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INFÂNCIA NO BRASIL
EDITORA DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ
Reitor: Prof. Dr. Júlio Santiago Prates Filho
Vice-Reitora: Profa. Dra. Neusa Altoé
Diretor da Eduem: Prof. Dr. Alessandro Lucca Braccini
EDUEM - EDITORA DA
Editora-Chefe da Eduem: Profa. Dra. Terezinha Oliveira
UNIV. ESTADUAL DE MARINGÁ
http://www.eduem.uem.br
Profa. Dra. Ana Lúcia Rodrigues
EQUIPE TÉCNICA
Fluxo Editorial: Cicília Conceição de Maria
Edneire Franciscon Jacob
Mônica Tanati Hundzinski
Vania Cristina Scomparin
Projeto Gráfico e Design: Marcos Kazuyoshi Sassaka
Artes Gráficas: Luciano Wilian da Silva
Marcos Roberto Andreussi
Marketing: Marcos Cipriano da Silva
Comercialização: Norberto Pereira da Silva
Paulo Bento da Silva
COPYRIGHT © 2014 EDUEM Solange Marly Oshima
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, mesmo parcial,
Elaine Rodrigues
(ORGANIZADORA)
História da
Infância no Brasil
39
Maringá
2010
Coleção Formação de Professores - EAD
ISBN 978-85-7628-247-1
CAPÍTULO 2
Histórias de infância, memórias de
escola e suas implicações à Educação infantil
> 31
Magda Sarat
CAPÍTULO 3
Estilos de psicoclínicas: livrar a infância
dos embaraços psíquicos (1930-1940)
> 49
Carlos Roberto da Silva Monarcha
CAPÍTULO 4
A educação infantil no Paraná: o início da história (1862-1915)
Maria Cristina Gomes Machado / Jaqueline Delgado Paschoal
> 61
CAPÍTULO 5
Educando a infância paranaense de 1990 > 81
Elaine Rodrigues
5
HISTÓRIA DA INFÂNCIA CAPÍTULO 6
NO BRASIL
Representações de infância e
literatura infantil – conexões a serem feitas
> 95
Rosa Maria Hessel Silveira / Iara Tatiana Bonin / Edgar Kirchof
CAPÍTULO 7
A infância (de todos nós) que está no cinema
Fátima Maria Neves
>107
CAPÍTULO 8
História, infância e Educação: políticas públicas em foco
Ângela Mara de Barros Lara / Eliana Cláudia Navarro Koepsel
> 121
6
S obre os autores
educacionais e Infância.
Cultura Contemporânea.
Elaine Rodrigues
Professora Adjunta do Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade
7
HISTÓRIA DA INFÂNCIA Eliana Claudia Navarro Koepsel
NO BRASIL
Professora assistente da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Graduada em
Magda Sarat
Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Grande Dourados
Sociedade.
e Instituições Escolares.
Educação.
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A presentação da Coleção
A coleção Formação de Professores – EAD teve sua primeira edição em 2004,
com a publicação de 33 títulos financiados pela Secretaria de Educação a Distância
(SEED) do Ministério da Educação (MEC) para que os livros pudessem ser utilizados
como material didático nos cursos de licenciatura ofertados no âmbito do Programa
de Formação de Professores (Pró-Licenciatura 1). A tiragem da primeira edição foi de
2500 exemplares.
A partir de 2008 demos início ao processo de organização e publicação da segunda
edição da coleção, com o acréscimo de 12 novos títulos. A conclusão dos trabalhos
deverá ocorrer somente no ano de 2012, tendo em vista que o financiamento para
esta edição será liberado gradativamente, de acordo com o cronograma estabelecido
pela Diretoria de Educação a Distância (DED) da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal do Ensino Superior (CAPES) que é responsável pelo do programa denominado
Universidade Aberta do Brasil (UAB).
A principio serão impressos 695 exemplares de cada título, uma vez que os livros
nova coleção serão utilizados como material didático para os alunos matriculados no
Curso de Pedagogia, Modalidade de Educação a Distância, ofertado pela Universidade
Estadual de Maringá, no âmbito do Sistema UAB.
Cada livro da coleção traz, em seu bojo, um objeto de reflexão que foi pensado
para uma disciplina específica do curso, mas em nenhum deles seus organizadores
e autores tiveram a pretensão de dar conta da totalidade das discussões teóricas e
práticas construídas historicamente no que se refere aos conteúdos apresentados. O
que se busca, com cada um dos livros publicados, é abrir a possibilidade da leitura,
da reflexão e do aprofundamento das questões pensadas como fundamentais para a
formação do Pedagogo na atualidade.
Por isso mesmo, esta coleção somente poderia ser construída a partir do esforço
coletivo de professores das mais diversas áreas e departamentos da Universidade Esta-
dual de Maringá (UEM) e das instituições que tem se colocado como parceiras nesse
processo.
Em função disto, agradecemos sinceramente aos colegas da UEM e das demais
instituições que organizaram livros ou escreveram capítulos para os diversos livros
desta coleção.
Agradecemos, ainda, à administração central da UEM, que por meio da atuação
direta da Reitoria e de diversas Pró-Reitorias, não mediu esforços para que os trabalhos
9
HISTÓRIA DA INFÂNCIA pudessem ser desenvolvidos da melhor maneira possível. De modo bastante especifi-
NO BRASIL
co, destacamos aqui o esforço da Reitoria para que os recursos para o financiamento
desta coleção pudessem ser liberados de acordo com os trâmites burocráticos e os
prazos exíguos estabelecidos pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação
(FNDE).
Internamente destacamos, ainda, o envolvimento direito dos professores do De-
partamento de Fundamentos da Educação (DFE), vinculado ao Centro de Ciências
Humanas, Letras e Artes (DFE), que no decorrer dos últimos anos empreenderam
esforços para que o curso de Pedagogia, na modalidade de educação a distância, pu-
desse ser criado oficialmente, o que exigiu um repensar no trabalho acadêmico e uma
modificação significativa da sistemática das atividades docentes.
No que se refere ao Ministério da Educação, ressaltamos o esforço empreendido
pela Diretoria da Educação a Distância (DED) da Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal do Ensino Superior (CAPES) e pela Secretaria de Educação de Educação a
Distância (SEED/MEC), que em parceria com as Instituições de Ensino Superior (IES)
conseguiram romper barreiras temporais e espaciais para que os convênios para libe-
ração dos recursos fossem assinados e encaminhados aos órgãos competentes para
aprovação, tendo em vista a ação direta e eficiente de um número muito pequeno de
pessoas que integram a Coordenação Geral de Supervisão e Fomento e a Coordenação
Geral de Articulação.
Esperamos que a segunda edição da Coleção Formação de Professores - EAD
possa contribuir para a formação dos alunos matriculados no curso de Pedagogia, bem
como de outros cursos superiores a distância de todas as instituições públicas de en-
sino superior que integram e possam integrar em um futuro próximo o Sistema UAB.
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A presentação do livro
Olá aluno EAD, você está recebendo um livro sobre História da Infância no Brasil.
Ao organizá-lo tivemos a preocupação de selecionar autores que apresentam estudos
com base em diferentes referenciais teórico-metodológicos. A razão que explica essa
nossa atitude assenta-se no pressuposto de que é na diversidade de interpretações que
reside a riqueza do aprendizado.
Compreendemos a História da Infância no Brasil como tema da História da Educa-
ção, por isso enfatizamos que essa construção acerca da infância é um conhecimento
que ainda se faz “novo” para os historiadores da educação brasileira. Registramos, ain-
da, que o universo dos escritos existentes evidencia que os estudos vêm se ampliando
em demasia, o que é muito importante para a educação brasileira.
Escolhemos um recorte temático e temporal que privilegiou a História da Infância
no Brasil republicano, o que permitiu uma multiplicidade de sub-recortes temáticos,
além da liberdade dos autores escolherem a forma de inserção nesse vasto território.
Esse é, a nosso ver, o ponto alto da publicação que se desenhou como um mosaico.
A leitura permitirá que você tenha acesso ao que os autores que compõem os ca-
pítulos integrantes deste livro definiram como importante, não significando ser uma
verdade única sobre a essa temática. Desmistificar o que seria uma história única e
verdadeira é um desafio que enfrentamos quando aceitamos a tarefa de organizar o
livro. Não há contexto único nesse universo de estudos e pesquisas; existem, sim,
representações possíveis.
O livro caracteriza-se, então, como uma provocação a sua curiosidade, esperando
que você decida conhecer mais e mais sobre o assunto. Fica então o convite ao estudo,
e quiçá ao estudo mais aprofundado!
Boa leitura!
Elaine Rodrigues
Organizadora
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1 História da infância no
Brasil: aproximações e
leituras sobre o tema
Falar sobre a infância nos remete a algumas reflexões sobre esse período de vida
ainda não compreendido em sua totalidade pelos pesquisadores. Como objeto de
estudo, a infância é sempre o outro em relação à pessoa que fala, e dificilmente ela
assume o lugar da primeira pessoa, do sujeito do discurso.
As questões relacionadas ao significado da infância no mundo contemporâneo,
mais especificamente no Brasil, têm nos inquietado. Questões como “Quem no Brasil
faz estudos sobre a infância?”, e ainda “Como a infância tem sido concebida por aque-
les que se aplicam a estudá-la?” têm direcionado nosso olhar nos últimos anos. E este
é o desafio do presente estudo.
No Brasil, no início dos anos 90 do século XX, a produção acadêmica em torno da
infância assinalava grandes sinais de avanço, principalmente nas áreas das Ciências
Sociais e de História. Os títulos de livros relativos à infância que a partir dessa época
começaram a aparecer com regularidade no Brasil trouxeram grandes avanços em re-
lação a esses estudos.
Alguns teóricos têm se destacado na produção de estudos sobre a infância do Bra-
sil. Dentre os grandes autores1 brasileiros, optamos por trabalhar, nesse texto, com
1 Essa afirmação advém de uma pesquisa de mestrado recentemente defendida, que toma como
campo de pesquisa as produções das comunidades constituídas por historiadores da educação,
entre as quais se enfatiza a Sociedade Brasileira de História da Educação – SBHE, o Grupo de
Estudos e Pesquisas em “História, Sociedade e Educação no Brasil – HISTEDBR”, a Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação – ANPED, particularmente o Grupo de
Trabalho GT 02 – História da Educação e o Grupo de Trabalho GT 07 – Educação de crianças
de 0 a 6 anos. Nessas sociedades interpretativas, os nomes de tais autores são predominantes
entre a bibliografia daqueles que estudam a infância.
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HISTÓRIA DA INFÂNCIA Moysés Kuhlmann Júnior2, e Maria Isabel Edelweiss Bujes3. Não podemos nos esque-
NO BRASIL
cer também da forte influência de autores estrangeiros como Neil Postman4, Philippe
Ariés5 e Colin Heywood6. A intenção é realizar uma primeira aproximação entre vocês,
acadêmicos do curso de Pedagogia EAD e pensamento educacional, acerca da infância,
por esses autores produzido.
2 Atualmente é professor associado doutor da Universidade São Francisco, onde lidera o Grupo
de Pesquisa "Infância, História e Educação", e pesquisador sênior da Fundação Carlos Chagas,
onde é vice-líder do Grupo de Pesquisa "Educação Infantil: história, políticas e práticas". Tem
experiência na área de Educação, com ênfase em História da Educação, atuando principalmente
nos seguintes temas: educação infantil, história da infância, circulação de idéias educacionais,
historiografia e história da educação (Texto informado pelo autor na plataforma Lattes – ver:
<http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=K4797830T4>).
3 Doutora em Educação (UFRGS), obteve seu título de doutoramento com a tese Infância e
maquinarias, um estudo de inspiração foucaultiana sobre a temática do governamento da in-
fância. Seus interesses de pesquisa na área de Educação Infantil estão associados a sua experiên-
cia como professora dessa habilitação nos cursos de Pedagogia da UFRGS e da ULBRA. Como
pesquisadora da infância, tem se dedicado especialmente ao estudo das relações entre infância e
poder, investigando os discursos pedagógicos e suas relações com a constituição das identidades
docentes e infantis. Suas publicações mais recentes (artigos, capítulos de livros, participação em
congressos) abordam os dispositivos de subjetivação (de crianças, professoras, famílias...) e a sua
mudança de inflexão de uma lógica disciplinar para uma lógica de controle. Foi Diretora da Fa-
culdade de Educação da UFRGS (1992-1996) e coordenadora do Programa de Pós-Graduação
em Educação da Ulbra (2002-2005).
4 Neil Postman é professor titular do Departamento de Comunicação da Universidade de Nova
York. Tem mais de vinte livros publicados, dos quais boa parte trata das conexões entre mídia
e educação. Destacam-se Amusing Ourselves to Death, Conscientious Objections, Teaching
as a Subversive Activity (com Charles Weingartner), Teaching as a Conserving Activity, Crazy
Talk, Stupid Talk e The End of Education. Sua aparição nos estudos sobre a infância no Brasil é
marcada coma tradução do livro O desaparecimento da Infância, no ano de 1999.
5 Philippe Ariés (1914-1984) é historiador e medievalista francês. Escritor de História social da
criança e da família (1981).
6 Colin Heywood (2004) é um historiador americano que se ocupa em refazer a história da
infância Ocidental do período Medieval ao Contemporâneo.
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a sua representação ao fazer parte de uma categoria social, mas também deixa marcas, História da infância no
Brasil: aproximações e
forja memórias. A infância ou as infâncias estão situadas nos lugares que as diferen- leituras sobre o tema
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HISTÓRIA DA INFÂNCIA É desse sentido específico que o autor trata, das creches, das escolas maternais e
NO BRASIL
dos jardins-de infância que existiram no Brasil há menos de um século. Suas fontes de
estudo são, na maioria, oriundas dos municípios do Rio de Janeiro, de São Paulo e de
órgãos do governo federal.
Kuhlmann Junior trabalha com a origem e a finalidade das primeiras instituições
brasileiras de educação infantil. A primeira delas é a creche. A creche, em sua criação,
servia às “[...] mães pobres, que necessitassem trabalhar, poderiam superar o obstácu-
lo de não ter a quem confiar seus filhos cuja tenra idade não lhes permitia mandá-los
para a escola” (2000, p. 471).
O autor recupera também a formação dos primeiros jardins-de-infância brasileiros.
Os jardins de infância não tinham puramente o caráter assistencialista, como foi o caso
das creches:
As crianças mais velhas não precisam ficar o tempo inteiro no ambiente fami-
liar. Não apenas as pobres, mas também as de classe média e alta e mesmo as
pertencentes às famílias da Corte, no Rio de Janeiro, encontrariam no “jardim-
-de-infância” um lugar propício ao seu desenvolvimento e ao cultivo de bons
hábitos (KUHLMANN JUNIOR, 2000, p. 472).
Expõe ainda que a criação desses novos ambientes configura-se no Brasil como
uma iniciativa de proteção à infância. A formação de associações e de instituições para
cuidar da criança não só no aspecto educativo como também na saúde, na sobrevivên-
cia é o novo motor que impulsiona a ideia de fazer viver a infância brasileira.
Interessante o relato do autor sobre a diminuição do abandono das crianças na
“roda dos expostos” em decorrência da assistência dedicada às famílias e às crianças
por tais instituições:
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A INFÂNCIA QUE CONHECEMOS: FRUTO DE PRÁTICAS DISCURSIVAS? História da infância no
Brasil: aproximações e
MARIA ISABEL EDELWEISS BUJES leituras sobre o tema
Bujes propõe aos pesquisadores uma nova proposta de análise da história da infân-
cia, pois segundo ela “A trajetória da infância por estes tempos modernos é “um prato
cheio” em termos de possibilidades de engendramento de novos problemas e objetos
de pesquisa [...]” (BUJES, 2005, p. 195).
Na perspectiva da autora, fazer pesquisa significa “desterritorializar, levar ao estra-
nhamento”, perguntar pela produtividade de conceitos que marcaram a compreensão
moderna de infância (2005, p. 187). A maneira como se tem concebido a infância – um
dado universal, linear, natural, inocente – nos demonstra a maneira ideal moderna de
pensá-la. Essa forma idealizada de conceituar a infância é fruto de uma tradição teórica
e de como ela – a tradição – “[...] modela o nosso pensamento, como nos guia tanto
em relação ao que pode ser dito quanto ao modo como se pode falar sobre um objeto”
(BUJES, 2005, p. 183).
As investigações à qual Bujes tem se dedicado têm abrangido de forma preferencial
as relações entre infância e poder. Em relação a suas pesquisas Bujes enuncia que
“A oportunidade de interrogar o como do poder, de mostrá-lo em operação, de pro-
blematizá-lo [...] foram algumas facetas dessa perspectiva desancorada, assistemática,
a-disciplinar, que me mais me fascinaram” (2007, p.146).
Esses estudos se encarregam de discutir como as crianças têm sido capturadas pe-
las malhas do poder, como se dá a fabricação do sujeito infantil moderno e como
operam as máquinas que se encarregam de governar a infância.
Compartilham da ideia de que a infância que conhecemos não é um dado atempo-
ral, mas uma invenção/fabricação da modernidade. Os significados atribuídos à infân-
cia são resultados de um processo de construção social, dependem das possibilidades
de determinado momento da história, são organizados e sustentados por discursos. A
elaboração de um discurso referente à infância serve como justificativa para a propo-
sição de saberes, ações o que fabrica no interior de uma sociedade o sujeito infantil.
Entendemos ser necessário, a partir de agora, justificar como a infância é abordada
no discurso. Tentaremos mostrar como os autores supracitados compreendem a cons-
tituição do sujeito infantil nas narrativas em que se debruçam sobre ele.
Todos os homens nascem em um mundo já tomado pela linguagem, e esta, por sua
vez, é constitutiva de seus pensamentos e do contato que têm com esse mundo. A lin-
guagem exprime o querer daquele que fala. Ao nascer, o ser humano é inserido em um
local onde os discursos já estão circulando (por meio da língua e do ato da fala), e des-
sa forma torna-se sujeito proveniente desses discursos ( VEIGA-NETO, 2004, p. 110).
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HISTÓRIA DA INFÂNCIA O sujeito de um discurso não é, portanto, exterior ao seu próprio discurso.
NO BRASIL
Não existe criança fora do discurso pedagógico de infância, fora dos processos que
lhe atribuem significados. O sujeito infantil está constituído, é formado e regulado nos
discursos relativos à infância. Os discursos sobre infância fabricam no interior de uma
sociedade o sujeito infantil de que tratam (BUJES, 2002, p. 55).
Identificamos uma das lições tomadas nesses campos do pós-estruturalismo: se de
fato a infância não existe senão como uma construção discursiva, talvez seja mais cor-
reto, mais apropriado, falar, como propõe Bujes (2002), em fabricação7 da infância.
O discurso autorizado sobre infância justifica a proposição de saberes, de padrões
de comportamentos, traçando sujeitos abstratos, definindo quem são tais indivíduos
e o que se espera deles.
A elaboração de um discurso para a infância é um processo que se reforça na e pela
instituição, pela elaboração de documentos, de teorias pedagógicas que, por sua vez,
têm efeitos que se remetem à naturalização ou não de conceitos, um efeito, por assim
dizer, circular.
Matrizes ou modelos, narrativas que orientam o que podemos postular sobre cer-
tos objetos se constituem o que na perspectiva foucaultiana denomina-se episteme
( VEIGA-NETO, 2004, p. 115). Não pretendemos aqui analisar os discursos para neles
identificar uma essência, um conceito de verdade ou uma lógica; não procuramos
neles nenhuma matriz teórica, filosófica, psicológica ou política. Propusemos-nos a
analisá-los tendo em vista que aquele que o enuncia faz parte de uma ordem que lhe é
anterior e na qual ele está imerso, pois o sujeito que discursa está inserido no campo
discursivo. Toda sociedade carrega consigo discursos que estabelecem a definição do
conceito de infância e são por ele estabelecidos; o que difere nessa definição é o signi-
ficado, a duração, os pressupostos e modos de como lidar com as crianças.
Os significados de infância variam segundo quem profere os discursos acerca dela
e de quem é objeto da fala. Crianças no ponto de vista biológico serão encontradas em
qualquer parte do universo onde se tenha um grupo de pessoas, mas a definição que
cada grupo atribuirá para a infância será distinta.
Bujes (2007) afirma que fazer pesquisa dessa forma é problematizar, revisar e cri-
ticar as verdades do mundo, colocando em xeque concepções tradicionais de criança,
infância e educação infantil. Por isso tomamos essa acepção como um rompimento em
relação às anteriores.
7 Termo bastante comum nos estudos que se apoiam nas formulações de Michael Foucault.
Encontramos essa palavra em BUJES, Maria Isabel. Infância e maquinarias. Rio de Janeiro:
DP&A, 2002.
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O DESAPARECIMENTO DA INFÂNCIA: NEIL POSTMAN História da infância no
Brasil: aproximações e
Neil Postman, americano, professor da Universidade de Nova York, publicou mais leituras sobre o tema
[...] a tipografia criou um novo mundo simbólico que exigiu, por sua vez, uma
nova concepção de idade adulta. A nova idade adulta, por definição, excluiu as
crianças. E como as crianças foram sendo expulsas do mundo adulto, tornou-se
necessário encontrar um outro mundo que elas pudessem habitar. Este outro
mundo veio a ser conhecido como infância (POSTMAN, 1999, p. 34).
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HISTÓRIA DA INFÂNCIA Para Postman (1999), o que separa o mundo da infância do mundo do adulto é o
NO BRASIL
acesso a determinadas informações. Em um universo letrado, onde há abundância de
impressos escritos, ser adulto implica ter acesso a segredos culturais codificados em
símbolos não naturais. “Num mundo letrado, as crianças precisam transformar-se em
adultos” (POSTMAN, 1999, p. 36) E para ser adulto é preciso dominar o código de
escrita. É preciso saber ler.
A segunda parte do livro trata do desaparecimento da infância. Conforme Postman,
a infância começa a desaparecer com o surgimento de outra tecnologia de comunica-
ção: o telégrafo. Se a prensa tipográfica impulsiona a criação do conceito de infância,
o telégrafo realiza uma ação inversa.
A infância [...] foi o fruto de um ambiente em que uma forma especial de infor-
mação, exclusivamente controlada por adultos, tornou-se pouco a pouco dis-
ponível para as crianças por meios considerados psicologicamente assimiláveis.
A subsistência da infância dependia dos princípios da informação controlada e
da aprendizagem seqüencial. Mas o telégrafo iniciou o processo de extorquir
do lar e da escola o controle da informação. Alterou o tipo de informação a que
as crianças podiam ter acesso, sua qualidade e quantidade, sua seqüência, e as
circunstâncias em que seria vivenciada (POSTMAN, 1999, p. 86).
[...] a televisão destrói a linha imaginária entre a infância e a idade adulta de três
maneiras, todas elas associadas com sua acessibilidade indiferenciada: primeiro
porque não requer treinamento para aprender sua forma; segundo porque não
faz exigências complexas nem à mente nem ao comportamento; e terceiro por-
que não segrega seu público.
Postman (1999) não tem a pretensão de mostrar soluções que possam reverter esse
curso. A infância está por desaparecer. O autor crê que existe na sociedade duas forças
de resistência, a família e a escola, mas que estas estão dia por dia perdendo a luta
contra o desaparecimento da infância.
20
Ariés (1981) divide sua obra em dois momentos: a ausência do sentimento de infân- História da infância no
Brasil: aproximações e
cia, tomado como ponto de partida para o estudo da sociedade medieval e o surgimen- leituras sobre o tema
21
HISTÓRIA DA INFÂNCIA O sentimento acerca da infância não se confunde com o conceito. Não havia, em
NO BRASIL
consonância com Ariés (1981), um sentimento de infância (em termos de particulari-
dade), mas não podemos afirmar que não havia um conceito de infância. O conceito
existia, porém não se aproximava de nosso conceito ideal e moderno de infância.
Ao analisar as suas fontes, Ariés (1981) assinala que a arte medieval praticamente
desconhecia a infância, apesar das iniciativas em se retratar temas como a infância do
menino Jesus, anjos e infâncias santas. Isto é mais um ponto que nos leva a acreditar
que não havia lugar para a infância nesse mundo. Não que a infância fosse totalmente
ausente na arte medieval, mas nunca era representada em um modelo de criança real.
Quando retratadas, as crianças eram santificadas ou apareciam junto aos adultos, mas
nem sempre como modelo principal. A descoberta da infância como elemento da arte
começou no século XIII.9
No século XVII, a presença da infância ganha sinais de força e desenvolvimento
quando retratos de crianças sozinhas tornam-se numerosos e comuns. Nos retratos
de família, a criança ganha papel principal, privilegiado, já que eram retratadas na
“[...] lição de música, ou grupos de meninas lendo, desenhando e brincando” (ARIÉS,
1981, p. 28).
Outro acontecimento que carrega traços de que a infância começa a ocupar lugar
na sociedade foi a preocupação em lhe destinar traje específico. A particularização
da infância por meio da diferenciação dos trajes aconteceu primeiramente para os
meninos; as meninas continuaram sendo vestidas como mulheres adultas. Dentre os
meninos, o autor destaca que apenas os de famílias mais abastadas foram favoreci-
dos, os pobres inicialmente não, pois se vestiam com os restos de roupas dos ricos.
A infância, de certa forma, beneficiou primeiramente os meninos nobres, as outras
formas de infância, as meninas e os pobres, tiveram de aguardar um pouco mais
(ARIÉS, 1981, p. 41).
No século XVII as crianças, ao menos as de boa família, tinham trajes especiais
que as separavam dos adultos. A infância iniciava-se com os vestidos, destinados a
meninos e meninas, passando por aqueles que tinham guisas às costas, depois os com
de golas, terminando com as calças curtas. Isso, na visão de Ariés (1981, p. 100), é
“[...] uma prova ocorrida na atitude com relação às crianças [...]”. Cada tipo particular
de traje correspondia a uma idade da criança. Nesse traje levava-se em conta também
aquilo que elas eram capazes de realizar, como, por exemplo, as guisas que guiavam
aqueles que aprendiam a caminhar.
22
A criança ocupa lugar na arte e a sociedade preocupa-se em trajá-la diferentemente História da infância no
Brasil: aproximações e
dos adultos, sinais de que a infância não está mais esquecida e começa a ocupar lugar leituras sobre o tema
no mundo. Essas novas atitudes fazem nascer um primeiro sentimento que Ariés de-
nomina paparicação: “[...] a criança por sua ingenuidade, gentileza e graça, tornava-se
uma fonte de distração e relaxamento para o adulto [...]” (ARIÉS, 1981, p. 100).
Foi aos moralistas e educadores do século XVII que Ariés atribui a formação de
novos sentimentos de infância. O primeiro, denominado paparicação, surge em meio
à família; o âmbito exterior forma o segundo, com a preocupação pela disciplina e
racionalidade dos costumes.
No capítulo que Ariés intitula Do despudor à Inocência, percebemos como a so-
ciedade foi modificando a maneira de se conceber as crianças, exigindo que elas se
abstivessem de atitude e assuntos, sobretudo sexuais. A ideia de inocência tornou-se a
manifestação mais evidente do novo sentimento e do novo lugar destinado à infância
na sociedade. As crianças não deveriam ouvir tampouco falar sobre assuntos sexuais,
era obrigação dormirem sozinhas e afastar-se de brincadeiras levianas, tendo suas par-
tes íntimas preservadas de gracejos e toques.
Temos aqui a possibilidade de perceber a formação de um novo conceito de in-
fância. A preocupação com a vida, com a paparicação, com a educação, com a moral
mostra que tudo o que se referia às crianças tornara-se um assunto sério e digno de
atenção; sua simples presença era digna de olhares – a criança havia assumido um
lugar no mundo.
Embora as condições demográficas não tenham reduzido em grande número a
morte das crianças até o século XVII, uma nova sensibilidade atribuiu novos sentimen-
tos e atitudes para com a infância. Foi só no século XVIII, com a extensão de algumas
práticas contraceptivas, que a ideia de desperdício da vida das crianças realmente apa-
receu e ganhou força e os interesses pela vacinação e as práticas de higiene reforçaram
mutuamente o novo sentimento de infância. A criança tornou-se não só a grande preo-
cupação da sociedade, mas também a da família moderna.
autor, a história infantil foi sempre construída sobre dicotomias. Ou as crianças foram
tratadas como seres puros, ou traziam consigo as manchas do pecado, ou ainda nas-
ciam com capacidades inatas ou eram simples folhas brancas. “Entre anjos e demônios
a história da infância oscila” (p. 49).
Ainda corroborando o autor, podemos enunciar que os autores medievais prestavam
pouca atenção à infância porque não compartilhavam da concepção atual de que a
educação que as crianças recebem nos primeiros anos de vida são fundamentais para a
formação de seu caráter. Reproduzindo uma condição econômica e social, acreditavam
que o ser infantil carregava traços da natureza com a qual nascia. Tal ideia correspondia
à então aristocracia hereditária. O Renascimento traz uma nova forma de olhar a infân-
cia, a ideia que “[...] a mão que embala o berço define os destinos da sociedade [...]”
mudou gradualmente o sentido do inato ao adquirido, sendo importante o educar. Isso
aproximou o conceito da nossa concepção de infância (HEYWOOD, 2004, p. 52).
Passemos agora a discutir as relações entre pais e filhos. Heywood (2004) propala
que as crianças sempre foram desejo dos casamentos. Em todas as épocas históricas
havia a expectativa de procriação entre os que se casavam. Na Idade Média, os casais
seguiam a injunção bíblica que preconizava que “[...] crescer e multiplicar [...]”. Até
mesmo rituais eram realizados para que a esterilidade fosse mantida longe dos casais.
A esses fatos o autor atribui a assertiva de que a infância sempre teve seu lugar (HEY-
WOOD, 2004, p. 64).
Alguns fatores traçados pelo autor acerca da relação pais e filhos nos alertam para
considerar que a infância teve seu espaço no mundo medieval. O parto, o batismo
das crianças, o cuidado na escolha dos padrinhos e a escolha dos nomes dos bebês, a
apresentação das crianças à sociedade, a atribuição de nomes de avós, nomes santos
que evocavam proteção mostram que a infância tinha lugar naquele mundo.10
O autor concorda com Ariés ao propor que a infância dos meninos foi primeiramen-
te reconhecida, contudo enuncia que esse fato ocorreu em função da sociedade agrária,
na qual um filho homem era sempre desejado; necessário (HEYWOOD, 2004, p. 76).
Em relação à morte das crianças na Idade Média, Heywood (2004) enfatiza que
sentimentos ambíguos existiram naquela sociedade. Por um lado, mostra que a morte
de bebês, principalmente os recém-nascidos, era facilmente aceita; por outro, descre-
ve exemplos de pessoas chorando, sofrendo e lamentando a morte de seus filhos. O
25
HISTÓRIA DA INFÂNCIA próprio Lutero, no século XVI, descreve seus sentimentos após a morte de sua filha de
NO BRASIL
oito anos “[...] meu coração ficou mole e fraco; jamais pensei que o coração de um pai
pudesse ser tão machucado em função de seus filhos” (HEYWOOD, 2004, p. 80) Tal
ambivalência reflete reações diferentes à perda da infância em todos os tempos, e isto,
conforme o autor, contraria as ideias de Ariés.
A seguir, discute a questão das amas de leite, tomando-a como uma suposta indiferença
no que tange ao universo infantil. A existência das amas de leite representava ou não um
descaso social para com as crianças? O argumento contra elas era forte. Eram acusadas de
maus tratos e negligências; chegaram a ser denominadas mercenárias. Um movimento de
médicos, higienistas, teólogos, anteriores mesmo a Rousseau, revelam um pano de fundo
essencial de esforços para a preservação da vida das crianças (HEYWWOD, 2004, p. 93).
O número de iniciativas para por fim a essa realidade era sinal de que esse era ape-
nas um “[...] suposto descaso.” Para o autor, o consenso entre os historiadores é que a
maioria das mães sempre amamentou seus filhos. Quando não o fizeram na história, é
porque a pobreza e a necessidade de trabalho não permitiam. As amas sempre foram
privilégios da nobreza, lugar inclusive de onde Heywood acusa Ariés de ter buscado as
fontes para sua história da infância (HEYWOOD, 2004, p. 94).
Assim que deixavam de ser amamentadas, as crianças entravam em uma fase que
durava até os sete anos, denominada “[...] idade da razão.” (HEYWOOD, 2004, p.
116). Segundo a tradição social, as crianças até essa fase eram cuidadas exclusivamente
pelas mulheres. De acordo com os historiadores, o cuidado com as crianças sempre
pertenceu às mães. Aos homens destinava-se o dever de suster as famílias. A história
da infância até esse período pode ter permanecido no campo da obscuridade porque
ninguém se preocupava em contar a história das mulheres. As poucas tentativas são
pertencentes à história da realeza, à aristocracia medieval, e uma rainha sempre estaria
por demais preocupada com suas funções públicas para atentar aos cuidados com seus
filhos (HEYWOOD, 2004, p. 116).
O autor trata também dos aprendizados e da educação das crianças. Os primeiros
aprendizados das crianças, naquele período, eram a higiene, o caminhar e o falar. A
higiene se restringia quase que exclusivamente ao uso dos banheiros. O caminhar sem-
pre foi estimulado, primeiramente porque o chão era frio e úmido, e segundo porque
engatinhar os aproximava dos animais (HEYWOOD, 2004, p. 121). A aprendizagem da
fala estava associada ao surgimento da dentição, os bebês eram aqueles que “[...] não
podiam falar porque não tinham dentes” (HEYWOOD, 2004, p. 122).
A educação de uma criança na Idade Medieval começava “[...] nos joelhos de sua
mãe com lições religiosas” (HEYWOOD, 2004, p. 124). Os filhos dos nobres apren-
diam a ler por volta dos quatro ou cinco anos. As lendas, os romances e as histórias de
26
aventuras atraíram as crianças, mas até o século XVIII eram livros adultos que tinham o História da infância no
Brasil: aproximações e
objetivo de aprimoramento das mentes (HEYWOOD, 2004, p. 126). As crianças eram leituras sobre o tema
educadas com lições de medo e ironia, sendo aterrorizadas com alguns contos pelo
menos até que “[...] a educação e a psicologia tivessem seu impacto no século XIX”
(HEYWOOD, 2004, p. 129). Em todos os tempos tais lições tinham o objetivo de res-
ponder a um problema enfrentado pelos pais, ainda que o problema fosse manter as
crianças a salvo dos perigos enquanto eles estavam ocupados no trabalho.
Aos sete anos, acontecia uma transformação na vida das crianças, especificamente
na dos meninos. Deixavam para trás os trajes e junto com eles a infância propriamente
dita. Roupas especiais, separação entre meninos e meninas, os pais assumindo a edu-
cação dos meninos enquanto as mães cuidavam de suas filhas, preparando-as para o
casamento (HEYWOOD, 2004, p. 141). As crianças eram inseridas no mundo adulto,
assumindo suas responsabilidades e características.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, fica evidente que, observar o que sentem o que pensam e dizem
as crianças com o objetivo de desvendar as culturas infantis constitui-se não somente
uma curiosidade, mas principalmente em ir além do acesso à criança como catego-
ria social como fomos acostumados a agir até então. O que pretendemos com isso é
ressaltar a importância, cada vez maior em nossos dias, de aprender a ouvir e a ver as
crianças. Conhecê-las não apenas como grupos sociais. Como aceitar então que em
nossos dias a infância contemporânea não tenha voz?
Foi na modernidade que se inaugurou um novo discurso sobre o sujeito infantil,
sobretudo a partir do projeto educacional do iluminismo que depositou um crédito
sem igual na capacidade da educação em retirar o indivíduo da menoridade. A meno-
ridade intelectual, de acordo com o Iluminismo, significa a incapacidade humana de
servir-se da própria razão, requisitando opiniões alheias para a formação dos próprios
juízos, privando-se do próprio direito natural da liberdade, pois esta exige a autono-
mia plena da razão perante lógicas externas. Em estado de menoridade, o indivíduo,
entendido aqui como sujeito infantil, encontra-se impedido de pensar por si próprio e
ouvir as recomendações de sua consciência individual, mesmo porque, ela ainda não
foi desenvolvida e esclarecida. A criança desde então é aquela que pede um tutor e,
portanto, controle alheio; prende-se àquele que controla suas ações iluminando sua
formação, criando amarras que forjarão o seu pensamento. O sujeito infantil é fruto de
práticas discursivas, cristalizadas e reveladas com base no discurso moderno.
Assim, encerramos perguntando: A concepção de infância presente nos plane-
jamentos, planos de aula e currículos ainda é a da infância moderna, descrita por
Philippe Ariés (1981)?
27
HISTÓRIA DA INFÂNCIA
NO BRASIL
Referências
______. Educando a infância brasileira. In: LOPES, E. M. T.; FARIA FILHO, L. M.;
VEIGA, C. G. (Org.). 500 anos de Educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica,
2000. p. 469-496.
28
História da infância no
Brasil: aproximações e
leituras sobre o tema
Para saber mais
BUJES, Maria Isabel Edelweiss. Infância e poder: breves sugestões para uma agenda
de pesquisa. In: COSTA, Marisa Vorraber (Org.). Caminhos investigativos III: riscos
e possibilidades de pesquisar sem fronteiras. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
Anotações
29
HISTÓRIA DA INFÂNCIA
NO BRASIL
Anotações
30
2 Histórias de infância,
memórias de escola
e suas implicações à
Educação infantil
Magda Sarat
a boa educação consiste e dar às crianças, desde que a idade permita, regras
comportamentais de polidez que as tornem suportáveis aos outros, particu-
larmente àqueles que não têm razões familiares de amá-las. Assim a civilidade,
permitiria uma ampla sociabilidade conduzindo, consequentemente, a criança
a uma humanização progressiva (apud JOLIBERT, 1995-1996, p. 41).
31
HISTÓRIA DA INFÂNCIA e da Educação Infantil começam a surgir. Ao considerarmos a educação proposta por
NO BRASIL
Erasmo, temos em vista que ela não era extensiva a toda a sociedade, pois um de seus
escritos sobre infância, A Civilidade Pueril (1978), trata-se de um manual de regras de
conduta e boas maneiras para a educação do príncipe; não se referindo, portanto, a to-
das as crianças de seu tempo. Entretanto, é relevante para percebermos como a criança
já era alvo de preocupações desde tempos anteriores ao período moderno, quando
localizamos as referências que apontam para a inserção e a existência social da criança.
Dessas referências, a pioneira e também a mais citada é a pesquisa de Áries (1981),
que em muito contribuiu com os estudos relativos à infância, inserindo a história da
criança no centro das reflexões acerca da história da educação dos pequenos. Con-
tudo, é importante lembrar que outros pesquisadores vêm trazendo contribuições
que indicam estudos anteriores à chamada Modernidade. Entre estes, citamos Gélis
(1991), Heywood (2004), Richè e Bidon (1994) e Kulhmann Junior (2004).
Esses apontamentos iniciais são importantes para pensarmos que, se por um lado a
criança e sua educação começaram a ser alvo de preocupações, por outro essas ações
não se estendem a todas as crianças da sociedade moderna. A história da educação
formal das crianças é marcada por uma reorganização da produção da vida material
que muda as configurações sociais a partir da Revolução Industrial, no século XVIII.
Tal evento retira as mulheres das camadas pobres do trabalho doméstico e as lan-
çam ao trabalho fora de casa, criando a necessidade de instituições de atendimento
para suas crianças. A educação, antes realizada em casa pela família no espaço domés-
tico, passa a ser tarefa institucional, sendo as crianças responsabilidade das diferentes
formas de atendimento que se inauguram ainda no século XVIII, e mais ampliadamen-
te, no século XIX na Europa, e no Brasil em finais do século XIX e início do século XX.
Quando tratamos da Educação Infantil, o conceito atual indica uma educação vol-
tada para as crianças de 0 a 6 anos, ou 0 a 5 anos, conforme a Lei que normatizou o
Ensino Fundamental de 9 anos (Lei nº 11.274 de 06 de fevereiro de 2006 e Lei nº
11.114 de 16 de maio de 2005). No entanto, historicamente a educação das crianças
pequenas começa com incipientes formas de atendimento.
Nesse contexto, é possível afirmar que na gênese dessa educação houve maior
preocupação com o trabalho produtivo das mulheres em detrimento do atendimento
às características das crianças e suas necessidades de desenvolvimento.
A história mostra que a origem da educação formal das crianças está voltada mais
para a necessidade de acolhimento enquanto as mães trabalham e menos preocupação
com as necessidades da criança – haja vista que até a atualidade ainda não foi resolvido
o problema da demanda do número de crianças por vaga em face da oferta pública na
Educação Infantil. A qualidade e as formas de atendimento que vão ser inauguradas
32
desde o século XIX trazem até a atualidade uma herança de atividade menos valoriza- Histórias de infância,
memórias de escola
da e uma lógica de trabalho que envolveu, inclusive, as crianças e as absorveram no e suas implicações à
educação infantil
processo produtivo.
Kuhlmann Junior e Fernandes, em pesquisa empreendida entre Brasil e Portugal,
revelam que a condição da criança e da mulher no processo histórico de constituição
das instituições é marcado pela relação com o trabalho feminino, pois “é certo que o
advento do capitalismo arrebata as mulheres, sobretudos as mães, e a própria criança
para o interior das fábricas, das oficinas e até das minas [...] havia crianças submetidas
às agruras da condição de operária” (2004, p. 25); o que indica a necessidade da cria-
ção de atendimentos específicos a esse grupo humano.
No Brasil, conforme aponta a bibliografia – Kuhlmann Junior (1998; 2002), Kramer
(1995), Kishimoto (1988), Monarcha (2001), Freitas (1997), Faria Filho (2004) – as ins-
tituições de atendimento surgem no final do século XIX e início do século XX, dando
início a uma separação entre as formas de atendimento e dividindo a sociedade em
função da relação entre as classes sociais.
Nesse contexto, há instituições de cunho caritativo e assistencial e outras de cunho
pedagógico e educacional, separando de um lado as ações de atendimento em cre-
ches, asilos, abrigos, e de outro os jardins de infância, as escolas maternais e as pré-
-escolas.Tal separação nas formas de atendimento tem nas ações práticas cotidianas
uma parcela de diferenciação e acaba marcando uma educação dos pequenos com
objetivos divergentes.
No Brasil, na origem das creches e pré-escolas está a separação das ações, que
acarretará, por sua vez, diferentes tipos de atendimento e práticas pedagógicas. A con-
tribuição do Fórum Paulista de Educação Infantil, que em documento publicado pelo
Movimento Interfóruns de Educação infantil – MIEIB (MOVIMENTO, 2002, p. 94) –
expressa que, historicamente:
33
HISTÓRIA DA INFÂNCIA Esses métodos consistiam em uma sistematização dos conhecimentos e das ações coti-
NO BRASIL
dianas destinadas aos pequenos.
No tocante a essa questão, Cambi (1999) postula que entre os aspectos importan-
tes para Froebel está a organização dos jardins de infância que os diferenciavam dos
abrigos de infância difundidos na Europa. Froebel preocupou-se não somente com a
criança, mas com o método pedagógico e a formação do professor que colocaria em
prática sua didática. Cambi (1999, p. 426) registra que, para Froebel,
34
Kishimoto (1988, p. 91) menciona a experiência brasileira com a inauguração do pri- Histórias de infância,
memórias de escola
meiro jardim de infância da corte. e suas implicações à
educação infantil
Tal experiência, em finais do século XIX e início do século XX, permite ao Brasil
figurar entre os países que fomentam a “crença no progresso da ciência mobilizando
as nações ocidentais a se adaptarem aos novos instrumentos e processo educativos”
(KUHLMANN JUNIOR, 1998, p. 27), culminando em novas formas de atendimento
educacional.
Essa educação que tem origem no início do século XX se expande para outras re-
giões de forma muito tímida, porque na região sudeste se concentrará o maior número
de instituições de atendimento à infância, especialmente a de caráter educacional e
pedagógico ligado à expansão da escolarização.
Esse aspecto histórico é importante para a apresentação inicial deste capítulo, que
não tem a pretensão ou condições de contemplar toda a história das instituições in-
fantis dada a amplitude da proposta e a diversidade de elementos que podem ser in-
vestigados. Entre esses elementos podemos citar as políticas públicas e institucionais;
a história da criança e a infância no Brasil; a história das instituições educativas; as
instituições assistenciais; enfim, diferentes perspectivas que ampliam a pesquisa.
Optamos por fazer um recorte que aponta para a ausência das instituições de aten-
dimento à infância no Brasil em meados do século XX, utilizando para essa reflexão
os dados de uma pesquisa de qualificação já concluída, quando entrevistamos pessoas
que ajudaram a pensar a infância a partir das suas memórias de educação formal e
também da Educação Infantil.
Entre as preocupações da pesquisa constava de que forma a Educação Infantil este-
ve presente na experiência de infância dessas pessoas, que no caso se caracterizavam
por serem brasileiras e estrangeiras que foram crianças no mesmo período, em mea-
dos do século XX.
35
HISTÓRIA DA INFÂNCIA aqui, se refere aos estudos que consideram as crianças em diferentes contextos cul-
NO BRASIL
turais, históricos e sociais que implicam na percepção de que a criança vive infâncias
diferenciadas. Neste sentido, uma concepção plural. Entre estes autores, citamos Sar-
mento (2005), Perroti (1990), Faria (1999) e Redin (2007).
Na investigação, nos interessavam as memórias das experiências vividas na famí-
lia, nos espaços domésticos e privados, os jogos e brincadeiras, os relacionamentos
com os adultos, os comportamentos impostos e esperados, os tabus na educação das
crianças. Além das experiências de educação informal, esteve presente nas memórias a
escolarização formal representada pelas lembranças de professores/as e escolas, e no
caso, a Educação Infantil.
As pessoas entrevistadas na primeira fase, durante o mestrado, relataram que nas-
ceram em diversas regiões do Brasil (RJ/MG/SP/MT), porém no momento da entrevista,
ou seja, na idade adulta, residiam nos estados de Mato Grosso do Sul e no interior de
São Paulo. A faixa etária variava entre 50 e 90 anos, e os sujeitos constituíram-se de três
mulheres e dois homens.
Na segunda fase, no doutorado, os sujeitos entrevistados revelaram ter nascido
em diferentes países (Alemanha, Polônia, Portugal, Espanha, Itália), e no momento
da entrevista residiam na região de Guarapuava/PR, eram imigrantes e se encontra-
vam na faixa etária entre 60 e 80 anos; foram cinco mulheres e cinco homens, que
tinham em comum o fato de terem vindo para o Brasil depois de passar a infância
na Europa.
A proposta dos trabalhos foi investigada a partir da metodologia de História Oral,
considerando as histórias de vida dos entrevistados. Vale destacar que essa opção
metodológica se insere na pesquisa, contribuindo em diferentes áreas científicas e
sendo representada por diversos autores, entre os quais Thompson (1998); Jou-
tard (2000); Portelli (2001); Vidigal (1996); Pollack (1992); Alberti (1997); Amado &
Ferreira (1996); Freitas (2002); Bom Meihy (1994; 1998); Bosi (1999) e Demartini
(2003).
A História Oral é concebida pela grande maioria dos pesquisadores como uma me-
todologia de pesquisa que utiliza a técnica da entrevista para registrar as narrativas e
as experiências das pessoas, histórias que há muito as pessoas sabiam e contavam, mas
que se encontram à margem da documentação produzida pela história oficial. Neste
sentido, Freitas (2002, p. 50) aventa que:
36
Com essa inspiração teórica e metodológica, encaminhamos a pesquisa e pergunta- Histórias de infância,
memórias de escola
mos às pessoas sobre sua educação na infância, sendo possível percebermos aspectos e suas implicações à
educação infantil
relevantes que diferenciavam suas experiências quando os sujeitos mencionavam a
educação formal e a escolarização. Os relatos dos estrangeiros, sem exceção, demons-
tram experiência com a educação formal, em alguns casos inclusive com a Educação
Infantil. Com relação aos entrevistados brasileiros, a maioria teve pouca ou quase ne-
nhuma experiência com a escolarização, e nenhuma dessas experiências refere-se à
Educação Infantil.
Considerando esse fator, a investigação indicou que em determinadas regiões a au-
sência de escolas ou outras formas de atendimento às crianças era muito grande ou
acontecia de forma incipiente. Para as crianças brasileiras, essa ausência da educação
formal é recorrente nos relatos, conforme narra Maria Helena, 60 anos: “ninguém estu-
dava, ninguém era registrado, ninguém ligava para nada, era só aquilo! Fiquei no colé-
gio só um mês com nove pra dez anos... Então, meu pai morreu e voltamos pro mato...”
As distâncias das regiões urbanas e rurais eram grandes e desfavoreciam o acesso à
escola. Em outro relato, Terezinha, 60 anos revela: “a gente ia numa escola que tinha
na roça, longe!! Eu me lembro o ano 1946, porque eu escrevia no caderno. Todo dia
levantava 6 horas da manhã, tomava café, andava 3 km, pegava o ônibus, andava mais
10 ou 12 km, chegava no grupo”. Um fato que merece ênfase é que essas mulheres se
encontravam em regiões diferentes, uma no interior de São Paulo e outra no interior
do Mato Grosso; no entanto, as dificuldades são semelhantes no tocante aos proble-
mas de acesso à escola.
Nesse contexto, o problema do acesso à escola é exposto, assim como a perma-
nência na escola era inviabilizada, porque nas famílias extensas as crianças tinham
que trabalhar para ajudar no serviço doméstico ou nas atividades do campo, sendo a
maioria proveniente dos espaços rurais. Assim, pensar a Educação Infantil no Brasil em
meados da década de 40 do século XX é percebê-la somente em regiões centrais, nos
municípios maiores, porque para o interior a realidade era constituída pela ausência
de escolas, falta de professores formados, classes multiseriadas, e pela inexistência do
atendimento para crianças menores de seis anos. Em todos os relatos dos entrevista-
dos nenhum se reporta à existência da educação para crianças menores de cinco anos;
a média de idade com que frequentavam a educação formal situava-se entre a faixa
etária de sete ou oito anos.
Um dos depoentes que morou também no interior de São Paulo expõe a configura-
ção da escola rural no período, narrando uma experiência vivida por ele com relação
à escolarização. Sua educação formal acontecia depois do trabalho com a família, e era
realizada por um professor praticamente sem formação. Em suas palavras:
37
HISTÓRIA DA INFÂNCIA No sítio não tinha escola, aí meu pai arrumou um professor particular. Ele mo-
NO BRASIL rava do outro lado do rio e a gente ia à noite, trabalhava de dia e ia à noite na
escola. Não sei se você sabe, mas naquele tempo os professores de sítio ensina-
vam as três contas, ensinavam a ler e escrever e ia até o manuscrito, você sabe o
que é o livro manuscrito? Já viu? Hoje não sei se existe mais o livro manuscrito.
Mas a gente estudou até o manuscrito. O professor falou para o meu pai, se o
senhor quiser mandar as crianças lá comigo só para fazer companhia tudo bem,
mas eu já ensinei para eles tudo... O que eu sei eles já sabem, até o manuscrito,
aí meu pai tirou a gente da escola. Ele não dava aula só para nós, tinha uma
porção de rapaziada que vinha e ele ensinava (Hélio, 70 anos).
Tal fragmento apresenta uma escola que se caracterizava pela improvisação, o es-
paço de aprendizagem é a sala da casa do professor, a formação deste era precária, e
se as crianças se dirigiam para lá sozinhas durante a noite, podemos imaginar que já
estavam em uma idade em que poderiam sair de casa com irmãos maiores ou mesmo
sozinhas, ou seja, em todas as experiências dos relatos de brasileiros não encontramos
nenhuma referência à Educação Infantil para os pequenos e a escola para os maiores
também era precária. Obede, 80 anos, diz: “Eu não tive estudo, eu estudei pouco”.
Ademais, não podemos incorrer em generalizações, mas a perspectiva da falta de
Educação Infantil ou outra forma de atendimento pelo País é recorrente desde tempos
remotos da própria história da nossa educação. Se considerarmos a atualidade, per-
cebemos a herança dessa história da ausência de instituições de atendimento quando
temos uma demanda de crianças muito maior do que a oferta de vagas.
Mesmo com uma legislação reguladora e representativa – Declaração dos Direitos
da Criança (1959); a Constituição Federal (BRASIL, 1988); o Estatuto da Criança e do
Adolescente (BRASIL, 1990); e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (BRASIL, 1996)
– um grupo considerável de famílias e crianças estão fora da Educação Infantil, e no
período investigado os relatos apontam que a ausência era bem maior.
A popularização da Educação Infantil no País ocorrerá nas décadas de 60 e 70 do
século XX, com as propostas de educação e projetos que objetivavam abrir frentes de
atendimento nas regiões que ficaram mais tempo sem ações efetivas. A história da Edu-
cação Infantil que mobiliza o País indica ações de cunho compensatório, assistencialista,
marcada por uma política de ampliação de vagas executada com baixos recursos, ações
paliativas, de maneira informal e, fatalmente, de baixa qualidade na educação das crian-
ças das classes populares. Sobre essa história, temos as pesquisas de Kramer (1995);
Campos e Rosemberg (1998); Rosemberg et al. (1995); e Souza (1996), entre outras.
Se essa era a situação do Brasil percebida e vivenciada nas experiências de brasi-
leiros, com os estrangeiros podemos constatar a presença de uma escolarização mais
sistematizada e popularizada. A Educação Infantil está presente em diferentes países
da Europa de forma ampliada e marca a vida dos sujeitos entrevistados.
38
Os entrevistados estrangeiros, como os brasileiros, vinham de contextos rurais, Histórias de infância,
memórias de escola
de pequenas aldeias e povoados, a exceção se faz a um dos entrevistados que morou e suas implicações à
educação infantil
em Madri, já considerada uma cidade de médio porte para o período, em meados da
década de 40 do século XX, antes da II Guerra Mundial.
Tal acontecimento político marca a trajetória dessas pessoas, pois a maioria dos
entrevistados veio para a região do Paraná na década de 1950, no pós-guerra, diante
das adversidades enfrentadas na Europa. O grupo caracterizava-se por camponeses,
filhos de camponeses que optaram por imigrar na busca de melhores condições de
vida. No que tange às experiências de escolarização, todos a abordaram; o enfoque na
Educação Infantil esteve presente em parte da experiência do grupo.
Certamente, a experiência que nos remete à história da Educação Infantil, em sua
origem, é a experiência de Johan, que morou em regiões da antiga Ioguslávia e fre-
quentou o Kindergarten, como ele mesmo cita. Convém reiterar que o Kindergarten
ou jardim de infância foi criado por Froebel e subsiste como um modelo de escola para
crianças que se estendeu por diversas regiões.
Johan, 80 anos, depõe que “o Kindergarden tinha muitos quadros com cavalo, gali-
nha, vaca, pomba. Começava com quatro anos, eu fui dois anos, depois comecei a es-
cola com 6 anos”. Essa lembrança da Educação Infantil também faz parte das memórias
de outra entrevistada, que conta sobre a professora e as atividades ali desenvolvidas:
Nós tínhamos nossa... Como a gente fala... nossa tia, professora. Eu lembro
que nós fomos passear, jogar bola e ela contou as histórias. Eu me lembro bem
quando estava lá sentada escutando, quando ela contou as histórias sentada
no chão. Às vezes a gente ia fora, porque lá tinha assim... Campo mas cheio de
flores, na Áustria é cheio de flores que nem assim o campo, mas tinha tantas
flores, aqui não tem, mas lá tinha tantas flores e fizemos aquele... (pra cabeça?),
coroa de flores com a tia do jardim (Katharina, 66 anos).
Tal referência faz parte de outra região da Europa, a Áustria, indicando a expansão
da experiência de educação com crianças pequenas e que acontecia antes da esco-
larização. Interessante perceber que Johan narra que após os 6 anos ele “começou
a escola”, ou seja, a experiência da Educação Infantil; não nos parece ser escola se
remetendo ao aspecto lúdico do jogo e da brincadeira que faziam parte da didática
froebeliana e que inspira as práticas pedagógicas até os dias atuais.
Ainda nesse repertório de experiências sobre a presença da Educação Infantil na
Europa, temos a experiência do entrevistado Pedro:
Eu lembro que com 4 anos sabia ler muito bem, com 4 anos já lia o Quixote. En-
tão, lá na escola era assim, 30, 40 aluninhos, chamado de párvulos, no jardim.
Ficava lá no jardim ensinavam a ler frase, complete e aquelas coisas. Passados
uns meses, já entrava na leitura. Lá era fundamental aprender a ler e escrever. A
39
HISTÓRIA DA INFÂNCIA primeira educação é a leitura... Eu entrei na escola com 3 anos para 4 anos, já
NO BRASIL era prezinho. Eu lembro da escola, era um mundo, tinha aquelas escadarias de
madeira e você pisava e fazia iihihihihih... Aquelas salas com aqueles enormes
corredores ocupavam o quarteirão inteiro. Tinha umas partes que estavam fe-
chadas com madeira, e então a gente acreditava que existia fantasma lá dentro.
Então, ia à escola de manhã, até ao meio dia e, depois, das 14 h às 17h. Então,
quando eu tinha 4 anos, juntava todo mundo em círculo, cada um com o Qui-
xote na mão, e um ia lendo; aí o professor dizia: “agora você continua”, e eu
tinha que continuar onde o outro parou. Se não continuasse se não prestasse
atenção já levava umas palmadas com palmatória. Com 4 anos já sabia ler, aí
comecei a estudar o catecismo. Com 6 anos eu já entrei em Calazans no colégio
de padre. Colégio muito tradicional, e lá eu aprendia muita coisa; sem exagerar,
quando eu tinha 7 anos eu já sabia como aqui um menino com 15 anos (Pedro,
75 anos).
40
Tais experiências foram apontadas para discutirmos, à luz desse material empírico, Histórias de infância,
memórias de escola
a História da Educação Infantil no Brasil que é tardia e contém episódios e situações e suas implicações à
educação infantil
que ainda não foram resolvidos. Assim, nos situamos nas décadas de 30, 40, 50 do sé-
culo XX, e o que havia no Brasil do período em termos de atendimento era incipiente
e quase inexistente.
Além das escolas infantis e jardins de infância públicos, anexo às escolas normais, o
exemplo mais conhecidos é a Escola Caetano de Campos, em São Paulo (MONARCHA
2001). Temos as experiências de atendimento à infância que se caracterizam por esco-
las confessionais, representadas por inúmeras ordens religiosas que chegam ao país
para abrir colégios e que almejavam, dentro de seus projetos pedagógicos e civilizado-
res, “educar a infância brasileira”.
Os exemplos desses colégios estão pelo Brasil inteiro e também fazem parte da his-
tória da educação das crianças. Em um dos capítulos da história da educação, temos os
relatos de viajantes, nos quais os pastores protestantes Daniel Kidder e James Fletcher
anunciam o desejo de abrir escolas que cumprissem um projeto de educação para
as crianças brasileiras. No ano de 1881, chega à província de São Paulo a missionária
norte-americana Martha Watts (MESQUITA, 2001), que realizará essa tarefa, cumprindo
esse ideal educacional de abrir escolas para a infância brasileira.
Desejo de todo meu coração ver o dia em que as nossas escolas para meninas
sejam de tal natureza que uma jovem brasileira nelas se possa preparar, por
sua educação intelectual e moral, a tornar-se uma digna mãe, capaz de ensinar
aos seus próprios filhos os elementos de uma educação e os deveres para com
Deus e os homens para esse objetivo é que estou me esforçando (KIDDER;
FLETCHER, 1941, p. 182).
[...] quando eu cresci mais, tinha 11 anos meu pai tinha na cabeça que a gente
ia estudar. Tinha um colégio de freiras numa cidade perto, ele foi lá e falou para
41
HISTÓRIA DA INFÂNCIA a freira que queria que eu estudasse. Meu pai era espertinho, mas não podia
NO BRASIL pagar. Perguntou para a freira se não tinha algum serviço para eu fazer, para fi-
car mais barato o colégio? A freira aceitou. Aí... enquanto no recreio as meninas
iam brincar, eu ia varrer classe de aula. Eu e uma funcionária da escola, a gente
varria as classes enquanto as outras brincavam, a gente ia varrendo.
42
a se repetir na memória de crianças que historicamente vem ficando fora de qualquer Histórias de infância,
memórias de escola
forma de atendimento à Educação Infantil em diversas regiões do país. e suas implicações à
educação infantil
Finalmente, é possível uma reflexão de que a Educação Infantil, mesmo tendo avan-
çado das primeiras experiências, ainda tem uma história para ser construída, história
que só será possível a partir da continuidade de pesquisas e investigações que promo-
vam as diferentes infâncias e almeja ser contada e marcada, quiçá mais por avanços ao
invés das ausências, conforme as aqui mencionadas.
Referências
AMADO, J.; FERREIRA, M. (Org.). Usos e abusos da História oral. 1. ed. Rio de
Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996.
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Janeiro: Fiocruz; Casa de Oswaldo Cruz; CPDOC; Fundação Getúlio Vargas, 2000. p.
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KISHIMOTO, T. M. A pré-escola em São Paulo. São Paulo: Loyola, 1988. Histórias de infância,
memórias de escola
e suas implicações à
educação infantil
KRAMER, S. A política do pré-escolar no Brasil: a arte do disfarce. Rio de Janeiro,
Achiamé, 1995.
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A infância e sua Educação: materiais, práticas e representações (Portugal e Brasil).
Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
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HISTÓRIA DA INFÂNCIA REDIN, E. et al. (Org.). Infâncias: cidades e escolas amigas das crianças. Porto Alegre:
NO BRASIL
Mediação, 2007.
THOMPSON, P. A voz do passado: história oral. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1998.
Proposta de Atividades
1) Após o estudo deste texto, faça uma breve investigação entre as pessoas que você conhece
e estão na faixa etária de 60 a 80 anos, questionando como foram suas experiências com a
educação formal, especialmente indagando se frequentaram a Educação Infantil.
2) Procure fazer uma pesquisa sobre a as origens da Educação Infantil em seu município ou
na sua instituição, observando se existem vestígios de documentos (fotos, atividades das
crianças, planejamentos de professores, etc.).
46
Histórias de infância,
memórias de escola
e suas implicações à
Anotações educação infantil
47
HISTÓRIA DA INFÂNCIA
NO BRASIL
Anotações
48
3 Estilos de psicoclínicas:
livrar a infância dos
embaraços psíquicos
(1930-1940)
49
HISTÓRIA DA INFÂNCIA As estatísticas anuais relativas ao ensino primário no período em apreço levantavam
NO BRASIL
índices numéricos preocupantes, como ilustra o Quadro 1, abaixo.
50
ANTECEDENTES Estilos de psicoclínicas:
livrar a infância dos
As psicoclínicas foram estruturadas à época da implantação da obrigatoriedade es- embaraços psíquicos
(1930-1940)
colar na Europa e nos Estados Unidos; extensão do ensino elementar, e detecção de
distúrbios prejudiciais à escolaridade; sobretudo entendia-se, nessa época, que a ins-
tituição escolar e sua disciplina moral normalizariam a agitada e heteromorfa natureza
infantil.
Como protocolo de ação, as equipes técnicas se dispunham a compreender e
acompanhar os casos designados de “criança problema” ou “criança difícil” em sua
trajetória de adaptação e mudança.
Hans Zulliger, professor primário e depois eminente psicologista na cosmopolita
Suíça de início do século XX, foi um dos precursores das psicoclínicas, além de ter
introduzido na pedagogia escolar a metapsicologia de Sigmund Freud. Atribui-se a
Zulliger o pioneirismo no concernente à formulação de uma pedagogia psicanalítica
para estudo, conforme sua nomenclatura pessoal, das “crianças difíceis” — crianças
com dificuldades, apesar de suas aptidões e capacidades de adaptação à vida social e
desenvolvimento cognitivo (ZULLIGER, 1920).
Nos Estados Unidos dos anos de 1930, as psicoclínicas ou “child guidances clinics”,
“child garden clinics” e “habit clinics” conheceram floração inédita e serviram de mo-
delo e fonte de inspiração para todos aqueles preocupados com a instabilidade e baixo
rendimento dos sistemas escolares estaduais aqui existentes.
De todo modo, algo parece ser indiscutível: na origem das psicoclínicas encon-
tram-se as cogitações teóricas de Alfred Binet a respeito das possibilidades positivas
atribuídas à “ortopedia mental”.
Da mesma forma que a ortopedia física endireita uma espinha dorsal, a orto-
pedia mental endireita, cultiva, fortifica a atenção, a memória, o julgamento, a
vontade. Não se procura ensinar às crianças uma noção, uma lembrança, e sim
colocar suas faculdades mentais em forma (BINET, 1911, p. 35).
51
HISTÓRIA DA INFÂNCIA Em resumo, desde o ponto de vista das psicoclínicas, o que importava não eram
NO BRASIL
as patologias graves e suas etiologias, mas os desajustes verificados dentro dos parâ-
metros da normalidade; por consequência, essas instituições renovaram de maneira
surpreendente o interesse e a percepção da infância em situações de aprendizagem,
insociabilidade, medo e desconfiança.
A CLÍNICA DE EUFRENIA
A Liga Brasileira de Higiene Mental foi fundada em 1922, e entre os associados
constavam médicos-psiquiatras, juristas, jornalistas e professores. Os estatutos da
LBHM elegiam as seguintes prioridades:
52
Urge, pois, que se estabeleça como norma o exame mental periódico das crian- Estilos de psicoclínicas:
cinhas. Teu filho é tímido, ciumento, desconfiado? É teimoso, pugnaz exaltado? livrar a infância dos
embaraços psíquicos
Cuidado com esses prenúncios de constituição nervosa! (1930-1940)
Teu filho tem defeito na linguagem, é gago? Manda-o examinar para saber a sua
verdadeira causa.
Teu filho tem vícios de natureza sexual? Leva-o ao especialista para que te en-
sine a corrigi-lo.
Teu filho é mentiroso, ou tem o vício de furtar? Trata-o, sem demora, se não
quiseres possuir um descendente que te envergonhe.
Teu filho tem muitos tiques ou cacoetes?
É um hiperemotivo. Procura evitar a desgraça futura do teu filho que poderá ser
candidato ao suicídio.
Teu filho progride nos estudos? Antes de culpar o professor, submete-o a um
exame psicológico. Conhecerás, então, o seu nível mental, o seu equilíbrio
emotivo, e terás, assim, elementos para melhor encaminhar na vida.
Lê e reflete: a felicidade do teu filho está, em grande parte, nas tuas próprias
mãos.
53
HISTÓRIA DA INFÂNCIA e ingressarem no “padrão normal”, desde que submetidas a regime específico de
NO BRASIL
aprendizagem oferecido em classes especiais anexas às escolas comuns; e os “verda-
deiros anormais da inteligência e do caráter” — débeis e instáveis (distraídos, anormais
dos sentidos e da palavra, débeis físicos e atrasados), os quais seriam encaminhados
aos institutos de reeducação para aprenderem atividades laborais.
Para avaliar o estado físico e mental dos escolares, as Clínicas Ortofrênicas conta-
vam com equipes técnicas integradas por professores, assistentes sociais, professores-
-visitadores, “psicólogos”, médicos clínicos e médicos psiquiatras. Nessas clínicas de
direção da infância, eram estudadas as bases fisiológicas da personalidade, as ativida-
des instintivas como fome, sede, funções de eliminação, sono, repouso, atividades de
sexo, manifestações emocionais e afetivas.
Preocupado com intervenções preventivas e corretivas, o “higienista mental”, se-
gundo Artur Ramos, atuaria na “formação de hábitos normais, corrigindo os precoces
desajustamentos encontrados”. Sensatamente, ele aconselhava:
54
O OBJETO DA CLÍNICA: A “CRIANÇA-PROBLEMA” Estilos de psicoclínicas:
livrar a infância dos
Por “criança problema” Artur Ramos definia os escolares com dificuldades de ajus- embaraços psíquicos
(1930-1940)
tamento às situações de aprendizagem ou de conduta, dificuldades geradas, na maio-
ria das vezes, em sua acepção, por injunções prejudiciais externas.
A nossa experiência no exame dos escolares “difíceis” mostrou que havia neces-
sidade de inverter os dados clássicos da criança chamada “anormal”. Essa deno-
minação - imprópria em todos os sentidos - englobava o grosso das crianças que
por várias razões não podiam desempenhar os seus deveres de escolaridade,
em paralelo com os outros companheiros, os “normais”.
A grande maioria, porém podemos dizer os 90% das crianças tidas como “anor-
mais”, verificamos na realidade serem crianças difíceis, “problemas”, vítimas de
uma série de circunstâncias adversas [...] e, entre as quais avultam as condições
de desajustamentos dos ambientes social e familiar (RAMOS, 1939, p. 13).
56
Distrito Federal, 56,11%; Rio Grande do Sul, 52,04%; Minas Gerais, 44,01%; Bahia, Estilos de psicoclínicas:
livrar a infância dos
34,01%; e Pernambuco, 22,32%%; levando-o a justificar a utilidade da Clínica de Orien- embaraços psíquicos
(1930-1940)
tação Infantil enquanto instituição a serviço da racionalização administrativa.
Para identificar as causas relacionadas com os índices de reprovação, o SHM pro-
moveu um inquérito em uma população de 541 de alunos e alunas repetentes, em
sete grupos escolares de áreas urbanas e suburbanas da capital. Com base em interro-
gatórios metódicos, levantavam-se esses percentuais — 65,6% dos escolares apresenta-
vam “problemas de personalidade de conduta”; 20,7% “mau gênio”; 16,6% “conduta
perturbadora”, 15,5% “instabilidade”; 15,3% “timidez”; 13% “mentira”; 10,1% “enure-
se”; 10% “fobias”; 7,9% “onicofagia”; 7,5% “distúrbios da palavra”; 6,3% “apatia”; 4%
“fantasia excessiva”; 3,5%, “fugas”; 3,3% “chupar dedo”; 2% “furto”; 2% “maus hábitos
sexuais”; 1,6% “tics”.
PENSANDO AS PSICOCLÍNICAS
Revestidos de élan humanitário, os métodos psicoclínicos, no afã de promoverem
a “higiene mental” como sinônimo de “saúde mental”, propagaram técnicas de cui-
dados preventivos e corretivos nos casos denominados “criança problema”, “crianças
difíceis” ou “instável escolar”; fundamentalmente tipos psíquicos em confronto com
a família, escola e currículo escolar, de modo a sanar conflitos geradores de angústia,
sofrimento e incapacidade de ação.
Sabia-se que entre os casos-problema e os casos-limites de distúrbio mental cons-
titucional havia uma gama de fragilidades e desajustamentos psicossociais, o que jus-
tificava perante as autoridades a necessidade e a relevância das clínicas de direção
da infância, em conexão com as escolas e/ou sistemas de ensino. Para Paul Bercherie
(2001, p. 136):
57
HISTÓRIA DA INFÂNCIA que, conforme o corpo de especialistas, conspiravam contra o aparecimento da pessoa
NO BRASIL
madura e racional. Daí a urgência de efetuar uma psicoterapia institucional com vistas
à formação do Eu normal, quer dizer, adequadamente socializado e autenticamente
individualizado, e o ímpeto de transportar os progressos da ciência para a escola e o
lar e propiciar correta formação mental em alunos, professores e pais.
Mas isso não é tudo, há questões a serem refletidas:
- Os estudos de casos não ofereciam proteção à privacidade e confidencialidade
dos sujeitos em observação — a criança com dificuldade de aprendizagem e
conduta inadequada —, podendo gerar estigma;
- A “criança problema” e o “instável escolar” (e correlatos) aparecem como iden-
tidades produzidas pelas psicoclínicas em época da escolarização em massa
- As ações reeducativas levadas a efeito pelas psicoclínicas tendiam a legitimar
a avaliação das performances sociais, em termos de rendimento de aprendiza-
gem, isto é, sucesso escolar, sucesso na vida.
Referências
BINET, Alfred. Les idées modernes sur les enfants. Paris: Flammarion, 1911.
58
MARCONDES, Durval. A higiene mental escolar por meio da Clínica de Orientação Estilos de psicoclínicas:
livrar a infância dos
Infantil. Revista de Neurologia e Psiquiatria de São Paulo, São Paulo, v. 7, n. 6, p. embaraços psíquicos
(1930-1940)
251-257, nov./dez. 1941a.
MONARCHA, Carlos. Brasil arcaico, Escola nova: técnica, ciência e utopia nos anos
de 1920 e 1930. São Paulo: Ed. da Unesp, 2009.
STEPAN, Nancy Leys. “A hora da eugenia”: raça, gênero e nação na América Latina.
Tradução de Paulo M. Garchet. Rio de Janeiro: Fio Cruz, 2005. (Coleção História e
Saúde).
ZULLIGER, Hans. Los niños difíciles. Traducción Agustín Serrata. Madrid: Fundación
de Javier Morata, 1920.
Anotações
59
HISTÓRIA DA INFÂNCIA
NO BRASIL
Anotações
60
4 A Educação infantil
no Paraná: o início
da história (1862-1915)
Maria Cristina Gomes Machado / Jaqueline Delgado Paschoal
INTRODUÇÃO
Este capítulo tem como objetivo discutir a organização do trabalho pedagógico dos
primeiros Jardins de Infância paranaenses, no final do Império e início da República
no Brasil. Justificamos a pertinência desse debate por entendermos que o movimen-
to de investigar o passado, retomando as marcas do processo de criação e organiza-
ção dessas instituições, possibilita-nos compreender a constituição dessa modalidade
educacional. Essa compreensão contribui para a formação inicial e continuada dos
profissionais que atuam junto a esse nível de ensino ao refletir sobre o processo histó-
rico que fomentou a necessidade de educar em uma instituição específica às crianças
pequenas como complementação à educação familiar.
Para tanto, demarcamos como recorte temporal o ano de 1862, período em que foi
criado o primeiro Jardim de Infância não oficial no Paraná a 1915, em que foi criado o
Código de Ensino que remodelou o ensino das escolas infantis paranaenses naquele
momento histórico.
Nosso recorte espacial se deve, em princípio, para que conheçamos as especificida-
des do Estado paranaense no que se refere à educação infantil. Contudo, sua história
não pode estar desvinculada de um movimento nacional de propagação da necessi-
dade da escola pública gratuita, obrigatória e laica, sob responsabilidade do Estado
destinada a todas as classes da população. Buscava-se, no final do século XIX, em
países considerados “civilizados”, organizar nacionalmente a educação desde o jardim
de infância até o ensino superior, constituindo-se os chamados “sistemas nacionais de
ensino”. A escolarização era chamada para formar o homem para o trabalho e para o
exercício da cidadania. Essa preocupação com a educação deveria estar presente na
vida das crianças desde a mais tenra idade.
61
HISTÓRIA DA INFÂNCIA Educar as crianças em jardim de infância era importante na virada do século XIX
NO BRASIL
para o XX? Como metodologicamente o trabalho escolar deveria ser realizado? Quais
eram os conteúdos necessários e adequados à educação das crianças pequenas? Quais
foram as primeiras ações paranaenses relacionadas a essa modalidade de ensino? Tais
questionamentos são objetos de reflexão ao longo deste capítulo.
Para contemplá-los, dividimos o presente capítulo em duas partes. Na primeira,
apresentamos o debate sobre educação paranaense no período imperial, com desta-
que para a primeira experiência de educar as crianças pequenas de iniciativa particular
da professora Emilia Eriksen1. Na segunda parte, enfatizamos a criação e organização
de dois jardins de infância, bem como o Código de Ensino de 1915 por ser a primeira
lei a tratar detalhadamente acerca desse nível de ensino.
62
de obra na produção agrícola, considerando-se que o movimento abolicionista, desde A educação infantil
no Paraná: o início da
1850, por meio da Lei Euzébio de Queiróz, proibia o tráfico negreiro. É importante história (1862-1915)
ressaltar que a entrada de imigrantes no Brasil, para o trabalho nas lavouras de café
e em outros setores, recebeu forte incentivo do governo, sobretudo pelo discurso de
modernização do País.
Desta maneira, logo após a instalação da Província, muitos colonos de várias etnias
da Europa, como, por exemplo, italianos e eslavos, dentre outros, foram chegando
e se estabelecendo no planalto de Curitiba e nos Campos Gerais. A maioria desses
imigrantes se dedicou inicialmente às atividades rurais, constituindo colônias e nú-
cleos agrícolas, nos quais seus descendentes buscavam seguir a mesma profissão; “[...]
outros exploraram os produtos nativos como as madeiras e a erva-mate, a pecuária, a
apicultura, a vinicultura, o comércio rural e urbano (MARTINS, 1995, p. 351).
O Paraná contava, nesse período, com duas cidades – Curitiba e Paranaguá – e sete
vilas. Curitiba, reconhecida como Vila por mais de um século e meio, foi escolhida, já
em 1854, para ser a capital da Província do Paraná. Do ponto de vista estrutural, era
considerada uma cidade pequena, cujas atividades restringiam-se à lavoura e ao co-
mércio, ficando a produção agrícola responsável pelo cultivo de milho, feijão, aipim,
batata e trigo. Os principais produtos de exportação eram a erva-mate, o arroz e a
madeira (MARTINS, 1995).
Sobre a organização da Província, foi recomendado, pelo governo imperial ao Presi-
dente do Paraná, Zacarias de Góes e Vasconcelos, que informasse ao Ministério do Im-
pério, de maneira detalhada, o estado da instrução pública, da agricultura, do comércio,
da mineração e da indústria em geral. Recomendava que não houvesse descuido com
nenhum desses elementos para o desenvolvimento e progresso da nova província.
Um ano após sua emancipação, em 1854, verificamos que esse Presidente já se
preocupava com a educação de um modo geral. Ao encaminhar seu relatório à Assem-
bleia Provincial, lamentava os problemas do ensino, salientando que já tinha ouvido
das corporações e dos funcionários as mais desfavoráveis informações sobre esse ramo
do serviço público. Os próprios documentos a que teve acesso indicavam-lhe alguns
problemas relacionados, entre outros, ao ensino primário, visto que destacava-se
como principal problema a baixa assiduidade dos alunos.
Havia a preocupação do poder público em investir nas escolas primárias públicas e
na abertura de novos estabelecimentos para a faixa etária acima de sete anos de idade,
embora as ações não contribuíssem para o atendimento das crianças existentes em
idade escolar. Realçamos, contudo, uma ação pioneira e de iniciativa particular, a da
professora Emilia Ericksen, que no ano de 1862 criou o primeiro Jardim de Infância
não oficializado, intitulado “Jardim-Escola”, inaugurado na cidade de Castro, na então
Província do Paraná.
63
HISTÓRIA DA INFÂNCIA Apesar de não possuir formação pedagógica, Emilia Ericksen iniciou sua carreira
NO BRASIL
no magistério fundando uma escola particular com o objetivo de ensinar a língua
francesa para jovens castrenses de famílias de poder aquisitivo mais elevado. Ao longo
dos tempos, acabou por ampliar a escola, optando pelo trabalho com crianças e trans-
formando sua própria casa em um pequeno internato, incluindo seus netos e netas.
Inseriu os estudos de diferentes áreas do conhecimento, como a literatura, a história,
as ciências e a arte culinária. A escola era particular, todavia essa professora não fazia
distinção entre o aluno pobre e o rico ao misturar todas as classes sociais2 em um
mesmo espaço físico.
A escola era particular, e podemos afirmar que apesar de sua situação precária,
era quase gratuita, pois as contribuições dos mais abastados era em material
para a própria escola, em benefício daqueles que não podiam pagar, ou era uma
pequena pensão alimentar, paga pelos internos, não raro em livros, o presente
que dona Emilia mais valorizava (DORFMUND, 1966, p. 6).
2 Sua escola era considerada totalmente democrática, pois recebia tanto o “[...] filho do rico
fazendeiro, do chefe político, do padeiro, do imigrante, e para rigor de igualdade, recebia tam-
bém, o filho da preta cozinheira” (DORFMUND, 1966, p. 07).
64
Para a organização do trabalho pedagógico, “Emilia Ericksen” teve um importante A educação infantil
no Paraná: o início da
referencial; teve contato com as ideias e os trabalhos de Frederik Froebel, na Europa, história (1862-1915)
3 Até o ano de 1870, Emilia Ericksen viveu com parte de sua família na cidade de Castro. So-
mente em 1900 uniu-se aos outros filhos na cidade de Palmeiras, falecendo sete anos depois,
com noventa anos de idade.
65
HISTÓRIA DA INFÂNCIA O ESTADO DO PARANÁ E AS PRIMEIRAS AÇÕES REPUBLICANAS EM
NO BRASIL
PROL DA EDUCAÇÃO INFANTIL
Com a Proclamação da República, em 1889, o Paraná tornou-se estado federado. Os
primeiros anos do regime republicano foram marcados por instabilidade governamen-
tal, a qual dificultou a organização do Estado, culminando em perturbações políticas,
econômicas e sociais. Sua economia continuava a depender da produção da erva-mate
e da criação de gado.
O Estado do Paraná buscava modernizar-se, e essa necessidade se manifestava con-
comitantemente ao aumento populacional e imigratório, bem como na organização de
centros urbanos oriundos do crescimento da indústria e do comércio. Havia reivindi-
cações para a ampliação de vias carroçáveis, portos e estradas de ferro. Ao lado dessas
reivindicações, a instrução pública era solicitada como necessária para formação moral
e intelectual da população, visto que a situação das escolas existentes era precária. Bus-
cava-se criar escolas em núcleos mais populosos, ampliar a fiscalização para garantir o
funcionamento das escolas existentes e criar leis para regulamentar seu funcionamento.
No período de 1904 a 1907, na gestão de Vicente Machado da Silva e Lima como
Presidente do Estado do Paraná, muitas inovações aconteceram no sentido de aprimo-
rar o ensino. Em mensagem proferida ao Congresso Legislativo do Estado, no ano de
19074, esse Presidente manifestou seu pensamento de que a propagação do ensino
estava ligada ao progresso e à modernização de um povo. Enfatizava que “[...] não
significa esta preocupação uma simples dileção de meu espírito, mas sim a convicção
arraigada de que a solidez e propagação do ensino estão ligadas ao progresso e força
dos modernos povos” (PARANÁ, 1907, p. 16).
A intenção de organizar os primeiros Jardins de Infância no Paraná no início do sé-
culo XX foi resultado do conhecimento e da observação de experiências educacionais
consideradas bem sucedidas e postas em execução em diferentes partes do Brasil e no
exterior. Destacamos que “[...] uma diversidade de ideias, propostas e materiais sobre
Instrução Pública em circulação, em exposição e observadas de perto em São Paulo,
em outros estados da Federação, em países europeus e nos Estados Unidos” (SOUZA,
2004, p. 24).
De acordo com o Relatório de Reinaldo Machado, Diretor Geral Interino da Ins-
trução Pública, ao Secretário da Instrução Pública, Bento José Lamenha Lins, no ano
66
de 1905, o Presidente do Estado havia se impressionado com os Jardins de Infância A educação infantil
no Paraná: o início da
conhecera em suas repetidas viagens a outros estados do país e ao estrangeiro. Por história (1862-1915)
)LJXUD-DUGLPGH,QIkQFLD³0DULDGH0LUDQGD´
5 Vale esclarecer que esse estabelecimento, apesar de inicialmente ter recebido o nome de “Es-
cola Jardim de Infância”, em 1912 recebeu uma nova denominação do então Presidente do
Estado, Carlos Cavalcante de Albuquerque: “[...] os Jardins de infância desta capital, terão de
agora em diante as seguintes denominações: O jardim da infância da rua Aquidaban, “Maria de
Miranda” [...]” (PARANÁ, JORNAL DIÁRIO OFICIAL, 1912). A diretora Maria de Miranda
faleceu no ano de 1910, recebendo com isso uma homenagem póstuma.
67
HISTÓRIA DA INFÂNCIA Com sessenta crianças matriculadas e sob a direção da professora Maria de Miran-
NO BRASIL
da, foi grande a aceitação dessa instituição por toda a sociedade, pelo poder público
e pela imprensa local, devido principalmente à organização do trabalho desenvolvido
nesse estabelecimento, que se baseava na proposta de Froebel6. Desta maneira, priori-
zava-se a ginástica de movimento dos músculos, troncos, cabeça e pescoço; as marchas
e os cânticos eram aprendidos exclusivamente por audição; os exercícios sobre os
órgãos dos sentidos e trabalhos manuais variados.
Para a aplicação dos conteúdos, adotou-se o método intuitivo. Este tomava como
ponto de partida para o desenvolvimento dos trabalhos a educação dos sentidos da
criança, priorizando o canto, a recitação e o desenho, entre outros conteúdos. Na reali-
dade, a opção da metodologia froebeliana na organização do trabalho dessa instituição
deu-se em função da circulação e propagação das ideias pedagógicas ancoradas em
princípios de modernização, renovação pedagógica e modelos educativos, em vigência
no cenário europeu e norte-americano dos séculos XVIII e XIX. Como destacado: “[...]
era patente a presença da adoção do método intuitivo, e o programa para a escola in-
fantil voltava para a lição das coisas, canto, recitação, desenho, entre outros conteúdos
(SOUZA, 2004, p. 171).
O ambiente dessa escola-jardim era diferenciado, oferecia oportunidades para a
estimulação dos sentidos, as professoras trabalhavam movimentos corporais como an-
dar, correr, subir, descer, pular, sempre com segurança, objetivando o controle do cor-
po e a manutenção do equilíbrio nas atividades propostas. Desta maneira, os órgãos
dos sentidos deveriam receber estimulações externas, como, por exemplo, atividades
com cores, formas, música e brincadeiras.
No Relatório de Laurentino de Azambuja, Delegado Fiscal da Primeira Circunscri-
ção Escolar, apresentado a Arthur Pedreira de Cerqueira, Diretor Geral da Instrução
Pública, é enfatizada a importância das atividades lúdicas para o desenvolvimento e
68
aprendizado da criança, visto que “[...] educa-se por meio de brinquedos ou dons A educação infantil
no Paraná: o início da
apropriados, cuja coleção bem combinada indica o esforço em prol da educação infan- história (1862-1915)
69
HISTÓRIA DA INFÂNCIA A Figura 3 retrata as professoras e as crianças na fachada do Jardim de Infância em
NO BRASIL
questão. O nome “Emilia Ericksen” foi uma homenagem aos serviços prestados por
essa professora na criação do primeiro jardim de infância do Brasil, no ano de 1862,
como já mencionamos.
Para compor a equipe pedagógica dessa instituição, o Presidente do Estado, por
meio do Decreto nº 600, determinou“[...] a normalista d. Joana Falce Scalco, d. Irace-
ma Doria, d. Rosalina Vieira de Castro para exercerem os cargos de diretora da escola
Jardim de Infância, de professora de piano e para o cargo de guardiã, na ordem em que
se acham os seus nomes colocados” (PARANÁ, 1910). Por conta das muitas reivindica-
ções da sociedade em geral para abertura de novos estabelecimentos voltados para a
educação das crianças pequenas, este foi inaugurado. Contemplou uma proposta de
trabalho na perspectiva de Maria Montessori7, diferentemente do Jardim de Infância
Maria de Miranda.
Apesar de adotar a educação dos sentidos, assim como as outras instituições em
estudo, esse novo estabelecimento destacou-se por ter optado por uma pedagogia,
que, do ponto de vista didático, tinha uma organização que se orientava de acordo
com os períodos de desenvolvimento da criança. As atividades propostas levavam em
conta, particularmente, o nível de maturidade em que as crianças se encontravam. Esse
estabelecimento foi considerado o mais importante desse nível de ensino, justamente
por apresentar uma nova perspectiva de trabalho:
A professora Joana Falce Scalco, muito jovem ainda, trazendo na alma o desejo
incoercível da juventude, que sempre se inclina pelas inovações, mesmo revo-
lucionárias como a de Montessori, empolgou-se com o movimento, levando
para o ’Emilia Ericksen’ todo o seu idealismo e juventude, consagrados ao novo
método. Por isso esse jardim é o marco de uma nova era no ensino paranaense
(RATACHESKI, 1953, p. 37).
70
de ser considerado um marco no ensino paranaense, “[...] este, diferentemente do pri- A educação infantil
no Paraná: o início da
meiro, não aceitava o jogo ou o lúdico como possibilidade de conhecimento” (LARA, história (1862-1915)
2006, p. 217).
Enquanto nessa nova proposta de ensino o brincar não era considerado relevante
para o desenvolvimento das potencialidades infantis, por outro lado caberia à profes-
sora criar um ambiente de oportunidades para que as crianças se concentrassem de
modo a garantir a calma e a atitude tranquila. Para tanto, priorizou a educação dos sen-
tidos a partir dos seguintes pressupostos: organização do conjunto de materiais para
o estímulo dessa educação sensorial; educação dos movimentos; formação da mente
matemática e a alfabetização. Sobre as especificidades dessa metodologia, salientamos
a posição montessoriana:
Uma das principais finalidades práticas de nosso método tem sido a de fazer pe-
netrar a educação muscular na própria vida das crianças, integrando-as na vida
cotidiana; e assim, passamos a incluir, de cheio, a educação dos movimentos no
conjunto único e indivisível da educação da personalidade infantil. A criança,
como podemos constatar é habitualmente presa de incessante movimentação: a
necessidade de movimento, nela irresistível, vai aparentemente atenuando-se; é
que os poderes inibidores, desenvolvendo-se, harmonizam-se com os impulsos
motores, possibilitando a obediência à vontade (MONTESSORI, 1965, p. 79).
Montessori (1965) ressaltava que a criança mais evoluída seria aquela cujos im-
pulsos motores fossem mais obedientes, de modo que nenhum método de educação
poderia ser esquematizado como sendo moderador ou inibidor do movimento. Essa
autora defendeu o pensamento de que, na idade infantil, torna-se mais fácil desenvol-
ver algumas habilidades do que na idade adulta.
Por esse motivo, estimular a coordenação e a livre movimentação da criança, por
meio de materiais e exercícios diversificados na sala de aula, é condição necessária para
sua educação. “A educação sensorial deve, pois, ser começada com método desde a
tenra idade, e continuada, depois, durante o período de instrução que preparará o indi-
víduo à vida prática em seu ambiente” (MONTESSORI, 1965, p. 101). Para o desenvolvi-
mento das atividades em sala de aula, os materiais utilizados contemplavam conteúdos
voltados para “[...] cor, forma, dimensão, som, grau de aspereza, peso, temperatura;
assim como os sininhos que dão os tons musicais” (MONTESSORI, 1965, p. 103).
No que diz respeito à organização do espaço, a escola infantil em questão traba-
lhava seu ambiente de modo a acolher, sem impedimentos, a atividade espontânea da
criança, satisfazendo seu desenvolvimento. Os princípios norteadores tinham como
base a liberdade, a atividade, a independência e a individualidade infantil. Sobre essa
última questão, o ritmo de cada criança era respeitado, já que cada um apresentava
interesses e necessidades próprias.
71
HISTÓRIA DA INFÂNCIA Quatro anos depois da inauguração desse Jardim de Infância, já na gestão de Affon-
NO BRASIL
so Alves de Camargo como Presidente do Estado, foi aprovado o Decreto nº 710, de
18 de outubro de 1915, que instituiu o Código do Ensino do Estado do Paraná, o qual
trouxe muitas mudanças para o ensino infantil, conforme reportagem da imprensa
local, intitulada “O Código criou escolas maternais e remodelou os jardins e infância”.
Uma das inovações do novo Código de Ensino são as escolas maternas, ‘Insti-
tutos de primeira educação, onde as crianças sem distinção de sexo recebem
os cuidados reclamados pelo seu desenvolvimento físico, moral e intelectual;
‘[...] a escola tomará sob sua guarda as crianças das 8 às 17 horas, todos os dias,
exceto aos domingos e feriados legais’ ( JORNAL, 1915).
No que diz respeito à educação infantil, esse Código do Ensino inovou ao contem-
plar uma parte específica para o ensino infantil, dividindo-o em escolas maternais e
jardins de infância. No Título II do Capítulo I, que trata das Escolas Maternais, o novo
Código de Ensino apresentava o caráter educativo dessas instituições ao priorizar o
desenvolvimento integral das crianças. Para o direito à matrícula, o documento propu-
nha alguns critérios, como a idade (de 4 a 7 anos), as condições financeiras da criança
e a sua saúde física, incluindo estar livre de moléstias infecto-contagiosas ou repulsivas
e não ter defeito físico que impossibilitasse receber a educação ministrada no jardim
de infância. De acordo com o documento:
Art. 25- Escolas Maternais são institutos de primeira educação, onde as crianças,
sem distinção de sexos recebem os cuidados reclamados pelo seu desenvolvi-
mento físico, moral e intelectual da criança.
Art. 26- Serão admitidas à matrícula, em número que a escola comportar, crian-
ças nas seguintes condições: a) tendo 2 a 7 anos de idade; b) tendo pais operá-
rios reconhecidamente pobres ou vivendo sob os cuidados de pessoa nas mes-
mas condições; c) não sofrendo de moléstias infecto-contagiosa ou repulsiva e
não tendo defeito físico que as impossibilite de receber a educação que a escola
ministra (PARANÁ, 1915).
72
ções, e a possibilidade de aumento dessas funcionárias, dependendo do número de A educação infantil
no Paraná: o início da
crianças, conforme o Artigo 31. história (1862-1915)
Art. 31- Cada escola maternal terá o seguinte pessoal: uma professora diretora;
uma ou mais professoras adjuntas; uma ou mais guardiãs; duas ou mais serven-
tes, uma das quais será cozinheira (PARANÁ, 1915).
Do ponto de vista legal, o Código de Ensino de 1915 avançou no que diz respeito
à educação infantil, uma vez que priorizou, já nesse nível de ensino, o aspecto educa-
tivo. Esse documento previa o funcionamento da escola maternal separado do jardim
de infância e uma categorização em relação aos critérios idade e condição social da
criança. Esse documento demonstrou bastante sensibilidade e respeito em relação a
esse nível de ensino e às particularidades dessa faixa etária, ao apregoar que “[...] os
Jardins de Infância, são destinados a preparar convenientemente as crianças para o
curso primário, suavizando a transição entre o lar e a escola” (PARANÁ, 1915).
Para efeitos de contratação do pessoal, o documento determinou que, por estar o
jardim de infância separado da escola maternal, seriam contratados uma diretora e os
demais funcionários, de acordo com as respectivas funções, conforme Artigo nº 34.
Sobre o encerramento das atividades no final do ano, ficou estabelecido como critério,
segundo o Artigo 35, uma exposição dos trabalhos realizados e em seguida uma festa
para as crianças e os demais envolvidos na escola infantil.
É interessante apontar que no Capítulo III, que trata das disposições comuns às
escolas maternais e aos jardins da infância, o documento enfatiza a relação entre uma
e outra e determina a forma como a professora deveria interagir com os pequenos,
ressaltando a importância da observação das atitudes e comportamento infantis. As-
sim, determina ser importante “[...] tratar as crianças com maternal carinho, sem dis-
tinções ou preferências; estudar os gostos, tendências ou inclinações de cada criança”
(PARANÁ, 1915, p. 29).
A educação pelos sentidos retrata a opção metodológica a ser trabalhada nas escolas
infantis. Desta maneira, o Código de Ensino de 1915 deixava claro que cabia aos pro-
fessores a seleção das atividades a serem desenvolvidas junto às crianças de maneira:
[...] suave, sem fadigá-las, tendo atenção a sua idade e condições pessoais; em
colóquios pequenos e interessantes sobre coisas cujo conhecimento direto
esteja ao seu alcance e, assim, educar-lhes pelos sentidos; habituá-las a bem
entender e observar e a bem falar; em suma, despertar e orientar a inteligência
infantil. Em exercícios simples e rudimentares de trabalhos manuais adequados
aos fins educativos do instituto (PARANÁ, 1915, p. 17).
73
HISTÓRIA DA INFÂNCIA A forma de conduzir as atividades no que diz respeito ao aperfeiçoamento da coor-
NO BRASIL
denação motora ampla e fina e ao desenvolvimento da oralidade da criança foi re-
tratada no documento como importante no trabalho junto aos pequenos. O brincar
apareceu na forma de diversão e como um elemento que auxilia na construção de
bons hábitos da higiene infantil; “[...] exercícios moderados de ginástica escolar; em
pequenos exercícios de canto e recitação em forma de monólogos ou diálogos, em
prosa ou verso” (PARANÁ, 1915, p. 18).
Pelo exposto, observamos claramente que o desenvolvimento integral da criança
era uma preocupação do poder público, pois ao orientar as professoras sobre as ques-
tões pedagógicas, demonstrava que era seria possível uma educação de qualidade,
desde a mais tenra idade. No que tange às questões relacionadas ao comportamento
infantil, o Artigo 38 do Título III ressaltava que a disciplina deveria apresentar-se so-
mente como preventiva ao estabelecer que “[...] as repressões consistirão em simples
advertências, de modo persuasivo; as recompensas no aplauso discreto da aplicação
ou do bom comportamento” (PARANÁ, 1915, p. 21).
Para isso, o próprio documento chamava a atenção para a importância da formação
inicial das professoras e exigia como formação mínima o diploma de normalista, e não
somente isso, pois para exercer o cargo de diretora ou de professora seria necessário
comprovar capacidade física e moral.
De um modo geral, verificamos, pelo que propôs o Código de Ensino de 1915
sobre o ensino infantil, que havia um conceito de infância bem definido e um co-
nhecimento significativo das especificidades dessa faixa etária, mormente quando se
preocuparam em chamar a atenção dos professores acerca da importância do respeito
à idade da criança, bem como as suas condições pessoais. É importante ressaltar que
muitas das modificações previstas no novo Código estavam em consonância com o
trabalho desenvolvido no jardim de infância “Emilia Ericksen”. Como esse documento
não determinou, em seu conteúdo, uma metodologia única a ser utilizada na proposta
pedagógica dos Jardins de Infância, esse estabelecimento continuou a desenvolver
suas atividades priorizando, em sua essência, a proposta montessoriana de trabalho.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É importante assinalar que, do ponto de vista histórico, o funcionamento dos pri-
meiros Jardins de infância paranaenses demonstrou ao poder público, e também à
sociedade e à imprensa, a relevância de seu papel na educação da criança pequena.
Do ponto de vista pedagógico, essas instituições apresentaram uma particularidade
diferente das escolas primárias ao reconhecer, por meio de sua opção metodológica,
tanto a froebeliana como a montessoriana de trabalho, as especificidades do período
da infância e o respeito à idade da criança.
74
Enquanto a criação do primeiro Jardim de Infância não oficial aconteceu de forma A educação infantil
no Paraná: o início da
isolada, já que naquele momento da história não se vislumbrava a abertura dessas ins- história (1862-1915)
75
HISTÓRIA DA INFÂNCIA Por outro lado, apesar do avanço da implantação do método montessoriano nas
NO BRASIL
escolas infantis paranaenses, historicamente não houve continuidade desse trabalho,
porque contemporaneamente não há, neste Estado, escolas organizadas exclusiva-
mente a partir da metodologia montessoriana. Provavelmente essa tradição não se
fortaleceu devido ao conhecimento de outras orientações pedagógicas que adentra-
ram no território paranaense a partir de então, fazendo com que as escolas adotassem
métodos pedagógicos mistos.
Passados mais de cem anos da criação e expansão dos primeiros jardins de infância
no Brasil, e ao se comemorar vinte e um anos da aprovação da Constituição Federal
de 1988, pela qual a criança passou a ser considerada como cidadã, como sujeito de
direitos, inclusive o direito à educação de qualidade, do ponto de vista histórico as es-
colas infantis, principalmente as creches, continuam à margem do sistema educacional
brasileiro. Desde a sua origem, quando essas instituições foram pensadas à sombra da
família, pois serviram por muito tempo como equipamento de substituição à família e
não como um espaço de complementação para a educação da criança pequena, os jar-
dins de infância foram criados para atender a população mais privilegiada da sociedade.
No entanto, apesar dessa dicotomia nos dois tipos de atendimento à criança, con-
vém afirmar que a consolidação tanto das creches como dos jardins de infância ou
pré-escolas no Brasil só aconteceu nas últimas décadas, em função dos movimentos
sociais de luta e reivindicação pelos direitos humanos, dentre eles o direito de todas as
pessoas a uma educação de qualidade, desde a mais tenra idade, independentemente
de sua classe social.
Para além das questões legais que fundamentam a educação infantil na sociedade
contemporânea, é importante salientar que, por meio de um levantamento histórico,
torna-se possível ultrapassar as questões normativas para adentrar em um processo de
reconhecimento dos feitos ou realizações daqueles que deixaram um legado e con-
tribuíram para uma melhor compreensão acerca das questões políticas, econômicas,
sociais e educacionais de um determinado momento histórico.
Referências
DORFMUND, Luiza Pereira. Emilia Ericksen. Curitiba: [s. n.], 1966. Mimeo.
76
JORNAL DIÁRIO DA TARDE, Curitiba, 3 fev.1906. A educação infantil
no Paraná: o início da
história (1862-1915)
Proposta de Atividade
78
A educação infantil
no Paraná: o início da
história (1862-1915)
Anotações
79
HISTÓRIA DA INFÂNCIA
NO BRASIL
Anotações
80
5 Educando a infância
paranaense de 1990
Elaine Rodrigues
INTRODUÇÃO
A propósito de subsidiar as discussões propostas para a disciplina História da Infân-
cia no Brasil, lançamo-nos o desafio de escrever este capítulo. Demarcamos a discussão
acerca da concepção de infância tomando-a como um constructo cultural. Elegemos
como fonte para nossa análise o Currículo Básico para a Escola Pública do Paraná, pois
entendemos que a linguagem desse documento, editado no ano de 1990, muito bem
representa a agenda das preocupações acerca da formação do sujeito infantil em nosso
Estado, o Paraná.
É importante destacar que o Currículo Básico para a Escola Pública do Paraná não
foi editado por meio de uma atitude isolada do Estado. Durante os anos da década de
1980 e 1990 são atendidas, no Brasil, várias reivindicações acerca da legalidade e do
ordenamento da educação da infância. Registramos a promulgação da Constituição
Federal em 1988, da LDB1em 1996, a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente
em 1990.
Decorridos aproximadamente duas décadas desde a promulgação da LDB, da en-
trada em vigor do Estatuto da Criança e do Adolescente, da publicação do Currículo
Básico para a Escola Pública do Paraná as discussões, acadêmicas ou não, sobre o
assunto infância proliferaram sobremaneira; essa é uma constatação que podemos
comprovar a “olhos nus”.
1 LDB- Lei de diretrizes e Bases da Educação Nacional (9394/96). FARIA, A. L. Goulart de.
& PALHARES, Marina Silveira (Org.). Educação infantil pós-LDB: rumos e desafios. 3. ed.
Campinas, SP: Autores Associados. 2001. (Coleção polêmicas do nosso tempo). Estudo que
nos possibilita compreender o campo das lutas por soluções para a Educação Infantil após a
promulgação da lei.
81
HISTÓRIA DA INFÂNCIA Trabalharemos, aqui, com o Currículo Básico tomando-o como um dispositivo de
NO BRASIL
ordenação e controle da educação pré-escolar no estado paranaense; expandindo sua
possibilidade de ação e governamento da infância por meio de táticas discursivas assu-
midas pela comunidade educacional como verdades quase inquestionáveis.
O currículo básico para a Escola Púbica do Paraná é representativo dos anseios
relacionados à constituição do sujeito infantil quando permite, ao examinar seu pró-
prio conteúdo, notabilizar o conhecimento que se produziu referente ao tema em
destaque, observando-o como entidade cultural, como criador e criação do próprio
tema – infância.
Evidenciando os pressupostos teóricos norteadores do ensino infantil projetados
nessa forma curricular, objetivamos dar vulto à ideia de que essas propostas possibi-
litam discernir o que está sendo culturalmente selecionado para o conhecimento dos
alunos, destacando o sujeito infantil que se pretende forjar.
Compreendemos currículos como dispositivos que por seu caráter de oficialidade
tendem a gestar “verdades históricas” relativas aos saberes que por sua vez legitimam
posturas e passam a constituir referências para o pensar e o agir no âmbito das insti-
tuições escolares. “A questão principal é: a historicidade do currículo é da sua própria
constituição, de modo que não apenas ele tem uma história como ele faz uma histó-
ria”, é o que adverte Veiga-Neto (2003, p. 96).
Tomar o currículo como fonte representativa das concepções correntes sobre a in-
fância possibilita-nos romper com a teorização que o define como uma questão técnica
ou como um receituário para a organização formal da escola, por meio da qual se che-
garia mais facilmente à apropriação de um sujeito idealmente constituído, reproduzin-
do a lógica filosófica moderna. A densidade teórica para o rompimento interpretativo
que buscamos evidenciar encontra amparo nas reflexões que categorizam o currículo
escrito como aquele que “nos proporciona um testemunho, uma fonte documental, um
mapa do terreno sujeito a modificações; constitui também um dos melhores roteiros
oficiais para a estrutura institucionalizada da escolarização” (GOODSON, 1995, p. 21).
O Currículo Básico para a Escola Pública do Paraná, mais especificamente sua pro-
posta para o trabalho com a infância, é uma possibilidade de estudos acerca dos espa-
ços internos e externos à escola. No âmbito externo:
[...] como qualquer outra reprodução social, ele constitui o campo de toda
sorte de estratagemas, interesses e relações de dominação”. [Inegavelmente]
portadoras de contradições em todo o seu processo de produção e implanta-
ção, iniciando pelas articulações e conciliações na fase de confecção, momento
de tensões e de acordos entre os vários sujeitos que as produzem (GOODSON,
1995, p. 17).
82
E no espaço interno: Educando a infância
paranaense de 1990
83
HISTÓRIA DA INFÂNCIA Larrosa (2002, p. 133) define todo texto como um prólogo, um esboço no mo-
NO BRASIL
mento em que se escreve, e uma máscara mortuária alguns anos depois, quando não
é outra coisa a não ser a figura já sem vida dessa tensão que o gerou e animou. Currí-
culos são textos, são “descobertas”, mas como toda solução conveniente tem mínimas
possibilidades de generalização no que tange à efetiva preocupação com o âmbito
interno da ou das escolas e dos conceitos que esta assume ou descarta.
84
Tabela 1 – Detalhando: títulos/conteúdos para a Educando a infância
paranaense de 1990
fundamentação da educação pré-escolar e alfabetização – (1990)
85
HISTÓRIA DA INFÂNCIA O trabalho escolar amparado por essa teoria reforçaria, por princípio, a consciência
NO BRASIL
de classe social; o sentimento de pertencimento a uma camada específica entre aque-
las que comporiam o cenário social. O trabalho desenvolvido por meio dos postulados
da denominada “ciência da história” representava, para seus idealizadores, a garantia
de mudanças no quadro social brasileiro.
Acreditavam os formuladores dessa política que de posse ou domínio desse ferra-
mental teórico o aluno poderia engajar-se em um movimento de transformação social;
discurso este que à época fora amplamente aceito e divulgado. Registremos que isso
ocorreu em meio a um universo de redemocratização social, de finalização do período
ditatorial, o que de certa forma significava um “terreno fértil” para a germinação dessa
linguagem, quase como um slogan.
Conceituar os elementos essenciais da mudança pretendida era uma prioridade,
explicitar quais seriam os elementos para a pretendida renovação, “seus princípios,
temas, objetos e métodos para que se pudesse entender a “forma necessária da escola
e da história”, apreender de modo crítico os princípios que possibilitariam a formu-
lação da “história como ciência” e por conseguinte alcançar um ensino pré-escolar e
elementar contributivos dos movimentos em prol da superação das relações sociais
vigentes e obsoletas era a meta divulgada e decantada em todo o documento (PARANÁ,
1990, p. 24, 26, 35).
A SEED entendia e propagandeava essa proposta como uma tentativa de descar-
tar os componentes curriculares compreendidos como conservadores e que estariam
incorporados aos programas de trabalho com a infância; em contrapartida, oferecia
uma perspectiva, entendida como comprometida com a formação de um sujeito par-
ticipativo. Discursivamente os significados são construídos, e essa significação não é
desarticulada dos interesses que os compõem e propõem. No final do século XX, as re-
novações curriculares objetivaram fornecer à escola subsídios para que esta formasse o
seu educando “criticamente”, mas a tentativa de explicitar o que seria o termo crítico
não está suficientemente clara.
Imprescindível avultar que o documento é concebido como forma de acentuar a
hierarquização dos saberes como base para a constituição de conhecimentos “funda-
mentais” para a sociedade, porquanto defende que, de posse de uma certa “erudição”,
o “sujeito” passaria a defender-se da opressão. Esse discurso construído sobre a lógica
das “ausências” pode ser comparado às narrativas que privilegiam a ideia da busca de
padrões que se cristalizem como modelos de homem, sociedade e também de sujeito
infantil. Costa (2003) adverte que o “currículo da escola pública [...] tem sido o lugar
da dissipação das identidades, operando um distanciamento das origens familiares e
culturais, borrando a identidade em nome do acesso a uma identidade padrão classe
média, ilustrada e meritocrática” (p. 64).
86
No Paraná, podemos afirmar que a elaboração de um currículo, como quer Good-
son (1995, p. 27), foi um processo pelo qual se invent[ou] uma tradição. “Não é,
porém, como acontece com toda tradição, algo pronto de uma vez por todas; é, antes,
algo a ser defendido e com o tempo, as mistificações tendem a se construir e recons-
truir”. Mantendo-se um formato disciplinar da educação, tende a corroborar um dis-
curso pedagógico doutrinário e ensaísta, assim o entende a historiografia especializada
no tema, afirmação com a qual ousamos concordar.
O Currículo Básico para a escola pública do Paraná mantém, ainda hoje, a mes-
ma fundamentação, a mesma seleção de conteúdos. A tradição inventada na década
de 1990 foi soberana na luta para fazer crer que determinada versão de currículo
era “boa”. Manteve-se um espaço, um lugar em que as mistificações se construíram
e reconstruíram, o que permitiu a reprodução, inventando uma tradicionalidade. As
escolas refletem e refratam, de acordo com uma dinâmica que lhes é própria, defini-
ções de sociedade e da mesma forma sobre os conhecimentos culturalmente válidos
(GOODSON, 1995).
A tentativa de captar as rupturas, as descontinuidades que permitem diferentes
interpretações que se cunham por meio do não negligenciar dos aspectos menos evi-
dentes nos documentos torna possível assinalar, juntamente com Bittencourt (2004),
que a constituição desse currículo foi o resultado de disputas entre os conhecimentos
que deveriam fazer parte do saber escolar.
O entendimento sobre como se deveria formar o sujeito infantil no Paraná da déca-
da de 1990, prescrito no detalhamento daquilo que necessariamente seria ensinável,
faz-se uma representação das formas de organização conformadoras, disciplinadoras,
constitutivas da infância. O discurso acerca da infância, inaugurado pelos homens da
modernidade ou pelos assim chamados modernos, encontrou no Currículo Básico um
espaço de manutenção de uma tradição interpretativa e conceitual e marcou o exercí-
cio de certa “autoridade” na formação educação da infância paranaense.
A importante noção de transitoriedade, tão presente em nosso mundo contempo-
râneo, parece não fazer parte das preocupações que reproduzem o texto discursivo,
datado na publicação do documento. Manter a tradição sob a forma de interpretação
do objeto educacional proposto pelo Currículo Básico é compartilhar uma noção es-
tandartizada, é acreditar que temos a função de orientar as consciências oprimidas, é
sobretudo nos guiarmos por um código moral no fazer educacional desde a mais tenra
infância. Interrogamo-nos, ainda, sobre a ideia de que de posse dos princípios teóricos
listados como fundamentais no Currículo Básico o indivíduo estaria em condições de
agir socialmente, porquanto teria em mãos um ferramental orientador. A ideia central
nos parece utilitarista, obreira, como se toda e qualquer atitude, toda e qualquer pes-
quisa pudesse adequar-se a esse arcabouço teórico.
87
HISTÓRIA DA INFÂNCIA Formar os sujeitos infantis de maneira homogênea, formatar a infância conforman-
NO BRASIL
do-a a um padrão classe média, ilustrada e meritocrática, assim atendendo aos moldes
iluministas e ainda pressupor como resultado um sujeito criticamente atuante e faze-
dor de sua própria história foram objetivos traçados pela proposta curricular para a
educação da infância no Paraná.
O conceito de infância e a educação pré-escolar a ela adequada, representados na
proposta organizada no Currículo, amparam seus objetivos, seus enfoques à adequa-
ção do educando ao projeto de renovação nacional vivenciado pelo Brasil das déca-
das de 1980 e 1990. O discurso, oficialmente registrado como proposta curricular,
disciplinar, legitimadora de um pensar homogeneizador sobre a história dos homens,
sobre a própria escrita da história da educação consecutiva-se como um dificultador
do aparecimento de formulações diversificadoras que destaquem o universo escolar
como possível constituinte de uma cultura plural, permitindo um pensar e um agir
também diverso.
A finalidade da proposta que foi analisada prima por uma concepção de história
e de sociedade que entende a educação da infância como um processo conformador
para o sujeito crítico que se pretendia alcançar. Princípios homogeneizadores relacio-
nados ao campo de estudos sobre essa temática, com suas especificidades, aí figuram
e configuram uma tradição que ainda hoje se mantém como discurso oficialmente
proposto, veiculado e de certa maneira aceito. Mas a pergunta permanece: quem é este
sujeito crítico? Ele ainda é um ideal a ser alcançado? Depois de duas décadas de reite-
radas assertivas amparadas no mesmo referencial teórico, conseguiu-se formatar o es-
perado “agente transformador” da sociedade? E finalizamos com uma última pergunta,
diante das evidentes transformações pelas quais vem passando a infância de todo o
país, registremos com destaque a adultização de nossas crianças, ainda é possível man-
ter um discurso homogeneizador para essa ou qualquer outra fase da vida humana?
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apresentamos um discurso por meio do qual fizemos uma inserção pelo campo
temático da conceituação e da história da infância no Brasil. Aventuramo-nos a co-
nhecer uma proposta curricular e a tomamos como instrumento de governamento
das crianças, entendidas como constructo cultural. Identificamos neste estudo uma
linguagem que pretendia conformar um sujeito infantil, uma prática disciplinadora
para o universo educacional formal e também o não formal.
Foucault (1996, p. 10) afirma que “o discurso não é simplesmente aquilo que tra-
duz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que e pelo que se luta, o
poder do qual queremos nos apoderar [e que] o louco é aquele cujo discurso não
88
pode circular como o dos outros”. A infância, história da infância e o discurso que Educando a infância
paranaense de 1990
as constituem são um terreno de amplas descobertas, alguns discursos tornaram-se
aceitos e por esse motivo circulam como se fossem verdades, como se naturalmente
tivessem sido desenvolvidos, como se a história os “descobrissem”. Exercem sobre
nós a força daquilo que por meio da repetição acaba por naturalizar-se e assim tor-
namo-nos instituintes e instituídos pelo discurso que vem formando o sujeito, nesse
caso, o infantil. Como professores, corremos o risco de fazer parte de uma produção
discursiva controlada, selecionada porque, afinal, falamos do interior da instituição e
como tal, normativa.
Proposta de Atividade
• Você fica com o meu que eu fico com o seu? – a moda agora é a troca de pré-ficantes (
23 de Março de 2003 – Edição n. 910).
• A minha primeira vez foi um mico – J. D. teve a sorte de transar com o cara certo na
hora certa. Mas mesmo assim, não foi nada maravilhoso (10 de 10 julho de 2005 – Edi-
ção n.970).
• Capa – a imagem registra um famoso ator, em idade muito jovem, insinuando-se como
se lambesse a cadeira, a cadeira parece ser a representação de um alguém... ( 25 de
janeiro de 2004 – Edição n.932).
• A imagem de capa registra um ator famoso, em idade muito jovem, com a mão dentro
da cueca... ( 11 de janeiro de 2004 – Edição n. 931).
• Matéria da capa: meninas gostam de meninas.... ...as meninas do TATU fogem do rótulo
de lésbicas – se dizem apenas apaixonadas uma pela outra... (...) ...Larissa e Maithe na-
moram há um ano e moram juntas desde setembro do ano passado. Elas contam como
é namorar e casar com uma menina... Será que sou???? – teste para detectar a opção
sexual mais condizente com a personalidade do adolescente ( 18 de maio de 2003 –
Edição n.914).
• Imagem de capa – uma moça segura o bumbum de dois meninos, ao mesmo tempo
(15 de julho de 2001 – Edição n. 866).
• Fotografia “propagandeando” uma marca de soutien e calcinha o slogan é – chega de
ser chamada de menina...Deu bobeira? É a forma de anunciar a pílula do dia seguinte”
(15 de julho de 2001 – Edição n. 866).
A mídia é participe na motivação para a busca da carreira de modelo que hoje encontramos
nas meninas. Podemos, como exemplo, citar o programa “menina fantástica” e uma matéria
intitulada ‘Cinderela Anunciada’, publicada em 17 outubro de 2001, na revista Veja. Atentemo-
-nos para alguns excertos:
89
HISTÓRIA DA INFÂNCIA Sonho de carreira de meninas (e de suas mães) no Brasil inteiro, os concur-
NO BRASIL sos de modelo viraram um acontecimento nacional em permanente expansão.
Juntas, as três grandes seleções que buscam novos rostos, promovidas pelas
agências Ford, Elite e Mega, alcançaram neste ano a soma inédita de 500.000
inscrições, cinco vezes mais que no ano passado – uma legião de sílfides equiva-
lente a 3% da população feminina na faixa dos 12 aos 20 anos, nesta temporada
concentrada principalmente no Norte e Nordeste.
A ampla divulgação da carreira de modelo e o sonho de sair da pobreza tal qual aconteceu
com a Cinderela dos contos de fadas faz com que as meninas encantem-se e busquem com
afinco seu “lugar ao sol”. Não podemos desconsiderar que o mercado moda movimenta 24%
do PIB nacional e que a possibilidade de ganhar a vida nas passarelas e nas poses fotográficas
é uma realidade, e devemos repensar a quem estamos denominando crianças em nosso país.
Entretanto, a mesma sociedade que divulga, populariza e naturaliza o comportamento dessas
meninas é a sociedade que ainda não repensou a maioridade de seus membros e que divulga
currículos que almejam formar cidadãos críticos. Como pensar infância atualmente sem con-
siderar que as crianças atuam, em muitos casos, como pais de seus próprios irmãos e ainda
sustentam financeiramente a si mesmas, ainda que seja, lamentavelmente, com a prostituição
infantil. Em uma sociedade de desiguais, em uma sociedade tão díspare a infância não é mais
ingênua e muito menos longínqua; essa fase da vida está a ser vivida e vencida com rapidez.
O conceito de infância não mais consegue reproduzir-se sem questionamentos. Neste sen-
tido propomos que, observando a fotografia selecionada, você, aluno, redija um texto que des-
creva a imagem e depois explicite as possíveis relações com o conteúdo abordado no capítulo
que você acabou de ler.
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Fonte: PHOTOMODEL BRAZIL, fotógrafo Celso Maroni.
90
Educando a infância
paranaense de 1990
Referências
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de janeiro: LTC, 2006.
BUJES, Maria Isabel Edelweiss. Infância e maquinarias. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
BUJES, Maria Isabel Edelweiss. Infância e poder: breves sugestões para uma agenda
de pesquisa. In: COSTA, Marisa Vorraber; BUJES, Maria Isabel Edelweiss. (Org.).
Caminhos investigativos III: riscos e possibilidades de pesquisar nas fronteiras. Rio
de Janeiro: DP&A, 2005.
COSTA, Marisa Vorraber. Currículo e Política Cultural. In: COSTA, Marisa Vorraber.
(Org.). O Currículo nos limiares do contemporâneo. 3. ed. Rio de Janeiro: DP&A,
2003.
FREITAS, Marcos Cezar de. (Org.). História social da infância no Brasil. São Paulo:
Cortez, 2006.
91
HISTÓRIA DA INFÂNCIA GOODSON, Ivor F. Currículo: teoria e história. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.
NO BRASIL
VEIGA-NETO, Alfredo. Currículo de História: uma conexão radical. In: COSTA, Marisa
Vorraber. (Org.). O Currículo nos limiares do contemporâneo. Rio de Janeiro:
DP&A; 2003.
92
Educando a infância
paranaense de 1990
Anotações
93
HISTÓRIA DA INFÂNCIA
NO BRASIL
Anotações
94
6 Representações de
infância e literatura
infantil – conexões a
serem feitas
95
HISTÓRIA DA INFÂNCIA ensinamentos – mesmo quando não tenham sido ali colocados intencionalmente –
NO BRASIL
estão sendo possibilitados através de suas páginas e ilustrações?
E é procurando propiciar uma dimensão de aprofundamento no exame dessas
obras que estabelecemos o objetivo central de nosso texto: levar o leitor a refletir
sobre as conexões existentes entre as obras de literatura infantil de diferentes épocas
(inclusive a atual) por um lado, e as representações de infância que circulam (ou circu-
laram) na sociedade em que tais obras são (ou foram) escritas e passam (ou passaram)
a circular, por outro lado.
Bujes (2006) trata do “caráter histórico, contingente, inventado das representações
do sujeito infantil” (p. 218) e é importante relembrar o quanto a construção social da
infância entre os séculos XVI e XVIII, na Europa, foi mostrada nos estudos bastante
conhecidos de Philippe Ariès (1981). Este autor demonstra, em seus diversos estudos,
que o modo como entendemos essa etapa da vida na atualidade foi sendo constituído
em determinadas condições históricas. Discutindo iconografia, vestimenta, espaços e
tempos dedicados à criança naquele período histórico, Áries mostra como se produ-
ziram certas maneiras de pensar as crianças e o seu jeito de ser. E o surgimento de
um saber sobre a infância, suas condutas, suas etapas, os riscos a serem evitados na
educação dos meninos e meninas foi um processo que se desenvolveu de maneira
especial em espaços fechados, tal como as escolas, nos quais as crianças permaneciam
por longo tempo e eram, então, observadas de perto.
Entretanto, é importante ter presente que a “infância” – como uma fase da vida
com características distintas da adultez e merecendo um “olhar especial” – não foi in-
ventada de uma vez por todas e de uma só forma. Se a modernidade e as várias ciências
que nela se expandiram (como a Psicologia, a Psiquiatria, a Medicina etc.) nos leva-
ram à invenção das “crianças modernas” – seres essencialmente diversos dos adultos,
“agentes do seu próprio destino; construtores do seu futuro” (BUJES, 2006, p. 220),
mesmo assim devemos ter em mente a multiplicidade de infâncias que coabitaram o
planeta Terra em diversos momentos históricos, e que continuam coexistindo no mun-
do em que vivemos. Atualmente nos programas de TV, em palestras de especialistas,
em reportagens de jornal e revistas, fala-se insistentemente na infância hi-tech, sinto-
nizada em muitos artefatos tecnológicos, presa nas telas do computador e do celular,
consumidora, exigente e informada. Mas podemos nos perguntar: será essa a única
infância que efetivamente povoa nosso país? É também essa a infância das crianças das
favelas, dos bairros pobres, das meninas que cuidam de irmãos menores para as mães
trabalharem, das crianças que pedem uma moedinha nas sinaleiras das grandes cida-
des ou mesmo das crianças das zonas rurais ou das comunidades indígenas, mesmo se
atingidas pelas televisões das parabólicas?
96
Por outro lado, devemos relembrar que as diferentes concepções de infância tam- Representações de
infância e literatura
bém se articulam com as representações, ideias e concepções de uma dada época e infantil – conexões a
serem feitas
sociedade. Como afirma Machado (1999, p. 35), “a ideologia de um livro [infantil,
inclusive] também reflete o conjunto de crenças e opiniões da cultura e da época em
que vive um autor”. Devemos entender, nesse contexto, o termo “ideologia” como um
sistema de pensamentos e concepções vigentes em uma determinada época e em um
determinado grupo social e não como um conjunto de afirmações falsas, que estariam
encobrindo a realidade. Em outras palavras: além de uma imagem de infância para
a qual se direcionam as obras infantis, também há representações de sociedade, de
gênero, de moral, de felicidade, de mundo, entre inúmeras outras, que dão forma e
substância às obras escritas para crianças.
Pois bem: para discutirmos um pouco a relação entre a literatura infantil e as di-
ferentes concepções de infância, traremos neste capítulo alguns exemplos motivado-
res. Inspirando-nos em Shavit (2003), vamos examinar algumas diferentes versões de
“Chapeuzinho Vermelho”. Em seguida, faremos uma breve incursão pelo caso de uma
autora bastante lida no mundo ocidental, na segunda metade do século XIX e primeira
metade do século XX – a Condessa de Ségur. Examinaremos, ao final, uma vertente
muito fecunda na literatura infantil contemporânea – a abordagem dos “diferentes”
(negros, índios, “deficientes”, velhos, etc.), analisando algumas de suas características
em relação à questão da imagem projetada de infância leitora.
A partir de tais exemplos, julgamos que o leitor poderá exercitar um olhar mais crí-
tico sobre os livros para crianças a que tem acesso, suspendendo um pouco essa forte
fascinação provocada pela explosão de cores e formas que hoje inunda suas capas e
páginas internas.
97
HISTÓRIA DA INFÂNCIA versões escritas de Chapeuzinho é a de Charles Perrault, em 1697 – que os contos de
NO BRASIL
fadas iniciaram uma trajetória pelo impresso, o que os levou a sofrer outras interven-
ções, modificações e abreviações, de acordo com as intenções dos autores, frequente-
mente em íntima consonância com o pensamento pedagógico reinante.
Porém, voltando aos três finais de Chapeuzinho Vermelho que acima menciona-
mos, conforme Shavit (2003), eles correspondem a três diferentes concepções de in-
fância, mais especificamente a três diferentes concepções do que é adequado para a
criança ouvir e ler. Perrault traz um final trágico à Chapeuzinho Vermelho – após dei-
tar-se na cama com o lobo, ela é devorada por ele, sem qualquer socorro ou apelação.
Sua versão, endereçada às crianças (e provavelmente a adultos) da corte francesa não
permitiu nenhuma redenção à ingenuidade da menina que não soube ver no lobo uma
real ameaça. Shavit postula a existência de um tom irônico na versão de Chapeuzinho
escrita por Perrault, ironia que possivelmente era captada e até dirigida apenas para
os adultos. Para as crianças que ouvissem sua versão, restava a lição – simbolizada no
espectro da devoração pelo lobo – de que era preciso não se deixar enganar por lobos
ou pelo que quer que se entendesse por essa figura. É interessante observar que, na
versão de Perrault, a mãe de Chapeuzinho não aconselha a menina a não falar com es-
tranhos – ainda não estamos frente a uma concepção de infância que envolva especiais
cuidados dos adultos em relação às crianças.
Para os irmãos Grimm, a história apresenta dois possíveis finais, mas nenhum deles
é trágico. O primeiro final é o mais conhecido entre nós: a avó e a criança são devora-
das pelo lobo, mas este é morto e ambas são salvas pelo caçador. Para Shavit, na época
dos Irmãos Grimm, mais de um século após o registro de Perrault, já se delineava um
novo conceito de infância: às crianças eram imputadas necessidades específicas, dife-
rentes das dos adultos (de educação, de formação) e, além disso, passou-se a enten-
der que “essas necessidades deviam ser satisfeitas sob a estrita supervisão de adultos”
(SHAVIT, 2003, p. 44). Chapeuzinho Vermelho desobedece, sim, às recomendações
de não se desviar do caminho, feitas por sua mãe (recomendações que não aparecem
na versão de Perrault), mas ela tem uma segunda chance para aprender a lição. A au-
tora observa que, no tempo de Grimm, “a educação não só existia como era também
considerada essencial para o bem-estar espiritual da criança” (p. 48). Provavelmente
os irmãos Grimm conheciam a versão que foi registrada por Perrault, mas preferiram
elaborar outro final (ou mesmo o privilegiaram na coleta oral que fizeram) a partir do
entendimento de que os contos de fadas, ao serem endereçados às crianças, deveriam
também servir a sua educação e formação “moral”, digamos. Nessa perspectiva, a in-
fância adquire significados variáveis, especialmente vinculados à ideia de imaturidade
e incompletude. A criança deve ser aconselhada e corrigida pelos adultos – nesse caso,
98
os conselhos da mãe para tomar cuidado com os perigos da floresta. Com o abranda- Representações de
infância e literatura
mento do desfecho, Chapeuzinho Vermelho é devorada pelo lobo, contudo tem uma infantil – conexões a
serem feitas
“segunda chance” para aprender com o erro e, assim, amadurecer.
É interessante saber que, em um determinado contexto histórico e social – especi-
ficamente na Inglaterra do início do século XIX –, os contos de fadas foram proibidos,
pois o ideário pedagógico então dominante desconfiava das obras com apelo à imagi-
nação e à fantasia e se entendia que, para a educação das crianças, deveriam ser usadas
obras de cunho mais realista.
Há, ainda, outros dois movimentos que vale a pena citar em relação aos contos de
fadas em geral, na medida em que remetem a concepções de infância. Em primeiro lu-
gar, quase todas as gerações que conhecem os contos de fadas não através de estudos
específicos, mas por ouvirem ou lerem versões infantis, conviveram com o abranda-
mento e/ou apagamento de passagens cruéis e violentas de versões mais antigas, como
a mutilação sangrenta ora do calcanhar ora de um dedo do pé das irmãs de Cinderela,
na busca de encaixar o pé no sapatinho de cristal – passagem presente na versão dos
Irmãos Grimm. Também a referência a contatos sexuais, como a gravidez de Rapunzel
e mesmo da Bela Adormecida, é inexistente na maioria das versões circulantes para
nossas crianças, assim como foi para os livros que lemos ou histórias que ouvimos. Ou
seja: a ideia que subjaz a tal adaptação é a de que a infância devia ser preservada tanto
de passagens assustadoras e cruéis, que poderiam ferir sua sensibilidade ou lhe provo-
car terror, quanto dos “segredos” adultos sobre a sexualidade, nesse caso possivelmen-
te por influência de ideias religiosas. Essas adaptações se realizam quando surge em
torno da criança toda uma construção cultural que visa a separá-la de práticas adultas,
das quais ela até então participava. Surge, nesse contexto, a ideia de infância inocente.
Também é preciso registrar outra abordagem importante dos contos de fadas. As-
sim, na segunda metade do século XX, emergiu, principalmente a partir da publicação
de A Psicanálise dos Contos de Fadas, da autoria do psicanalista Bruno Bettelheim
(1995), um interesse pelo resgate das versões “originais” dos contos de fadas, na medi-
da em que tais versões foram interpretadas como tendo um valor intrínseco de auxílio
psicológico para as crianças. Em outras palavras, muitos elementos presentes nos seus
enredos apresentariam um valor simbólico e significados emocionais que possibilita-
riam à criança, através da identificação com um ou outro personagem, um trabalho
interno de suas angústias, medos, desejos, dilemas, solucionados pelo final feliz. Tal
interpretação dos contos de fadas – e a indicação de que eles fossem contados para
as crianças sem o corte ou a dulcificação das passagens violentas – se harmoniza com
uma visão psicanalítica da criança, com apelo ao seu inconsciente, aos seus conflitos
edipianos, seus dilemas entre o princípio do prazer e o princípio de realidade, as
99
HISTÓRIA DA INFÂNCIA inquietações sexuais, etc. Certamente esta é uma imagem bem distinta da criança a
NO BRASIL
ser preservada – porque entendida como inocente e “impressionável” – que está por
trás das adaptações que buscam suavizar as versões mais antigas dos Contos de Fadas.
100
menina) se envolve em confusões e é punido – nessas circunstâncias, chama a atenção Representações de
infância e literatura
o recorrente uso da expressão “dar uma lição”. Nesse contexto, a punição e o castigo infantil – conexões a
serem feitas
são apresentados como ações necessárias, por parte dos adultos, para a correção dos
“maus atos” das crianças, de acordo com Papieau (1999), que analisou detalhadamen-
te toda a obra séguriana. Nas narrativas dessa obra, as estratégias de punição resultam,
invariavelmente, no reconhecimento da ação desviante, por parte da criança, e na sua
redenção, marcada por lágrimas, pedidos de desculpas e abraços que restabelecem a
harmonia e se configuram em uma espécie de “moral da história”.
Nos diálogos apresentados ao longo das obras, assinala-se claramente a distinção
entre certo/errado, desejável/indesejável e a rotulação das ações desviantes se dá atra-
vés de expressões como “não seja invejoso”, “é muito feio ter raiva”, “não seja malcria-
do”. Assim, os pequenos leitores iriam aprendendo o que é considerado virtuoso, uma
vez que as histórias assumem um evidente contorno formativo e moralista. Enfatiza-se,
através do enredo e dos personagens, a necessidade do respeito à ordem moral e
aos valores cristãos. O adulto, por sua vez, é caracterizado como aquele que conduz,
resguarda, protege, possuindo as estratégias para controlar a natureza impulsiva, ins-
tintiva, desgovernada das crianças.
Que criança é essa trazida pela obra da Condessa, com tão grande circulação entre
os países ocidentais? É a criança a ser educada constantemente, corrigida, que precisa
aprender a diferenciar o certo e o errado e, para tanto, precisa de virtuosos modelos
de conduta; é também aquela que precisa ser aconselhada para se dar conta de seus
erros e corrigi-los e, além disso, se inscreve em uma estrita moral cristã. Notamos aqui
uma marca de fragilidade infantil que se refere ao corpo, mas também ao espírito, o
qual carece de força de vontade, de coragem, de discernimento e que só poderá ser
fortalecido pelo exemplo dos adultos.
101
HISTÓRIA DA INFÂNCIA Na atualidade, podemos identificar uma série de temas colocados na forma de
NO BRASIL
demandas nas práticas escolares. É o caso dos chamados temas transversais, como
diversidade cultural, meio ambiente, orientação sexual, que se apresentam hoje em
diretrizes e parâmetros curriculares a serem abordados por distintas disciplinas, em
uma espécie de caixa de ressonância de preocupações e assuntos emergentes na so-
ciedade mais ampla.
Neste sentido, podemos tomar, como exemplo das últimas décadas, a temática das
diferenças, que tem se tornado cada vez mais presente em livros destinados ao públi-
co infanto-juvenil, tanto em âmbito internacional quanto em território brasileiro. No
Brasil, foi principalmente na última década que cresceu o número de obras produzidas
para crianças cujos enredos e ilustrações giram em torno de temas como gênero, etnia,
raça, e que colocam em cena personagens cegos, cadeirantes, gordos, velhos, negros,
enfim, grupos considerados discriminados, excluídos e/ou marginalizados.
De alguma forma, tal fenômeno pode ser articulado a determinadas políticas so-
ciais de inclusão adotadas em âmbito nacional e internacional, como a obrigatoriedade
de rampas em lugares públicos, a instalação de sinais sonoros de trânsito, o ensino
de Libras (Língua Brasileira de Sinais) no Ensino Superior, o Estatuto do Idoso, entre
tantos outros exemplos. Tais ações revelam como, já há alguns anos, as temáticas da
inclusão, da exclusão e, por consequência, da diferença vêm atravessando políticas
governamentais e práticas sociais e marcando presença nas discussões travadas no
cenário intelectual e nas produções realizadas no âmbito artístico e literário.
Considerando a produtividade dessa temática no âmbito das produções da lite-
ratura, reunimos um amplo acervo sobre as diferenças, constituído por mais de 300
títulos, a grande maioria dos quais mostra uma preocupação pedagógica evidente de
“ensinar sobre a diferença”. Alguns desses livros naturalizam as diferenças e prescre-
vem formas de relacionamento com pessoas cegas, autistas, surdas, com síndrome de
down, por exemplo. Outros visam a destacar as formas preconceituosas que vêm mar-
cando as relações sociais estabelecidas com essas chamadas “minorias” sociais. E ou-
tros ainda dedicam-se a apresentar informações contextualizadas e atuais sobre a vida
de diferentes etnias, e por vezes as próprias obras são escritas por autores indígenas,
por exemplo. Desse amplo acervo de obras contemporâneas que tratam das diferenças
ressaltamos um livro que exemplifica muito bem as estratégias com que tal conjunto
de livros se dirige pedagogicamente à criança.
Em “A Turma de Layla”, ficamos inicialmente sabendo que tudo corre às mil mara-
vilhas na sala da professora Marina até o dia em que chega uma nova aluna, Valquíria,
“transferida de uma cidade do interior”. Configura-se, a partir daí, um conflito de natu-
reza racial na narrativa, que inicialmente gira em torno do repúdio de Layla, a menina
102
negra, por parte de Valquíria. No momento em que a professora, durante uma aula de Representações de
infância e literatura
Educação Física, solicita que as crianças se deem as mãos, Valquíria nega-se a pegar a infantil – conexões a
serem feitas
mão de Layla, ensejando a primeira manifestação da professora: “- Por favor, Valquíria,
dê a mão para Layla! Cor não pega, não tenha medo!”.
A partir desse momento, a professora assume o papel pedagógico de “trabalhar o
problema” – e isso parece acontecer tanto no enredo, no mundo imaginado, quanto
no mundo onde se situam os leitores. Primeiro, a professora esclarece à nova aluna
que “na sua turma todas as crianças são amigas, que uma ajuda a outra no grupo e
que ela estimulava que seus alunos vivenciassem em sala de aula um clima de frater-
nidade”, para, em seguida, abordar “as noções de igualdade e de diferença étnica”. O
conflito racial é intensificado, ainda, quando o pai da menina racista irrompe na sala
de aula argumentando que “sua filha não senta ao lado de uma macaca”. A professora
– personagem que parece corporificar todos os intuitos didáticos e moralizantes da
obra –responde com o seguinte discurso:
- Esta menina tem nome, chama-se Layla. Como todos nós, ela também descen-
de do ‘homo sapiens”. O senhor tem alguma dúvida sobre isso? Já ouviu falar na
Declaração Universal dos Direitos Humanos? Na Constituição Cidadã de 1988?
Ou no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)? Na Lei Cão? Na Lei Paim?
Estas leis proíbem qualquer discriminação, sendo o racismo classificado como
crime. [...] Lamento o que aconteceu e exijo que o senhor reconsidere o que
falou sobre Layla, pois serei obrigada a tomar sérias providências e levar este
caso à direção da escola e às autoridades competentes.
No conjunto dos numerosos livros sobre diferença, “A Turma de Layla” parece ser
um caso extremo no que tange ao peso que a pedagogia formativa assume na compo-
sição do livro. Entretanto, em pequenos trechos ou em passagens inteiras, nos esclare-
cimentos à professora ou nas quartas capas, verificamos que a imagem de uma criança
que deve ser formada, educada, ensinada pelo adulto, às vezes até em pequenos de-
talhes, atravessa fortemente grande parte dos livros contemporâneos para crianças.
103
HISTÓRIA DA INFÂNCIA CONSIDERAÇÕES FINAIS
NO BRASIL
Como vimos, através do rápido sobrevoo que fizemos, a literatura participa do
esboço e abriga a constituição de determinados entendimentos sobre a infância. As
primeiras obras de literatura escritas (ou adaptadas) para crianças colaboraram para
marcar a infância, de certa forma, como uma “tábula rasa” sobre a qual se deveriam
inscrever as marcas de uma cultura e de um comportamento desejável. A criança, vista
como uma pessoa incompleta, incapaz de tomar decisões, frágil moral e intelectual-
mente, passou a ser alvo de diferentes ações pedagógicas e, posteriormente, de muitas
políticas de assistência e de cuidado. As histórias destinadas às crianças também eram
tecidas a partir dessas ideias, dedicando boa parte dos enredos à descrição de com-
portamentos desejáveis ou indesejáveis, bem como às consequências de se assumir
esta ou aquela conduta. Assistir, corrigir, educar, instruir, aconselhar, punir, premiar
são as atitudes mais comuns atribuídas aos adultos em relação às crianças e que estão
presentes nessas histórias, as quais assumem claramente um viés moral e, por vezes,
religioso.
Bujes (2002) salienta que, entre os séculos XVI e XVIII da história ocidental, a
criança se torna alvo de atenção dos adultos, e são eles que as descrevem e que inter-
pretam seus desejos, suas necessidades, suas fragilidades. “Portanto, é esta perspectiva
adultocêntrica de representar a infância, na qual a criança é significada como um ser
em falta – imaturo, débil, desprotegido, em alguns casos necessitando de correção, em
outros, de proteção – que vai justificar a necessidade de intervenção e de governo da
infância” (p. 38-39).
Podemos propalar, assim, que a infância entendida como maleável passa a ser alvo
de ações e intervenções para ser modelada de certas maneiras, e por ser frágil ne-
cessitaria de uma presença zelosa dos adultos. É dentro dessa moldura que grande
parte dos livros para crianças se enquadram, à medida que vão cativando os pequenos
leitores e ensinando-os a seguir o “bom caminho”. E de certa forma, também ensinam
os adultos – este segundo destinatário das obras de literatura infantil – a proceder
de modo adequado e a zelar para que as crianças possam alçar ao lugar de sujeitos
completos, plenos, maduros, racionais, evitando os desvios que podem se apresentar
nesse caminho.
Evidentemente, há nuances nessas imagens de criança que inspiram à escrita ou à
adaptação de livros para criança – uma visão psicanalítica da infância, por exemplo,
leva à reabilitação de contos cuja crueza e violência eram dissimulados anteriormente
em versões expurgadas de detalhes considerados inapropriados.
Se nas práticas contemporâneas e nas obras de literatura mais recentes a tendência
de moralização explícita, através de lições de um personagem adulto ou da voz do
104
Representações de
próprio narrador, já não é tão frequente (ao menos na literatura consagrada e premia- infância e literatura
infantil – conexões a
da), observamos, contudo, que muitas obras se preocupam com ensinar e formar atra- serem feitas
vés das ações dos personagens e do desenrolar do enredo. E frequentemente o objeto
dessa pedagogia são certas regras de conduta e convivência – agora justificadas em
um anseio de produzir relações democráticas – ou de superar formas de preconceito
e discriminação. As articulações entre literatura e pedagogia, que não são recentes,
se redefinem continuamente ao sabor dos valores, exigências e parâmetros sociais e
espelhando, também, como se representa a criança em dado contexto.
Ao finalizar, podemos concluir que uma autêntica tendência transversal, intima-
mente ligada à produção da literatura infantil, está no que Shavit (2003, p. 50) pontua:
[...] a idéia de que os livros para crianças têm de ser adequados do ponto de
vista pedagógico e devem contribuir para o desenvolvimento da criança tem
sido, e ainda é, uma força dominante na produção de livros para crianças.
Proposta de Atividade
1) Relembre uma história ou livro que de maneira particular o tenha impressionado du-
rante a infância. Recorde alguma característica de seus personagens principais ou de seu
enredo. Responda: que imagem de criança provavelmente seu autor tinha para compor tal
história?
2) Vá a uma livraria ou a alguma seção de um grande supermercado ou outro estabelecimento
comercial que tenha um bom número de livros para crianças. Folheie um bom número
de livros, mesmo os mais finos, e liste cinco temáticas que são objeto de uma abordagem
pedagógica em tais livros (ex.: bons modos; ecologia, etc.)
Referências
ARIÉS, Philippe. História social da infância e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1981.
BETTELHEIM, Bruno. A Psicanálise dos contos de fadas. São Paulo: Paz e Terra,
1995.
105
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NO BRASIL
______. Outras infâncias? In: SOMMER, Luís Henrique; BUJES, Maria Isabel (Org.).
Educação e cultura contemporânea: articulações, provocações e transgressões em
novas paisagens. Canoas: Ed. da Ulbra, 2006. p. 217-231.
MACHADO, Ana Maria. Conversas sobre leitura e política. São Paulo: Ática, 1999.
Anotações
106
7 A infância (de
todos nós) que está
no cinema
Fátima Maria Neves
[...] um filme de crianças pode ser elaborado em cima de pequenos fatos, pois
na verdade nada é pequeno no que se refere à infância (François Truffaut).
A infância e a diversidade temática, bem como a teórica que dela emerge, é como
você já deve estar percebendo, assunto obrigatório em cursos de formação de profes-
sores, como, por exemplo, no Curso de Pedagogia. Já o cinema e suas temáticas nem
tanto! Logo, a infância encenada também não! Acreditamos que conhecer, minima-
mente, a forma como a infância é concebida, apresentada e encenada no cinema pode
contribuir em muito com a formação do pedagogo. Por que creditamos importância a
esse assunto?
Veja bem: não deve ser novidade para você que o cinema é midiaticamente pode-
roso, principalmente o cinema de animação e o gênero “desenhos animados”. Não
é difícil observar como eles, há décadas, vêm ditando regras de comportamento e
de consumo. Entretanto, você tem consciência de que a escola, os professores e as
crianças, tornadas alunos, não só não ficaram e não estão à margem desse processo
como são sujeitos-alvos preferenciais de empresas midiáticas que se autoproclamam
instituições pedagógicas?
Pois então, gostaríamos que todos os profissionais da educação, preferencialmente
aqueles que atuam em escolas e nas salas de aulas, tomassem conhecimento de deba-
tes problematizadores das táticas empresariais das produtoras cinematográficas que
estão se apresentando como instituições pedagógicas (GIROUX, 1995).
Ter ciência desse processo, acreditamos, poderia auxiliar em tomadas de posições,
conscientes e críticas diante da veiculação dos valores ideológicos, principalmente no
cinema de animação, em particular nos desenhos animados1. Como reafirmamos, a
107
HISTÓRIA DA INFÂNCIA falta de consciência nos torna cúmplices e possíveis agentes de defesa de empresas
NO BRASIL
que não poupam esforços para transformar a escola em local, e a infância escolarizada
em público consumidor dos produtos licenciados.
Nosso desafio nas escolas, como professores, está na denúncia com argumentos
que são construídos a partir da utilização de seus próprios produtos: os desenhos
animados e os filmes.
O esforço em identificar as táticas e conteúdos que se propõem pedagógicos nos
permite, como profissionais da educação, reconhecer que os que se proclamam como
pedagógicos são, de fato, mecanismos sutis de sedução empresarial, para não revelar
outros recursos mercadológicos com o intuito de vender materiais escolares e projetos
pedagógicos.
Uma pausa. Uma pergunta: você consegue se lembrar de quantos materiais esco-
lares (cadernos, estojos, mochilas, pastas, lápis, borrachas, apontadores, lápis de cor,
canetinhas coloridas, entre outros) já viu estampada uma logomarca, um personagem
(ou vários) dos desenhos animados, por exemplo, da Disney Company ou da nacional
Produções Maurício de Souza?
Acreditamos que não foram poucos os itens que conseguiu lembrar e relacionar.
Pois é: esses materiais, consumidos pela população escolar, são produtos licenciados.
As empresas sabem o quanto vão lucrar se estamparem personagens da cultura mi-
diática infantil, divulgadas nos desenhos animados, em seus produtos (NEVES, 2007,
2008).
Destacamos que, nesse início de conversa, estamos somente comentando sobre
como a educação e a escola são vistas como setores de consumo dos produtos licen-
ciados sem ainda sequer problematizarmos o uso dos materiais didático-pedagógicos,
como livros didáticos, vídeos, atlas entre outros, produzidos e distribuídos pelas em-
presas midiáticas. Todavia, o aprofundamento analítico dessas questões, que poderia
sim, ser uma das possibilidades deste capítulo, será deixado em aberto para que você
busque outros conhecimentos, produza outras reflexões e crie novas possibilidades
de análise relativa a essa temática, para que possamos futuramente voltar a conversar
sobre o assunto.
Outra possibilidade de reflexão, que também seria interessante neste percurso te-
mático, seria uma de ordem (aparentemente) mais pessoal, visceral talvez. Como, por
exemplo, problematizar as (nossas e a dos outros) experiências do público espectador.
Podemos começar pelas nossas próprias experiências e por nos perguntar: Qual a
relação que, até o momento, temos estabelecido com o cinema? Com os filmes em ge-
ral? Qual ou quais os últimos filmes que você viu/experimentou? Com legenda ou sem?
Consegue se lembrar da primeira vez que entrou em um cinema? O que foi assistir?
108
Qual (ou quais) o (os) sentimento (os) que mais vivencia com os filmes? A trilha sonora A infância (de todos nós)
que está no cinema
lhe chama a atenção?
A elaboração desse inventário tem razões pedagógicas para ser criado e apresen-
tado. Primeiramente, porque se podemos (e vamos) “trabalhar” com filmes com a
perspectiva pedagógica, há que termos em mente as experiências diferenciadas que
temos com eles. Plateia alguma é passiva diante dos produtos culturais, midiáticos ou
não. As estratégias de recepção criadas – coletivamente ou individualmente – pelas
plateias nas exibições dos filmes permitem observar fenômenos de não-identificação,
produzindo outros significados que escapam aos mais argutos dos produtores cine-
matográficos. A despeito dos esforços de massificação da indústria cultural, ainda é
possível constatar que o público cinematográfico, iniciado ou não, entra em contato
com os filmes com aparente similitude cultural, e sai com a produção de significados
diferenciados. Isso explica, por exemplo, como alguns filmes, considerados a priori
sucesso de bilheteria, não fazem o sucesso esperado. Formatos diferentes, como VHS,
DVD, Blu Ray ou 3D também produzem significados diferentes para um mesmo filme.
Produzir sensibilização para debater o tema e identificar se nos tornamos e quando
(idade) nos tornamos espectadores iniciados são outras razões para a construção do
inventário. Não é regra, mas também não é um fato raro e isolado observarmos que
quanto mais cedo se entra em contato com o cinema maior o grau de cinefilia. Por isso
tornamos a perguntar: Você se lembra da primeira vez que entrou no cinema? O que
foi assistir? Foi na sua infância? A experiência vivenciada gerou resultados significativos
para aquele momento? Ou para a sua vida? Sugiro que pense sobre isso e que comece
a criar seu próprio inventário de espectador iniciado se o cinema lhe interessa como
objeto de estudo e sob o ponto de vista pedagógico.
Ainda no âmbito de construção do inventário de espectador iniciado pode-se in-
vestigar a relação do cinema com outra infância que não a sua. Você já acompanhou
alguma criança, em sua primeira vez, ao cinema? Observou as expressões de seu rosto?
Seus gestos? Conversou com ela sobre o filme? Sobre o que sentiu? O que você identi-
ficou (ou acreditou ter identificado) tinha proximidade com o conteúdo do exercício
narrativo que, muito provavelmente, ela o fez?
É, minimamente, curioso constatar a capacidade formadora do cinema durante a
infância e a adolescência, haja vista o substancial rol de depoimentos de celebridades,
encontradas do mundo da literatura e das artes, que atribuem fundamental importân-
cia ao tempo que passaram enfurnados nas escuras salas de cinema durante a menini-
ce. Importância que se acirra se os depoimentos forem de cineastas. Entrar na cabine
de projeção era, para a maioria deles e fundamentalmente para o diretor de Fanny e
Alexander, o sueco Ingmar Bergman, “entrar no reino dos céus”. O fascínio pela sala
109
HISTÓRIA DA INFÂNCIA de projeção também foi o tema, por exemplo, do cultuado Cinema Paradiso, dirigido
NO BRASIL
pelo italiano Giuseppe Tornatore, em 1988.
A “infância do espectador cinematográfico” (a nossa e a dos cineastas famosos)
pode ser mais bem compreendida e finalizada por meio de uma ideia divulgada por
Alain Bergala, uma autoridade para falar de cinema e infância (ESPELT, 2006, p. 32).
Esse cineasta, crítico e professor entendia que era de
110
Para “ilustrar” esse comentário, temos: A infância (de todos nós)
que está no cinema
a) Roberto Rossellini dirigiu, em 1947, Edmund Moeschke, um garoto de 12 anos
que interpretava um garoto também chamado Edmund, em Alemanha, Ano
Zero.
b) Vittorio De Sica, em 1948, dirigiu Enzo Staiola, com sete anos de idade, que
interpretava Bruno, em Ladrões de Bicicleta.
111
HISTÓRIA DA INFÂNCIA Concordamos e fazemos nossos os comentários que Noma e Lara (2008) realizaram
NO BRASIL
ao analisar Crianças Invisíveis. Para as autoras:
No filme “Crianças Invisíveis”, o Brasil foi representado pelo curta “Bilu e João”,
sob a direção de Kátia Lund, uma paulista, à época com 39 anos de idade. Consta en-
tre seus trabalhos mais notáveis a participação na produção do clipe They don´t care
about us, de Michael Jackson, filmado na favela Dona Marta, no RJ. E a co-direção do
filme Cidade de Deus, de 2002, dirigido por Fernando Meirelles. A temática do curta
“Bilu e João” é o enfrentamento das demandas cotidianas de duas crianças, uma meni-
na e um menino, catadores de produtos recicláveis na cidade de São Paulo.
As crianças e o contexto do curta “Bilu e João” nos faz lembrar e citar o comentário
de Kramer (2006, p. 8):
observando as crianças nas histórias que os filmes contam, nas cenas filmadas
nas imagens e nos gestos em movimentos, descortinam-se as orientações po-
líticas e ideológicas dos contextos em que estão inseridas, sua situação social,
a pluralidade cultural, a diferença de idade e tamanho, as religiões e visões de
mundo, as interações entre meninos e meninas, as relações com os adultos ou
jovens, o poder e o controle institucional, a brincadeira e o trabalho, a serieda-
de e o riso. Ao mesmo tempo e de modo contraditório, a miséria, o abandono, a
violência das crianças e contra as crianças, a impotência, o olhar triste, a magre-
za, o nariz escorrendo coexistem com o papel de humanização dos adultos que
as crianças desempenham, nos filmes e na vida. Além disso, o cinema mostra
sua inserção na família, os constrangimentos que lhes são impostos na escola,
os desejos e os sentimentos que dirigem às pessoas, às coisas, aos animais e ao
próprio cinema, suas crenças, mitos e devoção, a dilaceração que sofrem nas
ruas, na criminalidade ou na guerra de que muito cedo participam – e a guerra
é sempre cedo demais, mesmo para os adultos, já que seu tempo é o tempo do
medo e da destruição (KRAMER, 2006, p. 8).
112
Os repertórios e as convenções representacionais de um cineasta brasileiro têm, A infância (de todos nós)
que está no cinema
particularmente, chamado nossa atenção: Carlos Império Hamburger, ou simplesmen-
te Cao Hambúrguer, Cao nasceu na cidade de São Paulo, em 1962, descendendo de
italianos e alemães judeus que sempre incentivaram seu interesse pela cultura e pelas
artes. No Colégio Equipe, o interesse se fortaleceu com as atividades culturais, algu-
mas delas organizadas pelo aluno (atualmente o Global) Serginho Groisman. Ainda
no Equipe, participou da Banda Camarões, sob a liderança de Nando Reis, hoje um
dos “Titãs”. Sua incursão pela música também o levou a ser professor de violão para
crianças. Posteriormente, cursou (mas não concluiu) Educação Artística, Geografia e
Filosofia. No SESC de Pompéia, concluiu o Curso de Cinema de Animação.
O trabalho de Cao se popularizou com a produção e a direção de séries para a TV,
como Disney Club e, principalmente, com Castelo Rá-Tim-Bum, exibida desde 1994 na
Rede Cultura. Seu interesse pelo público infantil e pelo cinema de animação o levou
a realizar, em 1997, “O menino, a favela e a tampa de panela”, um trabalho encomen-
dando pela BBC de Londres, e exibido pela Unicef para 30 países.
De série para a TV, Castelo Rá-Tim-Bum em 1999 se transformou em filme.
A ideia central do filme gira em torno de Nino2, um menino de 300 anos, que mora
em um castelo suntuoso e mágico com seus tios feiticeiros, mas que sonha em ter
amigos e brincar como uma criança normal. Todavia, quando descobre que o castelo e
sua família se encontram em perigo, sai em busca de ajuda. Para Barbosa (s/d), o filme
tem o “compromisso de manter a história antenada a um sentimento infantil que tra-
fega na fascinação pela descoberta e foge do banal como o diabo da cruz”. Revelando
o “contraste entre a estranheza do mundo bruxo, governado por feitiços, e a supos-
ta normalidade da realidade exterior sustentam o humor sutil, extraído de situações
como o desejo inusitado do feiticeirinho Nino de estudar numa escola comum e tomar
um prosaico café com leite”.
Cao, com a colaboração de seis roteiristas, com o apoio da produtora de Alain
Fresnot3, com a assistência de uma equipe composta por 685 pessoas entre técnicos
e artistas, e com um orçamento do R$ 7,5 milhões (considerado alto para produções
brasileiras infantis) construiu um filme considerado um marco para o cinema infantil
brasileiro. Com uma produção cuidadosa e impecável, com atores consagrados4, “Cas-
telo” é capaz de, a um só tempo, divertir, envolver e respeitar a inteligência do público
113
HISTÓRIA DA INFÂNCIA infantil e adulto. Quiçá porque se afastou da tradição do cinema infantil brasileiro,
NO BRASIL
refém, nas duas últimas décadas, de filmes dos Trapalhões e da Xuxa.
Você sabia que após o sucesso nas telas, a história de Nino e do Castelo foi parar
nas escolas? Que das salas de cinema foi para as salas de aulas?
Pois é, por meio da criação do Projeto Escola, Cao Hamburger e seus assessores
ofereceram “a todas as escolas do Brasil o longa metragem Castelo Rá-Tim-Bum, o fil-
me, para ser utilizado como complemento e/ou estímulo a atividades em sala de aula”,
acompanhado de uma brochura (de excelente qualidade) com instruções e sugestões
de atividades para serem desenvolvidas na Educação Infantil e no Ensino Fundamental.
Na carta de apresentação do material, dirigida “aos professores, professoras e edu-
cadores”, o diretor entende que “[...] disciplinas como língua portuguesa e redação,
história e cidadania, artes plásticas e música ciências (sistema solar e planetas) e artes
cênicas certamente poderão utilizar elementos do filme para atividades”. O cineasta
finaliza observando:
114
o desaparecimento, o menino Cao se manteve recluso. Às avós, Charlotte, judia, e a A infância (de todos nós)
que está no cinema
Helena, católica, que se revezaram nos cuidados da casa e dos netos, o neto cineasta
dedicou “O Ano”.
Para o roteiro, Cao ainda contou com a colaboração de Cláudio Galperin, mora-
dor do Bom Retiro, como o fotógrafo Bob Wolfenson. Com um orçamento de R$ 3
milhões, Cao construiu um filme (belíssimo, não conseguimos deixar de registrar) de
110min, que levou 130.000 pessoas aos cinemas nos dez primeiros dias de exibição,
em 19 salas, na cidade de São Paulo, e por 400 mil no território brasileiro de seu lança-
mento, em 2006, até final de novembro de 2007, em que o protagonista era um garoto!
Mas, vamos ao que de fato trata o filme “O ano em que meus pais saíram de férias”.
O marco temporal é 1970. Período do milagre econômico, da euforia da Copa de
70 e do auge da ditadura militar brasileira. Mauro (Michel Joelsas), um garoto mineiro
de 12 anos, vai para São Paulo para ficar com seu avô Mótel (Paulo Autran, em sua últi-
ma aparição no cinema), porque seus pais precisam “sair de férias”. Por conta de uma
fatalidade, Mauro acaba indo morar com o judeu Shlomo (Germano Haiut). Enquanto
espera o retorno dos pais, o menino vivencia, junto à comunidade judaica e italiana, a
paixão pelo futebol e os desafios das novas relações.
A ditadura militar e o (empolgante) desempenho da seleção brasileira de futebol
de 1970 fazem o pano de fundo dessa história. E o enfrentamento do desconhecido,
o encontro com a solidão, o conhecimento do medo (social e político), as marcas da
violência juntamente com a manutenção da esperança, da vivência da solidariedade
humana e do amadurecimento afetivo e emocional compulsório (independentemente
da idade dos personagens) deram a tônica da narrativa fílmica de “O ano em que meus
pais saíram de férias”.
A realização desse filme contou com cuidados especiais e refinados na sua produ-
ção. A começar pela formação do cast infantil. Para a seleção, foram entrevistadas mais
de 1000 crianças, de origem judaica. Michel Joelsas foi o escolhido para protagonizar
Mauro. E Daniela Piepszyk para interpretar Hanna (dá para ficar em dúvida se ela re-
presenta ou se estava sendo ela própria).
A direção de arte tem que ser destacada. As cenas externas com suas ruas, arranha-
-céus, carros (foram utilizados 500 carros da época), bem como as cenas internas na
composição dos cenários revelam a excelência profissional.
Para o espectador que tem vivência e memória desse período é um prazer rever o
mobiliário; a propaganda do Sugismundo, na TV; a moda dos anos 1970; o álbum de
figurinha e a atuação da “melhor seleção de futebol de todos os tempos”; os jogos e as
brincadeiras das crianças e o jogo de futebol de botão.
Mas é na atuação do protagonista Mauro que de fato o filme se realiza.
115
HISTÓRIA DA INFÂNCIA A solidão em que ele vive é uma referência constante. A metáfora do goleiro: “sem-
NO BRASIL
pre sozinho e esperando pelo pior” é um recurso para enfatizá-la, pois em boa parte
do tempo ele está sozinho. Ele é um estrangeiro no bairro, desconhecedor dos có-
digos daquela comunidade plural, onde convivem judeus, italianos, negros e outras
descendências.
O recurso utilizado para narrar a história de Mauro nesse bairro foi o olhar. Talvez
a cena em que isso fica mais evidente é quando ele olha pela janela traseira do carro
(um fusca azul) e enxerga os prédios de São Paulo. Essa cena é acompanhada pelo
espectador por meio do reflexo no vidro do carro. Mais uma vez, revela-se o cuidado
da direção de arte e o apuro artístico. O olhar de Mauro lembra um comentário de
Wim Wenders, diretor alemão do fantástico “Asas do Desejo”, sobre o que ele aprecia
no olhar das crianças, que é “sua capacidade de olhar o mundo sem ter necessária e
imediatamente uma opinião, sem ter que tirar conclusões”.
O olhar de Mauro é assim..., sem conclusões ou explicações. O olhar de uma crian-
ça que está experimentando e não analisando.
O trabalho de Cao e de sua equipe foi recompensado com 25 premiações, inclusive
os de Melhor Filme de Ficção, Melhor Roteiro Original e Direção de Arte no Festival
Internacional de São Paulo, de 2007. Todavia, foi A indicação ao Oscar® na categoria
de melhor filme estrangeiro que o projetou no cenário internacional e nacional. E por
conta dessa indicação que o cineasta se tornou conhecido; para Cao, a indicação se
explica porque o filme “tem uma pegada diferente do que o mundo está acostumado a
esperar de um filme brasileiro”. Os executivos de Hollywood, encarregados pela divul-
gação do filme entre os sócios da Academia, comparavam “O ano” com os filmes “Kol-
ya” e “Cinema Paradiso”, ambos premiados pela Academia. Entretanto e infelizmente,
o Oscar® foi para o filme austríaco Os falsificadores, dirigido por Stefan Ruzowitsky.
É interessante observarmos que mesmo depois dessa divulgação “O ano” não foi
consumido pelo grande público, como poderíamos supor. A explicação encontrada
está no fato de que nesse mesmo ano outro filme, ganhou estrondoso destaque nas
mídias, o blockbuster (arrasa quarteirão): Tropa de Elite, dirigido por José Padilha.
Outra pergunta: qual dos dois filmes você assistiu?
A publicidade e o impacto de Tropa de Elite foram tamanhos que não só desviaram
a atenção de filmes como “O ano”, como também de “Baixio das Bestas”, “O céu de
Suely” e o “Cheiro do ralo”.
De novo: assistiu a algum desses?
Bom, estamos, a partir desse momento, buscando finalizar nossas considerações.
Então, vamos fazer um exercício de síntese das ideias apresentadas.
Começamos por problematizar a situação em que se encontra a educação das
116
escolas como locais preferenciais para o consumo dos produtos licenciados das em- A infância (de todos nós)
que está no cinema
presas midiáticas. Na sequência, apresentamos a temática da formação do espectador
cinematográfico e da importância do cinema como formador de consciências. Poste-
riormente, inserimos como o cinema e os cineastas brasileiros estão tratando e filman-
do a infância, destacando o trabalho de Cao Hamburger nos filmes “Castelo Rá-Tim-
-Bum, o filme” e “O ano em que meus pais saíram de férias”.
E, para finalizar, apresentamos como comentários finais os raciocínios que se
seguem.
Consideramos interessante começar a entender o trabalho dos cineastas com a
temática da infância, com crianças no set protagonizando seus filmes não porque são
especialistas no assunto, mas porque esses profissionais revelam em seus trabalhos
cinematográficos concepções de infância provenientes de códigos sociais e culturais
conjunturais, que por sua relevância cultural e também por força do cinema acaba por
se imporem como hegemônicos. Pensemos na importância que os filmes “O enigma
de Kaspar Hauser”, dirigido por Werner Herzog em 1974, e “O garoto selvagem”, de
François Truffaut, de 1970, adquiriram nas disciplinas de Psicologia da Educação nos
Cursos de Pedagogia.
Os filmes relativos à infância nos apresentam concepções, reflexões sobre um mo-
delo de infância construído cinematograficamente. Essas concepções não são reflexos
ou expressões do real. São representações de seus produtores, roteiristas e diretores
que divergem e perpassam pelos diferentes estilos e escolas cinematográficas
É prudente que entendamos e reforcemos a ideia de que os cineastas não estão
filmando a partir da perspectiva infantil, como comumente é interpretado, mas a partir
da sua compreensão e da sua equipe formada por sujeitos adultos sobre o universo
infantil. Essa afirmação parece ingênua, não é? Mas você não tem ideia do quanto ainda
se divulga que o “diretor tal filmou a partir da perspectiva infantil”.
André Bazin, crítico e teórico do cinema, e também um dos fundadores da revista
Cahiers du cinéma, em 1951, costumava dizer que “a criança não pode ser conhecida
senão pelo exterior”. Precisamos explicar mais?
Quando trabalhamos com cinema, temos alguns pressupostos que amparam nosso
trabalho. Um deles é o de não promover a ideia de que o cinema ou os filmes de-
vem ser vistos como recurso pedagógico para ilustrar conteúdos disciplinares. Eles,
os filmes, não foram realizados e concebidos com intenções pedagógicas, para serem
usados no ambiente escolar. A “pedagogização” dos filmes é responsabilidade dos pro-
fessores e tem resultado em atividades educativamente reducionistas. Comumente, as
análises “pedagógicas” despedaçam as cenas, atribuindo intenções estranhas ao traba-
lho da direção.
117
HISTÓRIA DA INFÂNCIA Defendemos as ideias e os procedimentos que se apropriam do cinema no con-
NO BRASIL
texto dos filmes que tematizam a infância, porque acreditamos que a experiência com
os filmes nos permite um retorno mais consciente à nossa interioridade e, por conse-
qüência, a com a nossa própria aprendizagem.
Do rol de teorias para entender o cinema, nos aproximamos do modo que o con-
cebe como produção de afetos e simbolização do desejo (In: Dicionário teórico e
crítico de cinema elaborado pelos franceses Jacques Aumont e Michel Marie (2003).
Esse construto teórico permite que pensemos de forma diferenciada a imposição da
padronização estética e sensorial contemporânea por meio da “experiência estética”,
da simbolização do desejo e do ato de criar.
A experiência estética pensada sob esse prima afasta-se, como entende Fresquet
([19--?]), “do entendimento benjaminiano, numa experiência adulta que todo sabe ou
que não tem nada para apreender”. Mas se aproxima do ideal defendido por Xavier
(2003, p. 12), de “um pensar e fazer cinema que reivindica o direito a experimentar
negado pela indústria, que convoca a uma ampliação da aventura da nova percepção,
sem as amarras do código vigente”.
Fresquet ([19--?]) observa que,
A autora acrescenta que o cinema atua como protagonista nessa ligação entre a
imaginação e a realidade. Categorias que ela analisa sob o viés vigotskiano, em que
a “imaginação não é um ‘divertimento caprichoso do cérebro’ antes bem, ela é uma
‘função vitalmente necessária’” (FRESQUET, [19--?], p. 12).
Por fim, “O ano”, filme de Cao Hamburger, sugere um caminho interessante para
se pensar a infância (de todos nós) no cinema. Por meio de Mauro, o cineasta incenti-
va os “adultos” (e não as crianças5) a buscarem e a reencontrarem sua infância. E, de
posse dela encontrar, participar e auxiliar na construção da outra infância, a das nossas
crianças na contemporâneidade.
Parafraseando Bachelard (apud FRESQUET, [19--?], p. 6) “O diálogo do adulto com
a criança depende, num certo sentido, do diálogo do adulto com seu passado, com a
118
sua infância”. Talvez dessa forma seria possível, a um só tempo, oportunizar esclareci- A infância (de todos nós)
que está no cinema
mentos para os porquês da “infância que está desaparecendo”, encontrando e suge-
rindo outros caminhos e questionando (mas querendo salvar) os “adultos” do mundo
solitário que construíram.
Proposta de Atividade
Referências
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2003.
BARBOSA, Neusa. Um bom exemplo isolado. [S. l.]: Programadora Brasil, 1999.
Disponível em: <http://www.programadorabrasil.org.br/programa/111/>. Acesso
em: 7 fev. 2010.
GIROUX, Henry. A disneyzação da cultura infantil. In: SILVA, Tomaz Tadeu (Org.).
Territórios contestados: o currículo e os novos mapas políticos e culturais.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1995. p. 49-158.
GIROUX, Henry. Os filmes da Disney são bons para seus filhos? In: STEINBERG, S.;
KINCHELOE, Joe. Cultura infantil: a construção corporativa da infância. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 87-108.
119
HISTÓRIA DA INFÂNCIA KRAMER, Sonia. Prefácio. In: TEIXEIRA, Inês A. de Castro. A infância vai ao cinema.
NO BRASIL
Belo Horizonte: Autêntica, 2006. p. 7-10.
NEVES, Fátima Maria. Filmes e desenhos animados para o ensino fundamental: Kiriku
e a Feiticeira. In: RODRIGUES, Elaine; ROSIN, Sheila (Org.). Infância e práticas
educativas. Maringá: Eduem, 2007. p. 101-112.
NEVES, Fátima Maria. O desenho animado na escola. In: RODRIGUES, Elaine; ROSIN,
Sheila (Org.). Pesquisa em Educação: a diversidade do campo. Curitiba: Juruá,
2008. p. 41-56.
NOMA, A.; LARA, A. Excluídas e invisíveis: filme “Crianças Invisíveis”. In: RODRIGUES,
Elaine ; ROSIN, Sheila (Org.). Pesquisa em Educação: a diversidade do campo.
Curitiba: Juruá, 2008. p. 57-71.
Anotações
120
8 História, infância e
Educação: políticas
públicas em foco
Ângela Mara de Barros Lara / Eliana Cláudia Navarro Koepsel
E como tudo que é natural deve nascer, assim também o homem possui seu ato
de nascimento: a história, que, no entanto, é para ele uma história consciente,
e que, portanto, como ato de nascimento acompanhado de consciência é ato
de nascimento que se supera.
Marx1
INTRODUÇÃO
Entendemos que a criança passou a ser diretamente o sujeito de ação do peda-
gogo; assim, essa discussão não pode faltar em sua formação. O Curso de Pedago-
gia, segundo as novas Diretrizes Curriculares Nacionais, publicadas pela Resolução
CNE/CP Nº 1, de 2006 (BRASIL, 2006), destina-se, fundamentalmente, a preparar
professores para a Educação Infantil e séries iniciais do Ensino Fundamental. Essa
destinação insere a infância no centro das preocupações desse Curso e toda a ação
pedagógica diretamente ligada ao conhecimento que se tem desse estágio da vida.
São diversos os livros publicados acerca da infância; os títulos indicam o exa-
me sobre o lugar da infância na sociedade contemporânea, e sugerindo o seu de-
saparecimento, questionam sobre o que dela se fez. Nesse exercício, várias áreas
do conhecimento se ocupam da infância: Psicologia, Filosofia, Política, Sociologia,
Antropologia, História, Pedagogia, Direito Civil, Medicina e Saúde, Psiquiatria. Os
títulos são múltiplos,2 marcando a diversidade de olhares e indicando que não é um
assunto esgotado, bem como assinalam a necessidade da investigação.
121
HISTÓRIA DA INFÂNCIA O presente capítulo tem por objetivos instigar a preocupação, iniciar uma discus-
NO BRASIL
são relativa à infância e indicar questionamentos. Se o âmbito de estudo apresenta-se
em múltiplos aspectos, por outro lado percebemos uma carência da abordagem his-
tórica referente ao assunto. Os encaminhamentos pedagógicos, assim como as políti-
cas públicas, têm como fundamento qual entendimento sobre a infância? O ponto de
partida é a criança multifacetada? O que significa pensar a infância em uma perspectiva
histórica? Nosso pressuposto é que um estudo sobre a infância historicamente situa-
da no “processo do trabalho” poderá mostrar que as políticas ou a ação pedagógica
contrariam a “ordem das coisas” e não ajudam a humanidade a dar um passo à frente.
Para dar conta do proposto, apresentamos, inicialmente, o pensamento de Mon-
taigne (1533-1592), que ao dar respostas às questões de seu tempo, escreveu sobre
a educação das crianças expressando as novas determinações da sociedade; e de Mill
(1806-1873), que no contexto de luta da época para a conservação social burguesa
reafirma os princípios dessa sociedade, naturalizando-os. Na sequência, apresenta-
mos algumas ideias relativas à infância e à educação da proposta organizada pela
Unesco − que se autodefine como mentora intelectual da educação mundial –:
trata-se do Relatório para a Unesco da Comissão Internacional sobre Educação para
o Século XXI, intitulado Educação: um tesouro a descobrir, que tem subsidiado as
reformas educacionais no Brasil a partir dos anos 1990.
3 É um livro no qual Montaigne, calcado na razão e na experiência, escreve sobre os mais va-
riados assuntos: especulações filosóficas sobre a morte, amizade, educação. Ele não se acomoda
a um sistema filosófico. Nas palavras de Rosa (2007, p. 128), “baseando-se nas novidades da
Renascença, Ensaios procura encontrar os princípios da arte de bem viver, através de um huma-
nismo que leva ao conceito de bonnê homme”.
122
em um período de grandes mudanças na sociedade; entretanto, é preciso marcar História, infância e
educação: políticas
que foi uma época de mudanças no plano político e econômico, as quais levaram públicas em foco
123
HISTÓRIA DA INFÂNCIA Certamente é muito difícil modificar as propensões naturais. Daí provém que,
NO BRASIL em não se tendo escolhido bem o caminho a seguir, trabalha-se inutilmente
muitas vezes e se precisam anos para instruir as crianças acerca de coisas em
que não chegam a tomar pé. Em todo caso nessa dificuldade a minha opinião
é que as encaminhemos sempre para as coisas melhores e mais proveitosas,
sem levar demasiado em consideração as vagas indicações e prognósticos que
tiramos da infância (MONTAIGNE, 2000, p. 150).
Não cessam de nos gritar aos ouvidos, como que por meio de um funil, o
que nos querem ensinar, e o nosso trabalho consiste em repetir. Gostaria que
ele corrigisse esse erro, e desde logo, segundo a inteligência da criança, co-
meçasse a indicar-lhe o caminho, fazendo-lhe provar as coisas, e a escolher e
discernir por si próprio, indicando-lhe por vezes o caminho ou lho permitin-
do escolher. Não quero que fale sozinho e sim que deixe também o discípulo
falar por seu turno (MONTAIGNE, 2000, p. 151).
Nosso jovem tem mais pressa: não deve ficar entregue aos pedagogos senão
até os quinze ou dezesseis anos; o resto é da ação. Empregue-se, pois, esse
tempo que é curto ao ensino do necessário (MONTAIGNE, 2000, p. 162).
[...] os atenienses deviam escolher entre dois arquitetos para uma construção
de um grande edifício. Apresentou-se o primeiro, muito afetado, com um
belo discurso cuidadosamente preparado acerca do trabalho que ia executar,
e já o povo se manifestava a seu favor quando o segundo pronunciou as se-
guintes palavras: “senhores atenienses, o que este acaba de dizer eu o farei
(MONTAIGNE, 2000, p. 168).
124
Montaigne, ao afirmar que o jovem tem mais açodamento que antes, na verdade História, infância e
educação: políticas
estava postulando que a sociedade tinha pressa, o homem revolucionário precisava ser públicas em foco
forjado, por isso não poderia perder tempo com ensinamentos inúteis. Os excertos
selecionados indicam algumas dessas características desse novo homem: que deve ser
capaz de escolher seus próprios caminhos (hoje, denominaríamos homem empreen-
dedor), que duvida de tudo, que sabe agir, que não é afetado, que se guia pela razão.
Mostramos, até aqui, como a compreensão da infância tinha como determinação
a sociedade moderna. Philippe Ariès, no texto A Historia Social da Criança − uma
tradução de uma versão francesa de 1973, um resumo do estudo original publicado
em 1960 − com base na iconografia da época, defendeu a tese de que a infância é
uma invenção dos séculos XVI e XVII. É um texto que recebeu diversas críticas, mas
que trouxe um elemento novo às discussões ao revelar que, nas novas determina-
ções da sociedade moderna, em algum momento a infância recebeu uma atenção
diferente dos tempos anteriores.
Retomando, trata-se de uma burguesia que tem pressa, pode-se dizer devorado-
ra. Ela manteve seu apetite voraz até a crise de 1825. “Entre os anos vinte e quarenta
do século XIX – ou, com mais exatidão, entre 1825/1830 e 1848 – desenha-se a
crise e a dissolução da Economia Política Clássica” (NETTO; BRAZ, 2008, p. 19). O
contexto da crise econômica do capitalismo assumiu um caráter amedrontador em
1848. Seja porque se tornou perceptível que a classe burguesa já não podia ser mais
revolucionária sem deixar de ser o que era, como pela luta que se iniciava entre
a burguesia e o proletariado − este último considerado por Marx (1818-1883) e
Engels (1820-1895) a nova classe revolucionária (MARX; ENGELS, 1998). Importa
assinalar que o aspecto revolucionário do tempo de Montaigne já não o era em
1848. O raciocínio é o seguinte: uma ideia não é revolucionária sempre, liberdade,
igualdade e propriedade eram pensamentos perturbadores no tempo de Montaigne
ou de Jonh Locke (1632-1704) no momento em que determinada materialidade
impunha a luta pela dissolução da sociedade feudal.
As ideias desses autores estavam em conexão com a transformação da sociedade,
não com a conservação. O pensamento sobre sociedade, família, infância e educação
tinha esse compromisso histórico. As trocas levaram à degeneração da sociedade
anterior. Se considerarmos que a crise possibilita apontar o elemento degenerador
da sociedade, indagamos: qual o elemento degenerador hoje? Poderíamos pergun-
tar também: por que atribuímos determinados valores à educação infantil? Qual o
significado dessas ideias?
Vamos dar um salto na história para analisar o pensamento sobre infância e edu-
cação no século em que eclodem as crises econômicas do capitalismo. O renomado
125
HISTÓRIA DA INFÂNCIA historiador Eric J. Hobsbawm denominou o período que vai de 1848 a 1875 A era
NO BRASIL
do capital. Na introdução desse livro, o historiador afirma que, nas décadas que se
sucedem a 1848,
Foi o triunfo de uma sociedade que acreditou que o crescimento econômico re-
pousava na competição da livre iniciativa privada, no sucesso de comprar tudo
no mercado mais barato (inclusive trabalho) e vender no mais caro. Uma eco-
nomia assim baseada e, portanto, repousando naturalmente nas sólidas funda-
ções de uma burguesia composta daqueles cuja energia, mérito e inteligência
os elevou a tal posição, deveria – assim se creditava – não somente criar um
mundo de plena distribuição material, mas também crescente esclarecimento,
razão e oportunidade humana de avanço das ciências e das artes, em suma, um
mundo de contínuo progresso material e moral (HOBSBAWM, 2001, p. 19).
O período pós-1848 revelou também que esse progresso não seria para todos.
Doravante, a burguesia não poderia continuar a ser tão devoradora sem se autodes-
truir. Hobsbawm contribui para a compreensão, no livro A era das revoluções: 1789
– 1848, do que foi o triunfo do capitalismo liberal burguês:
[...] foi o triunfo não da indústria como tal, mas da indústria capitalista; não
da liberdade e da igualdade em geral, mas da classe média ou da sociedade
burguesa liberal; não da economia moderna ou do Estado moderno, mas das
economias e Estados em uma determinada região geográfica do mundo (parte
da Europa e alguns trechos da America do Norte), cujo centro eram os Estados
rivais e vizinhos da Grã-Bretanha (HOBSBAWM, 2002, p. 16).
126
com os demais membros da comunidade. No lugar da luta, impõe-se a defesa da História, infância e
educação: políticas
unidade social, traduzida, inclusive, pela educação elementar. públicas em foco
O espaço escolar foi entendido por Mill como o lugar para adquirir os conheci-
mentos sobre as novas técnicas de trabalho, com vistas a ampliar a produção e para
adquirir melhores hábitos morais. Mill citou o Escher, em depoimento anexado ao
Report of the Poor Law Commissiones, de 1840, acerca da relação entre aquilo que
ele chamou de cultura intelectual e a confiabilidade moral da classe trabalhadora:
127
HISTÓRIA DA INFÂNCIA AS POLÍTICAS EDUCACIONAIS: VELHAS DETERMINAÇÕES?
NO BRASIL
A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco)4,
agência das Nações Unidas e especializada no campo da educação, postula que a proxi-
midade com os ministérios de educação dos 193 países aliados a põe em uma posição
estratégica para promover iniciativas educativas. Assume uma posição de liderança
intelectual para impulsionar inovações e reformas educativas (UNESCO, 2008).
Sabemos que a influência internacional, no setor educacional, mais significativa
do ponto de vista político deu-se a partir de 1961 com a Usaid, por meio da gerência
de fundos do governo norte-americano destinados à cooperação técnica na área eco-
nômica e social (FONSECA, 2004). No entanto foi nos anos de 1990 que a influência
internacional adquiriu proporções surpreendentes.
A partir dos anos de 1990, uma vasta documentação internacional, derivada de
importantes agências internacionais – mediante diagnósticos, análises e propostas −
ofereceu um conjunto de ideias consensuais em torno do qual deveria ser a função
da educação. O marco da articulação da Unesco de uma agenda política, que elegeu a
educação básica como pauta principal, foi a Conferência Mundial sobre Educação Para
Todos, realizada em Jomtien em 1990, que teve como resultado a Declaração Mundial
sobre Educação para Todos e o Marco de Ação para a Satisfação das Necessidades
Básicas de Aprendizagem, assinados por 155 países, incluindo o Brasil, que se com-
prometeram em assegurar a educação básica de qualidade a crianças, jovens e adultos
(SHIROMA, 2002).
De uma forma geral, os documentos e relatórios elaborados e divulgados no âmbi-
to da Unesco, repetidas vezes, atribuem à educação um papel decisivo na luta contra a
4 A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) foi criada
em 16 de novembro de 1945. Seu principal objetivo é construir a paz na mente dos homens
mediante a educação, a cultura, a ciência e a comunicação. Em seu preâmbulo, a Constituição
da Unesco proclama: “posto que as guerras nascem na mente dos homens, é na mente dos
homens que se devem construir os baluartes da paz” (UNESCO, 2008). A agência desempe-
nha um papel no sistema das Nações Unidas e trabalha estreitamente com uma ampla gama
de organizações regionais e nacionais. Desde a sua criação, atua nos âmbitos da Educação, das
Ciências Naturais e Exatas, das Ciências Humanas e Sociais, da Cultura, da Comunicação e
da Informação. Quanto à Educação, os temas principais desenvolvidos são: direito à educação;
políticas e planos de educação; primeira infância e família; educação primária; educação secun-
dária; ensino superior; educação técnica e profissional; educação científica e técnica; formação
docente; educação não-formal; educação inclusiva; diversidade cultural e linguística na educa-
ção; educação e novas tecnologias; educação em situação de emergência, crises e reconstrução;
educação física e desporte; direitos humanos, democracia, paz e educação para a não-violência.
Sua principal diretriz nos anos 1990 é a Educação para Todos (UNESCO, 2008). Atua por
meio de acompanhamento técnico, estabelece parâmetros e normas, cria projetos e age como
catalisadora de propostas e disseminadora de soluções para os desafios encontrados.
128
pobreza, para o crescimento econômico e a superação da desigualdade social no país História, infância e
educação: políticas
e entre os demais. Neste sentido, é atribuído à educação um papel preponderante para públicas em foco
5 Esse Relatório é auto-apresentado como de uma “[...] contribuição ímpar à revisão crítica da
política educacional de todos os países” no contexto “[...] do processo de globalização das rela-
ções econômicas e culturais que estamos vivendo” (DELORS, 2006, p. 9).
129
HISTÓRIA DA INFÂNCIA buscar seus objetivos, suas conquistas, ou seja, ele deve se responsabilizar pelo seu
NO BRASIL
“projeto pessoal” (DELORS, 2006).
Ao considerar a educação em um aspecto mais amplo, a Comissão enfatiza a im-
portância da educação formal e informal tanto na família como na educação básica
(consideradas no Relatório as crianças de três anos aos doze anos de idade). Preconiza
que a experiência escolar deve ser iniciada bem cedo:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A preocupação no presente capítulo volta-se sobre o discurso da defesa escolar,
para compreendê-la no conjunto da sociedade e, neste sentido, coloca-se compromis-
so com a transformação social, compreendida como a própria história, na qual a escola
aparece como uma de suas manifestações.
Dessa forma, por meio da análise do pensamento relativo à infância nos clássicos
e na razão de agências internacionais, esta reflexão se inclui no debate sobre a insti-
tuição escolar, afirmando sempre a necessidade de explicá-la em sua significação real.
Enfim, compreender suas possibilidades e limites como instrumento de transformação
social.
130
Defendemos que é preciso, então, compreender a ideia que se tem sobre a infância História, infância e
educação: políticas
como uma singularidade remetida a uma totalidade histórica, não ficando em uma públicas em foco
São ideias muito presentes nos dias de hoje. A explicação do trabalho, da infância e
da educação é apresentada de forma dominante, pelos caminhos traçados por autores
como Stuart Mill. Um pensamento marcado por velhas determinações é agora dog-
matizado. São ideias que, à maneira de uma força suprema, expõem-se ordenadas no
pensamento de representantes do mesmo em juízos e diretrizes emanados, sobretudo
de documentos da Unesco, agência de grande porte na representação do poder bur-
guês, que se estabelece no chamado primeiro mundo para o resto como globalização.
Tomando distância dessa tendência que, na atualidade, impôs-se de forma marcan-
te no discurso educacional, entendemos que o conhecimento, compreendido como o
esforço para sistematizar reflexivamente a prática social, nada mais é que a necessidade
de compreendê-la nas suas múltiplas relações enquanto condição para encaminhar
soluções mais consequentes aos problemas que nela se manifestam.
131
HISTÓRIA DA INFÂNCIA
NO BRASIL
Referências
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CHAUÍ, Marilena de Souza. Vida e obra. In. MONTAIGNE, Michel de. Ensaios.
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DELORS, Jacques. Educação um tesouro a descobrir. 4. ed. São Paulo; Brasília, DF:
MEC; Unesco, 2006.
HOBSBAWM, Eric J. A era do capital: 1848-1875. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
______. A era das revoluções: 1789-1848. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
132
MILL, John Stuar. Princípios de economia política: com algumas de suas aplicações História, infância e
educação: políticas
à Filosofia social. Introdução de W. J. Ashley. Apresentação de Raul Ekerman. públicas em foco
Tradução de Luiz João Baraúna. São Paulo: Abril Cultural, 1983. v. 1-2.
MONTAIGNE, Michel de. Da educação das crianças. In. ______. Ensaios. Tradução
de Sérgio Milliet. São Paulo: Nova Cultural, 2000. p. 147-173. v. 1.
NETTO, José Paulo; BRAZ, Marcelo. Economia política: uma introdução crítica. São
Paulo: Cortez, 2008.
ROSA, Maria da Glória de. A história da Educação através dos textos. Prefácio de
José Antônio Tobias. São Paulo: Cultrix, 2007.
Anotações
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HISTÓRIA DA INFÂNCIA
NO BRASIL
Anotações
134