Kant
Analisam-se algumas das categorias centrais à doutrina kantiana do Direito, com
atenção a temas como liberdade, igualdade, justiça, legislação moral, legislação jurídica,
Direito, sociedade civil, Estado, Estado de direito, formas de governo, divisão de
poderes e Constituição.
Introdução
Aqui será privilegiada, no mais das vezes, a análise direta dos escritos de Kant, a partir
de uma postura mais preocupada com a apresentação de suas idéias, sem uma constante
avaliação crítica. Não se está, com isso, negando a existência de abalizados
comentadores da sua doutrina do Direito, tanto na literatura nacional como na
alienígena. O que se busca é uma análise tanto mais próxima possível das idéias do
autor; pretensão, por certo, não pouco audaciosa, a uma pela dificuldade da temática, a
duas pela conhecida complexidade do pensamento kantiano.
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Kant é um autor conhecido não só pela densidade de seu pensamento filosófico, mas
também pelas dificuldades e obscuridades próprias do seu estilo. Dificuldades que o
próprio autor reconhecia, como o fez no prefácio da segunda edição de sua "Crítica da
razão pura", publicada em 1787 [02]. Como assevera o autor, para o estudo da metafísica
"é preciso renunciar a ser entendido por todos e até à linguagem popular. Há
necessidade, pelo contrário, de se apegar à precisão da linguagem da escola (porque a
escola também tem a sua linguagem), mesmo com o risco de ser acusado de pedante"
[03]
.
Entretanto, Kant adverte que, "como a noção de Direito, enquanto noção pura, tem por
base a prática ou aplicação aos casos que se apresentam na experiência, resulta que um
Sistema Metafísico do Direito deve ter em conta a diversidade empírica de todos os
casos possíveis para constituir uma divisão completa (o que é estritamente necessário
para constituir um sistema da razão". Por outro lado, ainda que não se possa descartar a
parte experimental ou prática na metafísica do Direito, o empírico não pode formar
parte essencial deste sistema racional, mas unicamente uma aproximação sistemática,
permanecendo os princípios metafísicos do Direito como núcleo duro da ciência jurídica
[05]
.
Kant inicia o estudo da metafísica dos costumes discorrendo acerca de expressões como
desejo, prazer e sentimento, categorias de suma relevância para o entendimento, v. g.,
da noção kantiana de arbítrio. "O desejo é a faculdade de ser causa dos objetos de
nossas representações por meio das próprias representações". O desejo e a aversão são
sempre acompanhados de prazer ou desprazer. A capacidade humana de experimentar
prazer ou desprazer com a idéia de alguma coisa é denominada sentimento. Impende
notar o caráter eminentemente subjetivo do sentimento, uma vez que o prazer ou
desprazer não se relacionam com o objeto desejado, mas simplesmente com o sujeito
[06]
.
Para explicar a idéia de arbítrio, o autor apresenta a noção de faculdade apetitiva. Esta,
"enquanto seu princípio de determinação se encontra em si mesma e não no objeto,
chama-se faculdade de fazer ou de não fazer à discrição; enquanto está unida à
consciência da faculdade de operar para produzir o objeto, chama-se arbítrio" [07].
No pensamento kantiano, o livre-arbítrio é aquele que pode ser determinado pela razão
pura, diferentemente daquele arbítrio que não é determinável a não ser por inclinação,
por estímulo, ao qual o autor denomina arbítrio animal (arbitrum brutum). O arbítrio
humano é aquele que não é determinado, mas sim afetado por motivos, podendo ser
impelido à ação por uma vontade pura [09]. A vontade pura (boa vontade) é o que dita a
lei moral, livre das necessidades e inclinações sensíveis a que está submetido o homem.
Trata-se da vontade considerada em si mesma, livre de quaisquer elementos externos,
não se constituindo em meio ou instrumento para nada, mas sim em um fim em si
mesma [10].
As leis naturais ou físicas são leis descritivas, relacionadas com o mundo do ser
(realidade). Já as leis morais, e também as jurídicas, são eminentemente prescritivas,
onde há preocupação com o dever ser, com o que pode ser.
As leis jurídicas são aquelas que estão relacionadas às ações externas do indivíduo e à
legitimidade de tais ações. "Porém, se, além disso, exigem que as próprias leis sejam os
princípios determinantes da ação, então são chamadas de éticas na acepção mais própria
da palavra". A legalidade, portanto, é a simples conformidade da ação externa com as
leis jurídicas. De outra banda, a moralidade é a conformidade com as leis morais, o
respeito à lei da razão, à lei geral, à lei da liberdade [12].
No que toca à moralidade, pode-se dizer que a autonomia da vontade ou da razão pura
prática é o princípio supremo da moralidade kantiana. Trata-se do fundamento da
dignidade humana e fonte básica da moralidade. A autonomia da vontade é a
constituição da vontade, a qualidade de ser lei para si mesma, independente de como
forem constituídos os objetos do querer [13].
O indivíduo, quando obedece a uma lei jurídica, pratica uma ação conforme o dever,
obedece a uma lei externa com o fim de evitar a sanção. Quando obedece a uma lei
moral, sua ação é por dever, uma lei interna que o indivíduo obedece não movido por
inclinação ou interesse, mas porque se reconhece como legislador da lei. O que tem
força de lei para o sujeito kantiano é a vontade, uma vez que a razão é o instrumento
que ilumina a vontade.
A ação moral, portanto, é somente aquela realizada para obedecer à lei do dever. Se a
ação é imbuída de certo interesse material, cumprida por impulsos diversos daquele do
cumprimento do próprio dever, não se trata de ação moral. Esta não é movida por outra
inclinação que não o respeito à lei, livre de quaisquer outras inclinações, quaisquer
outros impulsos subjetivos [14].
A noção de sanção ganha outra conotação no que toca às leis morais. Segundo as leis
morais, determinadas ações são permitidas ou proibidas, e dentre aquelas permitidas, ou
seu contrário, algumas são obrigatórias, resultando o dever cujo cumprimento traz
subjetivamente um prazer e a violação uma pena de espécie particular (o sentimento
moral) [16].
Essa legislação da razão prática (leis morais) incide somente sobre seres livres. Somente
seres livres e dotados de razão podem ser submetidos à razão prática. "Esta legisla sobre
seres livres, ou, mais exactamente, sobre a causalidade destes seres (operação pela qual
um ser livre é causa de alguma coisa)" [18].
Pode-se dizer que é lícita a ação não contrária a uma obrigação. Já a faculdade surge
quando de uma liberdade não contrária a nenhum imperativo categórico. Onde não há
faculdade de obrigar não há direito, não há relação jurídica. Esta somente existe na
relação do homem com seres que têm direitos e deveres, porque é uma relação de
homem a homem. O dever é o conteúdo da obrigação, a ação a que uma pessoa se
encontra obrigada. E a obrigação nada mais é do que a necessidade de uma ação livre
baseada em um imperativo da razão [19].
Resulta, portanto, que se pode formular o imperativo categórico que enuncia de uma
maneira geral o que é obrigatório, nos seguintes termos: "age segundo uma máxima que
possa ao mesmo tempo ter valor de lei geral. Podes, portanto, considerar tuas ações
segundo seu princípio subjetivo; mas não podes estar seguro de que um princípio tem
valor objetivo exceto quando seja adequado a uma legislação universal, isto é, quando
este princípio possa ser erigido por tua razão em legislação universal" [21].
Partindo das idéias de arbítrio e vontade, Kant formula duas noções de liberdade, a
liberdade negativa e a liberdade positiva. "A liberdade do arbítrio é esta independência
de todo impulso sensível enquanto relacionado à sua determinação. Tal é a noção
negativa da liberdade. A noção positiva pode ser definida: a faculdade da razão pura de
ser prática por si mesma, o que não é possível somente pela submissão das máximas de
toda ação à condição de poder servir de lei geral" [24].
Para dizer de outra forma, a liberdade não está na possibilidade fática de fazer ou deixar
de fazer algo segundo a vontade do indivíduo. A liberdade do arbítrio não é a faculdade
de determinar uma ação conforme ou contrária à lei, não se constitui na ausência de
princípios de determinação que produzam em nós a necessidade da ação (princípios
religiosos, morais e jurídicos). Isto, no pensamento kantiano é o sentido negativo de
liberdade. A liberdade positiva surge quando da existência de princípios de
determinação, ou seja, quando a ação está condicionada por uma lei da razão.
Desta forma, pode-se dizer que o indivíduo somente é livre exteriormente dentro da lei,
com a existência de convenções e de contratos. O indivíduo somente adquire a liberdade
dentro da lei porque está obrigado a observar uma lei da qual ele mesmo é o legislador.
Os indivíduos dão-se as suas leis (morais ou jurídicas), e só por elas estão limitados.
Fora da lei, o indivíduo está sujeito ao arbítrio dos outros indivíduos. Dentro da lei, sua
liberdade está assegurada, uma vez que os outros indivíduos somente poderão agir
exteriormente de modo a não ferir a sua liberdade de ação, segundo uma lei universal.
Neste sentido, esclarece Kant que a "liberdade, à qual se referem as leis jurídicas, pode
ser tão somente a liberdade na prática externa; mas aquela liberdade à qual se referem as
segundas leis (leis morais) deve ser a liberdade no exercício exterior e interior do
arbítrio, quando está determinado pelas leis racionais" [25].
O princípio da liberdade traz consigo um postulado igualitário, uma vez que, enquanto
princípio, deve valer para todos. Contudo, não diferentemente da idéia formal de
liberdade que marca o pensamento kantiano, a igualdade garantida pele lei é uma
igualdade também formal. Para Kant, o Estado e o Direito devem garantir a chamada
igualdade de oportunidades, a igualdade no ponto de partida. Este é o modelo de
igualdade que marca o liberalismo político e jurídico, sob as bases da doutrina
juspositivista.
No que toca à idéia de justiça, pode-se dizer que Kant inaugura um novo modelo
ocidental de justiça, a idéia de "justiça como liberdade", modelo que marcou
profundamente o positivismo jurídico do século XIX e da primeira metade do século
XX, com influência até os nossos dias.
Tomando tal assertiva em um raciocínio silogístico, pode-se dizer que somente é justo
aquilo que se pode conformar com a liberdade do arbítrio de todos os indivíduos,
segundo leis universais. A liberdade do arbítrio de cada um é condicionada pelas leis da
razão, que sujeitam a todos. Portanto, pode-se concluir que é justo tudo aquilo que as
leis universais da razão dizem ser o justo.
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Não se pode dizer, entretanto, que o estado de natureza kantiano aproxima-se do modelo
descrito por Thomas Hobbes [34], onde os homens aderem ao contrato para garantir suas
vidas, fugindo da insegurança e do constante estado de guerra de todos contra todos a
que estão expostos. Segundo Kant, os homens não têm por máxima a violência e o
estado de guerra. Por outro lado, é certo que o estado não-jurídico sugere uma situação
de constante insegurança e de justiça negativa, uma vez que não existe um juiz
competente para decidir de forma legítima um caso cujo direito se mostra controvertido
[35]
.
O primeiro princípio que deve ser decretado, a fim de manter as noções de Direito, é o
seguinte: "É preciso sair do estado natural, no qual cada um age em função de seus
próprios caprichos, e convencionar com todos os demais (cujo comércio é inevitável)
em submeter-se a uma limitação exterior, publicamente acordada, e por conseguinte
entrar num estado em que tudo o que deve ser reconhecido como o Seu de cada qual é
determinado pela lei e atribuído a cada um por um poder suficiente, que não é o do
indivíduo e sim um poder exterior" [36].
No estado civil há uma relação mútua dos particulares submetidos ao estado jurídico. O
contrato social é ato originário, constitutivo da sociedade. O contrato é fruto da razão
prática e o sujeito que a ele adere não renuncia à liberdade, pelo contrário, tem na
obediência à lei consubstanciada no pacto a expressão máxima da sua liberdade, uma
vez que somente obedece à lei que ele mesmo se dá.
A forma mais simples é o governo autocrático, consistente na relação única do rei com o
povo. Na aristocracia, há primeiramente a relação dos governantes entre si para
constituir o soberano e deste com o povo. A democracia é a mais complexa de todas as
formas de governo, já que exige a vontade de todos para formar o povo; posteriormente,
a vontade dos cidadãos para formar a república e, finalmente, a vontade da república
para formar o governante, que resulta dessa vontade coletiva [43].
Seguindo o modelo traçado por Montesquieu [44], Kant estabelece sua idéia de divisão
de poderes do Estado nos seguintes termos: "o poder soberano (soberania) na pessoa do
legislador, o poder executivo (segundo a lei) na pessoa do governo e o poder judicial
(como reconhecimento de o Meu de cada qual segundo a lei) na pessoa do juiz..." [45].
Neste sentido, com base em um raciocínio silogístico, do legislativo advém a premissa
maior que é a norma geral e abstrata; do executivo, a premissa menor de conformar as
ações segundo a norma geral; do judiciário, a conclusão que decide o direito no caso
concreto.
A relação que se pode dizer de unidade entre os poderes deve ser estabelecida em três
parâmetros. Primeiramente, os poderes devem atuar de forma coordenada, sendo um o
complemento do outro para a organização perfeita da constituição do Estado. Em
segundo lugar, deve haver uma relação de subordinação entre os poderes, no sentido de
que um não pode usurpar a função do outro. Finalmente, a reunião dos poderes, uma
vez que o direito da cada sujeito depende da relação de coordenação e subordinação
entre os poderes [46].
Para Kant, a passagem do estado de natureza para a sociedade civil (estado jurídico) faz
parte de uma espécie de progresso ético, de evolução, a que está impelida a sociedade
humana, impelida "por dever" à realização plena da liberdade, um deve de todos os
seres racionais. A organização da sociedade civil é dada pela Constituição, que estrutura
o Estado e estabelece o "seu" de cada um conforme uma lei universal da razão.
Kant nega o direito de resistência do povo contra o soberano até como forma de garantir
e fortalecer a Constituição republicana, uma Constituição legal fundada em princípios
de liberdade, única Constituição legítima, perene e capaz de garantir o estado de paz
perpétua entre os povos.
Considerações finais
E nesse contexto ganha corpo o cerne da filosofia kantiana: a liberdade (bem supremo),
o ideal de vida racional da humanidade. O homem nasce para ser livre. Liberdade
enquanto livre uso do arbítrio segundo uma lei geral e universal da razão. A liberdade
de somente estar limitado por uma lei da razão dada pelo próprio indivíduo e de estar
protegido contra o arbítrio dos demais, que devem agir segundo a lei universal por todos
convencionada.
A base do liberalismo político que marca o modelo liberal de Estado é a noção kantiana
de liberdade positiva, a liberdade que o indivíduo somente alcança quando aceita deixar
o estado natural e pactuar a sociedade civil, a constituição de um estado jurídico,
pautado por leis de liberdade das quais o legislador é a vontade coletiva do povo.
Somente é justa uma ação que possa se conciliar com a liberdade do arbítrio dos demais,
segundo uma lei universal. Somente é justo um sistema jurídico que garanta a
possibilidade de todos os indivíduos livremente desenvolverem sua personalidade,
potencialidades e talentos. É justa e igualitária uma sociedade onde as necessidades
básicas dos indivíduos sejam garantidas pelo Estado, mas que, por outro lado, os
indivíduos sejam livres para o exercício de seus talentos e o alcance da riqueza por seus
méritos.