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tc C45CV

Limites: tras
dimensöes
educacionais
Yves de La Taille

editora at ica
Sou psicölogo deformacäo e de profissäo (na universidade)
e tenho investigado o tema do desenvolvimento moral desde a dé-
cada de 1980 (minha dissertacäo de mestradofoi escrita sobre
esse tema). Nos ültimos anos, pude perceber um interesse cres-
cente da sociedade como um todo, e da educacäo em particular,
pelo tema da moralidade humana, sobretudo pelos "problemas"
que ele apresenta, que väo desde a violéncia até a auséncia de "li-
mites", passando por outras questöes, como autoridade e disci-
plina.Para um pesquisador da årea, é recompensador ver que
temas por ele estudados entre as quatro paredes de seu labora-
törio tém um certo eco na sociedade, em razäo do qual passa a
ser convidado para falar a professores e pais. Porém, uma per-
gunta e uma inquietacäo aparecem imediatamente em sua men-
te. Por que essa volta generalizada ao interesse pela moralidade
humana, em especial pela educacäo moral? Serå que tal volta,

saudåvel em si, näo esconde alguns perigos, como, por exemplo,


atribuir å dimensäo ética todos os problemas sociais? A pergun-
ta e a inquietacäo podem receber respostas complementares.
Parece certo que, hoje, vivemos um momento de certo -mal-
estar- ético: a despeito de claras conquistas democråticas em
quase todo o planeta, hå queixas generalizadas sobre violéncia,
desrespeito ao espaco püblico, vandalismo, individualismo, de-
sonestidade, egoismo, etc. Para uns, a situacäo seria de verda-
deira anomia, entendida como auséncia de valores e regras ou
como presenca de valores e regras contraditörios no seio de uma
mesma sociedade. Para outros, a crise de valores näo seria täo
profunda, mas nem por isso deixaria de sefazer sentir. Dai a ne-
cessidade, reivindicada por muitos, de retomar a discussäo do
"contrato social" entre os individuos, discutir valores e princi-
pios e inclui-los claramente nos projetos educacionais. No mun-
do todo, discute-se a volta da educacäo moral nas escolas. O
Brasil näo é excecäo: os novos Paråmetros Curriculares Nacio-

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empiricos, espirituais. morais. sobre a forma de conduzir a existéncia no
nais, cujo objetivo é aformacäo para o exercicio da cidadania,
dia-a-dia. Essa volta explica-se pela fantåsticafaléncia dos grandes siste-
incluem a ética entre os temas a serem trabalhados na sala de
mas politicos, das grandes utopias (Revel & Ricard 1997. p. 254-7).
aula. Temos, portanto, um inicio de resposta para nossa indaga-
cäo. Por que essa volta das preocupacöes éticas e morais? Ora, O diagnöstico de Revel parece-me esclarecedor para explicar,
porque vivemos uma crise moral. pelo menos em parte, a volta atual das preocupacöes morais e

O valor dessa resposta é claro. Mas näo serå ela um tanto me- éticas. Acreditava-sefortemente que mudancas sociais, por si sö,

cånica? A rigor, problemas éticos sempre existiram, e nem por bastariam para modificar os homens, trazendo-lhes felicidade e

isso assistimos a uma mobilizacäo geral e constante em torno convencendo-os a viver eticamente. Ora, as grandes e radicais

deles Näo haverå algo mais?


mudancas näo aconteceram. E mesmo as mais -modestas-näo
Acredito que sim, realmente hå algo mais que deve ser encon- foram para promover condutas diferentes por parte
suficientes

trado no campo da politica. De fato, alguns observadores tém dos individuos. O educador espanhol Josep Maria Puig, com quem
notado que o recrudescimento das preocupacöes éticas estå cor- pude conversar recentemente, apresentou anålise parecida: na
relacionado ao retraimento das preocupacöes politicas. Cito Espanha, pensava-se que a volta da democracia (apös a morte
Jean-Francois Revel, pensadorfrancés que, numa longa conver- de Franco) seria suficiente para promover o exercicio da cida-
sa com um monge budista, refletiu a respeito da atracäo que a dania e, quando se constatou que näo era exatamente assim, re-

religiosidade e a moral tém exercido sobre as pessoas nestefi- solveu-se introduzir a educacäo moral e civica nos curriculos es-

nal de século: colares. Ou seja, chegou-se ao diagnöstico de que acöes para

O fracasso do Ocidente é antes o fracasso da cultura ocidental näo cientifi- promover mudancas sociais deviam ser acompanhadas de ou-
rg. em particular ofracasso de sua filosofia. Grosso modo, até o século WII. tras, destinadas a promover mudancas individuais. E, natural-
até Descartes e Spinoza, permaneceu a dupla dimensåo da filosofia tal co- mente, estratégias educacionais para formacäo moral e ética in-
mo era praticada desde seu nascimento. De um lado, a dimensäo cientifica; cidem sobre mudancas pessoais. Esse é, a meu ver, o lado positivo
e, do outro, a conquista da sabedoria. a descoberta de um sentido além da da volta das preocupacöes éticas nestefinal de século: näo des-
Vida humana. [...J Ao longo dos trés ültimos séculos. a filosofia abandona
prezarmos aformacäo, a transformacäo individual e, conseqüen-
sua funcåo de sabedoria (sagesse). A sabedoria. que comporta busca dejus-
tica e defelicidade. deixa de repousar sobre o plano pessoal, como ainda era temente, as tarefas educacionais voltadas åformacäo moral dos
o caso com Montaigne e Spinoza. Thl busca desloca-se para o plano politico. alunos. Mas isso implica também um medo: passarmos a pensar
que a transformacäo individual tudo pode e a desprezar, por com-
tornam-se a arte de organizar uma sociedadejusta. que faca seus membros pleto, o plano politico. Perigo de alienacäo, portanto!
felizes por meio da justica coletiva. Em resumo, tanto a conquista do bem Sim, vamos trabalhar a moral com ås novas geracöes, vamos
quanto a da justica e da felicidadeforam associadas å revolucäo social, cul-
ajudar as criancas a construir valores, a pautar seus comporta-
tural e politica. No século XIX entramos na era das grandes utopias que
querem reconstruir a sociedade da cabeca aos pés.
mentos por regras, a situar-se além e aquém de certos limites.

Todos esses grandes sistemasfracassaram. [...l O fracasso pråtico e o Mas näo vamos crer efazé-las crer que dimensöes outras, como
descrédito moral desses sistemas utöpicos, que såo os eventos mais impor- a do poder e da politica, säo despreziveis, ou simplesmente de-
tantes do fim de nosso século, säo o que chamo defracasso da civilizaqäo corréncia de mudancas pessoais, em que pese a sua forca. A vio-
ocidental. na sua parte nüo cientifica. A reforma social devia substituir a re-
léncia näo se deve apenas åfalta de ética de alguns: e a pobre-
forma moral. e ela conduziu ao desastre, de modo que nos achamos agora
completamente desamparados, diante de um vazio. Dai a volta do interesse za? e as injusticas? e as humilhacöes? O individualismo egoista
porfilosofias modestas. que consistem em dar alguns conselhos pråticos. nao é apenas resultado de vicios morais: e a sociedade de con-

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sumo? e o valor sacrossanto do lucro? A preocupacäo com trans-
formacöes pessoais é boa, mas näo pode nos fazer esquecer que
as transformacöes sociais permanecem necessårias. Portanto,
as preocupacöes éticas näo podem se dar em detrimento das
preocupacöes politicas. Assim, se me alegro em ver o tema de Limite- é uma palavra que tem voltado å tona ultimamen-
minhas investigacöes académicas sobre desenvolvimento moral te.É empregada com freqüéncia, em geral de forma queixosa:
infantil receber eco na sociedade, também me preocupa ofato "Essas criancas näo tém limites!"; ou entäo, com um qué de au-
de que tal eco possa ser simples moda passageira (tanto se es- toritarismo: -É preciso impor limites!"; ou ainda, como critica
creve e sefala sobre ética atualmente!) ou pretexto para redu- å familia do vizinho ou dos alunos: "Esses pais näo colocam li-

cionismos de toda ordem. mites!". A obediéncia, o respeito, a disciplina, a retidäo moral,


Isto posto, o texto que se vai ler näo é exclusivamente dedica- a cidadania, enfim, tudo parece estar associado a essa metåfo-
do å moral e å ética. Seu tema säo os "limites", metåfora täo em- ra. Tudo talvez, mas näo todos. De fato, quem supostamente ca-
pregada hoje em dia, que nos permite falar de vårias dimensöes rece de limites é sempre uma crianqa ou um adolescente. Um
humanas, entre as quais a moral e a ética. A quem este texto se adolescente que dissesse "Esses adultos näo tém limites" cau-
destina? A educadores em geral. Quando digo educadores, refi- saria estranheza e risos. Um adulto que se expressasse da mes-

ro-me a professores e também aos pais, ou seja, a todos aqueles ma forma referindo-se aos jovens seria escutado e aprovado.
que Iidam com criancas e que pensam que educå-las é mais do Sempre foi assim e parece que sempre serå: para a geraqäo

que ensinar-lhes uma matéria ou outra. Este texto deve ser lido mais velha, a mais nova é desregrada, frivola, sem juizo e...
tendo em mente os "limites"que mencionei acima: vai tratar de ameaqadora. Lembremos, porém, um fato importante e nunca
transformacöes pessoais, mas näo as julga as ünicas mudancas suficientemente enfatizado: os jovens säo reflexo da socieda-
de em que vivem, e näo uma tribo de alienfgenas misteriosa-
necessårias, nem tampouco suficientes.
Falta dizer que näo se trata de um livro que visa a ensinar o mente desembarcada em nosso mundo, com costumes bårba-
ros adquiridos näo se sabe onde. Se é verdade que eles carecem
leitor ou propor-lhe um sem-nümero de receitas. É Claro que,
disso que chamamos de limites, é porque a sociedade como um
sendo psicölogo, trago conhecimentos dessa ciéncia para sus-
todo deve estar privada deles. "Esses adultos näo tém limites!"
tentar minhas anålises. Mas o objetivo näo é ensinar psicologia.
O objetivo deste livro é suscitar a reflexäo, exercicio ao qual con- — algum adolescente proferir tal diagnostico, deveremos
se

Vido o leitor a partir das idéias desenvolvidas ao longo das på- dar-lhe algum crédito.
Mas do que estamos realmente falando, quando nos referi-
ginas que se seguem.
mos a limites, å sua falta, å necessidade de sua imposiqäo? Säo
as respostas a essa pergunta que pretendo desenvolver aqui.
No final do caminho, o leitor, espero, concordarå com a seguin-
te afirmaqäo: se é verdade que a falta de limites verifica-se em
muitas pessoas (näo apenas nos jovens), é também verdade
que o excesso deles sufoca a maioria. Para compreender essa
aparente contradiqäo, é precisoårabalhar o sentido dessa bela
metåfora, hoje maltratada pelo seu emprego exclusivamente
restritivo.

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"Limite- remete å idéia de fronteira, de linha que separa ter- Transpor limites:
rit6rios. Se existe um limite, é porque hå pelo menos dois con- maturidade e excel@ncia
concretos ou abstratos, separados por essa fronteira.
Há o meu e"O limite de meu jardim estå aliÖsignifica dizer que, além de-
o seu, o de hå
le, algo que näo é mais meu jardim. "Atingi o limite de ida-
dentro e o de- significa dizer que, atingida essa idade, hå coisas que näo
posso ou näo me deixam mais fazer. Os dois exemplos nos re-
de fora, o assamos toda a infåncia procurando esquecer a crianqa
metem å idéia de restricäo•. o lado de lå do limite é negativo, o que éramos na véspera. O crescimento é isto. E a crianqa näo
permitido e
que näo é meu, o que näo posso fazer. Entendido assim, o li-
deseja nada além do que näo ser mais crianca- (Alain, 1948,
o não
mite se referiria apenas a um horizonte intransponivel. Porém, p. 11). Retiro essa citaqäo de um belo e severo livro do fi16sofo
permitido. a idéia de fronteira remete-nos também å aqäo de transpor, de
francés Alain, Propos sur l'éducation (Pensamentos sobre a
Quando se ir além. Aquilo que hoje me limita pode ser ultrapassado ama-
educaqäo), escrito na primeira metade do século XX. A citaqäo
fala de nhä. Os navegadores do século XVI pensaram assim: transpu- transcrita servirå de ponto de partida para minhas reflexöes
limites há seram aquilo que parecia ser o fim do mundo e encontraram
sobre transpor limites.
uma novos mundos. Foram além dos limites, passaram fronteiras.

dualidade.
O bom esportista pensa assim: o desempenho que hoje é im- Desenvolvimento
possivel poderå ser alcanqado amanhä. O bom cientista tam- Alain tem razäo: a infåncia, mesmo que vivida com plena
bém pensa assim: aquilo que é hoje ignoråncia poderå ser, num felicidade (o que, na verdade, é bem raro), näo é um fim em si,
futuro pr6ximo ou longfnquo, conhecimento. mas uma etapa a ser superada. E a grande motivaqäo que ins-
näo deve ser pensado apenas como ponto
Portanto, "limite- pira o pequeno viajante é, justamente, conclui-la, sair dela. Tal
extremo, como fim, como limitaqäo. Näo hå düvida de que esse desejo se verifica a cada fase do desenvolvimento. Observemos
é um de seus significados, mas apenas um, apenas um lado da um bebé de 6 meses, Ode quatro," tentando, ainda em väo, en-
fronteira. "Limite- significa também aquilo que pode ou deve
gatinhar. ele move o corpo com gestos bruscos, resmunga, de-
ser transposto. Toda fronteira, todo limite separa dois lados. O monstra mau humor; quer deslocar-se para a frente e näo con-
problema reside em saber se o limite é um convite a passar pa- segue, eis o seu limite. Mas ele insiste, experimenta vårios
ra o outro lado ou, pelo contrårio, uma ordem para permane- movimentos até que, finalmente, ultrapassa a fronteira e en-
cer de um lado so. Ora, na Vida, e na moralidade, as duas pos- gatinha. Alguns meses mais tarde, cena semelhante se repete
sibilidades existem: o dever transpor e o dever näo transpon quando ele tenta andar. Anos mais tarde, vemos essa crianqa
Vamos comeqar nossa anålise justamente pelo sentido es-
orgulhosa por conseguir participar da Vida dos adultos, aju-
quecido da metåfora que aqui nos ocupa: limite como frontei-
dando em casa; mais tarde ainda, vemo-la impondo fronteiras
ra a ser atravessada.Em seguida, falaremos de seu sentido res- para proteger sua intimidade, demonstrando pudor e recato e
tritivo. Finalmente, analisaremos um tipo bem especffico de
exigindo ser tratada como "gente grandee. Durante toda a in-
limite que a crianqa precisa construir e aprender a defender: fåncia, assistiremos a cenas desse tipo, nas quais a crianca se
aquele que preserva sua intimidade. esmera para fazer algo ainda dificil devido ås limitaqöes de
sua idade. Essa é a mola afetiva do desenvolvimento: ampliar
1. Limite como fronteira a não ser atravessada
os horizontes, ter éxito no que era antes impossivel, compreen-
2. Limite como fronteira a ser atravessada
3. Limite que preserva a intimidade
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der coisas antes inexistentes ou misteriosas, impor a pr6pria aparece. Vemossriancas commedcdecrescemregredindo a
fases anteriores ou
individualidade; numa palavra, transpor limites. ultrapassar limites
Para reforqar essa tese — que, na verdade, é Obvia —t tome- numa mesma etapa. Longe de contradizer o que estamos ex-
o confirmam. Seria pecar por excesso
mos a conhecida teoria piagetiana. Como sabemos, para Piaget,
de otimismo pensar que o desejo de crescer é harmonioso, oni-
näo é a pura maturaqäo biolågica que explica o desenvolvi-
mento, mas sim as mültiplas interaqöes com o meio fisico e so- potentev e queo desenvolvimento-equivaleaummtranqüila-
viagem num mar sermondas. Seria, aliås, empobrecer o senti-
cial. É ao agir sobre os objetos que a crianqa os assimila e, con-

juntamente, constr6i estruturas cada vez mais complexas e do metaförico da palavra "limite-. Se o limite é, de fato. limite.

abrangentes de assimilaqäo. Ora, cabe perguntar: por que a ou seja, representa algumalinha_essencialemrn-marcocuma-
crianqa gasta tanta energia nesse embate com o mundo? Serå fronteira entre dois territ6rios, é porque esses territåriqssäcy
distintos. Aquilo que estå além da fronteira é desejåvel, mas
por pura "fome- cognitiva, pura curiosidade pelos objetos que
a rodeiam? Näo hå düvida de que tal curiosidade existe. Mas também desconhecido, um tanto assustador. Acostå-lo tem sa-
acredito que, por trås dela, existe outra motivaqäo, a de cres-
bor de aventura, mas nem sempre se estå disposto a correr o
risco. Portanto, o chamado "medo de crescer" é perfeitamente
cer, a de alqar-se å condiqäo de adulto. Aliås, um fato interes-
sante (e triste) é que muitas crianqas perdem a curiosidade compreensivel (e, com freqüéncia, motivado por processos in-
pelo mundo quando chegam ao limiar da idade adulta, por vol- conscientes) e reforqa nossa tese. Desenvolver-se é superar li-

ta dos 12 anos, e, para desespero de seus professores, apren- mites, transpö-los. Permanecer infantil é, justamente, sucum-
dem mais para passar de ano do que para conhecer o planeta bir, seja å diståncia, seja å dificuldade da travessia, seja ainda
Terra e suas civilizaqöes. Melhor dizendo, sua cu- aos mistérios inquietantes que escondem. Em poucas palavras,
riosidade se desinveste de certos objetos e inves- educar uma crianca, longe de ser apenas impor-lhe limites, é,
As vezes,
te-se noutros, notadamente os relacionados å se- antes de mais nada, ajudå-la cognitiva e emocionalmente a
aproximamos a
xualidade. A razäo de tal mudanca de rumo se transpö-los, ir além deles, pois -a crianqa näo deseja nada além
cultura da
deve, naturalmente, å maturidade sexual e aos no- do que näo ser mais crianca-.
crianca ao invés
vos desejos agora despertos, mas acredito que Acabamos de falar em educaqäo! Ora, o que verificamos é
de aproximar a que. muitas vezes, seja na familia, na escola ou nos meios de co-
também se deva ao fato de essa maturidade ser o
crianca da cultura. em vez de ajudar e emular a crianqa a
ültimo Sinal da saida da infåncia, anunciar um municacäo, a educacäo,
grande limite a ser, finalmente, transposto. transpor limites, a mantém no seu estado infantil. As vezes,

Mas voltemos å crianqa menor, que ainda navega em plena aproximamos a cultura da crianca ao invésde aproximar a crian-
infåncia. Sua compreensäo e sua apreensäo do mundo cres- qa da cultura•econheqo que essa frase é um tanto enigmåtica.
cem a olhos vistos: vemo-la esgrimir, concentrada, com varia- O que vem a seguir tem o objetivo de esclarecer o seu sentido.
dos problemas, vemo-la superar conflitos cognitivos. Mas por guisa de exemplo, tomemos uma reflexäo do filåsofo fran-
que säo conflitos? Ora, porque, entre outras coisas, represen- Cés Alain a respeito da aprendizagem da leitura:

tam limites ao seu caminhar para a condiqäo de adulto. Crescer, Como aprendemos uma lingua? Pelos grandes autores näo de outra for-
desenvolver-se, é superar limites. E como näo é a pura matu- ma. Pelas frases as mais densas, as mais ricas. as mais profundas, e näo
com as bobagens de um manual de conversaqäo. Aprender primeiro e, em
racäo bi016gica que leva acrianqa a crescen seu desejo de a-
seguida. abrir esses tesouros. essas jöias fechadas a sete chaves. Näo creio
zé-lo é condigäosin&qåanonlÅs vezes, um desejo contrårio que a crianqa possa elevar-se sem admiråqäo e sem veneraqäo. é em fun-

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Gäo disso que ela é crianqa; e a virilidade consiste em ultrapassar esses pontånea dos alunos. Quando diz que a crianqa tem de come-
sentimentos quando a razäo desenvolve infinitamente toda a riqueza hu-
car por entediar-se, Alain quer alertar para o fato de que as
mana, no comeqo apenas pressentida (1948, p. 15).
motivaqöes espontåneas dispensam o esforqo e que este, jus-
Quatro teses estäo presentes nessa reflexäo: 1) hå escrito- tamente, é a chave para o desenvolvimento e a formaqäo do
res melhores que outros; 2) os alunos devem ler os grandes caråter. Q prazer imediato é primitivo; a busca do
autores; 3) devem fazé-lo diretamente, ou seja, sem passar pe- esforqo, é que tem valopeépråpria do adulto. Escreve ele: "Essa
la mediagäo de textos de qualidade inferior; 4) os bons textos velha historia da taga amarga com bordas aqucaradas parece-
tém o poder de despertar e aguqar a curiosidade pelas rique- me ridicula; preferiria tornar amargas as bordas de uma taga
zas da cultura. que contivesse, no seu fundo, mer (Alain, 1948, p. 9).
A primeira tese nem merece maiores comentårios: é Obvio Por outro lado, temos a critica å necessidade de que o alu-
que hå escritores e escritores, textos e textos, e que uns säo re- no sempre compreenda tudo o que lé. Isso nos leva å quarta
conhecidamente melhores do ponto de vista literårio do que tese:o essencial näo é o aluno receber informaqöes ou ler tex-
outros. Afirmar o contrårio seria cair num relativismo cego. tos que possa entender; o essencial é que entre em contato com
A segunda tese também me parece tranqüila: os alunos de- coisas que despertem nele a vontade de se algar a um nivel su-
vem ter acesso å boa literatura. Todavia, deveremos voltar a perior, coisas que lhe sugiram a presenca de riquezas secre-
ela, quando discutirmos as formas de arte que, em geral, säo tas, coisas, enfim, que o motivem a realizar esforqos, porque,
destinadas å populaqäo, sobretudo a mais carente. justamente, permaneceräo incompreensiveis ainda por um
As duas proximas teses, complementares, säo as mais polé- bom tempo. Em suma, os conteüdos literårios (e também os
micas e delicadas. A terceira diz: os alunos devem, sem media- outros) näo devem ser escolhidos em funqäo da compreensäo,
de mediaqäo significa aqui
cüo, ler os grandes autores. Auséncia mas sim da emulaqäo, porque a crianqa näo pode -elevar-se
que eles näo devem ler textos menores, como manuais de con- sem admiraqäo e sem veneraqäo".
versaqäo ou textos especialmente escritos para a sua idade. Reconhecemos nessas idéias de Alain uma defesa de pon-
Uma pergunta imediatamente vem å cabeqa: que compreensäo tos clåssicos do chamado ensino tradicional, que säo, é claro,
teräo os alunos desse tipo de texto, em geral complexo e desti- discutiveis, notadamente devido a descobertas psic016gicas das
nado aos adultos? E Alain responde: "aprender primeiro e em leis de desenvolvimento que algu-
infantil. Todavia, acredito
seguida abrir esses tesouros-. Ou seja: a compreensäo do sen- mas idéias tradicionais devem ser resgatadas para o tema que
tido e aapreensäo da beleza desses textos näo säo, num pri- nos interessa aqui, a saber, os limites a serem transpostos.
meiro momento, necessårias: viräo depois. Mas o aluno näo cai- Vamos ver por qué, comeqando pelo tema da motivaqäo. Uma
rå no tédio tendo de ler textos ainda indecifråveis para ele? das criticas mais freqüentes feitas ao ensino tradicional é que
Sem düvida, responde o fi16sofo, mas isso näo é problema, é até ele é "chato": as aulas säo desinteressantes, meramente expo-
desejåvel, porque, como afirma em outro trecho, "primeiro, é sitivas, os textos escolhidos säo estranhos aos interesses do
preciso saber entediar-se". Dando um exemplo relacionado å aluno, falam de coisas que näo lhe dizem respeito, etc. Em uma
müsica, ele explica: "A arte de um müsico, se eu ouvi direito, näo palavra, tal ensino é um tédio! Os alunos so näo dormem por-
comeqa por agradar, mas sim por forqar- (Alain, 1948, p. 12). que rigidas medidas disciplinares os ameaqam de adverténcia,
Duas idéias estäo presentes nessa terceira tese. De um la- suspensäo ou repeténcia. E, jå que näo dormem, acabam por
do, temos uma contundente critica å busca da motivaqäo es- contar os minutos que os separam do recreio ou da saida. Ora,
por que razäo o ensino deveria ser necessariamente maqante?
Decorréncia pedagogica: vamos motivar os alunos, sobretudo
Por que deveria ir sistematicamente contra o prazer? Por que
por meio de "conflitos cognitivos", ou seja, de desafios genui-
näo poderia haver alegria no aprender? Inspirados por essas nos å inteligéncia, para "desequilibrå-la- e levar o aluno a pro-
reivindicaqöes do gozo, muitos educadores procuraram tornar
curar, ativamente, conhecimentos que lhe permitam recupe-
o ensino prazeroso, motivador, promovendo aulas que manti- rar o equilibrio momentaneamente perdido.
vessem os alunos despertos graqas ao interesse, e näo em ra- Em resumo, a procura da motivaqäo do aluno se deveu tan-
zäo de ameaqas disciplinares. Uma das traduqöes mais claras
do prazer quanto a apreciacöes teåricas no
to å reivindicacäo
e freqüentes dessa nova perspectiva pedagogica foi a introdu-
plano da aprendizagem. Conseqüentemente, o diagnostico do
qäo do brincar e dos jogos na sala de aula. A crianqa gosta de desempenho dos alunos também mudou. Para o ensino tradi-
brincar? entäo que aprenda coisas sérias brincando (conselho cional, o aluno era estudioso ou preguiqoso; para o ensino mo-
antigo, aliås, jådado por Rabelais no século XVI). derno. ele é motivado ou desmotivado. A uma avaliaqäo moral
Todavia, näo foram as queixas em relacäo ao tédio que mais
sucede uma avaliaqäo psicolågica.
pesaram na procura da motivaqäo dos alunos, mas aquelas re- A proposta pedagogica moderna é, sem düvida, generosa e
lacionadas a questöes da pr6pria aprendizagem: a falta de mo- séria. De fato, näo se vé por que o ensino deva ser necessaria-
tivaqäo näo seria apenas causa de desprazer, mas também e so-
mente maqante; também se percebe que a alegria e o prazer
bretudo um sério obståculo å aprendizagem ou, pelo menos, de estudar säoum rico estimulo å aprendizagem. Toda e qual-
causa da aprendizagem falha. Nesse sentido, motivar os alunos
quer pessoa pode fazer esse diagnostico a respeito de si mes-
näo apenas tornar-lhes a Vida mais agradåvel, mas tam-
seria
ma: aprende-se e memoriza-se melhor aquilo que correspon-
bém promover seu desenvolvimento e sua auténtica instruqäo. de a um genuino interesse. Quem näo preferiria uma classe
Autores de psicologia foram citados em defesa de tal postura, repleta de alunos um tanto turbulentos talvez, mas atentos,
entre eles o psic610go suiqo e mestre de Piaget, Edouard com os olhos brilhando de curiosidade e felicidade, a uma clas-
Claparéde, cuja teoria do interesse teve grande repercussäo. A
se silenciosa, mas povoada de olhares vagos e opacos, de tes-
teoria é de simples explicitaqäo: toda conduta tem umafinali- tas franzidas, näo pelo esforqo da reflexäo, mas pelo mau
dade, sempre definida pela afetividade, ou seja, pelo interesse. humor?
Vale dizer. o que move o individuo é seu interesse; sem ele, na- Estranhamente, uma queixa muito comum hoje é que os
da acontece. Piaget vai retomar esse ponto de vista, acrescen-
professores acabam por encontrar classes que näo correspon-
tando-lhe conceitos novos, em especial o de equilibrio: "Toda dern a nenhum dos dois cenårios descritos acima, mas a uma
conduta é uma adaptaqäo e toda adaptaqäo é o restabelecimen- composiqäo infeliz de ambos: classes turbulentas, povoadas de
to do equilfbrio entre o organismo e o meio. SO agimos se esta-
alunos desinteressados, aparentemente infelizes, de olhos va-
mos momentaneamente em desequilibrio" (1954, p. 3). gos e testas franzidas de mau humor.
Traduzidos para a sala de aula, tais conceitos parecem ter
Nåo sei até que ponto tal queixa pode ser generalizada. Mas
conseqüéncia evidente: um aluno desmotivado näo aprende por- o fato é que ela existe e recebe certa unanimidade neste final
que falta-lhe, justamente, o interesse, sem o qual näo hå con- de século, sobretudo entre os educadores que Iidam com ado-
duta. Dito de maneira mais piagetiana: um aluno desmotivado lescentes e jovens adultos. O fato se deve a mültiplas causas
näo se encontra em estado de desequilfbrio; portanto, estå au- sociais. entre as quais eu destacaria a atual e objetiva falta de
sente a -mola- que o levaria a assimilar novos conteüdos. perspectivas concretas e atraentes de trabalho e de ideais so-

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ciais (justamente a falta de atrativo para se tornar, definitiva- tos; em si, ao
näo säo apaixonados pela leitura e pela escrita
mente, adulto). A -monstruosa sombra• do desemprego e o contrårio do aluno que experimenta verdadeiro prazer em ler).
"monstruoso buraco negro- que traga todas as utopias pairam tém
Aqui. o leitor poderå objetar: tais interesses extrinsecos
sobre as salas de aula. Sua opressora presenca explica em par- menor poder de motivaqäo que a curiosidade. Sim, mas seja-
te essa mistura de frivolidade e tédio que se véem em muitos mos precisos e realistas. Precisos, quando lembramos que a
jovens. Mas deixemos para outro momento o trabalho de diag- teoria do interesse de Claparéde e Piaget näo é uma teoria da
nosticar o mal-estar contemporåneo e voltemos å nossa ques- curiosidade apenas. E realistas, quando admitimos que é to-
täo: a motivaqäo. talmente impossivel esperar alunos -epistemologicamente- in-
Como jå disse anteriormente, a proposta pedagogica mo- teressados por todas as matérias. Sempre haverå aquele que
derna é generosa (procura tornar o ensino agradåvel) e séria gosta de ciéncias e näo suporta portugués, e aquele que devo-
(debruqa-se sobre o componente motivacional que move as ra textos, mas odeia as aulas de matemåtica, ou aquele que
aprendizagens). Porém, pode ser interpretada de forma ingé- prefere as aulas de educaqäo fisica ou artistica. Isso näo sig-
nua e, como tentarei mostrar, levar a uma interpretaqäo res- nifica necessariamente que eles näo teräo algum interesse em
tritiva do conceito de interesse, reduzindo-o å dimensäo de estudar as matérias que näo säo objeto da sua curiosidade.
puro prazen Esquecer ou ignorar a falta de equivaléncia entre interesse
Uma das traducöes do interesse é a curiosidade, entendida em geral e curiosidade pode levar a "desesperos" didåticos, que
como um interesse pela matéria. O aluno curioso é aquele que se traduzem na busca impossivel da motivaqäo do aluno.
se motiva para estudar porque o tema do estudo o atrai intrin- Infelizmente, isso parece acontecer com freqüéncia. O profes-
secamente. Hå alunos que gostam de geografia, outros de sor entra na sala de aula querendo que os alunos se interes-
hist6ria, outros ainda de matemåtica, de educaqäo fisica, etc. sem pela sua matéria o que é natural — e se desestrutura
Movidos pela curiosidade, esses alunos lembram pequenos quando isso näo ocorre — o que é um erro. E o erro seguinte
cientistas em busca de respostas para suas inquietaqöes. Esse pode ser procurar cativar seu audit6rio, näo mais pela curio-
tipo de interesse é, naturalmente, o mais eficaz para promo- sidade ou por alguma outra forma de interesse, mas pelo as-
ver a aprendizagem, uma vez que seu objeto se confunde com pecto agradåvel e dinåmico das aulas: torna a matéria seduto-
os conteüdos apresentados em sala de aula. Todo professor so- ra. leve. prazerosa, quase recreativa. E, aqui, reencontramos o
nha com alunos sedentos de saber Infelizmente, tal sede nem terna do limite: ao invés de levar o aluno a transpor os limites,
sempre estå presente, mas isso näo representa um problema o professor acaba por referendå-los. o professor fica como responsável
psic016gico do aluno ou uma falha na didåtica, pois a curiosi- De fato, do interesse, devemos
se levarmos a sério a teoria
dade é apenas um caso de motivacäo. de interesse. Um caso pensar que tal conceito näo se confunde com o de "prazer ime-
feliz, mas apenas um caso. diato". Por exemplo: uma turma de adolescentes que passa ho-
O interesse que move o aluno a estudar pode também ser ras ensaiando uma musica ou uma peca de teatro pode näo
exterior extrinseco å matéria. Por exemplo, a satisfaqäo de mostrar aos sentir prazer em repetir dezenas de vezes a mesma ce-
algum
pais e aos outros que é bom aluno, capaz de obter boas notas. na ou o mesmo refräo. Mesmo assim, mantém-se atentos e con-
Outro exemplo: a necessidade de aplicar determinado saber centrados na tarefa, sem arredar o Pé do palco. Por qué? Ora,
na Vida cotidiana (tenho relatos de alunos pobres imensamen- porque antecipam a apresentaqäo de sua arte, a satisfaqäo do
te motivados em se alfabetizar para ajudar os pais analfabe- trabalho bem feito, etc. Estäo genuinamente interessados no

20 21
o que, alegremente, podem consumir "aqui e agora", estaremos
que fazem. Outro exemplo, num plano diferente: alguns alu-
na verdade passando a seguinte mensagem: "Näo vamos levå-
nos podem permanecer atentos ås aulas de primeiros socor-
los ao lado de lå da fronteira, mas trazer o que se encontra da-
ros, näo porque as julguem especialmente instigantes ou pra-
zerosas, mas porque correspondem å instrumentalizaqäo de Näo precisam fazer esforqo para cami-
quele lado até vocés.
näo precisam sair do lugar: o mundo vem até vocés".A
nhar,
um valor moral que eles possuem (a solidariedade) e que, por-
desenvolven Ültimo exemplo entre tantos
tanto, lhes interessa
montanha irå até Maomé. Mas a que preqo! A montanha vira
que poderiam ser dados: vemos alunos genuinamente interes- colina.A cultura se infantiliza. O grande fica pequeno. E o pre-
sados em matemåtica (portanto, curiosos em relacäo a esse ti- €0, mais caro: a crianqa é desestimulada a erguer-se acima de
sua condiqäo infantil. Se todos os adultos engatinham å sua
po de conhecimento) passarem horas realizando maqantes
exercicios (que näo os empolgam) porque antecipam a possi- frente, para que ela precisa andar?
bilidade de, com eles, atingir niveis mais altos da compreen- Acredito que os conselhos de Alain säo corretos e coeren-

säo matemåtica. tes com os saberes contemporåneos da psicologia, notadamen-


Resumindo, assim como "interesse- näo é si- te os de origem piagetiana. O interesse em geral e a curiosi-
nönimo de curiosidade, também näo é de "prazer dade em particular säo coisas preciosas demais para serem
Se todos os imediato-. Dai a expressäo de Alain: -primeiro, é confundidas com prazer imediato ou motivaqäo lüdica.A curio-
adultos preciso saber entediar-se-, que näo deve ser in- sidade move, o interesse antecipa, mas a diversäo repousa.
engatinham terpretada como elogio ao desprazer, mas como Penar sobre trés linhas de Fernando Pessoa é mais rico que se
å suafrente, alerta de bom senso: os genuinos interesses re- divertir com um almanaque inteiro de Walt Disney. E a maio-

para que ela presentam, na verdade, projetos mais ou menos ria das crianqas estå disposta a esse esforqo: basta que asso-

precisa andar? complexos de Vida e, para alcanqå-los, os cami- ciemos esse trabalho, näo ao desprazer, mas ao crescer. É por
nhos nem sempre säo agradåveis. Voltemos ao essa razäo que os alunoscostumam elogiar os professores que
exemplo da curiosidade: O que é curiosidade se dåo aulas "puxadas". Reclamam da dificuldade, mas reconhe-
näo a consciéncia de näo saber, a consciéncia do limite que se cem seu valor. Aliås, a metåfora -puxar- é perfeita para nosso
quer transpor? E o que säo as diversas formas de interesse se tema: significa, justamente, levar alguém para além de onde
näo a consciéncia de estar do lado de cå de uma fronteira que estå. O bom professor (também vale para os pais) -puxa" seus
se quer atravessar? Portanto, despertar a curiosidade nos alu- alunos, levando-os além de seus desejos momentåneos e de
nos significa dizer-lhes: "Hå coisas que vocés podem saber e seus conhecimentos ainda lacunares.
que ainda näo sabem; hå um mundo de tesouros ali na frente, Podemos fazer uma anålise semelhante a respeito da "apren-
e vocéspodem ir até lå pegå-los, mas, para isso, devem, antes, dizagem significativa". Como vimos, Alain preconiza que de-
aprender tais e tais coisas". O mesmo é vålido para toda e qual- vemos "aprender primeiro e em seguida abrir os tesouros-.
quer forma de interesse. "Vocé quer se alfabetizar para ajudar Novamente, reconhecemos aqui uma pråtica bem ao sabor do
seus pais? Ötimo. Entäo, vamos caminhar-. E o aluno interes- ensino dito tradicional: por exemplo, memorizar poemas e
sado näo pouparå esforcos e saberå se entediar se for preciso. apresentar as razöes pelas quais eles säo •bonitos", em sala de
IYansporå seus limites. aula. E criticas foram feitas a essa estratégia didåtica: os alunos
Mas se. em vez de apontar para futuras conquistas, pergun- näo entendem nada e, portanto, näo aprendem nada. O corre-
tamos aos nossos alunos o que lhes då mais prazer imediato, to seria ensinar o que as crianqas podem compreender e, mais

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ainda, partir do que as crianqas jå sabem! Reconhecemos aqui plexas. E tais estruturas säo construidas a partir das anterio-'
um ponto forte das perspectivas educacionais ditas construti- res. Trata-se, portanto, de um processo continuo. Dai a decor-
que se inspiram na teoria piagetiana.
vistas, réncia pedagogica å qual nos referimos: deve-se respeitar a
Para refletirmos sobre o tema, voltemos rapidamente ao capacidade de compreensäo do aluno e, para fazer com que
pensamento piagetiano a esse respeito. ela aumente, deve-se partir do que ele jå é capaz de conceber
Para Piaget, conhecer é assimilar, e a capacidade de assimi- Piaget contra Alain? Alain talvez dissesse que pouco impor-
laqäo depende de estruturas mentais por meio das quais cada ta se nossa menina nada entendeu das aulas de astronomia; o
um confere sentido ao que vé e escuta. Dou um exemplo que importante é que ela entrou em contato com algo misterioso
me foi contado por uma mäe. Sua filha, de uns 8 anos, chegou (uma concepqäo inédita, para ela, da forma e do lugar dos pla-
em casa dizendo: "Na prova perguntaram se a Terra era redon- netas e astros) que a motivarå a abandonar suas crendices in-
da e se girava em torno do Sol. Respondi que sim, mas näo fantis. Piaget talvez retrucasse que tal antecipaqäo sobre as reais
acredito em nada disso!". Tal depoimento é bem coerente com capacidades de assimilacäo, ao invés de instigar a curiosidade,
a idade da menina: ela jå compreendeu as regras do jogo es- a estanca, a humilha até, porque nega a possibilidade de a crian-
colar (dar a resposta certa é condiqäo de sobrevivéncia) e é ca- qa participar da construcäo desse novo conhecimento.
paz de memorizar informaqöes transmitidas verbalmente (a Radicalizei de prop6sito as hipotéticas posiqöes de nossos
Terra é redonda e gira em torno do Sol), mas ainda näo é ca- dois autores. É bem possivel que näo dessem prova de tanto
paz de entender o real sentido dessas informaqöes. Dai ela di- "integrismo", mas cada um certamente näo abriria mäo de um
zer que näo acredita no que lhe ensinaram: para ela, a Terra ponto: a apresentaqäo da "teoria certa", para Alain, e a neces-
permanece plana, e é o Sol que gira em torno dela. Digo que sidade pedagogica de fazer com que tal teoria faca um mini-
tal "descrenqa- no discurso cientifico é coerente com sua ida- jno sentido, para Piaget. Dito de outra maneira: para Alain, na-
de pelo simples motivo de que, para realmente conceber uma da de dizer å crianqa que sua teoria egocéntrica é vålida; para
Terra redonda e caminhando em volta do Sol, é preciso ser ca- Piaget, nada de deixar a crianqa com um conhecimento pura-
paz de colocar-se de um ponto de vista totalmente hipotético, tnente verbal e sem significado.
tipico do pensamento que é construido por volta dos 12 anos Acredito que esses dois "pontos de honra" podem e devem
de idade (apenas astronautas podem, visualmente, certificar- (onviver. Quando se fala em "aprendizagem significativa", es-
se de que a Terra é redonda; quanto å sua trajetåria em rela- tao implicitos dois pontos teöricos da psicologia. O primeiro: a
qäo ao Sol, o convencimento se då matematicamente: ninguém ianq•a conströi hip6teses sobre o mundo fisico e social que a
a vé). Em resumo, essa aluna ainda näo pode apreender o real yodeia. Um belo e antigo livro de Piaget, La représentation du
sentido das informaqöes escolares que lhe passaram. Na ter- tnonde chez l'enfant (A representaqäo do mundo na crianca),
minologia de Alain, ela aprendeu, mais ainda näo é capaz de foi inteiramente dedicado å investigaqäo dessas idéias espon-
usufruir os tesouros astronömicos escondidos nas frases que tåneas a respeito de temas como a origem dos nomes, o con-
decorou. Na terminologia piagetiana: ela estå centrada, isto é, (cito de Vida e de consciéncia, a intencionalidade, etc. (Piaget,

ainda incapaz de ver o mundo de outros pontos de vista que 947). Recentemente, pesquisa semelhante foi realizada para
näo sejam o da sua experiéncia cotidiana. Ora, o que é desen- e'.tudar a génese da alfabetizaqäo. Ambas as pesquisas verifi-
volver-se e aprender? É justamente se descentrar, abrir hori- claramente que as crianqas, longe de permanecerem
zontes, construir novas estruturas mentais, mais ricas e com- desinteressadas pelo mundo em que vivem, ou se contenta-

24 25
rem em aceitar os discursos adultos sobre ele, criam suas pr6-
dificarå sua maneira de pensar apenas em funqäo da apresen-
taqåo do modelo correto ou da teoria correta. O que freqüen-
prias concepqöes, cujas caracteristicas dependem, naturalmen-
temente acontece é que, sem saber, o aluno acaba por mistu-
te, de seu estågio de desenvolvimento. Desprezar tal fato é um
rar idéias suas com aquelas apresentadas em sala de aula, num
grande erro pedag6gico, pois equivale a matar no ovo as pri-
sincretismo indesejåvel; ou entäo, como no exemplo jå citado,
meiras capacidades de construir conhecimento. Portanto, em
a crianqa se recusa a aderir ao novo modelo porque näo faz
vez de serem vistos como adversårios do conhecimento cien-
sentido para ela: responde corretamente na prova, mas -näo
tifico, os saberes ingénuos da crianqa säo seu melhor aliado.
acredita" naquilo que escreve.
Uma critica central ao ensino tradicional incidiu justamente
nesse ponto: vocés desprezam, ignoram, as idéias que as crian-
Em resumo, a busca da aprendizagem significativa é corre-
ta: nåo trocamos de concepqöes de mundo como trocamos de
gas espontaneamente fazem do mundo, e assim näo somente
camisa; é preciso que cada passo de nossa evoluqäo seja pre-
as humilham, passando-lhes a idéia de que säo pensadores in-
nhe de sentido. Daf a freqüente catåstrofe do ensino mera-
competentes, como violentam o processo natural de aprendi-
rnente verbal: memorizamos a resposta "certa- sem saber por
zagem, que se traduz pela "re-significaqäo" de idéias anterio-
que é certa; repetimos muito e nada sabemos, como escrevia
res, e näo pela mera substituiqäo de umas por outras. É o
Rousseau.
segundo ponto, que merece ser um pouco mais explicitado.
Entåo a professora näo deveria ter dito å menina que a Terra
Muitos professores fazem a seguinte (e boa) reflexäo: em-
é redonda e que se move em torno do Sol? Entäo näo se deve
bora seja inegåvel que, ao construir suas hip6teses sobre o
colocar a crianqa em contato com as formas corretas de escri-
mundo, a crianqa då mostras de atividade e criatividade, näo
to, com a norma culta? Entäo näo se deve faze-la ler os gran-
deixa de ser verdade que tais hip6teses säo em geral erradas;
des autores porque fazem pouco sentido para ela? Entäo de-
ora, que valor real podem ter idéias erradas? É portanto ne-
vernos preservå-la das verdades e obras do mundo adulto?
cessårio que abandonem suas concepqöes ingénuas e as subs-
Alain estå errado? Responder afirmativamente a essas per-
tituam pelo conhecimento correto. Se uma crianqa pensa que
guntas equivaleria a desestimular a crianca a transpor limites!
a sflaba sempre equivale a uma letra so, devo informå-la de
De fato, uma coisa é dizer ao aluno de 8 anos que a Terra é
que estå errada. Vale perguntar. além de ser um indicio da ida-
de mental da crianqa, que valor tém esses conhecimentos
redonda, outra é cobrar essa informaqäo na prova. Em outras
palavras: uma coisa é apresentar uma teoria verbalmente, ou-
espontåneos?
tra é acreditar que tal apresentacäo é suficiente e que a res-
A resposta encontra-se no processo de construqäo do co-
posta memorizada corretamente é prova de legitima aprendi-
nhecimento: ele näo ocorre pela simples substituiqäo de um
zagern. O melhor a fazer é dizer å crianqa: "Vocé talvez näo faca
conhecimento por outro, mas pela superacäo de um conheci-
idéia. mas este mundo em que vivemos é um planeta redondo,
mento inferior por um superior. Decorréncia: respeitar os co-
e se vocé olhar um mapa-mündi, verå que parecemos estar de
nhecimentos espontåneos das crianqas näo significa ratificå-
(d beca para baixo. Vocé talvez também näo saiba, mas esse Sol
10s, mas saber em que nivel de construqäo elas se encontram
que vemos mover-se no céu na verdade näo gira em torno da
para, dai, levå-las a conhecimentos mais complexos e s61idos.
•rerra, mas é ela que gira em torno dele. Mas para vocé se con-
Abstrair o que a crianqa jå sabe ou acredita saber, além de hu-
vencer disto, vamos pensar em alguns fatos. Por exemplo, por
milhar seus esforqos, é tomar um caminho pedag6gico errado,
que vocé acha que um navio desaparece no horizonte, pare-
pois significa pensar que, sem mais nem menos, a crianqa mo-

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cendo que, pouco a pouco, 'afunda' no mar?". E assim por dian- tniraqåo que essas pessoas tiveram durante a infåncia e ado-
te.As aulas partiräo do que a crianqa jå sabe ou pensa que sabe jey.(+ncia por algum modelo que, para elas, representava ri-

mas iräo muito além, numa direcäo jå acenada pelo professor, queza e ao qual queriam se igualar. Näo foi pelo encanto por
cujo papel é, como de qualquer adulto em relacäo å crianqa, quay, proprias garatujas que Picasso chegou aonde chegou, mas
de um guia. Näo se trata, portanto, de referendar como bons e pelo fascinio que os belos quadros de seus predecessores des-
acabados os conhecimentos infantis, mas de reconhecer que pertaram nele. Näo foi pelo encanto por suas primeiras can-
eles existem e tém influéncia sobre os processos de aprendi- que Lennon e McCartney acabaram por compor as belas
zagem. Porém, a apresentacäo dos modelos corretos, das teo- jiiå"icas dos Beatles, mas porque procuraram imitar as com-

rias certas, é necessåria, näo na vä esperanqa de que o simples de seus idolos. CaetanoVeloso admirava Joäo Gilberto,
contatocom eles bastarå para promover a aprendizagem, mas Chico Buarque admirava Jobim e este admirava Vila-Lobos. E
porque däo rumo ao estudo e ao crescimento. nao foi pelo encantamento com suas primeiras idéias que um
O grande erro é passar å crianqa a idéia de que suas teorias l'iaget chegou a construir sua extensa teoria, mas lendo e re-
espontåneas tém tanto valor quanto as teorias cientificas, que tendo grandes autores. E assim por diante.
suas formas de falar tém tanta beleza e estilo quanto as for- resumo, partir dos conhecimentos espontåneos dos alu-
mas literårias, que suas maneiras de pensar o mundo tém tan- nos. sim; procurar fazer com que cada passo da aprendizagem
ta forga e competéncia quanto as formas mais elaboradas da seja significativo, sim; porém, deduzir dessa pedagogia que se
cultura.Por exemplo, fazer as crianqas realizarem experimen- deve esconder o mundo adulto das crianqas, preservå-las de
tos empiricos com objetos diversos näo equivale a deixå-las sua (omplexidade ou deixar a cultura tal como ela é do lado de
fazer o que querem e levantarem as hip6teses mais fantasio- toro da sala de aula, näo. Fazé-lo equivaleria a reforqar os li-

sas a respeito do que véem. É preciso mostrar-lhes o método que as separam deste mundo, em vez de encorajå-las a
correto, apontar-lhes as contradiqöes, numa palavra, colocå- aventurar-se para além deles. E o resultado pode ser lastimå-
las em contato com outra forma de pensar que näo é a que em- vel em vårios niveis.
pregam espontaneamente. É nesse embate entre o mundo in- No åmbito cognitivo em primeiro lugar: longe de estimular
fantil e o mundo adulto que a crianqa cresce, ultrapassa suas dewentraqäo, tais pråticas reforgam o egocentrismo.
fronteiras. No åmbito dos conhecimentos em segundo lugar: acaba-se
que ås vezes se vé na educaqäo é justamen-
Infelizmente, o passar uma concepcäo relativista das coisas. Qualquer idéia
te o contrårio. Alegando ter o cuidado de respeitar a inteligén- ia vålida. todas as formas estéticas seriam equivalentes, etc.

cia infantil, alguns educadores procedem a uma verdadeira No ambito da construcäo da personalidade em terceiro lu-
"sonegacäo de informaqäo", a uma sacralizaqäo dos erros, a acaba-se por reforqar outra forma de egocentrismo infan-
uma proibiqäo quase religiosa da apresentaqäo de modelos. til que se traduz na concepqäo de que cada pessoa é
e juvenil,
Todavia, nada no construtivismo piagetiano autoriza tais con- o (entro do universo. Um triste exemplo disso é uma certa con-
cepqöes. E Alain tem razäo: é em contato com o certo, o belo, o de ensino de historia e geografia que reza que se deve
complexo, que se acaba por atingir esses valores, esses niveis, ( otnesar pela historia e geografia pessoais do aluno. De fato,

näo por mera c6pia ou introjeqäo, é claro, mas por ere-cons- primeiras idéias de tempo e espaqo säo concebidas, em par-
truqäo". Aliås, as biografias de pessoas que chegaram longe a partir de experiéncias pessoais. Mas näo apenas a partir
säo uma prova disso. Todas as que li contam o encanto e a ad- (ieias: tarnbém a partir de contos, de lendas, de fåbulas, de his-

28 29
tårias variadas que, freqüentemente aliås, atraem mais as nivel presente de compreensäo da crianqa, å
crianqas do que a saga de seus av6s ou caracteristicas de seu
his,t6ria e å sua geografia pessoais. É um Algumas criancas
bairro. Portanto, se éverdade que experiéncias pessoais de vi- jaro exemplo do que jå descrevi como levar encontram
da säo um bom "comeqo de conversa", näo säo os ünicos co- a € ultura å crianqa, e näo a crianqa å cultura.
dentro de si
meqos e, sobretudo, säo apenas comeqos. Todavia, o que ås ve- naturalmente, ao ser aprisionada dentro dos
a forca para
zes se verifica é que o resultado dessa opqäo pedagogica é um limites da crianqa, essa cultura é traida, des-
seguir a Sina que
total descaso dos jovens pela hist6ria, total desinteresse por figurada. infantilizada. Em uma palavra, é
é a sua: crescer.
lugares que näo possam freqüentar, total ignoråncia de tudo rnorta. E. em vez de ser um convite å crianqa
que näo gire em torno da sua Vida. Em suma, eles tém limites para que transponha limites, isso é um refor-
demais! Comeqam e acabam de estudar historia e geografia para que permaneqa "no seu mundo"1.Aliås, que mundo é
circunscritos ås suas experiéncias intimas e aos diåmetros que esse? Em sintonia com o que estamos desenvolvendo aqui,
seus pés ou carros podem percorrer. I j annah Arendt escreveu que
Note-se que näo se trata apenas de uma deficiéncia pedago- I com o pretexto de respeitar a independéncia da crianqa. excluimo-la
I

gica localizada: toda a nossa cultura leva, hoje, a tais centraqöes. do mundo dos adultos para manté-la artificialmente no dela, se é que po-
Limito-me a um exemplo, relacionado ås müsicas reserva- de ser chamado de mundo. Essa maneira de manter a crianqa afastada é
at titicial. porque quebra as relacöes naturais entre crianqas e adultos, re-
das ao püblico infantil. Hå pouco tempo, ouvi uma clåssica e
l.•våes estas que. entre outras coisas, consistem em ensinar e aprender, e
conhecida cancäo francesa intitulada "Frere Jacques", cantada potque vai contra o fato de que a crianqa é um ser em plena formaqäo e a
em portugués com uma letra radicalmente diferente da origi- infånoa é apenas um fase transit6ria. uma preparaqäo para a idade adul-
nal .com pretensöes pseudopedagågicas, interpretada por uma (1972. p. 236).

apresentadora desses programas infantis da TV). Ora, pergun- Reencontramos aqui, em um autor de inspiraqäo filosåfica
to:por que näo ensinar essa müsica com a letra original? Aliås, diferente, a tese central de Alain, que é também a nossa.
é assim que, antigamente, as crianqas brasileiras a decoravam. Como apontei anteriormente, essa exclusäo da crianqa do
A resposta deve ser, para muitos: ora, porque näo entenderiam tnundo adulto e essa tendéncia a adaptar a cultura ås capaci-
Mas devolvo a pergunta com outras: 1) É melhor apren-
a letra! (indes ainda precårias de entendimento näo säo apenas fruto
der uma letra malfeita, mas que se compreende (digo malfeita de opcöes pedagogicas, mas espelho de nossa sociedade.
sobretudo porque a letra original é harmoniosa com a melo- Certamente, näo é nada fåcil convencer boa parte dos adultos
dia. uma fuga que lembra o badalar de sinos "Frere Jacques" de que devemos estimular a crianqa a transpor os limites se.
anuncia as matinas)? Existe algum problema em colocar a Oley, mesmos, os preferem permanecer do lado de cå
adultos,
crianqa em contato com outro idioma, em fazé-la procurar sa- de seus pr6prios limites ou säo obrigados a isso em razäo da
ber qual é o sentido das palavras? Näo serå mais rico para a pobreza material em que vivem; se, para eles, a cultura se res-
crianqa apoderar-se de uma canqäo clåssica e mundialmente 0 inge å diversäo, a seus respectivos grupos ou cläs ou suas
conhecida do que pensar que se trata de mais um hit especial-
mente criado para ela? As respostas a essas perguntas säo, pa-
Nao sou contra que se facam müsicas especiais para as crianqas (aliås. "Frere
ra mim, täo 6bvias que nem merecem maiores explicacöes. O uma delas). mas entäo que se componham boas cangöes, com letras
ques- é
que se faz, ao adaptar uma canqäo dessas, é justamente pren- lite' atiatnente decentes e harmonia e melodias simples, mas trabalhadas, as-

der a crianqa dentro dos seus limites: a canqäo francesa, que orno o faz um Hélio Zinskind e outros compositores do Castelo Rå-Tim-
flum (programa da TV Cultura do Estado de Säo Paulo), ou como fez um Dorival
vem de longe, de outros tempos e outros lugares, é reduzida ao C aytntni corn sua Acalanto. Enfim, müsicas de verdade.

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idiossincrasias pessoais. Como escreveu Sennett, hoje em dia Corno escreveram Alain e Arendt, a infåncia é por natureza
existe um exacerbado predomfnio da Vida privada sobre a vi- fase marcada pela transitoriedade, portanto, pelo cami-
da püblica, uma verdadeira "tirania da intimidade" e, por con- iihar em direcäo ao estado adulto. Tal caminho implica um in-
seguinte, näo mais existe "[...l o equilfbrio entre a Vida priva- transpor limites, justamente aqueles que, a cada fa-
da e a Vida püblica, entre a Vida pessoal e a Vida impessoal, "e,"eparam a crianqa das capacidades adultas. Como o ser
que constitufam dois dominios nos quais os homens podiam hutnano é um ser social, a educaqäo é condiqäo sine qua non
investir, de forma muito diferente, suas paixöes" (Sennett, 1979, crescimento: ela deve ajudar a crianqa a identificar os
p. 274). Esse diagn6stico é preciso para uma certa classe mé- iitnites. motivå-la e intrumentalizå-la para superå-los. As re-
dia: muitos de seus membros vivem asfixiados em seus peque- nov,iØes pedagogicas podem ser de grande auxilio para essa
nos mundos, ancorados a suas personalidades, que conside- etnpreitada educativa. Ao procurar adequar o ensino aos inte-
ram unicas e imutåveis, amarrados å televisäo, atolados na dos alunos, buscam o impulso motiva-
ignoråncia ou na informaqäo superficial, ouvindo sempre as ionol que ajuda a fazer projetos e crescer; ao Procurar
mesmas müsicas, vendo sempre os mesmos atores de novela, rar uma
aprendizagem significativa, res- a exceléncia
enfim, encurralados dentro de seus limites e de seu -eterno ju•itam a inteligéncia da crianqa e a ajudam nada mais é senäo
presente-, segundo a expressäo do historiador Eric Hobsbawm. n.' paulatina construqäo do conhecimento.
procurar ir além
Näo nos admiremos, entäo, de que nunca pensem que hå limi- 'l'odavia. quando restringem o interesse å me-
de si mesmo,
tes a serem transpostos, fronteiras a serem ultrapassadas, e motivaqäo passageira, ao aprender brin-
tornar-se melhor
que passem a seus filhos e alunos que o "aqui e agora" é o me- ( ando. ao assistir a aulas agradåveis, ao invés
("dirnular a crianca a se desenvolver, refe-
do que se é.
lhor dos mundos ou o ünico possivel. Para os pobres, o cenå-
rio acaba sendo parecido, mas em razäo da constante privaqäo endam suas motivaqöes mais primitivas; e
de cultura å qual säo submetidos e å qual o ensino de péssi- quando confundem aprendizagem significativa, que se traduz
ma qualidade acaba submetendo seus filhos, roubando-lhes a no compreensäo correta de parte do conhecimento, com in-
oportunidade de alqarem vöos maiores. Felizmente, algumas ntilizaqäo e conseqüente desfiguraqäo dos conteüdos, em vez
crianqas encontram dentro de si a forga para seguir a Sina que de promover a construcäo do saber, reforqam o egocentrismo
é a sua: crescer, além e até renovar o mundo com sua criati-
ir os horizontes dos alunos, que passam a pensar
vidade. Foi o caso do escritor russo Måximo G6rki que, ainda que seu "mundo- infantil ou adolescente é o centro do univer-
crianqa, lia inümeros livros para escapar de um ambiente fa- no. Finalmente, notamos que tais restriqöes de horizonte näo
miliar pobre, inculto e violento. No refügio de seu quarto, lia jnovérn essencialmente de uma falha pedagågica, mas säo re-
tudo o que lhe caia nas mäos, e, desse contato com um mundo flexo de uma sociedade ela mesma asfixiada por inümeros li-
maior trazido pelos autores e personagens, transpös os limi- iiiites e desestimulada a transpö-los.
tes dentro dos quais pretendiam manté-lo e tornou-se um gran- Agora, espero que faca pleno sentido a expressäo que usei
de e importante escritor i" una: devemos aproximar a crianca da cultura, e näo o contrå-
10. O adulto näo deve engatinhar, pois é a crianqa que deve
ou fazem de con-
andar. Mas, se todos å sua volta engatinham,
ta que engatinham, que motivo terå ela para se levantar? Se
Fecho essa primeira parte de minha exposiqäo sobre limi-
todos se comprazem na mesmice e na mediocridade, que esti-
tes, concebidos como fronteiras a serem transpostas, resumin-
jnulo terå ela para procurar a exceléncia?
do rapidamente as principais idéias apresentadas.

32 33
Exceléncia que claramente comprovada, näo pode ser um critério de
Acabamos de falar em exceléncia.•É esse nosso pr6ximo te- detenvio do poder, nem uma justificativa para distribuiqäo de
ma, ainda no entendimento de limites como fronteiras a se- ivilögios. Assim, privilegiar supostos superdotados é atentar
rem transpostas. De fato, procurar a exceléncia nada mais é a a (idadania, é restringir um direito universal.
senäo procurar ir além de si mesmo, tornar-se melhor do que liengo maior ainda é pretenderem nos fazer crer que, de
se é. Digo ser melhor do que se é, näo necessariamente ser me- alguns säo dotados de exceléncia e outros näo, seja
lhor do que o outro. A exceléncia implica competiqäo, mas uma que possuem um certo potencial genético, seja porque per-
competiqäo de alguém consigo mesmo. eni a uma determinada raga, determinado sexo ou deter-

Verificamos que o conceito de exceléncia nos coloca um te- lasse social.Se pensarmos bem, tal visäo elitista da
ma um pouco diferente daquele que acabamos de analisar. ied.ule nada tem a ver com o conceito de exceléncia; muito
Vimos o transpor limites como crescimento, como mültiplas ontr.irto. é um pensamento mediocre, pois, sem maiores
passagens da infåncia para a idade adulta. Tal superaqäo de iOS e esforqos, decreta que a exceléncia se encontra aqui
limites significa, essencialmente, tornar-se mais maduro. O ali Sornente pessoas mediocres precisam pensar que säo,
conceito de exceléncia näo se restringe å questäo da maturi- tori. dotddas de poderes vindos näo se sabe de onde.As
dade (embora a pressuponha), mas situa-se na esfera do -me- venladejrarnente procuram a exceléncia säo, por definiqäo,
lhor", do ideal, da perfeicäo. A crianqa pode querer ser exce- uma vez que se consideram imperfeitas. Portanto,
lente no que faz, näo como um adulto faria, mas, sim, da melhor a exceléncia Sö é pecar por falta de humildade quan-
forma possivel para a sua idade. Portanto, a busca da excelén- (onsiderada um dom (vindo de Deus, da raga, da clas-
ciapode nos acompanhar a Vida toda e é a clara traducäo de 8.11, etc); valorizå-la e procurå-la é, justamente, mostrar-

uma procura eterna de superaqäo de limites. Digo eterna por- h u jnilde.

que, sendo um ideal, a exceléncia nunca é realmente atingida: An interpretaqöes elitistas e pretensiosas que rondam o con-
sempre se pode fazer melhor de exceléncia tornaram-no, como vimos, suspeito para
A exceléncia é uma qualidade prezada por todas as cultu- •rodavia. näo acredito que a sociedade possa negligen-
ras, em todo lugar e em todos os tempos. Os homens parecem ideal. Ralf Dahrendorf, importante intelectual euro-
sentir a necessidade de ter admiraqäo por obras e pessoas, e, 'eveu recentemente que, "[...l eliminando-se a exce-
assim, exemplos de exceléncia representam alimentos essen- o que se conseguirå é näo apenas a mediocridade
ciais. Paradoxalmente, o conceito de exceléncia aparece, ås ve- alizada. mas, o que é pior, uma mediocridade complacen-
zes, como suspeito, seja de elitismo, seja de falta de humildade. • ( i 997, p. Veemente defensor da democracia e da au-
Ouvi, certa vez, o dono de uma grande universidade parti- privilégios, Dahrendorf sabe que o conceito de ex-
cular paulista afirmar que um ensino de qualidade era essen- ia pode ser manipulado por fascistas de toda espécie.
Cial para formar a elite cientifica e politica do Brasil, dai seu in- M assim. propöe em seu texto uma indagaqäo Por
teresse em trabalhar com crianqas superdotadas: investir nelas exqeléncia é importante? que é respondida no ülti-
de forma prioritåria era, para ele, missäo da educaqäo. Senti ,iy.hlfo: "A exceléncia contribui para manter as socieda-
certo mal-estar ao ouvir esse discurso, e logo identifiquei a ra- e capazes de mudanqas. Ela fornece inovacöes e
zäo desse desconforto: era uma ameaqa å democracia, um ata- padröes. Ampliando o espectro de opcöes e oferecen-
que ao conceito politico e ético de igualdade. A exceléncia, mes- de direcüo, ela contribui para o enriquecimento das

34
oportunidades da Vida de todos- [grifos nossosl (Dahrendorf, eu substituiria apenas a expressäo "lei fundamental"
1997, p. 109). Ou seja, ela é importante para transpor limites, "uma das leis fundamentais".
ela mesma é um "ir além-. ( ) leitor talvez esteja espantado com a tese adleriana e pen-

Agora, deixemos o lado social da exceléncia para enfocar o nondo que tem pouca sustentaqäo nos fatos: a mediocridade
seu lado individual, pessoal. Acredito que, também nesse nivel, ser mais generosamente distribuida que a exceléncia.

ela é importante, pois, retomando as palavras de Dahrendorf, 0m, peco que continue dando algum crédito a Adler. Para
é preciso fazer alguns esclarecimentos complementares.
amplia o espectro de opqöes e oferece um senso de direqäo.
O primeiro se refere ao conceito de exce-
No caso da moralidade, essa direcäo aponta para o valor da Ao passar uma
in, que nåo deve aqui ser interpretado com
dignidade.
éncia ao que a cultura considera exem- imagem artificial
Alfred Adler, psicanalista, amigo e posteriormente desafeto
rnais um gol de Pelé, uma
elevados dela: da exceléncia, o
de Freud, escrevendo a respeito de sua teoria "psicologia indi-
de Chico Buarque, um quadro de excesso de mimo
vidual", afirma que ela Leonardo da Vinci, um romance de Proust, falha em
1...1 permanece no terreno sölido da evoluqäo e. å luz dessa evoluqäo. vé de Einstein. É provåvel que mui-
teoria instrumentalizar a
em todo esforqo humano uma busca da perfeiqäo. Para nosso entendimen- "onhern secretamente tornar-se um des-
crianca para alcar
to, cada manifestaqäo psiquica se apresenta como um movimento que leva expoentes de nossa civilizaqäo, mas näo
vöos maiores.
de uma situacäo inferior para uma situacåo superior. [...J Em comparaqäo ai o essencial. O essencial estå na busca
constante com a perfeiqäo ideal irrealizåvel. o individuo estå constante-
"uperaqåo de si pr6prio, em -caminhar de uma situaqäo in-
mente com um sentimento de inferioridade e estimulado por ele [grifos
i/ para uma situacäo superior", como escreve Adler. Assim,
nossosl (Adler, 1938, p. 30).
elöncia deve ser entendida como um ideal que move, e
Para Adler, tal busca de superaqäo de si mesmo, de expan- nao um determinado nfvel a ser atingido a qualquer cus-
säo do eu, é a razäo primeira do crescer e do viver humanos. l).ii a referéncia de Adler ao sentimento de inferioridade, que
Essa reduqäo do porvir individual a um fator central é tfpica nao deve ser necessariamente interpretado como auséncia de
das teorias psic016gicas criadas na primeira metade de nosso ("ittrna (pode sé-lo, como veremos logo abaixo), mas co-
estipnulo para crescer e viven
século. Verificamo-la em outros autores: a libido para Freud, o
condicionamento para Skinner, a equilibracäo para Piaget.
O segundo esclarecimento se refere ås diferenqas indivi-
Algumas pessoas podem ser mais exigentes a respeito
811/0 is.
Hoje, tende-se a admitir que näo hå apenas uma chave para o
lie "i proprias que outras. Em linguagem freudiana, podem ter
entendimento do ser humano, mas vårias. Portanto, devemos
"ideal de ego" mais ambicioso. Todavia, ambicioso ou näo,
abrandar um pouco a tese de Adler que coloca a busca da ex-
um tem um ideal de ego que då um rumo para a Vida, pa-
celéncia ou perfeiqäo como ünico motor do desenvolvimento
condutas. É Obvio que as diferencas individuais também
e do agir. Mas abrandar näo significa negar ou abandonar. Creio n iem dizer respeito aos conteüdos: enquanto uma pessoa po-
que a teoria adleriana é uma teoria forte e que seu diagnosti- investir sua busca de superaqäo de limites no esporte, ou-
co é correto: "A lei fundamental da Vida é o triunfo sobre as di- o farå no estudo, outra na qualidade de suas relaqöes so-
ficuldades. A ela estäo submetidos o instinto de conservaqäo, etc.

o equilibrio fisico e psiquico, o desenvolvimento somåtico e ( ) terceiro e mais importante esclarecimento diz respeito ås
psicolågico e a tendéncia å 1938, p. 55). Desta concretas que cada um tem de traduzir em su-

36 37
cesso a tendéncia descrita por Adler E, aqui, reencontramos o acassos e da legitimidade dos juizos alheios, com conse-
tema da educaqäo. Assim como vimos que a tendéncia natural qiiente numa Vida fantasiosa.
mergulho
da crianqa a se tornar adulta pode ser ajudada ou dificultada ( ) terna mimo deve levar-nos a dimensionar
do excesso de
pela influéncia dos adultos e da sociedade como um todo, tam- lequadarnente esse conceito muito em moda que é, justamen-
bém a busca da exceléncia pode encontrar, nas interacöes so- t l', a auto-estima. Inümeros livros de "auto-ajuda- batem in-
ciais, terreno ou näo. Aliås, toda a teoria adleriana sobre
fértil ensantemente nessa tecla na educaqäo, também se verifica
e,

patologias psiquicas gira em torno desse feliz ou infeliz en- preocupacäo nesse sentido. Ora, se näo hå düvida de que
contro. Vamos aprofundar um pouco esse tema. auto-estima positiva é forte componente de felicidade e
Escreve Adler: "As crianqas mimadas sentem-se sempre te tnotivaqäo para condutas construtivas, isso somente é ver-
ameaqadas e em pais inimigo quando se encontram fora do cir- se tal auto-estima näo for artificial ou mero autoconven-
culo onde säo mimadas- (1938, p. 39). Para ele, muitas das neu- espiritual de que -se é born-. Infelizmente, hoje em dia
roses adultas provém de uma infåncia "mimada", no sentido auto estima transformou-se em panacéia. Entretanto, o que
pejorativo do termo. Por qué? Por um motivo bem simples e da vetifjca empiricamente é que algumas pessoas, cujas vidas
maior relevåncia para o tema dos limites. Näo se deve enten- muitos fracassos, possuem mesmo assim uma boa ima-
der o excesso de mimo apenas em termos da generosidade ma- de si quando indagadas sobre seu valor pes-
proprias e,

terial dos pais, mas também como atribuiqäo incondicional de i, nao vacilam em colocå-lo nas estrelas. Quanto aos fracas-
valor. Em outras palavras, o perigo do excesso de mimo tam- 10, atnbuern-nos seja å må sorte, seja å crueldade dos outros.
bém estå em passar å crianqa a idéia de que, a despeito do que ont•rvar a auto-imagem é tendéncia natural de todos n6s,
realmente merece ser o centro das atenqöes, ela é
realiza, ela quando se chega a niveis de sistemåtica negaqäo dos pr0-
6tima, admiråvel, merecedora de elogios, enfim, excelente. Tal limites e da responsabilidade pelos pröprios fracassos, é
atribuiqäo incondicional de valor faz com que a crianqa cons- de que a auto-estima foi artificialmente construida.
A uma auto-estima totalmente artificial e, ao entrar em con-
trua e'icreve o psic610go americano William Damon, "[...l um
tato com pessoas estranhas a seu circulo familiar, em geral pou- 'T'ipeito eståvel näo pode ser construido no våcuo; requer
co inclinadas a elogios gratuitos, venha a sofrer um choque que de relacöes construtivas com pessoas cujos julga-
poderå levå-la até å neurose. Assim, ao invés de levar a crian- se respeita- (1995, p. 79). Reconhecemos nessa citaqäo
qa a superar seu "complexo de inferioridade", o excesso de mi- ito da teoria de Adler. O mesmo psic610go americano nos
mo é uma das mais eficientes formas de reforqar tal complexo, Oiticamente que, um dia, sua filha lhe contou que sua
pois, ao passar uma imagem artificial da exceléncia, falha em havia mandado a classe escrever e decorar frases
instrumentalizar a crianqa para algar vöos maiores. Reforqada • sou genial", "Eu sou 6timo". Tal era a estratégia pe-
no seu narcisismo, a crianqa acaba por considerar-se "6tima- e para fortalecer a auto-estima dos alunos! É fåcil per-
sofre quando outras inståncias sociais lhe colocam exigéncias o perigo da artificialidade dessa pråtica. Equivale ao ex-
reais ou lhe devolvem uma imagem menos complacente. O re- de mimo apontado por Adler. Significa passar å crianca
sultado desse confronto é sempre infeliz: pode traduzir-se nu- de que nåo tem limites a serem transpostos, pois sua ex-
ma profunda desestruturaqäo da personalidade (baixa auto- ia inata é uma garantia de que todos os outros jå ficaram
estima e vergonha crönicas) ou numa perigosa preservaqäo da ou de que os que por ventura venham a aparecer se-
auto-imagem artificialmente construida por meio da negaqäo ao num piscar de olhos.

38 39
Em resumo, o excesso de mimo ou a atribuiqäo artificial e pelos adultos, poderäo gerar sofrimentos psiquicos durante to-
gratuita de auto-estima levam a crianqa em direqäo oposta å da a Vida. E mais ainda: os adultos que sofreram humilhaqöes
exceléncia. Levam-na, na verdade, å mediocridade e, finalmen-
na sua infåncia tenderäo a "descontå-las" nos mais fracos, no-
te, ao sentimento intenso e perene de inferioridade, com re-
tadamente nos filhos. Escreve Miller: "Esse desprezo por esse
sultados deploråveis para seu convivio social. "A guerra, a pe-
ser menor e mais fraco (a crianqa) é a melhor proteqäo contra
na o Odio racial dos povos e também a neurose, o
capital,
a irrupqäo dos proprios sentimentos de impoténcia, é a expres-
alcoolismo, etc. nascem de uma falta de sentimento social e de-
säo da fraqueza- (1983, p. 84). Cria-se, portanto, uma bola de
vem ser compreendidos como complexos de inferioridade"
neve, cujo resultado é esse sentimento de inferioridade que
(Adler, 1938, p. 44). Eis o diagnostico radical oferecido porAdler.
leva å infelicidade.
Creio que merece crédito. Mas näo säo apenas as "criancas mi-
Se os pais ås vezes demonstram desprezo pelos filhos, a es-
madas" que näo conseguem realizar de forma concreta essa
cola näo deixa por menos. Uma famosa pesquisa demonstrou
passagem de uma situaqäo inferior para uma superior. as crian-
que as opiniöes dos professores sobre a qualidade de seus alu-
gas humilhadas também.
nos afetam diretamente seu desempenho. É o que se chama
Enquanto o excesso de mimo significa apagar
Estimular a crianca de -profecia auto-realizadora-: se o aluno é visto pelo profes-
os limites a serem transpostos, passando å crian-
a procurar sor como fraco, tende a se tornar, de fato, um mau aluno. E pior:
qa a idéia de que nada lhe resiste a humilhaqäo
a superacäo, se a crianqa é pequena (até uns 13 anos de idade), tende a ge-
a tentar alcancar significa reforgar esses limites, transformå-los em
neralizar sua suposta impoténcia a todas as åreas de sua per-
o lado de lå altas muralhas intransponiveis. Näo estou cha-
sonalidade (Perron, 1991). Se vai mal na escola, acaba achan-
de seus atuais mando de humilhaqäo apenas as formas mais vio-
do que näo obterå bons resultados em tudo que empreender
limites, a dar ' lentas de aviltamento, mas também as mais "bran-
e fica, temerosamente, paralisada do lado de cå de seus limi-
valor å exceléncia. das", mas nem por isso menos nocivas: diversas
tes. Em compensaqäo, se vai bem, terå a coragem de se sub-
expressöes de desprezo, de zombaria, de descon-
meter a novos desafios, a confianqa de tentar superar seus pr6-
fianca, enfim, as mültiplas maneiras de dizer: "Vocé nunca se-
prios limites.
rå capaz de fazer tais ou tais coisas. Elas sempre seräo dema-
Em resumo, seja pelo excesso de mimo, seja pela humilha-
siadamente dificeis. Contente-se com o que vocé tem, com o
qäo, falhamos em estimular a crianqa a procurar a superaqäo,
que vocé faze. Ou ainda: "A exceléncia näo é para vocé, pois
a tentar alcanqar o lado de lå de seus atuais limites, a dar va-
seus limites säo inatingiveis".
lor å exceléncia; paralisamos o movimento que leva de uma si-
As diversas formas de humilhacäo säo freqüentes no dia-
tuacäo inferior para uma situacäo superior, movimento que,
a-dia e, aliadas ao sentimento de vergonha que desencadeiam,
para Adler e outros, é natural na crianqa, e cuja auséncia leva
acabam por ter efeitos deletérios para a construcäo da perso-
a complexos de inferioridade e å infelicidade.
nalidade. Num livro intitulado O drama da crianca bem-dota- Empregamos vårios argumentos para convencer o leitor de
da, a psicanalista Alice Miller trata justamente da humilhaqäo,
que a teoria de Adler tem valor e que portanto, deve ser obje-
do desprezo a que säo submetidas muitas criancas. O titulo é
tivo da educaqäo (familiar e escolar) estimular essa transposi-
de certa forma adleriano, pois a referéncia å -crianqa bem-do- cäo particular de limites, que é a busca da exceléncia. Mas tal-
tada" é, na verdade, referéncia a todas as criancas: todas elas
vez permaneqa ainda uma düvida: alguns leitores devem estar
tém dons, que, se forem ignorados ou até mesmo massacrados pensando que existem muitas pessoas, aparentemente felizes,

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que näo foram nem excessivamente mimadas nem humilha- pode!". O escritor francés Albert Camus assim escreve a seu
das e que, apesar mostram-se totalmente desinteressa-
disso, professor (primårio) apos receber o cobiqado prémio Nobel:
das em atingir ou mesmo se aproximar da exceléncia. Como "É pelo menos uma ocasiäo para lhe dizer o que vocé sempre
explicar esses casos? foi, e ainda para mim, e para assegurar-lhe que seus esfor-
é,

É Claro que a construcäo de uma personalidade depende de cos, seu trabalho e seu coracäo generoso estäo ainda vivos num

inümeros fatores, alguns notadamente inconscientes. Mas uma de seus pequenos alunos que, apesar da idade, näo deixou de
alternativa de resposta seria simplesmente levantar a hip6- lhe ser grato" (1994,p. 327). Sabe-se, pela autobiografia de

tese de que, durante a infåncia, tais pessoas nunca foram esti- Camus, que esse professor -puxava" seus alunos e era exigen-
muladas a dar o melhor de si mesmas, nunca ou poucas vezes te. Säo pessoas assim que as crianqas precisam encontrar. Elas
conheceram pessoas que agissem dessa maneira, sendo a me- existem. Recentemente, fui assistir å apresentaqäo de um circo-
diocridade o cenårio normal de sua vivéncia. Procurar a ex- escola, no qual meninos e meninas pobres davam saltos mor-
pansäo do eu, a superaqäo das dificuldades, da inferioridade, tais e piruetas, dependuravam-se no trapézio, faziam mågica
é uma tendéncia humana, um potencial que, para tornar-se ou nümeros de palhaqo em nivel quase profissional. Os circos-
realidade, deve encontrar alimento, estfmulo, terreno fértil. O escolas näo costumam dar aulas de mate-

mesmo acontece com a inteligéncia: é tipicamente humana a måtica ou de portugués, nem tampouco tém A moral
vocaqäo profissionalizante. Entäo para que verdadeiramente
capacidade de pensar de forma hipotético-dedutiva, mas sa-
servem? Para ocupar e divertir as crianqas? humana pede
bemos, desde Piaget, que se trata de uma construqäo que de-
Divertir, sem düvida. Mas, muito mais que is- muito mais do
pende da qualidade das interacöes sociais. Portanto, alguém
so, fazer com que crianqas maltratadas pelo que conhecer
que nunca tenha precisado pensar de forma hipotético-dedu- e introjetar um
tiva näo chega a construir as estruturas mentais necessårias a destino e pela maioria de seus contemporå-
certo nümero
tal nivel de pensamento. O mesmo fenömeno ocorre com todas neos adquiram autoconfianqa através de uma
de regras.
as potencialidades. Näo que a busca da ex-
acredito, portanto,
atividade na qual atingem, justamente, um
celéncia seja uma "violéncia- å natureza humana e que a tran-
grau de exceléncia. É so olharmos para os

qüila mediocridade corresponda melhor ås suas aspiraqöes. E


olhos delas para nos convencermos, sem maiores provas em-
pfricas, de que faz sentido o diagnostico de Adler: "É apenas o
tampouco acredito que as pessoas que permanecem pacatas
na mesmice e na economia do menor esforqo sejam felizes. Vé-
sentimento de ter atingido um nivel satisfat6rio na sua ten-
déncia a se elevar que pode trazer aohomem o sentimento da
se que freqüentemente sofrem com sua "humilde" condiqäo,
invejam secretamente aqueles que consideram melhores que
O sentimento
quietude, do valor, da felicidade" (1938, p. 56).
oposto leva ao mal-estar psic016gico que, em geral, se traduz
elas ou, pelo contrårio, compensam seu sentimento de inferio-
numa total auséncia de empatia, ou até em diversas formas de
ridade com a admiraqäo passiva e doentia por certos idolos dos
agressäo ao outro, em diversas manifestaqöes anti-sociais.
quais copiam sem critica os trajes, os costumes e as idéias.
Escreveu o célebre psic610go social John Hebert Mead:
Portanto, volto a afirmar que uma boa educaqäo deve esti-
Podemos ser um bom cirurgiäo ou um bom advogado; podemos estar
mular a crianqa a transpor limites, seja aqueles proprios de
orgulhosos de nossa superioridade,mas trata-se de uma superiorida-
sua idade, para se tornar adulto, seja aqueles de seu desempe- de que empregamos na pråtica. Quando um individuo coloca sua su-
nho, para aperfeiqoå-los e dar o melhor de si. Toda crianqa pre- perioridade a servico da comunidade da qual faz parte, ele perde esse
cisa que um adulto lhe diga, com afeiqäo e sinceridade: "Vocé egoismo proprio daquele que so sabe se gabar- (1963. p. 177).

42 43
E, quase sempre, aquele que sö sabe se gabar é, justamen- estar dos individuos, acaba por atingir o objetivo oposto e servir
te, alguém que sofre da inferioridade que secretamente, reco- de arma para espalhar o desalento e a dor. Dou um exemplo.
nhece em si. Recentemente (em 1996, se näo me engano), em Säo Paulo,
Em suma, aquele que consegue sentir-se, em algum nivel, um motorista matou um guarda com um tiro porque, segundo
perto da exceléncia, aquele que se sente recompensado pela o assassino, este o teria desacatado, ferindo sua honra. O epi-
qualidade de seus feitos, aquele que realmente gosta do tra- s6dio causou consternaqäo e medo: mata-se por täo pouco? Na
balho bem-feito, enfim, aquele que procura superar-se, fazer honra säo freqüentes, fato
realidade, crimes para defender a

melhor, transpor, na medida do possfvel, seus proprios limi- que remonta å Idade Média. Mas eu näo diria que defender a
tes, costuma viver melhor consigo mesmo e com os outros. Seus honra é -pouco", motivo fütil. Pelo contrårio, o sentimento do

atos esposam mais facilmente a moralidade. Aliås, a pr6pria proprio valor, da pr6pria dignidade, é importante: näo hå nada
mais triste e moralmente desolador do que ver alguém deixar-
moralidade näo dispensa a exceléncia; pelo contrårio, quase
sempre a requer. se humilhar passivamente. O problema do epis6dio näo estå,
portanto, na defesa da honra, mas na forma como ela foi feita.

Exceléncia e virtude moral Acho que, em algum lugar, Marilena Chaui escreveu que, ao
lado da ética dos fins, deve haver também a ética dos meios.
Introduzo o tema com um pensamento såbio e sadio de
Traduz perfeitamente o que quero expor aqui. O fim, no caso,
André Comte-Sponville: "O que é mais digno de interesse, na
a defesa da honra, é valioso, é ético (a pr6pria Constituiqäo
moral, do que as virtudes? Assim como Spinoza, näo creio ha-
brasileira a coloca como valor inalienåvel). Porém, o meio em-
em denunciar os vicios, o mal. o pecado. Para que
ver utilidade
pregado näo o é. Por dois motivos. O primeiro se refere natu-
sempre acusar, sempre denunciar? É a moral dos tristes, e uma
ralmente, å desproporqäo entre o crime alegado (os insultos
triste moral" (1995, Digo que esse pensamento é såbio
p. 7).
proferidos) e o "castigo- (perda da Vida). Mesmo as pessoas fa-
porque nada é mais letal para a moralidade do que sempre lhe
voråveis å pena capital reconheceriam tal desproporqäo, e
atribuir um aspecto negativo, represå-la na proibiqäo e no cas- aqueles contrårios a esse tipo de puniqäo diriam que o preco
tigo, como exclusiva imposiqäo de limites para si
interpretå-la da Vida nunca é justo (coloco-me entre esses ültimos). O se-
e para os outros. E digo que é sadio porque viver a moralida- gundo motivo se refere å covardia: sacar uma arma e atirar å
de, näo apenas como infeliz contenqäo de desejos, mas como queima-roupa, sem portanto dar a minima chance ao adver-
parte integrante da personalidade, é dar-lhe uma dimensäo 1
sårio, estå a léguas da virtude moral. Mais ainda: é desonroso!
existencial na qual o homem pode contemplar-se com sereno Em épocas em que era valor dominante (morria-se e matava-
orgulho. Vamos desenvolver essas idéias,
comeqando por mos- se por ela), a honra era defendida através de um desafio, os fa-
trar que a moral verdadeiramente humana pede muito mais mosos duelos. Näo pense o que estou propondo a volta
leitor
do que conhecer e introjetar um certo nümero de regras. dessa pråtica... Gostaria apenas que se compreendesse a con-
em "moral verdadeiramente humana". O que quero di-
Falei tradiqäo presente no triste epis6dio: em nome da honra, o mo-
zer com isso? Certamente, näo quero insinuar que haveria uma torista feriu a pr6pria ao mostrar-se covarde. A honra corres-
moral em outros seres que näo os homens. Quero simplesmen- ponde ao valor que cada homem ou mulher atribui a si pröprio.
te lembrar que se interpretada de forma dogmåtica e restrita, a Ora, mostrar-se sem coragem, mostrar-se covarde, é, justamen-
moral, cuja finalidade primeira é garantir a felicidade e o bem- te, mostrar-se sem honra. Temos ai um triste exemplo de um

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valor moral, criado para inspirar os homens a defender-se de dade é inequivoca, somente recebe pleno sentido å luz de prin-
humilhacöes, empregado para semear a morte e a infelicidade. cipios maiores (valor da Vida, da justica). Voltando a nosso mo-
Por que serå que nosso triste assassino sacou a arma e ma- torista de Säo Paulo, tivesse compreendido o principio éti-
ele

tou? Evidentemente, näo podemos saber nada desse caso in- co da honra, teria defendido a sua, mas certamente näo com a
dividual além de identificå-lo com um valor socialmente reco- morte de seu agressor, nem com atitude covarde.
nhecido e um certo destempero emocional. Mas podemos Do que acaba de ser exposto, verifica-se que a mediocrida-
propor uma explicaqäo plausivel: esse homem entendeu pela de, traduzida aqui pela interpretaqäo rasteira, primitiva, "ao Pé
metade (se tanto) um principio ético, no caso, a defesa da hon- da letra-, das regras morais, é a primeira inimiga da moral. E
ra.Ou melhor, em vez de compreender que a defesa da honra novamente encontramos o tema dos limites a serem transpos-
é um principio, ele a reduziu a uma regra simples e sem nuan- tos. Uma boa educaqäo moral näo deve se restringir ao ensi-

gas: sealguém o xinga, vocé mata. Ora, cada vez que se res- namento de mültiplas regrinhas, a -conter", a "impor limites"
tringem principios a meras regras, a moral corre o grande ris- do tipo "näo faca isso", -näo faca aquilo-. Como veremos a se-
co de deixar de ser "humana", no sentido de servir de garantia guir, tal colocaqäo de limites é inevitåvel e necessåria, mas ape-
nas se lembrarmos que, junto com essa imposiqäo, deve haver
ao bem-estar da sociedade. Aliås, alguns propöem que a dife-
o movimento contrårio da transposiqäo de limites. Educar mo-
renqa de sentido entre as palavras "moral" e - ética- seja exa-
tamente esta: a moralidade se referiria a um certo numero de ralmente é levar a crianqa a compreender que a moral exige
de cada um o melhor de si, porque conhecer e interpretar prin-
mandamentos precisos, enquanto a ética diria respeito a prin-
cipios norteadores. Exemplo: o mandamento "näo roube" seria
cfpios näo é coisa simples: pede esforqo, pede perseveranqa.
Conseguir ser -realmente- justo é empreendimento inatingf-
uma regra simples e clara de nivel moral, ao passo que o im-
vel para quem limita sua moral å morna obediéncia a meia dü-
perativo -aja sempre de forma justa" traduziria um principio,
Zia de regras, por melhores que sejam. Conseguir ser realmen-
o da justica que, entre outras coisas, contempla a distribuiqäo
te solidårio näo se confunde com a "boa aqäo" que reza que se
de riquezas, mas näo prescreve explicitamente que näo se de-
dé uma esmola por dia. E para conseguir ser realmente hon-
ve apoderar-se de bens alheios. De fato, ås vezes, a fidelidade
rado, näo basta apenas as mås aqöes, é preciso também
evitar
ao principio da justiqa pode, justamente, levar ao "roubo•, no
cultivar as virtudes. E o que säo as virtudes morais? Cito mais
sentido de apropriaqäo de bens indevidamente acumulados
uma vez Comte-Sponville:
por alguns. Um famoso dilema, criado por Lawrence Kohlberg
Virtude, no sentido geral, é poder. no sentido particular. poder humano ou
para suas pesquisas sobre desenvolvimento moral, coloca es-
poder da humanidade. É o que também chamamos as virtudes morais, que
ta questäo: é justo um homem roubar um remédio que näo tem fazem um homem parecer mais humano ou mais excelente, como dizia
condicöes financeiras de comprar para salvar a esposa da mor- Montaigne. do que outro. e sem as quais. como dizia Spinoza. seriamos a

te? Alguém que se limitasse å aplicaqäo da regra "näo roubar- justo titulo qualificados de inumanos. 1...1 Trata-se de näo ser indigno do
que a humanidade fez de si, e de nos (1995, p. 9).
responderia que näo. Alguém que se remeter ao principio éti-

co do valor da Vida humana poderå responder que, nesse caso, O tema das virtudes morais nos coloca uma nova dimensäo
o roubo é justificåvel, ou pelo menos toleråvel. Nesse dilema, da exceléncia.
näo me parece haver düvidas quanto ao caråter humanitårio O fi16sofo Kant escreveu que existem dois objetivos morais
do roubo e quanto ao caråter cruel e desumano da restricäo para os homens e que esses objetivos säo, para eles, deveres:
pura e simples å regra "näo roubar". Essa regra, cuja preciosi- a felicidade do outro e o aperfeiqoamento de si mesmo.

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O primeiro desses deveres, a procura da felicidade alheia, traducäo politica. Podemos, por lei, obrigar as pessoas a
ficil

além das regras que se restringem a rezar que


jå nos leva para näo serem injustas e näo limitarem a liberdade alheia, mas di-
näo devemosfazer mal ao outro. De fato, procurar o bem do ou- ficilmente podemos obrigå-las a serem fraternas ou genero-
tro émais do que apenas evitar atos que o prejudiquem: é dar sas. Nesse sentido, generosidade é diferente de justiqa. Mas
o melhor de si, é praticar a virtude. Se näo roubar é uma coisa também a complementa, porque a busca da felicidade do ou-
boa, ser generoso é ainda melhor. Se näo dizer mentiras é uma tro näo se limita a reconhecé-lo como objeto abstrato possui-
coisa boa, empenhar-se em ter boa-fé, em procurar a verdade, dor de direitos, mas também exige que se o contemple como
é ainda melhor. Se näo ferir é uma coisa boa, ser doce é ainda
pessoa de carne e osso, com sentimentos e aspiraqöes. Escreve
melhor. E assim por diante. A moralidade näo pode dispensar
Comte-Sponville:
as virtudes. Cada uma delas tem uma definiqäo e objetivos sin-
Os direitos do homem podem constituir objeto de uma declaraqäo. A ge-
gulares, e interage com as outras. Tomemos o exemplo da jus-
nerosidade, näo: trata-se de agir, näo em funcäo de determinado texto. de
tiqa.Podemos ter claros, em nossa mente, seus principios e re-
determinada lei. mas além de qualquer texto. além de qualquer lei. em to-
gras. Mas eis que nos encontramos numa situaqäo tal que so do caso humana. e unicamente de acordo com as exigéncias do amon da
podemos exercer esses principios tendo de enfrentar alguma moral ou da solidariedade (1995, p. 98).
autoridade, alguma forma de poder que nos coloca em risco,
Muitas pessoas, sobretudo homens, näo falham na aplica-
por exemplo, defender alguém injustamente acusado pelo di-
retor de alguma instituicäo. Se nos amedrontarmos perante os
qäo da justica, mas ignoram totalmente seus semelhantes quan-
riscos, portanto, se näo tivermos em n6s a virtude da coragem, do näo estäo em jogo.
direitos

como poderemos ser justos, defender a justica? A pr6pria for- Poderiamos continuar por påginas e påginas analisando as
qa de nossa convicqäo nos ideais da justiqa nos darå coragem diferenqas e complementaridades entre as diversas virtudes e
e, reciprocamente, a coragem alimentarå nossa autoconfianqa, verificar o quanto elas säo, cada qual å sua maneira, necesså-
nosso sentimento de dignidade. O medroso so é moral nas si- rias å real e concreta pråtica da moral (cf. Comte-Sponville,
tuaqöes mais an6dinas e deixa facilmente de sé-lo quando ris- 1995). Dai o segundo dever apontado por Kant: aperfeiqoar-se.
cos aparecem. O covarde, ou seja, aquele que é privado de co- De fato, sendo as virtudes aquilo que realmente sustenta o va-
ragem, näo é moralmente confiåvel e quase sempre falha nessa
lor da moral (e a distingue da politica), e sendo elas formas de
busca da felicidade do outro.
exceléncia, possui-las e exercé-las exige de n6s todo um tra-
Tomemos outro exemplo, agora com a virtude da generosi-
balho para, na definiqäo do fi16sofo alemäo, "[...l nos despo-
dade.A generosidade é diferente da justiqa e a complementa, jarmos da grosseria de nossa natureza e elevarmo-nos cada
porque, enquanto na justica damos ao outro o que é um direi-
vez mais até a humanidade" (Kant, 1985, p. 57). Portanto, se é
to seu,na generosidade, fazemos uma doaqäo de n6s mesmos.
verdade que a moralidade restringe, é também verdade que
É por essa razäo que a justica pode mais facilmente ser tradu-
ela eleva. Ela nos impöe limites, mas também nos aponta aque-
Zida por leis juridicas, e a generosidade, näo. Dos trés ideais
les que devemos ultrapassar. Uma moral sem virtudes, sem ex-
da Revoluqäo Francesa, somente os dois primeiros podem ins-
pirar uma Constituiqäo: liberdade (por exemplo, liberdade de
celéncia, é uma moral triste que, retomando as palavras de
expressäo) e igualdade (por exemplo, peso igual para cada ci-
Comte-Sponville, se contenta em denunciar vicios, pecados,
dadäo nas eleiqöes). Em compensaqäo, o terceiro ideal, o da em acusar, denegrir, excluir, humilhar. É a moral dos tristes,
fraternidade (na verdade, sinönimo de generosidade), é de di- dos infelizes, dos -moralistas-. Como escreveu Aristoteles:

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Näo se pode dizer queum homem é justo se ele näo sentir alegria ao agir
de forma justa. nem que um homem é generoso se näo lhe agradam as
aqöes generosas; e isso vale para as outras virtudes. Devemos convir que
as aqöes conformes å virtude säo agradåveis em si mesmas (1965, p. 36).

Portanto, a educaqäo moral das crianqas, em vez de ser uma


constante imposiqäo de limites, so terå real éxito se também
for um estimulo a transpor aqueles que as separam do exerci-
Cio das virtudes. Acredito que, notadamente nos dias de hoje,
a educacäo moral acaba falhando justamente porque as virtu-
des, assim como os sentimentos de honra e dignidade, andam
esquecidos. No mundo capitalista da competiqäo, valoriza-se a
superaqäo do outro, e näo a superagäo de si ou a exceléncia;
estimula-se o egoismo, e näo a generosidade. Uma triste tra-
ducäo do que procuro mostrar encontra-se no lema "popular"
que aconselha a "levar vantagem em tudo". É Obvio que tal con-
selho fere a ética, uma vez que legitima a desonestidade.
Todavia, ele mais me assusta pela pequenez. Quem pauta sua
Vida pelo "levar vantagem em tudo- é, na realidade, um "ladräo
de galinhas": fura filas, ultrapassa pela direita no trånsito, so-
nega um pouco aqui e ali, comete umas mentirinhas, etc. A me-
diocridade e a covardia näo o deixam ir muito mais longe. E, o
que é pior, demonstra total falta de dignidade, de auto-respei-
to. Ajudar e estimular a crianqa a transpor limites, eis a pråti-

ca essencial a seu caminhar para a idade adulta, para saciar


seus desejos de exceléncia e também para fazé-la viver a mo-
ralidade como busca de dignidade, de auto-respeito.

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