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A doutrina do Direito de Emmanuel

Kant
Analisam-se algumas das categorias centrais à doutrina kantiana do Direito, com
atenção a temas como liberdade, igualdade, justiça, legislação moral, legislação jurídica,
Direito, sociedade civil, Estado, Estado de direito, formas de governo, divisão de
poderes e Constituição.

SUMÁRIO: Introdução; 1. Breves apontamentos sobre a metafísica dos costumes de


Emmanuel Kant; 2. A legislação moral e a legislação jurídica no pensamento kantiano;
3. Liberdade, igualdade e justiça na doutrina do Direito de Emmanuel Kant; 4. O
sujeito, a sociedade civil e o Estado de direito no pensamento kantiano; 5. Formas de
governo, divisão de poderes e Constituição; Considerações finais; Referências.

Introdução

Não há necessidade de grandiosos esforços retóricos para justificar o consolidado lugar


de destaque que possui, desde o final do século XVIII, o pensamento filosófico de
Emmanuel Kant [01]. Sua obra tem influenciado de maneira impar o pensamento
moderno, sobretudo na Filosofia, no Direito e na Política.

No campo da Filosofia estão inseridas as mais conhecidas obras de Kant, a tríade de


críticas ("Crítica da razão pura", "Crítica da razão prática" e "Crítica do juízo"), onde
o autor estabelece as bases de seu pensamento filosófico. As contribuições do filósofo
de Koenigsberg para o Direito foram apresentadas em uma primeira parte de sua
"Metafísica dos costumes", publicada em 1797 sob o título de "Doutrina do Direito".

O presente estudo propõe-se a analisar algumas das categorias centrais à doutrina


kantiana do Direito, com atenção a temas como liberdade, igualdade, justiça, legislação
moral, legislação jurídica, Direito, sociedade civil, Estado, Estado de direito, formas de
governo, divisão de poderes e Constituição.

Aqui será privilegiada, no mais das vezes, a análise direta dos escritos de Kant, a partir
de uma postura mais preocupada com a apresentação de suas idéias, sem uma constante
avaliação crítica. Não se está, com isso, negando a existência de abalizados
comentadores da sua doutrina do Direito, tanto na literatura nacional como na
alienígena. O que se busca é uma análise tanto mais próxima possível das idéias do
autor; pretensão, por certo, não pouco audaciosa, a uma pela dificuldade da temática, a
duas pela conhecida complexidade do pensamento kantiano.

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 A eugenia liberal a partir do pensamento de Habermas
 Análise do positivismo como abordagem avalorativa do Direito e da definição
do Direito em função da coação
 Éticas: ética da convicção X ética da responsabilidade

Kant é um autor conhecido não só pela densidade de seu pensamento filosófico, mas
também pelas dificuldades e obscuridades próprias do seu estilo. Dificuldades que o
próprio autor reconhecia, como o fez no prefácio da segunda edição de sua "Crítica da
razão pura", publicada em 1787 [02]. Como assevera o autor, para o estudo da metafísica
"é preciso renunciar a ser entendido por todos e até à linguagem popular. Há
necessidade, pelo contrário, de se apegar à precisão da linguagem da escola (porque a
escola também tem a sua linguagem), mesmo com o risco de ser acusado de pedante"
[03]
.

1. Breves apontamentos sobre a metafísica dos costumes de Emmanuel Kant

A metafísica dos costumes, no pensamento kantiano, constitui-se em um sistema da


razão prática [04]. Enquanto a física ocupa-se tão somente de objetos exteriores
(experiências particulares), a metafísica está relacionada à idéia de ciência (sistema de
princípios). Pode-se dizer que a metafísica dos costumes estabelece o conjunto de
princípios a priori que orientam o comportamento humano, tanto no prisma moral como
no âmbito jurídico.

Interessante asseverar que a expressão "metafísica" aí empregada não sugere algo


transcendente, natural ou revelado por obra divina, mas sim um corpo de conhecimentos
racionais, um sistema da razão para além da física. Metafísica, por conseguinte,
relacionada com os princípios da razão. Por "costumes" deve-se entender a
complexidade de leis que disciplinam a ação do homem enquanto "ser livre",
pertencente ao mundo inteligível, ao mundo da cultura, da civilização, contraposto ao
mundo da natureza.

Esse sistema da razão prática divide-se em "princípios metafísicos da ciência do


Direito" e "princípios metafísicos da ciência da moral". Consequentemente, a ciência
do Direito representa a primeira parte da metafísica dos costumes.

Entretanto, Kant adverte que, "como a noção de Direito, enquanto noção pura, tem por
base a prática ou aplicação aos casos que se apresentam na experiência, resulta que um
Sistema Metafísico do Direito deve ter em conta a diversidade empírica de todos os
casos possíveis para constituir uma divisão completa (o que é estritamente necessário
para constituir um sistema da razão". Por outro lado, ainda que não se possa descartar a
parte experimental ou prática na metafísica do Direito, o empírico não pode formar
parte essencial deste sistema racional, mas unicamente uma aproximação sistemática,
permanecendo os princípios metafísicos do Direito como núcleo duro da ciência jurídica
[05]
.

Kant inicia o estudo da metafísica dos costumes discorrendo acerca de expressões como
desejo, prazer e sentimento, categorias de suma relevância para o entendimento, v. g.,
da noção kantiana de arbítrio. "O desejo é a faculdade de ser causa dos objetos de
nossas representações por meio das próprias representações". O desejo e a aversão são
sempre acompanhados de prazer ou desprazer. A capacidade humana de experimentar
prazer ou desprazer com a idéia de alguma coisa é denominada sentimento. Impende
notar o caráter eminentemente subjetivo do sentimento, uma vez que o prazer ou
desprazer não se relacionam com o objeto desejado, mas simplesmente com o sujeito
[06]
.

Para explicar a idéia de arbítrio, o autor apresenta a noção de faculdade apetitiva. Esta,
"enquanto seu princípio de determinação se encontra em si mesma e não no objeto,
chama-se faculdade de fazer ou de não fazer à discrição; enquanto está unida à
consciência da faculdade de operar para produzir o objeto, chama-se arbítrio" [07].

O arbítrio, portanto, é a capacidade de fazer ou não fazer. Se a faculdade apetitiva


encontra-se na razão do sujeito, chama-se vontade. No arbítrio, a faculdade apetitiva
está relacionada à ação (um fazer ou não fazer). Na vontade, aquela se relaciona ao
princípio que determina o arbítrio à ação; "não é precedida de nenhum princípio de
determinação; pelo contrário, visto que pode determinar o arbítrio, é a própria razão
prática" [08].

No pensamento kantiano, o livre-arbítrio é aquele que pode ser determinado pela razão
pura, diferentemente daquele arbítrio que não é determinável a não ser por inclinação,
por estímulo, ao qual o autor denomina arbítrio animal (arbitrum brutum). O arbítrio
humano é aquele que não é determinado, mas sim afetado por motivos, podendo ser
impelido à ação por uma vontade pura [09]. A vontade pura (boa vontade) é o que dita a
lei moral, livre das necessidades e inclinações sensíveis a que está submetido o homem.
Trata-se da vontade considerada em si mesma, livre de quaisquer elementos externos,
não se constituindo em meio ou instrumento para nada, mas sim em um fim em si
mesma [10].

Continuando a traçar o fio condutor do pensamento kantiano acerca do Direito, faz-se


mister estabelecer as definições de legalidade, moralidade, dever externo e dever
interno, dentre outras, imprescindíveis ao desenrolar da sua doutrina da Direito.

2. A legislação moral e a legislação jurídica no pensamento kantiano

A idéia de legalidade na doutrina do Direito de Kant está intimamente relacionada às


noções de arbítrio, vontade e liberdade. As leis da liberdade, ou seja, os princípios de
determinação que condicionam a ação humana às leis da razão, são chamadas de leis
morais. As leis morais são distintas das leis naturais ou físicas [11].

As leis naturais ou físicas são leis descritivas, relacionadas com o mundo do ser
(realidade). Já as leis morais, e também as jurídicas, são eminentemente prescritivas,
onde há preocupação com o dever ser, com o que pode ser.

As leis jurídicas são aquelas que estão relacionadas às ações externas do indivíduo e à
legitimidade de tais ações. "Porém, se, além disso, exigem que as próprias leis sejam os
princípios determinantes da ação, então são chamadas de éticas na acepção mais própria
da palavra". A legalidade, portanto, é a simples conformidade da ação externa com as
leis jurídicas. De outra banda, a moralidade é a conformidade com as leis morais, o
respeito à lei da razão, à lei geral, à lei da liberdade [12].

No que toca à moralidade, pode-se dizer que a autonomia da vontade ou da razão pura
prática é o princípio supremo da moralidade kantiana. Trata-se do fundamento da
dignidade humana e fonte básica da moralidade. A autonomia da vontade é a
constituição da vontade, a qualidade de ser lei para si mesma, independente de como
forem constituídos os objetos do querer [13].

O indivíduo, quando obedece a uma lei jurídica, pratica uma ação conforme o dever,
obedece a uma lei externa com o fim de evitar a sanção. Quando obedece a uma lei
moral, sua ação é por dever, uma lei interna que o indivíduo obedece não movido por
inclinação ou interesse, mas porque se reconhece como legislador da lei. O que tem
força de lei para o sujeito kantiano é a vontade, uma vez que a razão é o instrumento
que ilumina a vontade.

A ação moral, portanto, é somente aquela realizada para obedecer à lei do dever. Se a
ação é imbuída de certo interesse material, cumprida por impulsos diversos daquele do
cumprimento do próprio dever, não se trata de ação moral. Esta não é movida por outra
inclinação que não o respeito à lei, livre de quaisquer outras inclinações, quaisquer
outros impulsos subjetivos [14].

O motivo constitui o cerne da diferenciação entre a legislação moral e a legislação


jurídica. Nesta, a lei faz da ação um dever, dever externo de obedecê-la por aversão à
sanção, por um impulso subjetivo diferente do puro respeito ao dever. Não se exige que
a idéia desse dever se constitua no princípio determinante do arbítrio do agente. Isto
ocorre na legislação moral, onde o dever é interno e também externo, devendo estar
conforme a uma lei geral e universal. Na lei moral, "um motivo relaciona com a
representação da lei o princípio que determina subjetivamente o arbítrio a essa ação".
Portanto, o motivo não entra na legislação jurídica, sendo que o indivíduo obedece a
uma lei jurídica a fim de evitar a sanção [15].

A noção de sanção ganha outra conotação no que toca às leis morais. Segundo as leis
morais, determinadas ações são permitidas ou proibidas, e dentre aquelas permitidas, ou
seu contrário, algumas são obrigatórias, resultando o dever cujo cumprimento traz
subjetivamente um prazer e a violação uma pena de espécie particular (o sentimento
moral) [16].

As leis morais, no pensamento kantiano, constituem-se em leis práticas absolutas. São


imperativos, e mesmo imperativos categóricos, regras de fazer ou não fazer por dever.
Diferentemente dos imperativos técnicos ou hipotéticos, os imperativos categóricos são
absolutos, não admitem condição. O imperativo categórico é uma regra prática que
converte em necessária e absoluta uma ação subjetivamente contingente. Pensa e impõe
necessariamente a ação, de modo imediato e objetivo [17].

Essa legislação da razão prática (leis morais) incide somente sobre seres livres. Somente
seres livres e dotados de razão podem ser submetidos à razão prática. "Esta legisla sobre
seres livres, ou, mais exactamente, sobre a causalidade destes seres (operação pela qual
um ser livre é causa de alguma coisa)" [18].
Pode-se dizer que é lícita a ação não contrária a uma obrigação. Já a faculdade surge
quando de uma liberdade não contrária a nenhum imperativo categórico. Onde não há
faculdade de obrigar não há direito, não há relação jurídica. Esta somente existe na
relação do homem com seres que têm direitos e deveres, porque é uma relação de
homem a homem. O dever é o conteúdo da obrigação, a ação a que uma pessoa se
encontra obrigada. E a obrigação nada mais é do que a necessidade de uma ação livre
baseada em um imperativo da razão [19].

O Direito pertence ao mundo das relações exteriores e constitui-se na relação de dois ou


mais arbítrios. Somente há relação jurídica se há relação entre dois ou mais arbítrios. O
Direito é a forma universal de coexistência dos arbítrios, o conjunto das condições
segundo as quais é possível a convivência dos homens entre si, estando as liberdades
externas de cada um limitadas e garantidas segundo uma lei universal [20].

Resulta, portanto, que se pode formular o imperativo categórico que enuncia de uma
maneira geral o que é obrigatório, nos seguintes termos: "age segundo uma máxima que
possa ao mesmo tempo ter valor de lei geral. Podes, portanto, considerar tuas ações
segundo seu princípio subjetivo; mas não podes estar seguro de que um princípio tem
valor objetivo exceto quando seja adequado a uma legislação universal, isto é, quando
este princípio possa ser erigido por tua razão em legislação universal" [21].

Máxima, no pensamento kantiano, é o que condiciona a ação do indivíduo, é subjetiva,


é a regra que o agente prescreve a si mesmo. É "o princípio subjetivo que o sujeito se
impõe como regra de ação (é o como quer agir). Ao contrário, o princípio do dever é o
que a razão lhe prescreve em absoluto, por conseguinte objetivamente (é o como deve
agir)" [22]. Completando o que foi exposto acima, pode-se dizer que a ação moral toma a
máxima como motivo.

Os preceitos da moral obrigam a todos, sem considerações acerca das inclinações de


cada um. Obrigam pelo fato de que todo homem é livre e dotado de uma razão prática.
E essas leis da razão prescrevem a maneira como se deve agir, mas não têm relação com
o mundo do ser, não surgem da observação do mundo. São prescritivas de um dever de
ação, mesmo quando ninguém tenha agido conforme a prescrição. As leis morais são
dadas a priori pela razão prática [23].

De posse dessas noções introdutórias acerca da metafísica dos costumes, pode-se


avançar para temas em tudo correlatos com as idéias kantianas de arbítrio, vontade e
legalidade, temas como liberdade, igualdade e justiça.

3. Liberdade, igualdade e justiça na doutrina do Direito de Emmanuel Kant

Partindo das idéias de arbítrio e vontade, Kant formula duas noções de liberdade, a
liberdade negativa e a liberdade positiva. "A liberdade do arbítrio é esta independência
de todo impulso sensível enquanto relacionado à sua determinação. Tal é a noção
negativa da liberdade. A noção positiva pode ser definida: a faculdade da razão pura de
ser prática por si mesma, o que não é possível somente pela submissão das máximas de
toda ação à condição de poder servir de lei geral" [24].
Para dizer de outra forma, a liberdade não está na possibilidade fática de fazer ou deixar
de fazer algo segundo a vontade do indivíduo. A liberdade do arbítrio não é a faculdade
de determinar uma ação conforme ou contrária à lei, não se constitui na ausência de
princípios de determinação que produzam em nós a necessidade da ação (princípios
religiosos, morais e jurídicos). Isto, no pensamento kantiano é o sentido negativo de
liberdade. A liberdade positiva surge quando da existência de princípios de
determinação, ou seja, quando a ação está condicionada por uma lei da razão.

Desta forma, pode-se dizer que o indivíduo somente é livre exteriormente dentro da lei,
com a existência de convenções e de contratos. O indivíduo somente adquire a liberdade
dentro da lei porque está obrigado a observar uma lei da qual ele mesmo é o legislador.
Os indivíduos dão-se as suas leis (morais ou jurídicas), e só por elas estão limitados.

Fora da lei, o indivíduo está sujeito ao arbítrio dos outros indivíduos. Dentro da lei, sua
liberdade está assegurada, uma vez que os outros indivíduos somente poderão agir
exteriormente de modo a não ferir a sua liberdade de ação, segundo uma lei universal.

Neste sentido, esclarece Kant que a "liberdade, à qual se referem as leis jurídicas, pode
ser tão somente a liberdade na prática externa; mas aquela liberdade à qual se referem as
segundas leis (leis morais) deve ser a liberdade no exercício exterior e interior do
arbítrio, quando está determinado pelas leis racionais" [25].

Resulta desse entendimento o cerne da doutrina liberal individualista de Kant, a lei


universal de Direito: "age exteriormente de modo que o livre uso de teu arbítrio possa se
conciliar com a liberdade de todos, segundo uma lei universal..." [26].

O princípio da liberdade traz consigo um postulado igualitário, uma vez que, enquanto
princípio, deve valer para todos. Contudo, não diferentemente da idéia formal de
liberdade que marca o pensamento kantiano, a igualdade garantida pele lei é uma
igualdade também formal. Para Kant, o Estado e o Direito devem garantir a chamada
igualdade de oportunidades, a igualdade no ponto de partida. Este é o modelo de
igualdade que marca o liberalismo político e jurídico, sob as bases da doutrina
juspositivista.

A liberdade e a igualdade devem ser formalmente garantidas a todos, mas o sucesso ou


a ruína de cada um depende do seu esforço e talento. Não se deve pretender uma
igualdade substancial e permanente entre os indivíduos, sendo que cada um deve
destacar-se segundo seus talentos e méritos. Segundo defende Cláudio de Cicco, na
introdução da obra de base do presente estudo, para Kant, o que se mostra odioso é o
privilégio no ponto de partida, que deve ser combatido pelo Estado com a garantia do
básico para todos, o que sustenta a igualdade de oportunidades [27].

No que toca à idéia de justiça, pode-se dizer que Kant inaugura um novo modelo
ocidental de justiça, a idéia de "justiça como liberdade", modelo que marcou
profundamente o positivismo jurídico do século XIX e da primeira metade do século
XX, com influência até os nossos dias.

O filósofo de Koenigsberg se afasta da idéia aristotélica [28] de "justiça como igualdade"


e da idéia hobbesiana de "justiça como segurança" [29], para vincular a idéia de justiça à
liberdade. Nas palavras do autor: "É justa toda ação que por si, ou por sua máxima, não
constitui um obstáculo à conformidade da liberdade do arbítrio de todos com a liberdade
de cada um segundo leis universais" [30].

Tomando tal assertiva em um raciocínio silogístico, pode-se dizer que somente é justo
aquilo que se pode conformar com a liberdade do arbítrio de todos os indivíduos,
segundo leis universais. A liberdade do arbítrio de cada um é condicionada pelas leis da
razão, que sujeitam a todos. Portanto, pode-se concluir que é justo tudo aquilo que as
leis universais da razão dizem ser o justo.

Em Kant, a finalidade última do Direito é a liberdade externa. Os homens se reuniram


em sociedade e constituíram o Estado para garantir a liberdade, o exercício do arbítrio
segundo uma lei universal. O Direito não tem por fim último a igualdade ou a
segurança, mas sim a liberdade, liberdade esta garantida a todos os seres dotados de
razão, o que enseja um postulado igualitário e inspira segurança, uma vez que a
liberdade de um deve estar de acordo com a liberdade de todos os outros, segundo uma
lei universal.

4. O sujeito, a sociedade civil e o Estado de direito no pensamento kantiano

Os conceitos de pessoa, sujeito e coisa estão intimamente relacionados à idéia de


imputação. Para Kant, a pessoa é o sujeito cujas ações são suscetíveis de imputação. A
pessoa, dotada de personalidade moral, é um ser livre, racional e responsável, que
somente encontra-se submetida às leis que ela mesma se dá [31]. É um ser livre no
sentido de que somente obedece às leis da razão, protegido contra o arbítrio das outras
pessoas, que por suas ações não podem ferir a sua liberdade.

Uma coisa, inversamente à pessoa, é aquilo que se mostra insuscetível de qualquer


imputação, que não possui liberdade, no sentido positivo, um objeto do livre-arbítrio.
Nesse sentido, os servos e os escravos não são pessoas, são seres humanos sem
personalidade, porquanto não possuem direito algum.

Outro ponto relevante na doutrina do Direito de Kant é o seu modelo de contratualismo.


A doutrina contratualista pode ser dividida, no que toca ao conteúdo do contrato social,
em duas posições distintas: uma teoria contratualista que considera o contrato como um
ato de total alienação dos direitos naturais em favor do Estado, com a extinção do estado
de natureza, como no pensamento de Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau; em
contraposição, para outra corrente há uma limitação recíproca dos direitos naturais, com
a correção e não a extinção do estado de natureza, constituindo-se um poder coercitivo
capaz de garantir o livre exercício desses direitos, como no modelo descrito por John
Locke [32].

No que concerne à instituição do contrato social, no pensamento kantiano o estado


natural é aquele em que não há nenhuma justiça distributiva, em que não existe um
tribunal incumbido de decidir o que é de direito, ou seja, o estado não-jurídico.
Ninguém está seguro do "seu" contra a violência, quando da inexistência de um juiz
imparcial com poderes para legitimamente dizer o que é de direito. A este estado opõe-
se o estado civil, submetido à justiça distributiva [33].

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Não se pode dizer, entretanto, que o estado de natureza kantiano aproxima-se do modelo
descrito por Thomas Hobbes [34], onde os homens aderem ao contrato para garantir suas
vidas, fugindo da insegurança e do constante estado de guerra de todos contra todos a
que estão expostos. Segundo Kant, os homens não têm por máxima a violência e o
estado de guerra. Por outro lado, é certo que o estado não-jurídico sugere uma situação
de constante insegurança e de justiça negativa, uma vez que não existe um juiz
competente para decidir de forma legítima um caso cujo direito se mostra controvertido
[35]
.

O primeiro princípio que deve ser decretado, a fim de manter as noções de Direito, é o
seguinte: "É preciso sair do estado natural, no qual cada um age em função de seus
próprios caprichos, e convencionar com todos os demais (cujo comércio é inevitável)
em submeter-se a uma limitação exterior, publicamente acordada, e por conseguinte
entrar num estado em que tudo o que deve ser reconhecido como o Seu de cada qual é
determinado pela lei e atribuído a cada um por um poder suficiente, que não é o do
indivíduo e sim um poder exterior" [36].

No estado civil há uma relação mútua dos particulares submetidos ao estado jurídico. O
contrato social é ato originário, constitutivo da sociedade. O contrato é fruto da razão
prática e o sujeito que a ele adere não renuncia à liberdade, pelo contrário, tem na
obediência à lei consubstanciada no pacto a expressão máxima da sua liberdade, uma
vez que somente obedece à lei que ele mesmo se dá.

Em Kant, a passagem do estado de natureza para a sociedade civil (estado civil)


assemelha-se ao pensamento de John Locke [37]. A idéia kantiana de contrato social é
sustentada, até certo ponto, no modelo liberal de defesa do direito à propriedade. Assim
prescreve o autor: "Entra num estado em que cada um possa conservar o seu contra os
demais (lex justitiae)" [38].

Nada obstante, o direito à propriedade que em John Locke é um direito natural, no


modelo kantiano somente existe de forma plena e oponível a todos no contrato, não se
constituindo em direito natural. Para Kant, somente há um único direito natural (a
liberdade), na medida em que possa subsistir com a liberdade de todos, segundo uma lei
universal da razão.

A concepção de defesa da liberdade aproxima o pensamento kantiano acerca do contrato


social do modelo defendido por Jean-Jacques Rousseau [39]. Ainda que existam
diferenças na forma de pensar a passagem do estado de natureza para o estado civil,
tanto em Kant como em Rousseau, o homem não perde sua liberdade com o contrato,
apenas abandona sua liberdade natural e selvagem para receber a liberdade civil, a
liberdade positiva de somente obedecer à lei decorrente de sua própria vontade de
legislar. O homem é livre porque está limitado apenas pela lei que ele deu a si mesmo.
O Estado de direito kantiano tem um traço marcadamente jurídico. O que caracteriza a
atividade do Estado é a atividade jurídica, a instituição e manutenção de um
ordenamento jurídico como condição para a coexistência das liberdades externas. Não
se fala em Estado de direito como o Estado regulado ou limitado pelo Direito. Trata-se,
sim, de uma idéia de Estado em que haja a possibilidade de coexistência mútua entre os
indivíduos, segundo uma lei universal de liberdade [40].

Pode-se buscar, ainda, no pensamento kantiano um modelo de Estado de direito que


assegura "o seu" de cada um, em decorrência do princípio jurídico da liberdade que
pode ser assim exposto: "Lesa-me qualquer um que aja conforme uma máxima segundo
a qual é impossível ter como meu um objeto de meu arbítrio"; porque uma constituição
civil é tão-somente o estado de direito que assegura a cada um o Seu; mas sem que esse
estado o constitua nem o determine, propriamente falando" [41].

A idéia de liberdade é a marca distintiva do Estado de direito kantiano. Um estado de


coisas em que o arbítrio de cada um é limitado pelo arbítrio dos demais, segundo um
imperativo da razão. O Estado de direito que garante as liberdades externas dos
indivíduos, segundo uma lei universal de liberdade, na doutrina kantiana constitui-se em
um Estado paulatinamente mais igualitário, vez que a idéia de liberdade em Kant
encerra um postulado igualitário, a liberdade como princípio que deve valer para todos.

5. Formas de governo, divisão de poderes e Constituição

Antes de apresentar o modelo kantiano de divisão de poderes, importa analisar, ainda


que sucintamente, as formas de governo em Kant. Tomando por critério de distinção a
diferença numérica dos detentores do poder soberano, quando apenas um homem manda
há a autocracia; quando alguns iguais entre si mandam em todos os demais há a
aristocracia; e quando todos mandam em cada um e cada um em si mesmo há a
democracia [42].

A forma mais simples é o governo autocrático, consistente na relação única do rei com o
povo. Na aristocracia, há primeiramente a relação dos governantes entre si para
constituir o soberano e deste com o povo. A democracia é a mais complexa de todas as
formas de governo, já que exige a vontade de todos para formar o povo; posteriormente,
a vontade dos cidadãos para formar a república e, finalmente, a vontade da república
para formar o governante, que resulta dessa vontade coletiva [43].

Outro critério de distinção refere-se à diferença no modo de governar. Para Kant, o


soberano pode nortear seu governo de maneira despótica ou republicana. O despotismo
representa o exercício arbitrário do poder. A república, no pensamento kantiano,
consubstancia-se no exercício do poder nos termos da lei que fora produzida por todos
os indivíduos, o tratamento do povo segundo princípios relacionados às leis de
liberdade. Não é tomada como a forma de governo contraposta à monarquia. Tanto que,
no pensamento kantiano, a melhor forma de governo seria uma república governada por
um só, que no Estado moderno ficou conhecida como monarquia constitucional.

O que se constitui em traço distintivo entre o governo despótico e o governo


republicano é o princípio político da divisão de poderes. Tão mais próximo está do
despotismo o Estado quanto mais é gerido pelas leis que este Estado deu a si mesmo,
onde a vontade pública sucumbe à vontade particular do soberano.

Seguindo o modelo traçado por Montesquieu [44], Kant estabelece sua idéia de divisão
de poderes do Estado nos seguintes termos: "o poder soberano (soberania) na pessoa do
legislador, o poder executivo (segundo a lei) na pessoa do governo e o poder judicial
(como reconhecimento de o Meu de cada qual segundo a lei) na pessoa do juiz..." [45].
Neste sentido, com base em um raciocínio silogístico, do legislativo advém a premissa
maior que é a norma geral e abstrata; do executivo, a premissa menor de conformar as
ações segundo a norma geral; do judiciário, a conclusão que decide o direito no caso
concreto.

A relação que se pode dizer de unidade entre os poderes deve ser estabelecida em três
parâmetros. Primeiramente, os poderes devem atuar de forma coordenada, sendo um o
complemento do outro para a organização perfeita da constituição do Estado. Em
segundo lugar, deve haver uma relação de subordinação entre os poderes, no sentido de
que um não pode usurpar a função do outro. Finalmente, a reunião dos poderes, uma
vez que o direito da cada sujeito depende da relação de coordenação e subordinação
entre os poderes [46].

Ainda que sustente a relação de subordinação entre os Poderes, no pensamento kantiano


o poder legislativo é o poder soberano, contra o qual não há possibilidade de nenhuma
resistência legítima da parte do povo. O poder legislativo somente pode pertencer à
vontade coletiva do povo. Se a lei decorre do próprio povo, então dela não pode surgir
injustiça, sendo que só a vontade pública pode ser legisladora. A vontade do legislador é
a lei jurídica que decorre da lei moral, que se pode chamar de vontade do sujeito [47].

Um dos traços constitutivos da idéia de Estado em Kant é a defesa do povo como o


legislador soberano. Ao povo pertence o poder de dar a si a sua lei, de ser autor e
destinatário da lei, segundo um imperativo da razão.

Para Kant, a passagem do estado de natureza para a sociedade civil (estado jurídico) faz
parte de uma espécie de progresso ético, de evolução, a que está impelida a sociedade
humana, impelida "por dever" à realização plena da liberdade, um deve de todos os
seres racionais. A organização da sociedade civil é dada pela Constituição, que estrutura
o Estado e estabelece o "seu" de cada um conforme uma lei universal da razão.

Dessa forma, a Constituição é a expressão da vontade de todo o povo, vontade de se dar


uma lei de liberdade. Se o poder legislativo pertence à vontade coletiva do povo, a
evolução ética da sociedade deve estabelecer uma Constituição republicana, onde o
poder de dar a norma geral e abstrata esteja separado do poder executivo. A paz
perpétua [48], estado possível de progresso ético da sociedade humana, somente pode ser
garantida pela Constituição republicana, enquanto expressão da vontade coletiva do
povo.

Ante um Estado republicano, estruturado com base em uma Constituição republicana,


não existe a possibilidade de resistência legítima do povo. Não há direito à
desobediência civil ou direito de resistência da parte do povo. Este deve suportar até o
abuso do poder soberano, uma vez que qualquer "sublevação contra o poder legislativo
soberano deve sempre ser considerada como contrária à lei, e mesmo como subversiva
de toda constituição legal. (...) Por conseguinte, a alteração de uma constituição pública
(viciosa), que algumas vezes poderia ser necessária, só pode ocorrer através do próprio
soberano, por meio de uma reforma e não por meio do povo; não deve ser feita, pois,
pela revolução" [49].

Kant nega o direito de resistência do povo contra o soberano até como forma de garantir
e fortalecer a Constituição republicana, uma Constituição legal fundada em princípios
de liberdade, única Constituição legítima, perene e capaz de garantir o estado de paz
perpétua entre os povos.

Considerações finais

Um dos traços distintivos do pensamento kantiano acerca da moral e do Direito é o


caráter propositivo de sua metafísica dos costumes. Não há preocupação com o ser (o
que é), mas sim com o que pode ser (o dever ser). A doutrina de Kant acerca do Direito
e da moral é prescritiva (propositiva). Não é a realidade que se constitui em fator de
modificação e transformação do homem enquanto ser racional; pelo contrário, o homem
enquanto ser dotado de razão é que pode agir na realidade, no mundo do ser.

E nesse contexto ganha corpo o cerne da filosofia kantiana: a liberdade (bem supremo),
o ideal de vida racional da humanidade. O homem nasce para ser livre. Liberdade
enquanto livre uso do arbítrio segundo uma lei geral e universal da razão. A liberdade
de somente estar limitado por uma lei da razão dada pelo próprio indivíduo e de estar
protegido contra o arbítrio dos demais, que devem agir segundo a lei universal por todos
convencionada.

A base do liberalismo político que marca o modelo liberal de Estado é a noção kantiana
de liberdade positiva, a liberdade que o indivíduo somente alcança quando aceita deixar
o estado natural e pactuar a sociedade civil, a constituição de um estado jurídico,
pautado por leis de liberdade das quais o legislador é a vontade coletiva do povo.

A influência do pensamento kantiano no modelo jurídico e político liberal é marcante,


também, por sua contribuição para uma nova concepção de justiça, ligada à noção de
liberdade. O indivíduo é um ser livre e racional, que deve agir segundo um imperativo
da razão, segundo as leis de liberdade.

Somente é justa uma ação que possa se conciliar com a liberdade do arbítrio dos demais,
segundo uma lei universal. Somente é justo um sistema jurídico que garanta a
possibilidade de todos os indivíduos livremente desenvolverem sua personalidade,
potencialidades e talentos. É justa e igualitária uma sociedade onde as necessidades
básicas dos indivíduos sejam garantidas pelo Estado, mas que, por outro lado, os
indivíduos sejam livres para o exercício de seus talentos e o alcance da riqueza por seus
méritos.

A teoria kantiana da justiça como liberdade marca profundamente a teoria liberal do


Estado. Na base do modelo de Estado liberal estão as contribuições de Kant acerca da
liberdade, justiça, legalidade e moralidade. O estudo do modelo jurídico liberal e do
nosso modelo jurídico atual passa, certamente, pelo estudo do pensamento kantiano.
Nunca se deve esquecer, por outro lado, que Kant é um homem de seu tempo, um
pensador do século XVIII, cuja obra sofre sensivelmente as influências do contexto
histórico ocidental, a Revolução Francesa, o movimento iluminista, as lutas contra o
despotismo; não há preocupação com uma visão social do Direito e do Estado, que
marca os séculos XIX e XX.

As críticas ao pensamento jurídico, político e filosófico de Kant são as mais diversas e


vêm sendo feitas desde o século XIX. O presente estudo não se preocupou em explorá-
las, ainda que muitas delas sejam de profundo acerto e pertinência. O certo é que, ou
para criticá-lo, ou para superá-lo, ou para reinterpretá-lo e engrossar as fileiras de seu
pensamento, Kant é um autor que se mostra extremamente atual e impossível de ser
esquecido, qualidades realmente privativas dos verdadeiros clássicos.

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