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INTRODUÇÃO À ANTROPOLOGIA

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EQUIPE TÉCNICA

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Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, mesmo parcial,

por qualquer processo mecânico, eletrônico, reprográfico etc., sem a

autorização, por escrito, do autor. Todos os direitos reservados desta

edição 2014 para a editora.


FORMAÇÃO DE PROFESSORES - EAD

Valéria Soares de Assis


(ORGANIZADORA)

Introdução à
Antropologia
2. ed. - revisada e ampliada

7
Maringá
2009
Coleção Formação de Professores - EAD

Apoio técnico: Rosane Gomes Carpanese


Luciana de Araújo Nascimento
Normalização e catalogação: Ivani Baptista CRB - 9/331
Revisão Gramatical: Annie Rose dos Santos
Edição e Produção Editorial: Carlos Alexandre Venancio
Eliane Arruda

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Introdução à antropologia / Valéria Soares de Assis, organizadora. -- 2. ed.


I61 Maringá: Eduem, 2009.
118p. 21cm. (Formação de professores - EAD; v. 7) .

ISBN 978-85-7628-201-3

1. Antropologia. 2. Desigualdades sociais. 3. Raça e etnia. 4. Origem do homem. 5.


Origem da cultura. I. Assis, Valéria Soares, org.

CDD 21.ed. 301

Copyright © 2009 para o autor


2a Reimpressão 2014 - Revisada
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo
mecânico, eletrônico, reprográfico etc., sem a autorização, por escrito, do autor. Todos os direitos
reservados desta edição 2009 para Eduem.

Endereço para correspondência:

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S umário

Sobre os autores > 7

Apresentação da coleção > 9


Apresentação do livro > 11

CAPÍTULO 1
Antropologia: uma introdução
Andrea Quadrelli > 15

CAPÍTULO 2
A Antropologia enquanto um dos
campos específicos de estudo do homem
> 29
Patrícia Silva Osório

CAPÍTULO 3
Raça, etnia e desigualdades sociais
Cleyde R. Amorim / Marivânia C. Araújo
> 45

CAPÍTULO 4
Apontamentos para uma
Antropologia da criança e da infância > 63
Valéria Soares de Assis

CAPÍTULO 5
Quando nos tornamos humanos?
Reflexões sobre a origem do homem e da cultura > 71
Adriana Schmidt Dias

5
INTRODUÇÃO À CAPÍTULO 6
ANTROPOLOGIA
Aprender com a diferença:
a construção de olhares sobre nós e sobre os outros
> 87
Katiuci Pavei

CAPÍTULO 7
Antropologia da e para a educação
Valéria Soares de Assis
> 107

6
S obre os autores

ADRIANA SCHMIDT DIAS


Professora do Departamento de História da Universidade Federal do Rio

Grande do Sul. Graduada em História (UFRGS). Mestre em Arqueologia (PU-

C-RS). Doutora em Arqueologia (USP).

ANDREA QUADRELLI
Professora da Universidad Católica del Uruguay. Graduada em Biologia Fa-

cultad de Ciências, Universidad de la República (Uruguay). Mestre em An-

tropologia Social Universidad Nacional de Misiones (Argentina). Doutora em

Antropologia Social (UFRGS).

CLEYDE R. AMORIM
Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de

Maringá. Graduada em Ciências Sociais (UFG). Doutora em Ciências Sociais

(Antropologia Social) (USP).

KATIUCI PAVEI
Professora do Departamento de Ensino e Currículo da Universidade Federal

do Rio Grande do Sul. Graduada em Ciências Sociais (UFRGS). Mestre em

Educação (UFRGS).

MARIVÂNIA C. ARAÚJO
Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual

de Maringá. Mestre em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela

Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Doutora em Sociologia pela

Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho.

7
INTRODUÇÃO À PATRICIA SILVA OSÓRIO
ANTROPOLOGIA
Professora Adjunta do Departamento de Antropologia da Universidade Fede-

ral de Mato Grosso. Graduada em Ciências Sociais Universidade de Brasília

(UNB). Mestre em Antropologia Social (UFRGS). Doutora em Antropologia

Social (UNB).

VALERIA SOARES DE ASSIS


Professora do Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade

Estadual de Maringá. Graduada em História (UFES). Mestre em História (PU-

C-RS). Doutora em Antropologia Social (UFRGS).

8
A presentação da Coleção
A coleção Formação de Professores - EAD teve sua primeira edição publicada em
2005, com 33 títulos financiados pela Secretaria de Educação a Distância (SEED) do
Ministério da Educação (MEC) para que os livros pudessem ser utilizados como material
didático nos cursos de licenciatura ofertados no âmbito do Programa de Formação de
Professores (Pró-Licenciatura 1). A tiragem da primeira edição foi de 2500 exemplares.
A partir de 2008, demos início ao processo de organização e publicação da segunda
edição da coleção, com o acréscimo de 12 novos títulos. A conclusão dos trabalhos
deverá ocorrer somente no ano de 2012, tendo em vista que o financiamento para
esta edição será liberado gradativamente, de acordo com o cronograma estabelecido
pela Diretoria de Educação a Distância (DED) da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal do Ensino Superior (CAPES), que é responsável pelo programa denominado
Universidade Aberta do Brasil (UAB).
A princípio, serão impressos 695 exemplares de cada título, uma vez que os livros
da nova coleção serão utilizados como material didático para os alunos matriculados
no Curso de Pedagogia, Modalidade de Educação a Distância, ofertado pela Universi-
dade Estadual de Maringá, no âmbito do Sistema UAB.
Cada livro da coleção traz, em seu bojo, um objeto de reflexão que foi pensado
para uma disciplina específica do curso, mas em nenhum deles seus organizadores
e autores tiveram a pretensão de dar conta da totalidade das discussões teóricas e
práticas construídas historicamente no que se referem aos conteúdos apresentados. O
que buscamos, com cada um dos livros publicados, é abrir a possibilidade da leitura,
da reflexão e do aprofundamento das questões pensadas como fundamentais para a
formação do Pedagogo na atualidade.
Por isso mesmo, esta coleção somente poderia ser construída a partir do esforço
coletivo de professores das mais diversas áreas e departamentos da Universidade Esta-
dual de Maringá (UEM) e das instituições que têm se colocado como parceiras nesse
processo.
Neste sentido, agradecemos sinceramente aos colegas da UEM e das demais insti-
tuições que organizaram livros e ou escreveram capítulos para os diversos livros desta
coleção.
Agradecemos, ainda, à administração central da UEM, que por meio da atuação
direta da Reitoria e de diversas Pró-Reitorias não mediu esforços para que os traba-
lhos pudessem ser desenvolvidos da melhor maneira possível. De modo bastante

9
INTRODUÇÃO À específico, destacamos o esforço da Reitoria para que os recursos para o financiamento
ANTROPOLOGIA
desta coleção pudessem ser liberados em conformidade com os trâmites burocráticos
e com os prazos exíguos estabelecidos pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da
Educação (FNDE).
Internamente enfatizamos, ainda, o envolvimento direto dos professores do De-
partamento de Fundamentos da Educação (DFE), vinculado ao Centro de Ciências
Humanas, Letras e Artes (CCH), que no decorrer dos últimos anos empreenderam
esforços para que o curso de Pedagogia, na modalidade de educação a distância, pu-
desse ser criado oficialmente, o que exigiu um repensar do trabalho acadêmico e uma
modificação significativa da sistemática das atividades docentes.
No tocante ao Ministério da Educação, ressaltamos o esforço empreendido pela
Diretoria da Educação a Distância (DED) da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal do Ensino Superior (CAPES) e pela Secretaria de Educação de Educação a
Distância (SEED/MEC), que em parceria com as Instituições de Ensino Superior (IES)
conseguiram romper barreiras temporais e espaciais para que os convênios para a li-
beração dos recursos fossem assinados e encaminhados aos órgãos competentes para
aprovação, tendo em vista a ação direta e eficiente de um número muito pequeno de
pessoas que integram a Coordenação Geral de Supervisão e Fomento e a Coordenação
Geral de Articulação.
Esperamos que a segunda edição da Coleção Formação de Professores - EAD possa
contribuir para a formação dos alunos matriculados no curso de Pedagogia, bem como
de outros cursos superiores a distância de todas as instituições públicas de ensino
superior que integram e ou possam integrar em um futuro próximo o Sistema UAB.

Maria Luisa Furlan Costa


Organizadora da Coleção

10
A presentação do livro
Esta é a segunda edição do livro “Introdução à Antropologia”. Nela, acrescentamos
alguns capítulos e suprimimos outros. Entretanto, sua estrutura básica permanece.
Continuamos com o interesse de apresentar o que a antropologia pode oferecer em
termos de reflexão e aprofundamentos para a produção teórica e para a prática da
educação.
O homem é um ser que, entre outras formas, se faz por meio da e com a cultura.
A educação pode ser entendida como um dos componentes dessa cultura. Em nossa
sociedade, é na escola, no ensino formal, que uma parcela significativa de valores, há-
bitos e maneiras de pensar é modificada ou incorporada a cada geração, promovendo
tanto a manutenção quanto a transformação de nossa especificidade sociocultural.
Portanto, é importante analisar a educação formal como um processo que interfere de
maneira significativa na configuração cultural da nossa sociedade.
A interface entre Antropologia e Educação permite conhecer e aplicar conceitos
e métodos do campo antropológico para pensar os processos educacionais em uma
perspectiva mais ampla e rica. Se tivermos como premissa que a educação é um fenô-
meno cultural, é coerente que a Antropologia (uma disciplina que privilegia o estudo
dos fenômenos socioculturais) seja entendida como uma interlocutora importante dos
estudos sobre educação.
Procurando estabelecer esta interlocução na disciplina Antropologia e Educação
I, pretendemos apresentar as bases gerais da Antropologia, os principais conceitos e
metodologias por meio dos quais ela contribui para o campo pedagógico. Com este
objetivo, o conteúdo do livro é estruturado em seis capítulos.
Começamos pela pergunta: o que é Antropologia? O que ela estuda? No capítulo
um (traduzido por Valéria Soares de Assis), intitulado “Antropologia: uma introdução”
a antropóloga uruguaia, Andrea Quadrelli apresenta a disciplina antropológica e, res-
pondendo a estas questões, aponta para os principais aspectos que a caracterizam.
No capítulo dois, “A Antropologia enquanto um dos campos específicos do ho-
mem”, Patrícia Osório realiza uma contextualização da Antropologia e, identificando
alguns de seus ramos, apresenta seus objetos, seus métodos e suas principais constru-
ções teóricas (essas categorias científicas, “objetos”, “métodos” e “teorias” serão mais
fáceis de serem compreendidas, pois já foram vistas por você nos textos das disciplinas
de Metodologia e Técnicas de Pesquisa I e II).

11
INTRODUÇÃO À Raça é um tema que foi retomado e que acionou muitos debates recentes, afetando
ANTROPOLOGIA
diretamente a área da educação. E este é o foco do capítulo três, “Raça, etnia e desi-
gualdades sociais”, de Cleyde Amorim e Marivânia Araújo. Nele encontramos alguns
aspectos contemplados nos capítulos anteriores, com maior aprofundamento.
Quando se trata de educação, é comum a associação com a primeira fase da vida,
com a criança. Como a antropologia aborda a criança e a infância? Na tentativa de lan-
çar algumas luzes sobre o tema, Valéria S. de Assis traz o capítulo quatro, “Apontamen-
tos para uma antropologia da criança e da infância”. Se a cultura não é um privilégio
de um grupo específico, se é algo comum a todos os grupos humanos, então, quando
adquirimos cultura? Esta questão leva-nos à nossa própria característica humana, con-
teúdo do capítulo cinco, “Quando nos tornamos humanos? Reflexões sobre a origem
do homem e da cultura”. Para refletirmos sobre a estreita relação entre homem e cultu-
ra é que Adriana Shimidt Dias apresenta, de forma introdutória, os principais aspectos
dos estudos mais recentes sobre a origem do homem.
Nos dois últimos capítulos, alguns temas bastante discutidos e aprofundados pela
Antropologia, como cultura, diversidade cultural, alteridade, etnocentrismo, relativis-
mo cultural, estereótipo, racismo, preconceito e tolerância são abordados visando a sua
contribuição para a educação formal. É o que se encontra no capítulo seis, “Aprender
com a diferença: a construção de olhares sobre nós e sobre os outros”, de Katiuci Pavei,
e no capítulo sete, de Valéria S. de Assis, “Antropologia da e para a educação”. Será in-
teressante perceber como a abordagem de cada autor pode nos levar a interpretações
diferentes dos conceitos apontados. É importante refletir sobre esses aspectos, tendo
em vista os capítulos anteriores e o próprio contexto educacional vivido por você.
No que se refere à construção de textos didáticos, este livro é uma experiência
inédita para a maioria de seus autores. Ele representou um grande desafio para todos.
Como primeira experiência, deve conter falhas que passaram despercebidas durante
sua elaboração. Portanto, esperamos a contribuição dos leitores com críticas e suges-
tões para que possamos melhorar nosso trabalho.
O convite para organizar os livros para as disciplinas de Antropologia e Educação
I e II representou um desafio em dois aspectos distintos. O primeiro foi o de criar
uma proposição de conteúdos de Antropologia para além dela e na melhor linguagem
possível, que permitisse a comunicação entre especialistas e leigos. O segundo foi o de
formar um grupo de colegas dispostos, de forma voluntária, a enfrentar esta empreita-
da. O desafio promoveu um aprendizado pessoal importante e a oportunidade de co-
nhecer ou estreitar laços com especialistas da Antropologia, da Educação e da Arqueo-
logia de várias instituições do país e de fora dele. Assim, agradecemos especialmente
à organizadora da Coleção Formação de Professores - EAD por este convite/desafio.

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A elaboração do livro não teria acontecido sem a resposta positiva dos autores. Apresentação do livro

Agradecemos por terem respondido voluntariamente e com sensibilidade a todos os


pedidos de reformulação dos textos. Foi um desafio coletivo transformarmos nossas
reflexões e produções acadêmicas em uma linguagem o mais didática possível.
Entretanto, o verdadeiro êxito do livro depende do diálogo que ele vai estabelecer
com cada aluno e isso só acontecerá se o leitor compreender que as mensagens nele
contidas fazem sentido e podem servir de reflexão sobre si e o seu mundo.

Valéria Soares de Assis


Organizadora do Livro

13
1 Antropologia: uma
introdução

Andrea Quadrelli1

Não devo buscar minha dignidade no espaço, e sim no governo de meu pensa-
mento. Não terei mais, embora possua mundos. Se for pelo espaço, o universo
me envolveria e me engoliria como um átomo; mas pelo pensamento eu abraço
o mundo.
Blaise Pascal, Pensées.

Nossa espécie tem uma profunda e persistente necessidade de compreender o


mundo que a rodeia, compreender a diversidade dos fenômenos da natureza, os gran-
des mistérios sobre nossa origem e nossa existência, sobre a origem e o destino de
nosso universo infinito. Neste sentido, todas as disciplinas escolares, que são nos-
sa forma de construir conhecimento, possuem um mesmo objetivo, compreender,
compreender-nos1.
A Antropologia é uma disciplina que concentra seus esforços no conhecimento do
Homem e distingue-se por sua forma específica de construir conhecimento, seu espe-
cífico modo do conhecimento, que é a experiência de campo.
Bronislaw Malinowski (1884-1942), nascido na Polônia e naturalizado inglês, é au-
tor da obra, hoje clássica, Os Argonautas do Pacífico Oriental, sendo considerado um
dos fundadores do moderno trabalho de campo antropológico. Nesse trabalho, ele
estuda o significado social dos colares e braceletes trocados no chamado circuito Kula
melanésico das populações tribais das ilhas Trobiand, próximas de Nova Guiné, que
implicam cerimônias mágicas e grandes expedições rituais comerciais. A leitura da
Introdução à obra é uma iniciação ao trabalho de campo e à prática etnográfica. Mali-
nowski assim define o objetivo final do antropólogo:

1 “Quem somos nós? A resposta a esta pergunta não é só uma das tarefas da ciência, se não a sua tarefa” (SCHRÖ-
DINGER, Ciencia y Humanismo).

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INTRODUÇÃO À A meta é, em resumo, chegar a captar o ponto de vista do indígena, sua posição
ANTROPOLOGIA ante a vida, compreender sua visão de mundo. Temos que estudar o homem e
devemos estudá-lo no que mais intimamente o concerne, quer dizer, naquilo
que o une à vida. Em cada cultura os valores são ligeiramente distintos, a gente
tem distintas aspirações, cede a determinados impulsos, aspira por distintas
formas de felicidade. Em cada cultura se encontram distintas instituições, que
servem ao homem para conseguir seus interesses vitais, diferentes costumes
graças aos quais satisfaz suas aspirações, distintos códigos morais e legais que
recompensam suas virtudes e castigam suas faltas. Estudar estas instituições,
costumes ou códigos, ou estudar o comportamento e a mentalidade do ho-
mem, sem tomar consciência do porquê o homem vive e em que reside sua
felicidade é, em minha opinião, desdenhar a recompensa maior que podemos
esperar obter do estudo do homem (MALINOWSKI, 1983, p. 25).

Para Malinowski, um dos grandes objetivos de compreender culturas distantes e


estranhas é compreender a natureza humana e, em consequência, explorando nossa
visão, compreender nossa própria natureza2. Escrevia ele em seu diário, em 1917:

Qual é a essência mais profunda de minhas investigações? [...] descobrir quais


são suas grandes paixões, os motivos de sua conduta, seus fins [...] sua forma
profunda, fundamental, de pensar. Neste ponto nos enfrentamos com nossos
próprios problemas: o que é o essencial de nós? (MALINOWSKI apud KUPER,
1983, p. 52).

Para Da Matta, o campo de trabalho da Antropologia social ou cultural é definido


como o estudo do homem enquanto produtor e transformador da natureza e, enquan-
to membro de uma sociedade, de um dado sistema de valores, da

perspectiva da sociedade humana enquanto um conjunto de ações ordenadas


de acordo com um plano e regras que ela própria inventou e que é capaz de
reproduzir e projetar em tudo aquilo que fabrica (DA MATTA, 1997, p. 32).

Como afirma o autor, nessa perspectiva a cultura não é unicamente uma resposta
específica a certos desafios; é preciso ampliar essa visão instrumental de cultura, deixar
de entendê-la como um tipo de reação de dado animal a um ambiente físico determi-
nado e adotar uma visão mais complexa e generosa, “uma visão realmente muito mais
dialética e humana” (DA MATTA, 1997, p. 32). Da Matta recorda um fato fundamental:
o homem é muito mais do que um animal inventor de objetos, é um animal capaz de
pensar seu próprio pensamento. Se alguns animais podem inventar objetos, o homem
é o único que inventa as regras de inventar objetos. Somente o homem é capaz de criar

2 Geertz demonstra ter essa mesma concepção quando define como um dos objetivos da Antropologia “o alarga-
mento do universo do discurso humano” (1989, p. 84).

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uma linguagem da linguagem, uma regra de regras; Antropologia:
uma introdução

[...] um plano de tal ordem reflexivo que ele pode ver-se a si próprio neste
plano [...] pode definir-se enquanto um ser que usa a linguagem, mas que tam-
bém tem consciência da linguagem [...] o ponto essencial é que o homem não
inventa uma canoa só porque deseja cruzar o rio ou vencer o mar, mas inven-
tando a canoa ele toma consciência do mar, do rio, da canoa e de si mesmo.
Se o homem faz-se a si próprio, é preciso também não esquecer que ele assim
procede porque pode ver-se a si mesmo em todos os desafios que enfrenta e em
todos os instrumentos que fabrica (DA MATTA, 1997, p. 32).

Por outro lado, o homem é capaz de diferenciar-se frente a estímulos universais


(DA MATTA, 1997, p. 32). Isto significa que o homem, como tal, em lugares diferentes
e frente aos mesmos problemas, reage de forma diferente. Por essa razão, os homens
apresentam uma grande diversidade com relação a sua organização social, sua história,
as maneiras como classificam suas realidades etc. Essas diferenças são uma das condi-
ções de nossa humanidade. O homem é diverso. Sem dúvida, apesar dessas diferenças
e por causa delas, sempre nos reconhecemos nos outros, porque, quando vemos um
costume diferente do nosso, reconhecemos, por contraste, nosso próprio costume.
Por essa razão, o estudo da Antropologia social é, em grande parte, o estudo das dife-
renças (DA MATTA, 1997, p. 32).
Como afirma Da Matta (1997), com a Antropologia, ou seja, por meio do estudo
das formas que julgamos “primitivas” ou “selvagens”, e não exclusivamente, descobri-
mos que os valores que chamamos de “honra”, “verdade”, “justiça”, “dignidade”, jun-
tamente com o fato de nos sentirmos parte de uma totalidade, são o centro mesmo da
sociabilidade humana e estão presentes onde quer que haja gente. Descobrimos que
nossas diferenças com outras pessoas são externas, de posição relativa a certos temas
ou problemas. Porém essas diferenças podem ensinar-nos muitas coisas; os antropólo-
gos não estudam os índios exclusivamente porque estão desaparecendo, o que não é
necessariamente assim, mas sim para aprender o que não sabemos (DA MATTA, 1997).
Além disso, a Antropologia, ao contrário das ciências políticas ou de certos tipos
de Sociologia, está preocupada com a peculiaridade, com os detalhes de seu objeto
de investigação. “Ao submeter conceitos preestabelecidos à experiência de contextos
diferentes e particulares, ela procura dissecar e examinar, para então analisar, a ade-
quação de tais conceitos” (DA MATTA, 1997, p. 15); por isso, entre as ciências sociais,
a Antropologia pode ser considerada, como aponta Marisa Peirano, a mais artesanal
e a mais ambiciosa. Como assinala Peirano (1995), seu objetivo mais geral sempre foi
alcançar uma visão alternativa,

17
INTRODUÇÃO À [...] mais genuína talvez, da universalidade dos conceitos sociológicos. Portan-
ANTROPOLOGIA to, não são grandes teorias nem abrangentes arcabouços teóricos que a infor-
mam [...], mas ao contrastar os nossos conceitos com outros conceitos nativos,
ela se propõe formular uma ideia de humanidade construída pelas diferenças3
(DA MATTA, 1997, p. 15).

A Antropologia estuda, portanto, o fenômeno humano, e uma das lições da Antro-


pologia social, segundo Da Matta (1997, p. 13), é conceber o conhecimento do ho-
mem sobre si mesmo como variado, moral e socialmente equivalente e, por tudo isso,
infinito em sua profundidade e grandeza. A Antropologia social, com suas práticas de
campo e suas viagens, foi realizando este trabalho de aprender a “ouvir” e “escutar” as
diversas realidades e relações humanas, recuperando e colocando lado a lado, em um
diálogo fecundo, as experiências humanas (DA MATTA, 1997, p. 150).
Como assinala Geertz, o estudo interpretativo da cultura tanto das formas de fazer
como de entender a prática antropológica representa um esforço para aceitar a diver-
sidade dos seres humanos no processo de constituição de suas vidas, bem como no
processo de vivê-las:

[...] a de ver-nos, entre outros, como apenas mais um exemplo da forma que a vida
humana adotou em um determinado lugar, um caso entre casos, um mundo entre
mundos. Se a Antropologia interpretativa tem alguma função geral no mundo, é
a de constantemente reensinar esta verdade fugaz (DA MATTA, 1997, p. 29-30).

Este é um primeiro passo no caminho do conhecimento, um primeiro passo que


exige humildade. Temos que estar convencidos de nossa ignorância, do que não sabe-
mos, descobrir a dimensão do ignorado; para isso também serve a Antropologia. Nós
temos muito que aprender com os outros, e não com uma atitude condescendente ou
superior, como se os outros fossem espécies em extinção, que temos a obrigação de
defender e proteger. Nosso estudo, como sustenta Da Matta (1997), deve ser funda-
mentado no intercâmbio igualitário de experiências humanas, fundamentado no fato
de que realmente podemos aprender e nos civilizarmos com os outros. Neste sentido,
a Antropologia também nos ensina a ser humildes, pois para aprender a experiência e
as concepções alheias, de outras culturas, é necessário que deixemos de lado nossas
concepções e busquemos ver as experiências de outros com relação a suas próprias
concepções e experiências culturais (GEERTZ, 1999).

3 Segundo a autora, o progresso da Antropologia “consiste em substituir pouco a pouco determinados conceitos
por outros, mais adequados porque mais abrangentes, porque mais universais ou, no dizer de Dumont, 'mais
libertos de suas origens modernas' [...] as observações são realizadas não só para descrever o curioso, o exótico ou
o diferente por si mesmos, por exemplo, pelo natural interesse que despertam, mas também e principalmente para
universalizá-los. São essas duas direções a especificidade do caso concreto e o caráter universalista da sua manifes-
tação que levam a Antropologia a um processo de refinamento de problemas e conceitos (DA MATTA, 1997, p. 18).
18
O ponto de partida da prática antropológica é a posição e o ponto de vista do ou- Antropologia:
uma introdução
tro, sempre com a perspectiva de que a intermediação do conhecimento produzido é
realizada pelo próprio sujeito investigado em relação direta com o investigador,

[...] ou seja, na postura às vezes difícil de ser entendida, posto que se baseia
num ponto crucial: que o nativo, qualquer que seja a sua aparência, tem ra-
zões que a nossa teoria pode desconhecer e frequentemente desconhece; que o
“selvagem” tem uma lógica e uma dignidade que é minha obrigação, enquanto
antropólogo, descobrir (DA MATTA, 1997, p. 150).

É por essa razão, como explica Da Matta, que o antropólogo empreende sua via-
gem e realiza seu trabalho, sua experiência de campo. É nessa viagem e nessa expe-
riência de campo com o outro, que ele pode vivenciar “a diversidade humana na sua
essência e nos seus dilemas, problemas e paradoxos” (DA MATTA, 1997, p. 150). Por
isso também se fala dos antropólogos como tradutores culturais, porque uma de suas
principais intenções é descrever/interpretar uma cultura para desvendá-la para aqueles
que a ela não pertencem ou não a conhecem (GUBER, 2001). Evidentemente, algumas
práticas e noções existem em uma cultura e não existem em outras, e o investigador
deve ser capaz de reconhecer noções desconhecidas para sua própria cultura. Por isso,
os métodos de trabalho utilizados pelos antropólogos são muito contraditórios, muito
flexíveis e também imprevisíveis, precisamente porque eles não conhecem seu objeto/
sujeito e não sabem como conhecê-lo. Isto, como afirma Guber (2001), representa
uma sábia ignorância. Em certo sentido, o antropólogo parte de uma ignorância me-
todológica para aproximar-se de uma realidade que está estudando precisamente para
conhecê-la; quanto mais percebe que não sabe como assinalamos antes ou quanto
mais questiona suas próprias certezas, mais disposto estará para apreender uma reali-
dade nos termos dos outros (GUBER, 2001).
Por essas razões, também, a Antropologia é frequentemente definida como uma
atitude. Roberto Da Matta (1997) sempre se refere a ela como uma atitude positiva
e valorativa, tendo em vista sua pretensão de compreender o exótico, o distante, o
diferente, o outro, o qual não necessariamente está longe de nosso próprio mundo.
Roberto Cardoso de Oliveira (1988) também afirma que a Antropologia é, sobretudo,
uma atitude. O que faz um antropólogo? Um antropólogo olha, observa o que as pes-
soas fazem, escuta o que as pessoas dizem e logo escreve, interpretando aquilo que
observou e aquilo que escutou. Quando o antropólogo escuta, olha e escreve, começa
a tornar possível a apreensão de um fenômeno social.
Nesse ponto, recordemos que todas as linhas e argumentos expostos até agora têm
como objetivo definir a Antropologia e a prática antropológica como uma das formas
de estudo do comportamento humano, a qual pode ser realizada de diversos modos e

19
INTRODUÇÃO À de diferentes perspectivas. Optamos por destacar a singularidade do intelecto humano
ANTROPOLOGIA
e sua incessante busca de respostas, as quais dão início à produção do conhecimento.
O desenvolvimento da disciplina antropológica responde, em grande parte, a essa in-
quietude4. Consideramos também as reflexões de Roberto Da Matta (1997) no sentido
de definir, explicar e justificar o fazer antropológico. Como vimos, definir a Antropolo-
gia requer ilustrar alguns de seus principais objetivos, intenções e práticas.
Agora, como já mencionamos, é possível fazê-lo a partir de diferentes perspectivas.
Na continuação, faremos uma incursão por uma das perspectivas possíveis, de forma a
destacar o estreito e inexorável laço da disciplina com o homem.
No ano de 2001, tivemos a oportunidade de assistir às Jornadas sobre Etnografia e
Métodos Qualitativos realizadas no Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social,
em Buenos Aires. Durante essas Jornadas, Arno Vogel proferiu, em uma conferência,
algumas reflexões, segundo ele sobre a experiência de campo do antropólogo e a qua-
lidade de sua etnografia. “O que é que torna um antropólogo um bom antropólogo?”,
Perguntava-se Vogel, lembrando que as críticas mais duras, as críticas mais demolidoras
que alguém pode receber em sua carreira são sempre as críticas ao seu trabalho de
campo, e acrescentava: “que o diga Lévi-Strauss”.
Para Vogel (2001), os pontos fundamentais do trabalho de campo são as inúmeras,
variadas, distintas e constantes narrativas a que estamos expostos. O que distingue essa
experiência de campo, a “musa do antropólogo”, é a exposição extensiva ao modo
narrativo que universalmente está repartido e compartido por todas as sociedades e
culturas humanas. “Neste sentido, é necessário assumir que somos todos nós, em nos-
sa experiência do conhecimento de outra gente, de outra cultura, de outra sociedade,
de outros grupos, de outras pessoas, tributários dessa forma que é a narrativa, que são
as histórias plurais” ( VOGEL, 2001, p. 2). O autor citou Victor Turner, para quem o tra-
balho do antropólogo está profundamente envolvido com narrações, contos, contos
folclóricos, histórias, boatos e avaliações de informantes. Ele mencionou também um
dos mestres de Turner, Max Glukmann, que assim se posicionava: “O que é o antropó-
logo ao fim e ao cabo? É um tipo que fala sobre a gente, ou seja, na realidade é uma
espécie de profissional do esmiuçar” ( VOGEL, 2001, p. 3).
Para Vogel, as histórias são nossos apoios fundamentais em termos de qualidade
etnográfica e representam o ser humano; todas as coisas que são produtos do intelecto

4 É evidente que a produção do conhecimento antropológico, suas formas, seus objetos e sua prática não foram e
nem serão as mesmas, porque as condições históricas e sociais mudam permanentemente. Isto vale para qualquer
disciplina, já que o conhecimento não pode ser dissociado de um sujeito cognoscente que está arraigado em uma
cultura, em uma sociedade, em um determinado tempo histórico e social, e todo o conhecimento tem que ser
considerado em sua raiz antropossocial, como assinala Edgar Morin (MORIN; PIATELLI-PALMARINI, 1982).

20
humano possuem ou estão, em algum momento, envolvidas nas ou com histórias5. Em Antropologia:
uma introdução
algum momento de suas reflexões, Vogel conta que, para preparar um trabalho de fim
de curso, necessitava definir, antes de qualquer coisa, uma história que representasse
o ponto de partida ou ponto de apoio inicial de tudo o que ocorreria posteriormente.
Ele reconhece que um “interminável discurso narrativo [...] nos chama a atenção no
campo” ( VOGEL, 2001, p. 4), depois do silêncio inicial, evidente, quando nossos in-
formantes, nossos objetos/sujeitos começam a nos contar coisas. Acontece que os fatos
se apresentam, geralmente, sob a forma de histórias, “histórias para acusar, histórias
para defender, histórias para qualificar” ( VOGEL, 2001, p. 5). Inevitavelmente, o que
as pessoas vivem, o que podem recordar, o que podem relatar, seus dramas, seus fra-
cassos ou êxitos, seus problemas, tudo isso nos chega sempre sob a forma de narrativa.
Nas histórias, encontramos um conhecimento de outro tipo, são estruturas de sen-
tido que têm a ver com o conhecimento pessoal sobre a vida nesta ou naquela socie-
dade, em distintas culturas, em distintos grupos; estruturas de sentido que são arma-
zenadas e transmitidas por histórias. Prestemos atenção ao fato de que as experiências
só se tornam realmente experiências depois que uma pessoa passa a contá-las, “ainda
que silenciosamente, para si mesma” ( VOGEL, 2001, p. 6); antes não são experiências
no sentido pleno da palavra. Essa forma de comunicação da experiência é o que torna
compreensível, no sentido mais profundo de compreender, a experiência de vida em
distintos grupos, culturas, os momentos desses grupos, um dos objetivos primeiros do
fazer antropológico ( VOGEL, 2001, p. 6).
Esta pequena introdução a essa perspectiva que destaca a relevância da experiência
narrativa do ser humano para os estudos antropológicos serve-nos de fundamento
para contar uma história que se relaciona com nossa própria aprendizagem do exer-
cício antropológico. Contar uma história tem sempre um objetivo de conquista: “o
objetivo de ampliar um campo de efetividade de sua ação” ( VOGEL, 2001, p. 8). Con-
tar uma história significa buscar simpatizantes, cúmplices, consoladores, conselheiros,
padrinhos, patronos para compartilharem as aventuras e as desventuras que a história
traz consigo ( VOGEL, 2001, p. 8).
As histórias que relatamos na continuação deste capítulo buscam compartilhar a
prática antropológica e conquistar o leitor para esse modo de conhecimento, que é,
sobretudo, um exercício de aprendizagem que inevitavelmente e afortunadamente se

5 Vogel relembra as afirmações de um antropólogo conhecido e polêmico, Carlos Castañeda, que disse que todo o
processo de socialização começa com os adultos contando às crianças como era o mundo até que a criança passa
a repetir as histórias, que começam a contar as histórias. Imediatamente, isto nos remete a Geertz, que trata dos
“eventos humanos paradigmáticos”, os quais são histórias que nós contamos para nós sobre nós mesmos ( VOGEL,
2001).

21
INTRODUÇÃO À desenvolve com o outro, junto ao outro distinto e que tem como primeiro objetivo o
ANTROPOLOGIA
estudo do que nós, homens, somos.
No ano de 1995, iniciei meus estudos na área da Antropologia, e meu primeiro
trabalho teve como objetivo identificar as formas e os propósitos da educação ofereci-
da à população indígena da província de Misiones (Argentina). Minha experiência de
trabalho de campo, esse bem-aventurado rito da observação participante, como suge-
re Vogel, exigiu minha mudança para a cidade de Puerto Iguazú em Misiones, tripla
fronteira com as cidades Ciudad del Este (Paraguai) e Foz do Iguaçu (Brasil). Dali me
deslocava regularmente para duas comunidades indígenas mbyá-guaranis que haviam
instalado escolas “bilíngues”, as quais eram dirigidas por professoras paraguaias. Nes-
ses lugares concentrava meu trabalho de campo.
Pouco a pouco nos relacionamos com as professoras e com as crianças mbyá que
frequentavam a escola. À medida que passava o tempo, as crianças convidavam-me
para participar em seus jogos e atividades, para tomar caldo de cana, buscar mandio-
ca, batata assada, tangerina, aratiku6, tomar banho no rio, atuar como mensageira de
cartas de amor entre os adolescentes de ambas as comunidades, acompanhá-las até
a mata para coletar orquídeas, plantas, sementes ou olhar aves. Elas me ofereceram
deliciosas oportunidades de incursão pela comunidade, pelas casas, de passeios em
suas companhias por lugares que desconhecíamos, embora elas não me permitissem
o acesso a todos eles.
Recordo-me muito bem de meus primeiros encontros com as crianças mbyá, quan-
do o constrangimento era recíproco. Não sabíamos como enfrentar esses primeiros
minutos de olhares compartilhados: devemos cumprimentar, como cumprimentar?
Em certa ocasião, após um tempo de trabalho de campo, eu caminhava em direção
a uma das escolas, fazendo-me estas perguntas. Logo vieram ao nosso encontro duas
meninas de nove anos, as quais, com uma espontaneidade e alegria pouco frequente,
exclamaram: “Aguyjevéte7 Para’i!”, levantando seus braços e mostrando-me as palmas
de suas mãos (aguyjevéte é uma forma de cumprimento destes índios e Para’i era o

6 Fruta silvestre.
7 A saudação mbyá começa geralmente com essa palavra, depois, simultaneamente, as pessoas levantam ambos os
braços e mostram as palmas das mãos a quem dirigem o cumprimento.

22
nome utilizado pelas crianças para me nomear8). Três meses depois, no mês de feve- Antropologia:
uma introdução
reiro, em outro encontro, essas mesmas meninas, ao me ver, simplesmente sorriram;
uma delas cochichou algo com a outra e logo exclamaram juntas: “Feliz natal e feliz
ano novo!”.
Muitas vezes, cumprimentávamos de uma determinada forma sem encontrar res-
posta; muitas outras, para podermos nos comunicar, procurávamos nos adaptar às dis-
tintas saudações, agindo de forma semelhante àquela com que o outro se relacionava
conosco. À medida que o tempo passava, a situação era ainda mais complexa e variava
segundo o lugar, as pessoas, os motivos do encontro. Às vezes tornava-se muito difícil
compartilhar uma saudação, realizar um simples gesto que encontrasse eco na pessoa
a quem ele era dirigido. Ocorre que um “simples gesto” não é mais nem menos que
“uma partícula de comportamento, um sinal de cultura” (GEERTZ, 1989). Esse nosso
encontro, o encontro do antropólogo, implica

[...] uma multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas so-


brepostas ou amarradas umas às outras, que são simultaneamente estranhas,
irregulares e obscuras, e que ele tem que, de alguma forma, primeiro apreender
e depois apresentar (GEERTZ, 1989, p. 20).

Um simples gesto encerra, condensa, traduz toda uma série de significados. Não
podemos cumprimentar de uma determinada forma se não sabemos o significado des-
sa saudação, que mensagens transmite, em virtude de quais situações, em que circuns-
tâncias. Esse encontro antropológico implica também aquilo que muitos antropólogos
definem como “estranhamento”. Por exemplo, estranhamo-nos, desconcertamo-nos
frente à ausência de gestos compartilhados. Esse estranhamento é inerente ao encon-
tro de comportamentos e sentidos culturais diferentes e exige nossa transformação.
Essa é uma das especificidades da prática antropológica. Cardoso de Oliveira recorda
tal aspecto citando as palavras do filósofo Merleau-Ponty.

[...] como uma maneira de pensar que se impõe quando o objeto é ‘outro’ e
exige que nós nos transformemos. Isso significa que o antropólogo ao relati-

8 No primeiro dia em que chegamos a uma das escolas onde realizamos nosso estudo, as crianças me convidaram
para passear pela mata. Quando saímos da mata, já me haviam dado o nome Para'i, que uma das crianças havia
começado a cantar durante nossa caminhada. Todas as crianças de ambas as comunidades me chamariam deste
modo durante minha estadia e nas visitas posteriores. Esse nome é de origem religiosa, mas encontra significado
no idioma guarani paraguaio como “estampado, floreado”. Possivelmente, esse deve ter sido o motivo de eles
terem me atribuído esse nome, como indicou um dos líderes políticos da comunidade: “pela roupa que usa”. Ele
esperaria dez meses para perguntar meu nome branco, que desconhecia, e mostrar seu assombro com relação ao
nome “mbyá”. “Não sei por que te colocaram... é um nome típico mbyá”, disse ele. Entretanto, o líder religioso de
uma segunda comunidade mbyá próxima a essa escola, ao final de nossa estadia, confessou que havia sonhado e
que Para'i era meu nome.

23
INTRODUÇÃO À vizar o objeto de investigação se relativiza igualmente, não impondo sua ótica
ANTROPOLOGIA do ‘outro’ sem, contudo, confundi-la com a realidade que pretende focalizar
(MERLEAU-PONTY apud CARDOSO DE OLIVEIRA, 1988, p. 88).

Por isso, também, o estranhamento é um meio de auto-reflexão. Estranhar alguma


regra social familiar por contraste oferece-nos a oportunidade de descobrir as razões,
alguns dos sentidos de nossas práticas mais rotineiras, oferece-nos também a oportu-
nidade de formularmos perguntas, de nos questionarmos, a nós mesmos e às nossas
formas de ver e de fazer as coisas. Isto é o que Da Matta, lembrando Lévi-Strauss,
define como “dúvida antropológica” (DA MATTA, 1997), base do trabalho de campo.
A segunda história que queremos compartilhar relaciona-se mais intimamente com
os próprios objetivos de nosso trabalho nas escolas “bilíngues” de Misiones (Argen-
tina). Durante nosso trabalho de campo, quando compartilhamos o tempo e o lugar
da escola organizada pelas professoras paraguaias junto às crianças mbyá, inesperada-
mente recebi (o trabalho do antropólogo no campo costuma ser imprevisível e sur-
preendente, e essa é outra de suas virtudes) um texto escrito de um adolescente mbyá-
-guarani, que dizia assim: “Não irá conseguir falar em guarani, é difícil falar em guarani,
pois, te falta muito, entretanto, para falar te falta comer a larva do pindo (uma espécie
de palmeira nativa), enquanto não comer não vai conseguir falar guarani. Primeiro a
larva do pindo e kaguyjy e mbojape, avatiku’i e tambu”9.
Esse jovem mbyá havia escrito para se comunicar comigo, para se comunicar com
uma pessoa que ele observava escrever, com persistência, intrigantes letras que apa-
reciam contínua e rapidamente sobre as folhas de um caderno que me acompanhava
frequentemente. As crianças e adolescentes mbyá me observavam escrever com fasci-
nação, experimentando uma “atraca quase mágica”, nas palavras de Melià (1979). Eles
ensaiavam comigo tempos, velocidades e formas de escrever distintas: “Ejapo letra
Para’i”, “Faça letra Para’i”; não deixavam de me pedir. Sem dúvida, as palavras escritas
por Santiago (assim era seu nome branco) experimentavam revelar-me a natureza da
palavra não escrita, da palavra falada. Falar em guarani é comer, falar em guarani é ka-
guyjy, falar em guarani é mbojape, e eu teria que aprender tudo isso para poder falar,
porém, é “difícil, não vai conseguir falar guarani”.
A cultura guarani é uma cultura da palavra, “do dizer, do dizer-se, do ser dito” e a
língua mbyá é o meio para se descobrir, se interpretar e se organizar a realidade da
sociedade mbyá-guarani. É por intermédio da linguagem que se constrói a realidade,

9 Por larva do pindo entende-se a larva comestível do coleóptero da espécie Rhinchophorus palmarum. Essa larva
se cria na palmeira pindo. Tambu é o termo utilizado para referir-se à mesma larva em guarani paraguaio. Kaguyjy:
bebida fermentada de milho; mbojape: pães de milho assados na cinza quente e avatiku'i: farinha de milho.

24
que se compartilham significados comuns com os demais membros da cultura. É por Antropologia:
uma introdução
meio da linguagem que se realiza o processo de socialização e de educação da criança
mbyá. A principal característica dessa educação é ensinar e aprender nos termos da
socialização integrante (MELIÀ, 1979). Ou seja, sem a utilização dos procedimentos
sistematizados próprios para a transmissão de conhecimentos específicos e segundo
padrões previamente estabelecidos.
Por essa razão, a escola, como instituto formalizado no exercício de uma atividade
de aprendizagem consciente, é uma instituição estranha em para a sociedade guarani,
baseada na oralidade. Além disso, historicamente, em nossa sociedade, a escola surgiu
com uma função central nos processos de unificação e uniformização do estado na-
cional iniciados no século XIX. Um programa educativo a ser desenvolvido em áreas
indígenas pressupõe uma questão política, que está relacionada com as posturas que
orientam e fundamentam o projeto educativo em questão. Na maioria das vezes, como
assinala Silva (1981), quando se fala de educação dirigida ao indígena, a questão subs-
tancial converte-se nos direitos dos povos indígenas, no direito de conduzirem seu
próprio destino, do acesso a informações centrais para sua sobrevivência, na decisão
sobre medidas que os afetam diretamente e na obtenção de garantia e respeito sobre
um território adequado as suas necessidades.
No trabalho que realizamos em Misiones junto às professoras e às comunidades
mbyá-guarani descobrimos, em um encontro conflitivo da sociedade branca e da po-
pulação indígena, perspectivas e saberes distintos. Esse é um dos objetivos do trabalho
antropológico: descobrir perspectivas, vozes distintas que merecem ser escutadas e
respeitadas. Em nosso trabalho em Misiones, destacamos o desejo das comunidades
indígenas de contar com uma escola para suas crianças e também de participar na
organização e na execução dessa escola. No entanto, que tipo de escola? O que apren-
der nessa escola? O que fazer com essa escola? Como participar da escola? Todas essas
questões ainda não estão resolvidas, pois envolvem uma diversidade de interesses po-
líticos, econômicos e religiosos, que, muitas vezes, convertem a escola em um campo
de lutas de poder, do qual todos fazem parte.
Retomemos, mais uma vez, os objetivos deste capítulo e de suas reflexões, quais se-
jam: definir e explicar, em uma primeira aproximação, a prática, o fazer antropológico.
Como explicamos antes, a Antropologia concentra seus esforços no estudo da cultura
humana, ou seja, tudo isto que viemos falando até agora. Certamente, a cultura, no
sentido da comunicação do conhecimento, não é uma característica exclusivamente
humana, e seria necessário recuar ao início da evolução biológica para encontrar ani-
mais, cuja herança da aprendizagem, incorporada em símbolos, estivesse desprovida
de qualquer importância (MORIN; PIATELLI-PALMARINI, 1982).

25
INTRODUÇÃO À Agora, sem dúvida, o homem é um animal que tem uma herança cultural extrema-
ANTROPOLOGIA
mente complexa e fortemente diferenciada. A cultura humana está conformada por
tudo aquilo que aprendemos, que é muito. Psiques e corpos tomam forma em uma
determinada socialização e cultura. Aprendemos a nadar, a falar, a comer e o que co-
mer. O que é aceitável e o que não é, o que é prestigioso e o que não é, o que é moral
e o que não é; enquanto vivemos, as forças externas nos constroem de muitas manei-
ras (LÉVI-STRAUSS, 1993). A cultura se aprende, a cultura muda e é essencialmente
uma questão de ideias e de valores, uma atitude mental coletiva. A cultura é pública
porque seu significado o é, afirma Geertz (1989). As ideias, os valores, a estética e os
princípios morais são expressos por meio de símbolos; por isso, porque o meio é uma
mensagem, uma ação que significa, nossa cultura é frequentemente descrita como um
sistema simbólico e nós somos definidos como animais simbólicos; o comportamento
humano é visto como ação simbólica (GEERTZ, 1989).
A Antropologia é, portanto, uma disciplina dedicada à análise cultural, a tudo isto
que nós somos e fazemos, e reúne vários objetivos ao mesmo tempo, que não lhe são
exclusivos: “[...] a instrução, a diversão, o conselho prático, o avanço moral e a des-
coberta da ordem natural no comportamento humano são outros, e a Antropologia
não é a única disciplina a persegui-los” (GEERTZ, 1999, p. 24). Sem dúvida, a vocação
essencial da Antropologia, como mencionamos antes, é colocar à nossa disposição as
respostas, os pareceres ou as práticas que outros possuem sobre as diversas dimensões
simbólicas da ação social, oferecendo-nos uma perspectiva diversa e ao mesmo tempo
comum “[...] sobre o que o homem falou” (GEERTZ, 1999, p. 24).

Referências

CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. A crise do indigenismo. Campinas, SP: Ed. da


Unicamp, 1988.

DA MATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à Antropologia social. Rio de


Janeiro: Rocco, 1997.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara,


1989.

______. O saber local. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.

26
GUBER, Rosana. La etnografía: método, campo y reflexividad. In: ______. Antropologia:
uma introdução
Enciclopedia Latinoamericana de sociocultura y comunicación. Buenos Aires:
Grupo Editorial Norma, 2001.

KUPER, Adam. Malinowski. In:______. Antropología y antropólogos: la escuela


británica 1922-1972. Barcelona: Anagrama, 1983.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Raza y cultura. [S. l.] Ediciones Cátedra, 1993.

MALINOWSKI, Bronislaw. Antropologia y antropólogos: la esculela británica 1922-


1972. Barcelona: Anagrama, 1983.

MELIÀ, Bartomeu. Educação indígena e alfabetização. São Paulo: Loyola, 1979.

MORIN, E.; PIATELLI-PALMARINI, M. La unidad del hombre como fundamento y


la aproximación interdisciplinaria. In: APOSTEL, L. et al. Interdisciplinariedad y
ciencias humanas. Madrid: Unesco, 1982.

PEIRANO, Mariza. A favor da etnografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1995.

SILVA, A. L. L. da. Por que discutir hoje a educação indígena. In: COMISSÃO PRÓ-
ÍNDIO. A questão da educação indígena: a filosofia e a pedagogia da educação
indígena: um resumo de debates. São Paulo: Brasiliense, 1981.

VOGEL, Arno. La musa del antropólogo: reflexiones sobre la calidad en la etnografía.


In: JORNADAS DE ETNOGRAFÍA Y MÉTODOS CUALITATIVOS, 2001, Buenos
Aires. Anais… Buenos Aires: Instituto de Desarrollo Económico y Social, 2001.
Mimeografado.

Proposta de Atividade

A antropologia é, em grande parte, uma prática de descobrimento do olhar do outro,


colocando juntas perspectivas distintas. Nossa sugestão é praticar esse exercício assistindo
ao filme “O último dos moicanos”. Nesse filme, a história se desenrola no ano de 1757, nas
colônias estadunidenses, no terceiro ano da guerra entre Inglaterra e França pela conquis-
ta desses territórios americanos. Por diferentes perspectivas, ao longo do filme e à medida
que se vão introduzindo e conhecendo os personagens, é possível identificar, nos diferentes
encontros entre uns e outros, interesses e concepções de mundo distintos. Os personagens
transmitem mensagens e desenvolvem práticas que refletem seus próprios e diversos conhe-
cimentos, assim como suas intenções no mundo que conhecem. Relate esses encontros e
essas práticas. A partir de sua própria perspectiva dessa história, identifique e elabore esses
encontros em um texto próprio.

27
INTRODUÇÃO À
ANTROPOLOGIA

Anotações

28
2 A Antropologia
enquanto um dos
campos específicos de
estudo do homem

Patrícia Silva Osório

Muitas vezes, definimos a Antropologia como a ciência do Homem. A Sociologia,


a História e até mesmo a Medicina são também disciplinas acadêmicas que estudam
fatos relacionados ao ser humano. O que diferencia, então, a Antropologia das outras
ciências, igualmente preocupadas com a análise dos fenômenos humanos?
Se não basta a assertiva de que a Antropologia é o estudo do ser humano, sugeri-
mos a você, leitor, que pare um momentinho e pense: o que é Antropologia? A Antro-
pologia é o estudo de sociedades muito diferentes da nossa? É a ciência que analisa os
índios? Ou será que os antropólogos são aqueles indivíduos que se lançam pelo mun-
do em busca de fósseis ou vestígios de civilizações passadas? Antropologia é a mesma
coisa que Arqueologia? Caso você tenha pensado em algumas dessas alternativas, por
favor, leia o texto com atenção. Não podemos afirmar que a Antropologia é Arqueo-
logia, e já faz muito tempo que as investigações antropológicas não estão restritas às
análises sobre as sociedades indígenas.
Para chegarmos a uma resposta mais precisa do que é a Antropologia, devemos
abordar três questões fundamentais:
1) A Antropologia é uma ciência bastante ampla: existem várias Antropologias. Me-
diante o exame de alguns de seus ramos ou esferas de interesse, iniciaremos
este capítulo com a contextualização da Antropologia Geral, com foco na cha-
mada Antropologia Social, uma de suas especializações.
2) Em seguida, consideramos necessário discutir os antecedentes históricos, a
gênese do pensamento antropológico, a consolidação da Antropologia social
enquanto ciência e algumas de suas transformações ao longo do tempo.

29
INTRODUÇÃO À 3) Finalmente, o próximo passo será debater as características e os conceitos bási-
ANTROPOLOGIA
cos da prática antropológica. Enfocaremos alguns temas de estudo e a forma es-
pecífica de sua abordagem por parte da Antropologia social. É somente o modo
particular de analisar e compreender o ser humano, em sua trajetória histórica
e em sua produção cultural, que separa a Antropologia das demais ciências do
Homem. Nesse item, caracterizaremos três aspectos importantes da Antropolo-
gia social: a) os conceitos de cultura e de relativismo cultural; b) o uso da ideia
de totalidade para o entendimento dos fenômenos sociais; c) o trabalho de
campo por meio do qual todas as análises antropológicas são construídas.

OS VÁRIOS RAMOS DA ANTROPOLOGIA GERAL


A Antropologia é uma ciência abrangente, que se divide em várias especializações.
Não existe uma concordância entre os autores acerca das subdivisões da Antropologia,
mas não se nega a existência de diferentes áreas de interesse nas quais o antropólogo
pode se especializar.
Uma das esferas de interesse da Antropologia é o estudo do homem enquanto ser
biológico, dotado de um aparato físico e uma carga genética (DA MATTA, 1987, p. 28).
Essa área de interesse é chamada de Antropologia Biológica ou Física. No Brasil,
existem poucos profissionais dessa área de interesse da Antropologia. O antropólogo
biológico ou físico está preocupado com a genética das populações do mundo, com
a evolução biológica do homem em geral e a evolução do cérebro ou do aparato ner-
voso – e com as diferenciações humanas, podendo dar especial atenção ao estudo
das sociedades de primatas superiores. São perguntas da Antropologia biológica ou
física: o que é inato no ser humano; o que é adquirido; de que forma tudo aquilo que
é inato se relaciona com o que é adquirido no homem; enfim, o que a cultura deve ao
patrimônio genético dos povos e vice-versa?
Alguns pesquisadores apontam a Arqueologia como uma das especializações da
Antropologia Geral1. Outros preferem denominar essa área de interesse como Antro-
pologia Pré-Histórica, destacando a sua relação com a Arqueologia2. A Arqueologia
ou a Antropologia pré-histórica diz respeito ao estudo do homem no tempo. Seu foco
de estudo está na análise das sociedades do passado, no estudo do homem com base
em materiais deixados no solo, como ossadas, monumentos, restos de moradias, pe-
daços de cerâmica e outras marcas da atividade humana. Por meio desses vestígios, o

1 Para maiores esclarecimentos, ver Da Matta (1987, p. 28).


2 Ver Laplantine (1995, p. 17).

30
profissional tenta deduzir as relações sociais ali existentes. O objetivo é o de recons- A Antropologia enquanto
um dos campos
truir as sociedades do passado em suas produções culturais e sociais. Embora, muitas específicos de estudo do
homem
vezes, o senso comum identifique o antropólogo por essas atividades, a Arqueologia
ou a Antropologia Pré-Histórica é apenas uma das áreas da Antropologia Geral.
A Antropologia Social é o principal ramo da Antropologia desenvolvido no Bra-
sil, sendo o que mais nos interessa aqui. O antropólogo social está preocupado com
tudo que se relaciona à vida em sociedade: produção econômica, organização política,
sistemas de parentesco, crenças religiosas, língua, criações artísticas. A intenção é de-
monstrar como esses vários aspectos estão relacionados entre si e que esse profissional
trabalha com a perspectiva da totalidade da vida social. A discussão sobre as especifici-
dades da Antropologia será feita tendo como principal pano de fundo a Antropologia
Social. Quando nos referirmos à Antropologia, estaremos fazendo menção a um ramo
específico da Antropologia Geral, a Antropologia Social.

ANTECEDENTES HISTÓRICOS: O PENSAMENTO PRÉ ANTROPOLÓGICO,


CONSOLIDAÇÃO DA ANTROPOLOGIA ENQUANTO CIÊNCIA E TRANS-
FORMAÇÕES CONCEITUAIS
Informações sobre a história da Antropologia foram dadas por muitos estudiosos,
entre os quais destacamos Godfrey Lienhardt (1965), Roberto Da Matta (1987), Jean
Copans (1989), François Laplantine (1995) e Roque de Barros Laraia (2002)3. Neste
capítulo, faremos um resumo dos principais pontos levantados por esses autores, com
o objetivo de fornecer o panorama geral do surgimento, do desenvolvimento e da
consolidação da Antropologia enquanto uma ciência autônoma.
A curiosidade é uma característica própria dos seres humanos. Desde tempos re-
motos, foram comuns as tentativas de explicar as diferenças de comportamento entre
os homens. Em “Cultura: um conceito antropológico”, o professor Roque de Barros
Laraia compila alguns exemplos:

Até mesmo Heródoto (484-424 a.C.), o grande historiador grego, preocupou-se


com o tema quando descreveu o sistema social do lícios: ‘Eles têm um costume
singular pelo qual diferem de todas as nações do mundo. Tomam o nome da
mãe e não o do pai. Pergunte-se a um lício quem é, e ele responde dando o
seu próprio nome e o da sua mãe, e assim por diante, na linha feminina’. [...]
A surpresa de Heródoto pela diversidade cultural dos lícios não é diferente da
de Tácito (55-120), cidadão romano, em relação às tribos germânicas, sobre as
quais escreveu com admiração: ‘Por tudo isso, o casamento na Alemanha é aus-
tero, não há aspecto de sua moral que mereça maior elogio. São quase únicos,
entre os bárbaros, por se satisfazerem com uma mulher cada [...]’. Marco Pólo,

3 As referências encontram-se ao final deste capítulo.

31
INTRODUÇÃO À o legendário viajante italiano que visitou a China e outras partes da Ásia, entre
ANTROPOLOGIA os anos de 1271 e 1296, assim descreveu os costumes dos tártaros: ‘Têm casas
circulares, de madeira e cobertas de feltro que levam consigo onde vão, em car-
roças de quatro rodas [...] Não têm objeções a que se coma a carne de cavalos
e cães, e se tome leite de égua’ (LARAIA, 2002, p. 10-12).

Apesar de a curiosidade ser um traço distintivo da humanidade em todos os tem-


pos, ela não é suficiente para fazer de alguém um antropólogo. Na época em que
Heródoto, Tácito ou Marco Pólo descreveram os costumes dos lícios, das tribos ger-
mânicas ou dos tártaros, ainda não existia Antropologia. Para o seu surgimento, foram
necessárias determinadas condições históricas e intelectuais.
Alguns autores localizam a gênese do pensamento pré antropológico no contexto
das Grandes Navegações, principalmente as descobertas do Novo Mundo, nos séculos
XV e XVI. A descoberta geográfica de “novos” e desconhecidos povos gerou interro-
gações acerca da existência múltipla do ser humano. Os discursos sobre povos con-
siderados “diferentes” já eram elaborados até mesmo antes de Cristo; porém, com
as descobertas do “Novo Mundo”, as informações passaram a ser fornecidas maciça-
mente. Mesmo que nessa época ainda não existisse um pensamento antropológico, as
informações relativas a tais povos foram importantes no processo de construção da
ciência antropológica, pois focalizaram a diversidade das formas sociais existentes em
várias partes do mundo. Reparou-se que as sociedades existentes na América, na Ásia e
na África, não eram feitas à imagem e semelhança da sociedade europeia. No entanto,
a maneira como esses povos eram pensados estava muito distante da perspectiva an-
tropológica. Vejamos o porquê.
Os discursos sobre a diferença entre as populações eram elaborados por viajantes,
exploradores europeus e missionários, que observavam in loco a maneira de viver
dos povos do “Novo Mundo”. No século XVI, os discursos sobre o outro estavam
completamente influenciados pelo pensamento religioso hegemônico na época, o
Cristianismo. Todas as explicações giravam em torno de uma preocupação: tinham
esses seres diferentes alma? No século XVII, os discursos mudaram de tom. O outro
passou a ser interpretado na perspectiva da ignorância, do erro e da superstição. A
preocupação com a existência de uma alma cedia lugar à inquietação: eram esses
seres racionais?
As respostas às preocupações europeias vinham de duas frentes. De um lado, a
recusa do “estranho”: os seres diferentes eram percebidos como “bárbaros” e “selva-
gens”. A diversidade era entendida como uma aberração. Os povos eram categorizados
a partir da ausência: andavam sem roupa, não tinham inteligência, não conheciam as
leis e nem a escrita. Em 1555, Oviedo escrevia em sua História das Índias:

32
As pessoas desse país são tão ociosas, viciosas, de pouco trabalho, melancólicas, A Antropologia enquanto
covardes, sujas, de má condição, mentirosas, de mole constância e firmeza [...] um dos campos
específicos de estudo do
Nosso Senhor permitiu, para os grandes, abomináveis pecados dessas pessoas homem
selvagens, rústicas e bestiais, que fossem atirados e banidos da superfície da
Terra (LAPLANTINE, 1995, p. 42).

Por outro lado, existia uma espécie de fascinação pelo “estranho”. As noções sobre
os habitantes do “Novo Mundo” eram influenciadas por uma visão negativa do ob-
servador sobre o seu próprio mundo. Idealizava-se, assim, a “diferença”, a ponto de
se infantilizar aqueles povos. Eles eram considerados puros, inocentes e mansos. O
navegador Cristóvão Colombo, ao aportar no Caribe, escrevia em seu diário de bordo:
“Eles são muito mansos e ignorantes do que é o mal. Eles não sabem se matar uns aos
outros [...] Eu não penso que haja no mundo homens melhores, como também não há
terra melhor” (LAPLANTINE, 1995, p. 47).
Apesar da mudança de tom, a essência dos discursos elaborados sobre o outro, nos
séculos XVI e XVII, era a mesma. O outro era definido a partir do padrão europeu, ou
seja, era explicado de um modo totalmente diferente da perspectiva antropológica. A
atitude antropológica busca o ponto de vista do nativo em seus próprios termos. O
que percebemos nos relatos dos viajantes é que a diferença não era entendida por si
mesma, mas sim por critérios valorativos da sociedade ocidental.
Estão, no século XIX, as condições históricas, culturais e epistemológicas do sur-
gimento da Antropologia enquanto ciência. Tais condições dizem respeito à fundação
das Ciências Humanas, à invenção do conceito de Homem e à criação de métodos de
análise e observação.
As Ciências Humanas surgiram na Europa no final do século XVIII. Seu apareci-
mento significou uma mudança na natureza dos objetos observados: do mundo físico
ao mundo social e cultural. O homem que até então assumia a posição de sujeito
do conhecimento, daquele que elaborava ideias acerca das coisas analisadas, passava
à condição de objeto do conhecimento. Não apenas os fenômenos da natureza e o
mundo físico eram objetos de pesquisas científicas, mas também, costumes, povos,
relações sociais, enfim, o homem.
A invenção do conceito de Homem implicava a urgência de se desenvolverem mé-
todos de observação e análise dos fatos sociais. Tudo o que se sabia sobre os povos
diferentes eram meras descrições de costumes considerados “exóticos” e “curiosos”.
Cada vez mais a simples coleção de curiosidades cedia lugar à preocupação de como
coletar e como analisar os fenômenos sociais. Um saber sobre o homem enquanto ser
vivo que trabalha, pensa e fala começava a ser elaborado.
Na segunda metade do século XIX, a Antropologia ganhava legitimidade frente
às outras Ciências Humanas por ter um objeto de estudo específico. Nessa época, a

33
INTRODUÇÃO À Antropologia era o estudo das sociedades “primitivas”. A inovação em relação aos sé-
ANTROPOLOGIA
culos anteriores refere-se à diferença crucial na categorização dos povos considerados
“diferentes”. As sociedades que diferiam da sociedade ocidental não eram mais cate-
gorizadas como “selvagens sem alma” ou “bárbaras irracionais”, mas sim como “primi-
tivas”. A diferença passou a ser interpretada segundo o critério temporal. Em outras
palavras, povos “primitivos” eram aqueles que podiam ser considerados os ancestrais
dos povos civilizados. Eles eram o que já tínhamos sido no passado, apresentavam-se
como testemunhas de um tempo histórico, eram os “fósseis vivos”.
Vale a pena discutirmos algumas noções que perpassam a ideia de sociedades “pri-
mitivas”. A noção é fortemente influenciada por teorias evolucionistas. O pensamento
evolucionista partia do pressuposto de que todos os povos pertenciam a uma mesma
espécie. No entanto, nem todas as sociedades atingiam os mesmos “estágios de evolu-
ção”. No processo evolutivo dos povos, a etapa final do desenvolvimento o ápice - era
a civilização ocidental. Pelo pensamento evolucionista, a humanidade era separada
entre os mais e os menos evoluídos, e a medida/parâmetro para tal separação era o
Ocidente.
Embora representasse um esforço intelectual para a compreensão da alteridade
(diferença) com base em uma perspectiva distanciada do pensamento religioso e dos
critérios da “racionalidade” ocidental, o pensamento evolucionista cometia um erro ao
relacionar a ideia de evolução à ideia de progresso. O pensamento evolucionista reco-
nhecia a ideia da unidade do gênero humano, ou seja, todos os seres humanos eram
iguais pelo fato de pertencerem a uma mesma espécie, no entanto, alguns permane-
ciam em estágios “inferiores” de desenvolvimento, outros atingiam estágios “avança-
dos”. Essa marcha do progresso refletia uma tendência sociocultural, cuja fonte era o
desejo de ver a sociedade europeia como o ponto alto da história da vida.
Hoje, existem várias críticas ao pensamento evolucionista, pelo fato de o mesmo
situar o ser humano em uma escala evolutiva, cujo início são as formas mais simples
de organização social e o estágio mais avançado são as formas de organização da so-
ciedade ocidental. Todavia, esse período foi muito importante para a consolidação da
Antropologia como uma disciplina autônoma. Essa constituição se deu por meio do
estudo das sociedades primitivas. A Antropologia se distinguia das outras ciências por
ter um objeto próprio de estudo e foram as teorias evolucionistas que forneceram
explicações a respeito dessas sociedades consideradas diferentes. Como diria Godfrey
Lienhardt (1965, p. 24):

Essas primeiras teorias evolucionárias fizeram, não obstante, sua contribuição


ao desenvolvimento da Antropologia Social. Buscaram a ordem numa massa de

34
informações confusas sobre a vida social humana; e continuaram, num amplo A Antropologia enquanto
âmbito de conhecimentos, a tentativa [...] de relacionar as instituições de mui- um dos campos
específicos de estudo do
tas formas variadas de sociedade entre si, com a sua própria civilização. homem

Definindo, isolando e comparando dados, os métodos de análise aperfeiçoaram-se.


Muitas teorias foram questionadas e outras rejeitadas. Quanto ao pensamento evolu-
cionista, a Antropologia foi percebendo que a unidade do gênero humano estava na
sua diversidade. “Aquilo que os seres humanos têm em comum é a sua capacidade
para se diferenciar uns dos outros” (LAPLANTINE, 1995, p. 22). O reconhecimento e
a compreensão de uma humanidade plural implicaram uma revolução no olhar, que
colocou em xeque a ideia de superioridade da civilização ocidental. O conceito de
culturas particulares substitui a noção de evolução associada ao progresso.
Com as transformações do mundo, as sociedades consideradas primitivas, longín-
quas e isoladas integraram-se cada vez mais à sociedade ocidental, de forma que o
objeto de estudo da Antropologia foi se ampliando e novos conceitos foram surgindo,
como o de cultura e o do relativismo cultural. No século XX, impregnado pela ideia
de relativismo cultural, é o conceito de cultura que explica a diferença. A Antropologia
consolida-se como ciência atenta à diversidade de significados que os vários povos
constroem a partir da experiência. A ideia de diversidade cultural ou alteridade in-
sere-se, cada vez mais, para além da existência de culturas particulares. A alteridade
também implica o esforço intelectual feito por antropólogos para se aproximarem do
ponto de vista nativo. O pressuposto é o de que cada cultura tem a sua lógica própria,
e é por esse meio que deve ser compreendida.

O QUE É ANTROPOLOGIA?
Vimos até aqui que, no século XIX, para definir o que é Antropologia, bastava dizer:
é a ciência que se ocupa das sociedades “primitivas”. Assim, a existência desse objeto
de estudo, que lhe era próprio, diferenciava a Antropologia das outras Ciências So-
ciais. Atualmente, a Antropologia não é definida por um objeto de estudo específico.
O que define essa ciência é a maneira como ela analisa os fenômenos humanos.
Frente às demais ciências que estudam o homem, a Antropologia apresenta algu-
mas especificidades. Essas características especiais referem-se à formulação de concei-
tos-chave para dar conta dos fenômenos sociais e à utilização de determinados mé-
todos e técnicas de análise. Tendo isto em vista, tentaremos responder à pergunta:
“O que é Antropologia?”, discutindo três aspectos fundamentais de sua prática: 1) os
conceitos de cultura e relativismo cultural; 2) a ideia de totalidade social; 3) o trabalho
de campo.

35
INTRODUÇÃO À Cultura e Relativismo Cultural
ANTROPOLOGIA
Existem várias definições de cultura. Antes de nos determos no conceito antro-
pológico, vejamos o que o senso comum entende por cultura. Quem nunca disse ou
ouviu dizer: “Nossa! Como fulano tem cultura!”. Nesse contexto, o conceito de cultura
assume a forma de algo que pode ser mensurado. De acordo com esse entendimento,
aqueles que têm cultura são identificados por aspectos específicos: gozam de uma boa
situação financeira; são considerados inteligentíssimos; gostam de frequentar vernis-
sage; estão sempre conhecendo outros países; são amantes da música clássica; usam
terno ou tailleur. Em todos esses aspectos, tão presentes em nosso cotidiano, cultura
é entendida como um privilégio daquelas pessoas que possuem um alto poder aquisi-
tivo – privilégio de uma ínfima parcela da população brasileira –, que lhes permite o
acesso aos teatros, às viagens etc.
O conceito antropológico de cultura é radicalmente diferente dessa noção que
a coloca como sinônimo de “ilustração” e “instrução”. A Antropologia mostra que a
cultura não é privilégio de uma ou outra pessoa, mas que diz respeito à sociedade
humana como um todo.
É preciso que o leitor entenda que cultura é um conceito. Quando tratamos de
cultura, não estamos nos referindo a algo concreto e tátil. Cultura é uma constru-
ção conceitual, inventada pelos pensadores das sociedades humanas, com o objetivo
de elucidar determinados processos nelas ocorridos. Influenciado pelas formulações
teóricas de Max Weber, o antropólogo Clifford Geertz (1989, p. 15) postula: “[...] o
homem é um animal amarrado a teias de significado que ele mesmo teceu, assumo a
cultura como sendo essas teias e a sua análise”.
Para introduzir o leitor nesse vasto universo conceitual, podemos preconizar que
o conceito de cultura tem como referência a capacidade dos seres humanos para dar
significado as suas ações e ao mundo que os rodeia. Como afirmaria Geertz (1989),
cultura não é apenas um ornamento, mas uma condição essencial da experiência hu-
mana. Cultura é o código simbólico sem o qual a experiência humana seria um caos
de atos sem sentido e explosões emocionais ingovernáveis. O objeto privilegiado da
Antropologia é tudo o que diz respeito a essas formas de pensar e agir, compartilhadas
por um dado agrupamento humano em qualquer época e lugar.
Se o que fazem os antropólogos é tentar decifrar e interpretar diferentes códigos
simbólicos, a análise antropológica não está restrita a um objeto de pesquisa. A Antro-
pologia pode ser feita em sociedades indígenas, sociedades camponesas e sociedades
urbanas (a nossa própria sociedade). Dentre os fenômenos humanos estudados, os
antropólogos podem enfocar a análise de mitos e ritos, as relações entre homens e
mulheres também chamadas de relações de gênero, as relações de parentesco etc.

36
Desde que assuma uma perspectiva antropológica, um antropólogo pode falar sobre A Antropologia enquanto
um dos campos
tudo o que diz respeito ao ser humano. específicos de estudo do
homem
Exemplificamos com um caso pessoal bastante ilustrativo. Em nossa monografia de
Graduação em Antropologia Social, defendida em 1998, na Universidade de Brasília,
abordamos um tema de pesquisa que para alguns pode parecer inusitado. Investiga-
mos comportamentos e percepções acerca dos atos de eliminação corporal na socie-
dade brasileira. Durante alguns meses, observamos práticas sociais e entrevistamos
usuários de banheiros públicos, em especial de banheiros da própria universidade
onde estudávamos. O que poderia ser dito sobre um espaço que cotidianamente, pelo
menos na aparência, utilizamos “sem pensar muito” e “mecanicamente”?
Padrões simbólicos estão presentes tanto na organização dos banheiros quanto na
maneira como as pessoas deles se utilizam. Analisar antropologicamente os banheiros
significa percebê-los como espaços sociais que refletem formas de pensar o corpo nas
sociedades urbanas.
Os banheiros não surgiram de uma hora para outra, eles têm história. As invenções
dos mictórios, dos vasos sanitários e dos banheiros são recentes. Muito mais recentes
ainda são as nossas posturas e concepções sobre o ato da eliminação corporal. No
Brasil Colônia, nas salas de visitas das famílias mais abastadas, as escarradeiras, objetos
destinados ao recolhimento de cuspes e escarros, eram essenciais. Tais utensílios eram
lindamente adornados e podiam ser feitos em prata, ouro ou cerâmica. Hoje, podemos
encontrar tais peças na histórica Confeitaria Colombo, localizada no centro do Rio
de Janeiro, mas apenas como testemunhas de um passado em que praticar o ato de
escarrar em público não era considerado ofensivo ou repugnante.
Em algumas sociedades camponesas, as fezes são consideradas remédios capazes
de criar uma camada protetora contra elementos nocivos aos seres humanos. O que
o exemplo das escarradeiras e da utilização das fezes como remédio nos mostra é que
muitas reações entendidas como naturais e fisiológicas são culturais. O nojo é relativo.
O asseio anal, por exemplo, é essencialmente urbano. Embora alguns hábitos estejam
ligados aos conhecimentos científicos – revolução bacteriológica – revelam também
uma dimensão de nossa conduta ocidental e moderna: a necessidade de se afastar dos
excrementos corporais, traduzida em reações como negação, silêncio sobre o assunto.
Todo o nosso esforço para evitar doenças não explica, por si, as regras de limpe-
za e sujeira, é necessário levar em conta as crenças em hábitos tidos como sujos ou
repugnantes. A ideia de sujeira só pode ser entendida no contexto de um sistema
simbólico, ela é subproduto de uma ordenação e de uma classificação sistemática das
coisas. Os penicos, as privadas e todo o espaço dos banheiros são construções sociais
que procuram ordenar e reorganizar nossas ideias. Nossas ideias sobre os atos de

37
INTRODUÇÃO À eliminação corporal vinculam-se às ideias de poluição, impureza e sujeira. Edificados
ANTROPOLOGIA
especificamente para a execução do “urinar” e do “defecar”, os banheiros denunciam
a poluição, a impureza e a sujeira presentes em tais atos. Daí, o comportamento de
evitar tudo o que se refere a essas dimensões.
A menção a essa pesquisa não foi feita com a intenção de divertir o leitor e muito
menos construir uma imagem pitoresca da Antropologia. O propósito foi demonstrar
a existência de uma lógica cultural em nossos comportamentos e noções a respeito de
atos fisiológicos. Uma das funções da Antropologia é relativizar nossas percepções
e comportamentos, mostrando que, por trás de uma aparente naturalidade, existem
códigos sociais e culturais que se diferenciam de acordo com o contexto observado.
Nas sociedades ocidentais, a simples menção a assuntos escatológicos, como os excre-
mentos corporais, pode causar interjeições de nojo e atitudes de constrangimentos.
No entanto, em outras sociedades, esses excrementos podem ser sinônimos de saúde.
Enquanto nas sociedades ocidentais o ato de defecar é algo extremamente privado, em
algumas sociedades indígenas o ato não precisa ser solitário, e o convite para defecar
junto com alguém pode cimentar elos de amizade. Enfim, noções de nojo, sentimen-
tos de constrangimento são culturais, ou seja, variam de acordo com as sociedades.
A alteridade é um ponto fundamental da perspectiva antropológica. A ideia de di-
versidade cultural não implica apenas o conhecimento de formas sociais variadas, mas
o esforço de analisar as práticas sociais de acordo com o contexto no qual se inserem.
A diversidade é constitutiva da humanidade. Percebê-la significa negar que as diferenças
de comportamento entre as sociedades ou mesmo dentro de uma mesma sociedade são
originadas do determinismo biológico ou geográfico. Toda a cultura tem sua lógica pró-
pria e deve ser entendida desta forma. É isso que denominamos de relativismo cultural.

O Estudo da Totalidade
Se a Antropologia tem como objeto analítico o estudo de fenômenos sociais com
base nos contextos em que se inserem, a análise deve levar em conta a totalidade do
fato social observado. O estudo da totalidade pressupõe que um fenômeno deve ser
apreendido na multiplicidade de suas dimensões: política, econômica, social, cultu-
ral etc. O que interessa para a Antropologia é o contexto no qual ocorrem os fatos
humanos. A ideia de totalidade deve ser percebida como o conjunto das partes que
constituem um todo. É como se o antropólogo dividisse os fenômenos humanos em
peças de um enorme quebra-cabeça.
Em nosso cotidiano, não vemos as partes como um conjunto que integra o todo,
ou seja, não temos diretamente uma dimensão concreta da totalidade da sociedade.
O antropólogo, com base em sua formação teórica, dispõe dos melhores meios para

38
a visualização da totalidade. Em outras palavras, ele faz uma divisão da sociedade em A Antropologia enquanto
um dos campos
sistemas e destes, em subsistemas. A partir dessas divisões e subdivisões, ele procura específicos de estudo do
homem
entender o todo por intermédio das partes, ou seja, procura reunir as peças e montar
o quebra-cabeça da vida social.
Existem fenômenos que, por si, revelam ao antropólogo toda a ideia de totalidade.
São os chamados fatos sociais totais. O antropólogo já citado, Clifford Geertz (1989),
fornece-nos um exemplo brilhante de fato social total.
Geertz pesquisou a sociedade balinesa e indicou como fato social total um evento
bastante comum no contexto estudado, a briga de galos. O que uma simples briga de
galos teria a dizer sobre a sociedade balinesa? Em suas análises, Geertz nos mostra que
a briga de galos em Bali não é simplesmente uma briga de animais, mas que nela se re-
flete toda a experiência de ser balinês. Ao invés de ser compreendida apenas como um
esporte nacional ou como um assunto econômico, pelas apostas envolvidas, a briga de
galos trata também das relações de poder, da acepção de morte, do sistema de alianças
e de parentesco, de status social etc. A briga de galos balinesa permite uma abordagem
direta da noção de totalidade na Antropologia, uma vez que, por meio desse fato, a
sociedade é compreendida no seu todo.

O Trabalho de campo
Para Laplantine (1995), a especificidade da contribuição dos antropólogos em rela-
ção aos outros pesquisadores das Ciências Humanas está ligada ao modo de conheci-
mento que foi elaborado desde os primórdios da Antropologia:

a observação direta, por impregnação lenta e contínua de grupos humanos com


os quais o antropólogo mantém contato pessoal [...].
Essa apreensão da sociedade tal como é percebida de dentro pelos atores sociais
com os quais mantenho uma relação direta [...] é que distingue a prática antro-
pológica da do historiador ou do sociólogo (LAPLANTINE, 1995, p. 20-21, 150).

O contato pessoal estabelecido entre o antropólogo e seus informantes é denomi-


nado trabalho de campo. Todo o conhecimento antropológico é construído a partir da
observação direta dos comportamentos sociais. Falar sobre trabalho de campo não é
apenas discutir princípios metodológicos e técnicas de pesquisa, mas também a pró-
pria história e a consolidação da Antropologia. O trabalho de campo é, sem dúvida, um
dos traços diferenciadores da prática antropológica.
Até finais do século XIX, a ciência era pensada como um conhecimento adquirido
por meio de um raciocínio lógico e exato; era este que permitia desvendar as leis ver-
dadeiras dos fenômenos. Considerava-se que subjetividade e a objetividade eram in-
compatíveis e que as Ciências voltadas para assuntos sociais almejavam a objetividade

39
INTRODUÇÃO À das Ciências Naturais. A subjetividade era considerada uma barreira na construção de
ANTROPOLOGIA
uma análise “verídica”.
Com o passar dos tempos, porém, tomava-se consciência de que o pesquisador,
seja aquele interessado nos fenômenos sociais, seja nos fenômenos naturais, atuava
com base na realidade social. As Ciências Naturais não estavam tão certas e seguras de
suas perspectivas. Descobertas científicas eram influenciadas pela coletividade, na qual
estava inserido o pesquisador. As técnicas quantitativas, percebidas até então como
isentas de qualquer subjetividade, não fugiam às injunções do tempo e do espaço.
De fato, todo cientista encontra-se inserido em um espaço físico, social e intelec-
tual, e é por meio da percepção do que existe nesse universo (daquilo que a sua
percepção pode captar) que ele formula o objeto de sua investigação. Ou seja, tudo
depende de suas qualidades pessoais (personalidade) e do contexto social no qual
está inserido. Assim, subjetividade já não é mais pensada como antônimo de veracida-
de. Ter essa consciência torna-se fundamental para entendermos o que é o trabalho de
campo na Antropologia.
O antropólogo, no trabalho de campo, aquele realizado junto à sociedade ou grupo
estudado, utiliza técnicas quantitativas e qualitativas. No campo, ele coleta, manipula
e registra evidências empíricas. Seus registros compreendem desde estatísticas sobre
a incidência dos fenômenos observados (mapas de parentesco, composição da popu-
lação etc.), como fatos íntimos da vida nativa (atualização de normas sociais, vivências
de costumes, comportamentos reais etc.) e, finalmente, discursos, atitudes mentais,
ideias, opiniões e representações nativas dos modos de pensar e sentir.
Se todo o registro é feito através do contato pessoal do antropólogo com o grupo
estudado, não é de estranharmos que ele esteja repleto de aspectos extraordinários
próprios de toda e qualquer relação humana. Tais aspectos são denominados por
Evans-Pritchard (2005), outro grande teórico da Antropologia, “cabeça” e “coração”.
Em outras palavras, a dimensão subjetiva está presente no trabalho de campo. O an-
tropólogo, ao se inserir no campo, carrega consigo sua personalidade e tudo aquilo
com o que está envolvido. O trabalho de campo vai ser influenciado não apenas pela
sua formação acadêmica, mas também pela sua idade, seu sexo, sua classe social, sua
nacionalidade... Assimilando as lições de Evans-Pritchard, é possível pontuar que tudo
o que se traz de um estudo de campo depende muito do que se leva para ele.
Fazer trabalho de campo não é como fazer um bolo: quando seguimos os con-
selhos da vovó, a guloseima tem grandes possibilidades de ficar gostosa e não solar.
Não existe nenhuma receita prescrevendo como fazer um bom trabalho de campo. Ao
contrário de um simples viajante ou de um turista, que se encanta com as novidades,
o antropólogo, antes de ir para o campo, passa por um treinamento rigoroso que o

40
capacita a distinguir o que e como observar. Diferentemente de um leigo, o profissio- A Antropologia enquanto
um dos campos
nal insere-se no contexto a ser pesquisado com uma série de hipóteses teóricas. Ele específicos de estudo do
homem
leva em sua bagagem não apenas roupas e máquina fotográfica, mas diversas teorias
sobre os fenômenos sociais.
O trabalho de campo exige familiaridade teórica do pesquisador com os assuntos
relacionados ao tema de sua pesquisa. O antropólogo vai para campo com ideias pré
concebidas, ou seja, com todo um corpo informativo da ciência. Sua maneira de obser-
var vai ser gerada por seus interesses teóricos. A teoria antropológica irá direcionar os
interesses, a observação e, finalmente, o modo como os resultados serão apresentados
quando se conclui o trabalho de campo.
Na tentativa de apreensão da totalidade da vida social nativa, o antropólogo exerci-
ta a observação participante. Participar dos fenômenos sociais estudados não significa
tornar-se um nativo. Exercitando a observação participante, construída no convívio
social com a sociedade ou grupo estudado, o antropólogo vive entre dois mundos,
objetivando fazer uma mediação entre o seu universo e o universo pesquisado.

Conclusão: afinal, o que é Antropologia?


Após termos percorrido esse longo caminho, será que podemos responder à per-
gunta que gerou a leitura deste capítulo: o que é Antropologia? Em primeiro lugar,
vimos que, entre as várias Antropologias, Antropologia biológica, pré-histórica etc.,
nosso interesse foi centralizado na Antropologia social.
Enfocando a sua história, esclarecemos que a Antropologia surgiu de uma preocupa-
ção em entender povos diferentes da sociedade ocidental. Assim, em seu começo, a An-
tropologia estava restrita à análise de sociedades até então denominadas de primitivas.
Ao longo do tempo, novos conceitos foram surgindo. As sociedades consideradas
primitivas, por serem consideradas espelhos de nós mesmos, ou seja, seriam o que
fomos antigamente, passaram a ser percebidas de outra forma. As ideias de cultura e
de relativismo cultural, com base nas quais as sociedades são compreendidas em sua
própria lógica, passaram a impregnar as análises antropológicas.
Não apenas conceitos foram se ampliando, como também o campo de atuação
dos antropólogos. O estudo, que antes era realizado em sociedades diferentes, é tam-
bém realizado na própria sociedade do pesquisador. Agora, a tarefa da Antropologia
é dupla:
1) tornar familiar o que é, a princípio, exótico;
2) tornar exótico aquilo que nos é familiar. Em outras palavras, mostrar que cos-
tumes aparentemente estranhos têm uma lógica cultural e que, muitas vezes,
fenômenos que tomamos por naturais são também culturais.

41
INTRODUÇÃO À O que diferencia a Antropologia das outras ciências é o modo como ela aborda
ANTROPOLOGIA
os fenômenos sociais. O que nos permite compreender o que é a Antropologia é tão
somente a sua prática, construída com base em conceitos específicos (cultura, relativis-
mo e totalidade social) e em métodos de pesquisa particulares (o trabalho de campo),
que procuram dotar de significado o fato social estudado.

Referências

COPANS, Jean. Antropologia: ciência das sociedades primitivas. Lisboa: Edições 70,
1989.

DA MATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à Antropologia. Rio de Janeiro:


Rocco, 1987.

EVANS-PRITCHARD, Edward Evan. Algumas reminiscências sobre o trabalho de


campo: bruxaria, oráculos e magia entre os Azande. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2005.

GEERTZ, Clifford. Interpretação das culturas. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1989.

LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. São Paulo: Brasiliense, 1995.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 15. ed. Rio de


Janeiro: J. Zahar, 2002.

LIENHARDT, Godfrey. Antropologia social. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1965.

OSORIO, Patrícia Silva. Qual a lógica de ir ao banheiro?: comportamentos e


representações sociais no espaço dos banheiros. 1998. Monografia (Curso de
Graduação)-Departamento de Antropologia Social, Universidade de Brasília, Brasília,
DF, 1998.

Proposta de Atividades

Os comentários abaixo são de Tuiávii, chefe da etnia Tiavéa, localizada nos mares do sul da
Polinésia. Após frequentar por longos anos uma escola de missionários maristas, Tuiávii decidiu
conhecer a Europa longínqua e os Papalagui (pronuncia-se Papalágui). Papalagui é o termo com
que os Tiavéa chamam o Branco, o Estrangeiro. Juntando-se a um grupo teatral que viajava pelo
continente, Tuiávii visitou muitos países europeus, adquirindo conhecimento sobre as diversas

42
culturas desses lugares. Vejamos o que esse observador achou de um lugar “esquisito”, mas A Antropologia enquanto
um dos campos
muito utilizado pelos brancos: o cinema. específicos de estudo do
O lugar da vida de mentira! Não é fácil explicar-vos como é este lugar que o Branco chama homem
cinema; explicar-vos tão claramente que vos seja fácil compreender. Em todas as aldeias da
Europa, existe este lugar misterioso [...] que faz sonhar até as crianças e ocupa o seu espírito.
O cinema é uma cabana maior do que a maior cabana de chefe de Upolu; muito maior até. Es-
cura, mesmo durante o dia, e tão escura que ninguém reconhece quem está perto; tão escura que
se fica cego quando se entra e mais cego ainda quando de novo se sai. Por esta cabana as pessoas
arrastam-se ao longo das paredes, às apalpadelas até vir uma moça com um fogo na mão a fim de
levá-los até onde há lugar. Os Papalaguis ficam sentados uns juntos dos outros, na escuridão, sem
se enxergarem; e a sala escura fica cheia de gente, todos calados; cada um sentado numa tábua
estreita; e todas as tábuas estão dispostas na direção de uma mesma parede.
Desta parede, embaixo, digamos assim, de uma garganta profunda, vem um zumbido, um
barulho [...]. Este barulho todo é para desviar os nossos sentidos, para enfraquecê-los, a fim de
acreditarmos no que estamos vendo e não duvidarmos de que é verdade. Na parede brilha um
raio de luz dando a impressão de uma lua cheia, onde se veem pessoas, pessoas de verdade,
que parecem Papalaguis de verdade, vestidos como eles, movendo-se, andando para cá e para
lá, correndo, rindo, saltando, tal qual existem em todos os lugares da Europa. É como se fosse
a imagem da lua na lagoa, é a lua e não é; é apenas cópia [...].
No entanto, é certo que estes homens na parede são homens de mentira, não são homens
de verdade. Caso se pudesse agarrá-los, ver-se-ia que são feitos apenas de luz, que não é possível
pegar neles. Servem somente para mostrar ao Papalagui todos os seus prazeres e pesares, suas
tolices e fraquezas. O Papalagui vê as mais bonitas mulheres, os mais belos homens perto de
si, pertinho mesmo ... [Eles] dão a impressão de que nos veem, de que nos falam. O Papalagui,
assim, vê os chefes mais importantes dos quais jamais se aproximará, sem dificuldade, como
se fossem seus iguais. Participam dos grandes banquetes, fonos1 e outras festas. Parece que ele
está mesmo ali comendo junto, festejando junto. Mas também vê o Papalagui roubando a moça
de uma outra aiga2 ; ou uma moça traindo o namorado. Ele vê um homem furioso agarrando
um álii3 rico pela garganta, enterrando os dedos no pescoço, ele vê os olhos do álii saltando até
morrer; o homem furioso arrancando-lhe da tanga o metal redondo e o papel pesado.
Enquanto seus olhos veem estas coisas alegres ou horríveis, o Papalagui deve ficar quieti-
nho, sem poder ralhar com a moça, nem socorrer o álii rico, sem poder salvá-lo. [...] observa
tudo como se fosse, ele próprio, um ser de outra espécie, porque está sempre convencido de
que é melhor do que os homens que ele vê no raio de luz, convencido de que nunca faria as
loucuras que o outro faz. Quieto, sem tomar fôlego, fica com os olhos na parede [...].
Estas imagens sem vida, que não respiram, dão ao Papalagui muito contentamento. Nesta
sala escura, ele pode se iludir com uma vida de mentira, sem sentir vergonha, sem ser visto
pelos outros. O pobre faz-se de rico, o rico faz-se de pobre; o enfermo julga-se sadio, o fraco
julga-se forte. Na escuridão, cada um vive uma vida de mentira, que jamais viveu, nem viverá na
realidade [...]4.
À luz desses comentários, descreva e analise um costume, fato ou fenômeno, considerado
por nós ocidentais como corriqueiro e habitual, exercitando o olhar antropológico de “exotizar
o que nos é familiar”.

1 Reuniões, deliberações.
2 Família.
3 Chefe, senhor.
4 Do livro O Papalagui: comentários de Tuiávii, chefe da tribo Tiavéa, nos mares do Sul. Recolhidos por Erich
Scheurmann. São Paulo: Marco Zero, [200-?].
43
INTRODUÇÃO À
ANTROPOLOGIA

Anotações

44
3 Raça, etnia e
desigualdades sociais

Cleyde R. Amorim / Marivânia C. Araújo

O QUE É RAÇA?
Em 2005, em meio a uma crise política do governo Lula da Silva, o senador Jorge
Bornhasen, discorrendo sobre a possibilidade de impeachment do governo petista,
afirmou “vamos nos livrar dessa raça por uns 30 anos”. O comentário que ganhou
repercussão nacional foi muito criticado, e alguns o entenderam como conservador e
racista. O que gostaríamos de ressaltar desse episódio é o caráter recorrente e detur-
pado da ideia que se tem sobre raça no Brasil.
Muito embora não concordemos com a fala do senador, ela é interessante para
iniciarmos uma reflexão sobre as divergências existentes entre o que o senso comum
entende por raça e o seu conceito, construído no âmbito das Ciências Sociais e Histó-
ria. Para o senso comum, a sociedade (ou até mesmo a humanidade) está constituída
por diferentes raças que podem ser classificadas a partir de elementos como cor, etnia,
classe social, religiosidade, naturalidade, nacionalidade, sexo etc. E essa classificação
tem uma hierarquia: os homens brancos, cristãos, com ascendência europeia, bem
sucedidos economicamente, pertenceriam a uma raça superior. Consequentemente,
aqueles que não fazem parte desse grupo seriam menos capazes, não poderiam ocu-
par cargos de comando, posições políticas e sociais relevantes, seriam merecedores
apenas das posições inferiores na sociedade.
Infelizmente, essa é a tônica que rege o pensamento da sociedade brasileira. Em
geral, os brasileiros não admitem seu preconceito direcionado aos negros, índios, nor-
destinos, judeus, árabes e pobres, mas ele pode ser notado nas ações discriminatórias
e até persecutórias que são impostas aos membros desses grupos. Todavia, as Ciências
Sociais têm uma percepção mais ampla que se afasta dos juízos de valor e dos precon-
ceitos existentes no senso comum.

Entendendo as noções de raça, etnia e identidade


Apesar da ideia de raça existir desde a Antiguidade, faremos um breve histórico
desse conceito a partir de Guimarães (1999), em períodos mais recentes:
45
INTRODUÇÃO À No século XVI, o termo “raça” foi empregado na maioria das línguas europeias,
ANTROPOLOGIA
com a conotação de grupo ou categoria de pessoas conectadas por uma origem co-
mum (BANTON, 1979).
A partir das concepções relativas à evolução das espécies, difundidas por Charles
Darwin, no século XIX, construiu-se a concepção da evolução das raças humanas;
nesse contexto houve a elaboração das teorias biológicas sobre raças: as teorias poli-
genistas. O termo “raça” passou a ser usado no sentido de tipo, designando espécies
de seres humanos distintas física e mentalmente (utilizada nesse sentido em teorias de
eugenia, craniologia e outros estudos que fundamentavam essa concepção).
A ideia de raças humanas foi muito difundida até a Segunda Guerra Mundial (1945
a 1947). “Raça” era utilizada pelo senso comum e também nos meios acadêmicos,
enunciando a opinião de que os diferentes grupos étnicos (negros, amarelos, índios e
brancos) têm especificidades genéticas, biológicas, intelectuais e gerando uma grande
diferença entre esses grupos raciais. Acreditava-se que eles desenvolveram-se isolada-
mente ou com pouco contato entre si, não havendo espaço para a miscigenação e que
esse desenvolvimento ocorreu de modo desigual, causando uma hierarquia entre as
raças.
O pressuposto da existência de diferentes raças foi um terreno fértil para a ela-
boração de um conjunto de ideias etnocêntricas que apregoava: a “raça branca”
era mais hábil, mais inteligente, com maior capacidade de adaptação aos diferen-
tes meios e situações; as outras “raças” eram inferiores, estavam aquém do poten-
cial branco de sabedoria, capacidade de trabalho e de desenvolvimento, podendo
ser, inclusive, escravizadas ou dizimadas para benefício do povo branco, a “raça
superior”. Assim, a ideia de raça ajudou a conformar o pensamento de dominação
econômica, social, cultural e política que alguns povos construíram em todos os
continentes do mundo.
Atualmente, com os avanços nos estudos da biologia e da engenharia genética, é
sabido que o conceito de raça não se aplica aos seres humanos, pois as diferenças ge-
néticas entre eles são insignificantes para caracterizar diferentes raças humanas. Assim,
a ideia de várias raças existentes, nascidas e desenvolvidas isoladamente, originando
grupos raciais hierarquicamente diferentes e sem miscigenação, é um mito. Segundo
Muniz Sodré, hoje em dia o conceito de raça não se sustenta:

É certo que, meio século atrás, não era tão divulgada a certeza, agora corrente
na aprendizagem da ciência biológica, de que o conceito de raça é inviável
se aplicado a seres humanos. Raça, que implica indivíduos com patrimônios
genéticos diferentes, não existe (a menos que se fale em ‘raça humana’). Hoje
começa ter curso a expressão “espécie humana”, que é única e abrange todos
os seres humanos (SODRÉ, 1999, p. 193).

46
SE NÃO EXISTEM “RAÇAS HUMANAS” POR QUE AINDA SE FALA DE Raça, etnia e
desigualdades sociais
“RAÇA”?
Os grupos humanos contêm elementos genéticos de diferentes grupos étnicos
(uns com maior incidência que outros), isto porque desde os primórdios da histó-
ria da humanidade o homem viajou, desbravou terras longínquas, se relacionou e
se reproduziu (pacificamente ou não), com aqueles que encontrou. Há milhares de
anos a humanidade vem se miscigenando, e esse longo processo de encontros e
desencontros resultou na raça humana, composta por inúmeras etnias. Embora esse
fato seja reconhecido nas mais diferentes áreas do conhecimento, ele ainda encontra
certa resistência diante do senso comum, que em alguns momentos reforça as ideias
de “raça” e de diferença racial.
Assim, a ideia de “raça” é socialmente construída e só faz sentido em uma visão
de mundo racista e em uma ideologia racionômica. Parte de uma hierarquização dos
grupos sociais, que vivem em um sistema de desigualdades, usando para isso marcas
do corpo e referências aos grupos. O racismo busca naturalizar as desigualdades, tor-
nando-as a-históricas, isentas de interesses contingentes ou particulares. É uma cons-
trução social que se utiliza dos traços físicos fenotípicos: cor da pele, cor e formato
dos olhos, tipo de cabelo, feições faciais, a partir das quais os sujeitos são classificados.
A separação dos grupos étnicos a partir de diferenças (fenotípicas) imediatamente
observáveis é hoje a base mais frequente para a classificação de grupos humanos em
“raças” e para a hierarquização de suas capacidades, habilidades, gerando um precon-
ceito direcionado para determinados grupos étnicos. E mesmo diante dos avanços do
conhecimento genético, que comprovam a unicidade de nossa raça, essa classificação
persiste no imaginário da maioria das pessoas, levando-as à prática da discriminação.
Neste sentido, vários grupos étnicos e sociais em todo o mundo são vítimas de discri-
minação racial a partir de estereótipos a eles imputados, como os ciganos, os judeus,
os árabes, os negros, os indígenas, os aborígenes, e imigrantes que buscam melhores
oportunidades em diferentes países. No Brasil, as populações negra e indígena são al-
vos da discriminação racial, seja no mercado de trabalho, nas escolas, seja em diversas
atividades quotidianas. Muitas vezes, a discriminação parte de órgãos ou instituições
públicas ou privadas, como no exemplo fornecido por Muniz Sodré:

São vários os lugares sintomáticos da discriminação, em geral disfarçados, mas


às vezes bastante explícitos. Um exemplo: em 1996, o Centro de Pesquisa e As-
sistência em Reprodução Humana espalhou por Salvador, Bahia, cartazes pu-
blicitários com o título ‘defeito de fabricação’ acima da imagem de um garoto
negro, com correntinhas no pescoço, canivete na mão e uma tarja nos olhos.
Abaixo o texto: ‘Tem filho que nasce para ser artista. Tem filho que nasce para ser
advogado e vai ser embaixador. Infelizmente, tem filho que já nasce marginal’.
Outro cartaz mostrava uma mãe negra, grávida, coberta com um lençol branco e
a legenda ‘também se chora de barriga cheia (SODRÉ, 1999, p. 234-235).
47
INTRODUÇÃO À Em vista dessas constatações, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvi-
ANTROPOLOGIA
mento – PNUD, órgão das Nações Unidas, dentre diversas ações visando ao cresci-
mento humano e ao combate do racismo, possui o Programa de Combate ao Racismo
Institucional no Brasil1, que envolve cursos, palestras, treinamento e publicações de
cunho antirracista.
Infelizmente, a discriminação em nosso país tem vários aspectos e se estende a
todas as classes sociais. Seriam necessárias muitas páginas para abranger todo o rol
dessas situações, mas é possível apresentarmos aqui alguns deles, com base em lei-
turas, experiências próprias, reportagens jornalísticas etc. Assim, o exemplo bastante
divulgado, há alguns anos, da jornalista Glória Maria que foi impedida de entrar em
um hotel sem maiores explicações, mesmo ela se dispondo a pagar o valor cobrado
pelo estabelecimento, deixa evidente que o cerceamento a sua entrada estava relacio-
nado a sua cor. Também conhecido, o caso dos integrantes do grupo carioca O Rap-
pa (quase todos negros) que, quando dirigiam um carro utilitário importado, foram
interpelados e revistados pela polícia sem maiores informações, sofrendo até mesmo
ameaça de agressão por parte dos policiais – esse fato está muito bem retratado na
música “Tribunal de Rua”2. Ou ainda, o caso, fartamente divulgado pela imprensa, de
Ana Flávia Azeredo, filha do então governador do Estado do Espírito Santo, Albuíno
Azeredo, que foi agredida em um elevador social, porque uma mulher e sua filha insis-
tiram para que ela, negra, saísse e pegasse o elevador de serviço. Através desse último
exemplo, vemos que a discriminação chega a todas as classes sociais, mesmo aqueles
indivíduos ou famílias que ascenderam social e economicamente são também vítimas
dessa intransigência.
São muitos os relatos informais de situações em que indivíduos negros, pardos e
indígenas, na disputa por uma vaga em uma empresa não serem aceitos por não terem
“boa aparência”, sem que se forneçam maiores explicações. Esses relatos informam
ainda que, em várias lojas, mesmo tendo chegado primeiro que outros clientes, eles
eram atendidos por último pelos vendedores e alguns desses com má vontade. Qual
a explicação para essa atitude, senão a de uma discriminação (quase sempre velada),
um preconceito que os vê a priori como compradores sem posses ou cidadãos menos
importantes?

1 <www.pnud.org.br/raça>.
2 Música composta por Marcelo Yuka, faz parte do CD intitulado Lado B, Lado A, lançado em 1999.

48
Informações apresentadas pela Revista Veja3, em uma matéria de capa, mostram a Raça, etnia e
desigualdades sociais
existência de uma classe média negra no Brasil, composta por advogados, professores,
médicos, vendedores, empresários, que contabilizam 8 milhões de pessoas e movi-
menta 50 milhões de reais por ano. Devido à percepção dessa ascensão econômica
e social de uma (pequena) parcela da população negra brasileira, é possível notar o
interesse do mercado nesse público consumidor, pois já podemos encontrar nas lojas
os produtos conhecidos como “étnicos”: cosméticos para os mais variados fins, rou-
pas, revistas4, marcas de roupas5. Essa visibilidade do negro na mídia brasileira, ainda
que tenha como base o interesse nas vendas de produtos, abriu um novo espaço para
atores, modelos, dançarinos negros que antes dificilmente conseguiriam trabalhar nes-
sas áreas e menos ainda com projeção nacional. Entretanto, essa reportagem mostra
também que a discriminação continua forte e, a despeito das transformações ocorridas
no mercado, as dificuldades para conseguir um emprego são maiores para os negros,
índios e mestiços, e os negros empregados recebem salários menores do que os rece-
bidos pelos brancos.

Na hora de receber o contracheque, negros e brancos estão em descompasso.


De acordo com dados da Fundação Seade, de São Paulo, o salário médio de um
branco na capital paulista é de 760 reais. Na mesma função, um negro ganha
menos da metade: cerca de 350 reais. ‘O negro tem de ser dez vezes melhor
do que o branco para ter acesso a uma educação que permita a ele competir e
ultrapassar quem sempre esteve em vantagem’, diz o cientista político Sérgio
Abranches ( VEJA, 1999, p. 67).

DESIGUALDADES E RACISMO
Onde vive a maioria da população negra?
A abolição da escravatura e a proclamação da República criaram uma nova ordem
econômica e política e jogaram um grande contingente de ex-escravos nas cidades,
substituindo-os, no campo, por imigrantes europeus assalariados. Nessa nova e desfa-
vorável condição, os negros ex-escravos submeteram-se aos serviços mais desqualifi-
cados e degradantes (carregadores no cais, construção de estradas de ferro, oficinas,
dedicaram-se ao pequeno comércio ambulante de vassouras, cestos, produtos artesa-
nais comidas, frutas) ou ainda se instalaram pequenos quiosques nos velhos sobrados

3 Revista Veja, edição 1.611, agosto de 1999, p. 62-69.


4 A revista Raça Brasil, da Editora Símbolo, foi a primeira no país destinada ao público negro e está no
seu terceiro ano.
5 A indústria de malhas Malwee possui uma grife intitulada Raça Brasil, e os modelos que aparecem em
suas propagandas são todos negros.

49
INTRODUÇÃO À coloniais, vendendo produtos diversos (aves, bebidas etc). As mulheres, quando não
ANTROPOLOGIA
continuaram como empregadas e cozinheiras domésticas vendiam doces e quitutes
em seus tabuleiros. Dormiam nas ruas e praças, mas também em cortiços, nas regiões
decadentes da cidade ou nos subúrbios (BASTIDE, 1971). No século XX, com o cres-
cimento e a modernização das cidades, a população negra e pobre é empurrada, cada
vez mais, para as áreas mais periféricas, inclusive para os “municípios dormitório” das
áreas metropolitanas, mostrando que a distribuição do espaço, no que diz respeito à
moradia também apresenta uma face discriminatória. Por exemplo, no Brasil, a po-
pulação negra tem sido segregada espacial e economicamente, pois tem dificuldade
em se inserir no mercado de trabalho, ou conseguindo ocupações cuja remuneração
é baixa; como consequência, reside em bairros afastados, onde os aluguéis são mais
baratos, vivencia uma série de dificuldades quanto ao tamanho, qualidade das casas e
às condições de vida oferecidos no local. Carlos Hasenbalg descreve, resumidamente,
alguns desses acontecimentos que, reunidos, criaram condições para uma exclusão do
mercado de trabalho estável e uma segregação espacial:

Desde a abolição, a população negra nas antigas sociedades escravistas tem


estado na retaguarda do capitalismo industrial. Durante várias décadas após a
abolição, os negros ficaram concentrados nas regiões agrícolas mais atrasadas
como parceiros, pequenos arrendatários, camponeses e moradores. Durante
esse período, no Brasil e nos Estados Unidos, ondas sucessivas de imigrantes
europeus ocuparam as posições abertas pela expansão dos setores e regiões
capitalistas. Com o movimento das áreas de plantação para favelas e guetos
citadinos, os negros, longe de penetrarem no cerne da classe trabalhadora,
industrial, aglomeravam-se em torno de suas camadas inferiores em mercados
instáveis e irregulares de trabalho não qualificado (HASENBALG, 1979, p. 109-
110).

Mas nem sempre a segregação social expulsa os integrantes das classes menos
favorecidas para a periferia. Especialmente nos grandes centros urbanos, como é o
caso do Rio de Janeiro, a expulsão tem outras características; ela expulsa não dos
grandes centros, mas das áreas mais valorizadas, que recebem os serviços públicos
como transportes públicos, fornecimento de água, energia elétrica, rede de esgotos,
e essa expulsão vai empurrá-los para locais como as favelas. No caso da cidade do Rio
de Janeiro, algumas estão incrustadas no seio da cidade, como a Favela da Rocinha,
situada em um dos bairros mais nobres da cidade (São Conrado), de frente para um
dos seus postais mais famosos – o Cristo Redentor. Nesses contextos, a segregação
espacial priva os pobres dos bens públicos e sociais capazes de oferecer uma quali-
dade de vida mínima.

50
A IDEIA DE RAÇAS NO BRASIL Raça, etnia e
desigualdades sociais
É possível afirmar que a invenção e a persistência da noção de raça é construção
elaborada nas relações sociais, nos vários segmentos da sociedade e têm componentes
históricos, econômicos que não podem ser ignorados. Entretanto, o papel dos grupos
dirigentes quanto ao uso da noção de raça tem grande relevância; tanto é assim que,
no caso do Brasil, raça trata-se sempre do outro, nunca do branco (cor da grande
maioria dos componentes dos grupos dominantes). Ela serve para designar o diferen-
te, o não-branco.
A aparência das pessoas corresponde às variações percebíveis em nosso patrimônio
genético, que caracterizam os grupos com tipos físicos diferentes, classificando-os a
partir de fenótipos. Esses grupos em geral são conhecidos como raças e/ou etnias,
conceitos criados pelos grupos dirigentes para designar e controlar melhor as contra-
dições sociais (HASENBALG, 1979, p. 193).
Embora a noção de diferentes raças humanas não tenha fundamento científico,
a ideia de raças, o pressuposto de uma superioridade entre elas, o preconceito e a
discriminação racial ainda são frequentes em nosso país. Isso ocorre porque as rela-
ções sociais não estão pautadas apenas em conhecimento científico. Está presente no
sistema classificatório brasileiro a ideia de raças. Mais que isso, raças hierarquicamente
posicionadas.
Esses sistemas classificatórios existentes no Brasil, elaborados durante toda a nossa
história, tanto pelas elites quanto pela população em geral, vão constituir o imaginário
da população, conforme o modo de agir e de compreender a realidade que a cerca.
Uma das muitas categorias que fundam nosso sistema classificatório é composta por
três mitos, que envolvem a questão das relações raciais e sua compreensão traz ele-
mentos para entender a discriminação racial em nosso país.
Roberto Da Matta postula que o Brasil possui um mito de origem, no qual três “ra-
ças” – indígena, branca e negra – formaram o país cultural e economicamente; associa-
do a esse mito, há o da “democracia racial”. Nesse segundo mito, o Brasil seria um país
onde todos os grupos étnicos viveriam em igualdade de direitos e em harmonia social,
sem conflitos e discriminação racial de qualquer ordem, onde não haveria segregação
racial, desigualdades fundamentadas na cor, fazendo com que o país fosse visto como
um “paraíso dos mestiços”.
O terceiro versaria sobre o ideal do branqueamento, em que ser branco seria posi-
tivo tanto simbólica quanto materialmente. Assim, negros, pardos e mestiços estariam
em desvantagem racial e social, o que os faria afastar-se dos símbolos e caracteres de
uma “condição” racial desfavorável. Entretanto, a ideologia do branqueamento não
se restringiu à reprodução de elementos culturais ou simbólicos. O Estado brasileiro,

51
INTRODUÇÃO À além das discussões científicas, também sucumbiu a ela quando estabeleceu uma série
ANTROPOLOGIA
de subsídios para que centenas de europeus migrassem ao país para trabalhar e mais
tarde adquirir terras. Seu objetivo era que a população brasileira se miscigenasse a
ponto de diminuir significativamente o contingente negro e pardo e se tornasse majo-
ritariamente branca.
No Brasil, o ideal do branqueamento colocou-se como uma ideologia forte para
nortear a ação política governamental, e teve sustentação acadêmica com estudos e
teses de Silvio Romero, Nina Rodrigues (apud SKIDMORE, 1976; LEITE, 1992; ORTIZ,
1994), no plano ideológico, mitológico (mito das três raças para justificar a origem
do povo brasileiro) e político (legislação e atos que privilegiam os imigrantes). Neste
sentido, o incentivo à imigração europeia tinha em vista a substituição de uma mão de
obra escrava pelo trabalho assalariado de europeus brancos. Embora houvesse uma
pressão internacional por essa mudança no sistema econômico, tal substituição su-
bentendia que a mão de obra do negro brasileiro, apesar de ser o esteio do desenvol-
vimento e das riquezas até aquele momento, era desfavorável ao país, em função do
componente racial. Assim, a ideologia brasileira aborda a cor e evita a oposição preto
versus branco. Apresenta a cor preta como algo que deve ser mudado, transforma-
do para melhor. Essa transformação pretendia o embranquecimento da população; o
elemento branco era valorizado em todos os sentidos, mas o fato de enaltecer a “raça
branca” (por contraditório que pareça) não inferiorizava o negro diretamente, havia
nesse mito um discurso da igualdade, presente na legislação, porém sem a sua efetiva
concretização nas relações cotidianas. Somos iguais, mas devemos nos tornar mais
brancos para melhorarmos, evita-se um confronto explícito entre brancos e negros,
procurara-se assegurar a paz social, impedindo uma revolta ou reivindicações por uma
real igualdade social e econômica por parte dos negros (SKIDMORE, 1976; AZEVEDO,
1987; ORTIZ, 1994).
A minimização da importância social e econômica dos não-brancos (índios e ne-
gros) no desenvolvimento do país fica evidente quando consultamos obras clássicas
referentes à história do Brasil, e particularmente sobre a região sul, onde a presença
de negros e índios como construtores das riquezas é reduzida e praticamente invisibi-
lizada. As pesquisas realizadas por Leite (1996) revelam que a presença de tais grupos
étnicos é tida como insignificante e inexpressiva, e também sugerem que as relações
entre senhores e escravos eram mais democráticas e igualitárias. As obras de história
e de literatura vão enfatizar a história do sul a partir do século XX, supervalorizando
a presença dos imigrantes europeus, aos quais é atribuído todo o mérito do desen-
volvimento socioeconômico da região, desconsiderando o que existia antes, como a
indústria baleeira em Santa Catarina, que exportava óleo de baleia para outros países.

52
A ideologia do branqueamento atuou em vários sentidos, como vimos, escamo- Raça, etnia e
desigualdades sociais
teando a questão das diferenças sociais e das discriminações raciais, diminuindo o pa-
pel do negro na História do Brasil (ficando aparente principalmente seu passado servil
de escravo) e criando no imaginário da população que ser negro é ruim, ou referir-se a
alguém desse modo seria uma ofensa. Expressões substitutivas foram sendo criadas e
utilizadas: pretinho, moreno, roxo, escurinho etc.; ser preto era entendido como algo
negativo, mas sem uma oposição direta ao branco. Ser preto no Brasil ou no mundo
era algo ruim em si, inerente a sua cor e não um resultado da relação entre brancos e
negros, ou como consequência da estrutura política, econômica e social engendrada
pelo Estado e elite brasileiros. Fica mais evidente nas palavras de Carlos Hasenbalg:

[...] as pessoas não se iludem com relação ao racismo no Brasil; sejam brancas,
negras ou mestiças, elas sabem que existe preconceito e discriminação racial. O
que o mito racial no brasileiro faz é dar sustentação a uma etiqueta e regra im-
plícita de convívio social, pela qual se deve evitar falar em racismo, já que essa
fala se contrapõe a uma imagem enraizada do Brasil como nação. Transgredir
essa regra cultural não explicitada significa cancelar ou suspender, mesmo que
temporariamente, um dos pressupostos básicos que regulam a interação social
do cotidiano, que é a crença na convivência não conflituosa dos grupos raciais
(HASENBALG, 1996, p. 235-249).

O mito da democracia racial propala não existir diferenças raciais no Brasil; ela
implica na subserviência do negro, em harmonia social e racial que deve ser mantida.
Seus elementos são os seguintes: elaboração de um racismo velado; evita-se discutir
o assunto; dissimula o racismo através da explicação das diferenças sociais. Uma das
consequências do mito da democracia racial é que não se criou uma política capaz de
propiciar a igualdade entre os diferentes grupos étnicos, como as políticas afirmativas,
a exemplo do que ocorreu nos Estados Unidos.
Esses elementos, tão fortes na cultura brasileira, foram construídos ao longo da
nossa história e têm base no período escravista. Embora o debate sobre o lugar e o
papel de negro na constituição da sociedade e da cultura no Brasil só começou a ser
discutido após a abolição, ou seja, quando os negros mudaram de categoria social,
deixando de ser escravos e tornando-se, desse ponto de vista, pessoas.
O negro africano entrou no país como escravo: mera mercadoria, peça necessária
no processo produtivo, sem direitos, sem sentimentos ou vontade. Nesse contexto, a
cor figura como definidor social:

A cor do escravo definia o seu lugar, preto e escravo eram quase sinônimos.
Preto livre é pardo, até mesmo no início do século, embora fossem termos de
cor, decalcavam o lugar social. Os pardos eram os pretos forros (SODRÉ, 1999,
p. 215).

53
INTRODUÇÃO À Mesmo com as transformações sociais, econômicas e históricas, por que os
ANTROPOLOGIA
negros continuam sendo considerados uma “raça” diferente e inferior?
No Brasil, a ideia de raça foi utilizada, após a libertação dos escravos, com o ob-
jetivo de diferenciar e hierarquizar os indivíduos na sociedade brasileira (os negros
que se tornaram supostamente igualados pela liberdade e também cidadãos). Se antes
a escravidão diferia brancos e pretos, agora era preciso encontrar argumentos para
marcar a diferença; ela passa, a partir da virada do século XIX para o XX, a ser pautada
em uma possível diversidade biológica que também condena a mestiçagem entre o
que se consideravam “raças ruins” – negros e índios. Como enunciamos acima, essa
ideologia teve o suporte nos estudos acadêmicos de intelectuais brasileiros da época,
que acreditavam que as “raças” indígenas e africanas eram inferiores e, influenciados
pelas teorias racistas europeias (em especial a de Lombroso), argumentavam que a
mestiçagem envolvendo essas “raças” levaria a uma população híbrida e degenerada,
sem condições para o progresso.
Criou-se o imaginário de que os negros faziam parte de uma raça inferior que a dos
brancos, e tudo o que se relacionava a eles – história, cultura, inteligência, aptidão –
era inferior. Esse argumento se adqua à “superioridade dos brancos” e a uma ideologia
de embranquecimento da população brasileira, através da miscigenação com povos
europeus, através da política de imigração europeia. No entanto, a ideologia do em-
branquecimento encontrou alguns obstáculos para a sua realização junto à população.
De acordo com Hasenbalg, como resultado da derrota do nazismo na Segunda
Guerra Mundial e da emergência, no Terceiro Mundo, de nações independentes de
população não branca, o ideal do branqueamento perde legitimidade intelectual. Fa-
tores internos também a influenciaram negativamente, visto que tanto os grupos de
imigrantes trazidos para o Brasil quanto alguns grupos de negros rejeitavam as ideias
da miscigenação, procurando casar-se entre si, formando comunidades endogâmicas.
Giralda Seyferth pontua que um dos componentes da identidade coletiva construída
pelos alemães era o “sangue”, a continuidade em ser alemão se dá também por meio
dos laços consanguíneos, procurando-se ao máximo manter o “sangue puro” alemão
através dos casamentos entre famílias de imigrantes alemães.

O conjunto das instituições comunitárias étnicas se completa com a família,


reduto íntimo da etnicidade, pois cabe a ela socializar os filhos como membros
do grupo. A família é concebida nestes termos na maior parte dos grupos aqui
focalizados: no contexto étnico o papel principal é o controle familiar sobre os
casamentos, o que supõe o controle sobre a endogamia (SEYFERTH, 1990, p.
84).

54
Além do fato da identidade étnica dos imigrantes estar calcada na consanguinidade, Raça, etnia e
desigualdades sociais
havia (e talvez haja em diversos pontos do país) uma ideologia da superioridade étnica
que classificava o brasileiros – mais ainda o negro – como inferior, utilizando estereó-
tipos a partir de categorias sempre negativas: preguiçoso, sujo, sem educação, acomo-
dado, incapaz, categorias essas quase sempre relacionadas ao trabalho e ao trato às pe-
quenas propriedade ou às lavouras. Mas a construção de estereótipos e preconceitos
era direcionada aos dois grupos, os brasileiros também discriminavam os estrangeiros,
ridicularizavam seus hábitos e jeito. Seyferth, ao discorrer sobre a identidade étnica
dos imigrantes no Brasil, revela esse quadro de discriminação recíproca. A rejeição que
os brasileiros também tinham com relação a casamentos entre indivíduos de naciona-
lidades diferentes pode ser percebida na seguinte quadrinha, que originalmente na
tradição folclórica do Brasil Império era cantada para os portugueses, mas foi adaptada
de modo jocoso para os italianos: “Carcamano pé-de-chumbo Calcanhar de frigideira
Quem te deu a confiança De casar com brasileira?” (SEYFERTH, 1990, p. 81).
O embranquecimento como uma medida efetiva para “clarear” a população do país
enfrentou problemas e acabou sendo mal sucedido. Mas como ideologia que pregava
a superioridade dos brancos e o embranquecimento dos negros através das gerações
como meio de tornar o povo “melhor” deixou marcas profundas nos brasileiros: alguns
setores da sociedade ainda falam e pregam a superioridade dos brancos; grupos de ne-
gros e índios identificam-se como inferiores; tendo baixa auto estima; negros querem
fugir da identificação com a cor negra para evitar a classificação de seu status social.
Quanto à auto estima, a população negra tem ainda muito forte uma autonegação:

No passado como agora, a contrapartida dos sistemas raciais que admitem o


deslocamento lento ao longo do contínuo de cor é uma estética branca racista
que desvaloriza o extremo negro do espectro e condiciona atitudes e compor-
tamentos dos não brancos. ’Naturalmente, a hierarquização das pessoas em
termos de sua proximidade a uma aparência branca ajudou a fazer com que in-
divíduos de pigmentação escura desprezem a sua origem africana’. Expressões
como ‘cabelo ruim’, ‘cabelo bom’ e ‘melhorar a raça’ são comuns ao português
e ao espanhol falados nas Américas. Não é estranho que esta forte pressão no
sentido do branqueamento resulte em que ‘[...] negros e mulatos fazem o me-
lhor possível para parecer mais brancos e procuram com energia dissimular ou
desenfatizar suas origens negroides (HASENBALG, 1996, p. 236).

Diante desses fatores, as diferentes formas de racismo continuam presentes no


imaginário da sociedade brasileira e não passam despercebidas por ninguém, inclusive
pela população negra. Muniz Sodré propõe que o racismo se apresenta como denega-
ção de identidade: o outro não tem valor, inexiste; denegação da humanidade: o outro
não pertence à mesma espécie, logo, é absolutamente Outro. A etnia, em substituição

55
INTRODUÇÃO À à ideia de raça, frequentemente baseia-se nas diferenças culturais de um grupo ou
ANTROPOLOGIA
sociedade. Envolve elementos como visão de mundo, relação com a natureza, relação
entre os membros do mesmo grupo e destes com os de outros grupos, relações de
trabalho, familiares e religiosas. A etnia, em geral, não tem por base a aparência feno-
típica, mas questões identificatórias.

O que o Brasil tem feito sobre o tema?


Diante das constatações acadêmicas e políticas das últimas décadas, o Estado bra-
sileiro reconheceu, em documento oficial enviado à III Conferência Mundial contra o
Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Formas Correlatas de Intolerância,
em Durban (2001), bem como a existência do racismo e discriminações. Com vistas
a diminuir os índices que colocam o Brasil entre os países que apresentam as maio-
res desigualdades raciais e sociais, diversas políticas de inclusão ou ações afirmativas
têm sido desenvolvidas por instituições governamentais e não governamentais. Tais
ações se traduzem em políticas de quotas em concursos públicos (como acontece
no Paraná), na regulamentação e implementação de dispositivos legais existentes na
Constituição Federal e em legislações ordinárias, bem como nas diretrizes da educação
brasileira. Exemplo disso foi a elaboração, em 2003, da Lei 10.639, e do Parecer CNE/
CP 3/2004, que institui as Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étni-
co-Raciais e o Ensino de História e Cultura Afro Brasileira e Africana para o sistema de
ensino brasileiro. Conforme o MEC,

O racismo e as práticas discriminatórias disseminadas no cotidiano brasileiro


não representam simplesmente uma herança do passado. O racismo vem sendo
recriado e realimentado ao longo de toda a nossa história. Seria impraticável
desvincular as desigualdades observadas atualmente dos quase quatro séculos
de escravismo que a geração atual herdou (DIRETRIZES, 2008).

A partir de 2001, organizaram-se instâncias institucionais e comissões para a ela-


boração de medidas voltadas para a educação. Foi criado um Comitê Nacional, envol-
vendo órgãos do governo, representantes da sociedade civil organizada e entidades de
movimentos negros, indígenas, de mulheres, de homossexuais e de defesa da liberda-
de religiosa para operacionalizar as ações do Estado na educação, obedecendo às re-
soluções de Durban, e determinações já previstas na constituição de 1988. As medidas
enfatizaram basicamente seis pontos:
1) igual acesso de todos à educação, na lei e na prática;
2) adoção e implementação de leis que proíbam a discriminação, baseada em cor,
raça, descendência, origem nacional ou étnica em todos os níveis de educação,
tanto formal quanto informal;

56
3) medidas para eliminar os obstáculos que limitam o acesso de crianças à Raça, etnia e
desigualdades sociais
educação;
4) recursos para eliminar as desigualdades nos rendimentos educacionais para jo-
vens e crianças;
5) apoio aos esforços que assegurem ambiente escolar seguro, livre de violência e
de assédio motivado por racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância
correlata;
6) estabelecimento de programas de assistência financeira, desenhados para ca-
pacitar todos os estudantes, independentemente de raça, cor, descendência,
origem étnica ou nacional a frequentarem instituições educacionais de ensino
superior.

Podemos fazer mais, compreendendo e ensinando que a convivência com a diver-


sidade humana não é um problema, um mal tolerável, mas, ao contrário, um agradá-
vel legado do desenvolvimento de nossa raça, uma contribuição para que possamos
reconhecer nossa identidade social a partir das diferenças com esses tantos outros de
etnias, cores, religiões e crenças diferentes das nossas.

Referências

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elites do século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

BANTON, Michael. A idéia de raça. Lisboa: Ed. 70, 1979.

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interpenetração de civilizações. São Paulo: Pioneira, 1971. v. 1-2.

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1987.

DIRETRIZES Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais


e para o Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília, DF: [s.n.],
2008. Disponível em: <http://www.kedere.com.br/legislacao/dcn-para-educacao-
das-relacoes-etnico-racias-e-para-o-ensino-de-historia-e-cultura-afro-brasileira-e-
africana/>. Acesso em: 22 fev. 2009.

57
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CEBRAP, São Paulo, n. 54, p. 147-156, 1999.

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Janeiro: Graal, 1979. p. 109-10.

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In: MAIO, Chor (Org.). Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro: FIOCRUZ/CCBB,
1996. p. 235-249.

LEITE, Dante M. O caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia. 5. ed. São
Paulo: Ática, 1992.

LEITE, Ilka B. (Org.). Negros no Sul do Brasil: invisibilidade e territorialidade.


Florianópolis: Letras Contemporâneas, 1996.

ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense,


1994.

PEQUENO Dicionário Enciclopédico Koogan Larousse. Rio de Janeiro: LAROUSSE


DO BRASIL, 1987.

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Disponível em: <www.pnud.org.br/raça>. Acesso em: 12 fev. 2009.

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SEYFERTH, Giralda. Imigração e cultura no Brasil. Brasília: Editora Universidade


de Brasília, 1990. p. 84.

SKIDMORE, Thomas. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento


brasileiro. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1976.

SODRÉ, Muniz. Claros e escuros: identidade, povo e mídia no Brasil. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1999. p. 215.

GLOSSÁRIO

Discriminação racial. Diferenciar, fazer distinção entre pessoas ou grupos com


base nas suas características “raciais”, no âmbito das relações de trabalho, educacio-

58
nais, comerciais ou sociais. No Brasil, a discriminação racial é considerada crime, pres- Raça, etnia e
desigualdades sociais
crito no Artigo 5o, XLII da Constituição Federal, que estipula: “a prática do racismo
constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos
da lei.”

Etnocêntricas. Etnocentrismo. Trata-se da visão de mundo cujo centro é o pró-


prio meio a que o indivíduo pertence, tomando-o por base para avaliar todos os outros
grupos e indivíduos.

Endogâmicas. Endogamia. Tipo de casamento com membros do mesmo grupo,


no que se refere a um grupo social específico. Os casamentos dentro do mesmo grupo
são determinados pelos tabus sexuais e sociais elaborados em seu interior. O contrário
de endogamia é a exogamia.

Fenotípicos. Fenótipo. Conjunto de caracteres que se manifestam visivelmente


em um indivíduo e que expressam as reações de seu fenótipo, isto é, do seu patri-
mônio hereditário. Como, por exemplo, cor da pele e dos olhos, textura dos cabelos,
tamanho dos lábios e do nariz etc.

Grupos étnicos. Trata-se de grupos que possuem uma identidade distintiva atribu-
ída, e sua distintividade como grupo tem quase sempre por base uma cultura, origem
e história comuns. O principal critério para a definição de grupo étnico é a identidade
étnica, fundamentada na noção de etnicidade, que enfatiza os aspectos positivos de
pertencer a um grupo étnico.

Miscigenação. Refere-se ao resultado das relações amorosas entre indivíduos com


fenótipos diferentes. Por exemplo, os filhos de negros com brancos, de negros com
índios, ou brancos com asiáticos são fruto da miscigenação. Ou seja, ela consiste na
mistura de indivíduos de diferentes povos ou etnias.

Mito. Em antropologia, define-se mito como parte da cultura, descrito no nível


mais superficial, ou que passa de uma cultura para outra. O mito pode ser considera-
do algo falso – sem comprovação para sua existência – mas que tem repercussão nas
relações sociais.

Raça. É a subdivisão de uma espécie, cujos membros individuais mostram certo


número de atributos hereditários. Assim, esse conceito não se aplica aos diferentes
grupos humanos, com fenótipos diferentes, haja vista que eles fazem parte da mesma
raça: a humana. Todavia, a expressão raça social tem validade, posto que é empregada
com frequência pelas ciências sociais com referência a distinções sociais, econômicas,
educacionais relacionadas à cor da pele dos indivíduos.
59
INTRODUÇÃO À Racionômico. Elementos que estão, ou podem ser, relacionados à raça.
ANTROPOLOGIA

Racismo. Sistema que afirma a superioridade de um grupo racial relativamente


aos outros, preconizando, por exemplo, o isolamento desses no interior de um país
(segregação racial) ou até visando ao extermínio de uma minoria (racismo anti semita
dos nazistas). A legislação brasileira considera o racismo um crime inafiançável.

Teorias Poligenistas. Doutrina que postula que as diferentes “raças humanas” deri-
variam de distintas espécies primitivas. Com o avanço das pesquisas genéticas e bioló-
gicas, atualmente essa doutrina foi superada no meio acadêmico e científico mundial.

Senso comum. São julgamentos, juízos ou opiniões elaborados pelos indivíduos,


em seus grupos socais, sem base científica ou teórica, mas norteados por informações
históricas e culturais, sejam elas verdadeiras ou não.

Proposta de Atividades

• Audição música “Tribunal de Rua” do grupo O Rappa.


• Discussão a partir das seguintes questões:
1) No episódio relatado pelo grupo, que fatos podem ser caracterizados como discriminação
ou racismo?
2) A ideia de raças humanas ainda é válida? Explique a sua resposta.
3) De que modo podemos combater e diminuir o racismo no Brasil?

Tribunal de Rua
O Rappa
Composição: Marcelo Yuka

A viatura foi chegando devagar


E de repente, de repente resolveu me parar
Um dos caras saiu de lá de dentro
Já dizendo, aí compadre, cê perdeu
Se eu tiver que procurar cê ta fodido
Acho melhor cê i deixando esse flagrante comigo
No início eram três, depois vieram mais quatro
Agora eram sete os samurais da extorsão
Vasculhando meu carro, metendo a mão no meu bolso
Cheirando a minha mão

60
De geração em geração Raça, etnia e
desigualdades sociais
Todos no bairro já conhecem essa lição
E eu ainda tentei argumentá
Mas, tapa na cara pra me desmoralizar
Tapa, tapa na cara pra mostra quem é que manda
Porque os cavalos corredores ainda estão na banca
Nesta cruzada de noite, encruzilhada
Arriscando a palavra democrata
Como um santo graal
Na mão errada dos hômi
Carregada em devoção
De geração em geração
Todos no bairro já conhecem essa lição
O cano do fuzil
Refletiu o lado ruim do Brasil
Nos olhos de quem quer
E quem me viu, único civil
Rodeado de soldados
Como seu eu fosse o culpado
No fundo querendo estar
A margem do seu pesadelo
Estar acima do biótipo suspeito
Nem que seja dentro de um carro importado
Com um salário suspeito
Endossando a impunidade
A procura de respeito
(Mas nesta hora) só tem (sangue quente)
Quem tem (costa quente, quente, quente)
Só costa quente, pois nem sempre é inteligente
(Peitar) peitar, peitar (um fardado alucinado)
Que te agride e ofende (pa te levar, levar, levar)
Pra te levar alguns trocados (diz aê)
Pra te levar, levar, levar
Pra te levar alguns trocados (segue a mão)
Era só mais uma dura
Resquício de ditadura
Mostrando a mentalidade
De quem se sente autoridade
Nesse tribunal de rua
Nesse tribunal
Nesse tribunal de rua

61
INTRODUÇÃO À
ANTROPOLOGIA

Anotações

62
4 Apontamentos para
uma Antropologia da
criança e da infância
Valéria Soares de Assis

O reconhecimento e a distinção entre as categorias natureza e cultura feitos pela


antropologia têm nos levado a uma melhor compreensão do homem em sua huma-
nidade. O estranhamento é uma importante estratégia etnográfica que permite des-
cortinar aspectos socioculturais entendidos como naturais e, portanto, que parecem,
a princípio, universais e imutáveis. Dentre os temas que buscam esse desvelamento,
podem-se destacar a noção de pessoa e os ciclos de vida, ambos tendo uma estreita
relação com as noções de corpo e corporeidade.
Como ciclos de vida compreende-se as categorias que cada sociedade estabelece
para explicar as fases de desenvolvimento da pessoa. Na nossa sociedade hoje, esta-
belecemos que o ciclo de vida humano é dividido em cinco grandes fases: infância,
adolescência, juventude, maturidade (vida adulta) e velhice. Nossa sociedade entende
que toda pessoa deve passar por cada uma dessas fases; elas são entendidas como fases
naturais do desenvolvimento humano.
Ao se estudar outros povos, diferentes da sociedade ocidental industrializada, a
antropologia nos revela que esses ciclos podem ser distintos daqueles que conside-
rávamos universais, ou seja, presentes em todos os grupos humanos. E a partir dessa
comparação com outros povos é que a antropologia permitiu relativizar nossos pró-
prios conceitos e ideias sobre nossa organização sociocultural. Essas interrogações
sobre as nossas categorias classificatórias levaram ao interesse de se conhecer o seu
surgimento.
As noções de criança e infância foram por um largo período objeto de pouco interes-
se nos estudos antropológicos. A inserção desse tema costumava vir atrelado a outros
considerados mais relevantes. Progressivamente, essas noções passaram ao patamar de
categoria de estudo e surgiram as primeiras interrogações tanto a respeito da origem
da ideia de criança, quanto ao lugar e ao papel ocupado pela criança no meio social.
Quem melhor apresenta como se constituiu a categoria de criança na sociedade
ocidental foi Ariès (1981). Em seu estudo relativo à constituição da família e da criança
na Europa, o autor revela que no período medieval a infância era percebida como

63
INTRODUÇÃO À pouco importante. As crianças eram consideradas adultos em miniatura e eram trata-
ANTROPOLOGIA
das de modo indiferenciado, convivendo, sem maiores cuidados, com os adultos.
Com o fortalecimento moral do mundo medieval a partir do movimento social ge-
rado pelas reformas das igrejas e, posteriormente, pelo Estado e suas leis, observa-se
também uma mudança no tratamento da criança. Ela passa a ser considerada um ser
que necessita de cuidados especiais, pois é frágil e indefesa. Emergem nesse momento
valores morais como inocência e pureza como intimamente associados à infância. Por
ser pura, a criança passa a receber cuidados e tratamentos respeitosos e específicos até
então ausentes.
Esses cuidados e tratamento diferenciados para as crianças tornam-se perceptíveis
na mudança ocorrida em suas roupas, no ambiente e na institucionalização de sua
educação escolar. Todo esse processo se dá ao final da idade média e culmina na idade
moderna (séculos XV, XVI e XVII).
Ariès (1981) ainda nos fala, da emergência de um sentimento da infância na era
moderna. Cohn (2005, p. 22) sintetiza bem o que o historiador pretendeu dizer como
sentimento da infância:

Este não deve ser entendido, vale dizer, como uma sensibilidade maior à infân-
cia, como um sentimento que nasce onde era ausente, mas como uma formula-
ção sobre a particularidade da infância em relação ao mundo dos adultos, como
o estabelecimento de uma cisão entre essas duas experiências sociais.

Ariès (1981) aponta que é nesse período da história europeia que acontece a rup-
tura entre criança e o adulto como categorias de idade distintas. E é depois desse corte
que emerge a infância como um período privilegiado de cuidado e socialização das
crianças a partir de um universo próprio, distinto do adulto.
A importância do estudo de Ariès para a antropologia está na revelação de que
as categorias de infância e criança foram forjadas socialmente. Ou seja, são criações
sociais cujo processo histórico aponta sua origem na idade moderna. A infância
não tem uma origem imemorial, não surge junto com o homem, ou é algo natural.
A infância é uma criação de nossa sociedade ocidental, que se mantém até os dias
atuais.
Essa revelação é importante para a compreensão da relação estabelecida na nossa
sociedade entre adulto e criança e seus desdobramentos, como o desenvolvimento de
premissas jurídicas, o estatuto da criança e do adolescente, a categoria de menoridade
e direitos daí decorrentes. Pensar a infância como uma produção social contribui
também para o entendimento das mudanças ocorridas nos últimos tempos em nossa
sociedade (temática a que nos deteremos mais adiante).

64
Quando partimos da consideração de que a infância não é uma fase natural, mas Apontamentos para uma
Antropologia da criança e
uma construção social, podemos entender melhor as diferentes concepções e trata- da infância

mentos das crianças em sociedades distintas da nossa.


Podemos perceber um pouco dessas diferenças nas etnografias sobre sociedades
indígenas e rurais no Brasil. Tedrus (1998), ao estudar a relação entre adultos e crian-
ças em ambientes escolares para crianças na cidade de Campinas (SP), indica um ele-
mento comum presente em todos os estudos consultados para sua pesquisa. A autora
evidencia que a socialização da criança é um evento comum a todas as sociedades.
Contudo, a forma como cada sociedade promove essa socialização é diferente. Em sua
comparação entre sociedades rurais e urbanas, a autora observa que a socialização da
criança no meio rural ocorre primordialmente nos limites da família (mesmo porque
a organização social circunscreve-se a ela). Por outro lado, nos meios urbanos ela ul-
trapassa os limites familiares, incluindo instituições como a escola e outros setores so-
ciais. Ou seja, “[...] a socialização da criança tem muito a ver com o tipo de organização
social das sociedades” (TEDRUS, 1998, p. 22).
Os estudos antropológicos sobre sociedades indígenas também contribuem para
que possamos perceber essas diferenças. Por exemplo, Tassinari (2007), partindo da
análise de dados etnográficos sobre crianças de alguns grupos indígenas, apresenta
cinco aspectos possíveis de serem generalizados nas concepções desses indígenas so-
bre a infância:

1) o reconhecimento da autonomia da criança e de sua capacidade de decisão;


2) o reconhecimento de suas diferentes habilidades frente aos adultos; 3) a
educação como produção de corpos saudáveis, 4) o papel da criança como me-
diadora de diversas entidades cósmicas; 5) o papel da criança como mediadora
dos diversos grupos sociais (TASSINARI, 2007, p. 22).

E a antropóloga prossegue, apresentando algumas distinções importantes entre a


criança das sociedades ocidentais e a das sociedades indígenas. Ao realizar a compara-
ção, a autora identifica que nossa sociedade costuma separar e excluir as crianças dos
espaços de decisão, que são entendidos como exclusivos dos adultos. Nas sociedades
indígenas, por outro lado, elas participam e muitas vezes possuem papéis fundamen-
tais nas decisões dos grupos. Outra diferença marcante é que nas sociedades indígenas
as crianças atuam com regularidade como mediadoras nos mais diferentes âmbitos
sociabilidade, nos espaços políticos, econômicos, religiosos, cosmológicos etc. Enfim,
são entendidas como “[...] sujeitos plenos e produtores de sociabilidade” (TASSINARI,
2007, p. 23). Em nossa sociedade, as crianças devem ter um trânsito bem mais restrito,
uma limitação muitas vezes escondida atrás de um discurso de proteção e cuidado.

65
INTRODUÇÃO À Abordagens sobre a criança e a infância em uma perspectiva antropológica podem
ANTROPOLOGIA
gerar rendimentos reflexivos para a prática educativa, pois tais abordagens implicam
em considerar as crianças como sujeitos sociais e não apenas como seres passivos
na sociedade e, portanto, na educação. Essa perspectiva consiste em uma percepção
relativizadora:

Compreender a criança é, assim, entrar no seu contexto, no interior de sua


mente cultural, querer participar desse crescimento e crescer junto, como diz
Vieira. Ir com ela [...] é partilhar as experiências, de modo a entender, a com-
preender a construção de sua visão de mundo, como realidade instituinte e de
descoberta (GUSMÃO, 2003, p. 207-208).

O papel ativo da criança (mencionado anteriormente para as populações indíge-


nas) como mediadora nas relações sociais também é perceptível em alguns contextos
sociais da nossa sociedade. Fonseca (1995), em seu estudo sobre adoção de crianças
em classes populares de Porto Alegre (RS), evidencia como a circulação das crianças
entre adultos (parentes, vizinhos e amigos) constrói, ativa e alimenta as relações so-
ciais daquele meio.
A criança é percebida como mediadora porque atua igualmente na produção de
cultura. Vale lembrar que cultura aqui está sendo entendida em uma perspectiva antro-
pológica, como geradora de significados. Seu caráter de mediação implica em propor
que em meio às condições objetivas de vida é capaz de se expressar como sujeito so-
cial, não pelo que de fato são e representam, mas pela forma que significam, percebem
e interpretam o real (GUSMÃO, 2006).
Essas formas de perceber e analisar a criança estão em pleno desenvolvimento na
antropologia e seus desdobramentos para a educação podem ser muitos salutares na
proposição de teorias e práticas pedagógicas mais reflexivas. Segundo Nunes (2002,
p. 276):

A criança é um ser social tanto quanto qualquer adolescente, adulto ou velho.


É nossa habitual perspectiva “adultocêntrica”, que incide sobre as crianças da
nossa própria sociedade, e que se estende às demais, que não permite perceber
isso. Realmente, a sociabilidade da criança está por desvendar, por conhecer, e
apenas por esse motivo não é considerada como plena.

Concluímos o tópico dizendo que compreendemos que a criança e a infância não


são fatos naturais, mas categorias socioculturais produzidas pela nossa sociedade, pas-
samos a entender melhor as mudanças pelas quais o tratamento da criança e da infân-
cia vêm passando. E também é possível perceber, ao longo deste capítulo, que criança
e infância não são a mesma coisa. A noção de criança vincula-se com os primeiros anos

66
de vida do homem. A infância se refere a toda uma ambiência criada, na qual a criança Apontamentos para uma
Antropologia da criança e
deve estar inserida. É por isso que se torna viável dizer de crianças sem infância e de da infância

infância sem crianças.


Progressivamente, em nossa sociedade encontramos situações em que não há dis-
tinção entre o universo dos adultos e o universo das crianças. Foquemos em um dos
elementos analisados por Ariès (1981), ou seja, as vestimentas. Observa-se hoje uma
forma indiscriminada de se vestir das crianças e dos adultos. O mesmo tipo de rou-
pa produzido para vestir um adulto também existe em dimensões diminutas, para as
crianças.
O que percebemos, muitas vezes, é a penetração da infância na vida jovem e adulta,
chegando, em algumas situações, à velhice. Basta observar, por exemplo, estudantes
universitários utilizando adereços, utensílios e especialmente itens escolares com os
mesmos motivos infantis utilizados pelas crianças que estão no Ensino Fundamental.
O mesmo se pode dizer de mulheres vestidas com roupas estampadas com perso-
nagens de desenhos e filmes infantis etc. Observa-se uma indistinção da infância e sua
ampliação e prolongamento na vida adulta, algo bastante distinto do que foi percebido
na Idade Média. Lá, era a criança que partilhava a vida adulta com os adultos. Atual-
mente, observa-se que são os adultos que partilham a vida infantil com as crianças;
essas percepções nos ajudam a redimensionar essas situações sociais e compreender
suas mudanças e significados.
Enfim, para concluir, é possível trazer aqui de forma sintetizada as principais con-
tribuições que a antropologia nos fornece até este momento para pensar e investigar
sobre a criança e a infância (SILVA; NUNES, 2002). A infância deve ser encarada como
uma produção social, não é nem natural e nem universal, sua manifestação ou forma
de manifestação depende de cada contexto sociocultural. A infância deve ser abordada
como uma variável analítica possível de ser comparada. Ou seja, na comparação entre
os vários grupos sociais encontramos várias infâncias e não uma única e invariável. As
crianças são sujeitos sociais, ou seja, participam ativamente na construção de seu meio
sociocultural. A etnografia é uma das estratégias metodológicas que permite evidenciar
essa característica agentiva das crianças. A relativização das noções de criança e de in-
fância permite uma melhor compreensão das mudanças e da reconstrução da infância
em nossa sociedade.

67
INTRODUÇÃO À
ANTROPOLOGIA

Referências

ARIÈS, Phillipe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1981.

COHN, Clarice. Antropologia da criança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.

FONSECA, Cláudia. Caminhos da adoção. São Paulo: Cortez, 1995.

GUSMÃO, Neusa M. M. Antropologia, processo educativo e oralidade: um ensaio


reflexivo. Revista Pro-posições, Campinas, SP, v. 14, n. 1(40), p. 197-213, jan./abr.
2003. Disponível em: <http://mail.fae.unicamp.br/~proposicoes/textos/40-ensaios-
gusmaonmm.pdf>. Acesso em: 25 fev. 2009.

______. Antropologia e educação: história e trajetos/faculdade de educação


Unicamp. In: GROSSI, Miriam P.; TASSINARI, Antonella; RIAL, Carmen. Ensino de
Antropologia no Brasil. Blumenau: Nova Letra, 2006. p. 299-331.

NUNES, Angela M. O lugar da criança nos textos sobre sociedades indígenas brasileiras.
In: SILVA, Aracy L. da; MACEDO, Ana Vera L. da S.; NUNES, Angela M. (Org.). Crianças
indígenas: ensaios antropológicos. São Paulo: Global, 2002. p. 236-277.

SILVA, Aracy L. da; NUNES, Angela. Introdução. In: SILVA, Aracy L. da; MACEDO, Ana
Vera L. da S.; NUNES, Angela M. (Org.). Crianças indígenas: ensaios antropológicos.
São Paulo: Global. 2002. p. 11-33.

TASSINARI, Antonella. Concepções indígenas de infância do Brasil. Revista Tellus,


Campo Grande,MS, Ano 7, n. 13, p. 11-25, out. 2007. Disponível em: <ftp://neppi.
ucdb.br/pub/tellus/tellus13/1_Antonella.pdf>. Acesso em: 25 fev. 2009.

TEDRUS, Dora M. de A. S. A relação adulto-criança. Campinas, SP: Unicamp, 1998.

Proposta de atividades

Vá ao site <www.portacurtas.com.br>. e assista ao documentário “A invenção da


infância”, de Liliana Sulzbach (2000) (você pode digitar diretamente o endereço para ver o
filme: <http://www.portacurtas.com.br/Filme.asp?Cod=672 )>.

68
Em seguida, responda às seguintes questões: Apontamentos para uma
Antropologia da criança e
da infância

1) Quais as diferenças entre infância e criança apresentadas?


2) Descreva pelo menos duas situações do documentário que possam ser relacionadas com
aspectos do texto que acabou de ler.

Anotações

69
INTRODUÇÃO À
ANTROPOLOGIA

Anotações

70
5 Quando nos tornamos
humanos? Reflexões
sobre a origem do
homem e da cultura

Adriana Schmidt Dias

O longo caminho que deu origem aos humanos modernos resulta da interação
dialética entre aspectos de caráter cultural, biológico e ecológico desenvolvida em
diferentes escalas ao longo dos últimos 7 milhões de anos de nossa história evolutiva
(MORIN, 1973). Como qualquer outra espécie viva, os humanos evoluíram graças a
circunstâncias naturais específicas, no tempo e no espaço, e nosso padrão evolutivo,
percebido em retrospectiva, é, na verdade, o produto de condições locais e de peque-
na escala. Desta forma,

[...] o grande desafio é convencer as pessoas que a resposta sobre a origem da


humanidade não está nas estrelas nem no mar, mas na vida cotidiana das popu-
lações primevas de macacos antropóides, confrontadas com problemas sociais
e ecológicos muito específicos (FOLEY, 1998, p. 9).

AS TEORIAS EVOLUTIVAS SOBRE A ORIGEM DAS ESPÉCIES


A história das espécies vivas é caracterizada por sucessivos episódios de extinção
massiva e recolonização de nichos ecológicos por espécies marginais (Quadro 1).
Analisando nossa espécie pela ótica da biologia evolutiva, pertencemos à ordem dos
primatas, surgida há 65 milhões de anos (Paleoceno), após a extinção massiva dos
grandes répteis da Idade Geológica Secundária. Somos Primatas Superiores (Antro-
poides ou Haplorrinos) e pertencemos à infra ordem dos Macacos do Velho Mundo
(Catarríneos ou primatas com 32 dentes) que floresceram entre 35 e 23 milhões de
anos atrás (Oligoceno).
Pertencemos à superfamília dos Hominoides (macacos sem rabo) surgidos há
23 milhões de anos (Mioceno), cujo ramo evolutivo mais recente é a família dos

71
INTRODUÇÃO À Homínidas (macacos bípedes), surgida entre 7 e 5 milhões de anos, com múltiplas
ANTROPOLOGIA
ramificações extintas ao longo do processo evolutivo (Quadros 2 e 3). Por termos cé-
rebro grande, pertencemos ao gênero homo, surgido por volta de 2,5 milhões de anos
atrás, juntamente com outras espécies extintas como o Homo habilis, o Homo erectus,
o Homo sapiens arcaico e o Homo sapiens neanderthalenses (Quadro 4). Portanto,
a nossa espécie, Homo sapiens sapiens, que começou a caminhar sobre a Terra há
aproximadamente 150 mil anos atrás, “não é o produto de uma escada que desde o
início sobe diretamente em direção ao nosso estado atual. Constituímos tão somente
a ramificação sobrevivente de um arbusto outrora exuberante” ( JAY-GOULD, 1992, p.
55; FOLEY, 1993, 1998).
No senso comum, o conceito de evolução biológica traz em si uma conotação
errônea associada à ideia de progresso. Essa noção deriva da obra de Herbert Spen-
cer, Princípios de Biologia, publicada em 1867, que foi responsável pela popula-
rização das teorias de Darwin. Em A Origem das Espécies, publicada em 1859, a
principal preocupação de Darwin centrava-se no combate ao paradigma criacionis-
ta que compreendia a história da Vida na Terra como resultado do ato da Criação
Divina, imutável desde o início dos tempos. Ao defender que as espécies mudam
ao longo do tempo, Darwin associou-se a outros pensadores de sua época, como
Lamark e Haekel, porém diferenciou-se deles por entender que todos os organis-
mos vivos descendiam de um antepassado comum (conceito de “árvore da vida”
ou “árvore filogenética”). Para Darwin, esse processo de mudança é inevitável e
gradual, sendo o surgimento de novas espécies o resultado de uma tendência no
Mundo Natural por meio da qual a cada geração surgem novas formas mais adap-
tadas ao ambiente.
A seleção natural é o motor dessa mudança, sendo esse processo definido como
sucesso reprodutivo diferencial, ou seja, espécies mais bem adaptadas têm vidas mais
longas e, portanto, deixam uma maior descendência. Centrando-se na noção de com-
petição, o modelo teórico darwiniano derivava das influências de Adam Smith e Tho-
mas Malthus: uma vez que os recursos são finitos, estes impõem limites ao crescimento
populacional. A “lei do mais forte”, definida por Spencer, na realidade, dizia respeito à
maior capacidade de uma dada espécie para competir, com outros organismos, pelos
recursos de um dado ambiente, gerando um maior número de descendentes, cujas
características físicas permitiam uma exploração mais eficiente do meio. Nessa com-
petição pela vida, os menos adaptados às mudanças ambientais desaparecem, pois “a
extinção é o caminho natural de todas espécies vivas” em um mundo em constante
modificação ( JAY-GOULD, 1992; LEWIN, 1999).

72
A explicação quanto aos mecanismos que geram essas mudanças inter geracionais Quando nos tornamos
humanos? Reflexões
está ausente na obra de Darwin. Contudo, deve-se lembrar que as pesquisas de Gregor sobre a origem do
homem e da cultura
Mendel sobre as leis da hereditariedade foram contemporâneas à publicação da Ori-
gem das Espécies e só se popularizaram no meio científico no início do século XX. A
síntese entre genética e teoria darwiniana somente ocorreu na década de 1950, quan-
do o conceito de mutação foi incorporado aos modelos evolucionistas. Por sua vez,
os ritmos do processo de mudança definidos pelo modelo darwiniano foram revistos
nos anos 1970 por Niles Eldredge e Stephen Jay-Gould, através da chamada teoria do
equilíbrio pontual ou intermitente.
Darwin argumentava que, se os ritmos da mudança evolutiva de uma dada espécie
ocorriam de forma lenta e gradual, seria possível percebê-los através do estudo paleon-
tológico. Contudo, “a imperfeição do registro geológico” derivado dos processos alea-
tórios que regem a fossilização e a exposição posterior destas evidências criaria lacunas
(os “elos perdidos”) na reconstrução da história evolutiva de uma dada espécie, que
só poderiam ser preenchidas mediante a intensificação das pesquisas paleontológicas.
Eldredge e Tattersall (1986) e Jay-Gould (1992) argumentam que, após um século
de pesquisas paleontológicas, a análise do registro fóssil deixa claro que a mudança
evolutiva se dá, em realidade, de forma esporádica e rápida. De acordo com estes au-
tores, as espécies, em geral, tendem a ser conservadoras quando bem adaptadas a um
dado ecossistema, e o processo que origina novas espécies só ocorre quando há uma
quebra da estabilidade adaptativa anterior. Portanto, não existem “elos perdidos” na
história evolutiva de uma dada espécie, mas uma sucessão de “saltos evolutivos”.
Quanto à questão das mutações, segundo esses pesquisadores, estas seguem a ten-
dência das espécies originais, e novas características mutagênicas em uma dada popu-
lação só se multiplicam em gerações seguintes caso favoreçam a reprodução diferen-
cial, através de seleção natural. Desta forma, a origem de uma nova espécie (entendida
enquanto comunidade reprodutiva) deriva de um processo que é pontual (espécies
bem adaptadas tendem à estabilidade), aleatório (mutações são casuais e não direcio-
nadas) e esporádico (um dado padrão só se desenvolve em uma população quando
gera uma adaptação favorável, em função da seleção natural).
Por sua vez, o isolamento reprodutivo de populações derivadas de um ancestral
comum pode ocorrer em função de aspectos geográficos, mutagênicos ou adaptativos,
que agem isolada ou conjuntamente. Assim, a origem de uma nova espécie é o resulta-
do de um processo de mudança que, através de seleção natural, proporciona uma me-
lhor adaptação a um dado ambiente em transformação ou a um novo nicho ecológico,
explorado de forma marginal pelas populações originais (ELDREDGE; TATTERSALL,
1986; LEWIN, 1999; LEAKEY, 1995).

73
INTRODUÇÃO À ORIGEM EVOLUTIVA DOS HOMINÍDEOS E A IMPORTÂNCIA DO
ANTROPOLOGIA
BIPEDISMO
As primeiras reflexões científicas sobre que aspectos nos definem como humanos
e que nos diferenciam dos demais primatas foram publicadas por Charles Darwin, em
1871, em A Origem do Homem. Três são os pontos centrais dessas reflexões: a) a ideia
de que a origem de nossa espécie seria africana, tendo em vista que é nesse continente
que se encontram nossos “parentes evolutivos” mais próximos (gorilas e chimpanzés);
b) que esse processo teria sido de longa duração, remontando milhões de anos; e c)
que a origem da humanidade teria se dado na forma de um “pacote evolutivo”, re-
presentado pela evolução conjunta de três aspectos centrais que nos distinguem dos
demais primatas: o bipedismo, a cerebralização e a tecnologia (LEAKEY, 1995).
Ao longo do século XX, as pesquisas paleo antropológicas têm apontado que os dois
primeiros pontos de vista defendidos por Darwin mostraram-se corretos. Contudo, o
último aspecto do modelo darwiniano nunca foi aceito de forma consensual. Ao longo
do século XX, as controvérsias sobre quais aspectos definem nossa “condição humana”
acompanharam o ambiente intelectual de cada época: o grande cérebro, nos anos 20;
a habilidade tecnológica, nos anos 30; a violência inata, nos anos 40; a sociabilidade
nos anos 50. Isto se deve, em boa parte, ao fato de que a reconstrução da “árvore da
vida” de nossa espécie (árvore filogenética) e a cronologia evolutiva desta derivada
baseiam-se, em termos clássicos, na comparação anatômica entre restos esqueletais
de diferentes formas fósseis de nossos ancestrais (taxonomia), em sua relação com
distintos períodos geológicos (sobreposição de estratos geológicos) (Quadro 4). Sua
precisão, no entanto, depende do tamanho e da integridade das amostras de fósseis
disponíveis e da habilidade de datação absoluta destas evidências materiais, gerando
grandes controvérsias na comunidade acadêmica quanto à relação evolutiva entre os
distintos ramos de nossa árvore filogenética e aos ritmos que ditam este processo.
Atualmente, o debate em torno dos aspectos determinantes de nosso processo
evolutivo centra-se na revisão do paradigma de “pacote evolutivo”, defendido origi-
nalmente por Darwin, associado às perspectivas interpretativas da teoria do equilíbrio
pontuado ou intermitente. Essas novas perspectivas teóricas derivam da incorporação
às pesquisas paleo-antropológicas dos avanços da bioquímica molecular e dos méto-
dos de datação absoluta dos registros fósseis e geológicos. Partindo dessa perspectiva,
hoje é consensual a ideia de que o processo de hominização desencadeou-se na África
a partir do surgimento da bipedia, separando-se evolutivamente os homínidas de seus
“primos mais próximos” em termos genéticos, os chimpanzés, entre 6 a 8 milhões de
anos atrás (LEAKEY, 1995; LEAKEY; LEWIN, 1995; LEWIN 1999; FOLEY, 1993, 1998).
Os fósseis homínidas mais antigos de que se tem conhecimento remontam a datações

74
na faixa de 4,5 milhões de anos e são representados pelas espécies de Australopithe- Quando nos tornamos
humanos? Reflexões
cus ramidus e anamensis, encontrados na África Oriental, podendo essas datações sobre a origem do
homem e da cultura
recuar à faixa de 7 milhões de anos, caso seja confirmada a bipedia relacionada aos
fósseis do Sahelanthropos tchadensis, recentemente descobertos (Quadro 4).
O bipedismo conduziu a alterações na estrutura óssea e muscular dos hominídeos
e no sistema de sustentação e movimentação de seus membros, se comparados aos
demais primatas. A partir da postura bípede, nossa pélvis tornou-se achatada para
sustentar nossa caixa torácica, que assumiu a forma de um barril, e a implantação de
nossa coluna vertebral passou a situar-se na base do crânio. A proporção de nossos
membros também se alterou: nossas pernas tornaram-se mais longas que nossos bra-
ços, nossos pés tornaram-se rígidos, melhor adaptando-se ao caminhar ereto, e nossas
mãos adquiriram um polegar opositor, o que nos proporciona uma maior habilidade
para manipular os objetos. Porém, quais fatores agiram em favor da seleção natural
de todas estas alterações físicas, e em que medida elas se constituíram em vantagens
adaptativas?
A explicação encontra-se nas alterações ambientais e geológicas ocorridas na África
durante o Mioceno (Quadro 1). Nesse momento, a África era coberta por florestas que
abrigavam uma diversidade de grandes primatas (Quadro 2). Porém, há 15 milhões
de anos atrás, a crosta terrestre na parte leste do continente separou-se, elevando-se
o terreno em uma grande cadeia montanhosa com mais de 3.000 metros de altitude,
o que criou um acidente geográfico conhecido como vale da Grande Fenda ou Rift
Africano, que se estende do Mar Vermelho até Moçambique. Essa modificação topo-
gráfica alterou o clima e o sistema de chuvas, colocando as terras ao leste da África em
condições de baixa umidade, o que fragmentou as antigas florestas em um mosaico
ambiental de bosques e arbustos. Essas mudanças ambientais é que guiaram a história
evolutiva dos bípedes, relacionada aos mosaicos de paisagens abertas do leste Africa-
no, em contraposição aos grandes primatas das florestas orientais (LEAKEY, 1995, p.
27-28; COPPENS, 1990).

Ambientes variados deste tipo, que apresentam muitos tipos diferentes de ha-
bitats, conduzem a inovação evolutiva. Populações de uma espécie que antes
eram amplamente disseminadas e contínuas podem tornar-se isoladas e expos-
tas a novas forças de seleção natural. Esta é a receita da transformação evolutiva.
Algumas vezes esta transformação leva ao esquecimento, se o ambiente favorá-
vel desaparece. Este foi o destino da maioria dos macacos africanos: apenas três
espécies existem hoje o gorila, o chimpanzé comum e o chimpanzé pigmeu.
Mas, enquanto a maioria dos macacos sofreu com a mudança ambiental, um
deles foi agraciado com uma nova adaptação que lhe permitiu sobreviver e
prosperar. Este foi o primeiro macaco bípede.

75
INTRODUÇÃO À Quanto às vantagens adaptativas derivadas do bipedismo, estas se relacionam pri-
ANTROPOLOGIA
mariamente às possibilidades de ampliação das áreas de captação de recursos em am-
bientes abertos. Embora as formas de locomoção quadrúpedes possam gerar maior
velocidade de deslocamento, o caminhar bípede permite percorrer maiores distân-
cias com um dispêndio menor de energia. Igualmente, a postura bípede garante uma
maior refrigeração do organismo em áreas com maior insolação em função da menor
exposição do corpo ao sol. Outras vantagens adaptativas da bipedia podem estar rela-
cionadas à capacidade de transporte de alimentos a grandes distâncias, em função da
liberação das mãos da atividade locomotiva, bem como à possibilidade de um maior
campo de visão a longa distância, fator relevante na proteção contra predadores (LEA-
KEY, 1995; LEWIN, 1999; FOLEY, 1998).

O GÊNERO HOMO E A CEREBRALIZAÇÃO: O LONGO CAMINHO PARA


O NASCIMENTO DA CULTURA
Durante o Plioceno, as paisagens abertas da África Ocidental desenvolveram-se,
abrindo margem para uma série de novas possibilidades adaptativas para os homínidas
(Quadro 1). Com a expansão das savanas do leste da África, entre 4 e 2 milhões de anos
atrás, uma série de novas espécies bípedes floresceu nesta região, divididas em dois
gêneros distintos: australoptecíneo e homo.
Os Australoptecíneos estão representados por pelo menos 6 distintas espécies
(Quadro 4). Em comum, estas possuem volume cerebral pequeno (entre 350 e 400
cm3), 1 a 1,5 metro de altura e grande dimorfismo sexual (apresentando os machos,
em média, o dobro do peso das fêmeas). Em função das variações morfológicas das
estruturas cranianas, das mandíbulas e dos molares, esses homínidas podem ser divi-
didos em dois grandes grupos:
a) os gráceis (Australopithecus anamensis, Australopithecus ramidus, Australo-
pithecus afarensis e Australopithecus africanus), que apresentam um focinho
curto, uma fronte achatada e molares pequenos; e
b) os robustos (Australopithecus boisei e Australopithecus robustus), que apre-
sentam mandíbulas pesadas e protuberantes, cuja sustentação muscular é per-
mitida por uma estrutura óssea no topo do crânio (crista sagital), possuindo
também molares grandes e achatados. O padrão de desgastes dos dentes desses
homínidas indica que, embora convivessem no mesmo ambiente, eles explo-
ravam distintos nichos ecológicos, baseando-se a dieta das formas gráceis no
consumo de plantas tenras, e a das formas robustas, na exploração de frutas de
cascas duras, raízes e nozes (LEAKEY, 1995; LEWIN, 1999).

76
Por sua vez, os primeiros representantes do gênero homo, surgidos por volta de Quando nos tornamos
humanos? Reflexões
2,5 milhões de anos atrás, apresentam um tamanho e estrutura corporal similar aos sobre a origem do
homem e da cultura
demais australoptecíneos, diferenciando-se destes, porém, por apresentar o dobro do
volume cerebral (650-850cm3). As inovações adaptativas introduzidas no repertório
evolutivo dos homínidas pelo Homo habilis trouxeram resultados rápidos. Menos de
500 mil anos após seu surgimento, um novo ramo de nossa árvore filogenética flo-
resceu através do Homo erectus, com um volume corporal e cerebral semelhante ao
moderno (900cm3) (Quadro 4). Porém, que vantagem adaptativa produz um cérebro
grande, a ponto de justificar o surgimento tão rápido de uma nova espécie?
A encefalização é uma tendência evolutiva dos mamíferos em geral, estabelecida
no Cretácio (136 a 65 milhões de anos); um volume cerebral grande também é uma
tendência evolutiva própria dos primatas, estabelecida desde o Paleoceno (65 a 53
milhões de anos). Em média, os primatas tendem a possuir cérebros três vezes maiores
que os demais mamíferos que apresentam proporções corporais similares. Destaca-se
ainda que o tamanho do cérebro é sempre proporcional ao tamanho do corpo e que
os humanos modernos são mamíferos de grande porte, inferiores em tamanho so-
mente aos gorilas, entre os primatas atuais ( JAY-GOULD, 1992; LEWIN, 1999; FOLEY,
1993). Portanto, não é o tamanho do cérebro que conta, mas a estrutura organizativa
deste “novo cérebro” humano que surge como padrão evolutivo com o Homo habilis
e o Homo erectus.
Entre os primatas em geral, incluindo os australoptecíneos, o lóbulo occipital (si-
tuado na parte posterior do cérebro) apresenta-se mais desenvolvido, estando rela-
cionado à visão. O cérebro das distintas espécies do gênero homo, no entanto, apre-
sentam um maior desenvolvimento dos lóbulos frontal (relacionado aos centros de
coordenação da linguagem, dos movimentos e das emoções), parietal (relacionado
aos centros de integração de informações sensoriais, como a visão, o olfato, o tato e a
audição) e temporal (relacionado aos centros de memória). O cérebro humano apre-
senta também uma dessimetria entre os hemisférios; sendo maior o lado esquerdo,
relacionado às faculdades da fala e da coordenação das habilidades motoras (LEAKEY,
1995; LEAKEY; LEWIN, 1995; LEWIN, 1999). É esse “novo cérebro” que nos oferece os
instrumentos cognitivos capazes de enfrentar os desafios da seleção natural aos altos
riscos adaptativos que sua manutenção nos impuseram em nossa história evolutiva.
Em primeiro lugar, um cérebro grande é um órgão de alto custo energético, de-
mandando uma dieta altamente calórica. Portanto, a sua manutenção condiciona ao
gênero homo a necessidade de incorporação à subsistência de recursos alimentares
com alta taxa de retorno energético, como a carne e a gordura animal, cuja obtenção
demanda o desenvolvimento de meios “extra somáticos” para obtê-los: a tecnologia.

77
INTRODUÇÃO À O Homo habilis recebeu esse nome por sua capacidade de produzir artefatos em
ANTROPOLOGIA
pedra, cuja padronização tecnológica persiste ao longo de pelo menos um milhão de
anos. Ao lascar seixos para produzir instrumentos com gumes aguçados, o Homo habi-
lis cria e recria, ao longo das gerações, artefatos capazes de processar carne, ossos, ma-
deira e vegetais, ampliando sua capacidade de exploração de novos nichos ecológicos.
Explorando as carcaças de animais abatidos pelos grandes predadores da savana com
seus instrumentos líticos, o Homo habilis abriu o caminho, por meio da tecnologia,
para que, centenas de milhares de anos mais tarde, o Homo erectus invertesse a ordem
natural da cadeia alimentar, tornando-se, de potencial caça, um eficiente caçador.
Por sua vez, a eficiência na exploração da caça, como um novo recurso alimentar,
estimulou as inovações tecnológicas, como o controle do fogo e o aprimoramento da
tecnologia lítica, que se converteram em um “sucesso reprodutivo diferencial” para o
Homo erectus, cujo aumento populacional, em curto espaço de tempo, levou à colo-
nização do continente Euro-asiático. Ressalta-se, ainda, que o surgimento do Homo
erectus é contemporâneo ao início do Pleistoceno (1,6 milhões de anos), período
geológico marcado por mudanças ambientais em escala global, relacionadas aos ciclos
de glaciações da Idade Quaternária (Quadro 4). As inovações tecnológicas e adapta-
tivas desenvolvidas pelo Homo erectus, representadas pela caça e pela coleta foram,
portanto, um fator determinante para que ele sobrevivesse aos ciclos de instabilidade
ambiental do Quaternário que condenaram à extinção todos os demais homínidas
(BINFORD, 1993; LEAKEY, 1995, LEWIN, 1999).
Um segundo fator que deve ser considerado diz respeito ao fato que o desenvolvi-
mento de um cérebro grande e complexo, como o do nosso gênero, só se torna possí-
vel caso seu crescimento continue a ocorrer após o nascimento dos bebês, fenômeno
conhecido como neotenia (nascimento precoce).

Os bebês humanos vêm ao mundo muito cedo, uma consequência do nosso


cérebro grande e dos constrangimentos do projeto da pélvis humana. Os biólo-
gos conseguiram entender, recentemente, que o tamanho do cérebro influen-
cia mais do que simplesmente a inteligência. Ele se correlaciona a um grande
número de fatores conhecidos como fatores bionômicos, tais como a idade do
desmame, a idade em que a maturidade sexual é atingida, o período de gesta-
ção e a longevidade. Em espécies com grandes cérebros, estes fatores tendem a
estar presentes por mais tempo: os bebês são desmamados mais tarde do que
os bebês das espécies com cérebros pequenos, a maturidade sexual é atingida
mais tarde, o período de gestação é maior e os indivíduos vivem mais. Um
cálculo simples com base em comparações com outros primatas revela que o
período de gestação no Homo sapiens, cuja capacidade cerebral é de 1350cm3
deveria ser de 21 meses e não de nove meses como na verdade o é. Os bebês
humanos portanto têm um ano de crescimento para recuperar quando nascem,
daí sua fragilidade (LEAKEY, 1995, p. 53).

78
Em função do nosso volume cerebral, possuímos o período de gestação mais longo Quando nos tornamos
humanos? Reflexões
entre os primatas, nosso período de gestação é o mais longo. Porém os bebês huma- sobre a origem do
homem e da cultura
nos nascem com 23% da capacidade cerebral que terão quando adultos, atingindo
um padrão compatível com o dos demais primatas recém-nascidos somente após o
primeiro ano de vida (50% da capacidade cerebral adulta). À primeira vista, a extrema
fragilidade de nossas crias neonatas poderia parecer uma grande desvantagem adapta-
tiva. No entanto, essa fragilidade e o alto grau de dependência em relação às mães esti-
mularam, ao longo de nosso processo evolutivo, o desenvolvimento de uma estrutura
social altamente complexa e coesa, estreitando, entre machos e fêmeas, os laços de
cooperação social, reciprocidade e redistribuição dos alimentos ( JAY-GOULD, 1992;
FOLEY, 1993; LEAKEY, 1995).
Deve-se considerar ainda que nossa taxa de crescimento lenta na infância, padrão
característico apenas do gênero homo, também contribui para reforçar os laços so-
ciais através do aprendizado das regras de comportamento através do convívio pro-
longado entre crianças e adultos. Porém, quando o desenvolvimento cerebral chega
ao término e atingimos nossa maturidade sexual (adolescência), apresentamos uma
taxa de crescimento abrupto (na ordem de 25% do tamanho corporal), padrão que
marca a ruptura nas relações de dependência entre indivíduos de diferentes catego-
rias etárias. Em termos adaptativos, esse padrão pode ser compreendido da seguinte
forma:

[...] se as crianças tivessem o tamanho que deveriam ter caso acompanhas-


sem o crescimento [contínuo ao longo da infância] dos macacos, a rivalida-
de física e não a relação professor-aluno poderia desenvolver-se. Quando o
período de aprendizado termina, o corpo [ao atingir a maturidade sexual]
põe-se em dia por meio do surto de crescimento da adolescência (LEAKEY,
1995, p. 52).

A REVOLUÇÃO DA LINGUAGEM E A ORIGEM DO HOMEM QUE SABE


MAIS QUE TODOS OS OUTROS
Embora os primatas sejam animais altamente sociáveis, a cerebralização e a neote-
nia apresentam-se como aspectos evolutivos que favoreceram formas de organização
social cada vez mais complexas entre os primeiros humanos, gerando, por sua vez,
uma maior “necessidade adaptativa” de formas sofisticadas de transmissão das regras
sociais entre as gerações. Por sua vez, sistemas socioeconômicos relacionados à caça
e à coleta demandam formas de transmissão de informação eficazes e detalhadas. Em
termos evolutivos, as forças da seleção natural favoreceram o surgimento de formas
cada vez mais elaboradas de sociabilidade e de transmissão de informações entre os
humanos, centradas na nossa capacidade de vocalização.

79
INTRODUÇÃO À A linguagem falada é, portanto, o “capital cultural” das sociedades humanas moder-
ANTROPOLOGIA
nas. No entanto, o desenvolvimento de um aparelho vocal capaz de produzir uma fala
articulada só se manifestou muito recentemente, em termos evolutivos, há 150.000
anos atrás, quando surgiram na África do Sul os primeiros Homo sapiens sapiens.
Outras formas arcaicas de Homo sapiens surgem no registro fóssil a partir de 400.000
anos atrás em distintas regiões do globo, ocupadas anteriormente pelo Homo erectus,
destacando-se entre estas o Homo sapiens neanderthalenses. Contudo, somente a
nossa espécie possui um crânio com base arredondada, que posiciona a laringe na
parte baixa da garganta e a faringe acima das cordas vocais, criando uma caixa de res-
sonância que amplia a nossa capacidade vocal. Quando nascem, os nossos bebês pos-
suem um padrão semelhante aos demais mamíferos, com a laringe na parte superior
da garganta, limitando a emissão de sons. Ao longo dos 24 primeiros meses de vida, a
laringe desce progressivamente, desenvolvendo-se a capacidade de fonação de forma
paralela ao crescimento do cérebro, até atingir a posição adulta, por volta dos 12 anos
de idade (LEAKEY; LEWIN, 1995).
As consequências da origem da linguagem para a história evolutiva de nossa espécie
são múltiplas. As evidências arqueológicas apontam que a maior habilidade comunica-
tiva do Homo sapiens sapiens relaciona-se de forma direta e rápida a transformações
tecnológicas que repercutem em uma maior sofisticação dos padrões de subsistência
e organização social. Por um lado, esses fatores contribuíram significativamente para
o sucesso reprodutivo de nossa espécie, cuja população se multiplicou e diversificou
rapidamente, migrando do seu berço africano para povoar o Sudeste da Ásia e a Aus-
trália há 60.000 anos, a Eurásia há 40.000 anos e finalmente a América, há 15.000 anos
(CAVALLI-SFORZA; CAVALLI-SFORZA, 1999). Por outro lado, a linguagem falada nos
proporcionou uma vantagem adaptativa para melhor lidar com as adversidades climá-
ticas da Era Glacial: a capacidade de acumular, registrar e transmitir informações. Por
“sabermos mais do que todos os outros” sapiens arcaicos, somos hoje a única espécie
remanescente de nossa árvore filogenética (BINFORD, 1993).
Por fim, nosso padrão moderno de complexidade cognitiva está documentado no
registro arqueológico a partir de 60.000 anos atrás, materializado através dos rituais
de sepultamento e das manifestações artísticas (arte móvel e parietal). Portanto, a lin-
guagem falada é o motor de uma “revolução” que deu origem à “mente moderna”,
centrada na capacidade de conceitualização do mundo natural e de expressão do pen-
samento abstrato (MITHEN, 1998; LEAKEY; LEWIN, 1995). Ao vencer a barreira da fala,
o Homo sapiens sapiens “tornou-se capaz de criar novos tipos de mundo na natureza:
o mundo da consciência introspectiva e o mundo que construímos e dividimos com os
outros, o qual chamamos cultura. A linguagem tornou-se nosso meio e a cultura nosso
nicho” (LEAKEY, 1995, p. 117).
80
Porém, se nos tornamos humanos a partir da origem da linguagem e da cultura, Quando nos tornamos
humanos? Reflexões
esse processo só adquire sentido quando o entendemos como produto de uma larga sobre a origem do
homem e da cultura
trajetória que remonta a milhões de anos da história evolutiva dos homínidas na Terra.
Nossa espécie, portanto, é o resultado de um processo evolutivo, ao mesmo tempo,
aleatório e interativo, desencadeado e estimulado pelas transformações ambientais do
Plioceno e do Pleistoceno, que geraram as condições adaptativas favoráveis à seleção
natural do bipedismo e da cerebralização. Por sua vez, nossa infância prolongada, fator
que permite o aumento de nossa capacidade cerebral, só se tornou possível porque foi
sustentada por uma estrutura social coesa, ordenada por laços de cooperação entre
seus membros, refletidos na redistribuição de alimentos e no cuidado com as crias. Por
fim, uma vez que a cultura não é inata, a linguagem falada, associada a uma infância
prolongada, amplia a capacidade de transmissão das regras sociais através dos sistemas
de ensino aprendizado.
Se a postura bípede foi o fator inicial para desencadear esse processo de transfor-
mações anatômicas e de complexidade cultural,

serão as múltiplas inter-relações, interações, interferências, entre os fatores ge-


néticos, ecológicos, praxistas (a caça), cerebrais, sociais e depois culturais, que
vão permitir conceber o processo multidimensional da hominização, o que vai
finalmente levar ao aparecimento do Homo sapiens. Isto nos indica que a ho-
minização não poderia ser concebida somente como uma evolução biológica,
nem como uma evolução espiritual, nem como uma evolução sócio-cultural,
mas sim como uma morfogênese complexa e multidimensional, resultante de
interferências genéticas, ecológicas, cerebrais, sociais e culturais (MORIN, 1973,
p. 54-55).

81
INTRODUÇÃO À QUADRO 1 - Evolução Geológica da Terra e a Origem das Espécies
ANTROPOLOGIA

IDADE PERÍODO MILHÕES DE SEQÜÊNCIA ESTÁGIO EVOLUÇÃO DAS


ERA GEOLÓGICA
GEOLÓGICA GEOLÓGICO ANOS GLACIAL CULTURAL ESPÉCIES

...
Holoceno Clima atual Neolítico
0,01

0,010 Paleolítico Homo sapiens


Pleistoceno WÜRM
0,150 Superior sapiens

Homo sapiens
Superior 0,150 Riss-Würm Paleolítico Médio
neandetrthalense

0,150
0,175
0,265
RISS
0,265
Mindel-Riss
Pleistoceno 0,300 Paleolítico Homo sapiens
Quaternário MINDEL
Médio 0,380 Inferior arcaico
Günz-Mindel
0,630
GÜNZ
0,650
0,750
1,1

Pleistoceno 1,1 Donau-Günz


CENOZÓICO Homo erectus
Inferior 1,6 DONAU

1,6 Homo habilis, Astraloptecus africanus, Australoptecus


Plioceno
5 robustus e boisei, Australoptecus afarensis.

Florescimento dos hominóides e drioptecíneos. Provável


5
Mioceno aparecimento dos hominídeos. Australopitecus anamensis
23
e ramidus

23
Terceário Oligoceno Antropoides e aparecimento dos hominóides.
35

35 Florescimento dos prossímios. Possível aparecimentos dos


Eoceno
53 antropóides.

53
Paleoceno Aparecimento dos prossímios.
65

Aparecimentos dos mamíferos placentários e marsupiais.


65
Cretácio Auge e extinção dos dinossauros. Primeiros pássaros
135
modernos.

135 Idade dos Dinossauros. Dinossauros alados e aquáticos.


MESOZÓICO Secundário Jurásico
205 Primeiros pássaros com dentes.

205 Répteis dominantes. Primeiros dinossauros. Mamíferos


Triásico
250 ovíparos.

250 Radiação dos répteis. Reptéis similares aos mamíferos.


Permiano
290 Muitas formas antigas extingüem-se.

290 Primeiros répteis. Radiação dos anfíbios. Desenvolvimento


Carbonífero
355 dos insetos modernos.

355
PALEOZÓICO Primário Devoniano Idade dos Peixes. Anfíbios. Primeiras florestas.
410

410 Aparecimento dos peixes com mandíbulas. Primeiros animais


Siluriano
440 aeróbicos. Plantas terrestres.

440 Primeiros peixes e corais tornam-se abundantes. Possíveis


Ordoviciano
510 primeiras plantas terrestres.

510 Trilobitas abundantes, também águas vivas, vermes e outros


Cambriano
570 invertebrados.

PRÉ-CAMBRIANO Proterozóico ou 570 Vários protozoários marinhos, principalmente algas. Próximo


Arcaico
OU Algonquiano 2,5 bilhões ao fim da era, algumas evidências de invertebrados.

2, 5 bilhões Primeiras algas fotossintéticas.


ARQUEOZÓICO Arqueano 3,5 bilhões Primeiras formas unicelulares de vida.
4,6 bilhões Origem da Terra

82
QUADRO 2 - Origem dos Primatas no Tempo Geológico Quando nos tornamos
humanos? Reflexões
sobre a origem do
homem e da cultura

PERÍODO
ORDEM SUB-ORDEM INFRA-ORDEM SUPER-FAMÍLIA FAMÍLIA SUB-FAMÍLIA
GEOLÓGICO

Paleoceno Prossímios ou Lemuriformes


(65-53 ma) Strepsirhini Tarsiformes
Primatas
Eoceno (Primatas Loriformes
(53-35 ma) Inferiores) Plesiadapiformes

Platarríneos
Anthropoidea (Macacos do Novo
Oligoceno ou Haplorhini Mundo)
Colobinae
(35-23 ma) (Primatas Catarríneos Cercopithecoides
Cercopithecidea Cercopithecinea
Superiores) (Macacos do Velho
Mundo)

Mioceno Propliopithecus
Hominoidea Hylobatidae Limnopithecus
(23-5 ma)

Aegyptpithecus
Mioceno Dryopithecus
Pongídea Gigantopithecus
(23-5 ma) Ramapithecus
Oreopithecus

Mioceno Gorila
Panídea
(23-5 ma) Pan

Plioceno Australopithecus
Hominídeos
(5-1.6 ma) Homo

QUADRO 3 - Os Humanos Modernos no Mundo Biológico

CATEGORIA TAXONÔMICA NOME LINEANO NOME COMUM GRUPO DE ANIMAIS

Todos os animais de sangue quente,


Classe Mammalia Mamíferos com pelos, que carregam crias
vivíparas.

Prossímios, macacos, símios e


Ordem Primates Primatas
homem.

Sub-ordem Haplorhini Haplorríneos Társios, macacos, símios e homem.

Catarríneos Macacos do Velho Mundo, símios e


Infra-ordem Catarhini
(primatas com 32 dentes) homem.

Hominóides
Super-família Hominoidea Símios e homem.
(macacos sem rabo)

Hominídeos
Família Hominídea Homem e seus ancestrais
(bípedes)

Hominíneos
Gênero Homo Homem e seus ancestrais
(cérebro grande)

Espécie Homo sapiens Homem e neandertais.

Sub-espécie Homo sapiens sapiens Homem anatomicamente moderno.

83
INTRODUÇÃO À QUADRO 4 - Cronologia Evolutiva Humana
ANTROPOLOGIA

MILHÕES
ESPÉCIES HOMINIDAS
DE ANOS
7-5 SahelanthropusTchadensis
Australopitecus anamensis e
4.54
Australopitecus ramidus
3.8 Australoptecus afarensis
Homo
2.5 Australoptecus africanus
habilis
Homo Australoptecus robustus
2 Australoptecus africanus
habilis e Australopitecusboisei
Homo Australoptecus robustus Homo
1.5 Australoptecus africanus
habilis e Australopitecusboisei erectus
Homo Homo
1
habilis erectus
Homo
0.500
erectus
Homo
Homo
0.400 sapiens
erectus
arcaico
Homo
0.200 sapiens
arcaico
Homo sapiens Homo sapiens
0.150
neanderthalense sapiens
Homo sapiens Homo sapiens
0.100
neanderthalense sapiens
0.35 até o Homo sapiens
presente sapiens

Referências

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______. Diversidade humana. Barcelona: Crítica, 1999.

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1990.

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1995.

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ELDREDGE, Niles; TATTERSALL. Los mitos de la evolución humana. México, DF.:


Fondo de Cultura Económica, 1986.

84
FOLEY, Robert. Os humanos antes da humanidade: uma perspectiva evolucionista. Quando nos tornamos
humanos? Reflexões
São Paulo: Unesp, 1998. sobre a origem do
homem e da cultura

______. Apenas uma espécie única. São Paulo: Edusp, 1993.

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LEWIN, Roger. Evolução humana. São Paulo: Atheneu, 1999.

MITHEN, Steven. A pré-história da mente: uma busca das origens da arte, da


religião e da ciência. São Paulo: Unesp, 1998.

MORIN, Edgar. O paradigma perdido: a natureza humana. Lisboa: Publicações


Europa-América, 1973.

Anotações

85
INTRODUÇÃO À
ANTROPOLOGIA

Anotações

86
6 Aprender com a
diferença: a construção
de olhares sobre nós e
sobre os outros

Katiuci Pavei

Viver em sociedade, um contínuo aprender.

As relações entre os homens não são de contigüidade, mas de intersubjetivida-


de, de engendramento, isto é, os homens não estão simplesmente uns ao lado
dos outros, mas são feitos uns pelos outros (ARANHA; MARTINS, 1993, p. 302,
Grifo do autor).

Vivemos nos relacionando e essa é uma condição humana. Relações como as de


convivência, de afeto, de respeito e de poder são estabelecidas entre pessoas, grupos
e sociedades. Como conviver de forma pacífica e feliz dentro desse emaranhado de
relações, movidas por interesses muitas vezes diferentes e até mesmo contraditórios?
Acredita-se aqui que o exercício da tolerância – entendida como o respeito ao outro,
a sua diferença e a sua singularidade, sem se submeter ou considerar tal atitude sofrí-
vel e benevolente – moldada pelos princípios da alteridade seria uma possibilidade.
Alteridade é o “exercício da capacidade de respeitar e reconhecer a cultura e os di-
reitos do outro, colocando-se no lugar deste outro a fim de melhor compreendê-lo”
(HICKMANN, 2000, p. 26).
Essa proposta de atividade pedagógica segue o entendimento de François Jacobs,
lembrado inúmeras vezes por Paulo Freire, de que somos programados para apren-
der e que esse movimento perpassa toda a nossa vida. Para aprender e apreender algo,
precisamos estar dispostos, primeiramente, a nos desprender de certas noções que
são introjetadas e elevadas ao grau de verdades absolutas, configurando-se como pré
noções de um conjunto sociocultural muito mais amplo.
Exercemos o papel de educandos pela vida inteira; porém, é na fase da educa-
ção formal que consideramos necessária uma investida maior nesse processo de

87
INTRODUÇÃO À desmistificações e de abertura ao outro. A escola é um espaço no qual a diversidade
ANTROPOLOGIA
cultural está presente, apesar de algumas tentativas de mascará-la com atitudes homo-
geneizadoras (uniformes, programas, currículos, avaliações) ou de classificá-la como
desvio e transgressão.
A visibilidade da diversidade cultural se manifesta por meio dos inúmeros sujeitos
que compõem o cotidiano da escola: os alunos com suas famílias, os professores,
os funcionários, os diretores. Esses sujeitos são provenientes de diferentes grupos
sociais, cujas situações e valores étnicos, religiosos, econômicos, políticos, de gênero
e de orientação sexual, entre outros, refletem-se nos diferentes gostos, interesses, opi-
niões, posicionamentos e necessidades.
Na atualidade, o tempo voltado à “vida escolar”, que é idealizado e praticado em
muitas sociedades, compreende um longo período da vida das pessoas, indo desde a
infância até a vida adulta, com diferentes nomeações e tempos de envolvimento. Neste
sentido, a escola tornou-se um importante agente socializador, cujo espaço físico e
social é limitado, compartilhado e disputado pelas diferenças.
Vale lembrar que a escola, assim como as demais instituições sociais, é um espaço
permeado pelos conflitos e jogos de poder externos e internos. Podemos pensá-la
também como uma esfera de disputas, por meio das quais algumas forças buscam
manter o status quo, difundir estereótipos e reproduzir as desigualdades, ao passo
que outras visam a transformar as pessoas através do exercício de um pensamento
mais crítico e reflexivo sobre o que envolve o viver em sociedade (realidades, relações,
papéis, dinâmicas, sujeitos) e o agir na construção de uma sociedade tolerante, justa
e democrática.
Por acreditar nas inovações que podem gerar a transformação social (nos moldes
acima citados), buscamos, com essa proposta pedagógica, engendrar uma concepção
desnaturalizadora do social, do contexto, do cotidiano e do próprio comportamento
humano. A ideia é desacomodar, ou seja, incentivar o abandono da posição acomoda-
da que se legitima no “sempre foi e é assim mesmo” e nos fatalismos e que responsabi-
liza o “externo”, na figura de entes (divinos ou não, como Deus, o Governo, o Estado)
ou do outro, pelas causas e soluções dos problemas sociais.
Esse objetivo pode ser atingido no contexto escolar, em que podemos utilizar como
ponto de partida as experiências sociais com as quais os alunos se identificam, uma vez
que, em grande parte, o aprendizado ocorre mediante a assimilação do conteúdo novo
ao conhecimento já tido (SALVADOR, 1994 apud DAYRELL, 1996, p. 156). Com base no
exercício da alteridade e à luz das teorias e conceitos da disciplina e de outras áreas, é
possível relacionar essa realidade mais imediata com outras realidades.

88
Tratar de tais temáticas em sala de aula é um desafio, mas não algo impossível de Aprender com a
diferença: a construção
se fazer. O primeiro passo na construção da tolerância, da aceitação e do respeito ao de olhares sobre nós e
sobre os outros
outro e a sua singularidade é o processo de conhecê-lo. Desta forma, ele é retirado da
posição de perigoso, como muitas vezes tratamos o que nos é novo e desconhecido.
Por que não começar com a diversidade presente em sala de aula? Esse processo
é interessante tanto para professores como para os alunos, pois gera aproximação,
criando um ambiente mais favorável para se desenvolver as atividades propostas. Não
estamos falando apenas da proximidade física, pois percebemos, ao longo de obser-
vações em sala de aula, que o fato de as pessoas estarem dividindo um mesmo espaço
e de muitos já se “conhecerem” há um bom tempo (professores, além dos colegas de
outras séries/etapas) não garantia um conhecimento mais profundo; em alguns casos,
o outro era estereotipado (“C.D.F.”, “maluco”, “estranho”, “bobo”, “puxa-saco”, “pa-
tricinha ou pati”).
Sugerimos que seja realizada, com todo o cuidado de que se necessita para não gerar
nenhum constrangimento, uma atividade (questionário, entrevista, jogo) que envolva to-
dos os participantes na discussão de questões diversas que abordem, por exemplo, os gru-
pos sociais dos quais eles são provenientes, quais suas referências culturais, seus valores e
visões de mundo compartilhadas, os gostos, as preferências, os hábitos, os temas de inte-
resse, as opiniões sobre a escola, as aulas e as formas de aprendizado, e assim por diante.

Sujeitos culturais
“São complexas as realidades dos agrupamentos humanos e as características que
os unem e diferenciam, e a cultura as expressa” (SANTOS, 1983, p. 7-8). Assim como as
demais criações humanas, como palavras, conceitos e ideias, também o entendimento
sobre o que é cultura varia no espaço e no tempo históricos. Sinteticamente, destaca-
remos algumas noções que tiveram grande repercussão no passado e que, em alguns
casos, mantêm-se até hoje:
1) Cultura como sinônimo de conhecimento (desde a Antiguidade): ideia que
associa conhecimento com cultura, sendo que esta significaria refinamento,
educação e erudição pessoal. A cultura fica restrita a uma única esfera da vida
social, ou seja, o conhecimento e suas expressões, como a arte e a ciência, são
prerrogativas de apenas um grupo (a elite).
2 ) Determinismo Biológico (desde a Antiguidade): ideia de que as diferenças gené-
ticas determinam as diferenças culturais. Como exemplo histórico, ressaltamos
o período nazista na Alemanha, ocorrido no século XX. No nazismo, considera-
va-se a raça ariana (branca e alemã) superior e, por conta disso, legitimava-se o
extermínio dos demais povos.

89
INTRODUÇÃO À 3) Nação (séculos XVIII-XX): ideia de que cada unidade política tem características
ANTROPOLOGIA
culturais próprias e específicas em relação às nações dominantes. É o período
histórico da formação dos Estados Nacionais (Alemão, Estadunidense, Russo).
Essa ideia de homogeneização das pessoas, de formação de um povo único,
também atingiu o Brasil, quando se buscou o “ser típico e verdadeiramente
brasileiro”.
4) Evolucionismo (século XIX): ideia de que os grupos humanos e suas culturas
estão em constante evolução (no sentido positivo), segundo uma escala que
vai da selvageria, passando pela barbárie e chegando à civilização. Assim, as
diferenças entre as sociedades eram explicadas com base no argumento de que
algumas estariam estagnadas em um grau evolutivo. Neste sentido, os índios
“selvagens”, as demais sociedades não europeias “bárbaras” (como as tribos
africanas) seriam exemplares dos estágios percorridos anteriormente pela so-
ciedade europeia “civilizada”; esses grupos também chegariam um dia ao grau
máximo da escala evolutiva. Essa tese surgiu e ganhou força durante o período
histórico da expansão neocolonial, quando a Europa, com a justificativa de levar
a “civilização” aos demais povos “inferiores”, constituiu novas colônias na África
e na Ásia. Na Biologia, surgiu a Teoria darwiniana (seleção natural e sobrevivên-
cia dos mais aptos); amplamente difundida, ela foi estendida para algumas áreas
das ciências humanas, como é o caso da Antropologia criminal, na forma de um
darwinismo social.
5) Determinismo Geográfico (final do século XIX): ideia que considera o ambiente
físico como responsável pela diversidade cultural e a impossibilidade de dife-
rentes grupos habitarem um mesmo lugar. Esse discurso é utilizado, por exem-
plo, para justificar a desigualdade do desenvolvimento econômico existente
entre as regiões norte/nordeste (“inferiores”, devido as suas condições naturais
e ao fato de que o povo é descendente, em sua maioria, de índios e negros, os
quais são considerados pouco trabalhadores) e as regiões sul/sudeste (“superio-
res”, em virtude da existência de inúmeros imigrantes/descendentes de origem
europeia, considerados muito trabalhadores).

Em nossa proposta, o entendimento de cultura é outro. Mesmo assim, é válido


lembrar que não existe um conceito único, uma definição fixa de cultura, uma “cha-
ve” para tudo, devendo-se evitar posturas generalizadoras e derivativas, muitas vezes
etnocêntricas.
De nossa perspectiva, cultura é algo que envolve todos os seres humanos, uma
vez que cada um de nós cria e recria o seu meio e ao mesmo tempo é (re)criado por

90
ele, em um movimento que se dá dialética e constantemente; resumidamente: somos Aprender com a
diferença: a construção
“portadores e produtores de cultura” (GOMES apud DAYRELL, 1996, p. 86). Segundo de olhares sobre nós e
sobre os outros
Santos (1983, p. 8, 44, 50), cultura:

[...] diz respeito à humanidade como um todo e ao mesmo tempo a cada um


dos povos, nações sociedades e grupos humanos [...] é uma dimensão do pro-
cesso social, da vida em sociedade [...] inclui todo o conhecimento num sentido
ampliado e todas as maneiras como esse conhecimento é expresso.

Nesse âmbito, os humanos são seres condicionados e não determinados biológica


ou geograficamente. Seus padrões de comportamento e as interpretações que dão
sentido e valor às emoções, ideias, ações e coisas, são influenciados por normas, como
os usos, costumes e leis do grupo no qual as pessoas são inseridas. Tal processo é
transmitido de geração a geração como modo de vida necessário para a sobrevivência
do grupo (MARCONI, 1992).
É válido pontuar que o entendimento no campo da Antropologia atual é de que
não se encontram mais grupos fechados hermeticamente, com suas culturas isoladas,
como conjuntos unitários e homogêneos, possuidores de crenças e visões de mundo
próprias. Ao contrário, conforme Canevacci (2001, p. 19), a ideia é de que existem

[...] culturas plurais: tanto dentro como fora de um determinado contexto, cul-
turas fragmentárias e competitivas, dissipadoras e descentralizadas, conjuntas e
conflitantes. Uma cultura glocal: esta é, ao mesmo tempo, global e local: partici-
pa, simultânea e conflitantemente, das ampliações globalizantes e das restrições
localizadoras.

Assim, a cultura é uma construção humana, variante no tempo e no espaço, engen-


drada pela integração mútua e recíproca dos indivíduos com o grupo, por meio da co-
municação e da intercomunicação que se processa entre os grupos (SANCHIS, 1996).
Laraia (1986) apregoa que as mudanças culturais desenvolvem-se de duas maneiras
– interna e externa – cada qual com suas características próprias. As mudanças inter-
nas, realizadas de forma lenta (ritmo que pode ser acelerado por eventos históricos),
são resultantes da dinâmica do próprio sistema cultural. Resultantes do contato entre
sistemas culturais, as mudanças externas, como a quebra de tabus e a moda, por exem-
plo, acontecem em um ritmo mais rápido e são as mais recorrentes. Neste sentido, a
cultura também pode ser concebida como

[...] um campo de luta e contestação [...] Isso significa que, longe de limitar-se
a englobar a totalidade das experiências compartilhadas pelos grupos, a cultura
está implicada com a forma pela qual tais experiências, crenças, tradições [...]
são produzidas, nos sistemas de significação, estruturas de poder e instituições
sociais (MEYER, 1998, p. 370).

91
INTRODUÇÃO À Para sintetizar a noção atual de cultura assumida pela Antropologia, utilizamos as
ANTROPOLOGIA
palavras de Geertz (1989, p. 15):

O conceito de cultura que defendo, e cuja utilidade os ensaios abaixo tentam


demonstrar, é essencialmente semiótico. Acreditando, como Max Weber, que
o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu,
assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como
uma ciência experimental em busca de leis, mas como ciência interpretativa, à
procura do significado’.

Desse modo, a cultura é entendida como um sistema simbólico subjacente ao pen-


samento humano coletivo, que o permeia, mas não é palpável. Esse sistema só é atin-
gido por meio de sua análise, ou seja, com a abstração postulada do real. Tal análise é
interpretativa, pois, na visão de Geertz (1989, p. 19), os dados são “realmente nossa
própria construção das construções de outras pessoas”. Este pesquisador não busca
“desvelar” uma realidade posta (algo naturalmente dado) e, sim, percorrer caminhos
que o conduzam às explicações contextualizadas dos fenômenos e de acontecimentos
em particular, dos modos de viver, de pensar, de agir e de se relacionar dos grupos. Isto
resultaria em uma proposta de compreensão e não de simples relação causa-efeito.
Os antropólogos estudam uma gama imensa de temáticas, envolvendo fenômenos
e questões/noções, como cultura(s), representações sociais, rituais, costumes, mitos,
sistemas simbólicos, festas, sexualidade, reprodução, família, parentesco, saúde, cor-
po, gênero, trabalho, economia, violência, conflitos, visual, imagem, cidade, urbaniza-
ção, religião, etnicidade, política, preconceito, discriminação, desigualdade, direitos
humanos, cidadania, identidade social, memória social, arte, mídia e assim por diante.
Damos um novo exemplo, agora mais específico. Quando se indaga: o que é “ser
brasileiro”, algumas ideias vão sendo associadas e de certa forma busca-se compor uma
identidade brasileira. No entanto, tais noções são criadas pelas pessoas em um deter-
minado contexto, por mais que se tente passá-las como naturais e assim generalizá-las.
Assim, o “ser brasileiro” já foi pensado como mestiço e não apto ao trabalho, motivo
pelo qual se necessitava de imigrantes que viessem branquear o povo e sua moral, tor-
nando-o civilizado (isso nas teorias raciais e políticas do início do século XX); já nos
anos do desenvolvimento urbano industrial (meados do século XX), brasileiro seria o
povo do país do futuro, forte e batalhador; hoje também se mantêm as ideias de um
povo hospitaleiro, festeiro (carnaval e futebol), “que não desiste nunca”, com beleza
física, ou ainda, que possui uma malandragem e um jeitinho para viver, e assim por
diante.
Perguntamos: todos, brasileiros, “são” assim, gostam das mesmas coisas, pensam
da mesma maneira, vivem de forma igual? Apesar das inúmeras tentativas (como as já

92
destacadas) de se construir significados sobre as pessoas, seus modos de vida, seus Aprender com a
diferença: a construção
comportamentos, que acabam sendo marcados muitas vezes por juízos de valores, não de olhares sobre nós e
sobre os outros
é possível resumir o que é “ser brasileiro” em uma única palavra. Cabe ao pesquisador
propor essa reflexão e a desnaturalização de ideias, com base em algumas questões: o
quê, quando, como, por quê, por quem, entre outras, isso foi pensado.

Os olhares construídos acerca do outro


“Os seres humanos se parecem e diferem ao mesmo tempo: observação trivial que
cada um pode fazer por si mesmo, já que as formas de vida divergem em todos os
lugares e a espécie (biológica) é uma só” (TODOROV, 1993, p. 107).
Somos tensionados por “aquilo que temos em comum” e por “aquilo que nos dife-
rencia” (GONÇALVES, 1997, p. 9), ou seja, pelas esferas da afinidade e da diversidade.
Os seres humanos são constituídos por essa tensão que engendra as identidades so-
ciais e individuais.
Os indivíduos e os grupos diferem uns dos outros, produzindo a diversidade sub-
jetiva (de cada um) e a cultural (inúmeras culturas). Diferença ou diferenciação social
é a constatação de grupos ou categorias particulares de indivíduos. Por exemplo: sexo,
idade, grupos étnicos, profissão etc.
No entanto, a diversidade, ao invés de ser considerada como um campo fértil para a
ampliação do conhecimento do meio, do outro e de si mesmo, é tida geralmente como
algo prejudicial, potencialmente perigoso, que é “a razão do conflito, ou é o que se
inventa para torná-lo legítimo, quando inevitável” (BRANDÃO, 1986, p. 8).
Percebemos, na história da humanidade, que, em virtude de uma série de carac-
terísticas e condicionantes, algumas relações adquiriram um caráter negativo e preju-
dicial. Estas agem como produtoras, reprodutoras e legitimadoras de sentimentos e
ações que demonstram a existência de uma tendência entre os grupos e os indivíduos
de se desconsiderar os elementos de convergência e de se processar a auto afirmação
por meio da negação do outro.
Assim, alguns grupos desenvolvem o etnocentrismo, que:

[...] denota a maneira pela qual um grupo, identificado por sua particularidade
cultural, constrói uma imagem do universo que favorece a si mesmo [...] e
uma referência aos grupos exteriores marcada pela aplicação de normas do seu
próprio grupo, ignorando, portanto, a possibilidade de o outro ser diferente
(TELLES, 1987, p. 75).

Essa tendência implica sentimentos de superioridade, que atribuem ao outro a


culpabilidade por situações consideradas indesejáveis. Desta maneira, “quanto mais
o etnocentrismo se torna rígido, incondicional e emocionalmente intenso, maior é

93
INTRODUÇÃO À a possibilidade de conflito com outros grupos; tais conflitos, por sua vez, reforçam e
ANTROPOLOGIA
acentuam o etnocentrismo” (OUTHWAIT; BOTTOMORE, 1996, p. 603).
Um dos resultados do etnocentrismo, somado à ignorância (MACHADO, 1996),
seria a legitimação e a manutenção da intolerância, que aqui é tratada como mais uma
forma de violência. Nesses casos, o olhar sobre o outro não é mediado pela “ética
da convivência” (GONÇALVES; LOPES, 1997, p. 10) e a diversidade não é tida “como
valor” . Assim, entra-se em um círculo vicioso: pessoas com pensamentos e posiciona-
mentos intolerantes podem gerar ações intolerantes, contribuindo para a permanên-
cia de grupos e sociedades intolerantes, formando novas pessoas intolerantes. Círculo
esse que aqui é considerado um entrave para a efetivação de sociedades de fato justas
e democráticas.
Por outro lado, a base para uma sociedade justa e democrática seria o igualitaris-
mo? Acreditamos que não, e utilizamos as palavras de Machado (1996), que tão bem
expõe essa questão:

Quer dizer, não dá para querer igualdade sem tolerar a diferença, para não virar
opressão. Todo mundo deve ter direitos iguais, as pessoas devem ser iguais
perante a lei. Mas isso em momento algum deve significar que elas tenham de
ser iguais. Porque, simplesmente, não são e não serão nunca. A igualdade tem
que se dar na esfera do convívio social. No mundo do direito, na legislação que
garanta justiça em todos os níveis [...] Toda vez que a igualdade não respeita
a diversidade, se torna injusta e tirânica. Inimiga da democracia (MACHADO,
1996, p. 58-59).

A intolerância produz e reproduz preconceitos, discriminações e desigualdades.


Poderíamos indagar: mas preconceitos, discriminações e desigualdades não são a mes-
ma coisa? A resposta é não, como veremos a seguir.
Preconceito é definido no Dicionário do Pensamento Social como “um julgamento
prévio, rígido e negativo sobre um indivíduo ou grupo”. Esse termo “deriva do latim
prejudicium, que designa um julgamento ou decisão anterior, um precedente ou pre-
juízo” (OUTHWAIT; BOTTOMORE, 1996, p. 602). De acordo com a mesma obra, os
dados de pesquisas “mostram que as atitudes usualmente rotuladas como preconcei-
tos na fala comum podem ser específicas para um grupo ou generalizadas para mui-
tos; podem ser primordialmente cognitivas, afetivas ou avaliatórias; podem referir-se
unicamente a interações sociais e pessoais ou dirigir-se a amplas políticas públicas; e
podem ser importantes ou periféricas para o ator individual” (OUTHWAIT; BOTTO-
MORE 1996, p. 603).
As principais conclusões dos estudos pontuados no Dicionário do Pensamento So-
cial são:

94
1) Tais preconceitos negativos, embora generalizados, não são universais. Aprender com a
2) O preconceito não é monopólio dessa ou daquela sociedade, dessa ou da- diferença: a construção
de olhares sobre nós e
quela cultura. sobre os outros
3) O preconceito não é inato, mas deve ser aprendido.
4) Os preconceitos em relação a diferentes grupos tendem a andar juntos:
as pessoas que manifestam preconceito para com um grupo étnico mostram
tipicamente atitudes semelhantes para com outros ‘grupos de fora’.
5) Os indivíduos variam imensamente na intensidade e na espécie de seus pre-
conceitos.
6) Os preconceitos encorajam os comportamentos discriminatórios e as orien-
tações dadas às políticas públicas e são, ao mesmo tempo, gerados por eles.
7) Preconceitos e comportamentos não precisam ser congruentes; situações
específicas podem afetar consideravelmente a conduta, apesar de atitudes ge-
neralizadas (OUTHWAIT; BOTTOMORE, 1996, p. 603).

Os preconceitos expressam-se de diversas maneiras, algumas mais sutis, outras


mais evidentes. Em determinadas sociedades, busca-se velar, disfarçar ou não aceitar
que tais concepções e ações ocorram. Isso pode ser observado na própria sociedade
brasileira, que, sob o mito fundante da miscigenação ou da “fábula das três raças”, nos
dizeres de Da Matta (2000), apresenta-se como uma sociedade harmônica.
Uma forma muito comum de preconceito é o uso de estereótipos negativos na refe-
rência a certos grupos; trata-se de uma conotação depreciativa e rotuladora do outro.
Essa forma é, às vezes, utilizada de forma involuntária e inconsciente por seus agentes,
como, por exemplo, um xingamento durante uma discussão. Uma ideia estereotipada
acerca do outro é cristalizadora e simplificadora, geralmente implicando uma genera-
lização com base na exacerbação de uma característica.
Conforme assinala Rocha (1993, p. 18-20):

As idéias etnocêntricas que temos sobre as ‘mulheres’, os ‘negros’, os ‘em-


pregados’, os ‘paraíbas de obra’, os ‘colunáveis’, os ‘doidões’, os ‘surfistas’, as
‘dondocas’, os ‘velhos’, os ‘caretas’, os ‘vagabundos’, os gays e todos os demais
‘outros’ com os quais temos familiaridade são uma espécie de ‘conhecimento’
um ‘saber’, baseado em formulações ideológicas, que no fundo transforma a
diferença pura e simples num juízo de valor perigosamente etnocêntrico.

O preconceito expressa-se também na discriminação, entendida como um conjun-


to de práticas baseadas em uma suposta superioridade, que favorecem determinada
coletividade em prejuízo de outra (OUTHWAIT; BOTTOMORE, 1996). Tais práticas
podem ser efetivadas por indivíduos, grupos ou instituições contra os considerados,
negativamente, como diferentes, em razão de sexo, cor da pele, etnia, classe social,
religião, orientação sexual, aparência pessoal.
A discriminação é visível no mercado de trabalho, por meio da não oferta de va-
gas e da adoção de salários diferenciados para atividades semelhantes. Por exemplo:

95
INTRODUÇÃO À pesquisas norte-americanas demonstram que as pessoas diagnosticadas pela biome-
ANTROPOLOGIA
dicina como obesas são preteridas nas contratações e que seus salários são menores
do que os dos demais colegas que exercem funções empregatícias semelhantes. As
justificativas para as rejeições são, em geral, alegações de motivos médicos, como uma
maior propensão a doenças1. Segundo Fischler (1995), tendo em vista as represen-
tações (em sua maioria negativas) sobre esse grupo, os obesos são percebidos como
pessoas lentas, indisciplinadas e irresponsáveis. Essa classificação tem como base o
seguinte pensamento: “se não cuidam de si, como poderão gerenciar uma empresa”.
Isso demonstra que questões morais associadas à aparência física são importantes,
pois implicam considerar as pessoas gordas, cujas dimensões do corpo são superiores
ao padrão idealizado socialmente, como trabalhadores incompatíveis com o modelo
de profissional produtivo próprio do sistema capitalista vigente.
Há um tipo de discriminação que é institucional, porque “ocorre independente-
mente do fato de a pessoa ter ou não preconceito aberto ou intenção de discriminar”
(BENTO, 1998, p. 54).
Um episódio que ocorreu em janeiro de 2005 na cidade de Porto Alegre, durante o
vestibular de uma universidade, pode constituir um exemplo de discriminação institu-
cional. O fato, amplamente divulgado na imprensa local, envolveu dois jovens negros
vestibulandos e policiais da Brigada Militar. Conforme relato dos policiais, havia um
veículo de transporte público parado, com o pisca alerta ligado, e os jovens estavam
com um comportamento suspeito. Já os jovens e algumas testemunhas afirmaram que
eles estavam perto do colégio onde prestavam as provas e, quando se perceberam a
hora, correram para conseguir chegar antes do sinal. Eles foram detidos, revistados
(apesar de explicarem que eram vestibulandos) e, posteriormente, liberados pelos
policiais. Porém, quando voltaram ao colégio, os portões já estavam fechados e eles
não puderam prestar as provas do dia. A dúvida quanto à ação policial, como um
procedimento institucional padrão, surgiu a partir do relato dos jovens detidos e de
testemunhas que relataram que outros jovens vestibulandos, porém brancos, também
estavam correndo e não foram detidos, tal como aparece na letra de uma música do
grupo de rap Racionais MC´s: “... Quem é preto, como eu, já está ligado qual é, nota
fiscal, RG, polícia no pé...”, apresentada por Bento (1998, p. 57).
Entre as práticas mais generalizadas de discriminação, encontra-se o racismo.

A palavra ‘racismo’, em sua acepção corrente, designa dois domínios muito di-
ferentes da realidade: trata-se, de um lado, de um comportamento, feito, o mais

1 OLIVEIRA, Maurício. Minoria da pesada. Disponível em: <http://veja.abril.uol.com.br/educação/pesquise/obesi-


dade/1676.htm>. Acesso em: 3 fev. 2003.

96
das vezes de ódio e desprezo com respeito a pessoas com características físicas Aprender com a
bem definidas e diferentes das nossas; e, por outro lado, de uma ideologia, de diferença: a construção
de olhares sobre nós e
uma doutrina referente às raças humanas (TODOROV, 1993, p. 107). sobre os outros

“Racismo”, segundo o Dicionário do Pensamento Social (OUTHWAIT; BOTTO-


MORE, 1996, p. 643), é uma noção europeia surgida no regime nazista, baseada em
um sistema classificatório de “raças”, no qual a “ariana” alemã aparece como a supe-
rior. Nesse ideário, as qualidades morais e culturais teriam origem na constituição
biológica dos grupos. Além disso, as causas dos males de um grupo ou sociedade,
principalmente nos momentos de crise (econômica, política, moral etc.), seriam atri-
buídas à co existência de outros grupos. Esse conjunto de ideias que constitui o “ra-
cismo” foi generalizado para designar as classificações de superioridade/inferioridade
de outros grupos, como, por exemplo, pela cor da pele, sexo (sexismo) e origem
étnica (xenofobia).
As concepções ideológicas dos determinismos biológicos e geográficos, dos pre-
conceitos, dos estereótipos são acionadas na legitimação de certas desigualdades,
como, por exemplo, a afirmativa de que “negro é pobre porque é negro”.
Desigualdade social não é sinônimo de diferença social. Desigualdade social é uma
forma de discriminação, pois consiste em uma privação social (RODRIGUES; SOUZA,
1994), ou seja, certos grupos são privilegiados em contraposição a outros que não têm
seus direitos e oportunidades efetivadas, o que demonstra o desrespeito à igualdade
formal de todos perante as normas e as leis.
Segundo um estudo do BIRD (Banco Mundial) realizado em 2004 e publicado no
jornal Folha de São Paulo no mesmo ano, “a América Latina sofre de uma enorme desi-
gualdade. O país da região com a melhor distribuição de renda ainda permanece mais
desigual do que qualquer outro da Europa Oriental”. O país referido é o Brasil. Tendo
em vista a distribuição de renda na América Latina e no Caribe, ele é o país que apre-
senta a maior desigualdade. De acordo com o Índice Gini (indicador internacional que
varia de 0 a 1; zero significaria que, em uma situação ideal, cada um dos habitantes de
um país teria renda idêntica; quanto mais alto o índice, maior é a concentração de ren-
da), o indicador para o Brasil é 0,59. Os 10% mais ricos recebem 47,2% da renda, e os
20% mais pobres, apenas 2,6%. Nos países da região, os 10% mais ricos ficam com um
valor que vai de 40% a 47% da renda, e os 20% mais pobres, de 2% a 4% (FOLHA, 2004).
A desigualdade apresenta-se de inúmeras maneiras: na educação formal (matrícu-
las, taxa de analfabetismo), no mercado de trabalho (vagas, remunerações), na concen-
tração de renda, nas condições de moradia, entre outras. Os grupos que geralmente
são vítimas da desigualdade são as mulheres, os negros, os portadores de deficiência
e os pobres.

97
INTRODUÇÃO À A própria escola acaba, em certos momentos, produzindo, ou melhor, reprodu-
ANTROPOLOGIA
zindo e legitimando desigualdades. Para alguns autores, como Althusser, Bourdieu
e Passeron, a escola é um local privilegiado, onde se aprendem saberes e normas de
comportamentos que são ensinados conforme os interesses de determinados grupos.
Uma vez que a sociedade é estratificada, os significados culturais e simbólicos dos
grupos dominantes acabam sendo valorizados socialmente e utilizados para mediar as
relações de poder na sociedade. Esse ensino seletivo do que se considera “importante”
conhecer é realizado por meio dos currículos escolares, das disciplinas, das leituras
dirigidas, dos valores que ali se impõem, do “olhar histórico”, muitas vezes, naturaliza-
dor e recortado. Isto aparece, por exemplo, na narrativa sobre a “História do Brasil”:
na maior parte dos livros, o foco de origem é o “descobrimento” e a cultura da etnia
branca europeia, renegando-se os povos e as culturas aqui já existentes – os índios.
A intolerância entre os grupos sociais é cotidianamente banalizada e exercida de
inúmeras maneiras: nas piadas ou charadas ofensivas; nas palavras que denotam algo
ruim, formadas a partir de raízes étnicas; nos provérbios populares; nas “brincadeiri-
nhas”; nos rótulos e estereótipos; nas representações sociais negativas; nas ironias;
nas difamações; nos xingamentos; nos desmerecimentos; nas generalizações; nas ten-
tativas de evitar, não se aproximar ou “se misturar”; nas ameaças; nos assédios; nos
prejuízos ao patrimônio; em pichações; nas reações de reprovação ou de nojo; nas
omissões (diante de certos casos); nas eliminações; nos isolamentos; nas mortes; nas
manifestações xenófobas entre habitantes de regiões de um mesmo país ou entre po-
vos; nos genocídios; nas “limpezas” étnicas; nas guerras de cunho religioso e/ou étnico
que tomam abrangência intra e internações; nos sentimentos de raiva e repúdio; nas
desigualdades sociais, entre outras.

Agora, juntando tudo o que foi apresentado


É através dos diferentes processos de socialização, como os ocorridos no grupo
familiar e na escola (doutrinação, por exemplo), que os conjuntos de crenças, valores
e sentimentos culturalmente construídos vão sendo aprendidos. Tais concepções vão
sendo difundidas e normatizadas, impulsionando e legitimando posicionamentos e
atitudes. É o que também ocorre com o etnocentrismo e suas variadas formas de ex-
pressão, como o preconceito e a discriminação.

Quando tais preconceitos passam a ser normatizados, as expectativas e exigên-


cias encadeadas de autoridades e de pares criam pressões e induções ao con-
formismo. Dessa forma, uma “tradição cultural de preconceito pode adquirir
grande força e persistência (OUTHWAIT; BOTTOMORE, 1996, p. 4).

98
Assim, temos em vista que o social, compreendido em todas as suas esferas (econô- Aprender com a
diferença: a construção
mica, política, religiosa, legal, artística, etc.) é construído, reconstruído e reproduzido de olhares sobre nós e
sobre os outros
culturalmente. A lente das culturas específicas e o exercício da alteridade são as ferra-
mentas para uma melhor compreensão das diferentes sociedades.
Já quanto à compreensão de nossa própria sociedade, o exercício a ser feito é o
estranhamento do familiar. O estranhamento é uma estratégia metodológica funda-
mental dos antropólogos, porque implica o “distanciamento moral e cultural” (DINIZ,
2001) que possibilita compreender a diferença: ao estranhar o outro (grupos, culturas,
sociedades), pode-se vê-lo como diferente (e não como desigual) em relação ao eu ou
a nós. Assim, ao se distanciar e observar o familiar, ou seja, a sua cultura e sociedade,
o antropólogo consegue realizar o processo de desnaturalização do social que envolve
todas as esferas da vida dos nativos (grupos estudados) e do próprio pesquisador.
Neste sentido, concordamos com a afirmação de que “uma reflexão sobre nossos
próprios valores, crenças e condutas é fundamental para entendermos as desigual-
dades sociais na sociedade brasileira” (BENTO, 1998, p. 7). Portanto, consideramos
necessário tratar, no ambiente escolar, de questões como as que dizem respeito à cons-
trução de percepções sobre o outro em nossa cultura, do quanto essas percepções
são permeadas por elementos de intolerância e do quanto esse discurso intolerante é
reproduzido em nossos olhares e ações sobre o outro.
Com base nesses exercícios de alteridade e de estranhamento, chega-se à relativiza-
ção. Relativismo cultural é entendido como certa apreensão da realidade e colocação
de todas as culturas em um mesmo patamar de valor, como forma de evitar a hierar-
quização de tipos culturais (DA MATTA, 1986, 2000).
Relativizamos, de acordo com Rocha (1993, p. 20),

quando vemos que as verdades da vida são menos uma questão das coisas e
mais uma questão de posição [...] Quando o significado de um ato é visto não
na sua dimensão absoluta, mas no contexto em que acontece [...] Quando com-
preendemos o outro nos seus próprios valores e não nos nossos.

No entanto, tal relativismo não significa reconhecer como igualmente válidos


quaisquer valores e manifestações culturais. Ao considerar “tudo válido”, não cons-
truímos “uma reflexão crítica das configurações sociais” nem a “possibilidade de ava-
liação intercultural” (MONTEIRO, 1996, p. 44) e deixamos os mais diversos tipos de
julgamentos e penas encerrados unicamente em cada cultura. O que consideramos
fundamental é que a pessoa humana seja tratada como valor e que a integralidade de
sua dignidade seja respeitada e mantida.

99
INTRODUÇÃO À Para terminar
ANTROPOLOGIA
A Comissão Europeia publicou a brochura Racista, eu?!, dirigida a professores e
jovens, que contém várias historinhas e documentos que visam à reflexão e ao debate
sobre o racismo. Esse material pode ser acessado na Internet, por meio do Portal da
União Europeia (também publicada em língua portuguesa).
Fonte: Disponível em:
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Proposta de Atividades

Pensando e Sentindo a Diversidade Cultural

Introduzir a temática da cultura (conceitos, características, diversidade), incentivando a


reflexão sobre a visão do senso comum e a antropológica com base no exercício do relativismo
cultural, por meio do qual se pode comparar os possíveis “graus” de cultura, e no despertar
dos sentidos.

Dinâmica: Graus de Cultura.


Através de imagens de pessoas de etnias e sexos diferentes em situações diversas, propõe-
-se uma comparação sobre quem tem “mais” cultura (possível hierarquização).
Recursos: papel duro, cola, imagens de revistas ou jornais retratando, por exemplo: ho-
mem índio, mulher negra africana, mulher branca lendo um livro, operário negro, empresário
branco, pessoas reunidas em um teatro.

Dinâmica: O que é cultura.


Os alunos e as alunas escreverão no quadro o que acham que é cultura; em seguida, reali-
za-se uma exposição de tópicos sobre cultura, características, conceitos.
Recursos: Giz e quadro.

Dinâmica: Sentindo a Diversidade Cultural.


Através do estímulo dos cinco sentidos, apresentados em uma instalação, busca-se explo-
rar um pouco da diversidade cultural.
Recursos: imagens, comidas, bebidas, músicas, roupas, objetos de diferentes grupos.

Observando o familiar
Realizar o exercício de estranhamento da nossa sociedade, por meio da representação de
ações ritualizadas do cotidiano, da identificação dos objetos utilizados e dos significados dados
aos mesmos em tais rituais. Busca-se com esse exercício despertar nos alunos um olhar mais
atento para a influência cultural no seu viver, a fim de desnaturalizá-lo.

Dinâmica: Nosso dia


Dramatização de ações que compõem certos rituais do nosso dia a dia, como: acordar; hi-
giene pessoal; vestir; comer; locomover; trabalhar; estudar; prática de esporte; etc. Cada aluno
sorteará um papel no qual está indicada a ação que deverá representar apenas com gestos e
com objetos da sala de aula (cadeiras, mesas). Os expectadores deverão descobrir o que está
sendo representado e se está faltando algo no ritual.
Recursos: cartões com a indicação da ação, espaço para as representações, quadro e giz.

103
INTRODUÇÃO À Alteridade
ANTROPOLOGIA
Observar como a alteridade pode ser exemplificada através de filmes. A proposta é in-
centivar a reflexão sobre a possibilidade de compreender e respeitar o outro e sua cultura,
fazendo-se o movimento de se colocar no lugar dele (e que esse exercício seja uma constante
em nossas vidas).

Dinâmica: Trocando papéis


Apresentar um filme ou trechos selecionados de filmes, em que alguns personagens tro-
cam de corpos, geralmente por um passo de mágica, e, por consequência, de papéis.
Recursos: aparelhos de vídeo, fitas ou DVDs de filmes, como, por exemplo, Sexta-Feira
Muito Louca, 2003 (Refilmagem de Se Eu Fosse a Minha Mãe , 1976) Mãe e filha trocam de
corpos; Tal Pai Tal Filho, 1987 - pai e filho trocam de corpos.

Nossas percepções sobre o outro

Colher algumas percepções dos alunos e das alunas acerca de grupos sociais historicamen-
te vitimizados por preconceitos e discriminações no Brasil.

Dinâmica: Histórias de Vida


Construção de histórias de vida pelos alunos e alunas em conjunto, com base em imagens
que apresentem pessoas em situações socioeconômicas diferentes, nas quais conste o porquê
dessas situações e as justificativas sobre as concepções apresentadas.
Recursos: papel, cola, folhas para escreverem as histórias, imagens retratando, por exem-
plo: um homem branco rico e um homem negro pobre.

Dinâmica: Estereótipos
A partir de imagens de representantes de certos grupos sociais historicamente vitimiza-
dos por preconceitos e discriminações no Brasil, propõe-se o exercício de identificação e ca-
racterização dos mesmos. Algumas imagens são repassadas aos alunos e alunas, que devem
apresentar essas pessoas (como são chamadas, quem e/ou como são, o que fazem), como se,
hipoteticamente, o professor(a) fosse um(a) estrangeiro(a).
Recursos: papel duro, cola, imagens de representantes de grupos sociais, geralmente viti-
mas de estereótipos, por exemplo: “loira burra”, “mauricinho ou playboy”, “gay”, “aidético”,
“gorda”, “político corrupto”, “juiz ladrão”.

Dinâmica: Gênero em questão


Discutir as concepções sobre sexo e gênero, buscando desnaturalizá-las. Os alunos e as
alunas, divididos em grupos por sexo, irão desenhar e caracterizar coisas de homem e de
mulher. Cada grupo faz dois desenhos, colocando em separado os corpos de um homem e de
uma mulher e destacando suas possíveis características psíquicas e emocionais e as atividades
de cada gênero, como se as estivessem apresentando a um ET. Depois, os cartazes são fixados
no quadro e apresentados para todos.
Recursos: papel pardo, canetas hidrocor, giz de cera, lápis de cor.
Percepções preconceituosas sobre o outro
Trabalhar com as percepções sobre determinados grupos sociais, dando ênfase à constru-
ção de preconceitos, estereótipos e discriminações, difundidas tanto nos meios de comunica-
ção quanto nos meios sociais dos alunos e alunas (família, escola, amigos). O objetivo é favo-
recer uma recepção crítica de tais informações, compelindo os alunos a uma reflexão sobre
os nossos preconceitos, identificando-os, não-naturalizando-os, para, na medida do possível,
evitar acioná-los.

104
Dinâmica: Identificando os preconceitos Aprender com a
diferença: a construção
Apresentar e discutir ideias preconceituosas, expressas de diversas maneiras, acerca de de olhares sobre nós e
determinados grupos sociais. sobre os outros
Exemplo a) Em publicações voltadas ao público infantil e juvenil distribuídas para cada
aluno, pedir para que destaquem as representações relacionadas a etnia (brancos, negros e
índios), gênero, trabalho, relações interpessoais, corpos, condições econômicas, papel social,
etc. Exemplos de questões: como se comportam os índios e os negros?; Quem trabalha, e quais
são as atividades de trabalho realizadas pelos brancos, negros, mulheres, homens? Quem são
os ricos e os pobres (cor de pele)? Como são os corpos dos heróis e dos bandidos (cor de pele,
forma do corpo)?
Recursos: histórias em quadrinhos, contos, obras literárias, livros didáticos.
Exemplo b) Como imagens, retiradas da publicidade, de charges ou tirinhas, retratam de
forma pejorativa determinados grupos ou discutem essa questão. Recursos: Imagens, peças
publicitárias, charges. Sugestões: O livro As doze faces do preconceito (Pinsky, 2001) apresen-
ta doze tipos de preconceitos e suas vítimas, com imagens e textos; as tirinhas que discutem
diversas questões são encontradas em jornais, livros e páginas na Internet, como as da Ma-
falda (Quino), do Calvin ( Watterson), das Mulheres Alteradas (Maitena), do Radicci (Iotti).
Exemplo c) Leitura em voz alta de piadas, textos e letras de músicas, identificando as
pessoas que estão sendo referidas, como são apresentadas, o que fazem, ou seja, que ideias
estão em circulação.
Recursos: piadas, revistas de humor, páginas da Internet (ex: www.humortadela.uol.com.
br), letras de música (algumas músicas de rap norte-americano ou de funk carioca retratam em
letras e imagens questões de gênero).
Exemplo d) Leitura em voz alta de alguns provérbios (adágios) que são entendidos como
máximas populares, destacando neles o que se transmite sobre certos grupos, como: “Mulher
e galinha são bichos interesseiros: galinha por milho, mulher por dinheiro”. Recursos: Provér-
bios.
Exemplo e) Leitura em voz alta de alguns vocábulos que constam nos dicionários de
língua portuguesa, cujos significados estejam relacionados a grupos de forma depreciativa,
como: “judiaria - ato de judiar, maus-tratos; grande porção de judeus, bairro destinado aos
judeus”; “denegrir desacreditar, macular; tornar negro, escuro” (Fonte: FERREIRA, Aurélio
Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio escolar da língua portuguesa, 1988).
Exemplo f ) Assistir a filmes e video clipes que apresentem cenas com pessoas vitimizadas
e ideias preconceituosas; deve ser preparado um roteiro que guie o olhar dos alunos, tornan-
do-o mais atento para determinadas questões, e que sirva para fomentar o debate.
Recursos: trechos de filmes (há uma séria de norte-americanos com adolescentes estereo-
tipados) e de videoclipes.

Anotações

105
INTRODUÇÃO À
ANTROPOLOGIA

Anotações

106
7 Antropologia da e para
a educação

Valéria Soares de Assis

Afinal, qual o papel da antropologia para a educação e para a formação de futuros


profissionais pedagogos? Você pode chegar ao final deste livro e ainda ter dúvidas
sobre a relação entre a antropologia e a educação. É possível dizer um pouco mais
sobre essa relação e conhecer alguns argumentos-chave para a sua compreensão. A
afinidade entre essas duas áreas é perceptível já de início. As duas possuem temáticas
semelhantes que abrangem questões socioculturais. Ou seja, como já dito nos capítu-
los anteriores, ambas atentam para as problemáticas sociais, econômicas, étnicas, de
gênero, entre outras.
O ponto que mais aproxima a antropologia da educação é a percepção de como
esta última se apresenta como um espaço privilegiado para o fomento de interpreta-
ções sobre o homem, especialmente a possibilidade de explorar a variedade dos ciclos
de vida (infância, juventude, vida adulta, velhice etc.).
Como afirma Cunha (2005, p. 6):

[...] a educação envolve a permanente produção de imagens sobre o que é a


vida humana, imagens sobre o poder do homem de auto-recriar-se continua-
mente, imagens sobre a liberdade humana de autotransformar-se em alguma
direção valorizada como digna de mais vida humana.

Da mesma forma, a antropologia desenvolve uma produção científica que possui,


entre outros, o interesse pela compreensão do homem em sua totalidade sociocultu-
ral, como pode ser lembrado revendo os primeiros capítulos deste livro.
A educação, entendida como um campo de conhecimento em construção, utiliza
conceitos, metodologias e perspectivas teóricas que dependem do contexto sociocul-
tural e histórico no qual eles estão inseridos. Ela tem como interesse a formação do
ser humano de acordo com os valores de seu meio, o que implica considerar seus as-
pectos sociais, culturais e históricos. Assim, é significativo considerar a educação tanto
como um espaço que participa da construção do social quanto é afetada por ela. Ou
seja, é influenciada por esse contexto do qual faz parte.

107
INTRODUÇÃO À O diálogo com a antropologia permite aprofundar tais aspectos. A comunicação en-
ANTROPOLOGIA
tre elas torna conscientes as influências que afetam tanto a prática quanto a construção
de teorias para a educação. Portanto, uma antropologia da e para a educação também
pretende estimular uma criticidade sobre o fazer e o pensar educativo, considerando
os pontos que lhe são convergentes.
Assim, neste capítulo se pretende destacar a contribuição da antropologia para a
educação focando em três aspectos: na concepção de homem e sua constituição; na
perspectiva antropológica da cultura e da sociedade e seus desdobramentos na educa-
ção e, por fim, na perspectiva crítica que se pode obter com os desenvolvimentos mais
recentes sobre educação e antropologia.

O HOMEM E A CONSTRUÇÃO DE NOSSA HUMANIDADE


Vimos no capítulo deste livro, intitulado “Como nos tornamos humanos? Reflexões
sobre a origem do homem e da cultura”, que nossa humanidade é uma combinação
entre o biológico e o sociocultural.
Todos nós nascemos biologicamente homens (Homo sapiens sapiens), mas para
sermos efetivamente humanos isso não basta. É necessário todo um processo para tor-
nar-se humano. Portanto, ser humano é uma construção, diferente das outras espécies
que já nascem prontas e programadas.
Para retomar esse ponto e permitir que você reflita sobre essa distinção, basta ima-
ginar um animal qualquer. Podemos indicar, por exemplo, um gato. Ao o observarmos
recém-nascido, será possível perceber que ele nasce já com todos os elementos neces-
sários para sua vida. Ninguém precisa ensinar a um filhote de gato como se comportar
como tal, porque ele é geneticamente programado para isso. O mesmo se pode dizer
de um vegetal. Todos os elementos necessários para uma goiabeira vir a ser uma já
está presente em sua semente, basta que as condições ambientais lhe permitam o seu
desenvolvimento.
Ao contrário, os humanos nasceram

“[...] para a humanidade. Nossa humanidade biológica necessita de uma con-


firmação posterior, algo como um segundo nascimento no qual, por meio do
nosso próprio esforço e da relação com os outros humanos, se confirme defini-
tivamente o primeiro” (SAVATER, 2000, p. 30).

Quando se expressa aqui que todo homem precisa ter humanidade para vir a ser
homem de fato, não se está pensando em humanidade como uma qualidade signifi-
cando bons valores. Ou seja, humanidade aqui não tem o sentido de se ter uma boa
conduta moral. Um homem, mesmo com o pior caráter, tem a sua humanidade. Ele

108
carrega consigo todas as características básicas compartilhadas entre todos os huma- Antropologia da e para a
educação
nos. A humanidade engloba a todos, pacifistas e criminosos, ateus e religiosos, more-
nos e loiros, pobres e ricos, analfabetos e intelectuais etc.
O sentido de humanidade que aplicamos aqui é o de uma qualidade inerente aos
humanos, independente de seus valores ou crenças. Contudo, é algo que, para se
manifestar, precisa da convivência com seus semelhantes. Enfim, dito de outra forma,
para termos humanidade precisamos aprendê-la com outros humanos.
Os estudos antropológicos sobre evolução e comportamento nos levam a conhecer
a importância do aprendizado humano em seu processo de humanização.
A neotenia, a infância prolongada (como vimos no capítulo de Dias neste livro), é
uma característica humana que impõe a necessária convivência em grupo, a uma or-
ganização social mínima. Nascemos em uma condição biológica de muita fragilidade.
A neotenia significa isso, que nascemos sem atingir completamente a formação neces-
sária para a sobrevivência. Por virmos ao mundo de forma muito prematura, depende-
mos de relações com outros humanos para concluirmos nossa formação. Chegamos
ao mundo em uma situação de completa dependência física e social. Sem os cuidados
dos mais velhos, não teríamos chance de nos mantermos vivos, tanto como indivíduos,
quanto como espécie.
A grande dependência dos recém-nascidos estimulou o agrupamento humano
como essencial para a sobrevivência das futuras gerações. É nesse contexto que se
entende a importância da aprendizagem. É na imitação dos outros nesse ambiente
social que se complementa a nossa formação. Repetição não só de aspectos técnicos,
instrumentais, mas principalmente da linguagem, do saber abstrato do mundo e das
pessoas. É especialmente sobre essa característica que interessa nos deter. Na con-
vivência com outros humanos, vamos aprendendo a ser um deles. Assim, se verifica
que a disposição para aprender revela-se como uma das bases de nossa humanidade.
E é nessa característica, a disposição para aprender, que encontramos um dos pontos
de convergência entre a antropologia e educação, pois se trata de um aprendizado
característico.
Sabemos que aprender não é uma ação exclusiva dos homens. Outras espécies
animais também possuem essa habilidade. Quando se aborda essa característica para
o homem, engloba-se sua capacidade de gerar, imitar, aprender e transformar saberes
simbólicos. Como saber simbólico se quer dizer o conhecimento das coisas, do mun-
do, das pessoas através de abstrações lógicas construídas pela mente humana, como a
linguagem. Palavras, números e formas artísticas são abstrações que criamos e que nos
ajudam a conhecer o mundo e a nós mesmos.

109
INTRODUÇÃO À Quando Savater (2000, p. 39) afirma que “O homem o é através do aprendizado”,
ANTROPOLOGIA
ele está se referindo a esse tipo de saber. Nascemos com a capacidade de aprender e,
hipoteticamente, poderíamos pensar em um aprendizado autônomo. Ou seja, poderia
se pensar que, já que nascemos com a capacidade nata para aprender, poderíamos
aprender sem precisar de outros seres humanos. Contudo, no aprendizado que a an-
tropologia revela para esse entendimento do humano, o processo educacional preci-
sa ser especificamente o da convivência e do contato com o mundo simbólico. Isso
porque é somente a partir do contato com esse saber simbólico que podemos vir a
conhecê-lo e sobre ele nos reinventarmos e reinventar esse saber.
Ou, como propõe Wulf (2005, p. 44):

Ninguém é sujeito na solidão e no isolamento, sempre se é sujeito entre ou-


tros sujeitos: o sentido da vida humana não é um monólogo, mas provém do
intercâmbio dos sentidos, da polifonia coral. Antes de mais nada, a educação é
a revelação dos outros, da condição humana como um concerto de cumplici-
dades inevitáveis.

É fácil entender a impossibilidade do aprendizado autônomo se imaginarmos, hi-


poteticamente, a criação de dois irmãos gêmeos em dois contextos muito diferentes.
Um sendo criado em uma cidade qualquer de médio porte do nosso país e outro em
uma propriedade rural no interior. Cada um deles reproduzirá uma forma de pensar e
viver correspondente ao lugar e às pessoas de sua convivência. Suponhamos que um
dos irmãos, o que vive no interior, tenha aprendido a pescar de forma semelhante à
dos índios que são seus vizinhos e o da cidade nunca tenha conhecido essa atividade.
Se apresentarmos um pari1 para o irmão da cidade, ele não saberá o que é ou qual a
função de um pari. Embora os dois sejam biologicamente semelhantes e tenham a
mesma capacidade cognitiva, eles dependem de serem apresentados aos saberes já
existentes. O menino da cidade não aprendeu o que é pari, ao contrário do menino
da área rural. E sozinho, o menino da cidade não saberá o que é aquela estrutura, seu
nome, significado e funcionalidade. Ele depende de outros para vir a conhecê-lo.
Assim, percebemos que só podemos conhecer no contato com outros humanos.
Somente será possível reproduzir e produzir nossa humanidade segundo a bagagem
simbólica adquirida na convivência com determinado grupo social. O que cada um
será não dependerá apenas de sua capacidade de aprender, mas significativamente
com quem aprendeu a ser o que é.

1 Estrutura em madeira ou pedra feita pelos índios em rios ou enseadas marítimas com a intenção de represar
peixes e assim capturá-los.

110
Esse aprendizado do simbólico como uma marca da nossa característica humana Antropologia da e para a
educação
nos leva também à compreensão de que se trata de um processo sociocultural. Tratar
de aprendizado humano é tratar de cultura, outro tema privilegiado da antropologia e
que se conecta com os interesses da educação.
Educação e cultura são elementos que estão entrelaçados de tal forma que ao se
tratar de um, imediatamente nos remetemos ao outro, direta ou indiretamente. Re-
lembrando o que afirmamos anteriormente, no processo de aprendizagem, as gera-
ções mais novas aprendem com os adultos, muito mais do que técnicas, conteúdos de
disciplinas etc. Os mais novos aprendem especialmente pelo contato intersubjetivo
e pelo exemplo de conduta desse adulto. É no seu vínculo subjetivo que se constrói
uma percepção sobre si e sobre seu mundo sociocultural ambiental. E é esse conjun-
to simbólico que a antropologia se debruça e estuda. E é sobre essa ideia de cultura
que ela pretende contribuir com a educação. Veremos este aspecto com mais vagar
a seguir.

CULTURA E CULTURAS: AS APROPRIAÇÕES PARA A EDUCAÇÃO


Todos os capítulos anteriores, de forma mais ou menos aprofundada, trataram de
nos informar sobre a noção antropológica de cultura e como ela pode e deve ser ado-
tada na educação. Embora o assunto esteja bem colocado, ainda cabe reforçar alguns
aspectos importantes, especialmente para evitar, ao usar o termo cultura, de cair em
essencialismos (SAHLINS, 2004a).
Compreendemos ao longo de todo este livro que toda sociedade humana se ca-
racteriza por produzir cultura. Também vimos que não podemos falar de cultura no
singular, mas de culturas. Cada sociedade apresenta suas características culturais
específicas, mas que sofrem mudanças constantes por não serem isoladas no espa-
ço e nem congeladas no tempo. Assim, podemos dizer que não existe uma cultura,
mas culturas. Culturas humanas. E por todas terem a mesma natureza, ou seja,
serem produto da construção humana, não se pode afirmar, antropologicamente,
que uma cultura é melhor ou superior a qualquer outra. Também percebemos ao
longo deste livro que ninguém ou nenhuma sociedade vive sua cultura de forma
isolada.
Essa noção de cultura no plural vem a ser uma contribuição significativa para a
educação, tanto para sua prática quanto para sua produção teórica. A educação é algo
inserido na sociedade, é um produto da cultura. E por outro lado, a educação contri-
bui para a produção de cultura desse meio social. A antropologia da educação ajuda a
revelar que nossa educação não é a única e nem a melhor. Ela é apenas aquela consi-
derada mais adequada ou melhor para aquele determinado contexto.

111
INTRODUÇÃO À As abordagens contemporâneas relativas à educação trazem em pauta o importante
ANTROPOLOGIA
tema da cultura para se pensar nas práticas pedagógicas. A consideração da cultura vem,
especificamente, para contribuir na compreensão e no tratamento do tema da diferença
sociocultural e étnica que passa a ser necessária de ser considerada nos ambientes escola-
res contemporâneos.
Nesse contexto, o diálogo com a antropologia mais uma vez se faz salutar. Isso por-
que a tendência do senso comum é pensar a cultura ora como um evento folclorizado,
ora como congelado no tempo e no espaço. Ao se tratar de diferenças étnicas, sociais, é
muito fácil enveredar para o uso de estereótipos e reducionismos para tratarmos o outro,
daquele que não compartilha conosco nossos valores e formas de conceber o mundo.
Assim, ao abordar o tema do negro nos conteúdos escolares, podemos cair em
simplificações como a de que os negros em nossa sociedade constituem uma cultura
à parte, que se caracteriza pelo gosto pela dança sensual, pelos esportes, por crenças
religiosas primitivas, que alimentam a preguiça e possuem pouca aptidão para o saber
intelectual etc.
Os estudos antropológicos, contudo, colaboram para evidenciar que os negros não
são uma cultura à parte da nossa sociedade (um equívoco muito comum alertado por
Sahlins (2004b). Somos uma cultura com negros. Nossa cultura se caracteriza também
por sua presença e influência decisivas. Como coloca Wulf (2005, p. 23), “É indispen-
sável que cada indivíduo aprenda a viver com o outro, com o diferente. Entretanto,
se atos de violência racistas, nacionalistas ou xenofóbicos se ampliarem, é necessário
constatar o fracasso deste enfoque.”
A antropologia nos ajuda a entender como a criação e o investimento em precon-
ceitos e estereótipos levaram a maioria dos negros de nossa sociedade a uma situação
de desigualdade social que não possui qualquer relação lógica com possíveis dife-
renças étnicas ou culturais. Por exemplo, o fato da maioria dos pobres do nosso país
serem negros não pode ser explicada pela origem sociocultural dos negros (por terem
determinado biótipo, conjunto de gostos e hábitos etc.), mas pela maneira como fo-
ram e são tratados historicamente pelos não negros (cuja origem está na dramática e
cruel situação social de escravos). Assim, compreendemos melhor o que é cultura e
culturas, o que é diferença cultural e o que é desigualdade social.
Outro aspecto revelador ao se abordar a cultura em termos antropológicos é o
de não esquecer que a cultura é uma característica de toda sociedade humana e está
sempre em transformação. Isso significa dizer que nenhuma cultura é fixa, nem a nossa
e nem a dos outros. Exemplarmente, pode-se lembrar das transformações vivencia-
das por nós mesmos. Temos uma identidade cultural de brasileiros. Essa identidade
está baseada em uma série de aspectos que compartilhamos com outros brasileiros.

112
Dentre esses aspectos, estão a língua, a forma de organização social, da família, do Antropologia da e para a
educação
espaço geográfico, da história, das instituições políticas, de saúde, de educação etc.
São elementos compartilhados, criados e recriados por nós e pelas gerações que nos
antecederam.
E justamente por ser uma criação e recriação, percebemos que ser brasileiro hoje
é bem diferente do que foi ser brasileiro há dez, vinte ou cem anos atrás. No entanto,
ninguém coloca em questão a brasilidade de nossos ancestrais ou de nossos filhos.
Nossos filhos e netos não são mais ou menos brasileiros do que foram nossos avós e
bisavós.
O reconhecimento de que mudaram alguns aspectos do que definia a identidade
brasileira hoje em comparação com o passado não coloca essa mesma identidade sob
ameaça de não ser reconhecida. Assim, se admitimos que nossas bases culturais podem
mudar sem que isso comprometa a nossa identidade, também precisamos aplicar essa
mesma lógica para aqueles outros grupos culturais diferentes de nós. E essa postura é
possível e esperada pela educação quando ela consegue dialogar com a antropologia.
Como nos coloca Wulf (2005, p. 24):

[...] a experiência do outro pode ser considerada como uma chance para a
educação e a formação. Através da ‘confrontação’ com o outro aprendemos o
que nos é específico, e isso nos permite rever nossos princípios estabelecidos.
Compreendemos que o outro nos remete ao que é estranho em nós mesmos e
nos leva a ampliar a nossa própria compreensão.

Quando, por exemplo, vemos populações indígenas bem diferentes daquele mo-
delo congelado do passado (com adornos de penas, roupas mínimas, vivendo da caça
e da pesca), ou seja, vestidas como nós, usando instrumentos e tecnologias como as
nossas, não podemos prejulgar e considerar que essas populações indígenas perderam
sua cultura. Elas mudaram como nós mudamos e, no entanto, continuam a formar um
conjunto de grupos culturais com identidades próprias (MOTA; ASSIS, 2008).
Eles estão sujeitos a mudanças e influências externas da mesma forma que nós.
Nós também mudamos e essas mudanças muitas vezes são decorrentes, entre outras
coisas, de contato com o exterior. E, no entanto, continuamos brasileiros. Os estudos
antropológicos permitem que nossa prática na educação leve em conta as experiências
de outras culturas de forma respeitosa e sem hierarquias.
Uma antropologia da e para a educação deve contribuir também para se pensar
a educação no bojo dessa dinâmica cultural. Se a cultura sofre transformações, essas
acontecem pela ação de diferentes agentes, entre eles a própria educação. Por outro
lado, a educação é transformada pela própria dinâmica sociocultural em que está inse-
rida. É preciso considerar o contexto social e cultural em que o saber da educação se

113
INTRODUÇÃO À constitui, especialmente ao se levar em conta o momento atual, em que nossa socieda-
ANTROPOLOGIA
de vive intensamente relações interculturais e internacionais.
Assim, a antropologia contribui para a prática da educação no trato da cultura, ao trazer
para ela os avanços que essa área do conhecimento apresenta sobre a dinâmica cultural
das diferentes sociedades humanas, particularmente a nossa. Igualmente, ajuda a revelar
que nossa educação não é a única e nem a melhor. Ela pode ser sempre melhorada, pois
é relativa. E, portanto, pode levar para a educação o fomento para uma prática reflexiva.

PARA UMA ANTROPOLOGIA CRÍTICA E REFLEXIVA DA EDUCAÇÃO


Nos últimos anos, o diálogo entre a antropologia e a educação ampliou sua im-
portância ao serem verificadas mudanças nas diretrizes da educação brasileira, que
determinam a necessidade de se contemplar ações como a da inclusão sociocultural. A
esse respeito, Gusmão aponta que

a reforma do ensino que implantou a nova LDB colocou-os diante do desafio


de ter que formar um profissional da educação cada vez mais familiarizado com
a diversidade dos modos de construir e viver a vida numa sociedade que não é
apenas plural, mas é também hierarquizada, marcada por contradições e confli-
tos (GUSMÃO, 2006, p. 328).

A formação do profissional em educação possui a exigência de apresentar uma


pedagogia apta às demandas do presente e do futuro que se deseja para o homem.
Essa exigência leva a uma preparação para uma visão mais complexa do seu mundo
e do seu meio social. As novas proposições da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Edu-
cação) podem ser contempladas se a formação do educador caminhar na proposição
de Morin em sua “educação do futuro” (2007, p. 36). Nela, espera-se que o educador
tenha uma formação dirigida para “[...] realidades ou problemas cada vez mais mul-
tidisciplinares transversais, multidimensionais, transnacionais, globais e planetários”
(MORIN, 2007, p. 36).
Contudo, a necessidade de se contemplar na educação uma melhor compreensão
e apreensão dessa realidade complexa e multidimensional pode levar a equívocos teó-
ricos importantes tanto na produção do conhecimento para a educação, quanto na
formação e atuação dos profissionais da área. É reconhecido que “[...] nenhuma teoria
pedagógica produz sozinha o saber necessário à educação.” ( WULF, 2005, p. 17) Neste
sentido, quando se trata de abordar o pluralismo e a diversidade sociocultural, é natu-
ral que se tenha a antropologia da educação como parceira.
Nesse contexto, observa-se também que a educação tem buscado se alimentar de
outras perspectivas teóricas que lidam com a temática da diversidade cultural. Muitas
dessas produções procuraram se afirmar em linhas do campo da história, conhecidas

114
como nova história ou história cultural (TOSTA, 2007). Essas linhas, por sua vez, estão Antropologia da e para a
educação
respaldadas na influência decisiva da antropologia interpretativa, pois tem sido a partir
dessas leituras de segunda e terceira mão da antropologia que a diversidade cultural
passa a ser abordada na educação por um campo denominado multiculturalismo.
Existem classificações que procuram diferenciar as tendências teórico-metodo-
lógicas do multiculturalismo. Isso porque essa forma de abordagem já recebe um
volume significativo de críticas. Entre essas classificações, temos o multiculturalismo
conservador, liberal ou folclórico, pluralista, comercial, corporativo, crítico, entre ou-
tros (GOMES, 2007). De uma forma geral, se verifica que ele

[...] tem a ver com a popularidade dos chamados estudos culturais de origem
americana que, presentemente, invadem e criam modismos no campo da Edu-
cação. Tem a ver, entre não especialistas, com uma postura de tomar os estudos
culturais como sendo antropologia, não distinguindo seus campos teóricos e
conceituais no interior de uma tradição historicizada e crítica (GUSMÃO, 2006,
p.317, grifos do original).

Dois grandes problemas podem ser detectados nessas perspectivas dos estudos cul-
turais e do multiculturalismo quando incorporados para a educação de forma descui-
dada. O primeiro deles é o de se confundir cultura com traços culturais e folclorizá-los.
Ou seja, se considera que está sendo contemplado o reconhecimento e a valorização
dos diferentes grupos sociais que formam nossa diversidade étnica e cultural nacionais
ao apresentá-los pontualmente nos conteúdos curriculares e em datas comemorativas.
O segundo é o de misturar e tratar com a mesma perspectiva o que são diferenças
culturais e étnicas e o que são desigualdades sociais e econômicas. Ao se fazer isso,
como bem coloca Gusmão (2006, p. 328-329),

[...] mascaram-se as relações de poder e de dominação entre grupos em conta-


to, ficando impedida a percepção do caráter contraditório do processo de re-
conhecimento da diversidade cultural, podendo conduzir as propostas educa-
tivas a um paradoxo: o de reconhecer a diversidade, ao mesmo tempo em que
sustenta a tolerância e o acirramento de atitudes discricionárias que venham a
justificar um tratamento desigual àqueles que são diferentes.

Ao se propor a dialogar com a educação, a antropologia da e para a educação preo-


cupa-se em uma comunicação que fomente a reflexão e a crítica a partir de suas bases
teórico-metodológicas. Como expõe Wulf (2005, p. 18-19),

Os objetivos da antropologia da educação são, por um lado, a crítica dos fan-


tasmas da onipotência ou impotência da pedagogia, e de outro, a tematização
da tensão entre a possibilidade de tornar o homem perfeito e a hipótese
contrária da impossibilidade de mudar o homem, e de mostrar assim a

115
INTRODUÇÃO À possibilidade e os limites da educação e da formação. Dessas tarefas, decorre
ANTROPOLOGIA uma focalização intensiva na produção humana, através do exame e da cons-
cientização dos limites biológicos, sociais e culturais do processo de formação
do homem que é a educação (grifos do original).

Assim, a antropologia traz para a educação uma ideia de processo educativo mais
integrador, em que a concepção de ação educativa não se restrinja à elaboração e à
aplicação de conteúdos curriculares. Ou seja, a educação vista de uma forma integra-
tiva, abrangendo o conjunto da vida social; a educação como socialização. E como tal,
entendendo que temáticas como as da diversidade cultural precisam ser praticadas,
sentidas, além de teorizadas. As desigualdades sociais precisam ser detectadas, refleti-
das e distinguidas, permitindo uma avaliação crítica do papel da cultura na articulação
“[...] entre a comunicação, a educação e o desenvolvimento cultural de indivíduos,
grupos e subgrupos no interior da sociedade” (GUSMÃO, 2006, p. 300).
Neste sentido, uma antropologia da educação passa a fazer sentido, porque ela
promove a compreensão de que a educação faz parte de seu meio sociocultural e
influencia e é influenciado por ele, como já foi mencionado no início deste capítulo.
E esse descentramento é fundamental na promoção de práticas relativizadoras e ao
mesmo tempo críticas.
A presença da antropologia na formação de profissionais da educação não se limita
a uma apresentação do conteúdo sobre o exótico que essa área do conhecimento já
produziu. Ela deve promover no estudante que encontra esse outro a possibilidade
de pensar alternativas e relativizar verdades aparentemente sólidas. Ou seja, fazê-lo
refletir sobre o que está além dos limites da escola; possibilitar uma ampliação do que
se entende por processos educativos e suas implicações em um meio marcado pela
diversidade cultural que é o Brasil.

Referências

CUNHA, José A. Educação em debate. In: WULF, Christoph. Antropologia da


Educação. Campinas, SP: Alínea, 2005. p. 5-8.

GOMES, Igor B. A. Lei 10.639/03: Aporte para a (re)construção afirmativa da


identidade afro-descendente nos espaços sociais educacionais brasileiros? In:
REUNIÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA, 26., 2006, Goiânia. Anais... Goiânia:
ABA, 2007. CD virtual. Disponível em: <http://www.abant.org.br/noticias.
php?type=congressoRBA#453> Acesso em: 18 fev. 2008.

116
GUSMÃO, Neuza Maria M. de. Antropologia e educação: história e trajetos/Faculdade Antropologia da e para a
educação
de Educação, Unicamp. In: GROSSI, Miriam P.; TASSINARI, Antonella; RIAL, Carmen.
Ensino de Antropologia no Brasil. Blumenau: Nova Letra, 2006. p. 299-331.

MOTA, Lucio T.; ASSIS, Valéria S. de. Populações indígenas no Brasil: histórias,
culturas e relações interculturais. Maringá: Eduem, 2008.

MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários para o futuro. São Paulo: Cortez;
Brasília: Unesco, 2007.

SAHLINS, Marshall. Cultura na prática. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004a.

______. Esperando Foucault, ainda. São Paulo: Cosac Naify, 2004b.

SAVATER, Fernando. O valor de educar. Tradução de Monica Stahel. São Paulo:


Martins Fontes, 2000.

TOSTA, Sandra de F. P. Os usos da etnografia na pesquisa educacional. In:


REUNIÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA, 26., 2006, Goiânia. Anais... Goiânia:
ABA, 2007. CD virtual.. Disponível em: <http://www.abant.org.br/noticias.
php?type=congressoRBA#453> Acesso em: 18 fev. 2008.

WULF, Christoph. Antropologia da Educação. Campinas, SP: Alínea, 2005.

Proposta de Atividades

Assista ao documentário dividido em 12 partes disponível na internet a partir dos endere-


ços eletrônicos listados abaixo e em seguida responda às seguintes questões:

1) Quais conceitos e noções da antropologia você consegue aplicar para analisar o documen-
tário? Apresente pelo menos dois exemplos.
2) Quais relações você identifica entre antropologia e educação no documentário?
3) Descreva e analise duas situações no documentário que são exemplares de diversidade
cultural e de desigualdade social.

• <http://www.youtube.com/watch?v=bJLmP7s-7Gw>. – parte 1

• <http://www.youtube.com/watch?v=OwfUeMIGfdk>. – parte 2

• <http://www.youtube.com/watch?v=P6GcLu9h_Zw>. – parte 3

117
INTRODUÇÃO À • <http://www.youtube.com/watch?v=2OMF29mCdPM>. – parte 4
ANTROPOLOGIA

• <http://www.youtube.com/watch?v=JvLqfrffIN8>. – parte 5

• <http://www.youtube.com/watch?v=Yu0C8mjufmg>. – parte 6

• <http://www.youtube.com/watch?v=lQ3U8wp9ncU>. – parte 7

• <http://www.youtube.com/watch?v=Tmjk6vimwto>. – parte 8

• <http://www.youtube.com/watch?v=_ywUhVu3pKg>. – parte 9

• <http://www.youtube.com/watch?v=nSba16NE1h4>. – parte 10

• <http://www.youtube.com/watch?v=YLgtEu2q0ec>. – parte 11

• <http://www.youtube.com/watch?v=OUaT1QWxRo8>. – parte 12

Anotações

118

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