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Desenvolvimento desigual

e mercado mundial em Marx


FLÁVIO MIRANDA

Coleção Niep-Marx

VOLUME V

Desenvolvimento desigual
e mercado mundial em Marx

CONSEQUÊNCIA
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com.tática

Dados internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) de acordo com ISBD

M672d Miranda, Flávio

Desenvolvimento desigual e mercado mundial em


Marx / Flávio Miranda. – Rio de Janeiro : Consequência, 2018.
240 p. : il. ; 16m x 23cm. – (Coleção NIEP-Marx ; v.5).

Inclui bibliografia e índice.


ISBN: 978-85-69437-50-5

1. Economia. 2. Marxismo. 3. Mercado mundial. 4. Marx, Karl.


5. Desenvolvimento mundial. I. Título. II. Série.


CDD 335.4
2018-1101 CDU 330.85

Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410


Índice para catálogo sistemático:
1. Economia : Marxismo 335.4
2. Economia : Marxismo 330.85
À Carol
SUMÁRIO
Sobre a Coleção Niep-Marx..............................................................................................9
Prefácio de José Paulo Netto............................................................................................11
Agradecimentos................................................................................................................15

Introdução.......................................................................................................................17

Capítulo 1 - Marx e a “miséria alemã”: os Anais franco-alemães.........................23


Introdução........................................................................................................................23
1.1 - Sobre a questão judaica: os limites da igualdade burguesa
e a revolução sem sujeito................................................................................................26
1.2 - Crítica da filosofia do direito de Hegel - Introdução:
o desenvolvimento desigual e o sujeito da revolução.................................................36

Capítulo 2 - Marx na capital das rebeliões: ontologia e


alienação nos Manuscritos de 1844............................................................................49
Introdução........................................................................................................................49
2.1 - A ontologia marxiana do ser social:
o gênero humano.............................................................................................................57
2.2 - Alienação e a “mudez” do gênero humano.........................................................68
2.3 - Comunismo e perda da “mudez” do gênero.......................................................76

Capítulo 3 - O materialismo comunista de Marx


e o desenvolvimento desigual......................................................................................83
Introdução........................................................................................................................83
3.1 - A crítica da filosofia da história e o materialismo comunista..........................89
3.2 - “O morto se apodera do vivo”: desenvolvimento desigual em Marx............102

Capítulo 4 - Marx diante do mercado mundial:


polêmicas em torno de escritos sobre o colonialismo..........................................119
Introdução......................................................................................................................119
4.1 - Paradigma do Manifesto?....................................................................................126
4.2 - Marx, e a América Latina?..................................................................................154

Capítulo 5 - Lei do valor e desenvolvimento desigual..........................................175


Introdução.......................................................................................................................175
5.1 - Lei de tendência em Marx...................................................................................180
5.2 - O método da Crítica da economia política: o sentido da concreção..............184
5.3 - Valor, dinheiro e mercado mundial....................................................................194
5.4 - O “caso clássico” e os casos não-clássicos do desenvolvimento
capitalista: lei do valor e mercado mundial...............................................................210

Considerações finais...................................................................................................226

Referências bibliográficas........................................................................................233
SOBRE A COLEÇÃO NIEP-MARX

O Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre Marx e o


Marxismo (NIEP-Marx) surgiu em 2003, da reunião de professores/pesqui-
sadores das áreas de História, Sociologia, Economia, Educação, Serviço
Social e Arquitetura, da Universidade Federal Fluminense. Originou-se
de trabalho docente coletivo em articulação da Universidade com mo-
vimentos sociais, através da atuação no Curso de Extensão Realidade
Brasileira, em convênio com o MST. Desde então busca manter a articu-
lação entre docência, pesquisa e extensão com questões sociais, políti-
cas e teóricas contemporâneas. O objetivo central do núcleo é produzir
uma reflexão transdisciplinar a partir do materialismo histórico.
Além da implantação de grupos regulares de estudos e pesquisas,
o NIEP-Marx consolidou-se como espaço de articulação de pesquisa/do-
cência de profissionais de distintas áreas de conhecimento que comparti-
lham referenciais teóricos de análise, agregando como colaboradores pes-
quisadores de diversos estados do país e do exterior. Adicionalmente, o
NIEP-Marx tem organizado desde palestras e atividades isoladas, até even-
tos de porte internacional, com destaque para seu encontro anual, batizado
de Marx e o Marxismo, realizado regularmente desde 2007.
A Coleção NIEP-Marx é mais um esforço de ampliar o acesso à pro-
dução coletiva do Núcleo, criando um novo canal de debates no interior e
para além da reflexão marxista atual. Campos do conhecimento e disciplinas
acadêmicas – como a Economia, a História, a Educação, a Filosofia, a Socio-
logia e os chamados Estudos Culturais – estão representados, mas também
são transpassados pela perspectiva crítica e totalizante que embala os textos
reunidos pela coleção. Da mesma forma, temas clássicos e debates contem-
porâneos do marxismo – como o trabalho, a crítica da Economia Política, a
ética, a estética, a ontologia e tantos outros – são abordados nestes livros sob
a mesma perspectiva.
Mais que leitores passivos, a Coleção NIEP-Marx espera encontrar
interlocutores ativos para um projeto comum de crítica teórica e política
da sociedade capitalista e de construção coletiva de alternativas, também
teóricas e políticas, que nos permitam ir além desse “fundamento miserá-
vel” – o “roubo do tempo de trabalho alheio” – que sustenta o mundo das
mercadorias em que vivemos.

9
PREFÁCIO

José Paulo Netto*

Há muitos modos de ler Marx – e, corridos 150 anos, agora celebrados,


desde a publicação do livro I d’O capital, estes modos se sucederam, se
entrecruzaram, se sobrepuseram, derivaram em exegeses colidentes e/ou
interpretações diferenciadas e produziram uma bibliografia de dimensões
amazônicas. Nela, há de tudo: análises percucientes e argutas, inferências
brilhantes (mesmo que polêmicas e problemáticas), mas igualmente ilações
apressadas, materiais de pura divulgação e propaganda e não poucas defor-
mações (intencionais ou não) – em suma: essa imensa documentação cons-
titui um enorme conjunto de arquipélagos, com muitas ilhas de excelência.
É claro que razões de vária ordem – tirantes a ignorância e a má fé,
e ambas não são moedas de curso raro no tratamento do autor d’O capital –
contribuíram para dar forma e conteúdo aos diferentes modos de ler Marx.
Duas dessas razões são bastante conhecidas: a particularidade sócio-política
e econômico-social das distintas conjunturas nas quais se realizaram as lei-
turas e a própria fortuna editorial do espólio literário de Marx. É suficien-
te uma indicação contemporânea para ilustrar o primeiro caso: o interesse
que, uma vez evidenciado o complexo de fenômenos que desde as três úl-
timas décadas do século XX veio sinalizando a chamada financeirização do
capitalismo, tem despertado o livro III d’O capital, com o seu iluminador
trato do “capital portador de juros” – livro III frequentemente secundariza-
do até então. Quanto à fortuna referida, basta recordar que textos seminais
como os Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 e aqueles constantes d’A
ideologia alemã não estiveram à mão dos que, nos dois primeiros decênios
do século XX, procuraram desenvolver o pensamento crítico-econômico de
Marx – não estiveram provavelmente aos olhos de Kautsky e certamente
aos de Hilferding, Rosa Luxemburgo, Bukharin e Lenin. Mas a inediticidade
não cobriu tão somente os materiais do “jovem” Marx: os marxistas citados,
e ainda outros, desconheceram os fundamentais Grundrisse..., que só viram
a luz em 1939-1941 (em edição precária; apenas nos anos 1950 deles se dis-
pôs de uma edição mais confiável) – e isto sem falar de importantes manus-

* Professor Emérito da ESS-UFRJ.

11
12 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

critos marxianos claramente conectados a’O capital (como os de 1861-1863


e 1863-1865), que vieram a público todavia mais tarde.
Há, porém, uma modalidade de leitura de Marx que, sem excluir os
vieses postos pelas duas razões acima mencionadas, antes acrescentando-se
a eles, foi marcante na marxologia (passe a palavra...) do século XX e de
alguma maneira permeou as demais leituras. Refiro-me àquela que projetou
(projeta) sobre a obra de Marx a divisão sociotécnica do trabalho que incidiu
(e incide) nos círculos intelectuais, especial mas não exclusivamente acadê-
micos: trata-se da leitura que segmenta a teoria social marxiana conforme
os domínios cada vez menos determinados das ciências sociais e humanas e
esquarteja o pensamento de Marx – quando este, aproveitando alguma por-
ta desavisadamente mal trancada, consegue o feito de ingressar em algum
departamento universitário – nos escaninhos da Economia, da História, da
Sociologia, da Filosofia, da Psicologia, da Antropologia, da Ciência Política
e dos seus respectivos quintais (porém, mesmo nessa hipótese, quase sem-
pre o Marx comunista, dirigente revolucionário, costuma ficar de fora do
alcance das mais doutas lentes, seja porque sua obra está contaminada por
“ideologia”, seja porque ele é tomado como uma figura das ultrapassadíssi-
mas “metanarrativas” do século XIX...).
Não se pode negar que, em todos esses modos de leitura, sempre é
possível joeirar indicações e pistas de pesquisa e reflexão úteis. Contudo, a
inteireza da obra marxiana e a sua magnitude geralmente ficam na sombra
e o Marx que apresentam dista muito do que o pensador e revolucionário
de fato foi. Por isto mesmo, quando nos deparamos com uma análise que,
tendo o pensamento de Marx por objeto e referência (quer abordando um
tema específico da sua elaboração, quer buscando apreender a totalidade
da sua arquitetura teórica), supera esses modos de leitura, há que saudá-la
enfaticamente.
E este é precisamente o caso do livro que Flávio Miranda agora nos
oferece – no qual a proposta do autor é clarificar as determinações consti-
tutivas da concepção marxiana de mercado mundial. Pois bem: o texto que
temos em mãos, originalmente uma tese doutoral, alcança com êxito o que
o autor se propôs justamente porque praticou uma leitura de Marx que lhe
permitiu evitar com segurança os escolhos que comprometem os modos
predominantes de inquirir as páginas de Marx.
Flávio Miranda apetrechou-se com cuidado para enfrentar o seu
objeto. Recorreu a uma farta bibliografia, escolhida e trabalhada com
critério seguro, combinando inteligentemente o recurso a documentos
consagrados (p. ex., a referência à clássica biografia de F. Mehring) e a
pesquisas contemporâneas (p. ex., as investigações de M. Musto). Dialogou
Prefácio 13

com analistas credibilizados (muito especialmente, com o último Lukács,


o da Ontologia do ser social, além de outros, do quilate de I. Mészáros),
mas debateu também com interlocutores menores, porém significativos e
influentes (p. ex., J. Aricó e E. Dussel). Em nenhum momento, contudo,
a sua argumentação deixou de submeter os subsídios que extraiu da
documentação de que se socorreu àquilo que operou como o seu controle
maior: a sua leitura direta de Marx – o apelo à bibliografia serviu para
iluminar o seu trato analítico, rigoroso, da escritura de Marx, mas em passo
algum a substituiu. No trabalho de Flávio Miranda, foi a fonte original
marxiana que comandou a pesquisa e conferiu substância à análise.
A argumentação que se desenvolve ao longo deste livro – e este é
um aspecto nuclear da modalidade de leitura exercitada por Flávio Miranda
– não incorreu no equívoco de esquartejar a obra marxiana, seja endossan-
do a falsa tese que pretendeu introduzir um corte entre o Marx “filósofo”,
“humanista”, dos Manuscritos de 1844 e o Marx “cientista”, o d’O capital, seja
concebendo Marx como uma síntese enciclopédica das ciências sociais que
se desenvolveram especialmente depois de 1848. De um lado, sem ignorar
as inflexões verificáveis na constituição da reflexão de Marx, abordou a obra
marxiana contemplando a sua unidade (uma unidade de diferenças/diver-
sidades, não identitária) – donde a legitimidade e a pertinência do percurso
que refaz, dos escritos dos Anais franco-alemães a’O capital. Aliás, o traba-
lho de Flávio Miranda é mais uma comprovação de que, sem a remissão de
Marx ao caldo da cultura filosófica hegeliana e imediatamente pós-hegelia-
na (veja-se, neste livro, em especial, os dois primeiros capítulos), a compre-
ensão da sua obra maior fica irremediavelmente comprometida – como Le-
nin o percebeu quando teve oportunidade de estudar Hegel intensivamente
(lembre-se o notável aforisma dos Cadernos sobre a dialética, redigidos entre
setembro e dezembro de 1914, na Suíça: “Não se pode compreender plena-
mente O capital de Marx, e particularmente o seu primeiro capítulo, sem ter
estudado e compreendido toda a Lógica de Hegel. Portanto, meio século de-
pois de Marx, nenhum marxista o compreendeu”). De outro lado, também
Flávio Miranda não trata a reflexão de Marx enquadrando-a em qualquer
gaveta das ciências sociais – pensa-a como uma teoria social totalizante e
totalizadora, fundada na crítica da Economia Política.
Substantivamente, o livro que está agora nas mãos do leitor explicita
o processo teórico-reflexivo mediante o qual Marx, numa trajetória inves-
tigativa de cerca de quatro décadas, elaborou a sua concepção de mercado
mundial. Flávio Miranda, ao resgatar e reconstruir com rigor essa trajetória,
demonstra que os resultados a que Marx chegou envolvem (e derivam de)
uma pesquisa macroscópica e abrangente, matrizada ontologicamente, que
14 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

envolveu núcleos temáticos que transcendem os limites puramente “econô-


micos” (ainda que os incluindo) e que tais resultados só são integramente
inteligíveis se inscritos no curso global da análise marxiana do movimento
constituinte e constitutivo da sociedade burguesa. Neste sentido, diga-se de
passagem, é emblemático o trato que o autor dedica à lei do valor e ao desen-
volvimento desigual, trato explicitado no último capítulo deste livro.
Estou convencido de que o contributo de Flávio Miranda, com evi-
dentes indicadores da originalidade da abordagem que empreende (cf. espe-
cialmente neste livro o capítulo 4), é um aporte de inequívoca importância
para renovar e consolidar a reflexão que, entre nós, pesquisadores que têm a
crítica da Economia Política como objeto privilegiado estão desenvolvendo
– reflexão no interior da qual este livro há de situar-se com destaque.
Resta-me, além de saudar com entusiasmo a publicação de Desen-
volvimento desigual e mercado mundial em Marx, confessar duas esperanças:
uma, a de que os seus leitores avaliem como eu a sua relevância; outra, a de
que o autor prossiga lavrando na seara para a qual demonstrou até aqui um
raro talento.

Rio de Janeiro, junho de 2017


José Paulo Netto
AGRADECIMENTOS

A pesquisa que agora toma a forma de livro valeu-se do contato com um nú-
mero considerável de pessoas que estudam Marx a partir das mais diversas
influências teóricas que compõem essa luminosa constelação que chamamos
marxismo. Sinto-me extremamente sortudo pelas diversas conversas, aulas,
seminários, debates etc., e sou muito grato por tantos encontros. Tomo este
breve parágrafo para agradecer àqueles que tiveram influência mais direta
sobre as linhas que se aproximam. Marcelo Dias Carcanholo fez muito mais
do que orientar a tese que deu origem a este livro de maneira segura, mas
sem tolher, em momento algum, minhas escolhas ao longo do processo. Foi
Marcelo quem me apresentou ao debate no qual se engaja este livro e a partir
do qual tanto pude aprender. José Paulo Netto, homem de imensa generosi-
dade, foi quem mais me estimulou a publicar o livro. Como se não bastasse,
ofereceu importantíssimos comentários à sua versão preliminar e aceitou es-
crever a bela apresentação acima. Bianca Imbiriba Bonente, companheira de
longa data, revisou com cuidado e rigor militante este texto que se beneficiou
também dos luxuosos comentários de Virgínia Fontes, João Leonardo Me-
deiros, André Guimarães Augusto, Eleutério Prado, Alexis Saludjian e Hugo
Figueira Corrêa. Muito obrigado a todas e todos.

15
INTRODUÇÃO

O objeto de pesquisa sobre o qual nos debruçamos neste livro corresponde ao


estudo da categoria “mercado mundial” na obra de Marx. Isto é, das comple-
xas inter-relações que conformam a sociabilidade burguesa, a nível mundial.
Mais especificamente, nos ocupamos da capacidade explanatória da teoria
social marxiana ante um notável fenômeno neste âmbito: a desigualdade no
desenvolvimento econômico geral. Ainda que nossos olhos se voltem, por-
tanto, prioritariamente para um problema historicamente delimitado, isto é,
circunscrito à sociabilidade fundada sobre o modo de produção capitalista,
somos obrigados a recorrer à forma como Marx concebia a existência social,
em geral. Assim, retomamos a teoria da história de Marx para demonstrar
sua adequação a um movimento, o desenvolvimento no âmbito do ser social,
que se processa por vias contraditórias e incontornavelmente desiguais.
A partir daí os caminhos deste trabalho, por assim dizer, bifurcam-
se: partimos à análise de textos em que Marx aborda diretamente questões
relativas à expansão do mercado mundial; e, em seguida, ao estudo da efeti-
vidade mundial do valor, e da forma necessariamente desigual que as tendên-
cias subjacentes à sociabilidade burguesa, expressas na lei do valor de Marx,
assumem nesse âmbito.
Na primeira frente, o posicionamento ontológico1 supracitado sus-
tenta nossas posições em dois importantes debates acerca dos escritos de
Marx sobre a expansão colonial a sua época, vale dizer, sobre o mercado
mundial. O primeiro deles argumenta pela incapacidade da teoria marxiana
de compreender a desigualdade do desenvolvimento econômico no mercado
mundial, pelo menos até fins dos anos 1850.2 Tomando por base a análise de
textos de conjuntura escritos por Marx em diferentes situações (artigos jor-
nalísticos, cartas pessoais, aportes em organizações revolucionárias etc.), os
aderentes desta posição apontam para uma suposta mudança substancial na

1
Isto é, que se põe ao estudo das propriedades mais gerais de uma determinada forma de ser.
Neste caso específico, do ser social.
2
Embora muitos autores, como veremos, situem apenas no final dos anos 1870 essa suposta mu-
dança na concepção marxiana.

17
18 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

teoria de Marx para o desenvolvimento histórico, que finalmente se livraria


dos resquícios de um determinismo comumente referido como eurocêntrico.
Contra isso, não apenas ressaltamos a importância das obras nas
quais Marx ocupa-se da historicidade no âmbito do ser social, como propo-
mos, a partir daí, uma releitura dos textos normalmente usados pelos pro-
positores desta “tese da ruptura”, especialmente dos artigos do início dos
anos 1850 sobre a Índia – sem deixarmos de discutir os eventuais equívocos
cometidos por Marx nas referidas linhas. Em suma, a nosso ver tais artigos
reafirmam, ao invés de negar, a noção de desenvolvimento, necessariamente
contraditória e desigual, elaborada por Marx desde meados dos anos 1840.
O segundo debate em torno dos escritos do autor sobre o mundo
colonial refere-se apenas aos textos sobre a América Latina, ou, para ser mais
exato, à falta deles. O argentino José Aricó, em Marx e a América Latina,
indaga-se quanto ao motivo do suposto descaso de Marx com o subconti-
nente, entendendo-o como resultado da inadequação da teoria marxiana às
particularidades do desenvolvimento burguês em “nossa América”. O ponto
de Aricó não é novo: para Marx seria inconcebível uma forma estatal ana-
crônica com relação ao desenvolvimento do modo de produção capitalista,
uma vez que em sua teoria todas as esferas da existência social emanariam
diretamente do econômico. Deste suposto determinismo economicista,
portanto, a ausência de uma teorização sobre o Estado seria um resultado
necessário. Novamente, a partir da análise dos textos teóricos de Marx, mais
uma vez negligenciados pela crítica, somos capazes tanto de rejeitar a tese
do determinismo econômico no materialismo histórico, quanto de apontar
a capacidade explanatória da contribuição marxiana frente às distintas tem-
poralidades dos diversos complexos que conformam o ser social.
A segunda frente de nossa pesquisa, sob as bases de nossa análise
da teoria do desenvolvimento de Marx, nos leva à questão da necessidade
de se explicar os mecanismos subjacentes à forma evidentemente desigual
com que se afirmam as tendências imanentes a este modo de produção, no
mercado mundial. O que nos toca aqui, por conseguinte, partindo da aná-
lise da historicidade do ser social, em geral, é a historicidade no modo de
produção capitalista. Isto é, as tendências gerais de seu movimento.
Como se sabe, a contribuição mais madura de Marx a esta questão
acha-se em O capital, na forma de sua lei do valor. De modo extremamente
sintético, a lei do valor é a tentativa teórica de se captar os determinantes
Introdução 19

fundamentais do modo de produção capitalista, uma dinâmica que não só


escapa ao controle dos indivíduos, como os subordina, condicionando ao
ingresso nesta “grande retorta” a própria existência. Neste sentido, a socia-
bilidade burguesa, em oposição às prévias formas essencialmente diretas
de dominação social, inaugura uma nova era na qual a liberdade formal é a
maquiagem necessária ao despotismo abstrato do capital.
Contra concepções muito em voga, que veem Marx como mais um
economista, ainda que político, é preciso reafirmar que o objetivo da lei
do valor não corresponde, meramente, à determinação da magnitude dos
preços relativos. Uma teoria que pretende oferecer uma descrição científica
dos mecanismos fundamentais subjacentes ao desenvolvimento do modo
capitalista de produção não pode se ater a uma de suas dimensões. Isto é,
ainda que nas relações mercantis a determinação quantitativa seja evidente,
as variações nos preços correspondem apenas à expressão superficial de
algo que existe por trás deles. Subjaz a estas aparentes relações entre coisas,
que aleatoriamente chocam-se no “mercado”, relações sociais que os seres
humanos estabelecem entre si.
Sabemos, por nossas próprias experiências cotidianas, que esse
movimento das coisas no mercado nos escapa, isto é, possui uma dinâmica
própria que condiciona nosso acesso ao que necessitamos. É por isso que a
sociabilidade mercantil aparece como o conjunto das relações sociais que
as coisas estabelecem entre si. Nas palavras de Marx:

Como os produtores só travam contato social mediante a troca de seus produtos do


trabalho, os caracteres especificamente sociais de seus trabalhos privados aparecem
apenas no âmbito dessa troca. Ou, dito de outro modo, os trabalhos privados só
atuam efetivamente como elos do trabalho social total por meio das relações que a
troca estabelece entre os produtos do trabalho e, por meio destes, também entre os
produtores. A estes últimos, as relações sociais entre seus trabalhos privados apare-
cem como aquilo que elas são, isto é, não como relações diretamente sociais entre
pessoas em seus próprios trabalhos, mas como relações reificadas entre pessoas e
relações sociais entre coisas.3

3 K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro I, 2013b, p. 148.


20 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

Assim, a Marx importa ir além da consciência científica da econo-


mia burguesa, importa criticar a economia política. Para ir-se além das mis-
tificações engendradas pelo movimento aparente das coisas, deve-se analisar
o modo de sua produção. Desta forma, percebe-se que este movimento coisal
está subordinado à dinâmica imanente ao processo de acumulação de capital,
à necessidade contínua da valorização, na maior escala possível. Portanto,
nesta formação social, “o processo de produção domina os homens, e não os
homens o processo de produção (...)”.4
Em suma, a Crítica da economia política, na medida em que pretende
demonstrar cientificamente o movimento real, demonstra em que medida
esse movimento põe a possibilidade de sua superação, isto é, aponta para
além de si mesmo; e, ao mesmo tempo, defende a necessidade de sua su-
peração, isto é, da libertação das amarras que a forma capitalista da riqueza
impõe ao desenvolvimento humano. Falaremos, ao longo deste livro, sobre a
ideia de comunismo em Marx, assim como sobre a teoria do valor como crí-
tica negativa da sociabilidade burguesa. Por enquanto, notemos apenas que
a efetividade mundial de tais relações de produção indica que se corretas as
tendências gerais identificadas na lei do valor, estas têm de se expressar em
escala mundial, ainda que de modo necessariamente desigual.
É verdade que a análise das legalidades próprias à dominação abs-
trata do processo de acumulação de capital5 por Marx não alcança, em sua
pena, o mercado mundial. Ao menos a partir de meados dos anos 1860, o
autor estava consciente da impossibilidade de incluir este nível analítico em
O capital, por uma questão de escopo. É precisamente isso o que Marx afirma
na seguinte passagem do livro III de O capital - livre das alterações de Engels,
conforme transcrição de Heinrich:

O fenômeno analisado neste § requer para seu pleno desenvolvimento o sistema


de crédito e a competição no mercado mundial [...]. Essas formas mais definitivas
da produção capitalista podem 1) apenas ser apresentadas, contudo, após ter-se
entendido a natureza geral do capital, e 2) elas não estão contidas no escopo deste
trabalho e pertencem a sua eventual continuação.6

4
Ibidem, p. 156.
5
Isto é, da dominação da lógica autoexpansiva do valor.
6
K. Marx apud M. Heinrich, “Engels’ edition of the third volume of capital and Marx’s manuscripts”,
Science & Society, v. 60, n. 4, 1997, p. 462.
Introdução 21

No entanto, os sucessivos planos de redação da obra, desde o primei-


ro, de 1857, assim como o método da Crítica da economia política, abonam a
ideia de que a lei do valor deve ser capaz de explicar as tendências gerais da
sociabilidade burguesa no mercado mundial, como argumentaremos. Uma
vez que a tarefa seria, portanto, a da continuação de O capital, propomos,
como ponto de partida, um debate sobre os caminhos da análise marxiana na
obra, isto é, sobre seu método. Mais especificamente, sobre o significado das
leis científicas em Marx, e sobre o modo de exposição da lei do valor.
Em seguida, após demonstrarmos a efetividade necessariamente
mundial do valor, defendemos o âmbito da concorrência internacional pelo
mais-valor como a frente para se atacar esta questão teórica para a qual, é
preciso dizer, oferecemos apenas uma discussão inicial. Esta abordagem,
fortemente enraizada nas indicações de Marx, como pretendemos demons-
trar, permite compreender que as distintas formas de inserção das nações
no mercado mundial condicionam-se mutuamente, reproduzindo em escala
ampliada uma relação de dominação/subordinação internacional. A partir
daí, propomos possíveis passos teóricos seguintes no sentido da concreção
da lei do valor de Marx.

********

Pretendemos alcançar estes objetivos em cinco capítulos. Notemos


que a necessidade de tomarmos posição no debate em torno dos escritos
de Marx sobre o colonialismo, especialmente no que diz respeito a haver aí
evidências da suposta ruptura em sua teoria da história, impõe a análise da
formação da ontologia do ser social do autor. Neste eixo central do livro, nos
apoiamos nas seguras e profundas análises do último Lukács, realizadas nos
dois volumes de Para uma ontologia do ser social.
Assim, tomamos como ponto de partida de nosso aporte nesta polê-
mica o teor da concepção marxiana para o desenvolvimento das sociedades
humanas em geral que, como defendemos, já compareciam em seus aspectos
fundamentais antes dos textos supostamente eurocêntricos do autor. Ade-
mais, esta abordagem, de certa forma cronológica, pressupõe a observação
das questões teóricas e práticas que inquietavam Marx em cada um dos mo-
mentos que escolhemos para analisar a evolução de seu pensamento, assim
como dos estudos empreendidos nestes contextos. Esta é a função das intro-
22 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

duções que redigimos para cada um dos capítulos que compõe este livro, nas
quais oferecemos uma brevíssima biografia intelectual de Marx nos períodos
considerados, e segundo os objetivos propostos em cada etapa deste trabalho.
Nos primeiros três capítulos discutimos, sucessivamente: o encontro
prematuro de Marx com a questão do desenvolvimento desigual, em seu confronto
com a “miséria alemã” nos dois textos que publica no Anais franco-alemães; a
formação de sua ontologia a partir dos Manuscritos econômico-filosóficos, com
ênfase em sua concepção de práxis e na perspectiva para o desenvolvimento
social que daí se deriva; para, em seguida, no terceiro capítulo, observar
como, com uma elaboração mais concretamente firmada, Marx oferece os
traços fundamentais e definitivos de sua teoria para o desenvolvimento no
âmbito do ser social, que facultam a compreensão, inclusive, de sua forma
necessariamente desigual e contraditória, em A ideologia alemã e Miséria
da filosofia. Ao longo destes três primeiros capítulos, faremos referências
à momentos posteriores da obra de Marx, sempre que eles nos ajudarem a
compreender melhor o que queremos apresentar, e na medida em que sirvam
para a demonstração de que estas elaborações teóricas correspondem à base
de sua mais madura teoria social, não a lampejos juvenis posteriormente
abandonados.
É no quarto capítulo deste livro que tratamos dos escritos de Marx
sobre o colonialismo e dos dois debates supracitados que eles ensejaram,
cada qual em uma seção. Finalmente, no quinto capítulo oferecemos nossa
contribuição para a complexa questão da efetividade mundial do valor, isto é,
da possível continuação da lei marxiana do valor no sentido das formas mais
concretas, e complexas, da sociabilidade burguesa. As questões metodoló-
gicas que apontamos como ponto de partida necessário são trabalhadas nas
duas primeiras seções; e, para as duas últimas, reservamos as mencionadas
discussões propriamente teóricas a esse respeito.
CAPÍTULO 1

Marx e a “miséria alemã”:


os Anais franco-alemães

Introdução

Em meados de 1843, os recém-casados Karl e Jenny Marx transferem-se


para Paris. A bela cidade francesa, capital das modernas revoluções e centro
de efervescente agitação política, parecia o melhor lugar para o novo empre-
endimento planejado por Marx em parceria com Arnold Ruge: a publicação
de uma revista “que abrisse interlocução entre o pensamento social francês
e os segmentos críticos da intelectualidade alemã”, os Anais franco-alemães.7
Decidido a lutar contra as condições políticas de seu país e tendo
em vista seu projeto de realizar uma crítica do Estado, Marx reconhece
na Alemanha a impossibilidade prática de levar adiante essa tarefa. Como
escreve a Ruge a 25 de janeiro de 1843: “Não posso fazer mais nada na
Alemanha. Aqui se falsifica a si mesmo”. De fato, o autor que fora obrigado
a sustar seu plano de ingressar na carreira acadêmica na Alemanha com a
ascensão de Frederico Guilherme IV ao trono da Prússia, acabara de sentir
na pele, uma vez mais, o peso da censura estatal. Na carta que acabamos de
citar, Marx explica a Ruge como uma dupla censura representava a sentença
de morte do jornal em que trabalhava como editor, a Gazeta Renana
[Rheinische Zeitung]. O periódico era impedido de sair toda vez que a polícia
“farejasse” qualquer coisa que “cheirasse” “anticristão” ou “antiprussiano”.8
Na verdade, como relata Marx, o recrudescimento da censura prus-
siana coincidiu com avanços em sua consciência política que o colocavam
em rota de colisão com os interesses dos acionistas da Gazeta Renana. Dis-
postos a apaziguar a perseguição do governo com uma mudança no curso
editorial do jornal, os acionistas mostravam-se fundamentalmente incapa-

7
J. P. Netto, “Marx em Paris”, In: K. Marx, Cadernos de Paris & Manuscritos econômico-filosóficos
de 1844, 2015, p. 18.
8
K. Marx & F. Engels, Karl Marx & Frederick Engels Collected Works(MECW), v. 1, 1975, p. 397-398.

23
24 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

zes de seguir a tarefa de oposição que correspondia à razão de ser do jornal


desde sua fundação. “Sufocado com aquela atmosfera”, Marx reconhecia que
a ação do governo, no final das contas, devolvera a sua “liberdade”.9 De fato,
questões práticas com as quais teve de se defrontar como jornalista levaram
à radicalização nas posições do jovem democrata.10 Como aponta Lukács:

Como opositor democrático-burguês Marx já não tinha nada em comum com


os sujos interesses materiais da burguesia. A exploradora lei que proibia o rou-
bo de lenha nos bosques (...) o ajudou a percorrer o caminho teórico que vai do
jacobinismo de Marat ao de Babeuf, e a tomar partido a favor dos direitos das
massas populares empobrecidas. A compreensão da incapacidade da burguesia
alemã para realizar a revolução também deve ter levado o jovem, portanto, a ver
na luta revolucionária ativa das massas populares empobrecidas a condição para
se realizar a revolução alemã.11

De volta ao gabinete, como sempre faria ao longo de sua vida ao se


deparar com questões concretas de difícil solução, Marx ocupa-se do estudo
dos fundamentos da filosofia hegeliana. Como reconhece Rubel, desde mui-
to cedo Marx era um obcecado com a filosofia de Hegel, mais que propria-
mente seu seguidor.12 Desta vez, o confronto aberto com o Estado alemão
acendeu no autor a necessidade de revisar criticamente a filosofia hegeliana
do direito. Segundo o próprio:

Minha investigação desembocou no seguinte resultado: relações jurídicas, tais


como formas de Estado, não podem ser compreendidas nem a partir de si mesmas,
nem a partir do assim chamado desenvolvimento geral do espírito humano, mas,
pelo contrário, elas se enraízam nas relações materiais de vida, cuja totalidade
foi resumida por Hegel sob o nome de “sociedade civil” [bürgeliche Gesellschaft],
seguindo os ingleses e franceses do século XVIII; mas que a anatomia da sociedade
burguesa [bürgeliche Gesellschaft] deve ser procurada na Economia Política.13

9
Ibidem, p. 397.
10
Como reconhece 16 anos depois. K. Marx, Para a crítica da economia política, 1986, p. 24.
11
G. Lukács, “Sobre la evolución filosófica del joven Marx”, In: G. Lukács, Sobre Marx y Lenin,
2012b, p. 178-179.
12
M. Rubel, Karl Marx: Ensayo de biografía intelectual, 1970, p. 50.
13
K. Marx, Para a crítica da economia política, 1986, p. 25.
Marx e a “miséria alemã”: os Anais franco-alemães 25

De modo muito sucinto, Marx, seguindo a trilha aberta pela crítica


à religião empreendida por Feuerbach,14 acusa Hegel de inverter a relação
entre predicado e sujeito (Estado e sociedade civil). Hegel pretendia, no fun-
do, justificar o Estado burguês apresentando-o como momento de resolu-
ção das contradições imanentes à sociedade civil e, desta forma, defender
a ordem social que acreditava ser o ponto alto da história humana. Assim,
diante desse Estado que, para Hegel, pairava sobre os indivíduos como “rea-
lidade independente”:

(...) se trata, portanto, de estabelecer as relações reais, nas quais, assim como a
religião não cria o homem, mas o homem cria a religião, não é a Constituição que
produz o povo, mas este que produz aquela. A estratégia supõe, portanto, retro-
agir as instituições à sua gênese histórica real, de modo que o Estado não flutue
livremente em uma esfera autônoma, mas se coloque a serviço das necessidade do
homem; quando Hegel legitima filosoficamente o Estado existente, o que procura
é hipostasiar a cisão entre homem e Estado como realidade eterna e inalterável;
desta forma, expressa a sociedade não como realização da pessoa, mas como algo
que o Estado alcança por si e para si mesmo.15

Em suma, é esse o Marx que escreve os textos que analisaremos


neste capítulo: um democrata radical voltado ao materialismo, opositor fer-
renho do Estado prussiano e ciente de que não poderia contar com a bur-
guesia alemã na luta por seus ideais políticos. Os escritos analisados nas
seções seguintes representam, portanto, documentos que indicam os rumos
da transição de Marx ao comunismo, apontando também importantes ques-
tões no caminho da maturação de sua teoria social.
Dados os objetivos deste trabalho, interessa-nos, sobretudo, o que
nesses textos indica a aproximação de Marx a problemáticas que dizem res-

14
Segundo Infranca e Vedda, às tentativas neohegelianas de superar a alienação por vias ideais e
subjetivas se contrapõe Feuerbach: “(...) a teoria desenvolvida em A essência do cristianismo (1841)
sustenta-se na tese segundo a qual a divindade não é mais que projeção imaginária da essência
genérica [Gattungswesen] humana; por isso, o conhecimento de Deus é, no fundo, uma tentativa
de autoconhecimento por parte do homem, visto no reflexo da exterioridade; o homem se aliena
da própria essência, de reconhecer-se em si mesmo, e a antítese Deus/homem é a forma mistificada
que assume a oposição entre o gênero e o indivíduo”. A. Infranca & M. Vedda, “Sobre la génesis de
la categoria alienación”, In: A. Infranca & M. Vedda, La alienación: História y actualidad, 2012, p. 17.
15
Ibidem, p. 19.
26 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

peito à formação de sua teoria sobre o desenvolvimento histórico.16 Veremos


como as questões relativas à situação alemã levam ao reconhecimento da
forma necessariamente desigual do desenvolvimento histórico, tanto no que
diz respeito ao desenvolvimento econômico geral, quanto na relação entre
as determinações econômicas e os demais complexos sociais (direito, arte,
filosofia, religião etc.). Fundamental para os avanços posteriores na capaci-
dade explanatória do que Marx apenas começa a constatar é a adoção, pelo
autor, do ponto de vista do proletariado, cuja pedra fundamental é lançada
no segundo artigo redigido para os Anais franco-alemães.

1.1. Sobre a questão judaica: os limites da igualdade


burguesa e a revolução sem sujeito

O ensaio Sobre a questão judaica, o segundo publicado em 1844 nos Anais


franco-alemães, foi na verdade o primeiro a ser redigido para a revista. No
final de outubro de 1843, Marx e sua esposa viajam a Paris levando uma
bagagem repleta de manuscritos, entre os quais um ensaio, ainda incomple-
to, sobre a chamada “questão judaica”.17 De fato, como reconhecem Löwy e
Netto, a redação do artigo foi concluída apenas em Paris, em dezembro de
1843.18 Löwy argumenta ainda que a segunda parte do texto teria sido escri-
ta sob forte influência do “comunismo filosófico” de Moses Hess, o que res-
ponderia por suposto descompasso entre as duas seções que o compõem.19

16
Como argumenta Mészáros, o prévio estudo de autores socialistas franceses, a atmosfera política
francesa e os estudos, já na França, sobre a Revolução de 1789, contribuíram para que Marx “se
tornasse extremamente familiarizado com os aspectos mais importantes da situação francesa,
que estava procurando integrar, juntamente com seu conhecimento e experiência da Alemanha,
em uma concepção histórica geral. O contraste que estabeleceu (...) entre a situação alemã e a
sociedade francesa - contra o pano de fundo do desenvolvimento histórico moderno como um
todo - mostrou-se proveitoso não só para atacar de maneira realista a questão judaica, mas em geral
para a elaboração de seu conhecido método histórico”. I. Mészáros, A teoria da alienação em Marx,
2006, p. 72-73.
17
M. Rubel, Karl Marx: Ensayo de biografía intelectual, 1970, p. 70.
18
M. Löwy, A teoria da revolução no jovem Marx, 2012, p. 86; J. P. Netto, “Marx em Paris”, In: K.
Marx, Cadernos de Paris & Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, 2015, p. 10.
19
M. Löwy, A teoria da revolução no jovem Marx, 2012, p. 86.
Marx e a “miséria alemã”: os Anais franco-alemães 27

Em Sobre a questão judaica Marx engaja-se em um encarniçado


debate com Bruno Bauer, a partir do qual leva adiante as conclusões al-
cançadas nos estudos sobre a filosofia de Hegel, com uma crítica radical da
“sociedade burguesa (...) em seu conjunto, em todas as suas pressuposições
filosóficas, estruturas políticas e fundamentos econômicos”.20 O escrito re-
presenta o primeiro documento público a marcar a ruptura intelectual do
autor com Bauer, de quem já se havia distanciado pessoalmente em função
de um contencioso a respeito do poeta Georg Herwegh, que pôs lado a lado
Marx e Ruge contra os “livres de Berlim”.21
O tema do debate era de grande interesse para a Alemanha daque-
la época: o Estado prussiano, declaradamente cristão, negava aos judeus a
igualdade jurídica. Para Bauer, a pré-condição para a emancipação política
dos judeus deveria ser sua renúncia à fé judaica, ou melhor, a qualquer re-
ligião – “já que toda religião, como tal, constitui a negação da emancipação
humana”,22 segundo Rubel. No entanto, em sua avaliação, os cristãos esta-
riam em melhores condições para a emancipação humana em virtude do
caráter mais universal de sua fé. Como anota Rubel: “Emancipação políti-
ca e emancipação humana eram ambas consideradas por Bauer desde um
ângulo estritamente antirreligioso: para serem livres, o Estado e o homem
deveriam livrar-se da religião”.23
Após apresentar em seus termos a “solução” de Bauer para a ques-
tão, Marx passa a apontar suas inconsistências. Fundamental para o autor
é o fato de os erros de Bauer estarem condicionados pela forma limitada,
unilateral, como considerou o problema. Segundo Marx:

De modo algum bastava analisar as questões: quem deve emancipar? Quem deve
ser emancipado? A crítica tinha uma terceira coisa a fazer. Ela devia perguntar:
de que tipo de emancipação se trata? Quais são as condições que têm sua base na
essência da emancipação exigida? Tão somente a crítica à emancipação política
poderia constituir a crítica definitiva à questão judaica e sua verdadeira dissolução
na “questão geral da época”.24

20
Ibidem.
21
M. Rubel, Karl Marx: Ensayo de biografía intelectual, 1970, p. 70.
22
Ibidem.
23
Ibidem, p. 70-71.
24
K. Marx, Sobre a questão judaica, 2010b, p. 36
28 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

Preso à forma política burguesa, Bauer é incapaz de ir além dos li-


mites por ela impostos, submetendo à crítica apenas as reminiscências do
Estado feudal (“Estado cristão”), não o “Estado como tal”.25 Tais limitações
impunham incongruências relacionadas à confusão entre “emancipação po-
lítica” e “emancipação humana”. Assim, Bauer exige dos judeus o abandono
de sua religião em uma sociedade que não abandonou a necessidade reli-
giosa. Desta feita, pergunta Marx: “o ponto de vista da emancipação política
tem o direito de exigir dos judeus a supressão do judaísmo e do homem de
modo geral a supressão da religião?”.26
O autor adverte em seguida para o fato de que a situação política
dos judeus deve ser formulada de acordo com o “Estado em que o judeu se
encontra”.27 Reconhece-se assim o desenvolvimento necessariamente desi-
gual das formas políticas burguesas em diferentes espaços nacionais. Em
outras palavras, o Estado burguês apresenta-se em formas diversas, sob di-
versos contextos sócio-históricos: uma dimensão cuja realidade não pode
deixar de ser reconhecida no texto em tela, ainda que apenas de passagem, já
que a tarefa a que se propunha o autor nessa época correspondia justamente
ao combate à “miséria alemã” – como transparece em todos os textos de
Marx publicados nos Anais franco-alemães, incluindo as cartas endereçadas
a Arnold Ruge. Como observa um importante comentador de Marx:

A expressão “miséria alemã” - tão cara ao jovem Marx - designa o descompasso


entre a realidade econômica da Alemanha, as suas limitadas e rígidas instituições
sociais e a grandeza da sua cultura (expressa na arte de Goethe e na filosofia de He-
gel); sinaliza a defasagem (o “atraso”) da vida alemã em relação à ordem sociopo-
lítica que, nas primeiras décadas do século XIX, se consolidava na Inglaterra, Bél-
gica, França e dava seus passos iniciais nos Estados Unidos da América. Ainda que
as relações econômicas capitalistas avançassem na Alemanha na primeira metade
do século XIX, tais avanços não rebatiam no plano político-institucional (...).28

25
Ibidem.
26
Ibidem, p. 36-37.
27
Ibidem, p. 37.
28
J. P. Netto, “Marx em Paris”, In: K. Marx, Cadernos de Paris & Manuscritos econômico-filosóficos
de 1844, 2015, p. 13.
Marx e a “miséria alemã”: os Anais franco-alemães 29

Ademais, na medida em que Marx identifica em diferentes Estados


nacionais (Alemanha, França e Estados Unidos) a presença, mais ou menos
forte, das reminiscências políticas feudais, comparece em suas palavras, ainda
que de modo subjacente, um sentido de progresso. Se na Alemanha a questão
é “puramente teológica” e na França, no “Estado constitucional”, a situação po-
lítica dos judeus “conserva a aparência de um antagonismo religioso, teológi-
co”; nos EUA a questão é posta em termos eminentemente seculares.29 Assim:

Só onde o Estado político existe em sua forma plenamente desenvolvida, a relação


do judeu, e de modo geral do homem religioso, com o Estado político, ou seja, a
relação entre a religião e o Estado, pode emergir em sua peculiaridade, em sua
pureza. A crítica a essa relação deixa de ser uma crítica teológica no momento
em que o Estado deixa de comportar-se teologicamente para com a religião, no
momento em que ele se comporta como Estado, isto é, politicamente, para com a
religião. A crítica transforma-se, então, em crítica ao Estado político.30

Marx toma o cuidado de deixar claro que, em sua opinião, a eman-


cipação política dos judeus corresponderia, objetivamente, a um avanço, a
um autêntico movimento progressivo.31 Reconhecer politicamente os judeus
é o mesmo que reconhecer nos judeus seu caráter humano e, portanto, igual,
ainda que na forma extremamente limitada da igualdade jurídico-formal
burguesa. De todo modo, como argumenta Lukács, a “generidade universal
biológico-natural” dos seres humanos, que existe em si, só se pode realizar na
medida em que os complexos sociais façam “com que o ‘mutismo’ da essência
genérica seja superado pelos membros de tal sociedade, uma superação que
os torne conscientes, no quadro desse complexo, de sua generidade enquanto
membros desse complexo”.32 Ou ainda, nos termos aforísticos de Marx em
carta a Ruge de setembro de 1843 (publicada nos Anais franco-alemães): “A
razão sempre existiu, só que nem sempre de forma racional”.33

29
K. Marx, Sobre a questão judaica, 2010b, p. 37.
30
Ibidem.
31
“A emancipação política de fato representa um grande progresso; não chega a ser a forma
definitiva da emancipação humana em geral, mas constitui a forma definitiva da emancipação
humana dentro da ordem mundial vigente até aqui”. Ibidem, p. 41.
32
G. Lukács, Para uma ontologia do ser social I, 2012a, p. 399-400.
33
K. Marx, Sobre a questão judaica, 2010b, p. 71.
30 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

Ao longo dos dois capítulos seguintes nos deteremos, com maior


atenção, a esta questão, na medida em que ela se vincula com problemas
ontológicos fundamentais que serão abordados por Marx, de modo mais ex-
plícito, em textos posteriores. Notemos por ora que se o reconhecimento do
gênero (ou da “perda da mudez do gênero”, como quer Lukács) corresponde
a um caminhar objetivamente progressivo no âmbito do ser social, os limites
para sua plena realização na forma burguesa de sociabilidade, contudo, já se
apresentavam suficientemente claros para Marx:

Como, porém, a existência da religião é a existência de uma carência, a fonte dessa


carência só pode ser procurada na essência do próprio Estado. Para nós, a re-
ligião não é mais a razão, mas apenas o fenômeno da limitação mundana. Em
consequência, explicamos o envolvimento religioso dos cidadãos livres a partir
do seu envolvimento secular. Não afirmamos que eles devam suprimir sua limi-
tação religiosa para depois suprimir suas limitações seculares. Afirmamos, isto
sim, que eles suprimem sua limitação religiosa no momento em que suprimem
suas barreiras seculares. (...) A questão da relação entre emancipação política e
religião transforma-se para nós na questão da relação entre emancipação política
e emancipação humana.34

É, portanto, a crítica materialista à filosofia hegeliana que permite a


Marx o reconhecimento de que a emancipação humana pressupõe a supera-
ção da sociedade burguesa. A inversão da relação entre Estado e sociedade
civil em Hegel – operada por Marx em seus manuscritos publicados postu-
mamente sob o título de Crítica da filosofia do direito de Hegel, seguindo a
crítica de Feuerbach à religião35 – é o ponto de partida necessário para os
textos que analisamos neste capítulo, como reconhece Bensaid.36

34
Ibidem, p. 38.
35
É preciso chamar a atenção para o fato de que a aproximação a Feuerbach, reconhecidamente
um momento fundamental na formação do pensamento marxiano, nunca representou uma
completa adesão às teses feuerbachianas. No capítulo seguinte tomaremos um espaço maior para
demonstrar que a aproximação com aquele autor comporta, imediatamente, um afastamento. Por
ora, notemos que os termos desse afastamento já se podiam vislumbrar nas correspondências
entre Marx e Ruge, antes da publicação dos Anais franco-alemães. Em 3 de março de 1843, escreve
Marx: “Os aforismos de Feuerbach não são corretos apenas neste ponto: ele se refere em demasia
à natureza e demasiadamente pouco à política. No entanto, esta é a única aliança através da qual
a filosofia atual pode converter-se em verdade”. K. Marx apud G. Lukács, “Sobre la evolución
Marx e a “miséria alemã”: os Anais franco-alemães 31

Sob essa perspectiva, não apenas a questão judaica, como toda e


qualquer questão política, demanda, para sua solução, a análise crítica das
relações sociais que lhes servem de base. No que diz respeito à laicidade do
Estado, os limites do que aí se pode conquistar evidenciam-se na medida em
que ao Estado é dada a possibilidade de se atingir uma liberdade que os seres
humanos não podem alcançar.37 Assim, o reconhecimento político de indi-
víduos filiados a determinado credo religioso representa um avanço, sem
necessariamente abolir, contudo, o condicionamento religioso que medeia o
reconhecimento de si dos seres humanos.

O Estado é o mediador entre o homem e a liberdade do homem. Cristo é o me-


diador sobre o qual o homem descarrega toda a sua divindade, todo o seu envolvi-
mento religioso, assim como o Estado é o mediador para o qual ele transfere toda
a sua impiedade, toda a sua desenvoltura humana.38

Em síntese: “A elevação política do homem acima da religião com-


partilha de todos os defeitos e de todas as vantagens de qualquer elevação
política”.39 A quebra de regimes legais que impõe a distinção jurídico-formal
entre grupos de indivíduos sob a base da diferenciação cultural, étnica, re-
ligiosa, de formação, de atividade laboral ou de classe, representa o reco-
nhecimento, dentro desses limites legais, da identidade humana. Assim, o
Estado burguês proclama “cada membro do povo, sem consideração dessas
diferenças, como participante igualitário da soberania nacional”.40 Contudo:

(...) o Estado permite que a propriedade privada, a formação, a atividade laboral


atuem à maneira delas, isto é, como propriedade privada, como formação, como

filosófica del joven Marx”, In: G. Lukács, Sobre Marx y Lenin, 2012b, p. 162. Neste sentido,
Mehring afirma que, já em Sobre a questão judaica, Marx “foi além de Feuerbach, revelando o
elemento social especial que se reflete na religião judaica”. F. Mehring, Karl Marx: A história de
sua vida, 2013, p. 84.
36
D. Bensaid, “Zur Judenfrage, uma crítica da emancipação política”, In: K. Marx, Sobre a questão
judaica, 2010, p. 13-14.
37
K. Marx, Sobre a questão judaica, 2010b, p. 46.
38
Ibidem, p. 39.
39
Ibidem.
40
Ibidem, p. 40.
32 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

atividade laboral, e tornem efetiva sua essência particular. Longe de anular essas
diferenças fáticas, ele existe tão somente sob o pressuposto delas, ele só se percebe
como Estado político e a sua universalidade só torna efetiva em oposição a esses
elementos próprios dele.41

Pode-se vislumbrar aqui como as questões econômicas ascendiam


ao posto de objetos de estudo de Marx, tendo em vista sua centralidade na
sociabilidade burguesa. Um projeto ao qual, como sabemos, o autor dedicou-
se com impressionante devoção. Não sem propósito, no intervalo entre o início
da redação desse texto e sua publicação, em janeiro de 1844, Marx encantou-
se com o Esboço de uma crítica da economia política de Friedrich Engels,
publicado no mesmo primeiro e único número dos Anais franco-alemães.
Assim, o nexo do judaísmo com o mundo moderno, seu “funda-
mento secular”, é, para Marx, a “necessidade prática, o interesse próprio”.
Seu culto secular é o “negócio”, seu deus secular o “dinheiro”.42 Deixando-se
de lado o enorme debate que essa caracterização do fundamento moderno
do judaísmo gerou,43 a forma como Marx põe em seus próprios termos a
questão de Bauer, secularizando-a, é um indicador fiel de sua perspectiva
inequivocamente materialista – o que não significa que esse posicionamento
não tivesse ainda de ser aprofundado pelo autor. Desta forma: “Agora sim!
A emancipação em relação ao negócio e ao dinheiro, portanto, em relação ao
judaísmo prático, real, seria a autoemancipação da nossa época”.44

41
Ibidem.
42
Ibidem, p. 56.
43
Muitos autores apontaram que a caracterização do judaísmo por Marx revelaria um suposto
antissemitismo, apesar dele próprio ser proveniente de família judaica (embora convertida ao
cristianismo por questão unicamente prática: a bem sucedida carreira de seu pai como advogado).
Sobre o debate ver D. Bensaid, “Zur Judenfrage, uma crítica da emancipação política”, In: K. Marx,
Sobre a questão judaica, 2010, pp. 75-80. Segundo Löwy: “Ora, se é verdade que nesse artigo Marx
identifica o judaísmo com o comércio, o dinheiro, o egoísmo etc. - identificação que era feita por
todos os jovens hegelianos, judeus (como Moses Hess) ou não -, basta ir além das aparências
para se dar conta de que, no fundo, ela é uma defesa dos judeus, por duas razões muito simples e
claras: Diante do antissemita Bauer, para o qual os judeus, ao contrário dos cristãos, são incapazes
de se tornar livres, Marx afirma a igualdade dos dois grupos do ponto de vista da emancipação
humana; Marx mostra que o egoísmo e o dinheiro não são erros específicos do judaísmo, mas
traços essenciais de toda sociedade moderna e cristã (tema já esboçado em Feuerbach e em Hess)”.
M. Löwy, A teoria da revolução no jovem Marx, 2012, p. 85.
44
K. Marx, Sobre a questão judaica, 2010b, p. 56.
Marx e a “miséria alemã”: os Anais franco-alemães 33

Pouco antes de dedicar-se aos estudos sobre economia política e


bem antes de começar a sistematizar a sua Crítica da economia política, a
Marx estavam claras algumas consequências práticas dessa forma de socia-
bilidade: “a degradação prática da natureza”; “desprezo pela teoria, pela arte,
pela história, pelo homem como um fim em si mesmo”; e a transformação da
“relação de gênero, a relação entre homem e mulher etc.”, em um “objeto de
negócio”.45 Explorada no ano seguinte nos Manuscritos econômico-filosóficos,
sobre os quais falaremos adiante, a forma das relações afetivas entre mulhe-
res e homens, para Marx, é um indicativo do grau de desenvolvimento do
reconhecimento do caráter genérico que nos faz humanos. Nesse particular,
patenteia-se mais uma vez o fato de que, para o autor, o capitalismo impõe
barreiras intransponíveis ao progresso da humanidade, mas não apenas no
que diz respeito ao referido quesito:

Enquanto o homem estiver religiosamente tolhido, só conseguirá reificar sua es-


sência, transformando-a em uma essência fantástica e estranha a ele; do mesmo
modo, sob a dominação da necessidade egoísta, ele só conseguirá exercer uma ati-
vidade prática, produzir objetos na prática, colocando seus produtos, assim como
sua atividade, sob a dominação de uma essência estranha a eles e emprestando-
lhes a importância de um ser estranho a eles – o dinheiro.46

Os limites do significativo desenvolvimento que o processo de in-


tegração humana assume na sociedade burguesa figuram, portanto, com
clareza nas linhas que estamos analisando. Esse inegável progresso históri-
co assume a forma de um universal que se impõe sobre os inúmeros anta-
gonismos particulares,47 sem superá-los – pelo contrário, reproduzindo-os
sob as novas determinações sociais. A efetividade jurídica da generidade
humana enquanto realidade não mais muda nada mais é que sua realização
estranhada, já que mediada pelas relações mercantis. Assim, a “conquista de
direitos” (para usar um termo caro a certas correntes políticas da esquerda
contemporânea) é possível e pode ser incorporada ao Estado burguês em

45
Ibidem p, 58.
46
Ibidem, p. 59-60.
47
De nacionalidade, de gênero, de religião, étnicos, culturais etc.
34 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

determinadas condições, porém, a “autolibertação humana” está predicada,


já para o “jovem Marx” (embora sem a clareza que obteria de suas pesquisas
posteriores), a que se “avance até a abolição da propriedade privada, até o
maximum, até o confisco, a taxação progressiva, em que [se] avance até a
abolição da vida, até a guilhotina”.48
Como lembra Löwy, “a emancipação humana, é a única capaz de supe-
rar as contradições da sociedade civil-burguesa, porque é a Aufhebung [supe-
ração dialética] do conflito entre a existência individual sensível e a existência
genérica dos homens”.49 A explicitação do gênero humano tem de estancar-se,
portanto, em uma sociabilidade que “faz com que cada homem veja no outro
homem, não a realização, mas, ao contrário, a restrição de sua liberdade”.50
O processo histórico que trouxe o progresso objetivo consubstan-
ciado na superação das formas diretas de dominação que caracterizam a
“feudalidade”, na qual o Estado manifesta-se como “assunto particular de um
soberano e seus serviçais, separados do povo”, pôs o Estado como “assunto
universal” e a política como “questão universal do povo”.51 Desta forma, se
esse teor universal alcança meramente a esfera da aparência, na medida em
que universaliza apenas os mesquinhos interesses burgueses – lançando-os
como norma fundamental da sociabilidade –, ele representa, ao mesmo tem-
po, a emergência de possibilidades societárias inteiramente novas, sintetiza-
das por Marx como “emancipação humana”. Esta consistiria não na liberdade
de religião, de propriedade e de comércio para os indivíduos, mas na liberta-
ção de todo indivíduo da religião, da propriedade e do comércio. Em suma:

(...) a emancipação política só estará plenamente realizada quando o homem in-


dividual real tiver recuperado para si o cidadão abstrato e se tornado ente gené-
rico na qualidade de homem individual na sua vida empírica, no seu trabalho
individual, nas suas relações individuais, quando o homem tiver reconhecido e
organizado suas “forces propres” [forças próprias] como forças sociais e, em conse-
quência, não mais separar de si mesmo a força social na forma de força política.52

48
Ibidem, p. 42.
49
M. Löwy, A teoria da revolução no jovem Marx, 2012, p. 87; adendo nosso.
50
K. Marx, Sobre a questão judaica, 2010b, p. 49.
51
Ibidem, p. 52.
52
Ibidem, p. 54.
Marx e a “miséria alemã”: os Anais franco-alemães 35

Assim, a “questão judaica” resolver-se-ia, em definitivo, sob o pres-


suposto da superação da sociedade burguesa. A pergunta que se deve co-
locar em seguida, portanto, é sobre o sujeito capaz de realizar essa tarefa.
Contudo, o ensaio em análise não chega a oferecer uma tentativa de resposta
à questão. Como já notamos, apesar de inequivocamente radical, este texto,
segundo Löwy, expressaria um “‘comunismo filosófico’ à Moses Hess”,53 ao
menos em sua segunda parte. De fato, como lembra Frederico, as referências
conclusivas de Sobre a questão judaica acerca do culto judaico ao dinhei-
ro “refletem diretamente a recente influência de Moses Hess – autor que
também havia recorrido à teoria feuerbachiana para dar conta de temas do
mundo profano, e viu no dinheiro a essência alienada do homem”.54 Já Netto,
sem pretender negar a influência de Hess, vê em Marx, através de suas posi-
ções políticas, um democrata radical em vias de tornar-se comunista, o que
logo se consumaria no final do primeiro semestre de 1844.55 Rubel, por sua
vez, crê que a forma como Marx põe o problema da alienação na sociedade
burguesa, no texto em análise, revela um “anarquismo essencial”.56
Independentemente da forma como se queira caracterizar a posição
política de Marx nessa época, a ausência de uma discussão sobre o sujeito da
revolução que traria a emancipação humana tem um fundamento concreto:
o inexistente contato do autor, quando da redação do texto, com a classe
trabalhadora. Como lembra Lukács, Marx chega à França exatamente a fins
de 1843, encontrando

(...) ali, em um meio capitalista desenvolvido, por um lado, as organizações do


proletariado combativo, entregando-se, por outro, ao estudo dos historiadores
franceses da Restauração, os primeiros a apresentar a história como a história da
luta de classes.57

Assim, a despeito do fato de que, na prática, os contatos diretos de


Marx com as sociedades secretas de comunistas alemães e franceses em Paris

53
M. Löwy, A teoria da revolução no jovem Marx, 2012, p. 88.
54
C. Frederico, O jovem Marx: 1843-1844: As origens da ontologia do ser social, 2009, p. 101.
55
J. P. Netto, “Marx em Paris”, In: K. Marx, Cadernos de Paris & Manuscritos econômico-filosóficos de
1844, 2015, p. 24.
56
M. Rubel, Karl Marx: Ensayo de biografía intelectual, 1970, p. 72.
57
G. Lukács, “Sobre la evolución filosófica del joven Marx”, In: G. Lukács, Sobre Marx y Lenin,
2012b, p. 184.
36 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

só teriam começado a partir de abril de 1844, como afirma Löwy,58 a efer-


vescência política daquela cidade rapidamente surtiu efeito sobre o autor.
Redigido poucos meses depois, entre dezembro de 1843 e janeiro de 1844, a
Crítica da filosofia do direito de Hegel - Introdução não se furta a abordar com
firmeza a questão do sujeito revolucionário: o proletariado – pelos motivos
que veremos a seguir.
Ademais, como o atraso político alemão está mais uma vez em de-
bate, Marx é obrigado a abordar novamente o problema do desenvolvimento
histórico, contraditório e desigual, desta vez com ainda maior ênfase, todavia
não estivesse ainda em condições de oferecer uma discussão sobre os funda-
mentos teóricos que jazem por trás dessas considerações.

1.2. Crítica da filosofia do direito de Hegel - Introdução:


o desenvolvimento desigual e o sujeito da revolução

A famosa Introdução, publicada no mesmo Anais franco-alemães que o texto


anterior, representa a tomada de um caminho sem volta na formação do pen-
samento marxiano. É correto apontar, como comumente se faz, este como
o momento no qual Marx apresenta publicamente sua concepção do prole-
tariado como classe capaz de promover a emancipação humana através de
uma revolução.59 Como já notamos com relação ao escrito anterior, a forma
elogiosa à Feuerbach com que Marx inicia o texto60 não o impede de ir além
da “limitação do princípio antropológico feuerbachiano”61 também aqui, na
medida em que se reconhece a essência humana como produto histórico,
como o conjunto das relações sociais. Segundo Marx:

E a religião é de fato a autoconsciência e o autossentimento do homem, que ou

58
M. Löwy, A teoria da revolução no jovem Marx, 2012, p. 83-84.
59
A esse respeito veja-se, por exemplo: A. S Vázquez, Filosofía de la praxis, 2003, p. 132; e A.
Infranca & M. Vedda, “Sobre la génesis de la categoria alienación”, In: A. Infranca & M. Vedda, La
alienación: História y actualidad, 2012, p. 22.
60
“Na Alemanha, a crítica da religião está, no essencial, terminada; e a crítica da religião é o
pressuposto de toda a crítica”. K. Marx, “Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução”, In:
K. Marx, Crítica da filosofia do direito de Hegel, 2013a, p. 151.
61
G. Lukács, “Sobre la evolución filosófica del joven Marx”, In: G. Lukács, Sobre Marx y Lenin,
2012b, p. 193.
Marx e a “miséria alemã”: os Anais franco-alemães 37

ainda não conquistou a si mesmo ou já se perdeu novamente. Mas o homem não


é um ser abstrato, acocorado fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o
Estado, a sociedade. Esse Estado e essa sociedade produzem a religião, uma cons-
ciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido.62

Posta essa espécie de crítica implícita a Feuerbach (que em breve
transformar-se-á em explicita, exatamente nos mesmos termos),63 a tarefa
que se impõe é a da superação desse mundo invertido, isto é, da sociedade
burguesa. Tal qual no texto anterior, Marx posiciona-se no sentido de que a
“exigência de que abandonem as ilusões acerca de uma condição é a exigên-
cia de que abandonem uma condição que necessita de ilusões”.64
Com relação ao Sobre a questão judaica, contudo, Marx percebe
com maior clareza os determinantes concretos dessa transformação social
compreendida como o caminho à emancipação humana. Neste sentido, o
distanciamento implícito com relação à Feuerbach se expressa na necessida-
de de abordar a questão revolucionária. Em outras palavras, Marx tinha de
tratar da conexão entre a crítica teórica e as forças sociais capazes de trazer
a necessária mudança:

Portanto, a tarefa da história, depois de desaparecido o além da verdade, é esta-


belecer a verdade do aquém. A tarefa imediata da filosofia, que está a serviço da
história, é, depois de desmascarada a forma sagrada da autoalienação humana,
desmascarar a autoalienação nas suas formas não sagradas. A crítica do céu trans-

62
K. Marx, “Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução”, In: K. Marx, Crítica da filosofia
do direito de Hegel, 2013a, p. 151.
63
Desta forma entende também Riazanov: “(...) Marx não se satisfaz com a crítica da religião
de Feuerbach. Este explicava a essência da religião pela essência do homem; mas a essência do
homem não é algo abstrato, exclusivo do homem como indivíduo. O homem mesmo representa
uma soma, um conjunto de relações determinadas. Não existe o homem isolado”. D. Riazanov,
Marx y Engels, 2012, p. 86-87. Já Lukács, ao comentar a mesma passagem da Crítica da filosofia
do direito de Hegel - Introdução que citamos acima, destaca sua semelhança com o VI ponto das
famosas Teses sobre Feuerbach, que reproduzimos aqui em parte, segundo a edição brasileira:
“Feuerbach dissolve a essência religiosa na essência humana. Mas a essência humana não é uma
abstração intrínseca ao indivíduo isolado. Em sua realidade, ela é o conjunto das relações sociais”.
K. Marx & F. Engels, A ideologia alemã, 2007, p. 538. Cf. G. Lukács, “Sobre la evolución filosófica
del joven Marx”, In: G. Lukács, Sobre Marx y Lenin, 2012b, p. 193.
64
K. Marx, “Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução”, In: K. Marx, Crítica da filosofia
do direito de Hegel, 2013a, p. 151-152.
38 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

forma-se, assim, na crítica da terra, a crítica da religião, na crítica do direito, a


crítica da teologia, na crítica da política.65

O sujeito da revolução, como já adiantamos, é o proletariado, que


aparece ao final do texto em análise como a solução para o enigma do atraso
teutônico. Ademais, tomando novamente “o status quo alemão” por objeto de
análise, Marx não pode deixar de trabalhar a questão da desigualdade no de-
senvolvimento histórico da Alemanha com relação a outros países, notada-
mente França e Inglaterra.66 Neste contexto, a Alemanha desenvolvera uma
forma de Estado classificada como “anacrônica” frente à emergência da so-
ciabilidade burguesa na Europa ocidental, relacionada ao que Marx explici-
tamente identifica como “atraso alemão” (ou, a supracitada, “miséria alemã”).

A história alemã, é verdade, orgulha-se de um desenvolvimento que nenhuma


nação no firmamento histórico realizou antes dela ou chegará um dia a imitar.
Tomamos parte nas restaurações das nações modernas, sem termos tomado parte
em suas revoluções. Fomos restaurados primeiramente porque outras nações ou-
saram fazer uma revolução e, em segundo lugar, porque outras nações sofreram
contrarrevoluções; no primeiro caso, porque nossos senhores tiveram medo e, no
segundo, porque nada temeram.67

Se ainda não encontramos em Marx uma análise consistente sobre os


determinantes econômicos desse atraso, o autor não se esquiva de afirmar que
“a relação da indústria, do mundo da riqueza em geral, com o mundo políti-
co é um dos problemas fundamentais da era moderna”.68 Nessas condições, o
desenvolvimento alemão encontrava-se “abaixo do nível da história, abaixo de
toda crítica”.69 Aqui, como em outras obras de Marx,70 ter ou não ter história,
ou encontrar-se acima ou abaixo dela, não pode representar senão um aporte
relativo. Nas linhas citadas, o referencial é o da emancipação política, isto é, a

65
Ibidem, p. 152.
66
Ibidem.
67
Ibidem.
68
Ibidem, p. 155.
69
Ibidem, p. 153.
70
No quarto capítulo deste livro retomamos esta questão no contexto dos debate em torno dos
textos de Marx sobre o colonialismo.
Marx e a “miséria alemã”: os Anais franco-alemães 39

democracia burguesa, o que não significa que o autor a tenha por definitivo
horizonte político, como já observamos na análise do texto anterior.
Assim, o ancien régime aparece na Alemanha dos anos 1840 como
um anacronismo farsesco diante do desenvolvimento histórico da sociedade
burguesa; e o caráter anacrônico do Estado alemão transpira a necessária
desigualdade no desenvolvimento econômico geral do modo de produção
burguês. Deve-se ressaltar que se Marx identificou a relação entre o desen-
volvimento econômico e as formas político-institucionais que caracterizam
a situação alemã sem, contudo, estar apto a oferecer uma análise rigoro-
sa das leis desse desenvolvimento, tais limitações não o levaram a postular
uma relação de tipo mecânico-determinista entre a esfera da produção e as
demais formas de objetivação social. É por isso que o autor é capaz de per-
ceber que: “Somos [os alemães] contemporâneos filosóficos do presente, sem
sermos seus contemporâneos históricos”.71 Assim, na Alemanha, onde ain-
da não estão postas as “modernas condições políticas”, faz-se possível uma
“ruptura crítica com a reflexão filosófica dessas condições”.72
Como observa Lukács:

Apenas em termos filosóficos se colocaram, portanto, os alemães à altura da época,


são os autênticos contemporâneos do presente. São-no através da filosofia hege-
liana do direito e do Estado; são-no através da crítica feuerbachiana da religião,
a partir da qual, tomando-a de maneira coerente, se deriva a demanda da plena
emancipação humana.73

Os jovens hegelianos, dos quais Marx afasta-se decididamente nos


escritos que fazem parte dos Anais franco-alemães, o “partido teórico”, vis-
lumbraram “apenas o combate crítico da filosofia contra o mundo alemão,
sem considerar que a própria filosofia até então existente pertence a esse
mundo e constitui seu complemento, mesmo que ideal”.74 Resumidamente:

71
Ibidem, p. 156; adendo nosso.
72
Ibidem.
73
G. Lukács, “Sobre la evolución filosófica del joven Marx”, In: G. Lukács, Sobre Marx y Lenin,
2012b, p. 196.
74
K. Marx, “Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução”, In: K. Marx, Crítica da filosofia
do direito de Hegel, 2013a, p. 156.
40 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

este partido “acreditou que poderia realizar a filosofia sem suprimi-la”.75 De


fato, para Marx, a Alemanha foi a “consciência teórica” do Estado moderno,
cuja imagem mental, “que faz abstração do homem efetivo, só foi possível, ao
contrário, porque e na medida em que o próprio Estado moderno faz abstra-
ção do homem efetivo ou satisfaz o homem total de uma maneira puramente
imaginária”.76
Desta forma, a “crítica da filosofia especulativa do direito não
deságua em si mesma, mas em tarefas para cujas soluções há apenas um
meio: a prática”.77 Como lembra Vázquez, a passagem da crítica radical
do plano teórico ao prático passa pela moral revolucionária: “A práxis é,
portanto, a revolução, ou crítica radical que, respondendo a necessida-
des radicais, humanas, passa do plano teórico ao prático”.78 Marx põe a
questão nos seguintes termos: “pode a Alemanha chegar a uma práxis à la
hauteur des principes, quer dizer, a uma revolução que a elevará não só ao
nível oficial das nações modernas, mas à estatura humana que será o futuro
imediato dessas nações?”.79
O autor esforça-se, ainda, por deixar imediatamente claro que a
práxis “à altura dos princípios” é a ação revolucionária guiada pela crítica
objetiva do existente:

A arma da crítica não pode, é claro, substituir a crítica da arma, o poder material
tem de ser derrubado pelo poder material, mas a teoria também se torna for-
ça material quando se apodera das massas. A teoria é capaz de se apoderar das
massas tão logo demonstra ad hominem, e demonstra ad hominem tão logo se
torna radical. Ser radical é agarrar as coisas pela raiz. Mas a raiz para o homem é
o próprio homem.80

75
Ibidem.
76
Ibidem.
77
Ibidem.
78
A. S Vázquez, Filosofía de la praxis, 2003, p. 137.
79
K. Marx, “Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução”, In: K. Marx, Crítica da filosofia
do direito de Hegel, 2013a, p. 156.
80
Ibidem.
Marx e a “miséria alemã”: os Anais franco-alemães 41

A revolução depende, obviamente, de seres humanos capazes e dis-


postos a realizá-la. Antes de responder a questão sobre quais seriam esses
seres humanos, isto é, qual classe social poderia assumir e realizar esta tarefa
na sociedade burguesa, Marx defende que a ação revolucionária não pode
partir de imperativos imediatamente morais (isto é, moralistas), mas deve
corresponder a uma ética predicada à análise crítica das determinações so-
ciais concretas. Como escreve em carta a Ruge de setembro de 1843: “(...) a
vantagem da nova tendência é justamente a de que não queremos antecipar
dogmaticamente o mundo, mas encontrar o novo mundo a partir da crítica
ao antigo”.81
A tarefa teórico-revolucionária de Marx está posta, portanto: de-
monstrar o fundamento humano por trás das formas reificadas de uma exis-
tência social que se apresenta como compulsão externa; e, assim, realizar “a
crítica inescrupulosa da realidade dada (...) tanto no sentido de que a crítica
não pode temer os seus próprios resultados quanto no sentido de que não
pode temer os conflitos com os poderes estabelecidos”.82
A crítica teórica da realidade objetiva desemboca, portanto, no im-
perativo de “subverter todas as relações em que o homem é um ser humi-
lhado, escravizado, abandonado, desprezível”.83 Posição que prescinde do
moralismo característico das formulações utópicas ou românticas (críticas
imediatamente morais que, portanto, não conseguem ir além do horizonte
burguês), como as de Weitling, Cabet e Dézamy, que propõem um comu-
nismo que “é, ele próprio, apenas um fenômeno particular do princípio hu-
manista, infectado por seu oposto, o sistema privado”.84 Não é sem propó-
sito, portanto, que o autor não se associa à Liga dos Justos durante esta sua
primeira residência em Paris, sociedade secreta de trabalhadores fundada,
entre outros, por Weitling, antes de sua partida para a Suíça, e dirigida por
seus seguidores, alguns dos quais Marx conhecia pessoalmente.85
A realização do imperativo revolucionário, posto pelas próprias
condições de existência na sociedade capitalista, depende, claro, de certos

81
K. Marx, Sobre a questão judaica, 2010b, p. 70.
82
Ibidem, p. 71.
83
K. Marx, “Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução”, In: K. Marx, Crítica da filosofia
do direito de Hegel, 2013a, p. 158.
84
K. Marx, Sobre a questão judaica, 2010b, p. 71.
85
M. Rubel, Karl Marx: Ensayo de biografía intelectual, 1970, p. 78.
42 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

pressupostos objetivos, o que parece ser uma “dificuldade fundamental” à


“revolução radical alemã”.86 O primeiro ponto considerado é o do “elemento
passivo” das revoluções, sua “base material”.87
A questão se apresenta, então, da seguinte forma: pode a Alema-
nha, de baixo de sua “miséria”, erguer-se a um patamar que nem mesmo
os países mais avançados puderam alcançar? De fato, “a Alemanha não
galgou os degraus intermediários da emancipação política no mesmo
tempo em que as nações modernas”.88 Apesar disso, em torno da década
de 1840, os alemães – sob uma aliança aduaneira que institui a liberdade
alfandegária entre boa parte dos Estados germânicos e em integração com
o mercado mundial – já apontavam para o rápido avanço industrial que
se confirmaria nas décadas seguintes.89 No entanto, segundo Hobsbawm,
no período em que Marx escreve o texto em tela o Estado prussiano ainda
controlava, em grande medida (qualidade e preço), a produção industrial
e artesanal e a exploração de minas.90 “Obviamente, em tais circunstân-
cias (que têm paralelo em inúmeros outros Estados), o desenvolvimento
industrial tinha que funcionar de um modo bastante diferente do modelo
britânico”.91
Em suma, tendo em vista tal desigualdade no desenvolvimento
do modo de produção capitalista, deveria a Alemanha seguir algumas
etapas intermediárias para que, apenas a partir delas, emergisse a possi-
bilidade da revolução radical de que fala Marx? A resposta desse jovem
Marx guarda importantes semelhanças com a resposta formulada, quase
quarenta anos depois, sobre a possibilidade de uma revolução comunista
na Rússia czarista.92

86
K. Marx, “Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução”, In: K. Marx, Crítica da filosofia
do direito de Hegel, 2013a, p. 158.
87
Ibidem.
88
Ibidem.
89
De fato, como apresenta Hobsbawm, “(...) os Krupp na Alemanha, por exemplo, instalaram sua
primeira máquina a vapor em 1835, as primeiras minas do grande campo do Ruhr foram abertas
em 1837 (...)”. E. Hobsbawm, A era das revoluções: Europa 1789-1848, 2003, p. 242.
90
Ibidem, p. 245.
91
Ibidem, p. 245-246.
92
Sobre isso ver Carta a Vera Ivanovna Zasulitch, 8 mar. 1881 e Prefácio à edição russa do Manifesto
Comunista, 1882. K, Marx & F. Engels, Luta de classes na Rússia, 2013, pp. 114-125. Esse assunto
será abordado em mais detalhes no quarto capítulo.
Marx e a “miséria alemã”: os Anais franco-alemães 43

Mas, se a Alemanha acompanhou o desenvolvimento das nações modernas ape-


nas por meio da atividade abstrata do pensamento, sem tomar parte ativa nas lutas
reais desse desenvolvimento, ela compartilhou, por outro lado, das dores desse de-
senvolvimento, sem compartilhar de seus prazeres, de suas satisfações parciais.93

A desigualdade do desenvolvimento alemão, com relação à Ingla-
terra e à França, fica caracterizada pelo fato de “os governos alemães” combi-
narem as “deficiências civilizadas do mundo político moderno”, sem desfrutar
de suas vantagens, “com as deficiências bárbaras do ancien régime”, das quais
desfruta plenamente.94 A desigualdade situa-se, portanto, na forma peculiar
com que são combinados o “velho” e o “novo”, em cada contexto sócio-histó-
rico. Em outras palavras, o desenvolvimento ulterior depende das condições
sobre as quais os seres humanos fazem a sua própria história, isto é, do de-
senvolvimento anterior. Desta forma, em termos muito gerais, o desenvolvi-
mento capitalista molda-se às peculiaridades de cada espaço nacional.
Assim, as ações concretas, no contexto de uma determinada base
material, de uma determinada correlação de forças entre as classes sociais
etc., fazem emergir formas particulares do desenvolvimento de uma mesma
sociabilidade. A forma política alemã é um produto do desenvolvimento
burguês no país, cujo caráter particular aparece como uma “deficiência da
atual política constituída num mundo próprio”.95 Essa particularidade pode
ser superada não com um catch up, na linguagem dos economistas de hoje,
não com a reprodução fotocopiada do desenvolvimento francês ou inglês,
mas com a demolição das “barreiras gerais da política atual”.96
Como já notamos, Marx reconhecia que essas barreiras só podem
ser derrubadas por força material. A revolução política, isto é, “a revolução
que deixa de pé os pilares do edifício”, é dependente de que uma classe, a
partir de sua situação particular, consiga apresentar-se como portadora do
interesse “universal”.97

93
K. Marx, “Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução”, In: K. Marx, Crítica da filosofia
do direito de Hegel, 2013a, p. 159.
94
Ibidem.
95
Ibidem, p. 160.
96
Ibidem.
97
Ibidem.
44 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

Tal classe liberta a sociedade inteira, mas apenas sob o pressuposto de que toda a
sociedade se encontre na situação de sua classe, portanto, por exemplo, de que ela
possua ou possa facilmente adquirir dinheiro e cultura.
Nenhuma classe da sociedade civil pode desempenhar esse papel sem despertar,
em si e nas massas, um momento de entusiasmo em que ela se confraternize e mis-
ture com a sociedade em geral, confunda-se com ela, seja sentida e reconhecida
como sua representante universal; um momento em que suas exigências e direitos
sejam, na verdade, exigências e direitos da sociedade, em que ela seja efetivamente
o cérebro e o coração sociais. Só em nome dos interesses universais da sociedade
é que uma classe particular pode reivindicar o domínio universal. (...) Para que a
revolução de um povo e a emancipação de uma classe particular da sociedade civil
coincidam, para que um estamento [Stand] se afirme como um estamento de toda
a sociedade, é necessário que, inversamente, todos os defeitos da sociedade sejam
concentrados numa outra classe, que um determinado estamento seja o do es-
cândalo universal, a incorporação das barreiras universais; é necessário que uma
esfera social particular se afirme como o crime notório de toda a sociedade, de
modo que a libertação dessa esfera apareça como uma autolibertação universal.98

Tais qualidades, no entanto, faltam a todas as classes particulares


na Alemanha de Marx; cada qual reconhece a si mesma, em suas reivin-
dicações particulares, “não a partir do momento em que é oprimida, mas
desde o momento em que as condições da época, sem qualquer ação de sua
parte, criam um novo substrato social que ela pode, por sua vez, oprimir”.99
Essa falta de disposição revolucionárias das “classes médias” alemãs respon-
de pela incapacidade da emancipação política do país naquele momento, o
que se confirmaria posteriormente na derrota da Revolução de 1848. Nessas
condições, na Alemanha, ao contrário da França, “a emancipação universal
é conditio sine qua non de toda emancipação parcial” e “é a impossibilidade
da libertação gradual que tem de engendrar a completa liberdade”.100 Assim
o ineditismo alemão, ou seja, a forma singular do desenvolvimento do modo
de produção capitalista no país, apresenta-se também nas possibilidades que
aí se abrem no que diz respeito à emancipação humana.

98
Ibidem.
99
Ibidem, p. 161.
100
Ibidem.
Marx e a “miséria alemã”: os Anais franco-alemães 45

Onde se encontra, então, a possibilidade positiva de emancipação alemã?


Eis a nossa resposta: na formação de uma classe com grilhões radicais, de uma
classe da sociedade civil que não seja uma classe da sociedade civil, de um esta-
mento que seja a dissolução de todos os estamentos, de uma esfera que possua
um caráter universal mediante seus sofrimentos universais e que não reivindique
nenhum direito particular porque contra ela não se comete uma injustiça particu-
lar, mas a injustiça por excelência, que já não possa exigir um título histórico, mas
apenas o título humano (...); uma esfera, por fim, que não pode se emancipar sem
se emancipar de todas as outras esferas da sociedade e, com isso, sem emancipar
todas essas esferas - uma esfera que é, numa palavra, a perda total da humanidade
e que, portanto, só pode ganhar a si mesma por um reganho total do homem. Tal
dissolução da sociedade, como um estamento particular, é o proletariado.101

A formação do proletariado na Alemanha é resultado da emer-


gência do desenvolvimento de sua indústria que, como observamos acima,
avançava a olhos vistos desde os anos 1830. Nessas condições, a contradição
entre as classes trabalhadora e capitalista aparece como momento central da
sociabilidade burguesa, antes mesmo de superado (dialeticamente) o anta-
gonismo entre burguesia e aristocracia feudal. Em resumo:

A única libertação praticamente possível da Alemanha é a libertação do ponto de


vista da teoria que declara o homem como ser supremo do homem. Na Alemanha,
a emancipação da Idade Média só é possível se realizada simultaneamente com
a emancipação das superações parciais da Idade Média. Na Alemanha, nenhum
tipo de servidão é destruído sem que se destrua todo tipo de servidão. A profunda
Alemanha não pode revolucionar sem revolucionar desde os fundamentos. A
emancipação do alemão é a emancipação do homem. A cabeça dessa emancipação
é a filosofia, o proletariado é seu coração. A filosofia não pode se efetivar sem
a suprassunção [Aufhebung] do proletariado, o proletariado não pode se
suprassumir sem a efetivação da filosofia.102

Portanto, para Marx, a revolução em uma economia atrasada como


a alemã não poderia consistir meramente na perda de sua condição econo-

101
Ibidem, p. 162.
102
Ibidem, p. 162-163.
46 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

micamente subordinada, mas na destruição de todo tipo de subordinação.


Nestas linhas103 a revolução que caminha para a emancipação humana não
pressupõe que o país em que tome lugar atinja o nível mais avançado de de-
senvolvimento econômico no modo de produção capitalista, não pressupõe
a passagem para uma posição nacional privilegiada no mercado internacio-
nal. A emancipação humana, ademais, não pode derivar da mera afirmação
da dominação do proletariado, ou seja, pela reconfiguração de estruturas
sociais que põe a dominação uma classe por outra, mas pela superação do
próprio proletariado e da estratificação da sociedade em classes sociais.104
No entanto, é preciso apontar os limites da fundamentação de Marx
sobre o papel histórico do proletariado em Crítica da filosofia do direito de
Hegel - Introdução. Como já dito, Marx recém descobrira a importância de
se compreender os fundamentos da sociedade civil para analisar o Estado;
assim como acabara de descobrir no texto de Engels publicado nos Anais
franco-alemães um bom caminho para fazê-lo. Na avaliação de Vázquez:

(...) Marx justifica a missão do proletariado filosoficamente, assim como desde


um ponto de vista histórico estreito, não desde uma posição histórico-científica,
objetiva, já que ainda desconhece a lei que rege a produção material capitalista, as
relações de classe na sociedade burguesa, a natureza e função verdadeiras do Esta-
do burguês. Falta-lhe, especialmente, uma concepção da história que lhe permita
fundar a necessidade da revolução do proletariado.105

Netto aponta para o fato de que, durante a redação do texto que es-
tamos analisando, a relação de Marx com o proletariado ainda não se havia
tornado uma “relação prático-política”.106 Só a partir daí, o que antes apre-
sentou-se como uma “petição de princípio”, desenvolve-se “no sentido de
constituir o arcabouço ídeo-político adequado e qualificado para sustentar a
elaboração teórico metodológica de que resultarão, posteriormente, as gran-
des descobertas marxianas”.107

103
Assim como nos escritos posteriores de Marx, como pretendemos demonstrar ao longo deste livro.
104
Ibidem, p. 163.
105
A. S. Vázquez, Filosofía de la praxis, 2003, p. 140.
106
J. P. Netto, “Marx em Paris”, In: K. Marx, Cadernos de Paris & Manuscritos econômico-filosóficos
de 1844, 2015, p. 22.
107
Ibidem.
Marx e a “miséria alemã”: os Anais franco-alemães 47

O encontro pessoal com o proletariado, no primeiro semestre de


1844, consuma, de uma vez por todas, a adesão de Marx ao comunismo
revolucionário. Este novo, e definitivo, posicionamento político de Marx
concretiza-se em dois artigos em que polemiza com Ruge (com quem rompera
após a publicação dos Anais franco-alemães) sobre o caráter da rebelião dos
tecelões da Silésia, publicados sob o título de Glosas críticas ao artigo “‘O rei da
Prússia e a reforma social’. De um prussiano”, na revista Avante! [Vorwärts!].
Em confronto com a avaliação de que a rebelião silesiana teria mera-
mente um caráter regional, defendida por Ruge, Marx consolida a distinção
entre revolução política e humana adiantada nos textos anteriores. A Ruge,
que, de maneira bastante confusa, defendia que uma revolução social deveria
ter uma alma política, responde Marx: “Toda e qualquer revolução dissolve a
antiga sociedade; nesse sentido, ela é social. Toda e qualquer revolução derru-
ba o antigo poder; nesse sentido, ela é política”.108 Ademais, toda “revolta indus-
trial comporta uma alma universal”,109 na medida em que representa o levante
contra a mesquinhez da condição humana em uma sociabilidade mercantil.
Em se tratando da emergência de um movimento revolucionário
em uma economia atrasada, Marx tem de reconhecer, novamente, que “a
Alemanha possui uma vocação clássica para a revolução social, que é do
tamanho da sua incapacidade para a revolução política”.110 Mais ainda: “O
descompasso entre o desenvolvimento filosófico e o desenvolvimento po-
lítico na Alemanha não constitui nenhuma anormalidade. Trata-se de um
descompasso necessário”.111 Portanto, as condições peculiares do desenvol-
vimento histórico alemão faziam do seu proletariado “o teórico do proleta-
riado europeu, assim como o proletariado inglês é seu economista político e
o proletariado francês seu político”.112
Depreende-se daí que Marx percebia no proletariado alemão a pos-
sibilidade do aprofundamento da crítica da sociedade burguesa, condição ne-
cessária, como vimos, para uma moral genuinamente revolucionária. Esse é o
sentido do elogio a Weitling que, apesar de suas limitações (como já discuti-
mos brevemente acima), representava as possibilidades do desenvolvimento
108
K. Marx, “Glosas críticas ao artigo ‘O rei da Prússia e a reforma social. De um prussiano’”, In: K.
Marx & F. Engels, Lutas de classes na Alemanha, 2010a, p. 51.
109
Ibidem, p. 50.
110
Ibidem, p. 45.
111
Ibidem.
112
Ibidem.
48 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

da consciência crítica no seio do próprio proletariado.113 Assim, o proletariado


representa, para o “povo filosófico”, “o elemento ativo de sua libertação”.114
Contudo, neste texto, uma vez mais, evidencia-se a ainda parca
compreensão de Marx sobre os determinantes estruturais da sociabilidade
burguesa, assim como sobre as condições e forças motrizes do desenvol-
vimento histórico. Ou seja, a percepção do desenvolvimento desigual por
parte de Marx nos escritos acima analisados não significa que ele já estivesse
apto a compreender a problemática em sua plenitude e oferecer-lhe explica-
ção. O processo de maturação do pensamento marxiano passa pela análise
detida de questões ontológicas fundamentais para o ser social.
É nos Manuscritos econômico-filosóficos, redigidos em Paris a mea-
dos dos anos 1844, que essa concepção histórica se apresenta pela primeira
vez, ainda que em termos muito gerais. A partir de uma ontologia do ser
social, isto é, do estudo sobre a diferenciação qualitativa desta forma de ser
com relação à sua base, a natureza orgânica e inorgânica, Marx está apto a
identificar as peculiaridades da história humana vis-à-vis a evolução natu-
ral. De acordo com Lukács: “Através disso tudo, prepara aquela elaboração
madura, clássica do materialismo histórico que, pouco depois, aparece em A
ideologia alemã e na Miséria da filosofia”.115 Esta é a trilha que pretendemos
seguir ao longo dos dois capítulos seguintes.

113
“No que se refere ao nível de instrução ou o potencial de formação dos trabalhadores alemães em
geral, faço menção aos escritos geniais de Weitling”. Ibidem.
114
K. Marx, “Glosas críticas ao artigo ‘O rei da Prússia e a reforma social. De um prussiano’”, In: K.
Marx & F. Engels, Lutas de classes na Alemanha, 2010a, p. 46. É interessante notar que em 1873, no
Posfácio da segunda edição de O capital - quase trinta anos após a redação dos escritos analisados
neste capítulo -, Marx retoma esta questão do alto de seu mais maduro desenvolvimento intelectual.
Pode-se aí, inclusive, encontrar uma fundamentação post festum para tais avaliações marxianas:
“Na Alemanha, portanto, o modo de produção capitalista chegou à maturidade depois que seu
caráter antagonístico, por meio de lutas históricas, já se havia revelado ruidosamente na França e na
Inglaterra, num momento em que o proletariado alemão já possuía uma consciência teórica de classe
muito mais firme do que a burguesia desse país”. K. Marx, O capital: Crítica da economia política,
livro I, 2013b, p. 86-87. Essa questão, assim como a análise do desenvolvimento do pensamento
econômico alemão, pano de fundo das linhas citadas, só pode ser compreendida adequadamente
à luz da necessária desigualdade no desenvolvimento histórico geral. Nas palavras de Marx: “O
desenvolvimento histórico peculiar da sociedade alemã excluía, portanto, a possibilidade de todo
desenvolvimento original da economia ‘burguesa’, mas não a sua... crítica”. Ibidem, p. 87.
115
G. Lukács, “Sobre la evolución filosófica del joven Marx”, In: G. Lukács, Sobre Marx y Lenin,
2012b, p. 212.
CAPÍTULO 2

Marx na capital das rebeliões: ontologia


e alienação nos Manuscritos de 1844

Introdução

Estabelecido em Paris, Marx finalmente encontra condições perfeitas para


o aprofundamento de suas posições teóricas e políticas, tal qual delineamos
acima. Contudo, não se pode dizer que o autor tenha satisfeito na cidade suas
expectativas com relação à atividade editorial. Já sinalizamos que a ruptura
de Marx com Ruge determinara o precoce fim dos Anais franco-alemães após
seu primeiro número, assim como os problemas encontrados com a distribui-
ção de seus exemplares.116 Como nos recorda Netto, para além de “pretextos
fúteis” como as censuras morais de Ruge ao poeta Herwegh, seu liberalismo
democrático chocava-se frontalmente com as posições políticas cada vez mais
radicais de Marx, tornando inviável a continuidade da breve parceria entre os
dois.117 Os termos políticos dessa cisão, aliás, patenteiam-se no debate entre
os autores publicado no Avante!, como vimos no capítulo anterior.
Ademais, foi justamente a colaboração com o Avante!, cuja editoria
sob o controle de Bernays passou a posicionar-se decididamente contra o re-
gime de Frederico Guilherme IV, que selou a expulsão de Marx da França, por
pressão do governo prussiano. Como anota Mehring, o antes relutante Guizot
finalmente decidiu ceder ao clamor do governo prussiano por punição aos
responsáveis pelo periódico, após a publicação de um texto elogioso ao aten-
tado sofrido por Frederico Guilherme IV, em julho de 1844.118 Assim, “em 11
de janeiro de 1845, alguns dos (...) refugiados alemães que tinham contribuído
para o Vorwärts [Avante!], ou eram suspeitos de terem-no feito, receberam
ordens de expulsão, incluindo Marx, Ruge, Bakunin, Bornstein e Bernays”.119

116
Cf. F. Wheen, Karl Marx, 2001, p. 67.
117
J. P. Netto, “Marx em Paris”, In: K. Marx, Cadernos de Paris & Manuscritos econômico-filosóficos
de 1844, 2015, pp. 18-25.
118
F. Mehring, Karl Marx: A história de sua vida, 2013, p. 97-98.
119
Ibidem, p. 98; adendo nosso.

49
50 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

Apesar disso, o breve período de pouco mais de um ano em


Paris, representou possivelmente o momento em que se consumaram
as transformações mais agudas no pensamento de Marx, na medida em
que aí delinearam-se aspectos fundamentais de sua concepção histórico-
materialista. Vimos acima que a forma como o autor empreende sua crítica
à teoria hegeliana do Estado, assim como a maneira como aborda a questão
da emancipação humana nos textos publicados nos Anais franco-alemães,
apontam a necessidade de se compreender a “anatomia da sociedade
burguesa [bürgerliche Gesellschaft]” e, portanto, para o estudo da economia
política.120 Vimos ainda que o “genial esboço de uma crítica das categorias
econômicas”, escrito por Engels, indica um caminho cujos primeiros passos
são tributários do encontro de Marx com o proletariado francês e, com isso,
da substantivação de seu anterior radicalismo político na opção comunista.
A atividade intelectual de Marx em Paris começa pelo estudo de
uma historiografia sobre a Revolução Francesa que dá especial atenção ao
papel da dinâmica das lutas de classes no desenvolvimento histórico.121 Pou-
co depois, o autor debruça-se com sua peculiar obstinação sobre a economia
política, como atestam um conjunto de manuscritos redigidos entre março
e agosto de 1844 – publicados postumamente sob o título de Manuscritos
econômico-filosóficos.122 Temos aí registros da “leitura de uma série de eco-
nomistas de primeiro plano (...) consistindo aliás, parcialmente em longas
citações extraídas de Smith, de Pecqueur, de Loudon, de Buret, de Sismondi,
de James Mill e de Michel Chevalier”.123

120
K. Marx, Para a crítica da economia política, 1986, p. 25.
121
Cf. G. Comninel, “Marxism and history”, In: B. Fine & A. Saad-Filho, The Elgar companion to
marxist economics, 2012, p. 213-214.
122
É sabido que nessa época Marx também registrou seus primeiros estudos “econômico-
políticos sistemáticos” em nove cadernos que contém apontamentos redigidos entre janeiro de
1844 e janeiro de 1845, os chamados Cadernos de Paris. Segundo Netto: “É ponto pacífico que os
Cadernos foram redigidos paralelamente aos Manuscritos, mas não há dados que nos permitam
estabelecer com precisão a cronologia de sua redação. Ainda que sua estrutura e forma sejam
diversas (com os segundos apresentando uma elaboração teórica mais desenvolvida, delineando
mesmo o projeto de um livro), a leitura de uns mostra a estreita vinculação com os outros (...)”. J.
P. Netto, “Marx em Paris”, In: K. Marx, Cadernos de Paris & Manuscritos econômico-filosóficos de
1844, 2015, p. 31.
123
E. Mandel, A formação do pensamento econômico de Karl Marx: De 1843 até a redação de O
capital, 1968, p. 30.
Marx na capital das rebeliões: ontologia e alienação nos Manuscritos de 1844 51

Ainda que composto de anotações muitas vezes esparsas, contendo


páginas inteiras de citações, os escritos são precedidos por um Prefácio que
indica o desejo de organizar tais apontamentos em um texto acabado. De
fato, em fevereiro do ano seguinte Marx assina um contrato “com o editor C.
W. Leske, de Darmstad, para a edição, em dois tomos, de um livro de ‘crítica
da política e da Economia Política’”,124 o que só pôde efetivamente começar
a realizar (sob a forma de uma crítica da economia política) em 1859 (com
o Para a crítica da economia política), culminando com a publicação do pri-
meiro livro de O capital, em 1867 (os demais livros, como se sabe, não foram
concluídos e editados pelo autor).
Da análise dos Manuscritos econômico-filosóficos depreende-se de
imediato sua conexão com os escritos anteriores, nos quais é reconhecida a
necessidade de se desvendar a estrutura econômica da sociedade para se ana-
lisar outras formas de objetivação social (notadamente, o Estado). Mais do
que isso, é expresso, desde o princípio do manuscrito, o reconhecimento da
produção (e reprodução) material da vida humana como momento central
no âmbito do ser social, o que será aprofundado ao longo do texto: “Assim,
será encontrado o fundamento, no presente escrito, da conexão entre a eco-
nomia nacional125 e o Estado, o direito, a moral, a vida civil etc., na medida
em que a economia nacional mesma, ex professo, trata destes objetos”.126
É preciso apontar, contudo, para o nível absolutamente incipiente da
compreensão de Marx sobre os problemas econômicos. Como salienta Mandel:

Certamente, os Manuscritos de 1844 não constituem uma obra econômica de ma-


turidade. É fragmentariamente que Marx apreende os problemas de uma crítica
global da Economia Política. Essa crítica encalha ainda num escolho fundamental:
Marx não resolveu ainda o problema do valor e da mais-valia. Ele não apreendeu
ainda o que havia de racional na teoria clássica, sobretudo na de Ricardo. Suas
análises econômicas se ressentem disso inevitavelmente.127

124
J. P. Netto, “Marx em Paris”, In: K. Marx, Cadernos de Paris & Manuscritos econômico-filosóficos
de 1844, 2015, p. 49.
125
Termo alemão à época do texto (Nationalökonomie) para designar os estudos denominados
pelos ingleses de economia política (Political Economy).
126
K. Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, 2004, p. 19.
127
E. Mandel, A formação do pensamento econômico de Karl Marx: De 1843 até a redação de O
capital, 1968, p. 37.
52 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

De fato, nos Cadernos de Paris Marx rejeita a teoria do valor-tra-


balho. Em suas palavras: “Os custos de produção são eles mesmos determi-
nados pela concorrência, não pela produção”.128 Sem diferenciar preços de
valores, o autor tenta situar na realidade da concorrência os determinantes
das suas flutuações. Assim:

Ricardo diz que, mencionando o “valor de troca”, se refere sempre ao “preço na-
tural” e negligencia os acidentes da concorrência, que designa como “qualquer
causa momentânea ou acidental”. A Economia Política, para dar mais consistência
e precisão às suas leis, tem que supor a realidade como acidental e a abstração
como real.129

Segundo Mandel, a crítica de Marx ao valor-trabalho representa


para o autor uma tentativa de enxergar por trás do véu das abstrações iguali-
tárias que a economia política ergue sobre a “relação de exploração, contida
na instituição da propriedade privada”.130 Descendo à terra, tomando os ter-
mos próprios da economia política, embora subvertendo suas conclusões,
Marx reconhece (também nos Manuscritos) que entre salários e lucros existe
uma contradição indissolúvel na sociedade capitalista. Em suas palavras: “O
salário é determinado mediante o confronto hostil entre capitalista e traba-
lhador. A necessidade da vitória do capitalista. O capitalista pode viver mais
tempo sem o trabalhador do que este sem aquele”.131
Nessas condições, além de “corpórea e espiritualmente reduzido à
máquina – e de homem a uma atividade abstrata e uma barriga –, assim
também se torna cada vez mais dependente de todas as flutuações do preço
de mercado, do emprego dos capitais e do capricho do rico”.132 Ademais, essa
sociedade que, “sempre e necessariamente”, “contrapõe-se ao interesse do
trabalhador”,133 é tratada pelos economistas políticos como forma eterna e
imutável da existência humana. Isto é:

128
K. Marx, Cadernos de Paris & Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, 2015, p. 191.
129
Ibidem.
130
E. Mandel, A formação do pensamento econômico de Karl Marx: De 1843 até a redação de O
capital, 1968, p. 44.
131
K. Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, 2004, p. 23.
132
Ibidem, p. 26.
133
Ibidem, p. 29.
Marx na capital das rebeliões: ontologia e alienação nos Manuscritos de 1844 53

A economia nacional parte do fato dado e acabado da propriedade privada. Não


nos explica o mesmo. Ela percebe o processo material da propriedade privada,
que passa, na realidade [Wirklichkeit], por fórmulas gerais, abstratas, que passam
a valer como leis para ela. Não concebe [begreift] estas leis, isto é, não mostra como
têm origem na essência da propriedade privada. A economia nacional não nos dá
esclarecimento algum a respeito do fundamento [Grund] da divisão entre traba-
lho e capital, entre capital e terra. Quando ela, por exemplo, determina a relação
do salário com o lucro do capital, o que lhe vale como razão última é o interesse
do capitalista; ou seja, ela supõe o que deve desenvolver.134

Tal, digamos, ontologia liberal-burguesa comparece em abundância


nos textos de teoria econômica, até hoje. Para Smith de A riqueza das nações,
por exemplo, a sociedade burguesa, que tem a troca de mercadorias como
norma fundamental de sociabilidade, é “consequência necessária, embora
muito lenta e gradual, de uma certa tendência ou propensão existente na na-
tureza humana (...), ou seja: a propensão a intercambiar, permutar ou trocar
uma coisa pela outra”.135
Marx, muito pelo contrário, vai demonstrar que o fato de o traba-
lhador tornar-se “tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto
mais sua produção aumenta em poder e extensão”, evidencia uma forma de
existência alienada, isto é, sua dominação pelos produtos de seu próprio tra-
balho.136 Essa existência subordinada à dinâmica incontrolável dos produtos
do trabalho (que Marx, todavia, ainda não está em condições de explicar
adequadamente, como veremos) - que se patenteia imediatamente através
da concorrência - põe em oposição necessária capitalistas e trabalhadores,
com a “necessidade da vitória” dos primeiros.
O reconhecimento deste antagonismo central para a sociabilidade
capitalista não impede, contudo, que se identifique, neste modo de produ-
ção, uma forma de compulsão social que confronta todos os indivíduos. Em
poucas palavras, embora de modo diverso, os capitalistas tampouco podem
controlar, de todo, a lógica do capital, isto é, também estão subsumidos a
seu movimento próprio, que transparece na concorrência entre os diversos

134
Ibidem, p. 79.
135
A. Smith, A riqueza das nações: Investigação sobre sua natureza e suas causas, v. I, 1996, p. 73.
136
K. Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, 2004, p. 80.
54 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

capitais. Nas palavras de Marx: “Veremos mais tarde, primeiro, como o ca-
pitalista exerce o seu poder de governo sobre o trabalho através do capital,
mas, depois, o poder de governo do capital sobre o próprio capitalista137”.138
Para argumentar que a existência humana se aliena, Marx deve ofe-
recer um tratamento sobre o que há, nos seres humanos, para ser alienado.
Em outras palavras, se o trabalho na forma capitalista representa a alienação
(ou estranhamento) da “essência” humana, como o autor argumenta, deve-
se ter claro em que consiste essa “essência”. É precisamente nas seções em
que aborda a questão do “trabalho estranhado” que Marx explicita, pela pri-
meira vez, sua ontologia para o ser social que, como queremos demonstrar,
comparece desde então como um pressuposto subjacente (mas refletido) à
sua teoria social. Desta forma, contrapõe-se radicalmente à ontologia libe-
ral, ao mesmo tempo em que supera seus predecessores Hegel e Feuerbach,
reconhecendo os seres humanos como agentes de sua própria história.
O momento fundamental da historicidade do ser social, como ar-
gumentaremos abaixo, é o trabalho, tomado em sentido ontológico. É nesse
sentido que Marx, uma vez mais, assume a tarefa de criticar a dialética de
Hegel. Segundo o autor:

A grandeza da “Fenomenologia” hegeliana e de seu resultado final - a dialética, a


negatividade enquanto princípio motor e gerador - é que Hegel toma, por um lado, a
autoprodução do homem como um processo, a objetivação [Vergegenständlichung]
como desobjetivação [Entgegenständlichung], como exteriorização [Entäusserung]
e supra-sunção [Aufhebung] dessa exteriorização; é que compreende a essência do
trabalho e concebe o homem objetivo, verdadeiro, porque homem efetivo, como
resultado de seu próprio trabalho.139

137
Apesar de não desenvolver no texto o “poder de governo do capital sobre o capitalista”, isto
é, o estranhamento do ponto de vista do capitalista, em trecho posterior Marx deixa, mais
uma vez, patente que já nos princípios de seus estudos sobre economia política reconhecia no
movimento do processo de acumulação de capital a alienação não apenas para o trabalhador: “A
produção produz o homem não somente como uma mercadoria, a mercadoria humana, o homem
na determinação da mercadoria; ela o produz, nesta determinação respectiva, precisamente
como um ser desumanizado tanto espiritual quanto corporalmente - imoralidade, deformação,
embrutecimento de trabalhadores e capitalistas”. Ibidem, p. 92-93; destaques em negrito nossos.
138
Ibidem, p. 40; grifos nossos.
139
Ibidem, p. 123.
Marx na capital das rebeliões: ontologia e alienação nos Manuscritos de 1844 55

No entanto, se para Hegel o trabalho “como o ato de produção de


si do homem”140 corresponde à essência humana, seu estranhamento (ou
alienação – termos que Marx emprega indistintamente no texto em ques-
tão, a diferença de Hegel141), assim como a superação desse estranhamento,
situam-se unicamente no campo das ideias, de modo que o “trabalho que
Hegel unicamente conhece e reconhece é o abstratamente espiritual”. Se-
gundo Marx, em Hegel a superação do estranhamento, a “apropriação das
forças essenciais humanas tornadas objetos, e objetos estranhos, é, pois, pri-
meiramente, apenas uma apropriação que se sucede na consciência, no puro
pensar, isto é, na abstração (...)”.143
Em oposição a isso, Marx – que já opusera às mistificações idealistas
a “crítica das armas”, ainda que predicadas necessariamente às “armas da crí-
tica”, e que no exato momento em que redige as linhas que estamos a analisar
assenta sua opção comunista revolucionária através do contato pessoal com
as organizações proletárias francesas – reafirma a necessidade da concreta
superação das relações que conferem aos humanos uma existência alienada:
o “comunismo enquanto supra-sunção144 da propriedade privada”. 145
Como explica Mészáros, a posição de classe de Hegel impedia-o de
criticar a forma alienada da sociabilidade burguesa, levando-o a colapsar
“objetivação” e “alienação”.146 Assim, “a supressão da alienação acaba por ser,
para Hegel, a supressão da objetivação”.147 Em oposição a isso, para Marx, em

140
Ibidem, p. 132.
141
De acordo com Infranca e Vedda, “(...) Marx utiliza indistintamente as palavras alemãs
Entfremdung e Entäuβerung (...)”, por outro lado, com relação à Fenomenologia do Espírito,
“poderíamos dizer que é correta a distinção que estabelece Labica quando, referindo-se à
Hegel, separa a alienação (Entäuβerung) - semanticamente vinculada à operação de venda de
propriedade, ou com a renúncia aos interesses privados a favor dos estatais - do estranhamento
(Entfremdung), que, relacionado à alienatio latina, alude a uma realidade que se tornou estranha
e hostil ao homem”. A. Infranca & M. Vedda, “Sobre la génesis de la categoria alienación”, In: A.
Infranca & M. Vedda, La alienación: História y actualidad, 2012, pp. 11-15.
142
K. Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, 2004, p. 124
143
Ibidem, p. 122.
144
Tradução alternativa para a Aufhebung que estamos anotando como “superação”, muitas vezes
vertida para o português como “transcendência”, “supressão”, “preservação” etc. I. Mészáros, A
teoria da alienação em Marx, 2006, p. 18.
145
K. Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, 2004, p. 132.
146
I. Mészáros, A teoria da alienação em Marx, 2006, p. 82.
147
J. P. Netto, “Marx em Paris”, In: K. Marx, Cadernos de Paris & Manuscritos econômico-filosóficos
de 1844, 2015, p. 85.
56 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

termos muito sintéticos, mas igualmente precisos: “Um ser não-objetivo é


um não-ser”.148 Assim, pois, sob a base de suas incipientes pesquisas sobre
o modo de produção capitalista Marx opera “a superação central, tanto do
idealismo hegeliano, como daqueles erros lógicos que se derivam do caráter
idealista da dialética hegeliana”.149
Em suma, a dialética de Hegel é a “expressão abstrata, lógica, especu-
lativa para o movimento da história, a história ainda não efetiva do homem
enquanto um sujeito pressuposto”;150 a pesquisa de Marx pretende conferir à
dialética ossatura material, seguindo Feuerbach, “o único que tem para com
a dialética hegeliana um comportamento sério, crítico”,151 mas ultrapassan-
do-o imediatamente, já que, o “homem (...) é um ser natural ativo” que faz,
portanto, sua própria história.152
Nas seções seguintes abordaremos as questões supracitadas na me-
dida em que elas iluminam momentos fundamentais da teoria marxiana
para o desenvolvimento no âmbito do ser social. Em função do que foi
discutido acima, consideramos, em primeiro lugar, os aspectos ontológi-
cos fundamentais do gênero humano, delineados por Marx nos Manus-
critos econômico-filosóficos, e aprofundados ao longo de sua obra (como
pretendemos demonstrar acessoriamente ao longo da argumentação). Em
seguida, abordamos a questão do estranhamento da generidade humana na
forma capitalista de sociabilidade, tal qual exposto por Marx no texto em
questão, apresentando, brevemente, o caminho da concreção dessas des-
cobertas geniais ao longo do percurso intelectual de Marx até a maturação
de sua crítica da economia política. Finalmente, na última seção apresen-
taremos a forma como Marx entende a possibilidade da superação (sem-
pre com o sentido dialético da “permanência na mudança”) desta forma
alienada de sociabilidade. Ao longo das linhas seguintes tentaremos deixar
claro em que medida essas questões nos ajudam a compreender a noção de
desenvolvimento em Marx.

148
K. Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, 2004, p. 127.
149
G. Lukács, “Sobre la evolución filosófica del joven Marx”, In: G. Lukács, Sobre Marx y Lenin,
2012b, p. 208.
150
K. Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, 2004, p. 118-119.
151
Ibidem, p. 117.
152
Ibidem, p. 127.
Marx na capital das rebeliões: ontologia e alienação nos Manuscritos de 1844 57

2.1. A ontologia marxiana do ser social: o gênero humano

Se o princípio que norteia os Manuscritos econômico-filosóficos é o da su-


peração da alienação do trabalho, momento fundamental da sociabilidade
capitalista, como corretamente aponta Mészáros,153 tampouco se pode dei-
xar de perceber quão evidentes são as preocupações ontológicas que corres-
pondem aos pressupostos necessários para tal análise. Na verdade, deve-se
reconhecer que toda afirmação sobre uma forma de ser pressupõe uma no-
ção sobre em que consiste esta forma de ser, isto é, pressupõe uma ontolo-
gia, mesmo que na maior parte dos teóricos isso não compareça, ao menos
explicitamente, como uma opção refletida e debatida.
No caso de Marx, é precisamente a flagrante preocupação com os
fundamentos do ser social em toda a sua obra a partir dos Manuscritos eco-
nômico-filosóficos, apesar de não ter dedicado nenhum texto exclusivamente
ao tema, que leva um estudioso tão atento e rigoroso quanto Lukács a afir-
mar que ninguém “se ocupou tão extensamente quanto Marx com a ontolo-
gia do ser social”.154
Como adiantamos, partindo “dos pressupostos da economia nacio-
nal”, aceitando “sua linguagem e suas leis”, Marx depara-se com o fato de que
a teoria clássica do valor reconhece no trabalho o eixo pelo qual se articula
a forma mercantil de sociabilidade.155 No entanto, o trabalhador, rebaixado
“à condição de mercadoria e à de mais miserável mercadoria”, na medida
em que é um não-proprietário, é confrontado hostilmente pela lógica da
propriedade privada (de modo diverso ao que os proprietários também o
são). Assim, a tarefa posta, mas não de todo realizada no escrito que estamos
analisando, consiste em:

153
I. Mészáros, A teoria da alienação em Marx, 2006, p. 24.
154
G. Lukács, Para uma ontologia do ser social I, 2012a, p. 25. Segundo Heller, aliás, o contato com
os Manuscritos de 1844, em 1930, foi determinante para uma profunda inflexão no pensamento
do próprio Lukács: “Lukács assinalou a nós, seus discípulos, quão crucial havia sido para ele
a leitura dos Manuscritos de Paris: o descobrimento do conceito de gênero humano e o papel
central que desempenha em Marx a ‘essência genérica’ [Gattungswesen] causaram-lhe grande
impacto intelectual”. Heller apud M. Vedda, “Estudio preliminar”, In: G. Lukács, Sobre Marx y
Lenin, 2012, p, 17.
155
K. Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, 2004, p. 79.
58 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

(...) conceber a interconexão essencial entre a propriedade privada, a ganância, a


separação de trabalho, capital e propriedade da terra, de troca e concorrência, de
valor e desvalorização do homem, de monopólio e concorrência etc., de todo este
estranhamento [Entfremdung] com o sistema do dinheiro.156

Esta passagem, além de nos oferecer uma boa explicação para a di-
visão do texto em seções que, a princípio, podem parecer desconexas entre
si, demonstra a importância das considerações ontológicas que Marx está
por adiantar, na medida em que “o economista nacional, quando quer escla-
recer” estas questões, desloca-se “a um estado primitivo imaginário”.157 Tal
artifício faz com que os argumentos muitas vezes geniais de seus melhores
representantes, como Smith e Ricardo, sempre desemboquem em afirma-
ções abertamente apologéticas sobre a ordem do capital.
A superação radical da sociedade burguesa, nos termos gerais em
que Marx já é capaz de conceber a este momento, pressupõe a análise obje-
tiva dos fundamentos desta forma de sociabilidade, caso contrário cair-se-ia
num tipo de moralismo conceitualmente vazio análogo aos dos defensores
da ordem, ainda que com sinal invertido. A crítica de “um fato nacional
econômico, presente”, a saber, da “desefetivação”158 dos seres humanos que
trabalham, não pode prescindir, portanto, de considerações generalizantes
sobre a forma como os seres humanos efetivam-se.
A vida genérica humana, termo emprestado de Feuerbach, mas
com significado inteiramente novo,159 tem por base ineliminável a existência

156
Ibidem, p. 80.
157
Ibidem.
158
Ibidem.
159
Referindo-se especificamente aos Manuscritos, recorda-nos Mészáros: “Ocorre, aqui, que
Marx, em seu esforço de entrar em diálogo com seus contemporâneos filosóficos radicais, como
Feuerbach, conservou certos termos do discurso deles que por vezes estavam em choque com o
significado que ele próprio lhes atribuía. (...) Marx rejeitou categoricamente a ideia de uma ‘essência
humana’. No entanto, ele manteve a expressão transformando o seu significado original até torná-la
irreconhecível. Nesse caso, seu objetivo não foi simplesmente acrescentar novas dimensões a um
conceito importante (como ‘auto-estranhamento’), mas demonstrar o vazio desse termo filosófico,
em seu sentido tradicional. E não obstante, no curso dessa demonstração, ele próprio usou o mesmo
termo, na maioria das vezes sem indicações polêmicas, embora com um significado radicalmente
diferente. Uma observação atenta dos contextos nos quais esses termos emprestados aparecem
pode, contudo, retirar essa dificuldade do caminho. (Essa solução serve não só para ‘essência
humana’ e ‘auto-estranhamento’, mas também para expressões como ‘humanismo’, ‘humanismo
positivo’, ‘automediação’, ‘ser genérico’ etc.)”. I. Mészáros, A teoria da alienação em Marx, 2006, p. 19.
Marx na capital das rebeliões: ontologia e alienação nos Manuscritos de 1844 59

biológica da espécie. Ou seja: “A vida genérica, tanto no homem quanto no


animal, consiste fisicamente, em primeiro lugar, nisto: que o homem (tal
qual o animal) vive da natureza inorgânica (...)”.160 Como assiná-la o Lukács
de Para uma ontologia do ser social I:

(...) a ontologia geral ou, em termos mais concretos, a ontologia da natureza inor-
gânica como fundamento de todo existente é geral pela seguinte razão: porque não
pode haver qualquer existente que não esteja de algum modo fundado na natureza
inorgânica. Na vida aparecem novas categorias, mas estas podem operar com eficá-
cia ontológica somente sobre a base das categorias gerais, em interação com elas.161

Nesse sentido, nas formas mais complexas de ser que daí emergem,
conservam-se as categorias da “ontologia geral” como momentos superados.
Esta base é, portanto, momento fundamental para a compreensão da forma
superior de ser. No entanto, na medida em que o novo modo de vida se afirma
no afastamento com relação àquela base, sua especificidade só pode ser com-
preendida à luz dessa diferenciação. Tanto o ser humano quanto o animal re-
lacionam-se incondicionalmente com a natureza inorgânica. No ser humano,
contudo, o intercâmbio com a natureza assume formas inteiramente novas.

Assim como plantas, animais, pedras, ar, luz etc., formam teoricamente uma parte
da consciência humana, (...) formam também praticamente uma parte da vida hu-
mana e da atividade humana. Fisicamente o homem vive somente destes produtos
da natureza, possam eles aparecer na forma de alimento, aquecimento, vestuário,
habitação etc. Praticamente, a universalidade do homem aparece precisamente
na universalidade que faz da natureza inteira o seu corpo inorgânico, tanto na
medida em que ela é 1) um meio de vida imediato, quanto na medida em que ela é
o objeto/matéria e o instrumento de sua atividade vital. A natureza é o corpo inor-
gânico do homem, a saber, a natureza enquanto ela mesma não é o corpo humano.
O homem vive da natureza significa: a natureza é o seu corpo, com o qual ele tem
de ficar num processo contínuo para não morrer.162

160
K. Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, 2004, p. 84.
161
G. Lukács, Para uma ontologia do ser social I, 2012a, p. 27.
162
K. Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, 2004, p. 84
60 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

A forma dessa relação prática que faz da natureza o corpo inor-


gânico do ser humano é, portanto, fundamental na nova forma de ser. Por
“tomar a natureza como objeto”, deve-se compreender que o ser humano se
objetiva a partir de seu intercâmbio com a natureza. De acordo com Váz-
quez: “Como já assinalava Hegel, na Fenomenologia, o homem pelo trabalho
humaniza a natureza e humaniza a si próprio, enquanto se eleva, como ser
consciente, sobre sua própria natureza”.163 Precisamente aqui, aliás, situa-se
a ruptura mais decisiva de Marx com relação a seus predecessores, incluindo
Hegel e Feuerbach. Segundo Oldrini:

Polemizando com Hegel e colocando-o de pé - nas pegadas de Feuerbach -, no


sentido materialista, Marx recupera ontologicamente (como conceito de “ente ob-
jetivo”) aquilo que Hegel havia dissolvido. Ao mesmo tempo, contudo, vai além de
Feuerbach, uma vez que sublinha com clareza que a humanidade do homem tem o
seu verdadeiro ato de nascimento, na história; que o homem, como ente que desde
o começo reage à sua realidade primeira, ineliminavelmente objetiva, é um “ente
objetivo ativo”, produtor de objetivações, um ente que trabalha; que, em suma, a
objetividade forma a propriedade originária não somente de todos os seres e de suas
relações, mas também do resultado do seu trabalho, dos seus atos de objetivação.164

Assim, pois, “as sensações, paixões etc. do homem não são apenas
determinações antropológicas em sentido próprio, mas sim verdadeiramen-
te afirmações ontológicas do ser (natureza) – e (...) elas só se afirmam efe-
tivamente pelo fato de o seu objeto ser para elas sensivelmente”.165 A rigor, a
natureza transforma-se em objeto humano através do trabalho. O trabalho,
no sentido estritamente ontológico, consuma-se em um resultado (seu pro-
duto) através da apropriação do existente, primeiramente na consciência,
tendo em vista a criação de uma nova objetividade. “A atividade vital cons-
ciente distingue o homem imediatamente da atividade vital animal”.166

163
A. S. Vázquez, Filosofía de la praxis, 2003, p. 148.
164
G. Oldrini, “Em busca das raízes da ontologia (marxista) de Lukács”, In: G. Lukács, Para uma
ontologia do ser social II, 2013, p. 14.
165
K. Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, 2004, p. 157. O posicionamento de Marx no texto
em análise, é fundamentalmente o mesmo a partir do qual posteriormente (em 1845) critica
o materialismo feuerbachiano, na série de aforismos que ficou conhecida como Teses sobre
Feuerbach. Cf. K. Marx & F. Engels, A ideologia alemã, 2007, p. 533.
166
K. Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, 2004, p. 84.
Marx na capital das rebeliões: ontologia e alienação nos Manuscritos de 1844 61

É peculiar, portanto, à vida humana a crescente dominação da natu-


reza, expressa no reconhecimento ativo de potencialidades contidas no mun-
do natural que são postas em movimento, levadas à efetividade, através do
trabalho. É nisso que a vida genérica humana distingue-se da vida genérica
animal, isto é, exatamente no que a “atividade vital” humana distingue-se
da animal.
O resultado social é a criação de um mundo crescentemente huma-
nizado, o aparecimento de formas cada vez mais puramente sociais, assim
como a socialização das necessidades naturais. Ou, posto em termos sintéti-
cos: o constante “afastamento das barreiras naturais”167 (o que não significa
sua completa eliminação).

O engendrar prático de um mundo objetivo, a elaboração da natureza inorgânica é


a prova do homem enquanto um ser genérico consciente, isto é, um ser que se rela-
ciona com o gênero enquanto sua própria essência ou consigo enquanto ser gené-
rico. É verdade que também o animal produz. Constrói para si um ninho, habita-
ções, como a abelha, castor, formiga etc. No entanto, produz apenas aquilo de que
necessita imediatamente para si ou sua cria; produz unilateral[mente], enquanto
o homem produz universal[mente]; o animal produz apenas sob o domínio da ca-
rência física imediata, enquanto o homem produz mesmo livre da carência física, e
só produz, primeira e verdadeiramente, na liberdade [com relação] a ela; o animal
só produz a si mesmo, enquanto o homem reproduz a natureza inteira; o seu pro-
duto pertence imediatamente ao seu corpo físico, enquanto o homem se defronta
livre[mente] com o seu produto. O animal forma apenas segundo a medida e a
carência da species à qual pertence, enquanto o homem sabe produzir segundo a
medida de qualquer species, e sabe considerar, por toda a parte, a medida inerente
ao objeto; o homem também forma por isso segundo as leis da beleza.168

167
Lukács, que ressalta este aspecto da obra de Marx e inspira estas linhas, falando sobre esse
movimento objetivamente progressivo no âmbito ser social, observa: “Trata-se da constatação de
um estado de coisas ontológico, independentemente de como ele seja avaliado depois. (Pode-se
aprovar, deplorar etc. o ‘afastamento da barreira natural’)”. G. Lukács, Para uma ontologia do ser
social I, 2012a, p. 320.
168
K. Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, 2004, p. 85. Parece-nos bastantes instrutivo
reproduzir aqui a forma como Marx sintetiza estas considerações em O capital: “O trabalho é,
antes de tudo, um processo entre o homem e a natureza, processo este em que o homem, por
sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a natureza. Ele se confronta
com a matéria natural como com uma potência natural [Naturmacht]. (...) Não se trata, aqui, das
62 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

Os seres humanos, portanto, realizam através do trabalho finalida-


des anteriormente postas de modo apenas ideal, isto é, em suas consciências.
Dito em outros termos, o trabalho humano realiza, na prática, posições te-
leológicas.169 Desta forma, o trabalho, em termos gerais, envolve necessa-
riamente uma prévia investigação dos meios através dos quais ele pode ser
realizado, o que permite, ademais, a posição de uma finalidade qualitativa-
mente nova com relação ao existente; em seguida, a atividade laboral deve
ser guiada segundo a consecução do fim posto, ou seja, a posição teleológica
impõe um agir adequado ao resultado pretendido.
Os animais irracionais, por outro lado, apenas seguem instintiva-
mente as condições do meio em que vivem, de modo que qualquer alte-
ração na forma de reprodução das espécies animais representa uma adap-
tação passiva às transformações a eles externas. Assim, pois, se as ciências
da natureza identificam algum tipo de consciência rudimentar nas espécies
animais, também aí transparece o caráter de indissolúvel conexão com as
formas imediatas da reprodução biológica. De acordo com Lukács, que sem
dúvida foi o teórico que mais a fundo desenvolveu tais questões a partir da
ontologia marxiana:

A essência do trabalho consiste, justamente, na capacidade de ultrapassar a fixa-


ção do ser vivo na relação biológica com seu ambiente. O momento essencial-
mente distintivo não está dado pela perfeição dos produtos, se não pelo papel da
consciência que precisamente aqui deixa de ser mero epifenômeno da reprodução

primeiras formas instintivas, animalescas [tierartig], do trabalho. (...) Pressupomos o trabalho


numa forma em que diz respeito unicamente ao homem. Uma aranha executa operações
semelhantes à do tecelão, e uma abelha envergonha muitos arquitetos com a estrutura de sua
colmeia. Porém, o que desde o início distingue o pior arquiteto da melhor abelha é o fato de que
o primeiro tem a colmeia em sua mente antes de construí-la com a cera. No final do processo
de trabalho, chega-se a um resultado que já estava presente na representação do trabalhador no
início do processo, portanto, um resultado que já existia idealmente. Isso não significa que ele se
limite a uma alteração da forma do elemento natural; ele realiza neste último, ao mesmo tempo,
seu objetivo, que ele sabe que determina, como lei, o tipo e o modo de sua atividade e ao qual ele
tem de subordinar sua vontade. E essa subordinação não é um ato isolado. Além do esforço dos
órgãos que trabalham, a atividade laboral exige a vontade orientada a um fim, que se manifesta
como atenção do trabalhador durante a realização de sua tarefa (...)”. K. Marx, O capital: Crítica
da economia política, livro I, 2013b, p. 255-256.
169
Em O capital, diz Marx: “No processo de trabalho, portanto, a atividade do homem, com a ajuda
dos meios de trabalho, opera uma transformação do objeto do trabalho segundo uma finalidade
concebida desde o início”. Ibidem, p. 258.
Marx na capital das rebeliões: ontologia e alienação nos Manuscritos de 1844 63

biológica: o produto é, diz Marx, um resultado que ao início do processo estava


presente “na mente do trabalhador”, ou seja, idealmente.170

Para Marx é a forma da “atividade vital” que caracteriza uma deter-


minada espécie, isto é, “seu caráter genérico, e a atividade consciente livre
é o caráter genérico do homem”.171 Ademais, na medida em que o trabalho
no sentido ontológico é, para Marx – na forma sintética como o tratou em
O capital –, “eterna necessidade natural de mediação do metabolismo entre
homem e natureza e, portanto, da vida humana”;172 e na medida em que o
trabalho põe, continuamente, a possibilidade da transformação na forma da
reprodução humana e tem no afastamento das determinações naturais, com
o surgimento de formas puramente sociais, um resultado necessário, ele
pode ser corretamente compreendido, em termos abstratos, como momento
fundante do ser social.173 Nas palavras de Lukács em Para um ontologia do
ser social II: “No trabalho estão contidas in nuce todas as determinações que
(...) constituem a essência do novo no ser social”.174
Já dissemos que o trabalho, como reconhece Marx, realiza posições
teleológicas. Precisamente por isso, argumenta Lukács, ele corresponde ao
modelo analiticamente adequado para as demais formas de práxis social,
nas quais, “com efeito – mesmo que através de mediações às vezes muito
complexas –, sempre se realizam pores teleológicos, em última análise, de
ordem material”.175 O trabalho que tem por ponto de partida uma investiga-

170
G. Lukács, “Los fundamentos ontológicos del pensamiento y de la acción humanos”, In: G.
Lukács, Ontologia del ser social: Trabajo, 2004, p. 37-38.
171
K. Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, 2004, p. 85. É exatamente esta ideia que comparece
em O capital quando Marx, criticando a visão unilateral de Smith sobre o trabalho, diz, entre
outras coisas, que “ele [Smith] pensa que o trabalho, na medida em que se incorpora no valor das
mercadorias, vale apenas como dispêndio de força de trabalho, porém apreende esse dispêndio como
mero sacrifício de descanso, liberdade e felicidade, mas não também como atividade vital normal”.
K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro I, 2013b, p. 124; grifo nosso; adendo nosso.
172
Ibidem, p. 120.
173
Reproduzimos aqui a extremamente importante advertência de Lukács a esse respeito: “No
entanto, é preciso ter claro que com essa consideração isolada do trabalho se está efetuando uma
abstração; é claro que a socialidade, a primeira divisão do trabalho, a linguagem etc. surgem do
trabalho, mas não numa sucessão temporal claramente identificável, e sim, quanto à sua essência,
simultaneamente”. G. Lukács, Para uma ontologia do ser social II, 2013, p. 44.
174
Ibidem.
175
Ibidem, p. 47.
64 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

ção dos meios (qualquer que seja o grau de desenvolvimento das forças pro-
dutivas e, portanto, da própria investigação dos meios) e realiza-se através
da ação cuja eficácia comprova-se (ou não) na capacidade de realizar a fina-
lidade posta idealmente, envolve necessariamente, portanto, escolhas entre
alternativas que emergem a partir do reflexo ideal da realidade concreta. Em
primeira instância, os seres humanos deparam-se com questões que podem
ser, em alto grau de generalidade, assim descritas: o que fazer? Como fazer?
Analogamente, as demais formas de práxis humanas sempre en-
volvem decisões entre alternativas, a começar pela escolha entre realizar ou
não uma determinada ação, mas não apenas. É decisivo também nas demais
formas de objetivação social as questões sobre “o que” e “como” fazer. Já
apontamos que para a Marx a forma da “atividade vital” especificamente
humana indica um sentido para o desenvolvimento no âmbito do ser social:
a crescente diferenciação com relação à natureza. Nesse processo surgem
formas puramente sociais (como, por exemplo, a “beleza”), assim como são
“socializadas” as determinações biológicas dos seres humanos (seus senti-
dos). Nas palavras de Marx:

(...) assim como a música desperta primeiramente o sentido musical do homem, as-
sim como para o ouvido não musical a mais bela música não tem nenhum sentido, é
nenhum objeto, porque o meu objeto só pode ser a confirmação de uma das minhas
forças essenciais, portanto, só pode ser para mim da maneira como é para si como
capacidade subjetiva, porque o sentido de um objeto para mim (só tem sentido
para um sentido que lhe corresponda) vai precisamente tão longe quanto vai o meu
sentido, por causa disso é que os sentidos do homem social são sentidos outros que
não os do não social; apenas pela riqueza objetivamente desdobrada da essência
humana que a riqueza da sensibilidade humana subjetiva, que um ouvido musical,
um olho para a beleza da forma, em suma as fruições humanas todas se tornam
sentidos capazes, sentidos que se confirmam como forças essenciais humanas, em
parte recém cultivados, em parte recém engendrados. Pois não só os cinco sentidos,
mas também os assim chamados sentidos espirituais, os sentidos práticos (vontade,
amor etc.), numa palavra o sentido humano, a humanidade dos sentidos, vem a ser
primeiramente pela existência do seu objeto, pela natureza humanizada.176

176
K. Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, 2004, p. 110.
Marx na capital das rebeliões: ontologia e alienação nos Manuscritos de 1844 65

Em suma, forma geral das distintas práxis humanas implica não


apenas um movimento contínuo, dado que são renováveis as necessidades
que as acionam. Mais do que isso, implica uma direção determinada,
a “humanização da natureza” e a socialização da vida, mesmo que
imediatamente imperceptível na maior parte dos casos. Em uma palavra:
uma historicidade.177 Portanto: “(...) toda a assim denominada história
mundial nada mais é do que o engendramento do homem mediante o
trabalho humano, enquanto o vir a ser da natureza para o homem”.178
Por ora, apontemos apenas para o fato inequívoco de que a conexão
entre esse movimento e a práxis humana, que se efetiva através da escolha
entre alternativas, implica a realização de modo fundamentalmente desigual
de suas tendências gerais. O mesmo pode ser dito com relação ao modo
como as leis gerais relativas a uma determinada forma de sociabilidade con-
cretizam-se em distintos contextos sócio-históricos, o que apenas poderá
ser discutido a partir do próximo capítulo.
Desde já, é importante que não se confunda a práxis humana indivi-
dual, que obedece a posições teleológicas, com a articulação social complexa
das diversas ações prático-individuais cujo resultado é, por isso mesmo, ne-
cessariamente não-teleológico. Como adverte Lukács: “O processo total da
sociedade é um processo causal que possui suas próprias leis, mas não uma
orientação objetiva a finalidades”.179 Marx explicitamente circunscreve a te-
leologia apenas à práxis humana, o que será discutido em mais detalhes no
capítulo seguinte.
Tendo-se falado de uma tendência evolutiva fundamental no âm-
bito do ser social, o “afastamento das barreiras naturais”, devemos agora
adiantar outro momento deste mesmo processo que até agora compareceu
apenas de modo implícito. Qual seja, na medida em que o ser humano é
um “ser genérico” consciente, “que se relaciona com o gênero enquanto sua

177
De acordo com Lukács: “(...) a eternidade do movimento não basta para determinar a
concretude específica da historicidade. Nos termos mais gerais possíveis, este implica não só o
simples movimento, mas também e sempre uma determinada direção na mudança, direção que
se expressa em transformações qualitativas de determinados complexos, tanto em si quanto na
relação com outros complexos”. G. Lukács, Para uma ontologia do ser social I, 2012a, p. 341.
178
K. Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, 2004, p. 114.
179
G. Lukács, “Los fundamentos ontológicos del pensamiento y de la acción humanos”, In: G.
Lukács, Ontologia del ser social: Trabajo, 2004, p. 45.
66 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

própria essência ou consigo enquanto ser genérico”,180 cada indivíduo deve


reconhecer nos outros a mesma generidade, ainda que, inicialmente, nos
círculos extremamente restritos das primeiras comunidades humanas. Na
verdade, é apenas através do outro que um indivíduo pode reconhecer a si
próprio como humano.

A essência humana da natureza está, em primeiro lugar, para o homem social;


pois é primeiro aqui que ela existe para ele na condição de elo com o homem, na
condição de existência sua para o outro e do outro para ele; é primeiro aqui que
ela existe como fundamento da sua própria existência humana, assim como tam-
bém na condição de elemento vital da efetividade humana.181

Assim, o “salto” (momento de diferenciação com relação à forma


precedente de ser) que corresponde à emergência do gênero humano, im-
plica, necessariamente, o reconhecimento de si, através do outro, enquanto
ser genérico. Isto é: “Quando o homem está frente a si mesmo, defronta-se
com ele o outro homem”.182 Ao processo evolutivo que tem por condição o
crescente desenvolvimento das forças produtivas humanas, corresponde o
reconhecimento do gênero humano (a “perda da mudez do gênero”, como
diz Lukács) e, portanto, o reconhecimento dos outros como seres humanos,
em um processo também crescente de integração.183

180
K. Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, 2004, p. 85.
181
Ibidem, p. 106-107. Ou ainda, como diz Marx em O capital ao discutir a forma relativa do valor
das mercadorias (isto é, que o valor que uma mercadoria contém em si pode apenas expressar-se
na contraposição com outra mercadoria qualitativamente diversa, que assume, na relação, a figura
de equivalente): “De certo modo, ocorre com o homem o mesmo que com a mercadoria. Como
ele não vem ao mundo nem com um espelho, nem como filósofo fichtiano - Eu sou Eu -, o homem
espelha-se primeiramente num outro homem. É somente mediante a relação com Paulo como seu
igual que Pedro se relaciona consigo mesmo como ser humano. Com isso, porém, também Paulo
vale para ele, em carne e osso, em sua corporeidade paulínia, como forma de manifestação do gênero
humano”. K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro I, 2013b, p. 129; grifos nossos.
182
K. Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, 2004, p. 85-86.
183
Como aponta Lukács: “Assim como a consciência específica humana só pode nascer em ligação
com a atividade social dos homens (trabalho e linguagem) e como consequência dela, também
o pertencimento consciente ao gênero se desenvolve a partir da convivência e da cooperação
concreta entre eles. Disso resulta, porém, que a princípio não se manifesta como gênero a própria
humanidade, mas apenas a comunidade humana concreta na qual vivem, trabalham e entram em
contato os homens em questão. Por esses motivos, o surgimento da consciência genérica humana
Marx na capital das rebeliões: ontologia e alienação nos Manuscritos de 1844 67

Tal componente deve ser entendido a partir das próprias condições


de efetivação do trabalho humano. Ou seja, na medida em que o trabalho
é social, ele é relação com outros seres humanos.184 Isso não apenas no que
diz respeito à produção em si, já que o trabalho mesmo em sua forma mais
primitiva pressupõe algum tipo de cooperação entre indivíduos que traba-
lham; como também no modo de apropriação do produto do trabalho, já
que cada indivíduo, mesmo em comunidades primitivas, apenas se apro-
pria de parte da produção como membro daquele organismo comunitário.
Em termos muito gerais, portanto, neste crescente processo de in-
tegração que acompanha (ainda que de maneira contraditória e desigual)
o progresso nas forças produtivas humanas, amplia-se o escopo das possi-
bilidades de reconhecimento mútuo entre seres humanos, ou seja, da cons-
ciência acerca do caráter genérico desta forma de ser. A humanidade que
existe em si desde a diferenciação inicial (o “salto”) com relação às formas
naturais, retilíneas, de reprodução, toma o sentido de sua existência para si.
Deve-se reconhecer que a sociedade capitalista, que tem por mo-
mento fundamental o mercado mundial, representa não apenas o avanço
mais considerável nesta direção, como a acumulação de capital o motor
mais potente para sua expansão. Assim, reconhece Marx nos Manuscritos
econômico-filosóficos, “somente a propriedade privada pode exercer o seu
pleno domínio sobre o homem e tornar-se, na forma mais universal, um
poder histórico-mundial”.185 Nestas condições, a sociabilidade burguesa
desenvolve “uma energia cosmopolita, universal, que derruba toda barreira,
todo vínculo, para se colocar na posição de única política, universalidade,
barreira e vínculo (...)”.186 As leis que governam esses desenvolvimentos no
seio da sociedade burguesa, contudo, Marx ainda não está em condições

apresenta ordens de grandeza e graus muito variados: desde as tribos, com vínculos ainda quase
naturais, até as grandes nações”. G. Lukács, Para uma ontologia do ser social I, 2012a, p. 400.
184
Em A ideologia alemã, texto que analisaremos com cuidado no capítulo seguinte, diz Marx: “A
produção da vida, tanto da própria, no trabalho, quanto da alheia, na procriação, aparece desde
já como uma relação dupla - de um lado como relação natural, de outro como relação social -,
social no sentido de que por ela se entende a cooperação de vários indivíduos, sejam quais forem
as condições, o modo e a finalidade”. K. Marx & F. Engels, A ideologia alemã, 2007, p. 34.
185
K. Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, 2004, p. 102.
186
Ibidem, p. 100.
68 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

de compreender adequadamente no texto em tela, embora reconheça aí a


explicitação, ainda alienada, do gênero humano.187
Na seção seguinte, a partir do sentido negativo da alienação, conti-
nuaremos a observar a forma como Marx trata a questão do gênero huma-
no, em termos gerais.

2.2. Alienação e a “mudez” do gênero humano

Como já apontamos, as considerações ontológicas acima sumarizadas são


apresentadas por Marx em contraposição à forma alienada do trabalho na
sociedade capitalista. A inversão na ordem da apresentação, contudo, obe-
dece à constituição ontológica das referidas categorias. O trabalho como
momento primordial de objetivação humana que, inevitavelmente, trans-
forma a própria forma da reprodução humana, é, portanto, pressuposto para
esta forma de ser. Marx sintetiza essa noção em O capital da seguinte forma:

O processo de trabalho, como expusemos em seus momentos simples e abstratos,


é atividade orientada a um fim - a produção de valores de uso -, apropriação do
elemento natural para a satisfação de necessidades humanas, condição universal
do metabolismo entre homem e natureza, perpétua condição natural da vida hu-
mana e, por conseguinte, independente de qualquer forma particular dessa vida,
ou melhor, comum a todas as suas formas sociais.188

Isso não significa que essas considerações sejam suficientes para ca-
racterizar uma forma historicamente específica do trabalho, mas que tais

187
Nos Grundrisse, apesar de reconhecer que nas trocas mercantis “a conexão social entre as
pessoas é transformada em um comportamento social das coisas” - o que discutiremos na seção
seguinte -, Marx aponta explicitamente que esta forma de sociabilidade representa um progresso
para a humanidade no que diz respeito à perda da mudez de seu caráter genérico, o que só pode
ser compreendido em termos post festum: “Essa conexão coisificada é certamente preferível à
sua desconexão, ou a uma conexão local baseada unicamente na estreiteza da cosanguinidade
natural ou nas [relações] de dominação e servidão. (...) A conexão é um produto dos indivíduos.
É um produto histórico. Faz parte de uma determinada fase de seu desenvolvimento. A condição
estranhada [Fremdartigkeit] e a autonomia com que ainda existe frente aos indivíduos demonstram
somente que estes estão ainda no processo de criação das condições de sua vida social, em lugar de
terem começado a vida social a partir dessas condições”. K. Marx, Grundrisse, 2011a, pp. 105-110.
188
K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro I, 2013b, p. 261.
Marx na capital das rebeliões: ontologia e alienação nos Manuscritos de 1844 69

características básicas correspondem a qualquer modo de produção. Assim,


como aponta Mészáros, o trabalho assalariado está para o trabalho no senti-
do ontológico “como o particular está para o universal”.189 Além disso, uma
vez que a necessidade de efetivação contínua do “metabolismo entre homem
e natureza” é a única “lei objetiva e universal do ser social”,190 é à atividade
a ela correspondente (o trabalho) que deve estar referida à alienação. Nas
palavras de Mészáros: “(...) qualquer tentativa de superar a alienação deve
definir-se em relação a esse absoluto, como oposta à sua manifestação numa
forma alienada”.191
Assim, a categoria alienação em Marx refere-se a um fenômeno his-
toricamente específico: a forma de sociabilidade na sociedade em que vigora
o modo de produção capitalista. No âmbito da produção (e reprodução) da
vida material, as objetivações humanas obedecem a uma lógica alheia aos
próprios seres humanos. As necessidades imanentes a essa “pura dominação
da propriedade privada, do capital”, dissociada “de toda a coloração política”,
afirmam-se às classes sociais contrapostas nesse modo de produção.192 O
capital (ou a propriedade privada, no texto em análise) aparece, portanto,
como sujeito, ou seja, como uma entidade dotada de vontade própria.
Tal forma universal de dominação pressupôs, historicamente, a su-
peração das formas pré-capitalistas de sociabilidade baseadas na dominação
direta (pessoal). Considerando retrospectivamente o processo de dissolução
do feudalismo e, portanto, de transformação da propriedade fundiária em
mercadoria e suas consequências, diz Marx:

Finalmente, é necessário que nesta concorrência a propriedade fundiária mostre,


sob a figura do capital, a sua dominação tanto sobre a classe trabalhadora, quanto
sobre os próprios proprietários, na medida em que as leis do movimento do capi-
tal os arruínem ou promovam. Assim, entra no lugar do provérbio medieval: ne-
nhuma terra sem senhor, o provérbio moderno: o dinheiro não tem dono, no qual é
exprimida a completa dominação da matéria morta sobre o homem.193

189
I. Mészáros, A teoria da alienação em Marx, 2006, p. 78.
190
G. Lukács, Para uma ontologia do ser social I, 2012a, p. 359.
191
I. Mészáros, A teoria da alienação em Marx, 2006, p. 78.
192
K. Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, 2004, p. 75.
193
Ibidem.
70 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

Essa forma “abstrata” de dominação social concretiza-se, contudo,


através de uma determinada fratura entre as classes sociais que se
inserem distintamente neste modo de produção. Como já foi apontado, a
consequência disso é que a alienação se apresenta de modo diverso para
as diferentes classes. Assim, “a relação entre proprietário e trabalhador se
reduz à relação nacional-econômica de explorador e explorado”.194 Para
compreender as leis que regulam essa relação, Marx teria de avançar no seu
entendimento sobre a origem da riqueza, isto é, na formulação de sua lei do
valor. Os contornos definitivos da teoria marxiana do valor, contudo, vão
começar a ser delineados apenas em seus rascunhos de 1857, nos Grundrisse.
O tratamento em separado dos efeitos da alienação sobre as duas
classes fundamentais desse modo de produção (os capitalistas e os trabalha-
dores), anunciado por Marx, não é, todavia, concluído nos Manuscritos eco-
nômico-filosóficos. Apesar de ocupar-se somente da relação entre o “trabalho
estranhado e a propriedade privada”, suas observações são absolutamente
abrangentes e têm muito a dizer sobre a forma mais madura que sua teoria
vai tomando, conforme aprofunda sua compreensão sobre as determinações
econômicas da sociedade capitalista.
Partindo de sua leitura crítica, e dialética, da economia política,
Marx reconhece que o processo de produção em geral é, ao mesmo tempo,
processo de reprodução, isto é, de reposição das condições materiais para a
vida humana e das relações sociais de produção subjacentes. Assim, toman-
do-se o resultado histórico que põe o antagonismo entre capital e trabalho, a
produção capitalista tem de resultar na reprodução desse antagonismo. Em
suas palavras: “O trabalho não produz somente mercadorias; ele produz a
si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e isto na medida em que
produz, de fato, mercadorias em geral”.195
Assim, o resultado do processo de trabalho, a objetivação da po-
tência subjetiva de cada trabalhador, o defronta “como um ser estranho”, na
medida em que perpetua sua condição de despossuído.196 A efetivação do
trabalho realiza-se através da desefetivação do trabalhador, a apropriação do
seu produto, isto é, a conexão social através do intercâmbio de mercadorias,

194
Ibidem.
195
Ibidem, p. 80.
196
Ibidem.
Marx na capital das rebeliões: ontologia e alienação nos Manuscritos de 1844 71

“como estranhamento [Entfremdung], como alienação [Entäusserung]”.197


Quanto mais produz, quanto mais riqueza cria o trabalhador, “tanto menos
pertence a si próprio”.198 Em suma, quanto maior a riqueza, maior o desen-
volvimento da lógica burguesa de produção e, portanto, mais subsumido a
esta lógica alienada o trabalhador.

A exteriorização [Entäusserung] do trabalhador em seu produto tem o significado


não somente de que seu trabalho se torna um objeto, uma existência externa
[äussern], mas, bem além disso, que existe fora dele [ausser ihm], independente
dele e estranha a ele, tornando-se uma potência [Macht] autônoma diante dele,
que a vida que ele concedeu ao objeto se lhe defronta hostil e estranha.199

Essa dinâmica estranhada é justamente o movimento característico


do capital, vinte e três anos mais tarde tratado por Marx a partir da forma
em que se reflete na consciência dos indivíduos, isto é, como um fetiche.200
Ademais, o acesso à parcela do produto social (o “objeto do trabalho”), atra-
vés da dinâmica incontrolável do capital, indica que o próprio processo de
trabalho constitui uma compulsão externa, “trabalho obrigatório”.201 Dito de
outra forma, este modo de produção social obedece aos imperativos inuma-
nos do capital, ao invés de ser regulado racionalmente pelos seres humanos,
segundo suas necessidades.

197
Ibidem.
198
Ibidem, p. 81.
199
Ibidem.
200
“O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que
ela reflete aos homens os caracteres sociais de seu próprio trabalho como caracteres objetivos dos
próprios produtos do trabalho, como propriedades sociais que são naturais a essas coisas e, por
isso, refletem também a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação
social entre os objetos, existente à margem dos produtores”. K. Marx, O capital: Crítica da economia
política, livro I, 2013b, p. 147. Ademais, analogias com a religião encontram-se nos dois textos e
denotam, uma vez mais, o fato de tratar-se, fundamentalmente, da mesma análise, ainda que em
níveis distintos de maturação. Vejamos: nos Manuscritos de 1844, sobre a alienação com relação ao
produto: “É do mesmo modo na religião. Quanto mais o homem põe em Deus, tanto menos ele
retém em si mesmo”. K. Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, 2004, p. 81; em O capital, sobre
o caráter fetichista de mercadoria: “(...) para encontrarmos uma analogia, temos de nos refugiar
na região nebulosa do mundo religioso. Aqui, os produtos do cérebro humano parecem dotados
de vida própria, como figuras independentes que travam relação umas com as outras e com os
homens”. K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro I, 2013b, p. 147-148.
201
K. Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, 2004, p. 83.
72 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

Se, portanto, o produto do trabalho é a exteriorização [alienação], então a produ-


ção mesma tem de ser a exteriorização [alienação] ativa, a exteriorização [aliena-
ção] da atividade, a atividade da exteriorização [alienação]. No estranhamento do
objeto do trabalho resume-se somente o estranhamento, a exteriorização [aliena-
ção] na atividade do trabalho mesmo.202

O trabalho alienado não pode representar, portanto, a livre realiza-


ção das potências subjetivas humanas, historicamente constituídas. O traba-
lho apresenta-se na forma capitalista como momento em que o sujeito “não
se afirma (...) mas nega-se nele, que não se sente bem, mas infeliz, que não de-
senvolve nenhuma energia espiritual livre, mas mortifica sua physis e arruína
o seu espírito”.203 Assim, a própria atividade vital, que funda a crescente dife-
renciação do ser social com relação à natureza, é alienada, na medida em que
a sociabilidade mercantil implica (para os não-proprietários) a necessidade
de se trabalhar, independentemente da qualidade específica do trabalho.
A capacidade de trabalho, “a auto-atividade, a atividade livre”, é re-
duzida a um meio, o que “faz da vida genérica do homem um meio de sua
existência física”.204 Como consequência: “A consciência que o homem tem
do seu gênero se transforma, portanto, mediante o estranhamento (...)”,205 já

202
Ibidem, p. 82; adendos nossos. Na edição que estamos utilizando dos Manuscritos econômico-
filosóficos o tradutor optou por verter Entäusserung ora por “exteriorização”, ora por “alienação”,
segundo sua interpretação sobre a forma como Marx utiliza a categoria. Optamos por indicar em
colchetes a tradução alternativa sempre que a categoria em alemão for traduzida por “exteriorização”.
203
Ibidem, p. 82-83.
204
Ibidem, p. 85.
205
Ibidem. Nos Grundrisse, momento em que a análise marxiana da sociabilidade capitalista
possui uma maior densidade dada pela profunda imersão no estudo das leis de movimento do
modo de produção capitalista, Marx sintetiza da seguinte forma o que nos Manuscritos de 1844
foi visto como interconexão de alienação do produto, da atividade e do gênero: “A dependência
recíproca e multilateral dos indivíduos mutuamente indiferentes forma sua conexão social. Essa
conexão social é expressa no valor de troca, e somente nele a atividade própria ou o produto de
cada indivíduo devém uma atividade ou produto para si; o indivíduo tem de produzir um produto
universal - o valor de troca, ou este último por si isolado, individualizado, dinheiro. De outro lado,
o poder que cada indivíduo exerce sobre a atividade dos outros ou sobre as riquezas sociais existe
nele como o proprietário de valores de troca, de dinheiro. Seu poder social, assim como seu nexo
com a sociedade, traz consigo no bolso. A atividade, qualquer que seja sua forma de manifestação
individual, e o produto da atividade, qualquer que seja sua qualidade particular, é o valor de troca,
i.e., um universal em que toda individualidade, peculiaridade, é negada e apagada”. K. Marx,
Grundrisse, 2011a, p. 105.
Marx na capital das rebeliões: ontologia e alienação nos Manuscritos de 1844 73

que é “na elaboração do mundo objetivo [que] o homem se confirma, em


primeiro lugar e efetivamente, como ser genérico”.206
Como lembra Mészáros, esse “terceiro aspecto” do trabalho aliena-
do está implícito nos dois primeiros (alienação do trabalhador com relação
ao produto e ao processo de trabalho).207 Na verdade, trata-se, portanto, de
dimensões distintas e indissociáveis de um mesmo processo: a subordina-
ção dos trabalhadores à lógica estranhada do capital. Nos termos da alie-
nação com relação ao ser genérico está-se em condições de compreender a
base concreta da forma mistificada pela qual a economia política entende a
natureza humana, isto é, da ontologia liberal que vê a forma especificamen-
te burguesa do trabalho como condição eterna da humanidade. Na medida
em que o trabalho alienado “[e]stranha do homem o seu próprio corpo,
assim como a natureza fora dele, tal como a sua essência espiritual, a sua
essência humana”,208 não se pode perceber de imediato que a “natureza que
vem a ser na história humana - no ato de surgimento da história humana -
é a natureza efetiva do homem, por isso a natureza, assim como vem a ser
por intermédio da indústria, ainda que em figura estranhada, é a natureza
antropológica verdadeira”.209
Além disso, da alienação do ser genérico depreende-se “o estranha-
mento do homem pelo homem”.210 Assim, o estranhamento do ser humano
com relação à humanidade é, ao mesmo tempo, o estranhamento dos se-
res humanos entre si. Isso se apresenta na competição generalizada em
que são postos todos os indivíduos na sociabilidade mercantil, o que Marx

206
K. Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, 2004, p. 85; adendo nosso.
207
I. Mészáros, A teoria da alienação em Marx, 2006, p. 20.
208
K. Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, 2004, p. 85.
209
Ibidem, p. 112. Ao longo da obra de Marx como um todo, são abundantes os momentos em
que o autor expõe, criticamente, os fundamentos concretos das formas mistificadas de consciência
por ele analisadas. Por exemplo, em O capital, a naturalização das relações burguesas de produção
pela economia política tem fundamento na “forma acabada - a forma-dinheiro - do mundo das
mercadorias que vela materialmente [sachlich], em vez de revelar, o caráter social dos trabalhos
privados e, com isso, as relações sociais entre os trabalhadores privados. (...) Ora, são justamente
essas formas que constituem as categorias da economia burguesa. Trata-se de formas de pensamento
socialmente válidas e, portanto, dotadas de objetividade para as relações de produção desse modo
social de produção historicamente determinado, a produção de mercadorias”. K. Marx, O capital:
Crítica da economia política, livro I, 2013b, p. 150-151.
210
K. Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, 2004, p. 85.
74 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

aprendeu já em sua incipiente análise crítica da economia política,211 como


salientamos acima.

Em geral, a questão de que o homem está estranhado do seu ser genérico quer
dizer que um homem está estranhado do outro, assim como cada um deles da
essência humana.
O estranhamento do homem, em geral toda relação na qual o homem está diante
de si mesmo, é primeiramente efetivado, se expressa, na relação em que o homem
está para com o outro homem.
Na relação do trabalho estranhado cada homem considera, portanto, o outro se-
gundo o critério e a relação na qual ele mesmo se encontra como trabalhador.212

Nos seus estudos sobre Adam Smith, Marx conclui, muito diversa-
mente do autor, que no processo de articulação social via mercado, o traba-
lhador está posto em uma situação na qual a concorrência com os demais
trabalhadores é constante, brutal e crescente. “O trabalhador não tem ape-
nas de lutar pelos seus meios de vida físicos, ele tem de lutar pela aquisição
de trabalho, isto é, pela possibilidade, pelos meios de poder efetivar sua ati-
vidade”.213 Nessa batalha cotidiana, portanto, o outro é um potencial concor-
rente na luta pela manutenção da subsistência física e espiritual.
Ademais, já apontamos que Marx, também a partir da resenha crítica
à Smith, reconhece o confronto necessariamente hostil entre capitalistas e tra-
balhadores na distribuição do produto social. Para além disso, vimos como o
próprio processo de trabalho e as subjacentes relações sociais de produção pos-
suem um caráter estranho ao trabalhador. Esse caráter estranhado, o capital no
processo automático que o constitui (a valorização do valor), personifica-se
em uma classe: os capitalistas. Nas palavras de Marx: “Se o produto do trabalho
não pertence ao trabalhador, um poder estranho está diante dele, então isto só
é possível pelo fato de pertencer a um outro homem fora o trabalhador”.214 A

211
“Se, portanto, o interesse do proprietário fundiário, muito longe de ser idêntico ao interesse
da sociedade, está em oposição hostil ao interesse dos arrendatários, dos criados da lavoura, dos
trabalhadores da manufatura e dos capitalistas, então nem sequer o interesse de um proprietário
fundiário é idêntico ao do outro, em virtude da concorrência (...)”. Ibidem, p. 71.
212
Ibidem, p. 85-86.
213
Ibidem, p. 25.
214
Ibidem, p. 86.
Marx na capital das rebeliões: ontologia e alienação nos Manuscritos de 1844 75

perda de si no trabalho, o “martírio” do trabalhador, “tem de ser fruição para


um outro e alegria de viver pra um outro”.215
O ponto aqui é que nesta configuração específica das relações sociais
de produção, neste verdadeiro “salve-se quem puder”, é impossível a realiza-
ção plena do reconhecimento do gênero humano. Já apontamos que o “afas-
tamento das barreiras naturais”, como resultado necessário (embora de reali-
zação não-linear) do intercâmbio com a natureza, implica o progresso no que
diz respeito ao desenvolvimento da consciência da existência genérica, na
medida em que integra crescentemente os seres humanos em comunidades
cada vez mais amplas, até sua realização no mercado mundial. No entanto:

(...) tal integração do desenvolvimento econômico realizou-se, em geral, fora da


consciência e, na maioria das vezes, contra a vontade dos homens envolvidos no
processo. A unificação espontânea e inestancável dos homens num gênero não
mais mudo, não mais apenas natural, a unificação numa espécie humana, portan-
to, é um fenômeno ulterior que acompanha necessariamente o desenvolvimento
das forças produtivas.216

Como alerta Lukács, trata-se aqui da constatação desse estado de


coisas a partir de um ponto de vista “puramente ontológico”, do sentido da
“transformação do em-si natural em um ser para-nós, até mesmo - em pers-
pectiva - da plena explicitação em um ser-para-sí”.217 Ou seja, prescinde-se,
também aí, de qualquer juízo de valor.218
Concretamente, a forma universal de comunidade realizada através
do mercado mundial tem por pressuposto básico o reconhecimento, na tro-
ca, da igualdade jurídica entre as partes. No entanto, como vimos, a forma
necessariamente estranhada, alienada, das relações mercantis, a submissão
dos indivíduos que participam das trocas à dinâmica externa, independente
e hostil do mercado, denota os limites desse reconhecimento jurídico da

215
Ibidem.
216
G. Lukács, Para uma ontologia do ser social I, 2012a, p. 401.
217
Ibidem.
218
Como lembra o autor, “os ‘meios’ imediatos por meio dos quais se realizou e ainda se realiza
essa integração da humanidade em gênero humano” incluem: “guerras sanguinárias, escravização
e até extermínio de povos inteiros, devastações e casos de degradação humana, exacerbação da
hostilidade entre nações que chegam a se transformar em ódios seculares (...)”. Ibidem, p. 403.
76 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

humanidade. Para Marx, portanto, apesar de constituir um momento onto-


logicamente superior, em comparação com modos pretéritos de produção,
no sentido da integração da humanidade (assim como no que diz respeito
ao domínio sobre a natureza), a sociabilidade burguesa representa uma bar-
reira intransponível à plena realização do gênero humano.

2.3. Comunismo e perda da “mudez” do gênero

De saída, notemos que a superação das barreiras postas aos seres humanos
pela sociabilidade mercantil, isto é, a superação do capitalismo no sentido
da emancipação da humanidade de todas as formas de dominação social,
deve ter por sujeito, como já reconhecera poucos meses antes dos estudos
que geraram os Manuscritos econômico-filosóficos, a classe trabalhadora. Foi
precisamente a perspectiva proletário-revolucionária que permitiu a Marx
consumar sua crítica materialista da dialética hegeliana, traçando uma linha
demarcatória entre objetivação humana e o trabalho alienado na forma es-
pecificamente capitalista da produção.
Segundo Netto, esse posicionamento é marca do “giro radical” no
tratamento da alienação por Marx também em comparação com Feuerbach,
“que centrou a sua elaboração sobre a alienação num fenômeno da consci-
ência (o fenômeno religioso)”.219 Em Marx o problema foi tratado em nível
eminentemente prático e, uma vez que a alienação decorre da forma como
se estabelecem as relações práticas entre os indivíduos, “só meios igualmente
práticos poderão superá-la”.220 Nas palavras de Marx:

Da relação do trabalho estranhado com a propriedade privada depreende-se,


além do mais, que a emancipação da sociedade a propriedade privada etc., da ser-
vidão, se manifesta na forma política da emancipação dos trabalhadores, não como
se dissesse respeito somente à emancipação deles, mas porque na sua emancipa-
ção está encerrada a [emancipação] humana universal. Mas esta está aí encerrada

219
J. P. Netto, “Marx em Paris”, In: K. Marx, Cadernos de Paris & Manuscritos econômico-filosóficos
de 1844, 2015, p. 75.
220
K. Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, 2004, p. 75.
Marx na capital das rebeliões: ontologia e alienação nos Manuscritos de 1844 77

porque a opressão humana inteira está envolvida na relação do trabalhador com


a produção, e todas as relações de servidão são apenas modificações e consequên-
cias dessa relação.221

Portanto, o posicionamento político previamente estabelecido na


Crítica à Filosofia do Direito de Hegel - Introdução é aprofundado, na medida
em que o papel da classe trabalhadora enquanto sujeito da emancipação hu-
mana funda-se no reconhecimento da centralidade do trabalho alienado na
sociabilidade burguesa. Sendo assim, deve-se reconhecer que a superação
dialética deste estado de coisas pressupõe a superação da forma de sociabi-
lidade na qual a produção, o trabalho, apresenta-se sob tais circunstâncias.
Ademais, já vimos que Marx descobrira em seus estudos sobre economia
política a demonstração do caráter inconciliável dos antagonismos entre as
classes sociais no seio da propriedade privada.
Desta forma, o autor tem de descartar peremptoriamente as propos-
tas de um comunismo que têm por finalidade a resolução de contradições
que, analiticamente, podem ser enquadradas no domínio da distribuição
apenas. Para Marx, o movimento revolucionário pela emancipação humana
não pode ter por meta a “igualdade de salários, como quer Proudhon”, o que
tão somente transformaria “a relação do trabalhador contemporâneo com o
seu trabalho na relação de todos os homens com o trabalho”, nem a absur-
da pretensão de converter a todos, pela força, em proprietários privados.222
“Salário é uma consequência imediata do trabalho estranhado, e o trabalho
estranhado é a causa imediata da propriedade privada. Consequentemente,
com um dos lados tem também de cair o outro”.223 Tais mistificações utópi-
cas, contudo, tem raízes concretas na própria forma como se afirma ideolo-
gicamente a sociedade burguesa. Assim, esse “comunismo” consiste em:

(...) uma generalização e aperfeiçoamento da mesma [da propriedade privada] em


sua primeira figura; como tal, mostra-se em uma figura duplicada: uma vez o
domínio da propriedade coisal [sachliche] é tão grande frente a ele que ele quer
aniquilar tudo que não é capaz de ser possuído por todos como propriedade pri-

221
Ibidem, p. 88-89.
222
Ibidem, p. 88.
223
Ibidem.
78 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

vada; ele quer abstrair de um modo violento do talento etc.; a posse imediata, fí-
sica, lhe vale como a finalidade única da vida e da existência; a determinação de
trabalhador não é supra-sumida, mas estendida a todos os homens; a relação da
propriedade privada permanece a relação da comunidade com o mundo das coi-
sas [Sachewelt] (...).224

A posição política de Marx é radical exatamente porque vai ao cerne


da questão: o modo de produção. A proposta criticada é utópica na medida
em que pretende resolver, sem superar, as contradições associadas à forma
específica de dominação social que caracteriza o capitalismo. Qual seja: a
sociabilidade subsumida ao movimento semiautomático do capital que tem,
portanto, o trabalho alienado como momento central. Neste sentido, este
“comunismo” é tão somente a expressão do “estranhamento-de-si” carac-
terístico do modo burguês de produção que, como visto, põe os indivíduos
em contínua competição pelas condições de existência. Como reflexo disso,
representa a universalização da inveja;225 toma o modo de produção como
um dado, expressando suas demandas pseudo-revolucionárias em termos
que, a rigor, reafirmam a sociabilidade burguesa.
Não sem razão, o socialismo utópico (ou “comunismo rude”) é sem-
pre romântico: prega “o retorno à simplicidade não natural do ser humano
pobre e sem carências que não ultrapassou a propriedade privada, e nem
mesmo até ela chegou”.226 Ou seja, o “comunismo rude” pretende resolver
os problemas de uma determinada formação social com um retorno a mo-
mentos históricos em que tais questões sequer poderiam ter sido postas.
Como ressalta Lukács: “Marx sempre critica, no plano teórico, toda venera-
ção romântica pelo passado menos evoluído, toda tentativa de empregá-lo,
em economia ou em filosofia da história, contra desenvolvimentos objetiva-
mente superiores”.227

224
Ibidem, p. 103-104; adendo em português nosso.
225
“A inveja universal constituindo-se enquanto poder é a forma oculta na qual a cobiça se
estabelece e apenas se satisfaz de um outro modo”. Ibidem, p. 104.
226
Ibidem, p. 104.
227
G. Lukács, Para uma ontologia do ser social I, 2012a, p. 350. A passagem seguinte, dos Grundrisse,
revela o mesmo posicionamento por parte de Marx: “Na economia burguesa - e na época de
produção que lhe corresponde -, essa exteriorização total do conteúdo humano aparece como
completo esvaziamento; essa objetivação universal, como estranhamento total, e a desintegração
Marx na capital das rebeliões: ontologia e alienação nos Manuscritos de 1844 79

Para Marx, a prisão de tal perspectiva nas garras da ideologia bur-


guesa deve-se, fundamentalmente, à incompreensão do sentido ontológico
do progresso no âmbito do ser social, uma vez que “ele [o comunismo rude]
não apreendeu ainda a essência positiva da propriedade privada e muito
menos a natureza humana da carência”.228 Assim:

O comunismo na condição de supra-sunção positiva da propriedade privada, en-


quanto estranhamento-de-si humano, e por isso enquanto apropriação efetiva da
essência humana pelo e para o homem. Por isso, trata-se do retorno pleno, tor-
nado consciente e interior a toda riqueza do desenvolvimento até aqui realizado,
retorno do homem para si enquanto homem social, isto é, humano.229

O comunismo tem de ser, portanto, a superação do estranhamento


nos diversos níveis em que a sociabilidade se estranha na sociedade burguesa.
Ou seja, o comunismo tem de ser a “dissolução do antagonismo do homem
com a natureza e com o homem; (...) do conflito entre existência e essência,
entre objetivação e auto-confirmação, entre liberdade e necessidade, entre in-
divíduo e gênero”.230 Na medida em que parte (e apenas é possível a partir) do
desenvolvimento histórico alcançado pela humanidade através da sociedade
burguesa, ele é “o enigma resolvido da história” porque apresenta-se como a
única forma histórica verdadeiramente progressiva que pode emergir a partir
destas condições. Marx entende que a “absoluta miséria” a que foi reduzida a
essência humana no modo de produção capitalista põe a possibilidade de que
a humanidade traga “para fora de si a sua riqueza interior”.231 Sinteticamente:

A supra-sunção da propriedade privada é, por conseguinte, a emancipação com-


pleta de todas as qualidades e sentidos humanos; mas ela é esta emancipação jus-

de todas as finalidades unilaterais determinadas, como sacrifício do fim em si mesmo a um fim


totalmente exterior. Por essa razão, o pueril mundo antigo, por um lado, aparece como o mais
elevado. Por outro, ele o é em tudo em que se busca a forma, a figura acabada e a limitação dada.
O mundo antigo representa a satisfação de um ponto de vista tacanho; ao passo que o moderno
causa insatisfação, ou, quando se mostra satisfeito consigo mesmo, é vulgar”. K. Marx, Grundrisse,
2011a, p. 400.
228
K. Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, 2004, p. 105; adendo nosso.
229
Ibidem.
230
Ibidem.
231
Ibidem, p. 108-109.
80 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

tamente pelo fato desses sentidos e propriedades terem se tornado humanos, tanto
subjetiva quanto objetivamente.232

Como a única forma possível de superação progressiva do capita-


lismo, contudo, o comunismo não é para Marx inevitável, mas desejável.
Isto é, o comunismo é uma questão ética predicada à análise objetiva (onto-
logicamente fundamentada) da realidade capitalista, que impõe, como tal,
uma moral revolucionária. Nas palavras do próprio Marx: “O comunismo é
a figura necessária e o princípio enérgico do futuro próximo, mas o comu-
nismo não é, como tal, o termo do desenvolvimento humano - a figura da
sociedade humana”.233 Em suma, trata-se da possibilidade real da superação
de toda e qualquer forma de dominação social, do início de uma nova his-
tória na qual as possibilidades de desenvolvimento obedecem a imperativos
não alheios, mas diretamente postos pelos seres humanos que, ademais, re-
conhecem plenamente, em si mesmos, o caráter genérico, a humanidade.

Ele é consciência de si positiva do homem não mais mediada pela superação da reli-
gião, assim como a vida efetiva é a efetividade positiva do homem não mais mediada
pela supra-sunção da propriedade privada, o comunismo. O comunismo é a posição
como negação da negação, e por isso o momento efetivo necessário da emancipação
e da recuperação humanas para o próximo desenvolvimento histórico.234

A nosso ver, as passagens comentadas patenteiam a noção objetiva


de progresso no sentido que defendemos acima (de afastamento das bar-
reiras naturais e de perda da mudez do gênero humano), fundada em um
pressuposto ontológico fundamental: o trabalho como momento basilar da
diferenciação entre a existência meramente biológica e o ser social. A cons-
tituição interna desta atividade que corresponde ao intercâmbio entre ser
humano e natureza consumada a partir de posições teleológicas, a capaci-
ta para servir de modelo às demais formas de práxis social, que também
obedecem a posições teleológicas. É da forma da práxis humana que Marx
deriva uma teoria para o desenvolvimento histórico que faz justiça à sua

232
Ibidem, p. 109.
233
Ibidem, p. 114.
234
Ibidem.
Marx na capital das rebeliões: ontologia e alienação nos Manuscritos de 1844 81

natureza necessariamente contraditória e desigual e, portanto, repleta de bi-


furcações e até mesmo becos sem saída.
O comunismo, neste sentido, corresponde à possibilidade de que
a classe trabalhadora organizada tome para a humanidade o progresso que
até aqui se alcançou (que, portanto, só foi possível a partir da história pre-
cedente – condições não escolhidas por aqueles seres humanos).235 Assim,
a integração humana que efetivamente tem lugar apenas com o mercado
mundial, permeada, portanto, por conflitos nacionais, pela reprodução de
anacrônicos preconceitos e formas de dominação étnicas, sexual236 etc., seria
suplantada por uma integração não mediada pelas relações mercantis, não
subsumida aos imperativos da acumulação de capital. Nas palavras de Marx:

Pressupondo o homem enquanto homem e seu comportamento com o mundo


enquanto um [comportamento] humano, tu só podes trocar amor por amor, con-
fiança por confiança etc. Se tu quiseres fruir da arte, tens de ser uma pessoa ar-
tisticamente cultivada; se queres exercer influência sobre outros seres humanos,
tu tens de ser um ser humano que atue efetivamente sobre os outros de modo
estimulante e encorajador. Cada uma das tuas relações com o homem e com a
natureza - tem de ser uma externação [Äusserung] determinada de tua vida indi-
vidual efetiva correspondente ao objeto da tua vontade. Se tu amas sem despertar
amor recíproco, isto é, se teu amar, enquanto amar, não produz o amor recíproco,

235
Na forma emblemática como Marx coloca alguns anos depois: “Os homens fazem a sua
própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem
escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como
se encontram”. K. Marx, O 18 de brumário de Luís Bonaparte, 2011b, p. 25.
236
Sobre a relação entre os sexos, diz Marx: “Nesta relação fica sensivelmente claro (...) e reduzido
a um factum intuível, até que ponto a essência humana veio a ser para o homem natureza ou a
natureza essência humana do homem. A partir desta relação pode-se julgar, portanto, o completo
nível de formação [die ganze Bildungsstufe] do homem. Do caráter desta relação segue-se até que
ponto o ser humano veio a ser e se apreendeu como ser genérico, como ser humano; a relação do
homem com a mulher é a relação mais natural do ser humano com o ser humano. Nessa relação
se mostra também até que ponto o comportamento natural do ser humano se tornou humano, ou
até que ponto a essência humana se tornou para ele essência natural, até que ponto a sua natureza
humana tornou-se para ele natureza. Nesta relação também se mostra até que ponto a carência
do ser humano se tornou carência humana para ele, portanto, até que ponto o outro ser humano
como ser humano se tornou uma carência para ele, até que ponto ele, em sua existência mais
individual, é ao mesmo tempo coletividade”. K. Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, 2004,
p. 104-105.
82 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

se mediante tua externação de vida [Lebensäusserung] como homem amante não


te tornas homem amado, teu amor é impotente, é uma infelicidade.237

No capítulo seguinte nos ocuparemos da forma como Marx desen-


volve esta teoria da história, apresentando-a em maior nível de concreção
a partir de A ideologia alemã. Nos interessa, sobretudo, ressaltar o caráter
necessariamente desigual e contraditório com o qual se realiza o desen-
volvimento histórico do ser social, uma questão ontológica que, portanto,
pressupõe a discussão realizada neste capítulo. A forma geral do desenvol-
vimento histórico, acreditamos, corresponde ao pressuposto fundamental
para se compreender o desenvolvimento do modo de produção capitalista
enquanto mercado mundial: o processo de explicitação necessariamente de-
sigual (inclusive em termos geoeconômicos) das leis imanentes ao processo
de acumulação de capital.

237
Ibidem, p. 161.
CAPÍTULO 3

O materialismo comunista de Marx


e o desenvolvimento desigual

Introdução

Pode-se dizer que os avanços teóricos extremamente significativos, e defini-


tivos, alcançados por Marx nos estudos de Paris tomam a forma de uma ma-
dura concepção para o desenvolvimento histórico nos dois anos seguintes,
durante seu exílio forçado em Bruxelas. Segundo Rubel: “É no curso destes
dois anos que Marx elabora a teoria social cujos prolegômenos havia formu-
lado nos manuscritos parisienses. Datam desta época as duas obras nas quais
desenvolve esta teoria em tons definitivos”.238 Ganha mais corpo, nesses anos,
a ontologia do ser social de Marx, assim como reafirma-se a superação da
forma alienada da sociabilidade capitalista como norte teórico-prático.
Vale ressaltar desde o início que isso não significa que a concepção
teórica marxiana encontre nos escritos produzidos nessa época, notadamente
A ideologia alemã e Miséria da filosofia,239 o seu ponto culminante. Como se
sabe, isso é especialmente falso no que diz respeito à análise das legalidades
subjacentes ao modo capitalista de produção, como teremos a oportunidade
da analisar no capítulo final deste livro.
Vimos há pouco que, no início de 1845, Marx e sua família foram
obrigados a deixar Paris em cumprimento de uma ordem de expulsão edi-
tada contra os colaboradores do jornal Avante!, como resultado das pressões
do governo prussiano. A mudança de país, contudo, não significou o fim da
vigilância e da repressão à sua atividade político-intelectual. Tão logo chegou
a Bruxelas, Marx foi levado à administração de segurança pública local para
que se comprometesse a não publicar nada a respeito da política belga, ao que
ele não se opôs, já que isso se encontrava distante de seus objetivos e possi-
bilidades. Tal acontecimento, contudo, não o impediu de contribuir para o

M. Rubel, Karl Marx: Ensayo de biografía intelectual, 1970, p. 133.


238

239
Data também deste período a redação do importantíssimo Manifesto do partido comunista,
sobre o qual falaremos no capítulo seguinte.

83
84 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

Deutsche Brüsseler Zeitung, a partir de 1847, especialmente com artigos sobre


a política interna prussiana, o que com certeza não ajudou a debelar o cons-
tante clamor das autoridades teutônicas por sua expulsão de Bruxelas.240
Tampouco sua atividade político-organizativa cessou nos anos bel-
gas, muito pelo contrário. É desse período a organização de um comitê de
correspondência entre militantes revolucionários europeus, no início de
1846; a adesão de Marx e Engels à Liga dos Comunistas (anteriormente Liga
dos Justos), em janeiro de 1847; assim como a fundação da Associação dos
Trabalhadores Alemães, importante foco de propaganda comunista em Bru-
xelas, em agosto de 1847.241
Não foram, ademais, apenas motivações intelectuais que fizeram com
que, pouco meses após sua chegada ao novo local de moradia, Marx deixasse
o país, na companhia de Engels, rumo à cinzenta Manchester, um dos berços
da Revolução Industrial inglesa, foco de importantes agitações proletárias e
sede da indústria Ermen & Engels. De fato, como nos conta Mehring, durante
a viagem os dois amigos estabeleceram importantes contatos com cartistas e
socialistas ingleses.242
Ainda assim, pode-se afirmar com segurança que Marx e Engels
passaram quase todo o tempo de sua estada em Manchester na Chetham’s
Library, importante biblioteca da cidade.243 É nessas condições que Marx
efetiva sua segunda incursão profunda nas obras dos economistas políticos.
Segundo Mandel:

(...) foi no curso desse segundo encontro sistemático com a Economia Política
que ele descobriu o uso social-revolucionário que escritores socialistas ingleses ti-
nham podido fazer da teoria do valor-trabalho, e das contradições que ela enfeixa
em Ricardo. Entre os escritores que ele estuda em Manchester em julho e agosto
de 1845 se colocam T. R. Edmonds e William Thompson que tinham precisamen-
te empregado os teoremas ricardianos dentro desse espírito. (Ele estudará depois
de agosto John Bray, que faz parte da mesma categoria de autores).244

240
F. Mehring, Karl Marx: A história de sua vida, 2013, pp. 140-145.
241
Ibidem, p. 148-149.
242
Ibidem, p. 122.
243
T. Hunt, Comunista de casaca: A vida revolucionária de Friedrich Engels, 2010, p. 146.
244
E. Mandel, A formação do pensamento econômico de Karl Marx: De 1843 até a redação de O
capital, 1968, p. 47.
O materialismo comunista de Marx e o desenvolvimento desigual 85

Ainda de acordo com Mandel, a leitura das contribuições de Ri-


cardo através dos socialistas ingleses foi fundamental para que Marx fizesse
uma revisão de suas posições acerca da teoria do valor-trabalho. Marx pas-
sa, portanto, de uma declarada rejeição do valor-trabalho nos Cadernos de
Paris, como visto no capítulo anterior, para sua aceitação crítica, explicitada
já em A ideologia alemã e, com maior clareza, em Miséria da filosofia. Con-
cordamos com Netto, contudo, quando este afirma que Marx não se põe,
apesar disso, como “ricardiano”, já que, uma vez mais, afirma seu rechaço à
naturalização das determinações sócio-históricas burguesas pelos clássicos
do pensamento econômico.245
A percepção de que as categorias da economia política teriam obje-
tividade apenas na sociedade capitalista explicita-se quando Marx comenta a
Filosofia da miséria, de Proudhon, em carta a Annenkov de 28 de dezembro
de 1846. Nestas linhas, Marx diz que o autor repete o “erro dos economistas
burgueses, que vêem nessas categorias econômicas leis eternas e não leis his-
tóricas, válidas exclusivamente para certo desenvolvimento histórico, desen-
volvimento determinado pelas forças produtivas”.246
Contudo, da aceitação da teoria do valor-trabalho não se deve de-
preender que Marx, já aí, estivesse em condições de oferecer sua formulação
própria, e em todos os sentidos revolucionária, para a sociabilidade capitalis-
ta. Segundo Netto, não apenas porque ele não analisa os níveis diversos em
que o problema do valor se põe, como porque ele não pôde ainda alcançar as
mediações “socioeconômicas” que viabilizariam a “precisa concretização do
valor”.247 Tomando na íntegra as palavras de Netto:

À falta dessa determinação - cuja elaboração Marx começará a efetivar na segun-


da metade dos anos 1850 -, a instrumentalização da teoria do valor-trabalho de-
fronta-se com problemas insolúveis, obstáculos teóricos da natureza daqueles que
pululam na Miséria da filosofia, em que, em consequência do que mencionamos,
Marx não distingue, por exemplo, força de trabalho de trabalho, trabalho social-
mente necessário de trabalho necessário etc.248

245
J. P. Netto, “Introdução”, In: K. Marx, Miséria da filosofia: Resposta à “Filosofia da miséria”, do
Sr. Proudhon, 2009, p. 29.
246
K. Marx, Miséria da filosofia: Resposta à “Filosofia da miséria”, do Sr. Proudhon, 2009, p. 250.
247
J. P. Netto, “Introdução”, In: K. Marx, Miséria da filosofia: Resposta à “Filosofia da miséria”, do
Sr. Proudhon, 2009, p. 30.
248
Ibidem.
86 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

Além de irrigar os textos de Marx com esse renovado olhar sobre as


questões econômicas, a viagem com Engels à Manchester fortalece a ideia da
redação do segundo texto em conjunto dos autores. Pouco antes, em fins de
fevereiro de 1845, foi publicada A sagrada família, trabalho iniciado durante
o encontro dos dois em Paris e que, da pena de Marx, recebeu um volume
considerável. A redação do texto foi motivada pela publicação do oitavo nú-
mero do Jornal literário geral [Allgemeine Literatur-Zeitung], editado por Bru-
no Bauer, que continha críticas duras, embora veladas, aos textos de Marx e
Engels nos Anais franco-alemães.249
Em especial, os autores julgavam absolutamente necessário comba-
ter o idealismo jovem-hegeliano de Bauer e consortes, na medida em que este
representava um ataque elitista aos movimentos revolucionários de massas. O
próprio Bauer resume assim o programa de seu jornal:

Até o presente todos os grandes movimentos da história foram mal guiados e fa-
dados ao fracasso desde o começo, porque levantavam o interesse e o entusiasmo
das massas. Em outros casos, tiveram um fim miserável porque a ideia sobre a
qual se centravam não requeria mais que um entendimento superficial e contava,
portanto, com o aplauso das massas.250

Não menos direta foi a resposta de Marx e Engels ao conservadoris-


mo pseudo-libertário de Bauer:

O humanismo real não tem, na Alemanha, inimigo mais perigoso do que o espi-
ritualismo - ou idealismo especulativo -, que, no lugar do ser humano individual e
verdadeiro, coloca a “autoconsciência” ou o “espírito” e ensina, conforme o evan-
gelista: “O espírito é quem vivifica, a carne não presta”.251

No entanto, o Jornal literário geral não teve a recepção esperada, nem


mesmo entre os jovens hegelianos, e no ano seguinte à sua primeira publi-
cação não apenas havia acabado, como estava esquecido. Em consequência,

249
F. Mehring, Karl Marx: A história de sua vida, 2013, p. 115.
250
B. Bauer apud F. Mehring, Karl Marx: A história de sua vida, 2013, p. 110.
251
K. Marx & F. Engels, A sagrada família ou A crítica da Crítica crítica contra Bruno Bauer e
consortes, 2003, p. 15.
O materialismo comunista de Marx e o desenvolvimento desigual 87

não menos fria foi a acolhida imediata ao A sagrada família. Apesar disso, a
publicação de O único e sua propriedade [Der Einzige und sein Eigentum] de
Max Stirner, que não havia colaborado com o Jornal de Bauer, reacende em
Marx e Engels o ímpeto de denunciar publicamente esta “última e mais pecu-
liar manifestação do neo-hegelianismo”.252 Segundo Rubel, as motivações de
A ideologia alemã não foram menos políticas que as do texto anterior:

Ao se associarem para fazer frente a este niilismo pretencioso, Marx e Engels


queriam ganhar aderentes nos meios intelectuais e operários alemães por meio
de uma nova teoria social, diametralmente oposta à ideologia neo-hegeliana em
quaisquer de suas variantes. A radicalização das massas populares alemãs, a exem-
plo do proletariado francês e inglês, não podia se acelerar sem uma prévia elimi-
nação da influência intelectual dos Bauer, Stirner etc., e sem substituí-la por uma
obra de educação socialista, acessível ao intelecto das classes pobres, do proleta-
riado industrial e da pequena burguesia.253

Ao fazê-lo, Marx e Engels ofereceram indicações fundamentais de


seu aporte, materialista e histórico, para a análise dos fenômenos sociais. No
entanto, a fortuna de sua edição transita caminhos extremamente sinuosos
que vão desde o insucesso dos autores em encontrar um editor para a obra
(o que responde por seu caráter inacabado e, em muitos momentos, absolu-
tamente fragmentário), passando pelo desastroso trabalho de Bernstein, no
que diz respeito a este texto,254 como inventariante do espólio de Marx e En-
gels, até a publicação de sua primeira parte, “atribuível de modo verossímil a
Marx e, sem dúvida, a mais importante de todo o trabalho”, por Riazanov, em
1926.255 Não obstante, apenas em 2003 a primeira parte de A ideologia alemã,

252
M. Rubel, Karl Marx: Ensayo de biografía intelectual, p. 139
253
Ibidem, p. 139-140.
254
“As falhas e lacunas científicas de Bernstein mostraram-se múltiplas. Descobriu-se, de fato, que
havia publicado menos da metade da crítica de Stirner, atribuindo falsamente à ‘crítica roedora
dos ratos’ aqueles cortes que, na realidade, haviam sido praticados arbitrariamente por ele. Além
do mais, pôde-se constatar que Bernstein acreditara, sem razão, que as partes sobre Feuerbach
e Bauer pertenciam a um único capítulo e que, por considerá-lo irrelevante, havia decidido não
publicar!”. M. Musto, “Vicissitudes e novos estudos de A ideologia alemã”, Antítese: Marxismo e
cultura socialista, n. 5, 2008, p. 12.
255
Ibidem, pp. 12-14.
88 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

sobre a qual nos debruçaremos a partir da seção seguinte, foi publicada na


forma exata, e inacabada, que Marx a deixou.
Se o texto em questão contém a primeira formulação madura do ma-
terialismo marxiano, é na Miséria da filosofia que “estão sendo explicitados
e oferecidos ao público, pela primeira vez, os fundamentos e os elementos
constitutivos da teoria do ser social engendrada pelo modo de produção ca-
pitalista”.256 Como se sabe, o livro originalmente publicado em 1847 é inteira-
mente redigido na língua francesa, tendo em vista seu caráter de resposta ao
Sistema das contradições econômicas ou filosofia da miséria de Pierre-Joseph
Proudhon, intelectual e militante muito influente nos círculos revolucioná-
rios daquela época (e de períodos posteriores, inclusive fora da França).
Deve-se ressaltar que, ao contrário do que querem alguns biógrafos,257
o texto não foi motivado pela ofensiva resposta de Proudhon ao convite de
Marx para que ele fizesse parte do supracitado comitê de correspondência
entre militantes socialistas europeus. Na verdade, como ressalta Netto, a dura
crítica de Marx deve-se fundamentalmente ao fato de que os grosseiros erros
teóricos de Proudhon, no livro em tela, incidem “sobre seu próprio percurso
político e ideológico”.258 O importante militante revolucionário admirado por
Marx, que declarara que a propriedade privada era roubo e, portanto, deveria
ser abolida, degenerara-se em um reformista conciliador.
Nas linhas que seguem nos debruçamos sobre os referidos textos. In-
teressa-nos, sobretudo, tomá-los como momentos fundamentais para a com-
preensão da concepção teórica marxiana no que diz respeito à historicidade
do ser social. Discutiremos como, a partir da crítica à filosofia da história, é
apresentada uma concepção para o desenvolvimento social que reconhece,
de modo explícito, seu caráter necessariamente contraditório e desigual. As-
sim como no capítulo anterior, cotejamos as questões debatidas nesses textos
com momentos posteriores da obra de Marx em que essas posições são re-
afirmadas. Fazemos assim, uma vez mais, por dois motivos: por um lado,
para demonstrar que tais posicionamentos teórico-metodológicos não re-

256
J. P. Netto, “Introdução”, In: K. Marx, Miséria da filosofia: Resposta à “Filosofia da miséria”, do
Sr. Proudhon, 2009, p. 11.
257
Como, por exemplo: F. Wheen, Karl Marx, 2001; e M. Gabriel, Amor e Capital: A saga familiar
de Karl Marx e a história de uma revolução, 2013.
258
J. P. Netto, “Introdução”, In: K. Marx, Miséria da filosofia: Resposta à “Filosofia da miséria”, do
Sr. Proudhon, 2009, p. 20.
O materialismo comunista de Marx e o desenvolvimento desigual 89

presentam momentos evanescentes da teoria marxiana, constituindo antes


a base de sua mais madura formulação; por outro lado, e em virtude disso,
a reafirmação dessas posições em outros contextos nos ajuda a apreender
melhor seu significado.

3.1. A crítica da filosofia da história e o materialismo comunista

Tomemos os textos A ideologia alemã e Miséria da filosofia. Nestes escritos o


que Marx oferece, na forma de uma síntese de sua teoria para o desenvolvi-
mento histórico, corresponde ao aprofundamento das posições ontológicas
previamente estabelecidas nos Manuscritos econômico-filosóficos. Veremos
que esse aprofundamento, contudo, reflete um maior nível de maturidade
intelectual do autor, na medida em que as ideias previamente adiantadas são
reapresentadas em maior grau de concretude, embora ainda não sobre a base
da madura crítica marxiana da economia política.
Artifício muito presente ao longo de toda obra de Marx, nos traba-
lhos em questão suas concepções são apresentadas a partir da crítica a outras
posições. Em ambos, de uma maneira ou de outra,259 a teoria da história de
Marx aparece na forma de resposta à filosofia da história de matriz hegeliana.
Como dito em A ideologia alemã:

A crítica alemã, até em seus mais recentes esforços, não abandonou o terreno
da filosofia. Longe de investigar seus pressupostos gerais-filosóficos, todo o con-
junto de suas questões brotou do solo de um sistema filosófico determinado, o
sistema hegeliano.260

259
Em Miséria da filosofia, Marx, para criticar Proudhon, vê-se obrigado a “falar a linguagem da
metafísica, sem abandonar a da economia”. K. Marx, Miséria da filosofia: Resposta à “Filosofia da
miséria”, do Sr. Proudhon, 2009, p. 119. Ou seja, na medida em que Proudhon pretende, em Sistemas
das contradições econômicas ou filosofia da miséria, tratar filosoficamente de questões econômicas,
Marx oferece-lhe a crítica também pela via da filosofia da história, apesar de reconhecer que o
aportado por Proudhon nesse campo não é mais que uma caricatura vulgar da dialética hegeliana.
Como afirma em carta a Annenkov: “O sr. Proudhon não nos oferece uma crítica falsa da
economia política porque a sua filosofia seja ridícula; oferece-nos uma filosofia ridícula porque
não compreendeu o estado social contemporâneo em sua engrenagem, para usarmos dessa palavra
que, como muitas outras, o sr. Proudhon tomou de Fourier”. Ibidem, p. 243-244.
260
K. Marx & F. Engels, A ideologia alemã, 2007, p. 83.
90 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

Vázquez nos recorda que a teoria da história apresentada nos tex-


tos em análise deve ser compreendida à vista de sua estreita relação com a
práxis revolucionária, “na medida em que as condições objetivas – histó-
ricas, econômicas e sociais – fundam e possibilitam a ação revolucionária
do proletariado”.261 Desta forma, o embate com as posições idealistas dos
jovens hegelianos (assim como de Proudhon) sobre o desenvolvimento his-
tórico revela o caráter eminentemente conservador destes autores, oculto
sob verniz progressista, apoiado em um moralismo conceitualmente vazio.
Nas palavras de Marx:

Uma vez que, segundo sua fantasia, as relações entre os homens, toda a sua ativida-
de, seus grilhões e barreiras são produtos de sua consciência, os jovens-hegelianos,
consequentemente, propõem aos homens o seu postulado moral de trocar sua cons-
ciência atual pela consciência humana, crítica ou egoísta e de, por meio disso, remo-
ver suas barreiras. Essa exigência de transformar a consciência resulta na exigência
de interpretar o existente de outra maneira, quer dizer, de reconhecê-lo por meio
de uma outra interpretação. Os ideólogos jovens-hegelianos, apesar de suas frase-
ologias que têm a pretensão de ‘abalar o mundo’, são os maiores conservadores.262

Sem embargo, Marx defende para a “libertação real no mundo real”,


“o emprego de meios reais”,263 o que ressalta o posto ontologicamente prioritá-
rio da existência concreta com relação à sua representação ideal. Igualmente
peculiar à crítica marxiana, ressaltando uma vez mais seu caráter profunda-
mente materialista e histórico, é a preocupação com os fundamentos con-
cretos das ideias combatidas. Ou seja, Marx sempre se indaga quanto à base
material das formas de consciência que submete à crítica.264 Por conseguinte,
o fundamento da filosofia alemã tem de estar referido, de alguma forma, à re-
alidade alemã.265 Vimos no primeiro capítulo que sempre que o relativo atra-

261
A. S. Vázquez, Filosofía de la praxis, 2003, p. 182.
262
K. Marx & F. Engels, A ideologia alemã, 2007, p. 84.
263
Ibidem, p. 29.
264
É por isso que, dissertando sobre as formas de consciência que correspondem à reprodução
de um determinado modo de dominação social, diz Marx: “As ideias dominantes não são mais
do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, são as relações materiais dominantes
apreendidas como ideias; portanto, são a expressão das relações que fazem de uma classe a classe
dominante, são as ideias de sua dominação”. Ibidem, p. 47.
265
Sobre isso, veja-se G. Lukács, Para uma ontologia do ser social I, 2012a, p. 181.
O materialismo comunista de Marx e o desenvolvimento desigual 91

so alemão é problematizado por Marx, o tema do desenvolvimento desigual


vem à tona. Veremos adiante que isso também vale para os textos em tela.
Voltando ao que nos interessa neste ponto, notemos que o ser social
possui uma historicidade, como já apontamos, com o que Hegel ou Proudhon
não estariam dispostos a discordar. Na pena de Marx em Miséria da filosofia:

Tudo o que existe, tudo o que vive sobre a terra e sob a água, existe e vive graças
a um movimento qualquer. Assim, o movimento da história produz as relações
sociais, o movimento industrial nos proporciona os produtos industriais etc.266

No entanto, a abstração hegeliana, que pretende captar a essência


desse movimento em termos puramente lógicos, reduz a história à sucessão
fatalista de categorias em um sistema ideal. Na filosofia da história de Hegel
(seu “método absoluto”), o tornar-se outro de uma categoria, seu movimento,
é obra da dialética interna aos conceitos. Segundo Lukács, em Hegel o pre-
sente, que corresponderia ao “reino da razão”, seria “apenas a culminação de
um processo dialético que, partindo da natureza inorgânica e passando pela
vida e pela sociedade, ruma para aquele ponto culminante”.267 A rigor, “essa
coincidência da ideia realizada e do presente histórico é metodologicamente
fundada sobre uma lógica”.268

Para Hegel, portanto, tudo o que ocorreu e que ainda ocorre é precisamente o que
ocorre em seu próprio raciocínio. Assim, a filosofia da história não é mais que a
história da filosofia, da sua própria filosofia. Já não há mais a “história segundo a
ordem temporal”: há apenas, a “sucessão das ideias no entendimento”. Ele acredita
construir o mundo pelo movimento do pensamento, enquanto somente recons-
trói, de forma sistemática e ordenando segundo o método absoluto, as ideias que
estão na cabeça de todo mundo.269

Vem à luz, desta forma, uma concepção para a historicidade no âmbi-


to do ser social na qual “o processo global enquanto tal que é chamado a rea-

266
K. Marx, Miséria da filosofia: Resposta à “Filosofia da miséria”, do Sr. Proudhon, 2009, p. 122.
267
G. Lukács, Para uma ontologia do ser social I, 2012a, p. 183.
268
Ibidem, p. 190.
269
K. Marx, Miséria da filosofia: Resposta à “Filosofia da miséria”, do Sr. Proudhon, 2009, p. 125.
92 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

lizar uma finalidade teleológica (...)”. Com essa teleologia transcendental (isto
é, não restrita à práxis humana), “a teoria hegeliana da história desemboca,
portanto, nas velhas concepções ontológicas do tipo das teodicéias”.270 É preci-
samente contra isso que se levanta Marx nos textos em questão. Referindo-se
especificamente ao A ideologia alemã, Martins ressalta que “ao explicitar suas
divergências com os filósofos neo-hegelianos, Marx se pronuncia nesse texto
contra uma certa concepção de história como um sujeito dotado de vontade,
uma espécie de pessoa que existiria ao lado de outras pessoas”.271 Ainda segundo
Martins, essa posição evidencia-se, entre outras, na seguinte passagem:

A história nada mais é do que o suceder-se de gerações distintas, em que cada uma
delas explora os materiais, os capitais e as forças de produção a ela transmitidas
pelas gerações anteriores; portanto, por um lado ela continua a atividade ante-
rior sob condições totalmente alteradas e, por outro, modifica com uma atividade
completamente diferente as antigas condições, o que então pode ser especulati-
vamente distorcido, ao converter-se a história posterior na finalidade da anterior,
por exemplo, quando se atribui à descoberta da América a finalidade de facilitar
a irrupção da Revolução Francesa, com o que a história ganha finalidades à parte
e torna-se uma “pessoa ao lado de outras pessoas” (...), enquanto o que se designa
com as palavras “destinação”, “finalidade”, “núcleo”, “ideia” da história anterior não
é nada além de uma abstração da história posterior, uma abstração da influência
ativa que a história anterior exerce sobre a posterior.272

Nesse sentido, a racionalidade do movimento histórico, isto é, a rela-


ção de causalidade entre as diferentes épocas históricas é uma realidade que
pode apenas ser captada em termos retrospectivos.273 Assim, insistimos, sem-
pre que Marx fala de determinada época histórica como momento necessário

270
G. Lukács, Para uma ontologia do ser social I, 2012a, p. 190.
271
M. Martins, “Althusser, o marxismo e o historicismo”, Crítica Marxista, n. 34, 2012, p. 71.
272
K. Marx & F. Engels, A ideologia alemã, 2007, p. 40.
273
Em Miséria da filosofia, por exemplo, diz Marx: “Suponha-se, como o faz o sr. Proudhon,
que o gênio social tenha produzido, ou, sobretudo, improvisado, os senhores feudais com o fim
providencial de transformar os colonos em trabalhadores responsáveis e igualitários. Ter-se-á,
assim, uma substituição de fins e pessoas digna dessa Providência que, na Escócia, institui a
propriedade fundiária para se dar ao maligno prazer de contemplar a expulsão dos homens pelas
ovelhas”. K. Marx, Miséria da filosofia: Resposta à “Filosofia da miséria”, do Sr. Proudhon, 2009,
O materialismo comunista de Marx e o desenvolvimento desigual 93

para outra que a sucedeu, tal afirmação deve ser entendida em termos estri-
tamente post festum. Se a história é o resultado não-teleológico da complexa
articulação de diversas práticas humanas (teleológicas), sob determinadas
circunstâncias sociais, resultados futuros não podem, absolutamente, ser de-
terminados a priori.274
A tarefa a que Marx se propõe, portanto, nos termos de Bensaid, é
secularizar a história, rechaçando com vigor a especulação idealista.275 Im-
porta, desta forma, indagar-se pela “história profana” da humanidade, como
diz Marx em Miséria da filosofia:

Aprofundar todas essas questões não é fazer a história real, profana, dos homens
em cada século, representar esses homens simultaneamente como os autores e os
atores do seu próprio drama? Mas, a partir do momento em que os homens são
representados como atores e autores da sua própria história, chega-se, por um ata-
lho, ao verdadeiro ponto de partida, uma vez que são abandonados os princípios
eternos de que inicialmente se arrancava.276

A primeira condição para a história profana (ou secular) “é, natural-


mente, a existência de indivíduos humanos vivos”.277 Seres humanos mantêm-
se vivos pela satisfação de suas necessidades orgânicas e sociais, o que pres-
supõe a constante produção de seus meios de vida, como visto no capítulo
anterior. Ao idealismo neo-hegeliano, Marx tinha de lembrar, portanto, que
a produção material é o primeiro pressuposto histórico, a “condição funda-

p. 136. Portanto, quando se diz que os desenvolvimentos históricos em um determinado período,


digamos, no modo de produção feudal, correspondem a momentos necessários à emergência
do modo de produção burguês, está-se a afirmar apenas que aquela formação social possuía a
ulterior como possibilidade.
274
Não poucas vezes Marx é acusado de postular a inevitabilidade histórica do comunismo.
Acreditamos que os momentos em que tal posição possa ser apontada devem ser julgados segundo
dois referenciais: em primeiro lugar, a teoria social de Marx; e, em segundo lugar, as motivações
para a redação do texto em questão. No mais, notemos que em A ideologia alemã, por exemplo, há
pouco espaço para dúvidas: “O comunismo não é para nós um estado de coisas [Zustand] que deve
ser instaurado, um Ideal para o qual a realidade deverá se direcionar. Chamamos de comunismo
o movimento real que supera o estado de coisas atual. As condições do movimento resultam dos
pressupostos atualmente existentes”. K. Marx & F. Engels, A ideologia alemã, 2007, p. 38.
275
D. Bensaid, Marx intempestivo: Grandezas y miserias de una aventura crítica, 2013, p. 39.
276
K. Marx, Miséria da filosofia: Resposta à “Filosofia da miséria”, do Sr. Proudhon, 2009, p. 131.
277
K. Marx & F. Engels, A ideologia alemã, 2007, p. 87.
94 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

mental de toda a história”. “A primeira coisa a fazer em qualquer concepção


histórica é, portanto, observar esse fato fundamental em toda a sua significa-
ção e em todo o seu alcance e a ele fazer justiça”.278
Ademais, a mesma observação vale para Feuerbach que “(...) não
concebe os homens em sua conexão social dada, em suas condições de vida
existentes, que fizeram deles o que eles são, ele não chega nunca até os ho-
mens ativos, realmente existentes, mas permanece na abstração ‘o homem’
(...)”. A ontologia marxiana reconhece de saída que o ser social se apresenta
como uma forma de vida que engendra suas próprias condições de existência,
que faz, portanto, a sua própria história. Assim: “Na medida em que Feuer-
bach é materialista, nele não se encontra a história, e na medida em que toma
em consideração a história ele não é materialista”.279
As implicações práticas de tal postura filosófica são evidentes para
Marx: Feuerbach “é obrigado (...) a recair no idealismo justamente lá onde
o materialista comunista vê a necessidade e simultaneamente a condição de
uma transformação, tanto da indústria como da estrutura social”.280 Notemos
de passagem que, por isso, não nos parece equivocada a posição de Engels ao
posteriormente descrever o método marxiano, construído a partir da crítica
ao idealismo alemão, como “materialismo histórico”.
Conforme visto no capítulo anterior, na historicidade humana Marx
reconhece a presença ineliminável das determinações naturais que, por sua
vez, possuem suas próprias tendências evolutivas. Na forma emblemática
como essa questão é posta em A ideologia alemã:

Conhecemos uma única ciência, a ciência da história. A história pode ser exami-
nada de dois lados, dividida em história da natureza e história dos homens. Os
dois lados não podem, no entanto, ser separados; enquanto existirem homens,
história da natureza e história dos homens se condicionarão reciprocamente. A
história da natureza, a assim chamada ciência natural, não nos diz respeito aqui;
mas, quanto a história dos homens, será preciso examiná-la, pois quase toda a ide-
ologia se reduz ou a uma concepção distorcida dessa história ou a uma abstração
total dela. A ideologia, ela mesma, é apenas um dos lados dessa história.281

278
Ibidem, p. 33.
279
Ibidem, p. 32.
280
Ibidem.
281
Ibidem, p. 87.
O materialismo comunista de Marx e o desenvolvimento desigual 95

Marx reafirma neste texto que o “salto” que corresponde à diferencia-


ção entre seres humanos e natureza, consumado fundamentalmente na for-
ma peculiar de reprodução da vida humana, constitui-se no intercâmbio com
a natureza: no trabalho.

Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião ou pelo
que se queira. Mas eles mesmos começam a se distinguir dos animais tão logo
começam a produzir seus meios de vida, passo que é condicionado por sua orga-
nização corporal. Ao produzir seus meios de vida, os homens produzem, indire-
tamente, sua própria vida material.282

Já apontamos, e voltaremos a discutir esse tema na seção seguinte,


que a forma da “atividade vital” humana já indica, em si mesma, um caminho
para o desenvolvimento do ser social. Isto é, um movimento progressivo que
pode ser identificado retrospectivamente. A produção social, “o desenvolvi-
mento da indústria”, fornece o meio material para todas as demais objetiva-
ções humanas, constituindo-se, portanto, como momento ontologicamente
prioritário para esta forma de ser, isto é, fundamento sem o qual não haveria
seres humanos e, tampouco, objetivações humanas, claro.
O trabalho, neste sentido, é a condição de existência da humanidade,
o fenômeno a partir do qual essa forma de ser que emergiu da natureza, dela
se diferencia,283 engendrando o aparecimento de determinações puramente
sociais da existência (por exemplo, a linguagem, o senso estético, os valores

282
Ibidem.
283
“Nisso subsiste, sem dúvida, a prioridade da natureza exterior (...)”. Ibidem, p. 31. Essa breve
passagem é extremamente importante para se compreender o sentido de “prioridade” em Marx.
Como se sabe, Marx está a anos-luz de distância das teorias que propõe analisar o ser humano e
sua história unicamente, ou mesmo preferencialmente, a partir de suas determinações naturais
(ou supostamente naturais). No entanto, o ser humano emergiu a partir da natureza, de modo
que não se pode concebê-lo sem ela (ou fora dela), embora o contrário seja possível. É nesse
sentido que: 1) a “natureza exterior” tem prioridade ontológica com relação ao ser social; 2) nas
sociedades humanas, a produção da vida é o momento ontologicamente prioritário com relação
às demais formas de objetivação social. Em suma, seguindo o último Lukács: “é preciso distinguir
claramente o princípio da prioridade ontológica dos princípios de valor gnosiológicos, morais etc.
inerentes a toda hierarquia sistemática idealista ou materialista vulgar. Quando atribuímos uma
prioridade ontológica a determinada categoria com relação a outra, entendemos simplesmente
o seguinte: a primeira pode existir sem a segunda, enquanto o inverso é ontologicamente
impossível”. G. Lukács, Para uma ontologia do ser social I, 2012a, p. 307.
96 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

morais etc.). Essa “diferenciação só tem sentido na medida em que se con-


siderem os homens como distintos da natureza. De resto, essa natureza que
precede a história humana não é a natureza na qual vive Feuerbach”,284 é uma
natureza apropriada pelos seres humanos, socializada.
O próprio trabalho é, desde sempre, uma relação social, envolven-
do, portanto, modos de interação entre os indivíduos que produzem e/ou
apropriam-se da produção. Isto é, um determinado nível de desenvolvimento
das capacidades produtivas humanas está sempre associado a “determinado
modo de cooperação ou a uma determinada fase social”.285 Essa conjunção
particular de forças produtivas e relações de produção 286 Marx chama, a par-
tir de Miséria da filosofia, de modo de produção.287 Segundo Marx, no desen-
volvimento histórico pode-se observar a sucessão de modos de produção,

(...) cujo encadeamento consiste em que no lugar da forma anterior de intercâm-


bio, que se tornou um entrave, é colocada uma nova forma, que corresponde às
forças produtivas mais desenvolvidas e, com isso, ao avançado modo de auto-a-
tividade dos indivíduos; uma forma que, à son tour, torna-se novamente um en-
trave e é, então, substituída por outra. Dado que essas condições, em cada fase,
correspondem ao desenvolvimento simultâneo das forças produtivas, sua história
é ao mesmo tempo a história das forças produtivas em desenvolvimento e que
foram recebidas por cada nova geração e, desse modo, é a história do desenvolvi-
mento das forças dos próprios indivíduos.288

Advertimos que é preciso ter cuidado ao analisar a relação entre as


forças produtivas e as relações de produção em Marx a fim de não a com-

284
K. Marx & F. Engels, A ideologia alemã, 2007, p. 32.
285
Ibidem, p. 34.
286
Categorização a que Marx chega definitivamente apenas em Miséria da filosofia. Em A
ideologia alemã a categoria é recorrentemente anotada como “formas de intercâmbio”, “modo de
cooperação”, “sociedade civil” etc.
287
Como aponta Eagleton: “(...) um modo de produção para Marx significa a combinação de
determinadas forças de produção com determinadas relações de produção. Uma força de produção
significa qualquer instrumento por meio do qual vamos trabalhar o mundo a fim de reproduzir
nossa vida material. A ideia abrange tudo o que promova o domínio humano ou o controle da
natureza com finalidade produtiva. (...) Essas forças, porém, jamais existem em forma bruta.
Sempre estão ligadas a certas relações sociais (...)”. T. Eagleton, Marx estava certo, 2012, p. 33-34.
288
K. Marx & F. Engels, A ideologia alemã, 2007, p. 68.
O materialismo comunista de Marx e o desenvolvimento desigual 97

preender de modo mecânico, à moda do vulgar determinismo tecnológico.


Também neste caso, deve-se atentar para o fato de que a proposta teórica
marxiana não defende a necessária precedência na transformação de um
dos pólos, com relação ao outro, na transição entre modos de produção.289
Não representaria avanço substantivo para a teoria da história o debate so-
bre qual dos dois pólos dessa relação, via de regra, transformar-se-ia pri-
meiro: forças produtivas ou relações sociais de produção. Na medida em
que a história é um processo inexoravelmente aberto, embora não carente
de determinações, tal questão consistiria, tão somente, na tentativa de se
postular uma fórmula a priori para seu movimento. No entanto: “A história
nunca procede tão categoricamente”.290 Ademais, os textos analisados con-
frontam-se justamente com esse tipo de leitura histórica.
Assim, o materialismo histórico não é, de maneira nenhuma, uma
filosofia da história de tipo peculiar. Pelo contrário, para Marx “não é pos-
sível fazer a história com fórmulas”.291 O que se pode fazer é a reconstituição
(post festum) das condições para um determinado resultado histórico, de
modo a revelar seu processo necessário de gênese e as legalidades gerais
que concorreram nesse devir. Estas tendências gerais descobertas podem
ser úteis na análise de desenvolvimentos análogos e, até mesmo, indicar
possíveis desenvolvimentos futuros. “Essa necessidade ontológica, porém,
traduz-se em algo falso tão logo se queira transformá-la numa ‘filosofia da
história’ logicamente fundada”.292
Não obstante, diz muito sobre esta forma de ser o fato ontológi-
co de que o modo como são satisfeitas as necessidades humanas engen-
dra possibilidades sociais inteiramente novas, ou seja, a possibilidade da
transformação na própria forma da reprodução humana. Isso significa, por
outro lado, que as transformações nas relações de produção possuem pres-
supostos concretos. Por exemplo:

289
Sem qualquer pista de “determinismo tecnológico” Marx analisa, por exemplo, a emergência
da produção manufatureira. K. Marx, Miséria da filosofia: Resposta à “Filosofia da miséria”, do Sr.
Proudhon, 2009, p. 153.
290
Ibidem, p. 144.
291
Ibidem, p. 152.
292
G. Lukács, Para uma ontologia do ser social I, 2012a, p. 375.
98 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

(...) a escravidão não pode ser superada sem a máquina a vapor e a Mule-Jenny,
nem a servidão sem a melhora da agricultura (...) em geral, não é possível libertar
os homens enquanto estes forem incapazes de obter alimentação e bebida, habita-
ção e vestimenta, em qualidade e quantidade adequadas.293

Pode-se perceber que para Marx o desenvolvimento das forças pro-


dutivas guarda com as relações de produção um papel condicionante em sen-
tido estrito: impondo limites às “formas de intercâmbio”; e, em certas condi-
ções, habilitando sua transformação. Um determinado modo de produção,
isto é, uma conjunção particular de forças produtivas e relações sociais de
produção, fica, portanto, mais bem caracterizado tendo-se em vista que os
dois pólos, que existem necessariamente em conjunto, determinam-se mu-
tuamente, o que não contraria a identificação de um momento ontologica-
mente predominante. Como nosso autor fez questão de frisar: “A indústria e
o comércio, a produção e o intercâmbio das necessidades vitais condicionam,
por seu lado, a distribuição, a estrutura das diferentes classes sociais e são, por
sua vez, condicionadas por elas no modo de seu funcionamento”.294
A interação contraditória entre forças e relações de produção, a que
Marx concede tanta importância no tocante à passagem de um modo de pro-
dução a outro, apresenta-se na lacuna entre o que a vida é e o que ela poderia
ser com determinado nível de desenvolvimento social. Assim, observando-se
o modo de produção capitalista, o caráter inextricavelmente contraditório do
desenvolvimento histórico que tem por condição o avanço das forças produ-
tivas fica evidente, na medida em que esta forma de sociabilidade produziu:

(...) uma massa de forças produtivas para a qual a propriedade privada tornou-se
um empecilho, tanto quanto o fora a corporação para a manufatura e o pequeno
empreendimento rural para o artesanato que progredia. Essas forças produtivas, sob
o regime da propriedade privada, obtêm apenas um desenvolvimento unilateral,
convertem-se para a maioria em forças destrutivas e uma grande quantidade dessas
forças não consegue sequer alcançar a menor utilização na propriedade privada.295

293
K. Marx & F. Engels, A ideologia alemã, 2007, p. 29.
294
Ibidem, p. 31.
295
Ibidem, p. 60.
O materialismo comunista de Marx e o desenvolvimento desigual 99

A contradição entre forças produtivas e relações de produção, em so-


ciedades nas quais as relações de produção edificam-se em uma determinada
fratura de classes, tem de transparecer nas disputas entre os grupos que se in-
serem de modo diverso na produção social, isto é, entre as classes sociais. No
modo especificamente burguês de intercâmbio social está dado o fato “de que
as atividades espiritual e material - de que a fruição e o trabalho, a produção
e o consumo - caibam a indivíduos diferentes (...)”. Portanto, na divisão social
do trabalho está posta a “distribuição desigual, tanto quantitativa quanto qua-
litativamente, do trabalho e de seus produtos; portanto, está dada a proprie-
dade”.296 Falando especificamente da sociedade burguesa, diz Marx:

No desenvolvimento das forças produtivas advém uma fase em que surgem forças
produtivas e meios de intercâmbio que, no marco das relações existentes, causam
somente malefícios e não são mais forças de produção, mas forças de destruição
(maquinaria e dinheiro) - e, ligada a isso, surge uma classe que tem de suportar
todos os fardos da sociedade sem desfrutar de suas vantagens e que, expulsa da
sociedade, é forçada à mais decidida oposição a todas as outras classes; uma classe
que configura a maioria dos membros da sociedade e da qual emana a consciência
comunista, que também pode se formar, naturalmente, entre outras classes, graças
à percepção da situação dessa classe; (...).297

Nesta passagem, Marx parece derivar mecânica e diretamente o sur-


gimento de uma consciência revolucionária a partir da contradição entre for-
ças produtivas e formas de intercâmbio. No entanto, não se pode esquecer
que o autor trata a questão em termos muito gerais e que múltiplas contingên-
cias, como se sabe, interferem no caminho que separa uma possibilidade de
sua efetiva realização. Arguto estudioso dos processos históricos, Marx estava
plenamente consciente de que essa “contradição entre as forças produtivas e
a forma de intercâmbio (...) ocorreu várias vezes na história anterior sem, no
entanto, ameaçar o seu fundamento (...)”.298

296
Ibidem, p. 36.
297
Ibidem, p. 41-42.
298
Ibidem, p. 61.
100 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

Como qualquer sociedade de classes, a sociedade burguesa resolve-


se na existência de uma classe dominada. A possibilidade de uma nova so-
ciedade surge da tomada de consciência pela classe dominada de tal fratura
entre possibilidades e realidades, isto é, a partir da contradição entre forças
produtivas e relações de produção.299 Como diz Marx em Miséria da filosofia:

(...) é preciso que os poderes produtivos já adquiridos e as relações sociais existen-


tes não possam mais existir uns ao lado de outras. (...) A organização dos elemen-
tos revolucionários como classe supõe a existência de todas as forças produtivas
que poderiam se engendrar no seio da sociedade antiga.300

O peculiar nessa revolução possível é que a partir do modo de pro-


dução burguês abre-se a possibilidade da superação de todas as formas de
dominação social, isto é, da organização da sociedade em classes sociais.
Ademais, discutimos no capítulo anterior que para Marx tal transformação
radical da sociedade corresponderia à única forma realmente progressiva de
desenvolvimento social no que diz respeito, por exemplo, ao aprofundamen-
to da integração entre os seres humanos. Ou seja, a superação dessa forma
estranhada de sociabilidade que produziu, por um lado, a história mundial,
mas, por outro, pôs a consciência do caráter genérico da humanidade pela
mediação das relações mercantis, representa a possibilidade da superação da
própria organização social em classes antagônicas entre si.

Isso significa que, após a ruína da velha sociedade, haverá uma nova dominação
de classe, resumindo-se em um novo poder político? Não.
A condição da libertação da classe laboriosa é a abolição de toda classe, assim

299
Para Marx a tomada de consciência da classe revolucionária não corresponde a mera epifania
decorrente do movimento abstrato das categorias, o que se evidencia na medida em que, para
o autor, “tanto para a criação em massa dessa consciência comunista quanto para o êxito da
própria causa faz-se necessária uma transformação massiva dos homens, o que só se pode
realizar por um movimento prático, por uma revolução”. Ibidem, p. 42. O movimento prático
para a superação das condições concretas de dominação social postas pela sociedade burguesa
depende fundamentalmente, portanto, da organização prática dos próprios indivíduos dispostos
a isso. É neste mesmo processo de construção de um movimento revolucionário que se constrói
a consciência revolucionária da classe.
300
K. Marx, Miséria da filosofia: Resposta à “Filosofia da miséria”, do Sr. Proudhon, 2009, p. 191.
O materialismo comunista de Marx e o desenvolvimento desigual 101

como a condição da libertação do terceiro estado, da ordem burguesa, foi a aboli-


ção de todos os estados e de todas as ordens.
A classe laboriosa substituirá, no curso do seu desenvolvimento, a antiga socie-
dade civil por uma associação que excluirá as classes e seu antagonismo, e não
haverá mais poder político propriamente dito, já que o poder político é o resumo
oficial do antagonismo da sociedade civil.301

O pressuposto material da revolução comunista é posto pelo próprio


modo de produção capitalista, pelo desenvolvimento das forças produtivas
que se fez possível a partir do impulso dado pelos imperativos alienados da
acumulação de capital. Como recorda Eagleton: “Apenas com o capitalismo
é possível gerar saldo suficiente para abolir a escassez e, consequentemen-
te, as classes sociais”.302 A produção capitalista cria as condições necessárias
para uma redução ao mínimo possível da submissão da humanidade às suas
próprias necessidades imediatas (o que, novamente, depende do nível de de-
senvolvimento das forças produtivas), criando as condições para o livre de-
senvolvimento das capacidades humanas, ou seja, para o desenvolvimento de
atividades que encontram em si mesmas o seu fim.
Retomaremos esse assunto na seção seguinte. Não obstante, pode-
mos adiantar que tal condição constitui um momento do progresso em sen-
tido ontológico, identificado como tendência ao afastamento das barreiras
naturais e, consequentemente, crescente socialização. Precisamente por essa
condição posta pelo desenvolvimento das forças produtivas sob o acicate das
relações burguesas de produção, Marx pôde afirmar que enquanto nas revo-
luções anteriores tratava-se “apenas de instaurar uma outra forma de distri-
buição” do trabalho, “a revolução comunista volta-se contra a forma da ativi-
dade existente até então, suprime o trabalho e supera [aufhebt] a dominação
de todas as classes ao superar as próprias classes”.303
Portanto, Marx tece considerações gerais sobre a historicidade no
âmbito do ser social, na medida em que busca compreender a dinâmica da
sociedade burguesa como forma de vida historicamente específica e, portan-
to, potencialmente transitória. Tomando-se rigorosamente o método post

301
Ibidem.
302
T. Eagleton, Marx estava certo, 2012, p. 39.
303
K. Marx & F. Engels, A ideologia alemã, 2007, p. 42.
102 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

festum de inferência sobre o desenvolvimento social, compreende-se que a


sociedade capitalista tem de corresponder ao objeto principal de estudo, mes-
mo quando se tem a intenção de descobrir propriedades gerais da existência
social. Como dito por Marx na Introdução de 1857:

A sociedade burguesa é a mais desenvolvida e diversificada organização histórica


da produção. Por essa razão, as categorias que expressam suas relações e a compre-
ensão de sua estrutura permitem simultaneamente compreender a organização e
as relações de produção de todas as formas de sociedade desaparecidas, com cujos
escombros e elementos edificou-se, parte dos quais ainda carrega consigo como
resíduos não superados, parte [que] nela se desenvolvem de meros indícios em
significações plenas etc.304

Tentaremos sintetizar na seção seguinte a argumentação de Marx no


que diz respeito à forma como a dinâmica da luta de classes confere ao desen-
volvimento histórico um caráter necessariamente desigual. Para tanto, será
necessário retomar nossas discussões sobre a noção de progresso no sentido
ontológico que está contida na obra de Marx. Ademais, a partir daí discuti-
remos a interação entre os diversos complexos heterogêneos que compõem
a totalidade social, tema especialmente controverso no âmbito do marxismo;
assim como adiantaremos considerações sobre o modo necessariamente de-
sigual de concretização do desenvolvimento econômico geral, um dos mo-
mentos do desenvolvimento desigual em Marx.

3.2. “O morto se apodera do vivo”:


desenvolvimento desigual em Marx

Apontamos desde o primeiro capítulo deste texto que Marx não pôde dei-
xar de aproximar-se do problema do desenvolvimento desigual, mesmo em
trabalhos anteriores à formação de sua concepção materialista para história.
Apesar disso, o autor não oferece qualquer texto que possa ser classificado
como um tratamento sistemático desta questão. Acreditamos, contudo, que o

304
K. Marx, Grundrisse, 2011a, p. 58.
O materialismo comunista de Marx e o desenvolvimento desigual 103

que se apresentou até aqui, isto é, a teoria da história presente em A ideologia


alemã e Miséria da filosofia (que desenvolvem aspectos fundamentais conti-
dos nos Manuscritos econômico-filosóficos), forneça os elementos necessários
para trabalhar o tema em termos gerais. Acreditamos ainda que o que se pode
apreender do estudo destes textos é de grande valia para a compreensão da
forma como o desenvolvimento econômico geral no modo de produção capi-
talista, tal qual analisado em O capital, se apresenta de modo necessariamente
desigual no mercado mundial (como discutiremos no capítulo 5).
É bem verdade que Marx, na famosa Introdução de 1857, ao listar al-
guns “pontos a mencionar aqui e que não podem ser esquecidos”, anota no de
número seis a “relação desigual do desenvolvimento da produção material com,
por exemplo, o desenvolvimento artístico” e a discussão sobre “como as rela-
ções de produção, como relações jurídicas, têm um desenvolvimento desi-
gual”.305 De saída, se pretendemos atacar essa questão de maneira tão rigorosa
quanto podemos, parece-nos imprescindível fazer eco à seguinte ressalva do
autor na mesma sexta nota bene: “Não conceber de modo algum o conceito
de progresso na abstração habitual”.306
Apontamos algumas vezes que é fundamental para a ontologia mar-
xiana compreender o ser social em sua historicidade, de onde se deriva uma
noção objetiva de progresso. Tomemos aqui a síntese que Medeiros oferece a
esse respeito:

Os conceitos de desenvolvimento e progresso são empregados para descrever em si


mesma a direção do movimento de objetos estruturados, ou seja, para descrever ob-
jetivamente a direção do movimento. A idéia-chave envolvida neste procedimento é
a complexidade. Uma dada estrutura (totalidade) é objetivamente superior, ou mais
desenvolvida, do que outra estrutura da mesma espécie caso seja constituída por um
maior número de componentes específicos, ou pelo mesmo número de componen-
tes mais complexos. Dada esta concepção de desenvolvimento, a noção de progresso
serve para descrever a passagem de um nível mais baixo de desenvolvimento para
um nível mais alto - o aumento da complexidade de objetos estruturados.307

305
Ibidem, p. 61-62.
306
Ibidem, p. 62.
307
J. L. Medeiros, A Economia diante do horror econômico: Uma crítica ontológica dos surtos de
altruísmo da ciência econômica, 2013, p. 95.
104 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

Foi visto que a própria forma da “atividade vital” humana engendra


um movimento cuja “tendência principal (...) é o constante crescimento,
quantitativo e qualitativo, dos componentes pura ou predominantemen-
te sociais, aquilo que Marx costumava chamar de ‘recuo da barreira natu-
ral’”.308 Como afirma o autor em Miséria da filosofia: “Há um movimento
contínuo de crescimento nas forças produtivas, de destruição nas relações
sociais, de formação nas ideias; de imutável, só existe a abstração do movi-
mento - mors immortalis”.309
Deve-se atentar para o sentido de “continuidade” na proposição aci-
ma, como bem advertido por Medeiros, uma vez que “a primeira condição
para estabelecer que um objeto se modificou é sua permanência como mes-
mo objeto, ainda que sua constituição interna tenha se alterado substantiva-
mente”.310 Assim, segundo Lukács, o conceito marxiano de substância não se
encontra em contraposição à historicidade, recebendo

(...) uma validade nova e mais profunda, já que o persistente é entendido como
aquilo que continua a se manter, a se explicitar, a se renovar nos complexos reais
da realidade, na medida em que a continuidade como forma interna do movi-
mento do complexo transforma a persistência abstrato-estática numa persistência
concreta no interior do devir. (...) a continuidade na persistência é, enquanto prin-
cípio de ser dos complexos em movimento, indício de tendências ontológicas para
a historicidade como princípio do próprio ser.311

A “tendência principal” da historicidade no âmbito do ser social, o


processo de socialização ou recuo das barreiras naturais, tem por condição,
como já notamos, o desenvolvimento das forças produtivas. O aprofunda-
mento dos estudos econômicos de Marx no período que estamos conside-
rando, permite-o, em Miséria da filosofia, identificar nesse progresso outro de
seus momentos fundamentais: a redução do tempo de trabalho socialmente
necessário para a satisfação das necessidades humanas.312 Comentando espe-
cificamente o desenvolvimento das forças produtivas no modo de produção
308
G. Lukács, Para uma ontologia do ser social I, 2012a, p. 289.
309
K. Marx, Miséria da filosofia: Resposta à “Filosofia da miséria”, do Sr. Proudhon, 2009, p. 126.
310
J. L. Medeiros, A Economia diante do horror econômico: Uma crítica ontológica dos surtos de
altruísmo da ciência econômica, 2013, p. 94.
311
G. Lukács, Para uma ontologia do ser social I, 2012a, p. 340-341.
312
Como o autor nota posteriormente: “Sob quaisquer condições sociais, o tempo de trabalho
O materialismo comunista de Marx e o desenvolvimento desigual 105

capitalista, diz o autor: “Em geral, em que consiste toda melhoria, quer na
agricultura, quer na manufatura? Consiste em produzir mais com o mesmo
trabalho, em produzir tanto ou mesmo mais com menos trabalho”.313
Recordemo-nos que a análise profundamente objetiva da realidade
social em Marx aponta para o futuro, em aberto confronto com o moralismo
pequeno burguês que frequentemente assume formas utópico-românticas.
Assim, a partir da redução do tempo de trabalho socialmente necessário o
autor reconhece possibilidades societárias inteiramente novas, postas apenas
pelo modo de produção capitalista. Também por isso, Marx pôde dizer que
“somente com a grande indústria (...) se torna possível a superação da pro-
priedade privada”,314 assim como a superação da forma alienada do trabalho.
Contudo, a possibilidade da emergência de uma forma de atividade
vital que corresponda ao livre desenvolvimento das capacidades humanas,
o que depende da maior liberdade dos seres humanos com relação às suas
necessidades, só poderá ser rigorosamente considerada por Marx quando o
autor tiver clareza sobre o modo como a produção capitalista engendra, a
partir de suas tendências imanentes, essas condições. Ou seja, apenas do alto
de sua pesquisa mais madura sobre as leis de movimento do processo de acu-
mulação de capital, que desemboca em O capital.
Também já foi dito que o trabalho enquanto atividade vital humana
é, desde o princípio, uma atividade social, isto é, envolve necessariamente a
integração entre seres humanos. Segundo A ideologia alemã, “desde sempre
os homens, na medida em que existem, têm necessidade uns dos outros e só
puderam desenvolver suas necessidades e capacidades estabelecendo relações
entre si (...)”.315 Aos dois sentidos de progresso que acabamos de ver (recuo das
barreiras naturais ou crescente socialização; redução no tempo de trabalho
socialmente necessário) soma-se, portanto, um terceiro,316 ao qual já dispen-
samos algumas linhas: o processo de explicitação (ou, como prefere Lukács,
“perda da mudez”) do gênero humano. Para o materialismo comunista:

requerido para a produção dos meios de subsistência havia de interessar aos homens, embora
não na mesma medida em diferentes estágios de desenvolvimento”. K. Marx, O capital: Crítica da
economia política, livro I, 2013b, p. 147.
313
K. Marx, Miséria da filosofia: Resposta à “Filosofia da miséria”, do Sr. Proudhon, 2009, p. 182.
314
K. Marx & F. Engels, A ideologia alemã, 2007, p. 52.
315
Ibidem, p. 79.
316
Seguimos aqui, fundamentalmente, as indicações de Lukács. Para o autor: “Na evolução
106 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

Mostra-se, portanto, desde o princípio, uma conexão materialista dos homens


entre si, conexão que depende das necessidades e do modo de produção e que é
tão antiga quanto os próprios homens - uma conexão que assume sempre novas
formas e que apresenta, assim, uma “história”, sem que precise existir qualquer
absurdo político ou religioso que também mantenha os homens.317

A atividade vital humana, para Marx, diferencia-se da natureza inor-


gânica pelo papel ativo da consciência, como já anotara o autor nos Manuscri-
tos econômico-filosóficos. Essa consciência que tem gênese ontológica no in-
tercâmbio com a natureza “é, naturalmente, antes de tudo a mera consciência
do meio sensível mais imediato”.318 Se, como dissemos há pouco, para Marx
a atividade produtiva está sempre ligada a um determinado modo de coope-
ração, essa consciência embrionária é, imediatamente, o reconhecimento do
círculo inicialmente restrito de indivíduos com os quais se coopera, “consci-
ência do vínculo limitado com outras pessoas e coisas exteriores ao indivíduo
que se torna consciente”.319
Assim, à crescente dominação de uma natureza “que, inicialmente, se
apresenta aos homens como um poder totalmente estranho, onipotente e ina-
balável”,320 corresponde, como momento objetivamente progressivo, o cres-
cente reconhecimento do caráter genérico humano. Em outras palavras, no
desenvolvimento histórico à crescente socialização coaduna-se a progressiva
integração entre os seres humanos (seu mútuo reconhecimento enquanto hu-
manos e, portanto, iguais, neste sentido). Esse progresso objetivo da huma-

econômica precedente podemos perceber três linhas evolutivas que certamente desenvolveram-
se, explicitamente, de modo frequentemente bastante assimétrico, mas independentemente
da vontade e do saber subjacentes às posiciones teleológicas”. G. Lukács, “Los fundamentos
ontológicos del pensamiento y de la acción humanos”, In: G. Lukács, Ontologia del ser social:
Trabajo, 2004, p. 47.
317
K. Marx & F. Engels, A ideologia alemã, 2007, p. 34.
318
Ibidem, p. 35.
319
Ibidem. Não precisamos nos estender muito sobre essa questão, na medida em que estas já
foram abordadas em outros contextos. Notemos apenas, de passagem, que essa concepção
mantém-se em momentos posteriores da obra de Marx, inclusive em seus trabalho mais maduros.
Por exemplo, no livro I de O capital, considerando a forma capitalista da cooperação no processo
de trabalho, diz o autor: “Ao cooperar com outros de modo planejado, o trabalhador supera suas
limitações individuais e desenvolve sua capacidade genérica [Gattungsvermögen]”. K. Marx, O
capital: Crítica da economia política, livro I, 2013b, p. 405.
320
K. Marx & F. Engels, A ideologia alemã, 2007, p. 35.
O materialismo comunista de Marx e o desenvolvimento desigual 107

nidade, que inicialmente substantiva-se em âmbitos extremamente restritos e


atinge seu ápice no mercado mundial, tem por condição, repetimos, o desen-
volvimento das forças produtivas. Diz Marx: a “consciência tribal obtém seu
desenvolvimento e seu aperfeiçoamento ulteriores por meio da produtivida-
de aumentada, do incremento das necessidades e do aumento da população,
que é a base dos dois primeiros”.321
O autor reconhece ainda no desenvolvimento da capacidade produ-
tiva, que possibilita “uma divisão entre trabalho material e espiritual”, um cor-
respondente desenvolvimento da consciência que não mais precisa limitar-se
à práxis imediata. A partir daí a consciência humana “está em condições de
emancipar-se do mundo e lançar-se à construção da teoria, da teologia, da
filosofia, da moral etc. ‘puras’”.322 Esse desenvolvimento indica que a relação
entre fins e meios (posta já na constituição do trabalho em termos ontológi-
cos) inverte-se, de modo que a investigação dos meios adquire autonomia, o
que tem papel fundamental para os progressos subsequentes.323
Notemos que o progresso, no sentido em que estamos tratando,
tem como pré-condição que os resultados da atividade humana sejam rela-
tivamente duradouros, o que só pode ser garantido na medida em que um
determinado “saber fazer” (os conhecimentos necessários à reprodução do
nível do desenvolvimento das forças produtivas alcançado,324 assim como das

321
Ibidem. Sobre isso, comenta Lukács: “(...) como a consciência específica humana só pode nascer
em ligação com a atividade social dos homens (trabalho e linguagem) e como consequência
dela, também o pertencimento consciente ao gênero se desenvolve a partir da convivência e da
cooperação concreta entre eles. Disso resulta, porém, que a princípio não se manifesta como gênero
a própria humanidade, mas apenas a comunidade humana concreta na qual vivem, trabalham e
entram em contato os homens em questão. Por esses motivos, o surgimento da consciência genérica
humana apresenta ordens de grandeza e graus muito variados: desde as tribos, com vínculos ainda
quase naturais, até as grandes nações”. G. Lukács, Para uma ontologia do ser social I, 2012a, p. 400.
322
K. Marx & F. Engels, A ideologia alemã, 2007, p. 35-36.
323
No entanto, conforme advertência de Duayer e Medeiros, deve-se atentar para o fato de que “(...)
a autonomização da investigação dos meios não pode ser absoluta. As práticas sociais e formas de
consciência correspondentes que possibilita, cujas conexões com o trabalho são complexamente
mediadas, não podem ser separadas por inteiro da produção e reprodução material da vida”. M.
Duayer & J. L. Medeiros, “A ontologia crítica de Lukács: Para uma ética objetivamente fundada”, In:
F. Miranda & R. Monfardini (Orgs.), Ontologia e estética (Coleção NIEP-Marx, v. 2), 2015a, p. 28.
324
Como registrado em O capital: “O que diferencia as épocas econômicas não é ‘o que’ é produzido,
mas ‘como’, ‘com que meios de trabalho’. Estes não apenas fornecem uma medida do grau de
desenvolvimento da força de trabalho, mas também indicam as condições sociais nas quais se
trabalha”. K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro I, 2013b, p. 257.
108 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

demais formas de objetivação social desenvolvidas) seja transmitido geração


após geração. Nesse aspecto do desenvolvimento social, a explicitação da ge-
neridade humana tem um papel fundamental.
A título de ilustração, imaginemos que determinado avanço nas for-
ças produtivas seja alcançado por uma comunidade que, no entanto, perece
sem contato com outras em condições de apropriarem-se dele. Tal desenvol-
vimento perde-se, tendo de ser inteiramente “inventado” em outras condi-
ções, por outros indivíduos. No entanto, à medida que se intensificam os con-
tatos entre diferentes comunidades (o que só ganha caráter verdadeiramente
mundial, já sabemos, na sociedade capitalista), uma invenção não apenas
muito dificilmente pode se perder em definitivo, como pode influenciar o
desenvolvimento ulterior em um círculo mais amplo de indivíduos.
A superação das barreiras locais é marca de um período de intenso
progresso no que diz respeito à integração dos seres humanos, isto é, da so-
ciedade em que vigora a produção capitalista. Esse gradual desaparecimento
das limitações estritamente locais determina, por sua vez, um novo impulso
ao desenvolvimento das forças produtivas, na medida em que o avanço que se
obtém em qualquer parte é avanço mundial.

No começo da história, toda invenção tinha de diariamente ser realizada de novo


e em cada localidade, de forma independente. (...) Somente quando o intercâmbio
torna-se intercâmbio mundial e tem por base a grande indústria, quando todas as
nações são levadas à luta da concorrência, é que está assegurada a permanência
das forças produtivas já alcançadas.325

O mercado mundial, portanto, constitui a base para “uma nova fase


do desenvolvimento histórico”.326 Assim, a humanidade enquanto realidade
não mais muda apenas emerge, de fato, através das relações mercantis.327 Isto

325
K. Marx & F. Engels, A ideologia alemã, 2007, p. 55.
326
Ibidem, p. 57. Ou, como reafirma vinte anos depois: “A circulação de mercadorias é o ponto
de partida do capital. Produção de mercadorias e circulação desenvolvida de mercadorias - o
comércio - formam os pressupostos históricos a partir dos quais o capital emerge. O comércio e o
mercado mundiais inauguram, no século XVI, a história moderna do capital”. K. Marx, O capital:
Crítica da economia política, livro I, 2013b, p. 223.
327
Em termos sintéticos: “A história universal não existiu sempre; a história como história
universal é um resultado”. K. Marx, Grundrisse, 2011a, p. 62.
O materialismo comunista de Marx e o desenvolvimento desigual 109

é, sob a forma de relações sociais alienadas, na medida em que esse relacio-


namento se estabelece em determinações incontroláveis para os indivíduos, o
que se revela de imediato na generalização da concorrência:

A concorrência isola os indivíduos uns dos outros, não apenas os burgueses, mas
ainda mais os proletários, apesar de agregá-los. Por isso, transcorre sempre um
longo período antes que os indivíduos possam se unir, sem contar que, para essa
união - quando não for meramente local -, os meios necessários, as grandes cida-
des industriais e as comunicações acessíveis e rápidas, têm de primeiro ser pro-
duzidos pela grande indústria; e, por isso, todo poder organizado em face desses
indivíduos que vivem isolados só pode ser vencido após longas lutas.328

Portanto, de modo aparentemente paradoxal, este estado de coisas


engendra a possibilidade de uma integração humana não mais posta sob im-
perativos alheios. A existência de “meios necessários” à união para além das
limitações locais, que tem de ser “produzidos pela grande indústria”, depende
do avanço na produção material. Sem o desenvolvimento das forças produ-
tivas observado sob o impulso da acumulação de capital “(no qual já está
contida, ao mesmo tempo, a existência empírica humana, dada não no pla-
no local, mas no plano histórico-mundial)”, uma sociabilidade superior não
poderia emergir na medida em que a falta de meios de vida faria com que
“as lutas pelos gêneros necessários” recomeçassem, restabelecendo-se “toda a
velha imundice”; não se consumaria “um intercâmbio universal dos homens”,
pondo “indivíduos empiricamente universais, histórico-mundiais, (...) no lu-
gar dos indivíduos locais”.329 Em síntese:

Sem isso, 1) o comunismo poderia existir apenas como um fenômeno local; 2)


as próprias forças do intercâmbio não teriam podido se desenvolver como forças
universais e, portanto, como forças insuportáveis; elas teriam permanecido como
“circunstâncias” doméstico-superticiosas; e 3) toda a ampliação do intercâmbio
superaria o comunismo local.330

328
K. Marx & F. Engels, A ideologia alemã, 2007, p. 62.
329
Ibidem, p. 38-39.
330
Ibidem, p. 39.
110 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

O comunismo pressupõe o reconhecimento, ainda que estranhado,


da generidade humana posta pelo mercado mundial, só podendo emergir,
portanto, como movimento emancipatório que pretende a superação das li-
mitações locais/nacionais. Em outras palavras, a partir do internacionalismo.

O proletariado só pode, portanto, existir histórico-mundialmente, assim como o


comunismo; sua ação só pode se dar como existência “histórico-mundial”; exis-
tência histórico-mundial dos indivíduos, ou seja, existência dos indivíduos dire-
tamente vinculada à história mundial.331

A tarefa revolucionária, portanto, parte dessa totalidade global e a


tem como objetivo. Seu fundamento reside na superação da forma de socia-
bilidade que se afirma através da troca de mercadorias. Ou seja, na destruição
de “um poder que lhes é estranho (...), um poder que se torna cada vez maior
e que se revela, em última instância, como um mercado mundial”.332 É a “re-
volução comunista”, portanto, que pode transformar a história “plenamente
em história mundial”, na medida em que dissolve a forma necessariamente
antagônica através da qual os indivíduos põem-se em relação.

A dependência multifacetada, essa forma natural da cooperação histórico-mundial


dos indivíduos, é transformada, por obra dessa revolução comunista, no controle e
domínio consciente desses poderes, que, criados pela atuação recíproca dos homens,
a eles se impuseram como poderes completamente estranhos e os dominaram.333

Enfim, voltemos à questão com a qual iniciamos o argumento desta


seção: “Não conceber de modo algum o conceito de progresso na abstração
habitual”.334 Segundo Lukács, na referência crítica de Marx “(...) esse conceito
seria a aplicação ao curso histórico da extrapolação lógico-gnosiológica de
uma ratio generalizada de modo absoluto”.335 Esse é o caso, por exemplo, da
filosofia da história de cunho hegeliano, justamente o alvo dos textos que nor-
teiam este capítulo.

331
Ibidem.
332
Ibidem, p. 40.
333
Ibidem, p. 41.
334
K. Marx, Grundrisse, 2011a, p. 62
335
G. Lukács, Para uma ontologia do ser social I, 2012a, p. 380.
O materialismo comunista de Marx e o desenvolvimento desigual 111

Trata-se, portanto, de superar a falsa dicotomia entre história e leis.336


Ou seja, de compreender como o desenvolvimento histórico é um processo
que se afirma sob algumas tendências gerais, que podem ser compreendidas
como legalidades; e que, no entanto, se concretiza na síntese de atos humanos
singulares. Ainda de acordo com Lukács:

Desigualdade do desenvolvimento significa, “simplesmente”, que a grande linha do


movimento do ser social, a crescente socialidade de todas as categorias, vínculos
e relações, não pode se explicitar em linha reta, segundo uma “lógica” racional
qualquer, mas se move em parte por desvios (e até deixando para atrás alguns becos
sem saída) e, em parte, fazendo com que os complexos singulares, cujos movimen-
tos reunidos formam o desenvolvimento global, encontrem-se individualmente
numa relação de não correspondência. Mas tais desvios da grande linha do desen-
volvimento global conforme a leis dependem todos, sem exceção, de circunstâncias
ontologicamente necessárias. Por isso, quando são estudados e revelados adequa-
damente, vem à tona a legalidade, a necessidade de cada um desses desvios.337

Acreditamos que o ponto chave nesta questão seja a noção de tota-


lidade. Em Miséria da filosofia, diz Marx, as relações de produção em uma
determinada sociedade formam um todo,338 isto é, um complexo. A totalida-
de do “corpo social” corresponde à interação simultânea de todas as relações
sociais, cada uma, em si mesma, uma totalidade relativa. A sociedade pode
ser representada, portanto, como um complexo formado por complexos par-
ciais, relações sociais que coexistem “sustentando-se umas às outras”, cada
qual, porém, com relativa autonomia.339
É precisamente através da interação entre os complexos entre si he-
terogêneos, mas indissoluvelmente conectados como partes de uma totali-
dade, que Marx aborda o problema do desenvolvimento desigual em termos
gerais. Trata-se, “de um ponto de vista metodológico geral”, de se observar a

336
A ciência burguesa, em particular a alemã depois de Ranke, construiu uma oposição entre lei e
história. A história é vista como um processo cuja unicidade, incomparabilidade, irrepetibilidade
etc., manifestas seriam antinômicas em relação à ‘validade perene’ das leis”. Ibidem, p. 358.
337
Ibidem, p. 389-390.
338
K. Marx, Miséria da filosofia: Resposta à “Filosofia da miséria”, do Sr. Proudhon, 2009, p. 126.
339
G. Lukács, Para uma ontologia do ser social I, 2012a, p. 127.
112 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

constituição particular de um complexo como momento determinado da


totalidade social.340 Marx é absolutamente preciso, portanto, quando, ao
discutir a desigualdade entre o desenvolvimento artístico e o desenvolvi-
mento geral da sociedade, assevera: “A dificuldade consiste simplesmente
na compreensão geral dessas contradições. Tão logo são especificadas, são
explicadas”.341 Assim, trata-se da explicitação das condições concretas que
põe os complexos em uma relação de anacronismo, isto é, em diferentes
estágios de desenvolvimento.342
Isso tem de acontecer, a rigor, porque as tendências particulares, re-
lativas a cada complexo, assim como as tendências universais dominantes de
desenvolvimento, “se constituem a partir de atos individuais, fundados em
alternativas”.343 Sobre esta questão, devemos recordar, de antemão, duas ob-
servações de extrema importância, adiantadas em outros contextos.
Em primeiro lugar, dentre as práxis humanas já observamos que o
trabalho, enquanto momento de produção das condições de vida, tem posto
prioritário, isto é, corresponde à condição concreta para todas as outras for-
mas sociais de objetivação.344 Assim, a relação de reflexão entre o chamado
complexo econômico e os demais complexos (a política, a ciência, as artes
etc.) é tal que o primeiro aparece como momento ontologicamente predo-
minante, nos termos previamente discutidos. Em segundo lugar, devemos
repetir que a teleologia aqui restringe-se ao âmbito da práxis. Apesar dos atos
singulares responderem a escolhas em cada caso, sua síntese realizada pelo
próprio movimento social dá origem a conexões legais que fogem à intenção
dos indivíduos (por exemplo, a busca pela maior taxa de lucro possível por
parte de cada capitalista cria, paradoxalmente, uma tendência à redução na
taxa geral de lucro) e ultrapassam a possibilidade de sua antecipação teórica.

340
Ibidem, p. 392.
341
K. Marx, Grundrisse, 2011a, p. 63.
342
Segundo Bensaid: “Ao articular temporalidades heterogêneas entre si, Marx inaugura uma
representação não linear do desenvolvimento histórico e abre o caminho para as investigações
comparativas”. D. Bensaid, Marx intempestivo: Grandezas y miserias de una aventura crítica,
2003, p. 50.
343
G. Lukács, Para uma ontologia do ser social I, 2012a, p. 393.
344
Como dito em A ideologia alemã: “Tal como os indivíduos exteriorizam sua vida, assim são eles.
O que eles são coincide pois, com sua produção, tanto com o que produzem como também com o
modo como produzem. O que os indivíduos são, portanto, depende das condições materiais de sua
produção”. K. Marx & F. Engels, A ideologia alemã, 2007, p. 87.
O materialismo comunista de Marx e o desenvolvimento desigual 113

Uma vez que as escolhas entre as alternativas postas pelas condições


concretas de existência podem retroagir sobre o sujeito, transformando-o,
elas influenciam o processo histórico. Atentemos para o fato de que os seres
humanos não devem ser vistos como os únicos “elementos” da sociedade.
Esta compõe-se, segundo Lukács, “também de complexos parciais que se
cruzam, se articulam, se combatem etc. reciprocamente, como é o caso das
instituições, das uniões de homens socialmente determinadas (classes)”.345 As
complexas inter-relações entre classes e as instituições que a correspondem
influenciam o processo histórico como um todo, apresentando-se sempre a
partir das respostas desses grupos às situações concretas.
A forma mais simples de compreender a desigualdade no desenvol-
vimento social a partir de Marx é tomando seu objeto principal: a sociedade
burguesa. Nas palavras de Lukács:

A grande e multiforme margem de intervenção da casualidade não apenas influi


sobre o modo pelo qual são resolvidos alternativas e conflitos, mas penetra bem
mais profundamente no decurso global, na medida em que as leis econômicas po-
dem se afirmar – sem alterar o seu caráter fundamental – por caminhos bastante
diferenciados, até mesmo opostos, cuja natureza retroage depois sobre a luta de
classes, o que por sua vez não deixa de influir no modo pelo qual se realizam as
leis econômicas gerais, e assim por diante. Basta pensar, por exemplo, em como o
desenvolvimento do capitalismo na Inglaterra e na França teve efeitos totalmen-
te diversos sobre as relações agrárias nos dois países. Disso decorreram formas
distintas nas respectivas revoluções burguesas, o que por sua vez contribuiu para
produzir no capitalismo dos dois países formas estruturais diferentes.346

É fundamental para a desigualdade no âmbito do desenvolvimento


econômico geral o fato de que em condições que se apresentam como di-
versas em diferentes modos de produção, desde os primórdios da existência
humana (condições geográficas, populacionais etc.), os respectivos grupos
humanos (tribos, nações, classes etc.) apresentem distintas aptidões para li-
dar com o progresso nas condições materiais de produção, isto é, promovê-lo.

345
G. Lukács, Para uma ontologia do ser social I, 2012a, p. 357.
346
Ibidem, p. 363.
114 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

Nesse sentido, considerando-se sociedades que estão em contato de maneira


a experimentarem as mesmas relações sociais de produção (influenciando-se
mutuamente), o que só acontece de fato no capitalismo (ao menos em escala
global), o mesmo desenvolvimento econômico deve apresentar forma diver-
sa, segundo as diferentes “forças mediadoras” gestadas em longos processos
históricos. Dentre essas “forças mediadoras”, o Estado tem papel fundamen-
tal. Segundo A ideologia alemã:

A autonomia do Estado tem lugar atualmente apenas naqueles países onde os es-
tamentos não se desenvolveram completamente até se tornarem classes, onde os
estamentos já eliminados nos países mais avançados ainda exercem algum papel
e onde existe uma mistura; daí que, nesses países, nenhuma parcela da população
pode chegar à dominação sobre as outras. Este é especialmente o caso da Alema-
nha. O exemplo mais acabado do Estado moderno é a América do Norte. Todos
os modernos escritores franceses, ingleses e americanos declaram que o Estado
existe apenas em função da propriedade privada, de tal modo que isso também foi
transmitido para o senso comum.347

Persistem, de alguma forma, nas revoluções que disseminaram as


relações capitalistas de produção as heterogeneidades relativas aos distintos
modos de produção anteriores, que foram dissolvidos nesse processo.348 Os
grupos que se colocavam em disputa pelo poder na formação social prévia
e os novos grupos que se formam a partir dessas transformações têm de li-
dar com situações inteiramente novas que decorrem, em parte, da estrutura
que se dissolve e, em parte, das novas determinações sociais. Nesse processo
desenvolvem-se instituições burguesas cujas singularidades expressam esses
novos conflitos,349 engendrando, por conseguinte, uma forma singular de de-

347
K. Marx & F. Engels, A ideologia alemã, 2007, p. 75.
348
Como dito no Prefácio de O capital a respeito da Alemanha àquela época: “Além das misérias
modernas aflige-nos toda uma série de misérias herdadas, decorrentes da permanência vegetativa
de modos de produção arcaicos e antiquados, com o seu séquito de relações sociais e políticas
anacrônicas. Padecemos não apenas por causa dos vivos, mas também por causa dos mortos. Le
mort saisit le vif! [O morto se apodera do vivo!]”. K. Marx, O capital: Crítica da economia política,
livro I, 2013b, p. 79.
349
Por exemplo, quando, nos textos que compõe o As lutas de classes na França, Marx analisa o
Estado que emerge após as revoltas de 1848, fica claro que sua forma expressa, ainda que de maneira
O materialismo comunista de Marx e o desenvolvimento desigual 115

senvolvimento econômico capitalista. Em suma, a história como “a história


das lutas de classes”, tal qual emblematicamente posto no início do Manifesto
do partido comunista, é necessariamente desigual.

Segue-se daí que, mesmo no interior de uma nação, os indivíduos têm também
desenvolvimentos diferentes, abstraindo-se de suas condições de riqueza, e que
um interesse anterior, cuja forma de intercâmbio peculiar já foi suplantada por
outra forma correspondente a um interesse ulterior, mantém-se ainda por longo
tempo de posse de um poder tradicional na sociedade aparente e autônoma em
relação aos indivíduos (Estado, direito), um poder que, em última instância, só
se pode quebrar por uma revolução. Isso também explica porque, em relação a
determinados pontos que permitem um resumo mais geral, a consciência pode
às vezes parecer mais avançada do que as relações empíricas contemporâneas a
ela, de modo que nas lutas de uma época posterior possa se apoiar nos teóricos
anteriores como autoridades.350

O novo mescla-se, portanto, ao tradicional, conferindo ao desenvol-


vimento do capitalismo um caráter desigual em cada nação.351 Por outro lado,
em certas regiões o poder tradicional pode ser completamente apagado pela
força. Nesses lugares há a possibilidade de um rápido desenvolvimento do
novo modo de reprodução social, cuja realização é condicionada (como sem-
pre) por diversos fatores historicamente contingentes, já que as formas supe-
riores de intercâmbio são replicadas pelos indivíduos que aí se instalam livres
de resistências. “Eles começam, portanto, com os indivíduos mais avançados

mistificada, o conflito de classes que ali se estabelece. “Quando se tratou de sustentar a forma da
república burguesa, eles puderam dispor dos votos dos republicanos democráticos, mas quando
se tratou do seu conteúdo, nem mesmo o seu modo de falar os distinguiu das facções burguesas
monarquistas, porque os interesses da burguesia, as condições materiais de seu domínio classista e
de sua exploração classista perfazem o conteúdo da república burguesa”. K. Marx, As lutas de classe
na França, 2012a, p. 69. O Estado, portanto, é uma esfera dotada de autonomia relativa que expressa
as singularidades e particularidades de arranjos específicos entre as classes e cujas políticas exercem
influência sobre o desenvolvimento econômico.
350
K. Marx & F. Engels, A ideologia alemã, 2007, p. 69.
351
Como posto explicitamente pelo autor em outra oportunidade: “Como, ademais, a própria
sociedade burguesa é só uma forma antagônica do desenvolvimento, nela são encontradas com
frequência relações de formas precedentes inteiramente atrofiadas ou mesmo dissimuladas”. K.
Marx, Grundrisse, 2011a, p. 58-59.
116 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

dos velhos países e, por isso, com a forma de intercâmbio mais desenvolvida
correspondente a esses indivíduos, antes mesmo que essa forma de intercâm-
bio tenha podido impor-se nos países velhos”. Por exemplo: “a América do
Norte”.352 Nesse país, o desenvolvimento do capitalismo pôde assumir forma
mais “pura” por não estar sujeito às relações tradicionais de poder que o cons-
trangiam em outros espaços nacionais, como até mesmo na Inglaterra.353
Portanto, dada a autonomia relativa entre os complexos, uma mesma
forma de sociabilidade, com suas leis gerais de funcionamento, pode afirmar-
se de modo diverso, segundo a forma como os diversos complexos sociais
se apresentam nesse modo específico de reprodução social.354 Por exemplo,
Marx nota em Miséria da filosofia que a escravidão direta, que remete a perí-
odos remotos na história da humanidade, aparece, em certas regiões, como
o Brasil, como momento necessário ao desenvolvimento do modo de pro-
dução capitalista. Ademais, a complexa interação pela qual o capitalismo se
apresenta como mercado mundial faz com que a escravidão direta tenha sido
condição para o desenvolvimento do modo de produção capitalista em geral,
inclusive em países mais avançados. Nas palavras de Marx:

A escravidão direta é o eixo da indústria burguesa, assim como as máquinas, o


crédito etc. Sem escravidão, não teríamos o algodão; sem o algodão, não teríamos
a indústria moderna. A escravidão valorizou as colônias, as colônias criaram o

352
K. Marx & F. Engels, A ideologia alemã, 2007, p. 69.
353
Ao comentar o trabalho do economista estadunidense Carey, diz Marx: “Pertence a um país em
que a sociedade burguesa não se desenvolveu sobre a base do feudalismo, mas começou a partir de si
mesma; em que a sociedade burguesa não aparece como resultado remanescente de um movimento
secular, mas como o ponto de partida de um novo movimento; em que o Estado, em contraste com
todas as formações nacionais anteriores, desde o início esteve subordinado à sociedade burguesa e à
sua produção e jamais pôde ter a pretensão de ser um fim em si mesmo; enfim, em um país em que
a própria sociedade burguesa, combinando as forças produtivas de um velho mundo com o imenso
terreno natural de um novo, desenvolveu-se em dimensões e liberdade de movimento até então
desconhecidas e suplantou em muito todo trabalho anterior no domínio das forças naturais; e onde,
enfim, os antagonismos da própria sociedade burguesa aparecem unicamente como momentos
evanescentes”. K. Marx, Grundrisse, 2011a, p. 28.
354
Não pretendermos fazer aqui uma análise do debate sobre a teoria do desenvolvimento desigual
na tradição marxista que em geral ocupa-se apenas dos diferenciais de desenvolvimento no sentido
econômico corrente: relação entre países “adiantados” e “atrasados”; e/ou combinação, em “países
atrasados” de “desenvolvimento” e “subdesenvolvimento”, isto é, a conjunção de um “setor moderno”
com um “setor tradicional” em uma mesma economia. E. Mandel, “Desenvolvimento desigual”, In:
T. Bottomore, Dicionário do pensamento marxista, 2012, p. 144-145. No entanto, tomamos esta nota
O materialismo comunista de Marx e o desenvolvimento desigual 117

comércio universal, o comércio que é a condição da grande indústria. Por isso, a


escravidão é uma categoria econômica da mais alta importância.355

Já notamos que a forma especificamente burguesa de sociabilidade


se efetiva através de um antagonismo específico entre classes sociais, que, em
termos gerais, pode ser visto como contradição entre capital e trabalho. Ana-
logamente, esta forma peculiar de sociabilidade tem de apresentar-se concre-
tamente, no mercado mundial, na forma da relação entre diferentes Estados
nacionais. Como Marx reconhece já à época dos escritos analisados:

Não há dúvidas de que a grande indústria não alcança o mesmo nível de desen-
volvimento em todas as localidades de um mesmo país. (...) Da mesma forma, os
países nos quais está desenvolvida uma grande indústria atuam sobre os países
plus ou moins não industrializados, na medida em que estes são impulsionados
pelo comércio mundial à luta pela concorrência.356

A forma de inserção de uma determinada nação no mercado mun-


dial é condicionada, portanto, pelo nível do desenvolvimento das forças pro-
dutivas e de suas relações internas e externas de intercâmbio. “Esse princípio
é, em geral, reconhecido”.357 Mais do que isso, a realização alienada da inte-
gração humana no mercado mundial implica o antagonismo entre os diferen-
tes Estados nacionais. Portanto, a forma capitalista de dominação social tem
de se apresentar em uma forma específica de relações internacionais. Como
Marx não deixou de notar em Miséria da filosofia: “Os povos modernos con-
seguiram apenas disfarçar a escravidão em seus próprios países, impondo-a
sem véus no novo mundo”.358
Contudo, sabemos que as leis gerais relativas à forma internacio-
nal das relações burguesas de dominação social não puderam ser tratadas por

para fazer nossa a seguinte observação de Bonente: “(...) ainda que seja possível demonstrar que o
desenvolvimento desigual entre países é efetivamente um caso de desenvolvimento desigual (no
sentido empregado por Marx e Lukács), esse seria ainda apenas um caso possível de apresentação
do problema. Ou seja, tomar essa acepção como definição de desenvolvimento desigual seria tomar
uma instância específica como o caso geral”. B. Bonente, Desenvolvimento em Marx e na teoria
econômica: Por uma crítica negativa do desenvolvimento capitalista, 2016, p. 48.
355
K. Marx, Miséria da filosofia: Resposta à “Filosofia da miséria”, do Sr. Proudhon, 2009, p. 127-128.
356
K. Marx & F. Engels, A ideologia alemã, 2007, p. 61.
357
Ibidem, p. 89.
358
K. Marx, Miséria da filosofia: Resposta à “Filosofia da miséria”, do Sr. Proudhon, 2009, p. 128.
118 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

Marx, nem mesmo a partir de sua mais madura Crítica da economia política.
Pelo menos desde meados dos anos 1860, Marx deu-se conta de que não teria
condições de ocupar-se do mercado mundial no escopo de sua principal obra,
como vimos na introdução a este livro. Como resultado dispomos de um ma-
terial de apoio para essa pesquisa que pode ser dividido em duas frentes: 1)
trechos esparsos e escritos circunstanciais (sobretudo análises de conjuntura)
sobre o mercado mundial; 2) a análise das leis de movimento do modo de
produção capitalista ao nível de abstração em que foram tratadas em O capital,
pressuposto obrigatório para se analisar o mercado mundial a partir de Marx.
Não sem propósito, portanto, os dois capítulos que completam este
trabalho encontram nessas duas frentes seus caminhos. Em ambos, o esforço
para sistematizar as questões relativas ao desenvolvimento histórico em Marx,
realizado nesses três capítulos iniciais, deve servir de norte para a análise. Em
primeiro lugar, consideraremos os escritos de Marx sobre o mercado mundial,
tomando parte em dois importantes debates sobre o tipo de teoria da histó-
ria que deles emana. Dado que já argumentamos pela nossa interpretação do
problema do desenvolvimento histórico em Marx, tudo o que foi dito até aqui
serve de base para a refutação da tese de que o autor advogaria, ao menos
por um período considerável de sua produção intelectual (precisamente o
que corresponde aos escritos que serviram de fio condutor para esta análise),
uma teoria determinista/unilinear/etapista359 etc. para o desenvolvimento dos
países inseridos na órbita do processo de acumulação de capital. Ademais,
revisitar esses textos deve nos oferecer importantes chaves para a tarefa a ser
realizada no último capítulo: tecer considerações sobre o caminho lógico-ca-
tegorial de concretização da lei do valor de Marx no mercado mundial.

359
É digna de nota a rejeição explícita da “fetichização da ratio” na seguinte passagem: “As fraseologias
sobre a consciência acabam e o saber real tem de tomar o seu lugar. A filosofia autônoma perde,
com a exposição da realidade, seu meio de existência. Em seu lugar pode aparecer, no máximo, um
compêndio dos resultados mais gerais, que se deixam abstrair da observação do desenvolvimento
histórico dos homens. Se separadas da história real, essas abstrações não têm nenhum valor. Elas
podem servir apenas para facilitar a ordenação do material histórico, para indicar a sucessão de seus
estratos singulares. Mas de forma alguma oferecem, como a filosofia o faz, uma receita ou esquema
com base no qual as épocas históricas possam ser classificadas. A dificuldade começa, ao contrário,
somente quando se passa à consideração e à ordenação do material seja de uma época passada ou
do presente, quando se passa à exposição real. A eliminação dessas dificuldades é condicionada por
pressupostos que não podem ser expostos aqui, mas que resultam apenas do estudo do processo de
vida real e da ação dos indivíduos de cada época”. K. Marx & F. Engels, A ideologia alemã, 2007, p. 95.
CAPÍTULO 4

Marx diante do mercado mundial:


polêmicas em torno de escritos
sobre o colonialismo

Introdução

Após a exposição do que entendemos por teoria de Marx para o desen-


volvimento no âmbito do ser social, isto é, sua teoria da história, tratamos
aqui de dois debates sobre esta questão. Mais especificamente, o tema deste
trabalho nos coloca diante de polêmicas sobre a teoria da história de Marx
que dizem respeito, a rigor, à possibilidade de se compreender o merca-
do mundial sob estas bases. O primeiro destes debates refere-se à suposta
existência, durante um período inicial da produção de Marx, de uma teo-
ria determinista que limitaria as possibilidades para o desenvolvimento do
modo de produção capitalista no mercado mundial a mero espelhamento
das etapas observadas na “acumulação primitiva” da Europa ocidental. O
segundo centra-se nas indagações de Aricó em Marx e a América Latina.
Veremos que, para defender a incapacidade de se compreender os desenvol-
vimentos históricos latino-americanos (e, levando-se adiante o argumento,
do mercado mundial) a partir da herança marxiana, Aricó resgata críticas
que apontam uma suposta negligência com as formas políticas na obra de
Marx, como resultado necessário de uma teoria social “economicista”.
Em geral, os textos que servem de base para estas duas argumenta-
ções são contrastados com alguns pequenos escritos de Marx que analisam
as possibilidades históricas da Rússia czarista no final dos anos 1870 e prin-
cípios dos 1880. Ainda que muito importantes, seja como documentos da
análise de Marx sobre a conjuntura russa da época, ou pela forma sucinta e
direta como afirmam aspectos fundamentais de sua teoria, acreditamos que
estes textos sejam comumente hiperdimensionados. Isso se explica, precisa-
mente, pela adesão, velada ou não, à primeira das teses que combateremos
neste capítulo. Isto é, precisamente por se acreditar que apenas nestes escri-
tos Marx romperia profundamente “com qualquer interpretação unilinear,

119
120 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

evolucionista, ‘etapista’ e eurocêntrica do materialismo histórico”.360 Preten-


demos mostrar a incorreção desta tese a seguir.
Antes, como de praxe neste trabalho, usaremos o espaço da intro-
dução para abordar brevemente o contexto da redação dos textos que nor-
teiam o capítulo. Isso nos empurra, basicamente, para o final dos anos 1840
e para a década de 1850, colocando-nos, de saída, frente a frente a um dos
maiores clássicos da literatura mundial: o Manifesto do partido comunista.
Como plasticamente anota Ludovico Silva:

O Manifesto[...] é um caso exemplar de adaptação do estilo literário a determi-


nado efeito que se procura alcançar no público: a apresentação apocalíptica dos
fatos, a descrição da história como um teatro de lutas de classes dramaticamente
configurado, as predições terríveis e, em geral, o aspecto poemático emprestam a
este escrito um ar de “que é quebra-mar de eternidades” que, com seu certeiro faro
político, Marx e Engels procuravam exatamente.361

Na verdade, contudo, pode-se seguramente creditar a redação final


do texto exclusivamente a Marx, ainda que a comunhão de ideias entre os
dois companheiros abone a coautoria.362 No segundo congresso da Liga dos
Comunistas,363 realizado no final de novembro de 1847 em Londres, após
vários dias de debates Marx conseguiu convencer a maioria da justeza de
um programa cuja maior parte havia sido esboçada por Engels poucos dias
antes. Foi daí que saiu a determinação para que Marx e Engels redigissem
“os princípios fundamentais do comunismo em um manifesto público”.364

360
M. Löwy, “Dialética revolucionária contra a ideologia burguesa do progresso”, In: K. Marx & F.
Engels, Luta de classes na Rússia, 2013, p. 9.
361
L. Silva, O estilo literário de Marx, 2012, p. 84.
362
F. Mehring, Karl Marx: A história de sua vida, 2013, p. 156.
363
Como apontamos anteriormente, Marx e Engels não se filiam à Liga (então “dos Justos”) tão
logo travam contato com seus membros, ainda em Paris, em virtude de suas tendências utópicas.
Segundo Netto: “Na passagem à segunda metade dos anos quarenta, porém, a direção da Liga
começa a evidenciar um giro considerável no seu horizonte político-ideológico”. J. P. Netto,
Elementos para uma leitura crítica do Manifesto Comunista, 1998, p. 2. Esta mudança se explicita,
ainda segundo Netto, já em fins de 1846, quando a Liga indica o reexame de suas referências
políticas e a elaboração de um novo programa. É neste contexto que a organização procura Marx
e Engels, explicando-lhes suas novas diretrizes e renovando o convite para que “participassem do
processo e influíssem efetivamente na sua reorientação”. Ibidem, p. 2-3.
364
F. Mehring, Karl Marx: A história de sua vida, 2013, p. 152. Esta é exatamente a versão contada
Marx diante do mercado mundial: polêmicas em torno de escritos sobre o colonialismo 121

Terminado o congresso, Engels acompanha Marx até Bruxelas e


pouco tempo depois retorna à Paris. Segundo Netto, apesar da forma final
do texto ter de fato cabido a Marx, os meses de dezembro e janeiro foram
de intensas trocas de ideias entre os autores, pessoalmente ou por via postal,
tendo em vista a elaboração do documento.365 Sabemos que Marx tinha por
hábito demorar a entregar textos que considerava importantes, em geral por
excesso de zelo. Desta vez não foi diferente, o que lhe valeu, em 24 de janei-
ro, uma carta do comitê central da Liga dos Comunistas cobrando energica-
mente o cumprimento da tarefa designada, ameaçando lhe aplicar sanções
administrativas caso não o fizesse até o início de fevereiro.366
Temos motivos para acreditar que este estímulo foi suficiente para
que Marx vencesse as barreiras que impediam o término do Manifesto. De
fato, como aponta Netto: “Nos começos de fevereiro de 1848, o documento
(de cujo original só se conservou uma página, manuscrita por Marx) é en-
viado à sede da Liga, em Londres, e provavelmente a 23 ou 24 do mesmo mês
sai da pequena tipografia de J. E. Burghard a primeira edição (...)”.367 Desta
forma, não houve tempo para que o texto pudesse influenciar a Revolução
de Fevereiro; “e como os primeiros exemplares não chegaram a Alemanha
senão em maio-junho de 1848, se compreende que tampouco pôde exercer
grande influência sobre a Revolução alemã”.368
Seja como for, o estouro da revolução em Paris ecoou em Bruxelas,
levando à prisão e expulsão de Marx da cidade. O mouro e sua família mu-
daram-se para a Paris rebelde, convidados pelo governo provisório através
de Flocon. Para a capital francesa Marx levou a incumbência de formar uma
nova liderança central da Liga dos Comunistas na cidade. No entanto, pode-
se dizer que o único sucesso obtido nesta breve estada foi o envio de cente-
nas de trabalhadores para a Alemanha a fim de engajarem-se nas agitações
revolucionárias que brotavam pelo país, o que não deve ser subestimado.369

pelos próprios autores no Prefácio à edição alemã de 1872 do Manifesto. Cf. K. Marx & F. Engels,
Manifesto comunista, 2010, p. 71.
365
J. P. Netto, Elementos para uma leitura crítica do Manifesto Comunista, 1998, p. 4.
366
F. Mehring, Karl Marx: A história de sua vida, 2013, p. 152.
367
J. P. Netto, Elementos para uma leitura crítica do Manifesto Comunista, 1998, p. 4.
368
D. Riazanov, Marx y Engels, 2012, p. 115.
369
F. Mehring, Karl Marx: A história de sua vida, 2013, pp. 161-163.
122 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

Da consequente dissolução prática da Liga, foi a vez do próprio Marx jun-


tar-se à luta empunhando, como sempre, sua principal arma:

Marx e seus amigos mais próximos foram para a Renânia, que era a região mais
progressiva da Alemanha e onde o Código Napoleônico garantia mais liberdade
de movimento que o Código Civil prussiano de Berlim. E lá eles conquistaram
a liderança na preparação pelos democratas, e em parte pelos comunistas, para
fundar um jornal em Colônia.370

Assim surgiu a Nova Gazeta Renana, autointitulada “órgão da de-


mocracia”. Ao longo de aproximadamente um ano, o jornal teve grande
repercussão, chegando a atingir a marca de 6000 assinantes, o que não po-
deria deixar de atiçar o ódio da reação que, vitoriosa, fez chegar a Marx, a
11 de maio de 1849, a ordem de sua expulsão.371 Após uma breve passagem
por Paris (de onde foi imediatamente expulso), Marx finalmente deixou o
continente rumo à Londres, onde viveria o resto de sua vida.
Na cidade, nosso autor, de pronto, começa novo trabalho de editora-
ção, oferecendo ao público a Nova Gazeta Renana, Revista Econômico-Polí-
tica. Pelos mesmos motivos de Marx, diversos exilados alemães aportaram
em Londres na mesma época. No entanto, a reorganização política provou-
se impossível diante das inúmeras polêmicas entre grupos de refugiados
que, por fim, atingiram a recém reagrupada Liga dos Comunistas, cujo co-
mitê central é acometido por um violento racha a setembro de 1850. A po-
sição de Marx e Engels na cisão da Liga é exposta, “com detalhes até maiores
do que na reunião na qual aconteceu a ruptura”, no derradeiro número da
Revista Econômico-Política, em novembro de 1850.372
Em voluntário isolamento político e situação de extrema pobreza,
Marx afortunadamente recebe o convite para trabalhar no New York Daily
Tribune como articulista. Segundo Riazanov:

Um de seus redatores, Charles Anderson Dana, que havia conhecido Marx na Ale-
manha durante a Revolução de 1848, e, apreciando-o como publicista, pediu que

370
Ibidem, p. 163.
371
Ibidem, p. 193.
372
Ibidem, p. 210-211.
Marx diante do mercado mundial: polêmicas em torno de escritos sobre o colonialismo 123

escrevesse uma série de artigos sobre aquele país, julgando conveniente ampliar o
número de páginas dedicadas a assuntos da Europa ocidental, em vista do aumen-
to da imigração alemã na América do Norte devido à revolução.373

Inicia-se assim uma colaboração, não carente de conflitos,374 que


dura até 1862. Embora a maior parte dos artigos publicados com a assina-
tura de Marx tenha saído de sua pena, sabe-se que, de fato, Engels foi res-
ponsável por vários deles, chegando mesmo a assumir a responsabilidade
total pelos textos no início da colaboração, enquanto Marx não adquiria a
habilidade necessária para escrever em inglês.
Ao longo desses mais de dez anos, Marx teve ainda a necessidade
de aceitar em 1857 a oferta de Dana para que colaborasse com a publicação
da Nova enciclopédia americana, a fim de amenizar sua combalida situação
financeira que só fez piorar com a crise que recém eclodira nos EUA, redu-
zindo a demanda do New York Daily Tribune por artigos. Com verbetes que
tratavam, em sua maioria, de questões militares, Marx e Engels (que ajudou
o amigo em mais essa empreitada) julgavam pejorativamente suas contri-
buições. Segundo Engels: “Meros trabalhos comerciais, nada mais. Não há
problema se eles nunca forem lidos”.375 A contribuição dos autores não che-
gou a passar da letra “C”. O suficiente, contudo, para a redação do famigera-
do Bolivar y Ponte, único texto de Marx sobre a América Latina usado por
Aricó na tentativa de sustentar suas polêmicas teses, como veremos abaixo.
É preciso dizer que foi a colaboração com o jornal estadunidense a
responsável pela primeira aproximação de Marx a diversas questões de inte-
resse no estudo do mercado mundial. As análises de conjuntura que cabiam
ao autor defrontaram-no com temas como:

(...) política financeira, crises econômicas, colonialismo na Ásia e condições agrá-


rias irlandesas e escocesas; ele também seguiu a Guerra da Criméia, a Revolução

373
D. Riazanov, Marx y Engels, 2012, p. 148.
374
Mehring conta que o acordo salarial com o jornal estadunidense era constantemente desrespeitado.
Além disso, o célebre biógrafo afirma que o jornal chegou a roubar artigos enviados por Marx,
publicando-os alterados como editorial, “um procedimento que deixava seu autor realmente e
compreensivelmente aborrecido”. F.Mehring, Karl Marx: A história de sua vida, 2013, p. 230.
375
F. Engels apud F. Mehring, Karl Marx: A história de sua vida, 2013, p. 253.
124 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

Espanhola e a Guerra Civil Americana, sem que deixasse de dar publicidade às


condições de vida e lutas políticas da classe trabalhadora em diversos países.376

Assim, ainda que constantemente reclamasse do ofício que o


afastava dos estudos preparatórios para a Crítica da economia política,
pode-se argumentar, como faz Pradella, que por essa via Marx recolheu
elementos fundamentais para sua obra magna.377 Sintomaticamente,
os chamados Cadernos de Londres reúnem diversas anotações sobre
colonialismo e sociedades pré-capitalistas, realizadas em 1851, das quais
destacamos os relativamente desconhecidos extratos das leituras de History
of the conquest of Mexico e History of the conquest of Peru, escritos pelo
historiador estadunidense Prescott.
Ademais, interessa-nos apontar que nos cadernos 21-3, “provavel-
mente escritos entre janeiro e junho de 1853”, Marx registra seus estudos
sobre a questão indiana.378 Dentre os autores pesquisados, Pradella subli-
nha a leitura do evolucionista Spencer e do economista político Ramsey,
passando pelo governador de Java Raffles, por Bernier, relatórios oficiais
do parlamento britânico etc.379 Esta foi a base historiográfica de Marx para
escrever, no mesmo ano, seus famosos textos sobre a Índia que, como vere-
mos abaixo, compõem o chamado “paradigma do Manifesto”.
Por fim, notemos que os amplamente evocados escritos sobre a
Rússia originam-se de discussões travadas no seio do movimento revolu-
cionário russo, animadas pela tradução de O capital para aquela língua. É
esse o caso da carta ao periódico Notas Patrióticas [Otechestvenye Zapiski],
de novembro de 1877, na qual Marx reage a um artigo de Mikhailovski,
“um dos principais teóricos do movimento narodnik”, que defendia a teo-
ria marxiana imputando-lhe uma perspectiva histórica unilinear.380 Ao que
Marx responde, sem perder sua peculiar ironia: “(...) peço-lhe desculpas.
(Sinto-me tão honrado quanto ofendido com isso)”.381 Em oposição à leitura

376
L. Pradella, Globalization and the critique of political economy: New insights from Marx’s
writings, 2015, p. 93.
377
Ibidem.
378
Ibidem, p. 115.
379
Ibidem, pp. 115-119.
380
M. Löwy, “Dialética revolucionária contra a ideologia burguesa do progresso”, In: K. Marx & F.
Engels, Luta de classes na Rússia, 2013, p. 10.
381
K. Marx & F. Engels, Luta de classes na Rússia, 2013, p. 68.
Marx diante do mercado mundial: polêmicas em torno de escritos sobre o colonialismo 125

de Mikhailovski sobre A assim chamada acumulação primitiva, Marx taxa-


tivamente reafirma uma tese que, como vimos, defendia pelo menos desde
A ideologia alemã, isto é, há mais de trinta anos:

Quando se estuda cada uma dessas evoluções à parte, comparando-as em seguida,


pode-se encontrar facilmente a chave desse fenômeno [das analogias entre acon-
tecimentos históricos diferentes]. Contudo, jamais se chegará a isso tendo como
chave-mestra uma teoria histórico-filosófica geral, cuja virtude suprema consiste
em ser supra-histórica.382

A questão levantada por Zasulitch, em sua carta de 16 de feverei-


ro de 1881, era essencialmente a mesma. A militante do Partilha Negra,
uma dissidência dos narodnik de Mikhailovski, pergunta se a “comuna ru-
ral russa” deveria necessariamente perecer, como manifestação objetiva da
suposta lei de ferro de desenvolvimento histórico imputada pelos narodniks
a Marx. Ou se, por outro lado, esta forma comunal de propriedade pode-
ria constituir uma base para a revolução socialista na Rússia. Polidamente,
Zasulitch pede a Marx, caso houvesse a possibilidade, que respondesse de
maneira “mais ou menos detalhada” para fins de publicação.383
Sem dúvidas, é este o motivo dos longos três primeiros esboços
de Marx, indicativos de um detalhado ensaio sobre a questão que, aliás, já
havia sido encomendado pelo Comitê Executivo da organização A Vontade
do Povo, de São Petersburgo, em dezembro de 1880.384 Contudo, como o
próprio Marx anuncia na carta final, em 8 de março de 1881:

Uma doença nervosa que me acomete periodicamente há dez anos impossibili-


tou-me de responder mais cedo à vossa carta de 16 de fevereiro. Lamento não
poder oferecer-vos uma explanação sucinta, destinada ao público, da indagação
da qual me concedeis a honra de ser o destinatário. Há meses prometi um escrito
sobre o mesmo assunto ao Comitê de São Petersburgo.385

382
Ibidem, p. 69.
383
V. Zasulitch, “Carta a Karl Marx, 16 fev. 1881”, In: K. Marx & F. Engels, Luta de classes na Rússia,
2013, p. 79-80.
384
K. Marx & F. Engels, Luta de classes na Rússia, 2013, p. 81
385
Ibidem, p. 114.
126 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

Evidentemente, Marx mais uma vez nega que as conclusões de O


capital possam servir como apoio para uma filosofia da história universal.
“O capital não oferece razões nem a favor nem contra a vitalidade da comu-
na rural”. No entanto, seus estudos sobre a questão, baseados inclusive em
fontes escritas em russo, o levaram a enxergar aí “a alavanca da regeneração
social da Rússia”, conquanto a comuna rural conseguisse “eliminar as influ-
ências deletérias que a assaltam de todos os lados (...)”.386 Ou seja, de manei-
ra idêntica ao anunciado na carta ao Notas Patrióticas e em diversos textos
precedentes, como argumentamos nos capítulos anteriores, Marx aplica na
prática o princípio de que apenas a análise histórica de cada caso concreto
pode servir de base para compreendê-lo em seu movimento e, portanto,
para se investigar as possibilidades de seu desenvolvimento ulterior.
Passamos imediatamente às supracitadas polêmicas.

4.1. Paradigma do Manifesto?

A polêmica que abordamos nesta seção vai ao cerne de nosso objeto de pes-
quisa: o mercado mundial em Marx. Ao fazê-lo, demonstra a importância
da noção marxiana de desenvolvimento para se compreender a questão. Se
a desigualdade entre países que se inserem de modo diverso no mercado
mundial salta aos olhos de qualquer observador atento, alguns estudiosos
da obra de Marx, inclusive marxistas, apontam que pelo menos até meados
dos anos 1850 o autor sequer seria capaz de conceber tal fato como resulta-
do necessário do desenvolvimento da sociabilidade burguesa. Ou, para ser
mais preciso, no referido período Marx teria pensado à moda liberal a su-
peração das desigualdades no desenvolvimento econômico geral, compre-
endendo o problema como algo a ser resolvido pela própria disseminação
do modo de produção capitalista.
Sem dúvidas, à época citada Marx ainda não dispunha do aparato
categorial que o permitiria aproximar-se dos determinantes da desigualda-
de no desenvolvimento econômico geral: a lei do valor. No entanto, como
tentamos demonstrar nos capítulos anteriores, é precoce e enfática a re-

386
Ibidem, p. 115.
Marx diante do mercado mundial: polêmicas em torno de escritos sobre o colonialismo 127

jeição pelo autor de qualquer esquema histórico de tipo “unilinear”, assim


como a formulação de uma concepção ontológica para o ser social que re-
conhece e oferece meios para se pensar a “multilinearidade” do desenvolvi-
mento, para seguir usando a terminologia dos autores com quem debatere-
mos nesta seção. Ademais, ressalte-se que tal perspectiva, como apontamos
nos capítulos anteriores, comparece como elemento fundamental da teoria
marxiana até mesmo em seus momentos mais maduros.
O ponto de partida para as análises contemporâneas mais influen-
tes dos escritos de Marx sobre o colonialismo e o mercado mundial é, em
geral, o Manifesto do partido comunista. Segundo Kohan - autor de quem
tomamos emprestado o título desta seção, acrescentando-lhe, contudo, uma
interrogação - o texto revelaria “uma tensão interna em seu [de Marx] pen-
samento e em seu discurso teórico acerca da história”.387 Esta tensão apare-
ceria de maneira “inegável e contundente”, por exemplo, no seguinte trecho:

Com o rápido aperfeiçoamento dos instrumentos de produção e o constante pro-


gresso dos meios de comunicação, a burguesia arrasta para a torrente da civi-
lização todas as nações, até mesmo as mais bárbaras. Os baixos preços de seus
produtos são a artilharia pesada que destrói todas as muralhas da China e obriga
à capitulação os bárbaros mais tenazmente hostis aos estrangeiros. Sob a pena de
ruína total, ela obriga todas as nações a adotarem o modo burguês de produção,
constrange-as a abraçar a chamada civilização, isto é, a se tornarem burguesas. Em
uma palavra, cria um mundo à sua imagem e semelhança.388

As interpretações debatidas nesta seção apontam no trecho em des-


taque evidências de uma noção de progresso em Marx, com o que, a prin-
cípio, não estaríamos dispostos a discordar. De fato, à obra marxiana subjaz
uma noção ontológica de progresso cuja evolução e aspectos fundamentais
discutimos nos capítulos anteriores.389 Em suma, a concepção marxiana im-
plica uma perspectiva para o desenvolvimento histórico que intenta captar

387
N. Kohan, Marx en su (Tercer) Mundo: Hacia un socialismo no colonizado, 2009, p. 340; adendo
nosso.
388
K. Marx & F. Engels, Manifesto comunista, 2010, p. 44.
389
Como afirma Netto: “o Manifesto é preparado quando Marx e Engels já dispõem das referências
teórico-metodológicas fundamentais com que trabalharão pelo resto de suas vidas; o documento
128 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

teoricamente o processo de complexificação do ser social. Este processo,


que tem por condição o desenvolvimento das forças produtivas, evidencia-
se de maneira tríplice: no recuo das barreiras naturais, isto é, na crescente
dominação da natureza; na redução no tempo de trabalho socialmente ne-
cessário para a reprodução humana; e na crescente explicitação do gênero
humano.
O parágrafo supracitado do Manifesto inscreve-se na caracterização
inicial oferecida por Marx da “sociedade burguesa moderna”, cujo modo
de produção “criou o mercado mundial, preparado pelo descobrimento da
América”. O mercado mundial “acelerou o desenvolvimento do comércio,
da navegação, dos meios de comunicação”, o que, por sua vez, impulsionou
“a expansão da indústria”. Nesse processo são dissolvidas as relações de pro-
dução legadas pela Idade Média, evidenciando que a sociabilidade burguesa
moderna, e suas correspondentes relações de produção, resultam “de um
longo processo de desenvolvimento”.390
Para além do caráter histórico da sociedade burguesa, os objeti-
vos do texto em análise impõem a caracterização da historicidade de seu
modo de produção, isto é, de algumas de suas tendências gerais. Em espe-
cial, Marx constata que o modo de produção capitalista, por suas próprias
leis de movimento, representa um impulso sem precedentes históricos ao
progresso, no sentido ontológico:

A burguesia não pode existir sem revolucionar incessantemente os instrumentos


de produção, por conseguinte, as relações de produção e, com isso, todas as rela-
ções sociais. A conservação inalterada do antigo modo de produção era, pelo con-
trário, a primeira condição de existência de todas as classes industriais anteriores.

é redigido quando ambos já tinham assentadas as linhas-de-força de sua concepção teórica da


história, da sociedade e da cultura”. J. P. Netto, Elementos para uma leitura crítica do Manifesto
Comunista, 1998, p. 25. Os próprios autores confirmam esta posição no Prefácio à edição alemã
de 1872: “Por mais que tenham mudado as condições nos últimos 25 anos, os princípios gerais
expressados nesse Manifesto conservam, em seu conjunto, toda a sua exatidão”. K. Marx & F.
Engels, Manifesto comunista, 2010, p.71.
390
Ibidem, p. 41. Concordamos quando Mandel diz que no Manifesto a “origem do modo de
produção capitalista é (...) retratada em termos que não variarão mais fundamentalmente mesmo
por ocasião da redação do Capital”. E. Mandel, A formação do pensamento econômico de Karl Marx:
De 1843 até a redação de O capital, 1968, p. 57.
Marx diante do mercado mundial: polêmicas em torno de escritos sobre o colonialismo 129

Essa subversão contínua da produção, esse abalo constante de todo o sistema social,
essa agitação permanente e essa falta de segurança distinguem a época burguesa de
todas as precedentes. Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e cristalizadas,
com seu cortejo de concepções e de ideias secularmente veneradas; as relações
que as substituem tornam-se antiquadas antes de se consolidarem. Tudo o que
era sólido e estável se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado e os
homens são obrigados finalmente a encarar sem ilusões a sua posição social e as
suas relações com os outros homens.391

Recordemo-nos que a constatação do progresso, no sentido aven-


tado, prescinde de julgamento de valor. Isso não significa, claro, que não se
possa julgá-lo, nem que o próprio Marx não o tenha feito, mas que, inde-
pendentemente disso, pode-se dispor de um critério concreto para afirmar
que uma determinada formação social é superior ou inferior a outra. O que
interessa a Marx, através da crítica a sociedade burguesa, é apontar o comu-
nismo como uma possibilidade posta pelo modo capitalista de produção e,
ao mesmo tempo, uma forma de organização social desejável, na medida
em que corresponderia à superação da alienação das capacidades humanas.
Essa é a grande questão do Manifesto; essa é a dimensão subjacente à lei do
valor posteriormente desenvolvida por Marx. Em suma, a demonstração de
como a produção capitalista aponta para além de si mesma.
Assim, é o modo de produção capitalista que põe o comunismo
como realidade possível. Como vimos, a própria ideia de humanidade (a
explicitação do gênero humano) e, portanto, da emancipação humana, são
resultados positivos do mercado mundial, que apontam para a sua negação.
Isto é, resultam da necessidade de se imprimir “um caráter cosmopolita à
produção e ao consumo em todos os países”.392 Por outro lado, essa expan-
são amplia o escopo das necessidades humanas, conferindo maior comple-
xidade às interações sociais. Nas palavras de Marx:

No lugar do antigo isolamento de regiões e nações autossuficientes, desenvolvem-


se um intercâmbio universal e uma universal interdependência das nações. E isto
se refere tanto à produção material como à produção intelectual. As criações inte-

391
K. Marx & F. Engels, Manifesto comunista, 2010, p. 43; grifos nossos.
392
Ibidem.
130 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

lectuais de uma nação tornam-se patrimônio comum. A estreiteza e a unilatera-


lidade nacionais tornam-se cada vez mais impossíveis; das numerosas literaturas
nacionais e locais nasce uma literatura universal.393

Fica evidente acima que Marx entende possuir uma base concre-
ta para avaliar diferentes formas de manifestação culturais, em contextos
sociais gerais diversos. A “unilateralidade” local é contraposta à universa-
lidade posta pelo mercado mundial. Dessa noção de progresso, como já
discutimos, não se deve depreender a impossibilidade de retrocessos das
mais diversas ordens e nos mais diversos campos, inclusive na cultura e nas
artes, assim como a contínua explosão violenta de antagonismos nacionais.
Na verdade, estes são igualmente resultados necessários do processo de ex-
pansão e aprofundamento da sociabilidade burguesa.
Em suma, o desenvolvimento histórico no arcabouço teórico mar-
xiano é intrinsecamente contraditório. Por esse motivo, deve ser visto com
reservas o otimismo exagerado expresso por Marx na passagem acima, isto
é, a reprodução dessa ordem social reproduz também a “estreiteza e a unila-
teralidade”. De todo modo, aqui e adiante, importa observar em que medida
erros, exageros, e inclusive atitudes que podem ser moralmente condená-
veis, seriam suficientes para desafiar a concepção marxiana para a historici-
dade no âmbito do ser social.
Dito isto, pode parecer que o debate em tela resume-se a uma ques-
tão semântica, isto é, ao confronto de diferentes acepções de “progresso”.
Isso não é falso, mas tampouco é tudo. Sobre textos redigidos por Marx no
final da década de 1840 e início dos anos 1850, diz Kohan:

Inequivocamente, ali localiza no Ocidente o que denomina “a corrente da civiliza-


ção” da história mundial, de maneira demasiado análoga à utilizada pelos defen-
sores de uma filosofia da história universal que, em última instância, terminava
legitimando a preeminência econômica, política e militar ocidental sobre todos os
demais povos e comunidades.394

393
Ibidem.
394
N. Kohan, Marx en su (Tercer) Mundo: Hacia un socialismo no colonizado, 2009, p. 340.
Marx diante do mercado mundial: polêmicas em torno de escritos sobre o colonialismo 131

Uma vez mais recordemos a advertência de Marx na Introdução de


1857, sobre o desenvolvimento desigual: “Não conceber de modo algum o
conceito de progresso na abstração habitual”.395 É precisamente este o ponto.
Marx, diriam os autores com quem estamos debatendo, consideraria, ao
menos durante o período identificado com o “paradigma do Manifesto”, o
progresso à luz da “filosofia da história universal” e, portanto, seria incapaz
de dar conta da forma necessariamente desigual do desenvolvimento histó-
rico, particularmente do desenvolvimento desigual do modo de produção
capitalista no mercado mundial.396 Segundo Anderson, as supracitadas li-
nhas do Manifesto sobre a expansão do mercado mundial:

(...) parecem (1) ver as incursões coloniais na Ásia, incluindo a notória Primeira
Guerra do Ópio da Inglaterra contra a China, de 1839-42, como, em geral, pro-
gressiva e benéfica; e (2) assumir que o resto do mundo, cedo ou tarde, seguiria os
passos das nações da Europa ocidental mais avançadas industrialmente.397

A despeito de que no “resto do mundo”, de fato, disseminou-se a


sociabilidade capitalista, o que Anderson quer dizer é que a forma dessa
expansão, na concepção marxiana para o desenvolvimento histórico neste
e em outros textos, seria de um “unilianearismo implícito”, “por mais per-

395
K. Marx, Grundrisse, 2011a, p. 62.
396
Este é o caso, por exemplo: de Herrera, de Löwy e de Dussel, para quem Marx abandona esta
perspectiva definitivamente apenas no final dos anos 1870, com o contato com militantes russos;
de Scaron, de Bianchi e de Aricó, que defendem que os escritos sobre a Irlanda a partir de 1867,
nos quais Marx expressa a convicção de que a primeira condição para a revolução proletária na
Inglaterra seria a emancipação nacional irlandesa, marcam uma virada no pensamento de Marx
- embora para Aricó isso não signifique que Marx tenha superado de todo a herança hegeliana,
como veremos na seção seguinte; e de Kohan, que vê a partir de fins dos anos 1850, com a redação
dos Grundrisse, uma verdadeira ruptura no pensamento de Marx no que diz respeito a esta questão.
Cf. R. Herrera, “Theories of the capitalist world-system”, In: J. Bidet & S. Kouvelakis, Critical
companion to contemporary marxism, 2008, p. 211; M. Löwy, “Dialética revolucionária contra a
ideologia burguesa do progresso”, In: K. Marx & F. Engels, Luta de classes na Rússia, 2013, p. 9; E.
Dussel, El último Marx (1863-1882) y la liberación latino-americana, p. 261; P. Scaron, “A modo de
introduccion”, In: K. Marx & F. Engels, Materiales para la historia de América Latina, 1972, p. 8;
A. Bianchi, “O marxismo fora do lugar”, Política & Sociedade: Revista de sociologia política, v. 9, n.
16, 2010, p. 182; J. Aricó, Marx e a América Latina, 1982, p. 54-55; e N. Kohan, Marx en su (Tercer)
Mundo: Hacia un socialismo no colonizado, 2009, pp. 348-353.
397
K. Anderson, Marx at the margins: On nationalism, ethnicity, and non-western societies, 2010,
p. 9; grifo nosso.
132 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

turbador que possa ser seu etnocentrismo”.398 Tal suposto “louvor às conquis-
tas do colonialismo ocidental” reapareceria nos textos em que Marx analisa
questões que envolvem países asiáticos nesse período de sua produção inte-
lectual.399 Seria este o caso dos famosos escritos sobre a Índia, publicados no
New York Daily Tribune em 1853.
Apesar de muito comentados, o contexto da redação dos primeiros
textos de Marx sobre a Índia é em geral pouco discutido, não obstante ofere-
ça elementos importantes para entendê-los. Como aponta Kohan, os textos
de Marx, “como qualquer outro produto científico, cultural e filosófico da
humanidade”,400 devem ser considerados historicamente, isto é, devem ser si-
tuados no movimento real.
Além disso, acreditamos que Kohan e Anderson estejam corre-
tos quanto à necessidade de considerar esses e outros artigos jornalísticos
como parte do cânone marxiano.401 Nesse sentido, afirmamos a necessidade
de considerá-los, adicionalmente, à luz do arcabouço teórico marxiano.402
Como aponta Ahmad, os pronunciamentos sobre a Índia são derivados de:

(...) posições que Marx assumira sobre classe e modo de produção, sobre a es-
truturação comparativa dos diferentes modos pré-capitalistas, e sobre o tipo e o

398
Ibidem.
399
Ibidem, p. 10.
400
N. Kohan, Marx en su (Tercer) Mundo: Hacia un socialismo no colonizado, 2009, p. 336.
401
Ibidem, p. 347-348; K. Anderson, Marx at the margins: On nationalism, ethnicity, and
non-western societies, 2010, p. 12.
402
Kohan reconhece que já em A ideologia alemã Marx rechaçara “as arrogantes abordagens que
pretendiam explicar toda a história da humanidade desde um esquema-receita de matriz filosófica
universal”. N. Kohan, Marx en su (Tercer) Mundo: Hacia un socialismo no colonizado, 2009, p. 338.
No entanto, diante da paradoxal aproximação de Marx a “essa mesma filosofia universal” nos textos
associados ao “paradigma do Manifesto”, Kohan propõe a desagregação analítica do pensamento
de Marx em três níveis, com “temporalidades e ritmos de elaboração nitidamente diferenciados:
1) um nível filosófico; 2) um nível científico - principalmente neste caso historiográfico e
antropológico - e 3) um nível político”. Ibidem, p. 339; p. 346. Assim, por exemplo, o Marx do
primeiro nível teria descartado a filosofia da história, enquanto seu lado teórico ainda não havia
considerado profundamente esta questão durante o paradigma do Manifesto. Já Anderson vê
em A ideologia alemã um esboço de modelo unilinear de desenvolvimento devido à ausência do
“modo de produção asiático”. K. Anderson, Marx at the margins: On nationalism, ethnicity, and
on-western societies, 2010, p. 10. Discordamos das duas propostas e tentaremos oferecer ao longo
desta seção uma interpretação dos textos supostamente eurocêntricos à luz da teoria da história de
Marx tal qual discutimos nos capítulos anteriores.
Marx diante do mercado mundial: polêmicas em torno de escritos sobre o colonialismo 133

grau da violência que inevitavelmente teria de emergir de um projeto que aciona


a dissolução de tais modos em tão ampla escala.403

Ademais, não se pode deixar de levar em conta o que Silva chamou


de “estilo literário de Marx”,404 uma vez que não raro as metáforas escolhidas
por Marx, assim como o tom por vezes pesado de suas críticas, servem de
base para acusá-lo de etnocentrismo.
Como anotamos acima, no início da década de 1850 Marx teve de
aceitar a oferta de emprego como correspondente internacional do New York
Daily Tribune. Encarregado da análise dos principais assuntos político-econô-
micos europeus, a aproximação a questões relativas à expansão da sociabilida-
de burguesa, especialmente por obra do colonialismo britânico, foi inevitável
e, pode-se dizer, tomando sua obra como um todo, providencial, uma vez que
a temática da expansão capitalista no mercado mundial sem dúvidas ajudou
Marx no posterior desenvolvimento de sua Crítica da economia política.
Especificamente sobre a Índia, Marx escreveu um total de trinta
e três artigos, doze dos quais em 1853, quinze em 1857 e seis em 1858.405
Se os vinte e um últimos escritos foram inspirados pela grande rebelião
anticolonial de 1857 (a Rebelião dos Cipaios) e seus resultados, o primeiro
grupo de textos teve por motivação um importante debate sobre a forma
da dominação britânica no país. Como anuncia em artigo de 24 de maio
de 1853: “A permissão da Companhia das Índias Orientais expira em 1854,
Lorde John Russel noticiou na Casa dos Comuns que o governo estará apto
a pronunciar, via Sir Charles Wood, suas perspectivas sobre o futuro gover-
no da Índia em 3 de Junho”.406
Não existem evidências de interesse regular de Marx pela Índia an-
tes daquele ano. Contudo, o vultuoso comércio britânico com o país conferia
a esta questão uma importância tal que o correspondente na Inglaterra do
jornal de maior circulação nos EUA não poderia ignorar. Nestas condições,
Marx não teve outra alternativa se não recorrer a Engels que, conforme ates-

403
A. Ahmad, “Marx on India: A clarification”, In: A. Ahmad, In theory: Classes, nations, literatures,
1992, p. 230.
404
Cf. L. Silva, O estilo literário de Marx, 2012.
405
A. Ahmad, “Marx on India: A clarification”, In: A. Ahmad, In theory: Classes, nations, literatures,
1992, p. 231.
406
K. Marx & F. Engels, Karl Marx & Frederick Engels Collected Works (MECW), v. 12, 1975, p. 103.
134 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

ta a correspondência entre os autores, demonstrava interesse por sociedades


asiáticas e compartilhava com o amigo algumas de suas descobertas.407
Ainda que não fosse absoluto o desconhecimento da realidade in-
diana por Marx, como vimos acima, seu diletantismo comprova-se pelo
fato de que o primeiro de seus artigos consagrados à questão indiana, o
infame A dominação britânica na Índia, de 10 de junho de 1853, copia qua-
se que literalmente as observações que lhe foram oferecidas por Engels, na
carta de 6 de junho de 1853, sobre as características fundamentais da Ín-
dia pré-colonial: a ausência de propriedade privada em sociedades asiáticas
que, na verdade, Marx já havia retirado de suas leituras de Bernier;408 mas
que, segundo Engels, explicar-se-ia pela necessidade de obras de irrigação
em “grandes áreas que se estendem do Saara através da Arábia, Pérsia, Índia
e Tartária até as mais altas das terras elevadas asiáticas”, cuja realização era
normalmente atribuição de um governo central;409 e a separação do gover-
no em três departamentos - “finanças (pilhagem em casa), guerra (pilhagem
em casa e alhures) e travaux publics [trabalhos públicos] (...)” -, diagnos-
ticando a causa da ruína da agricultura indiana no abandono do último
departamento pelos invasores britânicos.410
Contudo, é justamente nesses primeiros textos sobre a Índia que se
concentra a maior parte das críticas à análise marxiana do mercado mun-
dial a essa época. Mais especificamente no já citado primeiro e no terceiro
deles, o ainda mais infame Os resultados futuros da dominação britânica na
Índia, de 22 de julho de 1853. Cabe-nos, portanto, uma breve análise des-
ses textos segundo os critérios acima estabelecidos e em vista das questões
levantadas pelos autores discutidos nesta seção. Isto é, nosso ponto funda-
mental é verificar se esses escritos podem, de fato, servir como evidências
de uma posição teórica de tipo unilinear para o desenvolvimento histórico.

407
Como por exemplo na carta que Engels escreve a Marx em 28 de maio de 1853. K. Marx & F.
Engels, Karl Marx & Frederick Engels Collected Works (MECW), v. 39, 1975, pp. 325-328.
408
Como se pode depreender de sua carta a Engels de 2 de junho de 1853. Ibidem, p. 333-334. Para
Ahmad, a aceitação desta tese de Bernier indica o quão pouco Marx sabia sobre a Índia no período
da redação desses primeiros artigos. A. Ahmad, “Marx on India: A clarification”, In: A. Ahmad, In
theory: Classes, nations, literatures, 1992, p. 232.
409
K. Marx & F. Engels, Karl Marx & Frederick Engels Collected Works (MECW), v. 39, 1975, p. 339.
410
Ibidem.
Marx diante do mercado mundial: polêmicas em torno de escritos sobre o colonialismo 135

Precisamente, a suposta fé de Marx no desenvolvimento “sem de-


sigualdades” (isto é, unilinear) da sociedade burguesa em toda parte, as-
sumiria alguns aspectos marcantes nos artigos em questão. Em primeiro
lugar, tomaria a forma de uma espécie de determinismo segundo o qual
o desenvolvimento das forças produtivas constituiria condição necessária
e suficiente para transformações nas relações sociais. Isso estaria em claro
contraste com análises mais maduras de Marx,411 não centradas “exclusiva e
limitadamente na noção de forças produtivas (...)” e que não relacionariam
“mais de forma imediata ‘progresso’ com forças produtivas (...)”.412
Em segundo lugar, a atribuída justificação das barbáries do colonialis-
mo britânico, que já seria por si só suficientemente odiosa, reapareceria tingi-
da de etnocentrismo,413 ou, abrindo-se mão de eufemismos, racismo. O povo
indiano tal qual descrito por Marx, argumentam, seria incapaz de organizar
e lutar por sua própria libertação nacional. Ou seja, apesar de ansiar a “justi-
ça social para todos os homens e povos da terra (...)”, Marx consideraria que
“nem todos os homens e povos estão aptos (...)” para atingir este objetivo.414
Deste modo, apenas ao proletariado europeu caberia a “responsabilidade de
conduzir o motor da história universal (...)”.415 Tais preconceitos eurocêntri-
cos, lugares-comuns no imaginário dos autoproclamados “povos civilizados”
da época, responderiam ainda pela ideia da estagnação das sociedades ditas
“bárbaras” que, desta forma, referir-se-ia não apenas a “meras designações
econômicas e tecnológicas, mas a uma determinação antropológica”.416
Um objetivo comum aos dois textos de Marx sobre a Índia a que fi-
zemos referência, a rigor, é informar aos leitores do New York Daily Tribune

411
Por outro lado, ainda que divirjam sobre o momento da mudança no “paradigma” histórico
marxiano, todos os autores que acreditam que essa mudança de fato existiu apontam para os
escritos de Marx sobre a Rússia como representativos da nova perspectiva. Não obstante, alguns
autores como Zea e Del Roio parecem acreditar que Marx nunca abandonara suas supostas
convicções eurocêntricas. Cf. L. Zea, “Visión de Marx sobre América Latina”, Nueva Sociedad,
n. 60, 1983; e M. Del Roio, “Marx e a questão do Oriente”, In: M. Del Roio, Marxismo e Oriente:
Quando as periferias tornam-se os centros, 2008.
412
N. Kohan, Marx en su (Tercer) Mundo: Hacia un socialismo no colonizado, 2009, p. 358.
413
K. Anderson, Marx at the margins: On nationalism, ethnicity, and non-western societies, 2010, p. 2.
414
L. Zea, “Visión de Marx sobre América Latina”, Nueva Sociedad, n. 60, 1983, p. 61.
415
N. Kohan, Marx en su (Tercer) Mundo: Hacia un socialismo no colonizado, 2009, p. 364.
416
S. Avineri apud K. Anderson, Marx at the margins: On nationalism, ethnicity, and non-western
societies, 2010, p. 16.
136 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

sobre a forma peculiar da dominação britânica vis-à-vis formas pretéritas


de dominação externa. Segundo Marx: “Não podem (...) haver dúvidas de
que a miséria infligida pelos britânicos ao Indostão é de tipo essencialmente
diferente e mais intensa do que tudo o que teve de sofrer antes o Indostão”.
Não se trata, segue Marx, “do despotismo europeu erguido sobre o despo-
tismo asiático”, o que não distinguiria a dominação britânica da holande-
sa.417 Acreditamos que o autor ressalta, neste ponto, precisamente a priori-
dade à dominação abstrata imposta pela dinâmica do capital, no modo de
produção capitalista, sobre as formas diretas de dominação externa (saques,
extorsões etc.), centrais em modos pré-burgueses de produção.

Essas pequenas formas estereotipadas de organismos sociais foram em sua maior


parte dissolvidas, e estão desaparecendo, não tanto pela brutal interferência dos
coletores de impostos britânicos e pelo soldado britânico, mas pela ação do vapor
britânico e do livre mercado.418

No A dominação britânica na Índia, contudo, Marx anuncia apenas


implicitamente, de modo demasiado ambíguo,419 a dimensão potencialmen-
te “regeneradora” da destruição britânica. Enquanto as anteriores “guerras
civis, invasões, revoluções, conquistas, fome, estranhamente complexas, rá-

417
K. Marx & F. Engels, Karl Marx & Frederick Engels Collected Works (MECW), v. 12, 1975, p. 126.
418
Ibidem, p. 131. Analogamente, no Manifesto: “Onde quer que tenha conquistado o poder, a
burguesia destruiu as relações feudais, patriarcais e idílicas”. K. Marx & F. Engels, Manifesto
comunista, 2010, p. 42.
419
“A Inglaterra, de fato, ao causar uma revolução social no Indostão, foi motivada apenas por
interesses vis e foi estúpida no seu modo de afirmá-los. Mas não é essa a questão. A questão é,
pode a humanidade cumprir seu destino sem uma revolução no estado social da Ásia? Se não,
quaisquer que tenham sidos os crimes da Inglaterra, ela foi a ferramenta inconsciente da história
ao provocar aquela revolução”. K. Marx & F. Engels, Karl Marx & Frederick Engels Collected Works
(MECW), v. 12, 1975, p. 132. Ao longo desta seção pretendemos oferecer elementos que ajudem
a situar passagens como esta no arcabouço teórico marxiano, por mais estranhas a ele que elas
possam parecer. No entanto, notemos brevemente com Ahmad que a questão posta por Marx
nas linhas citadas “pode ser objetada por mentes pós-modernas pela crença explicita, herdada
das mais consistentes tradições do iluminismo, na unidade, universalidade e possibilidade efetiva
da liberação humana (...)”. Ahmad segue argumentando contra os que acusam Marx de racismo,
como Said em seu Orientalismo, que a questão da necessidade da liberação asiática para a liberação
humana foi posta inúmeras vezes ao longo do século XX por movimentos revolucionários de todo
o continente asiático. A. Ahmad, “Marx on India: A clarification”, In: A. Ahmad, In theory: Classes,
nations, literatures, 1992, p. 225.
Marx diante do mercado mundial: polêmicas em torno de escritos sobre o colonialismo 137

pidas e destrutivas como podem parecer em sua ação sucessiva no Indostão,


não foram além de sua superfície”, a forma especificamente capitalista da do-
minação britânica dissolvia toda a organização social indiana, sem apontar
qualquer sinal de reconstrução.420
Marx fez questão, contudo, de diferenciar-se, logo ao princípio do
texto, dos românticos cuja crença em “uma idade de ouro do Indostão”421
era o cartaz de uma crítica moralista do imperialismo britânico, como, por
exemplo, a de Carey e a do próprio New York Daily Tribune em que escrevia.
De fato, como informa a Engels em carta de 14 de junho de 1853, Marx re-
cebera de Carey seu novo livro que estava sendo incensado pelo New York
Daily Tribune.422 Acreditamos, com Pradella, que aqui possamos encontrar
uma chave para se compreender a forma um tanto agressiva com que Marx
descarta a solução romântica no primeiro e terceiro textos sobre a Índia, as-
sunto ao qual voltaremos abaixo.423
Adicionalmente, e imediatamente em seguida, o autor mostra seu des-
prezo pelos que, por outro lado, acreditavam que o colonialismo não produzia
se não “o progresso geral da Índia”, como era o caso de Charles Wood, membro
do parlamento inglês.424 É nesse contexto, como aponta Ahmad, que surge a
ideia da dupla missão da dominação britânica, ao mesmo tempo destruidora
e regeneradora, em Os resultados futuros da dominação britânica na Índia.425
Ao pé da letra: “A Inglaterra tem de cumprir uma dupla missão na Índia: uma
destrutiva, outra regeneradora - a aniquilação da velha sociedade asiática e a
edificação dos fundamentos materiais da sociedade ocidental na Ásia”.426

420
K. Marx & F. Engels, Karl Marx & Frederick Engels Collected Works (MECW), v. 12, 1975, p. 126.
421
Ibidem.
422
Ibidem, v. 39, p. 345-346.
423
L. Pradella, Globalization and the critique of political economy: New insights from Marx’s
writings, 2015, p. 121. A propósito, para Marx, tanto Carey quanto o New York Daily Tribune:
“(...) tem isso em comum, que, sob o embuste de um socialismo sismondiano-filantrópico, anti-
industrialista, representam o protecionismo, i.e., a burguesia industrial da América. Essa é também
a chave para o mistério do porquê de o Tribune apesar de todos os seus ‘ismos’ e floreios socialistas,
consegue ser o ‘jornal líder’ nos Estados Unidos”. K. Marx & F. Engels, Karl Marx & Frederick
Engels Collected Works (MECW), v. 39, 1975, p. 346.
424
K. Marx & F. Engels, Karl Marx & Frederick Engels Collected Works (MECW), v. 12, 1975, p. 126.
425
A. Ahmad, “Marx on India: A clarification”, In: A. Ahmad, In theory: Classes, nations, literatures,
1992, p. 235.
426
K. Marx & F. Engels, Karl Marx & Frederick Engels Collected Works (MECW), v. 12, 1975, p. 217-218.
138 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

De saída, a ideia da construção dos fundamentos da sociedade


ocidental pode causar estranheza. Contudo, como Marx aponta passados
quase trinta anos, no Primeiro esboço à celebrada Carta à Vera Ivanovna
Zasulitch. 8 mar. 1881, a impossibilidade da evolução das formas comunais
de propriedade, que vigoravam “desde sempre” nas “Índias Orientais”, em
uma forma comunista de relações de produção, deve-se ao fato de que, a
diferença da Rússia, a Índia “foi vitima” da conquista estrangeira, antes da
qual vivia “isolada do mundo moderno”.427
Portanto, na visão de Marx, a dissolução violenta das formas co-
munais de propriedade em capitalistas, naquele vasto espaço geográfico no
qual a dominação britânica recém consumara-se,428 seria mesmo inevitável.
Aliás, não custa lembrar que, neste caso, a história deu-lhe razão. Como
veremos, não foi essa a mesma sorte de todas suas suposições sobre o de-
senvolvimento histórico indiano. Contudo, como indica o título do artigo
de 22 de julho, Os resultados futuros da dominação britânica na Índia, era
exatamente com conjecturas sobre os possíveis resultados da colonização
da Índia que Marx pretendia concluir suas observações sobre o país429 e
evitar, de modo mais consistente, qualquer possibilidade de associação de
suas ideias às utopias romântico-burguesas.
Fiel, portanto, à perspectiva histórica solidamente defendida em A
ideologia alemã e em Miséria da filosofia, como vimos no capítulo anterior,
cabia a Marx analisar em que medida, apesar de destrutivo, o colonialis-
mo britânico colocava a possibilidade da libertação nacional indiana, pré
-requisito para uma organização social superior. Aliás, como temos argu-
mentado exaustivamente, critérios historicamente concretos constituíam a
base de Marx para apontar que uma determinada sociedade era superior a
outra. Assim, os sucessivos conquistadores pré-capitalistas da Índia, “[á]ra-
bes, turcos, tártaros mongóis, (...) rapidamente foram hinduizados (sic.), os
conquistadores bárbaros sendo, por uma lei eterna da história, eles próprios

427
K. Marx & F. Engels, Luta de classes na Rússia, 2013, pp. 90-92.
428
Como o próprio Marx anota no segundo dos artigos do New York Daily Tribune inteiramente
dedicados à Índia, o A Companhia das Índias Orientais - sua história e resultado: “É apenas desde 1849
que um grande império anglo-indiano passou a existir”. K. Marx & F. Engels, Karl Marx & Frederick
Engels Collected Works (MECW), v. 12, 1975, p. 152.
429
Conforme a primeira linha do artigo: “Eu proponho neste texto concluir minhas observações sobre
a Índia”. Ibidem, p. 217.
Marx diante do mercado mundial: polêmicas em torno de escritos sobre o colonialismo 139

conquistados pela civilização superior que subjugavam”.430 Não obstante:


“Os britânicos foram os primeiros conquistadores superiores e, portanto,
inacessíveis para a civilização hindu”.431
Segundo Marx, a obra regeneradora da dominação britânica, que
com muita dificuldade podia ser notada por detrás dos escombros da des-
truição colonial, tinha por primeira condição a “unidade política da Índia
(...)”.432 A Índia pré-colonial, acreditava o autor com base em um relatório
oficial do parlamento britânico, correspondia a “um sistema social de ca-
racterísticas particulares - o chamado sistema de aldeias [village system],
que conferiu a cada uma dessas pequenas unidades uma organização in-
dependente e uma vida distinta”.433 Isso se devia à supracitada necessidade
de grandes obras públicas - “a condição primordial de sua agricultura e co-
mércio” -, somada à concentração da população indiana em pequenos cen-
tros dispersos por um vasto território, como em uma “Itália de dimensões
asiáticas”, nos quais se conjugavam agricultura e manufatura.434
Ainda segundo o autor, o isolamento das aldeias entre si fornecia
sólida base para o despotismo oriental.435 Se a dominação britânica, por

430
Ibidem, p. 218.
431
Ibidem. Não nos causa espanto que os esboços para a Carta à Vera Ivanovna Zasulitch. 8 mar.
1881 contenham avaliação praticamente idêntica a que acabamos de citar. Explicando o porquê da
possibilidade da evolução da propriedade comunal, que ainda vigorava na Rússia, em uma forma
comunista de apropriação da natureza, diz Marx: “A Rússia (...) é contemporânea de uma cultura
superior e encontra-se ligada a um mercado mundial”. Ademais, a ideia subjacente de progresso
transparece quando o autor diz que: “(...) a formação arcaica da sociedade nos revela uma série de tipos
diferentes, marcando as épocas progressivas”. K. Marx & F. Engels, Luta de classes na Rússia, 2013, p. 105.
432
Ibidem.
433
K. Marx & F. Engels, Karl Marx & Frederick Engels Collected Works (MECW), v. 12, 1975, p. 128;
adendo nosso.
434
Ibidem, pp. 125-128. No Formas que precederam a produção capitalista, Marx mantém a ideia
de que na “forma asiática (...) há um círculo da produção autossustentável, unidade de agricultura
e manufatura etc.”. K. Marx, Grundrisse, 2011a, p. 398. A quebra da unidade entre manufatura e
agricultura fora, para Marx, momento necessário para a emergência do modo de produção capitalista
na Europa. Como argumenta alguns anos depois: “(...) apenas a destruição da indústria doméstica
rural pode dar ao mercado interno de um país a amplitude e a sólida consistência de que o modo de
produção capitalista necessita”. K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro I, 2013b, p. 818.
435
K. Marx & F. Engels, Karl Marx & Frederick Engels Collected Works (MECW), v. 12, 1975, p. 132.
Notemos de passagem que, no Primeiro esboço à supracitada carta à Zasulitch, Marx aponta que o
isolamento, “uma característica da ‘comuna agrícola’ na Rússia que a fragiliza, tornando-a hostil em
todos os sentidos (...) onde se encontra, fez surgir um despotismo mais ou menos central, que paira
sobre as comunas”. K. Marx & F. Engels, Luta de classes na Rússia, 2013, p. 95.
140 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

um lado, apenas substituía o despotismo oriental pelo despotismo colonial,


por outro a própria forma dessa dominação impunha à Índia uma unidade
forçada que seria “perpetuada e fortalecida pelo telégrafo elétrico”.436 Como
adiantara no texto de 24 de junho de 1853 sobre a história da Companhia
das Índias Orientais britânica, Marx acreditava que:

(...) quanto mais o interesse industrial [britânico] tornava-se dependente do merca-


do indiano, tanto mais sentia a necessidade de criar novas forças produtivas na Índia,
após ter arruinado a indústria nativa. Não se pode continuar a inundar um país com
manufaturas, a não ser que se possibilite que ele dê algum produto em retorno.437

Repetindo a mesma avaliação no texto seguinte, Os resultados fu-


turos da dominação britânica na Índia, Marx aponta para a falta de meios
de escoamento e intercâmbio do produto como causas da paralisação das
forças produtivas indianas. A ligação entre as comunidades antes isoladas
seria oferecida, seguindo os interesses da burguesia britânica, pela instala-
ção de ferrovias; assim como o transporte marítimo a vapor possibilitava
“comunicação rápida e regular com a Europa (...)”. Em suma, o progresso
material indiano deixava de ser mero interesse “transitório e excepcional”
das classes dominantes britânicas.438
O autor concedia especial importância à emergência de encadea-
mentos produtivos derivados da implantação do sistema de linhas férreas
no país. Em primeiro lugar, as ferrovias poderiam ser “facilmente utilizadas
para propósitos agrícolas, como a formação de tanques onde terra é neces-
sária para construção de diques, e pela distribuição de água ao longo das
diversas linhas”.439 Em segundo lugar, no que diz respeito à indústria meca-
nizada, Marx acreditava que após a introdução de maquinário de transpor-
te em um país rico em ferro e carvão não se poderia evitar sua fabricação.440
Na explicação do autor:

436
K. Marx & F. Engels, Karl Marx & Frederick Engels Collected Works (MECW), v. 12, 1975, p. 218.
437
Ibidem, p. 154-155; adendo nosso.
438
Ibidem p. 218-219.
439
Ibidem, p. 219.
440
Ibidem, p. 220. No Segundo esboço a já mencionada carta à Zasulitch, pode-se perceber
claramente como essa avaliação parte da compreensão de que o modo de produção capitalista
tem um caráter intrinsecamente mundial. Assim, há a possibilidade de que o desenvolvimento das
Marx diante do mercado mundial: polêmicas em torno de escritos sobre o colonialismo 141

Não se pode manter uma rede de ferrovias em um imenso país sem introduzir to-
dos aqueles processos industriais necessários às demandas correntes e imediatas da
locomoção ferroviária, dos quais deve emergir a aplicação de máquinas nos ramos
industriais não imediatamente conectados com as ferrovias. O sistema ferroviário,
portanto, tornar-se-á na Índia o verdadeiro precursor da indústria moderna.441

A desorganização social causada pela invasão britânica e a resul-


tante industrialização do país, em suma, dissolveriam “a divisão hereditária
do trabalho, sobre a qual se apóiam as castas indianas, esse decisivo entrave
à potência e ao progresso indianos”.442 É verdade que os prognósticos de
Marx a respeito da industrialização do país provaram-se equivocados. So-
bre isso, concordamos com Ahmad que, “do ponto de vista histórico, o esta-
tuto dos escritos de Marx sobre as possíveis consequências do colonialismo
britânico na Índia não é teórico, mas conjectural e especulativo”.443 Ou seja,
ainda que devam ser considerados como partes integrantes da obra de Marx
como um todo e que através deles possamos compreender melhor aspectos
importantes da teoria marxiana, cada texto deve ser tomado como o que
é, isto é, segundo os objetivos que motivaram sua redação. O que Marx
oferece nos artigos do New York Daily Tribune são análises de conjuntura e
avaliações sobre seus possíveis resultados.444
Assim, é possível compreender que apesar de não romper com sua
teoria para o desenvolvimento histórico no âmbito do ser social, Marx re-

forças produtivas em uma localidade seja replicado alhures, o que, ademais, já havia argumentado
em A ideologia alemã, como vimos no capítulo anterior. Em suas palavras: “Se os adeptos do
sistema capitalista na Rússia negarem a possibilidade de tal combinação, que eles provem que,
para explorar as máquinas, a Rússia foi obrigada a passar pelo período de incubação da produção
mecânica” K. Marx & F. Engels, Luta de classes na Rússia, 2013, p. 105. Sobre o tom excessivamente
otimista de Marx no texto de 1853 falaremos em seguida.
441
K. Marx & F. Engels, Karl Marx & Frederick Engels Collected Works (MECW), v. 12, 1975, p. 220.
442
Ibidem, p. 221.
443
A. Ahmad, “Marx on India: A clarification”, In: A. Ahmad, In theory: Classes, nations, literatures,
1992, p. 226.
444
Ademais: “Por mais que Marx tenha certamente conseguido aumentar tremendamente o nível
do jornalismo do New York Daily Tribune, não poderia aumentar acima das circunstâncias em que
um jornal deve ser escrito. Nem mesmo a maior mente do mundo pode fazer novas descobertas ou
gerar novas ideias duas vezes por semana, a tempo de alcançar o envio regular de artigos às terças e
sextas-feiras. Como Engels apontou, é impossível em tais circunstâncias evitar ‘improvisação pura
no calor do momento e se apoiando apenas na memória’”. F. Mehring, Karl Marx: A história de sua
vida, 2013, p. 240.
142 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

visou, post festum, suas primeiras análises prospectivas sobre os efeitos da


dominação colonial britânica. Essa reavaliação pode ser encontrada no li-
vro III de O capital, quando afirma que “[d]ificilmente a história de um
povo apresentará experimentos econômicos tão desacertados e realmente
estúpidos (na prática infames) como os da administração colonial inglesa
na Índia”;445 e na breve alegação de que na Índia “a supressão da proprie-
dade comum do solo não passou de um ato de vandalismo inglês, que não
impulsionou o povo indiano para frente, mas o empurrou para trás”, conti-
da no Terceiro esboço à carta para Zasulitch de 1881.446 Ou ainda em carta à
Danielson escrita pouco antes:

Na Índia sérias complicações, se não uma rebelião geral, aguardam o governo bri-
tânico. O que os ingleses lhes tomam anualmente na forma de renda, dividendos
por ferrovias inúteis para os hindus, pensões para servidores militares e civis, para
o Afeganistão e outras guerras etc etc. - o que lhes toma sem qualquer equivalente
e à parte do que apropriam para si anualmente com a Índia, tomando-se apenas o
valor das mercadorias que os indianos devem gratuita e anualmente enviar à Ingla-
terra, monta mais do que o somatório total da renda dos 60 milhões de agricultores
e trabalhadores industriais da Índia! Isso é um processo furioso de sangramento!447

Se, por um lado, não se pode deixar de notar a escassez de experi-


ências históricas similares, no início dos anos 1850, nas quais Marx poderia
basear sua avaliação; por outro, a revisão da posição sobre o efeito da domi-
nação colonial no desenvolvimento das forças produtivas da colônia denota
uma salutar predisposição a reavaliar suas análises à luz do desenvolvimen-
to histórico. Como apontam Overbeek e Silva: “(...) aqui nos encontramos
com uma das provas mais eloquentes de que Marx nunca foi prisioneiro de
suas próprias afirmações”.448
Ademais, ainda que não nos pareça correto afirmar que as análi-
ses de 1853 sobre a Índia explicitem uma perspectiva histórica unilinear,

445
K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro III, 2008, p. 445.
446
K. Marx & F. Engels, Luta de classes na Rússia, 2013, p. 108.
447
K. Marx & F. Engels, Karl Marx & Frederick Engels Collected Works (MECW), v. 46, 1975, p. 63.
448
H. Overbeek & P. Silva, “Marx y el Tercer Mundo”, Revista Mexicana de Sociología, v. 48, n. 1
1986, p. 125.
Marx diante do mercado mundial: polêmicas em torno de escritos sobre o colonialismo 143

acreditamos que esta questão possa servir como indicativo da evolução in-
telectual de Marx no que diz respeito ao mercado mundial. Apenas do alto
de sua lei do valor, Marx poderia afirmar com segurança que a dominação
colonial, via de regra, não aciona um processo de industrialização449 ou, no
máximo, o faz apenas de maneira subordinada às necessidades dos países
mais economicamente avançados. Isto é, nos anos 1850 Marx certamente
ainda precisava avançar muito na sua compreensão dos determinantes eco-
nômicos do desenvolvimento desigual no mercado mundial, o que pôde
fazer com a retomada de seus estudos para a Crítica da economia política no
início dos anos 1860. Voltaremos a esta questão no capítulo seguinte.
No entanto, nem todas as projeções de Marx nestes textos falha-
ram. Em Os resultados futuros da dominação britânica na Índia, o autor
concedeu especial atenção à formação de um exército nativo, “organizado e
treinado pelo sargento de treinamento britânico”, uma condição “sine qua
non da auto-emancipação indiana e para que a Índia deixe de ser presa do
primeiro conquistador estrangeiro”.450 É importante jogar luz para o fato de
que, contrariamente ao que pensam Kohan, Bianchi e Aricó,451 entre outros,
o primeiro horizonte político de Marx desde as análises iniciais do colonia-
lismo britânico na Índia era o da libertação nacional autóctone.
Notemos de passagem que, um pouco antes de seus primeiros es-
critos sobre a Índia, Marx não apenas compreendera a Rebelião Taiping na
China como uma “revolução formidável”,452 como nunca deixou de con-
siderar o proletariado europeu (mais especificamente, o britânico) como
central na luta pelo comunismo. Isso fica patente mesmo nos escritos sobre
a questão irlandesa, como em carta a Meyer e Vogt de 1870: “Inglaterra,
como metrópole do capital, como potência ainda dominante do mercado
mundial, é no presente o país mais importante para a revolução dos traba-

449
Por exemplo, no livro I de O capital, Marx afirma que a política protecionista dos Estados
europeus extirpava “violentamente toda a indústria dos países que lhes eram contíguos e deles
dependiam, como ocorreu, por exemplo, com a manufatura irlandesa de lã por obra da Inglaterra”.
K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro I, 2013b, p. 826.
450
K. Marx & F. Engels, Karl Marx & Frederick Engels Collected Works (MECW), v. 12, 1975, p. 218.
451
Cf. N. Kohan, Marx en su (Tercer) Mundo: Hacia un socialismo no colonizado, 2009, p. 364; A.
Bianchi, “O marxismo fora do lugar”, Política & Sociedade: Revista de sociologia política, v. 9, n. 16,
2010, p. 181; e J. Aricó, Marx e a América Latina, 1982, p. 75-76.
452
K. Marx & F. Engels, Karl Marx & Frederick Engels Collected Works (MECW), v. 12, 1975, p. 93.
144 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

lhadores (...)”.453 Ou mesmo no tardio Prefácio à edição russa do Manifes-


to do partido comunista, de 1882, escrito em parceria com Engels, no qual
assevera que a comuna rural russa poderia desenvolver-se em uma forma
comunista “se a revolução russa constituir-se no sinal para a revolução pro-
letária no Ocidente, de modo que uma complemente a outra (...)”.454
Como sempre no caso de Marx, essas avaliações eram fundamenta-
das por estudos e análises de conjuntura, como explica em circular privada
enviada ao Comitê de Brunswick do Partido Social Democrata dos Trabalha-
dores Alemães através de seu amigo Kugelmann, em 28 de março de 1870:

Embora a iniciativa revolucionária deva provavelmente partir da França, apenas


a Inglaterra pode atuar como uma alavanca em qualquer revolução econômica
digna desse nome. Ela é único país onde não há mais camponeses e onde a pro-
priedade da terra está concentrada em pouquíssimas mãos. É o único país em que
quase toda a produção assumiu a forma capitalista, ou, em outras palavras, com o
trabalho combinado, em vasta escala, com patrões capitalistas. É o único país onde
a grande maioria da população consiste de trabalhadores assalariados. O único país
onde a luta de classes e a organização da classe trabalhadora em sindicatos alcan-
çou realmente um grau considerável de maturidade e universalidade. Devido ao
domínio que exerce no mercado mundial, é o único país onde toda a revolução no
sistema econômico terá repercussões imediatas no restante do mundo. Embora a
nobreza rural e o capitalismo estejam mais tradicionalmente estabelecidos nesse
país, é nele também que as condições materiais que permitem superá-los estão
mais maduras. (...) A Inglaterra não pode ser considerada simplesmente um país
entre outros. Ela deve ser tratada como a metrópole do capital.455

Portanto, a questão da avaliação do ponto focal da revolução pro-


letária mundial é resultado de uma profunda reflexão teórica e prática, não
de meros preconceitos eurocêntricos, como pensam alguns. A leitura acima
exposta pode ser julgada, inclusive retrospectivamente, isto é, a luz de resul-
tados históricos que Marx não teve a ocasião de presenciar. Contudo, uma

453
Ibidem, v. 43, p. 475.
454
K. Marx & F. Engels, Luta de classes na Rússia, 2013, p. 125.
455
K. Marx, “Inglaterra, metrópole do capital”, In: M. Musto, Trabalhadores, uni-vos! Antologia
política da I Internacional, 2014a, p. 260.
Marx diante do mercado mundial: polêmicas em torno de escritos sobre o colonialismo 145

vez mais, não se pode tomar linhas como as que acabamos de citar à parte
de seu efetivo conteúdo: uma análise conjuntural tendo em vista preocupa-
ções estratégicas quanto às possibilidades para a revolução comunista.
Retornando à Índia, para Marx uma das possibilidades postas pelo
desenvolvimento das forças produtivas no país, como vimos, seria a quebra
do isolamento das comunidades aldeãs, pela introdução dos então mais mo-
dernos meios de comunicação. A unidade nacional era pré-condição para a
emergência de um movimento de libertação nacional, cujo ideal anticolonial
poderia propagar-se pela “imprensa livre, introduzida pela primeira vez na
sociedade asiática e administrada pelo esforço comum de hindus e europeus
(...)”. A recém-criada imprensa indiana, segue Marx, “é um novo e poderoso
agente de reconstrução”.456 Assim, a rigor, o que Marx entendia como “rege-
neração” da Índia passava necessariamente pela independência do país, atra-
vés de um movimento de libertação nacional indiano. Sem isso, o progresso
material, que vislumbrava como resultado da dominação britânica, não seria
capaz de realizar seu potencial emancipatório.457 Em suas palavras:

Tudo o que a burguesia inglesa pode ser forçada a fazer não vai nem emancipar,
nem materialmente solucionar, a condição social da massa do povo, que depende
não apenas do desenvolvimento das forças produtivas, mas de sua apropriação pelo
povo. Mas o que eles não falharão em fazer é oferecer as premissas materiais de
ambos. Alguma vez a burguesia fez mais? Alguma vez realizou algum progresso
sem arrastar indivíduos e povos por sangue e sujeira, por miséria e degradação?458

456
K. Marx & F. Engels, Karl Marx & Frederick Engels Collected Works (MECW), v. 12, 1975, p. 218.
457
A forma como Anderson entende a teoria marxiana para o desenvolvimento histórico fez
com visse no princípio do texto que estamos discutindo a mesma noção “progressiva para o
colonialismo britânico” que lhe parece demonstrar o “eurocentrismo” marxiano. No entanto, o
atento comentador não pôde deixar de notar a defesa explícita da libertação nacional autóctone da
Índia feita por Marx ao final do texto. Essa aparente contradição fez com que Anderson enxergasse
aí uma mudança súbita no argumento de Marx, na verdade, o primeiro sinal de seu afastamento
das posições supostamente eurocêntricas.Cf. K. Anderson, Marx at the margins: On nationalism,
ethnicity, and non-western societies, 2010, p.22-23. Isto é, paradoxalmente Marx teria mudado de
opinião ao longo da redação do texto sem, contudo, revisar as partes já escritas.
458
K. Marx & F. Engels, Karl Marx & Frederick Engels Collected Works (MECW), v. 12, 1975, p. 221;
grifos nossos.
146 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

A “apropriação pelo povo” do progresso que, contraditoriamente,


a Inglaterra levava ao país, estava predicada, portanto, à luta pela emanci-
pação que, como coerentemente pensava Marx, poderia desenvolver-se em
duas frentes:

Os indianos não vão colher os frutos dos novos elementos da sociedade espalha-
dos entre eles pela burguesia britânica, até que na própria Grã-Bretanha a classe
dominante seja suplantada pelo proletariado industrial ou até que os próprios hin-
dus estejam suficientemente fortes para jogar fora o jugo britânico de uma vez.459

Foram necessários mais quatro anos para que Marx visse emergir
uma rebelião anticolonial na Índia com força suficiente para ameaçar a do-
minação britânica. De fato, como relata o autor, a revolta inicia-se pela to-
mada do “centro tradicional do império indiano”, a cidade de Délhi, de onde
espalhou-se “de Calcutá ao Punjab no norte e para Rajputana a oeste, abalan-
do a autoridade britânica de uma ponta a outra da Índia(...)”.460 Para Marx,
não deve ter sido muito surpreendente o fato desta rebelião ter estourado
exatamente no baixo oficialato do exército formado e treinado pela Compa-
nhia das Índias Orientais, os chamados Cipaios. Ao criar um exército nativo,
diz Marx, “a dominação britânica simultaneamente organizou o primeiro
centro geral de resistência possuído pelo povo indiano”.461 Com as informa-
ções a que tinha acesso,462 Marx via a rebelião como causa comum de sikhs,
muçulmanos e brâmanes contra o colonialismo inglês. Como quer que fosse,
de modo similar à sua avaliação da Rebelião Taiping na China, para Marx os
Cipaios teriam dado início a uma verdadeira “revolta nacional”.463
Em suma, Marx, antes e depois de 1853, estava preocupado com a
análise das possibilidades de uma revolução que aproximaria a humanidade
de um mundo livre da dominação estranhada do capital e suas consequên-
cias, o que inclui, obviamente, a dominação colonial. Para tanto, contava
com um sofisticado aparato categorial para captar a historicidade das socie-

459
Ibidem.
460
Ibidem, v. 15, p. 306.
461
Ibidem, p. 297-298.
462
Marx informava-se sobre os desenvolvimentos da rebelião principalmente através dos relatos
públicos das discussões no parlamento britânico e pela imprensa burguesa.
463
Ibidem, p. 316.
Marx diante do mercado mundial: polêmicas em torno de escritos sobre o colonialismo 147

dades humanas. Essa noção ontológica de progresso, ademais, comparece


com clareza no parágrafo que magistralmente fecha o polêmico Os resulta-
dos futuros da dominação indiana:

Os efeitos devastadores da indústria quando contemplados com respeito à Índia,


um país tão vasto quanto a Europa, com 150 milhões de acres, são palpáveis e
ambíguos. Mas não podemos esquecer que eles são apenas resultados orgânicos da
constituição atual do sistema de produção como um todo. Que a produção apóia-
se na dominação suprema do capital. Que a centralização do capital é essencial
para a existência do capital como poder independente. Que a influência destrutiva
de tal centralização sobre os mercados do mundo apenas revela, nas dimensões
mais gigantes, as leis orgânicas inerentes da economia política que atualmente
vigoram em toda cidade civilizada. O período burguês da história deve criar a
base material do mundo novo - de um lado relações universais fundadas sobre a
dependência mútua da humanidade, e os meios para essas relações; de outro lado,
o desenvolvimento das forças produtivas humanas e a transformação da produção
material em dominação científica das determinações naturais. (...) Quando uma
grande revolução social dominar os resultados da época burguesa, o mercado do
mundo e as modernas forças de produção, e sujeitá-los ao controle comum dos
povos mais avançados, apenas aí o progresso humano cessará de parecer-se com o
horrendo ídolo pagão que bebe o néctar do crânio do sacrificado.464

O progresso posto pelo capitalismo (desenvolvimento das forças


produtivas, domínio da natureza e relações humanas mundialmente uni-
versais), portanto, põe a possibilidade do “mundo novo”. Como foi dito al-
gumas vezes nesta seção, e extensivamente trabalhado nos capítulos ante-
riores, esse progresso se realiza contraditoriamente: o que não impede sua
identificação, mas com certeza turva seus resultados. Neste espírito Marx
repete, nas anotações de 1881 sobre a questão da comuna rural russa, um
princípio discutido desde o final dos anos 1840:

De um lado, ela [a produção capitalista] desenvolveu de forma maravilhosa as


forças produtivas da sociedade, mas, de outro, trouxe consigo sua própria incom-

464
Ibidem, v. 12, p. 222; grifos nossos.
148 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

patibilidade com as forças que ela mesma engendra. Sua história dali por diante
nada mais é que uma história de antagonismos, crises, conflitos, desastres.465

É porque não estava isolada do mundo, nem sofria dominação direta
estrangeira, que a Rússia poderia “apropriar-se dos resultados positivos desse
modo de produção”, estando, portanto, “em condições de desenvolver e trans-
formar a forma ainda arcaica de sua comuna rural em vez de destruí-la”.466
É porque a Índia fora presa da invasão britânica que suas formas pré-co-
loniais de propriedade dissolver-se-iam na forma burguesa, conferindo ao
desenvolvimento das relações capitalistas de produção no país um caráter
peculiar. Por isso que, nas palavras de Overbeek e Silva: “(...) a realidade
contemporânea não pode ser compreendida sem um exame das diferenças
entre os modos de produção com os quais o capitalismo entrou em contato
em seu voraz saque a nível mundial”.467
Reconhecer que o desenvolvimento do modo de produção capita-
lista põe, na Rússia, na Índia ou em qualquer lugar, possibilidades emanci-
patórias, não significa louvar o capitalismo, muito menos saudar a domina-
ção colonial ou mesmo tratá-la como um mal menor. Se existem diferenças
substanciais entre esses diferentes grupos de textos distantes entre si quase
trinta anos, e acreditamos que existam, elas se devem mais aos diferentes
contextos sócio-históricos dos países analisados e ao acúmulo de experi-
ências históricas da forma moderna de colonialismo, acompanhadas aten-
tamente por Marx, assim como ao desenvolvimento de sua compreensão
do modo de produção capitalista como um todo, do que a suas posições
teóricas sobre o desenvolvimento histórico.
Com Ahmad, achamos curioso que os que se apóiam nesses primei-
ros escritos sobre a Índia para acusar Marx de eurocentrismo deem muito
pouca (ou nenhuma) atenção ao que historiadores “anti-imperialistas” in-
dianos têm a dizer sobre essas questões.468 No que diz respeito aos aspectos
progressivos por trás do horror colonial, para Chandra, “nosso mais proe-

465
K. Marx & F. Engels, Luta de classes na Rússia, 2013, p. 104.
466
Ibidem, p. 105.
467
H. Overbeek & P. Silva, “Marx y el Tercer Mundo”, Revista Mexicana de Sociología, v. 48, n. 1
1986, p. 126.
468
A. Ahmad, “Marx on India: A clarification”, In: A. Ahmad, In theory: Classes, nations, literatures,
1992, p. 223.
Marx diante do mercado mundial: polêmicas em torno de escritos sobre o colonialismo 149

minente historiador do pensamento anti-colonial da intelligentsia burguesa


indiana, que muitas vezes é ele próprio acusado de ser muito nacionalista”:469

(...) a maior parte dos escritores anti-imperialistas concordaria com Marx. Todos,
sem exceção, aceitam que os ingleses introduziram algumas mudanças estrutu-
rais e quase todos eles saúdam essas mudanças (...) Suas críticas não são nunca
meramente ou mesmo principalmente sobre a desintegração do ordenamento
social tradicional pela dominação britânica, mas que a estruturação e construção
do novo era postergada, frustrada e obstruída. De R.C. Dutt, Dadabhai Naoroji e
Ranade até Jawaharlal Nehru e R. P. Dutt, os escritores anti-imperialistas não (...)
condenaram de fato a destruição da estrutura econômica pré-britânica, a não ser
nostalgicamente e na forma de simpatia que qualquer homem decente teria, como
Marx, por exemplo, mostrou pela perda do velho mundo dos “pobres hindus”.470

Além disso, se em certos aspectos a caracterização do modo pré-


colonial de produção indiano foi equivocada, deve-se ter em conta a evolu-
ção da historiografia a esse respeito. Segundo Mukhia:

A noção de mudanças significativas na economia e sociedade indianas pré-co-


lonial é um advento recente na historiografia indiana e não é necessário gran-
de esforço para explicar a ignorância de Marx a esse respeito (...). Ainda assim,
a diferença significativa sugerida por Marx no ritmo e natureza das mudanças
na sociedade indiana pré-colonial vis-à-vis à Europa pré-moderna continua um
importante indicador das diferentes trajetórias de desenvolvimento que aquelas
sociedades seguiram para entrar no mundo moderno.
Os estágios de desenvolvimento europeus - escravidão, feudalismo e capitalismo -
são suficientemente claros (...). Mudanças na Índia são de longo prazo e graduais;
elas têm o efeito de modificar as técnicas de produção existentes e a organização
social da produção; mas elas raramente superam estruturas sociais e econômicas
existentes e a substituem por uma nova, por um novo modo de produção. Isso é
especialmente verdadeiro desde o século VII d.C.471

470
Chandra apud A. Ahmad, “Marx on India: A clarification”, In: A. Ahmad, In theory: Classes,
nations, literatures, 1992, p. 230.
471
Mukhia apud A. Ahmad, “Marx on India: A clarification”, In: A. Ahmad, In theory: Classes,
nations, literatures, 1992, p. 232-233.
150 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

As palavras de Mukhia são importantes para nossa discussão por-


que, entre outras coisas, ajudam a contextualizar a noção de estagnação (ou
imutabilidade) das sociedades asiáticas presente nos artigos do New York
Daily Tribune, assim como no “multilinear”472 Formas que antecederam a
produção capitalista,473 em O capital474 e até mesmo na avaliação prospecti-
va do desenvolvimento da comuna rural russa em 1881. Neste caso, uma vez
mais, diga-se de passagem, o “isolamento” das comunidades rurais russas
guarda, para Marx, forte correlação com sua relativa imutabilidade: “Mas e
a maldição que atinge a comuna? (Isto é, seu isolamento, falta de ligação
entre a vida de uma comuna e a das demais, esse microcosmo localizado que
até agora lhe interditou toda e qualquer iniciativa histórica)”.475
Ainda que baseadas em erros históricos ou explicadas por hipótese
que se mostraram falsas, não se pode deixar de notar que se tratam de com-
parações históricas. Mais especificamente, comparações com um modo de
produção cujo dispositivo interno, a valorização do valor, produz mudan-
ças históricas a uma velocidade sem precedentes. Sucintamente, a estagna-
ção, no sentido de Marx, é relativa, ao invés de absoluta.
Não é tão simples, portanto, defender que as posições de Marx so-
bre a Índia e países asiáticos em geral sejam frutos de meros preconceitos,
a despeito de que nestas discussões o autor tenha se apoiado e reproduzido,
“em muitos pontos”, uma historiografia “contaminada com as banalidades
usuais do eurocentrismo do século XIX (...)”.476 Ademais, deve-se colocar
em justo lugar a escolha de certas metáforas para referir-se à condição in-

472
Cf. K. Anderson, Marx at the margins: On nationalism, ethnicity, and non-western societies,
2010, p. 156.
473
“A forma asiática é a que necessariamente se mantém com mais tenacidade e por mais tempo”.
K. Marx, Grundrisse, 2011a, p. 398.
474
“Por outro lado, quando a forma natural da renda do solo, que na Ásia, constitui o elemento
fundamental do imposto estatal, baseia-se em relações de produção que se reproduzem com a
imutabilidade de condições naturais, aquela forma de pagamento conserva retroativamente a
antiga forma de produção. Tal forma constitui um dos segredos da autoconservação do Império
Turco. Se o comércio exterior, imposto ao Japão pela Europa, acarretar a transformação da renda
in natura em renda monetária, será o fim de sua agricultura exemplar. Suas estreitas condições
econômicas de existência acabarão por se dissolver”. K. Marx, O capital: Crítica da economia
política, livro I, 2013b, p. 214.
475
K. Marx & F. Engels, Luta de classes na Rússia, 2013, p. 112; destaques em negrito nossos.
476
A. Ahmad, “Marx on India: A clarification”, In: A. Ahmad, In theory: Classes, nations, literatures,
1992, p. 229.
Marx diante do mercado mundial: polêmicas em torno de escritos sobre o colonialismo 151

diana, como por exemplo, a que está contida na seguinte afirmação: “A Ín-
dia, assim, não poderia escapar do destino de ser conquistada e a totalidade
de sua história pregressa é a história das sucessivas conquistas sofridas por
ela. A sociedade indiana não tem história alguma, ao menos não tem his-
tória conhecida”.477 Não menos agressiva é a referência à estagnação relativa
das sociedades asiáticas, mais especificamente da China, com o termo “es-
tupidez hereditária”,478 e, porque não, ao “embrutecimento da vida rural” no
feudalismo europeu.479
Não se pode pretender enxergar por trás dessa escolha de palavras
uma posição teórica, sem se levar em conta os textos que explicitamente de-
fendem posições teóricas, tais como A ideologia alemã, Miséria da filosofia,
Manuscritos econômico-filosóficos etc., só para citar alguns escritos anteriores
à suposta ruptura com o “paradigma do Manifesto”. Ademais, não se pode
pensar essa questão na ausência de referências ao estilo literário de Marx
como um todo. Assim, por exemplo, a passagem que citamos acima não é a
única na qual Marx utiliza-se da metáfora da “ausência de história”. Em A ide-
ologia alemã, o país natal de Marx mereceu este epíteto, como vimos no capí-
tulo anterior, e, como acabamos de citar, Marx não deixou de apontar a “falta
de iniciativa histórica” da comuna rural russa. Enfim, se de sua pena saíam
colocações agressivas, não se pode esquecer que ele não as reservava para a
Ásia ou qualquer outro continente, região ou povo. Em Os resultados futuros
da dominação britânica na Índia, por exemplo, é profundamente hipócrita
e inerentemente bárbara a civilização burguesa;480 no texto anterior sobre a
Índia, é “imbecil” o rei inglês;481 em O 18 de brumário de Luís Bonaparte os
camponeses franceses, aquela “massa imatura”,482 não eram “capazes de re-
presentar a si mesmos, necessitando, portanto, ser representados” etc.483

477
K. Marx & F. Engels, Karl Marx & Frederick Engels Collected Works (MECW), v. 12, 1975, p. 217.
478
Ibidem p. 94.
479
K. Marx & F. Engels, Manifesto comunista, 2010, p. 44.
480
K. Marx & F. Engels, Karl Marx & Frederick Engels Collected Works (MECW), v. 12, 1975, p. 221.
481
Ibidem, p. 150.
482
K. Marx, O 18 de brumário de Luís Bonaparte, 2011b, p. 79.
483
Ibidem, p. 143. Notemos que as seguintes considerações de Marx seriam seguramente tachadas
de eurocêntricas, caso não dissessem respeito à França, dada a presença de elementos que tanto
compõem o suposto “paradigma do Manifesto”, quanto confirmam nosso aporte nesta polêmica:
“Os camponeses parceleiros constituem uma gigantesca massa, cujos membros vivem na mesma
situação, mas não estabelecem relações diversificadas entre si. O seu modo de produção os isola
152 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

Igualmente forçada é a tentativa de explicar esses supostos desvios


morais pela herança hegeliana de Marx. Para tanto a escolha de outros flo-
reios estilísticos presentes nos textos sobre a Índia serve de apoio: “ferra-
menta inconsciente da história”; “destino” etc.484 Também neste caso não
são poucos os exemplo de textos nos quais Marx vale-se da atribuição me-
tafórica de propriedades humanas à história ou a determinadas estruturas
sociais, uma vez que o objetivo teórico do autor é, precisamente, captá-las
em seu movimento próprio. Neste caso, a advertência de Silva nos parece
sumamente importante:

Façamos justiça ao estilo literário de Marx: respeitemos suas metáforas como me-
táforas. E façamos justiça às suas teorias científicas: não as confundamos com
seus apoios metafóricos. Boa parte do “determinismo” e do “esquematismo” que
os teóricos burgueses costumam reprovar em Marx provêm dessas confusões, di-
fundidas lamentavelmente por marxistas.485

Em suma, da perspectiva da obra de Marx como um todo, o uso de


algumas metáforas nos textos que discutimos nesta seção, gostemos delas
ou não, não pode ser suficiente para se ler ao reverso sua teoria da histó-
ria. Há certamente uma importante evolução no pensamento do autor nas
décadas de 1850 e 1860, o que é amplamente reconhecido e não estamos

uns dos outros, em vez de levá-los a um intercâmbio recíproco. O isolamento é favorecido pelos
péssimos meios de comunicação franceses e pela pobreza dos camponeses. A sua unidade de
produção, a parcela, não permite nenhuma divisão de trabalho no seu cultivo, nenhuma aplicação
da ciência, portanto, nenhuma multiplicidade no seu desenvolvimento, nenhuma diversidade de
talentos, nenhuma profusão de condições sociais”. Para além dos destaques que indicam a noção
ontológica de progresso de Marx, notemos que, nestas condições apenas a quebra do isolamento (o
que depende de pressupostos materiais, como Marx, indica) possibilitaria uma união política entre
os camponeses, isto é, sua transformação em classe para-si, ao invés da simples constituição por
“adição de grandezas homônimas, como batatas dentro de um saco constituem um saco de batatas”.
Ibidem, p. 142; grifos nossos.
484
K. Marx & F. Engels, Karl Marx & Frederick Engels Collected Works (MECW), v. 12, 1975, p. 132.
Por exemplo, para Zea, em Marx: “Inglaterra, Europa, o sistema capitalista, a burguesia como os
povos de que falava Hegel, são simples instrumentos de um espírito que tem seus próprios fins. Mas
um espírito que encarnou na Europa e que vai pouco a pouco alcançando as metas que se impôs.
A burguesia, instrumento desse espírito o serve para um dia ser dispensada como a casca vazia de
que falava Hegel”. L. Zea, “Visión de Marx sobre América Latina”, Nueva Sociedad, n. 60, 1983, p. 64.
485
L. Silva, O estilo literário de Marx, 2012, p. 55.
Marx diante do mercado mundial: polêmicas em torno de escritos sobre o colonialismo 153

dispostos a negar. Também é certo que essa evolução comparece em artigos


de jornal e avaliações conjunturais em geral realizadas pelo autor.486 Enfim,
podemos julgar e condenar Marx por seu estilo literário muitas vezes agres-
sivo, o uso acrítico da terminologia de sua época,487 por suas avaliações de
conjuntura e conclusões estratégicas488 etc.
No entanto, nos esforçamos por demonstrar que nada disso indica
adesão a algum tipo de filosofia universal da história da parte de Marx.
Portanto, os textos analisados neste capítulo não estão em desacordo com
os escritos essencialmente teóricos discutidos nos capítulos anteriores. Isto
é, a obra do autor não contém qualquer ruptura significativa neste quesito,
embora haja um (quase) contínuo aprofundamento das posições teóricas
defendidas desde os anos 1840, ao ponto de dotar o autor, do alto de sua
tardia Crítica da economia política, com o instrumental categorial neces-
sário para se compreender as complexas inter-relações que conformam o
mercado mundial (embora esta tarefa não tenha sido completada). Reafir-
mamos que se trata, no fundo, de uma questão de compreensão da teoria
de Marx para o desenvolvimento histórico, condição necessária, aliás, para
se pensar o desenvolvimento desigual a partir da obra do autor.

486
Por exemplo, a sua avaliação de que a exacerbação dos antagonismos entre o proletariado e a
burguesia deveria levar diretamente ao desenvolvimento do movimento revolucionário, o fez, por
um lado, “[n]este sentido revolucionário apenas (...)” declarar-se a favor do livre-comércio - logo
após gastar quase a totalidade do tempo de sua conferência demonstrando como o livre-comércio
era danoso para os trabalhadores. K. Marx & F. Engels, Karl Marx & Frederick Engels Collected
Works (MECW), v. 6, 1975, p. 465. Assim como, por outro lado, o levou, durante a maior parte da
década de 1850, a acreditar que nem “guerras nem revoluções devem colocar a Europa de joelhos a
não ser que sejam consequência de uma crise comercial e industrial geral (...)”. Ibidem, v. 12, p. 99.
487
Como, por exemplo, do par dicotômico “civilização” e “barbárie” para referir-se ao mundo
europeu ocidental e às regiões nas quais vigoravam modos pré-capitalistas de produção, embora
Marx muitas vezes tenha se referido ao modo de produção capitalista como inerentemente bárbaro,
como vimos acima.
488
Por exemplo, Marx nunca deixou de considerar o proletariado inglês como central na luta pelo
comunismo, como vimos.
154 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

4.2. Marx, e a América Latina?

Por estranho que possa parecer, ao contrário da polêmica anterior, a que


abordamos nesta seção não se baseia em textos redigidos por Marx, mas
em linhas que o autor deixou de escrever. Referimo-nos à tese defendida
por Aricó em seu influente Marx e a América Latina. Particularmente, uma
pergunta inquieta Aricó: por que Marx escreveu tão pouco sobre nosso
subcontinente, apesar de ter-se ocupado, como vimos, de diversas outras
regiões do planeta. Em suas palavras:

como é possível que Marx se descuidasse, explícita ou implicitamente, da reali-


dade latino-americana, se sua perspectiva de análise o colocava, forçosamente,
frente a frente com uma das peças fundamentais do sistema econômico e político
instituído pela Inglaterra?489

Ainda que este possa ser visto com um daqueles casos em que, antes
das repostas, na própria formulação da pergunta reside o equívoco funda-
mental, acompanhemos o argumento de Aricó, uma vez que nele transparece
uma crítica contundente a Marx, que diz respeito à possibilidade, ou não, de
se compreender o desenvolvimento desigual a partir de seu legado. Para Ari-
có, no arcabouço teórico marxiano residiriam “obstáculos subjetivos, mas (...)
também objetivos que o impediram de ver algo que necessariamente deveria
ver”.490 O importante intelectual argentino acredita que ambas as hipóteses
que aventa para explicar a relativa ausência da América Latina na obra de
Marx põem “em evidência certas tensões internas da reflexão marxiana, deri-
vadas (...) da dificuldade de abandonar por completo a herança hegeliana”.491
É pertinente recordar, a título de introdução, que, como indica o
autor, Marx e a América Latina é resultado de estudos sobre “a difusão do
marxismo no processo de formação do socialismo latino-americano”.492
Uma investigação por alto da trajetória intelectual de Aricó revela seu em-
bate, desde muito cedo, com as engessadas e esquemáticas concepções do

489
J. Aricó, Marx e a América Latina, 1982, p. 65.
490
Ibidem.
491
Ibidem, p. 66.
492
Ibidem, p. 29.
Marx diante do mercado mundial: polêmicas em torno de escritos sobre o colonialismo 155

“marxismo-leninismo” para o desenvolvimento histórico e, especialmente,


com suas consequências para as questões práticas com as quais os revolu-
cionários latino-americanos tiveram (e tem de!) se defrontar.
É com esse espírito que, em abril de 1963, o autor engaja-se na edi-
ção da revista Pasado y Presente, que vem ao mundo com a importante mis-
são de arejar o marxismo latino-americano para além do sufocante dogma-
tismo teórico patrocinado pelas burocracias partidárias ligadas ao Partido
Comunista da União Soviética (PCUS). Nas palavras de Aricó:

A revista, cuja primeira série se conclui em setembro de 1965, pretendia organi-


zar um trabalho de recuperação da capacidade hegemônica da teoria marxista
submetendo-a à prova das demandas do presente. (...) questionávamos o chama-
do “marxismo-leninismo” como patrimônio teórico e político fundante de uma
cultura da transformação.493

A adesão à bem-vinda onda de renovação do marxismo que se ini-


ciara alguns anos antes, precisamente após o XX Congresso do PCUS em
1956, com as denúncias dos crimes de Stálin, rendera ao intelectual cor-
dobês a expulsão do Partido Comunista Argentino. Os anos seguintes são
marcados pela filiação de “Pancho”, “não sem espírito crítico, ao peronismo
de esquerda, através da aproximação à experiência do montonerismo”, e por
uma segunda etapa de edição da Pasado y Presente.494
É apenas nos anos de exílio no México (1976-1983), contudo, que
“Pancho redescobre e problematiza a realidade latino-americana”.495 A par-
tir de meados dos anos 1970, o México foi importante ponto de atração de
diversos militantes e intelectuais de esquerda, forçados a abandonar seus
países que experimentavam sangrentas ditaduras militares. Como recor-
da Burgos, neste período o país foi palco privilegiado de “uma extensa
experiência de reflexão da intelectualidade de esquerda latino-americana
sobre os motivos do fracasso dos projetos transformadores” no subconti-

493
J. Aricó, La cola del diablo: Itinerario de Gramsci en América Latina, 2005, p. 89.
494
E. Ípola, “Para ponerle la cola al diablo”, In: J. Aricó, La cola del diablo: Itinerario de Gramsci en
América Latina, 2005, p. 13.
495
Ibidem.
496
R. Burgos, “La interferencia gramsciana en la producción teórica y política de la izquierda
latinoamericana”, Periferias Revista de Ciencias Sociales, v. 2, n.3, 1997, p. 35.
156 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

nente.496 Em especial, Burgos destaca os vários “importantes encontros”


organizados no México, como o “Seminário de Morelia (Michoacán)”, em
1980. Abertamente inspirado nas contribuições de Antonio Gramsci497 ao
pensamento marxista, o objetivo do Seminário, segundo Aricó no livro
que dele resultou, “era romper este tipo de fenda aberta entre análise da
realidade e propostas teóricas e políticas de transformação”.498
Não é demais ressaltar novamente a justeza da oposição a um
marxismo oficial que “suspeitava de todas aquelas posições que ao en-
fatizar a ‘excepcionalidade’ deixavam supostamente de lado a uniformi-
dade capitalista de tais realidades”.499 Isto é, do contraponto a uma visão
de mundo que era fundamentalmente incapaz de oferecer respostas para
o problema do desenvolvimento desigual, em suas diferentes manifesta-
ções. No livro com o qual debateremos em seguida, contudo, Aricó esfor-
ça-se por demonstrar que tais deformações do marxismo-leninismo têm
raízes na teoria do próprio Marx. Neste seção, nos limitaremos unica-
mente ao debate com as teses que tentam embasar este posicionamento.
Como vimos acima, o autor de Marx e a América Latina adere
à noção de que há uma ruptura na obra marxiana no que diz respeito à
forma como o autor pensava o mundo colonial. Esse corte, situado por
Aricó em meados dos anos 1860, não responderia, contudo, à questão
que acabamos de reproduzir, uma vez que o espaço da América Latina
nas reflexões textuais de Marx permaneceu exíguo.500 Em suas palavras:

497
Sobre a relação entre as contribuições do importante marxista sardo e Marx e a América Latina,
Aricó diz, em um juízo retrospectivo, que se inspirara nas “duas categorias essenciais da análise
teórica de Gramsci, a criticidade e a historicidade”, tanto na “problematização da história do
marxismo”, quanto em sua “tentativa de reconstrução das relações entre o pensamento de Marx
e América Latina”. J. Aricó, La cola del diablo: Itinerario de Gramsci en América Latina, 2005, p.
108. Esta regressão intelectual, contudo, não encontra guarida no corpo textual da obra com a qual
debateremos neste artigo. Em Marx e a América Latina, Aricó não faz nenhuma referência, nem
desenvolve seus argumentos a partir dos conceitos gramscianos. Em suma, a suposta influência não
corresponde a nada mais que uma espécie de petição de princípios, uma inspiração que Aricó teria
buscado para animar uma “visão sem preconceitos, não ideológica, ou, melhor dizendo, laica do
marxismo (...)”. Ibidem.
498
J. Aricó apud R. Burgos, “La interferencia gramsciana en la producción teórica y política de la
izquierda latinoamericana”, Periferias Revista de Ciencias Sociales, v. 2, n.3, 1997, p. 35.
499
J. Aricó, La cola del diablo: Itinerario de Gramsci en América Latina, 2005, p. 99.
500
Aricó reiteradamente diz que “hoje temos evidências de que os textos de Marx e Engels referentes
de forma direta ou indireta à América Latina são mais abundantes do que habitualmente se pensa
Marx diante do mercado mundial: polêmicas em torno de escritos sobre o colonialismo 157

“Ao combater o critério do europeísmo de Marx como princípio explica-


tivo para dar conta de sua oclusão paradoxal, tivemos de percorrer um
exaustivo caminho cujo efeito contraditório é nos mostrar as limitações
de um método (...)”.501 Ou seja, Aricó esforça-se por demonstrar que há
na teoria de Marx, até mesmo em seus momentos mais maduros, uma
incontornável incapacidade de compreender a realidade de nosso conti-
nente, o que explicaria sua suposta negligência.
Acompanhemos de perto, então, a tentativa de resposta de Aricó.
Sua “primeira hipótese (...) refere-se ao peso que pode ter tido na consi-
deração marxiana do ‘caso latino-americano’ a herança filosófica hegelia-
na que, como é sabido, não destinava à América nenhum lugar autôno-
mo na história universal do espírito humano”.502 Este argumento resgata
a temática do estancamento relativo das sociedades asiáticas, discutida
acima, para concluir que a questão situa-se no campo das possibilidades
da passagem dos “povos sem história” ao rol das “nações vitais”, ou “na-
ções históricas”.503 Apesar de reconhecer que o uso desta terminologia
por Marx tenha significado metafórico, Aricó acredita que a falta de fun-
damentação teórica à “noção de ‘povos sem história’” indica que seu uso
tenha um fundo político.504
Segundo o autor, para Marx uma nação provar-se-ia “vital” ou
“histórica” ao demonstrar vontade de lutar “pela conquista de seu próprio
destino”.505 Isto é, as “nações vitais” seriam aquelas “capazes de participa-
rem do desenvolvimento histórico, de constituírem estados autônomos
ou de contarem com as forças suficientes para conquistar no futuro sua
independência nacional”.506 Apesar de tentar apresentar esta noção como

(...)”, sem no entanto apontar quais textos seriam estes. J. Aricó, Marx e a América Latina, 1982,
p. 34. Anderson menciona e comenta um trecho ainda não publicado das notas de Marx sobre
Kovalevsky, escritas entre 1879 e 1882, que trata tanto da colonização espanhola nas Américas
quanto das formas comunais pré-colombianas, temas que já haviam chamado a atenção de Marx
desde, pelo menos, o início dos anos 1850, como vimos na Introdução deste capítulo. K. Anderson,
Marx at the margins: On nationalism, ethnicity, and non-western societies, 2010, pp. 220-224.
501
J. Aricó, Marx e a América Latina, 1982, p. 116.
502
Ibidem, p. 67.
503
Ibidem, pp. 66-68.
504
Ibidem, p. 91-92.
505
Ibidem, p. 77.
506
Ibidem, p. 68-69.
158 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

um resíduo hegeliano nunca superado por Marx, Aricó não tem referên-
cias outras que os escritos do autor sobre a China e a Índia dos anos
1850.507 Neste caso, porém, vimos acima que mesmo as primeiras conside-
rações de Marx sobre estes países tinham por pano de fundo a perspectiva
da libertação nacional autóctone. Assim, mesmo que aceitássemos a carac-
terização do pensamento de Marx por Aricó, não poderíamos deixar de
reconhecer como “históricas” as mencionadas sociedades orientais.
Recordemo-nos que para Aricó esta perspectiva sequer estaria nas
entrelinhas dos textos de Marx sobre a América Latina, já que eles nunca
foram escritos. Precisamente, é nesta ausência que o autor se baseia para
afirmar que, de maneira “indubitável”, “indiscutível”, “evidente” etc., “esta
perspectiva de análise nós a encontramos em Marx (...)”.508 Na verdade, no
único texto de Marx sobre o subcontinente ao qual demonstra ter acesso,
Bolívar y Ponte, é na ênfase às contingências históricas que o autor vê emer-
gir esta suposta faceta hegeliana. Em suas palavras:

Resumindo, pode-se afirmar que foi através do privilegiamento do caráter arbi-


trário, absurdo e irracional do processo latino-americano, pela impossibilidade
de visualizar nele a presença de uma luta de classes que fosse expressão de seu
movimento real e que, portanto, firmasse sua sistematização lógico-histórica, que
Marx se viu obrigado a recolocar a noção, sempre presente no fundo do seu pen-
samento, de “povos sem história”.509

507
Notemos que o trabalho de Aricó caracteriza-se, entre outras coisas, pela ausência de referências
que comprovem suas afirmações. Este é o caso dos textos supostamente eurocêntricos de Marx.
Por exemplo, para falar da noção de “estancamento oriental” é à “ampla seção que Hegel dedica ao
‘mundo oriental’ em suas Lecciones sobre la Filosofia de la Historia Universal (...)” que recorre Aricó,
para logo depois afirmar que é “esta ideia que Marx retoma”, sem, contudo, demonstrá-lo. Ibidem, p.
67. Outra característica notável é o fato de que, na ausência de referências que comprovem o amplo
uso da metáfora “povos sem história” por Marx, Aricó recorra (não apenas neste caso) ao artifício
de tratar o autor e Engels como se fossem uma só pessoa. Isto é, a despeito do título de seu livro,
passa a analisar textos de “Marx e Engels” que, quando listados, revelam-se terem sido escritos,
em sua maior parte, por Engels. Ibidem, p. 69. A propósito, ainda que julguemos tarefa de suma
importâncias a análise dos escritos de Engels sobre os temas discutidos neste capítulo, optamos por
excluí-los de nosso escopo, na medida em que os desenvolvimentos teóricos que nos servem de base
podem ser seguramente atribuídos a Marx.
508
Ibidem, p. 74.
509
Ibidem, p. 105-106.
Marx diante do mercado mundial: polêmicas em torno de escritos sobre o colonialismo 159

Ou seja: na falta de “vitalidade histórica”, a sorte ou o acaso teriam


sido as grandes estrelas das lutas anticoloniais latinoamericanas. Há que se
tomar muito cuidado com generalizações deste tipo. Ainda que o texto de
Marx seja profundamente crítico à Bolívar e, de fato, Marx esforce-se por
apresentá-lo como um inábil líder militar que muitas vezes colhia os louros
de acontecimentos pelos quais, supostamente, não tivera a menor responsa-
bilidade, não é em absoluto este o mesmo tratamento que receberam outras
lideranças militares latino-americanas, como por exemplo Piar e Páez.510
De passagem, notemos que a hipótese de Aricó tem como comple-
mento necessário (para que possa se apoiar no único texto sobre a América
Latina que usa em seu livro) a ideia de que as fontes consultadas para escrever
o verbete em questão não seriam de todo desfavoráveis a seu personagem prin-
cipal ou que, ao menos, Marx teria acesso a outras fontes se assim desejasse.511
No entanto, como argumenta Kohan, os consideráveis erros cometidos por
Marx na análise histórica das lutas lideradas por Bolívar são compreensíveis
“pela falta de informação e o caráter enviesado da escassa bibliografia acessível
no Museu Britânico (...)”.512 Ainda segundo Kohan, os três livros a que Marx
faz referência em Bolívar y Ponte513 foram escritos por “soldados europeus que,
por diversos motivos, mantiveram conflitos pessoais com Bolívar”.514
Seja como for, Marx reconhece que é através de fatos inteiramen-
te contingentes que se desenvolve a história humana, não apenas a latino
-americana, como vimos nos capítulos anteriores.515 Esta frouxa primeira

510
K. Marx & F. Engels, “Bolívar y Ponte”, In: K. Marx & F. Engels, Materiales para la historia de
América Latina, 1972, pp. 84-86.
511
Para Aricó: “E, se se demonstra, como achamos possível, que Marx dispunha de outras fontes,
favoráveis ao seu biografado, a nova pergunta que se coloca é: por que as deixou conscientemente
de lado”. J. Aricó, Marx e a América Latina, 1982, p. 101; grifos nossos. Apesar de não demonstrar o
acesso de Marx a outras fontes, Aricó não se exime de colocar “a nova pergunta”.
512
N. Kohan, Simón Bolívar y nuestra independencia: Una lectura latinoamericana, 2013, p. 182.
513
Indica Marx ao final do longo verbete sobre Bolívar: “Véase: Histoire de Bolivar, par Gén[éral]
Ducodray-Holstein, continuée jusqu’á sa mort par Alphonse Viollet (Paris, 1831); Memoirs of
Gen[eral], John Miller (in the Service of the Republic of Peru); Col[onel] Hippisley’s Account of his
Journey to the Orinoco (London, 1819)”. K. Marx & F. Engels, “Bolívar y Ponte”, In: K. Marx & F.
Engels, Materiales para la historia de América Latina, 1972, p. 93.
514
N. Kohan, Simón Bolívar y nuestra independencia: Una lectura latinoamericana, 2013, p. 179.
515
Tomemos as palavras de Marx, em carta à Kugelmann de 17 de abril de 1871, para nos
recordarmos da posição do autor sobre o papel das contingências no desenvolvimento histórico:
“A história mundial seria na verdade muito fácil de fazer-se se a luta fosse empreendida apenas em
160 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

tentativa de Aricó, no entanto, apóia-se em uma segunda hipótese, na qual


o ensaísta de Córdoba pretende descarregar, como veremos, toda a contun-
dência de sua crítica. Neste caso, ao contrário da ruptura teórica com um
passado eurocêntrico tipificado acima como “paradigma do Manifesto”, é
precisamente pelo resgate sui generis de uma crítica juvenil que Aricó pre-
tende apontar na teoria de Marx, como um todo, o vulto do “fantasma da
irracionalidade ou da positividade na história”.516
Mais uma vez o procedimento passa, como já adiantamos, pela iden-
tificação de Marx a Hegel por meios meramente especulativos, isto é, sem a
utilização de referências textuais comprobatórias. Assim, dá a partida Aricó:

Se na época da reflexão marxiana a América aparecia como um imenso territó-


rio vazio, virtualmente capaz de absorver a superpopulação européia gerada pelo
capitalismo, cuja escassa população autóctone era considerada como tribos ainda
relegadas ao estado natural do selvagismo e incultura; se as repúblicas sul-ame-
ricanas fundavam exclusivamente sua estrutura social na presença ordenadora e
despótica de um poder militar; se, no que se refere aos seus elementos constitu-
tivos básicos, a América não completara nessa época sua etapa de formação, ela
estava instalada em um tempo histórico cujas determinações essenciais, autôno-
mas, próprias, só podiam constituir-se no futuro. Dessa forma, Marx podia sen-
tir-se identificado com as palavras de seu mestre Hegel, que em suas Lições sobre
a Filosofia da História Universal afirmava que o que acontecia no Novo Mundo
não passava de eco do Velho Mundo e, portanto, de reflexo de uma vida alheia.517

Ao que parece, portanto, Aricó curiosamente acredita que a


perspectiva unilinear para o desenvolvimento histórico, a qual fizemos
referência na seção anterior, teria sido superada por Marx, a não ser
para o caso da América Latina. Isto porque, segundo Aricó, aos olhos de

condições nas quais as possibilidades fossem infalivelmente favoráveis. Seria, por outro lado, coisa
muito mística se os ‘acidentes’ não desempenhassem papel algum. Esses acidentes mesmos caem
naturalmente no curso geral do desenvolvimento e são compensados outra vez por novos acidentes.
Mas a aceleração e a demora são muito dependentes de tais ‘acidentes’, que incluem o ‘acidente’ do
caráter daqueles que de início ficam à frente do movimento”. K. Marx, O 18 brumário e cartas a
Kugelmann, 1977, p. 293.
516
J. Aricó, Marx e a América Latina, 1982, p. 81.
517
Ibidem, p. 82-83.
Marx diante do mercado mundial: polêmicas em torno de escritos sobre o colonialismo 161

Marx nosso continente estaria condenado “a um presente aberto apenas à


perspectiva imediata de uma repetição do caminho percorrido pela Europa
(...)”.518 A partir disso, Aricó está apto a oferecer um diagnóstico: para Marx
a “interioridade” da América Latina “era inapreensível e, enquanto tal,
inexistente”.519 Marx, então, sofreria de um tipo de “cegueira teórica”:520 não
seria capaz de enxergar a formação dos Estados latino-americanos, uma vez
que “seria impossível encontrar neste processo de construções de estados
algo idêntico ou semelhante ao ocorrido na Europa, por exemplo”.521
Para Aricó, diante do fenômeno do desenvolvimento desigual, o
autor de A ideologia alemã teria decidido deixar de lado uma realidade que
não se encaixaria nos moldes da formação dos Estados nacionais europeus.
A bem da verdade, para Aricó, a Marx não teria restado escolha, uma vez
que abaixo do Rio Grande a construção nacional fora um “fato puramente
estatal”, uma antinomia insolúvel para a teoria marxiana.522 Explica o autor
com quem debatemos:

Era essencialmente a característica do processo, muito mais que sua debilidade ou


inexistência, a motivadora da atitude omissa de uma dinâmica histórico-social que
contrastava violentamente com a concepção própria de Marx sobre o estado. Se um
princípio de sua teoria era a negação do estado como centro produtor da sociedade
civil; se, como afirma reiteradamente e volta a repetir em suas observações a Maine,
“a suposta existência independente e suprema do estado só é aparente e (...) em
todas suas formas é uma excrescência da sociedade”, sua visão da sociedade civil la-
tino-americana, como o primado do arbítrio, implicava, necessariamente a desqua-
lificação dos processos de construção de estados que ali se operavam. É por isso que
só vê neles a arbitrariedade, o absurdo e, em resumo, a irracionalidade autoritária.523

Notemos de passagem que a crítica de Aricó possui antecedentes


que vão ficando cada vez mais claros conforme o autor desenvolve seu ar-
gumento. A suposta incapacidade de compreender a autonomia da esfera

518
Ibidem, p. 83.
519
Ibidem.
520
Ibidem, p. 106.
521
Ibidem, p. 85.
522
Ibidem, p. 87.
523
Ibidem, p. 87-88.
162 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

estatal dever-se-ia ao “economicismo” de Marx, ou seja, à “projeção elíptica


da imanência setorial do ‘econômico’ sobre a totalidade das relações sociais
e de sua história enquanto transformação permanente”.524 É lógico que se as
determinações econômicas guardam uma relação de antecedência única,
exaustiva e necessária com as demais esferas do ser, todas as relações so-
ciais podem ser reduzidas ao “econômico”. Em adição, fica absolutamente
inconcebível a desigualdade no desenvolvimento dos diversos complexos
que conformam o ser social. Nos termos de Aricó:

O ataque da concepção hegeliana do estado teve o efeito contraditório de obscu-


recer sua visão de um processo caracterizado por uma relação assimétrica entre
economia e política, de modo que, não podendo individualizar o “núcleo racio-
nal” constitutivo do processo - a “lei de movimento” da sociedade - Marx reduziu
a “política” a puro arbítrio, sem poder compreender que era precisamente nessa
instância onde o processo de construção estatal tendia a se coagular. Lembremos
que a negação do estado como centro produtor da sociedade civil é um princípio
constitutivo do pensamento de Marx.525

Tal ausência de uma teorização sobre o Estado não estaria, portan-


to, restrita ao caso latino-americano. Do determinismo econômico derivar-
se-ia a exclusão, no “sistema marxiano”, de “uma teoria e uma análise positi-
va das formas institucionais e das funções do político”.526 Como se pode ver,
formulação apresentada por Aricó está longe de ser original. Kohan resgata
debates iniciados em princípios do século XX para concluir que, apesar dos
inúmeros questionamentos, a leitura economicista de Marx “continuou du-
rante muito tempo sendo aceita na Academia (...) como a ‘verdade última’
do marxismo”.527 Mais especificamente, Casas observa que as teses de Aricó
remontam às posições defendidas por Bobbio.528

524
Ibidem, p. 107.
525
Ibidem, p. 107; grifos nossos.
526
Ibidem, p. 109.
527
N. Kohan, Marx en su (Tercer) Mundo: Hacia un socialismo no colonizado, 2009, p. 75.
528
A. Casas, “Cuestión nacional-colonial y ‘eurocentrismo’ en Marx: Implicaciones para América
Latina”, Oikos: Revista de economia heterodoxa, n. 9, 2009, p. 57.
Marx diante do mercado mundial: polêmicas em torno de escritos sobre o colonialismo 163

No final dos anos 1970, por razões fundamentalmente políticas -


como demonstra Kohan -, ganham notoriedade “as numerosas polêmicas
desenvolvidas na cultura italiana e europeia em geral pelo professor Nor-
berto Bobbio, de vasta repercussão e influência na intelectualidade da Ar-
gentina, México e outros países da América Latina”.529 De fato, ainda que
nos pareça possível rastrear em escritos anteriores de Aricó a raiz das críti-
cas que estamos analisando nesta seção,530 parece-nos que Marx e a América
Latina, curiosamente, representa a definitiva adesão do professor argenti-
no, radicado no México, à moda europeia. Kohan descreve-a sucintamente:
“O requisito subjacente consiste em reduzir Marx, etiquetá-lo e arquivá-lo
como simples teórico do ‘fator econômico’ para poder, em seguida, declarar
aos quatro ventos que o marxismo carece de uma teoria política”.531
Não nos cabe aqui reafirmar a teoria política ou discutir o desen-
volvimento da teoria do Estado de Marx, mas responder ao ataque delibe-
rado de Aricó à possibilidade de se pensar o mercado mundial a partir das
formulações marxianas. Para tanto, optamos por um caminho relativamen-
te simples. Destarte, recordemos a alusão feita por Árico à crítica juvenil de
Marx à filosofia do direito de Hegel.
Argumentamos no primeiro capítulo que a tenra posição de Marx
na referida crítica pode ser vista, retrospectivamente, como um dos primei-
ros sinais de uma ontologia do ser social posteriormente desenvolvida pelo
autor, como em seguida nos esforçamos por demonstrar no segundo e no
terceiro capítulos. Ainda que Aricó compreenda equivocadamente o signi-
ficado do rechaço de Marx “ao papel do estado como instância produtora
da sociedade civil”, propomos tomar inicialmente a questão exatamente no
sentido dado pelo autor.532 Nossa intenção não consiste em puramente de-

529
N. Kohan, Marx en su (Tercer) Mundo: Hacia un socialismo no colonizado, 2009, p. 76.
530
Por exemplo, lê-se em um texto que consiste na transcrição de um curso proferido em 1977: “O
que Marx sustenta em A ideologia alemã como elemento vertebrador e como proposta de trabalho
para este movimento que haveria de criar eram dois grandes campos de problemas: a dedução a
partir da base real da sociedade de todas as superestruturas idealistas, de todas as superestruturas
ideológicas que encobriam a sociedade capitalista, vale dizer, a revelação da natureza real do estado,
do direito, da história, da ciência, de todos os elementos que conformam a vida social (...)”. J. Aricó,
Nueve lecciones sobre economía y política en el marxismo, 2011, p. 27; destaque em negrito nosso.
531
N. Kohan, Marx en su (Tercer) Mundo: Hacia un socialismo no colonizado, 2009, p. 80.
532
J. Aricó, Marx e a América Latina, 1982, p. 104
164 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

monstrar que a crítica de Aricó, mesmo nos seus termos, carece de sentido.
Adicionalmente, queremos descartar de vez a falsa ideia de que a teoria
marxiana negar-se-ia a “dotar a esfera estatal de eficácia própria (...)”;533 as-
sim como apresentar a base real de erros como o de Aricó.
Com tão modestos objetivos, não precisamos ir além do famoso
capítulo A assim chamada acumulação primitiva, de O capital, no qual Marx
discute a emergência de pressupostos históricos do modo de produção ca-
pitalista. A saber: “(...) a existência de massas relativamente grandes de ca-
pital e de força de trabalho nas mãos de produtores de mercadorias”.534 A
questão de fundo no capítulo, portanto, é apresentar o “pecado original”
do modo de produção capitalista, em uma analogia que dá, desde o início,
seu tom. Aqui não se vê a peculiar agressividade com que Marx defronta-se
ao reacionarismo romântico ocupar grande espaço (como nos primeiros
textos sobre a Índia),535 uma vez que se trata, fundamentalmente, de um
contraponto às fantasiosas narrativas da economia política, assim resumi-
das pelo autor:

Numa época muito remota, havia, por um lado, uma elite laboriosa, inteligente e
sobretudo parcimoniosa, e, por outro, uma súcia de vadios a dissipar tudo o que
tinham e ainda mais. (...) Deu-se, assim, que os primeiros acumularam riquezas e
os últimos acabaram sem ter nada pra vender, a não ser sua própria pele.536

533
Ibidem, p. 109.
534
K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro I, 2013b, p. 785.
535
Isso não significa que o antirromantismo de Marx não tenha vindo à tona. Sintomaticamente,
o capítulo é fechado com uma passagem, em nota, do Manifesto do partido comunista, que
reproduzimos em parte: “De todas as classes que hoje em dia se opõem à burguesia, só o proletariado
é uma classe verdadeiramente revolucionária. As outras classes degeneram e perecem com o
desenvolvimento da grande indústria; o proletariado, pelo contrário, é seu produto mais autêntico.
(...) As camadas médias - pequenos comerciantes, pequenos fabricantes, artesãos, camponeses
- combatem à burguesia porque esta compromete sua existência como camadas médias (...) são
reacionárias, pois pretendem fazer girar para trás a roda da História”. K. Marx & F. Engels, Manifesto
comunista, 2010, p. 49. Ademais, fica evidente nesta passagem, assim com em diversas outras de A
assim chamada acumulação primitiva, que Marx emprega os termos “proletário” e “proletariado” em
sentido literal, isto é, como indivíduo e classe que dependem da venda da força de trabalho - seja na
indústria urbana ou agrícola.
536
K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro I, 2013b, p. 785.
Marx diante do mercado mundial: polêmicas em torno de escritos sobre o colonialismo 165

No texto, portanto, esses belos contos burgueses são confrontados


com a “história real”, na qual, “como se sabe, o papel principal é desem-
penhado pela conquista, a subjugação, o assassínio para roubar, em suma,
a violência”.537 Sinteticamente: “Na realidade, os métodos da acumulação
primitiva podem ser qualquer coisa, menos idílicos”.538
Nos interessam para o debate com Aricó, sobretudo, os momentos
em que Marx reconhece o Estado como um agente fundamental dos pro-
cessos de aterradora violência extra-econômica que puseram as condições
necessárias para a produção capitalista desenvolvida. Isto é - no sentido
dado por Aricó -, momentos em que o “Estado produz a sociedade civil”. A
“produção da sociedade civil”, isto é, da sociabilidade burguesa, pressupõe
o domínio do capital sobre a produção e, portanto, que sejam postos frente
a frente “duas espécies bem diferentes de possuidores de mercadorias”:

(...) de um lado, possuidores de dinheiro, meios de produção e meios de subsistên-


cia, que buscam valorizar a quantia de valor de que dispõem por meio da compra
de força de trabalho alheia; de outro, trabalhadores livres, vendedores da própria
força de trabalho e, por conseguinte, vendedores de trabalho.539

Assim, do ponto de vista da oferta de braços para o processo de


produção segundo a lógica da expansão do valor, importa: por um lado,
observar de que maneira o Estado operou momentos do “processo de se-
paração entre o trabalhador e a propriedade das condições de realização de
seu trabalho (...)”;540 por outro, analisar de que maneira o Estado favoreceu
a imposição ao proletariado do hábito do assalariamento, isto é, da venda
da força de trabalho. Além disso, devemos ressaltar o relato de Marx sobre
a atuação do Estado como indutor da emergência e consolidação da classe
capitalista em suas diferentes frações, mas especialmente, dado o escopo do
livro I de O capital, dos capitalistas industriais.
O longo processo de gênese ontológica das condições necessárias à
produção capitalista deu-se ao fundo da “luta vitoriosa contra o poder feu-

537
Ibidem, p. 786.
538
Ibidem.
539
Ibidem.
540
Ibidem.
166 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

dal e seus privilégios revoltantes”.541 Esta luta política teve por palco privi-
legiado o Estado, que por fim moldou-se à nova ordem, embora não como
reflexo perfeito das determinações econômicas, mas pela forma necessaria-
mente desigual com que as lutas de classes o conforma em cada momento
e lugar. Assim, em termos muito gerais, pensava Marx o Estado-burguês,
como vimos nos capítulos anteriores e voltaremos a discutir com brevidade
mais adiante, abstendo-nos, contudo, de abordar os complexos meandros
da efetiva concretização das formas políticas.
Notemos que “se os cavaleiros da indústria desalojaram os cavaleiros
da espada, isso só foi possível porque os primeiros exploraram acontecimen-
tos nos quais eles não tinham a menor culpa”.542 Assim, tomando os eventos
ingleses como ilustração deste processo, Marx aponta que entre as causas da
dissolução da unidade entre trabalhadores e condições objetivas do trabalho,
a Reforma Protestante, no século XVI, configurou-se como um “terrível im-
pulso”, através do “roubo colossal dos bens da Igreja”.543 Segundo o autor:

Os próprios bens eclesiásticos foram, em grande parte, presenteados aos rapaces


favoritos do rei ou vendidos por um preço irrisório a especuladores, sejam ar-
rendatários ou habitantes urbanos, que expulsaram em massa os antigos vassalos
hereditários e açambarcaram suas propriedades.544

O Estado inglês, como espaço de afirmação dos interesses de uma


elite dominante seguiu, ainda que acidentalmente, forjando as condições
que (post festum) sabemos necessárias a este modo de produção. Esse
mote de usurpação de terras, taxações escorchantes sobre os camponeses
e transformação de títulos feudais em “propriedade privada de bens”
traspassou todo o período da restauração dos Stuarts, até que a Revolução
Gloriosa, no final do século XVII, “conduziu ao poder, com Guilherme
III de Orange, os extratores de mais-valor, tanto proprietários fundiários
como capitalistas”.545 Daí em diante, passou-se a praticar “em escala colossal

541
Ibidem, p. 787.
542
Ibidem, p. 787.
543
Ibidem p. 792-793.
544
Ibidem, p. 793.
545
Ibidem, p. 795.
Marx diante do mercado mundial: polêmicas em torno de escritos sobre o colonialismo 167

o roubo de domínios estatais que, até então, era realizado apenas em


proporções modestas”.546
Se até aí a expropriação das massas trabalhadoras, a mercantiliza-
ção do solo e a acumulação de capital nas mãos de uma minoria privile-
giada davam-se por meios ilegais, ainda que através do Estado, a partir do
século XVIII a própria legislação torna-se “o veículo do roubo das terras do
povo (...)”.547 De acordo com Marx:

A forma parlamentar do roubo é a das “Bills for Inclosures of Commons” (leis


para o cercamento da terra comunal), decretos de expropriação do povo, isto é,
decretos mediante os quais os proprietários fundiários presenteiam a si mesmos,
como propriedade privada, com as terras do povo.548

Por fim, no século XIX a Grã-Bretanha assistiu ao “último grande


processo de expropriação que privou os lavradores da terra (...)”, o “clearing
of estates”, isto é, limpeza das propriedades, “o que significa, na verdade,
varrê-las de seres humanos”.549 Esta fase do bárbaro processo de expulsão
e extermínio de milhares de famílias teve lugar, especialmente, nas altas
terras escocesas. Sua ignomínia é exemplificada por Marx pelas “limpezas”
realizadas “por ordem da duquesa de Sutherland”. “Essa pessoa, instruída
em matérias econômicas, decidiu (...) aplicar um remédio econômico radi-
cal, transformando em pastagens o condado inteiro (...)”.550
Em suma, estes e outros “métodos conquistaram o campo para a
agricultura capitalista, incorporaram o solo ao capital e criaram para a in-
dústria urbana a oferta necessária de um proletariado inteiramente livre”.551
No que diz respeito à última das listadas consequências da desavergonhada
violência praticada, inclusive através do Estado, notemos que em se tratan-
do de um processo massivo iniciado no século XV, resulta claro que “esse
proletariado inteiramente livre não podia ser absorvido pela manufatura
emergente com a mesma rapidez com que fora trazido ao mundo”. Além

546
Ibidem.
547
Ibidem, p. 796.
548
Ibidem.
549
Ibidem, p. 800.
550
Ibidem, pp. 800-802.
551
Ibidem, p. 804.
168 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

disso, “os que foram repentinamente arrancados de seu modo de vida cos-
tumeiro tampouco conseguiam se ajustar à disciplina da nova situação”.552
Nesse contexto, ainda que variasse o objetivo imediato, o Estado
cumpriu a função histórica fundamental (post festum) de moldar os hábitos
dessa enorme horda de miseráveis. O notável aumento da miséria, com a
profusão de “mendigos, assaltantes, vagabundos, em parte por predispo-
sição, mas na maioria dos casos por força das circunstâncias”, explica “o
surgimento em toda a Europa ocidental, no final do século XV e ao longo
do século XVI, de uma legislação sanguinária contra a vagabundagem”.553
A educação das massas para as novas formas de vida correspondia
a uma condição absolutamente fundamental para o incipiente modo de pro-
dução burguês. O Estado atuou decisivamente também neste aspecto. Com
o desenvolvimento da sociabilidade do valor, a violência extra-econômica
transforma-se gradativamente em momento subordinado. No entanto, en-
quanto a “subordinação do trabalho ao capital era apenas formal”, isto é, antes
da afirmação plena das tendências relativas ao modo capitalista de produção:

A burguesia emergente requer e usa a força do Estado para “regular” o salário,


isto é, para comprimi-lo dentro dos limites favoráveis à produção de mais-valor,
a fim de prolongar a jornada de trabalho e manter o próprio trabalhador num
grau normal de dependência. Esse é um momento essencial da assim chamada
acumulação primitiva.554

A criminalização dos movimentos dos trabalhadores corresponde


a um importante filão da “sórdida ação do Estado” para elevar “o grau de
exploração do trabalho e, com ele, a acumulação do capital (...)”.555 Sobre
isso, Marx relata a proibição das coalizões de trabalhadores, vigente na In-
glaterra desde o século XIV e revogada apenas em 1825, “diante da atitude
ameaçadora do proletariado”, mas cujos últimos resquícios são formalmen-
te eliminados no país apenas em 1871.556 Ainda assim, a mera liberação

552
Ibidem, p. 805.
553
Ibidem, p. 806.
554
Ibidem, p. 809.
555
Ibidem, p. 813.
556
Ibidem, p. 810-811.
Marx diante do mercado mundial: polêmicas em torno de escritos sobre o colonialismo 169

formal não significa que o Estado, na Inglaterra ou em qualquer outra parte,


passe a eximir-se da responsabilidade por essa e outras tarefas que colabo-
ram para a elevação do grau de exploração da força de trabalho.557
Consolidado o modo de produção burguês, o Estado não deixa de
atuar de maneira decisivamente propulsora para a acumulação de capital,
nem se torna dispensável, em termos absolutos, a violência extra-econômi-
ca. Mas as determinações propriamente econômicas, a seu modo estupida-
mente violentas, assumem posto central, condicionando, inclusive, o exercí-
cio da força. Ademais, a correlação das forças das classes cujo antagonismo
assume necessariamente forma política determina o desenvolvimento da
forma estatal que, portanto, não necessariamente obedece de maneira di-
reta às necessidades do processo de acumulação de capital. Isto é, que se
desenvolve em desigualdade com relação ao modo de produção. Assim, por
exemplo, apesar dos pouco convincentes, mas elegantes, modelos matemá-
ticos da ortodoxia econômica, a lei do salário mínimo (ainda que fixado, em
geral, a nível muito abaixo das necessidades básicas de uma família trabalha-
dora, como no caso do Brasil) tem ainda hoje vigência em diversos países.
A sequência lógica do tema nos defronta, e a Marx, com a seguinte
pergunta: “de onde se originam os capitalistas?”558 Seguimos nos ocupando
apenas do papel do Estado neste processo que, como demonstra Marx, re-
presenta indispensável impulso para a gênese da indústria burguesa. Ape-
sar de Aricó curiosamente considerar que o relato permeado por fatores
contingentes sobre a formação de Estados nacionais na América Latina, em
Bolivar y Ponte, revelaria o desprezo de Marx pelos povos do continente, já
notamos que uma série de casualidades históricas se mostraram fundamen-
tais para a emergência das condições para a sociabilidade burguesa. No que
diz respeito ao acúmulo vultuoso de capital em poucas mãos, momentos
fortuitos não foram menos importantes:

A descoberta das terras auríferas e argentíferas na América, o extermínio, a escra-


vização e o soterramento da população nativa nas minas, o começo da conquista
e saqueio das Índias Orientais, a transformação da África numa reserva para a

557
Na sequência do texto Marx discute a forma dissimulada como a legislação anticoalizão foi
regatada logo após sua formal abolição em 1871. Ibidem, p. 812.
558
Ibidem, p. 813.
170 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

caça comercial de peles-negras caracterizam a aurora da era da produção capita-


lista. Esses processos idílicos constituem momentos fundamentais da acumulação
primitiva. A eles se segue imediatamente a guerra comercial entre as nações euro-
péias, tendo o globo terrestre como palco.559

Assim, o mercado mundial está nas raízes deste modo de produção


que, ademais, só se pode desenvolver com base na subordinação de nações
que orbitam sua periferia. Isso indica, indubitavelmente, que a forma desse
desenvolvimento no mercado mundial não pode ser senão desigual. A partir
da expansão colonialista, Marx nota o encadeamento de momentos essen-
ciais para a gênese desse modo de produção (ou, para a “produção da socie-
dade civil” desenvolvida, diria Aricó), através do Estado. Sua naturalidade
inglesa, ainda que permeada de contingências, não é meramente casual:

Na Inglaterra, no fim do século XVII, esses momentos foram combinados de modo


sistêmico, dando origem ao sistema colonial, ao sistema da dívida pública, ao mo-
derno sistema tributário e ao sistema protecionista. Tais métodos, como, por exem-
plo, o sistema colonial, baseiam-se, em parte, na violência mais brutal. Todos eles,
porém, lançaram mão do poder do Estado, da violência concentrada e organizada da
sociedade, para impulsionar artificialmente o processo de transformação do modo
de produção feudal em capitalista e abreviar a transição de um para o outro.560

As onerosas despesas do sistema colonial, argumenta Marx, tinham


como complemento necessário o endividamento do Estado, isto é, o “siste-
ma de crédito público”. Por um lado, “uma das alavancas mais poderosas
da acumulação primitiva”; por outro, impulsor da “sociedade por ações, o
comércio com papéis negociáveis de todo tipo, a agiotagem, numa palavra:
o jogo da Bolsa e a moderna bancocracia”. Sabemos que o desenvolvimento
das formas de capital logicamente derivadas do capital-dinheiro é ponto de
apoio sine qua non do desenvolvimento do capital industrial, como Marx
reconhece e trata em detalhes nas seções 4 e 5 do livro III de O capital.
Grandes bancos desenvolvem-se “sob a guarda dos governos” e, com as dí-
vidas públicas, surge “um sistema internacional de crédito”, que se conver-

559
Ibidem, p. 821.
560
Ibidem, p. 821; grifos nossos.
Marx diante do mercado mundial: polêmicas em torno de escritos sobre o colonialismo 171

te em campo privilegiado de extração de mais-valor internacionalmente e,


portanto, de acumulação primitiva “neste ou naquele povo”.561
Da necessidade da geração de receitas pelo Estado para cobrir o
pagamento da dívida, a necessidade do “moderno sistema tributário”.
Monstruosa ferramenta cuja “eficácia expropriadora é ainda reforçada pelo
sistema protecionista, uma de suas partes integrantes”.562 Em suma, Marx
cuidadosamente aborda o papel do Estado na “produção da sociedade ci-
vil”, o que joga por terra críticas desatentas como as de Aricó e consortes.
O papel histórico fundamental do Estado para o desenvolvimento do modo
de produção capitalista, ademais, representa a base real das mistificações
estatistas do tipo reproduzido por Aricó.
No entanto, o sentido dado por Aricó à relação entre Estado e so-
ciedade civil em Marx não nos cai bem, simplesmente porque é catego-
rialmente equivocado. Como discutimos nos capítulos anteriores, a esfera
da produção (e reprodução) material da existência guarda com as demais
esferas que compõem o ser social uma relação de prioridade ontológica.
Isso significa “apenas” que a reprodução material, a esfera econômica, re-
presenta a condição essencial para a existência humana. Dito em outros
termos, é pela esfera econômica que se garante a continuidade da existência
e, portanto, a história humana.
É precisamente neste sentido que Marx fala da relação entre socieda-
de civil e Estado, como já demonstramos. Voltamos a afirmar, para nos contra-
por a Aricó, que isso não significa a projeção mecânica do “econômico” sobre
os demais complexos da objetivação social. Como magistralmente defende o
último Lukács, “da prioridade ontológica de um modo de ser com relação aos
demais não se segue nenhum tipo de posicionamento nem no sentido positi-
vo nem no sentido negativo dentro de alguma hierarquia de valores”.563
No pólo oposto, mas igualmente falso, reside o que Lukács chama
de “fetichização do complexo”, que corresponde à atribuição de uma auto-
nomia absoluta a alguma esfera da existência.564 A ontologia marxiana re-
conhece que cada complexo tem, em si, determinações próprias e, portanto,

561
Ibidem, p. 824-825.
562
Ibidem, p. 826.
563
G. Lukács, Para uma ontologia do ser social II, 2013, p. 258.
564
Ibidem, p. 251.
172 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

uma dinâmica própria. Contudo, essa autonomia necessária não pode im-
plicar a completa “independência em relação à estrutura e à dinâmica do
desenvolvimento do respectivo estágio da sociedade”.565 Isto é, o ser social
pode ser representado como um “complexo de complexos”, cujo movimen-
to tem por condicionante último a esfera da produção material e no qual
cada complexo (inclusive o econômico) apresenta-se com uma autonomia
apenas relativa - como tentamos demonstrar de maneira mais cuidadosa no
capítulo anterior.
Desta forma, são extremamente variadas as possibilidades resultan-
tes da interação entre os diversos complexos que conformam o ser social.
Isso significa que o desenvolvimento deve assumir um caráter desigual tanto
no que diz respeito à relação entre os complexos, isto é, um complexo não
pode nunca ser meramente deduzido de outro; quanto no que diz respeito ao
desenvolvimento de um modo de produção em diferentes contextos sociais
gerais, o que só representa uma efetividade concreta no modo de produção
capitalista, como já apontamos. A propósito, acreditamos que seja essa a fun-
damentação teórica subjacente ao seguinte comentário sucinto de Marx:

A “sociedade atual” é a sociedade capitalista, que, em todos os países civilizados,


existe mais ou menos livre dos elementos medievais, mais ou menos modificada
pelo desenvolvimento histórico particular de cada país, mais ou menos desenvolvi-
da. O “Estado atual”, ao contrário, muda juntamente com os limites territoriais do
país. No Império prussiano-alemão, o Estado é diferente daquele da Suíça; na In-
glaterra, ele é diferente daquele dos Estados Unidos. “O Estado atual” é uma ficção.
No entanto, os diferentes Estados dos diferentes países civilizados, apesar de suas
variadas configurações, têm em comum o fato de estarem assentados sobre o solo
da moderna sociedade burguesa, mais ou menos desenvolvida em termos capita-
lista. É o que confere a eles certas características comum essenciais.566

Ademais, é justamente no contexto da relação entre o modo bur-


guês de produção e as “relações jurídicas, tais como formas de Estado”,567

565
Ibidem, p. 260.
566
K. Marx, Crítica do programa de Gotha, 2012b, p. 42.
567
K. Marx, Para a crítica da economia política, 1986, p. 25.
Marx diante do mercado mundial: polêmicas em torno de escritos sobre o colonialismo 173

que Marx põe a questão resgatada em termos profundamente deformados


por Aricó. Não por acaso, portanto, propomos a seguir uma discussão so-
bre os problemas relativos ao desenvolvimento desigual do modo de pro-
dução capitalista no mercado mundial, a partir da Crítica da economia
política de Marx. Metodologicamente, Marx é consequente ao finalmente
escolher partir das considerações gerais sobre o modo de produção capi-
talista. Nossa questão fundamental é, especificamente, buscar um sentido
nas formulações marxianas que nos ajude a pensar como o desenvolvi-
mento geral deste modo de produção tende a criar as diferenças, isto é,
assumir um caráter desigual.
CAPÍTULO 5

Lei do valor e desenvolvimento desigual

Introdução

Foram absolutamente miseráveis as condições de vida de Marx e sua família


na maior parte do tempo que cobre a redação de O capital e do que se con-
sidera usualmente como seus manuscritos preparatórios. Constantemente
abatido por doenças crônicas, pela morte de entes queridos e por polêmi-
cas públicas dentro e fora do movimento revolucionário, Marx pôde dar
continuidade ao antigo projeto de sua Crítica da economia política apenas
de modo muito intermitente. A derrota do proletariado na onda revolucio-
nária que sacudiu a Europa no final dos anos 1840 impôs, por um lado, o
exílio (desta vez definitivo) de Marx na Inglaterra e, por outro, a retomada
dos estudos sobre economia política.
Para o autor, as possibilidades revolucionárias na Europa estavam
predicadas à ocorrência de uma nova crise mundial e, portanto, o projeto de
se compreender o funcionamento do modo de produção capitalista urgia.
Ainda que Marx tenha posteriormente abandonado esse otimismo exces-
sivo com relação às possibilidades revolucionárias decorrentes dos efeitos
das crises econômicas, sua posição explicita a distância entre Marx e Engels
e outros “(...) líderes democráticos e políticos da época, que ele caracterizou
como ‘alquimistas da revolução’, [e] pensavam que o único pré-requisito para
uma revolução vitoriosa era a ‘preparação adequada de sua conspiração’”.568
Não sem razão, portanto, grande parte do período que estamos
considerando é marcado pela abstenção de ambos da participação em orga-
nizações políticas, o que é quebrado apenas com a fundação da Associação
Internacional dos Trabalhadores, em 1864. Uma carta de Marx a Engels a
11 de fevereiro de 1851 documenta esta decisão voluntária: “Estou enorme-
mente satisfeito com o autêntico isolamento público no qual nós dois, você

M. Musto, “A formação da crítica de Marx à economia política: Dos estudos de 1843 aos
568

Grundrisse”, Crítica Marxista, n. 33, 2011, p. 42; adendo nosso.

175
176 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

e eu, nos encontramos agora. Está em completo acordo com nossa atitude
e nossos princípios”.569
Nesse período, o voraz apetite intelectual de Marx encontrou guarida
na biblioteca do Museu Britânico, de onde saíram as leituras resumidas “em 26
livros de anotações, dos quais 24 (também contendo textos de outras discipli-
nas) [que] ele compilou entre setembro de 1850 e agosto de 1853, numerando
-os entre os chamados Cadernos de Londres”.570 Como recorda o próprio autor:

Esses estudos, em parte por causa de seu próprio caráter, chegaram a disciplinas
aparentemente afastadas do plano original, nas quais tive de deter-me por mais ou
menos tempo. Mas foi sobretudo a necessidade imperiosa de exercer uma profis-
são para ganhar a vida que me reduziu o tempo disponível.571

Já sabemos que essa profissão foi a de correspondente internacional


no New York Daily Tribune, cujo salário, ademais, era absolutamente insufi-
ciente para cobrir as despesas da família Marx, para não falar das constantes
trapaças dos editores do jornal no que diz respeito ao pagamento de seu co-
laborador. Durante todo esse período Marx manteve o otimismo com rela-
ção ao advento de uma nova crise econômica, por aferrar-se à crença de que
a ela seguir-se-ia uma insurreição proletária. Seguidos erros na previsão
de seu início foram cometidos, até que, finalmente, em 1857 uma crise de
proporções mundiais estala a partir dos EUA. Nem mesmo seus efeitos de-
letérios sobre a renda da própria família572 foram capazes de impedir Marx
de retomar sistematicamente seus estudos e redigir, entre meados de 1857 e
o princípio de 1858, os oito cadernos que hoje conhecemos por Grundrisse
e os chamados Cadernos da crise “(...) para um panfleto que queria escrever
com Engels, que, contudo, nunca foi realizado”.573

570
M. Musto, “A formação da crítica de Marx à economia política: Dos estudos de 1843 aos
Grundrisse”, Crítica Marxista, n. 33, 2011, p. 44; adendo nosso.
571
K. Marx, Para a crítica da economia política, 1986, p. 27.
572
A esse respeito, em 13 de novembro de 1857, escrevia Marx a Engels: “Apesar de meu próprio
colapso financeiro ser de fato terrível, nunca, desde 1849, eu me senti tão confortável quanto
durante este estouro”. K. Marx & F. Engels, Karl Marx & Frederick Engels Collected Works (MECW),
v. 40, 1975, p. 199.
573
L. Pradella, Globalization and the critique of political economy: New insights from Marx’s writings,
2015, p. 126.
Lei do valor e desenvolvimento desigual 177

Apesar da pobreza acachapante e de estar sempre às voltas com


problemas de saúde, pode-se dizer que, desta vez, mais do que qualquer
outra coisa, foram os escrúpulos intelectuais de Marx que impediram que
o manuscrito ficasse pronto para publicação, isto é, a consciência de que
ainda não dominava a temática. Contudo, a obtenção de um editor para sua
obra, por intermédio de Lassalle, obrigou o autor a preparar uma primeira
parte, como previa o contrato firmado. Desse esforço, em julho de 1859,
vem a público o Para a crítica da economia política, que representa, grosso
modo, uma primeira versão do que viria a ser a parte inicial de O capital. As
palavras de Marx a Engels em 21 de janeiro de 1859 ilustram bem as con-
dições de sua redação: “Eu não creio que alguém jamais tenha escrito sobre
‘dinheiro’ com tão pouco da coisa. A maior parte dos autores nesta matéria
têm tido a mais amistosa relação com a matéria de seus estudos”.574
A longa espera pelo livro, contudo, não foi recompensada com a
acolhida esperada por Marx e seu fiel companheiro. Como anota Mehring:
“No começo, a luz gerada por este exame crítico confundiu mesmo os ami-
gos do autor, mais do que esclareceu. Liebknecht declarou que nunca havia
ficado tão desapontado com um trabalho antes, e Miquel achou ‘pouca coisa
realmente nova’ nele”.575 Evidentemente, isto não poderia abalar alguém com
o temperamento de Marx a ponto de fazê-lo sustar seu projeto. No entanto,
o ritmo de preparação da Crítica da economia política seguiu terrivelmente
descontínuo nos anos 1860, por motivos análogos aos da década anterior.
Destaque-se a polêmica que resultou no texto Herr Vogt e ocupou Marx por
praticamente um ano inteiro entre 1860 e 1861. Concluído o referido escri-
to, Marx pôde finalmente retomar sua pesquisa. Segundo Pradella:

Depois de completar o Para a crítica, ele então esboçou um projeto para um ter-
ceiro capítulo sobre o capital, articulado em três seções: processo de produção do
capital, processo de circulação do capital e unidade dos dois processos: capital,
lucro e juros. Esse plano foi o ponto de partida dos 23 cadernos de manuscritos
(datados 1861-3), pretendidos como continuação do Para a crítica, o segundo es-
boço de O capital após os Grundrisse.576

574
K. Marx & F. Engels, Karl Marx & Frederick Engels Collected Works (MECW), v. 40, 1975, p. 369.
575
F. Mehring, Karl Marx: A história de sua vida, 2013, p. 263.
576
L. Pradella, Globalization and the critique of political economy: New insights from Marx’s writings,
2015, p. 127.
178 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

Dos chamados Manuscritos de 1861-1863 foram retirados os tre-


chos posteriormente publicados por Kautsky como Teorias sobre a mais-va-
lia, comumente considerado como um inacabado quarto livro de O capital.
Entre artigos para o New York Daily Tribune (que cessaram em 1862, como
vimos), artigos para o alemão Die Presse, doenças suas e de sua esposa,
pobreza e viagens internacionais a fim de tentar amenizá-la pela ajuda de
parentes (à Holanda e Alemanha) etc., Marx levou a cabo um abrangente
estudo que, ao fim, resultou no plano definitivo de O capital.
O ano de 1864 foi muito importante para Marx por dois motivos.
Em primeiro lugar, ele rompe com o isolamento político dos anos anterio-
res assim que percebe na fundação da Associação Internacional dos Traba-
lhadores (AIT) “um renascimento da classe trabalhadora”.577 Tratando-se de
Marx, é evidente que isso envolveu carga extra de trabalho. Por exemplo,
foi ele quem redigiu o manifesto inicial e o primeiro estatuto da AIT. Em
segundo lugar, nosso autor e sua família finalmente experimentam algum
alívio financeiro com a ascensão de Engels ao posto de sócio na Ermens &
Engels, o que lhe permitiu ajudar com maior regularidade e substância seu
amigo, assim como com a herança deixada por outro amigo e colaborador,
Wolff o “impávido, fiel e nobre paladino do proletariado” nas palavras com
que Marx lhe dedica o único dos livros que teve a oportunidade de editar de
sua obra prima.
Esse alívio foi o suficiente para que Marx elaborasse durante o ano
de 1865 os manuscritos que serviram de base para o tão esperado livro I de
O capital, terminado em 1866 e entregue ao público em 1867, assim como
grande parte do material a partir do qual Engels editaria os livros II e III tal
qual os conhecemos. Ao longo da década seguinte Marx segue aprofundan-
do questões relativas à Crítica da economia política, produzindo pelo me-
nos até 1878 material que viria a ser aproveitado nas publicações póstumas
dos livros II e III, ajudando na preparação da edição francesa de O capital,
preparando uma segunda edição alemã (ambas com importantes modifica-
ções) e vendo surgir uma antes improvável edição russa.
Sobre alguns aspectos do magnífico avanço teórico alcançado por
Marx e expresso nos textos supracitados nos debruçaremos neste capítu-

577
K. Marx apud F. Mehring, Karl Marx: A história de sua vida, 2013, p. 318.
Lei do valor e desenvolvimento desigual 179

lo. Em especial, importa-nos investigar em que medida a mais sistemática


contribuição de Marx para a análise do modo de produção capitalista (sua
lei do valor) pode nos ajudar a compreendê-lo em sua forma completa e,
portanto, mais complexa, de existência: o mercado mundial. Se, como Marx
argumenta com Kugelmann, a “ciência consiste precisamente em trabalhar
no como a lei do valor opera”,578 temos de saída algumas tarefas metodo-
lógicas fundamentais para pensar a continuidade da Crítica da economia
política: compreender o que Marx entende por lei científica; e perscrutar o
sentido geral de sua obra, isto é, o movimento das categorias na exposição
da lei do valor. As duas seções que seguem oferecem, sucessivamente, uma
discussão destas questões.
Em seguida, partimos para a análise da relação entre a teoria mar-
xiana do valor e o mercado mundial. O fazemos inicialmente a partir de
uma seção que resgata aspectos da abordagem marxiana sobre o dinheiro,
o que nos permite demonstrar algumas tendências gerais do capital que
são fundamentais para pensar o mercado mundial - indicando a natureza
essencialmente internacional do valor -, assim como avaliar em que medida
o tratamento marxiano da categoria dinheiro nos ajuda nesta questão. Sin-
teticamente, Marx indica que o dinheiro mundial patenteia os movimentos
internacionais de transferência de mais-valor.
Finalmente, argumentamos que a transferência de mais-valor cor-
responde à essência das relações intercapitalistas no mercado mundial e
buscamos na análise da concorrência realizada por Marx no escopo de O
capital pistas para compreendê-la. Avaliamos que a transferência de mais-
valor se consuma em uma relação internacional de dominação/subordi-
nação entre países que se inserem de modo diverso no mercado mundial.
Como todas as tendências gerais do capital, esta relação internacional de
dominação/subordinação tende a reproduzir-se em escala ampliada, o que
responde em grande medida pela forma necessariamente desigual do de-
senvolvimento do modo de produção capitalista no mercado mundial, isto
é, pelo modo necessariamente desigual de efetivação de suas tendências ge-
rais sintetizadas na lei do valor.

578
K. Marx, O 18 brumário e cartas a Kugelmann, 1977, p. 227.
180 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

5.1. Lei de tendência em Marx

O objetivo desta seção impõe retomar brevemente alguns pontos já tratados


no capítulo 3 deste livro. Ademais, o fato de já havermos adiantado esta
questão no referido capítulo, ainda que sem tratá-la em pormenores, é o
que nos permite atacá-la aqui de modo breve. Recordemos então que na
concepção marxiana o ser social consiste em um “objeto estruturado”, isto
é, um todo (ou complexo) formado por elementos vinculados entre si que
se constituem como totalidades parciais (ou complexos parciais). Cada um
desses complexos parciais, em si mesmos objetos estruturados, movem-se
continuamente em direções específicas. Isto é, cada qual possui tendências
próprias de movimento, que podem ser captadas como legalidades. O mo-
vimento geral no âmbito do ser social corresponde, portanto, à complexa
síntese de movimentos dos diversos complexos que interagem entre si, o
que não poderia excluir a casualidade (ou contingência).
Assim, as leis gerais de movimento que podemos identificar para
cada complexo não podem ter o caráter mecânico-fatalista típico da ciência
moderna, “como expressão de determinado padrão de eventos ou como co-
nexão necessária, mas aparente, de fenômenos ocorrentes na efetividade do
mundo”.579 Ainda segundo Prado, esse conceito moderno de lei está ligado
à ontologia segundo a qual para a ciência é possível, e desejável, representar
o mundo como um sistema fechado.580 A lei, neste sentido, corresponde-
ria a um vínculo entre eventos tal que a ocorrência de um seria condição
suficiente e necessária para a ocorrência do outro, em absoluta oposição à
concepção marxiana de mundo. Isto é, em uma forma de existência que
pode ser representada como um “complexo de complexos”, as legalidades
da ciência não podem ser de tipo determinista.581
Pelo contrário, nestas condições a forma que a lei científica assume
não pode ser senão tendencial. Nas palavras de Lukács:

579
E. Prado, “Lei de Marx: Pura lógica? Lei empírica?”, Revista da Sociedade Brasileira de Economia
Política, n. 37, 2014, p. 131.
580
Ibidem, p. 130.
581
Segundo Augusto: “(...) o determinismo é uma tese sobre a estrutura do mundo que afirma a
existência de um vínculo necessário, antecedente, único e exaustivo entre dois estados do mundo,
isto é, de que um único estado do mundo antecedente está vinculado de forma necessária a um único
Lei do valor e desenvolvimento desigual 181

(...) a tendencialidade, enquanto forma fenomênica necessária de uma lei na to-


talidade concreta do ser social, é consequência inevitável do fato de que nos en-
contramos diante de complexos reais que interagem de modo complexo, frequen-
temente passando por amplas mediações com outros complexos reais; a lei tem
caráter tendencial porque, por sua própria essência, é resultado desse movimento
dinâmico-contraditório entre complexos.582

Além disso, na medida em que o movimento dos complexos é re-


sultado de atos teleológicos que, enquanto tais, envolvem escolhas entre al-
ternativas, a possibilidade de se fazer previsões, que se encontra no cerne
da cientificidade burguesa, fica absolutamente comprometida. No entanto, a
despeito do modesto objetivo a que se propõe esta seção, não podemos ainda
nos dar por satisfeitos uma vez que o próprio significado de “lei de tendência”
é objeto de intensos debates no âmbito do marxismo. Se foge ao escopo do
texto recuperar este debate e apresentar as diferentes posições que o confor-
mam, não podemos nos furtar a oferecer a interpretação que endossamos.583
De saída, notemos que Marx reconhece explicitamente a diferença
entre aparência e essência: “aliás, toda ciência seria supérflua se houvesse
coincidência imediata entre aparência e essência das coisas”.584 Portanto,
nesta concepção, o mundo não é composto apenas de fenômenos observá-
veis empiricamente, mas também de mecanismos causais que operam por
detrás deles. Em outros termos: “A sociedade não consiste de indivíduos,
mas expressa a soma de vínculos, relações em que se encontram esses in-
divíduos uns com os outros”.585 É nesse sentido que o objetivo de O capital,
como dito expressamente no Prefácio da primeira edição, corresponde a
“desvelar a lei econômica do movimento da sociedade moderna”.586

estado do mundo consequente, no que diz respeito a todas as suas características. Esse vínculo entre
estados do mundo pode ser postulado como causalidade e ser formulado como leis naturais; mas,
em si, a causalidade e as leis não são idênticas ao determinismo”. A. Augusto, “O materialismo de
Lukács e a crítica ao determinismo”, In: F. Miranda & R. Monfardini (Orgs.), Ontologia e estética
(Coleção NIEP-Marx, v. 2), 2015, p. 65.
582
G. Lukács, Para uma ontologia do ser social I, 2012a, p. 328.
583
A esse respeito: S. Fleetwood, “Critical realism: Augmenting Marxism”, In: A. Brown; S. Fleetwood
& J. Roberts, Critical realism and marxism, 2001.
584
K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro III, 2008, p. 1080.
585
K. Marx, Grundrisse, 2011a, p. 205.
586
K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro I, 2013b, p. 79.
182 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

Se esses mecanismos causais operam em conjunto com outros


mecanismos, dos quais emanam forças que apontam nas mais diversas di-
reções, a identificação de uma tendência não garante, de forma alguma, a
ocorrência efetiva do fenômeno a ela associado. Como anota Prado, toman-
do de empréstimo o vocabulário do Realismo Crítico, as leis de tendência
são, portanto, “afirmações incondicionais que denotam realidades transfac-
tuais”.587 Nesse sentido, sua validade não pode ser comprovada ou descar-
tada por meros testes empíricos, mas pela capacidade de revelar o domínio
real oculto na imediaticidade dos fenômenos, isto é, de descrever os meca-
nismos causais que explicam os fenômenos em análise.
Isso não significa, evidentemente, que uma lei de tendência não
possa ser testada, muito pelo contrário. Tão somente a ininterrupta con-
frontação crítica com o objeto de estudo é capaz de comprovar a eficácia
das leis científicas como reprodução conceitual de seu movimento real.
Fundamentalmente, trata-se do fato de que a busca da verdade por trás das
condições de existência tem de lidar com dois domínios distintos, mas in-
dissoluvelmente conectados: o fenomênico; e o causal. Do reconhecimento
desta propriedade do mundo, emerge necessariamente o que Lukács chama
de “diferença entre tendência e fato consumado”. Na íntegra:

Tendência é a verificação de uma lei em condições negativas, propícias, inibidoras


etc.; a lei jamais opera diretamente, sem a superação de contradições dialéticas, e
até pode ocorrer que, em certos casos, não atue em sua direção fundamental, mas,
de fato, seja temporariamente travada por condições desfavoráveis.588

O conhecimento, nestes termos, tem “caráter aproximativo”. Isto é, a


interação virtualmente infinita de tendências heterogêneas, permeadas por
igualmente infinitas acidentalidades possíveis, não pode ser esgotada por
aportes teóricos incontornavelmente finitos. “Todavia, essa estrutura do ser
social não implica de modo algum a impossibilidade de conhecê-lo; aliás,
a possibilidade do conhecimento não sofre por isso a menor restrição”.589

587
E. Prado, Economia, complexidade e dialética, 2009, p. 40.
588
G. Lukács, “A luta entre o progresso e a reação na cultura contemporânea”, In: G. Lukács,
Socialismo e democratização: Escritos políticos 1956-1971, 2008, p. 56.
589
G. Lukács, Para uma ontologia do ser social I, 2012a, p. 367.
Lei do valor e desenvolvimento desigual 183

Assim, por exemplo, as leis gerais de um âmbito tão fundamental da vida


quanto a economia podem ser apreendidas pela escrupulosa análise cientí-
fica. No entanto, por um lado: “(...) a lei geral só se impõe como tendência
dominante de maneira aproximativa e muito baralhada, transparecendo,
em média móvel de flutuações eternas”.590 Por outro, a especificação das
conexões concretas entre, por exemplo, as determinações econômicas e os
demais complexos sociais só pode ter por base a investigação dos “traços
particulares de cada complexo objetivo”.591
Sobre o descobrimento das legalidades gerais subjacentes aos com-
plexos, devemos ainda aventar algumas observações preliminares. Em pri-
meiro lugar, não se pode perder de vista que, uma vez que os complexos são
históricos, isto é, transformam-se ao longo do tempo como resultado de um
contínuo movimento direcionado (quer compreendamos, ou não, as de-
terminações gerais deste movimento), suas tendências são historicamente
delimitadas. Sucintamente, a ciência que investiga o valor, só faz sentido nas
condições sócio-históricas nas quais a lei do valor opera, ou seja, na socie-
dade em que vigora o modo de produção capitalista. Assim, por exemplo,
discutindo a lei geral da acumulação capitalista, diz Marx:

Essa lei de população é peculiar ao modo de produção capitalista, tal como, de


fato, cada modo de produção particular na história tem suas leis de população
particulares, historicamente válidas. Uma lei abstrata de população só é válida
para as plantas e os animais e, ainda assim, apenas enquanto o ser humano não
interfere historicamente nesses domínios.592

Em segundo lugar, devemos enfatizar que as interações das legali-


dades econômicas gerais com as forças mediadoras que emanam de outros
complexos sociais, em conjunção com as lutas de classes que abrem gran-
de margem para os fatores contingentes, modificam inteiramente a forma
concreta de manifestação dos fenômenos econômicos em cada situação
concreta. Ainda sobre a lei geral da acumulação capitalista, assevera Marx:
“Como todas as outras leis, ela é modificada, em sua aplicação, por múlti-

590
K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro III, 2008, p. 214.
591
G. Lukács, Para uma ontologia do ser social I, 2012a, p. 369.
592
K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro I, 2013b, p. 706-707.
184 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

plas circunstâncias, cuja análise não cabe realizar aqui”.593 Como já adianta-
mos, esta é uma questão fundamental para o fenômeno da desigualdade no
desenvolvimento econômico geral, que retomaremos ao fim deste capítulo.
Notemos ainda que essa desigualdade de forma alguma nega as leis gerais,
pelo contrário, seu funcionamento afirma-se precisamente assim, de modo
necessariamente desigual. Como aponta Lukács: “Entre parte e todo pode
surgir uma infinidade de contradições. É possível que, em determinados
casos, a parte se oponha ao todo”.594
Nessas condições, as leis gerais de um determinado complexo ape-
nas podem ser apreendidas através do exercício mental que as coloca em evi-
dência. As isola, pela força da abstração, de todas as demais relações estrutu-
rais que perturbam o seu funcionamento. Tal procedimento, como veremos
na seção seguinte, não tem qualquer filiação à identificação da ocorrência
de fenômenos em condições hipotéticas que conformam um fechamento da
realidade como ponto de chegada da análise científica. O método abstrativo
de Marx, em oposição, pressupõe a totalidade e caminha em sua direção.
Ademais, a impossibilidade da dissociação dessas tendências diversas na re-
alidade concreta é que põe a necessidade da dissociação mental. Uma vez
mais com Lukács: “A conjunção ontológica dos processos heterogêneos no
interior de um complexo, ou nas relações entre complexos, forma a base
ontológica do seu isolamento - sempre com ressalvas - no pensamento”.595

5.2. O método da Crítica da economia política:


o sentido da concreção

O fragmento O método da economia política constitui, sem dúvida, um dos


escritos mais discutidos de Marx. Como aponta Duayer, pode-se argumentar
que isto se deve ao fato de que o texto “representa um dos raros momentos
em que as questões ‘metodológicas’ são tratadas por Marx de maneira autô-
noma”.596 Não sem razão, portanto, este trecho da Introdução de 1857 é de fun-

593
Ibidem, p. 720.
594
G. Lukács, “A luta entre o progresso e a reação na cultura contemporânea”, In: G. Lukács,
Socialismo e democratização: Escritos políticos 1956-1971, 2008, p. 57.
595
G. Lukács, Para uma ontologia do ser social I, 2012a, p. 369.
596
M. Duayer, “Apresentação”, In: K. Marx, Grundrisse, 2011, p. 18.
Lei do valor e desenvolvimento desigual 185

damental importância para os objetivos desta seção. Contudo, como adverte


Dussel, não se pode deixar de ter em mente que tais reflexões de Marx “não
são um tratado de metodologia - são, antes, reflexões ‘ao correr da pena’”.597
Do início ao fim, seu tema fundamental é o do ordenamento das cate-
gorias na exposição da Crítica da economia política. A despeito do fato de que
Marx, no momento da redação de O método da economia política, não chegara à
forma definitiva de exposição de O capital, suas considerações gerais neste texto
são de extrema importância para se entender a sucessão das categorias na obra.
Ademais, o fato de que justamente ao final dos Grundrisse Marx assume a “mer-
cadoria” como ponto de partida da exposição598 comprova, entre outras coisas, a
fecundidade das observações metodológicas que são oferecidas em seu início.
Qualquer figuração de mundo, reconhece Marx, parte de uma “re-
presentação caótica do todo”, isto é, do “concreto representado”.599 Como ob-
serva Dussel, essa “‘representação’ é um ato cognitivo inicial, ingênuo, primei-
ro, cheio de sentido, mas confuso, caótico”, ou mesmo, podemos adicionar,
um aporte teórico prévio sobre o objeto de estudo.600 Por meio da atividade
intelectual que busca as raízes do existente, pode-se chegar “analiticamente a
conceitos cada vez mais simples”, “a conceitos abstratos [Abstrakta] cada vez
mais finos”.601 Ou seja, o ato de abstrair, neste sentido, corresponde a uma se-
paração analítica que retira do todo um (ou alguns) de seus conteúdos ontoló-
gicos. Mais ainda, como aponta Lukács, em uma totalidade complexa (como
as sociedades) “todo ‘elemento’, toda parte, é também um todo; o ‘elemento’ é
sempre um complexo com propriedades concretas, qualitativamente específi-
cas, um complexo de forças e relações diversas que agem em conjunto”.602

597
E. Dussel, A produção teórica de Marx: Um comentário aos Grundrisse, 2012, p. 55.
598
Ao final dos manuscritos, diz Marx abrindo uma seção intitulada “Valor”, a qual deveria
“retomar”: “A primeira categoria em que se apresenta a riqueza burguesa é a da mercadoria”. K.
Marx, Grundrisse, 2011a, p. 756. Esta é praticamente a mesma frase que abre o primeiro capítulo
de O capital. Senão vejamos: “A riqueza das sociedades onde reina o modo de produção capitalista
aparece como uma ‘enorme coleção de mercadorias’, e a mercadoria individual como sua forma
elementar”. K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro I, 2013b, p. 113.
599
Na medida em que o agir humano, como vimos nos primeiros capítulos desta tese, é intencional,
o sujeito que age deve, de alguma forma, figurar o mundo para que sua prática tenha sentido. “Caso
contrário, estaríamos diante de agires reativos dados, fixos e não do agir intencional”. M. Duayer,
“Marx e a crítica ontológica da sociedade capitalista: Crítica do trabalho”, Em Pauta, Revista da
Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, n. 29, v. 10, 2012, p. 95.
600
E. Dussel, A produção teórica de Marx: Um comentário aos Grundrisse, 2012, p. 50
601
K. Marx, Grundrisse, 2011a, p. 54.
602
G. Lukács, Para uma ontologia do ser social I, 2012a, p. 306-307.
186 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

Importa, com as “abstrações isoladoras”, investigar esse movimento


das categorias livre das dificuldades criadas pela influência de outros
momentos da totalidade social, como apontamos acima. No Prefácio da
primeira edição de O capital, de modo bastante elucidativo, Marx apresenta a
necessidade das abstrações nas ciências sociais, na forma de uma analogia às
ciências da natureza. As últimas, diz Marx, valem-se de aparatos técnicos que
isolam certas determinações do objeto de estudo para que seus movimentos
sejam analisados “mais nitidamente e menos obscurecidos por influências
perturbadoras” e, em certos casos, podem até mesmo realizar “experimentos
em condições que asseguram o transcurso puro do processo”. Diante disso,
duas posturas metodológicas gerais garantem a viabilidade da análise
científica de processos sociais: a “força da abstração [Abstraktionskraft]”; o
recurso à análise da forma concretamente mais desenvolvida das relações
sociais que constituem o objeto da pesquisa, o “caso clássico” - sobre o qual
falaremos na seção final deste capítulo.603
“Daí teria de dar início à viagem de retorno até que finalmente che-
gasse de novo” à realidade concreta, “mas desta vez não como representação
caótica de um todo, mas como uma rica totalidade de muitas determinações e
relações”.604 O primeiro movimento (pode-se dizer, do “concreto representado”
para as abstrações) Marx chama no Posfácio da segunda edição de O capital de
“modo de investigação”. Neste, ao investigador cabe apropriar-se “da matéria
[Stoff] em seus detalhes, analisar suas diferentes formas de desenvolvimento
e rastrear seu nexo interno”. O caminho de volta, a rigor, é o “modo de expo-
sição” teórico, que tem por objetivo a explanação das determinações causais
subjacentes à realidade concreta, “o movimento real”,605 “por meio da dissolu-
ção paulatina das abstrações metodologicamente indispensáveis”.606 Este, asse-
vera Marx, “é manifestamente o método cientificamente correto”. Em suma:

O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações, portanto,


unidade da diversidade. Por essa razão, o concreto aparece no pensamento como
processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida, não obstante seja

603
K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro I, 2013b, p. 78.
604
K. Marx, Grundrisse, 2011a, p. 54.
605
K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro I, 2013b, p. 90.
606
G. Lukács, Para uma ontologia do ser social I, 2012a, p. 309.
Lei do valor e desenvolvimento desigual 187

o ponto de partida efetivo e, em consequência, também o ponto de partida da in-


tuição e da representação. Na primeira via, a representação plena foi volatilizada
em uma determinação abstrata; na segunda, as determinações abstratas levam à
reprodução do concreto por meio do pensamento.607

Ou seja, na medida em que o “todo caótico” não se apresenta de ime-


diato como “todo orgânico”, como síntese, está posta a possibilidade da ilusão
(Marx refere-se explicitamente à Hegel) de que o processo intelectivo que
sintetiza tenha produzido o todo. Em Marx, pelo contrário, “(...) o método
de ascender do abstrato ao concreto é somente o modo do pensamento de
apropriar-se do concreto, de reproduzi-lo como um concreto mental. Mas de
forma alguma é o processo de gênese do próprio concreto”.608
Dito isto, cabe-nos abordar a questão da relação entre a sucessão das
categorias na exposição teórica e sua sucessão histórica. Isto é, se as catego-
rias mais simples, consideradas, portanto, no mais alto nível de abstração,
precedem, também historicamente, as categorias mais complexas, derivadas,
lógico-dialeticamente, na argumentação. Nas palavras do autor: “Mas essas
categorias simples não têm igualmente uma existência independente, histó-
rica ou natural, antes das categorias mais concretas? Isto depende”.609
Sendo este o caso ou não, o que importa é que as categorias conside-
radas em nível mais abstrato/simples pressupõem as apresentadas em nível
mais concreto/complexo; e que, ademais, a análise do nível mais simples põe
questões que só podem ser respondidas com a passagem para o nível mais
complexo, e assim sucessivamente. Por exemplo, quando Marx analisa a mer-
cadoria no primeiro capítulo de O capital está pressuposta a Transformação
do dinheiro em capital, analisada a partir do quarto capítulo do mesmo livro;
assim como, apenas pelo abandono do terreno da circulação simples de mer-
cadorias pode-se responder à questão do sentido crescente do valor (isto é, da
riqueza) como norma geral na sociabilidade burguesa.610

607
K. Marx, Grundrisse, 2011a, p. 54.
608
Ibidem, p. 54-55.
609
Ibidem, p. 55.
610
Nos parece pertinente apontar que Marx, quando discute as diferenças entre “dinheiro como
capital” e “dinheiro como dinheiro” no Capítulo do capital dos Grundrisse, tece o seguinte comentário:
“O dinheiro aparece novamente em todas as relações posteriores; mas aí já não funciona mais como
simples dinheiro. Se, como aqui, o importante é, antes de tudo, segui-lo até sua totalidade como
188 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

Nos casos em que são coincidentes desenvolvimento lógico-catego-


rial e desenvolvimento ontológico:

Permanece sempre o fato de que as categorias simples são expressões de relações


nas quais o concreto ainda não desenvolvido pode ter se realizado sem ainda ter
posto a conexão ou a relação mais multilateral que é mentalmente expressa nas
categorias mais concretas; enquanto o concreto mais desenvolvido conserva essa
mesma categoria como uma relação subordinada. (...) A partir desse ponto de
vista, portanto, pode ser dito que a categoria mais simples pode expressar relações
dominantes de um todo ainda não desenvolvido, ou relações subordinadas de um
todo desenvolvido que já tinha existência histórica antes que o todo se desenvol-
vesse no sentido que é expresso em uma categoria mais concreta.611

Isso pode ser ilustrado pelo caminho (traçado por Marx no primei-
ro capítulo de O capital) que segue da “forma de valor simples, individual
ou ocasional” à “forma-dinheiro” do valor. A análise da gênese do dinheiro,
ademais, serve para ilustrar a importância do método científico aqui discuti-
do. Como aponta Marx, é a forma acabada do valor, a forma-dinheiro, “que
vela materialmente [sachlich], em vez de revelar, o caráter social dos traba-
lhos privados e, com isso, as relações sociais entre os trabalhadores priva-
dos”.612 Atendo-se à forma imediata do concreto representado a sociabilidade
mercantil aparece na “forma insana” de uma relação entre coisas, um fetiche.

Ora, são justamente essas formas que constituem as categorias da economia bur-
guesa. Trata-se de formas de pensamento socialmente válidas e, portanto, dotadas
de objetividade para as relações de produção desse modo social de produção his-
toricamente determinado, a produção de mercadorias.613

Marx argumenta, em seguida, como tal postura, que implica a na-


turalização da sociabilidade burguesa, não resiste a uma breve investigação
das relações de produção em perspectiva histórica. Não obstante, do alto de

mercado monetário, o desenvolvimento restante é pressuposto e deve ser incluído quando for o
caso”. Ibidem, p. 193.
611
Ibidem, p. 56.
612
K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro I, 2013b, p. 150.
613
Ibidem, p. 151.
Lei do valor e desenvolvimento desigual 189

sua anterior investigação sobre a forma relativa do valor, cujo “segredo (...)
reside em sua forma de valor simples”, o autor já havia demonstrado que na
relação mercantil (ainda que considerada no maior grau de simplicidade)
a dialética interna às mercadorias engendra a necessidade da manifestação
externa do valor em uma mercadoria que ocupa a posição de equivalente e,
por isso, no interior dessa relação aparece “naturalmente” como forma de
valor.614 Isto é, a expressão simples da forma relativa do valor “esconde em
si uma relação social”. Sumariamente: “Daí o caráter enigmático da forma
equivalente, a qual só salta aos olhos míopes do economista político quando
lhe aparece já pronta, no dinheiro”.615
Portanto, o método de explanação da realidade concreta (“represen-
tada”) a partir do exercício abstrativo que isola suas determinações mais es-
senciais para em seguida percorrer, gradativamente, o caminho de retorno à
complexidade dos fenômenos (agora passíveis de explicação) é o “cientifica-
mente correto”, porque apenas assim se pode enxergar para além das misti-
ficações engendradas por nossas próprias práticas cotidianas. Como aponta
Lukács, “a abstração é apenas uma forma de espelhamento da realidade, me-
diante a qual podem ser compreendidos processos abrangentes, que forçosa-
mente permanecem incompreensíveis em sua complexidade imediata”.616 Ou
seja, o recurso às abstrações é uma exigência necessária para a explicitação
de mecanismos causais dados, mas não imediatamente perceptíveis.
No entanto, devemos ser cautelosos com este procedimento. Não
são quaisquer abstrações que nos ajudam a desvendar as determinações
subjacentes ao existente, mas abstrações reais, isto é, determinações reais
abstrativamente isoladas que, enquanto tais, reproduzem o real “como um
momento do pensamento”.617 Por exemplo, quando discute a abstração “tra-
balho em geral”, na Introdução de 1857, Marx demonstra que a categoria
pressupõe o desenvolvimento da sociabilidade mercantil.618 Ademais, na
medida em que esse “trabalho em geral” constitui o fundamento do valor,
determinado quantitativamente pelo tempo de trabalho socialmente neces-

614
Ibidem, p. 125.
615
Ibidem, p. 134.
616
G. Lukács, Para uma ontologia do ser social I, 2012a, p. 148.
617
K. Marx, Grundrisse, 2011a, p. 54.
618
“A indiferença diante de um determinado tipo de trabalho pressupõe uma totalidade muito
desenvolvida de tipos efetivos de trabalho, nenhum dos quais predomina sobre os demais. Portanto,
as abstrações mais gerais surgem unicamente com o desenvolvimento mais concreto mais rico, ali
190 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

sário como média que emerge “com a força de uma lei natural reguladora”,
estamos diante de uma abstração cuja realidade confronta-nos cotidiana-
mente nas dramáticas oscilações do mercado.619
Portanto, esse método só se pode provar fecundo se acompanhado
de “uma crítica ontológica permanente de todos os passos dados (...)”.620 Cada
categoria é em si um complexo, como vimos, cuja simplicidade, em abstrato,
nos ajuda a compreender o movimento real da respectiva forma de ser.

Portanto, é da máxima importância iluminar, com a maior exatidão possível, em


parte com observações empíricas, em parte com experimentos ideais abstrativos,
seu modo de funcionamento, regulado por determinadas leis, ou seja, compreen-
der bem como eles são em si, como suas forças internas entram em ação, por si,
quais inter-relações que surgem entre eles e outros “elementos” quando são afasta-
das as interferências externas.621

Neste caminho de concreção da análise teórica, é evidente que a


decisão sobre o ponto de partida é fundamental. Uma vez mais, os objetivos
heurísticos impõem o respeito à constituição ontológica do objeto:

Como em geral em toda ciência histórica e social, no curso das categorias econômi-
cas é preciso ter presente que o sujeito, aqui a moderna sociedade burguesa, é dado
tanto na realidade como na cabeça, e que, por conseguinte, as categorias expressam

onde um aspecto aparece como comum a muitos, comum a todos. (...) Por outro lado, essa abstração
do trabalho em geral não é apenas o resultado mental de uma totalidade concreta de trabalhos. A
indiferença em relação ao trabalho determinado corresponde a uma forma de sociedade em que
os indivíduos passam com facilidade de um trabalho a outro, e em que o tipo determinado do
trabalho é para eles contingente e, por conseguinte, indiferente. Nesse caso, o trabalho deveio, não
somente enquanto categoria, mas na efetividade, meio para a criação da riqueza em geral e, como
determinação, deixou de estar ligado aos indivíduos em uma particularidade”. Ibidem, p. 57.
619
K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro I, 2013b, p. 150.
620
G. Lukács, Para uma ontologia do ser social I, 2012a, p. 306. Marx reconheceu que certas
abstrações, antes de revelar o conteúdo oculto dos fenômenos, confirmavam as mistificações por
eles engendradas. Assim procedia (e procede), via de regra, a economia burguesa: “Toda essa
sabedoria, portanto, em nada mais consiste do que parar nas relações econômicas mais simples,
as quais tomadas autonomamente, são puras abstrações; abstrações que na realidade são medidas
pelas mais profundas antíteses e só mostram um lado, aquele em que a expressão das antíteses está
apagada”. K. Marx, Grundrisse, 2011a, p. 191.
621
G. Lukács, Para uma ontologia do ser social I, 2012a, p. 306.
Lei do valor e desenvolvimento desigual 191

formas de ser, determinações de existência, com frequência somente aspectos sin-


gulares, dessa sociedade determinada, desse sujeito, e que, por isso, a sociedade,
também do ponto de vista científico, de modo algum só começa ali onde o discurso é
sobre ela enquanto tal. É preciso ter isso em mente porque oferece elemento decisi-
vo para a subdivisão. Nada parece mais natural, por exemplo, do que começar pela
renda da terra, pela propriedade da terra, visto que está ligada à terra, fonte de toda
riqueza e de toda existência [Dasein], e à primeira forma de produção de todas as
sociedades mais ou menos estabilizadas - a agricultura. Mas nada seria mais falso.
Em todas as formas de sociedade, é uma determinada produção e suas correspon-
dentes relações que estabelecem a posição e a influência das demais produções e
suas respectivas relações.622

É a produção de mercadorias que ocupa essa posição categorial


no modo de produção burguês. Ainda que Marx só ao final dos Grundrisse
chegue à mercadoria como ponto de partida adequado para a Crítica da
economia política, como vimos acima, são válidas suas observações metodo-
lógicas a esse respeito ao longo da obra. Desta forma, o ponto de partida ló-
gico-categorial: “É uma iluminação universal em que todas as demais cores
estão imersas e que as modifica em sua particularidade. É um éter particular
que determina o peso específico de toda existência que nele se manifesta”.623
É da mercadoria que Marx descortina as contradições fundamentais
da sociedade burguesa em O capital; e a análise de seu movimento indica a
necessidade de se perscrutar a fundo o modo de sua produção, como discu-
tiremos na próxima seção.624 Além disso, o modo de produção capitalista se
apresenta aos sujeitos, de imediato, na universalização da necessidade de se
acessar o mercado, isto é, na troca generalizada. “A circulação, porque é uma
totalidade do processo social, é também a primeira forma em que a relação
social não só aparece como algo independente dos indivíduos, (...) mas tam-
bém como a totalidade do próprio movimento social”.625

622
K. Marx, Grundrisse, 2011a, p. 59.
623
Ibidem.
624
De modo claro: “Considerada em si mesma a circulação é a mediação de extremos pressupostos.
Mas não põe esses extremos. Por conseguinte, ela própria tem de ser mediada não só em cada um
de seus momentos, mas como totalidade da mediação, como processo total. É por isso que seu ser
imediato é pura aparência. A circulação é o fenômeno de um processo transcorrendo por trás dela”.
Ibidem, p. 196.
625
Ibidem, p. 144.
192 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

No caminho da exposição é fundamental a medida em que uma ca-


tegoria explica a outra e, portanto, deve precedê-la analiticamente. Por exem-
plo, na relação entre formas distintas de apropriar-se de mais-valor: “A renda
da terra não pode ser compreendida sem o capital. Mas o capital é perfeita-
mente compreensível sem a renda da terra. O capital é a potência econômica
da sociedade burguesa que tudo domina”.626 Não obstante a correção desta
observação, alguns meses de intensos estudos, registrados nos Grundrisse, se-
rão necessários para que Marx estenda essa conclusão: a mercadoria é com-
preensível sem o capital (embora o pressuponha); no entanto o capital não
pode ser compreendido sem a mercadoria, uma vez que parte da aquisição de
meios de produção e força de trabalho como mercadorias e as têm, em forma
qualitativamente (e quantitativamente) diversa, como produto.
Em suma, no “modo de exposição” o ordenamento das categorias
deve ser determinado “pela relação que têm entre si na moderna socieda-
de burguesa”, ao invés de seguir a “ordem que corresponde ao desenvolvi-
mento histórico”.627 Na Crítica da economia política, portanto, as categorias
econômicas sucedem-se segundo sua estruturação no interior desta socie-
dade. Seu sentido geral é o da introdução, partindo-se das categorias mais
simples (ou seja, em mais alto grau de abstração), de novas determinações
que nos aproximam paulatinamente da “concretude da totalidade pensada”
da produção capitalista.628
Isso pode ser observado, em linhas gerais, tomando-se em pers-
pectiva o que dispomos de O capital.629 Nas palavras do próprio Marx na
abertura do livro III:

626
Ibidem, p. 60.
627
Ibidem.
628
G. Lukács, Para uma ontologia do ser social I, 2012a, p. 323. No entanto, uma vez que o objetivo
final é captar o movimento real desses complexos, esse movimento ao “concreto pensado” não pode
ser tomado como uma imposição à parte das necessidades postas pela explicação. Isto é, em alguns
casos pode-se ter de voltar a abstrações que já haviam sido dissolvidas no curso pregresso da análise.
Por exemplo, ao ocupar-se dos esquemas de reprodução na seção III do livro II de O capital, Marx
vale-se inicialmente da abstração de que não há reprodução ampliada, para depois dissolvê-la uma
vez mais (tal qual fizera na seção VII do livro I). Ainda que o caráter inacabado imponha cautela
ao tratar dos objetivos de Marx no referido trecho, acreditamos que a versão a que temos acesso
dos “esquemas de reprodução” de Marx sirva como advertência para que não se trate de maneira
excessivamente rígida o sentido geral da obra e sua eventual continuação.
629
Aliás, qualquer leitor atento de O capital pode perceber que a obra é permeada por ilustrações
históricas das conexões legais descobertas, como por exemplo das disputas entre capitalistas
Lei do valor e desenvolvimento desigual 193

No Livro Primeiro, investigamos os fenômenos do processo de produção capitalis-


ta considerado apenas como processo imediato de produção, quando abstraímos
de todos os efeitos induzidos por circunstâncias a ele estranhas. Mas o processo
imediato de produção não abrange a vida toda do capital. Completa-o o processo
de circulação, que constitui o objeto de estudo do Livro Segundo. Aí (...) eviden-
ciou-se que o processo de produção capitalista, observado na totalidade, é unida-
de constituída por processo de produção e processo de circulação. O que nos cabe
neste Livro Terceiro não é desenvolver considerações gerais sobre essa unidade,
mas descobrir e descrever as formas concretas oriundas do processo de movimento
do capital, considerando-se esse processo como um todo. Em seu movimento real,
os capitais se enfrentam nessas formas concretas; em relação a elas, as figuras do
capital no processo imediato de produção e no processo de circulação não passam
de fases ou estados particulares. Assim, as configurações do capital desenvolvidas
neste livro abeiram-se gradualmente da forma em que aparecem na superfície da
sociedade, na interação dos diversos capitais, na concorrência e ainda na consci-
ência normal dos próprios agentes da produção.630

Devem-se ter claras as preocupações subjacentes a cada nível de


abstração e, adicionalmente, o que não se pode compreender a partir dele.
Cada qual abstrai de certas questões para responder outras. Um dos erros
mais comuns no âmbito do marxismo consiste justamente na falta de aten-
ção com relação ao que certo nível analítico pode oferecer em termos de
explicação da realidade. Caracteristicamente, não foram poucos os autores
que pensaram poder tomar o que temos de O capital como aparato catego-
rial pronto para analisar o mercado mundial.631

e trabalhadores em torno da variação absoluta do tempo de trabalho excedente. Assim como


por trechos que apresentam condições que não podem ser lógico-categorialmente derivadas,
por exemplo a “dupla liberdade” dos trabalhadores e a acumulação primitiva do capital como
pressupostos da produção capitalista. Já nos Grundrisse Marx reconhecia que, “o que é muito
mais importante para nós, o nosso método indica os pontos onde a análise histórica tem de ser
introduzida (...)”. K. Marx, Grundrisse, 2011a, p. 378.
630
K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro III, 2008, p. 41.
631
Escrevendo sobre as abordagens marxistas acerca da questão do desenvolvimento desigual no
mercado mundial, observa Dussel: “(...) podemos dizer que desde André G. Frank em diante se
discutem os problemas econômicos sem que se tenham desenvolvido os conceitos nem criado as
categorias necessárias. Passou-se ao histórico-concreto sem marco categorial suficiente. Entrou-
se assim em um beco sem saída”. E. Dussel, Hacia un Marx desconocido. Un comentario de los
Manuscritos del 61-63, 1988, p. 321.
194 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

Já notamos que na redação dos manuscritos que compuseram o


livro III Marx tinha claro que os problemas relativos ao mercado mundial
não teriam espaço no escopo de uma obra que ele sequer conseguiu termi-
nar. Não obstante as diversas mudanças no plano de redação de O capital,
a referida categoria sempre aparece como momento culminante.632 Note-
mos ainda que em cada um dos diversos níveis analíticos da obra o valor
permanece como base explicativa. Para sermos rigorosos com a teoria de
Marx, portanto, devemos desenvolver estas questões teóricas a partir da lei
do valor, tomando o sentido da concreção lógico-categorial.

5.3. Valor, dinheiro e mercado mundial

“O processo de troca”633 diz respeito, precisamente, às relações entre possui-


dores de mercadorias. A síntese das relações mercantis se apresenta como
“mercado”, que tem no dinheiro sua figura acabada. Na medida em que en-
tender o mercado mundial a partir de Marx é nosso objetivo final, deve-
mos obrigatoriamente passar pela compreensão do que o autor entendia
por “mercado” (em geral). Não é demais recordar que o mercado pressupõe
uma forma historicamente específica do produto (a mercadoria), cuja dupla
natureza (valor de uso e valor) representa a contradição fundamental da so-
ciabilidade burguesa (entre o caráter privado e o caráter social da riqueza),
a partir da qual podemos alcançar as determinações mais complexas desta
forma de existência (como veremos adiante).
A dimensão valor responde pela igualação, na troca, das distintas
mercadorias. Para Marx a demonstração de que seu fundamento reside no
trabalho humano, considerado em seu caráter qualitativamente indistinto

632
Como argumenta Rosdolsky: “(...) no que diz respeito à modificação dos planos, devemos
estabelecer uma distinção entre os livros primeiro, segundo e terceiro originais, e os livros quarto
[“Sobre o Estado”], quinto [“Sobre o comércio exterior”] e sexto [“Sobre o mercado mundial e as
crises”]. Embora os temas previstos para constar destes últimos não tenham sido incorporados à
estrutura posterior, parece que eles não chegaram a ser propriamente ‘abandonados’, permanecendo
à espera de um ‘desdobramento eventual’ da obra. Mas, como esses temas só são abordados
ocasionalmente em O capital, parece justificar-se o que se convencionou chamar a ‘teoria das
lacunas’ (...)”. R. Rosdolsky, Gênese e estrutura de O capital de Karl Marx, 2001, p. 37.
633
Título do segundo capítulo do livro I de O capital.
Lei do valor e desenvolvimento desigual 195

(trabalho abstrato), não deveria representar maiores dificuldades. No modo


extremamente simples em que escreve à Kugelmann, em 11 de julho de 1868:

A absurda necessidade de provar o conceito de valor decorre da completa igno-


rância tanto do tema tratado quanto do método científico. Qualquer criança sabe
que um país que parou de trabalhar, não digo nem um ano, mas umas poucas
semanas, morrerá. Qualquer criança sabe, também que a massa de produtos que
corresponde às diferentes necessidades exige massas de trabalho total da socieda-
de diferentes e quantitativamente determinadas.634

O trabalho, em termos gerais, pode ser considerado segundo grau


de complexidade, intensidade e duração do tempo necessário para sua exe-
cução. Na medida em que os diferentes níveis de intensidade e complexida-
de requeridos podem ser reduzidos a um patamar médio635 multiplicado por
algum parâmetro que dê conta das diferenças entre eles, sobressai a duração
do trabalho necessário para a produção,636 que na articulação mercantil, isto
é, na relação social do valor, só se pode afirmar pela média social (como
tempo de trabalho socialmente necessário - uma abstração continuamente
efetivada no mercado). Como “regra geral, quanto maior é a força produtiva

634
K. Marx, O 18 brumário e cartas a Kugelmann, 1977, p. 226-227.
635
Dado, além do mais, que a própria produção capitalista tende a reduzir essas diferenças à média,
uma vez que as diversidade individuais são apagadas com o emprego de muitos trabalhadores
pelo mesmo capital, que considera cada um como parte alíquota da força de trabalho coletiva
que cria, e que o mercado impõe requisitos mínimos de produtividade traduzidos “no volume
relativo dos meios de produção que um trabalhador transforma em produto durante um tempo
dado, com a mesma tensão da força de trabalho”. K. Marx, O capital: Crítica da economia política,
livro I, 2013b, p. 698.
636
Ao fim e ao cabo, a dimensão temporal do valor é a base para a demonstração de que o modo
de produção capitalista engendra, a partir de seu próprio funcionamento interno, a redução no
tempo de trabalho socialmente necessário para a produção das condições da existência humana,
promovendo o progresso (no sentido discutido nos capítulos anteriores) que põe a possibilidade
de uma práxis social não mais majoritariamente subsumida às necessidades: “De fato, o reino
da liberdade começa onde o trabalho deixa de ser determinado por necessidade e por utilidade
exteriormente imposta; por natureza, situa-se além da esfera da produção material propriamente
dita”. A propósito: “A liberdade nesse domínio só pode consistir nisto: o homem social, os
produtores associados regulam racionalmente o intercâmbio material com a natureza, controlam-
no coletivamente, sem deixar que ele seja a força cega que os domina; efetuam-no com o menor
dispêndio de energias e nas condições mais adequadas e mais condignas com a natureza humana”.
K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro III, 2008, p. 1083.
196 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

do trabalho, menor é o tempo de trabalho requerido para a produção de um


artigo, menor a massa de trabalho nele cristalizada e menor seu valor”.637
A circulação dos produtos do trabalho nesta forma histórica, reco-
nhece Marx, depende de um determinado arcabouço jurídico-institucional
que possibilite “um ambiente de trocas, uma totalidade de trocas em contí-
nuo fluxo e operando mais ou menos em toda a superfície da sociedade; um
sistema de atos de trocas”, não apenas “atos de troca singulares”.638 Como
dito em O capital:

Para relacionar essas coisas umas com as outras como mercadorias, seus guar-
diões têm de estabelecer relações uns com os outros como pessoas cuja vontade
reside nessas coisas e agir de modo tal que um só pode se apropriar da mercadoria
alheia e alienar a sua própria mercadoria em concordância com a vontade do ou-
tro, portanto, por meio de um ato de vontade comum a ambos. Eles têm, portanto,
de se reconhecer mutuamente como proprietários privados. Essa relação jurídica
, cuja forma é o contrato, seja ela legalmente desenvolvida ou não, é uma relação
volitiva, na qual se reflete a relação econômica. O conteúdo dessa relação jurídica
é dado pela própria relação econômica.639

Na sociabilidade mercantil, ademais, os papéis de cada um dos in-


divíduos engajados no processo “não passam de personificações das rela-
ções econômicas”.640 A força motriz que aciona o comportamento de cada
um diz respeito a suas necessidades privadas. No entanto, esse ímpeto pri-
vado realiza-se, ou não, no mercado, no “processo social geral” da troca.
Assim, “não é possível que, simultaneamente para todos os possuidores de
mercadorias, o mesmo processo seja exclusivamente individual e, ao mes-
mo tempo, exclusivamente social geral”.641
Podemos, desta forma, nos aproximar de uma primeira definição de
mercado, sem, todavia, transcendermos o nível de abstração da circulação
simples: a articulação social dos sujeitos que trocam. Ou ainda: “A depen-

637
K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro I, 2013b, p. 118.
638
K. Marx, Grundrisse, 2011a, p. 135.
639
K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro I, 2013b, p. 159.
640
Ibidem, p. 160.
641
Ibidem, p. 161.
Lei do valor e desenvolvimento desigual 197

dência multilateral dos indivíduos mutuamente indiferentes (...)”, através do


valor.642 Como já notamos anteriormente, embora as ações individuais obe-
deçam a posições teleológicas, seu resultado social, que depende da comple-
xa articulação das inúmeras ações privadas, é incontrolável para cada um dos
sujeitos. Na medida em que, ademais, a articulação pela troca está subsumida
às necessidades do capital, a relação do valor é, nas palavras de Marx, “apenas
uma relação social determinada entre os próprios homens que aqui assume,
para eles, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas”.643 Dito de ou-
tro modo, as relações mercantis constituem um fetiche porque sua dinâmica,
além de incontrolável pelos sujeitos, está subordinada a imperativos alheios:
o movimento do capital, apreendido teoricamente na lei do valor.

Embora a totalidade desse movimento apareça agora como processo social e ainda
que os momentos singulares desse movimento partam dos desejos conscientes e
dos fins particulares dos indivíduos, a totalidade desses processos aparece como
uma conexão objetiva que emerge de maneira natural e espontânea; totalidade
que, sem dúvida, resulta da interação dos indivíduos conscientes, mas que não
está em sua consciência nem lhes está subsumida como totalidade. O seu próprio
entrechoque produz um poder social que lhes é estranho, que está acima deles;
sua própria interação [aparece] como processo e poder independentes deles. A
circulação, porque é uma totalidade do processo social, é também a primeira for-
ma em que a relação social não só aparece como algo independente dos indiví-
duos, por exemplo, em uma peça de dinheiro ou no valor de troca, mas também
como a totalidade do próprio movimento social.644

Sobre isso, notemos que esse processo social põe o dinheiro, pois
para que todos se relacionem com todos através do intercâmbio mercantil,
todos os componentes do produto social devem ser comparáveis entre si, o
que só se pode realizar através de um único objeto que possua as mesmas
determinações sociais (trabalho abstrato, isto é, valor). Essa mercadoria é o
dinheiro, quer contenha essa determinação social diretamente (por exem-

642
K. Marx, Grundrisse, 2011a, p. 105.
643
K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro I, 2013b, p. 147.
644
K. Marx, Grundrisse, 2011a, p. 144.
198 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

plo, o ouro) ou indiretamente (como na forma inconversível da moeda).


Assim, cristalização de uma mercadoria como dinheiro “(...) é um produto
necessário do processo de troca, no qual diferentes produtos do trabalho
são efetivamente equiparados entre si e, desse modo, transformados em
mercadorias”. A sociabilidade mercantil demanda uma forma externa de
expressão da contradição interna à mercadoria (valor e valor de uso), o que
põe o dinheiro como figura independente do valor. “Portanto, na mesma
medida em que se opera a metamorfose dos produtos do trabalho em mer-
cadorias, opera-se também a metamorfose da mercadoria em dinheiro”.645
O dinheiro, portanto, tem o papel de representante da riqueza uni-
versal. Por isso, aparece para os indivíduos inseridos na dinâmica mercantil
como valor em si, independentemente das relações entre os seres humanos,
da relação do valor. Isto é, o dinheiro expressa, em sua figura acabada (sem
referência imediata ao processo de sua gênese), a conexão social pela tro-
ca.646 “O dinheiro, por isso, é o deus entre as mercadorias”.647 Tudo o que é
produzido tem de ser riqueza universal (valor), o que só se pode compro-
var socialmente no intercâmbio pelo dinheiro. Apenas assim o trabalho de
alguém se confirma útil para si próprio. Em suma: “(...) o poder que cada
indivíduo exerce sobre a produção ou sobre as riquezas sociais existe nele
como proprietário de valores de troca, de dinheiro. Seu poder social, assim
como seu nexo com a sociedade, [o indivíduo] traz consigo no bolso”.648
Esse sistema complexo que conecta a todos por suas necessidades e
meios de satisfazê-las representa, como argumentamos nos capítulos 2 e 3,
um progresso com relação às formas pretéritas de sociabilidade, nas quais
o reconhecimento mútuo (isto é, a explicitação do gênero humano) estava
atado aos limites postos por modos arcaicos de produção. Em termos sin-

645
K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro I, 2013b, p. 161.
646
Como dito por Marx: “Decorre daí a mágica do dinheiro. O comportamento meramente
atomístico dos homens em seu processo social de produção e, com isso, a figura reificada [sachliche]
de suas relações de produção, independentes de seu controle e de sua ação individual consciente,
manifestam-se, de início, no fato de que os produtos de seu trabalho assumem universalmente a
forma mercadoria. Portanto, o enigma do fetiche do dinheiro não é mais do que o enigma do fetiche
da mercadoria que agora se torna visível e ofusca a visão”. K. Marx, O capital: Crítica da economia
política, livro I, 2013b, p.167.
647
K. Marx, Grundrisse, 2011a, p. 165.
648
Ibidem, p. 105.
Lei do valor e desenvolvimento desigual 199

téticos, esse reconhecimento não podia, nas condições prévias, alcançar a


humanidade como um todo. O mercado “prova que cada um, como ser hu-
mano, vai além de sua própria necessidade particular etc. e se comporta um
em relação ao outro como ser humano; que sua essência genérica comum é
conhecida por todos”.649
Essa realização é posta, de maneira dialeticamente contraditória,
apenas através dos interesses privados dos indivíduos. Nesse sentido, o
todo, embora já tenha reconhecida amplamente sua objetividade, apresen-
ta-se apenas como meio para o “interesse egoísta”.650 “O interesse universal
é justamente a universalidade dos interesses egoístas”.651 A explicitação do
gênero humano através do mercado está, portanto, subsumida à irresistível
dinâmica alheia.652 Como dito por Marx em O capital:

Nossos possuidores de mercadorias descobrem, assim, que a mesma divisão do


trabalho que os transforma em produtores privados independentes também torna
independente deles o processo social de produção e suas relações nesse processo,
e que a independência das pessoas umas das outras se consuma num sistema de
dependência material [sachlich] universal.653

A circulação desenvolvida das mercadorias, portanto, representa a


ruptura com “as barreiras individuais e locais da troca direta de produtos”,
o que acha expressão no contínuo fluxo do dinheiro.654 A consolidação do

649
Ibidem, p. 186.
650
Sobre esse desenvolvimento histórico que produziu o “indivíduo isolado”, afirma Marx na
Introdução de 1857, dos Grundrisse: “Somente no século XVIII, com a ‘sociedade burguesa’, as
diversas formas de conexão social confrontam o indivíduo como simples meio para seus fins
privados, como necessidade exterior. Mas a época que produz esse ponto de vista, o ponto de vista
do indivíduo isolado, é justamente a época das relações sociais (universais desde esse ponto de vista)
mais desenvolvidas até o presente. O ser humano é, no sentido mais literal, um ζώον πολιτικόν,
não apenas um animal social, mas também um animal que somente pode isolar-se em sociedade”.
Ibidem, p. 40.
651
Ibidem, p. 188.
652
Já discutimos nos capítulos 2 e 3 que, a despeito disso, essa condição põe possibilidades
societárias inteiramente novas do ponto de vista histórico. Nomeadamente: o comunismo como
plena explicitação do gênero humano, isto é, a superação progressiva do mercado como mediação
necessária entre os seres humanos.
653
K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro I, 2013b, p. 182.
654
Ibidem, p. 186.
200 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

mercado na figura acabada do dinheiro parte, tanto em termos lógico-cate-


goriais como ontológicos, da função de medir os valores das diversas merca-
dorias - isto é, pelo fato das mercadorias expressarem no dinheiro seu valor.
Na análise da forma valor, no primeiro capítulo de O capital, Marx
demonstra como a determinação valor de uma mercadoria, na medida em
que não aparece de imediato em sua forma material, pode apenas se ma-
nifestar como valor de troca, no corpo de outra mercadoria que na relação
assume o papel de equivalente. Como dito acima, a oposição interna à merca-
doria (valor e valor de uso) apresenta-se necessariamente de modo externo:
na contraposição entre uma mercadoria e um objeto dela distinto. Em uma
sociabilidade mercantil esse objeto distinto da mercadoria que expressa valor
deve ser único, isto é, deve haver apenas um equivalente do valor: o dinheiro.
O preço é a tradução do valor da mercadoria em dinheiro.655 Assim,
o valor da mercadoria existe agora fora dela, como ente autônomo. A mer-
cadoria que historicamente ocupou essa posição (digamos, o ouro) tem um
valor de uso peculiar: expressar a universalidade do valor. Em outras palavras,
o dinheiro representa a concreta equalização dos diversos trabalhos humanos
(corporificados em objetos qualitativamente distintos) como trabalho abstrato.
No entanto, “a mercadoria não é preço”.656 O preço como forma ne-
cessária de manifestação do valor não implica, necessariamente, a conver-
são de mercadoria em dinheiro. Isto é, o preço representa a possibilidade da
realização do valor, não sua efetividade. Nas palavras de Marx em O capital:
“O preço ou a forma-dinheiro das mercadorias é, como sua forma de valor
em geral, distinto de sua forma corpórea real e palpável, portanto, é uma
forma apenas ideal ou representada”.657 O ouro pode medir o valor das mer-
cadorias porque, assim como elas, contém tempo de trabalho socialmente
necessário, mas para cumprir esta função não é necessário que apareça de
antemão um único grama do metal.658
A forma-preço indica a “necessidade” da venda. Nesta, a merca-
doria é convertida em dinheiro, realizando seu preço, isto é, seu valor. Ou
seja, a forma mercadoria encerra uma contradição que opõe mercadoria e

655
K. Marx, Grundrisse, 2011a, p. 135.
656
Ibidem, p. 137.
657
K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro I, 2013b, p. 170.
658
Ibidem, p. 171.
Lei do valor e desenvolvimento desigual 201

dinheiro; essa contradição é solucionada (mas não superada) na metamor-


fose da mercadoria, seu movimento. “Esse é, em geral, o método com que se
solucionam contradições reais”.659 Ademais, é através do dinheiro, por outro
lado, que esta contradição se põe como universal.
Na realização do valor (através do preço), o dinheiro funciona
como meio de compra. Tendo em vista a totalidade do metabolismo social
mercantil, o dinheiro cumpre a função de meio de circulação. Nos termos
de Marx: “A circulação é o movimento em que a alienação [Entäusserung]
universal aparece como apropriação universal e a apropriação universal,
como alienação [Entäusserung] universal”.660
Nesta função o dinheiro tem de interpor-se entre uma mercadoria e
outra (M-D-M) para que um produtor tenha a possibilidade de passar de ven-
dedor a comprador de mercadoria(s). Ou seja, para mediar a circulação das
mercadorias, o dinheiro deve apenas mudar continuamente de mãos. Por isso:

Na medida em que ele [o dinheiro] realiza o preço, sua existência material como
ouro e prata é essencial; mas na medida em que essa realização é apenas fugaz e
deve suprimir a si mesma, essa existência material é indiferente. É somente uma
aparência, como se se tratasse de trocar a mercadoria por ouro ou prata como
uma mercadoria particular; uma aparência que desvanece quando o processo está
concluído, tão logo o ouro e a prata são de novo trocados por mercadoria e, com
isso, mercadoria é trocada por mercadoria. Por essa razão, o ouro e a prata como
simples meio de circulação, ou o meio de circulação como ouro e prata, é indife-
rente com respeito a sua qualidade como uma mercadoria natural e particular.661

Reside aí a possibilidade da transformação do dinheiro em moeda,


para cumprir a função meio de circulação, isto é, a substituição do dinheiro
por “outro signo”.662 Ademais, Marx explica em O capital como determina-
das contingências históricas transformaram essa possibilidade em realidade.

Coisas relativamente sem valor, como notas de papel, podem, portanto, funcionar
como moeda em seu lugar. Nas senhas metálicas, o caráter puramente simbólico

659
Ibidem, p. 178.
660
K. Marx, Grundrisse, 2011a, p. 143.
661
Ibidem, p. 155; adendo nosso.
662
Ibidem, p. 158.
202 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

ainda se encontra de certo modo escondido. Como se vê, ce n’est que le premier pas
que coûte [difícil é apenas o primeiro passo].663

A representação do dinheiro em moeda é atribuição do Estado, que


estabelece e garante (ao menos idealmente) a sua conversibilidade. Nas di-
versas moedas o dinheiro (ouro e prata) “vestem uniformes nacionais (...)
dos quais voltam a se despojar no mercado mundial”, o que manifesta “a
separação entre as esferas internas ou nacionais da circulação das mercado-
rias”, nas quais circulam obrigatoriamente as moedas nacionais, “e a esfera
universal do mercado mundial”.664
Da relação entre moeda e dinheiro, contudo, deriva-se a limitação
do poder do Estado no que diz respeito à circulação monetária: a lei segundo
a qual “a emissão de papel-moeda deve ser limitada à quantidade de ouro (ou
prata) - simbolicamente representada pelas cédulas - que teria efetivamente
de circular”.665 Assim, se a quantidade de papel-moeda em circulação ultra-
passar sua medida, expõe-se o Estado ao descrédito geral em um processo
inflacionário - que evidencia a unidade contraditória de valor e valor de uso.
Desta feita, para cumprir os objetivos desta seção devemos seguir
às funções nas quais o dinheiro deve aparecer como dinheiro. Isto é,
“quando, em virtude de sua função, seja ela realizada em sua própria pessoa
ou por um representante, ele se fixa exclusivamente na figura de valor, a
única forma adequada de existência do valor de troca (...)”.666 Esta, que nos
Grundrisse Marx chama de “terceira determinação do dinheiro”, “pressupõe
as duas primeiras determinações e é a sua unidade”.667 Se o dinheiro
(qualquer que seja sua forma material) é capaz de cumprir as duas primeiras
determinações (medir universalmente valores e mediar a circulação das
mercadorias), pode funcionar em sua terceira.668

663
K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro I, 2013b, p. 200.
664
Ibidem, p. 198.
665
Ibidem, p. 201.
666
Ibidem, p. 203.
667
K. Marx, Grundrisse, 2011a, p. 161.
668
Ainda que não pretendamos entrar no debate sobre a relevância da lei marxiana do valor para a
compreensão de um mercado mundial que encontra em uma forma “desmaterializada” do dinheiro
seu médium, notemos brevemente que, como visto, na função meio de circulação a forma material
do dinheiro é indiferente, uma vez que o desenvolvimento das trocas põe a necessidade de que o
meio de compra não contenha, ele próprio, valor. Desta forma, todo o peso do argumento contra
Lei do valor e desenvolvimento desigual 203

Em primeiro lugar, uma vez que o dinheiro representa a autonomi-


zação do valor com relação à circulação, em que nele o “conceito de riqueza
está, por assim dizer, realizado, individualizado, em um objeto particular”,
ele é o meio adequado para a reserva de valor.669 Isto a despeito da varia-
bilidade de seu valor de troca. Dado seu caráter qualitativamente infinito:
“Todas as mercadorias são somente dinheiro perecível; o dinheiro é a mer-
cadoria imperecível”.670
Este aspecto, como tudo o que se disse sobre o valor, aparece de
maneira plena apenas quando se passa a considerar, explicitamente, a trans-
formação do dinheiro em capital, como veremos. É por isso que ao nível de
abstração da circulação simples o “entesouramento” soa como uma paixão
irracional típica de sociedades pré-capitalistas. A função social do entesou-
ramento, para além da circulação simples das mercadorias, será considera-
da por Marx no escopo da análise sobre a reprodução do capital; e o meio
adequado para a manutenção dessas reservas só aparece na análise da “au-
tonomização das formas funcionais do capital”, com o capital bancário.
Ademais, é também dinheiro em espécie que é cobrado quando se
trata de saldar compromissos previamente estabelecidos. Neste caso, sua
função é servir como meio de pagamento,671 cuja necessidade pode ser vis-
lumbrada já na análise da circulação simples, uma vez que os diferentes

a relevância da teoria do valor de Marx diante das transformações históricas das quais emerge o
“padrão dólar-dólar” recai sobre a função de medir valores. A pergunta candente, portanto, é se o
dinheiro precisa conter a substância social “valor” para medir valores. De maneira muito perspicaz,
Arthur demonstra como objetos físicos podem servir de medida para outros objetos sem conter
necessariamente as propriedades medidas, expressando-as indiretamente, o que pressupõe uma
teoria que permite que se compreenda a relação entre o que se quer medir e a outra entidade
comensurável contida no objeto medidor. No caso de objetividades puramente sociais, como o
valor, são as inúmeras práticas dos indivíduos imersos nas relações sociais de produção burguesas
que põem, continuamente, a dimensão homogênea a ser medida (o valor) e a necessidade, portanto,
da comensurabilidade universal. Assim, basta que essas diversas práticas individuais validem o
dinheiro como medida do valor (qualquer que seja a sua forma), nas relações mercantis. C. Arthur,
“Value and money”, In: F. Moseley, Marx’s theory of money: Modern appraisals, 2005, pp. 115-117.
669
K. Marx, Grundrisse, 2011a, p. 164.
670
Ibidem, p. 174.
671
A rigor, como aponta Marx no livro III de O capital, no que diz respeito à função meio de
pagamento, o dinheiro é cobrado “ao haver interrupção absoluta da cadeia dos pagamentos”
quando “passa de forma ideal à forma material e ao mesmo tempo absoluta do valor perante as
mercadorias”. K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro III, 2008, p. 610.
204 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

tempos requeridos para a produção de distintas mercadorias põem as “con-


dições por meio das quais a alienação da mercadoria é temporariamente
apartada da realização de seu preço”.672 Em termos lógico-categoriais e his-
tóricos, é desta função que se origina o “dinheiro creditício”, “quando certi-
ficados de dívida relativos às mercadorias vendidas circulam a fim de trans-
ferir essas dívidas para outrem”. Como promessa de pagamento, o dinheiro
“circula à vontade pela esfera das grandes transações comerciais, enquanto
as moedas de ouro e prata são relegadas fundamentalmente à esfera do co-
mércio varejista”.673
Em suma, o dinheiro transparece nessas relações como “material
universal dos contratos”, sendo considerado, portanto, “como mercadoria
universal, representante da riqueza universal (...), valor de troca autonomiza-
do”.674 O mesmo ocorre na circulação da riqueza no mercado mundial, com
o dinheiro mundial. Como dito acima, no mercado mundial o dinheiro deve
despir-se de seus uniformes nacionais, isto é, “o dinheiro em sua terceira de-
terminação como dinheiro autonomamente saído da (e contraposto à) cir-
culação, nega ainda seu caráter como moeda”.675 Isso acontece porque, para
expressar de maneira verdadeiramente universal (i.e., no mercado mundial)
a sociabilidade mercantil, necessita-se de uma forma única (a nível mun-
dial) de manifestação do valor. A “mercadoria universal que conserva em
todos os lugares o seu caráter de mercadoria”, de portadora de valor, portan-
to, em “virtude dessa determinação formal, vale uniformemente em todos
os lugares. Somente assim é o representante material da riqueza universal”.676
A forma plena em que o dinheiro aparece como corporificação do
trabalho humano abstrato no mercado mundial, como dinheiro mundial,
representa a síntese dialética de todas as funções do dinheiro: “O dinheiro
mundial funciona como meio universal de pagamento, meio universal de

672
K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro I, 2013b, p. 208.
673
Ibidem, p. 213.
674
K. Marx, Grundrisse, 2011a, p. 179. Vale apontar que é exatamente ao longo da redação dos
Grundrisse que Marx chega a algumas mediações categoriais fundamentais para sua Crítica da
economia política, dentre as quais: a diferença entre valor e valor de troca. Desta forma, nos trechos
iniciais da obra (como o que citamos) o autor emprega as categorias indistintamente. Sobre isso ver
R. Rosdolsky, Gênese e estrutura de O capital de Karl Marx, 2001, p. 506.
675
Ibidem, p. 169.
676
Ibidem, pp. 169-170.
Lei do valor e desenvolvimento desigual 205

compra e materialidade social da riqueza universal (universal wealth)”.677


Ou seja, como analisa Rosdolsky, “no mercado mundial, o dinheiro não
recebe funções especiais diferentes das que já conhecemos”, mas aparece na
universalidade adequada ao seu conceito.678
Marx ressalta, no entanto, que o dinheiro serve de meio de com-
pra internacional apenas em ocasiões excepcionais. “O que predomina é
sua função como meio de pagamento para o ajuste das balanças interna-
cionais”.679 Assim o dinheiro aparece como “saldo do excedente no proces-
so global da troca internacional de mercadorias”. Portanto, como forma
de transferência de riqueza de um país a outro - cujos determinantes não
podem ser compreendidos ao nível de abstração da circulação simples das
mercadorias. Como afirma o autor, “na sociedade desenvolvida as coisas
se apresentam na superfície como mundo de mercadorias imediatamente
existente. Mas essa própria superfície aponta para além de si mesma, para
as relações econômicas que são postas como relações de produção”.680
Este caminho para a produção impõe-se, por exemplo, quando se
trata de demonstrar o caráter necessariamente internacional do capital, a
necessidade da disseminação do modo capitalista de produção e, portanto,
da operação a nível mundial de suas tendências imanentes expressas na lei
do valor. O que, ademais, está implícito na consideração de que o dinheiro
possui, necessariamente, uma existência mundial. Assim, devemos pers-
crutar, ainda que brevemente, as determinações subjacentes à circulação
das mercadorias, isto é, o processo de acumulação do capital em suas ten-
dências fundamentais, uma vez que importa demonstrar o caráter autoex-
pansivo, inclusive em termos geográficos, do capital e, portanto, o caráter
intrinsecamente mundial da lei do valor.
Como diz Marx ao abordar o tema da “transformação do dinheiro
em capital” em O capital, ao lado da circulação de mercadorias sintetizada
na máxima “vender para comprar”, encontra-se outra, cujo mote “comprar
para vender” (D-M-D) revela de imediato a diversidade de seu conteúdo: a
transformação de certa quantidade de valor em mais-valor (D-M-D’, onde

677
K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro I, 2013b, p. 217.
678
R. Rosdolsky, Gênese e estrutura de O capital de Karl Marx, 2001, p. 144.
679
K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro I, 2013b, p. 217.
680
K. Marx, Grundrisse, 2011a, p. 170.
206 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

D’ = D + ΔD).681 Na verdade, a circulação do dinheiro como capital pressu-


põe a circulação de mercadorias, cuja ocorrência plenamente desenvolvida
pode ter lugar apenas sob a base da produção capitalista.682 As condições
históricas que possibilitam a circulação desenvolvida de mercadorias, isto é,
o valor enquanto articulação necessária entre produtores privados, represen-
tam, ao mesmo tempo, os pressupostos históricos da produção capitalista.
A forma da circulação do dinheiro como capital (D-M-D’) paten-
teia o crescimento do valor como bandeira, já que uma “quantia de dinheiro
só pode se diferenciar de outra quantia de dinheiro por sua grandeza”; e, ao
mesmo tempo, essa valorização como movimento em si mesmo interminá-
vel, dada a coincidência entre início e fim do processo (valor na forma de
dinheiro).683 Como registrado nos Grundrisse:

Já vimos, no dinheiro, como o valor autonomizado enquanto tal - ou a forma


universal da riqueza - não é capaz de nenhum outro movimento que não seja o
quantitativo; o de se multiplicar. De acordo com seu conceito, ele é a quintessência
de todos os valores de uso; mas como sempre é somente um determinado
quantum de dinheiro (aqui, capital), seu limite quantitativo está em contradição
com sua qualidade. Por essa razão é de sua natureza ser constantemente impelido
para além de seu próprio limite. (...) Já por essa razão, para o valor que se mantém
em si como valor, o aumento coincide com o autoconservar, e ele só se conserva
precisamente pelo fato de que tende continuamente para além de seu limite

681
K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro I, 2013b, p. 223-224.
682
Segundo Callinicos, as relações de produção capitalistas envolvem duas separações: “A primeira
entre produtores, que interagem como unidades de produção autônomas, especializadas e
interdependentes através da troca de seus produtos no mercado. A segunda separação é aquela entre
produtores diretos e donos dos meios de produção, que implica a transformação da força de trabalho
em mercadoria. Apesar de Marx apresentar essas duas separações em pontos distintos de sua análise
em O capital - respectivamente na seção I e seção II do livro I, elas são de fato interdependentes.
Em outras palavras, a transformação da força de trabalho em mercadoria é possível apenas em um
sistema generalizado de produção de mercadorias; assim, apenas nessas circunstâncias os meios de
consumo estão disponíveis no mercado para que os trabalhadores os comprem com seus salários.
Correlativamente, é apenas onde os meios de produção são eles próprios mercadorias - o que
pressupõe sua separação dos produtores diretos - que as unidades de produção são completamente
dependentes do mercado e, portanto, sujeitas à lei do valor”. A. Callinicos, Deciphering Capital:
Marx’s Capital and its destiny, 2014, p. 175-176.
683
K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro I, 2013b, p. 226-227
Lei do valor e desenvolvimento desigual 207

quantitativo, limite que contradiz sua determinação formal, sua universalidade


intrínseca. O enriquecimento é, assim, uma finalidade em si.684

Portanto, o valor é uma forma de articulação social cuja dinâmica


subordina os indivíduos nela engajados. Seu movimento funda-se na neces-
sidade contínua da valorização. Como apontam Duayer e Medeiros: “Ne-
nhuma outra formação socioeconômica possui um dispositivo imanente
automático como este em seu processo de produção, dispositivo que a faz
crescer necessariamente”.685
Assim, o problema de Marx, em oposição à economia política, não
é meramente oferecer uma teoria dos preços relativos. A lei do valor de
Marx, como teoria sobre a forma especificamente capitalista da riqueza
social, demonstra: a subordinação dos sujeitos “à dominação abstrata do
produto de seu trabalho como capital”;686 e em que medida as tendências
próprias a este modo de produção põem a possibilidade de sua superação,
isto é, como a forma “das relações postas pelo capital (...) carrega em si o
germe de outra forma social”.687
O crescimento do mais-valor, portanto, é necessidade existencial
do capital, em geral. Ou seja, em qualquer ramo, sob quaisquer espécies,
em todas as nações etc., capital define-se como processo de valorização do
valor. Essa necessidade expressa para cada capital individualmente consi-
derado responde, por exemplo, pela tendência imanente ao aumento da
produtividade do trabalho, de importância central na teoria marxiana do
valor, como demonstraremos na seção seguinte. A partir daí explicitam-se
aspectos fundamentais do contraditório processo de acumulação de capital,
como o aumento da razão entre a parte constante e a parte variável do ca-

684
K. Marx, Grundrisse, 2011a, p. 209-210.
685
M. Duayer & J. L. Medeiros, “Marx estranhamento e emancipação: O caráter subordinado da
categoria da exploração na análise marxiana da sociedade do capital”, In: F. Miranda & R. Monfardini
(Orgs.), Ontologia e estética (Coleção NIEP-Marx, v.2), 2015b, p. 19.
686
M. Duayer, “Marx e a crítica ontológica da sociedade capitalista: Crítica do trabalho”, Em Pauta,
Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, n. 29, v. 10, 2012,
p. 43.
687
M. Duayer & J. L. Medeiros, “Marx estranhamento e emancipação: O caráter subordinado da
categoria da exploração na análise marxiana da sociedade do capital”, In: F. Miranda & R. Monfardini
(Orgs.), Ontologia e estética (Coleção NIEP-Marx, v.2), 2015b, p. 23.
208 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

pital em geral que, com as devidas mediações categoriais, desemboca na lei


de tendência à queda da taxa de lucro.688 Resumidamente, a lei de tendência
à queda da taxa de lucro demonstra o caráter autocontraditório do sistema
capitalista, na medida em que seu movimento determina a progressiva re-
dundância do trabalho vivo, negando as condições de valorização do capi-
tal.689 Em outros termos:

Portanto, de acordo com sua natureza, o capital põe um obstáculo para o trabalho
e a criação de valor que está em contradição com sua tendência de expandi-los
contínua e ilimitadamente. E uma vez que tanto põe um obstáculo que lhe é es-
pecífico quanto, por outro lado, avança para além de todo obstáculo, o capital é a
contradição viva.690

Na seção seguinte discutiremos a forma através da qual essas


tendências que apontam a necessidade da ultrapassagem de quaisquer
obstáculos se apresentam com força de lei na interação entre os distintos
capitais individuais, isto é, através da concorrência. Neste ponto, ainda ao nível
de abstração do capital em geral, devemos apenas chamar a atenção para o fato
de que a necessidade da apropriação crescente de mais-valor empurra o capital
para além de quaisquer fronteiras nacionais. Dito de outro modo, o caráter

688
Supondo-se dada a taxa de mais-valor e dada a tendência ao aumento da produtividade e,
portanto, da composição orgânica do capital social, conclui-se pela tendência à redução da taxa geral
de lucro, uma vez que, nessas condições, a massa de mais-valor produzida (e que será dividida entre
os diversos capitais através da concorrência) depende do número de trabalhadores empregados.
É importante ressaltar que Marx considerou que as mesmas causas que concorrem para elevar a
produtividade do trabalho atuam no sentido de criar forças contrárias à redução da taxa geral de
lucro, como por exemplo, o aumento na taxa de mais-valor, o aumento do exército industrial de
reserva e o barateamento dos elementos que compõem o capital constante.
689
Nas palavras que Marx emprega no livro III de O capital: “Em termos bem genéricos, a antinomia
consiste no seguinte: o modo capitalista de produção tende a desenvolver de maneira absoluta as
forças produtivas, independentemente do valor, da mais-valia nele incluída e das condições sociais
nas quais se efetua a produção capitalista, ao mesmo tempo que tem por finalidade manter o
valor-capital existente e expandi-lo ao máximo (isto é, acelerar sempre o acréscimo desse valor).
Caracteriza-o especificamente a circunstância de o valor-capital ser utilizado como meio de expandir
esse valor o máximo possível. Os métodos com que alcança esse objetivo implicam decréscimo da
taxa de lucro, depreciação do capital existente e desenvolvimento das forças produtivas do trabalho
às custas das forças produtivas já criadas”. K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro III,
2008, p. 328.
690
K. Marx, Grundrisse, 2011a, p. 345.
Lei do valor e desenvolvimento desigual 209

autoexpansivo do capital implica a necessidade da criação de novos espaços


para a acumulação, disseminando em escala global a sociabilidade do valor.

O capital, portanto, da mesma maneira que, por um lado, tem a tendência de criar
continuamente mais trabalho excedente, tem a tendência complementar, por ou-
tro, de criar mais pontos de troca; (...) no fundo de propagar a produção baseada
no capital ou o modo de produção que lhe corresponde. A tendência de criar o
mercado mundial está imediatamente dada no próprio conceito do capital.691

Esta tendência toma inicialmente a forma de processos que “colo-


nizam” modos pré-capitalistas de produção a partir de sua incorporação à
órbita da circulação do capital. Como resultado, esses modos de produção
anteriormente voltados para o valor de uso, isto é, nos quais a satisfação das
necessidades encontrava-se “complacentemente circunscrita a certos limi-
tes”, são gradativamente subsumidos à lógica do valor, a partir da afirmação
da forma mercantil do produto.692 A expansão mundial da produção capita-
lista, como posto no livro II de O capital,

(...) faz da venda do produto o interesse primordial, sem que, de início, isso pareça
afetar o próprio modo de produção, o que, por exemplo, constitui o primeiro efei-
to do comércio capitalista mundial sobre povos como o chinês, o indiano, o árabe
etc. Em segundo lugar, porém, onde lança raízes, ela destrói todas as formas da
produção de mercadorias baseadas seja no trabalho dos próprios produtores, seja
meramente na venda dos produtos excedentes como mercadorias. Primeiramente
ela universaliza a produção de mercadorias e, então, transforma toda a produção
de mercadorias em produção capitalista.693

Isso acontece não apenas porque o capital precisa da criação de no-
vos pontos de troca, estendendo o escopo das necessidades pelas mercado-
rias existentes por um círculo mais amplo. Acontece também porque a efeti-
vação da razão de ser do capital está predicada à contínua produção de novas
necessidades, ampliando as possibilidades de realização de mais-valor, aonde

691
Ibidem, p. 332.
692
Ibidem, p. 334.
693
K. Marx, O capital: crítica da economia política, livro II, 2014b, p. 118.
210 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

quer que a produção capitalista já esteja estabelecida. Em suma: “Daí a explo-


ração de toda a natureza para descobrir novas propriedades úteis das coisas;
troca universal dos produtos de todos os climas e países estrangeiros; novas
preparações (artificiais) dos objetos naturais, com o que lhes são conferidos
novos valores de uso”.694
Portanto, o movimento do capital afirma-se ao redor do planeta não
apenas, por assim dizer, de fora para dentro, como, em um segundo mo-
mento, de dentro para fora, isto é, pela dissolução de modos de produção
arcaicos em capitalistas. Isso significa que todas as tendências imanentes ao
novo modo de produção operam mundialmente, ainda que de maneira desi-
gual, como veremos. Assim, se o processo de acumulação de capital assume
necessariamente um caráter mundial, a lei do valor, o esforço teórico para
se compreender essa dinâmica, também deve fazê-lo. Na próxima seção dis-
cutiremos alguns aspectos que nos parecem fundamentais nesta complexa
tarefa de pensar o funcionamento da lei do valor no mercado mundial, o que
pressupõe a ruptura com o nível de abstração do capital em geral.

5.4. O “caso clássico” e os casos não-clássicos do


desenvolvimento capitalista: lei do valor e mercado mundial

Já dissemos, talvez até em demasia, que Marx não trata do modo de produção
capitalista no nível de abstração das determinações postas pela interação entre
distintos capitais nacionais no mercado mundial. Igualmente, apontamos que
a necessidade de se compreender o movimento real do modo de produção
capitalista vis-à-vis a impossibilidade do isolamento, em laboratório, de suas
determinações essenciais, a fim de observá-las livre de perturbações, impõe o
recurso à análise do “caso clássico” de seu desenvolvimento. Por conseguinte,
se o objetivo da obra é investigar “o modo de produção capitalista e suas cor-
respondentes relações de produção e de circulação”, Marx é consequente ao
tomar a Inglaterra por “ilustração principal à minha exposição teórica”, uma
vez que o país corresponde à “[s]ua localização clássica até o momento”.695

694
K. Marx, Grundrisse, 2011a, p. 333.
695
K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro I, 2013b, p. 78.
Lei do valor e desenvolvimento desigual 211

Não obstante, se ao seguir o caminho da concreção da análise de


O capital, para além de seu escopo, desemboca-se na relação dialética entre
mercados nacionais e mercado mundial,696 podemos colocar esta questão nos
termos da relação entre o “caso clássico” e os casos não-clássicos do desenvol-
vimento da sociedade burguesa. Isto é, trata-se de compreender a maneira
pela qual as tendências gerais descobertas tomando-se por ilustração o “caso
clássico” se apresentam, de modo mais complexo, no mercado mundial.
Devemos partir, então, da compreensão sobre o significado de
“classicidade” em Marx e, adicionalmente, de seu oposto. Recordemos que
desenvolvimento para o autor diz respeito ao aumento de complexidade como
resultado do movimento de objetos estruturados, como o ser social. Desta
forma, no caso do modo de produção capitalista, como anota Carcanholo, “a
noção de desenvolvimento significa o desenrolar contraditório, dialético, das
leis de tendência” desse modo de produção.697 Em outras palavras, refere-
se à afirmação desta forma de sociabilidade. Para Marx, o “caso clássico” é
aquele no qual, em determinada etapa histórica, “essas leis gerais puderam
se explicitar ao máximo grau, não turvadas por componentes estranhos”.698
Atendo-nos ao objeto de O capital,699 o desenvolvimento clássico
do capitalismo teve lugar quando uma complexa interação das forças in-
ternas à sociedade inglesa pôs o modo de produção capitalista como rea-
lização casual de possibilidades concretas.700 Nesse sentido, tal desenvolvi-

696
Em comentário à obra do protecionista estadunidense Carey, diz Marx: “Todas as relações que
lhe parecem harmônicas no interior de determinadas fronteiras nacionais ou, inclusive, na forma
abstrata de relações universais da sociedade (...), parecem-lhe desarmônicas ali onde se apresentam
em sua forma mais desenvolvida - em sua forma de mercado mundial (...). O que Carey não
compreende é que essas desarmonias do mercado mundial são unicamente as expressões adequadas
últimas das desarmonias que [são] fixadas nas categorias econômicas como relações fixas ou que
têm uma existência local em menor escala”. K. Marx, Grundrisse, 2011a, p. 30.
697
M. Carcanholo, “O atual resgate crítico da teoria marxista da dependência”, Trabalho, Educação
e Saúde, v. 11, n. 1, 2013, p. 193.
698
G. Lukács, Para uma ontologia do ser social I, 2012a, p. 376.
699
Engels, por exemplo, discute a forma clássica da formação do Estado, identificando-a em Origem
da família, da propriedade privada e do Estado na emergência e “desenvolvimento da pólis antiga”
em Atenas. Ibidem, p. 376-377.
700
Com Lukács: “No momento em que usamos o termo ‘casualmente’, devemos mais uma vez
recordar o caráter dessa categoria: um caráter ontológico, objetivo e determinado em sentido
rigorosamente causal. Como a presença da casualidade resulta sobretudo da natureza heterogênea
das relações entre complexos sociais, só post festum é possível entender como rigorosamente
fundado, como necessário e racional, o modo pelo qual ela se torna válida”. Ibidem, p. 376.
212 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

mento prescindiu “da intervenção de uma violência externa”.701 Com isso


não se quer dizer que esse processo não tenha sido permeado por atos ex-
tremamente violentos, no entanto, seguindo uma vez mais Lukács, há “(...)
uma diferença qualitativa entre o caso no qual a violência é um momento, é
órgão executivo do desenvolvimento direto das forças econômicas, e aquele
no qual ela cria condições inteiramente novas para a economia (...)”.702
No livro I de O capital Marx analisa momentos de violência extrae-
conômica absolutamente necessários para a emergência do modo de produ-
ção capitalista, como vimos no capítulo anterior. Nesse tocante, apenas “na
Inglaterra, e por isso tomamos esse país como exemplo, tal expropriação se
apresenta em sua forma clássica”. Isto é, no país a violência extraeconômica se
apresentou como um “órgão executivo do desenvolvimento direto das forças
econômicas” burguesas. No entanto, como complementa alguns anos depois,
na edição francesa de O capital: “(...) todos os outros países da Europa oci-
dental percorreram o mesmo caminho, ainda que, segundo o meio, ele mude
de coloração local, ou se restrinja a um círculo mais estreito, ou apresenta um
caráter menos pronunciado, ou siga uma ordem de sucessão diferente”.703
Simetricamente, nos países de desenvolvimento capitalista não-
clássico, a forma burguesa de sociabilidade só se pode afirmar pela conquis-
ta externa. Isto é, como subproduto da expansão do capitalismo “clássico”.
Na maioria desses casos, apenas a dominação estrangeira, sempre barbara-
mente violenta, pôde forjar as novas condições de produção e distribuição.
Trata-se, portanto, de um tipo de relação que subordina e, como veremos,
reproduz de modo contínuo e ampliado essa subordinação. Ademais, o
abertamente provocativo “De te fabula narratur [A fábula refere-se a ti]”,
que Marx lança aos leitores alemães no Prefácio da primeira edição de O
capital, também se aplica nestes casos. Afinal: “Não se trata do grau maior
ou menor de desenvolvimento dos antagonismos sociais decorrentes das
leis naturais da produção capitalista. Trata-se dessas próprias leis, dessas
tendências que atuam e se impõem com férrea necessidade”.704

701
Ibidem, p. 377.
702
Ibidem, p. 377-378.
703
K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro I, 2013b, p. 788.
704
Ibidem, p. 78.
Lei do valor e desenvolvimento desigual 213

O que importa aqui é compreender o sentido econômico da relação


estabelecida entre países que se inserem de forma distinta no mercado mun-
dial, isto é, como as condições econômicas de uns e outros condicionam-se
reciprocamente. O mercado mundial, diz Marx, “(...) não é só o mercado
interno na relação com todos os mercados estrangeiros existentes fora dele,
mas é simultaneamente o [mercado] interno de todos os mercados estran-
geiros como partes integrantes, por sua vez, do mercado nacional”.705 Nesse
sentido, nele resplandecem os diferentes graus de desenvolvimento nas for-
ças produtivas em diferentes nações.
Veremos que o modo como opera a lei do valor no mercado mundial
determina uma forma específica de relações internacionais. Como se sabe, é
na interação entre capitais distintos que as tendências imanentes ao modo
de produção capitalista aparecem para cada capital individual “como uma
coerção imposta por capital alheio (...)”. Essa complexa interrelação entre os
diversos capitais existentes Marx chama de concorrência. Em suas palavras:

Conceitualmente, a concorrência nada mais é do que a natureza interna do capital,


sua determinação essencial, que se manifesta e se realiza como ação recíproca dos
vários capitais uns sobre os outros, a tendência interna como necessidade externa (...).
O capital existe e só pode existir como muitos capitais e, consequentemente, a sua
autodeterminação aparece como ação recíproca desses capitais uns sobre os outros.706

Se no mercado mundial os capitais distintos interagem (com o per-


dão da redundância) mundialmente, é nos marcos da concorrência que de-
vemos desenvolver este tema.707 Trabalhar a questão da concorrência signi-

705
K. Marx, Grundrisse, 2011a, p. 219.
706
Ibidem, p. 338.
707
Notemos que a forma como Marx compreende o conceito de desenvolvimento clássico prescinde
de julgamento de valor. Isto é, trata-se da afirmação das leis imanentes ao modo de produção
capitalista, não da postulação de um caso “melhor” diante dos outros, “piores”. Na mesma linha,
a análise desta relação deve antes focar seus determinantes objetivos. Por conta disso, rejeitamos
aqui tratá-la, a priori, por “relação de dependência”, como se convencionou a partir do referencial
da Teoria Marxista da Dependência. Em nossa opinião, antes de se compreender o movimento
geral do valor no mercado mundial, qualquer tentativa de tipificar valorativamente em categorias
particulares as nações segundo determinações econômicas (centrais e periféricas; dependentes
e independentes etc.) é mero postulado. Avaliações éticas sobre relações sociais devem partir da
análise objetiva de seus condicionantes, isto é, da descrição teórica de seu movimento. Acreditamos
214 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

fica, ademais, romper o nível de abstração do “capital em geral”,708 tal qual


faz Marx a partir da seção II do livro III de O capital e, pontualmente, para
demonstrar o aumento da produtividade como tendência imanente ao ca-
pital, nos capítulos X e XXIII do livro I. Resulta a análise da separação entre
produção e apropriação do mais-valor para cada capital singular. Isto é, um
capital não necessariamente se apropria de todo o mais-valor criado por ele
mesmo ou, por outro lado, pode apropriar-se de quantia de mais-valor maior
do que ele próprio produziu. O ponto, portanto, é o da transferência interca-
pitalista do mais-valor. Como aponta em breve nota ao final dos Grundrisse:

Tendo em vista que o lucro pode ser inferior ao mais-valor, ou seja, que o capital
[pode] trocar-se lucrativamente sem se valorizar no sentido estrito, segue-se que
não só os capitalistas individuais, mas também as nações podem trocar conti-
nuamente entre si, e repetir continuamente a troca em escala sempre crescente,
sem que por isso precisem ganhar de modo uniforme. Uma pode apropriar-se
continuamente de uma parte do trabalho excedente da outra, pelo qual nada
dá em troca, só que nesse caso a medida não é como na troca entre capitalista e
trabalhador.709

Analisando unicamente o capital industrial,710 Marx identifica duas


formas essenciais de transferência de mais-valor: na concorrência entre ca-
pitais em um mesmo ramo; e entre capitais em distintos ramos de produ-
ção. Comecemos pelo último caso.
A seção final do livro I de O capital sugere a categoria composição
orgânica (composição em valor do capital - relação entre capital constante
e capital variável - determinada por sua composição técnica - relação en-
tre meios de produção e força de trabalho -, isto é, pela produtividade do

que apenas assim se possa fundamentar uma moral revolucionária imune à cooptação por um
moralismo conceitualmente vazio e potencialmente reacionário.
708
Como esclarece Marx: “só é possível uma análise científica da concorrência depois que se apreende
a natureza interna do capital, assim como o movimento aparente dos corpos celestes só pode ser
compreendido por quem conhece seu movimento real, apesar de sensorialmente imperceptível”. K.
Marx, O capital: Crítica da economia política, livro I, 2013b, p. 391.
709
K. Marx, Grundrisse, 2011a, p. 747.
710
A propósito, uma abstração real: uma vez que não se pode apropriar de algo que não existe, a
apropriação de mais-valor por capitais que não o produzem diretamente pressupõe o processo de
produção e circulação do mais-valor.
Lei do valor e desenvolvimento desigual 215

trabalho) para se pensar os efeitos fundamentais da evolução das forças


produtivas na produção capitalista. Sem esta categoria não é possível com-
preender a transferência de mais-valor na concorrência entre capitais em
ramos de produção distintos.
A pedra fundamental aqui é a tendência à formação de uma taxa
média de lucro, uma vez que os capitais, via de regra e desconsiderando-
se as restrições que se lhe interpõem, tendem a migrar para os ramos que
oferecem taxas de lucro maiores. Se não fosse assim, dadas as diferenças
nas composições orgânicas e nos tempos de rotação que vigoram entre os
ramos distintos711 (para dada taxa de mais-valor), as taxas de lucro nos di-
ferentes ramos seriam profundamente desiguais. Não obstante:

(...) não há a menor dúvida de que, na realidade, excluídas diferenças não es-
senciais, fortuitas e que se compensam, não existe diversidade nas taxas médias
de lucro relativas aos diferentes ramos industriais, nem poderia existir, sem pôr
abaixo todo o sistema de produção capitalista.712

A concorrência, portanto, iguala as taxas de lucro distintas que


vigorariam nos diferentes ramos de produção “numa taxa geral de lucro,
que é a média de todas elas”.713 Na prática, a tendência à uniformização da
taxa de lucro significa que os capitais cobram participação no mais-valor
socialmente produzido segundo seu tamanho, não de acordo com mais-
valor gerado nos respectivos ramos de produção. Por exemplo, dois ramos
de produção nos quais se aplicam os mesmos montantes de capital, que
possuem iguais tempos de rotação e taxas de mais-valor, mas com compo-
sições muito distintas, apropriar-se-iam da mesma parcela do mais-valor

711
Segundo Marx; “Os diversos capitais individuais que se aplicam num determinado ramo
da produção têm composições mais ou menos distintas entre si. A média de suas composições
individuais nos dá a composição total desse ramo da produção”. K. Marx, O capital: Crítica da
economia política, livro I, 2013b, p. 689. Analogamente: “Abstraindo das contingências individuais,
que podem acelerar ou encurtar o tempo de rotação para um capital individual, o tempo de rotação
dos capitais é distinto de acordo com suas diferentes esferas de investimento”. K. Marx, O capital:
Crítica da economia política, livro II, 2014b, p. 237. Ainda que consideremos desvios nos tempos de
rotação em um mesmo ramo, podemos considerar que os mesmos convergem para um respectivo
tempo de rotação médio, uma vez que as diferenças devem ser mais ou menos compensadas.
712
K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro III, 2008, p. 203.
713
Ibidem, p. 211.
216 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

socialmente produzido. Isso se expressaria na identidade entre os preços de


produção714 vigentes nesses dois ramos.
Portanto, os ramos de composições orgânicas superiores apresen-
tam diferenciais positivos entre o preço de produção e o valor das mercado-
rias produzidas em cada um deles, o que é compensado pelo desvio nega-
tivo, nesse mesmo quesito, nos ramos de composições orgânicas inferiores.
Em cada ramo lucro e mais-valor são magnitudes absolutamente distintas,
isto é, “na figura transmutada de lucro, a mais-valia encobre sua origem,
perde seu caráter, torna-se irreconhecível”.715 Apenas na eventualidade de
que um ramo possua composição orgânica exatamente igual à média social,
lucro e mais-valor por ele produzido coincidiriam.716 Em suma:

(...) do ponto de vista do lucro, os capitalistas são vistos como simples acionistas
de uma sociedade anônima em que os dividendos se repartem segundo percenta-
gem uniforme, só se distinguindo os dividendos correspondentes a cada capitalista
pela magnitude do capital que cada um colocou no empreendimento comum, pela
participação percentual que tem na empresa, pelo número de ações que possui.717

Com relação à transferência do mais-valor no interior de um ramo


de produção, uma vez que é a média social, o tempo de trabalho socialmen-
te necessário, que determina o valor de mercado,718 os capitais mais produ-
tivos (isto é, que produzem em menor tempo e, portanto, cuja mercadoria
individual contém menor valor) tendem a apropriar-se de parte do mais-
valor produzido pelos capitais menos produtivos. Isto é:

714
“O preço de produção da mercadoria é (...) igual ao preço de custo mais o lucro que percentualmente
se lhe acrescenta correspondente à taxa geral de lucro, ou igual ao preço de custo mais o lucro médio”.
Ibidem, p. 210. O preço de custo, por sua vez, corresponde à parte produtivamente consumida do
capital constante em um determinado período e ao capital variável necessário para mobilizar a força
de trabalho necessária.
715
Ibidem, p. 221.
716
Poder-se-ia pensar, portanto, que a categoria preço de produção aparentemente nega a lei do
valor. No entanto: “Uma vez que o valor global das mercadorias regula a mais-valia global, e esta,
o nível do lucro médio e por consequência a taxa geral de lucro, como lei geral ou tendência que
domina as flutuações, então inferimos que a lei do valor rege os preços de produção”. Ibidem, p. 237.
717
Ibidem, p. 212.
718
“Releva considerar como valor de mercado o valor médio das mercadorias produzidas num ramo,
ou o valor individual das mercadorias produzidas nas condições médias do ramo e que constituem a
grande massa de seus produtos”. Ibidem, p. 235.
Lei do valor e desenvolvimento desigual 217

Quando a oferta das mercadorias ao valor médio, isto é, ao valor da massa situada
entre aqueles dois extremos, satisfaz a procura corrente, realizam as mercadorias,
de valor individual abaixo do valor de mercado, mais-valia extra ou superlucro,
enquanto as de valor individual acima do valor de mercado não podem realizar
parte da mais-valia nelas contidas.719

Ou seja, é também a diferença na produtividade do trabalho que


determina a transferência de mais-valor em um mesmo ramo de produção.
Uma vez que a luta concorrencial se desenvolve, em última instância, “por
meio do barateamento das mercadorias”, cada capital tem estímulos para
aplicar métodos mais produtivos.720 A propósito, a despeito de que, no nível
fenomênico, as formas da concorrência tenham se tornado profundamente
mais complexas ao longo do século XX, especialmente pelo uso de meios
de comunicação inexistentes à época de Marx e, através deles, da aplicação
de técnicas de “manipulação socialmente consciente das massas”,721 os dife-
renciais na produtividade do trabalho aplicado nos distintos capitais corres-
pondem à essência das transferências de mais-valor.
Tomando-se rigorosamente método da Crítica da economia polí-
tica, como discutido acima, toda esta análise não apenas segue válida ao
nível do mercado mundial, como o pressupõe.722 Já notamos que este é, ao
mesmo tempo, o ponto de partida do modo de produção capitalista e seu
resultado continuamente posto em escala crescente. Em outros termos:

(...) o mercado mundial, a conclusão, em que a produção é posta como totalidade,


assim como cada um de seus momentos; na qual, porém, todas as contradições
simultaneamente entram em processo. O mercado mundial, portanto, constitui ao
mesmo tempo o pressuposto e o portador da totalidade.723

719
Ibidem, p. 235.
720
K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro I, 2013b, p. 702.
721
G. Lukács, Para uma ontologia do ser social I, 2012a, p. 46.
722
A seguinte anotação de Marx não dá espaço para mal-entendidos neste tocante: “No conceito
mais simples do capital, têm de estar contidas em si suas tendências civilizatórias etc.; não podem
aparecer, tal qual nas teorias econômicas até aqui, como meras consequências externas. Da mesma
forma, é preciso demonstrar que nele já estão latentes as contradições posteriormente liberadas”. K.
Marx, Grundrisse, 2011a, p. 338.
723
Ibidem, p. 170-171.
218 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

Indo direto ao ponto através da pena de Chattopadhyay: “Todos es-


tes processos [de transferência de mais-valor] são postos juntos, em maior
complexidade, na concorrência ao nível da economia mundial”.724 Há trans-
ferência de mais-valor intra-ramos e inter-ramos de produção no mercado
mundial. A maior complexidade do fenômeno, com relação à sua conside-
ração na forma mais simples/abstrata acima exposta decorre, inicialmente,
do fato de que estes capitais têm por base diferentes nações. Não é sem ra-
zão, portanto, que Dussel propõe a categoria “capital global nacional” para
seguir à análise dos determinantes dos fluxos internacionais de mais-valor,
tomando-o, destarte, em termos muito gerais.725
A síntese dos capitais globais nacionais, diz Dussel, corresponde a
um “capital global mundial”, no interior do qual a concorrência “internacio-
nal cumpre seu papel de nivelação e distribuição da totalidade do mais-valor
mundial”.726 Ademais, cada capital global nacional é relativamente autônomo
frente ao capital global mundial. Assim, o tema a ser definido inicialmente
é o da concorrência entre capitais globais nacionais com graus de produti-
vidade do trabalho mais e menos desenvolvidos. No meio do caminho, no
entanto, jaz uma questão: há nivelamento internacional das taxas de lucro
que fundamente a transferência de mais-valor entre diferentes ramos de pro-
dução, no mercado mundial? É possível encontrar negativas de Marx a essa
pergunta. Por exemplo: “Também no comércio internacional não importa às
nações a diversidade das taxas de lucro relativas à troca das mercadorias”.727
Como sempre, tal afirmação deve ser contextualizada em termos
históricos e teóricos. Isto é, na época de Marx haviam razões para supor que
não ocorreria “o nivelamento dos valores pelo tempo de trabalho e menos
ainda o nivelamento dos preços de custo por uma taxa geral de lucro (...) nesta

724
P. Chattopadhyay, “Competition”, In: B. Fine & A. Saad-Filho, The Elgar companion to marxist
economics, 2012, p. 75; adendo nosso.
725
E. Dussel, Hacia un Marx desconocido. Un comentario de los Manuscritos del 61-63, 1988, p.
336. Cada capital global nacional tem uma composição orgânica que representa “(...) a média
total das composições médias de todos os ramos da produção (...)” de um país. K. Marx, O
capital: Crítica da economia política, livro I, 2013b, p. 689. Nesse sentido, a categoria é útil por nos
ajudar a compreender a tendência geral dos fluxos internacionais de mais-valor entre países de
desenvolvimento capitalista clássico e não-clássico. Trata-se, evidentemente, de uma abstração que,
como tal, é limitada e deve ser dissolvida no curso da análise da concorrência no mercado mundial.
726
E. Dussel, Hacia un Marx desconocido. Un comentario de los Manuscritos del 61-63, 1988, p. 337.
727
K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro III, 2008, p. 233.
Lei do valor e desenvolvimento desigual 219

forma direta entre diferentes países” – como registrado nos Manuscritos de


1861-1863728–, uma vez que haviam muito mais significativas restrições ao
deslocamento mundial da produção dos distintos capitais, devidas tanto a
questões de ordem técnica quanto geopolíticas.
Contudo, a tendência ao nivelamento internacional das taxas de lu-
cro existe, uma vez que “capital” é idêntico à “mercado mundial” e que, pelos
mesmos motivos, tende às soluções mais lucrativas possíveis. Nas palavras de
Pradella: “Enquanto uma tendência geral existe, uma imobilidade relativa do
capital entre nações previne o movimento completamente livre dos capitais
ao nível internacional, no qual a formação de uma taxa média de lucro ocorre
apenas ocasionalmente”.729
A plena operação da lei do valor no mercado mundial, portanto, é
uma tendência que se realiza progressivamente no curso do desenvolvimento
do modo de produção capitalista.730 Essa realização implica a transferência
de mais-valor nas relações comerciais entre países cujos capitais empregam
trabalhos em graus diversos de produtividade. O mesmo ocorre na com-
petição mundial pelo mais-valor entre capitais de um mesmo ramo. Neste
caso, a ampliação do comércio exterior aponta para a tendência à forma-
ção de um tempo de trabalho socialmente necessário em escala mundial.
Sintomaticamente, como posto por Marx nos Manuscritos de 1861-1863:
“(...) a medida do valor, e.g. do algodão, é determinada não pelo tempo de

728
K. Marx & F. Engels, Karl Marx & Frederick Engels Collected Works (MECW), v. 31, 1975, p. 426.
729
L. Pradella, Globalization and the critique of political economy: New insights from Marx’s writings,
2015, p. 150.
730
Por exemplo, Chesnais acredita que apenas a partir do princípio do século XXI essa tendência
a criar o mercado mundial materializa-se de fato, com “a entrada da China na OMC”. F. Chesnais,
“La preeminencia de las finanzas en el seno del ‘capital en general’, el capital ficticio y el movimiento
contenporáneo de mundialización del capital”, In: F. Chesnais et al., Las finanzas capitalistas: Para
comprender la crisis mundial, 2009, p. 79. Sem pretendermos entrar na polêmica acerca desta
provocativa afirmação, atentemos para a posição de Montoro: “Finalmente, a internacionalização
do capital se completa com sua forma diretamente produtiva. Ainda que com antecedentes muito
anteriores (especialmente em setores primários como o extrativo), é especialmente a partir dos anos
sessenta e setenta do século XX que tem lugar esta internacionalização diretamente com a forma
de capital produtivo, sobretudo no setor industrial (nos últimos anos do século XX e primeiros do
XXI se generalizará ao setor de serviços)”. Sobre isso, conclui o autor: “Uma consequência decisiva
da internacionalização é a universalização da lei do valor (...). Com efeito, se trata da configuração
de uma economia mundial como tal, para além da soma das distintas economias nacionais e suas
relações (...)”. X. Montoro, Capitalismo y economía mundial, 2014, p. 158.
220 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

trabalho inglês, mas pelo tempo de trabalho necessário médio no mercado


mundial”.731 Portanto:

Capitais empregados em comércio exterior podem conseguir taxa mais alta de


lucro, antes de mais nada, porque enfrentam a concorrência de mercadorias pro-
duzidas por outros países com menores facilidades de produção, de modo que o
país mais adiantado vende suas mercadorias acima do valor, embora sejam mais
baratas que as dos países competidores.732

Como lei geral, “capitais globais nacionais” com maior grau de de-
senvolvimento das forças produtivas tendem a apropriar-se de um mais-va-
lor extra às expensas de “capitais globais nacionais” em pior situação, tanto
na interação em um mesmo ramo de produção, quanto entre ramos de pro-
dução distintos. Isto é, “(...) no mercado mundial os países com um de-
senvolvimento técnico mais elevado obtêm lucros extraordinários às custas
daqueles países cujo desenvolvimento técnico e econômico está atrasado”.733
Esse quadro patenteia, tomando-se apenas estas determinações, uma forma
de relação internacional nas quais algumas nações estão em posição subor-
dinada diante de outras. Em outros termos, certas nações (notadamente
aquelas cuja produtividade do trabalho encontra-se menos desenvolvida)
estão subalternamente inseridas no mercado mundial.
Sobre o caráter dessa relação - em contrariedade com o que diz,
por exemplo, Grossmann -, Dussel defende que não se trata da exploração
de uma nação por outra: uma conclusão que redundaria em um moralismo
estranho à obra marxiana, no qual a própria categoria “exploração” teria seu
significado corrompido, assim como o caráter necessariamente desigual do
desenvolvimento do modo de produção capitalista resultaria menos nítido.
Nas palavras de Dussel:

A relação social internacional de uma burguesia nacional portadora de capital


global nacional mais desenvolvido em concorrência com a burguesia do capital
global menos desenvolvido, não é de exploração; é horizontal: a denominaremos

731
K. Marx & F. Engels, Karl Marx & Frederick Engels Collected Works (MECW), v. 33, 1975, p. 384.
732
K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro III, 2008, p. 313.
733
H. Grossmann, La ley de la acumulación y del derrumbe del sistema capitalista, 1979, p. 280.
Lei do valor e desenvolvimento desigual 221

de dominação internacional; é a relação na qual pela concorrência se transfere


mais-valor (mas não se cria).734

Como argumentamos acima, não pode causar espanto a ausência


do tratamento sistemático da dominação internacional na obra. No entan-
to, quando a abordou Marx o fez, especialmente, no escopo da influência
do mercado mundial sobre a taxa de lucro. Na breve nota sobre o comércio
exterior como tendência contra-restante à queda da taxa de lucro, a questão
de fundo é precisamente a transferência do mais-valor.735 No trecho é consi-
derado o efeito do comércio exterior sobre o valor do capital constante e do
capital variável no país com forças produtivas mais desenvolvidas, a concor-
rência entre capitais de um mesmo ramo e a aplicação direta de capital nas
“colônias”. Em síntese, quanto maior a transferência de mais-valor para o
país de capital global nacional com maior composição orgânica, maior essa
força contrária à queda da taxa de lucro no país.

No intercâmbio, o país favorecido recebe mais trabalho do que dá, embora essa
diferença, esse mais, como ocorre no intercâmbio entre trabalho e capital, em-
bolse-o determinada classe. A taxa de lucro mais alta, por ser mais alta no país
colonial, pode coincidir, havendo nele condições naturais favoráveis, com merca-
dorias de preço baixos.736

Seguindo-se esta linha de raciocínio, devemo-nos indagar quanto


a que outros fatores poderiam influenciar a taxa de lucro na competição in-
ternacional expressando, portanto, a transferência do mais-valor mundial-
mente.737 Apontamos, preliminarmente, para alguns elementos indicados

734
E. Dussel, Hacia un Marx desconocido. Un comentario de los Manuscritos del 61-63, 1988, p. 342.
735
A propósito, acreditamos que as considerações sobre a Diversidade nacional dos salário, capítulo
XX do livro I, nos ajudam a pensar os determinantes das taxas de lucro mundialmente, uma vez que
se discute aí a relação entre o valor da força de trabalho e o mais-valor em diferentes países, dadas
as diferenças nos respectivos graus de produtividade do trabalho.
736
K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro III, 2008, p. 314.
737
Antes, notemos que foge ao nosso escopo a questão extremamente importante das formas
concretas de transferência do mais-valor. Saldos comerciais, remessas de lucro, transferências
diretas, pagamentos de juros e amortizações de dívidas etc., todas estas transações dizem respeito à
transferência internacional do mais-valor, com reflexo nos saldos dos balanços de pagamentos, isto
é, nos fluxos de dinheiro mundial, como vimos na seção anterior.
222 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

pelo próprio Marx: em primeiro lugar, o autor reconhece que a “diversidade


dos tempos de rotação é (...) outra causa de capitais de igual magnitude
em diferentes ramos de produção não produzirem lucros iguais em prazos
iguais e de assim diferirem as taxas de lucro nesses diversos ramos”;738 em
segundo lugar, “taxas de lucro nacionais diversas, em regra, se baseiam em
taxas de mais-valia nacionais diversas”, o que é observado apenas para logo
após afirmar-se que em sua pesquisa comparar-se-ão apenas “taxas de lucro
desiguais, oriundas da mesma taxa de mais-valor”;739 em terceiro lugar, as
modificações na lei do valor advindas dos diferentes graus de complexidade
dos trabalhos em nações distintas que, ademais, acentuam-se “pelo fato de,
no mercado mundial, o trabalho nacional mais produtivo também contar
como mais intensivo, sempre que a nação mais produtiva não se veja for-
çada pela concorrência a reduzir o preço de venda de sua mercadoria a seu
valor”;740 e, finalmente, deve-se levar em conta as espécies de capital que
habitam unicamente a esfera da circulação, em especial o desenvolvimento
do sistema de crédito, que “acelera o desenvolvimento das forças produtivas
e a formação do mercado mundial”741 e determina outras formas de trans-
ferência internacional de mais-valor.
Por outro lado, Marx saca conclusões da análise do comércio exte-
rior sobre a taxa de lucro apenas nos países de desenvolvimento capitalista
“clássico”. Esta postura justifica-se pelo contexto geral no qual Marx aborda
o tema, como vimos. No entanto, se a transferência de mais-valor corres-
ponde a um fator contrário à queda da taxa de lucro para as burguesias na-
cionais beneficiadas, não deveríamos esperar o efeito contrário nas nações
“não-clássicas”? Seguindo-se adiante, as consequências das transferências
de mais-valor produzido não contribuiriam para a perpetuação das condi-
ções da dominação no mercado mundial?
Neste ponto, Marini oferece uma instigante contribuição. Segundo
o autor, a transferência do mais-valor engendra a necessidade de mecanis-
mos que compensem as burguesias nacionais dos países de inserção su-
balterna na lógica mundial de acumulação de capital. Marini concentra-se

738
Ibidem, p. 201.
739
Ibidem, p. 200.
740
K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro I, 2013b, p. 632.
741
K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro III, 2008, p. 588.
Lei do valor e desenvolvimento desigual 223

no necessário aumento do grau de exploração da força de trabalho, que


determina a reprodução atrofiada de capitais que não puderam contar com
um mercado interno desenvolvido, característica sintetizada na categoria
“superexploração do trabalho”.742 Nesse sentido, a inserção subalterna (que
o autor, referindo-se apenas à América Latina, chama de “relação de de-
pendência”) reproduz-se em escala ampliada, marcando profundamente a
forma do desenvolvimento capitalista nestas economias.
Além disso, a tendência à transferência de mais-valor na direção
dos capitais globais nacionais mais produtivos, que se reflete nos ajustes
das balanças internacionais de comércio, tem de implicar uma tendência ao
endividamento dos Estados que baseiam capitais globais nacionais menos
produtivos. Não bastasse o fato de que a dinâmica da dívida pública, por
si só, aponta para a sua expansão (já que envolve o pagamento de juros)
e, portanto, para a crescente transferência internacional do mais-valor, tal
configuração indica a retroalimentação da dominação internacional.
Uma vez que à inserção subalterna corresponde uma maior fragili-
dade diante das flutuações cíclicas do processo de acumulação de capital em
escala mundial,743 faz-se necessário o constante refinanciamento da dívida
pública com um aumento na remuneração oferecida sobre tais títulos. A
consequente elevação geral na taxa de juros cobrada internamente deve,
por um lado, deprimir ainda mais possibilidades internas de reprodução do
capital, pela redução dos lucros, o que, por outro lado, reforça ainda mais a
pressão compensatória sobre a remuneração da força de trabalho, isto é, a
superexploração da força de trabalho.
Em suma, esta mirada preliminar para o sistema da dívida pública
indica um reforço enorme à reprodução ampliada da dominação interna-

742
R. M. Marini, “Dialéctica de la dependencia”, In: R. M. Marini, América Latina, dependencia y
globalización: Fundamentos conceptuales, 2008, p. 132. Com relação à categoria, notemos que Dussel
intui corretamente que a essência das relações de subordinação no mercado mundial corresponde
à transferência do mais-valor, afastando-se assim de Marini para quem na superexploração do
trabalhador reside a essência da dependência. Não obstante apontar corretamente que Marini
confunde essência e efeito, Dussel não descarta o potencial explanatório da categoria, como se pode
perceber no trecho que segue: “A superexploração exposta por Mauro Marini pode ser explicada
perfeitamente como compensação pela transferência de mais-valor”. E. Dussel, Hacia un Marx
desconocido. Un comentario de los Manuscritos del 61-63, 1988, p. 355.
743
O que já se evidencia nas condições da concorrência internacional pelo mais-valor ao nível de
abstração até aqui considerado.
224 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

cional. Obviamente, tal análise não tem a menor pretensão de esgotar a im-
portante temática da dívida pública e seu papel na forma necessariamente
desigual do desenvolvimento econômico geral no mercado mundial. Ain-
da no que diz respeito, em abstrato, apenas às condições econômicas dessa
desigualdade, cumpre, ao menos, um tratamento cuidadoso da dinâmica
autônoma (ainda que apenas relativamente, claro) das formas fictícias de
acumulação de capital (como a própria dívida pública, que constitui um im-
portante pilar para as transações financeiras como um todo), tão pujantes
no capitalismo contemporâneo.
Deve resultar claro que muitos fatores podem reforçar ou con-
trariar a lei geral que indica a transferência de mais-valor na direção dos
países com forças produtivas capitalistas mais desenvolvidas. Em especial,
sem pretendermos tratar nem mesmo preliminarmente a questão, note-se
o papel fundamental dos arranjos políticos internacionais. Por um lado, em
determinadas circunstâncias os Estados dos países que transferem mais-
valor podem atuar no sentido contrário a esta tendência e, até mesmo, pre-
tender alçar-se a uma posição menos desvantajosa na divisão internacional
do trabalho. Por outro, as nações de desenvolvimento burguês “clássico”
continuamente, e de diversas formas, lutam por assegurar e aprofundar suas
posições vantajosas.
Em suma, o jogo político entre Estados Nacionais determina so-
bremaneira a transferência do mais-valor e, portanto, a forma do desen-
volvimento capitalista em cada país. No entanto, sua análise pressupõe a
compreensão dos determinantes essenciais de ditas transferências.744 Ou
seja, considerar a questão puramente a partir da forma fenomênica das
disputas geopolíticas internacionais pelo mais-valor implica a impossibi-
lidade de se compreender seus determinantes econômicos. Nos termos
de Marx: “Tudo na concorrência e, por conseguinte, na consciência dos
seus agentes se configura invertido”,745 isso é verdade no caso da lei de

744
Segundo Dussel: “Assim a transferência de mais-valor de um capital global nacional menos
desenvolvido para o mais desenvolvido, pode ser estudada geneticamente na história, ou em suas
determinações próprias intrínsecas (modos de acumulação, reprodução, do progresso de sua
composição orgânica ou do estatuto distinto dos salários, a superexploração, os monopólios etc.),
mas sabendo que nos encontramos em um plano de explicações fundadas”. Ibidem, p. 350.
745
K. Marx, O capital: Crítica da economia política, livro III, 2008, p. 296.
Lei do valor e desenvolvimento desigual 225

tendência à queda da taxa de lucro, como discute o trecho em destaque,


assim como para a lei geral da transferência internacional do mais-valor.
“A dificuldade consiste simplesmente na compreensão geral dessas con-
tradições. Tão logo são especificadas, são explicadas”.746 Isto é, também
aqui segue válida a máxima sobre o desenvolvimento desigual formulada
na Introdução de 1857 por Marx.

746
K. Marx, Grundrisse, 2011a, p. 63.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nas linhas que se passaram oferecemos uma contribuição para o estudo da


categoria mercado mundial a partir da obra de Marx, em um aporte que
ressalta tanto a fecundidade da teoria marxiana, quanto a necessidade de
com ela ir-se adiante. Apontamos especialmente para um aspecto de inegá-
vel relevância no domínio da forma internacional da sociabilidade do valor:
o desenvolvimento desigual. Isto é, interessava-nos, sobretudo, evidenciar a
medida em que o legado de Marx pode nos servir de guia nestas questões.
Para fazer frente a este objetivo, optamos por uma análise da for-
mação da concepção marxiana para o desenvolvimento histórico em geral.
O que, seguindo o último Lukács, pode ser posto como uma pesquisa sobre
a formação da ontologia marxiana para o ser social, ainda que sumária,
limitada pelas tarefas a que nos propusemos. Acreditamos que esta estra-
tégia, de certa forma cronológica, ajude a compreender os fundamentos da
perspectiva marxiana para a história, precisamente por jogar luz sobre a
concepção de práxis humana que a sustenta. Adicionalmente, nos esforça-
mos por demonstrar, por meio de referências textuais aos momentos mais
“maduros” de sua obra, que esta perspectiva não corresponde a mero ar-
roubo juvenil posteriormente abandonado, como defendem alguns, mas
constitui a base do edifício teórico marxiano.
Desta forma, a ontologia marxiana é a base adequada para se pensar
questões que podem (e devem) ser postas a partir da obra de Marx, incluindo
as que não chegaram a receber do autor um tratamento definitivo. Mais espe-
cificamente, em nosso caso: a complexa conformação da sociabilidade capita-
lista como mercado mundial. Ademais, a forma mais ou menos cronológica
de nossa análise ajuda a perceber a evolução da teorização marxiana sobre os
determinantes econômicos da sociedade burguesa. Isto é, se, como vimos, os
contornos definitivos da ontologia de Marx para o ser social definem-se com
notável precocidade, sua Crítica da economia política não nasceu pronta.
Assim, dos três primeiros capítulos, cujo foco é precisamente o
desenvolvimento no âmbito do ser social, passamos para a análise de dois
debates em torno da forma como Marx pensava a expansão do modo de
produção capitalista no mercado mundial (capítulo 4) para, por fim, sondar
a possibilidade da continuação de sua teoria do valor pela senda das formas
Considerações finais 227

mais concretas (e complexas) de manifestação das relações burguesas de


produção, em sua constituição internacional.
No capítulo que abre este livro, vimos que já ao final de 1843, quan-
do somava apenas vinte e cinco anos, o problema do desenvolvimento de-
sigual confrontava agudamente a Marx. O relativo atraso alemão bateu à
porta de seu gabinete de editor da Gazeta Renana pelos punhos da censura
do governo de Frederico Guilherme IV, em um mundo em cujo horizon-
te, paradoxalmente, vislumbrava-se a emancipação humana. Como coloca
Hobsbawm a respeito do pensamento iluminista, expressão intelectual da
dominação burguesa vis-à-vis o Ancien Régime:

Seus expoentes acreditavam firmemente (e com razão) que a história humana era
um avanço mais que um retrocesso ou um movimento oscilante ao redor de cer-
to nível. Podiam observar que o conhecimento científico e o controle técnico do
homem sobre a natureza aumentavam diariamente. Acreditavam que a sociedade
humana e o homem individualmente podiam ser aperfeiçoados pela mesma aplica-
ção da razão, e que estavam destinados a seu aperfeiçoamento na história. Com isto
concordavam os liberais burgueses e os revolucionários socialistas proletários.747

Foi justamente, no confronto com a “miséria alemã”, instalado em


uma Paris de considerável efervescência revolucionária, que em Marx conso-
lida-se a certeza da impossibilidade da realização da libertação da humanida-
de de todas as formas de dominação nos marcos da sociedade burguesa, o que
ganha corpo com sua adesão explicita à causa proletária. Neste sentido, por
um lado, os Anais franco-alemães documentam a análise das possibilidades
revolucionárias em um país de desenvolvimento política e economicamente
desigual com relação aos que tomaram a dianteira na “dupla revolução”.748
Por outro, adianta a agenda político-intelectual que se converterá na tarefa
de toda a vida de Marx: o desenvolvimento das “armas da crítica”, a frente de
batalha revolucionária na qual, sem dúvidas, sua atuação foi mais decisiva.

747
E. Hobsbawm, A era das revoluções: Europa 1789-1848, 2003, p. 326.
748
Ou seja, a Revolução Industrial e a revolução política burguesa, para a qual a Revolução Francesa
representou um modelo a ser seguido. “O completo domínio político e militar do mundo pela
Europa (e seus prolongamentos ultramarinos, as comunidades de colonização branca) viria a ser o
produto da era da dupla revolução”. Ibidem, p. 47.
228 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

Vimos que os estudos de Marx anteriores à publicação dos Anais


franco-alemães indicavam um norte para a sua pesquisa, pelo reconheci-
mento do papel prioritário das determinações econômicas (em sentido am-
plo, isto é, da produção e reprodução das condições de vida) no âmbito do
ser social. A base para a compreensão de que a história humana é feita pelos
próprios seres humanos. Ainda que este novo e profícuo ponto de vista só
venha a público pela primeira vez alguns anos depois, com Miséria da filo-
sofia, os manuscritos redigidos por Marx a partir de 1844 são documentos
de um extraordinário florescimento intelectual.
Nos Manuscritos econômico-filosóficos, a opção revolucionária
combina-se com brilhantismo à recente postura ontológica. O ideal da
emancipação humana encorpa-se na luta pela superação da forma abstra-
ta da dominação burguesa, da alienação das potencialidades humanas às
necessidades do capital, ainda que Marx estivesse há mais de vinte anos de
distância da formulação mais madura que pôde oferecer sobre seus deter-
minantes. Destacamos em nosso argumento que, nessas condições, era im-
perativo para Marx compreender os fundamentos da práxis humana. Isto é,
a luta pela superação da alienação pressupunha uma concepção sobre o que
havia para ser alienado. O fenômeno originário (no sentido da prioridade
ontológica), ou seja, o momento fundador da diferenciação entre ser social
e sua base, a natureza orgânica, é o trabalho.
Entendido desta forma, em termos estritamente ontológicos, o traba-
lho como contínua possibilidade da emergência do “novo”, a partir do existen-
te, indica um sentido para o desenvolvimento no âmbito do ser social. Uma
historicidade que se apresenta como “afastamento das barreiras naturais”, isto
é, crescente dominação da natureza e socialização da existência humana; la-
deada pela explicitação do gênero humano, o progressivo reconhecimento da
humanidade nos âmbitos inicialmente restritos dos entes comunitários primi-
tivos, até sua completa realização (ainda que alienada) no mercado mundial.
Ademais, o trabalho é uma atividade que se efetiva através da escolha entre
alternativas, das mais simples às mais complexas, de acordo com o nível de
desenvolvimento geral da sociedade. Porque realiza na prática posições teleo-
lógicas e, portanto, envolve a escolha entre alternativas, o trabalho pode servir
de modelo para a práxis humana em geral. De modo sintético, vislumbra-se a
partir daí que a forma da efetivação concreta das tendências gerais da socialida-
de é, necessariamente, desigual, já que se realiza a partir das práticas humanas.
Considerações finais 229

Não é supérfluo reafirmar o quão tributária esta leitura é dos tra-


balhos tardios de Lukács, nomeadamente dos dois volumes de seu Para
uma ontologia do ser social. No entanto, recordemos que nossos objetivos
passavam pela demonstração de que esta era, de fato, a posição de Marx,
como também defendia Lukács. A nosso ver, tal perspectiva ganha fôlego,
e definição em seus contornos fundamentais, a partir de alguns dos trechos
redigidos por Marx de A ideologia alemã e, finalmente, recebe uma primei-
ra versão pública com Miséria da filosofia.
Observa-se a partir de então uma formulação mais robusta para a
historicidade do ser social, o que implica o reconhecimento, inclusive no
nível teórico, de seu caráter necessariamente contraditório e desigual. Este
avanço que, como vimos, corresponde à maior concreção da análise de
Marx, deve-se, entre outras coisas, ao aprofundamento de seus estudos sobre
a economia política. Parece-nos, portanto, que a intensidade com que Marx
dedicou-se a estas temáticas foi fundamental para que pudesse ressaltar o
papel do desenvolvimento das forças produtivas no progresso social. Cabe
dizer, como instância que estabelece limites, como condição necessária para
o progresso, em oposição às equivocadas leituras que subvertiam as profícu-
as descobertas ontológicas de Marx à moda do determinismo tecnológico.
Como vimos, o desenvolvimento das forças produtivas põe novas
possibilidades societárias, o que está longe de significar que este pólo de-
termine de maneira única, exaustiva e necessária os resultados históricos
efetivos. Por exemplo: o modo de produção capitalista põe o comunismo
como possibilidade, não como realidade (como se sabe), até porque o li-
vre desenvolvimento humano está predicado ao acesso mais eficiente, em
termos de dispêndio de trabalho, aos meios de satisfação das necessidades
humanas. Esta terceira dimensão ontológica do progresso, a redução do
tempo de trabalho socialmente necessário à reprodução humana, passa a
ser considerada a partir deste período, o que serve de atestado, ademais, da
posição mais firmemente materialista e histórica então alcançada por Marx.
Ainda que o autor não tenha oferecido um tratamento teórico es-
pecífico e acabado para a questão do desenvolvimento desigual em suas dis-
tintas dimensões, defendemos que já a partir dos textos do final dos anos
1840 estão postos os fundamentos para abordá-la em termos gerais. Muito
sucintamente, argumentamos que na noção de totalidade reside a chave desta
questão. Distintas esferas do ser social, cada qual com legalidades próprias,
230 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

mas que apenas existem em indissolúvel conexão, determinam-se, portanto,


mutuamente. Assim, por exemplo, do desenvolvimento do modo de produ-
ção burguês em distintas condições sócio-históricas não se deriva uma forma
política estritamente uniforme; e das formas específicas como se constituem
as disputas políticas entre as classes em cada contexto, derivam-se, em termos
gerais, desenvolvimentos econômicos com particularidades e singularidades.
Ambas as dimensões do desenvolvimento necessariamente desigual
da socialidade, isto é, tanto no sentido econômico geral (um fato concreto, a
nível mundial, apenas nos marcos da sociedade burguesa), quanto na rela-
ção entre os distintos complexos que conformam a totalidade da existência
social, nos guiaram nas investigações que compõem os capítulos 4 e 5.
No primeiro deles, contrapomo-nos às interpretações que veem
em escritos de Marx sobre o colonialismo britânico provas de um suposto
determinismo histórico, sem sequer discutirem, na maioria das vezes, os
textos eminentemente teóricos já escritos pelo autor. Tentamos demonstrar
que, muito pelo contrário, a retomada dos artigos sobre o mundo colonial
à luz da teoria já fundamentada por Marx a essa época, revela uma notável
adequação teórico-analítica. Além disso, rechaçamos a reedição das teses
antimarxistas que apontam a ausência de uma formulação sobre o Estado
em Marx, por Aricó. Ao autor de Marx e a América Latina falta, a rigor,
densidade na compreensão da teoria marxiana para a historicidade social,
o que se revela na incapacidade de percebê-la como base para se pensar o
necessário anacronismo entre forma estatal e desenvolvimento econômico
em diferentes contextos sócio-históricos.
Isso não significa que Marx não tenha cometido erros em suas ava-
liações de conjuntura, em suas análises sobre desenvolvimentos históricos
concretos (como da Índia, por exemplo) ou em suas previsões. Muito me-
nos oferece uma desculpa para exageros estilísticos de Marx, muitas vezes
na forma de grosseiros impropérios contra povos inteiros (ainda que nunca
reservados apenas às colônias, mas usado diversas vezes para referir-se aos
alemães, franceses etc.). Com Zizek, acreditamos que a maior utilidade des-
tas passagens seja o de prevenir “qualquer tipo de hagiografia de Marx”.749
De todo modo, ressaltamos a necessidade de se levar sempre em conta as
motivações e a natureza dos textos analisados. A linguagem, o estilo etc.,

749
S. Zizek, Revolution at the gates, 2002, p. 12.
Considerações finais 231

são certamente influenciados pela finalidade da redação, isto é, se se tratam


de manuscritos para uso pessoal, de cartas enviadas a amigos próximos, de
análises de conjuntura para um jornal de determinado país ou para uma
organização política qualquer, de textos para publicação etc.
Por fim, oferecemos uma contribuição para a importante questão
da desigualdade no desenvolvimento econômico geral do modo de produ-
ção capitalista, a partir da lei do valor de Marx. Se a forma do desenvolvi-
mento internacional da sociabilidade burguesa é necessariamente desigual,
e se o método marxiano, em O capital, parte do todo (“modo de investiga-
ção”) para chegar à exposição teórica do movimento real do objeto de estu-
do, de suas determinações mais simples à sua constituição concretamente
complexa (“modo de exposição”), o ponto de partida teórico da Crítica da
economia política pressupõe seu ponto de chegada, o mercado mundial. Isto
é, a relevância da lei do valor, como reflexo teórico da verdade deste modo
de produção, depende da possibilidade de que sirva de base para a com-
preensão do desenvolvimento desigual no sentido econômico. Vimos que a
concepção de leis científicas de Marx, ademais, acolhe esta necessidade.
Argumentamos que a compreensão marxiana da sociabilidade do
valor reconhece sua efetividade mundial, como evidencia a análise da cate-
goria “dinheiro mundial” ainda na seção I do livro I de O capital. Seguimos
com a demonstração da tendência autoexpansiva do capital - do caráter
unidimensional do valor (contínua valorização) - que assume, inclusive,
contornos geográficos, isto é, aponta para além de quaisquer fronteiras na-
cionais. Desta feita, notamos que as relações intercapitalistas no mercado
mundial devem ser tratadas no mesmo domínio que as relações intercapi-
talistas em geral, ou seja, através da análise da concorrência. É na forma da
interação entre capitais distintos, ademais, que as leis internas deste modo
de produção afirmam-se coercitivamente a cada um deles.
Assim, o conteúdo da sociabilidade mercantil a nível mundial é a
transferência de mais-valor. A partir daí, demonstramos como estas rela-
ções consumam-se em uma forma internacional de dominação/subordi-
nação que tende a reproduzir-se em escala ampliada. Ou seja, as condições
econômicas dos países que se inserem de modo diverso no mercado mun-
dial condicionam-se reciprocamente.
Nos esforçarmos para deixar claro, ao longo do texto, que as tarefas
a que nos propomos no capítulo 5 estão longe de esgotar o tema. No entanto,
232 DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E MERCADO MUNDIAL EM MARX

se correta nossa leitura, acreditamos que frentes de pesquisa promissoras se


abrem a partir daí. Dos diversos temas absolutamente indispensáveis para
o estudo do mercado mundial, destacamos abaixo apenas algumas questões
teóricas acerca dos determinantes dos fluxos internacionais de mais-valor.
O caminhar lógico-categorial da lei do valor na direção de suas for-
mas mais concretas de manifestação se faz pela dissolução dos pressupostos
analíticos que permitiram a exposição em abstrato, livre de perturbações, de
suas determinações mais simples. Sendo assim, as transferências de mais-
valor aparecem em mais vivas cores quando entram no escopo da análise
questões como as que listamos preliminarmente: a diversidade nos tempos
de rotação dos distintos capitais, qualquer que seja o Estado-nação que lhes
sirva de base; as variadas taxas de mais-valor que vigoram nos diferentes
países; os diferenciais graus de complexidade dos trabalhos em diferentes
partes do mundo; o aprofundamento da contradição entre produção e apro-
priação do mais-valor que resulta da análise das frações do capital total que
habitam unicamente a esfera da circulação.
Uma vez que a tarefa científico-revolucionária do materialismo
histórico é captar o movimento real da sociabilidade burguesa, o olhar his-
tórico sobre as formas concretas das transferências de mais-valor é impe-
rativo, a cada passo da pesquisa. Ademais, as necessidades práticas da luta
contra o capital tornam urgente o estudo das transformações históricas nas
relações intercapitalistas a nível mundial.
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Esta obra foi produzida no Rio de Janeiro
pela Consequência Editora em novembro
de 2018, ano em que se comemora 200
anos do nascimento de Karl Marx.
Na composição foram empregadas as
tipologias Minion e Helvetica.

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