CURITIBA
2008
SUMÁRIO
Resumo.........................................................................................................................4
1) Introdução...............................................................................................................5
2) O discurso histórico e o ficcional...........................................................................6
3) O romance histórico...............................................................................................8
4) Memórias de um sargento de milícias....................................................................9
5) Era no tempo do rei.................................................................................................10
6) Considerações finais...............................................................................................15
7) Referencias bibliográficas .....................................................................................16
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Resumo
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1) Introdução
Parcela significativa da produção ficcional contemporânea enquadra-se na
modalidade que se pode denominar como ficção histórica. Entendemos como ficção
histórica aquela que ficcionaliza o passado, apropriando-se de personagens e
acontecimentos históricos. Desta parcela, uma parte opta por dialogar com a própria
história literária. É nessa encruzilhada que se situa o romance Era no tempo do rei(2007),
de Ruy Castro, que mantém um diálogo com o passado histórico, visto que situa os
acontecimentos narrados no tempo da chegada da família real ao Brasil, bem como com a
história literária, já que faz conviverem personagens que tem referência empírica com
personagens apropriados de Memórias de um sargento de Milícias(1854), de Manuel
Antônio de Almeida, evocado já no título, que é extraído das conhecidíssimas palavras de
abertura do romance do século XIX.
Este trabalho se propõe analisar essa dupla intertextualidade, a saber, com o
discurso histórico e com discurso ficcional preexistente. A intertextualidade não é uma
novidade, bem como não é prerrogativa da ficção histórica. Vários pensadores e mesmo
criadores da modernidade fazem referência a esse processo como uma constante na criação
literária. Ducrot e Todorov ensinam que o discurso “ longe de ser uma unidade fechada[...],
é trabalhado pelos outros textos -, todo o texto é absorção e transformação de uma
multiplicidade de outros textos‟-, atravessado pelo suplemento sem reserva e a oposição
vencida da intertextualidade. ”(DUCROT & TODOROV, 1973,p.422)
O diálogo da literatura com sua própria história também não é uma inovação. Na
ficção brasileira contemporânea, observa-se a exacerbação desse processo. Publicam-se
romances que ficcionalizam escritores, que se apropriam de personagens ficcionais, que
recriam situações ficcionais, que fazem falar o eu lírico, e inclusive que fazem conviver
essas diferentes situações A particularidade que se buscará evidenciar é como se produz
esse duplo movimento intertextual anunciado acima.
A referência ao discurso histórico, como se fosse uma unidade fechada, é um
recurso analítico, já que este também é multifacetado. O que se tomou aqui para a operação
contrastiva é o título de Laurentino Gomes, 1808(2007), até por ter sido publicado no
mesmo ano. Não interessam a esta análise as discussões sobre suas qualidades ou defeitos ,
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do ponto de vista dos historiadores. Entretanto, um breve percurso acompanhando as
diferentes concepções de história auxiliará na compreensão das apropriações.
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A literatura, por sua vez, permaneceu até os nossos dias no campo da arte. Mignolo
compara esse percurso feito pelo ocidente com culturas indígenas da América Central e
afirma que entre os povos indígenas do México também existiam diferentes formas de
expressar e preservar as suas culturas. Formas essas totalmente distintas das empregadas
pela cultura do ocidente. O autor conclui:
1)As comunidades humanas necessitam conservar e transmitir o passado. As maneiras pelas
quais suprem essa necessidade, e as formas de concebê-la e conceituá-la, dependem das
condições sociais e da tecnologia empregada para satisfazer tal necessidade. No ocidente
essas atividades giram em torno do conceito de história. Na sociedade mexica, em torno do
conceito de tlatollotl; entre os chamulas , das palavras puras.
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3) O romance histórico
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4) Memórias de um Sargento de Milícias
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A conseqüência disso foi um aumento generalizado da criminalidade. Era necessário,
portanto, fortalecer a força policial. O Major Miguel Nunes Vidigal é o principal
representante da ofensiva promovida pela corte para combater a criminalidade. O bom
humor presente nas Memórias de um Sargento de Milícias provém, em parte, da súbita
tentativa de se criar uma cidade civilizada em pouco tempo. De forma abrupta o Brasil, um
país com a maior parte da população composta de escravos negros, recebe uma corte inteira
que chega tentando impor a ordem. É, sem dúvida, um acontecimento tragicômico. De um
lado uma corte educada nas melhores escolas da Europa, do outro uma população em
estado semi-selvagem.
As instituições que procuravam ordenar e policiar a comunidade como a igreja e as
milícias policiais, por exemplo, não eram muito sólidas se comparadas com os países da
Europa. Esse fato reflete no livro de Manuel A. de Almeida. Nesse sentido Antonio
Candido escreve o seguinte:
Nisto e por tudo isto, as Memórias de um sargento de milícias contrastam com a ficção
brasileira do tempo. Uma sociedade jovem, que procura disciplinar a irregularidade de sua
seiva para se equiparar às velhas sociedades que lhe servem de modelo, desenvolve
normalmente certos mecanismos ideais de contenção, que aparecem em todos os setores. no
campo jurídico, normas rígidas e impecavelmente formuladas criando a aparência e a ilusão
de uma ordem regular que não existe e por isso mesmo constitui o alvo ideal.(CÂNDIDO,
1993, p.49).
No livro de Ruy Castro, Era no tempo do rei (2007), nota-se que toda a ação ocorre
num espaço geográfico bem definido: A cidade do Rio de Janeiro no começo do séc. XIX.
O autor presta uma homenagem: “Aos velhos alfarrabistas do Rio que ajudaram os
historiadores a conservar a memória da cidade”, e se revela sob a inspiração de Machado de
Assis, João do Rio, Lima Barreto, Orestes Barbosa, Noel Rosa, Marques Rebelo, Sergio
Porto, Millôr Fernandes, Carlos Heitor Cony, Ivan lessa, e Aldir Blanc. Pessoas que
tiveram suas vidas e obras influenciadas pela cidade. Há inclusive um mapa mostrando
com bastante clareza as principais ruas, morros, praias e demais localidades que aparecem
ao longo do texto e que servem como cenário para o desenvolvimento da
narrativa.(Anexo1). No livro O Nome da Rosa de Umberto Eco esse recurso também é
utilizado para ajudar o leitor a se situar dentro do espaço com o desenho do plano da
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abadia. No romance de Ruy Castro os nomes dos logradouros não são inventados, e se
encontram listados no fim do livro com os nomes que tinham antigamente e que tem hoje.
A Rua do Hospício é chamada atualmente Buenos Aires, a Rua da Cadeia virou a Rua da
Assembléia, a Rua do Piolho se transforma na Rua da Carioca etc..Nesse ponto o autor se
mostra fiel à história oficial. A vinda da Família Real transformou a face do Rio. A cidade
tomou um banho de civilização e se transformou num canteiro de obras:
Viana parecia picado pelo bicho carpinteiro. Começou por obrigar os proprietários a
derrubar as gelosias de suas janelas (platibandas de treliça que isolavam as casas do que se
passava na rua e contribuíam para o ar abafado e doentio das habitações). No que as janelas
se escancararam, o sol entrou pela primeira vez em suas salas e revelou, inclusive, as belas
mulheres que elas escondiam. Dali, Viana desandou a demolir casebres, alargar ruas,
alinhar calçadas, levantar pontes de madeira, construir chafarizes. E aterrar os mangues,
para acabar com os gazes pestíferos que emanavam deles e faziam com que muitos
cariocas cheirassem rapé dia e noite para bloquear a fedentina.(CASTRO, 2007,
p.45)
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Leonardo e Pedro (o príncipe), percorrendo as ruas da cidade e se relacionando com
pessoas que não fazem parte da classe dominante.
Boa parte das nacionalidades e povos que compunham a sociedade brasileira
daquele tempo estão presentes no romance. Os ingleses são os vilões e oportunistas. Estão
intimamente ligados à corte. São negociantes e pessoas pertencentes à marinha. A figura
deste conjunto com maior destaque é um personagem empírico: Sir Sidney Smith, chefe da
esquadra inglesa no Rio. As embarcações portuguesas, que transportaram a corte, vieram
escoltadas pela Real Marinha Inglesa. Os franceses estão representados pelas prostitutas
que aparecem em grande número. Nos dois livros em questão observam-se os ciganos
vivendo de maneira bastante dissoluta. Aparecem cometendo furtos e pequenas
ilegalidades. A caracterização de algumas dessas personagens aparecerá adiante.
O narrador conta, em terceira pessoa, uma história ocorrida num tempo passado
sem usar linguagem arcaica. O passado é mostrado com a linguagem e com o olhar de hoje.
Não se nota o pastiche que é um traço bastante comum na ficção histórica contemporânea.
Não há a tentativa de se modificar muito o que se conhece dos personagens históricos e
literários. Os personagens se revelam muito semelhantes ao modo como a tradição os
retratou. Ruy Castro é um reconhecido autor de biografias. No livro nota-se que é feita uma
pequena biografia de todos os personagens principais. O conhecimento do tempo em
questão é de fundamental importância para a composição do texto. Tome-se, como
exemplo, o discurso biográfico na caracterização dos personagens Dom João e Carlota
Joaquina, facilmente confundido com o discurso histórico:
O casamento de D.João e dona Carlota, por exemplo, em 1785, fora algo quase indecente:
no dia das núpcias, o príncipe de Portugal tinha 18 anos, e a infanta de Espanha, 10. Era
um arranjo entre as casas de Bragança e de Bourbon para estreitar os laços entre as
Coroas portuguesa e espanhola e, para isso, não importava que a noiva ainda tivesse
dentes de leite.(CASTRO, 2007, p.81).
Em matéria de temperamento, os dois não podiam ser mais distintos. D.João exalava um tal
ar de bondade, simpatia e humildade, de alguém que se comprazia em benfazer, que isso o
redimia e o tornava amado.Mas Carlota, voluntariosa, petulante e impertinente, estava além
de qualquer possibilidade de redenção. (CASTRO, 2007, p. 83)
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problemas que envolvem a Coroa portuguesa. Aparece cercado por um séqüito de
colaboradores e de aproveitadores.
Carlota Joaquina se revela uma personagem ativa, inteligente, maquiavélica e
infeliz. É uma mulher com grande ambição política. Faz todo o tipo de conchavo para
tentar conquistar algum poder sobre os territórios conquistado pelos espanhóis nas
Américas.Para alcançar seus objetivos chega a tentar trair politicamente D. João. A
tentativa de golpe é descoberta e o casal passa a viver separadamente.
A infidelidade conjugal é outra característica marcante desta personagem. Entre os
seus amantes estão vários indivíduos. Vão desde empregados e escravos até nobres
ingleses. Teve nove filhos e, nesse ponto, cumpriu a sua parte no acordo feito entre as
Coroas, gerando os possíveis futuros herdeiros em tempos em que a ciência não estava apta
dirimir dúvidas sobre paternidade.
A imagem de Carlota Joaquina mostrada no livro de Castro pode ser estendida às
demais personagens femininas. O comportamento das mulheres se mostra transgressor ao
que se supunha ser o normal.A personagem Maria, mãe de Leonardo, se apresenta como
uma mulher que possui vários amantes e é pouco dedicada a maternidade. É uma saloia
portuguesa (pessoa que vive no campo) que migrou para o Brasil. No navio conheceu
Leonardo Pataca. Pouco tempo depois de desembarcar percebeu que estava grávida porém,
logo descobre que não serve para a maternidade:“ „Sai, desgraçado! Some da minha vida e
deixa-me com minhas intimidades, que tenho mais a fazer do que estar a parir putos.‟ ”
(CASTRO,2007,p 35). Maria deixa o filho aos cuidados do pai e retorna para Portugal
amasiada com um homem da marinha. O pai também não fica com o filho e o deixa para o
padrinho que cuida e cria o menino. Nota-se nos dois livros, Era no tempo do rei e
Memórias de um Sargento de Milícias, uma franca liberdade de costumes. As normas
repressivas religiosas parecem não afetar o comportamento dos personagens. As classes
populares e a nobreza vivem numa certa licenciosidade amorosa. Nesse ponto elas têm
muito em comum.
Outras personagens femininas que aparecem com um comportamento considerado
leviano para os padrões supostamente vigentes são as belas ciganas Moira e Esmeralda.
São duas moças de 16 anos. Elas surgem no texto no momento em que ocorre uma festa
promovida pela corte em comemoração a um casamento. Pedro e Leonardo participam da
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festa e acabam conhecendo as duas moças. Os dois ficam enfeitiçados pela beleza das
meninas que demonstram uma certa intenção em seduzir os rapazes. Os jovens são levados,
ou se deixam levar, para o acampamento dos ciganos e lá ocorre o seqüestro de Pedro
comandado pelo inglês e vilão Jeremy Blood. Infere-se que o inglês contratou as duas
moças para seduzir os rapazes e levá-los até o acampamento.
O elemento feminino aparece na figura de Sua Alteza Real, dona Maria I, mãe de D.
João. É uma mulher louca que vive dando gritos e tendo visões. O Pão de Açúcar se
transformava num imenso diabo de 400 metros de altura na visão afetada pela loucura desta
personagem. Há, ainda, a prostituta decadente Bárbara dos Prazeres. Fora amante de D.João
no tempo passado e acaba vindo para o Brasil. Contaminada pela sífilis, acaba vivendo o
resto de seus dias num quarto escuro. A única personagem bondosa é a negra doceira Mãe
Benta. Leonardo acaba conquistando a simpatia da doceira ao evitar que garotos roubem os
deliciosos quitutes feitos por ela.
Os ingleses são personagens de comportamento ambíguo. Aparecem intrometidos
em todos os negócios possíveis. Eles se relacionam com todas as esferas do poder e têm
interesses comerciais com a Coroa portuguesa e com a Coroa espanhola. Participam
ativamente da conspiração de Carlota Joaquina contra D. João. Conspiração esta que tinha
como pano de fundo a disputa pelo poder na América espanhola. Os vilões da narrativa são
os ingleses, Carlota Joaquina, os ciganos e os capoeiras. Para combater os atos infracionais
temos o Major Vidigal e seus granadeiros. O Major é o representante da força policial
repressora. Sua personalidade é a de um homem rígido e, ao mesmo tempo, humano e
sensual. Sua presença causa medo e respeito. A pequena marginalidade o teme e o toma
como uma figura, ao mesmo tempo, amada e odiada. Nas festas de malhação de Judas
aparece sempre um boneco à imagem e semelhança do Major Vidigal.
Há, portanto, duas esferas de vilania que se comunicam: A alta vilania representada
por personagens de origem nobre e a baixa vilania, cujos representantes são pessoas que
vivem a margem da sociedade.O principal vilão é o inglês Jeremy Blood, que tem a sua
biografia mostrada da seguinte forma:
O mercador Blood era descendente direto de Peter Blood, um jovem médico inglês nas
Caraíbas que, pouco mais de cem anos antes, em 1690, se convertera à pirataria contra o
odioso reinado de Jaime II. No começo Peter Blood era um patriota, um homem valente,
honesto e pobre, que usava a pirataria para o bem. Mas logo descobriu que, destemido
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como era, hábil na espada e cercado tão-somente de patetas, ser corsário tout court trar-
lhe-ia fama e poder. (CASTRO, 2007 ,p.23).
Esse vilão representa toda a alta vilania. Ele comanda os impostores menores que
apenas recebem ordens. Do outro lado estão os bons moços representados por D. João,
Pedro, Leonardo e o Major Vidigal. Nesse duplo movimento pode-se localizar a visada
crítica do escritor . Em nenhum dos dois planos há heróis.
7) Considerações finais
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são visíveis no livro de Castro. Seu leitor pode ser o que vem na esteira do atual interesse
despertado pela mídia pela época representada , como pode ser aquele interessado no
processo intertextual.
O diálogo com a história é um recurso recorrente na produção literária latino-
americana contemporânea. A busca de uma identidade cultural encontra no passado
histórico um sólido esteio.
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8) Referências bibliográficas
ALMEIDA, Manuel Antonio de. Memórias de um sargento de milícias .São
Paulo Publhifolha, 1997.
GOMES, Laurentino .1808. Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma
corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a história de Portugal e do Brasil.
São Paulo. Editora Planeta do Brasil, 2007.
LUKÁCS, Georg. The historical novel. New York: Peguin Books. 1969.
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