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O Outro Leviatã e a Corrida ao Fundo do Poço
O Outro Leviatã e a Corrida ao Fundo do Poço
O Outro Leviatã e a Corrida ao Fundo do Poço
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O Outro Leviatã e a Corrida ao Fundo do Poço

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O capitalismo gera desigualdades que podem destruir os valores meritocráticos sobre os quais as sociedades democráticas são edificadas. Com a mundialização do capital, o outro Leviatã (que voa) vem dando ensejo a guerras fiscais, bem como ao desemprego estrutural e a formação de um precariado, conduzindo os Estados nacionais enfraquecidos a uma corrida para o fundo do poço. O estudo que se apresenta avalia propostas de criação de tributos globais e de um fundo mundial de combate à pobreza, bem como de instituição de um fundo nacional destinado ao pagamento d renda básica que sirva para reduzir a desigualdade social interna e minimizar os efeitos perversos do capitalismo da Era da Recessão.
LanguagePortuguês
Release dateMay 13, 2019
ISBN9788584930517
O Outro Leviatã e a Corrida ao Fundo do Poço

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    O Outro Leviatã e a Corrida ao Fundo do Poço - Onofre Alves Batista Júnior

    O Outro Leviatã

    e a Corrida ao Fundo do Poço

    GUERRAS FISCAIS E PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO

    A FACE PERVERSA DA GLOBALIZAÇÃO A NECESSIDADE

    DE UMA ORDEM ECONÔMICA GLOBAL MAIS JUSTA

    2015

    Onofre Alves Batista Júnior

    front

    O OUTRO LEVIATÃ E A CORRIDA AO FUNDO DO POÇO

    GUERRAS FISCAIS E PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO

    A FACE PERVERSA DA GLOBALIZAÇÃO

    A NECESSIDADE DE UMA ORDEM ECONÔMICA GLOBAL MAIS JUSTA

    © Almedina, 2015

    AUTOR: Onofre Alves Batista Júnior

    DIAGRAMAÇÃO: Almedina

    DESIGN DE CAPA: FBA

    ISBN: 978-858-49-3051-7

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

    (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)


    Batista Júnior, Onofre Alves

    O outro Leviatã e a corrida ao fundo do poço /

    Onofre Alves Batista Júnior. – São Paulo :

    Almedina, 2015.

    Bibliografia.

    ISBN 978-858-49-3051-7

    1. Capitalismo 2. Crise econômica

    3. Desigualdade social 4. Estado democrático

    5. Globalização 6. Modernidade líquida

    7. Precarização do trabalho 8. Tributos I. Título.

    15-00664                                   CDU-342.34:330.1


    Índices para catálogo sistemático:

    1. Globalização econômica e trabalho: Estado

    democrático de direito 342.34:330.1

    Este livro segue as regras do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990).

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro, protegido por copyright, pode ser reproduzida, armazenada ou transmitida de alguma forma ou por algum meio, seja eletrônico ou mecânico, inclusive fotocópia, gravação ou qualquer sistema de armazenagem de informações, sem a permissão expressa e por escrito da editora.

    Março, 2015

    EDITORA: Almedina Brasil

    Rua José Maria Lisboa, 860, Conj. 131 e 132, Jardim Paulista | 01423-001 São Paulo | Brasil

    editora@almedina.com.br

    www.almedina.com.br

    APRESENTAÇÃO

    Como aponta Jürgen Habermas, nas primeiras linhas de sua obra Faticidade e Validez, que trabalha com riqueza de pormenores a legitimidade e a normatividade do direito, já faz tempo que, na Alemanha, a filosofia do direito já não é coisa de filósofos.¹ Vivemos um momento de entrelaçamento entre a filosofia do direito, a moral e a política, em que cada vez mais a produção legítima do direito depende de um discurso moral que a filosofia prática ou normativa busca prover nas sociedades democráticas. Esse fenômeno, em que pese à afirmação de Habermas, está longe de se verificar exclusivamente na Alemanha. De modo geral, verifica-se em todo o denominado Mundo Ocidental uma tendência cada vez maior de aproximação entre a filosofia do direito e a prática jurídica, a ética, a economia e a política em geral.

    Essa aproximação decorre de uma exigência cada vez maior de fundamentação moral para as decisões políticas e econômicas de grande impacto social que têm lugar na sociedade contemporânea. Cada vez mais se torna evidente a necessidade de se construir uma justificação moral para os modelos econômicos, fiscais e administrativos existentes tanto no interior dos Estados Soberanos como na Sociedade Internacional.

    Nesse sentido, Thomas Piketty sustenta, na introdução de sua mais conhecida obra, que a questão da distribuição da riqueza é importante demais para ser deixada apenas para economistas, sociólogos, historiadores e filósofos; …felizmente, a democracia jamais será suplantada pela república dos especialistas.²

    Esta obra de Onofre Alves Batista Júnior, intitulada O outro Leviatã e a corrida ao fundo do poço, por sua vez, não se afasta dessa tendência. Ela busca diagnosticar problemas centrais provocados pelo capitalismo parasitário que emerge, sobretudo, após a década de 1970, como fruto da globalização financeira da modernidade líquida. Problemas centrais que constituem um pano de fundo comum dos diversos sistemas sociais. Para tanto, lança mão de avaliações de economistas do porte de François Chesnais e de dados corroborados inteiramente pelas pesquisas de Thomas Piketty.

    O grande diferencial da obra vem no sentido de estabelecer um diálogo entre sistemas distintos: o econômico, o político, o social e o jurídico. Existem várias publicações de peso acadêmico elevado, enfocando um ou dois desses campos do conhecimento, em compartimentos estanques. Fecham-se dentro de uma dogmática cerrada, sem diálogo algum com sistemas estranhos ou o ambiente. Mesmo quando há a pretensão interdisciplinar, obras jurídicas fechadas servem-se de um aparato conceitual e de categorias próprias antigas, que não se abalam por influência externa, estranha. Se jurídicas, são a rigor fechadas, porque não se livram dos entraves dogmáticos. Por outro lado, preciosos estudos econômicos e sociais ficam restritos às categorias e conceitos específicos de cada área respectiva. Os sistemas, enfim, não dialogam, são surdos entre si, mesmo do ponto de vista cognitivo.

    Não está em questão, aqui, diretamente, a operacionalidade de cada sistema: o jurídico, o econômico, o social, o político. Sabe-se que o reconhecimento de normas, conceitos e categorias, sua aplicação ou multiplicação, fazem-se internamente, de forma autopoiética, por autodeterminação, de tal modo que o operador do Direito, por exemplo, somente deve acolher, aplicar e considerar as regras e princípios postos dentro do sistema. A autorreferibilidade do sistema jurídico, tão bem exposta por Niklas Lumann, está na base do Estado de Direito e configura garantia de que uma decisão judicial não seja determinada por fortes comandos políticos ou econômicos estranhos. Sistemas jurídicos alopoiéticos não têm especificidade, perdem-se no ambiente do econômico, do político ou do social, sendo incapazes de operar no Estado de Direito. Não obstante, os sistemas dialogam e se alimentam reciprocamente, por meio de cognição, conversores e equivalentes funcionais. Estão em contínua transformação, de modo que novas normas e regras ingressam formalmente no sistema jurídico, quer por meio de atividade legislativa, inerente às democracias, quer por meio de reconhecimento por compreensão evolutiva dos signos em que os enunciados linguísticos das normas se desdobram, já que a cognição é sempre aberta, como reconheceu o mesmo Niklas Luhmann³. Aquilo que é sistema se altera da mesma forma que aquilo, que é ambiente, é mutante.

    Assim sendo, sem nenhum prejuízo à autorreferibilidade do sistema jurídico e ao seu fechamento operacional, a obra pode interferir quer na compreensão das regras e princípios já positivados, quer na evolução legislativa futura e, no plano internacional, na articulação necessária entre diferentes Estados nacionais. Exatamente nesse campo e, com essas premissas, deve ser compreendido este primoroso livro. Ele não pretende colher pesquisas, estatísticas, conceitos e aparatos econômicos ou políticos e injetá-los diretamente nos sistemas jurídicos. Seu papel, função e meta visam a consolidar a cognição de conceitos, aparatos e normas que já estão introduzidos na maior parte dos sistemas nacionais, como a dignidade da pessoa humana, a erradicação da miséria e a redução da desigualdade.⁴ O que isso significa, do ponto de vista jurídico-moral? Ao atuar no campo da cognição e da compreensão, em que os sistemas são necessariamente abertos, a obra contribui sobretudo para a cognição, a compreensão das normas já existentes e propicia a adoção futura daqueloutras necessárias à efetividade dos direitos e garantias individuais e sociais.

    O autor parte da premissa correta de que a pobreza extrema, a intolerável desigualdade social – alimentada pela globalização econômica –, a fluidez do capital e a guerra fiscal em nível internacional não podem ser enfrentadas de maneira eficaz nem com iniciativas isoladas de Estados Nacionais, nem com meras convenções internacionais sobre a conduta dos Estados em suas regulamentações domésticas e suas políticas de redução das desigualdades sociais. Não basta, como argumenta de forma percuciente o autor, uma mera harmonização de direitos trabalhistas ou de regimes tributários, pois a fragilidade das comunidades políticas nacionais diante do grande capital flutuante internacional exige uma ação coordenada dos Estados nacionais para que se institucionalizem mecanismos aptos a garantir a justiça no âmbito das relações trabalhistas e da tributação do grande capital. Nesse sentido, como se aduz na conclusão desta obra, apenas com a articulação entre Estados nacionais será possível regulamentar o mercado mundializado de forma a conter os ímpetos abusivos do capital transnacional parasitário.

    As iniciativas propostas na obra para enfrentar os desafios da modernidade líquida contemporânea passam pela criação de uma política global de proteção do direito ao trabalho digno, inclusive com uma redução radical da jornada de trabalho sem redução da renda e com a garantia de segurança e dignidade para os indivíduos que vendem a sua força de trabalho; pela garantia, em nível global, de uma renda mínima capaz de propiciar a todos os indivíduos, independentemente do Estado Nacional a que eles estejam ligados por vínculo de nacionalidade, condições materiais de vida além do limite da pobreza extrema gerada e agravada pelo capitalismo global; pela eliminação, em nível mundial, da guerra fiscal e da concorrência tributária, com a implementação de uma política fiscal comum apoiada no princípio do discurso e, mesmo quando executada no interior dos Estados Nacionais, voltada para o mundo, com a inclusão necessária de todos os envolvidos⁶; pela transnacionalização da democracia; e pela instituição de tributos mundiais capazes de aliviar a desigualdade estrutural entre os indivíduos e comunidades políticas no mundo contemporâneo – entre os quais, precipuamente, os impostos sobre a herança.

    Mas como alcançar um grau de cooperação tão elevado entre Estados nacionais que atualmente se digladiam em uma guerra fiscal que se traduz, como bem lançado no título desta obra, em uma corrida para o fundo do poço? Não parece ingênuo imaginar que os Estados nacionais e as comunidades políticas locais abrirão mão de seus interesses egoístas e da busca desenfreada pela atração de capital? No caso específico dos países ricos, seriam eles capazes de renunciar espontaneamente a suas posições privilegiadas e reconhecer, altruisticamente, um direito à subsistência e um dever coletivo de promover mudanças políticas que levem a uma distribuição mais equitativa da riqueza?

    O trabalho pretende, a partir de uma reflexão densa e interdisciplinar, com incursões na filosofia do direito, na economia, na política e na teoria do direito, responder a todas essas perguntas de uma maneira ao mesmo tempo factível e ousada. Chega à conclusão, que me parece correta, de que "tal como no movimento abolicionista, é fundamental uma movimentação moral a favor da erradicação da pobreza, que envolve um conjunto de ações tanto do Estado como, principalmente, da sociedade e da comunidade internacional, com vistas a um enfrentamento conjunto e a uma fundamentação do dever de erradicar a pobreza como uma obrigação moral de todos os Estados e da humanidade como um todo. A fundamentação desse dever, como o leitor poderá observar nas páginas que se seguem, exige uma profunda reflexão sobre o papel da política na transformação do capitalismo, sem se ir necessariamente para além do capital", com vistas à edificação de uma solidariedade cosmopolita, a partir da percepção da pobreza como uma violação a um direito fundamental.

    As inovações tecnológicas e o processo de acumulação capitalista agravam o ambiente de desigualdade social, sendo necessário que se estabeleçam, na sociedade de trabalhadores-consumidores, outros mecanismos de repartição da riqueza social. Para tanto, o Autor avalia os mecanismos redistributivos da renda básica, bem como os tributos que possam servir de anteparo aos efeitos perversos do capitalismo parasitário, assumindo uma postura crítica com relação ao próprio papel dos tributos na atualidade.

    A guerra fiscal é vista como consequência da fluidez do capital mundializado e um efeito perverso da globalização das economias de mercado, que provoca a captura da esfera governamental fragilizada pelo capital internacional. Da mesma forma, o Autor verifica que o fenômeno é capaz de destruir as bases do que ele chama Estado Tributário Redistribuidor.

    O texto desenvolve propostas de criação de tributos mundiais (sobre recursos minerais; sobre o fluxo de capital) que possam lastrear a constituição de um fundo mundial de combate à miséria para o pagamento de uma renda mínima global que permita a abolição da pobreza que ainda assola milhões de indivíduos, de forma a proporcionar o empoderamento dessa massa de miseráveis. Da mesma forma, o livro apresenta a proposta de instituição de tributação sobre a herança, que possa servir de lastro para a constituição de fundos nacionais destinados ao pagamento de renda básica, que sirva para reduzir a desigualdade social interna e minimizar os efeitos perversos do capitalismo parasitário.

    Enfim, o trabalho busca desvendar o lado perverso da globalização econômica no intuito de avaliar as possibilidades e perspectivas do homem-trabalhador na Era da Recessão. Foram buscados, pelo viés tributário e por meio do mecanismo da renda garantida, caminhos para dar efetividade à ideia de justiça distributiva no sentido contemporâneo, com a intenção de subsidiar estudos que pretendam modelar instituições estáveis que sirvam para promover a abolição da pobreza. Consideremos que, afinal, a Constituição da República no Brasil determina, em seus artigos inaugurais, a erradição da miséria e das grandes desigualdades entre grupos e regiões. Assim, pelo menos no âmbito doméstico, a aproximação entre os conceitos jurídico-constitucionais, que são vagos e indeterminados, e os demais, próprios dos estudos econômicos e sociais sérios, é tarefa relevante, que esta obra em análise cumpre. O diálogo, que ela inicia, entre esses distintos campos do conhecimento, por sua relevância, deverá nortear, temos a esperança, uma profunda reflexão em muitas outras obras do gênero.

    Prof.ª Dra. MISABEL DE ABREU MACHADO DERZI

    Prof.ª Titular de DireitoTributário e Financeiro da UFMG

    Prof.ª Titular de Dir.Tributário das Faculdades Milton Campos/MG

    Pres. Honorária da Associação Bras. Dir. Tributário – ABRADT, Membro da Fondation des Finances Publiques – FONDAFIP/Paris.

    -

    ¹ Cf. JÜRGEN HABERMAS, Facticidad y validez: Sobre el Estado democrático de derecho en términos de teoría del discurso. Trad, Manuel Jímenez Redondo. Madri: Trotta, 2005, p. 57.

    ² Cf. THOMAS PIKETTY. Le Capital au XXIe Siècle. Ed. Seuil, 2013, Paris, p. 17.

    ³ Cf. NIKLAS LUHMANN. In A Nova Teoria dos sistemas. Coord.Clarissa Baeta Neves e outra. Porto Alegre. Ed. UFRGS – Goethe Institut, 1977; Sistema Giuridico e Dogmatica Giuridica. Trad. e Prefácio: FEBRAJO, Alberto. Bologna. Ed. Il Molino, 1978; Sociologia do direito II. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1985; La Costituzione come adquisiizione evolutiva. In Il futuro della Costitucione. Org. ZAGREBELSKY, Gustavo, Torino, Einaudi, 1996.

    ⁴ No Brasil, por ex., a Constituição expressamente, em seu art. 1º, funda a República federativa na dignidade da pessoa humana e nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. E, em seu art. 3º, estabelece como metas, a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais e regionais.

    ⁵ Ver Conclusões, parágrafo 13.

    ⁶ Ver Conclusões, parágrafo 44.

    PREFÁCIO

    Qualidade e oportunidade. Das muitas virtudes do trabalho que aqui se apresenta, isolo estas duas. Depois de obras de referência do calibre de O Planejamento Fiscal e a Interpretação no Direito Tributário (2002), Princípio Constitucional da Eficiência Administrativa (2004), ou o exaustivo Transações Administrativas – Um Contributo ao Estudo do Contrato Administrativo como Mecanismo de Prevenção e Terminação de Litígios e Como Alternativa à Atuação Administrativa Autoritária, no Contexto de uma Administração Pública Mais Democrática (2007), Onofre Alves Batista Júnior oferece agora à publicidade crítica este estimulante O Outro Leviatã e a Corrida ao Fundo do Poço. Como poderá constatar por si próprio o prezado leitor, estão lá bem reconhecíveis as preocupações de rigor e a competência analítica que são imagem de marca do autor. Atestando, pois, sem mácula, o atributo da qualidade. Só que a imensa curiosidade do Doutor Onofre, e, mais do que isso, a sua vocação para intuir os principais nós críticos do relacionamento entre lógica político-jurídica e razão económica, aliada a uma particular atenção para com os debates emergentes na contemporaneidade, obriga a adendar, desta feita, um elemento não despiciendo, o da tremenda oportunidade da problemática em apreço. Porque a questão que, em última instância, este trabalho coloca – teremos ou não necessidade de uma ordem económica global mais justa? (e, admitindo que sim, como adequar as dimensões de justiça fiscal à escala global?) – é bem a que, do mesmo modo, autores tão influentes como um Thomas Piketty vêm também transformando em objeto primordial das suas análises. Num caso parte-se do arcaboiço teórico jurídico-político; no outro, das gramáticas económicas; mas o ponto a reter é justamente a inevitabilidade de uma complementaridade analítica entre ambas as vertentes. A complexidade dos problemas em causa não permite, de resto, outro tipo de abordagem. Onofre Alves Batista Júnior sabe perfeitamente que assim é.

    E, afinal, com que tipo de problemas em concreto se vêm confrontando estas linhas de abordagem? Um rápido olhar sobre o núcleo duro do pensamento de Piketty (maximamente expresso em O Capital no Século XXI) pode elucidar bem aquilo que está em causa. Primeiro aspeto: a evolução dinâmica de uma economia de mercado e de propriedade privada, se entregue a si mesma, contém em si própria forças de convergência importantes, sim, mas também forças de divergência assinaláveis, com forte potencial desestabilizador, sendo a principal delas, em termos da nossa atualidade, o fato de a taxa de rentabilidade privada do capital (r), poder ser substancial e duradouramente mais elevada que a taxa de crescimento do rendimento e da produção (g). Ora, esta desigualdade de r maior que g implica: a) que os patrimónios provenientes do passado se recapitalizem mais depressa que o ritmo de progressão da produção e dos salários; b) e que, num quadro paradoxalmente próximo da realidade do capital no século XIX, a importância da herança e dos patrimónios herdados tenderá, neste século XXI, a dominar largamente sobre os patrimónios constituídos no decurso de uma vida de trabalho. O que obriga a considerar um segundo aspeto, que, sempre estribados em Thomas Piketty, podemos assim resumir: a deteção das formas adequadas para estancar semelhante espiral inigualitária afigura-se urgente, sendo certo que, para regular o capitalismo patrimonial globalizado do nosso século não basta repensar o modelo fiscal e social do século XX e adaptá-lo aos nossos dias, mas avançar com um modelo de constrangimento também ele alavancado a uma escala global. Em concreto: se é inegável que mecanismos criados no século passado, tais como o Estado social e o imposto progressivo sobre o rendimento, devem continuar a desempenhar papel central no futuro, só o estabelecimento de um dispositivo correspondente a algo como um imposto mundial sobre o capital permitirá dominar o capitalismo financeiro internacional e reduzir para níveis aceitáveis a perturbante concentração mundial dos patrimónios.

    O motivo pelo qual estes aspetos se revestem da máxima importância vai bem além da matriz aparentemente apenas económica que é a sua. É que, como não escapa aos investigadores mais atentos, todo este problema transporta um potencial de disrupção, também, ao nível do sistema jurídico-político, desde logo no relativo ao próprio sistema democrático. Uma democracia que não pode deixar, hoje, de estar sob fogo, perante a pressão de uma concentração de riqueza que, ao inclinar para graus insuportáveis a distinção entre, de um lado, peso do capital herdado, e, do outro, peso dos rendimentos auferidos em sede de produção e de trabalho, abala fundo os pressupostos meritocráticos e de justiça social comummente associados ao ideal democrático. De modo suave mas irreversível, eis a problemática bem no seio da respetiva dimensão ideológica. Estranho? De modo algum: ou não recordasse o próprio Piketty que o imposto não é uma questão técnica; trata-se de uma questão eminentemente política e filosófica, sem dúvida a primeira de entre todas.

    Em suma. A abordagem das problemáticas nucleares da contemporaneidade parece solicitar cada vez mais uma localização dos analistas nas zonas de encontro tectónico entre galáxias do conhecimento cada vez mais co-implicadas. Não é outra a proposta deste livro de Onofre Alves Batista Júnior. Com a mesma lucidez por ele utilizada para incursões históricas a pretexto da estatalidade ou da matéria trabalhista, assim também se adentra na complexa questão da mundialização do capital e dos desafios colocados por um capital propensamente voador; incursões detalhadas que o autorizarão, enfim, a não se limitar ao conforto da análise, preferindo, ao invés, participar no debate sobre as alternativas – uma reflexão sobre as respostas possíveis que é também uma reflexão sobre o potencial e os limites da própria seara jurídica, designadamente nos termos de um deslocamento escalar dos direitos num mundo pluri-escalar. Importa, entretanto, que o leitor esteja preparado para o largo espectro de conceitos mobilizados no âmbito deste percurso: sirva de exemplo o eixo tributação, redistribuição, democratização, emblemático do desdobramento da problemática pelas várias linhas disciplinares compreensivas. De igual modo amplo é o leque de companheiros de percurso convocados pelo autor: Ronald Dworkin, Amartya Sen e Tony Judt parecem por vezes esclarecer-se mutuamente por ocasião das acareações a que em boa hora são sujeitos. Mérito do autor. Um mais, entre os muitos que este livro patenteia. Pela minha parte, resta agradecer a honra de o prefaciar e, não menos, o estímulo intelectual fornecido pela respetiva leitura.

    RUI CUNHA MARTINS

    Universidade de Coimbra

    SIGLAS E ABREVIATURAS

    ACI – Aliança Cooperativa Internacional

    ALCA – Acordo do Livre-comércio norte-americano

    AOD – Assistência Oficial ao Desenvolvimento

    ATTAC – Associação pela Tributação das Transações Financeiras em Apoio aos Cidadãos

    CLT – Consolidação das Leis do Trabalho

    CRFB/88 – Constituição da República Federativa do Brasil de 1988

    DRG – Dividendo sobre Recursos Globais

    EUA – Estados Unidos da América

    FMI – Fundo Monetário Internacional

    GATT – Acordo Geral de Tarifas e Comércio

    IDH – Índice de Desenvolvimento Humano

    LIP – Linha Internacional de Pobreza

    PIB – Produto Interno Bruto

    OCB – Organização das Cooperativas Brasileiras

    OCDE – Organização para Cooperação Econômica e Desenvolvimento

    OIT – Organização Internacional do Trabalho

    OMC – Organização Mundial do Comércio

    ONG – Organização Não Governamental

    ONU – Organização das Nações Unidas

    OTI – Organização Tributária Internacional

    PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento

    THG – Tributo Humanitário Global

    INTRODUÇÃO

    A globalização não é um fenômeno novo; o desejo de explorar e colonizar todo o território faz parte da natureza humana. Desde a Antiguidade, os mercadores da Mesopotâmia tentaram penetrar territórios cada vez mais distantes para trocar mercadorias; da mesma forma, tanto Ciro II, como Alexandre da Macedônia, ou mesmo Napoleão Bonaparte buscaram colonizar militarmente povos cada vez mais distantes. Mais recentemente, empresas transnacionais passaram a deslocar parte de suas plantas produtivas para regiões longínquas e, da mesma forma, o capital financeiro mundializado passou a se movimentar pelos cantos mais escondidos do planeta.

    As atrocidades do Estado, criado pelo homem, fizeram com que a sociedade moderna forjasse uma série de mecanismos de contenção de abusos do Leviatã. Entretanto, o capital, outra criação humana, é também capaz de oprimir e trazer a miséria. Com a mundialização do capital, o outro Leviatã (que voa) vem propiciando desigualdade social, guerras fiscais e precarização do trabalho, dando ensejo a um ambiente explosivo que coloca em causa a paz social e conduz os Estados enfraquecidos a uma corrida para o fundo do poço.

    Como bem afirma Joseph Stiglitz,¹ a globalização não tem de ser ruim para o meio ambiente, nem aumentar a desigualdade, enfraquecer a diversidade cultural e promover os interesses empresariais à custa do bem-estar dos cidadãos comuns. Urge, assim, que se busquem caminhos para que se possa domar o outro Leviatã sem que se tenha, necessariamente, de recorrer a modelos de Estado mais autoritários. É preciso, portanto, estudar caminhos democráticos (pós-nacionais) para que se possa reestabelecer os domínios da política em detrimento do mercado.

    A guerra fiscal é uma consequência da fluidez do capital mundializado e um efeito perverso da globalização das economias de mercado que revela a possibilidade de captura da esfera governamental fragilizada pelo capital. O fenômeno destrói as bases do Estado Tributário Redistribuidor e fragiliza sua capacidade prestacional. Por outro giro, as inovações tecnológicas e o processo de acumulação capitalista desenfreada geram desemprego estrutural e favorecem a precarização do trabalho, o que vem provocando o crescimento de um imenso precariado mundial, que vive na insegurança e na incerteza. Nesse cenário, a sociedade de trabalhadores-consumidores reclama outros mecanismos de repartição da riqueza social para que se possa ter justiça aquém do capital.

    O que se busca, neste trabalho, é desvendar o lado perverso da globalização econômica no intuito de avaliar as possibilidades e perspectivas do homem-trabalhador na Era da Recessão. Para tanto, é preciso estudar o fenômeno da precarização do trabalho, suas causas e consequências, bem como verificar alternativas de repartição de rendas e riquezas que não redundem no reforço do Leviatã territorial. A ideia é exatamente encontrar saídas para os problemas da modernidade líquida² que não desaguem em alternativas de sujeição do homem a monstros, e o antídoto, que se imagina adequado, é o de promover mais democracia.

    A ideia de criação de uma renda básica a ser paga a todos os cidadãos do Estado, tomada como direito de participação na riqueza socialmente produzida, e a tributação sobre as heranças são mecanismos que, conjugados, podem favorecer a redução da desigualdade social interna (no Estado nacional) e a promoção da justiça. Da mesma forma, neste trabalho, estuda-se a possibilidade de criação de tributos mundiais para a constituição de fundos de combate à pobreza que possam viabilizar a atribuição de uma renda mínima a todos os miseráveis do mundo.

    Como afirma Karl Marx, os filósofos apenas interpretam o mundo de várias maneiras; a questão é mudá-lo.³ Foram buscados, aqui, pelo viés tributário e por meio do mecanismo da renda garantida, caminhos para dar efetividade à ideia de justiça distributiva no sentido contemporâneo, com a intenção de subsidiar estudos que pretendam modelar instituições estáveis que sirvam para promover a abolição da pobreza.

    No primeiro capítulo, estuda-se a formação do Estado Providência, os clamores que ele pretendeu atender e as razões de sua decadência, bem como o cenário de recessão que a crise de 2008 proporcionou, em especial no que diz respeito ao desmonte do aparato prestacional do Estado nacional.

    No segundo capítulo, a pesquisa centra-se no fenômeno da mundialização do capital, como ela se deu, bem como seus efeitos na modernidade líquida, para que seja possível avaliar como ocorreu a ruptura do pacto entre capital, Estado e trabalho, como foi possível o voo do capital e como se deflagrou a corrida para o fundo do poço. Buscando fundamentos para as análises, na pesquisa verifica-se como a acumulação capitalista desenfreada propicia desigualdade social e provoca o acúmulo incessante de vantagens e desvantagens que alimentam o círculo vicioso gerador de mais desigualdade social.⁴ Da mesma forma, no estudo, revisita-se o direito sacralizado de propriedade, invocado quase sempre pelos neo liberais para obstruir quaisquer tentativas de redistribuição de renda e riquezas, bem como são analisadas injustiças que o passado colonial proporcionou aos países mais pobres, impossibilitando-os de concorrer, na Era da Recessão, com igualdade de armas. Buscam-se, ainda, subsídios para o entendimento da ideia de justiça distributiva no Estado Tributário Redistribuidor modelado pelas Constituições democráticas, bem como verificam-se os modelos de Estados (capitalistas) de desiderato social que a modernidade traz como alternativas.

    O terceiro capítulo é dedicado ao estudo do mundo do trabalho. Inicialmente, identifica-se como o trabalho vem sendo prestado, desde a Antiguidade até os dias de hoje, e como a relação de emprego assumiu primazia. Com lastro na ideia de que o trabalho é elemento essencial à ideia de dignidade da pessoa humana, estuda-se o direito fundamental ao trabalho digno para que, no quarto capítulo, se possa bem avaliar a crise e a precarização do trabalho na Era da Recessão. Nesse capítulo, busca-se verificar como a globalização da modernidade líquida vem erodindo o mercado de trabalho e promovendo sua desregulamentação, bem como a desindicalização e a formação do precariado. Estudam-se, também, os efeitos decorrentes da precarização do trabalho, como a xenofobia, os protestos de rua e o enfraquecimento dos ideais democráticos que a fragilização do mundo do trabalho acarreta.

    No quinto capítulo, centra-se a atenção nas estratégias de inclusão da Era da Recessão e, nesse sentido, verifica-se a necessidade de estabelecer um novo pacto para o mundo do trabalho, que deve passar, necessariamente, pela redução das jornadas laborais, em virtude, em especial, dos avanços tecnológicos, bem como pelo fortalecimento do direito do trabalho e sua extensão a todos os trabalhadores. Estudam-se, também, as propostas de economia solidária e os empreendimentos populares autogestionados, suas vantagens, dificuldades e as possibilidades de utilização da estratégia. Na pesquisa, são visitadas, ainda, as propostas de renda garantida, em seus vários formatos, no intuito de verificar formas alternativas de repartição de renda na modernidade líquida.

    O sexto capítulo é dedicado ao estudo das guerras fiscais provocadas pela modernidade líquida e pelo capital que voa, tanto no cenário internacional, como em algumas federações.

    No sétimo capítulo, volta-se para o estudo do capitalismo parasitário e dos riscos de uma recessão democrática na Era da Recessão. Inicialmente, estuda-se a sociedade dos consumidores-devedores que o capitalismo parasitário cria, bem como a impossibilidade de o capitalismo contar com o crescimento econômico indefinidamente, pelos riscos ao próprio equilíbrio ecológico. Na sequência, as previsões mais distantes de André Gorz são avaliadas, bem como são estudadas algumas propostas de saída da recessão trazidas, sobretudo, por economistas norte-americanos de inspiração keynesiana. Algumas críticas a essas propostas são esboçadas e são estudadas algumas perspectivas que buscam escapar do caráter autoritário do modelo de Estado Providência.

    Por fim, o último capítulo é dedicado ao estudo de vias de escape para os problemas estudados, com especial atenção para a verificação da necessidade de se buscar uma democracia transnacional que favoreça a construção de uma solidariedade cosmopolita que ampare uma atuação dos Estados nacionais mais voltada para o alívio dos mais graves problemas do mundo. Para enfrentar a crescente desigualdade social, a fome e a miséria no mundo são buscadas alternativas pelo viés tributário, como a criação de tributos sobre herança e de tributos mundiais que possam lastrear fundos destinados ao pagamento de rendas garantidas aos cidadãos e aos hipossuficientes.

    Enfim, o trabalho é conduzido no intuito de buscar estratégias para o estabelecimento de um planeta social de mais justiça. À luz desse norte é que, pelo menos sem ir para além do capital, os mecanismos da renda básica e da renda mínima, bem como dos tributos que sirvam de anteparo aos efeitos perversos do capitalismo parasitário, são buscados.

    -

    ¹ Cf. STIGLITZ, Joseph E. Globalização: como dar certo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 47.

    ² Tomando a expressão de BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, passim.

    ³ Citando a 11ª Tese sobre Feuerbach de Karl Marx, JUDT, Tony. Um tratado sobre os nossos actuais descontentamentos. Lisboa: Edições 70, 2012. p. 219.

    ⁴ Nesse mesmo sentido, PIKETTY, Thomas. Capital in the twenty-first century. Cambridge: Belknap Press, 2014, passim.

    1. O Estado da Era da Recessão

    1.1. A expansão da atividade econômica e o surgimento do Estado Burguês

    Na passagem da Idade Média para a Idade Moderna, o artesão, o comerciante, o pequeno e médio proprietário (rural ou imobiliário), habitantes das cidades, tornaram-se os primeiros capitalistas e a classe a que eles pertencem (a burguesia) deu início ao processo de acumulação de capital.⁵ A expansão da atividade econômica, dentre outros fatores (como o crescimento da população europeia e o caminhar rumo às cidades), foram causas determinantes para o fim da estrutura feudal e propiciaram um ambiente favorável ao surgimento do Estado Absoluto. Quando a Igreja e a nobreza perceberam que a crise do sistema feudal não era contingencial, mas estrutural, e quando vislumbraram que em seu bojo surgia uma nova classe promissora e poderosa, elas passaram a patrocinar o fortalecimento da corte real como estratégia para a manutenção de seu poderio político. Por outro lado, para a burguesia mercantilista, o fortalecimento da estrutura monárquica bem servia como estratégia para consolidar o Estado nacional e, assim, garantir um ambiente mais seguro para o avanço das práticas comerciais. Entretanto, quando o Absolutismo deixou de atender aos anseios da burguesia, que necessitava ser cada vez mais livre para dar sequência ao processo de acumulação de capital, a liberdade firmou-se como ideia-força para o processo revolucionário do século XVIII⁶ e para a formatação de um modelo de Estado que pudesse atender e efetivar as máximas do liberalismo econômico.

    O Estado Liberal, como Estado burguês, identifica-se, sobretudo, com os interesses e valores da burguesia, que conquistou o poder político e econômico, o que justifica o realce dado às liberdades individuais (como a liberdade contratual e a reverência à absolutização da propriedade privada).⁷ Nos moldes liberais, em uma sociedade presumivelmente livre e igualitária, o poder estatal deve retrair-se,⁸ e o poder político é limitado, tanto internamente, pela separação dos poderes, como externamente, com a redução de suas funções perante a sociedade.⁹ A teoria liberal, ao condenar os privilégios nobiliárquicos e hereditários, bem como o protecionismo mercantilista, o parasitismo social da aristocracia e o absolutismo político, levanta as bandeiras da liberdade e da igualdade, mas de uma igualdade formal, que encobre, na realidade, sob seu manto de abstração, um mundo de desigualdades de fato (econômicas, sociais, políticas e pessoais).

    Ao Estado burguês, em sintonia com as máximas do liberalismo, cabia tão somente garantir a segurança interna e externa, como um Estado-árbitro, não intervencionista na vida econômica e social. À burguesia em rápida ascensão interessava, sobretudo, a salvaguarda jurídica de sua posição, com a eliminação dos privilégios do clero e da aristocracia, e, por outro lado, o reconhecimento da igualdade formal perante a lei, consubstanciada no respeito aos direitos civis e políticos, a par da manutenção de certa desigualdade ao nível econômico e social (desigualdade material).¹⁰ Para a lógica liberal clássica, eventuais desigualdades materiais não decorrem das regras do jogo (que devem ser iguais para todos) e não exigem quaisquer reações do Estado, mas se originam da natural desigualdade (de fato) entre os jogadores.

    A atuação administrativa, no compasso liberal, deve restringir-se à manutenção da ordem pública, da liberdade, da propriedade e da segurança individual. O Estado Liberal firma como objetivos fulcrais a manutenção da paz e a justiça (comutativa), desideratos que se identificavam apenas com a reconstituição da ordem perturbada (administração passiva).¹¹ O Estado deve apenas evitar a perturbação da ordem e assegurar o livre exercício das liberdades, colocando-se como um poder de equilíbrio, prevenindo e corrigindo os entrechoques individuais, como simples aparato de contenção dos excessos do individualismo.¹² A concepção (liberal) de propriedade foi uma das bases da cultura estatal na sua fase de Estado Absoluto e continuou a sê-lo no Estado Liberal.¹³ Na realidade, o Estado Liberal foi o grande aparelho edificado pela burguesia para defender a propriedade privada.

    O Estado Liberal firma uma nítida separação entre Estado e sociedade civil, bem como promove a autonomia da esfera econômica em face da esfera política, cada qual presidida por uma lógica distinta (lucro e poder). A lógica liberal afasta a intervenção econômica estatal e toma como modelo ideal o Estado mínimo, que deve possuir, da mesma forma, um governo que governe o mínimo.¹⁴ Claramente, porém, mesmo na primeira fase do capitalismo, tratado por Boaventura Santos como capitalismo liberal,¹⁵ certa regulação pelo Estado era reclamada e considerada legítima e necessária à manutenção do laissez-faire; em outras palavras, o Estado era chamado a intervir para não intervir. A esfera política, assim, deveria limitar-se à garantia do pleno funcionamento dos mecanismos de autorregulação do mercado (aos quais se atribuía uma racionalidade intrínseca), à proteção da propriedade privada e da obrigatoriedade dos contratos, à segurança pública.¹⁶

    No Estado Liberal, o capitalismo se tornou o modelo preponderante de produção no Ocidente, possibilitando a exploração do trabalho, tanto nos países centrais como nos países agregados. Entretanto, nos países periféricos, os mecanismos da clássica acumulação primitiva de capital (de molde mercantilista) ainda se faziam presentes, com a continuação da transferência de recursos para os países centrais sob a forma de metais e pedras preciosas.¹⁷

    1.2. O Estado Providência reclamado pelo capitalismo liberal em crise

    Em linhas gerais, o século XX, marcado em sua primeira metade por grandes convulsões bélicas e por mudanças cada vez mais rápidas e alicerçadas em avanços tecnológicos sem precedentes, assim como por profundas crises econômicas, assistiu seguir à fase liberal do Estado constitucional sua fase social.

    O Estado Social é fruto de uma pluralidade de fatores que alteraram o mundo e a sociedade. Não seria adequado buscar explicações monocausais para o surgimento do Welfare State e para a expansão de seus serviços, pois inúmeros foram os fatores determinantes que se combinaram singularmente para cada Estado em particular. Diversas razões contribuíram para que o paradigma social de Estado surgisse, entretanto fortes são as causas decorrentes dos próprios desequilíbrios do capitalismo liberal. O modelo veio como resposta às aspirações democráticas e aos clamores sociais, mas é possível afirmar que as exigências postas pela ciranda econômica e pela crise gerada pela recessão econômica foram fatores decisivos para a formatação do novo modelo de Estado.

    Evitando-se os riscos que uma análise estritamente materialista e histórica poderia proporcionar, é possível afirmar que a necessidade de expansão da atividade econômica foi causa marcante do surgimento do Estado Absoluto; por outro lado, quando o Absolutismo deixou de ser interessante ao processo de acumulação de capital, o Estado Liberal firmou-se como paradigma adequado às aspirações burguesas. Da mesma forma, não se pode negar que a crise econômica do capitalismo liberal das primeiras décadas do século XX foi decisiva para a formatação de um novo paradigma de Estado.¹⁸ As exigências de cunho econômico decorrentes da crise do período que mediou as duas Grandes Guerras Mundiais, que atingiu seu ápice com a quebra da Bolsa de Nova York, evidenciaram a necessidade de superação dos postulados liberais de não intervenção do Estado na economia.

    O processo de acumulação de capital, sob a lógica liberal, tende a gerar concentração de riquezas, dando ensejo a uma sociedade tendencialmente polarizada em classes com antagonismos profundos (proprietários e trabalhadores assalariados). A questão é que, por um lado, como afirma Hannah Arendt, a riqueza se transforma em capital, cuja principal função é gerar mais capital,¹⁹ e, por outro, o capitalismo,²⁰ como sistema socioeconômico, pressupõe uma nítida distinção entre os possuidores de capital (capitalistas)²¹ e os assalariados (que possuem apenas a força de seus braços para ofertar). Sujeito a regras de mercado, consideradas neutras e impessoais, o capitalismo liberal admite desigualdade social, que é atribuída ao desempenho individual ou ao acaso.

    A estrutura oligopolista de mercado tanto afasta as possibilidades de um capitalismo competitivo como favorece a superprodução. Foi assim que a crise econômica mundial do final da década de 1920 atirou a economia em uma espiral recessiva. A crise de demanda causada pela falta de mercado consumidor capaz de dar vazão à produção agravou o desemprego, que, em consequência, minimizou o consumo, e assim por diante.

    O fracasso econômico do liberalismo, na década de 1930, favoreceu o prestígio da tese keynesiana do princípio da demanda efetiva, que sustenta que os níveis de renda e de crescimento dependem dos gastos (consumo, investimento, gasto público) e não dos estoques de capital, trabalho e tecnologia, portanto, uma política estatal mais adequada deve estimular os gastos para aquecer a economia, gerar empregos e recuperar a renda.²² Para Keynes, o modelo liberal de Estado gera desemprego, que se agrava graças às consequentes deficiências do consumo, sobretudo, pela insuficiência de investimentos. Para o economista, o processo liberal de acumulação de capital vale-se da exploração da mão de obra, favorecida pela existência de uma reserva de desempregados. Entretanto, o agravamento da desigualdade social reduz as condições de consumo das classes mais pobres, ao passo que a classe rica tem um baixo consumo proporcional, uma vez que seus rendimentos superam sua capacidade de gasto.

    O Estado, sob a ótica keynesiana, para estancar o processo que desencadeia a crise, deve tributar de forma mais pesada as grandes fortunas e adotar uma política de crédito público de juros baixos, incrementando, assim, a produção e o consumo, levando, tendencialmente, ao pleno emprego. Pari passo, uma política de investimentos públicos diretos pode absorver o excedente de mão de obra, possibilitando o estancamento da crise de demanda.

    A crise econômica da década de 1920 colocou em causa as bases do Estado Liberal, uma vez que atirou ao descrédito a mítica crença na racionalidade intrínseca do mercado. Ficou evidenciado que as leis do mercado não conseguem garantir salutar competição,²³ mas, ao contrário, favorecem abusos e a constituição de oligopólios, da mesma forma que os atos praticados pelos agentes econômicos produzem consequências imprevistas por estes ou até mesmo indesejáveis.

    1.3. O Estado Providência como resposta aos clamores da sociedade pluralista

    Os reformadores do início do século XX se viram diante de um desafio representado pela questão social de seu tempo: como deveria uma sociedade liberal reagir à pobreza, sobrepovoamento, imundice, subnutrição e doença das novas cidades industriais?²⁴ Como poderiam trazer as massas de trabalhadores para a comunidade, como cidadãos, sem agitação, sem protestos, sem uma revolução? O que deveria ser feito para evitar as injustiças e aliviar o sofrimento dos trabalhadores urbanos? Como sensibilizar a elite governante da necessidade de mudanças?²⁵ No século XIX, observadores argutos como Karl Marx estavam convencidos de que a única maneira de superar as iniquidades do capitalismo industrial seria a revolução e a história do século XX é marcada pelos esforços para responder a essas questões.²⁶ Para Tony Judt,²⁷ as respostas revelaram-se um sucesso espetacular: não só se evitou a revolução, como o proletariado industrial foi integrado a um nível notável.

    Não se pode negar, como afirma Norberto Bobbio, que o modelo social de Estado tenha sido uma resposta a uma demanda vinda de baixo, a uma demanda democrática.²⁸ A partir do momento que os que nada tinham, exceto a sua força de trabalho, lutaram e conquistaram o direito de voto ou força para algo exigir, a consequência foi que o Estado teve de atender aos anseios de proteção contra o desemprego e, pouco a pouco, seguros sociais, providências em favor da maternidade, etc.²⁹ A universalização do sufrágio subverteu a lógica de dominação capitalista, a partir do momento que deslocou o eixo político para as camadas populares (maioria do eleitorado), abrindo uma tensão entre o poder econômico da burguesia e o poder político das classes trabalhadoras.

    O ambiente democrático abre espaço para uma sociedade pluralista buscar fazer valer a nível político uma pluralidade de interesses.³⁰ Os representantes políticos passam a ter de dar satisfação aos clamores da sociedade civil para serem eleitos; a classe política deve respostas às demandas postas pela sociedade civil (serviços públicos, programas sociais, etc.) e, nesse contexto, o pluralismo da sociedade favorece a ampliação do tamanho do Estado. Consequentemente, alarga-se a base tributária e cresce a máquina burocrática. Entretanto, as primeiras tentativas de implementação de políticas sociais pelo Estado, na realidade, ocorreram em países de regime político autoritário, visando, exatamente, impedir o avanço democrático, como na Alemanha de Bismark ou na França de Napoleão III.³¹ Algo similar, por certo, foi o que ocorreu no Brasil de Getúlio Vargas. O atendimento dessas necessidades sociais veio paternalisticamente outorgado por bons pais da nação e não foram reconhecidos como verdadeiros direitos.

    A fase social do Estado de Direito parece ter surgido a partir do momento que o Estado Liberal não pôde mais ficar indiferente à crise social, sob pena de colocar em causa a paz. A crise econômica agravada das primeiras décadas do século XX passou a exigir do Estado tanto uma atuação econômica anticíclica que pudesse inverter a espiral recessiva causada pelo modelo mais liberal de Estado, como mecanismos de proteção social, a fim de amortecer os efeitos perversos da crise. Para atender a essa lógica mais social de Estado, a atividade administrativa deixou de se orientar tão somente pela pura salvaguarda do existente para se tornar uma atividade interventora. A Administração Pública passou a tomar a iniciativa e agir visando à criação de algo de novo (administração ativa).³²

    1.4. O Estado Social conservador e o Estado Providência

    Para Juan Alfonso Santamaría Pastor,³³ a ideia de Estado Social possibilita a demarcação de pelo menos três fases.

    Na primeira, o Estado assume o encargo de intervir autoritariamente no universo das relações de trabalho (como o fez Bismark, de 1883 a 1889). Trata-se da primeira tentativa de socialização do risco (fase de experimentação), de substituição da caridade privada pelo seguro público, de estatização das formas de solidariedade.³⁴ A Alemanha foi pioneira nessas formas de regulação, com a disciplina (de 1871) da assistência em caso de acidente de trabalho. As reivindicações do partido social democrata alemão haviam sido duramente reprimidas por Bismark que, como antídoto político, desenvolveu sua política social, como a lei de 1883 sobre seguro-doença; a lei de 1884 sobre acidentes de trabalho; a lei de 1889 sobre seguro-velhice-invalidez, todas elas englobadas no Código dos Seguros Sociais de 1911.³⁵ Com o devido respeito às cores que os distinguem, similar assistencialismo estatal pôde ser verificado na Alemanha de Hitler, na Itália de Mussolini, na Espanha de Franco, no Portugal de Salazar, no Estado Novo de Getúlio Vargas. Em linhas gerais, as conquistas dessa fase aparecem mais como beneplácito de um líder carismático do que, propriamente, como direitos fundamentais conquistados.³⁶ Se os clamores colocavam em risco a paz social e influenciavam os avanços do Estado, a intervenção estatal (autoritária), nessa primeira fase, se exteriorizava a partir de políticas paternalistas de governantes pouco democráticos.

    Para Zygmunt Bauman,³⁷ o Estado Social birmarkiano foi criado para promover os interesses vitais de uma sociedade de produtores-soldados, que media sua força pelo número de homens fisicamente aptos a enfrentar tanto os desafios do chão da fábrica como do campo de batalha. Mesmo quando compunham o exército de reserva, trabalhadores e soldados deveriam estar sempre prontos para se juntar às fileiras, caso a força de trabalho ou de combate deles fosse acionada e, para tanto, deveriam ser alimentados, vestidos, calçados e gozar de boa saúde.³⁸

    Na segunda fase, o Estado passou a intervir no funcionamento da economia, chamando para si a orientação e regulação da atividade econômica e financeira, tal como aconteceu no período entre as duas grandes guerras mundiais. Trata-se, na dicção de Jean Touchard, da fase de consolidação, na qual as políticas distributivas keynesianas foram experimentadas no New Deal de Franklin Roosevelt.³⁹ Na realidade, mesmo antes da grande depressão, logo após a Primeira Grande Guerra, o Estado já havia passado a intervir na ordem econômica e social, buscando salvar o próprio capitalismo de si mesmo.

    Nessas duas primeiras fases, o Estado Social conservador via-se, fundamentalmente, às voltas com a crise econômica, buscando superá-la, sem maiores preocupações imediatas com a justiça social. Por isso, além de não conseguir superar a crise do capitalismo, o Estado não conseguiu dar o suporte necessário às instituições democráticas, não abrindo alternativas capazes de superar o surgimento de regimes totalitários.⁴⁰ Assim, da crise do Estado Liberal irrompem três tipos de Estado,⁴¹ todos eles antiliberais, reforçando, todos eles, a Administração Pública, com opção pelo alargamento de suas funções e fins: o Estado Social, o Estado da Legalidade Socialista, e o Estado de inspiração fascista.

    Como afirma Emerson Gabardo, a crise do capitalismo, logo após a Primeira Guerra Mundial, propiciou um ambiente favorável à queda de importância da democracia no imaginário popular. Se, até então, a ideia de democracia política vinha fortemente relacionada com a de liberalismo econômico, a ideia de um governo forte tornou-se cada vez mais palatável, quando não obrigatória, seja em termos políticos, seja em termos econômicos, reclamando-se, então, um aparato jurídico que lhe desse respaldo.⁴² As promessas ousadas dos regimes políticos ditatoriais (fascismo e comunismo) deixavam de lado valores fundamentais, como a dignidade da pessoa humana e o princípio democrático. Por outro lado, em linhas gerais, em um modelo democrático mais social e não revolucionário de Estado (Estado Social), o regime político democrático se dispõe a limitar a força de atuação da administração autoritativa, sem, entretanto, afastar as necessárias incumbências do Estado de satisfação de diversas necessidades coletivas.⁴³

    A terceira fase do Estado Social destaca-se a partir do final da Segunda Guerra Mundial, quando o Estado passou a se apresentar como um grande aparato prestador (Estado Providência).⁴⁴ Nessa fase de expansão, verifica-se a mais ampla aplicação prática das políticas keynesianas de intervenção econômica e social, em virtude da necessidade de reestruturar as economias europeias⁴⁵ e do desejo de fazer frente à expansão do socialismo soviético. É certo que, a partir dessa terceira fase, o mundo assiste a um crescimento econômico significativo, porém, muitas vezes, acompanhado de uma forte expansão no endividamento externo.

    A partir do final da Segunda Guerra Mundial, as normas programáticas do Estado Social Conservador foram se transformando em direitos sociais do Estado do Bem-Estar (Welfare State), que não se apresentam como prestações de caridade ou de benevolência do soberano, como nos Estados patrimoniais, mas como direitos subjetivos públicos passíveis de serem exigidos do Estado. Nesse compasso, desde a Constituição mexicana de 1917 e da Constituição de Weimar de 1919, foram-se incorporando direitos sociais aos textos constitucionais. O Welfare State deixou evidenciado que o constitucionalismo liberal não basta para assegurar a dignidade do homem. O homem tem sua dignidade aviltada não apenas quando é privado de alguma das suas liberdades fundamentais, mas também quando não tem acesso à alimentação, à educação básica, à saúde, à moradia, etc.⁴⁶ Nesse sentido, o Estado do Bem-Estar, no plano ético, traduz uma crítica ao Estado Liberal, buscando resgatar o mesmo humanismo que inspirou e fundamentou os movimentos de conquista das liberdades públicas.

    Para Zygmunt Bauman,⁴⁷ a era moderna buscou evidenciar que não existe uma interferência ativa divina no mundo criado por Deus, razão pela qual os assuntos humanos são deixados a cargo do homem, para suas preocupações e esforços hercúleos. Esse vazio teve de ser preenchido pela sociedade humana, que foi assim forçada a substituir o cego destino pela regulação normativa; a insegurança existencial por um modelo de Estado que pudesse proteger a todos os membros dos infortúnios sofridos pelo indivíduo.⁴⁸ O caminho para a salvação humana, pelo menos nessa vida terrena, não deve mais ser encontrado por meio de penitências e rezas, mas depende da capacidade de estruturar um Estado que possa propiciar uma convivência pacífica dos homens. O Welfare State foi modelado para evitar a tendência (atual) individualizante e anticomunitária, que mina as fundações sociais da solidariedade entre os homens, e, assim, unir seus integrantes na tentativa de proteger todos e cada um da devastadora e competitiva guerra de todos contra todos e da disputa entre os homens.⁴⁹

    Na visão de Bauman,⁵⁰ um Estado é social quando promove o princípio da segurança coletiva comunitariamente endossado contra o infortúnio individual e suas consequências, substituindo a ordem do egoísmo, que gera desconfiança e suspeita, pela ordem da igualdade, que inspira confiança e solidariedade. O Estado Social, portanto, eleva os membros da sociedade ao status de cidadãos acionistas-beneficiários, que, ao mesmo tempo, são os responsáveis pela criação e decente distribuição de benefícios, bem como pela solidez e retidão da apólice coletiva de seguros emitida pelo Estado.⁵¹ Em suas palavras, verbis:⁵²

    A sociedade é então elevada ao plano de comunidade, contanto que efetivamente proteja seus membros dos horrores da miséria e da indignidade, ou seja, do terror de ser excluído, de cair ou ser empurrado para fora do veículo célere do progresso, de ser condenado à ‘redundância social’, ou de ser ‘lixo humano’.

    O Estado Social aproveita-se, em alguma porção, da crítica marxista da exploração do capital sobre as massas trabalhadoras, rejeitando, porém, o materialismo histórico e a doutrina do antagonismo irredutível de classes.⁵³ Sem perseguir igualdade material de forma absoluta e sem almejar necessariamente a homogeneização do proletariado, busca compatibilizar direitos individuais com justiça social. Parte do pressuposto de que a plena realização dos direitos individuais depende necessariamente da compatibilização destes com o desiderato de justiça social, mantendo as instituições democráticas e, pelo menos a princípio, a filosofia individualista que as fundamenta.⁵⁴

    A ideia social-democrata que fundamenta o Estado Social não se confunde com a socialista. O socialismo porta propostas de mudanças transformadoras que promovam a substituição do capitalismo por um regime sucessor baseado em um sistema de produção e de propriedade totalmente diferentes.⁵⁵ Como afirma Tony Judt,⁵⁶ a social-democracia, por outro lado, pressupõe a aceitação do capitalismo e da democracia parlamentar, como contexto no qual devem ser atendidos vários interesses (até então negligenciados) de vastos setores da população.⁵⁷ Keynes e a maioria dos homens responsáveis pela legislação inovadora de matiz social-democrata, bem como Charles de Gaulle, Clement Attlee e Franklin Delano Roosevelt não eram revolucionários, nem socialistas, mas conservadores que haviam experimentado um mundo estável e atravessado perturbações traumatizantes, e que descobriram que para conservar é preciso mudar.⁵⁸

    É verdade que as políticas públicas distributivas do Estado Social, desenvolvimentistas e de proteção social, atuam, fundamentalmente, como estruturas funcionais do capitalismo mais avançado, que buscam solucionar os problemas de legitimidade do próprio capitalismo, evitando a subversão da ordem.⁵⁹ O capitalismo, entregue ao pretenso equilíbrio do mercado, não foi capaz de garantir condições de competição, o que exigiu do Estado um papel de compensação e reconciliação dos interesses gerais da sociedade com os interesses do próprio capital, como condição de continuidade do sistema.⁶⁰

    Como afirma Zygmunt Bauman,⁶¹ longe de ser um sistema capaz de se autoequilibrar pela mão invisível do mercado, a economia capitalista produz enorme instabilidade, que ela não consegue dominar e controlar valendo-se tão somente de sua própria predisposição natural. Em outras palavras, o capitalismo gera catástrofes que, por si mesmo, ele é incapaz de controlar e, muito menos de evitar – assim como é incapaz de corrigir os danos perpetrados por essas catástrofes.⁶² Nesse compasso, o New Deal foi uma batalha de sucesso para salvar o capitalismo das consequências terríveis de suas tendências suicidas inatas, por meio da introdução de alguma lógica e alguma ordem nas práticas caóticas do capitalismo.⁶³

    Não há evidências sociológicas quaisquer que permitam presumir que a classe trabalhadora mobilizada tenha feito uma opção racional pela transformação gradual da sociedade capitalista nos moldes social-democratas. Entretanto, na realidade, ao longo do processo de consolidação do Estado Social, deu-se a regulamentação de uma específica relação de trabalho: a relação de emprego.⁶⁴ Não se pode negar, como afirma Maurício Godinho Delgado, que a relação empregatícia disciplinada pelo Direito do Trabalho, à luz do paradigma social de Estado, figura, a partir de então, como importante forma de conexão do indivíduo à economia capitalista, submetendo o moinho implacável da economia a certa função social, restringindo inegáveis tendências autofágicas do capitalismo liberal.⁶⁵ Apenas assim o sistema capitalista, essencialmente desigual, passou, de alguma forma, a poder incorporar massas populacionais à sua dinâmica operativa, segundo um padrão relativamente racional de desenvolvimento econômico e de distribuição de riquezas.⁶⁶

    O Estado da social-democracia, como formatação mais madura do próprio capitalismo, porém, não propiciou a emancipação plena dos trabalhadores com relação aos seus empregadores, embora, pelo menos parcialmente, tenha favorecido que estes se tornassem fonte de poder, a partir do momento que a todos os cidadãos, independentemente de seu desempenho no modo de produção do mercado, foram atribuídos direitos sociais (e políticos).⁶⁷ Assim, se por um lado o Estado Social se esforça para manter sistemas previdenciários e de saúde, pensões para idosos etc., por outro os direitos sociais não traduzem um processo absoluto de desmercadorização da mão de obra.

    O Estado Social bem atende às exigências de preservação da própria estrutura capitalista, a partir do momento que as escolas públicas, por exemplo, capacitam o contingente humano para o mercado, tal como os benefícios previdenciários evitam o confronto entre empregados e empregadores, e assim por diante. Nesse contexto, as políticas sociais do Estado, de certa forma, deslocam a luta de classes para demandas sociais que se dirigem agora à esfera política e à burocracia estatal.⁶⁸ Por outro lado, a fluidez com que essas demandas caminham para a esfera pública vai determinar, na década de 1970, a partir de uma ótica puramente liberal, uma série de medidas e políticas, com especial efeito para os países do Terceiro Mundo.

    Enfim, o Estado Social entrou no meio do confronto entre capital e trabalho, evitando que esse duelo competitivo colocasse em causa a paz social. As fagulhas resultantes do enfrentamento desses dois polos se transformaram em reivindicações de um por mais direitos sociais e de outro por menores tributos. O novo pacto social desenhado parte do pressuposto de que o capital deve pagar os tributos para que o Estado Providência possa prestar serviços necessários ao atendimento das necessidades dos trabalhadores. O entrechoque entre capital e trabalho é assim camuflado e, em nome da paz social, esse enfrentamento só se deve revelar na forma de duas lutas: capital X Estado; Estado X trabalho.

    As intervenções estatais fazem com que as relações econômicas se politizem, uma vez que o funcionamento da economia passa a depender de decisões administrativas e políticas. A partir do momento que o Estado assume papel central na condução da política econômica, as crises econômicas acabam por se traduzir em crises políticas e em decorrentes crises de legitimação,⁶⁹ entretanto, os re cursos são escassos e existe uma intransponível impossibilidade financeira de se satisfazer pela via estatal todas as demandas geradas pela sociedade. Nesse contexto, o Estado pode amortecer, apenas em alguma medida, os impactos negativos ocasionados pela crise social decorrente das crises econômicas cíclicas do capitalismo.⁷⁰

    O Welfare State não dá uma resposta direta para a questão de quem ganha e quem perde, embora seu desiderato fundamental seja o de dar suporte aos riscos e às incertezas aos quais estão expostos os trabalhadores assalariados e suas famílias, em especial em virtude da mercadorização do trabalho na sociedade capitalista.⁷¹ Entretanto, uma política de molde keynesiana ativa estimula o crescimento econômico e o retorno tributário que resulta desse crescimento, permitindo a própria ampliação dos programas do Estado Social; da mesma forma, o crescimento econômico continuado limita a extensão em que efetivamente são reclamadas as provisões do Welfare State (como, por exemplo, os seguros-desemprego).⁷² A teoria keynesiana intervencionista, que deu suporte ao Estado Providência, assim, propicia um círculo virtuoso de crescimento e de distribuição de renda com base no emprego.⁷³

    O Estado da social-democracia mantém o padrão de dominação capitalista e de exploração dos meios de existência social (trabalho), embora possibilite a constituição de um pacto que atenua a possibilidade do conflito inerente à relação capital e trabalho, bem como, inclusive, pode favorecer a redistribuição da riqueza produzida e a elevação do poder aquisitivo. Como observa Tony Judt,⁷⁴ graças ao imposto progressivo, subsídios estatais para os pobres, fornecimento de serviços sociais e garantias contra o infortúnio mais severo, muitas democracias modernas libertaram-se dos extremos de riqueza e pobreza.

    Os anos de 1945 a 1975, pelo menos nos países mais desenvolvidos, como afirma Tony Judt,⁷⁵ foram considerados milagrosos, dando origem ao modo de vida americano. Nos Estados Unidos da América (EUA), duas gerações experimentaram uma segurança laboral e uma mobilidade social vertical sem precedentes; na Alemanha, o milagre econômico (Wirtschaftswunder) ergueu o país e o levou ao posto de Estado mais rico da Europa; na França e na Inglaterra, as coisas iam muito bem.⁷⁶ Na Europa Ocidental e nos EUA, a desigualdade social foi significativamente reduzida e pôde-se experimentar, assim, uma era tranquila de segurança e prosperidade.⁷⁷

    Não se pode negar, como afirma Jürgen Habermas,⁷⁸ que o Estado social conseguiu, pelo menos na Europa e em outras sociedades da OCDE, compensar os efeitos indesejados de um sistema econômico altamente produtivo e, pela primeira vez, o capitalismo contribuiu para que se cumprisse a promessa re publicana de inclusão de todos os cidadãos na base da igualdade de direitos. Entretanto, também é verdade que o Estado Providência não fez por merecer grande dose de confiança por parte dos eleitores, embora seja certo que nem o capitalismo de cores libertárias, nem seus banqueiros mereçam, da mesma forma, nenhuma dose de confiabilidade.

    A influente classe média europeia, que, insatisfeita, havia dado apoio aos movimentos fascistas, estava vinculada, nesse momento, aos auspícios democráticos, o que foi conseguido graças às políticas universalistas, que ofereciam tanto à classe média, como aos trabalhadores e aos mais pobres, a mesma assistência social e os mesmos serviços públicos (ensino público; tratamento médico gratuito; aposentadoria e subsídios ao desemprego).⁷⁹ Em vez de ajustar os benefícios aos rendimentos da classe média, situação que poderia gerar resistência por parte dos profissionais mais bem pagos, que poderiam entender que a tributação não seria proporcional às vantagens proporcionadas, optou-se pelo universalismo. Nesse compasso, parcela significativa das necessidades vitais da classe média e dos mais pobres era coberta pelos impostos, de forma que o rendimento líquido do trabalhador se tornara maior.⁸⁰

    O universalismo e a redução da desigualdade social favorecem a valorização do mérito pessoal (meritocracia), em detrimento da seleção pela herança ou pela riqueza, propiciando mobilidade vertical por meio da educação.⁸¹ Tudo isso passou para as gerações posteriores que passaram a ver todas essas coisas como óbvias e, por isso, deixaram de lhes dar valor.⁸² Entretanto, pelo menos até a década de 1960, havia, na Europa Ocidental, entre a população em geral, uma convicção coletiva no sentido de que a todos beneficiava uma redistribuição moderada da riqueza que eliminasse

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