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COLONIALIDADE DA ARTE.
Daniel Pellegrim Sanchez. UFMT1
Ludmila Brandão. UFMT2

Resumo:
Orientado pelo pensamento de Walter Mignolo de “descolonizar a estética para liberar aesthe-
sis”, este artigo discute como o pensamento moderno ocidental rege os critérios de validação sobre a
produção artística mundial. Aborda a noção grega de aesthesis (sensação) e a apropriação da mesma,
no século XVIII, por filósofos como Baumgarten e Kant. Apropriação que possibilitou o nascimento
da “narrativa estética” eurocentrada, a qual distinguiu/distingue o diferente, classificando-o e des-
qualificando-o em relação à arte europeia, num momento histórico em que os países colonizadores se
fortaleciam economicamente e culturalmente pelo processo de colonização das Américas, Ásia e de
África. É nesse contexto que surgem distinções como arte e artesanato, ou seja, são usados critérios
como de que uma “tela” é arte e um objeto de argila “artesanato”, de que antigos “livros chineses”
(rolos de papel) e objetos e códigos da civilização Asteca sejam exibidos em Museus de História
Natural. É a partir do século XVIII que se constrói na Europa o “museu” (casa das musas) formando
uma nova complexidade na arte e na estética. Esse sistema que aí começa a se constituir vai se firman-
do, ao longo dessa história, como o “trajeto único” das artes que se incumbe de legitimar os artistas
que conseguem percorrê-lo. Em se tratando de arte produzida na América Latina, no Brasil e mais
especificamente em Mato Grosso e em sua capital Cuiabá, é a esse “trajeto único” fortalecido e repro-
duzido com mais separações, classificações e hierarquizações, que este texto se opõe, vislumbrando
possíveis caminhos “outros”.
Palavras-chave: Aesthesis. Estética. Trajeto único. Colonialidade/decolonialidade.

Abstract:
Guided by the thought of Walter Mignolo “to decolonize aesthetic to release aesthesis”, this
article discusses how modern Western thinking governs the validation criteria on global artistic pro-
duction. Addresses the Greek notion of aesthesis (feeling) and its appropriation in the eighteenth
century by philosophers such as Baumgarten and Kant. Appropriation that enabled the birth of eu-
rocentered “aesthetic narrative,” which distinguished / distinguishes the different, classifying it and
disqualifying it in relation to European art, in a historical moment in which the colonizing countries
were strengthened economically and culturally by the colonization process of the Americas, Asia and
Africa. It is in this context that appear distinctions like art and craft, in other words, arise criteria like
“that a ‘screen’ is art and an argil object is ‘craft’”; that old “Chinese books” (scrolls) and objects
and codes of Aztec civilization are displayed in Natural History Museums. It is from the eighteenth
century that the “museum” (home of the Muses) is built in Europe, forming a new complexity in art
and aesthetics. This system that starts there will be firming over this story, as the “only path” of the
arts who undertakes to legitimize the artists who can course it. When it comes to art produced in Latin
America, Brazil and more specifically in Mato Grosso and its capital Cuiabá, this is the “only path”
strengthened and reproduced with more separations, classifications and hierarchies, which this text
make opposition, glimpsing possible ways “other”.
Keywords: Aesthesis. Aesthetics. Single path. Coloniality/decoloniality.

1 Daniel Pellegrim Sanchez - Artista, Mestrando em Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade Fe-
deral de Mato Grosso (UFMT), Especialista em Planejamento e Gestão Cultural pela Universidade de Cuiabá (UNIC/
PUCMG), Bacharel em Direito na Universidade de Cuiabá (UNIC). / s15atelie@gmail.com
2 Ludmila de Lima Brandão - Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (PUC-SP), pós-doutorado em Crítica da Cultura pela Université d’Ottawa/Canadá. Coordenadora de Ensino de
Pós-Graduação da UFMT e do Núcleo de Estudos do Contemporâneo (CNPq/UFMT). / ludbran@terra.com.br

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É no contexto da modernidade e da colonialidade que lhe é constitutiva, que se realiza a


operação cognitiva de colonização da aesthesis pela estética.
Walter Mignolo, em entrevista dada ao evento BE.BOP 2012 – BLACK EUROPE BODY
POLITICS3, realizado em Berlin, escreve sobre o processo global de “descolonizar a estética para
libertar aesthesis” como resposta e esforço de desvinculação com o lado mais sombrio da moderni-
dade e da globalização, ou seja, com a colonialidade.
Para Mignolo (2010), Aristóteles (335 a.C. e 323 a.C) em A Poética, distingue aesthesis de
poiésis e “fue acerca de la poiesis que Aristóteles teorizó en el discurso de la Poética; y en la poética,
mimesis y catarsis”4 (2010, p. 14). Quanto à aesthesis, Mignolo trata-a como outra esfera, que se as-
socia ao sentimento, ao afeto e à percepção. Enquanto a poiésis tem o foco na rede de relações entre
as criações artísticas, a aesthesis destaca a sensibilidade do público. “Faculdade de sentir”, “com-
preensão pelos sentidos”, “percepção totalizante” são conceitos derivados da aesthesis.
Mignolo (2009, p. 10) afirma que a palavra “estética deriva de aiesthetikos” e que a apro-
priação do conceito de aesthesis foi feita no século dezoito, na Europa, por filósofos como Alexander
Gottlieb Baumgarten e Immanuel Kant. Ainda para o autor (2009, p.10), “antes de Baumgarten y
la publicación de Aesthetica (1750) la palabra es poco usual tanto en el latín como en las lenguas
vernáculares Europeas” 5. Na época em que surge a palavra, a Europa vivia um momento de mudanças
radicais em seu imaginário. Dentre essas mudanças, Mignolo (2009) cita a aceitação de “religiões do
mundo” – instrumento com o qual o estudo secular das religiões desloca o controle que a teologia
cristã teria nesse domínio – e a criação da linguagem da economia política com a obra clássica de
Adam Smith, A riqueza das nações (1776). O projeto revolucionário europeu do secularismo6 uniu
estética, teologia cristã e economia política, mobilizando e modelando a segunda expansão imperial7
liderada por França e Inglaterra. É também neste momento que o conceito de literatura se expande.
Walter Mignolo (2009, p. 10) cita também a obra de Kant Observações sobre o belo e o sub-
lime (1776, seção IV) para dizer que a partir desse momento, “cuanto más va el pensamiento de Eu-
ropa hacia el sur y hacia Oriente y llega a Asia, África y América, menor parece ser – para este modo
de pensar – la capacidad de las poblaciones no europeas de sentir lo bello y lo sublime estético”8. Ao

3 MIGNOLO, Walter. Decolonial Aisthesis and Other Options Related tho Aesthetics. Be.Bop 2012. Black Eu-
rope Body Politcs. Berlin. Alemanha, 2012.
4 Tradução nossa: “foi acerca da poiesis que Aristóteles teorizou o discurso da Poética; e na poética, mimesis e
catarsis”
5 Tradução nossa: “antes de Baumgarten e a publicação de Aesthetica (1750) a palavra era pouco usada tanto em
latin quanto nas línguas vernaculares europeias”.
6 sm (secular+ismo) 1 Regime secular ou laical. 2 Espírito ou tendência secular. 3 Sistema ético que rejeita toda
forma de fé e devoção religiosas e aceita como diretrizes apenas os fatos e influências derivados da vida presente; laicis-
mo. 4 Doutrina segundo a qual devem ser excluídos da educação pública e de outros assuntos estatais elementos religio-
sos. (DICIONÁRIO ONLINE DE PORTUGUÊS, 2014. Disponível em:< http://www.dicio.com.br/secularismo/> Acesso
em 11/09/2014.)
7 Pressupomos que a primeira expansão imperial moderna trata-se da chegada de espanhóis e portugueses no
continente americano no século XV.
8 Tradução nossa: “quanto mais vai o pensamento da Europa ao Sul e ao Oriente, chegando a Ásia, África e
América menor parece ser – para esse modo de pensar – a capacidade dessas populações não europeias de sentir o belo e
o sublime estético”

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transformar as sensações em apreciação do belo e do sublime, gerou-se um sistema que privilegiou o


olhar sobre os outros sentidos e é por isso que a representação e a denotação – articuladas à noção de
poiesis – tomaram tamanha importância na modernidade. Mignolo (ESTÉTICAS DECOLONIALES,
2010) justifica que “por isso é tão difícil entendermos e sentirmos as sensações de um Aymara, um
Quechua, que não tem o olhar como ponto de referência”.
Para Mignolo (2009, p.11), o estético e o conceito secular de razão cumprem duas funções
complementares, são elas:

a) en Europa se comienza a construir una subjetividad secular y burguesa que


se separa de la subjetividad sagrada y teológica construída a partir del Re-
nacimiento y liderada por los países del sur y, b) fuera de Europa, la estética
emerge como un nuevo concepto y critério para (de)evaluar y jerarquizar la
creatividad sensorial de otras civilizaciones.9

Segue explicando ainda que é neste contexto que surgem distinções como arte e artesanato, ou
seja, são usados critérios como “de que uma ‘tela’ é arte e um objeto de argila ‘artesanato’”, de que
antigos “livros chineses” (rolos de papel) e objetos e códigos da civilização Asteca sejam exibidos em
Museus de História Natural. É a partir do século XVIII que se constrói na Europa o “museu” (casa
das musas) formando uma nova complexidade na arte e na estética. No decorrer do século XIX, os
museus acabam por se dividir em duas trajetórias: “el ‘museo’ que organiza la memoria y el arte de
Europa y el ‘museo’ que colecciona y organiza los objetos exóticos de las colonias de Europa, aún
aquellos anteriores al momento de la colonización”10 (MIGNOLO, 2009, p.11). É nesta época que
mercadores, viajantes e coletores buscam, ao redor do mundo, objetos exóticos que não são consid-
erados arte mas que, por sua vez, constituem a colonialidade do saber (conhecimento) e, por conse-
guinte, do ser (subjetividade).
Para Mignolo (2009, p.12):

La estética atraviesa género y sexualidade, y también racialidad en tanto arte


y estética imponen un patrón ideal de beleza que va del arte a Miss Universo
y la indústria de la moda. Y el arte (también la filosofia, la ciência, la tecnolo-
gia e la religión cristina) estabelece un patrón a partir del cual se classifica y
jerarquiza el orden del mundo. La estética y el arte fueron y continúan siendo
instrumento institucional de colonialidad. 11

9 Tradução nossa: a) na Europa se começa a construir uma subjetividade secular e burguesa que se separa da
subjetividade sagrada e teológica construída a partir do Renascimento e liderada por países do sul e b) fora da Europa, a
estética emerge como um novo conceito e critério para (des)avaliar e hierarquizar a criatividade sensorial de outras civi-
lizações.
10 Tradução nossa: “o ‘museu” que organiza a memória e a arte da Europa e o ‘museu’ que coleciona e organiza os
objetos exóticos vindo das colônias da Europa, aqueles anteriores ao momento da colonização”
11 Tradução nossa: A estética atravessa gênero e sexualidade, e também racialidade, tanto arte quanto estética
impõe um padrão ideal de beleza que vai da arte a Miss Universo e a indústria da moda. É a arte (também a filosofia, a
ciência, a tecnologia e a religião cristã) que estabelece um padrão a partir do qual se classifica e hierarquiza a ordem do
mundo. A estética e a arte foram e continuam sendo instrumento institucional de colonialiade.

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Assim, como em uma máquina de produzir diferenças e hierarquias, a estética e a arte seguem
criando padrões. Além da diferença entre as culturas, existe também o aspecto da distância. Para Zu-
lma Palermo (2009, p.16):

La diferencia instala los critérios de superioridad/inferioridad entre las cultu-


ras; la distancia señala una doble magnitude: por un lado, la de carácter físi-
co: la lejanía con el centro de poder; la outra, de caráter temporal: progreso/
atraso que niega contemporaneidad a lo distinto; ambas dan consistência a la
relación entre civilización y cultura, y entre cultura y naturaleza.12

Para Palermo (2009, p.16), na América Latina, desde o primeiro e trágico contato com eu-
ropeus no século XV, podem ser identificadas buscas de alternativas ao poder hegemônico. Essa
genealogia de mais de 500 anos à procura de plataformas de pensamento próprio, de pensamentos e
produções autônomas se mostra como uma diferença fundamental em relação ao pensamento produz-
ido nas últimas colônias (Índia, África e Oriente) que romperam com a sujeição política aos impérios.
Palermo (2009, p.17) informa que “desde esse primer contacto, las oposiciones valorativas: superi-
oridad vs. inferioridad, primitivo vs. civilizado habrán de regir los criterios estéticos que se ponen en
circulación”13.
Do dualismo ontológico natureza/cultura, desdobram-se as oposições primitivo/civilizado,
tradicional/moderno, popular/erudito, subalterno/hegemônico, impuro/puro, atraso/progresso, re-
gional/universal, longe/perto, local/global entre outras. Para Palermo (2009, p. 17) são:

Las “escuelas” – en sus dos dimensiones occidentales: como centros de adquisición


de conocimientos y como corrientes estéticas – se instalan y generan los criterios de
validación que habrán de regir durante más de cinco siglos. Descartadas las produc-
ciones de las culturas preexistentes y consideradas sólo por su autoctonismo – rasgo
de disvalor frente a “universalidad” de las obras que se canonizam – las que se orig-
inan en este cono del mundo no sólo devem adecuar-se a los “modelos” exteriores,
sino que siempre se verán como “asíncrónicas” por ralación a éstos ya que los rasgos
de innovación llegan tarde y, por general, sin su “pureza” y “autenticidad”. Es esta
concepción de superioridad la que llevó siempre a nuestros artistas a atravesar los
mares y cruzar el continente para acercarse a las fuentes directas del “saber hacer”
como los “outros”. Acá radica la colonialidad: en el estar convencidos de “el bien, la
verdad y la belleza” están en otro lugar y no en el próprio.14

12 Tradução nossa: A diferença instala os critérios de superioridade/inferioridade entre as culturas; na distância


nota-se uma dupla magnitude: por um lado, a de caráter físico: a distância com o centro do poder; a outra, de caráter
temporal: progresso/atraso que nega contemporaneidade ao distinto: ambas dão consistência a relação entre civilização e
cultura e entre cultura e natureza.
13 Tradução nossa: “desde esse primeiro contato as oposições valorativas, superioridade vs inferioridade, primitivo
vs civilizado, irão reger os critérios estéticos que se põe em circulação.”
14 Tradução nossa: As “escolas” – em suas duas dimensões ocidentais: como centros de aquisição de conhecimen-
tos e como correntes estéticas – se instalam e geram os critérios de validação que irão regir durante mais de cinco séculos.
Descartadas as produções das culturas preexistentes e consideradas somente poe sue autoctonismo – recurso de desvalor
frente a “universalidade” das obras que se canonizam – as que se originan neste cone do mundo não só devem adequar-se
aos “modelos” exteriores, mas que sempre se verão como “assincrônicas” em relação a estes já que os recursos de inova-
ção chegam tarde e, em geral, sem sua “pureza” e “autenticidade”. É esta concepção de superioridade que levou sempre
nossos artistas a atravessar os mares e cruzar o continente para aproximar-se das fontes diretas do “saber fazer” como os
“outros”. Aqui radica a colonialidade: em estar convencidos de que “o bem, a verdade e a beleza” estão em outro lugar e

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Assim, na esteira de Palermo (2009), se faz necessário discorrermos sobre o conceito de lu-
gar, tentando ir além das concepções de espaço físico e habitat, principalmente nos dias de hoje onde
circula com muita intensidade o discurso da globalização. Para Palermo (2009, p.17) “el lugar és mas
bien lo que dá significado al mundo integrando cosas, cuerpos y memorias en configuraciones par-
ticulares, generando espacios o regiones para la existencia15. Para Palermo, há uma enorme diferença
entre habitar um lugar, viver em um lugar e estar determinado por ele – por mais que saibamos o
quanto os lugares condicionam modos de vida. O lugar, pela perspectiva de Palermo, está atravessado
por muitos lugares. Diversas formas de pensamento e de produção constituem um trabalho de arte.
Assim, é possível fazer uma reflexão sobre as oposições local/global na arte, sobre a produção local
e a circulação global. Segundo Palermo (2009, p.18) temos que pensar sobre “las formas por las que
la lugarización alcance “plusvalia” y validez para formar parte de esa expansión em simetria com
la procedente de cualquier localización planetária”16. Com isso, assumimos que a expansão gerada
pela globalização produz relações assimétricas de produção e circulação artística. Segundo Palermo
(2009, p. 18):

La cuestión se plantea en las formas por las que se puede concretar la decoloniali-
dad de la “narrativa estética” eurocentrada. Cuando nos decimos a nosotros mismos
dentro del campo del arte, lo hacemos con los instrumentos (linguajes y técnicas)
adquiridos.17

Assim Palermo questiona: Existe una posibilidad distinta para uma “estética” que dé for-
ma a una “ética” de la diferencia?18
Para responder a essa questão, propomos acompanhar os modos pelos quais as diferenças
são produzidas. E perguntamos: Para que e para quem são produzidas? Quem/o que se beneficia
da(s) diferença(s) no campo das artes?
Sobre essa questão Boaventura de Sousa Santos (2003, p. 56) diz:

Temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o
direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a neces-
sidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não
produza, alimente ou reproduza as desigualdades.

Como isso pode orientar uma ética da diferença que permeie as artes?
Entendemos que uma obra de arte se potencializa enquanto trabalho decolonial quando evi-
dencia, justamente, os modos de produção de diferença, quando põe à baila os atores dessa rede de

não nele próprio.


15 Tradução nossa: “O lugar é por sua vez o que dá significado ao mundo integrando coisas, corpos e memórias em
configurações particulares, gerando espaços ou regiões para a existência.
16 Tradução nossa: “as formas pelas quais a lugarização alcance “plusvalia” e validez para fazer parte dessa expan-
são em simetria com a procedente de qualquer localização planetária.”
17 Tradução nossa: A questão surge nas formas pelas quais se pode concretizar a decolonialidade da “narrativa
estética” eurocentrada. Quando nos dizemos a nós mesmos dentro do campo da arte, o fazermos com os instrumentos
(linguagens e técnicas) adquiridos.
18 Tradução nossa: Existe uma possibilidade distinta para uma “estética” que dê forma a uma “ética” da diferença?

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relações a que chamamos “sistema das artes”, o qual invisibiliza ou desqualifica outros mundos da
arte e suas produções que mal conseguem sair dos lugares de confinamento que lhes são destinados.
A produção artística decolonial pede circuitos outros, não se alinha, não está “atrás” da produção
europeia/estadunidense, está lado a lado, é produzida junto, pelo mesmo projeto que qualifica e des-
qualifica modos de fazer arte e de ser artista, instaurando espaços para que uns vivam – e bem – de
arte e negando espaços a outros.
Percebemos na América Latina a repetição das “narrativas estéticas” eurocentradas, princi-
palmente francocentradas, gerando inclusive alguns modismos na Academia – o que configura a
colonialidade estética; por outro lado existe a busca por “narrativas outras”, as quais podemos citar
com Palermo (2009, p.19) o “barroco americano, passando por antropofagias, transculturações e
hibridações de diferentes cunhos”. Além dessas respostas outras começam a ser gestadas, como bem
evidencia Walter Mignolo em Aiesthesis Decolonial (2010), que podemos “garimpar” dentro e fora
do Brasil, nas metrópoles ou no interior, obras que das mais diversas maneiras, explícita ou implici-
tamente, questionam as perversidades do “sistema da arte” – sistema este que reproduz as “narrativas
estéticas” eurocentradas que orientam os diversos modos, modelos e vias de produção e circulação de
arte, tais como curadoria e crítica, museus e galerias, jornalismo cultural, mercado de arte etc. Cito
como exemplo a obra de Yuri Firmeza, do Ceará, que inventou um artista e uma exposição para ques-
tionar a imprensa, curadorias, espaços expositivos e fazer uma crítica ao mundo da arte, evidenciando
a geopolítica que hierarquiza “artistas e obras segundo as origens, a classe social, o gênero, a etnia
etc.” (BRANDÃO, 2014 a, p.1), tendo como referência aqueles que produzem nos centros mundiais
da arte (Nova Iorque, Londres, Paris, Berlin etc.): o topo da mesma hierarquia.

O trajeto único das artes

Entre os muitos textos e entrevistas de Milton Santos sobre o totalitarismo da globalização,


sobre o pensamento único19, destaco uma em que afirma que o globalitarismo é um neologismo que
representa a globalização somada ao totalitarismo, ou seja, a globalização perversa e totalitária em
que vivemos. De acordo com Santos (ENTREVISTA, 2008):

[...] estamos vivendo uma nova fase de totalitarismo. O sistema político uti-
liza os sistemas técnicos contemporâneos para produzir a atual globalização,
conduzindo-nos para formas de relações econômicas implacáveis, que não
aceitam discussão, que exigem obediência imediata, sem a qual os atores são
expulsos da cena ou permanecem dependentes, como se fossem escravos de
novo. Escravos de uma lógica sem a qual o sistema econômico não funciona.
Que outra vez, por isso mesmo, acaba sendo um sistema político. Esse glo-
balitarismo também se manifesta nas próprias idéias que estão atrás de tudo.
E, o que é mais grave, atrás da própria produção e difusão das idéias, do
ensino e da pesquisa. Todos obedecem, de alguma maneira, aos parâmetros
estabelecidos. Se estes não são respeitados, os transgressores são marginal-

19 Entrevista concedida a José Corrêia Leite, editor do Jornal Em Tempo. Disponível em:<http://www.controver-
sia.com.br/index.php?act=textos&id=2412> Acesso em 21/08/2013.

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izados, considerados residuais, desnecessários ou não-relevantes. É o chama-


do pensamento único. Algumas vozes críticas podem se manifestar, uma ou
duas pessoas têm permissão para falar o que quiserem, para legitimar o dis-
curso da democracia. Só que a estrutura do processo de produção das ideias
se opõe e hostiliza essa produção de idéias autônoma e, por conseguinte, de
alternativas.

Diante da realidade informacional, Santos alerta para as manobras e o controle impostos pela
grande finança (grandes corporações internacionais, bancos, governos mundiais etc.), que tem a in-
formação como instrumento de dominação e colonização. De acordo com Santos, a informação é o
grande instrumento do processo de globalitarismo e da produção de novas formas de totalitarismo
de vida, porém, quando manejada por pequenos grupos, de forma inteligente, podem produzir exata-
mente o efeito oposto20.
Desse modo, Milton Santos lança seu grito do território21 como ação afirmativa que visa re-
sponder às verticalidades perversas da globalização, se opondo aos fundamentalismos do consumo
irresponsável através de processos de resistência que partem dos lugares onde tais perversidades
foram impostas.
Santos, buscando o efeito comunicacional oposto à informação globalitarista, observa como
as sociedades periféricas se estruturam, desvelando suas potencialidades produtivas, seus modelos
sustentáveis de produção, seja na construção de moradias, na agricultura, na circulação das pessoas,
nos comportamentos lúdicos construtivos, nas relações interpessoais, nas formas de manifestação
e constata que, embora em muitos casos exista escassez de objetos e materiais, estas comunidades
produzem respostas originais, com o uso criativo desses mesmos objetos e tecnologias, conseguindo
globalizar um olhar outro. Santos fala que a produção criativa dessas comunidades muitas vezes é
invisibilizada devido ao seu caráter político, de oposição à racionalidade única da modernidade, desse
modo, a profunda relação com o local cria formas próprias de racionalidade e geralmente estes enun-
ciados são contrários ou são críticos à lógica da dependência da ordem global.
A arte, a movimentação cultural pode dar visibilidade crítica ao espetáculo globalitarista,
produzindo enunciados de oposição, e isso costuma ser veementemente combatido, seja através da
cooptação do(a) artista para uma “arte oficial”, seja provocando isolamentos, difamações, desqualifi-
cações e até torturas psicológicas.
Com as respostas das periferias, do lado de cá (sul do mundo), Santos prevê um novo período
histórico, que ele chama de período popular da história. Para Santos, devemos

[...] pensar na construção de novas horizontalidades que permitirão, a partir


da base da sociedade territorial, encontrar caminhos que nos libere da mal-
dição da globalização perversa que estamos vivendo e nos aproxime da possi-

20 TENDLER, Silvio. Encontro com Milton Santos ou O Mundo Global Visto do Lado de Cá. Documentário
de Silvio Tendler. Rio de Janeiro. Caliban Produções. 2006. Disponível em:< https://www.youtube.com/watch?v=-UUB-
5DW_mnM> Acesso em 21/08/2013.
21 De acordo com a Prof. Maria Adélia Aparecida de Souza (SANTOS, Milton, 2005, p. 254) o Grito do Território
é uma espécie de revanche ao globaritarismo, ou seja, ações que a partir do território e dos lugares irão gerar um novo
tempo em que Milton Santos denominou de período popular da história, período esse mais solidário.

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bilidade de construirmos uma outra globalização, capaz de restaurar o homem


na sua dignidade (SANTOS, 2005, p. 256).
Com Milton Santos, podemos afirmar que o sistema das artes se estrutura em um trajeto
único, totalitário, viciado pelo sistema político e que reproduz as relações econômicas implacáveis
da globalização, mas também, e sobretudo, produz diferenças e hierarquias (QUIJANO, 1992) que
deixam à margem uma grande quantidade de pessoas. Assim, o que se propõe é ensaiar caminhos
outros que se configurem em alternativas a esse modelo.

Respostas à colonialidade
Em novembro de 2010, realizou-se em Bogotá, Colômbia, a exposição denominada “Esteticas
descoloniales”. Além da apresentação das obras, o evento contou com publicação de catálogo e pales-
tras dos artistas e do proponente da mostra – Walter Mignolo – conteúdo que foi disponibilizado na
internet (ESTÉTICAS DECOLONIAIS, 2010). Em sua fala, Mignolo discute a exposição denomina-
da Black Mirror-Espejo Negro – realizada de 22 de maio de 2008 a 18 de janeiro de 2009, no Nasher
Museum, na Duke University, na cidade de Durham, Carolina do Norte – do artista mexicano Pedro
Lasch. Convidado a falar de seus projetos em Bogotá, Lasch mostra a articulação de seu trabalho
com a exposição de El Greco e Velásquez que ocorreu no período de 1598 a 1621 e explica que cerca
de 100 anos antes desse período, teve início um dos maiores genocídios da história da humanidade,
ou seja, em 1492, quando Cristóvão Colombo chega à América. Na ocasião, existiam no continente
da América Central e do Sul, cerca de cinquenta milhões de pessoas, sendo vinte e cinco milhões de
Astecas, doze milhões de Incas, entre outros e, segundo o artista, estas estimativas não são generosas,
são um meio termo, pois gerar estimativas precisas de populações, a esta altura da história, é bas-
tante difícil. Em 1650, passados aproximadamente cento e cinquenta anos da chegada de Cristóvão
Colombo, a população estava reduzida a oito milhões de pessoas, ou seja, quarenta e dois milhões de
pessoas apagadas da história.
Segundo Mignolo (2012), em exposição de igual importância realizada em Berlim, na Ale-
manha, surgem outras obras que demostram que a violência empreendida nesse processo de coloni-
zação, a partir do século XVI, continuou nos séculos seguintes. Nomes como o de Saartjie “Sarah”
Baartman (1789-1815) – mulher Khoisan do sudeste da África, comumente usada como atração se-
cundária de circo na Europa do século XIX –; Ota Benga (1883 – 1916) – um pigmeu Mbuti, congolês
conhecido por sua polêmica exibição em um “zoo humano” no Zoológico do Bronx, Nova York, em
1906 –; e o do chefe Namaqua Hendrik Witbooi22, são usados na composição de obras de arte.
Além da Carolina do Norte, Berlin e Nova York – que têm em suas histórias, ligações evi-
dentes com o racismo – nas curadorias e artigos de Walter Mignolo, aparecem cidades como Bogotá
na Colômbia, Quetzaltenango na Guatemala, Bienal de Sharjah nos Emirados Árabes Unidos, entre
outras. Mignolo, por meio da opção decolonial, ensaia caminhos outros por várias vias, responden-

22 O genocídio dos Hererós e Namaquas ocorreu onde hoje se localiza a Namíbia, entre 1904 e 1907, durante o
processo de colonização de África pelos Alemães. É considerado o primeiro genocídio do século XX. Foi claramente um
comando para eliminar as pessoas pertencentes a um grupo étnico específico e só porque eles eram parte deste grupo
étnico. Alguns crânios foram levados para as universidades na Alemanha para comprovar cientificamente a superioridade
dos brancos.

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do à colonialidade em lugares onde ela é imperativa, como também ocupando e dando visibilidade
a espaços considerados – pelo ethos hegemônico – como sendo periféricos. Para além dos lugares,
é interessante observarmos o corpo artístico das exposições composto por artistas e obras vindos da
América Latina (notadamente Quito, Bogotá, Bucaramanga, Cidade do México etc.), Oriente Médio,
de África e do Leste Europeu, a exemplo da artista sérvia Tanja Ostojic e outras/os de cidades como
Saravejo, Viena e Ljubljana, artistas e obras com narrativas estéticas decoloniais.
Walter Mignolo (DECOLONIAL AESTHETCS, 2010) fala de “pontos de origem” para diz-
er que a ideia de modernidade, de pós-modernidade e altermodernidade tem sua origem na Europa
e a ideia de descolonização tem seus “pontos de origem” em todo “terceiro mundo”, sobretudo em
África. Para esse autor, a origem do conceito de descolonização pode ser colocada na Conferên-
cia de Bandung (1955), pois na mesma década de realização desse evento, Frantz Fanon, Amilcar
Cabral, entre outros autores passam a produzir textos usando este conceito. Isso é importante para
compreendermos a posição de Nicolas Bourriaud por ocasião da curadoria Altermodern, na Trienal
Tate Modern, em 2009. A altermodernidade de Bourriaud, diz Mignolo, “é um projeto de família
europeia”, resultado de uma insuficiência da pós-modernidade eurocentrada, que segue articulada
(como na modernidade) segundo uma cronologia linear, sob a égide da categoria “tempo”. Bourriaud
se dá conta de que é preciso olhar para o “espaço”. Contudo, diz Mignolo, trata-se da visão europeia
de espaço. Na exposição Altermodern, os autores estrangeiros convocados são dos Estados Unidos e
do Japão, daí deduz-se que a altermodernidade proposta por Bourriaud está olhando para um mundo
afim, para as “sucursais” europeias, seus afiliados pelo mundo, que tem na modernidade seu ponto
de origem. Já o projeto decolonial, diz, está atento a outras problemáticas, ou seja, à maneira como
os artistas/intelectuais do terceiro mundo respondem, inclusive à altermodernidade. Para Mignolo, o
importante não é decidir sobre qual perspectiva é a melhor ou pior, mas admitir que as duas posições
são legítimas mas precisam ser olhadas desde a geopolítica do sentir, do pensar, do conhecer.
Notamos que ainda não há espaços no Brasil com exposições na perspectiva decolonial, bem
como não há artistas brasileiros participando das mesmas. Sobre isso Luciana Ballestrin (2013, p.111)
escreve:
[...] uma questão importante que não povoa o imaginário pós-colonial e de-
colonial do Grupo Modernidade/Colonialidade é a discussão sobre e com o
Brasil. Esse é um ponto problemático, já que a colonização portuguesa – a
mais duradoura empreitada colonial europeia – trouxe especificidades ao caso
brasileiro em relação ao resto da América. O Brasil aparece quase como re-
alidade apartada da realidade latino-americana. É significativo o fato de não
haver um(a) pesquisador(a) brasileiro(a) associado ao grupo23, assim como
nenhum cientista político – brasileiro ou não. Também o grupo foi atingi-
do pelo “complexo de Colombo” (Melman, 2000)24. Assim, ele privilegia a
análise da América hispânica em detrimento da portuguesa e chama pouca
atenção aos processos de colonialidade e subimperialismo dentro do conti-
nente, a exceção dos Estados Unidos.

23 Há referências aos brasileiros Darcy Ribeiro, Milton Santos e Gustavo Lins Ribeiro. Ribeiro (2011) identificou
essa ausência e desenvolveu a perspectiva “pós-imperialista” que incorpora a análise do Brasil.
24 MELMAN, Charles (2000). “O complexo de Colombo”, em ASSOCIATION FREUDIENNE INTERNATIO-
NALE (org.). Um inconsciente póscolonial, se é que ele existe. Porto Alegre: Artes e Oficios.

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No âmbito da arte, um caminho decolonial possível está certamente na articulação entre ar-
tistas, curadores, pesquisadores, galeristas, críticos de arte, entre outros, do Brasil e dos países da
América do Sul. No caso de Mato Grosso que, em termos territoriais fica próximo à Bolívia, ao Para-
guai, ao Peru, poderiam ser traçadas estratégias conjuntas que engendrariam circuitos outros de arte,
abrangendo também outros países da América do Sul.
Outro caminho possível a ser traçado pode começar a se delinear se agregarmos o que foi
e está apartado no próprio estado de Mato Grosso, ou seja, o que até então vem sendo chamado de
“arte indígena”, “arte popular”, “arte contemporânea”... Esses caminhos só existirão à medida que os
trilharmos...

Referências

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PALERMO, Zulma. Arte y estética em la encrucijada descolonial. Buenos Ayres: Del Signo, 2009
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Sites
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troversia.com.br/index.php?act=textos&id=2412> Acesso em 21/08/2013.
TENDLER, Silvio. Encontro com Milton Santos ou O Mundo Global Visto do Lado de Cá. Doc-
umentário de Silvio Tendler. Rio de Janeiro. Caliban Produções. 2006. Disponível em:< https://www.
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