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Maura Penna
Espero, portanto, ter deixado claro que a música não é uma linguagem
universal. É, sem dúvida, um fenômeno universal; mas enquanto linguagem é
culturalmente construída. Se a música fosse uma linguagem universal, seria
sempre significativa - isto é, qualquer música seria significativa para qualquer
pessoa -, independentemente da cultura, e deste modo a estranheza em relação
à música do outro não existiria.
Agora podemos retomar a definição provisória apresentada no início deste texto
- a música é uma forma de arte que tem como material básico o som. E podemos ajustá-
la um pouquinho mais, dizendo: a musica é uma linguagem artística, culturalmente
construída, que tem como material básico o som. Neste ponto, é preciso retomar uma
outra questão, que até agora ficou encoberta, e que diz respeito ao caráter dinâmico da
música. Eu disse que a música tem por "material básico o som"- e não me referi por
acaso a "material básico". Pois o fato é que o som não é o material único ou exclusivo
da música. Como diversos historiadores apontam, em seus primórdios a música era
parte de rituais comunitários e integrava diversos elementos presentes na vida grupal;
mesmo na Grécia Antiga, "música e poesia eram uma coisa só; poemas recitados eram
entoados e, algumas vezes, associados à dança". Esta integração também é encontrada
em correntes contemporâneas da música erudita, que têm incorporado à manifestação
musical outros recursos expressivos, como luzes, movimento, encenação, etc. É bom
lembrar também que toda performance musical têm um aspecto cênico, quer este seja
intencionalmente planejado ou não. Os regentes e solistas da música erudita (da música
clássica) "sabem" disso - talvez de um modo não consciente, mas sabem -, na medida
em que seus gestos e expressões faciais integram a sua interpretação musical. Os
roqueiros também sabem, com os cabelos voando e as guitarras sendo jogadas... Nós,
ouvintes, também sabemos, na medida em que temos consciência da diferença entre
uma apresentação ao vivo e uma gravação - que é o registro puramente sonoro. Neste
sentido, correntes da música contemporânea propõem incorporar - de modo planejado e
intencional - este aspecto cênico ao evento musical.
A chamadas “música erudita contemporânea” abarca diversas correntes que se
desenvolvem desde o inicio do século XX, com o movimento futurista impulsionado
por Filippo Tommaso Marinetti e Luigi Russolo, o serialismo dodecafonismo da escola
de Viena, assim como, a partir do pós-guerra, pelas chamadas vanguarda – a música
concreta, eletrônica, aleatória, etc. ao longo dos XX e XXI, essas diversas correntes da
música erudita contribuem para a renovação do fazer musical e da própria música não
apenas pela incorporação de outros recursos expressivos, mas também pelo modo como
o material propriamente sonoro passa a ser tratado. Como já apontado, cada grupo
social seleciona, entre todos os sons possíveis de serem captados pelo ouvido humano,
aqueles que são o seu material musical, assim como o modo de articular e organizar
estes sons. Desta forma, para a civilização ocidental, durante vários séculos só se faz
música a partir das notas e dentro dos princípios da tonalidade. Este quadro é alterado
pelas diversas correntes contemporâneas - a música concreta, eletrônica, aleatória, etc.,
cujas contribuições se entrecruzam e se complementam -, que rompem os princípios da
tonalidade e ampliam o material musical para muito além das notas: incorporam o ruído
como material musical; exploram fontes sonoras alternativas, desde aparelhos
eletrônicos a objetos do cotidiano, incluindo modos novos de produzir sons com os
instrumentos musicais tradicionais - como, por exemplo, manusear diretamente as
cordas do piano, ou percutir a caixa de madeira do violino.
Essas correntes permitem, ainda, tomar gravações de sons da natureza ou do
cotidiano como material para a composição musical. Deste modo, é justamente no
contexto da música contemporânea que o canto de um pássaro pode se tornar música:
neste caso, o homem intencionalmente se apropria do canto do pássaro, incorporando-o
em seu fazer artístico, quando grava esse canto e o articula a outros elementos, com
finalidade significativa, em uma peça musical.
Essa ampliação do material musical proposta pelas correntes que renovaram a
música erudita nos séculos XX e XXI - corresponde também a uma nova estética, a
princípios distintos de organizar os sons - em séries, blocos, massas, texturas, etc. -,
levando-se em conta, muitas vezes, a participação criativa do executante, do intérprete.
Nesse sentido, Lopes (1990, p.1) refere-se as “novas poéticas e novas formatividades
que subvertem completamente a lógica de uma escrita tradicional agora insuficiente e
estreita para as necessidades criadas por obras que jogam com materialidades e modelos
conceptuais que não têm precedentes”. A música, assim concebida, exige inovações na
grafia musical, uma vez que a notação tradicional não é mais suficiente para o registro
dessas novas alternativas sonoras.
Referência Bibliografica:
PENNA, Maura. Dó, ré, mi, fá e muito mais: discutindo o que é música. Ensino de Arte
- Revista da Associação dos Arte-Educadores do Estado de São Paulo, [S. l.], v. II, n.
III, p. 14-17, [1999].