apriorísticos (FERREIRA; CARDOS,
1994, p. 20).
3
“A Geografia Linguística é o método por excelência da Dialetologia e vai se incumbir de recolher de forma
sistemática o testemunho das diferentes realidades dialetais refletidas nos espaços considerados” (CARDOSO,
2002, p. 2).
3
4
“Linha virtual que marca o limite, também virtual, de formas e expressões linguísticas. As isoglossas podem
delinear contrastes e consequentemente apontar semelhanças em espaços geográficos (isoglossas diatópicas),
podem mostrar contrastes e mostrar semelhanças linguísticas socioculturais (isoglossas diastráticas) ou ainda
podem configurar diferenças de estilos (isoglossas diafásicas)”. (FERREIRA; CARDOSO, 1994, p. 12).
4
5
Público – “grupo de pessoas que tem impacto numa organização ou é afetado pelas decisões organizacionais”
(STACKS, 2008, p. 64).
5
bilizar. Divulgação remete a tornar público, anunciar, informar. Acho que o nome do jogo é
comunicação” (DUARTE, 2004, s.p.).
E comunicação implica não apenas em transmissão de mensagens, mas interação. E
esta é a palavra-chave para se compreender o conceito de comunicação, pois este é muito
mais abrangente que o conceito de transmissão e de recebimento de informações, embora in-
clua também esses fatores, uma vez que “ela é muito mais ampla, abrangendo todos os conta-
tos formais ou informais que nos transmitem qualquer espécie de experiência exterior, revigo-
rando ou alterando o nosso comportamento” (ANDRADE, 2001, p.103). A Divulgação Cien-
tífica, nesta perspectiva, passa a ser complementar, ou seja, é necessário um sistema de comu-
nicação e de relacionamento com os diversos públicos que identifique e desenvolva “alterna-
tivas para que as questões sobre ciência penetrem no âmago da sociedade” (DUARTE, 2004,
s.p.).
Para alcançar esse objetivo, Duarte (2004) pondera que existem três caminhos: 1. As
organizações de ciência devem incorporar em sua cultura a preocupação com a comunicação;
2. Ao invés da lógica de disseminação de informações, proporcionar à sociedade a apropria-
ção das questões científicas; 3. Incrementar o relacionamento das organizações de ciência
com seus diversos públicos. “Existem mecanismos e processos para que as pessoas conheçam,
envolvam-se, participem, discutam, questionem a ciência e não apenas sejam informadas so-
bre os seus avanços” (DUARTE, 2004, s.p.). Entretanto, esses processos passam ao largo das
práticas científicas e o potencial do uso da comunicação científica ainda é pouco conhecido.
Há, portanto, por parte do cientista, a consciência de que, ao revelar seu conhecimen-
to produzido, “impulsiona novos estudos, reflexões, descobertas e coopera para o progresso
da ciência” (PAVAN, 2008, p. 43). E, para que esta difusão aconteça de forma eficaz e siste-
mática, desenvolvendo-se mecanismos de relacionamento e aproximação com os diversos
públicos, criando uma cultura de interesse, por parte desses públicos, pela ciência, de forma
planejada e contínua, é necessária a atuação de um profissional de Relações Públicas.
Grunig e Huang (2000) definem Relações Públicas como a “gestão da Comunicação
entre uma organização e seus públicos” (p.4), o que acaba por igualar a gestão da comunica-
6
ção organizacional às Relações Públicas, termo que muitos profissionais da área preferem
usar porque o termo “gestão da comunicação” é mais bem entendido.
O importante, entretanto, não é que se defina a expressão “Relações Públicas”, e sim
que se compreenda que hoje, devido às características do mercado globalizado, da variedade
de fontes e de formas de comunicação, as instituições (inclusive as científicas) precisam esta-
belecer relacionamento com seus públicos estratégicos – empregados, clientes, órgãos gover-
namentais, imprensa, comunidades, sociedade, acionistas, concorrentes etc. E é esta interação
que possibilita às instituições a compreensão das necessidades de seus públicos e vice-versa,
fazendo com que, por meio da negociação, surja um cenário que irá satisfazer ambas as par-
tes.
A natureza e o papel das Relações Públicas é alterar uma situação presente, talvez
desfavorável, para um posicionamento futuro mais coeso com a direção dada ao ob-
jeto social que se pretende modificar. Com um processo, empregado metódica e sis-
tematicamente, o profissional tem o instrumental necessário para efetivar diálogos
duradouros com os diversos grupos de interessados na organização. (FORTES,
2003, p.40).
Como trabalha com a perspectiva de relacionamento das instituições com seus diver-
sos públicos, é papel do profissional de Relações Públicas, inclusive, contornar um problema
recorrente nas várias áreas da ciência: a resistência, por parte dos cientistas, quanto às trans-
formações operadas por jornalistas em seu discurso, o que, no afã de tornar a linguagem mais
acessível, acaba por gerar interpretações equívocas de sua produção (AFONSO, 2008).
pesquisadores do projeto ALiB e a imprensa, para quem deverão ser fornecidas informações
relevantes e confiáveis.
3.2 Análise do comportamento do público – isto pode ser feito por meio de pesqui-
sas quantitativas ou qualitativas, que irão determinar as atitudes e as tendências de cada um
dos públicos acima com relação ao ALiB. Esta análise contribuirá para a elaboração de um
planejamento que melhore a interação e a opinião dos públicos com relação ao projeto. A
pesquisa não deve ser apenas um levantamento de opiniões sobre o que os públicos pensam a
respeito das atividades desenvolvidas. É necessário investigar os hábitos culturais e sociais e a
demanda por informações, principalmente com relação aos integrantes do ALiB.
Algumas questões norteadoras devem ser levadas em consideração ao que desenhar a
pesquisa para análise de comportamento do público:
3.2.1 Integrantes do projeto – quais são as barreiras que impedem a comunicação e a
integração entre as equipes? Quais são os motivos de orgulho de pertencer ao projeto ALiB?
Quais são as necessidades de comunicação e relacionamento deste público com relação ao
projeto?
3.2.2 Instituições Científicas e Agências financiadoras – qual o nível de conhecimen-
to dessas instituições sobre o projeto ALiB? Existe consciência, por parte dessas instituições e
de seus comitês, da relevância das pesquisas desenvolvidas? Quais as necessidades de comu-
nicação e relacionamento dessas instituições com relação ao projeto?
3.2.3 Estudantes e professores de Letras e Linguística – existe consciência, por parte
desses públicos, sobre o conhecimento gerado pelo projeto ALiB que pode contribuir com
suas respectivas ações de ensino, pesquisa e extensão? Qual o nível de conhecimento e inte-
resse dos alunos com relação ao projeto ALiB?
3.2.4 Imprensa – em que ocasiões a imprensa já publicou matérias sobre o projeto
ALiB? Que assuntos/pesquisas do projeto podem ser considerados relevantes para publica-
ção? Qual o nível de conhecimento da imprensa a respeito do projeto ALiB?
3.3 Levantamento das condições internas – a partir do momento em que se conhe-
ce quais são os comportamentos e as atitudes dos públicos mencionados as normas e os pro-
cessos do projeto ALiB devem ser investigados para que ajude a explicar a atitude destes pú-
blicos para com a organização. As condições internas não podem conflitar com as expectati-
vas dos públicos. Se isto acontece, é necessário que haja um processo de negociação entre as
partes. Ou seja, é neste momento que iniciará o processo de ajuste entre o projeto ALiB e os
seus públicos prioritários com vistas a um relacionamento que favoreça a imagem da institui-
ção. É neste momento, também, que os instrumentos de comunicação já utilizados pelo proje-
9
to, como o site, precisa ser avaliado do ponto de vista da imagem e do relacionamento com os
públicos.
3.4 Formulação de políticas – as análises realizadas nas fases anteriores definirão se
é necessário reformular as políticas da organização, com o objetivo de se alcançar a compre-
ensão e a boa vontade dos públicos. É nesta fase, também, que é elaborada a política de co-
municação, que irá nortear o processo de planejamento.
3.5 Planejamento – nesta fase, todos os recursos de relações públicas são utilizados
(instrumentos, técnicas, veículos etc.) para que a política, já reformulada, seja seguida. O or-
çamento é elaborado e os prazos de implementação das ações são definidos nesta fase. No
caso do projeto ALiB, é necessário, ao se planejar ações de construção de imagem e de relaci-
onamento com os públicos, considerar os recursos reduzidos para a comunicação. Ações de
custo reduzido ou, de preferência, sem custo nenhum, deverão ser priorizadas.
3.6 Execução – é a fase mais tangível da comunicação em uma instituição, uma vez
que os materiais elaborados para cada um dos públicos passam a ser concretizados nesta eta-
pa. Normalmente, a execução é a etapa mais visível, porque consiste nos instrumentos de co-
municação em si, mas para que o processo de comunicação organizacional cumpra seus obje-
tivos, é necessário que cada uma das fases sejam cumpridas rigorosamente.
3.7 Avaliação – É por meio desta fase que se irá verificar a eficácia das ações plane-
jadas para o projeto ALiB, permitindo que os programas de comunicação previstos sejam
ajustados de acordo com as necessidades dos públicos e as políticas do projeto ALiB. Esta é a
fase que mais comumente é deixada de lado em processos de comunicação, mas que não é
menos importante que as outras. É justamente a avaliação, seja por meio de pesquisas quanti-
tativas ou qualitativas, ou de reuniões de análise, que irá garantir a eficácia do processo de
comunicação.
Além do trabalho planejado de comunicação e relacionamento com os públicos suge-
ridos neste trabalho, existem outras possibilidades de atuação das Relações Públicas no proje-
to ALiB. “O conhecimento prévio de costumes e hábitos da comunidade e de dados históricos
sobre a região pesquisada é de fundamental importância para o bom andamento do trabalho de
recolha dos dados linguísticos” (ISQUERDO, 2003, p.47). Justamente por trabalhar com ati-
tudes e comportamento dos públicos, as Relações Públicas podem contribuir no desenvolvi-
mento deste levantamento. Além disso, ainda de acordo com a autora, é necessário, para um
estudo dialetológico, o levantamento de informações etnográficas, o que pode contar também
com a contribuição das Relações Públicas.
10
Outro aspecto que as Relações Públicas podem contribuir é na questão cultural. Is-
querdo (2003) aponta para questões deste âmbito quando fala de características físicas, con-
vicções religiosas e ideológicas dos entrevistados. Neste aspecto, os conhecimentos culturais
adquiridos pelas Relações Públicas ao longo do curso de graduação e em suas práticas profis-
sionais também podem contribuir sobremaneira no desenvolvimento das entrevistas realizadas
pelos pesquisadores do projeto.
Isquerdo (2003) considera ainda que as relações humanas merecem atenção especial
do entrevistador e ressalta a importância de se estabelecer uma “relação de empatia com o
informante e [tenha] sensibilidade suficiente para abstrair aspectos de sua realidade cotidiana”
(p. 51). Neste caso, o profissional de Relações Públicas pode desenvolver ações de treinamen-
to de forma que se aperfeiçoem estas habilidades nos entrevistadores.
3 CONCLUSÃO
As Relações Públicas possuem ferramentas que podem contribuir com o fortaleci-
mento da imagem do projeto ALiB, o que facilitará a aquisição de recursos para o desenvol-
vimento de suas atividades, além de reforçar a sua imagem perante os públicos prioritários.
Criar autossuficiência comunicativa entre os membros do ALiB e mediar o relacionamento
destes utilizando-se ações estratégicas deve ser o foco central do trabalho de Relações Públi-
cas desenvolvido para o projeto ALiB.
Sugere-se, para a consecução deste trabalho, o estabelecimento de cooperação técni-
ca entre o projeto ALiB e os cursos de Relações Públicas. Radke e Thun (1996) consideram
que “quanto à cooperação técnica, a geolinguística românica apresenta-se com um país em
desenvolvimento” (p. 46). No caso do projeto ALiB, isto é viável; no caso da Bahia, por
exemplo, onde surgiu o projeto, existem uma instituição estadual6 e quatro particulares7 que
oferecem o curso de Relações Públicas e com as quais se pode fazer um acordo de cooperação
técnica que preveja ações de pesquisa e extensão para que as ações propostas neste trabalho
possam ser concretizadas.
Construir uma imagem pública que facilite o relacionamento com os públicos e a
captação de recursos é um objetivo que pode ser alcançado utilizando-se as técnicas de Rela-
ções Públicas.
6
Universidade do Estado da Bahia (UNEB).
7
Universidade de Salvador (UNIFACS); Unidade Bahiana de Ensino, Pesquisa e Extensão (UNIBAHIA); Uni-
versidade Católica de Salvador (UCSAL) e Faculdade Juvêncio Terra (FJT).
11
4 REFERÊNCIAS
AFONSO, Emília da Glória Moreira. A divulgação científica para o grande público: o pa-
pel das Relações Públicas [o caso do CIIMAR]. Dissertação de Mestrado. Universidade Fer-
nando Pessoa: Porto, 2008.
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PAVAN, Cleusa. Práticas sociais na comunicação científica: a avaliação pelos pares nas
revistas brasileiras de ciências da informação. Universidade Federal do Rio Grande do Sul:
Porto Alegre, 2008.
RESUMO
Com base na asserção de que uma criança de 26 meses e 08 dias que está adquirindo o portu-
guês brasileiro, apesar de exposta a enunciados de complexidade sintática e lexical (input),
deles só retira o que sua maturidade linguística e cognitiva permite (intake), analisa-se a aqui-
sição de pronomes interrogativos, a partir de tais enunciados. Os dados provêm do arquivo
PAU003, disponibilizado em áudio e transcrição fonética em:
http:/childes.psy.cmu.edu/data/Romance/Portuguese/florianopolis.zip. Utilizam-se os indica-
dores de Scliar-Cabral (1977) e, para localização das unidades, usa-se o programa Laça-
palavras (VASILEVSKI e ARAÚJO, 2011), o qual forneceu 254 itens (100%) para trabalho.
Compara-se o uso dos pronomes interrogativos pelos adultos quando se dirigem à criança e
pela criança e quando falam entre si. Exposta a 219 pronomes interrogativos (o_que, do_que,
que, quem, qual), pronunciados por adultos, a criança produz 35 (14%). Ela deixa de produzir
apenas “do_que”, ao qual é exposta 3 vezes. O pronome mais produzido por ela é “que”, 19
vezes, seguido por “quem”, 9 vezes. Quando os adultos falam entre si, produzem “que” ape-
nas 2 vezes, mas, ao falar com a criança, 67 vezes. Quando falam entre si, os adultos produ-
zem 16 (6%) pronomes interrogativos, mas ao falar com a criança, 203 (86%). Desse modo, a
fala dos adultos, quando dirigida à criança, contém bastantes indagações, que revelam estímu-
los para que a criança fale. Ainda, verifica-se que, nessa faixa etária, a criança está apta lin-
guística e cognitivamente para processar e reproduzir a maioria dos pronomes interrogativos.
Palavras-chave:
Pronomes interrogativos. Linguística computacional. Aquisição da língua.
ABSTRACT
By the assumption that a 26 months and 8 days old child, who is acquiring Brazilian Portu-
guese, despite being exposed to statements of syntactic and lexical complexity (input), just
takes from them what his linguistic and cognitive maturity allows (intake), this paper analyzes
the acquisition of interrogative pronouns, based on such statements. Data come from file
PAU003, which is available in audio and in phonetic transcription at
http:/childes.psy.cmu.edu/data/Romance/Portuguese/florianopolis.zip, and we use Scliar-
Cabral’s (1977) indicators. The program Laça-palavras (Vasilevski and Araujo 2011) was
used for recognizing the units, and it provided 254 working items (100%). We compared in-
terrogative pronouns used by adults talking among themselves, and with the child. In addition,
the child’s use was also examined. Exposed to 219 interrogative pronouns (o_que, do_que,
quem, que, qual), uttered by adults, the child produced 35 (14%). The child did not produce
only “do_que” (about what), to which he was exposed 3 times. The pronoun he produces most
is “que” (what), 19 times, followed by “quem” (whom), 9 times. When adults talked to each
other, they produced “que” only two times, while talking to the child, they produced it 67
times. When they talked among themselves, they produced 16 (6%) interrogative pronouns,
but while talking with the child, they produced 203 (86%). Thus, adult speech, when directed
1
Este trabalho apresenta um dos resultados do projeto Produtividade Linguística Emergente, coordenado pela
Profa. Dra. Leonor Scliar Cabral, que muito colaborou na feitura deste artigo.
2
Pós-doutoranda em Linguística Computacional, LAPLE-UFSC/CAPES; e-mail: sereiad@hotmail.com.
2
to children, contains lots of questions, stimulating the child to answer them. It seems that, at
this age, the child is linguistically and cognitively able to process and produce most of the
interrogative pronouns.
Keywords:
Interrogative pronouns. Computational Linguistics. Language acquisition.
1 INTRODUÇÃO
No período em que está adquirindo a língua, desde a primeira palavra com significa-
do até completar sua gramática, a criança internaliza, pouco a pouco, as classes gramaticais, a
começar por substantivos – [ne'ne], ['gow], [ka'ka] – e verbos que impliquem o atendimento
de necessidades imediatas – ['da], ['abi], ['ki] –, então, dêiticos – como ['esi], ['ki] (/a'ki/) – e,
sucessivamente, vai ampliando o léxico de cada classe e adquirindo outras, até produzir repre-
sentantes de todas elas. Já a compreensão excede a produção, “não somente quanto à proce-
dência, mas quanto ao âmbito. Assim, antes que a criança seja capaz de articular enunciados
de dois ou mais itens, já é capaz de entendê-los, dando respostas adequadas que bem demons-
tram esta compreensão” (SCLIAR CABRAL, 1977, p.18). Percebe-se, então, a necessidade de
se realizarem estudos que enfoquem a aquisição de cada classe gramatical, especificamente, a
fim de se conhecer passo a passo como a criança constrói sua gramática.
Nesse sentido, estudos que tratem da aquisição dos pronomes interrogativos se fazem
pertinentes, pois os pronomes interrogativos são estratégicos na comunicação, posto que eles
funcionam como a incógnita, cuja referência será preenchida pelo interlocutor. Ao conseguir
produzi-los, a criança pode interagir com seus interlocutores, mediante palavras que podem
sozinhas representar questões inteiras. Uma das motivações para a realização deste estudo é a
escassez de trabalhos sobre o tema.
A partir disso, este artigo compara – no que tange à exposição aos pronomes interro-
gativos (input) – os registros da fala dirigida a uma criança de 26 meses e 08 dias de idade
com a fala dos adultos entre si. Em adendo, investiga o efeito da exposição sobre o intake da
própria criança, com o propósito de verificar o que a criança consegue recortar do enunciado
do adulto, inferenciando-se, de sua produção, o que ela usa para construir sua gramática. As-
sume-se que, apesar de exposta a enunciados de complexidade sintática e lexical (input), a
criança em fase de aquisição da língua deles só retira – e principalmente só produz – o que
sua maturidade linguística e cognitiva permite (intake), o que resulta em um léxico infantil
diferente do léxico dos adultos, portanto, também em uma gramática diferente. Tal compara-
ção é feita a partir de dados numéricos.
3
não sejam agentes, pois o martelo não pode praticar a ação de quebrar a janela, assim como a
janela não pode praticá-la.
A aplicação a esses dois modelos das medidas da filosofia das ciências, como a da
simplicidade, da coerência interna e da previsibilidade, demonstrou que ambos são inadequa-
dos para explicar os dados do corpus, ou seja, a aquisição da língua pela criança pesquisada –
o sujeito Pá –, bem como a aquisição da sintaxe e da semântica (SCLIAR CABRAL, 1977).
Nos dias atuais, a autora da pesquisa sugere aplicar aos dados o modelo competitivo de aqui-
sição da língua (MACWHINNEY, 2005), por exemplo.
Desde a década de 1970, houve muitas evoluções e deslocamentos teóricos, não so-
mente sobre a questão da centralidade do componente linguístico, como também sobre a de-
limitação das unidades linguísticas a serem pesquisadas. Chomsky priorizou a centralidade da
sentença, da mesma forma, Fillmore priorizou a centralidade do componente semântico. Ape-
sar de a análise do texto já ter sido iniciada pelo Círculo de Praga, somente a partir da década
de 1960 as unidades de análise passaram a ser, por um lado, o discurso (Análise do Discurso),
e, por outro, o texto (Linguística Textual). Em decorrência, os pesquisadores em aquisição da
linguagem passaram a ocupar-se, sobretudo, com estudar o desenvolvimento da competência
comunicativa e pragmática. Isso não quer dizer que as pesquisas sobre a construção da gramá-
tica pela criança e sobre a influência do input confirmar ou desconfirmar as teorias sobre
aquisição da linguagem tenham saído de cena. Essa linha de investigação foi seguida por Ro-
ger Brown, que conduziu a pesquisa mais importante de aquisição da linguagem no século
XX.
Brown (1973) foi bastante influenciado por Piaget (1971, 1999), autor da Epistemo-
logia Genética, ou seja, da gênese do conhecimento, inclusive sobre a linguagem. Piaget divi-
diu a gênese do conhecimento em quatro fases: sensório-motora, pré-operacional (pré-
operatória), operatória concreta e fase operatória formal ou hipotético-dedutiva. Brown tam-
bém abordou as fases de aquisição da linguagem, definidas por ele como pré-linguagem, holo-
frástica (um só item), fase de dois itens, até que, por volta dos 36 meses a 48 meses, a criança
está com sua gramática construída. Para determinar as fases, Brown elaborou medidas, sendo
a principal delas a Extensão Média do Enunciado (EME) – Mean Length of Utterance (MLU)
– segundo a qual o tamanho crescente do enunciado assinala cada fase. Brown parte do prin-
cípio de que existem limites de processamento, principalmente de processamento da memória
de trabalho, e também limites cognitivos. Em virtude disso, quanto mais jovem for a criança,
menor será o número de itens que podem constar em cada enunciado.
5
versais, para deles selecionar os parâmetros que afinem com aqueles da língua à qual a crian-
ça está exposta. A depreensão de uma gramática pelo pesquisador dá-se, pois, a partir dos
dados que o falante produz, e posteriormente poderá confirmar ou desconfirmar propostas
teóricas.
Um dilema metodológico em aquisição da linguagem diz respeito à delimitação dos
estados de língua. Para dar conta da descrição de um estado de língua, da sincronia, Saussure
abstraiu o fator tempo, fazendo um recorte, pois a língua continua se modificando constante-
mente. Para se depreender a gramática de uma criança, evidentemente, para determinar em
que fase ela está, é preciso fazer da mesma forma: um corte temporal. No entanto, isso impli-
ca alguns problemas. As mudanças na criança ocorrem muito mais rapidamente do que as
mudanças que se dão de um estado de língua para outro. Numa criança, as modificações lin-
guísticas são rápidas, e a proposta (SCLIAR-CABRAL, 1977) para dar conta dessas mudan-
ças e até para explicar o que está acontecendo na mente da criança, em que conhecimento da
gramática ela se apoia para produzir uma coisa e não outra, é que na criança convivem três
gramáticas simultaneamente: uma gramática que ela está deixando; a gramática que é predo-
minante; e prenúncios da gramática seguinte. Por exemplo, na primeira fase, do MLU 1,45,
em torno de metade dos enunciados são de um item e a outra metade é de enunciados de dois
itens. Os enunciados de um só item atestam a fase que ela está deixando, os dois itens, a fase
predominante, mas outra medida, o upper bound (enunciado maior que a criança já produz),
demonstra a fase que está por vir ou até outra subsequente: na primeira fase de Pá, essa medi-
da é de cinco itens. Então, ela está deixando a fase holofrástica, mas essa fase ainda está lá,
com resquícios. É a gramática da fase holofrástica.
Na fase de dois itens, começa a sintaxe, a partir da articulação de duas classes grama-
ticais. Antes disso, não existe sintaxe. Observa-se que essas articulações são, por exemplo,
verbo + objeto, e não há predicação do sujeito. Então, a estrutura sintática, por exemplo, não é
frase nominal + frase propositiva. Assim se caracteriza o conhecimento que está predominan-
do, já há uma sintaxe. Ocorrem construções possessivas: [pa'patu ne'ne]. Não há preposição, é
justaposição, e não há determinante. A criança começa a apresentar marcadores de lugar, par-
tículas que começam a marcar o lugar das preposições, por exemplo, já anunciando a fase
subsequente. Desse modo, antes de a gramática estar acabada (paradigmas fechados), convi-
vem três gramáticas inacabadas na criança (SCLIAR CABRAL, 1977).
Por fim, cabe lembrar que, em se tratando de delimitar fases, também se deve levar
em conta que cada criança utiliza diversas estratégias no processo comunicativo, e cada uma
tem seus estilos, decorrentes de sua personalidade. Crianças não adquirem a língua ao mesmo
7
tempo, nem do mesmo jeito. Uma diferença que foi muito estudada, discutida e observada é
que a aquisição da língua decorre da atenção seletiva, ou seja, de para o que a criança direcio-
na sua atenção de forma privilegiada. Algumas crianças direcionam sua atenção, privilegia-
damente mais para um item em relação com a referência. Essas crianças, por exemplo, usam
uma estratégia muito comum, a de apontar: elas usam bastante o denominador, que aparece na
primeira fase: “ó, ó” ou “qué, qué”. Nessas crianças, observa-se, na produção, que os enunci-
ados são mais curtos, constituídos de um só item, de dois itens, mas eles são mais bem articu-
lados fonológica e foneticamente. Já outras crianças são mais globais, direcionam a atenção,
por exemplo, para a entoação, para o enunciado em seu todo. Nesse caso, a criança fala bas-
tante, mas não se entende o que ela está dizendo (SCLIAR-CABRAL, 1977). Assim, a delimi-
tação de fases exige metodologia rigorosa.
3 METODOLOGIA
Como se percebe, alguns pontos metodológicos foram discutidos na seção anterior.
Parte-se de um corpus coletado mediante gravação (6h), convertida para formato computacio-
nal (wma e mp3) e transcrita em programa próprio, o CLAN (MACWHINNEY, 2010). O
corpus é formado por enunciados orais entre uma criança (alvo) e três adultos: (a mãe (MOT),
a investigadora (INV) e o pai (ISI) – outros adultos comparecem esporadicamente. O corpus
corresponde à terceira fase do sujeito Pá, quando a criança estava com 26 meses e 08 dias, e é
composto por mais de 4.000 enunciados, sendo 713 retirados do corpus da criança para a de-
preensão das gramáticas por Scliar Cabral (1977), conforme os preceitos de Roger Brown
(1973), para fins de comparabilidade com as gramáticas de outras línguas em aquisição. Até
hoje não se encontrou outra saída, no caso de aquisição de linguagem, “do que colher um cor-
pus das crianças estudadas, para depois depreender as gramáticas que dariam conta de tais
enunciados” (SCLIAR-CABRAL, 1977, p.13). Para conferir mais segurança à pesquisa, deve-
se trabalhar com uma massa realmente densa de dados (VASILÉVSKI, 2007), coletada e or-
ganizada sob rígida metodologia, tal como foi feito na coleta e no tratamento do corpus de
trabalho. A metodologia completa pode ser acessada em Scliar Cabral (1977).
Usou-se um programa específico para trabalho com PB – o Laça-palavras – para aná-
lise estatística e qualitativa dos dados. O desenvolvimento do Laça-palavras (VASILÉVSKI e
ARAÚJO, 2011) iniciou-se em 2010 e perdura até o presente, no Laboratório de Produtivida-
de Linguística Emergente (LAPLE) da Universidade Federal de Santa Catarina. Por meio des-
se programa, procedeu-se a tabulação e conferência de todas as classes sintáticas das palavras
presentes no corpus, dentre elas, Pronome Interrogativo, à qual se atribuiu o código pro_int. A
seguir, classificaram-se os enunciados do corpus de acordo com o participante que o enunciou
e a quem cada enunciado se dirigia. As classificações e codificações para essa etapa foram:
diálogo entre adultos (Ad-ad); diálogo entre um adulto e a criança (Ad_chi); e enunciado pro-
ferido pela criança, que sempre se dirigia a um adulto (Chi). Finalmente, cruzaram-se os da-
dos relativos à categoria sintática Pronome Interrogativo com os dados relativos enunciadores.
9
Ad_ad
*INV: o_que que é (..)
*INV: que que é isso ?
*INV: a casa de quem é?
Ad_chi
*MOT: que mais ?
*ISI: quem caiu ?
*MOT: qual é ?
Chi
*CHI: o_que (é) isso ?
*CHI: quê ?
*CHI: e qual é esse ?
qual
5% o_que
quem
24%
35%
do_que
1%
que
35%
Chi Ad_ad
14% 6%
Ad_chi
80%
do_que; 0
qual; 2
o_que; 5
Chi
quem; 9
que; 19
do_que; 3
qual; 10
o_que; 56
Ad
quem; 81
que; 69
-10 10 30 50 70 90
80 76
70 67
60
50 47
Q 40 Ad_ad
30 Ad_chi
19
Chi
20
9 9 10
10 5 5
0 3 0 2 0 2
0
o_que do_que que quem qual
Pro_ Int
5 CONCLUSÃO
A comparação proposta neste trabalho mostra que o alto percentual de pronomes in-
terrogativos (pro_int) produzidos pelos adultos ao falar com a criança se deve a estímulos
para que ela fale, interaja com eles e, sobretudo, desenvolva o léxico para referenciar. Cabe
assinalar que vários pro_int enunciados pela criança são em repetição ao adulto, bem como os
adultos, ao falar com a criança, também os repetem.
Nessa faixa etária (26 meses), a criança está madura linguística e cognitivamente pa-
ra processar e compreender todos os pronomes interrogativos a que é exposta, bem como para
reproduzir a maioria desses pronomes. Assim, grande parte do input foi transformado em in-
take, pois se verificou que ele foi compreendido pela criança e quase todo esse input foi pro-
duzido em seus enunciados, à exceção do interrogativo precedido pela preposição, em virtude
de limites linguísticos.
Por fim, cabe dizer que uma análise dos enunciados em si – um a um – complemen-
taria os apontamentos feitos, pois aqui se trabalha, sobretudo, com levantamentos numéricos,
ou seja, agrupamentos. Outras perspectivas enriqueceriam a pesquisa, e cotejos entre elas se-
riam certamente esclarecedores, bem como comparações com estudos feitos com outros cor-
pora. Faz-se relevante desenvolver estudos sobre o tema, pois uma busca em portais eletrôni-
14
cos de periódicos e em buscadores da rede mundial de computadores mostrou que quase nada
há pesquisado e divulgado sobre o assunto especificamente.
6 REFERÊNCIAS
BROWN, R. A first language: the early stages. Cambridge: Harvard University
Press, 1973.
CHOMSKY, N. Aspects of the theory of syntax. Cambridge, MA, MIT Press, 1964.
FILLMORE, C. The Case for the Case. In: BACH, E. e HARMS, R. (Eds.). Universals in
Linguistic Theory. New York: Holt, Rinnehart and Winston, 1968.
MACWHINNEY, B. The CHILDES Project: Tools for Analyzing Talk. Carnegie Mellon
University, March 29, 2010. Disponível em: <http://childes.psy.cmu.edu/>. Acesso em: out.
2011.
RESUMO
Palavras chave:
Educação de surdos. Abordagens educacionais. Ensino de língua estrangeira.
ABSTRACT
This work presents an analysis of the teaching-learning Portuguese for deaf students as a
second language, from the natural approach proposed by Stephen Krashen, considering the
historical background of the education process of these individuals. Seeks to identify and
analyze the role of implicit and explicit learning, inside and outside the classroom and the
mediation of the teacher in the educational process considering not only the languages
involved in the process, but also cultural factors and the environment in which this process
occurs. For the transcription of data, attempted to identify the educational foundations and
approaches through written questionnaire and sent via e-mail, with participants ranging in:
age, education level and region. It is hoped that the analysis of the experiences contribute to
the linguistic studies in the field of deaf education, since these individuals are in deficit with
relation to the learning the Portuguese language.
Keywords:
Education of the Deaf. Educational approaches. Teaching foreign language.
1 INTRODUÇÃO
O ensino-aprendizagem da língua portuguesa para surdos tem sido tema de diversos
estudos desenvolvidos à luz de diferentes perspectivas teóricas. As quais por muito tempo
levaram a acreditar que as dificuldades de aprendizagem desses indivíduos estavam
1
Graduado em Letras – Inglês; Graduado em Letras Libras; Especialista em Linguística; Mestrando em
Linguística, linha de pesquisa “Língua Brasileira de Sinais”; e-mail: mafortte@yahoo.com.br.
2
relacionadas ao déficit cognitivo imposto pela própria surdez (SVRTHOLN, 1994; VATSON,
1994). Porém, essas teorias não consideravam os surdos enquanto usuários de uma língua de
sinais como sendo esta sua língua natural (primeira língua – L1), e nesse sentido as práticas de
ensino de língua portuguesa para surdos tem sido a mesma usada para os alunos ouvintes,
prática mais conhecida como oralismo.
Outros estudos recentes enfocam a abordagem bilingue que tem como instrumento a
aceitação da surdez enquanto uma diferença, uma cultura, e da língua de sinais na condição de
sua primeira língua. Sendo que a partir desse instrumento se processa o ensino-aprendizagem
da língua portuguesa – L2 para esses indivíduos.
Muitos são os estudos desenvolvidos na área de linguística que visam identificar as
dificuldades dos alunos surdos em adquirir e/ou desenvolver certas habilidades na língua
portuguesa, principalmente as referentes a leitura e escrita. Porém, poucos se preocuparam em
entender como se processa a aquisição de conhecimentos pelo aluno surdo.
Considerando as duas situações apresentadas acima ainda constantes nas salas de aula das
escolas brasileiras, bem como os conhecimentos adquiridos durante a participação na
disciplina de Ensino e Aprendizagem de Língua Estrangeira do curso de pós-graduação em
Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina, optou-se por elaborar o presente
trabalho com o intuito de identificar o papel da aprendizagem explícita e implícita da língua
portuguesa, dentro e fora da sala de aula composta por surdos. Tendo como base para a
análise dos dados coletados e os pressupostos teóricos os apresentados por Krashen na teoria
natural de aquisição de segunda língua, por entender que este é o que melhor a se enquadrar
no processo de aprendizagem da segunda língua pelos surdos.
Por volta de 700 d.C é que se observa o início do processo de aceitação da surdez e do
sujeito surdo, quando John Beverley ensinou um surdo a falar pela primeira vez. Fato este que
o consagrou como o primeiro educador de surdos.
Durante o século XVII muitos educadores se destacaram no ensino de alunos surdos,
usando o alfabeto e gestos para instruir na escrita. Na mesma época surgem os primeiros
escritos sobre as maneiras de ensinar os surdos a ler e a falar por meio do alfabeto manual,
dentre eles o mais notável foi o Abade Charles Michel de L’Epée que em 1760 fundou a
primeira escola de surdos em Paris. Seu método de ensino era através da Língua Gestual
(língua de sinais). Ele acreditava que os surdos eram capazes de possuir linguagem, podendo
assim receber formação religiosa, porém conseguiu além desse objetivo a formação e
desenvolvimento integral do surdo, tornando-o capaz até mesmo de defender-se legalmente
em tribunais, utilizando-se de método combinado2(SILVA, apud QUADROS 2006 p. 16 -
25).
A decadência no processo administrativo, a redução do número de professores surdos
do Instituto de Surdos de Paris e a fundação de uma escola privada para surdos, onde usava-se
o método oralista, levou a formação de duas frentes ideológicas. De um lado os defensores do
método oralista e de outro lado os defensores do gestualismo, que culminou com a realização
do Congresso de Milão em 1880, cujos princípios elaborados e aprovados para a educação dos
surdos decretou que a Língua Oral deveria constituir o único objetivo do ensino (SILVA,
2006, p.26).
Assim, a pedagogia surda que ora se baseava na metodologia visual e cultural através
de Língua de Sinais nas escolas, foi substituída pela pedagogia corretiva, isto é, em forma de
terapia e os surdos deixam de vender a força de seu trabalho para entrarem num processo de
medicalização da surdez, ficando seu desenvolvimento cognitivo condicionado ao maior ou
menor conhecimento que tinham os alunos surdos da língua oral.
No transcurso de quase um século os surdos resistem às deliberações impostas pelo
Congresso de Milão. Resistência esta originada pela própria dificuldade de aprendizagem
colocando em cheque a abordagem oralista e mesmo com o advento de tecnologias de apoio
como o uso de aparelhos auditivos, por volta de 1960 inicia-se uma reviravolta na história da
educação dos surdos com o advento da comunicação total, tendo como seu expoente os
estudos de Willian Stokoe, que em sua evolução deu origem ao bilinguísmo (STOKOE,
1976). A comunicação total foi baseada no uso de todos os mecanismos necessários à
2
O método combinado centrava-se no uso de gestos (sinais), baseando-se em princípios visuais para educação
dos surdos. Ao surdo é ensinado através da visão, aquilo que às outras pessoas é ensinado através da audição.
4
Segundo Cavalcante et. al. (2004) algumas escolas do nordeste realizaram mudanças
para inserir a LIBRAS na grade curricular como uma disciplina e a perspectiva de ensino da
Língua Portuguesa, na modalidade escrita, na condição de uma segunda língua. Além da
estruturação do espaço institucional e social da LIBRAS e da Língua Portuguesa, tendo assim,
duas linhas de ações pedagógicas distintas, uma relacionada à questão do ensino de LIBRAS e
a outra ao ensino de Língua Portuguesa, com encontros de formação continuada dos
profissionais envolvidos em ambas as áreas.
Em outros estados, os alunos surdos estão inseridos na escola regular inclusiva, porém
há casos em que não ocorre a presença do profissional intérprete de LIBRAS/Língua
Portuguesa e assim o ensino de L1 e L2 é realizado nos Centro de Atendimento Especializado
aos Surdos – CAES. Em outros casos, existem classes bilingue para surdos dentro da escola
regular, já em grandes centros urbanos, verifica-se a presença de escolas especificamente
voltadas aos surdos nas quais a língua de instrução é a Língua de Sinais, sendo geralmente
ensinada aos surdos desde cedo, através do atendimento no maternal e jardim.
lúdica, pois assim o aprendiz adquirirá as informações de que necessita e poderá aplicá-las a
qualquer momento em situações apropriadas em estágios futuros. O que importa aqui é que o
insumo seja compreensível, caso contrário a aquisição não ocorrerá.
Outro fator que influi no processo de aquisição e aprendizagem de línguas é o que
Krashen denomina de “filtro afetivo”, que se constitui como barreira mental que impede o
aprendiz de adquirir a língua, bloqueando a compreensão do insumo fornecido, podendo
afetar também a produção, o que levará o aprendiz a não apresentar em sua performance o que
é de sua competência, cabendo ao professor a tarefa de estimular sua auto-estima com relação
ao aprendizado da língua alvo.
Assim, segundo as propostas pedagógicas de Krashen, o professor deve ser
intermediador daquilo que o aluno lê, facilitando a sua compreensão, o que consiste na fala
compreensível do professor, o qual não se caracteriza apenas no fornecimento de insumo em
quantidade suficiente, mas também nos estímulos ao filtro afetivo mais baixo, compatível
com a necessidade de cada educando.
É importante lembrar que os esforços do professor em tornar o insumo compreensível
ao aluno, só atingirá seus objetivos caso esteja em conformidade com o estágio de
aprendizagem desse aluno, usando o bom senso para intermediar o aprendizado, além de
recursos materiais que se constituem em boa fonte da língua alvo. Outro fator relevante a ser
considerado pelo professor é saber quando e quanto usar da língua materna em sala de aula.
Durante o processo de aprendizagem, o aluno passa também por um período de
“silêncio” que compreende a transição da compreensão do insumo para a produção, não
devendo ser forçado pelo professor e cada um apresenta um período diferente de acordo com
o nível de compreensão e do nível do filtro afetivo, sabendo que o tempo de cada aluno não
interfere na qualidade de sua competência. Quanto mais longo esse período, quanto maior será
a quantidade de informações retidas pelo aprendiz, tanto melhor serão suas respostas à
aquisição da língua.
As atividades gramaticais devem estar focadas na comunicação, tendo por objetivo de
que os alunos tenham condições de lidar com determinados assuntos em situações especificas
da língua. Assim a aquisição do vocabulário tem primazia sobre a gramática, em que as
atividades com foco gramatical e as atividades de aquisição devem levar o aprendiz a se
tornar um monitor na formação de estruturas ideais para a sua produção. Dessa forma,
Krashen (1982) sugere que o ensino da gramática seja adequado à idade e a maturidade
linguística do aprendiz. Portanto, o foco do ensino não deve estar centrado na assimilação de
8
4 METODOLOGIA
Partindo das leituras e das discussões durante a participação na disciplina de Ensino e
Aprendizagem de língua estrangeira do curso de Pós-Graduação em Linguística elaborou-se
um questionário, buscando identificar as bases lingüísticas dos surdos e as abordagens
educacionais desenvolvidas no processo de ensino e aprendizagem de língua portuguesa, bem
como a reação desses alunos frente às práticas desenvolvidas em sala de aula.
9
[...] Tive que aprender a me comunicar com a professora e tudo que eu não entendia pedia
para ela me explicar em outras palavras, quase todas as palavras que ela apresentava
continuavam sem imagem, sendo assim não conseguia entender o que a mesma dava
referência... Aos poucos fui fazendo algumas amizades e logo fiz um círculo de colegas,
que me ajudava muito na sala de aula, entre elas Eulália e Soraya, que estudamos juntas
desde a primeira a quarta série, como eu não fazia ditado uma delas sempre preparava e
depois passava para eu copiar de seu caderno [...] (VILHALWA, 2009, p. 22).
aplicada ao ensino de português para os aprendizes surdos é a mesma utilizada para ensinar
aos ouvintes que a estudam como língua materna, enfatizando que não conseguiam alcançar o
aprendizado em sala de aula, buscando mediação complementar fora da escola.
Para a quinta questão “Que atividades de natureza comunicativa os seus professores de
português costumavam propor em sala de aula”, alguns participantes não conseguiram
responder; outros citaram atividades de diálogo tipo perguntas e resposta sobre compreensão
de texto e conhecimentos gerais; leitura oral e produção de diários. Todos enfatizam a
dificuldade de comunicação e a predominância da troca de informações individuais com
colegas ou o professor.
A dificuldade de expressão comunicativa em segunda língua é comum a todos os
aprendizes, mas vale ressaltar que para o aprendiz surdo existe uma barreira maior devido ao
canal comunicativo entre a LIBRAS, sua língua materna e a segunda língua, apresentar
distinções, pois enquanto o primeiro se utiliza do canal gesto-visual, o segundo usa o oral-
auditivo o que resulta em abstracções maiores.
Segundo Krashen (1982, p. 57) as expressões orais e escritas desempenham papel
indireto no processo de aquisição e aprendizagem de segunda língua. Para o autor, o que
importa é o insumo compreensível, isto é, as informações recebidas pelo aprendiz dentro e
fora de sala de aula. De acordo com colocações dos participantes, tais atividades não se
constituem em insumos, uma vez que são baseadas em perguntas, que muitas vezes são
incompreensíveis, o que contradiz a proposta de Krashen ao afirmar que se adquire fluência
na língua não praticando, mas pela compreensão do insumo recebido.
Para a sexta questão “Que estratégias seus professores de português utilizavam quando
você tinha dificuldades na língua?”, alguns participantes chegaram a colocar que os
professores não intermediavam nas dificuldades dos alunos, outros colocaram que o professor
solicitava a leitura e cópia de textos. Outros recorreram a aulas particulares para suprir o
déficit de sala de aula. Os que explicitaram as estratégias apontaram que os professores davam
mais exemplos de frases, desenhavam no quadro as imagens ou mostravam figuras para
auxiliar a compreensão e falavam de forma simplificada. Outros ainda, buscaram alternativas
próprias como estudo com colegas e família, leituras livres, uso de internet e telefone celular,
TV com legenda, pesquisa em dicionários ou recorriam ao apoio dos colegas em sala de aula.
Nota-se que mesmo de modo falho o professor busca intermediar o aprendizado e
proporcionar ao aprendiz a possibilidade de corrigir e estruturar o uso da língua acionando o
seu monitor para a produção independente (ver relato da professora Vilhalwa na página 15
desse trabalho), em outros casos, o próprio aprendiz busca as alternativas em sala através da
13
mediação de colegas para fazer funcionar seu monitor nessa estruturação. Em outro relato da
professora Vilhalwa encontra-se a seguinte passagem:
Tudo que a professora explicava eu não entendia e uma das duas colegas me explicava tudo
novamente até eu entender, iam falando no sentido concreto das palavras ou com apoio de
alguns sinais ou até mesmo usavam mímicas para minha melhor compreensão
(VILHALWA, 2009, p. 23).
Essa afirmação faz com que o professor deixe o seu papel de mediador e passe a ser
apenas transmissor da mensagem tendo o aprendiz a necessidade de um interlocutor do
mesmo nível para tornar o insumo compreensível, estruturar as idéias e acionar seu monitor.
Para a sétima questão sobre a eficácia das estratégias adotadas pelo professor, 32% dos
participantes responderam afirmativamente apontando como aspecto positivo a cooperação
para apropriação das estruturas do português; auxilio à compreensão dos contextos e da
cultura ouvinte e a compreensão do ritmo de aprendizagem do aluno. Há ressalvas nas
colocações dos participantes argumentando que o trabalho dos professores não foi suficiente
em sala de aula devido ao excesso de conteúdo e a falta de um currículo adaptado.
Os demais participantes 68% que apontaram como negativas as estratégias dos
professores, citaram: a falta de conhecimento da LIBRAS e falta de formação dos professores
para trabalhar com alunos surdos; faltou considerar as diferenças individuais de cada aluno; a
metodologia é a mesma aplicada para os alunos ouvintes que estudam o português como
língua materna.
Nota-se que o professor não tem desempenhado seu papel de mediador e de
transmissor de insumo compreensível no processo de aprendizagem comprometendo o
desempenho dos aprendizes da segunda língua.
Outro aspecto observado segundo as colocações dos participantes é de que a prática
dos professores e as condições do ambiente escolar favorecem a alta do filtro afetivo dos
aprendizes, o que para Krashen representa em bloqueio ao aprendizado. São várias as
passagens em que os participantes relatam que eram forçados a realizar as mesmas atividades
nas mesmas condições que os colegas ouvintes, o que acarretava o desejo de desistir do
estudo. O depoimento de um participante ilustra essa situação: ... Por estar na sala por estar,
não via estratégia para minha aprendizagem, eu aprendi com professor particular. Estava na
sala por que é obrigado ir para escola. Tal depoimento pode ser comparado com transcrições
encontradas na biografia da professora Vilhalwa que diz:
14
[...] na hora da leitura era difícil, as palavras não saíam claramente e eu sempre ficava
nervosa na hora da leitura, sentia todos aqueles olhos de meus colegas fixos em minha
pessoa, sentia-me horrível, alguns alunos antes mesmo de eu começar a ler algumas
palavras que tinha treinado no dia anterior, ou estavam com um sorriso irônico ou com uma
cara de pena. Eu não olhava para ninguém, o que queria era sumir daquele lugar
(VILHALWA, 2009, p. 23).
Assim percebe-se a elevação do filtro afetivo dos aprendizes a ponto de estar na escola
apenas por uma obrigação o que torna impossível o aprendizado. Relacionado à questão:
“Como deveria ser uma boa aula de português?”, obteve-se dados que foram classificados em
quatro grupos distintos: modelo de ensino; a presença do professor em sala de aula; tipos de
tarefas a serem desenvolvidas em sala de aula e os tipos de materiais e recursos didático-
pedagógicos a serem utilizados.
O modelo de ensino sugerido pelos participantes é uma abordagem que se aproxime
do processo de aquisição natural com estratégia flexível que seja ministrada a partir da língua
de sinais – LIBRAS. Essa colocação foi feita por 89% dos participantes. Eles alegam que as
línguas envolvidas no processo sendo de modalidades distintas e considerando a dificuldade
de comunicação, há a necessidade de que os aprendizes estejam expostos a um ambiente de
aprendizagem de segunda língua que se aproxime de sua realidade. Outra transcrição da
biografia de Vilhalwa confirma essa passagem:
[...] dentro de minha pessoa eu tinha um desejo de estar numa escola onde as pessoas
fossem surdas iguais a mim, pois sentia que não havia comunicação entre eu e os meus
colegas, pois a maioria era ouvinte e não sabia comunicar comigo, sentia-me isolada
(VILHALWA, 2009, p. 23).
5 CONCLUSÃO
O desenvolvimento dos processos educacionais no campo de ensino-aprendizagem de
línguas por alunos surdos mostra os retrocessos dos métodos que levam esses alunos ao
fracasso escolar pelo fato de não considerar esses alunos enquanto seres pensantes, já
conhecedor inato de uma língua e que, portanto carrega consigo uma bagagem cultural e
linguística.
As lutas das comunidades de surdos buscaram resgatar as raízes de sua educação
através da pedagogia surda em salas bilíngües. Nas quais a língua de sinais e a língua
portuguesa são ensinadas com metodologias e estratégias distintas, o que sempre enfrentou
resistência por parte das escolas, negando ao surdo sua condição bilingue e exigindo que se
16
aquisição de todas as estruturas da língua mediante esse processo, criando uma lacuna
provocada pelo insumo incompreensível fornecido em sala de aula.
Em contra partida, as sugestões dos participantes a cerca de como deveria ser uma boa
aula de português para surdos, aproximam-se da proposta de Krashen, pois apresentam as
possibilidades de proporcionar a esses educandos e aos seus interlocutores em sala de aula os
mecanismos necessários à real aprendizagem da língua portuguesa.
Para finalizar, as análises aqui apresentadas são insuficientes para responder a questão
do papel da aprendizagem explicita e implícita dentro e fora de sala de aula e para a
determinação de uma abordagem específica para o ensino de Português para surdos como
segunda língua, porém mostra que da forma como esta se apresenta não permite uma
aprendizagem de fato. Prejudicando a aquisição global de conhecimentos, inclusive de outras
disciplinas, sendo necessário então a continuidade e o aprofundamento do estudo visando o
aperfeiçoamento de metodologias na área de linguística aplicada ao ensino de segunda língua.
Agradecimentos
Sou grato às seguintes pessoas que muito contribuíram ao enriquecimento deste
trabalho: à professora Rosely Perez Xavier que forneceu as bases através dos conteúdos
discutidos durante a participação nas aulas da disciplina de Ensino e aprendizagem de Língua
Estrangeira do Programa de pós-graduação da Universidade Federal de Santa Catarina; ao
professor Tarcísio de Arantes Leite que de forma indireta, contribuiu na orientação do
trabalho, a todos os participantes da pesquisa que contribuíram com as informações
necessárias que resultaram em um trabalho capaz de contribuir com os estudos na área de
linguística aplicada; e a professora Maria de Lourdes Dario Jarros pela valiosa contribuição
em fazer as correções ortográficas e estruturais do corpo do trabalho.
6 REFERÊNCIAS
<http://www.sj.cefetsc.edu.br/~nepes/docs/midiateca_artigos/pratica_ensino_educacao_surdo
s/texto34.pdf>. Acesso em 31 de janeiro de 2010.
GREGG. K. Krashen's Monitor and Occam's Razor. Applied Linguistics, vol.5, n.l, 1984.
_________. The Natural Approach - language acquisition in the classroom. New Jersey:
Pergamon Press, 1983.
SILVA, V. Educação de surdos: uma releitura da primeira escola Pública para surdos em
Paris e do Congresso de Milão em 1880. In Estudos Surdos I. QUADROS, Ronice Muller de.
Petrópolis: Ed. Arara Azul, 2006.
WATSON, L. M. The use of a developmental approach to teaching writing with two groupi of
young hearing-impaired children. Journal of the British Association of Teachers of the
Deaf. v.18, n.l,p. 18-29, 1994.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo
RESUMO
Palavras-chave:
Análise de discurso. Suicídio. Discurso do fracasso. Discurso do êxito. Heterogeneidade.
Divisão.
ABSTRACT
This work analyzes suicide notes based on concepts from French Discourse Analysis (DA).
Taking into account the interdisciplinarity of the subject, this study is based on Pêcheux,
Lacan and Authier-Revuz. We attempt to understand in which ways suicide is constructed in
these messages and which elements from the interdiscourse determine the saying of the
subjects. Two large discursive movements were observed: the discourse of failure and the
discourse of success. Within each one, the Christian or traditional discursive formation was
almost always present as a main influence. Such discursive movements appeared, at times,
within the same sequence, putting into evidence the ambivalence of the subject. However, it
was possible to identify in all the messages the heterogeneity that constitutes saying. In the
space of contradiction and the equivocal, the subjects proved to be determined by ideology
and unconsciousness, but not entirely submissive, as they are able to break with the same
through polysemy. Finally, they proved to be structurally divided and far from being the
intentional source of a homogenous word.
Keywords:
Discourse analysis. Suicide. Discourse of failure. Discourse of success. Heterogeneity.
Division.
1
Mestre pela UCPel. Artigo elaborado a partir da dissertação de mestrado de mesmo título, apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Letras, Área de Concentração Linguística Aplicada, em fevereiro de 2011.
2
1 INTRODUÇÃO
O ato de renúncia à própria vida é, há muito, objeto de interesse e perplexidade.
Contudo, não são muitos os trabalhos científicos acerca do suicídio. Embora haja numerosos
levantamentos estatísticos de seus índices, pouco se avançou em termos teóricos. O fato de o
suicídio ser considerado tabu em nossa sociedade representa um obstáculo aos avanços das
pesquisas, já que é bastante difícil o acesso a dados e materiais de análise sobre o tema.
As poucas pesquisas existentes pertencem, em geral, à psicologia, à sociologia e à
psiquiatria. O próprio corpus empírico deste trabalho foi retirado de duas obras que analisam
o suicídio sob ponto de vista das duas primeiras áreas: Dias (1991) e SILVA (1992).
Nosso objetivo é investigar os discursos de cartas e bilhetes suicidas tendo como
base pressupostos da AD, mas também de Jacques Lacan, da psicanálise, e de Jacqueline
Authier-Revuz, do campo da enunciação. Pretende-se identificar os diversos fatores que
determinam o dizer dos suicidas e a produção de efeitos de sentido daí decorrentes.
A metodologia empregada envolveu, primeiramente, a leitura das mensagens à nossa
disposição. Em seguida, realizou-se a seleção dos textos e o recorte dos enunciados que
melhor atendiam aos objetivos da pesquisa, os quais se encontram transcritos no corpo da
análise. Note-se que a transcrição foi literal, conforme disponibilizado nas obras de origem,
inclusive com eventuais desvios de ortografia e pontuação.
A AD não se preocupa com quantidade de dados, portanto o número de sequências
discursivas foi definido tendo por único objetivo fornecer uma amostra representativa daquilo
que se almeja demonstrar com a análise. Essas sequências passam a ser consideradas
sequências discursivas de referência (SDR), e é sobre elas que se desenvolve a análise.
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
2.1 Michel Pêcheux
No âmbito de nossa formação social, encontram-se diversas formações ideológicas,
as quais, por sua vez, desdobram-se em diferentes formações discursivas (FD). Pêcheux toma
emprestado de Foucault este conceito, reelaborando-o. Em sua nova acepção, a formação
discursiva é entendida como “aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de
uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes,
determina o que pode e deve ser dito” (PÊCHEUX, 1988, p. 160).
Conforme esclarece Orlandi (2007), as FD são regionalizações do interdiscurso, um
conceito mais amplo, que representa o já-dito, a memória discursiva. Nas palavras de Pêcheux
(1988, p. 162), trata-se de “„todo complexo com dominante‟ das formações discursivas”.
3
O interdiscurso representa tudo aquilo que foi dito antes, em outro lugar, e que
inevitavelmente determina o que se diz hoje. Na realidade, não existe o ineditismo – em
qualquer dizer, há sempre um aspecto parafrástico, de repetição de dizeres alheios, do qual
geralmente não temos consciência. Conforme esclarece Orlandi (2007, p. 32): “O dizer não é
propriedade particular. As palavras não são só nossas. Elas significam pela história e pela
língua. O que é dito em outro lugar também significa nas „nossas‟ palavras”.
No entanto, o sujeito não tem plena consciência da memória discursiva que atua
sobre seu dizer. Segundo Pêcheux (1988), isso se dá em função de duas formas de
esquecimento. Pelo esquecimento número dois, não temos a noção plena de que poderíamos
dizer algo de outra forma, pois acreditamos que existe uma relação direta e natural entre o
pensamento, a linguagem e o mundo, relação essa que nos “obriga” a dizer aquilo daquele
jeito. Trata-se, contudo, de um esquecimento parcial (semi-consciente), pois muitas vezes
reformulamos nossa fala, utilizando outras palavras, a fim de melhor especificar o que
queremos dizer. Já o esquecimento número um é inconsciente e refere-se à ilusão de que
somos a origem do dizer, quando, na verdade, somos determinados pelo interdiscurso.
Inobstante a influência do já-dito e o caráter repetitivo de tudo o que se diz, não se pode
negar a possibilidade de ruptura. Juntamente com o eixo da repetição ou paráfrase, existe a
chamada polissemia: uma força de ruptura, que traz o deslocamento, o equívoco, o diferente.
Como veio a admitir Pêcheux (2002, p. 56),
todo discurso marca a possibilidade de uma desestruturação-reestruturação dessas
redes [de memória] e trajetos [sociais]: todo discurso é o índice potencial de uma
agitação nas filiações sócio-históricas de identificação, na medida em que ele
constitui ao mesmo tempo um efeito dessas filiações e um trabalho (mais ou menos
consciente, deliberado, construído ou não, mas de todo modo atravessado pelas
determinações inconscientes) de deslocamento no seu espaço: não há identificação
plenamente bem sucedida [...].
aspirações e fantasias de outras pessoas (na medida em que estes são expressos em
palavras).
2
Para usar a terminologia de Authier-Revuz, referindo-se à materialidade linguística. Esse termo aproxima-se da
noção pêcheutiana de intradiscurso.
6
outra positiva, marcada por otimismo, confiança e superioridade. Essa noção foi aperfeiçoada
posteriormente através do estudo teórico e de uma análise mais detalhada dos dizeres.
Enquanto alguns textos apresentam a predominância de um desses discursos, em
outros ambos coexistem, estabelecendo relações entre si. Em todos eles, a ideologia, o
inconsciente e a heterogeneidade estão presentes, revelando-se na materialidade linguística de
diferentes maneiras.
Na presente seção, analisaremos algumas dessas maneiras a partir de sequências
retiradas das cartas e bilhetes de suicídio que integram nosso corpus de análise. Uma análise
mais minuciosa e de um maior número de sequências discursivas pode ser encontrada em
minha dissertação de mestrado de mesmo título.
não-coincidência grifadas. São pontos em que a ideologia falha, numa demonstração de que o
sujeito não é completamente determinado (PÊCHEUX, 1988).
Primeiramente, note-se que o sujeito seleciona o adjetivo “egoísta” para referir-se à
sua atitude de suicidar-se, porém assinala a não-coincidência entre o dizer e a coisa por meio
do modalizador “um tanto”. Ao ver-se diante da tarefa de designar sua atitude (e a si próprio,
por extensão), selecionando um adjetivo (X) que configure o referente visado (x), o sujeito
testemunha a não-coincidência experimentada pelo recurso à modalização que o acompanha e
que passa a ser constitutiva do processo de nominação para o qual o elemento X (signo
disponível na grade da língua) se mostra insuficiente (PAULILLO, 2004).
Como efeito de sentido, marca-se uma distância, um intervalo, entre a palavra X
(egoísta) e o referente x (atitude/suicídio). Nesse caso, X, a palavra tradicionalmente
associada ao suicida, parece ser significado como mais amplo que x, ou forte/negativo demais
para x. É nessa discrepância que emerge a heterogeneidade e, no caso em análise, a
inadequação da concepção proveniente da ideologia dominante. O efeito alcançado provoca,
enfim, um enfraquecimento do discurso do fracasso.
Nos outros segmentos destacados, o enunciador marca a exterioridade da ideologia
ao empregar uma linguagem que atenua seu comprometimento com o conteúdo do que diz.
Em vez de afirmar “Deus existe”, ele apenas diz que “aprendeu” que ele existe, ou seja,
esclarece que essa noção lhe foi transmitida de fora, por outra pessoa.
No lugar de declarar diretamente “sei que a gente sofre por aquilo que fez”, ele
atribui essa previsão à crença dominante, utilizando uma modalização em discurso segundo.
Trata-se de uma forma de discurso relatado em que o enunciado apresenta uma modalização
que remete a outro discurso, caracterizando-o como “segundo”, ou seja, dependente desse
outro discurso (AUTHIER-REVUZ, 1998, p. 135). Ocorre, assim, um abrandando do efeito
asseverativo dos enunciados, pois a origem do conhecimento é assinalada como distinta do
sujeito enunciador, marcando o afastamento deste em relação ao conteúdo do que afirma.
Na carta da SDR 13, a enunciadora R. explicita seu afastamento da FI dominante.
Contudo, esta emerge em seu dizer através de modalizações.
SDR 13 - Tudo deu errado em minha vida. Talvez eu tivesse nascido em hora
errada, tempo errado. Merda! / O que quer que eu faça é errado! / Será que é porque admiro
Hitler, sou anarquista, esquerdista e adepta do comunismo? / Será que é porque minha mãe
nunca se casou? / Porque meu pai era um panaca perfeito?
R. lamenta seu sofrimento e insucesso de forma incisiva e categórica, abrindo mão de
modalizações com efeito de afastamento e utilizando pontos de exclamação para dar ênfase.
12
Por outro lado, modaliza seu dizer ao levantar hipóteses sobre a causa de seu fracasso, sem
comprometer-se plenamente com o que diz, visto que se afasta de suas formações discursivas.
Paulillo (2004) identificou as fórmulas “Talvez P” e “Será que P?”, presentes na
SDR, como modalizações típicas da enunciação vacilante. Segundo a autora, a primeira seria
uma fórmula aproximativa, expressando, ao mesmo tempo, adesão e recuo do sujeito quanto
àquilo que diz. Essa fórmula marca um avanço na busca da coincidência, mas, ao mesmo
tempo, assinala que o processo está incompleto, pois a coincidência ainda não foi alcançada.
A segunda modalização seria uma fórmula suspensiva, que reflete a indecidibilidade
do sujeito naquilo que diz, demonstrando instabilidade. Assim, a fórmula “marca a
impossibilidade de uma aproximação coincidente, pelo acossamento de outro(s) sentidos,
outro(s) dizeres” (PAULILLO, 2004, p. 206).
Apesar da incoerência nos posicionamentos de R. (ao mesmo tempo admirar Hitler,
ser anarquista, esquerdista e adepta do comunismo), há algo de comum entre eles: todos
implicam numa rebeldia contra o sistema estabelecido. E a autora sugere que o erro de sua
vida tenha sido justamente o afastamento dos valores mais tradicionais da sociedade, como a
Igreja, o Estado e a família, em geral defendidos pela direita conservadora.
Seu posicionamento político-filosófico é certamente tido como transgressivo perante
a sociedade. Ao declarar-se admiradora de Hitler, adere a uma figura altamente recriminada
pela maioria defensora da fé cristã e dos direitos humanos. Já o anarquismo e o comunismo
são movimentos contestadores do Estado, contrários ao sistema estabelecido. A família de R.
também não corresponde ao modelo tradicional: sua mãe teve uma filha sem ser casada, algo
recriminado pela Igreja, e seu pai nunca foi um exemplo de “chefe de família”. Aquele que
deveria ser o provedor, protetor e “cabeça” da família é definido como um “panaca perfeito”.
Há uma voz no dizer de R. que a faz conceber tudo isso como a grande causa de seu
insucesso, tal como uma “maldição” decorrente de sua rebeldia. Contudo, ela não pode se
aproximar de todo dessa voz dissidente. Assim, através da fórmula suspensiva “Será que P?”,
a enunciadora marca sua não adesão a P (“é porque admiro Hitler, sou anarquista, esquerdista
e adepta do comunismo”, “é porque minha mãe nunca se casou”, “porque meu pai era um
panaca perfeito”), mas sem rejeitá-lo. A modalização se apresenta como suspensão da
nominação, porque é impossível para R. uma “aproximação coincidente”, diante da presença
de outras FD às quais abertamente se filia. Estas limitam seu discurso, determinando o que
pode e deve ser dito (PÊCHEUX, 1988, p. 160)
13
3
Como exemplo, o autor cita a frase “aquele que salvou o mundo morrendo na cruz nunca existiu”, em que há
um pré-construído da FD cristã manifestando-se em um enunciado pertencente à FD marxista.
16
O verbo “tentar”, por sua vez, abre uma brecha para a falha. Em vez de afirmar que,
através do suicídio, efetivamente “passa para outro plano”, o sujeito hesita quanto à crença
manifestada e admite a possibilidade de que nada disso ocorra.
A palavra “tão” é empregada para diferenciar o “outro plano” imaginado da realidade
atual. Note-se que essa diferença não é polarizada na forma deslocado (este plano) x não
deslocado (outro plano). O que o sujeito nega no enunciado não é o adjetivo “deslocado”, mas
apenas o seu grau. Ou seja, a negação incide apenas sobre a igualdade, o que não quer dizer
que o “outro plano” será o oposto deste.
Isso significa que o enunciador não projeta um futuro absolutamente privado do
desconforto que sente em vida, uma eternidade de felicidade e alívio, como é característico do
discurso do êxito. Ele apenas tem a esperança de que não seja “tão” ruim como a realidade
atual, de que ele não se sinta deslocado no mesmo grau em que se sente em vida. Seu dizer dá
espaço, portanto, para que ele ainda se sinta deslocado, isto é, para que seu destino não seja
pleno de alegria.
É nesse jogo de rejeição da ideologia dominante (do que ele antecipa que a sociedade
pensará) e, ao mesmo tempo, de hesitação com relação ao destino feliz que quer sustentar, que
se percebe a tensão entre o discurso do fracasso e o discurso do êxito.
4 CONCLUSÃO
Neste trabalho, viu-se que o suicídio é discursivizado através de dois grandes
movimentos discursivos, que refletem as concepções dos suicidas sobre o seu ato e sobre si
próprios: trata-se do discurso do fracasso e do discurso do êxito. Em ambos os discursos
observou-se uma forte presença da FD cristã ou tradicional, seja para confirmá-la, rejeitá-la
ou questioná-la. Ela é muitas vezes antecipada pelo suicida nos destinatários de suas
mensagens, terminando por determinar seu discurso.
Os discursos do fracasso e do êxito, em suas fortes relações com a ideologia
dominante, revelam-se nos dizeres dos suicidas através de diferentes marcas linguísticas,
dentre as quais se destacou a negação. Na última subseção das análises, verificou-se que os
dois movimentos discursivos podem coexistir em uma sequência discursiva, o que representa
mais uma evidência da não-coincidência que afeta o sujeito.
Observou-se que o dizer dos suicidas é constantemente atravessado por outros
discursos e, em suas palavras, outras palavras já ditas significam. Nesse processo, o equívoco,
a contradição e o inconsciente são revelados, manifestando um sujeito em falta, sempre
desejante e essencialmente clivado.
19
5 REFERÊNCIAS
ANSCOMBRE, Jean-Claude; DUCROT, Oswald. La argumentación en la lengua. Madrid:
Editorial Gredos, 1994.
DIAS, Maria Luiza. Suicídio: testemunhos de adeus. São Paulo: Brasiliense, 1991.
FINK, Bruce. O sujeito lacaniano: entre a linguagem e o gozo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 1998.
INDURSKY, Freda. A fala dos quartéis e as outras vozes. Campinas: Editora da Unicamp,
1997.
_______. Análise automática do discurso. In: GADET, F.; HAK, T. (orgs.) Por uma análise
automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas: Editora da
Unicamp, 1997.
SILVA, Marcimedes Martins da. Suicídio: trama da comunicação. 1992. 134 f. Dissertação
(Mestrado em Psicologia Social) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
RESUMO
Neste estudo, apresentamos uma reflexão acerca da produção textual, enfocando as relações
entre enunciação, produção textual e a autoria. Faz parte da cultura escolar solicitar aos alunos
que escrevam textos, e essa prática deixa subentendido que é preciso ir à escola para aprender
a ler e a escrever. A escola é vista como o espaço da escrita. Em contrapartida, sustenta-se a
necessidade de o aluno ser autor de seu texto, garantindo à escrita o lugar, por excelência, de
instauração da subjetividade na linguagem. Mas o aluno foi preparado para ser autor de seu
texto? A prática de produzir textos na escola é sinônimo de reproduzir ideias, baseando-se em
um modelo orientado? A justificativa deste estudo decorreu de dois fatores: o primeiro deles-
de ordem prática – em nossa atividade docente, ao analisarmos um texto construído por um
aluno, chama-nos atenção a preocupação com o que o outro (no caso o professor) gostaria que
o eu dissesse (reprodução), e o que o eu realmente quer dizer. O segundo fator determinante
foi entender o texto – neste caso, em sala de aula – como uma das formas de entender a língua
materna. Nosso objetivo é mostrar que a ação que as palavras exercem umas sobre as outras
resulta nos sentidos promovidos pelo sujeito enunciador, que deixa marcas de sua presença no
discurso. Como suporte teórico, valemo-nos dos principais postulados da Teoria da
Enunciação de Émile Benveniste, segundo o qual a enunciação somente existe na perspectiva
do eu (subjetividade) em relação com o tu (intersubjetividade), inseridos numa instância
discursiva única (aqui/agora). Isso quer dizer que o texto, produto da enunciação, será sempre
singular, por representar a vida da linguagem em ação, considerando as marcas de
singularidade do sujeito que se enuncia em tempo e espaço cada vez únicos e irrepetíveis.
Entender a escrita na escola como um espaço enunciativo, implica acreditar que a análise da
produção textual vai além da superfície do texto, uma vez que a produção textual é um espaço
de interação entre um eu e um tu.
Palavras-chave:
Enunciação. Autoria. Produção textual.
ABSTRACT
In this study, we present a reflexion about the textual production, focusing on relationship
between enunciation, textual production and authorship. It is part of school culture to ask
students to write texts, and this practice implies that you need to go to school to learn how to
write and read. The school is seen like a space for writing. On the other hand, supports the
necessity of the student be the author of his own text and, for excellence, the establishment of
subjectivity language. But, the student was prepared to be the author of his own text? The
practice of producing texts in the school is synonymous of reproduce ideas, based on a
oriented model? The justification of this study comes from two factors: the first one – of
practice order - in our teaching activity, when analyzing a text constructed by a student, calls
our attention the preoccupation with what the other(in this case the teacher) would like to see
I writing(reproduction) and what I really wanted to say. The second determinant factor was
understand the text – in this case, at the classroom – like one of the ways to understand the
1
Doutoranda em Letras (UFRGS); e-mail: mvboabaid@yahoo.com.br.
2
mother tongue. Our objective is to show that the action that words exert on each other results
in the directions promoted by the enunciation subject, who leaves marks of your presence in
the discourse. As theoretical support, we make use of the main postulates of Theory of
Enunciation of Émile Benveniste, according to which the enunciation exists only in the
perspective of the self(subjectivity) in relationship with you(intersubjectivity), inserted in a
single instance of discourse(here/now). This means that the text, product of enunciation,
always unique, represents the life of language in action, considering the uniqueness of the
subject marks who states that in time and space ever unique and unrepeatable. Understand the
writing in school as a enunciative space, implies in believing that the analysis of textual
production goes beyond of the text surface, since text production is a space of interaction
between a you and me.
Keyword:
Enunciation. Authorship. Textual production.
1 INTRODUÇÃO
Este texto mapeia a noção de autoria derivada da enunciação, a partir da identificação
das marcas que remetem à enunciação (sujeito, tempo e espaço). O estudo está ancorado na
teoria de Émile Benveniste2 e objetiva compreender como as marcas linguísticas contribuem
para a construção da autoria, e de que forma os recursos utilizados pelo sujeito podem
direcionar o sentido na produção textual. Desta forma, tentaremos mostrar que enunciação e
autoria são conceitos que podem fazer parte da mesma teoria; para tanto, a visão de
enunciação deve considerar, simultaneamente, a produção de discurso, visto como um
acontecimento irrepetível, marcado por um traço pessoal, chamado de singularidade. A
tentativa de elucidar esses conceitos, tornando-os relevantes em conjunto se dará pela análise
de textos produzidos na escola.
Inicialmente nos questionamos a respeito do que é de fato um autor. Para clarear esta
dúvida, imprescindível conhecer a concepção de autor elencada por Barthes:
O autor, quando se acredita nele, é sempre concebido como passado do seu
próprio livro: o livro e o autor colocam-se a si próprios numa mesma linha,
distribuída como um antes e um depois: supõe-se que o Autor alimenta o livro,
quer dizer que existe antes dele, pensa,sofre,vive com ele; tem com ele a mesma
relação de antecedência que um pai mantém com um filho. Exatamente ao
contrário, o scriptor moderno nasce ao mesmo tempo que o seu texto; não está de
modo algum provido de um ser que precederia ou excederia a sua escrita, não é de
modo algum o sujeito de que seu livro seria o predicado;não existe outro tempo
2
No estudo das teorias da enunciação, Benveniste é considerado o primeiro estudioso a propor a diferenciação
da língua propriamente dita do emprego da língua. Este último seria um “mecanismo total e constante” que a
afeta como um todo. O estudioso evidencia a preocupação de explicitar o processo de construção do sujeito,
abordando-o como um evento social que se realiza pela linguagem. Dessa forma, o sujeito, na visão deste autor,
é um sujeito lingüístico, que se constrói pela e na linguagem. Submeteu a enunciação a um aparelho formal,
apresentando um sujeito dono do seu dizer, que se apodera do sistema língua para enunciar. Com a publicação
do artigo “O Aparelho formal da enunciação”(1989), viu-se nele um lingüista que possibilitava a transformação
da língua em discurso, por meio da enunciação.
3
3
Não temos interesse na noção de Barthes sobre autor, o olhar que nos importa é sobre „‟autoria‟, pois é nela que
buscamos a essência, o sentido. Para tanto devemos abandonar a noção de autor, ou seja, a ideia de que o sentido
está encerrado em si mesmo.
4
fato o outro proferiu. Isso ocorre porque sempre tentamos compreender a exatidão do que foi
dito, esquecendo, muitas vezes, que nesse entendimento repousa o singular da fala que se quer
reproduzir. Benveniste, o representante da linguística da enunciação, estuda a enunciação, ou
seja, o uso individual que cada um faz da língua, operando os mecanismos que marcam a
passagem do homem à condição de sujeito, definindo este processo como a subjetividade na
linguagem.
língua. Se o emprego das formas é algo relativo unicamente à constituição orgânica da língua,
o emprego da língua é algo constituído na relação entre o locutor e a língua. Essa relação, no
entender de Benveniste, produz marcas linguísticas, que ele denominou de caracteres
linguísticos da enunciação. O estudioso evidencia a preocupação de explicitar o processo de
construção do sujeito, abordando-o como um evento social que se realiza pela linguagem.
Dessa forma, o sujeito, na visão deste autor, é um sujeito linguístico, que se constrói pela e na
linguagem.
O conceito de enunciação aparece no aparelho formal da realização da língua e a
enunciação só é realizada quando o locutor se apropria do aparelho formal da língua e enuncia
sua posição de locutor. Os pronomes pessoais e demonstrativos, os advérbios de tempo e
lugar, os tempos verbais, adquirem o estatuto de indivíduos linguísticos, pois nascem de uma
enunciação, isto é, são engendrados de novo cada vez que uma enunciação é proferida, e cada
vez eles designam algo novo. Ainda, o eu, o aquele, o amanhã da descrição gramatical não
são senão os nomes metalinguísticos de eu, aquele, amanhã produzidos na enunciação. É por
meio do aparelho que podemos perceber a apreensão da língua pelo locutor, que pode estar se
referindo a si mesmo, ao seu interlocutor, ao tempo, ou ao espaço da enunciação, e esses
denunciam a presença do locutor em sua própria enunciação. Dessa forma acolhem um centro
de referência interno, ao tempo e ao espaço da enunciação, isso porque a referência é parte
integrante da enunciação.
Benveniste destaca que a enunciação é um acontecimento único e irrepetível e
acontece sempre quando o eu (locutor) assume a língua, dizendo-se eu e dirigindo-se a um tu
– condição que é reversível, num determinado tempo e espaço. É na relação entre as
categorias de pessoa, tempo e lugar que acontece a enunciação. De acordo com Benveniste
(1989), a frase é cada vez um acontecimento diferente; ela não existe senão no instante em
que é proferida e se apaga nesse instante; é um acontecimento que desaparece. Ao produto
dessa enunciação chamamos de enunciado, o qual também é único e irrepetível. Isso significa
dizer que uma palavra sendo pronunciada em momentos diferentes não produzirá o mesmo
sentido, por isso enunciado e enunciação são singulares.
As teorias da enunciação têm como eixo comum a preocupação com o sentido.
Segundo Flores (2001), a linguística da enunciação vê os fenômenos que estuda, sejam eles de
natureza sintática, morfológica ou de qualquer outra, do ponto de vista de seu sentido.
Percebemos que o autor aponta que as teorias da enunciação, cada uma com suas
especificidades, concebem a realização linguística em tempo e espaço determinados e com
referência aos sujeitos que enunciam. Então, depreendemos que os efeitos de sentido
6
pretendidos e os efeitos de sentido produzidos nem sempre são coincidentes. Entre o que o eu
quer fazer saber ao tu e o que o tu interpreta do dizer do eu há mais do que palavras, há visões
de mundo, vivências, particularidades, individualidades, um universo de subjetividade que
pode tanto unir as ideias veiculadas quanto afastar o sentido pretendido.
A linguagem, instrumento de comunicação, está relacionada intimamente ao homem
que a organiza e lhe dá conteúdo. Neste momento resgata a dimensão da linguagem,
acrescenta o mecanismo maior e mais importante que a língua sendo sistema de signos e
inclui a “comunicação” e o “homem” 4. Assim sendo, quando ele, o homem, se apropria dela
passa a ser “sujeito”. Por isso, falar de subjetividade, na teoria benvenistiana, é assinalar que
não atingimos nunca o homem separado da linguagem e não o vemos nunca inventando-a.
Não atingimos jamais o homem reduzido a si mesmo e procurando conceber a existência do
outro (1995, p.285), é assinalar que o homem é constituído na relação com outro homem.
A possibilidade de comunicação advém da inerência da linguagem ao homem. Essa
inerência é a subjetividade, definida pelo linguista como sendo a capacidade do locutor para
se propor como sujeito. Percebemos, então, que “sujeito” é uma categoria filosófica ou
psicológica, tal como diz o próprio autor, a qual encontra lugar em uma categoria linguística,
a pessoa. É esta última que apresenta o centro de interesse para o linguista, pois a pessoa é
expressa pelos seres que se comunicam, a saber, eu e tu, ambos indispensáveis para a
comunicação. Benveniste reforça que a subjetividade é uma propriedade da linguagem e não
das línguas particulares, dado que a categoria de pessoa eu e tu deve existir, de uma forma ou
de outra, em todas as línguas e sublinha que o fundamento da subjetividade está no exercício
da língua (1995, p.288).
A emergência da subjetividade só é possível pelo reconhecimento do outro, o tu, que é
instaurado no mesmo processo em que o eu se propõe, numa implicação mútua. Segundo o
autor, o que diferencia eu de tu é o fato de o primeiro ser interior ao enunciado e exterior a tu,
porém exterior de maneira a não suprimir o caráter humano do diálogo que pressupõe a
reflexividade, ou seja, a sucessão de atos enunciativos com a possibilidade de troca de papéis
eu-tu. É a inversibilidade do par eu-tu, relação que o ele não estabelece com nenhuma das
4
Destacamos que o autor estuda a relação entre os signos no interior do sistema da língua (perspectiva
saussuriana) bem como as relações entre as posições de enunciação do sujeito na língua, ao mesmo tempo em
que enfoca a noção saussuriana de que a língua é um sistema de signos.Benveniste assume as formulações
teóricas de Saussure, quando este diz ser preciso separar a língua da linguagem, mas tenta redimensionar o que é
central no Curso de Lingüística Geral, mas incompleto: a significação, desenvolvida a partir do discurso. Com
isso amplia suas reflexões, originando, o estudo da enunciação. É pela noção de enunciação que Benveniste
redimensiona os estudos de Saussure.
7
duas pessoas propriamente ditas, e por meio da qual se marca no interior da língua a presença
da intersubjetividade. O tu é externo a eu, e não subjetivo, porém condição para o
reconhecimento e, portanto para a existência de eu ser único em cada ato enunciativo.
No momento em que se produz um enunciado, o locutor se revela como sujeito 5 de seu
discurso, fazendo-se representar nele quando assume a pessoa do eu presente em qualquer
língua. O autor parte de um enquadramento que leva em conta a relação entre um eu e um tu,
sendo que este eu é apresentado como um sujeito uno e homogêneo, carregando em si a
responsabilidade da enunciação. O referente da interlocução é designado por um ele,
caracterizado como uma não-pessoa, já que é excluído da enunciação.
Benveniste aponta que o sentido está preso às formas da língua, ou seja, o sentido está
na língua, e não na enunciação. O que depende da enunciação, para o autor, é a referência, a
semantização, a colocação dos signos numa determinada relação com o mundo6. Essa ideia
está contemplada em Flores (1999), quando ele assinala que a enunciação é o modo como um
falante se apropria da língua, relação entre um falante e a língua, ou seja, esse processo de
comunicação decorre do uso e da relação entre o que toma a palavra e a língua. Benveniste
destaca que o sentido de uma frase é sua ideia e o sentido de uma palavra é seu emprego. A
partir dessa ideia, a cada vez particular, o locutor agencia palavras que neste emprego tem um
“sentido” particular. Ele, a nosso ver, constata que o sentido do enunciado é único e
irrepetível, uma vez que ele combina algo de “permanente”, a saber, o emprego das palavras,
a algo de “efêmero”, a saber, a ideia do enunciado. Quando dizemos que determinado
elemento da língua tem um sentido, entendemos a sua realidade como significante.
5
Benveniste não definiu o sujeito da enunciação, mas no decorrer da leitura de seus textos constrói hipóteses
sobre o sujeito. Desta forma, a noção de “sujeito da enunciação” não se encontra na teoria de Benveniste, mas é
sugerida por Flores (1999, p.202), seguidor dessa teoria: “o sujeito da enunciação é aquele constituído pela
relação intersubjetiva e que possibilita a passagem da intersubjetividade à subjetividade, ou seja, a passagem de
um nível constitutivo para um nível de aparente unidade”.
6
Como se vê, para Benveniste, a referência é constitutiva de cada ato de enunciação, uma vez que ela não se dá
com relação ao contexto ou ao conteúdo, mas, sim, ao próprio sujeito, por isso ela é integrante da enunciação.
Pensar em uma cena enunciativa pressupõe considerar “(...) o próprio ato, as situações em que ela se realiza e os
instrumentos de sua realização” (Benveniste,1989, p. 83).
8
O autor registra o meio que diferencia um falante de outro, pontuando que a cada
emprego, muda o enunciador, tornando-se um novo evento. Na enunciação, o indivíduo se
apropria de um sistema que preexiste ao ato enunciativo como algo independente e autônomo,
assim cria novos modos de dizer, que nada deve a ele, apesar da enunciação se valer de
formas e normas já existentes. Em outras palavras, sendo a enunciação única e irrepetível, ou
seja, acontece quando alguém fala (eu) para outro alguém (tu) de algo (ele) e essa condição
nunca ocorre da mesma forma e no mesmo tempo e lugar, o que explica sua singularidade.
Enunciar7 é transformar individualmente a língua - mera virtualidade - em discurso,
sendo que é nessa passagem que se dá a semantização da língua, entendida como uma relação
do sujeito com a língua. É nessa relação do locutor com a língua que se determinam os
caracteres linguísticos da enunciação. O ato individual de apropriação da língua introduz
aquele que fala em sua fala. Esse é um dado constitutivo da enunciação, ou seja, a presença do
locutor em sua enunciação cria um centro de referência interno a partir do qual se criam as
demais relações. Toda enunciação é um acontecimento único, tem um enunciador, um
destinatário, um tempo e um lugar só seus e essas condições não se repetirão jamais juntas.
O sentido será definido quando o homem, usando a linguagem, se institui como
sujeito, e se conhece no mundo pela reversibilidade e pela relação que estabelece com seu
semelhante. Desta forma, o sujeito é o que de fato interessa a linguística da enunciação, pois é
a partir dele que a rede discursiva se estabelece e torna-se a língua-discurso, isso porque
quando o eu se enuncia , constitui-se sujeito no e do mundo, torna-se o ponto de referência em
torno do qual se organizam o espaço e o tempo. O escritor é um sujeito, não uma pessoa; o eu
que assim se manifesta nada mais é que a instância que diz eu: não tem história que não seja
identificada pelo texto e não tem existência fora da linguagem. Neste caso, deve ser entendido
como subjetividade, isso porque não há outro tempo para além da enunciação e todo texto é
escrito no aqui e agora.
7
O colocar a língua em funcionamento por um ato individual de utilização materializa enunciação. A língua
ainda não palavra, mas signo e o uso da língua no discurso, que só podem ser teoricamente separados, porque se
fundem em um só, a língua em uso. As palavras existem na língua como virtualidades, algumas mais vazias,
atualizando-se, a cada vez em que são proferidas, em um referente associado à situação de enunciação; outras,
apresentando noções gerais ou conceitos que se especificam também na instância de discurso.
9
8
Quando o autor trata especificamente da subjetividade na linguagem, afirma que a linguagem não pode se reduzir à
comunicação, embora sirva a ela também. A linguagem serve para nos constituir em sujeitos, antes de tudo, e nas palavras de
10
Esta prática afasta o aluno da “produção prazer”9 porque o texto fica sendo
relacionado com a correção da escrita. Devemos desenvolver no aluno o direito de dizer, isso
inclui, também, o direito à palavra escrita, é nesse momento que se intensifica a presença de
um sujeito que se torna autor do seu texto, autor do seu dizer. Então, é necessário que a
produção textual seja a evidência de um sujeito que fala para alguém de algo em tempo e
espaços cada vez únicos e irrepetíveis.
Tendo como referência a teoria Benvenistiana, tomaremos como elementos
indissociáveis a cumplicidade entre sujeito e enunciação, mesmo dentro da regularidade, ou
seja, a visão de sujeito e língua como inseparáveis e a escrita como constitutiva do sujeito. Tal
recorte deixa em evidência que sendo a linguagem condição do homem no mundo, escrever
também é condição para estar na língua.
Pensamos em construir uma analogia entre o ato de produzir enunciado e os efeitos
da enunciação com o „‟efeito dominó‟, uma vez que cada peça em tempo único evoca a
tomada de posição da outra peça, transforma o jogo num novo ato enunciativo, em uma nova
enunciação. Conforme já visto, uma das principais características do texto como atividade
produtiva é o adiamento do sentido: em vez de remeter a um significado, um determinado
significante remete a outro significante, que, por sua vez, remete a outro, e assim
sucessivamente. Daí que o sentido é, constantemente, adiado: não há significado fixo, estável
e unívoco se ele, sempre, dá vazão a uma cadeia de significantes cujo sentido reside em outros
significantes... Assim sendo, a enunciação permite pensar a singularidade10, ou seja, é o que
quer ser mudado, o que resiste ser repetido, mas há o que a constitui em cadeia e isso é o que
convoca o outro. A partir disso, pode-se pensar que o mais importante é a posição do sujeito
na língua, isto é, a relação que estabelece com ela para compor os enunciados: o enunciado é
o produto da enunciação e a traduz nas marcas que carrega.
Mas qual é, de fato, o sentido da autoria no texto escrito? Talvez seja que o primeiro
supõe o ato de escrever, enquanto o segundo seria todo o processo de mobilização da língua
pelo sujeito (enunciação). Para Benveniste, o sujeito não pode falar sem falar de si e, talvez
por isso, o mais importante, para a linguística da enunciação não é propriamente o dito e o seu
conteúdo, o produto, mas o fato de alguém ter dito, o processo.
Benveniste: A subjetividade de que tratamos aqui é a capacidade do locutor se propor como sujeito. Define-se como a
unidade psíquica que transcende a totalidade das experiências que reúne, e que assegura a permanência da consciência (1995,
p. 286).
9
A produção prazer aqui deve ser entendida como o espaço de liberdade e comunicabilidade, em que o aluno ganha voz em
seu dizer e torna-se sujeito do que registra.
10
Podemos chamar essa singularidade de subjetividade, indicadores de subjetividade, dêixes, categoria de
pessoa...
11
É o texto escrito que traduz o sentido daquele que escreve. Quando se fala de autoria,
pensamos em algum traço relacionado à escrita. Também não podemos imaginar que alguém
seja autor, se seus textos não tratam do desafio de imaginar verdadeira a hipótese de uma certa
pessoalidade, de alguma singularidade. Dentre todas as possíveis formas de expressão, dentre
todos os modos de deixar marcas e demonstrar o que se pensa, sente, deseja ou crê, a escrita
teve e tem um papel central ainda não aprendido. Mas, é pelo sentido que identificamos a
posição do sujeito ou pelas formas linguísticas?
Ao escrever o sujeito estará num lugar de mobilização e utilização da língua aonde vai
neste ato de enunciação, utilizar as diversas formas sintáticas para compor o sentido do seu
texto escrito. Não podemos deixar de lembrar que a referência do texto, sempre será o próprio
sujeito, ou seja, o sentido que ele quer imprimir naquele momento11. Como vimos, para
Benveniste (1995) a semiótica se caracteriza como uma propriedade da língua; a semântica
resulta de uma atividade do locutor que coloca a língua em ação. Essa compreensão
demonstra que a composição destas duas modalidades é que vai permitir identificar posição
do sujeito que escreve, ou seja, sua singularidade. Assim, para desenvolver este estudo é
preciso dominar, além do saber até aqui construído, o conhecimento sobre as regularidades da
estrutura da língua, uma vez, que vai possibilitar a identificar os “desvios” da enunciação, os
quais vão “dizer” da alteridade do sujeito.
Um eu, entretanto, não é empregado pelo sujeito a não ser que esteja se dirigindo a
alguém, que será, na alocução, um tu. Essa polaridade das pessoas é, na linguagem, condição
fundamental. Benveniste (1989) considera que, no momento em que se declara eu, o locutor
assume a língua e implanta o outro diante de si, independente do grau que atribua a esse outro.
Desse modo, toda enunciação é, direta ou indiretamente, uma alocução e postula um
alocutário (tu). Nesse momento queremos insistir na pertinência de conceber a escrita
enquanto um objeto de conhecimento que subjetiva e singulariza aquele que escreve. Flores
(2007)12 propõe que o termo autoria fosse identificado como um nó de três pontas: a ponta do
autor, a ponta do leitor, a ponta do texto. Desta forma, o termo autoria seria o processo
simultâneo de autor, leitor e texto no momento da enunciação.
Outro fator importante, a escrita, refere-se ao processo mais global da enunciação. Isso
porque o texto escrito, embora traga implícita a enunciação, se traduz em um enunciado que
11
Pela Teoria da Enunciação, de Benveniste, ”o sentido não pode ser fixado nem previsto. É o ato da enunciação
que confere sentido aos enunciados em uma dada situação de enunciação”.(Flores et al.2008,p.181).
12
Aqui o linguista destaca que o nó de três pontas é uma metáfora imprescindível para o entendimento da autoria,
uma vez que o sentido de cada um se dissolve no sentido do outro e só tem sentido quando todos estão em
relação. Diz que”...Os fios, quando em nó, deixam de existir por si, para ter existência como nó. A autoria é um
nó”.
12
“diz” da posição linguística do sujeito que marca a sua alteridade 13 e o ato de escrever se situa
num entre - lugares entre a enunciação e o enunciado onde se situa a possibilidade da (re)
criação humana marcada pela (re)significação de cada um. Assim, a autoria estaria
relacionada à leitura.
Desta forma, o domínio da leitura exige um esforço construtivo por parte daquele que
lê, pois ativa a relação que ele estabelece com o mundo traduzindo sua subjetividade, ao
mesmo tempo em que exige a capacidade de se propor como sujeito. Há, neste caso,
necessidade de abrigar o sentido geral e o específico, o que contribui para construir uma nova
teia de sentidos. O sujeito quando tenta retomar a enunciação de alguém estabelece uma série
de “tentativas”14 para entender os mecanismos utilizados na construção da cena enunciativa.
Isso ocorre porque cada enunciação pode ter uma multiplicidade de significações, visto que as
intenções do falante ao produzir um enunciado podem ser as mais variadas. Assim sendo, não
teria sentido atribuir-lhe uma interpretação única e verdadeira. Devemos considerar que toda a
atividade de escrita e, consequentemente de interpretação, está baseada nas intenções15 de
alguém ao comunicar-se. Isso não significa que não há uma instância que, de algum modo,
regule a enunciação, que não interaja com as propriedades da escritura.
Ao observarmos uma obra devemos ter em mente que quando o autor mostra sua arte
tem uma intenção, nem sempre a mesma do ouvinte. A leitura, muitas vezes não é nítida, nem
tampouco linear, isso porque o espaço da diferença entre o endereçamento e a resposta é um
espaço social, formado e informado por conjunturas históricas de poder e de diferença social e
cultural. Acreditamos ser no espaço da diferença entre a propositura e a resposta que confere
significado único, pois com sua própria leitura, com seu próprio sentido consegue entrelaçar
teorias e construir sentidos novos e re-significados em nosso cotidiano.
Ao escrever, o sujeito traduz o sentido do mundo para si, constituído nas interações
vividas, quando o outro lê revisita o que o eu construiu e elabora sua compreensão do que leu.
Este processo de retomar o dito desencadeia, naturalmente, a forma singular de interpretar o
que foi enunciado. Esse processo se firma porque a língua em uso consegue materializar o
13
Refere-se ao conceito de valor “positivo e negativo” do signo, fundamental na consideração da língua do
ponto de vista do homem.
14
O termo “tentativas” foi sugerido por Flores (2007, p.264), no texto “Enunciação, Singularidade e Autoria”,
publicado pela Unijuí, quando destaca que a irredutibilidade de dizer 1 recebe marcas específicas no dizer 2,
sublinhando que “o sujeito, quando se engaja no retorno à enunciação de alguém, faz acompanhar essa
representação da outra cena enunciativa de uma série de “tentativas” de cerceamento de sentido do dizer 1, de
buscas pela palavra certa, do que se poderia chamar genericamente de um “não sei bem se foi isso que ele quis
dizer””.
15
A noção de intenção não tem, aqui, nenhuma realidade psicológica, é puramente linguística, determinada pelo
sentido do enunciado, portanto linguisticamente constituída.
13
sentido, construindo em cada ato enunciativo novas significações, isso porque o sujeito, ao
manejar a língua, valendo-se do aparelho formal da enunciação, constrói sentidos, realiza a
língua e o conteúdo veiculado na enunciação, ao mesmo tempo em que cerca o que foi dito a
fim de garantir fidelidade a sua compreensão.
Nas palavras de Flores (2007), o estatuto geral da singularidade enunciativa está
baseada na tentativa de dar direção ao sentido. Podemos concluir que escrever é escrever-se e
por isso os textos escritos serão enunciados sempre únicos e singulares em cada ato
enunciativo? Perguntamos isso porque nos parece intangível, talvez porque o autor registra o
seu sentido no enunciado, o leitor constrói o sentido daquilo que lê no momento da
enunciação, ao mesmo tempo em que busca manter o canal construído e a direção do que
interpreta. É evidente que sim, uma vez que toda enunciação é singular, única e irrepetível.
Quando o autor destaca que cada um constrói um processo de “leitura” ele simplesmente
assegura que depreendemos sentidos, construímos relações com o que lemos, mas tudo isso se
apaga em outro ato de enunciação.
Ainda, que muitas considerações já foram tecidas quando o assunto é autoria, mas,
indiscutivelmente, sempre que pensamos em autoria temos que considerar as relações que o
“sujeito autoral” mantém com a fonte enunciativa, neste caso, o texto enunciado. Distanciar
certas sequências enunciativas de seu contexto para inseri-las em outro põe em função a
autoria. Nessa operação ocorre um distanciamento, providenciado pelo sujeito-autor:
primeiro, porque recorta uma sequência de seu contexto inicial; segundo, porque adota uma
atitude em relação a ela (em muitos casos concorda, rejeita, mas sempre constrói um modo de
interpretação). Neste momento constrói uma instância articulada em função do texto, e esta
existência restringe-se ao ato de leitura, que é, também, ato de produção textual, diminuindo
ou aproximando escritura e leitura, tentando unir leitor e escritor em uma mesma prática de
significação.
Neste sentido é possível entender que até mesmo em uma operação aparentemente
simples pode-se apontar um trabalho de decisão e escolha. Considerando que, se o que está
enunciado se encontra solto, qualquer expressão pode ser extraída, citada, posta entre aspas,
também pode romper com o contexto e engendrar novos contextos. Isso tende a facilitar a
abertura polissêmica16. Assim, mesmo que tenha a marca de um autor, o leitor dela passa a
produzir algo novo quando a insere em outro contexto. E esta seleção pode ser vista como
uma espécie de mecanismo isolador que influi sobre o autor-leitor, uma vez que o leitor é
16
Tratar-se-ia não de um processo, mas do efeito devido às diferentes perspectivas a partir das quais se
observaria um objeto uno, fechado e definido.
14
aquele que faz circular o sentido, que pode observar o plural de que o texto é feito, mas pode,
também, trazer ao texto seu próprio plural.
Em se tratando de escola, não se pode esquecer que há um mediador da produção e,
em geral, leitor privilegiado, que controla e impulsiona o processo de produção de autoria: o
professor. Todo trabalho projetado por um querer-dizer envolve enunciados próximos e
distantes, e, no fluxo da construção discursiva, convoca autores ou, simplesmente, o
“rumor”17 contínuo da língua.
Deixamos evidente aqui que não estamos atribuindo grau de maturidade nem para o
sujeito autor nem para o leitor, mas sim querendo mostrar que essas duas habilidades-leitura e
escrita- são necessárias para a conquista da autonomia autoral. Queremos, apenas, apontar
possibilidades nesse processo. Sendo o texto escrito uma rede em que cada indivíduo escolhe
seus ornamentos fazendo as ligações que julgar necessárias, produzindo a marca, criando seu
estilo singular de interpretação, cada vez único e irrepetível. É neste momento que a autoria
torna-se evidente, pela tentativa de singularizar a língua.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Enunciar é falar, é escrever, é produzir discurso, é produzir forma e sentido. Esse ato
constitui a atividade humana denominada enunciação. Por isso, quando pensamos em ato –
evento enunciativo - devemos ter em mente que alguém os realiza. Assim, trabalhar com a
produção textual é tarefa desafiadora, porque implica conhecimentos que extrapolam as
questões linguísticas. Sem dúvida é tarefa possível e desafiadora: possível à medida que
permite que apliquemos leituras feitas e estudadas ao longo de muitos anos aliados às várias
leituras acerca do tema e desafiador porque não há como não nos maravilharmos diante das
estratégias discursivas que a língua coloca em funcionamento pela ação do homem.
Trabalhar com o tema enunciação é um grande desafio, e soma-se a isso dificuldade de
tecermos considerações acerca da enunciação do outro. Segundo FLORES (2001), a
linguística da enunciação vê os fenômenos que estuda, sejam eles de natureza sintática,
morfológica ou de qualquer outra, do ponto de vista de seu sentido. Percebemos que o autor
aponta que as teorias da enunciação, cada uma com suas especificidades, concebem a
realização linguística em tempo e espaço determinados e com referência aos sujeitos que
enunciam.
17
Entendo por “rumor da língua”, neste contexto, tudo o que pode ser engendrado pelo discurso.
15
5 REFERÊNCIAS
BARTHES, R. A morte do autor. In: ______. O rumor da língua. 2. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2004.
______. Enunciação, singularidade e autoria. Múltiplas faces da Autoria. Ed. Unijuí. Ijui.
2008.
RESUMO
Este artigo apresenta o estudo analítico acerca do planejamento anual da disciplina Língua
Portuguesa (LP) do Ensino Fundamental II, de uma escola pública de Florianópolis – Santa
Catarina. Buscamos aqui identificar os processos pelos quais se dá o ensino dessa disciplina
para as turmas de 5 ª a 8 ª série. Apresentamos também um contraste da concepção de lingua-
gem, objetivos, conteúdos, metodologia e avaliação com as teorias atuais sobre o ensino desta
disciplina, a partir de suas unidades básicas: prática de leitura, de produção de textos e de aná-
lise linguística (GERALDI, 2006). Os resultados obtidos evidenciam que o planejamento
apresentado não está em total acordo com o método de ensino mais apropriado da disciplina
de LP. Ou seja, o planejamento escrito pelo professor (a) da Rede Municipal não está ancora-
do nas principais teorias da área em questão.
Palavras-chave:
Planejamento escolar. Disciplina de Língua Portuguesa. Práticas pedagógicas.
ABSTRACT
This article presents an analytical study about an annual school plan of the discipline Portu-
guese II for the Basic Education II - Junior High- of a public school in Florianopolis- Santa
Catarina. We try to identify the process in which the Portuguese teaching takes place at 5 ª up
to 8 ª Grades. We contrast the conception of teaching the objectives, contents, methodology
and evaluation with the current theories of Portuguese Teaching We guide ourselves to pro-
cedure the analysis upon the basic unit of instruction: reading tasks, text production task the
linguistic analysis task (GERALDI, 2006). The results show that the annual plan we have
analyzed doesn‟t fit to actual Portuguese teaching theories. That is, the annual plan written by
the teacher (a) of the Municipal is not anchored in the main theories of the area.
Keywords:
Anual Plan. Discipline of Portuguese. Pedagogical Practice.
1 INTRODUÇÃO
No início do ano letivo, os professores das escolas públicas de nível fundamental e
médio de Santa Catarina reúnem-se em semanas pedagógicas para elaborar, dentre outros do-
1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),
área de concentração Linguística Aplicada. Florianópolis, Santa Catarina, Brasil; e-mail: kei-
la_grando@hotmail.com.
2
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),
área de concentração Linguística Aplicada. Florianópolis, Santa Catarina, Brasil; e-mail: alinerenee@gmail.com.
2
3
Parâmetros Curriculares Nacionais- tem por finalidade indicar uma proposta de reorientação curricular para
secretarias de educação, escolas, e instituições envolvidas com a educação (RODRIGUES, 2003). Indica o ca-
minho que as escolas precisam seguir, e estabelece uma padronização comum do ensino a todos a alunos de
diferentes classes sociais.
4
No planejamento de ensino fundamental II, a escola faz uso da nomenclatura antiga para as séries referente ao
ensino fundamental II, ou seja, não faz a inserção do 9º ano.
3
propostas para o trabalho em sala de aula nem sempre são harmônicas com a realidade enfren-
tada pelos professores. Assim, quando testam as propostas e elas não dão os resultados espe-
rados ou ao menos satisfatórios, há uma grande frustração.
Para se cumprir a prática de ensino de LP, o professor precisa diariamente corroborar à
variadas estratégias de leitura, escuta e produção de texto, as quais possibilitam o desenvol-
vimento da competência comunicativa, tanto oral quanto escrita do aluno (GERALDI, 2006).
Nesse sentido, o autor propõe que o ensino de língua materna seja direcionado aos seguintes
eixos: leitura de textos (dos mais variados gêneros), produção de textos (orais e escritos, dos
mais variados gêneros) e análise linguística (tanto dos textos lidos quanto dos textos produzi-
dos). O foco em questão deve objetivar que o aluno seja levado a refletir sobre o funciona-
mento da linguagem, sendo estimulado a ler com interesse e a produzir a sua própria fala.
Para isso, todas as unidades básicas do ensino de língua materna (leitura, produção de texto e
análise linguística) precisam ser voltadas para, a partir do ensino da modalidade de língua
padrão, aumentar a capacidade comunicativa, e não para inibir a prática e o uso da língua do
aluno. Sendo assim, faremos um rápido esboço do que propõe Geraldi (2006) para estas três
unidades de ensino de língua materna.
leitura. E esta pode levar o aluno-leitor a entender a lógica do texto, em suas partes e no seu
todo. Dependendo da abordagem, leva o aluno a compreender não só o que o autor quis dizer,
mas também a refletir sobre o que foi dito, e do jeito como foi dito, ajudando-o no desenvol-
vimento de leitor funcional, pois o trabalho com o texto nos permite a exploração das formas
linguísticas.
Nesse sentido, o leitor deve estar se perguntando em que ponto fica a gramática, e a
modalidade padrão, que ainda é praticada no ensino tradicional? Será ela eliminada das estra-
tégias de ensino? Seguramente não. O ensino de gramática precisa continuar em sala de aula,
ainda a variedade padrão, que é fundamental para a competência da produção escrita. Mas o
que muda é a abordagem. Deve-se buscar o domínio do funcionamento da língua em uso, e
não a prática mecânica da metalinguagem, com um serviço de descrição e classificação. Isto
se fundamenta a partir do que Geraldi aponta como proposta, pois não faz sentido à vida prá-
tica do aluno descrever e classificar, mas sim aprender a escrever e se comunicar em diferen-
tes situações, e para isso, precisa saber quais são os mecanismos que compõem a língua. Ati-
vidades de auto- correção, por exemplo, são situações que podem levar o aluno a compreen-
der as organizações textuais e aprender práticas com a escrita. É importante destacarmos que a
mediação do professor com o aluno neste momento é fundamental, pois o sujeito se constitui
como sujeito no espaço de produção de interlocução.
Segundo Demerval Saviani (1987, p. 23), "a palavra reflexão vem do verbo latino „re-
flectire‟ que significa „voltar atrás‟ ”. Podemos entender como um processo de (re)pensar, ou
seja, uma ação de retomar, reconsiderar os dados que se tem em mãos, e significar. É estudar
e prestar atenção, analisar com cuidado. Para Furasi (1998), por exemplo, o planejamento de
ensino é
O autor lembra também que ao professor redigir, executar e avaliar os planos de ensi-
no, ele deve ser claro e agir criticamente com
5
Sentimos a necessidade de apresentar algumas questões dos PCNs, segundo Gomes (2008), e outros autores,
10
4 ANÁLISE DO PLANEJAMENTO
Nesta seção do artigo faremos uma análise descritiva de um planejamento anual. Tra-
ta-se do documento de uma escola pública de Florianópolis. Procederemos com uma amostra
sucinta do planejamento referente ao ano letivo de 2010, identificando os processos pelos
quais se propõe o ensino para as turmas de 5ª à 8ª série do Ensino Fundamental II. Onde for
possível, contrastaremos a concepção de ensino, objetivos, conteúdos e metodologia e avalia-
ção com as teorias presentes atualmente sobre ensino de LP. Utilizaremos Geraldi (2006);
Marcushi (2008), entre outros autores, como referencial teórico.
O plano apresentado pelo(a) professor (a) incorpora em um só documento os objeti-
vos, conteúdos, metodologia e avaliação para todas as turmas do Ensino Fundamental II, ou
seja, de 5ª série à 8ª série. Há que se considerar que o único momento em que o professor (a)
divide as séries é na seção de “Conteúdos” que trata os “gêneros e textos a serem trabalhados
pelas turmas”. É necessário ressaltar aqui, que cada série tem o seu conteúdo específico para
ser ensinado, um foco adequado para ser abordado. Conforme apontamos no item 2 deste arti-
go, o trabalho, por exemplo, com a produção de texto precisa ser específico para cada série.
Geraldi (2006) afirma que na 5ª série a atividade de produção é o texto narrativo, isto
é, o foco é de que os alunos sejam levados a contar histórias. Entre o uso dos textos narrativos
podemos pensar os dissertativos como produção de debate oral. Na 6ª série, dando continui-
dade a metodologia utilizada na 5ª, porém com menos ênfase na narrativa, podemos introduzir
para o exercício de produção da escrita através da leitura, interpretação de textos curtos fo-
cando a história do Brasil e o noticiário da imprensa. A partir somente deste fragmento que
propõe Geraldi (2006), vemos que o foco entre uma turma de 5ª e 6ª série é diferente, o que
nos leva a concluir que um planejamento que preveja conteúdos e objetivos de modo geral,
sem especificidade, poderá ocasionar problemas na prática em sala de aula.
porque no planejamento escolar que será analisado por nós, o professor (a) utiliza os PCNs como suporte teórico.
11
participar da vida social dos indivíduos. Nesta parte do documento, o professor (a) utiliza-se
de documentações como a Proposta Curricular de Santa Catarina para justificar a forma como
aborda o ensino de língua materna, ao invés de fazer uso de teorias que realmente fundamen-
tem a idéia de concepção de LP, como é o caso de teóricos como Geraldi (2006); Meurer,
Bonini e Motta-Roth (2005); Signorini e Bentes (2008); entre outros mais. Entendemos que
estes documentos serviram para oferecer novas propostas para o ensino de LP, e não para em-
basar a elaboração de um planejamento, o papel destes é direcionar o professor às práticas em
sala de aula.
Professor (a): [...] o aluno deverá: Ler para buscar informações; captar significados;
observar recursos gráficos e estilísticos; determinar a função do texto; tema; escolher
a forma textual adequado ao desejo expressivo; buscar o deleite; delimitar espaço,
tempo, enredo, narrador, personagem; reconhecer e utilizar códigos verbais e não
verbais; julgar; refletir; concluir; opinar; escolher, descartar; ampliar; ampliar co-
nhecimentos; expor; relatar; etc.
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Como primeira sugestão, acreditamos que o verbo no futuro “deverá” possuir uma
carga semântica forte para o contexto dos objetivos. O mais adequado para tal acerto seria
algo como “pretende-se que o aluno saiba:”. De acordo Lajolo (apud GERALDI, 2006), ler
não é decifrar, como num jogo de adivinhações, o sentido de um texto, é a partir do texto ser
capaz de atribuir significado, conseguir relacioná-lo a todos os textos significativos para cada
um, reconhecer nele o tipo de leitura que seu leitor pretendia e, dono da própria vontade, en-
tregar-se a esta leitura, ou rebelar-se contra ela, propondo outra não prevista. Como outro ob-
jetivo específico, o professor (a) sugere que o aluno “deverá”
Se um escritor que julgamos competente é aquele que sabe construir textos coesos,
coerentes, eficazes e bem articulados, o trabalho com a escrita é fundamental. Desta forma,
conforme aponta Geraldi (2006), precisamos partir da escrita do aluno, e não de algo pronto e
acabado. Assim aluno precisa nesta fase, ser levado a elaborar muitos textos, mesmo não sen-
do capaz de escrever (GOMES, 2007, p. 150). Em toda produção precisa, antes, ser definido
claramente os objetivos. O aluno precisa ser contextualizado da proposta, de forma, a saber,
para que, para quem, onde e como vai escrever e o que vai escrever.
Ao entender que todo indivíduo produz textos ao passo que mobiliza a língua para se
comunicar, acreditamos que as aulas de português podem ser tomadas como prática diária de
comunicação verbal, desenvolvendo a comunicação recorrente, tanto no trato oral quanto por
escrito. Isso porque existe um locutor interessado em dizer algo a seu interlocutor. De acordo
com Bakhtin (1992, p. 279), todas as atividades humanas estão relacionadas ao uso da língua
e estas se efetivam através de enunciados orais e escritos “concretos e únicos, que emanam
dos integrantes de uma ou de outra esfera da atividade humana”. Se um dos objetivos de LP
é ampliar a capacidade de comunicação de nosso aluno, sugerimos que o professor (a) traga
diferentes tipos de textos à sala de aula, criando oportunidades para que o aluno entre em con-
tato e estude variados gêneros textuais, os quais circulam em nosso meio, nas mais diversas
situações sociais.
13
Professor (a): [...] pelo estudo metalingüístico, mas pela apropriação e reconheci-
mento mais ou menos estáveis de cada gênero, pelo uso consciente e crítico de
acordo com a intenção desejada para a produção; pela necessidade de levar em con-
ta o interlocutor, a situação de comunicação e a esfera em circulação.
A clareza a organização de idéias, a coerência, a coesão, a estrutura textual escolhi-
da serão observadas sistematicamente na exposição oral e na escrita das produções
textuais, levando em conta os efeitos de sentido desejados.
Assim, as classes de palavras, processos de formação, pontuação, concordância
verbal e nominal, regências, acentuação gráfica, ortografia, sintaxe da frase, das
orações e dos períodos, estrutura do parágrafo, discurso direto e indireto e outros
aspectos metalingüísticos que auxiliam a consolidar os conhecimentos que levam à
proficiência e à autonomia leitora serão abordados no estudo de cada gênero [...]
Neste item do conteúdo, num primeiro momento, o professor (a) afirma que a análise
da língua não será feita pelo estudo metalinguístico, contudo, ao terminar suas considerações
citando classes de palavras, processos de formação, pontuação, entre outros, diz que os aspec-
tos metalinguísticos auxiliam a consolidação dos conhecimentos de proficiência e autonomia
leitora. Ou seja, em se tratando da parte da análise linguística apresentada no planejamento,
pode-se perceber um paradoxo na construção das idéias. Pensamos que os aspectos não aju-
dam a consolidar o conhecimento, as questões da metalinguagem são ferramentas que auxili-
am na escrita e na leitura. O fato não é consolidar a proficiência e autonomia leitora, mas uti-
lizar como os mecanismos de construção de sentidos (KOCH e ELIAS, 1999).
Cogitamos que entre as atividades que podem ser sugeridas para a reflexão e análise
linguística merecem destaque a revisão de textos (controlar a qualidade de produção, a se
identificar problemas e aplicar os conhecimentos sobre a língua, analisando a organização das
idéias); também não menos aprender com textos (observando e analisando diversos textos) a
se refletir sobre como foram escritos, que estratégias o autor utilizou para construir o texto
14
GÊNERO 5ª 6ª 7ª 8ª
Argumentativo Carta pessoal, texto Carta pessoal, de Texto de opinião, Texto de opinião,
de opinião leitor texto de opi- resenha crítica resenha crítica
nião
Narrativo Fábulas Lendas, romance Crônica Conto, teatro, paró-
dia
Expositivo Resumo, entrevista Resumo, sinopse Resumo, esquema, Resumo, sinopse,
sinopse. esquema.
Relato Noticia, entrevista Notícia, memória Notícia, reportagem Notícia, reportagem
Instrucional, descri- Regras de jogo Manual de instru- Leis e estatutos Leis e estatutos
tivo/ prescritivo ção
Literário Poemas Poemas Poemas Poemas
Tabela (1) – Sugestão do professor (a) acerca dos gêneros e textos a serem trabalhados nas séries.
Fonte: Professor (a) - Gêneros e textos a serem trabalhados nas séries (2010).
sintáticos, tempos verbais, relações lógicas, estilo6. Ele se caracteriza mais propriamente co-
mo sequências linguísticas do que como “textos materializados”, referem-se especificamente
a modos textuais. Sugerimos para este momento, que o professor (a) divida o quadro de forma
a apresentar nele as situações discursivas, a tipologia textual predominante, as habilidades de
linguagem dominantes e, enfim, os gêneros orais ou escritos. Exemplifiquemos na tabela que
segue.
6
O estilo, para Rodrigues (2005, p. 168), trata do uso típico dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da
língua. Em um enunciado, o estilo particular pode ser melhor entendido se for considerada a sua natureza genéri-
ca.
16
Destacamos que os gêneros comentados, assim como as situações discursivas não ter-
minam no que está exposto na tabela, pelo contrário, existem muitas outras possibilidades.
Podemos perceber assim que o professor (a) não demonstra clareza a respeito do que são pro-
priamente gêneros e do que são tipos textuais, o que possivelmente poderá refletir na própria
prática de sala de aula. Alguns exemplos de gêneros textuais indicados por Marcuschi (2008,
p. 156) são o “texto argumentativo- carta textual, carta comercial, bilhete”, entre outros.
Enfocamos ainda no item conteúdo, que o professor (a) utiliza um gênero por série,
como por exemplo, na 5 ª, afirma trabalhar carta pessoal, texto de opinião; na sexta série e
sétima serie - texto de opinião e resenha crítica. Diante disso, o que podemos perceber é que,
17
logo no planejamento de cada série, será trabalhado apenas um gênero por turma, sabendo que
poderiam ser utilizados nos tipos textuais argumentativos, vários outros gêneros tais como
artigo assinado, editorial etc.
É necessário comentar que quando delimita tipo literário, o professor (a) propõe so-
mente trabalhar com poemas em todas as séries do Ensino Fundamental II, desconsiderando
as outras variedades presentes nos textos literários, como conto, crônica e romance. Isso acon-
tece justamente pelo fato do professor (a) propor em seu escrito uma categorização não condi-
zente, conforme já comentamos anteriormente. Sabemos através de estudos bakhtinianos que
as atividades humanas relacionam-se ao uso efetivo da língua, e se efetivam através de enun-
ciados concretos e únicos “que emanam de uma ou outra esfera da atividade humana” (BA-
HKTIN, 1972, p. 279). Embora tais enunciados sejam individuais, concretos e únicos, não
podemos os entender como combinações de formas livres da língua, pois a língua se realiza
no campo das atividades humanas, e estas possuem formas – padrão (em níveis variados) para
poder estruturar os enunciados.
Em seguida do que é apresentado pelo professor, percebemos o paradoxo presente na
construção do discurso deste planejamento, onde ele(a) afirma que “textos do domínio do
narrar, relatar, argumentar e expor e descrever ações devam ser apresentados em todos os
anos de ensino fundamental”, novamente é apresentada uma contraposição de idéias. Rodri-
gues (2003, p. 1266) aponta que “os termos gêneros textuais, gêneros de texto e tipos de tex-
to” assemelham ser utilizados nos PCNs como sinônimos dos gêneros do discurso. Com cui-
dado, indica que união ou não destes aspectos, merecem melhor observação, pois os parâme-
tros definem o que será trabalhado em sala de aula e o contato de um professor que não tenha
clareza destes conceitos com o que é sugerido pelos documentos poderá causar uma certa con-
fusão:
A nosso ver, esta pode ser uma causa da confusão estabelecida no planejamento por
parte do professor (a), já que, como comentamos anteriormente, as bases teóricas apontadas
no planejamento são os PCNs e as Propostas curriculares presentes em documentos da Secre-
taria de Educação do município de Florianópolis. Acreditamos também, que isso tudo, reflete
18
o ensino de uma disciplina que ainda está em busca da composição de um currículo, quanto ao
objeto e ao conteúdo. Conforme Rojo (2008),
Sendo assim, Rojo (2008) faz-nos entender que atualmente o que se busca é a “rearti-
culação” do conceito de gêneros do discurso/ texto - no campo didático, que está marcado por
dois lados: de um, o resgate de uma perspectiva política aristotélica no ensino “para a coisa
pública” e de outro, um conceito novo rearticulado em função de práticas escolares já conhe-
cidas.
Professor (a): A noção de gênero será tomada como objeto de ensino. A diversidade
de textos e gêneros será contemplada não apenas em função de sua relevância social,
mas também pelo fato de que textos pertencentes a diferentes gêneros são organizados
de diferentes formas. (grifo do professor)
Rojo (2005) diferencia “teoria de gêneros do texto” de “teoria dos gêneros do discurso ou dis-
cursivos” e afirma ainda que
os trabalhos que estou classificando como adotando uma teoria de gêneros de texto
tendiam a descrever um plano descritivo intermediário - equivalente a estrutura ou
forma composicional - que trabalha com noções da linguística textual (tipos, protóti-
pos, sequências típicas etc.) e que integrariam a composição dos textos do gênero. A
outra vertente, a dos gêneros discursivos, tendiam a relacionar os aspectos da materia-
lidade linguística determinados pelos parâmetros da situação de enunciação – sem a
pretensão de esgotar a descrição dos aspectos linguísticos ou textuais, mas apenas res-
saltando as “marcas lingüísticas” que decorriam de/ produziam significações ou temas
relevantes no discurso (ROJO, 2005, p.92).
Sugerimos ao professor (a) que ao enunciar a noção de gênero a ser adotada, restrinja
para “gêneros de discurso/texto” conforme a autora acima explicita. Outro item que nos cha-
mou atenção, positivamente, foi o que trata da aplicação de uma “avaliação diagnóstica”,
19
através do modelo GESTAR II7, que funciona como ferramenta e, determina os conhecimen-
tos já adquiridos pelos alunos, através das falhas ou lacunas deixadas por eles. Desta forma,
através de tais falhas, o professor pode ter como parâmetro o que o aluno já conhece e aquilo
que o aluno precisará aprender.
Professor (a): Uma Avaliação Diagnóstica será aplicada em todas as turmas, apro-
veitando-se do modelo proposto pelo GESTAR II, no intuito de melhor efetivamen-
te determinarmos os conhecimentos prévios/ adquiridos e os por adquirir dos alunos
envolvidos. Esta avaliação será a baliza a nos apontar as intervenções necessárias
para o aprimoramento das capacidades e habilidades que visam à autonomia e pro-
ficiência dos cidadãos envolvidos.
No outro item, seleção dos gêneros e textos a serem trabalhados fica evidente que o
professor (a) faz uso de um livro didático e que a maioria dos “gêneros e textos” será con-
templada de acordo com o que está no livro.
Professor (a): A seleção dos gêneros e textos a serem trabalhados está contemplada,
em sua maioria, no livro didático escolhido pela escola Português: uma proposta
para o letramento, de Magda Soares, Editora Moderna. A escolha por esse livro le-
vou em conta a seleção de textos e gêneros cujo domínio de leitura ou de escrita
consideramos fundamental a uma participação social mais efetiva e qualificada. A
tendência será por trabalhar seguindo os passos detalhados pela autora em confor-
midade com a maturidade da turma. Como são textos de difícil compreensão indi-
vidual, a interação e o modelo de leitura serão constantes por parte do professor (a).
Quando sugere-se que a maioria está contemplada no livro, isso nos leva a pensar, e
convidarmos o professor (a) também a refletir, até que ponto tais textos estão em conexão
com a realidade dos alunos. Na outra seção, é apontado que em cada série desenvolverá, ou
dará continuidade, ao projeto de leitura: “construindo a competência leitora” desenvolvido
desde o ano de 2007. Em seguida, é falado sobre a leitura a “[...] ida do aluno à biblioteca será
orientada e estimulada a cada 15 dias, o aluno poderá escolher o livro que desejar, ou procurar
o livro solicitado pela professora e deverá realizar a atividade escrita ou oral sobre a leitura
conforme as orientações passadas” dizendo que a “consciência da escolha do material por
parte do educando é importante como a leitura feita”.
De acordo com Geraldi (2006), é importante que o aluno adquira o gosto de ler pelo
prazer de ler “e não em razão de cobranças escolares”, em um primeiro momento, talvez, a
exigência de leitura por parte do professor (a) para com os alunos, em ter de fazer as ativida-
7
Gestar II é um curso de aperfeiçoamento para professores de LP oferecido pela Secretaria do Estado de Santa
Catarina.
20
des escritas ou orais, não consistam em trabalho instigante para os alunos, e sim um trabalho
de exigência escolar. Desta forma é necessário um cuidado a se observar até que ponto as ati-
vidades com a leitura sejam estimulantes ou não.
Nas seções posteriores, são propostas “aulas expositivas e dialogadas, com suportes
em fotocópias, cartazes etc. para facilitar ao aluno o acesso aos conhecimentos e saberes ne-
cessários à construção de sua autonomia leitora” e “a sala informatizada será utilizada como
suporte de leitura de lendas, e contos africanos, fábulas e mitologia, em site, previamente
identificados”.
Em suma, o que pudemos perceber na metodologia é um apego maior no tocante à
leitura, enquanto a escrita e a análise linguística são pouco comentadas, ou diríamos, quase
nada. Em algumas das seções, existem resquícios da atividade com a escrita, porém o restante
só fala da metodologia em prática de leitura em sala de aula. Se se fala em leitura, como será
relacionada a atividade de produção de texto e a reflexão sobre a língua? Que estratégias de
aplicação serão abordadas por este professor (a)?
Acreditamos que faltou detalhar melhor a escrita e análise linguística no planejamento
quanto à metodologia, pois esta se mostra de forma muito genérica no que tange à aplicação
dos conteúdos. Sugerimos, por exemplo, no processo da leitura, a leitura de um texto curto em
que o professor proponha uma análise, observando os argumentos apresentados, a tese defen-
dida no texto e a comparação do vocabulário empregado. Esta forma é o que Geraldi (2006, p.
94) sugere como “Leitura – estudo do Texto”. Isto representaria assim um processo de leitura
muito mais reflexivo e autônomo do que ler pelo simples fato de ler.
4.6 Avaliação
Na avaliação a professora fala dos instrumentos avaliativos (exercícios, tarefas, leitura
em classe e extraclasse, participação, pesquisa, provas, ditados, apresentações, entre outros) e
prevê que o aluno “deverá”:
Professor (a): demonstrar que compreende os textos nos gêneros trabalhados; atri-
buir sentidos, posicionando-se criticamente; ler de modo independente textos fami-
liares; compreender e estabelecer relações entre os segmentos de um texto e entre
este e outros textos; articular conhecimentos prévios a informações textuais a dedu-
zir informações implícitas; produzir textos nos gêneros previstos considerando-se
suas especificidades; escrever textos coerentes e coesos; revisar o próprio texto; re-
digir, utilizando a norma culta e os padrões da escrita, observando as variedades
linguísticas, as regularidades da língua, a ortografia, o parágrafo, pontuação, regên-
cia etc.
21
Ao lermos este fragmento, questionamo-nos de que forma será dada a avaliação. Con-
tínua, diagnóstica ou formativa? O professor (a) não deixa evidente o cuidado com os alunos
que não conseguirem atingir o rendimento satisfatório na prova, se o procedimento será atra-
vés de recuperação parcial, total. Julgamos algo importante a se tratar em um planejamento.
Também em se tratando de atividades, apontar como que serão desenvolvidas.
O último detalhe observado no planejamento anual é a falta do item “referências”.
Questionamo-nos em que o professor (a) se baseou para afirmar que “textos pertencentes a
diferentes gêneros são organizados de diferentes formas”. Além do livro “Português: uma
proposta para o letramento” qual outra fonte utiliza para dar aula para seus alunos? Fica a
sugestão de o professor (a) ao redigir seu planejamento anual, que exponha os livros nos quais
se baseará para a elaboração das atividades que serão desenvolvidas em sala, como também o
arcabouço teórico que subsidia os conceitos utilizados por ele a serem ensinados aos alunos.
5 CONCLUSÃO
Diante do exposto, a análise em torno do planejamento mostrou que o professor (a) ao
elaborar a introdução de seu planejamento diz fazer uso dos parâmetros curriculares nacionais
e das diretrizes constantes na Secretaria Municipal de Ensino de Florianópolis, ratificados
pelas propostas curriculares de Florianópolis. No entanto, ao lermos Gomes (2007), percebe-
mos que o planejamento do professor (a) apresenta apenas alguns recortes dessas diretrizes,
sem maiores aprofundamentos teóricos específicos. Em função disso, o professor (a) não leva
em consideração as o papel do outro e da interação com o outro no processo de construção de
práticas, discursos e concepções letradas (ROJO, 2001).
Outro fator resultante da análise do documento foi verificar que o que se fala em teoria
sobre o ensino de LP, ainda tem muito a ser pensado e desenvolvido na prática. Observamos
que o planejamento não está em total acordo com a literatura apresentada neste trabalho, pois
encontramos um documento que reflete falhas, as quais julgamos próprias do sistema que a
Disciplina de Língua Portuguesa está inserida e é orientada.
6 REFERÊNCIAS
BAKHTIN, M. M. Os gêneros do discurso. In: _____. Estética da criação verbal. SP: Mar-
tins Fontes, 1992 (1979) [1952-53]. pp. 277-326.
BRASIL. SEF. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do Ensino Funda-
mental: língua portuguesa. Linguagens, códigos e suas tecnologias. / Secretaria de Educação
Média e Tecnológica Brasília: MEC; SEMTEC, 2002.
BRITTO, L. P. A sombra do caos: ensino de língua vs. tradição gramatical. Campinas: Mer-
cado de Letras; Associação de Leitura do Brasil, 2002.
_____. (Org). O texto na sala de aula. 4ª. ed. São Paulo, Ática, 2006.
______. Gêneros de discurso/ texto como objeto de ensino de línguas: um retorno ao tri-
vium? In: [Re]discutir texto, gênero e discurso/ Inês Signorini (Org.) Anna Cristina Bentes [
et. All]. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo
RESUMO
Este texto tem como objetivo apresentar as implicações e abordagens referentes aos eventos
de letramento e práticas de letramento que são conceitos específicos dentro do quadro teórico
dos novos estudos de letramento. Diversos teóricos embasam discussões sobre os novos
estudos de letramento, tais como: Heath (1983), Street (1985), Kalman (1999), Gee (1999),
Soares (2003), Kleiman (2005), entre outros. Pretende-se apresentar como foram abordados
tais conceitos a partir das leituras realizadas e dos seminários apresentados na disciplina
“Usos Sociais da Escrita- Letramento e Alfabetismo” do programa de Pós-Graduação em
Linguística na UFSC, ministrada pelo professor Dr. Marcos Baltar, da qual participei como
estudante no 1º semestre de 2011. O esclarecimento e a tomada de consciência dos conceitos
e da história de eventos de letramento e de práticas de letramento podem vir a contribuir
substancialmente para tornar o processo de alfabetização bem como o ensino da língua
portuguesa mais significativos aos próprios educadores.
Palavras-chave:
Letramento. Eventos de letramento. Práticas de letramento.
ABSTRACT
The aim of this work is to present the implications and approaches referring to events and
practices of literacy, which are specific concepts in the theoretical scene of the new studies
about literacy. Many researchers support the ideas about the studies on literacy, such as:
Street (1985), Heath (1983), Kalman (1999), Gee (1999), Soares (2003), Kleiman (2005), and
others. It is intended to present the way such concepts were developed based on the readings
and the seminars presented in the subject “Social Uses of Writing – Literacy and
Alphabetism”, in the Linguistics Post-Graduate Programme, from UFSC, taught by Prof. Dr.
Marcos Baltar, which I attended as student in the 1º semester 2011. The explanation and the
comprehension of the concepts and the history of events and practices of literacy can
substantially contribute to make the literacy process as well as the Portuguese language
teaching more expressive and meaningful to the educators.
Keywords:
Literacy. Events of Literacy. Practices of literacy.
1 INTRODUÇÃO
Desde o início da disciplina “Usos Sociais da Escrita- Letramento e Alfabetismo”, a
investigação sobre Novos Estudos de Letramento (NLS) dominou as discussões acadêmicas.
No entanto, percebi que mesmo após a leitura dos textos indicados e solicitados pelo
professor, os estudantes (inclusive eu), quando indagados sobre tais conceitos, inicialmente se
1
Mestranda do Programa de Pós Graduação em Estudos da Tradução na UFSC; e-mail:
andressa21@yahoo.com.br.
2
confundiam para explicá-los. A partir desta observação surgiu a hipótese de que tais
dificuldades ocorressem a partir do valor semântico de cada palavra isoladamente.
Letramento, por exemplo, não é uma palavra claramente definida nos dicionários, ainda que
nas edições mais recentes se encontre o verbete, segundo dicionário eletrônico Houaiss (2007)
como:
Já a palavra prática, segundo o dicionário Aurélio (2009, p.1614) tem uma gama de
definições das quais podemos citar:
A palavra evento, por sua vez, no dicionário Aurélio (2009, p.848), possui as
seguintes definições:
processo dialógico de aprendizado entre educandos e educadores. Propõe que a palavra deve
servir para leitura do mundo, a leitura crítica da palavra deve ser transformadora de mundos.
Eis aí sua contribuição para letramento na medida em que aproxima a alfabetização como
algo que deve ser mediado pelo mundo, pelo envolvimento social dos sujeitos envolvidos no
processo. Kleiman resgata a contribuição de Freire para o Letramento no texto que segue.
Ângela Kleiman é uma referência em pesquisa sobre letramento. Para esta pesquisadora,
o conceito de letramento a partir de uma perspectiva histórica foi incitado por Paulo Freire
quando da utilização do termo “alfabetização” com um sentido próximo ao que se tem
atualmente sobre letramento, para designar uma prática sociocultural do uso da língua escrita
que se transforma ao longo do tempo. Pois, a relação das pessoas com a escrita se transformou
na medida em que esta foi considerada direito de todos e que a tecnologia tem dado suporte a
seus usos.
Tal mudança se faz sentir na escola, pois se espera que a criança escreva com sentido
no caderno e no computador e também saiba fazer uso da Internet. Logo, a partir da década de
80 vários pesquisadores precisavam de um termo que abarcasse esses aspectos sócio-
históricos do uso da escrita. Aí, então, esclarece Kleiman, surge o termo letramento para se
referir ao conjunto de práticas de uso da escrita que além de incluir as práticas escolares vai
além delas.
Então, “Letramento” é um conceito que vai além do usado na escola, está presente no
cotidiano, já que as paisagens estão permeadas pela escrita através de anúncios, cartazes,
legendas de transporte urbano. Evidenciando, deste modo, os múltiplos espaços que a escrita
ocupa na sociedade. Logo, ainda segundo Kleiman (2005), o conceito de letramento surge
como uma forma de explicar o impacto da escrita em todas as esferas de atividades e não
somente nas atividades escolares. Este conceito, porém, já entrou no discurso escolar através
de documentos como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), os que discutem currículo
no país. Outra pesquisadora que podemos citar como referência neste assunto é Magda
Soares.
Soares (2003) define letramento como um processo distinto de alfabetização; no
entanto, ressalta que a alfabetização e o letramento são interdependentes e indissociáveis. A
alfabetização é definida como a aquisição da tecnologia da escrita e o letramento, a
participação em práticas sociais de escrita. A alfabetização, porém, não precede e nem é pré-
requisito para o letramento visto que um analfabeto pode ter certo nível de letramento ao fazer
uso da leitura e da escrita através de outros já alfabetizados. Mas acrescenta que o uso efetivo
e competente da tecnologia da escrita está fortemente atrelado ao letramento, que implica
5
habilidades como: ler e escrever para atingir diferentes objetivos, interpretar e produzir
diversos tipos e gêneros textuais, orientar-se pelos protocolos de leitura, saber usar a escrita
para encontrar ou fornecer informações e conhecimentos, ter interesse e prazer em ler e
escrever.
A partir das colocações sobre o conceito de letramento dentro dos NLS, passa-se a
desenvolver, então, os conceitos de eventos de letramento e práticas de letramento.
3 EVENTOS DE LETRAMENTO
Stromquist (2001) expõe que o conceito de “eventos de letramento” foi proposto por
Heath (1982) em referência às ocasiões concretas nas quais a língua escrita está vinculada à
natureza das intervenções dos participantes, suas estratégias e seus processos interpretativos.
Citaremos a seguir definições de outros autores para compor este entendimento.
Os eventos de letramento são definidos por Street (2003) como algo que permite aos
pesquisadores e aos demais profissionais da educação, focalizar uma situação específica em
que as coisas estejam acontecendo, em que se possa vê-las. Um evento clássico de letramento
seria aquele em que se pode visualizar um acontecimento que envolva a leitura e/ou a escrita e
do qual é possível determinar as suas características. Um exemplo como o evento de
letramento acadêmico, e outros tais: pegar um ônibus, sentar numa barbearia, negociar um
caminho, etc. A ressalva que faz é do emprego deste conceito de maneira isolada e descritiva.
Tal atitude não contribui do ponto de vista antropológico sobre as formas que os significados
são construídos. Pois, ainda segundo este autor existem convenções e suposições subjacentes
ao redor do evento de letramento, que fazem com que ele funcione. Já em Gee encontraremos
a seguinte definição para eventos de letramento:
“(...) qualquer evento que envolva documento impresso, como a negociação em
grupo de significado em textos escritos (e.g. um anúncio), „procura guiada‟ em
livros de referência, registros de escritos familiares na Bíblia e muitos outros tipos
de situações em que livros ou outros materiais escritos são utilizados para a
interpretação e interação.” (GEE,1994, p.64)
Já Kleiman (2005) define eventos de letramento de maneira bem didática. Expõe que os
eventos de letramento ocorrem quando uma ou mais pessoas são mobilizadas para uma
determinada situação a partir de textos escritos. Cita como exemplo quando um grupo procura
chegar a um determinado endereço (um dirige, outro lê o mapa, outro lê as placas), ou ainda,
quando alguém que não sabe escrever dita uma receita para outra pessoa que sabe escrever.
E Hamilton (2000) procura deixar visível o conceito quando apresenta os agentes
envolvidos nos eventos de letramento, tais como: participantes, ambientes, artefatos e
6
atividades. Deste modo os participantes são as pessoas que podem ser vistas interagindo com
textos escritos. As circunstâncias físicas imediatas em que a interação se dá ocorrem nos
ambientes. Os artefatos incluem os textos e as demais ferramentas materiais envolvidas na
interação e as atividades são as ações realizadas pelos participantes no evento.
Assim, a partir do que expõe os diversos autores citados é possível definir os eventos de
letramento como todas as atividades que envolvem a leitura e escrita de modo visível na
sociedade. A seguir será definido o conceito de práticas de letramento.
4 PRÁTICAS DE LETRAMENTO
As práticas de letramento são definidas segundo Street (2003) como um conceito
mais amplo que abarca as categorias de natureza cultural e social de um evento de letramento.
A ampliação resulta do fato do que se trazem para um evento de letramento conceitos,
modelos sociais relacionados à natureza que o evento possa ter que o fazem funcionar, e que
lhe dão significado. Eis aí a importância da pesquisa etnográfica quando se faz pesquisas que
envolvam eventos de letramento, pois não basta apenas observá-los; é preciso entender a
lógica de funcionamento deles e, para isso, é necessário falar com as pessoas, ouvi-las e
associar a experiência a outras coisas que possam também estar fazendo.
Ao discutir a leitura de jornais com adolescentes da área urbana nos Estados Unidos,
Heath constatou que grande parte da atividade deles não era considerada em suas
mentes como sendo letramento, a tal ponto que uma pesquisa superficial teria
perdido o significado de suas reais práticas de letramento, e levado quem sabe a
rotular aqueles adolescentes como sendo não-leitores, ou até mesmo a insultá-los
chamando-os de “iletrados”, como aconteceu em grande parte da cobertura dada
pela imprensa ao focalizar aquela área. (STREET, 2003, p.08).
propósitos, relação de poder. E também, e por fim, as rotinas que facilitam ou regulam as
ações, ou seja, quem irá ou não engajar-se nas atividades.
Os conceitos de eventos de letramento e as práticas de letramentos podem ser analisados
a partir de modelos de letramento. Esses modelos foram apresentados por autores como
Hamilton (2000) e Street (2003) como: modelo autônomo de letramento e modelo ideológico
de letramento.
O primeiro seria aquele em que concebe o letrado como erudito/escolarizado, e também
em que a escrita é autônoma, ou seja, existe independente de determinantes sociais, culturais
ou históricos. Já o modelo ideológico entende a escrita a partir de seu uso social e aí não
concebe o letrado como o erudito. Conceitua a escrita a partir dos determinantes históricos ou
socioculturais. A análise apresentada sobre os conceitos de eventos de letramento e práticas
de letramento neste artigo pende para o letramento ideológico.
No entanto, algumas pesquisas vislumbram uma aparente dicotomia entre os modelos
autônomo e ideológico de letramento. Na medida em que um envolve o outro e vice-versa.
Então é necessário deixar claro que as implicações e exemplificação de cada modelo de
letramento adotado não será foco de discussão e problematização deste estudo.
Para finalizar estes dois importantes conceitos (eventos de letramento e práticas de
letramento) dentro do NLS, Hamilton (2000) propõe a metáfora de um iceberg refletido na
água, onde, resumidamente, a parte de cima desta imagem seriam os eventos de letramento, a
parte visível da leitura e da escrita. E a parte submersa deste iceberg (não visível) seriam as
práticas de letramento que implicam os modos de vida, os valores, as ideologias que
permeiam a sociedade.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
É muito importante a reflexão sobre a relevância da discussão sobre os conceitos
eventos de letramento e práticas de letramento dentro do quadro teórico dos Novos Estudos de
Letramento. E é somente a partir deste quadro teórico que eles são compreendidos, uma vez
que não têm relação direta com os conceitos tomados de forma isolada, como se constatou
inicialmente ao buscar o significado deles em dicionários.
Tais conceitos evocam antes a noção de letramento que visa discutir o uso social da
escrita. E discutir a escrita a partir de uma noção social faz com que se discuta também o
papel da escolarização, da alfabetização, da aquisição da aprendizagem, tornando este
processo de ensino melhor contextualizado. Pois, a Escola é uma agência social de letramento
e está incluída dentro de uma dinâmica maior de organização social. A sociedade moderna se
8
caracteriza, sobretudo por ser uma sociedade grafocêntrica, ou seja, dominada pela escrita nas
mais diferentes formas e manifestações, independentemente dos modelos de letramento que
adotam.
Logo, os autores apresentados no decorrer deste artigo apontam em suas pesquisas que
a escrita está ou deve estar diretamente relacionada ao contexto social, histórico e de
aprendizagem dos sujeitos. Logo, trazer à tona a conceituação de eventos de letramento
(atividades em que a escrita está presente) e de práticas de letramento (a forma como
diferentes culturas entendem este processo da escrita, valorizações, ideologias) é primordial
para desenvolver a investigação em torno da escrita visando tornar mais significativo o
processo de alfabetização e o ensino da língua materna para os educadores e, sobretudo aos
educandos. E é a partir deste contexto que entra a contribuição teoria e prática dos chamados
gêneros textuais. Mas, esta é uma análise que merece ser desenvolvida num próximo estudo.
6 REFERÊNCIAS
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo:
Cortez, 1987.
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HEATH, Shirley B. "What no bedtime story means: Narrative skills at home and school".
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In: JONES, Marilyn Martin; JONES, Kathryn. Multilingual Literacies: reading and writing
different wordlds. Amsterdam: John Benjamins, 2000.
RESUMO
Palavras-chave:
Pragmática cognitive. Ficção. Simulação. Risco. Tomada de decisão.
ABSTRACT
The definition of “risk” proposes a relation between the possibility of an accident and its
consequences, determined by the perception of the same risk as a cognitive process triggered
in dangerous situations. The expected course of action in such dangerous context would show
itself as compensatory behaviors of safety, situational modifications and dodging or
avoidance, being those some natural human reactions to survival hazards. At the same time,
the definition of “fiction” involves a complex mental process, characterized by suspension of
disbelief, inferential computation, mental simulations, suppositions, intuitions and
probabilities. In this work, we argue that fictional competence or ability is a tool that allows
subjective and analytical computations, aiming to preserve the organism. That would be a
constitutional and inherent faculty of behavior and decision-making in human beings. We also
argue that fictional competence allows the organism to simulate future situations and possible
outcomes, bringing together facts and stories, building narratives and explaining situations
1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras/Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Paraná
(UFPR), vinculado ao grupo de pesquisa Linguagem e Cultura e bolsista da Capes. Possui trabalhos relacionados
à Pragmática e aos fenômenos da comunicação literária; e-mail: ruod_rik@ymail.com.
2
Psicólogo, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Letras/Estudos Linguísticos da Universidade
Federal do Paraná (UFPR), vinculado ao grupo de pesquisa Linguagem e Cultura e bolsista da Capes. Possui
trabalhos relacionados à Pragmática e ao comportamento humano; e-mail: aristeumj@gmail.com.
3
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Letras/Estudos Linguísticos da Universidade Federal do
Paraná (UFPR), vinculado ao grupo de pesquisa Linguagem e Cultura e bolsista da Capes. Possui trabalhos
ligados à Pragmática e à manifestação musical de seres humanos; e-mail: mfbenfatti@yahoo.com.br.
2
and events to itself and to the group. We search for answers and support through the study of
naturalistic, anthropological, psychological, linguistic and communicative sources,
converging on the cognitive pragmatics studies.
Keywords:
Cognitive Pragmatics. Decision-making. Fiction. Risk; Simulation.
1 INTRODUÇÃO
A narrativa ficcional se apresenta como uma fonte de reflexão muito propícia para a
pragmática cognitiva. Algumas características do mundo ficcional têm despertado
ponderações que podem ser centrais para a compreensão ampliada da comunicação
inferencial. Temas como o reconhecimento da intencionalidade do narrador, o processo
interpretativo e o estabelecimento do ato comunicativo intrigam teóricos e motivam diversas
pesquisas em diferentes abordagens. Há, porém, uma questão a qual consideramos que deva
ser tratada primordialmente nestes estudos: o caráter atrator que a ficção exerce sobre os seres
humanos.
O potencial atrativo que a ficção exerce sobre nossa espécie faz com que dediquemos
uma quantidade de tempo considerável de nossas vidas às narrativas sem aparente
compromisso com a realidade, como literatura, mitologia, narrativas orais, cinema, novelas,
teatro, piadas, etc. Uma abordagem que explique esta questão pode elevar o nível do debate
que circunda este assunto e talvez permita vislumbrar uma nova noção sobre problemas que
as áreas que se dedicam aos processos ficcionais até então não se dedicaram a responder.
Portanto, neste texto introdutório, nos lançaremos a algumas hipóteses do porquê de os seres
humanos consumirem abundantemente narrativas ficcionais, mesmo quando diante da
possibilidade que têm de se apegarem à fontes de informações verdadeiras.
Para tanto, apresentaremos algumas considerações que têm sido feitas sobre o papel
que a ficcionalidade exerce na vida humana, numa discussão que emana do processo
evolutivo do nosso desenvolvimento cognitivo em uma abordagem que nos permita
compreender a narrativa ficcional por um viés naturalístico.
O que sugerimos neste trabalho é que um dos possíveis atratores que a ficção exerce
sobre seres humanos é que ela um aparato que possibilita operações cognitivas de simulação
de situações possíveis. Então a competência ficcional se caracteriza como um recurso que
opera pela suspensão da realidade, permitindo que, por exemplo, em situações de risco, diante
da percepção do risco, possamos prever eventuais circunstâncias e seus possíveis resultados.
Deste modo para que na tomada de decisão rumamos à salvaguarda, haja vista a tendência à
3
esquiva que indivíduos aspiram quando em situações que lhes comprometa a integridade,
seguindo na direção da preservação em sua tomada de decisão diante de situações de perigo.
Também discutiremos a idéia de “suspensão voluntária da descrença”, presente na
teoria literária, complementando alguns critérios que esta noção não permite responder.
Ademais, para propormos esta discussão da ficção como um aparato simulador da cognição,
operando por vias da suspensão da realidade, suposições, intuições, abduções e inferências,
nos sustentamos em alguns conceitos que a abordagem da pragmática e as ciências cognitivas
nos têm permitido.
2 A COGNIÇÃO RETÓRICA
Muito embora a retórica nunca possa ser descartada como uma característica da
interação comunicativa, a linguística contemporânea (com sua habilidade de encarar a
linguagem como cálculo) parece ter colaborado para uma derrocada da observação acadêmica
sobre elementos prosódicos. Afinal, tarefa nada fácil é a de se propor ao escrutínio de objetos
que parecem impossibilitar uma observação formal. No caso da retórica, como levar ao
laboratório ou observar diretamente em campo elementos tão sutis como os que fazem a
diferença quando o interesse principal é o de argumentar (e não necessariamente ser realista)?
Isso porque há na argumentação um forte apelo a questões psicológicas que possibilitam um
não comprometimento dos interlocutores com a realidade. De certa forma, argumentar não
implica em estar certo, mas sim em levar aos outros acreditarem nisso. Nesse sentido, a
argumentação parece ser invariavelmente relativa a nossas capacidades pragmáticas, visto que
sempre se situam no campo da aposta comunicativa (SPERBER, 2007). Mesmo em situações
dramáticas, nas quais a argumentação não é apenas uma questão de escolha, as pessoas têm
que tomar decisões baseadas naquilo que suas próprias consciências lhe mandam. Em
julgamentos, por exemplo, por mais que as promotorias públicas se esforcem em acumular
tantas provas quanto forem possíveis, a não ser que o réu assuma a culpa ao longo do
julgamento, condenações sempre podem ser atribuídas injustamente. Não faltam exemplos de
condenações indevidas (inclusive as de execução) que ocorrem porque determinadas
informações cruciais não estavam acessíveis às pessoas durante o julgamento.
Exposto simplesmente dessa maneira, não é difícil de notarmos porque faltam
adeptos da idéia de que a capacidade retórica seja correlativa à capacidade à linguagem e que
ambas as características tenham co-evoluído. O aparente descompromisso da retórica com a
realidade é um grande problema para qualquer que pretenda assumir que tal capacidade possui
uma história evolutiva, visto que tal característica é quase um contra-senso dentro da idéia de
4
adaptação biológica. Afinal, qual é o benefício de uma capacidade cognitiva que pode levar
tribunais a condenarem pessoas honestas e inocentes? No entanto, a despeito disso, a
pragmática tem sido terreno fértil para o desenvolvimento da ideia de que aspectos retóricos
envolvidos na efetivação da comunicação são elementos intrínsecos ao processamento de
linguagem. Isso porque elementos retóricos podem ser descritos dentro do âmbito das
informações contextuais inerentes à manifestação de linguagem. Neste sentido, o papel
desempenhado pelo processamento de informações contextuais pode ser observado como um
dos principais debates dentro da discussão semântico-pragmático.
Foi Grice quem primeiramente propôs que a sensibilidade ao contexto era inerente à
atividade conversacional. No entanto, muito do empenho de tal filósofo recaiu sobre a
aceitação generalizada de que a sensibilidade aos contextos é uma característica secundária
aos processamentos estruturais. Inferir as coisas do mundo é, segundo este viés, decorrente da
percepção de que a estrutura processada apresenta alguma característica defectiva. Assim, o
princípio cooperativo (GRICE, 1975) é originalmente concebido como um conhecimento
social tácito do qual decorreriam as máximas conversacionais de Grice. Para a filosofia da
conversação deste autor, cooperar comunicativamente equivale a reconhecer os propósitos
comunicativos nos quais os indivíduos estão imersos. Especificamente no caso da retórica
ficcional, tal postura demanda que os interlocutores operem no limite da cooperação, visto
que a ficção requer deliberadamente a inobservância de uma possível máxima conversacional
de qualidade. Afinal, a ficção não deve ser compreendida com a manifestação estrita do que
um autor considera ser verdade. O engajamento em atividades ficcionais por ambas as parte
de uma interlocução não requer que as pessoas acreditem na verdade da história narrada.
Tooby e Cosmides (2001) propõem que o engajamento em atividades ficcionais pode
ter uma funcionalidade adaptativa que reside na ampliação das perspectivas frente às
possíveis demandas cotidianas. Nossa proposta de observação da retórica como fruto de
evolução biológica vai na mesma direção apontada por estes autores, mas para tanto, é
necessário que exploremos uma alternativa ao modelo tradicional de sensibilidade aos
contextos corroborada na proposta da pragmática de Grice. Desta forma, Sperber e Wilson
(1995) propõem um modelo alternativo de comunicação humana no qual a sensibilidade aos
contextos não é secundária aos processamentos estruturais, muito pelo contrário, é concebida
como orientadora dos processamentos estruturais. Para estes autores, a comunicação não é
apenas cooperativa, visto que antes ela é concebida como coordenada. Assim, se
tradicionalmente se aceita que a linguagem gera linguagem, a abordagem cognitiva de
Sperber e Wilson sugere que o gatilho da linguagem é interativo. A comunicação é descrita
5
como um sistema dinâmico e emergente, fruto da percepção individual dos contextos em que
indivíduos estão imersos. Ou seja, a linguagem não é tida como um sistema autônomo, mas
sim uma capacidade que emerge de vários sistemas cognitivos especializados e selecionados
devido às funcionalidades criativas decorrentes da orientação inferencial da cognição humana.
Desta forma, a sensibilidade ao contexto e o engajamento ficcional podem ser
descritos como atividades adaptativas não porque estamos pré-programados a tal, mas sim
porque tendemos a perceber tais atividades como potencialmente relevantes na tarefa de
derivar informações oriundas do mundo. Quer dizer, conceber um viés cognitivo para a
comunicação humana demanda um esforço em compreendê-la como um esforço individual
para a promoção coletiva e coordenada de determinados comportamentos em detrimento de
outros. Ou seja, requer compreender a racionalidade adjacente à cognição comunicativa como
uma competência social (MERCIER e SPERBER, 2011). Segundo este viés, os benefícios
individuais que obtemos da nossa racionalidade são efeitos secundários da principal função de
tal capacidade: a persuasão. Do ponto de vista cognitivo, transmissões de informação
persuasivas são onerosas, afinal, nunca podemos descartar a participação de um interlocutor
trapaceiro em nossas conversações diárias. Aliás, é exatamente essa possibilidade de trapaça
por meio da linguagem que parece permear as interações comunicativas. A razão, vista por
esta lente, não é uma capacidade individual que apenas necessita de um período de maturação,
visto que as interações entre seres humanos é que são concebidas como os gatilhos do
comportamento racional.
Parece inegável que linguagem e racionalidade possuem uma relação intrínseca.
Quando falamos, não apenas transmitimos informações, mas fazemos isso com a intenção de
promover determinados comportamentos em detrimento de outros possíveis. Uma espécie
comunicativa como a nossa tem de arcar as consequências de tal capacidade de manipulação
do comportamento alheio. Os mecanismos cognitivos envolvidos na efetivação da
comunicação não podem apenas se contentarem com as informações contidas nas estruturas
informativas. A detecção da trapaça linguística, por exemplo, vai muito além da decodificação
linguística e depende fortemente de fontes de informações que extrapolam o discurso
linguístico. Este aspecto demonstra que a cooperação comunicativa não é um mero altruísmo,
mas sim uma coordenação de atividades entre indivíduos que argumentam e que sabem que
assim fazem os outros interlocutores do mundo. Tal característica permeia a comunicação e
deixa marcas indeléveis, visto que é na argumentação que podemos observar mais nitidamente
outra característica comunicativa: a criatividade. Neste sentido, inferir informações
potencialmente relevantes é uma característica individual de lidar com estruturas do mundo e
6
Mas esta percepção de risco, como dissemos, não é processada de forma objetiva; ela ocorre
de acordo com vários fatores particulares e subjetivos do indivíduo. Uma das definições mais
abrangentes sobre percepção de risco lida com a forma como os indivíduos em geral analisam
o perigo, geralmente de forma intuitiva (SLOVIC, 1987). A decisão sobre o nível de ameaça
ou perigo presente no ambiente leva então o indivíduo a operar neste meio, elevando ou
diminuindo o perigo real presente. Como decorrência natural da necessidade de auto-
preservação, organismos vivos procuram evitar os riscos ou situações perigosas, já que isso
ameaça em maior ou menor grau a sua sobrevivência e capacidade de reprodução. Trabalhos
recentes de pesquisadores evolucionistas (ERMER et al., 2008, p.106) mostram que mesmo as
decisões que parecem irracionais - se considerados apenas padrões matemáticos de ganho-
perda - são ecologicamente ou contextualmente racionais. Ou seja, tais decisões são
produzidas por um sistema computacional construído para adquirir performance adaptativa
em tarefas que foram recorrentes no processo de evolução humana.
O comportamento de evitar ou assumir riscos é profundamente influenciado pelo
histórico de comportamentos do organismo em questão: um comportamento que levou a uma
consequência desastrosa ou pelo menos indesejável tende a ser evitado no futuro; de forma
similar, uma situação ambiental que gerou um desastre ou consequência indesejável também
tende a ser evitada pelo indivíduo. Tais concepções se fundam em conceitos arraigados na
Psicologia Social Cognitiva, remetendo à proposta de Lewin (1935), de que a investigação da
percepção que as pessoas possuem do mundo à sua volta permite uma melhor compreensão
do seu comportamento do que as descrições objetivas dos estímulos ambientais; na mesma
linha clássica de investigação, Allport, Vermon e Lindzey (1960) já apontavam que as raízes
do comportamento social estão relacionadas com as percepções individuais presentes ou até
mesmo com a imaginação das suas presenças no ambiente. Dessa forma, comportamento de
risco e tomada de decisão não são efetuados apenas com base nos cálculos objetivos frente à
situação, mas influenciados por toda sua bagabem histórica e cultural. A tomada de decisão no
ser humano é um processo guiado pelo risco presente na ação em questão. Na concepção
tradicional que predominou até a segunda metade do século vinte, os processos de avaliação
do risco eram atribuídos apenas a sistemas peritos ou científicos, sendo que percepção
individual ou do grupo “leigo” era considerada irrelevante (KOLLURU et al. 1996).
Atualmente, tanto a avaliação científica como a percepção do indivíduo leigo são
consideradas como partes componentes da avaliação de risco.
Escolhemos falar em percepção do risco porque acreditamos nas individualidades do
aparelho sensório particular de cada indivíduo. Um indivíduo que seja daltônico, por exemplo,
8
possui uma particularidade no seu aparelho sensório (não distingue cores) que o leva a ter
uma percepção diferente do mundo em relação àqueles que não são daltônicos; se o indivíduo
não reconhece a cor vermelha – normalmente associada com "perigo" em uma sinalização -
ele pode estar consideravelmente mais exposto aos riscos do que uma pessoa que reconhece
esta cor e estaria atenta aos perigos por causa da identificação da cor. Este é apenas um
exemplo para ilustrar como a percepção de risco varia de indivíduo para indivíduo, em acordo
com os dados sensoriais que ele tem à disposição. O processamento diferenciado dos dados
sensoriais leva, consequentemente à uma percepção e linha de ação também diferenciadas, de
indivíduo para indivíduo.
Os estudos sobre risco também passaram a focar atualmente a mudança de
comportamento frente ao risco, e a emergência dos processos de tomada de decisão frente à
situação de ameaça. O estudo desenvolvido por Ross e Ferreira-Pinto (2000) diz respeito à
situação de risco, descrevendo a situação na qual o comportamento de risco ocorre e que pode
iniciar ou promover o envolvimento direto com o perigo. Por exemplo, uma situação de risco
para prática de sexo inseguro pode incluir o uso de drogas, pressão de amigos, colegas e
conhecidos, ambiente pouco conhecido, falta de preservativos, falta de dinheiro, isolamento
ou estimulação; cada uma das variáveis descritas na situação de risco pode levar ao
comportamento de risco de sexo inseguro, que promove o envolvimento direto com o perigo
das doenças sexualmente transmissíveis. Tais fatores apontam para a importância fundamental
do contexto para o engajamento em comportamentos de risco. Lima (1998) indica que é
comum que comportamentos de risco variem de contexto para contexto, ou seja: o mesmo
indivíduo pode evitar ou adotar um mesmo comportamento de risco, dependendo da situação
ambiental. Adicionalmente, mesmo na permanência da situação ambiental, o indivíduo pode
adotar um comportamento de risco anteriormente evitado. Tal dado indica que a variação no
comportamento de risco e tomada de decisão pode ser explicada pelo contexto – outras
pessoas presentes, sugestões e pressões contextuais, uso de drogas, afetos gerados pelo
contexto e pelo passado recente, por exemplo. Assim, as narrativas que o indivíduo constrói
ou replica ao longo de sua vida também podem ser importante fator na tomada de decisão.
Pesquisas como a de Fischer e Guimarães (2002), apontam para o fato de que a percepção
sobre as fontes de risco do indivíduo submetido ao processo de tomada de decisão tende a
convergir com a análise de risco dos especialistas. Entretanto, o indivíduo não consegue
conceituar objetivamente o risco, que se caracteriza como difuso ou misturado com outras
fontes de risco. Além disso, na situação real (e não na hipotética prevista pelo especialista),
outros fatores e até mesmo outros riscos emergentes podem interferir na tomada de decisão.
9
A norma básica para se lidar com uma obra de ficção é a seguinte: o leitor precisa
aceitar tacitamente um acordo ficcional, que Coleridge chamou de “suspensão da
descrença”. O leitor tem de saber que o que está sendo narrado é uma história
imaginária, mas nem por isto deve pensar que o escritor está contando mentiras. De
acordo com John Searle, o autor simplesmente finge dizer a verdade. Aceitamos o
acordo ficcional e fingimos que o que é narrado de fato aconteceu (ECO, 1994, p.
81).
11
adequado na escolha entre parentes e não parentes, custo nas relações de adoção entre órfãos e
padrastos e compatibilidade da identidade cultural para seleção de companheiro.
No caso de situações indesejadas, com finais trágicos, por exemplo, tendemos a
imaginar como teria sido nosso passado se aquele evento não tivesse ocorrido, como seria
nossa vida presente e, ainda, imaginar como poderia ser um futuro diferente, não fosse as
conseqüências da tal acontecimento. Isto nos remete ao que expusemos anteriormente, ao
explicarmos como o comportamento de evitar ou assumir riscos é profundamente influenciado
pelo histórico de comportamentos do organismo em questão, ou seja, uma vez que alguma
conduta levou este organismo a uma consequência desastrosa ou indesejável, ela tende a ser
evitado no futuro; situações ambientais, de forma similar à tomada de decisão, quando nos
oferecem condições de desastre ou resultado de perda, também sinalizam que devem ser
evitadas pelo indivíduo. Tais situações podem ser percebidas, evitadas ou, no mínimo,
inferidas pelo indivíduo de pelo menos três maneiras, para evitar o risco: i) em algum
momento já ter sido exposto a alguma situação de risco semelhante; ii) ter presenciado, ou
visto, alguma situação em que um outro indivíduo sofreu danos; iii) ter recebido de outra
pessoa instruções sobre situações que lhe possa causar danos.
Este terceiro caso é que temos identificado como manifesta nas narrativas ficcionais,
porquanto seres humanos representam as possíveis vivências humanas a fim de representar a
outros seres humanos quais seriam os “enredos” pelos quais a vida pode tomar rumo. Estas
representações possibilitam, então, com que indivíduos infiram as melhores alternativas para
as tomadas de decisão, já que dispõem nas narrativas uma espécie de “manual de instruções”,
que pode ser recuperado de suas memórias.
Um ponto de partida útil para o levantamento desses modelos é observar que para a
maioria das pessoas na maioria das culturas humanas, a ficção é de grande interesse em
virtude de suas propriedades miméticas. Os seres humanos vivem em um "nicho cognitivo" na
medida em que, mais do que qualquer outra espécie, dependem de informações,
especialmente em informações fornecidas por outros seres humanos, e em informações sobre
outros seres humanos. Como corrobora Pinker (2008, p. 108), apesar do caráter abstrato da
informação, ela tende a ser relevante para a identificação do passado e futuras relações causais
de itens, estados cerebrais ou imagens que a contenham. Afinal, se a informação nunca fosse
transmitida com alguma fidelidade entre os indivíduos o conhecimento jamais se acumularia
numa sociedade, e a própria linguagem seria inútil. Esta dependência significa que são
cruciais as disposições mentais que ajudam a manter representações ricas e flexíveis sobre os
outros, seus objetivos e de seus estados mentais.
13
4
Segundo Sperber e Wilson (2001, p. 80), o ambiente cognitivo do total de um indivíduo é uma função do seu
ambiente físico e das suas capacidades cognitivas.
14
guiou ao que aqui denominamos aparato simulador. Nos termos de Eco (1994, p. 58), o
processo de fazer previsões constitui um aspecto emocional necessário da leitura que coloca
em jogo esperanças e medos, bem como a tensão resultante de nossa identificação com o
destino das personagens. Cremos que seja difícil negar tais esperanças e medos quando os
próprios personagens de uma narrativa são protagonizados por nós em situações que nos
comprometem a sobrevivência.
Portanto, numa perspectiva epidemiológica, as narrativas são distribuídas
culturalmente sobrecarregadas de elementos ecológicos, mas estes elementos podem ser
manipulados psicologicamente por indivíduos que alteram seus enredos conforme seus
ambientes cognitivos, seus valores e suas crenças. Nesta direção, podemos explicar por vias
pragmáticas como é que as narrativas se estabelecem como um artefato humano, mas também
como o humano é alimentado pelas narrativas a que é exposto.
Cremos que seja coerente a sugestão de que tendemos à criação e apreciação
ficcional porque ao invertamos narrativas com alguma finalidade retórica preventiva,
admitido o que até aqui temos proposto que: narrativas ficcionais são protagonizadas por seres
humanos5 e suas decisões diante das situações que se lhes apresentaram; a ficcionalidade é
uma espécie de registro de possíveis situações que aconteceram, acontecem ou acontecerão
com as pessoas, adquirindo um caráter preventivo na tomada de decisão; são compartilhadas e
podem assumir um nível epidemiológico de compartilhamento entre o indivíduo e seus pares.
5 CONSIDERAÇÕES
A comunicação das narrativas ficcionais talvez ainda não esteja muito perto de ser
explicada em sua totalidade, mas cremos que com esta abordagem aproximativa que o viés
cognitivo permite, do processo ficcional como um aparato simulador operando por vias
inferenciais, pode ser uma alternativa profícua para as questões que são levantadas ao
falarmos da ficcionalidade como um atrator para os seres humanos.
Acreditamos ter esclarecido neste trabalho como a ficção pode ser um relevante
recurso de preservação da espécie, por apresentar um repertório acessível de situações
possíveis que podem guiar o indivíduo na tomada de decisão. Porém, em suma, o que fica
claro é que tanto a percepção do risco, a tomada de decisão, a narrativa ficcional e os
processos inferências que guiam o indivíduo na direção da modificação do ambiente físico são
guiados pela sensibilidade aos contextos e por suas interações.
5
Mesmo nas fábulas, caracterizadas por serem protagonizadas por animais, as personagens são animadas e
aludem a seres humanos por recursos antropomórficos.
16
6 REFERÊNCIAS
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manual. Boston, MA: Houghton Miffin Co., 1960.
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WILDE, Gerald J. S. O limite aceitável de risco: uma nova Psicologia sobre segurança e
saúde. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo
RESUMO
O ensino de Língua Portuguesa deve ser pautado por práticas condizentes com a realidade do
aluno, sempre buscando a criticidade e a formação de cidadãos conscientes de seus deveres
para com a sociedade. Para isso, se faz necessário trabalhar os mais diversos gêneros na esfera
escolar. Além de produzir textos escritos, a escola deve, também, trabalhar o gênero oral com
seus alunos a fim de que possam comunicar-se de forma mais eficiente e em várias situações,
fazendo com que eles se apropriem deste gênero tão pouco trabalhado. Cabe ao professor
desenvolver metodologias que mostre ao alunado sua possibilidade de falar e se fazer ouvir.
Este trabalho tem por finalidade, nos moldes das sequências didáticas propostas por
Schneuwly e Dolz, apresentar uma sequência didático-metodológica de trabalho com gêneros
orais nas aulas de Língua Portuguesa do Ensino Médio. A proposta é trabalhar com debate,
apresentando aos alunos a argumentação e contra-argumentação. É necessário ressaltar, no
entanto, que este artigo não visa comprovar a eficiência da sequência proposta realizando-a
em sala de aula, apenas apresentar uma metodologia possível para que o trabalho com gêneros
orais na esfera escolar aconteça de forma efetiva, eficiente e pautada nas práticas sociais.
Palavras-chave:
Gêneros Discursivos. Gêneros Orais. Sequência Didática. Debate.
ABSTRACT
The teaching of Portuguese language should be guided by practices consistent with the reality
of the student, always seeking the criticality and the formation of citizens aware of their duties
to society. For this, it is necessary to work the most diverse genres in the field school. In
addition to producing written texts, the school must also work the oral genre with their
students so that they can communicate more efficiently and in various situations, so that they
take so little of this genre worked. It is the teacher to develop methodologies that show the
student his or her ability to speak and be heard. This study aims, in the manner of teaching
sequences proposed by Schneuwly and Dolz, present a teaching sequence and method of
working with oral genres in the classes of the Portuguese Language School. The proposal is to
work with the debate, presenting students with the arguments and counter-argument. It should
be noted, however, that this article is not intended to prove the efficiency of the proposed
sequence-performing in the classroom, can only present a methodology for working with oral
genres in the sphere of education happen effectively, efficiently and based on social practices.
Mestranda em Linguística Aplicada. E-mail: paula.isaias@gmail.com
Key-words:
Genres. Oral Genres. Teaching Sequence. Debate.
1
Mestranda em Linguística Aplicada; e-mail: paula.isaias@gmail.com.
2
1 INTRODUÇÃO
O ensino de Língua Portuguesa é alvo de controversas e discussões ao longo dos
anos. Alguns professores ainda utilizam o texto como pretexto para ensinar a gramática
normativa, outros se utilizam de tipologias textuais, pois acreditam que é a melhor forma de
trabalhar o texto como unidade básica do ensino da língua.
Atualmente, o debate sobre o ensino de língua portuguesa acontece permeado por
opiniões e conceitos sobre gêneros discursivos ou textuais. O trabalho com estes gêneros deve
ser privilegiado na escola, mas muitos professores não sabem como fazer, uma vez que
muitos não tiveram formação para trabalhar desta forma.
Os gêneros discursivos podem ser orais, escritos, sendo que ambos devem estar
presentes no dia a dia da escola, no entanto, neste artigo, tratarei da importância do gênero
oral para a formação de um aluno crítico e consciente.
Primeiramente, irei elencar alguns conceitos que permeiam a teoria a respeito de
gêneros, diferenciando-os de tipos textuais, diferença esta que se faz essencial quando se
pensa em uma mudança de atitude na escola.
Após isso, dissertarei sobre os gêneros discursivos e sua configuração nas aulas de
Língua Materna, a forma que eles devem assumir ao entrar no âmbito escolar e o porquê de
serem trabalhados. Ainda pensando em sala de aula, trarei a importância de se trabalhar o
gênero oral, gênero este que fica, às vezes, à margem do ensino de LM.
Por fim, trabalhando o gênero oral, elencarei algumas possibilidades do trabalho
com o debate, uma vez que acredito ser este uma potencialidade para o trabalho com
argumentação em sala de aula, podendo dar novos rumos ao trabalho com oralidade e sendo
significativo para educadores.
2 CONCEITUANDO
O trabalho com gêneros discursivos, ou textuais, tem sido bastante discutido nas
Universidades e tentar conceituá-lo é uma tarefa complexa e que não cabe no momento.
Muitos autores criaram conceitos para gêneros e é a partir destes conceitos que vamos
trabalhar.
Para Bakhtin (2003 [1952/53]), falamos e interagimos por meio de enunciados,
sendo que “cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua
elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados”. Isto significa que a estabilidade
relativa de um gênero permite que a forma seja alterada, sem que a função de determinado
gênero se modifique.
3
Fonte: www.tempuradeangu.blogspot.com
– e nem seria interessante – trabalhar gêneros conhecidos ou já estudados pelos alunos. Por
isso a necessidade de conhecer seu aluno, sua realidade, o que ele sabe e o que ele ainda não
estudou são tão importantes no processo de ensino e aprendizagem.
Trabalhar a função comunicativa do gênero só é possível, no entanto, pois na
escola este é uma variação do gênero de referência. Por exemplo, o gênero notícia faz parte do
processo de ensino/aprendizagem para que os alunos consigam escrever uma notícia ou até
mesmo ler uma notícia em um jornal e saber que gênero é. No entanto, a notícia para o
jornalista tem outra função: é através dela que o profissional irá repassar suas notas,
observações, ponto de vista a respeito do que fora pesquisado.
É preciso atentar, com isso, que o trabalho com gêneros na escola não pode ser
apenas com o motivo de ensinar, é preciso que a prática seja situada, pois somente com
sentido os alunos conseguirão dominar e reconhecer os gêneros que encontrarão no cotidiano.
A criança chega à escola com um bom domínio da oralidade, muito antes de
aprender a ler e escrever, ela recita poemas e conta histórias, mas com o passar dos anos
letivos, o trabalho escolar com a oralidade deixa de ser ponto crucial no processo de ensino,
passando à marginalidade deste processo. No artigo “O oral como texto: como construir um
objeto de ensino” de Schneuwly, Dolz (2004) – com a colaboração de Haller –, os autores
entrevistaram professores a respeito do trabalho com oralidade em sala de aula e 70% dos
destes afirmaram que trabalham a oralidade em sala de aula com leituras em voz alta de textos
escritos. Ou seja, os professores não trabalham a argumentação, por exemplo, apenas a leitura
para que esta se dê de forma mais eficaz.
Isso pode ser explicado de algumas formas: 1) o professor não sabe como
trabalhar a oralidade; 2) o docente trata a oralidade como inferior a escrita, marginalizando
aquela em detrimento desta, dentre outras possíveis explicações.
Para que estas questões sejam minimizadas, os PCNs tratam o trabalho com a
oralidade em sala de aula com bastante cuidado, privilegiando gêneros que façam uso das
práticas de escuta e leitura de textos, prática de produção de textos orais, evidenciando que tal
prática não é ensinar a falar, mas sim desenvolver o domínio dos gêneros que apóiam a
aprendizagem escolar de LP.
Outra questão levantada pelos documentos oficiais é o domínio dos gêneros da
vida pública, como debate, teatro, palestra. Schneuwly e Dolz (ibdem) evidenciam que
algumas profissões exigem o domínio do oral em público, como advogados, políticos, e que é
função da escola auxiliar no preparo destes futuros profissionais, sem deixar de objetivar o
que deve ser ensinado. Não se pode, simplesmente, fazer do espaço escolar um curso de
7
oratória, é preciso que características do oral a ser ensinado sejam bem determinadas, sem
tentar contrapor com a escrita formal, diminuindo a importância daquele.
Bastante importante lembrar-se da necessidade de tornar o ensino significativo e
isso é conseguido, sem dúvidas, com o ensino de gêneros orais. As crianças e adolescentes
precisam tomar para si o direito de fala, precisam conhecer turnos de fala e desenvolver
capacidades argumentativas para que sejam ouvidos e reconhecidos como cidadãos críticos
que são.
Não vamos nos ater a estes passos com mais afinco uma vez que não é o tema
deste trabalho. A intenção foi mostrar que a sequência didática pode ser um aliado na prática
docente, desde que o professor trabalhe com projetos que façam sentido a seu alunado.
Seguindo este raciocínio, a ideia agora é elencar algumas atividades que podem
ser trabalhadas em sala de aula a fim de priorizar os gêneros argumentativos, em especial, o
debate.
A mídia, em geral, principalmente em períodos eleitoreiros, usa dos debates com a
finalidade de mostrar á população as ideias e valores de cada candidato. Esta é a visão que a
imprensa quer passar, no entanto, sabemos que não é bem assim. Um exemplo claro disso foi
o debate entre os, então, presidenciáveis Lula e Collor, em 1989. A imprensa, como um todo,
reprisou o debate por inúmeros dias, mas editando-o, colocando as melhores partes do Collor
e enfraquecendo a figura do candidato petista. Infelizmente, este é o modelo de debate que
nossos alunos têm. Um debate belicoso, em que adversários não discutem apenas pontos
controversos, mas sim tentam ridicularizar o oponente de toda forma.
É preciso que nós, professores, apresentemos aos nossos alunos outra forma de
debater. Uma forma que valorize as opiniões de cada um, mesmo que contrárias, e que
fortaleçam seus argumentos e auxiliando-os na criação de tais argumentos.
Uma das potencialidades do trabalho com o debate em sala de aula é este: criar e
significar os argumentos de cada aluno. Por meio destes argumentos, os alunos conseguirão
expressar os valores e regras sociais que orientam o comportamento de cada um.
O objeto do debate é sempre uma questão social controversa, em que diferentes
opiniões são elencadas e todos, juntos, buscam por uma solução coletiva. Outra
potencialidade: a tentativa de encontrar uma solução faz com que os alunos escutem seus
oponentes, apreendam seus argumentos e ressignifiquem suas identidades e valores.
Cabe ao professor mostrar a seus alunos, por meio de um projeto com debate, que
nossas opiniões podem mudar e que nem sempre opiniões diferentes são contraditórias, basta
achar um meio termo para que se consiga vislumbrar a solução.
O trabalho com a argumentação é de suma importância na escola. Por meio dela,
nossos alunos conseguirão ser mais incisivos em seus pontos de vista, sem deixarem-se levar
por ideologias sem sentido, sendo passíveis de mudança de opinião. Este trabalho oral
auxiliará, também, na produção de textos escritos, uma vez que, ao preparar o debate, os
alunos irão se posicionar, ouvir outras opiniões e irão organizar suas ideias a fim de
convencerem o oponente.
9
Além de todo esse potencial elencado, o debate na escola serve, também, para
conscientizar criticamente nossos alunos. Através de temas sociais controversos, eles irão
pesquisar e tomar posições, sendo assim, é importante debater assuntos que façam nossos
alunos crescerem enquanto cidadãos, discussões sobre namoro na escola, por exemplo, não
trará ressignificação de identidade. Os professores encontram aparatos teóricos bastante
interessantes nos temas transversais propostos pelos PCNs.
É preciso debater criticamente na escola, orientar que os alunos podem mudar de
opinião, auxiliar no processo argumentativo de cada um e trabalhar a consciência das crianças
para não aceitarem/acreditarem em tudo que a mídia coloca no ar. Com um trabalho assim,
com certeza, os alunos filtrarão tudo o que recebem e serão mais firmas em seus valores e
crenças, não „caindo na conversa fiada‟ da mídia golpista.
6 CONCLUSÃO
O trabalho com gêneros textuais é de suma importância nas aulas de Língua
Materna. Para que o ensino de linguagem seja realmente efetivo se faz necessário trabalhar
com práticas situadas e que façam sentido aos alunos, que os faça crescer e que tenha
significado real ante ao contexto que vivem.
Pensar as potencialidades de trabalho com um gênero, no caso o debate, é elencar
possibilidades. No entanto, é impossível tratar a educação sem pautar nossas escolhas,
enquanto docentes, no que é significativo para os alunos e que ressignifique suas identidades.
Para isso, é importante saber que mudanças devem existir de acordo com cada
realidade, elencar possibilidades de trabalho que satisfaçam os anseios dos alunos e que os
faça crescer enquanto estudantes e cidadãos.
Alguns pesquisadores acreditam que o trabalho com a oralidade não deve ser
primordial na escola, uma vez que nossos alunos precisam ler e escrever com mais afinco e
que, com o trabalho com estas duas práticas, a oralidade será privilegiada, de alguma forma.
Não sigo esta linha de raciocínio.
Acredito ser possível trabalhar com estas três frentes, auxiliando nosso aluno na
leitura, trabalhando produção textual com afinco e planejando atividades orais que
privilegiem a argumentação.
A partir disso, é possível inferir que a prática docente pautada nestas linhas irá
gerar crescimento para os alunos e, com certeza, modificará os caminhos que levam a
educação.
10
7 REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal.. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003
[1952/53]. p. 261-306.
______; SCHNEUWLY, Bernard; HALLER, Sylvie. O oral como texto: como construir um
objeto de ensino. In: SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. et al. Gêneros orais e escritos na escola.
Trad. e org. de Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro. Campinas: Mercado de Letras, 2004.
RESUMO
Palavras-chave:
A tão polêmica forma gramatical progressiva no alemão (PROG). Alemão como língua
estrangeira no Brasil. Sua semântica. O papel e a contribuição dos NPs em sentenças com o
PROG.
ABSTRACT
This paper aims to bring up the building of the much discussed progressive grammatical form
(PROG) in German, whose focus lays on the German local preposition “an”. Its main goals
are: 1st Present the progressive form (PROG) as a universal component in natural languages;
2nd Briefly describe the PROG in the West-Germanic Languages; 3rd Establish a semantics for
the PROG; 4th Analyze the role and the contribution of NPs in sentences with the PROG; 5th
Reflect on the teaching of this grammatical form in German as a Foreign Language in Brazil.
Its methodology embraces a theoretical approach of the phenomenon according to Formal
Semantics. The questions that guide this paper are: Is there in fact PROG in German and its
dialects? What is its Semantics? What is the contribution of NPs? Shall we teach the PROG in
Foreign German classes in Brazil? Since the PROG is actually used by German native
speakers, it would be at least relevant to deal with it.
Keywords:
Progressive grammatical form in German (PROG). German as a Foreign Language in Brazil.
Its Semantics. The role and contribution of NPs in sentences with the PROG.
1
Titulação em Letras - Alemão (UFSC) e mestrando em Linguística (PPGLg/UFSC/CNPq); e-mail:
magat.nj@hotmail.com.
2
1 INTRODUÇÃO
Neste artigo, investiga-se a formação e a produção da perífrase verbal, o progressivo
(PROG), no alemão. Para tanto, descreve-se, primeiramente, a perífrase verbal como um
componente universal das línguas naturais, nos termos de princípios e parâmetros de
Chomsky (1968), e de acordo com a abordagem do progressivo, segundo autores como
Portner (2005), Emmel (2005), Van J. Pottelberge (2004) e Barrie & Spreng (2006, 2007). O
segundo passo consiste em tratar do PROG, partindo de exemplos das línguas germânicas
ocidentais modernas. O terceiro visa estabelecer uma semântica para o mesmo. O quarto trata
do papel e da análise dos NPs no PROG-alemão. E o último procura levantar a discussão da
sua inclusão no ensino e aprendizagem do alemão como língua estrangeira (LE) no Brasil.
Parte-se do princípio de que se o PROG é uma estrutura em fase de gramaticalização no
alemão, por que não abordá-la em sala de aula?
O artigo, portanto, está segmentado da seguinte maneira: 1. O progressivo PROG
como um componente universal nas línguas naturais; 2. O PROG nas línguas germânicas
ocidentais modernas; 3. Estabelecendo uma semântica para o PROG no alemão; 4. Análise do
papel e da contribuição dos NPS no PROG-alemão; 5. O PROG-alemão deve ser ensinado nas
aulas de alemão como LE no Brasil?
2
No texto do autor, somente o frísio ocidental é abordado.
4
Lesen/lesen]. Nas demais línguas, observa-se, portanto, estruturas semelhantes as dessas duas.
Além disso, o autor (ib., p. 04; tradução minha) alerta para o fato de que:
Essa construção, para ele (ib., p. 04 e 06; tradução minha), é parte de um paradigma
de construções preposicionadas decorrentes de um desenvolvimento paralelo por parte dessas
línguas. Elas pertencem a classe das semelhanças secundárias das línguas germânicas
ocidentais, que englobam o Perfekt (o tempo passado composto no alemão padrão), tanto nas
línguas germânicas como nas românicas, além da ditongação das vogais e , por
exemplo.
Abordada brevemente a criação do PROG nas línguas apresentadas, passa-se, no
próximo capítulo, para o estabelecimento de sua semântica.
3 Estrutura sintática baseada em Emmel (2005, p. 19) para o bei-PROG utilizado em Pomerode (SC): “Uma
análise preliminar superficial, abstraindo a recorrência do verbo sein (=ser), seria a de que se trata de um PP em
que a preposição P (núcleo) governa um NP de forma [NP dem [N[V]]], onde o núcleo lexical do NP é um verbo
no infinitivo que foi convertido em um nome neutro (dativo) por processo morfológico. Modelo de estrutura
recorrente apresentado pela autora: [sein: verbo finito “ser”: carrega a informação gramatical] + [bei + dem =
beim: preposição dativa e artigo definido neutro cliticizado] + [V_en: infinitivo verbo principal que carrega a
informação lexical].”
5
4 Partindo do princípio de que o PROG se tornou uma nova categoria verbal e aspectual no alemão, na
Gramática alemã uden, na sua 2 ed, de 19 , ele é tratado como uma forma colonial, que também foi abordada
da mesma forma por outros autores como J. Erben (19 2, p. 0 ), W. Eichler e K- . nting (19 8, p. 2 ).
Porém, este cenário foi mudando, até que a ed da mesma Gramática, de 1988, passou a tratá-lo como uma
possibilidade de ser empregado na fala. Assim, K. Ebert, O Krause e A Reimann afirmam que o PROG é
aceitável em todo o território alemão. (POTTELBERGE, 2004, p. 183; tradução minha)
6
A partir disso, o autor afirma que apenas nessas línguas é que há incorporação. Por
outro lado, talvez ele aceite que haja o PROG, também. Exemplos de Pottelberge (2004),
apresentados no cap. 2 (p. 04), mostram que além do alemão, mais outras cinco línguas
germânicas ocidentais modernas o possuem. Sendo assim, introduz-se um exemplo do PROG-
alemão apresentado por Barrie & Spreng (2007, p. 02), que aspectualmente é similar a
estrutura progressiva do inglês. De acordo com os autores (Ib.; tradução minha), tal estrutura
possui o verbo ser/estar [sein], partícula [am] e a forma infinitiva do verbo principal: “Ich bin
am trinken.” (“Estou bebendo.”) e “Ich bin [am Wasser]6 trinken.” (“Estou bebendo água.”).
O primeiro exemplo apresenta a estrutura sem incorporação, já o segundo com a
5
Na próxima página, são apresentados exemplos.
6 “Krause (2002 apud BARRIE & SPRENG, 2006, p. 01; tradução minha) mostra que os complementos em
construções progressivas com verbos transitivos são obrigatoriamente incorporados.”
7
7 “O alemão é uma língua de SOV, por isso, não fica imediatamente claro se o nome é que se incorporou ao
verbo ou se é o objeto do verbo que fica simplesmente à sua esquerda.” (Ib., p. 02-03; tradução minha).
8
aparece no nome com adjetivos. O caso acusativo estrutural e o dativo inerente não são
possíveis. Exemplo: *“Ich bin am schwarz-[en] Pffeffer kaufen.” (“Estou comprando pimenta
escura.”) Porém, “Ich bin am schwarz-er Pffeffer kaufen.” é uma sentença gramatical em
alemão.
A apresentação de todos esses exemplos serve como reflexão para o artigo proposto.
Nota-se que eles são citados e apontados pelos autores como gramaticais ou agramaticais, no
entanto, faltar uma explicação teórica consistente que aborda o porquê de eles não poderem
ser produzidos na língua. Pode-se facilmente se indagar por que a introdução de um PP entre a
partícula [am] e o verbo lexical não é permitida em alemão. Essa restrição não está clara, a
priori. Isso também vale para o nome-acusativo incorporado à estrutura verbal. Por que não se
pode dizer *“Ich bin am schwarz-[en] Pffeffer kaufen.”, mas sim“Ich bin am schwarz-er
Pffeffer kaufen.”? Que motivações e parâmetros sintático-semânticos existem para a sentença-
acusativa não poder ser proferida em alemão? Esta forma, além do mais, é aceitável, ou seja, é
gramatical em todo território alemão?
Por fim, se transferirmos esses exemplos para um contexto de alemão como LE no
Brasil, indaga-se, também, como se pode apresentar, explicar e aplicar este mecanismo
gramatical em sala de aula. Como fazer isso? Os exemplos citados são somente alguns de
todos os outros existentes na literatura alemã sobre o tema. Como aqui se trata de um breve
artigo, não se obterá a resposta para as perguntas acima. No entanto, este pode servir como
motivação para que futuras pesquisas tragam-no à toa e discutam-no francamente, tanto sob
uma perspectiva sintática quanto semântica formal, e por que não pragmática? Há contextos
discursivos (específicos) em que o PROG-alemão pode ou não pode ser empregado?
curso no exato momento de fala, o que parece que não ser em vão, embora o alemão possua o
[gerade] para este fim. Por isso, o conhecimento linguístico de uma classe, traço, morfema,
etc, de uma dada língua natural não pode ser “deixado por baixo dos panos”, permitindo-se a
expressão, como se aparentemente fosse “feio” utilizá-lo (-a), ainda mais quando se trata de
um contexto de língua estrangeira. Não se advoga aqui de beleza ou elegância, mas sim de um
emprego gramatical vivo na língua. Deixamos a passarela para os estilistas, pois são eles
quem entendem de moda.
Portanto, essa questão reforça a tese de que o PROG-alemão é empregado no alemão
padrão como também em seus dialetos, e que deveria ser reconhecido, aplicado e ensinado
pelos professores de alemão como LE no Brasil. Para isso, espera-se que eles se interessem
pelo tema e que assim possam passá-lo adiante, fazendo com que o seu estudante brasileiro de
alemão tenha conhecimento deste rico mecanismo semântico-sintático, que pode ser utilizado
por ele/ela, quando necessário.
7 REFERÊNCIAS
BARRIE & SPRENG. Noun incorporation and the progressive in German. Article in Press.
In: LINGUA, 1407, 15 p. Disponível em: <www.sciencedirect.com>. Acesso em: 2008.
EMMEL, Ina. "Die kann nun nich, die is’ beim treppenputzen!˝ O progressivo no alemão de
Pomerode - SC. 2005. 270 f. Tese (Doutorado) - Curso de Pós-graduação em Linguística,
Departamento de Pós-Graduação em Linguística (PGL), UFSC, Florianópolis, 2005.
RESUMO
O presente artigo investiga o ensino de Língua Portuguesa para surdos através da educação a
distância na modalidade on-line, considerando as pesquisas relacionadas à inclusão linguística
do aluno surdo no ensino superior (Nascimento, 2008; Moura e Harrison, 2010). Além disso,
serão discutidas as poucas políticas de inclusão existentes neste sentido, e o fato do grupo de
alunos surdos e deficientes auditivos incluídos na educação superior em nosso país
representar 31% do total de alunos portadores de alguma necessidade especial nesta
modalidade de ensino (Brasil, 2009). Propõe-se um curso de Língua Portuguesa (LP) para
surdos universitários on-line, cuja primeira língua seja a língua de sinais (LS), através da
plataforma Moodle, que será constituído de um conjunto de oficinas que oferecerão subsídios
para o aluno conhecer e ser capaz de produzir o gênero Resumo Acadêmico (Machado,
Lousada e Abreu-Tardelli, 2004). O objetivo central deste estudo, que está em
desenvolvimento, será entender como os sujeitos surdos podem aperfeiçoar seus
conhecimentos sobre língua portuguesa, através da observação da co-construção de
aprendizagem de língua entre surdos em um ambiente virtual de aprendizagem (Donato, 1994;
Dagostim, 2009) e da análise da interação entre os aprendizes, através das ferramentas
disponibilizadas na plataforma do ambiente virtual de aprendizagem - chats educacionais,
fóruns, diários de bordo e atividades - que apresentarem evidências de construção de
aprendizagem em LP. Através destas análises, pretende-se compreender como se dá a
construção do conhecimento de gêneros escritos em Língua Portuguesa por alunos surdos,
usuários de LS.
Palavras-chave:
Educação Inclusiva. Ensino de Língua Portuguesa para Surdos. Surdos.
ABSTRACT
This project investigates the Portuguese teaching language for deaf people through distance
education in online mode, considering the linguistics research related to the inclusion of deaf
students in college education (Nascimento, 2008; Moura and Harrison, 2010). Besides it will
be disscuss the few policies of nclusion in this sense, and the fact that the group of deaf and
hearing impaired students in college education included in our country represent 31% of all
students with any special needs in this type of education (Brasil, 2009). It is proposed an e-
learning Portuguese language course, that is being developed with college deaf students,
whose first language is Sign Language (LS), through Moodle platform. It will consist in a set
of workshops that offer subsidies to the student know and be able to produce the Academic
Summary genre (Machado, Lousada, Abreu and Tardelli, 2004). The goal of this study is to
understand how the deaf people can improve their knowledge of Portuguese, by observing the
co-construction of learning a language among the deaf in the virtual learning environment
(Donato, 1994; Dagostim, 2009) and the analysis of the interaction between learners, and the
tools available through the virtual platform - educational chats, forums, diaries and activities -
that show evidences of learning in building LP. Through this analysis, it is intended to
1
Doutoranda em Linguística Aplicada (UNISINOS); Mestre em Linguística Aplicada (UNISINOS). Graduada
em Letras (UFRGS); e-mail: vanessadagostim@gmail.com.
2
comprehend how the knowledge of the construction of written genres in Portuguese for deaf
students , users of LS, occurs.
Keywords:
Inclusive education. Portuguese teaching language for deaf people. Deaf people.
1 INTRODUÇÃO
O objetivo deste artigo é entender como estão ocorrendo as políticas e práticas de
educação linguística de surdos no ensino superior, considerando bibliografia especializada e
questionários de alunos surdos incluídos em sistemas de ensino superior em diversas regiões
do país. Para tanto, este artigo será dividido em cinco partes: primeiramente apresentaremos o
conceitos de educação línguística; na sequência, conceituaremos a educação inclusiva e como
ocorre a inclusão de alunos surdos no ensino superior de acordo com os conceitos já
apresentados. Depois será realizada a análise dos dados e, finalmente, a conclusão.
Para um melhor entendimento deste trabalho, cabe esclarecer alguns conceitos. O
termo “surdo” se refere à indivíduos que pertencem à comunidade surda, participam de
práticas culturais desta comunidade e, principalmente, são usuários de línguas de sinais. O
termo “Deficiente Auditivo” se refere àqueles sujeitos que, possuindo uma diminuição
auditiva, fazem uso de recursos como oralização, tratamentos fonoarticulatórios, aparelhos
auditivos, implantes cocleares, entre outros, e não estão inseridos na comunidade surda.
Compreende-se que a questão de inclusão do aluno surdo no ensino superior trata-se, antes de
mais nada, de uma tarefa da educação linguística, remontando à Bagno e Rangel (2005)
quando a definem:
Entendemos por educação linguística o conjunto de fatores socioculturais que,
durante toda a existência de um indivíduo, lhe possibilitam adquirir, desenvolver e
ampliar conhecimento de/sobre a linguagem de um modo mais geral e sobre todos
os demais sistemas semióticos […] Inclui-se também na educação linguística o
aprendizado das normas de comportamento linguístico que regem a vida dos
diversos grupos sociais, cada vez mais amplos e variados, em que o indivíduo vai ser
chamado a se inserir (BAGNO; RANGEL, 2005, p. 63).
A educação linguística tem, portanto, como uma de suas atribuições, o aprendizado de normas
de comportamento linguístico de diferentes grupos ao qual o indivíduo vai ser chamado a se
inserir, ou se incluir, ao longo de sua vida. Considerando que a questão da diferença surda é
uma diferença predominantemente linguística e cultural do que orgânica, as instituições
devem prover meios de acesso e educação linguística para que estes sujeitos possam transitar
em todos os grupos sociais que almejarem. O reconhecimento legal da Libras uma língua
oficial do país reforça a ideia de um país multilíngue, cujos falantes devem ter seus direitos
reconhecidos.
3
Assim, o ensino de LP/S (Língua Portuguesa para Surdos) deve ser objeto de
pesquisa e ensino em cursos de licenciatura de Letras e de Pedagogia, com o objetivo de se
compreender como ocorre o processo de aprendizagem da LP, alfabetização e letramento dos
surdos. Apesar desta recomendação, os currículos de ensino superior ainda não estão
2
Grifo da autora.
4
adequados a esta recomendação. O referido decreto também recomenda que seja oferecido
professores bilíngues de Libras e Língua Portuguesa a instituições de educação infantil,
ensino fundamental, médio e superior (conforme artigo 14), oportunizando que os surdos
tenham acesso a essas duas línguas durante toda a sua vida escolar.
Em relação à condição linguística dos alunos surdos incluídos no sistema de ensino
superior, Nascimento (2008) realizou um estudo a respeito dos aspectos da organização de
textos produzidos por universitários surdos, analisando um corpus de quinze textos,
produzidos entre os anos de 2005 e 2006 por indivíduos surdos, universitários, residentes das
cidades de Recife e Olinda (PE). Dos quinze participantes da pesquisa, um não é oralizado e
usuário de Libras, e um é somente oralizado, sem fazer uso da Libras; os outros treze
participantes são todos oralizados e usuários de Libras, estando, portanto, na condição de
bilíngues. Os textos foram produzidos a partir de um pedido de avaliação a respeito da
satisfação da assistência recebida por parte da instituição de ensino superior, em forma de
depoimento avaliativo (semelhante uma carta-resposta), direcionado ao coordenador do curso
no qual estudavam. Em relação a esses aspectos verbais observados no corpus analisado,
foram encontradas várias ocorrências específicas de textos produzidos por surdos. Uma delas
é a omissão de verbos e de conectores (em maior número), como em: “Intérprete muito ajuda
para surdos tambem # preocupado” - provável omissão do verbo estar (NASCIMENTO,
2008). Também foram observadas sequências de verbos que fogem aos padrões sintáticos do
português e verbos com status de nomes e inadequações de flexões verbais, em 14 textos
analisados. O único texto em que não ocorreu este tipo de problema também não forneceu
subsídio suficiente para ser analisado, visto se tratar de um texto mais sucinto e menos linear,
em que o autor lançou mão de esquemas e tópicos. Os enunciados em que a ocorrência dessas
inadequações foi menor foram aqueles em que o sujeito era a primeira pessoa do singular.
Algumas inadequações são comuns também em textos de ouvintes, como, por exemplo, na
sentença “A comunicação com os funcionários foram o suficiente para mim”, em que a o
verbo “ser” concordou com “funcionários”, ao invés de “a comunicação”, que era o sujeito da
frase. Também foi encontrada uma inadequação quanto ao modo verbal, que ocorre
comumente em produções de ouvintes, em “por isso eu tenho esperança que o diretor resolve
para colocar mais cursos”, em que o verbo resolver é conjugado no presente do indicativo,
quando o modo gramaticalmente correto seria presente do subjuntivo (resolva).
escrita de surdos usuários de Língua de Sinais (LS) em todo o seu processo de letramento.
Nos textos do corpus foram encontrados enunciados como “estam bom”, “quermos um sala”,
“agradito o Direito”, por exemplo. A grafia atípica de alguns vocábulos não é justificada pela
interferência da Libras, mas sim ao desconhecimento do sistema fonológico do português,
devido a condição inerente do sujeito surdo. Em sua pesquisa sobre a leitura dos surdos,
Botelho (2002) narra algumas práticas que coincidem com as ocorrências encontradas no
corpus:
Palavras graficamente semelhantes eram confundidas, como, por exemplo, “vão” e
“não”, “lago” e “lado”, e a frase “vão até o lago” transformava-se em “não até o
lado”. Mesmo quando a frase não fazia o menor sentido, não havia estranhamento. E
nos raros momentos em que havia alguma perplexidade, ignoravam-na e seguiam
adiante. Talvez intuíssem a impossibilidade de construir o sentido, mas não sabiam
como fazer diferente daquela forma que convertia-se em não-leitura. Esse conjunto
de circunstâncias tornava impossível a construção do sentido, e quando lhes
perguntava o que podiam me explicar sem recorrer ao texto, não sabiam dizer,
porque não haviam entendido (BOTELHO, 2002, p.143).
2 EDUCAÇÃO INCLUSIVA
A educação inclusiva, como conhecemos atualmente, nasceu oficialmente em 1994,
na Declaração de Salamanca, que a conceitua da seguinte maneira: “educação Inclusiva é uma
abordagem desenvolvimental que procura responder às necessidades de aprendizagem de
todas as crianças, jovens e adultos com um foco específico naqueles que são vulneráveis à
marginalização e exclusão” (Unesco, 1994). Como marginalização entende-se todo risco que
algumas crianças e jovens correm de ser colocados à margem das oportunidades educacionais,
seja por pertencerem a classes econômicas desfavorecidas ou por possuírem alguma
necessidade especial educacional, por exemplo.
No âmbito nacional, a resposta à Declaração de Salamanca veio rapidamente, através
da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de 1996, que recomendava que todas as
crianças deveriam estar em escolas regulares, preferencialmente. Tal legislação trouxe
grandes mudanças nos sistemas escolares, com um grande número de matrículas nas escolas
públicas, e a criação de um cenário educacional desafiador, como nunca se havia visto antes.
Como consequência do aumento do número de alunos incluídos na educação básica, a
educação superior também começou a sofrer alterações. Algumas destas mudanças estão
6
sendo acompanhadas pela legislação. Em 2005, uma série de leis foram regulamentadas
através do decreto 5626, como a inserção do ensino da Libras como disciplina curricular
obrigatória em cursos de licenciatura e fonoaudiologia, a princípio. As instituições têm
encontrado diversas maneiras para ofertar esta disciplina, pois o decreto não determina o
número de horas ou créditos que a disciplina deva ter, que profissional deve ensiná-la, quais
conteúdos e pré-requisitos são necessários para esta disciplina. Conforme Moura e Harrison
(2010, p. 336)),
A introdução da Libras como disciplina curricular na Universidade traz mais do que
apenas o ensino de uma língua, pois há a necessidade de que todos os envolvidos
nessa aprendizagem compreendam a especificidade do Surdo, não apenas com
relação à sua língua, mas também com relação à sua cultura e forma de estar na
sociedade. Apenas a compreensão desses aspectos possibilitará uma atuação que
contemple a singularidade dos sujeitos Surdo.
Outro aspecto que trouxe mudanças no ensino superior foi a oferta de condições de
acessibilidade para todos, independentemente de sua necessidade especial de educação; no
caso dos surdos, a necessidade de oferecimento de intérprete de Libras em sala de aula e
acessibilidade em todos os setores da vida acadêmica (o aluno precisa ter acesso à biblioteca,
laboratórios de informática, monitorias, setores de atendimento ao acadêmico, secretarias dos
cursos, coordenações, centros de estudantes, entre outros).
3
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira.
4
Deficiente Auditivo (D.A.): termo usado na legislação, documentos oficiais. Definição técnica: perda parcial
ou total bilateral, de 25 (vinte e cinco) decibéis (db) ou mais, resultante da média aritmética do audiograma,
aferida nas frequências de 500HZ, 1.000HZ, 2.000Hz e 3.000Hz. Em oposição ao termo “surdo”, o D.A. não
está inserido na cultura surda e não utiliza a língua de sinais.
5
Os alunos dos dois grupos (surdos e deficientes auditivos) foram reunidos devido à falta de critérios para a
classificação destes alunos nos dados do Censo, por parte das universidades, ao contrastarmos os dados prestados
com dados de universidades que temos contato.
7
acordo com este Censo, 20.019 alunos matriculados na graduação são portadores de algum
tipo de necessidade especial, o que corresponde a 0,34% do total de alunos do ensino superior
no país.
Apesar disso, faltam políticas públicas suficientes para uma efetiva inclusão dos
sujeitos surdos no ensino superior, além de conhecimento, por parte dos docentes, a respeito
da legislação e metodologias adequadas para o ensino de surdos. No caso destes indivíduos, a
diferença linguística é a primeira e principal barreira enfrentada para a efetiva inclusão.
Gráfico 1 – Distribuição do tipo de deficiência dos alunos portadores de deficiência na Educação Superior –
Brasil – 2009
Fonte: Censo da Educação Superior de 2009/MEC/Inep/Deed
não aceita, assim como a possibilidade de realizar as provas em Libras. Essa decisão
será então passada para todos os envolvidos, inclusive aos alunos antes de prestar
vestibular. Todos têm que estar cientes das exigências: Surdos, Intérpretes e Profes-
sores para que mal entendidos sejam evitados e para que o melhor possa ser feito
para que uma real inclusão aconteça. A falta de conhecimento do professor pode
levar àquilo que não desejamos para nenhuma universidade: a inclusão
perversa que finge que inclui para apenas cumprir o papel de dar um
certificado que pouca serventia terá para um profissional despreparado.
(Moura e Harrison, 2010, p. 353 – grifo nosso).
Como sugestão para uma efetiva inclusão no ensino superior, Harrison e Nakasato
(2006) citam o trabalho que é desenvolvido, neste sentido, nos Estados Unidos e na
Colômbia. Em ambos, os alunos surdos que desejam cursar uma universidade recebem
respaldo para se qualificarem na leitura e escria da língua majoritária, considerando que o
domínio desta é indispensável para a real independência deste indivíduo. Nos Estados Unidos,
a Gallaudet University, famosa universidade de surdos americana, oferece um trabalho que
incentiva seus alunos a desenvolverem a proficiência em inglês através da promoção de
cursos especiais de inglês como segunda língua por um ano, antes de iniciarem os cursos nas
faculdades escolhidas, com o objetivo de melhorar a leitura e escrita em textos acadêmicos,
suporte que é mantido ao longo da vida universitária do acadêmico. Semelhantemente, na
Colômbia, os alunos surdos também têm a possibilidade de realizarem um curso de um ano
antes da entrada formal na graduação, para aprimorarem seus conhecimentos na língua escrita
(HARRISON; NAKATO, 2006, apud MOURA; HARRISON, 2010).
Em meu projeto de tese de doutorado em Linguística Aplicada, em andamento,
também proponho o uso da educação a distância para o oferecimento de cursos de Língua
Portuguesa para Surdos. O objetivo central deste projeto será entender como os sujeitos
surdos podem aperfeiçoar seus conhecimentos sobre língua portuguesa, através da observação
da co-construção de aprendizagem de língua entre surdos em um ambiente virtual de
aprendizagem (DONATO, 1994; PIRES, 2009) e da análise da interação entre os aprendizes,
através das ferramentas disponibilizadas na plataforma do ambiente virtual de aprendizagem -
chats educacionais, fóruns, diários de bordo e atividades - que apresentarem evidências de
construção de aprendizagem em LP. Através destas análises, pretende-se compreender um
pouco mais como se dá a construção do conhecimento de gêneros escritos em Língua
Portuguesa por alunos surdos, usuários de Libras como LS, considerados em alguma medida
letrados na língua majoritária, pois encontram-se cursando o ensino superior. Compreender
melhor como se dá esse processo de ensino-aprendizagem é fundamental para a elaboração de
propostas de materiais e metodologias de ensino para esta área.
10
4 EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
Tomo a definição de educação a distância definida pelo artigo 1° do decreto 5.622:
“caracteriza-se a educação a distância como modalidade educacional na qual a mediação
didático-pedagógica nos processos de ensino e aprendizagem ocorre com a utilização de meios e
tecnologias de informação e comunicação, com estudantes e professores desenvolvendo
atividades educativas em lugares ou tempos diversos”.
A proposta de utilização de um ambiente virtual de aprendizagem (AVA) pressupõe que,
nesse universo, há uma grande interação entre usuários com um propósito social, o que subjaz
uma concepção de língua que leva em conta o contexto, o propósito e os interlocutores
envolvidos, e proporciona que os textos manipulados pelos aprendizes possuam um real sentido
na vida deles. Além disso, diversas pesquisas têm demonstrado a grande aceitação dos recursos
tecnológicos no ensino de surdos, assim como a utilização dos mesmos em processos de ensino-
aprendizagem de línguas.
O Ambiente Virtual de Aprendizagem foi escolhido por vários motivos. O primeiro é a
possibilidade de alcançar um grande número de aprendizes espalhados por uma grande região
geográfica, o que é especialmente necessário na educação de surdos, visto que a comunidade
surda, diferente de outras comunidades bilíngues, não está reunida em um espaço geográfico, mas
distribuída por todo o território, seja nos grandes centros urbanos ou nas áreas rurais.
Outra motivação para a escolha dessa modalidade de ensino foi a possibilidade de uso de
inúmeras ferramentas acessíveis aos surdos: “Um dos maiores impactos da Educação a Distância
(EAD) na cultura do ensino e da aprendizagem se refere à inclusão das pessoas surdas e
com necessidades especiais, deste modo tornando a Engenharia de Acessibilidade uma área
de importância crescente.” (Amorim e Silva, 2009). Um grande exemplo que temos do uso desta
tecnologia na educação de surdos são os cursos de Graduação em Letras-Libras oferecidos pela
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) 6
A utilização do AVA também estimula o uso da língua portuguesa escrita pelo aprendiz,
visto que a maioria das atividades realizadas serão de leitura e produção de textos, utilizando
recursos como fóruns de opiniões, diários virtuais, escrita coletiva de textos, realização de testes
de múltiplas escolhas, vídeos legendados, entre outros.
6
Iniciativa interessante da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) foi a criação, em 2006, do curso de
graduação em modalidade à distância Letras/LIBRAS, destinado a instrutores surdos de Libras, surdos fluentes
em língua de sinais (para o curso de Licenciatura) e ouvintes fluentes em língua de sinais que tenham
concluído o ensino médio (para o curso de Bacharelado).
11
Por ser um recurso totalmente interativo, o AVA possibilita a aprendizagem coletiva dos
aprendizes, principalmente nos fóruns de opiniões e na ferramenta Wiki 7, que oportuniza a escrita
e reescrita coletiva de textos. A importância de práticas de aprendizagem coletiva já foram objeto
de estudo em minha dissertação de mestrado, concluída recentemente (Pires, 2009). O trabalho
“Andaimento coletivo como prática de ensino-aprendizagem de língua portuguesa para surdos”
demonstrou que práticas de andaimento coletivo no ensino de língua portuguesa para surdos
geram estratégias facilitadoras de aprendizagem de LP e contribuem para o desenvolvimento do
aprendiz, tornando-o mais autônomo e solidário.
Por último, considera-se também outras vantagens existentes no ensino a distância, como
baixo custo, dispensa de deslocamento, possibilidade do aprendiz estipular seus próprios horários
de estudos (nas atividades assíncronas), respeitando o ritmo de aprendizagem de cada indivíduo.
4. 1 Dados preliminares
Para a seleção dos alunos que participariam do curso de extensão, foi solicitado aos
interessados que enviassem, via correio eletrônico, um questionário com dados pessoais e
acadêmicos dos candidatos e uma produção textual com o tema “por que você quer participar
deste curso?”. A princípio, 12 (doze) alunos foram selecionados, e mais 3 (três) foram
convocados posteriormente. As inscrições foram recebidas entre junho e julho de 2011.
Através dos dados dos questionários, como tempo de uso da Libras, tipo de acessibilidade
oferecida pela instituição de ensino, presença ou não de tradutor/intérprete de Libras em aula,
será feito um primeiro mapeamento a respeito da educação linguística destes indivíduos.
7
A ferramenta Wiki possibilita a escrita colaborativa. Todos os participantes interagem e constroem
coletivamente uma página Web, inserindo novos elementos ou editando o seu conteúdo.
O histórico detalhado das participações pode ser acessado pelo professor e pelos participantes.
12
Os nomes dos alunos foram retirados para proteger sua privacidade. Como uma
primeira análise, podemos visualizar que eles têm, em média, 27,5 anos. Metade dos perfis
analisados são de alunos provenientes de universidades públicas, e a maioria está inscrita em
cursos de licenciatura (sendo 4 em Letras e 3 em Pedagogia). A metade dos alunos também
cursa a universidade em cursos semi-presenciais ou a distância, com o advento da educação
on-line. Todos os alunos relatam receber serviço de interpretação em Libras da Universidade
onde estudam, e 4 deles relatam que contam com outros recursos de acessibilidade além do
intérprete (quando citam estes recursos, os alunos de EAD citam os materiais visuais, textos e
apresentações que recebem como material de apoio ao curso), como, por exemplo, o uso de
legendas em vídeos.
5 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Apesar do número crescente de surdos no ensino superior, conforme o Censo da
Educação Superior tem mostrado, muitas instituições ainda não estão preparadas para uma
inclusão efetiva destes indivíduos, conforme mostrou a pesquisa de Moura e Harrison (2010),
13
6 REFERÊNCIAS
BAGNO, Marcos; RANGEL, Egon. (2005) Tarefas da educação lingüística no Brasil.
Revista Brasileira de Lingüística Aplicada, v. 5, p. 63-82.
RESUMO
Palavras-chave:
Libras. Tradução. Interpretação. Ensino a distância.
ABSTRACTS
This research deals with the new type of translation / interpretation of sign language
interpreters to deaf, deaf observing the norm (Stone, 2010). Recently did this new field of
translation in the educational context of distance education: the translation and interpretation
of the actor / translator and interpreter and finally a sign language sign language to another
(Segal, 2010; Souza, 2010). These activities of translation and interpretation have been
performed by Deaf bilingual intermodal. Just because it represents a new field of study, this
project will be reviewing its constitution.
Keywords:
Libras. Translation. Interpretation. Distance education.
1 INTRODUÇÃO
1
Professora do Departamento de Artes e Libras e do Programa de Pós-Graduação de Estudo de Tradução da
UFSC; e-mail: anaregina@cce.ufsc.br.
2
específico do Curso de Letras Libras EAD, da UFSC, em que tradutores surdos atuam
sistematicamente na tradução de todos os textos em que a língua fonte é a Língua Portuguesa
e a língua alvo é a Língua Brasileira de Sinais (Libras). Percebe-se que há muitas coisas
interessantes a serem analisadas e que podem contribuir efetivamente para a formação de
tradutores e intérpretes de língua de sinais, tanto Surdos, quanto ouvintes. A presente pesquisa
situa-se neste contexto e apresenta a perspectiva de iniciar uma trajetória nestes campos de
atuação. Também justifica-se realizar esta pesquisa, uma vez, que a língua de sinais passou a
ser reconhecida como língua nacional por meio da Lei 10.436 de 2002 regulamentada pelo
Decreto 5.626 de 2005. Neste decreto, ainda, consta explicitamente a função da tradução e
interpretação de língua brasileira de sinais e a formação de profissionais nestas áreas. A UFSC
conta com os cursos de formação destes profissionais e passa a produzir pesquisas que
fomentam esta formação. A exemplo, apresenta-se o presente projeto de pesquisa.
2
Jakobson (1992) afirma a tradução interlingual, que é a interpretação de signos verbais por meio de alguma
outra língua.
4
várias línguas de sinais, para criar uma língua fácil de aprender e de se comunicar. É uma
língua que surgiu a partir dos encontros das lideranças surdas européias e passou a ser usada
sistematicamente em eventos internacionais.
Com o surgimento do Curso de Letras Libras, a atividade de tradutor / ator de língua
de sinais (QUADROS, 2008, AVELAR, 2010, SOUZA, 2010) propulsionou a carreira de
tradução no AVEA, produzindo Normas Surdas de Tradução – Deaf Translation Norm
(STONE, 2009) em nível acadêmico, desempenhadas quase que exclusivamente por pelos
tradutores/atores Surdos bilíngues para o Ambiente Virtual de Ensino e Aprendizagem –
AVEA e para os DVDs. Além disso, no desenvolvimento de algumas disciplinas, também
houve a tradução / interpretação nestas modalidades, por exemplo, a atuação pioneira de uma
intérprete Surda na disciplina de Análise do Discurso, de Letras Libras, turma 2006. A
adequação de normas, função e de novo campo de trabalho foi tomando corpo e passou a ser
reconhecida, culminando na inclusão de candidatos Surdos para a realização do Exame
Prolibras na qualidade de tradutores/intérpretes de línguas de sinais, a partir de 2009.
3 IDENTIFICAÇÃO LINGUÍSTICA
A definição da comunidade Surda que reforça o sentido histórico, linguístico e cultural
constituído de pessoas Surdas onde são inseridas em várias áreas, pois os Surdos ocupam em
vários espaços. Neste contexto objetiva-se também que todos conheçam para que possam
integrar-se a essa comunidade, com isso deixarão de serem minorias e será um todo. A
comunidade está dividida em vários setores, mas os espaços que mais ocupam são os três
principais: familiar, escolar e social, por isso reflete-se sobre a importância da língua de sinais
para a comunidade surda. As pessoas ouvintes usam a audição como funcionamento auditivo
pela habilidade nos atos do ouvir e do falar. Acontece o mesmo com as pessoas Surdas que
usam as mãos como funcionamento visual pela habilidade nos atos do ver e do sinalizar.
Os Surdos usam a língua de sinais brasileira envolvendo o corpo todo, no ato da
comunicação. Sua comunicação é do viso-gestual e produz inúmeras formas de apreensão,
interpretação e narração do mundo a partir de uma cultura visual. A cultura visual vem da
“experiência visual” (Perlin, 1998) que é um “espaço de produção” (Quadros, 2007) da
constituição dos Surdos que apresenta seus diversos artefatos, como: língua de sinais, história
cultural, identidade, pedagogia, literatura, artes, trabalho, tecnologia, teatro, pintura, e outros.
5
Complementando com o Quadros (2007) de que “o artefato cultural tem validação enquanto
sustenta o pertencimento cultural”3.
Para captar as mensagens e sua tradução / interpretação exige uma profunda reflexão,
como escreve Luklin (p. 44, 2005):
Escutar uma comunidade que usa um código lingüístico distinto do nosso, buscando
uma imersão nos aspectos culturais que cercam o diálogo, o monólogo, as narrativas
em grupo, as arquiteturas da justiça e do rumor, as expressões peculiares, a gíria, a
definição de gêneros, não é tarefa que possa ser cumprida pelo sentido exclusivo do
ouvir. O olhar passa a ser fundamental. Ela colabora para o descentramento do
sujeito moderno obrigando o uso do corpo de forma diferente dos nossos códigos
cotidianos. Implica uma mobilidade dos olhos, da cabeça, do rosto, das mãos, dos
braços, organizados de forma diferente. Solicita uma agilidade de percepção, uma
plasticidade do cérebro.
3
Quadros, Ronice & Perlin, Gladis. O debate sobre o surdo e a inclusão. Versão preliminar do material de
formação docente – SESI. p.16, 2007.
4
Traduzida pela Maria Filomena Molder
6
5
Traduzida pela Maria Filomena Molder
7
língua. Portanto este projeto de pesquisa, em futuro próximo, poderá contribuir mais a área de
tradução.
O interesse do interlocutor pelo Intérprete Surdo e seu desempenho / performance só
acontecem quando o Intérprete recebe uma mensagem e a interpreta. Se seguir as regras
gramaticais, utilizar as expressões faciais/corporais e tiverem o mesmo sinalário, a mensagem
chega sem grandes mudanças, mas, caso houver mudanças de elementos estranháveis
(dependendo do contexto cultural) a tradução / interpretação podem ser inseridas em outros
aspectos da gramática da língua de sinais, como descrição imagética, exemplificação, com a
finalidade de esclarecer o conteúdo da tradução.
A metodologia será baseada nas estratégias metodológicas por Williams e Chesterman
(2002, apud SOUZA, 2010) que na investigação “procura por novos dados, novas
informações derivadas da observação de dados e do trabalho experimental; e ainda, procura
evidências que dêem suporte ou não confirmem hipóteses, ou gerem outras”. Por isso, esta
metodologia será aplicada no estudo de caso observacional, descritivo e analítico em
tradução, com o objetivo de descrever o nosso caso: desempenho da tradução / interpretação
cultural do tradutor / intérprete Surdo. Isso consiste em avaliar os dois intérpretes / tradutores
Surdos na sala de aula através do vídeo conferência no ato da tradução / interpretação de
língua de sinais brasileira para língua de sinais americana e vice versa. As ferramentas serão
utilizadas através de gravação de vídeo por câmeras digitais, sala de aula (ou estúdio onde
será realizada a vídeo conferência) e presença dos professores-mediadores.
Esta pesquisa, portanto, estará coletando as narrativas desses tradutores surdos para
verificar as razões que os levam a falar sobre isso dessa forma. O objetivo será identificar as
representações e as razões que as justificam a partir dos próprios tradutores.
A tradução / interpretação exige formação, pois envolve vários fatores, entre os quais,
o fato de estarmos diante de línguas de diferentes modalidades, as culturas que se traduzem
nestas línguas; as formas de apresentar os conceitos em cada uma destas línguas. Dessa
forma, deve-se levar em consideração também a performance do Intérprete Surdo, conforme o
depoimento da Sueli Ramalho (abril, 2011):
A atuação da Profa. Ana Regina sendo surda, tranquilamente passou a ter seu papel
de mediadora na comunicação com as pessoas surdas, demonstrando a capacidade,
qualidade e a habilidade natural com conhecimento da estrutura gramatical da
língua de sinais, sem perder valores culturais e costumes da comunidade surda.
Sueli Ramalho, uma tradutora surda, acredita a capacidade laboral das pessoas Surdas
em serem Intérpretes / Tradutores de Língua de Sinais Brasileira, como vemos os
comentários:
Atualmente já contamos com várias pessoas surdas que tem essa capacidade de
transmitir, e a Profa. Ana Regina aos poucos tem quebrado do paradigma que a
sociedade majoritária tem colocado limitações aos surdos que não teriam condições
de poder estar neste patamar.
Jakobson (1992) afirma que a tradução tem três diferentes maneiras de interpretar o signo
visual. Ele pode ser traduzido em outros signos da mesma língua, em outra língua, ou em
outro sistema de símbolos não visual. Esses três tipos de tradução podem ser:
a) tradução intralingual, que é uma interpretação de signos verbais por meio de outros
signos da mesma língua. De um signo, dentro de uma mesma língua, usa tanto outro
signo como outros recursos mais ou menos sinônimos, homônimos, polissemia,
descrição imagética para uma circunlocução. Um signo ou expressão idiomática só
pode ser completamente interpretado por meio de uma combinação equivalente de
unidades de códigos, no caso da função dos atores/tradutores do AVEA e dos DVDs
da Letras Libras;
b) a tradução interlingual, que é a interpretação de signos visuais por meio de alguma
outra língua - não há equivalência completa entre códigos, as mensagens podem servir
como interpretações adequadas de códigos ou mensagens estrangeiras. O mais
frequente é a tradução de uma língua, dentro de uma outra, substitui mensagens em
uma língua, não por unidades de códigos separados, mas por mensagens inteiras em
algumas outras línguas. Tal tradução é um discurso direto, ou seja, o tradutor
recodifica e transmite a mensagem recebida de uma outra fonte. Então, a tradução
envolve duas mensagens equivalentes em dois códigos diferentes, em duas línguas
diferentes, como é o caso da língua de sinais brasileira para língua de sinais americana
e vice versa. O depoimento José Arnor (Rio Grande do Norte) complementa a sua
justificativa da tradução interlingual:
Achei que legal, sim o que mais importante é visualização mas é complicado pq
quando ela falar de ASL agente entender mas não conseguir contexto mas por
exemplo sinal ja conheço mas so sinal sim o resto não por isso precisar interpretação
ASL outra coisa quando palestrante na hora sinalização mas não consegui por que
complicado na hora bimodal na hora eu vejo complicado precisar fechar a boca. eu
conseguir entender ok? Ana Regina interpretou será importante juntos sim pq ASL
não conheço bem qualquer momento precisar sim não é por causa gestual nada ver
com isso precisar esta aqui presença interprete pelo surdos sim não precisar ouvinte
pq já formação asl se surdos entendi coisa ASL. Ela explico dedalhe tudo mas
Tradução foi ótimo Ana Regina entendi tudo mas eu vejo comparação Melanie
diferente sinalização alguns conheço sinal mas não conseguir contexto ok?
1) Mensagem – na língua fonte pode gerar sentenças diferentes na língua alvo, que podem
ser consideradas, com legitimidade, traduções.
2) Informação contextualizadora (FI) – a informação está atrelada ao acréscimo de
informação para ajustar, compor, enquadrar e emoldurar o significado da mensagem, como o
propósito de contextualizar o significado sugerido no texto da partida para o leitor de chegada.
3) Informação induzida ou motivada por questões linguísticas (LII) – refere ao tipo de
informação adicionada por questões de adaptação ao sistema linguístico de chegada. Isso,
quer dizer, que os ajustes são demandados pelo sistema linguístico e não por decisão
6
Sites: http://www.youtube.com/watch?v=ZDsjIA8-r44 e
http://www.youtube.com/watch?v=4fBh2Tcb1E4&feature=related
11
Informação
Informação Induzida ou Informação
Língua Mensagem Contextualizada por questões pessoal (PI)
- FI linguísticas -
LII
a) Inclusão da
gravura do
cantor para
mostrar quem é
quem do cantor;
b) Uso do a) Regras e
Através de pronome convenções da
leitura de letras pessoal para LSB;
LSB da música referir o autor b) Sinais Nenhum
da música; específicos da
c) Gravura do LSB de acordo
Mundo para com a música;
entender o c) Uso de
contexto; classificadores
d) Informação
mais clara e
explícita;
e) Tradução
mais
contextualizada
com a cultura
Surda
a) Regras e
convenções do
SEE (Signing
Exaclt English
– Inglês
12
Concluindo que os dois tradutores utilizam a mensagem (M) bem preservada, sendo
que a tradutora da LSB usou as informações contextualizadas (FI) bem claras para expressar
melhor o sinalário (léxico). Evidencia a tradução de acordo com a cultura Surda.
A tradutora de ASL não preservou e não utilizou a informação induzida (LII) ou
motivada por questão linguística para chegar às informações ao público alvo, por utilizar o
léxico em mesmo sinalário de modo preservado e convencional. Não evidencia a tradução da
cultura Surda mesmo usando a língua da comunidade surda norte-americana (SEE) que
mostra a distinção da ASL da comunidade Surda. Para comprovar a teoria de que a tradutora
na tradução de ASL não condiz à cultura surda (Strobel, 2008 e Bahan, 2009) como
demonstra a crítica de um usuário no youtube:
Great video! Your signing is really fluid. My only suggestion would be to be careful
that you don't switch from ASL to PSE or SEE. Some of your signed sentences seem
to be an exact translation of the English words, which does not work in ASL. Nice
job otherwise, though!
This version is also different because there is not set way to sign a song. You
interprete the lyrics not translate it.
Isso demonstra que a cultura Surda e sua música exige mais performance para atingir
de fato a cultura Surda que, segundo Bahan (2009) “Before talking about deaf culture and
what is culture, let us talk about sensory worlds.!Sensory worlds help us make sense of Deaf
Culture.”7
No futuro da pesquisa serão consideradas as informações que apresentam alterações,
dentre outros fatores, por conta de efeitos de modalidade das línguas em contato nas traduções
7
Tradução: “Antes de falar sobre a cultura surda eo que é cultura, vamos falar sobre o mundo sensorial! Mundo
sensorial nos ajudar a fazer o conceitoda Cultura Surda.”
13
ou outros fatores, tais como, o fato de estarmos trabalhando com a interpretação simultânea
que envolve limitações relacionadas com o tempo de processamento da informação.
O presente estudo caracteriza-se com um estudo de caso observacional, descritivo e
exploratório da tradução de dois tradutores, que analisará os resultados da tradução entre as
duas línguas de sinais. Este estudo é um dos primeiros trabalhos realizados neste campo
específico de tradução no Brasil.
5 REFERÊNCIAS
CAMPELLO, Ana Regina. Intérprete surdo de língua de sinais brasileira: o novo campo
de tradução / interpretação cultural e seu desafio. Projeto de Pesquisa de Pós-Graduação de
Estudos de Tradução. Florianópolis: UFSC, 2011.
RESUMO
Palavras-chave:
Política Linguística. Vestibular UFSC. Línguas minoritárias.
ABSTRACT
This paper aims to discuss the complex implications in educational environments related to
linguistic politics that respect identity formation in southern Brazil. More precisely, we will
focus on the foreign languages offer in the entrance examinations to public universities. There
is a recent discussion about the maintenance (or not!) of languages like German, Italian and
also French at the entrance exam to study at UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina).
We will analyze the arguments given by the central administration to eliminate those
languages (maintaining only English and Spanish) and emphasize reasons to continue to offer
them and even to extend the actual number of foreign languages which the candidates can
choose from. We sustain our point based on the linguistic plurality which still characterizes
the South of Brazil, mainly following The Universal Declaration of Linguistic Rights and also
taking into account the traditional plurilinguistic policies and heeding minority demands and
inclusion policies which were always present along the history of our university.
1
Quero agradecer às Profas Glória Gil, Silvana Gaspari e Maria José Damiani Costa (DLLE/UFSC) e Izabel
Seara (DLLV/UFSC) pelas valiosas contribuições.
2
Professora do Departamento de Língua e Literaturas Estrangeiras (DLLE/UFSC) e da Pós-Graduação em
Estudos da Tradução (PGET/UFSC), doutora em Linguística (PPGLg/UFSC); e-mail: inaemmel@hotmail.com.
2
Keywords:
Linguistic Politics. Vestibular UFSC. Minority Languages.
1 SITUANDO A DISCUSSÃO
Alguns aspectos gerais sobre políticas linguísticas marcam o início da discussão que se
pretende desenvolver no presente artigo, para, em seguida, concentrar a abordagem no que acontece
na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC em relação às situações linguísticas
diversificadas presentes no âmbito de sua atuação e às possíveis mudanças que estão sendo
discutidas em órgãos deliberativos da mesma, especificamente em relação às línguas do vestibular.
Parte-se de uma concepção de que estamos diante de uma prática política e de que esta está atrelada
a intervenções sobre situações concretas de uso e promoção de línguas.
2 PANORAMA GERAL
Primeiramente, a globalização nos compele a procurar uma integração sociolinguística
verdadeira e profunda, aceitando todas as línguas sem restrição nenhuma, respeitando os direitos
linguísticos plenos de todos os grupos, maiorias e minorias, tais como apregoados pela “Declaração
Universal dos Direitos Linguísticos”, promulgada em julho de 1996.
Em segundo lugar, cabe o registro de que no Brasil, apesar de devastador glotocídio em seus
500 anos de história, ainda existem, como é sabido, mais de 210 línguas, das quais 180 são
autóctones (indígenas) e aproximadamente 30 são alóctones (de imigração), o que caracteriza o
nosso país como naturalmente multilíngue. Além disso, “a história nos mostra”, assim diz Oliveira
(2000, p. 90), “que poderíamos ter sido um país ainda mais plurilíngue, não fossem as repetidas
investidas do estado (e das instituições aliadas, ou ainda a omissão de grande parte dos intelectuais)
contra a diversidade cultural e linguística”. Ainda de acordo com Oliveira (2007, p. 7), no prefácio
da tradução para o português da obra de Calvet (2007), no Brasil, desde os tempos coloniais, a
ideologia da „língua única‟ talvez tenha camuflado essa realidade plurilíngue existente em nosso
país, o que parece ter limitado as questões empíricas e teóricas levantadas pelos estudiosos das
políticas linguísticas. Sabe-se, no entanto, que o sul do Brasil, contexto onde se inscreve a UFSC, é
intensamente marcado por essa pluralidade linguística alóctone ainda nos dias atuais, um verdadeiro
reservatório de potenciais falantes de línguas ditas „minoritárias‟.3
3
No caso específico do alemão, segundo Kaufmann (2003, p. 29), fora da Europa, não existe lugar no mundo
com mais falantes dessa língua do que no sul do Brasil.
3
4
Portarias IPHAN N° 586, de 11 de dezembro de 2006 e IPHAN N° 274, de 03 de setembro de 2007.
4
possibilitando aos seus alunos do ensino de fundamental e médio a escolha entre quatro línguas
estrangeiras (a saber: inglês, espanhol, francês e alemão).
Em um segundo momento, para exemplificar a participação ativa da UFSC na discussão
específica de defesa e promoção das línguas de imigração mais representativas no sul do Brasil,
houve um Projeto Piloto desenvolvido ao longo de quatro anos, durante a década de 80, em parceria
com a Secretaria de Educação do Estado de Santa Catarina, no contexto de reintrodução de línguas
estrangeiras modernas nas escolas de SC, em atendimento às prerrogativas da LDB (Lei de
Diretrizes e Bases) (quanto a uma segunda língua estrangeira). O projeto proporcionou formação
(em caráter emergencial) para professores de Língua Estrangeira atuantes nas mais diversas
localidades de nosso Estado, e, além disso, tinha também como objetivo proporcionar campo de
trabalho para os licenciados, uma vez que a Secretaria acenava com a possibilidade de abertura de
concursos públicos.
Passada mais de uma década, percebeu-se que continuava existindo uma demanda local
reprimida nas comunidades de colonização estrangeira em termos de oferecimento de línguas em
todas as escolas. Além disso, como muitos desses professores de língua estrangeira já atuantes não
tinham formação superior plena (uma exigência do Ministério da Educação) e não poderiam se
deslocar para a capital para obtê-la, no início dos anos 2000, e aí nos parece mais interessante ainda,
a UFSC novamente foi pioneira e montou outro grande projeto, dessa vez de formação superior
extra-campus (MAGISTER LETRAS), respectivamente, nas localidades de Jaraguá do Sul e
Ibirama (para 2 turmas de 40 alunos de Licenciatura Letras-Alemão) e de Rodeio e Criciúma (para
2 turmas de 40 alunos de Licenciatura Letras-Italiano), respeitando as especificidades étnico-
linguísticas de cada região.
A UFSC inovou igualmente com a introdução do Curso de Letras-LIBRAS, o primeiro do
Brasil, o que demonstra mais uma vez o quanto a nossa Universidade está comprometida em
atender o que preconiza a “Declaração Universal dos Direitos Linguísticos”, marcadamente para as
minorias linguísticas. Este curso já formou a sua primeira turma em 2010 e atende atualmente, em
duas turmas na modalidade EaD, mais 782 alunos, sendo também oferecido novamente na
modalidade presencial, onde 52 alunos estão matriculados em duas turmas.
Para não elencar apenas as instanciações de promoção de formação de professores de
línguas consideradas minoritárias, a UFSC está incentivando igualmente a formação universitária
extra-campus de professores de língua espanhola e inglesa. Em 2007, por exemplo, foi criado o
curso Licenciatura Letras Espanhol, na modalidade a distância, no qual estão matriculados
5
atualmente 280 alunos, já contemplados os da segunda turma. Ainda em 2009 iniciou o Curso de
Letras Inglês, atualmente com 116 alunos, também na modalidade EaD.5
Em linhas gerais, todas essas iniciativas da UFSC levam a crer que ela é uma universidade
comprometida com a promoção de um plurilinguismo, respeitando um equilíbrio entre todas as
línguas, administrando o status de cada uma delas nos diferentes contextos em que se insere a
instituição, cumprindo, portanto, sua função social.
Mas a gestão plena desse plurilinguismo parece estar diante de uma contradição quando
inserida no presente debate em torno das línguas oferecidas no vestibular, onde se questiona a
viabilidade de manutenção de todo o leque atual (alemão, francês, italiano, espanhol e inglês).
5
Dados obtidos no registro do CAGR/DAE/UFSC, em outubro de 2011.
6
mesmo que essa língua não atinja uma “representatividade” significativa em termos estatísticos
(consequentemente talvez não justificável economicamente), se comparada com línguas como o
inglês e o espanhol.
No caso específico da UFSC, com a sua política de inclusão de minorias nos últimos
vestibulares (sistema de cotas), o fato de, no seu vestibular de 2008, apenas 1,28% dos inscritos
(394) terem optado pelas línguas alemão, francês ou italiano não deveria constituir uma “minoria
outra”, para a qual os parâmetros de inclusão não deveriam valer. Os critérios de inclusão são
outros, mas o que está por trás certamente não é.
A UFSC oferece cinco licenciaturas em língua estrangeira moderna, um número bastante
considerável e que vai ao encontro das demandas multiculturais e linguísticas que caracterizam o
nosso país, bem como das tendências globais. Nesse sentido, a manutenção e mesmo a ampliação
do leque de línguas oferecidas nas suas mais diferenciadas instâncias discursivas não deveriam ser
limitadas logo no vestibular, que é, afinal, a porta de acesso, o seu cartão de visitas.
Se a UFSC se articula, além das línguas já citadas, em um amplo leque de línguas
estrangeiras, por exemplo, na oferta de Japonês, Chinês, Português para Estrangeiros e LIBRAS nos
cursos extracurriculares, no âmbito do Programa PET também para cinco línguas, igualmente nos
mais diversos intercâmbios multinacionais (ver listagem dos convênios na página do
SINTER/UFSC), nos convênios de negócios, na assessoria à formação de escolas bilíngues, no
estreito relacionamento com o IPOL, na abertura de possibilidades de estágio para os seus
licenciados em línguas estrangeiras, na oferta de licenciaturas à distância, principalmente a de
Letras-LIBRAS com toda sua repercussão de inclusão, entendemos que não deve ser justamente no
vestibular que toda essa pluralidade passe a ser restringida.
Em uma das tabelas fornecidas pela COPERVE, aparecem as médias obtidas pelos alunos
inscritos nas respectivas línguas estrangeiras em seu vestibular, mostrando que, nos oito anos antes
de 2008, as médias alcançadas em alemão, italiano e francês superam as obtidas em espanhol e
inglês. A comissão responsável pelo levantamento estatístico sugere que isso talvez seja indício de
uma possível “vantagem” aos candidatos que optam por essas línguas. Pensamos que as razões para
tal deveriam ser melhor pesquisadas antes de se tomar uma decisão no sentido de eliminar essas
línguas do vestibular pelo simples fato de parecer que o aluno que opta por elas leve vantagem em
relação aos tantos que optam por inglês e espanhol. Se esse critério fosse válido, também poder-se-
ía considerar “uma vantagem” para aqueles alunos que fizeram um segundo grau regular em relação
àqueles que cursaram uma escola técnica, por exemplo, onde pouca ênfase é dada às ciências
7
biológicas e da terra. Isso sem considerar o abismo de “vantagens” entre aqueles provindos de
escolas públicas em relação àqueles que estudaram em escolas particulares.
Em mais outra tabela fornecida aparecem os dados referentes às opções de língua estrangeira
de vestibular dos inscritos nas habilitações em Letras Alemão, Letras Francês e Letras Italiano,
novamente indicando que a opção pelas respectivas línguas é bastante baixa. No entanto, se
pensarmos que o quesito língua específica não é nem exigido para os ingressantes nessas
habilitações (basta ver o Edital), esse argumento também não se sustenta. Novamente nesse aspecto
poderíamos apelar para os direitos constitucionais do vestibulando e para a Declaração Universal
dos Direitos Linguísticos, uma vez que a opção por querer estudar uma determinada língua não está
atrelada à condição de se valer de outra para conseguir ter acesso a isso.
6 CONCLUINDO
Acreditamos que as considerações gerais apontadas no começo deste documento em relação
à importância do plurilinguismo em nível mundial e local (mais precisamente na UFSC) na
atualidade, assim como as observações em relação aos documentos e a análise mais criteriosa dos
dados estatísticos fornecidos pela administração do vestibular da UFSC constituem claras
evidências de que as línguas alemã, italiana e francesa devam ser mantidas no vestibular da UFSC,
e, inclusive, ampliadas.
Já a possibilidade de exposição desta argumentação no âmbito de um evento como este
certamente contribuirá para que os colegas da UFSC e das outras universidades nas quais a oferta de
línguas “minoritárias” ainda acontece nos seus respectivos vestibulares fiquem atentos para que as
tomadas de decisão para sua eliminação (é, afinal, uma tendência inegável, e infelizmente parece
estar associada principalmente a questões econômicas)6 não deixem de passar por uma discussão
mais ampla, envolvendo nela pessoas comprometidas com os direitos linguísticos plenos da
comunidade em geral. Na UFSC tivemos a chance de nos fazer ouvir no fórum deliberativo
enquanto voz do Departamento de Língua e Literatura Estrangeiras e de todo o Centro de
Comunicação e Expressão, mais o Colégio de Aplicação. Talvez em um lance de pura sorte, cujos
detalhes não cabem ser explorados aqui. Mas acreditamos que, uma vez que nos posicionamos
enquanto departamento a favor da manutenção das línguas alemã e italiana (por razões identitárias,
por terem um papel e um lugar inegável na sociedade catarinense e sul-brasileira) e também a
6
Em Santa Catarina, por exemplo, a ACAFE, fundação responsável pelo vestibular aplicado em 16
universidades e fundações universitárias catarinenses, em 2005, retirou de seu vestibular as línguas alemão,
francês e italiano, sem qualquer consulta à comunidade, simplesmente alegando razões financeiras.
8
francesa no nosso vestibular, nos tornamos visíveis e podemos contribuir, tanto em termos teóricos
como políticos, no desenrolar dessa discussão.
Calvet (2007, p. 36) chama a atenção que na política linguística há também política e que as
intervenções na língua ou nas línguas têm um caráter eminentemente social e político. E ele nos
lembra que “se as ciências raramente estão ao abrigo de contaminações ideológicas, a política e o
planejamento linguístico não escapam à regra.” Entendemos que algumas escolhas que
aparentemente pouca relação têm com o que classicamente entendemos por “política linguística”
podem sim disparar efeitos marcantes nos sentimentos linguísticos, nas relações que os falantes
estabelecem com as línguas de seu convívio diário, na própria função das línguas. Existe afinal um
laço estreito entre língua e sociedade.
7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CALVET, L.-J. As políticas linguísticas. Coleção: Na Ponta da língua 17. Tradução: Duarte,
I. O., Tenfen, J., Bagno, M. São Paulo: Parábola Editorial, 2007.
RESUMO
O medo requer silêncio como enunciação. Em Santa Catariana está situado o Vale do Rio do
Peixe que durante o Estado Novo (1937-1945), sofreu forte ingerência da política nacionalista
brasileira. Isso interferiu de modo decisivo na vida dos descendentes de migrantes italianos
daquela região que tiveram a sua identidade étnica e cultural “arrancadas”. O Estado, em re-
definição, objetivava gerar nos migrantes estrangeiros uma nova identidade “a brasileira” em
zonas de colonização estrangeiras. Para atingir o objetivo de impor a língua nacional, o inter-
ventor, Nereu Ramos tomou diversas medidas de cunho repressivo (coerção física direta) e de
domínio (educação) para que a língua portuguesa substituísse a língua dos “estrangeiros”.
Este trabalho objetiva apresentar pesquisa via memória indicando como estas medidas, hoje,
entre os remanescentes da experiência, reverberam e tem como tática o silêncio. Corolário de
pesquisa de mestrado, os resultados indicam uma tensão ainda, hoje, existente nos idosos en-
trevistados corporificada no medo e na negação da memória daqueles momentos.
Palavras-chave:
Memória. Medo. Língua Italiana.
ABSTRACT
Fear requires silence as enunciation. Santa Catarina is situated in the Vale do Rio do Peixe
that during the Estado Novo (1937-1945), was strongly interfered by brazilian nationalist po-
litical. This has interfered in a decisive way the lives of descendants of Italian migrants in the
region that had their ethnic and cultural identity "plucked". The State, in reconstruction,
aimed to generate in foreign migrants in areas of foreign colonization a new identity, "the
brazilian" one. To achieve the goal of imposing a national language, the intervening, Nereu
Ramos, took various measures of repressive nature (direct physical coercion) and domain (ed-
ucation) to replace the Portuguese language to the foreigners. This paper aims to present re-
search via memory indicating how these measures remains until today the remanants of expe-
rience and has reverberating silence as a tactic. Corollary master's research, the results indi-
cate a tension that exists until today in the interviewed elderly embodied in fear and denial of
the memory of those moments.
Keywords:
Memory. Fear. Italian language.
1
Maristela Fátima Fabro é graduada em licenciatura e bacharelado em Ciências Sociais pela Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC), especialista em Ciência da Educação, pela Universidade do Sul de Santa
Catarina (UNISUL), mestre e doutoranda em Sociologia Política PPGSP pela Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC); bolsista (CAPES/REUNI); e-mail: maristelafabro@hotmail.com.
2
1 APRESENTAÇÃO
O presente artigo tem como objetivo avaliar as implicações causadas pela imposição
da cidadania “brasileira” nos descendentes de migrantes italianos instalados no Vale do Rio
do Peixe em Santa Catarina.
No meio oeste catarinense está situado o Vale do Rio do Peixe, uma região com forte
migração de descendentes de italianos e alemães que passaram a ser considerados “inimigos
internos” por manterem a sua cultura de origem italiana.
O período destacado em nossos estudos para esta análise são os anos de 1937 até 1945,
durante o Estado Novo. O Presidente brasileiro era Getúlio Vargas, que comandava o país
com “mão de ferro”. Um de seus objetivos era garantir a soberania nacional, nacionalizando o
país. Para isso, tomou diversas medidas que afetariam, principalmente, a vida dos estrangeiros
que residiam no sul do país e que não usavam a língua portuguesa para se comunicar.
Em Santa Catarina, Getúlio Vargas nomeou para seu interventor Nereu Ramos que
ajudou a promover a nacionalização, principalmente, na área educacional, utilizando a escola,
o professor e os inspetores escolares.
Dessa maneira, a política de nacionalização que atingiu a educação foi uma das princi-
pais medidas do governo de Getúlio Vargas durante o Estado Novo e interferiu de modo deci-
sivo na vida dos migrantes italianos e seus descendentes. Muitos já haviam nascido em solo
brasileiro, contudo, mantinham a cultura e a língua materna italiana.
Assim, por consequência, o medo de falar a língua italiana passou a ser o cotidiano
dos migrantes e descendentes estrangeiros instalados no sul do país, muitos passaram a não
mais sair de suas casas e a evitar falar em lugares públicos.
Este trabalho objetiva apresentar pesquisa via memória, indicando como estas medi-
das, ainda hoje, reverberam sobre os remanescentes da experiência e que usam como tática o
silêncio.
Por corolário de pesquisa de mestrado, os resultados indicam, nos dias de hoje, a exis-
tência de uma tensão entre os idosos entrevistados, resquícios do medo sofrido naquele perío-
do. Foram realizadas 16 entrevistas, sendo 4 homens e 12 mulheres, com idade entre 72 a 80
anos. Sob a orientação da professora Drª Elizabeth Farias da Silva e está inserido na temática
do Núcleo de Pesquisa “Projetos globais e o estranho. Situações locais e o diverso”, registrado
junto ao CNPQ.
3
2
Nomes atuais dos municípios. É composto por diversos municípios destacando-se: Joaçaba, Herval D´Oeste,
Caçador, Rio das Antas, Videira, Tangará, Luzerna, Lacerdópolis, Pinheiro Preto, Piratuba, Capinzal, dentre
outros.
5
Grande do Sul, que passa em terras catarinenses. O mapa 1 mostra o traçado da estrada de
ferro, cortando o estado de Santa Catarina e seguindo o curso do Rio do Peixe.
Mapa 1: Vista Parcial do estado de Santa Catarina que é cortado pelo Rio do Peixe e pela Malha Viária da Estra-
da de Ferro
Fonte: Santos (2000, p. 17)
Fiori (1991, p. 100) relata que, “No Estado de Santa Catarina, os núcleos populacio-
nais de imigrantes estrangeiros desenvolveram-se, quase sempre, relativamente isolados geo-
graficamente e distantes do contato com as populações brasileiras”, assim, a língua materna
permaneceu como língua falada; muitos desconheciam a língua portuguesa. Com a implemen-
tação da política de nacionalização, a escola passa ter outra função, a de “moldar uma nova
cidadania” para os nascidos em solo brasileiro que ainda mantinham outra cultura, outra lín-
gua.
4 A ESCOLA NACIONALISTA
Para “moldar os estrangeiros” e fazer com que eles se tornassem os “verdadeiros brasi-
leiros”, a escola foi utilizada. A manipulação dos corpos e mentes, a introdução da educação
física para “moldar o corpo” e o ensino dirigido, fundamentais para a nacionalização das cri-
anças descendentes de migrantes europeus não ibéricos.
Fiori (2003, p. 13) aponta: “a política imigratória nacional, todavia, não incluía preo-
cupações educacionais, e, assim, as zonas de colonização estrangeira apresentavam-se caren-
tes de estabelecimento públicos de ensino [...]”.
6
Muitas famílias que chegavam a Santa Catarina vinham com filhos, muitos, em idade
escolar. Assim, com a formação das pequenas vilas, havia a necessidade de construção da
igreja, do cemitério e da escola.
Desse modo, os próprios migrantes eram os responsáveis pelas escolas e o professor
era alguém da própria comunidade. Seyferth (1999, p. 292), aponta que a escola alemã tinha
como finalidade, “[...] atender às necessidades de ensino elementar de uma população estran-
geira, mas aos poucos tomou uma feição étnica, assumida na configuração da etnicidade como
instrumento da germanidade e perpetuadora da língua e cultura alemã”. Reforça, “nessa pers-
pectiva, objetivava educar os filhos dos imigrantes como cidadãos brasileiros pertencentes à
etnia (ou nação) alemã, dando-lhes uma consciência étnica [...]”.
Assim, as crianças educadas em escolas mantidas pelos migrantes, aprendiam a língua
os costumes do país de ascendência, sendo esse um fator de interesse cada vez maior na cria-
ção de escolas particulares que se proliferaram em zonas de colonização estrangeiras. Nesse
sentido, segundo Monteiro (1979, p. 2) “[...] para milhares de brasileiros, o desconhecimento
de nossa língua, de nossa história, de nossa geografia, de nossa cultura”.
Segundo Campos (2008, p. 240) em Santa Catarina, o interventor Nereu Ramos, ado-
tava uma posição centralizadora, que tinha por eixo central de sua política, a normalização da
língua sobre imigrantes, e grifa que “se pode identificar, na prática de imposição do uso da
língua nacional, os elementos de um verdadeiro culto à linguagem”.
Esses fatores faziam com que a nacionalidade brasileira fosse desconhecida para mui-
tos migrantes e descendentes. Muitos pais só aceitavam se os professores fossem da mesma
origem, garantindo o repasse da cultura do seu país de origem (CAMPOS, 2008).
As primeiras medidas de nacionalização ocorrem no início dos anos 30, segundo des-
taca Seyferth, (2003, p. 57) “A campanha de nacionalização brasileira planejava „erradicar as
influências externas‟ através da assimilação compulsória dos descendentes de imigrantes, que
se encontravam etnicamente diferenciados”, atingindo assim todas as etnias não brasileiras, ou
seja, “abrasileirar uma população considerada estrangeira, à força, se necessário”.
Em Santa Catarina, o Interventor Nereu Ramos, sancionou de diversos decretos esta-
duais, impôs maior eficiência na nacionalização do ensino, o principal método utilizado foi a
proibição do ensino da língua de origem dos migrantes, o qual tinha o sua validade assegurada
pelo Decreto-Lei nº88, de 31 de março de 1938, que estabelecia as normas relativas ao ensino
primário, em escolas particulares no Estado. (PIAZZA; HÜBENER, 1983).
Seyferth (1999, p. 211) reforça sobre o processo de nacionalização:
7
Ao entrar na aula.
Bom dia! Bom dia!
Começa o labor,
Produz alegria
Do estudo o fervor,
Meu mestre, meu guia,
Meu bom professor!
Ninguém de improviso
Consegue saber.
Na vida é preciso,
Lutar, aprender,
Quem fica indeciso
Não pode vencer.
É vão todo o ensino
Que a Deus não conduz;
Por isso me inclino,
Pedindo que a luz
Do auxílio divino
Me tragas Jesus!
(AFONSO CELSO, p. 43).
3
Foi mantida a escrita original do texto.
8
Capelato (1998, p. 228-229) cita várias lições do livro “O Brasil é bom4” que eram di-
recionadas ao propósito de reeducar as crianças:
4
Não foi localizada autoria da obra e data de publicação do mesmo. “O Brasil é bom” é uma obra de caráter
didático, descrito por Capelato, O Brasil é bom, DNP, 1938.
9
Desse modo, Durkheim (1978, p. 41) grifa que, a educação é o meio em que a criança
é preparada para garantir a sua existência, é essencial no desenvolvimento de toda uma socie-
dade, e que:
A educação é ação exercida, pelas gerações adultas, sobre as gerações que não se
encontram ainda preparadas para a vida social, tem por objetivo suscitar e desenvol-
ver, na criança, certo número de estados físicos, intelectuais e morais, reclamados
pela sociedade política, no seu conjunto, e pelo meio especial a que a criança, parti-
cularmente, se destine.
Segundo Durkheim (1984, p. 69): “[...] muito longe da educação ter por objectivo úni-
co e principal o indivíduo e seus interesses, a educação é antes do mais, o meio pelo qual a
sociedade renova perpetuamente as condições próprias de sua existência”. E reforça:
Foucault (1986, p. 125) reforça sobre o uso do corpo como um “objeto e alvo do po-
der” e reforça que “Encontraríamos facilmente sinais dessa grande atenção dedicada então ao
corpo - ao corpo que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil
ou cujas forças se multiplicam” e que:
Os professores nas escolas públicas utilizavam a língua nacional para o ensino. Com o
decreto 88 – já mencionado – alterou-se o ensino nas demais escolas, os professores tiveram
10
que se adaptar. Caso a escola não cumprisse a lei, ela seria fechada e em muitos casos aberta
outra em seu lugar.
Para garantir que fossem cumpridas as normas criou-se o cargo de inspetor escolar,
suas funções eram: de visitar, fiscalizar e orientar todas as escolas nos aspectos administrati-
vos e pedagógicos, além de fiscalizar e garantir que o ensino fosse realizado em língua nacio-
nal. (FIORI, 1991). A criação da Inspetoria Geral de Escolas Particulares e Nacionalização do
Ensino está descrita no Decreto-Lei 124 de 18 de junho de 1938.
Para os entrevistados os inspetores escolares deixaram lembranças, como relata Zelinda
(2010): quando “[...] vinha o inspetor daí nós ganhava réguada se não fazia como ele queria.
Se falava em italiano na escola ele brigava”. Mafalda (2010) relata: “Vinha o inspetor que
vinha ver, o inspetor vinha ver as provas. O inspetor dizia que na margem não se escreve, ele
era brabo, exigente”. Duzolina (2010) lembra que:
O inspetor escolar era muito brabo, ele repreendia ela, porque ela (a professora des-
cendente de italianos) não sabia pronunciá bem, um dia ela foi ler uma frase e leu e
errou a pronuncia, o inspetor repreendeu ela e ensinou falar correto. Sotaque em ita-
liano, uma palavra que não soube pronunciar, ela tinha pouco estudo, era pouco es-
tudada, mas era a única que tinha.
Segundo destaca Campos (2006, p. 19) “A prática interventora do Estado junto à soci-
edade foi tomada como parte do movimento dirigido para modificar comportamentos e senti-
mentos dos indivíduos na sua vida cotidiana. [...] Isso implicou uma nova relação estabelecida
entre o Estado e a sociedade”, esse movimento nacionalista atingiu diversas instituições, des-
taca-se a família, a escola, os espaços de trabalho e o lazer.
Assim, as crianças foram aprendendo a nova língua e ensinando em casa, contudo, os
mais idosos tinham maiores dificuldades em aprender o novo idioma. Desse modo, o silêncio
e o medo passaram a fazer parte de cotidiano destes “estrangeiros”.
5 O MEDO E O SILÊNCIO
Segundo Seyferth (2003, p. 57), muitos imigrantes e descendentes passaram a se iso-
lar, com medo de prisões ou represálias pela descendência estrangeira e por falarem outra
língua que não a nacional.
Segundo Fáveri (2005, p. 43): “Em Santa Catarina, como em todo o país, alemães,
italianos, japoneses e descendentes foram alvos suspeitos na mira da população e da polícia, o
que oportunizava, então enfrentamentos étnicos”.
11
Muitos adultos passaram a evitar o contato em locais públicos com os brasileiros, como
comunicar-se em outra língua fosse um crime5. Perazzo (2009, p. 26) grifa que “Em busca
desse projeto nacional-moderno, de cunho autoritário e nacionalista, o Estado Novo identifi-
cou e perseguiu aqueles que foram considerados „perigosos à segurança nacional”.
A proteção dos pais para com os filhos era evidente, assim como o medo e a preocupa-
ção com a represália por parte das autoridades e dos próprios brasileiros. Percebe-se nos rela-
tos dos entrevistados:
Pedro (2009):“O pai exigia que nós não falassem em italiano ou falasse bem baixi-
nho na vila, em casa tudo em italiano”.
Luíza (2010) conta que sua mãe dizia para aprender a falar em brasileiro.
Zelinda (2010) rememora que a mãe dizia para ele se cuidar.
Mafalda (2010): “A mãe dizia para cuidar porque o cara vinha escutar; podia ser
preso”.
A utilização do poder via coerção física, foi um dos modos encontrados para que o po-
der local, por meio de seus “espiões”, garantisse a nacionalização de todos os estrangeiros.
Como conta a entrevistada Inês (2010): que o homem espiava à noite, mas de dia era amigo
de sua família. Os espiões estavam a todo o tempo escutando atrás da porta, pelas frestas ou
pelas janelas; qualquer pessoa que falasse em língua que não fosse a portuguesa era entregue
ao inspetor de quarteirão. Outros relatos dos entrevistados:
5
Orlandi (2009, p. 113) escreve que havia o conceito de crime idiomático criado no Estado Novo que se apoiava
em decreto do Estado sobre a língua que deveria ser falada. Ver Decreto-Lei 88 de 31 de março de 1938.
12
Silenciar foi à tática encontrada por muitos; apenas ouvir ou sussurrar; essa foi a media-
ção para um momento tão delicado. Orlandi (1992, p. 31-32) descreve sobre a política do si-
lêncio, o silenciamento:
Aí entra toda a questão do „tomar‟ a palavra, „tirar‟ a palavra, obrigar a dizer, fazer
calar, silenciar, etc.
Em face dessa sua dimensão política, o silêncio pode ser considerado tanto como
parte da retórica da dominação (a da opressão) como de sua contrapartida, a retórica
do oprimido (a da sua resistência).
Assim, como o silêncio, que dura até hoje: a memória restringe os fatos que são conta-
dos, a lembranças dos fatos acontecidos no passado muitas vezes traz dor e tristeza. Dessa
maneira, Orlandi (1992, p. 51) o “[...] o silêncio não é interpretável, mas compreensível”, esse
silêncio atingiu inclusive os espaços privados e as relações mais íntimas dos lares e das rela-
ções familiares.
Segundo Orlandi (1992, p.52), “Compreender o silêncio é explicar o modo pelo qual ele
significa”. Explicar o silêncio refletido na necessidade de sobrevivência. A campanha nacio-
nalista por meio da força atingiu seu objetivo de impor uma nova cidadania para os conside-
rados “estrangeiros”.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decorrer desta pesquisa analisamos os fatos acontecidos durante o Estado Novo
(1937-1945) em Santa Catarina, com destaque para o Vale do Rio do Peixe, uma região com
forte migração de alemães e italianos.
Com o Estado Novo (1937-1945) veio à política de nacionalização imposta pelo presi-
dente Getúlio Vargas. Em Santa Catarina, sob o comando do Interventor Nereu Ramos utili-
zou diversas medidas de cunho repressivo e de domínio para que todos seguissem as “regras”
demandas pelos governantes.
As medidas educacionais foram repassadas às escolas e às novas gerações de descen-
dentes de migrantes estabelecidas em Santa Catarina. O objetivo era impor a cidadania brasi-
leira às crianças utilizando a sala de aula como instrumento. Assim, ocorreu a utilização do
corpo como “objeto de poder” e a disciplina ia incutindo esses novos ideais.
O fator mais incômodo era a língua falada de ascendência dos migrantes. O poder de
imposição dos diversos decretos estaduais fez com que a língua nacional substituísse gradati-
vamente a língua estrangeira.
Os mais novos iam aprendendo em sala de aula e repassando às gerações mais velhas,
que já não estavam mais na escola. Os mais idosos tiveram maior dificuldade na aprendiza-
13
gem, como consequência, para evitar prisões e represálias, muitos ficavam restritos as suas
casas. Os que tinham necessidade de ir à cidade ou de se comunicar com outros brasileiros
foram obrigados a aprender a nova língua rapidamente.
Assim, a utilização do poder via coerção física, ocorrida sobre as gerações de estran-
geiros aqui nascidos, por meio de seus “espiões”, foi um dos modos encontrados para que o
poder local realizasse a nacionalização do país.
Nessa questão de quem tem o poder e de quem podia falar, muitos utilizaram como tá-
tica ou defesa o silêncio, um silêncio que por muitas vezes perdurou não só no tempo, mas na
rememoração durantes as entrevistas. Assim, utilizando Orlandi (1992, p. 33, destaque do
autor) [...] o silêncio não fala. O silêncio é. Ele significa. Ou melhor: no silêncio, o sentido é.”
As decisões políticas sobre seus usos em Santa Catarina, fez com que esse novo brasi-
leiro fosse emergindo dentro de uma cultura e deixasse a sua língua de ascendência para falar
a língua nacional. Isso foi seguido à risca por muitos, os pais passaram a falar e a ensinar aos
filhos somente a língua portuguesa.
Desde 20 de dezembro de 1996 com Lei n° 9.394 o Estado-Nação brasileiro assume a
pluralidade cultural, no Capítulo II, artigos 266, entretanto, ironicamente os remanescentes de
um período de autêntica pluralidade cultural não querem relembrar e/ou falar sobre ele.
Dessa maneira, a complexidade deste passado contido nas memórias de muitos des-
cendentes de migrantes sobreviventes e testemunhas do período podem ser analisadas neste
trabalho graças ao medo e decorrente silêncio. Os entrevistados da pesquisa demonstraram o
que era ser considerado um “estrangeiro” durante o período nacionalista via o sentido do si-
lêncio.
7 REFERÊNCIAS
CAMPOS, Cyntia Machado. A política da língua na era Vargas: proibição de falar alemão
e resistências no Sul do Brasil. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2006.
6
Art. 26. Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional comum, a ser complemen-
tada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas caracterís-
ticas regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela.
§ 4º O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a for-
mação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e européia.
§ 5º Na parte diversificada do currículo será incluído, obrigatoriamente, a partir da quinta série, o ensino de pelo
menos uma língua estrangeira moderna, cuja escolha ficará a cargo da comunidade escolar, dentro das possibili-
dades da instituição.
14
DURKEIM, Émile. Educação e sociologia. 11. ed. São Paulo. Melhoramentos. 1978.
FÁVERI, Marlene de. Memórias de uma (outra) guerra: cotidiano e medo durante a Se-
gunda Guerra em Santa Catarina. 2. ed. Itajaí. E. Univali; Florianópolis: Ed. da Ufsc, 2005.
FIORI, Neide Almeida. Aspectos da Evolução do Ensino Público: ensino público e política
de assimilação cultural no Estado de Santa Catarina nos períodos Imperial e Republicano. 2
ed. ver. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1991.
______, Neide Almeida. Etnia e educação: a escola “alemã” do Brasil e estudos congêneres.
In: FIORI, Neide Almeida (org.). Florianópolis: Editora da UFSC, Tubarão Editora UNISUL,
2003.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 4 ed. Petrópolis: Vozes, 1986.
MACHADO, Roberto. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 25 ed. Rio de Janei-
ro: Graal, 2008, p. VII–XXIII.
______, Eni P. O discurso sobre a língua no período Vargas (Estado Novo 1937 1945). In.
Língua Brasileira e Outras Histórias: Discurso sobre a língua e ensino no Brasil. Campi-
nas: Editora RG, 2009, p. 113-119.
PIAZZA, Walter Fernando; HUBENER, Laura Machado. Santa Catarina: história da gente.
Florianópolis: Ed. Lunardelli, 1983.
RADIN, José Carlos. Italianos e comunidades rurais no Oeste Catarinense, BENEDET, José
H. e MILANI, Maria L. Facetas da colonização italiana: Planalto e Oeste catarinense. Joa-
çaba: UNOESC, 2003, p. 19-121.
SANTOS, Silvio Coelho (org.). Santa Catarina no Século XX: ensaios e memória fotográfi-
ca. Florianópolis: Editora UFSC: FCC Edições, 2000, p. 7-61.
Livros de Leitura
PRIMEIRO Livro de Leitura. Série Fontes. Florianópolis. Tip. Livraria Central. 1945.
TERCEIRO Livro de Leitura. Série Fontes. Florianópolis. Tip. Livraria Central. 1939.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo
“Quanto mais leio tenho a impressão de que tudo está aí dentro, do perfume mais discreto da vida ao
sabor pleno e forte de seus frutos mais pesados”.
RESUMO
A linguagem, no pensamento bakhtiniano, vem a ser uma prática entre sujeitos e suas relações
com a história e não um sistema estável, pois ela estabelece um lugar na história das
formações ideológicas e daqueles que fazem parte dela, ou seja, a formação de um campo
epistemológico que leva em conta a teoria do sujeito e do sentido como produção e/ou
produtos na/da/pela linguagem. Portanto, convencido de que a Filosofia Bakhtiniana da
Linguagem é um lugar epistemológico de intensa construção e reconstrução de atos únicos,
irrepetíveis e insubstituíveis, propondo um deslocamento em direção de uma pesquisa, de uma
busca constante de dispositivos ou possibilidades dos/das quais se originam o(s) sujeito (s) e
o(s) sentido(s), organizei este artigo em duas partes. A primeira sobre o conceito de exotopia e
as categorias de distanciamento exotópico – a relação entre autor e herói. A segunda diz
respeito à análise da parte introdutória do memorial acadêmico – gênero discursivo, apoiado
na modalidade da escrita autobiográfica –, enfatizando a relação exotópica na autobiografia. É
importante ressaltar que este artigo não é uma análise plenamente elaborada, mas antes um
exercício de interpretação e de leitura conceitual, isto é, algo que foi vivenciado
academicamente como uma escolha epistemológica de pesquisa para área das Ciências da
Linguagem.
Palavras-chave:
Filosofia bakhtiniana da linguagem. Exotopia. Escrita autobiográfica. Memorial acadêmico.
Gênero discursivo.
RÉSUMÉ
La conception du langage chez Bakhtin prend en compte la pratique entre les sujets et ses
relations avec l’histoire et pas un système estable, car il établi un espace dans l’histoire des
formations idéologiques et ceux qui y font partie, c’est-à-dire: la formation d’un champ
épistémologique qui met en évidence la théorie du sujet et du sens en tant que production
et/ou produits dans/ du/ par le langage. Donc, la Philosophie Bakhtinienne du Langage est un
milieu épistémologique d’intense construction et reconstruction de actes uniques, répétables et
irremplaçables, proposant un déplacement en direction d’une recherche incessante de
dispositifs ou possibiltés duquels ou desquelles s’originent le (s) sujet(s) et les sens, j’ai
organisé cet article en deux moments. Le premier à propos du concept d’exotopie et les
catégories d’éloignement exotopique – le rapport entre héros et auteur. La deuxième concerne
à analyse de l’introduction du mémorial académique – genre discursif de l’écriture
1
Artigo elaborado na disciplina Bakhtin e o Círculo: dialogismo e polifonia, ministrado pela Prof.ª Drª Beth
Brait e Prof.ª Drª Norma Campos Discini, do Departamento de Semiótica, da Universidade de São Paulo.
2
Mestre em Letras (UFSM). Professor no Departamento de Língua e Literatura Vernáculas da Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC); e-mail: bsiger@yahoo.com.
2
Mots-clé:
Philosophie bakhtinienne du langage. Exotopie. Écriture autobiographique. Mémorial
académique. Genre discursif.
1 INTRODUÇÃO
Convencido de que a Filosofia Bakhtiniana da Linguagem é um lugar epistemológico
de intensa construção e reconstrução de acontecimentos (atos) únicos, propondo um
deslocamento em direção de uma pesquisa, de uma busca constante de dispositivos ou
possibilidades dos/das quais se originam o(s) sujeito (s) e o(s) sentido(s), organizei este artigo
em duas partes: a primeira sobre o conceito de exotopia e as categorias de distanciamento
exotópico – a relação entre autor e herói. A segunda parte diz respeito à análise da parte
introdutória do gênero discursivo memorial acadêmico, enfatizando a relação exotópica.
Foi o teórico da linguagem Tzvetan Todorov quem traduziu do russo para língua
francesa a expressão exotopie quando organizava e sistematizava as obras de Mikhail Bakhtin
para o Ocidente, mais precisamente para o contexto francês hexagonal (AMORIM, 2008). A
expressão, por definição dicionarizada, significa “o desdobramento de olhares a partir de um
lugar exterior; olhar externo; visão que o outro tem de mim e que não posso ter”. Já
etimologicamente a palavra exotopia é formada pelo prefixo "ex" que significa fora e "topos"
que significa. Esse conceito, do pensamento bakhtiniano, de se posicionar, de estar em um
lugar exterior tem sua origem na obra Pour une philosophie de l’acte, porém o texto de
referência é “O autor e o herói”, que faz parte do livro Estética da Criação Verbal
(AMORIM, 2008).
A criação estética pressupõe duas entidades constitutivas: a do autor e do herói3. O
autor, segundo Bakhtin, caracteriza-se pela sua objetividade estética, pois vê e sabe tudo e o
todo do herói, isto é, o todo da criação estética, inclusive da obra. Já o herói é aquele que se
orienta pela objetividade ético-cognitiva e seus atos estão no acontecimento aberto da vida e
não da arte. A objetividade estética, própria ao autor, configura-se como uma força
3
Neste trabalho, os conceitos-chave bakhtinianos têm como referência a edição e tradução brasileira de 1992 da
obra Estética e criação verbal. Na edição e tradução do russo para língua portuguesa, tais conceitos-chaves são
denominados como o autor e a personagem. Portanto, para os trabalhos vindouros de pesquisa e formação
docente levaremos em consideração a edição e tradução de 2010, de Paulo Bezerra.
3
[...] a exotopia é algo para se conquistar e, na batalha, é mais comum perder a pele
do que salvá-la, sobretudo quando o herói é autobiográfico, embora, esse não seja o
único caso; costuma ser tão difícil situar-se de fora daquele que é o companheiro do
acontecimento quanto fora daquele que é o adversário; tanto faz situar-se dentro do
herói, ao seu lado ou à sua frente, todas são posições que, do ponto de vista dos
valores, desnaturam a visão e não contribuem para completar o herói e lhe assegurar
o acabamento; em todos esses casos, os valores da vida triunfam sobre aqueles que
são depositários. A vida do herói é vivida pelo autor numa categoria de valores
diferente daquela que ele conhece em sua própria vida e na vida dos outros –
participantes reais do acontecimento ético aberto, singular e único, da existência –, é
pensada num contexto de valores absolutamente diferente.
próprios valores, um ponto de apoio estável e convincente fora do herói” (1992, p. 37). Na
segunda categoria, o autor tem domínio do herói e o princípio de acabamento está presente. A
relação autor e herói tende, em parte, a uma proximidade do herói consigo mesmo. Essa
categoria é a autobiografia, uma espécie de triunfo sobre a confissão, “um cotejo possível
com um diário íntimo” (DISCINI, 2009). Segundo Tezza, na autobiografia “o portador da
unidade da vida (herói) e o portador da unidade da forma (autor) pertencem ao mesmo mundo
de valores” (1996, p. 298). Portanto, a relação é de cunho axiológico. E a terceira categoria
diz respeito ao herói lírico que delibera ao autor o poder máximo de sua existência estética,
isto é, “o herói é seu próprio autor” (BAKHTIN, 1992, p. 192); ele pensa e organiza a vida do
herói com muita segurança como “num ato de cognição: a autor se aproxima do herói como
de um objeto de cognição” (DISCINI, 2009).
Como segundo estágio das reflexões anteriores, vamos fazer um breve exercício de
interpretação e/ou análise para trabalhar a relação exotópica na parte introdutória do memorial
acadêmico - gênero discursivo, apoiado na modalidade da escrita autobiográfica.
Primeiramente, definiremos memorial acadêmico no âmbito da produção textual/discursiva
acadêmica e, depois, analisaremos dois exemplos de memorial acadêmico.
O memorial acadêmico, gênero autobiográfico, tem sido considerado um instrumento
de avaliação para fins de concurso de ingresso na IFES, na promoção na carreira universitária
- professor titular ou livre-docente - e de exames de seleção ou de qualificação em cursos de
pós-graduação. Recorri ao manual Metodologia do trabalho acadêmico (2002), escrito por
Antônio Joaquim Severino, professor de Filosofia da Educação da Faculdade de Educação da
USP, para obter uma definição mais precisa e acadêmica sobre memorial acadêmico. Para o
autor do manual, o memorial, em linhas gerais, tem como finalidade articular a trajetória
acadêmico-profissional do pesquisador e/ou docente. Porém, mais adiante afirma que o
memorial “constitui, pois, uma autobiografia, configurando-se como uma narrativa
simultaneamente histórica e reflexiva” (SEVERINO, 2002, p. 175). Quanto ao processo de
produção e/ou escritura, o autor do memorial deve dar conta dos fatos e acontecimentos da
trajetória acadêmico-profissional, fazer uma avaliação das perdas e das contribuições das
etapas, situar os fatos e os acontecimentos no contexto histórico-cultural não só por sua
vontade ou omissão, mas por outras “determinações entrecruzadas de muitas outras variáveis”
(SEVERINO, 2002, p. 175).
No que tange, ainda, ao processo de elaboração do relato autobiográfico, é muito feliz
e revelador o que afirma Severino (2002, p. 175-176), a saber:
5
invistindo como autor na busca, no acabamento a partir de um outro que não está tão próximo
quanto o autor e herói autobiográfico.
O primeiro constrói, através do seu autor e/ou herói autobiográfico, sua
argumentação, afirmando seu apreço pelo gênero autobiográfico no que diz respeito à
avaliação institucional para docentes candidatos ao cargo de professor titular e toda mudança
promovida academica e administrativamente, a saber: “gosto de escrever relatórios; meu
encanto pelo gênero - e/ou apreensão – forma intrigante; o memorial, neste novo contexto,
pede um gesto capcioso; a impudência da escrita autobiográfica” (HOLLANDA, 2009, p. 27-
28). Tal preocupação ganha mais relevância quando as questões recaem sobre importância
repentina do memorial acadêmico para avaliar o capital intelectual do postulante ao cargo de
professor titular e, não muito distante temporalmente, considerado pela tradição literária como
gênero menor. Só depois de um longo passeio retórico, nomear o outro, pela figura do
filósofo e epistemólogo francês Georges Gusdorf, para ter o domínio daquilo que deveria
escrever sobre si mesmo, isto é, como deveria dar acabamento ao seu herói; de sua posição de
autor com a do herói. E para isso, afirma que “me restrinjo à noção gusdorfiana de que o
gênero autobiográfico representa a expressão da autoridade individual no reino da
linguagem.” (HOLLANDA, 2009, p.30) Mas cabe lembrar que “todo signo, inclusive o da
individualidade, é social”, nas palavras de Bakhtin (1995, p. 59). Portanto, o herói que está
sendo construído discursivamente é, antes de tudo, um ser social, ideológico e refratário a
qualquer acabamento interno.
O autor do memorial acadêmico declara: “sinto que a autobiografia revela fraturas,
intervalos, não de espaço e tempo ou entre individual e social, mas, sobretudo, uma clara
divergência entre forma e conteúdo de seu discurso” (HOLLANDA, 2009, p. 30). Acredito
que, nesse momento, o processo exotopia começa a ganhar forma e relevância, pois a
objetividade estética - propriedade do autor - configura-se como uma força centralizadora e de
acabamento da objetividade ético-cognitiva de propriedade do herói. Mais adiante, sempre
sob olhar de Gusdorf, também questiona sobre o distanciamento entre escritor (autor) e o
sujeito (o “eu”, o herói) requerido pela escrita autobiográfica e revela o seguinte: “O sujeito
que escreve é, portanto, suposto conhecer-se e o processo deste conhecimento é, na verdade,
um processo de diferenciação entre ele e os outros”. (HOLLANDA, p. 31). Ou ainda:
“Procuro localizar de que lugar da ordem simbólica vem esta visão de história de vida”.
Ainda sob o ponto de vista gusdorfiano, as reflexões do autor do memorial acadêmico,
sobre a composição do herói, tomaram o rumo da interferência e do poder que poderia
provocar a escrita autobiográfica no que diz respeito ao público e ao privado do herói na
7
narrativa. Observamos o que revela o autor: “Como, no momento, procuro uma forma de me
situar enquanto sujeito neste memorial, percebo, com uma certa perplexidade, as tensões que
experimento entre minha vida particular e minha atuação pública”. (HOLLANDA, 2009, p.
31). Nas próximas linhas e parágrafos seguintes faz algumas observações sobre as
autobiografias femininas, mas são comentários, reflexões, enfim, possibilidades de
interpretações.
No último parágrafo da parte introdutória, o autor do memorial primeiro conclui que a
sua posição como herói pode ocupar vários lugares na narrativa, vejamos: “Tenho a sensação
de que, em princípio, nesse memorial, poderia escolher me colocar em qualquer posição,
tomar qualquer partido.” (HOLLANDA, 2009, p. 32). Esta afirmação revela, pela primeira
vez, o deslocamanto da posição de autor para a posição de herói da narartiva autobiográfica,
confirmando, assim, o que assevera Bakhtin sobre a definição de herói autobiográfico: “O
herói empreende determinar a si mesmo, a autoprojeção do autor se entranhou na alma do
herói e nas suas palavras”. Tal deslocamento não siginifica a troca de posições e, sim, a
possibilidade de uma grande proximidade entre autor e herói; são quase (grifo nosso)
intercambiáveis (TEZZA, 1996, p. 298). Segundo, o modelo gusdorfiano não é um modelo a
ser seguido, pois o autor do memorial não se reconhece no referido modelo proposto pelo
filósofo e epistemólogo francês e tantopouco tem o talento epistolar das autoras Virgínia
Woolf, Anis Nin e Gerturde Stein. Da refutação do modelo gusdorfiano e da produção
autobiográfica feminina, o autor nomeia seu herói como sendo uma professora universitária
de carreira e postulante ao cargo de professor titular: “É nesta categoria que posso definir
minha posição nesta narrativa”. (HOLLANDA, 2009, p. 32). E terceiro, o autor do memorial
rende-se à escrita autobiográfica, pressupondo uma relação esteticamente produtiva a partir de
um olhar interno (imanente) até a criação de uma ficção como resultado final daquilo que
deve ser contruído ao longo de suas memórias, isto é, duas consciências - autor e herói - que
não são intercambiáveis e tendo como resultado o acontecimento estético. “Toda
autobiografia é necessariamente ficcional. Este memorial não conseguirá ser uma exceção”.
(HOLLANDA, 2009, p. 32), assevera o autor. Portanto, a criação de um lugar de
representação discursiva e ética do herói e do autor pressupõe tanto uma relação temporal
quanto uma relação espacial - constitutiva e não contraditórias - para acabamento estético.
No segundo memorial acadêmico, o autor do memorial acadêmico nomeia já nas
primeiras linhas o pintor austríaco Friedrich Stowasser, mais conhecido por Hundertwasser,
para estabelecer o acabamento estético que pretende dar ao seu herói autobiográfico com a
seguinte frase: “O pintor austríaco Hundertwasser disse, certa vez, que o cientista, o
8
revolucionário, o místico e o artista têm muita coisa em comum, pois não estão satisfeito com
o mundo e querem transformá-lo” (COMPARATO, 2009, p. 1). Mas logo em seguida
manifesta: “Gosto muito desta frase. Mal comparado, pois não sou nem revolucionário, nem
místico e muito menos artista, a frase me inspira e entusiasma, pois ela une os vários
interesses a que já me dediquei até aqui” (COMPARATO, 2009, p. 1).
A partir da afirmação do autor em questão, observo que nem as posições socioculturais
profissionais nem mesmo a ideia da insatisfação com o mundo e da transformação dele são os
paradigmas e/ou eixos que poderiam estabelecer um lugar, um olhar exterior, mas, sim, o seu
interesse, a sua curiosidade, o seu espírito de investigação sobre diferentes lugares
“epistemológicos”. Nas primeiras linhas do memorial, o autor revela que seu herói poderá
requerer, para fins de acabamento estético, “novas formas de acabamento que ele próprio
destrói com sua autoconsciência” (Bakhtin, 1992). Creio que a relação exotópica se
constituirá em um constante deslocamento dialético.
Nos parágrafos seguintes, com uma leitura mais atenta, fica patente que o princípio de
auto projeção do autor será de um herói autobiográfico que sempre está à procura de algo.
Esse caráter investigativo, de pesquisa vem de muito cedo: “desde a infância vivi rodeado de
livros por todos os lados. Filho de pais professores e grandes leitores, aprendi desde cedo a
disputar o meu espaço com os livros e apreciá-los” (COMPARATO, 2009, p. 1). No que
tange à sua formação acadêmica, vejamos o que autor diz: “Creio que a área de humanas seja
mesmo aquela que o destino me reservou, apesar de um desvio nada desprezível pela área de
exatas”. (COMPARATO, 2009, p. 1). A partir desta afirmação, o autor reitera a posição do
herói como aquele que olha para dois lugares e propõe, talvez, um terceiro onde há a
possibilidade de se constituir, de se construir e/ou se desconstruir. Não há a negação total,
nem aceitação confortável, mas talvez as duas áreas - humanas e exatas - fossem dois eixos
com (auto) projeção de um terceiro. Mais adiante essa postura de herói bipartido – no sentido
daquele que olha simultaneamente para frente e para trás - entre dois lugares epistemológicos
fica mais evidente pela dupla nacionalidade parental - “Pelo lado materno, eu e minhas duas
irmãs herdamos a língua francesa e a cultura europeia” (COMPARATO, 2009, p. 2) - pela
valorização de duas culturas diferentes - “aprendemos a valorizar as artes e a literatura,
testemunhas de realidades e visões de mundo diferentes como a brasileira e a francesa”
(COMPARATO, 2009, p. 2) - pela educação básica bilíngue - “Educados na Escola bilíngue
Liceu Pasteur” (COMPARATO, 2009, p. 2) - e convívio familiar no exterior - “a cada viagem
à Europa para encontrar a família francesa” (COMPARATO, 2009, p. 2).
9
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Cabe lembrar que a interpretação e a construção desse recorte teórico e de análise
estão somente na sua fase inicial e esperando novas contribuições e sugestões teóricas, mas
considero, a partir do pensamento bakhtiniano, o gênero discursivo memorial, levando em
conta as contribuições de Severino (2002), como uma arena onde lutam e se defrontam
valores sociais contraditórios. E não peça, pois a imagem me parece muito harmônica - os
valores e os papéis já estão instaurados e definidos - e quando se fala de discurso como signo
ideológico nada é harmônico e, sim, dialético, significante e concreto. Levo em conta,
também, que o ato de escrever e/ou assinar um memorial é reconstituir o sentido da vida. Não
querendo pecar por exagero, diria reconstituir a própria existência do ser no mundo, pois o
sujeito humana e historicamente – seja autor, seja herói - define-se como uma instância
discursiva e ética, isto é, o lugar da fala (> da palavra> do discurso> da biosemiose) como
centro organizador e formador de efeitos de sentido. No pensamento bakhtiniano, a linguagem
vem a ser uma prática entre sujeitos e suas relações com a história e não um sistema estável,
pois ela estabelece um lugar na história das formações ideológicas e daqueles que fazem parte
dela, ou seja, a formação de um campo epistemológico que leva em conta a teoria do sujeito e
do sentido como produção e/ou produtos na/da/pela linguagem.
Para finalizar, é importante ressaltar que este não é um trabalho plenamente elaborado,
mas antes um exercício de interpretação, de leitura conceitual que retomei e de certa forma,
deu continuidade a algumas leituras, anotações e reflexões feitas a partir da experiência
docente, isto é, algo que foi vivenciado academicamente como uma escolha epistemológica de
pesquisa e formação de docentes.
10
4 REFERÊNCIAS
AMORIM, Marília. Cronotopo e exotopia. In: Brait, Beth (Org.). Bakhtin: outros conceitos-
chave. São Paulo: Contexto, 2008, p. 95-114.
_____. A forma espacial do herói. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São
Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 43-113.
RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. Tradução de Paulo Rónai. São Paulo:
Editora Globo, 1996.
TEZZA, Cristovão. Sobre O autor e o herói - um roteiro de leitura. In: FARACO, Carlos A.
(org.). Diálogos com Bakhtin. Curitiba: 1996, pp. 273-303.
1
MUDANÇA LEXICAL NA ÁREA SEMÂNTICA DE BRINCADEIRA INFANTIL:
PESQUISA GEOLINGUÍSTICA REALIZADA NAS SEIS ZONAS DE MANAUS
RESUMO
Ao se observar como as crianças, em Manaus, denominam hoje uma dada brincadeira infantil,
que nas décadas anteriores a esta recebia, na cidade, uma outra denominação, resolveu-se
investigar o fato por meio de entrevistas anotadas. O objetivo desta pesquisa geolinguística é
mostrar que a brincadeira infantil em questão não é mais nomeada, na comunidade de fala,
Manaus, com o mesmo item lexical utilizado nas décadas anteriores. É nomeada, agora, com
o item lexical utilizado pelos falantes dos estados do Rio de Janeiro e São Paulo. O estudo foi
realizado nas seis zonas da capital amazonense. Em cada zona foi selecionada uma escola e
nela foram feitas oito entrevistas. Dos 48 alunos entrevistados, metade tem de 6 a 10 anos e
são do 1º ao 5º ano escolar e, a outra metade tem de 11 a 14 anos e são do 6º ao 9º ano. Nas
entrevistas, foi utilizada a questão de nº 167 do Questionário Semântico Lexical do Atlas
Linguístico do Brasil (AliB), que indaga sobre o nome da brincadeira em que as crianças
riscam uma figura no chão, formada por quadrados numerados, joga uma pedrinha e vão
pulando com uma perna só. Com o levantamento das denominações dadas pelos 48
informantes, foram registradas três para essa brincadeira, sendo que o item lexical amarelinha
foi obtido como primeira resposta em 100% das entrevistas. Macaca, que era o termo
utilizado pelos manauaras nas décadas anteriores, foi obtido como segunda resposta somente
em 2,083% das entrevistas e, como forma sugerida em 12,5%. Não foi surpresa constatar a
mudança do léxico nomeador da brincadeira infantil analisada. Ela pode ter ocorrido por
conta do contato com pessoas que fixam residência em Manaus, vindas, do RJ e SP, dentre
outros estados, e/ou da mídia, com a apresentação de programas infantis, produzidos nestes
estados.
Palavras-chave:
Brincadeira infantil. Macaca. Amarelinha. Geolinguística. Manaus.
ABSTRACT
Observing how children, in Manaus, nominate a given determined child's game today, which
in the last decades had another name, I decided to investigate such a matter by taking notes
through interviews. The objective of this geolinguistics research is to show that the childish
game in question is no longer named in the speech community, Manaus, with the same lexical
item used in previous decades. It is named now, with the lexical item used by speakers of the
states of Rio de Janeiro and Sao Paulo. The study was accomplished in the six zones of the
Amazon capital. In each zone was selected one school and eight interviews were made in it.
Out of the 48 respondents students, half of them are 06 to 10 years old and are the 1st through
5th grade school and the other half are 11 to 14 years old and are from 6th to 9th grade. In the
interviews, It was used the question number 167 from Lexical Semantic Questionnaire of Lin-
1 Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC) e Professora da Universidade Federal do Amazonas (UFAM); e-mail: sorayachain@ufam.edu.br.
2
guistic Atlas of Brazil (Questionário Semântico Lexical do Atlas Linguístico do Brasil –
AliB), which asks about the name of the game on which children scratch a figure on the
ground, consisting of numbered squares, and throw a stone and skip with just one leg. With
the removal of the names given by the 48 informants, It was registered three names for this
game, and the lexical item amarelinha was the first response in 100% of the interviews.
Macaca, which was the term used by manauaras in previous decades, was the second answer
in just 2,083% of the interviews and, as a way suggested by 12.5%. It was no surprise to see
the changing of the nominator lexicon of childhood play analyzed. It may be due to contact
with people who take up residence in Manaus, coming, from Rio de Janeiro and Sao Paulo,
among other states, and/or of the media, that present children's programs produced in these
states.
Keywords:
Childsh game. Macaca. Amarelinha. Geolinguitics. Manaus.
1 INTRODUÇÃO
Observando a palavra manga nas sentenças abaixo,
1. Maria manga de João.
2. João está com uma manga cortada.
pode-se verificar que na sentença 1 a palavra manga é verbo e, na 2, manga é substantivo,
porém não dá pra saber se manga é 'fruta' ou 'parte da vestimenta'.
De acordo com Oliveira (2008), o contexto desambiguiza as palavras polissêmicas.
As sentenças, em que elas são proferidas, não são isoladas, são proferidas dentro de um
contexto.
Então, se João estiver comendo algo com faca na mão, manga vai significar a 'fruta'
cortada que João está comendo, mas se a sentença for proferida por Maria, que é estilista,
enquanto dá uma última analisada nos seus manequins, antes de eles estarem na passarela,
manga vai significar 'parte da camisa' de João.
Manga, além de polissêmica (dois ou mais significados, que não têm relação entre si,
em contextos diferentes), pode ser tratada também como homônima (significados diferentes,
que têm relação entre si, com a mesma grafia – homógrafas – e/ou com a mesma pronúncia –
homófonas).
Oliveira (2008, p. 20) diz que “os homônimos podem ter a mesma forma gráfica e a
mesma forma fonológica, o que os caracteriza como homônimos perfeitos”. Manga, então, é
um homônimo perfeito, pois tem-se mais de um significado, sem relação, para ela com a
3
mesma grafia e a mesma pronúncia.
Decidir se um vocábulo é polissêmico ou homonímico é uma questão difícil até
mesmo para os semanticistas e lexicógrafos.
Em Lyons (1987, p. 143) é proposto que “a única forma de resolver, ou talvez
delimitar, o problema tradicional da homonímia e polissemia é abandonar totalmente os
critérios semânticos, na definição do lexema, contando apenas com os critérios sintáticos e
morfológicos”. Assim, manga se transformaria em manga¹ (verbo P3, Id, Pr), manga² (fruta) e
manga³ (parte da camisa), ou seja, três palavras.
Já Lehrer (apud Oliveira 2008, p. 111-112) desvia-se da distinção entre homonímia e
polissemia, abordando o significado por meio dos campos lexicais, ou seja, “nas teorias do
campo, o problema de distinguir entre homonímia e polissemia é evitado porque as palavras
que pertencem a campos lexicais diferentes serão tratadas como palavras diferentes [...]”.
Manga, 'uma fruta', pertence ao campo das comidas, manga, 'parte da vestimenta', pertence ao
campo das roupas e, manga, 'ação de zombar', pertence ao campo dos verbos. Um campo
lexical é constituído por palavras que pertencem a uma mesma área de conhecimento.
Partindo de uma perspectiva diatópica, que investiga a mudança linguística em
determinados espaços geográficos, pesquisou-se a mudança lexical no campo semântico de
brincadeira infantil, obtida junto a 48 falantes, nascidos em Manaus, distribuídos pelas 6
zonas da comunidade de fala analisada – a cidade de Manaus –, tomando como base a questão
167 do Questionário Semântico-Lexical do Atlas Linguístico do Brasil.
Obteve-se como nome da brincadeira os itens lexicais 'amarelinha', 'macaca' e
'macaquinha'. Descontextualizado, 'macaca' pode ser animal, 'amarelinha' pode ser cor no
diminutivo e 'macaquinha' pode ser animal no diminutivo e vestimenta.
Mas, de acordo com Oliveira (2008), contextualizado, sabe-se se 'amarelinha' retrata
a brincadeira infantil ou a cor no diminutivo.
Ou então, de acordo com Lyons (1987), que sugere o abandono dos critérios
semânticos, considerando os sintáticos e os morfológicos, tem-se macaca¹ (brincadeira
infantil) e macaca² (animal).
Ou ainda, de acordo com Lehrer (apud Oliveira 2008), tem-se 3 palavras diferentes
por se tratar de campos lexicais diferentes: macaquinha, 'uma brincadeira infantil', pertence ao
campo das brincadeiras; macaquinha, 'nome de animal no diminutivo feminino', pertence ao
4
campo dos animais e; macaquinha, 'roupa feminina', pertence ao campo das indumentárias.
Além da polissemia e da homonímia, há também a sinonímia. O significado em
Lyons
[…] pode ser descritivo, expressivo e social; e muitos lexemas combinam pelo
menos dois deles, senão três. Se a sinonímia for definida como identidade de
significado, poderemos dizer que os lexemas são completamente sinônimos (em
uma certa faixa de contextos) se, e somente se, tiverem o mesmo significado
descritivo, expressivo e social (na faixa de contextos em questão). Poderão ser
descritos como absolutamente sinônimos se, e somente se, tiverem a mesma
distribuição e forem completamente sinônimos em todos os seus significados e
contextos de ocorrência (1987. p.111).
Consoante a isto, pode-se dizer que amarelinha, macaca e macaquinha são lexemas
sinônimos, mas não completamente sinônimos, pois seus significados expressivo e social não
são equivalentes, e muito menos absolutamente sinônimos, pois não são intercambiáveis em
todos os contextos de ocorrência. Pode-se então observar que amarelinha, macaca e
macaquinha são sinônimos incompletos, segundo a nomenclatura de Dubois et alli (2009).
O objetivo desta pesquisa é mostrar que a comunidade de fala – Manaus –,
influenciada tanto pela mídia, através de programas infantis produzidos principalmente no Rio
de Janeiro e em São Paulo, quanto pelo contato com imigrantes, vindos de outras regiões do
país para fixar moradia nesta cidade, não usa mais o item lexical que denominava a citada
brincadeira infantil nas décadas anteriores a esta. Utiliza, agora, para tal brincadeira, o mesmo
item lexical que as comunidades de fala das cidades do Rio de Janeiro e São Paulo usam.
Cada zona compreende um número de bairros, que, no total, somam 56. Estão
representados na figura abaixo.
44- Col. Santo 1- Centro 37- Flores 23- Coroado 6- São Raimundo 36- D. Pedro I
Antônio 2- Aparecida 38- Parque 10 32- Distrito Industrial 7- Glória 15- Planalto
45- Novo Israel 3- Presidente Vargas 39- Aleixo 33- Mauazinho 8- Santo Antônio 16- Alvorada
46- Col Terra Nova 4- Praça 14 de Janeiro 40- Adrianópolis 34- Col. Antônio Aleixo 9- Vila da Prata 17- Redenção
47- Santa Etelvina 5- Cachoeirinha 41- N. Sra das Graças 35- Puraquequara 10- Compensa 18- Bairro da Paz
48- Monte das 19- Raiz 42- São Geraldo 52- Armando Mendes 11- São Jorge
Oliveiras 20- São Francisco 43- Chapada 53- Zumbi dos Palmares 12- Santo Agostinho
49- Cidade Nova 21- Petrópolis 54- São José Operário 13- Nova Esperança
22- Japiim 55- Tancredo Neves 14- Lírio do Vale
24- Educandos 56- Jorge Teixeira 50- Ponta Negra
25- Santa Luzia 51- Tarumã
26- Morro da Liberdade
27- Betânia
28- Col. Oliveira Machado
29- São Lázaro
30- Crespo
31- Vila Buriti
Quadro 1 - Distribuição diatópica dos itens lexicais, de acordo com as zonas manauaras.
11
1ª resposta 2ª resposta formas s ugeridas
Gráfico I – Distribuição diatópica dos itens lexicais que designam a brincadeira infantil
analisada, considerando a variável extralinguística sexo masculino nas seis zonas de Manaus.
100
amarelinha
macaca
macaquinha
12,5
0
Z. Norte Z. Sul Z. Centro Sul Z. Leste Z. Oeste Z. Centro Oeste
12
Gráfico II – Distribuição diatópica dos itens lexicais que designam a brincadeira infantil
analisada, considerando a variável extralinguística sexo feminino nas seis zonas de Manaus.
100
amarelinha
macaca
macaquinha
37,5
12,5
0
Z. Norte Z. Sul Z. Centro Sul Z. Leste Z. Oeste Z. Centro Oeste
Pode-se observar que ainda há registro do item lexical 'macaca' na fala dos
manauaras. Essa resistência ocorre mais em falantes do sexo feminino, conforme gráficos I e
II.
Observa-se também um registro de 'macaquinha' (talvez forma carinhosa de
denominar a brincadeira 'macaca' no diminutivo) em apenas 12,5% dos entrevistados do sexo
feminino, como segunda resposta.
Os gráficos III e IV apresentam resposta espontânea, segunda resposta e forma
sugerida, considerando as variáveis extralinguísticas faixa etária/escolaridade, nas seis zonas
manauaras.
Gráfico III – Distribuição diatópica dos itens lexicais que designam a brincadeira infantil
analisada, considerando as variáveis extralinguísticas faixa etária (6 a 10 anos)
e escolaridade (1º ao 5º ano) nas seis zonas de Manaus.
100
amarelinha
macaca
macaquinha
37,5
0
Z. Norte Z. Sul Z. Centro Sul Z. Leste Z. Oeste Z. Centro Oeste
13
Gráfico IV – Distribuição diatópica dos itens lexicais que designam a brincadeira infantil
analisada, considerando as variáveis extralinguísticas faixa etária (11 a 14 anos)
e escolaridade (6º ao 9º ano) nas seis zonas de Manaus.
100
amarelinha
macaca
macaquinha
25
12,5
0
Z. Norte Z. Sul Z. Centro Sul Z. Leste Z. Oeste Z. Centro Oeste
Gráfico V – Distribuição diatópica dos itens lexicais que designam a brincadeira infantil
analisada de 100% das entrevistas nas seis zonas de Manaus.
100
amarelinha
macaca
macaquinha
37,5
25
12,5
0
Z. Norte Z. Sul Z. Centro Sul Z. Les te Z. Oeste Z. Centro Oeste
14
Figura III - Distribuição diatópica das respostas obtidas em todas as entrevistas.
100,00%
100,00% 12,50%
25,00% 0,00%
0,00%
100,00%
37,50%
100,00% 0,00%
0,00% 100,00%
0,00% 0,00%
0,00%
100,00%
12,50%
12,50%
O que se percebe no gráfico V, e que foi colocado na figura III (mapa) para melhor
visualização e compreensão, é que o item lexical 'amarelinha' que é, nos estados do RJ, SP,
PR, GO e MG, o denominador da brincadeira infantil analisada neste trabalho, já é também o
denominador absoluto dessa mesma brincadeira em Manaus (isso também pode ser observado
nos gráficos anteriores), pois é a primeira resposta dada por 100% dos entrevistados de todas
as zonas da cidade.
Já o item lexical 'macaca', que era, em Manaus, o denominador dessa brincadeira
infantil nas décadas anteriores a esta e, segundo o ALAM, é o denominador da brincadeira em
outros municípios amazonenses, aparece como segunda resposta, somente em uma zona
(norte) e, somente em 12,5% das respostas desta zona. Na zona sul, obteve-se o item lexical
'macaquinha' em 12,5% das respostas. Pode ser que 'macaquinha' (macaca no diminutivo) seja
uma forma carinhosa de denominar a brincadeira.
Talvez a incidência do denominador 'macaca/macaquinha' ocorra nas zonas norte e
sul pelo fato de esta obter alguns bairros próximos ao Rio Negro e por isso locar pessoas
vindas de outros municípios do estado e, aquela por ser a maior zona da cidade e a que mais
15
recebeu e ainda recebe pessoas de baixa renda, vindas dos municípios vizinhos e de outras
cidades do país, que vêm fixar moradia em Manaus.
O denominador 'macaca' também é obtido em 37,5% das entrevistas da zona leste,
em 25% da zona oeste e em 12,5% da zona sul, como forma sugerida, ou seja, quando
sugerida pelo inquiridor, o inquirido a reconhece.
A zona leste é, como se viu, a maior região da cidade, além de ser a mais populosa e
abrigar os bairros mais populosos. É também uma das zonas que mais abriga pessoas vindas
de outros municípios do Amazonas, talvez por isso é a que apresenta a maior incidência de
reconhecimento do item lexical 'macaca', como forma sugerida. Já a zona oeste, que apresenta
a segunda maior incidência de reconhecimento do item lexical 'macaca', como forma sugerida,
é a região que agrega os bairros mais próximos ao Rio Negro e, talvez, por intermédio do rio,
abriga grande parte de pessoas vindas dos municípios vizinhos. É também a região que possui
o bairro mais luxuoso da cidade, a Ponta Negra, e, neste, residem pessoas abastadas, vindas de
outras regiões do país, como sul e sudeste. A denominação 'macaca', como forma sugerida,
também aparece, só que com menor incidência, na zona sul de Manaus.
As zonas centro sul e centro oeste são, respectivamente, a região mais nobre e a
região mais bem localizada da cidade. São zonas que abrigam pessoas mais abastadas, em sua
maioria, vindas principalmente das regiões sul e sudeste do país. Pode ser por conta disso que
não foi registrado nenhuma ocorrência de outro item lexical para a brincadeira analisada, fora
o item 'amarelinha', obtido unicamente como primeira resposta nestas duas zonas.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Através desta pesquisa de caráter geolinguístico, pode-se observar que o item lexical
'macaca', que denominava a brincadeira infantil analisada neste trabalho, nas décadas
anteriores a esta, na capital amazonense, foi substituído pelo item lexical 'amarelinha', que é o
denominador da dada brincadeira nos estados do RJ, SP, PR, GO, e MG.
Pela análise dos dados coletados nas entrevistas e pelas informações obtidas sobre as
seis zonas de Manaus, pode-se concluir que o item 'amarelinha' substituiu o item macaca na
capital amazonense. Essa substituição lexical, certamente, deve-se ao fato da migração de
pessoas que vieram de outras regiões do país para fixar moradia em Manaus, e à influência da
mídia, com a apresentação de programas infantis, produzidos principalmente no eixo Rio de
16
Janeiro e São Paulo.
7 REFERÊNCIAS
BRANDÃO, Sílvia Figueiredo. A Geografia linguística no Brasil. São Paulo: Ática, 1991.
CRUZ, Maria Luiza de Carvalho. Atlas linguístico do Amazonas. Cartas Fonéticas e Cartas
Semântico-Lexicais. Vol. II. Tomo II. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004.
DUBOIS, Jean et alli. Dicionário de linguística. 11. ed. São Paulo: Cultrix, 2009.
LYONS, John. Linguagem e linguística: uma introdução (tradução). Rio de Janeiro, LTC,
1987.
NARRATIVA E APRENDIZAGEM:
DIFERENÇAS NA CONCORDÂNCIA VERBAL
RESUMO
Os principais objetivos dessa pesquisa são: verificar se há diferenças significativas entre
concordância e não concordância no uso do sistema verbal na narrativa escrita de crianças que
vivem em ambientes socioculturais distintos; identificar como a narrativa pode favorecer o
processo de aprendizagem de metalinguagem e como o contexto sociocultural interfere nesse
processo de aprendizagem. Propõe-se aliar conceitos da Psicolinguística, da Linguística
Cognitiva e da Sociolinguística, pois o grande desenvolvimento da ciência e os resultados por
ela apresentados, mais particularmente da neurociência e das ciências sociais, indicam que
não é possível desvincular o processo de aprendizagem da leitura e escrita dos usos sociais da
linguagem da capacidade individual dos sujeitos. O ponto de partida da pesquisa foi
principalmente a tomada de conhecimento das pesquisas de Scliar-Cabral, a leitura das obras
de Pinker e estudos da Sociolinguística. Foram pesquisados dois grupos com 52 alunos cada
um em duas instituições de ensino, sendo uma instituição privada e outra pública. Foram
analisadas 1190 sentenças, 595 de cada grupo, retiradas das narrativas escritas pelos alunos. A
partir dos resultados obtidos na análise quantitativa e qualitativa verificamos que existem
diferenças significativas determinadas pelo aspecto socioeconômico cultural, mas que, no
entanto, na escrita dos alunos a variação da concordância verbal não é muito diferente entre os
dois grupos.
Palavras-chave:
Narrativa. Níveis socioculturais. Produção escrita. Variedades sociolinguísticas.
ABSTRACT
The main objective of this research is to verify if there are differences between verbal
agreement and non-agreement during the use of verbal system in written narrative by children
who live in different sociocultural environments, as well as identify how narratives can ease
the process of metalanguage learning and in which ways the sociocultural context interferes in
this learning process. The proposal here is to join concepts that are related to
Psycholinguistics, Cognitive Linguistics and Sociolinguistics because the development in
science and the results presented by this development - specially in neurosciences and social
sciences - show that it is not possible to unlink writing and reading learning process and the
social uses of language from the individual competence of the one involved in this process.
The start point of this research includes: the study developed by Scliar-Cabral, the reading of
Pinker’s work and some studies on sociolinguistics. In order to accomplish our objective, the
students were divided in two groups of 52 children each, one of them belonging to a public
school and the other to a private one. Each group wrote narratives and this research analyzed
1190 sentences extracted from that narratives (595 of each group). From the results obtained
with quantitative and qualitative analysis, we verified that there are meaningful differences
related to sociocultural aspects but there was not a great variation in verbal agreement in the
writing production of the two groups.
1
Mestre em Linguística pela Pós-Graduação em Linguística da UFSC; e-mail: lidiomarjose@gmail.com.
2
Keywords:
Narrative. Sociocultural levels. Written production. Sociolinguistics varieties.
A mente humana é dotada de capacidade para solucionar problemas, das mais diversas
magnitudes, desde coisas rotineiras como, por exemplo, ver, ouvir, lembrar, falar (quando não
houve disfunções) dentre outras atividades cotidianas, até os sofisticados sistemas de
engenharia. No entanto, segundo Pinker (2008, p. 43) “a compreensão do funcionamento
dessas faculdades mentais é uma fronteira para a ciência moderna.” Dentre as faculdades
mentais destaca-se a linguagem, que vem recebendo um lugar especial nos estudos das
ciências principalmente da neurociência e da neurolinguística.
A linguagem ocupa a parte central nas relações interpessoais e se manifesta de
inúmeras formas, o que por si já é surpreendente, mas mais surpreendente é a forma como se
aprende a linguagem.
Os bebês nascem sem saber uma palavra da língua que se está falando a sua volta. E,
em apenas três anos, sem benefício de aulas, a maioria está tagarelando, com um
vocabulário de milhares de palavras, domínio da gramática do vernáculo oral e
proficiência com o padrão de som (PINKER, 2008, p.43).
boa análise do discurso dos adultos e não apenas decorar ou tentar memorizar o que esses
falam. A criança aprende algumas regras e as utiliza, primeiro fazendo algumas
generalizações, o que pode provocar estranhamento aos ouvidos dos adultos.
É bastante surpreendente perceber que uma criança ao fazer essas generalizações não
está só tentando comunicar-se, ela está segundo Pinker, resolvendo um problema de indução:
“observar uma amostra limitada de fatos e estruturar uma generalização que englobe o
conjunto infinito de onde os fatos são tirados” (2008, p.44). As crianças, e qualquer ser
humano, não conseguem simplesmente arquivar todas as frases que ouvem e tentar se utilizar
posteriormente dessa memória como uma lista a ser consultada, assim como não é possível
arquivar todas as palavras que diariamente são descobertas.
Para que haja êxito na comunicação a criança deve ser capaz de “extrair um conjunto
de regras que lhe permitirá compreender e expressar novos pensamentos e fazê-lo de uma
maneira coerente com os padrões de discurso utilizados pelas pessoas em sua volta.”
(PINKER, 2008, p. 45).
Entende-se, portanto que a linguagem é de certa forma um sistema integrado, único,
mas constituído por vários componentes e que, para entender o processo de aprendizagem da
criança, é útil separar esses componentes. Pinker (2008, p.46) defende que cada um desses
componentes se relaciona com sistemas cerebrais que “comandam a boca, o ouvido, a
memória da pessoa para palavras e conceitos, os planos sobre o que dizer e os recursos
mentais para atualizar o conhecimento com apreensão do discurso.”
Para Scliar-Cabral (2002), a aquisição da morfologia verbal é fundamental para a
aquisição da gramática de qualquer língua. MacWhiney (apud SCLIAR-CABRAL 2002),
“evidenciou que a aprendizagem inicial da morfologia verbal envolve itens rotineiros ou
amálgamas.” Já Tomasello (1992), também citado pela mesma pesquisadora, propôs a
hipótese da Ilha Verbal, isto é, cada verbo é marcado individualmente “(formas flexionais
congeladas)”.
O que se percebe é que os verbos são ricos em possibilidades e ao mesmo tempo ricos
em particularidades. As conjugações e as flexões são organizadas em paradigmas, nos quais
cada verbo normalmente tem uma única forma primitiva, mas existem os irregulares que
segundo Pinker (2008, p. 59) “assumem uma posição na matriz mental” e no início do
processo de aquisição as crianças não conseguem perceber algumas formas agramaticais que
essas exceções podem gerar, pois suas construções verbais, diferentes das conjugações, não se
organizam em compartimentos regulares.
4
2
Os espaços mentais são constructos teóricos projetados para modelar e indicar organização cognitiva de alto
nível (FAUCONNIER, 1994, p. 31). E a mesclagem conceptual, para a linguística cognitiva, é uma operação
cognitiva que envolve projeção de elementos selecionados de, no mínimo, dois espaços de input, resultando em
integração conceptual. (AZEVEDO, 2006, p.37)
5
Como veículo para transmissão cultural, a narrativa de “modalidade escrita tem caráter
mais permanente, por isso mais eficiente que a modalidade oral nesse quesito” (SCLIAR-
CABRAL, 2003, p. 33).
Pesquisas demonstram que, quando começam a frequentar a escola, as crianças já
desenvolveram esquemas que lhes permitem compreender e produzir histórias que influem na
memorização dos acontecimentos relatados e na complementação que elas fazem de relatos.
Ver por exemplo, Mandler 1979; Mandler, Scribner, Cole e Deforest, 1980; Mandler, Stein e
Trabasso, 1984 (apud LANDSMANN, 1998), Scliar-Cabral. 1982; 1983; 1984. Muitos
autores chegam a afirmar que a organização narrativa é a “metáfora orientadora” (GERGEM e
GERGEM, 1986, apud LANDSMANN, 1998), isto é, as narrativas são responsáveis para que
a orientação do aprendizado seja estruturada em uma instituição ou mais livre no cotidiano,
através da qual os fenômenos podem ser compreendidos, em quase todas as idades e culturas.
A narrativa se tornou um objeto privilegiado para compreender os processos organizacionais
da sociedade, formação da psique, a constituição de valores culturais e suas transições.
Segundo Barthes (1976, p. 19-20), a narrativa contempla uma vasta diversidade de
ocorrências da vida humana:
Inumeráveis são as narrativas do mundo. Há em primeiro lugar uma variedade
prodigiosa de gêneros, distribuídos entre substâncias diferentes como se toda
matéria fosse boa para que o homem lhe confiasse suas narrativas: a narrativa pode
ser sustentada pela linguagem articulada, oral ou escrita, pela imagem fixa ou
móvel, pelo gesto ou pela mistura ordenada de todas estas substâncias; está presente
no mito, na lenda, na fábula, no conto, na novela, na epopéia, na história, na
tragédia, no drama, na comédia, na pantomima, na pintura, no vitral, no cinema, nas
histórias em quadrinhos, no fait divers, na conversação. Além disto, sob estas formas
quase infinitas, a narrativa está presente em todos os tempos, em todos os lugares,
em todas as sociedades; a narrativa começa com a própria história da humanidade;
não há em povo algum sem narrativa; todas as classes, todos os grupos tem suas
narrativas.3
3
GONÇALVES, A. C. História, imagem e narrativas. No 6, ano 3, abril/2008 Citação disponível
em:<http://www.historiaimagem.com.br> . Acesso em 03 dez 09.
6
4
Conforme explica Scliar-Cabral (2011), "Contrastando com o que realmente aconteceu no gênero factual, o que
predomina no gênero conto de fadas é a função imaginativa no sentido definido por Halliday (1975, p. 20): “... a
função da linguagem através da qual a criança, ela mesma, cria um ambiente”. Em consequência, os contos de
fadas usualmente começam com fórmulas mágicas do tipo “Era uma vez", as quais suspendem o tempo e o
aspecto factuais em favor do tempo e espaço fictícios, bem como por uma entoação peculiar, marcada por chaves
bem contrastantes.
Eles também terminam por fórmulas mágicas do tipo “E então viveram felizes para sempre”, quando os
participantes retornam ao real. Esse mundo imaginário admite a violação de traços semânticos. “Existem
violações consistentes e extraordinárias dos traços semânticos mais altos, tais como [-animado] e [-humano],
quando as pedras podem falar e a maioria do tempo os animais são personagens”. Em consequência disso
atribuímos valor de [+humano] aos animais personagens.
9
Dizemos que tem concordância quando o sujeito está concordando com o verbo, por
exemplo, em: “nós vamos passear pelo zoológico”, e dizemos que não há concordância
quando o sujeito e o verbo não obedecem às mesmas regras, por exemplo, em: “eu que ver os
leões”. Em relação a este fator linguístico obtivemos como resultados de concordância e não
concordância em relação a variável nível socioeconômico cultural o que podemos observar no
gráfico 01:
Das 1190 (mil cento e noventa) sentenças analisadas constata-se que há uma média de
87% (oitenta e sete por cento) de concordância e 13% (treze por cento) de não concordância.
Entretanto se observarmos os grupos separadamente constata-se que o grupo NSEC-alto
apresenta 9% (nove por cento) de não concordância e o grupo NSEC-baixo apresenta 18%
(dezoito por cento) de não concordância.
Em relação ao tipo de instituição, escola privada e escola pública os dados são os
mesmos dos anteriores.
Conforme definido na nota 03, o traço mais humano é o que se refere aos seres que
adquirem aspecto de humanidade na narrativa, por exemplo, em: “você vai cair”, você é o
pronome de tratamento que indica condição humana, enquanto o traço menos humano é tudo
o que se refere a outros seres ou eventos, por exemplo, em: “a estrada vai acabar no
precipício”, estrada é o nome que se refere a algo não humano.
Em relação a este fator, grupo 04, traço humano do sujeito [+ humano] e [- humano]
observa-se no gráfico 02 os seguintes dados:
10
Ao observar o traço humano do Sujeito, constata-se que em 89% (oitenta e nove por
cento) dos casos em que o sujeito apresenta o traço [+humano] ocorre concordância,
diferenciando-se do traço [- humano] que cai para 73% (setenta e três por cento) a
concordância. Este dado vai para a mesma direção dos estudos de Scherre & Naro (1998) e
Naro & Scherre (2000). Os autores evidenciam que, se o sujeito plural for [-humano], a
presença de marca de plural no verbo é menos provável e, se [+humano], o plural explícito é,
relativamente, mais provável.
Consideramos como sujeito nulo a sentença onde não está explicitamente manifesto o
sujeito, por exemplo, em: “vamos comesar a brincar” e como sujeito preenchido sentenças em
que o sujeito aparece explicitamente, por exemplo, em: “eu quero ir ver as girafas”.
Em relação a este fator, grupo 05, sujeito preenchido e sujeito nulo obtivemos os
seguintes resultados:
Em 970 (novecentos e setenta) ocorrências com sujeito expresso 88% (oitenta e oito
por cento) das ocorrências tiveram concordância e 12% (doze por cento) das ocorrências não
11
tiveram concordância. Em relação ao sujeito não expresso, 74% (setenta e quatro por cento)
das ocorrências fizeram concordância e 26% (vinte e seis por cento) não concordaram.
O fator posição do sujeito diz respeito ao local da sentença em que o sujeito está
situado em relação ao verbo da mesma sentença. Temos, portanto anteposição em: “você
quase caio no precipício”, onde você na posição de sujeito está expresso antes do verbo cair.
Temos posposição do sujeito em: “chegou visitas” onde visitas é o sujeito do verbo chegar e
está expresso na sequência da sentença depois do verbo.
Em relação a este fator, grupo 06, posições do sujeito observam-se os seguintes
resultados:
Gráfico 05 – Saliência.
12
Consideramos aqui como saliência a desinência exclusiva de cada verbo para cada
pessoa gramatical, em cada tempo da conjugação verbal. Temos mais saliência, portanto em:
“você vai cair”, vai é exclusivo de terceira pessoa no presente do indicativo e temos menos
saliência em: “você estava tão alegre”, estava tanto pode referir-se a primeira ou a terceira
pessoa do imperfeito do indicativo.
Quanto a este fator, grupo 07, ver saliência no Gáfico 5.
Observa-se que, em 93% (noventa e três por cento) das ocorrências onde aparece [+
saliência] ocorre concordância verbal, diferente dos 72% (setenta e dois por cento) das
ocorrências onde se vê a presença de traço [- saliência]. Os estudos de Naro (1981) já faziam
alusão a este traço linguístico e afirmavam que a presença ou a ausência de acento na
desinência e a quantidade de material fônico que diferencia a forma singular da forma plural
interferem na concordância verbal. Os dados de Monguilhott (2001) ao pesquisar variação de
concordância verbal de terceira pessoa também apontam para a mesma direção.
O fator pessoas gramaticais diz respeito as pessoas utilizadas como referencias para
organizar as sentenças, temos por exemplo, p1 em: “eu quero ir ver os elefantes”, p2 em: “Tu
tás gorda em”, p3 em: “Deixa ele vim”, p4 em: “Nós vamos ver mais animais”, p5 em: não
foram encontrados registros nos dados, p6 em: “eles estão presos”, para estabelecer a pessoa
do discurso estabelecemos como ponto de partida a terminação do verbo.
Quanto a este fator, grupo 08, pessoas gramaticais, têm-se os seguintes dados:
Ao observar os dados, constata-se que foram utilizadas 28 (vinte e oito) sentenças com
tu na segunda pessoa e destas, 86% (oitenta e seis por cento) foram utilizadas sem
concordância. Outro dado mais discrepante é em relação a não marcação do sujeito, 100%
(cem por cento) de uso com concordância, referentes à marca de infinitivo ou ao gerúndio. O
uso da primeira pessoa eu apresenta 94% (noventa e quatro por cento) de uso com
13
concordância, o uso da terceira pessoa ele apresenta 84% (oitenta e quatro por cento) de
concordância, o uso da primeira pessoa do plural nós apresenta 87% (oitenta e sete por cento)
de concordância, o uso da terceira pessoa do plural eles apresenta 76% (setenta e seis por
cento) de concordância e a segunda pessoa do plural não foi utilizada, confirmando o que
muitos autores defendem: que o vós está em desuso no português brasileiro.
Em relação aos erros grafêmicos podemos observar que são consequentes de
diferentes causas e são de diferentes naturezas5. Estão grafadas incorretamente as seguintes
sentenças: “Os bicho ento enrolado socoro”, “uma pessoa que sipota co a gete”, “eu vo coloca
você no andado”, “Eu estro adado legau”, “Eu vo tenta pega ele”, “Ele vai cai”. A grafia
incorreta, principalmente dos verbos aumenta a não concordância.
Quanto a este fator, o grupo 09, erros grafêmicos observa-se:
Quando as sentenças são grafadas corretamente obtêm-se 92% (noventa e dois por
cento) de acertos na concordância e quando ocorrem erros de grafia na marcação de pessoa e
número ou modo temporal ocorrem 90% (noventa por cento) de erros de concordância.
5
Consideramos, com fim de padronização, que a ausência de r na forma infinitiva (exemplo: vo tenta pega), a
ausência de s na indicação de plural em p4 (exemplo: nós vamo) e ausencia de am em p6 (exemplo: eles voltaro)
como erro grafêmico e ausência de concordância, embora teorias variacionistas considerem o segundo e o
terceiro casos com presença de concordância.
14
6
O uso do infinitivo e do imperativo é questionado pela sociolinguística se pode ser considerado erro, principalmente nos
diálogos narrativos que tendem a representar a fala dos personagens.
15
7
Tudo isso depende também em grande parte da formação e da capacitação do professor.
16
fase inicial do processo, mas o ensino/aprendizagem não pode se contentar com isso, sob pena
de a escola estar produzindo um excluído do mercado de trabalho.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao concluir este estudo, verifica-se, a partir dos dados analisados que as principais
dificuldades das crianças em adequarem o sistema de flexão verbal na produção escrita
ocorrem em função da alternância das pessoas do discurso e da forma de tratamento
principalmente na segunda pessoa do singular: ora utilizam tu ora você, dificultando inclusive
a análise, pois, ora o verbo concorda com um ora com outro dos pronomes. E outra
dificuldade é em relação ao núcleo do sujeito singular e plural das sentenças. Essa era uma
das preocupações iniciais e a outra era identificar se existem diferenças significativas entre
produções escritas das crianças provenientes de nível socioeconômico cultural baixo (NSEC
baixo), estudantes de escola pública e residentes na periferia de Florianópolis e crianças de
nível socioeconômico cultural alto (NSEC alto), estudantes de escola privada e residentes na
região central de Florianópolis. Em relação a esta segunda preocupação os dados mostraram
que a diferença no aspecto da concordância verbal entre os dois grupos é significativa. Em
relação ao grupo NSEC alto os dados mostraram que ocorrem 91% (noventa e um por cento)
de concordância e em relação ao grupo NSEC baixo os dados indicam 82% (oitenta e dois por
cento) de concordância, resultando em um percentual de 9 (nove) pontos de diferença entre os
gupos. Esse resultado responde nossa questão: Qual dos dois grupos se aproxima mais da
norma padrão da variante escrita do Português do Brasil no que se refere à flexão verbal? E
confirma a nossa hipótese:
Hipótese 1 - Os morfemas flexionais de pessoa e número do sistema verbal na
variedade sociolinguística de Nível Socioeconômico Cultural baixo (NSEC baixo) e de escola
pública discrepam mais da norma padrão escrita do português do Brasil que os da variedade
sociolinguística de Nível Socioeconômico Cultural alto (NSEC alto).
Não tivemos como fazer uma nova aplicação dos testes nas mesmas turmas para
verificar a segunda hipótese:
Hipótese 2 - As crianças que estão aprendendo a escrever cometem mais desvios no
uso da pessoa e número do sistema verbal da norma padrão escrita do português do Brasil e os
diminuem após maior tempo de escolarização.
Além das preocupações iniciais e das hipóteses, o objetivo era verificar se há
diferenças significativas de concordância e não concordância no uso do sistema verbal na
narrativa escrita de crianças que vivem em ambientes socioculturais distintos; identificar
18
4 REFERÊNCIAS
NARO, A. J.; LEMLE, Miriam. Syntatic diffusion. Ciência e Cultura, v. 29, nº 3 pp. 259-68,
1977.
NARO, A. J.; SCHERRE, M. M. P. Contact with Media and Linguistic Variation. In:
ARNOLD, J. et al. (Ed.) Sociolinguistics Variation - Data, Theory and Analysis - Selected
Papers from NWAV23 at Stanford. Stanford: Stanford University, 1996. p.223-228.
PINKER, S. Do que é feito o pensamento. A língua como janela para a natureza humana. São
Paulo: Companhia das Letras, 2008.
_____. Mother tongue education at school in the third world: problems discussed
through an experiment among pre-elementary children in Brazil. Rassegna di Linguistica
Applicata, 1985, v. 2, p. 31-40.
_____. Reconto de conto de fadas: recursos estilísticos. Aceito para publicação: Linguistic
and Literary Studies Journal. Journal of the UFBA Literature and Linguistics Postgraduate
Program ,43, 2011/1.
______. A formação social da mente. 1ª ed. São Paulo: Martins fontes, 1984.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo
RESUMO
A língua francesa compreende certas particularidades em sua pronúncia tal como o caso do
apagamento do „E-mudo‟ (também chamado de e caduco, instável, entre outros termos) o qual
é representado pelo fonema /ə/ em francês, conhecido também como Schwa. Antes de tudo,
considera-se que a maneira de pronunciar as palavras que contêm essa vogal pode variar e
dessa forma, a instabilidade fonética do Schwa dá-se pelo fato de que em uma mesma palavra
pode ocorrer sua realização (ex. semaine, samedi) ou seu apagamento (ex. s'maine, sam'di).
Em fonologia, depois dos numerosos ensaios partindo da fonologia descritiva e seus
desenvolvimentos ulteriores, certos fonólogos atuais tentam dar conta da problemática ligada
ao Schwa através das novas teorias fonológicas. O enquadramento fonológico dessa vogal
francesa ainda é muito impreciso visto que grande parte da literatura da área a concebe com
dificuldades para definir precisamente: (i) sua terminologia; (ii) seu timbre, quando é
realizado; (iii) seu status no sistema fonológico do francês. Assim, importa para esse trabalho
– uma síntese da retrospectiva do estudo do Schwa e do seu apagamento – contribuir com a
apresentação de seus aspectos fonológicos a partir de uma análise calcada na Geometria de
Traços e na Fonologia Autossegmental baseando-se na perspectiva da Fonologia Gerativa.
Palavras-chave:
Schwa. Apagamento. Fonologia Gerativa. Geometria de Traços. Fonologia Autossegmental.
RÉSUMÉ
La langue française comprend certaines particularités dans sa prononciation tel est le cas de
l‟effacement du „E-muet‟ (il est aussi appelé comme e-caduc, e instable, entre autres) lequel
est représenté par le phonème / en français, aussi connu comme Schwa. Avant tout, on
considère que la façon par laquelle on prononce les mots qui contienne cette voyelle peut
varier et de cette manière, l‟instabilité phonétique du Schwa est due au fait que, dans un même
mot, il peut être réalisé (ex. semaine, samedi) ou être effacer (ex. s'maine, sam'di). En
phonologie, après les nombreux travaux partant du cadre de la phonologie descriptive et de
ses développements suivants, certains phonologues actuels essayent de rendre compte de la
problématique du Schwa à travers les nouvelles théories phonologiques. L'encadrement
phonologique de cette voyelle française est encore assez imprécise car la plupart de la
littérature la conçoit avec des difficultés pour définir précisément : (i) sa terminologie ; (ii)
son timbre, quand elle est réalisée ; (iii) son statut dans le système phonologique français.
Ainsi, il vaut pour ce travail-ci – une brève synthèse de la rétrospective de l'étude du Schwa et
de son effacement – contribuer avec une présentation de ses aspects phonologiques à partir
d'une analyse dans la Géométrie des Traits et dans la Phonologie Autossegmental basée sur la
perspective de la Phonologie Générative.
1
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de Santa Catariana
(UFSC), área da Teoria e Análise Linguística, orientanda da Profa. Dra. Izabel Christine Seara; e-mail:
ecrivezamarie@yahoo.fr.
2
Mots-clé:
Schwa. Effacement. Phonologie Générative. Géometrie de Traits. Phonologie
Autossegmental.
1 INTRODUÇÃO
a) suas relações com a forma escrita das palavras, sempre presente no espírito dos
locutores; b) seu caráter facultativo em um certo número de formas orais (venir,
petit, fenêtre etc.); c) sua realização fonética, quando ela é pronunciada, variável
segundo os indivíduos; d) enfim, a diferença que existe entre a conservação dessa
vogal nos usos meridionais e a situação flutuante nos usos do norte, ao menos no
que concerne os monossílabos e a primeira sílaba dos polissílabos. (WALTER, 1990
apud RACINE, 2008, p. 12)
No que diz respeito ao grupo rítmico, existem três possibilidades onde a vogal pode
aparecer, a saber:
Para dar conta da variabilidade dessa vogal, é preciso assinalar que existem fatores
internos e externos que podem governá-la e que são essencialmente caracterizadas não só pelo
contexto linguístico no qual a vogal aparece e a velocidade com que se fala, como também o
contexto situacional no qual o indivíduo está inserido (momento de conversação com
maior/menor intimidade, apresentação de trabalho, conferência, etc.), a idade do falante, a
região de onde veio e suas influências na sua construção idiossincrática.
O enquadramento fonológico do Schwa do francês ainda é muito impreciso visto que
grande parte da literatura da área a concebe com dificuldades para definir precisamente: (i)
sua terminologia – pode-se chama-lo de „e-mudo‟, „e-instável‟, „e-caduco‟, em casos mais
raros „e-feminino‟, entre outros; (ii) seu timbre, quando é realizado; (iii) seu status no sistema
fonológico do francês.
Já no que diz respeito ao timbre do Schwa, P. Léon (1978; 2007) assinala que, de
acordo com os valores frequenciais do mesmo, o oscila entre suas duas vogais vizinhas,
as médias anteriores arredondadas e do francês, e estabelece os seguintes valores:
F1 = 375 Hz e F2 = 1600 Hz; F1 = 550 Hz e F2 = 1400 Hz; F1 = 500 Hz, F2 = 1500
Hz e F3 = 2500 Hz.
Léon aponta também que, para melhor compreender a relação entre os sons ,
e , é preciso lembrar que, por definição, o Schwa é uma vogal não acentuada na grafia e
que, no francês, somente as vogais com acento gráfico são realmente abertas ou realmente
fechadas. Sendo assim, essa vogal se situa em um continuum entre e , estando mais
próximo do do que do fato que caracteriza sua complexidade instável.
Dessa maneira, o comportamento que é próprio a essa vogal gerou uma
multiplicidade de termos, como se pode observar no levantamento feito por Racine (2008):
para distinguir umas das outras: o singular do plural, em le garçon a les
garçons , prends-le a prends-les ; ou o presente do
passado composto, em je disa j'ai dit ou , il se dit a il s'est
dit ou ; ou em formas lexicais do mesmo modo que apresentamos
anteriormente dessus a déçu (LÉON, 1978, p. 68).
Em contrapartida, Martinet (apud CARTON, 1974) só o concebe como um
“lubrificante fônico”, pois a oposição // : Ø (zero fônico) se neutraliza em todas as
posições exceto em uma: “e-mudo” só um fonema de verdade em dado contexto inicial.
Walter (apud CARTON, p. 65) explica que esse fonema se confunde cada vez mais com a
série anterior arredondada, dado o fato que isso a torna cada vez menos instável.
Percebemos que no argumento de Martinet (1972 apud RACINE, 2008), ele rejeita a
ideia de que o Schwa é um fonema, pois não vê necessidade em postulá-lo como tal somente
para permitir dar conta de certas oposições. Nessa perspectiva, o Schwa não poderia ser
apresentado no nível fonológico, mas introduzido como epêntese em curso de derivação.
Entretanto, para dar conta disso, ele propõe uma regra na qual diz que todo fonema
consonântico do francês é realizado foneticamente [C] quando se encontra entre duas
consoantes e [C] em todos os outros. Ora, é só tomarmos como exemplo algumas palavras
para perceber que essa regra não pode ser válida em todos os outros contextos, como proposto
por Martinet. Por exemplo: appartement, aprise e établissement jamais serão realizadas
foneticamente como *[], * e *.
Contudo, o fato de não poder definir os contextos fonológicos nos quais a inserção
do Schwa é permitida ou impedida constitui um forte argumento a favor da sua presença na
estrutura subjacente. Para Verluyten (1988 apud RACINE, 2008), parece impossível que uma
teoria fonológica dê conta desse tipo de oposição sem conferir ao Schwa um status de fonema.
Ao que parece, considera-se essa vogal como uma unidade semelhante a qualquer outra.
Sendo assim, o Schwa, como todas as outras vogais francesas, é submetido a certas regras
fonológicas que governam sua distribuição. Podemos considerá-lo fonema, igualmente, se
levarmos em conta a condição básica necessária para a obtenção desse status: ele está presente
na representação subjacente, no nível dos segmentos.
Racine expõe também que, na proposta de Blanche-Benveniste e Chervel (1969), o
Schwa seria representado ora como um fonema em certos contextos, ora uma vogal epentética
em outros. Sabe-se que a língua francesa, assemelhando-se ao português, permite somente um
número restrito de grupos consonânticos em onset silábico inicial como, por exemplo, /-/
8
(em croissant), /-/ (em glande), /-/ (em grande), /-/ (em pluie) e /-/ (em blouse).
Assim, temos os exemplos das palavras pelouse, pelote e peluche e, nesses casos, ele recebe o
status de fonema por oposição concomitante às palavras como pluie, plaisir, plateau.
Ainda na proposta desses autores, nos outros casos o Schwa seria epentético quando
situado entre duas consoantes que, em constituindo um grupo consonântico não permitido em
onset silábico incial, os Schwas das palavras fenêtre e leçon são derivações de um processo de
epentêse uma vez que eles não podem se opor às palavras que começam por */-/ ou */-/.
Léon (2007) deixa clara sua posição quando assume que, na maior parte do tempo,
quer o Schwa esteja presente ou não, isso não muda o sentido semântico da mensagem e de
fato, muito dificilmente, encontrar-se-ia uma oposição que criasse um par mínimo. Ele admite
somente uma oposição entre o Schwa e uma ausência do som, chamado como o zero fônico
(Ø), permitindo opor pelage a plage, ou belon a blond.
A → B / C __ D
→ Ø / V#C__
→ Ø / VC__
Em sílaba inicial de palavra seguido por uma pausa, o Schwa nunca se apaga quando
é precedido por duas consoantes ou mais (ex. prenez tout). Ele pode ser apagado
facultativamente quando é precedido por uma única consoante, exceto se ele for
precedido e seguido de uma obstruente não contínua [ou plosiva] [...]; esta vale bem
mais para os monossílabos do que para a sílabas iniciais de polissílabos: r(e)venez
demain, m(e)sure-moi cette planche, v(e)nez ici, j(e) stérilise cette seringue, c(e)la
ne fait rien [...], debout sur une table, te casse pas la tête, de quoi tu te plains?
(DELL, 1973 apud RACINE, 2008, tradução nossa).
Para dar conta também desses contextos em que o Schwa é precedido de uma única
consoante e que, no entanto, não se apaga, o autor assume uma regra única, que no entanto dá
conta somente dos casos em que o Schwa se apaga, e não nas quais ele se mantém. Ele
considera que o Schwa é suscetível à queda quando precedido de consoante [+son] [+cont] e
se manteria (ou dificultaria mais seu apagamento) entre consoantes [-son] [-cont], em sílaba
inicial seguida ou não de pausa. Para tanto, Dell (1973 apud RACINE, 2008) expõe a seguinte
regra que desse conta então desses contextos:
11
(4)
C ____# [+son]
[+cont]
→ Ø
[+son] ______
[+cont]
No caso em que o Schwa é precedido por mais de uma consoante, e dependendo das
características fonológicas dessas consoantes, o apagamento é praticamente nulo, quando não
é facultativo, como é o caso também em que ele aparece em interior de palavra como pode-se
verificar em (5), (DELL, 1973 apud RACINE, 2008).
(6) Aplicando a regra no interior de polissílabo:
→ Ø / VC__
Méd(e)cin : > [ >
Detey, Durand, Laks & Lyche (2010, pp.191-192) assumem que, segundo pesquisa
recentes sobre as variedades do francês falado, na posição V#C__CV (como em la s(e)maine
ou em tu f(e)rais), o Schwa se mantém em variedades do francês de Midi, ao contrário do que
postulam os manuais de pronúncia do “Francês Standart”, no qual o apagamento do Schwa é
muito frequente nesse contexto.
Já no interior de polissílabos, Detey et al (2010) dizem que em palavras como
tell(e)ement, o Schwa se mantém menos em variedades novas, como do Pays Basque, do que
na variedades de Languedoc, por exemplo.
12
Uma representação subjacente para cada forma a ser analisada; níveis organizados
hierarquicamente; e princípios gerais que atuam autonomamente em cada nível e
regras particulares, selecionadas e ativadas diferentemente em cada língua
(CRISTÓFARO-SILVA, 2007, p. 205).
(7)
σ
Onset Rima
Núcleo Coda
Ainda segundo essa autora, a silabificação primária deve ter informações das regras
particulares de cada língua derivando-se então de uma representação superficial para cada
palavra.
2
„Sílaba não-acentuada‟ corresponde à „sílaba aberta‟.
13
Sílaba Sílaba
Nível esqueletal X X X C V C
3
Na tradução de Durand (1973), citado por Racine (2008), o autor optou por utilizar “ataque” no lugar de
“onset”.
14
uma linha de associação aos níveis superiores. Isso quer dizer que esse elemento está, então,
representado na forma subjacente de uma palavra, mas não está associada nem ao nível
esqueletal, nem ao nível silábico. É o que Encrevé (1988 apud RACINE, 2008) chama por
“autossegmento flutuante” dando a seguinte definição:
Dessa forma, Encrevé considera também que haverá diferentes tipos de tratamentos
dependendo da natureza do Schwa. Nesse caso, ele faz distinção, primeiramente, entre os
Schwas que aparecem em final de palavra e os internos. Em segundo lugar, os de
monossílabos, e de polissílabos.
Como dissemos anteriormente, importa para esse trabalho mostrar as representações
que os estudiosos das teorias fonológicas têm mostrado a respeito do tratamento do
apagamento do Schwa. Por isso, é válido lembrar que o trabalho de Racine (2008) que reuniu,
fundamentalmente, os principais modelos fonológicos pelos quais esse fenômeno foi
estudado, traz também as representação do Schwa em sílaba inicial e no interior de
polissílabos propostas por Encrevé (1988). Nesse caso, dentre muitos exemplo, exploramos os
das palavras petit e casserole, tais quais estão dispostos nos esquemas abaixo:
N N C
X X X X X
4
Os esquemas de (9) a (14) aqui apresentados são de Encrevé (1988) e foram adaptados por Racine (2008).
15
assim, ele é representado na forma lexical como um elemento flutuante, postulando que ele se
encontra em uma posição que não se associa no esqueleto.
Já quando o Schwa se realiza foneticamente, a consoante precedente está fixa no
ataque, como pode-se ver no exemplo abaixo:
A R A R
N N C
X X X X X
No caso em que o Schwa não tem realização fonética, a posição da rima se esvazia e
a consoante seguinte ancora-se junto da consoante precedente, ambas na mesma posição de
ataque.
N C
X X X X
Núcleo flutuantes não ligados acima da posição esqueletal a qual não corresponde a nenhum
elemento na linha segmental (RACINE, 2008):
A R A R A R R
N N N C N
X X X X X X X X
Em caso muito excepcional em que o Schwa se realiza nesse contexto, a palavra teria
a seguinte representação:
N N N C N
X X X X X X X X
Pode-se perceber, que nesse caso, a consoante que precede o Schwa, quando ele se
realiza, vai ligar-se por uma linha de associação ao nível silábico, pois então, cumprirá seu
papel na periferia da sílaba, sendo que o Schwa ocuparia então o núcleo da mesma.
Já em se tratando do caso mais comum em que o Schwa não se realiza
foneticamente, a posição da Rima ficaria vazia e apaga-se. O que ocorre com a queda do
Schwa é que a consoante precedente, não tendo como se ligar ao nível silábico por uma linha
de associação, passa a assumir a posição de Coda da sílaba que precede.
17
N C N C N
X X X X X X X
A R A R
N N C
X X X X X X
18
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Primeiramente, podemos considerar que a problemática ligada ao Schwa ainda
apresenta divergências em considerar seu status quanto fonema. Porém, como vimos ao longo
desse trabalho e de acordo com os autores apresentados, parece impossível analisar o
fenômeno do apagamento dessa vogal sem concebê-la como fonema, pois ela está presente
nas formas subjacentes.
Já com a apresentação das propostas que estudam o apagamento do Schwa segundo
os modelos fonológicos calcados na Geometria de Traços e na Fonologia Autossegmental,
demonstrou um viés interessante para o entendimento desse fenômeno.
Sobre os esquemas de Encrevé reunidos no trabalho de Racine (2008) sob a
perspectiva da Fonologia Autossegmental, podemos considerar que essa proposta apresenta
um tratamento mais refinado e menos generalizado dos contextos em que ele aparece e de
como sua posição na representação na superfície, no nível dos segmentos, tem ligação com a
forma subjacente das palavras, sendo que foram estabelecidos diferentes tipos de Schwa para
cada contexto analisado.
Outro ponto que é válido relevar está ligado ao acesso à literatura da área. Em se
tratando de um número considerável de obras que tratam da problemática do Schwa por mais
de décadas, ainda encontra-se dificuldades para acessar essas obras ainda que em língua
original, muito mais em português. Mesmo assim, a partir de um apanhado de teorias,
sobretudo com a tese de Racine (2008), foi possível fazer esse breve panorama sobre esse
fenômeno tão recorrente na língua francesa.
Em um segundo momento, seria interessante partir desses princípios fonológicos
para se fazer um estudo mais detalhado, por exemplo, dos contextos que precedem e seguem o
Schwa, como fatores internos e linguísticos que podem condicionar o apagamento da vogal.
Um tratamento acústico e estatístico também poderia contribuir com dados afim de
estabelecer mais concretamente alguns “tipos” de Schwa, na tentativa de explicar
fundamentalmente sua instabilidade em certos momentos e sua estabilidade em outros.
5 REFERÊNCIAS
_____. André. La Nature phonologique d'E-caduc. In: Papers Linguistic and Phonect to the
memory of Delattre P., Mouton, 1972.
_____. François. La vie sociale des sons du français. Paris: L'Harmattan, 2005.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo
RESUMO
O processo de implementação do ensino fundamental de nove anos (Lei nº. 11.274/2006) tem
sido um dos grandes desafios da educação brasileira atualmente. Este estudo objetiva apresen-
tar algumas reflexões que tenho desenvolvido a partir de estudos realizados com alunas do
Curso de Pedagogia da Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL, acerca da implan-
tação do ensino de nove de anos na região da AMUREL. O foco desta apresentação serão três
escolas públicas, de três municípios da região AMUREL, cujos nomes serão preservados. São
objetivos: a) conhecer como estas escolas se organizaram para receber as crianças de seis anos
no Ensino Fundamental; b) levantar as principais dificuldades encontradas por estas escolas
no processo; c) conhecer os limites e desafios encontrados por elas no processo de implanta-
ção e implementação do ensino fundamental de nove anos. O quadro teórico de referência,
para análise dos dados, levará em conta estudos sobre o processo de alfabetização e letramen-
to como processo discursivo. Para a coleta dos dados fez-se uso da pesquisa de campo com
entrevista estruturada. Em termos de relevância para a área, o presente trabalho visa contribuir
com algumas reflexões para os estudos desse campo temático.
Palavras-chave:
Ensino Fundamental de nove anos. Alfabetização. Letramento.
ABSTRACT
Nowadays, the process of changes in Elementary School to implement duration of nine years
(based on Law nº 11.274/2006) had been one of large challenges in Brazilian Education. This
study shows some observations developed from studies made with students that attend Facul-
ty Education at Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL about the implementation
of nine years curriculum in the region of AMUREL. The focus of this presents are three pub-
lic schools from three different towns of AMUREL whose names will be preserved. The pur-
poses are: a) knowing how these schools organized themselves to receive six years old chil-
dren in Elementary School; b) taking main difficulties found by these schools in the process;
c) knowing limits and challenges found by them in during the implementation process of nine
years curriculum in Elementary School. The theoretical board of reference for data analyses
will be based on studies about literacy as discursive process. To take data we used field re-
search with structured interview. This study find give some contributions to this thematic
field.
Keywords:
Elementary School. Nine years curriculum. Literacy.
1
Professora do Curso de Pedagogia da UNISUL. Pedagoga. Mestre em Ciências da Linguagem. Doutoranda do
Programa de doutorado em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL; e-
mail: maria.schlickmann@unisul.br.
2
1 INTRODUÇÃO
A história da alfabetização é a história da
escola! E se quisermos dar outro rumo à
vergonhosa história da alfabetização em
nosso país, é à história da escola que temos
que dar outro rumo – é a escola que
temos de transformar.
Magda Soares
2
A partir de agora passarei a utilizar apenas a sigla AMUREL para me referir à Associação dos Municípios da
região da Laguna.
4
no Fundamental, o que foi muito interessante porque contribuiu para que as pessoas pudessem
ter mais esclarecimentos sobre o processo. Paralelamente ao debate, o governo federal, atra-
vés do Ministério da Educação, preparou vários documentos para orientar estados e municí-
pios na operacionalização desse desafio: receber as crianças com seis anos no Ensino Funda-
mental.
Objetivando situar o leitor neste contexto, a seguir, numa visão panorâmica, apre-
sento uma retrospectiva da base legal do ensino fundamental de nove anos, no Brasil.
Primeiramente, é importante dizer que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional – Lei nº 9.394/96 – já apontava para a ampliação do Ensino Fundamental. A Lei nº
10.172/2001, ao aprovar o Plano Nacional de Educação/PNE, estabeleceu a implantação pro-
gressiva do Ensino Fundamental de nove anos, tornando-se meta para a Educação Nacional. A
inclusão das crianças de seis anos de idade no Ensino Fundamental está ancorada, então, na
meta de assegurar um tempo mais longo de convívio escolar, oferecendo maiores oportunida-
des de aprendizagem e, com isso, educação de qualidade.
Em 16 de maio de 2005, a Lei nº 11.114 altera a LDB e torna obrigatória a matrí-
cula das crianças de seis anos de idade no Ensino Fundamental. Porém, o Conselho Nacional
de Educação esclarece sua posição vinculando a obrigatoriedade da matrícula aos seis anos de
idade à ampliação da duração desta etapa para nove anos, através dos Pareceres nº 06/2005 e
nº 18/2005, que orientam a matrícula no Ensino Fundamental, e da Resolução nº 03/2005, que
fixa normas nacionais para a ampliação do Ensino Fundamental.
No dia 6 de fevereiro de 2006, a Lei nº 11.274 altera a LDB e amplia o Ensino
Fundamental para nove anos de duração, tornando obrigatória a matrícula das crianças de seis
anos de idade no ensino fundamental, fixando o ano de 2010, prazo máximo, para implanta-
ção da lei nos sistemas de ensino estaduais e municipais.
Em Santa Catarina, o Decreto nº 4.804, de 25 de outubro de 2006, dispõe sobre a
implantação do Ensino Fundamental com duração de nove anos nas escolas da rede pública
estadual, a partir de 2007, com ingresso na 1ª série de crianças a partir dos seis anos de idade
completos. Em consequência desse Decreto, a Instrução Normativa nº 22, de 20 de novembro
de 2006, da Secretaria de Estado da Educação, dispõe sobre a duração de nove anos para o
Ensino Fundamental, com matrícula obrigatória aos seis anos de idade nas escolas da rede
pública estadual de Santa Catarina. O Conselho Estadual de Educação, através da Resolução
nº 110, de 12 de dezembro de 2006, dispõe sobre a duração de nove anos para o Ensino Fun-
damental, amparado pelas Leis Federais nº 11.114/2005 e nº 11.274/2006.
5
3
A Lei nº 4.024, de 1961, estabelecia quatro anos; pelo Acordo de Punta Del Este e Santiago, o governo brasi-
leiro assumiu a obrigação de estabelecer a duração de seis anos de ensino primário para todos os brasileiros,
prevendo cumpri-la até 1970. Em 1971, a Lei nº 5.692 estendeu a obrigatoriedade para oito anos. Já em 1996, a
LDB sinalizou para um ensino obrigatório de nove anos, a iniciar-se aos seis anos de idade. Este se tornou meta
da educação nacional pela Lei nº 10.172, de 9 de janeiro de 2001, que aprovou o PNE. Cabe, ainda, ressaltar que
o Ensino Fundamental de nove anos é um movimento mundial e, mesmo na América do Sul, são vários os países
que o adotam, fato que chega até a colocar jovens brasileiros em uma situação delicada, uma vez que, para con-
tinuar seus estudos nesses países, é colocada a eles a contingência de compensar a defasagem constatada (BRA-
SIL, 2009a).
7
a) A escola como polo irradiador de cultura e conhecimento: este princípio também está
sintonizado com a própria lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n.
9394/96), Art. 1º: “A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem
na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e
pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifesta-
ções culturais”.
É preciso, portanto, não esquecer que as crianças são diferentes e que possuem
tempos diferentes para aprender.
E é a partir da definição dessa política que todo o processo deve ser organizado.
Porém, é preciso ter clareza do processo, especialmente em termos de organização curricular,
para não repetir, no primeiro ano, as mazelas das tradicionais primeiras séries. Para pensar
este tempo e espaço, é necessário, então, que o educador faça alguns questionamentos acerca
do tema e da estrutura necessária para atender essa faixa etária. Afinal, toda mudança também
precisa mexer com a estrutura tradicional da Educação Básica, de forma a garantir a perma-
nência da criança na escola. É preciso, então, se perguntar: Quem é essa criança que chega aos
seis anos no ensino fundamental? Que necessidades ela tem? Do que ela gosta? Como se rela-
ciona (com os colegas, com os adultos – entre os atores do processo)? Como ela aprende?
Como organizar / pensar os espaços e tempo para recebê-la com seis anos na escola? O que e
como “ensinar”? O que está garantindo (ou garante) a permanência da criança na escola? O
que dizer e fazer com a criança de seis anos no ensino fundamental?
O documento do MEC, norteador do Ensino Fundamental de nove anos, assim se
posiciona sobre a organização da escola para receber as crianças dessa faixa etária:
8
Sobre a questão espacial [...] uma questão de fundo: qual a finalidade dessa organi-
zação? Será que esse espaço escolar, da forma como usualmente tem sido organiza-
do, promove um agrupamento dos alunos favorável à dinamização das ações peda-
gógicas? Ao convívio com a comunidade? À reflexão dos professores? Existiriam
outros modos de estruturar o espaço da escola que possibilitassem a interação das
crianças e adolescentes em conformidade com suas fases de socialização? Sobre os
currículos e programas escolares – Via de regra, os currículos têm sido tratados
como um programa, considerado, de modo geral, como uma organização de conteú-
dos numa determinada sequência e utilizando um determinado critério. Seria essa a
única possibilidade de se conceber o currículo? Será que a abordagem dos saberes
parte do conhecimento que os alunos trazem do seu grupo social? Que usos as pes-
soas fazem desses saberes em suas vidas? (BRASIL, 2009a, p.9).
[...] Rubem Alves, quando afirma que “a criança tem de parar de pensar o que estava
pensando e passar a pensar o que o programa diz que deve ser pensado naquele tem-
po”. Daí que emergem as questões sobre a necessidade de se repensar a organização
do tempo escolar, acompanhando as mesmas inquietações de Rubem Alves: “o pen-
samento obedece às ordens das campainhas? Por que é necessário que todas as cri-
anças pensem as mesmas coisas, na mesma hora e no mesmo ritmo? As crianças são
todas iguais? O objetivo da escola é fazer com que as crianças sejam todas iguais?
(BRASIL, 2009a, p. 9).
Tabela 1 – Nomenclatura das turmas que compõem o Ensino Fundamental de Nove Anos.
Fonte: MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Ensino Fundamental de Nove Anos: Orientações Gerais. Brasília: Mi-
nistério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2004, p. 155. Adaptado.
4
Os municípios e escolas, lócus desta pesquisa, implantaram o Ensino Fundamental de nove anos no primeiro
ano de implantação da lei (2007 e 2008).
5
Para aprofundar as discussões sobre currículo e planejamento, ver Moretto (2007) e Sacristan (2000).
6
Vale lembrar, também, que no ano de 2008 o Ministério da Educação e a Secretaria de Educação Básica orga-
nizaram a publicação “Indagações sobre Currículo”. Trata-se de cinco livretos, que abordam os seguintes temas:
“Currículo e Desenvolvimento Humano”, “Educandos e Educadores: seus direitos e o currículo”, “Currículo,
Conhecimento e Cultura”, “Diversidade e Currículo” e “Currículo e Avaliação”. As escolas públicas de todo o
Brasil receberam, no ano de 2009, este documento, que busca embasar teoricamente discussões a respeito da
organização curricular, abrangendo diferentes perspectivas para que os professores, escolas e profissionais da
educação possam refletir e elaborar as propostas curriculares do seu sistema de ensino, registrando-as em seu
Projeto Político-Pedagógico. Neste sentido, o Ministério da Educação e a Secretaria de Educação Básica pro-
põem aos envolvidos neste processo “[...] uma reflexão: para quem, o que, por que, e como ensinar e aprender,
reconhecendo interesses, diversidades, diferenças sociais e, ainda a história cultural e pedagógica de nossas esco-
las. Posicionamo-nos em defesa da escola democrática que humanize e assegure a aprendizagem. Uma escola
que veja o estudante em seu desenvolvimento – criança, adolescente e jovem em crescimento biopsicossocial;
que considere seus interesses e de seus pais, suas necessidades, potencialidades, seus conhecimentos e sua cultu-
ra” (BRASIL, 2008b, p. 7).
10
Para que o leitor deste texto possa saber de onde partir para organizar o currículo
para o ensino fundamental de nove anos, na sequência, ainda que sem aprofundar, pois não é
o foco aqui, apresento, alguns conceitos chave para contribuir com as reflexões sobre um cur-
rículo para o ensino de nove anos.
Associada a essa ideia, o eixo da proposta pedagógica para o primeiro ano do en-
sino de nove anos de duração estará alicerçado no princípio do alfabetizar letrando – alfabeti-
zação e letramento (SOARES, 2006).
Embora na turma de seis o currículo deva estar pautado no alfabetizar letrando é
importante diferenciar alfabetização e letramento de forma que os professores possam ter a
clareza de que o “letramento é [...] o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e es-
crever; o estado ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como conse-
quência de ter-se apropriado da escrita (SOARES, p. 18)”, enquanto que “alfabetização é a
ação de alfabetizar, de tornar-se „alfabeto‟, ou seja: no dizer de Soares (2006) “Alfabetizar é
tornar o indivíduo capaz de ler e escrever” (p.31).
Esta é a concepção que vai permear o currículo do primeiro ano do ensino funda-
mental de nove anos de duração. Vale ressaltar que no primeiro ano desse currículo a priori-
dade é a dimensão social do letramento; nesta dimensão “o foco se desloca para a dimensão
social, o letramento é visto como um fenômeno cultural, um conjunto de atividades sociais
que envolvem a língua escrita, e de exigências sociais de uso da língua escrita (SOARES,
2006, p. 66)”, o que, no dizer de Soares, caracteriza o processo de leitura e escrita como práti-
11
cas sociais, e são essas práticas que, pelo eixo das diferentes linguagens da ludicidade, devem
ser exploradas no primeiro ano do ensino fundamental, de forma que a criança possa ampliar
suas referências e seu vocabulário, ao mesmo tempo em que entra no universo da cultura es-
crita. Vale ressaltar também, que quando a criança chega para a escola ela já traz consigo ex-
periências, podendo vivenciar práticas sociais de leitura e escrita. Neste sentido,
[...] a criança que ainda não se alfabetizou, mas já folheia livros, finge lê-los, brinca
de escrever, ouve histórias que lhe são lidas, está rodeada de material escrito e per-
cebe seu uso e função, essa criança ainda é „‟analfabeta”, porque não aprendeu a ler
e escrever, mas já penetrou no mundo do letramento já é, de certa forma, letrada
(2006, p. 24).
Uma outra questão importante é que temos diferentes níveis de letramento (SOA-
RES, 2006), o que leva-nos a reafirmar a importância do primeiro ano como espaço de ampli-
ar as linguagens e, consequentemente, o nível de letramento das crianças.
Porém, isso não foi compreendido e nem estudado pelos educadores e equipes pe-
dagógicas das escolas. Em geral, o que aconteceu nos municípios e escolas onde o ensino
Fundamental de nove anos de duração foi implantado, foi uma antecipação do currículo da
primeira série para o primeiro ano, como veremos a seguir, em pesquisa realizada junto a três
municípios da região da AMUREL.
A implantação do ensino de nove anos foi simplesmente jogada nas escolas, pois
não houve preparo nem capacitação para os profissionais que estão em regência. A
decisão foi tomada em instância superior e as escolas tiveram que acatar as ordens
(coordenador pedagógico C, 2008); A decisão foi tomada e a escola teve que execu-
tar, não houve discussões (coordenador pedagógico B, 2008 ); Em instância superior
recebeu a decisão com muitas dúvidas e expectativas em relação as orientações que
caberiam a escola receber dos órgãos competentes (Coordenador Pedagógico D).
(MEDEIROS, 2008, p. 29)
12
Note-se que estes relatos são da coordenação pedagógica da escola, porém os pro-
fessores reiteram o relato da coordenação pedagógica. Disseram eles:
Professora A – Eu, apesar de saber como trabalhar com estas crianças devido a mi-
nha experiência na educação infantil, senti muita dificuldade, porque nossas profis-
sionais não viam desta forma que se falava, mas sim cobravam o currículo antigo e
tu tinha que apresentar o resultado da tal nota, da tal leitura e que iria haver reprova-
ção. Sofri muito, acho que as crianças também (sob pressão); Professora B – A mai-
or mudança é que a criança inicia sua educação infantil aos 6 anos; Professora C –
As mudanças são muitas, principalmente na aprendizagem, as dificuldades de nós
professores é que enquanto não houver mudança no currículo, não se tem prática pe-
dagógica certa a ser aplicada; D – Minha prática continua a mesma pois o currículo é
o mesmo (MEDEIROS, 2008, p. 31).
7
Essa pesquisa foi realizada no município de Tubarão e abrangeu três escolas desse município (uma da rede
pública estadual, uma municipal e uma particular).
8
Esclareço que, na pesquisa de Maurício (2009), as escolas A e B são públicas e a escola C pertence ao sistema
municipal, mas é uma escola da rede particular de ensino.
13
9
“Isso porque apesar de a língua ser a mesma gramaticalmente, ela não é a mesma do ponto de vista discursivo,
isto é, da sua realização, por causa das interferências desses fatores externos; quem fala, para quem se fala, de
que posição social e ideológica se fala (BRANDÃO, ano, 1993, p.7)”.
14
das escolas nos dias atuais. É o discurso pedagógico10 impregnado da concepção tradicional,
da mecanização do processo que continua atravessando as ações cotidianas dos docentes,
mesmo com a implantação da nova lei.
A seguir, um comentário em que é possível perceber com maior clareza esta ques-
tão:
10
O conceito de discurso pedagógico utilizado neste texto está baseado no texto de Orlandi (1987) O discurso
pedagógico: a circularidade.
11
O PARFOR é um programa do governo federal que tem por objetivo promover a formação inicial de profes-
sores para a Educação Básica. A sigla significa: Plano Nacional de Formação dos Professores da Educação Bási-
ca: PARFOR.
15
Professor 1: “Alfabetizar não é vencer o livro e nada valerá se o conteúdo não for do
interesse do aluno.” Professor 2: “Conseguir o apoio da família (nas tarefas princi-
palmente) para auxiliar os alunos.” Professor 3: “Desenvolver estratégias que sejam
adequadas para cada aluno, pois todos tem suas particularidade e nem todos apren-
dem da mesma forma.” Professor 4: “Falta de colaboração da maioria dos pais, prin-
cipalmente.” Professor 5: Não respondeu. Professor 6: “Salas cheias e um único al-
fabetizador.” Professor 7: “A maior dificuldade com certeza é a sala lotada e pouco
material pedagógico (MATEUS et alii, 2011).”
tico, sem parque, etc. (MATEUS et alii, 2011)”. Esta afirmação foi corroborada por todos os
sujeitos pesquisados quando perguntados se o espaço físico e mobiliário foram adaptados, o
que é indicativo de que as instituições não pensaram em nenhum momento sobre a adequação
do mobiliário e espaço lúdico para a entrada das crianças de seis no ensino fundamental.
Fonte: Professores da rede estadual, 2011. Pesquisa realizada parta o projeto integrador desenvolvido na disci-
plina de alfabetização e letramento, Curso de Pedagogia – Licenciatura em Educação Especial - PARFOR, UNI-
SUL, 2011-A.
Nota-se, na foto, que os pés da criança ficam pendurados; ela não consegue alcançar o
chão. A carteira é padrão para todas as turmas e a criança não consegue ter uma postura ade-
quada.
6 REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº. 9.394 – 24 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional. Brasília: Ministério da educação, 1996.
NASCIMENTO, Anelise Monteiro do. A infância na escola e na vida: uma relação fundamen-
tal. In: BRASIL. Ministério da Educação. Ensino Fundamental de nove anos: orientações
para a criança de seis anos de idade. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação
Básica, 2007.
RESUMO
Nesta abordagem, mobilizo uma reflexão sobre o discurso construído no meio digital, o qual
vem mudando o comportamento de indivíduos, a partir da materialidade escrita nas redes so-
ciais. Em um mundo cada vez mais conectado e estreitado pela internet, a tecnologia facilitou
o acesso à informação e revolucionou o modo como os indivíduos se comunicam. Da simples
função de aproximar amigos em lugares distantes à capacidade de mobilizar pessoas, as redes
sociais têm sido o canal de uma nova percepção da realidade e uma experiência exclusiva
responsável por modificar o comportamento comunicativo da sociedade. Para tanto, o traba-
lho de análise se incorpora a partir da escrita constituída no Facebook, no qual tenho como
objetivo evidenciar a existência de uma falsa cristalização de que a rede social foi responsável
por revolucionar a comunicação entre as pessoas. Tendo em vista a especificidade do artigo,
delimitamos alguns conceitos fundamentais para o percurso que desejamos realizar, como as
condições de produção em relação à ordem da língua, posição sujeito e o inconsciente. Assim,
identifico nesse exercício de análise, os sistemas que se constituem a partir da escrita, for-
mando-se canais, permitindo outros usuários se inscrever no discurso materializado do outro,
no plano eletrônico que estudamos.
Palavras-chave:
Sujeito. Materialismo. Facebook.
ABSTRACT
This approach mobilizes a reflection on the discourse constructed in the digital environment,
which is changing the behavior of individuals, from the written material on social networks.
In a world increasingly connected and enhanced by the Internet technology has facilitated
access to information and revolutionized the way individuals communicate. The simple func-
tion of close friends in distant places to the ability to mobilize people, social networks have
been the channel of a new perception of reality and a unique experience responsible for modi-
fying the communicative behavior of society. To this end, the work of analysis is incorporated
from the writing made on Facebook, where I aim to highlight the existence of a false crystal-
lization of the social network was responsible for revolutionizing communication between
people. Given the specificity of the article, some fundamental concepts delimited to the route
we want to accomplish, the conditions of production in relation to the order of language, sub-
ject position and the unconscious. Thus, I identify in this exercise, the systems that are from
the writing, forming channels, allowing other users to enroll in the discourse of the other ma-
terialized, we studied the electronic plan.
Keywords:
Subject. Materialism. Facebook.
1
Projeto de Pesquisa Língua, sujeito e ideologia: O imaginário sobre língua construído pela/na mídia, coorde-
nado pela professora Dr. Carme Regina Schons, professora do Mestrado em Letras da Universidade de Passo
Fundo-UPF; e-mail: crschons@gmail.com; fone: (54) 9998-7648.
2
Graduação em Letras pela UPF-Universidade de Passo Fundo (2010). Aluno do mestrado em Letras na modali-
dade de disciplina isolada; e-mail: paulo.henriquesimon@gmail.com; fone: (54) 9926-0851.
2
1 INTRODUÇÃO
Neste trabalho, desenvolvemos um estudo sobre o discurso construído no meio digital,
espaço este que imaginamos configurado por um plano, de estrutura superficial e que se torna
complexo a partir do momento em que o sujeito se inscreve ao materializar seu pensamento
pelo uso da língua não oral. Ao modo que se faz imprescindível afirmar que a tecnologia faci-
litou o acesso à informação e revolucionou a sistemática comunicativa entre indivíduos, iden-
tificamos um modelo de língua substancial, de forte enraizamento e fixidez, produto que é
responsável por ocasionar discussões, interferências e mobilizações em rede eletrônica. Da
simples função de aproximar amigos em lugares distantes à capacidade de mobilizar pessoas,
as redes sociais têm sido os canais que trouxeram consigo uma nova forma de realização indi-
vidual pelo uso da palavra.
Nesse processo, a nova geração de sujeitos, automaticamente projetados pela língua do
circuito eletrônico, demarca sua presença nos espaços virtuais em um parâmetro de medida a
nivelar informações e mobilizar agentes do ciberespaço em torno de fatos reais do cotidiano.
Evidentemente, este recurso é disponibilizado por uma rede que lidera a preferência de uma
grande parcela de internautas. Falo do Facebook, o qual tem como objetivo reconfigurar a
internet, transformando os hábitos de navegação, na extensão em que “os usuários dessa rede
conseguem conduzir suas discussões e tomar decisões baseadas nas recomendações de seus
amigos e contatos” (Revista Info, 2011, p. 22).
Para tanto, o trabalho de análise se estrutura materialmente na escrita constituída no meio
digital, onde buscamos entender como o (in)consciente se organiza em relação à ordem da
língua na sua materialidade textual em que percorre no mesmo sentido o silencio pelo (não)
dizer e pelo uso da palavra como unidade padrão, resultante do comportamento dos sujeitos
que nesse espaço estão inseridos. Assim, identifico nesse exercício linguístico, uma superfície
que materializa esse discurso impensável, lançado com deslizes e descontroles sobrepostos às
características estruturais da fala.
Para desenvolver este estudo, recorro primeiramente a um dispositivo de funcionamento
sincrônico e essencial à língua: A materialidade histórica, que me faz transitar pela Análise do
Discurso (AD). Logo, o Facebook é uma das redes, onde encontramos uma nova geração de
sujeitos, a geração Y, entendida como a geração saúde, a qual possui instinto para aprender
tarefas cotidianas, padronizadas às preferências desse agrupamento de sujeitos e que com ela
se identificam. Por um lado, são perfis que as empresas gostariam de ter: imponentes tecnó-
logos; rápidos, desafiantes e inovadores. Por outro, uma epidemia gerencial: obcecados pelo
crescimento profissional buscam status e destaque social em um período curto de tempo. Pos-
3
Organograma (1)
Para entender essa formulação que apresentamos, vale relembrarmos que não há como
pensar a língua sem a existência dos sujeitos. Nessa construção, imaginamos três engrenagens
sobre uma superfície em que o modo (1ª engrenagem) define-se pela forma em que a língua se
nivela entre os indivíduos. Ao validar o meio (o plano do Facebook) cria-se automaticamente
uma condição (2ª engrenagem), quando se condiciona a comunicação, imediatamente ocorre o
desempenho (3ª engrenagem deste plano) entre os sujeitos. Nesse espaço, seguindo formula-
ções de Pêcheux (1969) sobre imaginário, A e B ocupam um determinado lugar na estrutura
da mensagem que também se condiciona em nosso trabalho como discurso não oral/não ver-
balizado, resultante de um processo mental e que, segundo a ótica da AD, transforma-se em
um produto que reveste os efeitos de sentidos em rede.
Ao se constituir um efeito de sentido, valida-se uma materialidade fragmentada que dá
margem a circulação de mensagens instantâneas e explicitadas. Por isso fundamental é trazer
uma citação de formulação de Orlandi no artigo “Discurso e Textualidade”, o qual é parte
constituinte do livro Análise de Discurso em que a autora diz o seguinte:
[...] enquanto “as ideologias têm uma história própria” uma vez que elas têm exis-
tência histórica e concreta, a “ideologia em geral não tem história”, na medida em
que ela se caracteriza por “uma estrutura e um funcionamento tais que fazem dela
uma realidade não-histórica, isto é, omni-histórica, no sentido em que esta estrutura
e este funcionamento se apresentam na mesma forma imutável em toda história, no
sentido em que o Manifesto define a história como “ história da luta de classes, ou
seja, história das sociedades de classe” (p.151).
tada rede discursiva, se dá no momento em que reconhecemos seus criadores. São eles: o uni-
versitário Mark Zuckerberg e seus três colegas, Dustin Moskovitz, Eduardo Saverin e Chris
Hughes.
De imediato, dispenso a necessidade de reconhecê-los na sua individualidade e sim, des-
taco a precisão organizacional desse processo pela história de criação da engenhosa ferramen-
ta comunicativa, recorrendo a um fragmento recortado da obra intitulada por “Bilionários por
acaso: A criação do Facebook’’ publicada em 2010 por Ben Mezrich, para melhor entender-
mos os efeitos de sentido que se projetam através do uso da língua, no qual abordo o recorte
(1) extraído da página 128, para ilustrar de forma fragmentada parte da história dessa rede:
Recorte (1)
noção de que o espaço condicionado pela existência da rede social é secreto e fechado aos
olhos de outros indivíduos que a utilizam como uma zona de conforto.
Brutalmente, a língua eletrônica acontece em duas perspectivas: Na primeira perspectiva
veste o sujeito em sua integridade como se fosse o resultado se sua incontrolável fala. Na se-
gunda possibilita o acesso ao plano discursivo, para manifestar o interdiscurso que o deixa
incapaz de revelar o que está psicanaliticamente organizado em mente. Assim, a rede social
de Zuckerberg nivela o sujeito, quando este alcança uma altura satisfatória para declarar o que
pensa em rede, no espaço indicado no seguinte recorte:
Recorte (3)
Conforme ilustrado pelo recorte acima, o sujeito se depara com o “feed de noticias”.
Considerando a tradução e o posicionamento da palavra em uma sentença da língua inglesa,
feed assume o papel de verbo ou substantivo que significa alimentar/alimentação. Ao entender
o fato do fragmento se materializar e adquirir um formato com uma palavra de ordem portu-
guesa forma-se uma sentença composta por um segundo idioma. Assim quando se alimenta
alguém, sacia-se a fome de um determinado indivíduo. Nessa conjuntura, o efeito de saciar a
fome, nivela-se no mesmo sentido de satisfazer o sujeito pelo uso da palavra.
Nesse estágio, ocorre um processo que transita entre o (in)consciente e a fala do indiví-
duo estabelecendo-se às escuras uma comunicação composta de falhas e deslizamentos, pois
ela se revela como se fosse o resultado da fala. No entanto na fala, o discurso não se estabiliza
e muito menos se materializa, pois não se dispõem de uma base que assegure a imutabilidade
da fala. Já no plano eletrônico, se dispõem dessa base, só que os sujeitos que a utilizam, não
percebem o ato falho que tendem a cometer. Voltando ao recorte (3) existe a possibilidade de
o usuário compartilhar o seu status, uma foto, um link, um vídeo ou até mesmo compartilhar
uma pergunta visando mobilizar outros usuários.
Por isso ao considerar essas possibilidades, algo chama a atenção quando refiro-me a
seguinte pergunta: “No que você está pensando agora?” (conforme ilustrado no terceiro recor-
9
te). Tendo em vista o funcionamento da língua em rede, o usuário ao clicar sobre o espaço
indicado para escrever seu status não percebe que a pergunta desaparece (conforme é ilustra-
do pelo recorte 4) e nesse exato momento a língua vira uma ferramenta brutal para o próprio
sujeito que a utiliza, pois o botão “compartilhar” assume a mesma função de “materializar”
uma informação de cunho pessoal, um discurso que na verdade se projeta com tropeços e des-
cuidos como se fosse a produção de uma fala descontrolada:
Recorte (4)
O conjunto de teorias que separa a relação entre retórica (entendida como a arte de falar
bem), dialética (a contradição de ideias) e a gramática (considerada um modelo reflexivo para
desempenhar corretamente a língua) se dilaceram em ar, no momento em que o mecanismo da
10
língua entra em funcionamento na rede eletrônica, isto porque a condição e a relação de pro-
dução que se fazem presente sobre o tom azul marinho do Facebook, exige, sem querer, um
modelo linguístico totalmente oposto à tríplice apresentada, pois o “lugar” (este formado pelas
ferramentas que possibilitam o mecanismo da língua) onde os sujeitos declaram suas contra-
dições vem condicionado e desestabilizado, tornando-se inconveniente construir uma materia-
lidade retórica e baseada na gramática.
Ao deslocar a relação entre escrita e leitura, percebemos um pequeno texto fragmentado.
A justificativa que encontramos para comprovar tal existência está na materialidade eletrônica
que dá margem a origem de outras textualidades no momento de “Curtir” ou “Comentar” o
texto composto na rede digital que estudamos. Conforme prometemos anteriormente, identifi-
camos no recorte a seguir um efeito de ocultação do real sujeito, pela sua própria inscrição no
discurso que não o pertence. Para entender melhor esse funcionamento, referencio abaixo,
pelo pseudônimo de “Sujeito I” o recorte (5) que exibe o seguinte:
Recorte (5)
No fragmento representado pelo quinto recorte, o sujeito apropria-se de uma parte dos
versos da música Quelqu’um M’a Dit da cantora Franco-Italiana Carla Bruni, para exteriorizar
seu pensamento. No entanto, para causar um efeito inaugural, o sujeito I exterioriza e ativa o
cristalizado em seu interdiscurso para realizar uma inferência. Esta inferência dá corpo à pre-
sença de causa, no entanto seu discurso se bloqueia, pois tendo em vista que a coleta desse
material foi realizada posteriormente a sábado, (Domingo, 17 de julho de 2011), a materiali-
dade transposta em língua portuguesa, evita que se faça referência a autêntica autoria.
Além disso, o sujeito delimita o seu lugar em rede, no momento em que sua foto resume
uma personalidade e o demarca no espaço sobre a sua escrita. Incapaz de criar um discurso
próprio a partir do que é pensado no momento que adapta a verdadeira (re)produção material
do interdiscurso, a condição e o modo como a produção se finaliza, faz com que a materiali-
dade se projete com pontuações irregulares e ocasionadas com diferentes propósitos. Esses
11
propósitos só podem ser apontados pela ideologia (irrevelável) que domina o sujeito no exato
momento em que (re)produz o texto que o realiza.
Independente do efeito, nenhum outro usuário aparece para se interferir na materialidade
posta em rede e muito menos, se faz referencia a qualquer outro indivíduo no texto apresenta-
do. Na tentativa de entender outro modelo de produção existente, selecionamos um segundo
recorte, em que encontramos características lingüísticas parecidas com o que foi apontado
anteriormente, no entanto na existência a seguir, o pseudônimo de sujeito I3 faz referência a
um outro pseudônimo de sujeito II, na tentativa de mobilizá-lo para uma atividade, de cunho
particular, em que este é nomeado no discurso, coberto incessantemente pelo silêncio sobre o
propósito articulado do primeiro usuário. Vejamos como isso ocorre no recorte (6)
Tendo em vista que o sujeito II participa de uma atividade prazerosa identificada por
“saborear uma pizza”, (sentença anunciada pelo sujeito I) entendo que ele permanece em si-
lêncio para a segunda atividade (“dá uma geral no apê”) indício que aponta a necessidade da
realização de uma limpeza no apartamento ocupado pelos dois sujeitos que nessa materialida-
de estão inseridos. Assim considerando a funcionalidade da língua sobre este plano, nota-se
que o segundo sujeito não se submete ao interdiscurso imposto pelo representante desta “fa-
la”. Assim o segundo sujeito, se subjetiviza ao (ato) simbólico na história do que não lhe dá
prazer. Em outras palavras, trata-se de uma convocação informal pelo circuito do Facebook.
Infelizmente, ao processo de análise que se finaliza aqui, sabemos que é impossível
abordar em torno da língua, toda a completude de mecanismos existentes no engenhoso espa-
ço. No caso do nosso corpus, constituído pelas materialidades discursivas selecionadas da
rede social, conseguimos perceber que nesse processo, se dispersa um modelo de língua in-
domável e coberta pela interferência do sujeito e de sentidos. Ao entender a materialização
3
Salienta-se que o Sujeito I não é o mesmo sujeito do recorte(6)
12
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Todo esse conjunto de ideias que trouxemos até aqui tem um propósito. Esta intenção
se deve a tentativa de mobilizar novos estudos em relação ao plano eletrônico abordado, pois
ao considerar a imaturidade de dados existentes sobre a rede social, que hoje vem reconhecida
por “revolucionar a maneira como as pessoas se comunicam”, gera polêmica na medida em
que os sujeitos se inscrevem nesse plano (de superficialidade) para exteriorizar o pensamento
através de atos lingüísticos, os quais materializam o modo comportamental através da exterio-
rização no ilimitado espaço da internet.
Como resultado parcial desta pesquisa, possível é identificar que essa língua isola por
partes o indivíduo através de uma conjuntura linguistica de automação interpretativa e frag-
mentada. Essa nova tecnologia de linguagem (se é que podemos chamar assim) ao conside-
rarmos sua disposição global nos mais diversos aparelhos eletrônicos como computadores,
tablets e celulares, se difunde em relações superficiais em que intrincam-se a autenticidade de
notícias do cotidiano real do sujeito que nessa conjuntura se encontram.
Radicalmente, esse efeito, é uma manifestação de um processo discursivo pensado na
condição sócio-histórica, que produz um efeito de sentido determinado pelo modo como se dá
a relação e a condição para a produção do discurso. Ao relembrar que o Facebook, nasceu
pela alimentação das informações de um jornal interno da Universidade Harvard que não
atingiu a mesma proporção na altura em que a rede social conseguiu atingir, dou-me conta de
que o espaço eletrônico perdeu a forma de “virtual”, para “digital” no processo em que a lín-
gua transformou-se em um sinônimo de dispersão.
A partir disso, ocorre uma situação discursiva em que o sujeito dá à sua materialidade,
a dimensão que mede a intensidade da palavra e o efeito que ela pode causar, quando mobiliza
outras extensões. Fundamentalmente falamos de uma tríplice transição entre mente, língua e
materialidade o qual possui um vínculo diretamente conectado com a exterioridade do contex-
to social que o circunda nas características inerentes da personalidade individual do sujeito.
13
5 REFERÊNCIAS
_____. Análise de discurso. In: ORLANDI, Eni; LAGAZZI-RODRIGUES, Suzy (Org.). Dis-
curso e textualidade. Campinas, SP: Pontes, 2006.
_____. Discurso e Texto: Formulação e Circulação dos Sentidos. Campinas, São Paulo: Pon-
tes 2ª edição, 2005
MEZRICH, Ben. Bilionários por Acaso: A criação do Facebook - Uma história de sexo, di-
nheiro, genialidade e traição. Tradução de Alexandre Matias. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2010.
_____. Sobre a (des)construção das teorias lingüísticas. In: Cadernos de tradução. 2ª. ed., n.
4, Porto alegre: Instituto de Letras/UFRGS, p. 35-55, out. 1998.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo
RESUMO
Palavras-chave:
Leitor de uma palavra. Início da aprendizagem da leitura. Linguística aplicada. Aquisição da
linguagem. Cognição.
ABSTRACT
Linguistic thesis availed two initial stimuli of learning: alphabet (isolated letters) and a
written word (sequence of graphemes of oral word known by the learner). Alphabet stimulus
depends of before literacy experiences – that turns very hard the learning for subjects without
this experience. Isolated letters would be seen as math variables and totally incomprehensible
by unliterary beginner learners. The student can receive until 10.000 cognitive, visual and
auditory percepts before the teacher offer the reading of a written word. This fact would
justify the difficulty of many students. With a written word, the researcher identified a new
kind of early reading that did not need any before literacy experiences. One word reader
relates only three percepts: “bola”=/‟bla/ [“ball”=/‟baw/] → one auditory /‟bla/ [/‟baw/],
one visual “bola” [“ball”] and one cognitive (=). Lexical reading creates new synaptic ways in
the mind of unliterary beginner learners. It connected the visual percept of the written word
“bola” [ball] with the auditory percept /‟bla/ [/‟baw/] at Wernicke‟s area. They read one
word and understood partially the alphabet system operation. These findings may be relevant
to improve the way children get in the reading and writing world in the school – childhood
education and fundamental teaching. The idea would be a more easy and a more happy
learning to the student and a more efficient pedagogical practical to the teacher in the begging
of this process.
1
Doutor em Linguística, ênfase Linguística Aplicada; e-mail: ricluz17@yahoo.com.br.
2
Keywords:
One word reader. Early reading learning. Applied linguistics. Language acquisition.
Cognition.
1 PRÓLOGO
Neste artigo, reúnem-se aspectos mais relevantes da pesquisa de doutorado em
Linguística Aplicada (LUZ, 2010). A análise permitiu um novo olhar para o início da leitura
com o conceito de leitor de uma palavra. Novos estímulos foram desenvolvidos e aplicados
com 20 crianças para ensinar a leitura. Esses alunos não haviam se apropriado da noção
central do sistema escrito, o enigma da leitura. A ideia era auxiliar os estudantes a
compreenderem esse conceito fundamental. Um teste de leitura com três palavras e uma frase
simples bola vaca gato O menino come. (SCLIAR-CABRAL, 2003), por exemplo, foi
aplicado em 91 sujeitos dos 118 alunos que frequentavam o primeiro ano do ensino
fundamental de uma determinada escola. Os pais e os responsáveis pelos participantes
assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para Pesquisas com Seres
Humanos. O uso de fotos também foi consentido.
O teste mostrou habilidades iniciais distintas: não leitor de palavra escrita; leitor de
uma palavra; leitor de algumas palavras; e leitor de palavras e de uma sentença. Não por
acaso, a interação com os 20 estudantes não leitores (17% da população na classe investigada)
se restringiu a três palavras e uma frase. A avaliação da leitura em seus estágios iniciais
possibilitou um insight que direciona, intuitiva e pragmaticamente, a construção do conceito
desenvolvido nesta pesquisa. O aprofundamento no primeiro passo dessa aquisição favorece
alternativas pedagógicas para o entendimento desse enigma, muitas vezes incompreensível
para alunos analfabetos e com poucas vivências de letramento e de oralidade no ambiente
familiar.
A análise técnica dos segmentos isolados apontou a possibilidade de estudantes
receberem as 26 letras como variáveis matemáticas, já que não se referem a nenhuma palavra
conhecida pela criança. Liga-se coisa alguma com nada. Desde a primeira exposição do
alfabeto até a formação de sílabas, computaram-se cerca de 10 mil perceptos: os visuais (a, b,
c...), os auditivos (/‟a/, /‟be/, /‟ce/) e os cognitivos (a=A; a=/‟a/). As noções de nomes de
letras, relações entre maiúsculas e minúsculas, bem como de vogais e consoantes, não seriam
nada simples e nada óbvias para quem se inicia no mundo da leitura e da escrita – apesar de
serem óbvias para os alfabetizados, como os professores. O artigo não contém detalhes desta
3
análise. Para os interessados em detalhes, remeto para o livro O leitor de uma palavra (LUZ,
2011b).
O olhar do jornalista, por formação e prática, influenciou o recorte do objeto de
estudo. A premência de achar um título para um texto qualquer, impõe a busca do ponto mais
relevante para abrir “a matéria”. Essa vivência ajudou a procurar os aspectos salientes na
perspectiva do aprendiz iniciante, o entendimento do enigma da leitura: a transformação do
oral em escrito e do escrito em oral. Além disso, uma experiência como professor de língua
inglesa possibilitou uma empatia com adolescentes (ensino médio) e crianças (educação
infantil e fundamental), ao motivá-los e envolvê-los em uma interação significativa para eles.
“Ninguém domina ciência alguma, nem se faz virtuoso, de golpe. [...] Não há quem
tenha prescindido do auxílio livresco e de professores” (HECKER 1944, p.19), o que
certamente foi o caso, incluindo-se também as crianças com quem houve interação neste
processo. Segundo Abreu (2010), a cognição humana engloba linguagem, memória,
raciocínio lógico, emoções e motivações – a capacidade de processar informações e de reagir
a tudo que se percebe no mundo e dentro de nós mesmos. Esses processos estão presentes no
ensino e na aprendizagem da leitura. A dualidade entre empiria e especulação foi mediada
pela fenomenologia e pela biologia, para analisar aspectos pragmáticos e teóricos no primeiro
passo da aprendizagem da leitura. Os estímulos podem ser vistos como inputs, que guardam
algum grau de condicionamento behaviorista; e se processam na mente, provocando algum
grau de especulação cognitiva. Kandel (2009) retoma a dicotomia teórica semelhante entre o
biológico (inato) e o ambiental (empírico); o primeiro de Immanuel Kant (1724-1804) com o
conhecimento a priori; e o segundo de John Locke (1632-1704) com o conhecimento da
experiência.
[...] vimos que as duas visões tinham mérito – na verdade, se complementavam. A
anatomia do circuito neural é um exemplo simples do conhecimento a priori
kantiano, ao passo que as mudanças por força das conexões específicas do circuito
neural refletem a influência da experiência (KANDEL 2009, p. 227).
O conceito de Leitor de uma palavra talvez seja o aspecto mais relevante da pesquisa
realizada. Esse achado talvez possa representar uma complementação às estratégias
tradicionais, para aprimorá-las e facilitar o trabalho de quem ensina e de quem aprende a
leitura. Um novo olhar e um novo conceito para o problema da aprendizagem da leitura
buscam uma contribuição efetiva para os sujeitos que interagem nessas instituições, nos
momentos iniciais dessa apropriação.
4
[...] enquanto só conheço uma relação num único caso particular, tenho dela apenas
um conhecimento individual, portanto apenas intuitivo. Mas, logo que identifico a
mesma relação em pelo menos dois casos distintos, tenho um conceito de toda a sua
espécie, portanto um conhecimento mais profundo e mais perfeito
(SCHOPENHAUER, 2010, p. 121).
A filosofia está inscrita neste grande livro que está para sempre aberto diante de
nossos olhos: o Universo. Mas o livro não poderá ser lido a não ser que tenhamos
aprendido sua linguagem e nos familiarizado com os caracteres em que está escrito.
É a linguagem matemática, e suas letras são triângulos, círculos e outras formas
geométricas, sem as quais é humanamente impossível entender uma só palavra
(GALILEI apud OSTROWER 1998, p. 36).
2
Interação na educação infantil, realizada em 2010, não discutida no presente trabalho. Foto da professora
Cristina Diem Reis.
5
COM ABC – Início com o alfabeto → estímulo → reflexo na mente → resposta da criança →
resultado → não lê uma palavra escrita → criança não entende o enigma da leitura
SEM ABC – Início com a leitura → estímulo → reflexo na mente → resposta da criança →
resultado → lê uma palavra escrita → criança entende o enigma da leitura
Figura 2: O efeito do estímulo
Fonte: Luz (2010)
possível com o estímulo do alfabeto, de forma tão direta e simples. Por isso, muitos
estudantes têm dificuldade para aprender a leitura no contexto escolar.
2 ESTRATÉGIA DE PESQUISA
investigação: ser radicalmente empírica; evitar pré-definições; ser holística; ser qualitativa,
interpretativa e descritiva; ser verificável em termos da própria experiência; valorizar os
insights; e buscar a compreensão, o significado das coisas (STEVENS 1990) no início da
aprendizagem da leitura.
O interdisciplinar aparece como um princípio novo de reorganização das estruturas
pedagógicas e se caracteriza por uma atitude feita de curiosidade, de abertura, de aventura, de
intuição sobre as relações existentes, que escapam à observação comum. O interdisciplinar é
algo que se vive a partir de fatos reais e envolve o interesse e o respeito pela voz do aluno –
características de estudos aplicados – segundo Venturi (2006). Ao investigar o início da
leitura, também se estudam os sujeitos que aprendem, o que amplia a perspectiva de Maturana
e Varela (1995) adotada nesta pesquisa, em que o ser biológico interage com o meio para a
aprendizagem por meio do fazer.
Bakhtin (2006) explicita sobre a metodologia das ciências humanas com o
conhecimento da coisa e o conhecimento do indivíduo. Para o autor, o primeiro seria a coisa
morta, dotada de aparência, que só existe para o outro e pode ser totalmente revelada por um
ato unilateral do outro (o cognoscente). O segundo seria a ideia de Deus em presença de Deus,
o diálogo, a interrogação e a prece. “O indivíduo não tem apenas meio e ambiente, tem
também horizonte próprio [...] O objeto das ciências humanas é o ser expressivo e falante.
Esse ser nunca coincide consigo mesmo e por isso é inesgotável em seu sentido e significado”
(BAKHTIN 2006, p. 394).
Para Schopenhauer (2010), o espírito guarda o que lhe interessa, isto é, o que diz
respeito a seu sistema de pensamentos e o que se adapta a suas finalidades.
contexto interativo com a situação de estudo para entender os fenômenos na perspectiva dos
sujeitos participantes. O primeiro estímulo (A) foi aplicado por três professores durante o
primeiro semestre, em cinco turmas de alfabetização. O segundo estímulo (B) foi aplicado
pelo pesquisador em 12 atendimentos, 10 individuais e 2 coletivos, no mês de setembro de
2007.
As discussões se fundamentam nos aspectos processuais (biológicos, mentais,
linguísticos e cognitivos) da leitura e da escrita, para apontar adequações e inadequações dos
estímulos. A pesquisa de campo envolve revezes, difíceis de prever ou mesmo controlar.
Dessa forma, a interação no mundo real da sala de aula gerou modificações relevantes no
design da pesquisa, bem como implicou coleta de dados e informações que não puderam ser
contemplados na tese e neste artigo.
ABCDEFGHIJKLMNOPQRSTUVWXYZ
abcdefghijklmnopqrstuvwxyz
Figura 4: Estímulo A – o alfabeto e os segmentos isolados
Fonte: Luz (2010)
2.2 Sujeitos
O pesquisador atendeu 20 crianças (cinco turmas), e nove sujeitos eram repetentes.
Quinze dessas crianças responderam ao Teste do Abc sem abc, descrito mais adiante, para
checar o grau de internalização dos enunciados trabalhados: palavra; sílaba; e frase. Essas
crianças representaram 17% dos alunos e foram identificadas como não leitores pela escola e
pelo pesquisador.
A Tabela 1 apresenta as crianças que receberam atendimento individual e coletivo,
com informações sobre a idade, o sexo, os acertos nos testes do Abc sem abc, com alguns
detalhes relevantes da prática pedagógica, descritos nas seções seguintes, de acordo com a
ordem cronológica das aulas ministradas. A aprendizagem da leitura considerou a checagem
dos conteúdos, feita logo após a aula. Assim, a situação anterior dos sujeitos era de NL (não
11
leitor de uma palavra), e passaram a L1p (leitor de uma palavra) após a aula ministrada pelo
pesquisador.
Essa diferença caracterizaria a habilidade inicial na apropriação da leitura, o
entendimento do enigma da leitura: letras representam sons e palavras escritas representam
palavras faladas. Nesta tabela, não foram levados em conta os conhecimentos das práticas
pedagógicas das aulas assistidas pelos alunos, que poderiam contribuir e influenciar os
resultados obtidos. Não há como realizar essa distinção. Entretanto, consideram-se
elucidativos os presentes dados para analisar diferentes enunciados e as habilidades
envolvidas em sua apropriação.
O aspecto relevante seria o fato de que todos leram, ou apontaram a palavra escrita
adequada, ao ouvirem a forma oral dita pelo pesquisador, ao final da interação. Já os 15
sujeitos que responderam ao teste, dois meses depois, não houve uma única situação em que
não lessem pelo menos duas palavras (bola e carro). A tabela também mostra os sujeitos que
se desviaram da amostra (F e G), indicando que o estímulo da leitura não foi efetivo para
esses alunos na leitura de sílabas e de frase.
12
Logo após a experiência inicial, foi feita a checagem da internalização das palavras
lidas pelas crianças. Quando encerrava a atividade de leitura da frase, era avisado de que iriam
fazer uma brincadeira para ver se haviam aprendido a ler aquelas palavras. Nos primeiros
atendimentos individuais, solicitava-se que a criança lesse o que estava escrito; depois,
utilizava-se outra estratégia com as demais crianças por meio do apontamento. Eram
apresentadas as três palavras e a sentença na tela do computador e pedia-se para a criança
apontar para “bola”, “vaca” e “carro”... (de forma aleatória), o mesmo em relação a “O”,
“menino” e “corre”.
Todos acertaram a atividade, alguns leram a frase após a identificação das palavras
aprendidas, no 11º atendimento, no dia 20 de setembro de 2007, pela manhã, que serviu de
base para a análise realizada neste artigo. Não houve desvios na checagem de aprendizagem.
Em seguida, foram repassadas mais algumas atividades: desenho da bola e escrita da palavra
“bola”, o que foi repetido com as demais palavras. Ao final, distribuíram-se figuras
relacionadas às palavras e à frase. As crianças recortaram e colaram as figuras e as palavras
escritas em seus cadernos. A ideia era dar uma pista visual para elas identificarem o som
daquelas palavras escritas. O tempo gasto para ensinar a leitura lexical de três palavras e de
uma frase foi de 10 minutos. Com as atividades didáticas adicionais, chegou-se a pouco mais
de 30 minutos de aula.
Os estímulos e a própria prática pedagógica se alteraram ao longo desse processo. No
primeiro atendimento individual, partiu-se do segmento escrito para o segmento oral, de “bo”
para /‟b/, o que seria uma leitura “lexical” da primeira sílaba, como descrito a seguir. O
mesmo foi feito para “la”=/‟la/; para depois chegar a “bola”=/‟bla/. Havia também a
checagem da via sublexical com o logatoma “tuxa” (SCLIAR-CABRAL, 2003), que deveria
ser lido com /‟tua/. Nos atendimentos coletivos, se partia de “bola” e, com uma
contextualização oral, se ofereciam pistas para a criança “descobrir” o som daqueles símbolos
escritos “bola” e desconhecidos pela criança em termos de leitura, ou seja, relação entre
palavra escrita e palavra falada (ouvida).
Houve uma inversão completa na didática utilizada. No primeiro atendimento, o
pesquisador “ensinou” a leitura de uma sílaba, sem referência a uma palavra oral; no último, a
criança “descobriu” o som a que a palavra escrita se referia. O pesquisador já não “ensinou”
13
ao aprendiz os sons que as letras escritas representavam. Com a referência oral no léxico
mental da criança, o sujeito “advinhou” o som e relacionou o oral com o escrito. Este fato
evidencia que a experiência modificou a estratégia inicial, por meio da percepção do
pesquisador sobre o que era mais fácil ou mais difícil para o aprendiz.
bo=/‟b/; la=/‟la/→bola=/‟bla/
Figura 7: Prática inicial no primeiro atendimento
Fonte: Luz (2011b)
Com o sujeito A, a aula não foi gravada. Com o B, a prática se iniciou com o
pesquisador informando que ia dizer o que estava escrito “nessas duas letrinhas”, “bo”: /‟b/.
A criança leu as palavras com alguma dificuldade e lentidão, o pesquisador ajudou no final da
sentença, na palavra “corre”. C teve mais dificuldades, não memorizou, tentava adivinhar
sempre. Conseguiu ler as sílabas iniciais “bo” e “ca” de “bola” e “carro”. Acertou a
brincadeira proposta pelo pesquisador em que deveria dizer “ca” para completar a palavra
“vaca”: /‟va/... /‟ka/. Com D, a prática se iniciou com os segmentos silábicos. Ele teve
dificuldade na leitura do logatoma “tuxa”, e o item foi retirado da prática pedagógica. Os
demais foram lidos adequadamente. Essa sequência “tuxa” não referia palavra da oralidade, o
que tornava difícil a leitura lexical, pois uma pseudopalavra não integra o léxico oral do
aprendiz. Apenas quem tivesse desenvolvido a via sublexical leria adequadamente o
logatoma, mas provavelmente não seria lido lexicalmente pela falta de referência oral.
E não memorizou bola e vaca; apenas carro na primeira releitura; com ajuda,
lembrou as outras palavras e a frase. Com F, houve o primeiro teste com apontamento ao final
da aula, não mais a leitura das palavras aprendidas. G lembrou as palavras e a frase,
apontando adequadamente. I não apresentou situações relevantes. H acertou todas “de
primeira”, depois de ensinada a leitura das palavras, bem como na checagem da
aprendizagem. J conseguiu ler as letras como sílabas /‟b#‟la/, mas não acessou sozinha o
sentido de “bola”, lendo /‟bla/, na primeira apresentação. Fez as operações dos segmentos
isolados “b” + “o”=/‟b/, o mesmo para “la”, mas não conseguiu ler. Em seguida, com ajuda,
conseguiu ler adequadamente as palavras e a frase. Os atendimentos foram gravados, exceto
14
um, na sala de atendimento de crianças com necessidades especiais, no andar térreo da escola
pesquisada.
O 11º atendimento teve cinco alunos (duas meninas e três meninos), um repetente, e
quatro responderam o teste do Abc sem abc, aplicado no final do ano. Todos eles
identificaram as palavras ensinadas no computador. Os atendimentos foram gravados em sala
de aula normal, no primeiro andar. K, L, M, N e O participaram das atividades propostas pelo
pesquisador, lendo as palavras, realizando os apontamentos adequadamente. O mesmo
ocorreu no 12º, com cinco crianças (uma menina e quatro meninos), dois repetentes: P, Q, R,
S e T. A diferença fundamental foi que, nesse último grupo, havia um leitor que leu as
palavras apresentadas na tela do computador – o que alterou a prática pedagógica prevista.
Esse sujeito Y foi retirado da população investigada, pois era leitor de algumas palavras.
bo ca la va
Figura 12: Teste 3 – Leitura de sílabas
Fonte: Luz (2011b)
O teste ficou restrito ao que foi ensinado, não foi checada qualquer ampliação do
conhecimento. Esse instrumento foi criado, rapidamente, no sentido de se ter dados
específicos sobre a experiência. Essa premência pode ter provocado alguns problemas, mas
forneceu elementos interessantes para analisar a aprendizagem da leitura. Um teste específico
com os elementos da sentença “O”, “menino” e “corre” poderia esclarecer melhor o
processamento da sentença, comparando o desempenho lexical isolado com a sequência de
três itens lexicais. Todavia, essa comparação não pôde ser efetuada.
A amostra abrangeu 75% da população investigada. Os participantes repetentes (6)
representam 40% dos sujeitos; os demais (9), 60%. Nenhum deles sabia ler uma palavra.
Após a vivência pedagógica com os paradigmas da leitura, que variou de 5 min a 30 min, elas
saíram “lendo” algumas palavras. Identificavam e recortavam visualmente a palavra escrita e
sabiam associar ao respectivo som da palavra oral das palavras ensinadas pelo pesquisador.
observada, já que a decodificação lexical não basta para a leitura de palavras novas, exigindo
também a via sublexical.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A ideia de um Leitor de uma palavra coloca em cheque definições de leitura e de
educação, bem como os papéis do educando, do educador e da própria escola. A
aprendizagem da leitura envolve diferentes etapas e habilidades específicas em cada uma
delas. A ordem dos estímulos e a forma de apresentação da linguagem escrita podem acelerar
(facilitar) ou frear (dificultar) a aprendizagem do enigma da leitura. Os processos são muito
complexos, tanto os biológicos e cognitivos, quanto os sociais e culturais. Existe o querer
individual, expresso por seus valores e atitudes; existe o querer social, expresso por suas
instituições e restrições.
As evidências apresentadas sugerem o trabalho com signos orais (palavras) e sua
forma visual, escrita, desde o primeiro segundo do primeiro minuto da aprendizagem, e não
com meros sinais incompreensíveis. As letras isoladas não podem ser consideradas um uso
social desta expressão humana: não são palavras, não são sentenças, não são textos. Não
expressam um sentido qualquer, nada além de serem letras, que podem ser usadas em
palavras, sentenças e textos. O sorriso e a alegria das crianças ao lerem algumas palavrinhas
continuam na lembrança...
4
Gustavo se tornou leitor fluente aos 4 anos.
18
relacionar o escrito com o falado seria representativa para o aprendiz iniciante. “Agora sei
ler”, poderia pensar sobre essa conquista pessoal. O sorriso largo da primeira leitura de uma
palavra escrita dimensiona “o entendimento do código” e a alegria dessa apropriação por
quem não conseguia antes. A autoestima, a atenção e a participação das crianças indicam
possibilidades novas de pesquisa e de aprendizagem na escola: a leitura lexical como a
entrada principal para o letramento na educação infantil e na educação fundamental.
A maior parte dos cientistas que tentaram seguir caminhos relativamente novos em
suas pesquisas, com toda a dificuldade e a frustração que esses caminhos impõem,
relatam que foram advertidos a não correr riscos. Para a maioria de nós, essas
recomendações contra o impulso de seguir adiante apenas instigam o espírito de
aventura (KANDEL, 2009, p.450).
“No final das contas, temos que confiar em nosso inconsciente, em nossos instintos,
em nosso anseio criativo” (KANDEL, 2009, p.169). Essas palavras de um prêmio Nobel5
ajudam a caracterizar as dificuldades e os desafios da investigação científica, especificamente
sobre as intuições iniciais obtidas na aplicação de testes de leitura para criar um conceito novo
e caracterizar um tipo de aprendizagem diferente e desconhecido: a primeira leitura de uma
palavra escrita por um aprendiz iniciante.
4 REFERÊNCIAS
ABREU, A. S. Linguística Cognitiva, uma visão geral e aplicada. Cotia: Ateliê Editorial,
2010.
LUZ, R. H. O leitor de uma palavra: uma reflexão teórica sobre a prática de estímulos
iniciais de aprendizagem. 2010. Tese (Doutorado em Linguística) – Universidade Federal de
Santa Catarina, Florianópolis, 2010.
_______. Abc sem abc, aprendizagem inicial da leitura na escola. Praia do Rosa: Edição
do autor, 2011a.
_______. O leitor de uma palavra, uma nova aprendizagem. Praia do Rosa: Edição do
Autor, 2011b.
5
Eric Kandel recebeu o Prêmio Nobel em 2000 (Fisiologia ou Medicina), juntamente com Arvid Carlsson e Paul
Greengard por contribuições sobre a transdução de sinais neurais, que transformaram a compreensão do
funcionamento cerebral.
19
RESUMO
Palavras-chave:
Inferência. Interpretação de texto. Discurso jornalístico.
ABSTRACT
This article explores the inferences that exist in a journalistic text/report which is entitled
“Dunga ironiza imprensa na entrevista coletiva” published by journalist Tadeu Schmidt, on
June 20, 2010 in Fantastic program, live from South Africa, where it was being held the
World Cup. For the analysis, the text was transcribed as it was released at the site of the
Globe Sports, thus preserving the prosody of each speaker and the grammar realization of the
involved in the event, in order to bring more realism to the episode put into evaluation. The
theoretical research is based on CHIERCHIA (2003), DUCROT (1987), FREGE (1978),
GRICE (1978), ILARI & GERALDI (1985), LEVINSON (1983) and MOURA (2000; 2007).
This study aims to demonstrate that every sense, even the literal, includes implicit information
of different degrees. The act of understanding of these statements involves several inferential
processes, which means to say that the critical reader should be attentive not only to questions
of logical order, as well as question discursive and/or argumentative-rhetorical, that occur in
the different types of texts and that are fundamental for the construction of the meaning.
Keywords:
Inferences. Text interpretation. Journalistic speech.
1
Mestranda em Linguística do Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de Santa
Catarina – UFSC; e-mail: alefof@yahoo.com.br.
2
Este artigo foi realizado como trabalho final para a disciplina de Semântica I, desenvolvida sob orientação do
Prof. Dr. Heronides Maurílio de Melo Moura – Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade
Federal de Santa Catarina – UFSC.
2
1 INTRODUÇÃO
Na construção de qualquer enunciado, estão presentes termos que orientam a
construção dos sentidos. Por isso, pretende-se, neste artigo, analisar como se dá o processo
inferencial do sentido de certos elementos discursivos presentes ou ausentes no texto,
enfocando para isso o desenvolvimento do raciocínio a partir de inferências3.
Sabe-se que a linguagem humana não admite apenas uma interpretação direta, pois é
preciso levar em consideração o meio de interação social e a negociação de sentidos do texto.
Segundo Moura (2007, p. 33) “saber ler um texto é saber fazer inferências corretas ou
plausíveis que cada trecho do texto propicia”. Desse modo, todo processo de leitura pressupõe
uma troca de informações, uma interação por intermédio de operações estratégicas usadas
para a decifração de conteúdos implícitos.
Conforme Moura (2007, p. 33), “[...] a partir da interpretação de uma proposição, os
falantes devem também delimitar as proposições inferidas a partir dessa interpretação. Ou
seja, os falantes interpretam não apenas o que foi dito, mas também o que se infere a partir do
que foi dito”. Assim, todo o trabalho de interpretação de um texto passa pela decodificação
desses implícitos textuais, que não podem passar despercebidos a um leitor competente.
O presente estudo vai abordar algumas noções, conceitos e exemplos de significado,
sentido, pressuposição, acarretamento e implicatura. O objetivo deste trabalho é identificar as
inferências presentes e/ou transmitidas pela mídia televisiva que exige, para compreensão das
informações, um contexto linguístico, informacional e social.
Para análise, foi selecionado um texto/reportagem do programa Fantástico, da Rede
Globo de Televisão. Deve-se salientar que a análise será feita levando em conta o discurso de
defesa da imprensa que relatou o fato ocorrido, ou seja, a análise mostra um só ponto de vista.
O corpus em questão foi divulgado e escrito pelo jornalista Tadeu Schmidt, onde o mesmo faz
críticas quanto ao comportamento do ex-técnico da seleção brasileira de futebol (Dunga) em
uma entrevista coletiva à imprensa. O noticiário televisivo em questão é um dos mais
assistidos, por apresentar um perfil de produção e pautas com temáticas voltadas ao cotidiano.
No texto em análise, a discussão está voltada para a presença de inferências
semânticas no discurso e a necessidade de contexto para a compreensão das informações
apresentadas pelo meio de comunicação de massa.
3
Inferências são proposições, conteúdos semânticos, que derivam por alguma regra de outra proposição (cf.
MOURA, 2000; CHIERCHIA, 2003).
3
2 SENTIDO E SIGNIFICADO
Na construção e análise de um dado discurso, as noções de sentido e significado, a
intencionalidade, a carga ideológica e o contexto em que se insere este discurso são
determinantes para a compreensão do texto.
Segundo Orlandi (2001, p. 19), “[...] a noção de interpretação passa por evidente
quando na realidade, cada teoria lhe dá um sentido diferente de acordo com os diversos
métodos praticados”. Daí a importância da interpretação na (re)construção do discurso
jornalístico, pois sem a interpretação não se cria e não se identifica sentido no discurso.
Para que se compreenda melhor o processo de criação de sentidos e estabelecimento
de significados, é importante saber que existem alguns conceitos que circundam a palavra
“significado”, tais são: a significação literal, morfológica e da palavra; significado como
compreensão social de um dado conceito; significado como compreensão pessoal de um
conceito, que varia de acordo com o interlocutor; entre outros.
Possenti (2002) aborda a enunciação a partir de um efeito de sentido e este sentido é
construído a partir de um discurso em que se insere. Assim, o sentido4 de uma palavra não é o
que lhe é atribuído morfologicamente, mas o que é construído através da memória discursiva
que se inscreve nele próprio e entre os interlocutores envolvidos no processo de construção e
transmissão da informação.
Conforme Moura (2000, p. 62) “[...] é preciso levar em conta não apenas o sentido
(meaning) de cada palavra, mas também o significado (sense), determinável a partir da
especificação de uma situação. Assim, a cada situação específica de produção de um
enunciado, teríamos um significado diferente para o enunciado” 5. O autor apresenta ainda,
um exemplo de Pinkal (1995, p. 11):
Para este exemplo têm-se três situações: a primeira, na qual Cristóvão Colombo é o
falante e a enunciação ocorre em janeiro de 1493. Desse modo, o significado para o enunciado
exemplificado corresponderia a algo como „Cristóvão Colombo esteve na América antes de
janeiro de 1493‟; a segunda situação, na qual o viking Erikson pronuncia essa mesma
sentença em 972, o significado para o mesmo enunciado exemplificado seria algo como „O
viking Erikson esteve na América antes de 972 e nenhum europeu esteve antes dele‟; já a
4
Para Frege (1978), o sentido é a forma de apresentação do objeto.
5
Grifos do autor.
4
terceira situação, se especificar que foi Cabral quem produziu esse enunciado depois de
chegar ao Brasil, a sentença se torna falsa. De outro modo, o enunciado produzido pelo viking
Erikson é verdadeiro se considerarmos as pesquisas históricas sobre o assunto. Assim, a
sentença produzida por Colombo seria falsa. Então, se o segundo significado é verdadeiro, o
primeiro e o terceiro significados são falsos.
Conforme o autor, a referência, aquilo de que se fala, não é obtida a partir do sentido,
mas por intermédio do significado, calculado a partir de certa situação de enunciação. Há,
com isso, o sentido propriamente dito, de um lado, e o significado, de outro.
Um fato muito comum na enunciação jornalística ocorre quando o contexto
considerado pelos interlocutores não é suficiente para a compreensão integral do enunciado
apresentado em um dado momento. Se isso acontecer, o receptor não terá a compreensão dos
dados prevista ou necessária, gerando alterações na captação e/ou construção do sentido do
discurso.
A polissemia é uma das formas mais evidentes e comuns desta distorção, embora ela
possa também se dar através de fragilidades na absorção e dedução de pressupostos. Segundo
Chierchia (2003, p. 62-3), “[...] algumas palavras têm mais de um significado e é isso que as
torna ambíguas. Este fenômeno também é conhecido como polissemia. Ora, as sentenças
podem revelar-se ambíguas mesmo que não haja nelas nenhuma palavra polissêmica” 6.
Através da polissemia, em muitos discursos é possível obter distintas interpretações das
informações. A presença da polissemia no discurso jornalístico pode vir a ser sanada pela
totalidade do discurso, mas este esclarecimento não acontece em todas as manifestações
discursivas.
3 PRESSUPOSIÇÃO
As informações pressupostas que se baseiam em informações recuperadas
linguisticamente não podem ser negadas pelo emissor e nem desconsideradas pelo leitor que
interpreta um texto, pois estão inseridas na própria língua. Desse modo, é fundamental que
6
Grifos do autor.
5
sejam verdadeiras, porque é a partir delas que se constroem as argumentações, pois caso
forem falsas, todo o raciocínio decorrente delas também será. Como afirma Ducrot (1987), os
pressupostos são o pano de fundo da conversação.
Moura (2000, p. 13), de acordo com Ducrot (1987), denomina de “[...] conteúdo
posto a informação contida no sentido literal das palavras de uma sentença e de conteúdo
pressuposto ou pressuposição7 às informações que podem ser inferidas da enunciação dessas
sentenças”. Então, com base nisso, pode-se afirmar que o conteúdo posto depende do
conteúdo pressuposto e aceitando a verdade do posto, deve-se aceitar também a verdade do
pressuposto8.
Segundo Ilari & Geraldi (1985), a pressuposição pode ser definida como um tipo
complexo de acarretamento, pois é uma relação mais forte já que resiste aos efeitos de
negação, assim, a negação do posto não altera o pressuposto.
Conforme Chierchia (2003, p. 186), “[...] as pressuposições de uma sentença são
condições que um contexto deve satisfazer para que essa sentença possa ser usada
apropriadamente (seja assertando-a, negando-a, criando por meio dela uma hipótese etc.)” 9.
De acordo com Moura (2000, p. 16), “a negação do posto não afeta a necessidade de
se aceitar como verdadeiro o pressuposto”. Vejamos isso através da negação do exemplo:
7
Grifos do autor.
8
A abreviatura de pressuposto é pp.
9
Para Chierchia (2003, p. 186), uma definição informal seria: “A pressupõe B sse (= se e apenas se) B deve ser
dada como certa em todo o contexto no qual A é usada”.
10
“O conhecimento compartilhado é formado por um conjunto de proposições que são aceitas tanto pelo falante
quanto pelo ouvinte” (MOURA, 2000, p. 17).
6
expressões que fazem uma descrição de certo ser. Seu uso pressupõe a existência do ser a que
ela está se referindo. Este tipo de pressuposição também pode ser chamado de pressuposto de
existência. Os verbos factivos são verbos que introduzem fatos que são dados como certos.
Alguns exemplos deste tipo de verbo são: lamentar, sentir, compreender e saber. Existem dois
subtipos de verbos factivos: os epistêmicos e aqueles que indicam sensações ou emoções. Os
verbos implicativos são os verbos como: conseguir e esquecer.
Os verbos de mudança de estado são os verbos que, como o nome já diz, alteram de
estado. Exemplos deste tipo de verbo: deixar e começar. As expressões e/ou verbos iterativos
pressupõem que a ação indicada pelo verbo já tinha acontecido em algum outro momento. As
expressões temporais como não poderia ser de forma contrária, denotam tempo. Alguns
exemplos destas expressões são: depois de e antes de. E, por fim, as sentenças clivadas, onde
uma sentença é dividida em duas orações com o propósito de destacar certo constituinte da
sentença, enfatizando-se esta informação. “Elas têm a forma: (não) foi o (x) que (oração)” (cf.
Moura, 2000, p. 21).
A noção de pressuposição, como se pode observar, vai além do conteúdo
informacional da sentença, pois envolve as suas condições de uso na relação com o discurso.
A informação pressuposta é condição de emprego da oração que a pressupõe. A
pressuposição, então, é também um mecanismo de atuação no discurso. Assim, através do que
escolhe apresentar como pressuposto, o falante direciona a conversa. Para negar uma
pressuposição, o falante tem que mudar significativamente de direção a conversa.
4 ACARRETAMENTO
A hiponímia é uma relação de sentido entre palavras tal que o significado de uma
está incluído no significado da outra. A noção de hiponímia pode ser estendida para
sentenças. Assim, chega-se à noção de acarretamento. Veja os exemplos em (3):
Para facilitar o raciocínio, volta-se ao exemplo (5), pois se Verônica tem um poodle,
ela tem um bicho de estimação. Mas, se Verônica não tem um poodle, ela poderia ter um gato
siamês como bicho de estimação.
8
5 IMPLICATURA
Conforme Moura (2007, p. 35), “uma implicatura é uma inferência de natureza
puramente pragmática, ou seja, depende do conhecimento do mundo e pode ser anulada. O
acarretamento e a pressuposição não podem ser anulados, mas uma implicatura pode”.
De acordo com Chierchia (2003, p. 193-4) as implicaturas
Para Ilari & Geraldi (1985, p. 76), “o uso do termo implicatura se deve ao desejo de
distinguir dois fenômenos linguísticos: o fenômeno do acarretamento (ou implicação), em que
se infere uma expressão com base apenas no sentido literal de outra; e (a implicatura), em que
a derivação de um sentido passa obrigatoriamente pelo contexto conversacional”.
Entre os implícitos que não podem ser previstos apenas com base no sentido literal
estão as implicaturas conversacionais de Grice (1978). Os implícitos só podem ser detectados
por uma avaliação global da situação em que o ouvinte tenta recuperar as várias intenções do
falante.
Segundo Grice (1978), aquilo que dizemos deve não apenas possuir um sentido, em
conformidade com a nossa competência semântica11, mas deve também ser relevante, assim,
uma sentença deve ser pragmaticamente adequada ao contexto, de acordo com as máximas
conversacionais.
Grice (1978) admite que, numa interação, os interlocutores estão envolvidos em um
processo de (co)construção do sentido de uma mensagem. Assim, todo sentido é fruto de uma
interação e construir juntos a comunicação depende da aplicação e obediência a algumas
máximas conversacionais, que são quatro, a saber: as máximas da relevância, da qualidade,
da quantidade e do modo.
Essas máximas estipulam que o que é dito deve ser relevante para a situação –
máxima da relevância; deve ser verdadeiro – máxima da qualidade; o que é dito deve ser da
melhor forma a ser bem entendido, isto é, evite ser prolixo, confuso, rebuscado – máxima da
quantidade; e só diga coisas que tenham relação com a situação, assim, seja claro e ordenado
– máxima do modo.
11
“Existe uma competência semântica que nos leva a perceber os nexos de significado entre duas ou mais
sentenças, e como o sentido de uma deriva do sentido da outra” (cf. CHIERCHIA, 2003, p. 172).
9
Conforme Moura (2007, p. 35), “se alguma dessas máximas é desrespeitada por um
falante ao enunciar uma proposição p, então os interlocutores são levados a buscar outra
proposição q, que justifica o uso de p. A proposição q, inferida a partir das máximas
conversacionais, seria a implicatura de p, enunciada pelo falante”.
Tem-se um exemplo como em (6), para ilustrar tal situação:
Se uma sentença como (6) é dita para alguém que acaba de contar vantagem sobre si
mesma, trata-se de uma ironia. Portanto, pode-se inferir por implicatura que a pessoa sobre
quem se proferiu tal frase não é modesta, desobedecendo, assim, a máxima da qualidade, pois
no posto (o que é dito) desta sentença a verdade não está contida.
Tal análise nos leva a concluir que, para se ter o quadro interpretativo do sentido, os
termos apenas apontam para uma determinada direção e o quadro situacional confirma ou não
o raciocínio.
Moura (2007, p. 36) afirma que “as implicaturas são muito importantes na leitura de
um texto, pois num texto nem tudo é dito explicitamente pelo autor. Além disso, implicaturas
exploram conhecimento do mundo, que também é essencial na interpretação”.
Como se observa, existem implícitos cujos sentidos dependem de interpretação das
circunstâncias contextuais, feita pelos interlocutores. Esses implícitos subentendidos são de
ordem pragmática e demandam raciocínios inferenciais a partir da situação do discurso.
6 ANÁLISE DO TEXTO
Muitas vezes a informação repleta de inferências pragmáticas faz com que a
transmissão de um fato jornalístico acabe transmutando-se em informação
predominantemente superficial e de compreensão falha. É possível visualizar este fato no
texto analisado, que tem como título “Dunga ironiza imprensa na entrevista coletiva” e foi
divulgado pelo jornalista Tadeu Schmidt, no dia 20 de junho de 2010, através do telejornal
Fantástico, ao vivo da África do Sul, local onde estava sendo realizada a Copa do Mundo. O
texto também se encontra disponível, em forma de vídeo, no site do Globo Esporte12.
12
Ver http://globoesporte.globo.com/futebol/copa-do-mundo/noticia/2010/06/dunga-xinga-drogba-e-depois-
ironiza-imprensa-na-entrevista-coletiva.html
10
Cabe salientar, antes mesmo da leitura do texto selecionado para a pesquisa, que este
foi transcrito conforme o que foi divulgado no site do Globo Esporte, preservando assim a
prosódia de cada falante e a realização gramatical dos envolvidos no acontecimento, a fim de
trazer mais realismo ao episódio posto em avaliação.
O texto é o seguinte:
O técnico Dunga no comando da seleção há quase quatro anos, não apresenta nas
entrevistas, um comportamento compatível com a imagem de alguém tão vitorioso no esporte.
Com frequência usa frases grosseiras e irônicas. Hoje, depois de uma vitória incontestável,
mais uma vez foi assim.
O episódio aconteceu quando o jornalista da TV Globo Alex Escobar, que
conversava comigo no telefone, balançou a cabeça por discordar da frase em que Dunga
acusava os jornalistas de terem pedido que Luís Fabiano fosse tirado do time titular, depois
do primeiro jogo da Copa contra a Coréia do Norte. Era a segunda resposta de Dunga na
entrevista oficial da FIFA com os técnicos. Quando falava sobre o caso de Luís Fabiano, o
treinador interrompeu a resposta para interpelar o jornalista.
Dunga: Não adianta a gente dar muito tempo livre, porque se tá livre pra sair vocês vão
atrás deles, então quer dizer que não é folga, é trabalho. Então é melhor eles ficar lá,
relaxar, tranquilo, esperando o próximo jogo. Quem tem contusão a gente tentar recuperar o
mais rápido possível né, e tentando lapidar cada jogador que cada um precisa.
Proceder-se-á à análise do texto frase por frase, no entanto, as sentenças não serão
avaliadas quanto às descrições definidas, os pressupostos de existência e às máximas de
relevância, pois estas últimas fazem-se onipresentes, visto que, sempre que se fala algo já
existe certo consenso de que o que está sendo dito seja relevante. Desse modo, nem todas as
sentenças do texto serão analisadas com todas as inferências existentes, assim, serão
analisadas somente as inferências que estão mais evidentes em cada sentença.
Deve-se salientar, também, que os jogadores e o técnico presentes no texto, fazem
parte do conhecimento compartilhado das pessoas que estavam acompanhando a Copa do
Mundo de 2010. Inicia-se então a análise:
1º Parágrafo
Primeiro período: “O técnico Dunga no comando da seleção há quase quatro anos, não
apresenta nas entrevistas, um comportamento compatível com a imagem de alguém tão
vitorioso no esporte”.
Neste período há um pressuposto, um posto e uma implicatura. O pressuposto é o de
que existe um comportamento compatível que é esperado de alguém que tem uma carreira de
vitórias no esporte. O posto é que o técnico Dunga não apresenta este comportamento. A
implicatura é a de que os telespectadores sabem do relacionamento conturbado de Dunga com
a Rede Globo. A máxima conversacional usada é a máxima da quantidade, pois com um
12
número reduzido de palavras o autor do texto disse todas as informações necessárias para o
entendimento do mesmo.
Terceiro período: “Hoje, depois de uma vitória incontestável, mais uma vez foi assim”.
Depara-se, nesta frase, com um posto, um pressuposto e uma implicatura. O posto é
o de que nem mesmo com uma vitória incontestável, Dunga é menos grosseiro e irônico. O
pressuposto é o de que houve uma vitória para a qual não caberiam críticas. No entanto,
podemos inferir, por implicatura, que, pelo tom do jornalista13 e pela forma com que as coisas
estavam acontecendo na Copa do Mundo, a expressão “vitória incontestável” seria uma
ironia, pois, além disso, sabe-se que um dos gols marcados foi feito com a ajuda de uma das
mãos de um jogador, então, a vitória seria passível de críticas. A máxima usada nesta frase é a
da quantidade.
2º Parágrafo
Primeiro período: “O episódio aconteceu quando o jornalista da TV Globo Alex Escobar, que
conversava comigo no telefone, balançou a cabeça por discordar da frase em que Dunga
acusava os jornalistas de terem pedido que Luís Fabiano fosse tirado do time titular, depois do
primeiro jogo da Copa contra a Coréia do Norte”.
Nesta sentença têm-se um posto, um pressuposto e uma implicatura. O posto é o de
que Dunga atribuiu a culpa aos jornalistas pelo pedido de retirada de Luís Fabiano, depois do
primeiro jogo da Copa do Mundo contra a Coréia do Norte. O pressuposto é o de que alguém
solicitou a retirada de Luís Fabiano do time titular. A implicatura é a de que a mídia
influenciaria nas decisões do técnico. A máxima utilizada nesta sentença é a máxima do
modo, pois as informações postas no texto estão claras e seguem uma ordem.
13
Conhece-se o tom com que o jornalista proferiu o texto, porque este foi transcrito do vídeo postado no site da
Rede Globo, que foi o local de onde o texto em análise foi retirado.
13
Segundo período: “Era a segunda resposta de Dunga na entrevista oficial da FIFA com os
técnicos”.
Neste período há um pressuposto e uma implicatura. O pressuposto é o de que existe
uma entrevista oficial da FIFA (Fédération Internationale de Football Association). A
implicatura é a de que no início da coletiva, o técnico já demonstrava seu comportamento
agressivo. A máxima usada é a da quantidade.
Terceiro período: “Quando falava sobre o caso de Luís Fabiano, o treinador interrompeu a
resposta para interpelar o jornalista”.
Existe nesta frase um pressuposto e uma implicatura. O pressuposto é o de que houve
uma interpelação do técnico para o jornalista. A implicatura é a de que o treinador da seleção
brasileira de futebol nem finalizou a sua resposta, quando se sentiu intimidado pelo gesto de
Alex Escobar e, então, começou a questionar este jornalista. A máxima presente é a da
qualidade, pois está dito nesta frase a verdade, como podemos verificar ao assistir o vídeo.
3º Parágrafo
Primeiro período: “Em seguida, ficou balbuciando palavrões que vazaram no sistema de som
da sala de entrevistas”.
Encontram-se nesta frase um pressuposto e um acarretamento. Há um pressuposto de
que o que Dunga falava eram palavrões, o que se pode questionar, pois quando algo é
balbuciado e/ou sussurrado nem sempre é audível, como é o caso neste vídeo que esta sendo
14
Terceiro período: “No intervalo de 30 minutos entre o início e o fim da coletiva o técnico foi
irônico outras vezes”.
Há nesta sentença um pressuposto e uma implicatura. O pressuposto é o de que o
técnico já tinha sido irônico antes e a implicatura é a de que, mesmo sendo um intervalo curto
de tempo, o técnico ainda teria sido agressivo várias vezes. Têm-se, nesta sentença, as
máximas da quantidade e da qualidade, sendo que nesta última, a verdade é preservada.
Divulga-se outro trecho em que Dunga ironiza e/ou critica a imprensa, quanto ao
comportamento desta perante os jogadores. Este fragmento de texto foi transcrito tal qual sua
realização e não será colocado em análise. Serve, portanto, para situar o leitor quanto ao
episódio em questão.
Dunga: “Não adianta a gente dar muito tempo livre, porque se tá livre pra sair vocês vão atrás
deles, então quer dizer que não é folga, é trabalho. Então é melhor eles ficar lá, relaxar,
tranquilo, esperando o próximo jogo. Quem tem contusão a gente tentar recuperar o mais
rápido possível né, e tentando lapidar cada jogador que cada um precisa”.
15
4º Parágrafo
Primeiro período: “No fim, ainda irritado, Dunga se levantou e continuou pronunciando
outros xingamentos e palavras impublicáveis”.
Nesta frase há um pressuposto de que o conteúdo da fala de Dunga era xingamentos
e palavras impublicáveis. Têm-se a máxima da quantidade e da qualidade, sendo que esta
última é desrespeitada, pois não se sabe realmente se o treinador de futebol pronunciava
xingamentos e/ou palavras impublicáveis, pois estas estão inaudíveis no vídeo.
Segundo período: “Um comportamento incompatível com a posição que ocupa no comando
da seleção”.
Neste período há um pressuposto e uma implicatura. O pressuposto é o de que uma
pessoa que está no comando da seleção deve ter um comportamento que é esperado pelo
cargo. A implicatura é a de que Dunga deveria comportar-se de uma forma amigável e solícita
com a imprensa, já que ele está ocupando um cargo de muita importância e responsabilidade,
o de treinador da seleção brasileira de futebol. A máxima conversacional usada é a da
qualidade.
5º Parágrafo
Primeiro período: “O que precisa ficar claro, em mais este episódio, é que torcemos muito
para que a seleção chegue à conquista de mais um título mundial”.
Nesta sentença há um posto e uma implicatura. O posto é o de que a imprensa deseja
que a seleção brasileira de futebol conquiste mais um título mundial. A implicatura é a de que
se pode pensar que a TV Globo torce contra a seleção, para que a derrota evidencie a
incapacidade de Dunga. A máxima utilizada é a da quantidade.
A TV Globo, muito perspicaz, percebe que existe o pressuposto de que ela poderia
torcer contra a seleção, por esta ser comandada por Dunga. A imprensa14, então, procura
desconstruir este pressuposto, descolando a seleção de seu técnico.
Segundo período: “E que a preocupação do jornalismo da Rede Globo, sempre foi a de levar a
melhor informação a você telespectador”.
14
Usa-se o termo imprensa, não com o objetivo de abarcar toda a imprensa atual, mas somente a que proferiu o
texto que está sendo analisado.
16
7 CONCLUSÃO
Percebe-se que a compreensão dos textos/reportagens, muitas vezes, vai além do
significado daquilo que é pressuposto, momento em que se realizam as implicaturas.
Todo sentido, mesmo o literal, inclui informações implícitas em diferentes graus.
Podem ser consideradas implícitas todas as informações veiculadas de forma que o falante
não se comprometa diretamente com sua verdade. Essas conclusões são “inferidas” a partir
dos enunciados ou da situação. Há os casos que incluem pressuposição e acarretamento e
outras inferências a partir de operações discursivas que dependem do contexto para se orientar
o sentido.
O ato de compreensão desses enunciados envolve, portanto, diferentes processos, o
que significa dizer que o leitor crítico deve estar atento não só às questões consideradas de
ordem lógico-demonstrativa, como também às de ordem valorativas, que podem ocorrer em
diversos gêneros e tipos de discursos.
Com a análise e exemplificação que se fez no texto analisado, pode-se concluir que
as inferências são construídas em dois níveis (semântico e pragmático) e exercem diversas
funções no discurso jornalístico.
8 REFERÊNCIAS
ILARI, R. & GERALDI, J. W. Semântica. São Paulo, SP: Editora Ática, 1985.
_____. Leitura de textos e inferências. In. UFPB, João Pessoa, PB: Editora Universitária,
2007. ESPÍNDOLA, Lucilene . SOUZA, M. E. V. de S. (Orgs.)
ORLANDI, Eni. Discurso e Texto: formulação e circulação dos sentidos. São Paulo: Pontes,
2001.
POSSENTI, Sírio. Ainda sobre a Noção de Efeito de Sentido. In: GREGOLIN, Maria do
Rosário; BARONAS, Roberto (Orgs). Análise do Discurso: as materialidades do sentido. São
Carlos, SP: Claraluz, 2002.
RESUMO
O presente trabalho se propõe a demonstrar como são definidos os tipos de orações nas
gramáticas de Língua Portuguesa, ressaltando a importância dos propósitos enunciativos
desencadeados a partir da abordagem gramatical. Tal estudo se dá pela identificação do tema
referente às orações declarativa, interrogativa, imperativa e exclamativa e o esquema
categórico desenvolvido a partir de SEARLE (2002). O esquema de análise desenvolvido pelo
autor pode desenvolver novas perspectivas acerca do estudo das orações, de modo a salientar
a questão dos propósitos enunciativos dos falantes. Para tanto, o presente estudo utiliza os
subsídios teóricos desenvolvidos a partir da Pragmática Interlocutiva, ressaltando as
contribuições de ASTIN (1962) e SEARLE (1969) que, quando incorporadas à analise do
estudo das orações nas principais gramáticas de Língua Portuguesa, ampliam e aprofundam a
visão acerca do tema. Fazemos, para tanto, uma incorporação dos tipos oracionais ao esquema
categórico desenvolvido na Pragmática, a fim de aprofundar tal componente sintático. As
perspectivas desenvolvidas no trabalho podem oferecer mais abrangência, com respeito à
descrição de itens gramaticais, cuja caracterização seria mais interessante mediante um estudo
de cunho interlocutivo.
Palavras-chaves:
Orações. Gramáticas. Autores. Atos de fala.
ABSTRACT
This study aims to demonstrate how are defined the types of prayers in Portuguese grammars
highlighting the importance of the enunciative objectives triggered from the grammatical
approach. This study is opportune because of the identification of the theme related to
declarative, interrogative, exclamatory and imperative prayers and the categorical scheme
developed from SEARLE (2002). The analytical framework developed by the author can
develop news perspectives on the study of prayers in order to highlight the issue of the
purpose statement of the speakers. To this end, this study uses the theoretical support from
developed by Interlocutive Pragmatics, highlighting the contributions of AUSTIN (1962) and
SEARLE (1969) that, when incorporated into the analysis of the study of prayers in the
Portuguese grammars, expand and deep the vision about the subject. We, to this end do an
embodiment of the types of the enunciates scheme developed in Pragmatics, in order to
develop such a syntactic component. The perspectives we talk at this work can offer more
coverage, with respect to the description of this grammatical item, whose characterization
would be more interesting through a study of stamp interlocutive.
Keywords:
Prayers. Grammars. Authors. Speech acts.
1
Doutoranda em Língua Portuguesa (UERJ) e professora de Ensino Fundamental do Município de Angra dos
Reis; e-mail: hilmaribeirorj@yahoo.com.br.
2
Professora dos programas de graduação e pós-graduação (UERJ) e do CAp-UERJ; e-mail:
teresatedesco2011@hotmail.com.
2
1 INTRODUÇÃO
Embora os estudos referentes às ações interlocutivas tenham se firmado,
propriamente, apenas após a emergência da “Teoria dos atos de fala” de AUSTIN (1962),
podemos identificar a preocupação dos autores acerca das formas enunciativas nas gramáticas
de Língua Portuguesa antes da propagação desse enfoque teórico.
Iniciamos o estudo abordando as definições do conceito de oração presentes em ALI
(1964), por considerarmos tal autor como sendo uma referência do pensamento linguístico no
país. Nesse caso, também mencionamos, de forma introdutória, a questão acerca da
importância da interlocução na abordagem de temas referentes à estrutura oracional, tais
como: interjeição, vocativo e imperativo, que foram aprofundados mais adiante, na seção de
análise dos tipos de oração, do presente trabalho.
Em seguida, tais colocações ALI (1964) foram cotejadas com outros conceitos,
encontrados nas gramáticas pesquisadas. Após essa primeira análise dos esquemas conceituais
das orações, fazemos uma explanação acerca dos tipos oracionais elencados por RIBEIRO
(1919), ALI (1964) ROCHA LIMA (1976), BECHARA (1977) e CUNHA (1978).
A partir dessas colocações dos tipos oracionais, fazemos um cotejo com as categorias
dos atos de fala propostas por SEARLE (2002), que considera algumas formas gerais da
enunciação, segundo as quais os falantes conseguem interagir, tais ações interlocutivas estão
concentradas nos atos: assertivo, diretivo, compromissivo, expressivo e declarativo.
3
Quando utilizamos o termo “oração” nos referimos também à “proposição”, “frase” ou “sentença”, uma vez
que as gramáticas pesquisadas apresentam esses quatro termos para tratar do mesmo tema.
3
condições psíquicas e as formas oracionais que as exprimem”, ressaltando que não existia,
ainda, gramáticas que incluíssem tais relações no capítulo referente à oração.
Essa dificuldade, a nosso ver, apenas reflete a ineficácia na abordagem de certos
itens, vistos, apenas, por sua constituição linguística e estrutural, sem que tais componentes
sejam pensados de acordo com sua natureza interlocutiva. Isso se dá porque, nesse caso, os
fenômenos mencionados são reflexos do direcionamento interlocutivo dos falantes, em certas
situações comunicativas muito particulares. A emotividade, os papéis sociais, as condições de
produção e os interesses discursivos envolvidos na utilização desses recursos podem, nesse
caso, auxiliar na abordagem de tais fenômenos, cujas peculiaridades são aprofundadas,
sobretudo no estudo da “categoria diretiva” e dos atos indiretos, que serão objeto de análise
desse ensaio, mais adiante.
Voltando a ALI (1964), após mencionar essa dificuldade na descrição gramatical, em
seguida, o autor se debruça no que vem a constituir as duas grandes abordagens acerca do
conceito de oração, que diz respeito à dos “gramáticos” e à dos “psicólogos”.
Segundo ele, os autores divergiram em muitos aspectos, ressaltando essas duas visões
principais sobre as orações, que são: a visão gramatical – com respeito à lógica na utilização
dos recursos lingüísticos – e a visão psicológica – que vê na oração o processo mental de
juntar conceitos a objetos do mundo exterior –.
Sendo assim, ALI (1964) procura orientar sua visão do conceito, a partir dessas duas
vertentes teóricas, assumindo um posicionamento particular acerca do que vem a ser oração.
Tais abordagens mostram, para o autor que,
pausas, e formam unidades de sentido se ocorrerem entre dois silêncios.” (BECHARA, 1977,
p. 194)
Ainda com respeito à melodia, outro autor que insere o ponto de vista fonêmico é
CUNHA (1978). De acordo com ele, as frases seriam as “verdadeiras unidades da fala”
(CUNHA, 1978, p. 85), e, é dessa forma que esse autor inicia o capítulo referente aos termos
da oração em sua “Gramática do português contemporâneo”. Nesse caso, CUNHA (1978)
coaduna-se ao pensamento de BECHARA (1977) ao estipular a noção de “entoação” ao
estudo oracional. Para CUNHA (1978), o fim do enunciado é caracterizado por uma melodia,
podendo ser ou não organizada por um verbo.
Esse autor estipula que, quando a frase contiver verbo, a melodia será cortada por
uma pausa mais forte, que virá depois dele. Quando a frase não contiver verbo, ela será
caracterizada apenas pela melodia, o que constituirá, então, seu principal elemento distintivo.
Veja:
A frase é sempre acompanhada de uma melodia, de uma entoação particular. A
melodia caracteriza o fim do enunciado e, nas frases organizadas com verbo,
anuncia geralmente a pausa forte que vem depois dele. É o caso, por exemplo, das
seguintes:
Cai o crepúsculo. / Chove/
Sobe a névoa... / A sombra desce.../
Cai a tarde muda e calma.../
(Da Costa e Silva)
Quando a frase não possui verbo, a melodia é a única marca por que podemos
reconhecê-la. Sem ela, frases como:
Atenção! Que tristeza! Noite linda!
seriam simples vocábulos, unidades léxicas sem função, sem valor gramatical.
(CUNHA, 1978, P. 85)
CUNHA (1978) considera, portanto, que a frase é uma unidade da fala, e seu
conteúdo sonoro seria, por esse ponto de vista, o principal elemento distintivo. Dessa forma,
sua concepção de oração sobrepõe, para além do conteúdo psicológico e linguístico, a questão
melódica, que refletirá, por conseguinte, os propósitos comunicativos dos falantes.
Nesse caso, para CUNHA (1978) e BECHARA (1977), a forma como as orações são
pronunciadas distinguem os tipos básicos das orações, o que constituirá nossa análise a partir
de então.
Tendo nos debruçado um pouco acerca do tema, começaremos a analisar como os
tipos de orações são retratados em algumas das principais gramáticas de Língua Portuguesa,
procurando aliar aos conceitos encontrados em tais obras com os pressupostos defendidos por
SEARLE (2002) ao distinguir os atos de fala.
6
4
O grupo fônico é o conjunto de grupos acentuais (segmento de frase que se apóia em um acento tônico
principal) compreendido entre duas pausas de fala. (1978, p. 116)
8
Esse tipo de estudo melódico também pode ser encontrado em BECHARA (1977).
O tema referente às orações inicia o capítulo de sintaxe de sua gramática, e, nessa parte, o
autor também promove uma elucidação acerca do aspecto melódico da entoação oracional.
Além dos três tipos de oração elencados por CUNHA (1978), o autor ainda inclui a “entoação
suspensiva ou pausal” como sendo outra categoria de entoação interlocutiva. Nesse caso, a
terminologia utilizada por ele ainda se utiliza do termo “assertiva” ao invés da “declarativa”
de CUNHA (1978), e, outro aspecto interessante é que, esse autor não fala de “orações” e sim
de “entoações” assertiva, interrogativa e exclamativa, o que demonstra o caráter de
importância da melodia no estudo do modo de dizer dos indivíduos, para BECHARA (1977).
Essas diferenças na constituição das enunciações serão provocadas pela forma de
pronunciar os grupos fônicos, de acordo com CUNHA (1978), fator que irá distinguir as
orações declarativa, interrogativa e exclamativa.
Tal aspecto lingüístico do estudo das orações, caracterizado por uma entoação
peculiar a cada tipo de enunciado, também é um elemento discutido por SEARLE (2002) no
estudo dos atos de fala. Para o autor, existem tipos característicos de entoação que irão diferir
os modos enunciativos básicos.
Tendo examinado alguns aspectos referentes às caracterizações dos tipos de orações
e alguns elementos gerais da constituição dos atos de fala a partir das gramáticas de Língua
Portuguesa, nos deteremos, a seguir, na abordagem particular de cada um desses tipos,
procurando analisar alguns aspectos enunciativos importantes, a nosso ver, para o cotejo com
as categorias dos atos de fala. Pretendemos verificar, na seção a seguir, se existem relações
entre os tipos de orações elencados nas gramáticas de Língua Portuguesa, e os modos pelos
quais os interagentes organizam suas diferentes ações enunciativas. Tal comparação poderá
demonstrar que certos aspectos da teoria dos atos de fala são fenômenos lingüísticos que
podem ser considerados no estudo das orações, a fim de aprofundar esse item na abordagem
gramatical.
Fazer com que o interlocutor assuma determinado conteúdo informativo como sendo
plausível é o que torna esse tipo de anunciado aceitável, do ponto de vista interlocutivo.
Começamos nossa explanação citando a “Grammatica Portugueza” (sic) de
RIBEIRO (1919). Na abordagem do estudo da “Sentença declarativa”, o autor caracteriza este
tipo de oração como sendo aquela que “declara ou assevera uma cousa. Ex: O dia está quente”
(RIBEIRO, 1919, p. 207).
Esse autor não acrescenta outras caracterizações acerca da declarativa, contudo,
ainda subdivide essa categoria em afirmativa, ocorrida “quando uma cousa é, ex: O dia está
quente”; e negativa quando assevera que uma cousa não é, ex: o dia não está quente”.
Tanto na declarativa afirmativa, quanto na negativa, conforme demonstrado pelo
autor, o que ocorre é o desejo de determinado falante de garantir a seu interlocutor que certo
fato pode ser considerado como afirmativo ou negativo. O falante, no caso desse tipo de ação,
geralmente, deseja achar um interlocutor disposto a acatar o que ele afirma ou nega, em sua
asserção; o que faz com que a visão desse autor esteja coadunada com o tipo assertivo de
Searle.
ALI (1964, p. 125) atribui à oração declarativa o papel interlocutivo de informar
acerca de determinado fato. Sendo assim, o “conteúdo informativo” desse tipo de oração é
focalizado pelo autor. Nesse caso, a declarativa corresponde ao tipo de ação que se propõe a
narrar os acontecimentos, atribuir valores às coisas que o falante deseja comunicar a seus
interlocutores.
Poderíamos também, se quisermos relacionar as diferentes ações interlocutivas aos
modos de organização discursiva, afirmar que a declarativa corresponderia, nesse caso, à
narração. Isso porque, tal modo de organização do discurso tem por característica predispor ao
falante os recursos lingüísticos necessários para que ele possa “contar”, “relatar” determinado
fato a seus interlocutores.
Já no caso dos estudos referentes à entoação da oração, encontrados em CUNHA
(1978) nos faz verificar que, no caso da declarativa, ocorre um início fraco e uma subida na
entoação, no meio da frase. Essa subida irá ocorrer de acordo com o exemplo do autor,
quando há um pronunciamento dos elementos vocabulares mais expressivos da frase,
indicadores dos principais conteúdos informativos, atribuídos aos elementos da proposição.
Observe o exemplo a seguir:
10
dão pri
ti se com
mul me
A
(CUNHA, 1978, p. 117)
motivação do emprego desse tipo de oração. O mesmo ocorre em ROCHA LIMA (1976), ao
demonstrar que a oração exclamativa seria movida por uma necessidade de o locutor
manifestar determinado “estado de alma”. Veja:
(1977) quanto CUNHA (1978) não inserem a oração imperativa como sendo uma categoria
enunciativa. Entretanto, quando descrevem a entoação exclamativa também agrupam, de
forma secundária, esse modo de enunciação.
Para CUNHA (1978), a entoação exclamativa estará ligada ao nível de emotividade
de quem fala, sendo que, a sílaba mais forte do enunciado, irá distinguir três tipos de gráficos
para explicar essa entoação. Compare os exemplos e gráficos do autor (CUNHA, 1978, p.
120), acerca dessa forma de enunciação:
O primeiro gráfico corresponde ao seguinte exemplo: “Deus de minha alma!”, que é
pronunciado de forma ascendente, por conta da pronuncia mais forte estar presente na
primeira palavra, gerando, portanto, a seguinte curva melódica:
O que podemos apreender do estudo dos dois autores é que a entoação, no caso do
estudo da oração exclamativa é muito complexa, podendo agrupar diferentes tipos de emoção,
por parte do falante. Também esse tipo de entoação, por fazer menção a atitudes discursivas
diversas, a partir do tom emotivo de quem fala, irá oferecer três tipos de entoação, conforme
CUNHA (1978) expõe. Tal fator explicaria as maneiras diversas de ação interlocutiva, pela
gradação de sentimentos que vão da exclamativa à imperativa. Nesse caso, a marca desse tipo
de entoação é representada pelo ponto de exclamação (!), comum também a esses dois tipos
de oração.
O estudo das orações, à luz da teoria dos atos de fala, expressivo e diretivo poderia,
nesse caso, elucidar certos aspectos discursivos do uso dos vocativos, interjeições e
imperativos, conforme mencionado por ALI (1964, p. 265), anteriormente, e que dariam uma
nova perspectiva a tais fenômenos linguísticos.
O que ocorre, no caso da curva melódica, é uma gradação no uso das ações, que vão,
desde o externar um desabafo ou uma apreciação acerca de determinado fato, como no
14
exemplo “Deus de minha alma!”, que poderia representar uma “Interjeição”; passando pela
questão do chamamento de alguém, de forma afetuosa, como no caso do exemplo “Meu
amor!”, podendo ser considerado um “Vocativo”; até chegar ao nível da ordenança ou pedido
verificada nos exemplos “Sai da frente!” e “Todo o mundo!!!”, podendo ser tais exemplares
considerados como usos do modo “Imperativo”. O interessante é ressaltar que a questão da
melodia irá demonstrar os tipos de emotividade do falante, estando tais sentimentos inseridos
nas categorias dos atos “expressivo” e “diretivo’. Entretanto, o estudo de tais ações se torna
complexo, devido ao fenômeno dos “atos de fala indireto”, que será contemplado, mais
adiante, no presente ensaio.
O ato de exortar seria, portanto, a principal ação demandada por esse tipo de oração.
Entretanto, a exortação, característica do ato da categoria diretiva, poderá se apresentar de
formas diferenciadas, como “tentativas muito tímidas, como quando o convido a fazer algo ou
sugiro que faça algo, ou podem ser tentativas muito veementes, como quando insisto em que
faça algo” (SEARLE, 2002, p. 21).
Talvez por ter essa peculiaridade, esse tipo de enunciado pode ser bastante eclético,
possuindo traços lingüísticos como a presença do modo imperativo, relacionado ao ato de
exortar, como outros recursos interlocutivos para que sejam feitos os diferentes tipos de
pedidos. O que percebemos, por outro lado, hodiernamente, é uma perda dessa característica
interlocutiva do modo imperativo, no caso de empregá-lo para fazer exortações, podendo tal
modo adquirir outras forças ilocutórias, como, por exemplo, aconselhar, instruir, recomendar
ou indicar.
16
O uso de orações na forma assertiva e interrogativa para que o locutor faça pedidos e
ordens é, portanto, um fenômeno interlocutivo importante a ser considerado no estudo das
orações, já que tais enunciados são feitos com a estrutura linguística de determinado tipo de
oração, com a finalidade enunciativa de outro.
17
Assim como para ROCHA LIMA (1976), pois, para o autor, frase interrogativa é
“aquela (...) com a qual perguntamos alguma coisa:/ Como? / Porque fugiste de mim? /
Quanto lhe devo? (ROCHA LIMA, 1976, p. 204)
Esses três autores observam no enunciado interrogativo o propósito interlocutivo de
questionar, pedir ou convidar o interlocutor a realizar determinada ação. Dessa forma, a
oração interrogativa estaria, assim como a imperativa, inserida na categoria do “ato diretivo”,
aquele que agrupa diferentes ações, todas usadas para se requerer determinada atitude do
interlocutor. Por outro lado, ao observarmos os exemplos dados nas gramáticas, vemos que
existe uma atenuação no emprego de um questionamento feito por uma oração interrogativa.
Isso porque, na interrogativa o que ocorre é, em linhas gerais, um propósito convidativo,
diferente do que ocorre na oração imperativa, por exemplo.
Outro ponto de vista interessante, com respeito à oração interrogativa dá-se por meio
da análise da “entoação”. De acordo com a perspectiva da entoação, existirão tipos
18
Nessa mesma perspectiva, observamos que, para CUNHA (1978), existem três tipos
de interrogação, a primeira e a segunda, cujas melodias são iguais à da oração declarativa,
apenas distinguindo-se a parte final e uma terceira, que possui três tipos de entoação. Na
declarativa ocorre uma leve descida e nas interrogativas, uma subida no tom de voz. Observe
o exemplo: pri
dão com me?
ti se
mul
A
(CUNHA, 1978, p. 117)
Por meio de um período composto, em que a pergunta está contida numa oração
subordinada de entoação final descendente. Exemplos:
Diga-me quem lhe deu esse livro.
Não sei quando o verei novamente.
(CUNHA, 1978, p. 119)
Nesse caso, o autor distingue esses tipos de oração por meio dos modos de entoação
e também pelo sinal de pontuação, pois, os dois primeiros tipos, denominados de
“interrogação direta” possuem como marca gráfica o ponto de interrogação (?) e, no último
caso, ocorre o ponto final (...). A distinção desses tipos de interrogativa nos mostra, também,
que Celso Cunha alinha-se ao fenômeno pressuposto pelos atos ilocutórios indiretos, aqueles
ocorridos por meio de uma ação mascarada por outra. O estudo das interrogativas, então,
19
corrobora a inserção desse tipo de oração na grande categoria do ato diretivo, conforme
postulado por SEARLE (2002), já que, tanto sob a forma de pedido, indagação, quanto sob a
forma de imposição, o que ocorre, é a tentativa de levar o interlocutor a praticar determinada
ação.
Dessa forma, o estudo dos atos indiretos elucida, portanto, fenômenos como o uso de
perguntas como forma de imposição, e o uso de imposições, como formas de perguntar.
Assim, uma análise mais profunda das orações imperativa e interrogativa, à luz da categoria
diretiva e do ato ilocutório indireto, ilumina um pouco nosso entendimento a respeito, por
exemplo, da perda da “força ilocutória da imposição” mediante o uso do modo Imperativo,
fenômeno discursivo comum, hodiernamente.
4 CONCLUSÃO
O estudo das orações busca caracterizar as formas enunciativas básicas, pressupostas
pelas formas de posicionamento do locutor, diante de seu ouvinte. Os cinco autores
reconhecem, em comum, quatro maneiras de reportamento interlocutivo por meio das
seguintes orações: declarativa, exclamativa, imperativa e interrogativa. Tais enunciados
conferem com formas de ações interlocutivas, de acordo com as categorias dos atos
ilocutivos, conforme elencados por SEARLE (2002).
Para esse autor, existem modos de utilização da linguagem, que estariam dentro de
cinco perspectivas interlocutivas distintas, o que configurariam as categorias de atos
assertivos, diretivos, compromissivos, expressivos e declarações. O esquema categórico do
autor pode elucidar os diferentes matizes de sentido requeridos no emprego discursivo das
orações, fato que explicaria a complexidade de análise das orações interrogativa e imperativa,
cujo emprego estaria associado à categoria diretiva, tanto direta, quanto indireta.
É mister uma atenção quanto ao emprego interlocutivo das orações, no campo da
descrição gramatical, o que redimensionaria as categorias existentes, de modo a explicar
diferentes formas de emprego das orações. Tal abordagem também elucidaria questões
referentes às formas enunciativas básicas, fato que poderia ser considerado no estudo acerca
das tipologias discursivas narrativa, descritiva, argumentativa e injuntiva, que, a nosso ver,
são apenas um desdobramento macrodiscursivo das formas básicas da enunciação,
pressupostas pelos diferentes atos de fala.
20
5 REFERÊNCIAS
LIMA, Carlos Henrique da Rocha. Gramática normativa da língua portuguesa. 18ª Ed. Rio
de Janeiro, Livraria José Olimpio Editora, 1976.
RIBEIRO, Júlio. Grammática Portugueza. 13 Ed. Rio de Janeiro. Editora Francisco Alves,
1919.
SEARLE, John. Speech acts: an essay in the philosophy of language. New York:
Cambridge university press, 1969.
______ . Expressão e significado: estudo da teoria dos atos de fala. 2a ed. São Paulo,
Martins Fontes, 2002.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo
RESUMO
Palavras-chave:
Entoação. Declarativas e interrogativas totais. Informantes florianopolitanos e parisienses.
RÉSUMÉ
Le but principal de cette recherche est celui d’analyser le comportement de l’intonation des
apprentis du Français Langue Étrangère (FLE). Ces apprentis brésiliens nés à Florianópolis
(Brésil), ont suivi une formation supérieure en Lettres-Français, à l’Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC) et sont aujourd’hui professeurs de FLE. Pour décrire le contour
intonationnel de ces individus, nous les avons comparés à ceux des français natifs provenant
de la ville de Paris (France). Il s’agit d’une étude attachée au projet AMPER, qui décrit la
prosodie des langues romanes et qui utilise un corpus de phrases déclaratives et interrogatives
totales.
1
Mestre em Linguística pela PGL/UFSC; e-mail: foliesara@gmail.com.
2
Mots-clé:
Intonation. Déclaratives et interrogatives totales. Informateurs florianopolitains et parisiens.
1 INTRODUÇÃO
A pesquisa aqui proposta terá como objetivo analisar o comportamento entonacional
dos aprendizes brasileiros de Francês Língua Estrangeira (FLE). Esses aprendizes brasileiros,
nascidos em Florianópolis (SC-Brasil), têm formação no curso de Letras-Francês da Univer-
sidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e hoje são professores de FLE. Para descrever o
comportamento entonacional, comparamos a entoação desses professores de FLE com a ento-
ação de nativos da língua francesa oriundos da cidade de Paris (França).
No caso de uma segunda língua (L2), é importante conceber que a exposição a mate-
riais linguísticos autênticos (filmes, livros, cinema, etc.) provavelmente determinará a quali-
dade do input recebido. Percebemos que esses inputs recebidos pelo aprendiz, no que concer-
ne à prosódia2, parte intrínseca do aprendizado de uma L2, refletem uma entoação, e a melo-
dia da língua, nesse caso o francês, é subjacente às questões linguísticas dessa Língua Estran-
geira (LE).
A prosódia é adquirida muito cedo pela criança em sua língua materna e constitui um
componente importante da oralidade. Salientamos que mesmo se dominarmos muito bem os
fonemas de uma LE ainda precisaremos deixar de projetar na LE o sistema acentual e a entoa-
ção da nossa Língua Materna (LM) para alcançar a proficiência de um nativo. Um aprendiz
que articula de maneira equivocada os sons de uma LE, assim como aquele que não acentua
as sílabas corretamente ou aquele cuja entoação não corresponde à entoação da língua alvo
terá um sotaque, ou um accent, nessa língua.
A importância dos estudos prosódicos em uma LE é evidente conforme Flege e Bohn
(1989) dizem, pois muitos aprendizes de LE apresentam um sotaque mesmo depois de terem
atingido um grau elevado de experiência e de conhecimentos sobre a língua alvo. Vaissière
(1991) acrescenta que esse sotaque ocorre pela falta de conhecimento prosódico da língua
aprendida e que, a partir das diferenças estruturais de cada língua, é possível dizer que a LM
pode criar interferências entonativas na produção de uma L2.
O objetivo principal do aprendiz é se comunicar e se fazer compreender pelos nativos
da língua alvo. Ao aprendermos uma segunda língua, a comunicação oral, normalmente, é o
enfoque principal do aprendizado, sobretudo no que concerne à pronúncia. A maioria dos mé-
todos didáticos (MERIEUX e LOISEAU 2004, GIRARDET e CRIDLIG, 2001, AUGE, PU-
JOLS e MARLHENS, 20043) utilizados no curso de Letras-Francês da UFSC aborda a pro-
núncia, apresentando o panorama dos fonemas da língua francesa bem como as regras gerais
de uso (pronúncia), tais como “la liaison 4” e “ l’enchaînement 5” ou juntura.
2
A prosódia é definida como um ramo da linguística que estuda a descrição (aspectos fonéticos) e a represen-
tação formal (aspectos fonológicos) dos elementos da expressão oral, tais quais: os acentos, os tons e a entoa-
ção, cuja manifestação concreta da fala, está associada às variações da frequência fundamental (f0), da dura-
ção e da intensidade. Di Cristo (2000).
3
Métodos usados durante a formação dos informantes brasileiros que participaram do nosso estudo.
4
Fenômeno fonético realizado pelos nativos do francês que ocorre em fronteira de palavras.
5
Juntura é uma fronteira entre dois segmentos, sílabas, morfemas, sintagmas, ou frases. A juntura tem valor
demarcativo, delimitativo e deve ser classificada entre os elementos supra-segmentais ou prosodemas. É sim-
bolizada foneticamente pelo sinal + ou #. Permite distinguir em francês l’essence e les sens (Dubois, 2006)
4
6
. A francofonia é o conjunto de países ou regiões que tem como língua materna ou língua usual o francês.
(JOUBERT 1997)
7
Nível segmental é referente ao segmento. Segmento é o termo usado na linguística para fazer referência a qual-
quer unidade discreta que possa ser identificada fisicamente ou auditivamente, no fluxo da fala (Crystal,
1997)
8
A vogal [y] pode ser encontrada nas palavras tu/lune/sur/vocabulaire e é considerada um dos sons mais difí-
ceis da língua francesa para um estrangeiro produzir.
9
Existe também uma quarta vogal nasal, [], porém ela não foi incluída, pois segundo Léon (2010) não apre-
senta mais oposição fonológica e não é produzia nos dias atuais ou pelas novas gerações francófonas.
10
Conforme Crystal (1997) o suprassegmental refere-se a um termo mais amplo, pois pode ser definido como
um efeito vocal que se estende por mais de um segmento de som em um enunciado.
5
apresentam a expressão est-ce que) ou nas interrogativas que apresentam inversão sujeito ver-
bo (tu viens/ viens-tu?). Contudo, é oferecido nesse curso, de forma optativa, a disciplina de
fonética do francês. Essa disciplina permite aos alunos um aperfeiçoamento do conteúdo foné-
tico apresentado até então de forma genérica nas disciplinas desse curso. Se já é difícil encon-
trarmos atividades que englobem a pronúncia de uma L2, é mais difícil ainda que abordem
esse universo prosódico.
Nossa contribuição será analisar, através de dois parâmetros acústicos (duração e frequên-
cia fundamental), a curva entonacional de aprendizes brasileiros de FLE com a curva entona-
cional dos nativos franceses de Paris, comparando-as.
11
O Atlas Multimédia Prosódico do Espaço Românico (AMPER) visa contemplar, além das variedades do Por-
tuguês Europeu (PE) e do Português Brasileiro (PB), outras línguas românicas, tais como o italiano, o fran-
cês, o castelhano e o galego, pretendendo-se o seu alargamento relativamente a esta família de línguas. O
AMPER-POR (Atlas Multimédia Prosódico do Espaço Românico para o Português) é coordenado pela pro-
fessora Lurdes de Castro Moutinho, do Centro de Investigação de Línguas e Culturas da Universidade de
Aveiro. A coordenação geral do AMPER é da responsabilidade dos professores Michel Contini e Jean-Pierre
Lai, do Centro de Dialectologia da Universidade de Grenoble (3), França. O projeto AMPER pode ser con-
sultado no endereço eletrônico: http://pfonetica.web.ua.pt/
6
1.3 A pesquisa
têm buscado estratégias de coleta de dados que evitem a leitura e que possam ser represen-
tativos da fala estimulada visualmente.
Tivemos a participação de quatro informantes e traçamos um mesmo perfil, a saber:
dois homens e duas mulheres, idades entre 28 e 31 anos, naturais das cidades pesquisadas,
dois falantes do francês, língua materna, no caso de Paris, e dois de francês língua estran-
geira, no caso de Florianópolis.
Para realizar esse estudo, apresentaremos a seguir algumas definições para os ter-
mos prosódia e entoação e para os seus parâmetros acústicos, enfoque principal da nossa
pesquisa.
2 PROSÓDIA E ENTOAÇÃO
Compreender a definição de prosódia implica um olhar sobre a origem do termo, que
vem do latim e significa, para João Nunes de Andrade (1841 apud MATEUS 2004) e também
para Houaiss (2009), acento tônico, quantidade de sílabas. Anteriormente, tem origem no gre-
go, pros-ôdia, que significa o canto, mas também significa o acento tônico.
Atualmente, os estudos sobre a prosódia tornam-se mais refinados. Para Moraes
(1999), a prosódia refere-se à parte da fonética e da fonologia que se ocupa dos elementos que
acompanham a sucessão de sons (fonemas) que são normalmente transcritos pelos grafemas
na ortografia.
São do domínio da prosódia os estudos sobre a entoação, os tons e a acentuação da
língua: a acentuação e os tons se aplicam às palavras e se situam no nível lexical de um
enunciado, enquanto a entoação se aplica sobre uma sequência de palavras e se situa no
nível do enunciado.
A definição de prosódia ainda é um campo de discussão amplo e complexo. Da nossa
parte, concordamos com Vaissière (1997), quando diz que a prosódia engloba os fenômenos
de variações na atualização dos fonemas. Essas variações podem ser descritas: (i) sobre o pla-
no acústico, que nesse caso descreve a evolução da curva de f0, a duração e a intensidade dos
segmentos; (ii) sobre o plano perceptual, descrevendo a percepção do ritmo das frases e da
melodia, seu acento, sua entoação e (iii) sobre o plano funcional, que apresenta a função lin-
guística dessas variações.
Para Di Cristo (2000), a prosódia é definida como um ramo da linguística que estu-
da a descrição (aspectos fonéticos) e a representação formal (aspectos fonológicos) dos
elementos da expressão oral, tais quais: os acentos, os tons, a entoação, cuja manifestação
8
2.2 Duração
da em Linguística e durante seis anos foi professora do curso extracurricular de francês tam-
bém na UFSC. O informante francês realiza seu doutorado no Laboratório de Fonética e Fo-
nologia da Universidade Sorbonne-Nouvelle (Paris 3) e é nascido em Paris. A informante
francesa também está no doutorado em Antropologia na mesma universidade e também nas-
ceu na cidade de Paris.
Q
Quadro 3.2 - Modelo de sentenças e de código para etiquetagem das sentenças
No que concerne às gravações, são consideradas de fala semi-controlada, uma vez que
realizadas a partir de imagens que resultariam em frases nas modalidades: declarativas e inter-
rogativas totais com estrutura sintagmática: sujeito + verbo + complemento, podendo haver
extensões.
A seguir, nas Figuras 3.1, têm-se exemplos das imagens lidas pelos informantes.
Figura 3.1 - Modelo de estímulo visual para a gravação das frases. Modalidade: interrogativa
total constituída de sujeito (com extensão preposicionada) + extensão + verbo + complemen-
to: Le chat de Paris regarde le colibri
quais sejam: (i) armazenar os dados em arquivos sonoros, (ii) agrupar as sentenças por moda-
lidades, (iii) identificar cada enunciado de acordo com o código já proposto pelo projeto AM-
PER, (iv) segmentar e etiquetar as vogais, (v) escolher as sentenças semelhantes, isto é, sen-
tenças que possuem o mesmo número de vogais para a obtenção automática das médias da
frequência fundamental e da duração, plotadas em gráficos separadamente, cruzando apenas
as duas modalidades.
4 DISCUSSÃO E RESULTADOS
Para discutirmos os dados optamos em trabalhar com 20 frases, nas modalidades: de-
clarativa e interrogativa total de cada informante. Fizemos a média das três repetições de cada
frase, e os gráficos de duração e frequência fundamental representam essa média. No total,
temos 80 sentenças, sendo avaliados, para cada uma delas, os parâmetros acústicos: duração e
frequência fundamental.
Figura 4.1 - Comportamento da duração média (em ms) das vogais interrogativas (azul escuro
(BR) e azul claro (FR)) do enunciado Le canard ravissant regarde le chat.
13
Figura 4.2 - Histograma das durações (em ms) dos informantes: francês e brasileiro respecti-
vamente na frase Le colibri regarde le chat.
Figura 4.3 - Comportamento da média de duração (em ms) das vogais declarativas e interro-
gativas dos informantes: francês e brasileiro respectivamente na frase Le colibri re-
garde le chat.
Figura 4.5 - Curva entonacional dos informantes masculinos no enunciado Le canard regarde
le chat , separadas pela modalidade.
12
Na Figura 4.4, apresentamos sobreposição de curvas de f0 para a comparação dentre as modalidades, enquanto
na Figura 4.5, a sobreposição das curvas f0 é mostrada para comparação entre os informantes.
16
.Figura 4.6 - Comportamento da duração média das vogais declarativas (vermelho (BR) e rosa
(FR)) e interrogativas (azul escuro (BR) e azul claro (FR))) do enunciado Le canard
regarde le chat da informante brasileira e francesa.
.Figura 4.7 - Comportamento da duração média das vogais declarativas (vermelho (BR) e rosa
(FR)) e interrogativas (azul escuro (BR) e azul claro (FR)) do enunciado Le chat de
Toronto regarde le colicbri e Le colibri regarde le chat timide, respectivamente,
das informantes brasileira e francesa.
Figura 4.8 - Curva de f0 das informantes francesa e brasileira do enunciado Le colibri regarde
le chat.
Em relação ao contorno inicial da f0, no que diz respeito ao pré-núcleo das declarati-
vas e interrogativas, a informante brasileira e a francesa desenham uma curva entonacional
17
semelhante nas duas modalidades até o final do primeiro grupo rítmico: elevação de pitch na
última sílaba tônica: padrão característica do francês, confirmando assim o padrão já des-
crito por Léon (2007), Moutinho e Zerling (2002) e Vaissière (1997) para a região de pré-
núcleo.
No final dos enunciados declarativos, as informantes apresentam um contorno final
descendente, porém a informante brasileira aparenta uma descida mais abrupta de pitch do
que a informante francesa, mas sempre apenas na última sílaba tônica da região nuclear.
Já, para as frases interrogativas totais, as informantes, brasileira e francesa, apresentam
uma curva descendente no início do segundo grupo rítmico e, ao final do enunciado sobre a
sílaba tônica final, ocorre uma subida abrupta de pitch. Esse contorno final é característico do
francês (Figura 4.8), para ambas as informantes.
Aqui percebemos que a informante brasileira apresenta um perfil melódico bastante
próximo daquele apresentado pelos franceses, o que não se pode dizer em relação ao perfil
melódico do brasileiro, quando produz sentenças declarativas e interrogativas na língua fran-
cesa. Esse informante parece influenciado pelo movimento melódico resultante da variação de
acento lexical do PB.
Observando a ficha social dos informantes brasileiros, notamos que há uma diferença
na experiência da língua, vivenciada pela brasileira que morou por alguns meses no país da
LE. No entanto, outras análises necessitam ser realizadas, levando em conta fatores como, por
exemplo, a experiência no país da LE, para que possamos complementar os resultados aqui
apresentados.
Concluímos esse artigo, mas não a pesquisa aqui iniciada, uma vez que ela suscitou
uma enorme curiosidade sobre um aspecto que vem sendo pouco explorado nos estudos acer-
ca da interlíngua francês-português – o suprassegmento – a prosódia e a entoação e os fatores
linguísticos e sociais que podem influenciar na sua aquisição em LE.
REFERÊNCIAS
DA SILVA, E, F. Welcome to Canada, Bienvenue au Québec. Viva o México!. In: 29º En-
contro Nacional Anual da ANPOCS. Caxambu, SP: Lis Gráfica Ltda. 2005.
DETEY et al. Les variétés du français parlé dans l’espace francophone. Ed. Ophrys. Paris.
2010.
DI CRISTO, A. Interpréter la prosodie, Actes des 23ème Journées d'Etude sur la Parole,
Aussois, 19-23 juin, 2000. p. 13-23.
FLEGE, J. E., & BOHN, O-S. An instrumental study of vowel reduction and stress
placement in Spanish-accented English. Studies in Second Language Acquisition, 11(1),
35-62, 1989.
_____. Intonation in Brazilian Portuguese. In: HIRST, D. and A. DI CRISTO (eds.) Intona-
tion Systems: a Survey of Twenty Languages, Cambridge: Cambridge University Press,
1998, p. 179-194.
REY, A. Le français. Une langue qui défie les siècles. Gallimard, 2008.
ROUSSEAU, J. J. Essai sur les origines des langues. 1781. Acessado no endereço
eletrônico :http://classiques.uqac.ca/classiques/Rousseau_jj/essai_origine_des_langues/origine
_des_langues.pdf , último acesso em 21 de julho de 2011.
RESUMO
O debate recente sobre educação brasileira tem sido sobre possíveis formas de qualificar o
ensino. Assim, muito se tem discutido sobre o papel do letramento quanto ao alcance dessas
melhorias. No entanto, aqui, deixa-se de lado essa ideia de letramento autônomo (STREET,
1984), que confere à simples aquisição deste, a chave para um mundo melhor e, propõe-se
pensar sobre as práticas de letramento trazidas pelos livros didáticos de Língua Portuguesa.
Mais que adquirir, é preciso praticá-lo em sociedade, porém segundo McLaren (1988), há
uma distância significativa entre os atos de aquisição e de prática do letramento. Neste artigo,
analisa-se a forma como os livros didáticos trabalham o letramento no ensino fundamental e,
se incentivam práticas de letramentos locais e/ou aplicação destas fora dos muros da escola,
haja vista que ensinar requer valorizar as práticas de letramento locais. Para isso, fez-se uma
comparação, de base qualitativa, de dois livros didáticos aprovados pelo Programa Nacional
do Livro Didático (PNLD) na última década, utilizando como base as ideias de letramento
autônomo e ideológico de Street (1984), bem como da noção de prática de letramento, de
Barton e Hamilton (1998).
Palavras-chave:
Práticas de letramento. Livro didático. Ensino-aprendizagem.
ABSTRACT
The recent debate about Brazilian education has been on ways of qualifying teaching.
Therefore, it has been discussed about the literacy on the scope of these improvements.
However, here, let aside the idea of autonomous literacy (Street, 1984), which gives the
simple acquisition of the key to a better world, and proposes to think about the literacy
practices brought by Portuguese teaching textbooks. Rather than get, you should practice it in
society, but according to McLaren (1988), there is a significant distance between the
acquisition and practice acts of literacy. In this article, we analyze the way that textbooks have
worked the literacy at basic education, whether to encourage the local literacy practices and /
or application of those outside the school walls, given that teaching requires valuing those
local literacy practices. Thus, it was a comparison of qualitative basis, two textbooks
approved by the Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) at the last decade, building
on the ideas of autonomous and ideological literacy Street (1984), as well as notion of literacy
practices, Barton and Hamilton (1998).
Keywords:
Literacy practices. Teaching textbooks. Teaching and Learning.
1
Mestre e doutoranda em Ciências da Linguagem/UNISUL, com estágio sanduíche pela PPGLg/UFSC; e-mail:
vwlima@gmail.com.
2
1 INTRODUÇÃO
O trabalho com o letramento no ensino fundamental tem gerado acaloradas
discussões, diversos cursos de aperfeiçoamento, além de inúmeras obras publicadas, tomando
por base os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), publicados em 1998. Apesar do debate,
permanece a distância entre as sugestões metodológicas dos PCN, as práticas instituídas pelos
livros didáticos e o trabalho diário do corpo docente. Algo que se deve, frequentemente, ao
despreparo ou desconhecimento de instrumentos que permitam a utilização de práticas locais
de letramento em favor do ensino em sala de aula. O propósito deste artigo não é atribuir
culpa, mas sim constatar um problema persistente, mesmo depois de mais de uma década de
atuação dos PCN.
Conforme Paulo Freire (2011) uma educação efetiva precisa atravessar os muros
escolares, se abrindo para o mundo. A natureza humana parte da convivência social e, por
isso, para o autor, a educação não pode se limitar às salas de aula e aos livros didáticos. A
educação libertadora consiste em permitir que um indivíduo se distancie e se veja no centro de
seu próprio projeto educativo, fazendo com que assim, haja uma reflexão sobre seu papel e
seu lugar no mundo. Frente a isso, é preciso que os professores pensem no processo educativo
como uma valorização das práticas sociais que envolvem a vida de seus alunos e do mundo a
sua volta.
Em função disso, este artigo pretende analisar como dois livros didáticos de Língua
Portuguesa, aprovados pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) nos últimos anos,
trabalham com as práticas de letramento. Identificar se há uma valorização das práticas de
letramento locais ou se continuam trabalhando com as práticas dominantes. Entender e
analisar os objetivos de livros didáticos que, mesmo ancorados nos PCN, ainda assim,
incentivam a aquisição do letramento em vez de valorizar as práticas locais dos estudantes.
Literacy é o estado ou condição que assume aquele que aprende a ler e escrever.
Implícita nesse conceito está a idéia de que a escrita traz consequências sociais,
culturais, políticas, econômicas, cognitivas, linguísticas, quer para o grupo social em
que seja introduzida, quer para o indivíduo que aprende a usá-la (SOARES, 2006, p.
17).
Este método foi amplamente utilizado no cenário nacional, porém, com o golpe
militar de 1964, por conta desse método libertador, Freire foi preso e exilado. O governo
militar se preocupava com o alcance que o método Paulo Freire possuía, pois sua concepção
de alfabetização estava diretamente relacionada ao direito de efetivo exercício da cidadania.
“O método de Paulo Freire é, fundamentalmente, um método de cultura popular: conscientiza
e politiza” (FIORI, 1987, p. 21).
Na abordagem freireana, nega-se que o analfabeto seja passivo, ou apenas um
depositário de conhecimentos, a chamada educação bancária. Para Freire (1987), o analfabeto
pode ser um sujeito ativo, um sujeito participativo de seu próprio processo educativo. Sujeito
pensante que discute, age e, principalmente, decide. Fundamental é a leitura que se faz do
mundo, leitura que permite que o indivíduo seja capaz de alcançar o conhecimento ou mesmo
de se reconhecer no centro de sua aprendizagem e de sua história. Além disso, ao se colocar
no centro de seu processo educativo, o estudante pode enxergar e refletir sobre seu lugar e seu
papel no mundo.
Seguindo tal linha e considerando os estudos do letramento, é possível pensar: “a
palavra de ordem nos estudos sobre o letramento que se voltam para a transformação da
ordem social é „empowerment through literacy‟, ou seja, potencializar através do letramento”
(KLEIMAN, 1995, p. 8). Atualmente, são os NEL que permitem este olhar social, enxergando
o letramento não como habilidade adquirida, mas sim como uma prática social.
relação se estenderá também, à carga ideológica desse contexto, impedindo, assim, que se dê
um tratamento neutro ou técnico a tais práticas. No entanto, pensar o letramento dessa
maneira implica pensar que as pessoas, uma vez que aprendam o código escrito, estarão aptas
a transitar em qualquer contexto letrado. A essa abordagem, Street (1984) chama de modelo
autônomo de letramento.
Esse modelo pressupõe que a escrita, de forma autônoma e independente do
contexto social que condiciona seu uso, terá fortes efeitos sobre outras práticas sociais e/ou
cognitivas, ou seja, o desenvolvimento cognitivo, econômico e a ascensão social. Já no que
tange à escola, o modelo autônomo se define como a capacidade de ler e escrever, em que ler
significa ser capaz de decodificar as palavras e escrever ser capaz de codificar a língua dentro
do texto (GEE, 1998, p. 27).
É possível perceber que parte das escolas tem suas práticas de ensino apoiadas
nesse modelo. “O processo de interpretação estaria determinado pelo funcionamento lógico
interno ao texto escrito, não dependendo das reformulações estratégicas que caracterizam a
oralidade” (KLEIMAN, 1995, p. 22). Aqui, a divisão oral/escrito ainda se faz presente e, em
sociedades nas quais o letramento escrito não aparece, o fato é visto como uma lacuna a ser
preenchida. Adquirir letramento significaria adquirir lógica e raciocínio crítico. Por conta
disso, surge a ideia de que mobilidade social, progresso e civilização estão associados ao
letramento: letrar-se é ascender socialmente.
No entanto, os teóricos dos NEL apoiam suas pesquisas no modelo ideológico de
letramento, ou seja, um modelo em que “as práticas de letramento, no plural, são social e
culturalmente determinadas, e, como tal, os significados específicos que a escrita assume para
um grupo social dependem dos contextos e instituições em que ela foi adquirida”
(KLEIMAN, 1995, p. 21). Essa é a natureza social do letramento, considerando leitura e
escrita como práticas sociais e olhando para tais práticas, não apenas como atividades com um
fim em si mesmas (tal como no modelo autônomo de letramento), mas como atividades que
servem a um propósito.
Segundo Terzi (2006, p. 6), este modelo não se desvincula do contexto cultural e
social no qual é construído, bem como do significado que as pessoas atribuem à escrita e das
relações de poder que regem os seus usos, de modo que a junção desses fatores resulta em
letramentos múltiplos que variam de comunidade para comunidade, por conta das condições
socioeconômicas, culturais e políticas que as influenciam. É importante salientar que, para a
autora, optar por esse modelo exige que não se ensine apenas a tecnologia da escrita, mas que
se ofereça a oportunidade de entendimento das situações sociais de interação em que os textos
7
circulam, além dos significados dessas interações para indivíduos e comunidades (TERZI,
2006, p. 5).
3 ENTENDENDO O OBJETO
3.1 Os livros
A análise se deu com base em duas unidades de dois livros didáticos. Em uma
unidade, o gênero trabalhado foi o artigo de opinião e, na outra, o artigo de opinião.
Fundamentado na ideia libertadora de Paulo Freire para a educação, que via a educação como
uma janela para o mundo e, não acreditava na possibilidade de um ensino fechado às paredes
de uma sala de aula, procuro estabelecer as ligações da prática incentivada pelo livro didático
com a realidade dos alunos. De posso dessas possíveis ligações, tento perceber e mensurar
quais são os aspectos da realidade dos alunos valorizados e, se o são.
Para isso, opto por analisar dois livros publicados recentemente e, aprovados pelo
Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Um dos livros (identificado a partir daqui
como “Livro A”) é intitulado “Português”, da coleção Para Viver Juntos. Foi publicado em
2009 e é destinado ao 9º ano do Ensino Fundamental. As autoras desse livro são as
8
professoras: Greta Marchetti, mestre em Letras pela Universidade de São Paulo (USP); Heidi
Strecker, licenciada em Letras e em Filosofia; e Mirella L. Cleto, licenciada em Letras,
também pela USP. O segundo livro analisado (Livro B) refere-se à obra “Tudo é linguagem”,
das professoras Ana Borgatto, pedagoga e mestre em Letras; Terezinha Costa Bertin, mestre
em Ciências da Comunicação; e Vera Lúcia Marchezi, mestre em Letras. Publicado em 2010,
destina-se aos alunos de 9º ano, também.
O “Livro A” é uma publicação das Edições SM, pertencente ao Grupo SM que é
gerido pela Fundação SM. Com sede nos Estados Unidos, o Grupo atua pela Espanha e
América Latina, chegando ao Brasil em 2004. Já o “Livro B” é uma publicação da editora
Ática, empresa nacional que pertence ao grupo Abril Educação e atua no mercado editorial
desde 1965.
No “Livro A”, que conta com nove unidades de trabalho, os gêneros trabalhados são:
o conto psicológico; o conto social e conto de amor; a crônica esportiva e reportagem
(unidade de análise); o artigo de divulgação científica e verbete de enciclopédia; o texto
dramático e roteiro; o conto e propaganda; a resenha crítica; a propaganda; e a revisão. No
entanto, o “Livro B”, apesar de pertencer ao mesmo ano (9º ano), trabalha gêneros diferentes,
quais sejam: a crônica e conto; o romance; a entrevista; o editorial; o artigo de opinião
(unidade de análise); e o manifesto.
americanas. Porém, o autor da crônica começa seu texto fazendo referência ao filme “Quanto
mais quente, melhor” (1959) que tem Marylin Monroe como protagonista. O fato é que, nas
questões para a discussão do texto, por ser um manual do professor, traz as respostas (básicas
e simples) sem entrar no campo do debate. Considerando que o livro dos alunos não possui as
respostas marcadas, pode ser feita uma leitura superficial do texto, não compreendendo, por
exemplo, a complexidade do tema futebol feminino numa sociedade machista. Apesar disso, o
foco deste trabalho não é discutir sobre questões sociais de gênero, mas sim mensurar as
valorizações (ou não) das práticas locais de letramento.
Quando permite um “aquecimento” para a produção de uma crônica esportiva, o
livro sugere que os estudantes leiam um quadro sobre os jogos Pan-americanos e escrevam
sobre o fato da jogadora Marta ter sido convidada a marcar seus pés na calçada da fama, no
Maracanã. Ao solicitar a produção de uma crônica esportiva, mostra duas imagens e pede que
os estudantes se imaginem jornalistas de um jornal de circulação nacional e escrevam um
texto sobre algum episódio esportivo recente.
É perceptível que a unidade lança mão de formas adequadas à produção textual,
como no planejamento do texto, sugerindo que os estudantes pensem sobre os quais são
leitores, qual linguagem adequada para esse público, qual o tamanho reservado a este texto
em questão, a definição do conteúdo e do tom do texto e, por fim, o que será destacado na
crônica (atuação dos esportistas, qualidades de alguém específico, desempenho do árbitro).
De certa forma, o livro se vale de bons operadores de produção textual, a fim de permitir um
pensamento mais crítico sobre o leitor, porém, ao solicitar um texto para um jornal de
circulação nacional, impede que os estudantes pensem ou escrevam sobre um esporte de sua
comunidade ou da própria escola.
Quanto ao “Livro B”, faz uma introdução à unidade, apresentando o que será
estudado, dizendo: “Gênero – artigo de opinião: a intencionalidade e as escolhas de
linguagem, a estrutura do texto argumentativo: tipos de argumento.” Em seguida, adentra o
tema utilizado para gerar textos e debates: “Sorria, você está sendo filmado”.
Nessa unidade é possível encontrar alguns aspectos de trabalho problemáticos e
extremamente distantes da realidade nacional. O texto introdutório ao tema da unidade se
refere às tecnologias de controle, onde tudo é visto e gravado. Publicado na revista Carta
Capital, porém escrito por um correspondente de Londres, lança mão de siglas em inglês,
fazendo, inclusive, referências ao governo britânico, comparando britânicos e chineses,
citando leis inglesas. Apesar de comum também aos brasileiros, o tema “você está sendo
filmado” está distante de muitos de nós, distante de nossa realidade. Um texto relativamente
10
longo (quatro páginas) que precisou de um vocabulário de meia página, tamanha a dificuldade
e distância do tema aos alunos brasileiros, independentemente de região, idade ou classe
social.
Em seguida, para a discussão sobre o texto, ainda faz referências à cultura inglesa.
Traz, inclusive, o mapa do Reino Unido e permanece discutindo sobre a realidade cultural
inglesa, sem menção ou aproximação à realidade brasileira ou mesmo, à história local.
Após uma interpretação problemática, o livro propõe o estudo da estrutura do texto
argumentativo. Para isso, solicita ao estudante o reconhecimento de expressões do texto que
representem as finalidades dos títulos de cada bloco. A atividade se concentra na identificação
de partes estruturais de um artigo, sem aprofundar a ideia, sem permitir ou levantar o debate
sobre a real finalidade de um artigo de opinião. Apenas ao final da atividade, os alunos são
incentivados a dar sua opinião sobre o assunto, porém, novamente, sem incentivar o debate
sobre o controle versus a privacidade.
Após essa atividade, o livro traz mais dois artigos sobre o tema. Um favorável e
outro contrário ao uso exacerbado da tecnologia. Os dois publicados na Folha de SP, em
2004. Como atividade, pede uma comparação sobre a estrutura dos artigos. A atividade
proposta é puramente mecânica, solicitando que os alunos apenas preencham um quadro,
destacando a opinião, os argumentos e a conclusão de cada artigo, transcrevendo trechos dos
artigos.
Depois dessas atividades, extremamente vazias e problemáticas, define: “O artigo de
opinião é um texto que expõe o ponto de vista, a opinião de quem o assina – um jornalista ou
um colaborador de um veículo de comunicação. É um gênero de grande importância social,
pois permite a manifestação de opiniões de pessoas de vários segmentos da sociedade. O
artigo de opinião procura debater questões que suscitam polêmica.”
Apesar dos problemas destacados, é preciso salientar a proposta de debate, feita pelo
livro sobre a questão do controle dos pais sobre os filhos, quanto ao uso do celular. Não fosse
a não solicitação de um debate sobre o tema ou o não incentivo ao pensamento crítico, poderia
ser um tema interessante, porém os alunos precisariam ter sido bem preparados quanto à
exposição de suas opiniões. O que não aconteceu.
Por fim, a atividade de produção de artigo de opinião, ao final da unidade, pede que
os estudantes escrevam um artigo de opinião sobre o uso das tecnologias. Usa como base
inicial, um texto publicado no Estado de SP, citando George Orwell e o surgimento do
Grande Irmão (romance de 1984). Pede uma interpretação de texto e, em seguida, solicita a
produção de um artigo sobre o tema. Não fossem os problemas apresentados anteriormente,
11
como não incentivar os alunos a buscarem sua realidade, seria uma atividade interessante,
entretanto, o livro não permite a localização das práticas. Se pensarmos que, por exemplo, no
interior de grandes estados, como os do nordeste, não há sequer água, o que dizer de celulares
com câmeras, internet sem fio e/ou câmeras de vigilância, o livro está totalmente fora dessas
realidades. De fato, o livro não permite a atualização das práticas.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O primeiro livro, das Edições SM, mostra uma posição dominante chegando a um
país emergente trazendo a luz. Utiliza de exemplos distantes da realidade da criança,
mostrando-se como detentor do saber levando o conhecimento a um espaço em
desenvolvimento. Já o segundo livro, da Editora Ática, é uma produção de uma tradicional
editora no mercado dos livros didáticos. Ainda que esteja “tentando” se adequar às sugestões
metodológicas dos PCN, trabalhando na forma de sequência didática, mantém a já
ultrapassada atividade de “preencha as lacunas” em seu roteiro de trabalho.
É importante salientar que os dois livros trabalham com sequência didática,
estabelecendo um cenário, produzindo módulos de trabalho, avaliando e reescrevendo até
chegar a um produto final, porém falha em alguns desses estágios tornando inócuo todo o
trabalho.
O tratamento dado ao letramento nessas duas unidades é claro. O livro incentiva a
aquisição dos gêneros, mas não trabalha nem com a realidade dos alunos e, tão pouco,
valoriza as práticas locais para as atividades em sala de aula. Esse trabalho mostra uma ideia
de aquisição do letramento, como aquisição de uma habilidade que fará o aluno progredir na
vida. Fazendo-o crer que produzir uma reportagem ou um artigo aos moldes propostos pelos
livros estará lhe assegurando o trânsito em sociedade.
Quando se valoriza as práticas locais, permite-se que o aluno pense sobre seu lugar
no mundo, já que as práticas a que ele já está tão familiarizado também são vistas como
importantes num local valorizado como a escola, a sala de aula. De acordo com Freire (2011,
p. 72), o indivíduo não pode ser visto como “mero espectador do processo, mas cada vez mais
sujeito” e, através da análise dessas unidades, é possível perceber, nitidamente, que o livro
mantém o aluno como um simples espectador.
5 REFERÊNCIAS
FIORI, E. M. Aprender a dizer a sua palavra. In: FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido.
25. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 25. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
______. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.
GEE, James Paul. Social linguistics and literacies: ideology in discourses. 2. ed. London:
Falmer Press, 1998.
STREET, B.V. Literacy in theory and practice. Cambridge: Cambridge University Press,
1984.
RESUMO
Palavras-chave:
Pressuposição. Conhecimento compartilhado. Subentendido.
ABSTRACT
The main objective of this paper is making considerations about the linguistic phenomenon of
presupposition. The theoretical basis which supported the research were Ducrot’s reflections
(1977: 1987), expanded by Illari and Geraldi (2002), Moura (2006) and Oliveira (2009).
Some relevant concepts presented by these researchers were focused, such as “posited
content”, “presupposed content” and “shared knowledge”, examples of which were shown
through on line news on the newspaper A Crítica, of Manaus/AM. Furthermore, basic tests
were outlined which may be used to evaluate the truth value of presuppositions in a sentence.
At last, the difference between presupposition and implicit was shown, presenting them as
two different forms of implicits. The study shows that the choice of words and rhetoric
recourses on a text organization is never a free act. Taking out from their dictionary state and
cast over an intricate net of contexts that constitute the human interactions, words lose their
neutrality and are transformed into potential vehicles of ideologies. The analyses of these
newspaper news allow the conclusion that in the interplay of discourses there are
presuppositions that, if focused in their conjunction, they reflect the ideology from which the
utterance has been built.
1
Este trabalho foi desenvolvido com o apoio do Governo do Estado do Amazonas por meio da Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas, com a concessão de bolsa de estudo.
2
Professor da Universidade Federal do Amazonas e doutorando em Linguística pela Universidade Federal de
Santa Catarina; e-mail: cguedelha@gmail.com.
2
1 INTRODUÇÃO
O objetivo do presente artigo é desenvolver um estudo a respeito do fenômeno
semântico da pressuposição, tendo como ponto de partida as reflexões estabelecidas por
Ducrot (1977; 1987) e ampliadas por Ilari e Geraldi (2002), Moura (2006) e Oliveira (2009).
Focalizamos alguns conceitos relevantes apresentados por esses pesquisadores, como
“conteúdo posto”, “conteúdo pressuposto” e “conhecimento compartilhado”. Para
exemplificá-los, selecionamos dez manchetes do jornal “A Crítica”, de Manaus, em sua
versão eletrônica3. Além disso, destacamos os testes básicos para avaliar o valor de verdade
de pressupostos em uma sentença, o que Oliveira (2009) chama de “condições de felicidade”
no proferimento da sentença.
A descoberta da pressuposição como realidade linguística contribuiu decisivamente
para a pulverização da antiga concepção de que as línguas naturais, como códigos, permitem
expressar todos os seus conteúdos de forma explícita. O conhecimento de que a pressuposição
desestabiliza essa concepção ultrapassada significou, no entendimento de Rector (1980), a
passagem da semântica do enunciado (produto) para a semântica da enunciação (processo). A
esse respeito, cabe destacar que Ducrot procurou mostrar que a língua não pode ser definida
como um código, um instrumento de comunicação, conforme defendia Saussure. Ela deve ser
considerada, pelo contrário, “como um jogo, ou melhor, como o estabelecimento de um jogo
que se confunde amplamente com a vida cotidiana” (DUCROT, 1977, p. 12).
Para Ducrot (1977, p.12), o fenômeno da pressuposição é responsável pelo
surgimento, no interior da língua, de “todo um dispositivo de convenções e de leis, que deve
ser compreendido como um quadro institucional a regular o debate dos indivíduos”.
Ducrot (1987, p. 20) E deixa bem claro que o pressuposto
3
Todas as manchetes encontram-se no seguinte endereço eletrônico: www.acritica.com.br
3
para convencê-lo da nossa verdade”. Acrescenta ainda que “não falamos sobre o mundo,
falamos para construir um mundo e a partir dele tentar convencer nosso interlocutor da nossa
verdade, verdade criada pelas e nas nossas interlocuções”.
informações que não estão expressas nas linhas do texto mas são evocadas ou sugeridas.
Como exemplificação, observemos as manchetes a seguir e o quadro que as representa:
(2) “D’Alessandro e Bolívar reconhecem que não estão chutando no gol” (9 de julho
de 2011 - adaptado).
(3) “Candidato do P-SOL consegue liminar para participar de debate” (28 de
setembro de 2010).
(4) “Ponte bilionária vira diversão para a garotada” (29 de agosto de 2011).
(5) “Solto pela PF, Pedro Paulo reassume o governo do AP.” (20 de setembro de
2010).
(6) “Manaus nunca mais terá apagão, diz Lula.” (27 de novembro de 2010)
Além dos gatilhos listados acima, há dois outros que são bastante expressivos: as
descrições definidas e as sentenças clivadas. As descrições definidas, conforme Moura (2006,
p. 17), “são expressões que fazem uma certa descrição de um ser específico”, ou seja,
desempenham um papel semelhante ao dos nomes próprios, por sua natureza identificativa.
“O uso de uma descrição definida pressupõe a existência do ser a que ela se refere. Esse tipo
de pressuposição é chamado também de pressuposto de existência” (MOURA, 2006, p. 17).
As descrições definidas são sempre sintagmas nominais (encabeçados por um artigo definido
e tendo um substantivo como núcleo), que identificam um referente no mundo. É o que
acontece, por exemplo, em (7), (8) e (9):
(7) “Os primeiros 100 dias do novo governador do Amazonas.” (9 de abril de 2011)
(8) “Relator pede absolvição do prefeito de Parintins.” (29 de novembro de 2010)
(9) “Candidato do P-SOL consegue liminar para participar de debate.” (28 de
setembro de 2010).
Nessas três manchetes, as expressões definidas foram utilizadas em substituição aos
nomes próprios específicos, como mostra o Quadro 2:
5
3 TESTES DE PRESSUPOSIÇÃO
O adjetivo é uma das classes de palavras mais produtivas na construção de
pressuposições. Nesta sessão, exemplificaremos isto através da análise da manchete (13)
abaixo:
(13) “Manacapuru registra novo deslizamento de terras.” (12 de novembro de 2010)
Ancorados em Ilari e Geraldi (2002), podemos perceber que a mensagem veiculada
por este enunciado circula em dois níveis.
6
No nível mais superficial, temos uma informação no plano literal. A manchete nos
informa que houve um deslizamento de terras em Manacapuru (um dos municípios do
Amazonas). Este é o conteúdo posto; no segundo nível, somos levados a considerar outra
afirmação, que não participa do eixo sintagmático (não está expressa explicitamente na
sintaxe do enunciado) mas ajuda a compor o eixo paradigmático (é evocada ou sugerida).
Assim, podemos inferir a partir de (13) que já aconteceu deslizamento de terras antes em
Manacapuru. Este é o conteúdo pressuposto.
O que se percebe pela análise de (13) (o que é prontamente confirmado pelo texto da
reportagem), é que o seu enunciador – o jornalista – pretendeu muito mais do que comunicar
o fato situado no primeiro nível. Ao utilizar o adjetivo “novo”, ativou um gatilho de
pressuposição que conduz o leitor a pensar sobre o fato de que não é a primeira vez que
Manacapuru registra um deslizamento de terras. Dessa forma, a manchete nos permite
vislumbrar:
a) um tempo anterior à enunciação (passado) em que houve deslizamento(s) de terra
em Manacapuru;
b) um tempo da enunciação (presente) em que o tremor de terras volta a acontecer
naquela cidade.
Para insistir mais um pouco na realidade da pressuposição no enunciado em análise
(a manchete do jornal), continuamos dialogando com Ilari e Geraldi (2002, p. 61), para quem
“uma frase pressupõe outra toda vez que tanto a verdade quanto a falsidade da primeira
implicam a verdade da segunda”. Observemos, a esse respeito, a bipartição de (13):
(14) “Manacapuru registra novo deslizamento de terras.”
(13a) Já houve deslizamento de terras em Manacapuru anteriormente.
Parece evidente que, se negarmos (13) afirmando (13b)
(13b) Não é verdade que Manacapuru registrou um novo deslizamento de terras
essa negação não afeta o conteúdo de (13a). Assim sendo, considerando que a negação afeta
o conteúdo declarado de uma sentença, mas não afeta o conteúdo pressuposto, e que (13a) não
é afetado pela negação de (13), podemos concluir que (13a) não é um conteúdo declarado,
mas encerra uma pressuposição. Ou seja: a informação pressuposta (13a) permanece intacta
ainda que se questione a veracidade do enunciado de (13), pois ela é dada ao leitor, pelo
jornalista, como indiscutível.
Conforme Moura (2006) e Oliveira (2009), há outras formas de testar o valor de
verdade de pressuposições em um enunciado, além da negação. Na verdade, o teste pode ser
realizado por qualquer uma das peças de um conjunto de estruturas conhecido como “família
7
(13a) é
estrutura representação Enunciados anulada?
Negação Não é verdade que Não é verdade que Manacapuru registrou novo NÃO
(13) deslizamento de terras
Interrogação (13)? Manacapuru registrou novo deslizamento de terras? NÃO
Dúvida Duvido que (13) Duvido que Manacapuru registrou novo NÃO
deslizamento de terras
Hipótese Se (13), então... Se Manacapuru registrou novo deslizamento de NÃO
terras, então a população deve estar preocupada.
Quadro 4 – Teste de valor de verdade: P-Família.
É possível constatar que o conteúdo pressuposto (13a) não se altera em nenhum dos
testes acima. Em todos eles, mantém-se intocada a informação (não declarada explicitamente,
é claro) de que não é a primeira vez que Manacapuru registra deslizamento de terras. Essa
informação implícita resiste quando negamos, questionamos, duvidamos ou formulamos
hipótese a respeito da proposição.
Ilari e Geraldi (2002) fazem referência a dois enfoques que a linguística tem
estabelecido em relação ao fenômeno da pressuposição. O primeiro está relacionado à
pressuposição como “uma condição de emprego da oração que a pressupõe” (ILARI e
GERALDI, 2002, p. 63). Isto significa que o jornalista não estaria utilizando apropriadamente
(13) se não confiasse na verdade de (13a) e se não tivesse razões para acreditar que (13a) é, de
alguma forma, conhecido pelo seu interlocutor (o leitor do jornal) previamente ao uso de (13).
O segundo enfoque diz respeito à pressuposição como “um mecanismo de atuação no
discurso” (ILARI e GERALDI, 2002, p. 63). O jornalista, como locutor, sabendo que as
afirmações pressupostas não são passíveis de negação, utiliza-as como recurso para
estabelecer limites à “conversação” e para direcioná-la. Desse modo, o jornalista que escreveu
(13) está, de fato, conduzindo o seu leitor a acreditar, compulsoriamente, que Manacapuru já
registrou deslizamento de terras antes. O jornalista tem consciência de que uma refutação por
parte do leitor em relação a isso equivale a tornar polêmica a “conversação”, podendo
inclusive travar o diálogo proposto.
Dessa forma, detectar o(s) pressuposto(s) em uma leitura é de fundamental
importância para o leitor, pois esse recurso argumentativo não é posto em discussão pelo autor
8
do texto, fato que deixa o leitor refém do pensamento do autor e o leva até mesmo defender
opiniões que não são necessariamente as suas.
4 CONHECIMENTO COMPARTILHADO
Ainda em relação a (13), esse conhecimento prévio de que o jornalista se serve em
sua enunciação corresponde ao que Moura (2006) denomina de conhecimento compartilhado:
um conjunto de proposições aceitas como verdadeiras pelos indivíduos envolvidos em um
contexto de enunciação, ou seja, o locutor e o interlocutor. Trata-se do que Oliveira (2009)
chama de fundo conversacional: conjunto de discursos previamente existentes num
determinado contexto de interação.
Analisando por esse ângulo, confirmamos que a validade do proferimento de (13)
pelo seu locutor, a felicidade desse proferimento (Oliveira, 2009) depende da existência de
(13a) no conhecimento compartilhado (ou no fundo conversacional) entre esse locutor e seus
interlocutores (os leitores). Em outras palavras, é necessário que os leitores assumam (13a)
como um proferimento verdadeiro para que o diálogo tenha curso.
Imaginemos que um leitor conteste (13) enunciando (13f):
(13f) Não é verdade que Manacapuru registrou novo deslizamento de terras, pois
nunca houve deslizamento de terras antes na cidade.
Nesse caso estaríamos diante de uma situação problemática, com a polêmica
instaurada e o diálogo travado. O conteúdo pressuposto não estaria sendo computado como
um elemento constituinte do conhecimento compartilhado. Vale dizer que se trataria de um
proferimento inexistente no fundo conversacional, o que acarretaria prontamente um enorme
prejuízo à conversação, pois se o pressuposto é falso, o conteúdo posto do enunciado não tem
valor de verdade.
6 CONCLUSÃO
As considerações que fiz neste artigo mostram que a língua não pode ser concebida
reducionalmente como uma estrutura autônoma ou como um simples código a serviço da
comunicação, como apontava Saussure. Ao contrário, ela se realiza como um espaço de
interação entre indivíduos e veicula não apenas mensagens explícitas, mas também – e em
grande medida – conteúdos implícitos que denunciam intenções e subintenções do falante,
fato que pode ser facilmente comprovado pela abordagem da pressuposição. Não raro, um
enunciado veicula mais informações nas suas entrelinhas do que nas suas linhas. As
informações implícitas que inevitavelmente emergem dos enunciados denunciam a
necessidade de se olhar para a língua como um jogo interativo como preceituou Ducrot (1977;
1987).
Isso significa que no discurso as palavras jamais são utilizadas em estado de
dicionário, imersas em sua situação de neutralidade. Como o signo linguístico é
essencialmente ideológico, não há neutralidade na linguagem. Dizemos com Citellli (2000, p.
29) que podemos “ler a consciência dos homens através do conjunto de signos que a
expressa”. Retiradas de seu estado de dicionário e lançadas na intrincada rede de contextos
que são as interações humanas, as palavras perdem a sua neutralidade e passam a ser veículos
potenciais de ideologias. A escolha de palavras e recursos retóricos na organização de um
texto nunca é um ato gratuito, não se trata da seleção de meros recursos formais, estilísticos
ou estéticos. Ao contrário, “o modo de dispor o signo, a escolha de um ou outro recurso
linguístico revelaria múltiplos comprometimentos de cunho ideológico” (CITELLI, 2000, p.
26).
O arrazoado acima é plenamente confirmado pelo fenômeno linguístico da
pressuposição. Insistimos em que além das várias informações explícitas, que são perceptíveis
na superfície textual, um enunciado pode conter informações implícitas que não devem ser
ignoradas. Há expressões explícitas que desencadeiam os pressupostos que, focalizados no
seu conjunto, refletem a ideologia a partir da qual o enunciado foi construído.
7 REFERÊNCIAS
CITELLI, Adilson. Linguagem e persuasão. 14. ed. São Paulo: Ática, 2000. (Princípios)
DUCROT, Oswald. Dizer e não dizer. Princípios de semântica lingüística. São Paulo:
Cultrix, 1977.
–––––––. O dizer e o dito. Trad. Eduardo Guimarães. Campinas, São Paulo: Pontes, 1987.
11
ILARI, Rodolfo; GERALDI, João Wanderley. Semântica. 10. ed. São Paulo: Ática, 2002
(Princípios).
OLIVEIRA, Roberta Pires de. Semântica. In: MUSSALIM, Fernanda; BENTES, Anna
Cristina (Orgs.). Introdução à lingüística: domínios e fronteiras. vol. 2, 6. ed. São Paulo:
Cortez, 2009.
RESUMO
Palavras-chave:
Regularização. Aquisição e processamento da linguagem. Português brasileiro. Projeto
CHILDES.
ABSTRACT
Overgeneralization of irregular verbs is an evidence that a 2;2,8 years old child, while acquir-
ing Brazilian Portuguese, already begins to grasp the verbal system. Data were taken from
Scliar-Cabral’s dissertation (1977), available at http://childes.psy.cmu.edu/ data/Romance/
Portuguese/ florianopolis. zip. Mattoso Câmara Jr.’s (1970) and Scliar-Cabral’s (2005) verbal
structural indicators were used. A software, developed by Vasilévski e Araújo (2010), helped
identify the searched lexical items. Four samples of overgeneralization will be presented and
discussed: eu potu (instead of using the present tense stem form of poder [can], the child regu-
larized the verb based on the infinitive stem form, and unvoiced /d/ (the last process may be
due to a partial regressive assimilation of /p/); eu sabo (instead of using the present stem form
of saber [to know], which is irregular, the child regularizes from the infinitive stem form);
punher (instead of using the infinitive stem form of pôr [to put], which is irregular, the child
regularizes it. Most interestingly, the child restores the thematic vowel from the 2nd conjuga-
tion, as well as the nasality. Rising the 1st stem vowel /o/ to /u/ is predictable, since its posi-
tion in the infinitive is in the unstressed syllable); and eu fazeu (instead of using the 1st person
1
Laboratório de Produtividade Linguística Emergente (LAPLE) – Universidade Federal de Santa Catarina/CNPq
CCE/Bloco B/Sala 227 – Florianópolis – SC – Brasil; e-mail: rich.hard.costa@gmail.com.
2
Laboratório de Produtividade Linguística Emergente (LAPLE) – Universidade Federal de Santa Catarina/CNPq
CCE/Bloco B/Sala 227 – Florianópolis – SC – Brasil; e-mail: lsc@th.com.br.
2
past perfect tense of fazer [to make], which is irregular, the child regularizes the verb in favor
of the infinitive stem).
Keywords:
Overgeneralization. Language acquisition and processing. Brazilian Portuguese CHILDES
Project.
1 INTRODUÇÃO
No presente artigo, discute-se um trabalho em aquisição da linguagem pela criança,
vinculado ao banco mundial de dados de estudos em aquisição da linguagem, o Projeto
CHILDES. Mais especificamente, trata-se de uma análise de quatro enunciados do sujeito Pá,
nos quais há evidências de que uma criança de 26 meses e 08 dias, ao adquirir o português
brasileiro, já começa a dominar o sistema verbal.
os princípios e parâmetros inatos, a aquisição de uma língua não seria determinada pelos es-
tímulos verbais aos quais a criança estivesse exposta, uma vez que eles são imperfeitos, in-
completos, cheios de pausas e hesitações, e se daria através de um mescanismo também inato
de aquisição da linguagem, no inglês, denominado por Chomsky de Language Acquisition
Device. Uma criança não adquire a linguagem apenas imitando os enunciados pronunciados
pelas pessoas ao seu redor, ou por feedback, conforme o paradigma estímulo-resposta, ou es-
tímulo-resposta-recompensa.
Ao contrário, o processo de aquisição da língua está fundamentado na detonação que
o input provoca no LAD, resultando como output a gramática que, por seu turno, permitirá
compreender e produzir os enunciados da referida língua.
1.1.3 Convergência
O Modelo de Competição (MacWHINNEY, 2005) foi desenvolvido como uma teoria
unificada de aquisição tanto da 1ª quanto das 2ªs ou mais línguas. Em sua formulação amplia-
da, o modelo postula que cada um dos mecanismos cognitivos que controla a ativação de re-
presentações na língua-alvo (ou, no caso de estudantes de uma segunda língua, na língua ma-
terna), compete com outro(s) dentro da mente do sujeito durante a aquisição e o uso da língua.
Por definição, o Modelo de Competição é uma teoria emergentista. Ao invés de ver a
aquisição da língua como um processo baseado em mecanismos inatos, ou como dependente
total da experiência do sujeito com a língua ou da influência do meio, o Modelo de Competi-
ção considera a aquisição como um processo que consiste de uma série de processos cogniti-
vos em competição, que interagem com o sinal analógico: a linguagem.
Ao aplicar os processos cognitivos gerais ao estímulo da linguagem na presença de
um ambiente rico e estimulate, é possível realizar a conexão entre símbolos intrinsecamente
sem sentido (palavras e sentenças) aos seus referentes, permitindo a inferência de sentido.
Assim, além de se valer de mecanismos tradicionais de processamento de informação, o Mo-
delo de Competição postula que a aquisição da língua deva ser incorporada e situada para que
a criança possa derivar sentido das palavras.
A aprendizagem, no Modelo de Competição, é visualizada como um processo de res-
sonância baseado nos conflitos, no armazenamento e no suporte para a aquisição de novos
mapeamentos. De acordo com a Hipótese da Perspectiva (MacWHINNEY, 1977, 1999), a
gramática é vista como um conjunto de instrumentos que marcam o curso da perspectiva atra-
vés de cinco domínios cognitivos: a percepção direta, a dêixis espaço-temporal, a ação causal,
os papéis sociais e os sistemas de crença. Dentro de cada um desses domínios os falantes con-
troem modelos mentais nos quais um ator humano opera num mundo simulado de espaço,
tempo, causa e papéis sociais, quando é possível unificar vários níveis diferentes da cognição
numa só narrativa ou curso conversacional.
possui maior saliência perceptual para ela, segundo o Modelo de Competição e, assim, o afina
com o seu desenvolvimento cognitivo e linguístico, depreendendo os princípios que permitem
gerar novas formas — o que é atestado pela regularização. O léxico infantil resulta diferente
do léxico dos adultos.
a saber: o tema (T) resulta da adição da vogal temática (VT) ao radical (R), e o sufi-
xo (SF) resulta da adição do sufixo modo-temporal (SMT) ao sufixo número-pessoal (SNP),
ambos morfemas acumulativos.
Exemplo:
Amávamos
amá- (T) [am- (R) + -á- (VT)] + [-va- (SMT pret. imp. do ind.) + -mos (SNP 1ªPPL)]
A tendência a apagar a consoante final das palavras – quer pela deriva nas posições
ocupadas pelas consoantes menos contínuas (fenômeno observado já na formação do
português europeu), quer na consolidação da tendência no PB, atingindo o arquifo-
nema que abrange as consoantes mais contínuas e mais coronais – ocasionou a perda
da informação que tais segmentos carregavam de assinalar o sufixo número-pessoal
(na maioria dos casos) e de assinalar um modo, o infinitivo.
Em decorrência, a informação redundante propiciada pelo acento tornou-se essenci-
al, determinando o enriquecimento da proposta de Mattoso Câmara Jr. com o acrés-
cimo do suprafixo, como pode ser observado na oposição entre as 2ª/3ª pessoas do
singular do presente do indicativo e o infinitivo na 1ª conjugação (a mais frequente
entre as três conjugações): ―pula‖ e ―pulá(r)‖. Propõe-se, ainda, a introdução da ca-
tegoria de aspecto no sufixo modo-temporal, que passa a ser SMTA. A fórmula da
estrutura verbal do PB passa a ser:
Com base nesta estrutura, pelos exemplos que serão apresentados e discutidos a se-
guir, podemos concluir que a criança demonstra ter depreendido do intake os seguintes pa-
drões morfológicos:
2 METODOLOGIA
Parte-se de um corpus de dados reais coletados mediante gravação (6h), convertida
para formato computacional (.wma e .mp3) e transcrita em programa próprio o CLAN (Ma-
cWHINNEY, 2010), formado por enunciados orais entre uma criança (alvo) e três adultos (a
mãe (MOT), a investigadora (INV) e o pai (ISI). Outros adultos comparecem esporadicamen-
te. O corpus corresponde à terceira fase do sujeito Pá, quando a criança estava com 26 meses
e 08 dias, e é composto por mais de 4.000 enunciados, sendo 713 retirados do corpus da cri-
ança para a depreensão das gramáticas por Scliar Cabral (1977), conforme os preceitos de
Roger Brown (1973), para fins de comparabilidade com as gramáticas de outras línguas em
aquisição. Até hoje não se encontrou outra saída, no caso de aquisição de linguagem, ―do que
colher num corpus das crianças estudadas, para depois depreender as gramáticas que dariam
conta de tais enunciados‖ (SCLIAR-CABRAL, 1976, p.13). Para conferir mais segurança à
pesquisa, deve-se trabalhar com uma densa massa de dados, coletada e organizada sob rígida
metodologia, tal como foi feito na coleta e no tratamento do corpus de trabalho.
Usou-se um programa específico para trabalho com PB – o Laça-palavras – para aná-
lise estatística e qualitativa dos dados. O desenvolvimento do Laça-palavras (VASILÉVSKI e
ARAÚJO, 2011) iniciou-se em 2010 e perdura até o presente, no Laboratório de Produtivida-
de Linguística Emergente (LAPLE) da Universidade Federal de Santa Catarina. Por meio des-
se programa, procedeu-se a tabulação e conferência de todas as classes sintáticas das palavras
presentes no corpus, dentre ela, os verbos, que foram categorizados em três categorias: @v
para verbos regulares, @va para verbos auxiliares, e @vi para verbos irregulares. Ao classifi-
7
car todos os verbos do corpus, o pesquisador se defrontou com quatro verbos regularizados
pela criança, que deveriam ser categorizados como @v, tal como a criança implicitamente o
fez, mas que, no entanto, na gramática do adulto entram ou como @va, ou seja, um auxiliar
servil, com formas primitivas distintas (poss-, pode-, pude-, pode-, pos), acrescidas de duas
irregularidades (pus, pôs), ou como @vi, nos outros três exemplos de verbos irregulares que a
criança regularizou, conforme as formas primitivas distintas, respectivamente sei, sabe-, sou-
be-, sabe-, sabi-; ponh-, puse-, po-, pos (mais as formas irregulares pus, pôs), faç-, fize-, faz-,
fei- (mais as formas irregulares fiz, fez).
eu potu
eu sabo
punher
eu fazeu
8
Ao contrário de usar a 1ª pess. sing. do pret. perf. do ind. que é irregular, a criança
regulariza em favor do tema igual ao do infinitivo.
4 CONCLUSÃO
As evidências empíricas são resultados importantes para as teorias de aquisição da
linguagem. Ao comprovar que a criança é capaz de regularizar formas verbais sem nunca ter
ouvido adultos realizando estas mesmas regularizações, podemos compreender melhor como
é realizada a produtividade linguística, que não depende apenas da memorização icônica, mas,
sim, da depreensão de regras. Com as evidências da regularização, confirma-se que uma cri-
ança começa a dominar o sistema verbal, ao depreender os seus padrões morfológicos.
5 REFERÊNCIAS
MacWHINNEY, B. The CHILDES Project: Tools for Analyzing Talk. Carnegie Mellon
University, March 29, 2010. Disponível em: <http://childes.psy.cmu.edu/>. Acesso em: out.
2011.
CAMARA JR., J.M. Estrutura da língua portuguesa. 2. ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 1970.
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo principal apresentar um panorama do Projeto AMPER
em Santa Catarina e perspectivas de pesquisas futuras. O AMPER (Atlas Multimédia Prosódi-
co do Espaço Românico), programa científico de geolinguística dialetal, objetiva estudar e
comparar as entoações de algumas das variedades das línguas românicas. Em Santa Catarina,
empreendemos um estudo que visa descrever e comparar os padrões prosódicos de falantes
das cidades Blumenau, Chapecó, Lages e Florianópolis, de colonização alemã, italiana, gaú-
cha e açoriana, respectivamente. As regiões selecionadas são as já pesquisadas pelo Atlas
Linguístico Etnográfico da Região Sul (ALERS) e pelo Projeto de Variação Linguística Ur-
bana do Sul do País (VARSUL), o que facilita e contribui com a nossa pesquisa. Até o presen-
te momento analisamos o comportamento entonacional dos falares florianopolitano e lageano.
Descrevemos as configurações melódicas da frequência fundamental, duração e intensidade,
buscando as semelhanças e as diferenças entre os dois falares em questão. Uma análise cui-
dadosa sobre as curvas de pitch apontou semelhanças e diferenças entre os dois dialetos, bem
como em relação à literatura consultada. Os testes perceptuais realizados a partir de arquivos
de áudios ressintetizados revelaram que o florianopolitano é capaz de distinguir o seu próprio
falar e que é capaz de identificar as modalidades declarativas e interrogativas.
Palavras-chave:
Prosódia-entoação. Falares catarinenses. AMPER.
RÉSUMÉ
Ce travail de recherche vise présenter un panorama du Projet AMPER dans l’État de Santa
Catarina et les perspectives des recherches futures. L’AMPER (Atlas Multimédia Prosodique
de l’Espace Romain), programme cientifique de geolinguistique, vise étudier et comparer les
mélodies de quelques varietés de langues romanes. À Santa Catarina nous avons réalisé une
étude dont le but est de comparer les modèles prosodiques des individus de Blumenau, Cha-
pecó, Lages et Florianópolis. Ce sont des villes colonisées par des alemands, italiens, gaúchos
et des açoriens, respectivement. Les régions sélectionnées sont déjà interrogées par l'Atlas
linguistique d'ethnographique de la région du Sud (ALERS) et par le Projet de Variation Lan-
guistique Urbaine du Sud du pays (VARSUL), ce qui facilite et contribue à notre recherche.
Jusqu'à présent, nous avons analysé le comportement de l’intonation de florianopolitanos et
de lageanos. Nous avons décrit les contours mélodiques de la fréquence, la durée et l'intensité
fondamentale, en cherchant les similarités et les différences entre les deux dialectes en questi-
on. Une analyse minutieuse sur le terrain de courbes montrent les similitudes et les différences
entre les deux dialectes, ainsi que par rapport à la littérature. Les tests perceptuels à partir des
fichiers d’audios resynthétisés ont révélé que les florianopolitanos sont capables de distinguer
son propre discours et qui sont capables d'identifier les formes déclaratives et interrogatives.
Mots-clé:
L'intonation. La prosodie, Le parler de Santa Catarina. L’AMPER.
1
Doutoranda do programa da PGLg/UFSC; e-mail: vanessagnunes@yahoo.com.br.
2
1 INTRODUÇÃO
Estudos da área da fonética entendem a importância das funções linguísticas da ento-
ação, mas aparentemente as pesquisas ainda estão fortemente alicerçadas nas características
individuais dos fonemas, na violação das regras fonotáticas do PB, nas influências dos seg-
mentos vizinhos, nas alofonias que tentam dar conta das variantes dialetais e em todas as pos-
síveis interferências que modifiquem aquilo que consideramos padrão na língua.
A prosódia vai aos poucos ganhando seu espaço, mas ainda é estudada à luz de mo-
delos teóricos distintos entre si e que não se permitem comparação. Segundo Moutinho et al.
(2003), poucos são os trabalhos de campo realizados no âmbito da caracterização das estrutu-
ras prosódicas de diferentes regiões dialetais, que possibilitam uma análise comparativa de
resultados e que confirmam as variedades prosódicas.
A classificação do acento de vocábulos independentes já é por si só um tema polêmi-
co e complexo se considerarmos que as palavras não se constituem na fala aos moldes da sua
representação subjacente. São enormes as chances de uma palavra proparoxítona sofrer uma
síncope ou apócope, transformando-se em uma paroxítona, por exemplo. Inserida em uma
sentença gramatical as palavras estão sujeitas a processos fonológicos e ganham um acento
frasal.
A entoação, com todos os seus parâmetros, certamente tem valor informacional pre-
ponderante no padrão acentual e na comunicação que esse padrão, amplo e variável, possibili-
ta. Considerando a importância dos estudos em prosódia, o presente trabalho tem como obje-
tivo principal apresentar um panorama do Projeto AMPER em Santa Catarina e perspectivas
de pesquisas futuras, em prol de um atlas linguístico que contemple as variações entonacio-
nais do estado.
projeto que passou a ser chamado de AMPER (Atlas Multimédia Prosódico do Espaço Româ-
nico), a partir do fim dos anos 90.
O projeto, dirigido então por Michel Contini, passou a explorar o fenômeno da entoa-
ção, na produção de diversos falantes. Havia necessidade então de mesmo método de análise
que permitisse uma comparação de seus resultados. Assim, nasceu oficialmente em 2001, o
Projeto AMPER2, que pode ser definido como um programa científico de geolinguística diale-
tal, que visa, então, o estudo de um dos aspectos menos conhecidos do fonetismo das varieda-
des românicas: a entoação. Ele pretende ser um repositório de dados que revelem as entoações
de falantes das línguas românicas e, a partir daí, investigar as variações entre elas (CONTINI
et al., 2002).
Contini (2007) afirma que os estudos instrumentais consagrados à prosódia têm uma
centena de anos, mas nenhum deles, até o momento, foi capaz de ser comparado a outros.
Ainda segundo ele, a prosódia é um parâmetro negligenciado, uma vez que a perspectiva geo-
linguística e as análises de variabilidade prosódica ficavam sempre a parte dos grandes estu-
dos voltados para os atlas linguísticos nacionais ou regionais.
Assim, aos poucos o Projeto AMPER vai agregando pesquisadores que têm o objetivo
comum de comparar e organizar as semelhanças e as diferenças entre as variedades Români-
cas. Segundo Moutinho et al. (2009), não se pode negar a importância que os estudos compa-
rados assumem..
Apesar de terem seguido percursos autónomos desde há vários séculos, são, no en-
tanto, ainda hoje visíveis algumas semelhanças de natureza linguística, sempre jus-
tificadas por razões de natureza histórica e nunca por uma influência mútua, mais
que não fosse pela sua proximidade geográfica. (MOUTINHO et al. .2009: 68)
Trata-se de um projeto muito abrangente, o que exige a adoção de critérios que deli-
mitem os corpora e a padronização da metodologia, de maneira que as comparações possam
ser viabilizadas. Primeiramente, os corpora devem respeitar a proposta do AMPER, manten-
do estruturas sintáticas próximas e com o mesmo tipo acentual. Todas as pesquisas devem
2
O Atlas Multimédia Prosódico do Espaço Românico (AMPER) visa contemplar, além das variedades do Por-
tuguês Europeu (PE) e do Português Brasileiro (PB), outras línguas românicas, tais como o italiano, o francês, o
castelhano e o galego, pretendendo-se o seu alargamento relativamente a esta família de línguas. O AMPER-
POR (Atlas Multimédia Prosódico do Espaço Românico para o Português) é coordenado pela professora Lurdes
de Castro Moutinho, do Centro de Investigação de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro. A coordena-
ção geral do AMPER é da responsabilidade dos professores Michel Contini (Grenoble – França) e Antônio Ro-
mano (Turim-Itália), do Centro de Dialetologia da Universidade de Grenoble (3), França. O projeto AMPER
pode ser consultado no endereço eletrônico: http://pfonetica.web.ua.pt/
4
considerar a faixa etária e o grau de escolaridade dos informantes. As gravações devem ser
realizadas da mesma maneira, segundo um corpus de fala estimulada visualmente. Para cada
frase, um mesmo número de repetições, tanto para as declarativas quanto para as interrogati-
vas. É preciso que seja averiguada a estrutura sintática das frases, de maneira que estejam
igualadas e aptas a serem comparadas. As vogais serão analisadas acerca dos valores de fre-
quência fundamental, medidas de intensidade e duração. Faz importante ressaltar que a fala
espontânea, apesar da sua veracidade, implica características contextuais que são ligadas as
emoções do contexto comunicacional. Além disso, seria impossível realizar comparações en-
tre os vários falares do espaço românico. Por outro lado, o corpus lido não permite o registro
das estruturas entonativas “naturais” de uma língua e também favorece um achatamento da f0,
parâmetro primordial para análises em prosódia (LAI, 2004). Assim, esses fatores foram deci-
sivos para que a equipe adotasse um corpus fixo, obtido a partir de estímulos visuais (Lai,
2004).
Atualmente, o AMPER já conta com a participação de inúmeros pesquisadores dis-
tribuídos na França, Itália, Portugal, Brasil, Espanha, Romênia e regiões adjacentes, organiza-
dos em oito comitês, responsáveis pela seleção de áreas dialetais e coleta de dados. O objetivo
maior do AMPER é a elaboração de um atlas dialetal multimídia que compreenda uma gama
de variedades prosódicas românicas que representem as distintas línguas descendentes do la-
tim.
Em 1998, Lurdes de Castro Moutinho, professora na Universidade de Aveiro, enga-
ja-se no Projeto Amper. Assim o AMPER-POR visa descrever e analisar falares de diferentes
regiões de Portugal. O corpus foi adaptado para o português europeu, nos mesmos moldes do
AMPER.
O AMPER-POR é então introduzido também no Brasil, a partir de convites feitos pe-
la coordenadora do AMPER-POR, Lurdes de Castro Moutinho. O corpus utilizado para o PB
é uma adaptação do corpus base do português europeu, realizada por Jussara Abraçado de
Almeida (UFF) e João Antônio de Moraes (UFRJ). No Brasil, participam, atualmente, 15 es-
tados3.
O corpus também segue as orientações do AMPER, sendo as sentenças compostas
basicamente de sujeito + verbo + objeto, podendo haver extensões adjetivais ou de sintagma
preposicionado, conforme exemplo:
O Renato gosta do pássaro./?
3
Amazônia, Acre, Rondônia, Roraima, Minas Gerais, Maranhão, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Bahia, Pará, Rio
de Janeiro, Espírito Santo, Santa Catarina e São Paulo.
5
Assim, as coletas em Santa Catarina prevêem dados de quatro regiões e cada uma de-
las com informantes de ambos os sexos, com escolaridade de nível médio e superior (ver
Quadro 2). Ao todo, espera-se poder trabalhar com 20 informantes, sendo 10 com escolarida-
de básica (ensino médio) e 10 com nível superior. Dezesseis deles são de regiões urbanas e
quatro do interior. Quatro dos sujeitos provenientes de Lages e Florianópolis, das regiões ur-
banas, já estão gravados e etiquetados, compondo a Base de Dados do Projeto AMPER
(http://pfonetica.web.ua.pt/AMPER-POR.htm). Esses quatro são os informantes da presente
pesquisa.
PONTOS DE INQUÉRITO
Florianópolis
Lages
entre o Rio Grande do Sul e São Paulo, principalmente na passagem do gado dos campos gaú-
chos para abastecer os trabalhadores da extração de ouro em Minas Gerais. A colonização
deu-se a partir de italianos, portugueses, espanhóis e alemães e as principais atividades eco-
nômicas são fruticultura, a pecuária e o turismo rural.
Mas a que se deve a imagem do lageano, seu modo de falar, de vestir e de cultivar as
tradições, tão atrelada à do gaúcho, sendo essa uma cidade catarinense? Segundo Miranda
(2001), a partir da década de 40, a pecuária deixa ser a principal atividade econômica da regi-
ão e dá espaço à madeireira. A nova prática promissora atraiu agricultores e profissionais libe-
rais das terras vizinhas. Os fazendeiros, vendo suas terras “invadidas”, passaram a afrontar os
madeireiros que, por sua vez, procuraram solidificar sua cultura fundando Centros de Tradi-
ção Gaúcha, e assim consolidando seu espaço. O modelo cultural construído em Lages asse-
melha-se ao do que estava se efetivando no Rio Grande do Sul, de onde vieram representantes
para auxiliar os fundadores a propagar seu modo de vida.
Blumenau
Situada no Nordeste de Santa Catarina, Blumenau (Fig.3) tem hoje uma população
de cerca de 300.000 habitantes e é conhecida em todo o Brasil como uma das cidades com
maior influência germânica em sua cultura e história. Colonizada no início por alemães, se-
guidos de italianos e poloneses, também recebeu habitantes do Vale do Rio Tijucas, descen-
dentes de portugueses. Mesmo assim, as cidades da microrregião incorporaram principalmen-
te a cultura alemã e italiana. A cidade guarda fortes características européias, preservadas,
principalmente pelas festas tradicionais e manifestações culturais fomentadas pelo turismo.
Com 159 anos Blumenau mantém sotaques diferentes, influência das várias etnias que torna-
ram a região rica na diversidade dos falares.
Segundo Fritzen (2008), algumas escolas ainda recebem crianças, que no momento
do seu ingresso falam somente o alemão ou são bilíngues. Embora o alemão hoje seja ainda
8
Chapecó
Como podemos observar a partir desta breve descrição das cidades cujos falares pre-
tendemos analisar e comparar se tratam de regiões de colonizadores distintos, mas que muito
já cresceram e evoluíram e possivelmente muito já perderam das suas características linguísti-
cas. Nossas análises pretendem descrevê-las de forma que possamos observar se ainda existe
ou não traços de tais colonizações e também compará-las, visando observar suas diferenças e
também suas semelhanças, que podem ser frutos da circulação e homogeneização dos povos.
1.2 Objetivos
Assim, tem-se como objetivo primeiro reconhecer mais profundamente as caracterís-
ticas prosódicas das sentenças declarativas e interrogativas totais, descrevendo os padrões
entonacionais das quatro regiões a serem estudadas, ampliando os estudos prosódi-
cos/entonacionais em Santa Catarina e assim contribuindo com o projeto AMPER e com os
estudos que comparam a prosódia das variantes dialetais das diferentes línguas naturais. Além
disso, esse trabalho objetiva, através de testes perceptuais, averiguar como se dá a identifica-
ção da sua própria produção e das demais regiões, no que diz respeito à distinção das modali-
dades.
10
1.3 Metodologia
O corpus compreende a gravação de uma série de frases que obedecem a critérios
linguísticos previamente estabelecidos no Projeto AMPER-POR. As gravações para a produ-
ção das sentenças, consideradas de “estímulo visual”, são realizadas a partir de imagens que
indicam frases declarativas e interrogativas com estrutura sintagmática: sujeito +verbo+ com-
plemento, podendo haver extensões. Essa metodologia que se baseia em estímulos visuais,
evita a situação de leitura e suas implicações, conduzindo o informante à produção das frases
pretendidas. Cada figura que compõe a mensagem se refere a um personagem (Renato, pássa-
ro, bisavô), uma ação (verbo gostar), um adjetivo (pateta, bêbado, nadador) ou um sintagma
preposicionado (de Mônaco, de Veneza, de Salvador).
Figura 5- Modelo de estímulo visual para produção de frases. Modelo declarativo composto de sujeito
proparoxítono +verbo paroxítono+ complemento oxítono: “O pássaro gosta do bisavô.”
Figura 6- Modelo de estímulo visual para produção de frases. Modelo interrogativo composto de su-
jeito paroxítono + extensão oxítona +verbo paroxítono+ complemento proparoxítono: “O Renato na-
dador gosta do pássaro?”
11
O corpus tem um número variável de sílabas que vai de 10 a 14, dependendo das ex-
tensões. Ele tenta contemplar todas as possíveis combinações acentuais (sujeito oxítono -
complemento oxítono; sujeito oxítono - complemento paroxítono; sujeito paroxítono - com-
plemento proparoxítono e assim por diante.). O único elemento que não varia a posição acen-
tual é o verbo, que é sempre paroxítono.
Trata-se de uma metodologia que gera automaticamente, com o auxílio de sripts e
etiquetagens manuais através do software Praat4, gráficos de frequência fundamental, de dura-
ção e de intensidade. Os histogramas de duração e de intensidade reúnem os dados de declara-
tivas e interrogativas, a partir de uma média de ocorrências, ou seja, podemos comparar o
comportamento das duas modalidades inter-informantes. Gera também arquivos de áudio to-
nais sintetizados com base nas médias de f0, podíamos, finalmente, testar nossa hipótese de
que não precisamos de palavras ou de marcadores regionais para identificar uma modalidade
ou que um falante é de uma localidade e não de outra. Isso quer dizer que os arquivos tonais
gerados pela metodologia do AMPER seriam suficientes para identificarmos modalidades e
diferenças dialetais.
4
Software obtido livremente no endereço: www.praat.org. Foi desenvolvido por David Weenink e Paul Boe-
rsma, do Departamento de Ciência Fonética da Universidade de Amsterdã.
12
outras realizações foram encontradas, como o alinhamento da subida melódica para pós-
tônicas, principalmente em contexto de proparoxítonas em posição forte. Mas, também apu-
ramos alinhamento para a esquerda, saindo dos limites do vocábulo núcleo. Da mesma forma,
no geral, as interrogativas totais produzidas pelos informantes masculinos, apresentaram pro-
eminência na tônica e posterior queda. Na região de núcleo, as diferenças entre sentenças de-
clarativas e interrogativas é estatisticamente significativa.
Outros estudos, como os de Moutinho et al, (2005); Abraçado et al, (2007), Bernardo
et al (2007) descrevem as declarativas do PB com um contorno globalmente descendente com
ocorrência de picos nas vogais tônicas. Uma das realizações possíveis das informantes femi-
ninas vai ao encontro desta descrição, principalmente as produções concernentes à informante
florianopolitana. A informante lageana alternou suas realizações em declarativas, ora colo-
cando a proeminência de pré-tônica do vocábulo núcleo, ora colocando na tônica.
De acordo com esses autores, as interrogativas são descritas como tendo um contorno
semelhante ao da declarativa, exceto a partir da vogal pré-tônica da palavra final, na qual o
movimento se inverte, evidenciando-se uma descida da pré-tônica e uma forte subida na vogal
tônica final. Neste caso podemos dizer que as interrogativas produzidas pelas informantes
femininas também seguiram, no geral, esse padrão.
Abraçado et al (2007) fazem menção ao comportamento inesperado das proparoxíto-
nas, relatando um queda brusca de f0, muito distinta as curvas ascendentes apresentadas nas
outras posições. Os nossos dados também revelaram que esse tipo acentual apresenta frequen-
temente realizações diversas intra e inter-informantes. Para o informante florianopolitano,
podemos encontrar pico na tônica das declarativas, na sílaba que a antecede ou na pós-tônica.
O lageano realiza picos nas tônicas, mas geralmente apresentando proeminência na região de
onset da tônica, revelando um alinhamento mais antecipado.
As informantes femininas também realizam proparoxítonas em posição de núcleo de
forma distinta. Para as interrogativas, a florianopolitana realiza a proeminência na pós-tônica
e a lageana na tônica. Além disso, a configuração intrassilábica faz com que as curvas tenham
alinhamentos diferentes.
Entretanto, encontramos também outros comportamentos que se distanciam dos pa-
drões encontrados na literatura. Ainda que as descrições de Abraçado et al (2007) sejam se-
melhantes aos comportamentos por nós encontrados, percebemos que os gráficos apresenta-
dos pelos autores são bastante distintos dos referentes aos nossos informantes. A região de
pré-núcleo, por exemplo, do falante carioca tem valores bem distintos para declarativas e in-
terrogativas, o que não ocorre nas produções dos nossos informantes. De acordo com os auto-
13
res, “no SN sujeito, a declarativa apresenta sempre valores de f0 inferiores aos da interrogati-
va”, e esse padrão não se estabelece para nossos informantes. Além disso, percebemos que os
alinhamentos das regiões de núcleo se mostraram muito distintos. Temos, por exemplo, no
pico da declarativa, alinhamento à direita no falar carioca e alinhamento à esquerda nos fala-
res florianopolitano e lageano.
A respeito da duração, podemos fazer inferências entre a produção de florainopolita-
nos e lagenos, mas, em relação ao padrão apresentado por Abraçado et al (2007), observamos
que as características da região de núcleo, do falar carioca se assemelham ao falar lageano e
do florianopolitano. Para oxítonas em posição de núcleo, por exemplo, percebemos que, na
produção do carioca e do lageano, a tônica da interrogativa é maior do que a tônica da decla-
rativa. O mesmo ocorre com as paroxítonas no falar carioca e no falar florianopolitano. Per-
cebemos que, no entanto, na produção do florianopolitano, a tônica da declarativa é maior do
que as correspondentes na modalidade interrogativa.
Acreditamos que os comportamentos dos contornos melódicos estão fortemente rela-
cionados com a posição do acento no vocábulo em região de núcleo. Mas, isso não significa
que não haja variação na curva melódica.
Para enriquecer nossa pesquisa realizamos testes perceptuais com foco na entoação
das localidades pesquisadas. Os testes foram realizados com os seguintes objetivos: (a) pri-
meiramente observar se há discriminação dos sujeitos a partir de suas curvas entonacionais e
(b) observar se o falante florianopolitano identifica as duas modalidades aqui estudadas na
produção do lageano. Acreditamos que o teste perceptual revelou que o florianopolitano é
capaz de distinguir o seu próprio falar. Os participantes tiveram 85% de acertos, ou seja, dis-
criminaram os falares distintos que lhes foram apresentados e apenas 14% de equívocos. E, no
geral, os florianopolitanos não tiveram dificuldades de distinguir as modalidades na fala do
lageano. No entanto, como prevíamos, o maior índice de erros (40%) ocorreu com interroga-
tivas que foram interpretadas como declarativas, demonstrando que pode haver um estranha-
mento diante das interrogativas produzidas pelos lageanos. Possivelmente isso ocorre porque
o lageano realiza as sílabas tônicas ou as de proeminência mais longas do que as do floriano-
politano. Essa extensão permite o movimento de subida e um de descida dentro da própria
sílaba.
Os dados do informante masculino florianopolitano que apresentou uma série de
apagamentos em posições diversas nas sentenças, o que nos leva a crer que seria improvável
que o informante compensaria com consoantes ou pausas. Testes estatísticos revelaram que
esses apagamentos influenciam na taxa de elocução. A informante florianopolitana, que tam-
14
bém realizou mais apagamentos do que a lageana produz vogais mais longas, o que poderia
ser considerado uma compensação das quedas. As pesquisas futuras que pretendem ampliar o
número de informantes nas quatro cidades previstas no projeto devem contemplar o ritmo, já
que ele parece ser um importante parâmetro na distinção de falares regionais.
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15
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RESUMO
B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S é o objeto desta pesquisa. Trata-se de
uma produção na Língua Brasileira de Sinais do Instituto Nacional de Educação de Surdos. A
pesquisa identifica a representação cultural a partir da experiência visual presente em cada
personagem. O nome das personagens na Língua Portuguesa se diferencia do nome visual das
personagens na Língua de Sinais. No sentido de tornar mais clara a questão, recorre-se às
configurações de mãos, ao corpo, ao olhar, às expressões faciais e à escrita de sinais. A
construção, a partir dos parâmetros visuais, resultou no nome visual de cada personagem.
Identifica-se ainda que, na referida produção, as personagens desse reconto e recriação não
são surdos. Apresento a Língua de Sinais como celebração e vitória do povo surdo,
subalternizado mediante a tentativa de aniquilar tudo que estivesse fora do projeto de
dominação colonial e que não fosse condizente com uso de um código uniforme, constituído
por comodidade administrativa para governar um país ou um império. Os sujeitos em foco são
surdos, a contadora de histórias é surda e, possivelmente, o/a espectador/a seja surdo/a. E
todos transitam na fronteira entre a língua portuguesa e a língua de sinais.
Palavras-chave:
Conto. Reconto. Língua de sinais. Nome visual.
ABSTRACT
The object of this research is S-N-O-W W-H-I-T-E A-N-D T-H-E S-E-V-E-N D-W-A-R-F-S, a
production of the National Institute of Deaf Education in Brazilian Sign Language. The
research identifies the cultural representation of the visual experience present in each
character. The names of the characters in Portuguese are different from the visual names of
the characters in Sign Language. In order to clarify this issue, we use hand configurations, the
body, the look, facial expressions and sign writing. The construction, based on the visual
parameters, results in the visual name of each character. It is also identified in this production,
that the characters of this retelling and recreation are not deaf. I introduce Sign Language as a
celebration and victory of deaf people, undervalued by the attempt to annihilate everything
that was outside the project of colonial domination and that was not consistent with the use of
a uniform code, consisting of administrative convenience to guide a country or an empire. The
subjects in focus were deaf, the storyteller was deaf, and possibly the members of the
audience were deaf. And all were passing the frontier between Portuguese and Sign
Language.
Keywords:
Tale. Retelling. Sign language. Visual name.
1
Mestre em Literatura (2010/UFSC), aperfeiçoamento em Educação Profissional e Tecnológica Inclusiva
(2010/IFMT - Cuiabá), especialista em Educação de Surdos (2008/IFSCSJ), graduada em Ciências Sociais
(1989/PUCSP). Atualmente é TAE do Instituto Federal de Educação Tecnológica de Santa Catarina/Campus
Palhoça Bilíngue LIBRAS/Português; e-mail: carlam@ifsc.edu.br.
2
1 INTRODUÇÃO
B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S, uma produção na língua
brasileira de sinais do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES),2 recontada por
sujeitos surdos, identifica a representação cultural a partir da experiência visual presente em
cada personagem. O nome das personagens na língua portuguesa se diferencia do nome visual
das personagens na língua de sinais. No sentido de tornar mais clara a questão, recorre-se às
configurações de mãos, ao corpo, ao olhar, às expressões faciais e à escrita de sinais. A
construção, a partir dos parâmetros visuais, resultou no nome visual de cada personagem.
Identifica-se ainda que, na referida produção, as personagens desse reconto e recriação não
são surdas. Apresento a língua de sinais como celebração e vitória do povo surdo,
subalternizado mediante a tentativa de aniquilar tudo que estivesse fora do projeto de
dominação colonial e que não fosse condizente com o uso de um código uniforme, constituído
por comodidade administrativa para governar um país ou um império. Os sujeitos em foco são
surdos, a contadora de histórias é surda e, possivelmente, o/a espectador/a seja surdo/a. E
todos transitam na fronteira entre a língua portuguesa e a língua de sinais.
2
Órgão federal criado em 1857, vinculado ao Ministério da Educação. Em sua missão institucional, consta a
produção, o desenvolvimento e a divulgação de conhecimentos científicos e tecnológicos na educação de surdos.
Também assessora a Política Nacional de Educação, na perspectiva de promover e assegurar o desenvolvimento
global da pessoa surda, sua plena socialização, o respeito às diferenças e o acesso a seus direitos. Considerada
uma instituição especializada na educação de surdos, promove uma educação bilíngue por meio da língua
brasileira de sinais e da língua portuguesa. (Informativo Técnico Científico Espaço, INES-RJ, n. 28, 2007).
3
Manaus, Amazonas.
3
Vivíamos na cidade e, quando íamos visitar os parentes, dizíamos que íamos para o interior.
Com isso pode-se considerar que na infância vivenciamos o cruzamento de fronteiras entre a
diferença do povo da mata e a diferença do povo da cidade.
Na “cidade” contradições se apresentavam. Apesar de ouvirmos as lendas da
Amazônia, era inconveniente comentar sobre nossa ascendência. Apesar de o rio nos oferecer
inúmeras espécies de peixes, comê-los era motivo de embaraço para algumas famílias. Não se
localiza a partir de que momento, naquela época, passou a valer a ideia de que comer carne
vermelha era melhor. Na cidade havia luz elétrica, médicos, livros, televisão, telefone, óperas
apresentadas no Teatro Amazonas, em cujo interior era somente era permitido transitar
descalços.
No interior, a luz era de lampião e tínhamos as narrativas, as cantigas, os/as
curandeiros/as. A comunicação entre os sujeitos distantes ocorria por cartas ou mensagens
enviadas pelas navegações. Comia-se peixes pescados na hora. De dia, íamos de um lugar
próximo a outro de canoa. E quando isso ocorria à noite, a iluminação da lua era suficiente.
Assistíamos a apresentações de peças de teatro dos habitantes daquele lugar em um local de
chão batido, coberto com palha trançada de folhas de palmeira.
A Bela Adormecida, Chapeuzinho vermelho, Rapunzel, Cinderela, Os três porquinhos,
Branca de Neve e os sete anões e tantas outras histórias infantis foram por nós conhecidas por
meio dos livros que nossos pais nos incentivavam a ler em voz alta. Os livros infantis,
acompanhados de um minivinil, eram arrumados em uma estante à disposição para leitura. Os
livros pertenciam aos habitantes da casa, não tinham dono, não havia o hábito de escrever a
quem pertenciam. Esse momento pode ser considerado como o segundo cruzamento de
fronteiras, ou seja, as lendas da Amazônia, com seus heróis e heroínas de cabelos e olhos
escuros, e os contos advindos da Europa, com seus heróis e heroínas de cabelos claros e olhos
azuis. No lugar das ocas, castelos; no lugar do pescador, que geralmente retornava com uma
história da cobra grande, o caçador; no lugar da narrativa oral, a leitura.
De acordo com Stuart Hall (1997, p. 28), as fronteiras da regulação cultural e
normativa são ferramentas poderosas que deliberam sobre quem atua de modo semelhante e
de acordo com as normas e conceitos, e desencadeiam a estranheza ao “outro”, fora das
fronteiras do discurso e das regras. Os sistemas classificatórios que regulam nossas condutas e
delimitam cada cultura definem os limites entre a semelhança e a diferença, entre o sagrado e
o profano, entre o que é ou não aceitável em relação ao comportamento, as roupas, os
pronunciamentos, as atitudes, o “normal” e o “anormal”, o “limpo” e o “sujo”.
Nesse sentido, o índio já não podia se deslocar da aldeia para a cidade com seu “jeito
4
de ser índio”, nem se comunicar na sua língua. Suas ações pela manutenção de sua terra eram
noticiadas como selvagens. Vivenciávamos relatos de viúvas que choravam, contando como
seus respectivos maridos morreram durante a missão de civilizar índios, apesar de terem
levado na missão, conforme acreditavam, o açúcar e o espelho, que seriam os presentes mais
adorados pelos índios. Tupã passou da condição de sagrado para profano. Comer com garfo e
faca era civilizado e comer com a mão ou com a colher passou a ser considerado inaceitável.
Os povos subalternos, dentre eles o povo indígena e o povo surdo, possuem em
comum a subjugação ou subalternização dos saberes, a tentativa de apagamento da língua, a
representação como selvagem, como incapaz, e não são bem-vindos em seu próprio território.
Os conceitos de cultura e relação de poder são complexos, dinâmicos e instáveis,
principalmente quando se tem por princípio a homogeneização de grupos sociais a partir do
grupo dominante, que tenta neutralizar a produção de sentidos de organismos que estão à
margem. Dentre outros povos, os indígenas e os surdos foram subalternizados na língua e na
literatura.
A experiência com comunidade surda4 do Instituto Federal de Santa Catarina, com a
língua de sinais, as leituras, as capacitações, a experiência vivida na infância e as reflexões
sobre os povos subalternos e suas produções literárias podem ser consideradas como
motivação para realizar a pesquisa que ora se apresenta em forma de artigo.
Durante as leituras sobre as condições de vida e sobrevivência de surdos/as, uma
curiosidade se acentuou. A pergunta que emergiu foi: esses sujeitos, durante toda a história da
humanidade, padeceram pela desqualificação da língua e, consequentemente, pela crença da
sua incapacidade?
A vontade se aguçou durante a leitura da obra de Oliver Sacks, que faz referência ao
livro de Nora Ellen Groce5 sobre Martha's Vineyard, em Massachusetts, em 1690, habitada
por colonos surdos/as, onde a condição de ser surdo por hereditariedade perdurou por 250
anos. Uma em cada quatro pessoas nessa ilha era surda, e toda a comunidade se comunicava
na língua de sinais. “Ser surdo é uma questão de vida. Não se trata de uma deficiência, mas de
uma experiência visual. Experiência visual que significa a utilização da visão em substituição
total à audição, como meio de comunicação”. (PERLIN E MIRANDA, 2003, p. 218).
Os subsídios de Groce sobre as condições de vida dos/as surdos/as da referida ilha
desencadeiam a reflexão a respeito das representações usuais sobre o/a surdo/a – isolado/a,
4
Perlin e Miranda (2003, p. 224) consideram que, na comunidade surda, participam surdos/as, filhos/as de
surdos/as e simpatizantes. No IFSC/CPB, atualmente, trabalham professores e professoras surdos/as e ouvintes,
há intérpretes de libras/português e há alunos e alunas surdos/as.
5
Everyone here spoke Sign Language: hereditary deafness on Martha's Vineyard.
5
B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S nos reporta a uma língua
proibida por cem anos e envolve sujeitos cujos antepassados foram coibidos de se
comunicarem por meio dela. Trata-se de uma língua visual e espacial, natural, criada,
desenvolvida e transmitida de geração em geração. A simultaneidade dos aspectos gramaticais
é uma das imposições e delimitações que estabelecem sua diferença estrutural com as línguas
orais. As modalidades de recepção e produção das línguas visuais e orais se diferenciam, mas
cada qual possui potencialidades para criar sentidos a partir de suas estruturas subjacentes.
Os aportes teóricos de Zumthor foram significativos para contemplar as B-R-A-N-C-A
D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S, “que um texto seja reconhecido por poético ou não,
depende do sentimento que nosso corpo tem. Necessidade para produzir seus efeitos; isto é,
para nos dar prazer. [...] Quando não há prazer – ou ele cessa – o texto muda de natureza”
(2007, p. 35). A emoção ao contemplar essa produção na língua de sinais desperta em nós a
vontade de recriar e recontar. Adiciona-se a isso, que se trata de uma elaboração artística de
uma instituição de ensino público para surdos e de uma contadora de histórias surda.
O referencial teórico de Jolles (1971) permite abordar sobre o “conto” e não “contos
de fadas” ou “contos maravilhosos”: a trajetória do conto em seu princípio, destinado aos
adultos e posteriormente adequado ao público infanto-juvenil. Para isso, foram valiosas as
contribuições de Bettelheim (1980), Bortolussi (1985), Coelho (1987), Jolles (1971), Arroyo
(1968), Philip (2001) e Almeida (2004). Não há divergências entre os autores citados neste
parágrafo de que se cultivava o conto muito antes de ser dado a ele o seu status de gênero
literário. Eles apontam o maravilhoso como originado da literatura oral popular, abordam que
os contos surgiram destinados aos adultos e posteriormente foram dedicados às crianças, são
fontes de uma literatura escrita oriental e propagaram-se pelo mundo, de geração em geração.
Portanto, foram contados e recontados por séculos e posteriormente, foram reunidos em
livros. Onde quer que se vá ao planeta terra, haverá contos.
Bortolussi (1985) ressalta que a definição do conto não pode ser uma forma única e
categórica e propõe a pluralidade de estudos desse gênero, por meio da história, da crítica e da
teoria literária, cada um com seus conceitos e métodos diferenciados. Portanto, não será eleito
o caminho de definição do conto, tampouco suas categorizações.
Coelho (1987), Arroyo (1968), Bettelheim (1985) e Bortolussi (1985) discorrem sobre
narrativas surgidas entre os povos da Antiguidade, que, incorporadas, misturadas, modificadas
se difundiram pelo mundo. As modificações ocorreram com acréscimo de elementos,
tornando as narrativas significativas, em vista dos costumes e das regras estabelecidas
socialmente. O argumento de que há contos em diferentes posições geográficas se verifica a
7
seguir:
Se perseguirmos, numa viagem através dos textos (muitos dos quais nasceram
séculos antes de Cristo), passaremos pelas sábias e místicas regiões da Índia ou do
misterioso Egito; defrontaremos a bíblica Palestina do Velho Testamento e a Grécia
clássica; entraremos pelo Império Romano adentro, descobrindo-o como o grande
mediador/divulgador que foi no Ocidente, de toda a sabedoria mágica gerada no
Oriente, Ao mesmo tempo descobriremos as migrações narrativas realizadas na
Pérsia, Irã, Turquia e principalmente na luxuriosa Arábia, cuja ênfase na
materialidade sensorial mais plena vai se contrapor ao espiritualismo gerado pela
imaginação sonhadora dos celtas e bretões.
Já na idade média, veremos como todo esse lastro pagão choca-se, funde-se ou
deixa-se absorver pela nova visão do espiritualismo cristão e transformado, chega ao
Renascimento [...] Até que, finalmente, na passagem da era clássica para a
romântica, grande parte dessa antiga literatura maravilhosa destinada aos adultos é
incorporada pela tradição oral popular e transforma-se em literatura para crianças.
(COELHO, 1987, p. 15)
O conto Branca de Neve foi publicado com esse título pelos irmãos Grimm em 18236.
Em algumas versões, os fiéis companheiros da heroína são ladrões. Acrescenta Philip que
Walt Disney (1901-1966), em 1937, apresentou o primeiro desenho animado de longa-
metragem intitulado Branca de Neve e os Sete Anões e nomeou os anões: Mestre, Zangado,
Dunga, Dengoso, Soneca, Feliz e Atchim. Na narrativa de Philip, a madrasta ordena ao
caçador tirar a vida de Branca de Neve na floresta e que comprove isso entregando-lhe o
coração e o fígado. Tendo em vista que o caçador não cumpriu a ordem da madrasta, entregou
os órgãos de um filhote de javali à rainha, que os comeu. Esse conto finaliza com a punição
da madrasta, forçada a calçar um sapato em brasa e dançar com ele até a sua morte (PHILIP,
1988, p. 122-125).
Em Branca de Neve, dos irmãos Grimm, em Branca de Neve e os Sete Anões, de Walt
Disney, e em B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S, se apresenta a vaidade, a
luta pelo poder da beleza, a metamorfose da madrasta em bruxa, os animais (o corvo, a pomba
e a coruja), o rei, a rainha, o servidor representado pelo caçador, uma terra não determinada,
um tempo e um lugar não determinados, o espelho como objeto que responde às perguntas da
madrasta.
B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-TE A-N-Õ-E-S é fruto da literatura oral, que,
segundo Patrini (2005, p. 105), se transmite de indivíduo a indivíduo, de povo a povo. O
conto se constituiu como algo imprescindível à vida dos seres humanos, e estes, com o
decorrer do tempo, o elegeram pela experiência. Nesse contexto, Branca de Neve foi
compilado da narrativa oral do povo alemão pelos irmãos Grimm e publicado em 1823. Walt
6
Arroyo (1968, p. 31), argumenta que “Branca de Neve” e outras histórias presentes em Kinder- und
Hausmärchen, dos irmãos Grimm, já haviam sido publicadas por Charles Perrault.
8
7
Wilcox e Wilcox (2005, p. 40) consideram que os sinais são semelhantes às palavras faladas, escritas ou
sinalizadas. São blocos de construção que formam a base das línguas.
9
uma tradução da língua portuguesa para a língua de sinais e a narradora como contadora de
histórias profissional. Reflito sobre o espaço da tradução em um país, o Brasil, onde a maioria
das pessoas ouvintes se comunica pela fala na língua portuguesa e pessoas surdas se
comunicam pela língua de sinais.
A convivência com a comunidade surda despertou o desejo de abordar a importância
do nome visual como uma construção a partir de parâmetros visuais. Cada personagem é
apresentado no início do vídeo pela contadora de histórias com um nome visual. A estratégia
de escrever o nome na língua portuguesa seguido do nome visual na escrita de sinais8 visa
demonstrar que possivelmente há diferenças entre eles.
O nome da autora na língua portuguesa é Carla e seu nome visual, na língua de sinais,
envolve configuração de mãos, movimento e locação. Alguns personagens da narrativa,
apresentados logo no início do vídeo, o nome visual envolve a configuração de mãos, o
movimento e locação, com o acréscimo da expressão facial. Na comunidade surda a
configuração de mão R realizada no espaço à direita na posição horizontal, toca no lado
direito do rosto, logo abaixo dos olhos e arrasta-se num movimento curto para fora do rosto.
O R faz parte de seu nome de batismo, e o ato de passar a configuração de mão em R abaixo
dos olhos evidencia as olheiras. Esse é o nome visual da autora.
É comum que cada sujeito ouvinte se apresente dizendo seu nome na língua
portuguesa. Nessa mesma linha, é comum que na comunidade surda, os participantes se
apresentem com a soletração do nome de batismo na língua portuguesa, seguido de seu nome
visual na língua de sinais.
Os aportes teóricos dos estudos pós-coloniais me auxiliaram na reflexão sobre o fato
de o sujeito surdo transitar entre fronteiras de línguas. Ao conviver com a língua de sinais e a
língua portuguesa, esse sujeito convive com outros em uma relação de heterogeneidade
cultural. Esse foi um fator que permitiu refletir sobre a soletração manual presente em B-R-A-
N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S. Quadros e Karnopp (2004) conceituam a
soletração manual como uma representação da ortografia da língua falada ou escrita que
envolve a sequência de configuração de mão que corresponde à sequência de letras do
alfabeto que formam palavras escritas da língua portuguesa. Ao lado do referencial de
Mignolo (2003) sobre Arguedas9 e sobre Anzaldúa,10 compreende-se que a soletração manual
8
Não será realizada neste artigo, abordagem sobre a escrita de sinais. A publicação completa da pesquisa
está disponível em http://editora-arara-azul.com.br/novoeaa/disssertacao-emso-de-mestrado-3/
9
Tupac Amaru Kamaq Taytanhisman.
10
Bordelands/La frontera: The New Mestiza.
10
11
Mignolo (2003, p.359) acrescenta sua preferência ao bilinguajamento e ao bilinguagismo e não ao
bilinguismo, tendo em vista que seus aportes teóricos versam sobre o que se encontra além do som, da
construção gramatical e do dicionário, e além da obrigação de saber duas línguas.
12
Quijano (1997, citado por Mignolo, 2002, p. 41).
13
A elaboração do parágrafo se refere à leitura do ensaio de Benjamin (1994).
11
pode realizar as duas coisas ao mesmo tempo, porque sua comunicação é visual.
A contadora de histórias surda não está em uma praça pública narrando para o/a
espectador/a surdo/a. Ela se encontra diante de uma câmara que filma sua arte em movimento
e com os recursos indispensáveis a esse ato. O/a espectador/a surdo/a que contempla a
imagem em uma tela, talvez não perceba que ações foram necessárias para que o produto final
chegasse às suas mãos.14
B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S é uma produção híbrida. Por
conseguinte, o/a surdo/a contador/a ou espectador/a é híbrido e realiza a leitura do texto
sinalizado em uma moldura. Nesse processo do prazer de ler, estão envolvidos o corpo e as
palavras sinalizadas, que se traduzem em configurações de mãos acompanhadas das
expressões faciais e corporais. Em sua contemplação, provavelmente o/a espectador perceberá
que todas as personagens do objeto da pesquisa não são surdos/as. Pensar a identidade nos
dias atuais envolve um posicionamento de um movimento contínuo em relação às formas por
meio das quais é representada nos diferentes sistemas culturais. “A identidade é sempre
híbrida porque ela se constrói no espaço relacional, em que o sujeito é atravessado por toda
uma gama contraditória e conflitante de elementos linguísticos e culturais” (BHABHA, apud
SOUZA, 2004, p. 119).
A utilização do termo “hibridismo” na crítica pós-colonial assinala as culturas
ponderadas como mistas e diaspóricas. Não se trata de uma alusão à constituição racial mista
de uma população, e sim um termo para a coerência cultural da tradução que se manifesta nas
diásporas multiculturais e em comunidades minoritárias e mistas do mundo pós-colonial. A
posição ambivalente do dentro/fora é localizada em todos os lugares e determina a lógica
cultural composta e irregular pela qual a chamada “modernidade” ocidental pulsa as áreas
geográficas desde o princípio da ideação globalizante européia (HALL, 2003, p. 74). Ainda
segundo o pensamento do autor, o hibridismo não se refere a indivíduos híbridos, que podem
ser contrastados como os “tradicionais” e “modernos”, como sujeitos plenamente formados.
Trata-se de um processo de tradução cultural inquietante, tendo em vista seu caráter
inconcludente; portanto, permanece irresoluto.
O hibridismo não é simplesmente apropriação ou adaptação, é um processo que se
exige das culturas uma revisão de seus próprios sistemas de referência, normas e valores, pelo
distanciamento de suas regras habituais ou “inerentes” de transformação. Ambivalência e
antagonismo acompanham cada ato de tradução cultural, pois negociar com a “diferença do
14
O parágrafo foi elaborado com os aportes teóricos de Patrini (2005) e Benjamin (1994).
12
15
Esse parágrafo e o seguinte foram elaborados com o referencial teórico de BHABHA, 1997 citado por HALL,
2003, p. 75.
16
Compagnon (2011) e Casanova (1999).
13
17
Calvino (2007, p. 10).
18
Calvino (2007, p. 11).
14
sinais. Nesse momento, a emoção teve como companheiros a observação dos pormenores e os
artefatos culturais do povo surdo. Nesse sentido, considera-se que se trata de um novo
acontecimento. As duas produções em livro ou em vídeo trazem as marcas das leituras que
precederam a essa e aos vestígios que deixaram nas culturas pelas quais passaram. Porém,
com o diferencial que, nos deparamos com questões anteriormente ignoradas e o
contentamento se misturou a novas sensações.
Acrescida de leituras que não se apresentam na pesquisa, a nova sensação na releitura
dos clássicos destinados aos adultos e posteriormente às crianças é a banalização do mal. O
universo diabólico se apresenta em B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S
representado pela madrasta má, vaidosa, que não admite a beleza da enteada.
Na cena da transformação da rainha em bruxa admite-se que o olhar se direcionou à
perfeição do desempenho e criatividade da contadora de história. A bruxa não está vestida de
preto, nem seu nariz é enorme e possui uma verruga na ponta. Sua expressão facial é
sorridente de contentamento, tendo em vista que fará uma porção mágica em seu caldeirão
para envenenar Branca de neve por meio de uma maçã. A bruxa não se desloca até à casa dos
anões montada em uma vassoura. Ela rema a noite inteira um pequeno barco. Toda essa
contemplação foi desprovida da ideia de que o mal se tornou comum na literatura destinada às
crianças.
B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S, Cinderela surda, e Rapunzel
surda abordam a representação do mal. Possivelmente o sentimento de justiça predomina a
ponto de não se perceber a sua permanência nas narrativas. Os aportes teóricos de Jolles
(1971) desencadearam a reflexão sobre uma possível narrativa da literatura oral sem a
contenda entre o bem e o mal. Provavelmente a literatura oral demonstre que o bem e o mal se
apresentam desde a criação do mundo e que a vitória do mal é momentânea; no final triunfa o
bem.
Em relação a recontar e recriar, a referência de Sacks (1990) ao livro de Nora Ellen
Groce sobre Martha's Vineyard, somada à condição de ser surda e à celebração da língua de
sinais, foram fundamentais para pensar na possibilidade do reconto e recriação de
B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S.
Sacks (1990, p. 50) observa que, na pesquisa de Ellen Groce sobre a ilha Martha's
Vineyard, os moradores mais antigos lembravam com carinho de parentes, vizinhos e amigos,
sem relatarem que eram surdos. Esse fato emergia a partir da pergunta realizada pela
pesquisadora se a pessoa a quem se referia o entrevistado era surdo ou surda. A resposta era
dada após um momento para reflexão seguido da resposta: “Ele/Ela era mesmo surdo/a” e
15
eram apenas considerados como amigo, vizinho, pescador, não como deficiente, especial,
isolado da sociedade. Ainda segundo o autor, os surdos em Martha's Vineyard amavam,
casavam, trabalhavam, pensavam e escreviam. Mesmo depois da morte do último surdo
morador da ilha, aqueles que não eram surdos preservaram a comunicação na língua de sinais.
A partir das considerações do autor acima, refletie-se sobre a possibilidade de recontar
e recriar B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S com a possibilidade de que
não se faça uma diferenciação entre personagens surdos e personagens ouvintes e que todos se
comuniquem na língua de sinais. As considerações de Wilcox e Wilcox (2005, p. 88) de que
para os sujeitos há pelo menos dois tipos, ou seja, “nós” e “eles”; que as crianças iniciam a
vida com a ideia de que, todos são iguais, porém, com o passar dos anos, elas começam a
perceber que há diferenças sobre quem somos “nós” e quem são “eles”.
A “virada cultural” que contribuiu para a mudança radical do paradigma da
homogeneização cultural desencadeou o entendimento da diferença cultural e das relações de
poder, possibilitando a interpretação da cultura sob outro olhar, ou seja, não há uma única
cultura e sim culturas. O entendimento da multiplicidade cultural permitiu a desconstrução do
conceito homogêneo, único e determinante de cultura e de identidade. Nesse sentido, a
literatura produzida na língua de sinais, a partir do caráter híbrido das sociedades, precisa
incentivar a convivência com a diferença.
Na abordagem sobre Arguedas, que utiliza palavras castelhanas com declinações
quíchuas e palavras castelhanas escritas segundo a pronúncia dos índios e mestiços, e sobre
Anzaldúa que refaz o quadro das práticas linguísticas e literárias escrevendo em espanhol, em
inglês e em nahuatl, Mignolo (2003) avalia que o linguajamento 19 do escritor e da escritora
situa a interação entre indivíduos e se estabelece como oportunidade de língua.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os sujeitos surdos produzem literatura a partir da visão de mundo da experiência
visual. O significado não é fixo e acabado, os caminhos que se pretende percorrer nem sempre
são propiciados pelas situações, que se apresentam como uma caixa de surpresa.
B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S e foi contemplada por inúmeras vezes,
19
O linguajamento situa a interação entre indivíduos, entre seres humanos em vez de ideias preexistentes. O
encontro entre a pessoa, o eu, seres humanos, organismos vivos se estabelece como oportunidade de língua.
(MIGNOLO, 2003, 315)
16
cada uma com um objetivo diferente, ou para ter a certeza de que aquilo que foi visualizado
poderia ser visto de outra maneira em outro momento.
Seguindo as referências de James ([19-]) de que a contemplação sugere que um par de
olhos observa, diferencia, aprecia, assimila – “um vê mais onde o outro vê menos, vê preto
onde outro vê branco, vê grande onde outro vê pequeno, vê grosso onde outro vê fino” –
solicitou-se auxílio dos colegas de trabalho para a elaboração do nome visual. Na realidade,
outros pares de olhos contribuíram para muito além do que o nome visual.
As considerações aqui apresentadas não estão impregnadas de fixidez. É possível que
algo venha a ser modificado a cada leitura. A oposição binária surdo/ouvinte, língua
portuguesa/língua de sinais, experiência visual/experiência do som, durante um período foi
incômoda e continua sem resolução na ação de refletir, de escrever e na prática profissional. O
sujeito que convive com essas duas línguas e constantemente se desloca de um mundo surdo
para um mundo ouvinte em um curto espaço de tempo, vive no espaço da tradução, penetra e
retira-se da diferença de um para a diferença do outro. Por mais simples que seja a
experiência, percebe-se no cotidiano o quanto é difícil “negociar com a diferença do outro”
(BHABHA, 1998).
As narrativas do povo surdo permitem a compreensão da vitória da língua de sinais
presente atualmente em vias públicas, na mídia, na universidade, nas escolas de educação
básica, nos restaurantes, nos bares, nos aeroportos. As tentativas de apagar a língua de sinais
dos sujeitos surdos não vingaram. O motivo, quem sabe, se situe “nas forças milenares nas
lembranças de uma língua cravada no corpo”. (MIGNOLO, 2003, p. 307). Os sujeitos surdos
provavelmente apreciam recontar e recriar contos da literatura oral. A celebração da língua de
sinais e o orgulho de ser surdo se apresentam em suas produções, seja através de vídeos
produzidos por meio institucional, seja por vídeos produzidos por uma filmadora e
disponibilizados em suas páginas via internet. Em qualquer uma das produções, o conto
sobrevive em um povo que se comunica com os olhos, com as expressões faciais, com as
mãos, por que não dizer, com o corpo.
4 REFERÊNCIAS
cultura. Tradução: Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas: v.
1).
BETTELHEIM, B. A psicanálise dos contos de fadas. Tradução: Arlene Caetano. São Paulo:
Paz e Terra, 1980.
CALVINO, I. Por que ler os clássicos. Tradução: Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007.
CASANOVA, P. A república mundial das letras. Tradução: Marina Appenzeller. São Paulo:
Estação Liberdade, 1999.
DISNEY, W. Branca de neve e os sete anões. In: Clássicos Disney. São Paulo: Nova Cultural,
1986.
JAMES, H. Retrato de uma senhora. Tradução: Gilda Stuart. São Paulo: Círculo do Livro.
[199-].
LODI, Ana Claudia Baleiro. Plurilinguismo e surdez: uma leitura bakhtiniana da história
da educação de surdos. Disponível em: www.scielo.br/pdf/ep/v31n3/a06v31n3.pdf acesso
em 01 de agosto de 2011.
PATRINI, Maria de Lourdes. A renovação do conto – emergência de uma prática oral. São
Paulo: Cortez, 2005.
SACKS, Oliver. Vendo vozes: uma jornada pelo mundo dos surdos. Tradução: Alfredo B.
P. de Lemos. Rio de Janeiro: Imago, 1990.
WILCOX, S; WILCOX, P.P. Aprender a ver. Tradução. Tarcísio A. Leite. Petrópolis/RJ: Arara
Azul, 2006.
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Tradução: Jeruza Pires Ferreira e Suely
Fenerich. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Linguística Aba de anexos para salvar artigo
RESUMO
Esse artigo apresenta uma análise da relação entre conhecimento teórico e prática docente na
rede pública de ensino de Palmas-TO, no que se refere a correção e avaliação de textos em
língua materna. Dentre os objetivos propostos, buscou-se identificar os critérios utilizados
pelos professores na correção e na avaliação de textos de tipologia dissertativa, bem como
determinar o grau de percepção desses profissionais frente a falhas de estrutura textual. A
metodologia de pesquisa empregada partiu da análise descritiva e quantitativa de textos
produzidos pelos próprios professores, bem como de redações por eles corrigidas e avaliadas.
O estudo também se pautou nas respostas dadas por esses docentes a um questionário que lhes
possibilitava registrar informações com vistas a se auto-avaliarem a partir de sua formação e
de suas práticas. Destaca-se que os professores revelaram ter conhecimento teórico limitado, o
que lhes restringe a capacidade de produzir, de corrigir e de avaliar textos. As diretrizes
teóricas que nortearam o trabalho partem dos conceitos de texto, textualidade, coerência,
coesão e fatores pragmáticos, propostos por teóricos da Linguística Textual, como Travaglia
(2002, 2003), Costa Val (2006), Van Dijk (1981) e Van Dijk e Kintsch (1983). Assim,
esperou-se contribuir com a área da educação e de formação de professores, cooperando
também para melhorias no processo ensino-aprendizagem de língua materna, ao serem
abordados os desafios que permeiam o ensino da produção textual.
Palavras-chave:
Produção de texto. Critérios de correção. Formação docente.
ABSTRACT
This article presents an analysis of the relationship between theoretical knowledge and
practical teaching in public schools in Palmas, Tocantins. It is about texts correction and
evaluation in mother tongue. Among the proposed objectives, we sought to identify the
criteria used by teachers in the correction and evaluation of dissertations, as well as determine
the degree of perception of these professionals in the face of failures textual structure. The
research methodology employed was based on the descriptive and quantitative analysis of
texts produced by teachers themselves, as well as essays corrected and evaluated by them.
The study also was based on answers given by these teachers to a questionnaire that allowed
them to record information, aiming at self-evaluation from their training and their practices.
The teachers found they have a limited theoretical knowledge, which restricts their ability to
produce, to correct and to assess texts. We based on the concepts of text, textuality,
coherence, cohesion and pragmatic factors, proposed by theorists of the Textual Linguistics as
Travaglia (2002, 2003), Costa Val (2006), Van Dijk (1981) e Van Dijk e Kintsch (1983).
Thus, it was expected to contribute to the education and to the training of teachers, working
also for improvements in teaching and learning of mother tongue and addressing the
challenges that permeate the teaching of text production.
1
Mestre em Linguística pela Universidade Federal de Uberlândia, com ênfase em Texto e Discurso. Professora
Assistente da Universidade Federal do Tocantins, Centro de Engenharias Civil e Elétrica; e-mail:
mirellafreitas@uft.edu.br.
2
Keywords:
Essay. Correction criteria. Teacher training.
1 INTRODUÇÃO
Devido ao seu caráter muitas vezes polêmico, a sala de aula tem funcionado como
palco de pesquisa no que se refere aos conflitos que permeiam o ambiente da educação nos
dias atuais. Nesse cenário, as questões abordadas relacionam-se ao processo ensino-
aprendizagem, bem como à formação de professores. Quando se trata de ministrar aulas de
língua materna e, principalmente, de produção textual, alguns paradigmas já se encontram
estigmatizados nos discursos de muitos profissionais, sobressaindo-se aqueles relacionados
aos fatores que dificultam ou que impedem o bom trabalho em sala de aula.
As dificuldades são evidentes, levando muitos a desistirem da profissão. Porém, há
docentes que veem a pesquisa acadêmica e a formação continuada como meios para se
aprimorar o processo educacional, aprofundando-se o conhecimento teórico e metodológico.
Para esses profissionais, as mudanças necessárias no processo ensino-aprendizagem
envolvem, também e principalmente, o indivíduo pesquisador e atuante, bem como o nível e a
qualidade da formação dos profissionais. Assim, por compartilharmos essa mesma opinião,
propomo-nos a investigar a sala de aula de língua materna a partir da figura do professor, mais
especificamente no que concerne às aulas de redação2.
Para esse fim, reunimos um grupo de professores da rede pública de ensino de
Palmas-TO em um projeto de extensão cujo objetivo geral era, por meio de discussões
teóricas e atividades práticas de produção, correção e avaliação de textos, contribuir para o
aprimoramento do ensino de língua materna, com ênfase no trabalho com a macroestrutura
textual. Também intencionávamos avaliar as habilidades desses profissionais ao corrigirem
textos, a partir de falhas textuais e lingüísticas por eles identificadas em produções de alunos.
Os objetivos específicos compreenderam promover o aperfeiçoamento da formação teórica do
docente e implementar atividades didáticas e metodológicas de ensino-aprendizagem de
Língua Portuguesa, com foco em produção de textos.
Para tanto, foi trabalhada com os professores a correção de textos diversos, todos eles
de tipologia dissertativa e produzidos no contexto de sala de aula. Tratou-se de rico material
de análise, uma vez que nos permitiu identificar quais os critérios empregados por esses
profissionais nas correções de textos, bem como avaliar o grau de percepção e de
2
Não fazemos aqui a diferenciação proposta por alguns estudiosos entre os termos “produção de texto” e
“redação” (GERALDI, 1997). Nesse trabalho, são empregados como vocábulos equivalentes, envolvendo
aspectos semânticos e pragmáticos, muito além de meros elementos linguísticos (COSTA VAL, 2006).
3
conhecimento dos docentes acerca de falhas quanto ao emprego de elementos que devem
constituir a estrutura de uma dissertação. Também, a partir da produção textual desses
profissionais, pudemos compreender o conhecimento que tinham de instâncias semânticas e
de aspectos pragmáticos e formais, conforme postulados de Costa Val (2006).
3
Tal concepção de texto influencia bastante a correção de redações, tendo em vista que determinará o aspecto a
que o professor conferirá maior relevância ao penalizar as falhas cometidas pelos alunos no momento da escrita:
se a fatores formais ou se a elementos pragmáticos e semânticos.
4
Logo, o texto é assim definido por ser coerente, pelo fato de os elementos da
superfície textual direcionarem o leitor à interpretação e à construção do sentido local e
global4. Além disso, nesse estudo, partimos do pressuposto de que a análise da coerência
somente pode ser desenvolvida considerando-se a situação de comunicação, o produtor, o
interlocutor e, principalmente, o texto de que se trata. Esses fatores, portanto, encaminham a
análise desenvolvida para um trabalho paralelo e conjunto com os gêneros textuais.
Nessa perspectiva, tomamos por base o conceito proposto por Bakhtin (2000): os
gêneros são tipos relativamente estáveis de enunciados, elaborados e empregados nas diversas
esferas sociais. Ainda, segundo o autor, manifestam características bem próximas no que se
refere a sua composição, seu objetivo e seu estilo. Apresentam-se, pois, de forma peculiar,
considerando-se a própria temática e até o estilo verbal, e organizam-se para atender
condições e finalidades específicas, conforme a esfera da atividade humana em que se
inserem.
Dessa forma, compreendemos que seja necessário observar o atendimento às
características do gênero com que trabalhamos para determinarmos se algo é coerente ou não
para um determinado texto. Para tanto, nós consideramos a redação um gênero: um texto para
ser avaliado quantitativa e/ou qualitativamente e por meio do qual se mede o conhecimento
linguístico e textual do produtor. Segundo Marcuschi (2003), trata-se de um gênero que
constitui o discurso pedagógico, figurando junto a outros que compõem o livro didático, como
as instruções para produção textual, as explicações e os exercícios, por exemplo. Apenas a
partir dessa concepção de gênero podemos definir ou reconhecer lacunas permitidas,
vocabulário e construções gramaticais adequados, demarcar o que uma redação pode ou não
apresentar em sua composição escrita, o que corresponde ou não a uma incoerência.
Ainda, conforme postulados de Travaglia (2002, 2003), entendemos que o gênero
redação pode apresentar subtipos, como a redação de vestibular. Mas, fato é que, no contexto
social, certificamos que todos os textos produzidos para fins avaliativos são denominados
“redação”. Além disso, em uma grande parte das situações de avaliação e classificação de
candidatos com exceção da escola, que varia sua proposta conforme a seriação , exige-
se, dentre outras habilidades, aquela relacionada ao texto de tipologia dissertativa,
4
Van Dijk (1981) e Van Dijk e Kintsch (1983) diferenciam dois níveis de coerência: local (relacionada a frases,
parágrafos e trechos do texto) e global (no que se refere ao sentido único pretendido). Estabelecem ainda quatro
tipos de coerência local: pragmática, estilística, semântica e sintática. A partir dessa diferenciação, definimos o
que seria adequado ou inadequado em uma redação escolar de tipologia dissertativa.
5
argumentativo stricto sensu ou não stricto sensu (TRAVAGLIA, 2003)5, o que justifica nossa
opção por abordarmos esse tipo de texto no referido estudo.
A partir dessa perspectiva teórica, a redação assume função específica e caracteriza-
se pela unidade de sentido, por sua organização a partir de relações formais, semânticas e
pragmáticas, desempenhando função sócio-comunicativa e interacional. Deve, então, ser um
todo completo quanto a aspectos formais (construções verbais em geral e elementos de
coesão), cujas pistas linguísticas levem à produção do significado, propiciando a comunicação
efetiva. O texto deve, pois, ter unidade temática e estrutural, com frases dispostas em boa
seqüência e bem estruturadas, o que constitui reflexo da competência linguístico-discursiva de
quem o elabora. Quanto à linguagem, o exigido, no geral, é a língua padrão culta. Mas podem
ser empregados recursos linguísticos adequados ao contexto de comunicação, aos objetivos e
ao destinatário. Logo, assumimos que quaisquer construções truncadas e ausências de
informações básicas prejudicam a coerência do texto em um nível global ou local,
correspondendo a falhas.
5
Essa nomenclatura foi proposta por Travaglia (2003), segundo a perspectiva do produtor do texto quanto à
imagem que ele faz do interlocutor: como alguém que concordará ou não com o que lerá. Preferimos e
empregamos essa diferenciação tendo em vista que partimos do pressuposto de que qualquer ato de linguagem é,
em si, argumentativo.
6
Texto 1: Zero, porque o mínimo de linhas era 20 e o aluno escreveu apenas 16.
Também porque faltou a conclusão.
Texto 2: 5,0, porque faltou desenvolver melhor as ideias.
Texto 3: 5,0, porque houve repetição de termos, as ideias estavam redundantes e
houve generalizações.
Texto 6: zero, porque as ideias estão sem nexo.
Texto 7: 5,0, porque faltou clareza e objetividade.
Texto 8: 5,0, porque faltou desenvolver as ideias.
que culminasse em tal nota. Ao que podemos depreender, o aluno abordou a temática
proposta, o que torna pouco provável o fato de ele não ter mostrado conhecimento algum no
uso da gramática e de elementos de coesão, por exemplo. Assim, parece-nos que se trata de
uma prática de correção que não se embasa em critério específico e detalhado; ainda, seu
objetivo é apenas destacar as falhas, não valorizando demais aspectos do trabalho.
Essa mesma volubilidade em critérios adotados, bem como a evidente ausência
destes pôde ser percebida nas respostas dadas pelos professores ao questionário auto-
avaliativo e explanatório que aplicamos ao final do projeto. O objetivo era avaliar os
resultados alcançados e, além disso, apresentava oito questões que exigiam respostas
discursivas, visando a investigar a auto-imagem que os professores tinham de sua formação e
de suas práticas diárias em sala de aula.
Todo o grupo de participantes reconheceu que o projeto contribuiu para aperfeiçoar-
lhe o conhecimento específico, capacitando-o a produzir e a corrigir textos com mais
segurança. Dentre as justificativas apontadas para tanto, algumas nos chamaram a atenção por
permitir-nos visualizar as concepções teóricas e a prática dos referidos docentes. Pudemos
comprovar efetivamente que muitos dos professores não adotavam critérios fixos e
específicos para corrigirem textos, o que fica claro nos seguintes excertos, explicitados em
resposta à questão “O projeto contribuiu para aperfeiçoar o seu conhecimento? Justifique?”.
Agora sei como fazer uma boa correção e reconheço que produzir é um
trabalho árduo.
[...] o tempo foi muito curto e preciso também aprender a produzir textos.
6
Grifo nosso.
8
Gráfico 1 – Variação de nota para três textos, corrigidos por dezesseis professores diferentes.
A temática proposta para essa redação foi a mesma determinada para o vestibular da
Universidade Federal do Tocantins – UFT, para ingresso em 2011/1, a partir de uma coletânea
de quatro gêneros textuais (artigo científico, tira humorística, charge e notícia): “A
contribuição do riso tragicômico para a formação do cidadão”. No caderno de provas,
constava a seguinte proposição: “Em geral, as charges e tirinhas, comumente utilizadas nos
meios de comunicação de massa, provocam no leitor o riso tragicômico e, consequentemente,
uma indignação. Você acredita que esse riso tragicômico pode vir a contribuir para a
formação de um cidadão mais consciente do seu papel diante dos problemas brasileiros?
Argumente.”
Ao lermos o texto 1, deparamo-nos com vários problemas locais: repetições de
vocábulos; ideias fragmentadas, não relacionadas em alguns trechos e incompletas;
inadequações semânticas; ausência de elementos coesivos e de pronomes outros; inadequação
ao contexto de produção (houve trecho de diálogo com o leitor, por exemplo); parágrafos mal
estruturados, além de outras diversas falhas gramaticais. No plano global, há um problema
mais grave, referente ao próprio desenvolvimento da temática proposta. Todos esses desvios
são abordados pela teoria do texto e, por isso, não se poderia deixar de reconhecê-los, a partir
de um conhecimento efetivo de língua materna e de estrutura textual.
Para que os docentes procedessem à correção e avaliação do texto supracitado,
escolhemos ainda, aleatoriamente, cinco critérios avaliativos distintos. Solicitamos aos
referidos profissionais que empregassem, cada qual, um dos critérios por nós definidos e que
10
fizessem a correção com base nos variados parâmetros, avaliando a produção em 10 (dez)
pontos.
Primeiramente, tomamos os parâmetros disponibilizados pelo ENEM – Exame
Nacional do Ensino Médio, aos quais o público tem acesso. A nota final é a média entre cinco
fatores específicos: 1. Modalidade escrita; 2. Tema e tipo de texto; 3. Coerência; 4. Coesão; 5.
Proposta de intervenção. Para cada um dos tópicos, podem ser atribuídas notas 25%, 50%,
75% ou 100% de adequação7. Para nossa análise, apenas desconsideramos o último item
avaliado na referida prova, tendo em vista que é bastante peculiar a tal processo e não implica
textualidade. Além disso, vale ressaltar que a nota mínima do aluno em cada aspecto será
25%, ou seja, nunca zero. Significa que, desde que aborde a temática proposta, o mínimo
conhecimento que o produtor do texto apresentar será considerado e avaliado.
Por sua vez, o segundo critério definido não se caracteriza como essencialmente
quantificador no que concerne à quantidade de falhas; é mais generalizante, abordando o texto
em sua completude de estrutura e sentido:
(Zero) Fuga total ao tema (o tema não é sequer citado) / tipo de texto divergente
/ texto com número de linhas abaixo do mínimo exigido.
(1-3) Redação com graves problemas estruturais / muitos erros gramaticais
graves / tema tangenciado ou apenas citado / ideias absolutamente vagas e
superficiais.
(4) Estrutura deficiente / ideias superficiais ou sem exemplificação / texto cheio
de exemplos, sem argumentação / erros gramaticais /paragrafação
desequilibrada / confusão na exposição de idéias (ausência de clareza).
(5-6) Texto comum / erros gramaticais / períodos longos / ideias sem
aprofundamento / falta de nexo entre as partes / ausência de tese / estrutura
razoável.
(7) Texto bom, bem organizado / abordagem correta do tema / momentos de
qualidade / poucos erros gramaticais / clareza na exposição das ideias /
argumentos com explicação /presença de conectivos.
(8-9) Texto ótimo / excelente abordagem do tema / parágrafos bem distribuídos
/ períodos de tamanho variado / coesão bem feita / ideias diferenciais /
explicações profundas / exemplos curtos e ilustrativos / quase total ausência de
erros.
(10) Texto perfeito (que, muitas vezes, não se encaixa no padrão) / ausência
(quase) total de erros gramaticais ou estruturais / argumentação aprofundada e
seqüencial, inversão de recursos comuns (brincadeiras com lugares-comuns ou
citações, por exemplo) / título adequado / construções frasais sofisticadas /
pensamento inteligente.8
7
Em “Modalidade Escrita”, avalia-se a correção gramatical e o padrão escrito do idioma. Em “Tema e Tipo de
Texto”, se o produtor atendeu ou não a proposta, produzindo uma dissertação argumentativa, com linguagem
impessoal e objetiva e estrutura organizada. Em “Coerência”, o propósito argumentativo do texto: se as ideias
estão bem encadeadas, conduzindo a conclusões lógicas. Por fim, em “Coesão”, observa-se a capacidade do
candidato de ligar as frases e os parágrafos, sem repetições excessivas ou desnecessárias.
8
Disponível em: < http://gramaticaelinguagem.blogspot.com/2010/06/modelo-de-folha-de-redacao-para.html>.
Acesso em: 27 set. 2011.
11
a) Adequação ao tema
Fuga total (zero)
Mínima articulação das ideias em relação ao tema (de 0 a 0,5)
Articulação limitada de ideias em relação ao tema (de 0,5 a 1,0)
Uso satisfatório das ideias em relação ao tema e indicação de autoria (1,0 a 1,5)
Extrapolação o recorte temático e evidências de autoria (1,5 a 2,0)
e) Coesão/Coerência
Texto caótico, sem organização, sem sentido (zero)
Uso inapropriado dos elementos de articulação do texto; problemas recorrentes
na articulação de ideias (0 a 0,5)
12
Atualmente, vivemos numa sociedade onde o riso, se torna cada vez mais
necessário, como forma de dissipar toda indignação que passamos diante das
impunidades que ocorrem diariamente nas grandes metrópoles. Quando ligamos a
TV e vemos os índices alarmantes de bandidos que estão a, todo momento,
cometendo crimes e ficando sempre impunes. Só nos resta rir dessa situação e esse
riso é o famoso tragicômico, assim, a tragédia está diante de nossos olhos com o
descaso que a nossa sociedade vive atualmente.
Logo, quando tentamos eleger um político acreditando que sua postura
será digna de nos representar e assim garantir nossos direitos perante o país, ficamos
decepcionados e a cada nova eleição somos gradualmente desacreditados da política
atual. O que vemos em nosso país é que não há uma política de credibilidade que
faça com que a população possa voltar a rir com as vitórias que verdadeiramente
merecem.
Assim, temos que ter uma postura de pensar no que realmente interessa ao
nosso pais e a nós mesmos e procurarmos fazer nossas escolhas de forma mais
planejada e crítica. E, num futuro muito próximo possamos olhar para o cenário
político e não mais ficarmos inconformados com a situação que nos faz rir dessa
forma.
13
Uma vez corrigido e avaliado o texto, foram atribuídas as seguintes notas, nessa
ordem, segundo cada um dos critérios: 4,5; 6,0; 4,0; 5,3. Novamente, a variação de nota
permaneceu dentro da porcentagem de 20%, alcançando discrepância máxima de dois pontos.
Portanto, a partir dessa experiência desenvolvida, pudemos confirmar que critérios
de correção de textos devem sempre ser bem definidos. Além disso, exatidão e clareza devem
lhes ser característicos, a fim de se conferir certa homogeneidade no momento de os
professores de língua materna reconhecerem e penalizarem falhas em textos de alunos. Para
tanto, os parâmetros devem ser estabelecidos a partir de concepções teóricas que vislumbrem
o texto como unidade comunicativa, estruturado a partir de aspectos pragmáticos, semânticos,
sintáticos e estilísticos, elementos estes a serem avaliados distintamente.
Além disso, conforme comprovamos em Freitas (2006), a maior parte dos problemas
em redações está no nível textual, de discurso, o que merece atenção por parte dos corretores.
Assim, quanto mais superficial a correção, ou seja, em nível de frase, maior a probabilidade
de serem feitas marcas no corpo da redação, o que inviabiliza o aprendizado do aluno quanto
à estruturação de textos. Ao contrário, devem-se focar aspectos pragmáticos e semânticos,
procedendo-se a uma correção interativo-dialógica, que favorece a revisão do texto por parte
do aluno e leva a efeito uma aprendizagem profícua (RUIZ, 2010).
Por fim, qualquer que seja o critério de correção empregado pelo avaliador, deverá
apresentar pertinência, confiabilidade e adequação, atendendo aos quatro requisitos que Costa
Val (2006) propôs para que um texto seja considerado coerente e coeso: continuidade,
progressão, não-contradição e articulação. Portanto, no geral, o professor deve avaliar se o
produtor é capaz de organizar idéias, de estabelecer relações, de interpretar dados e fatos, de
elaborar hipóteses explicativas para conjuntos de dados relativos a quaisquer áreas de
conhecimento e de empregar a norma culta (ou outra adequada, conforme o contexto de
produção). Se avaliamos tais habilidades, não há como nos desviarmos tanto de um parâmetro
apropriado e justo, tendo em vista que as exigências básicas para os gêneros são, conforme
Bakhtin (2000), “relativamente estáveis”, pautadas em parâmetros propostos socialmente,
bem como por respeitados estudiosos da Linguística Textual.
não estruturadas, bem como em respostas ao questionário auto-avaliativo respondido por cada
docente.
No entanto, ainda nos restava verificar em que medida a correção também era
influenciada pelo conhecimento teórico de cada professor. Ou seja, o grau e a qualidade da
formação desses profissionais poderiam, de igual modo, dificultar ou facilitar o processo de
distinção de falhas nos escritos dos alunos (ou mesmo nas próprias produções). Assim, além
de os professores se empenharem nas correções de textos de tipologia dissertativa, pedimos a
eles que também redigissem uma dissertação a partir de duas temáticas propostas.
Objetivamos verificar o conhecimento de língua desses profissionais, bem como a habilidade
de escrita de cada um deles. Partimos do pressuposto de que, sendo graduados e licenciados
em curso superior, habilitados para ministrar aulas de língua materna e, portanto, para corrigir
textos, deveriam apresentar conhecimento satisfatório de estruturação textual, muito além de
um nível mediano, a fim de que conseguissem identificar falhas nos textos de seus alunos e
orientá-los de forma adequada no processo ensino-aprendizagem.
Com esse fim, procedemos à correção das produções, segundo os critérios
quantitativos ora empregados pela UFU (em vestibular e PAIES), conforme já explicitado
anteriormente. Nossa opção se justifica tendo em vista que tal sistema de avaliação confere
maior peso à elaboração de um texto coerente, que favoreça a construção do sentido a partir
de informações relevantes. Afora os fatores pré-definidos pela instituição, os produtores
foram também avaliados segundo o número de linhas por eles escrito. Para o contexto
específico desse estudo, foi exigido um mínimo de 20 linhas nas produções textuais, sendo o
produtor penalizado em 0,5 (cinco décimos) por linha que deixasse de escrever aquém do
mínimo proposto. Não exigimos que fossem retomados explicitamente os textos motivadores
da temática. Além disso, as redações caracterizadas por fuga ao tema e/ou que não
respondessem a questão proposta receberiam nota zero, não sendo avaliadas nos demais
quesitos.
Os professores poderiam escolher entre duas temáticas. A primeira, do vestibular
2011/2 da UFT, cuja proposta era, a partir de um texto informativo e um gráfico, elaborar um
texto dissertativo-argumentativo sobre a superficialidade da leitura na era digital. A segunda
correspondia à proposta B da prova discursiva do processo seletivo da UFU, 2011/2: “Como
anda a saúde no Brasil?”. Interessante ressaltar que esse último processo apresentou como
textos motivadores apenas gráficos de levantamentos oficiais sobre a realidade da saúde no
Brasil. Embora o contrário não sendo exigido, 50% (cinquenta por cento) dos produtores que
optaram por essa última proposta desconsideraram por completo a coletânea. Ou seja, os
15
professores, no geral, não se pautaram nos dados para conferirem maior teor argumentativo às
suas produções. Também não interpretaram valores percentuais nem relacionaram gráficos
para embasar seus argumentos.
Como resultado dessa etapa da pesquisa, 80% dos docentes não alcançaram nota
igual ou superior a 7,0. As notas variaram de 3,0 a 8,1. É relevante destacar que o fato de a
correção ser quantitativa não sofreu grande interferência do número de linhas escritas pelos
participantes. Para a nota 6,8, por exemplo, houve textos de 28 e de 20 linhas. A maior nota
foi dada a uma redação de 21 linhas. Ou seja, privilegiou-se, efetivamente, o texto como
unidade comunicativa, cujas informações deveriam estar articuladas, apresentando
continuidade, progressão e não-contradição. Além disso, havendo um limite de créditos a ser
descontado em cada item, o produtor não seria prejudicado pela forma de avaliação escolhida.
De igual modo, já comprovamos que, independentemente dos critérios adotados, a média
tende a se manter para um mesmo texto.
Feitas as devidas análises, comprovamos que a discrepância anteriormente
encontrada nas correções justificava-se também pelo próprio nível de habilidade dos
profissionais no que se refere ao uso da língua na escrita. Tal fato pôde ser visualizado ainda
no momento da correção dos textos, em fase anterior de nossa pesquisa. Naquele momento,
uma das professoras, por exemplo, afirmou utilizar critério quantitativo na correção de textos.
Porém, quase não fez marcas nas redações por ela corrigidas, arbitrando notas. Mais grave
que isso, não se atentou para a temática que os textos deveriam abordar e não fez leitura
efetiva das ideias que os alunos defenderam. Assim, para três dos textos corrigidos, ela
atribuiu notas 9,3 (nove e três), 8,4 (oito e quatro) e 3,0 (três). Em contrapartida, esperava-se
zero para esses textos devido a não atenderem à temática proposta. Além disso, as notas que
essa docente deu aos dez textos por ela avaliados apresentaram discrepância que variou de 2,6
a 9,3 pontos, sempre a maior em relação à nota esperada que serviu como parâmetro de
variação. Ou seja, a referida docente não mostrou formação adequada para identificação de
falhas de ordem textual, o que pôde ser comprovado também pela sua produção:
9
Para ilustrar a forma como a produtora do texto fez a separação silábica ao final da linha.
16
Alem disso o governo Federal vem dando suporte para essa mudança
ampliando os hospitais ja existente e deixando-os seguro de que as pessoas tenham
confiança na saude do nosso país.
As secretárias dos estados e municípios oferecem aos profecionais em
exercicios capacitação para aprimoraren de suas práticas, e assim contribuir para o
bom êxito da saúde no Brasil.
Vale ressaltar que a comunidade so ganhou o melhor nesta nova proposta,
trasendo esperanca para o povo brasileiro com estas condições de vida cada vez
superando com a redução de mortalidade infantil, saneamento basico cada ano
melhorando nos seus municipios não podemos esgecer das assistencia médica.
Diante disso, acredita-se necessário que haja componentes básicos ja
citado e de total apoio e compromi-sso de toda comunidade familiar sendo a parte
maior carente trabalhando desda primeira semana de gestação ate a fasse do
amamentação, o brasil estava sendo um país vergonhoso quando fálavamos em
saúde com a atenção dos governantes melhorau bastante e sendo alguns projetos
copiados por outros países.
Tal qual ocorreu nessa produção, os demais textos também se caracterizaram por
uma série de problemas, explicitando dificuldades em maior ou menor grau entre os
professores:
Estrutura – As notas variaram de 0,0 a 3,0, com média de 2,3. Destacamos os
problemas relacionados a fuga ao tema, trechos truncados, contradições, ideias
fragmentadas e não desenvolvidas de forma a configurar argumentação
proficiente. No geral, os textos não exploraram devidamente o teor
argumentativo das temáticas, bem como não justificaram posicionamentos
defendidos.
Coesão – A nota média foi 1,3, com variação entre 0,8 e 1,8. Sobressaíram-se
problemas quanto ao emprego de tempo e modo verbais e ausência de elementos
coesivos.
Progressão, informatividade e situacionalidade – Não mereceu tamanho destaque,
alcançando nota média de 2,4.
Conhecimento gramatical – A nota média foi 0,1; graves e reincidentes
problemas de ortografia e pontuação; em menor proporção, falhas de
concordância verbal e nominal.
A partir dessa avaliação geral, constata-se que os textos dos professores alcançaram
nota média de 6,2. Ilustra um cenário que levanta grande preocupação, se considerarmos que,
no geral, na rede de ensino regular, a nota mínima exigida dos alunos é 6,0 para aprovação. Se
a média de nota obtida pelos docentes aproximou-se do mínimo, significa que existem muitos
profissionais cuja avaliação estaria abaixo disso e, ainda, tal cenário também implica que pode
haver alunos mais capacitados que os próprios docentes no que se refere à escrita. Além disso,
17
e eficiência. Soma-se ainda a esse contexto a falta de organização do aluno para desenvolver o
tema, problema este que, sem aulas de qualidade e direcionadas para esse aspecto, não é
solucionado. Por fim, se o texto é desenvolvido em sala, há o problema da escassez do tempo;
mas, em quaisquer circunstâncias, o professor lida com a desmotivação dos estudantes, com a
desinformação e, para agravar, com a falta de conhecimento de critérios de organização do
texto.
Portanto, considerando que a maioria das redações docentes avaliadas não alcançou
média acima de 70%, é perceptível o fato de que os professores carecem ainda de
conhecimento voltado para a estruturação de textos. É preciso, pois, que os cursos superiores
de licenciatura em ensino de língua materna (sejam eles em Letras ou mesmo Pedagogia)
implementem ações de forma a propiciar uma prática efetiva de produção e correção de textos
durante os próprios cursos, o que significa ir além de orientações didáticas e pedagógicas
restritas à teoria. Instruir os professores apenas quanto a aspectos metodológicos quando, na
verdade, não apresentam conhecimento teórico sequer sobre o conteúdo constitui hábito
improdutivo.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo desenvolvido a partir do projeto de extensão voltado a produção, correção e
avaliação de textos contribuiu para ratificar que boa parte dos professores de língua materna
encontra dificuldades para realizar correções de textos e também para desenvolver suas
próprias produções textuais. Ficou evidente que muitos dos profissionais envolvidos no
projeto criam estilos próprios de correção, muitas vezes levando em conta o grau de ensino, a
série, a faixa etária e o nível sócio-econômico dos alunos. Contudo, a partir desses fatores,
relativizam a correção, adotando essencialmente a subjetividade como parâmetro norteador.
Entendemos que esse seja efeito da formação universitária no que se refere às licenciaturas
em ensino de língua materna. Dessa forma, a graduação deixa a desejar quanto à parte prática
da produção textual e, consequentemente, quanto ao ensino da escrita, o que culmina com a
adoção de estilos estritamente individuais e sem vínculo com a teoria.
Estritamente quanto às correções de textos, segundo Serafini (1998), se os critérios
variam entre os professores, confirma-se a arbitrariedade que existe hoje na prática de
avaliação. Tal fato não deveria ocorrer, tendo em vista que em nada favorece a aprendizagem
por parte do aluno; comprova que os cursos de formação deixam muito por ser feito quanto à
formação para as aulas de produção textual. Segundo a autora, talvez não seja por
incompetência ou descaso, mas porque o momento é de transição. No caso da área com a qual
19
lidamos, são ainda constantes os embates entre a Linguística e a Gramática. De igual modo, a
prática docente em língua materna acaba por se tornar conflituosa, abarcando, muitas vezes,
variadas e divergentes concepções.
Logo, os cursos voltados para formação de professores de língua materna devem
reconhecer o compromisso que as instituições de ensino têm com tais profissionais,
oferecendo-lhes formação adequada, baseada na teoria e na prática, e que lhes faça constatar
que produzir não é apenas escrever de forma correta, mas, sobretudo, organizar as idéias sobre
determinado assunto. De igual modo, faz-se urgente que os profissionais reconheçam que a
correção que fazem dos textos de seus alunos, as marcações que registram, são o retrato da
concepção que cada um tem acerca de texto, de língua e de ensino.
6 REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. Trad. Ermantina Galvão G. Pereira. 3. ed.
São Paulo: Martins Fontes, 2000.
COSTA VAL, Maria da Graça. Redação e textualidade. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes,
2006.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Lingüística de texto: O que é e como se faz. Série Debates 1.
Recife: UFPE / Mestrado em Letras e Lingüística, 1983.
RUIZ, Eliana Donaio. Como corrigir redações na escola: uma proposta textual-interativa.
São Paulo: Contexto, 2010.
20
SERAFINI, Maria Tereza. Como escrever textos. 9. ed. São Paulo: Globo, 1998.
TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gêneros de texto definidos por atos de fala. In: ZANDWAIS,
Ana (org.). Relações entre pragmática e enunciação. Porto Alegre: Sagra Luzzato, 2002.
Coleção Ensaios, n. 17.
______. Tipelementos e a construção de uma teoria tipológica geral de textos. In: FÁVERO,
Leonor Lopes et al (org.). Língua Portuguesa e ensino. São Paulo: Cortez/EDUC, 2003.
RESUMO
Palavras-chave:
Análise de Erros. Análise de Interlíngua. Espanhol como Língua Estrangeira.
RESUMEN
Palabras-clave:
Análisis de Errores. Análisis de Interlengua. Español como Lengua Extranjera.
1 INTRODUÇÃO
Este trabalho originou-se com o propósito de constituir uma apresentação vinculada à
1
Mestre e Doutoranda em Linguística; e-mail: chrisletras@gmail.com.
2
2
Disponível em: <http://bdtd.ibict.br>.
4
2 PERCURSO TEÓRICO
Como se trata de uma pesquisa em seu estágio inicial, no momento o embasamento
teórico da mesma restringe-se aos trabalhos de Baralo Ottonello (2004), Durão (2004a,
2004b, 2007), Loose (2006), Santos Gargallo (2004) e Vez (2004), todos desenvolvidos
em torno da Linguística Contrastiva. Além desses construtos, tomarei também trabalhos se
centram na perspectiva da teoria de gêneros textuais, como Dolz (et al, 2004) e Kleiman
(2007).
Para iniciar o trabalho propriamente dito, descreverei brevemente a base teórica da
Linguística Contrastiva. A Linguística Contrastiva dois modelos de análise e uma vertente
com tendência a vir se caracterizar como teoria, as quais se complementam num
continuum (GUILLEMAS apud DURÃO, 2004b, p. 10). Os dois modelos são o Modelo de
Análise Contrastiva (AC) e o Modelo de Análise de Erros (AE); já a vertente teórica foi
denominada por Durão (2007) como Análise de Interlíngua (AI). Esse conjunto de
pressupostos teóricos é frutífero e vem sendo constantemente atualizado, usufruindo dos
os avanços das ciências da linguagem. Vejamos brevemente esses três estágios que
marcaram a LC.
A primeira vertente da LC foi o Modelo de AC, fundado sobre três componentes:
linguístico, psicológico e pedagógico (DURÃO, 2007, p. 11). Esse modelo tenta prever os
possíveis erros dos alunos, com o objetivo de tentar impedir que cheguem a acontecer,
mediante ensino do tópico. Acreditava-se que a LM interferia na aprendizagem da LE
quando havia diferença entre LM e LE. Com o surgimento das ideias de Chomsky, o
modelo sofreu críticas (DURÃO, 2007, p. 13-4).
Após essas mudanças no cenário da ciência da linguagem, estabeleceu-se o modelo
de AE, que identifica e cataloga os erros. A partir de Corder (1967 apud DURÃO, 2004b)
passa a servir de respaldo ao ensino da LE, visando superar algumas limitações da AC.
Parte da Teoria de Aquisição Linguística de Chomsky, dos conceitos de competência e
performance, aos quais Corder (1967) relaciona erros sistemáticos e erros não
sistemáticos. Soma-se o conceito de competência comunicativa de Hymes (1972, apud
DURÃO, 2004b) à teoria sócio-cognitiva e interacionista de Vygotsky (2009 apud
DURÃO, 2004b). Na AE houve uma mudança em relação ao erro, que passou de ser
mostra de fracasso a indicativo de aprendizagem. Há, inclusive, em Durão (2007, p. 16-
20), uma listagem detalhada dos cinco critérios da AE para classificar os erros:
linguístico; gramatical; etiológico; pedagógico; comunicativo. Por receber críticas em
5
continuum que se constituye desde que empieza el contacto del aprendiz con la lengua
meta, hasta que avanza a una etapa en la que, al menos en teoría, LM y LO coexisten.3”.
3
Peço a permissão do(a) leitor(a) para manter as citações em língua espanhola conforme o original.
7
o objeto direto (Compré el libro. Lo compré.). Mas a dificuldade que ser quer observar
nesta pesquisa é a troca do artigo definido masculino el pelo artigo neutro lo.
Analisando a descrição gramatical para este objeto, percebe-se que, além do já
constatado acima, há causas históricas para essa troca. Becker (1999, p. 28) afirma que
“"el artículo neutro lo – legítimo orgullo de la lengua castellana – no tiene forma propia en
las demás lenguas neolatinas. Se ha producido en ellas la confusión gráfica entre el neutro y el
masculino.". Alvar (2000, p. 292-4) descreve peculiaridades formais, funcionais e valores
significativos para o artigo neutro.
Durão (2005) analisa as dificuldades que ocorrem sistematicamente na interlíngua
de estudantes brasileiros da graduação em Letras, aprendizes de espanhol, em relação ao
uso dos artigos definidos. Especialmente em relação ao uso do artigo neutro, a autora
afirma que “en la IL de brasileños aprendices de español son abundantes enunciados en
los que el uso del artículo neutro es erróneo” (DURÃO, 2005, p. 142). O exemplo citado
é: Lo libro era realmente muy bueno.
Esse uso está incorreto porque em espanhol não se admite o artigo neutro antes de
substantivo por não haver substantivo neutro nesse idioma. Durão (1994a, p. 122-3)
afirma, ao analisar o uso equivocado do artigo neutro por falantes do português aprendizes
do espanhol, que considerando o aspecto formal não há artigo neutro em português para
substantivação, mas considerando o aspecto semântico há sim a substantivação através do
artigo masculino singular determinado. A dificuldade consiste em que o aprendiz
brasileiro precisa distinguir entre a forma masculina e a forma neutro no uso, já que são
coincidentes morfologicamente.
Sobre o uso equivocado de lo, Durão (2007, p. 16-9) explica que do ponto de vista
linguístico, há um erro por falsa seleção; do ponto de vista gramatical, um erro ortográfico
e morfológico; do ponto de vista etiológico, além de ser intralinguístico, pode ser também
transitório ou permanente (fossilizado ou fossilizável) e do ponto de vista pedagógico,
pode ser de compreensão, produção, coletivo, oral e escrito.
Loose (2006), em sua dissertação de mestrado sobre o papel da instrução explícita
na aprendizagem de espanhol por brasileiros, aplicou testes a 23 alunos estudantes da
segunda fase da graduação em Letras Português e Espanhol antes e após instrução. Os
testes consistiam em um texto com tarefas de compreensão e de completar lacunas. Os
dados apontaram que na sentença El niño se fue a su casa somente 23% utiliza o artigo
definido masculino corretamente e que após a instrução o nível de acerto aumenta p ara
54% (p. 69). Já nas frases onde o artigo a ser completado era o neutro, a diferença de
8
acerto entre antes da instrução e depois é muito maior. Em uma frase onde o lo deveria ser
colocado antes de um adjetivo, 40% completaram corretamente antes da instrução e 70%
depois (p. 68). Esses dados apontam que os alunos compreendem a utilização do artigo
neutro em espanhol, mas que a dificuldade está na interferência da língua materna em
utilizar o artigo definido masculino el.
4
Esclarecendo: o artigo de revista referido aqui não é o artigo acadêmico, com fins de publicação. É um texto
breve, informativo e de entretenimento, com conselhos de moda, saúde e beleza.
9
tal como foi proposta na coleta de dados desta pesquisa, é a de “ajudar o aluno a dominar
melhor um gênero de texto, permitindo-lhe, assim, escrever ou falar de uma maneira mais
adequada numa dada situação de comunicação. [...] As seqüências didáticas servem,
portanto, para dar acesso aos alunos a práticas de linguagem novas ou dificilmente
domináveis.”
qualquer relação com a coincidência da forma. Esses dados levam a crer que não houve
trabalho suficiente com esse aspecto gramatical, facilitando a ocorrência de interferências
da língua materna, tornando-o passível de fossilização.
Os dados que foram coletados no primeiro semestre letivo de 2011 servem como
amostragem dos problemas a serem averiguados na pesquisa. Aqui serão apresentados e
discutidos os dados levantados de três textos produzidos por duas alunas do último semestre
de língua espanhola que se referem ao uso do artigo neutro e à adequação de seu texto aos
parâmetros do gênero textual artigo de revista, como foi especificado anteriormente.
As duas participantes cujas produções serviram para esta análise estavam na 7ª fase do
curso de Licenciatura em Letras Espanhol da UFSC. Este é o último semestre de língua e falta
apenas um semestre para a conclusão do curso. Os alunos matriculados na disciplina
Língua Espanhola VII já cursaram 6 semestres da disciplina língua espanhola, além de
outras disciplinas, tais como literatura (espanhola e hispano-americana), pedagogia e
linguística, entre outras.
A partir do questionário aplicado no início da coleta de dados depreenderam-se as
informações relatadas a seguir. Os participantes da pesquisa selecionados para a análise
neste texto são duas meninas, com idade de 22 e 23 anos, brasileiras falantes de português
como LM, residentes na região metropolitana de Florianópolis. A participante 1 (P1) tem
22 anos, conhece o idioma inglês mas se declara com pouco conhecimento nessa língua.
Na infância não escutava outro idioma além do português, trabalha há um ano com o
ensino de língua espanhola, gosta de línguas estrangeiras, acredita que o espanhol é uma
língua útil para o futuro, em ascensão e com oportunidades de trabalho. Pensa que sua
maior dificuldade no espanhol é a gramática e a maior facilidade é a pronúncia. A
participante 2 (P2) tem 23 anos, conhece o idioma inglês e se declara proficiente nessa
língua. Na infância não escutava outro idioma além do português, trabalha há um ano
como secretária, não utilizando o idioma espanhol no cotidiano profissional. Gosta da
língua espanhola porque lhe parece bonita e interessante, para ela estudar línguas
estrangeiras é interessante para ampliar o conhecimento, acredita que o espanhol é uma
língua útil para o turismo e a comunicação internacional porque é falada nos países
vizinhos. Pensa que sua maior dificuldade no espanhol é o vocabulário e o fato de ser
parecido com o português, e as maiores facilidades são a pronúncia e a compreensão.
Essas participantes e seus textos foram eleitos para essa análise, dentro de um
corpus composto de produções textuais de 25 alunos, pelas características apresentadas e
pelos objetivos deste trabalho. Cada participante da pesquisa piloto escreveu três textos
11
em língua espanhola. O primeiro em março, a partir de um texto com dicas para a saúde; o
segundo em abril, a partir de um texto descrevendo sintomas e prevenção de doenças; e o
terceiro, em maio, reescrevendo o segundo texto. Os três textos foram orientados para ser
escritos no formato artigo de revista de entretenimento, como assinalado acima.
A P1 escreveu o texto 1 (T1) dentro do esperado para o formato orientado, com
linguagem acessível, frases simples, informações para o leitor, contextualizando o tema.
Sobre o uso dos artigos, todas as ocorrências de artigos definidos e indefinidos estão
corretas. Aparece um uso do artigo neutro e está empregado corretamente. O texto 2 (T2)
também está com todos os artigos, inclusive duas ocorrências do artigo neutro, utilizados
corretamente. O texto 3 (T3) também está dessa forma. É interessante observar que nos
três textos o artigo neutro somente aparece em expressões como: lo que pasa e lo que
consiga. Para Gómez Torrego (2002, p. 72) no exemplo anterior o artigo neutro precede
orações inteiras, substantivando-as. O autor destaca, porém, que “en estos casos, la forma
lo es un pronombre que actúa como núcleo de un grupo nominal.”. Portanto essas
expressões não serão objeto de análise aqui.
A P2 escreveu o T1 dentro do esperado para o formato orientado, com linguagem
acessível, porém com frases mais complexas e parágrafos mais longos. Ainda assim
estabeleceu um diálogo com o leitor, oferecendo informações e explicações sobre o tema,
contextualizando-o. Sobre o uso dos artigos, todas as ocorrências de artigos definidos e
indefinidos estão corretas. Aparecem três ocorrências do artigo neutro, sendo uma com
expressão do mesmo tipo do S1, uma substantivando adjetivo (a lo largo) e uma
retomando expressão anterior (lo sabe). Há ainda duas ocorrências do pronome
complemento direto (se lo pode y se lo cuide), que não são objeto desta pesquisa. O T2
também está com todos os artigos corretos. Há uma ocorrência do artigo neutro
substantivando adjetivo (lo necesario). As outras ocorrências são do pronome cuja forma
coincide morfologicamente. No T3 também aparece somente essa ocorrência citada no T2.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nossa hipótese foi parcialmente confirmada, afinal essas alunas apresentam, em
sua maioria, um uso adequado do artigo neutro. O único erro encontrado foi do mesmo
tipo do citado por Durão (2007) e Loose (2006). Por causa dos resultados obtidos nesta
análise, o objeto desta pesquisas será alterado, visto que as ocorrências de uso inadequado
do artigo neutro foram muito baixas.
12
À luz dos dados verificados constatou-se que a interlíngua desses alunos está
próxima da língua-alvo, apresentando poucos erros sistemáticos. Isso é fator positivo no
processo de ensino e aprendizagem de ELE. Pode-se, a partir disso, pensar em estratégias
para interferir em outros âmbitos, nos quais as dificuldades apresentem-se como mais
marcantes, já que essa – o uso do artigo neutro – foi considerada como irrelevante.
Esse fato – a mudança no tema da tese, sem alteração da base teórica – foi
frutífero, já que possibilitou amadurecimento do propósito da pesquisa. Realizar a
pesquisa piloto ainda no início do processo foi de grande valia para reorientar as leituras
em relação ao objeto da pesquisa e reafirmar a base teórica.
8 REFERÊNCIAS
ALVAR, Manuel (Org.). Introducción a la lingüística española. 1. ed. Madrid: Ariel, 2000.
GERALDI, João Wanderley. Portos de passagem. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes,
1997.
Sumário de Literatura
Sumário de Literatura
76. LOS SIETE LOCOS DE ROBERTO ALRT E LEOPOLDO TORRE NILSSON: DO LIVRO À
TELA - Janete Elenice Jorge
Sumário de Literatura
93. WALY SALOMÃO: o fazer poético como persona de si mesmo – Gabriela Cristina
Carvalho
SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo
RESUMO
Palavras-chave:
Rock. Tropicalismo. Nacionalismo.
ABSTRACT
Since its consolidation in the Brazilian culture, the Tropicalism is designed by intellectuals as
a form of representation associated with allegory. The tropicalist allegory conception consists
in a representation, on the one hand, modern, and, on the other hand, national. Thus, the
allegory seems as an update of Brazil's representations, so that Carlos Basualdo says that the
Tropicalism intends to think the Brazilian national identity as an open process in continuous
development and, therefore, the incorporation of the rock elements on it serves as a mean of
updating the musical production in Brazil. Although the incorporation of the rock is
understood as a process, as mentioned by Basualdo, the Tropicalism preserves notions of
form and formation that characterize nationalisms, since it intends to found the national
identity in its own way. And this is evidenced by the resumption of the evolutionary line
proposed by Caetano Veloso and critically developed by Augusto de Campos in the process
of institutionalization of MPB (Brazilian Popular Music), in a way that the allegory is
associated with the linear progress of historicist historiography. If, on the one hand, the
Tropicalism, according to the dialectical nature of the allegory, synthesizes the polarities
represented by MPB and by the rock, on the other hand, the rock produces a counter-discourse
of national identity through a procedure that refuses to operate logically or dialectically,
which is the subject of this work.
1
Doutorando em Literatura; bolsista do CNPq; e-mail: thbreunig@gmail.com.
2
Keywords:
Rock. Tropicalism. Nacionalism.
musicais estrangeiros passam no Brasil consistem em uma “deformação que transforma fontes
exclusivamente estrangeiras numa organização que sem ser propriamente original” se torna,
segundo o pensamento mariandradiano, “caracteristicamente nacional” (ANDRADE, 1976, p.
93).
Em detrimento da forma e da formação prevista e precedida pelo processo de
deformação a partir da formação e da fixação dos caracteres musicais constitutivos de uma
musicalidade brasileira elaborada discursivamente a partir do pensamento marioandradiano, o
rock no Brasil dos anos 1970 recorre, contraditoriamente, a processos de deformação. A
deformação dos paradigmas que informam a MPB pelo rock no Brasil funda um discurso que
problematiza a naturalidade dos ritmos brasileiros por meio de uma contradição que
desnaturaliza conceitos de valor evidentes.
Assim, se no Brasil se forma um sistema cultural diferenciado para o sistema musical
em torno da MPB e se, como afirma Marcos Napolitano (2001), a configuração do conceito
de MPB ocorre a partir do Golpe de 1964 e se consolida em 1968, depois do Tropicalismo, o
conceito se estabelece como uma instituição cultural capaz de atribuir uma identidade
nacional e popular, bem como legitimar a hierarquia cultural. O processo instituinte ocorre
concomitantemente ao debate em torno do engajamento musical como redimensionamento
com a tradição com fins de popularização e afirmação nacional em contraposição ao rock,
compreendido como o outro contra o qual se afirma a identidade nacional e como a contraface
do golpe de 64, ao passo que a MPB permaneceria associada aos discursos de autenticidade,
de origem, etc.
Em outras palavras, enquanto o duvidoso conceito de MPB mantinha uma “certa
função de „defesa-nacional‟” (SANDRONI, 2004, p. 29), ironicamente consoante ao projeto
cultural do Estado, o rock no Brasil dos anos 1970 produz sentidos a partir da incorporação de
caracteres preestabelecidos nos discursos acerca do que se compreende como nacional. Nesse
sentido, ao confrontar os aspectos constitutivos da cultura brasileira e da identidade nacional
presentificados na MPB, o rock, no Brasil, suspende a dicotomia entre o nacional e o
estrangeiro ou a MPB e o rock, conservando, no entanto, os opostos da polaridade que
sustenta o discurso musical nacionalista.
No Brasil, o advento do rock and roll remonta a meados dos anos 1950, com as
interpretações e traduções brasileiras dos originais provenientes dos Estados Unidos,
eventualmente adaptadas com instrumentos populares ou regionais, como o acordeom, a
exemplo da versão instrumental de “Rock around the clock”, de Bill Haley and his Comets,
composta pelo acordeonista Frontera em 1955, como que confirmando a contraditoriedade
5
interna que caracteriza o rock, conforme Richard Middleton (1990). Antes, portanto, de o
Tropicalismo promover o “deslocamento dos instrumentos” da Jovem Guarda para a MPB,
como constata Augusto de Campos (2008, p. 154), o rock desloca instrumentos e sonoridades
de manifestações musicais regionais e populares do Brasil. E se o deslocamento constatado
por Augusto de Campos “tem, em si mesmo, um significado”, certamente o tem os
deslocamentos propostos pelo rock no Brasil. Apenas em 1957, ano de que datam as primeiras
composições brasileiras em ritmo de rock, a guitarra seria utilizada em um rock composto por
Betinho e seu Conjunto.
A consolidação do rock and roll no mercado musical brasileiro provoca o
aparecimento de compositores e versionistas de sucessos do ritmo para a interpretação de
cantores brasileiros, bem como de bandas instrumentais influenciadas pelos ritmos da surf
music, do twist e do hully-gully. Se desde o seu advento no Brasil, o rock and roll se
confronta com um oposicionismo moral e politicamente orientado, o sucesso da Jovem
Guarda, nos anos 60, potencializa o dilema nacionalista compartilhado pela ideologia do
Estado e da oposição ao Estado desde o Golpe de 1964, quando se radicaliza a polarização
que dividiu a sociedade brasileira, de modo reducionista, entre o “nacional-populismo” e o
“nacional-desenvolvimentismo”, ambos nacionalistas, portanto, confirmando o aspecto
invariavelmente nacionalista que caracteriza a cultura no Brasil nos anos 1960. E esse quadro
se agrava com o decreto do AI-5 em dezembro de 1968.
Na medida em que dialoga com os aspectos constitutivos da cultura brasileira e da
identidade nacional, presentificados na MPB, por meio da relativização da dicotomia
instaurada no discurso nacionalista musical, o rock no Brasil dos anos 1970 permite, portanto,
entrever as suas contradições. Assim, Raul Seixas, por exemplo, suspende a referida
dicotomia ao comparar os ritmos do rock and roll e do baião, respectivamente intercalados nas
estrofes da canção:
6
Ao ceder ao dois por quatro do baião, “Let me sing, let me sing” apresenta um
significativo rompimento do compasso quatro por quatro do rock, que subverte o ritmo e
produz sentido ao compreender a metade do compasso quatro por quatro no interior de um
compasso dois por quatro, como graficamente representado pela partitura:
2
SEIXAS, Raul. Let me sing, let me sing. In: SEIXAS, Raul. Let me sing my rock’n’roll. São Paulo:
Independente, 1985. 1 disco sonoro. Lado A, faixa 1 (3min 15s).
3
O referido paradigma se caracteriza pela imparidade proveniente da mistura de unidades binárias e ternárias
que, segundo Carlos Sandroni, consta em manifestações musicais de diferentes lugares do continente americano
onde se importaram escravos. Esse paradigma se difunde em toda parte no lundu do final dos oitocentos, de
modo que as figuras resultantes do paradigma constituem formas largamente empregadas nas composições
brasileiras do XIX e do XX. Cf. SANDRONI, 2001, p. 30.
8
MPB”, em cuja historiografia aparece como precursor do “rock brasileiro” (ALBIN, 2003, p.
352),4 mesmo a despeito de abdicar da tradição da MPB: “Eu nunca fui muito ligado a essa
coisa de raiz da música popular”, afirma Raul Seixas (BAHIANA, 1980, p. 84). Raul Seixas
recusa a tradição da MPB e a sua continuidade representada pelo Tropicalismo ao negar a
“retomada da „linha evolutiva‟”, proposta por Caetano Veloso no debate promovido e
publicado pela Revista Civilização Brasileira, cujo objetivo era entender e equacionar os
novos desafios compreendidos em termos de engajado ou alienado dispostos com a crise
promovida pelo sucesso comercial da Jovem Guarda:
O referido debate foi publicado em maio de 1966, mesmo ano, portanto, do disco
“Jovem Guarda”, da dupla Roberto e Erasmo Carlos. No debate, Caetano Veloso defende a
continuidade de uma tradição musical brasileira nos termos de uma “retomada da linha
evolutiva” que poderia oferecer “uma organicidade para selecionar e ter um julgamento de
criação” (VELOSO apud BARBOSA, 1966, p. 378). A partir das palavras de Caetano Veloso,
Augusto de Campos (2008, p. 144) transforma a “linha evolutiva” em palavra de ordem em
seus artigos, interpretando a mesma sob o signo da antropofagia de Oswald de Andrade e,
musicalmente, como a “abertura experimental em busca de novos sons e novas letras.” E ao
estabelecer uma ponte discursiva entre a defesa da “linha evolutiva” de Caetano Veloso e o
Tropicalismo, Augusto de Campos (2008, p. 145) postula a inutilidade do nacionalismo diante
da “intercomunicabilidade universal”, a partir da qual Caetano acabaria “com a
„discriminação‟ musical entre MPB e jovem guarda.”
A necessidade de negar uma continuidade com o Tropicalismo se apresenta como
uma necessidade de afirmar o rock como um lugar discursivo e, por conseguinte, social.6 A
4
Com uma preocupação evidentemente historicista, Ricardo Cravo Albin incluiu Raul Seixas em sua
historiografia da MPB como o “primeiro artista a misturar sistematicamente o rock com ritmos brasileiros,
principalmente o baião – e isso ainda na Bahia, onde foi o primeiro músico a correr chão tocando guitarra
elétrica”. Cf. ALBIN, 2003, p. 287.
5
SEIXAS, Raul. As aventuras de Raul Seixas na cidade de Thor. In: SEIXAS, Raul. Gita. São Paulo: Philips,
1974. 1 disco sonoro. Lado A, faixa 3.
6
Raul Seixas (1996, p. 14) mesmo o confirma: “Sou tão baiano como Cae e Gil (...), mas não vim com o
Tropicalismo (...) eu sempre estive no rock”. Raul Seixas (1996, p. 186) ainda menciona os tropicalistas em
escritos esparsos, como “Ser Caetano no final? Esse é o auge que eu posso chegar? Não.” E em poemas que ora
tematizam o sucesso do compositor proveniente de Santo Amaro da Purificação: “O guia cita Caetano,
mostrando Santo Amargo” (SEIXAS, 1996, p. 66), ora problematizam as contradições da MPB e do discurso de
unidade nacional, ironizando as formas difundidas nos festivais (Cf. SEIXAS, 1995, p. 14). Vale lembrar que a
9
letra de “Alegria, Alegria”, como observa Zuza Homem de Mello (2003, p. 203), seria inspirada numa
composição feita dois anos antes e com a qual Caetano Veloso satirizava ao alienados de Salvador: “A letra era
inspirada no seu „Clever Boy Samba‟ – feito dois anos antes para um show no boate Anjo Azul e jamais gravado
– e satirizava os alienados de Salvador: „Pela rua Chile eu desço/ sou belo rapaz/ cabelo na testa fecha muito
mais [...] as brigittes vão passando [...] no Farol da Barra/ em falta de Copacabana...‟.”
10
7
PERFUME AZUL DO SOL. O abraço do baião. In: PERFUME AZUL DO SOL. Nascimento. São Paulo:
Chantecler, 1974. 1 disco sonoro. Lado A, faixa 5 (2min 53s).
11
8
SÁ, RODRIX E GUARABIRA. Hoje ainda é dia de rock. In: SÁ, RODRIX E GUARABIRA. Passado,
presente, futuro. São Paulo: Odeon, 1971. 1 disco sonoro. Lado A, faixa 6 (2min 19s).
13
Ao submeter o acento do compasso quatro por quatro do ritmo do rock and roll ao
acento do compasso dois por quatro do ritmo do xote, a canção produz um shuffle com o
acento do ritmo do xote. O shuffle caracteriza o ritmo tercinado do blues e do rhythm and
blues, dos quais se origina o rock and roll, que abandona o modelo tercinado pela
dinamização do ritmo. Ao deformar ambos os ritmos, portanto, “Corta Jaca” apresenta um
shuffle caracterizado por uma sonoridade que se poderia denominar, apenas
contraditoriamente, “tipicamente brasileira” ou “caracteristicamente nacional”, uma vez que
neutraliza a identidade, sobretudo quanto a aspectos de nacionalidade:
9 ARNALDO & A PATRULHA DO ESPAÇO. Corta jaca. In: ARNALDO & A PATRULHA DO ESPAÇO.
Elo perdido. São Paulo: Vinil Urbano, 1988. 1 disco sonoro. Lado A, faixa 3 (3min 55s). O termo que denomina
a canção remete a um passo tradicional do samba e se homonimiza com uma canção de Chiquinha Gonzaga que
se populariza com a letra de Machado Careca, a qual afirma que impera quem “sabe cortar a jaca nos requebros
de suprema perfeição”. No entanto, uma letra posterior indica o duplo sentido do termo, revelando o sentido
sexual que se confunde com o ritmo: “Sou a jaca saborosa...”.
14
Aqui interessa reter dos versos, que neutralizam as polaridades opostas de uma
oposição, o gesto que, talvez aludindo aos versos de Caetano Veloso – “Caminhando contra o
vento...” – e consoante ao ritmo que o sustenta, pretende, ao refutar a “linha evolutiva” da
MPB representada pelo Tropicalismo, fundar um lugar enunciativo ao rock and roll no Brasil,
como confirma o refrão:
10
MUTANTES. O contrário de nada é nada. In: MUTANTES. Tudo foi feito pelo sol. Rio de Janeiro: Som
Livre, 1974. 1 disco sonoro. Lado B, faixa 3.
15
Com efeito, o referido gesto prolifera entre as bandas de rock no Brasil dos anos
1970, a exemplo dos versos de uma canção registrada no primeiro disco da Patrulha do
Espaço depois de Arnaldo Baptista, datado de 1978:
Afinal, se no final dos anos 1960 os Mutantes integram o Tropicalismo, a partir dos
anos 1970, abdicam do movimento de continuidade da tradição da MPB e afirmam uma
identidade propriamente roqueira, como exprime o sujeito da canção, de modo que o
abandono dos ritmos brasileiros, conforme Carlos Calado (1995, p. 300) reduz a banda a
“uma sombra de si mesma”.
No processo de polarização, enfim, que, concomitantemente ao processo de
nacionalização do samba nos anos 1930, considerado ritmo nacional mantenedor da
identidade nacional, dividiu a sociedade brasileira, o Tropicalismo, conforme a natureza da
alegoria,13 sintetiza dialeticamente as polaridades, culturalmente representadas nos anos 1960,
por um lado, pela MPB e, por outro, pelo rock.
11
PATRULHA DO ESPAÇO. Role da estrada. In: PATRULHA DO ESPAÇO. Dossiê volume 1: 1978/1981.
São Paulo: Independente, 1997. 1 disco sonoro.
12
MUTANTES. Rock‟n‟roll city. In: MUTANTES. Ao vivo. Rio de Janeiro: Som Livre, 1977. 1 disco sonoro.
13
Ao diferenciar o símbolo e a alegoria, Walter Benjamin (1984, p. 187) afirma que “a alegoria não está livre de
uma dialética correspondente”, de modo que o estudo da forma do drama barroco alemão revela “a violência
desse movimento dialético”: “O amplo horizonte que Görres e Creuzer atribuem à intenção alegórica, enquanto
história natural, pré-história da significação ou da intenção, é de natureza dialética. A relação entre o símbolo e a
alegoria pode ser compreendida, de forma persuasiva e esquemática, à luz da decisiva categoria do tempo, que
esses pensadores da época romântica tiveram o mérito de introduzir na esfera da semiótica”.
16
Se, como sugere Middleton (1990, p. 18), o rock and roll se caracteriza por uma
contraditoriedade interna e por se inserir entre as polaridades no interior da contradição de
modo a organizar o problema de maneira particular, a MPB, por outro lado, pelo sentido de
nacionalidade que adquire, constitui uma polaridade da contradição. A MPB articula a
oposição de uma cultura nacional a uma cultura estrangeira ao delimitar uma autenticidade
que supostamente se realiza nas manifestações populares e regionais que reafirmariam a
identidade nacional, contribuindo para o estabelecimento de um paradigma firmado na
nacionalidade. E o Tropicalismo, ao sintetizar dialeticamente as oposições, confirma o
referido paradigma preservado pela MPB. Afinal, como afirma Napolitano (2001, p. 343), a
pluralidade e as contradições, “como em todo processo de institucionalização de uma
determinada expressão cultural”, “tendem a se perder”.
A partir do processo de incorporação de caracteres preestabelecidos nos discursos
acerca do que se compreende como nacional, o rock, ao problematizar as polaridades
contrastantes representadas pelo rock e pela MPB, potencializa as polaridades, mas as
equiparando, sem ser indiferente, no entanto, ao que as diferencia. O rock no Brasil dos anos
1970 produz, assim, por meio de um procedimento que se nega a operar logicamente ou
dialeticamente, um discurso sobre a identidade, sob o signo de uma contradição
permanentemente contradita.
Para tanto, o rock apresenta recorrentemente o seu sujeito (des)situado entre as
polaridades contrastantes, o eu e o outro, o urbano e o rural, o presente e o passado, o rock e a
MPB, de modo que o sujeito afirma e nega a identidade a partir de um lugar no qual a
polaridade aparece e desaparece. E ao problematizar a unidade convencionada a partir de uma
identidade nacional e uma cultura brasileira, fundamentada na contraposição com o outro, o
rock representa o aparecimento e o desaparecimento de cada categoria e, por conseguinte, da
possibilidade de unidade de cada categoria.
REFERÊNCIAS
ALBIN, Ricardo Cravo. O livro de ouro da MPB: a história de nossa música popular de sua
origem até hoje. 2. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
ANDRADE, Mário de. Música, doce música. 2. ed. São Paulo: Martins; Brasília: INL, 1976.
BAHIANA, Ana Maria. Nada será como antes: MPB nos anos 70. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1980.
17
BARBOSA, Airton Lima (Org.). Que caminho seguir na música popular brasileira? In:
REVISTA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA. Rio de Janeiro, n. 7, p. 375-385, maio 1966.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. 7ª ed. Tradução de Sergio Paulo
Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.
CALADO, Carlos. A divina comédia dos Mutantes. Rio de Janeiro: 34, 1995.
CAMPOS, Augusto de. Balanço da bossa e outras bossas. 5. ed. São Paulo: Perspectiva,
2008. (Debates)
MELLO, Zuza Homem de. A era dos festivais: uma parábola. São Paulo: 34, 2003.
SEIXAS, Kika (org.). Raul Rock Seixas. São Paulo: Globo, 1995.
SEIXAS, Raul. O baú do Raul. 23ª ed. São Paulo: Globo, 1996.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo
RESUMO
Nos clássicos infantojuvenis sempre houve em seu cerne a moral como temática. Entre elas, a
moral da morte, encenada em clássicos como A Sombra, Roberto do Diabo e Tereza Bicuda.
No entanto, a morte nunca esteve tão presente, de forma tão cruel como em A Amoreira, conto
alemão dos Irmãos Grimm, datado do século XVIII. A narrativa de tradição oral coletada e
descrita pelos Irmãos Grimm é marcada pela brutalidade do infanticídio e pela ingenuidade do
pai, que se torna canibal sem sabê-lo. O assassinato do menino por sua madrasta e a vingança
do morto são o enredo desse conto e a amoreira que oculta o segredo será o túmulo da
assassina. Assim, nota-se que esta história infantil traz em sua trama elementos sobre a vida e
a morte, que este estudo pretende analisar. Dessa forma, este trabalho é subsidiado pelos
estudos da literatura infantil, a partir dos debates teóricos de Ferraz.
Palavras-chave:
A Amoreira. Conto infantojuvenil. Morte.
ABSTRACT
In classic Children’s and Youth Literature always there were at its core a moral and a
thematic. Among them, the moral of death, performed in such classics as The Shadow, Devil's
Roberto and Teresa Bicuda. However, death has never been so present, so cruelly as in the
The Mulberry Tree, the German Brothers Grimm Tale, dating from the eighteenth
century.The story of oral tradition collected and describedby the Brothers Grimm is marked
by the brutality of infanticide and the ingenuity of his father, who becomes a cannibal without
knowing it. The murder of the boy by his stepmother and vengeance of the dead are the plot
of this tale and the mulberry tree that hides the secret will be the grave of the murderer. Só, it
is noted that this children's story brings plot on the life and death, this study intends to
investigate. Thus, this work is subsidized by the studies of children's literature, from the
theoretical arguments of Ferraz.
Keywords:
The Mulberry. Children's and Youth Tale. Death.
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Até hoje se discute qual é o papel da Literatura, o que podemos dizer é que o
conceito de literatura não está fechado, ainda mais se tratando de Literatura Infantojuvenil.
Mas de início, pontuamos a negação da ideia de que a Literatura Infantojuvenil seja uma
2
Discente do Programa de Pós-Graduação em Literatura – Nível Mestrado, da Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC); email: christhiam_moura@hotmail.com.
3
Discente do Programa de Pós-Graduação em Literatura – Nível Doutorado, da Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC); email: robertaphoenix@yahoo.com.br.
2
espécie de subliteratura ou um gênero inferior. Nosso ponto de vista é corroborado por Salma
Ferraz (2007), que afirma parecer estranho falar em Literatura Infantil, Literatura Feminina,
Literatura Negra, Literatura Homossexual, pois tudo é literatura e sendo literatura estas
divisões são meramente metodológicas. Ainda segundo Ferraz (2007), ou o texto é literatura
que prende a atenção do leitor em geral, independente de faixa etária, orientação sexual,
etnias, ou não é literatura.
Na literatura dita infantojuvenil há os contos maravilhosos dos Irmãos Grimm. Entre
esses contos há obras como A amoreira, que se estabelece num entre-lugar, pois não é
estudada em sala de aula por causa do seu teor violento, no entanto, essa se localiza entre os
contos infantojuvenis, o que causa inquietação, e nos estimula a questionar: qual a esfera
moral em que esse conto citado pode ser trabalhado? Ou se poderia ser visto em outro
patamar de análise, como um conto que se remete a crianças do século XVIII, mas que
atualmente o seu papel moralizante perde seu teor, pois nele há elementos que fogem do
universo infantil que se propõem atualmente?
E assim, partindo da posição teórica de Ferraz (2007), optamos por contemplar o
conto maravilhoso A amoreira, dos Irmãos Grimm, não como um conto infantil, como era
proposto no seu momento histórico de criação, ou como pode ser visto por outros teóricos,
mas sim, apenas como literatura, aquela que interessa ao leitor.
2 IRMÃOS GRIMM
Os escritores Wilhelm Grimm (1786-1859) Jacob Grimm (1785-1863) foram os
responsáveis por coletar e adaptar as mais diversas histórias para o universo infantil, tiradas
da literatura de tradição oral. Tais histórias fizeram parte do folclore da cultura alemã. A
priori, estes contos e lendas eram destinados aos adultos por sua alta carga de eroticidade e
violência, vale lembrar, que a ideia de infância não tinha a mesma dimensão que tem hoje.
Com a compilação dos Irmãos Grimm, os contos ganharam traduções para o mundo infantil.
Uma divisão aceita para estes contos são: Contos de encantamento, Contos
maravilhosos, Fábulas, Lendas, Contos de enigma ou mistério e Contos jocosos. (FERRAZ,
2007, p. 223). O que nos interessa para a análise deste trabalho é o conto maravilhoso, sendo
que o maravilhoso se expressa em sua categoria através da intervenção do sobrenatural, do
inexplicável, sem causar estranhamento.
3
[...] histórias familiares, feitas para que possa ser expressa a ambivalência
habitualmente oculta. Quer o aspecto ameaçador e detestado da mãe seja exposto,
muitas vezes fazendo ela morrer no parto (o que, de resto, era norma no século
passado) e substituindo-a por uma madrasta muito má ou bruxa – à qual se opõe um
personagem benéfico protetor, fada boa, madrinha, tia, ou um dispositivo mais
simbólico como as três crianças que são a contrapartida benéfica das três damas da
noite –, quer o pai mande o filho correr o mundo para mostrar seu valor, pondo em
risco a sua vida, ou é substituído em seu papel fecundante por uma árvore
maravilhosa que ressuscita o herói (conto “A amoreira”), tudo isso remete
claramente às fantasias inconscientes dos pequenos leitores, às angústias pré-genitais
e às diversas formas do complexo de Édipo. (DIATKINE, 1997, p. 02).
3.1 O enredo
As personagens principais da história são o filho, a irmã, Marleninha – a única
nominada, a madrasta e o pai. Já as personagens secundárias são a mãe – falecida na abertura
do conto só tendo a função de geradora, o ourives, que presenteia o ressuscitado pássaro-
menino com a corrente de ouro, o sapateiro e família, que lhe entregam um par de sapatos e os
trabalhadores do moinho, que o presenteiam com a mó, a finalizadora da vingança.
A trama do conto inicia-se de forma previsível, bem como, a maioria dos contos do
gênero. Havia um homem muito rico casado com uma mulher belíssima. Porém, ainda não
tinham filhos por mais que desejassem. Certo dia, a mulher descascava uma maçã em baixo
da árvore de amoreira, que ficava em frente à casa. Ao se distrair, acabou cortando o dedo e o
sangue escorreu pela neve. Ao olhar o sangue sobre a neve desejou um filho tão alvo como a
neve e tão rubro como o sangue. Como é observado por Diatkine, a [...] mesma gota de
sangue na neve e a árvore maravilhosa parece fecundar a mãe. A continuação do conto é uma
narrativa dupla, uma de pura alegria por parte da amoreira, a outra, a triste história resumida
no famoso lamento [o canto do pássaro]. (DIATKINE, 1997, p. 09)
O começo deste conto assemelha-se muito com A Branca de Neve e os Sete Anões,
com a diferença que em A amoreira o desejo da mãe é pelo filho do sexo masculino.
Grávida a mãe passa mal ao comer as frutas da amoreira e falece no parto, mas feliz.
O seu último pedido foi ser enterrada embaixo da árvore. A sua morte está ligada diretamente
à amoreira assim como o nascimento de seu filho, o que coloca a árvore como centro pulsante
da história.
O viúvo casa-se com outra mulher, com quem tem uma filha, Marleninha – nome
derivado de Madalena, nome bíblico hebraico, que pode significar amável. O pai assume um
papel de submisso, manipulado pelas artimanhas da madrasta, um ingênuo que não toma
posicionamento.
5
Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:The_Mulberry_Tree_by_Vincent_van_Gogh.jpg
O personagem paterno está no centro da ação, mas sobre ele é mantido silêncio.
Cada leitor pode imaginar o que quiser, ou não representar nada sobre esse
personagem central se suas disposições internas o levarem a deixar qualquer
imagem paterna no campo pré-consciente. (DIATKINE, 1997, p. 04)
Quando o menino entrou ela lhe disse, com fingida doçura: “Meu filho, queres uma
maçã?” e lançou-lhe um olhar ar revezado. “Oh, mamãe” disse o menino “que cara
assustadora tens! Sim, dá-me a maçã.” “Vem comigo” disse ela animando-o, e
levantou a tampa “tira tu mesmo a maçã.” Quando o menino se debruçou para pegar
6
a maçã, o demônio tentou-a e paff! ela deixou cair a tampa cortando-lhe a cabeça,
que rolou sobre as maçãs. (GRIMM, 2011, s/p)
Marleninha, por que choras?” perguntou ele. “Teu irmão voltará logo. Oh mulher,
como está gostosa esta comida! Dá-me mais um pouco.” Mais comia mais queria
comer, e dizia: “Dá-me mais, não sobrará nada para vocês; parece que é só para
mim.” E comia, comia, jogando os ossinhos debaixo da mesa. Marleninha foi buscar
seu lenço de seda mais bonito, na última gaveta da cômoda, recolheu todos os ossos
e ossinhos que estavam debaixo da mesa, amarrou-os bem no lenço e levou-os para
fora, chorando lágrimas de sangue.” (GRIMM, 2011, s/p)
dentro da nuvem parecia ter um fogo ardendo; do fogo saiu voando um lindo
passarinho, que cantava maravilhosamente e alçou vôo rumo ao espaço; quando
desapareceu a amoreira voltou ao estado de antes e o lenço com os ossos havia
desaparecido. (GRIMM, 2011, s/p)
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Literatura está num espaço de discussão, ela está sempre em reformulação,
ganhando novas concepções, desse modo, ela não está fechada, muito pelo contrário, está
suscetível a receber contribuições e interpretações de seus teóricos.
Quando o assunto é Literatura Infantojuvenil, e os inúmeros rótulos, que a ela são
atribuídos, é importante pontuar que se trata de Literatura, e sendo Literatura, é o que nos
interessa, independente de que quem sejam seus leitores ou possíveis divisões metodológicas.
A amoreira, conto maravilhoso dos Irmãos Grimm, causa uma certa inquietação,
justamente por apresentar um texto nada “infantil”, embora esteja assim “rotulado”. A
quantidade de mortes e o teor violento que o enredo apresenta expõem um mundo em que a
doçura e ingenuidade não são muito perceptíveis.
Sendo assim, os elementos como a violência, o canibalismo, o assassinato, a
vingança e principalmente a morte, que estão no cerne da trama, são vistos como temas
densos para o universo infantojuvenil; contudo, em A amoreira, esses motes são construídos
de forma peculiar por se consistirem em um conto maravilhoso em que o fantástico não causa
espanto, o que nos pode causar assombro ao final é a naturalização da morte, que é tratada
sem assombro pelos personagens.
5 REFERÊNCIAS
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1980.
COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: teoria – análise – didática. São Paulo: Ática,
1997.
DIATKINE, René. As linguagens da criança e a psicanálise. Ide (São Paulo) [online]. 2007,
vol.30, n.45, pp. 35-44. ISSN 0101-3106.
MATA, Sergio; MATA, Giulle Vieira da . Os irmãos grimm entre romantismo, historicismo e
folclorística. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais. Abril/ Maio/ Junho de 2006
Vol. 3 Ano III nº 2 ISSN: 1807-6971 .Disponível em: <http://www.revistafenix.pro.br>.
NASCIMENTO et al. Morte e Criança. Rev. Min. Enf., 3(1/2):68-74, jan./dez., 1999.
RESUMO
O trabalho propõe uma reflexão acerca de uma possível herança mítica da atividade do
intérprete de sambas-enredo. Para tal, articulará leituras do diálogo platônico “Íon” e da peça
homônima de Eurípedes, em cotejo com as considerações de Michel Foucault sobre tais textos
e as de Paul Zumthor sobre performance. O objetivo é apontar pontos de confluência entre o
trabalho vocal do intérprete, sua performance, e aspectos discursivos dos dois textos clássicos
gregos, a fim de advogar a genealogia mítica desses cantores modernos.
Palavras-chave:
Samba-enredo. Intérprete. Íon. Performance.
ABSTRACT
This paper proposes an analysis towards a possibly mythic inheritance of the sambas-enredo
singer´s activity. It articulates interpretations of the platonic dialogue “Ion” and the
homonymous drama by Euripides. Those studies are compared to Michel Foucault
considerations upon such texts, and Paul Zumthor´s conceptions on performance. The main
goal is to highlight the confluences between the vocal work of the performer, his performance
itself, and discursive aspects of the two classic Greek texts in order to defend the mythical
genealogy of those modern singers.
Keywords:
Samba-enredo. Performer. Íon. Performance.
1 PRIMEIRAS PALAVRAS
O trabalho aqui apresentado é uma proposta de reconstrução genealógica. Pretende-
se apontar uma linha evolutiva que ligará, de maneira simbólica, a figura do intérprete de
sambas-enredo das escolas de samba do Rio de Janeiro às personagens clássicas Íon de Éfeso,
Íon de Delfos e Orpheu, todas da tradição mítica-literária greco-romana.
O estudo contará, ainda, principalmente, com as observações de Paul Zumthor (1993;
1997) sobre o conceito de performance, e com as considerações de Michel Foucault (2010)
sobre os dois textos clássicos (de Platão e de Eurípedes) que falam, respectivamente, do
rapsodo de Éfeso e do suposto patriarca dos iônios.
Vale salientar, ainda, que a noção de voz que norteia todo este trabalho é aquela
apresentada por Souza (2009, p. 15): a “dimensão subjacente ao discurso, contraparte
temporal e material da enunciação (…) no instante em que, embora soante, ela [a voz] não se
articula a qualquer cadeia significante, a não ser na linha da pura virtualidade”.
1
Mestre em Letras Vernáculas – Língua Portuguesa (UFRJ); e-mail: lucprof@globo.com.
2
2
Texto disponível em <http://www.consciencia.org/platao_ion.shtml>, acesso em 12/09/11.
3
Para maiores informações sobre a gênese do samba e das escolas de samba, ver Mussa & Simas (2010);
Aquino & Dias (2010); Brasil (2007); Araújo (2003).
3
4
Segundo o mesmo autor, em algumas versões do mito Orpheu aparece ligado também a Dionísio, de cujas
proezas seria cantor. Entretanto, aventurar-se por mais essa senda não é tarefa para tão poucas páginas.
5
o registro mnemônico do ano carnavalesco, unidade do “tempo ritual” que a festa de Momo
engendra (CAVALCANTI, 2006). Em última instância, ele é a materialização lítero-musical
(cf. OLIVEIRA, 2002) da história recente do grupo social que a agremiação carnavalesca
representa: a comunidade.
O intérprete é o porta-voz dessa história, dessa gente. Daí advém muito do respeito a
ele devotado. Por isso é tão comum o envolvimento afetivo da comunidade com o samba e
seu intérprete: os dois a representam, são seu discurso e sua voz. Também por isso não é
acaso que o léxico evoque a metáfora da guerra. Ela permeia toda a história da competição
entre as agremiações, incluindo-se as divergências político-ideológicas que sempre servem de
moldura para qualquer fenômeno social.
A noção de “disputa” é conceptualizada5 no dia a dia, como “luta”, ou “guerra”, e
não apenas no que diz respeito ao samba. São comuns expressões como “guerra contra a
balança” para se falar em dietas; jogos em geral viram “batalhas” – como a dos Aflitos, tão
viva no imaginário futebolístico gaúcho –; e, sempre que alguém é acometido por doença
grave, diz-se que a pessoa está “lutando pela vida”. Até na bíblia a expressão surge, pois,
segundo São Paulo (2Tim: 4,7), é preciso “combater o bom combate”.
Assim, num ambiente de competição declarada como sempre foi o caso da
apresentação das escolas de samba, é natural que a metáfora da guerra surja com frequência
nas falas das pessoas e nas expressões cristalizadas daquele campo discursivo.
E, se existe uma “guerra”, existem soldados anônimos, e também grandes
comandantes, grandes heróis. É deles o dever de incitar os homens à batalha e de manter-lhes
o ânimo. A eles cumpre a tarefa de dar a ordem final de ataque. É desses grandes líderes que
emana o “grito de guerra” que desperta a fúria combativa de seus exércitos. O puxador de
samba é um desses grandes líderes.
Assim, hoje, além do imortal “Olha a Beija-flor aí, gente! Chora cavaco!” de
Neguinho da Beija-Flor de Nilópolis, já são famosos o “Alô, Povão, agora é sério! Segura!”,
de Nego; o “Olha a Imperatriz6 chegando!”, de Dominguinhos do Estácio; e, muito
especialmente, o “Arrepia, Salgueiro!”, de Quinho. Mesmo o “Minha Mangueira!”, do já
finado Jamelão – grito que teve vida curta, pois surgiu em 2002 e o último ano de atuação do
intérprete foi 2006 –, foi mantido nas gravações oficiais do samba-enredo da Estação
Primeira de Mangueira nos anos subsequentes à morte daquele que foi chamado de “a voz do
5
A noção de metáfora como processo cognitivo basal é um dos sustentáculos da Linguística Cognitiva.
Especificamente sobre o tema, é possível ler “Metáforas da vida cotidiana” de George Lakoff & Mark Johnson
(Campinas: Mercado das Letras, 2002).
6
O nome da escola pode mudar, conforme o caso, mas o grito é sempre o mesmo.
7
samba”. São essas expressões que, como já se disse aqui, arregimentam uma multidão de
foliões, tanto no asfalto quanto nas arquibancadas7 e identificam os intérpretes no mundo do
samba.
Quando o grito de guerra é emitido, momentos antes do início do desfile de cada
agremiação, dá-se o grande paradoxo: o espaço carnavalizado (cf. Bakhtin, 1999), marcado
pela descontração e pela quebra das convenções, deve, sem perder suas características
essenciais, travestir toda organização e disciplina que hoje o espetáculo das grandes escolas
de samba demanda. Em resumo, é preciso que a irreverência do ânimo dionisíaco mascare a
sisudez do show business.
É precisamente nesse momento que a figura do intérprete do samba-enredo ganha
vulto e se aproxima da imagem de Orpheu. Relativamente dispersos em meio à frouxidão das
regras intrínseca ao próprio carnaval, a escola precisa canalizar toda a empolgação dos
componentes em proveito de um canto ritmado e em uníssono. Quem os guia nessa
empreitada é a voz “potente”, sempre presente à frente das escolas, a que Araújo (2003) faz
referência: a do puxador.
Potente, mas, principalmente, vibrante. Virtuosa. Uma virtuosidade, que, segundo
Valente (2003, p. 41), além de estar ligada à virilidade e à coragem, deve ser exibida, pois “o
público que o aplaude [ao artista virtuoso] está interessado antes na demonstração de suas
proezas técnicas, que na qualidade das obras que executa.”
Então, não é ir muito longe pensar que, ao par de apresentar a própria agremiação, o
grito de guerra é uma maneira musical de o cantor expor aos integrantes da escola e ao
público sua virtuosidade. Até porque esse grito sempre é emitido pelo intérprete em solo, não
importa quantos cantores auxiliares ele tenha ao seu lado. É uma ação solitária, e, portanto,
corajosa e viril como deve ser a atuação de um herói combatente, ou de um semideus:
7
E no entorno da avenida também, pois há público fora do sambódromo, em arquibancadas montadas na Av.
Presidente Vargas, e em cima de árvores ou viadutos das proximidades. Esse público não vê a escola na avenida,
quando muito pode vê-la na concentração, mas ouve o canto que vem do sistema de som da Sapucaí, capaz de
chegar onde a vista não alcança.
8
Assim pode-se compreender mais claramente parte do poder agregador exercido pelo
intérprete de samba-enredo sobre os componentes da escola e sobre o público, em especial no
momento do grito de guerra. Esse brado é o primeiro dos instrumentos com que ele, o cantor
virtuoso, afeta o imaginário das pessoas para adquirir a condição de ídolo, de modelo a ser
seguido.
Esse é um forte indício da ancestralidade mítica que este trabalho advoga em favor
do puxador de samba (o primeiro, já exposto anteriormente nestas páginas, é sua relação com
o rapsodo Íon, com Homero e com a Musa). Agora, vê-se endossada, pelas palavras de
Heloísa Valente, a hipótese de uma ligação arquetípica entre o cantor das escolas de samba e
Orpheu, o filho de Apolo. Ambos semideuses, ambos herdeiros do Deus da Música, eles
teriam também em comum o poder divinal de encantar as pessoas com a simples exibição da
própria voz.
Voltando ao início do desfile, o que se percebe é que cada componente, encantado
pelo som da voz do puxador, hipnotizado por seu grito de guerra, quiçá também em transe
(como Platão diz que o próprio intérprete está durante a performance), cada componente deve
se sentir, ele mesmo, naquele momento, e a um só tempo, uma espécie de duplo do puxador e
metonímia da agremiação em desfile.
Inspirados pelo cantor oficial, todos começam a cantar o samba ainda na
concentração, enquanto se dirigem para a passarela; ao entrarem na rua Marquês de Sapucaí,
quando de fato inicia a apresentação, é necessário cantar, de preferência todo o tempo, a
plenos pulmões, no ritmo certo, e dançando com animação (em terminologia específica,
“evoluindo”); toda a energia dos componentes deve estar aplicada nisso, que deve parecer um
comportamento espontâneo, natural, advindo da empolgação que o samba gera. O puxador
precisa provocar tudo isso; e se cada componente o acompanha, então ele alcançou o
objetivo: foi a escola quem fez. A harmonia foi perfeita. A performance, nota dez.
Para que tal sensação se produza com mais força, colabora ainda, sobremaneira, a
disposição das arquibancadas e dos camarotes do sambódromo. Aquelas estruturas tornaram a
rua Marquês de Sapucaí um corredor, um tipo de arena linear, um anfiteatro horizontal
concebido para que o espetáculo se dê em pleno movimento, fluindo harmonicamente entre
dois pontos imaginários, fontes do poder mágico de ligar e desligar a realidade e o sonho.
Esse arranjo certamente colabora para que os espectadores saiam do espetáculo com a
sensação de que tudo aquilo “foi um rio que passou” em suas vidas, como tão bem
metaforizou Paulinho da Viola.
Esse fluxo se dá, em maior ou menor grau, a cada desfile, porque, como diz
9
3 À GUISA DE CONCLUSÃO
A rede de ilações que as páginas anteriores trazem não pretende, em absoluto,
esgotar o tema. Elas são, antes, um convite à reflexão sobre alguns fatores que contribuem
para a tarefa do intérprete de sambas-enredo – o cantor de um gênero musical tombado pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (BRASIL, 2007) como bem imaterial
da cultura brasileira – no momento de sua execução. Em poucas palavras, o objetivo era
apresentar uma possível genealogia mítica do puxador de samba-de-enredo.
Para tal, mostrou-se o vínculo entre esse cantor contemporâneo o o rapsodo Íon,
apresentado por meio do diálogo platônico que tem seu nome. Falou-se, também, da relação
do intérprete dos sambas com outro Íon, o de Delfos e de Atenas, dado a conhecer por um
drama de Eurípedes e pelos comentários de Michel Foucault acerca da peça.
Assim, por não ter sido muito ambicioso, o objetivo deste texto deve ter sido
alcançado.
4 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LAKOFF, G.; JOHNSON, M. Metáforas da vida cotidiana. Campinas: Mercado das Letras,
2002.
MUSSA, A.; SIMAS, L. A. Samba de enredo – história e arte. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2010.
SOUZA, P. Michel Foucault – O trajeto da voz na ordem do discurso. Campinas: Ed. RG,
2009.
VALENTE, H. A. Os cantos da voz: entre o ruído e o silêncio. São Paulo: Annablume, 1999.
_____. As vozes da canção na mídia. São Paulo: Via Lettera/ Fapesp, 2003.
ZUMTHOR, P. A letra e a voz – A “literatura” medieval. São Paulo: Cia. das Letras, 1993.
RESUMO
PALAVRAS-CHAVE:
Machado de Assis. Realismo. Inovação estética. Capítulo curto.
ABSTRACT
The last five novels of Machado de Assis discuss the principles of realist aesthetics, the
relationship between empirical reality and the verbal sign, from the perspective of cultural
denaturalization. In proposing shorter chapters as a narrative technique to express a
fragmented reality, Machado breaks the illusion of the entirety of the project of realist
inventory, as well as the philosophical proposals of the nineteenth century: the experimental
medicine of Claude Bernard, the positivism of Auguste Comte, Darwinian evolution, in short,
the idea of an evolving time and totality, in which the history of mankind can be explained
and controlled as a system of immutable and predictable rules (AUERBACH, 1997). The
destruction of narrative verisimilitude by ―a dead man who writes, as in the case of Bras
Cubas, or a forgetful living man who remembers as in Dom Casmurro (Sir Dour)‖ (Hansen,
2008, p.151) allows Machado to stage the inversion of the conventions considered ―true‖ by
readers. Additionally, in the relationship between the last two novels, Machado proposes a
question of verediction: none of the passages cited in Esau and Jacob as constituent parts of
Counselor Aires's Memoirs can be found in the book that was actually published in 1908.
1
Pesquisadora de Pós-doutorado do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da USP, com
financiamento da FAPESP; e-mail: soares-portela@uol.com.br.
2
There is only a semblance of artistic mimesis in which the stated reference changes the
meaning of the represented to another sign. Finally, Quincas Borba (Philosopher or Dog?),
with a title that deliberately refers to a crazy philosopher or a dog, raises the realist question at
the heart of metaphysics as a pre-Socratic discussion in which the unit of names is unable to
support the diversity of things.
KEYWORDS:
Machado de Assis. Realist aesthetics. Aesthetical innovation. Shorter chapters.
jogo de cenas, espaço onde a representação é posta em perspectiva, cria uma relação de fundo
e plano em que circulam discursos que almejam o status da verdade, disputam espaços, se
avaliam com critérios arbitrários e, ao fazer isso, levam, em última instância, a que o leitor
também o faça. Ao encenar a representação da ciência desaprovando a violência do poder
político, produzido pela lógica criada pelos discursos filosóficos do século XIX, O alienista,
assim como o humanitismo de Quincas Borba, satirizam não o homem, mas aquilo que os
homens falam do homem (TEIXEIRA, 2008 p. 110). Há, ainda, outro desdobramento
especular da representação: à medida que Simão observa Porfírio e o avalia, o leitor observa e
avalia os dois signos em atuação. A lógica cartesiana empregada pelo médico de forma
absurda para avaliar o discurso quase fantástico de sustentação de um poder político
fraudulento e estúpido se evidencia para o leitor, e dessa forma, confere à ficção a
legitimidade crítica que subtraiu da política e da ciência.
Essa mise-en-abyme (RICARDOU, 1971) evidencia que Machado era consciente das
diferenças entre duas formas de poder que regulam o sistema social: o poder da força violenta
e o poder da naturalização de estratos culturais como discurso dominante, ou seja, a
universalização de categorias particulares como universais, em outros termos, o poder
legítimo que justifica seu exercício através de um aparato de regras, (ROSENFIELD, 2004,
p. 138).
Ao desvendar o aparato arbitrário que cria os discursos de legitimidade das ações
políticas, Machado aproxima o discurso da história e da ciência dos modelos constitutivos dos
discursos da ficção. Mas essa aproximação não é isenta de hierarquia. A ficção, que não se
pretende como representação mimética da realidade empírica, por meio do abuso dos modelos
de representação do fantástico, acaba por denunciar o absurdo da legitimidade dos discursos
sociais que almejam o status de verdade. Sendo assim, há uma inversão das categorias
classificatórias das funções sociais desses discursos, à medida que a ciência ganha status de
ficção. O resultado dessa inversão seria uma espécie de falsificação do discurso científico,
lido como verdadeiro pela sociedade oitocentista.
Mas esse processo de falsificação da discurseira científica do XIX tange ainda uma
questão prática, para além da metafísica (se a linguagem é ou não capaz de representar a
essencialidade das cosias, sua ―verdade intrínseca‖). Num país colonial de analfabetos, o
processo da alfabetização coletiva é muito precário e a circulação literária esbarra nos
entraves mais rudimentares: a dificuldade de suporte para os textos dos escritores, ou a
dificuldade material de quem fosse buscar o sustento na literatura. Em Memórias Póstumas,
Machado parece ironizar essa situação. Nesse mesmo país em que o jornal era o principal
4
veículo de circulação literário, a preparação para que o leitor fosse capaz de modificar a
leitura desatenta e superficial do folhetim para a leitura reflexiva e pausada do livro, parece
ser uma das principais preocupações do escritor carioca. Ou seja, a mobilização narrativa em
Machado exige um leitor diferente daquele de Alencar. Não mais engendrado numa
receptividade de entretenimento, mas que participa ativamente do processo de produção de
sentido do livro, como um adversário competente num jogo de xadrez2. Esse leitor, que joga,
é o mesmo que saberá ler as assimetrias sociais3 do corpo do país onde está inserido. O livro
machadiano não apenas representa a fragmentação da cultura; mobiliza o leitor para aprender
a interagir com ela e formar um sentido a partir dela. Tem uma função pedagógica naquilo
que seria o processo de individualização do leitor diante da hegemonia de sentido da cultura
nacional.
É possível que fosse um projeto consciente de Machado individualizar seus leitores
por meio do objeto livro, ensinando-os a funcionar nessa estrutura de sentido fragmentada. Ou
seja, há em Machado, pelo menos no Machado da maturidade, posterior ao período da
publicação de O jornal e o livro (1859), um projeto claro de que o livro é um objeto de
construção de sentido individual e social.
Como construção individual, é repositório de uma herança cultural. Porque o autor
carioca desconfia das teorias cientificistas do XIX, podemos supor que tivesse substituído o
determinismo genético pela herança cultural, sobre a qual supunha atuar. Ora, supondo ainda
que a herança cultural seja capaz de oferecer ao homem respostas aos sentidos procurados, ela
atua na construção da individualidade humana de forma ambivalente. Quando encontramos
sentidos determinados pela cultura, encontramos junto a nossa atuação de busca desse sentido.
Quando encontramos a resposta, temos, junto com ela, o encontro com aquilo a que se
responde e a responsabilidade de incorporar esse sistema na nossa percepção da realidade.
Nesse sentido, o encontro com a cultura do livro é paradoxal. Pois, na leitura, o homem
encontra-se com a resposta que procura, mas encontra-se também consigo mesmo
respondendo.
2
Veja sobre isso, a seguinte passagem de Esaú e Jacó: Ora, aí está justamente a epígrafe do livro, se eu lhe
quisesse pôr alguma, e não me ocorresse outra. Não é somente um meio de completar as pessoas da narração
com as idéias que deixarem, mas ainda um par de lunetas para que o leitor do livro penetre o que for menos
claro ou totalmente escuro.
Por outro lado, há proveito em irem as pessoas da minha história colaborando nela, ajudando o autor, por uma
lei de solidariedade, espécie de troca de serviços, entre o enxadrista e os seus trebelhos. (ASSIS, 1962, V. I, p.
964).
3
Sobre isso ver: Bosi, A. Figuras do narrador machadiano. In: Cadernos de Literatura Brasileira, n. 23/24, jul
2008, Instituto Moreira Salles, São Paulo.
5
lo insistentemente à noção de autonomia do objeto livro, por outro, esse processo cria no
leitor a possibilidade de autonomia na produção do sentido diante de uma realidade
apresentada. Ou seja, à medida que o leitor descobre que pode montar a realidade livro que
será lida, pode transferir, por analogia, essa forma de raciocínio para a decodificação dos
sentidos de uma realidade que, assim como o livro, apresenta-se como um poliedro de
possibilidades de sentidos. Apoiaremos a nossa argumentação em duas análises; a primeira de
Silva (2006) e a segunda de Yela (1998).
Para o crítico brasileiro, o leitor machadiano é multiforme e tem a virtualidade do
movimento. Isso porque:
Às vezes o autor nos convida a não saltar um capítulo (ver o começo do capítulo
XVII, bem como o começo do terceiro parágrafo do capítulo CXXI), às vezes,
desconfia que saltamos e nos aconselha a ler o que pulamos (ver cap. LXXV). No
cap. XVI nos remete ao capítulo XIV; no XVII, ao II e, no CXXXI, ao CL. No
XXXVII pede-nos para relermos o capítulo XXVII; no capítulo LXI, dirige nosso
olhar para o XXV; no LXII, relembra-nos o capítulo XXIII. Todo o capítulo LXVIII
(―O vergalho‖) faz-nos voltar ao começo do capítulo XI (―O menino é o pai do
homem‖); o capítulo CX (31) repercute invertidamente o capítulo LXXXIII (13),
enquanto o CV confirma as leis anunciadas no capítulo LI. Esta mobilidade (que o
leitor apressado costuma recusar), que constitui uma virtualidade no domínio
concreto das páginas do livro, não fica atrás da mobilidade temporal e ontológica: o
leitor pode estar no futuro, como o bibliômano, no presente da leitura e da escrita, e
no passado do próprio herói. Pode ser ainda, e paradoxalmente, uma irrealidade,
uma impossibilidade. (SILVA, 2006, P. 56-57).
A leitura solicitada pela prosa realista machadiana está muito próxima daquilo que
seria a concepção de formação da individualidade humana proposta por YELA, (1998, p.
109), uma vez que o ato de leitura machadiano representa ―virtualmente a mobilidade
temporal ontológica‖, como afirma Silva (ibidem). Se a leitura constitui-se na totalidade de
tempo que o livro leva para ser decifrado e nas possibilidades (quase infinitas) de ordenação
das ações do leitor nesse lapso de tempo, para Yela, a leitura constitui-se numa grande
metáfora das inúmeras formas de disciplinar a experiência de vida do homem.
Nisso consiste ser homem (...). Consiste em imaginar – desde os fundamentos das
leis que ordenam a favor ou contra as circunstâncias de sua vida – até um projeto
que dê sentido a ela, em desenvolvê-lo ou modificá-lo, para aproximar-se,
conscientemente ou de forma confusa, de quem se deseja ser, através das ações que
são executadas, apropriando-se e fazendo pessoal e próprio, em alguma parte, o
mundo em que se vive, a obra que se faz e a ação que se executa. 4
4
Em eso consiste ser hombre (...). Consiste em imaginar − desde el sustento que esas leyes le deparan
− um proyecto que dé sentido a sua vida, em prosseguirlo o modificá -lo al haz y al envés de las
circunstancias, em intentar ir aproximandose a quien, confusa o lúcidamente, se quiere ser, a través de
lãs acciones que por la vida ejecuta, apropiándose y haciendo personal y suyo, em alguma parte, el
mundo em que vive, la obra que hace y la acción con que actúa. YELA, (1998, p. 109)
7
Ora, o livro de Machado se configura num objeto móbile que pode ser montado, de
acordo com a leitura escolhida e transformar-se no objeto que montarmos. O leitor
machadiano não é um simples leitor, mas sim, nos ecos de Padre Vieira, aquele que lê, ou
seja, aquele que excuta o ato de leitura, que constrói fisicamente pelas escolhas deliberativas
da ordenação das páginas, aquilo que vai ler. Se considerarmos o livro (como Machado o
considera) o veículo de perenização e circulação do conteúdo cultural que humaniza a
sociedade, ao possibilitar uma leitura reorganizada pela montagem das partes que o leitor fará
do texto, Machado propõe implicitamente que a leitura da realidade deve ser racionalmente
construída pelo leitor.
Se em Memórias Póstumas de Brás Cubas, o autor carioca chama a atenção para
algo diferente na invenção do artefato ao propor que a estrutura da obra de arte literária é
semelhante à de um quadro − o texto é o conjunto de linhas dispostas num suporte, assim
como um quadro é o conjunto de traços e cores dispostos numa tela − em Quincas Borba, o
estudo do suporte indica uma proposta contrária às Memórias Póstumas de Brás Cubas sobre
a natureza fenomenológica da literatura, mas que também refuta, de forma eficiente, as
propostas realistas: a literatura pode sobreviver na memória dos homens para além do seu
suporte, embora esse determine o conteúdo gráfico que será oferecido ao leitor. Essa
sobrevivência depende da suposição de que um texto que circula por meio da oitiva, como era
o caso dos romances publicados em folhetim no século XIX, persiste na memória coletiva de
um público consumidor específico, embora possa sofrer (e de fato sofra) variações próprias ao
sistema de transmissão oral da mensagem.
Embora o processo de reescrita do romance ─ em que as inúmeras variações
ocorridas entre a versão do folhetim para o livro são evidentes ─ possa ter sido motivado por
aquilo que Saraiva (2008, p. 211) entendeu como uma espécie de consciência do público
receptor de cada veículo material, ou seja, por essa percepção crítica, na transição do folhetim
para o livro ―Machado ajusta a narrativa a uma nova materialidade, privilegiando a concisão e
o envolvimento ativo do receptor‖, o resultado estético dessa passagem é significativo para o
projeto literário machadiano. Porque, apesar de muito diferentes, tanto Quincas Borba
folhetim, quanto a versão em romance, levam o mesmo título e a mesma assinatura de autoria.
Essa decisão editorial não pode ser ignorada. Em relação ao título, o resultado estético é um
questionamento metafísico; em relação à autoria, o artefato inventivo aponta para o
8
Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas
no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo. Dom veio por ironia,
para atribuir-me fumos de fidalgo. Tudo por estar cochilando! Também não achei
melhor título para a minha narração; se não tiver outro daqui até o fim do livro, vai
este mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo rancor. E com
pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é sua. Há livros que
apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto. (ASSIS, 1962, v. III, p.807)
Postos dessa maneira, a máxima de Dom Casmurro e seu reflexo especular trazem
consequências importantes para o entendimento da percepção machadiana de arte que se opõe
à originalidade e à organiciade românticas da arte burguesas. Da mesma forma que uma obra
pode ser o aproveitamento coletivo de estratos culturais diversos sob um mesmo título, esses
estratos culturais coletivos, ou diversos, embora trazendo variações em relação a um enredo
determinado, podem ser agrupados sob um mesmo título. Como a obra é composta por
extratos diversos, a assinatura perde a identidade singularizada e passa a ser coletivizada.
Embora as mudanças ocorridas da primeira para a segunda versão de Quincas Borba
sejam muitas e significativas, possibilitando à Saraiva (ibid.,p. 213-214) levantar a hipótese
de que ―para Machado, a escrita da primeira versão é um exercício em que ele testa os rumos
que pretende dar à narrativa, criando em seus leitores, expectativas que não desenvolve, como
se simulasse o atendimento às convenções romanescas do folhetim para, simultaneamente,
romper com elas‖, a fábula de Quincas Borba se cristaliza na recepção do público como uma
história única e não diversificada. É evidente que esse é o processo próprio de recepção de
uma sociedade iletrada, acostumada com a circulação de fatias de ficção pela oralidade.
Apesar das variações, o público abstrai uma unidade que singulariza um autor específico e um
enredo que possibilite suportar um título. Essa hipótese permite afirmar que para a assinatura
Machado de Assis de Quincas Borba, que não corresponde à mesma de Dom Casmurro ou de
Memórias Póstumas de Brás Cubas as diferentes disposições gráficas de um livro não alteram
de forma determinante o seu significado, comprovando que a obra de arte não é o seu suporte,
ainda que ele seja decisivo para sua significação. A obra Quincas Borba publicada em
folhetim leva a mesma assinatura e o mesmo título do livro Quincas Borba, assim como o
cachorro, de pelos cor de chumbo no livro e cor de café no folhetim, estabelece uma relação
de equivalência. Talvez isso explique o fato de que Memórias Póstumas de Brás Cubas
publicado em folhetim é quase o mesmo que o publicado em livro, porque a assinatura
Machado de Assis corresponde a uma outra proposta estética. Mas a primeira versão de
9
Quincas Borba, publicada durante cinco anos no suplemento Jornal Ilustrado para a Família,
da revista A Estação, sofre inúmeras modificações, embora o livro saia na sequência ao
término da publicação seriada (a publicação em jornal termina em 15 de setembro de 1891, a
publicação do romance se dá no mesmo ano). Isso indica que Machado já reescrevia o
romance enquanto a publicação em jornal ainda saía. Entre essas modificações, indicamos a
supressão de um capítulo que havia no folhetim e parece chave para interpretar a concepção
machadiana sobre a relação entre realidade e representação discutida neste romance:
Aqui está o nosso Rubião no Rio de Janeiro. Vês aquella figura de pé, com os
polegares mettidos no cordão atado do chambre, à janella de uma linda casa da praia
de Botafogo? É o nosso homem. Olha para a enseada; faz comsigo a reflexão de que
se todo o mar fosse assim era um espelho. Depois lança os olhos pela praia, de uma
ponta a outra; a casa delle fica mais ou menos no centro. Não conhece nada tão
bonito: uma ordem circular de casas e jardins, deante de uma bacia de agua quieta,
montanha ao fundo, como um panno de theatro ( ASSIS, 1977, p.22).
Ora, essa passagem parece retomar a crítica feita em 1878 ao Primo Basílio, de Eça
de Queirós: não é possível que o realismo seja a reprodução fiel da realidade, porque a
linguagem é incapaz, por essência, de reproduzir a realidade empírica. O signo não é a coisa.
Mesmo que Eça de Queirós fosse capaz de dizer ―o número exato dos fios de que se compõem
um lenço de cambraia ou um esfregão de cozinha‖ (ASSIS, 1962, v. III, p. 904), há uma
diversidade substancial de fios de cambraia que a nomeação com a forma simbólica ―fios de
cambraia‖ é incapaz de suportar. Quincas Borba, cujo título refere-se propositalmente a um
filósofo louco, ou a um cachorro, insere a questão realista no cerne da metafísica, como uma
discussão pré-socrática pela qual a unidade dos nomes é incapaz de suportar a diversidade das
coisas (a impossibilidade de um só conceito ser capaz de nomear a diversidade dos seres). A
crise da linguagem realista irrompe quando a relação cultural entre linguagem e representação
da realidade empírica passa a ser desnaturalizada.
Mas ―como todo mar não é assim‖, a relação não é dada de forma especular, porque
―o pano do teatro‖ nos alerta para o fato de que a linguagem inventa a realidade seguindo
regras artificiais e intencionais. Quincas Borba elabora um contínuo processo de irrisão que
desloca a relação mediada entre o signo e seu referente, propondo uma dimensão
perspectivista de leitura, uma vez que o folhetim, o livro e a suposta transmissão oral do
enredo em sessões de oitiva funcionam numa relação de fundo e forma, em que a presença de
um dos suportes aparece num primeiro plano onde as existências dos outros ficam suspensas.
Em síntese, o livro apresentado soma-se às variáveis formas de transmissão do enredo e vai
além disso, uma vez que a versão em folhetim aproveita, também, as matérias extensivas e as
10
imagens que compunham o campo de visão da página em que o capítulo vinha impresso. Esse
aproveitamento singulariza a assinatura do autor (mesmo que pela inversão) como um sujeito
inserido no contexto burguês de produção literária num mercado em que a literatura é mais
um produto destinado a consumidores específicos.
Assim como Ponson du Terrail incorporava as notícias dos jornais fait divers para a
composição do seu lendário herói rocambolesco, e embora Machado de Assis afirme nunca
ter lido rocambole (ASSIS, 1962, v.III, p.356), o que não o impede de ter participado de
oitivas durante a infância, o autor fluminense não apenas alimenta seus romances de
publicação seriada com o próprio suporte em que veicula sua literatura, como parece ter
predileção pelos ―fatos diversos‖, que não podem ser nomeados segundo um catálogo
conhecido de referências, numa sociedade aparentemente subordinada à política higienista e
progressista dos anos 70 do século XIX.
Essa política inclui determinantes de práxis sociais, divulgadas pelos veículos
impressos, como revistas e jornais. Além dos textos escritos, no século XIX ―the readers had
in their field of vision the continuation of the serialized narrative and other textual and
pictorial elements, all bound together by the same editorial principles‖, 5 (SILVA, 2010, p. 3).
Entre esses elementos, estavam, por exemplo, seção de modas e anúncios que incentivavam a
prática da filantropia. O leitor que lesse Quincas Borba submetia-se não apenas às ―Les Lois
de l’limitation‖ (TARDE, 1895), mas também à irrisão dessas convenções, à medida que
Machado as incorporava no corpo de sua narrativa para evidenciá-las como práticas
extemporâneas e fora de lugar no contexto brasileiro. Basta lembrar que a filantropia
praticada por Sofia é motivada por um desejo de ascensão social e oriunda de um
comportamento condenável que inclui a sedução de Rubião, para explorá-lo e deixá-lo
suscetível à exploração do marido Palha.
Quando Meyer afirma que ―Quincas Borba saiu publicado em folhetins, mas não é,
nunca foi romance-folhetim (grifos da autora, MEYER, 2005, p. 16) ela pressupõe uma
delimitação conceitual para aquilo que abrange o romance folhetim para além de sua
estruturada fragmentada, publicada em fascículos, geralmente hebdomadários. ―Romance
rocambolesco‖ (ibid. p. 59), ou ―Romance industrial‖ (ibidem) que pode ―provocar uma
explosão de assinaturas‖ (ibidem). De forma específica, seria o tipo de romance praticado por
Dumas: ―mergulha o leitor in media res, diálogos vivos, personagens tipificados, e tem senso
5
―os leitores tinham em seu campo de visão a continuação da narrativa serializada e outros elementos textuais e
pictóricas, todos unidos pelos mesmos princípios editoriais‖. (Tradução livre)
11
do corte de capítulo. Não é de espantar que a boa forma folhetinesca tenha nascido das mãos
de um homem de teatro‖. (ibid, p. 60)
Essa ambição pelo lucro, que motiva escritores como Dumas, Eugène Sue e Ponson
du Terrail acaba interferindo no processo de criação de tais romances. Dumas, consagrado
criador de peripécias industriais teria criado um método pra aumentar seus rendimentos
profissionais: diálogos monossilábicos numa época em que os escritores eram pagos pelos
jornais por linha produzida. Depois da revisão de contrato, proposta pelos editores do ―Le
Siècle‖, outra saída mercadológica: matar os personagens inúteis e trabalhar com um elenco
mais conciso, para facilitar a produção. (MEYER, 2005, p. 61).
Embora do ponto de vista do conteúdo, Machado tenha realmente ignorado os clichês
folhetinescos, tecnicamente ele trabalha muito bem com aquilo que parece ser essencial: o
corte, a fragmentação da história, as estratégias de postergação e retomada de enredo. Esse
domínio técnico fica mais evidente quando comparadas as duas versões de Quincas Borba: a
que saiu em fascículos (entre 1886 e 1991) e aquela publicada em livro (no final de 1891).
Para resolver a evidente perda do suspense na passagem do fragmento de jornal ao todo do
livro, a principal estratégia usada foi a intensificação do caráter corrosivo do discurso
narrativo. Essa corrosão parece focar duas problemáticas pertinentes ao Brasil oitocentista: a
imersão de grande parte da intelectualidade nacional no projeto nacionalista-determinista
proposto pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, e a forte determinação da cultura
francesa nas produções artísticas do período.
Em relação à influência dos paradigmas franceses como discursos ideológicos que
dominavam a cena cultural brasileira do século XIX, o escritor carioca insere-se numa tensão
entre os cânones francês e inglês que promove um distanciamento das bases do nacionalismo
romântico, segundo Guimarães (2008) e cria um efeito de abismo na relação entre a obra
machadiana e o repertório literário da época, uma vez que o próprio paradigma inglês é
fragmentado e refratário aos modelos continentais, como indica Passos (2000, p. 18):
Montaine que abre ―Páginas Recolhidas‖, ―Quelque diversité d’herbes qu’il y ayt, tout
s’enveloppe sous le nom de salade‖ (ASSIS, 1962, v. II, p. 574) propõe duas questões que
serão retomadas em toda a carreira do polígrafo brasileiro: a irrisão dos discursos ideológicos
de seu tempo histórico e a tensão entre aproveitamento do cânone literário francês e ruptura
com esse modelo.
A partir de 1830, começa a produção de um tipo de romance de folhetim que engloba
todo o segundo império francês: o romance de série ou ciclo, preconizado por M. Lecoq e
Émile Gaboriau, cuja marca de identidade era criar um protagonista que atua também nas
próximas narrativas. Desta forma, ―o leitor que espera de um dia para outro sua ração
cotidiana já pode enfrentar o fatídico fim sem susto: seu herói haverá de voltar em outra série
de aventuras‖, (MEYER, 2005, p. 95-96). O romancista se profissionaliza e torna-se um
operário da indústria de massa de comunicação. Coincidentemente, Quincas Borba não
apenas traz a marca desse ciclo no texto (embora dessacralizada, uma vez que o filósofo que
sobrevive ao fim de Memórias Póstumas de Brás Cubas é executado nos primeiros capítulos,
restando apenas, ironicamente como suposto personagem que empresta o nome à narrativa, o
cachorro Quincas Borba), mas também a estrutura de um romance feito para o mercado.
Soma-se a essa afetação de mercantilização do romance, o fato de que o veículo em
que foi publicado (A Estação – Jornal Ilustrado para a família) ser um produto jornalístico
muito atrativo para o principal público consumidor de romances do período, as mulheres
burguesas. Além disso, a estrutura narrativa, assim como o período em que o romance é
contextualizado (segundo império francês), funcionam como índices que apontam uma
estratégia de antropofagia machadiana de todo o contexto de produção e circulação de seu
produto.
É exatamente no governo fraudulento de Napoleão III que as aventuras
rocambolescas de Ponson du Terrail se desenvolvem. Esse mesmo governo ilícito, cuja
imagem e identidade serão perseguidas de forma obsessiva por Rubião, até a loucura
aniquiladora. Governo que deixa de ser governo para tornar-se índice literário, para ser
esvaziado de todo sentido existencial:
Poucos dias depois, [Rubião] morreu... Não morreu súbdito nem vencido. Antes de
principiar a agonia, que foi curta, pôs a coroa na cabeça, — uma coroa que não era,
ao menos, um chapéu velho ou uma bacia, onde os espectadores palpassem a ilusão.
Não, senhor; ele pegou em nada, levantou nada e cingiu nada; só ele via a insígnia
imperial, pesada de ouro, rútila de brilhantes e outras pedras preciosas. O esforço
que fizera para erguer meio corpo não durou muito; o corpo caiu outra vez; o rosto
conservou porventura uma expressão gloriosa.
— Guardem a minha coroa, murmurou. Ao vencedor...
13
A cara ficou séria porque a morte é séria; dous minutos de agonia, um trejeito
horrível, e estava assinada a abdicação (ASSIS, 1962, P. 804).
Para isso, deve evitar o exagero de modismos populares, mas principalmente ―a excessiva
influência da língua francesa‖, (Ibid., p. 808). Isso porque embora ―a França seja a rainha da
Europa‖, (Ibid., p. 943), para além de portar-se como um agente do sistema, alguém que
produz um produto para o mercado, inserido num contexto de reprodução em série da arte,
Machado constrói uma trajetória intelectual baseada na reforma social, e na discussão das
bases que sustentam ideologicamente o sistema em que está inserido, partindo do princípio de
que ―Todas as coisas estão em gérmen na palavra (...), pois desde o gênesis, o verbo é a
origem de todas as reformas‖, (ibid., p. 963), portanto a assimilação subserviente de qualquer
tradição cultural, mesmo que reine na Europa, é sempre um desafio de resistência a quem
deseja colocar-se como livre pensador.
REFERÊNCIAS
HANSEN, J. A. Dom Casmurro: simulacro & alegoria. In: Machado de Assis ensaios da
crítica contemporânea. GUIDIN, M. L., GRANJA, L., RICIERI, F.W. (Orgs.) São Paulo,
Editora UNESP, 2008, p. 143 -177.
________. ―O imortal‖ e a verossimilhança. In: Teresa: revista de literatura brasileira, n.º 6/7.
São Paulo: Ed. 34; Imprensa Oficial, 2006, p. 56-78.
MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
15
RICARDOU, J. Pour une théorie du nouveau roman. Paris: Éditions du Seul, 1971.
SILVA, Ana Cláudia Suriani. Machado de Assis's Philosopher or Dog? From serial to
book form. Oxford: Legenda (Maney Publishing), 2010.
RESUMO
Já nas primeiras leituras dedicadas a Relato de um certo Oriente, a casa é apontada como ele-
mento chave para a interpretação, arquitetura imaginária que visa inventariar as perdas emo-
cionais. Em Dois irmãos, a supremacia da casa como símbolo maior dos desajustes prevalece,
mas é atenuada na mescla com o universo da cidade. De modo mais marcado, a casa agora se
expande com a busca de lugares públicos e questões de cunho externo passam a interferir nas
relações familiares, a exemplo do Ciclo da Borracha, do desembarque de imigrantes, dos anos
de Ditadura Militar no Brasil ou da criação da Zona Franca de Manaus. O objetivo deste tra-
balho, ao tomar este caminho, é pensar como Milton Hatoum, apesar de recusar o rótulo da
biografia, inclusive ao não se apegar a uma identidade libanesa unívoca, molda um discurso
fragmentado e multifacetado para tentar unir – ou dispersar – o turbilhão que sufoca as perso-
nagens na úmida claustrofobia de sua Manaus. Se a opção é pela subtração de parte da memó-
ria pessoal e do espaço particular em prol de problemas comuns à esfera social, o pendor so-
ciológico e histórico implica a composição de um mosaico amazônico datado, sobre o qual
tecemos nossas reflexões.
Palavras-chave:
Imigração. Exílio. Manaus. Milton Hatoum.
ABSTRACT
Since the first readings dedicated to Relato de um certo Oriente, the house is identified as key
element for the interpretation, imaginary architecture that aims to inventory emotional losses.
Dois irmãos more than Relato shows the supremacy of the house as a symbol of greater mal-
adjustment, but it is attenuated in the mix with the city universe. In a more marked way, the
house is now expanding to the pursuit of public places and issues of external nature begin to
interfere in the family relationships, such as the Ciclo da Borracha, the landing of immigrants,
the years of military dictatorship in Brazil or the creation of Zona Franca de Manaus. The
objective of this work is think about Milton Hatoum, while refusing the biography model,
including by not cling to a uniquely Lebanese identity, casts a fragmented and multi-faceted
speech to try to unite - or spread - the whirlwind that is suffocating personages in the damp
claustrophobia of his Manaus. The option is subtraction of personal memory and private space
in favor of social problems, that historical and sociology tendency results in the composition
of a Amazon mosaic dated, on which we weave our reflections.
Keywords:
Imigration. Exile. Manaus. Milton Hatoum.
1 MOSAICO AMAZÔNICO
O envolvimento com a casa evocado pelos narradores de Milton Hatoum em suas
primeiras obras é marcado pela presença de sobrados que dialogam com a rua, por portões e
1
Doutora em Literatura pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura da UFSC, com bolsa do CNPq. Profes-
sora do Colégio de Aplicação da UFSC; e-mail: fernanda@ca.ufsc.br.
2
janelas que se voltam para a cidade, aparentemente abertos, convidativos, matriarcais. O que
não significa que a casa tenha se libertado do seu lado conflituoso e opressor: ela persiste co-
mo pólo irradiador de tensões, lugar de contaminação dos corpos, que tenta atrair e manter
junto a si, atitude que igualmente os força para fora de seus limites. As razões para tanto e a
sua própria organização em cada uma das obras é que mudam.
Em uma das primeiras leituras dedicadas a Relato de um certo Oriente, a apresenta-
ção do crítico Davi Arrigucci Júnior, notamos como a casa é apontada como um elemento
chave para a leitura: “O romance é aqui uma arquitetura imaginária: a arte de reconstruir, no
lugar das lembranças e vãos do esquecimento, a casa que se foi. Uma casa, um mundo.”
(ARRIGCCI JR., 1999, p.330). A supremacia deste elemento como fonte maior dos desajustes
seria atenuada na obra seguinte, Dois irmãos, na qual o ambiente doméstico mescla-se mais
intensamente ao universo da cidade: a casa expande-se com a busca dos lugares públicos, bem
como questões de cunho externo passam a interferir no ambiente doméstico.2 Assim, subtrai-
se parte da memória pessoal e do espaço particular, em prol de problemas comuns à esfera
social. Diferentemente do que ocorre em outras obras que tematizam a imigração, como La-
voura arcaica, em que espaço e tempo pertencem a uma esfera mais simbólica, não podendo
ser estabelecidos com precisão, o pendor sociológico e histórico dos narradores de Hatoum
implica na composição de um mosaico amazônico datado.
Pano de fundo do primeiro romance, em Relato de um certo Oriente nos deparamos
com numerosas famílias tradicionais, reunidas para serem fotografadas nos jardins dos casa-
rões ou no convés dos transatlânticos. Trata-se de uma alusão a um Brasil colonial já em fran-
co declínio no restante do país, mas cujo processo de modernização ainda tardaria algumas
décadas para alcançar os rincões mais ao Norte, onde continuava a imperar o monopólio e o
poderio dos grandes mandatários: “Na manhã em que visitei Emir no coreto da praça”, relata
Dorner, “eu me encaminhava para a moradia de uma dessas famílias que no início do século
eram capazes de alterar o humor e o destino de quase toda a população urbana e interiorana,
porque controlavam a navegação fluvial e o comércio de alimentos.” (HATOUM, RCO, 1989,
p.61).
Este primeiro período é marcado pela estagnação da cidade. Próspera nos tempos áu-
reos do Ciclo da Borracha, quando imigrantes nordestinos foragidos do “deserto criado”, o
2
Há que se destacar, no que se refere às representações da casa e da cidade, a última obra do autor, A cidade
ilhada, na qual vemos não uma cidade, mas várias, darem origem a um painel amazônico. Não há uma única
Manaus, mas uma sucessão de paisagens geográficas e humanas particularizadas e sobrepostas umas às outras.
(Cf. HATOUM, Milton. A cidade ilhada. São Paulo: Cia das Letras, 2009).
3
sertão das queimadas, se instalaram nos seringais com o sonho de enriquecer, entregando-se a
uma vida miserável e solitária no “deserto natural”, a floresta. Referência de escrita para Mil-
ton Hatoum, Euclides da Cunha investigara esta problemática em 1905, quando chefiou uma
expedição pelo Rio Purus, a qual lhe permitiu radiografar a situação em que vivia o seringuei-
ro, concluindo ser ele “o homem que trabalha para escravizar-se”.3 Estes miseráveis que vivi-
am em uma situação crítica ganhariam, dessa maneira, um de seus maiores porta-vozes, capaz
de revelar o que havia por traz dos milhares de dólares gerados pela exploração do látex, re-
servados a uns poucos comerciantes e ostentados por meio de grandes obras exibidas na capi-
tal manauara.4
Os resquícios da época de grandezas, em que empresas da Inglaterra foram responsá-
veis, entre outras coisas, pela instalação do porto de Manaus, o Manaus Harbour, e em que a
exploração econômica rebaixou homens a uma condição miserável e desumana ainda ecoam
pelos romances de Hatoum. Assim, o período de luxo, em que as famílias abastadas manda-
vam seus filhos estudar na Europa, e a arquitetura local era inspirada nos estilos Art nouveau e
Neoclássico, com destaque para o Teatro Amazonas ou o Mercado Municipal Adolpho Lis-
boa, construídos com materiais exclusivamente europeus (DAOU, 2000), contrasta com o ar
interiorano e limitado que a cidade adquiriria nas primeiras décadas do século XX, após a
perda de sua maior fonte de renda para os seringais da Malásia.5 Ainda controlada por grandes
comerciantes que detinham o monopólio da navegação e da exploração da borracha, da juta
ou do comércio de alimentos, esta Manaus provinciana recebe levas de imigrantes do interior
3
As considerações de Euclides da Cunha viriam a público apenas quatro anos depois, em 1909, na edição pós-
tuma À margem da história. (Cf. CUNHA, Euclides. À margem da história. P. 278. In: _____. Obras comple-
tas. Ed. Afrânio Coutinho com estudos de O. Souza Andrade. Manuel Bandeira, Gilberto Freyre, Araripe Júnior,
Afrânio Peixoto, Nélson Werneck Sodré, Francisco Venâncio Filho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. 2 vol.).
4
O interesse de Milton Hatoum pela obra de Euclides da Cunha salta aos olhos, sendo declarado em entrevistas e
palestras, como a concedida durante o evento Euclides da Cunha 360º, Ciclo da Amazônia. Há também um conto
intitulado “Uma carta para Bancroft” em que o autor de Os sertões é, de algum modo, transformado em persona-
gem, autor de um documento encontrado pelo narrador em visita a uma biblioteca norte-americana (Cf. HA-
TOUM, Milton. Euclides da Cunha foi um gênio verbal. Estadão.com.br/Tv Estadão. Palestra concedida no
evento Euclides da Cunha 360º, Ciclo da Amazônia. Disponível em: <http://tv.estadao.com.br/videos,milton-
hatoum-euclides-da-cunha-foi-um-genio-verbal, 68591,253,0.htm?pagina=4> . Acesso em 06 set. 2010; HA-
TOUM, Milton. Uma carta de Bancroft. In: _____. A cidade ilhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
P.23-28).
5
Warren Dean esclarece como se dá este processo que culminaria com o cultivo da árvore originária da bacia
hidrográfica do Rio Amazonas, a Hevea brasiliensis, na Malásia. Os ingleses, que carregaram as mudas do Bra-
sil, investiram no plantio das seringueiras e no aprimoramento de técnicas de extração do látex, tornando-se os
principais responsáveis pela quebra do monopólio brasileiro. Embora restassem a ferrovia Madeira-Mamoré e
algumas cidades, como Porto Velho e Guajará-Mirim, heranças do período de ouro da exploração, a crise eco-
nômica provocada pelo término do Ciclo da borracha deixaria marcas profundas em toda a Região Amazônica,
entre as quais destacou-se a queda na receita dos estados, o alto índice de desemprego, o êxodo rural e urbano e o
completo abandono de sobrados e mansões após a falência de seus donos. Alem disso, o autor confere especial
destaque à completa falta de expectativas em relação ao futuro para os que insistiram em permanecer na região.
(DEAN, Warren. A luta pela borracha no Brasil: um estudo de história ecológica. Tradução de Cid Knipel
Moreira. São Paulo: Nobel, 1989).
4
O novo ciclo econômico ganha maior relevo no romance com as modificações ope-
radas na cidade. Tais transformações acarretam nos destinos individual, familiar e coletivo
que se veem cruzados, quando não postos em choque. Ilustração desta predisposição do nar-
rador pelo confronto é o episódio em que a narra a demolição do tradicional bairro manaura
que submergia na superfície do Negro. Tendo acolhido ex-seringueiros desprovidos de renda
e castigados pela falta de moradia, a construção da Cidade Flutuante, como ficou conhecida,
iniciara-se em 1920 e se consolidaria na década de 1960, dando origem a uma espécie de
“bairro anfíbio”, cuja derrubada é representada no segundo romance de Hatoum.
5
[...] as lavadeiras e empregadas da casa não recebiam um tostão para trabalhar, pro-
cedimento corriqueiro aqui no norte. Mas a generosidade revela-se ou se esconde no
trato com o Outro, na aceitação ou recusa do Outro. Emilie sempre resmungava por-
que Anastácia comia “como uma anta” e abusava da paciência dela nos fins de se-
mana em que a lavadeira chegava acompanhada por um séquito de afilhados e sobri-
nhos. Aos mais encorpados, com mais de seis anos, Emilie arranjava uma ocupação
qualquer: limpar as janelas, os lustres e os espelhos venezianos, dar de comer aos
animais, tosquear e escovar o pêlo dos carneiros e catar as folhas que cobriam o
quintal. Eu presenciava tudo calado, moído de dor na consciência, ao perceber que
os fâmulos não comiam a mesma comida da família, e escondiam-se nas edículas ao
lado do galinheiro, nas horas da refeição. A humilhação os transtornava até quando
levavam a colher de latão à boca. (RCO, p.85-86).
7
Tema recorrente na prosa do autor, em um texto intitulado “Segredos da Marquesa” vemos a mesma questão
ser elaborada de forma sintética: “As mães comuns não permitiam que „indiozinhos‟ convivessem com seus
filhos, mas não podiam viver sem as mãos serviçais desses mesmos „indiozinhos‟.” (Cf. HATOUM, Milton.
Segredos da marquesa. Entre livros, São Paulo, ano 3, n. 31, p. 42-43, nov. 2007, p.42).
7
comida deles, beber tudo, eles não se importavam.” (DI, p.60). Esta melhor disposição não
significa, como foi dito, o fim da servidão, visto que os empregados não eram livres para par-
tir e permanecem sem receber, ainda que acumulassem funções. A lida doméstica, a cozinha e
a criação dos filhos do casal, antes a cargo de várias escravas, passam a ser concentradas em
muitos casos sob os ombros de uma única pessoa.8
Nesse ínterim em que se nega a posse, mas a prática a efetiva, as crianças, vistas co-
mo mais modeláveis, eram as maiores vítimas. As órfãs eram arrebanhadas na mata, compra-
das de seus pais por bagatelas ou raptadas a força, tanto para alimentar a prostituição infantil
quanto para serem posteriormente revendidas às fazendas ou aos sobrados. Dois irmãos
exemplifica bem o drama desse contingente humano ao retratar Domingas, que perdera a mãe
e o pai ainda criança, ser levada da aldeia para internarem-na em um convento contra a pró-
pria vontade. Ali, como outrora as servas domésticas eram escolhidas na senzala entre as me-
lhores escravas, “as mais limpas, mais bonitas, mais fortes, menos boçais e mais ladinas”9, as
índias eram selecionadas. Domingas narra em detalhes o dia em que, após anos de reclusão,
lhe ordenaram que tomasse “um banho de verdade”, lavando a cabeça, cortando as unhas dos
pés e das mãos, para que, limpa e cheirosa, fosse negociada com Zana, para cuidar dos afaze-
res no sobrado:
“Trouxe uma cunhantã para vocês”, disse a irmã. “Sabe fazer tudo, lê e escreve di-
reitinho, mas se ela der trabalho, volta para o internato e nunca mais sai de lá.” En-
traram na sala, onde havia mesinhas e cadeiras de madeira empilhadas num canto.
“Tudo isso pertencia ao restaurante do meu pai”, disse a mulher, “mas agora a se-
nhora pode levar para o orfanato.” Irmã Damasceno agradeceu. Parecia esperar mais
alguma coisa. Olhou para Domingas e disse: “Dona Zana, a tua patroa, é muito ge-
nerosa, vê se não faz besteira, minha filha”. Zana tirou um envelope do pequeno al-
tar e o entregou à religiosa. (DI, p.57).
8
Resquícios da casa-grande, a relação entre senhores e escravos domésticos é caracterizada como mais próxima
no Brasil do que em qualquer outra parte da América. O estreitamento de laços devido à convivência diária, por
conseguinte, não é uma aberração, mas uma das características de um sistema de exploração que a passagem da
escravidão para formas de semi-escravidão não elimina de todo. Como salienta Gilberto Freyre: “A casa-grande
fazia subir da senzala para o serviço mais íntimo e delicado dos senhores uma série de indivíduos – amas de
criar, mucamas, irmãos de criação dos meninos brancos. Indivíduos cujo lugar na família ficava sendo não o de
escravos mas o de pessoas de casa. Espécie de parentes pobres nas famílias européias.” FREYRE, Gilberto.
Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil: casa-grande & senzala. In: Intérpretes do Brasil. Coord.
seleção e prefácio Silviano Santiago. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002. p.453.
9
“Ladina” era o termo empregado no Brasil desde o século XVII para distinguir as negras já cristianizadas e
abrasileiradas daquelas recém chegadas da África ou mais resistentes no sentido de preservar sua cultura de
origem. (FREYRE. Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil: casa-grande & senzala. Ibid., p.453).
8
pensasse em fugir: “Deus vai castigar, diziam.” (DI, p.56). As tentativas de fuga, mesmo que
muitas vezes frustradas, eram frequentes, porque o apego das índias a sua aldeia natal era
simplesmente ignorado. Como se não possuíssem um passado, o lugar de origem era negado
aos povos nômades. Manuela Carneiro da Cunha enfatiza que “contrariamente ao que malici-
osamente se apregoa, os índios, errantes ou não, conservam a memória de seus territórios tra-
dicionais” (CUNHA, M., 1992, p.142), de modo que a impossibilidade de retorno os lança na
traumática situação de exilados.
De arquitetura horizontal, espalhada, as enormes cozinhas, vastas salas de jantar;
numerosos quartos para filhos e hóspedes; capela e puxados para acomodação dos filhos ca-
sados, também sofrem modificações: os casarões, ao mudarem-se para as vilas, compactam-se
no terreno, voltando-se para cima, ganhando as feições da casa-nobre ou do sobrado, antes
senhoril do que burguês. A diminuição drástica da quantia de aposentos e anexos sinaliza o
menor número de moradores e trabalhadores, visto que uma série de funções passa a ser dele-
gada a terceiros. Além disso, a proximidade da cidade, do comércio, das outras casas, da ma-
triz e do mercado, como pondera Freyre, diminui a complexidade das antigas relações sociais,
estabelecidas e controladas antes em um único ambiente. A nova morada não esquece, contu-
do, o seu passado colonial, aclimatando a senzala aos novos tempos. Reerguida no ambiente
urbano, nomeada de “quarto para criados” ou de “dependência das empregadas”, designa os
pequenos e precários puxados no fundo do terreno:
Domingas, a cunhantã mirrada, meio escrava, meio ama, “louca para ser livre”, co-
mo ela me disse certa vez, cansada, derrotada, entregue ao feitiço da família, não
muito diferente das outras empregadas da vizinhança, alfabetizadas, educadas pelas
religiosas das missões, mas todas vivendo nos fundos da casa, muito perto da cerca
ou do muro, onde dormiam com seus sonhos de liberdade. (DI, p.50).
10
Além de “Um coração simples”, a trilogia planejada pelo escritor francês é integrada pelos contos “A legenda
de São Julião Hospitaleiro” e “Herodíade”. (FLAUBERT, Gustave. Três contos. Tradução de Milton Hatoum e
Samuel Titan Júnior. São Paulo: Cosac Naify, 2004).
11
Em entrevista concedida à revista Caros amigos, Hatoum revela a origem de sua estreita relação com a litera-
tura francesa, sugerindo a influência de sua professora particular de francês, responsável por guiá-lo na leitura
dos contos de Flaubert quando garoto, traduzindo Um Coração Simples que, em suas palavras: “foi fundamental
pra mim tanto que uma personagem de Dois Irmãos, a Domingas, é inspirada nesta Felicité do Coração Simples.
E isso me tocou tanto que 35 anos depois eu traduzi esse livro com um amigo, estão lá três contos.” (Cf. HA-
10
que, se por um lado vemos repetir-se o mesmo ambiente estreito, marcado por contingências
materiais, por outro, o lugar central de sua condição subordinada é revelado pela narração em
constante trânsito.
Como não eram inteiramente donas de si mesmas, de seus corpos, não é de se estra-
nhar que seus filhos fossem tratados como assunto de família, cabendo aos patrões decidir o
seu destino. Este é o caso de Nael. Diferentemente de Paul e Virginie, as crianças aos cuida-
dos de Félicité, ou mesmo de Soraya Ângela e dos irmãos adotivos, os três vigiados por Anas-
tácia Socorro, o narrador ressente-se do roubo de sua infância, sobretudo na omissão de sua
história pessoal:
Eu não sabia nada de mim, como vim ao mundo, de onde tinha vindo. A origem: as
origens. Meu passado, de alguma forma palpitando na vida dos meus antepassados,
nada disso eu sabia. Minha infância, sem nenhum sinal da origem. É como esquecer
uma criança dentro de um barco num rio deserto, até que uma das margens a acolhe.
Anos depois, desconfiei: um dos gêmeos era meu pai. Domingas disfarçava quando
eu tocava no assunto; deixava-me cheio de dúvida, talvez pensando que um dia eu
pudesse descobrir a verdade. (DI, p.54).
Tal qual na história de Moisés, o menino que desce as águas do rio para ser salvo da morte, o
anonimato é condição necessária para assegurar a permanecia de Nael na casa. Na manuten-
ção do segredo estava a permissão de ficar junto à mãe. Morar no quartinho dos fundos, entre-
tanto, não era garantia de aceitação, integração e muito menos liberdade. Mesmo contando
com alguma independência, desde pequeno “trabalhava em casa, ajudava na faxina, limpava o
quintal, ensacava as folhas secas e consertava a cerca dos fundos. Saía a qualquer hora para
fazer compras, tentava poupar minha mãe, que também não parava um minuto. Era um corre-
corre sem fim.” (DI, p.60-61). Como tampouco ele recebia qualquer dinheiro pelos afazeres,
sua subsistência estava atrelada aos restos da casa, como relembra ao afirmar que a partida de
Yaqub fora providencial, pois, “Além dos livros usados, ele deixou roupas velhas que anos
depois me serviriam” (DI, p.30).
Os chamados da rua interferem na rotina do menino que se torna uma ponte entre o
sobrado, a vizinhança e a cidade. Desempenhando os afazeres do tradicional moleque de re-
cados, cabe-lhe perambular a fim de suprimir as lacunas de uma comunicação ainda incipien-
te, buscando produtos e pagando contas nas lojas, bem como vasculhando pela vizinhança as
últimas fofocas. Louco para descansar, longe das vozes, das ameaças e das ordens, sua única
TOUM, Milton. Milton Hatoum: o escritor exigente da literatura contemporânea. Entrevista concedida a Hamil-
ton Octavio de Souza, Lúcia Rodrigues, Renato Pompeu e Tatiana Merlino. Caros amigos, São Paulo, ed. 156,
mar. 2010).
11
pausa era o período que passava na escola, isto quando conseguia ir à aula, uma vez que seus
estudos não eram prioridade na casa:
Eu contava os segundos para ir à escola, era um alívio. Mas faltava às aulas duas,
três vezes por semana. Fardado, pronto para sair, a ordem de Zana azarava a minha
manhã na escola: “Tens que pegar os vestidos na costureira e depois passar no Au
Bom Marché para pagar as contas”. Eu bem podia fazer essas coisas à tarde, mas ela
insistia, teimava. Eu atrasava as lições de casa, era repreendido pelas professoras,
me chamavam de cabeça-de-pastel, relapso, o diabo a quatro. (DI, p.65).
Seu esforço para estudar tinha uma razão de ser. Tal qual acontecera com os negros alforria-
dos que, como pondera Freyre, sem nenhuma espécie de assistência por parte do Estado ou
dos ex-patrões, depararam-se após a abolição com abusos por parte de uma monocultura lati-
fundiária ainda mais absorvente e esterilizante do que o antigo regime, e ainda mais feudal na
exploração de um proletariado de condições menos favorável de vida do que a massa escrava,
o futuro ao ser liberto dos sobrados amazonenses não era promissor. A liberdade da semi-
escravidão doméstica dos indígenas limitou-se em muitos lugares a um agravamento da ex-
ploração, quando não resultou em total desamparo.
O sentimento de exílio medido por trocas de posição similares que muitas vezes
ocorrem entre senhores e escravos, conforme sublinhado por Julia Kristeva, implica em dizer
que todo nativo sente-se mais ou menos estrangeiro em seu lugar supostamente “próprio”.
Neste contexto, o valor metafórico do termo estrangeiro conduz o sujeito a um embaraço refe-
rente à sua identidade sexual, nacional, política e profissional, para em seguida empurrá-lo
para uma identificação, certamente casual, mas não menos intensa – com o outro: “Assim,
estabelece-se entre os novos „senhores‟ e os novos „escravos‟ uma cumplicidade secreta, que
não tem, necessariamente, conseqüências práticas na política ou na jurisprudência [...], mas
cava uma suspeita, sobretudo no nativo: será que estou realmente em casa? Será que sou eu ou
serão eles senhores do „futuro‟?” (KRISTEVA, 1994, p.27).
Sem gozar da sorte de um bom nascimento, ignorado pelo Estado e privado da eira e
da beira dos sobrados, o segundo romance de Hatoum aponta a dimensão deste problema
através da personagem de Calisto, o curumim meio parrudo que vivia no cortiço dos fundos e
cuidava dos animais dos Reinoso. Após o declínio desta que era uma das famílias mais ricas
da cidade, o rapaz deixa a mansão, abandonado à própria sorte. Homem feito, mas sem ampa-
ro nem preparação, acena para Nael e Domingas no porto: “Descalço, só de calção, ele espe-
rava uma ordem para descarregar caixas de produtos eletrônicos. Eu não sabia que ele traba-
lhava aos domingos no porto. Calisto se livrara das garras de Estelita Reinoso, mas agora ti-
nha de agüentar outro peso.” (DI, p.180).
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3 MURALHA VERDE
A fim de concluir a análise do espaço doméstico e sua influência sobre as persona-
gens nos dois romances em questão, faz-se necessário averiguar a parte externa das moradas.
Após adentrar nos sobrados e puxados conduzidos pelos serviçais manauaras, é o momento
oportuno para pensarmos no bosque e na mata, no quintal e no jardim, não como formas de
preenchimento do terreno ou da narrativa, mas como lugares que se somam aos demais ambi-
entes para conferir novas significações à existência das personagens.
Nos romances de Milton Hatoum em análise a mata é conservada à distância, pene-
trando nas casas apenas através da narração de terceiros. Mostra-se mais próxima da monoto-
nia das grandes planícies ou das paisagens oceânicas que alteram até mesmo a percepção da
passagem do tempo, como bem observou Euclides da Cunha (CUNHA, 1995, p.278). En-
quanto muralha verde, a floresta Amazônica mantêm-se longe das divisas do quintal, é antes
um obstáculo que limita não tanto as casas, quanto a cidade como um todo, como confirma,
mais uma vez, o olhar perspicaz de Dorner. Com espírito de bandeirante, ou melhor, de natu-
ralista, o viajante alemão fazia incursões exaustivas em que se embrenhava por meses na flo-
resta. Relutante em aceitar o temor de Hakim e de tantos que se limitavam a contemplá-la,
sonhando com a outra margem do rio como algo distante, inatingível: “observava que o mora-
dor de Manaus sem vínculo com o rio e com a floresta é um hóspede de uma prisão singular:
aberta, mas unicamente para ela mesma. „Sair dessa cidade‟, dizia Dorner, „significa sair de
um espaço, mas sobretudo de um tempo‟. (RCO, p.82).
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Entrar e sair da floresta, por conseguinte, não faz parte da rotina dos moradores que
vivem dentro da cidade, do seu dia a dia, mas é como se fosse um ritual de passagem para
quem entra ou sai de Manaus, obrigado-o a desvencilhar-se da mata e do rio, infinitos para o
olhar distante. Em Relato de um certo Oriente, a filha adotiva opta por sobrevoar a cidade a
noite para vê-la lentamente imergir da escuridão, da floresta e do rio. Temia, talvez, o impacto
de um arrebatamento profundo diante da mata, como o experimentado pelo pai quando de-
sembarcara ali pela primeira vez, presenciando o místico despertar da floresta:
Reforçando a ideia de que Manaus é “uma perversão urbana” tendo em vista seu pe-
rímetro em constante alargamento, a cidade tenta domar o terreno, contornando as casas com
uma natureza domesticada, seja escolhendo as espécies a serem cultivadas, seja amansando os
animais. As matriarcas perambulariam por esses espaços até o final de suas vidas: Emilie se-
ria, inclusive, encontrada desfalecida em meio às plantas, enquanto Zana é obrigada a renun-
ciar a esse espaço, “onde a copa da velha seringueira sombreava as palmeiras e o pomar culti-
vados por mais de meio século” (DI, p.09). Símbolo recorrente e de múltiplos sentidos, na
tradição cristã o jardim representa o paraíso terrestre, uma vez que no Gênesis o paraíso era
um jardim cultivado por Adão. Paralelamente, entre os muçulmanos, após morrerem os eleitos
vão para as moradas paradisíacas, terras onde, segundo o Islã, Alá é o jardineiro. Por ter sua
vegetação obediente às leis e à vontade do homem, o jardim simboliza o poder desse homem,
a cultura em oposição à natureza selvagem, a reflexão em oposição à espontaneidade, a ordem
contra a desordem, a consciência contra o inconsciente. Aparenta-se, pois, ao oásis e à ilha,
remetendo ao frescor, à sombra e ao refúgio, razões pelas quais é bastante encontrado na tra-
dição islâmica de tapetes não-figurativos, como o do próprio pai em Relato de um certo Ori-
ente.
Como nos claustros dos mosteiros ou nas casas orientais, as construções são sempre
pontuadas por jardins que apartam quem está dentro dos olhares alheios. Essa prática, que tem
raízes nas tentativas de afastar as mulheres da família dos demais, é visível na primeira obra
de Hatoum, em que Soraya Ângela e Samara Délia experimentam o lado protetor desse espa-
ço. A menina surda-muda que vivia reclusa no quarto só tinha permissão da mãe para ocupar
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o jardim. Hipnotizada, tangencia cada canto daquele mundo natural na companhia das outras
crianças, magnetizada particularmente pela fonte de pedra, mas também pelas formas dos
bichos e pelo aroma e textura das plantas, conforme rememora a narradora: “[...] às vezes,
Soraya me ajudava e era curiosa a sua maneira de colher os jambos e as papoulas umedecidas
pelo sereno. Permanecia um tempão a mirar a polpa desse coração de veludo que é o jambo;
as papoulas, as orquídeas e as flores ela cheirava demoradamente e mais tarde intuí que o odor
e o olhar compensavam de certa forma a ausência dos dois sentidos.” (RCO, p.15). Samara
Délia experimentaria o jardim como claustro após perder a filha e recolher-se no espaço da
loja, quando recebe um pequeno jardim, cultivado nos fundos da Parisiense para a filha pelas
próprias mãos do pai, como sinal de perdão.
Os quintais lavrados nas tramas também são indício do lado mais matriarcal das ca-
sas, cujas feições prevalecem neste espaço em que as grandes mães procuram aninhar seus
rebentos. Adquirindo nesses momentos a forma de um corpo sedutor ou de um coração angus-
tiado, ansioso por impedir a partida dos filhos, constrói-se a falsidade do puro acolhimento.
Afinal, em oposição às imagens idealizadas no imaginário coletivo, em que o frio terrível do
inverno é aplacado pelo calor da lareira, é contra o calor abafado de Manaus e a rotina em
constante aceleração que a casa oferece seu remanso: o quintal sombreado e perfumado, re-
cendendo a frutas e a flores da mata. Simulacro do bem-estar, a imagem não resiste a um
olhar mais atento, visto que a maior parte do tempo não está em sintonia com o interior tumul-
tuado dos cômodos, tampouco com os corpos agitados e em conflito.
Em Dois irmãos, a floresta ainda seria penetrada por um olhar menos arguto que o de
Dorner. Antes um entrave para o desenvolvimento da cidade que a devasta para abrir novos
bairros, é o rio quem acaba por destacar-se, percorrido nas caçadas ao filho fugitivo, desem-
bocando em pequenos cais, vilas, aldeias e ilhas ribeirinhas. As histórias da floresta também
não são fantasiadas pelas palavras da empregada, mas congeladas no ato de esculpir, no gesto
que lentamente deixa de dar formas a pássaros e bichos, para compor um “reino de fantasma-
gorias”. Do lado de fora do sobrado o leitor depara-se com algo que parece um misto de jar-
dim e de bosque, entre cujas árvores se distinguem ao longo de toda a narrativa uma em espe-
cial: a imensa seringueira, plantada bem no meio do quintal. Não por acaso, em um romance
que faz várias alusões aos descaminhos da modernização de Manaus, ao seu passado portuário
e a seu crescimento desordenado que afasta as pessoas do rio de modo irreconciliável, é à
sombra da árvore-símbolo da Amazônia, cuja exploração selou dois períodos importantes na
história da Região Norte do Brasil, que o destino do sobrado desenrola-se, bem como sobre
sua proteção, que alcançava o quartinho dos fundos, que o narrador redige a saga familiar.
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Em meio às plantas, ao jogo de luz e escuridão entre o sol e as árvores, os vultos encobertos
surpreendem-se estupefatos. Sombrear, que pode ser sinônimo de tranquilidade bem como de
tornar-se menos claro, de entristecer-se e mesmo de causar danos, mostra-se um campo se-
mântico recorrente. Na floresta, na mata, no bosque ou no jardim, os romances em estudo
permitem que uma gama de sentimentos sejam revelados neste espaço em que o significado
do sombrear aponta para inúmeras derivações. Ora revelando a ambivalência dos sentimentos,
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ora privilegiando um dos pólos, notamos a luz, o raciocínio e a concentração perderem espaço
gradativamente para a mancha escura que dissemina o devaneio e a loucura, o estranho e o
incompreensível. Obscurecimento causado pelo tempo que, pontilhado de passagens doloro-
sas, aponta para o esgarçamento de laços rotos, rumo à decadência, ao abandono e à ruína,
individual e familiar.
Tal é o caso da narradora de Relato de um certo Oriente, que acresce ao vazio exis-
tencial a ausência do convívio materno e a perda de pessoas queridas. Resulta daí que a casa,
outrora cheia de barulho e vida, morada da família com seus quatro filhos, mais os dois adoti-
vos e uma neta, repleta de bichos e plantas, volte a ser palco de conflitos cotidianos e histórias
interrompidas, resgatando os desencontros, as brigas e a solidão, só que no plano da memória
e do texto, na tentativa de encontrar essas vivências que imobilizavam a personagem no pas-
sado: “A conversa com os animais, os sonhos de Emilie, o passeio ao mercado na hora que o
sol revela tantos matizes do verde e ilumina a lâmina escura do rio. Na fala da mulher que
permanecera diante de mim, havia uma parte da vida passada, um inferno de lembranças, um
mundo paralisado à espera de movimento.” (RCO, p.11).
O tempo decorrido transformara a casa em um reduto da solidão, resultado da partida
de Hakim, que a mãe permite, mas nunca aceita; da tragédia ocorrida com Soraya Ângela; da
morte do pai; da fuga de Samara Délia; do abandono dos irmãos revoltados e do distancia-
mento dos filhos adotivos. Todos, de um jeito ou de outro, estrangeiros no próprio lar, foram
impelidos a buscar outras paragens, exceto a matriarca que, marcada pelas despedidas desde o
tempo de imigrante, aguarda na casa o momento da própria partida: “– Os daqui morrem em
casa, não nos hospitais” (RCO, p.113), respondera com voz ríspida ao filho após o atropela-
mento da neta.
Homi Bhabha coloca em destaque o estranhamento vivenciado pelo indivíduo que se
desloca de seu lugar original, partindo da noção de casa, que se expande até adquirir uma no-
ção de mundo. Viveríamos, pois, uma forma de estranhamento inerente àquele primeiro rito
de iniciação extraterritorial e intercultural iniciado ao abandonar nossas casas. Assim, os re-
cessos do espaço doméstico tornariam-se os lugares das invasões mais intrincadas da história.
Nesse deslocamento, as fronteiras entre casa e mundo se confundem e, estranhamente, o pri-
vado e o público tornam-se parte um do outro, forçando sobre nós uma visão que é tão dividi-
da quanto desnorteadora (BHABHA, 2005, p.30). Com a morte de Emilie este cenário é con-
cretizado de modo literal, uma vez que o lugar já em ruínas tem decretado seu fim, como le-
mos no trecho: “A casa está fechada e deserta, o limo logo cobrirá a ardósia do pátio, um dia
as trepadeiras vão tapar as venezianas, os gradis, as gelosias e todas as frestas por onde o
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olhar contemplou o percurso solar e percebeu a invasão da noite, precipitada e densa.” (RCO,
p.155). Calmamente, na casa onde a ausência crescia como uma planta virulenta, o vazio dei-
xado pela morte faz brotar o último cântico.
Em Dois irmãos a degradação da família também se repete, deixando marcas na resi-
dência que “foi se esvaziando e em pouco tempo envelheceu.” (DI, p.184). Tal personificação
da morada familiar ecoa na epígrafe do romance, uma estrofe do poema “Liquidação”, de
Carlos Drummond de Andrade (ANDRADE, 2002, p.943). Como o poeta que relembra a Ita-
bira de outrora, com seus retratos e fantasmagorias, a imagem da casa perdida ressurge com
força. Tal qual aquela, vendida com todas as lembranças, móveis, pesadelos, pecados, bater de
portas, vento encanado, vista do mundo e imponderáveis, a matriarca Zana é forçada a deixar
sua residência depois da morte do marido e do confronto dos filhos. Sem contar com a morte,
precisa assinar os papéis de venda no hospital, desfazendo-se do lugar que para ela “era quase
tão vital quanto a Biblos de sua infância: a pequena cidade no Líbano que ela recordava em
voz alta, vagando pelos aposentos empoeirados até se perder no quintal” (DI, p.09).
O “quase tão vital” é pleno de significados, uma vez que a casa no Brasil, apesar de
todo o valor afetivo proveniente das décadas passadas ali, não apaga as lembranças nem a
equipara à anterior, no Líbano. Ao unir a memória da outra casa, o texto mistura ambas as
perdas das quais Zana nunca se recuperou, exilada que fora pela segunda vez. Afirma o narra-
dor que a casa começara a desmoronar após a morte de Halim. Com a certeza da venda, todos
ali são tomados por um mal estar que acarreta no abandono prévio daquele lugar. Desiludida,
Zana negligencia este espaço, desistindo de manter qualquer ordem: “Não abria mais as jane-
las dos quartos, nem me mandava limpar o quintal nem o piso do alpendre. Osgas e besouros
mortos cobriam o pequeno altar empoeirado, os azulejos da fachada estavam encardidos, a
imagem da santa padroeira, amarelada”. (DI, p.187). Ainda assim, a matriarca recusa-se a
entregar a casa enquanto pode. Finalmente, já hospitalizada, assina a venda: “Ela chorou, co-
mo se sentisse uma dor terrível. Nunca mais voltou. Deitou-se em outro quarto, longe do por-
to, no lar que não era para ela.” (DI, p.189).
Descuidada, vendida e posteriormente desfigurada, a casa da família que se desman-
chara lentamente recebe destino similar ao dos que lá habitaram, igualmente em consonância
com os novos rumos tomados pela cidade: as plantas morreram ou foram arrancadas. Os azu-
lejos com a imagem da santa padroeira, polidos durante anos como testemunho de uma religi-
osidade cultuada no dia a dia, são arrancados, substituídos por néons que anunciam quinqui-
lharias e badulaques importados. Permanece intocado apenas o pedaço de terreno nos fundos,
com sua meia-água que abrigava os empregados. E junto com a seringueira que sombreia esta
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parte do terreno, fica de pé Nael, o menino mestiço criado nos fundos, sem pai nem identida-
de, que, de acordo com Zana, “só existia como rastro dos filhos dela” (DI, p.28). Halim, em
sua lucidez reticente, distingue mais claramente o lugar do neto bastardo: mais do que Yaqub,
Omar ou Rânia, na mistura de cores, origens e tradições, era ele o verdadeiro “filho da casa”.
Ironia maior, parte de excluídos como o garoto rejeitado ou a filha adotiva o olhar que narra a
história de todos, únicos sobreviventes interessados em dar alguma forma aos anos e às per-
das. Lúcidos ou não, mostram-se dispostos a reconstituir a história destas casas e destas famí-
lias que, apesar de não integrarem-nos plenamente, são também a sua e a de uma Manaus per-
dida na memória. Em álbuns de família amarelados, tratados de história ou política, igualmen-
te ficção, poeira e poesia.
4 REFERÊNCIAS
ANDRADE, Carlos Drummond de. “Boitempo”. In: _____. Poesia completa. Rio de Janeiro:
Editora Nova Aguilar, 2002.
ARRIGUCCI JR., Davi. Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum. In: _____. Outros
achados e perdidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávilla et al. Belo Horizonte:
Ed UFMG, 2005.
CUNHA, Euclides. Obras completas. Ed. Afrânio Coutinho com estudos de O. Souza An-
drade. Manuel Bandeira, Gilberto Freyre, Araripe Júnior, Afrânio Peixoto, Nélson Werneck
Sodré, Francisco Venâncio Filho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. (2 vol.)
CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia
das Letras; Secretaria Municipal de Cultura; FAPESP, 1992.
CURY, Maria Zilda Ferreira. De orientes e relatos. In: SANTOS, Luis Alberto Brandão; PE-
REIRA, Maria Antonieta. Trocas culturais na América Latina. Belo Horizonte: EdUFMG,
2000. p.71.
DEAN, Warren. A luta pela borracha no Brasil: um estudo de história ecológica. Tradução
de Cid Knipel Moreira. São Paulo: Nobel, 1989.
FLAUBERT, Gustave. Três contos. Tradução de Milton Hatoum e Samuel Titan Júnior. São
Paulo: Cosac Naify, 2004.
HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
19
_____. Dois irmãos. São Paulo: São Paulo: Cia das Letras, 2000.
_____. Segredos da marquesa. Entre livros, São Paulo, ano 3, n. 31, p. 42-43, nov. 2007.
p.42.
_____. Euclides da Cunha foi um gênio verbal. Estadão.com.br/Tv Estadão. Palestra concedi-
da no evento Euclides da Cunha 360º, Ciclo da Amazônia. Disponível em:
<http://tv.estadao.com.br/videos,milton-hatoum-euclides-da-cunha-foi-um-genio-verbal,
68591,253,0.htm?pagina=4> . Acesso em 06 set. 2010.
KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Tradução de Maria Carlota Carvalho
Gomes. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
RESUMO
Uma velha, o guindaste que vê o ovo, a cadeira: estes objetos, mencionados nos textos da
escritora Clarice Lispector, são objetos arruinados, por excelência. A ruína se dá neles por
serem privados de uma perspectiva utilitária e por procurar uma identidade com o objeto
através do olhar, destituindo uma oposição entre sujeito e objeto, interior e exterior, ativo e
passivo.
Palavras-chave:
Ruína. Olhar. Objeto. Clarice Lispector.
ABSTRACT
An old woman, the crane that sees the egg, the chair: these objects mentioned on Clarice
Lispector‟s texts are objects in ruin par excellence. They are ruined by deprivation of an
utilitarian perspective and by her search for identification with the thing through gazing,
crushing any opposition between subject and object, inside and outside, active and passive.
Keywords:
Ruin. Gaze. Object. Clarice Lispector.
1 UM PARÊNTESIS DE RUÍNAS
Ao examinar a cidade de Havana como ruinólogo, o escritor cubano Antonio Jose
Ponte apresenta cenas de um viver entre ruínas, de um estado de arruinamento. Cito duas
observações:
Os cubanos custavam a se desfazer dos restos guardados há anos, já sem utilidade.
Após meses de chuva que havia encharcado casas e ruas, era preciso que jogassem fora tudo o
que não lhes serviam mais. Os objetos eram guardados como coisa de valor: uma casca de
ovo, a sola despregada de um sapato, uma lanterna estragada. “Si en vida útil nos habían
servido, deberían acompañarnos como restos. Más adelante quizás ganasen resurrección.”
(PONTE, 2007, p. 145).
A cidade perdia o hábito de reconstruir: a cada desabamento dos prédios se
fabricavam vazios de parques e praças. É o arruinamento de Havana. O estado de ruína se dá
por danos definitivos, quando não há como recuperar o objeto em vias de desaparecer, nem
1
Mestranda em Teoria Literária pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura (PGL) da Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC), membro do Núcleo de Estudos Benjaminianos (NEBEN), participante do curso de
formação em psicanálise pela Maiêutica Florianópolis - Instituição Psicanalítica; e-mail:
djuliajusten@gmail.com.
2
restituí-lo ao uso. Mas, mais do que reconhecer uma arquitetura em ruínas ou vestígios dela, a
ruína se dá como uma questão do olhar, daquilo que por seu estado irrevogável só podemos
colocar nossos olhos. “Las ruinas constituyen un modo de mirar, tanto pesa el ellas la actitud
de quienes las contemplan.”(PONTE, 2007, p. 175.) E na ruína, uma pulsão do olhar: se
encontram a órbita vazia do olho com os buracos da ruína, um esvaziamento de que não há o
que complete, não há o que satisfaça, é uma pura falta, o desejo de desejar num jogo de olhar
que só remete ao vazio.
A partir deste parêntesis de ruínas do escritor cubano, percebo duas questões nos
objetos clariceanos: a da utilidade e a do olhar. Uma velha, o guindaste que vê ovo, a cadeira:
penso nos objetos sob os quais Clarice manteve sua atenção como objetos arruinados, por
excelência, por serem destituídos de uma perspectiva utilitária e por procurar uma identidade
com a coisa através do olhar, destituindo uma oposição entre sujeito e objeto, entre interior e
exterior, entre ativo e passivo.
O estado irreversível do corpo humano, a ruína da velhice. Era um objeto
abandonado a velha de “A partida do trem”. Todos já estavam habituados a Dona Maria Rita
como um móvel velho. Era um embrulho passado de mão em mão: a filha public relations lhe
deu um beijo seco, a deixou na estação e foi embora antes do trem partir. Como a coisa, ela
era uma solitária, nada tinha a fazer no mundo, só sabia ser velha. O ser só da coisa, ficava o
dia todo sozinha. Percebeu que depois de velha só a viam de relance, ela começava a
desaparecer. Falava consigo mesma, já que ninguém lhe dirigia a palavra. Seus pensamentos
eram mergulhos no nada. Mas sentia orgulho por não precisar de ajuda nem mesmo para o
banho, para se arrumar ou para comer. Sua vida era um tédio que nem perspectiva de morte
tinha, a morte era grande feito que nunca chegava. Não servia para nada, nem mesmo para
Deus, pensava. Como a coisa, ela era involuntária. Ficou espantada com a atenção e
delicadeza de Ângela Pralini, que sentava à sua frente no trem. Ângela era uma fugida, fugia
do pensamento, do raciocínio, da inteligência do amado Eduardo. Ele só sabia olhar para
dentro, para o entendimento, para o pensamento. Eduardo ouvia música com o pensamento, só
sabia entender. Ângela era atrás do pensamento, Ângela orgânica: queria olhar para fora, para
o mundo das coisas. “Existem passarinhos, Eduardo! Existem nuvens, Eduardo! Existe um
mundo de cavalos e cavalas e vacas. Desculpe, Eduardo, mas não quero morrer.”
(LISPECTOR, 1999a, p. 24.)
A ruína de Dona Maria Rita em frente a Ângela Pralini, a voz sem voz de Um sopro
de vida (Pulsações). O autor silencia neste texto para que Ângela possa falar. Mas do que fala
ela? Sobre sua interioridade de discurso, sua subjetividade? Ângela conta uma história de
3
amor, de sofrimento? De amor, só se for pela coisa, pelos objetos. Ângela anjo, nem homem
nem mulher, nem humano nem bicho: Ângela-coisa. “Anjo não nasce nem morre. Anjo é um
estado de espírito.” (LISPECTOR, 1978, p. 24.) Quem sabe seja Ângela tal qual o Angelus
Novus, como a imagem que Walter Benjamin faz do anjo da história. (BENJAMIN, 1994, p.
226.) O anjo vê na cadeia de acontecimentos uma catástrofe. Ele deseja acordar os mortos e
juntar as ruínas, mas o vento o impede de fechar as asas, tempestade do progresso que vê a
história como uma sucessão cronológica, progresso que produz em massa objetos, que os
consome através do uso, da função dos objetos. Será Ângela o Angelus Novus que trará a boa
nova do mundo dos objetos, que os recolherá dos destroços do progresso através do olhar, que
vê a coisa na coisa e não apenas pela sua utilidade? Pois, o livro de Ângela é o livro das
coisas.
Ângela faz a confissão da coisa, de todos os objetos na ficção de Clarice.
No seu livro das coisas, Ângela não humaniza os objetos ou lhes dá atributos
humanos. A coisa não precede qualificação, predicado. A coisa é. “A coisa é propriamente
estritamente coisa. A coisa não é triste nem alegre: é coisa. A coisa tem em si um projeto. A
coisa é exata. As coisas fazem um barulho: chpt! chpt! chpt! Uma coisa é um ser vivente
estropiado. Não há nada mais só do que uma coisa.” (LISPECTOR, 1978, p. 104.) Os objetos
do livro de Ângela não dizem nada, não tem bocas para falar. Das coisas só resta o silêncio, o
silêncio dos objetos, silêncio que não cria nada. Não é um silêncio que se torna signo, não está
no lugar de outra coisa, não quer significar. Silêncio de coisa é silêncio de mais alto grau, ou
seja, de grau nenhum. É silêncio enquanto silêncio. “Noite alta fazia tal silêncio. Igual ao
silêncio de um objeto pousado em cima da mesa: silêncio asséptico de „a coisa.‟”
(LISPECTOR, 1978, p. 105 e 106.)
A identidade que Ângela busca com os objetos é através do olhar. Mas não o olhar
que busca apreendê-lo para dele compreender o seu em si, o seu interior. “Nada do que vejo
me pertence na sua essência. E o único uso que faço delas é olhar.” (LISPECTOR, 1978, p.
98.) É no olhar que os objetos olham os objetos. Ângela percebe o seu rosto como um objeto.
4
“Meu rosto é um objeto tão visível que tenho vergonha. Entendo as belas mulheres árabes que
têm a sabedoria de esconder nariz e boca com um véu ou um crepe branco. Ou roxo. Assim
ficam assim de fora apenas os olhos que refletem outros objetos.” (LISPECTOR, 1978, p.
106.) É suposto o olhar do outro, mais do que apenas olhamos numa perspectiva ativa, mas
que também somos olhados pelas coisas, o ativo e o passivo de olhar se cambiando. Em “A
casa, o íntimo, o secreto”, o psicanalista francês Gérard Wacjman reflete sobre esta suposição
de um olhar que habita o espaço humano e foi por este olhar que constituiu sua morada: o
homem não buscou se abrigar apenas para se proteger da ação do tempo e da natureza, mas
por supor que há um olhar do outro, que sente olhado pelo outro. “Porque somos
fundamentalmente seres mirados en el espetáculo del mundo, siempre hay outro que en algún
lado nos mira.” (WACJMAN, 2006, p. 96.) Esse olhar das coisas não procura uma relação de
reciprocidade, um fim, um entendimento. “O ovo me vê, ovo me medita? Não, o ovo apenas
me vê. É isento da compreensão que fere.” (LISPECTOR, 1999b, p. 207.) Este olhar lançado
aos objetos e que os objetos nos dirigem parte de não ficar fixo em contextos, em funções, em
questão de utilidade: é um jogo de olhar que só remete ao vazio deste olhar.
Descobri uma nova maneira de viver. Creio que a chave está em ver a coisa na coisa,
sem transbordar dela para frente ou para trás, fora de seu contexto. O resultado de
um processo tão novo de olhar o momento que passa seria muitas vezes estranhar a
coisa como se pela primeira vez a víssemos. Olhar a coisa na coisa hipnotiza a
pessoa que olha o ofuscante objeto olhado. Há um encontro meu e dessa coisa
vibrando no ar. Mas o resultado desse olhar é uma sensação de oco, de vazio,
impenetrável e de plena identificação mútua. (LISPECTOR, 1978, p. 124)
Pois, olhar o objeto e ver apenas a sua utilidade é não ver a coisa “Quem se
aprofunda num ovo, quem vê mais do que a superfície do ovo, está querendo outra coisa, está
com fome.” (LISPECTOR, 1999b, p. 207.) Objeto velho, objeto abandonado, objeto reposto.
E objeto visto é aquele que tem utilidade, que serve a alguma função. Na percepção de
Ângela, os objetos estão cansados de serem vistos desta maneira. “Porque é óbvio que a coisa
está urgentemente pedindo clemência por exagerarmos o seu uso.” (LISPECTOR, 1978, p.
101 e 102.) Que a coisa esteja cansada do nome que foi dado a ela: um nome fixo,
cristalizado, de relação unívoca com a sua função. Um nome útil para que possa ser
interpelado. Que a coisa tenha um nome, mas que nesse nome não haja uma relação entre
nome e coisa, como aponta Blanchot em um dos seus fragmentos em itálico de El paso (no)
más allá: um diálogo circular, em que não se sabe quem fala, diálogos inconclusos, não
dirigidos, não há uma cena em que se dê tais falas. Nesse diálogo aberto, nessa conversa
infinita, sempre retomando a frase anterior e dispersando-a, é que percebo este nome sem
5
nome dado às coisas. Que as coisas tenham nome, mas que nunca se saiba tal nome para que
não sejam chamadas. Um nome que tem um espaço em branco, um nome vazio, um nome
como exterioridade, sem relação com a coisa. Cito o diálogo blanchotiano:
Que a coisa tenha nome, mas que não seja chamada. O que acaba com uma noção
utilitária dos objetos, destituindo-os de um nome que apenas remeta a sua função. É a revolta
da coisa. Entre tantos objetos arruinados, é pelo guindaste, aquele que vê ovo, que a revolta da
coisa é anunciada. Pois, os objetos de Clarice, ao serem destituídos de uma função, ao
deixarem de serem vistos apenas pela sua utilidade, são objetos arruinados, têm o caráter de
ruína que deixou de ter uso, que já não presta. É estropiado, abandonado. E neste vazio do que
é arruinado colocamos nossos olhos. “Então vejo que o guindaste terá filhos e um dia
povoarão a terra. Que será um mundo dos objetos. Mas os objetos não querem ser mais
objetos. É a revolta da coisa.” (LISPECTOR, 1978, p. 115.) Objetos cansados de serem
objetos como são vistos cotidianamente, apenas pela sua utilidade. E a cadeira? Ela não tem a
mesma sorte dos restos que os cubanos não queriam se desfazer. “Quem terá inventado a
cadeira? Alguém com amor por si mesmo. Inventou então maior conforto para seu corpo.
Depois séculos e nunca mais ninguém prestou realmente atenção a uma cadeira, pois usá-la é
apenas automático.” (LISPECTOR, 1999a, p. 93.)
2 REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. “Tese 9 de Sobre o conceito da história” In: Obras escolhidas: Magia e
Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1994.
6
BLANCHOT, Maurice. El paso (no) más allá. Tradução de Cristina Peretti. Barcelona:
Paidós, 1994.
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida (Pulsações). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.
PONTE, Antonio Jose. “Un parêntesis de ruínas” In: La fiesta vigilada. Anagrama:
Barcelona, 2007.
WACJMAN, Gérard. “La casa, lo íntimo y lo secreto” In: RECALCATI, Massimo et al. Las
tres estéticas de Lacan (Psicoanálisis y arte). Buenos Aires, Ediciones del Cifrado, 2006.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo
RESUMO
Este artigo visa contribuir com a proposta de trabalho do grupo “literaturas estrangeiras mo-
dernas: visões da morte na literatura”. Os romances e alguns ensaios de Tomás Martínez, em
especial o romance Purgatorio (2008) e o ensaio Lugar Común la muerte (1993) tornam-se
objeto deste trabalho, por meio da análise de como o tema visões da morte se insere na obra
literária do autor argentino. Escrito pouco antes da morte do autor, Purgatorio contém fatos
autobiográficos e reflexões sobre a vida, a morte e o purgatório. Desde o título, o romance nos
remete à Divina Comédia, obra de Dante, dialogando, ainda, com outros autores, o cinema, a
história e os meios de comunicação. A protagonista Emilia e o narrador alter-ego do autor
vivem no purgatório, ou antessala da morte; nesse espaço indefinido entre a vida e a morte,
Emilia espera pelo ser amado “desaparecido” durante a ditadura militar argentina, enquanto o
narrador/autor, no aguardo do seu próprio fim, vai tecendo reflexões sobre a vida e a passa-
gem do tempo. Na obra de Martínez, história e filosofia convivem, levando o leitor a refletir.
Com a análise empreendida e o aproveitamento do conceito de dialogismo empregado por
Bakhtin, o estudo aqui realizado concorre para a confirmação da relevância do tema da morte,
que há séculos se faz presente na literatura mundial, espelhando sua atemporal importância
para o ser humano.
Palavras-chave:
Literatura estrangeira moderna. Visões da morte, Purgatório. Dialogismo. Atemporalidade da
morte.
RESUMEN
Este artículo tiene como objetivo contribuir con la propuesta de trabajo del grupo “Literaturas
extranjeras modernas: perspectivas sobre la muerte en la literatura”. Este trabajo analiza cómo
se procesa el tema de la muerte en la obra novelística y ensayística del autor argentino Tomás
Eloy Martínez, en especial en la novela Purgatorio (2008) y en el ensayo Lugar Común la
Muerte (1993). La novela fue escrita un poco antes de la muerte del autor y contiene hechos
autobiográficos y reflexiones sobre la vida, muerte y el purgatorio. Desde el título la novela
nos remite a la Divina Comedia de Dante, y dialoga al mismo tiempo con otros autores, el
cine, la historia y los medios de comunicación. La protagonista Emilia y el narrador alter ego
del autor viven en el purgatorio, o antecámara de la muerte, Emilia esperando por el ser ama-
do “desaparecido” durante la dictadura militar argentina, mientras el narrador/autor en com-
pás de espera de su propio fin, va tejiendo reflexiones sobre la vida y el pasaje del tiempo. En
la obra de Martínez, historia y filosofía conviven, conduciendo al lector a reflexionar. Este
análisis tiene como embasamiento teórico el concepto de Dialogismo preconizado por Bajtín,
el estudio aquí realizado contribuye para la confirmación de la importancia del tema de la
muerte que por siglos se hace presente en la literatura mundial, reflejando su importancia
atemporal para el ser humano.
1
A VISÃO DA MORTE NA OBRA LITERÁRIA DE TOMÁS MARTÍNEZ, ESPECIALMENTE NO RO-
MANCE PURGATORIO. Tema da morte proposto pelo grupo de trabalho de literatura estrangeira moderna.
2
Prof.ª Ms., do Setor de Ensino Profissionalizante e Tecnológico da Universidade Federal do Paraná- SEPT-
UFPR; email: lidia.beatriz@ufpr.br.
2
Palabras llave:
Literatura extranjera moderna Las perspectivas sobre la muerte, Purgatorio. Dialogismo.
Atemporalidad de la muerte.
1 INTRODUÇÃO
Martínez teve sempre inquietações sobre o tema da morte e escreveu uma série de
ensaios recopilados na sua obra “Lugar Común la muerte”. Nas considerações finais escreve:
Hace ya tiempo descubrí, no sin sorpresa, que los azares del periodismo me acerca-
ban con persistencia al tema de la muerte. Hacia 1965 supe en Hiroshima y Nagasa-
ki, que un hombre puede morir indefinidamente y que la muerte es una sucesión no
un fin [...]3 (MARTÍNEZ, 1983, Contracapa)
Apesar de Tomás Eloy Martinez ser mais conhecido pela sua obra dedicada ao “ro-
mance histórico”, ou “ novo romance histórico” (LUCKACS, 2000), como nas suas obras “La
novela de Perón” de 1985 e “Santa Evita” de 1995, cuja temática retrata um período da histó-
ria argentina de meados do século XX e suas personagens mais representativas da política,
seus últimos romances em especial “Purgatorio”, requerem uma leitura mais profunda para
sua interpretação. Ou seja, além do Leitor-empírico (ECO, 1994), que faz uma leitura a de
primeiro nível ou superficial, e interpreta, por exemplo, “Purgatorio” como um romance que
fala da repressão do governo militar e dos desaparecidos, o Autor-modelo desta obra necessita
do Leitor- modelo e de leitura a nível mais profunda, do leitor como coautor da obra do Au-
tor-modelo através de suas inferências.
[...] Usando uma metáfora criada por Jorge Luis Borges [...]um bosque é um jardim
de caminhos que se bifurcam. Mesmo quando não existem num bosque trilhas bem
definidas, todos podem traçar sua própria trilha, decidindo ir para a esquerda ou para
a direita de determinada arvore e, a cada arvore que encontrar, optando por esta ou
aquela direção. (ECO, 1994, p. 12)
[...] O leitor- modelo de uma história não é o leitor empírico. O leitor empírico é vo-
cê, eu, todos nós, quando lemos um texto. (ECO, 1994, p. 14)
Mas, ao adentrarmos nos bosques da ficção nos é permitido fazer uma leitura de se-
gundo nível, como Leitores-modelo e perceber o dialogismo (BAKHTIN, 1998) com cânones
da literatura como, A Divina Comedia de Dante Alighieri, dentre outras obras da cultura oci-
3
dental. As leituras sucessivas do romance nos permitem perceber como se estabelece este diá-
logo entre o romance “Purgatorio” de Tomás Martínez e com quais obras literárias e cultu-
rais.
O narrador/autor o romance nos fornece pistas sobre suas inquietações, da solidão
do homem moderno e sobre as pulsões de vida e morte. Martínez e suas personagens encon-
tram-se na Vida que não é vida e a morte que não é morte, o autor ao aguardo de sua cura de
uma doença terminal ou sua morte, a sua protagonista do romance Emilia a espera do ser
amado no purgatório em vida. As reflexões sobre este tema aparecem diversas vezes no texto
como no parágrafo a seguir:
[…]¿Sólo quince? Lo busco aun desde antes de haberlo conocido. Ahora espero que
él me busque a mí. Este domingo pasado, en el sermón de la misa, el padre Flanna-
gan habló del purgatorio. La Iglesia católica creía que el purgatorio era la purifica-
ción que necesitan las almas imperfectas para entrar en el paraíso. Se enseñaba que
aceptar los tormentos como un acto de amor a Dios y todas las formas de penitencia
y de castigo eran el purgatorio. Era así antes, ya no. Ahora la Iglesia es más toleran-
te, dijo el padre. El purgatorio es una espera de la que no se conoce el fin.[…]4
(MARTÍNEZ, 2008, p.97)
3
Há muito tempo descobri, não sem surpresa, que os azares do jornalismo me aproximavam com persistência ao
tema da morte. Aproximadamente em 1965 soube em Hiroshima e Nagasaki, que um homem pode morrer inde-
finidamente e que a morte é uma sucessão, não um fim.
4
Somente quinze? Procuro por ele ainda antes de ter-lo conhecido. Agora espero que ele me procure.Este do-
mingo que passou, no sermão da missa, o padre Flannangan falou do purgatório. A igreja católica acreditava que
o purgatório era a purificação que necessitavam as almas imperfeitas para entrar no paraíso. Ensinava-se que
aceitar os tormentos como um ato de amor a Deus e todas as formas de penitencia e de castigo eram o purgató-
rio. Era assim antes, já na. Agora a igreja é mais tolerante, falou o padre.O purgatório é uma espera da que não se
conhece o fim.
4
um relógio de marca que milagrosamente reaparece propõe que se o governo fizer o mesmo
com as pessoas desaparecidas realizara o filme.
[...] Dupuy teve que recomeçar diversas vezes. Wells não conhecia o futebol, não
tinha ouvido falar do Campeonato mundial, sua imagem da Argentina era somente
um horizonte de pampas.[...] MARTINEZ (2008, p.125) .
[...] Simón por fin le habla: All yet seems well; and if it end so meet,/ The bitter past,
more welcome is the sweet. “Y sin embargo, todo parece estar bien”, traduce Emilia.
“Si así termina todo, cuanto más amargo es el pasado, más bienvenida es la felici-
dad.” Shakespeare, ¿no? Tu inglés es muy bueno. ¿Cómo aprendiste? La televisión,
contesta él. (MARTÍNEZ, 2008, p.42-43)5
[...] Simón no aparta la mirada del río. El sol, al iluminarlo de lleno, lo desdibuja.
Pasa sobre su cuerpo como una gran goma de borrar. Ella también contempla la co-
rriente que se mueve sin apuro hacia el mismo espacio ciego que la espera delante,
plegándose en algo que no sabe si es luz u oscuridad, yéndose a la orilla donde suce-
den las historias. (MARTÍNEZ, 2008, p.142)6
Vários autores utilizam o caudal das águas para representar o fluxo da vida e a passa-
gem do tempo ou como na tradição ocidental a passagem para o Paraíso na travessia do rio
Letes (DA ROCHA, 2003).
Martínez (2008), em passagens metalingüísticas destaca a importância dos mapas
quando escreve: “Los mapas son copias imperfectas de la realidad”, ou ainda “Los mapas
son ficciones mal escritas”(p.16).O protagonista Simón ficou por muito tempo perdido “desa-
parecido’ desenhando mapas de ilhas que despareciam ou mudavam de lugar sempre tentando
retornar.
5
(...) Simon, falou finalmente: All yet seems well; and if it end so meet,/ The bitter past, more welcome is the
sweet. “E, no entanto, tudo parece bem", traduz Emilia. "Se assim termina todo, quanto mais amargo é o passa-
do, mais bem-vinda é a felicidade." Shakespeare, certo? O seu Inglês é muito bom. Como você o aprendeu? Na
televisão, ele respondeu. (Idem, p.42-43)
6
Simón não aparta o olhar do rio. O sol, ao iluminá-lo a pino, o desfigura. Passa sobre o corpo como uma grande
borracha de apagar. Ela também contempla a corrente que se move sem ter presa em direção ao mesmo espaço
cego que a espera mais a frente, encolhendo-se em algo que não sabe se é luz ou escuridão, indo ao bordo onde
acontecem as histórias.
5
[…]Quel color che l’inferno m i nascose. Conozco el verso, es uno de los más
repetidos de todo el poema: “Aquel color que me escondía el infierno”. Nada en
Emilia es un azar, de modo que al escribir esa línea estaba aludiendo a una historia
7
Vendo as sombras como um corpo solido.
8
Emilia se diz, talvez, eu estou morta já, e estou vivendo no inferno ou no meu purgatório.
9
. Aquela cor que me escondi o inferno.
6
escondida que la quemaba por dentro pero que no quería olvidar [...]10 (MARTÍ-
NEZ, 2008, p.266-267).
[…]Pensó que se trataba de una alucinación y recordó un verso de Dante que había
leído en la escuela: Poi piovve dentro all’alta fantasia. Era verdad: en su imagina-
ción llovía, pero el agua caía tan rápido que las formas se le escapaban apenas apa-
recían. Vio a Simón precipitándose en una hoguera, pero ésa era también una ima-
gen medieval de Dante.[…]11 (MARTÍNEZ, 2008. p.36)
[...] Tal vez, eu já morri, se diz Emilia, e o que estou vivendo é meu inferno o meu
purgatório. Cada ser humano, pensa, está condenado a deter-se para sempre num re-
lâmpago de tempo do que jamais poderá sair. Ela, então foi atingida pela eternidade
nesse trem de subúrbio [...] (MARTÍNEZ, 2008, p.77)
10
Conheço este verso, é um dos mais repetidos em todo o poema: “Aquela cor que me escondia o inferno”. Nada
em Emilia é ao azar, de maneira que ao escrever essas líneas estava fazendo referencia a uma história escondida
que lhe queimava por dentro, mas, que não queria esquecer [...].
11
Pensou tratar-se de uma alucinação e lembrou um verso de Dante que tinha lido na escola: Mais chove dentro
da alta fantasia. Era verdade: na sua imaginação chovia, mas, a água caia tão rápido que as formas escavam as-
sim como apareciam. Ela via Simón jogando-se na fogueira, mas, essa era também uma imagem medieval de
Dante. (MARTÍNEZ, 2008)
7
2 CONCLUSÃO
A pergunta que deriva do grupo de trabalho “Literaturas estrangeiras modernas: vi-
sões da morte na literatura é quais são as pulsões e inquietações que levam o narrador/autor a
8
pesquisar ou escrever sobre este tema. A resposta talvez possa ser encontrada dentro de nós
mesmos e na solidão do homem moderno que apesar da tecnologia está cada vez mais isolado
no seu mundo. Para os leitores é um tema pungente e interessante de explorar.Como diz ECO
(1993), tanto o Leitor-empírico como o Leitor – modelo criam ou são co-autores junto com o
autor-modelo ou o Autor- empírico da obra ao fazer inferências determinadas pelo seu conhe-
cimento de mundo.
“Purgatório” de Tomás Eloy Martínez reúne todas estas inquietações e pulsões desde
o ponto de vista religioso da tradição judaico-cristã, o aspecto histórico, e dos cânones da cul-
tura ocidental. Para as pessoas de fé ou “piadosas” como diz Martínez a discussão é se existe
ou não o purgatório ou somente o céu e o inferno. Entretanto, mesmo as pessoas que não
acreditam nas religiões como confessa o autor/narrador conhecem os temas filosóficos da
morte e as teorias apresentadas como, por exemplo, na bíblia e na Divina Comedia de Dante.
O homem pós-moderno discorda desses cânones ou os contesta, porém, dentro da
cultural mundial a sua existência e importância não pode ser negada. Assim, podemos obser-
var que obras como as de T. E. Martínez não questionam a existência do purgatório, mas se
ele é deste mundo, e é vivenciado durante a vida e não depois da morte. O autor/narrador e os
protagonistas do romance vivem no limbo entre a vida e a morte em uma espera sem fim, co-
mo a espera vivida pelo sobrevivente da Bomba de Hiroshima entrevistado pelo autor no Ja-
pão. O romance nós faz também reflexionar e perceber a vigência de uma obra como a Divina
Comedia que tem mais de cinco séculos.
3 REFERÊNCIAS
ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Tradução: José Xavier Pinheiro. Versão para ebook:
e-Books do Brasil, 2003. Disponível em
<http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action&co_obra=2
203>. Acesso em 30 setembro 2011.
_____. Os gêneros do discurso. In: Estética da Criação Verbal. 2. ed. São Paulo: Martins
Fontes,1997.
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. Companhia das Letras, 6ª Edição, SP, 2000.
CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos, São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
DA ROCHA, Helder. A Divina Comédia: Poema Épico de Dante Alighieri, 2003. Disponí-
vel em: <http://www.stelle.com.br/pt/index_comedia.html>. Acesso em 29 setembro de 2011.
ECO, Umberto. Seis Passeios pelos Bosques da Ficção, 1932, Tradução: Feist, Hildegard, 3º
Edição, Companhia das Letras, São Paulo, SP, 1994.
MARTÍNEZ, Tomás Eloy. El vuelo de la Reina, Alfaguara S.A, Bs. As., 2007.
_____. Santa Evita, Biblioteca del Sur Editora Planeta, Bs. As, 1995.
A VOZ DO CLOWN
RESUMO
O ensaio analisa a figura do Clown na música (Clown-falante) como alguém que não se
submete aos jogos de interdição da ordem do discurso. Ao compreender essa ordem, o clown-
falante inverte o jogo para fazer aparecer suas regras, de modo a desafiá-las. Assim, o
trabalho analisa primeiramente alguns tipos de clowns através dos tempos, tendo em vista a
relação entre a voz e o gesto clownesco. A partir daí, analiso algumas vozes de clowns que
(re)apareceram na música popular brasileira na segunda metade do século 20 (individuais ou
em grupos como Mutantes, Secos e Molhados, Mamonas Assassinas, Kraunus Sang e
Pletskaya (Tangos e Tragédias), Língua de Trapo, Premeditando o Breque).
Palavras-chave:
Clown. Ordem do Discurso. Voz.
ABSTRACT
This essay analyzes the figure of the Clown in music (the speaker clown) as someone who
does not submit himself to the game of interdiction in the order of the speech. As soon as he
understands the order, the speaker clown changes the game in order to show its rules, and to
challenge them. So, this work firstly analyzes some kinds of clowns in history, regarding the
relationship between the clown‟s voice and gesture. Then I analyze the voices of some clowns
that (re)appeared in Brazilian popular music in the second half of the 20th Century (either
individuals or groups, such as Mutantes, Secos e Molhados, Mamonas Assassinas, Kraunus
Sang and Pletskaya (Tangos e Tragédias), Língua de Trapo, Premeditando o Breque).
Keywords:
Clown. The Order of the Speech. Voice.
1 A VOZ DO CLOWN
No primeiro filme falado de Charles Chaplin, Tempos Modernos, de 1936, Carlitos
precisou mostrar sua voz. A voz foi ouvida em uma única cena, em uma canção. Imagino o
quanto o público esperou ansioso por sua voz. Tendo perdido a “cola” com a letra da canção,
Carlitos joga com palavras sem sentido e reforça, pela fala, a sua posição de clown. O
ambiente, a música e as palavras soltas de sentidos são italianas; acompanhamos o sentido
pela mímica; e a fala e os gestos nos remetem ao mundo da Commedia dell'arte. Tudo isto
atualizado por um clown inglês, ingênuo e desajeitado, que a partir daquele momento se vê
inserido no contexto da indústria cinematográfica sonora americana.
Mesmo com todas as transformações exigidas pelo mundo moderno, podemos ver
que os palhaços adaptam-se e refiguram-se, mantendo características fundadoras. Toda a
mágica, a destreza, a coragem, o equilíbrio, a agilidade, a sensualidade, levada a extremos e
misturada aos seus opostos (realidade, falta de jeito, covardia, desequilíbrio, ataxia e não-
sensualidade) fazem dos palhaços seres de um outro mundo, não regido pelas normas do
mundo terrestre. Nesse mundo-circo o palhaço é o soberano que dita a principal lei:
transgredir as leis humanas e criar um jogo entre ilusão e verdade. Assim como o palhaço
consegue transgredir as leis da física quando, por exemplo, joga um objeto para cima e este
objeto não cai. Ou da química, quando coloca água num balde e ao jogar na platéia, do balde
sai confete, isto não é diferente quanto à linguagem e à fala. O que muitas vezes os
aproximam dos gestos dos loucos, dos sábios ou dos profetas, ou seja, gestos que não são
regidos pela razão lógica ou pelas regras das linguagens que nosso mundo acostumou-se a
ouvir e compreender facilmente, por terem sido institucionalizadas para fins utilitários e
práticos.
Foucault diz que a vontade de verdade “não cessa de se reforçar” através de
procedimentos de exclusão e interdição dos/nos discursos. “Sabe-se bem que não se tem o
direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer
um, enfim, não pode falar qualquer coisa”2. A palavra proibida (principalmente no discurso
da sexualidade ou no da política), a segregação da loucura (que afasta discursos inúteis) e a
vontade de verdade (que serve para a disciplina e o controle das sociedades) são os três
grandes sistemas de exclusão que, interligados, controlam e mantêm a ordem do discurso (das
e para as instituições de poder).
Ao analisar instâncias de poder e saber que reforçam esta ordem, Foucault busca
evidenciar vozes excluídas, principalmente daqueles considerados loucos, criminosos,
hereges. Ao longo da civilização ocidental teremos alguns outros personagens que, não dentro
destas classes de excluídos, dedicaram-se à transgressão destas ordens dos discursos. A meu
ver, uma destas figuras é o clown.
Os clowns parecem, historicamente, não submissos aos jogos de interdição. Ao
compreender esta ordem do discurso, eles invertem o jogo para fazer aparecer suas regras, de
modo a desafiá-las. Afinal o “palhaço é tradicionalmente a figura do rei assassinado.
Simboliza a inversão da compostura régia nos seus atavios, palavras e atitudes. (...) é como
que o reverso da medalha, o contrário da realeza”3.
Muitos tipos de clowns surgiram, desapareceram e reapareceram de acordo com a
urgência do dizer verdadeiro. Ao exporem este reverso da compostura régia, alguns palhaços
correram risco de vida, assemelhando-se em alguns aspectos aos filósofos da Grécia antiga,
em especial aos Cínicos.
Jean Starobinski afirma que o palhaço ganhou força enquanto mito no Romantismo,
entre 1830 e 1870. Trata-se de uma “mitologia substitutiva”, porque os mitos da época eram
heróis pagãos ou bíblicos que a partir da crescente inspiração circense adquirem outros
aspectos. Assim as artes começam a contrapor deuses e palhaços, e o circo e seus jogos
cênicos começam a ser palco para discussões sobre ilusão e verdade 4. Segundo ele, nesse
sincretismo romântico da imagem do palhaço há traços de figuras mais antigas, como “uma
certa imagem do Sócrates irônico (...), os bufões do Renascimento; a Loucura, que Erasmo
elevou à cátedra; (...) os clowns de Shakespeare”, incluindo também “o cinismo „à la
Diógenes‟, do qual muitos artistas do século XVIII criaram uma máscara”5.
Ao colocar nesta relação o cínico Diógenes, Starobinski faz ver um modo de vida
também romântico da parte dos artistas, uma incorporação mais efetiva entre arte e artista, tal
qual os cínicos propuseram: incorporar a filosofia à maneira de viver, em atitudes e posturas
políticas mais evidentes.
Em suas últimas aulas no Collège de France, Foucault fala dos cínicos gregos e de
suas experiências de vida como uma experiência estética na prática do dizer verdadeiro.
Como já disse, interessa a Foucault localizar, na tradição da “vontade da verdade”, rupturas
dos limites de exclusão e interdição na ordem dos discursos. E então poderíamos pensar na
aproximação de um dos mais tradicionais palhaços, o bobo da corte, com a corrente filosófica
dos cínicos gregos, por sua autonomia, pela autorização que tinham de governantes para
dizerem tudo o que pensavam. Lembrando que o bufão e o bobo da corte da idade média
atuavam na vida cotidiana como palhaços em tempo integral e como um modo de vida.
Esta aproximação pode ser percebida também na fala de Starobinski quando se refere
à ironia socrática, aquela que tende a confundir o interlocutor dogmático com questões
No século XVI, o clown era o camponês ingênuo e estúpido; mais tarde, foi
personagem de uma pantomima. Não tinha o significado de palhaço. O termo
português colônio [colono], aliás usado em linguagem teatral, traduz bem o
significado do vocábulo inglês7.
6 MOISÉS, M. Dicionário de termos literários. São Paulo, Cultrix, 1978. pp. 294-295. Grifo nosso.
7 Nota de F. Carlos de Almeida C. Medeiros, in: SHAKESPEARE, W. Hamlet. São Paulo. Abril Cultural, 1981.
p. 257.
5
para situações estranhas (a ele) na cidade grande, onde a figura do clown-ingênuo pode tornar-
se a de um ser estúpido.
Essa ideia da lentidão do pensamento se reflete na lentidão do movimento corporal,
com o clown-glutão (guloso, gordo, preguiçoso, lento) em contraposição ao clown-ágil
(flexível, magro, ativo, rápido). Tanto a agilidade quanto a ataxia (falta de coordenação dos
movimentos do corpo) podem ser elementos característicos das palhaçadas.
Além dos termos médicos, outro tipo de jargão preferido, pelo palhaço (brasileiro), é
o econômico, como em “Melô da economia” (Premeditando o Breque), que ainda aproveita
para brincar com a linguagem jornalística, dizem eles:
uma lógica de pensamento estranha à comum, como se o eu-lírico estivesse pensando alto.
Assim, ao falar a palavra cão, vem à lembrança o mês de vacinação.
(quando o público completa a segunda estrofe ainda com “bá” e eles param a música
para explicar que a segunda estrofe é com “istmo”)
Os jogos de palavras e o uso dos trocadilhos na criação poética, dentro dos padrões
clownescos, multiplicam os sentidos de uma palavra, aproximando-a daquele clown-mímico
de dupla face: metade do rosto pintado de expressão feliz e a outra metade triste. Temos o
verso, por exemplo: “Partido Verde ao meio” da canção “Berlim Bom-fim”, do Tangos e
Tragédias.
Assim também vejo o uso de trocadilhos, no título “Balão trágico”, canção do
Premeditando o breque, que parodia o grupo infantil Balão Mágico. Ou o “Régui Spiritual”
(Língua de trapo), que quer se referir ao ritmo Reggae, mas que acaba trocando a palavra pelo
imperativo “Regue [sua alma]”.
No caso da inversão das fórmulas rituais, o que podemos encontrar é o
aproveitamento de uma situação clichê modificada pelo palhaço. Na fala podemos ver, por
exemplo, o uso de uma expressão bem conhecida, podendo mesmo ser um ditado, que é
transformada causando um estranhamento com o familiar. Como temos na forma infantil de
revidar um xingamento: “Você é feia! — Mais feia é quem me diz. Eu sou feia, mas eu sou
feliz”. Assim, na inversão, os Mutantes cantam:
Dos Secos & Molhados temos, na voz do clown-vítima, a música “O patrão nosso de
cada dia”, ironizando a oração ao “Pai nosso”.
9
***
Para finalizar, sabemos que alguns desses procedimentos de linguagem não são
exclusivos dos clowns, e podem ser constitutivos de qualquer poesia, mas, quando o clown se
apropria deles, percebemos que o resultado dessa apropriação é a desordem dos discursos
institucionalizados. A maneira como são explorados tornam os mais variados temas e
situações ridículos frente a outras formas poéticas. Parece-nos que o importante é ridicularizar
usando toda a ironia possível, numa manifestação discursiva classificável não exclusivamente
como crítica, artística, política, irônica etc.
2 REFERÊNCIAS
STAROBINSKI, Jean. Retrato del artista como saltimbanqui. Madrid: Abada Editores, 2007.
ADAPTAÇÃO EM DEBATE:
RESGATES E ANÁLISE DE UM MATADOR EM CARTAZ
Samantha Borges1(PPGLetras/UFSM)
RESUMO
O artigo tem como objetivo realizar um resgate de algumas teorias desenvolvidas acerca do
tema adaptação literária para o meio audiovisual. Para isso são apresentadas as ideias de
autores como Stam, Clüver e Comparato. Como forma de exemplificar as teorias debatidas,
faz-se a análise da adaptação do livro O Matador, de Patrícia Melo. A obra foi transformada
no filme O Homem do Ano, em 2002, dirigido por José Henrique Fonseca e roteirizado por
Rubem Fonseca. O enfoque da análise é a proximidade de alguns elementos da obra com a
linguagem cinematográfica, como a velocidade da narrativa, que propicia a adaptação. Além
disso, também é observado que a reformulação, na produção fílmica, de fatos e personagens
do texto literário contribui para a construção de um novo olhar sobre o objeto trabalhado.
Através da apreciação comparativa entre a narrativa literária e a cinematográfica chega-se a
reiteração de algumas teorias arroladas, em especial de que literatura e cinema mostram um
diálogo intertextual e intermidiático, que enriquece a produção cultural contemporânea.
RESUMEN
El artículo tiene como objetivo realizar un rescate de algunas teorías desarrolladas acerca del
tema de adaptación literaria para el medio audiovisual. Para eso son presentadas las ideas de
autores como Stam, Clüver y Comparato. Como forma de ilustrar las teorías debatidas, se
hace el análisis de la adaptación del libro O Matador, de Patrícia Melo. La obra fue
transformada en la película O Homem do Ano, en 2002, dirigido por José Henrique Fonseca y
roterizado por Rubem Fonseca. El enfoque del análisis es el acercamiento de algunos
elementos de la obra com el lenguaje cinematográfico, como la velocidad de la narrativa, que
propicia la adaptación. Además, también se observa que la expresión, en la producción
fílmica, de hechos y personajes del texto literario contribuye para la construcción de una
nueva mirada sobre el objeto trabajado. A través de la apreciación comparativa entre las
narrativas literaria y cinematográfica se llega a la reiteración de algunas teorías incluidas, en
especial de que la literatura y el cine muestran un diálogo entre textos y entre medias, que
enriquece la producción cultural contemporânea.
1 INTRODUÇÃO
O artigo apresenta primeiramente um resgate de algumas teorias e debates suscitados
pela recorrente busca e utilização de histórias narradas pela literatura para sua transposição ao
1
Graduada em Comunicação Social - Hab. Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Maria e Mestranda
em Estudos Literários, pela mesma instituição; e-mail: borges.samantha@ymail.com.
2
Harry Potter (J. K. Rowling), Ensaio sobre a cegueira (Saramago) e O Pianista (Szpilman), a
literatura tem se mostrado fonte inesgotável de histórias que podem ser transcritas para o meio
audiovisual, pois literatura e cinema “constituem dois campos de produção sígnica distintos
cuja relação pode se tornar possível em razão da visualidade presente em determinados textos
literários, permitindo sua transformação em películas” (CURADO, 2007, 01-02).
Ao longo da história das adaptações, a crítica defende que seu uso, em especial, para
meios de comunicação de massa, na verdade, vulgariza o texto literário, transformando-o em
mero produto de mercado, como afirmado por Habermas
adaptação ser vista como um meio de diálogo entre diferentes campos da cultura. Ganha força
a teoria da Intermidialidade que defende que “literatura e cinema devem ser entendidos como
mídias que se inter-relacionam de modos diversos, dentro de um universo midiático bastante
amplo, que inclui mídias diversas” (MÜLLER, 2007, p.78 ). Segundo Müller, por ser tanto a
literatura, quanto o cinema, expressões artísticas de dominância na sociedade contemporânea
“interessa compreender os processos de mutação, transformação, transferência, tradução,
adaptação, citação, hibridação entre as duas mídias e, ainda, entre outras mídias” (MÜLLER,
2007, p.78). Schimidt também destaca a relação que se criou entre estudos literários e estudos
midiáticos a partir do pós-estruturalismo que, segundo o autor, provocou uma ruptura com a
tradição filológica e hermenêutica.
Ainda que pautados nas obras literárias, os diretores imprimem, na película, suas
crenças, seus objetivos e sua estilística. Assim, eles buscam ou aproximar, ou
traduzir, ou equivaler, ou dialogar, ou corresponder, ou adaptar o texto literário ao
cinematográfico, observando as possibilidades de imbricamento de um meio com o
outro, tendo em vista aquilo que desejam expressar (CURADO, 2007, p.02-03).
instalada nos processos de criação audiovisuais e, portanto, não deve ser ignorada ou ainda
julgada a partir de paradigmas que não se enquadram mais tão harmonicamente na realidade
de um mundo em que tudo é “inter”: intertextual, intermidiático e interligado.
Beijei Arlete e saí feliz, pensando que passei a maior parte da minha vida querendo
ser outro cara.
Mappin,
venha correndo,
Mappin,
chegou a hora,
Mappin,
é a liquidação!
Quando eu era garoto, adorava ouvir a música do Mappin. Videocassete Gradiente,
quatro cabeças, controle remoto. Garantia Gradiente de um ano. Limpeza automática
das cabeças. À vista cento e sessenta ou duas de oitenta. Famílias, brinquedos,
prestações, crediários. Aproveite! Gosto de ir ao Mappin. Últimos dias da promoção.
Acompanha rack. Jogos de cama. Promoção. Tudo para o seu carro, venha correndo.
Promoção. Mappin. Passei os olhos procurando uma vendedora bonita. (MELO,
2003, p. 10)
obrigado a tingir os cabelos de loiro, como forma de pagamento ao jogo. Ao se ver diante do
espelho, Máiquel se sente um novo homem: o jovem que antes se julgava insignificante
perante o mundo e a vida, dá lugar a um personagem poderoso, capaz de realizar tudo o que
pretensamente desejar, incluindo a partir daí dois elementos que não faziam parte de sua
rotina - dinheiro e morte. Ao chegar ao bar em que estão os parceiros da aposta, Máiquel é
alvo de risos e chacotas do marginal Suel, o que o leva a cometer seu primeiro assassinato. O
fato se torna o estopim para sua vida como assassino profissional, já que ao invés de ser visto
como bandido é ovacionado como o mais novo herói de sua comunidade: moradores e polícia
local agradecem por sua coragem de matar Suel, que vivia a tirar a paz da localidade.
Ao ganhar fama, Máiquel é procurado por Dr. Carvalho, o dentista que resolve seus
problemas bucais em troca de mortes encomendadas, efetuadas pelo protagonista. É assim que
Máiquel se torna o líder de uma rede de poder paralelo, através da qual a justiça não é feita
pelo poder policial – desmascarando a debilidade do poder público -, mas sim pelo Matador.
O enredo, além de apresentar a violência e a corrupção como pano de fundo, também se vale
do apelo sexual para mostrar uma narrativa crua, desvinculada de modelos morais mais
tradicionais. A mistura sexo – sangue dá o tom de uma história de cadência alucinante, que
tira o fôlego do leitor, ao ser transcrita em uma linguagem que narra uma sucessão de
aconteceres, no fluxo do pensamento da personagem. Uma linguagem incessante, sem pausas:
3.1 Adaptação: nem tudo que está no livro está no filme, nem tudo que está no filme está
no livro
Se o livro O Matador apresenta uma narrativa de ritmo tão veloz que chega a
aproximar-se do compasso de uma linguagem cinematográfica, o leitor que assiste ao filme
tem a impressão de que a película, ambiguamente, perde um pouco dessa velocidade. Assim
como defendido por autores como Stam e Doc Comparato, a história lida nas páginas do livro
é modificada e se transforma em um novo produto cultural. Mas, mesmo que o leitor tenha em
mente que estará diante de um produto diferente, a primeira impressão certamente é a de que a
velocidade da palavra escrita, ao menos nos momentos iniciais do filme, superou o ritmo da
imagem. Essa impressão inicial vai sendo suplantada no decorrer do longa-metragem, que ao
se aproximar do ápice da história vai adquirindo o ritmo mais frenético apresentado no livro,
com sequencias que valorizam uma montagem de cenas mais fragmentada e cortes mais
explícitos.
Além disso, vários recursos são utilizados pela produção do filme, para adequar a
história contada no livro, a uma versão cinematográfica. O protagonista permanece sendo o
fio-condutor da narrativa e a voz em off se mostra como a alternativa para representar em
áudio a narração em primeira pessoa apresentada no romance, como ocorre logo na primeira
cena do filme, em que, enquanto a câmera mostra um plano geral - que localiza o público em
um cenário urbano - Máiquel inicia um discurso em off:
Antes da gente nascer, alguém, talvez Deus, define direitinho como é que vai foder a
sua vida. Essa era a minha teoria. Deus só pensa no homem na largada, quando
decide se sua vida vai ser boa ou ruim. Quando não tem tempo, faz uma guerra, um
furacão e mata uma porrada de gente, sem ter que pensar em nada. Mas em mim, ele
pensou. 2
2
Disponível em www.youtube.com
12
drogas; Máiquel tinge os cabelos de cor escura no final do filme, fato que não ocorre na obra
literária.
Todos esses elementos que diferenciam a película do romance corroboram com a
classificação de Doc Comparato. O filme insere-se na categoria de baseado em, em que existe
ainda uma identificação fidedigna da produção fílmica à obra que serviu de inspiração, porém
elementos do enredo podem ser modificados, omitidos, recriados, assim como ocorre na
adaptação de O Matador. O formato ainda reitera a riqueza de leituras que podem ser
desenvolvidas sobre determinado objeto literário, desconstruindo a ideia de que literatura é
algo estanque e que o jogo de intertextualidades e intermidialidades que pode ser realizado
através dela é inferior ao seu elemento original.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Através do artigo buscou-se resgatar algumas discussões teóricas sobre o tema
adaptação. Primeiramente relegado a um nível mais baixo que a literatura, o produto
adaptado, em geral filmes, novelas e minisséries televisivas, passa a ser tratado como um
objeto outro, impossibilitando a hierarquização cultural, em que literatura seria algo superior a
materiais audiovisuais. A partir daí tomam vulto teorias sobre intertextualidade, interartes e
intermidias, que passam a dar suporte teórico a uma área de pesquisa tão polêmica.
Através da adaptação em análise no artigo, é ressaltado que não somente o cinema se
vale da literatura, mas que esse caminho é de mão dupla. No romance O Matador,
características da linguagem cinematográfica são facilmente identificáveis, como a velocidade
da narrativa, a mescla de linguagens coloquiais e publicitária, que ajuda a construir
imageticamente na mente do leitor elementos do mundo contemporâneo; e linguagem e
identidades das personagens apresentadas de maneira fragmentada, facilitando a concepção de
montagem e cortes existente na produção fílmica. Tais características ajudam a constituir uma
literatura que se desvia de uma concepção clássica de narrativa, em geral mais linear e
cadenciada.
O filme O Homem do Ano, mostra ao telespectador – em relação ao texto literário
que lhe serviu de base - uma nova e uma mesma história. Na película são apresentadas
diversas recriações sobre a narrativa literária, porém, o eixo essencial da obra de Patrícia
Melo é mantido, sendo possível ao telespectador que leu o livro, identificar o enredo de O
Matador nas cenas protagonizadas por Máiquel. A adaptação, portanto, se mostra como
produto capaz de enriquecer o repertório do leitor/telespectador, trazendo a tona um olhar
diferenciado sobre a narrativa.
13
5 REFERÊNCIAS
AVERBUCK, Ligia (org.). Literatura em tempo de cultura de massa. Ed. Nobel, 1984.
COMPARATO, Doc. Da criação ao roteiro. 4º Edição. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 2000.
SOARES, Rosana de Lima, MACHADO JR., Rubens, ARAÙJO, Luciana Correa. Estudos
de cinema – Socine VIII. São Paulo: Annablume/Socine, 2007.
RESUMO
A intenção deste trabalho é ler a marginália de Ana C. inscrita no exemplar do livro Reunião
de Carlos Drummond de Andrade, a partir daquilo que Jacques Derrida chamou de
suplemento quando discutiu, por efeitos de leituras de Rousseau, um procedimento de leitura
e de escritura que partia de uma lógica de substituição, representando a falta anterior de uma
presença. O suplemento não tem sentido próprio, ele é externo e pura atribuição de
significação que tenta compensar uma ausência, ele é uma experiência simbólica que faz parte
de um jogo de autoafecção (em que tudo o que toca é também tocado) e é também
contraditório, porque tenta restituir um impossível. Ainda intenta-se construir uma espécie de
unidade que identifique o tipo de leitura que Ana Cristina operou neste estudo de Drummond,
enquadrando seus comentários em uma conformidade que, longe de querer igualar todas as
marcas, quererá afirmar uma decorrência frequente de comentários que, acredita-se, são
convertidos posteriormente em escritura.
Palavras-chave:
Ana Cristina Cesar. Carlos Drummond de Andrade. Marginalia. Suplemento. Imagem.
RESUMÉE
L’intention de ce travail est de lire les notes marginales dans l’exemplaire du livre Reunião de
Carlos Drummond de Andrade à partir de ce que Derrida a appelé supplément quand il a
discuté, par effet des études Rousseau, un procédure de lecture e d’écriture qui a eu par
présupposé une logique de substitution, qui représentait une manque antérieur d’une présence.
Le supplément n’a pas un sens propre, il est extérieur et pas plus que pure attribution de
signification qu’essaye de compenser une absence, il est une expérience symbolique qui fait
partie d’un jeu d’auto-affection (dans le quelle tout ce qui touche est aussi touché) et il est
aussi contradictoire, car il veut rembourser un impossible. L’intention de ce travail est encore
essayer une construction de certaine unité qui puisse identifier le type de lecture qu’Ana
Cristina a fait dans son étude de Drummond, de cette façon, il faut mettre en cadre ses
commentaires sans avoir intention de les égaler mais en essayant de les affirmer en tant que
possibilités de futures écritures.
Mots-clé:
Ana Cristina Cesar. Carlos Drummond de Andrade. Notes marginales. Supplement. Image.
1 O TRABALHO ELE-MESMO
Este trabalho é parte de outro bem maior que venho desenvolvendo no meu mestrado
em Literatura, tanto aqui quanto lá (e é preciso que se mantenha isto em foco durante todo o
caminho) é ler a marginália de Ana C. inscrita no exemplar do livro Reunião de Carlos
1
Mestranda em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Santa Catarina; e-mail:
luiza.ribas@gmail.com.
2
Drummond de Andrade 2, a partir daquilo que Jacques Derrida chamou de suplemento quando
discutiu, por efeitos de leituras de Rousseau, um procedimento de leitura e de escritura que
partia de uma lógica de substituição, representando a falta anterior de uma presença:
O suplemento, sempre será mexer a língua ou agir pelas mãos de outrem. Tudo aqui
é reunido: o progresso como possibilidade de perversão, a regressão em direção a
um mal que permite ausentar-nos e agirmos por procuração. Por escrito. Esta
suplência sempre tem a forma dos signos. Que o signo, a imagem ou o representante
tornem-se forças e façam “mover-se o universo”, este é o escândalo.
O suplemento não tem sentido próprio, ele é externo e pura atribuição de significação
que tenta compensar uma ausência, ele é uma experiência simbólica que faz parte de um jogo
de auto-afecção (em que tudo o que toca é também tocado) e é também contraditório, porque
tenta restituir um impossível. Derrida complementa, ainda:
Nada mais apropriado para designar a operação com a qual Ana Cristina leu Carlos
Drummond de Andrade: as notas dela não são feitas aletoriamente ou se encontram
desconexas de um “sentido maior”, mas se inscrevem de maneira a destacar (sublinhar,
colocar asteriscos, flechas...) aquilo que parece ter “saltado aos olhos” (o que me faz pensar
no punctum barthesiano, e que me rendeu uma discussão mais detida lá no trabalho de
qualificação do mestrado); as anotações se dão, ainda, em vários níveis de compreensão e
interpretação, daí o fato de a lógica do suplemento se instaurar, aqui, como a operação por ela
encontrada. Como em um jogo em que se recomeça a partida toda vez (puro gasto de energia),
procedo aqui da mesma forma: tento operar um suplemento do suplemento, reabrindo as
possibilidades de potência e de sentido nestas tantas ausências (o impossível) da escritura
acumulada de Drummond com Ana Cristina.
Nas páginas 82 e 83 do Reunião, figuram os poemas Anoitecer e o começo de Nosso
tempo, o livro é A Rosa do Povo, no primeiro poema há apenas uma palavra anotada e
sublinhada: medo, palavra esta que bem se pode compreender face ao tom sombrio de um
anúncio de morte, de um silêncio e de uma sombra enunciados no poema. Logo em seguida,
tem-se o Nosso tempo, e aí sim Ana se detém em uma leitura mais alentada, pode-se dizer isso
2
As páginas do livro nas quais constam as anotações de Ana podem ser conferidas nos anexos do final deste
trabalho.
3
desde que se nota que as linhas estão numeradas e que existem, ainda, várias outras marcas
como setas, asteriscos, grifos e afins. O poema de Drummond se divide em 8 partes, já na
primeira, Ana anota: metonímia: recurso que evita o panfleto (palavras abstratas), o que faz
notar que a leitura dela não se dá apenas de maneira impressionista em que bastariam
destaques de passagens eleitas, ou ainda, em sentido “vampirizador”, ao contrário, pode-se
bem dizer que Ana Cristina estudou Drummond em um tipo de movimento que conciliou uma
estratégia de leitura em vários níveis. Algumas considerações são, portanto, apenas
registradas como um destaque intrínseco do poema, outras parecem ser elucidativas (dizem
respeito ao vocabulário ou a algum recurso de escrita) e outras, ainda, surgem quase como
sínteses de leitura, como por exemplo, esta do final da primeira parte do Nosso tempo: única
possibilidade de falar explodia, que se referencia à última estrofe. Há também um grande
número de referência a outros poemas do mesmo livro (e de outros) que parecem querer ligar
(por “tema”?) uns aos outros quase como compondo um único e enorme poemão.
No verso 20, ainda do Nosso tempo, Drummond escreve mas eu não sou as coisas e
me revolto, ao que Ana C. escreve mais abaixo: je me révolte donc nous sommes, numa
referência direta a uma das mais conhecidas citações do livro de Albert Camus L’homme
révolté escrito em 1951, no romance, Camus indica que o “homem revoltado” é aquele que
diz não e afirma ainda que este não representa uma fronteira, um limite:
frontière à partir de laquelle un autre droit lui fait face et le limite. Ainsi, le
mouvement de révolte s'appuie, en même temps sur le refus catégorique d'une
intrusion jugée intolérable et sur la certitude confuse d'un bon droit, plus exactement
l'impression, chez le révolté, qu'il est “en droit de”. La révolte ne va pas sans le
sentiment d'avoir soi-même, en quelque façon, et quelque part, raison. C'est en cela
que l'esclave révolté dit à la fois oui et non. Il affirme, en même temps que la
frontière, tout ce qu'il soupçonne et veut préserver en delà de la frontière. Il
démontre, avec entêtement, qu'il y a en lui quelque chose qui “vaut la peine de...”
qui demande qu'on y prenne garde. D'une certaine manière, il oppose à l'ordre qui
l'opprime une sorte de droit à ne pas être opprimé au-delà de ce qu'il peut admettre.
[…] La conscience vient au jour avec la révolte.
Para além de esta marcação indicar o tipo de leitora que Ana Cristina Cesar foi,
articulando e movimentando livremente sua biblioteca, parece também o caso de afirmar que
ela era um pouco este l’homme révolté cuja consciência vem à luz com a revolta, quero dizer
que Ana parece estar sempre num lugar à beira, no limite, na fronteira; as leituras e as
escrituras por ela realizadas não fazem senão ser a realização material de um corpo sempre
tensionado que diz oui et non ao mesmo tempo, que está sempre jogando com as
possibilidades. Tudo está inscrito no corpo, puro atravessamento de linguagem, uma massa de
significantes passíveis de significação. Mais: a partir do ponto em que se admite que a
4
materialidade do corpo é aquela do poema, é possível resignificar toda escritura de Ana tanto
quanto defender uma visão de que o suicídio tenha sido a forma coerente de se inscrever e se
confundir com o poema finalmente (embora não seja, aqui, esta a intenção).
Esta visão do homem revoltado corrobora ainda o que Drummond diz logo em
seguida no verso 21: Tenho palavras em mim buscando canal, que Ana sublinha num gesto
que só faz imaginar esse corpo (de novo) cheio de palavras, cheio de potência, todo abertura.
Para continuar defendendo que a leitura/escritura de Ana é uma coisa só-corpo, pode-se
apontar para a segunda parte do poema que começa com o verso este é tempo de divisas,
tempo de gente cortada, de onde parte a anotação de Ana: divisa: representações (bandeira,
partido, exercício, etc) / limite (sectarismo); de novo se tem um indício de uma operação com
o poema que se dá na carne, no mais profundo do eu em que as representações são as formas
pelas quais se pode manifestar a divisa, mais ainda: simbolizá-las. Simbolizando, então, o
limite, se dá para este lugar cujo único atrativo é a impossibilidade de lhe atravessar, uma
presença (presença para ausência) que quer dizer que se fica sempre do lado de cá. A divisa,
entretanto, neste caso, é de tempo; como se é que se faz para colocar uma representação
(bandeira, partido, exercício, etc) no tempo? E mais: por se dividir o tempo, se divide
também as pessoas, que partem com mãos viajando sem braços em obscenos gestos avulso. O
tempo, a divisa, o limite e a representação (linguagem, poesia) se encontram, então,
referenciados no corpo deste sujeito poético cindido e fragmentado, avulso.
Mais adiante, na terceira estrofe da parte 2, Drummond escreve símbolos obscuros se
multiplicam a que Ana puxa uma seta e escreve poesia?. Esta interrogação pode ser dos
elementos mais importantes entre os outros contidos neste poema, já que é possível ler aí uma
concepção da própria poesia e do fazer literário para Ana Cristina. Aqui recorro a uma
referência dela mesma que parece ser resultado de leitura do que da dúvida virou exercício:
te livrando:
castillo de alusiones
forest of mirroirs
anjo
que extermina
a dor
em tantos outros contos dele) assim como na “floresta de símbolos” de Baudelaire. O espelho
em questão implica uma teoria da imagem, uma floresta de espelhos, mais ainda, indica uma
teoria da imagem que leve em consideração todo o jogo que se tem de reflexos em ilusões.
Se se concebe a imagem como aquilo pertencente ao sensível (tanto quanto a cor, o
som, o gosto, o cheiro), querendo, desta forma, inferir que ela nos interpela e nos constitui
como sujeitos o tempo todo, recorre-se, assim, ao texto de Emanuele Coccia no qual ele
afirma que é a partir deste sensível (desta imagem) que se pode penetrar nas coisas e nos
outros. Desta maneira, com o espelho se teria como um sensível de si, uma imagem de
representação e identificação independente do sujeito ele mesmo:
O sensível tem lugar apenas porque, para além das coisas e das mentes, há algo que
possui uma natureza intermediária. Esse corpo intermediário se faz conhecer, em
todas as suas propriedades, no espelho; simultaneamente exterior aos sujeitos e aos
objetos, é nele que estes transformam o próprio modo de ser e se tornam fenômenos,
e aqueles colhem o sensível que precisam para viver [...]. No espelho, o sujeito não
se torna objeto para si mesmo, mas se transforma em algo puramente sensível, algo
cuja única propriedade é o ser sensível, uma pura imagem sem corpo e sem
consciência. No espelho tornamo-nos algo que não conhece e não vive, mas que é
perfeitamente cognoscível, sensível, ou melhor, é o sensível por excelência.
A imagem não é apenas transmissível, mas também apropriável, o que significa que
ela pode ser um dos modos pelos quais os sujeitos se mimetizam uns aos outros. Nestes
espelhos todos da floresta de Ana (no castelo de alusões), o que não faltam são imagens (tão
infinitas!) para apropriação, para mimetização, para que se perca e se reencontre incontáveis
vezes. Mas no poema, ela está te livrando de que? Quase como uma explicação, tem-se na
página anterior do A teus pés:
Impossível não lembrar de Jacques Lacan e de sua concepção sobre o Real (aquele
que não cessa de não chegar) e de retomar o que venho dizendo sobre a escritura de Ana
como aquela que se inscreve no corpo. O mapa da navegação, através do qual é possível se
encontrar e se locomover, é o peito do outro; a sede que não se sacia independentemente da
6
quantidade de água que se tome é quase um não conseguir falar por uma boca amarrada de
secura (é possível aqui que se remeta ainda a vários outros poemas de Ana em que se lê esta
dificuldade em falar, como, em um exemplo evidente, é o caso daquele que diz: não consigo
falar nem escrever fluentemente (assim parece)); a vista que se tem é do alto de uma varanda,
é uma contemplação de longe, o sujeito não se encontra envolvido nas coisas que vê, e é tudo
mentira, quer dizer: da verdade se poupa, do segredo se esquece, do enigma se desvia... há
sempre este inatingível se apresentando e se negando à apreensão, o que se sabe é aquilo que
o corpo diz na forma de um sintoma, de um sentir, o Real, diz Lacan, é “ou totalidade ou
instante evanescido. [...] é sempre o choque com alguma coisa”.
Em outros trechos do Nosso tempo, Ana faz anotações que poderiam ser destacadas
por conta da atenção dela em relação àquilo que acontecia no Brasil (e no mundo) tanto no
sentido histórico quanto literário, na parte 4 do poema ela escreve à margem direita:
Graciliano Ramos, Memórias do Cárcere: o outro texto da mesma época e problemática e
depois, na parte 5: o negócio na marcha do mundo capitalista. Estas duas anotações indicam a
familiaridade de Ana com os processos culturais e políticos da época corroborando o fato de
alguns dos críticos de então terem identificado A Rosa do Povo como sendo o livro mais
político de Drummond. Este destaque mais político é dado por Ana até o final neste poema,
quando na última parte (8), ela escreve: poema = arma / destruição do capitalismo anúncio
da utopia, com o que completa (mas viveremos p. 134), retomando o poema que leva este
título e fazendo com que os dois se conversem quase em eco.
Tal é o procedimento de operação de leitura que Ana adota: o labirinto das afecções
não para nunca de ativar e de ser ativado.
7
anexo 1
anexo 1b
8
2 REFERÊNCIAS
ANDRADE, Carlos Drummond de. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008.
RESUMO
Palavras-chave:
Psicanálise. Efeito de sentido. Análise do Discurso. Literatura.
RÉSUMÉ
1
Doutoranda no Programa de Pós Graduação em Ciências da Linguagem da Unisul; e-mail:
adriana.limas@unisul.br.
2
Professor, Doutor, no Programa de Pós Graduação em Ciências da Linguagem da Unisul; e-mail:
mmaliska@yahoo.com.br.
2
Mots-clés:
Psychanalyse. Effet de sens. Analyse du discours. Littérature.
1 INTRODUÇÃO
Este trabalho objetiva refletir sobre as possíveis convergências teóricas entre a
Psicanálise e a Análise do Discurso (AD). Para tanto, parte-se de um pressuposto que concebe
a teoria do discurso e a teoria psicanalítica como escritas literárias e discursivas, destacando-
se os conceitos de interpretação e efeito de sentido, como próprios das duas propostas de
análise, partindo-se do princípio de que tanto a Psicanálise quanto a AD trabalham com certa
noção de sujeito, e que consequentemente, o discurso é tanto sua manifestação como sua
constituição. Cabe esclarecer, que por haver esta convergência teórica torna-se possível
trabalhar com as duas vertentes enquanto método para análise discursiva. Desta forma, há um
intercruzamento de conceitos entre as referidas teorias.
Quanto ao discurso psicanalítico, Jacques Lacan (2008) articula sobre o que marca a
Psicanálise enquanto um campo que busca um saber sobre o inconsciente e suas
manifestações. Irá afirmar ainda que a psicanálise também se constitui de um discurso que
produz efeitos. Para o autor, a condição de seriedade que permeia um discurso é
particularmente exigível numa técnica cuja pretensão é que o discurso tenha consequências.
Ou seja, a Psicanálise fará efeito sobre um analisante se ele se submeter ao discurso
psicanalítico. Neste sentido, o autor argumenta que mesmo num campo extremamente
positivista como o da Física, há um discurso prenhe de consequências, pois a energética nem
sequer é concebível senão como consequência de um discurso (LACAN, 2008).
Em continuidade a paráfrase acima:
Isso importa ao mesmo tempo em que a física implica a existência de um físico [...]
estou dizendo que é o discurso da física que determina o físico e não o contrário.
Nunca houve físico verdadeiro até que esse discurso prevalecesse. (LACAN, 2008,
p. 32).
Neste sentido, o autor ainda esclarece que o discurso lacaniano, quando retoma
Freud, baseia-se no que através da criação da Psicanálise se mostrou ser distinto do discurso
filosófico e próximo de um discurso literário. Prova disso é o fato de Freud buscar na
Literatura elementos de uma narrativa psíquica, como por exemplo, em Édipo Rei, Gradiva,
Hamlet, entre outros, como forma de metaforizar a teoria psicanalítica e deixar seu discurso
mais próximo da Literatura.
Neste sentido, o discurso freudo-lacaniano se diferencia do discurso filosófico, pois
bem mais do que se servir de um discurso para fixar no mundo sua lei e na história suas
normas, conforme insiste o dizer filosófico, segundo Lacan (2008, p. 157), o discurso
psicanalítico se coloca nesse lugar em que o sujeito pretensamente pensante percebe desde
logo que só pode se reconhecer como (e)feito de linguagem.
Concebendo então a lógica supracitada ─ a Psicanálise e a Análise do Discurso como
campos discursivos e considerando que elas se constituem enquanto discursos que possuem
como premissas o efeito de linguagem, ou ainda os efeitos de sentido produzidos pela
linguagem e pelo discurso ─ argumenta-se, de acordo com Teixeira (2005, p. 65), que é por
uma teoria da subjetividade de natureza psicanalítica que Pêcheux institui e articula seu
projeto: no materialismo histórico, na Linguística, e na teoria do discurso. Assinala-se ainda
que a Psicanálise não se encontra ao lado da AD, mas a atravessa justamente nos três campos
assinalados pelo autor. Este atravessamento permite entender o discurso como um efeito de
sentido que é interpretado como algo que está implícito e articulado à noção de sujeito e da
constituição subjetiva através da linguagem.
O efeito de sentido para a Psicanálise e para a AD coincide em aspectos próprios
referentes à subjetividade e ao seu direcionamento discursivo, já que compartilham da
4
existência de um inconsciente que insiste em se fazer presente, e que pode haver um manejo
deste através da construção em análise de algo que produza efeitos na vida do sujeito, porém
podem também ser pensados ainda quanto a sua forma singular. No contexto analítico, Freud
e Lacan irão articular o efeito de sentido a intervenção do analista, que pode ser pensado
através do ato analítico como a quebra do sentido e uma possível mudança subjetiva.
Segundo ainda Remor (2008), Lacan irá afirmar em seu seminário RSI, que o sentido
é uma parte da lúnula resultante da intersecção entre Imaginário (I) e Simbólico (S). Esta
relação lacaniana refere-se ao sentido, e não ao efeito de sentido, mas auxilia a localizar no
entendimento psicanalítico do que se entende por sentido e do que se entende por não-sentido,
inacessível e, portanto, inconsciente. Tanto o sentido quanto o não-sentido ─ ou aquilo que
toma o lugar deste (sintoma, sonhos etc) ─ pode provocar efeito de sentido, já que se articula
com a intervenção do analista.
Conforme a Figura 1, o sem-sentido está no registro do Real, e o sentido, conforme
indica a seta, está localizado na intersecção entre o Imaginário e o Simbólico. O efeito de
sentido ocorre, segundo Remor (2008), na sua leitura de Lacan, com o sentido gerado no
analisante, que muitas vezes vai contra o sentido, sai do sentido e consequentemente da lógica
que pode ser entendida como consciente.
Sem sentido I
S
sentido
Para a AD, o sentido pode ser pensado, segundo Possenti (1997), conforme Pêcheux
propõe, como um efeito de sentido, ou seja, não se trata de conceber o sentido na sua vertente
linguística, como sendo a contraparte do significante, mas como um efeito da enunciação do
significante. O papel da enunciação é mais relevante do que o papel do significante. Assim,
falar de discurso é mais do que falar de sentido, é falar de efeito de sentido.
A literatura psicanalítica e a discursiva convergem neste ponto, sendo que possuem
esta função de articular possibilidades quanto a um encontro “possível” entre o sentido e o
sem sentido. Esta possibilidade de encontro é para Lacan (2008) o que favorece a busca ou a
tentativa do sujeito em atribuir sentido para a repetição, que é movida por um Real, e,
6
portanto, da ordem do sem sentido. Na práxis analítica, a repetição é definida por Freud como
o retorno de uma experiência infantil atualizada através do sintoma ou da transferência
analítica. Inicialmente a repetição causa um estranhamento no sujeito, ao perceber que algo se
repete em sua história, nas suas relações afetivas e parentais. O conteúdo que mobiliza esta
repetição é definido por Lacan como o real que insiste em produzir efeitos na vida do sujeito
em análise.
pode referir de sem sentido. Por sua essência, para a AD, a metáfora serve como um exemplo
da possibilidade do encontro entre o sentido e o sem sentido.
A língua, desta forma, é uma construção do sujeito, para inscrever sua condição de
faltante na cultura, partindo-se do princípio que a língua é faltante por si só. Toca o Real
naquilo que é possível fazer um laço de representação, insistindo em buscar um sentido,
produzindo efeitos na vida do sujeito, e sendo ao mesmo tempo inatingível.
O efeito de sentido, quando produzido, rompe com o movimento de busca incessante
pelos sentidos, impulsionando os analistas, sejam psicanalistas ou analistas do discurso, a
atravessarem um percurso na compreensão destes efeitos de sentidos provocados pela sua
prática, convocando-os a pensar sobre a falta e sobre o sem sentido como oriundos de um
mecanismo que não se apreende, apenas se tem acesso pelas suas manifestações.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As possíveis articulações entre a literatura psicanalítica e a discursiva (AD) ocorrem
onde a interpretação que se produz articulada a um discurso é manejada e possui um objetivo
de revelar justamente o que as palavras que compõem o material discursivo ─ seja pela fala
de um analisante, seja através de um texto produzido ─ acabam não dando conta de revelar.
A convergência maior entre as referidas teorias encontra-se no efeito de sentido que
mostra o quanto a subjetividade pode ser tocada e ao mesmo tempo inatingível em sua
completude, pois o efeito de sentido é sempre parcial e articulado a uma particularidade de
um sujeito que permite se mostrar, pois escapa a seu controle.
A confecção deste trabalho objetiva proporcionar uma perspectiva de aproximação
da Psicanálise e da Análise de Discurso de linha francesa, pois ambas possuem o alicerce do
sujeito em sua prática, possibilitando olhares/escutas/leituras diversificadas sobre um mesmo
objeto: o sujeito e suas representações metafóricas. Como já abordado neste trabalho, é pela
metáfora que as articulações teóricas se aproximam de forma mais efetiva.
Desta forma, ambas constroem possibilidades, seja pela via da análise pessoal, seja
pela prática de análise textual, buscando um lugar de compreensão da heterogeneidade
constitutiva e do inconsciente. As posições subjetivas assumidas pelas duas teorias revelam
sua característica investigativa diante da falta, que se inicia em Freud e se atualiza na
linguagem.
4 REFERÊNCIAS
LACAN, J. O Seminário, Livro 16: de um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Editora Zahar,
2008.
_____. O Seminário, Livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2007.
ORLANDI, E. Autoria, Leitura e Efeitos do Trabalho Simbólico. São Paulo: Pontes, 2007.
RESUMO
A seguinte comunicação tenta pôr em diálogo alguns aspectos da obra El juguete rabioso
(1926) do escritor argentino Roberto Arlt, com textos de Charles Baudelaire, quem ensaiou,
entre outras coisas, uma protéica conexão entre o sujeito que brinca e seu brinquedo. Esco-
lhemos relacionar a literatura com a figura ―jogo‖ por seu poder ultrapassador dos limites e
sua pulsão associada à vontade de liberação, num sentido de propor incessantemente outras
regras: inventar para recriar o jogo. Por outra parte, a inquietude de analisar a obra desde esta
perspectiva sustenta-se, além do mais, na possibilidade de tentar prover seu próprio conjunto
de ferramentas, com a posta ―em jogo‖ destas leituras e outras para indagar o texto; ler-lo na
manipulação da constelação criada pelo ―brinquedo raivoso‖, experimentar suas mutações. O
percurso desenvolve-se a partir da análise e problematização da noção de ―desejo‖ como eixo
dinamizador do trabalho. A desmontagem do termo desejo na obra está conectada com o se-
gundo momento de análise: o lugar e o papel da invenção arltiana. Ali trabalharemos desde
uma perspectiva de ―invenção como jogo‖ ou ―invenção em jogo‖, capaz de distensionar os
termos ―Homo faber/ Homo ludens‖, que, em última instância, possibilitarão a aparição do
terceiro e último eixo a tratar: a traição. Este último elemento é fundamental, enquanto repre-
senta e enlaça as transgressões que envolvem tanto o personagem central, como a escrita
mesma.
Palavras-chave:
Roberto Arlt. Literatura rioplatense. Teoria literária. Baudelaire
ABSTRACT
The following communication tries to implement some aspects of the work El juguete rabioso (1926)
by the Argentine writer Roberto Arlt, with texts by Charles Baudelaire, who experimented with,
among other things, a proteic connection between the subject and ―who plays the toy‖. We chose to
relate the literature with the figure "game" by its power exceeded the limits associated with the drive
and its willingness to release a ceaselessly to propose other rules: up to recreate the game. On the other
hand, the concern to analyze the work from this perspective it is argued, moreover, the possibility of
trying to provide its own set of tools to put "in play" and other such readings to interrogate the text,
read handling it in the constellation created by the "toy rage", try their mutations. The course is devel-
oped from the analysis and questioning the notion of "desire" as the axis driving the work. Disassem-
bly of the term desire in the work is connected with the second stage of analysis: the place and role of
the invention arltiana. Ali will work from a perspective of "invention as a game" or "invention in the
game," capable of distension the terms "Homo-faber / Homo-ludens", which ultimately will bring
about the appearance of the third and last axle to treat: the betrayal. The latter is crucial, as it repre-
sents and embraces the transgressions involving both the central character, such as writing it.
Keywords:
Roberto Arlt. River Plate Literature. Literary Theory. Baudelaire.
1
Gastón Cosentino formou-se em Castelhano, Literatura e Latim pelo ISP Joaquín V. González - Buenos Aires,
Argentina. Atualmente estuda Mestrado em Literatura na Universidade Federal de Santa Catarina - Florianó-
polis, Brasil, sob a orientação da Professora Dra. Liliana Reales e com o apoio financeiro do CNPq; e-mail:
florespanhol@gmail.com.
2
1 INTRODUÇÃO
Em princípio, escolhemos relacionar literatura com a noção de jogo por seu poder ul-
trapassador dos limites (HUZINGA, 2008), sua pulsão associada à vontade de liberação, num
sentido de propor incessantemente outras regras; inventar para re-criar o jogo. Assim, vemos
como amostra, algumas incrustações que na obra de Roberto Arlt são constantes infiltrações
do jogo:
2
Graciela Korolik, em sua investigação sobre os jogos tradicionais argentinos, e que, sugestivamente, delimita
entre o começo do século XX e os anos 1940, diz a respeito desse tempo que é uma data na qual o jogo expe-
rimenta uma mudança muito importante, provocada pelo desenvolvimento e o crescimento da indústria do
brinquedo: o passo desde o brinquedo artesanal ao brinquedo mecânico ou eletrônico. Neste sentido, a refe-
rencia lúdica que propõe Robeto Arlt poder-se-ia explicar a partir do que propõe Korolik, quem coloca: ―[...]
La Torre en guardia (tiene) una coreografía y reglas algo más complicadas. Se elegían para jugarla al Rey, a
los soldados y a dos niñas, que cumplían el papel de "torre", colocadas frente a frente y con las manos enla-
zadas. Una niña giraba alrededor de ellas y se suscitaba este diálogo cantado:
Al recibir esta respuesta la niña se dirigía al Rey, que se encontraba con sus soldados y solicitaba ayuda:
Los "Soldados" se lanzaban sobre la "torre" y trataban de destruirla separándole las manos, para lo cual se divi-
dían a su vez en dos bandos que forcejeaban tomados de la cintura.‖ In: KOROLIK, Graciela. Historia de
Juegos Tradicionales de Argentina. Retablo de los juegos infantiles: Disponível em:
http://www.acanomas.com/Historia-Juegos-Tradicionales-de-Argentina/1348/Retablo-de-los-juegos-
infantiles.htm Acesso em: 24 maio 2011.
3
BAUDELAIRE, Charles. Morale du joujou. In: Oeuvres Complètes (III) L’Art Romantique. Paris: Michel
Lévy Frères libraries éditeurs, 1868.
3
outras coisas pertinentes para nosso trabalho, uma íntima conexão entre o sujeito que brinca e
seu brinquedo:
Tous les enfants parlent à leurs joujoux; les joujoux deviennent acteurs dans le
grand drame de la vie, réduit par la chambre noire de leur petit cerveau. Les
enfants témoignent par leurs jeux de leur grande faculté d'abstraction et de leur
haute puissance imaginative. Ils jouent sans joujoux. (BAUDELAIRE, 1868,
pp.141-142)
Neste sentido, pareceria que as alusões ao jogo na obra arltiana só aparecem manifes-
tadas por meio destas incrustações específicas, por exemplificar, cantos de crianças; mas,
quem brinca, o jogador, respira através do texto mesmo. Do mesmo modo, há uma coisa mui-
to interessante que coloca ao passar Baudelaire na passagem citada, a saber, que os brinque-
dos devem atores ou agentes dentro do grande drama da vida (BAUDELAIRE, 1868, p. 141);
como uma espécie de extensão metamorfoseada do sujeito que brinca. Acaso o personagem
arltiano, Silvio Astier, poderia ser considerado, ao mesmo tempo, como uma extensão do seu
próprio jogo?; ora, simplesmente, a transformação experimentada do seu jogo, o protagonista
que devem brinquedo (raivoso), um pau na roda da engrenagem da vida quotidiana.
O périplo do personagem de El juguete rabioso percorre o escrito em sintonia com
uma oferenda lúdica não alinhada com a alternativa. Ele não trabalha com o resto que os
acontecimentos deparam-lhe. O caminho de Silvio Astier não é paralelo ao que padece. Ele
defasa o jogo mesmo, como um sujeito que interfere com sua obra o motor dessa alternância.
A possibilidade de ter e não ter, ausência e presença, ganhar e perder: mecânica elementar do
jogo. Nada de buscas frenéticas de realização, senão intermitências.
Huizinga, em outro momento de seu texto, coloca alguns julgamentos que podem
funcionar como enlace entre o desejo –como complexo– e o jogo. De alguma maneira a ne-
cessidade é ultrapassada pela entidade do jogo:
No jogo existe alguma coisa ―em jogo‖ que trasciende as necessidades imediatas da
vida e confere um sentido à ação. Todo jogo significa alguma coisa. [...] Seja qual
for a maneira como o considerem, o simples fato de o jogo encerrar um sentido im-
plica a presença de um elemento não material em sua própria essência. [...] O jogo se
acha ligado a alguma coisa que não é o próprio jogo. (HUIZINGA, 2008, p. 3-4)
4
4
DELEUZE, Gilles. O Abecedário de Gilles Deleuze. Descrição de entrevista realizada por Claire Parnet, dire-
ção de Pierre-André Boutang, 1988-89.
5
Ibid.
6
Ibid.
7
Tradução ao português de El juguete rabioso, título do primeiro romance de Roberto Arlt.
8
Segundo o Dicionário Houaiss, o verbo brincar tem entre suas acepções:
5. não dar importância, não levar (algo) a sério
Ex.: brincou (com a oportunidade que lhe foi dada) e agora chora
6. intransitivo agir com leviandade ou imprudência
Ex.: tanto brincou ao volante, que acabou mal
9
Huizinga observa que o jogo tem as seguintes características básicas: uma atividade livre, tomada consciente-
mente como não-seria e exterior à vida habitual. Capaz de absorver ao jogador de maneira total. Atividade
desligada de todo e qualquer interesse material. In HUIZINGA, Johan. Homo ludens. São Paulo: Perspectiva,
2008, p. 16.
5
O desejo sempre foi para mim, se procuro o termo abstrato que corresponde a dese-
jo, diria: é construtivismo. Desejar é construir um agenciamento, construir um con-
junto [...] O desejo se estabelece sempre, constrói agenciamentos, se estabelece em
agenciamentos, põe sempre em jogo vários fatores. [...] Um desejo é isso, é constru-
ir. (1988-89, p.37)
O brinquedo de Arlt, em tanto objeto, nunca será para ser tido; comporta-se sempre
como fugitivo. O que se escapa desde os primórdios, o brinquedo que não se deixa apresar; a
10
O Dicionário da Real Academia Espanhola (RAE) diz ao respeito: rabia. Del lat. rabies. 1. f. Pat. Enferme-
dad que se produce en algunos animales y se transmite por mordedura a otros o al hombre, al inocularse el vi-
rus por la saliva o baba del animal rabioso. Se llama también hidrofobia, por el horror al agua y a los objetos
brillantes, que constituye uno de los síntomas más característicos de la enfermedad.
11
Em referencia ao ouro, metal precioso, e sua constelação de significado.
12
Le jojou du pauvre.
13
[…] A travers ces barreaux symboliques séparant deux mondes, la grande route et le château, l'enfant pauvre
montrait à l'enfant riche son propre joujou, que celui-ci examinait avidement comme un objet rare et inconnu.
Or, ce joujou, que le petit souillon agaçait, agitait et secouait dans une boîte grillée, c'était un rat vivant ! Les
parents, par économie sans doute, avaient tiré le joujou de la vie elle-même. […]
6
lei do brinquedo e sua transgressão. A raiva corre, desloca o próprio jogo. Desde o título, é
um brinquedo que queima ou mancha; ardente. Qual é o brinquedo que não se deixa ter ja-
mais? Um brinquedo raivoso. Uma imagem perdurável a força de sua impossibilidade. Uma
das coisas mais encantadoras da imagem proposta por Arlt, brinquedo raivoso, é a impossibi-
lidade de secioná-la para explicá-la. Uma imagem-borboleta, diria Didi-Huberman (2009).
“La vida puerca”, título primário da obra, pode-se entrecruzar com o título definiti-
vo do romance, El juguete rabioso. Brinquemos com o título para desengessar seus sentidos:
A vida raivosa; o brinquedo porco; a raiva da vida; o porco brinquedo; o brinquedo porco-
espinho, etc. Jogar a imagem/jogar com a imagem.
Alem do já exposto, os teóricos da forma e da imagem, segundo Didi-Huberman
(2009, p. 15) não falam de êxtase, senão como processos; como atos, e não como coisas, em
relação a suas abordagens. O brinquedo raivoso, longe de se apresentar como um objeto (ou
como um objeto somente) surge à maneira de um ato cuja performatividade faz dele um ins-
trumento e/ou um agente; um artefato que desloca a categorização possível. Em outra linha de
análise, a união do animal com o jogo, a través de uma leitura metonímica que toma como
ponto de partida a raiva, propõe um encontro primitivo com a noção mesma de jogo (ver Hui-
zinga). Nesta perspectiva lemos uma operação viável desde o título: a animalização do objeto
ou a coisificação animal. Dita questão materializa a segunda perspectiva adotada, a respeito
das significações do brinquedo raivoso, quais sejam, seguindo as teorizações de Didi-
Huberman em torno à imagem, assim como não há imagem sem imaginação (2009, p. 15),
não há brinquedo sem jogo. Nesta linha de análise, o jogo instável proposto pela escrita arltia-
na é anunciado ou antecipado pelo título. O jogo dispõe os objetos, outorga-lhes valor simbó-
lico e duração, validade. O jogo é o fio que entrelaça as contas do colar escritural de Roberto
Arlt. Sem esta pré-disposição, as armadilhas multiplicam-se e o texto converte-se em uma
angústia tormentosa por não atingir nada do que se propõe. O jogo, seguindo a Roger Caillois
(1987), nada se propõe em termos tradicionais ou de realidade quotidiana. O jogo em tanto
condição do próprio jogo não precisa do aspecto teleológico. A capacidade, por outra parte,
metamórfica da imagem brinquedo raivoso explica, em parte, a vigência e a renovação do
sentido. Interessante paradoxo oferece a imagem brinquedo raivoso, no sentido que um brin-
quedo é sempre suscetível de manipulação14. A raiva –como assinalamos anteriormente–
14
O dicionário Houaiss diz a respeito do termo ―manipulação‖: 1 ato de tocar, segurar ou transportar com as
mãos. / 2 Derivação: por extensão de sentido. manejo, utilização. Ex.: m. de instrumentos de precisão. / 3 De-
rivação: por extensão de sentido. em espetáculos de mágica, série de movimentos das mãos, feitos com des-
treza. / 4 Uso: pejorativo. manobra oculta ou suspeita que visa à falsificação da realidade. Ex.: m. de dados
estatísticos. / 5 Uso: pejorativo. manobra pela qual se influencia um indivíduo, uma coletividade, contra a
7
alheia, distancia, quebra o contato entre o sujeito e o objeto. Arlt promove com o título de sua
obra um fazer agir ―una criatura del paso y del deseo, del movimiento y el consumo‖ (2009, p.
20) A propósito da espécie de abordagem que coloca Didi-Huberman, a ―imagen borboleta‖
que ― [...] En todo caso esa cosita que revolotea y nos cautiva, es reconocida y tomada por
criatura del deseo. A menudo, Eros es representado con una mariposa en la mano‖ (2009, p.
25). Mais adiante, diz Didi-Huberman:
El ser que mariposea hace al menos dos cosas: para empezar, palpita y se agita con-
vulsivamente, su cuerpo va y viene sobre sí mismo, como en un baile erótico o en un
trance. Luego, el ser que mariposea yerra y se agita al tun-tun, arrasando su cuerpo
de aquí para allá en una especie de exploración inquieta, en una especie de búsqueda
de la que decididamente ignora cuál es el objetivo final. En esta danza hay algo de la
inestabilidad fundamental del ser, una huida de ideas, un poder absoluto de la libre
asociación, un mandato del salto una ruptura constante de las soluciones de conti-
nuidad‖. (Didi-Huberman, 2009, p. 27)
Es por ello que de la mariposa o del mariposeador se dice con malicia que lo derro-
chan todo sin fundar jamás nada sólido. […] La mariposa/variante/alternante carac-
teriza una de las pasiones humanas que ninguna ley moral debería restringir. […]
Mariposeo, ese vagabundeo aéreo desde el punto de vista de una verdadera estrate-
gia del deseo concebido como utopía política […] Así pues, mariposear: bailar con
el propio deseo hacia y contra todo. Suscitar, por aquí y por allá, una aparición posi-
ble. (2009, p. 28)
A união instável entre o brinquedo e a raiva contamina o desejo, faz que a alternância
injeção/rejeição movimente as peças desta maquinaria lúdica arltiana. É a ilusão a que man-
tém viva a chama do desejo, a ilusão/inludere, a posta em jogo da vida: ―la mariposa no desa-
parece […] en la llama de una vela, sino para hacer de su ausencia un largo transporte psí-
quico, una obsesión, una supervivencia, un deseo reconfigurado‖ (2009, p. 29).
Como será possível, no texto arltiano a invenção/re-invenção do jogo? Novamente, o
protéico texto A imagem borboleta proporciona-nos uma passagem que poderia servir como
chave de leitura. Coloca Didi-Huberman a propósito de uma visão de Walter Benjamin: ―Que-
ría convertirse en una imago (borboleta) para que la imago le permitiera acercarse antes de
que todo retornara a su lugar con el gesto fatal de la captura, por el cual el cazador volvería a
ser humano y la víctima animal‖ (2009, p. 59).
vontade destes. /6 Rubrica: farmácia. operação manual de produtos químicos; preparação de fórmulas farma-
cêuticas etc.
8
Por outra parte, pode se ler que Baudelaire adverte uma sorte de ruptura entre o mun-
do da infância e o adulto16, que é análoga –a nosso entender– à que se da entre ilusão17 e cul-
tura, o mundo não-sério/sério, entre a transgressão e a norma. Esta crise se condensa e se ab-
15
Escolhemos o termo ―bactéria‖, por sua relação com a idéia de contato, contágio, contaminação, frente às
formas ―germe‖ ou ―causa‖, claramente associadas à noção de origem.
16
Lembremos que no começo do ensaio, Baudelaire justapõe o mundo maravilhoso dos brinquedos ao desencon-
tro com o mundo adulto. No momento que a senhora Panckoucke insta a que o pequeno Baudelaire escolha
um brinquedo de sua sala mágica, o menino pega o mais belo e caro. A mãe indignada pela indiscrição do
menino, fala para ele que procure um brinquedo menos pretensioso. (1898, p. 139)
17
Como coloca Huizinga, na etimologia da palavra ilusão, do latim in-ludere está a pertinente noção para nosso
trabalho ―em jogo‖.
9
sorve na imagem e no texto ―brinquedo raivoso‖18. A raiva –se existisse e adquirisse forma–
seria contra a normalização da imaginação, frente ao mundo, por exemplo, do trabalho, que
abole o tempo para sonhar: uma condena constante ao mundo do ócio criativo.
Silvio é um artista-inventor –nós diríamos, também, construtor– e sua fama no bairro
começa com a fabricação de um canhão19. Este objeto é descrito com a ênfase, detalhe e es-
perteza de uma criança que ensina sua obra acabada:
18
As leituras de El juguete rabioso que puseram o acento na falta da figura paterna no lar de Silvio Astier para
operar a partir desse lugar uma maquinaria crítica da obra, também podem se nutrir do elemento lúdico. Wal-
ter Benjamin no texto História cultural do brinquedo coloca que ―[...] na segunda metade do século XIX, [...]
percebe-se como os brinquedos se tornam maiores, vão perdendo aos poucos o elemento discreto, minúsculo,
sonhador. [...] Então a criança ganha o próprio quarto de brinquedos, somente então uma estante na qual po-
de, por exemplo, guardar os seus livros separados dos livros pertencentes aos pais? [...] uma emancipação do
brinquedo põe-se a caminho; quanto mais a industrialização avança, tanto mais decididamente o brinquedo se
subtrai ao controle da família, tornando-se cada vez mais estranho não só às crianças, mas também aos pais‖
(BENJAMIN, 2002, pág. 91-92). Será possível pensar que essa falta começa com uma distância progressiva;
um hiato social que começa a permear os objetos –metamorfose e fusão dos próprios sujeitos. Um corte ab-
rupto entre o mundo da infância e do adulto instala, também, outra problemática arltiana, a través do protéico
brinquedo raivoso.
19
Silvio Astier narra a construção do seu brinquedo artesanal desta maneira: ―A ciertos peones de una compañía
de electricidad les compré un tubo de hierro y varias libras de plomo. Con esos elementos fabriqué lo que yo
llamaba una culebrina o ―bombarda‖. Procedí de esta forma: En un molde hexagonal de madera, tapizado in-
teriormente de barro, introduje el tubo de hierro. El espacio entre ambas caras interiores iba rellenado de
plomo fundido. Después de romper la envoltura, desbasté el bloque con una lima gruesa, fijando al cañón por
medio de sunchos de hoja de lata en una cureña fabricada con las tablas más gruesas de un cajón de kerose-
ne.‖ (ARLT, 1993, pág. 38-39)
20
Em relação à destruição, Walter Benjamin, no seu escrito O caráter destrutivo, joga algumas luzes que ajudam
a pensar o fenômeno da criação no ato da destruição e as concomitâncias com o agir de Silvio Astier na cida-
de: ―O caráter destrutivo conhece apenas uma divisa: criar espaço; conhece apenas uma atividade: abrir ca-
minho. Sua necessidade de ar puro e de espaço é mais forte do que qualquer ódio. O caráter destrutivo é jo-
vem e sereno. Pois destruir rejuvenesce, porque afasta as marcas de nossa própria idade; reanima, pois toda
eliminação significa, para o destruidor, uma completa redução, a extração da raiz de sua própria condição. O
que leva a esta imagem apolínea do destruidor é, antes de mais nada, o reconhecimento de que o mundo se
simplifica terrivelmente quando se testa o quanto ele merece ser destruído.‖ In: BENJAMIN, Walter. Docu-
mentos de cultura, documentos de barbárie: escritos escolhidos. Tradução Celeste H. M. Ribeiro de Sousa (et
al.). São Paulo: Cultrix/Edusp, 1986, pág.187-188.
21
Roland Barthes no ensaio O mundo do catch, que ele mesmo destaca como a arte da simulação, escreve: ―Mui-
ta gente acha que o catch é um esporte ignóbil. O catch não é um esporte, é um espetáculo, e é tão ignóbil as-
sistir a uma representação da Dor no catch como ao sofrimento de Arnolfo ou de Andrômaca. [...] O verda-
deiro catch, impropriamente chamado catch-amador, realiza-se em salas de segunda classe, onde o público
adere espontaneamente à natureza espetacular do combate, como o público de um cinema de bairro. Essa
10
ainda quando o mundo diário pareça cair. Não há uma gota de sangue na obra, mas as ima-
gens estão povoadas de efetiva crueza. A imaginação e a ilusão arltiana são instrumentais tão
poderosos e aguçados como os usados na vida comum. Essa poderosa arma cresce em termos
de expectativas, de fantasia; assim mesmo, mais uma vez, o novo brinquedo revela a íntima
conexão com o jogador e a metamorfose que outorga sempre a possibilidade de ser outro:
El día que ensayamos el cañón fue famoso. Entre un macizo de cinacina que había
en un enorme potrero en la calle Avellaneda antes de llegar a San Eduardo, hicimos
el experimento. Un círculo de muchachos me rodeaba mientras yo, ficticiamente
enardecido, cargaba la culebrina por la boca. Luego, para comprobar sus virtudes
balísticas, dirigimos la puntería al depósito de cinc que sobre la muralla de una
carpintería próxima la abastecía de agua. Emocionado acerqué un fósforo a la me-
cha; una llamita oscura cabrilleteó bajo el sol y de pronto un estampido terrible nos
envolvió en una nauseabunda neblina de humo blanco. Por un instante permaneci-
mos alelados de maravilla: nos parecía que en aquel momento habíamos descubier-
to un nuevo continente, o que por magia nos encontrábamos convertidos en dueños
de la tierra. (1993, p. 39-40)
Et les enfants qui jouent à la guerre ! non pas dans les Tuileries avec de vrais fusils
et de vrais sabres, je parle de l'enfant solitaire qui gouverne et mène à lui seul au
combat deux armées. Les soldats peuvent être des bouchons, des dominos, des pions,
des osselets; les fortifications seront des planches, des livres, etc., les projectiles,
des billes ou toute autre chose; il y aura des morts, des traités de paix, des otages,
des prisonniers, des impôts. J'ai remarqué chez plusieurs enfants la croyance que ce
qui constituait une défaite ou une victoire à la guerre, c'était le plus ou moins grand
nombre de morts. Plus tard, mêlés à la vie universelle, obligés eux-mêmes de battre
pour n'être pas battus, ils sauront qu'une victoire est souvent incertaine, et qu'elle
n'est une vraie victoire que si elle est pour ainsi dire le sommet d'un plan incliné, où
mesma gente, em seguida, indigna-se pelo fato de o catch ser um esporte falseado (o que, aliás, deveria res-
tringir a sua ignomínia). O público não se importa nem um pouco que o combate seja ou não uma farsa — e
ele tem toda a razão. Entrega-se à primeira virtude do espetáculo: abolir qualquer motivo ou conseqüência; o
que lhe interessa é o que se vê, e não no que crê. [...] O espectador não se interessa pelo progresso de um des-
tino, mas espera a imagem momentânea de certas paixões. O catch exige, portanto, uma leitura imediata de
significados justapostos, sem que seja necessário ligá-los.‖ In: Barthes, Roland. Mitologias. Tradução: Rita
Buongermino. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009, pág. 14-15
22
Expressão de Roberto Arlt que aparece no prólogo à obra ―Los lanzallamas‖ e que já há funcionado quase
como uma definição própria da escrita do escritor argentino por parte da crítica: ―[...] El futuro es nuestro,
por prepotencia de trabajo. Crearemos nuestra literatura, no conversando continuamente de literatura, sino
escribiendo en orgullosa soledad libros que encierran la violencia de un ―cross‖ a la mandíbula. Sí, un libro
tras otro, y ―que los eunucos bufen‖. In: Arlt, Roberto. Los lanzallamas. Novelas completas. Buenos Aires:
Losada, 2008, pág. 386.
11
l'armée glissera désormais avec une vitesse miraculeuse, ou bien le premier terme
d'une progression infiniment croissante. (BAUDELAIRE, 1868, p. 142-143)
A seriedade, rasgo antitético do jogo, é ocupada pelo espaço do dinheiro23. Por essa
causa, o sujeito arltiano arremessa ludicamente para desacreditá-lo: “Así vivíamos días de sin
par emoción, gozando el dinero de los latrocinios, aquel dinero que tenía para nosotros un
valor especial y hasta parecía hablarnos con expresivo lenguaje.” (ARLT, 1993, p. 52).
Mais adiante, no mesmo ensaio, Baudelaire faz uma espécie de taxonomia do brinquedo. Na
divisão que ele propõe destacam-se os ―brinquedos bárbaros ou primitivos‖24; os brinquedos
vivos25; os ―brinquedos científicos‖26; até chegar à última categoria de ―brinquedos com al-
ma‖. O interessante é que a maquinaria exposta no romance arltiano perpassa estas três divi-
sões. Os brinquedos científicos, aqueles que para Budelaire não são nem bons nem maus, são
caros a Silvio Astier-inventor, mas sua condição social faz com que sua inventiva obre a partir
de elementos simples e rudimentares, que o inclinam ao grupo de brinquedos bárbaros. Em
última instância, a possibilidade de pensar um ―brinquedo com alma‖ em Roberto Arlt é arti-
cular uma aparelhagem que acaba movimentando um brinquedo raivoso.
As invenções de Silvio Astier podem se comportar como brinquedos, no sentido que
eles fogem dos usos presumivelmente sérios, em termos de conduta social aceitável. Pense-
mos, para exemplificar, nos seus canhões, seu assinalador automático de estrelas fugazes, sua
máquina de escrever que recebe o que se dita, etc. O que se inventa poderia pertencer aos
brinquedos científicos de Baudelaire, sobretudo por sua exaustiva explicação de funcionamen-
to –uma complexidade que põe em tensão a humilde condição social do inventor–; detalhes
23
¿Estás triste, mamá? /—No —contestó. /De pronto: — ¿Querés que lo hable al señor Naydath? Podés aprender
a ser decorador. ¿No te gusta el oficio? / —Es igual. /—Sin embargo, ganan mucho dinero...
Me sentí impulsado a levantarme, a cogerla de los hombros y zamarrearla, gritándole en las orejas: — ¡No hable
de dinero, mamá, por favor...! ¡No hable... cállese...! Comprendió mi silencio agrio, y el alma se le cayó a los
pies. Quedóse alelada, más pequeña, y sin embargo estremecida del rencor que aún le gritaba por mis ojos —
¡No hable de dinero, mamá, por favor... no hable... cállese! In: Arlt, Roberto. El juguete rabioso. Buenos Ai-
res: Espasa Calpe, 1993, pág. 77
24
Em relação ao brinquedo bárbaro ou primitivo, escreve Baudelaire: ―Et même, analysez cet immense mundus
enfantin, considérez le joujou barbare, le joujou primitif, où pour le fabricant le problème consistait à
construire une image aussi approximative que possible avec des éléments aussi simples, aussi peu coûteux
que posible […] C'est le joujou à cinq sous, à deux sous, à un sou. - Croyez-vous que ces images simples
créent une moindre réalité dans l'esprit de l'enfant que ces merveilles du jour de l'an, qui sont plutôt un
hommage de la servilité parasitique à la richesse des parents qu'un cadeau à la poésie enfantine?‖ (1853, pág.
143-144)
25
Nesta passagem, Baudelaire faz intertexto com outro escrito de sua autoria, O brinquedo do pobre. O texto
forma parte dos poemas em prosa contidos no livro O spleen de Paris (1869).
26
A respeito do brinquedo científico, escreve Baudelaire: ―Il est une espèce de joujou qui tend à se multiplier
depuis quelque temps, et dont je n'ai à dire ni bien ni mal. Je veux parler du joujou scientifique. Le principal
12
que funcionam como uma desesperada tentativa que legitime a imaginação, que incessante-
mente é posta a prova27 por o mundo adulto, os chefes, as instituições, a esfera do poder:
Ao mesmo tempo, há uma apreciação muito atraente que coloca o texto baudelairia-
no em relação à interação jogador/brinquedo. O sujeito age sobre o seu brinquedo28, é movi-
mentado a escolher o objeto a partir do desejo, entre outras forças (BAUDELAIRE, p. 145).
Isso pode se conectar novamente com a idéia de desejo enquanto produção. O desejo movi-
menta(-se), o sujeito opera com o objeto, mas quando o sujeito aborda o objeto, este já foi
transformado por ele. Ressaltemos que no mesmo texto Baudelaire celebra o contato que faz a
imaginação quando inventa a partir de rudimentos comuns. Entretanto, o que o escritor fran-
cês não descarta –o que se comporta como uma porta aberta– é a possibilidade de que o brin-
quedo obre sobre o sujeito.
Agora bem, embora os embates da lógica do progresso não cessem de atingir o cons-
truto de Silvio Astier, a fuga que propõe o discurso do sujeito esquiva a norma fixada para
uma vida exitosa dentro do marco social aceitável:
défaut de ces joujoux est d'être chers. Mais ils peuvent amuser longtemps, et développer dans le cerveau de
l'enfant le goût des effets merveilleux et surprenants. (1853, pág. 145-146)
27
Em outra ocasião, não só é avaliada a inventiva de Silvio Astier, senão que é instada a funcionar de maneira
prática: ―—El amigo Demetrio me ha dicho que ha inventado usted no sé qué cosas. Por los cristales de la
mampara penetraba gran claridad solar, y un súbito recuerdo de miseria me entristeció de tal forma que vacilé
en responderle, pero con voz amarga lo hice.
—Sí, algunas cositas... un proyectil señalero, un contador automático de estrellas...
—Teoría... sueños... —me interrumpió restregándose las manos—.
Yo lo conozco a Ricaldoni, y con todos sus inventos no ha pasado de ser un simple profesor de física. El que
quiere enriquecerse tiene que inventar cosas prácticas, sencillas. (ARLT, 1993, p. 97)
28
Diz literalmente o texto de Baudelaire: ―Je crois que généralement les enfants agissent sur leurs joujoux, en
d'autres termes, que leur choix est dirigé par des dispositions et des désirs, vagues, il est vrai, non pas
formulés, mais très réels. Cependant je n'affirmerais pas que le contraire n'ait pas lieu, c'est-à-dire que les
joujoux n'agissent pas sur l'enfant, surtout dans le cas de prédestination littéraire ou artistique. ‖ (1853, pág.
145)
13
—No me importa no tener traje, ni plata, ni nada —y casi con vergüenza me confe-
sé: —Lo que yo quiero, es ser admirado de los demás, elogiado de los demás. ¡Qué
me importa ser un perdulario! Eso no me importa... Pero esta vida mediocre... Ser
olvidado cuando muera, esto sí que es horrible. ¡Ah, si mis inventos dieran resulta-
do! Sin embargo, algún día me moriré, y los trenes seguirán caminando, y la gente
irá al teatro como siempre, y yo estaré muerto, bien muerto... muerto para toda la
vida. (p. 126-127)
A invocação inflamada de Silvio está unida com o desejo íntimo de não passar pela
vida sem experimentar o risco de viver o próprio jogo, de pôr em jogo a vida29; o esquecimen-
to para o artista é análogo a não ter deixado sua marca, não ter obrado. O descobrimento, a
invenção, a criação – e mesmo assim a traição – são os sinais de que o sujeito está vivo e pre-
parado para batalhar contra os que “[...] ne connaissent pas et ne permettent pas les moyens
poétiques de passer le temps” ou frente às atitudes “[...] de personnes ultra-raisonnables et
anti-poétiques‖ (BAUDELAIRE, 1868, p. 147) Assim mesmo, permanece longe de nossa
interpretação a emboscada de pensar novamente em termos de ―desejo como falta‖. Lemos os
desejos de Silvio Astier como tentativa desesperada de proteger seu espaço de criação. A
imortalidade do sujeito arltiano está na obra que sempre está desfeita: “¡Ah, si se pudiera des-
cubrir algo para no morir nunca, vivir aunque fuera quinientos años!” (ARLT, 1993, p. 127)
4 REFERÊNCIAS
ARLT, Roberto. Novelas completas. 1. ed. Buenos Aires: Editorial Losada, 1981.
BARTHES, Roland. Mitologias. Tradução: Rita Buongermino. Rio de Janeiro: DIFEL, 2000.
BAUDELAIRE, Charles. Morale du joujou. In: Oeuvres Complètes (III) L’Art Romantique.
Paris: Michel Lévy Frères libraries éditeurs, 1868.
BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo: Edi-
tora 34, 2009.
CAILLOIS, Roger. Los juegos y los hombres: la máscara y el vértigo. México: Fondo de
Cultura Económica, 1986.
29
Assim como acontece na língua portuguesa com uma das acepções do verbo ―jogar‖ (Houaiss, 2009), a saber,
―expor à sorte, aventurar, arriscar‖, em espanhol há uma expressão coloquial que versa: ―jugarse la vida‖, no
sentido de arriscar absolutamente todo, inclusive a própria vida.
14
RESUMO
O ensaio pretende tecer algumas considerações sobre a relação simbiótica entre os fenômenos
culturais e tecnológicos do Rio de Janeiro das primeiras décadas do século XX, fenômenos
tão caros à pioneira indústria fonográfica nacional: o gramofone e, principalmente, a cultura
do rádio. Em franco processo de modernização da vida urbana nacional cujos poderes
públicos orquestraram violentas reformas na paisagem da capital como sintomas de uma
“nova barbárie” civilizatória, serão abordadas algumas das canções que souberam traduzir em
suas poéticas a experiência da modernidade deste período. Deste modo, entenderemos a então
Capital Federal da República como uma “cidade de sonho”, como diria Walter Benjamin,
cujos sonhos emanavam do corpo coletivo das novas técnicas industriais que, longe de
abolirem o mito, geraram seus próprios mitos.
Palavras-chave:
Experiência. Rio de Janeiro. Música popular.
ABSTRACT
This essay aims to make a few remarks about the symbiotic relationship between the cultural
and technological phenomena at Rio de Janeiro in the early decades of the twentieth century.
Phenomena so dear to the new national music industry: the gramophone, and especially, the
radio culture. In stark modernization of urban life, whose national government orchestrated
violent reforms in the landscape of the capital as symptoms of a "new barbarism" of
civilization, will address some of the songs that translate in their lyrics the experience of
modernity in this period. Thus, we will understand the Federal Capital of the Republic as a
"dream city" according to Walter Benjamin, whose dreams came from the collective body of
new manufacturing techniques that, far from abolishing the myth, generated its own myths.
Keywords:
Experience. Rio de Janeiro. Popular music.
1 INTRODUÇÃO
Todo universo visível não passa de um depósito de imagens e signos aos quais a
imaginação dará um lugar e um valor relativos; é um tipo de pasto que a imaginação
precisa digerir e transformar (Baudelaire apud RIMBAUD, 1994, p. 159).
1
Mestre em Literatura pela UFSC, realizando doutorado na mesma instituição acadêmica com bolsa de pesquisa
fornecida pela CAPES; e-mail: arsolar@gmail.com.
2
2
A Revista Fon-Fon, de outubro de 1914, traz um comentário que ilustra com perfeição a coexistência de um
Brasil que se pretendia moderno com um outro ainda bem arcaico: “O Rio é a cidade de contrastes. Sai-se da
Avenida Rio Branco e cai-se em vielas dos tempos coloniais. Vêem-se nas nossas ruas senhoras ricamente
vestidas, homens no rigor da moda e misturados com eles, na mais franca promiscuidade, indivíduos imundos,
de camisas e meias desbotadas, esfarrapados e descalços. De um lado ouvem-se frases de cortesia entre gente
bem-educada e do outro palavrão e obscenidades atiradas a esmo pelo pessoal da lira. (...) e o olhar paira à
esquerda, descortina-se lá ao alto, a dois passos da formosa artéria [a Avenida], um trecho de África. Reparem.
Tem-se a impressão de ver ali pertinho Dakar ou São Vicente.” (apud FABRIS, Op. cit., p.46). Valendo notar
que, em 1912, a Avenida Central passa a se chamar Avenida Rio Branco, em homenagem ao patrono da
diplomacia brasileira falecido naquele mesmo ano.
3
avenidas à beira-mar, outras atitudes enérgicas por parte das autoridades públicas são também
sintomas desta propalada barbárie civilizatória:
3
Em 1897, o morro da Providência abrigou os soldados que voltaram da Guerra de Canudos, durante a qual
ocuparam um morro chamado Favela, na Bahia. A partir da associação do nome "favela" com os soldados, o
morro popularmente passou a ser conhecido como morro da Favela. A ocupação deflagrou-se entre o final do
século XIX e o início do XX, quando vários cortiços e habitações populares do centro foram devastados e a
população pobre, transferida para os morros nas adjacências do centro. Em 1910, o morro da Favela era
considerado o lugar mais violento do Rio de Janeiro. O nome favela estendeu-se a outros morros e, a partir dos
anos 20, as ocupações de morro passaram a ser chamadas “favelas”. Disponível em:
http://www.morrodaprovidencia.com.br/index.php/2011/07/17/historia-morro-da-providencia/historia-do-morro-
da-providencia/ Acesso em 15/08/2011.
4
O olhar arguto de João do Rio observa a aurora da modernidade no Rio de Janeiro da primeira década do século
XX, conforme um trecho de sua crônica “O velho mercado”: “O que nos resta mais do velho Rio antigo? (...) O
Rio, cidade nova – a única talvez no mundo – cheia de tradições, foi-se delas despojando com indiferença. De
súbito, da noite para o dia, compreendeu que era preciso ser tal qual Buenos Aires, que é o esforço despedaçante
de ser Paris, e ruíram casas e estalaram igrejas, e desapareceram ruas e até ao mar se pôs barreiras. Desse
5
[...] É difícil reconhecer as inovações da cultura do rádio, pois muito daquilo que ele
iniciou tornou-se parte da vida diária... [...] A mais profunda mudança que ele trouxe
foi simultaneamente privatizar e estruturar a vida de acordo com um horário
rigoroso, que daí em diante governou não apenas a esfera do trabalho, mas a do
lazer. Contudo, curiosamente, esse veículo – e, até o surgimento do vídeo e do
videocassete, sua sucessora, a televisão – embora essencialmente centrado no
indivíduo e na família, criou sua própria esfera pública. Pela primeira vez na
história, pessoas desconhecidas que se encontravam provavelmente sabiam o que
cada uma tinha ouvido (ou, mais tarde, visto) na noite anterior: o grande jogo, o
programa humorístico favorito, o discurso de Winston Churchill, o conteúdo
noticiário” (HOBSBAWM, 1999, p.194-195).
Assim, esse novo veículo de comunicação seria capaz de mexer massivamente com a
vida mental de toda uma coletividade de modo que boa parte da comunidade urbana passa a
viver acordada em um mesmo sonho coletivo: o novo mundo das notícias, das propagandas,
das rádionovelas e das músicas de sucesso recém-lançadas6. Como um arauto da civilidade, o
rádio chega aos rincões mais longínquos da vida nacional, irradiando as vozes auráticas da
vida metropolitana: “Pois é da natureza característica da metrópole que sua vida interior
transborde em ondas para uma vasta área nacional ou internacional. [...] A característica mais
escombro surgiu a urbs conforme a civilização, como a carioca bem carioca, surgiu da cabeça aos pés o reflexo
cinematográfico do homem das outras cidades” (DO RIO, 1909, p.214-215).
5
Para se realizar a construção dos pavilhões deste importante evento nacional, foi necessária a total destruição
do antigo Morro do Castelo, em tempo recorde para a época, por parte do prefeito Carlos Sampaio, com o que se
conquistou uma larga faixa de aterro na Baía da Guanabara (a atual Esplanada do Castelo). (MURCE, 1976,
p.17).
6
A novidade do rádio sintetiza com primor a “dialética do despertar” benjaminiana: “Levando às últimas
conseqüências a teoria de Freud, Benjamin vê no sonho coletivo o entrelaçamento de duas instâncias, uma que
produz imagens de desejo e outra que censura e dissimula essas imagens, uma instância que quer o novo e outra
que quer perpetuar o existente, uma que impulsiona em direção ao despertar histórico e outra que eterniza o sono
(ROUANET, Op. cit. p.68).
6
significativa da metrópole é essa extensão funcional para além de suas fronteiras físicas”
(SIMMEL, 1979, p. 21). Afinal, o rádio conseguirá trazer a vida pública para o aconchego da
vida familiar com a força demolidora de uma nova realidade edulcorada pelas melodias de
uma “sereia invisível” instalada no meio da sala. Sendo que a mídia radiofônica, por ainda
não conter imagens como sua dileta sucessora (a televisão), irá desempenhar um papel crucial
no imaginário coletivo nacional da primeira metade do século XX: o mundo se tornando
ficção e a ilusão se tornando realidade. Como constataria alguns anos mais tarde uns dos
“homens de rádio” mais respeitados à época do Estado Novo, Genolino Amado, em carta
endereçada ao próprio Presidente Vargas, em 1942:
Vale lembrar que esse depoimento está em franca sintonia com o papel do rádio
como um veículo educativo de massa, como já pregava Roquete Pinto desde sua inauguração,
em 1922, assim como um “autoritário” veículo formador da opinião pública nacional (como
bem sabia os censores da política cultural do Ministro Capanema desde o golpe getulista, em
1937). E ainda não se sabia o valor daquilo que viria a ser chamado algumas décadas mais
tarde de “jabá‟: o preço e os favores excusos que a indústria fonográfica nacional gastaria (e
ainda gasta) para lançar seus produtos musicais nas rádios e TVs atuais.
privilegiado desse encontro sociomusical, e o samba, seu filho dileto, pois permitiu
que a elite moderna mergulhasse na cultura popular urbana, afastando-se das formas
ritualizadas e solenes que pautavam a assimilação do popular. E havia o outro lado
dessa relação: as classes populares mestiças também absorviam elementos da cultura
de elite branca, suas formas poéticas e musicais, filtradas por outras tradições
culturais e por outras técnicas de execução e performance.
Desse encontro, em parte fortuito, mas também provocado e estimulado por uma
nova elite cultural, filha do modernismo, nascerá a grande tradição do samba,
sinônimo de música nacional e popular (NAPOLITANO, 2007, p. 22).
A partir das primeiras décadas do século XX, a música popular urbana vai ganhando
uma dimensão cada vez mais presente na vida nacional, como já apontava Mario de Andrade
em seu “Ensaio sobre a música brasileira” (1928), para o caráter transformador da canção
popular em seu poder sinestésico e “dinamogênico”:
Mas a música possui um poder dinamogênico muito intenso e, por causa dele,
fortifica e acentua estados-de-alma sabidos de antemão. E como as dinamogenias
dela não têm significado intelectual, são misteriosas, o poder sugestivo da música é
formidável. [...] É de dinamogenia sempre agradável porque resulta diretamente,
sem nenhuma erudição falsificadora, sem nenhum individualismo exclusivista, de
necessidades gerais humanas inconscientes. E é sempre expressiva porque nasce de
necessidades essenciais, por assim dizer interessadas do ser e vai sendo
gradativamente despojada das arestas individualistas dela à medida que se torna de
todos e anônima (ANDRADE, 1962, p. 41-42).
7
Ao comentar sobre a “visão modernista” do projeto musical andradiano, Luiz Tatit afirma que “Mário
reconhecia a importância de se contar com uma música popular consistente para qualquer projeto nacionalizante
da música culta” (TATIT, 2004, p. 36). Entretanto, para Wisnik, o nacionalismo musical de Mário de Andrade
tem um caráter centralizador e paternalista: “Ao projetar a hegemonia da música erudita (bebida no ethos
popular folclórico) sobre a música popular-comercial urbana e as inovações mais radicais da vanguarda
européia... [...] o nacionalismo brasileiro estava adotando sem saber a última solução platônica para a questão da
cultura frente ao avanço crescente da indústria cultural” (WISNIK, 1982, p. 138). Ou seja, o projeto musical de
Mário de Andrade não dimensionava a força demolidora e criativa, e, por isso mesmo ambivalente, da incipiente
indústria fonográfica nacional.
8
a canção celebra o espírito carnavalesco dos foliões: O chefe da folia / Pelo telefone / Manda
me avisar / Que com alegria / Não se questione / Para se brincar [...], cujos versos seriam
convertidos parodicamente, naquele mesmo ano, pelo compositor João da Mata, fazendo
alusão à tolerância da polícia municipal frente à proibição da jogatina: O chefe da polícia /
Pelo telefone / Mandou-me avisar / Que na carioca / Tem uma roleta / Para se jogar [...].
Vale notar que, ainda na década de 20, alguns dos sambas reivindicados como de autoria do
exímio “pianeiro” Sinhô (José Barbosa da Silva) eram originários de algumas canções de
domínio público ou de outros compositores menos conhecidos8.
Vale notar o questionamento historiográfico sobre as origens do samba como
um fenômeno cultural expressivo de nossa música popular urbana é até hoje tema de debate
acalorado entre nossos pesquisadores. Concorda-se inicialmente que o samba teria nascido de
duas fontes germinais: da influência do maxixe provindo dos redutos dos baianos que haviam
migrado para a capital nacional no século XIX, sendo os músicos freqüentadores da “Casa de
Tia Ciata” seus precursores e divulgadores9, assim como, o samba oriundo do bairro do
Estácio de Sá, que teria uma marcação rítmica mais acentuada e sincopada, e que seria
posteriormente definido como o “verdadeiro samba”. A diferença rítmica entre estes dois
sambas está no fato de que o último estaria mais adaptado às necessidades carnavalescas dos
sambistas, o que permitiria o passista cantar, dançar e desfilar ao mesmo, de modo que, até
então, o samba tinha um ritmo ainda muito “amaxixado” (CUNHA, 2004, p. 137-138).
Com o advento nacional do rádio a partir da década de 20, a música popular urbana -
leia-se, o samba, principalmente - vai encontrar um canal de difusão que servirá para
disseminar um dado cultural fundador: a indústria do disco e a disseminação da cultura do
rádio - ambas geradoras de uma nova experiência urbana que mudará a fisionomia cultural do
país e irá compactuar dos ares da constituição de um nacionalismo cada vez mais presente nas
letras de suas canções10. Como fenômeno cultural alçado à condição de mercadoria, “dado o
8
Para Edigar de Alencar, nesta época “a música popular era terra de ninguém. Não havia o direito autoral e
geralmente se fazia dono da composição musical o mais esperto, que andasse mais ligeiro. Era corrente o
conceito atribuído a Sinhô: „Samba é como passarinho, é de quem pegar‟” (ALENCAR, 1981, p. 67).
9
Segundo Muniz Sodré (1998), o papel fundador das “casas das tias baianas” na constituição do samba carioca é
essencial, pois elas seriam “matriciais”, no sentido de “útero”, lugar de gestação das expressões culturais e
sociais negras; centro das redes de relação estabelecidas entre os grupos negros, não somente no interior do
próprio grupo, mas também pelo contato com as camadas dominantes da sociedade carioca.
10
O brasilianista Brian McCann, em “Hello Hello Brazil: popular music in the making of modern Brazil” (2004),
desenvolve com propriedade a tese da incidência fundamental do papel do rádio como veículo de nacionalização
do samba a partir dos anos 30. A intervenção política crescente do Estado Novo no controle do rádio através das
ações do DIP (Departamento Nacional de Propaganda, do Governo Vargas), “correspondia a uma estratégia de
buscar reconhecimento do samba como paradigma de música popular de „bom gosto‟, símbolo de e síntese da
brasilidade musical” (NAPOLITANO, 2007, p. 38).
9
seu caráter de bem cultural cujo consumo por parte das camadas popular e média urbanas é de
franco crescimento desde começos do século” (SILVA, 2008, p. 49), a canção popular vai-se
consolidar cada vez mais como uma catalizadora de tradições antagônicas provindas
simultaneamente do morro e da cidade:
11
Em 1936, estreava como narrador esportivo, na Rádio Cruzeiro do Sul, do Rio de Janeiro, o compositor Ary
Barroso. Neste mesmo ano, os ouvintes brasileiros vivenciaram o surgimento do noticiário A Voz do Brasil.
Criado durante o governo de Getúlio Vargas e tendo como objetivo principal informar sobre os atos do governo,
tinha como objetivo fazer que estas informações atingissem todo o território nacional, algo facilitado pelo fato de
que a transmissão do programa, em rede nacional, passou a ser obrigatória para todas as emissoras do país a
partir de 1938. In: O Rádio: um novo componente nos lares brasileiros. Disponível em:
<http://iecom.dee.ufcg.edu.br/~museudofuturo/modules/mastop_publish/?tac=21> Acesso em 22/05/2011.
10
diariamente, houve uma íntima relação entre a voracidade do mercado e a formação cultural
de seus ouvintes e actantes, como pondera Jairo Severiano:
O rádio, a gravação elétrica do som e o cinema falado foram tão valiosos para a
música popular, que, pode-se dizer, o século XX musical começou na década de
1920. No caso da música popular brasileira, a evolução da radiofonia, da indústria
fonográfica e, um pouco depois, da produção de filmes musicais carnavalescos, foi
primordial não só para o aproveitamento das novas gerações, como também para
que nossos músicos, cantores e compositores adquirissem uma consciência
profissional e aprendessem a se valorizar. Realmente, no acanhado meio em que
viviam, dependendo quase que exclusivamente do teatro de revista para se
sustentarem, eles eram, na maioria, pouco mais do que amadores ingênuos e mal
remunerados. Por outro lado, ao mesmo tempo que esse pessoal perdia a inocência e
começava a desfrutar de todo um conjunto de oportunidades para crescer artística e
profissionalmente, suas canções, além de mais bem gravadas, ganhavam os ares
através das ondas radiofônicas e as telas dos cinemas, para rapidamente se tornarem
conhecidas em toda parte (SEVERIANO, 2008, p.103).
12
Pode-se entender a perspectiva ambivalente do “sujeito do samba” como a de um cidadão que desliza
malandramente entre o morro e a cidade com muita perspicácia: [...] Enquanto o nacionalismo musical quer
implantar uma espécie de república musical platônica assentada sobre o ethos folclórico (no que será subsidiado
por Getúlio), as manifestações populares recalcadas emergem como força para a vida pública, povoando o
espaço do mercado em vias de industrializar-se com os sinais de uma gestualidade outra, investida de todos os
meneios irônicos do cidadão precário, o sujeito do samba, que aspira ao reconhecimento da sua cidadania mas a
parodia através de seu próprio deslocamento (WISNIK, 1982, p. 161)
11
Outro samba deste período que ilustra com maestria os trânsitos culturais entre o
morro e a cidade é “Isso não se atura” (1935), composta por Assis Valente e gravada por
Carmen Miranda, que se inicia com os versos:
13
Por este viés, podemos entender melhor os instigantes questionamentos de Hermano Vianna, em O Mistério
do Samba: “Como uma elite que até então ignorava o brasileiro passa a se interessar e, mais do que se interessar,
valorizar “coisas” como o samba, a feijoada (que pouco a pouco se transforma em prato nacional, apresentado
com orgulho para os estrangeiros que aqui aportam) e a mestiçagem (principalmente entre brancos e negros)?
(...) Como pôde um fenômeno, a mestiçagem, até então considerado a causa principal de todos os males
nacionais (via teoria da degeneração), “de repente” aparecer transformado, sobretudo a partir do sucesso
incontestável e bombástico de Casa-grande e senzala, em 1933, na garantia de nossa originalidade cultural e
mesmo de nossa superioridade de “civilização tropicalista”?” (VIANNA, 1995, p. 31).
13
A Praça XI, desde a virada do novo século XX passa “a ser o principal território de
congraçamento de classes sociais menos privilegiadas, e lugar de eventos e festas musicais
majoritariamente negras. [...] É natural que a associação imediata da Praça Onze com algum
grupo social seja feita com o grupo negro, já que as ligações da Praça com o processo de
formação do samba e das raízes negras do gênero musical são inevitáveis” (ROLIM, 2007, p.
67). O impacto das obras de intervenção na cidade provocou o deslocamento de imensas
massas da população mais pobre em direção aos subúrbios, ao Campo de Santana e ao bairro
da Cidade Nova, localizado no entorno à Praça XI, localidade que havia resistido às picaretas
reformistas de Pereira Passos14. Segundo Muniz Sodré, foi por esse motivo que se
reaglutinaram na Praça XI as forças de socialização unificadas com a destruição das outras
freguesias de vida comunitária, à maneira de uma polis (apud ROLIM, Op. cit., p. 24). Ou
seja, a Praça XI, assim como a quase mítica “Casa da Tia Ciata”, pode ser entendida também
como um locus matricial do encontro dos mediadores socioculturais do samba carioca.
Notável que o tema da remodelação do espaço público seria retomado por essa
mesma dupla de autores, com o samba "Bom dia Avenida” (1944), cuja letra pedia licença
14
Na década de 1930, a Prefeitura do Distrito Federal planejou obras de modernização da região, o que incluíam
a construção de uma nova artéria rodoviária que melhorasse o acesso do centro à zona Norte. Com isso, a Praça
11 de Junho foi grandemente reduzida. Pelo projeto, os quarteirões entre as ruas Senador Eusébio e Visconde de
Itaúna seriam demolidos para a inauguração da Avenida Presidente Vargas. Em 1941, começaram as demolições,
que desalojaram centenas de famílias e que acabariam por derrubar 525 prédios, entre eles algumas construções
históricas, como as igrejas de São Pedro dos Clérigos e de São Joaquim. Atualmente, o local abriga um espaço
para shows de música popular, conhecido como o “Terreirão do Samba”, onde também se encontra eregido um
monumento a Zumbi dos Palmares. Fonte: “Praça Onze”. Disponível em:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Pra%C3%A7a_Onze> Acesso em 22/09/2011.
14
O homem não termina com os limites de seu corpo ou a área que compreende sua
atividade imediata. O âmbito da pessoa é antes constituído pela soma de efeitos que
emana dela temporal e espacialmente. Da mesma maneira, uma cidade consiste em
seus efeitos totais que se estendem para além de seus limites imediatos (SIMMEL,
1979, p. 21).
15
6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALENCAR, Edigar de. Nosso Sinhô do samba. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1981.
ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. São Paulo: Livraria Martins
Fontes, 1962.
BARBOSA, Orestes. Samba: sua história e seus cantores. 2ed. Rio de Janeiro: Funarte,
1978.
______. O caráter destrutivo. In: BENJAMIN. Obras escolhidas - II. Trad. Rubens
Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1987.
CHIAVARI, Maria Pace. As transformações urbanas do século XIX. In: DEL BRENNA
(Org). O Rio de Janeiro de Pereira Passos: uma cidade uma questão II. Rio de Janeiro:
Índex, 1985.
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX. Trad. Marcos Santarrita. São
Paulo: Cia. das Letras, 1999.
17
MAGALHÃES JR., Raimundo. Artur Azevedo e sua época. 2ª. ed. São Paulo: Livraria
Martins Editora, 1955. In: Nosso Século: memória fotográfica do Brasil no século XX. Vol.
1. 1900/1910. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
MCCANN, Brian. Hello Hello Brazil: popular music in the making of modern Brazil.
Durham: Duke University Press, 2004.
ROUANET, Sérgio Paulo. Viajando com Walter Benjamin. In: ROUANET. A razão
nômade. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1993.
SEVCENKO, Nicolau. O Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos
frementes anos 20. São Paulo: Cia. das Letras, 1992
SILVA, Alberto Moby Ribeiro da. Sinal Fechado: a música popular brasileira sob censura
(1937-45/1969-78). 2ª. ed. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008.
SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otávio Guilherme (Org.). O
fenômeno urbano. São Paulo: Zahar, 1979.
SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. Rio de Janeiro: Ed. Mauad, 1998.
WISNIK, José Miguel. Getúlio da Paixão Cearense: Villa-Lobos e o Estado Novo. In:
SQUEFF, Enio; WISNIK, J.Miguel. O nacional e o popular na cultura brasileira: música.
São Paulo: Editora Brasiliense, 1982.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo
RESUMO
Em 1954 o escritor argentino Jorge Luis Borges publica na segunda edição de “Evaristo
Carriego” uma sintética “Historia del Tango”. Reivindica, nesse texto, a noção
schopenhauriana de que a música é a expressão artística que se sobrepõe pela força não
representativa: “la música prescinde del mundo; podría haber música y no mundo”. Nietzsche,
em seus primeiros escritos sobre a arte trágica dos gregos, também atribui à música um
caráter especial. Em “A visão dionisíaca do mundo”, compreende que somente ela tem a
capacidade de vencer o “poder da aparência”. Agora, sabe-se já que as semelhanças de
pensamento entre os dois filósofos possuem um limite. Justamente aonde se configura essa
fronteira gostaríamos de inserir o texto de Jorge Luis Borges. Pois, em “Historia del Tango”,
mesmo fazendo referência a Schopenhauer, não nos parece que haja acordo quanto à
compreensão estética do “filósofo pessimista”. O tango, enquanto expressão da “Vontade”, é
exaltado como transmissor da “belicosa alegria cuya expresión verbal ensayaron, en edades
remotas, rapsodas griegos y germânicos”. De maneira que longe de ser um convite à expiação,
o tango antigo se apresentaria mais como uma expressão que possibilita o gozo estético
oriundo de um estado de êxtase. Nas palavras do escritor argentino, tratava-se de uma
“orgiástica diablura”.
Palavras-chave:
Borges. Schopenhauer. Nietzsche.
RESUMEN
En 1954 el escritor argentino Jorge Luis Borges publica en la segunda edición de “Evaristo
Carriego” una sintética “Historia del Tango”. Reivindica, en este texto, la noción
schopenhaureana de que la música es la expresión artística que se sobrepone por la fuerza no
representativa: “la música prescinde del mundo; podría haber música y no mundo”. Nietzsche,
en sus primeros escritos sobre la arte trágica de los griegos, tambien atribuí a la música un
carácter especial. En “A visão dionisíaca do mundo”, compreende que solamente ella tiene la
capacidad de vencer el “poder da aparência”. Ahora, sabe-se ya que las semejanzas de
pensamiento entre los dos filosofos posue un límite. Justamente donde se configura esa
frontera nos gustaria inserir el texto de Jorge Luis Borges. Pues, en “Historia del Tango”,
mismo haciendo referencia a Schopenhauer, no nos parece que haya acuerdo quanto a la
compreensión estetica del “filosofo pesimista”. El tango, enquanto expresión de la
“Voluntad”, es exaltado como transmisor de la “belicosa alegria cuya expresión verbal
ensayaron, en edades remotas, rapsodas griegos y germânicos”. De manera que lejos de ser un
convite a la expiación, el tango antíguo se apresentaria más como una expresión que posibilita
el goze estetico oriundo de un estado de extase. En las palavras del escritor argentino, tratava-
se de una “orgiástica diablura”.
1
Graduado em História pela UFSC, possui mestrado na área de concentração de História Cultural pela mesma
instituição; aluno do curso de Licenciatura em Letras-Espanhol EaD – UFSC; leciona as disciplinas de História
Moderna e Teoria da História II no curso de graduação em História da FURB; e-mail:
miguel_rodriguez82@hotmail.com.
2
Keywords:
Borges. Schopenhauer. Nietzsche.
1 INTRODUÇÃO
O apreço que o escritor argentino Jorge Luis Borges tinha pela filosofia de
Schopenhauer é bem conhecido entre os críticos e estudiosos de sua obra. Por diversas vezes
costuma-se recordar as palavras de seu ensaio autobiográfico – publicado originalmente em
1970 na revista The New Yorker - que indica o momento em que o jovem leitor tomava
contato com a obra do filósofo alemão:
Nessa passagem o escritor deixa uma marca clara, muito forte, de devoção,
justificando os trabalhos de críticos que procuraram pensar a literatura do autor argentino em
vínculo constante com o pensamento do “filósofo pessimista”. Nesse sentido, Iván Almeida -
pesquisador argentino e co-fundador do Centro Borges, antigamente sediado na Universidade
de Aarhus na Dinamarca - destaca, em seu ensaio “De Borges a Schopenhauer”, a importância
do tema da música no pensamento de ambos os autores. Demonstra como é recorrente na obra
do escritor argentino a idéia schopenhauereana de que a música prescinde do mundo. Sendo
uma “representação sem representante” a música se eleva como fenômeno estético que fala
mais diretamente sobre a “coisa em si”, sobre a “vontade” (ALMEIDA, 2004, p. 105).
Nietzsche, filósofo que Borges declarava não ter grandes simpatias2, também foi um
admirador entusiasta da filosofia de Schopenhauer. É certo que logo em seus primeiros
escritos já se pode observar divergências em certos aspectos, mas é inegável a importância
que Schopenhauer teve para o rumo das suas preocupações filosóficas. Em julho de 1866, em
Leipzig, envolto nas atividades de estudo e pesquisa desenvolvidas na recém fundada
associação de filologia, Nietzsche confessava ao seu ex-colega Hermann Mushacke: “desde
2
Em entrevista a Richard Burgin no final da década de 60, Borges teria dito: “... los he leído [os livros de
Nietzsche] en alemán y he disfrutado mucho con ellos. Pero sin embargo, no sé por qué, nunca he sentido
simpatía por él como hombre, no? Por ejemplo, siento gran simpatía por Schopenhauer, o por otros muchos
escritores, pero en el caso de Nietzsche siento que hay algo duro en él – y no diré fatuo – quiero decir que como
persona no tiene la menor modestia” (BORGES, 1974, p. 123).
3
que Schopenhauer nos há quitado de los ojos las vendas del optimismo, nuestra mirada es más
aguda. La vida es más interesante, aunque pierda en belleza”. (NIETZSCHE, 2005, p. 397).
Pois bem, o objetivo, a partir de agora - depois de termos destacado a importância da
figura de Schopenhauer para Borges e Nietzsche - será o de interpelar um ensaio borgeano
que compõe a segunda edição de “Evaristo Carriego”, publicada 1954, intitulado “Historia del
tango”. Nesse ato, no entanto, não se quer obter aquela recôndita verdade que se revelaria
após o esforço honesto do investigador. A intenção direciona-se mais na tentativa de colocar
esse texto em movimento junto às reflexões estéticas de Schopenhauer e Nietzsche expostas,
principalmente, no terceiro livro de “O mundo como vontade e representação” e no ensaio
sobre “O nascimento da tragédia”, respectivamente. Declaramos, portanto, nos afastar da
tradição da crítica literária que, nas palavras de Noé Jitrik, “intenta descifrar un “querer decir”
que estaría más allá de lo dicho” (JITRIK, 2010, p. 86). Nesse sentido, são esclarecedoras as
palavras do escritor americano Ralph Waldo Emerson, expostas no ensaio “Spiritual Laws”:
You have observed a skilful man reading Virgil. Well, that author is a thousand
books to a thousand persons. Take the book into your two hands and read your eyes
out, you will never find what I find. If any ingenious reader would have a monopoly
of the wisdom or delight he gets, he is as secure now the book is Englished, as if it
were imprisoned in the Pelews´ tongue. (EMERSON, 1940, p. 200).
3
A esse respeito Borges teria dito, em São Paulo: “Emerson disse que um livro, quando está fechado, é uma
coisa entre outras coisas. Mas quando o seu leitor o abre, então ocorre o fato estético, e esse fato estético pode
não ser ou não deve ser exatamente o que o autor sentiu, mas algo novo, isto é, cada leitor é um criador – um
colaborador, em todo o caso, do texto (BORGES, 2000, p. 267).
4
para Schopenhauer é o entendimento de que não conhecemos as coisas em si, mas tão
somente as suas representações, que são os resultados da objetivação da vontade. A música
pode ser a expressão de uma “vontade” ainda não objetivada e, portanto, mais “original”. A
literatura, bem como as artes plásticas, poderia tão somente representar a “vontade” por meio
da produção de imagens, por tanto, estaria impossibilitada de tocar na “essência” das coisas.
Tudo isso fica muito claro através da leitura do terceiro livro de “O mundo como vontade e
representação”, quando ao falar sobre a importância da música o filósofo enfatizava:
Ela (a música) está colocada completamente fora das outras artes. Já não podemos
encontrar nela a cópia, a reprodução da idéia do ser tal como ele se manifesta no
mundo; e, por outro lado, é uma arte tão elevada e tão admirável, tão própria para
comover os nossos sentimentos mais íntimos, tão profunda e inteiramente
compreendida, semelhante a uma língua universal que não é inferior em clareza à
própria intuição!”. (SCHOPENHAUER, 1999 2001, p. 269).
Esta compreensão, que distingue a música frente às outras artes, parece ter sido bem
compreendida também por Borges e Nietzsche. Ivan Almeida, como já o dissemos
anteriormente, destacou a presença dessa idéia em diversos momentos na literatura do autor
argentino. Nós a percebemos com clareza no texto que será alvo de nossa observação neste
artigo. Em “História del tango”, ensaio adicional da segunda edição de “Evaristo Carriego”,
Borges cita o pensamento de que “la música no es menos inmediatamente que el mundo
mismo” para justamente acusar os limites das palavras na tentativa de expressar a idéia que
tantos poetas quiseram aclarar: “la convicción de que pelear puede ser una fiesta”. Nietzsche,
por sua vez, assimilou o ensinamento de Schopenhauer acerca da música, desde muito cedo.
Na conferência pública pronunciada no início de 1870 intitulada “O drama musical grego”,
por ocasião da ocupação do cargo de professor na Universidade de Basiléia, o jovem filósofo
declarava:
A palavra age primeiramente sobre o mundo dos conceitos e somente a partir daí
sobre os sentimentos; e de maneira freqüente ela não alcança absolutamente, pela
distância do caminho o seu alvo. A música, por outro lado, toca o coração
imediatamente, como verdadeira linguagem universal, inteligível por toda parte.
(NIETZSCHE, São Paulo: 2005, p. 66).
Também no ensaio sobre “A visão dionisíaca do mundo”, do mesmo ano, Nietzsche lançava a
pergunta “Quem vence o poder da aparência e a despontencializa até o símbolo?” para mais
uma vez destacar o caráter eminente da música. (NIETZSCHE, 2005, p. 31).
Desta forma, vemos que tanto Borges quanto Nietzsche aceitam a proposição
schopenhaureana com relação à prevalência da música. Mas o que está em jogo, no final das
5
contas, nessa proposição, é o entendimento de que a “vontade” é força que gera as coisas no
mundo. Agora, essa força não segue uma direção predeterminada, ela não possuí um desígnio
e, portanto, não se subordina a nenhum objetivo que não fosse o seu próprio movimento
incessante. E é nesse sentido que música e vontade se coincidiriam, e por esta razão
Schopenhauer declarou que: “o mundo poderia chamar-se tanto uma encarnação da música
quanto uma encarnação da vontade”. (Schopenhauer, 2005, p. 276). De maneira que a arte,
em geral, e a música, em específico, possibilitaria a expressão dessa força originária.
Pois bem, até aqui Schopenhauer, Borges e Nietzsche estariam de acordo. No
entanto, perceber-se-á que a condenação da “vontade” realizada pelo “filósofo pessimista”
fará com que a arte receba uma função totalmente distinta daquela que será pensada pelo
escritor argentino e o “filósofo trágico”.
é uma dor constante tanto lamentável como terrível; e de que, por outro lado, tudo
isto, encarado na representação pura ou nas obras de arte, está liberto de toda dor e
apresenta um espetáculo imponente. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 281).
Es este coro el que brinda consuelo a ese heleno tan especial, profundamente dotado
tanto para el sufrimiento más sutil como para el más grave; ese heleno cuya acerada
mirada había ya penetrado en la terrible tendencia destructiva de la llamada Historia
Universal, así como en la crueldad de la naturaleza hasta el punto de correr el riesgo
de anhelar la negación budista de la voluntad. A éste lo salvará el arte, y a través del
arte será la vida quien lo salve... para sí misma. (NIETZSCHE, 2010, p. 88).
De maneira que vemos a música deixar de querer ser um “calmante da vontade”, uma
“consolação provisória”, para se tornar elemento de afirmação do querer viver. Portanto, ela
deixaria de ser um mecanismo de expiação da vida para possibilitar um momento de puro
êxtase. E aqui, finalmente, chega o instante de alocar o ensaio borgeano sobre a “Historia del
tango”.
Características essas que seriam as disposições próprias aos homens. Aqui se percebe que o
autor não sofre com aquela idéia declarada por um dos personagens de “Tlon, Uqbar, Orbis
Tertius” que advertia: “los espejos y la cópula son abominables, porque multiplican el número
de los hombres”. (BORGES, 2005, p. 16).
De maneira que, em “Historia del tango”, encontra-se insinuada a compreensão de
que a vida é uma disposição de forças, e de que o conflito e as batalhas das quais os homens
participam não devem ser recriminadas por um tom moralizante. Não à toa o autor relaciona
uma série de citações literárias que sugerem que o “jogo das espadas” pôde, em tempos
passados, ser compreendido como uma festa.
É na evolução das letras que passam a acompanhar a musicalidade do tango,
entretanto, que Borges identifica o processo de decadência e extinção dos elementos festivos
que expressavam a força e a potência do viver. O tango elevado à categoria de gênero
nacional domesticará os impulsos mais genuínos e desinteressados característicos da valorosa
coragem.
Nitidamente, vamos vislumbrando uma compreensão estética da arte que se afasta de
Schopenhauer e aproxima-se de Nietzsche. Pois não existe, nas considerações do autor, aquela
condenação da “vontade” e aquele desejo de aniquilação dos impulsos da vida. Pelo contrário,
o que se evidencia é uma repulsa pelo triunfo das forças que expulsaram os elementos mais
rebeldes da primitiva expressão artística:
De sorte que o declínio do tango primitivo poderia ser pensado em relação com o
declínio da arte trágica, como exposto por Nietzsche no seu estudo sobre o “Helenismo e
pessimismo”. O espírito de vingança socrático, que não é capaz de admirar as forças
desprovidas de objetividade teleológica, teria uma vez mais banido a índole não apolínea que
convivia naqueles tangos antigos. Vejamos como, nesse sentido, as palavras de Nietzsche
adquirem uma força sintomática:
Una vez que el elemento optimista penetra en la tragedia, no puede menos de invadir
paulatinamente todas sus regiones dionisiacas y conducirlas de manera irreversible a
su autodestrucción... y de ahí hasta dar el salto mortal en el espectáculo teatral
burgués. (NIETZSCHE, 2010, p. 128).
8
Percebe-se, assim, como aquela expressão artística que um dia poderia ter servido
para dar a certeza de já termos sido valentes - e por essa razão termos como dever exercer a
coragem uma vez mais – perder sua qualidade de expressão da força e da exaltação da vida.
Lamentavelmente, nas palavras do escritor argentino, o tango que “Antes era una orgiástica
diablura hoy es una manera de caminar”.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Queremos concluir nossa reflexão trazendo, de súbito, um fragmento de
Anaximandro e outro de Heráclito. São eles chamados pela tradição de filósofos pré-
socráticos. Nós preferimos fugir à tradição e, junto à Emmanuel Carneiro Leão, chamá-los de
pensadores originários. O primeiro registro:
Para entendermos essa postulação, entretanto, temos que fazer referência à suposta
solução que Anaximandro teria dado para o problema da origem. Nesse sentido,
diferentemente de Tales, ele não reivindicou a expressão de uma substância natural, tendo
preferido afirmar que a origem de todas as coisas é o “ilimitado” ou o “indeterminado”. Por
isso, tendo saído do “indeterminado”, todas as coisas a ele deveriam retornar. E nesse sentido,
todas as coisas pagariam um preço por terem se objetivado, sendo o tempo o responsável por
essa condenação.
Em meio a esse postulado, que bem se assemelha à lei de Sileno, destacamos o
segundo registro, o de Heráclito, que nos fala: “O tempo é uma criança, criando, jogando o
jogo de pedras; vigência da criança” (HERÁCLITO, 2005, p. 73).
Parece-nos que as posturas frente às funções estéticas da arte aqui debatidas
encontrariam nesses fragmentos suas possibilidades de aproximação e afastamento. Em
Anaximandro vemos o pensamento de Schopenhauer concebendo a música como expressão
da “vontade”, que bem se pode compreender como o “indeterminado”. Agora, frente à
condenação dessa mesma “vontade”, advogada pela idéia de que o tempo fará com que
paguemos a culpa pela objetivação, temos Heráclito que nos fala do tempo como “vigência da
criança”. Aí conseguiríamos vislumbrar o sorriso sincero de Borges e Nietzsche,
9
compreendendo a arte não como expiação, e sim como promulgador da delícia do ser
enquanto devir. Seria possível, nesse caso, enxergarmos beleza mesmo na tragédia.
6 REFERÊNCIAS
BORGES, Jorge Luis. “Borges em São Paulo”. Trad. CECHELERO, Vicente &
HOSIASSON, Laura In: Borges no Brasil. São Paulo: UNESP, 2000.
BORGES, Jorge Luis & GIOVANNI, Norman Thomas. Autobiografia. Trad. Marcial Souto
Y Norman Thomas di Giovanni. Buenos Aires: Ateneo, 1999.
BURGIN, Richar. Conversaciones con Jorge Luis Borges. Trad. Manuel Coronado. Madrid:
Taurus, 1974.
EMERSON, Ralph Waldo. Espiritual Laws. The complete essays and other writings of
Ralph Waldo Emerson. New York: The modern library, 1940.
JITRIK, Noé. La belleza de las cosas. In: JITRIK, Noé. Verde es toda teoria: literatura,
semiótica, psicoanálisis, linguística. Buenos Aires: Líber Ediciones, 2010. p. 83-87.
RESUMO
Palavras-chave:
Clarice Lispector. Um sopro de vida (pulsações). Busca do impossível.
ABSTRACT
Clarice Lispector's scripture is a quest for the impossible. The ethical position expressed in
her texts, namely, the awareness of modernity’s emptiness, makes her literature not
to provide an answer, but a reflection, perhaps, an ambiguous exit which involves mostly the
problem of the subject, and intrinsically related to it, the problem of time. The initial
purpose of this work is to think the notion of Clarice’s scripture from the text Um sopro de
vida (pulsações), to point out that in this notion there is an oft-repeated thought about the
terror, the non-sense, and therefore, the emptying of the self. For this, I resume Nietzsche as
one of the first moderns to deconstruct an autonomist vision of literature and
María Zambrano, Spanish philosopher and Nietzsche reader, who thinks the fragment and
understands the word as return, variation. Based on this anautonomic idea of literature that
makes it impossible to interpret Nietzsche, or Zambrano or Lispector, insofar as philosophical
or artistic events equates with life, I suggest that mismatched monologues, not dialogues, of a
breath of life point to a lack of mediator’s recognition and, therefore, this network comprised
of technology, of capitalism there is no room for subjectivity. Subjectivity is only possible
in continuous flow and in trimming, this Foucault called biopolitics.
1 O adjetivo tantálico, como será esclarecido no decorrer do trabalho, é uma retomada do mito de Tântalo, feita a
partir de um texto de Virgilio Piñera, publicado em 1947, na Revista Orígenes, entitulado “Notas sobre Literatura
Argentina de hoy”, no qual o autor afirma que a literatura latino-americana é tantálica, palavra utilizada na
acepção de excesso de ornamentos.
2 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina; e-mail:
maiaraknihs@yahoo.com.br.
2
Keywords:
Clarice Lispector. Um sopro de vida (pulsações). Quest for the impossible.
Mas há perguntas que me fiz em criança e que não foram respondidas, ficaram
ecoando plangentes: o mundo se fez sozinho? Mas se fez onde? em que lugar? E se
foi através da energia de Deus - como começou? será que é como agora quando
estou sendo e ao mesmo tempo me fazendo? É por esta ausência de resposta que
fico tão atrapalhada. (LISPECTOR, 1973, p.21)
tudo isso dentro de dois grandes monólogos intercalados, o do Autor e o de sua criação,
Ângela Pralini, encena repetidas vezes o espaço-tempo do sonho. Ao leitor é dada a sensação
desconfortável de estar acordado, mas sonolento, a ponto de perder a consciência, passivo
receptor das imagens pungentes que ali se apresentam, fantasmas que o atravessam. Sensação
que no final da vida a própria Clarice viveu enfaticamente. Viciada em tranquilizantes e
antidepressivos, ingeria-os em doses cavalares, muitas vezes, assustando seu psicanalista, Dr.
Jacob David Azulay, que ao fim optou por abandonar a análise e, à relação de paciente,
ofereceu uma relação de amizade. Daí Clarice conheceu Andréa Azulay, autora da terceira
epígrafe do livro, filha de nove anos de seu amigo que a fascinou desde o início pela sua
inteligência e inocência. A frase-epígrafe da menina diz: “O sonho é uma montanha que o
pensamento há de escalar. Não há um sonho sem pensamento. Brincar é ensinar ideias”
Andréa Azulay.
Ao trazer concretamente o sonho, Clarice dispõe o lugar pelo qual o livro envereda.
Uma possibilidade de leitura, esta que irei armar, permite entender o livro como uma
reivindicação do próprio sonho, seja pela epígrafe de Andréa, seja pela denominação da
segunda e da terceira partes do livro, a saber, “O sonho acordado é que é a realidade” e
“Como tornar tudo um sonho acordado?”, seja pela fala dos personagens que reiteradamente
imergem e emergem no sonambulismo direta ou indiretamente:
O sonho, assim como entende María Zambrano no livro Los sueños y el tiempo, é
atemporal, ou melhor, está fora do tempo da consciência que é sempre sucessivo. Na sua
análise do sonho, uma sorte de fenomenologia do sujeito fora do tempo, Zambrano afasta-se
da interpretação dos sonhos freudiana, bem como da fenomenologia de Husserl, pois não
interpreta nem reduz a uma fenomenologia, mas antes, injeta vida, recria uma imagem do
sonho que possibilita repensar duas questões principais: o tempo e o ser.
Falar de ser e de tempo no pensamento do século XX reverbera o pensamento de
Heidegger. Ortega y Gasset, mestre de Zambrano, havia se manifestado criticamente em
relação à obra de Heidegger que aparecera em 19273, afirmando que ali não havia uma
recolocada da questão do ser. Apesar da importância de Ser e Tempo no pensamento de
Ortega, principalmente no que diz respeito a uma tomada de consciência do que significa
fundamentar, de modo ontológico, uma filosofia sobre a ideia de vida, foi sua discípula que,
sem rechaçar Heidegger, levou a cabo a crítica de seu mestre. Zambrano devolveu a reflexão
sobre o ser para a esfera da alteridade, ao seu contexto ético, à ideia de sujeito fixo e acabado,
Zambrano oferece a alternativa de um sujeito que “va más allá de donde está, que tiende a ser
más allá de lo que es, que se sobrepasa” (ZAMBRANO, 2006, p.22).
Esta noção de sujeito que se oferece como alternativa à fenomenologia de Heidegger
pode ser entendida a partir da ideia de sonho e está totalmente imbricado na noção de um
certo tempo. Para compreender o sonho em Zambrano é necessário, antes de mais nada,
colocá-lo em relação à vigília. Sonho e vigília são a mesma coisa de dois estados diferentes,
respectivamente a pré-história e a história, ou ainda, a pré-consciência e a consciência. O
sonho, importante ressaltar, não é oposto à realidade. Existe sim a realidade do sonho e a
realidade da vigília, o que as diferencia é o tempo. Na realidade da vigília o tempo flui
linearmente, na do sonho, o tempo linear desaparece. Segundo Zambrano, este tempo linear é
onde se situa conscientemente o sujeito, onde ele age ativamente, portanto, no sonho
desaparece este sujeito ordenador. Os sonhos, nas palavras de Zambrano, “descobren al
3
Ortega y Gasset manifesta-se oralmente sobre este assunto em 1929 no curso “O que é a filosofia?”. É em 1932,
contudo, que escreve defendendo que em Ser e Tempo não há um repensar a questão do ser, não se fala em
nenhum lugar sobre o ser, somente de modo escolástico, unicamente se definem diferentes sentidos de Ser.
(ADÁN, Oscar. María Zambrano y la pregunta por el "ser". Aurora: papeles del Seminario María Zambrano,
pág 59-79, ano: 1999, número 1.)
6
sujeto, lo sorprenden mientras yace privado del tiempo, de esse tiempo de la consciencia
donde él puede actuar, donde encuentra la realidad adecuada a su liberdad: realidad
fragmentaria e continua; libertad condicionada”. (ZAMBRANO, 2006, p.61)
O sujeito descoberto expõe a passividade do homem, nele desaparece o tempo cronos
e, com ele, o sujeito uno, centrado, vigililante de suas fronteiras. Neste sentido, o sonho é
revelador. Revela ruínas. O sonho é o outro da vigília, o negativo. O sonho é o lado das
sombras em oposição à vigília que é o lado onde o homem alcança sua máxima claridade e
evidência, em que a objetividade parece proporcionar o controle, em que há uma ilusão de
iluminação total até que de repente cai-se no abismo do fora do tempo e ali, no retorno ao
não-nascido, há uma experiência de vida enquanto devir.
A importância do sonho, no entanto, é antes a importância da passagem do sonho
para vigília e da vigília para o sonho. Não é à toa que María frisa o despertar e o cair no sono.
Diz Zambrano: “[s]i el despertar es un arrancarse, el momento de entrar en el sueño es un
abismarse de la conciencia que se sumerge como se fuera reabsorbida. Son los movimientos
del cuerpo los que toman, si así puede decirse, su lugar.” (ZAMBRANO, 2006, p.101). Cada
despertar, cada acordar é um renascimento, um recordar de algo esquecido, um aparecimento
de algo oculto, sempre pelas vias corpóreas. E este nascimento não é outra coisa que o pensar.
Assim sendo, a vida é repleta de múltiplos nascimentos, o que leva a concluir que toda
reveleção é uma repetição – característica de um tempo que cessa de voltar. María afirma que
quando o eu é despossuído e cai no sono, a psique entra em ruínas, vem abaixo, se desaba. Por
isso a ruína é a imagem perfeita do sonho; o sonho é a vida, diz Zambrano, a ruína é a cidade
e a cultura.
O sonho-vigília de Zambrano, leitora de Nietzsche, importante lembrar, apesar de
guardar sutis distinções, tem muitas afinidades com o dionísico-apolíneo do filósofo alemão,
ainda que María subverta a imagem central. Em Nietzsche, mais especificamente em O
nascimento da tragédia, fala-se de duas forças que irrompem na natureza e que estão ligadas
ao contínuo desenvolvimento da arte: o apolíneo e o dionisíaco. Apolo é a expressão do
principium individuatonis, isto é, da observação das fronterias do indivíduo, da medida, do
autoconhecimento, já a ruptura a este princípio, também chamada de êxtase ou Uno-
Primordial, estaria na essência do dionisíaco, cuja analogia aludida é a embriaguez, isto é, a
desmedida, o excesso. Interesssante notar que a defesa de Nietzsche é de uma arte que
convive este dois elementos, que, portanto, não separa o irracional do racional, o dionisíaco
do apolíneo ou, no caso que aqui estamos tentando armar, a vigília do sonho.
Sim, é possível afirmar que o sonho tal como definiu Zambrano está para este atrás
7
do pensamento que Nietzsche apresentou no dionisíaco, bem como está para aquilo que
Clarice, reiteradas vezes, chama de pré-pensamento. Segue um trecho ilustrativo dessa
abordagem:
Antes de pensar, pois, eu já pensei. Suponho que o compositor de uma sinfonia tem
somente o “pensamento antes do pensamento”, o que se vê nessa rapidíssima ideia
muda é pouco mais de uma atmosfera? Não. Na verdade é uma atmosfera que,
colorida já com o símbolo, me faz sentir o ar da atmosfera de onde vem tudo. O pré-
pensamento é em preto e branco. O pensamento com palavras tem outras cores. O
pré-pensamento é o pré-instante. O pré-pensamento é o passado imediato do
instante. Pensar é a concretização, materialização do que se pré-pensou. Na verdade
o pré-pensar é o que nos guia, pois está intimamente ligado a minha muda
inconsciência. O pré-pensar não é racional. É quase virgem. (LISPECTOR, 1999b,
p.18.)
Até onde vou eu e em onde já começo a ser Ângela? Somos frutos da mesma
árvore? Não – Ângela é tudo que eu queria ser e não fui. O que é ela? ela é as ondas
do mar. Enquanto eu sou floresta espessa e sombria. Eu sou no fundo. Ângela se
espelha em estilhaços brilhantes. Ângela é a minha vertigem. Ângela é a minha
reverberação, sendo emanação minha, ela é eu. (LISPECTOR, 1999b, p.30)
Seu biógrafo Moser afirma que esta mistura de identidade é uma característica de
seus últimos livros. Para ele, no caso de Um sopro de vida, “tanto Ângela como o personagem
masculino do Autor que Clarice interpõe entre ela própria e Ângela são Clarice Lispector,
muito mais do que o foram suas criaturas anteriores” (MOSER, 2011, p.605). Certamente
personagens como Martim, Joana ou G.H. se identificavam com Clarice, mas o Autor e
Ângela são mais ousados e, em certa medida, mais transparentes nesta identificação. Nesse
sentido, caberia assumir então que jamais poderia haver diálogo entre os personagens,
somente solilóquios, numa espécie de fala que ecoa.
É importante ressaltar com isso que não se trata de dizer que este é o mais
autobiográfico dos livros, antes disso, este é o livro que mais explicitamente vai colocar em
jogo a questão da subjetividade, apontando sempre para um problema que envolve a
alteridade, uma vez que o eu é também sempre outro ou, muitas vezes, somente é. Isso quer
dizer que Clarice nunca aponta para um sujeito dado como pronto prévia e definitivamente.
As subjetividades que aparecem, longe de absolutas, tal qual um sujeito cartesiano ou mesmo
kantiano, estão sempre vinculadas a uma emergência na linguagem:
AUTOR - [...]
9
nunca ainda estava marcado pela crença no futuro. Fundava-se no centro do Brasil uma
capital que em homenagem à velha Roma, ou no afã de um dia ser tão próspera quanto a
pátria longínqua, ganhou o nome do Brasil na língua latina e datou sua fundação no mesmo
dia da fundação mítica da cidade antiga, berço da civilização latina. O fundamento, o pai, e o
progresso regem os meados do século no país tropical. Nesse período, Clarice volta a morar
no Brasil, não muito tempo antes do golpe por parte dos militares. A angústia da falta de
sentido das coisas é ainda encrementada pela censura que coibia toda e qualquer expressão
que pudesse ser interpretada contrária ao Estado. O Autor, antes de criar Ângela Pralini,
manifesta sua vontade de escrever e apesar da boa vontade diz: “Se não digo a verdade é
porque esta é proibida”. (LISPECTOR, 1999b, p. 18)
Em uma crônica publicada no dia 18 de outubro de 1969, intitulada O menino à bico
de pena, Clarice traz uma belíssima imagem da formação do sujeito perante a Lei, a
linguagem, quando fala sobre a passagem do infante à fala:
Esta passagem, que representa a entrada no mundo da luz, da razão, pode também,
caso se foque na passagem em si, assim como fez Giorgio Agamben, ser entendida como uma
experiência da modernidade. A experiência de infância é justamente esta passagem ou a
potência de se ir da fala à não fala, caminho que é sempre de mão dupla. A experiência de
infância é afim da experiência de vida do sonho acordado, é a experiência do humano.
Talvez caberia melhor falar de humano e não mais de sujeito. Quando o Autor cria
Ângela a partir de um reflexo, de uma imagem, nos obriga a pensar que numa sociedade
espetacular como a nossa, tudo é coisa, tudo é imagem, inclusive o próprio sujeito: “TIVE
UM SINHO NÍTIDO inexplicável: sonhei que brincava com o meu reflexo. Mas me reflexo
não estava num espelho, mas refletia uma outra pessoa que não eu”.(LISPECTOR, 1999b, p.
27). Se todas as coisas são imagens no tempo presente, então só existe o fantasma, não mais a
coisas em si.
11
O DESEJO DA COISA
ÂNGELA - Eu quero simplesmente isto: o impossível. Ver Deus.
(Clarice Lispector, Um Sopro de vida (pulsações))
No ano em que o regime franquista venceu a guerra civil espanhola, María Zambrano
exilou-se no México, onde escreveu, em um momento que, segundo ela, escrever parecia
impossível, o livro Poesía y Filosofia. Na sua poética releitura de tradição platônica, a partir
dos textos do próprio Platão, manifesta a necessidade mútua de poesia e pensamento. Já 1939,
Zambrano defende uma ética do pensamento que aponta para a razão poética. A partir daí,
portanto, o pensamento ético habita as zonas intermediárias, os interstícios, as passagens,
soleiras, ou antes co-habita os dois lados sem pertencer a nenhum, portanto as fronteiras são
dissolvidas, as autonomias são destruídas. Daí que pensar jamais será interpretar, mas sim
transitar. Daí que toda e qualquer autonomia cai, seja da área de conhecimento, seja de gênero
textual. O que é Um sopro de vida (pulsações)? Um romance? Um diário? Um conto? Tudo
isso. Para aludir a Derrida, o texto clariciano participa de vários gêneros, mas não pertence a
nenhum.4
Nestes anos que Zambrano desenvolvia suas ideias sobre o posicionamento ético e o
localizava numa escritura neutra, muito próxima da escritura de Clarice Lispector5, ela entrou
em contato com um grupo de intelectuais cubanos que mais tarde, em 1944, fundaria, com sua
participação ativa, uma revista chamada Orígenes, uma das revistas culturais mais
4Jacque s Derrida no fragmento Loi du genre do livro Parages: l'hypothèse que je soumets à votre discussion
serait la suivante : un texte ne saurait appartenir à aucun genre. Tout texte participe d'un ou de plusieurs genres,
il n'y a pas de texte sans genre, il y a toujours du genre et des genres mais cette participation n'est jamais une
appartenance. (DERRIDA, J. Parages. p.264)
5
Algumas afinidades entre Clarice Lispector e María Zambrano foram apontadas por Myriam Jiménez
Quenguan, no livro Clarice Lispector y Maria Zambrano: El pensamiento poético de la creación, publicado em
2009. Neste livro, a autora aponta afinidades filosóficas e poéticas entre Zambrano e Lispector, principalmente
no que tange a criação sustentando a tese de que ambas são escrituras antropofânicas, termo que resgatou de
Rayuela de Julio Cortázar. Diz Myriam:
Un soplo de vida es escritura antropofánica. Entiendo como antropofanía lo que Julio Cortázar (1914-1984)
quiso señalar cuando propuso dicho termo en Rayuela (1963), al referirse a la manifestación del hombre. En la
obra de Cortázar se encuentra el término en una nota de su personaje - alter ego - Morelli, él desea crear un
texto para insinuar valores nuevos, una escritura cómplice, no convencional, abierta y que lleve como método la
ironía y la autocrítica.[...] La antropofanía propone un texto más humano y un lector activo, copartícipe, creador.
La palabra procede del griego y significa manisfestación del hombre” (QUENGUAM, 2009, p.85-86)
Se por um lado pode-se entender o texto de Clarice como não convencional, aberto, tendo a discordar
veementemente do método da ironia e autocrítica, método aliás que a própria Myriam defendia, em páginas
anteriores, ser inexistente ou ser um não método: “No existe entonces un método concreto, su “método” es no
tener método, no defiende ninguna forma de logocentrismo, principio o unidad” (QUENGUAM, 2009, p.58)
12
importantes em Cuba. Orígenes abriu um espaço marginal para a crítica de arte e permitiu o
desenvolvimento e maturação das obras de seus colaboradores, como é o caso da figura
central, José Lezama Lima.
A revista que pluraliza a origem no nome, balizada pelas ideias estéticas de Lezama,
devolve à literatura a dimensão corpórea das sensações sobretudo pela retomada de uma
escritura barroca. Orígenes abre a ferida da questão da origem tratada desde dois mil anos
atrás basicamente de duas maneiras: ou algo se origina do seu oposto - o irracional do racional
e assim por diante – ou, para a vertentente metafísica, a coisa de mais alto valor origina da
coisa em si, do âmago. Orígenes não se posiciona nem na dualidade, nem na essência, ao
trazer o corpo, a variação e a multiplicidade para a literatura, faz da origem uma irrupção
muito próxima do sonho zambraniano. Vale lembrar que o sonho é lugar originário,
primordial da vida humana, dali o homem nasce.
É a partir da ideia de um artigo desta revista latino-americana tão próxima
politicamente de Clarice, e também obviamente de Zambrano sua colaboradora, que gostaria
de finalizar este ensaio. Colaborador não tão presente devido seus desentendimentos pessoais,
mas também suas diferenças estético-religiosas com Lezama, Virgilio Piñera escreve um texto
em 1947 sobre a literatura da Argentina, mas que acaba funcionando, assim como pretendo
mostrar, como um diagnóstico da literatura latino-americana contemporânea.
Piñera, no seu balanço da literatura argentina, afirma que esta é uma literatura
tantálica, que seus escritores são tantálicos. Virgilio retoma o mito de Tântalo, aquele que
preso ao fundo de um lago, deseja a água, mas não consegue beber, deseja os frutos à
margem, mas não consegue alcançá-los, no entanto, não deposita em Deus a causa desta
condição – talvez uma provocação ao católico Lezama - mas antes a própria história. Para
Piñera, que atribui um valor pejorativo ao tantalismo, o escritor latino-americano tal qual
Tântalo tenta, ou deveria tentar, mas não consegue tocar a coisa. O cubano, então, esclarece
que este tantalismo reside na ornamentação. A ornamentação sem finalidade é perniciosa,
diria Piñera, que enfaticamente afirma que na América Latina, de um modo geral, busca-se
por uma fórmula formal do mundo e não uma forma em si, ou seja, opta-se por uma saída que
ele entende ser meramente técnica, não espiritual.
Non basta ser brillante, poseer gran poder combinatoria, saber multiplicar el adorno
a extremos sobrehumanos, dominar el idioma o idiomas; al último fondo de la
conciencia hay que partir y asentarse en una realidad muy real, que procurándonos
cifras, llaves,conclusiones y respuestas las va, también, a otorgarlas al lector, para
non dejarlo a insólita, extraña situación de un mundo dado gratuitamente, y en el
que, repetimos, siempre se va a preguntar por lo que el autor dejó oculto. (PIÑERA,
1947, p.42.)
13
O ornamento, o caráter tantálico desta literatura, só faz com que a realidade escape
cada vez mais. Então, Piñera, em tom de lamento, diz que, apesar de paradoxal, nosso
alimento, e ao usar a primeira pessoa do plural se inclui na classe dos latino-americanos
tantálicos, é nossa própria cadeia: se engana aquele que pensa que o tantálico vai morrer de
inanição ou de sede, ao contrário, a impossibilidade o alimenta.
Piñera lastima a falta de espírito e o exceso formal desta literatura, e nesse sentido
diz que existe uma literatura na américa, mas ela ainda não é. Na crença em um pai, que não
se diferencia muito de Deus, Piñera espera o dia que o tantalismo ceda espaço à essência
espiritual. Os exemplos máximos da literatura tantálica na Argentina são Macedonio
Fernández, Oliverio Girondo e, talvez o mais tantálicos deles, Jorge Luis Borges.
Se considerarmos este um diagnóstico da literatura latino-americana em meados do
século passado, poderíamos dizer que foi um diagnóstico muito atual e certeiro, no entanto, a
valoração dada a ele parece ter sido equivocada. Piñera usou tantálico enquanto sinônimo de
impotência do espírito, exigiu do excesso formal ou da ornamentação uma razão, um motivo
que não poderia mais existir, uma vez que o tempo da vanguarda se exauriu, a relação de
causa – consequência também já inexiste. Aproveitemos, então, o diagnóstico e revisemos a
valoração. Diante de um mundo sem sentido, uma saída é apontar para este vazio. Uma
maneira de apontar para este vazio é o tantalismo, escrever um texto com coisas
desnecessárias, com excesso, repetições, avances e retrocessos, variações de uma mesma
coisa, barroquismos, pinduricalhos, espaços em branco tudo aquilo que Clarice fez em Um
sopro de vida (pulsações). “O livro de Ângela” que constitui um livro dentro livro nada mais
é que a reverberação em si, as infinitas imagens da coisa que varia, mas inexiste: “O livro que
a pseudoescritora Ângela está fazendo vai se chamar de “História das Coisas”. (Sugestões
oníricas e incursões pelo inconsciente)” (LISPECTOR, 1999b, p.102) O que Piñera não se
deu conta é que os desejos de Tântalo são impossíveis. Só o impossível move o desejo. A
coisa está ausente. Clarice tinha consciência desta impossibilidade e desta ausência, e por isso
o procedimento neobarroco do seu texto é, sobretudo, ético.
Eu que apareço neste livro não sou eu. Não é autobiográfico, vocês não sabem nada de mim. Nunca te disse e
nunca te direi quem sou. Eu sou vós mesmos
Clarice Lispector
REFERÊNCIAS
ADÁN, Oscar. “María Zambrano y la pregunta por el "ser"”. Aurora: papeles del Seminario
María Zambrano. Ano1, n. 1, 1999. p. 59-79.
14
MOSER, Benjamin. Clarice, uma biografia. [Trad. José Geraldo Couto] São Paulo: Cosac
Naify, 2011.
PIÑERA, Virgilio. “Notas sobre Literatura Argentina de Hoy”. Revista Orígenes. Ano 5, n.
13, junho/1947. p. 40-45.
RESUMO
O presente trabalho deseja tecer considerações comparativas entre a obra literária Primeiras
Viagens, do escritor Ernesto Che Guevara e o filme Diários de Motocicleta, do cineasta
Walter Salles. Iremos analisar, sobretudo, quais elementos deixaram de existir da obra
literária para adaptação do filme buscando levantar especificidades centradas no objeto da
perspectiva política de ambas. Outrossim, buscaremos tecer algumas reflexões sobre a
problemática da arte da adaptação entre literatura e cinema. O corpo teórico desse artigo visa
a dialogar sobre os efeitos da adaptação com os seguintes autores: André Bazin, Tânia
Pellegrini, Robert Stam, Lúcia Nagib, Marcos Rey. A contribuição investigativa para esse
breve artigo visa despertar o interesse dos estudiosos tanto no campo da literatura como do
cinema em aprofundar temas nessa mesma perspectiva, assim como ampliar os diálogos ainda
escassos entre tal dicotomia de estudo.
Palavras-chave:
Primeiras Viagens. Diários de Motocicleta. Adaptação. Walter Salles. Ernesto Che Guevara.
Cinema. Literatura.
ABSTRACT
This paper wants to make considerations comparative literary Travel First, the writer Ernesto
Che Guevara and The Motorcycle Diaries movie from filmmaker Walter Salles. We will
consider, especially where there are no longer elements of the literary adaptation of the movie
trying to get focused on specific object of the political perspective of both. Also, we try to
make some reflections on the problems of the art of adaptation between literature and cinema.
The theoretical body of this article aims to talk about the effects of adjustment with the
following authors: Andrew Bazin, Tania Pellegrini, Robert Stam, Lucia Nagib, Marcos Rey.
The investigative contribution to this brief article is intended to arouse the interest of scholars
both in the field of literature as movie themes to deepen in the same context, as well as
broaden the dialogue between this dichotomy still scarce in the study.
1
Notas de Viaje foi o relato que Ernesto escreveu após sua viagem, utilizando trechos extraídos do seu diário. O
texto foi transcrito e publicado postumamente pela viúva cubana de Che, Aleida March. Supostamente, trata-se
de uma versão autêntica e integral do original. A obra foi publicada em inglês pela primeira vez em 1995, com o
título The Motorcycle Diaries.
2
Ernesto Guevara de la Serna nasceu em 14 de junho de 1928 em Rosário, Argentina, em uma família de maior
nível social econômico. Seus pais foram transigentes com ele porque desde pequeno padecia de forte asma, que
lhe exigia conter as energias, o que acentuou seu gosto pela leitura. Quando concluiu o colégio, em 1946,
mudou-se para Buenos Aires, onde trabalhou como laboratorista de solo e começou a cursar engenharia, mas em
1947, mudou-se para medicina. Jogava rugby e xadrez e viajou de moto 4.500 km para conhecer seu país. Em
1951, trabalhou como enfermeiro em navios mercantes, sempre sem deixar de estudar. No fim desse ano, partiu
de moto com seu amigo Alberto Granado, em uma viagem de oito meses pala América do Sul, o que ajudou a
encontrar sua vocação. (ANDERSON, 1996, p. 274)
3
Salientamos que o presente estudo foi inspirado no artigo “Crônicas de viagens e a representação das cidades
na obra Primeiras Viagens, de Ernesto Che Guevara”, ao qual tive a oportunidade de apresentar no Simpósio
Internacional de Literatura Argentina”.
4
Pesquisador CNPq - Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); e-mail: literariocris@hotmail.com.
2
Keywords:
The Motorcycle Diaries. First Travel. Adaptation. Walter Salles. Ernesto Che Guevara.
Cinema. Literature.
1 INTRODUÇÃO
5
O cineasta Walter Salles nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 12 de abril de 1956. Filho do falecido
embaixador e banqueiro Moreira Salles e Elizinha Moreira Salles, irmão do também cineasta João Moreira
Salles. Morou em Washington dos 3 aos 6 anos de idade, estudou na França até os 13, voltou ao Brasil para
graduar-se em economia na PUC-RJ e novamente retornou aos Estados Unidos para fazer mestrado em
comunicação audiovisual na Universidade da Califórnia.
6
“O bem-sucedido batismo de fogo no cinema americano foi uma aposta arriscada de ambos – produtor e
cineasta. O filme retrata um ícone cultural e político. Esse fato teve grande apelo, mas impôs um desafio à altura,
que foi corresponder às enormes expectativas de quem espera uma explicação sobre o personagem complexo em
que Che se transformou. Como síntese de um comportamento rebelde e engajado, sua figura até hoje é
inconteste. Do ponto de vista político, está longe de representar uma unanimidade – especialmente nos Estados
Unidos” (STRECKER, 2010, p. 82)
3
“O filme pode ser visto como uma viagem iniciática, uma jornada através de um continente
que definiria, tanto no âmbito emocional quanto no político, quem esses jovens se tornariam.”
(SALLES, 2007, p.47) Ou seja, podemos perceber nos dois depoimentos a necessidade de
explorar o lado social e fraterno de ambos os protagonistas, porém o vocábulo “político” está
colocado com demasiada intenção interessada e alimentará o nosso mote e recorte dado ao
objeto que aqui estamos pesquisando.
Reticências à parte, e respeitada a vontade do cineasta carioca em relação aos
comentários do próprio filme, na entrevista, Salles ainda tece algumas considerações
importantes e, ao que me parece, pertinentes sobre o modo inventivo e de criação. Ao dizer
que o propósito do filme era enfatizar o lado social-político e fazer com que esses
protagonistas pudessem pertencer àquela história, ele reitera o fator do dinamismo político ter
sido um condicionante bastante preponderante e aponta algumas projeções daquilo que seria a
formação de outros acontecimentos e episódios. A partir daí, notamos o possível paralelo
entre o desenrolar de um enredo que segue em concordância com os fatos históricos e
políticos das nações da América Latina, já que, segundo o pensamento de Salles, “Trata-se de
um filme histórico que se conjuga no presente. A situação social é muito parecida com a
escrita nos dois diários - „Notas de viaje‟, de Guevara, e „Con Che”. 7, ressalta o cineasta.
Curioso notar que, desde o seu lançamento, em 2004, o filme Diários de Motocicleta
se afirmou como marco distinto, colocando sua direção e roteiro, Walter Salles, entre os
melhores cineastas brasileiros. 8Afinal, o filme forneceu expressão cultural às questões do
conhecimento da obra humanística, política e social de Ernesto Che Guevara e seu
companheiro de viagem Alberto Granado que a sociedade ainda não conhecia ou apenas
rotulava suas personalidades pelo jogo do senso-comum. O rotulamento inconsciente do
público em geral sempre caía nas tentações de enxergar o protagonista como apenas um
sujeito aventureiro, guerrilheiro e revolucionário, sem antes saber que ele possuía toda uma
carga de sentimentos humanistas relacionados à sua própria existência. Aliás, a temática
humanística e social, tal como abordada por Salles, logo se tornou solo fértil para novos
9
filmes que ele mesmo deveria produzir e projetar, tais como On the Road. Alguns outros,
como Na Natureza Selvagem (2007), de Sean Penn, evidencia ou contaram com o leve toque
de correlação do filme de Salles.
7
SALLES, Walter. Entrevista ao filme Diários de Motocicleta. Disponível em:
<http://www.confrariadecinema.com.br/reportagem_corpo.jsp?id=25> Acesso em 20/01/2011.
8
“A repercussão internacional do filme foi imensa, mesmo que Walter não estivesse inteiramente seguro de sua
recepção. Foi visto por 12 milhões de espectadores, sendo 900 mil no Brasil. Conquistou mais de 50 prêmios
internacionais e uma recepção crítica comparável a de Central do Brasil.” (STRECKER, 2010, p. 83)
9
Filme que será lançado no ano de 2011 em parceria com Francis Ford Coppola.
4
Walter Salles não somente atualiza a história da obra Primeiras Viagens, mais ainda
tenta emular e modernizar as técnicas narrativas utilizadas nos diários escritos por Ernesto
Che Guevara. Diferentemente de outras adaptações da vida e da obra de Ernesto Che
Guevara10, Walter Salles não elimina o lado fraterno e personalíssimo de ambos os
protagonistas: Guevara e Granado. A exemplo de uma técnica estabelecida no começo do
filme, Salles reiteradas vezes provoca as cenas de amizade entre Guevara e Granado, assim
como o sentimento solidário para com os moradores das localidades visitadas por eles.
Dirigindo e trabalhando à maneira de Guevara, Walter Salles ainda tematiza, reflexivamente,
os obstáculos, as dificuldades, para que esses aventureiros possam estabelecer uma maneira
possível de lutar contra as carências financeiras e o fortalecimento das amizades, exatamente
como Guevara falara sobre as principais barreiras de conseguir realizar com proeza e
superando tudo aquilo com destreza e determinação. Enquanto Guevara enfatizava nos seus
escritos a natureza híbrida e paisagística da visão de mundo sobre uma motocicleta, enraizada
em valores aventureiros e libertadores, Walter Salles, em seu filme, também exercita o
mesmo, porém com um caráter mais ousado e humanístico.
Como afirma o ensaísta Robert Stam, na epígrafe introdutória deste artigo, a
adaptação jamais pode ser entendida como uma cópia da fonte, ou seja, à medida que o
intermediador cultural resolve realizar a adaptação do objeto almejado, acaba passando
também a interagir com outros meios e mídias. Ao utilizar o vocábulo “enredados”, Stam
propicia o estudioso/pesquisador a refletir sobre o processo de mescla e fusão das formas
artísticas. Por outro lado, a seleção desses objetos implica num direcionamento mais criterioso
e de projeção aos cuidados do cineasta. Em contrapartida, a adaptação parte da premissa de
aproveitar tudo aquilo que está circunstanciado e traz para dentro do seu contexto, buscando
aspectos intertextuais como fator preponderante de seu fortalecimento. Por esse motivo, uma
determinada adaptação acabe abarcando aspectos de outras mídias, sejam literárias ou não
para complementar as possíveis lacunas, assim como buscar novos ajustes para fins de
originalidade e projeção perante o produto final.
Diante de tal perspectiva, possivelmente podemos orquestrar a seguinte
problemática: como a obra literária Primeiras Viagens pode ser comparada com o filme
Diários de Motocicleta? Como ocorre esse efeito de adaptação das palavras para as imagens?
Quais são as principais problemáticas na arte da adaptação? Quais foram as
influências/correlações tanto na obra literária como no filme? Quais seriam as diferenças de
10
Várias adaptações contemplam a semelhante temática: O filme Che!, de 1968, da norte-americana Twentieth
Century-Fox, estrelado por Omar Sharif como Che Guevara.
5
personalidade entre o escritor Ernesto Che Guevara e o cineasta Walter Salles? Quais são as
imagens e cenas cortadas ao longo do filme? Como ocorre a categoria tempo e espaço da obra
11
literária para a película cinematográfica? Quais são os dizeres dos personagens pelo viés
político que desaparecem ou aparecem no próprio filme? Ao argumentarmos e questionarmos
através desse breve elenco de questões, seremos capazes de levantar e provocar outros estudos
e investigações possíveis, assim como compreender analiticamente todo o contexto
problemático da adaptação da obra literária Primeiras Viagens para o filme Diários de
Motocicleta.
O presente estudo terá a finalidade de explorar e canalizar aspectos importantes do
efeito operatório da adaptação da obra literária Primeiras Viagens em comparação ao filme
Diários de Motocicleta pelo viés da perspectiva política. Isto é: o recorte a ser realizado será
verificar como a obra literária utiliza da linguagem política e como o filme se utiliza dessa
artefato para a sua adaptação. Neste breve trabalho visamos contribuir com as nossas
considerações bibliográficas sobre o efeito da adaptação entre a literatura e o cinema
problematizando os aspectos dos principais teóricos e autores. Resta explicitar que a
contribuição desse estudo objetiva/projeta atingir um possível diálogo pela perspectiva
política da obra literária Primeiras Viagens para com o filme Diários de Motocicleta.
Salientamos que não desejamos realizar um estudo profundo sobre os aspectos da adaptação e
do eixo comparativo de ambas as obras (livro e filme), mas contemplar algumas dessas
diferenças pelo viés político provocando novas discussões. Seria tarefa desproporcional aos
limites de um artigo breve.
11
“No entanto, a narrativa literária está irremediavelmente presa à linearidade do discurso, ao caráter
consecutivo da linguagem verbal, e só pode representar a simultaneidade descoberta pelo novo conceito de
tempo de modo sucessivo. Assim, o que ela cria é uma série de artifícios e convenções (recursos de composição
e modos narrativos que a teoria da literatura procura mapear), destinada a criar a ilusão do simultâneo, buscando
fazer com palavras o que o cinema faz com as imagens.” (PELLEGRINI, 2003, p. 23)
12
Lógico que não podemos generalizar essa afirmação e essas assertivas. Apenas um juízo, a meu ver, e não
dogmático sobre a minha experiência de leitura a esse manancial teórico. Refiro-me aqui aos textos lidos e
6
informa sobre quem a usa: é um agente cultural que necessita da fonte verbal para compor a
sua cadeia de imagens. Na verdade, esse “agente” precisa de uma sensibilidade aguçada,
assim como uma vasta experiência, tanto na literatura como no cinema, para compreender e
diagnosticar as distintas ferramentas que remarão ao seu favor: tempo na narrativa, enredo,
personagens, cenário, acontecimentos e episódios, que lhe possam ser úteis para alcançar os
seus devidos moldes e encaixes. 13No entanto, isso ocorre tão despercebidamente que as duas
categorias de arte (Literatura e cinema), parecem ser meramente semelhantes e equivalentes
uma à outra: definir a sensibilidade para cada adaptação é colocar-se em oposição ao critério
de dizeres polêmicos e formulação de opiniões de juízo. Nesse embate, literatos e cineastas
ocupam a mesma berlinda: o sombrio universo da faculdade de escolha e opção.
É sabido que toda adaptação requer um condicionamento de leitura e intenção crítica
criativa para a seleção daquilo que interessa ao cineasta ou ao agente cultural. A dicotomia
estabelecida entre a faculdade de escolha e a opção mais direcionada nem sempre comportam
maneiras semelhantes de pensar e projetar, já que impõe aspectos de amplitude pessoal e da
formação intelectual desse próprio agente. Durante essa atitude de crivo ou jogo problemático
de ser resolvido cabe a esse mesmo agente agir conforme a sua experiência e a vontade ao
qual deseja atingir ou projetar. Funciona como uma espécie de transgressão ou violação para
com a fonte produzida na transformação do roteiro cinematográfico. Neste sentido, o roteiro
ganha o tônus necessário para a devida contemplação do tema proposto sem dilacerar o
conteúdo autônomo da própria obra literária, ou seja, o roteirista transpõe aquilo que seleciona
e refaz pela sua experiência e habilidade buscando recriar aquelas palavras para a
representação de imagens do próprio filme. Em suma, no interesse do roteirista as páginas do
livro em uma leitura cinematográfica precisam evocar cenas e episódios que deixariam muita
palavra à margem de sua real importância creditada à literatura.
trabalhados durante a disciplina da Professora Dra Rosana Kamita, no seu curso “Literatura e Cinema: o roteiro
cinematográfico”, ofertado no segundo semestre de 2010. Especificamente foram trabalhados os textos
HUTCHEON, Linda. A Theory of Adaptation. New York: Routledge, 2006; EISENSTEIN, Sergei. A forma do
filme. Trad. Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Zahar, 1990; PELLEGRINI, Tânia [et al]. Literatura, cinema e
televisão. São Paulo: Editora Senac São Paulo: Instituto Itaú Cultural, 2003; ---. “Teoria e prática da adaptação:
da fidelidade à intertextualidade”. In: Ilha do Desterro, Florianópolis, nº 51, jul/dez. de 2006, p. 19-53; WOLF,
Sérgio. Cine-literatura: ritos de pasaje. Buenos Aires: Paidós, 2004; XAVIER, Ismail (org.). A experiência do
cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilmes, 1983. ---. O cinema no século (org.). Rio de Janeiro:
Imago, 1996.
13
“O termo para adaptação enquanto „leitura‟ da fonte do romance, sugere que assim como qualquer texto pode
gerar uma infinidade de leituras, qualquer romance pode gerar um número infinito de leituras para adaptação,
que serão inevitavelmente parciais, pessoais, conjunturais, com interesses específicos. A metáfora da tradução,
similarmente, sugere um esforço integro de transposição intersemiótica, com as inevitáveis perdas e ganhos
típicos de qualquer tradução.” (STAM, 2008, p. 27)
7
Curioso e instigante notar que seleção, criatividade, apreciação, gosto pelo objeto
literário e cinematográfico são os termos que definem um bom roteirista. A questão surge
naturalmente: Como funciona essa conjuntura um tanto complexa? Seleção por escolher os
episódios narrativos literários mais essenciais ao imagético do filme. Criatividade por saber
criar e inventariar novos lances que nem sempre aparecem no texto literário. Apreciação
corresponde à sensibilidade e ao jogo emotivo que envolve aquele roteirista mais solto as
amarras das tradições já pregadas. Por último, o interesse em colocar na berlinda literatura e
cinema como duas artes que se relacionam amplamente, ou seja, uma depende da outra de
forma harmônica. Elementos que de todo modo exponencia a empreitada cinematográfica e
artística. De maneira geral, essa seria uma síntese, grosso modo, das categorias indispensáveis
a todo roteirista interessado em penetrar no universo arriscado mais ousado da dicotomia:
literatura e cinema.
Não é descabido pensar-se que na história do cinema brasileiro um rol de obras
literárias se encaixa nesse perfil da adaptação e do leque variado entre a forte presença da
palavra e da imagem – desde a o chamado Cinema Novo até a nossa contemporaneidade –
representando filmes reelaborados pela mente do roteirista e do cineasta – mantendo certo
grau de parentesco no entrelace Literatura e cinema - exemplifico algumas aqui14: Memórias
Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis e adaptado por André Klotzel, O Coração das
Trevas, de Joseph Conrad e adaptado por Francis Ford Coppola, Brasil, um país do futuro, de
Stefan Zweig e adaptado por Gustavo Nieto Roa, entre outros que se dispuseram a resgatar o
valor da palavra através das imagens. Tais adaptações fortaleceram o eixo cultural entre
literatura e cinema, reatualizando novas maneiras de pensar sobre essa dicotomia tão
problemática. Alertamos que não pretendemos explorar/aprofundar tais obras.
Por coincidência ou ironia do destino do objeto que estamos buscando dialogar e
arquitetar novas postulações, o protagonista e autor da obra Primeiras Viagens, Ernesto Che
Guevara, era fanático por literatura desde criança15, e preferia sempre as palavras do que as
14
A importância de arrolar estes nomes (literatura e cinema), a meu ver, está relacionada com a possibilidade de
enxergarmos outros horizontes comparativos, com menor e maior grau, ao que aqui estamos exercendo nesse
breve artigo.
15
No mesmo espírito de balanço sobre algumas remisciências de leitura de Guevaro são passadas em revista
movimentos implícitos algumas colocações importantes na respectiva obra: “Era óbvio que ele [Guevara]
recorria a todas as fontes à sua disposição. Suas citações sobre o marxismo foram extraídas do Mein Kampf e
continham passagens que revelaram a obsessão por Hitler com uma conspiração judeu-marxista. Pra seus
esboços de Buda e Aristóteles, utilizou Uma Breve História do Mundo, de H.G. Wells, enquanto A Antiga e a
Nova Moralidade Sexual, de Bertrand Russel, foi sua fonte sobre amor, patriotismo e moralidade sexual. Mas as
teorias de Sigmund Freud obviamente o fascinaram, e Ernesto citou A Teoria Geral da Memória a respeito de
tudo, desde sonhos e libido até narcisismo e complexo de Édipo. Outras citações vieram de Jack London, sobre
sociedade, e de Nietzche, sobre a morte. [...] Sua escolha de obras de ficção começou então a se deslocar para
8
imagens. Guevara devorou vários romances durante a sua longa trajetória de viagem dos
8.000 quilômetros na América Latina. Uma explicação cabal para essa paixão pela literatura
seria sua densa crise de asma em sua juventude a qual fez que Guevara ficasse muito mais
redimido em casa e buscasse o auxílio da leitura como fator de entretenimento. Fato curioso
foi ter tirado uma fotografia em plena guerra boliviana, onde o escritor medita seu cansaço
físico através de uma leitura em cima de uma árvore. Em contrapartida, o cineasta e diretor
do filme Diários de Motocicleta, Walter Salles, era fanático por cinema, desde os tempos em
que residia na capital francesa. Salles era freqüentador assíduo das salas de cinema em Paris.
16
Ora, se juntássemos a paixão do protagonista argentino com a do cineasta brasileiro
teríamos um grande fortalecimento e fator da produção de um excelente meio cultural: uma
majestosa fonte e uma grandiosa adaptação, e podemos postular, sem grandes pretensões, que
de fato isso ocorreu.
Outros exemplos que tornam mais saliente o valor da palavra e da imagem
cinematográfica se espraiam de diferentes modos, tanto na obra literária como no filme, um
deles é evocado quando Guevara resolve visitar o grandioso escritor Dr Hugo Pesce na cidade
de Lima no dia 12 de maio de 1952. Algumas indicações de leitura são extremamente válidas
durante essa visita: “Este é de Mariategui ... também tem de ler César Vallejo.” Um outro
notório exemplo seria o próprio diário que a todo o momento é esboçado por Gael García
Bernal no papel de Guevara em atitudes meditativas no decorrer de alguns episódios. A “voz
off” constituída durante o desenrolar dos episódios também reforça a idéia da leitura dos
diários escritos por Guevara. Em contrapartida, na obra literária Primeiras Viagens é possível
notarmos que muitas frases e diálogos se constroem em forma de narrativas fílmicas e
imagéticas. Exemplo nítido dessas passagens ocorre no episódio que Guevara descreve a
geografia da cidade de Bariloche, nos Andes da Argentina, utilizando palavras e expressões
livros com um maior conteúdo social. Na verdade, na opinião de seu amigo Osvaldo Bidinosd Payer, para
Ernesto Guevara “tudo começava com a literatura”. Por volta dessa época [1945-1946], ele e Ernesto estavam
lendo as mesmas obras de autores como Faulkner, Kafka, Camus e Sartre. Em poesia, Ernesto lia os poetas
republicanos espanhóis Gárcia Lorca, Machado e Alberti, e as traduções para o espanhol de Walt Whiltman e
Robert Frost, embora seu favorito absoluto continuasse sendo Pablo Neruda.” (ANDERSON, 1997, p. 57) Ao
leitor/pesquisador mais interessado no respectivo assunto (Leituras realizadas por Ernesto Guevara) aconselho a
leitura do capítulo “Ernesto Guevara, rastros de leitura”, In: O último leitor, de Ricardo Piglia. São Paulo: Cia
das Letras. 2006.
16
“Os primeiros filmes que vi, e dos quais me recordo, passavam todos no mesmo cinema. Eu tinha 6 ou 7 anos
de idade e fui morar por um período de sete anos na França. Embaixo do apartamento, onde morava, havia uma
sala de cinema que passava programas duplos. Os primeiros filmes que vi foram westerns, não somente de Ford,
Hawks, Anthony Mann, mas também os primeiros filmes de Sergio Leone, por exemplo.” (NAGIB, 2002, p.
416) “Se me apaixonei por cinema, foi pelo que senti a over certos filmes na tela grande, mas também pelo fato
de que não senti aquela emoção sozinho. Ou seja, também me encantei pelo aspecto coletivo do cinema. Poder
dividir toda uma gama de sensações suscitadas por um bom filme com outros espectadores é um privilégio que
só o cinema pode oferecer.” (SALLES, s.p.)
9
relação de interdependência tanto do produto como do público receptor deverá sempre ser
tratada com um olhar sensível e atento para o jogo de expectativas que virá adiante quando for
lançada a adaptação.
Por outro lado, no artigo “Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar
do cinema”, o crítico Ismael Xavier aborda a mesma questão de forma análoga e dissertativa
no sentido de compreender que uma adaptação tende a inclinar pela livre interpretação da
obra literária para o roteiro ou o próprio filme. Com efeito, cada cineasta terá a sua peculiar
maneira de refletir sobre a obra literária diferentemente para com outros que estão ao seu
redor, provocando assim novas formas de aceitação ou não daquilo que precisa transpor de
palavras para imagens. Xavier comenta que: “A fidelidade ao original deixa de ser o critério
maior de juízo crítico, valendo mais a apreciação do filme como nova experiência que deve
ter sua forma, e os sentidos nela implicados, julgados em seu próprio direito”. (XAVIER,
1983, p. 50) Ou seja, para o crítico literário ou do cinema não será mais papel preponderante o
impulso de verificar a lealdade em contraposição a outros e demais fatores.
Seguindo a mesma linha e viés, teremos a obra A literatura através do cinema, do
teórico Robert Stam, que dialoga em demasia com a temática da adaptação da obra literária
para o filme. Após recuperar alguns dizeres reflexivos de Truffaut e André Bazin, sobre os
efeitos da adaptação em vários níveis, o crítico Stam conclui e coloca o seguinte diagnóstico
que ajuda a balizar as possíveis etapas que deverão ser observadas por aquele empreendedor
roteirista ou cineasta mais atento. “A questão da adaptação está situada no ponto de
convergência de uma série de fatores cruciais: a especificidade cinematográfica, a
reflexividade modernista e as relações interartes e intersemióticas.” (STAM, 2008, p. 334) A
enumeração refletida pelo teórico é pautada em técnicas seletivas que empregam de forma
desencadeada os principais elementos balizadores ao qual irão projetar o raciocínio fílmico e
abarcar novos entendimentos para a formulação de novas adaptações. Para complementar
todo esse rol de fatores, podemos verificar a reflexão mais detalhada da terminologia
“adaptação” realizada pelo roteirista Marcos Rey que ao longo de variadas experiências,
enquanto escritor de roteiros acumulou novas maneiras e olhares para saber trabalhar com
diversas mídias e meios de arte como fator integrante e muitas vezes indissociável para
alcançar o objetivo pretendido. Vejamos alguns detalhes, quase em forma de depoimento da
citação:
A adaptação não precisa necessariamente conter tudo que está no livro. Mesmo
livros com muita ação têm capítulos monótonos ou vazios. O que importa é que ela
seja uma inteiriça, redonda, completa, sem evidenciar amputações, cortes por falta
de tempo, saltos desconcertantes e buracos entre as seqüências. A adaptação requer
11
A longa citação justifica-se porque através dela tem-se uma síntese precisa e
reflexiva daquilo que aqui estamos discutindo. Os vocábulos “inteiriça” e “redonda”
utilizados por Marcos Rey resgatam a problemática da complexidade que o sujeito que está
adaptando algo deve conduzir para tal perspectiva, e certamente isso se tornará um fator
indispensável para sua total articulação e sucesso. Outrossim, sugere que a conjuntura dessa
adaptação deverá evidenciar algo integro e completo. Ao mesmo tempo que resgata a
dimensão da sua complexidade, pois trata de um problema para o qual não teríamos uma
solução definitiva. Sob esse prisma, a adaptação, de uma maneira geral concerne que sua
potencialidade recupera todo um acervo circunstancial de componentes artísticos que ajudam
e auxiliam a complementar o aparato como um todo. Passamos a investigar algumas dessas
características através da análise da própria obra literária Primeiras Viagens ao filme Diários
de Motocicleta. Movimento que tentaremos rastrear sobre o nosso objeto a seguir.
17
Segundo o diretor Walter Salles: “Rodrigo está sempre pronto para nos surpreender, mesclando humor e
drama de um modo único. Havia também uma incrível coincidência, que eu percebi somente após tê-lo escalado:
ele é primo de segunda grau de Ernesto Guevara de la Serna.” (SALLES, p. 46)
12
18
Em entrevista sobre as principais locações empreendidas pelo cineasta Walter Salles, ele responde: “Nós
filmamos em mais de 30 locações na Argentina, no Chile e no Peru. Suportamos temperaturas que variavam de
bem abaixo de zero nos Andes a mais de 45 C na Amazônia. Nós usamos as locações originais pelas quais
Ernesto e Alberto viajaram o máximo possível. A maioria das locações mais remotas, na realidade, não dói
drasticamente modificada pelo que chamamos de “progresso”. E quando não podemos usar uma, tentamos
encontrar alternativas que fossem bem semelhantes aos locais pelos quais nossos amigos rodaram com La
Poderosa. A extensa pesquisa foi conduzida por Carlos Conti, nosso diretor de arte, foi muito importante nesse
sentido.” (SALLES, 2007, p. 48)
19
Sobre o conteúdo da fotografia e o efeito daquilo que aqui estamos discutindo vale aqui citarmos as notórias
contribuições de Walter Benjamin: “A fotografia nos mostra essa atitude, através dos seus recursos auxiliares:
câmara lenta, ampliação. Só a fotografia revela esse inconsciente ótico, como só a psicanálise revela o
inconsciente pulsional. Características estruturais, tecidos celulares [...] Mas ao mesmo tempo a fotografia revela
nesse material os aspectos fisionômicos, mundos de imagens habitando coisas mais minúsculas, suficientemente
ocultas e significativas para encontrarem um refúgio nos sonhos [...]” (BENJAMIN, 2010, p. 94).
20
Para adaptar a obra literária Primeiras Viagens de Che Guevara, Salles desloca a história no tempo e no
espaço, situando-a no presente e permutando o cenário de quase todas as cidades visitadas nas viagens do ano de
1951. As locações utilizadas durante o contexto das filmagens são escolhidas com exatidão e fidelidade ao
itinerário do próprio livro. Neste cenário já alterado para simular o contexto de época, é possível notarmos
13
a possível montagem do cenário que estava visando representar e, sem dúvida, precisou
reelaborar aquilo que foi dito nos diários sobre as respectivas cidades com os locais atuais.
Se resolvêssemos brevemente explorarmos o título do filme poderíamos dizer que
Diários e Motocicleta impõe uma espécie de alegoria que anuncia tanto a busca de uma
liberdade frente ao vocábulo motocicleta já imortalizado por outros aventureiros e cineastas,
assim como uma autonomia que é evidenciada pela sede de radiografar o continente latino-
americano. A existência de dois sentidos, um literal e outro figurado, é indispensável para
provar que Diários de Motocicleta implica em liberdade e conjuga ares de rebeldia e
revolução. Ou seja, aspectos simbólicos que remetem imaginarmos uma liberdade longe do
capitalismo. Além disso, o título faz eco para aquelas anotações (Diários) de natureza não
obrigatória, mas espontânea e sem compromisso para as circunstâncias ao redor. Anotações
vivenciadas e tidas ao frescor daquilo que ocorre quase que instantâneo com os protagonistas
Guevara e Granado. Em contrapartida, o título da fonte literária Primeiras Viagens remete a
pensarmos em categorias de algo principiante ou algo ainda imaturo, tomamos como exemplo
bastante similar o título da obra de literatura de viagens, O turista aprendiz, do escritor
modernista Mário de Andrade.
Superada a dicotomia estabelecida pelo jogo dos significados e conotações, podemos
postular que o filme é recheado de imagens paradisíacas e exóticas, lugares inóspitos, onde a
natureza humana tampouco conhece ou pisou, que juntando tudo isso acabam se contrapondo
a um olhar mais nostálgico de impressões que certamente marcaram a memória desses
protagonistas. A fotografia21 poética contempla lugares nos distintos países visitados:
Argentina, Chile, Peru, Bolívia e Venezuela, enobrecendo ainda mais o eixo cultural
geográfico. Por isso, o pano de fundo ou cenário recompõe a mesma paisagem de época. “No
cinema, existem recursos ilimitados que permitem utilizar esses meios com eficiência
redobrada, particularmente em se tratando do cenário ou fundo.” (MUNSTERBERG, 1989, p.
31) Pensados nesses termos, paisagem, exuberância nas imagens exóticas, intervenção social
e política compõe um mesmo modelo, que parece ter sido cuidadosamente imbricado e
relacionado por Walter Salles para quem filmar requer e significa representar politicamente a
relação das duas personagens com a sociedade da época. Não poucas vezes, Salles comparou
o seu cinema como uma necessidade das “[...] escolhas emocionais e políticas que temos que
algumas partes da cidade de Buenos Aires com plenas características de outrora, guardando os anseios do
passado e da nostalgia que remontava o período vivenciado por Guevara e Granado. O efeito desse deslocamento
é correspondido também pela série de figurinos tradicionais, carros de época, linguagem de época, utilidades do
cotidiano, enfim toda uma conjuntura que remonta o período correspondente.
21
A fotografia do filme ficou a cargo do fotógrafo Eric Gautier.
14
22
fazer na vida, sobre a margem do rio que elegemos e pela qual vale a pena lutar.”, que se
exibe ou se apropria das circunstâncias históricas e políticas da nação.
Na verdade, a produção cinematográfica de Walter Salles já possui um viés
direcionado a filmes que remontam à trajetória de viagens e aprofundam a temática
humanística social. Central do Brasil (1998), Abril Despedaçado (2000), Terra Estrangeira
(1996), abordam a movimentação das pessoas por terras um tanto desconhecidas e pouco
exploradas, assim como evocam novas maneiras de explorar o lado humano das personagens
e seus coadjuvantes. Outro fator importante é que a maioria dos filmes de Salles possui uma
função presente com o gênero documentário. Vistos em conjunto, esses filmes parecem
descrever uma trajetória semelhante ao que ocorre em Diários de Motocicleta, personagens
em busca de uma identidade e a auto-descoberta. Por exemplo, ao tomarmos a produção de
Central do Brasil, podemos verificar que a quantidade de semelhanças e alusões encontradas
corresponde ao eixo das aproximações solidárias sociais e das viagens. A protagonista Dora,
escrituraria de cartas na Central do Brasil, resolve empreitar e levar o menino Josué a
conhecer seus familiares através de uma longa viagem inusitada rumo ao Nordeste do Brasil.
23
Uma breve digressão se faz necessária: ao tomar o relato de Ernesto Che Guevara ao
pé da letra, em lugar de aproximar-se do documento, Diários de Motocicleta se entrega
decididamente à imaginação e a ficção, no caso a narrativa de viagens e de aventuras ao redor
da América Latina. A lista de escritores de literatura de viagens que utilizam a palavra de
forma imagética é grandiosa e insistem na subsequente descoberta das terras ainda
desconhecidas e guarnecidas de mistérios e segredos. Poderíamos até postular em dizer que
tanto a obra como o filme já parodiam uma série de registros desses famosos escritores de
literatura de viagens. Como se sabe, era grandioso e denso o grau de inventividade que
impregnava as estórias e narrativas dos principais viajantes à moda Hans Staden, Humbold,
Charles Darwin, e o ficcionista Júlio Verne em torno dos relatos impressionados sobre a fauna
e flora exótica do continente latino-americano.
22
SALLES, Walter. Grandes líderes da história. Che Guevara. Saiba porque o mito continua vivo. São Paulo:
Arte Antiga Editora. 2007, p. 47,
23
“O humanismo de Walter Salles não é um humanismo escolástico. Ele não transforma em metáforas seus dois
personagens – uma mulher que escreve cartas para analfabetos na Central do Brasil e um garoto sem pai. São
pessoas de carne e osso, dois zumbis sociais que encontram vida juntos e forjam uma ética após vagar pelo
deserto, o sertão periférico. Fora do centro, portanto, onde a ética já morreu. Reside ai uma imprecisão
terminológica. Não morreu foi assassinada a porretadas por poderosos que desprezaram tudo aquilo que não é
espelho.” (FILHO, 2003, p. 284)
15
24
Os manuscritos dos diários de viagem de Ernesto Che Guevara e Alberto Granado foram originalmente publi-
cados pelo jornalista e documentarista italiano Gianni Mina com o título de “Mi Primer Gran Viaje”.
25
Trecho tirado do filme no momento em que os protagonistas Guevara e Granado estão buscando um
alojamento provisório na casa de um morador da cidade de Bariloche.
16
Guevara, imaginando esses protocolos e encontros, e a do seu fiel amigo Alberto Granado,
que interage pela facilidade de comunicação e audácia para cativar as pessoas. Aliás, o
aspecto carismático de Granado é trabalhado com bastante perspicácia pelo ator Rodrigo de
La Serna buscando outorgar uma ousadia para com a aceitação e parceria dos pares e entes
políticos queridos. Em suma, a palavra é um elemento presente e participativo no filme
enquanto instrumento que permite articular e dar força a uma grandiosidade de
acontecimentos durante o desenvolvimento do enredo.
Na verdade, mais do que um caráter carismático e persuasivo, o certo é que tanto a
“palavra” e a “imagem” de Guevara como a de Granado ofertaram um arquétipo para os
outros continentes, a raiz e a essência de heróis revolucionários comparados a Hitler, Nelson
Mandellla, entre muitos outros ilustres. A este patamar da história, os personagens Guevara e
Granado ficaram a par de antecipar outras duplas de aventureiros que posteriormente fariam o
mesmo sucesso e relevância. Com efeito, Walter Salles utiliza um dispositivo intertextual
especificamente cinematográfico para ilustrar o lado social de Ernesto Che Guevara antes de
suas aproximações com seus pares e amigos. Na obra Primeiras Viagens, a vida de Guevara
passa diante dele numa série de episódios que são registrados pelo lado da necessidade de
proximidade com aqueles que iriam transformar a sua personalidade. Esses registros
contemplam aquele olhar sublime e cristalizado para com tudo que surgia de novo ao seu
redor. O filme, por sua vez, apresenta e evoca o que Guevara chama de uma “busca pela
geografia humana” através de um leque de cenas que justificam essa procura do conhecimento
e da sociabilidade das pessoas.
Por outro lado, o protagonista Guevara, por sua vez, é socialmente ambivalente. Por
um lado, apesar de seu status de homem de aventuras aparentemente descomprometidas, ele
confronta os homens de poder para tentar ao menos resgatar os oprimidos, embora nunca
deixando de flertar com aqueles mais burgueses. Ao que tudo indica, Guevara sofrera muitas
influências da leitura da obra O tacão de ferro, do escritor Jack London, onde por
coincidência o jovem personagem protagonista de nome Ernesto surpreende o leitor com seu
jogo ambivalente e audaz de lutar pela implantação do socialismo nos Estados Unidos da
América. No entanto, essa aproximação de Guevara nem sempre vinga créditos favoráveis ou
consegue lograr êxito durante o desenrolar da narrativa e do próprio filme, já que algumas
tentativas de sociabilidade tornam-se frustradas ao longo do percurso e de sua trajetória.
Exemplo notório é quando Guevara tenta angariar alojamento provisório por apenas uma
noite na casa de um cidadão local no Sul da Argentina. A tentativa acaba ficando na
18
frustração, já que o morador faz pouco caso e resolve ignorar o pedido dos protagonistas
forasteiros.
Diga-se de passagem, podemos postular que Walter Salles conseguiu transmitir a
capacidade de conduzir o filme através dos fenômenos políticos e sociais que evocam uma
nova maneira peculiar de conhecer a personalidade de Guevara. Ou seja, ampliou um pouco
mais o conteúdo apenas referencial e de registro da própria obra Primeiras Viagens. Tais
fenômenos são remontados através de episódios marcados de aventura e efeito de risco. A
representação político- social estabelecida por Salles através do roteiro de José Rivera é
desestabilizada não apenas em termos de meio imagético, mas também em termos da
aproximação de Guevara e Granado frente aos obstáculos e dificuldades que toda viagem
exige a um peregrino mais preparado ou menos. Talvez a obra literária tenha deixado passar
muito desses episódios em branco ou não houve necessidade de registrar todos esses detalhes.
Por alguns desses motivos é possível notarmos que o enredo é entrelaçado de acontecimentos
que remontam a tese de um filme que busque defender o ideal daqueles menos favorecidos e
esquecidos pela sociedade capitalista.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Recapitulando, observamos que Primeiras Viagens, de Ernesto Che Guevara, escrito
em 1951-52 e adaptado para o cinema somente cinco décadas mais tarde, representou a
audácia e a ousadia do movimento de registro das crônicas de viagens e foi um forte precursor
(nem sempre reconhecido como narrativa ou literatura) daquilo que seria o documento mais
testemunho, social e histórico da viagem de dois homens, tidos como revolucionários, que
fizeram parte da história da América do Sul. Por isso, podemos postular que, similarmente ao
contexto cronistico estabelecido pelos primeiros espanhóis que chegaram e conquistaram
territórios da Argentina, Peru e Chile, Guevara e Granado inspiraram-se, possivelmente,
através desses elementos chaves da cultura de viagens para compor os seus respectivos
diários.
Poucas vezes um filme como Diários de Motocicleta realizou com tanta sagacidade e
brilhantismo as expectativas políticas e sociais da adaptação quanto à versão de Primeiras
Viagens, de 1952. Como fez o romance em sua própria época, o filme também cristalizou uma
grande diversidade de energias culturais de maneira reatualizada para o seu momento
histórico. Como a prosa de viagens escrita por Guevara, que fez convergir as aproximações
sociais ao conteúdo das referências extraídas do contexto das localidades que visitavam ao
redor da América Latina, a adaptação acaba condensando o lado humanístico dos
19
protagonistas com o viés político e social das circunstâncias que os cercavam. Filmado
durante os anos de 2003 à 2004 que começou com a nova ascensão do cinema brasileiro
frente as políticas de incentivo a cultura, Diários de Motocicleta compõe um raro exemplo de
como a adaptação realiza um salto para a crítica social e política num contexto de extrema
relevância para a desmistificação que Che Guevara foi apenas um aventureiro ou um líder
revolucionário.
Restaria ainda assinalar que Diários de Motocicleta oferece assim uma versão
atualizada da identidade da América Latina, sintonizada antes com o espírito social e
aventureiro que com as propostas utópicas dos anos 50, embora centre o mesmo momento
fundador das nações latino-americanas. Pode-se dizer, no entanto, que, em vários sentidos, o
filme Diários de Motocicleta, dirigido por Salles com a colaboração preponderante do
roteirista José Rivera, conseguiu se equiparar à obra de origem, colocando o ensaísta ou o
crítico cultural diante da tarefa de encontrar, na adaptação literário-cinematográfica, as
técnicas correlatas e igualmente bem sucedidas em ambas as obras. Como sugestão,
poderíamos começar pelo aspecto mais autêntico do livro que é a forma de como esses
registros são realizados. Primeiras Viagens surpreende, antes de tudo, por apresentar que
grande parte da América Latina evidencia registros culturais distintos não apenas parecidos,
mas desconhecidos de boa parte da crítica cultural vigente.
No presente artigo, tentamos chamar atenção para a discussão problemática e
polêmica da relação entre a literatura e adaptação pelo viés político na obra Primeiras
Viagens e o singular filme Diários de Motocicleta: obras baseadas indiretamente no espírito
consagrado revolucionário dos protagonistas Ernesto Guevara e Alberto Granado; dupla que
acumulou experiência e ousadia para empreender conquistas sociais ao redor da geografia
latino-americana; escritos e registros que outorgaram pessoas a inventariar outros modos de
realização cultural em torno desse material; escritos que não sabiam sequer se tornariam
cinematográfico ou mesmo seriam transformados em adaptações que reproduziriam a
nostálgica viagem de 1951. Vimos também como se comporta a leitura da narrativa pelo olhar
social e político comparado com aquilo que foi transformado em filme pelo mesmo viés de
análise. Outrossim, vimos a dicotomia da Literatura e do cinema explorada em forma de
considerações reflexivas, buscando problematizar esse assunto ainda tão complexo e polêmico
que por excelência ainda não se confirmou nas suas múltiplas teorias conceituais.
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SALLES, Walter. Entrevista. In: Grandes líderes da história. Che Guevara. Saiba porque o
mito continua vivo. São Paulo: Arte Antiga Editora. 2007.
STRECKER, Marcos. Na estrada com Walter Salles. São Paulo: Publifolha, 2010.
RESUMO
Palavras-chave:
Adaptação. Dante’s Inferno. Divina Commedia.
ABSTRACT
Adaptations, according to Linda Hutcheon (2011), are a way to honor texts/works that pre-
ceded them. Her credit and recognition to adaptations (no gender restrictions) is due to the
realization that adaptations are central to the human imagination in all cultures. According to
the author, as people retell histories, they adapt for the purpose of pleasing a new audience.
Retelling, thus, in most of the times means adapt, adjust. In this sense, adaptations collaborate
to the “survival” of classical texts (Calvino, 2001), and one example is the animation Dante’s
Inferno, developed and launched by the companies Visceral Games and Electronic Arts, in
2010, based on the first part – Inferno – Divine Comedy of Dante Alighieri. Thus, in this arti-
cle, I present an analysis of this animation using the theoretical concepts of Linda Hutcheon
about the adaptation, presented in A theory of adaptation.
Keywords:
Adaptation. Dante’s Inferno. Divine Comedy.
1 DANTE
Dante Alighieri, poeta florentino, é primordialmente conhecido como o espírito en-
genhoso que escreveu uma das obras máximas (cf. BLOOM, 2001) da literatura ocidental: a
1
Doutoranda em Literatura e professora substituta do Departamento de Metodologia de Ensino, na área de Lín-
gua Portuguesa, da Universidade Federal de Santa Catarina; e-mail: gikacorso@gmail.com.
2
Commedia, que, por conta de Boccaccio, em 1555, passou oficialmente a ser chamada pelo
título de Divina Comédia.
Sua obra foi escrita em versos, está estruturada em três partes: Inferno, Purgatório e
Paraíso; cada uma delas representa um reino além-tumba, e estão divididas em cem cantos,
que possuem número variável de versos decassílabos (10 sílabas métricas), e oscilam entre
115 versos, no mínimo, e 160, no máximo. O Inferno2 possui 34 cantos (o primeiro é introdu-
tório); o Purgatório e o Paraíso, 33 cantos cada. O impecável sistema da terza rima (ABA,
BCB, CDC, …) convém à fixação da fala, ao seu movimento. Desse sistema, vale dizer que
uma estrutura praticamente padrão rege a organização dos versos.
Na estrutura narrativa, culpa e pena possuem íntima relação e a gravidade delas au-
menta à medida que os peregrinos avançam para o centro da Terra. Dante se vale dos critérios
aristotélicos de juízo moral, classificando as almas de acordo com a forma e o modo pelos
quais, pecando, excederam ao seguir os instintos naturais ou ofenderam os outros. No Purga-
tório ordena progressão oposta a do Inferno: do mais grave para o menos grave; conforme a
lei moral, as almas espiam, uma a uma, os sete vícios capitais antes de ascender ao Céu. No
Paraíso, os beatos ficam mais ou menos próximos de Deus de acordo com o grau de sua feli-
cidade ou realização eterna.
Dante Alighieri, segundo Bloom (2001), é autor de leitura obrigatória e é o mais
agressivo e polêmico dos grandes escritores ocidentais, chegando a, inclusive, “apequenar”
Milton nesse sentido. Porque seu poema é uma profecia e se assume como uma espécie de
Terceiro Testamento, porém sem se servir ao Velho e ao Novo – e assim a Divina Commedia
assume o status de uma nova Escritura, na qual se encontra a mais espetacular invenção de
ousada exuberância de Dante – Beatriz –, condição angelical e projeção de sua assinatura,
originalidade e singularidade. Mesmo assim, Dante continua sendo poeta, não teólogo, inseri-
do na categoria de um “alegorista cristão”. Eis a razão de Bloom afirmar que “A teologia não
é sua regra, mas seu recurso, um entre muitos” (2001, p. 82). Porque, também, Dante é a mais
viva de todas as personalidades da página impressa, “Tomou para si a última palavra, e en-
2
Dante situa o Inferno embaixo de Jerusalém, em forma de cone, constituído por uma imensa cratera escavada
nas profundezas do globo terrestre – causada pela queda do céu do corpo de Lúcifer – o anjo rebelde. As almas
são distribuídas em nove círculos concêntricos ao castigo eterno, e suas penas, divididas em quatro grandes se-
ções, estão baseadas na relativa doutrina aristotélica: Incontinência (luxuriosos, gulosos, avaros e pródigos, Ira-
cundos e rancorosos e heréticos), Violência e bestialidade (contra o próximo, contra si próprio e contra Deus),
Fraude (sedutores-rufiões, aduladores-lisonjeadores, simoníacos, magos-adivinhos, traficantes, hipócritas, la-
drões, maus conselheiros, cismáticos-intrigantes, falsários), e Traição (contra parentes, contra pátria, contra hós-
pedes, contra benfeitores). Lúcifer (Dite) encontra-se no último círculo do Inferno, e o movimento de suas asas
mantém o centro do Inferno congelado. No Inferno, o poeta italiano encontra Homero, Ovídio, Paolo e Frances-
ca, Ulisses, Conde Ugolino, Brunetto Latini (seu mestre), entre inúmeros outros.
3
quanto o lemos, não queremos discutir com ele, sobretudo porque desejamos ouvir e visuali-
zar o que ele viu para nós” (BLOOM, 2001, p. 93).
Benedetto Croce, em texto escrito por volta da década de 20, intitulado La poesia di
Dante (1948), percebe em Dante a figura de um homem de ação, partícipe ao seu modo da
crise italiana e europeia entre o fim do século XIII e início do século XIV. Segundo este críti-
co italiano, “a poesia de Dante é principalmente, e se poderia dizer quase unicamente, a poe-
sia da Commedia, porque na Commedia ele une de uma só vez a plena originalidade e a exce-
lência artística”,3 e visualiza no poema um entrelaçamento entre o opus poëticum, o opus phi-
losophicum e o opus practicum, bem como entre sentimentos e fantasias, atos de fé e de reli-
giosidade, censuras da política florentina e da Igreja e do Império, dos princípios italianos e
estrangeiros, sentenças e vinganças, símbolos, alegorias.
O ensaísta contemporâneo Gianfranco Contini, em Un’idea di Dante (1999, p. 77),
compreende no poeta um homem da Idade Média que, em vez de se limitar a glossar os ditos
memoráveis, uso comum das escolas, produz e lapida seus próprios versos e rimas. O crítico
italiano acrescenta que “o ideal da Divina Comédia não está voltado para uma „vida melhor‟,
mas para um além-tumba melhor”4 e reconhece que é a única obra de arte da Idade Média
Europeia ainda linguisticamente viva. A experiência direta, o raciocínio e a argumentação, são
fonte de conhecimento tanto quanto a sabedoria humana. Além disso, o poeta medieval se
justifica sempre como sábio e como profeta, pois contribui para a fonte do saber e é um reve-
lador porque age como tal sobre os destinos da humanidade.
Dante continua a agir sobre os destinos da humanidade porque sobrevive, de uma for-
ma ou de outra, na contemporaneidade. E sobrevive por ser lido, relido, recontado, ressignifi-
cado, reformulado, reforçado, restaurado, refeito, remodelado, reescrito. Enfim, Dante é adap-
tado, é ajustado, é homenageado porque, segundo a pesquisadora Linda Hutcheon (2011) – de
quem tratarei no próximo tópico –, as adaptações são/podem ser, também, uma forma de se
prestar homenagem a autores e obras.
2 DURANTE
Em 2006, Linda Hutcheon publicou A theory of adaptation, livro traduzido recente-
mente para a língua portuguesa. A pesquisadora pauta sua proposta de uma teoria da adapta-
3
“la poesia di Dante è principalmente, e si potrebbe dire quasi unicamente, la poesia della Commedia, perché
nella Commedia egli giunse tutt’insieme alla piena originalità e all’eccellenza artística” (CROCE, 1948, p. 27).
4
“l’intenzione della Commedia non è volta ad “una vita migliore”, ma a un aldiquà migliore” (CONTINI, 1999,
p. 70).
4
ção prioritariamente nas adaptações efetuadas para o cinema,5 mas não perde de vista outros
“formatos” (adaptações literárias para jovens leitores, para o teatro, para a ópera, para o vide-
ogame, por exemplo). Seu crédito e reconhecimento às adaptações (sem restrições de gênero)
ocorre em virtude de sua confiança, no sentido de que a adaptação
é (e sempre foi) central para a imaginação humana em todas as culturas. Nós não
apenas contamos, como também recontamos nossas histórias. E recontar quase sem-
pre significa adaptar – “ajustar” as histórias para que agradem ao seu novo público
(HUTCHEON, 2011, p. 10).
Como até então não existia uma teoria da adaptação, Linda Hutcheon, sem imposi-
ções, aventura-se em “uma teoria”, como o próprio título do livro evidencia e, nas páginas
iniciais levanta uma problemática interessante: “as pessoas continuam cunhando novas pala-
vras para substituir a simplicidade confusa do termo “adaptação” (HUTCHEON, 2011, p. 39).
Seu livro é uma espécie de manifesto em prol das adaptações. Em seus exercícios de
definição, ao notar que o termo é tanto usado para o “produto” quanto para o “processo”, a
estudiosa canadense procura esboçar um paralelo entre adaptações e paródias,6 dizendo:
Tal como as paródias, as adaptações têm uma relação declarada e definitiva com tex-
tos anteriores, geralmente chamados de “fontes”; diferentemente das paródias, toda-
via, elas costumam anunciar abertamente tal relação. A valorização (pós-)romântica
da criação original e do gênio criativo é claramente uma das fontes da depreciação
de adaptadores e adaptações. No entanto, essa visão negativa é, na realidade, um
acréscimo tardio ao velho e jovial hábito da cultura ocidental de emprestar e roubar
– ou, mais precisamente, de partilhar – diversas histórias (HUTCHEON, 2011, p.
24).
5
Das diversas categorias de Premiação do Oscar, existe a de “Melhor roteiro adaptado”, por meio da qual são
premiados os melhores roteiros de adaptações cinematográficas, baseados geralmente em romance, peça de tea-
tro ou conto. A essas reflexões, vale acrescentar a pergunta de Linda Hutcheon, por ela respondida em seguida:
“Por que, de acordo com as estatísticas de 1992, 85% de todos os vencedores da categoria de melhor filme no
Oscar são adaptações? Por que as adaptações totalizam 95% de todas as minisséries de 70% dos filmes feitos
para a TV que ganham Emmy Awards? (2011, p. 24).
6
A respeito da “paródia” vide: HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia. Tradução de Teresa Louro Pérez.
Lisboa: Ed. 70, 1989.
7
A esse respeito, Linda Hutcheon faz uma ressalva interessante: “parece que adaptar Romeu e Julieta para uma
forma de arte elevada, como a ópera ou o balé, é algo mais ou menos aceitável, ao passo que adaptar a peça para
5
3 DEPOIS
Tendo por base reflexões de Linda Hutcheon a respeito da adaptação, apresento uma
análise da animação cinematográfica Dante’s Inferno (Visceral Games e Electronic Arts,
2010),9 baseada em jogo homônimo para videogame, inspirado na primeira parte do poema, o
Inferno.
Segundo Linda Hutcheon, o fenômeno da adaptação poderia ser norteado por três as-
pectos: a formal entity or product (uma entidade formal ou produto, transposição anunciada e
extensiva de uma ou mais obras em particular; transcodificação), a process of creation (um
processo de criação, que envolve tanto uma (re)interpretação quanto uma (re-)criação, e pode
ser chamado de apropriação ou recuperação) e a process of reception (um processo de recep-
ção, forma de intertextualidade). Ao considerar o fenômeno da adaptação [também] como um
processo de criação, Hutcheon atribui-lhe autonomia própria; não possui débito para com o
original, supera-o no sentido de ser uma “obra nova” que repete, porém, com variação. E se,
segundo Hutcheon, “proximidade” e “fidelidade” não precisam ser, necessariamente, o foco
de análise, meu foco de análise, é justamente perceber como o Inferno da Divina Commedia é
reapresentado pela perspectiva da criação, o qual envolve um processo de reinterpretação,
recriação, recuperação, tendo em vista que adaptadores são, primeiramente, leitores, depois
intérpretes e, por último, criadores, inclusive por usarem material diverso ao de Dante.
O Dante deste século, o desta adaptação, é um cavaleiro templário das Cruzadas que
pratica inúmeras atrocidades em sua vida, dentre elas a de trair Beatriz, cometendo o pecado
um filme – especialmente no caso de uma versão modernizada como Romeu + Julieta (1996), de Baz Luhrmann
–, não o é” (2011, p. 23).
8
Certa fidelidade é aceitável para que haja o reconhecimento da história e, consequentemente, o reconhecimento
do texto em questão como adaptação.
9
Sob a direção de Victor Cook, Mike Disa, Sang-Jin Kim, Shuko Murase, Jong-Sik Nam, Lee Seung-Gyu.
6
da tentação, acreditando que suas falhas seriam absolvidas por terem sido empreendidas em
nome da Igreja. Além disso, é um Dante que fala inglês, transculturado, vem de um contexto
biográfico diferente do poeta florentino.
Aqueles que esperam encontrar a imagem conhecida de Dante, homem franzino, de
estatura mediana, de rosto fino e alongado, com nariz aquilino, túnica longa, ramos de louro
na cabeça – imagens que encontramos nas ilustrações de Sandro Botticelli, datadas do século
XV, e posteriormente, nas de Gustave Doré, no século XIX, ilustrações que se responsabiliza-
ram por instaurar no imaginário coletivo a figura do poeta italiano –, vão ser surpreendidos
com a de um guerreiro medieval, montado em um cavalo, corpulento, de armadura no peito.
Virgílio, aquele que guia Dante na peregrinação infernal, é seu companheiro, mas muda de
figura, assim como Dante, à medida que avançam nos círculos.10
Na animação, quando Dante foi para as Cruzadas, prometeu amor eterno à amada,
assim, Beatriz fez uma aposta com Lúcifer, acreditando que Dante nunca a trairia. Como ele a
traiu, sua alma [a de Beatriz] foi levada como presa para o Inferno para se tornar a mais nova
noiva de Lúcifer. De iluminada alma dos céus, Beatriz poderia vir a se tornar a companheira
maléfica e diabólica de Lúcifer, a rainha do Inferno, aquela que seria a responsável pela proli-
feração demoníaca a toda eternidade, procedendo a Helena de Tróia, Salomé e Cleópatra, que
também foram noivas do comandante infernal. A diferença de Beatriz para com aquelas que a
precederam está na pureza do seu espírito.
Neste sentido, podemos perceber que, de um modo ou de outro, esta adaptação está
“envolvida” pela “aura” benjaminiana. Embora sua sobrevivência ocorra por meio de uma
nova proposta, uma nova situação, que envolva fala, som e imagem, não ambiciona apenas
retratar, mas criar novos “mundos”, por meio de uma transposição de recursos, meios e espa-
ços, apresenta novos/outros modos de ver, de reler. O retorno a Dante e à Divina Commedia,
na maioria das vezes, é imediato.
Ainda, é importante ressaltar um aspecto interessante: esta animação é baseada no
jogo homônimo para videogame, criado pelas mesmas produtoras; ou seja, sua fonte primeira
não são os versos de Dante, mas o jogo Dante’s Inferno, que é inspirado nos versos do poeta
italiano. Para aqueles que tão-somente conhecem o jogo, e desconhecem a existência do poeta
e de sua obra, a animação será sempre retomada apenas como um encadeamento, uma articu-
10
Na animação cinematográfica, segundo meu levantamento, Dante possui cinco “avatares” cada qual de acordo
com o percurso referido a seguir: (1) Anteinferno e Limbo, (2) Do Segundo ao Quinto Círculos, (3) Sexto e
Sétimo Círculos, (4) Oitavo Círculo e (5) Nono Círculo, e Virgílio, quatro, cuja sequência é a mesma, excetuan-
do-se o do Nono Círculo, no qual Dante encontra-se sozinho para enfrentar Lúcifer.
7
lação narrativa do jogo, uma continuidade. Neste caso, a animação é uma adaptação do jogo, e
não diretamente uma adaptação da Divina Commedia.
Segundo Hutcheon, “no fim, o público é quem deve experienciar a adaptação como
uma adaptação” (2011, p. 229) e isso significa reconhecê-la como tal e conhecer o texto
adaptado para que a experiência de uma faça movimentar a experiência do outro; para expe-
rimentar um texto como adaptação é preciso vivenciar o palimpsesto. Mas pode acontecer de
o leitor conhecer a adaptação como um original.
Durante uma aula no curso de Pedagogia, inquirida a respeito de meu objeto de pes-
quisa, respondi às alunas do que se tratava e, vendo um natural espanto no semblante de cada
uma, adicionei à resposta algumas perguntas: vocês já ouviram falar da Divina Commedia?
Sabem do que se trata? Conhecem o autor que a escreveu? Para minha surpresa, apenas uma
das alunas tinha ouvido falar do texto, mas não sabia do que se tratava, muito menos quem o
havia escrito. Para elas, então, a animação O Inferno de Dante poderia ser um original visto
como um original, ou apenas uma adaptação do jogo e, possivelmente, o nome de Dante ser
tão-somente remetido e associado ao personagem de Reynaldo Gianecchini, na oportunidade
em que interpretou Dante Florentino na novela Sete Pecados, de Walcyr Carrasco, exibida
pela rede Globo no período de 18 de junho de 2007 a 15 de fevereiro de 2008. Com isso, pre-
tendo dizer que, muitas vezes, o reconhecimento de uma adaptação como uma adaptação está
naturalmente condicionado à bagagem, experiência, vivência de leitura do leitor.
O Dante-personagem da animação tem, ainda, o poder de libertar algumas almas do
Inferno para o céu por meio de preces e orações, o que constantemente irrita Lúcifer. Não
existe preocupação, por parte dos produtores, de apresentar dados sólidos, de procedências
históricas, de questões acerca da biografia de Dante, e isso, na minha opinião, não é, de forma
alguma, pré-requisito para encarar a animação. No Limbo, ou Primeiro Círculo do Inferno,
onde estão as almas que não puderam escolher Cristo porque nasceram antes de seu advento,
ou porque morreram antes do batismo, Dante descobre que teve um filho com Beatriz. É nesse
episódio que se percebe a liberdade dos criadores de conceberem Beatriz como figura huma-
na, esposa de Dante, e não mais como figura salvífica.
No Quarto Círculo, dos avarentos e pródigos, vêm à sua mente recordações de seu
pai, Alighiero di Bellincione, que é apresentado no longa como um homem mesquinho, egoís-
ta, glutão, violento, que batia na mãe de Dante.
Um aspecto interessante é a ironia presente na frase proferida por Dante a Virgílio,
após ser acometido pelas lembranças de seu pai: “Acredita que na minha juventude queria ser
um poeta? Mas tudo o que sabia era violência” (Dante’s Inferno, 2010). Esta afirmação pode,
8
4 REFERÊNCIAS
_____. La Divina Commedia. A cura di Emilio Pasquini e Antonio Quaglio. Garzanti: Tori-
no, 2005.
BLOOM, Harold. O cânone ocidental: os livros e a escola do tempo. Rio de Janeiro: Objeti-
va, 2001.
CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2001.
DANTE‟S INFERNO. Victor Cook / Mike Disa / Sang-Jin Kim / Shuko Murase / Jong-Sik
Nam / Lee Seung-Gyu (dir.). EUA / Japão / Singapura / Coréa do Sul, DVD, 90 min., 2010.
DVD (90 min). Título original: Dante‟s Inferno: An Animated Epic.
LEWIS, R. W. B. Dante. Tradução de José Roberto O‟Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo
RESUMO
Palavras chave:
Edgardo Cozarinsky. Exílio. Ruína.
RESUMEN
Palabras clave:
Edgardo Cozarinsky. Exilio. Ruina.
1 A IMAGEM EXILADA
Quiero agregar que si en esa tierra que llaman la patria está el padre, y en la lengua
es la madre quien opera, en estos gestos de la escritura, de la lectura, de
traducciones enfrentadas en los espejos deformantes de varios idiomas, el exilio del
que se hablar y que habla es del hijo (COZARINSKY, 2007, p. 163, 164)
1
Doutorando em Teoria Literária (PGL/UFSC); e-mail: valdir.olivo@gmail.com.
2
englobaria e encerraria outra, mas de um ―brincar com reflexos‖ que se abrem e não se
fecham; por mais que as imagens ou reflexos se relacionem entre si, existe uma abertura que
sempre apela para um ―fora‖, um extracampo, que se lança ao limiar, que é o limiar do texto,
mas também o limiar da linguagem e do sujeito.
Instância similar a da sequência do palácio dos espelhos em A dama de Xangai
(1948), na qual há uma proliferação de centros e vetores, de forma que cada plano é um golpe
recebido e um golpe deferido. Se no filme de Orson Welles os personagens devem quebrar os
espelhos para recuperarem sua atualidade roubada, em Cozarinsky os espelhos não se
rompem, mas se revelam enquanto espelhos, ou melhor, se o espelho se rompe é para
aumentar sua potencialidade reflexiva, expandindo as dimensões e interrogações do cristal.
O espelho é o lugar do significante sem significado fixo, da ausência de sentido, da
palavra/imagem que não significa, mas reflete significados, girando no vazio. Se, como diria
Giorgio Agamben, ―uma definição de homem de nosso ponto de vista específico poderia ser
que o homem é o animal que vai ao cinema. Ele se interessa por imagens mesmo tendo
reconhecido que não são seres verdadeiros.‖ (AGAMBEN, 2004, p. 02), a imagem é lugar do
vazio, do referente2 ausente.
Para Agamben existem duas condições transcendentais da montagem, são elas a
repetição e o corte. Repetir é um retorno como possibilidade daquilo que foi, de maneira
análoga à memória que restitui ao passado sua possibilidade podendo transformar o real em
possível e o possível em real, fazendo com que o não-consumado torne-se consumado. Ao
refletir sobre o corte Agamben compara o cinema à poesia, como hesitação entre a imagem e
sentido, entre o som e sentido; o corte suspende a palavra ou a imagem de seu sentido para
exibi-la como pura imagem, a ―potência de corte que trabalha a imagem ela mesma, que a
subtrai ao poder narrativo para expô-la enquanto tal‖ (AGAMBEN, 2004, p. 02). De forma
que o corte exila a imagem, e dessa forma filmar é exilar, é transforma o referente em
fantasma3.
2
Apóio-me em Barthes e defino referente como sendo ―não a coisa facultativamente real a que remete uma
imagem ou um signo, mas a coisa necessariamente real que foi colocada diante da objetiva, sem a qual não
haveria fotografia [ou cinema neste caso]‖ (BARTHES, 1984, p. 1144-115)
3
Isto fica evidente com o ―embalsamento‖ de Santiago feito por João Moreira Salles. No caso de Santiago
(2006) o exílio do personagem não se explica pelo fato de ele ser um imigrante argentino que trabalhou por
década como mordomo na casa da família Moreira Salles, mas pela sua condição anacrônica, Santiago é um
colecionador de fantasmas, possuía mais de trinta mil páginas de histórias de dinastias todas datilografadas,
separadas, amarradas e catalogadas. Ao final do documentário Moreira Salles revela certo vazio ao tentar filma a
história de Santiago, explica essa distância afirmando que durante toda a filmagem ele não era apenas um diretor
e Santiago um personagem, mas que durante toda a filmagem ele nunca deixou de ser o filho do dono da casa e
Santiago o mordomo. No entanto, essa distância está também em uma sacralização de Santiago e do passado;
para aproximar-se mais de Santiago e perder-se em seu exílio talvez fosse necessária uma profanação do
3
Uma das formas do vazio (da ferida) é a do exílio, não no sentido de um exílio que
―ocupe o vazio‖ e tape o buraco, classificando assim o vazio como exílio. Mas sim de um
exílio entendido como processo a partir do qual podemos ―ler o vazio‖ e reabrir discussões
sobre categorias vigentes rompendo a relação entre bem comum e política, existe uma
multiplicidade de ―bens‖ de forma que a política não pode assumi-los, talvez sua única
possibilidade seja assegurar a abertura para diversas modalidades de ―bens‖.
A fragmentação de Cozarinsky não se dá num sentido dialético que busque se inserir
em um sistema mais vasto, mas sim no sentido de ―fora do todo‖, exige do pensamento uma
descontinuidade. O fragmentário em Cozarinsky é a procura de uma forma, procura de uma
procura.
personagem e de seus arquivos, o que não ocorre no documentário. Ao filmar Santiago Moreira Salles filma
também toda a fantasmagoria que compõe a vida do mordomo e faz dele também parte dessa fantasmagoria.
4
Transcrição parcial da narração presente no capítulo intitulado ―Último viaje‖ do filme Apuntes para una
biografía imaginaria (2010).
4
Alguien que no es nazi, pero que por un sentimiento de lealtad a un ejército donde
veinticinco años antes vivió sus primeras y embriagadoras aventuras se deja enviar
como parte de las fuerzas de ocupación a un país cuya cultura comparte.
(COZARINSKY, 2000, p. 91)
Cozarinsky constrói uma nova história, não canônica, que busca o diferente, o
singular, história que ressalte a característica paradoxal de um escritor dividido entre a
lealdade ao exército e o amor à cultura. Há pelos menos duas referências a Jünger em textos
de Cozarinsky. A primeira delas é o filme La guerre d’ um seul homme (1981), um dos
primeiros filmes do diretor, baseado nos Diários parisienses de Jünger. Neste filme, narra o
fato de Jünger ter recebido uma casa da família do general Stauffenberg, responsável por
planejar a ―operação Valquíria‖. E a segunda referência a Jünger surgirá em um texto de 1998
5
Para Deleuze o centro de indeterminação é o lugar da afecção. É uma coincidência do sujeito com o objeto, ou
a maneira pela qual o sujeito se percebe a si próprio, ou melhor, se experimenta e se sente ―de dentro‖ (terceiro
aspecto material da subjetividade). Ela reporta o movimento a uma ―qualidade‖ como estado vivido (adjetivo).
(DELEUZE, 1985, p. 87)
5
com motivo de sua morte6, semanas antes de completar 103 anos de idade. Interessante
apontar que o mote do soldado nazista que recebe uma recompensa por se opor ao regime será
retomado também em seu filme intitulado Crepúsculo rojo (2003), na figura do fantasma do
pai que narra ao filho como teria recebido a pintura das mãos de uma família de judeus que
teria supostamente salvado do holocausto.
Jünger é um exilado, não se sente um membro do exército e tampouco pode adequar-
se totalmente a Paris, pois não deixa de amar seu país natal. Cozarinsky enxerga o escritor em
sua complexidade e indiscernibilidade, não o vê como ―povo‖ como no caso do cinema
político ou como membro do disciplinado e uniformizado corpo do exército nazista. Dessa
forma, propõe a pergunta: ―la mentira íntima del hombre de cultura, que cree rescatar una
parcela de independencia personal, ¿es acaso menos mezquina que la mentira grosera,
colectiva, de la propaganda?‖ (COZARINSKY, 2000, 91). A valorização de Jünger ocorre
justamente pelo que ele representa como complexidade histórica e ética e dessa forma ele
contrapõe a ―mentira íntima‖, a independência pessoal de Jünger, à massificação da
propaganda ou, talvez pudéssemos dizer, de um cinema de propaganda.
Em Cozarinsky, Jünger é aquele que nos olha diretamente nos olhos e nos indaga
como espelho, até onde não estamos absorvido em nossa sobrevivência pessoal, alheios à
catástrofe que não cessa?
6
Texto intitulado ―Ernst Jünger‖ publicado em COZARINSKY, Edgardo. El pase del testigo. Buenos Aires:
Sudamericana, 2000.
6
7
O experimento de Kuleshov consistia em filmar uma mulher penteando o cabelo em um toilette, as partes
filmadas: rosto, braços, pernas, mãos eram de mulheres diferentes que foram unidas através da montagem.
8
8
Para Gilles Deleuze a imagem-lembrança é diferente do passado como virtualidade pura, no passado se
encontra a ―lembrança pura‖ que será atualizada como imagem-lembrança, por tanto está é o encontro entre o
atual e o virtual. (DELEUZE, 2007, p. 121-122)
9
'¿Quién puede pensar que sería más interesante con los brazos?'; y dice que las
ruinas hacen trabajar la imaginación, que nos dan la intuición de un mundo
desaparecido, y al mismo tiempo, la falta de algo o el estado de ruina es un
memento mori. Estos textos me hicieron pensar mucho en esa experiencia del cine
relacionada con la infancia, el cine que te hace funcionar como de a pedacitos,
frente a la televisión que es un continuum ininterrumpido donde no hay mucho
llamado a la imaginación. En una película hay una cuestión de sintaxis que está
organizada de otra manera: aunque vieras diez minutos, cuarenta minutos de La
pasión de Juana de Arco o de Vampyr, esos fragmentos te hacían funcionar, te
daban una intuición de las capacidades del cine.9
9
Trecho extraído de http://www.tijeretazos.net/Acrobat/Abecedario%20Cozarinsky.pdf
Está reportagem realizada em Paris, no dia 7 de dezembro de 2001, por Teresa Orecchia, foi publicada
integralmente no número 621, correspondente a março de 2002, da revista espanhola ―Cuadernos
hispanoamericanos‖
10
Eisenstein talvez seja o primeiro em conceituar um ―princípio da montagem em geral‖, assumindo-a não como
uma especificidade unicamente cinematográfica, mas também inerente à própria literatura, como sugere ao
analisar e comparar a montagem em pinturas, poemas e no conceito de ―palavra portmanteau‖ desenvolvido por
Lewis Carrol. No entanto, ele vê a montagem fílmica como passível de um todo fechado, através daquilo que
denomina ―imagem generalizada‖: ―O que a compreensão da montagem implica essencialmente? Neste caso,
cada fragmento de montagem já não existe mais como algo não-relacionado, mas com uma dada representação
particular do tema geral, que penetra igualmente todos os fotogramas. A justaposição destes detalhes parciais em
uma dada estrutura de montagem cria e faz surgir aquela qualidade geral em que cada detalhe teve participação e
que reúne todo os detalhes num todo, isto é, naquela imagem generalizada, mediante a qual o autor, seguido pelo
espectador, apreende o tema.‖ (EISENSTEIN, 2002, p. 18)
10
3 REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. O cinema de Guy Debord. Tradução de Antônio Carlos Santos, texto
fotocopiado (a partir de Image et memoire: écrits sur l’image, la danse et le cinéma.
Paris: Desclée de Brouwer, 2004).
BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. Tradução ao
português: Júlio Castañon Guimarães.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. Tomo I. Tradução:
Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2008.
_____. Obras escolhidas. Charles Baudelaire. Um lírico no auge do capitalismo. Tomo II.
Tradução ao português: Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2008.
_____. Walter. Passagens. Trad. do alemão: Irene Aron. Tradução do francês ao português:
Cleonice Paes. UFMG: Belo Horizonte, 2006.
11
_____. Gilles. Imagem-tempo. Tradução ao português: Eloisa de Araujo Ribeiro. São Paulo:
Brasiliense, 2007.
EISENTEIN, Sergei. O sentido do filme. Trad. Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.
_____. Sergei. A forma do filme. Trad. Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.
_____. Jean-Luc. El ser singular plural. Tradução ao espanhol: Antônio Tudela Sancho.
Madrid: Arena, 2006.
_____. Jean-Luc. La existencia exiliada. Archipiélago. Madrid: Arco, n. 26-7, inv. 1996.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo
RESUMO
Elegias Urbanas, do poeta catarinense Marco Vasques, é um livro breve 25 elegias que
trazem reflexos de um homem perdido dentro da urbanidade, recheado de um desespero
contumaz diante da percepção de que não há um lugar individual, idealizado, mas apenas o
lugar dentro da cidade em ruínas, dentro de uma humanidade aparentemente morta. Este
artigo aborda diálogo entre a escrita deste poeta e as idéias propostas por Walter Benjamin no
livro Passagens, sobretudo em relação a Charles Baudelaire, tais como o tédio, o eterno
retorno, a flânerie, o fetiche da mercadoria, as relações do poeta com a cidade, a melancolia
produzida por essas relações. O artigo tem como intuito apontar alguns caminhos que possam
permitir a relação dialética entre passado e presente e assim entender como os poemas de
Vasques travam uma luta ferrenha com a contemporaneidade e quais são as diferenças e
semelhanças com a luta de Baudelaire no século XIX.
Palavras-chave:
Walter Benjamim. Passagens. Poesia Contemporânea.
ABSTRACT
Elegias Urbanas, written by Marco Vasques, is a book with 25 elegies bringing reflections
about a lost man inside urbanity and full of despair standing before a perception that there is
not an individually or designed place, only a place inside of town and a seemingly dead
humanity. In this article there is a discussion about the dialogue between the poet writing and
the ideas proposed by Walter Benjamin in the book Passagens, especially in relation to
Charles Baudelaire, such as boredom, eternal return, flânerie, the commodity fetishism,
poet's relations to the city, melancholy produced by these relationships. The intention in this
article is to point out some ways that would enable a dialectical relationship between past and
present and so understanding how Vasques poems waging a relentless struggle at the
contemporary world and their differences and similarities with the Baudelaire struggle in the
nineteenth century.
Keywords:
Walter Benjamin. Passages. Contemporaneous Poetry.
(2002, p. 75) defende a ideia de que ao estarmos diante das Passagens “confrontamo-nos com
um vazio”. Trata-se de um trabalho constituído de fragmentos e que, no entanto, demonstram
muito da produção intelectual de Benjamin.
Willi Bolle (2007, p. 1146) levanta duas possibilidades para a função dessa coletânea
de fragmentos: a primeira seria olhar Passagens como uma coletânea provisória de textos,
algo que seria dispensado caso o projeto original de Benjamim tivesse sido concluído; a
segunda seria pensar Passagens como um grande banco de dados que tem valor permanente,
que oferece formas inovadoras de se escrever a história.
Assumindo a segunda possibilidade como algo mais efetivo e mais criativo, pois o
que era, a principio, um livro inconcluso, tornou-se um grande banco de dados, que é “um
dispositivo essencialmente móvel e dinâmico, voltado para um trabalho produtivo de
construção, desconstrução e nova construção, envolvendo a participação ativa dos leitores”
(BOLLE, 2007, p. 1152). Bolle (2007, p. 1151) chama a atenção ainda para um trecho de
Benjamin comparando o homem “a um painel de comando no qual há milhares de lâmpadas;
ora apagam-se umas, ora outras, e acendem-se novamente”. Ao se fazer a substituição da
palavra homem por passagem encontra-se a mais exata concepção do que seja o projeto das
Passagens.
Partindo desse conceito, esse trabalho pretende acender algumas lâmpadas das
Passagens e seguindo um dos princípios capitais de Benjamin (2007, p. 505 - Teoria do
Conhecimento, Teoria do Progresso [N 1, 1] [N 1, 6]) “a imagem no agora da
cognoscibilidade” que “lampeja” e ao lampejar capta o ocorrido, adapta os fragmentos do
passado para a atualidade. Compreendendo que a
a atualidade não é, para Benjamim, a categoria mundana que se refere àquilo que
brilha à superfície, ao aggiornamento efêmero, ao up to date borbulhante, calculado
e imposto. O conceito tem nele contornos mais fundos, místicos, e implica uma
iluminação súbita do passado pelo presente, motivada por uma afinidade eletiva e
despoletada por uma explosão de sentidos que põe a nu secretas e imprevisíveis
coincidências entre presente e passado. (BARRRENTO, 2006, p. 19)
Além disso, Benjamin queria apresentar a história do século XIX como se fosse
“mundo de coisas sonhadas” (TIEDEMANN, R. in: Benjamin, W. 2007, p. 17). Susan Buck-
Morss no ensaio “La ciudad como mundo de ensueños y castástrofe”, ao analisar o final da
guerra fria, afirma que a ruína era algo sem fronteiras, presentificava-se tanto no mundo
capitalista quanto no mundo socialista, assim, parafraseando Benjamin, Buck-morss( 1999, p.
3
276) diz que as ruínas antiquadas de um passado recente aparecem como resíduos de um
mundo de sonho, de fantasia, portanto, não deveria ser surpresa se essa caracterização do
século XIX, feita por Benjamin, servisse para o nosso próprio tempo. Para Buck-Morss
Passagens tinha uma função política, cujo objetivo não era o de representar, mas de dissipar o
sonho. “Benjamim queria apresentar a história passada do coletivo do mesmo modo que
Proust apresentou a sua história pessoal: não há vida como ela era, nem a vida recordada, mas
a vida como foi esquecida” (1999, p. 277)
Assim, a partir do livro Elegias Urbanas de Marco Vasques será analisado como este
poeta contemporâneo estabelece as suas relações com a urbanidade e como alguns temas
abordados por Benjamim nas Passagens se presentificam neste livro.
Quando se fala sobre essa apresentação da história do século XIX não se trata do
século todo, mas sim de um período que vai entre 1830 e 1870, especificamente na cidade de
Paris, uma das cidades mais importantes do mundo na época, a ponto de Benjamim chamá-la
de a “capital do século XIX”. Os acontecimentos nesses quarenta anos são determinantes para
estabelecer “o perfil essencial da história da Modernidade” e esse perfil é estabelecido por
Benjamin captando elementos que o mundo concreto fornecia. O “comentário de uma
4
realidade” transborda dos arquivos temáticos que abordam entre outros assuntos a moda, a
construção em ferro, as exposições universais, as ruas de Paris, a fotografia, as passagens, os
panoramas, os espelhos, o interieur, a prostituição, o jogo, além de alguns tipos sociais tais
como a prostituta, o jogador, o colecionador, o flâneur. Pode-se observar também um olhar
sobre o espírito que permeava a época com konvolute cujos temas são o tédio, o ócio e a
ociosidade, bem como um olhar apurado sobre os personagens mais importantes do período:
Marx, Fourier, Grandville, Blanqui, Haussmann, e principalmente aquele que Benjamim
considerava o representante do papel de herói moderno: Charles Baudelaire2. De acordo com
Susan Buck-Mors (2002, p. 26): “o objetivo de Benjamin era levar tão a sério o materialismo
que os próprios fenômenos históricos chegariam a falar. O projeto era testar „o quão concreto
se pode estar em conexão com a história da filosofia‟”
Definir o tema das Passagens não é simples. Para Willi Bolle, (2007, p. 1141) “a
tarefa de esclarecer inicialmente qual é o tema está imbricada com as questões do título da
obra, as diversas fases de sua elaboração e o gênero ou estatuto do texto.” Em relação às fases
pode-se detectar, de acordo com Bolle, quatro fases, já Susan Buck-Morss estabelece apenas
três fases. A fase inicial, ou o “primeiro esboço”, acontece entre 1927 e 1929 e a pretensão de
Benjamim era fazer um ensaio de revista intitulado “Passagens Parisienses: uma Feeria
Dialética”. O ensaio não foi escrito. A segunda fase ocorre entre 1934 e 1937 Benjamin
organiza um grande arquivo com anotações suas e alheias, planejando a publicação de um
livro. Buck-Morss (2002, p. 78) relata esse processo:
Em 1935, Benjamim fez uma exposição de suas intenções no texto intitulado “Paris,
a Capital do Século XIX” apresentado ao Instituto de Pesquisa Social em Nova York e
reescrito no ano de 1939, em francês, na tentativa de conseguir um mecenas americano. As
duas solicitações não conseguem êxito. Essas exposições continham seis capítulos: I) Fourier
2 BENJAMIN, W. Charles Baudeleire - Um lírico no auge do capitalismo. “Pois o herói moderno não é herói –
apenas representa o papel de herói. A modernidade heroica se revela como uma tragédia onde o papel do herói
está disponível.” p. 94.
5
3 No site do Núcleo Brasileiro de Estudos Walter Benjamin há o seguinte relato sobre os dias finais de Walter
Benjamin. “Em 23 de maio de 1940 é proclamada uma segunda ordem do governo francês, ordenando aos
“alemães, aos habitantes do Saarland e de Dantzig” e aos outros “estrangeiros de nacionalidade indeterminada
mas de origem alemã” que se reúnam num outro estádio perto de Paris. [...] Benjamim consegue ainda fugir de
Paris de trem para Lourdes, nos Pirineus, [...] consegue, de fato, um visto de trânsito através da Espanha e de
Portugal para embarcar para os Estados Unidos. Não consegue, porém, um documento essencial: um visto
francês de saída da França. Não sendo mais alemão aos olhos dos alemães – já que foi destituído da cidadania
alemã em 1939 -, não sendo francês – já que não conseguiu a naturalização -, só lhe restava este estatuto de
“estrangeiro de nacionalidade indeterminada mas de origem alemã. Decide, então, tentar sair do país
ilegalmente”. A travessia é cansativa e dolorosa para Benjamim, já muito doente. “na fronteira com a Espanha,
perto de Port Bou, [...] Benjamin e outros que estavam com ele [...] são avisados que não podem passar e que
devem voltar para a França [...] pois não têm os documentos necessários: falta o visto de saída da França, o visto
de trânsito através da Espanha não é suficiente. Desesperados e exaustos, ainda conseguem permissão para
passar a noite do dia 25 ao dia 26 de setembro num pequeno hotel, que se chama Hostal International. No dia 26,
de manhã cedo, Benjamin chama Hanny Gurland e lhe diz que tomou na noite anterior a dose letal de morfina
que sempre trazia consigo. Agoniza o dia inteiro. [...] Morre pelas dez da noite. O médico diagnostica uma
“hemorragia cerebral” como a causa do óbito. Hanny Gurland cuida ainda de pagar uma vaga no cemitério por
cinco anos, mas não assiste à inumação porque, finalmente, consegue com os seus companheiros uma
autorização do chefe da polícia local para passar a fronteira e seguir rumo a Portugal.” in:
http://www.uesc.br/nucleos/nbewb/biografia.html. Acesso em 22 Jan. 2010.
6
nem o projeto Passagens, nem o livro sobre Baudelaire, mas ainda consegue escrever o artigo
“Sobre alguns temas em Baudelaire” e um de seus principais textos, intitulado “Sobre o
Conceito de História”, nascido em boa parte de um dos arquivos temáticos de Passagens,
nominado “N – Teoria do Conhecimento, Teoria do Progresso.”
Quanto ao gênero em que se insere Passagens, para Bolle (2007, p. 1144):
A primeira fase pode ser caracterizada como Esboço, termo usado por Benjamin no
período, pois se trata de algo provisório, que ainda não está terminado. No início de 1934, o
filósofo denomina seu projeto de “Coletânea”. Tanto o esboço, quanto a coletânea são
constituídos de fragmentos, que parece ser a denominação mais acertada, pois “aplica-se a
cada um dos materiais e notas, excertos, resumos, citações, trechos de outros textos, em suma,
as Passagens” (BOLLE, 2007, p. 1145).
Aquele que olha de fora através de uma janela aberta, não vê nunca tantas coisas
quanto aquele que olha uma janela fechada. Não há objeto mais profundo, mais
misterioso, mais fecundo, mais tenebroso, mais radiante do que uma janela
iluminada por uma candeia. O que se pode ver à luz do sol é sempre menos
7
interessante do que o que se passa por detrás de uma vidraça. Nesse buraco negro ou
luminoso vive a vida, sonha a vida, sofre a vida.
4 A elegia é um gênero de poema que remonta ao século VII a.C., e Clonas é tido como o mais antigo autor de
poesia elegíaca. Originalmente a poesia girava em torno de diversos temas, em que a voz do poeta se coloca mais
frequentemente em cena exortando, lamentado, apontado a condição humana em suas facetas de miséria e
beleza, mas sempre permeando o tema com tons tristes, funéreos. O poeta inglês Coleridge considerava a elegia
uma forma “natural to a reflective mind” (CUDDON, 1982, p. 242) e essa mente reflexiva é uma das vigas
mestras que sustentam as Elegias Urbanas.
5 Marco Vasques, Nasceu em Estância Velha, RS, em 1974. Atualmente reside em Florianópolis, SC e trabalha
na Fundação Catarinense de Cultura. É poeta, contista, cronista, bacharel em Filosofia pela Universidade Federal
de Santa Catarina. Mestrando em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina. Atuou como
colaborador do caderno de cultura Anexo do jornal A Notícia e do jornal Leitura & Prazer da Editora da
Universidade Federal de Santa Catarina. Foi articulista de literatura do jornal Ô Catarina da Fundação
Catarinense de Cultura e do jornal literário Rascunho do Paraná. Atualmente é colaborador do Caderno de
Cultura do jornal Diário Catarinense. Tem publicado também os livros de poemas Cão no Claustro (2002,
Letradágua, Joinville, SC), Elegias Urbanas (2005, Bem-te-vi, Rio de Janeiro, RJ), Flauta sem boca (2010,
Letras contemporâneas, Florianópolis, SC). Em 2005 publicou também o livro de contos Harmonias do Inferno
(edição do autor, 2005, Florianópolis, SC). Entrevistou os principais escritores brasileiros contemporâneos e
puiblicou três volumes com entrevistas: Diálogos com a literatura brasileira – volume I (2004,
EdUFSC/Movimento, SC/RS), Diálogos com a literatura brasileira – volume II (2007, EdUFSC/Movimento,
8
a vida urbana, em sua rotina, padece amputada de experiências e de ritos que deem
sentido, situação que causa anestesiamento e o espanto de se descobrir „ainda a
respirar‟, após apalpar-se a face no espelho e auscultar-se num estetoscópio. Em
lugar do homem o que há é um espantalho oco.
Paris criou o tipo do flâneur. É estranho que não tenha sido Roma. Qual a razão? Na
própria Roma, o sonho não percorreria ruas pré-traçadas? E não está aquela cidade
demasiadamente saturada de templos, praças cercadas e santuários nacionais, para
poder entrar inteira no sonho do transeunte, como cada paralelepípedo, cada tabuleta
de loja, cada degrau e cada portão? É possível explicá-lo em parte também pelo
caráter nacional dos italianos. Pois não foram os forasteiros, mas eles, os próprios
parisienses, que fizeram de Paris a terra prometida do flâneur, a “paisagem
construída de pura vida”, como Hofmannsthal certa vez chamou. Paisagem – é nisso
que a cidade de fato se transforma para o flâneur. Ou mais precisamente: para ele, a
cidade cinde-se em seus pólos dialéticos. Abre-se para ele como paisagem e fecha-se
em torno dele como quarto.
SC/RS). Diálogos com a literatura brasileira – volume III (2010, Movimento, RS). Possui contos e poemas
publicados nas revistas Agulha, Babel, Coyote, Blau, e Cult. Editor da Revista de Literatura e Arte Osiris.
9
O flâneur tinha a cidade como paisagem, como espaço para o “refúgio do proscrito”,
“entorpecente do abandonado” (BENJAMIN, 1994, p. 51), o lugar ideal para se exercer a
solidão, para ser mais que um passeador filosófico, ser um lobisomem, ser caminhante atento,
mas, ao mesmo tempo, suspeito, observado e observador, cujo exemplo inicial se encontra no
conto de Poe, “O Homem na Multidão”, em que o narrador, depois de observar vários tipos
nas ruas, fixa-se em um “um semblante (o de um velho decrépito, de uns sessenta e cinco anos
de idade), um semblante que de imediato se impôs fortemente à minha atenção, dada a
absoluta idiossincrasia de sua expressão.” a ponto de segui-lo por horas, até chegar a
conclusão de que “este velho [...] é o tipo e o gênio do crime profundo. Recusa-se a estar só.
É o homem da multidão.”6 A partir desse conto, Benjamim (2007, p. 465 [O Flâneur] [M 2,
8]) expõe a dialética da Flânerie: “de um lado, o homem que se sente olhado por tudo e por
todos, como um verdadeiro suspeito; de outro, o homem que dificilmente pode ser
encontrado, o escondido”.
Baudelaire (1996, p. 65) em “As massas” diz
“[...] e eu que saí de casa / de olhos vendados / vi homens tristes nas esquinas / e
mulheres baratas à minha espera / seios tatuados com cifras / de todos os dinheiros /
dependurados em fios elétricos / prontos para o choque dos corpos suados / dos
homens que abrem valetas / na rua onde serão enterradas / suas próprias carnes / [...]
Eu que saí de casa / de olhos vendados vi tudo isso e muito mais.”
A crença de Baudelaire de que “gozar a massa é uma arte” e que “o poeta goza deste
incomparável privilégio de poder ser, a bel prazer, ele próprio e outrem, como almas errantes
que buscam um corpo, ele entra, quando quer, na personagem de cada um, somente para ele
tudo está vacante”, (Baudelaire, 1996, p 65), se tornou um passado onírico para o poeta de
agora que está engolido demais pelas ruínas do mundo capitalista, a ponto de sair de casa
“com os olhos vendados” e, mesmo assim, ser obrigado a ver o que não quer ver, ser obrigado
a partilhar as coisas que atravessam as ruas “sem sangue e sem riso” (Vasques, 2005, p. 17).
Coisas e pessoas que se mercantilizam de forma constante na sua frente. O ato de “sair com
olhos vendados” assume as vezes de paliativo, mas é ineficiente, pois a visão da urbanidade já
está impregnada na memória, mais até, está impregnada é na memória da pele 7 como uma
ruína. Nenhuma artimanha impede que o poeta veja “tudo isso e muito mais”.
Em Baudelaire a rejubilação pelos vícios seus e alheios e o esplender pelas virtudes
avistadas nas ruas advinham do spleen. De acordo com Olgária Matos (1997, p. 1135):
7 Expressão tirada da letra “Memória da pele” de Waly Solomão e musicada por João Bosco: “Bate é na
memória da minha pele / Bate é no sangue que bombeia / Na minha veia.”
11
Na atitude de quem sente prazer assim, deixava que o espetáculo da multidão agisse
sobre ele. Contudo o fascínio mais profundo desse espetáculo consistia em não
desviá-lo, apesar da ebriedade em que o colocava, da terrível realidade social. Ele se
mantinha consciente mas de maneira pela qual os inebriados “ainda” permanecem
conscientes das circunstâncias reais. [...] Para o flâneur, um véu cobre essa imagem.
A massa é esse véu; ela ondeia nos “franzidos meandros das velhas capitais”. Faz
com que o pavoroso atue sobre ele como um encantamento. Só quando esse véu se
rasga e mostra o flâneur „uma dessas praças populosas que, durante os combates,
ficam vazias de gente‟ – só então, também ele, vê a cidade sem disfarces.
(BENJAMIN, 1994, p. 55-56)
O poeta de agora não possui mais o véu, ele não consegue mais ver a cidade com o
disfarce da multidão, o prazer se esvaneceu, a mercadoria se impôs feérica, a máxima “tempo
é dinheiro” virou o sustentáculo da ética do nosso tempo, a busca de um sentido para a vida
perde espaço diante das leis do mercado, das imposições da sociedade capitalista e seu ritmo
frenético. Aprofunda-se o tempo da monotonia que é o “tempo estagnado, é a temporalidade
que se exprime na ansiedade de „matar o tempo‟ (MATOS, 1997, p. 1134). Já não há mais
separação entre cidade e multidão, e “nunca fez tanta falta uma mão solta / na tarde de
domingo / para escalar um coração que chora” (VASQUES, 2005, p. 35). Já não há mais
espaço para a flânerie desocupada e poética. O andar pela cidade agora se faz aos tropeços,
lutando contra os buracos, a indiferença, a desconfiança e está cada vez mais condenado à
inexistência diante da supremacia dos automóveis, essa espécie de casa, ou de ruína, sobre
quatro rodas. Interessante notar que Benjamim percebeu, a princípio uma dissonância entre o
“prazer” descrito por Baudelaire e uma passagem de Engels bastante reveladora da condição
urbana das cidades do período, especificamente, as inglesas:
O próprio tumulto das ruas tem algo de repugnante, algo que revolta a natureza
humana. Essas centenas de milhares de pessoas de todas as classes e situações, que
se empurram umas às outras, não são todas seres humanos com as mesmas
qualidades e aptidões e com o mesmo interesse em serem felizes?... E, no entanto,
passam correndo uns pelos outros, como se não tivessem absolutamente nada em
comum, nada a ver uns com os outros; e, no entanto, o único acordo tácito entre eles
é o de que cada um conserve o lado da calçada à sua direita, para que ambas as
correntes de multidão, de sentidos opostos, não se detenham mutuamente; e, no
entanto, não ocorre a ninguém conceder ao outro um olhar sequer. Essa indiferença
brutal, esse isolamento insensível de cada indivíduo em seus interesses privados,
avultam tanto mais repugnantes e ofensivos quanto mais esses indivíduos se
comprimem num espaço exíguo. (In: Benjamin, 1994, p. 54)
12
A descrição de Engels continua sendo um retrato fiel das nossas cidades atuais. Nota-
se, claro, que esse distanciamento, esse isolamento dilatou-se devido a questões como a
insegurança, a concorrência, o individualismo exacerbado que se tornou a tônica dos tempos
atuais. Benjamin justifica a obscuridade causada pelo “prazer” baudelairiano de se achar em
uma multidão com a ideia de que o que realmente fala na voz de Baudelaire é a mercadoria, é
o homem, como força de trabalho, transformado em mercadoria. A geração de Baudelaire
estava iniciando esse processo de transformação, ou conforme Benjamin (1994, p. 55) afirma,
era o “início do declínio”, um dia teriam que se
defrontar com a natureza mercantil de sua força de trabalho. Esse dia, porém ainda
não chegara. Até então, se assim se pode dizer, podiam ir passando o tempo. Como
na melhor das hipóteses, o seu quinhão podia temporariamente ser o prazer, jamais o
poder, o prazo de espera que lhes concedera a História se transformava num objeto
de passatempo. Quem sai em busca de passatempo, procura o prazer.
Assim, parece que agora há uma união entre as duas coisas: a visão de Engels sobre
a indiferença nas cidades permanece vigente e a mercadoria passou a ser a espinha dorsal das
nossas relações, ou seja, nos defrontamos com nossa natureza mercantil, estamos imersos na
produção e no consumo, sustentáculos do sistema capitalista. Estamos sem tempo para o ócio
ou para qualquer pausa que não tenha fundo consumista, ou conforme Olgaria Matos (2007, p.
1135) “a modernização comprime o tempo no desejo de consumo ilimitado [...] embora
aparentemente diversos, abulia e agitação constituem dois aspectos do tempo presente: „as
duas atitudes possuem um traço comum: a reificação de si‟” E mesmo a busca pelo
“passatempo” pela diversão é permeada pela mercadoria e pela indiferença. É como se não
houvesse mais tempo para „humanidades‟ e fosse preciso preencher os espaços vazios com
consumo, e fosse preciso unificar-se com a mercadoria, até mesmo para poder suportar a
ausência do véu da multidão e assim criar uma nova forma de prazer. Essa parece ser a nossa
grande e maior ruína.
Segundo Mario Perniola (2006. p. 58):
cada vez más, de hecho, tenemos la impresión de que entre el hombre y las cosas se
haya producido um proceso de recíproca osmósis, por el cual el primeiro se ha
convertido em algo parecido a las segundas, y viceversa, las segundas han asumido
características cada vez más humanas. Esta doble transferencia no afecta solamente
al ámbito del conocer y del obrar, sino también al del sentir, el la vastedad de sus
acepciones, desde la sensibilidad a la emotividad, desde la escucha a la afectividad.
Por um lado las cosas sienten em nuestro lugar, por outro nosotros estamos dentro de
13
Por me ostentar assim, tão orgulhoso / de ser não eu, mas artigo industrial, / peço
que meu nome retifiquem. / Já não me convém o título de homem. / Meu nome novo
é Coisa. / Eu sou a Coisa, coisamente.
A luta antevista em Elegias Urbanas é uma luta pelo resgate do título de homem, é
uma tentativa de se “descoisificar”, pois o homem passa a ser um espelho na cidade, refletir e
ser refletido nas coisas, nas mercadorias, assemelhar-se ao espaço urbano a ponto de se
mimetizar com ele: “eu sou filho da urbanidade / navego pelas artérias de concreto / com a
mesma empáfia dos automóveis / com a mesma tristeza metálica das placas solitárias / com o
cínico anseio de sucesso” (VASQUES, 2005, p. 25). Ao não se reconhecer mais, ou se
reconhecer apenas como coisa, como cenário, como mercadoria, o homem perde o referencial,
já não se diferencia mais como “humano”. A melancolia proeminente nas páginas de Elegias
Urbanas vem dessa não aceitação da ausência de fronteiras entre humano e coisa: a dupla
transferência, do homem à coisa, da coisa ao homem, para usar uma expressão de Perniola
(2006, p 58), é sentida, no entanto dificilmente aceita: “um homem procura as mãos numa
gaveta / para apalpar a face no espelho / encontra um estetoscópio e ausculta a si mesmo /
espantado por ainda respirar.” (VASQUES, 2005, p 26). É uma luta também contra a
aparência, a superfície, o mundo visual em que
só contam, portanto, as percepções visuais. Textos, luzes, setas, pregos, cartazes, que
surgem como presenças icônicas, autoritárias; fetiches: são nossos índices naturais.
Outra percepção qualquer - auditiva, olfativa, etc – desaparece na cidade de hoje,
cuja única prática é rápida, motorizada. (SARDUY, 1979, p. 134)
É um mundo de olhos. Dos olhos. Tudo se torna objeto para ser visto, consumido,
inclusive as ruínas do passado mítico, os pedaços da cidade que sobreviveram e que agora são
Aquele que vê sem ouvir fica muito mais... inquieto que aquele que ouve sem ver.
[...] As relações entre os homens nas grandes cidades ... caracterizam-se por um
acentuado predomínio da atividade da visão sobre a da audição. E isso ... antes de
tudo, devido aos meios de comunicação públicos. Antes do desenvolvimento que
tiveram, no século XIX, os ônibus, as ferrovias e os bondes, as pessoas não tinham a
ocasião de poder o de dever se olhar mutuamente durante minutos ou horas seguidas
sem se falar.
Se flâneur estava vestido de multidão, usava todos os sentidos nas suas investigações
pelas cidades, pois estava sempre “em plena posse de sua individualidade”(BENJAMIN,
2007, p. 473 [O flâneur] [M 8a, 1]) e tinha como fantasmagoria, “a partir dos rostos, fazer a
leitura da profissão, da origem e do caráter” (BENJAMIN, 2004, p 473 - [O flâneur] [M 6,
6]) dos observados, o esfacelamento progressivo deste comportamento substituiu as múltiplas
sensações dos sentidos físicos pela hegemonia da visão. Essa mudança, ou substituição altera
o posicionamento do indivíduo na cidade. Já não há mais possibilidade de identificá-lo, de
personalizá-lo por suas características, seus traços e marcas. A coletividade engole o
indivíduo, dissolve-o na massa. Sob o impacto da visão, o indivíduo perde-se na distância e se
torna anônimo e sem identidade (FERRARA, 2000, p. 89). Além da reificação de si, o
indivíduo se tornou uma estatística, um número na cédula de identidade e CPF. Vasques
(2005, p. 34) detecta a irreversibilidade dessa nova ordem: “2.715.502 1 ou 808951239-91 /
nenhuma voz carne ou sangue é capaz de alterar / a minha fisionomia numérica no mundo” e,
claro, desespera-se: “nunca uma pele me foi tão áspera / nunca a palavra rangeu como sino
fúnebre / parecendo cicuta na voz noturna.” Esse desespero advém do fato de que o indivíduo
que permeia Elegias Urbanas é alguém numerado, digitalizado pelos sistemas de controle,
mas que ainda tateia em si um rosto, uma possibilidade de identificação menos fria. Simmel
(1976, p. 170), outro pensador visionário percebia que o homem moderno estava se tornando
cada vez mais um “elo em uma enorme organização de coisas e poderes que arrancam de suas
mãos todo o progresso, espiritualidade e valores, para transformá-los de sua forma subjetiva
na forma de uma vida puramente objetiva”. Em Elegias Urbanas, um dos enfrentamentos é
justamente contra essa objetivação contumaz do homem, por isso há também um desejo
15
latente de se recuperar a aura perdida, ou a auréola perdida, numa referência a um dos poemas
em prosa de Baudelaire. Benjamin (1985, p. 170) diz que a aura é
9 CANTINHO, M J. O anjo melancólico – ensaio sobre o conceito de alegoria na obra de Walter Benjamin. p.
88, in: http://br.monografias.com/trabalhos-pdf902/o-anjo-melancolico/o-anjo-melancolico.shtml. Acesso em: 01
Out. 2011.
16
coisas e do próprio homem, pois uma das bases para se captar a aura era olhar e, ao ser visto,
revidar o olhar: “perceber, a aura de uma coisa significa investi-la do poder de revidar o
olhar.” (BENJAMIN, 1994, p. 140). Benjamin (1994, p. 144) também detecta um paradoxo
em Baudelaire, quando este escreveu:
Perdido neste mundo vil, acotovelado pelas multidões, sou como o homem fatigado
cujos olhos não veem o passado, na profundidade dos anos nada além do desengano
e da amargura, e, à sua frente, senão a tempestade, onde não está contido nada de
novo, nem ensinamentos nem dores
Já não é mais o flâneur que fala, já não é mais o homem que via a multidão como um
ser com impulsos próprios, com alma, aquela multidão que o havia fascinado a ponto de
querer se casar com ela. Um sentimento de impotência faz com que Baudelaire se volte contra
a multidão, determinando “o preço que é preciso pagar para adquirir a sensação do moderno”
(apud BENJAMIN, 1994, p. 145).
O homem de Elegias Urbanas deseja resgatar a aura perdida, mesmo que
ilusoriamente, mesmo que a própria aura também já tenha se transformado em mercadoria,
para isso ele grita contra a multidão esmagadora, grita contra a coisificação de si e dos seus
pares a ponto de perder seu próprio corpo, suas próprias sensações, e se tornar um receptáculo
de sonhos alheios: “eu não sou mais minha carne e meu sonho / [...] eu sou filho do sono
insano de cada homem.” (VASQUES, 2005, p 40) A experiência do choque também se dá
diante da consciência de sua despersonalização.
Numa definição do que é o homem Paul Valery (apud BENJAMIN, 2007, p. 448
[Cidade de sonho e morada de sonho, sonhos de futuro, niilismo antropológico, Jung] [K 9,
3]) afirma: “O homem só é o homem na superfície. Levante a pele, disseque: aqui começam
as máquinas. Depois, você se perde numa substância inexplicável, estranha a tudo o que você
conhece e que é, entretanto o essencial.”
Pensando a humanidade atual como um objeto automatizado, mercantilizado, faz
com que o homem em Elegias Urbanas deixe de ser a si próprio para ser filho da insanidade
alheia, mas também faz com que ele parta em busca dessa substância essencial que há
embaixo do homem-máquina-mercadoria. Tal substância pode ser inexplicável, ou até mesmo
inalcançável nesses tempos pós-modernos, mas este homem empenha-se na busca, como se
abaixo da máquina houvesse a humanidade perdida, a humanidade mítica a ser resgatada. É
por essa busca que ele deseja um mundo marcado pelo lúdico, pelo silêncio atemporal:
17
estou farto de represas / e procuro nos classificados uma notícia assim / ontem se viu
na avenida algo inaudito / todas as mulheres carregavam buquês de flores nas
cabeças / todos os homens as esperavam / de ventres abertos / não houve grito berro
nem carros / ontem o mundo silenciou / as televisões foram desligadas e não houve
suicídio / ontem a terra parou sua rotação. (VASQUES, 2005, p. 49)
O desejo de uma desaceleração completa na vida, até o ponto em que tudo pare e
silencie, em que os movimentos automáticos de produção e consumo cessem, em que as
relações, os sentimentos, a vida não seja mais uma mercadoria comum no rol das horas. Há
também um desejo de se lutar contra o eterno retorno, a repetição contínua e contumaz de
situações que jogam o homem sempre num estado de inquietação, e ao se perceber
impossibilitado de uma mudança, surge a desesperança, o desespero, em alguns acontece a
indiferença, o tédio total.
Blanqui, em L’Eternité par les Astres: Hypothese Astronomique. um escrito
visionário, citado por Benjamim (2007, p. 155, [O Tédio, Eterno Retorno] [D 7; D 7a] afirma:
Essa visão aterradora de um mundo que se repete, que gera uma “atualidade
eternizada”, contra a qual a luta é sempre vã, atravessa as páginas de Elegias Urbanas, mas
mesmo assim existe uma luta, afinal é preciso resgatar, manter, frutificar ainda “alguma
delicadeza não mercantil”(VASQUES, 2005, p. 62). Se Baudelaire tinha o spleen “como
dique contra o pessimismo” e se nele a tristeza “permaneceu apenas no tête-a-tête claro e
sombrio do sujeito consigo mesmo” (BENJAMIN, 2005, p. 152-153), a luta de Vasques é
mais ferrenha, porque mais próxima da consciência dos excrementos do mundo como
alimento tanto para si, como para seus iguais10.
Na elegia inicial do livro, Vasques (2005, p. 13) visualiza o mundo prenhe de morte
em que o contato com a multidão é um incômodo gerador de uma bagagem difícil de carregar:
10 “O mundo… vive de si mesmo: seus excrementos são seu alimento.” Nietzsche. In: BENJAMIN, W
Passagens. [O Tédio, Eterno Retorno] [D 8, 4] p. 155.
18
“e a bagagem que nos sobra / são metais agudos asfalto / faixas prédios advertências / placas
ossos vozes e verbos / que ressoam no ouvido / e se transformam em campânula / eclâmpsia /
morredouro do sentido.” Assim, tem que se carregar nas costas não apenas a multidão, mas
toda a cidade, cidade-multidão mercantilizada, alheia e indiferente, presa a seus desejos de
consumo, uma cidade grávida com eclâmpsia, sem noção da gravidade de seu estado. Se a
luta de Baudelaire, como herói, é “justamente contra os sonhos fantasmagóricos da sociedade
imersa num imenso sonho coletivo” e ele encarregou-se
Em Vasques, a luta não é tão delicada quanto a esgrima, nem tão honrada.
Assemelha-se mais à luta corporal, o vale-tudo nos seus inícios quando o único impedimento
era colocar os dedos nos olhos do adversário12, ou seja, não cegá-lo, deixá-lo ver e ver-se
completamente entregue à luta sem chances de vitória, mas com instinto suficiente para
continuar lutando: “no aborto dos órgãos só varia / a estupidez humana em aperfeiçoar / os
acordes da vida / quando se está condenado a / tocar sempre a mesma nota,” (VASQUES
2005, p. 24) quando se está condenado a lutar a mesma luta, a viver tudo de novo, a remexer-
se num passado sempre presente, a saber que Blanqui (Apud BENJAMIN, 2007, p. 154) [O
Tédio, Eterno Retorno] [D 7; D 7a]) estava certo quando disse que “todo ser humano é, pois,
eterno em cada um dos segundos de sua existência”. Conviver com essa verdade e também
com uma cidade em que não há mais o véu da multidão, em que tudo e todos formam uma
única humanamercadoria e tentar separar de novo esses dois elementos, mesmo que
quixotescamente, mesmo sabendo que tudo é uma “antropofagia absurda”(VASQUES, 2005,
p. 43) é o combate no qual o homem de Elegias Urbanas está inserido desde as primeiras
11 CANTINHO, M J. O anjo melancólico – ensaio sobre o conceito de alegoria na obra de Walter Benjamin.. p
95 in: in: http://br.monografias.com/trabalhos-pdf902/o-anjo-melancolico/o-anjo-melancolico.shtml. Acesso 12
Set. 2011.
12 “A proposta inicial do vale-tudo, como o nome sugeria, era fazer uma batalha realmente feroz entre os
combatentes. As lutas não tinham limite de tempo e não era incomum ela acabar quando um participante saía
carregado do ringue. Os lutadores sequer usavam luvas no começo das competições e um dos únicos
impedimentos era colocar o dedo nos olhos dos adversários.” in
http://www.abril.com.br/noticia/diversao/no_192417.shtml. Acesso em 12 Set. 2011.
19
páginas até o verso final quando pronuncia de forma enfática: “eu sou o guardador de
sombras” (VASQUES, 2005, p. 62).
3 REFERÊNCIAS
_____. Passagens. Belo Horizonte, São Paulo: Ed. UFMG. Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2007.
FERRARA, Lucrécia D‟Alessio. Os Significados urbanos. São Paulo: Fapesp, Edusp, 2000
SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otávio Guilherme (org). O
fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976.
RESUMO
No ensaio A morte do autor (1988), Barthes postula que é a linguagem que fala; não o autor.
Em 1969, na conferência O que é um autor?, Michel Foucault discorre, entre outros temas,
sobre a função de autor, gestada no fim do século XVIII, que converte os escritores em
instauradores de discursividades. Na obra Profanações, o filósofo italiano Giorgio Agamben,
considerado um dos grandes interlocutores contemporâneos do pensamento de Foucault,
retoma a discussão associando o conceito de gesto ao de autoria. Este trabalho pretende
discutir as aproximações e tensões entre a postura desses três pensadores sobre a noção de
autoria e, desse modo, contribuir para os debates que propõem um diálogo entre a literatura e
a filosofia.
Palavras-chave:
Autor. Barthes. Foucault. Agamben.
ABSTRACT
In the essay The Death of the Author (1988), Barthes posits that it is language which speaks,
not the author. In 1969, the conference What is an author?, Michel Foucault discusses, among
other things, depending on the author, conceived in the late eighteenth century, which
converts the writers in a foundational discursive. In the book profanity, the Italian philosopher
Giorgio Agamben, one of the major stakeholders of the contemporary thought of Foucault,
the discussion takes the concept of associating the act of authorship. This paper aims to
discuss the approaches and tensions between the attitude of these three thinkers on the notion
of authorship and thus contribute to the discussions which propose a dialogue between
literature and philosophy.
Key-words:
Author. Barthes. Foucault. Agamben.
modo geral, essa aproximação entre filosofia, literatura e história – realizada por esses
pensadores – é indispensável para se compreender os rumos contemporâneos que os estudos
literários tomaram.
Formado em Letras Clássicas, Gramática e Filosofia, Barthes ganhou visibilidade,
inicialmente, enquanto intelectual estruturalista ligado ao pensamento do linguista Saussure.
Porém, é interessante salientar que sua trajetória acadêmica foi marcada por uma reviravolta.
Barthes assumiu uma postura crítica em relação à teoria literária de meados do século XIX,
exaltadora da biografia e historicidade da obra e que no final do século tornou-se intimista;
bem como no que diz respeito à ânsia estruturalista, do começo do século XX, em
homogeneizar todas as coisas em categorias, inclusive os textos.
Ao realizar esse movimento autocrítico em relação a sua atuação no estruturalismo,
Barthes recontextualizou sua obra e foi enquadrado no rol dos críticos pós-estruturalistas. É
dentro desse quadro de renovação que o conjunto de ensaios, reflexões e provocações
reunidos sob o título de O rumor da língua foi publicado em 1988, no Brasil.
Em “A morte do autor”, Barthes inicia seu ensaio citando a novela Serrasine, de
Balzac. Até que ponto os personagens seriam representantes do pensamento do escritor? Para
Barthes, é preciso pensar a escrita como o campo da performance e não da genialidade. O
autor é uma construção moderna e o positivismo foi a corrente intelectual que conferiu maior
importância a autoria, em um momento de supervalorização do prestigio individual. Barthes
critica, portanto, a relação feita entre vida do autor e texto. É a linguagem que fala, não o
autor.
Mallarmé e Proust vão ser os pioneiros, na literatura, em buscar priorizar a
linguagem ao invés da autoria. O surrealismo também contribuiu para a dessacralização da
figura do autor. Para Barthes, o livro não é gestado antes de sua escrita. Todo ato de escritura
é uma prática performática, ou seja: é um ato que reside no espaço do aqui e agora. O autor é
responsável por misturar as escritas, fazendo uma bricolagem de textos diferentes. Deste
modo, um escrito remete a outro, em uma intertextualidade infinita. Thomas de Quincey
usava um complexo dicionário de grego clássico para escrever. Essa constatação, para
Barthes, evidencia a inexistência de nexos entre escrita e vida. O escritor não escreve a partir
de suas impressões e sentimentos, mas de imitação de signos já emitidos.
Por isso, a literatura deveria ser chamada de escritura e o autor encontrará seu
reinado não na obra, mas por meio dos pareceres emitidos pela crítica. É preciso, portanto,
apagar o autor e dar visibilidade ao leitor. Mais ainda: conforme indica o próprio título do
ensaio posterior, “A morte do autor”, é preciso partir “Da obra ao texto”. Essa mudança em
3
2
Na pequena obra O prazer do texto (2008), Barthes detalha melhor o que entende ser essa relação entre fruição,
leitura e escrita. Para esse estudioso da Literatura, os textos mais atrativos são aqueles que apresentam uma aura
de neurose. Ler seria um momento de entrega, de prazer e deleite e não uma prática passiva. Desse modo, para
Barthes, o crítico literário seria um perverso porque induz o leitor a tornar um mero voyeur. Basicamente, o
prazer do texto é semelhante ao provocado pela deriva e até mesmo o enfado diante de uma leitura é uma forma
de fruição marginal.
4
acusado de não explorar devidamente o pensamento de Marx e colocar lado a lado autores de
contextos completamente diferentes.
Foucault se defende dizendo que não buscou reproduzir o pensamento dos autores
que citou e nem enquadrá-los em uma família, em um conceito. A ideia era compreender suas
práticas discursivas. Embora considere válido refletir sobre os processos que instauraram a
crítica que fazia a alusão ao homem e a obra, Foucault quer se ater a relação entre texto e
autor.
Qual a importância do autor? Essa pergunta significa pensar que a escrita basta a si
mesma e se desdobra infinitamente até levar ao desaparecimento do sujeito. Se na Grécia
Clássica, a escrita imortalizava os heróis; nas sociedades modernas, o autor faz o papel de
morto no jogo da escrita. Por exemplo, para o filósofo, autores como Flaubert, Proust e Kafka
são exemplos de como “(...) O sujeito que escreve despista todos os signos de sua
individualidade particular” (FOUCAULT, 2011, p. 269).
A noção de autor está intimamente associada à de obra. Enquanto um autor polêmico
como o Marquês de Sade não fosse considerado enquanto tal, os papeis que ele preencheu e
assinou não tinha valor literário algum. Aqui entra em cena uma questão deixada de lado por
Barthes: a de que o trabalho editorial é repleto de lacunas e dilemas. Por meio de escolhas, é o
editor que impõe o que deve ser considerado como a obra de um autor.
Essa denominação de autor funciona quando ao mencionarmos o nome de
Aristóteles, por exemplo, isso equivale a uma descrição de um conjunto de obras e não de
uma pessoa. Acionar o nome de um autor permite agrupar, reagrupar e relacionar um conjunto
de textos. O nome de autor aciona um tipo de discurso que concebe um certo status a palavra
de quem é instituído como tal. A função de autor é gestada no fim do século XVIII, quando o
benefício da propriedade engloba o campo da literatura. Também, nesse período, o discurso
transgressor era associado diretamente ao indivíduo que o elaborou.
A crítica literária moderna definiu o autor a partir de uma apropriação feita dos
princípios da exegese cristã. São Jerônimo definiu os critérios básicos da autoria: constância;
coerência teórica; unidade estilística e contexto. Dito de modo enfático: buscar compreender o
texto por meio da biografia do autor – de sua evolução, maturação, influências – como foi
feito pela crítica do século XIX é uma prática de exegese cristã. Embora o autor imprima no
texto marcas de sua pessoalidade, nos romances são comuns a invenção de alter egos. A
pluralidade dos egos é acionada para gerar os discursos que instauraram a função de autor.
Ao conceituar a noção de função do autor, Foucault nos convida a enxugar as
lágrimas que poderiam brotar de nossos olhos diante da morte do sujeito. A função de autor
5
está ligada ao universo jurídico e institucional. O autor não é apenas aquele que elabora um
texto. Existem os autores transdiscursivos: aqueles que criam teorias, tradições, disciplinas
acadêmicas. Freud e Marx a partir dos discursos que criaram, estabeleceram possibilidades
infinitas para o surgimento de novos discursos. Como instauradores de discursividade, Marx e
Freud elaboraram conceitos e técnicas de analise que são apropriadas e recepcionadas para
além de seus próprios discursos. As obras de Freud não criaram uma ciência, mas é o discurso
científico que usa essas obras como se usasse um sistema de coordenadas.
O retorno, o reexame dos textos científicos: os textos de Freud e Marx acabam sob, a
ótica de um pesquisador, modificando a própria psicanálise e o marxismo. A relação de um
autor com seu texto não vai ser idêntica a relação que os adeptos de seu conhecimento
fundante irão travar com suas obras. A função “autor” não classifica apenas textos, mas
também obras, disciplinas.
É importante destacar que essas reflexões de Foucault (2011, p. 287) estão
interligadas com a sua proposta mais geral de repensar os privilégios cedidos ao sujeito
moderno. Com essa postura – ao contrário dos desconstrutivistas fanáticos que realizaram
uma leitura enviesada e panfletária do filósofo3 – Foucault não desejou aniquilar o sujeito das
Ciências Humanas, mas retirá-lo do papel central da ordem dos discursos e colocá-lo como
uma construção instituída, ele próprio, por vários discursos.
O autor não seria um gênio, mas um instaurador de discursividades. O autor pode se
fragmentar em vários ao longo de suas guinadas intelectuais. Portanto, diante do público e de
debatedores como Jacques Lacan, assim Foucault finaliza sua conferência: que importa quem
fala?
O filósofo italiano Giorgio Agamben é considerado, pela comunidade acadêmica
contemporânea, como um dos principais atualizadores do pensamento de Michel Foucault e
Walter Benjamin. Porém, é importante salientar que o diálogo entre Agamben e Foucault não
é aquele do tipo subserviente. O próprio pensador italiano fez questão de deixar claro seu
posicionamento quando refletiu sobre um conceito caro a Foucault: o de dispositivo.4
3
Uma crítica mais detalhada e aprofundada sobre essa apropriação radical e equivocada da postura
desconstrutivista, ostentada por intelectuais como Derrida e Foucault, feita no âmbito brasileiro pode ser
encontrada na obra Positivismo e desconstrução nas Américas, de Leyla Perrone-Moisés.
4
Em “O que é um dispositivo?”, Agamben salienta que o termo dispositivo é um conceito-chave para a
compreensão da obra de Foucault. Por mais que o filósofo francês tenha evitado se valer de categorias gerais
como Estado, Soberania, Poder etc. seu pensamento não esteve livre da presença desses conceitos operativos
generalizantes. Se a noção de dispositivo possui dimensões de sentidos jurídicos, militares e tecnológicos,
Agamben amplia o alcance dessa terminologia para conceituar qualquer coisa que “tenha (...) a capacidade de
capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as opiniões e os discursos
dos seres viventes” (AGAMBEN, 2009, p. 40).
6
Acredito que essa seja uma concepção de gesto também partilhada por Agamben,
sobretudo por se tratar de uma reflexão inspirada a partir de posturas que transgrediram as
fronteiras que, arbitrariamente, separam os reinos da escrita e da imagem. A paródia, por
exemplo, seria um modelo estilístico profanador por excelência. Ao discorrer sobre a
literatura italiana, Agamben menciona que esta é constituída por inúmeras obras regidas sob a
tutela deste gênero narrativo. A divina comédia é citada, assim, como um arremedo das
sagradas escrituras. A literatura satírica, portanto, é um bom exemplo de como a postura
burlesca do autor pode ser interpretada como um gesto profanador. Nesses tipos de escrita,
geralmente os papéis são invertidos: não é o autor que deve emitir a palavra final ao leitor,
mas é o próprio leitor que é provocado a orientar ou corrigir o autor.
Em “O autor como gesto”, Agamben inicia suas considerações justamente trazendo
para o debate a conferência de Foucault discutida no meio deste texto. Porém, para além das
funções de organizadores de disciplinas e criadores de discursividades, o autor é aquele que
por meio de um único gesto pode transitar livremente entre a ética e a trapaça.
Em La potencia del pensamiento, Agamben (2007, p. 268) reconhece sua dívida com
a ética que permeia os escritos filosóficos de Walter Benjamin. A ética, baseada na tradição
grega, seria concebida como a doutrina da felicidade. Um autor como Benjamin, arquiteto de
um pensamento labiríntico, não possuía uma visão melancólica da história influenciada pela
sua condição de judeu em uma sociedade eugenista. Para Agamben, a consciência da
catástrofe pode levar a felicidade. Recordar o que nunca foi visto, dever paródico da memória
histórica, em prol de um presente mais pleno é uma forma de redenção do passado.
8
A trapaça estaria no cerne da postura que coloca em jogo, nas tramas narrativas,
vidas que nunca existiram. São vidas jogadas, não realizadas. É em meio aos jogos que as
fraquezas podem se tornar astúcias e virtudes e o poder pode se voltar contra seu agente.
Segundo Agamben (2007, p. 61), agora em Profanações, “o autor nada pode fazer além de
continuar, na obra, não realizado e não dito. Ele é o ilegível que torna possível a leitura, o
vazio lendário de que procedem a escritura e o discurso”. Usar a personalidade do escritor
para mapear suas obras ou para expô-la como a chave da compreensão de seus escritos é algo
pouco profícuo.
A subjetividade do autor não deve ser aprisionada pelo dispositivo que o mesmo
almejou transgredir. Assim, o autor deve ser usado para a compreensão dos gestos pelos quais
os indivíduos se valem da linguagem, enquanto dispositivo, para burlar a própria lógica dessa
linguagem. Ao retirar o autor da condição sacralizada de cânone e convocá-lo para violar a
lógica que destina sua escrita “ao consumo ou à exibição espetacular”, Agamben (2007, p. 71)
concretiza seu valioso elogio da profanação.
Entre a morte, funções e os gestos, o autor continua sendo essa fantasmagoria que
assombra a literatura moderna. Do positivismo que destinou ao lugar de autor uma vaga no
panteão dos raros escolhidos até a constatação de que o leitor exerce um papel fundamental no
universo literário, o debate sobre os vínculos entre o vivido e o narrado continua em aberto. O
romance moderno foi extremamente bem sucedido ao representar pensamentos, sentimentos e
discursos. Tal empreitada foi possível graças aos domínios das técnicas de narração dos
autores. Em nosso tempo, a necessidade mais latente entre esses mestres do enredo seria a de
ampliar tanto a noção de discurso como de mundo vivido, de realidade, colocando, assim,
seus leitores diante de todas as possibilidades que podem ser abertas pela potência do
pensamento.
REFERÊNCIAS
_____. O rumor da língua. Tradução de Mário Laranjeira. São Paulo: Editora Brasiliense,
1988.
FOUCAULT, Michel. O que é um autor?. In: Ditos e escritos III: Estética: literatura e
pintura, música e cinema. Tradução de Inês Barbosa. Rio de Janeiro: Forense, 2011.
_____. O cuidado com a Verdade. In: Ética, sexualidade, política. Tradução de Elisa
Monteiro & Inês Barbosa. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
RESUMO
Neste texto serão abordadas as relações entre literatura e cinema através da transposição às
telas dos poemas simbolistas de Cruz e Sousa no filme Cruz e Sousa – O Poeta do Desterro,
de Sylvio Back. Em uma adaptação, haverá aqueles que cobrem uma “fidelidade” à obra
literária, assim como existem os que esperam justamente o contrário, uma subversão ao
original, uma nova proposta. Portanto, não há uma orientação específica que afiance a “boa”
adaptação. Porém, o debate em torno do assunto é a garantia de que a aproximação entre
literatura e cinema é um campo fértil para várias análises.
Palavras-chave:
Literatura. Cinema. Adaptação.
ABSTRACT
In this paper we will discuss the relationship between literature and cinema through the
transposition to the screen of the symbolist poems from Cruz e Souza in the movie Cruz e
Souza- The Banished Poet, by Sylvio Back. In an adaptation, there will be those that demands
a "loyalty" to the literary work, as there are those who expect just the opposite, a subversion
of the original, a new proposal. Therefore, there is no specific orientation that ensure "good"
adaptation. But the debate over the issue is ensuring that the rapprochement between literature
and cinema is an interesting area for various reviews.
Keywords:
Literature. Cinema. Adaptation.
1 INTRODUÇÃO
A relação entre a literatura e o cinema tem sido calcada em inúmeras dificuldades e
durante este texto as críticas a essa aproximação serão discutidas. No entanto, a partir do
momento em que essa proximidade se efetiva de maneira positiva, o que se vê é o
enriquecimento mútuo das duas linguagens, as quais possuem suas especificidades e ao
mesmo tempo afinidades, como o demonstra o filme em questão Cruz e Sousa – O Poeta do
Desterro (1999), com direção de Sylvio Back. Ao se aproximar as duas manifestações, não há
o intuito de compará-las, ainda menos subordiná-las em uma pretensa hierarquização, mas
analisar os pontos de convergência que as unem, em que aspectos se afastam, o prazer estético
que advém de sua união.
O resultado final da união entre literatura e cinema na maior parte das vezes divide
opiniões, incita reações diversas devido às escolhas feitas pelo idealizador do filme que
2
podem não atender às expectativas do público. Em uma adaptação às telas, haverá aqueles que
cobrem uma “fidelidade” à obra literária, uma transposição fiel da mensagem literária, assim
como existem aqueles que esperam justamente o contrário, uma subversão ao original, uma
nova proposta. A ponderação entre esses dois extremos seria a tentativa de se captar a
essência do texto literário, associada às possibilidades que o cinema oferece, o que também
não é tarefa fácil. Portanto, não há uma orientação específica que afiance a “boa” adaptação.
Porém, o debate em torno do assunto é a garantia de que a aproximação entre literatura e
cinema é um campo fértil para várias análises.
É importante destacar que cinema e literatura utilizam sistemas expressivos diversos,
logo, a comparação entre as duas vertentes não é o melhor caminho. Ao expressar que o filme
distanciou-se da obra literária, seria necessário tentar definir de que maneira esse
distanciamento ocorreu. Para alcançar a proximidade com o espírito da obra, a correlação
visual pressupõe alterações, reinvenções, escolhas entre acrescentar ou suprimir determinados
acontecimentos, enfim, um novo olhar através de uma nova linguagem. O paradoxal é que não
há então motivo para se questionar sobre fidelidade ou traição, uma vez que se tornam modos
diversos de produção artística.
O roteiro seria a primeira forma de aproximação do filme com a literatura,
estabelecendo um nexo entre ambos. No entanto, as relações entre eles enveredam a outros
caminhos, como os que se referem ao desenvolvimento da estética do cinema e à indústria
cinematográfica. Dependendo dos objetivos em relação a uma adaptação será o
encaminhamento dado à mesma.
André Bazin em “Por um cinema impuro. Defesa da adaptação”, 2 refletiu sobre a
questão com um viés favorável ao hibridismo de linguagens. O autor expõe que o cinema de
início foi tentado a utilizar o teatro, o que gerou intensas críticas, devido ao apego excessivo à
arte mais antiga. Nesse sentido, a obra literária recebia uma maior consideração, pois os
filmes não se limitariam ao “teatro filmado”, mas teriam que transitar entre propostas mais
distantes do ponto de vista estético.
A influência entre as linguagens data de longo tempo, mas no caso do cinema, Bazin
ressalta a discrepância entre uma arte jovem e artes consagradas através da História. Assim,
pode-se perceber nessa relação uma certa tutela. Não nos esqueçamos, no entanto, da época
em que essas idéias foram abordadas, elas fazem parte de um contexto distante algumas
décadas das atuais discussões, o que, ressalte-se, não inviabiliza a contemporaneidade de
1
Prof.ª Dr.ª Rosana Kamita; e-mail: rosanack@yahoo.com.br.
2
In: BAZIN, André. O Cinema: Ensaios. Trad. Eloísa De Araújo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 1991.
3
muitos de seus argumentos. Nesse caso específico, o cinema tinha um tempo relativamente
curto de existência. Insere-se também nessa conjuntura, o posicionamento de muitos daqueles
que se dedicavam ao cinema: “Notemos em primeiro lugar que a adaptação, considerada mais
ou menos como quebra-galho mais vergonhoso pela crítica moderna, é uma constante da
história da arte.” (BAZIN, 1991, p. 84). O autor adverte, porém, que a aproximação do
cinema com a literatura não reflete, em si, que o resultado possa ser positivo ou negativo. Há
nuanças que percorrem essa imbricação:
3 O ROTEIRO
Em 2000 foi publicado o livro com o roteiro de Cruz e Sousa – O Poeta do Desterro,
filme lançado no ano anterior. É uma edição em português, inglês, espanhol e francês. 3 No
roteiro, a “montagem” dos poemas vai além da decupagem técnica. Em Cruz e Sousa – O
Poeta do Desterro, os diálogos se constituem quase que exclusivamente em poemas e cartas
do escritor.
A história de Cruz e Sousa é contada através de suas próprias palavras, de seus
versos reveladores da intensa aproximação entre escritor e eu-lírico. O diretor enfrentou o
3
Os responsáveis pelas traduções foram: Steven F. White (inglês), Walter Carlos Costa (espanhol) e Leonor
Scliar-Cabral e Marie-Hélène Catherine Torres (francês).
5
desafio de transpor às telas a figura desse poeta atormentado, declamando seus versos
contundentes, revelando em suas cartas a grandeza literária paradoxalmente à miséria social
em que vivia. O autor de versos como – “Os miseráveis, os rotos / São as flores dos esgotos. /
São espectros implacáveis / Os rotos, os miseráveis. / São prantos negros de furnas / Caladas,
mudas, soturnas. / São os grandes visionários / Dos abismos tumultuários.” – era o mesmo
que relatava ao amigo Nestor Vítor: “Mas o pior, meu amigo, é que estou numa indigência
horrível, sem vintém para remédios, para leite, para nada, para nada! Um horror! Gavita diz
que eu sou um fantasma, que anda pela casa.” (MUZART, 1993, p. 117).
A transposição da poesia ao cinema equivale a superar muitos obstáculos; ao tentar
uma aproximação maior com os espectadores que não conhecem Cruz e Sousa, distancia-se e
frustra as expectativas daqueles que cultivam poesia e esperavam mais do filme. Se, ao
contrário, aproxima-se dos espectadores-leitores, distancia-se do público em geral e arrisca-se
a um cinema elitista. Nesse sentido, nem sempre o filme alcança o objetivo de uma relação
harmoniosa entre cinema e literatura. A dificuldade maior enfrentada foi a de basear a quase
totalidade dos diálogos em versos e cartas de Cruz e Sousa. A escrita do roteiro dessa forma
fez com que o cineasta tivesse por vezes que sacrificar o entendimento dos espectadores que
não conhecem o poeta simbolista. Mas o filme não se dispõe a ser didático, pois a intenção
não é a de uma aula de literatura, e, nesse sentido, a valorização dos versos saiu fortalecida.
Sequência II
CRUZ E SOUSA
BABALORIXÁ
Essa sequência mostra a dificuldade do ator que interpreta Cruz e Sousa de encontrar
o tom de um personagem que, mesmo morto, ainda vive através de seus versos, expondo por
meio da literatura a angústia pela sensação de não-pertencimento a uma sociedade oitocentista
rigidamente hierarquizada. Estado de alma que, contraditoriamente, contribuiu de certa
maneira para a sua arte, talvez o sofrimento o tenha tornado melhor poeta.
A cena em que Cruz e Sousa aparece com a roupa respingada de sangue remete à
idéia do sacrifício, da vítima que será imolada em oferecimento a uma entidade como uma
forma de agradá-la. E através do jogo de búzios, o babalorixá prevê as muitas dificuldades
pelas quais o poeta passará. O espectador pressente que Cruz e Sousa será “sacrificado” para
que a ira de um “deus social” seja aplacada e todos possam retomar a “normalidade” de suas
existências.
Os letreiros que vêm a seguir trazem informações biográficas do escritor. Esse
recurso foi necessário, uma vez que não se pode subentender que todos conheçam Cruz e
Sousa, então seria uma forma de garantir um mínimo de informações para situar o espectador
em relação ao filme. Como a sua vida assume grande relevância para a narrativa fílmica, esses
7
dados essenciais adquirem um papel utilitário. Ainda assim, a opção por mostrar uma
trajetória não-linear dificulta para quem não tenha um prévio conhecimento sobre o poeta.
Nessas informações básicas, pode-se perceber a postura adotada pelo cineasta no
encaminhamento do filme, uma vez que destaca “a segregação racial e social” e a inveja que
despertava em outros o talento e a criatividade artística de um negro em fins do século XIX,
cujo destino deveria estar muito mais próximo de uma humilde existência do que às glórias
literárias. No entanto, havia exceções nessa sociedade retratada. No filme aparecem os amigos
de Cruz e Sousa – Nestor Vítor,4 Araújo Figueiredo,5 Oscar Rosas6 e Virgílio Várzea7 – que
acompanham o poeta e se solidarizam com seu sofrimento. Em suas participações, surgem
declamando excertos dos poemas ou lendo as cartas enviadas pelo poeta, nas quais ele
expunha a vida de misérias que levava juntamente com a família; as doenças, tanto a
alienação de sua esposa Gavita quanto a tuberculose que o mataria, e também pedidos de
auxílio financeiro.
No entanto, quando o poeta aparece no terreiro de candomblé, ele se distancia desse
mundo dos descendentes europeus e da literatura de Rimbaud e Mallarmé e se aproxima de
sua herança africana, em um sincretismo demonstrado no filme.
A próxima sequência trata do inconformismo do poeta pela indiferença com que é
tratado pela sociedade tradicionalista da época, que se recusava a reconhecê-lo enquanto
escritor.
Sequência XXXII
Cruz e Sousa encontra-se afundado num poço, age como se estivesse preso,
debatendo-se para sair. Olhando para a câmara, faz candente balanço existencial.
São trechos da prosa poética “O Emparedado”.
CRUZ E SOUSA
4
O paranaense Nestor Vítor dos Santos (1868-1932) dedicou-se ao magistério, à política e à literatura.
5
Juvêncio de Araújo Figueiredo (1864-1927), poeta catarinense.
6
Oscar Rosas Ribeiro d’Almeida (1864-1925), escritor catarinense.
7
O catarinense Virgílio Várzea (1863-1941) publicou em co-autoria com Cruz e Sousa o livro Tropos e fantasias
(1885).
8
sugestiva, gemente!
[...]
Civilizações e Sociedades... Mais
Pedras, mais pedras! E as estranhas
paredes hão de subir – longas, negras,
terríficas! Hão de subir, subir, subir
mudas, silenciosas, até às Estrelas,
deixando-te para sempre perdidamente
alucinado e emparedado dentro do teu
Sonho... (BACK, 1999, p. 62-63)
O poeta tentava se estabelecer como escritor em uma sociedade que não se dispunha
a aceitá-lo, fato que dificilmente poderia ser revertido nesse momento histórico. O título do
filme, Cruz e Sousa – O poeta do Desterro, evoca não apenas o antigo nome da cidade de
Florianópolis, mas a solidão, o degredo, o banimento do poeta. Ao distanciar-se de seu
“papel”social, o de filho de escravos com toda a carga que isso acarreta, Cruz e Sousa
desafiou a ordem vigente.
As dificuldades de aceitação de sua cultura e capacidade artística o encaminharam a
um exílio dos meios literários, ao “emparedamento” racial, social e intelectual. No filme, ele é
apresentado com suas contradições, fraquezas, anseios; evitou-se apresentar Cruz e Sousa
como um mito. É uma decisão que não apela à comiseração do espectador, mas encaminha a
reflexão sobre as nuanças que marcaram vida e obra do escritor.
5 CONCLUSÃO
Desde o início, o cinema se aproximou da literatura através do teatro, do romance, do
conto e inclusive da poesia, como se pôde constatar neste texto. Permanecem ainda, a cada
vez que obras literárias são levadas às telas, (pré) conceitos a partir do diálogo estabelecido
entre literatura e cinema. O resultado desse embate depende de muitos aspectos, como aqui
tivemos oportunidade de refletir, dentre os quais o talento de escritores e cineastas, os
objetivos ao se recorrer à literatura para produzir um filme e a transposição da linguagem
literária para a linguagem cinematográfica, além da importância do roteiro, o qual permeia
essa passagem.
O enriquecimento mútuo da literatura e do cinema reserva a cada um a possibilidade
de conservar suas próprias especificidades. O que esteticamente é favorável à literatura, não
será necessariamente ao cinema, assim como o cinema dispõe de diferentes recursos que a
linguagem literária não possui.
Tanto a literatura quanto o cinema foram beneficiados com a adaptação para as telas
da vida e obra do poeta simbolista e vários aspectos relevantes dessa aproximação foram aqui
9
destacados, assim como houve a oportunidade de, a partir dessas análises, refletir sobre o
escritor Cruz e Sousa.
6 REFERÊNCIAS
ANDREW, James Dudley. As principais teorias do cinema: uma introdução. Trad. Teresa
Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.
AUMONT, Jacques. As teorias dos cineastas. Trad. Marina Appenzeller. Campinas, SP:
Papirus, 2004. [Coleção Campo Imagético].
BAZIN, André. O Cinema: Ensaios. Trad. Eloísa De Araújo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense,
1991.
NAGIB, Lúcia. O cinema de retomada: depoimentos de 90 cineastas dos anos 90. São
Paulo: Ed. 34, 2002.
RAMOS, Fernão Pessoa (org.). Teoria contemporânea do cinema. São Paulo: Editora Senac
São Paulo, 2005. Vols. I e II.
RODRIGUES, João Carlos. O negro brasileiro e o cinema. Rio de Janeiro: Globo: Fundação
do Cinema Brasileiro-MINC, 1988.
STAM, Robert. Introdução à Teoria do Cinema. Trad. Fernando Mascarello. Campinas, SP:
Papirus, 2003.
XAVIER, Ismail (org.). A experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Edições Graal:
Embrafilmes, 2003. [3ª edição revista e aumentada].
10
FILME
RESUMO
Palavras-chave:
Colonização alemã. Literatura comparada. O guarda-roupa alemão.
ABSTRACT
In this essay it examines the presence of the theme of immigration and colonization German
narratives that describe this period between the years 1850 and 1950 in the Vale do Itajaí,
Santa Catarina. The main objective is to present a survey of works of fiction that use this
theme to develop their plots, especially novels that stand out in the immigrant and the
colonizer, written and published from the second half of the twentieth century. This essay also
show similarities and differences, in a comparative way, among the novels German’s
wardrobe and Jouney with Rupert. This work was developed within the tradition of
comparative literature, with special focus on theoretical reflections between literature and
memory. The methodology used was the open nature of qualitative research and literature
with a critical-theoretical approach. Thus the test focuses on the relationship between portraits
of the time, redemptions, brand history, thresholds and boundaries between fiction and history
as well as a joint discussion between fiction and confession.
Keywords:
German colonization. Comparative literature. German’s wardrobe.
1
Este ensaio constitui parte da pesquisa de Mestrado em Literatura Brasileira Memórias da colonização: ficção e
realidade em O guarda-roupa alemão, de Lausimar Laus.
2
Especialista em Estudos Literários e mestranda em Literatura Brasileira do Programa de Pós-graduação em
Literatura da UFSC; e-mail: rovedagoncalves@uol.com.br.
2
a identidade só nos é revelada como algo a ser inventado, e não descoberto; como
alvo de um esforço, um objetivo; como uma coisa que ainda se precisa construir a
partir do zero ou escolher entre alternativas e então lutar por ela e protegê-la lutando
ainda mais – mesmo que, para que essa luta seja vitoriosa, a verdade sobre a
condição precária. (BAUMAN, 2005, p.21-22).
Neste sentido pode-se dizer que identidade é algo em constante movimento, é uma construção
por meio de fatores externos e internos à cultura e ainda ao próprio homem. Assim a
literatura, como expressão artística do homem, foi o meio utilizado para retratar as
particularidades da identidade germânica/brasileira presente em Blumenau pelos ficcionistas
Lausimar Laus e Salim Miguel.
As relações que se estabelecem entre estudos históricos e literários contribuem para
delinear como a figura mítica do imigrante e colonizador europeu, neste trabalho
especificamente o imigrante alemão, construiu uma identidade local, tornando-se referência
de população civilizada e culturalmente superior. O que se percebe no século XX,
especialmente no momento pós Segunda Guerra Mundial, é a tentativa de contar a história da
imigração alemã no Vale do Itajaí através da literatura pelas mais diversas publicações. Como
por exemplo, a implementação da revista Blumenau em Cadernos que em seu primeiro
número em novembro de 1957, afirma no texto de abertura:
3
A região do Vale do Itajaí compreende os seguintes municípios catarinenses: Blumenau, Brusque, Gaspar,
Indaial, Ibirama, Itajaí, Ituporanga, Rio do Sul, Rodeio, Taió e Timbó.
4
Ou pelas publicações comemorativas das datas festivas como, por exemplo, o dia do
imigrante em 25 de julho, ou a comemoração da Fundação de Blumenau em 2 de setembro,
ou ainda mais recentemente pelas publicações destinadas aos turistas que visitam Blumenau
no mês de outubro durante a realização da Oktoberfest4. Considerando que “as histórias
narradas servem também para contar a história do espaço de vida comunitário e a dimensão
local da existência e da sociabilidade” (TEDESCO, 2004, p.306), é desse modo que
produzem-se representações e auto-identificação, personalização e participação no espaço e
na história local.
Em termos gerais, a imigração só acontece em virtude de algum evento que provoque
alguma mudança na vida do homem. O fenômeno migratório é, em princípio, “um
deslocamento de pessoas no espaço e, antes de mais nada, no espaço físico” (SAYAD, 1998,
p. 15) As mudanças que ocasionam o deslocamento dos indivíduos estão ligadas aos
problemas que enfrentam em seu espaço de origem, estes na maioria das vezes são
econômicos, étnicos ou religiosos.
Alfredo Bosi destaca que “os tipos de colonização distinguem-se em dois processos:
o que se atém ao simples povoamento, e o que conduz à exploração do solo” (BOSI, 1992, p.
11-12). Com efeito, a história da imigração no Brasil, que teve início em 1530 com a criação
das capitanias hereditárias e o sistema de sesmarias, tinha como intenção primordial ocupar o
litoral brasileiro para, na sequência, iniciar a exploração das terras. Essa imigração se
intensificou no século XVIII com a melhoria do transporte marítimo, com a escassez de mão
de obra e com a necessidade de preservar as terras brasileiras de uma possível invasão
espanhola. Assim, a imigração para o Brasil e a colonização das novas terras “reforçam o
princípio básico do domínio do homem sobre a natureza” (BOSI, 1992, p. 19-20) e a
preservação dos bens da cobiça de invasores.
Sabemos também que entre as causas para a imigração europeia, no século XIX,
estava “o processo de industrialização, englobando a modernização dos transportes e as
4
Segundo o site oficial desta festa, a Oktoberfest “é inspirada na Oktoberfest de Munique, a versão
blumenauense nasceu da vontade do povo em expressar seu amor pela vida e pelas tradições germânicas. Sua
primeira edição foi realizada em 1984.” Disponível em: <http://www.oktoberfestblumenau.com.br>. Acesso
em: 13 jun. 2011.
5
2 ABRINDO O GUARDA-ROUPA
O guarda-roupa alemão narra parte da história de Blumenau, cidade do interior
catarinense, situada no Vale do Itajaí colonizada por imigrantes alemães a partir de 1850. A
história é contada inicialmente pelo personagem Homig, último dos Ziegel, no enredo do
romance ele tem a tarefa de abrir uma gaveta do guarda-roupa que foi trancada pela bisavó
Ethel. Preparando-se para realizar a tarefa de abrir a gaveta Homig rememora passagens de
sua vida, relembra os momentos com a avó índia e com a bisavó alemã. Ao longo de uma
tarde, sentado à frente do guarda-roupa, as lembranças tomam conta do velho Homig que
assim nos apresenta a história não oficial de Blumenau e a formação de uma cidade
colonizada por imigrantes alemães. Partindo das memórias voluntárias e involuntárias, além
5
Expressões amplamente utilizadas pela imprensa oficial de Blumenau, entre os anos de 1950 e 1980.
6
com suas impressões de professora é que tomamos conhecimento deste aspecto. Em diálogo
com a senhora que a hospeda nos primeiros dias em que está em Blumenau Lula relata que
“precisava de muita fibra para conter essa força de um contingente linguístico, com tão pouca
gente falando a língua da pátria” (Laus, 2006, p.34).
É significativo que a obra de Lausimar Laus surge na década de 70, tempo em que as
correntes da arte modernista já estão sedimentadas no Brasil. A leitura crítica do momento
histórico feita por Fábio Lucas lembra que “o Modernismo pugnou por uma linguagem
coloquial e por um aproveitamento mais intenso do cotidiano, quer na poesia, quer na prosa”
(1989, p. 100). Mas afirma também que “no após-guerra a força do Modernismo começa a ser
contida e, ao mesmo tempo, o cuidado formal volta a preocupar os escritores, já saciados com
as liberdades excessivas dos primeiros momentos da radicalização modernista” (1989, p.104).
Assim, para se entender melhor as relações estabelecidas entre os imigrantes alemães
e seus descendentes com os luso-brasileiros é relevante lembrar como a língua representa a
principal característica do nacionalismo, pois é veículo de entendimento6. No romance a
autora transcreve a fala coloquial dos luso-brasileiros especialmente nos momentos em que
eles estão conversando sem a presença de algum personagem de origem germânica. O
discurso coloquial é apresentado, por exemplo, pelas palavras do personagem Zeca que traz
notícias dos parentes da personagem tia Clara, que vivem em Itajaí, são elas: “dejahoje”, “sê”,
“inhora”, “N’inhora”, “trasantonte”, “vim”, “eles não deixa”, “sinhora”, “ficá”, “tá”, “dizê”,
“erna” (LAUS, 2006, p.36-37). Todas essas palavras são grafadas como a forma de linguagem
coloquial, porém não representam empecilho para a compreensão da mensagem que o
personagem de origem humilde traz da cidade de Itajaí.
O isolamento das colônias não permitia a assimilação de outras culturas, sendo
assim, o caráter homogêneo da língua foi um fator que permitiu a manutenção dos costumes
sociais, no entanto foi também preponderante para que tais colônias fossem vistas como a
tentativa de se criar uma Alemanha nos trópicos. No romance tia Clara, brasileira de Itajaí na
tentativa de apaziguar a discussão sobre o uso do idioma alemão explica à filha e à sobrinha
que “os brasileiros aqui são pouca gente. Eles [os alemães] são a maioria. E se a gente fosse
para a terra deles, será que também não preferia falar a língua da gente?” (LAUS, 2006,
p.105). Situação esta que se confirma historicamente visto que, nas primeiras décadas de
colonização, os imigrantes estavam engajados na luta pela sobrevivência, num meio selvagem
e difícil, e, portanto, sem possibilidades de produção intelectual (HUBER, 1993, p. 14).
6
Giralda Seyferth discute amplamente este tema em seus estudos sobre a imigração alemã no Vale do Itajaí.
8
Mais que contar a história da família Ziegel e revelar o segredo da bisavó alemã
Ethel, Lausimar Laus da voz a vários personagens que ao longo de seus relatos são capazes de
contar as transformações que a cidade sofreu ao decorrer de quase cem anos, como o já citado
exemplo da industrialização, além dos aspectos culturais e de caráter social.
algum envolvimento emocional; os fatos são narrados a partir de uma escolha que está no
tempo presente. E é exatamente aí nesse espaço que o autor ficcional e a literatura encontram
o modo de legitimar suas experiências.
5 REFERÊNCIAS
BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
LAUS, Lausimar. O Guarda-roupa alemão. 4ª. ed. Florianópolis: Editora da UFSC, 2006.
LUCAS, Fabio. O caráter social da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970.
SILVA, José Ferreira da. O Dr. Blumenau. Florianópolis: EDEME e Paralelo 27, 1995.
INTERTEXTUALIDADE TEMÁTICA:
A MORTE EM DRÁCULA DE BRAM STOKER E NA BÍBLIA SAGRADA
RESUMO
Este artigo tem por objetivo discutir intertextualidades concernentes à temática da morte na
obra Drácula (1897) de Bram Stoker (1847-1912) confrontada à Bíblia Sagrada. Para fazê-lo,
foram selecionados excertos nos quais se percebem as relações intertextuais. O propósito é
pôr em evidência as analogias entre os dois textos visando, com isto, sublinhar o fato de que
nenhuma literatura é totalmente particular por apresentar traços e influências de outras obras.
Palavras-chave:
Bram Stoker. Drácula. Bíblia Sagrada. Intertextualidade .Morte.
ABSTRACT
The aim of this article is to draw attention to intertextuality in relation to the theme of death in
the work of Dracula (1897) written by Bram Stoker (1847-1912) confronted to the Bible. To
do so, we selected excerpts in which the intertextual relations could be perceived. The
purpose is to highlight the similarities between the texts in order to underline the fact that any
literature is unique for the reason that it illustrates influences of other works.
Keywords:
Bram Stoker. Dracula. Bible. Intertextuality. Death.
1 INTRODUÇÃO
Aceitando o postulado de que a intertextualidade se apresenta como um fenômeno
onipresente no texto, mas que é de fundamental importância para o processamento deste, tanto
na relação inter como entre línguas, neste artigo apresenta-se um estudo sobre
intertextualidade, tendo como corpora o romance Drácula (1897) de Bram Stoker (1847-1912)
e a Bíblia Sagrada. A discussão se desenvolve com vistas à temática da morte abordada
através de excertos comparáveis, selecionados nas respectivas obras.
As reflexões que nortearam este estudo se fundamentam, principalmente, nos
apontamentos teóricos sobre intertextualidade desenvolvidos por Kristeva (1978), Barthes
(1988), Hatim e Mason (1990), Koch (2007) e, Ritva Leppihalme (1997). Naturalmente,
evocam-se referências diversas acerca das duas obras em questão.
Por meio do conceito de intertextualidade, noção desenvolvida por Kristeva na
década de 60, passaremos a aceitar que, além das relações com referentes extras textuais, um
texto só existe em relação a outros textos. De acordo com Kristeva (1978, p. 38), pensar o
1
Doutoranda do curso de Pós-Graduação em Estudos da Tradução pela Universidade Federal de Santa Catarina.
Orientador: Prof. Dr. Ronaldo Lima (CCE/PGET/UFSC); e-mail: ilianet21@yahoo.com.br.
2
Todo texto é um objeto heterogêneo, que revela uma relação radical de seu interior
com seu exterior; e, desse exterior, evidentemente, fazem parte outros textos que lhe
dão origem, que o predeterminam, com os quais dialoga, que retoma a que alude, ou
a que se opõe.
Hatim e Mason (1990, p. 125) explicam que a intertextualidade exerce uma função
ativa e implica a visão de que os textos nunca são totalmente originais ou específicos de
determinado autor. De acordo com os pesquisadores, a teoria da intertextualidade parece nos
levar para duas diferentes direções: por um lado, temos a importância do texto anterior, como
afirmação que um texto literário, por exemplo, não pode ser considerado como uma entidade
anônima, mas dependente de uma construção intertextual. Por outro lado, com foco na
intenção comunicativa como precondição da inteligibilidade do texto, a intertextualidade
parece indicar que um texto anterior pode apenas ser considerado em termos de sua
contribuição para a evolução do texto que está sendo construído.
Perceber a intertextualidade não é uma tarefa elementar. Para que este
reconhecimento seja possível, isto é, para que o leitor possa reconhecer referentes externos na
obra que está lendo, ele precisa possuir conhecimento linguístico, enciclopédico, histórico,
cultural, das leituras realizadas sobre “as coisas do mundo”, e utilizar-se destes dados para
realizar a conexão entre textos - o texto que tem em mãos e outro(s) que o precederam. Os
efeitos intertextuais que evocam outros textos permitem diversificados efeitos de sentido e
interpretação ampla e variada, como ressalta Vasconcellos (1998, p. 210): “[...] já que não são
explicitados, ressaltam de alusões muitas vezes sutis e correspondências e confrontos
deixados à performance do leitor”. O leitor é instigado a reconhecer referentes intertextuais e
estabelecer confronto entre textos, uma ação capaz de criar diferentes leituras.
Posto isto, com intuito de apontar relações intertextuais relacionadas à temática da
morte nos encontros entre Drácula e a Bíblia Sagrada, julgamos ser necessário iniciar citando
algumas informações sobre estas obras, a fim de partilhar com o leitor as análises e
interpretações realizadas e, ao mesmo tempo, proporcionar a este o estabelecimento de
próprias conclusões e interpretações a partir do exposto neste estudo, e/ou ao que
3
posteriormente venha a “descobrir” para enriquecer sua experiência de leitura, e tornar o texto
que está lendo “a garden of bright image”. (RUOKONEN, 2010, P. 21).
2 A BÍBLIA SAGRADA
Segundo John Drane (2009, p. 09) a Bíblia é um dos grandes clássicos da literatura
mundial e não é apenas um livro, mas toda uma biblioteca. Como todo acervo, assinala Drane,
reúne em um só livro vários escritos por autores diferentes, em épocas distintas e com
propósitos diferenciados. A Bíblia apresenta contos, leis, epístolas, decretos reais, orações,
canções, instruções, mensagens proféticas, narrativas históricas, dados estatísticos, bem como
ensinamentos religiosos. O pesquisador aponta que ainda que as histórias desta obra possam
ter ocorrido há muito tempo atrás, até hoje ainda são lidas com entusiasmo por milhões de
pessoas mundo afora.
No texto “O fascinante universo bíblico” Scliar (2005, p. 10) relata que a Bíblia foi
traduzida em 2.167 idiomas e dialetos, teve edições que totalizaram mais de 2 bilhões de
exemplares apenas no século XX, está ao alcance de 85% da humanidade e é lida há cerca de
3 mil anos, e por isso, escreve o pesquisador, “merece, com justiça, o título de maior best-
seller de todos os tempos”. De acordo com o escritor podemos ler a Bíblia de diversas
maneiras. Em primeiro lugar, podemos ver nela um guia ético-espiritual, uma fonte de
disposições e de ensinamentos de caráter fundamental religioso. Em segundo, podemos ler a
Bíblia como um documento de caráter histórico, expressão de uma cultura milenar e, ainda,
como um conjunto de textos literários. Conclui o escritor:
neutra plural, foi substituída pela forma feminina singular, passando a significar “o livro”,
forma que se generalizou pelo uso latino do termo. Nessa última acepção foi assimilada pelas
línguas modernas do Ocidente.
Gabel e Wheeler (2003, p.27) assinalam que a Bíblia não é um livro no sentido
comum do termo, mas uma antologia, ou seja, um conjunto de seleções de uma biblioteca de
escritos religiosos e nacionalistas produzidos ao longo de um período de cerca de 1000 anos.
Para esta confecção muitas mãos contribuíram ao longo de séculos. Alguns colaboradores
eram autores originais, a maioria dos quais perdeu a identidade na névoa do passado. Alguns
eram redatores que compilaram, revisaram e combinaram materiais literários para formar os
conjuntos que acabaram por se tornar os livros bíblicos que hoje figuram nos nossos cânones.
A Bíblia está dividida em duas grandes partes: o Antigo Testamento e o Novo
Testamento. O Antigo Testamento (AT), que é de fato a “Bíblia hebraica original” (DRANE,
2009, p. 09), apresenta os livros escritos a partir do século XV a.C. até o nascimento de Cristo
e consiste nos escritos sagrados da fé judaica, o judaísmo. Contém a história do povo de Israel
e suas reflexões, a Lei de Deus oferecida à Moisés e prepara o evento da vinda de “Jesus
Cristo”. O Novo Testamento (NT) é formado por uma coleção de textos escritos no primeiro
século depois de Cristo. Explica o evento “Jesus Cristo”, isto é, versando sobre a vida e as
obras de Jesus, a criação e a expansão da Igreja, além de documentos de formação do povo
cristão. Na época do NT, de acordo com Drane (2009, p. 13), as escrituras hebraicas eram
amplamente lidas em grego, numa tradução conhecida como Septuagina e foi esta tradução
que organizou os livros na ordem como se apresentam hoje.
Importante sublinhar que, embora a Bíblia esteja dividida em duas grandes partes, se
percebe referências intertextuais entre o AT e o NT, bem como entre os livros da mesma
parte. Kock at. al. (2007, p. 18) pontua que a intertextualidade temática é encontrada em
textos que partilham temas e servem de conceitos e terminologias próprios. Em relação à
temática da morte, encontramos citações no livro do Gênesis, Jó, Salmos, Provérbios,
Eclesiastes, Isaías, Eclesiastes, Mateus, Romanos, Coríntios, entre outros. Vejamos alguns
exemplos.
Em Jó 11,20: “Quanto aos injustos, os olhos dele ficarão cegos, e não encontrarão
escapatória. A esperança deles será o último suspiro”; 38, 17: “Já mostraram a você as portas
da morte, ou por acaso você já viu os portais das sombras?”. No livro dos Provérbios 14, 12:
“Ás vezes um caminho parece reto para alguém, mas acaba levando para a morte” e em 16,
25:”Há caminhos que parecem retos, mas acabam levando para a morte”. Em Romanos 8,6:
5
“Os desejos dos instintos egoístas levam à morte, ao passo que o desejo do Espírito, leva para
a vida e a paz”. No livro I Coríntios 15,55: “Morte, onde está a sua vitória? Morte, onde está o
teu ferrão?”.
O número de exemplos é vasto, e nas palavras de Malanga (2005, p. 191): “A
questão da intertextualidade bíblica, merece, por si só, vários estudos e pesquisas”. Segundo a
pesquisadora, esta intertextualidade dos autores bíblicos se deve a vários fatores. Em primeiro
lugar, os livros mais antigos, tornando-se sagrados, eram lidos e valorizados pelos autores
mais recentes. Algumas idéias e expressões deviam ser correntes entre os povos em forma de
expressões ou provérbios. Igualmente, os costumes e as leis faziam parte do cotidiano e da
vida social das pessoas. O fator fundamental complementa Malanga, é que os textos bíblicos,
conforme foram sendo produzidos passaram a fazer parte da vida religiosa e literária do povo
hebreu. A intertextualidade da Bíblia reflete isso.
3 DRÁCULA
Drácula, obra prima do escritor irlandês de Bram Stoker (1847-1912), publicada
originalmente em língua inglesa em 1897, tem sido estudada e investigada por pesquisadores
em diferentes países e diversificadas áreas do conhecimento: história, artes, e principalmente
literatura e, posta à disposição dos leitores através de vários gêneros textuais como:
quadrinhos, jogos de computador (um dos mais conhecidos é o RPG), adaptações
cinematográficas e teatrais, séries televisivas, entre outras. Estudos sobre a obra podem ser
acessados em material impresso ou por meio eletrônico e, basta passarmos os olhos nos
arquivos de bibliotecas e em sites de pesquisa via internet, para que, com assombro, nos
depararmos com uma grande quantidade de informações e estudos em relação à obra.
No Brasil, o romance tem sido repetidamente publicado por várias editoras em
sucessivas edições, sob vários formatos: a L&PM Editores de Porto Alegre, a Editora Record
do Rio de Janeiro, a Edibolso e o Círculo do Livro de São Paulo publicaram a tradução de
Theobaldo de Souza, em uma versão integral a partir do original em inglês. A Edibolso lançou
uma versão adaptada por Robert H. K. Walter do texto de Teobaldo de Souza para a edição
em formato de bolso. As editoras Garnier, Rio Gráfica, Tecnoprint e Ediouro do Rio de
Janeiro publicaram edições resumidas ou condensadas.
O nome com o qual Bram Stoker batizou sua obra Dracula (Drácula na língua
portuguesa) trata-se provavelmente de uma alusão à figura de um nobre do séc. XV conhecido
por Vlad III, Vlad Tepes (ou Tsepesh que em romeno significa empalamento), Vlad o
6
Empalador ou ainda Vlad Dracul: um Príncipe do século XV que, por traz das tradições na
Romênia, conforme relatam Raymond T. McNally e Radu Florescu (1995:13), foi
personagem de muitas histórias de horror: “Um governante cujas crueldades foram de uma
escala tal que a má reputação vinda do seu túmulo chegou ao Ocidente. Um autêntico ser
humano tão horripilante quanto um vampiro de ficção e cinema”. De acordo com os
historiadores (1995, p.18) os nomes Dracul e Drácula e suas variações em diferentes línguas:
Dracole, Draculya, Dracol, Draculea, Draculious, Draculia, Tracol, são na verdade apelidos e
ambos têm dois significados: Dracul com significados de “mal” e “dragão”. DRÁCULA,
termo que se popularizou para definir VLAD III, tem sua etimologia ligada ao morfema
DRAC que em moldávio (língua da região da Moldávia) tanto tem o significado de DRAGÃO
quanto de DIABO:
DRAC: dragão ou diabo
Sufixo A: filho de_
A edição da obra de Bram Stoker selecionada para este estudo apresenta-se dividida
em vinte e sete capítulos. As ações envolvem nove principais personagens que contribuem
para a narrativa através de suas vozes anunciadas em diários, cartas, editoriais de jornais e
outras formas: Conde Drácula, Jonathan Harker; Mina Murray, Lucy Westenra, Dr. Jack
Seward, Professor Van Helsing, Arthur Holmwood (Lorde Godalming), Quincey Morris e
Renfield.
O romance tem início com o Jonathan Harker´s Journal (Diário de Jonathan
Harker). A personagem Jonathan é caracterizada na obra como um jovem advogado e, na
ocasião, procurador e funcionário do escritório imobiliário do Sr. Hawkins em Londres, que
está a caminho para a Transilvânia para intermediar negócios com o Conde Drácula. Drácula
pretende comprar imóveis na Inglaterra com intenções de se mudar para lá. Percebe-se através
da narrativa, estruturada na forma de gênero epistolar, que o motor da obra está relacionado à
caça e morte de Drácula. Um fato que precisa ser concretizado como justificado nas palavras
da personagem Van Helsing: “Nosso insucesso simplesmente nos converterá... prestem
atenção... converterá cada um de nós em outros tantos seres iguais a ele”. (STOKER: 2007, p.
352).
Durante a narrativa Drácula, já morando em Londres, deixa um rastro de destruição e
morte por onde passa. Entre suas vítimas, Lucy, que acaba se transformando em um
Nosferatu, semelhante ao seu criador. O grupo então decide matá-la utilizando o método para
eliminar estes seres: decepar a cabeça e cravar uma estaca no coração. Em seguida, outra
7
todas as classes sociais, esse público em formação fazia uma exigência: encontrar
sua imagem nos romances que lia. (...) As populações de Londres e Paris
encontram-se com sua própria modernidade através dessa exteriorização: admiração
e temor diante de algo extremamente novo. (...) Espanto, indignação. Fascínio,
medo: são reações diferenciadas apontando para estratégias de identificação bastante
solidárias a uma intenção de controle dessa presença desconcertante. (BRESCIANI,
2004).
Gn. 3,4: Então a serpente disse para a mulher: “De modo nenhum vocês morrerão”.
2Cor. 4,17-18: Pois a nossa tribulação momentânea é leve, em relação ao peso
extraordinário da glória eterna que ela nos prepara. Não procuramos as coisas
visíveis, mas as invisíveis, porque as coisas visíveis duram apenas um momento,
enquanto as invisíveis duram para sempre.
Há sempre uma razão geral para que as coisas sejam como são. (STOKER, 2007, p.
36).
Teremos antes de curtir as mais atrozes amargurar antes de alcançar a bem-
aventurança.
Na verdade nada existe que possa ser qualificado de absoluto ou definitivo,
inclusive aquilo que supomos ser o fim de alguma coisa. (STOKER, 2007, p. 281).
9
iii. a morte como partida para uma vida melhor; para o alcance da paz:
Gn. 15, 15: Quanto a você, irá reunir-se em paz com seus antepassados [...].
Is.26,19: Mas os teus mortos hão de reviver e seus cadáveres se levantarão. Os que
dormem no pó vão acordar e cantar, pois o teu orvalho é um orvalho de luz, e a terra
das sombras dará a luz.
Ela agora repousa na paz de Deus e a sua alma já está com ele. (STOKER, 2007, p.
324).
Meu único consolo é que nos entregamos nas mãos de Deus. Só mesmo em respeito
a esta fé é que a morte se torna mais justificável que a própria vida, e isto, num certo
sentido, liberta-nos de todos os martírios. (STOKER, 2007, p. 520).
[...] na consumação da morte, estampara-se em seu rosto uma sensação de paz, como
eu jamais imaginara que ainda pudesse comportar. (STOKER, 2007, p. 546).
Os exemplos acima permitem amplas interpretações, uma vez que, as leituras são
singulares, cada qual interpreta do seu ponto de vista formado a partir do material resultante
do conhecimento literário, histórico, linguístico, cultural, das experiências de vida. Por certo,
nossa compreensão da morte (se é possível inferir que haja uma “compreensão” no sentido
hermenêutico), se baseia nestes conhecimentos e ainda nas crenças adquiridas com o convívio
em um dado contexto familiar e social.
Dada a publicação da obra Drácula, se faz importante pontuar que em relação à
temática da morte e as discussões a ela relacionadas, o declínio da crença após vida atingiu
seu clímax no início do século XVII com a disseminação do ateísmo, ceticismo e
racionalismo pela França, Inglaterra e América. A publicação da Origem das Espécies de
Darwin (1859) modificou o pensamento sobre a imortalidade da alma, uma vez que, se a vida
humana é produto de geração espontânea, então os seres humanos não possuem um espírito
divino ou alma imortal. As teorias de Darwin incentivaram as pessoas a procurarem
explicações científicas para os fenômenos sobrenaturais como a sobrevivência da alma.
Na história do cristianismo, a morte tem sido explicada como a separação da alma
imortal do corpo mortal. Esta crença que na alma e que ela sobrevive após a morte pode ser
observada através de ritos cristãos como a oração pelos mortos, indulgencias, purgatório (um
lugar onde as almas dos mortos são purificadas pelo sofrimento antes de ascenderem ao
paraíso) e a intercessão dos santos. A citação da serpente “De modo nenhum vocês morrerão”
(Gn 3,4) tem sobrevivido ao longo da história humana até nossos dias, alimentada,
10
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo procuramos mostrar que um texto se constrói na medida em que interage
com outros textos, isto pressupõe a idéia de que um texto não existe em “isolamento” e que
não pode ser completamente apreciado em “isolamento”. Este postulado implica afirmar que o
conceito de intertextualidade ultrapassa o contorno dos textos, resultando em um tecido
ilimitado de associações e conexões, e que são dependentes da sensibilidade e dos
2
Fonte: http://www.alchimac.com/2010/01/confissao-de-fe-de-westminster-164346.html
11
conhecimentos prévios do leitor para que venha a perceber as conexões entre textos,
realizando, assim, um melhor diálogo com este, como pontua Barthes:
6 REFERÊNCIAS
BÍBLIA SAGRADA. Tradução de Ivo Storniolo e Euclides Martins Balancin. São Paulo:
Paulus, 1990.
BRECIANI, Maria Stella Martins. Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza.
São Paulo: Brasiliense, 2004.
GABEL, John B.; WHEELER, Charles B. A Bíblia como Literatura. 2ª ed. Tradução de
Adail Ubirajara Sobral e Mana Stela Gonçalves. São Paulo: Loyola, 2003.
HATIM, Basil, MASON, Ian. Discourse and the translator. London and New York:
Longman, 1990.
12
KOCH, I. G. V. O texto e a construção dos sentidos. 9ª ed. São Paulo: Contexto, 2007.
MALANGA, Eliana Branco. A Bíblia hebraica como obra aberta: uma proposta
interdisciplinar para uma semiologia bíblica. São Paulo: FAPESP, 2005.
STOKER, Bram. Drácula. Tradução de Theobaldo de Souza. Porto Alegre: LPM, 2007.
RESUMO
Zazie dans le métro, de Raymond Queneau, publicado em 1959 (tradução de Paulo Werneck:
Zazie no metrô. São Paulo: Cosac Naify, 2009) caracteriza-se pelo questionamento da identi-
dade das personagens, pela ousadia criativa da linguagem, pela força dos diálogos e pela es-
cassez de descrições. Grande sucesso de público e de crítica, essa obra foi transposta ao cine-
ma por Louis Malle em 1960, em um filme que se tornou um dos maiores sucessos de bilhete-
ria na sua carreira – trabalho no qual o cineasta francês não aderiu à estética da Nouvelle Va-
gue e utilizou recursos típicos do desenho animado. Em 2008, Clément Oubrerie lançou seu
romance gráfico homônimo. No presente trabalho proponho-me a analisar o diálogo entre o
romance, o romance gráfico e o filme através das seguintes questões: quais são as modalida-
des de transposição da linguagem literária às linguagens cinematográfica e gráfica? Em que
medida as obras de Louis Malle e de Clément Oubrerie, eminentemente visuais, dialogam?
Que tratamento ambos dão à questão identitária, marcante no texto de Raymond Queneau?
Palavras-chave:
Literatura e cinema. Identidades. Zazie dans le métro.
RÉSUMÉ
Dans Zazie dans le métro, de Raymond Queneau, publié en 1959 (traduction en brésilien de
Paulo Werneck: Zazie no metrô. São Paulo: Cosac Naify, 2009), la problématique identitaire,
le langage osé et créatif, la qualité des dialogues et la parcinomie de descriptions occupent le
premier plan. Cette œuvre, qui a reçu un accueil très favorable de la part des spécialistes et du
grand public, a été adaptée au grand écran par Louis Malle en 1960. Dans ce film, qui fut l‟un
des plus grands succès de billetterie du cinéaste, Malle n‟a pas utilisé les ressources de
l‟esthétique de la Nouvelle Vague, leur préférant certains procédés typiques des dessins
animés. En 2008, Clément Oubrerie a sorti sa bande dessinée homonyme. Dans ce travail je
me propose d‟analyser le dialogue établit entre le roman, la bande dessinée et le film à partir
des questions suivantes : comment le langage littéraire est-il traduit en langage
cinématographique et en langage graphique ? Dans quelle mesure les œuvres de Louis Malle
et de Clément Oubrerie, éminemment visuelles, dialoguent ? Comment y est traitée la
problématique identitaire, si importante dans le texte de Raymond Queneau ?
Mots-clefs:
Littérature et cinéma. Identités. Zazie dans le métro.
1
Docente e pesquisadora junto ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução (UFSC); co-diretora do
Pôle de Recherches Interuniversitaires sur les Pays de Langue Portugaise (Universidade de Rennes 2, Fran-
ça); membro do Centre de Recherches en Histoire Internationale et Atlantique (Universidades de Nantes e de
La Rochelle, França) ; tradutora literária; e-mail: luciana.rassier2010@gmail.com.
2
1 INTRODUÇÃO
Zazie dans le métro, de Raymond Queneau, publicado em 1959 (tradução de Paulo
Werneck: Zazie no metrô. São Paulo: Cosac Naify, 2009) caracteriza-se pelo questionamento
da identidade dos personagens, pela ousadia criativa da linguagem, pela força dos diálogos e
pela escassez de descrições. Grande sucesso de público e de crítica, essa obra foi transposta ao
cinema por Louis Malle em 1960, em um filme que se tornou um dos maiores sucessos de
bilheteria de sua carreira – trabalho no qual o cineasta francês não aderiu à estética da Nou-
velle Vague e utilizou recursos típicos do desenho animado. Em 2008, Clément Oubrerie lan-
çou seu romance gráfico homônimo. No presente trabalho proponho-me a analisar o diálogo
entre o romance, o romance gráfico e o filme através das seguintes questões: quais são as mo-
dalidades de transposição da linguagem literária às linguagens cinematográfica e gráfica? Em
que medida as obras de Louis Malle e de Clément Oubrerie, eminentemente visuais, dialo-
gam? Que tratamento ambos dão à questão identitária, marcante no texto de Raymond Quene-
au?
e do enciclopedista (ainda que seu campo de pesquisa – e seu interesse – sejam irri-
sórios aos olhos de alguns). (LE TELLIER, 2003, p. 7 – tradução minha)2.
Os textos literários são sempre planares (e, em geral, lineares), ou seja, dispostos em
uma folha de papel. Poderia-se fazer textos cujas linhas se situariam em um espaço
de três dimensões. Sua leitura exigiria óculos especiais (uma lente vermelha e uma
2
« La pierre fondatrice du groupe sera l‟exploitation du lien entre mathématique et littérature, un lien qui va se
décliner, au cours des quarante-six siècles oulipiens – car l‟Oulipo compte chaque année pour un siècle –,
autour de notions évolutives et mobiles: structure, contrainte, consigne, axiomatique, manipulation,
combinatoire, procédé, procédure, etc. Queneau, plaisamment, aurait défini les oulipiens comme des « rats
qui construisent le labyrinthe dont ils se proposent de sortir ». Mais les oulipiens ne tiennent pas que du
rongeur frénétique et acharné. Ils ont aussi quelque chose du collectionneur et de l‟encyclopédiste (leur
domaine de recherche – et son intérêt – fût-il dérisoire aux yeux de certains) ». (LE TELLIER, 2003, p. 7).
3
« La méthode M ± n, que l‟on propose d‟abord sous la forme encore limitée dite S+7 (forme qui a donné à la
méthode son nom), consiste à remplacer dans un texte existant (de qualité littéraire ou non) les mots (M) par
d‟autres mots de même genre qui les suivent ou les précèdent dans le dictionnaire, à une distance variable
mesurée par le nombre de mots. Aussi S+7 veut dire simplement que l‟on remplace tous les substantifs d‟un
texte par le septième qui le suit dans un lexique donné ». (LESCURE, 1973, p. 139).
4
« En ce sens, la suppression de la lettre, du signe typographique, du support élémentaire, est une opération plus
neutre, plus nette, plus décisive, quelque chose comme le degré zéro de la contrainte, à partir duquel tout
devient possible ». (PEREC, 1973, p. 88).
4
lente verde) segundo o procedimento dos anaglifos que já foi utilizado para repre-
sentar figuras geométricas e cenas figurativas no espaço. (LE LIONNAIS, 1973,
p. 285 – tradução minha)5.
Esses exemplos ilustram a perspectiva que Raymond Queneau adota ao elaborar seu
projeto literário. De sua vasta produção, citarei apenas três títulos, bastante representativos do
espírito oulipiano6. O primeiro deles é Exercices de style (“Exercícios de estilo”, de 1947),
livro no qual a mesma estória, breve e banal, é contada de 99 modos diferentes. Esse jogo
abarca registros como: carta oficial, interrogatório, telegrama; texto filosófico, metafórico,
onírico, gustativo, olfativo; registro vulgar; versos livres, versos alexandrinos, soneto, ode,
tanka7. O segundo é uma obra de poesia combinatória, Cent mille milliards de poèmes (“Cem
trilhões de poemas”, de 1961). Esse objeto-livro é composto por dez sonetos, sendo cada ver-
so impresso em uma faixa de papel, o que oferece ao leitor a oportunidade de compor seus
próprios sonetos. O título da obra evoca a impressionante quantidade de combinações possí-
veis entre os quatorze versos desses dez poemas (1014). O terceiro título é precisamente a obra
mais conhecida e mais popular de Raymond Queneau, o romance Zazie dans le métro (1959).
5
« Les textes littéraires sont toujours planaires (et même généralement linéaires), c‟est-à-dire disposés sur une
feuille de papier. On pourrait faire des textes dont les lignes se situeraient dans un espace à 3 dimensions.
Leur lecture exigerait des lunettes spéciales (un verre rouge et un verre vert) selon le procédé des anaglyphes
qui a déjà été utilisé pour représenter des figures de géométrie et des scènes figuratives dans l‟espace » (LE
LIONNAIS, 1973, p. 285).
6
Para uma visão de conjunto da obra de Raymond Queneau, remeto às cronologias bio-bibliográficas elaboradas
por Claude Debon (2003, p. 222-230) e por Jacques Jouet (1989, p. 173-184).
7
O tanka é um poema japonês de 31 sílabas repartidas em 5 versos, os quais têm respectivamente, 5, 7, 5, 7 e 7
sílabas.
5
entanto, como indica Roland Barthes no ensaio “Zazie et la littérature” (1964), que se tornou
referência incontornável no estudo dessa obra8, à primeira vista Zazie dans le métro segue a
estrutura tradicional do gênero romanesco: “Do ponto de vista da arquitetura literária, Zazie é
um romance bem-feito. Nele encontramos todas as „qualidades‟ que a crítica gosta de enume-
rar e louvar [...]. Ali está toda a técnica do romance francês, de Stendhal a Zola” (Barthes,
2009, p. 177-178). Porém, como demonstra Barthes, sob esta aparência tradicional Queneau
instaura uma instabilidade incessantemente renovada: muito do que o narrador afirma se reve-
la inexato; a continuidade espacial é problematizada, os hábitos e os julgamentos, parodiados.
Os personagens, multifacetados, são envoltos em ambigüidade. A “escrita fonética” dá visibi-
lidade ao “neo-francês”, à língua tal qual é falada, opondo-a à norma culta, já esclerosada.
Do ponto de vista identitário, vários personagens são emblemáticos, além de Zazie.
Citarei apenas três deles. Gabriel, que é um homem alto e forte mas também bastante sensível
e vaidoso, trabalha em um cabaré onde dança vestido de mulher, sob o pseudônimo de Gabri-
ella9. Zazie passa boa parte do romance perguntando-se se seu tio é “hormossecsual”, sem
saber ao certo o que a palavra significa. A identidade da companheira de Gabriel, Marceline,
também é uma das incógnitas do romance: trata-se de uma mulher ou de um homem? Há
também um personagem que adota diferentes personalidades: Pédro Surplus/Bertin Poiri-
er/Trouscaillon/Arun Arachide.
Aliás, é precisamente esse “sujeito” – tal é a designação que o narrador lhe atribui
nos primeiros capítulos – que questiona a identidade sexual de Gabriel, notadamente em dois
episódios. O primeiro é quando vai à casa do tio de Zazie, atrás dela e do pacote com um par
de calças jeans que ela lhe roubou:
O sujeito dizia assim: Ah, isso, precisa ver, espero que a menina não tenha me afa-
nado o meu pacucho. E Gabriel sugeria: Talvez o senhor não tenha trazido. Trouxe
sim, dizia o sujeito, pois é, a garota me afanou, agora a cobra vai fumar.
- Que esculacho – disse Zazie.
- Ele não vai embora? – perguntou suavemente Marceline.
- Não – disse Zazie. – Olhalá, agora ele resolveu atacar o titio às suas custas.
Na verdade, dizia o tipo, pode ter sido a sua mulher que me afanou o pacucho. Vai
ver que a sua mulher ela também está a fim de usar djins. Isso com certeza não, dizia
Gabriel, com certeza não. Como é que você sabe?, replicava o sujeito, ela pode ter
tido a idéa, com um marido que tem jeitão de hormossecsual.
- Quê que é hormossecsual? – perguntou Zazie.
- É um homem que usa calça jeans – disse suavement Marceline. (QUENEAU,
2009, p. 56-57).
8
Esse texto foi incluído como posfácio na edição brasileira da obra (In: QUENEAU, 2009, p. 177-188).
9
No romance, as descrições físicas dos personagens são raríssimas; o caso de Gabriel constitui uma exceção: “O
sujeitinho examinou o gabarito de Gabriel e pensou: é um armário [...]”; “E se erguendo num salto com uma
leveza tão singular quanto inesperada, o colosso deu alguns passinhos de balé [...]”. (QUENEAU, 2009, p. 8;
137).
6
O segundo episódio é quando conversa com Gridoux, cuja sapataria fica ao lado do
prédio onde mora Gabriel:
Pouco depois, vinha Zazie, acompanhada por um sujeito que levava a malocha dela.
- Olha só! – disse Jeanne Lalochère. – Marcel.
- Como você pode notar.
- Mas ela está dormindo em pé!
- Eles aprontaram. [...] Tô indo. Témais, menina.
- Tchau – disse Zazie, muito ausente. (QUENEAU, 2009, p. 171).
10
Na tradução brasileira essa indicação desaparece: “Tchau – disse Zazie, muito ausente” (QUENEAU, 2009,
p. 171).
7
Outro exemplo é a fala do ameaçador Arun Arachide, no capítulo 18, que evoca os
diversos papéis que desempenha:
[...] sou eu, Arun Arachide. Eu sou eu, o que vocês conheceram e às vezes mal reco-
nheceram. Príncipe deste mundo e de diversos territórios conexos, me compraz per-
corer meus domínios em aspectos variados, tomando as aparências da incerteza e do
erro que, aliás, me são próprios. Policial primário e desfalcado, vagabundo noctinau-
ta, indeciso caçador de viúvas e órfãs, essas fugidias imagens me permitem endossar
sem medo os riscos menores do ridículo, da estapafurdice e da efusão sentimental
[...]. Mal tido como desaparecido por suas consciências leves, reapareço em triunfo e
inclusive sem modéstia nenhuma. (QUENEAU, 2009, p. 167-168).
11
Site oficial do cineasta : http://louismalle.ice.spill.net/index2.php?dr=lm. Acesso em 30/09/2011.
8
12
Esse grafismo é retomado na capa mas também como marca d‟água no interior das páginas duplas da belíssi-
9
literária, escolhe Zazie dans le métro e decide desvencilhar-se, na medida do possível, das
propostas das duas obras visuais já existentes: o filme de Louis Malle (1960), cujo Gabriel
interpretado por Philippe Noiret julga emblemático ao ponto de ser “invasivo” em seu imagi-
nário de ilustrador, e a edição ilustrada por Jacques Carelman (QUENEAU, 1966), que consi-
dera submissa demais ao texto literário. Oubrerie define nesses termos a diferença entre ilus-
tração e adaptação:
Ilustrar é acompanhar o texto, integral ou não, através de imagens que respeitam tan-
to quanto possível seu sentido, ao passo que ao adaptar tem-se a liberdade (e a res-
ponsabilidade) de escolher, modificar, transpor, reescrever; em suma, transformar a
obra original em outra obra, não menos original mas que, sobretudo, não é igual
(OUBRERIE, 2009 – tradução minha).
O ilustrador deixa claro que o romance gráfico é um gênero à parte, com suas pró-
prias regras e imposições, dentre as quais estão a extensão da obra (cerca de oitenta páginas,
cada uma com oito a dez quadrinhos), o ritmo rápido da evolução da trama e a extensão limi-
tada dos diálogos. Conseqüentemente, a supressão de episódios e de diálogos do texto original
se torna inevitável. Além disso, Oubrerie opta por eliminar o narrador. Quanto ao tratamento
da arte, ele afirma haver optado pela sobriedade, evitando competir com a “exuberância ver-
bal” de Queneau. Ele compara sua obra a um filme:
Minha escolha foi uma filmagem com um orçamento baixo, com alguns atores cuja
interpretação é comedida, alguns figurinos e cenários naturais. Meu filme respeita ao
máximo os efeitos de surpresa que são a força vital da história, e acrescenta algo a
seu modo, indo na contra-corrente (OUBRERIE, 2009 – tradução minha).
Se, por um lado, o romance gráfico privilegia certa sobriedade visual, por outro, as-
sim como o filme, ele reserva um lugar de destaque para o “neo-francês” e para a ambiguida-
de identitária de Gabriel/Gabriella, Marceline/Marcel e Pédro Surplus/Bertin Poiri-
er/Trouscaillon/Arun Arachide. O romance gráfico de Clément Oubrerie funciona de modo
especular em relação ao filme de Louis Malle, enfatizando escolhas na transposição da lin-
guagem literária à linguagem visual, sejam elas convergentes ou divergentes. Habilmente,
Oubrerie não busca retomar nos anos 2010 procedimentos considerados revolucionários nos
anos 1960. Trata-se, em ambos os casos, de “transcriações” que dialogam com o romance de
Raymond Queneau, do qual se aproximam e se afastam, mas cujo estatuto de obra questiona-
dora da linguagem e da realidade preservam.
5 REFERÊNCIAS
_____. Zazie et la littérature. In : BARTHES, Roland. Essais critiques. Paris : Seuil, 1964,
p. 125-131.
LESCURE, Jean. La méthode S+7 (cas particulier de la méthode M ± n). In : s.a., OULIPO:
la littérature potentielle. Paris: Gallimard, 1973, p. 139-144.
_________. Zazie dans le métro. Ilustrações de Jacques Carelmann. Paris : Gallimard, 1966.
_________. Zazie no metrô. Tradução de Paulo Werneck. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
11
6 REFERÊNCIAS FILMOGRÁFICAS
Zazie dans le métro. Louis Malle, 1960, Nouvelles Éditions de Films (NEF), 88min.
7 SITES INTERNET
RESUMO
O presente artigo tem como proposta discutir os romances Los siete locos (1929) e Los Lan-
zallamas (1931) do escritor argentino Roberto Arlt e o filme Los siete locos (1973) do diretor
também argentino Leopoldo Torre Nilsson. Levando em consideração que ambas as narrati-
vas são diferentes, uma escrita e outra fílmica, pretende-se debater algumas características
presentes nos romances do escritor argentino que também podem ser visualizadas no filme e
discutir seus pontos de confluência. Não pretendemos adotar a literatura como ponto de refe-
rência dominante, mas como uma espécie de ―fonte de inspiração‖ para criação de outra obra
de arte em mídia diferente. O objetivo principal é observar como foi realizada a transposição
do texto para o outro tipo de mídia, para isso discutiremos o conceito de transposição utiliza-
do por Sergio Wolf em seu estudo Cine/Literatura: Ritos de pasaje e verificaremos alguns
recursos que o diretor Leopoldo Torre Nilsson utilizou para representar no filme algumas ca-
racterísticas presentes nos romances de Arlt. Primeiramente apresentaremos o escritor, os ro-
mances e o cineasta para em seguida analisar e comentar algumas características do livro e do
filme.
Palavras-chave:
Literatura. Cinema. Los siete locos.
RESUMEN
El presente artículo tiene como propuesta discutir las novelas Los siete locos (1929) y Los
Lanzallamas (1931) del escritor argentino Roberto Arlt y la película Los siete locos (1973)
del director argentino Leopoldo Torre Nilsson. Teniendo en cuenta que ambas narrativas son
diferentes, una escrita y la otra cinematográfica, se pretende debatir algunas de las caracterís-
ticas presentes en las novelas del escritor argentino que también se pueden observar en la pe-
lícula y discutir sus puntos de confluencia. No tenemos la intención de adoptar la literatura
como punto de referencia dominante, sino como una especie de "fuente de inspiración" para
crear otra obra de arte en diferente media. El objetivo principal es ver cómo se realizó la
transposición del texto en otra media, para eso discutiremos el concepto de tranposición utili-
zado por Sergio Wolf en su estudio Cine /Literatura: Ritos de pasaje y verificaremos algu-
nos recursos que el director Leopoldo Torre Nilsson utilizó para representar en la película,
algunas de las características presentes en las novelas de Arlt. En primer lugar presentaremos
al escritor, las novelas y el director de cine, para luego, analizar y comentar algunas caracte-
rísticas del libro y la película.
Palabras Clave:
Cine. Literatura. Los Siete Locos.
1
Doutoranda em Teoria Literária pela UFSC; e-mail: janfloripa@gmail.com.
2
1 INTRODUÇÃO
Primeiramente apresentaremos o escritor, os romances e o cineasta para em seguida
analisar comparativamente e comentar algumas características do livro e do filme. Roberto
Arlt, argentino de origem imigratória, era filho de Karl Arlt, um militar alemão, e de Ekathe-
rine Iobstraibitzer, uma camponesa italiana de Trieste. Novelista, contista, dramaturgo e jor-
nalista, o escritor que nasceu no dia 26 de abril de 1900 no bairro de Flores, subúrbio de Bue-
nos Aires, cursou a escola primária até o terceiro ano, em seguida entrou para a Escuela de
Mecanica de la Armada de onde foi expulso por má conduta. Publicou seu primeiro romance,
El juguete rabioso, em 1926, livro que evoca a capital da Argentina. Neste mesmo período
começa também a escrever para os jornais El mundo e Crítica e suas colunas diárias, conhe-
cidas como Aguafuertes Porteñas, aparecerão entre 1928 e 1935, para mais tarde serem reu-
nidas em livro que levou o mesmo nome. Em 1935, a serviço do jornal El mundo, Arlt viajou
para Espanha e África ocasião em que escreveu suas Aguafuertes Españolas. Chegou a visi-
tar o Chile e o Brasil, porém sempre viveu em Buenos Aires, cidade que servirá de inspiração
para sua narrativa. Escreveu quatro romances: El juguete rabioso (1926), Los siete locos
(1929), Los lanzallamas (1931) e El amor brujo (1932) além de contos, crônicas e peças de
teatro. Roberto Arlt morreu de um ataque cardíaco, aos 42 anos, no dia 26 de julho de 1942
em Buenos Aires e sua obra foi reconhecida pela crítica argentina quase uma década após seu
falecimento.
Leopoldo Torre Nilsson nasceu em Buenos Aires em 5 de maio de 1924. Foi escritor
e um dos diretores mais importantes do cinema argentino. Começou a trabalhar com o cinema
juntamente com seu pai o também diretor Leopoldo Torre Rios, auxiliando-o durante 10 anos
como ajudante de direção. Em 1949 realiza seu primeiro longa-metragem em co-parceria com
o pai, o filme chamou-se El crimen de Oribe, uma adaptação do romance El perjurio de la
nieve, de Adolfo Bioy Casares. Em 1956 produziu o filme Graciela baseado no romance de
Carmen Laforet Nada, para em seguida realizar algumas adaptações de Beatriz Guido, sua
esposa, o que lhe rendeu reconhecimento internacional. Entre seus filmes se destacam: La
casa del ángel (1957), La caída (1959), El ojo de la cerradura (1964), e Piedra libre
(1975). Esses filmes retratam a hipocrisia da pequena burguesia argentina, o puritanismo fe-
minino, a crítica aos valores da sociedade argentina, mesma temática que permeou Los siete
locos (1973). O diretor também adaptou outras obras literárias de diferentes temáticas como
Martín Fierro (1968) e o melodrama Boquitas Pintadas (1974) de Manuel Puig, faleceu em
8 de setembro de 1978 em Buenos Aires.
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Os romances Los siete locos e Los Lanzallamas são os mais conhecidos entre os
textos de Roberto Arlt e também os mais estudados pela crítica e Leopoldo Torre Nilsson rea-
lizou a transposição desses textos a um filme. Utilizamos o termo transposição de acordo com
a definição de Sergio Wolf em seu estudo Cine/Literatura: Ritos de pasaje onde o crítico
comenta que essa denominação é mais pertinente ―porque designa la idea de traslado pero
también la de transplante, de poner algo em outro sitio, de extirpar ciertos modelos, pero pen-
sando en otro registro.‖ (WOLF, 2004, p. 16)
Segundo Sergio Wolf há outros termos para designar esse processo que envolve texto
literário e filme, tais como adaptação e tradução, entretanto o crítico decide pelo termo
transposição porque segundo ele, a palavra adaptação tem uma implicância médica e outra
material:
―médica en la medida en que la literatura haría las veces del objeto díscolo, inasible
o inadaptable, aquello que no consigue integrarse a un sistema. De modo comple-
mentario, entonces, el cine sería lo establecido, el formato rígido y altivo que exige
que todo se subordine a él de la peor manera; en síntesis, el statu quo. O más aún: la
literatura sería un sistema de una complejidad tal que su pasaje al territorio del cine
no contemplaría más que pérdidas o reducciones, o limitaciones que desequilibrarían
su entidad. (...) Material porque se trataría de una adecuación de formatos o, si pre-
fiere, de volúmenes. La cuestión se plantea en términos de que el formato de origen
– literatura – ―quepa‖ en el otro, que adopte la forma del otro formato ―cine‖: que
uno se ablande para ―poder entrar‖ en el otro, que adopte la forma del otro.‖
(WOLF, 2004, p. 13)
Neste caso, o termo adaptação implicaria uma hierarquia entre os dois sistemas, já o
termo tradução também não seria pertinente porque remete a idéia de uma equivalência entre
a linguagem literária e a linguagem fílmica. Sendo assim, adotaremos o termo transposição
para discutir o processo que leva o livro à tela.
O filme segue a mesma história dos romances, entretanto muitas cenas foram suprimi-
das ou condensadas devido a extensão do texto de Arlt. Los lanzallamas dá continuação a
história de Los siete locos, entretanto, os dois livros podem ser lidos independentemente um
do outro. O primeiro romance está organizado em três grandes capítulos divididos por 34 sub-
títulos e o segundo romance está organizado em quatro grandes capítulos e um epílogo, divi-
didos em 31 subtítulos, somando um total de aproximadamente 500 páginas. O filme tem du-
ração de 118 minutos e é dividido em 12 capítulos.
Os livros, assim como o filme, contam a história de Remo Erdosain, um sujeito de
classe baixa atormentado pela falta de dinheiro e perspectivas diante da vida que leva. No
intento de mudar sua condição social, utiliza-se de seus dotes de inventor e se une ao Astrólo-
go e a outros personagens na perspectiva de formar uma sociedade secreta que tem como ob-
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jetivo maior mudar a sociedade através de uma revolução financiada por uma rede de prostí-
bulos distribuídos por Buenos Aires. Erdosain na maior parte do romance caminha angustiado
pelas ruas de Buenos Aires e critica os valores da pequena sociedade burguesa, a crueldade do
capitalismo, as relações entre homens e mulheres, a mecanização do indivíduo diante da in-
dústria e sua maquinaria e o poder do dinheiro em dissolver os sentimentos e o caráter das
pessoas. O protagonista casa-se com Elsa e vive infeliz, trabalha em uma companhia açucarei-
ra onde comete o furto de 600 que é descoberto e pode levá-lo para a cadeia caso não consiga
devolver a quantia.
A trama se desenvolve diante da angústia do personagem em conseguir o dinheiro para
devolver aos patrões. A angústia é uma das principais características do personagem arltiano e
se apresenta em Los siete locos e Los lanzallamas como essencialmente ligada ao espaço
urbano. Esse sentimento nascerá da ―inadecuación entre las aspiraciones del hombre y un en-
torno inhóspito, agudizada por una coyuntura política que favorece la exclusión, la marginali-
dad y la pérdida de toda referencia ideológica o religiosa‖ (RENAUD, 2000, p. 704) e moverá
os personagens na narrativa. Quase todas as ações de Erdosain são pautadas pela angústia e
Leopoldo Torre Nilsson tentará expressar essa angústia na tela. Esse sentimento que toma
conta do homem na multidão metropolitana, em menor ou maior grau, traça na narrativa arlti-
ana a difícil relação do protagonista com o tempo. Erdosain recorda um passado perturbador,
imagina um futuro sem perspectivas e se debate em um presente desprovido de qualquer âni-
mo, está abandonado ao poder do entorno.
Analisando a transposição literária dos romances de Roberto Arlt no filme de Leopol-
do Torre Nilsson percebemos muitos pontos de contato entre as obras e pretendemos comen-
tar alguns deles. Inicialmente apontaremos o grau de parentesco entre as duas: o filme leva o
mesmo nome do livro, os nomes dos personagens são idênticos e os contextos são iguais. A
dramatização dos acontecimentos tem o mesmo tom no livro e no filme, a baixa iluminação
nas cenas e a escolha de cenários que representem interiores decadentes colaboram para
transmitir a sensação de pesadelo que a narrativa escrita proporciona.
No que diz respeito às falas dos personagens percebemos que o filme reproduz trechos
inteiros do discurso apresentado no livro. Entretanto, alguns capítulos da narrativa escrita são
construídos por longos diálogos entre Erdosain e o Astrólogo, personagens principais da tra-
ma, há também uma predominância do monólogo interior durante todo o texto. O diretor su-
primiu grande parte dessas falas, porém utilizou trechos inteiros retirados do discurso do livro
modificando o contexto.
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A estrutura narrativa das duas obras é linear, são apresentadas diversas situações, mas
todas têm correlação uma com a outra, mesmo que a cena ou o capítulo seguinte remeta a um
novo ambiente ou situação. No filme não aparecem elementos de transição entre as cenas, a
mudança de plano é feita por corte ocorrendo a substituição brutal de uma imagem por outra.
De acordo com Marcel Martin ―o corte é empregado quando a transição não tem valor signifi-
cativo por si mesma, quando corresponde a uma simples mudança de ponto de vista ou a uma
simples sucessão na percepção, sem indicar (em geral) tempo transcorrido nem espaço percor-
rido – e sem interrupção (também em geral) da trilha sonora.‖ (MARTIN, 2003, p. 87)
Também não há presença de um narrador ou voz-off no filme, todas as falas são reali-
zadas pelos personagens em cena. Entretanto, no livro as vozes narrativas mudam, inicialmen-
te observamos um narrador em terceira pessoa, há diálogos entre os personagens e em certo
momento da narrativa, o leitor identifica um narrador-comentador que diz ter ouvido toda a
história do próprio Erdosain, ou seja, a voz narrativa que até então parecia não participar dos
fatos narrados, se apresenta como um personagem onisciente.
Acreditamos que o que mais difere nos livros e no filme é a representação da cidade.
Roberto Arlt é considerado um escritor urbano por excelência e em seus textos a cidade se
destaca como protagonista da ficção. Buenos Aires é o nome com o qual o escritor batiza a
cidade que emerge de sua escritura, inspirada na capital da República Argentina, a urbe arltia-
na se ergue no texto à medida que o leitor avança na leitura. A cidade criada por Arlt possui
odores, formas, cores, vozes e identidade específicas e essas características aparecem permea-
das por uma atmosfera infernal onde perambulam os humilhados personagens arltianos. Ruas
em constante movimento, arranha-céus, fumaça, luzes de néon, torres de energia, cabos de
alta tensão, ferro, cimento, gases, uma variada gama de cores, objetos e estruturas pontiagu-
das, são alguns dos inúmeros elementos que o texto arltiano oferece ao leitor para que ele per-
ceba a inquietação desta Buenos Aires alucinada, angustiada e caótica que só existe no papel,
uma cidade muito além daquela que Roberto Arlt presenciou em 1930.
Arlt construirá uma cidade de onde se desprenderão os personagens e suas vozes. Des-
crita como uma Babilônia, a Buenos Aires arltiana é uma paisagem inacabada, caótica, em
crescente construção. O espaço urbano está saturado de símbolos (materiais, formas, cores)
que irão se impor como características muito relevantes à representação. Neste labirinto de
ruas e construções inacabadas, quase nada é por acaso e quase tudo nos remete ao conflito
produzido entre o homem – enquanto personagem – e a cidade. A urbe arltiana irá expressar
muito mais que o conjunto de instituições burocráticas e convenções sociais, ela expressará
também os ânimos, o ―estado de espírito‖ dos habitantes dessa cidade. A arquitetura urbana
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irá refletir na existência do indivíduo e isso será essencial na construção da narrativa arltiana.
À medida que a paisagem urbana sofre transformações os personagens e o discurso também
se modificam.
A cidade assim construída nos romances de Arlt levantará a seguinte pergunta: como
Leopoldo Torre Nilsson representará a cidade assim descrita filmando a Buenos Aires dos
anos setenta? Arlt imaginou uma Buenos Aires muito a frente da cidade que vivenciou nos
anos 30 e as características da paisagem urbana com seus inúmeros e ameaçadores arranha-
céus não correspondem o mesmo cenário do filme. A cidade arltiana se aproxima muito da
moderna cidade de Fritz Lang no filme expressionista Metrópolis (1927) que descreve muito
bem a mecanização da vida. Em Los siete locos as engrenagens e maquinarias da cidade mo-
derna são fortemente interiorizadas, Erdosain se vê mutilado, perfurado, torturado, invadido
por ameaçadoras estruturas metálicas, a angústia se corporifica, transforma-se em dor física.
Segundo Maryse Renaud (2000, p. 706), a cidade percebida dessa maneira está distante da
celebração futurista da modernidade, da exaltação vanguardista, mas muito próxima da som-
bria visão dos expressionistas alemães onde o típico personagem arltiano se parece estranha-
mente ao patético homem, que tem a cabeça rodeada por uma cidade alvo de um apocalíptico
terremoto, do quadro Eu e a cidade, de Ludwig Meidner.
Leopoldo Torre Nilsson não filmou os inúmeros arranha-céus, mas soube trabalhar
com maestria o sentimento de angústia e sufocamento que a paisagem e a vida na cidade pro-
porcionam e isso é percebido no primeiro capítulo do filme. Na primeira cena alternam-se a
imagem de Erdosain caminhando pela cidade com a imagem da tentativa do mesmo de comu-
nicar-se através de um vidro. O rosto do personagem aparece através de uma superfície desfo-
cada, talvez uma vitrine de um café, tão comum nas ruas de Buenos Aires. Erdosain tenta fa-
lar algo, sua face parece aterrorizada, parece gritar, porém seu grito é som inarticulado, na
grande cidade ninguém pode ouvi-lo, ninguém é capaz de perceber seu desespero, é refém da
paisagem. A cena criada consegue transmitir a sensação de sufocamento que a cidade causa, a
angústia do personagem e sua impotência diante da dificuldade de verbalizar sua dor.
Nas duas narrativas o leitor/expectador pode observar exposição dos sentimentos dos
personagens, no livro Arlt utiliza-se do monólogo interior e através dele Erdosain se revela
um ser extremamente atormentado. O personagem tem consciência de que o sofrimento não
cessa, de que é impossível viver segundo os próprios desejos, todos estão fadados a rastejar
pela cidade, a humilhação atingirá seu limite e a tristeza nunca cessará. De acordo com Bea-
triz Sarlo ―Arlt no encuentra en ningún lado las reservas de entusiasmo reformador que permi-
te castigar a los culpables y premiar a los honrados‖ (SARLO, 2007, p. 234).
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zendo o jantar. Ao entrar na cozinha ele olha para tábua onde Elsa está cortando a carne, ela
vira-se para ele com as mãos ensangüentadas e tenta arrumar o cabelo, a câmera dá um close
nos olhos de Erdosain, na carne e nas mãos ensangüentadas da mulher. O movimento de câ-
mera denominado travelling para a frente diz muito mais sobre o que o personagem observa,
de acordo com Marcel Martin esse recurso é ―de longe o movimento mais interessante, sem
dúvida por ser o mais natural: corresponde ao ponto de vista de um personagem que avança
ou então à projeção do olhar para um foco de interesse‖ (MARTIN, 2003, p. 49). A maneira
como é utilizado o foco e como é organizada a seqüência de closes na atividade doméstica
executada pela esposa, faz uma forte crítica ao casamento e ao papel que a mulher deve ocu-
par como esposa.
O diretor também expõe com sarcasmo e humor ácido a maneira como o casamento é
visto como ―bom negócio‖ na cena em que Erdosain pede para casar-se com a filha da dona
da pensão. O personagem está no banho e pede para chamar a futura sogra, antes de ela entrar
no quarto espalha grande quantia de dinheiro pela cama e, assim que a mulher entra, pede
conselho sobre com quem casar-se. A mulher olhando o dinheiro, fala que ele tem que ter
cuidado com a escolha, que as mulheres da cidade não são sérias, é quando Erdosain a inter-
rompe e diz que está pensando em casar com sua filha. A dona da pensão então afirma que a
garota é muito jovem, só tem 15 anos, mas olhando o dinheiro sobre a cama aceita o pedido.
Erdosain beija a garota e deixa cair a toalha de banho antes que ambas se retirem, as expres-
sões faciais dos personagens exalam crueldade e hipocrisia e a cena apresenta notável teatrali-
dade.
Erdosain, sabendo que jamais seria capaz de corresponder às expectativas da esposa
também dedica o tempo de que dispõe ao seu lado para humilhá-la, até que Elsa decide aban-
doná-lo e vai embora com o Capitão. Neste momento a angústia que o protagonista carrega
constantemente adquire maior proporção, e há uma inversão nos papéis, Erdosain não mais
humilha, se sente humilhado.
Para mostrar essa inversão de papéis o diretor utiliza um recurso muito interessante
chamado plongée uma filmagem de cima para baixo ―que tende, com efeito, a apequenar o
indivíduo, a esmagá-lo moralmente, rebaixando-o ao nível do chão, fazendo dele um objeto
preso a um determinismo insuperável, um joguete da fatalidade‖ (MARTIN, 2003, p. 41). Na
cena que está no capítulo 6, Elsa está deixando Erdosain para ir embora com o Capitão, a câ-
mera então uma única vez o filma de cima para baixo transmitindo a sensação de que ele é
inferior a Elsa. É um dos únicos momentos do filme em que Elsa parece superior ao marido.
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O filme também apresenta algumas elipses, técnica que tem a capacidade de sugerir,
―tal capacidade de evocação em meias-palavras é um dos segredos do espantoso poder de
sugestão do cinema (…) Mais comumente a elipse tem por objetivo dissimular um instante
decisivo da ação para suscitar no espectador um sentimento de espera ansiosa, o chamado
suspense, que os diretores americanos tanto prezam‖ (MARTIN, 2003, p. 73/78). Percebemos
elipse quando Erdosain fala para Elsa que está estudando a fórmula de um gás mortal, a mu-
lher pergunta se ele teria coragem de matar alguém e ele responde que talvez sim. Quando o
Astrólogo lhe presenteia com uma arma suspeitamos que o protagonista cometerá um assassi-
nato, mais tarde ele acaba assassinando a filha da dona da pensão em que morava. Outra elip-
se acontece quando Erdosain pregunta para Elsa se ela teria se casado se soubesse anterior-
mente que o casamento era preparar bifes e cozer camisas, ela diz que não e ele pergunta o
que ela faria então, e Elsa responde que teria um amante. Quando então cenas adiante Erdo-
sain abre a porta de casa e visualizamos Elsa sentada à mesa com um homem bem vestido de
pé ao lado, percebemos imediatamente que ele é seu amante e que a mesma deverá abandonar
o marido.
Há várias características que aproximam o filme do livro. Observando as falas perce-
bemos que o diretor provavelmente utilizou o texto na criação do roteiro, muitas falas são
idênticas, muitas cenas seguem a mesma descrição do livro, a mais marcante é o episódio do
assassinato da garota por Erdosain. A sequência dos atos é igual a do livro, toda a cena foi
reproduzida conforme descreve o narrador.
Particularmente, a impressão que nos repassou o filme, foi a mesma da leitura, Leo-
poldo Torre Nilsson manipulou no filme elementos como a ironia, o sarcasmo e o grotesco.
Esse último elemento tem sua riqueza interpretativa porque é um dos ―modos aglutinantes
privilegiados, una de las formas de operar la síntesis, una de las maneras de unir lo que apare-
ce fragmentado, disperso y uno de los recursos a los que se echa mano para lograr ese efecto
cuasi-cómico o semi-trágico.‖ (ZUBIETA, 1987, p. 99)
Pode-se considerar como grotesco na escritura arltiana a transmutação de aconteci-
mentos graves em acontecimentos quase cômicos. Evidentemente que o texto arltiano não
pode ser classificado como cômico no sentido denotativo da palavra, até mesmo porque o
efeito produzido pela comicidade que emerge em alguns momentos do relato não alivia as
tensões e não conforta devido a sua relação com um tipo de humor ácido, negro, cruel. Ana
María Zubieta (1987) define este deslocamento trágico/cômico no texto arltiano como ―efeitos
de relato‖ que segundo ela são produzidos, demarcados e mobilizados pelo grotesco tornando-
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Erdosain, ao exclamar para o cadáver da garota que se não tivesse colocado as mãos
em sua braguilha dentro do trem não teria sido assassinada, desloca o sentido trágico do acon-
tecimento para um sentido quase cômico. A gravidade e a violência do assassinato da garota
são minimizadas diante das palavras vulgares do protagonista, interage em seu discurso uma
dualidade onde estão presentes tragédia e humor, da combinação desses dois elementos na
mesma proporção emerge o grotesco arltiano que ―permite la manipulación dual sin perderse
en ella porque da lugar a la síntesis, a la unión, a la convivencia de sentidos‖ (ZUBIETA,
1987, p. 106). O filme utiliza-se do grotesco da mesma maneira, o close na expressão do rosto
da garota após ter recebido o tiro (a mesma sorri), o modo como ela parece levitar após cair
ensangüentada na cama, o discurso de Erdosain após o assassinato também são capazes des-
pertar um riso aflito no espectador.
Outro fato interessante observado é que Leopoldo Torre Nilsson escolheu representar
a história dos romances arltianos, suprimindo cenas, sem, no entanto, acrescentar nenhum fato
que não estivesse no livro. O diretor conta toda a história de Los siete locos e utiliza o mesmo
final de Los lanzallamas, sendo que essa seria uma excelente oportunidade para recriar um
final para a história de Los siete locos. Como a história é separada em livros diferentes, o
primeiro livro, aquele que leva o título do filme, não apresenta um fim claro, fica indefinido, o
expectador pode imaginar qualquer desenlace para a história, entretanto o diretor preferiu uti-
lizar o final criado por Arlt.
Já comentamos que Beatriz Sarlo proferiu que ―ninguém sai consolado de um romance
de Arlt‖ e Leopoldo Torre Nilsson também não optou por nos consolar no final do filme, es-
11
colheu a poética do fracasso, tão própria da escritura arltiana. Jean Claude-Carrière comenta
que:
2 REFERÊNCIAS
ARLT, Roberto. Los siete locos – Los lanzallamas, edición crítica. 1. ed. Colección Archi-
vos 44. Nanterre Cedex, 2000.
GUERRERO, Diana. Arlt: El habitante solitario. 2. ed. Buenos Aires: Catálogos, 1986.
MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Tradução: Paulo Neves, São Paulo: Brasi-
liense, 2003.
SARLO, Beatriz. Escritos sobre literatura argentina. 1ª ed. Buenos Aires: Siglo XXI Edito-
res Argentina, 2007.
RESUMO
O presente estudo tem como base o poema “Tu”, de Mário de Andrade, publicado
inicialmente em “Pauliceia Desvairada”, livro de 1922. Analisando o poema em questão,
temos uma relação do poeta com a cidade de São Paulo, com seus colegas modernistas às
vésperas do grande evento do grupo, a Semana de Arte Moderna, e principalmente com seu
colega Oswald de Andrade, que publicou tal poema antes mesmo do próprio Mário, em artigo
que gerou grande polêmica na época. Veremos na poesia de Mário de Andrade importante
diálogo com o movimento expressionista alemão e como temas que estão no poema aparecem
em ensaios do autor. Tal trabalho se insere na linha de pesquisa Teoria da Modernidade, que
tem por objetivo apresentar uma leitura da dos primeiros anos do século XX no quadro
literário.
Palavras-chave:
Modernismo. Poesia. Expressionismo.
ABSTRACT
This study is based on the poem "Tu," by Mario de Andrade, which was first published in
"Pauliceia Desvairada" in 1922. Analyzing the current poem, we verify the poet's relationship
with the city of São Paulo, with his modernist colleagues on the eve of the great group's event,
the Modern Art Week, and especially with his colleague Oswald de Andrade, who posted this
poem before even Mario himself, in an article that generated great controversy at the time. We
will see in the poetry of Mario de Andrade important dialogue with the German expressionist
movement and how themes that are in the poem appear in trials of the author. This work is
part of the research line of the Modernity Theory, which aims to present a reading of the early
years of the twentieth century within the literary framework.
Keywords:
Modernism. Poetry. Expressionism.
É de 1917 o primeiro livro de Mário de Andrade, “Há uma gota de sangue em cada
poema”, publicado sob o pseudônimo de Mário Sobral, composto por 12 poemas que retratam
uma “viagem” pelos cenários, ou pelos escombros, deixados pela 1º Guerra Mundial. Este
livro é considerado pela crítica uma obra simbolista (embora destoasse dos temas comuns da
poesia deste movimento) e acabou sendo renegado pelo autor nas décadas sequentes de 20 e
30, porém resgatado no volume “Obra Imatura” em 1942.
É em 1922, no entanto, que são ouvidos os poemas considerados modernistas de
Mário de Andrade. Alguns são lidos na Semana de Arte Moderna, que acontece no Teatro
1
Mestranda em Literatura Brasileira do Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de
Santa Catarina, sob orientação da professora Dra. Susana Scramim; e-mail: anamatiello@gmail.com.
2
cenas paulistanas, trabalhadas com pinceladas soltas encobertas pela garoa, fumaça, neblina.
E admite ser sua obra pertencente ao impressionismo, mesmo que isso seja considerado erro:
“Livro evidentemente impressionista. Ora, segundo modernos, erro grave o Impressionismo”
(ANDRADE, 1979, p.14).
Mas é também do expressionismo que podemos encontrar matizes do poeta; segundo
Lopez, sua leitura do expressionismo alemão (que se deu entre 1919 e 1921) “contribuirá para
a exploração da ideia de uma nova lógica, aquela que aceita a visão do chamado primitivo e
que concorrerá particularmente para seu mergulho no „pathos‟ do homem” (LOPEZ, 1981,
p.94). Transpondo para palavras do poeta no seu prefácio, “O nosso primitivismo representa
uma nova frase construtiva” e “Somos na realidade os primitivos duma era nova”
(ANDRADE, 1979, p.15).
A partir das características apresentadas no “Prefácio Interessantíssimo”, temos a
sucessão de poemas, que estão a demonstrar os métodos do poeta e suas reflexões. O
neologismo “arlequinal” está em diversos poemas, como “Inspiração”, “O Trovador”, “Rua
de São Bento”, “Paisagem n.1”, “Ode ao burguês”, “Tristura”, enfim, em nove dos vinte e três
poemas que compõe o livro. Arlequim, personagem da Commedia del’arte, teatro de rua da
Itália do século XV, representava o feliz e trapaceiro amante, bufão que quer divertir cheio de
sarcasmo, com uma roupa composta por retalhos de seda coloridos em forma de losangos, a
caminhar pelas ruas em busca de sua conquista, Colombina. Segundo Telê Ancona Lopez, o
uso deste símbolo estava em voga nesta década. Aparece, por exemplo, no livro “Carnaval”,
de Manuel Bandeira; no poema “As máscaras” de Menotti del Picchia; em Martins Fontes,
“Arlequinada”; além da influência do poeta italiano Soffici, do qual Mário de Andrade
possuía, em sua biblioteca, uma antologia com textos de diferentes épocas e gêneros híbridos
datada de 1918 e chamada “Arlecchino”.
Para Lopez, “o traje de losangos aglutina a variedade da vida metropolitana do
século XX” (LOPEZ, 1981, p.90), uma junção de retalhos, pedaços diferentes de tecido
tentando formar uma unidade, uma única vestimenta. É um traje de cinza e ouro, segundo o
terceiro verso do poema. Ainda pensando a sociedade paulista por meio desta representação,
complementa:
O presente trabalho tem como objetivo apresentar uma leitura do poema “TU”, o 17º
poema de “Pauliceia Desvairada”. Faz-se necessário, nesse sentido, pensar, além do livro
(apresentado até aqui como um todo), as peculiaridades que envolvem a publicação do poema,
o que é indispensável para a leitura que será proposta.
Retornando da Europa em 1912, Oswald de Andrade traz consigo o Manifesto
Futurista, publicado no jornal francês Le Figaro no dia 20 de fevereiro de 1909, escrito pelo
poeta Filippo Tommaso Marinetti, e a repercussão das palavras do italiano na Europa da
época. O manifesto exaltava a “coragem, audácia e rebelião” como essenciais para a poesia,
em detrimento a uma literatura que estava composta por “imobilidade pensativa, o êxtase e o
sono”. O objetivo era louvar a velocidade, acabar com museus e bibliotecas, e a poesia “deve
ser concebida como um violento assalto contra as forças ignotas, para reduzi-las a prostrar-se
perante o homem”. (MARINETTI, 2011).
Por volta de 1920, a palavra Futurismo circulava na cidade de São Paulo,
principalmente entre as elites intelectuais, que estabeleciam uma espécie de diálogo através de
artigos nos principais jornais que circulavam na cidade (podemos citar Oswald de Andrade,
no Jornal do Commercio, Monteiro Lobato2, em O estado de São Paulo, Menotti del Picchia,
no Correio Paulistano, entre outros). Segundo Brito, analisando os eventos que antecederam
a realização da Semana de Arte Moderna,
praticamente aceita para o grupo a denominação de futuristas, que para Brito “é adotada por
eles mais por motivos polêmicos do que por uma filiação absoluta e profunda à escola lançada
pelo italiano” (BRITO, 1997, p.221). Abro aqui um “parêntese” para inserir um fato que será
de grande relevância para a apresentação do poema em questão. O encontro efetivo entre
Mário de Andrade e Oswald de Andrade deu-se em 1917, em 21 de novembro. Elói Chaves,
membro da secretaria de Justiça de São Paulo, pronunciava, nesta data, por motivo de uma
campanha pela participação do Brasil na 1º Guerra Mundial, um discurso patriótico no
Conservatório Dramático e Musical. Mário de Andrade foi encarregado de proferir um
pequeno discurso, em nome do Conservatório (no qual ministrava aulas de História da Arte).
Oswald de Andrade ficou impressionado ao ouvir o discurso e, julgando-o belo, demonstrou
interesse em publicá-lo no Jornal do Commercio, no qual era repórter. Deste encontro surgiu
a amizade entre os dois, que seriam, anos mais tarde, a “cabeça” do movimento modernista.
Em 27 de maio de 1921, no próprio Jornal do Commercio, Oswald de Andrade
publica um artigo chamado “O Meu Poeta Futurista”, no qual lança a poesia e o poeta Mário
de Andrade. No artigo, Oswald de Andrade não cita o nome do chamado futurista: “Não
posso lhe contar o nome simples. Proibiu-o o casto, o bom, o tímido. Contar-lhe-ei a figura e
a arte”. (ANDRADE, 1992, p.21). E, listando as principais inovações literárias da época e a
coragem de seus autores, o jornalista dá maior ênfase ao futurista a que se refere,
descrevendo-o como um extremista entre o pavor e a coragem, o que o conduziria a “forças
sensacionais”. (ANDRADE, 1992, p.21). Assim anuncia o poeta-assunto de seu artigo: “Ele é
o autor de um supremo livro neste momento literário. Chamou-o Pauliceia Desvairada –
cinquenta páginas talvez da mais rica, da mais inédita, da mais bela poesia citadina. Querem
ouvir?” (ANDRADE, 1992, p.23). Na sequência, apresenta-se o poema “TU”, o escolhido por
Oswald de Andrade para apresentar o “futurista” que é comparado a Paul Fort e ao italiano
Govoni, grandes símbolos do movimento futurista europeu.
O artigo, como era comum na época, ganha uma estrondosa repercussão. O rótulo de
“futurista” faz Mário de Andrade sofrer muitos vexames, que chegam até a desistência de
alunos de suas aulas no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, porém, os versos
publicados dão a ele uma visibilidade muito grande na sociedade intelectual paulistana. O
professor ganha direito de resposta no próprio Jornal do Commercio, e escreve um artigo
chamado “Futurista?!” em 06 de junho do mesmo ano. E torna-se incisivo no motivo da
rejeição do rótulo aplicado por Oswald de Andrade: “Não, o nosso poeta não se liga ao
futurismo internacional, como não se prende a escola alguma” (ANDRADE in BRITO, 1997,
6
p.233). Continua frisando suas intenções de ser um poeta livre de ligações literárias com
escolas:
O poema “TU”, que está, antes mesmo de sua publicação em “Pauliceia Desvairada”
no artigo de Oswald de Andrade, é composto por 8 estrofes, cada qual com número variado de
versos, não rimados.
O poema traz no título o pronome pessoal de segunda pessoa do singular “tu”, que se
refere à pessoa com quem falamos, ao receptor ou interlocutor. Por meio deste título,
podemos intuir que este pronome pode estar se referindo ao leitor, que é tratado como o
receptor do poema. Outra hipótese pode ser levantada, pelo assunto que os versos tratam: “tu”
pode se referir a poesia, que é exaltada e comparada na sequência de versos do poema. E o
pronome pode ainda estar se referindo à própria cidade de São Paulo, pois o poema está a
tratar de algo que é, para o poeta, sua paixão e sua mulher, o que tanto, neste contexto, pode
ser tanto a poesia quanto a cidade.
Na primeira estrofe do poema, composta por 5 versos, a poesia é tida como um
“bocejo entre dois galanteios”(verso 4). Estamos diante de uma fase de transição da poesia,
que está entre as atenções corteses dos passadistas (parnasianos) e de uma nova fase, que está
7
sendo propagada pelos modernistas; uma poesia renovada, com novas dicções, temas, formas.
O poema em questão não chega a ser uma expressão consolidada como um “grito”: está ainda
a bocejar, a iniciar sua ascensão, e mantém seu “Espírito de fidalga” (verso 3), de nobreza, da
poesia “anterior”. Assim também como a cidade de São Paulo, se pensarmos que ela está
passando por grandes transformações em sua estrutura e na sociedade, que está aderindo
novas maneiras de pensar a arte.
A poesia-cidade é, para Mário de Andrade nesta estrofe, uma mulher, formada por
uma mistura paradoxal de asfalto e lama. São as oposições de uma poesia que está sendo
escrita em uma cidade capaz de agregar, nesta época, uma concomitância entre a antiga São
Paulo e a nova era tecnológica, com o asfalto tomando conta das “lamas de várzea” (verso 9).
A poesia é mulher inserida na sua dama e senhora, a Pauliceia, apelido carinhoso para São
Paulo. As torres de São Bento são a localidade escolhida para representar mais uma vez os
avanços da cidade, pois a bolsa de valores estava ali localizada. A poesia é capaz de ser “mais
longa/que os pasmos alucinados” (versos 6 e 7) dos investidores, maior que as transações
financeiras em pleno avanço da São Paulo de 1920. A mulher-poesia-cidade é insulto nos
olhos e convites na boca (versos 10 e 11), destoa da forma da poesia de “tradição”, ofendendo
os olhos que não encontram a forma perfeita, e ao mesmo tempo convocando novas bocas,
“louca de rumores” (verso 11) para que se abram em uma nova poesia.
A terceira estrofe, composta por 5 versos, é a que traz o verso que será analisado com
atenção especial: o verso 14, que tem o crepúsculo como cenário de uma poesia ardente. Esta
imagem pode ser lida como a absorção de características do movimento expressionista
alemão, sobre o qual Mário de Andrade estava estudando a partir de 1918. Este ponto será
trabalhado adiante. No verso 12, a poesia é chamada de “costureirinha”, e logo a seguir, no
verso 13, 5 adjetivos pátrios estão ligados por hífens, como se fosse uma linha transpassando
as nacionalidades que se misturam nesta poesia. Cada ponto alinhavado existe por si só, mas
estão interligados por um mesmo fio de linha, condutor. Essa metáfora pode ser a
representação do que o “Prefácio Interessantíssimo” se propôs: a partir de diferentes “pontos”,
diferentes movimentos da literatura, fundar uma escola, que interliga tendências diferentes em
um mesmo conjunto, em uma mesma “costura”.
Na quarta estrofe, a poesia-cidade é comparada a Lady Macbeth (verso 17), uma das
principais personagens da trama de seiscentista de Shakespeare (SHAKESPEARE, 2000). A
“Lady” é o apoio do marido (Macbeth) na realização de crimes, principalmente no assassinato
do Rei, com a intenção de comandar o reino da Escócia. É, para o eu-poético, madrasta e irmã
(verso 19), ao mesmo tempo distante como uma madrasta, e próxima como uma irmã que
8
divide o mesmo sangue. Essa mulher enigmática é a poesia-cidade neste verso, pois logo a
seguir, nos versos 18 e 22, repete-se “Pura neblina da manhã”. São Paulo ficou conhecida por
ser a “terra da garoa”, uma espécie de neblina, fina chuva que cobre a cidade, deixando a
visibilidade obscurecida. E a neblina está em uma espécie de entre, assim como o bocejo, de
forma que não se consolida nem como tempo ensolarado nem como chuva torrencial. Estamos
justamente na fase de transição, fase enigmática como a personagem Lady Macbeth.
Importante lembrar uma das passagens emblemáticas do texto de Shakespeare, a frase que
finaliza o primeiro ato da peça, em que três bruxas já estão preanunciando a chegada de
Macbeth, então chefe do exército, ao posto de Rei: “São iguais o belo e o feio; andemos da
névoa em meio” (SHAKESPEARE, 1997, p.07), em que também está a ideia de névoa, como
na São Paulo de Mário de Andrade. O verso 20 sela essa fase, pois os sentidos estão sendo
triturados crescentemente, em uma incerteza que deixa inquietos os sentimentos do eu-poético
quanto à cidade e à poesia. Ainda, no verso 21, outra localidade de São Paulo é lembrada:
Moji. Provavelmente, o poeta está falando de Moji-Mirim, uma vez que cita também a cidade
de Paris e em sua arquitetura, a cidade paulista possui uma igreja, a Matriz de São José,
réplica da Catedral parisiense de Notre Dame.
Nos primeiros três versos da quinta estrofe estão declarados sentimentos de gosto e
de amor a desejos de crime, ambições retorcidas e pesadelos taciturnos, predicados que estão
estranhamente colocados nessas frases. Poderíamos intuir que o gosto pela poesia-cidade é
algo que ultrapassa as convenções e, inclusive, que transpõe o controle consciente do eu-
poético, principalmente no verso 25, último da estrofe, em que o pesadelo triste, que é
incontrolável e não desejado, é amado.
Na sequência, o poeta faz referência a dois autores. Quando fala em Canaã, alude ao
romance de 1902 de Graça Aranha, considerado a primeira obra simbolista do Brasil. Faz
menção a Edgar Allan Poe, escritor norte americano, considerado pela crítica, por ter sido
traduzido por Baudelaire ao francês, o precursor da poesia simbolista. Graça Aranha, em seu
livro, apresenta a vida de dois imigrantes alemães em terras brasileiras, em uma colônia no
estado de Espírito Santo. Ambos convivem com a cultura e os costumes dos colonos nativos e
expõem suas opiniões sobre a convivência, tendo Milkau opinião geralmente favorável aos
brasileiros e Lentz contrárias, discutindo, entre outros assuntos, a expressão de nacionalidade,
bem como a incapacidade do povo nativo de desenvolver o território do Brasil. Este livro é
considerado pela crítica um representante do que seria o “pré-modernismo”, pois apresenta
assuntos que seriam retomados com vigor pelos modernistas duas décadas mais tarde. Quanto
ao simbolismo, Brito afirma que teve influência no movimento, apesar de não ser reconhecido
9
por Oswald de Andrade e nem por Mário de Andrade. Para ele, o simbolismo “é mais uma
etapa, um intervalo, um momento de passagem que constitui antes solução de continuidade no
desenvolvimento literário nacional. Um período cinzento que, no entanto, viria facilitar o
surgimento da corrente modernista posterior” (BRITO, 1997, p.15). Importante lembrar que
neste mesmo ano, 1921, Graça Aranha retorna da Europa, onde exercia serviços de
diplomacia, e vem ao encontro das ideias modernistas, aderindo ao grupo e auxiliando
(também financeiramente) a realização da Semana de Arte Moderna.
No verso que fecha a estrofe (verso 27), a menção continua sendo a Edgar Allan Poe.
O famoso feche das estrofes do poema “O corvo” (POE, 2011), “Never more”, Nunca mais. E
a referência é também ao norte americano na próxima estrofe (verso 20), no qual encontramos
o nome de Emilio de Meneses, poeta boêmio e satírico, que parafraseou a primeira tradução
brasileira do poema “O corvo” feita por Machado de Assis, transformando o poema em 18
sonetos. O verso trata do insulto feito pelo poeta à memória de Poe, o “enquadramento” do
poema na forma suprema do parnasiano, o soneto.
A sétima estrofe, composta por 4 versos, vai também fazer menção a Poe, desta vez a
um conto publicado pela primeira vez em 1843, “O gato preto” (verso 30). O conto relata um
crime, em que o marido assassina sua esposa em um acesso de raiva e ciúmes do gato preto de
estimação, e esconde seu corpo em uma parede no subsolo da casa. Com a morte da mulher, o
gato acaba desaparecendo, e é encontrado pela polícia, que, ao rastrear a casa a procura do
corpo, ouve um miado que vem de dentro da parede. E assim encontra o corpo, denunciado
pelo gato que ficou preso junto a sua dona. Essa mulher poesia-cidade é o gato preto, o fiel
companheiro(a) das aspirações do poeta, presente até no inconsciente, nas paredes do sonho
medonho (versos 31 e 32). Por fim, os últimos 4 versos estão novamente trazendo a questão
da poesia-cidade estar em um lugar não bem definido, uma mulher entre a nobreza e a
servidão (verso 34), que está a prender o eu-poético até mesmo inconscientemente (verso 35),
sempre presente, em “todas as auroras do meu jardim!”.
Após esse apanhado geral do poema “Tu”, vamos nos deter no verso 14, um verso
significativo para a leitura que está sendo proposta. Segundo Tele Lopez (curadora do arquivo
de Mário de Andrade), o poeta estava tendo contato com a corrente expressionista alemã
desde 1918, e é esta influência que será tratada como leitura do verso em questão.
Cada uma das correntes (francesa e alemã) tende a abarcar e resolver dentro de si as
exigências da outra: superar os conteúdos históricos, contudo, não significa colocar-
se fora e acima da história, e sim sentir que uma história moderna não mais pode,
não mais deve ser uma história de nações (ARGAN, 1992, p.228).
Mário de Andrade inicia seu contato com o expressionismo alemão por volta do ano
de 1918, quando começa a colecionar uma revista alemã, a Deutch Kunst und Dekoration, que
reunia trabalhos de artistas plásticos e textos teóricos do movimento. Segundo Lopez, sua
curiosidade pelo expressionismo pode ter sido incitada pela exposição que Anita Malffati
realizou em 1917. Nessa revista, estão discussões sobre deformação da natureza, belo da arte
e belo da natureza, conquistas da arte primitiva e sua expressão. Segundo a autora, “Paulicea
Desvairada” possui características explicitas do movimento, principalmente em poemas como
“O Trovador”, em que o verso final, “Sou um tupi tangendo um alaúde”, está de acordo com a
valorização da arte primitiva. Nas palavras de Lopez,
A ideia de uma arte voltada para o social, que no expressionismo literário ambiciona
fazer da palavra uma ação, voltada para a reformulação do mundo e reconhecendo a
existência de um vinculo natural entre o artista e a humanidade, inclina-se para o
universal, na medida em que está propondo um homem novo. (LOPEZ, 1991, p.95)
O que defende Mário de Andrade é que a obra de Debussy não pode ser avaliada
com a realidade da primeira impressão; suas composições não se propõem a descrever, pelo
contrário, sua obra desdenha o descritivo. É uma “inteligência da primeira impressão”
(ANDRADE, 1993, p.107) que se exige para que a obra possa ser compreendida. Essa
inteligência, que transpõe a simples impressão da retina, que não faz além de comparar a obra
com a natureza, é o que Mário de Andrade está a representar quando nos coloca um
crepúsculo ardente, que só pode ser compreendido em uma instância que ultrapasse as
convenções de natureza e que proponha uma vida especifica e diferente para a obra de arte (a
música e a poesia). Ao aproximar Debussy do expressionismo e inserir em seu poema versos
como “gosto dos teus ardores crepusculares/crepusculares e por isso mais ardentes” (versos
14 e 15), está chamando atenção para uma vida artificial, que só pode acontecer dentro da
obra e por isso não pode ser comparada à vida vivida, tal qual acontece na natureza.
Neste sentido, outro exemplo interessante a se apresentar é o poema “Danças”
(ANDRADE, 1979, p.157), de 1930, em que as palavras obedecem a passos de dança na
página, e cada passista é, na parte III, um pronome. Estão a dançar
EU/ELE/TU/NÓS/ELES/VÓS. E nos dois últimos versos desta seção do poema, há a
13
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Mário de. Paulicea Desvairada. In: Poesias completas. São Paulo (SP): Editora
Martins, 1979.
_____. Remate de Males. In: Poesias completas. São Paulo (SP): Editora Martins, 1979.
ANDRADE, Oswald de. Estética e Política. São Paulo (SP): Globo, 1992.
ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna: do iluminismo aos movimentos contemporâneos. São
Paulo: Companhia das Letras, 1992.
ANEXO 1
TU
1 Morrente chama esgalga,
2 mais morta inda no espírito!
3 Espírito de fidalga,
4 que vive dum bocejo entre dois galanteios
5 e de longe em longe uma chávena da trave bem forte!
14
RESUMO
Pretende-se neste artigo fazer uma leitura das escrituras biográficas do poeta Chacal, Posto 9
e Uma história à margem. Para tanto, coloco em confronto a teoria de Josefina Ludmer a
partir da ideia de Literatura Pós-autônoma, em que as escrituras contemporâneas são e não
são literaturas ao mesmo tempo, com a teoria de Alvaro Lins, em que lê a biografia como uma
verdade documental através da história. Com isso, proponho ler, a partir de Ludmer, as
biografias a fim de pensá-las como narrativas, como criação ficcional, tentando manter um
distanciamento para que a leitura crítica dos escritos de Chacal não fique comprometida por
conta do discurso do poeta. Como afirma Ana Cristina Cesar a respeito das escrituras extra-
literárias: é preciso evitar "fúrias biografistas".
ABSTRACT
The aim of this article is to read the biographical writings of Chacal, Posto 9 e Uma história à
margem. For this, the theory of Josefina Ludmer - about the idea of Post-autonomous
Literature, which is that the contemporary writings are and are not literatures at the same time
- is confronted with Alvaro Lins's theory, which reads the biography as a documental verity
through history. Therewith, I propose the reading of Chacal's biographys, through Ludmer, to
think them as narratives, as a fictional creation. Also, it is a study to try keeping a detchament
of Chacal's writings for not compromised the critic reading by the poet's speech. As Ana
Cristina Cesar affirms in relation to the extra literary writings: it is necessary to avoid
"irrational biographical uses"
Com isso, a partir da leitura das escrituras contemporâneas ligadas a uma "realidade
cotidiana" - realidade que não quer ser representada, pois já é pura representação - Ludmer
nega uma oposição entre literatura e história e propõe um território "sem foras". Se as
1
Bacharel em Letras Inglês e Literaturas (UFSC) e mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura
(PPGL/UFSC); e-mail: gomex10@hotmail.com.
2
Acredito que à biografia romanceada cabe a perturbação que desceu sobre uma
questão já resolvida e que nada tinha de complicada. A história era julgada uma arte
apenas na sua expressão, na forma, na construção, no estilo. Em essência, no seu
conteúdo, nos fatos, a história deve ser, em rigor, história. Nunca poderá ser
romance porque o seu caráter principal é a exatidão, a fidelidade, a veracidade.
(LINS, 1964, p. 353)
Alvaro Lins, portanto, vai tratar a biografia como uma ciência da documentação, vai
pensar essa documentação como uma verdade absoluta trazida pelos fatos históricos, pela
história. Se há criação na biografia, para o crítico, ela se revela apenas no estilo da escritura
em si. À época, Lins rebatia o estudo do biógrafo Edgar Cavalheiro, que dizia trabalhar como
romancista. Lins tenta argumentar que a história carrega uma verdade pura e, por isso, não
sustenta uma leitura da criação romanceada. Porém, pensar em verdade, segundo Badiou
(2002) só é possível se entendermos que toda verdade - verdades, no plural, e não apenas uma
verdade - é um processo que se inicia a partir de um acontecimento e que este, revela o vazio
da situação. Diz Badiou:
Portanto, pensar a história como fundamento de uma possível única verdade e, ainda,
a biografia como veículo para exposição dessa verdade histórica, através de uma escritura
documental, não seria possível nem para Ludmer, nem para Badiou.
Apesar de não estarem em diálogo direto, confronto os trabalhos de Josefina Ludmer
e Alvaro Lins para ler a produção contemporânea de Chacal, poeta tão prolixo à biografias.
Dentre quatorze livros publicados ao longo de 40 anos dedicados à atividade de poeta e
cronista, dois livros são autobiografias, são eles Posto 9 e Uma história à margem.
3
Prefeitura do Rio de Janeiro. Não tenho a intenção, aqui, em aprofundar as questões que
certamente envolveria a relação entre mercado e literatura a partir desses projetos de Chacal
financiados pela Prefeitura. O interesse maior é em relação à proposta de construir uma
"cultura carioca", o que buscaria uma tentativa de identificar, através da cultura, uma
identidade da cidade.
Sobre a narrativa de Posto 9 há uma montagem de depoimentos compondo o que
parece ser uma "memória coletiva" em relação à praia, e Chacal, que é personagem e
narrador, insere vários outros personagens narradores em seu texto no fim do livro, dedicando
um espaço a eles intitulado "Povo do Nove". Chacal, nesta apresentação, diz:
Tem pessoas que tem mais horas de Nove que gaivota de vôo. Outras são ocasionais
como golfinhos. Elas têm um jeito carioca de ir, de estar na praia. São testemunhas e
atores desses quase 25 anos de Posto Nove. Pessoas que têm maresia na alma e
salitre nos ossos. (CHACAL, 1998, p. 54)
Aos 14 anos (...). Foi mais ou menos por essa época que Chacal se superpôs ao meu
nome cristão. (...) Depois de um treino, me atrasei no vestiário, e quando cheguei à
cantina do ginásio do Mourisco, onde a seleção treinava, a rapaziada comia quieta.
Diante do silêncio exclamei: "Que onda chacal!". Era uma gíria da época que não
lembro mais o significado. Devia ser o mesmo que onda careca, onda por fora,
devagar. Fato é que Serginho achou engraçado e levou para a turma da praça.
(CHACAL, 2010, p.13-14)
Em seu primeiro livro Muito Prazer, Ricardo, Chacal não aparece, quem estréia é
apenas Ricardo. Na segunda edição de seu primeiro livro, em edição comemorativa de 25
anos pela editora Sette Letras, Chacal resolve se apresentar sem Ricardo e torna o livro,
apenas, Muito Prazer. Retira seu nome e torna-se anônimo, nem sequer acrescenta depois do
"muito prazer" seu pseudônimo Chacal. Seria um atestado de anonimato que o pseudônimo-
apelido causa? O "poeta-lobo" explica:
PS: Na primeira edição do "Muito Prazer", por paranóia ou não, fui aconselhado a
assinar Ricardo, meu nome cristão. Assim era a capa: "Muito Prazer, Ricardo". Hoje
as coisas aparentemente mudaram. (CHACAL, 1997, p.10)
2
A última versão publicada deste poema, no livro Belvedere (2007), o poeta modificou seu título, deixando-o
"Guitarrinha ranheta". Em sua primeira versão, e segunda, nos livros América (1975) e Drops de abril (1983), o
poema se chamava "My generation".
7
i'm free
like a rolling stone
Ou como, por exemplo, no trecho "Ouro Preto a pé", também do livro Uma história
à margem, em que Chacal tenta explicar seu poema - do livro a vida é curta pra ser pequena -
através de sua própria vida, de um acontecimento biográfico. Chacal diz que a viagem à
cidade de Ouro Preto, durante o Festival de Inverno, no qual apresentava uma palestra, rendeu
um bom poema. Além de previamente qualificar o poema, o poeta também o justifica pelos
fatos biográficos. Eis a explicação e, em seguida, o poema:
Acordei ainda na névoa do amanhecer, como de hábito, e fui dar uma caminhada
pela cidade, E o poema foi pintando na cabeça. Parecia Gullar. E sempre que isso
acontece, fico feliz. Integrei o poeta ao poema. Veio o refrão, vieram algumas
estrofes. Era um poema sobre Ouro Preto qye já não invocava suas igrejas, sua
inconfidência, seu passado colonial. Era a Ouro Preto de hoje e falava da hora boa
pra se criar. Os surrealistas também acreditavam nela. (...) Ele já tinha o refrão e as
estrofes. Depois, no Rio, fiz os acertos necessários, dando a estrutura final.
(CHACAL, 2010, p.174)
ouro preto a pé
vagar a esmo
numa romaria sem rumo
sem credo sem dor
vagar...
II
III
e definir contornos
bater perna
pisar pedra
em ouro preto
IV
Além da explicação do poema através de sua própria vida, Chacal ainda coloca-se ao
lado de poetas brasileiros que nada têm em comum com a poesia do poeta carioca, como é o
caso de Ferreira Gullar e, possivelmente - ao falar dos surrealistas e a relação com Ouro Preto
-, de Murilo Mendes, poeta que tem um livro inteiro dedicado à cidade barroca, o
Contemplações de Ouro Preto. Ainda, este é um poema que abre o livro a vida é curta pra ser
pequena, livro que - para Chacal - quer representar seus 50 anos de vida, comparando-se a
Manuel Bandeira, poeta que dedicou o livro Lira dos Cinquent'anos também pelo mesmo
motivo, e tem o primeiro poema intitulado "Ouro Preto". Há por parte de Chacal, além de
uma tentativa de consagração através de seu próprio discurso - como que querendo convencer
a todos de que sua poesia se sustenta assim como a de grandes poetas consagrados do cânone
brasileiro -, uma tentativa exagerada pela explicação de seus poemas através de sua vida.
A leitura dos poemas de Chacal como ilustração de suas memórias acaba
empobrecendo os próprios poemas, lê-los a partir de uma perspectiva biografista, como me
parece estarem expostos junto às memórias, limitam-os a uma explicação baseada apenas na
vida do autor. Assim como Ana Cristina disse, o importante é fazer o uso inteligente da
biografia sem se deixar cair no comparativismo simplório entre o literário e o extraliterário. O
interessante, neste caso, é pensar a biografia Uma história à margem como narrativa e
também antologia poética, potencializando sua literariedade, pensando a biografia como
narrativa e forma literária. A intenção, aqui, é justamente problematizar a insistência por uma
leitura baseada no discurso do próprio poeta, é ler as biografias a fim de pensá-las como
narrativas literárias, tentando manter um distanciamento para que a leitura crítica não fique
comprometida por conta do discurso do poeta
REFERÊNCIAS
BADIOU, Alain. Pequeno Manual de Inestética. Trad. Marina Appenzeller. São Paulo:
Estação Liberdade, 2002.
10
CESAR, Ana Cristina. Crítica e ficção. São Paulo: Editora Ática, 1999.
CHACAL. Drops de abril (coleção Cantadas literárias). São Paulo: Brasiliense, 1983.
RESUMO
Este artigo focaliza aspectos ligados às reflexões desenvolvidas por Walter Benjamin a
respeito da construção do relato ficcional e/ou histórico no viés das relações entre a
circunstância e imagem da morte e a narração. Para tanto, propomos a leitura de alguns textos
de Benjamin que focalizam situações, quadros e episódios em que a morte e a ação de narrar
estão inter-relacionadas. Persegue-se aqui a ideia de uma teoria da pulsão narrativa
considerada por Benjamin na leitura de outros autores/narradores da modernidade (em
especial, Marcel Proust e seu Em busca do tempo perdido), além de se rastrear tais marcos
teóricos nos escritos do próprio Benjamin. Ainda que tangencialmente, esta breve análise da
teoria narrativa benjaminiana espera poder contribuir para o debate contemporâneo a respeito
das (im)possibilidades de relato que cercam a literatura de testemunho dos grandes conflitos
bélicos do século XX.
Palavras-chave:
Walter Benjamin. Pulsão narrativa. Morte.
RESUMÉE
Le présent article se concentre sur les aspects liés aux réflexions développées par Walter
Benjamin sur la construction de rapports fictifs et historiques biais dans les relations entre
l'état et l'image de la mort et la narration. À cette fin, nous proposons de lire certains textes de
Benjamin qui se concentrent sur des situations, des images et des épisodes dans lesquels la
mort et l'acte de narration sont interdépendants. Poursuit ici l'idée d'une théorie de la pulsion
narratif considérée par Benjamin dans la lecture d'autres auteurs/narrateurs de la modernité
(en particulier, Marcel Proust et son livre À la recherche du temps perdu), en plus de suivre
ces cadres théoriques dans les écrits de leurs propres Benjamin. Bien que tangentiellement,
cette brève analyse de la théorie narratif de Benjamin espère contribuer au débat
contemporain sur les (im)possibilités de reporting entourant la littérature témoignages des
grandes guerres du XXe siècle.
Mots-clés:
Walter Benjamin. Pulsion Narratif. Mort.
1
O conceito é de Jeanne Marie Gagnebin, que considera existir uma “teoria da pulsão narrativa” perpassando a
obra de W. Benjamin e que pode ser interpretado como a perene necessidade humana do contar histórias,
especialmente, diante das situações que ameaçam a possibilidade da narrativa (seja ela histórica, ficcional ou
crítica) – como a iminência da morte -, ou o que Benjamin, na Tese VI de “Sobre o conceito de história”
classificou como o “instante do perigo” - momento propício para o historiador resgatar a imagem do passado.
Cf. BENJAMIN, W. Obras escolhidas I: magia e técnica, arte e política. 7.ed. São Paulo: Brasiliense, 2008.
p. 224. [Na obra supracitada, o tradutor, Sergio Paulo Rouanet, emprega a expressão “momento de perigo”.
No presente escrito, valemo-nos da tradução das teses realizada por J.M.G. e Marcos Lutz Müller, a mesma
que foi utilizada na leitura das teses feita por Michael Lövy em seu livro Walter Benjamin: aviso de incêndio.
São Paulo: Boitempo, 2005. Cf. p. 65].
2
Doutorando em Teoria e História Literária; email: jmachinski@yahoo.com.br.
2
1 INTRODUÇÃO
3
Ver a introdução do livro de Michael Löwy: “Romantismo, messianismo e marxismo na filosofia da história
de Walter Benjamin”. p.13.
4
Cit.: BOLLE, W. Fisiognomia da metrópole moderna: representação da história em Walter Benjamin. 2. ed.
São Paulo: Edusp, 2000. p. 150.
3
sintetiza essa clássica distinção da seguinte maneira: “Ao tipo de memória morta, apegada à
'vivência' (Erlebnis), o crítico opõe, como formas autênticas de memória, a 'experiência'
(Erfahrung) e a 'rememoração' (Eingedenken)”. No prefácio escrito para o primeiro volume
da tradução brasileira das Obras escolhidas de Walter Benjamin, intitulado “Walter Benjamin
ou a história aberta”, Jeanne Marie Gagnebin, também tendo em vista os dois textos aqui
focalizados, aborda essa contraposição de conceitos, situando-os em relação às preocupações
teóricas do filósofo quanto ao enfraquecimento da Erfahrung no mundo capitalista moderno:
Nos textos fundamentais dos anos de 1930, […] Benjamin retoma a questão da
“Experiência”, agora dentro de uma nova problemática: de um lado, demonstra o
enfraquecimento da Erfahrung no mundo capitalista moderno em detrimento de um
outro conceito, a Erlebnis, experiência vivida, característica do indivíduo solitário;
esboça ao mesmo tempo, uma reflexão sobre a necessidade de sua reconstrução para
garantir uma memória e uma palavra comuns, malgrado a desagregação e o
esfacelamento do social. (BENJAMIN, 2008, p.9)
Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos viu-se
abandonada, sem teto, numa paisagem diferente em tudo, exceto nas nuvens, e em
cujo centro, num campo de forças de correntes e explosões destruidoras, estava o
frágil corpo humano. (BENJAMIN, 2008, p.115)
estertores do indivíduo burguês, seu protesto quando algum objeto se perdia ou se quebrava,
deviam-se ao pressentimento que, segundo Benjamin, seus vestígios estavam sendo abolidos
deste mundo.
Se a nova configuração urbana repele a presença do homem e impede que ele
imprima nela as suas marcas, se a satisfação de seus desejos restringe-se ao universo dos
sonhos – esse lapso de tempo quase vida, quase morte -, a necessidade de contar a história
permanece em meio à pobreza de experiências; e, talvez, até recrudesça diante da extinção
crescente das possibilidades de existência e realização, ainda que isso exija a invenção de
novos nomes, de uma nova língua.
Escalaram o Etna.
O esforço da escalada
Fez com que se calassem. Nenhum sentiu falta
Das palavras sábias.
comunidade faz-se indispensável para que ele disponha do tempo necessário para organizar os
elementos de sua experiência e reelaborar o conteúdo da tradição (apropriar-se também do
passado). Benjamin localiza na figura do artesão medieval tais condições - a experiência do
nomadismo (o “marinheiro mercante”) e a do sedentarismo (o “lavrador”) - pois, antes de ser
mestre artífice em sua oficina ele havia tido a oportunidade de, no passado, atuar como
aprendiz volante. Assim Benjamin resume o quadro acima descrito:
Como se sabe, a civilização industrial e seus novos modos de produção iriam causar
a extinção irreversível das antigas condições de formação do narrador tradicional.
Benjamin chama a atenção para a utilidade da narrativa enquanto portadora de
sabedoria, pois, ela estaria ligada à possibilidade de transmitir e receber conselhos e, dessa
forma, dar continuidade a uma história que se desenvolve no presente. Além disso, Benjamin
identifica uma orientação para o interesse prático como traço característico de muitos dos
narradores autênticos. Entretanto, assim como a experiência, também a sabedoria estaria em
declínio no tempo de desenvolvimento da técnica anunciando, negativamente - como o fez de
outra forma e mirando outras paisagens a teoria pós-moderna – o fim das grandes narrativas:
O conselho é de fato menos resposta a uma pergunta do que uma proposta que diz
respeito à continuidade de uma história que se desenvolve agora. Para recebê-lo
seria necessário, primeiro de tudo, saber narrá-la. […] O conselho, entretecido na
matéria da vida vivida, é sabedoria. A arte de narrar tende para o fim porque o lado
épico da verdade, a sabedoria, está agonizando. (BENJAMIN, 1969, p. 59)
Esse estado de coisas não deveria ser visto, segundo Benjamin (1969, p. 59), como
um fenômeno resultante da modernidade, mas antes como “uma manifestação secundária de
forças produtivas históricas seculares que aos poucos afastou a narrativa do discurso vivo, ao
mesmo tempo em que tornava palpável uma nova beleza naquilo que desaparecia”.
O surgimento do romance moderno assinala, para Benjamin, o início de um processo
que culminaria no declínio da narrativa. A distância entre o romance e o gênero épico (e seu
fundo de tradição oral) deve-se, segundo o autor, à dependência material daquele em relação
ao livro. A narrativa, enquanto conjunto de saberes acumulados e que podem ser revividos por
quem a escuta já não é mais possível porque o romance é fruto de um indivíduo solitário,
7
apartado de sua audiência e que, por isso, perdeu a capacidade de dar conselhos. Por sua vez,
a invenção da imprensa, forma de comunicação por excelência na sociedade capitalista, bem
como a exigência de verificabilidade das informações reforçaria o desaparecimento da
atividade narrativa, pois, as notícias veiculadas por ela vêm com as explicações dadas de
antemão. À atemporalidade da narrativa, à permanência de seus efeitos e aos desdobramentos
de seus sentidos ao longo dos tempos (Benjamin exemplifica essas características com uma
história de Heródoto sobre o rei egípcio Psamenita), opõe-se o momentâneo, a fugacidade e o
imediatismo da notícia: “Se a arte de narrar rareou, então a difusão da informação teve nesse
acontecimento uma participação decisiva”. (BENJAMIN, 1969, p. 61)
A perpetuação da arte do narrar depende da predisposição de quem se entregue a
escutá-la; e isso exige uma pausa no ritmo de vida, certa quietude sábia que Benjamin nomeia
de tédio. Entretanto, aqui não devemos confundir “tédio” com a acepção comum dessa
palavra no contexto da língua portuguesa no sentido de fastio, enfado ou apatia; ou, ainda,
como algo “tedioso”, no sentido de que desagrada. Trata-se, antes, de um tédio
produtivo/construtivo na forma da recepção promovida pela ociosidade, algo que parece estar
mais próximo do ennui ou do spleen baudelaireano, um taedium vitae5. No tableaux “Paris, a
cidade no espelho” (subintitulado “Declaração de amor dos poetas e artistas à 'capital do
mundo'”), em que Benjamin transforma a capital francesa num imenso salão de biblioteca,
temos a descrição de uma situação capaz de esclarecer certo sentido desse tédio que também
pode ser tomado como sinônimo de ócio. No texto em questão, a atividade de leitura é a
correspondente da atitude de escuta da narrativa:
De todas as cidades não há nenhuma que se ligue mais intimamente ao livro que
Paris. Se Giraudoux tem razão e se a maior sensação de liberdade humana é flanar ao
longo do curso de um rio, então aqui a mais completa ociosidade, e portanto a mais
prazerosa liberdade, ainda conduz livro e livro adentro. Pois sobre os desnudos quais
do Sena há séculos se deitou a hera de folhas eruditas: Paris é um grande salão de
biblioteca atravessado pelo Sena. (BENJAMIN, 1994, p.195)
Como o ritmo de produção industrial na vida moderna pouco tempo prevê para a
contemplação e para esse tédio formador, as narrações enfraquecem, visto que, o homem não
tem mais condições para entregar-se e gravar em si as histórias que lhe são contadas a fim de
recontá-las promovendo, assim, as “múltiplas renarrações”. É um estado de coisas que nos
remete à comparação que Georg Lukács estabelece em Teoria do romance entre a
fragmentariedade e individualismo do mundo moderno, retratado no romance, e o aspecto de
5
Cf. BOLLE, W. Op. cit., p. 129.
8
Ulisses não deve esquecer o caminho que tem de percorrer, a forma de seu destino:
em resumo, não pode esquecer a Odisséia. Porém, mesmo o aedo que compõe
improvisando ou o rapsodo que repete de cor trechos de poemas já cantados não
podem olvidar se querem “dizer o retorno”; para quem canta versos sem o apoio de
um texto escrito, esquecer é o verbo mais negativo que existe; e para eles “esquecer
o retorno” significa olvidar os poemas chamados nostoi, cavalo de batalha de seu
repertório. (CALVINO, 2002, p. 18)
Algumas pistas de uma teoria da pulsão narrativa podem ser entrevistas naquilo que,
inspirado por bela imagem metafórica, Benjamin diz sobre o envolvimento entre narrador e
coisa narrada. A narração de histórias, vista tradicionalmente, não se contenta em ser
referencial, objetiva, apresentando os fatos em si. Ao colocar a narrativa nos termos (bastante
sugestivos) de uma “forma artesanal de comunicação”, Benjamin mostra que quem conta
deixa suas marcas pessoais naquilo que é contado, pois, a narrativa
Mergulha a coisa na vida de quem relata, a fim de extraí-la outra vez dela. É assim
que adere à narrativa a marca de quem narra, como à tigela de barro a marca das
mãos do oleiro. A tendência dos narradores é começarem sua história com uma
apresentação das circunstâncias em que eles mesmos tomaram conhecimento
daquilo que segue, quando não as dão pura e simplesmente como experiência
pessoal. (BENJAMIN, 1969, p. 63)
das catedrais.
W. BENJAMIN, “O narrador”.
Idem.
Como, na vida moderna, tudo deve ser abreviado e executado no menor intervalo de
tempo possível, a narrativa também é abreviada e repele a visão do eterno. Em sentido
contrário ao que Benjamin tem em vista quando utiliza o conceito de eterno, olhando para a
nossa presente realidade, vemos que o que persiste e se persegue a todo custo pela maioria das
pessoas é o mito da 'eterna juventude'. Aquilo que Benjamin vinha observando na transição do
século XIX para o século XX, e que poderíamos resumir como o afastamento ou apagamento
da imagem ou da idéia da morte, funciona hoje como um dos motores mesmo da máquina
social, especialmente em termos econômicos. O paradigma do estilo juvenil arrombou portas
e tornou-se imperativo em todos os setores da vida moderna: artes, economia, política,
educação, família etc. Como sugerem alguns filósofos, psicólogos e sociólogos
contemporâneos, o tabu do sexo foi substituído de vez, nas últimas décadas do século XX,
pelo tabu da morte (e relendo Benjamin podemos nos dar conta de como esse processo veio se
desenvolvendo há tempos). Os traços da velhice física - para muitos, sinônimos de
“experiência” e “sabedoria” - devem ser apagados a qualquer.
Conservam extrema atualidade as observações a seguir, quando Benjamin (1969, p.
64) aborda o destino daqueles que perdem vida ativa no sistema: “Em espaços que ficaram
purificados de morte os cidadãos hoje são habitantes enxutos de eternidade e, quando seu fim
se aproxima, eles são dispostos pelos herdeiros em sanatórios ou hospitais”. Na sequência de
10
suas observações Benjamin identifica uma autoridade do conhecimento de si que está na base
da narrativa e que só pode ser adquirida por aquele que está ameaçado, no momento em que
todo o “inesquecível” a respeito de si emerge do íntimo e reclama voz - e que lemos como a
pulsão narrativa diante da morte:
No entanto não é só o saber ou a sabedoria do homem, mas acima de tudo sua vida
vivida – a matéria de onde surgem as histórias – que assume forma transmissível
primeiro naquele que morre. Da mesma maneira como no íntimo do homem entra
em movimento, com o correr da vida, uma sequência de imagens – que consiste nos
pontos de vista da própria pessoa, entre os quais sem se aperceber ele encontra a si
mesmo – aos seus gestos e olhares incorpora-se de repente o inesquecível e
transmite, a tudo que lhe disse respeito, a autoridade de que até o mais miserável pé-
de-chinelo dispõe diante dos vivos, na hora de morrer. Esta autoridade está na
origem da narrativa. (BENJAMIN, 1969, p. 64)
6
Vale atentar para o fato de que o discurso médico não empregue algum termo mais comum da área como
“sintoma”, “reação” ou “resposta” para nomear tais situações, mas sim, “experiência”.
7
Lembremos que, etimologicamente, a palavra anima significa 'alma'. Nesse sentido, o que o cinema de
animação e os referidos impressos procuram fazer é dar vida ao inanimado.
11
Penso que isso de “toda a vida”, que dizem passar diante dos olhos do moribundo,
se compõe de tais imagens que tem de nós o homenzinho. Passam a jato como as
folhas dos livrinhos de encadernação rija, precursores de nossos cinematógrafos.
Com um leve pressionar, o polegar se movia ao longo da superfície de corte; então
se viam imagens que duravam segundos e que mal se distinguiam umas das outras.
Em seu decurso fugaz deixavam entrever o boxeador em ação e o nadador lutando
contra as ondas. (BENJAMIN, 1994, p. 142)
O que Benjamin (1969, p. 64) propõe a seguir, em consonância com o curso natural
de uma vida, também faz lembrar certos romances (especialmente, aqueles que podem ser
situados na categoria de 'romance de formação') em que o narrador só atinge uma idéia mais
clara de si quando a narrativa chega ao fim, quando ele já esta de posse plena da sequência de
imagens que formaram sua experiência e que, geralmente, coincide com sua velhice avançada,
a morte natural ou o suicídio (isso quando não é o caso de o jogo ficcional proposto pelo autor
apresentar um narrador já morto, como é o paradigma clássico, no quadro da literatura
brasileira, das Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis): “A morte é a
sanção de tudo o que o narrador pode relatar. Ele derivou sua autoridade da morte. Em outras
palavras: ela é a história natural a que suas histórias remetem”. Para fins de comparação,
poderíamos pensar na figura de um turista (e sabemos que, na literatura, incontáveis vezes, a
vida de um personagem é retratada como uma jornada, uma viagem por determinados espaço
e tempo) e seu impulso em contar sobre as situações vividas, as paisagens avistadas: seu
relato de tal viagem só conquistará completude quando ela tiver atingido o seu término.
É justamente quando morre alguém que nos é familiar, com quem tivemos a
oportunidade de trocar experiências (e que, por isso, não nos é indiferente) que nos sentimos
subitamente tomados pela pulsão narrativa em relação à história pessoal daquela pessoa.
Todos aqueles que puderam partilhar da convivência com o ser agora ausente também sentem
a necessidade de rememorar os episódios vividos ao lado dele e que podem compor as suas
versões pessoais com vistas a contribuir na reconstituição de tal história que é, então, de certa
forma, revivida na ausência (nesses momentos, as capelas mortuárias metamorfoseiam-se em
verdadeiros auditórios de recitais narrativos memorialísticos). Tal constatação parece
confirmar a ideia muito disseminada na obra de Benjamin (notadamente, nas teses de “Sobre
o conceito de história”) de que aquilo que existiu uma vez no passado, mesmo quando deixou
poucos rastros, reclama não cair no esquecimento. Além disso, do que pode ser interpretado
da visão de Benjamin sobre o processo histórico, os mortos – e com eles o passado – deixam
algo inconcluso no espaço da esperança que não se realizou.
Se for verdade que, enquanto leitores, adquirimos maior capacidade de interpretação
de uma obra quando não estamos mais colados à vida do autor, isto é, após sua morte, isso
12
parece também ser válido em relação à distância que se faz indispensável para uma boa
análise entre o observador e o objeto de sua análise. Conforme apontou Jean Marie Gagnebin
durante os seminários do curso8 que ensejou este trabalho, os escritos biográficos de
Benjamin foram produzidos de um lugar sempre distante do tempo/espaço descrito: as
imagens da infância, por exemplo, são recuperadas na vida adulta, o que permite uma visão
mais ampla da própria infância (e Benjamin vai insistir no futuro que vinha sendo preparado
naqueles momentos resgatados do passado, mas que, só agora, no momento da recordação
distanciada, isso se torna plenamente perceptível); os momentos em que foram produzidos os
retratos narrativos de Paris/Berlim/Moscou, por sua vez, nem sempre coincidem com o
período em que autor esteve nessas cidades. É por isso que Gagnebin afirma que, em tais
momentos, Benjamin porta-se, também ele, como um viajante e que esses textos poderiam ser
considerados como “escritos do exílio”. Como Benjamin sabe (e o conhecimento da teoria
freudiana da psicanálise contribui para isso) que seria vã a tentativa de recompor o passado
exatamente como a imagem que se apresenta no momento da recordação, o esquecimento
também toma parte nesse processo narrativo porque o passado permanece aberto (saturar o
passado, tentando preencher todas as lacunas é algo que se presta à monumentalização desse
passado, algo que Benjamin combatia como, por exemplo, em sua revisão sobre a recepção da
obra de Goethe no contexto alemão). Outro autor que se dedicou intensamente ao trabalho de
investigação dos mecanismos da narrativa, Paul Ricoeur (autor de Tempo e narrativa), previa
que era preferível falar-se de um “trabalho de memória”, ao invés de “dever de memória”,
pois a ideia contida nessa última expressão seria correspondente às atribuições do Estado ao
eleger, proteger e celebrar seus heróis.
Em um ensaio que apresenta a comparação entre as diferentes formas de reelaborarão
da matéria de memória nas obras Infância Berlinense, de Benjamin, e Em busca do tempo
perdido, de Marcel Proust, Peter Szondi ressalta o caráter de abertura do passado na obra do
primeiro. Apesar de nos vermos obrigados a suprimir alguns trechos em virtude dos limites
deste trabalho, a citação serve para nos ajudar a melhor compreender esses dois modos de
busca pelo tempo perdido:
Proust busca o passado para, na sua coincidência com o presente – uma coincidência
acompanhada pelas respectivas experiências de cada momento – escapar do tempo, e
isso significa, antes de tudo, escapar do futuro, de seus perigos e ameaças que, em
último caso, são a própria morte. Benjamin, ao contrário, busca no passado o futuro
8
GAGNEBIN, J. M. “A filosofia da história de Walter Benjamin e o debate narrativo e histórico
contemporâneo”. Curso ministrado no Programa de Pós-Graduação em Teoria e História Literária do
IEL/UNICAMP, fev-jul/2011.
13
Trata-se, no fundo, de lutar contra o tempo e contra a morte através da escrita – luta
que só é possível se morte e tempo forem reconhecidos, e ditos, em toda a sua força
de esquecimento, em todo o seu poder de esquecimento, em todo o seu poder de
aniquilamento que ameaça o próprio empreendimento do lembrar e do escrever.
(GAGNEBIN, 2006, p. 146)
O que Ulisses salva do lótus, das drogas de Circe, do canto das sereias, não é apenas
o passado e o futuro. A memória conta realmente – para os indivíduos, as
coletividades, as civilizações – só se mantiver junto a marca do passado e o projeto
do futuro, se permitir fazer sem esquecer aquilo que se pretendia fazer, tornar-se
sem deixar de ser, ser sem deixar de tornar-se. (CALVINO, 2002, p. 13)
No texto “Nº 113. Sala de Refeições”, de Rua de mão única, Benjamin (1994,
p. 13) descreve um sonho no qual se vê no gabinete de trabalho de Goethe, recebe de presente
deste um pequeno vaso e toma lugar ao lado direito dele numa mesa que reservava lugares
também para os seus antepassados. As sugestões contidas nas imagens desse sonho relatado –
e que incluem outras mais – já permitiram que elas fossem interpretadas de diferentes
maneiras. Sem querer explorá-las detidamente, no tocante ao que temos tratado até aqui, o que
este fragmento parece trazer de mais significativo faz-se em termos de representar
figurativamente como se constrói uma tradição literário-narrativa: o local em que Benjamin se
vê e a atitude de quem o habita (Goethe está sentado diante da mesa de escrever,
escrevendo); o presente recebido (os narradores legam histórias aos seus descendentes, assim
como a obra de grandes escritores exercem influência sobre sucessivas gerações); o lugar que
14
se ocupa; os que vieram antes e que também teriam sido convidados – tais elementos parecem
estar a sugerir a comunicação entre as diferentes gerações. Se assim for, o vaso poderia ser
visto como a experiência compartilhada por aquele que, conforme visto anteriormente, atingiu
a autoridade propiciada pela morte? Certamente, nesse sonho está retratado o contato do
narrador moderno com a tradição. Na análise do mesmo texto, lembrando as figuras narrativas
da Divina Comédia, Willi Bolle identifica uma espécie de viagem do escritor ao reino dos
mortos:
Daí que o seu fazer crítico incorpore uma problematização radical da própria
prática, pois, Benjamin deixou indicações de que teria perseguido, ao longo de seu trabalho
intelectual, uma forma que permitisse abertura ao diálogo, ao exercício comparativo e de
interpretação. O sucesso alcançado em tal aspecto talvez possa ser comprovado pelo fato de
que sua obra, depois ter vindo a público, animou e continua animando até hoje um grande
número de reflexões, debates e pesquisas que sobre ela estão voltados, isto é, as questões por
ele propostas continuam atuais. Conforme nota J. M. Gagnebin (2006, p. 49) no início de
“Memória, história e testemunho”, um dos capítulos de Lembrar escrever esquecer: “O
pensamento de Benjamin se ateve a questões que ele não resolveu e que ainda são nossas,
questões que sua irresolução, precisamente, torna urgentes. Talvez nossa tarefa consista em
colocá-las de forma diferente”.
15
9
No início da década passada, o cineasta brasiliense Marcelo Masagão dirigiu um documentário singular, sem
narração oral alguma, cujo roteiro baseava-se tão somente numa sequência de imagens e legendas, um desfile
de personagens históricas famosas e anônimas, muitas delas representantes do que Benjamin consideraria a
“classe dos vencidos” e, entre esses, estavam também as vítimas da Shoah. Significativamente, a cena final
do filme é um passeio silencioso entre as passagens estreitas de um imenso cemitério. Nós que aqui estamos,
por vós esperamos: esse é o título do filme. Considerando a possibilidade de abertura na interpretação desse
título e substituindo-se o pronome 'vós' pelo seu homônimo 'voz', ampliam-se em muito as possibilidades
semânticas de leitura, o que pode iluminar, também, a passagem citada do texto benjaminiano.
10
GAGNEBIN, W. Op. cit., p. 53.
16
5 REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I: magia e técnica, arte e política. 7.ed. São Paulo:
Brasiliense, 2008.
_____. Obras escolhidas II: rua de mão única. 5.ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
CALVINO, Ítalo. As odisséias na Odisséia. In: Por que ler os clássicos? São Paulo:
Companhia das Letras, 2002.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. O rumor das distâncias atravessadas. In: Lembrar, escrever,
esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2006.
LÖVY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. São Paulo: Boitempo, 2005.
SZONDI, Peter. Esperança no Passado – Sobre Walter Benjamin. Trad. Luciano Gatti.
[“Hoffnung Im Vergangenen - Über Walter Benjamin”. In: _____. Schriften II. Frankfurt:
Suhrkamp, 1996]. (material fotocopiado)
SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo
NA MEDIDA DO IMPOSSÍVEL:
A POÉTICA INTERSEMIÓTICA DE TORQUATO NETO
RESUMO
Palavras-chave:
Poesia, Contracultura. Tropicália. Mito Vampírico. Torquato Neto.
RESUMEN
2 Utilizo o termo Tropicália pautando-me pela consideração de Augusto de Campos em Balanço da bossa e
outras bossas: “[...] prefiro falar em Tropicália, em vez de Tropicalismo, como sempre preferi falar em
Poesia Concreta em lugar de Concretismo […]. 'Ismo' é o sufixo preferentemente usado pelos adversários dos
movimentos de renovação, para tentar historicizá-los e confiná-los.” (CAMPOS, 2008, p.261).
3 Torquato nunca organizou sua obra em um livro, assim, como aponta Paulo Leminski em Os últimos dias de
um romântico, “como Buda, Confúcio, Sócrates ou Jesus, Torquato não deixou livros.” (LEMINSKI, 1982,
p.06). A primeira edição de sua obra, Os últimos dias de paupéria, foi lançada em 1973 na urgência de
homenageá-lo, logo após seu suicídio. A pequena edição foi publicada acompanhada de um compacto
simples com a gravação de duas de suas composições: Três da madrugada, interpretada por Gal Costa, e
Todo dia é dia D, interpretada por Gilberto Gil.
A segunda edição, bastante ampliada, foi publicada após dez anos de sua morte, em 1982. Ambas as
edições foram organizadas por Ana Maria Duarte, mulher do poeta e mãe de seu único filho, e pelo amigo
Waly Salomão, que batizara a obra e ajudara a selecionar o material que Torquato colocara fogo
anteriormente e que Ana salvara, como aponta Waly: “Ana e eu fizemos Os últimos dias de paupéria,
pegamos o rescaldo do incêndio, as folhas chamuscadas, o que tinha sobrado do incêndio, e fizemos o livro
[…] com o pensamento nas novas gerações. Uma ideia utópica, uma forma boba e ingênua de crendice, mas
que fez com que a obra que ele tinha realizado e renegado passasse para as novas gerações.” (SALOMÃO,
2006, p.82).
Torquatália, terceira e última edição de sua obra, de título inspirado num texto manifesto que o próprio
Torquato escreveu em 1968 para o jornal O Estudo, foi lançada em 2003 em dois volumes (Geleia Geral e Do
lado de dentro), reunindo boa parte da produção torquatiana como seus textos, poemas, letras, enfim, a
produção poética que consta nas duas edições de Os últimos dias de paupéria acrescida de material, até
então, inédito.
3
tão fortes quando cantadas”, desse modo, não por acaso, Torquato evidenciou uma nova
estirpe de poetas nos anos 70: os letristas.
Todo dia é dia D (1971), letra bastante significativa de Torquato, gravada por
Gilberto Gil, apresenta a metáfora do escorpião: “Um escorpião encravado/ Na sua própria
ferida/ Não escapa, só escapo/ Pela porta da saída/ Todo dia é o mesmo dia/ De amar-te,
amorte, morrer/ Todo dia menos dia/ Mais dia é dia D”, e salienta a imagem de que, segundo a
lenda, o escorpião mata e também suicida-se com seu próprio veneno, se estiver sem saída,
num círculo de fogo, por exemplo. Além disso, como explicita André Bueno, em Pássaro de
fogo no terceiro mundo: o poeta Torquato Neto e sua época, a letra evidencia o momento
em que o círculo se fecha mostrando “[...] Thanatos vencendo Eros, a imaginação derrotada
pela morte instalada no poder. A viagem de ida encontrando a viagem de volta, o fim no
começo, o começo no fim, a imagem do escorpião cercado pelo fogo da História mordendo a
própria ferida impondo-se, soberana.” (BUENO, 2005, p.173).
Com base nisso, suicídio, nascimento e morte de Torquato sob o signo de escorpião
tornaram essa metáfora amalgamada à imagem do poeta assim como a de anjo torto, que
figura em Let's play that (1972), composição de Torquato musicada por Jards Macalé, que tem
Poema de sete faces de Carlos Drummond de Andrade, uma das suas principais influências,
como referência. Os versos “Quando eu nasci, um anjo torto/ desses que vivem na sombra/
disse: Vai Carlos! ser gauche na vida” do poeta itabirano encontram-se com “Quando eu
nasci/ um anjo louco muito louco/ veio ler a minha mão/ Não era um anjo barroco/ Era um
anjo muito louco, torto/ Com asas de avião/ Eis que esse anjo me disse/ Apertando a minha
mão/ Com um sorriso entre dentes/ Vai bicho desafinar/ O coro dos contentes/ Vai bicho
desafinar/ O coro dos contentes/ Let's play that”. Desse modo, a letra torquatiana enfoca o
anjo torto, como o anjo drummondiano, mas também vidente e louco, que segue “desafinando
o coro dos contentes”, alusão ao O Guesa (estrofe 61 do Inferno de Wall Street) de Joaquim
de Sousândrade, que caracterizaria a postura de Torquato nas artes em que produzia.
A estética do fragmento torquatiana, pioneira no jornalismo brasileiro, caracterizou
seu estilo, efetuado por meio da montagem/colagem/bricolagem, e se acentuou,
principalmente, na sua mais duradoura coluna, Geleia Geral4, que, segundo o organizador de
Torquatália, terceira edição de sua obra, foi “no contexto da grande imprensa, engessada de
diversas formas pela censura, […] mais do que um oásis de liberdade, uma aberração.”
4 Geleia Geral é também uma composição de Gil e Torquato, que teve o título inspirado pela frase proposta do
poeta e crítico Décio Pignatari, que após uma discussão com o escritor Cassiano Ricardo, que sugeriu que os
poetas concretos precisariam diminuir seu posicionamento inflexível em relação à experimentação formal na
Revista Invenção, teria dito “na geleia geral brasileira alguém tem de exercer as funções de medula e osso!”.
4
(PIRES in NETO, 2004, p.18). Neste sentido, em plena era da ditadura e do desbunde,
Torquato alfineta em sua Geleia Geral, no artigo pessoal intransferível, de modo irônico, uma
de suas principais marcas: “E fique sabendo: quem não se arrisca não pode berrar. Citação:
leve um homem e um boi ao matadouro. O que berrar mais na hora do perigo é o homem, nem
que seja o boi. Adeusão.” (NETO, 2004, p.227), assim, dessa maneira, Torquato exerce um
papel bastante considerável na geração tropicalista “desbundada mas letrada”, segundo Ana
Cristina Cesar, que inclui nomes importantes como Waly Salomão, Rogério Duarte, Jorge
Mautner entre outros, afinal, é com essa geração em geral e com Caetano, principalmente, que
“[...] dança no Brasil a questão da militância na cultura, o compromisso do engajamento
político cultural, seus fantasmas sérios.” (CESAR, 1999, p.235), como considera Ana
Cristina.
A década de 70 é feita de anos pesados, fase bastante repressiva da ditadura militar,
imposta em 1964, em função disso, Mario Cámara aponta em El caso Torquato Neto:
diversos modos de ser vampiro en Brasil en los años setenta, que “no caben dudas que los
primeros años de 1970 son años de vampiros en Brasil.” (CÁMARA, 2011, p.9), pois esses
seres míticos, sombrios e reclusos, representariam o momento político, mas também da arte e,
consequentemente, dos artistas desse período, sufocados pela repressão, que levaria muitos
deles ao exílio forçado ou ironicamente voluntário.
Cabe aqui ressaltar, no entanto, que a figura vampírica marcara demais épocas nas
artes, podendo-se mencionar o clássico Drácula (1897) de Bram Stoker na literatura e
também as suas consequentes adaptações fílmicas, como a de Nosferatu, uma sinfonia de
horror (1922) de Friedrich Wilhelm Murnau, que adaptou livremente a obra de Stoker por não
possuir os direitos de Drácula. Neste contexto, as representações maléficas figuravam como
uma forma de enfrentar e afrontar as sociedades puritanas do século XIX e XX e enfocar uma
busca, despudorada e amoral, pelo prazer, que, no contexto dos anos 60 e 70 no Brasil, “[...]
pareció apostar a un 'seamos el mal del mal', lo cual nos devuelve, en principio, a la adopción
de lo mostruoso como ética y estética de la existencia.” (CÁMARA, 2011, p.18), como aponta
Cámara.
A canção Vampiro (1958), de Jorge Mautner, que aparecera pela primeira vez no
filme de sua direção O demiurgo (1970), filmado em Londres durante o exílio, e,
posteriormente, gravada por Caetano Veloso no disco Cinema Transcendental (1979) e pelo
próprio autor em Árvore da vida (1988) já declarava: “Eu uso óculos escuros/ para minhas
lágrimas esconder/ e quando você vem para o meu lado/ ai, as lágrimas começam a correr”,
faceta vampírica que, de certa forma, se aproxima da figura de Torquato que “escondia-se”
5
por trás da capa preta e dos óculos escuros no verão carioca e, assim, incorporou, segundo
André Bueno, “[...] humor à persona de vampiro tropical, passeando à beira-mar no Rio de
Janeiro, muito longe da gelada Transilvânia. Humor e escracho.” (BUENO, 2005, p.63), que
ao transitar pelas ruas e praias movimentadas do Rio Janeiro, também se assemelharia a figura
do flâneur vagando entre os transeuntes, pois como alude Walter Benjamin, o flâneur é
também e “[...] acima de tudo alguém que não se sente seguro em sua própria sociedade. Por
isso busca a multidão; e não é preciso ir muito longe para achar a razão por que se esconde
nela.” (BENJAMIN, 2000, p.45).
Neste contexto, outro exemplo brasileiro da presença do mito vampírico em nossas
artes é o da canção Doce Vampiro (1979) de Rita Lee, que sugere: “Venha me beijar, meu
doce vampiro/ Na luz do luar/ Venha sugar o calor/ de dentro do meu sangue, vermelho/ Tão
vivo tão eterno, veneno/ Que mata a sua sede/ Que me bebe quente/ como um licor/
Brindando a morte e fazendo amor” e o da produção literária do curitibano recluso Dalton
Trevisan, autor de O vampiro de Curitiba, obra de 1965, que enfatiza o protótipo de vampiro
já que, segundo o autor, “[...] No fundo de cada filho de família dorme um vampiro.”
(TREVISAN, 1998, p.11). Em função disso, é possível aproximar a canção de Mautner e a de
Rita Lee com a obra de Trevisan, pois ambos aludem ao vampiro de pulsão sexual acentuada,
como pode ser dimensionado em “[...] ó curvas, ó delícias ‒ concede-me a mulherinha que aí
vai. Em troca da última fêmea pulo no braseiro ‒ os pés em carne viva. Ai, vontade de morrer
até. A boquinha dela pedindo beijo ‒ beijo de virgem é mordida de bicho-cabeludo. Você grita
vinte e quatro horas e desmaia feliz.” (TREVISAN, 1998, p.14), ou seja, tanto o vampiro de
Mautner, que suspira na canção: “[...] eu fico embriagado de você/ eu fico embriagado de
paixão/ no meu corpo o sangue não corre, não, corre fogo e lava de vulcão”, quanto o doce
vampiro de Rita Lee e a personagem Nelsinho dos contos de Trevisan enfocam o erotismo, de
“[...] una voluntad de contagio.”(CÁMARA, 2011, p.48), como define Cámara, e acabam por
entremear pulsões de vida (Eros) e de morte (Thanatos).
Para além dessas referências vampíricas, Torquato, figura emblemática dos anos 70
repletos de vampiros, protagonizou o filme Nosferato no Brasil (1971) de Ivan Cardoso e,
assim, a imagem do vampiro Nosferato tornou-se uma das marcas registradas do poeta
piauiense, corroborando com a ideia de Nosferatu vampirizado, segundo Décio Pignatari, já
presente na composição musicada por Caetano Veloso, Ai de mim, Copacabana (1968), que já
apresentava um elemento vampírico: “Você olha nos meus olhos e não vê nada/ é assim
6
5 A imagem vampírica que se tem de Torquato foi construída a partir de sua relação com o cinema, no entanto,
além de sua marcante atuação no filme de Ivan Cardoso, Torquato tinha notória relação de afeição com o
cinema, cinéfilo que era. Escrevia críticas de cinema em suas colunas, criava polêmicas em função delas,
como, por exemplo, o embate do cinema underground ou udigrudi “contra” o cinema novo. Ademais, atuou
em alguns (poucos) filmes e atuou e dirigiu o filme O terror da vermelha, rodado em Teresina, sua cidade
natal, em 1972, filme que não chegou a montar (a montagem foi realizada pelo amigo Carlos Galvão,
amparado pelas orientações deixadas por Torquato), enfim, como vemos, o cinema foi, sem dúvida, uma
parte importantíssima em sua geleia geral.
7
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Paulo. Torquato Neto: uma poética de estilhaços. São Paulo:
Annablume/Fapesp, 2002.
BUENO, André. Pássaro de fogo no terceiro mundo: o poeta Torquato Neto. Rio de Janeiro:
7Letras, 2005.
CÁMARA, Mario. El caso Torquato Neto: diversos modos de ser vampiro en Brasil en los
años setenta. São Paulo: Lumme Editor, 2011.
CAMPOS, Augusto de. Balanço da bossa e outras bossas. São Paulo: Perspectiva, 2008.
LEMINSKI, Paulo et al. Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
MACHADO, Gláucia Vieira. Todas as horas do fim: sobre a poesia de Torquato Neto.
Maceió: Edufal, 2005.
_____________. Torquatália: obra reunida de Torquato Neto (Do lado de dentro). Org. de
Paulo Roberto Pires. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.
_____________. Torquatália: obra reunida de Torquato Neto (Geleia geral). Org. de Paulo
Roberto Pires. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.
SALOMÃO, Waly et al. Anos 70: trajetórias. São Paulo: Iluminuras/Itaú Cultural, 2006.
SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
VAZ, Toninho. Pra mim chega: a biografia de Torquato Neto. São Paulo: Editora Casa
Amarela, 2005.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo
RESUMO
Este trabalho pretende explorar alguns aspectos de um campo do fazer biográfico, o das
cinebiografias, até então pouco explorado pelos Estudos Literários e, assim, contribuir
produtivamente com novos estudos para a Linha de Pesquisa Literatura e Memória. O
empreendimento mostra-se fecundo principalmente no que se refere à interrogação crítica de
três questões centrais: a conformidade, o papel do cinema na manutenção e/ou formatação do
imaginário público acerca da vida de um sujeito; a ficcionalização, como os diferentes
intermediários discursivos do projeto audiovisual contribuem para a transformação de
personalidades em personagens romanescas; a duração, de que forma as limitações de tempo
do projeto biográfico audiovisual sujeitam os roteiros a um consenso narrativo. Ao estabelecer
um comparativo com os procedimentos discursivos das biografias tradicionais, as de papel, o
exame do objeto cinebiográfico tenciona explorar outros dispositivos da ilusão biográfica
denunciada por Pierre Bourdieu em ensaio antológico. Muito embora o corpus da pesquisa
reúna um número maior de biopics de artistas, o recorte proposto para esta comunicação, por
razões metodológicas, focalizará o debate na narrativa do filme Modigliani – paixão pela vida
(Modigliani, 2004, 128 min), dirigido e roteirizado por Mick Davis.
Palavras-chave:
Cinebiografia. Biografia. Ilusão.
ABSTRACT
This paper aims to explore some aspects of the biopic, object of study still to be explored by
Literary Studies, and contribute productively to new researches on Literature and Memory.
The project appears to be particularly fruitful to the interrogation of three critical issues:
compliance, the role of cinema in the maintenance and/or formatting the public imagination
about the life of a subject; fictionalization, how the different intermediate discursive in
audiovisual project contribute to the transformation of personalities in novelistic characters;
time projection, how the time constraints of the biographical project audiovisual scripts
subject to a consensus narrative. By establishing a comparison between the traditional
biographies of discursive procedures, the examination of the biopic intends to operate other
devices on the biographical illusion denounced by anthology Pierre Bourdieu's essay. Despite
the large number of available biopic for the purposes of this communication, for
methodological reasons, the discussion will focus on the narrative of the film Modigliani –
paixão pela vida (Modigliani, 2004, 128 min), directed and scripted by Mick Davis.
Keywords:
Biopic. Biography. Illusion.
1
Doutor em Teoria da Literatura pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de
Santa Catarina; e-mail: marciomarkendorf@uol.com.br.
2
1 AMEDEO, AMANTE
Uma biografia, por princípio, é uma história de vida contada do princípio ao fim,
segundo uma linha temporal linear de acontecimentos. Pierre Bourdieu (2006, p. 184),
tratando da representação biográfica, afirma ser esta forma narrativa um composto consistente
de sequências (crono)lógicas e inteligíveis, discurso no qual se apresenta um sentido para a
existência. De acordo com o sociólogo francês, por meio de certos procedimentos discursivos
seria possível construir artificialmente a fantasia de significância para uma trajetória de vida.
A ilusão biográfica do discurso, portanto, deve ser compreendida como um espaço em que a
coerência ganha potência e uma estrutura compacta de começo-meio-fim. David Mamet
(2001), por sua vez, afirma que a organização de eventos em uma linha inteligível faz parte da
qualidade natural do ser humano de dramatizar. Assim, por meio de um impulso de análise
causal, eminentemente retrospectivo, somos levados a interpretar situações banais – um jogo
de futebol, por exemplo – como acontecimentos armados em uma estrutura ternária
(apresentação/desenvolvimento/resolução), similar a dos roteiros. É segundo esta
hermenêutica que o disperso e o caótico receberiam alinhamento e organicidade.
O relato cinematográfico não explora o mesmo montante informativo de uma
biografia devido à especificidade da imitação dramática, em franca oposição durativa à
narração, aspecto este responsável por circunscrever uma história de vida em cerca de duas
horas. Aristóteles (1996, p. 39), ainda no século V a.C., advertiu que a unidade de ação não
era consequência da presença de um só herói na trama, “pois a um mesmo homem acontecem
fatos sem conta, sem deles resultar nenhuma unidade” e, sim, da seleção dos episódios e do
arranjo dado às ações. Seguindo por essa via, qualquer cinebiografia é a expressão de uma
poética de recorte e de emolduramento, sendo constituída por meio da seleção e conexão de
eventos significativos de um grande amontoado. O filme Modigliani – paixão pela vida
(Modigliani, 2004, Mick Davis) secciona de um todo completo2 apenas os momentos
compactos dos dois últimos anos de vida do pintor italiano, nascido em 1884 e morto em
1920.
A unidade de ação, produzida com o auxílio da delimitação temporal, organiza um
complexo narrativo orgânico que, como leva a crer o subtítulo brasileiro, apresenta o aflorar
do pathos amoroso. O acréscimo sugerido ao título original, entretanto, não é de todo correto,
2
Nas adaptações cinematográficas de romances, por exemplo, é frequente a supressão de uma série de incidentes
e peripécias para o equilíbrio das unidades de tempo e ação. Em se tratando de contos, pelo contrário, é comum o
acréscimo de elementos narrativos e o enriquecimento da trama original.
3
visto que o comportando apresentado pelo artista é mais marcado pela displicência para
consigo mesmo e menos pelo ânimo sugerido. Mesmo com a saúde em risco por conta de uma
tuberculose mal-curada na infância, o Modigliani da ficção não deixa de beber, fumar e
drogar-se imoderadamente. E, embora o foco do roteiro esteja no relacionamento amoroso e
não no fazer artístico, o artista também não toma a esposa como a razão de sua vida, condição
que justificaria a paixão destacada. O maior conflito da história, aliás, é a vida boêmia versus
uma vida estável e bem-sucedida.
Importa destacar também que esta cinebiografia é a compacta história de uma
personalidade, o retrato romantizado de um gênio ou, no mínimo, o de um artista genioso. E
se não parte dele o amor – na interpretação de Andy Garcia de um Modigliani fictício – o
sentimento ao menos repousa em Jeanne Hébuterne, isto é, na performance da atriz Elza
Zylbertein. Aliás, é uma prerrogativa do universo das cinebiografias o par amoroso ser o foco
dramático por constituir esta emoção, antes de tudo, um fermento mítico universal3. Edgar
Morin (2005, p. 131) percebe-a como tema central da felicidade moderna, arquétipo tão
atrativo das massas que chega a assumir o caráter de uma obsessão de consumo. Não fosse a
personalidade famosa em questão, chamariz principal da história, o filme seria o relato do
encontro de um homem e uma mulher e, também, dos efeitos negativos da paixão – o suicídio
como ação desintegradora da ausência. O destaque conferido ao amor, portanto, faz parte de
uma estratégia sedutora da psique das massas imposta deliberadamente pelos estúdios. As
cinebiografias, além disso, quase sempre representam uma relação opositiva entre o amor e a
carreira, pois um não pode co-existir com o outro. Para Michel Chion (1989, p. 172), este
sentimento é o bem mais comumente antagonizado com outros, produtor de um dilema
interior que procura reforçar a crença popular do “não se pode ter tudo” e estimular emoções
profundas no espectador.
O filme preocupa-se em construir o tom emotivo desde o início, por meio da retórica
de uma mulher arrebatada: “Você sabe o que é o amor? O amor de verdade? Você já amou
tanto que se condenou à eternidade no inferno? Eu já”. Esta fala de Jeanne Hébuterne é
proferida antes de ela atirar-se da janela do quinto andar, dando fim não apenas à própria vida,
mas a do segundo filho que esperava de Modigliani. O discurso é dirigido para alguém de fora
do universo diegético, o espectador, constituindo este um recurso característico de narrativas
autoconscientes de sua natureza fictícia. No jogo do parecer ser, a atriz Elza Zylbertein
3
Talvez seja para sublinhar este traço muitos dos subtítulos de cinebiografias: Eclipse de uma paixão (Arthur
Rimbaud e Paul Verlaine), Sylvia – paixão pelas palavras (Sylvia Plath e Ted Hughes), O brilho de uma paixão
(John Keats e Fanny Brawne), A paixão de Camille Claudel (Camille Claudel e Auguste Rodin).
4
empresta seu corpo para dar substância e movimento dramático a uma personagem baseada
em traços de uma Jeanne Hébuterne real. Logo, a persona da película em verdade nunca
existiu, constituindo apenas uma invenção coerente por parte do autor-diretor, da câmera, da
atriz.
De acordo com os fatos, Jeanne realmente saltou para a morte um dia após o amado
ter morrido. Entretanto, diferentemente do que consta no universo diegético, Modigliani não
veio a falecer em virtude do agravamento da já debilitada saúde em vista de uma agressão
física. Tampouco este evento aconteceu ao mesmo tempo em que o artista vencia uma fictícia
competição de pintores na qual participavam Pablo Picasso, Diego Rivera, Maurice Utrillo,
Moise Kisling, Chaïm Soutine. Talvez não seja redundante destacar que os quadros da mostra
nunca existiram e apenas servem, em sua maioria, para refletir componentes subjetivos dos
seus pretensos realizadores4. O único quadro que parece ter sido pintado de fato é Jeanne, de
Modigliani, obra cercada de uma história anedótica no universo diegético para amarrar à
trama o tom lírico.
Segundo consta na narrativa, Modigliani apenas pintaria os olhos da modelo Jeanne,
deixando de lado sua opção estética pela face de máscara, quando conhecesse a alma dela,
penetrando em seu coração. É o que acontece na montagem de ações paralelas do filme: ao
mesmo tempo em que o artista é agredido por dois homens, os quadros dos competidores são
descortinados. Enquanto aplaudem sua obra, pontuada pelo choro-surpresa de Jeanne, as mãos
de Modigliani avançam, ensanguentadas, em direção aos agressores, agarrando o ar antes de
caírem no chão sem força. O close-up nos olhos da pintura, a voz over de Modigliani, ao
modo de um recall memory thoughts5, e a banda sonora não permitem ser perdido o
“momento sentimental” do filme por uma falha mnemônica do espectador. Quanto a esse
aspecto, de modo distinto das biografias, as cinebiografias procuram estimular as emoções do
público, mesmo que à custa da apresentação de eventos que não correspondem à realidade.
A cena da agressão física está imersa em uma imagem de pecado venial e de ironia
trágica. Desejando fazer uma surpresa a Jeanne com uma certidão de casamento, Modigliani
vai até a prefeitura conseguir o documento. Ele dorme nos bancos de tão exausto que estava
4
Diego Rivera apresenta um quadro chamado México, pontuando seu lugar de origem; Picasso, como
homenagem irônica ao personagem que lhe faz oposição, pinta Modigliani; em razão do internamento em um
hospital psiquiátrico, realizado pela família à força, por conta do comportamento agressivo do artista-alcóolatra,
Utrillo apresenta Loucura; Kisling pinta Medo, aparentemente sem constituir qualquer informação sobre o
personagem; Soutine elabora Minha vida (?), pretenso quadro da sua série de pinturas com peças de carne em
decomposição.
5
Procedimento técnico no qual há uma voz over, sobreposta à cena, expressando a lembrança de alguma fala
pontual da história envolta em eco dramático. É algo muito próximo de um discurso indireto livre, invasão na
mente da personagem produzido em narrativas de onisciência seletiva.
5
do trabalho em cima do quadro da competição. Quase perde a chance do registro, não fosse a
cumplicidade da atendente-artista, também uma pintora, possivelmente do estilo fim-de-
semana, e que nunca ouvira falar de Modigliani. Para comemorar a riqueza do amor (e a
riqueza vindoura do prêmio), ele para em um bar. Muitas doses de bebida depois, sem
dinheiro para pagar, e atrasado para a exposição competitiva, parte do lugar sem maiores
explicações. É seguido por dois capangas, a mando do balconista-vilão, para receber a dívida
e/ou para aprender uma lição. Modigliani apanha violentamente, tem seus bolsos revistados e
sua certidão de casamento rasgada. Quem o consola momentaneamente é seu alter-ego
infantil, imagem nostálgica do Modigliani criança, sob a leveza da queda de flocos de neve
azuis.
David Mamet (2001, p. 33), criando um paralelo entre as ficções biográficas e as
narrativas ficcionais, sugere que para o espectador é mais fácil identificar-se com a busca por
um documento secreto do que com uma cientista, como Marie Curie, procurando identificar e
compreender o elemento químico rádio. Sendo assim, “para serem eficazes, os elementos
dramáticos têm de ter precedência – e acabarão por tê-la – sobre quaisquer fatos biográficos
„reais‟”, razão por que os diretores de biografias dramatizadas sempre recorrem à ficção
(MAMET, 2001, p. 33). O caso de artistas e escritores6 é ainda mais particular já que são
personalidades de um universo laboral interior, lento e pouco afeito à representação externa
no meio audiovisual. Por isso, para Mamet (2001, p. 33), pouco importaria ao espectador
saber sobre a descoberta do rádio, o que importa no cinema é descobrir como, na
cinebiografia de Marie Curie, o cão da heroína morreu.
A licença dramática é procedimento legítimo no processo de adaptação
cinematográfica de biografias ou na filmagem de roteiros biográficos. Por meio dela a
teatralização da vida de uma personalidade pode assumir camadas de ficção responsáveis por
construir uma força-personagem, isto é, a vida do sujeito é estilizada e esquematizada da
mesma forma que os personagens de um romance. A ficcionalização, nesse sentido, ainda que
apoiada na simplificação de uma complexa identidade, possibilita à história destacar um traço
mistificador de um sujeito. Além disso, devido à facilidade de circulação e consumo de uma
obra audiovisual, em contraste com uma obra escrita, o cinema contribui para a formatação
coletiva de uma imagem biográfica. No caso deste filme sobre Modigliani, o que permanece
6
Acabam se tornando clichês as cenas marcadas por time lapses, montadas como uma longa passagem de tempo,
nas quais o artista ou pintor passam horas de cenho franzido, olhando para a tela, o papel ou o nada, produzindo
obras pouco insatisfatórias, invariavelmente rasgadas/destruídas, antes de serem apresentados felizes com um
trabalho aprovável.
6
na recordação biográfica do espectador é mais o sujeito alcoólatra que o pintor; mais uma
mulher apaixonada que um homem apaixonado.
Por outro lado, o traço positivo deste roteiro é não recorrer a uma fórmula monótona
e artificial, na qual haveria uma construção alternada de cenas de criação artística e de intriga.
O foco dramático na personalidade e não na arte do pintor colabora para a humanização do
mito artístico, reforçando a qualidade de biografia imaginária de um casal. Ademais, como
sugerem os manuais de roteirização, o desfecho emerge da própria história e não de elementos
extemporâneos, fato que justificaria a opção de acrescentar um agravante à morte natural do
pintor. As cenas de apresentação diegética da tela Jeanne – especialmente a história romântica
criada em torno dela – e do registro documental do matrimônio criam o enlace e a
reconciliação da vida da modelo e do artista; o caráter ébrio do personagem, por sua vez,
realiza um percurso ambíguo – de caracterização divertida (alívio) e de contraponto dramático
(tensão), de construção de forças (amizade) e de destruição de linhas (trajetórias de vida).
A economia narrativa das cinebiografias adota procedimentos característicos a uma
caricatura sem, entretanto, apelar para o grotesco ou o cômico. Quando muito, é um riso sério.
Trata-se da construção de um perfil plano, constituindo a ênfase de certo traço
comportamental uma forma de exagero. Uma obra biográfica escrita pode não se
comprometer tão estreitamente em semelhante estereotipia, mas sua estrutura narrativa, pela
natureza do meio, abriga estratégias romanescas. O limite de duração da obra audiovisual,
seguindo tal contraste, é causa suficiente para justificar alguns expedientes de roteirização.
Por um lado, o efeito positivo do caráter unitário (tempo, ação, personagem) da obra
cinebiográfica é potencializar o efeito catártico de uma história de vida sobre o público; por
outro, o efeito negativo está no consumo ingênuo da ilusão de uma biografia real, isto é, na
recepção tranquila de um espectador que ignora a natureza ardilosa do discurso ficcional.
Como pontua Mamet (2001, p. 33), no universo dramático, assim como no sonho, “o fato de
algo ser „verdade‟ é irrelevante; só nos importa se aquilo é pertinente para busca do herói (a
busca de um MacGuffin) tal como é declarada a nós” (com grifos no original). A
verossimilhança e a coerência interna na ficção biográfica, portanto, assumem o caráter de
verdade fatual, sobretudo porque a “verdade tem sempre estrutura da ficção” (HISGAIL,
1996, p. 12).
Para os Estudos Literários o que estaria em jogo nas diferentes produções biográficas
são os graus de “distanciamento da verdade” – algo próximo ao conceito platônico de mimesis
– promovidos pela imitação dramática, níveis acumulados a partir de diferentes intermediários
no processo. Pode-se dizer que na cadeia da fantasia cinebiográfica há este percurso
7
hipotético: realidade > memória (documentos de 1º e 2º graus) > interpretação do biógrafo >
discurso escrito > adaptação do livro para roteiro > interpretação do diretor > interpretação
dos atores > edição do filme. As biopics, como também são chamadas, não são mais
problemáticas que a contraparte de papel por contar com mais agentes conversores da história
de vida em discurso, mas pela capacidade de formatação do imaginário. Na verdade o perigo
não está na potência do cinema enquanto veículo difusor de falsas imagens – espécie de teatro
de sombras – e, sim, no modo ingênuo de consumir os simulacros de vida. O modelo
ocidental e pós-moderno de civilização, baseado na imagem, privilegia mais o cinema que a
literatura, de modo que o filme, hoje, desempenha uma função nuclear já ocupada pelo
romance séculos atrás.
A adaptação cinematográfica de uma obra ou a livre interpretação de uma vida
parece assumir um tom farsesco no registro de episódios vividos, sem qualquer necessidade
de conexão causal, como preferiria Roland Barthes ao propor os biografemas (PERRONE-
MOISÉS, 1985, p. 09 – 10). Compactuando ligeiramente destas “verdades poéticas”, as
cinebiografias efetuam o desfilar organizado de fragmentos biográficos, contrapondo-se à
escrita, com a qualidade de fotobiografemas cinemáticos.
Em Modigliani – paixão pela vida além deste tom ainda há uma atmosfera fantástica,
criada pela aparição do garoto Modigliani para o adulto Modigliani – presença reguladora de
comportamento que funciona, além de alter-ego, alegoria do superego, expressão do grilo-
falante social. Com a morte do artista no fim da narrativa, o jovem Modi simbolicamente
assina o leito de morte do adulto como se esta fosse a última e derradeira obra dele. Essa
imagem alucinatória – possível fruto do desregramento dos sentidos provocado pelo álcool e
pelo haxixe – dramatiza concretamente a consciência, da mesma forma que as condições da
Natureza criam expressão romântica do espelhamento interior/exterior e subjetivo/objetivo: a
triste solidão na chuva; a briga na tempestade; a quase-morte e o enterro na neve.
A narrativa biográfica escrita exige, a princípio, um gesto de amor a si mesmo
(autobiografia) ou pelo outro (biografia) para a realização de um longo projeto de trabalho
(resgatar a memória, remontar a história). Ainda que a construção de um todo significativo
abarque pequenas ficções, o peso maior do texto ainda é a natureza referencial. A biografia
cinematográfica, de outra sorte, opta pelo lirismo ao pinçar dois fios narrativos entrelaçados –
a carreira e o amor – estratégia que colabora, também, para ampliar o público-alvo:
admiradores, interessados e curiosos românticos. O apelo a uma história de amor é sempre
uma premissa deste comércio de vidas encarnadas por atores conhecidos.
8
Assim, em meio a eventos que não existiram, quadros que nunca foram pintados,
palavras jamais proferidas, este filme apresenta um mundo de gênios arrogantes e
egocêntricos. Na efervescência cultural de Paris do início do século XX encontramos o que
parecem ser grupos rivais, frequentadores do Café de La Rotonde: de um lado, Pablo Picasso,
Max Jacob, Jean Cocteau e Gertrude Stein; de outro, Modigliani, Utrillo, Soutine, Léopold
Zborowski. Não fossem artistas, pareceriam gangues. O café é o elo que permite o encontro
providencial de todos os personagens-artistas. Essa unidade de lugar, contrariando a
possibilidade da livre movimentação onisciente, mantém relação direta com a unidade de
ação. Tempo, espaço, ação e personagem são simplificados nas cinebiografias – expedientes
claramente alinhados com as prescrições aristotélicas – constituindo um modus faciendi que
funciona como vingança das biografias de papel: a facilidade do meio apenas pode operar por
simplificação narrativa.
Logo, se não pode conformar uma imagem potente de uma personalidade, ao menos
as cinebiografias podem enformar o caráter mítico. A cena do encontro com o mestre Auguste
Renoir, cumpridora de uma função arquetípica na diegese, realça dramaticamente um traço
negativo de Modigliani, porque o “mentor” caracteriza-o como um louco. No filme, em voz
over, antecipando a cena do enterro do artista, Renoir “recorda” uma visão particular do
italiano:
Eu o vi dançar uma vez, perto da estátua de Balzac. Seu rosto estava bonito; seus
passos, graciosos. Pavoneando-se com a música, ele sorria. Ele foi tudo o que eu já
fora. Roubei aquele momento e guardei-o na memória para estar lá e me confortar
nos meus dias finais (DAVIS, 2004).
Contribuindo para esse traço aurático em torno da alma do artista, está a sombra da
rivalidade – espécie de maldição de Jeanne lançada em Picasso – e apresentada na
legendagem narrativa do fim da película: o artista espanhol, em seu leito de morte, antes de
expirar, teria pronunciado o nome do antigo oponente.
A estrutura do roteiro mostra claramente o caráter emocional de ficção biográfica
misturada à biografia ficcional. As duas pontas da história são amarradas com um desfecho
circular porque o começo da história – Jeanne em “conversa com o espectador” – retoma o
conflito sobre o amor. Ao dar continuidade à cena inicial, interrompendo o longo flashback, a
narrativa dá ao espectador a oportunidade de perceber melhor o arco dramático dos
personagens, ou seja, sua mudança de condição ao longo da trama – do positivo ao negativo,
da vida à morte. Elza-Jeanne, antes do salto mortal, pede ao público compreensão para seu
9
gesto suicida, cumplicidade estimuladora do emocional do receptor: “Eu quero que todos
saibam e tentem entender e me perdoar. Por favor”.
A biografia cinematográfica, feita de inúmeras telas-rasuras7 e por um coletivo de
mediadores discursivos, portanto, poderia ser encarada como um gesto palimpséstico. Cada
qual, em sua função produtiva (roteirista, diretor, ator, editor, etc.), escreve uma nova história
por cima da antiga. Por fim, o material final das biopics é um exercício puro de dramatização
no qual prevalece como elementos estruturadores essenciais a concentração (unidade
narrativa) e a emocionalização (participação emocional do espectador). Mamet (2001) afirma
ser o material humano dessas ficções mais importante que o traço profissional, talvez porque
qualquer foco na atividade laboral aproximasse a história mais do gênero documentário que
dramático. No caso desta película pode-se pensar, ainda, na produção intencional de certo
“efeito Van Gogh”, descrito por Mario Pujó (p. 90) como a curiosidade por uma infeliz
biografia muito superior ao apreço pela obra de um artista. E de fato é disto que se trata a
história de vida Modigliani/Andy, Jeanne/Elza, Deus/Mick: uma bisbilhotice ficcional.
2 REFERÊNCIAS
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Fontes, 1989.
HISGAIL, Fani. Aparte biográfico. In: _____ (org.). Biografia: sintoma da cultura. São
Paulo: Hacker Editores/Cespuc, 1996. p. 07 – 12.
MAMET, David. Três usos da faca: sobre a natureza e a finalidade do drama. Tradução
de Paulo Reis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
MODIGLIANI – paixão pela vida. Direção e roteiro de Mick Davis. Barueri, SP: Universal
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MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX: neurose. Tradução de Mauro Ribeiro
Sardinha. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.
7
No filme há uma provocação feita por Pablo Picasso a Modigliani que ilustra tal imagem. Picasso afirma ao
rival que – na falta de telas para trabalhar – teria usado uma pintura de Modigliani, dada ao espanhol por Jeanne.
A pintura sobre a pintura constituiria um gesto palimpséstico.
10
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Barthes. 2. ed. Coleção Encanto Radical. O saber com sabor.
São Paulo: Brasiliense, 1985.
PUJÓ, Mario. Vincent & James: loucura e criação. In: HISGAIL, Fani (org.). Biografia:
sintoma da cultura. São Paulo: Hacker Editores/Cespuc, 1996. p. 83 – 102.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo
RESUMO
É possível delinear o problema teórico do animal como o marco da fronteira tênue entre
filosofia e literatura, se pensarmos no papel central que a figura da animalidade exerce em
cenas primevas tanto filosóficas quanto literárias. Passando pela definição filosófica do
humano (e da política) como uma relação com o animal, e adentrando na problemática do
signo que contrapõe um elemento inteligível à sua expressão sensível, como uma alma
humana a um corpo animalesco, revisitamos frequentemente a animalidade como uma
questão limítrofe que oferece a problematização dos campos filosófico e literário. Não só
podemos pensar a distinção filosofia/literatura como uma distinção humano/animal –
passando também pela possibilidade de a literatura ser uma filosofia animalizada – como a
figura do animal também permite pensar com afinco as diversas problemáticas da teoria
crítica contemporânea que comunicam o literário com o filosófico, como a biopolítica, a crise
do humanismo, a diferença entre os sexos, a definição de tecnologia, a questão da deficiência,
a ética da vulnerabilidade e os direitos humanos e animais.
ABSTRACT
It is possible to conceive of the theoretical problem of the animal as what draws the fine line
between philosophy and literature, if one foregrounds the crucial role that animality plays in
philosophical and literary primal scenes. From the philosophical definition of the human (and
of politics) as a relationship to the animal, and moving on to the problematics of the sign
which opposes an intelligible element to its sensible expression – as a human soul to an
animal body – one constantly revisits animality as a frontier issue which offers the possibility
of questioning the fields of philosophy and literature. Not only can one think the distinction
between philosophy and literature as a human/animal difference – approaching the possibility
of literature’s being an animalized philosophy – but the animal also permits thinking through
many issues in contemporary critical theory which bridge the literary and the philosophical,
such as biopolitics, the crisis in humanism, sexual difference, the definition of technology, the
question of disability, an ethics of vulnerability, and both animal and human rights.
1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Literatura da UFSC; e-mail: rodolfopiskorski@gmail.com.
2
os outros animais, também conhecer e falar sobre o bem e o mal ( ARISTÓTELES apud
AGAMBEN, 2007, p. 15).
Se a razão determina o caráter político do humano, isso também demonstra a dívida
do conceito da política para com uma noção de animalidade. As ―metáforas‖ pastorais da
política como forma de rebanho, em que um líder controla e domestica seus súditos, são
antiquíssimas (SLOTERDIJK, 2000, p. 44), assim como as teorizações acerca da origem da
política e do Estado como o contrato social original, quase todas emaranhadas em uma
complexa explicação de como o homem saiu da natureza e entrou para a cultura. Se Hobbes
cita que o homem é um lobo para o homem, justificando a necessidade de um Estado para se
frear os impulsos humanos animalescos e resgatá-lo do estado da, Rousseau, por sua vez,
critica a teorização da origem do Estado baseada em um pano de fundo animal da existência
humana natureza (DERRIDA, 2009, p. 11). Apesar de criticar a analogia pastoral, Rousseau
ainda assim insere o início da política em um estado puro de natureza humana quase mítico,
indistinguível de um caráter animal (DERRIDA, 1976, p. 165-268).
Conforme aponta Derrida, no momento em que parece possível contrapor a esfera
política humana a uma esfera animal supostamente não-política, a soberania se assemelha a
uma forma de ―monstruosidade mitológica, fabulosa e não-natural‖ (DERRIDA, 2009, p. 24,
tradução minha), assim como o Leviatã de Hobbes é o monstro artificial animalesco criado
pelo homem que serve de analogia para o Estado (Ibidem, p. 47). Da mesma forma, quando
Platão tenta demonstrar a distinção entre filosofia e mito no Fedro, a verdade da filosofia
acaba se encontrando enraizada na mitologia, na medida em que Platão traz mais de um mito
para poder explicar através de ―metáforas‖ a natureza maléfica da escrita (DERRIDA, 1981,
p. 75). Que a escrita, em todo seu potencial de impureza gramatológica, atraia o mitema atesta
para a construção da filosofia como sempre já uma forma de discurso (logos) higienizado,
mas com uma fonte mitológica.
Essa relação tensa entre humano e animal que encontramos nas distinções entre
natureza e política e entre filosofia e mito se deve, mais do que tudo, ao funcionamento da
linguagem em jogo nessas distinções e ao contato complexo entre homem e animal que se dá
dentro delas. O filósofo alemão Ernst Cassirer, em uma variação do tema aristotélico do
animal político, cunhou o termo ―animal simbólico‖ para nomear o ser humano, que se
diferenciaria dos outros animais por ser capaz de simbolizar. Mas não seria o próprio animal
não-humano o animal ―simbólico‖ que fornece o símbolo para que o animal humano se torne
ele mesmo simbolizante?
John Berger, em seu interessante artigo ―Why Look at Animals?‖, defende a idéia de
3
um ―animal simbólico‖ ao argumentar que a diferença entre indivíduo e espécie, entre um leão
e o Leão, se configurou como a primeira dualidade conceitual do pensamento humano. Da
mesma forma, o pensamento abstrato e simbolizante do homem se organizou, segundo
Berger, através de pinturas rupestres de animais, pintadas com sangue animal (1991, p. 7).
Essa estrutura dicotômica originária entre espécie e indivíduo encontra uma
reformulação facilmente identificável no diagrama platônico dual de mente e corpo, forma e
matéria, potência e atualidade. Ainda mais relevante é a retransformação a que esse diagrama
passa com o advento da teoria do signo — o significado abstrato e inteligível se relaciona com
o significante material e sensível como uma forma ideal a uma manifestação corpórea. A
dualidade implícita nesse sistema — a dicotomia corpo e alma — tem seus sentidos
supervisionados e organizados pela distinção imemorial entre humano e animal. Antes mesmo
de ser uma distinção entre dois tipos de seres vivos, essa cisão se dá mais propriamente no
momento em que se fundam os conceitos de corpo e alma. Porém, essa dualidade sempre já
encontra sua analogia ideal na diferença entre animal corpóreo e humano espiritual.
A dimensão do significado do signo linguístico (seja ele tomado como psiquismo ou
como a coisa-em-si no mundo) se apresenta sempre fiada à fala, à respiração, à alma e à
mente, conceitos construídos já em oposição ao animal que desde sempre apresentou ao ser
humano seu corpo banalmente material, biológico e efêmero — apenas um substituto para a
verdade do animal, ou seja, o que ele representa, a sua espécie. Na relação historicamente
complexa entre significado e significante, ou entre mundo e mímese, encontra-se espreitando
a problemática de uma tentativa incansável de definir a diferença entre humano e animal.
Se o homem é um animal simbólico, talvez sua simbolização seja resultado
justamente da relação com o animal-símbolo que lhe permitiu o conceito de signo. Aliás,
como o próprio sintagma ―animal simbólico‖ revela — da mesma forma que outros como
―animal político‖ — a definição do humano se sustenta pela relação que se da entre os dois
termos da expressão. Como Berger aponta,
O que distinguiu o homem dos animais foi a capacidade humana para o pensamento
simbólico, a capacidade que era inseparável do desenvolvimento da linguagem na
qual as palavras não eram somente sinais, mas significantes para algo que não elas
mesmas. Mas os primeiros símbolos eram animais. O que distinguiu o homens dos
animais surgiu de seu relacionamento com eles. (1991, p. 9)
problema da animalidade foi formulado culturalmente e que ela não seja transponível sem se
abandonar o próprio conceito de animal (ou também o de humano). Mas ainda assim é
produtivo explorar essa aporia enquanto questão teórica sistemática. Se Agamben defende
que os fenômenos inquietantes do século XX só poderão ser compreendidos na chave da
biopolítica, é possível que isso também implique o questionamento explícito de o que quer
dizer a zoé e de onde vem o conceito do animal (PENNA, 2005, p. 41).
Dos acontecimento preocupantes relacionados à biopolítica, Agamben enfatiza o
nazismo e o advento dos campos de concentração. O fascismo do século XX coloca em
evidência a relação entre biopolítica e os direitos humanos e a forma como ambos se
entrelaçam com a problemática da animalidade. O caráter biopolítico dos direitos humanos
pode ser observado, segundo João Camilo Penna, no surgimento do direito internacional e das
políticas humanitárias depois do fim da Segunda Guerra e da ―descoberta‖ dos campos de
concentração. Segundo ele, a humanidade — conceito distinto do ―homem‖ — surge
juntamente com o sintagma ―crimes contra a humanidade‖ que é cunhado em Nuremberg
(Ibidem, p. 39).
Tais crimes contra o status do humano, como demonstram os testemunhos dos
campos analisados por Penna e Agamben, sempre se configuram como uma relação complexa
entre humano e animal. As memórias sobre Dachau do escritor Robert Antelme apontam para
o papel da animalidade na formulação do conceito de humanidade no pós-guerra:
O resultado de nossa luta terá sido apenas a reivindicação arrebatada e quase sempre
solitária de permanecer, até o fim, homens. […] A colocação em dúvida da
qualidade de homem provoca uma reivindicação quase biológica de pertencimento à
espécie humana. Ela serve em seguida à meditação sobre os limites desta espécie,
sobre a distância da ―natureza‖ e sua relação com ela, sobre uma certa solidão da
espécie portanto e para terminar, sobretudo, serve para conceber uma visão clara de
sua unidade indivisível. (ANTELME apud PENNA, 2005, p. 39)
Ou seja, podemos entender que os direitos humanos do pós-guerra surgem como uma
forma de biopolítica que, não se contentando em politizar a vida animal do ser humano,
procura também naturalizar sua vida política. O que tornou os homo sapiens em humanos —
segundo Ludueña e Sloterdijk, tecnologias políticas de domesticação da vida animal humana
— precisa agora ser naturalizada como parte da própria espécie biológica humana, fazendo
com que a politização invada ainda mais a vida nua supostamente animal do ser humano.
A esfera dos direitos humanos da biopolítica revela que a zoé humana que é
politizada sempre é — ou sempre foi — passível de ser encarada como simples animalidade.
Os direitos humanos ignoram a aporia da relação humano/animal ainda mais ao tentar
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demarcar em termos justamente naturais essa divisão que deveria, por definição, ser ultra-
biológica. Como Antelme demonstra, para a biopolítica dos direitos humanos, a humanidade
enquanto espécie é indivisível, o que resulta no fato de ela ser absolutamente divisível das
outras espécies enquanto animais. Os direitos humanos se baseiam, em última análise, na
ausência de direitos dos animais. O crime dos campos foi tratar humanos como animais. E
seus sobreviventes expõem seu óbvio status de humano como defesa, pois a biopolítica não
entende nada além dessa confusa distinção. ―Somos todos humanos, afinal‖ parece ser a
defesa biopolítica dos humanos massacrados.
O movimento por direitos dos animais, por sua vez, representa possíveis estratégias e
posturas que se intercalam de modos diferentes com os direitos humanos. As mais familiares
são as que defendem basicamente a aplicação dos direitos humanos tal como eles se
encontram a alguns animais específicos, pelo fato de eles supostamente contarem com os
traços que aparentemente concedem direitos aos humanos. Essa postura não entra em conflito
com os direitos humanos biopolíticos pois não realmente discute ou questiona a divisão
humano/animal, apenas a retraça em outro lugar. Não só os judeus exterminados e os negros
escravizados, dizem os ativistas, mas também os primatas aprisionados e golfinhos caçados
são humanos. Somos todos humanos, afinal. Essa postura, enfim, não encara a real questão da
exclusão da vida animal dos direitos humanos pois, como fica muito claro, os primatas seriam
também humanos.
A estratégia de direitos animais inclusivos, por outro lado, muitas vezes é tratada
com hostilidade, pois quase sempre surge ao lado de uma crítica da dignidade humana
intrínseca à vida do homem, conforme é defendida pelos direitos humanos. Essa dignidade
inerente ao humano, defende essa visão, é produto direto de uma objetificação dos animais.
Aliás, ainda mais profundamente, se não fossem os animais e como são tratados, não haveria
a possibilidade de se pensar um tratamento digno e especial ao ser humano. Curiosamente,
essa postura polêmica também decide ignorar a aporia da divisão humano/animal, e prega um
continuísmo moral ou ate mesmo biológico.
Porém, essa mesma postura não precisa necessariamente minar os princípios dos
direitos humanos. Pois, como defendia o Nobel de Literatura Isaac Singer, os direitos animais
podem ser também entendidos como ―a forma mais pura de defesa da justiça social, porque os
animais são os mais vulneráveis de todos os oprimidos‖ (SINGER apud FOER, 2009, p. 173).
Como o testemunho de Antelme revela, o tratamento indigno dos humanos nos campos trazia
sempre à tona a vida indigna matável dos animais. Os direitos animais vistos por esse ângulo
defendem que, se não houvesse abuso animal, o extermínio ou crueldade para com os
8
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. 1995. Tradução de
Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2002.
BERGER, John. Why Look at Animals? In: About Looking. 1980. First Vintage
International Edition. New York: Vintage, 1991.
10
________. O animal que logo sou (a seguir). 1999. Tradução de Fábio Landa. São Paulo:
UNESP, 2002.
________. The beast and the sovereign: Volume 1. 2008. Tradução de Geoffrey
Bennington. Chicago: University of Chicago, 2009.
FOER, Jonathan Safran. Comer Animais. Tradução de Adriana Lisboa 2009. Rio de Janeiro:
Rocco, 2011.
PENNA, João Camilo. ―Sobre Viver (Entre Giorgio Agamben e Primo Levi)‖. Outra
Travessia. n.º 5. Florianópolis: UFSC, 2005.
SLOTERDIJK, Peter. Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger
sobre o humanismo. Tradução de José Oscar de Almeida. São Paulo: Estação Liberdade,
2000.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo
RESUMO
No fio condutor do conto primeiro de Sagarana, de João Guimarães Rosa, O Burrinho Pedrês,
é possível observar o desenrolar de um jogo de baralho tradicional no sertão e nos gerais,
regiões onde se situam os personagens do autor. Jogo de estratégias, de sinais, de blefes e de
astúcias, o truco, ou truque, faz parte das tradições dos interiores brasileiros. No conto, o
narrador utiliza um roteiro passível de ser observado num jogo de truco. A partir de um fato
que aconteceu em sua terra natal, Cordisburgo: uma enchente num riacho que matou um
grupo de vaqueiros, Rosa escreve o conto. O texto deixa pistas do arcabouço que sustenta a
trama, e é no encalço dessas pistas que se descobre o jogo de baralho. Estudando as pegadas
encontradas no conto pode-se chegar a uma espécie de história subjacente sobre o jogo de
truco. Foi estudando o jogo e estudando as pistas no conto que vislumbrei a interferência que
esse lazer do sertão teve na obra de Guimarães Rosa. Riobaldo, do Grande Sertão: Veredas,
proibiu o truco entre os jagunços quando virou Urutu Branco, o chefe.
Palavras-chave:
Literatura. Sete-de-Ouros. Baralho. Blefe. Morte.
RESUMÉE
Mots-clés :
Litérature. Sete-de-Ouros. Jeu de cartes. Bluff. Mort.
1
Jornalista, mestrando em Linguística Aplicada; e-mail: alair71@gmail.com.
2
para montar novas histórias, novas tramas, atá-las – as histórias dos cômodos – uma às outras
para dar um fio condutor. Veja as portas por onde o estilo entra e sai, as janelas que são
usadas por personagens insidiosos, as naturezas vistas de cada vão aberto da casa, o telhado
que pode ocultar o céu ou não. Enfim um arcabouço, um esqueleto de romance que bastaria
rechear com as letras formadoras de palavras e frases... e pronto.
Com um esquema assim montado e o material para levantar as paredes dessa planta
baixa, que seria a história a ser contada, parece até que fica mais fácil escrever um romance,
um bom romance, uma novela, um conto.
Esse artigo tem a pretensão de mostrar a trama, a planta baixa, o fio condutor de ―O
Burrinho Pedrês‖, conto primeiro de ―Sagarana‖, de João Guimarães Rosa, que, como ele
mesmo confessou em carta a João Condé 2 , foi sugerida a partir de uma história real de
afogamento de vaqueiros na enchente de um riacho em sua terra natal, Cordisburgo, em
Minas Gerais. ―Como já disse, as histórias eram doze: I) - O BURRINHO PEDRES - Peça
não-profana, mas sugerida por um acontecimento real, passado em minha terra, há muitos
anos: o afogamento de um grupo de vaqueiros, num córrego cheio‖.
O alicerce do conto estava posto, restava levantar as paredes. Nas suas andanças pelo
sertão e pelos gerais, as histórias, os ―causos‖ à beira de um fogão de lenha, no balcão de uma
vendinha qualquer, nas malas de sonhos de um mascate de ocasião ou nas varandas de uma
fazenda, acompanhados de algum carteado, jogos de baralho tradicionais nesses interiores,
Guimarães Rosa, com seu inseparável caderninho tudo olhava, tudo observava e tudo anotava.
Riobaldo, o narrador de Grande Sertão é testemunha desse hábito: ―O senhor enche uma
caderneta...‖ (ROSA, 1985, p.557). Nessa faina, perpetuava, dava ares de infinito ao que ia se
acabando, com a cidade invadindo o sertão e o asfalto ocultando as veredas.
Não posso me furtar de citar aqui parte da proposta de debate que o coordenador do
Grupo de Trabalho 19: Literatura e discurso, dr. Pedro de Souza, no Simpósio Internacional
Linguagens e Culturas: Homenagem aos 40 anos dos Programas de Pós-graduação em
Linguística, Literatura e Inglês da UFSC. Depois de propor ―investigar o modo pelo qual um
processo discursivo torna-se um acontecimento literário‖, o professor observa que ―pela
enunciação literária, há um jogo que se passa pelo modo de fazer texto e pela maneira com
que fora do texto este jogo se faz‖. Parece se referir a O Burrinho Pedrês e o jogo de truco.
Antônio Cândido, em artigo sobre o recém-lançado Sagarana, observa bem esse
findar, ao considerar que era
2
Carta de Guimarães Rosa a João Condé, revelando segredos de Sagarana, publicada na edição de Sagarana de
1984, pela Nova Fronteira.
3
natural, em meio semelhante, o alvoroço causado pelo sr. Guimarães Rosa, cujo
livro vem cheio de "terra", fazendo arregalar os olhos aos intelectuais que não
tiveram a sorte de morar ou nascer no interior (digo, na "província" ) ou aos que,
tendo nela nascido, nunca souberam do nome da árvore grande do largo da igreja,
coisa bem brasileira. Seguro do seu feito, o sr. Guimarães Rosa despeja nomes de
tudo - plantas, bichos, passarinhos, lugares, modas – enrolados em locuções e
construções de humilhar os citadinos. "Irra, que é talento demais", como o deputado
português, mal comparando. (CANDIDO, 1946, site)
Por onde andou, Guimarães Rosa presenciou o jogo de truco no sertão e nos gerais, e
então montou o esqueleto de seu conto O Burrinho Pedrês, a partir das manhas, artimanhas e
mutretas desse popular e matreiro carteado.
As pistas, os rastros deixados explicitamente no conto são dois: o nome do burrinho,
Sete-de-Ouros: ―Vinha-lhe de padrinho jogador de truque a última intitulação, de baralho, de
manilha‖ (ROSA, 1980, p. 3); e o grito que Francolim, o braço direito e parceiro do Major
Saulo, deu contra o adversário e potencial ganhador do jogo, Silvino: ―... e meu revólver pode
parir cinco filhotes para mamar no couro de quem trucar de-falso‖. (ROSA, 1980, p. 62) As
outras pistas são as estratégias, os sinais, os blefes, gritos e ameaças que existem tanto no
conto como no jogo, com a natureza participando intensamente de um e de outro.
O baralho tradicional, (esse artigo adota o Copag3, site, que existe no Brasil desde o
início do século XX) tem 52 cartas, treze de mesma numeração ou figuras, com os quatro
naipes diferentes: ouro, espada, paus e copas. Para o jogo de truco, os 8, 9 e 10 são excluídos,
ficando 40 cartas, quatro de cada uma, assim distribuídas: Ás, 2, 3, 4, 5, 6, 7, valete, dama, rei.
O Ás equivaleria ao 1; o valete, ao 8; a dama, ao 9 e o rei, ao 10.
Para o truco mineiro, as cartas assumem os seguintes valores, em ordem decrescente,
da mais valiosa para as menos: Zape (quatro de paus), Sete-de-Copas, Espadilha (ás de
espada), Sete-de-Ouros – são as chamadas manilhas – o quarteto poderoso – depois vêm os 3,
os 2, os ases, os reis, as damas, os valetes, os 7, os 6, os 5 e os 4 (as de menor valor que, no
máximo, podem empatar uma com a outra).
Se se bem reparar, entre as cartas de maior valor, as numéricas, o Sete-de-Ouros – a
última das manilhas – é o meio, onde a virtude gosta de ficar, o fiel da balança, a carta que
une as maiores às menores, pois o burrinho ―... Sete-de-Ouros detesta conflitos‖. (ROSA,
1980, p. 7).
Embaralhado, o pacote é cortado pelo adversário da direita e a distribuição de cartas,
três para cada um dos quatro jogadores, começa pelo adversário da esquerda, que vai ser o
primeiro a jogador. Quem embaralhou é o último. Os quatro jogadores, parceiros dois a dois,
tomam lugar à mesa alternadamente com os adversários. Assim os parceiros A e B, são
separados pelos adversários C e D que por sua vez... vice-versa.
O jogo é rápido, uma rodada de três, é vitorioso quem ganhar duas mãos. Se empatar
a primeira rodada, ganham os parceiros que fizerem a terceira. Então a segunda rodada perde
totalmente o valor: ganhar ou perder a segunda rodada não quer dizer nada. Só a terceira é que
vale. Isso, frise-se, em caso de empatar a primeira rodada. O jogo é calado em termos de
consultas, pode-se zoar o adversários, contar ―causos‖ durante o jogo, mas não passar
informações ou pedir sugestões sobre as cartas, sob pena de perder os pontos da rodada.
Rosa (1984, p. 575) comprova esse converseiro no jogo popular no sertão e nos
gerais ao dar voz ao jagunço-chefe Riobaldo Tatarana, antes do ataque final aos hermógenes:
Razão disso meava uma confiança, a mais, eu escutando satisfeito aquelas bobices
com que eles porfiavam: – Caranguejinho, sem cachaça tu vai?‖ – ―Eh, não: tu!
Vai saudar o gado!‖ Pelos risos e debiques que divertissem, de todos eu percebia a
forte certeza. Cada cada-um, dali a pouco, ia ser perigoso, de nele se encostar, feito
um sapo que espirra. – ―Que te falo: amarra o burro, que a carga é sua...‖ –
―Minha, a carga está salva... Mal a bem, oxente, quero é ver o que vou ver...‖Assim
se zé-zombavam. Aos ditos ditados, feito estivessem jogando um truque, sem
baralhos nenhuns.
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Disponível em http://www.copag.com.br.
5
Só chamei João Concliz: — ―Agora é agora...‖ E joguei a rumo. — ―Lá vai a obra!‖
Meu cavalo cavalo saíu às cabeçadas. Todos atrás de mim, no arranque; e era o
mundo mesmo. Gritei de sussús: — Vale seis — e toma nove! ...‖ — nas grimpas da
voz... E eles meus, gritando tão feroz, que semelhavam sobre-vindos sobre o ar.
6
para o outro o que tem em mãos, ou em mente. Além de ser permitidos, os sinais têm um
padrão para os iniciantes ou para parceiros que não se conhecem. Só que eles são também
acessíveis aos adversários que, atentos, passam a saber da jogada da outra dupla.
Esses os sinais quase sempre se referem às quatro grandes cartas, as manilhas zape,
sete-de-copas, espadilha e Sete-de-Ouros. São combinados entre os parceiros antes de se
sentarem à mesa para disputar o troféu. Alguns desses sinais: para o zape – pisca-se para o
parceiro; um levantar de sobrancelha pode indicar um sete-de-copas; o espadilha pode ser
revelado num franzir de nariz e passar a língua nos lábios pode anunciar o Sete-de-Ouros.
Era atrás desses sinais dos homens que o Major estava. Mas a exuberante natureza de
Guimarães Rosa também estava emitindo sinais de uma chuva, que se espalhou miúda e
ameaçadora por todo o conto, com a mesma força que a sentença de morte se imiscuiu nos
recados espalhados daqui e dali e que o jogo a toda hora deixava entrever. Cabia aos
contendores, sobretudo aos cabeças das duplas, Major Saulo e Silvino, ler nas entrelinhas a
dupla ameaça que paira no ar. Os céus e os homens conspiravam contra a paz do Major Saulo
e sua autoridade impassível: ―só no verde dos seus olhos é que pula o menino do riso‖ (p.15).
De resto ele estava atento, nada lhe escapava.
Cândido, (1946, site), no artigo já citado, viu bem o menino do riso nas atitudes de
major de ―O Burrinho Pedrês‖: ―O Sr. Guimarães Rosa – cuja vocação de virtuose é inegável
– parece ter querido mostrar a possibilidade de chegar à vitória partindo de uma série de
condições que conduzem, geralmente, ao fracasso‖.
Essa assertiva vem a calhar também para o jogo de estratégia e de blefes do truco.
Literalmente com a faca e o queijo (Badú) na mão, Silvino não só iria afrontar a autoridade do
major como iria levar com ele o troféu da vitória sobre o mais forte, o dono do mando: o
patrão.
4 A CARTADA FINAL
Uma das jogadas mais brilhantes do major foi ordenar a seu parceiro Francolim
trocar seu belo e alto cavalo pelo burrinho Sete-de-Ouros que estava com Manico e mandá-lo
dar uma volta. Sem ter entendido, Francolim obedece contrariado e vai montado no burrinho,
sinalizando aos adversários que ele não era de nada, não tinha cartas nem trunfos. Sabedor da
capacidade de olheiro do parceiro, o major nem precisou dar instruções. No truco não se fala,
a não ser para enganar os adversários, dar pistas falsas ou blefar. O burrinho Sete-de-Ouros
era um engodo e um blefe. É importante conhecer o parceiro, saber de suas potencialidades e
limitações, mas, sobretudo, é vital buscar sinais, sinais concretos, não apenas suposições, que
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―Francolim, escuta: eu tenho um mandado sério, para você cumprir, com toda a regra, porque
sei que você é o meu homem para isso. Espera. Boca fechada e olho aberto, na volta,
Francolim. Eu resolvi ficar hoje no arraial, com a família, e você vai vir com os vaqueiros,
trazendo na algibeira autoridade minha. Olha lá, Francolim, como é que você arranja as coisas,
sem ninguém desconfiar de nós... — Nem que eu morra em nome da lei, na palavra do senhor,
seu Major! (...) — É para vigiar o Silvino, todo o tempo, que ele quer mesmo matar o Badú e
tomar rumo. Agora, eu sei, tenho a certeza. Não perde os dois de olho, Francolim Ferreira!
(ROSA, 1980, p. 46)
Vale repetir destacando: “Olha lá, Francolim, como é que você arranja as coisas,
sem ninguém desconfiar de nós...”. desconfiar de quê? O que estava às escondidas e que não
podia vir às escâncaras, se eram o major e seu capataz dando ordens e sendo obedecidos? Era
a estratégia do jogo de truco, os trunfos das cartas, o jogo anunciado e o troféu Badú. Os
adversários não podem desconfiar de que nós temos cartas e sabemos que eles tem. É olho no
olho e vigiar para fazer a jogada certa.
Dando poder e confiança ao parceiro, sabedor do perigo dos adversários que estavam
com boas cartas, apesar do medo de Tote que tentou, sem sucesso, demover o irmão do jogo,
o Major Saulo sopesou os sinais, os blefes, as tramas e os engodos e topou a parada para
ganhar, e garantiu o parceiro que deu o grito intimidatório do truco, agora já do alto de seu
alazão e investido do poder pelo major-patrão-parceiro de truco: ―Não é caso de briga, Silvino,
porque alguma razão Francolim tem. — Alguma, não! Razão inteira, porque estou
representando seu Major, por ordem dele, e meu revólver pode parir cinco filhotes, para
mamarem no couro de quem trucar de-falso!” (ROSA, 1980, p.62)4
O Major sondou o jogo. Conversou, foi alertado por Francolim da cartada do
adversário Silvino: mata hoje Badú. Bisbilhotou para ver se era blefe e soltou o Sete-de-Ouros.
A dupla era imbatível – sete-de-ouros e zape. Pelo menos para quem sabe jogar. Sondou Tote,
sondou Raymundão, sondou Manico e deu as ordens: solta o Sete-de-Ouros que ele vão
mostrar as cartas. E mostraram. E perderam.
Francolim ainda advertiu Silvino: Não truca de-falso não que eu tenho o zape, o
Major. Silvino trucou e perdeu. Sete-de-Ouros – carta e burro – foi decisivo na vitória contra
o blefe que se avolumava no riacho já cheio. A enchente não pegou a última manilha de
surpresa: havia outra manilha para garantir.
As outras cartas, os perdedores, a enchente os descartou. Sete-de-Ouros mostrou sua
superioridade no jogo, garantiu Francolim, a salvo, (ele agarrou no rabo do burrinho durante a
enchente e foi desgarrado com um ―meio coice‖ que o deixou na margem), e o troféu Badú –
bêbado – ele levou para casa.
4
Negrito meu. É o grito do truco para intimidar Silvino.
10
5 REFERÊNCIAS
ROSA, Vilma Guimarães. Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai. Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1983, p. 331 a 337.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo
RESUMO
Palavras-chave:
Discurso. Narrativa. Silêncio. Luiz Vilela.
ABSTRACT
Keywords:
Discourse. Narrative. Silent. Luiz Vilela.
1
Professor de Teoria Literária e Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade Federal do Acre, Campus
Floresta, Centro Multidisciplinar, Cruzeiro do Sul – Acre. Doutorando em Literatura – UFSC; e-mail:
yvonery@hotmail.com.
2
Mestre em Linguística – UFU; e-mail: mariliascz@yahoo.com.br.
2
Em outra perspectiva, o silêncio pode ser visto, a partir de um viés religioso na busca
do inefável, encontrado além da fronteira das palavras com uma ruptura da linguagem. Como
afirma George Steiner (1990, p.30), “O mais elevado e puro grau do ato contemplativo é
aquele em que se aprendeu a abandonar a linguagem”. Esse comportamento pode ser
observado em algumas metafísicas orientais, como o Taoísmo e o Budismo, em que a alma
ascende “dos grosseiros obstáculos da matéria, através de domínios de percepção que podem
ser transmitidos por linguagem sublime e exata, rumo a um silêncio cada vez mais profundo”
(STEINER, 1990, p. 30).
Há que se fazer uma diferenciação entre o silêncio e o mutismo, pois ambos possuem
significações bem diferentes. O mutismo, segundo Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2002,
p.834) “pode estar relacionado a uma impossibilidade de compreensão motivada por fatores
diversos, fazendo com que haja uma obstrução na passagem do entendimento de si e do
mundo”. Já o silêncio, pode representar o rompimento de obstáculos e a abertura de caminhos
que levam ao entendimento do ser que se silencia, pois silenciar-se também é comunicação e
movimento da alma humana acompanhado de pensamentos.
Diante disso, nota-se na narrativa de Vilela que seus personagens, mesmo estando
em silêncio, instauram um diálogo interno que representa um incessante pulsar de vozes
evidenciadoras de sentimentos provenientes dos contatos entre o eu e o outro, demonstrando a
influência de múltiplos interlocutores na constituição da realidade do sujeito. O silêncio não
indica inércia da atividade mental nem a paralisação das inúmeras vozes interiores. Além de
envolver grandes acontecimentos, o silêncio abre passagem para incomensuráveis revelações:
a comunicação pode vir do silêncio.
Costuma-se atribuir ao silêncio posição secundária no processo de linguagem e o
status de vazio, falta de comunicação ou ainda de sentido. Apesar disso, não há mera
passividade ou apenas caráter negativo no silêncio, mas sentido múltiplo e possível que abre
espaço para a compreensão do sujeito. Ao observar uma obra literária que possui a marca do
silêncio, pode-se notar que há a instauração de significados nas relações entre os personagens,
o que pode acarretar um desbravamento da condição tanto intrínseca quanto extrínseca do ser.
Estar em silêncio não é abdicar da condição de falante, mas assumir um
posicionamento contrário àquele imposto pelo mundo moderno que transforma o homem em
ser da comunicação esvaziado de sentido. É notório o incômodo causado pelo silêncio na
maioria dos sujeitos, que vêem tal condição com angústia e insatisfação, buscando preencher
esse buraco com o contínuo ruído de um tagarelar sem fim que nada significa
verdadeiramente.
5
Segundo Santiago Kovadloff (2003, p. 10) "A palavra que acolhe o silêncio não se
funda em um ato voluntário. Ela é, ao contrário, fruto de um arrebatamento. É vocação, é
resposta a um chamado. Impõe-se, sobretudo, como inapelável necessidade a quem depois a
organiza como enunciado". É a partir de tais perspectivas que passamos a uma leitura das
novelas O Choro no travesseiro e Te amo sobre todas as coisas, de Luiz Vilela, na busca de
pontuar alguns discursos instaurados nas relações entre os personagens.
não havia quase ninguém, e ele já estava lá, em sua mesa. E conversávamos então,
apaixonadamente, sobre aqueles livros e aqueles escritores" (VILELA, 1994, p. 21).
Com as leituras e as conversas cotidianas, a figura de Nicolau passou a ser exaltada
veementemente, nele era vista a superioridade intelectual que poucos possuíam, "Claro, ele
não era todo mundo, estava acima da multidão, em alturas que só uns poucos podiam atingir.
Eu queria estar lá também, queria estar ao lado de Nicolau, ao lado dos poucos, dos solitários
e incompreendidos, dos rebeldes, dos malditos." (VILELA, 1994, p. 18).
Ao pensar esta novela, se faz mister refletirmos a figura enigmática de Nicolau.
Alcoólatra, de família rica, mas renegado tanto pelos familiares quanto pelos moradores da
cidade devido seu comportamento. Este personagem carrega uma série de discursos
silenciados ou silenciadores que se refletem mutuamente nas poucas formas de expressão
articuladas por ele. Em si, estão silenciadas as vozes sociais, familiares, dentre outras
marcadas pela crítica, pela recusa em aceitar suas maneiras desregradas ante as regras vistas
como normais pela sociedade.
Estas vozes parecem calar fundo em Nicolau, transfigurando-se em silêncio exterior
extravasado no excesso de bebida, comida e, por que não, de leituras, em uma tentativa de
autoconhecimento. Apesar da aparente tranquilidade, internamente pressupõe-se a existência
de um turbilhão de vozes, propulsoras de pensamentos ácidos e amargos acerca das mazelas
características da existência humana.
Há, em Nicolau, uma constante aparência de indiferença, ele está sempre
desarticulando a fala dos outros personagens. Os questionamentos, as afirmações e as
opiniões são respondidos com comentários rápidos e diretos, responsáveis por silenciar o
outro, o que poderia configurar, possivelmente, uma forma de autodefesa. Estes momentos
parecem retirar do silêncio sentimentos ocultos que assumem voz e postura na conduta de
Nicolau e silenciam o outro, a partir de um processo concomitantemente dual e paradoxal.
Como podemos notar, Nicolau é um sujeito cercado por escudos, quase inatingível,
teso em suas posturas e aparências. Roberto em alguns momentos comenta sobre o olhar do
amigo, "era o olhar de um solitário, de uma pessoa que já penetrara em certos abismos da
alma e não tinha com quem compartilhar isso" (VILELA, 1994, p. 16).
Esses momentos de introspecção de Nicolau são responsáveis por passagens
narrativas de significativo teor poético, como no trecho que se segue (VILELA, 1994, p. 25-
26):
Vi-o assim, aproximando-me sem que ele notasse − e então senti que ele
estava perdido: senti que ele estava já do outro lado, sozinho, como um homem
7
sozinho na outra margem de um rio imenso que ninguém pode atravessar; e nem eu,
nem mesmo eu, com toda minha amizade e devoção, podia chegar até ele e fazer
alguma coisa.
"Oi, Nicola", eu disse, e só então ele se voltou e me viu.
Sentei-me à mesa.
"Estava aqui olhando, disse ele, falando devagar; "é interessante: há solidão
até nas coisas; numa chuva, por exemplo..."
Pensar a solidão das coisas é refletir sobre sua própria solidão calcada nos silêncios
norteadores de seu comportamento. Ambas as solidões se fundem como forma de interação
intransponível aos que o cerca, mas compreendida e admirada pelo narrador. Essa relação do
eu com as coisas suscita em Nicolau outro sentimento, a compaixão, não explicitada enquanto
conceito, pois quando perguntado por Roberto sobre a definição do termo, o amigo explana,
"Não sei; não sei definir compaixão; mas eu sei o que ela é: quando a gente chega a sentir
compaixão até por uma barata, até por uma folha de árvore, até mesmo por um botão de
camisa..." (VILELA, 1994, p. 27).
Na fala de Nicolau temos novamente uma dualidade, ele apresenta a compaixão nas
coisas, mas poderíamos dizer que este sentimento piedoso se estende para sua própria tragédia
pessoal. Seria um processo de autopiedade consigo, camuflado no impulso altruísta de ternura
para com o sofrer das coisas, que é o seu sofrimento e silêncio recolhido, pois segundo David
Le Breton (1997, p. 149-150):
O recolhimento é uma das modalidades que o silêncio oferece aos que nele se
instalam por momentos. Retorno sobre si, capacidade de se deixar invadir pela
paisagem ou pela solenidade do local. Emoção de se sentir pertencer plenamente ao
mundo, levado pela emoção da atmosfera reinante. O silêncio proporciona uma
densidade que transforma a consciência e mesmo, às vezes, a modifica. O homem
alarga o sentimento da sua presença e tem por momentos a intuição do fim possível
da separação que, contudo, renasce à primeira palavra dita. [...] O silêncio põe o
mundo em suspenso, conserva a iniciativa do homem, deixando-o respirar a cama de
um sopro que nada faz andar depressa.
Semanalmente cartas eram trocadas, Nicolau dizia beber e comer menos e Roberto
enviava as obras, mas de uma hora para outra as cartas do amigo não chegavam mais ao
narrador, que ainda insistiu por um tempo sem obter resposta. Certo dia fica sabendo que
Nicolau estava cada vez pior, bebendo mais e mais, fato que gera enorme angústia em
Roberto, como explicitado no trecho que se segue (VILELA, 1994, p. 41):
Escutei a notícia, e um pouco depois fui para o quarto. Fechei a porta. Não queria
que ninguém entrasse. Queria ficar sozinho − sozinho com meus sentimentos, meus
pensamentos, minhas lembranças. No escuro do quarto, deitado com o rosto no
travesseiro, eu chorei: chorei de raiva, de decepção, de desamparo. Meu coração,
machucado, se extravasava em lágrimas e em exclamações abafadas contra o
travesseiro: "Então bebe, bebe; caia na rua, morra de beber. É isso que você quer,
né? Então morra, morra!"
Foi num fim-de-semana, sob aquela placa, que acabou meu primeiro amor.
Parados na esquina, domingo à noite, depois do cinema, Evinha e eu estávamos em
silêncio; então, olhando para o alto, eu disse:
"Gosto dessa plaquinha..."
Era só uma declaração de amor ao salão; mas ela me perguntou:
"Mais do que de mim?"
"É".
"É mesmo?"
9
Eu não quis olhar para ela, mas sabia que seus olhos verdes estavam fixos em
mim, muito abertos, tentando compreender a inesperada brutalidade daquela
resposta.
Notamos que a placa era a última lembrança a ser silenciada. Ao descobrir que ela
ainda estava guardada no depósito do bar, Roberto pergunta se Frederico não quer vendê-la,
mas o dono do estabelecimento diz que a daria com o maior prazer e assim o fez. Após algum
tempo de conversa, Roberto se despede e vai embora para o hotel. Na mesma noite retorna
para São Paulo e, ao chegar na capital paulista, observa que "o embrulho precioso ficara em
alguma parada de ônibus, levado por algum ladrão ou algum distraído" (VILELA, 1994, p.
50), sendo impossível sua recuperação, silenciando mais um elemento que o remeteria a seu
passado.
3
Atentemos para a definição de formação discursiva proposta por Foucault (1995): No caso em que se puder
descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre
objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (...),
diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva – evitando, assim, palavras demasiado
carregadas de condições e conseqüências, inadequadas, aliás, para designar semelhante dispersão, tais como
“ciência”, ou “ideologia”, ou “teoria” ou “domínio de objetividade”. (FOUCAULT, 1995, p.43-44) Dessa
maneira, podemos conceber por formação discursiva o sistema de manifestação verbal resultante da constituição
sócio-histórica dispersas nos sentidos dos enunciados. Assim, vê-se a alteração de sentido de um enunciado
conforme sua condição histórica – ou seja, dos sentidos construídos na História, em aspectos distintos, tais como
o social, o econômico e o cultural –, evitando a concepção equivocada de que o sentido é imanente ao discurso.
Essa questão possibilita-nos uma reflexão sobre a formação discursiva como organizadora de grupos de
enunciados em sua historicidade.
11
Se a linguagem implica silêncio, este, por sua vez, é o não-dito visto do interior da
linguagem. Não é o vazio sem história. é o silêncio significante. [...] Significa que o
silêncio é a garantia do movimento de sentidos. Sempre se diz a partir do silêncio. O
silêncio não é pois, em nossa perspectiva, o 'tudo' da linguagem. Nem o ideal do
lugar 'outro', como não é tampouco o abismo dos sentidos. Ele é, sim, a
possibilidade para o sujeito de trabalhar sua contradição constitutiva, a que o situa
na relação do "um" com o "múltiplo", a que aceita a reduplicação e o deslocamento
que nos deixam ver que todo discurso sempre se remete a outro discurso que lhe dá
realidade significativa.
− A única coisa que eu realmente ligo − disse, − a única coisa que eu... Ah,
Você sabe...
Ele balançou a cabeça.
− Eu te adoro, Max. Você não sabe o quanto eu te adoro. Te adoro mais que
tudo. Te adoro mais que Deus.
− Olha... Isso é pecado, hem? 'Amar a Deus sobre todas as coisas'...
− Pois eu te amo sobre todas as coisas.
− Deus é muito ciumento...
12
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Silêncio, falta de sentido? Não. Como podemos rapidamente observar, o silêncio é
elemento constitutivo da linguagem, ele perpassa as palavras de forma ativa e significante. O
discurso não pode existir sem sua presença, pois como aponta Le Breton (1997, p. 17) "o
silêncio não é um resíduo, uma escória a ser rejeitada, um vazio a preencher". Portanto, o que
buscamos aqui foi uma leitura das novelas O choro no travesseiro e Te amo sobre todas as
coisas, de forma a destacar alguns dos inúmeros discursos constituídos a partir do silêncio.
Para tanto, foi imprescindível observar como se dão as relações entre os personagens e o
mundo circundante, para então compreender as vozes que permeiam os silêncios que
perpassam os seres, as coisas e suas linguagens.
5 REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 9ª ed. São Paulo: Hucitec, 1999.
coordenação Carlos Sussekind; tradução: Vera da Costa e Silva...[et al.]. 3ª ed. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1990.
STEINER, George. A linguagem e o silêncio: ensaios sobre a crise da palavra. São Paulo:
Companhia das letras, 1990.
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo analisar a escrita de Maura Lopes Cançado como forma
de sobrevivência. O texto apresenta um discurso que segue o fluxo de consciência, narrando-
nos o dia-a-dia nessa instituição tão aterrorizante que é o manicômio. Nesse livro, a autora nos
apresenta um documento de vida trágica e sofrida, cuja autenticidade é capaz de provocar
grande mal estar até mesmo entre aqueles que não se interessam por esse tipo de conflito. Por
isso, ao se deparar com essa ferida social que é a loucura, o leitor corre o risco de ser inteira-
mente absorvido pela narrativa, podendo assim, comover-se com as angústias da protagonista.
Palavras-chave:
Loucura. Literatura. Escrita.
ABSTRACT
This article aims to analyze the writing of Maria Lopes Cançado about the surviving in mad
houses. The paper presents a discourse that follows the stream of consciousness, telling us
how terrifying is living inside an insane asylum. In this book, the author presents us a docu-
ment of tragedy and suffering wich the authenticity is capable of causing great unease even
among those who are not interested in this type of conflict. Therefore, when faced with this
social wound that is madness, the reader is likely to be wholly absorbed by the narrative, thus
being able to feel touched by the anguish of the protagonist.
Keywords:
Madness. Literature. Writing.
1 INTRODUÇÃO
Segundo o filósofo Michel Foucault em História da loucura, publicado em 1972,
não é de surpreender que as casas de internamento tenham o aspecto de prisões, que as duas
instituições sejam mesmo confundidas a ponto de se dividir os loucos indistintamente entre
umas e outras. Neste livro o autor nos coloca diante da trajetória dos excluídos, que tem início
na Idade Média com os leprosos, mendigos e portadores de doenças venéreas, até meados do
século XIX com a institucionalização do conceito de loucura. O filósofo define como o espa-
ço asilar foi construído e de que forma isso refletiu nos perfis dos internos. A partir dessa de-
finição – a construção do espaço geográfico da instituição – far-se-á uma ponte entre o espaço
físico do hospício e a construção ficcional do mesmo, tendo como suporte o texto literário.
1
Mestranda em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); e-mail: louisebcor-
rea@yahoo.com.br.
2
Para tal investigação utilizaremos o estudo do espaço hospício em uma obra da Lite-
ratura Brasileira: Hospício é Deus, de Maura Lopes Cançado, escrito em 1959 e publicado em
1968 enquanto a autora esteve internada pela segunda vez no Centro psiquiátrico Pedro II.
Atualmente, Instituto Municipal Nise da Silveira, localizado no bairro do Engenho de Dentro,
na cidade do Rio de Janeiro. O presente trabalho visa mostrar como em um espaço de clausura
e sufocamento foi possível arranjar mecanismos de sobrevivência: a escrita.
Maura Lopes Cançado escreveu o romance durante o período em que esteve interna-
da pela segunda vez no hospital psiquiátrico do Engenho de Dentro, por conta de ter sido di-
agnosticada como esquizofrênica. Ao iniciarmos a leitura, somos advertidos pelo prefacio de
Reynaldo Jardim que nos alerta sobre o teor do texto:
Mais que um prefácio isto é uma advertência: este é um livro perigoso, feito para
comprometer irremediavelmente sua consciência. A tranquilidade dos que se julgam
impunes e lúcidos, dos que ainda não sabem, porque ainda não olharam para dentro
de si mesmos, que Deus também pode ser o inferno, ou o hospício. (CANÇADO,
1979, p.10)
A onda lírica esbatia-se em nós à vista de uma realidade dura e chocante. A ênfase
deslocava-se da loucura-viagem, da loucura-mensagem, para as complexas misérias
do hospital psiquiátrico; mais ainda, centrava-se sobre a incompreensão “dos que es-
tão de fora”, ou seja, também na nossa. Hesitávamos entre duas temáticas contradi-
tórias. A primeira insistia na selvageria da repressão sofrida pelo louco, na arbitrari-
edade dos critérios da loucura, na loucura do mundo; A segunda afirmativa: a viola-
ção dos limites por parte do louco atrai em resposta uma violência de que é preciso
realçar a tristeza e admitir o caráter inevitável. Estamos dilacerados entre estas duas
posições, identificando-nos simultaneamente com o louco que se queixa do mundo e
com o mundo que se queixa do louco. (PLAZA, 1986, p.12)
De uma maneira um pouco ingênua, é possível então, acreditar que com a leitura,
somos capazes de resgatar das trevas aquela voz por detrás do texto, trazendo-a de volta ao
3
universo protegido da lei e dos direitos do qual o autor do livro foi privado. O autor sobrevive
através da palavra escrita, se a mesma não conseguisse reproduzir parte de seus pensamentos
e sensações em um papel ela seria apenas mais uma interna que talvez nem tomássemos co-
nhecimento. A loucura, segundo Monique Plaza, evocaria um mundo confuso os sobressaltos
de um pensamento que perde os seus limites e ri demais ou desespera sem motivos
Escrever um diário, aqui, seria uma tentativa – não uma solução – de salvaguardar
uma identidade perdida desde o momento em que se despiu a roupa de cidadão e vestiu-se o
uniforme desbotado dos doentes do hospício, pois a loucura estaria marcada na impossibilida-
de de toda partilha e de todo encontro. Por isso, como uma maneira de proteger-se da ameaça
de estilhaçamento provocado pelo internamento e pela loucura, para que fosse possível sus-
tentar um mínimo de dignidade, Maura Lopes Cançado decide escrever. E mais uma vez nas
palavras de Monique Plaza, podemos dizer que um texto está sempre cheio de promessas.
Sempre esperaremos dele o enunciado do sentido, num duplo registro. Por isso, podemos di-
zer que um texto exprime, revela, organiza o pensamento do autor.
A entrada no hospício, a nudez imposta nesta passagem para o mundo isento das
ameaças do fora, retira também qualquer possibilidade de afirmação ou de legitimidade das
vozes que de dentro dele emergem. Mas como proteger-se agora da paralisia daqueles que não
tem nome, nem lugar? Como podemos observar no trecho abaixo, a interna-autora descreve
de forma breve, porém com extrema intensidade o que siginifica para mesma tal espaço de
clausura:
Estou de novo aqui, e isto é ____________ Por que não dizer? Dói. Será por isto que
venho? – Estou no Hospício, deus. E hospício é este branco sem fim, onde nos ar-
rancam o coração a cada instante, trazem-no de volta, e o recebemos: trêmulo, exan-
gue – e sempre outro. Hospício são as flores frias que se colocam em nossas cabeças
perdidas em escadarias de mármore antigo, subitamente futuro – como o que não se
pode ainda compreender. São mãos longas levando-nos para não sei onde – paradas
bruscas, corpos sacudidos se elevando incomensuráveis: Hospício é não se sabe o
que, porque Hospício é deu. (CANÇADO, 1979, p. 29-30)
Ao pronunciarmos a palavra “Hospício”, qual seria a primeira imagem que nos vem
à cabeça? Um lugar sombrio e cinza, espaço de malucos, abandono e descaso. Pois bem, par-
tindo dessa questão, e considerando que essas respostas são verdades absolutas, e consideran-
do o trecho selecionado acima, o que teríamos seria um espaço construído sob uma forte carga
semântica, pois, só ao pronunciarmos a palavra – hospício – percebemo-nos transtornados. E,
a partir dessa idéia, podemos levantar uma questão importante: é possível identificarmos uma
diferença significativa entre o espaço ficcional que toma como base uma experiência vivida
daquele mesmo espaço construído apenas enquanto espaço ficcional puro e simples?
4
Meu diário é o que há de mais importante para mim. Levanto-me da cama para es-
crever a qualquer hora, escrevo páginas e páginas – depois rasgo mais da metade,
respeitando apenas, quase sempre, aquelas em que registro fatos ou minhas relações
com as pessoas. Justamente nestas relações está contida toda minha pobreza e super-
ficialidade. (p. 132)
sempre que estava muito próxima dele, brigava, chegando a tratá-lo mal, como fazia com to-
dos os que a cercavam.
Um pouco antes da sua ida ao Rio de Janeiro, houve um fato que indicia o seu des-
controle mental. Maura tinha paixão pela aviação. O pai, para satisfazê-la, comprou-lhe um
avião teco-teco. Alguns amigos da escritora dizem que ela havia emprestado o tal aviãozinho
a um colega, que o derrubara sobre uma casa. Ao final do desastre, Maura teve que mandar
reconstruí-la. Outros, no entanto, diziam que foi a própria Maura quem despencou proposita-
damente com o avião, para que pudesse sentir de perto os desvarios, as angústias, as ameaças
da morte. Em se tratando de Maura Lopes Cançado, isso era bem possível.
Empobrecida, Maura decide se mudar, em 1952, para o Rio de Janeiro levando a
mãe e o filho juntos. É neste novo ambiente que se dará a sua iniciação literária e, ao mesmo
tempo, suas internações psiquiátricas, que refletiam o seu total descompasso social, a sua ina-
dequação aos padrões estabelecidos. As entradas em manicômios foram muitas. Maura, às
vezes, neles se refugiava por vontade própria, outras, no entanto, decorreram de ordens judici-
ais. Durante as internações, surgiram algumas hipóteses de homicídios. O primeiro teria ocor-
rido no final dos anos 60 ou início dos 70, durante sua internação na Casa de Saúde Dr. Eiras,
lugar em que Maura teria assassinado uma colega de reclusão que estava grávida. Carlos Hei-
tor Cony, escritor que a conheceu durante os anos vividos no Rio de Janeiro, em artigo ao
jornal Folha de S. Paulo, do dia 15 de Junho de 2007, relata que “em duas de suas crises mais
violentas, matou uma enfermeira e um namorado, cumpriu pena em presídios psiquiátricos,
foi liberada por parecer de médicos que a examinaram e por juízes que a absolveram”.
Maura se dirige ao Rio de Janeiro com a grande esperança de que lá seria
o lugar ideal de sua aceitação social, de liberdade e de reconhecimento intelectual por parte da
elite literária. A escritora surge em um cenário de efervescente transformação. Faz-se necessá-
rio definir as estratégias que garantiriam essa empreitada ficcional. A começar pela própria
vida da autora, repleta de inexatidão de fatos, de dados, de datas, pontos que propiciam o con-
vite à fabulação. Até mesmo o diagnóstico da esquizofrenia lança uma dúvida sobre a veraci-
dade da narração, uma vez que a utilização da loucura poderia também ser uma estratégia
ficcional muito consciente. Até mesmo a escolha de um espaço como o hospício contribui
para a característica ficcional da obra, uma vez que sugere uma grande proliferação de signos
alusivos à imaginação.
7
A loucura pode penetrar na escrita sem suscitar a rejeição do leitor, quando é posta à
distância, aclimatada2. Um autor tem duas possibilidades para produzir um texto so-
bre a loucura que não seja julgado louco: pode testemunhar a sua própria loucura,
dar conta, de forma crítica, das divagações e dos prazeres que ela lhe trouxe, ou
construir uma ficção literária onde a aventura da loucura se instala e se desenrola.
(1986, p.113)
2
Grifo meu.
8
da à época por ela pertencer a uma das mais tradicionais famílias mineiras. Se na infância e
adolescência a desmedida insatisfação com tudo ao seu redor se ameniza com refúgio nos
sonhos, na vida adulta os sonhos são substituídos pelo mergulho em um estado de total des-
compromisso e irresponsabilidade, representado pela loucura.
Então a personagem busca o hospício como um lugar fora do mundo e a loucura co-
mo uma proteção contra esse mesmo mundo onde fracassa em todos os seus movimentos por
autonomia e liberdade. O hospício é, assim, uma oportunidade de introspecção e encontro
consigo própria. Mas, paradoxalmente, esse mundo desejado, romanticamente idealizado, e
transmutado no espaço físico do hospício vai ser repudiado como espaço hostil, porque lugar
do convívio indesejável com pessoas aquém de seu nível social, cultural, intelectual.
O autor foi louco: isso, ele reconhece. Mas a loucura representa para ele qualquer
coisa de ambíguo. Por um lado, ela é uma experiência vivida, mas que, enquanto ele
a vivia, teve todos os sentidos menos o de loucura. Por outro lado, ela é uma noção
organizadora, que ele deve, custe o que custar, integrar. A loucura é, pois, para um
autor um estado fora da lei, e um campo de significação obrigatório. 3 (PLAZA,
1986, p.116)
Outro exemplo da dubiedade de seu discurso, é que mesmo após repudiar a violência
com que as internas são tratadas no manicômio, ela admite que algumas delas merecem real-
mente ser castigadas, devido a seu comportamento irascível. Já em outras passagens, ela des-
creve terna e poeticamente as cenas das loucas dançando livres e alucinadas nos pátios e te-
lhados. Ainda que sua maior crítica seja à moral da elite burguesa mineira, da qual participa
como membro e como intelectual, e inevitavelmente assume os valores, a obra vem reproduzir
sua visão de mundo.
Debatendo-se entre seu mundo particular – a partir do qual extraem seus parâmetros
de elocução – e a consciência das deficiências desse mundo, a visão que a narradora constrói
do hospício coloca a maioria daquelas personagens em perversa situação de inferioridade: “As
mulheres são geralmente burras e sou inteligente” (p. 149). A discriminação continua na divi-
são das internas em doentes mentais e loucas e, a partir disso, da formulação de seu próprio
conceito de loucura. Nessa separação, as doentes mentais encontram- se em nível abaixo das
loucas, que são aquelas que ela acredita terem alcançado um estágio espiritual elevado; aque-
las que, já tendo superado a esfera material do mundo, ingressaram em um estado de completa
inocência, grandeza, liberdade, dignidade.
3
Grifo meu.
9
Não sei exatamente o número. Mais ou menos trezentas mulheres. Mal se entra no
refeitório se sente o cheiro. Cheiro de gente, gente sem se lavar. Algumas mulheres
denunciam nos vestidos manchados de sangue a higiene exigida e desprezada aqui.
E o cheiro. Cheiro de mulheres. Mulheres menstruadas e sem asseio. Procuro comer
as pressas, sem mastigar, os olhos baixos evitando ver. Geralmente é quase infalível,
há uma ou mais brigas. Voa tudo pelos ares: pratos, colheres, copos de leite. Algu-
mas doentes sobem nas mesas, metem os pés nos pratos das outras. Comidas pelo
chão, guardas gritando. Arrrrrr. Sempre aparecem homens, guardas ou doentes, se-
guram as doentes mais agitadas, torcem-lhes os braços para trás, dão-lhes gravatas,
deixando-as roxas, sem respiração. As guardas andam tontas, soltando guinchos e
berros. Mas quando a doente está presa, puxam-lhes os cabelos, ajudando a empurrá-
la para o quarto-forte. (CANÇADO, 1979, p.50)
“daquele que ele é quando não escreve, quando vive sua vida cotidiana, quando é um ser vi-
vente e verdadeiro e não agonizante e sem verdade”.
A escrita autobiográfica, sobretudo a prática de escrita de um diário, pode funcionar,
nesse sentido, como um espaço pouco ortodoxo, no qual seu estatuto problemático enquanto
obra literária constitui um modo privilegiado de questionamento das fronteiras que aprisiona-
riam outros gêneros de escrita através de uma hermenêutica totalizadora.
O leitor, neste caso, não pode querer interpretar através de uma verdade exterior ao
texto, mas deve estar disposto a se lançar em uma experiência na qual se arrisca a não poder
reconhecer mais as fronteiras entre interioridade e exterioridade, dentro e fora, literatura e
vida. Para isso, será necessário o abandono das dicotomias e do olhar conservador que deter-
mina fronteiras rígidas entre os saberes e que torce o nariz para tudo que escape estas delimi-
tações.
Ao apontar a realização de um diário intimo como resultado de um duplo malogro,
Maurice Blanchot sinaliza que estes dois universos de escrita não podem ser separados por
uma linha estanque. O fracasso a que se refere o crítico derivaria de um impasse irresolúvel
que enfrenta o diarista: se por um lado, como vimos, o escritor lança mão de um diário por
não querer perder-se de si mesmo, servindo-se assim desta “âncora que raspa o fundo do coti-
diano e se agarra às asperezas da vaidade”, por outro pretende salvar-se lançando mão do pró-
prio recurso do esquecimento que é a escrita. “Escrevemos para salvar os dias, mas confiamos
sua salvação à escrita que altera o dia”, escreve Blanchot.
O hospício ocupava, portanto, a dupla função de impedir a livre circulação do louco
no espaço urbano e de criar um espaço onde estes poderiam ser medicalizados; onde a doença
seria neutralizada, sendo possível a sua reintegração. Na obra Hospício é Deus, falar em recri-
ação faz com que tenhamos que nos remeter à sua biografia, pano de fundo de sua obra, mar-
cada, sobretudo pelo caos da rebeldia, da intolerância e da loucura. Como seria abordar sua
própria vida em matéria literária? Podemos observar no trecho abaixo:
Hoje, no meu diário, vou dirigir-me a mim mesma, falando como se o fizesse com
outra pessoa. É divertido. Muito mais divertido do que conversar com outrem. Pode-
rei chorar de pena da gente, ou meter coisas nesta cabeça rebelde, Maura. Chorar de
pena da gente. Isto tem acontecido muitas vezes, mas sempre vejo a menina, e não
sou mais uma menina (CANÇADO, 1979, p. 123).
vos, os mais diversos papéis são assumidos pela autora durante a cena ficcional, o que nos
leva a dizer que o sujeito uno, na obra, é destruído.
O questionamento que se levantou confere um deslocamento no objeto de estudo do
louco real para o louco literário, o autor, cuja mentalidade não pode ser avaliada. Tais loucos
literários se inscreveram no âmbito sociológico por se convencerem de que lhes cabia uma
tarefa social, para tanto exercitaram o trabalho de acordo com as formas da inteligibilidade,
interligando suas hipóteses e ideologias. Para isso foi necessário colocar as causas da loucura
em seu contexto cultural e social. Alguns textos tornam-se parte de um grupo por comparti-
lhar os mesmos pensamentos; outros, no entanto, “permanecem no tecido social como corpos
estranhos” (PLAZA, 1986, p. 53), estranheza que se dá nas relações entre autor-texto e texto-
leitor.
Através da imagem distorcida de um mundo em crise, Hospício é Deus constrói e es-
pelha outra realidade articulada segundo uma lógica muito própria, pois sua tessitura dá senti-
do ao estado patológico da protagonista. Esse modo diferenciado de funcionamento lógico e,
por vezes, propositadamente ilógico, trouxe à luz o paradigma de uma dimensão interpretável
da loucura. O colapso simbólico promovido pelas memórias da personagem Maura propicia à
autora a remontagem de um novo mundo linguístico, repleto de fragmentações discursivas,
representações de um eu multifacetado, refletido nas vozes que povoam a narrativa, mobili-
zando a imaginação do leitor em seu papel de co-autor. Loucura é circularidade, é eternidade.
Toda a marca da loucura é potencializada na obra em questão porque a linguagem utilizada e
transforma em um universo simbólico sublimado.
5 REFERÊNCIAS
FERNANDES, Mariana Patrício. Vida surgida rápida, logo apagada – extinta. A criação
de estratégias de fuga do hospício na escrita de Maura Lopes Cançado. Dissertação de
Mestrado. PUC-RIO.
RESUMO
Realizamos, neste trabalho, uma análise dos procedimentos internos da novela Morte em
Veneza, de Thomas Mann, e de seu homônimo fílmico, de Luchino Visconti, a fim de
vislumbrar a ambiguidade orgânica, intrínseca ao processo de representação da literatura e do
cinema. Para tanto, procuramos compreender como o sentido ideológico da obra literária, que
se constitui pelo dialogismo e pelo narrador heterodiegético de Mann, é resguardado, na obra
de Visconti, pela câmera enquanto aparelho de base do cinema.
Palavras-chave:
Morte em Veneza. Thomas Mann. Luchino Visconti. Narrador. Câmera.
ABSTRACT
In this paper, we analyse the internal procedures of the novel Death in Venice,
by Thomas Mann, and his namesake film, by Luchino Visconti, in order to foresee the organic
ambiguity, inherent to the process of representation in the literary work and in the film. To
this end, we seek to understand how the ideological sense of the literary work, that is through
the dialogism and the Man‟s heterodiegetic narrator, is hedged in the Visconti‟s work
through the camera while the film base unit.
Keywords:
Death in Venice. Thomas Mann. Luchino Visconti. Narrator. Camera.
1 IMAGENS DA AMBIGUIDADE
Para o narrador da novela Morte em Veneza, de Thomas Mann, a ambiguidade da
arte está assentada sobre a contradição que caracteriza a forma, a qual seria ao mesmo tempo
moral e imoral. Segundo este narrador, a solidão do artista, que “acarreta o original, o ousado,
o estranhamente belo, [...] também acarreta o errado, o desproporcional, o absurdo e proibido”
(MANN, 1979, p. 112). No filme em que adapta essa obra de Mann para o cinema, Luchino
1
Mestre em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Goiás (UFG); e-mail:
lorenabbarcelos@gmail.com.
2
Doutoranda em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); e-mail:
patcharicarte@yahoo.com.br.
2
Visconti, ao criar um amigo para o solitário músico Gustav von Aschenbach (Dirk Bogarde),
parece querer dar voz em sua película aos pensamentos do narrador da novela alemã. Através
dos diálogos entre Aschenbach e seu amigo Alfred (Mark Burns), Visconti proporciona a seu
filme um tom dramático que, na obra literária de Mann, é garantido pela interferência do
narrador nos pensamentos e conjecturas do protagonista. Mas, enquanto no livro o ataque do
narrador aos preceitos de Aschenbach são indiretos, sinuosos, permeando toda a narrativa de
modo intermitente, na obra cinematográfica, o julgamento do amigo sobre a postura do artista
é direto e incisivo: “Diga-me: sabe o que há sob o seu modo de agir? Mediocridade!”(Cf.
VISCONTI, 1971).
Essa acusação contra o famoso músico alemão, que também poderia ser proferida
pelo narrador criado por Mann, se refere especialmente à concepção de arte de Aschenbach,
que, no livro, não é músico, mas um escritor. Essa substituição, no entanto, da literatura pela
música, que constituem a profissão do artista na obra literária e cinematográfica,
respectivamente, em nada altera a caracterização de Aschenbach como adorador da moral
naquilo em que ela exalta “a sabedoria, a verdade e a dignidade humana”. Em um dos
fervorosos diálogos com Alfred, o Aschenbach músico confirma sua crença na beleza como
produção do espírito: “a beleza nasce, espontaneamente. Sem a ajuda do nosso trabalho, ela
preexiste à nossa presunção como artistas. [...] A criação de beleza e pureza é um ato
espiritual” (Cf. VISCONTI, 1971).
Para Alfred, o amigo do músico, “seu erro é considerar a vida, a realidade, como uma
limitação”. Para o moralista Aschenbach, “a realidade só nos perturba e degrada”. Portanto, os
artistas “não podem esperar que a vida ilumine seu alvo ou que o fixe” (Cf. VISCONTI,
1971). Além disso, para um homem que procura resgatar o sentido clássico da arte, a
obscuridade do real, causada por sua patente ambiguidade, deveria ser excluída não somente
de sua obra, mas também da própria vida. Todavia, no filme de Visconti, o amigo do músico
lhe adverte que a ambiguidade é uma característica da própria arte: “a arte é ambígua. E a
música é a mais ambígua das artes. É ambiguidade tornada ciência” (Cf. VISCONTI, 1971).
A ambiguidade da música se assentaria na arbitrariedade das séries de combinações
matemáticas imprevistas e inesgotáveis que o artista pode realizar nesta arte.
Em Morte em Veneza, a figura de Tadzio, o belo rapaz cuja perfeição se assemelhava
à das esculturas gregas (Cf. MANN, 1979, p. 113), pode ser tomada como símbolo dessa arte
marcada pela ambiguidade, na medida em que nesta personagem se encarna também o mal
que contamina a alma de Aschenbach. Tadzio, tanto na novela de Mann como no filme de
Visconti, representa a aparência apolínea que, de acordo com a teoria de Nietzsche, encobre o
3
2 O NARRADOR E A CÂMERA
Na obra de ficção literária, as funções do narrador não se esgotam no ato
enunciativo. Como protagonista da narração, ele é detentor de uma voz observável ao nível do
5
enunciado por meio de intrusões, vestígios mais ou menos discretos da sua subjetividade, que
articulam uma ideologia ou uma simples apreciação particular sobre os eventos relatados e as
personagens referidas. A voz do narrador traduz-se em opções bem definidas quanto à
situação narrativa adotada e ao nível narrativo em que se coloca. A partir de tais
condicionamentos, o narrador configura o universo diegético pela utilização que faz de signos
e códigos narrativos: organização do tempo da narrativa, regimes de focalização, etc. De
forma sintética, pode-se dizer que o narrador é a entidade por que passam e em função de que
se resolvem todos os fundamentais sentidos que emanam do relato.
Em Morte em Veneza, de Thomas Mann, os procedimentos de focalização do
narrador heterodiegético implantam, no discurso narrativo, uma espécie de embate entre a
visão de mundo (que aqui pode ser designada mais estritamente como concepção da arte) do
protagonista Aschenbach e a do próprio narrador. O narrador desta novela não é imparcial.
Ele acompanha friamente o definhar do escritor Aschenbach, apontando com certa ironia cada
passo dado por ele no caminho de degradação que culmina na morte. O narrador parece fazer
questão de mostrar como Aschenbach provocou a própria ruína. Além disso, por situar-se
num nível extradiegético (relata a história de seu exterior) e num tempo ulterior aos fatos
narrados, esse narrador não se aflige com a trajetória angustiante do protagonista, pois está
resguardado pela certeza de que nada mais pode ser feito para modificar o desfecho da
história, ainda que ele, o narrador, o quisesse. Assim, ele opera a focalização onisciente, a
qual faz com que seu conhecimento da diegese não tenha limites, já que ele pode, inclusive,
penetrar no espaço psicológico do protagonista, através do discurso indireto livre.
Entendendo-se a objetividade narrativa como um limite inatingível, o narrador
heterodiegético protagoniza, de modo mais ou menos visível, intrusões que traduzem juízos
específicos sobre os eventos narrados. Entre as suas próprias opções ideológico-afetivas e as
que reconhece nas personagens, o narrador heterodiegético tenderá a articular um “diálogo”
que, na obra narrativa, pode revestir-se de grande tensão e complexidade.
No filme, uma das maneiras encontradas por Visconti para expressar a visão de
mundo do narrador de Mann foi a criação da personagem Alfred, cuja concepção artística se
antepõe à faceta classicista do protagonista. A partir do flash back das conversas com o
amigo, no meio da cena em que o músico vê Tadzio pela primeira vez, o filme faz aflorar o
conflito interno que, inconscientemente, já se operava em Aschenbach mesmo antes de este
chegar a Veneza e que agora, com a visão da beleza em pessoa, lhe vem à consciência.
Os diálogos com Alfred, no entanto, fazem parte do plano discursivo. Eles
constituem uma linguagem mais literária, teatral, que propriamente cinematográfica. No
6
Baudry, como o olho que se desloca no cinema não está mais entravado em um corpo pelas
leis da matéria e pela dimensão temporal, não havendo limites assinaláveis para seu
deslocamento, o mundo não se constituirá somente através deste olho, mas para ele. O
espectador do cinema se identifica com a posição da câmera, “aquilo que não é visível, mas
faz ver, faz ver a partir do mo-ver que o anima – obrigando-o a ver aquilo que ele, espectador,
vê” (BAUDRY, 1983, p. 390). De acordo com Baudry (1983, p. 395):
ser uma folha – objeto de especulação do pai de Adrian – , essa prostituta, instrumento do
Diabo, vem a ser símbolo da própria música, cujos mistérios desde cedo Adrian desejou
desvendar. Foi Esmeralda quem, como uma espécie de afrodisíaco, teria desinibido o espírito
de Adrian para a música. Logo depois do contato com ela, o rapaz decide entregar-se por
completo à arte musical.
Visconti, a nosso ver, tenta reproduzir em sua obra a equação thomasmanniana
concentrada no simbolismo de Esmeralda: arte = natureza = mal. Essa equação se assemelha
ao princípio das relações funcionais, que encontramos em Diderot, para quem “tudo o que
vemos, conhecemos, percebemos, escutamos [...] existe em nós, sem que o saibamos” (Apud
COSTA LIMA, 1995). Para Diderot, a arte deveria estabelecer as mesmas relações que
encontramos entre os seres existentes na natureza: “O gênio é o indivíduo excepcional, sem
cuja intervenção não se saberia o que há. Sua função na arte é exemplar: por ele,
intuitivamente, i. e., pondo entre parênteses o conceito, a obra estampa relações que doutro
modo se desconheceriam”.
A nosso ver, o caráter transcendental do olho-sujeito constitutivo do sentido que,
implicitamente, movimenta a câmera, permite ao cineasta italiano conservar a ironia
thomasmanniana, o distanciamento do artista que, na condição de outsider, se esforça por
contrapor em sua obra a vida ao espírito, “num jogo de dialética altamente ambígua”, como
menciona o próprio Rosenfeld (1994). Portanto, se Visconti renunciou à antítese – tão cara a
Rosenfeld – entre razão e mito, configurada na novela, por outro lado, adaptou a obra de
Mann a uma arte cujo aparelho de base, a nosso ver, não fica devendo ao narrador
heterodiegético no que se refere à estratégia ideológica.
3 REFERÊNCIAS
BAUDRY, Jean-Louis. Cinema: efeitos ideológicos produzidos pelo aparelho de base. Trad.
de Vinícius Dantas. In. XAVIER, Ismail (org.). A experiência do cinema. Rio de Janeiro:
Edições Graal: Embrafilmes, 1983, p.383-399.
COSTA LIMA, Luiz. Mímesis e vida. Rio de janeiro: Editora 34, 1995.
GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa. Trad. de Fernando Cabral Martins. Lisboa: Veja,
Editora Annablume/UniABC, 2000.
HEIDEGGER, Martin. Os pensadores. Trad. de Ernildo Stein. São Paulo: Nova Cultural,
1996, vol. XVL.
MANN, Thomas. Morte em Veneza. Trad. Maria Deling. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
10
VISCONTI, Luchino. Morte em Veneza. [Filme-video] 1 cassete VHS, 130 min. color. son.
Produção: Alfa Cinematografia, Itália, 1971.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo
RESUMO
Este trabalho tem como objeto de estudo o Living Theatre, grupo experimental de teatro,
fundado em 1947 por Julian Beck e Judith Malina nos Estados Unidos e que nas décadas de
60 e 70 teve um papel fundamental na inovação das práticas do teatro com a quebra dos
paradigmas de criação do teatro ocidental dentro de um cenário contracultural e ainda
influenciados pelos estudos de Artaud, o grupo passou para o um teatro mais plástico e
oriental. O seu teatro revolucionário causou perseguição ao grupo, que iniciou uma trajetória
de apresentações em mais de 20 países, sendo o Brasil um desses. Living se estabeleceu no
Brasil nos anos de 1970 e 1971, onde teve várias peças montadas até o momento em que o
Regime Ditatorial Brasileiro prendeu o grupo por um suposto porte de drogas, o que acarretou
a sua expulsão do país. E é sobre esse momento que este estudo parte para compreender os
passos do grupo experimental e seu desempenho como um movimento da contracultura que a
Ditadura Brasileira freou. Desse modo, pretende-se analisar o Living Theatre como
manifestação contracultural no Brasil ditatorial.
Palavras-chave:
Living Theatre. Teatro. Contracultura.
RESUMEN
Este trabajo tiene como objeto de estudio el Living Theatre, grupo experimental de teatro,
fundado en 1947 por Julian Beck y Judith Malina en los EEUU. En las décadas de 60 y 70, el
grupo tuvo un papel fundamental en la innovación de las prácticas del teatro con la quiebra de
los paradigmas de creación del teatro occidental dentro de una escena contracultural, y aún,
bajo la influencia de los estudios de Artaud, el grupo pasó a hacer un teatro más plástico y
oriental. Su teatro revolucionario resultó en persecución al grupo que inició una trayectoria de
presentaciones en más de 20 países, siendo Brasil uno de ellos. Living se estableció en Brasil
en los años 1970 y 1971, en donde tuvieron varias obras montadas hasta el momento en el
cual el Régimen Dictatorial Brasileño arrestó al grupo por un supuesto porte de drogas, lo que
resultó en su expulsión del país. Y es sobre ese momento que este estudio parte para
comprender los pasos del grupo experimental y su desempeño como un movimiento de la
contracultura que la Dictadura Brasileña frenó. De ese modo, se pretende analizar el Living
Theatre como manifestación contracultural en el Brasil dictatorial.
Palabras-clave:
Living Theatre. Teatro. Contracultura.
1
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC;
e-mail: robertaphoenix@yahoo.com.br.
2
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O teatro contemporâneo acendeu muitas discussões sobre a forma de criação teatral,
entre elas o teatro político de Brecht e o da crueldade de Artaud. Estes dois autores
influenciaram significativamente o teatro mundial, destacando o grupo Living Theatre,
surgido nos Estados Unidos, na década de 40, que elaborou peças e espetáculos com base
nessas teorias, até provocar métodos singulares de criação. Esse grupo apresentou um teatro
ligado arte corporal e plástica, não apenas ao texto. A sua prática teatral influenciou outros
grupos, como Teatro Oficina, e em pleno período ditatorial concebeu um teatro contracultural.
E com a sua vinda ao Brasil, o Living Theatre concebeu as suas peças tanto na favela
quanto na prisão, marcando um teatro inovador e próximo da realidade nacional, que vivia em
plena Ditadura Militar. As peças produzidas no Brasil nesse período e o trabalho teatral do
grupo representam um momento único na dramaturgia nacional, o que vale um olhar analítico
e crítico à sua obra.
Nesse sentido, que é imperativo este trabalho revisite esse tempo histórico no teatro,
visto que, poderá evidenciar os procedimentos de criação e de encenação que o grupo Living
Theatre desenvolveu, marcado por um momento único na história cultural, a contracultura.
Para o Living, fazer teatro é intervir incisivamente na vida das pessoas, com
elementos catalisadores que possam subvertê-las a cada instância. O teatro é uma
forma poética de realizar imagens palpáveis que honre os sentidos e aspirações e
enalteça a sensibilidade, que esclareça a situação da humanidade, tornando-a mais
sensível e mais nobre e, fundamentalmente, que o teatro cumpra uma função social
nas vidas, tanto de quem faz teatro como para quem é espectador. (SALLES, 2004,
p. 147).
que em primeiro momento não conhecessem as teorias de Artaud, mas, do utópico, fizeram o
real.
3 LIVING THEATRE
Julian Beck e Judith Malina - aluna de Piscador, encenador que trabalhou com
Brecht -, fundaram e iniciaram as atividades do Living Theatre em 1947, um grupo nova-
iorquino de teatro Off - Broadway que nos seus primeiros anos de vida encenou, obras de
Brecht, Lorca, Gertrudes Stein, Picasso, T. S. Eliot, W. H. Auden, Strindberg, Jean Cocteau,
Pirandello e Racine, entre outras.
Na década de 60, após perseguição política fecharam a sede do grupo em Nova York,
o que fez o grupo migrar para Europa – período nômade do Living, mesmo sendo um grupo
de origem americano, havia diversos integrantes oriundos de vários lugares do mundo, da
Austrália a Portugal. O que revigora a fala de Deleuze (1985, p. 74) “Não é na periferia (pois
não há mais periferia) que se formam novos nômades”.
O grande salto artístico do grupo ocorreu em 1964, quando em estada na Europa o
grupo produziu sua primeira criação coletiva, Mysteries and smaller pieces, no ano seguinte
outra criação Frankenstein, e em 1968 a sua obra coletiva mais célebre Paradise now.
A convite de José Celso do Teatro Oficina, o grupo veio ao Brasil em 1970, em São
Paulo, onde produziu e encenou O legado de Caim, um ciclo de peças de teatro de rua, Bolo
8
de Natal para o Buraco Quente e o Buraco Frio, performance na Favela Buraco Quente; em
1971, as peças Seis sonhos sobre minha mãe, peça com filhos de operários e já em Minas
Gerais, Sonhos dos Prisioneiros, peça criada na colônia penal em Ribeirão das Neves.
Trabalhando com estes grupos, o Living adentrou para a realidade brasileira.
Em Minas Gerais, o grupo foi preso por porte ilegal de maconha, no julgamento
acabaram inocentados, mas enquanto presos chamaram atenção internacional, o que fez o
Governo Ditatorial expulsar o grupo do Brasil, com a concepção de que o grupo denegria a
imagem do país na mídia internacional.
Da experiência da prisão, o grupo criou a peça Sete meditações sobre o
sadomasoquismo político encenada periodicamente pelo grupo até hoje. De acordo com Salles
(2004),
Este fato repercutiu nos EUA e a passagem do Living pela prisão acabou sendo um
meio de agir e denunciar as injustiças. Os companheiros de cela sugeriram como
falar das torturas sofridas na prisão e solicitaram que os componentes do Living
contassem ao mundo o que haviam vivenciado na prisão.O trabalho do Living tinha
um forte teor de denúncia social. Em resposta a este fato da prisão, criaram a peça
Sete Meditações Sobre o Sadomasoquismo Político, que estreou em 1973 nos EUA.
Obviamente a peça tratava de violência com um texto sobre a repressão policial e a
tortura por choques elétricos no pau-de-arara. Era representativa das muitas formas
de tortura praticadas, não só pelo governo do Brasil, mas como do Chile, México,
Paraguai, Irã, etc. (SALLES, 2004, p.145).
9
Na injusta estada na prisão Judith Malina relatou em seu diário as várias situações
pelas quais passou dentro do cárcere da Dops (Delegacia de Ordem Política e Social) em
Minas Gerais. Desse modo, a sua fala além de caracterizar a sua aflição individual, ela reflete
um momento histórico tanto do grupo Living Theatre quanto de diversas pessoas que foram
presas pela Ditadura Militar por motivos obscuros, como acusação de subversão. O Diário de
Judith Malina publicado em 2008 juntamente com arquivos da Dops sobre a prisão do grupo
esclarecem esse momento histórico, em que a “palavra armada” calou a “palavra artística”.
10
Fotografia 5 - Capa do livro Diário de Judith Malina (2008) – foto tirada atrás
das grades na prisão em Minas Gerais
Fonte: http://www.cultura.mg.gov.br/?task=interna&sec=5&cat=18&con=1459
MALINA – Quero abraçar o mundo com as pernas, com os braços. Amo tudo isso,
amo estar viva e percebo que o mundo inteiro é um fracasso. Temos de rir.
(http://geraldthomasblog.wordpress.com/2008/10/04/7911/)
coletiva, é um divisor de água na cultura teatral, por ser renovador, plural, obsessivamente
acentuado pelas vicissitudes de sentidos que Artaud defendia.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A contracultura foi um movimento que lançou bandeiras em variadas direções, mas
com intuito de alargar e não estreitar a arte, o conhecimento. No seio dessa agitação, em
destaque, Living Theatre desempenhou um papel importante nesse cenário caótico de uma
revolução cultural, mas retardada pelos grilhões da incompreensão de um governo militar que
o expulsou do Brasil e o acusando de subversivo.
Mas a compreensão e o “resgate” desse tempo histórico, e também do trabalho desse
grupo, fará que a obscuridade reinante naquele momento, se amargue na lembrança, mas que
a ribalta do movimento contracultural seja lembrada.
Living Theatre, tanto no seu desempenho teatral quanto na sua concepção política
contracultural foi de derradeira significação para a expressão artística do país, além da criação
coletiva e dos métodos inovadores, eles apontaram para uma revolução no teatro que
transformou a história do teatro nacional, num período contracultural, no entanto, ditatorial.
5 REFERÊNCIAS
ARTAUD, Antonin. O teatro e o seu duplo. [Trad. Teixeira Coelho]. São Paulo: Martins
Fontes, 2006.
BECK, Julian; MALINA, Judith. Living Theatre: La Prision y El Legado de Caim. Madrid:
Edicusa, 1975.
BENTLEY, Eric. O teatro engajado. [Trad. Yan Michalski]. Rio de Janeiro: Zahar Editores,
1969.
BRUSTEIN, Robert. O Teatro de Protesto. [Trad. Álvaro Cabral] Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1967.
DELEUZE, Gilles O pensamento nômade. In. Nietzsche Hoje? São Paulo: Brasiliense, 1985.
FIUZA, Alexandre Felipe. Entre um samba e um fado: a censura e a repressão aos músicos
no Brasil e em Portugal nas décadas de 1960 e 1970. Assis, SP: UNESP, 2006. (Tese de
Doutorado)
GARCIA, Silvana. Teatro de militância. São Paulo: Perspectiva, 1990. (Série Estudos)
GOFFMAN, Ken; JOY, Dan. Contracultura através dos tempos: mito de Prometeu à
cultura digital. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007.
LIGIÉRO, Zeca. The Living Theatre no Brasil. In. ArtCultura. nº 1. Uberlândia: NEHAC –
Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura, 1999. p. 53-57.
MAGALDI, Sábato. Iniciação ao teatro. São Paulo: Ática, 1986. (Série Fundamentos)
_______; VARGAS, Maria Thereza. Cem anos de teatro em São Paulo (1875-1975). São
Paulo: Editora SENAC, 2001.
MANILA, Judith. Diário de Judith Manila – O Living Theatre em Minas Gerais. Belo
Horizonte: Arquivo Público Mineiro, 2008.
PRADO, Décio de Almeida. O teatro brasileiro moderno. 2. ed. São Paulo: Perspectivas,
2003 (Coleção Debates)
_______. Teatro Oficina (1958-1982) trajetória de uma rebeldia cultural. São Paulo:
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RISÉRIO, Antonio. Duas ou três coisas sobre a contracultura no Brasil. In. Anos 70:
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ROSENFELD, Anatol. Teatro Moderno. São Paulo: Perspectiva, 2005. (Coleção Debates)
ROUBINE, Jean. Introdução às grandes teorias do teatro. [Trad. André Telles]. Rio de
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SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno [1880-1950]. [Trad. Luiz Sérgio Repa] São
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TYTELL, John. Living Theatre: arte, exilio y escándalo. Barcelona: Los Libros de la liebre
de Marzo, 1999. p. 91-197
http://geraldthomasblog.wordpress.com/2008/10/04/7911/
http://livingtheatre.org
https://www.facebook.com/kymarto
SUMÁRIO GERAL Sumário de Literatura Aba de anexos para salvar artigo
RESUMO
O presente trabalho pretende estabelecer uma releitura do livro Galáxias, escrito por Haroldo
de Campos entre 1964 e 1976, destacando os movimentos que perfazem o texto da viagem
enquanto abertura de uma experiência da comunicabilidade. Nesse sentido, a preocupação
metalingüística que permeia a construção do texto por fluxos e refluxos de significantes
aplicados à superfície da página segundo um paradigma de composição por corte e montagem
parece desvelar não um núcleo original da língua, mas, antes, uma intenção de significar. Essa
dinâmica, para além de se limitar ao paradigma construtivo do texto, também parece apontar
para uma dimensão onde experiência do desejo e experiência da pós-utopia vanguardista
trazem à tona a consideração da linguagem em suas conexões fantasmáticas. Suspendendo o
mero apego comunicativo da linguagem, as Galáxias indicam um percurso onde o cânone e o
seu fora se indiferenciam em uma tentativa de usar a linguagem enquanto possibilidade de
experiência – babélica. Essas considerações têm como pano de fundo especialmente o
pensamento de Giorgio Agamben e Emanuele Coccia sobre a experiência da linguagem
enquanto uma instância medial na qual surge um processo que opera ambivalentemente sobre
uma dinâmica de desejo e criação de sentido. Além disso, a proliferação dos significantes e o
uso de neologismos, arcaísmos e xenoglossias ao longo dos fragmentos galácticos parecem
carregar consigo uma operação na qual também está em jogo a possibilidade do
esquecimento, ou melhor, de um processo de obnubilação (cf. Araripe Jr.).
RESUMEN
El presente trabajo intentará establecer una relectura del libro Galáxias, escrito por Haroldo
de Campos entre 1964 y 1976, atentando para los movimientos que presentan el texto de viaje
en cuanto apertura de una experiencia de comunicabilidad. En ese sentido, la preocupación
metalingüística que está en el medio de la construcción textual a través de flujos y reflujos de
significantes aplicados sobre la superficie de la página segundo un paradigma de composición
por corte y montaje parece desvelar no exactamente un nucleo original de la lengua, sino una
intención de significar. Esa dinamica, no se limitando al paradigma constructivo del texto,
también parece indicar una dimensión donde la experiencia del deseo y la experiencia post-
utópica de la vanguardia presentan la consideración del lenguaje en sus conexiones
fantasmáticas. Suspendiendo la mera noción comunicativa del lenguaje, Galáxias indica una
percursividad donde el cánon y su afuera restan indiferentes en un tentativo de usar el
lenguaje en cuanto posibilidad de experiencia – babelica. Esas consideraciones parten del
pensamiento de Giorgio Agamben y Emanuele Coccia sobre la experiencia del lenguaje como
medialidad en la cual surge un proceso que opera tanto en una dinámica del deseo cuanto el la
creación de sentido. Más allá de eso, la proliferación de los significantes y el uso de
neologismos, arcaismos y xenoglosias a lo largo de los fragmentos del libro parecen indicar
también una operación en la cual está en juego la posibilidad del olvido, o mejor, de un
proceso de obnubilación (cf. Araripe Jr.).
1
Mestrando em Teoria Literária (PPGL/UFSC); e-mail: cervelin.diego@gmail.com.
2
2
Indicamos desde já que, em relação aos pequenos trechos e citações recolhidos de Galáxias, preferimos apenas
assinalar os fragmentos de onde provêm.
3
principiava a encadear-se um epos mas onde onde onde sinto-me tão absconso
como aquela sombra tão remoto como aquele ignoto encapelar-se de onda
quantas máscaras até chegar ao papel quantas personae até chegar à
nudez una do papel para a luta nua do branco frente ao branco
o branco é uma linguagem que se estrutura como a linguagem seus signos
acenam com senhas e desígnios são sinais estes signos que se desenham
num fluxo contínuo e de cada pausa serpeia um viés de possíveis em
cada nesga murmura um pleno de prováveis o silabário ilegível formiga
como um quase de onde o livro arrulha a primeira plúmula do livro viável
que por um triz farfalha e despluma e se cala insinuo a certeza de um
signo isca ex-libris para o nada que faísca dessa língua tácita
Entre o sentir-se “tão absconso” e o “nada que faísca dessa língua tácita”, a viagem
galáctica expõe, antes, que o ingresso na linguagem – e na escritura – não é um gesto neutro,
mas introduz no sujeito um princípio de divisão infinito (cf. Agamben, 2010, p. 110)3, no qual
surgem não mais do que mascaramentos – ecos imemoriais de um impulso primevo que
sempre está aí, continua aí como promessa e dívida do homem de cultura (culto e cultuoso).
Nesse sentido, a explicação veiculada pela linguagem não surge aplacando a dúvida sobre
uma constituição de tonalidade metafísica, nem revelando um conteúdo mais original – e, por
isso mesmo, mais verdadeiro – que resta escondido. Conforme a própria etimologia do termo
explicatio indica, na viagem que se faz com a linguagem, só há desdobramentos (cf. Perniola,
p. 23), que, a cada instante, nos colocam diante da abertura de um “comêço em eco no soco de
um comêço em eco no oco eco de um soco” (frag. 1). As palavras em eco produzindo
paronomásias, ou seja, as palavras-rimas, que estruturam a corrente gráfico-sonora de uma
mesma série apresentando os movimentos especulares – mas não menos especulativos – das
Galáxias, estabelecem uma unidade operativa que se faz no nível do significante, mas não
exatamente naquele de um significado inequívoco:
3
O efeito do ingresso na linguagem apresenta uma configuração exemplar no seguinte trecho do fragmento 14,
“ma non dove”, escrito em 21 de fevereiro de 1965: “kiklos de palavras / o texto entretecendo entretramando
entrecorrendo pontos pespontos / dispontos texturas o estelário estepário de palavras costurando ávidas /
suturando texturando urdilando ardilário vário laços de letras lábeis / tela têxtil telame aranhol aranzol de arames
manhas de ramos ranhos / de aranhas letras sestras lépidas letreiros selva de símbolos também / selvaggia e aí
estou aí fui aí sou eu ou outro eu mesmo ninguénheu ou outro”. Grifo nosso.
5
similis, che esprime la somiglianza, e simul, che significa «nello stesso tempo». Così
accanto a similitudo (somiglianza) si ha simultas, il fatto di essere insieme (da cui,
anche, rivalità, inimicizia), e accanto a similare (rassomigliare) si ha simulare
(copiare, imitare, da cui, anche, fingere, simulare) (Agamben, 1996, pp. 79-80).
Glossolálica e xenoglóssica, a viagem proposta por Haroldo de Campos ao longo desse mar
“fluctissonante” dos idos dos anos 70 torce os significantes de um modo tal que eles ecoem
sobre a página um balbucio – uma barbárie. Conforma Agamben (2010, p. 66) já nos havia
assinalado, a glossolalia e a xenoglossia “sono la cifra della morte della lingua: esse
rappresentano l‟uscita del linguaggio dalla sua dimensione semantica”. Qual seria, então, a
4
“Glōssa significa «parola estranea alla lingua d‟uso, termine oscuro, di cui non s‟intende il significato» [...] La
glossolalia non è, dunque, un puro proferimento di suoni inarticolati, ma un «parlare in glosse», cioè in parole di
cui non si conosce il senso [...] Se io non conosco la dýnamis (anche questo è un termine grammaticale, che
significa: valore semantico) della parola [...] sarò, rispetto a chi parla, un barbaro e colui che parla in me sarà un
barbaro [...] se io pronuncio parole di cui non intendo il significato, colui che parla in me, la voce che le
proferisce, il principio stesso della parola in me sarà qualcosa di barbaro, che non sa parlare, non sa quel che
dice. Parlare-in-glossa significa, cioè, far l‟esperienza, in se stessi, di una parola barbara, che non si sa;
esperienza di un parlare «infantile» [...] in cui l‟intelletto resta «senza frutto»” (Agamben, 2010, pp. 64-65).
6
5
Conforme Agamben (2005, pp. 107-108) nos lembra, “Uno dei princìpi acquisiti dalla linguistica moderna è
che la lingua e il discorso in atto sono due realtà assolutamente scisse, fra le quali non esistono né transizione né
comunicazione [...] D‟altra parte, ogni lingua dispone di una serie di segni (che i linguisti chiamano shifters o
indicatori dell‟enunciazione, fra i quali, in particolare, i pronomi «io, tu, questo», gli avverbi «qui, ora ecc.»)
destinati a permettere all‟individuo di appropriarsi della lingua per meterla in funzione. Carattere comune di tutti
questi segni è che essi non possiedono, come le altre parole, un significato lessicale, definibile in termini reali,
ma possono identificare il loro senso solo attraverso un rimando all‟istanza di discorso che li contiene [...]
L‟enunciazione non si riferisce, cioè, al testo dell‟enunciato, ma al suo aver luogo e l‟individuo può mettere in
funzione la lingua solo a patto di identificarsi nell‟evento stesso del dire e non in ciò che, in esso, viene detto”.
7
Os desdobramentos das Galáxias, no entanto, não param por aí e apontam para uma
consideração residual da linguagem, que percebe o sem sentido que permeia a atividade
escritural como a própria possibilidade de apresentar algum sentido:
o que eu mais vejo aqui neste papel é o vazio do papel se redobrando escorpião
de palavras que se reprega sobre si mesmo e a cárie escancárie que faz
quando as palavras vazam de seu vazio o escorpião tem uma unha aguda de
palavras e seu pontaço ferra o silêncio unha o silêncio uno unho escrever
sobre o não escrever e quando este vazio mais se densa e dança e tensa
seus arabescos entre escrito e excrito tremendo a treliça de avessos
branco excremento de aranhas supressas suspensas silêncio onde o eu se
mesma e mesmirando ensimesma emmimmesmando filipêndula de texto extexto
por isso escrevo rescrevo cravo no vazio os grifos desse texto os garfos
as garras e da fábula só fica o finar da fábula o finir da fábula o
finíssono de quem em vazio transvasa o que mais vejo aqui é o papel que
escalpo a polpa das palavras do papel que excalpo os brancos palpos do
telaranha papel que desses fios se tece dos fios das aranhas surpresas
sorrelfas supressas pois assim é o silêncio e da mais mínima margem
da mais nuga nica margem de nadanunca orilha ourela orla da palavra
o silêncio golfa o silêncio glória o silêncio gala e o vazio restaura
o vazio que eu mais vejo aqui neste cós de livro onde a viagem faz-se
nesse nó do livro onde a viagem falha e falindo se fala onde a viagem
é poalha de fábula sobre o nada é poeira levantada é ímã na limalha (frag. 31)
fato de que os homens usam a linguagem para expor a marca de uma experiência em um
mais além do próprio conteúdo comunicado (cf. Agamben, 2007, p. 66).
Esses movimentos delineados através da (des)ordem dos significantes, veículos de
uma fala bárbara, atingem e golpeiam a superfície da página6 especulando um paraíso que
adquire a consistência daquele exposto no fragmento 33 das Galáxias. Aí, o “labirintoandar”
da viagem “suspende a poeira” da “escritura legível numa língua / flamíssona”, onde “seu
paraíso era spezzato partido também feito / de fragmentos e crollava caía como uma torre
derrupta si rischia di” (frag. 33). A queda é imagética e, em sua caída, suspende e expande
pontos luminosos – “punti luminosi”. Escrito entre 17 e 27 de janeiro de em 1968, o episódio
é interessante, logo de cara, por tratar de um momento bem explicitamente “museológico” da
viagem: desdobrando uma série de figuras decadentes, o fragmento retoma o episódio em que
Haroldo de Campos visitou Veneza e o poeta Ezra Pound, em Rapallo (cf. Campos, 2010, pp.
191-203), na costa genovesa, em fins da década de 50. Nesse sentido, o “mármore ístrio
enegrecendo na sombra” com o qual o fragmento se inicia pode evocar a velhice de Pound
em sua decrepitude balbuciante de quem se tornou “molto stupido reclinado no sofá” (frag.
33). De outro modo, segundo um movimento quase reflexo e analógico, o fragmento agrega à
decadência do poeta a figura de uma torre que cai. Mas não podemos saber exatamente de
qual torre se trata. Desenrolando-se em torno do ambiente veneziano, o incidente pode se
referir ao colapso do campanário da Basílica de São Marcos, em 12 de julho de 1902. Por
outro lado, transubstanciado também pelo contato com a “matéria do paradiso de dante”
(frag. 33), a operação do texto parece carregar consigo uma sugestão dantesca que explicaria,
ou seja, desdobraria a fragmentação exercida sobre o significante, fazendo-a incidir sobre o
episódio da torre de Babel e sobre a consideração da experiência de linguagem exposta nas
Galáxias.
6
Esses golpes mantêm certa familiaridade com a consideração feita pelo crítico Gonzalo Aguilar (2005, pp. 321-
322) em relação ao neobarroco de Haroldo de Campos: “Os procedimentos que Sarduy havia erigidos como
neobarrocos, em seu famoso ensaio “O Barroco e o Neobarroco”, podem ser aplicados sem muita dificuldade
aos poemas em prosa de Haroldo: o esbanjamento, o artifício (com suas substituições, proliferações e
condensações) e a paródia [...] Talvez o que poderia ser considerado como o núcleo barroco da escritura latino-
americana seja, além dos apontados por Sarduy, a consideração da linguagem como realidade última sobre a qual
se exerce uma violência. Essa violência foi interpretada por Walter Benjamin como uma pretensão de chegar às
fontes da linguagem, e explicaria certas características estilísticas do que se denominou neobarroco. O signo
como resto material, ruínas, adquire o caráter de um hieróglifo ou uma pedra inerte, à qual o poeta trata de
insuflar vida ou sentido. E esse sentido não provém de uma garantia externa (o sujeito), mas se trata de „uma
produção de sentido que vem antes, ou procede de fora do sujeito‟ (Sarduy)”.
9
Retomando a etimologia apresentada pelo exegeta bíblico alexandrino do século I, Filo Judeu,
Daniel Heller-Roazen (2010, p. 185) considera que a confusão “não é o mesmo que
meramente destruir, nem simplesmente criar”, mas implica a destruição de qualidades
primitivas “em vista da criação de uma substância única e diferente”. Diante disso, a confusão
babélica evocaria o contrário daquela imaginada por Filo Judeu, na medida em que “a punição
dos construtores babélicos não levou a uma união e dissolução da pluralidade dos elementos
em „uma nova substância‟” (Heller-Roazen, 2010, p. 185). A resposta ao questionamento
sobre que tipo de confusão poderia ter transformado um idioma em muitos o teórico encontra
em uma passagem do tratado sobre a linguagem De vulgari eloquentia I, IX, 6-7, onde Dante
se refere ao esquecimento da língua anterior:
Dicimus ergo quod nullus effectus superat suam causam, in quantum effectus est,
quia nil potest efficere quod non est. Cum igitur omnis nostra loquela, preter illam
homini primo concreatam a Deo, sit a nostro beneplacito reparata post confusionem
illam que nil aliud fuit quam prioris oblivio, et homo sit instabilissimum atque
variabilissimum animal, nec durabilis nec continua esse potest, sed sicut alia que
nostra sunt, puta mores et habitus, per locorum temporumque distantias variari
oportet (Alighieri, 2010, pp. 1220, 1222)8.
7
Esse mesmo texto foi transcriado por Haroldo de Campos e publicado no livro Éden. Um tríptico bíblico, de
2004.
8
“Diciamo dunque che nessun effetto, in quanto tale, supera la propria causa, perché niente può produrre ciò che
già non è. E poiché ogni nostra lingua, tranne quella concreata da Dio nel primo uomo, è stata ricostruita a nostro
beneplacito, dopo quella confusione che non fu altro che oblio della lingua precedente; e poiché l‟uomo è un
animale instabilissimo e mutevolissimo; non può essere né durevole né persistente, ma al pari delle altre cose
10
Dessa maneira, entendida como esquecimento da língua pré-babélica – onde o nome designa a
plenitude e a univocidade das coisas –, a confusão decorrente do juízo divino assinalaria o
princípio mítico da diversidade lingüística, marcando uma experiência de duplicidade
irredutível. A linguagem nascente, por assim dizer, “constituiria não apenas a reconstituição
da anterior, mas também, paradoxalmente, sua desconstituição. Ao falar, já teríamos desde
sempre começado a esquecer, mesmo – ou especialmente – quando não o soubéssemos”
(Heller-Roazen, 2010, p. 188). Replicando-se, então, a consideração dantesca sobre Babel ao
longo das próprias operações que constituem o movimento galáctico, encontramos um
elemento a mais que marca um excesso no pensamento da linguagem como veículo da
presença original, onde o signo parece transcender – por uma sorte de crença – aquela barra
que, desde Saussure, separa o significante de seu significado. Esquecida a língua da
comunicação plena, a consideração dos homens pós-babélicos passa a ter que lidar com a
duplicidade que marca o estatuto da presença no Ocidente. Aliás, se o próprio autor das
anotações que deram origem ao Curso de Lingüística Geral, também já havia percebido a
arbitrariedade subjacente na relação entre significante e significado 9, o jogo encadeado pelas
Galáxias também parece comportar uma nesga da experiência demasiadamente humana de
sua mais própria instabilidade e variabilidade10.
O mesmo fragmento 33 ao qual fazia referência traz um significante curioso:
“obnubilando”, ou seja: “rosa-ouro pontiúnculos de irisado mosaico nuvem e obnubilando à
luz- / sombra o mosaico é um livro de renda de ouro e ocelos de pavão / um livro que se
umane, come i costumi e le abitudini, necessariamente varia con la distanza nello spazio e nel tempo” (Dante,
2010, pp. 1221, 1223).
9
«La legge veramente ultima del linguaggio, almeno per quanto osiamo dirne, è che non c‟è mai nulla che possa
risiedere in un solo termine, e questo a causa del fatto che i simboli linguistici sono senza relazione con ciò che
debbono designare, dunque che a è incapace di designare qualcosa senza l‟aiuto di b, e parimenti b senza l‟aiuto
di a, ovvero che tutti e due non valgono che per la loro differenza reciproca, o che nessuno dei due vale, sia pure
per una parte qualunque di sé (per esempio «la radicce», ecc.), altro che per questo stesso plesso di differenze
eternamente negative» (Saussure apud Agamben, 2006, pp. 183-184).
10
Não deixa de ser interessante notar que, na transcriação do episódio babélico, Haroldo de Campos usa o verbo
“babelizar” onde normalmente surge “confundir”: “Eis a terra § uma língua-lábio una §§§ / E palavras § unas //
2. E eis § no que viajaram para o Oriente §§§ / E se depararam com um vale §§§ na terra de Shinar § / e pararam
lá // 3. E disseram § um para o outro § vamos § / pô-los os tijolos §§ no fogo § e afogueá-los §§§ / E o tijolo para
eles § foi como § pedra-de-apoio §§ / e a massa de argila §§ foi para eles § argamassa // 4. E eles disseram §
vamos § / construamos para nós uma cidade § e uma torre § / e seu topo no céu §§ e façamos para nós § um
nome §§§ / Ao inverso § seremos dispersos sobre a face de toda a terra // 5. E baixou Ele-O Nome §§ / para ver a
cidade § e a torre §§§ / Que construíram § os filhos-constructos do homem // 6. E disse Ele-O Nome § / um povo
uno § e uma língua-lábio una § para todos §§ / e isto § só o começo do seu afazer §§§ / E agora § nada poderá
cerceá-los §§ / no que quer § que eles maquinem § fazer // 7. Vamos § baixemos §§ / e lá babelizemos § sua
língua-lábio §§§ / Que § não entenda §§ um § / a língua-labio do outro // 8. E os dispersou Ele-O Nome § de lá §
/ sobre a face de toda a terra §§§ / E eles cessaram § de construir a cidade // 9. Por isso § chamou-se por nome §
Babel §§ / pois lá § babelizou Ele-O Nome § / a língua-lábio de toda a terra §§§ / E de lá § dispersou-os Ele-O
Nome §§ / sobre a face § de toda terra” (Campos, 2004b, pp. 81-83).
11
ilumina e decora em fina escritura legível numa língua flamíssona”. A obnubilação teve entre
nós uma conceituação que foi apresentada em fins do século XIX pelo crítico Araripe Jr. –
assim como Haroldo, ele também era um leitor especialíssimo de Gregório de Matos. Mas
além dessa primeira coincidência, encontramos uma segunda, que pode apontar os reflexos de
uma tênue linha de fuga no projeto matemático-mecânico do concretismo. Essa segunda
coincidência está no fato de que a obnubilação, tal qual considerada por Araripe Jr., se refere
à experiência sensorial – ou animal – daquele europeu que viaja para o Novo Mundo:
A obnubilação expõe ao homem uma instância de cognoscibilidade que não se dá sem uma
especial relação com a imagem. Aquém ou além da procura de algo que deveria ser revelado,
aquilo que vem encoberto como que por uma nuvem – uma obnubilationis – faz considerar
uma existência que se abre – e multiplica suas possibilidades – ao agregar parcelas e
fragmentos de mundo que são, a princípio, totalmente alheias. Esse evento supranumerário,
esse aparecimento tão frondoso que ofusca a visão e entorpece o cálculo da razão, nos expõe,
então, não mais ao pensamento do ser, mas sim aos seus modos de ser11. Nesse sentido, diante
da experiência da obnubilação, original é o movimento que se expõe ao um “vértice vórtice”
(frag. 12) onde o processo de conhecimento se perfaz enquanto vivência que não se constrói
pela afirmação prévia do sujeito em contraposição ao objeto, mas que se processa enquanto
houver vida em uma instância estranha a ambos, o meio, tornando possível a existência do
mundo enquanto imaginação (cf. Coccia, 2010, pp. 22-24) – aprofundamento da animalistas.
Dessa maneira, a viagem galáctica, diante do mundo, faz-se “pulverulenda em viagem
delenda pelo / oco da viagem” (frag. 30) e o texto, “com seus turnos de branco esse
diurnoturno rodízio de vazio e pleno de cala e fala de fala e falha” (frag. 31), expõe-se como
espaço onde podem surgir sentidos (e uso o termo na sua acepção sensorial também). Objeto e
11
“Talvez chamemos de vida somente aquilo que pode relacionar-se consigo mesmo na forma de um costume,
de uma moda: vivente é aquilo que não tem uma substância, mas que adere à própria substância apenas através
de um costume, de uma moda. Vive apenas aquele que não tem um ser, mas apenas modos de ser” (Coccia,
2010, pp. 78-79).
12
12
Os fragmentos remetem a um sentido “di frantumi, di resti di un‟unità perduta, come in Isidoro XX, 2, 18:
fragmenta, quia dividitur, ut fracta” (Agamben, 2010, p. 81).
13
conta não é o conto mas os desvios e desacordes” (frag. 40), o texto “sacode esporos e pólens
numa germinação de fécula apodrecida e matéria albuminal” e, com esse gesto “translumina
essa linguamorta” (frag. 50). Não mais do que um querer-dizer onde a voz se retrai sem que
um significado complete a sua ausência, a linguagem se expõe enquanto medium (cf. Coccia,
2010, p. 19) cuja consistência não coincide com a daquele que nomeia nem com a aquela do
nominado. Nesse âmbito medial configurado pela linguagem, o deslocamento galáctico
pelo(s) mundo(s) apresenta a significação como um tornar-se imagem, um “fazer experiência
desse exílio indolor em relação ao próprio lugar, em um espaço suplementar que não é nem o
espaço do objeto nem o espaço do sujeito, mas que deriva do primeiro e alimenta e torna
possível a vida do segundo” (Coccia, 2010, p. 23). Flexionando a cisão imemorial da língua,
torna-se possível perceber que o “paraíso era spezzato partido também feito / de fragmentos”.
Não transcendendo, a mesma instância fragmentária que obnubila a visão do paraíso – “avrà
quasi l‟ombra della vera costellazione” (frag. 50) – permite um movimento imaginativo em
que a “mente quase-íris se emparadisa” (frag. 50). Isso quer dizer, então, que o movimento
não cessa e, não cessando, se abre à possibilidade de fazer um sentido. Assim, no fim do livro,
uma tarefa de pensamento também se expõe imaginativamente apontando que “no fim deste
um um outro é já mensageiro do / novo no derradeiro que já no primo se ultima” (frag. 50)13.
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Mezzi senza fine. Note sulla politica. Turim: Bollati Boringhieri,
1996.
_____. Quel che resta di Auschwitz – L’archivio e il testimone (Homo sacer III). Turim:
Bollati Boringhieri, 2005.
_____. Stanze. La parola e il fantasma nella cultura occidentale. 3. ed. Turim: Einaudi,
2006.
_____. Il linguaggio e la morte. Un seminario sul luogo della negatività. 3. ed. Turim:
Einaudi, 2008.
13
A consideração de que a viagem não se esgota, ou seja, de que a significação não se esgota encontra outra
formulação em “Le don du poème”, escrito em 23 de março de 1985: “um poema começa / por onde ele termina:
/ a margem de dúvida / um súbito inciso de gerânios / comanda seu destino // e no entanto ele começa / (por onde
ele termina) e a cabeça / grisalha (branco topo ou cucúrbita / albina laborando signos) se / curva sob o dom
luciferino – // domo de signos: e o poema começa / mansa loucura cancerígena / que exige estas linhas do branco
/ (por onde ele termina)” (Campos, 1985, p. 38).
14
ALIGHIERI, Dante. Opere. (Rime, Vita nova, De vulgari eloquentia). Vol. I. Milão:
Arnoldo Mondadori, 2010.
CAMPOS, Haroldo de. “dois dedos de prosa sôbre uma nova prosa”, in: Invenção. Revista
de Arte de Vanguarda, num. 4 (dezembro), Ano 3, São Paulo, p. 112, 1964.
_____. Metalinguagens & outras metas. Ensaios de teoria e crítica literária. 4. ed. São
Paulo: Perspectiva, 2004c.
FOUCAULT, Michel. Ditos & Escritos III. Estética: literatura e pintura, música e
cinema. 2 ed. Organização e seleção de Manoel Barros da Motta. Tradução de Inês Autran
Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
LIMA, Luiz Costa. “Arabescos de um arabista: Galáxias de Haroldo de Campos”, in: _____.
A aguarrás do tempo. Rio de Janeiro: Rocco, 1989, pp. 321-359.
RESUMO
Palavras-chave:
Literatura infantil. Discurso religioso. Cultura brasileira. Monteiro Lobato.
ABSTRACT
An irreverent, talented, ironic, passionate, idealistic, dreamy, radical and contradictory writer.
These are some adjectives that can be attributed to Monteiro Lobato in front of social
problems and Brazilian art. In his books we can observe we see the interweaving of various
discourses including the religious and the folkloric ones, as in Aunt Nastacia‘s tales,
published in 1937, an anthology of popular tales told by the character Aunt Nastacia, at the
request of the boy Pedrinho and the doll Emilia. In this book, Pedrinho asks Emilia to
question the grandmother Mrs. Benta what is folklore. When she answers, Pedrinho reflects
on her words and tells Emilia that he intends to ask the black maid to tell them popular tales
to the residents of the Yellow Woodpecker Ranch. After the tales are told, the children
criticize the stories and the discourse relationship become more and more tense. In this
Lobato‘s artisanal work, the tale ―The good Devil‖, we observe that the taming of evil and the
goodness demystification are shown. From the symmetry between Saint Michael and the
Devil, it is possible to think in which extension these feelings constitute the human being and
the occidental society. So that, this paper aims to show how the religious and folkloric
discourses constitute the child tale ―The good Devil‖, from Monteiro Lobato.
1
Mestre em Linguística – UFU; e-mail: mariliascz@yahoo.com.br.
2
Professor de Teoria Literária e Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade Federal do Acre, Campus
Floresta, Centro Multidisciplinar, Cruzeiro do Sul – Acre. Doutorando em Literatura – UFSC; e-mail:
yvonery@hotmail.com.
2
Keywords:
Child Literature. Religious discourse. Brazilian culture. Monteiro Lobato.
3
Para referências ao Antigo Testamento será utilizada a abreviação A.T.
7
Apesar das contradições, o Diabo está presente na tradição judaica e foi dela que o
Cristianismo o retirou, fazendo com que o Novo Testamento 4 fosse habitado pela
malevolência do Diabo e dos demônios em inúmeros episódios.
É a partir da Grande Crise do Judaísmo que o Diabo é definido como inimigo
confesso de Deus e a divisão do mundo é consumada entre Deus e o Diabo. Isso não foi uma
invenção judaica, pois foi inicialmente formulado no século VI antes da era cristã pelo
Mazdeísmo: entre os Iranianos após Zoroastro. Os judeus tinham ido buscar na Mesopotâmia
o esquema do Gênesis e possivelmente o dualismo Deus-Diabo. A partir de então, o Diabo
tinha assegurada uma longa vida.
Massadié, aponta a retomada da passagem do N. T. em que, após o seu batizado,
Jesus é tentado pelo Demônio. O batizado de Jesus é colocado como inútil e blasfematório,
uma vez que este foi concebido pelo Espírito Santo e o batismo cristão destinava-se à
redenção da falta original. A tentação é apresentada de forma contraditória em alguns
Evangelhos e apresenta alguns problemas: Deus reserva a seu próprio filho uma provação,
assim como a Jó; Satanás é ignorante, pois sabe que Jesus é filho de Deus e não adiantaria
tentá-lo; os milagres de Jesus, ele os faz para seus discípulos, mas se recusa a fazer para o
Diabo. Segundo Messadié, mais um momento nada original, sustentando a marca essênica.
Por intermédio de Jesus, a partir dos ensinamentos dos ascetas de Quoumrân, que o
Diabo, não o Satanás do Judaísmo do A.T. se transmitirá ao Cristianismo. Retoma-se uma
ideia do essenismo, a de que juntando finalmente o Diabo, o advento de Deus, o fim dos
tempos, o Apocalipse, será acelerado. O Diabo aparecerá no N.T. a partir de possessões
violentas e Jesus é o responsável por expulsar esse Demônios. Além disso, o Diabo será
identificado com a doença, sendo caracterizado como espírito sujo. Observa-se, então, que no
A.T. os atos de Satanás têm motivo, mas no Novo, este se comporta com ações erráticas em
diversos episódios.
Pode-se observar que a Igreja, desde sua origem, deu ao Mal a sua genealogia,
afirmando que Satanás é o chefe da força das trevas que teria se revoltado contra Deus e
arrastado anjos inferiores. A partir de então, surgem várias versões sobre a queda do Diabo e
dos anjos. Mas em um retorno ao A.T., tem-se que, se Satanás existiu desde sempre e se ele é
contemporâneo da criação, já não há necessidade de fazer intervir a hipótese da sua queda.
Em vários momentos, como no Livro de Jó, Deus e o Diabo estariam em pé de igualdade.
4
Para referências ao Novo Testamento será utilizada a abreviação N.T.
8
Para o Judaísmo o Diabo não é uma figura de grande relevo, mas o Cristianismo não
seria nada sem a Redenção que modifica consideravelmente o papel de Satanás. A Igreja teve
que ensinar a várias populações a figura do Diabo. Portanto, nota-se que há diversas questões
não resolvidas pelo Cristianismo, pois ninguém nunca soube dizer de onde vinha este Satanás,
como surgiu realmente o mal. O que se sabe é que Satanás foi supervalorizado com o objetivo
de alavancar o Cristianismo.
Carlos Roberto F. Nogueira, em O Diabo no imaginário cristão, deixa clara a
importância vital do papel desempenhado pelo demônio e seus agentes, afirmando que era
necessária para a coletividade cristã a existência e a encarnação do Mal para que o Bem
surgisse como graça suprema, ou seja, a história do Diabo confunde-se com a história do
próprio Cristianismo.
O nascimento do Cristianismo inicia um longo processo onde as tradições chocam-
se, interpenetram-se, amoldam-se, para repeli-lo ou para recebê-lo e revesti-lo de toda uma
bagagem mística que convive paralelamente ao corpo doutrinário oficial. A demonologia que
aparece nos textos apócrifos é retomada de forma ligeiramente modificada no N. T., daqui por
diante, Satã é o grande adversário, tendo por missão combater a religião que acaba de nascer;
Satã será o inimigo implacável de Jesus e seus discípulos. O universo inteiro passa a ser
pintado como dividido entre dois reinos, o de Cristo e o do Diabo. Pouco a pouco, o Espírito
do mal passa a integrar o dogma central do cristianismo, o da queda do homem, do pecado
original e da redenção pela morte do Messias na cruz. Contudo, não há na mentalidade dos
cristãos dos primeiros tempos a mesma fascinação mórbida que povoará de fantasmas
demonolátricos os teólogos da Baixa Idade Média.
Enquanto o Paganismo ainda teve força social, enquanto se pretendeu converter à fé
os povos que não conheciam o Cristianismo ou a ele resistiam, o homem da Igreja dialogou e
argumentou em favor de suas crenças. Quando a cristianização foi absoluta e a autoridade
eclesiástica teve o poder a seu serviço, a postura mudou. O mundo passou a se dividir em duas
partes claramente definidas e antagônicas: a constituída pelos que cultivavam o Bem e as
virtudes e aquela formada pelos que cultivavam o Mal e seus vícios.
Os primeiros séculos da Idade Média representam um mundo em conflito entre a
mais alta espiritualização e a mais grosseira crueza mundana. O homem é personagem de um
drama que tem sua origem na trágica dicotomia entre o representado e o vivido, não podendo
pensar no Bem sem antes pensar no Mal.
Em meio a tudo isso, começa-se a ser elaborada nas consciências cristãs a ideia de
sociedades secretas de adoradores do diabo. A angustiante preocupação com o poder de Satã e
9
suas cortes leva os homens da Igreja a identificar no seio da comunidade cristã aquelas que
concorrem para aumentar o poder maligno. O Diabo torna-se mais respeitado e poderoso que
nunca. Fazem-se pactos com ele, nos quais homens entregam suas almas em troca da
satisfação de qualquer tipo de desejo. Satã torna-se o Grande Destruidor, o arquiinimigo,
dotado de numerosos e apavorantes poderes frente aos quais o homem está indefeso, a não ser
pelos avisos de Deus e a constante ajuda dos ministros da Igreja.
A presença constante do Diabo faz surgir uma nova linha de especulação, com a
autoridade de ciência – a demonologia –, e os teólogos passam a se preocupar em estabelecer
o seu perfil de caráter, num esforço para auxiliar a Cristandade a reconhecer o Inimigo e se
precaver contra ele.
Quanto ao modelo o qual o Diabo é representado tem-se a forma animal ou mesclado
de formas humanas e animais, salientando sua natureza bestial. O grande modelo que
influenciou toda uma iconografia diabólica foram as clássicas imagens de Pã e dos sátiros.
No fim da Idade Média os demônios povoaram o mundo em profusão e vários
teólogos e filósofos buscaram encontrar numericamente sua quantidade e variados são os
resultados. Assim, o Reino do Diabo aparecia como uma vasta e organizada monarquia
presidida por Satã e secundada por príncipes, duques, marqueses, condes e prelados. Mas a
ameaça cotidiana do Maligno trazia consigo um outro terror, o da aparição de um outro
monstro do Mal: o Anticristo.
O Anticristo era a contrapartida maligna do Cristo. Um todo bondade e luz, o outro,
maldade e escuridão; um nascido de uma virgem, o outro de uma prostituta. A crença
incorpora-se ao Cristianismo, e seus adeptos passam a afirmar que o retorno de Jesus em toda
a sua glória e majestade seria precedido pelo homem do pecado, o filho da perdição. A
palavra Anticristo apareceu no N. T., nas epístolas de João, era usada para atacar desvios
doutrinários dentro do rebanho cristão.
O início da Modernidade a Europa ocidental é marcado por um incrível medo do
Diabo. O Renascimento herdou os conceitos e imagens demoníacas que foram determinados e
multiplicados no decorrer da Idade Média, mas lhes emprestou uma coerência, uma
importância e uma difusão jamais alcançadas. Medo que estava associado à espera do fim do
mundo, e a ferocidade alucinante do Demônio se explica pela proximidade da catástrofe final.
Os Demônios tudo podem, e sua presença nos discursos religiosos é muito maior que a de
Deus.
Por sua vez, o Romantismo transformará o Demônio no símbolo do espírito livre, da
vida alegre, não contra uma lei moral, mas segundo uma lei natural, contrária à aversão por
10
este mundo pregada pela Igreja. Satanás significava liberdade, progresso, ciência e vida. O
demoníaco era sinal de paixão. Com isso, a partir de 1850 o ocultismo experimentou um
grande florescimento, derivado diretamente da exaustão do otimismo liberal. Essa discussão
pode ser percebida na obra O Fausto, de do filósofo alemão Goethe e, recortando essa alusão
romanesca da demonologia e do fantasmagórico, aponta-se a obra Macário, de Álvares de
Azevedo.
Já no século XX, a geração do sexo, drogas e rock n‘ roll, trará em seu
amadurecimento uma extraordinária revivescência do ocultismo, atingindo seu clímax no
período 1968 – 1973. Várias foram as seitas e os rituais praticados em nome do Diabo. Na
década de 1960 em diante houve um desenvolvimento constante das seitas exotéricas e do
satanismo, que a crise de sobrevivência e valores que aflige os homens senão em escala
mundial, ao menos em escala ocidental que proclama a necessidade da saída esotérica e
mesmo a grande inovação dos últimos tempos.
Portanto, estas rápidas explanações baseadas nos textos de Massadié e Nogueira
buscaram fazer um histórico para demonstrar o modo como a figura do Diabo é inserida no
imaginário cristão e, por consequência, no imaginário ocidental, influenciando, também, sua
produção literária, uma vez que o Diabo torna-se figura constantemente retomada em diversos
textos, tanto aqueles destinados a adultos, quanto os infantis, como observaremos a partir da
leitura feita do conto O bom diabo presente na obra Contos da Tia Nastácia, de Monteiro
Lobato (1995).
3 UM BOM DIABO?
Irreverente, talentoso, irônico, apaixonado, idealista, sonhador, radical, contraditório.
Esses podem ser adjetivos que direcionam uma caracterização de Monteiro Lobato frente aos
problemas sociais e à arte brasileira.
Conforme Alfredo Bosi (2001, p.216), Lobato, além de crítico de Anita Malfatti e do
Movimento Modernista de 1922 também – e, contraditoriamente – ―(...) encarnou o
divulgador agressivo da Ciência, do progressismo, do ‗mundo moderno‘, tendo sido um
demolidor de tabus, à maneira dos socialistas fabianos, com um superávit de verve e de
sarcasmo.‖ É desse lugar irreverente da arte lobatiana que pontuaremos a importância de
questões como à demonologia na literatura infanto-juvenil.
Assim, a obra História de Tia Nastácia, publicada em 1937, corresponde a uma
antologia de historietas populares narradas pela personagem título da obra lobatiana a pedido
de Pedrinho e da boneca Emília. Na primeira parte dessas narrativas, o neto de Dona Benta
11
solicita à boneca que questione à avó o que seria folclore e, para essa questão, a menina de
pano recolhe a seguinte resposta:
Dona Benta disse que folk quer dizer gente, povo; e lore quer dizer sabedoria,
ciência. Folclore são as coisas que o povo sabe por boca, de um contar para o outro,
de pais a filhos — os contos, as histórias, as anedotas, as superstições, as bobagens,
a sabedoria popular, etc. e tal. (p.07)
O diabo não sabia; o santo contou-lhe a história do príncipe que passara por ali, e
disse mais que esse pobre moço fora preso, processado e julgado, e naquele mesmo
dia ia ser erguido a uma forca por causa das intrigas de certa velha.
Interessante, esse fato, pois ao mesmo tempo em que o Santo pode ser visto sob a
ótica da dessacralização no que tange a delação da velha, atitude esta advinda do convívio
com o demônio, também o fato pode ser enunciado como uma das representações simbólicas
do Arcanjo no discurso cristão. Parafraseando Chevalier em seu Dicionário de Símbolos
(p.84), S. Miguel é um dos arcanjos que simbolizam o juízo final, a justiça divina. Na
iconografia cristã, um dos elementos representativos de sua figura corresponde à balança,
ilustrativa da pesagem quanto ao merecimento justo das almas.
A despeito do que reza o senso comum (e cristão?), é o diabo quem resolve a
situação do jovem preso injustamente. Lobato, dessa maneira, leva a personagem periférica a
um patamar de superioridade.
O diabo não quis ouvir mais. Pulou num cavalo e foi voando à casa da velha;
agarrou-a e levou-a ao rei, fazendo-a confessar toda a sua maquinação contra o
moço. O rei deu ordens para que soltassem o preso e o trouxessem à sua presença.
O diabo montou no cavalo e voou para a prisão onde o príncipe ia ser enforcado, e
apresentou ao carrasco a ordem de soltura. O carrasco entregou-lhe o condenado,
que lá se foi com o diabo para o palácio do rei.
— Pois gostei! — gritou Emília. — Está aí uma historinha que descansa a gente
daquelas repetições das outras. E mais que tudo gostei da camaradagem entre o
santo e o diabo.
— Sim — disse dona Benta. — Como os dois vivessem na mesma capela, sozinhos,
acabaram em muito bons termos, como se vê na história. O diabo é o símbolo da
maldade, mas até a maldade amansa quando em companhia da bondade. De viverem
juntos ali na capelinha, o santo e o diabo se transformaram em amigos, e os bons
sentimentos de um passaram para o outro.
— Influência do meio! — gritou Pedrinho, que andava a ler Darwin.
Narizinho confessou que gostava muito das histórias com o diabo dentro, e disse que
todas elas confirmavam o dito popular de que o diabo não é tão feio como o pintam.
entre o diabo e o animal utilizado para simbolizá-lo, o cão. Tal simbologia é questionada pela
personagem Emília:
— Mas isso é história, menina. História é mentira. O "cão" é "cão". Não muda de
ruindade.
— Se o cão é cão, viva o diabo! — gritou Emília. — Não há animal melhor, nem
mais nobre que o cão. Chamar ao diabo cão, é fazer-lhe o maior elogio possível.
Segundo Chevalier (2002, p....) o simbolismo do cão pode ser entendido por meio
dos aspectos antagônicos que o constitui, independente da cultura na qual ele se encontre.
Entretanto, é uma figura surpreendente ao se pensar a representação do cão ou mesmo do lobo
como uma forma esotérica de sabedoria na qual se visualiza o sacrifício como um meio
atingir a elevação espiritual.
Pensando em toda a construção de sentido elaborada durante a narrativa e o
fechamento de que “cão” é “cão”, estabelecendo ―um silogismo elogioso‖ à figura imagética
do diabo, podemos sugerir que, assim como o cão está ligado aos cuidados e à companhia do
percurso existente entre a vida e a morte, à sexualidade sensível, ao ciúme, ao caráter
medicinal e à fidelidade que possui, o diabo também o está. Narizinho tem razão: o diabo não
pode ser tão feio quanto o pintam. ―Coisas‖ do folclore.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tomaremos, novamente, os dizeres de Tia Nastácia, frente ao ‗causo‘ enunciado:
―Mas isso é história, menina. História é mentira. O "cão" é "cão". Não muda de ruindade.‖
Com efeito, o deslindar dessa ficção permitiu-nos observar pontualidades quanto à origem da
literatura infantil e da imagem do Diabo presente no imaginário ocidental por meio dos
Contos da Tia Nastácia (1995).
Nesse trabalho artesanal de Monteiro Lobato, é possível dizer que o amansar da
maldade e a desmitificação da bondade se compenetram, viabilizando, a partir da simetria
entre São Miguel e o Diabo, pensar em que medida esses sentimentos constituem o ser
humano e a sociedade ocidental.
Esse estudo da demonologia sob o escopo da literatura infantil em Lobato pontuou a
imagem do cão como um dos aspectos da figura do Diabo, inserida tanto no imaginário
cristão quanto no ocidental o que permite vislumbrar o entendimento folclórico brasileiro
dessa figura e a maneira como ele pode ser apresentado ao público infantil, seja pelo aspecto
místico mostrado por Tia Nastácia, seja pelo científico, apontado pela personagem Pedrinho.
14
Mas são histórias; ficções para ensinar a viver. Por meio dessas falsas verdades,
adultos e crianças experimentam sua cultura, repensam seu lugar histórico e constituem um
posicionamento mais além dos acontecimentos e dos costumes circundantes.
5 REFERÊNCIAS
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1983.
CADEMARTORI, Lígia. O que é literatura infantil. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986.
LOBATO, Monteiro. Histórias de Tia Nastácia. São Paulo, SP: Editora Brasiliense, 1995.
NOGUEIRA, Carlos Roberto F.. O diabo no imaginário cristão. Bauru, SP: EDUSC, 2000.
PALO, Maria José & OLIVEIRA, Maria Rosa D.. Literatura infantil: voz de criança. São
Paulo: Ática, 1992.
SIQUEIRA, Julio Pinheiro Faro Homem de. A diferença entre calúnia e denunciação
caluniosa. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1079, 15 jun. 2006. Disponível em:
<http://jus.uol.com.br/revista/texto/8520>. Acesso em: 28 ago. 2011.
RESUMO
A tendência que se reflete nas literaturas africanas é a reinscrita de suas nações, no que
corresponde a marcante representação de suas culturas e histórias no texto literário. Mas como
acontece esta migração do histórico, social e cultural para as obras dos escritores africanos?
Será que ainda se busca o resgate errôneo de uma identidade puramente africana? Ou
simplesmente tais obras estão inseridas dentro do contexto em que são escritas, revelando,
portanto, as querelas sociais e culturais de seus países? Este trabalho pretende discutir tais
questões com o intuito de analisar o etos discursivo das obras de três escritoras africanas
contemporâneas: As alegrias da maternidade da nigeriana Buchi Emecheta, Ventos do
apocalipse da moçambicana Paulina Chiziane e Meio sol amarelo da nigeriana Chimamanda
Ngozie Adichie. Tais obras refletem o cotidiano de guerras que tiveram sua erupção mais ou
menos na mesma época, e é justamente o olhar dessas autoras que estará sendo analisado para
compreender a problemática discursiva do romance africano dentro das questões identitárias
de suas nações. Com o aporte teórico de Maingueneau (2001), M. Bakhtin (1992) e Antônio
Candido (2010) busca-se chegar a compreensão e discussão acerca das produções literárias
africanas.
Palavras-chave:
Literatura africana. Discurso. Identidade.
ABSTRACT
The trend is reflected in African literature is reinstated to their nations, which corresponds to
the remarkable representation of their culture and stories in literary text. But as this migration
history, social and cultural benefit to the works of African writers? Does she stillseeks to
recover an erroneous purely African identity? Or just such works are includedwithin the
context they are written, revealing, therefore, social and cultural quarrels of their countries?
This paper discusses these issues in order to analyze the discursive ethos of the works of three
contemporary African writers: The joys of motherhood of the Nigerian Buchi Emecheta,
Winds of Apocalypse of Mozambican Paulina Chiziane, Half yellow sun of Nigerian
Chimamanda Ngozi Adichie. These works reflect the daily wars that had its eruption at about
the same time, and it is just the look of these authors that is beinganalyzed to understand the
problematic discourse oof the African novel of identity ussues intheir nations. With the
theoretical basis of Maingueneau (2001), M. Bakhtin (1992) and Antonio Candido (2010)
seek to reach understanding and discussion of African literary productions.
Keywords:
African literature. Speech. Identity.
1
Mestranda da PPGLI/UEPB; e-mail: faelacristina@hotmail.com.
2
1 EM BUSCA DE IDENTIDADES
Observando a crítica que se escreve acerca das literaturas africanas, sempre
encontramos uma palavra: identidade. Tal palavra se insere num mundo de questionamentos
sobre o discurso das obras africanas, entre os quais a questão do resgate da identidade das
sociedades em que estas literaturas emergem parece ser o ponto central. Poderíamos entender
que tal questão é repetida pela condição da situação das literaturas pós-coloniais. O universo
social em que se criam estas literaturas apela para a diversidade de identidades, tais quais as
do colonizador e do colonizado, e a junção destas identidades no período em que vivemos na
contemporaneidade, sendo o confronto entre tradição e modernidade a característica mais
observada no interior da temática identidade.
A proposta deste artigo é observar justamente se os autores africanos
contemporâneos ainda apelam para uma escrita muitas vezes panfletária que pretende compor
ou resgatar uma identidade africana ou se simplesmente o contexto da obra literária, como
conceituou Dominique Maingueneau (2001), interfere significativamente na produção das
obras desses autores. Para tanto, será observado três obras que poderiam dialogar, pensando
na dinâmica da Literatura Comparada, pois se assemelham em espaço, personagens e história.
Estas obras são Ventos do apocalipse (1999) da escritora moçambicana Paulina Chiziane,
Meio Sol amarelo (2008) da nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie e As alegrias da
maternidade (2002) da também nigeriana Buchi Emecheta. Tais obras são ambientadas em
situações de guerras em que as personagens femininas são as protagonistas.
Compreendendo que ―o contexto da obra literária não é somente a sociedade
considerada em sua globalidade, mas, em primeiro lugar, o campo literário, que obedece as
regras especificas‖ (MAINGUENEAU, 2001, p.27), este trabalho tentará analisar o campo
literário em que são criadas estas obras, para compreender, portanto, porque a temática da
identidade, seja ela, entre uma proposta de resgate ou apenas entre uma problemática que
questiona a diversidade cultural das sociedades africanas, é tão discutida nos romances
contemporâneos africanos.
Se observarmos que a crítica literária atual privilegia o aspecto sociocultural em suas
análises literárias, as obras africanas são então pedras valiosas para as críticas que se
influenciaram significativamente pelos Estudos Culturais. Posicionadas em sociedades que
viveram as lutas por independência, o período colonial e pós-colonial, as literaturas africanas
inscrevem em suas obras os problemas que sofreram seus países, são estas narrativas que
compõe um discurso acerca da nação, como considerou Stuart Hall (2006, p.50-51)
3
o que seria reduzir a qualidade estética de suas criações, fazendo com que sejam vistos
somente por suas temáticas sociais e não como autores em sua totalidade. Se o discurso das
literaturas africanas ainda é o social, e como não seria, pois qual literatura está fora da
sociedade? Como Maingueneau (2001, p. 27) observa ―o escritor alimenta sua obra como
caráter radicalmente problemático de sua própria pertinência ao campo literário e à
sociedade‖, é simplesmente porque os escritores africanos observam o mundo que os cerca de
uma maneira que é impossível de não aprisiona-lo de alguma forma em suas obras. Este
campo literário de que fala Maingueneau (2001, p.28) se baseando em Pierre Bourdieu, é o
lugar em que está o escritor, portanto, ―A existência social da literatura supõe ao mesmo
tempo a impossibilidade de se fechar sobre si e a de se confundir com a sociedade ―comum‖,
a necessidade de jogar com e nesse meio-termo‖, ora se não é realmente isto que fazem as
literaturas africanas.
língua materna é o chope, enquanto que em Maputo a língua em que se falava em sua época
era o ronga. Seu pai, resistente ao regime colonial e a assimilação portuguesa, nunca falou o
idioma do colonizador dentro de casa. Chiziane nasceu em meio a esta miscigenação de traços
e valores, tradicionais, modernos, coloniais e pós-coloniais e é neste universo hibrido o lugar
em que ela começa escrever e descrever.
O ambiente rural e tradicional da narrativa de Ventos do apocalipse (1999) constrói
personagens brutos e cultivadores dos costumes da tradição de seus povos, a seca que maltrata
a aldeia dos Managa também influencia na rudeza e secura dos personagens de Paulina
Chiziane. É neste espaço em que velhos e jovens, mulheres e homens, mães e pais chegam ao
êxtase das manifestações de seus sofrimentos, consequentes da guerra, ou do machismo de
uma sociedade patriarcal que impõe uma condição de culpa e obrigação às mulheres, como
podemos observar na angústia de Minosse, seja pelo amor proibido pela tradição e pelo
preconceito entre Wusheni e Dambuza, ou do êxodo à aldeia dos Macuacuá.
A autora utiliza este espaço localizado no período pós-independência em que a
tradição e a modernidade se confrontam para dar corpo às discussões acerca da sociedade
moçambicana que está dividida por costumes vindos do cristianismo, do islamismo e das
religiões africanas nos ambiente do Norte e Sul do país, traço forte de sua escrita é a busca
pelo diálogo entre esses dois espaços de Moçambique, ―a problemática Norte versus Sul, isto
é, a separação Campo versus Cidade, gerando processos de transculturação que ligam o
passado e o presente numa clara desconstrução do tecido social‖ (VICTORINO, 2007, p.
352).
Em Ventos do apocalipse publicado em 1999, a discussão acerca dos males da
colonização estrangeira e dos valores da tradição só sugere um discurso situado no período
em que a sociedade africana depois do Acordo de Paz de 1992, começou a repensar acerca do
nacionalismo exacerbado trazido pela FRELIMO (Frente de Libertação Nacional), Chiziane
assim como Mia Couto, escritores oriundos deste período pós-independência, tentaram expor
em suas obras os caminhos rizomáticos traçados pela pós-colonização, como observa João
Paulo Borges Coelho (2009, p. 65-66) ―Instala-se novamente a perplexidade. Alguns falam
em crise de uma literatura até então dependente de uma história almejada e pela qual lutava
(primeiro momento), ou que, de certa forma, lhe era oferecida ―de bandeja‖ (segundo
momento)‖. A cena em que mbelele, ritual tradicional da chuva é discutido pelos habitantes
da aldeia dos Mananga revela a discussão entre tradição e modernidade.
— A expressão sublime de submissão e humilhação é mbelele.
— O mbelele? Que vergonha! Mulheres nuas com traseiro de melancia a exibir as
mamas aos pássaros e o cu aos gafanhotos faz chover? Que vergonha!
7
―Eu soube que o tempo todo, quando ela era criança, sempre houve uma empregada
para limpar o ike, depois que ela terminava de cagar. E, para completar, os pais
mandaram ela estudar na faculdade. Por quê? Muito estudo acaba com qualquer
mulher, todo mundo sabe disso. Faz ela ficar com a cabeça inchada e aí começa a
insultar o marido. Que tipo de mulher ela vai ser, me diga?‖ A mãe do Patrão ergueu
uma ponta dos panos para enxugar o suor da testa. ―Essas moças que fazem
faculdade vão atrás dos homens até ficarem com o corpo inútil. Ninguém sabe se
ainda podem ter filhos‖ (ADICHIE, 2008, p.119).
9
Seria então Adichie, escritora bem mais atual que as outras que traz uma nova visão
da África que não chega a ser totalmente diferente das demais , mas que se difere por trazer
personagens negros que são ricos e escolarizados, mostrando uma elite negra em que nas
obras mais antigas parece não existir. Revelar uma outra cara da África é a proposta da jovem
escritora Chimamanda Ngozi Adichie.
Em As alegrias da maternidade (2002), situada nos anos de 1940, publicada pela
primeira vez em 1976, os costumes tradicionais da etnia igbo na Nigéria revelam a dura
condição sofrida pelas mulheres, Nnu Ego ao se casar pela primeira vez espera ansiosa pelo
seu primeiro filho, mas ela não consegue engravidar, o que torna sua vida um sofrimento, pois
nos costumes de sua etnia a mulher infértil não é aceita na sociedade e principalmente no seio
familiar, podendo o marido manda-la embora ou troca-la por outra esposa quando bem quiser.
Seu marido, então arranja outra esposa, no principio da poligamia, esta esposa consegue
engravidar facilmente e Nnu Ego se ver rejeitada,
Quando esta gravidez se tornou evidente, Nnu Ego começou a fechar-se cada vez
mais consigo própria. Mirava-se de alto abaixo na intimidade da sua cabana,
apalpando o corpo, firme e igual aos de todas as outras mulheres novas, mas sentia a
falta da suave e fluida sensação de maternidade‖ (EMECHETA, 2002, p. 49).
A ironia que Buchi Emecheta usa para narrar a vida de uma mãe que dedicou sua
vida inteira a maternidade para no final morrer sozinha e desamparada é um artificio para
trazer de forma crua a realidade das mulheres nigerianas no período dos anos de 1960, a falta
de flexibilidade das tradições, o quadro de pobreza da Nigéria durante o período de
colonização, a condição das mulheres,
Certa noite, depois de assim vaguear, Nnu Ego deitou-se à beira do caminho,
supondo que chegara a casa, e ali morreu em silêncio, sem filho ou filha que lhe
segurasse a mão nem voz amiga que lhe falasse. Na verdade, por ter andado sempre
tão atarefada a contruir as suas alegrias de mãe, nunca criara suas amizades
(EMECHETA, 2002, p. 320).
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O discurso produzido pelas literaturas africanas não pode ser somente avaliado como
um discurso político, instalado em suas sociedades com a pretensão de mudar situações
sociais ou politicas, não pode ser marginalizado por dar enfoque ao ambiente em que nascem,
percebemos com essa discussão, com base em Maingueaneu (2001), Bakhtin (1992) e
Candido (2010) que a obra de arte influencia o meio ao mesmo tempo que é influenciada por
ele, que faz parte desse meio, que não está fora dele como uma coisa, um objeto acoplado em
11
5 REFERÊNCIAS
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Meio sol amarelo. Tradução – Beth Vieira. São Paulo:
Companhia das Letras, 2008.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Marins Fontes, 1992.
CANDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2010.
SCHMIDT, Simone Pereira. Paulina Chiziane: Para ler Moçambique no feminino. In: África
& Brasil: Letras em laços, volume 2/ organizadoras Carmen Tindó Secco, Maria do Carmo
Sepúlveda, Maria Teresa Salgado. – São Caetano do Sul, SP: Yendis Editora, 2010.
RESUMO
Três ideias principais e a necessidade de compor um Atlas. Encontrar a relação entre imagens,
perceber o eco que existe entre ideias, que se expande e encontra outras ideias. Um painel
aberto de relações heterogêneas. Dois filmes de François Truffaut, duas formas de idiotia e
contaminação social encontradas em obras literárias e no cinema; e também alguns sonhado-
res de Bertolucci, que desejam tanto a idiotia quanto a contaminação.
Palavras-chave:
Cinema. Literatura. Atlas.
ABSTRACT
Three main ideas plus the need to compose an Atlas. Find the relationship between images,
see the echo that exists between ideas, expanding and find others. An open panel of heteroge-
neous relations. Two films of François Truffaut, two forms of idiocy and social contamination
found in works of literature and film, and also some of Bertolucci's dreamers who want both
idiocy and contamination.
Keywords:
Film. Literature. Atlas.
1
Formada em Design Gráfico pela Universidade Federal de Santa Catarina; Mestrado em Artes Visuais na
Universidad de Castilla-La Mancha, Espanha; e-mail: nandadocanto@gmail.com.
2
Discente do Programa de Pós-Graduação em Literatura – Nível Doutorado, da Universidade Federal de Santa
Catarina – UFSC; e-mail: robertaphoenix@yahoo.com.br.
2
essa relação. Mas quais são essas relações? Se pode definir um termo para este encontro entre
obras, como adaptação, tradução, apropriação? E que tipo de relação ocorre quando são obras
cinematográficas que se nomeiam e se invocam entre si? No caso de The Dreamers (2008), de
Bernardo Bertolucci, se fazem referências diretas a cenas de outros filmes, assim como seus
personagens brincam de interpretar a outros, e acontecimentos reais são revividos nessa fic-
ção, onde imagens atuais e do passado se unem e se chocam, construindo uma montagem de
diferentes tempos que se encontram numa mesma data.
Toma-se como guia a noção de montagem, proposta pelo historiador de arte Georges
Didi-Huberman quando analisa o Atlas Mnemosyne, de Aby Warburg. De 1924 a 1929, War-
burg trabalha em um projeto que pode ser definido como uma série ou um quadro de fotogra-
fias, no qual coexistem diversas imagens, de diversos momentos e contextos, e cuja conexão
não é definida nem definitiva, não está atrelada ao tempo nem ao leitor que as vê; é uma rela-
ção que acontece entre imagens, por afinidade ou contraste.
As imagens agrupadas nesses grandes painéis são móveis, penduradas com pequenas
pinças facilmente manipuláveis. Quando Warburg encontrava a organização que queria, foto-
grafava o painel tal como estava, e voltava a começar. Há sempre uma nova montagem por
3
fazer, um outro jeito de olhar, um novo caminho a ser recorrido e mais relações por estabele-
cer. Portanto, as imagens no painel funcionam como „ordens de realidade heterogêneas‟, que
constroem um espaço comum sobredeterminado e que já não podem localizar-se no espaço-
tempo habitual. (Didi-Huberman, 2010, p. 40) Entre essas imagens desencontradas no tempo,
se produz una conivência inesperada, que por um processo de montagem da memória permite
reativar, multiplicar e reler indefinidamente os tempos nesse jogo de contrastes e complemen-
tos das imagens.
Com essa abordagem anacrônica e heterogênea, se intenta resgatar o método warbur-
giano de montagem, reconhecendo nele as vantagens e dificuldades ao se pensar em obras tão
díspares, porém tão intimamente relacionadas. Também se faz presente a ideia de eco propos-
ta por Gilles Deleuze (1999), de que as ideias presentes em uma obra podem produzir um eco
até encontrarem outra obra, muito distante no tempo dessa primeira, mas mantendo um ali-
nhamento, uma reverberação que acontece entre ambas. Essa ideia também foi utilizada por
Walter Benjamin (2008, p. 75) ao assumir que a tarefa do tradutor consiste em encontrar uma
intenção que desperte na obra traduzida um eco da obra original, e que seja capaz de „repro-
duzir na própria língua a ressonância de uma obra da língua estrangeira‟.
Crianças selvagens são aquelas que se perdem, são abandonadas ou ficam reclusas da
sociedade durante a infância, desenvolvendo um mínimo de aptidões sociais. Entre os séculos
XIII e XVIII foram relativamente comuns os relatos de aparecimento de crianças selvagens
em vilas ou cidades na Europa, embora ainda hoje existam casos, geralmente ocasionados por
negligência familiar. O caso mais recente é de Oxana Malaya3 (Оксана Малая), uma jovem
encontrada em 1991 em uma zona rural da Ucrânia. Oxana viveu grande parte da sua vida na
companhia de cães, adaptando-se a seus hábitos e posturas. Como costuma acontecer em ca-
sos similares, Oxana foi encaminhada a uma clínica para deficientes mentais.
Essas crianças geralmente apresentam um quadro semelhante àqueles definidos como
“oligofrenia profunda causada por trauma”, que é o mais alto nível de debilidade mental clas-
sificado. A palavra oligofrenia (olígos = pouco; phrěn → phrenós = espírito, inteligência)
passou a ser utilizada quando o termo idiota se tornou pejorativo. Idiota tem o sentido de in-
divíduo particular em sua origem, já que um idiota era aquele que não participava da vida
pública, que somente se importava com seus próprios assuntos.
A exemplo desse indivíduo pouco participativo, derivou-se a classificação dos esta-
dos de debilidade intelectual e social, evidenciados na fase de desenvolvimento do indivíduo.
Assim como os deficientes mentais, as crianças selvagens apresentam dificuldades de apren-
dizado e adaptação, não têm pudores com relação a vestuário, nem com hábitos de higiene.
Victor de Aveyron foi uma criança selvagem encontrada na França em 1798. Ele ti-
nha cerca de 11 anos quando encontrado e seu nome lhe foi dado devido a sua facilidade em
atender às palavras que tinham a letra o tônica. Sem saber como trata-lo, e acreditando que
tivesse problemas na audição, o garoto foi levado a uma instituição de surdos-mudos em Pa-
ris, sendo posteriormente adotado pelo médico Jean Itard, diretor da instituição. Durante os
cinco anos que conviveu com o garoto, o médico publicou um artigo e um relatório sobre seu
desenvolvimento, sempre atentando para sua inserção social. Os escritos de Itard propõem a
experimentação, a observação e o estabelecimento de cinco proposições principais de apren-
dizagem para seu tratamento.
3
Informações encontradas no documentário Wild Child: The Story of Feral Children. EUA: Discovery Chan-
nel, 2002.
5
Os escritos de Jean Itard e suas ações como médico são rememorados no filme O ga-
roto selvagem (1970), de François Truffaut. No filme, a maior parte das falas e vozes em OFF
do médico consistem em citações diretas dos seus relatórios, e é o próprio diretor quem o in-
terpreta. Os acontecimentos são apresentados linearmente, desde a captura do garoto por
campesinos de uma vila até os avanços que Itard consegue no treinamento de reintegração
social de Victor. Nota-se algo interessante na ambientação das cenas: em vez de observar de
que forma o garoto entra em contato com a sociedade e a reconhece como sua, o que se vê nas
imagens é uma espécie de contágio social progressivo, do bosque totalmente isolado até a
casa familiar, como se fosse a sociedade que tivesse que entrar no garoto, por meio dessa evo-
lução linear de lugares que o selvagem é obrigado a permanecer.
com o enorme edifício que fecha a cena e aparece sem fim detrás da paisagem. Também mos-
tra o muro, que corta o vértice esquerdo do plano e delimita o espaço habitável, controlado.
Os médicos discorrem sobre o futuro do novo paciente, protegidos por grandes jane-
las, e deste ponto privilegiado observam ao garoto selvagem exposto à chuva, apenas coberto,
e meneando o corpo de um lado ao outro.
O último fotograma pertence às cenas rodadas no interior da casa de Itard, onde o
contágio social é tanto externo como interno, de forma subjetiva, na aquisição de alguns mo-
dos e condutas, na expressão de desejos a outros seres humanos e na decisão em vestir-se para
proteger-se do frio. O sintoma máximo desta contaminação social se dá quando Victor se es-
capa de volta à natureza sem se desfazer de suas roupas. A decisão de já não despir-se mais
aponta para a contaminação social sem retorno.
No filme e no relato de Itard, se conta que o garoto selvagem nunca chorava. En-
quanto foi selvagem, e no curto período que esteve no instituto de surdos-mudos não chorou.
Ao conviver com o médico, em sua própria casa, volta a conhecer a sensibilidade dos sons,
dos tons de voz e com isso, reaprende a chorar. Isto é, aprende a responder a um estímulo com
a expressão correta e aceitável. Em Fahrenheit 451, as pessoas também não choram. Só se
aceita chorar ou emocionar-se nos momentos indicados pela mídia, quando se exige uma de-
monstração externa de sensibilidade, relativa a outra coisa que não a própria vida. Se chora
por dolo, por uma falsa sensação de piedade e de humanidade. Se chora por satisfação desse
sentimento. Se chora como triunfo, como demonstração da compreensão de certos códigos.
Entre os relatos sobre o garoto selvagem e a concepção dessa sociedade futurista ali-
enada pela mídia existe uma ideia em comum, que fica evidente nos filmes de Truffaut. Aqui
se pode falar do eco, dessa reverberação que não está presente em um ou outra obra, mas que
se configura entre elas, como a extensão de um chamado, que reverbera e se faz notar, mas
sempre de forma alterada.
Como já comentado anteriormente, as relações entre imagens não são fechadas, nem
definitivas. Contudo, o ato de prestar atenção a uma e outra imagem pode produzir encontros
muito curiosos e inesperados. Em Fahrenheit 451, antes de queimarem toda uma biblioteca,
um livro é escolhido e salvo do fogo. Ele traz na capa o nome de Gaspar Hauser, que foi uma
criança selvagem encontrada na Alemanha no século XIX.
Há outros ecos possíveis: enquanto o garoto selvagem é um ser apartado da socieda-
de até os 11 anos, que carece de fala e comportamentos sociáveis, a sociedade de Fahrenheit
451 é totalmente o contrário. Nela os livros são proibidos, e aqueles que leem são considera-
dos seres não-sociáveis. Entretanto, Montag, o protagonista, o herói, o bombeiro combatente
8
dos livros e portanto, ser sociável, passa por uma mudança abrupta de postura, apartando-se
da sociedade a qual pertencia e atuava. Ele se torna um ser selvagem, não um “homem-
animal” mas um “homem-livro”, que se preocupam em repetir para si os livros que decora,
numa tentativa que, se não os salva da destruição do fogo, tem a esperança de salvá-los do
esquecimento.
No fim das contas, há duas formas de idiotés muito similares nessas imagens: o leitor
é o selvagem em Fahrenheit. E essa nova relação entre imagens leva a outro questionamento,
até que ponto ser considerado selvagem ou idiota depende da natureza do indivíduo, escolha
ou contexto?
Aqui mais imagens são invocadas. São livros, filmes, desenhos e ilustrações que ten-
tam dar conta dessa barbárie. São imagens que também resultaram desse eco, que reverberam
e se alinham como resposta social, como tentativa de adaptação, de tradução, de compreensão.
Porque, por mais que haja uma exclusão social, imposta no caso do selvagem e consciente no
do leitor, ambas as figuras continuam ligadas à sociedade, não podendo simplesmente desapa-
recer ou passar despercebidas. A criança selvagem vira tema de estudos pedagógicos, é des-
crita em textos acadêmicos e interpretada em filmes e desenhos animados; já a figura do leitor
rebelde é perseguida e morta, numa busca e captura espetacular, forjada pela televisão mural.
Enquanto o garoto selvagem nasce para a sociedade quando lhe dão um nome e uma história,
a figura de Montag morre socialmente, numa irrefutável transmissão ao vivo.
Num segundo momento, quando perguntada sobre sua origem, Isabelle responde:
“Eu cheguei a este mundo nos Champs-Élysées em 1959. Nas calçadas dos Champs-Élysées.
Minhas primeiras palavras foram „New York Herald Tribune‟”, e sua voz é acompanhada pela
música tema do primeiro longa-metragem de Jean-Luc Godard. Os planos seguintes já são um
eco entre Isabelle e Patricia. A personagem de Jean Seberg em À bout de souffle (Acossado,
1959) caminha nos Champs Elisée vendendo jornais.
Isabelle nasce para esta sociedade das imagens junto com a nouvelle vague e sua
existência é também uma espécie de eco desse cinema. Todo o filme é traspassado pela exis-
tência de outros filmes, e da relação de seus personagens com estes outros. Após o fechamen-
to da cinemateca, Matthew passa seus dias na casa onde moram os dois irmãos com seus pais,
10
que estão ausentes. Lá eles provocam encontros entre a ficção e a vida mesma, tentando viver
na própria pele aquelas cenas mais marcantes, fundamentais, clássicas para eles.
Isabelle propõe que os três formem uma “banda à parte” para reviver a famosa cena
da corrida no Louvre, de 1964, na qual os personagens de Godard quebram o recorde mundial
de atravessar o museu correndo, no menor tempo possível. O desafio em The Dreamers é es-
tabelecer um novo recorde. Nesse sentido, as cenas de Banda a parte (1964) são montadas
alternadamente com as cenas de The Dreamers, em grande afinidade visual, como sombras ou
fantasmas que se sobrepõem.
“En esta óptica de reaparición fantasmal, las imágenes mismas serán conside-
radas como lo que sobrevive de una dinámica y de una sedimentación antro-
pológicas que han devenido parciales, virtuales, porque en gran medida han
sido destruidas por el tiempo. La imagen [...] debería considerarse, por tanto,
en una primera aproximación, como lo que sobrevive de un pueblo de fan-
tasmas. Fantasmas cuyas huellas son apenas visibles y, sin embargo, se en-
cuentran diseminadas por todas partes” (Didi-Huberman, 2009, p. 36)
painel ou numa mesa de operações sempre aberta, as unidades visíveis dão passo a um siste-
ma de múltiplas relações, correspondências e analogias; imagens migratórias, que se misturam
em lugares e tempos heterogêneos e cujas relações são tão livres que podem ser construídas
nas aproximações entre qualquer tipo de imagem e texto. Basta que existam ideias que façam
eco em outras ideias.
6 REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. A tarefa do tradutor. Belo Horizonte, MG: Fale/UFMG, 2008. Susana
Kampff Lages (Trad.)
DELEUZE, Gilles. O ato de criação. Folha de São Paulo, São Paulo, 27 jun. 1999. Disponí-
vel em: <http://filoczar.com/filosofia>. Acesso em: 06 out. 2011.
GODARD, Jean-Luc. À bout de souffle [Acossado]. Película. França: Inc., 1959. 87 min.
GODARD, Jean-Luc. Bande à part [Banda à parte]. Película. França: BFI, 1964. 97 min.
12
GODARD, Jean-Luc. King Lear [Rei Lear]. Película. EUA: The cannon group, 1987. 90
min.
REITHERMAN, Wolfgang. The Jungle Book [Mogli – o menino lobo]. Desenho animado.
EUA: Walt Disney Pictures, 1967. 78 min.
TRUFFAUT, François. Fahrenheit 451. Película. EUA: Universal Pictures, 1966. 112 min.
RESUMO
A poesia de Waly Salomão aparece como máscara, como composição elaborada e não como
causalidade natural; teatralizada, mas com diluição de limites entre a vida e o palco, entre a
sola e a tela. É atuando com uma espontaneidade construída, que Waly atravessa e reelabora o
cotidiano com hibridismos e estilhaçamentos do texto por uma coloquialidade estilizada. A
leitura aqui proposta objetiva apontar na produção literária de Waly Salomão, alguns aspectos
que indicam a poesia como produção de si mesmo.
Palavras-chave:
Poesia. Máscara. Apolíneo/dionisíaco.
ABSTRACT
The Waly Salomão‟s poetry appears as a mask, as an elaborated composition not as a natural
causality; dramatized, but with the dilution of limits between life and stage, between sole and
screen. Is performing with a built spontaneity, that Waly crosses and reworks the daily routine
with hybridisms and shatters of text with stylized colloquiality. The reading proposed here
aims to point in the literary production of Waly Salomão some aspects that indicate the
poetry as production of himself.
Keywords:
Poetry. Mask. Apollonian/Dionysian.
1
Mestranda em Literatura (PPGL/UFSC) na área de concentração Literatura Brasileira, bolsista do CNPq,
vinculada à linha de pesquisa “Textualidades Contemporâneas”; e-mail: gabrielaccarvalho@hotmail.com.
2
palco, entre a sola e a tela. Essas fronteiras borradas podem ser percebidas como se, para
Waly, a vida para ser encarada e possível de ser vivida precisasse ser sentida como um teatro,
em cada gota de sangue, em cada punhado de terra.
Barroco
Entanto são
Ecos de ecos que se interpenetram
Partículas de ecos ocos, partículas de ecos plenos que se conectam
Aí cosmos são cagados, cuspidos e escarrados pelo opíparo caos
E o uso do adjetivo está correto
Pois que o caos é um banquete.
Fantasmas de óperas.
oooooooooooooooooRatos de coxias.
ooooooooooooooooooooooooooooooAtos truncados.
Talvez aqui seja possível promover um diálogo entre a poesia walyniana e a imagem
do eterno retorno3 proposta por Nietzsche, como um ciclo de todas as coisas, que se repete
incondicional e eternamente e que não tem um começo ou um fim. A vida, já teatralizada, é
matéria prima de sua poesia, ao mesmo tempo em que a poesia é matéria prima de sua vida.
Esse reflexo do inacabado4 é perceptível em outros momentos da poesia de Waly, que ao
2
Os versos de Waly apontam uma referência intertextual ao título do primeiro livro de poemas de Mário de
Andrade “Há uma gota de sangue em cada poema”, publicado em 1917.
3
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Ecce homo: de como a gente se torna o que a gente é. Porto Alegre: L&PM
Pocket, 2008. Eterno retorno – conceito nietzschiano citado em Ecce homo, mas desenvolvido de maneira mais
aprofundada em outros textos seus como A gaia ciência e Assim falou Zaratustra.
4
Curioso, se formos pensar em relações de procedimento, é o fato de que um dos pseudônimos que Waly usou
foi “Waly salut au monde”, que se for pronunciado em língua francesa encontra assonância com seu sobrenome
Salomão, assim como “Waly Sailormoon”, outro pseudônimo, que podemos entender, também, como máscaras.
3
concluir um texto voltava a acrescentar novas linhas ou versos. O próprio Hélio Oiticica já
observava algo parecido no texto de Waly:
Waly, você sabe o que que me lembra esse negócio de quando você considera o fim
de uma coisa e de repente você continua, acrescenta mais um? Isso me lembra um
problema da escultura (...) em relação a Brancusi, que todo o problema da escultura
moderna era absorver o pedestal. (...) A maneira dele [Brancusi] absorver o pedestal
era através da soma feita pela sobreposição de pedestais. (OITICICA apud
SALOMÃO, 2003, p. 201-202)5
Mas o interessante é que, no caso de “Waly salut au monde” podemos reconhecer o “salut au monde” como o
título de um dos poemas de Walt Whitman, que publicou somente um livro, Leaves of Grass, ao qual sempre
acrescentava novos poemas a cada edição, fazendo de seu livro uma obra sempre inacabada.
5
Extrato de Héliotapes sobre Um minuto de comercial de Waly, lado B, New York, 1971
6
Em entrevista a Heloísa Buarque de Holanda disponível no site:
http://www.heloisabuarquedehollanda.com.br/?p=724
4
(...) goza de frágil saúde irresistível, que provém do fato de ter visto e ouvido coisas
demasiado grandes para ele, fortes demais, irrespiráveis, cuja passagem o esgota,
dando-lhe, contudo, devires que uma gorda saúde dominante tornaria impossíveis.
Do que viu e ouviu, o escritor regressa com os olhos vermelhos, com os tímpanos
perfurados. Qual saúde bastaria para libertar a vida em toda a parte onde esteja
aprisionada pelo homem e no homem, pelos organismos e gêneros e no interior
deles? A saúde como a literatura, como a escrita, consiste em inventar um povo que
falta. (DELEUZE, 1997, p.14)
Não tenho porque chorar. Alguns detentos tomando banho de sol em cima
dos sacos de aniagem. a bunda na cuca de todo mundo. o fumo na moita.
(PAPO TER
RÍVEL DA
Poeta e profeta se confundem quase que num ato falho, em que o poeta pode se
realizar como profeta, mas há, ainda mais, uma relação de complementaridade e não de um
gesto acidental: “Sem ser profeta e sem profetismo, a voz do poeta é voz clamando no
deserto, se é que se pode excluir profetismo desse tipo de fala, e ao mesmo tempo a gente tem
de continuar tocando. Ser poeta é um tipo de ilusão, um lunatismo, mas é uma demência
similar à de qualquer pessoa dada a livros (...).” (SALOMÃO, 2005b, p.84)
Essa dupla missão poeta/profeta pode encontrar ecos de assonância com o
pensamento nietzschiano a respeito das divindades das artes Apolo e Dionisos. Para
Nietzsche, não há oposição entre Apolo e Dionisos, ambos coexistem em complementação. O
deus Dionisos leva à experimentação dramática da existência, experimentação exacerbada dos
sentidos, vertigem e excesso, aniquilando fronteiras de uma existência estagnada, invoca o
prazer da ação, a inspiração. É em Apolo que se encontra o poder da ilusão, poder de criar
ficções, redimensionando a vastidão cotidiana, produzindo máscaras e transformando o
horror.
No fazer poético de Waly, esse duplo caráter do espírito apolíneo e do espírito
dionisíaco existem ao mesmo tempo, na medida em que seu texto, enquanto forma, reflete
uma erudição, um cuidado com o belo, que condiz mais com o deus das faculdades criadoras
de formas, o deus da iluminação, o apolíneo; já enquanto gesto, o texto walyniano se
aproxima muito mais da embriaguez, do êxtase arrebatador, do dionisíaco.
Exterior
ooooooooooalém da grade
do sol nascido quadrado?
Esses dois instintos impulsivos andam lado a lado e na maior parte do tempo em
guerra aberta, mutuamente se desafiando e excitando para darem origem a criações
novas, cada vez mais robustas, para com elas perpetuarem o conflito deste
antagonismo que a palavra “arte”, comum dos dois, consegue mascarar, até que por
fim, devido a um milagre metafísico da “vontade” helênica, os dois instintos se
encontrem e se abracem para, num amplexo, gerarem a obra superior que será ao
mesmo tempo apolínea e dionisíaca (...). (NIETZSCHE, 2004, p.19)
Corre país afora uma lenda-crença de que só se pode confiar em quem olha para o
interlocutor direto nos olhos. Pouco importa se a criatura olhada quer dizer fisgada
careça de lente de contato ou sofra de catarata ou de algum outro problema ótico ou
até mesmo não mais possua olhos. O ótico aqui se converte em ético pois os olhos
nos olhos dissiparia qualquer nesga de sombra de alma, transpassaria qualquer névoa
psicológica. Os olhos nos olhos seria a extrema notação canônica da representação
idealista de um espelho desanuviado da natureza ou da sociedade ou da intimidade
ou da linguagem. Quem não olha nos olhos do outro, bom sujeito não é. Seja mania
nacional ou legado da cristandade, esse raio x introspectivo Torquato Marginália
Neto recusou. Seus versos cantam o opaco oposto:
„Você olha nos meus olhos e não vê nada. É assim mesmo que eu quero ser olhado‟.
(SALOMÃO, 2005a, p.68-69)
7
Em entrevista a Heloísa Buarque de Holanda disponível no site:
http://www.heloisabuarquedehollanda.com.br/?p=724
8
SALOMÃO, Waly. Algaravias. São Paulo: Ed. 34, 1996, p. 79.
7
vozes sobreponham-se umas sobre as outras, como camadas, sempre na tentativa de mascarar
a dor. No caso de Waly e de uma grande parte dos artistas de sua geração, convém considerar
que vida e obra estavam amalgamados, imersos num processo de vir a ser. Não há como
desconsiderar o contexto sociopolítico da época em que surgiram seus primeiros escritos, a
ditadura militar, a opressão, as torturas, o exílio, como marcas em suas produções e por vezes
até impulsionadoras da arte. Nas palavras do próprio Waly: “Os melhores talentos da minha
geração. Jail and mental hospital” (SALOMÃO, 2003, p.110)
Mal secreto
Não choro
Meu segredo é que sou
Rapaz esforçado
Fico parado, calado, quieto
Não corro
Não choro
Não converso
Massacro meu medo
Mascaro minha dor
Já sei sofrer
Não preciso de gente
Que me oriente
Se você me pergunta:
Como vai?
Respondo sempre igual:
Tudo legal
É pela experiência das múltiplas máscaras, pela concepção de mundo como espaço
de representação, que a manifestação dionisíaca parece sobressair no fazer poético de Waly,
sobressair não de maneira a se tornar mais importante, mas mais visível, como uma primeira
impressão que nos envolve, tendo em vista que
8
Mascarado avanço
Sua poesia aparece como composição elaborada e não como causalidade natural,
como uma teatralização, como um meio de exibição, mas perdendo qualquer subjetividade
fixa e exemplar. É com uma sabedoria trágica da vida que se pode avançar. Assim, também
9
Em entrevista a Heloísa Buarque de Holanda disponível no site:
http://www.heloisabuarquedehollanda.com.br/?p=724
9
Talvez seja, justamente, por compreender em sua escrita uma “linguagem que fala
antes das palavras”, que Waly rejeite o espontâneo, o natural e prepare a sua fala, não
permitindo que ela escorra de maneira desregrada “minha poesia está cada vez mais
construída e elaborada – e menos montada sobre a verve verbal. Me considero quase antítese
da escritura automática dos surrealistas”10. Como observou, também, Antonio Cicero
concluindo que para Waly “nada poderia ser mais oposto à sua concepção antinaturalista e
anti-espontaneísta de poesia do que a escrita automática” (CICERO, 2005, p.48)
Novamente a manifestação apolínea se faz presente, no fazer rebuscado, na busca
pela elaboração da forma, mas ao mesmo tempo permitindo que o dionisíaco também se
manifeste, passando longe de uma construção parnasiana. Dionisos e Apolo parecem estar em
uma dança sincronizada no fazer poético de Waly, nenhum avança mais do que o outro e
ambos se complementam. O uso da máscara como fuga do espontâneo, que mais ainda é a
fuga de uma vitimização, daquilo que é caótico e sofrível, é o elemento que impulsiona e
instaura a poesia walyniana.
Portanto, esse fazer poético é como “um diamante gerado pela combustão, como
rescaldo final de um incêndio” (SALOMÃO, 1996, p 41), como se do caos, interior e exterior
a si, nascesse sua poesia. É o próprio Waly quem parafraseia Nietzsche escrevendo: “fazer: do
meu caos interior estrelas a brilhar no firmamento”. (SALOMÃO, 2008, p.44)
REFERÊNCIAS
CICERO, Antonio. Finalidades sem fim: ensaios sobre poesia e arte. São Paulo: Companhia
das Letras, 2005.
DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1997.
10
Fala transcrita na sinopse do livro Lábia, disponível no site da editora Rocco:
http://www.rocco.com.br/shopping/ExibirLivro.asp?Livro_ID=85-325-0847-2
10
________________. Me segura q’eu vou dar um troço. 2. ed. Rio de Janeiro. Biblioteca
Nacional/Aeroplano Editora, 2003.
RESUMO
Palavras-chave:
Waly Salomão. Hélio Oiticica. Corpo. Poesia. Artes plásticas.
ABSTRACT
This paper proposes a comparative analysis of the trajectories of poet Waly Solomon and
artist Helio Oiticia, pointing to a meeting that goes through the central issues in the context of
counterculture in Brazil in the late 60th and early 70th: the body as support, platform, stage –
formatting and being formatted by discourse – of artistic production; the breaking of barriers
between life and work, art and non-art, classical and popular; the daily object appropriated as
work of art; the mimetic character of art forms, giving plurality to the production; the
tendency to fragment, the aphorism. It stands out in both the cannibalistic heritage of Oswald
de Andrade, so much in the synthesis notion as on the (inter) national aspect of art; besides the
Dionysian character, as opposed to the Apollonian, approached by Nietzsche. Try to
understand, through this dialogue, the artistic production as direct experience and body
experimentation.
Keywords:
Waly Solomon. Helio Oiticica. Body. Poetry. Arts.
1 INTRODUÇÃO
Waly Salomão, ao ser convidado a participar do evento promovido pelo Itaú Cultural,
Anos 70 – Trajetórias2, em 2001, afirmou a importância de Hélio Oiticica para realização do
Eu mostrava esse tal Apontamentos do Pav Dois3 a todo mundo, a torto e a direito.
Mais a torto, porque sou mais dado a andar com os tortos do que com os direitos,
mas nenhum retorno surgia e eu distribuía entre Rio e São Paulo cópias e cópias e
cópias ou então a mesmíssima suja e nauseabunda cópia, até que um dia pelo sim
pelo não, mostrei uma ao Hélio e dias depois ele já estava sentado na prancheta
diagramando aquilo para mim, enquanto eu desaparecia no vasto mundo. Um belo
dia, quando eu liguei assim ao deus-dará, porque eu não tinha pouso certo, ele então
reclamou comigo, me deu um esbregue e disse assim: você sumiu, achei o texto bem
denso, já estou aqui diagramando... (SALOMÃO, 2005, p. 141).
As trajetórias, arte e vida (ou a única trajetória decorrente da fusão de ambas, já que
essa separação não faz muito sentido nos dois), de Waly Salomão e Hélio Oiticica se
aproximam em vários momentos. Amizade, parcerias criativas. Da convivência no exterior
(Estados Unidos - Nova York) aos Babilaques de Waly, trabalho que unia escrita e
plasticidade, sob forte influência do movimento Neoconcreto, é possível estabelecer um
diálogo.
Essa voz que mina o texto e lhe conforma é a marca de uma alteridade que o
sistema-escrita prefere excluir. Em nome do corpo civilizado, em nome da paz
social, em nome de Deus, a violência da palavra fundadora – tão impregnada do e
própria ao mundo da oralidade – é banida. Mas Waly a reabilita em sua escrita
tumultuária, dir-se-ia que o corpo não sussurra em seu texto, mas grita, se contorce,
toca seu instrumento até que o ouçam e reajam à sua presença. Esse é o principal
traço da vocalidade no texto de Waly: a potência da voz corpórea que o impregna e o
movimenta, fazendo-o verdadeiramente existir junto, mas não dentro, à visualidade
diagramada da página, aspirando à condição de música. (ORNELLAS, 2008, p.
135).
Tanto em suas aparições em público, como na prosa, música e poesia, uma invadindo
a outra, uma mimetizando a outra, Waly se colocava de corpo inteiro. Na “escrita
automática”5 do seu primeiro livro (Me Segura), a voz que se fragmenta e assume vários
personagens para teatralizar6 o horror da prisão: o Marujeiro da Lua (Sailormoon, também um
dos heterônimos de Waly), Investigador Humanista, Agente-Mor, Agente Loira Babalorixá de
Umbanda. No poema que se transforma em música ou vice-versa, é a voz que assume o ritmo
afro-baiano dos atabaques (Ornellas aponta a influência do oriki, texto sagrado pertencente às
tradições orais africanas dos Iorubá, de evocação, elogio e ritualização, próprio de um Orixá)
e grita para se libertar das amarras das convenções literárias.
Exterior
5 Escrita automática carrega aqui a ideia de Bataille no texto La religión surrealista, no sentido de dar mostras
de insubordinação, levar a cabo a destruição da personalidade, esquecer-se de si: “quien se sienta
cómodamente, se olvida completamente de quién es para escribir al azar en un papel en blanco las locuras
más vivaces que aparecen en su cabeza, puede no conseguir nada en el plano del valor literario; no tiene
importancia, conoció, hizo la experiencia de la posibilidad de la ruptura sin excepciones con el mundo donde
actuamos para alimentarnos, donde actuamos para cubrirnos y protegernos” (BATAILLE, 2008, p. 48)
6 Antônio Cícero, ao caracterizar a poesia de Waly Salomão, utiliza o termo “teatralidade” (que o próprio Waly
elegeu), em detrimento de “carnavalização” (que será utilizado, aí sim, para definir o comportamento do
poeta), seja o da concepção bakhtiniana, seja do senso comum relacionado à brasilidade.
4
O sol já se punha, mas o dia estava ainda claríssimo (18h de verão no Rio), e a
própria topologia do morro que estava a meus pés, que eu “caminhava” ao subir,
como que evocava essa gênese; então cheguei a algo: essa ideia da 'Nova
Objetividade' como um conceito, um pensamento, não seria uma experiência
restringida à minha, como até então quisera eu, ou ao menos teorizava, mas algo que
acontecia num grupo, que se constatava em experiências independentes, individuais
que brotavam ao redor. Essa vivência, tão fundamental, num lugar para mim
essencial, me causou momentaneamente uma vertigem (não das 'alturas', nem
provocada por tóxicos, mas semelhante a estas) – jamais, por estranho que seja, tal
me ocorrera (…). (OITICICA, 2007b, pp. 219-220).
Lygia Clark, fazendo referência ao caráter lúdico, sensorial e coletivo da obra da artista, com
clara alusão a sua obra "A Casa é o Corpo", apresentada pela primeira vez em 1968 no
MAM–RJ, uma instalação de oito metros, que possibilitava a passagem das pessoas por seu
interior, para que tivessem a sensação de penetração, ovulação, germinação e expulsão do ser
vivo.
multifacetado, de expressão anárquica, que se aproxima do popular, seja pela linguagem, pela
presença do morro e carnaval carioca, da incorporação do marginal (a bandeira-estandarte
“Seja marginal, seja herói” de Oiticica homenageando o bandido Cara de Cavalo); revela o
potencial dionisíaco da arte. Waly, em suas aparições/apresentações em público, encarna o
próprio sátiro nietzschiano:
Figura esta que poderia também ser traduzida pela frase “A Mangueira sou eu”, de
Oiticica, reconhecendo em si o pulsar ritmado da bateria no ensaio da quadra da Escola de
Samba Estação Primeira de Mangueira, a arquitetura vertiginosa das favelas;
simultaneamente, aprendendo a virar passista, “digerindo” (a maneira antropofágica
oswaldiana) movimentos de arte internacionais como Pop e Op Art, demolindo qualquer
barreira entre artista e público.
3 SÍNTESE
Além fronteiras (agora geográficas de fato), borrando as linhas que separam as várias
formas de arte, Hélio e Waly se encontraram em Nova York na década de 70. Enquanto o
primeiro levava o Parangolé ao metrô nova-iorquino, o outro produzia os Babilaques, que ele
se negaria a chamar de poemas visuais (por achar a expressão insuficiente para compreender a
inter-relação de linguagens composta por texto, desenho, colagem, planos, textura, cor, luz,
ângulos, corte, imagens impressas e objetos do cotidiano), e descreveria como uma
“experiência de fusão da escrita com a plasticidade”. A série composta por poemas escritos
em cadernos e fotografados em situações e suportes vários em Nova York, Rio de Janeiro e
Salvador entre 1975 e 1977, evocava “o caráter ESTRUTURAL da experiência:
PLURALIDADE de significados” (SALOMÃO, 2007, p. 21). O poeta, refletindo o artista
plástico, definiu a produção como “performance poético-visual” e assim explica o título:
BABILAQUE é uma palavra não dicionarizada, não tem o seu sentido definido pelo
dicionário; carrega, portanto, possibilidades virtualmente infinitas. Contém em si
uma libertação do sentido literal stricto sensu, enquanto dispara diversos sentidos
embutidos no seu interior. Palavra polissêmica, de forte carga rítmica moderna,
porém não modernosa, e claramente não destinada a ser somente uma gíria
provinciana, localista e efêmera de um gueto. (SALOMÃO, 2007, p. 21).
8
Mais uma vez aparece o corpo, aqui como suporte físico, de fato, da escrita. No que
poderia ser considerado um primeiro momento do trabalho, uma foto da mão do artista a
frente de um “cenário” composto por autênticos suvenires cariocas (pratos pintados com
papagaios, palmeiras, o Pão de Açúcar e o Cristo Redentor). Na mão está escrito um poema
curto: “Conheço o Rio de Janeiro/ Como a palma da minha mão/ Cujos traços desconheço”. A
fotografia, de autoria de Bina Fonyat, foi apresentada no evento organizado pelo artista
plástico Carlos Vergara no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1971, intitulado
Exposição. De caráter experimental, o acontecimento reuniu artistas que até então não haviam
participado de qualquer exposição de arte, representando um momento bastante significativo
na relação de Waly com as artes plásticas.
Destaca-se, no poema acima, uma espécie de haicai, a tendência - herança
oswaldiana - à síntese. Silviano Santiago, que utiliza o termo curtição8 para caracterizar essa
geração que surgiu no cenário cultural no final da década de 60, início de 70, e seria
identificada como contracultura (marcada pelo Tropicalismo na música, Cinema Marginal,
Teatro Oficina), aponta como característica a valorização do trecho em detrimento do todo:
Não é por acaso que estamos de novo diante daquele mesmo fragmentário que foi a
marca registrada de Machado de Assis, de Oswald de Andrade e, um pouco mais
longe, de Nietzsche. O aforismo contém a verdade. O trecho aparece trabalhado,
bordado, rendado, pedindo portanto apreensão sintética (o fragmento) e ao mesmo
tempo analítica (o bordado). Com isso também se perde a noção de continuidade
narrativa, tão importante para a estética que nasceu com o século histórico por
excelência que foi o XIX. A continuidade no e do texto, o discursivo, só faz sentido
se se pensa dentro de uma lógica linear e unívoca, em que o contraditório é expulso
em favor da dicotomia seletiva, do pensamento que se expressa em termos de
forquilha e de opção. (SANTIAGO, 2000, p. 131).
8 Silviano Santiago utiliza o termo no artigo intitulado Os abutres, de 1972, em que analisa a então recente
geração da contracultura. A curtição, “sensibilidade de uma geração, sensação, estado de espírito, conceito
operacional, arma hermenêutica, termômetro, barômetro, divisor de águas etc”, seria a nova forma de se
pensar as manifestações artísticas da época. Ela, segundo Silviano, desloca a leitura e “inaugura um novo
reino de gozo, de deleite, de fruição, de prazer estético” (SANTIAGO, 2000, p. 131).
9
“Todo aquele que constrói 'novo céu' achou a força no seu próprio inferno” (SALOMÃO,
2008, p. 32).
A utilização do fragmento como recurso provoca no leitor, ou participador (termo
utilizado por Hélio em detrimento de espectador) o estranhamento e o efeito lúdico,
aparentemente contraditórios e inconciliáveis, uma vez que um remete ao afastamento,
enquanto outro indica envolvimento, proximidade. O estranhamento, tão caro ao teatro épico
de Brecht e ao cinema de Glauber, aparece, em Waly, como um rompimento na escrita,
extinguindo qualquer possibilidade de linearidade, tirando o leitor da zona de conforto. Logo
após esse primeiro movimento, o leitor é chamado de volta à obra, para recolocar/reposicionar
trechos, ou (re) montar jogos de palavras propostos
PAPO TER
RÍVEL DA
MORTE
(SALOMÃO, 2008, p. 19)
Como o artista plástico propondo ao público que vista as “capas para dançar”,
adentre o Penetrável Tropicália, colocando os pés descalços na areia; ou se acomode
confortavelmente em uma das caixas do Bólide Ninhos Éden: “se alcança no pleno desenrolar
das potencialidades criadoras e é o espaço de lazer não-repressivo” (SALOMÃO, 2005, p.
81).
Ainda caracterizando a chamada geração da contracultura, Silviano Santiago destaca
o seu aspecto não verbal, assim justificando o consequente efeito atrasado da curtição em
âmbito literário:
Tal atraso tem sua razão de ser no fato de a nova geração olhar com tremendo pouco
caso a comunicação verbal e de considerar ainda com violento desprezo o que se
define hoje como escritura. E também porque, do ponto de vista sociológico,
estejamos diante de uma geração que curte o gregário, estando pois impossibilitada
de aceitar a regra maior para a leitura do texto literário, a solidão. (SANTIAGO,
2000, p. 129).
estética, Oswald de Andrade, por Nietzsche, Guimarães Rosa, Gertrude Stein, Ezra Pound,
Gregório de Matos, os poetas concretos Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari,
Lévi-Strauss, dentre outros. A leitura, desde a infância em Jequié, Bahia, sempre aparece nos
relatos do artista como movimento libertador, essencial para romper com a “coisa tacanha”, o
provincianismo da cidade de interior. Há que se considerar ainda a formação na Universidade
Federal da Bahia quando esta passava pela reforma instalada pelo então visionário reitor
Edgar Santos, que trouxe para trabalhar como professores e colaboradores, artistas e
pensadores envolvidos com as ideias de vanguarda e experimentação, como a arquiteta e
designer italiana Lina Bo Bardi, o músico e artista plástico suíço Walter Smetak, o maestro
alemão Hans J. Koellreuter, a polonesa Yanka Rudzka, professora de dança contemporânea,
entre outros.
4 REFERÊNCIAS
FOSTER, Hal. The Return of the Real. Londres: MIT Press, 1996.
9 Título do texto de Hélio Oiticica escrito em 1972, publicado no catálogo do Grupo Frente e Metaesquemas.
Galeria São Paulo, 20 de março a 21 de abril de 1989.
11
OITICICA, Hélio. Tropicália. In: BASUALDO, Carlos (Org.). Tropicália – Uma Revolução
na Cultura Brasileira. São Paulo: Cosac Naify, 2007a.
OITICICA, Hélio. Vivência do Morro do Quieto. In: BASUALDO, Carlos (Org.). Tropicália
– Uma Revolução na Cultura Brasileira. São Paulo: Cosac Naify, 2007b.
OITICICA, Hélio. Esquema Geral da Nova Objetividade. In: BASUALDO, Carlos (Org.).
Tropicália – Uma Revolução na Cultura Brasileira. São Paulo: Cosac Naify, 2007c.
ORNELLAS, Sandro. Waly Salomão e o teatro do corpo. Ipotesi, Juiz de Fora, v. 12, n. 2, p.
129 - 143, jul./dez., 2008.
SALOMÃO, Waly. Hélio Oiticica – Qual é o Parangolé? E outros escritos. Rio de Janeiro:
Rocco, 2004.
SALOMÃO, Waly et al. Babilaques: alguns cristais clivados. Rio de Janeiro: Contra Capa
Livraria; Kabuki Produções Culturais, 2007.
SANTIAGO, Silviano. Os abutres. In:_____. Uma literatura nos trópicos. Rio de Janeiro:
Rocco, 2000.
SUMÁRIO GERAL
Sumário de Inglês
100. CHICO MENDES HERÓI: ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO DA REVISTA VEJA - Martha
Júlia Martins de Souza
103. GENRE EXPECTATION AND ITS INFLUENCE ON EFL BRAZILIAN STUDENTS’ INFER-
ENCE GENERATION AND READING COMPREHENSION: PILOT STUDY INSIGHTS -
Deise Caldart
106. SEM MIM NO MEIO, QUERIDO, VOCÊ NÃO SERIA NADA”: HETERONORMATIVI-
DADE QUESTIONADA EM HEDWIG: ROCK, AMOR E TRAIÇÃO – Claudia Santos Mayer
107. THE LOST VOICES OF THE CARIBBEAN? REVISITING J.M. COETZEE’S FOE AND
JEAN RHYS’ WIDE SARGASSO SEA – Renata Lucena Dalmaso
O presente trabalho visa apresentar uma discussão do contexto sócio-cultural onde surgem e
são retransmitidas as Lendas Urbanas quando estudadas sob a perspectiva da Linguística
Sistêmico-Funcional. Para tanto, é necessário primeiro uma introdução do que são essas
Lendas, e uma explicação do papel que, de acordo com estudos de Folclore, elas parecem
assumir na sociedade. Sigo então com uma discussão do entendimento de língua enquanto
sistema semiótico, conceito básico para que possamos entender a proposta de análise textual
que nos oferece a Linguística Sistêmico-Funcional de Halliday (2004) e que utilizo como base
para o estudo discursivo de tais Lendas. Por fim, relaciono a função social que as Lendas
Urbanas parecem assumir na sociedade globalizada atual com o contexto de Modernidade
Líquida de Bauman (2001), apontando que quando tais Lendas surgem como relatos de
advertência, elas cumprem com o papel de nos avisar sobre os perigos amorfos e iminentes
inerentes à liquidez da forma de modernidade atual.
Palavras-chave:
Lendas Urbanas. Análise Crítica do Discurso. Lingüística Sistêmico Funcional. Modernidade
Líquida.
ABSTRACT
The present paper intends to present a discussion of the socio-cultural context where Urban
Legends arise and circulate, following the perspective of Systemic Functional Linguistics. In
order to do so, a brief introduction to Urban Legends and to the role they play in society will
be necessary. I follow, then, with a discussion of the concept of language as a semiotic
system. Finally, I relate the social function that Urban Legends seem to assume in current
globalized society to Bauman‟s (2001) Liquid Modern times, pointing out that whenever such
Legends arise as bogus warnings, they fulfill the function of warning us against the risks
imminent to the current form of Liquid Modernity.
Keywords:
Urban Legends. Critical Discourse Analysis. Systemic Functional Linguistics. Liquid
Modernity.
1 INTRODUÇÃO
Lendas urbanas (LUs) são histórias fabulosas, de eventos incomuns e que algumas
vezes apresentam tom de humor. As LUs não são necessariamente falsas, mas em geral
possuem caráter sensacionalista ou exagerado, e muitas vezes são baseadas em fatos ou
preocupações reais (HARRIS, 2006; BERENBAUM, 2001). Em sua grande maioria,
apresentam personagens e enredo, com elementos de mistério, horror e medo, sendo
apresentadas como relatos de advertência (HARRIS, 2006).
1
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Inglês da UFSC e bolsista CNPQ; e-mail: steffen@cce.ufsc.br.
2
Vários estudiosos dessas lendas sugerem que a motivação principal destas é encontrar ou
produzir significados. Atualmente, quando os sistemas de significado tradicionais, como a
igreja, a vizinhança e a escola se tornam cada vez menos influentes, procuramos nossos
significados e valores nessas narrativas (DIFONZO & BORDIA, 2010).
As Lendas Urbanas na era da Internet surgem ou são retransmitidas, então, em
contextos aonde significados podem ser construídos através da contação de histórias, aonde as
partes da vida podem ser interpretadas como entretenimento (DIFONZO & BORDIA, 2010).
O contexto das LUs é a necessidade de significado, de promover valores culturais e morais, de
lidarmos com os nossos medos verbalmente (oral ou grafologicamente). Assim, mesmo que
tais narrativas sejam migratórias, no sentido de que elas são sempre localizadas em tempo e
espaço próximo de quando são retransmitidas, proponho que seu contexto na era virtual não
mais pode ser explicado em termos de comunidades geográficas específicas aonde elas
surgem. O contexto global da Modernidade Líquida é o meio ideal para essas lendas, e elas
serão retransmitidas em qualquer comunidade que participe da necessidade de construção
daqueles significados dos quais cada lenda trata individualmente. Enquanto lendas referentes
ao terrorismo são bastante comuns nos Estados Unidos após o fatídico Onze de Setembro,
dificilmente elas chegam aos países da América Latina; Lendas sobre grandes corporações,
como por exemplo o conto em que os hambúrgueres do Mcdonalds são feitos de minhocas,
são mais comuns em países em desenvolvimento aonde o medo do controle de tais
corporações sobre a vida diária de cada indivíduo é mais acentuado.
Contudo, o tema mais comum das Lendas Urbanas modernas é o medo do outro. Seja
o outro o turista que trás para o nosso ambiente insetos ou plantas assassinos (como na
história do Norte Americano que visita o Brasil e leva para casa um inseto que se alimenta do
cérebro de humanos) ou o vagabundo, aquele que está ao nosso redor e em quem temos medo
de confiar (como a vendedora da Avon que bate na nossa porta, oferece um perfume - na
verdade um tipo de droga - para a cliente/vítima experimentar e assim poder roubar itens de
valor de sua casa). Esse é o medo global que permite o surgimento de tais narrativas.
Líquida será discutida adiante. Por hora, interessa compreendermos o papel da lingüística
nesse processo.
O Pós-Modernismo lingüístico tem suas origens no movimento do estruturalismo, e
em sua contra-reação, o pós-estruturalismo. O estruturalismo pode ser visto como um dos
últimos estágios do Modernismo, ou como o imediato precursor do Pós-Modernismo. Levi-
Strauss (1963), antropólogo estruturalista, argumentou que todos os padrões culturais
humanos, desde a arquitetura até a língua, seguiam as regularidades das estruturas
matemáticas. Essas regularidades, no entanto não são qualitativas, mas em padrões de
possíveis combinações e simetria. Seguindo essa mesma suposição, Jean Piaget (1970) notou
que para desenvolver conceitos básicos na educação, como os conceitos de tempo, espaço e
quantidade, as crianças construíam as mesmas operações das quais precisavam para entender
o mundo. Inspirados por lingüistas modernos que encontraram regularidades matemáticas nas
estruturas (CHOMSKY, 1965) e nos sistemas sonoros lingüísticos (JAKOBSON, 1962), os
estruturalistas passaram a entender que a língua e a cultura poderiam ser estudadas dentro das
ciências matemáticas.
Os Pós-Estruturalistas, por sua vez, não estavam interessados em encontrar
regularidades lingüísticas. O seu interesse estava em como o discurso é construído de modo a
reforçar ou desafiar os padrões de ordem, lingüística e cultural, que se impõe sobre ele. A
língua passa a ser vista não mais como um conjunto de códigos matemáticos que podem se
desdobrar em um número finito de combinações e significados, mas em uma ferramenta
adaptável ao uso necessário.
Isso fica claro no trabalho de Foucault (1969), que mostra ser inviável aos
historiadores reconstruírem um passado real. Ele argumenta que o discurso histórico é um
discurso do presente, nos auxiliando hoje a compreender os passos da atividade humana
através dos tempos. Como podemos notar, o conceito de discurso adotado por Foucault não
inclui apenas a língua, mas tudo aquilo que utilizamos para compreender o mundo. Para ele,
as noções de nação, self, normalidade e família, entre outros, são construções culturais e
históricas. O foco assim deixa de ser os fenômenos que a ciência investiga, e passa a ser o
modo como a ciência produz ou reproduz significados através de seus discursos.
Sendo assim, o que caracteriza a visão de linguagem seguida na presente discussão é
o foco no significado, e não mais na estrutura. O interesse passa a ser em como um texto
produz significados, e o próprio conceito de texto é expandido de modo a incluir textos não
lingüísticos. Como nos lembra Lemke (1994), uma paisagem é o texto que um geólogo
5
2
Minha tradução do original: “the grammar of a language is not a code, not a set of rules for producing correct
sentences, but a resource for making meanings”.
3
Minha tradução do original: “the actions and artefacts we use to communicate, whether they are produced
physiologically – with our vocal apparatus; with the muscles we use to create facial expressions and gestures,
etc. – or by means of technologies – with pen, ink and paper; with computer hardware and software; with fabrics,
scissors and sewing machines, etc.”
4
Minha tradução do original: “a complex semiotic system with several levels or strata.”
6
modo como esses textos reafirmam ou desafiam esse contexto cultural aonde acontecem, a
lingüística tem feito uso de estudos interdisciplinares. Afinal, concordamos com Saussure que
estes fatores externos, culturais, não são passíveis de análise lingüística.
Entretanto, a interdisciplinaridade se dá a partir do objeto lingüístico de análise. Se o
objeto tem relação com estudos feministas, por exemplo, a perspectiva fenomenológica pode
nos ajudar a entender o modo como as definições patriarcais de mundo fazem parte de um
discurso hegemônico masculino. Quando um objeto faz referência a relações sociais de poder,
a teoria da Estruturação de Giddens pode desvelar as prescrições de papéis e distribuição de
recursos na sociedade. As lendas urbanas, contudo, são possibilitadas e restringidas por um
contexto global bastante amplo, parte da continuidade que se dá entre a Modernidade e a
Modernidade Líquida, como veremos a seguir.
estranho é “mais assustadora do que aquela que se pode temer da parte do inimigo”
(BAUMAN, 1994, p. 157), já que essa nos é desconhecida.
Nesta nova situação, instituições sociais já não têm mais tempo de se solidificar e
servir como referência para as ações humanas; as instituições tradicionais, como a igreja ou a
escola, perdem a sua importância. Assim, os indivíduos precisam encontrar novas maneiras de
reorganizar suas vidas. Quando a igreja perde o seu poder, por exemplo, o „Divino‟ perde a
sua força, e resta para os indivíduos assumirem o poder sobre seu próprio destino. Alguns
conceitos tradicionais, como o de „carreira profissional‟, perdem a sua estabilidade e os
indivíduos precisam estar sempre prontos para se readaptarem, abandonar compromissos e
seguir oportunidades de acordo com a sua situação atual. Na Modernidade Líquida, então, os
indivíduos necessitam planejar suas ações em condição de incerteza constante.
A cultura, nessa perspectiva, pode ser definida como “a organização social de
significados, interiorizados de modo relativamente estável pelos sujeitos em forma de
esquemas ou representações compartilhadas, e objetivados de formas simbólicas, tudo isso em
contextos historicamente específicos e socialmente estruturados”5 (GIMENEZ, 2009). Mas
quem são e aonde estão esses sujeitos? A identidade individual se dá a partir da noção de
quem somos e quem são os outros. Isso implica em comparações quanto aos recursos
culturais que são valorizados por nós e pelos outros sujeitos. Contudo, essa valorização é
apenas relativamente estável, o que resulta em possíveis mudanças no que consideramos a
nossa identidade individual em diferentes momentos de vida, e também nos grupos aos quais
nos associamos. Segundo Bradley (1997, citado em GIMENEZ, 2009, p. 14), podemos ter
além de identidades ativas, identidades potenciais – aquelas possíveis mas que estariam
„dormindo‟, esperando serem ativadas; e identidades politizadas que servem de base para as
ações coletivas. Assim, os grupos aos quais nos associamos são criados e desfeitos de acordo
com as nossas identidades momentâneas. Como diz Hall (2003, p. 13), a identidade é
“formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos
representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam.”
A identidade coletiva, então, aparece como um acontecimento, e não como um efeito
natural do mundo social; ela se refere a adesão a um modelo cultural que incorpora
determinados rituais, práticas e artefatos culturais. Do mesmo modo que a identidade
individual, a coletiva também se dá a partir da diferenciação com os outros grupos
5
Minha tradução do original: “La organización social de significados, interiorizados de modo relativamente
estable por los sujetos em forma de esquemas o de representaciones compartidas, y objetivados em formas
simbólicas, todo ello em contextos históricamente específicos y socialmente estructurados”.
9
6
Minha tradução do original: “lãs culturas están cambiando continuamente por innovación, por extraversión, por
transferência de significados, por fabricacion de autenticidad o por „modernización‟”
10
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em tempos de medos líquidos, aonde as nossas inseguranças não possuem forma
específica e o estranho mora ao nosso lado, é compreensível a difusão de Lendas Urbanas que
surgem como relatos de advertência, nos avisando dos perigos amorfos e iminentes do
mundo. Como diz Spivak (1994, p. 188), “a escritura é uma posição em que a ausência7 do
autor na trama é estruturalmente necessária. A leitura é uma posição em que eu (ou um grupo
de “nós” com quem partilho um rótulo identificatório) faço dessa anônima trama a minha
própria, encontrando nela uma garantia da minha existência enquanto eu mesma, uma de
nós.” Assim, através do medo representado nas LUs, nos identificamos com os outros – e
todos os outros que partilham de nossos medos, não importando o quão longe
geograficamente eles estejam.
Neste contexto global aonde a Internet rompe as fronteiras físicas da comunicação, as
lendas não surgem mais em um contexto/espaço específico, mas se reproduzem em qualquer
espaço social que ofereça as características necessárias para o seu surgimento e reprodução.
6 REFERÊNCIAS
CHOMSKY, N. Aspects of the Theory of Syntax. Cambridge, MA: MIT Press, 1965.
DiFONZO, N. & BORDIA, P. Rumor, Gossip and Urban Legends. Diogenes 213:19- 35,
2010.
7
Grifo original do autor.
11
HALL, S. Quem precisa de identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu (Org) Identidade e
diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
RESUMO
O presente trabalho objetiva analisar a tradução dos itens lexicais da legenda do filme "Deu a
louca na Chapeuzinho" ("Hoodwinked", Weistein Co.,2005). A partir do questionamento das
crianças, entre 6 e 7 anos, do 2º ano da Escola Internacional de Aldeia (Recife - PE), foram
extraídos alguns dos fragmentos do filme considerados de difícil compreensão por parte das
mesmas. Em seguida, propusemos traduções mais simplificadas e com maiores de serem
compreendidas pelo público em questão.
Palavras Chave:
Tradução das legendas. Público infantil. Universo linguístico infantil.
ABSTRACT
The current work aims to analyze the translation of the lexical items of the subtitles of the
film "Hoodwinked" ("Deu a louca na Chapeuzinho"). From the questions made by the
children around 6 and 7 years, students of the second year of Escola Internacional de Aldeia
(Recife - PE), some of the fragments of the movie (considered difficult to understand by
them) were extracted. Further, we suggested more simplified translations, with more chances
to be understood by this public.
Keywords:
Translation of subtitles. Infant viewers. Children's linguistic universe.
1 INTRODUÇÃO
Entre os meios de comunicação social, o cinema é hoje um instrumento muito
difundido e apreciado pela humanidade, propondo uma reflexão sobre os mais variados
assuntos da realidade ou apenas entretendo, como uma fuga da atribulada vida cotidiana.
Ademais, dele partem mensagens que influenciam no comportamento, na formação
intelectual e cultural podendo até mesmo condicionar as escolhas do público, sobretudo os
jovens.
Sendo uma atividade com enorme potencial de lucro e de difusão cultural, a indústria
cinematográfica voltou o foco para o público infantil, de maneira que o consumo dos produtos
aumentasse, por meio de elementos persuasivos e que estimulam a imaginação, tornando-se
assim, fundamental seduzir e entreter plateias infantis.
1
Graduada em Letras pela UFPE, Especialista em Metodologia da Tradução pela FAFIRE e mestranda em
Linguística pela UFPE; e-mail: marilia_gteixeira@hotmail.com.
2
contar uma mesma história por vários ângulos diferentes - um para cada personagem
principal. Não é exatamente algo novo no cinema, mas utilizar este artifício em filmes de
animação não é comum. As piadas são uma mistura de humor visual com ironia e os diálogos
são uma mescla da linguagem da história original com uma mais contemporânea.
O filme apresenta trechos que, seja por motivos linguísticos ou de diferenças
culturais, exigem um maior esforço e criatividade do tradutor. O presente trabalho propõe-se a
analisar os elementos, sobretudo os concernentes ao léxico, que contribuem para a existência
de tal dificuldade, objetivando explicar as escolhas tradutórias do profissional e sugerir
alternativas para que a tradução tenha maiores chance de sucesso. Assim, realizaremos uma
análise descritiva e interpretativa da tradução do filme em contraste com a versão original, em
língua inglesa, tendo a legendagem como modalidade tradutória em foco.
Em que pesem os benefícios da sétima arte, não se pode deixar de constatar certo
nível de periculosidade existente. Merten (1990) diz que o cinema é um excelente brinquedo,
capaz de dar sentido à fantasia daqueles que o vêem. Este brinquedo, entretanto, alerta o
autor, pode ser perigoso, pois pode impor conceitos e valores no subconsciente. O autor ainda
constata que, em algumas situações, o cinema deixa de ser encantador para se tornar um
instrumento de dominação, podendo influenciar mal o espectador.
Embora seja exagerado interpretar o cinema como algo puramente alienante, a
massificação que atinge os adultos também tem seus efeitos nas crianças, ressalta Fantin
(2006). Os filmes trazem mensagens, conceitos, valores que abordam a noção do bem contra o
mal, as relações de poder, padrões de comportamento e estereótipos, os quais são consumidos
e reproduzidos pelos espectadores. Por outro lado, para Barbero (2001), a massificação não
necessariamente significa alienação. Segundo o autor, o perigo da massificação só existe
quando o espectador não faz uma crítica sobre aquilo a que acabou de assistir.
Não se pode, todavia, ignorar o cinema na realidade de uma criança, sobretudo
porque a mídia configura um importante - embora persistente - papel na difusão da cultura por
intermédio dos filmes. Por se tratar de um artefato cultural com o qual as crianças devem se
relacionar, o cinema pode ser uma alternativa de exercício da capacidade humana. Entretanto,
deve-se ter o cuidado para não restringi-lo como única possibilidade de entendimento da
cultura pela criança, mas sim, ser um complemento em sua formação, defende Fantin (2006).
É essencial (e interessante) observar a relação das crianças para com as películas,
pois isso permite entender a maneira como os interpretam e reagem frente às mesmas. Muitas
vezes, ao terminarem de assistir a um filme, elas imaginam ser as personagens ou passam dias
brincando sobre o que viram, por exemplo. Estas são reações que demonstram inicialmente a
maneira pela qual as crianças interpretaram o enredo e foram por ele influenciadas. A
infinidade de reações, portanto, é um indicador de como podemos entender a compreensão
infantil em relação aos filmes.
Tão intrigante é poder do cinema sobre as pessoas, que até mesmo estudos
psicanalíticos buscam explicar tal influência. Mustenberg (2003) considera que durante um
filme, a experiência do espectador não se restringe à escuridão e à sonoridade, como também
à sua relação com o tempo: o cinema permite que voltemos ao passado ou nos adiantemos
para o futuro, por exemplo, possibilitando-nos ver o filme por diversos prismas e mostrar
fantasias possíveis por meio do encontro entre memória e imaginário.
Outro fator fundamental diz respeito ao ambiente da sala do cinema. A escuridão e o
distanciamento das salas de cinema são aspectos relevantes para a imaginação: fato que
5
2
Competência é o conhecimento mental puro de uma língua em particular por parte do sujeito falante.
Desempenho é o uso concreto da linguagem em situações de fala concreto.
7
funcionamento do mecanismo de aquisição, mas isso não é determinante na forma final desse
mecanismo.
Outra abordagem sobre aquisição de linguagem tem um enfoque cognitivista e a
linguagem não é o principal objeto de estudo. Jean Piaget (1971) objetivou estudar o
desenvolvimento cognitivo da criança, pois, para ele, a linguagem é conseqüência do
desenvolvimento da cognição. O autor considera que, cada etapa do desenvolvimento é pré-
requisito para a etapa seguinte, uma vez que a assimilação de algo novo provoca um
“rearranjo” do conhecimento anterior.
De acordo com Piaget, a criança nasce com um conjunto de reflexos inatos, fazendo
uso destes para construir os esquemas sensório-motores, que se baseiam nas percepções
sensoriais e em esquemas motores (bater, morder, pegar, etc). Esses esquemas, por meio das
experiências, se ampliam e se modificam, transformando-se em conceitos práticos (que são a
maneira de agir que a criança aplica para conhecer o mundo e pressupõem o pensamento).
Conforme Piaget, a linguagem surgirá apenas como uma manifestação simbólica,
isto é, como uma capacidade de representar algo através de símbolos, da imagem mental, da
imitação e da linguagem. É nesta fase que se desenvolvem as primeiras estruturas verbais e
fará uso de apenas um símbolo para designar um objeto específico.
Com a passagem da fase do sensório-motor para a fase simbólica, a palavra toma
lugar nas funções mentais e a linguagem assumirá seu papel no desenvolvimento da cognição
infantil, ampliando as habilidades comunicativas. A fase seguinte, é denominada pelo autor de
"pré-operatória", que é caracterizada pela "fala egocêntrica" É por meio desta fala que a
criança pratica uma espécie de monólogo como uma forma de auxílio às suas ações. Assim, o
"falar sozinho" será substituído por meio do contato com adultos até o ponto de a linguagem
se tornar uma função comunicativa. Tal modificação ocorre por volta dos sete anos, idade em
que se tornam perceptíveis os pensamentos lógico e objetivo.
Piaget considera, enfim, que cognição e pensamento precedem a linguagem, pois,
antes de falar, a criança é impulsionada por um tipo de inteligência que a faz querer conhecer
o mundo a sua volta. O processo de conhecimento é desencadeado pela ação, não pela
linguagem.
A partir das leituras das obras de Piaget, o russo Lev Vygotsky discute e opõe-se às
concepções do estudioso francês. Vygotsky afirma que, inicialmente, há uma fase em que a
linguagem é não-intelectual e o pensamento é não-linguístico, isto é, pensamento e linguagem
possuem origens diferentes, mas irão se encontrar em um determinado ponto do
desenvolvimento.
8
outras formas de comunicação, como o tato, o olhar e o sorriso. No segundo mês, percebe-se
que o choro possui sonoridades distintas e varia de acordo com a necessidade do bebê. A
partir do terceiro mês, a criança é capaz produzir sons vocálicos e guturais. É também nesta
fase que surge o balbucio, no qual ocorrem emissão de sons e duplicidade de sílabas (ex. “pa
pa”). O balbucio progride consideravelmente no quinto e sexto meses, ocorrendo a imitação
dos sons pela criança e perdura até o oitavo e nono meses. Aos nove e dez meses, a criança
fala palavras curtas, sendo majoritariamente aquilo que os adultos dizem. Ela demonstra
grande interesse em imitar sons e gestos no intuito de estabelecer a comunicação, estando
assim mais propensa a aprender a linguagem rapidamente.
É apenas a partir do primeiro ano de vida que a criança faz uso das primeiras
palavras. Trata-se do início da etapa lingüística, na qual a criança emite palavras, mas que
ainda não tem o formato das palavras dos adultos. Também nesta etapa, a criança sabe o
significado de alguns vocábulos e faz uso da linguagem para estabelecer contato.
De um ano e meio a dois, ocorre um enriquecimento da linguagem e o repertório
infantil passa para, em média, 50 palavras. A aquisição de vocabulário passa a ser quase diária
e em geral, as crianças utilizam-se mais de substantivos (por serem as palavras de maior força
denotativa), alguns adjetivos e advérbios.
Um acentuado aumento de vocabulário também ocorre por volta dos dois e três anos.
As crianças fazem uso de verbos, adjetivos e advérbios; entretanto, a maior parte de seu
vocabulário ainda constitui-se de substantivos. Vale ressaltar que é aos três anos de idade que
há uma “explosão” no repertório lingüístico infantil: as frases passam a ser mais elaboradas e
surgem as categorias gramaticais. Tal etapa é frequentemente conhecida como a fase dos
“porquês”, pois é nela que a criança sente a necessidade de obter explicações sobre os
fenômenos que a rodeiam.
Aos quatro e cinco anos, a criança apresenta um comportamento condizente com o
“exigido” pela sociedade, isto é, cumprimentar, pedir por favor e agradecer. A linguagem
deixa de ser uma ferramenta de comunicação imediata e a criança já é capaz de representar
mentalmente objetos e situações, o que facilita o desenvolvimento da linguagem e o intelecto.
A maturidade para aprender cada vez mais uma linguagem abstrata ocorre por volta
dos seis e sete anos. Com essa idade, as crianças demonstram um nível maior de compreensão
de contextos e fazer a relação destes com outros. Também são capazes de relatar
acontecimentos, compreender histórias e perceber críticas e comentários a seu respeito. É o
momento em que desenvolve a consciência sobre si, formando um auto-conceito que
influenciará, futuramente, no desenvolvimento de sua personalidade.
10
É após os sete anos que a criança já adquiriu uma linguagem completa, articulando e
entoando as palavras e compreendendo contextos de maneira adequada. Contudo, acredita-se
que a aquisição da linguagem só se estabiliza na adolescência, sendo a fase em que os
indivíduos são capazes de dominar os aspectos gramaticais mais complexos.
É importante frisar que as etapas do desenvolvimento de acordo com a faixa etária
podem variar entre as crianças, pois cada uma possui seu próprio tempo e aprende conforme
suas capacidades. A linguagem pode ser estimulada por meio de jogos e brincadeiras,
atividades extremamente relevantes para o desenvolvimento e nas quais a criança se mostra
mais colaboradora e aberta à aprendizagem.
4 O PROCESSO DE LEGENDAGEM
Sabe-se que o cinema passou por consideráveis transformações nas duas décadas
seguintes a sua existência e desenvolvendo cada vez mais tecnologicamente. Foi entre 1907 e
1913 que as legendas foram introduzidas para reproduzir os diálogos. Tal recurso propiciava
os espectadores entender o filme, além de reduzir os custos com a exibição, pois era preciso
contratar oradores, os quais transmitiam as mensagens do filme para o público.
As legendas eram produzidas quadro por quadro, assemelhando-se a uma cena do
filme, e tinham um fundo preto, já que não havia tecnologia que possibilitasse a impressão de
legendas nas películas. Inicialmente, as legendas eram explicativas, apareciam antes das cenas
e possuíam longas descrições sobre a cena a seguir. Com o passar do tempo, as legendas mais
curtas foram tomando lugar e, ainda mais importante, surgiram as legendas de diálogo em
1910. Inicialmente, elas foram inseridas antes de uma cena que houvesse diálogo e, em 1913,
foram introduzidas simultaneamente às falas dos personagens, sua forma de hoje.
Assim, tendo em vista que as legendas transmitem por escrito o que foi falado, pode-
se considerar que elas transformam a língua falada em língua escrita; isto é, trata-se de um
produto resultante da retextualização. Todavia, o processo que envolve a legendagem é um
pouco mais elaborado e complexo, pois sua composição passa por uma trajetória linguística
até chegar à forma final, conforme segue:
a) o filme é escrito por um roteirista, havendo, portanto, um original; b) o roteiro será
memorizado pelos atores, que terão que repetir por várias vezes as falas nele contido; c) o
legendista recorrerá ao roteiro escrito para elaborar as legendas, utilizando-se de estratégias
lingüísticas ou mesmo a criatividade para tanto.
Ao observarmos os procedimentos, descritos de maneira simplificada, pode-se
constatar que a feitura das legendas não apresenta uma maior complexidade que a
11
específico, de onde serão feitas mais duplicações para, enfim, serem comercializadas. Assim,
a legendagem envolve as quatro etapas descritas.
Sobre a dificuldade e o tempo de duração das legendas na tela, Leonardo Teixeira
(2002) pontua que “o primeiro passo para se entender o processo de tradução para
legendagem reside na observância de que o tempo necessário para a leitura de uma legenda e
bem maior que o tempo usado para a fala que corresponde aquele texto”. Isto é, a palavra de
ordem da tradução para legendagem é a síntese.
De acordo com o próprio autor, a necessidade de adaptação ocorre até pela própria
natureza do texto legendado. Ao contrário dos textos impressos, num filme, não é possível
retroceder a leitura da legenda para a reinterpretar a mensagem. Trata-se, pois, de um tipo de
texto cuja compreensão deve ser imediata e que não deixe dúvidas no espectador. Também é
importante que as legendas não tomem toda a atenção do leitor a fim de que não seja tomado
muito tempo na decodificação da mensagem.
Convencionou-se que a legenda deve permanecer na tela durante o tempo adequado
para a leitura: nem mais, a ponto de tornar-se cansativa e prendendo a atenção sem
necessidade; nem menos, de maneira que o espectador não chegue a acompanhar os diálogos.
Assim, é de fundamental importância que haja sincronia entre a fala e o que está escrito.
As exigências também estendem-se para o tradutor, que deve respeitar as regras
técnicas acima citadas, ter habilidade de síntese sem prejudicar o sentido original e ter bom
conhecimento da língua para não cometer erros gramaticais e ortográficos. No tocante ao
trabalho do legendista, Monika Pecegueiro (2002) afirma ser uma tarefa que exige muita
dedicação e, sobretudo, concisão.
Apesar das conhecidas dificuldades enfrentadas pelo tradutor/legendista, muitas
críticas são feitas sobre o trabalho destes profissionais. É muito comum ouvir-se comentários
acerca de erros de legendagem tanto entre os leigos quanto entre os próprios legendistas. De
acordo com Alvarenga (2000), até mesmo os profissionais podem não ter ideia das armadilhas
e, sobretudo, das perdas linguísticas que ocorrem e que muitas vezes são inevitáveis por
motivos que transpõem o ato tradutório. Leonardo Teixeira (2002) exemplifica as
particularidades de uma legendagem fazendo uma comparação:
Ao se traduzir um livro, por exemplo, trabalha-se com um texto-base escrito que vai
se transformar em um outro texto escrito, podendo haver as elucidativas “notas do
tradutor”. No caso da legenda, o material fonte é basicamente falado, caracterizado
por elipses, hesitações e traços emotivos e gestuais sempre presentes, configurando
intenções paralelas ao que é efetivamente dito. [...] Entende-se que a legenda não é a
tradução só do texto, mas também das imagens, sempre carregadas de muita
informação. Ritmo de fala e pausas retóricas tem de ser levadas em consideração.
13
seleção aleatória, mas sim, baseando-se nos questionamentos das crianças. Serão feitas a
descrição acerca da escolha do tradutor e uma proposta de tradução com chances de ser
melhor compreendida.
1) (05:18) “And if you get people talking long enough, someone will spill the
beans” = “E se os apertar direitinho, um deles acabará entornando o caldo!”
O delegado urso, um pouco mais incisivo que o detetive, um sapo chamado Nick
Flippers, perde um pouco de sua paciência com os suspeitos. No intuito de acabar logo com o
mistério, afirma que uma pressão psicológica seria suficiente para que os indivíduos falem
tudo o que sabem. Na fala da personagem, há a expressão idiomática "spill the beans", que
significa, segundo o dicionário Oxford, "to divulge a secret, especially to do so inadvertently
or maliciously". Isto é, "contar um segredo, especialmente de maneira maliciosa ou
inadvertida".
A escolha do legendista foi a tradução por outra expressão idiomática: "entornar o
caldo", que expressa a mesma intenção do ditado da língua inglesa. Porém, na mesma
situação do caso acima citado, trata-se de um termo específico e que, provavelmente, é
compreendido por apenas uma pequena parcela dos espectadores. Nossa proposta foi a
substituição da expressão idiomática pelo significado (delatar, dedurar, relatar os fatos).
traduzido para "Eu canto ensandecido". Acreditamos que o adjetivo "ensandecido" não foi a
melhor opção, pois além não expressar exatamente o sentimento da personagem, é de difícil
compreensão para as crianças. Literalmente, a expressão poderia ser traduzida para "Estou
cantando com alegria". De fato, a expressão no gerúndio "Estou cantando" ficaria longa na
tela, contrariando o princípio da concisão e objetividade das legendas. Assim, a escolha do
verbo "Canto", na primeira pessoa do singular, foi bastante válida. O vocábulo "ensandecido",
porém, poderia ser facilmente substituído pelo advérbio "alegremente", pois expressa
precisamente o sentimento do bode Japeth, tem o mesmo número de sílabas de "ensandecido"
e, o mais importante, é um vocábulo que provavelmente faz parte do universo linguístico das
crianças.
3) (16:20) “That’s why I made this mountain shack my home” = “Por isso essa
tapera é minha casa”.
Continuando sua cantoria, o bode Japeth conta que, devido à maldição que carrega,
preferiu isolar-se em sua simples moradia, na montanha. Na tradução de sua fala, percebemos
que houve a omissão deste termo, provavelmente porque sua inserção resultaria 37 caracteres,
quando o máximo recomendável para uma leitura confortável são 30. Tal omissão, porém,
não prejudica o sentido da mensagem. A dificuldade trata-se da tradução do termo "shack"
(tapera). Por um lado, a escolha por "tapera" foi feliz no sentido de ter o significado ideal para
o filme: "lugar abandonado, mas que fora outrora habitado", segundo a definição do
dicionário Houaiss. De acordo com o dicionário Oxford, porém, tal vocábulo não consta como
opção, mas sim "barracão", "cabana", "choça" e "choupana". Além de ser, aparentemente,
uma expressão pontual (diz-se ser um termo utilizado especificamente no interior do Pará),
podemos afirmar que, excluindo os casos específicos, tal palavra faz parte da cultura de
grande parte das crianças das outras regiões do país.
TRECHO TRADUÇÃO DA PROPOSTA DE
LEGENDA TRADUÇÃO
"That's why I made this "Por isso essa tapera é "Por isso essa cabana é
mountain shack my minha casa" minha casa"
home"
16
5) (39:13) “I think it’s safe to say that our thespian friend here knows the least
about anything of anyone else in this room” = “Acho que nosso amigo tespiense
aqui é quem sabe menos sobre tudo”.
De acordo com o dicionário Houaiss, tespiense quer dizer "relativo a Téspias, região
da Grécia, ou seu natural ou habitante, téspio." Também em uma pequena observação, diz que
é possível haver uma tradução adaptada do vocábulo em inglês, "thespian", um anglicismo de
origem grega (de Thespis, poeta do séc. VI a. C., conhecido como o pai da tragédia grega) e
refere-se à representação dramática, adquirindo o significado de "ator", provavelmente, no
século XIX. Assim, podemos concluir que o delegado quis apenas dar ao lenhador a alcunha
de ator. Sem dúvida, trata-se de um termo bastante complexo para ser deduzido apenas pelo
contexto. Por se tratar de um vocábulo no mínimo inusitado num filme, especialmente
infantil, restou ao legendista traduzir o termo literalmente e perder a essência da brincadeira
feita pela personagem. Sendo assim, sugerimos a permuta do vocábulo "tespiense",
extremamente pontual e pouco conhecida, pelo contextualizado "ator".
Depois de desligar o telefone com sua neta, a vovó Pucket prepara-se para esquiar. Já
pronta e ao sair de casa, exclama consigo: "Time to shred some powder!". Tal expressão é
uma gíria dos praticantes de esqui e snowboard, que literalmente significa "rasgar o pó". Ou
seja, durante a prática destes esportes, o atleta "espalha" a neve para os lados devido à
velocidade com que desce. Assim, "shred" diz respeito ao fato de descer rapidamente e
"rasgando" o gelo e "powder" seria as partículas de neve espalhadas, o "pó". A tradução para
tal expressão sugerida pelo legendista foi "Hora de esmerilar!", o que aponta para uma
intenção do tradutor em manter-se o mais próximo possível às palavras, e não ao significado
da expressão.
"Esmerilar", significa "polir ou despolir com esmeril (uma pedra usada no polimento
de metais)". A associação foi feita pelo tradutor, provavelmente, diz respeito ao fato de que, o
esmeril é transformado em pó antes de ser utilizado para amolar os metais. Na cena do filme,
porém, a legenda não condiz com a cena e não passa a mensagem correta para o leitor.
18
Sugerimos a tradução para "Hora de botar pra quebrar!" porque o esqui e o snowboard não
fazem parte da realidade cultural brasileira e, consequentemente, a expressão "shred some
power". Também, porque a vovó Pucket vai começar a esquiar (e pretende derrotar os
adversários) e finalmente, porque "botar pra quebrar" encaixa-se perfeitamente no contexto
das cenas seguintes.
Quando todos já sabem quem é o larápio, a vovó questiona o detetive Nick Flippers
sobre o envolvimento de sua neta no caso. Este, muito gentilmente, afirma que o único erro da
Chapeuzinho é "pilotar um bando de colibris sem brevê". Encontramos nesta sentença um
problema que vai além do campo vocabular. Primeiro, no filme, a Chapeuzinho anda de
bicicleta e chega a "voar" na mesma com a ajuda de pássaros (os referidos colibris). Percebe-
se, por meio da tradução, que o legendista quis ser o mais fiel possível ao original, pois ateve-
se à ação de "voar" na bicicleta. Partindo desse princípio, a transposição dos termos foi bem
sucedida; porém, não é muito acessível ao público. Sugerimos a permuta de "colibris" por
"beija-flor", pois acredita-se que as crianças estejam mais familiarizadas com esta
denominação para o pássaro. O outro termo, "brevê", é demasiado específico: diz respeito a
um tipo de título que atesta a capacidade de um indivíduo pilotar aviões. Entende-se que a
ideia é o fato de a garota estar "voando" e este ser o motivo da escolha do vocábulo "brevê".
Poderíamos ter substituído "brevê" por "carteira de motorista", mas não o fizemos por dois
motivos: primeiro, porque a legenda ficaria longa para a leitura (já existe um termo longo:
"beija-flores"). Segundo, e mais relevante, porque sabe-se que crianças não podem dirigir, ou
seja, não tem permissão para tanto. Desta forma, no intuito de facilitar a compreensão da
sentença sem comprometer seu sentido, optamos a modificar a tradução para "Sua neta só é
culpada de pilotar um bando de beija-flores sem permissão".
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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho visou identificar e analisar parte da legenda do filme em questão, cuja
tradução é de difícil compreensão para o público infantil. Tal análise visou a confirmar que,
muitas vezes, a tradução da legenda pode comprometer o entendimento das crianças devido
ao vocabulário rebuscado e pela tradução mal pensada dos termos.
As propostas de tradução das legendas provam que o de legendista busca ser fiel ao
contexto, às falas das personagens e às exigências técnicas da elaboração da legendagem;
porém, pecam por negligenciar o caráter mais importante da comunicação entre o leitor e
leitura da legenda: a compreensão plena da mensagem.
Por ser um produto de entretenimento, o cinema, a escolha criteriosa dos itens
lexicais é de extrema relevância para o pleno entendimento da trama, sem ruídos na
comunicação. Desta forma, nossa proposta é de que o tradutor lance mão de uma linguagem
coloquial, popular e sobretudo, simplificada no intuito de uma melhor apreciação e
aproveitamento pelo público infantil.
7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MORIN, Edgar. A alma do cinema. Rio de Janeiro, Edições Graal, Embrafilmes, 2003.
PECEGUEIRO, Monika. O prazer de fazer legendas para filmes. Jornal da PUC - RIO.
Seção Cultura. Jun. 1998.
PIAGET, Jean. Linguagem e o pensamento da criança. Trad. Manuel Campos. São Paulo,
Martins Fontes, 1986.
RESUMO
O presente trabalho tem como objeto de estudo a capa e a primeira página da estória da edição
#0 do gibi de circulação nacional Turma da Mônica Jovem. O objetivo é analisar de que
forma as personagens femininas estão sendo apresentadas na mídia selecionada e observar as
representações de feminilidade decorrentes. Para realizar a análise, o arcabouço teórico
utilizado compreende: 1) Gramática do Design Visual (KRESS & van LEEUWEN, 1996,
2006), que é uma extensão da Gramática sistêmico-funcional (HALLIDAY &
MATTHIESSEN, 2004) para o estudo de imagens; 2) Análise Critica do Discurso
(FAIRCLOUGH, 1995; 2003), onde a dimensão intertextual é investigada; e 3) estudos em
gênero social (WODAK, 1997; HEBERLE, 2006). A investigação foi realizada partindo-se da
análise das imagens de acordo com o framework proposto pela Gramática do Design Visual
nas três dimensões de significados (representacionais, interativos e composicionais). A partir
dos resultados obtidos na análise visual, uma análise interpretativa dos dados foi conduzida
com o suporte da Análise Critica do Discurso e Estudos em Gênero Social. Os resultados
apontam para a continuidade de uma série de discursos de feminilidade que se fazem
presentes na sociedade.
Palavras-chave:
Multimodalidade. Mídia. Construção de identidade.
ABSTRACT
The present study investigates the cover and the first page of the story presented in issue #0 of
the Brazilian comic book Turma da Mônica Jovem. The objective guiding the research is to
analyze the way female characters are depicted in the selected media and which
representations of femininity emerge. The theoretical background includes: 1) Grammar of
Visual Design (KRESS & van LEEUWEN, 1996, 2006), which is an extrapolation of
Systemic Functional Linguistics (HALLIDAY & MATTHIESSEN, 2004) to the analysis of
images; 2) Critical Discourse Analysis (FAIRCLOUGH, 1995; 2003), in which the
intertextual dimension is investigated; and 3) gender studies (WODAK, 1997; HEBERLE,
2006). The analysis was carried out first with the description of images, following the
framework proposed by the Grammar of Visual Design, in which the three meanings
dimensions were investigated (representational, interactive and compositional). Then, an
interpretive analysis was conducted with the support of Critical Discourse Analysis and
Gender Studies. Results point to the continuity of a series of discourses of femininity that are
present in society.
Keywords:
Multimodality. Media. Identity construction.
1
Bacharel e Licenciada em Letras/Inglês; e-mail: brunabatistaabreu@gmail.com.
2
Doutora em Letras (Inglês e Literatura correspondente); e-mail: heberle@cce.ufsc.br.
2
1 INTRODUCTION
In August 2008, a new series of comic books entitled Turma da Mônica Jovem was
released in Brazil. It was idealized and created by the Brazilian cartoonist Maurício de Souza.
In this comic book, the classical characters of Turma da Mônica, who are seven-year-old
children, are presented as sixteen-year-old adolescents facing experiences related to this age.
These experiences include aspects related to friendship and love, concerns about the future,
events of going shopping and playing sports, among others.
Before being released, the comic book had a #0 edition that was freely distributed,
attached to other issues of Turma da Mônica. The probable aim of this was to advertise the
new comic book in an attractive way to the customary readers and fans of the gang. In this
special issue, the four main characters (Mônica, Magali, Cebola and Cascão) are presented in
a six-page story in which Mônica is writing in her diary, informing the readers about the
changes (and no-changes) that occurred to herself and her friends as they became adolescents.
Considering the role of this issue in presenting the well-known characters in a
different way, the present study analyzes its cover and the first page of the story following the
Grammar of Visual Design (KRESS & van LEEUWEN, 1996, 2006) to investigate the
representation of the two female characters through Critical Discourse Analysis (henceforth
CDA) (FAIRCLOUGH, 1995; 2003) and gender studies (HEBERLE et al, 2006; WODAK,
1997). The data includes these two parts (cover and story) in order to provide a better
panorama of the issue, but the analysis of the story is restricted to the first page for space
constrains.
As any other media, comic books may exert some degree of power over the lives of
readers, which are, in this case, adolescents. Considering that the main character is a girl and,
therefore, events surrounding her are the most emphasized ones, analyzing the comic book
following a gender perspective appears to be a significant task.
In the following section, the Grammar of Visual Design is presented, followed by the
description of the images in the cover and in the first page of the story. Then, CDA and
gender studies are briefly explained with an interpretive analysis. Finally, the main
conclusions derived from the study are presented.
language (HALLIDAY, 1985, 1994; HALLIDAY & MATTHIESSEN, 2004). For SFL,
language is a semiotic system that offers a set of choices that are made according to the
context of situation in which any given language use occurs in social life. Three
interdependent variables influence the choices: Field (the situation going on), Tenor (the
relationship between the interacting participants) and Mode (the channel of communication)
(EGGINS, 2004). One level below, there is the semantics rank, in which the linguistic choices
are mediated by Ideational (what is being expressed), Interpersonal (how the participants
relate) and Textual (how information is organized) meanings. Finally, more specifically, the
concrete linguistic realizations are expressed through grammatical systems, which provide a
very practical support to carry out such investigation.
In the Grammar of Visual Design (GVD), the same theoretical stances of SFL are
kept, and the methodological procedures are very similar, the difference being the semiotic
code analyzed with some changes in nomenclatures and in the procedures used for analysis.
In Figure 1, the theoretical interrelation and the different labels (in bold for SFL, italics for the
GVD, and normal when it may refer to both) are presented so as to explain Halliday‟s theory
and its connection to visual grammar.
For the analysis of images, three types of meaning (Representational, Interactive and
Compositional, as labeled by the grammar of visual design) are investigated. In relation to
representational meanings, the images are analyzed as portraying both narrative (involving
action, reaction, verbal and mental processes) and conceptual (covert/overt taxonomies,
analytical and symbolic processes) representations. In the interactive meanings, images are
classified according to contact (offer or demand), social distance (ranging from close to
distant), attitude (oblique or frontal angle), power (high, equal or low), and realism (the
modality of the image, whether it is more naturalistic or not, depending on color and level of
details). The compositional meanings look at the information value (left/right, top/down,
centre/margin), framing (marked or unmarked) and salience (high or low, depending on the
contrasts regarding color) (UNSWORTH, 2001).
4
Figure 1 - Halliday‟s theory and its connection to Studies in Multimodality, based on Unsworth, 2001.
3
In issue #4, they kiss.
5
actions performed by her are those of moving a leg, raising her right arm to touch him, and,
with the other hand, holding her knapsack containing her teddy rabbit, Sansão. The reaction
process is presented through Mônica‟s look at the reader, and hers and Cebola‟s smiles. The
conceptual representation is unstructured analytical, with Mônica being the possessor of
several attributes, including her clothes, Cebola‟s love, Sansão (which may be also considered
a symbolic attribute), and the comic book, which has her name. Moving to the interactive
meanings, there is a demand, as her eye gaze is directed to the viewer, the social distance is
medium to distant shot, the attitude is mostly an oblique angle, power is equal (eye level
angle), and the realism is low, as there is the absence of contextualization and the images are
drawings (although they are colored, which gives them a more realistic aspect). For Cebola,
the same classification may be considered, the difference being that he is not looking at the
reader (the contact is offer). Finally, in the compositional meanings, Mônica is placed at the
centre of the cover (together with Cebola), and there are no framings, i.e., there are no
specific borderlines separating them from the other characters. In relation to salience, Mônica
and Cebola are strongly salient as they are in the foreground, in a larger size, and the presence
of contrasting colors can be seen (the green in Cebola‟s clothes, the pink in Mônica‟s skirt,
and the blue in her belt and in Sansão).
The character Magali, on the other hand, appears closer to the background as Cascão
is on the background and above. In the representational meanings, both characters are acting
(she is listening to music and roller-skating while he is skateboarding), reacting (smiling and,
in her case, looking at the reader), and involved in unstructured analytical processes, being the
carriers of attributes. The interactive meanings differ in relation to contact: while Magali is
looking directly at the reader, Cascão is not. Besides, she is at the eye level while he is in a
low angle, positioning the reader as in an inferior position). The social distance is represented
with a long shot, and the attitude is an oblique (not frontal) angle for both. The aspect of
realism is also low, for the same reasons mentioned as regards the first image. In relation to
the compositional meanings, there are no specific framings, and Cascão and Magali may be
considered the margins in relation to Mônica and Cebola, because they are not the most
emphasized ones. Finally, the salience they receive is lower, as they are in a smaller size, in a
farther distance, and the contrasts are weaker.
As regards the first page of the story, in the first image the main character, Mônica,
is writing in her diary, as it can be observed in the words Querido diário (Dear Diary). The
diary is written on a laptop. Mônica is relaxing in her bedroom, smiling, laid in her bed,
surrounded by her teddies, a poster, and soft pillows, apparently feeling comfortable. The
6
narrative representations are action, reaction, and mental. The action processes are the
movements in her right leg, her arms bearing her body, and the hands typing. The reaction
processes are in her eyes, looking at the laptop screen, and in her smile, reacting positively.
The mental process occurs through the writing of her diary. Although it is being verbalized in
the written mode, it is something private, the same way as the thoughts are. The reader can
access Mônica‟s diary through her writing. Also related to representational meanings,
conceptual representations can be observed: unstructured analytical, symbolic suggestive, and
covert taxonomy. The unstructured analytical is portrayed by Mônica as the carrier of several
attributes (the bedroom, the bed, the laptop, the clothes, and all the other objects surrounding
her). The symbolic suggestive can be seen by the presence of Sansão, Mônica‟s teddy rabbit
who was always present with her in childhood to defend her from the boys‟ mocking. In this
new edition, when the characters are grown up, the reader can see that Sansão is still present
in Mônica‟s life, a little far (in the shelf), but still there. There is also a drawing of Sansão in
the laptop, which contributes to give this inanimate character new functions in Mônica‟s life.
The covert taxonomy can be seen in the poster, probably representing a band, associating with
teenagers‟ general likes. One of the artists is more emphasized than the other two, which may
signal to his leadership or superior position in the group.
Moving to interactive meanings, the contact is in the form of offer, as the character
does not look directly at the readers. There is far social distance, as a bird‟s eye view, since
Mônica‟s whole body can be seen. However, given the size of the image, it is possible to
observe her bedroom, see her wearing pajamas, read what she writes in her diary, and look at
her possessions, which contributes to a very close and intimate relationship between the
reader and the character. In relation to attitude, the angle is oblique, which may imply some
detachment. It may mean that although the reader had access to all of that intimacy, Mônica
still keeps herself a bit apart, giving attention to what she is doing, not worrying about the
reader (as she is talking to her diary, not to the reader). In relation to power, there is a slightly
high angle, which implies that the reader has some power over the character, i.e, s/he can see
her without her awareness. As regards realism, the story is drawn and in black and white,
which implies little realism. However, the drawings are detailed and the fact that the character
belongs to the readers‟ repertoire of known characters contributes to the continuity of her
imaginary existence in their minds, i.e., it was not necessary to create a new Mônica because
she is already present in their lives.
In relation to compositional meanings, the information value is centre-margin, the
character writing in her diary being in the centre as the main focus of the story. About the
7
framings, these are marked: there are lines limiting the square in which the image is inserted,
and all the objects are separated. As regards salience, it is low, as the white and light grey
colors predominate. The black color is present in the hairs of Mônica and two of the artists in
the poster.
The second image presents the same scene in a different perspective. Therefore, the
representational meanings in relation to the main participant are similar: besides the mental
process, there is a narrative process with action: her legs are moving, her arms are supporting
her body and the hands are typing. The reaction process (Mônica looking at the laptop and
smiling) cannot be considered to be in this image, as it is not shown. The unstructured
analytical representation (Mônica as the carrier of several attributes) is also present in this
image.
In relation to the interactive meanings, major changes are seen. Concerning power,
Mônica is in a slightly low angle, which shifts the power to the character. For attitude, the
angle is very oblique, as she is seen from the back. In terms of social distance, the picture is
still a long shot, and contact takes place as an offer. Therefore, there is a greater distance in
the relationship between the character and the reader. The compositional meanings are kept
the same: centre-margin configuration of the information value and marked frames.
In the third image, the main changes are related to interactive meanings. After the
distance observed in the first and second images, the third puts Mônica very close to the
reader. Although there is a slight oblique angle in relation to attitude, the (almost) close-up
(showing her waist up, very close), and her look at the reader put the character in an explicitly
intimate relation with the reader. Therefore, the reader sees a “panorama” of Mônica in the
three initial images in different perspectives (her front and back, distant, and her face, very
close) so as to be presented to the new character (although she is a known character, she has
grown-up and, therefore, changes have happened to her, and the reader is probably interested
in knowing them). In addition, after having seen her from a distant position, the reader is put
“face to face” with Mônica, who looks at him/her in a very close contact in the third image.
guiding questions proposed by Fairclough (2003, p. 193): “What discourses are drawn upon
in the text, and how are they textured together? […] What are the features that characterize
the discourses which are drawn upon?” The questions are answered as regards the
representation of the two female characters of the group of friends (Mônica, the leader, and
Magali, her best friend), and some comparisons with the male characters (Cebola and
Cascão). Then, the sociocultural practice analysis is carried out in order to look at some
higher-level instances that may have influenced the constructions of femininity in the comic
book. Gender studies will be supporting both the intertextual and sociocultural analysis.
According to Fairclough (2003, p. 133), “discourses are ways of representing the
world which can be identified and differentiated at different levels of abstraction”. When
focusing on the analysis of representation, “we can specify the ways of representing in terms
of a range of linguistic features which can be seen as realizing a discourse.” (ibid, p. 129). In
the case of the text analyzed, the visual elements are the ones that realize a specific discourse
of femininity.
In gender studies, the social constructions of masculinity and femininity in direct
correspondence with the individual‟s sex are questioned (HEBERLE et al, 2006). As pointed
out by Wodak (1997), the discourses that circulate in everyday life present men and women as
different, and prescribe them certain behaviors. Women‟s magazines, for instance
(HEBERLE, 1997; 2004; FIGUEIREDO, 1995), impose a set of ideologies that are
discursively presented, including the way a woman should dress, behave and relate to her
male partner. In the cover analyzed, issues related to femininity and masculinity may be
perceived in the way the characters are constructed.
When looking at the perspective of CDA and gender studies, the discourses being
portrayed in the cover present the female characters in a less active position in relation to the
boys, and more intimate with the reader. As observed in the multimodal analysis, the
character Mônica is the goal being held by Cebola, and Cascão is performing a much more
“radical” action than Magali, who is posing and looking at the reader, seeming to have
stopped roller-skating to do so. Cascão, on the other hand, seems not to mind about it, as he
does not look at the reader and continues to do what he was doing (skateboarding). Therefore,
this discourse is textured, on the one hand, through the predominance of unstructured
analytical processes in the girls, who are showing themselves and their attributes, and, on the
other hand, through the predominance of action processes in the boys, who are mostly acting.
In addition, some of the features that characterize the discourse are the attributes carried by
9
the characters, which differ with respect to their hairstyles, clothes‟ colors, accessories, and
the objects each of them holds.
In the first page of the story, on the other hand, Mônica is presented acting – writing
in the diary. However, such practice is strongly associated to a feminine behavior. Such habit
of writing in a diary, although appearing to be something old-fashioned and traditional, is
carried out on a laptop, which gives it a modern tone. The environment in which she is
inserted, her bedroom, is very private, which establishes a close relationship with the reader.
Mônica is comfortably installed in her bedroom, wearing beautiful pajamas, laid on her bed,
by herself, in an intimate moment. The presence of toys, of an adolescent band poster as well
as the decorated slippers and the soft cushions reinforces the femininity aspect.
Moving to the sociocultural practice sphere (with the support of the imagetic
analysis), Mônica is presented as a white, relatively short, and slim girl. In relation to the
cover, her smile, the accessories and clothes used by her give friendly, sensitive and
“feminine” tones. The hug received from Cebola indicates a heterosexual love relationship.
Although it could mean just friendship, the customary readers are familiarized with the
romantic trajectory of the couple: they love each other, but do not assume their emotion to
themselves, which creates an appealing atmosphere.
Furthermore, the possession of a knapsack with the presence of Sansão resembles the
seven-year-old Mônica who would always go around in his company and used him to beat the
boys when necessary. However, Sansão seems to have been re-semiotized, i.e., he is still
present in Mônica‟s life, but having the functions of being her bag, and signaling to a
childlike behavior in Mônica (another positively constructed characteristic for “canonical”
femininity).
In Magali, some features of femininity are also found through the colors of her
clothes, the format of her accessories (for instance, there is a heart in her belt), the hairstyle,
and the delicate movements of her arms. She is also portrayed as a white slim girl, and the
fact that she is roller-skating and listening to music points to some predilection to art.
Differently from skateboarding, an extreme sport that is generally associated to boys, roller-
skating can be related to skating that involves choreographies. In addition, she is positioned in
a somehow introverted way, closing the legs and moving her body backwards, which relates
to the idea that women are supposed to occupy less space and behave in a restrained way.
In relation to the first page of the story, in which only Mônica is presented writing in
her diary, the same observations concerning Mônica‟s status are kept (white, slim, middle-
class). In this new setting in which she is presented the reader has the opportunity of knowing
10
a little more about her reality, the activities she develops in life, her material conditions and
habits. In this first page of the story, several elements related to femininity are depicted, as
pointed out in the interpretive analysis: the soft cushions, decorated slippers, carpet, laptop
and pajama, teddies, and the poster of an adolescent band.
4 FINAL REMARKS
In this study we presented a multimodal critical discourse analysis of the cover and
the first page of the story in Turma da Mônica Jovem issue #0. The images were analyzed
with the support of the Grammar of Visual Design (KRESS & van LEEUWEN, 1996, 2006),
and Critical Discourse Analysis (FAIRCLOUGH, 1995; 2003) and gender studies
(HEBERLE et al, 2006; WODAK, 1997). The female characters were emphasized in the
analysis so as to unveil the way they are constructed and the representations of femininity
depicted.
The main conclusions derived from the investigation point that the female characters
are portrayed as carrying attributes related to the social construction of femininity, which may
refer to the presence of a gendered discourse. This is observed not only because of the
attributes they carry (clothes, objects, hairstyle), but also in relation to the roles they perform
(posing, being passive, and performing activities related to „feminine habits‟, such as writing
diaries). Furthermore, they are presented as closer to the reader, having more proximity and
an intimate relation by looking and smiling in order to demand “that the viewer enter into
some kind of imaginary relation with him or her […] and social affinity” (KRESS & van
LEEUWEN, 1996, 2006, p. 118) both in the cover and in the first page of the story. In
addition, the fact that the female characters are presented as white, middle-class, urban and
slim girls may have had an exclusive and prescriptive tone for those female readers who do
not fit in those characteristics.
In conclusion, by analyzing these two parts of the issue #0 of Turma da Mônica
Jovem, it was possible to observe that the way the characters are represented is also
determined by their sex in conformity with prescribed gender roles. We hope this very brief
analysis can serve as stimulus for further studies regarding the investigation of other issues of
the same magazine or even other comic books, so as to check whether they would corroborate
with the results presented here.
11
5 REFERENCES
____________ Analysing discourse: Textual analysis for social research. USA and
Canada: Routledge, 2003.
FIGUEIREDO, D. C. The Use and Abuse of Your Sexual Power: Cosmopolitan and the
creation/maintenance of a conservative view of female sexuality. Unpublished Master
Thesis. Florianópolis: UFSC, 1995.
_____. Revistas para mulheres do século XXI: ainda uma prática discursiva ou de renovação
de idéias? Revista Linguagem em (Dis) curso. Volume 4, nº especial. Palhoça: Unisul, 2004.
KRESS, G. & LEEUWEN, T. van. Reading images: a grammar of visual design. London:
Routledge, 1996, 2006.
APPENDIX 1
13
APPENDIX 2
SUMÁRIO GERAL Sumário de Inglês Aba de anexos para salvar artigo
RESUMO
Palavras-chave:
Inglês técnico para Informática. Atividades mediadas pelo computador. MOODLE.
ABSTRACT
The objective of this research was to investigate the reactions of students from a technical
course in Computing to the application of computer-mediated activities in the subject of
Technical English. Thirty-four adult students of the Instituto Federal de Santa Catarina (IF-
SC) were the participants of this study. Data were collected through two online
questionnaires, interviews and postings in the MOODLE virtual learning environment.
The interpretative analysis of data showed that an English course should not be designed
completely based on computer-mediated activities, or be offered in an environment with all
computers with free Internet access. Lessons need to be interspersed with other activities in
the classroom where face-to-face interactions occur with more intensity and where the
Internet is not available to avoid encouraging students to be distracted by other matters that
do not relate to the English classes. With regard to the subject Technical English, this
research found that it does not need to be linked to the teaching of reading strategies and
reading and interpretation of technical texts only. Other skills can be developed, including
the incorporation of computer-mediated activities to the teaching and learning. The
development of comprehension skills and oral and written expression with the use of an
Internet-connected computer can increase the chances of engagement of the learners in the
English classes.
1
Mestre em Letras/Inglês (UFSC) e doutoranda do Programa de Pós-graduação em Letras: Inglês e Literatura
Correspondente (PGI) na mesma instituição; e-mail: gisele.luz@ifsc.edu.br.
2
Keywords:
Technical English for computing. Computer-mediated activities. MOODLE.
1 INTRODUÇÃO
O objetivo geral desta pesquisa foi o de analisar as impressões dos alunos de cursos
técnicos sobre o uso de atividades mediadas por computador nas aulas de Língua Inglesa
(LI) apresentada na grade curricular de um curso Técnico em Informática. Foram registradas
as impressões dos aprendizes e identificado o nível de aceitação deles no que se refere à
utilização de atividades mediadas pelo computador realizadas na unidade curricular assim
como o uso, em geral, do computador conectado à Internet nas aulas de LI. Este artigo está
organizado em quatro seções, sendo elas: (1) revisão da literatura; (2) método; (3) conclusão
e (4) considerações finais.
2 REVISÃO DA LITERATURA
2.1 Aprendizagem de Línguas Assistida pelo Computador ou Computer Assisted
Language Learning (CALL)
“Aprendizagem de Línguas Assistida pelo Computador” é uma área de estudo
conhecida em Inglês por CALL ou “Computer Assisted Language Learning”. Pesquisas neste
campo revelam as vantagens e desvantagens do ensino de línguas via Web (SIQUEIRA,
2006). Pode haver malefícios para o professor e aluno devido as suas limitações acerca do
uso das tecnologias digitais, por exemplo. Entretanto, o ambiente digital propicia para o
aprendiz um estudo mais independente já que ele passa a ter mais controle sobre o seu
aprendizado. O professor também tem seu papel alterado. Ele passa a ser professor-
facilitador dos saberes (ROSSI & ARRIGONI, 2004, em SIQUEIRA, 2006) ou orientador do
processo de aprendizagem (BRAGA, 2004, em SIQUEIRA, 2006).
Já para o estudante que é mais tímido, o ambiente digital também pode beneficiá-lo
por não haver contato físico com o professor (BRAGA, 2004, em SIQUEIRA, 2006). Outra
vantagem do contexto virtual, segundo Braga (em SIQUEIRA, 2006) é que dificuldades
pertinentes às aulas presenciais (conversas paralelas, disposição dos turnos de fala, vontade
de aproximação física) são minimizadas no contexto virtual, de uma maneira geral.
Por outro lado, de acordo com Siqueira (2006), há alunos que têm dificuldades em
entender a aprendizagem que ocorre no ambiente virtual. Alguns alunos tendem a acreditar
que são apenas receptores de conhecimentos e não gerenciadores e colaboradores no processo
ensino-aprendizagem. Segundo Moore (1993, em SIQUEIRA, 2006) “a educação tradicional
3
treina o aluno para ser dependente do sistema escolar, dificultando um papel mais ativo na
aprendizagem”.
O professor de línguas é agraciado pelos recursos e vantagens oferecidos pelo
ambiente virtual. Ele pode disponibilizar para seus alunos em plataformas virtuais de ensino e
aprendizagem, por exemplo, conteúdos em diversas modalidades sejam elas visuais, sonoras
ou verbais. Isto pode se dar através de vídeos, textos, imagens, músicas, diálogos, para
atender diferentes tipos de alunos e estilos de aprendizagem. O ambiente virtual também
facilita a repetição de conteúdos e atividades, quando preciso for e promove uma
aprendizagem ativa e autônoma (SIQUEIRA, 2006). Além disso, o ambiente virtual
possibilita que vários materiais sejam arquivados para futuras consultas sem as restrições do
material impresso, como os gastos com impressões e cópias. Portanto, o contexto digital
proporciona mais alternativas de “escolhas para a estruturação de materiais didáticos digitais,
o que pode promover mudanças quantitativas e qualitativas no ensino mediado pelo
computador” (SIQUEIRA, 2006, p. 19).
Aprender ou adquirir uma língua estrangeira (LE) ou segunda língua (L2) 2, mais
especificamente a LI, é uma das exigências da vida moderna já que é a língua usada
oficialmente na comunicação mundial e para uso do computador e da Internet (ARAÚJO,
2009). A aprendizagem desta língua pode se dar num contexto digital, ou seja, através das
ferramentas e recursos proporcionados por um computador conectado à Internet.
As atividades realizadas por intermédio de um computador com acesso à Internet
podem levar os aprendizes de LI a alcançar seu objetivo principal que é o de se aprender uma
L2, além de provocar o aumento da competência tecnológica, o fortalecimento da consciência
cultural e o desenvolvimento de estratégias de aprendizagem (CHAPELLE, 2011).
O ensino de L2 coloca em destaque um traço influente e peculiar da área que é o uso
do computador e da Internet. O computador oferece oportunidades como o recurso de
reprodução de som e imagem em movimento, que nenhum outro meio possui. Além disso,
percursos para adicionar o computador de forma adequada e bem-sucedida ao ensino de LE
passam em grande parte pela habilitação tecnológica dos professores (PORDEUS, 2004) e
dos aprendizes. Assim sendo, diversas pesquisas têm sido feitas no Brasil e em outros países
para se investigar os benefícios do emprego do computador em sala de aula de LE e as
dificuldades apresentadas pelos aprendizes e seus professores ou instrutores.
2
Os termos segunda língua (L2) ou língua estrangeira (LE) são usados sem distinção ao longo deste artigo.
4
só claros como também significativos para os alunos e seus professores de inglês. Conforme
Canagarajah (2005), tornar o processo de ensino e aprendizagem significativo no contexto
escolar é de suma importância em um mundo cada vez mais „„glocal” (em CELANI, 2008,
minha tradução).
A abordagem para a disciplina de Inglês Instrumental não deve ser ditada pelo livro-
texto, que é o que frequentemente acontece. Ela deve ser ditada pelo contexto social
(CELANI, 2008). Neste cenário, conteúdos, ensino, materiais e metodologias de ensino são
determinados pelos interesses, pelo contexto social e pela bagagem cultural dos estudantes. A
língua não é o objeto de aprendizado, mas o resultado, o produto da interação mútua entre o
aprendiz e o mundo lá fora, que, no caso da LI, é um grande mundo cheio de desafios
exigências e limitações (CELANI, 2008, minha tradução).
Pode-se dizer que as habilidades de produção oral, compreensão oral e produção
escrita, em geral, não são contempladas com frequência nas aulas de Inglês Instrumental
devido ao fato de a carga horária desta disciplina ser muito pequena em cursos técnicos ou
universitários. Em suma, não há muito espaço para se praticar as quatro macro-habilidades
envolvidas na competência em uma L2. Por este motivo, na maioria das vezes, atividades de
leitura e estratégias de leitura ainda são as prioridades nestes cursos.
Devido os avanços tecnológicos e à popularização da Internet, novas e mais
modernas tecnologias digitais vêm sido criadas e, como consequência, cada vez mais os
estudantes fazem uso destas novas ferramentas ou meios para pesquisar assuntos diversos e
ler textos específicos de suas áreas de estudo redigidos na LI. Por este motivo, a atualização
da prática de ensino de Inglês Instrumental se torna mandatória. Esta atualização deve ser
dada de forma a refletir esse fato e aplicar as possibilidades introduzidas pelas novas TICs
(ALMEIDA, 2004).
Da mesma forma que os estudantes, os professores também vêm fazendo uso da
Internet, especialmente, para localizar materiais e recursos de ensino para suas aulas de LE
porque eles estão percebendo o papel social da LI e das novas TICs. A maior necessidade dos
estudantes é a de ter acesso à sociedade da informação e satisfazer as necessidades criadas
pelas novas TICs. Isso significa aprender a ler em LI. Então, ensinar a ler em uma instituição
de ensino parece suficiente para satisfazer as necessidades dos estudantes (CELANI, 2008).
Em suma, devido ao histórico do Inglês Instrumental no Brasil, esta disciplina ainda
é confundida com o ensino de leitura somente. No entanto, baseando-se no que Celani
comenta, vimos que este ensino deve ser contextualizado e deve ter um propósito.
9
Tomemos como exemplo o caso dos alunos participantes desta pesquisa. São alunos
jovens que querem aprender a informática básica e, para tal, devem possuir um conhecimento
básico de LI. Este conhecimento deve ser suficiente para que tenham acesso fácil e rápido aos
materiais escritos em LI na área da informática. Além disso, a LI é a língua oficial da Internet
e muito vocabulário da informática é em LI e não é traduzido para o português. Assim, o
professor da disciplina “Inglês Técnico para Informática” deve fazer uso de materiais para
suas aulas que supram as necessidades dos aprendizes, considerando a sua faixa etária. Outra
necessidade primordial de um curso técnico é o de preparar o aluno para uma profissão, no
caso deste estudo, Técnico em Informática, em dois anos, com uma carga horária de apenas
40 horas de LI.
3 MÉTODO
A metodologia que norteou a execução deste estudo será explanada nesta seção.
Antes, porém, é salutar revisar que este estudo teve como objetivo geral analisar as
impressões dos alunos de cursos técnicos sobre o uso de atividades mediadas por
computador nas aulas de Língua Inglesa apresentada na grade curricular de um curso
Técnico em Informática.
Para este fim, registrou-se as impressões dos aprendizes e identificou-se o nível de
aceitação deles no que se refere às atividades mediadas pelo computador propostas pela
professora e realizadas na disciplina assim como o uso geral do computador com Internet nas
aulas de LI.
3
Estes questionários foram elaborados usando uma das ferramentas do Google (http://www.google.com.br/), o
google docs.
4
Uma wiki é uma espécie de Blog onde várias páginas são criadas e pode haver interatividade e interação com os
estudantes. A mencionada aqui foi criada através do site: http://www.wikispaces.com/.
10
5
Fóruns foram abertos no ambiente virtual de ensino e aprendizagem da disciplina, viabilizado através da
plataforma virtual de ensino e aprendizagem - MOODLE: http://moodle.gaspar.ifsc.edu.br/login/index.php.
6
MOODLE é acrônimo de "Modular Object-Oriented Dynamic Learning Environment" o qual significa: objeto
orientado para aprendizagem em ambiente dinâmico (virtual). Com o acrônimo MOODLE, foi criado o verbo “to
moodle” que significa navegar sem pretensões ao mesmo tempo em que outras tarefas são realizadas. O
MOODLE é um software livre usado como suporte e complemento à aprendizagem, executado em um ambiente
virtual. O site oficial do MOODLE é: http://moodle.org/ (Disponível em http://moodle.com.br/site/exemplo-02/,
acesso em 26 de set. 2011).
11
3.3 Materiais
Na disciplina de Inglês Técnico a professora utilizou, especialmente: (1) uma
apostila organizada por ela mesma na sua versão impressa e digital com diversos links para
sites com atividades em LI, que podem ser feitas online ou sites para consultas; (2) tarefas na
wikipage criada pela professora; (3) tarefas no MOODLE e (4) exercícios complementares
impressos. Estes materiais foram preparados e selecionados especificamente para esta turma,
levando-se em consideração, principalmente os objetivos principais da disciplina Inglês
Técnico7.
7
(1) Ler e interpretar textos da área da informática em Língua Inglesa; (2) construir o saber, acessando as
diferentes tecnologias para a construção da cidadania e a inserção no mundo do trabalho; (3) valer-se da Língua
Inglesa como instrumento de acesso a informações (Ementa da disciplina Inglês Técnico do curso Técnico de
Informática do IF-SC/Campus Gaspar, 2010).
12
Desenvolver o LD dos estudantes para que eles funcionem de modo integral na LE,
foi uma meta a ser alcançada também, já o que é uma das tarefas do professor de línguas do
século XXI segundo Warschauer (1999, em ALMEIDA, 2004). Procurou-se fazer isso através
da integração do computador e da Internet à aprendizagem de LE por meio: (1) do uso de
ferramentas de interação e comunicação assíncronas e síncronas (e-mails e e-chats,
respectivamente); (2) de pesquisas online; (3) de ferramentas de busca; (4) do uso da
wikipage; (5) de vídeos do You Tube e (6) de tarefas no MOODLE, favorecendo novos
eventos de letramento que demandam novas práticas e aptidões de leitura e escrita (ECO,
1996, em SOARES, 2002).
Eu gosto das tarefas no MOODLE, mas pra mim é indiferente se for no papel ou no
MOODLE mesmo, eu aprendo das duas maneiras, não tenho preferência por
nenhuma atividade, o que conta é o aprendizado.
...não possuo a apostila impressa, portanto gosto muito dos trabalhos que são
postados no MOODLE, pois posso realizar, praticar e revisar, o material aonde eu
estiver. Outro ponto importante seria mencionar que todo material colocado no
computador não ensina somente o Inglês mas também aprimora outras áreas
(digitação, navegação e busca na Internet por exemplo, que podemos ligar a
Informática Básica).
...as atividades ... se forem postadas no MOODLE seria bem melhor, pois da para
fazer quando a gente quer, ou até mesmo estudar antes para a prova.
Através das postagens dos alunos aqui apresentadas, pode-se concluir que esses
aprendizes já são letrados digitalmente e têm conhecimento básico da LI, já que conseguem
realizar as tarefas no MOODLE sem grandes dificuldades.
Outro ponto que é interessante colocar, é que percebe-se que alguns alunos
compartilham a responsabilidade pela sua própria educação que acontece para além das
paredes da sala de aula, como pode ser comprovado nos comentários anteriores destacados
em negrito.
Perguntou-se aos estudantes em outro fórum a opinião deles sobre o uso do
computador e Internet nas aulas de LI. Cerca de 62% dos participantes deste estudo o
avaliaram de maneira positiva. Eles usaram adjetivos e expressões como:
bom; fácil e nos deixa mais à vontade; importante; ótimo; interessante; bastante
válido; mais prático e rápido; bacana pois eu me sinto mais a vontade, ajuda
muito; é essencial e eficaz.
Vinte e oito postagens foram publicadas neste fórum. Trinta e cinco por cento delas
indicam que utilizar o computador e a Internet nas aulas de LI é bom devido ao fato de os
alunos poderem, principalmente, sanar suas dúvidas acerca do vocabulário novo da LI através
dos dicionários online. Destacamos quatro colocações para ilustrar esta afirmação:
se nós alunos tivermos alguma dúvida em tal palavra a gente pode pesquisar nos
dicionários on-lines;
é bom por vantagens te poder ter dicionário na hora [...] tudo na hora....
Por volta de 10% dos alunos avaliou positiva e negativamente o uso do computador
e Internet nas aulas de LI, apresentando algumas desvantagens que o acesso livre, simultâneo
e fácil à Internet pode trazer ao rendimento escolar:
14
Eu gosto, mais sei q nao é bom. pq por um lado tem muitas pessoas que não
prestao a atençao na aula e ficam em outras coisa. Aí na hora da prova não sabe
nada. ......
Estes alunos criticam este acesso fácil porque os incentiva a fazer outras coisas8
levando-os à distração e à falta de atenção durante as aulas. Há mais chances de eles se
distraírem, no laboratório, apesar de a professora não permitir que eles entrem em sites que
não dizem respeito à disciplina. As respostas das entrevistas também indicam estas mesmas
colocações. Um aluno, ao ser entrevistado, ainda acrescenta:
Acho melhor as atividades no meio virtual porque consigo fazê-las muito mais
rapidamente e eficientemente e também posso tirar dúvidas delas ao mesmo tempo.
Ainda houve mais comentários feitos por alguns estudantes que parecem realçar o
valor, relevância e importância das aulas de Inglês Técnico para Informática no laboratório
de informática. Relembrando, Celani (2008) diz que aprender Inglês Instrumental quer dizer
aprender para um propósito e aprender dentro de uma abordagem que faça com que as razões
para se aprender sejam não só claras como também significativas para os aprendizes.
Acreditamos que as colocações a seguir ilustram bem a definição de LI para fins específicos:
Estamos lidando com a língua com o que estaremos lidando futuramente, ou seja, o
computador;
Tudo o que é feito através do computador é mais produtivo visto que é um curso de
informática.
8
Como exemplos: jogar games, bater papo com os colegas através da ferramenta chat do MOODLE, ou visitar
sites que não dizem respeito ao assunto das aulas, como a professora deles observa frequentemente.
15
capacitar os alunos a ver razões para aprender e quebrar a velha tradição de memorização e
repetição do conhecimento transmitido pelo professor (CELANI, 2008), como já dito
anteriormente. Através dos comentários dos estudantes, acreditamos que estas características
se fazem presentes nas aulas de Inglês Técnico tratadas aqui.
Os alunos demonstram que eles se sentem à vontade e livres dentro do laboratório:
nos deixa mais livre para tirar algumas dúvidas em relação à aula.
A sensação de conforto facilita e motiva o aprendizado, o que, por sua vez, faz com
que os alunos se engajem mais nas atividades propostas. No entanto, ao mesmo tempo,
também há alunos que preferem o método tradicional de ensino/aprendizagem:
Como já citado anteriormente, Siqueira (2006) salienta que alguns alunos podem ter
dificuldades em compreender a aprendizagem que ocorre no contexto digital, porque tendem a
acreditar que são somente receptores de conhecimentos, como na educação tradicional e não
administradores do processo de ensino e aprendizagem. A educação tradicional, conforme
Moore (1993, em SIQUEIRA, 2006), habilita o aprendiz a ser dependente do sistema
educacional, o que dificulta um desempenho mais ativo no seu próprio processo de
aprendizagem.
O novo ambiente de aprendizagem, neste caso, para quem está acostumado a ter
aulas em salas de aula ditas tradicionais, deve causar um estranhamento. É imprescindível que
haja uma modificação de paradigma por parte do aluno, quando ele migra para a educação
online. Possivelmente, o aluno acostumado às aulas tradicionais tenha, a princípio, dificuldade
para adaptar-se ao novo ambiente (ALMEIDA, 2004).
Também há alunos que pensam que deve haver um revezamento entre os dois
ambientes:
Prefiro as aulas na sala de aula mesmo, pois há maior interação e atenção dos
alunos, porém não desvalorizando as aulas no laboratório...
16
Então acho que deveríamos revesar, para não haver muita monotonicidade e assim
gerar desatenção dos alunos.
9
A professora deste grupo observou que as fontes mais utilizadas pelos participantes foi o tradutor do Google:
http://translate.google.com.br/ e o dicionário online Michaelis -
http://michaelis.uol.com.br/moderno/ingles/index.php. Todavia, dicionários especializados em termos técnicos
da área da Informática também foram sugeridos pela professora através da sua wikipage -
17
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pretendeu-se trazer contribuições para a área de Ensino e Aprendizagem de LEs com
esta pesquisa. Talvez, a mais importante delas seja a de trazer alguma luz para professores que
veem laboratórios de Informática serem implantados em suas escolas, ou novos e mais
modernos computadores com Internet chegando nos seus ambientes de ensino e
aprendizagem. Aos professores que têm dúvidas de como utilizar as ferramentas do
computador conectado à Internet, estudos como este podem orientá-los no sentido de fazer
com que eles saibam que não estão sozinhos e que devem experimentar os novos recursos sem
medo. Além disso, é importante que saibam que devem orientar os seus estudantes a se
concentrar nas atividades propostas pela professora ao invés de se distraírem com outras
atividades que o acesso livre à Internet proporciona. Para tanto, atividades bem selecionadas e
atrativas, envolvendo a participação e colaboração dos estudantes, garantem o engajamento de
mais alunos nas aulas de LI.
Finalmente, este estudo apresenta resultados de uma pesquisa feita numa comunidade
bem específica situada numa pequena cidade do interior de SC em um ambiente intacto e
natural. As aulas e conteúdos não foram alterados em função desta pesquisa. Portanto, os
resultados aqui apresentados não são fruto de um experimento, mas das observações feitas
pelos alunos e pela professora em um ambiente natural de aprendizagem. Devido a estas
características, esta pesquisa também pode contribuir para pesquisadores da área de CALL
visto que a utilização de novas tecnologias digitais na educação tem incentivado-os a observar
e investigar as mudanças que estão ocorrendo no processo de ensinar e aprender analisando as
práticas de uso da linguagem e de se ensinar com novas tecnologias (ARAÚJO, 2009, p. 442).
Por último, devido a tantas transformações na forma de se ensinar e aprender num
mundo cada vez mais digital ou virtual, é necessário que haja uma revisão da educação em
geral. Revisão esta, segundo Kellner (2004, p. 10, em LOTHERINGTON & JENSON, 2011,
p. 241), que seja feita criticamente olhando o passado e o presente e imaginando um futuro
diferente ao mesmo tempo.
http://dictionary.reference.com/, http://quark.fe.up.pt/cgi-bin/orca/glossario,
http://www.techterms.com/,http://www.clubedohardware.com.br/dicionario/all,
http://www.dicweb.com/index.htm.
18
5 CONCLUSÃO
É importante recordar que este estudo teve como objetivo investigar as impressões
de estudantes de LI com relação à utilização do computador conectado à Internet para
realizarem atividades propostas pela professora.
Para os participantes deste estudo, tanto a sala de aula tradicional, quanto o
laboratório de Informática são ambientes propícios para o ensino e aprendizagem de LI se as
atividades aplicadas tradicionalmente no papel ou no computador forem significativas, com
propósitos específicos e se houver interação.
Esta pesquisa revelou que um curso de LI não deve ser planejado inteiramente com
base em atividades mediadas pelo computador, ou seja, não deve ser oferecido todo em um
ambiente com computadores individuais para cada aluno com acesso livre à Internet. O que
se pode deduzir, através das respostas dos participantes deste estudo, é que as atividades
mediadas por computador possuem benefícios e são muito bem aceitas pelos estudantes, mas
elas devem ser intercaladas com outras atividades mais tradicionais que promovam também
a interação dos estudantes entre eles.
No que diz respeito à disciplina Inglês Técnico, constatou-se que não precisa estar
atrelada ao ensino da leitura e estratégias de leitura somente. O curso de Inglês Técnico pode
ser desenhado de uma forma mais moderna em que outras habilidades que não somente a da
compreensão leitora sejam desenvolvidas. As ferramentas da Web e do computador, por
exemplo, facilitam este investimento porque vídeos em LI podem ser assistidos para se
desenvolver a compreensão oral de assuntos específicos da área dos estudantes.
A incorporação de atividades mediadas pelo computador ao processo de ensino de LI
para fins específicos favorece o desenvolvimento das habilidades principalmente da escuta,
leitura e escrita, aumentando as chances de interação, colaboração, motivação e engajamento
além de levar o ensino de línguas para fins específicos para além dos limites de materiais
impressos, como o livro-texto. Esta reconceptualização do ensino de LI para fins específicos
vem ao encontro do que Celani (2008) denomina como sendo Inglês Instrumental atualmente:
o ensino para além da Língua Inglesa.
6 REFERÊNCIAS
CELANI M. A. A When myth and reality meet: Reflections on ESP in Brazil. English for
Specific Purposes. v. 27, p. 412–23. 2008.
DEMO, P. Alfabetizações: desafios da nova mídia. Ensaio: ', v. 15, n. 57, p. 543-64, out/dez.
2007.
ABSTRACT
Homoerotic male magazines are complex semiotic systems composed by different genres that
convey subjectivity „models‟ or masculinities. Among the genres presented in magazines, the
magazine front cover is relevant for attracting readers and also, at the same time, anticipating
the magazine‟s content (MCLOUGHIN, 2000). The objective of this paper is to present a
preliminary analysis of the multimodal discourse of homoerotic male magazines‟ front covers
in order to identify discourses concerning body and health conveyed in these magazines. One
front cover from Junior magazine will be analyzed as a metafunctional construct in the light
of the theoretical frameworks of Systemic Functional Linguistics (HALLIDAY, 1989) and
Social Semiotics (HODGE; KRESS, 1988). Next, I will attempt to interpret results in terms of
magazines‟ contexts of publication as a way to reveal forms of knowledge and belief and
identities and social relationships (FAIRCLOUGH, 1995) constituted in/by multimodal
discourse. A first look at the selected front covers seems to indicate that the model depicted in
the magazine cover is the embodiment of a series of attributes/meanings realized by verbal
language. These attributes are mainly associated with beauty, youth and search for (sexual)
pleasure. In addition, there seems to be an attempt to naturalize such values since the verbal
language emulates a conversational style associated to male gay communities.
Keywords:
Multimodality. Critical Discourse Analysis. Front cover. Junior magazine.
RESUMO
1
This paper is a result of the theoretical and analytical discussions carried out in two courses which I
participated during the second term of 2011. The first course, Gender in Language and Literature Studies, was
lectured by Prof. Susana Bornéo Funck and Prof. Débora de Carvalho Figueiredo. The second one, Discourse
Analysis, was lectured by Prof. Viviane Maria Heberle. I am very thankful to them for their valuable reading
suggestions and support given along the courses.
2
PhD candidate at the Graduate Program in English (Linguistics) under the supervision of Prof. Débora de
Carvalho Figueiredo. Member of the Reading and Writing Teaching Research Lab (LABLER) at Universidade
Federal de Santa Maria-RS and the Nucleus of Discourse Practices (NUPDISCURSO) at Universidade Federal
de Santa Catarina-SC. Grantee of the Brazilian National Council of Development and Research (CNPq) –
process no 143262/2011-4; email: fabiosantiagonasc@gmail.com.
2
Palavras-chave:
Multimodalidade. Análise Crítica do Discurso. Capa. Revista Junior.
1 INTRODUCTION
Since the publication of gay male magazines in the 1980s3, images and
representations of gay males have been widely spread throughout mainstream society. There
is no doubt that such publications have contributed to the important struggle of gay activist
groups for achieving more acceptance and equality within society. Male gay-oriented
magazines are part of the media and „give a voice‟ to these groups, allowing them to
communicate their ideas, to express their opinions and even to claim for social changes in
controversial gay-related issues.
Despite the social significance of gay magazines as sites of information and
visibility for gay communities, representations of gay males conveyed by the media seem to
become increasingly repetitive or even stereotyped. In general, as Lima (2001) suggests, in
his analysis of the extinct Brazilian gay magazine Sui Generis, the „standard‟ image is that of
a well-fit, muscular, stylish, high earning, sexy „macho‟ that both represents a particular way
of being but, at the same, may be part of a hegemonic model of masculinity for male
homosexuals.
Other studies have also pointed to the lack of „diversity‟ in media representations of
homosexuals in different genres (MOITA-LOPES, 2006; COLLING, 2007; ESHREF, 2009;
PEREIRA, 2006; KUHAR, 2006) however, few of these studies have adopted a text oriented
perspective on discourse analysis (FAIRCLOUGH, 1992), especially those studies which
have investigated Brazilian male gay-oriented publications.
In order to carry out a preliminary critical discourse analysis of male homoerotic
magazines4, this paper aims to analyze the multimodal discourse of one magazine front cover.
3 Gay Times, an entertainment mainstream gay magazine, was first published in The United Kingdom in 1984
and can be considered the first one of this genre. However, other gay magazines, more restricted in circulation
and with a different focus on political issues were published earlier, such as Panbladet, a Danish gay magazine
which had its first edition in 1954 and is part of the National Association of Lesbians, Gays, Bisexuals and
Transgenders (LGBT) of Denmark, founded in 1948. http://en.wikipedia.org/wiki/LGBT_Danmark
4
Research proposal Muscles that matter: body and identity construction in male gay magazines submitted to the
Graduate Program in English (Linguistics) at Universidade Federal de Santa Catarina, as a preliminary version
of my future PhD project.
3
Considering that magazines are complex semiotic systems (HEBERLE, 2004) composed by
different texts instantiating different genres (news, feature articles, reader‟s letter, etc.), the
front cover functions as an „advertisement‟ of the magazine and previews its content in an
attempt to persuade readers to buy one magazine rather than another (MCLOUGHIN, 2000, p.
5).
The present chapter consists of five sections besides the introduction. In the next
section (2), I will discuss different concepts (gender, body, sexuality) in order to delimitate
the theoretical scope which grounds my interpretation of preliminary results from the
multimodal analysis. Section 3 presents the theoretical framework adopted for the
linguistic/semiotic analysis of magazine‟s front covers. Section 4 describes some
methodological aspects (analytical categories and criteria for text selection) of the study.
Section 5 presents the multimodal discourse analysis of male gay magazine‟s front covers. In
the last section (6), some relevant aspects of the study will be addressed and future research
directions will be pointed out.
5
My emphasis.
4
In other words, the categories of sex and gender function in very similar ways since
both are unstable and are continually (re)constructed through social interactions. It is by
means of cultural processes that people define what is (or what is not) natural in terms of their
sexualities and intimate relationships. Of course, the social construction of gender and
sexuality has implications for the body:
The body posited as prior to the sign, is always posited or signified as prior. This
signification produces as an effect of its own procedure the very body that it
nevertheless and simultaneously claims to discover as that which precedes its own
action. If the body signified as prior to signification is an effect of signification, then
the mimetic or representational status of language, which claims that signs follow
bodies as their necessary mirrors, is not mimetic at all. On the contrary, it is
productive, constitutive, one might even argue performative, inasmuch as the
signifying act delimits and contours the body that it then claims to find prior to any
and all signification. (BUTLER, 1993, p. 30)
In this sense, bodies have come to existence and are shaped, delineated and
controlled through discursive means which are inscribed into a heteronormative order. The
body, thus, is a site of struggle and also the materialization of discourses (legal, medical,
juridical, etc.) that legitimate certain possibilities of owing certain bodies and experiencing
certain forms of sexuality6.
If bodies are (partly) constructed and maintained through discourse, the ideal images
of bodies in the male homoerotic magazine‟s front cover (and also those which are part of the
magazine inside content) should be investigated as „commercialized‟ symbolic goods
produced within the discursive machinery of a specific context of publication in order to
legitimate certain lifestyles in detriment of others. Language (as discourse), thus, is a social
practice that shapes knowledge systems and beliefs and identities and social relationships
(FAIRCLOUGH, 1995), which, in their turn, regulate social interactions, as will be discussed
in the next section.
6
The main title of the article carries this ambiguous sense of the word „matter‟: it refers both to the acts of
reiteration through discursive practices which „matters‟ bodies and, at the same time, the bodies that „matter‟ in
contemporary society, in other words, the bodies who are successfully inscribed into a heteronormative order and
therefore become hegemonic.
5
(FAIRCLOUGH, 1992, p. 71). The production and consumption of texts involve the
exploration of discursive conventions associated to an order of discourse and the
interpretation of texts based on background knowledge shared by a given social group.
If the discursive practice involves the selection of semiotic choices for
expressing meanings, at a broader level, the social practice, which is mediated by texts,
constitutes a condition for the realization of the discursive practice and, at the same time, a
result from this practice. For example, magazine producers make choices in terms of language
style, compositional and visual designs, font colors, etc. in order to convey representations
about aspects of the world (ways of being) and social relationships (ways of interacting), but
these choices are not unlimited or free for all, they are constrained by the very nature of the
social practice (in terms of values and beliefs shared by the community of magazine
producers).
In practical terms, Fairclough (1989, p. 2) assumes that ACD has two
interconnected objectives: (1) to point out the significant role of language in the production,
maintenance and change of unequal power relationships in society and (2) to make people
aware of this constitutive role of language, as way to promote social emancipation. For these
reasons, magazine readers should be empowered with linguistic/semiotic skills (in terms of a
multiliteracy7) in order to adopt a submissive reading role (by accepting as natural and
common-sense the representations conveyed in the magazines) or an active one (by critically
evaluating those representations) (WALLACE, 2003, p. 3).
4 METODOLOGY
The present study focuses on the investigation of one male gay-oriented Brazilian
publication8, Junior magazine. The publication was selected according to the following
criteria:
Highest circulation number
Monthly publication
Print media
Objective – entertainment
Publication period (2010-2012)
7
See COPE, B; KALANTZIS, M. (Eds.). Multiliteracies: literacy learning and the design of social futures.
London: Routledge, 2000.
8 Other magazines to be included in the research project are Gay Times (U.K.) and Out (U.S.).
7
One magazine cover published on September, 2011 was selected for the following
analysis:
The selected cover was analyzed in terms of the choices of meaning in grammar
described both in Halliday‟s Systemic Functional Grammar (1994, 2004) and Kress and van
Leeuwen‟s Visual Grammar (1996, 2004). These choices are organized in terms of three
dimensions of meaning (HALLIDAY, 1989) that constitute both verbal language and images:
9
Availabe at http://mixbrasil.uol.com.br/institucional/quem-somos. Retrieved on October, 20th, 2011.
10
Idem.
11
Idem.
9
front cover) and does not present quantitative data, not allowing making generalizations about
the socio-discursive practices presented in the magazine.
12
Available at http://dictionary.cambridge.org/dictionary/british/junior_1?q=junior. Retrieved on November, 1st,
2011.
10
Figure 114
Figure 3
13
One crazy night. (All Portuguese-English translations in this chapter are under my responsibility).
14
The reason for identifying some clauses as „Figure‟ in the legend (instead of Chart) is due to the use of this
term in Systemic Functional Grammar (HALLIDAY, 2004, p. 169-170) to define a clause experientially,
consisting of „a process [which unfolds through time], participants involved in it and any attendant
circumstances‟.
15
Little cold in Ushuaia or hot action in Recife?
16
Dossier: Men in uniform.
17
Gay reporters penetrate into HT swing houses.
18
I have a hard on for a beautiful body, inhabited by a perverse soul.
11
Figure 4
Figure 5
Figure 4 presents an Imperative Mood type sentence in which the reader is strongly
demanded to „lose‟ some weight and get in shape in a very pejorative way („paunch‟). Figure
5 also keeps the same tone in the message with the chosen material process („pra dar jeito‟ –
to fix) used for pointing out nine possibilities of skin treatment.
The semiotic choices used for constructing ideational meanings in the magazine
cover suggest that sexuality, body design, youth and beauty are prerogatives of a gay
„narrative of self-identity‟. The body is represented as a „source of pleasure‟ that should be
„designed‟ and „fixed‟ in order to meet some standard beauty criteria conveyed by the
19
10 beautiful models.
20
Pick-up trucks‟ gods.
21
Lose your paunch without any effort or surgery.
22
9 products to fix your skin.
12
magazine. Therefore readers are supposed to inscribe themselves into „regimes‟ or routines
which may include skin treatment, series of exercises at the gym, health eating habits and so
on (GIDDENS, 1991, p. 61-62). Shaping the body, thus, seems to be an important aspect for
the maintenance of hegemonic masculinities and may improve the performance of an
individual in social interactions (CASTRO, 2003, p. 26).
LEEUWEN, 2004, p. 136). In the case of gay magazines, a possible message conveyed by
this choice is „What you see here is something that we both want‟.
On the other hand, the height of an angle, in a vertical axis, also expresses subjective
attitudes in terms of the kind of power relationship established between represented
participants and viewers (KRESS; VAN LEEUWEN, 2004, p. 140). In Image 1, the model
and the viewer are positioned at an eye-level vertical angle as a way of expressing relation of
equality, in other words, no power difference between them.
Another aspect in the magazine cover that is important to be considered is how the
image is designed in order to convey a model of reality in terms of modality. Modality is a
resource offered by the linguistic system to signal the degree of truth or credibility we ascribe
to our statements about the world (KRESS; VAN LEEUWEN, 2004, p. 155). In visuals,
modality is expressed in scales of intensity (modality markers) of color, brightness, sharpness,
size, depth, contextualization, representation and/or illumination, which varies according to
the viewer‟s coding orientation.
A coding orientation is a set of criteria shared by a social group for defining its own
„realism‟ (KRESS; VAN LEEUWEN, 2004, p. 158). For instance, Image 1 presents a wide
range of color differentiation, it is quite contextualized (the model is in the corner of a room,
next to a door) and illumination seems natural (since it is possible to find such kind of
illumination in disco environments). This set of semiotic choices characterize Image 1 as
presenting a very high (or maybe the highest) level of modality, according to a photorealistic
coding orientation usually used as standard in print media. In contrast, lower levels of color
differentiation and lack of contextualization and illumination may signal to the viewer that the
visual representation is something improbable or fantastic.
The overall high level of modality expressed by the semiotic choices in Image 1 also
seems to be emphasized by some choices in verbal language. Figures 2 and 3 are instances of
factual information for they present categorical modality (FAIRCLOUGH, 2003, p. 159), in
other words, they are absolute statements about the world. Using categorical modalities in
magazines headlines and titles can be interpreted as a strategy for producing an effect of
dramatization in order to catch the viewer‟s attention (CHARAUDEAU, 2009, p. 91).
Regarding mood choices in language, the magazine cover also presents a clause in
the imperative mood (as already pointed in the previous section), representing the
authoritative voice of the media which demands an attitude from the reader („lose the
paunch‟) and another imperative clause which performs a different function:
14
The imperative clause in Example 6 does not actually demand an action (to salute)
from the reader, but consists of an informal way of introducing the topic of discussion („men
in uniform‟) to readers by making reference to a traditional practice in the army. In this
clause, two interesting features are the use of the female gender linguistic mark („todas‟24) to
refer to readers (who are predominantly male) and the disagreement between the elliptical
subject (elas) and the verb form which follows it („bate‟)25. Referring to readers using a
female pronoun can be interpreted as a strategy adopted by the journalist to simulate casual
conversations among some male gays who align their identities with the female gender,
inscribing themselves into a heterosexual matrix.
Besides clauses in the imperative mood, there are also some clauses in the
interrogative mood in the magazine cover:
Figure 4 and Example 7 both present clauses in the interrogative mood, but
performing different functions. The former is used to demand information from the reader
who is able to decide which location he prefers to travel to. On the other hand, the latter is not
actually a way of demanding information from the reader, but a rhetorical question which
aims to encourage the reader to wonder if straight males at swing clubs may engage into
homosexual sexual practices. Obviously the magazine provides an answer to the reader.
The overall interpersonal choices in both verbal and visual languages in this specific
magazine cover from Junior suggest the conversationalization (FAIRCLOUGH, 1995, p. 9-
10) of the public media discourse. In other words, popular speech or ordinary language
colonizes into the language of the media as a discursive strategy to „naturalize the terms in
which reality is represented‟ (Fowler, 1991, p. 57 cited by FAIRCLOUGH, 1995, p. 13). Not
only the model in the magazine cover is depicted as „real‟ and „involved‟ with readers, but
linguistic choices also enact a close and „natural‟ relationship between the journalist and the
23
Everybody salute!
24
In Brazilian Portuguese language, the indefinite pronoun everybody is gendered (todas - female ou todos -
male), in contrast to the English language in which it is neutral.
25
According to the prestige linguistic norm in Brazil, a verb must agree in number and person with its subject,
therefore the subject elas (3rd person plural) requires the verb form batem instead of bate (which agrees with the
3rd person singular pronoun ele/ela).
26
Do they accept?
15
magazine reader. The former seems to take the position of someone who gives advices in an
informal register (lose your paunch, 9 products to fix your skin) to a male friend and
participates into his daily routine.
6 CONCLUSION
The present paper constituted a first attempt to carry out a multimodal critical
discourse analysis of male homoerotic magazines. In order to make a first step towards the
attainment of this objective, one front cover from Junior magazine was analyzed in terms of
how both verbal and visual languages construe representations and social relationships and
how both modes of language are integrated to compose a meaningful message.
Although the results described throughout the paper are preliminary and do not
provide enough ground for making broad generalizations, the analysis served to shed light on
27
The analysis of theme-rheme position in the verbal language presented in the selected cover is not relevant
since most part of the headlines does not constitute into full clauses, but only into noun phrases.
16
the validity of some analytical categories (e.g. the possibility of a center-margin visual pattern
in Junior magazine covers) and their potential interpretative value (e.g. the model depicted as
the embodiment of a hegemonic lifestyle or masculinity which does not „widen the concept of
identity‟ but narrows it and excludes other subjectivities). In addition, the analysis was useful
for making some initial hypothesis concerning the social practices constituted in the magazine
discourse and for pointing out some research directions for further detailed analyses.
Further steps in the research may include: collection of a larger corpus composed by
magazines produced in other countries (U.S. and U.K.), analysis of other genres besides the
magazine front cover (such as letters to the editor, features and advertisements), comparison
of lexico-grammatical features across different genres and magazines and analysis of semiotic
choices in the light of magazines‟ contexts of production, distribution and consumption.
To sum up, the further steps pointed above may provide answers to the following
research questions which guide the broader investigation on discourses of gender, body,
sexuality which the present work is part of:
7 REFERENCES
ARNHEIM, R. The power of the center: a study of composition in the Visual Arts.
Berkeley, CA: University of California Press, 1982.
BUTLER, J. Bodies that Matter: on the discursive limits of sex. New York: Routledge,
1993.
BUTLER, J. Gender Trouble: feminism and the subversion of identity. New York:
Routledge, 1990.
ESHREF, B. B. The white hyper-sexualized gay male: a lack of diversity in gay male
magazines. Unpublished graduate thesis. Vancouver: The University of British Columbia,
2009.
GIDDENS, A. Modernity and self-identity - self and society in the late modern age.
Cambridge, Polity Press, 1991.
HEBERLE, V. M. Revistas femininas para mulheres no século 21: ainda uma prática
discursiva de consolidação ou de renovação de idéias. Linguagem em (Dis)curso, v. 4, n. esp,
pp. 85-112, 2004.
JAWORSKI, A.; COUPLAND, N. (Eds.). The discourse reader. 2. ed. London/New York:
Routledge, 2000.
MOITA-LOPES, L. P. Falta homem até pra homem: In: HEBERLE, V. M.; OSTERMANN,
A. C.; FIGUEIREDO, D. de C. Linguagem e gênero: no trabalho, na mídia e em outros
contextos. Florianópolis: Editora da UFSC, 2006. pp. 131-157.
Palavras-chave:
Representação histórica. Identidade nacional. Sherlock Holmes.
ABSTRACT
This essay investigates the representation of history and national identity in Jô Soares‘ O
Xangô de Baker Street (1995), as the characterization of Sherlock Holmes in this novel
foregrounds notions of Brazilianness versus Englishness. The aim is to analyze how notions
of history and national identity are projected onto the image of the English detective, and how
this image and narrative are problematized, in a dialogue with the original stories by Arthur
Conan Doyle, especially through the use of postmodern parody, according to Linda
Hutcheon‘s definitions (1985, 1988, 1989). This novel subverts the detective genre, thus
suggesting a characterization of Holmes that may be associated with a questioning of the
authority and the power of the official history and the positivist science. However, by drawing
on the concept of the past representation in literature as the ―pre-history of the present‖, a
phrase coined by Georg Lukács (1983), the close analysis suggests that the past in O Xangô
de Baker Street is represented as the history of things and the history of a Brazilian elite,
thereby excluding people‘s voices and participation from the narrative.
Keywords:
Historical Representation. National Identity. Sherlock Holmes.
1
Este artigo foi inspirado em uma parte da dissertação de mestrado desenvolvida junto ao do Programa de Pós-
graduação em Letras/Inglês e Literatura Correspondente da Universidade Federal de Santa Catarina, defendida
em 2006, intitulada: Representations of Sherlock Holmes in Brazilian and English recent cultural productions: an
analysis of cultural and historical elements associated with national identity.
2
Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; e-mail:
mateusdarosapereira@yahoo.com.br
2
1 BACKGROUND
Sherlock Holmes first appeared in A Study in Scarlet – a novel written by Sir Arthur
Conan Doyle in 1887 and published in the English magazine The Strand. Between then and
1927, Doyle wrote three other novels and five volumes of short stories about Sherlock
Holmes. Influenced by Edgar Allan Poe, who is considered to be the father of modern police
detective fiction, as inaugurated in the short story ―The Murders in the Rue Morgue‖ (1841),
Doyle created the first scientific detective (GÓES, 2005, p. 34). Holmes‘ deductive method
involved observation, formulation of a hypothesis, and its subsequent application. In 1893,
Doyle decided to have Sherlock Holmes dead together with his archenemy professor Moriarty
in the story ―The Final Problem,‖ in order to dedicate his energies to what Doyle considered
more important works – namely, the historical novels. However, led by public outcry, Doyle
brought Holmes back to life in the story ―The Adventure of the Empty House,‖ published in
1903.
According to Paulo de Medeiros e Albuquerque, if we look carefully, we will find
something of Holmes in all detectives that came after him, even in part of the modern
American detective fiction with its ferocious and ultra-womanizer detectives (1979, p. 45).
Ever since the 1880‘s, Sherlock Holmes has become a synonym for the detective persona and
an icon of the English culture, as there have been about 300 re-creations of the Sherlock
Holmes stories, among which more than 150 are filmic adaptations (FERRAZ, 1999, p. 13).
For many years 221b Baker Street London, Holmes‘ address, received several letters
requesting the help of the detective and complimenting his work (ALBUQUERQUE, 1979, p.
48). Today, there is even a museum dedicated to the memory of Doyle‘s fictional character at
the famous address.
In Brazil, the first detective narrative was Mystério, serialized in the newspaper A
Folha, in Rio de Janeiro in the 1920‘s, written collectively by Coelho Neto, Afrânio Peixoto,
Viriato Correia and Medeiros e Albuquerque (GÓES, 2005, p. 31). According to Góes,
nowadays, the detective fiction is a growing genre in Brazil, as most publishers keep detective
series or collections in their catalogs, partly because detective fiction readers are loyal
consumers (2005, p. 31). All of Sherlock Holmes stories are found in Portuguese from several
Brazilian publishers, such as Ediouro, Melhoramentos, and L&PM.
An important historical development in the detective genre was its marriage to
American film noir in the 1940‘s and 1950‘s. The films from this period were marked by
depression, disappointment and pessimism, as evinced in The Maltese Falcon (1941),
considered to be the first hardboiled detective film (SCHATZ, 1981, p. 125). Nowadays,
3
according to Góes, American film noir continues to influence American cinema, as recent
productions illustrate: Curtis Hanson‘s L. A. Confidential (1997), Phillip Noyce‘s The Bone
Collector (1999), and Clint Eastwood‘s Mystic River (2003) (p. 42).
Even though Brazilian cinema has not counted on a tradition of detective film as
prolific as the American, Góes points out that the way has been opened by recent adaptations
of Brazilian detective novels (2005, p. 42). Alain Fresnot directed Ed Mort (1997), adapted
from the homonymous novel by Luis Fernando Veríssimo, Roberto Santucci Filho directed
Bellini e a esfinge (2001), from a novel by Tony Belloto, and Miguel Faria directed O Xangô
de Baker Street (2001), from Jô Soares‘ novel (GÓES, 2005, p. 42). Of these three Brazilian
films, two – Ed Mort and O Xangô de Baker Street – tropicalize their detectives into a parodic
portrayal, mixing humor and genre subversion. While these Brazilian detective films display
great knowledge of the detective genre – from literature and film –, they play with notions of
English or American culture that lie behind traditionally defining detectives such as Sam
Spade (from The Maltese Falcon) or Sherlock Holmes.
that we they are experiencing the past as a pre-condition of the present, according to what
Hutcheon calls historiographic metafiction. Or, if that happens, it is because it is part of a
double process whose first part is the insertion and the second part, which is characteristic and
necessary, shall be undermining and subversion. The representation of history in
historiographic metafiction is always problematized from the point of view of narrative. Its
provisional character suggests the general mistrust in any kind of absolute truth in relation to
the past and the possibility of its communication through narrative. It aims to challenge some
of the assumptions underlying historical statements, such as objectivity, neutrality,
impersonality and transparency of representation, thus calling our attention to the textual and
intertextual nature of novels (HUTCHEON, 1991, p. 125).
The characterization of Holmes and the representation of the past in O Xangô can be
associated with what Hutcheon called postmodernism‘s ―double process of installing and
ironizing,‖ as self-reflexivity and parody problematize official history and detective genre
conventions (HUTCHEON, 1989, p. 93). On the one hand, Brazilian political leaders such as
D. Pedro spring from history textbooks and become their own caricature, weaving a
characterization that is at the same time comic and critical of its intertexts. On the other hand,
the images of Sherlock Holmes deliberately destabilize our assumptions about the detective
persona and his role in society. The dividing line between real and reel life is blurred so as to
problematize notions of a transparent, true access to the past, and to raise the point that the
past can only accessed through texts, representations.
Although some of Lukács‘ theory of the novel may be outdated for analyzing
contemporary literature, the application of both Hutcheon‘s and Lukács‘ sometimes
conflicting views and definitions to a close analysis of a Brazilian novel can be insightful to
put this contemporary novel‘s critical power in perspective, and to evaluate some strengths
and weaknesses of its representations of national identity and history.
Jô Soares‘s first novel, O Xangô de Baker Street (1995) sold about 500,000 copies
just in the first two years after its publication and became a best seller in Brazil. The success
and popularity of the novel is at least partly attributed to Jô Soares‘s persona as a talk-show
host and comedian, as well as to the support that the publication received from Brazilian mass
media (Veja magazine, Isto É magazine, and main newspapers) ( FERRAZ, 1999, p. 18).
The novel is a mix of an historical account of the life of intellectuals, writers, and
aristocracy in 1886 Rio de Janeiro, and an enthralling detective story about a double-crime of
a stolen violin and the mysterious murder of women. According to Salma Ferraz, Jô Soares‘s
novel portrays perfectly the late 19th century Brazil and carnivalizes detective stories
5
following Bakhtin‘s propositions (FERRAZ, 1998, p. 15). Ferraz traces how fictional
characters are mixed with historical ones, and points out that in O Xangô the implicit author
criticizes Brazilian‘s desire to imitate the French (FERRAZ, 1998, p. 23-29). As Ferraz points
out, through humor the novel criticizes the Europeanizing of Brazilians of late 19th century
and contemporary Americanizing trends. Next I will revisit some points raised by Ferraz, and
analyze other aspects regarding the representation of history and national identity in Jô
Soares‘s novel. I will argue that the novel evinces a kind of mistrust regarding politics and
official history, as well as a challenge to the portrayal of a single notion of Brazilian identity.
As a highly self-reflexive narrative, O Xangô draws on many intertexts, which are
often shown explicitly. In case readers wonder how Jô Soares retrieved all the information
about places and personalities, there is a five-page bibliography at the end of the book that
covers a wide range of topics, from the history of Rio de Janeiro to biographies of D. Pedro II
and Sarah Bernhardt, from cuisine to snakes! Besides this piece of extra material, readers also
find excerpts from Brazilian and English newspapers, written to suit the novel. Thus, besides
blurring the boundary between historical novel and detective novella, O Xangô also blends
fiction with elements more commonly found in textbooks and scholarly works (maps,
newspapers, works cited list).
In O Xangô, history is often represented as the history of places rather than the
history of people. As a result, the portrayal of the past is far from what Lukács termed the
―prehistory of the present‖ (LUKÁCS, 1983, p. 61). The book is filled with references to
historic places and old streets, many of which readers can find on a map of Rio de Janeiro
provided on the first pages. Historical details abound along the narrative, concerning the life
of those who attended the court, cafés, and theaters at the time, including famous writers and
artists known to the Brazilian public, such as poet Olavo Bilac and musician Chiquinha
Gonzaga. Together with these, Alberto Fazelli, Salomão Calif, Júlio Augusto Pereira (the
Marquis), and Paula Nei formed a group of bohemians who called themselves the Malta.
Most of the action takes place including one or more representatives of the Malta, as in the
welcome dinner to the French actress Sarah Bernhardt and later in their acquaintance with
Sherlock Holmes. Besides drinking beer and gossiping, the Malta made fun of politicians and
tried to help Holmes to solve the mystery.
While Sarah Bernhardt‘s arrival and stay in Brazil provides the subject matter for the
first half of the narrative, Sherlock Holmes and doctor Watson‘s arrival and investigation, as
well as Holmes‘ romance with Ana Candelária, dominate the rest of the story. However, an
aspect that is constant along the novel is an attempt to provide accurate information about the
6
history of the places where the action is set. In the first chapter, for instance, a description of
the dirty streets around prostitution houses precedes the account of the first murder
(SOARES, 1995, p. 11). In another instance, before commenting on Sarah Bernhardt‘s
opening performance in Brazil, Jô provides us with information on how and by whom the
Imperial Teatro de São Pedro de Alcântara had been remodeled just before the actress arrived
(SOARES, 1995, p. 13). That action often gives place to description in O Xangô is not
surprising. This is relevant not so much because it is a key point in the composition of the
novel, but because it reveals the place that the novel reserves for history.
Despite some distant references to slave rebels and strikes, the plot of the novel does
not articulate the question of what problems affected the people of Rio de Janeiro in 1886,
two years before the abolition of slavery and three years before the proclamation of the
Brazilian Republic. Nevertheless, the downfall of the Brazilian empire is shown as a
necessary step due to the aristocracy‘s tendency to futility and D. Pedro‘s inability to connect
with the social problems of the age. The problem with the representation of history as history
of places in O Xangô is that it seeks to provide Rio de Janeiro with a traceable origin, but it
excludes the people from this historical process. More often than not, people form a kind of
homogeneous audience for the aristocratic and bohemian milieu. This can be evidenced, for
example, when Sarah Bernhardt performs Frou-Frou and ―Brazilians of all classes‖ gathered
to see the French actress (SOARES, 1995, p. 47), or when Sarah goes to the police station
(SOARES, 1995, p. 71-2). In these cases, people from lower classes either praise, ―boo‖ or
make inappropriate comments – like an audience –, but do not participate actively in the story.
In addition to the representation of history as the history of places, the past is also
treated as a set of oddities, as a source of humor in O Xangô. In the second chapter, during
Sarah‘s welcome dinner, for instance, a French chef, Roland Blachard, is introduced to
readers. It was Mr. Blachard‘s task to teach the court good, civilized manners, i.e. manners
that imitated the French. He explained, for instance, that if a person had an incontrollable urge
to spit, he or she should do it on the floor, not on the plate (SOARES, 1995, p. 24). Another
example of the representation of history as a set of oddities can be found in the eighteenth
chapter, when D. Pedro, Holmes and some of the Malta go to the Jockey Club. At this point
Jô Soares quotes some warnings that supposedly would be found at the entrance: ―Pessoas
descalças são proibidas de entrar no prado;‖ ―Matar-se-á qualquer cachorro que ali aparecer;‖
―As corridas só terminam às seis, com as Ave-Marias‖ (SOARES, 1995, p. 269). While the
representation of history as the history of places aims at emphasizing an origin, its ironic
treatment as a set of oddities stresses how strange history is for us, contemporary readers. And
7
to the extent that the history of places excludes the role of people from the historical process,
both ways of representing history can be said to estrange the past from the present.
If, on the one hand, Jô Soares fails to portray the historical crisis of the age through
the complex interplay between the ―above‖ and the ―below‖ of society, according to what
Lukács defended as the ultimate aspiration of the historical novel (LUKÁCS, 1983, p. 49), on
the other, the plot of O Xangô can be associated with its historical moment of production in
the early 1990‘s. Jô Soares articulates in O Xangô a parodic portrayal that evinces the
Brazilian people‘s suspicion and mistrust regarding the authority and seriousness associated
with historical personalities and politicians, a panorama that intensified in the early 1990‘s
after the political scandal that led to the impeachment of Fernando Collor de Mello, the first
civil president elected through direct vote since 1964. In the novel, D. Pedro is depicted as
more interested in love affairs than in political ones, as private interest overcomes collective
projects. In chapter twelve, for example, there is a funny account of how viscount of Ibituaçu
secured this title. During a public opening ceremony of a railroad, emperor D. Pedro would
have accidentally farted, and the prospect viscount, Rodrigo Modesto Tavares, who was
present among the authorities, took advantage of the opportunity, apologizing as if he was the
one who had farted, thus gaining the emperor‘s confidence (SOARES, 1995, p. 165-6). In this
sense the novel raises the point that many great men were in fact great opportunists, and not
necessarily great personalities.
Drawing on Flavio Rene Kothe‘s A Narrativa Trivial, Ferraz argued that Jô Soares‘ novel
breaks the basic rules of the detective novella in many ways. First, Holmes falls in love with
8
Ana Candelária, and the focus of the narration becomes the romance between the two lovers
(FERRAZ, 1998, p. 33). In compositional terms, rather than an accidental slip into romance,
the detective plot consciously gives place to the romantic one, as Sherlock Holmes‘s shift of
investigative interest demonstrates:
Ferraz also points out that the novel is too long in relation to the usual detective novellas,
which should preferably be read at once to increase tension. What is more, the detective
counts on supernatural forces to get information about the mystery, which is inadmissible in
detective stories, during the candomblé ritual, when Watson speaks in tongues as a Pomba-
gira, a female deity in the camdomblé religion. A final touch in the subversion of detective
novellas is the end of the narrative, when neither is the killer caught nor the mystery resolved
by the detective (FERRAZ, 1998, p. 100).
Furthermore, O Xangô also parodies Jonathan Demme‘s 1991 film The Silence of the
Lambs, which can be associated with a contemporary development of Sherlock Holmes
detective stories. In Demme‘s film, FBI agent Clarice Starling visits Hannibal Lecter, a
psychiatrist and cannibal, in a mental institution in order to try to understand why and how the
criminal she is chasing behaves. In O Xangô, Sheriff Pimenta and Holmes visit a mental
institution, for the same reason as that of Clarice, to see a cannibal (a psychiatrist like
Hannibal) called Aderbal Câmara. However, contrary to the atmosphere of suspense of The
Silence of the Lambs, in which a tense relationship is established between Hannibal and
Clarice, Holmes‘s visit to Aderbal Câmara results in several jokes (SOARES, 1995, p. 239-
249).
In Brazil, Sherlock Holmes is treated as an English ambassador, and through his
encounter with Brazilian culture issues of national/cultural identity are foregrounded. Ferraz
points out that the English detective goes through a whole process of abrasileiramento (going
Brazilian). Holmes speaks Portuguese, which he learned in Macau, China, with the
Portuguese scientist Nicolau Travessa. He begins drinking coconut water and loves a
Brazilian lunch. Holmes‘ new habits imply that for every prop that was traditionally
associated with his character there is a parodic new one: instead of tea, coconut-water; instead
of cocaine, cannabis; instead of the dark and heavy garment, white and light suit and cape. In
Brazil, Holmes is more relaxed, and even allows himself to be late for appointments. Holmes‘
9
process of abrasileiramento is complete when he goes to a candomblé ritual, where king Obá
Shité III baptizes Holmes as son of Xangô, thus justifying the name of the novel (FERRAZ,
1998, p. 37).
The parody of Sherlock Holmes and his abrasileiramento are contrasted with the
incontrollable desire in the Brazilian characters to imitate European habits and behaviors: ―No
hotel, tudo era importado, da roupa de cama aos palitos‖ (SOARES, 1995, p. 109). Humor
and irony mix in the absurd picture of an Englishman trying to be Brazilian while Brazilians
want to be French. According to Ferraz, the critique implicit in this contrast, regarding
Brazilian identity, is that ―o brasileiro quer ser outro, nunca ele próprio‖ (1998, p. 39).
Holmes‘s search, contact and adoption of Brazilian culture is an expression of the nationalism
that is symmetrically missing in most of the Brazilian characters. For Ferraz, in this
contrastive process whereby Holmes goes Brazilian while Brazilians want to be French
evinces an implicit critique to contemporary Brazilian culture‘s open tendency to anglophilia
and American culture (FERRAZ, 1998, p. 38).
Where I part from Ferraz‘s reading of O Xangô is at her conclusion, that in this novel
Jô Soares manages to ―resurrect the national spirit and the local color‖ of Brazil (FERRAZ,
1998, p. 102). She argues that the process of abrasileiramento that Holmes goes through,
emphasized in contrast with Brazilians‘ desire to be European, foregrounds some essential
characteristics of Brazilian identity (FERRAZ, 1998, p. 102). According to Ferraz, whereas in
Watson‘s interaction with Brazilian culture there is evidence of a break of stereotypes – he
expected to find indigenous people in the streets, and he did not expect to find women with
blue eyes, for instance –, in Sherlock Holmes there is a celebration of nationalism (FERRAZ,
1998, p. 37-38).
However, it seems to me that, in the context of parody, Holmes‘ going Brazilian is
also an ironic feature. For Brazilian readers, the fact that Holmes drinks caipirinha, smokes
marijuana and dresses in white does not allow him to embody any essential spirit of
Brazilianess. For, is there such a thing as an essential, timeless Brazilianess, something that
can be incorporated through a set of props? Moreover, while Holmes‘ initiation in the religion
of candomblé and his knowledge of the Orubá language can be convincing aspects of a
Brazilianess for him, this is nevertheless read ironically, constituting an exaggeration and a
joke. An example of this ironic exaggeration in O Xangô is that even before Holmes sets foot
on Brazilian lands, he already feels like a native:
10
– Meu caro Watson, vejo que você ainda não se acostumou aos trópicos. Em vez de
chá, é melhor experimentar essa água de coco que os marinheiros acabam de trazer a
bordo. Dizem que é refrescante e deliciosa.
– Fico com o chá. Basta a diarréia que tive em Calcutá quando experimentei suco de
manga com leite.
– Watson, às vezes me espanta a sua falta de capacidade de se adaptar às
circunstâncias. Por mim, já me sinto um nativo. (SOARES, 1995, p. 60; my italics)
At the end of the novel, when the detective takes off his Brazilian costume and puts
on his English garment again, the narrative itself is pointing out that Brazilian identity is
plural, that it is irreducible to a set of props or attitudes. If Jô Soares‘ Holmes were to be
associated with any stereotyped character in Brazilian recent history, he would look more like
one of the thousands of tourists who fall in love with Brazil and the Brazilian culture – samba,
carnival, the mulatas, the relaxed way of life – every year.
Although Brazilian identity is shown as nowhere to be found in O Xangô, a character
that embodies some sense of Brazilianess – even though in a perverse way – is the serial
killer, Miguel. Contrasted to the parodic portrayal of a society whose representatives of the
people are absent-minded or opportunists, Jô Soares invests in Miguel the responsibility to
teach Holmes a lesson of humility. It is Miguel who questions the Brazilian‘s francophilia: ―O
francês é uma língua curiosa: ‗profondément, profond dément‘. Prefere o português:
profundamente, profunda mente, mente profunda‖ (SOARES, 1995, p. 37; my italics). He
also criticizes D. Pedro‘s lust and irresponsibility as a governor as this serves as a motive for
his killing of the baroness:
only concern in O Xangô is the containment of a scandal that surrounds an expensive gift that
he had given to a girlfriend of his, the baroness of Avaré.
Even though the authority of official history is questioned in O Xangô, especially
through the blurring between fact and fiction and in the caricature of D. Pedro, the portrayal
of the past does not achieve the status of the prehistory of the present. The historical crisis is
abstractly conceived in the plot, as it does not affect the lives of neither the historical
characters nor fictional ones. As discussed previously, the representation of the past severs the
people from the historical process and is reduced to an account of the history of places and to
an account of oddities in O Xangô. Nevertheless, even though the history of places and
history as a set of oddities prevent the past from being represented as the prehistory of the
present, there is in Soares‘ novel a critique manifested through the portrayal of the Brazilians‘
desire to imitate European culture, which can be associated with contemporary Brazilians‘
desire to imitate American culture. To the extent that Holmes is carnivalized in O Xangô, his
characterization functions as the foreign/other capable of giving voice to Brazilian‘s lack of
national pride.
However, Soares‘ novel plays with Holmes‘ exaggerated desire to find the true spirit
of Brazilian culture, as in his clothing, religiousness, and everyday habits. Contrasted with
those Brazilian characters who desire to be civilized like Europeans, Holmes‘ parodic
portrayal is a mix of homage to Brazilian culture and a critique of any definite notion of
Brazilian identity. Moreover, the parody of Doyle‘s Sherlock Holmes and subversion of
detective fiction evince a critique of the detective formula whereby crime is always contained
and guilt always assigned to those who deserve it.
2 REFERENCES
DOYLE, Sir Arthur Conan. A Study in Scarlet. Free Domain Books from the Classic
Literature Library. Available at: < http://sherlock-holmes.classic-literature.co.uk/a-study-in-
scarlet/>. Accessed on: October 10, 2011.
GÓES, Denise. Romance Policial. Entre Livros. Ano I, nº 6 Ed. Oscar Pilagallo. São Paulo:
Ediouro Gráfica, 2005. 29-47.
LUKÁCs, Georg. The Historical Novel. Lincoln and London: University of Nebraska, 1983.
POE, Edgar Allan. The Murders in the Rue Morgue (1841). In: _____. The Gold-Bug and
Other Tales. New York: Dover Publications, 1991.
REZENDE, Antonio Paulo; DIDIER, Maria Teresa. Dos governos militares às tentativas de
redemocratização. Rumos da História: História Geral do Brasil. São Paulo: Atual, 2001.
616-64.
SOARES, Jô. O Xangô de Baker Street. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Inglês Aba de anexos para salvar artigo
RESUMO
O presente estudo investiga o caso Chico Mendes com base na notícia publicado em 2004
pela Revista Veja na internet. A notícia artigo narra a inclusão de Chico Mendes no livro de
heróis da pátria, através da lei sancionada pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva. Chico
Mendes era um seringueiro e ambientalista brasileiro que lutou para preservar Amazônia con-
tra o desmatamento causado pelos fazendeiros que desmatavam com o intuito de manter a
pecuária extensiva na região. Chico Mendes sofreu inúmeras ameaças de morte devido a sua
tentativa de salvar a floresta tropical. Entretanto depois de sua morte, ele continuou a ser lem-
brado por grupo de ativistas políticos, ambientalistas e principalmente pela imprensa interna-
cional que deu ampla atenção ao seu caso. Tendo em mente a relevância política do caso, este
trabalho analisa a notícia baseado na importância da luta de Chico Mendes na luta a favor da
preservação dos recursos naturais. Esse trabalho objetiva analisar os mecanismos linguísticos
e ideológicos presentes no discurso da mídia fomentado pelos preceitos da Análise Crítica do
Discurso (Fairclough, 1995, 2003, 2006) e Linguística Sistêmico-Funcional (Halliday, 2004).
Palavras-chave:
Chico Mendes. Revista Veja. Análise Crítica do Discurso.
ABSTRACT
The present study investigates Chico Mendes’ case based on the news report published in the
internet in 2004 by the Brazilian Veja Magazine. The news report focuses on the inclusion of
Chico Mendes’s name on the book of Brazilian heroes approved by the President Luís Inácio
Lula da Silva. Chico was a Brazilian rubber tapper and environmentalist who fought to pre-
serve the Amazon and protested against the deforestation caused by landowners who cut the
trees down in order to practice the livestock farming, very common in the Amazon region.
Chico Mendes suffered from numerous death threats because of his attempt to save the forest.
After his death, he continued to be remembered by groups of political activists, environmen-
talists, and mainly by the international press that gave broad attention his case. Bearing in
mind the political relevance of the case, this work analyzes the news report considering the
importance of Chico Mendes in preserving the forest. This work aims at analyzing the ideo-
logical and linguistic mechanisms embedded in the media discourse fostered by the theoreti-
cal and methodological precepts of the Critical Analysis of Discourse (Fairclough, 1995,
2003, 2006) and Systemic Functional Linguistics (Halliday, 2004).
Palavras-chave:
Chico Mendes. Veja Magazine. Critical Discourse Analysis.
1
Mestranda da Pós Graduação em Inglês na linha de pesquisa de Análise Crítica do Discurso (UFSC); e-mail:
marthajumartins@hotmail.com.
2
1 INTRODUÇÃO
O discurso da mídia vem atraindo a atenção de vários pesquisadores do Brasil e exte-
rior interessados em investigar a imprensa como grande propagadora de discursos hegemôni-
cos imbricados de crenças e valores socialmente construídos através das relações de poder que
acontecem nas sociedades e refletem suas ideologias no texto midiático (Van Dijk, 1988; Fa-
irclough, 1995; Caldas-Coulthard, 1997; Piasecka-Till, 2002, Rodrigues, 2002). Tendo em
vista o avanço da internet e seu uso como canal propagador de notícias do mundo inteiro, esse
estudo tem como objetivo oferecer uma breve discussão com ênfase no aporte teórico-
metodológico da Análise Crítica do Discurso (Fairclough, 2003; 2006) e da Linguística Sis-
têmico-Funcional (Halliday, 2004) sobre o caso Chico Mendes a partir de em pequeno artigo
vinculado pela Revista Veja e publicado no sítio da revista http://veja.abril.com.br/. O artigo
intitulado Chico Mendes herói datado de Setembro de 2004 noticia a inclusão do seringueiro
Chico Mendes no livro dos heróis oficiais da Pátria através da lei sancionada pelo então Pre-
sidente da República, Luís Inácio Lula da Silva. Em virtude da relevância do caso Chico
Mendes para a sociedade brasileira servindo de mola propulsora para a criação da Lei de Re-
servas Extrativistas e conscientização da necessidade de (re) pensar o meio ambiente e seus
recursos como fonte findável, onde a participação dos governos e da sociedade como um todo
na tomada de decisões acerca da preservação do meio ambiente faz-se necessária para que
seja possível resguardar as gerações futuras do usufruto do bem comum que é a natureza.
Dessa forma, esse trabalho versa sobre os aspectos da metafunção ideacional e dos preceitos
interdisciplinares concedidos pela ACD para focalizar na notícia vinculada pela Revista Veja
sobre Chico Mendes.
terras, os seringueiros prejudicados por não poderem mais trabalhar nos seringais, organiza-
ram-se para protestar sob a liderança de Chico Mendes por melhores condições estruturais no
Estado reivindicando por escolas, hospitais e principalmente terras onde pudessem trabalhar
na extração do látex (ALLEGRETTI, 2002). A técnica conhecida por empate foi a forma en-
contrada pelos trabalhadores locais para reivindicar pela regularização das terras e da ativida-
de seringueira, bem como lutar contra a destruição da floresta. Essa técnica consistia sim-
plesmente em permanecer de pé em frente às árvores para evitar que fossem cortadas por pe-
cuaristas e fazendeiros. Empatar, na linguagem da região amazônica significa impedir, o que
na opinião de Allegretti (2002, p. 235) desencadeou a “organização do primeiro Sindicato do
Acre e da consciência que adquiriram em relação aos direitos de posse” Com isso, os serin-
gueiros da região, entre eles Chico Mendes começaram a ser vistos como entraves ao progres-
so e ao desenvolvimento da região e consequentemente tiveram suas vidas ameaçadas em
decorrência dos inúmeros protestos que impediam os fazendeiros de desenvolverem seus pro-
jetos de base predominantemente econômica na região. É Mary Allegretti, antropóloga que
trabalha com políticas públicas e movimentos sociais na Amazônia desde 1978, que nos traz
em linhas gerais um depoimento de um seringueiro sobre a devastação da mata virgem:
Após sua morte, Chico Mendes ganhou enorme destaque na imprensa internacional,
o que no Brasil serviu para despertar o interesse da imprensa nacional. O caso Chico Mendes,
como ficou conhecido, ecoou nos quatro cantos do mundo, levando a mensagem de respeito e
preservação para com região amazônica tão negligenciada por tantos anos. Nas palavras do
jornalista Zuenir Ventura, autor da série “O Acre de Chico Mendes”, com o qual ganhou os
prêmios Esso de Jornalismo e Vladimir Herzog de Reportagem, a repercussão do caso foi tão
grande na época que até “os fazendeiros lastimam que com sua morte tenha-se criado um már-
tir; os seringueiros choram a perda do mártir” (VENTURA, 2003, p.226); e ele ainda comple-
ta que só posteriormente compreendeu que:
gia e dominação presentes na linguagem, ou seja, age como um recurso apto para pesquisas
sociais e que pode ter sua perspectiva ampliada quando associada a outros recursos analíticos
das ciências sociais, o que segundo Fairclough (2003, p.210) “é um método que pode apropri-
ar-se de outros métodos”. O autor entende que a ACD “é a análise das relações dialéticas en-
tre o discurso (incluindo linguagem e outras formas de semioses) e outros elementos das prá-
ticas sociais” (Fairclough, 2003, p. 205), por isso, sua maior preocupação são as diversas mu-
danças e transformações pelas quais as sociedades vêm passando atualmente e dessa forma
investiga como o discurso se insere nas práticas sociais, transformando-se e servindo como
elemento propagador de crenças e valores. Fairclough ainda sugere que os textos como ele-
mentos de eventos sociais “contribuem com as mudanças na educação ou nas relações indus-
triais e assim por diante” (FAIRCLOUGH, 2003, p. 8). Sendo assim, como consequência das
mudanças ocorridas na sociedade, os efeitos ideológicos advindos e inseridos nos textos na
concepção de Fairclough (2003, p.9) “contribui para estabelecer, manter e modificar as rela-
ções sociais de poder, dominação e exploração”.
Uma vez que as diversas práticas sociais pelas quais os indivíduos estão inseridos
podem ser associadas a diversas áreas da vida social, é relevante compreender que tais práti-
cas definem a forma de agir do indivíduo. É ainda através do discurso que se manifesta a re-
presentação da vida social, ou seja, a forma como os atores sociais se posicionam e são repre-
sentados por diversos meios, seja através dos governos, das leis ou da mídia em geral. Dessa
forma, (FAIRCLOUGH, 2003) observa que os três principais aspectos do significado relacio-
nados dialeticamente entre si são a Ação, Representação e Identificação que correspondem
respectivamente às categorias de Gêneros (Genre), Discurso e Estilos, ou ainda (i) ao modo de
agir, (ii) modo de representar, (iii) modo de ser. Entretanto, para o escopo desse trabalho a
análise e descrição dos dados giram em torno do modo de representar, uma vez que o princi-
pal objetivo aqui é investigar a representação do seringueiro Chico Mendes pela Revista Veja,
tendo como base a metafunção ideacional tal como proposta por (Halliday, 2004).
O diálogo entre a ACD e a Linguística Sistêmico-Funcional (LSF) é necessário a fim
de que possam desvendar os mecanismos linguísticos que perpetuem as relações de poder
controle e dominação, tanto nas dimensões semióticas quanto linguísticas, uma vez que ambas
preocupam-se com a relação entre linguagem e diversos aspectos da vida social enquanto mé-
todo e teoria transdisciplinar, onde muitas categorias analíticas utilizadas pela ACD advêm da
LSF, que entende o texto como multifuncional, ou seja, concomitantemente expresso nas três
metafunções. Sendo assim, sob a ótica da LSF, entende-se que as representações, identidades
e relações estão sempre presentes no texto e que a linguagem que está em constante processo
6
de evolução, pode ser considerada um sistema que produz significados, onde é dado ao indi-
víduo a oportunidade de atingir seus objetivos de comunicação e interação com base na in-
fluência do contexto ao qual está inserido.
Segundo Halliday (1973, p.45 citado por Eggins, 2004, p. 352):
Com base na análise funcional da linguagem, a LSF oferece algo além das diversas
possibilidades de leituras e interpretações de um texto ou como sugere Eggins “os textos são
ricos em significados: eles produzem significados sobre o que está acontecendo e o porquê,
mas também trazem significados sobre as relações e atitudes, sobre distância e proximidade”
(Eggins, 2004, p. 352), tudo isso proporcionado pelos contextos reais da vida em sociedade.
Com relação ao discurso da mídia, Fairclough (2006, p. 97) nos adverte que “os pro-
cessos de mudança acontecem dentro da mídia em massa”, uma vez que a mídia é a grande
responsável não só pelas transformações atuais como também por encurtar distâncias, princi-
palmente em tempos de grandes avanços nas telecomunicações na sociedade contemporânea.
É partir daí que Fairclough (2006) sugere que o processo de mediação está relacionado ao
distanciamento do binômio espaço-tempo, uma vez que a distância física não mais indica im-
possibilidade de comunicação nos dias de hoje. Caldas-Coulthard (1997) entende que a mídia
desempenha papel de relevância em diversas esferas, seja social, política ou educacional e
ainda afirma que “ao serem expostas às notícias, as pessoas fazem conexões e tentam entender
e explicar como os eventos reportados na mídia relacionam-se à sociedade como um todo”
(CALDAS-COULTHARD, ibid, p.11). É através da linguagem que são repassados os discur-
sos discriminatórios, como o discurso racista, sexista, homofóbico, tão presentes em nossa
sociedade, onde uma análise mais acurada só é possível quando a interface entre a linguagem
e as relações de poder e controle são percebidas nesse discurso. O discurso, particularmente o
midiático é formulado a partir de uma forte corrente social e culturalmente construída através
da representatividade de diversas instituições ligadas ao poder, seja o governo, as leis advin-
das de uma determinada gestão, os sistemas de saúde e ensino ou ainda como é sugerido por
Halliday (1978, p.23 citado por Caldas-Coulthard, ibid, p.12):
Fairclough (1995) salienta que tendo em mente que o discurso midiático exerce papel
de agente social uma vez que corrobora com os processos de mudanças sociais e culturais, ele
aponta como de extrema relevância o entendimento dessas mudanças na sociedade, a fim de
que qualquer pessoa seja capaz de analisar criticamente a linguagem da mídia, ou seja, todos
devam ser críticos e letrados no discurso midiático. Para isso, ele ressalta que estar atento ao
discurso da mídia significa entender além do que o discurso propõe, mas indica compreender
o processo de produção como um todo, pois como Caldas Coulthard (ibid) mesma sugere os
produtores da linguagem da mídia fazem parte também das estruturas sociais a qual estamos
todos imersos, ajudando a construir socialmente o significado da notícia, ou nas palavras de
Fairclough:
É importante estar atento ao que lemos em um jornal ou vemos na televisão que não
é uma simples e transparente representação do mundo, mas o resultado de práticas e
técnicas profissionais específicas, que poderiam e podem ser relativamente diferen-
tes com resultados relativamente diferentes. (FAIRCLOUGH, 1995, p.204)
nowski, 1943 citado em Eggins, 2004). Dessa forma, Halliday afirma que tudo que acontece
no momento que a linguagem está sendo usada influencia no que será produzido com a lin-
guagem (Halliday, 1978; 1985 citados em Eggins, 2004). O contexto de situação se expressa
em três variáveis distintas: Campo (sobre o que é o texto), Relações (sobre o tipo de relações
entre os participantes) e o Modo (sobre como a linguagem contribui na organização do texto).
Assim, temos como corpus para esse artigo a publicação da Revista Veja em meios eletrôni-
cos, através da URL (http://veja.abril.com.br/noticia/arquivo/chico-mendes-heroi) datada do
dia 23 de Setembro de 2004, intitulada Chico Mendes herói que noticia a inclusão do nome de
Chico Mendes à lista do Livro dos Heróis da Pátria, onde dentre ele estão os nomes de outras
figuras ilustres conhecidas no Brasil, como Tiradentes, mártir da Conjuração Mineira e Zumbi
dos Palmares, líder resistente do Quilombo que leva seu nome em sua homenagem. Nesse
sentido, a proposta desse estudo é investigar a forma como o seringueiro e ativista político
Chico Mendes é retratado pela mídia brasileira, com ênfase no artigo da Revista Veja, 16 anos
após sua morte. O objetivo para esse estudo consiste em uma tentativa de compreender como
o caso Chico Mendes ainda repercute na mídia e como a figura de Chico Mendes está ainda
tão presente nos principais contextos que envolvem a temática meio ambiente, floresta ama-
zônica, bem como resistência e avanços dos seringueiros.
O que significa dizer que uma oração representa um processo? Nossa mais poderosa
concepção de realidade consiste de acontecimentos de: fazer, acontecer, sentir, ser.
Estes acontecimentos estão classificados no sistema semântico da linguagem expres-
sos através da gramática oracional.
Com base nisso é que podemos trabalhar alguns exemplos do artigo da Revista Veja
que trata sobre Chico Mendes.
O participante em destaque na análise das orações é Chico Mendes estando sempre
relacionado ao processo que indica ação, ou seja, o processo material. O exemplo abaixo su-
gere um Chico Mendes agente e paciente.
Tabela 1 – Exemplo 12
O líder seringueiro Francisco assassinado em dezembro de 1988
Alves Mendes Filho, Chico
Mendes,
2
Todas as tabelas têm como fonte o Apêndice que se encontra ao final do artigo.
10
Outra forma encontrada no jornal para retratar Chico Mendes é através da identifica-
ção com o grupo social a que pertence. Dessa forma observamos na oração abaixo Chico
Mendes sendo referido como um ambientalista, através da escolha lexical ecologista. A esse
respeito, (Van Leeuwen, 1996 citado em Fairclough, 2003, p.146) esclarece que “quando os
atores sociais são classificados, eles podem ser representados especificamente ou generica-
mente”. Os dados nos mostram que Chico Mendes fora figurado tanto de forma pessoal como
de forma geral conforme os exemplos que se seguem.
Tabela 2 – Exemplo 2
Tabela 3 – Exemplo 3
Ele foi assassinado em Xapuri, pequeno
município amazônico.
Tabela 4 – Exemplo 4
b) Como bem nos alerta Fairclough (2003) as generalizações servem para ofuscar os
agentes, ou seja, transpor a responsabilidade de um ato de seu verdadeiro culpado para outro
participante; dessa forma, observamos no exemplo abaixo que os fazendeiros e madeireiros
estão valorados de modo negativo, sendo os únicos responsabilizados pela exploração da mai-
or floresta do mundo, sem a menção a outros agentes que poderiam também ser responsabili-
zados como o governo ou agências de fiscalização do meio ambiente.
Tabela 5 – Exemplo 5
Tabela 5 – Exemplo 5
Para que se possa compreender melhor o caso Chico Mendes através da notícia vin-
culada pela Revista Veja levantamos uma breve discussão acerca dos principais elementos
que se destacam na notícia e que serão abordados à luz da Análise Crítica do Discurso, ferra-
menta transdisciplinar de apoio para nossa análise, uma vez que julgamos necessário pontuar
algumas características marcantes inerentes ao contexto político e social do país.
12
O caso Chico Mendes repercutiu no mundo todo por se tratar de um crime contra um
defensor da floresta e da causa seringueira. A forma como Chico Mendes é retratado na notí-
cia da Revista Veja deixa bastante claro a importância do seringueiro para a luta a favor da
causa dos trabalhadores da floresta, bem como para a preservação da natureza, em que a ima-
gem de Chico Mendes e dos demais participantes envolvidos é construída paulatinamente
através das escolhas feitas no texto midiático. A representação do assassinato, julgamento dos
assassinos e a inclusão de Chico Mendes no livro de herói da pátria revelam o poder de alcan-
ce da notícia relacionada ao assassinato do líder seringueiro e sua luta impulsionada pelo pro-
cesso de mundialização dos fatos. De acordo com Fairclough (2006) os diversos discursos
contribuem para moldar a globalização, processo em si bastante complexo e multifacetado,
gerando mudanças aos discursos propagados pela imprensa. Na notícia da Revista Veja não só
Chico Mendes é descrito como herói da pátria, como também é inserido em um livro em que
outros heróis nacionais estão em destaque, como é o caso de Tiradentes e Zumbi dos Palma-
res, ambos reconhecidos na história do Brasil por defenderem os ideias que acreditavam em
contextos distintos. Chico Mendes como herói é sempre caracterizado como ator social em
ação, em conformidade com Fairclough (2006) que sugere que onde os atores sociais são
principalmente ativos, sua capacidade como sujeito agente, de fazer as coisas acontecerem e
controlar os outros é acentuada. Dessa forma observamos um Chico Mendes reverenciado
pela mídia e principalmente partícipe de novas significações no modo como a lei é conduzida
no país, mesmo que para isso o preço pago tenha sido sua própria vida. Um julgamento histó-
rico é conduzido no norte do país por ser a primeira vez no Brasil que um assassinato de se-
ringueiro é levado até a última instância no pequeno Fórum de Xapuri e que tamanha tendo
sido a repercussão do caso (ALLEGRETTI, 2002, VENTURA, 2003).
Ao passo que Chico Mendes é descrito de forma heroica, os outros participantes en-
volvidos na notícia são reportados em segundo plano, como é o caso das instituições gover-
namentais como a ONU e o Congresso que aparecem sob a forma de circunstâncias, como
simples informações complementares, tirando toda a carga semântica das instituições como a
ONU e o Congresso na tomada de decisões. Simpson (1993, p.90) assim define as circunstân-
cias como “meras informações adicionais que fornecem informações sobre como, quando,
onde e por que”, o que pode vir a refletir as motivações políticas em não enfatizar outras co-
partícipes pela morte de Chico Mendes. De acordo com Van Leeuwen (1996, citado em Fair-
clough, 2003), inúmeras são as motivações que levam a exclusão ou inclusão de atores sociais
em um texto, que decorrem tanto de causas politicamente relacionadas como simplesmente
advém da tentativa de se evitar a redundância ou irrelevância. Em contrapartida, os assassinos
13
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O caso Chico Mendes continua ganhando bastante destaque na mídia, principalmente
na imprensa brasileira que despertou para a importância da luta dos seringueiros na atuação
contra a devastação da floresta, agindo de forma a garantir a preservação da mata nativa e
garantir a maior fiscalização das leis que regulam os trabalhadores que dependem dos recur-
sos da floresta para seu sustento. Chico Mendes, apesar de não ser um caso isolado de serin-
gueiro assassinado na região amazônica, teve uma grande receptividade com sua luta, princi-
palmente fora do país, onde fora premiado por sua atuação na defesa da natureza.
Acreditamos que muito pode ser analisado tanto sobre o caso Chico Mendes quanto
no nível da temática meio ambiente, movimentos sociais na floresta e desenvolvimento sus-
tentável; entretanto, para o escopo desse estudo, limitamo-nos a interpretar os dados relacio-
nados ao artigo publicado na Revista Veja retratando Chico Mendes como herói nacional,
uma vez que a partir da lei sancionada pelo presidente Lula, o seringueiro é oficialmente tido
como herói da pátria, dentre inúmeros outros que trabalharam em prol da defesa do território
nacional e da soberania brasileira. O caso Chico Mendes é infinito em suas possibilidades de
análise, todavia aqui adotamos a perspectiva sob a ótica da Análise Crítica do Discurso e da
Linguística Sistêmico-Funcional para enveredar em uma análise linguística através da trans-
disciplinaridade concedida por ambas as ferramentas.
7 REFERÊNCIAS
FAIRCLOUGH, Norman. Analysing discourse: Textual analysis for social research. EUA e
Canadá: Routledge, 2003.
14
SIMPSON, Paul. Language, Ideology and Point of view. Nova Iorque: Routledge, 1993.
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<http://veja.abril.com.br/noticia/arquivo/chico-mendes-heroi>. Acesso em: set. 2011.
APÊNDICE
foi inscri- oficialmente nesta quinta-feira no seleto Livro dos Heróis da Pá-
to tria do Brasil.
Material Circunstância
A inclusão foi determina- por decreto pelo presidente Luiz Inácio Lula da
da Silva, seu companheiro no Partido
dos Trabalhadores (PT).
Meta Material Circunstância Ator (agente passivo)
Circunstância
Ator
RESUMO
O objeto escolhido para este estudo consiste em Caliban, um personagem do universo dos X-
Men, das HQs da Marvel, no contexto teórico do “entre-lugar” (SANTIAGO, 1971). Propo-
nho contribuir para a pesquisa sobre o que Nirmala Erevelles caracterizou como um novo
campo de conhecimento: “apenas recentemente estudiosos em ambos os Estudos sobre Defi-
ciência e Estudos Pós-coloniais tem tentado explorar a intersecção entre essas duas áreas de
especialidade” (EREVELLES 2006, apud ALBRECHT, 2006, p. 103 tradução minha). Bus-
cando uma política de alianças, Erevelles ressalta que tal estudo necessita da elaboração de
pontes entre as duas áreas. Esta investigação se propõe a verificar se o mutante desfigurado
Caliban pode ser considerado um ponto de convergência entre essas duas áreas de conheci-
mento se baseando no fato de tanto o “deficiente” quanto o (pós-)colonizado serem constru-
ções dominantes do „Outro‟; ou seja, pretende-se verificar se Caliban pode ser interpretado
como representações de ambos o „Outro‟ Pós-Colonial e do „Outro‟ deficiente.
Palavras-chave:
Estudos Pós-Coloniais. Estudos sobre Deficiência. „Outro‟. Intersecção.
ABSTRACT
The objective of this study consists in Caliban, a Marvel Comics character from the X-Men
universe in the context of „in-betweeness‟ (SANTIAGO, 1971). I intend to contribute to the
investigation of what Nirmala Erevelels defined as a new field of expertise: “(o)nly recently
have scholars in both Disability Studies and Postcolonial Studies attempted to explore the
intersection between these two areas of scholarship” (EREVELLES 2006, apud ALBRECHT,
2006, p. 103). Erevelles highlights that this new field of expertise requires the construction of
bridges between the two mentioned areas. Taking as point of departure for analyses that “(i)t
is engaging Otherness that scholars in both Postcolonial Studies and Disability Studies find
common ground, especially in their deconstructive analyses of how representation, hegemony,
and normativity produce both the postcolonial and the disabled Other” (ibid); this study in-
tends to investigate if the mutant Caliban can be considered a point of convergence between
Disabilty Studies and Post-colonial Studies, or else, if Caliban can be understood as a repre-
sentation of both the Post-colonial „Other” and the disabled „Other‟.
Keywords:
Pos-colonial Studies. Disability Studies. „Other‟. Intersection.
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Caliban, personagem das HQ X-Men da Marvel Comics, pode ser interpretado como
representação do “Outro” Pós-colonial e do “Outro” Deficiente. Tal fato torna Caliban objeto
1
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Letras/Inglês e Literatura Correspondente da Universidade Fede-
ral de Santa Catarina; bolsista do CNPq; e-mail: gislaine.mailbox@gmail.com.
2
de estudo potencial para um novo campo de conhecimento, do qual nos fala Nirmala Erevel-
les: “apenas recentemente estudiosos em ambos os Estudos sobre Deficiência e Estudos Pós-
coloniais tem tentado explorar a intersecção entre essas duas áreas de especialidade” (ERE-
VELLES 2006, apud ALBRECHT, 2006, p. 103) tradução minha). Além de apresentar carac-
terísticas que o capacitam a objeto de estudo da Intersecção entre Estudos sobre Deficiência e
Estudos Pós-coloniais, Caliban também se encaixa no contexto teórico do „entre-lugar‟
(SANTIAGO, 1971). Num universo fictício habitado por humanos e mutantes, onde os últi-
mos sofrem preconceito por transgredirem o conceito de „normalidade‟ imposto pela socieda-
de, Caliban não consegue se adaptar nem a um, nem ao outro grupo, constituindo uma „espé-
cie‟ de mestiço-mutante; uma transgressão ainda maior ao conceito de normatividade. Além
disso, tanto o „deficiente‟ quanto o (pós-)colonizado podem ser considerados construções do
„Outro‟ estabelecidas pelo dominante.
Considerando que estudos Pós-coloniais e Estudos sobre a Deficiência serem dois
campos de conhecimento distintos, a questão que surge é de como uma intersecção entre am-
bas se torna possível. A resposta pode ser encontrada na Enciclopédia de Deficiência, no capí-
tulo intitulado Pós-colonialismo:
2
Alguns exemplos de apropriações A Tempestade de Shakespeare são The Pleasures of Exile (George Lamming,
1960), Une Tempete (Aimé Césaire, 1968) No telephone to heaven (Michele Cliff, 1987).
3
Duas adaptações fílmicas no formato de ficção científica de A Tempestade de Shakespeare são The Forbidden
Planet (1956) e The Tempest (2010).
3
liban. Neil Gaiman é responsável pela novela gráfica The Tempest, a apropriação da obra de
Shakespeare da DC Comics, publicada em 1996 em The Sandman # 75. Escrita por Chris Cla-
remont, Cry Mutant é a apropriação da obra da Marvel Comics, publicada em 1981 em The
Uncanny X-Men # 148. Nessa adaptação debutou o albino e quase grotesco Caliban, persona-
gem do universo X-Men, incompreendido sofre preconceito tanto de humanos quanto de seus
semelhantes genéticos os mutantes também conhecidos como Homo superior (Figura 1).
Figura 1 - “Caliban não quer causar mal a ninguém, ele pensou que ele era único mas
quando ele sentiu outros como ele a idéia de voltar aos esgotos, de viver ... para sempre
... sozinho... se tornou insuportável (minha tradução).” O rosto de Caliban, até então es-
condido atrás de um manto e chapéu, é finalmente revelado: feições disformes, pele
completamente albina e enormes olhos amarelos. No último quadrinho pode-se ser ob-
servado que mesmo a jovem mutante Kitty Pryde teme Caliban por causa de sua apa-
rência.
Fonte: Uncanny X-Men # 148 (1981, p. 20).
No universo criado por Stan Lee4, a raça humana sofreu uma subdivisão devido a um
processo evolutivo natural, o qual culmina com o surgimento do Homo Superior, vulgarmente
conhecidos como mutantes. Os portadores do gene mutante, em massiva maior parte dos ca-
sos, nascem e gozam da infância como “cucos” Homo Sapiens; porém na adolescência a
bomba-relógio genética dispara e poderes especiais afloram acompanhados freqüentemente de
4
Stan Lee concebeu o conceito de mutantes e criou o grupo de super-heróis os X-Men em setembro de 1963.
4
dor física e emocional5. Caliban parece ser uma exceção a essa regra. Enquanto a maioria dos
mutantes nasce com aparência humana e podem conviver na sociedade mesclados aos Homo
Sapiens, mesmo depois que seus poderes terem surgido se assim o escolherem, Caliban nas-
ceu com aparência “anormal”, traindo sua condição mutante desde o momento que chegou ao
mundo. Num mundo que tem preconceito por, teme, e até odeia mutantes, Caliban não encon-
trou outra saída a não ser se isolar nos esgotos da cidade de Nova York.
5
Kitty Pryde, que possui o poder de atravessar objetos sólidos, sofria fortíssimas dores de cabeça quando o gene
mutante foi acionado, ou seja, dias antes de seu poder se manifestar e também as primeiras vezes que esse poder
se manifestou.
5
sucesso”. Caliban, assim como Clare, pode ser visto como caracterização do “Outro” (pós-
colonial) no contexto do entre-lugar proposto por Santiago.
Outro ponto em comum entre No telephone to heaven e a HQ intitulada Cry Mutant!
(Grite Mutante! minha tradução), HQ na qual Caliban aparece no universo Marvel pela pri-
meira vez, é o fato de ambas as obras serem apropriações da peça A tempestade de William
Shakespeare. Agustini ressalta que os países caribenhos produziram várias apropriações da
citada peça durante os anos iniciais pós-independência, entre essas apropriações está No tele-
phone to heaven (02). Tais apropriações, ao tomarem posse do canônico, ao tomarem posse da
história de Prospero que ao chegar à ilha de Caliban escraviza e usurpa do nativo o direito a
terra, ao recontar tal história do ponto de vista do “Outro”, do dominado, tais apropriações
abraçam o ritual antropofágico do povo latino-americano como citado por Santiago (1971).
6
Apesar de Mantle se referir ao filme, tais exemplos também são encontrados nos HQs.
6
como „ansiedade sobre homossexualidade, também indicam uma preocupação social maior
sobre o „Outro‟, o que inclui a deficiência e a exclusão social que a acompanha (2007, p. 04,
minha tradução). Já que vários estudiosos visualizaram possíveis pontes que unem o „Outro‟
deficiente aos mutantes, não seria inesperado que portadores de deficiência também já tenham
percebido essa possível correlação. Edward W. Siemens, por exemplo, em seu artigo intitula-
do „A dor de ser disléxico‟, relata: „A deficiência da dislexia é dolorosa. Se você se interessa
em ler HQs, então considere os X-Men, os quais são um bando de mutantes descartados da
sociedade por causa de sua natureza bizarra e diferente...‟ (2009, p. 01, tradução minha).
Na minha pesquisa de textos acadêmicos que suportem uma das hipóteses de minha
tese, de que os mutantes da linha narrativa dos X-Men podem ser compreendidos como repre-
sentações culturais de deficiência, encontrei material mais abundante e diverso do que espera-
va a princípio. O texto de Ramona Ilea „Cura Mutante ou Mudança Social: Debatendo Defici-
ência‟ (2009, minha tradução), por exemplo, encontra-se no livro X-Men e Filosofia o qual,
como o título sugere, focaliza em interpretações filosóficas das histórias dos X-Men, seja na
forma de HQs ou filmes. O artigo de Jennifer Rinaldi „X-Men e Deficiência: Estudos sobre
Deficiência Trazidos a Vida em Filme‟ (2008, minha tradução) foi apresentado na Critical
Disability Studies Student Association Colloquia e na Annual Graduate Student Conference em York
em 2008. No periódico on-line sobre media e cultura, MC Journal, encontramos o artigo „Você tentou
não ser um mutante?‟ (2007, minha tradução) escrito por Martin Mantle. No periódico quadrimestral
de Estudos sobre Deficiência Disability Studies Quaterly Michael M. Chemers publicou „Mutatis
Mutandis: Uma Estética sobre Deficiência Emergente em “X-2: X-Men Unidos”‟(2009, mi-
nha tradução). Edward W. Siemens, que escreveu um artigo usando a realidade e dificuldades
de ser mutante para ilustrar seu ponto de vista, não é exatamente um estudioso de cultura, nem
filosofia nem Estudos sobre Deficiência, mas um portador de dislexia que escreve artigos no
intuito de ajudar outros indivíduos na mesma situação e alertar o público em geral sobre o
assunto. Livro, periódico, congressos, filosofia, estudos culturais, estudos sobre deficiência,
desejo de auxiliar o próximo; a consideração dos X-Men como representações culturais de
deficiência parece ter se espalhado no vento, atingido variados solos e criado raízes.
Existe uma razão relevante para eu ter chamar a atenção ao fato que as análises sobre
a caracterização de mutantes como deficientes terem sido conduzidas por diferentes estudio-
sos, estudiosos estes que provavelmente não foram influenciados um pelo trabalho do outro.
Minha dedução não é apenas teórica, pois possui pelo menos uma confirmação de sua veraci-
dade. Ao entrar em contato com Jennifer Rinaldi, perguntei se ela não conheceria outros arti-
gos que poderiam auxiliar na minha pesquisa. Ela comentou ter ouvido algo vagamente sobre
7
um artigo em livro, mas não tinha idéia de que livro ou artigo se tratava. Ou seja, Rinaldi não
sofreu influências de idéias sobre X-Men e deficiência antes de escrever seu artigo, entretanto,
o artigo de Rinaldi apresenta vários pontos em comum com os outros artigos citados. Alguns
pontos em comum identificados entre os artigos analisados foram: movimento eugenista; con-
ceito de normalidade; modelo médico e social de deficiência; comparação da utilização de
sistemas de controle e/ou vigilância impostos em mutantes com os empregados em deficientes
com respectivos exemplos históricos; ambos mutantes e deficientes não quererem ser conside-
rados uma doença a ser curada e preocupação que a „cura‟ possa levar para a sua eliminação.
Apesar de nem todos não apresentarem os mesmos preceitos identificados, pelo menos alguns
pontos em comum foram utilizados por esses autores para fundamentar suas hipóteses.
Minha pesquisa baseia-se nos HQs dos X-Men, enquanto a maior parte dos textos
analisados baseia suas considerações nos filmes sobre esse grupo mutante. Logo, a pergunta
que emerge é se as considerações fundamentadas nos filmes também são validas para os HQs.
Iniciarei minha análise dos pontos em comum entre os artigos estudados, citados no parágrafo anterior,
pelo quesito „sistemas de controle e/ou vigilância‟ para ilustrar e exemplificar que as conside-
rações feitas sobre X-Men a partir de uma perspectiva de Estudos sobre Deficiência se apli-
cam tanto para os filmes quanto para as HQs que discorrem sobre a linha narrativa da Marvel
sobre mutantes. „No primeiro filme da série X-Men‟, nos explica Rinaldi, „o senador Robert
Kelly lidera o pedido de passar o Ato de Registro Mutante, legislação a qual requereria que
mutantes fossem identificados e registrados a fim de controlar a ameaça que eles possam
apresentar. (p. 04, tradução minha). Rinaldi a seguir relata a reação Magneto, líder dos mutan-
tes rebeldes e sobrevivente de campos de concentração. Magneto compara a legislação que
Kelly deseja passar aos subterfúgios usados pelos nazistas no início de suas atividades, „quan-
do „indesejáveis‟ eram obrigados a se registrar, sistema de identificação o qual eventualmente
foi utilizado com o propósito de genocídio.‟ (p. 05 minha tradução). Rinaldi também nos in-
forma que pessoas com deficiências faziam parte da categoria dos „indesejáveis‟ sendo sujei-
tas ao genocídio. Ilea, além de citar os o fato de nazistas terem utilizado de eutanásia e esteri-
lização contra os considerados defectivos, relata outro fato histórico relacionado, porém me-
nos conhecido do público em geral. Em função do movimento eugenista, do qual falarei mais
tarde, nos Estados Unidos em 1932, foram criadas a leis de esterilização; como resultados
vinte mil pessoas com problemas mentais foram esterilizadas a força (p. 280). Enquanto no
filme os mutantes apenas temem o que o Ato de Registro possa acarretar, na HQ que parcial-
mente inspirou o filme citado, Dias do Passado Futuro (Chris Claremont, 1986, minha tradu-
ção) os mutantes vêem seu pior pesadelo se tornar realidade. Num futuro alternativo próximo,
8
o Ato de Registro acaba por dividir a raça humana em três grupos: mutantes, humanos e
anormais; todos vestem o mesmo tipo de macacão cinza, o que trai sua classificação é a letra
maiúscula M, H ou A no peito, referência direta a estrela de Davi usada por judeus na Europa
nazista. Os mutantes, ou „M‟ encontram-se aprisionados em campos de concentração, não
possuem direito nenhum e são obrigados a usar uma espécie de coleira que inibem seus pode-
res. Humanos „normais‟ ou H, possuem relativamente direitos, apesar do medo constante de-
vido aos robôs sentinelas que patrulham as ruas. Os humanos anormais designados „A‟ não se
encontram aprisionados, porém seu estigma os perseguem onde quer que vão, como a heroína
de A Letra Escarlate. Humanos portadores do gene mutante latente são proibidos de se repro-
duzir, já que potencialmente poderiam produzir prole mutante. As considerações atingidas por
Rinaldi e Ilea sobre o Ato de Registro do primeiro filme dos X-Men também são aplicáveis ao
enredo da HQ citada, HQ a qual provê espaço para aprofundar as análises. Por exemplo, o
fato de Humanos „A‟, ou „Anormais‟ não poderem se reproduzir afim de que o gene conside-
rado „defeituoso‟ não se recrie em Dias de um Passado Futuro nos remete aos exemplos cita-
dos por Ilea e Rinaldi sobre a esterilização de deficientes, seja na Europa nazista ou nos Esta-
dos Unidos eugenista dos anos trinta.
Numa cena de X-Men 2, ao ser confrontado por um pai que o acusa de não ter curado
seu filho, o professor Xavier, líder e mentor dos X-Men, ressalta o fato da mutação não ser
uma doença. „Este discurso traz a lembrança um dos debates mais provocativos em Estudos
sobre Deficiência: os efeitos de socialização na linha de definição entre „doença‟ e „diferen-
ça‟‟. (Chemers, p. 03 minha tradução). Em X-Men 3 o senador Warren Warrington II oferece
uma cura para o gene mutante, afirmando que condição mutante se trata de „nada mais que
uma doença. Aqui, como acontece no mundo real, anomalia é mostrada como uma tragédia
pessoal, um peso que deve ser aliviado, uma doença para a qual requere um antídoto‟ (Rinal-
di, 05, tradução minha). A reação dos mutantes ao serem considerados uma „doença‟, tanto na
linha narrativa “Gifted” das HQs Astonishing X-Men (em português, Os Extraordinários X-
Men) quanto no filme por essa narrativa inspirado, é variada. Alguns desejam ser „normais‟,
outros ficam furiosos, como é o caso de Ororo Monroe, ou Tempestade, que não vê nada de
errado ou que precise ser „consertado‟ na sua condição. „Worrington adere ao modelo físico
de deficiência enquanto Tempestade adere ao modelo social. No modelo social, o problema
não é físico. Ao contrário, sociedade cria deficiência ao rotular, manter e negar opções para
certas pessoas. ‟ (Ilea, 279, tradução minha).
O conceito „deficiência não ser doença, mas sim diferença‟ foi abordado por Che-
mers, Ilea, e Rinaldi. Falar nesse tópico, de tanto mutantes como pessoas com deficiência não
9
quererem ser considerados uma doença a ser curada, desencadeia uma transição natural aos
conceitos do modelo médico e modelo social de deficiência, tema abordado por Ilea, Mantle e
Rinaldi. Devido à importância de tais conceitos em Estudos sobre Deficiência, discorrerei
mais sobre eles. Primeiramente, uma definição de deficiência do ponto de vista de Estudos
sobre Deficiência faz-se necessária. „Deficiência é a perca ou limitação de oportunidades que
impedem que pessoas que tem deficiência de tomar parte na vida normal da comunidade ao
mesmo nível dos outros devido a barreiras físicas ou sociais. ‟ (Finkelstein e French, 1993, p.
25, tradução minha). Até os anos 70, o modelo médico predominava, „seu pensamento estava
preservado em abordagens que procuravam contar o número de pessoas com deficiência ou
reduzir os complexos problemas de pessoas deficientes a questões de prevenção médica, cura
ou reabilitação.‟ (Shakespeare, 1997, p.199, tradução minha). Então, a partir da afirmação de
ativistas de deficiência e teóricos de que „pessoas com deficiência são incapacitados pelo sis-
tema social que levantou barreiras a sua participação.‟ (Michael Oliver, 1996, p. 33), o mode-
lo social de deficiência foi elaborado. „O pensamento do modelo social exige remoção de bar-
reiras, legislação de anti-discriminação, moradia independente e outras repostas à opressão
social.‟ (Shakespeare, p.199, tradução minha).
Ainda outros tópicos relevantes identificados (s) nos artigos estudados são: o concei-
to de normalidade, o movimento eugenista e a preocupação que a „cura‟ possa levar à elimi-
nação. Tais conceitos aparentam estar interligados. O conceito de normalidade inspira os eu-
genistas, os quais almejam a eliminação daqueles que não se adequem ao seu conceito do que
seja „normal‟, o que leva por sua vez preocupação com eliminação. Para este estudo, conside-
rarei o conceito de normalidade como definido por Thomson: „Aristoteles revela (...) um con-
ceito de um „tipo genérico‟, normativo, comparado com o qual toda variação corpórea é me-
dida e considerada diferente, derivativa, inferior e insuficiente‟ (1997, p. 281, minha tradu-
ção). Em relação ao conceito de normalidade aplicada aos Estudos de Deficiência, Davis
afirma: „o problema não é a pessoa com deficiência, o problema é a maneira que a normalida-
de é construída para criar o „problema‟ da pessoa deficiente.‟ (1997, p. 9, minha tradução).
Seja direta ou indiretamente, todos os artigos estudados discorrem e/ou estão fundamentados
no conceito de normalidade. Rinaldi menciona que mutantes são tratados como desvios do
que é normal (p. 02, minha tradução) e Ilea indaga como deveríamos acolher diferença física.
(p. 181). Mantle afirma que „esses filmes de super-heróis demonstram que, a fim de falar so-
bre super-habilidade como um desvio do corpo normal, eles se apóiam em scripts de deficiên-
cia como a linguagem de desvio‟ (p. 03, minha tradução). Chemers, entretanto, parece ser o
mais entusiasmado com a maneira que a reação, em X-Men, ao conceito de normalidade: „X-2
10
parece prover uma resposta particularmente vívida a este neo-eugenismo, ao invés de demoni-
zar diferença física, X-2 logo cria „uma contra-narrativa de peculariedade como eminência,‟
como descrita por Rosemarie Garland-Thomson em Corpos Extraordinários (1994, p17)‟,
(p.01, tradução minha). Além de Chemers, Ilea também cita o movimento eugenista, o qual
foi responsável pela Lei de Esterilizarão citada anteriormente. O último tópico a ser abordado
é a preocupação que a „cura‟ possa levar para a eliminação. Tanto na linha narrativa „Gifted”
quanto no filme X-Men: The Last Stand os mutantes temem que a cura possa levar a sua ex-
tinção. O aborto seletivo, como de fetos com síndrome de Down, por exemplo, preocupa ati-
vistas de direitos do deficiente. Além de tal atitude sugerir que a vida de um indivíduo porta-
dor da síndrome não vale a pena ser vivida, a longo prazo ocasionaria na extinção de portado-
res da Síndrome de Down. Ambas Ilea e Rinaldi exploram o assunto, e Ilea acrescenta que
implantes auriculares dividem a comunidade surda, já que alguns ativistas também se preocu-
pam que tal „cura‟ possa erradicar a cultura única e rica que os surdos partilham.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não apenas Caliban, mas parece que todo o grupo mutante compartilha do entre-
lugar proposto por Santiago. Nos HQs, desiludidos da procura de um lugar ao qual pertençam,
no qual não sejam diferentes, desvios da normalidade, os mutantes fundam Genosha, um novo
país numa ilha isolada. Entretanto, não se trata de um conceito original, a comunidade surda
já havia concebido a idéia. Enquanto isso, as evidências apontadas neste artigo parecem assi-
nalar que o personagem fictício Caliban engloba uma representação do „Outro‟ pós-colonial
assim como do „Outro‟ deficiente. Espero que um dia ele perceba que não há nada de errado
com ele, mas sim com a sociedade e seus preconceitos, e espero que um dia Caliban deixe o
refúgio escuro dos esgotos e espero que um dia Caliban sinta orgulho de suas diferenças, de
ser diferente, de ser Caliban.
6 REFERÊNCIAS
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1981.
______Days of Future Past. The Uncanny X-Men #169: Marvel Comics Group, 1981.
______The Uncanny X-Men #170: Cry, Mutant! Marvel Comics Group, 1981.
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X-Men: The Last Stand. Dir. Brett Ratner. 20th Century Fox, 2006. Film.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Inglês Aba de anexos para salvar artigo
RESUMO
Partindo de uma tendência recente no campo dos estudos da tradução transcendam um caráter
meramente descritivo, queremos propor um programa de estudos da tradução orientado ao
processo. Por orientação ao processo queremos designar um programa de estudos que procure
flagrar o fenômeno da tradução em seu momento de passagem entre uma e outra língua: na
análise da transformação mesma que o texto traduzido opera no texto fonte, na consideração
das perdas, ganhos e estratégias do tradutor em seu momento de, por assim dizer, perigo abso-
luto. Enfocar, portanto, o processo, a transformação, a passagem, o trânsito do significado e o
ressarcimento do significante. Tal programa de estudos pressupõe e se alimenta uma auto-
reflexibilidade da parte do tradutor com relação a sua prática tradutória – visto que, em nossa
opinião, somente ele tem acesso a caixa-preta, ao código fonte de sua tradução: somente ele
pode revelar as relações e processos que motivaram suas soluções tradutórias. Neste sentido,
oferecemos exemplos de nosso programa na análise de nossas próprias traduções. Trata-se de
exercícios transcriativos, que ilustram nossa orientação ao processo.
Palavras-chave:
Tradução. Sociologia da Tradução. Tradução Poética.
ABSTRACT
Grounded on principles and recent trends in Translation Studies – those pointing towards be-
yond merely descriptive translation studies – I wish to (humbly) propose a (tentative) pro-
gramme of process oriented translation studies. By Process Orientation I mean to designate a
“strong programme” of studies, aiming to “surprise” the translation phenomena in the very
instant of its passing through one language to another: analyzing the transformational move-
ment from the translated text towards the source. Focusing on the translational process itself,
in the instant – it could be said – of absolute danger. Such programme presupposes some de-
gree of self-reflexivity, concerning the close relation between the translator himself and his
own translation praxis. I am assuming, however, the access and the agency of the translator
over his translation being a strong point of my programme: only the translator can access the
black box of his own translation, only he could offer a radical unfolding of the process and
networks lying under his work. Concerning this particular, I offer also some examples of my
own transcreative exercises that would illustrate the nature of my alleged process orientation.
Keywords:
Translation. Sociology of Translation. Poetic Translation.
1 INTRODUÇÃO
O que aqui chamarei de orientação ao processo emergiu muito naturalmente de meu
projeto de tradução do Don Juan de Byron – na medida em que passei a investigar com mais
atenção os estudos críticos mais recentes acerca do poeta inglês e de sua epopéia herói-
1
Mestrando; e-mail: robertoschramm@yahoo.com.
2
promissos, a ser relevante em tal sentido e, de forma mais ambiciosa, a representar esse fluxo
de idéias, interconexões e intertextualidades?
Morton não se referiu especificamente ao processo de tradução. Contudo, seu realis-
mo especulativo e sua ontologia orientada aos objetos vinham exercendo grande atração sobre
minha própria reflexão acerca do procedimento tradutório – alguma vaga intenção ou espe-
rança mesmo de se pensar tradução sem admitir sua impossibilidade em termos últimos da
transmissão inequívoca do significado, e a difícil problemática da adesão desse significado a
uma referência universal. Ou por outro lado, uma nova aventura rumo aos fenômenos, as coi-
sas em si no interior mesmo da arapuca: existirá algo, enfim, fora do texto? Haverá por aqui
qualquer possibilidade de vislumbrar esse grande nada que (in)existe no impensável exterior
de nossas representações?
Tradução é o temo que Latour empregou pra descrever o que ocorre quando entida-
des humanas e não humanas agrupam-se, conectam-se; se modificando uma a outra,
de modo a estabelecer ligações (...) Entidades conectadas, eventualmente formam
uma corrente ou rede (network), de coisas e processos, e essas redes tendem a torna-
rem-se estáveis e duradouras. (p.10)
cia (e na resultante modificação) do estatuto do original por meio, não do traduzido, mas do
processo tradutório.
Algo ocorre no singular horizonte de eventos que se desdobra entre o original e o
traduzido, que só pode se revelar na passagem entre essa obra originante, seu contexto de
produção, seu texto de porosa dicção, resultante do esforço tradutório e a conexão com o ori-
ginal –com as demais traduções e paráfrases do original, inclusive. Um emaranhado, um
complexo rizomático de vasos inter-comunicantes – nesse ponto a orientação ao processo in-
formada pela ANT, pela sociologia da tradução, parece uma ferramenta adequada para – se
não evitar-se – ao menos contrapor-se à postura messiânica de Walter Benjamin (2010); no
que pretendia resolver essas relações com o adendo esotérico da realização suprema do origi-
nal no esgotamento total de todas as traduções possíveis coexistindo, revelando a pura língua
do original escrita no conjunto de suas re-escrituras.
Receio, todavia, não ter ainda renunciado ao programa de escatologia do porvir que
Benjamin apregoa na tarefa do tradutor. Devo atribuir tal apego romântico a redenção traduto-
lógica do original a meu próprio e incurável romantismo? Porque há uma alternativa, e ela
parece residir precisamente na releitura da noção primitiva de tradução (translation) – transla-
ção, transporte, replicação, – enfim, tradução enquanto um processo de transformação simé-
trica mediada por um eixo qualquer estabelecido. Um processo, contudo: uma passagem, um
tornar-se, um gesto – e daí para uma multiplicidade de gestos, uma rede de passagens, um
emaranhado de processos, eu insisto, intermodificantes. Doravante, essa dimensão processual
informará o vocabulário e o andamento de nosso percurso.
Tentarei doravante inquirir meu projeto de tradução literária – tradicionalíssima em-
presa tradutológica – com vistas a releitura da tradução em sua orientação processual, da tran-
sitabildade mesma, do meio de transporte, da transformação; que encontramos em Latour e,
talvez mais destacadamente, em seu precursor, Michel Serres.
que o estudo da tradução, nesse âmbito, não quer mais limitar-se ao estudo do traduzido e sua
relação de origem, mas antes com o próprio processo de traduzir, que se relaciona com o ema-
ranhado original, os sistemas de rizomas que se interpenetram e que (retro)causam a origem,
inventam um ponto de partida, originam o original na mesma medida em que são originadas.
Por outro lado, o conjunto de traduções de obras famosas, as várias vozes que vem juntas em
harmonia eólica atemporal (mas não a-histórica), trans-piram – por assim dizer – incandes-
centes num farol que projeta luz excessiva sobre o original, ofuscando-o em conhecimento
demasiado. Cegos de luz, como no ensaio de Saramago: talvez saibamos demais para sabê-lo.
Mas o que se oculta – creio eu – é o próprio processo de tradução no que tange a sua
dinâmica, ou melhor dizendo, da aparente impossibilidade de capturá-lo em seu acontecer po-
limórfico. Refiro-me a capturá-la (a tradução) em seu momento tradutório, flagrando-a no es-
paçotempo de sua requerida operação hermeneurística de interpretação sonora e invenção se-
mântica; como também de interpretação do sentido do som e re-invenção sonora do sentido.
Ou seja, no momento processual de seu tornar-se. Os estudos da tradução sabem muito sobre
o original e o traduzido – mas nem uma coisa nem outra são a tradução ela própria. Por que,
neste âmbito o objeto do estudo da tradução consiste muito menos no processo do que em seu
suposto ponto de origem. Por que nessa concepção processual – eu parafraseio LATOUR
(2005, p. 128) – ocorre que cada ponto do texto pode tornar-se uma bifurcação, um evento,
ou a origem de uma nova tradução.
A bifurcação originária e originante. A idéia de bifurcação e encruzilhada porosa e
impregnada de sentido, força e significação, já nos elevam para o patamar analítico de Michel
Serres, que dedicou ao fenômeno da tradução o centro de sua obra, exemplificada justamente
pelo deus mensageiro. Hermes, o trickster padroeiro dos ladrões e das traduções. Esse habi-
tante das encruzilhadas é o símbolo máximo da tentativa de focar nesse processo de transfor-
mação, de ressonância. Por que Hermes requer traduções (SERRES, 1982a, p. 134): requer
um processo de trans-formação ( > ), uma maneira pela qual uma coisa pode se tornar outra
ao invés de, quimericamente, ela mesma. Não se trata pois de “original” e/ou de “traduzido”,
mas do vetor transacional da tradução, a flecha de duas pontas que liga uma ponta do proces-
so a outra. O processo ele próprio, o eterno terceiro excluído nas dicotomias de nossa lógica
representacionista.
6
A tradução como processo, como passagem, como o que está em trânsito. O traduzir
flagrado, que na sua singularidade, não pode ser traduzido por que, no momento em que o fi-
xamos para análise, em que paralisamos seu gesto, em que o estabelecemos como obra tradu-
zida: eis que ele – o processo – fugidio, deixa esvair o conteúdo dinâmico de sua modificada e
modificante processualidade. Apenas a tradução é intraduzível, mas somente no momento (a-
temporal) e no lugar (inconcebível) em que traduz.
Onde esse flagrar a tradução em seu momento de perigo? – Como capturar o seu sal-
to (interlingual) entre dois mundos, calcular a trajetória (diferencial) do arco que descreve a
saraivada de flechas que uns viram partir e outros vêem chegar? (VIVEIROS DE CASTRO,
2011). Onde mais se não na trajetória mesma do tradutor que, numa virada de jogo trikster,
faz autoanálise de sua tradução tomar ares de rigorosíssimo método auto-reflexivo para o es-
tudo da tradução enquanto coisa transformada, e reinventada. Pois quem mais, senão o pró-
prio tradutor tem acesso a caixa preta de sua própria tradução?
Acredito que o tradutor de hoje em dia tem o dever e a tarefa de expor o processo, de
refletir sobre suas escolhas, suas recriações e recreações. Essa é a parte boa – mas cumpre
também expor seus erros, seus pecadilhos com as Belle-Infidelles que moram ao lado, suas
domesticações prevaricantes e inconfessáveis. Ao tradutor cabe abrir o capô do seu sistema
7
binário e – mais do que descrever o funcionamento do mecanismo – cabe a ele diante de sua
perspectiva privilegiada testemunhar acerca de seu processos de transformação do multiverso
processual de sua tradução.
But Inez was so anxious, and so clear Inez, que tinha seis olhos de águia
Of sight, that I must think, on this occasion, fingia que perdia alguns detalhes:
She had some other motive much more near Juan estar sozinho e sem vigia
For leaving Juan to this new temptation, e Júlia estar por perto pra atentar-lhe.
But what that motive was, I sha'n't say here; só não sei bem dizer por que fazia –
Perhaps to finish Juan's education, Talvez por Don Juan, para educar-lhe,
Perhaps to open Don Alfonso's eyes, Talvez por Don Alfonso, aquela anta,
In case he thought his wife too great a prize. pra mostrar-lhe que a mulher não era santa
Aqui temos, logo de início, uma grafo-rima, iconica/irônica: águia - vigia - fingia).
A matéria rimada, note-se, resume a função, da personagem D. Inez na trama dessa oitava –
retomando a trama que se começou a urdir na XCVII. No primeiro verso, a rima interna de
Inez -Seis reflete essa transformação que toma a superproteção sempre alerta da mãe Inez,
resolvendo-a nos seis olhos de águia! A transformação, inusitada mas produtiva, nas duas di-
reções que mesmo a tradutologia mais tradicional saberia apreciar – amicíssima que é do bi-
narismo e da dicotomia. Por que de um lado, aquele dos sentidos di-versos e significados re-
versos, do que o verso quer versar, da semântica imaculada de suas dez silabas, a solução –
quase um soluço, em vista da paridade muito próxima da rima – intensifica esse valor de que
nada escapa aos olhos (seis!) dessa mãe coragem/rapinagem.
Mas também naquele plano fônico, do verso como unidade sonora, o jogo de inez -
seis projeta e complica a zona emaranhada desse rizoma. Porque, difusamente, de alguma
8
forma (e ao mesmo tempo em que suporta e intensifica o sentido da sentença que habita o
verso), ela também faz menção ao próprio heroísmo do decassílabo – levando a tona nossa
tese de que a forma significa e contém como é contida. A rima interna culmina no seis, que é
– não por acaso – a sexta sílaba e que cumpre a função do acento tônico principal que com-
preende e caracteriza a assinatura tônica. E a rima intensifica também essa intensidade acen-
tual sonora: demonstra que a rima, a despeito da opinião de muitos2, pode assumir, sim se-
nhor, uma função importante no algo-ritmo acentual, na assinatura e caracterização de uma
medida, mesmo em nosso contexto de versificação silábica. Mais do que isso, ilustra-se aqui o
modo pelo qual desfaz-se essa oposição de som e sentido: o que aqui soa significa, reforça e
modaliza o sentido ao invés meramente adorná-lo. E redime o inusitado da rima icônica, mu-
da, perturbadora em sua função visível apenas, inaudível sempre. Rima para os olhos, muda e
sitiada por material sonoro hostil: o jogo heróico (inez - seis) e depois, já no segundo verso, a
retomada da rimas certas (fingia - perdia) no lugar errado (o começo do verso) que ameaça
descaracterizar a estrofe; inflacionar a oitava real com um cabedal de rimas internas.
Mas, a despeito da campanha do fônico contra o icônico, essa esperada entropia so-
nora absolutamente não ocorre. O sistema permanece em equilíbrio. Note o leitor, que para tal
estabilidade se mantenha, sem dúvida contribui o, paralelismo rigoroso dos pares rimados
Inez - seis e fingia - perdia. O fato de que o perdia reassume no segundo verso a posição e
função do seis faz toda a differance: inadvertida que tenha sido a operação no momento heu-
rístico da invenção re-criadora do verso, não passa despercebida no momento hermenêutico,
anterior e subsequente, de interpretação análise e inventariamento do inventado. Um amplo
emaranhado no diagrama interno de forças sonoras semânticas e iconicas, uma multiplicidade
de flechas/arrows errantes. De inez pra seis, de fingia pra inez, de fingia para perdia, de perdia
para seis, de Águia para detalhes (tão pequenos de nós dois) e para vigia, e contro-verso, o
re-verso da medalha: as flechas que uns vêem partir e os outros vêem chegar.
Há traduções operando no interior mesmo do texto traduzido. A aparência sólida e
monótona da oitava traduzida desfaz-se ao revelar uma rede interna de relações insuspeitadas.
2
Augustin Calvo, inclusive – em graus diversos nos diferentes § sobre a rima em seu catatau.
9
7 REFERÊNCIAS
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SUMÁRIO GERAL Sumário de Inglês Aba de anexos para salvar artigo
ABSTRACT
The present study aims at reflecting upon the partial results of an Applied Linguistics pilot
study, highlighting its important for the evaluation and review of the materials used for data
collection. The research focus was to verify whether different text types – narrative and
expositive – influenced the inference generation of Brazilian students of English as a Second
Language, as well as whether the number of inferences made had any influence on
participants‟ level of comprehension. The pilot study consisted of the analysis of the results
from the Pause Protocol (CAVALCANTI, 1989) adapted by Tomitch (2003) applied to eight
English Master students from UFSC, divided in two groups, during the reading of two texts
written in English (L2), as well as the quantitative analysis of some reading comprehension
questions, a retrospective questionnaire and a readers‟ profile. The inferences generated by
students were transcribed and analyzed according to Narvaez et al.‟s (1999) Inference
Categorization Model. The experience of piloting the materials was very important for two
reasons, firstly because it permitted a better familiarization with the procedures for data
collection, and also because through the pilot study it was possible for the researcher to
become aware of issues that had to be solved before conducting the main research.
Keywords:
Reading Comprehension. Inference Generation. Genre Expectation.
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo refletir acerca dos resultados parciais de um estudo
piloto em Linguística Aplicada, salientando sua relevância para a avaliação e revisão dos
materiais utilizados na coleta de dados. A pesquisa teve como foco verificar se diferentes
tipos textuais – narrativo e expositivo – influenciam a geração de inferências de estudantes
brasileiros de Inglês como Segunda Língua, bem como se o número de inferências geradas
possui alguma influência no nível de compreensão textual dos participantes. Para a realização
deste estudo piloto foram analisados os resultados obtidos através da aplicação do Protocolo
de Pausa (CAVALCANTI, 1989) adaptado por Tomitch (2003) a oito estudantes do curso de
Pós-graduação em Inglês da UFSC, divididos em dois grupos, durante a leitura de dois textos
escritos em Inglês (L2), além da análise qualitativa de perguntas de compreensão escrita, de
um questionário retrospectivo e um perfil leitor. As inferências geradas pelos estudantes
foram transcritas e analisadas de acordo com o Modelo de Categorização de Inferências
proposto por Narvaez et al. (1999). A experiência do estudo piloto foi de grande importância
por dos motivos, primeiramente por ter proporcionado maior familiaridade com os
procedimentos de coleta de dados, e também porque através dele foi possível perceber
problemas que precisariam ser resolvidos antes de conduzir o estudo principal.
Palavras-chave:
Compreensão Leitora. Geração de Inferências. Expectativa do Gênero Textual.
1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras - Inglês e Literatura Correspondente da UFSC; e-mail:
deise.caldart@hotmail.com.
2
1 INTRODUCTION
Conducting research demands a lot of commitment, from the first steps, such as
deciding the research topic and the hypotheses, to the last ones, such as data collection and
analysis. In the middle of this path are the pilot studies, which need to be carefully prepared in
order to help the researcher to achieve the objectives proposed. According to Van Teijlingen
and Hundley (2001), “The term „pilot studies‟ refers to mini versions of a full-scale study
(also called „feasibility‟ studies), as well as the specific pre-testing of a particular research
instrument such as a questionnaire or interview schedule” (p.1).
As stated by Mackey and Grass, “pilot testing is carried out to uncover any problems,
and to address them before the main study is carried out” (2005, p.43). Pilot studies are
necessary to avoid any further problems, such as materials that do not provide relevant
information, questions that have double meaning, incorrect instructions, among others.
Although it may seem that careful preparation and organization can replace the need of a pilot
study, only after piloting the researcher becomes aware of the problems his/ her procedures,
methods and material may have. Also, data from pilot studies can be useful for the main study
(MACKEY AND GRASS, 2005).
Based on the above, the objective of this paper is to report the experience of
conducting a pilot study, as well as reflecting on the steps for conducting research, improving
the instruments and getting familiarized with the procedures for data collection.
2 CONTEXT OF INVESTIGATION
Studies that investigate the role of inference generation process on reading
comprehension have been increasing in the last decades, especially regarding how it is
influenced by the reading purposes and text genres. Nevertheless, according to Baretta (2008),
the number of studies regarding the narrative type of text as stimuli is much more significant
than the expository one. Moreover, there are even fewer studies that have compared the
effects of both text genres on inference generation process. Furthermore, it is also important
to highlight that most research about how inference generation process is affected by different
reading purposes and text genres were carried out in relation to L1 (First Language), not
second or foreign languages.2
Regarding the above mentioned evidence, the need of filling this gap is the
motivation of my MA thesis, which aims at investigating how the expectation of different text
2
For the purpose of this study, I am not differentiating Foreign Language (FL) from Second Language (SL).
3
genres – a news story and a literary story - influence EFL (English as a Foreign Language)
students‟ process of inference generation. This paper presents the insights of a pilot study,
which aimed at checking materials validity and getting familiarized with the procedures for
data collection.
3 THEORETICAL BACKGROUND
Baretta (2009) carried out an ERP study, in order to verify whether inference
generation was influenced by different text types. Her findings suggest that narrative and
expository text types are processed differently by the brain.
Numerous studies have been conducted regarding inference generation process,
especially in the past thirty years. The pieces of research presented above are just a small
portion of these studies.
5 METHOD
5.1 Participants
A group of 8 students from the second year of the English Master Program, from
Universidade Federal de Santa Catarina, participated on this pilot study. The students were all
native speakers of Portuguese, proficient speakers of English as a Second or Foreign
Language. These participants were selected for having a similar profile to the ones who were
going to participate on the main research, i.e., EFL proficient students from the last year of
the Letras Course.
This Pilot Study was conducted in order to check whether the texts, instruments and
procedures for data collection were adequate for the objectives of my thesis. According to
Tomitch (2007), a pilot study can „save‟ a research, because it makes the researcher aware of
the adjustments that have to be performed before conducting the main study, avoiding
problems that can even invalidate it.
5.2 Instruments
Two texts were used, being one narrative and one expository. Although the texts
were from different genres (a news story and a narrative story), when reading any of them,
students should not be able to notice the difference. As the main research intends to check
whether students‟ expectation about the text genre lead them to different inference generation
or not, the selection of the texts was done in a way that the narrative and the expository texts
could be classified in both genres, so, for one of the groups a text was presented as being
expository, while the same text was presented as narrative to the other group, and vice versa.
Both texts selected were authentic, Text A being originally a news story, while Text B
was originally a literary story. The practice text used was a travelogue and was chosen
because it was also used as a practice text by Zwaan (1994). Some presumably difficult words
from the practice text were replaced by synonyms, in order not to scare students about the
7
level of difficulty of the texts. The texts were pre-piloted, with two different participants, in
order to check whether they were really adequate for the objectives of my research.
As stated by Afflerbach and Johnston (1984, apud TOMITCH, 2007), if the
researcher wants the participants to feel the need to verbalize, it is necessary that the
processes become nonautomatic. This state can be reached by using texts containing some
kind of problem for the reader to solve. In both texts used in the pilot study, the problem was
presented in the content of the texts, where readers had to generate inferences in order to
connect ideas among paragraphs.
The Pause Protocol (CAVALCANTI, 1989) was also employed, in the version
adapted by Tomitch (2003), in which participants are asked to verbalize their thoughts
whenever they notice a pause in their reading flow, and also at the end of each paragraph,
where a red dot is placed, to remember them to say something about what they have just read.
According to Tomitch (2007), in order to achieve better results, it is important that a
triangulation of data is carried out, using more than one methodology for data collection, as,
for instance, self revelation (think-aloud) followed by self-observation or self-report. By
means of data triangulation, the researcher is going to feel more confident and is also going to
have more evidence to make generalizations regarding the reading process being researched.
For this reason three instruments were used, besides the Pause Protocol. A reading
comprehension questionnaire, containing both multiple-choice and open ended questions, a
retrospective questionnaire regarding students perception of texts and tasks, and a reader‟s
profile, which intended to collect evidence about students reading habits and behavior.
there was a significant amount of them, and whether they were suitable to be categorized
according to Narvaez et al.‟s (1999) Inference Categorization Model3.
Students were divided in two groups. The first group was asked to read text A and
was told that it is an expository text. Afterwards, this same group read text B and was told that
it was a narrative text. Students from the second group did quite the opposite: they read text A
as if it was a narrative text. Then, they read text B, being told that it was an expository text.
Both texts were read in the same individual session.
As already mentioned, both texts (A and B) were selected in a way that when reading
them, the students believed that they are expository or narrative, depending on the instruction
received. In sum, following Zwan (1994), both texts have to be suitable to be categorized in
both genres.
A practice text (see Appendix A) was used before the experimental texts, in order to
make sure students were going to perform the task as instructed. The practice text was a
passage from a travelogue, which according to Zwaan (1994) is a genre considered to be
somewhere between literary and new stories. This travelogue was previously used by Zwaan
(1994) in his study, also as a practice text. Instructions were read and explained to the
students before reading the texts. They were adapted from Zwaan‟s (1994) (see Appendix A).
Before starting to collect data, the instructions for the Pause Protocol were read and
explained to the students. As the Pause Protocol (CAVALCANTI, 1989) adapted by Tomitch
(2003) was chosen to be used, students were asked to read the texts silently and stop
whenever any thought comes to their mind, verbalizing it. Also, at the end of each paragraph
there was a red sign, indicating that participants had to verbalize about their reading process at
that moment, even if they had already done it. At the end of the text, participants were
instructed to summarize the text and give it an appropriate tile, based on its content and genre.
After reading and verbalizing their thoughts, participants were asked to answer to
some comprehension questions (multiple choice and open-ended) regarding both texts, the
narrative and the expository. Afterwards, students also answered a retrospective
questionnaire, containing questions about their perception of the texts (level of difficulty),
self-evaluation regarding the comprehension questions and any other possible issues. Finally,
participants filled in a readers‟ profile, containing questions about their reading habits and
behavior.
3
Narvaez et al.‟s (1999) Inference Categorization Model classifies inferences in seven categories, being
explanations, associations, predictions, evaluations, text-based coherence breaks, knowledge-based coherence
breaks and repetitions.
9
7 FINAL REMARKS
Previous to the Pilot Study described in this paper, a Pre-pilot Study was carried out,
with two different MA classmates, in order to check whether the texts were adequate for the
level of the participants. After collecting data many things had to be adjusted, among which
the Pause Protocol explanation, the inclusion of a practice text, and the fact that students
shouldn‟t be allowed to perform the task alone in the room, because they might forget to
verbalize. As a result, the experience of pre-piloting my study showed me that I had to pilot it
one more time, with all the materials, in order to avoid any problems when conducting the
main research. I believe that the more experience one has in performing a task, the better this
task is going to be performed, and piloting also gave me more confidence not only regarding
the data collection, but also for its further analysis. For this reason, the pilot study described
in this report was conducted, where all instruments‟ validity was tested. After conducting the
pilot study I was able to have a better understanding of my own material and to improve it. I
was also able to confirm van Teijlingen and Hundley‟s statement that “Conducting a pilot
study does not guarantee success in the main study, but it does increase the likelihood” (2001,
p.1).
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VAN TEIJLINGEN, Edwin R.; HUNDLEY, Vanora. Social Research Update. United
Kingdom: Department of Sociology University of Surrey Guildford, 2001.
Instructions for Group I: The following text is an excerpt from a news story published
on New Times Newspaper on 1986, by de Volkskrant. Please read this text just as you
would normally read a news story.
Based on the information presented, give this news story an appropriate title.
Instructions for Group II: The following text is an excerpt from a novel by de
Volkskrant. Please read this text just as you would normally read a literary story.
___________________________________________
His first confrontation with the police dates from winter 1983. He studied to be a stage
director at night-school. During daytime he worked in a studio. The lack of energy was
severe. It was a consequence of megalomaniac investments in the petrochemical industry.
Two measures become simultaneously operative: the energy price was multiplied and the
supply of energy was severely reduced. A propaganda campaign accompanied the cold under
the slogan: 50 percent materials, 100 percent performance. Sorin drew a man cut in two,
wrote the slogan underneath it, and sneaked at night to a factory gate. He placed the drawing,
believing himself unseen.
The next day, he was picked up from his work. At first, he was treated in a friendly
manner at the police station. He was offered some coffee. During the interrogation, the central
question was by whose order Sorin had pinned up that drawing. Sorin remained silent. They
hit him. He refused to talk. They threatened to cut his wrists. He denied having anything to do
with the drawing.
They showed him the door. “Just go.” As he walked down the corridor, an officer
grabbed hold of him and knocked him unconscious. When he came round, he lay in the corner
of a cell, his hands and face covered in blood. Two fingers of his right hand were paralyzed;
they had cut the tendons. He then was allowed to go. In the bus people wondered at his blood
covered face and hands.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Inglês Aba de anexos para salvar artigo
RESUMO
Palavras-chave:
Discurso. Escrita. Ponto final.
ABSTRACT
From Discourse Analysis French line we noted how is the learning process of the point as a
graphic record inherent to the written modality. We seek to understand the use of the point by
two children - four and five years - students from the third Nursery of Dehon School- Tu-
barão, Santa Catarina. The analysis was based on the record, by these children, from the point
as a graphic sign of an abbreviation word in this case of surnames, semanticized unlike the
first name, since both have the same name. We have observed how two children with the
same names attributed meanings in the registry point to write their names and surnames to
identify the activity performed. The results indicate that the way to abbreviate the name may
refer to different acts of interpretation built by the children.
Keywords:
Speech. Writing. Final point.
1
Doutoranda do Curso de Pós-Graduação de Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina e
Coordenadora Pedagógica do Colégio Dehon; e-mail: clesia.zapelini@unisul.br.
2
Professor do Curso de Graduação e Pós-graduação da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL); e-
mail: san15@ig.com.br.
2
nos chamou atenção, ou seja, as atividades que envolveram o uso da linguagem verbal e não
verbal. Particularmente, interessa-nos os registros gráficos que envolvem a modalidade escrita
desenvolvidos por duas crianças “Beatriz Almeida – 4 anos – e Beatriz Schuelter – 5 anos”3.
A pesquisa consistiu na observação das atividades propostas pela professora regente
da turma a partir da leitura da história “Descobertas de Miguel”, da autora Marilur-
des Nunes. Ao término da leitura da obra, a professora dialogou com as crianças sobre as des-
cobertas que Miguel havia feito. Em seguida, propôs que as crianças saíssem pelo pátio do
colégio fazendo as suas próprias descobertas, a partir do contexto da história contada. Ao vol-
tar para sala, cada criança foi orientada a desenhar em uma folha A4 suas observações feitas
durante a pesquisa de campo.
O que chamou nossa atenção e nos levou a refletir sobre o uso do ponto foi o modo
como essas duas crianças se apropriam do registro das representações icônicas (desenhos) e
simbólicas (nomes próprios e o próprio ponto). Observemos as imagens abaixo:
3
A observação foi realizada com autorização da professora docente. E temos autorização dos pais das referidas
3
tou, em seguida colou o texto no espaço em branco que havia na folha do desenho, também
colou um retângulo com as palavras “A DESCOBERTA DE ........” e pediu para que cada
criança completasse a frase com o respectivo nome, pois aquela seria a descoberta de cada
criança. Dessa forma, cada criança da sala escreveu o seu nome no espaço. Dessa atividade, a
forma como duas alunas atendem o comando da professora nos chama a atenção: Beatriz
Schuelter coloca o seu nome e abrevia o sobrenome Schuelter apenas com a letra “S” e o pon-
to “.”, embora pareça não saber ao certo que o ponto na gramática significa a abreviação, para
Beatriz o “S.” significa Shuelter. Beatriz Almeida, que está sentada ao lado de Beatriz Schuel-
ter, no momento de registrar seu nome, escreve Beatriz.A, ou seja, o ponto aparece entre o
nome o sobrenome representado pela letra A.
É a partir desse contexto de observação e possibilidades de interpretações inerentes
ao uso do ponto que alguns questionamentos passam a fazer parte de nossas reflexões:
• Podemos dizer que a posição em que foi colocado cada ponto vai em direção dife-
rente do uso do ponto final?
• Como as crianças foram interpeladas diante das oportunidades que as mesmas têm
de observar e participar de atos de letramento em situações cotidianas?
• De que forma as duas crianças com nomes iguais atribuíram sentidos no registro do
ponto ao escreverem os seus nomes e sobrenomes para identificar a atividade realizada?
• Podemos dizer que a sequência discursiva que cada uma elaborou tem uma estrutu-
ra que se produziu como acontecimento inerente à entrada no mundo da escrita, mesmo ainda
não estando alfabetizadas?
crianças para divulgação das imagens, nomes e atividades realizadas pelas alunas.
4
determinado corpus, mas fundamentalmente, analisar o sujeito que se constrói neste universo
do letramento onde parece que as crianças estão inseridas desde o seu nascimento.
diferentemente. Ao ser questionada sobre o nome escrito na folha, Beatriz Almeida menciona
que está colocando o “A” para não misturar a sua atividade com a atividade realizada pela
outra Beatriz. Ao mesmo tempo, enfatiza que colocou um ponto “.” entre Beatriz e Almeida
para que possa separar o nome, o que nos leva a conjeturar um processo de segmentação entre
o final do primeiro nome e a letra “A”. Beatriz Schuelter, por sua vez, afirma que o “S.” signi-
fica Schuelter. Portanto, pontuar depois do “S” pode inferir um ato de incompletude, segundo
Orlandi (2004), um silêncio fundante uma vez que não há sentido sem silêncio, assim a lin-
guagem é categorização dos sentidos do silêncio [...]. Também podemos fazer a mesma alusão
para o modo de registro de Beatriz Almeida, pois quando a aluna diz que colocou o “A” para
identificar a si, para ela, o “A” significa o mesmo que Almeida. Nessa perspectiva, Orlandi
(2008, p. 110) menciona que “as marcas de pontuação podem ser consideradas como manifes-
tação da incompletude da linguagem, fazendo intervir na sua análise tanto o sujeito como o
sentido”. Desse modo, podemos pensar que, tanto para Beatriz Schuelter quanto para Beatriz
Almeida, o ato escrever o nome e sinalizar de algum modo o sobrenome remete a uma forma
mais de identificação do que de autoria propriamente4.
As diferentes manifestações da escrita no cotidiano das crianças podem também ser
interpretadas, de acordo com os estudos de Orlandi (1996), sobre o discurso pedagógico5,
como o professor pode ter influenciado as crianças na escolha dessa marca. Vejamos:
4
Não entraremos, neste artigo, na discussão do seria autoria em sala de aula. Para essa abordagem ver Calil
(2004, 2007), Gallo (2008) e Tfouni (1994, 1995).
5
Orlandi (1996) caracteriza o discurso pedagógico como predominantemente “autoritário”, com base na distin-
ção feita entre três tipos de discurso: “lúdico”, “polêmico” e “autoritário” desenvolvido no seu livro A linguagem
e seu funcionamento: as formas do discurso.
6
Figura 3 – Local em que as atividades ficam expostas até as crianças levarem para casa no final do trimestre.
A imagem acima mostra o espaço em que a professora disponibiliza para que cada
criança, ao terminar suas atividades realizadas em folha A4, possa colocar nesse espaço. Nes-
se caso, o professor mostra a sua compreensão do ponto, enquanto marca apresentada pela
gramática normativa, e as crianças repetem de forma parafrástica esse ato mesmo sem com-
preensão das normas.
A exposição do alfabeto colocado na parede da sala, uma atividade comum nas esco-
las, principalmente nos últimos anos da Educação Infantil, 4 a 6 anos, e, no início da sistema-
tização da escrita nos primeiros anos do Ensino Fundamental, demonstra também que a pro-
fessora, mais uma vez, mostra como ela se posiciona frente às normas gramaticais.
Vejamos:
Figura 4 – Alfabeto exposto na sala e algumas palavras que iniciam com letra
7
6
Segundo Corsino (2009, p. 43), “o letramento é um conceito multidimensional que, entendido como um estado
ou uma condição, refere-se a um conjunto de comportamentos variados e de diferentes níveis de complexidade
abrindo-se a uma infinidade de perspectivas de abordagem.”
7
O RCNEI é composto por três volumes: o documento Introdução com informações mais gerais sobre creches e
pré-escolas no Brasil; o volume ligado ao âmbito da Formação Pessoal e Social que trata dos processos relativos
à constituição da identidade e da autonomia pelas crianças; e o terceiro volume, Conhecimento de Mundo, con-
tendo os eixos de trabalho orientados para a construção das diferentes linguagens pelas crianças: Movimento,
Música, Artes visuais, Linguagem oral e escrita, Natureza e sociedade, Matemática.
8
professor fazer constantemente em sala. Para Beatriz Schuelter, o espaço entre o nome Beatriz
e a letra S é um espaço em branco – um silêncio – de sentido que desenha uma materialidade
do texto. Já Beatriz Almeida vai demarcar o espaço com o ponto, porque este ponto serve para
fazer uma demarcação, uma separação da segmentação escrita, assim desenhará outra forma
de materialidade ao texto. Segundo Orlandi (2008, p. 111), “a finalidade é compreender a
relação estabelecida entre a instância do real do sentido (e do sujeito) na ordem do discurso e
a instância imaginária da organização seja das palavras, das frases ou do texto em si.” Dessa
forma, cada criança mobiliza o ponto diferentemente com marca de singularidade, ou seja,
cada uma busca sua posição de sujeito a partir da expressão discursiva de sua singularidade,
não como uma propriedade fixa do sujeito e do discurso, mas como um sempre por advir.
Silva (2010, p. 02) corrobora com este posicionamento quando atribui que:
O sujeito do discurso (inconsciente e desejante) constitui-se no processo discursivo
em que está inserido. Então, sua singularidade é resultante desse processo e de seus
aspectos constitutivos de funcionamento para produção de sentidos, da articulação,
dentro do acontecimento discursivo, da língua, da história e ideologia. Podemos in-
ferir que a singularidade do sujeito discursivo e - como esse mesmo sujeito – um
processo submetido ao histórico e ao ideológico. A marca de singularidade constitui-
se no modo de funcionamento, da língua, no interior da pratica discursiva.
A sequência discursiva que cada criança elaborou tem uma estrutura que se produziu
como acontecimento inerente à entrada no mundo da escrita, mesmo ainda não estando alfa-
betizadas, pois a linguagem escrita é objeto de interesse dessas crianças. O documento de Re-
visão das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 2009) destaca
que o interesse da criança está associado à forma de apresentação da escrita no ambiente em a
mesma está inserida, ou seja, a criança está vivendo em um mundo onde a língua escrita está
cada vez mais presente. Disso, pode-se concluir que as crianças começam a se interessar pela
escrita muito antes que os professores a apresentem formalmente. De acordo com esse contex-
to, podemos inferir que as alunas, Beatriz Almeida e Beatriz Schuelter, ao elaborarem suas
produções escritas, tematizando o uso do ponto, estão simbolizando a partir dessas diferentes
manifestações que as rodeiam e, ao fazer isso, subjetivando-se. Ou seja, ao escrever sobre si
(seus nomes) dizem muito mais de si do que imaginam dizer.
situações se insere na constituição de outros sentidos que podem ser atribuídos ao texto. Dito
de outro modo, o ponto visto como discurso serve para mostrar como essas crianças se subje-
tivam pela modalidade da escrita, ou ainda, como escrever a letra ou o ponto implica em co-
mo a criança se inscreve nesse processo.
Podemos inferir que ao mesmo tempo em que a criança adentra ao universo do letra-
mento, ela se produz como um sujeito outro, um sujeito capaz de ler (nesse caso de interpretar
o ponto, interpretar uma letra), algo não possível quando a criança detinha percepções apenas
do universo da modalidade oral de sua língua.
2 REFERÊNCIAS
GALLO, Solange Leda. Como o texto se produz: uma perspectiva discursiva. Blumenau,
Nova Letra, 2008.
_____. O sistema de pontuação na escrita ocidental: uma retrospectiva. DELTA. São Pau-
lo, v. 13, nº 01, p. 83-117, 1997.
RESUMO
Palavras-Chave:
Ensino-Aprendizagem de Língua Inglesa. Representações. SOME.
ABSTRACT
This study aims at discussing possible representations that a group of ESL teachers from
SOME (Sistema de Organização Modular de Ensino) from Santarém, Pará, a project created
in 1980, aiming at providing education up to the rural areas of paraense towns, hold regarding
the teaching and learning of English language and regarding themselves as speakers of the
language. Since the perceptions of these teachers hold of the language in general may
influence their pedagogical practice, in this study educational, professional and personal
background from the participants were considered relevant.
Key-words:
Teaching and learning of the English Language. Representations. SOME.
1 INTRODUÇÃO
Na recente literatura de Linguística Aplicada, no tocante ao ensino da língua Inglesa
no Brasil, a relação entre o que o professor acredita e o que ele realiza em sala de aula tem se
tornado um objeto relevante de investigação, visto que não é possível separar o professor e
sua vida pessoal, suas experiências e suas percepções do mundo a sua volta. Considerando
que a origem de todo conhecimento novo está na crença individual e que damos sentido às
coisas a partir das nossas visões particulares (Lewis, 1990), é possível afirmar que valores e
crenças dos professores constituem sua cultura de ensinar (Richards & Lockart, 1994).
Apesar de bastante discutido, o construto “crença” ainda é, segundo alguns autores,
difícil de ser claramente definido e que pesquisar a crença de professores constitui-se tarefa
1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Inglês e Literatura Correspondente da Universidade Federal de
Santa Catarina, atuante da linha de pesquisa Aprendizagem e Ensino; e-mail: silvia.crisbarros@gmail.com.
2
As crenças também podem ser entendidas como opiniões e ideias a respeito de algo
ou alguém. São pessoais, contextuais, episódicas e têm origem nas nossas experiências, na
cultura e no folclore. São também internamente inconscientes e contraditórias (Barcelos,
2001) e influenciam comportamentos individuais e a maneira como as ações são definidas e
realizadas (Pajares, 1992).
Embora tenham um caráter subjetivo e, portanto, individual, as crenças são
construídas socialmente, tendo no social, no grupo, sua origem e manutenção. (Basso, 2006).
Além disso, faz-se necessário acrescentar que as crenças e práticas dos professores são
moldadas pelos múltiplos papéis que eles exercem em diferentes contextos: (pais/filhos,
colegas, vizinhos) em combinação com outras forças (família, leituras, professores anteriores)
(Malatér, 2005).
Levando em consideração essas definições e mais ainda que a escolha do arcabouço
teórico usado neste artigo deriva de uma opção pessoal, não se tendo como foco discutir
questões terminológicas, o conceito de representações é usado nesta pesquisa qualitativa, na
intenção de descrever as percepções e/ou crenças (doravante representações) de professores
de língua Inglesa como segunda língua em Santarém, Pará, acerca da Língua Inglesa e sobre
eles mesmos enquanto falantes dessa língua. Experiências educacionais, profissionais e
3
De acordo com as autoras, esse conceito engloba crenças sem, no entanto limitá-las
(Freire & Lessa, 2003). Ainda conforme as autoras, as representações contemplam os
contextos social, histórico e cultural dos quais emergem, sem negligenciar questões políticas,
ideológicas e teóricas, (Celani & Magalhães, 2002) e que o entendimento de uma
representação implica “o entendimento de toda a intricada conjuntura que lhe serve de origem
e lhe dá sustentação” (Freire & Lessa, 2003).
Corroborando tais ideias, Loureiro (2003) argumenta que as representações são
criadas e recriadas pela totalidade dos membros de uma determinada formação social, ou seja,
elas são obra coletiva, socializada. O autor afirma também que as representações sofrem
influência da ideologia dos grupos e das classes que dominam a sociedade, haja vista serem
sociais (Loureiro, 2003, p.111).
2 CONTEXTO DA INVESTIGAÇÃO
Esse estudo apresenta os resultados de uma pesquisa qualitativa, conduzida em
Santarém-Pará, que teve como objeto de investigação três professores de inglês do SOME, um
projeto criado em 1980, pela SEDUC-PA (Secretaria de Educação do estado do Pará), em
parceria com a 5ª URE (5ª Unidade Regional de Ensino), situada em Santarém, com o
objetivo de levar o Ensino Médio às comunidades ribeirinhas isoladas das cidades, evitando
assim o êxodo rural e alguns problemas sociais dele derivados, como por exemplo, a
marginalidade e a prostituição nos municípios paraenses, considerados pólos de educação até
então. Atualmente o SOME encontra-se em 88 municípios paraenses, em 345 localidades,
4
com 827 docentes. Os professores de Inglês que atuam no pólo de Santarém e comunidades
vizinhas são, em sua maioria, professores de língua portuguesa.
Vale ressaltar que a opção por este contexto de investigação não se deve apenas ao
fato de que eu mesma pertença a ele, como também ao fato de que poucas pesquisas sobre
formação de professores de língua inglesa foram conduzidas na região amazônica.
Despretensiosamente, até mesmo pelo número reduzido de participantes, pretendo elucidar
algumas representações que são partilhadas pelos colegas de profissão, na convicção de expor
os resultados aos participantes assim que possível.
3 A ANÁLISE
Procurando responder as seguintes perguntas: quais as representações que os
professores têm da Língua Inglesa de um modo geral e quais as representações que os
professores têm enquanto falantes de Língua Inglesa, um questionário aberto com dez
perguntas foi elaborado e enviado por email para os participantes em outubro de 2010.
Baseada nas respostas, uma entrevista semi-estruturada com dezesseis perguntas foi
conduzida, in loco, em janeiro de 2011.
Os dados foram analisados conjuntamente, de forma que foi possível dividir as
representações encontradas em dois subtópicos: os professores de Inglês do SOME e a língua
Inglesa em sua região e os professores de Inglês do SOME e suas práticas pedagógicas. A
seguir, os resultados e alguns dos excertos que confirmam as representações sugeridas.
a própria língua, em todos os seus sentidos, em todos os seus aspectos, nós precisamos
também praticar, que são dois , duas atividades muito difíceis, conhecer e praticar”.
3.1.3 Professores de Inglês devem falar Inglês
(Como você acha que um professor de Inglês que não fala a língua se sente em
diferentes contextos?) “o sentimento que você tem é de um espaço a ser preenchido. Porque
pra você ser um profissional em qualquer campo, né, do saber, em qualquer área,
você...teoricamente você deve ter um conhecimento mais profundo sobre a área. Então eu ser
um professor e não falar, não usar a língua na melhor performance te deixa um espaço. Eu
sinto um espaço, um vazio, uma lacuna por conta disso”.
3.1.4 A Língua Inglesa é vista como uma língua mundial
“a língua inglesa hoje é a língua mais importante do mundo, é a língua do...é a língua
mundial, né? Então, pra minha vida enquanto profissional ou partícipe da sociedade, é muito
importante eu conhecer essa língua, sendo que ela é...ela está em contato, nós estamos em
contato , constantemente, nosso dia a dia com essa língua, então porque não aprofundar o
conhecimento e aprender cada vez mais”.
profissional competente naquilo que delegaram a mim como professor, como educador.
Então, eu sempre tenho em mente que eu preciso buscar mais”.
“Sempre tenho me policiado, quando eu vejo que alguma coisa...eu tenho material de
fonética aqui...eu procuro estar sempre olhando...os sons...eu sempre to me policiando”.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo demonstrou uma forte ligação que os participantes fazem entre o “ser um
bom professor de Inglês” com o “falar inglês”, principalmente falar como um nativo dessa
língua. Uma vez que essa “perfeição” não é alcançada, surgem os sentimentos de
inadequação, frustração e consequentemente, complexo de inferioridade (Fernandes, 2006), o
qual certamente irá influenciar a construção da identidade profissional desses professores.
Outro fato importante é que nesse estudo, essa ligação entre o bom professor de
inglês e a competência lingüística é sempre uma ligação de “falta de”, corroborando com os
dados encontrados em um levantamento de pesquisas envolvendo identidade dos professores
de Inglês no Brasil, conduzidos por El- Kadri (2010). Essa “falta de” deriva diretamente da
comparação contínua com o falante nativo, verdadeiros “donos” da língua e o modelo de
perfeição para muitos professores. Ainda de acordo com a autora, essa comparação desperta
inseguranças e incertezas nos professores.
Alguns estudos conduzidos sobre crenças, percepções e representações de
professores de Inglês no Brasil também elucidaram tais fatos. Nota-se, em sua maioria, uma
substancial e preocupante crise de identidade nesses profissionais, já que perguntas como o
que ensinar em sala de aula, em um mundo cada vez mais globalizado, surgiram. Essa
7
insegurança, envolvendo questões sobre o que saber, o que fazer e como agir (Quevedo-
Camargo & Ramos, 2008), prejudicam não só o processo de construção da identidade
profissional, como também suas práticas pedagógicas.
Apesar de todos os percalços descritos pelos professores envolvidos nesse estudo,
eles se mostraram realizados com a profissão que acolheram muito embora imbuídos da
necessidade de se aperfeiçoar cada vez mais. Os participantes também citam com bastante
freqüência a falta de oportunidade de praticar a língua oralmente e a necessidade que sentem
de uma formação continuada, visto que em nossa cidade a formação de professores de Inglês
ainda é precária.
5 REFERÊNCIAS
BARCELOS, A. M. F. Researching Beliefs about SLA: A critical review. In: KALAJA, P.;
BARCELOS, A. M. F. (Orgs) Beliefs about SLA: New research approaches. Kluwer
Academic Publishers. Netherlands, 2003 p. 7-34.
FEIMAN-NEMSER, S.; FLODEN, R.E. The culture of teaching. In: M. WITTROCK (Org.).
Handbook of research on teaching. New York: Macmillan, 1986. P.505-526.
PEREZ GÓMEZ, A.I.. A Cultura Escolar na Sociedade Neoliberal. Porto Alegre: Artmed,
2001.
RICHARDSON, V. The role of attitudes and beliefs in learning to teach. In: J. SIKULA
(Org.). Handbook of research on teacher education. New York: Macmillan, 1996. p.102-
119.
9
WENDEN, A. Helping language learners think about learning. ELT Journal, v. 40, n. 1,
1986, p. 3-12.
WOOLFOLK HOY, A.; MURPHY, P.H. Teaching educational psychology to the implicit
mind. In: R. STERNBERG; B. TORFF (Eds.). Understanding and teaching the intuitive
mind. Mahwah, NJ: Lawrence Erlbaum, 2001, p. 145-185.
ANEXO
Entrevista Semi-estruturada:
14. Você se preocupa com e ensino da língua inglesa nas tuas aulas? Quais
aspectos? Quais metodologias?
15. Como você se vê hoje como professor de inglês e como você gostaria de ser?
SUMÁRIO GERAL Sumário de Inglês Aba de anexos para salvar artigo
RESUMO
Palavras-chave:
Cinema. Transexualidade. Heteronormatividade.
ABSTRACT
The aim of this work is to give rise to a discussion about heteronormativity (and attempts to
rearticulate it) in the musical film Hedwig and the Angry Inch (dir. John Cameron Mitchell,
2001). I depart from the hypothesis that it is possible to reveal the operation, in that diegesis,
of the gender relations matrix as described by Judith Butler in the first part of the introductory
chapter of her book Bodies That Matter: On the Discursive Limits of “Sex” (1993),
through the trajectory of the character Hedwig. In the film, the transsexual punk artist Hedwig
Schmidt tells her life story through the songs she plays with her band. In this work, I offer a
summary of Butler‟s idea and establish a dialogue between such idea and selected moments of
Hedwig‟s life, highlighting the points in which the structure of the heteronormative matrix is
revealed and, at the same time, defied by the character. This work is located among Cultural
Studies productions that relate Queer Theory and Cinema and Media Studies. With this study,
I intend to contribute to the questioning of heteronormativity and to participate in the
discussions aimed at observing the depiction of the different sexualities in popular culture; in
the specific case of this work, of transexuality in film.
Keywords:
Film. Transexuality. Heteronormativity.
1 A frase “Sem mim no meio, querido, você não seria nada” (minha tradução) vem de da letra de uma das
canções presentes no filme, escritas por Stephen Trask. O trecho citado será discutido a seguir.
2 Mestre em Letras/Inglês pelo Programa de Pós-graduação em Letras/Inglês e Literatura Correspondente da
Universidade Federal de Santa Catarina; e-mail: claudia.mayer@gmail.com.
2
1 INTRODUÇÃO
Judith Butler apresenta a ideia que será utilizada neste artigo já na introdução de seu
trabalho intitulado Bodies That Matter: On The Discursive Limits of Sex (1993). A escolha
desse ponto exato do texto de Butler se justifica porque é nele que a autora torna explícita a
estrutura de nossa sociedade no que diz respeito à sexualidade e ao gênero dos indivíduos que
a habitam—ou daqueles indivíduos que, como discutiremos mais à frente, dela são excluídos.
Pois, como a autora demonstra e é imprescindível compreender, o conjunto de normas que
gera os sujeitos que fazem parte dessa sociedade ao mesmo tempo gera também aqueles que
dela não podem fazer parte. Em resumo, esse conjunto de normas, ou a “matriz de relações
entre gêneros” (1993, p. 3) define quais são os corpos que podem ou não se materializar
durante o processo de formação dos sujeitos. Então, vamos observar a estrutura de que
estamos falando, de acordo com as palavras de Butler.
Em primeiro lugar, é importante termos em mente que a autora vai falar sobre a
materialização dos corpos. Isto é, como tais corpos vão se tornar reais, ou melhor, possíveis.
Por “possíveis”, se quer falar da maneira como esses corpos serão classificados e obterão
reconhecimento, funções e padrões de comportamento de acordo com as normas que são
estabelecidas para cada sexo definido. Segundo ela, a materialização dos corpos é marcada
pelo trabalho conjunto de duas forças: a biológica, por assim dizer, e as práticas discursivas
que envolvem esse corpo biológico através do tempo. As forças que chamo “biológicas”
dizem respeito às configurações físicas de um corpo, ou seja, características como aspecto dos
genitais, hormônios, funcionamento de glândulas, etc. Por exemplo, quando um corpo que
ainda está sendo gerado é examinado e recebe o rótulo de “menino” ou “menina” de acordo
com uma avaliação médica. Entretanto, a autora ressalta que essas configurações físicas não
podem ser dissociadas das práticas discursivas que acompanham essa sexualização do
indivíduo. Para ela, não se pode afirmar que apenas a biologia define o sexo dos sujeitos, da
mesma maneira que apenas as práticas discursivas também não são capazes de fazê-lo.
Tal processo de produção dos corpos, categorizando-os a partir do “sexo” é altamente
regulado, tendo como base um ideal que Foucault chama de “Ideal Regulatório”, conforme
cita Butler (1993, p. 1). Ou seja: existe um “modelo”, uma idealização do que é possível que
esses corpos venham a ser. As consequências desse processo não são definitivas ou imutáveis.
Conforme Butler observa, é necessário que as regras sejam reiteradas, repetidas, o que
significa que o processo nunca está completo. É exatamente neste ponto que começa a ser
possível ver por que o filme Hedwig: Rock, Amor e Traição se torna uma fonte interessante
para a reflexão sobre a sexualização e gendramento dos corpos. Por tal processo ser instável e
3
mutável, ele dá margem a rearticulações que “questionam a força hegemônica da própria lei
regulatória” (1993, p. 2).
Como já dito anteriormente, essa matriz reguladora não produz apenas aqueles
corpos possíveis, ou seja, aqueles que se tornam adequados a esta ou aquela classificação
dentro da categoria “sexo”. Ela também produz aqueles que não são capazes (ou melhor, que
a própria lei regulatória determina não serem capazes) de ser classificados dentro das
categorias que coloca à disposição. Tais corpos, inclassificáveis, povoam uma zona que Butler
chama de inabitável. Esses corpos não conseguem o status de sujeito porque não são
adequados ao ideal regulatório, mas isso não significa que eles deixam de fazer parte da
matriz que os gerou. Na realidade, eles constituem os limites imprescindíveis para o domínio
dos sujeitos possíveis, pois é olhando para esses corpos inclassificáveis que aqueles passíveis
de classificação podem reivindicar seu direito à existência. Ou, nas palavras de Butler, “o
sujeito é constituído através da força de exclusão e desprezo, uma força que produz um
exterior constitutivo para o sujeito, um exterior abjeto, que está, enfim, 'dentro' do sujeito
como seu próprio repúdio fundador” (1993, p. 3).
Após essa explicação, bastante simplificada, talvez seja redundante acrescentar que a
matriz geradora de que falamos é baseada no binômio masculino/feminino, ou seja, na
heterossexualidade. Portanto, as duas classificações possíveis dentro da categoria sexo são ou
“masculino”, ou “feminino”. O ideal regulatório empurra os corpos para essas duas
categorias, e aqueles que ficam de fora e povoam as “zonas inabitáveis” são aqueles corpos
que não podem ser chamados nem de “homem”, nem de “mulher”. Aí estão localizados vários
grupos que Sharon Conwan (2009) classifica como “trans”. Para a autora, essa denominação
Esses corpos “trans” que habitam o exterior abjeto, que formam a margem, são
aqueles corpos que Lou Reed convida a conhecer em sua canção quando diz “hey babe, take a
walk on the wild side”3. A personagem Hedwig se aproveita do mesmo convite repetindo
essas palavras para a sua audiência, convidando aqueles que estão assistindo-a contar sua
história, a observar a representação de um elemento desprezado e marginalizado e como esse
elemento se relaciona com as normas, se revolta contra elas e luta pelo reconhecimento de sua
3 REED, Lou. “Walk on the Wild Side”. In: Transformer. Prod. David Bowie, Mick Ronson. RCA Records,
1972.
4
4 Neste trabalho, será utilizada a concordância no masculino para se referir a Hansel, o menino da cirurgia de
redesignação sexual, diferenciando-o da personagem Hedwig-trans e da personagem da mãe, que tem o
mesmo nome que a artista. A concordância no feminino será utilizada para a personagem após a cirurgia.
6
5 Importante notar que, nessa diegese, atravessar de um polo a outro a fronteira entre os gêneros faria com que
Hedwig se tornasse adequada automaticamente. A posição de uma mulher trans não é problematizada no
filme, talvez porque Hedwig não realiza a transição por completo. Entretanto, é possível também
compreender a falta dessa problematização como um sinal de que a transição é problemática por si só, e
impossível de ser realizada completamente.
6 “Angry inch”: “polegada colérica, em tradução literal. Na versão brasileira do musical para teatro, dirigida
por Evandro Mesquita, é utilizada a versão “Hedwig e o Centímetro Enfurecido”.
7
Essa mudança a que ela é submetida, mais por vontade do imperativo heterossexual do que
sua própria vontade, é associada à violência de ter o corpo amarrado a um trilho por onde um
trem está prestes a passar e ela não pode fugir (l. 22-23). Hedwig é bastante gráfica em sua
descrição física, não deixando margem a nenhuma possibilidade de não ser bem
compreendida. Porém, mesmo sofrendo tamanha violência e abuso, a personagem não deixa
de ver a situação com algum bom humor. Esse humor se revela quando Hedwig faz uma piada
a respeito do seu primeiro dia como mulher após a operação:
Pode-se compreender pelo “bom humor” de Hedwig que ela não quer ser vista como
uma vítima, mesmo depois de revelar a violência que sofreu. O que ela quer é expor sua
realidade, mas não se tornar uma mártir. Em seguida, Hedwig demonstra que existe um
espaço que ela pode ocupar com segurança. Nesse lugar, ela pode ser o elemento ativo de suas
ações, mesmo antes tendo sido levada a tomar decisões drásticas pela vontade de outras
pessoas ou do sistema em que vive. Nos últimos versos dessa canção, ela diz: “stay under
cover till the night turns to black / I got my inch and I'm set to attack”8. Mais uma vez, vem a
ideia do disfarce já presente nos versos anteriores. Entretanto, quando a noite chega, o
disfarce pode acabar e a postura do indivíduo que antes se escondia não é mais de subjeção, e
sim de ataque. Neste trecho também é possível perceber uma ideia que Butler menciona, que é
a do “espectro ameaçador” (1993, p. 3) que, criado pelo repúdio fundador, mantém os limites
visíveis para o sujeito de uma maneira que este não queira desafiá-lo. Hedwig brinca com esse
conceito, colocando-se numa posição entre a sujeição e a revolta contra tal sujeição, e também
se posicionando como uma ameaça ativa, que não só ameaça o sujeito pela sua existência mas
também por sua própria vontade.
A canção Tear Me Down também compartilha desse movimento contrário à subjeção.
Nessa letra, Hedwig admite que tem inimigos e adversários que podem querer destruí-la e
avisa que está indo na direção deles (“now I'm coming for you”—l. 7). Ela também reafirma
os abusos que sofre por causa de sua posição indefinida na sociedade após a cirurgia que dá
7 “Quando acordei da operação / eu estava sangrando lá embaixo. / Eu estava sangrando pelo GASH entre
minhas pernas. / Meu primeiro dia como mulher, / e já esse período do mês” (minha tradução).
8 “Fique escondido até que a noite se torne negra / eu tenho minha polegada e estou pronta para atacar” (minha
tradução).
8
errado: “Now everyone wants to take a stab / and decorate me / with blood, grafitti and spit”9
(l. 14-16). Esse trecho mostra que um indivídio que não goza de autonomia e reconhecimento
dentro do sistema heteronormativo carrega também marcas que o mantém sempre
reconhecível, impedido de se misturar aos sujeitos autênticos. Essas marcas, “sangue, grafite e
cuspe” também podem ser associadas à violência e ao desprezo.
Entretanto, Hedwig utiliza essas marcas para provar a necessidade de sua existência e
afirmar a sua importância. Já nos primeiros versos da canção, a personagem diz ser o novo
Muro de Berlim (l. 2), e mais à frente essa metáfora é explicada quando o Muro de Berlim é
comparado à posição que Hedwig ocupa entre os gêneros. Assim como o Muro dividia o
mundo entre “Leste e Oeste” e “Escravidão e Liberdade” (l. 34-35), Hedwig marca a
separação entre “Homem e Mulher” (l. 36). A importância dessa marca de divisão é oferecida
logo em seguida:
9 “Agora todos querem tirar um pedaço / e me decorar / com sangue, grafite e cuspe” (minha tradução).
10 “Não há muita diferença / entre uma ponte e um muro. / Sem mim no meio, querido / você não seria nada”
(minha tradução).
9
11 “Reporta-se que todas as passagens estão abertas e milhares estão entrando na parte ocidental da cidade para
celebrar a recém-encontrada liberdade. O Muro de Berlim caiu, e o mundo nunca mais será o mesmo. Os
alemães são um povo paciente, e boas coisas chegam àqueles que esperam” (minha tradução).
10
Deprimida, ela revela qual é a saída que encontrou para não deixar de existir: “I put on some
make up / turn on the tape deck / And pull the wig down on my head” (l. 10-12) 12. É através
de novos disfarces em um mundo de fantasias que Hedwig consegue prosseguir e obter
visibilidade e reconhecimento. Quando se olha no espelho, ela pode ser quem quiser, como
uma participante de concursos de beleza (“Miss Midwest Midnight Checkout Queen”, “Miss
Beehive 1963”—l. 13-14, 27) ou uma artista de TV (“Miss Farrah Faucet from TV”—l. 41-
42). Mas a fantasia acaba, segundo suas palavras, quando “[ela] vai para casa e deita-se na
cama” (l. 15-16, minha tradução) ou quando “acorda e se volta para [si] mesma” (l. 28-29,
minha tradução).
De repente, para sua surpresa, os músicos de sua banda entram pela porta do trailer e
o último a entrar, Yitzhak, lhe oferece uma peruca em uma bandeja. A partir desse momento a
música muda, tornando-se mais alegre e a personagem assume uma postura mais corajosa. Ela
reconhece que, apesar de usar seus disfarces e alimentar um mundo de fantasia, essa foi “a
melhor maneira que [ela encontrou / de ser o melhor que você já viu” (“this is the best way
that I've found / to be the best you've ever seen”—l. 36-37). Com esses versos, a personagem
assume a sua própria personalidade. Uma personalidade fluida, que se mistura com várias
outras e pode tomar diferentes formas e viver várias fantasias. Então, a personagem estabelece
mais uma forma de diálogo entre dois mundos separados ao olhar diretamente para a câmera.
Os limites desafiados e transpostos pela personagem quebram também a quarta
barreira, aquela que separa os artistas em palco do público. A canção então se torna um hino
ao poder que Hedwig adquire através do drag e da música, e esse poder é compartilhado com
os espectadores no momento em que a banda derruba a parede do trailer—assim como o Muro
de Berlim e a quarta parede são derrubado—, que se transforma em palco. Então, todos os
músicos se agrupam para olhar diretamente para a câmera por uma janela e convidam o
público a cantar junto com eles. É utilizado o recurso de karaokê, que coloca a letra da música
na tela e também indica o tempo certo para a execução da letra (o símbolo utilizado para
marcar o tempo é a peruca estilizada, marca da personagem, já mencionada anteriormente). O
último verso da canção demonstra que Hedwig não se arrepende das decisões que tomou nem
do caminho que percorreu. Segundo ela, ela se tornou “this punk rock star of stage and
screen”13 e declara: “I ain't never coming back” (l. 58-61)14.
12 “Eu me maquio / ligo o toca-fitas / coloco a peruca em minha cabeça” (minha tradução).
13 “Esta estrela do punk rock, no palco e na tela” (minha tradução).
14 “Eu nunca voltarei atrás” (minha tradução).
11
3 CONCLUSÃO
O objetivo deste trabalho era iniciar uma leitura do filme Hedwig: Rock, Amor e
Traição através do ponto de vista oferecido por Judith Butler acerca da estrutura
heteronormativa do processo de materialização dos sujeitos. Foi possível perceber nos
momentos discutidos da vida da personagem Hedwig que ela procura desestabilizar as normas
a que está sujeita, em um esforço por rearticulá-las e abrir caminhos para novas autenticidades
e possibilidades para os corpos marginalizados pelo sistema binário masculino/feminino. As
tentativas de rearticulação da personagem são baseadas em obter visibilidade e
reconhecimento para esses corpos abjetos, através da reafirmação de sua existência.
Butler (1993) identifica alguns itens cruciais para a rearticulação das normas de
gênero impostas aos sujeitos (p. 2-3). São eles, em resumo: a) compreender a materialização
dos corpos como um processo dinâmico indissociável das normas que o regem e dos
resultados materiais dessas normas; b) entender a performatividade como um poder
reiterativo, ou seja, a repetição de discursos que regulam e restringem os fenômenos que
produz; c) interpretar o “sexo” não apenas como uma característica biológica em que a
construção do gênero se baseia artificialmente, mas sim como uma “norma cultural que
governa a materialização dos corpos” (p. 3); d) rever a ideia de “assumir” um sexo como um
processo através do qual o sujeito é formado, e não um processo atravessado por esse sujeito;
e) estabelecer uma ligação entre o processo de “assumir um sexo” e a identificação do sujeito,
levando em consideração as possibilidades de identificação—ou des-identificação—possíveis
dentro da matriz regida pelo imperativo heterossexual.
Como pudemos ver, superficialmente, o filme de John Cameron Mitchell nos oferece
a possibilidade de discutir os itens descritos por Butler. Vários outros autores também
exploram as muitas possibilidades de leitura deste filme dentro da busca por rearticular a
heteronormatividade, a representação da diversidade sexual no cinema, na música e em outras
manifestações da cultura popular. Como Conwan (2009) ressalta,
Tais discursos sócio-políticos e culturais são os alicerces em que se baseia a norma que regula
a materialização dos corpos, a reiteração dessas normas e as possiblidades de rearticulação
que surgem com o tempo. Por isso, justifica-se o estudo das manifestações da cultura popular
12
para compreender a sociedade em que vivemos e as regras que nos são impostas. A riqueza do
trabalho de Mitchell nesse contexto é a possibilidade de análise em diversas frentes, como o
contexto histórico em que a ação está localizada, a utilização do punk rock como instrumento
de empoderamento e autenticidade, a estética drag como identificação, entre outras instâncias
que este trabalho não aborda, mas que esperamos ser trazidas à tona e discutidas tendo como
ponto de partida o diálogo que tentamos iniciar.
4 REFERÊNCIAS
BUTLER, Judith. Bodies That Matter: On The Discursive Limits of “Sex”. Nova York, NY:
Routledge, 1993.
CONWAN, Sharon. “We Walk Among You”: Trans Identity Politics Goes to the Movies.
Canadian Journal of Women & the Law, v.21, n.1, 2009. P. 91-117.
FEFFER, Steve. “Despite All the Amputations, You Could Dance to the Rock And Roll
Station”: Staging Authenticity in Hedwig and the Angry Inch. Journal of Popular Music
Studies, v.19, n.3, 2007. p. 239-258.
MITCHELL, John Cameron (Dir.) Hedwig and the Angry Inch. New Line DVD, 2001.
SUMÁRIO GERAL Sumário de Inglês Aba de anexos para salvar artigo
RESUMO
Palavras-chave:
Pós-colonial. Re-escritura. Outro.
ABSTRACT
Keywords:
Post-colonial. Re-writing. Other.
1
PhD candidate at PPGI/UFSC; e-mail: rldalmaso@gmail.com.
2
This, however, leads to the question: how exactly are these characters given a voice? In what
ways can you subvert a text if even in the appropriation of that text the characters still appear
as monstrosities in a way? What I hope to do in this paper is to analyze the processes in which
these characters remain othered in the rewritings mentioned.
First of all I want to clarify exactly what I mean by the term ‗monstrosity‘. Judith
Halberstam says the monster ―announces itself (de-monstrates) as the place of corruption‖,
presumably of humanity or of the human form (2000, p. 2). This place then could be the
mind, the body or even the soul. Generally, the image of the monster has always been
associated with hybridity or deformation, simultaneously close to and distant from humanity,
in sum a paradox (BELLEI, 2000, p. 11). In other words, the monster is the creature that at the
same time sets and crosses the boundaries of what is understood to be human. In this sense,
the concept of monstrosity should be understood as that which unsettles, as that which
generates an uncanny feeling (FREUD, 1976). It is within this context that I propose to
analyze such characteristics as madness, physical deformity, witchcraft, and cannibalism
present in the characters of Antoinette/Bertha and Friday.
From the beginning of the narrative in Wide Sargasso Sea, Antoinette is seen as an
outsider, even in her own land. Daughter to an impoverished family of former slave-owning
glory, she clearly states at the very first sentence that they do not belong: ―They say when
trouble comes close ranks, and so the white people did. But we were not in their ranks‖
(RHYS, 1966, p. 15, my emphasis). Their situation is delicate in a country filled with racial
tension after the emancipation of the slaves, and the family is constantly harassed due to their
fragile social position. If on the one hand they are not accepted in the closed ranks of the
whites, on the other they were despised by the blacks, who refer to them as ―white
cockroaches‖ (1966, p. 20). The violence escalates until it culminates in a fire that burns
down their house. This initial setting is relevant for it establishes the background of
Antoinette‘s character and foreshadows her eventual downfall as the pyromaniac that burns
Thornfield Hall to the ground (even though in Wide Sargasso Sea, she never actually
completes the act described in the pretext Jane Eyre). If the monster is announced as a place
of corruption, as Halberstam claims, the setting in Wide Sargasso Sea is very telling of this
nature. Coulibri State is described as once having been ―large and beautiful as that garden in
the Bible – the tree of life grew there. But it had gone wild‖ (1966, p. 17). In other words, the
place was subjected to corruption, much like its Biblical counterpart.
3
It seems inevitable, given her origins, that Antoinette should follow the same path
and be corrupted into wildness. Or at least that is the assumption that her husband makes. His
perspective is crucial, as the transition from Wide Sargasso Sea‘s Antoinette to Jane Eyre‘s
Bertha takes place through his point of view in the second part of the narrative. It is in this
second part of Wide Sargasso Sea that the two narratives point to a convergence that will
culminate in the third section of the novel, with the reenactment of the events prior to the
burning of Thornfield Hall in Jane Eyre. As Julia Sanders points out, the issue of renaming,
such as Rochester‘s efforts to address Antoinette as Bertha, is particularly relevant here, since
it ―constitutes an attempt [by Rochester] to occlude [Antoinette]‘s genetic links with her
mother and by extension with the family‘s supposed hereditary insanity‖ (2006, p. 102).
Rochester seeks not only to erase all connections with the insane woman, but his efforts to
conceal the marriage from acquaintances and relations in England seems also to indicate a
desire to avoid a link to a Creole descendant: ―Creole of pure English descent she may be, but
they are not English or European either‖ (1966, p. 61).
Rochester‘s description of his wife is clearly related with the monstrous, both in
Wide Sargasso Sea— a ―red-eyed wild-haired stranger who was my wife shouting
obscenities at me‖ (1966, p. 135)—as in Jane Eyre:
In both cases Rochester makes a point of distancing the character Antoinette/Bertha from any
trace of humanity or civilization and approximating it to animal and wild characteristics.
Antoinette appears to be monstrous to Rochester even before the events that led to
her breakdown, however. During their honeymoon, the uncanniness in his gaze is already
present: ―her eyes which are too large and can be disconcerting. She never blinks at all it
seems to me. Long, sad, dark alien eyes.‖ (1966, p. 60-1). This supports the assumption that
the monstrosity in Antoinette did not surface with her madness, it was always already there, at
least in his eyes, as he himself lets out: ―when did I begin to notice all this about my wife
Antoinette? After we left Spanish Town I suppose. Or did I notice it before and refuse to
admit what I saw?‖ (1966, p. 61). Perhaps this is the reason this transition needed to be shown
through his point of view after all, to reveal to the reader that the status of Other was already
4
pinned to Bertha Mason long before she was confined in that Thornfield Hall attic. Bertha‘s
story, even in the revisionary text, is not her own to tell.
In Foe, another revisionary text, the character of Friday is the one who cannot tell his
own story. He is not just symbolically mute, like Bertha Mason; the literality of his
muteness—he had his tongue cut out by slave traders or perhaps even by Cruso (the ―e‖ from
Crusoe disappears in Coetzee‘s version) himself as the narrative indicates—is at times both
shocking and monstrous. In this rewriting, the voice is given to a female character and main
narrator, Susan Barton, the second subject of Robinson Cruso on his island, who is
nevertheless also unable to tell Friday‘s story to the world. In this case, it is the physical
deformity of his character that marks his oppression and status as a monstrosity. As Sanders
points out, ―in a reverse move to Jean Rhys‘s desire to give Bertha Rochester a voice in
Antoinette‘s narrative in Wide Sargasso Sea, Coetzee maintains Friday‘s silence until the
close of his novel‖ (2006, p. 111). Cruso‘s version in also told only through Susan, for he
never gets a chance to return to his home country and dies on the way back.
The character Susan tries to discover Friday‘s real story, the one besides what she
was told by Cruso on the island and that she suspects may not be the real one. She wants his
true tale to be told, but as hard as she tries she cannot find a way to communicate with him
beyond the simplest directions, signals and words. Several techniques are employed in the
attempt to establish further communication with Friday: drawing, teaching him how to read or
write, music, dancing, body language. All fruitless, as he remains—whether willingly or
unwillingly stays unclear—silent. Her critique here is that Cruso was mistaken in his
relationship with Friday: ―Cruso would not teach him because, he said, Friday had no need of
words. But Cruso erred. [. . .] For I cannot believe that the life Friday led before he fell into
Cruso‘s hands was bereft of interest‖ (1986, p. 56).
Susan, in the context of the island, it would seem advantageous for Cruso to have a
companion instead of a servant: ―then Cruso might have spoken to Friday after his manner,
and Friday responded after his, and many an empty hour been whiled away‖ (1986, p. 56).
This thought, however, is only in favor of Cruso or herself ―out of loneliness‖, and not
necessarily on Friday‘s behalf. She seems to acknowledge this bias when pondering over the
contradictions of her behavior towards him:
when benevolence deserts me and I use words only as the shortest way to subject
him to my will. At such times I understand why Cruso preferred not to disturb his
muteness. I understand, that is to say, why a man will choose to be a slaveowner.
(1986, p. 77, p. 60-1)
5
If in this ―post-colonial reading of Defoe‘s novel, Crusoe is still the master and
Friday the servant‖, as much as Susan tries to pull away from that pattern and give Friday a
voice, she does not break the relationship between oppressor and oppressed (HELENE e
CORRÊA, 2005, p. 224). Eventually Susan just ends up replacing Cruso as Friday‘s master
and keeper. Even in the revisionary text, Friday‘s head remains under the foot of his colonizer
and rescuer. In a Prospero-like manner, Susan ultimately acknowledges the thing of darkness
in her life as hers: ―A woman may bear a child she does not want, and rear it without loving it,
yet be ready to defend it with her life. Thus it has become, in a manner of speaking, between
Friday and myself. I do not love him, but he is mine‖ (1986, p. 111, my emphasis).
An unwanted progeny of an unloving mother, Friday remains a mystery throughout
the novel. His whole existence is obscure: who is he? Where does he come from? What
happened to his tongue? Why is he so willingly submissive? Has he sexual desire? What is
the ritual performed with the petals? The list of questions goes on and only adds to the general
feeling of uneasiness towards the character. Susan‘s concern is that along with the ability to
speak, Friday may have lost part of his humanity: ―the unnatural years Friday had spent with
Cruso had deadened his heart, making him cold, incurious, like an animal wrapped entirely in
itself‖ (1986, p. 70). Humanity, for Susan, is tied to the concept of communication and
interaction through language, which means that the idea of a lack of speech is correlate with a
lack of humanity, something that can only cause ―shiver[s]‖ to her body (1986, p. 57).
The tension regarding his monstrosity escalates when combined with fears of
cannibalism, such as at the sight of the corpse of a baby by the road:
my thoughts ran to Friday, I could not stop them, it was an effect of the hunger. Had
I not been there to restrain him, would he in his hunger have eaten the babe? [. . .]
part of me knew he was the same dull blackfellow as ever, another part, over which I
had no mastery, insisted on his bloodlust. (1986, p. 106)
The narrator Susan is negotiating here between the choices of stereotypes in this colonial
dichotomy: docile or savage. On the one hand Uncle Tom‘s dull blackfellow, on the other the
cannibal savage of Columbus journeys. As Friday is unable to speak for himself, there is no
third option in representation here. Moreover, since Friday has no story, there is no evidence
that he was ever part in any cannibalistic act. The anxiety over this possibility remains though.
In relation to that, Daniel Defoe‘s Crusoe could only conceive of the natives as being
a ―pitch of inhuman, hellish brutality, and the horror of the degeneracy of human nature‖
precisely because of their cannibalistic habits (2010, p. 141). Furthermore, going briefly back
to Jane Eyre‘s and Wide Sargasso Sea‘s Bertha Mason/Antoinette, the anxiety of cannibalism
6
is also associated with her character: in both novels she is the protagonist of attacks that
involve the biting of human flesh. In Wide Sargasso Sea she bites Rochester‘s arm during an
argument while in Jane Eyre she attacks Richard Mason by biting him brutally on the chest.
The idea of the Other as cannibal is recurring in colonial discourse, particularly in the
Caribbean, as Peter Hulme points out:
Discursively the Caribbean is a special place, partly because of its primacy in the
encounter between Europe and America, civilization and savagery, and partly
because it has been seen as the location, physically and etymologically, of the
practice that, more than any other, is the mark of unregenerate savagery—
cannibalism. ‗Cannibalism‘ – and it will, until satisfactorily made sense of, be held
in those inverted commas – is the special, perhaps even defining, feature of the
discourse of colonialism as it pertained to the native Caribbean. (1986, p. 3)
It is no coincidence then that both novels, Wide Sargasso Sea and Foe, are set in the
Caribbean2 and deal with the issue of cannibalism and the characterization of corrupted
subjects, or monstrosities.
This dichotomy of civilization versus savagery is seen both in the canonical pre-texts
Robinson Crusoe and Jane Eyre, as in their revisionist versions Foe and Wide Sargasso Sea.
The characters of Friday and Bertha, initially marginalized and silenced, may have been
appropriated, but the fact remains that they continue to possess characteristics that mark them
as monstrosities, as Others. Bertha gains a past, but not really a voice, since her transition
from Antoinette to Bertha is told from Rochester‘s perspective. Friday, on his turn, is
symbolically silenced and continues to evoke the fear of the Other even in his closest relation,
his self-proclaimed, albeit unwilling, mother. The impossibility in telling their stories could
have many meanings. For some it ―emphasizes this silence by making Friday tongueless as if
to show that the barrier between oppressor and oppressed is one which is impossible to cross‖
(HELENE E CORRÊA, 2005, p. 224). For others, the final sounds that come through Friday‘s
mouth make him a ―semantic signifier of the island, and all that was suppressed, oppressed, or
repressed in Defoe‘s ‗master-text‘‖ (SANDERS, 2006, p. 112).
In my opinion, Susan Barton summarizes well the paradox of the post-colonial
character within the canon: ―The story of Friday‘s tongue is a story unable to be told, or
unable to be told by me. That is to say, many stories can be told of Friday‘s tongue, but the
true story is buried within Friday, who is mute. The true story will not be heard till by art we
2
Caribbean here is specified by Hulme as ―not the somewhat vague politico-geographic region now referred to
by that term, but rather what Immanual Wallerstein calls ‗the extended Caribbean‘, a coastal and insular region
that stretched from what is now southern Virginia in the USA to the most eastern part of Brazil. Textually this
region incorporates at its northern boundary John Smith‘s ‗rescue‘ by Pocahontas (near Jamestown) and at its
southern boundary Robinson Crusoe‘s plantation (near Bahia)‖ (1986, p. 3-4).
7
have found a means of giving voice to Friday‖ (1986, p. 118, my emphasis). The character in
the colonial discourse is always already mute. The possibility to subvert that silence is done
by emphasizing this muteness rather than undermining it.
REFERENCES
BELLEI, Sérgio Luiz Prado. Definindo o monstruoso: forma e função histórica. Monstros,
índios e canibais: ensaios de crítica literária e cultural. Florianópolis: Insular, 2000.
FREUD, Sigmund. The Uncanny. New Literary History 7.3 (Spring 1976): 619-645.
HELENE, Célia Guimarães and Lilian Cristina CORRÊA. J.M. Coetzee's Foe and Daniel
Defoe's Robinson Crusoe: a post-modernist dialogue. In: TOMITCH, Leda et al (Ed.)
Literaturas de Língua Inglesa: Visões e Revisões. Ed. Leda Tomitch, et al. Florianópolis:
Insular, 2005.
HULME, Peter. Colonial Encounters: Europe and the native Caribbean, 1492-1797.
London and New York: Methuen, 1986.
RHYS, Jean. Wide Sargasso Sea. New York: W.W. Norton & Company, 1966.
RESUMO
Palavras-chave:
Primária - Eleição dos EUA 2008. Discurso Político. Gramática Sistêmico-Funcional. Análise
Crítica do Discurso.
ABSTRACT
Taking into account the economic context in which the United States were placed in at the
beginning of 2008 as well as the Primaries of the Republican and the Democratic Party to
choose the presidential nominees at the same year, the present study analyzes the use of lan-
guage in one of the political speeches of the presidential candidate Barack Obama. More spe-
cifically, this study aims at investigating the way Obama uses language to rise to national
prominence and to make feasible his presidential candidacy. Based on Systemic Functional
Grammar (HALLIDAY, 1985, 1994; HALLIDAY & MATTHIESSEN, 2004), Critical Dis-
course Analysis (FAIRCLOUGH, 1989; 2003), and studies on political discourse analysis
(CHILTON & SCHÄFFNER, 2002; CHILTON, 2004), the author proposes a textual analysis
of one of Obama‘s political speech with the purpose of investigating what are the lexi-
cogrammatical choices manifested in such speech. Besides, it intends to unveil what are the
Participants and Social Actors in which the speechwriter gives more ability to accomplish
something or which ones gain voice and can be heard through the Processes they represent.
Thus, this work intends to contribute to the studies on language and politics.
Keywords:
Primary – 2008 USA Presidential Election. Political Speech. Systemic Functional Grammar.
Critical Discourse Analysis.
1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Língua Inglesa pela UFSC e bolsista da Capes; e-mail: andrea-
namarchi@hotmail.com.
2
1 INTRODUCTION
Barack Obama rose to national prominence and American political scenario when he
delivered a remarkable speech at the Democratic National Convention in 2004. At that day, he
was invited to address the keynote to the Democrat Party in Boston. As a candidate to the
Senate, Obama delivered his speech associating his personal and complex life story to a more
broad national identity as it can be seen in this excerpt: ―I stand here knowing that my story is
part of the larger American story, that I owe a debt to all of those who came before me, and
that, in no other country on earth, is my story even possible.‖2 Since then, it seems that
Obama knows how to use language to convey his political message. His image cannot be dis-
associated with his political speeches, because his political path seemed to be built based on
his powerful rhetoric. Because of that, Obama might answer the claim of Chilton & Schäffner
(2002, p. III): ―Human beings are political animals and articulate mammals. The question
arises as in which ways and to what extent these two aspects are linked‖.
Some years later, the former Illinois Senator started his presidential campaign for the
United States. At that time and after eight years of Bush administration, some things have
changed in America. With two wars and an economic crisis, Barack Obama among other can-
didates took advantage of this situation to promote a change in politics.
Therefore, at the beginning of 2008, the people of the United States of America start
the process of selecting a presidential nominee for November general election. This selection
is known as caucuses and primaries and they happen in the fifty states of the nation generally
between January and June. This presidential selection process has always been an event that
catches people‘s attention due to the fact that it shows the preference of American people on
the presidential candidate and it can promote more support to those candidates. Thus Iowa and
New Hampshire are the first states to cast the official votes for the presidential nominations
and according to Singh (2003, p. 119) they ―remain the first important tests of a presidential
campaign.‖
On January 8th, 2008, in the state of New Hampshire, Barack Obama delivered one
of the most memorable speeches in the history of the United States. At that night, he had lost
the New Hampshire primary by a small percentage to Hillary Clinton. She had 39% and he
had 36% of the votes in the New Hampshire Democratic Primary, which is considered the
2
Source: http://www.washingtonpost.com/ac2/wp-dyn/A19751-2004Jul27?language=printer Retrieved October
14th, 2011.
3
"First-in-the-Nation Presidential Primary‖ 3. This is the first part of the process of choosing
which presidential nominee from the Democratic Party will be running the presidential elec-
tion in November against the Republican nominee.
Thus, people from the United States and also some people from other parts of the
world had their attention caught by a speech that was considered inspiring, the one delivered
by someone who had just lost the first battle of the Democratic Primary. Taking this into ac-
count, this particular speech is different in a set of reasons. The most important reason is re-
vealed by the linguistic choices the speechwriter makes in order to carry out the meanings
intended. Mainly, discourse analysis aims at helping us ―explain the relationship between
what we say and what we mean in particular spoken and written contexts.‖ (PALTRIDGE &
WANG, 2010, p.256)
2 THE SPEECH
Senator Obama delivered his concession speech on the night of January 8th, 2008 in
Nashua, New Hampshire. Obama‘s speech was about 12 minutes in length, 1211 words long.
Coming in public with his wife, Obama met his campaign supporters at the Nashua South
School gym, just after the announcement of his loss in the 2008 New Hampshire Primary.
Known as the ―Yes we can Speech‖, the speech is different in many ways, mainly because it
was delivered in such a passionate and confident way that it seems that Obama hadn‘t lost the
first Primary to presidential candidate, Hillary Clinton.
As usual, just after the announcement of elections results, candidates are invited to
address remarks to their audience – campaign supporters, organizers and staff who are joining
the cause. Thus, in this concession speech, Obama starts his address congratulating Hillary
Clinton on her victory and also giving emphasis to the word ‗change‘. Furthermore, he calls
his supporters and electorate to become the new majority. Promising to bring the troops home,
Obama calls citizens and entrepreneurs to free the United States from the tyranny of oil. He
returns to the topic of change again, but at this time highlighting the importance of a stronger
union based on the Americans who changed the course of History, because as he said in the
speech: ―generations of Americans have responded with a simple creed that sums up the spirit
3
Source: http://www.nh.gov/nhinfo/manual.html Retrieved October 14th, 2011.
4
of a people: yes we can‖. And this is the crucial excerpt of the speech in which Obama links
the creed of the American people to the most passionate part of the speech: the last two-
hundred and seventy-one words were delivered in such a poetic tone that became that speech
one of the most notable addresses of Obama.
3 THEORETICAL BACKGROUND
For the purpose of analyzing how the lexicogrammatical choices are construed in
Barack Obama‘s discourse as a speaker and Democratic Party nominee, it is necessary to un-
veil through the Transitivity System (proposed by Halliday in his Systemic Functional
Grammar) the ideational meanings behind the speech – the Participants, the Processes and
Circumstances chosen to construe the text. To reach such a goal, it is essential to micro ana-
lyze the clauses presented in the speech‘s excerpt, because:
The clause of the grammar is not only a figure, representing some process – some
doing or happening, saying or sensing, being or having – with its various partici-
pants and circumstances; it is also a proposition, or a proposal, whereby we inform
or question, give an order or make an offer, and express our appraisal of and attitude
towards whoever we are addressing and what we are talking about. (HALLIDAY &
MATTHIESSEN, 2004, p.29)
Upon analyzing the meaning potential of those clauses, this author intends to shed
some light on how Obama‘s speechwriter portrays the Participants involved in the speech and
how they are represented by the Processes they are linked in. These linguistic evidences can
lead to a better understanding on how ―language plays an important role in designing and le-
gitimizing certain Participants upon choosing specific Processes to represent them.‖
(MARCHI & STEFFEN, 2011, p.9).
Taking these linguistic evidences into consideration, it is crucial to include the ap-
proach proposed by the Critical Discourse Analysis (CDA). This approach sees the interrela-
tion of power and language as they are entirely linked (FAIRCLOUGH, 1989) and also ana-
lyzes the way discourse reproduces social and political issues related to their sociopolitical
structure and context (FAIRCLOUGH, 2003).
4 DATA
Bearing in mind the context presented previously, this author chose an excerpt from
Barack Obama‘s speech delivered at the Primary in New Hampshire, 2008. In this speech, he
made use of the slogan ‗Yes, we can‘, that may be considered a rhetorical device which was
eventually used throughout his entire presidential campaign. This phrase has become one of
5
the most influential in his speeches, because it began punctuating4 many of his addresses as
the candidate of the presidency of the United States in 2008.
With the objective of exploring the lexicogrammatical choices made by the writer of
Barack Obama‘s speech, this author critically analyzes the passage of forty-one clauses (271
words) from the original speech (cf. the Appendix I).
The four major process types – material, mental, verbal and relational - cover the
grammatical-semantic ‗space‘ of ‗going on‘ – happenings, doings, sensings, saying,
being, having, etc.; and they constitute a particular ‗theory‘ of this space – a frame-
work for interpreting and representing it by means of clauses in English.
Therefore, this study analyzes the Processes in order to unveil the representation of
4
Source: http://www.guardian.co.uk/commentisfree/belief/2009/jan/20/religion-barackobama Retrieved October
14th, 2011.
6
the Social Actor in the real world, or in other words, to unveil the ideational metafunction
(HALLIDAY & MATTHIESSEN, 2004) of such Participants in Obama‘s speech.
5 DISCUSSION OF ANALYSIS
As far as the Transitivity system is concerned, five out of the six Processes Halliday
and Matthiessen (2004) propose are identified in the selected excerpt of the speech. Besides
the occurrence of four major process types mentioned in the previous section (MARTIN,
MATTHIESSEN & PAINTER, 1997, p.114), there is one that might receive special attention:
the Existential type. It occurs just once and gives emphasis to a universal truth Obama wants
to convey, as it will be discussed in what follows.
It can be identified that most of the Processes are of the Material type – 20 occur-
rences out of 41 clauses. In this respect, 8 of these Material Processes are of the implicit type
and the other 13 are of the explicit type. Relational Processes occur 10 times throughout the
excerpt. The Verbal Type has an incidence of 6 times, and the Mental type can be seen in 4
clauses. Regards the fact that almost 50% of the excerpt is based on Material Processes, it
might be relevant to unveil why such Processes are very prominent and why the Existential
type occurs just once. These findings will be deeply discussed in the following section.
landing a man on the Moon and returning him safely to the Earth." O‘Callaghan (1996, p.121)
points out that:
President Kennedy‘s proposal in May 1961 that the United States should send a man
to the moon was eagerly welcomed by politicians and the American people. Soon
work had begun on the Apollo program, as the project was named.
Then, once more, Obama presents another very powerful Participant: Martin Luther
King Jr. In this case, he refers to the clergyman as King and also makes a connection to one of
the most memorable speeches delivered by him: The Mountaintop (considered by some critics
as prophetic5, since it was the last speech delivered by him). Obama refers to the King who
believed that it was possible to reach the mountaintop, perhaps creating a sense of the ‗highest
level‘ of achievement a man or nation can reach. Obama, once more, creates this link between
the main idea of King‘s speech and the creed ‗yes, we can‘:
"Well, I don't know what will happen now. We've got some difficult days ahead. But
it really doesn't matter with me now, because I've been to the mountaintop. And I
don't mind. Like anybody, I would like to live a long life — longevity has its place.
But I'm not concerned about that now. I just want to do God's will. And He's al-
lowed me to go up to the mountain. And I've looked over, and I've seen the Prom-
ised Land. I may not get there with you. But I want you to know tonight, that we, as
a people, will get to the Promised Land. So I'm happy, tonight. I'm not worried
about anything, I'm not fearing any man. Mine eyes have seen the glory of the com-
ing of the Lord." — The Rev. Martin Luther King Jr.6
5
Source: http://www.npr.org/templates/story/story.php?storyId=89326670 Retrieved October 14th, 2011.
6
Source: http://www.americanrhetoric.com/speeches/mlkivebeentothemountaintop.htm Retrieved October 14th,
2011.
9
It seems that the people of the United States will not only fix the country, but
they will also extend this action to the world.
5.5 Meeting some realities when campaigning and finding similarities among Americans
In order to show social realities and contexts that Obama and his team will
meet when campaigning, he uses two Relational Processes to relate these Social Actors and to
show that there are no differences, because Americans can find similarities:
Clause 28 – the struggles of the textile workers in Spartanburg are not so different than the
plight of the dishwasher in Las Vegas
Clause 29 – the hopes of the little girl who goes to crumbling school in Dillon are the same
as the dreams of the boy who learns on the streets of L.A.
6 FINAL REMARKS
Upon establishing a creed at the end of the ‗Yes we can Speech‘, Obama gives
voice and agency to those Participants who somehow reverberated the creed and made the
difference in the American society. It seems that he wants to evoke such creed once again, but
at this time he wants the answer in the ballot.
Another important fact is the way he leaves Material Processes implicit in the ‗yes
we can‘ clause. Bearing in mind that the modal verb ‗can‘ means that someone is able to do
something, Obama‘s speechwriter leaves aside an explicit Process in the clause. It might im-
ply that Obama is not promising, but he is stimulating American people to believe it is possi-
ble to change that specific political reality. More than that, they will be able to accomplish it,
because the assertion at the beginning of the clause leaves this possibility: yes, we can. In
doing so, he calls upon the citizens to join the cause and to accomplish the change based on
the American creed.
Generally speaking, the textual analysis led to results that reveal that the main ob-
jectives in establishing a creed, relating characters in the American History, as President Ken-
nedy and Martin Luther King Jr., and finally giving prominence to the spirit of union with the
belief in the creed construed a strong basis to promote change in the subsequent Democratic
Primary. Upon delivering this part of the speech in such a poetic tone, Obama used language
as a powerful resource to enhance his presidential campaign and spread his creed of ‗yes we
can‘ all over the country, conquering not only his adversaries, but receiving a positive answer
that changed the results in the ballot.
11
7 REFERENCES
_____. Analysing discourse: Textual analysis for social research. USA and Canada:
Routledge, 2003.
FAIRCLOUGH, N.; WODAK, R. Critical discourse analysis. In: T. Van Dijk (Hg.): Dis-
course Studies: A Multidisciplinary Introduction. Vol. 2. London: Sage, s. 258-84, 1997.
RAVELLI, L. Getting started with functional analysis of text. In L. Unsworth (Ed.), Re-
searching language in schools and communities. Functional linguistic perspectives. (pp.
27-64). London and Washington: Cassel, 2000.
ACKNOWLEDGEMENTS
I would like to thank my advisor, Prof. Viviane Heberle, and my friends from
PPGI/UFSC, Cyntia Bailer and Giana Targanski Steffen, for their support and careful reading.
12
APPENDIX I
Corpus – Yes we can Speech (full transcript)
The following is a transcript of Senator Barack Obama's speech to supporters after the
New Hampshire Primary, as provided by Organizing for America Website – Obama: News
and Speeches. The last part of the speech is in bold which is the excerpt analyzed in this
study.
First of all, I want to congratulate Senator Clinton on a hard-fought victory here in New
Hampshire. She did an outstanding job, give her a big round of applause.
You know, a few weeks ago, no one imagined that we'd have accomplished what we did here
tonight in New Hampshire. No one could have imagined it. For most of this campaign, we
were far behind. We always knew our climb would be steep.
But in record numbers, you came out and you spoke up for change. And with your voices and
your votes, you made it clear, that at this moment – in this election – there is something hap-
pening in America.
There is something happening when men and women in Des Moines and Davenport; in Leba-
non and Concord come out in the snows of January to wait in lines that stretch block after
block, because they believe in what this country can be.
There is something happening- there's something happening when, Americans who are young
in age and in spirit – who have never participated in politics before– turn out in numbers we
have never seen, because they know in their hearts that this time must be different.
There's something happening when, people vote not just for party, that they belong to but the
hopes; the hopes that they hold in common – that whether we are rich or poor; black or white;
Latino or Asian; whether we hail from Iowa or New Hampshire, Nevada or South Carolina,
we are ready to take this country in a fundamentally new direction. That's what's happening in
America right now. Change is what's happening in America.
You, all of you who are here tonight, all who put so much heart and soul and work into this
campaign, you can be the new majority, who can lead this nation out of a long political dark-
ness – Democrats, Independents, and Republicans who are tired of the division and distraction
that has clouded Washington; who know that we can disagree without being disagreeable;
who understand, who understand that if we mobilize our voices to challenge the money and
influence that's stood in our way and challenge ourselves, to reach for something better, there
is no problem we cannot solve. There is no destiny that we cannot fulfill.
Our new American majority can end the outrage of unaffordable, unavailable health care in
our time. We can bring doctors and patients; workers and businesses, Democrats and Republi-
cans together; and we can tell the drug and insurance industry that while they get a seat at the
table, they don't get to buy every chair. Not this time. Not now.
13
Our new majority can end the tax breaks for corporations that ship our jobs overseas, and put
a middle-class tax cut in the pockets of the working Americans who deserve it.
We can stop sending our children to schools with corridors of shame and start putting them on
a pathway to success. We can stop talking about how great teachers are and start rewarding
them for their greatness by giving them more pay and more support. We can do this with our
new majority.
We can harness the ingenuity of farmers and scientists; citizens and entrepreneurs to free this
nation from the tyranny of oil, and save our planet from a point of no return.
And when I am President of the United States, we will end this war in Iraq and bring our
troops home.
We will end this war in Iraq, we will bring our troops home; we will finish the job, we will
finish the job against al Qaeda in Afghanistan; we will care for our veterans; we will restore
our moral standing in the world; and we will never use 9/11 as a way to scare up votes, be-
cause it is not a tactic to win an election, it is a challenge that should unite America and the
world against the common threats of the twenty-first century: terrorism and nuclear weapons;
climate change and poverty; genocide and disease.
All of the candidates in this race share these goals. All of the candidates in this race have good
ideas. And all are patriots who serve this country honorably.
But the reason our campaign has always been different, the reason we began this improbable
journey almost a year ago, is because it's not just about what I will do as President, it is also
about what you, the people who love this country, the citizens of the United States of Ameri-
ca, can do to change it.
That's what this election is all about. That's why tonight belongs to you. It belongs to the or-
ganizers and the volunteers and the staff who believed in this journey and rallied so many
others to join the cause.
We know the battle ahead will be long, but always remember that no matter what obstacles
stand in our way, nothing can stand in the way of the power of millions of voices calling for
change.
We have been told we cannot do this by a chorus of cynics. They will only grow louder and
more dissonant in the weeks and months to come. We've been asked to pause for a reality
check; we've been warned against offering the people of this nation false hope.
But in the unlikely story that is America, there has never been anything false about hope. For
when we have faced down impossible odds; when we've been told we're not ready, or that we
shouldn't try, or that we can't, generations of Americans have responded with a simple creed
that sums up the spirit of a people.
Yes we can. (break for cheering) Yes we can. (break for cheering) Yes we can.
It was a creed written into the founding documents that declared the destiny of a nation.
Yes we can.
It was whispered by slaves and abolitionists as they blazed a trail towards freedom
through the darkest of nights.
14
Yes we can.
It was sung by immigrants as they struck out from distant shores and pioneers who
pushed westward against an unforgiving wilderness.
Yes we can.
It was the call of workers who organized; women who reached for the ballot; a President
who chose the moon as our new frontier; and a King who took us to the mountaintop
and pointed the way to the Promised Land.
Yes we can to justice and equality. Yes we can to opportunity and prosperity. Yes we
can heal this nation. Yes we can repair this world. Yes we can.
And so tomorrow, as we take the campaign South and West; as we learn that the strug-
gles of the textile workers in Spartanburg are not so different than the plight of the
dishwasher in Las Vegas; that the hopes of the little girl who goes to a crumbling school
in Dillon are the same as the dreams of the boy who learns on the streets of L.A.; we will
remember that there is something happening in America; that we are not as divided as
our politics suggests; that we are one people; we are one nation; and together, we will
begin the next great chapter in the American story with three words that will ring from
coast to coast; from sea to shining sea – Yes. We. Can.
APPENDIX II
cls. 1, 2 and 3
Yes we can. (3x)
ACTOR MATERIAL
cl. 4
It was a creed written into the founding documents
CARRIER RELATIONAL ATTRIBUTE CIRCUMSTANCE
cl. 5
that [the founding documents] declared the destiny of a nation.
SAYER VERBAL VERBIAGE
cl. 6
Yes we can.
ACTOR MATERIAL
cl.7
It was whispered by slaves and abolitionists as they blazed a trail towards Free-
dom through the darkest nights.
VERBIAGE VERBAL SAYER CIRCUMSTANCE
cl. 8
[as they blazed a trail towards Freedom through the darkest of nights.]
ACTOR MATERIAL GOAL CIRCUMSTANCE
cl. 9
Yes we can.
ACTOR MATERIAL
cl. 10
It was sung by immigrants as they struck out from distant shores
VERBIAGE VERBAL SAYER CIRCUMSTANCE
cl. 11
[as they struck out from distant shores]
ACTOR MATERIAL CIRCUMSTANCE
15
cl. 12
and pioneers [pioneers] who pushed westward against an unforgiving wilderness.
SAYER ACTOR MATERIAL CIRCUMSTANCE
cl. 13
Yes we can.
ACTOR MATERIAL
cl. 13/14
It was the call of workers who organized;
CARRIER RELATIONAL ATTRIBUTE
--- --- ACTOR MATERIAL
cl. 15/16
[It was] Women who reached for the ballot;
[CARRIER RELATIONAL] ATTRIBUTE
--- --- ACTOR MATERIAL GOAL
cl. 17/18
[It was] a President who chose the moon as our new frontier;
[CARRIER RELATIONAL] ATTRIBUTE
ACTOR MATERIAL GOAL
cl. 19
and [It was] a King who took us to the mountaintop
[CARRIER REL ATTRIBUTE
ACTOR MATERIAL BENEFICIARY CIRCUMSTANCE
cl. 20
and {he} pointed the way to the Promised Land.
ACTOR MATERIAL GOAL CIRCUMSTANCE
cl. 21
Yes we can {say yes} to justice and equality
SAYER VERBAL VERBIAGE or RECEIVER
cl. 22
Yes we can {say yes} to opportunity and prosperity.
SAYER VERBAL VERBIAGE or RECEIVER
cl. 23
Yes we can heal this nation.
ACTOR MATERIAL GOAL
cl. 24
Yes we can repair this world.
ACTOR MATERIAL GOAL
cl. 25
Yes we can.
ACTOR MATERIAL
cl. 26
And so tomorrow, as we take this campaign South and West.
CIRCUMSTANCE ACTOR MATERIAL GOAL
cl.27 and 28
as we learn that the struggles of the textile workers in Spartanburg
ACTOR MATERIAL CARRIER
GOAL
are not so different than the plight of the dishwasher in Las Vegas.
RELATIONAL ATTRIBUTE
GOAL
cl. 29
that the hopes of the little girl who goes to a crumbling school in Dillon
CARRIER
GOAL
cl. 30
are the same as the dreams of the boy who learns on the streets of L.A.
RELATIONAL ATTRIBUTE
GOAL
cl. 31/32
We will remember that there is something happening in America.
16
Comissões organizadoras
COMISSÕES ORGANIZADORAS
Organização geral
Marcos Antonio Rocha Baltar (Coordenador Geral)
Marta de Faria e Cunha Monteiro (Secretária)
Adair Bonini
Edair Maria Görski
Felício Wessling Margotti
Izabel Christine Seara
Izete Lehmkuhl Coelho
Mailce Borges Mota
Maria Inêz Probst Lucena
Mary Elizabeth Cerutti-Rizzatti
Rosângela Hammes Rodrigues
Susana Bornéo Funck
Susana Scramim
1 Comissão de projetos
Marcos Antonio Rocha Baltar (Coordenador)
Adair Bonini
Edair Maria Görski
Izete Lehmkuhl Coelho
Mailce Borges Mota
Maria Inêz Probst Lucena
2 Comissão de finanças
Felício Wessling Margotti (Coordenador)
Aldanei Luci Correa
Ricardo Rocha
Rosângela Hammes Rodrigues
Susana Bornéo Funck
Susana Scramim
Comissões organizadoras
3 Comissão científica
Izete Lehmkuhl Coelho (Coordenadora)
Adair Bonini
Carlos Capela
Christiane Maria Nunes de Souza
Edair Maria Görski
Mailce Borges Mota
Marcos Antonio Rocha Baltar
Marianne Stumpf
Susana Scramim
Tatiana Pimpão
4 Comissão de logística
Lúcia Maria Nassib Olímpio (Coordenadora)
Chris Schardosim
Janete Martins
Patrícia Sachet
Ruan de Souza Mariano
Vanessa Wendhausen Lima
7 Comissão do site
Renato Basso (Coordenador)
Gustavo Lopez Estivalet
Maria Luiza Rosa Barbosa
Wagner Saback Dantas
Comissões organizadoras
8 Comissão de intérpretes
Tarcísio de Arantes Leite (Coordenador)
Carlos Maroto Guerola
Gisele Iander Pessini Anater
Maria Inêz Probst Lucena
Ronice Müller Quadros
9 Comissão de audiovisual
Luiz Felipe Soares da Literatura (Coordenador)
Bruno Cardoso
Fábio Luiz Lopes da Silva
Marcos Antonio Rocha Baltar
10 Comissão de divulgação
Eloara Tomazzoni
Juliana Cemin
Laura Mesquita Baltazar
Lidiomar José
Marta Cristina Ferazza
Marta Scherer
12 Comisão de editoração
Felício Wessling Margotti
Fernando Floriani Petry
Hellen Pereira Melo
Maiara Knihs
Maria Inêz Probst Lucena
Maria Luiza Rosa Barbosa
13 Comissão cultural/artística
Ruan de Souza Mariano
Milene Peixer Loio
Carla Regina Martins Valle
Comissões organizadoras
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Dica: Os artigos estão numerados de acordo com o sumário geral, facilitando a busca.
Projeto gráfico e editoração
Luciano Patrício Souza de Castro
Daniel Leffa Allebrand