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Daughter of the Sea

Emma Goldrick

Christine sabia que aquele amor podia ser a sua ruína.

Christine tinha que fugir daquela ilha e procurar um outro lugar para se esconder. Não
ficaria nem um segundo mais naquele paraíso tropical, onde a polícia poderia aparecer a
qualquer momento para levá-la. Se Lucien Girraud pensava que ela se arriscaria só para
ficar a seu lado, estava muito enganado.
Mas, naquele instante, a porta do seu quarto se abriu e Lucien entrou. O coração de
Christine começou a bater acelerado... Ah, se ao menos não o amasse com loucura!

Digitalização: Marina
Revisão: Cynthia
A Desconhecida – Bianca nº 318 – Emma Goldrick

CAPÍTULO I

Christine dormia profundamente, mas era como se ainda estivesse à mercê das ondas,
o barco oscilando de um lado para outro. No seu sonho, o pesadelo da realidade se
repetia tal e qual lhe acontecera. A tempestade cada vez ficava mais furiosa, e logo faria
com que o barco naufragasse.
Com medo da tragédia, saiu do quarto e tentou correr para a cabine, onde o pai tentara
salvar o barco de todas as maneiras. Mas, no meio do caminho, uma onda enorme a
alcançou, fazendo com que perdesse o equilíbrio e caísse no mar...
No seu sonho, os acontecimentos começavam a ganhar mais cor e movimentação, de
modo que pôde rever perfeitamente a sua expressão desesperada, gritando inutilmente
pelo pai e se batendo contra a agitação das ondas. Sabia que o barulho da tempestade
cobria todos os seus pedidos de socorro e, num repente de lucidez, lembrou-se de que os
dois eram tão apegados que às vezes conseguiam se comunicar por telepatia. Como só
lhe restava essa alternativa para se salvar, concentrou-se nele, tentando emitir-lhe sinais.
Quando Christine já começava a pensar no pior, Jules apareceu no convés e jogou o
bote na sua direção. Tanto no sonho como na realidade, houve um breve alívio, com tudo
levando a crer que entraria no bote e seria puxada pela corda até a altura da escada do
iate, onde subiria e daria um grande abraço no pai. Qualquer que fosse o final daquela
tempestade, ao lado dele seria melhor. Mas, logo depois de ter subido no bote, a corda
que o segurava ao iate partiu e ela começou a se distanciar da embarcação de seu pai.
Nesse momento, Christine chorou.
Sim, chorou muito. Enquanto o bote seguia a turbulência das ondas, ela chorou por
tudo o que a fizera se meter nessa situação. Pela vida agitada demais que levava em
Paris, deixando-a tão esgotada no final do ano que não lhe restava outra alternativa
senão tirar umas férias no Taiti, junto com o pai, mas Christine também chorara por Jules,
que acabara de se meter numa grande enrascada. Cheio de problemas financeiros, ele
deu um desfalque no banco em que trabalhava, pensando que poderia aplicar o dinheiro
e, antes que dessem pela sua falta, voltaria com os lucros para pagar o que devia. Por
fim, Christine chorara com raiva do destino, que lhe aplicara um de seus inesperados
golpes.
No meio do mar, tempestuoso, não alimentara esperanças nem para o pai nem para si.
Então desmaiou. No seu sonho, o pesadelo da realidade se repetia tal e qual acontecera.
Quando Christine despertou, não sabia que Sam Apuka a achara na beira da praia e a
levara para casa de Lucien, um escritor que há três anos morava com sua filha Tosia em
Te Tuahine, uma ilha perdida na Polinésia.
Sem imaginar onde poderia estar, olhou ao redor do quarto em que acordara. Viu uma
mobília simples, paredes claras e a janela e a porta de bambu. Achando o lugar
agradável, pensou que pertencia a um nativo.
Passando a língua pelos lábios ressecados, piscou os olhos acinzentados e enfim
lembrou-se da enrascada em que se metera. Lógico que em pouco tempo alguém
perceberia sua recuperação e mais cedo ou mais tarde perguntaria seu nome. Iria dizer
que era Christine Lambert, filha de Jules Lambert?
Se assim o fizesse, logo estaria na cadeia. Não, aquilo não podia acontecer!
Manteria a identidade secreta a qualquer custo...
Christine percebeu um vulto se aproximando da porta e se virou para ver quem estava
chegando. Estranhando, viu uma menina de cabelos loiros e olhos azuis, que devia ter

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cerca de dez anos. Com certeza, a criança não era nenhuma nativa.
Ela segurava um velho urso de pelúcia e sorria para Christine com ar travesso.
— Olá!
— Olá!
— Você dormiu durante três dias, sabe?
— Três dias?
— Sim. Desde que chegou aqui, só dormiu... — A evasiva da menina traía certa
recriminação.
Christine procurou ganhar tempo, escolhendo cuidadosamente as palavras e
imprimindo firmeza à voz:
— Eu adoro dormir.
— Gostaria de ser sua amiga! Eu me chamo Josie. E você?
Ela alarmou-se diante da pergunta. Tinha de raciocinar rápido, para dar uma resposta
satisfatória. Tentou enfrentar o olhar interrogativo que a menina lhe lançara. Talvez um
pseudônimo servisse para fazer com que escapasse ilesa dali. Porém, uma idéia ainda
melhor surgiu e, quando Josie insistiu, ela respondeu prontamente:
— Como se chama? Eu já lhe disse o meu nome!
— Josie é um belo nome! Quanto a mim, não se zangue, mas eu não me lembro...
No mínimo, era uma história bastante convincente e a livraria de perguntas
embaraçosas sobre a sua origem. Depois de vários dias desacordada, ninguém duvidaria
que ela estivesse sofrendo de amnésia. Porém, Josie não podia compreender como
alguém esquecia o próprio nome e arregalou os olhos.
— Não se lembra do nome? — E, voltando-se para um homem que acabara de entrar,
exclamou: — Papai, você ouviu? Ela não sabe o próprio nome! Não é engraçado?
— Não, Josie, não é. Agora deixe-nos a sós, porque eu gostaria de ter uma conversa
séria com nossa hóspede. Aliás, você está lembrada da conversa que tivemos ontem à
noite?
— Sobre não aborrecê-la com falatórios? Mas, papai... Ela é tão bonita! Eu só quis
saber...
— Vamos, ]ô, saia agora. Depois eu falo com você.
A menina não teve outra alternativa senão sair, mas, antes, perguntou:
— Quer que eu avise Miri para trazer a refeição?
Diante da resposta afirmativa, ela desapareceu pela porta. Christine percebeu a ternura
que existia entre os dois e a associou às maneiras afetuosas do próprio pai...
O estranho a encarava com fisionomia serena, escondendo qualquer tipo de
sentimento. Os olhos eram de um azul intenso, mas estavam ligeiramente apagados pela
indiferença com que ele a fitava.
— Você está bem? Quer se levantar? Christine meneou a cabeça num gesto
afirmativo, mas, em seguida, percebeu que estava completamente nua sob os len çóis e
se inquietou.
Indecisa, analisou o homem à sua frente, sem se limitar ao rosto de traços europeus.
Ele tinha pernas musculosas recobertas de pêlos dourados, que sustentavam um tronco
largo e rijo. O sorriso esboçava um toque de displicência e rebeldia. "Um sorriso vadio,
provavelmente resultado de uma vida simples, ao ar livre", pensou ela, detendo-se numa
cicatriz que ele trazia no ombro esquerdo, dissimulada pelo bronzeado.
A atenção de Christine fixou-se no minúsculo pedaço de pano, que mal lhe escondia a
região da virilha, única peça de roupa que ele trajava. Desviou os olhos, envergonhada.
Uma nativa surgiu, carregando uma jarra de barro. Era jovem e bonita. Tinha a pele cor
de canela e os cabelos negros e escorridos. Mas o que mais lhe chamou a atenção foi a
roupa que usava, um pareau estampado que lhe cobria as pernas e os tornozelos, mas
deixava os seios à vista de qualquer pessoa. O homem dirigiu-se a Christine com
simpatia.

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— Se desejar, podemos providenciar-lhe um pareau, igual a este que Miri está
vestindo.
— Bem... eu adoraria, mas acho que não é possível. Eu ficaria inibida... Ignoro o tipo
de roupa que usava, mas estou quase certa de que não era nada parecido com este...
pareau.
— Você não se lembra absolutamente de nada?
— Não... nada.
Christine notou um interesse exagerado naquele homem em sua pretensa amnésia.
Espreitou-o com um olhar perspicaz. Porem, o semblante dele não deixava transparecer
nada.
O desconhecido estendeu-lhe um copo, que continha um líquido espesso.
— Beba. Isto vai ajudá-la a recobrar as energias. É suco de papaya com ervas
medicinais e aromáticas. Você apenas sofreu algumas queimaduras e está esgotada. No
mais, goza de perfeita saúde. Daqui por diante, tudo o que tem a fazer é alimentar-se
bem.
Obediente, Christine tomou o copo nas mãos e sorveu um gole da bebida. De imediato,
foi invadida por uma sensação de frescor e apreciou o aroma adocicado das ervas,
Preparava-se para ingerir o segundo gole, quando reconheceu, em alguma parte da
casa, o som de um aparelho de rádio.
— Agora eu tenho de me apressar. Você fica aos cuidados de Miri. Estará em boas
mãos...
Quando o homem se retirou, a nativa pediu para que se levantasse, numa desajeitada
mistura de dialeto polinésio, inglês c francês. Christine fingiu prestar-lhe atenção mas, na
realidade, tentava concentrar-se no que o rádio transmitia.
Os sons que se formavam através da parede do quarto eram um francês fluente, como
o que ela falava. Tratava-se de uma mensagem da polícia do Taiti, proveniente de
Naupiti. Mas foi só o que conseguiu descobrir, porque a porta da sala de rádio foi fechada,
abafando a transmissão.
Tentando não se desesperar, pensou no que o destino reservava para o seu pai. Onde
estaria Tules Lambert, que subtraíra considerável soma de dinheiro ?do Banco do
Pacífico? E quanto à filha desaparecida? Christine suspirou, desalentada. A polícia não
tardaria em procurar o seu paradeiro.
Miri afastou as cortinas da janela, deixando o sol iluminar o quarto. Christine respirou
fundo e, apoiando-se na beirada da cama, ficou de pé e deu alguns passos vacilantes.
Guiada pela nativa, seguiu pelo corredor até o banheiro.
Na verdade, a sala de banhos consistia num pequeno cercado de bambu, com um
metro e meio de altura. No centro, um cano à guisa de chuveiro. Christine girou a torneira
rústica e deliciou-se com o jato de água fria que lhe caiu sobre a cabeça. Risos abafados
fizeram Christine perceber a presença de duas nativas. Miri surgiu logo em seguida e
trocou algumas palavras com uma delas, no dialeto polinésio. A moça libertou-se de seu
pareau e reuniu-se a Christine no chuveiro, começando a ensaboar-lhe as costas,
tomando cuidado para não tocar nas suas queimaduras.
— Estas são Moera e Leaha. Elas não falam francês e pedem desculpas por terem
rido. Nunca haviam visto uma mulher branca e ficaram bastante surpresas. Dizem que
você é muito bonita e vai fazer os homens perderem a cabeça, entende?
Christine, no entanto, deu de ombros. A aparência era a última coisa que lhe importava,
no isolamento daquela ilha.
Terminado o banho, Moera e Leaha a enxugaram com uma toalha macia, outra vez
tomando cuidado com as queimaduras que ela apresentava nos ombros e nas costas. Em
seguida, levaram Christine de volta ao quarto.
Sobre a cama estava um pareau florido, que Miri apanhou e amarrou em torno dos
quadris de Christine. Ela olhou-se no espelho, sentindo vergonha dos seios nus. Como

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conseguiria ficar circulando seminua na frente de estranhos?
Desfez o arranjo e prendeu o pano à altura dos seios, improvisando um sarongue.
Sentindo-se mais à vontade, fez alguns movimentos para ver se o arranjo estava seguro.
Mas logo ele afrouxou e por pouco não foi ao chão, deixando-a constrangida. As nativas
sorriram com incredulidade, quando Christine fez uma terceira tentativa para amarrar as
pontas do tecido atrás da nuca, e tentaram ajudá-la. Quando se preparavam para sair do
quarto, Moera exclamou:
— Aita e pea pea!
As três deram de encontro com o homem de olhos azuis, que entrou no quarto no
mesmo momento em que elas saíram. Satisfeita com a roupa que vestia, Christine pediu-
lhe a opinião:
— O que acha?
— É muito prática, mas não a aconselho a usá-la, porque será alvo de risos e
gozações.
— E por que motivo haveriam de rir? A propósito, o que foi que Moera disse?
— Em palavras textuais: "Não ficou grande coisa!"
— O que há de errado ou estranho no arranjo que fiz? Ele a encarava, procurando
aparentar seriedade. Porém, era evidente que continha uma gargalhada.
— Da maneira que está, suas pernas estão à mostra. Pelo que reza a tradição local,
você pode ter os seios nus, mas é imprescindível que esteja vestida da cintura para baixo.
Eu serei sincero com você: se aparecer em público assim, não a tratarão com o devido
respeito.
Christine baixou os olhos em desalento, desatou o nó em volta do pescoço e recostou-
se na cadeira. A pequena vitória fora por água abaixo...
Fitava o assoalho de madeira, desanimada. Em menos de uma semana, sua vida dera
uma reviravolta e lá estava ela brincando de gato e rato com um estranho, discutindo
banalidades como a conveniência de trazer os seios cobertos ou não. E o verdadeiro
problema parecia aumentar a cada instante, sem perspectivas de solução. Sustentar a
farsa da amnésia a deixava com os nervos à flor da pele!
Era terrível não ter com quem compartilhar o segredo que guardava e o medo que
sentia. E ser forçada a representar um papel, como se, gradualmente, fosse perdendo a
identidade. E ainda restava a ameaça de ler;descoberta e... a prisão. A polícia não
vacilaria em prendê-la, com o objetivo de pressionar Jules à rendição... Torceu as mãos
num ato compulsivo, esquecida que um homem a observava na outra extremidade do
quarto.
Notando a perturbação de Christine, ele a confortou em tom amigável:
— Não deixe que uma coisa tão insignificante a incomode tanto! Você está se
recuperando bem e tudo o que necessita é de uma alimentação saudável e de muito
descanso. Gostaria de comer alguma coisa?
— Sim... Acho que aceitaria um pouco de comida.
— Assim está melhor. Verá como logo estará forte e disposta! Você passou por uma
experiência terrível. Quanto tempo ficou no bote?
Christine ficou apreensiva e o olhou com desconfiança, tentando desvendar quais
seriam as intenções daquele desconhecido. Quem era e o que fazia ali? Continuando a
farsa, ela simulou espanto:
— Que bote? Eu estava num bote quando fui encontrada?
— Não, não que eu saiba. Eu apenas imaginei. Você não se lembra absolutamente de
nada?
— Não... é como se todo o passado tivesse se dissipado numa névoa... Você sabe
quem eu sou?
— Sim, eu sei.
Christine ficou confusa ao ouvir o que o homem lhe dissera. Estaria blefando... ou não?

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E a troco de que faria semelhante afirmação? Parecia que ia enlouquecer diante de tantas
dúvidas insolúveis.
Miri apareceu, colocando uma bandeja sobre a escrivaninha.
— Sirva-se. Aqui tem o molho de raízes que acompanha o peixe fresco. Coma usando
os dedos.
Christine apreciou o conteúdo da bandeja: algumas travessas de madeira tinham
pratos que ela desconhecia, mas o aroma era irresistível. Segurou um pedaço de peixe,
mergulhou-o no molho e o levou à boca.
— Está delicioso. De que maneira é preparado?
— O peixe é servido cru. Quanto ao molho, é feito à base de raízes e ervas, cozidas e
maceradas.
Christine apontou para um prato, que parecia conter batatas fritas.
— E isso, o que é?
— É fruta-pão, preparada com óleo de coco. Comida típica ele nossa ilha, muito
nutritiva. Prove um pouco. E, se tiver sede, pode beber leite de coco, que está ali, na
jarra. Não costumamos ter leite em pó por aqui.
Christine engoliu com dificuldade, sentindo um nó na garganta. Estava apreensiva e
desconfiada, e precisava descobrir o que pretendia aquele homem. Mas, se ele
tencionava descobrir sua história para entregá-la à polícia, era bom que soubesse que ela
não se deixaria apanhar com tanta facilidade, ainda mais por um ilustre desconhecido!
Ocorreu-lhe então que sequer sabia o nome dele, e quis aparentar naturalidade;
— Você ainda não me disse o nome.
— Nome? Ah, claro, o meu nome. Eu me chamo Lucien. Lucien Girraud.
Mais dois dias se passaram, até o completo restabelecimento de Christine. Na manhã
do terceiro dia, Lucien foi vê-la no quarto, convidando-a para sair um pouco.
Embora as pernas fraquejassem, Christine conseguiu manter-se em pé, seguindo-o
através do corredor. Trajava o sarongue, o que a fazia sentir-se mais à vontade.
Ele ia explicando a disposição dos cômodos:
— À direita estão os outros dois quartos. À esquerda, a sala de estar e o escritório. O
corredor que você vê nos fundos leva à cozinha.
Alcançando uma varanda ampla, que circundava a casa, Lucien sorriu.
— É aqui que nós passamos a maior parte do tempo. Acomode-se.
Christine retribuiu o sorriso, agradecida pela amabilidade, e tomou lugar numa
espreguiçadeira,
A paisagem que se via dali era belíssima. Na superfície cristalina da baía, duas
montanhas espelhavam-se, uma de cada lado. Os raios do sol brincavam sobre as águas,
formando com os reflexos pequeninas moedas de ouro e prata. A vegetação exuberante
se precipitava por uma grande lagoa e por um rio que serpenteava montanha abaixo.
— A baía é conhecida como Pakuo. E o rio que desce a montanha é chamado
Papetahemaitai. A baía é protegida pelas duas montanhas, Te Tuahine, que significa "As
Irmãs". O nome da ilha tem a sua origem aí.
Enquanto Lucien descrevia os marcos naturais da região, a atenção de Christine foi
atraída para uma elevação, que se erguia majestosa a oeste. Quis saber o que era, mas
Lucien não lhe satisfez a curiosidade.
— Só posso lhe dizer que é a montanha de Peele, a deusa do vulcão. Somente o
tahu'a sabe seu nome... Isso faz parte de tradições muito antigas, que hoje em dia estão
fadadas ao esquecimento. Só o velho sacerdote ainda sobe à montanha de Peele. Apesar
do pequeno tamanho da ilha, muitas lendas já estão enterradas no tempo.
Na tentativa de ordenar as idéias, Christine semicerrou os olhos, esticando-se com
movimentos que pareciam os de um felino. Avistou a praia distante com os coqueiros
balançando ao sabor do vento e os reflexos do sol na baía, que já não formavam moedas,
e sim, lantejoulas coloridas. Uma borboleta azul lhe pousou no joelho, e ela murmurou

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baixinho: — Isto é um paraíso...
Ouvia-se o alarido de crianças brincando no vilarejo próximo dali, e a brisa carregava
consigo o suave aroma das flores. Lucien a encarou com um sorriso franco. Christine
notou como era forte e esguio, as mãos másculas pousadas na amurada da varanda.
Seus olhos eram misteriosos e escondiam deliciosos segredos. Ela se sentiu magnetizada
pelo azul intenso e enigmático do olhar de Lucien. Mas ele se esquivou, contemplando a
paisagem selvagem.
— Anos atrás vivíamos num paraíso. Há menos de duas décadas, pouca gente
habitava a ilha. Até que o governo francês resolveu instalar uma base de mísseis na outra
extremidade da ilha, o que atraiu muita gente para cá. Não conseguimos vê-los, mas
estão bem ali, poucos metros abaixo da terra.
— E você, Lucien? O que o atraiu nesta ilha?
Christine percebeu a inconveniência de suas palavras pela reação imediata de Lucien.
O corpo dele se enrijeceu e a boca contraiu-se, em sinal de desagrado.
O que ela teria dito de tão catastrófico? Christine não chegava a nenhuma conclusão.
— Desculpe, Lucien. Acho que fiz uma pergunta inoportuna.
— Toda pergunta é válida, não se preocupe.
Ele olhou para um bando de pássaros que voava no céu. Afinal, voltou-se para
Christine com um sorriso.
— Não há respostas para todas as perguntas do mundo.
— Concordo com você. Mas, se cruzarmos os braços, elas se tornarão cada vez mais
escassas...
Lucien fez menção de replicar, porém achou melhor ficar calado. No mesmo instante,
um nativo forte e risonho chegou na varanda e os cumprimentou alegremente.
— lorana oe, Sam. Ouvi dizer que você foi acometido do mal de fiu. Agora que está de
volta à casa, sente-se melhor?
Sam era um homem forte. Largou o corpo sobre a cadeira de bambu, sem parar de
sorrir.
— Eu trabalhei durante cinco anos no Centro de Pesquisas. Recebia, em troca, um
bom salário, carregava fardos no caminhão e cuidava da contabilidade. Para um Kanaka,
eu me saí muito bem!
— Até que você contraiu o fiu, não?
— Justo. Eu fiquei com fiu e tive de voltar.
Christine estudou o físico do nativo, abismada. Ele não parecia estar doente, de
modo algum!
— Está doente, monsieur Sam?
Os dois homens riram, a princípio com moderação, até que não puderam conter as
gargalhadas. Christine sentiu as faces enrubescerem e, ressentida, retrucou:
— Eu não pensei que fosse tão engraçada.
— Mas é claro que não. Espero que nos desculpe. Acontece que fiu é o mal do tédio.
Quando um nativo fica preso a uma mesma atividade por um longo tempo, ele é
acometido de fiu. Monsieur Apuka passou cinco anos no Centro de Pesquisas do Pacífico,
uma organização nuclear francesa. Enfadado, voltou para casa. Houve festejos ontem à
noite, não foi, Sam?
— Aue! Pena que você não veio! Nós ficamos quase a noite toda na praia, Muita
comida, cerveja e dança. Não fui para casa enquanto não acabou toda a bebida...
Sam sorria com satisfação. Lucien estava descontraído e expressava no olhar um
pedido de desculpas para Christine. O nativo, dirigindo-se para ela, perguntou:
— Você, pequena moça, está bem? Passou por maus bocados...
— Eu... eu não me lembro de nada, mas estou bem. Monsieur Girraud e as meninas
cuidam de mim.
Christine esperava que ele esboçasse qualquer reação. Mas o nativo continuou a fitá-la

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com expressão tranqüila, sempre exibindo um largo sorriso. E, mudando de assunto,
sugeriu a
Lucien:
— Fatara quer casar. O bote de borracha, entende? Ele falou comigo hoje, não pode
pescar porque perdeu o barco durante a tempestade. Que acha de presenteá-lo com o
bote? É um bom rapaz e precisa sustentar a família.
— É uma boa idéia, Sam.
Lucien fez um gesto com a mão, advertindo o nativo de alguma coisa, e o fato não
passou despercebido a Christine. Ela começava a inquietar-se por não saber em que
terreno pisava. Estava farta de incógnitas...
Lucien, sem perceber a irritação dela, continuou:
— Agora conte a ela, Sam, um pouco da história da ilha. listávamos falando sobre isso
quando você chegou.
— Bem, as coisas mudaram muito por aqui, entende? Não sonos chefes. Os Ali'i foram
todos embora, e também os mana e os nobres. Em breve, o povo polinésio ficará paui.
Muitos chineses, franceses. Agora muitos turistas. Mas não é tão ruim assim. As mais
belas vahines muitas vezes trazem, nas veias, o sangue de outras raças...
— E essa invasão de outras raças não o preocupa? — indagou Christine, interessada.
— Aue, todo mundo se importa, mas ninguém faz nada. Só o velho tahu'a ainda chora
para a montanha.
— E a religião? — perguntou ela, cada vez mais fascinada por aquela narrativa.
— O primeiro homem branco que pisou nestas terras foi um missionário inglês, muito
antes dos franceses. Nós todos pertencemos à igreja anglicana. Venha um dia ao culto
para conhecer... Bem, preciso ir. Parahi!
Ela observou Sam se afastar, mas logo mergulhou nas próprias inquietações. O
pesadelo prosseguia...
— Está certa de não se recordar de nada? — indagou Lucien, aumentando-lhe o
desespero.
— Não! Quantas vezes preciso repetir?
Ele a examinou atentamente antes de prosseguir, com determinação:
— Vou lhe contar algumas coisas... Nós chegamos à ilha há três anos. Eu sou escritor
e estava à procura de um lugar calmo para escrever e buscar inspiração. Josie estuda por
correspondência e... bem, não importa. Queria que soubesse que eu consultei um médico
do Taiti sobre o seu caso, ontem, pelo rádio. Ele afirmou que a convalescença será
rápida, mas traumática.
— Mas quem sou eu? Diga-me, se você sabe!
— Eu sei tudo sobre você!
Lucien venceu a curta distância que os separava e segurou-lhe o queixo, obrigando-a a
fitá-lo nos olhos. Ela se retraiu, como que hipnotizada pelo brilho intenso e desesperado
do olhar daquele desconhecido.
E, de repente, pareceu-lhe que o mundo inteiro desabava, tão grande era a
perplexidade dela. Lucien tirou um anel de ouro do bolso da camisa e o colocou no dedo
de Christine, murmurando:
— Você o deixou sobre a cadeira. Você é a mãe de Josie. É minha mulher.

CAPÍTULO II

Com o cair da tarde, enquanto o sol morria no horizonte, Lucien e Christine fizeram
uma refeição leve, à base de chá, peixe assado e salada de manga. Em seguida,
Christine foi acompanhada por Miri de volta ao quarto.
Lucien explicara que havia fartura de alimentos na região, mas, com relação a bebidas,

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as facilidades já não eram tantas. Vinho não se encontrava de maneira nenhuma e café e
cerveja só podiam ser adquiridos quando o barco levava mercadorias de Papeete, quatro
vezes ao ano. Restava o chá, cultivado na própria ilha.
Julgavam-se bem-aventurados pela abundância de água que tinham para consumo, o
que constituía uma exceção entre as ilhas vizinhas, que precisavam coletar a água da
chuva, única fonte de abastecimento.
O pretenso marido dera-lhe um beijo na face e se retirou, deixando-a sozinha no
quarto.
Estava tão surpresa com os últimos acontecimentos que não conseguia ordenar as
idéias. Se não tivesse plena certeza de ser Christine Lambert, seria capaz de jurar que
havia enlouquecido. Não havia uma saída para a enrascada em que se metera.
Lucien bem poderia ser um maníaco ou coisa assim. O que pretenderia ao tomá-la
como esposa? Mas, então, o que dizer de Josie? Estirou-se na cama, sentindo a cabeça
latejar com tantas contradições. "Se papai soubesse, daria uma boa gargalhada diante
desta história absurda!"
Fechando os olhos, teve a intuição de que seu pai estava salvo. O laço entre eles eram
tão forte que, mesmo distantes.
Podiam sentir um ao outro. Aliás, só assim se explicaria o pressentimento que fules
tivera no instante em que Christine caíra na água, saindo da cabine exatamente na
direção onde se encontrava.
Tranqüilizou-se ao saber que fules não corria perigo e deixou-se vencer pelo cansaço,
caindo num sono profundo. Mas, no inconsciente, as angústias e as esperanças travavam
uma batalha violenta, agitando-lhe o sono.
E assim, enquanto vivia as fantasias dos sonhos, uma conferência tinha lugar na
cozinha, sem que ela suspeitasse.
— Eu já me certifiquei. Ela está dormindo. Agora ouçam: é a única saída. Não havia
nada que pudesse identificá-la em suas roupas ou no bote. Nós só precisamos deixá-la
confusa por alguns dias. Não poderá nos contradizer, pois está com amnésia. Apenas
uma semana e não teremos de nos preocupar mais com o inspetor que a polícia do Taiti
pretende mandar para averiguar os fatos. Depois que ele se for, tudo estará consolidado.
Lucien falava para o pequeno grupo, composto pela filha, Sam, Miri e as duas nativas
que tinham ajudado Christine no banho.
— Você não acha que eles já esqueceram? Como se lembrariam? Foi há três...
quatro anos atrás...
Lucien olhou para Sam, com profundo desgosto.
— Não, Sam. Não é tão simples assim. Eu conheço minha ex-esposa. Ela jurou que
tomaria Jô de volta, não importando as armas que usasse. Minha própria filha! Mas, se o
inspetor vier nos ver e achar que está tudo em ordem, então ela nada mais poderá fazer
para levar Jô.
— Papai, eu fiquei com você por vontade própria. Isso não conta nada?
— Não, Jô, infelizmente não conta. Você é menor e o juiz estabeleceu, por ocasião do
divórcio, que tinha de ficar sob custódia de sua mãe.
Sam balançou a cabeça, revoltado.
— Os brancos são loucos! Ela não quer a menina, por que insiste em persegui-la?
— Ela quer se vingar. Não suporta a idéia de que um dia deixei de amá-la.
— Então, Lucien, você veio com a filha para Pakuo, Te Tuahine?
— Sim, Sam. Aqui é um lugar seguro. Se quer mesmo saber, a lei francesa do Taiti não
facilita extradições. No nosso arquipélago existe muito mais respeito pelos direitos das
crianças do que em Taiti! Estava correndo tudo tão bem... até que ela contratou detetives
particulares para nos encontrar, com o dinheiro que lhe envio pela firma de advogados em
Nova Iorque! Ela e aquele sujo!
— Ela vive com outro homem, Lucien?

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— Sim, Sam.
— E por que não casa com ele? —: era a vez de Miri perguntar.
Lucien sorriu, sarcástico. Era um sorriso cansado.
— Se ela se casar, perde a renda do divórcio. Aquela víbora é capaz de tudo por
dinheiro! Prefere um pássaro na mão. Não sei se pode me entender, Miri.
Sam esforçava-se por captar o sentido das palavras de Lucien.
— De que pássaro estão falando?
— O pássaro do dinheiro. Mas o passado se foi. O que importa é que estamos todos
aqui, principalmente fosie e Lucien — esclareceu Miri.
— Certo, certo. Eu já entendi. Não preciso de nenhuma vahine para ficar me dando
lições!
— Você está ficando velho e rabugento, Sam!
— Pois um dia você vai encontrar um verdadeiro lane, um homem que vai colocar você
na linha.
— Eu lhe asseguro que não será você, velho rabugento! Miri ria até as lágrimas, com
as outras duas nativas. Aquela era uma virtude do povo polinésio: o apreço pelo riso.
Até Sam estava dando uma sonora gargalhada. Quando retomou o fôlego, perguntou,
numa atitude séria:
— Mas, Lucien, por que não deixa a menina com a mãe? É a melhor medida a tomar.
Afinal, Josie precisa de carinho materno.
— Nem sempre as coisas são como parecem à primeira vista,
Sam... Nem sempre!
Foi aí que Josie entrou em pânico. A voz infantil soou forte para reafirmar a posição do
pai:
— Eu não quero voltar! Não vou voltar! O homem, ele me faz carícias que eu detesto!
Eu falei para mamãe, mas ela disse que era só uma brincadeira. Eu não concordo. Ele é
cínico! Foi por isso que eu quis sair dali. E não vou voltar!
Sam a tranqüilizou:
— Nada vai lhe acontecer, pequena Josie. Ficará aqui na ilha, onde todos amam as
crianças. O que faremos, Lucien?
— Bem, eu pensei que talvez pudéssemos convencer a desconhecida de que é mãe de
Jô. Assim, quando o inspetor chegasse, ele encontraria uma família perfeitamente
ajustada: eu, minha mulher e Josie. As duas se parecem muito, podem passar por mãe e
filha. Teremos apenas de forjar alguns dados. Jô, por exemplo, vai dizer que tem seis
anos de idade...
— Mas, papai, eu tenho quase dez anos! Lucien falou-lhe com extrema doçura:
— Minha princesinha, estamos fazendo um jogo muito especial e importante. Você
quer ficar comigo, não é?
Como toda criança, ela gostava de parecer mais velha, mais próxima do mundo adulto.
Entretanto, compreendendo a gravidade da situação, fez um gesto afirmativo. Lucien,
então, a aconselhou:
— Escute, Jô, não se esqueça de que você tem seis anos, é filha daquela moça e
nasceu na ilha. Quanto a você, Sam, acha que pode arrumar um registro falso na igreja,
comprovando o nascimento de Jô em Te Tuahine?
O nativo fez um gesto afirmativo com a cabeça e Lucien, dirigindo-se a Miri, a
encarregou de inteirar a população da vila da situação, acrescentando:
— Não esqueça ninguém! Se todos nos apoiarem e não derem com a língua nos
dentes, não haverá motivo para o inspetor desconfiar.
Ele respirou fundo e pensou no plano. )á tinha ido longe demais, e não havia mais para
onde fugir com a filha.
Miri e Sam deixaram o recinto juntos e Lucien sorriu com malícia, ao observá-los.
Embora tivessem dez anos de diferença na idade, sabia que sentiam atração um pelo

Projeto Revisoras 10
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outro.
Caminhou com a filha até a varanda, com a intenção de relaxar um pouco. Á noite
refletia seus brilhos nas águas da baía, e ele olhou para o céu cheio de estrelas, onde a
meia-lua era como uma foice prateada no firmamento. Uma ocasional estrela cadente
confundiu-se com o vôo dos vagalumes, e a brisa soprava um aroma adocicado de laranja
e baunilha.
Quando começou a se sentir mais à vontade, esquecendo-se de todos os problemas
que estava enfrentando, sentiu a mão de Josie tocá-lo, interpelando-o.
— Será que conseguiremos enganá-los, papai?
— Vamos, sim, meu amor. Mas precisamos nos esforçar.
— Eu prometo ajudar. Qual é o nome dela?
— Meu Deus! Eu não pensei nisso!
— Ela não pode nos dizer, não é, papai?
— É verdade. Por que sempre nos metemos em encrencas? Eu preciso encontrar uma
solução. E agora trate de dormir. Já é tarde para uma menina de seis anos estar
acordada!
— Você me conta uma história?
Ele concordou, e a acompanhou até o quarto. Deitada entre uma boneca e um velho
urso de pelúcia, a menina divertia-se com o que o pai lhe contava. Mas logo caiu no sono
e Lucien se certificou de que tudo estava em ordem. Então, apagou a luz c saiu.
"Mais uma incógnita, mais ura empecilho!" Mas haveria de achar uma saída. De um
jeito ou de outro.
Lucien entrou no quarto e fechou a porta. As cortinas de tecido leve balançavam com a
brisa, filtrando o luar e deixando o ambiente na penumbra.
Ele contemplou a moça adormecida na cama. Ela resmungava alguma coisa em meio a
um sono turbulento, e Lucien aproximou-se mais, procurando entender o que ela dizia.
Enquanto Christine dormia, remexia-se na cama com tanta inquietação que os lençóis
escorregaram e revelaram a nudez do seu corpo, a cintura fina, os quadris arredondados,
os seios delicados...
"Papai, sou eu, Christine! Papai! Onde está você? Não me deixe sozinha, eu tenho
medo! Papai, sou eu, Christine!"
Lágrimas corriam pelos olhos dela, cada vez mais desesperada com o pesadelo. Mas
Lucien parecia embasbacado com a beleza daquele corpo nu e, quando se deitou a seu
lado, mais do que vontade de protegê-la, sentia um louco desejo queimando por dentro.
Estava embaraçado com a situação, mas não conseguiu deixar de acariciar-lhe os
cabelos sedosos e puxá-la para junto de si.
Sem conseguir dominar a atração que sentia, acariciou os seios quentes com os lábios
entreabertos, enquanto deslizava as mãos experientes pela curva dos quadris,
massageando-lhe a parte interna das coxas.
Naquele momento, as imagens que povoavam o sono de Christine eram terríveis. Via o
barco do pai despedaçar-se contra os rochedos da baía e gritou com todas as suas
forças. Desesperada, levantou-se, livrando-se dos braços de Lucien e se sentando na
cama.
O turbilhão de cenas confusas deu lugar à calmaria do quarto e às suas suaves
sombras. Só depois de algum tempo percebeu onde estava e que a seu lado havia um
homem... nu! indignada, cobriu-se com o lençol e começou a protestar:
— Seu cafajeste! O que pensa que está fazendo? Será que só consegue mulheres
desse jeito?
Agora estava totalmente desperta e a raiva crescia dentro do peito, queimando-lhe as
entranhas. Ela prosseguiu, agressiva:
— Como pode ser tão baixo? Como pode obter prazer com uma relação tão
desonesta? Saia daqui, seu... monstro!

Projeto Revisoras 11
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Tremendo de ódio, tentou levantar-se da cama. Daquele homem inescrupuloso, só
queria distância. Mas ele não perdeu a calma e reagiu como se tudo não passasse de um
simples mal-entendido.
— Eu apenas quis lhe fazer alguns carinhos. De resto, sou seu marido, Christine.
"E essa agora!", quis gritar, furiosa. Lá estava ele, tentando aproveitar-se da situação!
Mas Christine sabia que não podia protestar, pois isso significaria a prisão. Se o
desmentisse, não teria como sustentar a farsa da amnésia e Lucien, com certeza, não
daria a proteção de que precisava para se ver longe da cadeia. Então, concluiu que seria
mil vezes melhor passar-se por sua esposa do que morar na horrível prisão de Papeete.
— Desculpe-me, Lucien... eu... não lembro! Você não pode pular em minha cama,
esperando que o receba sem mais nem menos. Você afirma ser meu marido, mas não
posso deixar de considerá-lo um estranho. Entenda, por favor.
Nesse momento, ouviram a voz de Josie no corredor. Em seguida, ela entrava no
quarto, assustada.
— Papai! Há alguma coisa errada?
— Não, filhinha. Eu só estava conversando com sua mãe.
— Ah, mamãe, você não foi me dar boa-noite hoje!
— Vá para seu quarto, Jô, Iremos vê-la em seguida.
A menina obedeceu, desaparecendo pela porta. Certificando-se de que ela não podia
mais ouvi-lo, Lucien voltou-se para Christine,
— Escute uma coisa: você pode não se lembrar de que somos casados, mas a criança
sabe, e necessita de seu afeto. Eu não admito que você a desaponte!
Uma onda de indignação cresceu outra vez em Christine. Não sabia dizer, ao certo,
quais os sentimentos que tinha em relação à menina. Tratava-se de uma criança meiga e
carente. Entretanto, também estava metida naquela mentira que queriam fazê-la engolir!
— E então?
— Bem, eu tentarei... com Josie. Mas em hipótese alguma com você! Quero que fique
longe de mim, até que eu possa me recordar de tudo!
— Aceito as condições. Agora, cumpra seu dever.
Os olhos acinzentados de Christine brilharam de raiva, mas logo resignou-se e, indo
para o corredor, iniciou a encenação:
— Josie, já estou a caminho...
Notando que ele a acompanhava, disse-lhe baixinho:
— Mantenha distância, seu... seu...
— Adorável marido — completou Lucien, rindo cinicamente. — Nós dois vamos dizer
boa-noite a Josie, nossa filhinha.
Então entraram no quarto, deram boa-noite à criança, cobriram-na de beijos e abraços,
despediram-se.
Mas, para surpresa de Christine, na saída Lucien passou-lhe o braço em torno do
ombro. Mesmo tensa ela não fez nada para se afastar. Alguma coisa naquele homem a
deixava hipnotizada, tornando-a uma presa fácil. Seria o brilho de seus olhos azuis?
Christine não saberia dizer ao certo, pois o sorriso vadio que ele tinha também a atraía de
uma maneira especial.
De súbito, Lucien fez com que parasse, puxando-a para um abraço. Ofegante,
pressentiu o aconchego daquele corpo de mulher, o calor de seus lábios carnudos e
rosados. Sem refletir, curvou-se e a beijou com um gesto carregado de sensualidade.
Ela sentiu a língua dele queimar-lhe os lábios, começando a explorar-lhe a boca
entreaberta, cada vez com maior intensidade. Suas pernas tremiam e colou o corpo ao
dele, passeando os dedos por aquele dorso sólido e musculoso.
Mas, então, o encantamento foi quebrado: o sarongue, que ela colocara para ir ao
quarto de Josie, desatou, escorregando até a cintura delgada. No mesmo instante, retraiu-
se, lutando para desvencilhar-se dele, da respiração cálida, do corpo másculo e ardente.

Projeto Revisoras 12
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Lucien compreendeu a relutância dela e soltou-a, murmurando com embaraço:
— É melhor dormir agora.
Christine não conseguia parar de tremer e ele a amparou. Ajudou-a a recompor o
sarongue e a acomodou na cama. Cobriu-a com o lençol, beijou-lhe a testa de leve e
sussurrou:
— lorana...
E, com isso, retirou-se do quarto, deixando-a à mercê das próprias emoções.
Christine ainda sentia o gosto da boca de Lucien e, nas narinas, o odor másculo dele.
Ela estava inquieta, virando-se de um lado para outro, sentindo aquele contato quente
ainda marcado na pele.
"lorana", repetiu para si. Ele lhe dissera essa palavra uma vez, mas não conseguia
lembrar o que significava, "lorana", tornou a sussurrar, roçando o rosto no travesseiro com
volúpia, desejando estar ao lado de Lucien.

CAPÍTULO III

Na ilha, mais uma noite tranqüila se passara. A lua prateada, adornada com o colar de
estrelas, pouco a pouco ia dividindo o cenário com os raios dourados do sol que
despontavam no leste. O contraste era maravilhoso! De um lado, ainda se fazia
madrugada alta, com o céu azul-acinzentado deixando ver os últimos e minúsculos pontos
da Via Láctea. Do outro, as cores quentes insinuavam-se, emoldurando as rochas e a
vegetação, antecipando mais uma das esplendorosas manhãs do Pacífico.
Christine movia-se desconfortavelmente sobre a cama. Não dormira durante a noite
inteira e sentia-se alquebrada. Desistindo de permanecer no quarto, enrolou-se no
sarongue e foi até o chuveiro.
A água gelada despertou-a da letargia e a levou a uma atmosfera de sonho. Ainda não
acreditava nos acontecimentos da véspera. Na verdade, não queria acreditar... De um
momento para outro, via-se atolada em encrencas. De foragida da polícia do Taiti em seu
encalço numa ilha desconhecida, passara a ser a esposa de Lucien. Como se não
bastasse, não podia negar a súbita e inexplicável atração que sentia por aquele homem
que acabara de conhecer...
Não sabia dizer se as emoções da noite passada tinham um significado maior ou se
não passavam de mera atração física. Afinal, Lucien era um homem interessante e
envolvente, em pleno vigor dos trinta anos.
A cabeça de Christine girava e ela não era capaz de definir os sentimentos. Fechando
os olhos, deixou que a água escorresse pelo corpo nu, acariciando-o e aliviando as
tensões.
As lembranças a fizeram voltar àquela noite escura do ano anterior. Ela saíra com a
turma da universidade para passear e terminou por esticar a noite na boate Soleil, a casa
noturna mais famosa de Paris. Christine era muito expansiva e estava com um ótimo
humor. Depois de conversar com os amigos, dirigiu-se à pista de dança, no subsolo,
Não parou de dançar um minuto. As luzes coloridas piscavam ao ritmo da música e,
por todos os cantos, as pessoas se agitavam num frenesi. Era fantástico! Não podia
precisar o instante exato em que percebeu que Paul a observava, de um dos cantos do
salão.
Ele se aproximou de Christine, começando a dançar e abrindo um sorriso cativante,
enquanto a encarava com os olhos cor de mel, num convite irresistível.
Quando, finalmente, se deixaram vencer pela exaustão, subiram ao bar para refrescar
a garganta com uma bebida. Paul, com os cabelos loiros molhados de suor e as roupas
de couro negro, pareceu-lhe um deus moderno, saído de algum filme.
A partir daí, não se separaram mais, até... até o dia em que Christine descobriu que ele

Projeto Revisoras 13
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era apenas um homem volúvel e imaturo que, além dela, tinha duas amantes. Não
passava de um egocêntrico em busca de auto-afirmação.
Após quase um ano de relacionamento, ela se ressentiu com a brusca separação. Mas
precisava esquecê-lo. Envolveu-se em alguns romances passageiros, até que decidiu
riscar os homens de sua vida.
E, agora, Lucien. Mais um homem que a desejava... Mas por quanto tempo? Estava
cansada de ser tratada como um brinquedo e jurara que nunca mais permitiria que a
usassem como um objeto.
Talvez ele tivesse um real interesse por ela. Ou, quem sabe, não estaria apenas
enjoado das nativas, tencionando divertir-se com uma mulher branca? Não, desta vez não
a enganariam. Ficaria alerta ao menor sinal de hipocrisia. Não ignorava sua beleza e o
interesse que os homens tinham em exibir-se na companhia dela.
Enxugou-se com uma toalha e vestiu um dos sarongues limpos que Miri lhe dera,
seguindo depois para a varanda, onde admirou o amanhecer. Um toque leve no braço a
fez girar sobre os calcanhares e deparar-se com Jô.
— Bom dia, mamãe. Você dormiu bem?
A garota parecia alegre e Christine notou que falava o francês com alguma dificuldade.
— Olá, Josie. Dormi bem, sim. E você?
— Eu sonhei, mas não me lembro bem com o quê. Já tomou o café da manhã?
— Ainda não, querida. Eu não quis acordar ninguém.
— Mas todos já acordaram, menos papai, que gosta de trabalhar durante a noite.
Moera está na cozinha, preparando o café... Ei, agora é a hora do banho das vahines.
Vamos para o mar?
— Bem, Josie, eu sinto muito, mas não posso. Eu não tenho trajes de banho!
Josie olhou para Christine com ar de compreensão, e apressou-se em tranqüilizá-la:
— Não se preocupe, mamãe! Ninguém usa maio. A essa hora só as mulheres têm
permissão para ir à praia, é um costume daqui... Ah, venha comigo! Nós sempre nadamos
juntas, antes de você perder a memória!
Christine cedeu ante os apelos da menina. Os grandes olhos azuis não negavam a
descendência que tinha de Lucien. Lembranças da noite anterior lhe surgiram de repente
e ela suspirou, enquanto rumava para a praia de mãos dadas com Josie.
Despreocupadamente, libertaram-se de seus pareaux e se juntaram às outras
mulheres que se banhavam. Christine acostumara-se aos hábitos da ilha e já não tinha
vestígios da inibição inicial. Desembaraçada, brincou com Josie na água, descrevendo
piruetas e mergulhando em meio a risadas.
As mulheres chegavam aos pares, cumprimentando-se e despindo os pareaux
coloridos. De todos os lados, escutava a saudação: "Iorana oe", a mesma que Lucien
usara com ela.
Christine fechou os olhos e deixou o corpo boiar sobre a água esboçando um sorriso
nos lábios. Mas, espantada, atentou para a correria das nativas, que saíam a toda pressa
da água e começavam a se vestir.
— Nós precisamos ir. Agora é a vez dos homens. Ande logo, mamãe! É tapuu olhar
homens tomar banho!
As duas colocaram seus pareaux e tomaram um atalho que conduzia à saída da praia.
Christine examinou o pequeno pedaço de pano estampado que cobria Josie e achou
graça. A menina começava a cativá-la com a desenvoltura e a simplicidade das suas
atitudes.
Josie guiava Christine embrenhando-se na mata, entre córregos e barrancos.
— Para onde está me levando, Jô?
— É surpresa!
Chegaram a uma clareira e, ao fundo, Christine observou a queda d'água. Reparou,
nesse momento, que, até então, estivera milagrosamente relaxada. Mas não podia!

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Estava cercada de estranhos que poderiam descobrir-lhe a identidade e denunciá-la. £
havia Lucien... Logo mais o veria, à mesa do café. De que maneira ele a trataria?
Sentindo uma contração no estômago, devido à expectativa, ela decidiu esquecer
pensamentos funestos como esses. Tudo o que precisava era acautelar-se, a fim de não
cometer erros. De resto, não adiantava afligir-se. O que tivesse de acontecer fatalmente
aconteceria...
As duas mergulharam na água doce e tiraram o sal do corpo. Então, deitaram numa
pedra e ficaram se aquecendo no mor-maço que se infiltrava pela copa das árvores.
Enquanto Josie contava-lhe curiosidades da região, Christine estava atenta. A menina
mostrava-se descontraída e bem poderia cometer um deslize. Chegara ò momento de
testá-la. Iniciou uma série de perguntas, aparentemente desinteressadas, buscando uma
brecha que pudesse servir para desmascarar Josie.
— Você tem belos dentes, Josie! São da primeira dentição?
— Ora, é claro que são. Só mais tarde terei os dentes permanentes.
A garota, consciente da mentira e para não ter remorsos, cruzou os dedos atrás das
costas.
Nisso, avistaram um velho nativo andando na direção delas, Josie virou-se para
Christine e cochichou um tanto apreensiva:
— É ele, o tahu'a...
Vestiram-se às pressas e se sentaram à beira do regato.
O velho homem tinha o rosto enrugado, os cabelos grisalhos e os ombros tatuados.
Apoiava-se numa bengala de bambu, e Christine pensou que era a primeira vez que o via
na ilha. Ele as saudou, fixando o olhar em Josie:
— Aue! Apuka estava correto. Te Tamahine a Tangora? Ele sorriu e, com um aceno,
despediu-se e prosseguiu o caminho.
— O que ele disse? — indagou Christine, enquanto seguiam para casa.
— Ele disse que você... bem, não entendi o que falou, para ser sincera. Não pode
esperar que uma garota de seis anos saiba tudo, não é?
— Só seis anos? Ora, vamos, não minta! Você já tem toda a segunda dentição!
Josie hesitou, mas logo arranjou uma justificativa:
— Papai sempre diz que eu sou pre... qualquer coisa que começa assim.
— Precoce?
— É isso!
— Pois bem, mocinha. Precoce ou não, gosto de você do mesmo jeito! — afirmou
Christine, sentindo uma grande ternura pela menina.
Alcançaram a casa e foram para a cozinha, encontrando a mesa posta. Logo em
seguida, Lucien surgiu no umbral da porta:
— Aí estão vocês!
— Olá, papai!
Ele abraçou a filha, num gesto de extremo carinho. Depois fitou Christine e beijou-lhe a
testa.
— Bom dia, meu amor.
Sentaram-se os três à mesa e Lucien piscou para a filha.
— É verdade que você e sua mãe foram nadar sem roupas?
— Claro, papai. Você está cansado de saber que ninguém usa maio — contou ela,
bebendo um gole de chá e agitando as mãos com expressividade.
Lucien encarou Christine com um sorriso travesso e algo malicioso.
— Eu adoraria tê-la visto nadando...
Ela, desviando o olhar, tentou esconder o embaraço. E Josie, sem se dar conta de
nada, arrematou:
— Você não pode, papai. É tapuu\
— Sim, tem razão. Você vai ter de me dizer como foi, já que eu não posso ver!

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Christine quis devorá-lo de raiva. "Agora ele se acha no direito de zombar de mim!"
Mas tinha de concordar que, com aquela expressão divertida, Lucien ficava irresistível...
Sua vontade era tomá-lo nos braços e sentir a força máscula dele.
Tentando mudar o rumo da conversa, ela disse as primeiras palavras que lhe vieram à
boca:
— Pena que não se possa encontrar croissants por estas bandas...
Pai e filha trocaram um olhar significativo e, imediatamente, Christine percebeu o "fora"
que dera. Afinal, quem sofre de amnésia não sente falta de croissant! Fez então uma
tentativa de conservar o que dissera, procurando aparentar naturalidade:
— Bem, eu imagino que croissants façam parte do café da manhã francês, não é?
— Lembra-se de alguma coisa? — indagou Lucien, ansioso.
— Não. Apenas me ocorreu falar de croissants.
— Ah... Sim, você acertou. Os croissants são muito consumidos na França,
amanteigados e com massa folheada. Pode comprá-los no Taiti, mas aqui, não, porque a
farinha de trigo não se conserva muito bem nos trópicos. Deixe-me ver... Dentro de alguns
dias virá o barco de provisões e, talvez, traga até croissants.
— Barco de provisões? — repetiu Christine, receosa. Lembrava-se de que ele havia
mencionado o barco certa vez, mas não sabia quando.
Estava claro que existia comunicação entre todas aquelas ilhas do Pacífico e, mais
cedo ou mais tarde, sua presença ali iria transpirar,
— Na verdade, o barco virá na próxima semana.
Lucien falava com ar casual. Entretanto, os olhos azuis sondavam Christine com
astúcia, estudando-lhe as reações. E acrescentou :
— O inspetor da polícia do Taiti está em Maupiti e virá no barco também...
Christine quis aparentar indiferença, mas não pôde evitar um ligeiro tremor nas mãos,
enquanto tornava-se mortalmente pálida.
Lucien a encarou, intrigado. Aquela mulher tinha algum segredo ... mas qual? Ela
possuía o sorriso evasivo de uma Mona Lisa, no rosto oval e delicado. Havia um mistério
nela, que o desconcertava e desafiava...
Era muito experiente no que dizia respeito às mulheres. Teve vários casos amorosos,
até encontrar Helen, que, afinal, também não fora a mulher certa. Mais tarde, na ilha,
manteve-se afastado de qualquer contato. Uma ou outra relação ocasional foi o suficiente
para que descartasse a possibilidade de se unir a uma nativa. O povo polinésio, embora
se mostrasse adorável, gravitava num universo muito diferente do seu. Ele buscava uma
identificação maior que não se restringisse simplesmente ao carnal ou cultural. Esse era o
seu grande sonho, apesar de já ter desistido de realizá-lo.
E agora surgia aquela bela desconhecida, que lhe causava uma perturbação nunca
antes experimentada, despertando nele toda a fome de amor e prazer!
Lucien perdeu-se nas divagações olhando para Christine até que, de súbito, ela
desfaleceu. Por um segundo, ficou sem ação e, em seguida, precipitou-se para segurá-la.
— Ela desmaiou, papai!
— Sim, filhinha. Acho que ela deveria ter descansado mais, antes de se aventurar a
sair.
Lucien tomou-a nos braços, carregando-a para o quarto. Josie o seguiu,
permanecendo ao lado de Christine, quando ele a depositou sobre a cama. — Josie,
peça a Miri os sais aromáticos.
A sós com Christine, ele voltou a sentir uma estranha excitação invadi-lo... Estaria
enlouquecendo?
Josie retornou, anunciando:
— Miri já vem!
— Ótimo.
— Papai... Eu gosto dela. Queria que ficasse conosco...

Projeto Revisoras 16
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— Não creio que seja possível, meu amor.
— Bem, espero que não se zangue, mas não consegui convencê-la da idade que
tenho. Christine disse que os meus dentes eram permanentes, daí inventei que eu era
pre... pre...
— Precoce?
— É, é isso.
Lucien olhava para a figura de Christine desacordada sobre a cama, perguntando-se o
que a teria feito desmaiar. Estaria associado à notícia do barco? Mas o que teria um barco
de suprimentos a ver com um desmaio?
"Talvez houvesse mais gente com ela no mar. Receava descobrir que todos tinham
morrido e, abalada, perdera a memória, num mecanismo inconsciente para se resguardar
do sofrimento... Era isso! Christine temia ter de enfrentar a morte de entes queridos, daí o
processo de amnésia."
Miri apareceu com os sais, interrompendo-lhe os pensamentos. Ele fez Christine
aspirá-los e, logo, ela recobrou a consciência. Via-se uma vaga melancolia nos olhos
acinzentados e parados.
Solícita, Josie avançou para o leito.
— Mamãe! Você está bem?
— Sim...
— Precisa de alguma coisa, mamãe?
— Tenho sede, Jô.
— Então eu vou lhe fazer um chá...
— E eu lhe arranjarei um pouco de leite de coco — interrompeu Miri.
As duas precipitaram-se para fora do quarto, sumindo pelo corredor.
Christine sorriu timidamente, e fez menção de se levantar, mas Lucien a impediu, com
voz enérgica:
— Você precisa descansar um pouco. Pelo menos por hoje. Há algo que consiga
recordar?
— Não, nada — respondeu ela, sentindo que estava cada vez mais difícil sustentar a
simulação.
Como gostaria de confessar tudo a Lucien, compartilhando o segredo que a
escravizava, transformando-a numa mulher sem passado! Naquele instante, sentia-se
muito frágil, e lágrimas quentes embaçavam-lhe os olhos, enquanto sentava-se na cama.
Lucien ajeitou uma mecha que lhe caíra sobre a testa e acariciou-lhe o rosto. Depois,
ele acomodou melhor os travesseiros para Christine,
Sentado à beira da cama, parecia querer dizer algo, mas hesitava. Ante aquele olhar
enigmático, Christine estremeceu, desejando o calor dos braços dele, o toque mágico, os
lábios ardentes... Reviveu as sensações da noite anterior, num clima de fantasia. Não
compreendia o estranho poder de atração que Lucien exercia sobre ela.
O corpo ardeu quando ele inclinou-se e cobriu-lhe os lábios com um beijo,
delicadamente.
Miri voltou, trazendo uma xícara de chá, Christine agradeceu e ela avisou:
— Está quente.
Sem que Christine percebesse, Miri fez um sinal para Lucien, dando a entender que
queria falar-lhe. Saiu para o corredor e o aguardou por alguns minutos. Quando
finalmente ele apareceu, estava com um olhar inquisidor.
— O que aconteceu?
— É quase inacreditável! Ele voltou. O tahu'a voltou!
— Mas por que deixou a montanha de Peele?
— Eu não sei. Josie o viu pela manhã e ele disse coisas incompreensíveis, algo ligado
à chegada da mulher branca, Bem, talvez ele esteja ficando velho demais...
— Não, eu não creio. É um homem sábio. O que disse exatamente a Josie?

Projeto Revisoras 17
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— Ela não soube me explicar direito. Deixe-me ver... Ele I afirmou que Tangora
pedia ajuda para a filha e por isso descera a montanha em seu auxílio.
Lucien apoiou as mãos nos quadris, sem entender o significado das palavras do tahu'a.
— E quem é Tangora?
— É o deus do mar, nas nossas antigas crenças.
— Não compreendo. O que tem Christine a ver com o deus do mar?
A nativa baixou os olhos, confusa, enquanto buscava a melhor maneira de se
expressar. Após uma pausa, ela falou:
— Sam Apuka disse que, quando foi salvá-la, escutou as j ondas do mar
sussurrarem: "lonei mea te Tamahine Tangora". Ele jura que ouviu e contou para a vila
inteira. Na minha opinião, foi apenas excesso de cerveja. O que acha?
— O que eu acho? Mon Dieu! O que posso achar? Não entendo nada dos deuses
antigos. Qual foi a explicação de Sam?
— Ele disse que aquilo significa:. "A filha do Mar está aqui"
Já contou a história ao tahu'a. Que loucura! Ninguém crê nessas coisas, hoje em dia.
Tudo haeire atu, tudo acabado.
— Bem, seja o que Deus quiser...
Voltaram para o quarto e encontraram Josie conversando com Christine. As duas
calaram-se com a entrada deles, como se estivessem trocando confidencias. Lucien
aproveitou a interrupção e, aproximando-se da cama, segurou as mãos da filha.
— Eu tenho de apressar o ritmo de trabalho. O barco virá em breve e eu preciso enviar
mais três capítulos do livro, pois os editores estão esperando.
— Eu vou cuidar de mamãe — assegurou Josie.
— E eu também — prometeu Miri.
Certificando-se de que tudo estava em ordem, Lucien começou a sair do quarto, mas
Josie o deteve.
— E o beijo na mamãe doente?
A menina sorria de modo inocente. Porém, o olhar dela traía uma certa cumplicidade.
Lucien percebeu a manobra. Sabia que a filha tinha carência de cuidados maternos e, no
fundo, alimentava esperanças de que Christine ocupasse esse espaço vazio em sua vida.
Lucien girou sobre os calcanhares e debruçou-se sobre a cama, para dar um beijo na
face de Christine. Ela, apertando a xícara de chá entre os dedos, procurou ocultar o
arrepio que aquele simples toque lhe causava. Recriminou-se por permitir que tais
emoções a dominassem quando, na verdade, deveria colocar-se na defensiva.
Achando que Lucien se aproveitara da situação para zombar dela, perguntou-se como
poderia ser tão fraca a ponto de sentir atração por ele. A única resposta que conseguiu
encontrar foi que, depois de tudo o que acontecera a seu pai, precisava se apegar a
alguém. Mas nem esta justificativa a satisfez, pois, se assim fosse, teria tentado uma
aproximação com Miri, que é mulher e a compreenderia melhor.
Enquanto divagava, Christine observava Miri, que se sentara numa cadeira ao lado de
sua cama. A seguir, sua atenção concentrou-se em Josie, movimentando-se dentro de um
vestido já gasto e muito curto para o seu tamanho. Preocupada, comentou:
— Josie, esta roupa não serve mais para você!
— Todos os vestidos que tenho são assim!
— Você precisa de alguns shorts e blusas. Bastaria fazer algumas reformas e utilizar
as fazendas dos pareaux. Há máquina de costura aqui?
— Nós temos uma velha Singer. Você sabe mexer nesse tipo de máquina?
— Sim, Miri. Na verdade é bastante simples. A nativa olhou para Christine, admirada.
— Então você lembra! Primeiro os croissants, agora a máquina de costura. Sua
memória está voltando!
— O sangue de Christine gelou e ela censurou-se por haver cometido uma segunda
falta. Procurando consertar o que dissera, só piorou as coisas:

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— Bem, na realidade, eu não me lembro, mas, ao mesmo tempo, é como se eu
soubesse manejar uma máquina de costura...
"Ora, mantenha a boca fechada, Christine! Você está pondo tudo a perder!",
recriminou-se, desviando o olhar de Miri. Então, tentou aparentar naturalidade.
— Bem, de qualquer forma, eu acho que sou capaz de costurar algumas roupas para
Josie...
A menina a encarava com expressão de contentamento e falou, entusiasmada:
— Eu vi modelos europeus em algumas revistas. Vou procurá-las para mostrar a você!
Eu adoraria ter roupas diferentes destes pareaux. Será o máximo! Que bom que está
conosco, Christine... Quero dizer, que bom que você está recobrando a memória, mamãe!
Na sala, o relógio da parede soou dez horas. Christine suspirou profundamente. Às
vezes, tinha a impressão de que o tempo custava a passar.
— Agora eu preciso estudar. Todas as manhãs leio um pouco de gramática e
matemática... — disse Josie, relutante em partir para suas obrigações.
— Então vá. Mais tarde eu tomarei as lições para você, combinado?
— Combinado!
Miri sorriu, observando a garota precipitar-se para fora do quarto.
— As crianças vivem correndo. Existem muitas brincadeiras, e a cada minuto há uma
coisa nova para aprender. Se andarem devagar, perdem muitas oportunidades de se
divertir.
— É verdade, Miri... agora, não se prenda por minha causa. Sei que você tem muito
trabalho na cozinha...
— Sempre há tempo para se dedicar às pessoas.
— E, já que tocou no assunto, conte-me algo sobre você e Sam Apuka...
Miri enrubesceu, mas sustentou o olhar com um sorriso franco.
— Você sabe, não é? Sam e eu fomos muito amigos até o dia em que ele foi embora.
Todos os jovens ambicionam empregar-se no Centro de Pesquisas do Pacífico. Eles
acabam gostando da vida nas cidades, e não voltam mais para cá. Mas Sam retornou e,
na noite passada, nós pensamos em ficar juntos outra vez. Aí eu me mudei para a casa
dele. Talvez, quando o padre vier para a ilha, nós nos casemos. De qualquer jeito, a
cerimônia não é o mais importante, compreende?
— Sim, eu compreendo, Miri. Li alguma coisa a respeito da cultura de vocês.
— A vida aqui é muito boa e tranqüila. Mas às vezes os livros cometem erros. Uma
coisa que os brancos não podem compreender é o desejo que temos de agradar os que
aqui chegam. Assim, nós dizemos o que eles querem ouvir. Suponha que você veja um
pássaro e me diga que é o Nono Anu e eu, para não discordar, confirme, mesmo sabendo
que não é o Nono Anu, mas o Ute Anu, . . Entende?
— Apesar de ser estrangeira, acho que entendo.
— Não, não é! Você é uma de nós, é a Te Tamahine! Christine balançou a cabeça,
desconfiada. Na certa, Miri só estava tentando agradá-la...
— Não, Miri. Mas bem que eu gostaria de ser assim, livre como vocês!
— E quem disse que somos livres? Somos sempre obedientes às tradições.
Proclamam a queda dos velhos costumes, mas estão todos aí, os tapuu. Você, por
exemplo, não deve usar pareaux como eu, acredite.
— E por que não?
A nativa mostrou o colo nu.
— Porque fica cheia de queimaduras, e eu não! E, queimada, você não agrada os
homens!
— Está bem, você venceu! Arranje alguns tecidos para que eu providencie novas
roupas.
— Eu lhe trarei os tecidos e a máquina.
As duas se entreolharam, sentindo desconforto com o silêncio que pesava no

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ambiente. Afinal, embora mantivessem relações amistosas, mal se conheciam...
Desejando romper o clima constrangedor, Christine encorajou-se a perguntar o que há
muito tinha curiosidade de saber:
— E quanto ao monsieur Girraud? Faz muito tempo que ele... que nós vivemos aqui na
ilha?
Christine tinha cuidado em escolher as palavras, como se quisesse provocar algum
impacto em Miri e, desconcertando-a, pudesse retirar dela tudo que precisava saber. Mas
a nativa não se abalou nem um pouco, falando da situação com a maior naturalidade
possível.
— A menina, Josie, nasceu aqui, mas não ficou conosco por muito tempo porque vocês
partiram para o exterior. Monsieur Girraud continuou vindo duas vezes por ano, pois ele é
praticamente o dono de Te Tuahine. Escreve livros que lhe dão muito dinheiro. Há cerca
de três anos ele se estabeleceu na ilha em definitivo, trazendo a filha.
— Só a filha?
— Não... O que eu quis dizer foi que ele trouxe você e a criança! — esclareceu Miri,
bastante agitada.
— Então nós estamos na ilha há três anos, Miri?
— Sim... Bem, eu não sei ao certo. Aqui o tempo não é medido em anos, mas pelas
idas e vindas do barco de provisões.
Christine agradeceu as informações e dispensou Miri, alegando cansaço. A
constatação de que a nativa também participava da trama fez com que ela se sentisse
traída. Pouco lhe importavam os modos agradáveis e solícitos daquela gente, o que
queria era saber a verdade. E ninguém parecia propenso a contá-la.
Com profundo desgosto, despiu o sarongue e enfiou-se debaixo dos lençóis,
mergulhando num sono pesado.

CAPÍTULO IV

Quando Christine acabou de costurar os biquínis, Josie não coube em si de


contentamento e logo quis estreá-los. Então, fizeram a sesta e foram à praia.
Depois de um demorado banho de mar, as duas se deitaram na areia à sombra de uma
palmeira, bebendo água de coco. Christine espreguiçou-se, refletindo com amarga ironia
o que o destino lhe preparara.
No inverno sombrio de Paris, enquanto estudava e fazia trabalhos para a faculdade,
quantas vezes não olhara através da janela, sonhando com uma paisagem como aquela?
E eis que tudo se tornara realidade, mas não nas circunstâncias que ela havia desejado!
Não podia aceitar que se achasse ali, justamente numa ocasião em que a cabeça fervia
com tantas inquietações!
Com o rabo do olho analisou a figura despreocupada de Josie, sentada a seu lado. Ela
usava uma roupa de banho do mesmo tecido que a sua. "Quem nos visse assim, com as
semelhanças físicas e biquínis feitos do mesmo pano, juraria que somos mãe e filha. Até
eu juraria, se não conhecesse a verdade!"
E, afastando a irritação crescente que tomava conta dela, Christine comentou:
— Às vezes sinto falta de ter à mão algumas peças de lingerie...
No fundo, admitia que era muito mais confortável usar sarongue e sentir o corpo livre
de sutiãs e ligas. Entretanto, estava naquela ilha contra a vontade, e nada mais lhe podia
ser agradável. E falou, mais para si do que para Josie:
— Um conjunto rendado de cor clara, ou, quem sabe, de um vermelho vivo... Um
vestido de corte reto e tecido liso, combinando com um par de brincos de pedra...
Não queria admitir mas, no fundo, imaginava-se enfeitando-se para Lucien...
A brisa amena da praia dava a impressão de que o tempo havia parado de correr. "O

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que meus amigos estarão fazendo a esta hora, em Paris? E papai, por onde andará?"
Revivendo mentalmente os dias que passara ali, tentou fazer um balanço da situação.
Na manhã seguinte, o barco chegaria... ou, colocando a questão de um modo mais
claro, a polícia chegaria e haveria de perguntar por Christine Lambert! Portanto, restavam-
lhe poucas horas para assumir, de maneira convincente, o papel de Christine Girraud,
mulher de Lucien e mãe da pequena Josie.
— E eu sei que conseguirei!
— O que foi que disse, mamãe?
— Nada de importante, querida. Estava apenas conversando comigo mesma,
pensando em voz alta. A outra mãe que você tinha não fazia isso às vezes?
— Não. Ela era uma pessoa muito reservada e... Oh! Você me fez falar!
A menina ficou cabisbaixa, brincando com a areia para esconder o quanto estava
desapontada. Christine procurou captar as emoções que a agitavam. Não se tratava
apenas de indignação. Seria medo?
Viu as lágrimas inundarem os olhos de Josie e sentiu uma pontada no coração. Pensou
em pedir-lhe desculpas e tentar consolá-la, mas não houve tempo.
Josie levantara-se e correra até sumir de vista.
Ela olhou para os próprios pés, censurando-se pelo que fizera. Agora não havia mais
jeito: pusera tudo a perder! A menina iria correndo contar ao pai o que acontecera e
Lucien veria aí uma prova de que sua amnésia era uma mentira. Cada vez se traía mais e
sua farsa estava se tornando mais do que evidente.
Olhou ao redor, sentindo-se acuada, Não havia para onde fugir. A menos que... A
menos que se escondesse na montanha de Peele. A idéia parecia-lhe um tanto absurda,
mas, no desespero, qualquer hipótese deveria ser considerada.
Sacudiu a areia que havia se acumulado no sarongue e vestiu-o por cima do biquíni.
Precisava enfrentar logo as conseqüências de seu erro e resolveu voltar logo para casa.
Qualquer coisa que tivesse de acontecer, se soubesse agora, pelo menos lhe restaria
algum tempo para agir, antes de a polícia chegar.
Alguns minutos depois, encontrou Lucien estirado na espreguiçadeira. Ele a recebeu
com um sorriso amplo, feliz por revê-la.
Christine retribuiu o sorriso, procurando parecer simpática. Se pretendia ganhar seu
apoio, deveria ser, no mínimo, educada. Assim, reclinou-se sobre ele, segurando-lhe as
mãos entre as suas:
— Olá! Estava descansando?
Num primeiro momento, Lucien encarou-a com espanto. Mas logo mudou de atitude,
passando a desempenhar o papel de marido dedicado...
Ele passou-lhe as mãos em torno dos ombros, deslizando os dedos pela pele macia e
sentindo o suave odor de ervas nos cabelos sedosos.
Christine encostou a cabeça no peito másculo de Lucien e, sem que pudesse explicar
por quê, todos os seus temores se desvaneceram. Naquela fração de eternidade, só
existia o calor que a proximidade dos corpos provocava.
Ele apanhou o copo e tomou um gole de Martini, oferecendo-o para Christine, que
molhou os lábios e tornou a sorrir. Lucien, então, beijou-lhe a boca úmida, e ela foi
invadida por abrasadoras sensações. Depois, ele acariciou-lhe os cabelos e brincou:
— A melhor maneira de se beber Martini é tomando-o de sua boca...
— Eu... Como foi o dia?
— Eu escrevi um pouco, mas estava sem inspiração. E você? Lucien abraçava-a pela
cintura, enquanto ela se equilibrava no
braço da espreguiçadeira. Aquele contato firme e íntimo aniquilava todas as defesas.
Resolveu ir direto ao assunto.
— Você viu Josie?
— Ela chegou aqui bastante triste e eu não imagino o motivo.

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— Você não lhe perguntou o que aconteceu?
— Na verdade, não. Ela estava intratável e preferi esperar que se acalmasse. A
propósito, gostei bastante das roupas que você lhe fez. São bastante apropriadas para
uma menina européia.
— Ora, vamos, Lucien! Não seja preconceituoso! O fato de Josie ser européia não
significa que ela deva ter tratamento diferente. Eu apenas costurei aquelas peças para
agradá-la, porque queixou-se de estar enjoada dos velhos pareaux. Além disso, ela
estava mesmo precisando de roupas.
— Sim, talvez tenha razão. Nós, parisienses, muitas vezes pecamos por nos julgarmos
o melhor povo do mundo!
— Bem, eu sei pouquíssimo sobre mim mesma, quanto mais a respeito dos
parisienses!
— Continua sem lembrar-se absolutamente de nada?
— Nada...
Nisso, ocorreu-lhe uma idéia maravilhosa. Como não percebera antes que, pelo menos
em relação a Lucien, sempre esteve em vantagem? Afinal, ele não sabia nada a seu
respeito, enquanto Christine no mínimo sabia que ele lhe mentia descaradamente, com a
história do casamento. Então, arriscou um pouco mais e resolveu testá-lo.
— Bem... eu lembro do sonho. Todas as noites as mesmas imagens me perseguem:
sempre me vejo num bote inflável, em meio a uma tempestade.
— E isso é tudo?
Ele tentara agir com naturalidade, mas Christine percebeu a tensão com que
aguardava sua resposta.
— Não me recordo de mais nada. O resto é escuridão, como se as imagens fossem
tragadas para um buraco negro e eu não pudesse mais enxergá-las.
— Trata-se de um processo psicológico bastante comum. Você ouviu falar do bote e
gravou-o no inconsciente.
Lucien sorveu um gole de Martini e lhe depositou um olhar firme, como se não
admitisse contestação de suas idéias. Começando a se divertir com a situação, percebeu
que poderia sondá-lo um pouco mais.
— Soube que o inspetor de polícia virá amanhã, no barco. Você acha que eu deveria
mencionar o assunto com ele?
— Não, um simples sonho não é suficiente para despertar o interesse da polícia. Não,
é preferível não importuná-lo com isso.- Seu caso é para Freud e não para o inspetor!
— Certo. Então não direi nada, mas... e se estranhar a presença do bote aqui na ilha?
Ele decerto irá perguntar de onde veio e...
— Eu não creio. O inspetor ficará em Te Tuahine somente por um dia e,
provavelmente, vai se deter em coisas bem mais interessantes do que num simples bote!
Christine olhava para Lucien com atenção, não deixando escapar o mínimo detalhe,
como um arquear de sobrancelhas ou uma leve contração dos maxilares. Sabia que
Lucien estava de prontidão, esperando o próximo ataque. Agora era ela que especulava e
isso conferia-lhe uma agradável sensação de poder. Ele ignorava até onde iam seus
conhecimentos e já não se sentia tão senhor de si. Cabia a ela confundi-lo o máximo
possível, garantindo assim sua segurança.
Lucien encarou-a com um olhar penetrante.
— Você está diferente, Christine.
— Eu? E por quê?
— Diferente talvez não seja o termo exato. Não sei explicar ao certo o que é, mas você
me parece mais descontraída... Como se tivesse aceitado a situação.
— Aceitado a situação? É um jeito estranho de colocar as coisas, visto que, ao que
consta, somos casados.
— Bem, acho que não exprimi direito. Às vezes as palavras me confundem...

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— E como é possível, se você vive das palavras?
—- Ah, mas escrever é diferente. O escritor esconde-se através dos personagens que
cria e tem todo o tempo do mundo para elaborar as falas. Entretanto, quando se trata de
verbalizar as próprias impressões e sentimentos, tudo se transforma. Não é raro que eu
me expresse melhor através de um bilhete do que por meio de um contato pessoal, cara a
cara.
— Sim, eu entendo. É o universo mágico da literatura. Lucien olhou para Christine,
satisfeito com a compreensão
demonstrada. E, de repente, os olhos azuis tornaram-se íntimos, enquanto as mãos,
fortes e grandes, deslizaram pelas costas dela, provocando-lhe um arrepio.
A comunicação muda entre os corpos era inevitável, tornando-se cada vez mais
intensa. Christine sentia-se atordoada, quase inebriada. Lucien correu os dedos por seu
colo macio, pelo pescoço delgado, e acompanhou a curva dos ombros, detendo-se numa
mecha dos cabelos loiros.
Christine reprimiu o ímpeto de corresponder àquelas carícias. Afinal, ele não passava
de um desconhecido. O nome, domicílio e profissão esclareciam muito pouco a respeito
de Lucien, o homem... Recompondo-se, afastou-se dele. Simulando aflição, falou com voz
sumida:
— Vou ver se encontro Josie.
Antes que ele pudesse retrucar qualquer coisa, Christine abandonou a varanda,
sumindo pelo corredor da casa.
Nem sinal da menina. Christine dirigiu-se para o atalho que levava à cachoeira, guiada
pelo pressentimento de que Josie fora desafogar a mágoa ali.
Com efeito, a garota se encontrava nos arredores da queda d'água. Ao avistá-la, não
se moveu, fingindo prestar atenção no curso da cachoeira. Christine aproximou-se e
interpelou-a com doçura:
— Josie... Queria que me desculpasse, Não foi de propósito. Não sabia que você
ficaria tão sentida.
A menina continuava com o olhar perdido no vazio, sem dizer uma palavra. E então,
incapaz de conter a angústia, começou a soluçar e abraçou Christine,
— Eu queria tanto que você fosse minha mãe! Gosto do jeito como conversa comigo,
de nossos passeios... Eu... Eu me sinto muito sozinha...
Ela gaguejava, inconsolável. Christine afagou-lhe os cabelos claros, tomada de uma
onda de ternura. A fragilidade de Josie fazia com que se lembrasse do próprio
desamparo. Calculava o quanto ela sofria e tentou tirá-la do desespero:
— Mas eu sou sua mãe, Jô. Pelo menos, é o que seu pai diz.
Christine continuou a afagá-la, mas ela parecia muito distante dali, imersa nos
pensamentos. Só depois de muito tempo parou de chorar. Então ela olhou para Christine
em tom acusador.
— Você sabia o tempo todo que não era minha mãe!
— Sim, eu já sabia. Não entendo por que vocês mentiram para mim, mas não importa.
Podemos recomeçar a partir de agora, que tal? Se você necessita de apoio, Jô, não serei
eu a negá-lo. Não posso prometer perfeição, mas vou me esforçar para ser uma boa mãe.
Eu também gosto de você, Josie.
Abraçadas, as duas voltaram para casa. Christine estava emocionada e tinha os olhos
rasos d'água, pois nunca alguém havia se apegado a ela com tamanha intensidade.
Lembrava-se da menina desamparada que fora e sabia o quanto era difícil ter de
enfrentar a vida sem poder contar com o carinho materno.
"Da relação que temos com os pais depende todo o nosso crescimento emocional. A
ausência de uma figura materna causa danos, por vezes irreversíveis, na personalidade
da criança", ponderou ela, abraçando Josie com ternura, enquanto atravessavam a
varanda.

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— Não conte a conversa que tivemos hoje a seu pai, está bem? Eu acho que ele não
entenderia, Fica tudo entre nós, de mulher para mulher, certo?
— Oui, mamãe! De mulher para mulher!
Depois de trocarem um olhar cheio de cumplicidade, elas se dirigiram para a cozinha
rústica, pois já era hora de jantar.
Lucien as aguardava e Josie correu para abraçá-lo.
— Papai, estávamos perto da cachoeira e sabe o que vimos? Um bando inteiro de
tucanos de bico vermelho! Não é esquisito? Se não me engano, são aves originárias da
América do Sul. Eu me lembro de ter lido isso no livro de geografia...
— É bastante curioso. Não sei como elas vieram parar aqui, em pleno Pacífico...
— Mas como é que as aves se orientam, papai? Do mesmo jeito que os navegadores
e os homens nas canoas?
Lucien segurava a filha no colo, com um sorriso paciente. Enquanto isso, Christine
tomava seu lugar à mesa, posicionando-se do lado dele.
— Não, meu amor, não é bem o método utilizado pelos homens nas canoas. Os
navegadores se orientam pelas estrelas, ventos, correntes marítimas e migração de
aves... E até nas nuvens! Você sabia que toda grande ilha tem uma formação de nuvens
sobre ela? Nós temos uma e o Taiti também. O que mais quer saber?
Christine riu e se intrometeu na conversa:
— No fim das contas, você não esclareceu a dúvida dela! Ou será que esse falatório
todo não passou de um artifício para despistá-la?
— Ora, não duvide do meu potencial intelectual, Christine! — Deu uma gostosa
gargalhada e voltou-se para Josie: — Eu fiquei tão entusiasmado com as navegações
marítimas que esqueci a pergunta que me fez. Então, vamos lá: os tucanos, como
diversas espécies existentes aqui, foram trazidos pelo homem; para ser exato, foram
trazidos para cá pelo avô de Sam Apuka, há mais ou menos vinte anos. Alimentam-se de
pequenos frutos e, não raro, pilham os ninhos de outras aves. Os maiores inimigos
dessas aves são os ratos selvagens e os meninos levados que os prendem em gaiolas.
Satisfeita, meu anjo?
Christine cutucou-o com o pé por debaixo da mesa, recriminando-o pela mostra de
pedantismo. Sabia que ele agira daquela forma apenas para provocá-la e pensou na
puerilidade masculina.
"Os homens têm um abraço exato para acomodar uma mulher. São práticos e
decididos, protetores e fortes. Mas, às vezes, voltam a ser meninos travessos, aprontando
e querendo colo!", ponderou, olhando para Lucien de soslaio. Ele estava terrivelmente
atraente na camiseta branca, que lhe moldava o peito atlético e contrastava com a pele
morena. Os olhos azuis brilhavam de malícia, com um convite que nada tinha á ver com a
mesa de jantar...
Mas Christine não se intimidou com a proposta que havia naqueles olhos e fitou Lucien,
retribuindo-lhe a malícia. Sabendo que isso a tornaria mais ousada, bebeu um longo gole
de Koora, uma bebida fermentada muito apreciada pelos nativos.
Depois da refeição, Josie foi levada para o quarto, com os olhinhos azuis piscando de
sono. Mas, ainda assim, exigiu uma história.
Christine acomodou-se numa cadeira ao lado do leito, segurando-lhe a mão. Lucien
sentou-se na beira da cama e iniciou a leitura de um conto de fadas. Era uma complicada
trama envolvendo gnomos, dragões e um tesouro enterrado, mas não chegou ao fim da
história.
Depois de meia hora, Josie se rendia aos apelos do corpinho cansado, puxando os
lençóis, ajeitando a cabeça no travesseiro e fechando os olhos para dormir.
Lucien fechou o livro, colocou-o na estante e apagou a luz. Colocando o braço sobre os
ombros de Chistine, fecharam a porta, tomando cuidado para não fazer qualquer ruído.
— Quer tomar um drinque?

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— Não, Lucien. Eu adoraria, mas prefiro não abusar.
— Bem, não é o fim do mundo. Sente-se aí na espreguiçadeira, que eu lhe providencio
um suco de frutas.
— Ótimo!
Ele foi até o bar rústico que havia na varanda e encheu dois copos, oferecendo um
deles para Christine. Tomou lugar numa cadeira ao lado dela, sentindo uma necessidade
imperiosa de tocá-la. Tentando afastar aquele desejo insistente, apertou raivosamente o
copo entre os dedos.
Queria distrair-se daquele ímpeto quase incontrolável e Christine, como que
adivinhando os pensamentos dele, falou: — Você sabe um bocado sobre ilhas, não?
Lucien mexeu-se na cadeira, com uma sensação de desconforto. Parecia-lhe impossível
fugir da sedução de Christine, pois até a voz dela o enchia de volúpia. Com um certo
esforço, procurou controlar-se e aparentar indiferença.
— Eu sempre fui um amante de qualquer coisa relacionada aos mares do sul. Desde
menino, devorava livros e artigos a respeito. Depois que me formei na universidade, viajei
várias vezes para o Pacífico.
— Tá escrevia nessa época?
— Não, ainda não. Eu ansiava por aventuras e novas experiências. Era jovem e só
tinha compromisso com a vida. Entrei no negócio de peixes com dois amigos. Nós
havíamos juntado as economias e compramos uma escuna. Durante quase dois anos a
coisa deu certo, até descobrirmos que existiam maneiras mais rendosas de se ganhar a
vida. Então, vendemos a escuna e desfizemos a sociedade. Foi aí que escrevi meu
primeiro livro, baseado nas experiências dos dois anos. E você?
Christine deu uma risada, constrangida. Na verdade, não se sentia bem representando
o papel de quem estava sofrendo de amnésia. Queria tanto poder desabafar os seus
problemas, o medo de que tivesse acontecido alguma coisa a seu pai!
— Eu? Como posso saber? Nunca tive uma escuna, tampouco participei do comércio
de peixes. Devo ter aprendido alguma coisa sobre o Pacífico na escola, mas não me
lembro. Sinto muito, Lucien. Você trabalhou no negócio de peixes há muito tempo?
Com medo de cair em alguma contradição, ele mediu cada palavra de sua resposta.
— Sim, já faz algum tempo. Eu devia ter a sua idade, mais ou menos.
— E quantos anos você tem agora?
— Trinta e um. E você?
— Ora, eu não sei! Pode acreditar numa coisa dessas? Lucien tentou ver o rosto de
Christine, mas ela achava-se imersa na escuridão. Não podia estudar-lhe a fisionomia ou
os movimentos, mas apenas confiar no que lhe dizia. Durante a visita do inspetor, ele
esperava que Christine se mantivesse dócil e terna.
Ela era o trunfo que tinha nas mãos, a peça principal do jogo. Se tudo corresse de
acordo com o planejado e o inspetor fosse embora sem maiores implicações, ele teria
uma dívida eterna com ela. "Aí, eu farei tudo para tirá-la deste transe de memória.
Gastarei todo o tempo, dinheiro e energia necessários para curá-la, Christine, não importa
quem você seja... "
— Você ficou quieto de repente. No que está pensando?
— Eu me lembrei que está havendo uma festa na vila. Quer ir?
— Uma festa? Com tamure?
— Onde foi que aprendeu essa palavra?
— Bem, sua filha anda me ensinando mais coisas do que você imagina!
— Não, é somente uma pequena reunião. O tamure só é dançado em ocasiões muito
especiais. Trata-se de uma cerimônia de fertilidade e, para ser franco, eu nunca a
convidaria para assistir a esse tipo de espetáculo. Quantos turistas não presenciaram o
tamure e abandonaram a cerimônia pela metade, corando de vergonha!
— Então, além de preconceituoso, você é machista! Acha que, pelo fato de ser

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mulher, não tenho coragem para ver um tamure? Quem diria... Cada dia descubro algum
dado novo sobre você!
Lucien ficou sério e levantou-se, desviando o olhar para a baía. Admitia que o que ela
lhe dizia era verdade e pensou, desgostoso: "Também eu estou descobrindo, a cada dia,
dados novos a meu respeito..."
Christine era como um espelho, que o refletia tal qual era visto pelo mundo. E, às
vezes, ela mostrava uma imagem que o desagradava, mas tinha de reconhecer como
verdadeira. Ah, como achava duro aceitar as imperfeições do ser humano!
Quanto mais vivia e se tornava maduro, mais vezes errava na relação com as pessoas.
Respirou fundo e devagar. Foi quando sentiu a mão de Christine pousar em seu ombro.
— Desculpe, Lucien. Não tive a intenção de aborrecê-lo. Eu tenho o defeito de não
medir as conseqüências e a extensão do que digo...
— Não foi nada. Você está certa e foi bom que tivesse me alertado, assim poderei me
policiar mais. Vamos até a festa da praia?
— Não, Lucien. Talvez seja melhor permanecermos aqui. Christine retraiu-se
aproveitando a escuridão da noite para ocultar a emoção que sentia. Sua voz soou como
uma navalha afiada, rasgando o silêncio pesado que se abatera sobre eles:
— O barco virá amanhã?
— Sim, Christine. Ao entardecer, às seis ou sete horas, de- -pendendo da maré...
— É um grande acontecimento para a aldeia, não é?
— Considerando-se que o barco só vem aqui a cada três meses, eu diria que a sua
chegada se transforma num importante evento junto à população. Afinal, é por intermédio
do barco que temos acesso a pequenos luxos como, por exemplo, o Martini que bebemos
hoje à tarde.
— E como os nativos fazem para adquirir as mercadorias?
— Eles fazem uma permuta com os produtos da ilha. Um dos itens de primeira linha
para troca é o coco seco. Mas tudo isso é realizado em pequena escala, claro.
Nesse instante, a atenção de Christine foi atraída para o céu. Parecia uma menina,
admirando o firmamento com olhos brilhantes.
— Veja, uma estrela cadente! Você vez algum pedido, Lucien?
— Sim.
— Conte-me o que foi!
— Eu não posso revelar. Do contrário, ele não se realizará!
— Ah, mas assim você me mata de curiosidade! Se não me der pelo menos uma pista,
como, poderei adivinhar?
— É fácil...
Lucien aproximou o rosto do dela e a beijou com delicadeza. Não pretendia ultrapassar
os limites de um beijo; entretanto, os sentidos reavivaram-se quando ela o puxou para si e
roçou-lhe a nuca com os dedos delgados, arrebatando-o num turbilhão de sensações
vertiginosas. Não raciocinava mais. O único desejo estava centrado em ter Christine,
mergulhando na maciez e no calor daquele corpo jovem.
Escorregou as mãos pelas curvas dos quadris e dos seios fartos e rijos, beijando-lhe o
pescoço com lábios entreabertos. Pressionou o corpo másculo contra o dela, ansiando
cada vez mais por possuí-la inteiramente.
Christine murmurava frases desconexas, mas ele estava tão tomado por um delírio de
paixão que mal podia ouvi-la. Só percebeu o que ela queria dizer quando sentiu as mãos
espalmadas em seu peito, numa débil tentativa de repeli-lo. No entanto, essa rejeição só
fez excitá-lo mais, e ele intensificou as carícias, na esperança de acalmá-la.
Foi então que sentiu as lágrimas quentes e salgadas salpicando-lhe o rosto e parou.
Imobilizado, fitava-a sem entender a razão daquele pranto e perguntou num fio de voz:
— O que foi, Christine?
--- Nada!

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A Desconhecida – Bianca nº 318 – Emma Goldrick
— Então por que está chorando?
— Estou com medo!
Lucien afastou-se um pouco, mordendo o lábio. "É isso que eu lhe suscito: medo! Mas
que tipo de maníaco pensa que eu sou? Deve me tomar por algum desajustado!" E lá
estava ela, encolhida, como se ele fosse atacá-la! Furioso, endireitou-se na cadeira e
desabafou com sarcasmo:
— Pois não foi minha intenção assustá-la! É muito útil saber o tipo de juízo que você
faz de mim. E agora, com licença. Boa noite.
Assim dizendo, deu-lhe as costas e entrou em casa. Christine sabia que ele estava
com o orgulho ferido. Mas não havia nada a fazer.
Conservou-se na espreguiçadeira, paralisada, enquanto sentia as pernas tremerem
violentamente. Por fim, levantou e andou até o quarto, a passos vacilantes.
Deixou-se cair sobre a cama, e olhou distraída para o teto. As idéias revolviam-se em
sua mente, desordenadas...
Não tinha a menor dúvida de que o magoara com a atitude que tomara, mas não
poderia agir de outra forma. Depois que o inspetor fosse embora, se ela ainda estivesse a
salvo, então diria tudo a Lucien...
"Como explicar que tive medo de mim mesma, e não dele? Como fazê-lo compreender
que nunca me senti assim, com nenhum homem? Mon Dieu, estou enlouquecendo!
Quando ele me toca, tenho a impressão de que a terra está se abrindo sob meus pés, e
preciso fazer um esforço sobre-humano para me dominar... Eu tenho tanto medo de
enfrentar uma nova desilusão!"

CAPÍTULO V

O barco chegou às seis horas, pouco antes de o sol se pôr. Josie, Lucien e Christine
observavam da varanda a sua chegada. Visivelmente inquieta, a menina acompanhou os
movimentos da embarcação se aproximando do ancoradouro.
Lucien a abraçou pelas costas, retendo-a nos braços fortes.
— Acalme-se, Jô. Não há por que ficar tão agitada. E, pelo amor de Deus, vá terminar
de jantar!
— O que eles estão fazendo? — indagou Christine, sem conseguir esconder a própria
agitação.
O barco lançara dois botes ao mar, a fim de inspecionar a área.
— Estão sondando as águas, para se certificarem de que não há perigo de encalhe. O
canal é artificial e foi construído há cerca de vinte anos. Antes disso, não existia nenhum
acesso...
Josie interrompeu o pai com um resmungo:
— Papai, eu não gosto de bananas fritas!
— Ora, mocinha, deixe de ser dengosa! Durante a vida inteira comeu bananas fritas.
Por que essa birra agora?
Ele a repreendia num tom autoritário e que não admitia réplicas, e Josie resignou-se
em voltar para a mesa.
— Veja, está aportando! — exclamou Christine, olhando a velha embarcação se
aproximando.
E, no preciso momento em que ela indicou, a manobra estava feita. Lucien estava
admirado.
— Onde aprendeu navegação?
— Nunca aprendi navegação. Tive apenas uma intuição, só isso. Falei alguma coisa
errada?
— Não. Pelos cálculos que fez, o barco está a três mil milhas, não é?

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Lucien estava atento ao menor deslize que ela pudesse cometer. Christine controlou a
vontade que teve de desbancá-lo com uma longa palestra sobre navegação...
— Bem, assim é, se você diz.
Nisso, Josie, que estivera sentada com o prato pousado no colo, lamuriou-se:
— Eu quero sair para ver o barco!
— Pare de se queixar, Jô! Nós iremos ao porto quando sua mãe quiser!
Lucien virou-se para Christine, que apressou-se em fazê-lo desistir da idéia:
— Não se prenda por mim, por favor. A distância daqui ao porto é considerável. Vá
com Josie. Eu esperarei por vocês dois, está bem?
Christine tinha alguma dificuldade em impor firmeza à voz, mas fez o possível para
mostrar-se despreocupada. Lucien não estava muito convencido, mas, por fim,
concordou:
— Está bem, Jô. Sua mãe ficará aqui descansando e eu lhe farei companhia. Mas tem
certeza de que agüentará andar até lá?
— Ora, que desculpa mais esfarrapada, papai! Vamos logo, vamos ver o que eles
trouxeram no barco!
Com um aceno, pai e filha puseram-se a caminho. Christine ficou a observá-los
distanciarem-se pouco a pouco, o vulto sólido de Lucien em contraste à figurinha
saltitante de Josie. Sorriu então, sentindo uma ponta de ternura brotar no coração.
Mirin surgiu à varanda para recolher o prato deixado por Josie. Ela parou, admirada de
ver Christine ali.
— A vila está em polvorosa com a chegada do barco. Por que não foi com seu homem
ao ancoradouro?
— Eu preferi ficar, Miri, Mas você pode ir. Ande, deixe que eu arrumo a cozinha!
Christine sorriu, encorajando-a, e persistiu, ao perceber a hesitação da outra:
— Ande! Viti viti.
— Está certo, eu vou. Mas a expressão certa não é viti viti que significa veloz. Você
teria de dizer haapeepee, que equivale a rápido. Repita comigo: haapeepeel
Minutos depois a nativa desaparecia pela encosta, balançando a cabeça sem se
conformar com a pronúncia horrível de Christine...
Rememorando as lições de dialeto polinésio que Josie havia lhe dado, Christine
lembrou-se de que todas as vogais deveriam ser pronunciadas com clareza. E, depois de
admirar o sol poente, dirigiu-se para a cozinha.
Depois de lavar e guardar toda a louça e de ajeitar o restante da casa, deitou-se na
espreguiçadeira e ficou apreciando o dia morrer no horizonte.
Ali, naquele momento de paz, podia intuir a presença do pai. Sabia que ele estava vivo,
em algum lugar...
A bola de fogo, que tingia o céu de tonalidades avermelhadas, extinguiu-se, por fim. A
orquestra de grilos e a dança dos pirilampos tinham início, preenchendo a quietude da
noite, mensageira da escuridão que se avizinhava com o manto brilhante de estrelas.
"O crepúsculo é a hora dos espíritos malignos. Aí eles saem dos refúgios,
perambulando pela atmosfera...", pensou consigo, invadida por uma súbita onda de
misticismo.
E, com isso, um arrepio percorreu-lhe a espinha. A polícia achava-se na ilha, talvez
para capturá-la! Abraçou as pernas e encolheu-se, fitando os contornos das árvores com
melancolia.
Um desespero mortal tomou conta de Christine, o que a fez voltar os olhos para a
cratera da montanha de Peele, o vulcão que dominava toda a ilha. Recordou-se então do
passeio que ela e fosie tinham feito ao sopé da montanha, divertindo-se intensamente na
água quente das termas naturais que existiam ali.
A montanha não ficava muito distante e decidiu ir até lá para um passeio, tentando
distrair-se um pouco e esquecer-se das inquietações.

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Seguiu por uma trilha e, após uma hora de caminhada, parou para apreciar a vista. A
casa transformara-se num minúsculo ponto e a lua em quarto crescente começava a
despontar no firmamento, dando um clima de magia à paisagem.
Christine continuou a galgar a encosta íngreme, como que impulsionada por uma força
desconhecida e incontrolável. Avançava na direção da cratera, movimentando-se com
vagar.
Lá longe, no embarcadouro, as tochas luziam como estrelas de fogo. Ela deu uma
rápida olhada para trás, sem se deter. Tremia, mas o tremor não era devido à brisa fresca
da noite... Relaxou os músculos cansados e tomou fôlego, prosseguindo a caminhada. A
lua clareava um platô de lava endurecida e Christine empenhou-se em atingi-lo.
Parou para observar uma rocha retangular, chata e lisa que havia no centro da
plataforma. Deu mais alguns passos e sentou-se ali.
A brisa gelada não atingia a atmosfera, que era morna e aconchegante. Christine jogou
a cabeça para trás, pensativa, admirando a Via Láctea. O Orion lá estava, com o cinto
cravejado pelas Três Marias...
Por que Lucien relutara em ir até o ancoradouro para ver o barco? Era ela quem devia
temer a polícia. O que o ameaçava? Os pensamentos eram contraditórios, entrelaçando-
se e deixando-a cada vez mais confusa.
Cheia de amargura, acomodou-se sobre a rocha, acabando por adormecer.
Quando Christine despertou, já tinha amanhecido há muito tempo. Notou, espantada,
que uma manta a cobria. Para assustá-la mais ainda, defrontou-se com um ancião
alimentando uma fogueira, a poucos metros.
Ao perceber que ela acordara, o tahu'a, pois o ancião não era outro senão ele,
aproximou-se, com um sorriso a vincar-lhe as faces enrugadas.
— Tamahinel Você já comeu?
Ele ofereceu-lhe um naco de pão de milho, que Christine recusou, gesticulando com
energia para fazer-se entender. Um tahu'a jamais comia na companhia de uma vahine e
ela não conseguia entender o procedimento do velho sacerdote...
Parecendo adivinhar-lhe os pensamentos, ele sorriu, exibindo uma fileira de dentes
perfeitos.
— Não se acanhe, menina. Não existem tapuus aqui. Estamos no lugar sagrado de
Peele, onde tudo o mais deixa de ser relevante. Coma!
Ele apanhou um pedaço de carne assada na fogueira e o ofereceu a Christine, que
começou a mastigar com voracidade. Estava faminta e procurou não prestar atenção à
peculiaridade da situação.
Quando acabou de comer, o tahu'a a fixou com seus grandes olhos negros. Ela
apertou as mãos aflita e suspirou, aliviada, no momento em que ele" começou a falar:
— O homem preocupa-se com você. Estão a procurá-la por toda a ilha, mas ninguém
imagina que está aqui. Você atendeu ao chamado de Peele, não foi?
Nesse instante, Christine examinou a plataforma onde estava sentada, percebendo que
se tratava de uma construção em pedra, e não de uma única rocha, como a princípio lhe
parecera. Não existiam lacunas entre uma pedra e outra Ê O encaixe era perfeito. Ela se
levantou, receando ter cometido um sacrilégio ao deitar ali.
— Mon Dieul Eu estou num maere, numa plataforma sagrada?
Sim. Foi construída para Peele. Ela chamou você. Aqui é o lugar dela.
— Não... Ninguém me chamou... Eu apenas saí para dar uma volta e então adormeci.
Eu não pude evitar e, agora, meu marido...
— Ele não é seu marido. Pelo menos, por enquanto.
Christine olhou para o velho ancião, perplexa. Ele simplesmente lia os pensamentos
dela! Até mesmo com relação ao... chamado de Peele. Porque, quando saíra na véspera,
sentira que algo a atraía para a encosta da montanha e o passeio não era tão casual
quanto tentara demonstrar. E o que dizer, então, daquela sensação de transe que a

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arrebatara, quando seguia a trilha?
— Como... Como sabe que ele...
— Eu sei. O dever de um tahu'a é saber tudo. O homem debate-se com o grande
problema que tem, enquanto você fica às voltas com as próprias preocupações. Não sabe
que foi trazida aqui por causa do terrível problema de Peele. E que, a partir do momento
em que o solucionar, automaticamente terá resolvido o seu.
Christine foi tomada de um sobressalto. "Vamos, não seja supersticiosa! Ele não sabe
de nada. E como poderia? É apenas um velho homem, que está sofrendo de senilidade,
ele e a deusa louca!"
Mas o sacerdote não desgrudava os olhos negros dela.
— Apenas um velho homem, sofrendo de senilidade, não?
Ela baixou os olhos, desconcertada. Não quisera feri-lo pensando aquilo. Entretanto, o
tahu'a não se mostrava nada abalado com o julgamento pouco lisonjeiro. Ao invés disso,
sorria.
— Eu estou velho agora, Tamahine, mas já fui jovem. Os norte-americanos tomaram
Bora Bora, trazendo livros, rádios, sonhos, eletricidade, aviões e crianças. Eu vi tudo se
desenrolar. Tudo. E, então, eles voltaram para a terra natal.
— E o que aconteceu, tahua.
— Levaram consigo os aviões, a eletricidade, seu Deus e os livros, mas deixaram aqui
as crianças, e era só o que nós queríamos. Daí fui para Papeete, Honolulu, Samoa e, em
todos os lugares que popa'a havia passado, os costumes polinésios morreram. Cheguei a
Tuahine. Aqui, já não acreditam que Peele tenha um grito como o do trovão, e tampouco
crêem que Tangora vá um dia fazer as ondas crescerem muitos metros. De qualquer
forma, os sonhos são as únicas coisas que nos restam e, então, por que não nos
apegarmos a eles? Christine estava intrigada com o que ouvira.
— Acredita na velha religião, afinal?
— Talvez. E por que não? Peele vive. Tangora vive. Você não sabe que, se uma
vahine dorme na montanha de Peele, os seus desejos mais recônditos se concretizam?
Christine enrubesceu, pois, de súbito, lembrou-se dos estranhos sonhos que tivera,
pouco antes de acordar. Sonhos estranhos, que giravam em torno de Lucien Girraud...
— O homem, ele quer você.
— Não, não quer. Ele precisa de mim, o que é bem diferente. Não sei por que tem
tanta necessidade de mim, mas...
O velho sacerdote balançou a cabeça, inflexível.
— Não, ele quer você. Tenha cuidado, Tamahine. Você é guardiã de uma mensagem
divina... Agora, vou avisá-los de que está aqui e não corre perigo. Ou você prefere ir logo
para casa?
— Acho que eu prefiro ir logo.
O tahu'a não demonstrou surpresa diante das palavras que Christine proferira e se
despediu, indo para uma parte mais alta da montanha.
Christine respirou fundo, sentindo o frescor da manhã que se adiantava. Estava
confusa com a situação. "Bobagem! Tudo não passou de uma brincadeira de adivinhação,
nada para ser levado a sério."
E, sem pensar mais, iniciou o longo percurso até a Casa Grande...
Na borda da plataforma, Christine viu uma pequena imagem caída no chão. "Peele"
Apanhou-a, com cuidado, e a levou consigo.
— Mon Dieul Onde você se escondeu?
Lucien foi a seu encontro e a sacudiu pelos ombros, quase derrubando a imagem que
ela segurava.
— Pare com isso! Está me machucando, Lucien!
— Ah, eu estou machucando você! E como acha que me sinto? Passei metade da noite
ludibriando o inspetor Tihoni, até que, finalmente, o tahu'a veio aqui e contou que você

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estava numa cerimônia mística no alto da montanha. O inspetor ficou encantado com a
história e foi dormir tranqüilo.
Tratavam-se com indiferença e Christine replicou, procurando demonstrar pouco caso:
— Eu encontrei o tahu'a, perto da cratera. Nós conversamos durante algum tempo.
Pensando bem, ele disse coisas que fazem mais sentido do que essa história fantástica
que você quer me fazer engolir!
— O quê?
— Nada, nada... Estou cansada, só isso. E com fome também.
Entraram em casa e Christine pediu licença para tomar um banho antes do café. Com
ar polido, mas distante, Lucien disse que a aguardaria na cozinha.
Ela dirigiu-se diretamente para a sala de banhos, saboreando o contato refrescante da
água. Chegando ao quarto, estranhou algumas peças de vestuário masculino sobre a
cama, mas desistiu de tentar descobrir o que faziam ali. Estava exausta e, enrolando-se
num pareau, preparou-se para sair do quarto.
Foi quando ouviu a voz frágil de Josie chamá-la. A menina irrompeu no cômodo,
soluçando e abraçando-a com força.
— Mamãe! Eu não encontrava você em nenhum lugar e pensei que tinha me
abandonado! Papai ficou tão preocupado!
Christine sentiu os olhos azuis da pequena se umedecerem, vertendo grossas
lágrimas. Embaraçada, não sabia como diminuir a tristeza que causara a Josie.
— Venha, Jô, vamos tomar um banho. Você está imunda! Por acaso passou por
alguma poça de lama?
Esperava com isso poder diverti-la. Logo depois, a garota ria delicada com as piadas
que ela lhe contava, enquanto ensaboava-lhe os cabelos.
— Você está se molhando, mamãe!
— Tem toda razão! Mas já vou dar um jeito nisso... Christine despiu o pareau e se
enfiou debaixo d'água.
Ela ensinou uma música que aprendera na infância a Toste e as duas cantaram e
brincaram, molhando todo o banheiro...
Depois de se enxugarem, Josie correu até o quarto e pegou os vestidos que Christine
havia costurado.
— Mamãe, quando eu crescer, vou ser igual a você?
— Eu não sei, Jô. Talvez sim. Nós duas somos claras e temos os cabelos lisos...
— Não foi isso que eu quis dizer. Você é tão meiga e, ao mesmo tempo, tão forte...
Isto é, tão firme, compreende?
— Sim, acho que compreendo. Bem, basta você querer e poderá ser o que quiser!
— Sua mãe também era assim?
— Não exatamente. Ela possuía um gênio terrível, era temperamental à beca! Por
outro lado, era muito sofisticada, mas eu não herdei essa qualidade dela. Olhe só para
mim! Andando descalça, enfiada num sarongue!
— Pois eu não concordo. Você tem classe! Papai também acha. Ontem nós estávamos
conversando e ele disse que sentia sua falta... — Nisso, Josie notou a pequena estatueta
sobre a escrivaninha. — O que é isso, mamãe?
— É uma imagem, usada nos templos para homenagear os deuses. Posso deixá-la em
seu quarto? Não acho que seu pai a aprovaria.
— Vamos tomar café e depois guardamos a estátua. Por que não quer mostrá-la a
eles?
Christine escondeu a imagem sob o pareau, com movimentos apressados.
— Quem são eles?
Christine não precisou esperar muito para saber a resposta. Miri as aguardava na
cozinha.
— lorana. O inspetor e monsieur Girraud decidiram tomar café na varanda. Você gosta

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de ovos?
— Ovos? Ora, é uma novidade para mim! Conseguiu-os no barco, Miri?
— É claro! Prefere-os fritos ou cozidos?
— Prepare-os como achar melhor...
E, dizendo isso, seguiu para a varanda, puxada por Josie.
Encontrou Lucien sentado ao lado do balcão do bar, acompanhado de um nativo
robusto, que exibia o uniforme da polícia do arquipélago.
— Christine, quero que conheça o inspetor Tihoni, do Taiti. Inspetor, esta é minha
esposa.
O inspetor esboçou um sorriso nos lábios e dirigiu-se a Christine em francês fluente:
— Bom dia, madame. Ouvi dizer que está muito envolvida com nossas antigas crenças,
não é?
— Sim... As antigas crenças me fascinam...
"Pronto! Agora ele vai me segurar com aquelas enormes mãos e perguntará sem
piedade se sou ou não Christine Lambert!" Ela fez um esforço sobre-humano para
aparentar naturalidade. Sua voz, porém, tremia, e por um triz não gaguejou.
— Mamãe não está se sentindo muito bem, inspetor! Tome cuidado, ela é muito
sensível!
Os olhos do policial estavam fixos em Christine, indagadores. Ela procurou dominar as
emoções e enfrentou a situação:
— Na verdade, monsieur l'inspecteur, minha filha Josie e eu ficamos atraídas pelos
velhos costumes.
— Bem, madame, espero que compreenda, mas em Papeete surgiram algumas
dúvidas a respeito da identidade da mãe desta menina. O consulado norte-americano
pressionou-nos para que averiguássemos os fatos e eu fui mandado para cá. Mas agora
que as vejo, percebo que a semelhança é inegável. Estou bastante satisfeito. Na verdade,
estou certo de que ela é sua filha...
Miri apareceu com uma travessa de ovos com presunto e uma cesta de pão. Christine
sorriu, passando a língua nos lábios ressecados e a nativa explicou:
— Milagres do barco!
E nisso, Christine colocou a estatueta sobre o balcão.
— Encontrei-a na plataforma da montanha. Achei que devia trazê-la para cá.
— Sacré Bleu! É Peele! — exclamou o inspetor, dando uma gostosa gargalhada.
"Mas, afinal, o que está acontecendo? O homem diz que está satisfeito por saber que
sou mãe de Jô. Lucien me abraça com ares de agradecimento e, de repente, todos ficam
satisfeitos, como por milagre... E Miri surge, borboleteando com uma travessa de ovos e...
oh! eis que vem juntar-se a nós o velho tahu'a\ Pois sim! Isto mais parece um filme de
Fellini..."
O sacerdote surgiu na varanda, cumprimentando-os com um sorriso cordial. Depois
virou-se para o policial, perguntando:
— Senhor inspetor, que ventos o trazem?
— O barco foi fazer uma entrega na ilha vizinha e, como não havia necessidade da
minha presença, preferi esperar em Te Tuahine.
— E quando o barco virá apanhá-lo, monsieur l'inspecteur — indagou Christine,
apreensiva.
— Talvez amanhã.
"E essa, agora!", Christine quis gritar. Instintivamente buscou amparo em Lucien, mas
ele a olhava com ar tranqüilo. Não, Lucien não poderia entender os seus medos. Nem ele,
nem ninguém. Estava sozinha naquela luta.

CAPÍTULO VI

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Christine olhou para todos, um a um, mas estavam alheios à tempestade que se
armava dentro dela. Sentia-se desamparada, sabendo que pouco adiantaria desesperar-
se. Resignada, observou o tahu'a e o inspetor, que conversavam a um canto da varanda
sobre os costumes da ilha. O velho sacerdote tinha algo enigmático no sorriso.
— Ah, não, senhor inspetor! Não há mais ninguém que acredite nos velhos deuses hoje
em dia.
— Quer dizer então que a estatueta é uma relíquia do
passado?
— Não, o senhor está enganado. Esta não é uma mera imagem. É a própria deusa
Peele. A jovem senhora trouxe Peele consigo quando desceu da montanha!
O sacerdote fitou Christine com seus grandes olhos brilhantes. Ela estava preocupada
com seus problemas e, distraída, assustou-se ao perceber que o tahu'a a encarava.
Christine possuía certo senso místico e não duvidava de poderes espirituais, que
promoviam visões e acontecimentos inexplicáveis.
Por outro lado, não ignorava que muitos se aproveitavam do esoterismo para impor-se
e precavia-se contra a possibilidade de blefes e farsas. Quanto ao velho sacerdote,
conhecia-o pouco para ter uma opinião a seu respeito. Assim, não descartava a pos-
sibilidade de ele não passar de um charlatão. Sentia-se perdida.
Era tentador dar crédito ao que ele dizia. Quem não gostaria de pensar que os desejos
mais íntimos se tornariam realidade? Christine, todavia, tinha experiência suficiente para
encarar as palavras do sacerdote com ceticismo, até provas do contrário.
A atenção dela desviou-se para o policial, que se remexia na cadeira tentando
desabotoar a gola do uniforme.
"Está apertado demais e ele luta para desabotoá-la." Sentia um grande prazer ao ver o
carrasco numa situação embaraçosa. E, tomando a estatueta nas mãos, disse:
— É melhor eu guardá-la em local seguro.
Lucien a olhou com aprovação e, grata pela compreensão dele, Christine pediu a Josie:
— Filhinha, leve a estátua para meu quarto e coloque-a sobre a escrivaninha. E volte o
mais rápido possível, para ficar conosco!
Obediente, a garota apanhou a imagem e correu para o interior da casa. Enquanto
isso, Christine ocupava-se em servir pão e ovos mexidos aos convidados e ao marido.
Por fim, fez seu prato e aguardou Josie.
Quando a menina reapareceu, sentou-se a seu lado e, sorrindo, segurou o prato que a
mãe lhe preparara.
Quando todos haviam acabado de comer, o inspetor pigarreou e tirou um livrinho de
notas do bolso, no qual vinha acoplada uma caneta dourada. Com um ar solene, voltou-se
para Christine.
— Madame, eu sinto aborrecê-la mais uma vez, mas é necessário que eu apresente
um relatório ao consulado norte-americano. Poderia ajudar-me?
— Claro. O que deseja saber?
— Bem... Qual é o nome da menina?
— Josie... Mas qual o intuito do relatório?
"As coisas estão indo longe demais. Mais cedo ou mais tarde, acabarei me
contradizendo... E então? Calma, Christine! Ora, se eu estou doente, não haverão de
surpreender-se' com hipersensíbilidade!" E, fingindo descontrolar-se, fulminou o policial
com o olhar:
— Por acaso duvida que Josie seja minha filha? Mas o que está acontecendo por aqui?
Alguém me diga, antes que eu perca a cabeça!
— Ah! — O inspetor pousou a caneta sobre o balcão, como se tivesse descoberto um
elemento muito importante para a solução do caso.
O rosto, rechonchudo e moreno, não deixava transparecer qualquer emoção.

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— Soube que madame tem estado doente.
— Minha mulher sofre dos nervos, inspetor.
— Sim, às vezes ela esquece coisas também. Papai achou mais aconselhável não
dizer nada sobre sua visita, . . — acrescentou Josie, com inacreditável maturidade.
Christine percebeu que a farsa estava dando certo e continuou a representar o papel
de mãe afetada.
— Mas, monsieur l’inspecteur, eu preciso saber!
Ela lançava um olhar suplicante e nervoso ao inspetor. O policial fez nova pausa e,
afinal, tomou uma decisão:
— Eu vim aqui, madame Girraud, porque recebi de Nova Iorque uma queixa formal de
rapto. Uma criança desapareceu da casa de sua mãe, em Manhattan. Temos aí um
terrível caso de um lar desfeito, comprenez?
Lucien o devorava com o olhar. Porém, ele não se importava com as reações que
pudesse despertar. Bebeu um gole de café e prosseguiu, determinado:
— O lar desfeito, entenda, deve-se a um divórcio. A corte norte-americana estipulou
que a mãe tomaria conta da criança. Mas, ao que consta, o pai invadiu a casa onde as
duas residiam e fugiu com a filha. A polícia do Taiti foi encarregada de investigar o caso.
Agora, pode me fazer a gentileza de me dizer o nome da menina?
Christine forçou uma aparência de fragilidade. Fosse qual fosse a resposta, ela tinha de
parecer desequilibrada:
— O nome dela é Josie...
— Josie Christine Girraud.
— E qual é a sua idade?
— Seis anos! — Christine, Lucien e Jô responderam ao mesmo tempo.
— Certo. Qual é o nome da mãe?
— Christine Harriet Girraud...
— Qual o local de nascimento da garota?
— São Francisco.
— Portland, no Estado de Oregon — completou Josie.
— Aqui, em Te Tuahinel — Lucien retrucou, elevando a voz. O inspetor cocou a
cabeça, olhando para um e outro.
— Bem, parece que há uma pequena divergência.
— Não, inspetor! Eu já lhe falei dos distúrbios mentais de minha mulher! Josie nasceu
aqui e Sam Apuka pode mostrar-lhe os registros.
— Mas é claro, monsieur l'inspecteur Josie nasceu exatamente aqui!
— Ah! — O inspetor reclinou-se, tomando nota.
Os três entreolharam-se aflitos, esperando pelo veredito.
— Bem, parece óbvio que a menina não tem dez anos de idade, e nem atende pelo
nome de Caroline.
— Corretíssimo! — afirmou Lucien.
Os três sorriam para o inspetor, aliviados. Ele tomou mais um gole de café e cruzou as
mãos sobre o balcão:
— Permita-me uma pergunta, monsieur Girraud. E quanto à criança raptada? Não lhe
notificaram o desaparecimento?
— É claro que notificaram! Infelizmente, não sei de que forma poderia ajudar, nesse
caso...
— Cherchez Ia femme, monsieur... — O inspetor Tihoni piscou um olho em sinal de
cumplicidade masculina. — Afinal, monsieur tem duas, não é? Mas, enfim, a solução do
caso é problema dos norte-americanos. Nós aceitamos ajudá-los apenas por...
diplomacia. Procuramos uma garota raptada de dez anos e tudo o que encontro é uma
família bem formada e uma menina de seis anos. Ora, por que o governo do Taiti haveria
de tumultuar um lar tranqüilo?

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Terminado o discurso, o inspetor debruçou-se sobre o balcão. Christine olhou para ele
de relance e, em seguida, pousou os olhos em Lucien. Seu "marido" causava-lhe uma
repulsa crescente, quase incontrolável.
Agora ela tinha resposta para as inúmeras questões que se colocara nos últimos dias.
Enquanto se remoia de remorso por causa de um punhado de francos roubados, ele a
envolvera num golpe sujo! "Ele não passa de um canalha, como o resto dos homens! E
me usou... como os outros!"
Sentia-se enganada e, recordando-se da maneira como ele a tocara e.a acariciara, quis
gritar de indignação. Tudo não passara de uma armadilha para convencê-la: os beijos, os
olhares afetuosos ... Christine teve de controlar-se para não esbofeteá-lo.
De repente, a verdade lhe surgia: "O inspetor veio atrás dele, não de mim!" Suspirou,
desanimada.
Josie procurou a mão de Christine e a apertou, sorrindo. A expressão de ternura nos
olhos dela fez com que Christine se acalmasse um pouco..
— Eu tenho muitas coisas a resolver por aqui — disse o inspetor, preparando-se para
ir embora. — Devo checar os registros de nascimentos e mortes e inspecionar a produção
de coco seco. Ah, uma maçada! Aliás, acaba de me ocorrer uma curiosa coincidência: eu
fui notificado de um caso, envolvendo uma mulher chamada Christine. Christine Harriet...
— Uma bela coincidência, inspetor. Outra Christine Harriet? — perguntou Lucien.
— Sim. É difícil de acreditar. Christine Harriet Lambert. Trata-se de um mistério a ser
desvendado. Desfalque a banco seguido de fuga em alto-mar, em plena tempestade. Ela
é uma importante testemunha, mas está desaparecida. Temos esperanças de achá-la,
mas... o oceano é infinito. — E, com isso, o inspetor despediu-se, seguindo para a vila na
companhia do tahu'a.
Christine estava petrificada com o que ouvira e ficou observando o inspetor até ele
desaparecer de vista.
"Tudo errado! Tudo errado!", murmurou ela entre os dentes, recriminando-se pela falta
de cuidado. "Por que havia dado o nome verdadeiro, ao invés de inventar um? Margaret,
Maria, Blair, menos Christine Harriet!"
Notando o nervosismo dela, Lucien pediu a Miri que lhe preparasse um suco de
maracujá.
A nativa brincou, batendo continência, e se retirou para a cozinha.
— Maracujá é para acalmar, não é, papai?
— Sim, Josie.
Minutos depois, Miri apareceu com o suco para Christine. Ela ficou muito grata, pois,
além da sede, tinha os nervos à flor da pele. Pegou o copo e bebeu tudo de uma só vez,
para depois deitar-se na espreguiçadeira.
Mas estava nervosa como um animal enjaulado. Não encontrando posição, levantou-se
e ficou de pé junto ao balcão. Sentou-se num dos bancos altos do bar e fitou o vazio,
sentindo as pálpebras pesarem. Afastou uma travessa, ainda com restos de ovos, e
apoiou a cabeça entre as mãos. Sem dar-se conta, foi invadida por um sono profundo.
— Papai, ela dormiu!
Para Josie, dormir fazia parte de um ritual, envolvendo histórias e canções de ninar,
uma cama macia e um urso de pelúcia, além da boneca de estimação. Não tinha nada
parecido com adormecer no balcão do bar, entre a louça suja do café da manhã!
— Ela está exausta. Passou a noite toda na montanha, e ainda teve de enfrentar esta
manhã agitada...
Lucien abraçou a filha, continuando a falar:
— Christine foi magnífica, não acha? Eu penso que podemos ficar tranqüilos no que se
refere às perseguições de sua mãe...
— Christine é minha mãe. Eu não quero ninguém mais. Só ela!
— Vamos, tenha calma, querida! Você tem mania de se exaltar!

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A Desconhecida – Bianca nº 318 – Emma Goldrick
— Pai, nós precisamos ficar com ela!
— Não, filhinha. Christine não é um brinquedo ou um bichinho de estimação, que se
tem quando quer. Com certeza, possui uma família que, a esta hora, deve estar aflita à
sua procura...
— E se ela não tiver ninguém? Ela ficará, não é, papai?
— Depois trataremos disso, está bem? Agora vamos levá-la para a cama. Eu a carrego
no colo e você abre as portas para mim, certo?
Ao segurar Christine nos braços, sentiu-lhe o hálito fresco e os seios, que balançavam
com o movimento da respiração. Sorriu com afeição, abraçando-a delicadamente. Se
pudesse tê-la para sempre... Sim, da mesma forma que Josie, ele apreciaria muito.
Sentiu-se de novo tomado por uma onda de desejo, no momento em que começou a
carregá-la para o quarto. Não sabia, ao certo, o que havia nela que o deixava naquele
estado de volúpia abrasadora. Existiam tantas mulheres atraentes na ilha, por que
justamente Christine? Talvez nem fosse ela. Quem sabe não seria a longa abstinência de
mulheres brancas a que fora forçado durante a permanência em Te Tuahine?
Achou graça desta hipótese simplista. Afinal, por mais que aquela estrangeira fosse
alva e sensual, isso não era motivo para que ele não conseguisse reprimir os instintos.
Ele era um homem e não um animal irracional. Existiam muitas outras coisas importantes
com que se preocupar.
Josie os aguardava no quarto. Lucien deu uma piscada para a filha, deitando Christine
na cama.
A menina começou a afrouxar-lhe o sarongue e parou, indecisa, olhando para o pai
com uma expressão interrogativa. Lucien aprovou-lhe o senso de discrição e pediu:
— Diga a Miri para despir sua mãe.
Ela concordou e correu em busca da nativa. Lucien riu, achando graça. Josie era uma
menina voluntariosa e mimada e, no entanto, quando se tratava de fazer algo pela mãe,
saia correndo como uma lebre!
Olhou novamente para Christine, indefesa sobre a cama. Josie voltou com Miri. A
jovem nativa colocou as mãos na cintura, com ar maroto.
— Aue! Penso que se enganou ao me chamar! Você quer realmente que seja eu a tirar
as roupas de sua mulher? Bem, assim seja, mas vocês popa'ae são mesmo muito
estranhos! Ei, ela é nehenehe!
— Sim, Miri, ela é bonita.
— Não vai mesmo tirar a roupa dela?
— Não, eu preciso trabalhar...
— Estranho popa'a! Com a bela vahine que tem, insiste em voltar para a velha
máquina de escrever? — zombou Miri, maliciosa.
Lucien trabalhou com afinco até o entardecer. Só notou que a noite chegava de
mansinho quando a luminosidade no escritório ficou escassa. Olhou, satisfeito, a grande
pilha de papel que tinha à frente e espreguiçou-se.
Escrevera muito e isso lhe trazia tranqüilidade. Helen havia gasto praticamente todo o
dinheiro que tinha no mês anterior e agora necessitava de uma boa quantia para
sustentar a casa sem problemas. O livro que estava escrevendo precisava ser um best-
seller. E prometeu a si mesmo conseguir.
Como era de hábito, deixou a pilha de folhas desordenada sobre a escrivaninha. E
seguiu para o quarto de Christine, para ver se tudo estava bem.
Ela continuava adormecida sobre a cama, numa posição sensual. Deitada de lado, um
dos seios estava à mostra e as pernas, bem torneadas, ligeiramente afastadas e
dobradas. Os cabelos sedosos caíam-lhe sobre o rosto, deixando entrever apenas a boca
carnuda.
Lucien ajoelhou-se ao lado da cama, sentindo uma necessidade imperiosa de tocá-la.
Quis fugir dali, antes que fosse tarde demais...

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A Desconhecida – Bianca nº 318 – Emma Goldrick
"Vamos, Lucien Girraud! Seja sensato! Você nunca foi disso e agora fica aí, parecendo
um adolescente em plena descoberta do sexo! Ainda mais com ela. Precisava agir com a
máxima cautela. O inspetor estava por perto. Não podia contrariá-la em hipótese alguma,
pois havia o risco de desmoronar o bem construído castelo de cartas que armara.
Todavia, sentia-se grudado no chão. Apoiou-se na cabeceira da cama, resolvido a sair
dali. Era o melhor que tinha a fazer.
Mas suas mãos escorregaram para o corpo desarmado de Christine!
Os dedos másculos e compridos exploravam as curvas e reentrâncias dela, e a boca
inclinou-se sobre o seio rosado e rígido.
Ela se mexeu, deitando-se de costas e esticando uma das pernas, num gesto instintivo
de defesa. De repente, abriu os olhos, com a mente ainda confusa devido ao sono.
— O que... O que está fazendo?
Mas Christine sabia. Ele repetia o sonho que tivera! E, nas fantasias, ela pedira mais e
mais!
— Seu... Você não tem o direito!
— Não, eu... não tenho qualquer justificativa. Vim saber se você estava bem, e então
eu a vi... Não pude conter o instinto. Sei que não passo de um homem qualquer. Quer que
eu lhe peça perdão?
— Não é necessário fingir arrependimento!
Bastante perturbada, Christine puxou os lençóis sobre o corpo e rolou para a
extremidade oposta da cama, o mais longe possível de Lucien.
— Bem, Christine, diante da sua reação, prefiro não falar nada. Eu não estou nem um
pouco arrependido e, para ser sincero, repetiria o fato na primeira oportunidade!
Ela o olhou com frieza e respirou fundo. Detestava-o!
— Aliás, quantos anos você tem? — perguntou Lucien, rápido, sem dar-lhe tempo para
pensar.
— Vinte e três...
— Ah, você se recorda?
— Sim.
— Então conte-me tudo o que pode lembrar.
— Eu sei que tenho vinte e três anos.
Lucien continuou esperando que ela se esforçasse por recordar. Mas Christine dirigiu-
lhe um olhar raivoso e continuou em silêncio. Ele preferiu encerrar o assunto.
— Faltam vinte minutos para o jantar. É melhor você se apressar e vestir uma roupa.
Será nosso último encontro com o inspetor. O barco chegará hoje às sete e partirá antes
de o dia amanhecer.
Os olhos acinzentados de Christine brilharam de indignação quando ele a deixou só.
Teve vontade de ir atrás de Lucien e dizer-lhe algumas verdades. Mas, ao invés disso,
suspirou e resolveu se arrumar para o jantar.
Vestiu uma calça estampada e uma blusa de frente única, ajeitou os cabelos e
encaminhou-se para a varanda.
As roupas descontraídas e os pés descalços combinavam com o ambiente. Lucien
recebeu-a com um sorriso e, passando o braço em torno da cintura nua, indicou Josie e o
inspetor:
— Os dois estão confidenciando há meia hora!
A menina e o policial apoiavam-se na amurada e falavam baixo. Vez ou outra a voz fina
e estridente de Josie se fazia escutar, contrastando com o tom grave e forte do inspetor.
Pouco depois, Miri anunciou que o jantar estava pronto. Josie e o inspetor se
aproximavam de Christine, parecendo terem chegado a um acordo secreto.
— E então, inspecteur, como vão as coisas? — indagou Christine com um aceno de
cabeça.
— Muito trabalho nesta ilha, muito trabalho, madame. Acredita que os registros de

Projeto Revisoras 37
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cartório não eram verificados há quatorze anos? Quatorze anos!
Enquanto Christine fazia as honras da casa, Lucien afastou-se com Josie para um
canto.
— O que ele disse, filhinha?
— Nada de especial. Ele quis saber se eu era feliz com você e mamãe e eu lhe disse
que estava muito bem, e que não queria viver em outro lugar que não fosse em Te
Tuahine. Aí ele falou que isso era muito bom e contou que também gostava de sua
família...
— Ótimo, querida. Tudo o que temos a fazer é encenar um belo show esta noite, para
que ele parta satisfeito com o que viu aqui.
Ele fez um sinal para Christine, mostrando que estava tudo sob controle e ela
aquiesceu, num gesto de entendimento.
Nesse instante, Sam Apuka apareceu. Também fora convidado para o jantar, e
seguiram todos para a cozinha. Miri arrumara a mesa e sentou-se com eles.
— A população de Te Tuahine é de oitenta e três pessoas: quarenta e quatro crianças
e trinta e nove adultos... — disse Sam, respondendo a uma pergunta do inspetor.
— E quando você e Miri vão se casar? — indagou Christine. Todos se entreolharam,
nervosos. Miri torceu as mãos por cima
da mesa, e Christine sentiu que a chutavam por baixo da mesa. "Algo me diz que falei
o que não devia..."
— Talvez eu possa explicar para madame... É costume em nossas ilhas que, seguindo
a tradição, as pessoas constituam família e... er... bem, os filhos homens são mais
importantes que as filhas mulheres, comprenez?
Christine balançou a cabeça, enrubescendo.
— Assim, um homem que queira formar uma família precisa estar certo de que terá
filhos do sexo masculino...
— Parece fazer sentido... — comentou Christine, imaginando até onde iria aquela aula
de costumes sexuais do povo polinésio.
O inspetor enrubesceu e, mesmo constrangido, persistiu até o fim:
— Assim, segundo a tradição, antes de se casar, a moça tem de provar que é... Bem,
que é capaz de gerar um filho homem...
— Ah, sim, entendo... Miri então precisa... — Mas ela interrompeu o que ia dizer,
quando sentiu novo cutucão por baixo da mesa.
À parte esse rápido incidente, o jantar transcorreu tranqüilamente. Às nove horas, Sam
e Miri despediram-se, e o inspetor aproveitou para se retirar.
— Boa noite a todos, foi uma noite bastante agradável! Eu preciso descansar agora,
porque dentro de algumas horas o barco levantará âncora, e é aconselhável que eu esteja
nele!
Christine e Lucien acenaram para Miri e Sam da varanda, observando-os descerem a
encosta para a vila, e Josie juntou-se aos dois.
— Está cansada, querida?
— Estou exausta, mamãe.
— "Mas nós fizemos um bom trabalho, não é, papai?
—Sim, não poderia ter sido melhor! Mais algumas horas e estaremos livres de qualquer
ameaça!
Lucien passou a mão pela cintura de Christine e ela pensou na freqüência com que ele
estava fazendo isso nos últimos dias. Mas aquela mão máscula pousada em sua pele nua
tinha um toque caloroso, que não a desagradava...
"Qualquer coisa nele me provoca, me perturba. É um sentimento muito sutil, indefinível
até. Não se trata de paixão. Nem de amor. É apenas... qualquer coisa...", raciocinou
confusa, enquanto levava Josie para o quarto.
Elas conversaram e depois Christine contou a habitual história. Quando acabou, deu

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um beijo em Josie e foi para seu aposento.
Apagou a luz e deitou na cama, lembrando-se dos estranhos acontecimentos do dia. A
entrevista que tivera pela manhã com o tahu'a parecia um fato muito distante, mas,
mesmo assim, sentiu um arrepio ao recordar o que ele dissera. Foi então que viu um vulto
penetrando nas sombras e, receosa, perguntou:
— Quem está aí?
O vulto moveu-se em direção à cama e ela ficou alarmada.
Mas Lucien pediu-lhe para que falasse baixo, e ela suspirou aliviada. Então, perguntou:
— O que você faz aqui?
— Como assim?
— Eu quero saber o que quer, Lucien!
— Bem, eu estou me despindo! Algum problema?
— Ah, claro, então é isso! Não, meu caro, não há nenhum problema. Mas eu preferiria
que você fizesse isso em seu próprio quarto!
— Escute aqui, caríssima esposa: faça as contas!
— Fazer as contas?
— Sim. Imagine você que nós temos três quartos na casa. Um é para Jô e o outro para
o inspetor. Resta um quarto, que é precisamente este. Creio que minha esposa dedicada
não se importará em dividi-lo comigo!
Christine engoliu em seco. Jamais o ouvira falar com tamanho sarcasmo. Entretanto,
não estava disposta a ceder.
— O raciocínio é lógico, mas, ainda assim, eu lhe peço que vá dormir em outro lugar!
— Se Tihoni me vir dormindo na sala, com certeza achara estranho. Agora fique quieta
e trate de dormir. A cama é larga o bastante para nós dois. Tudo o que eu quero é uma
boa noite de descanso, não se preocupe. Não tenho em mente nenhum plano para
violentá-la!
Christine deu-lhe as costas e tentou dormir. Mas não conseguia. Saber que ele estava
ali, tão próximo, deixava-a tensa. Era impossível conciliar o sono naquelas condições...
O corpo latejava, pedindo o toque abrasador de Lucien e, ao mesmo tempo, a
consciência a mandava recuar e não se envolver.
Do outro lado da cama, Lucien estava igualmente aflito. Ignorava o que Christine sentia
e pensava. Na verdade, ela era uma incógnita, uma verdadeira caixa de surpresas.
E, cheios de dúvidas, terminaram por adormecer.
As horas se passavam silenciosas, até que, a uma certa altura, o céu se cobriu de
nuvens escuras e começou a chover.
Grossas gotas de água batiam no telhado, refrescando o ar e espalhando o perfume
das flores. Raios e relâmpagos dançaram na atmosfera e um trovão estrondou.
Christine sonhava com a tempestade que fizera do barco de seu pai um joguete e a
atirara ao mar. O som da chuva batendo no telhado confundiu a realidade com o
pesadelo, e ela, guiada pelo instinto de proteção, encolheu-se de encontro ao corpo de
Lucien. Os braços dele a envolveram e Christine teve uma aconchegante sensação de
segurança.
Lucien escorregou as mãos até os seios macios, acariciando-os com a ponta dos
dedos até que ficassem intumescidos.
Ela não parava de repetir a si mesma que ele era seu marido c" a amava. Só quando
conseguiu acreditar nessa mentira, virou-se e abriu os olhos, buscando-o com os lábios
entreabertos.
Sentia a masculinidade emanar daquele corpo firme, e era excitante ter as pernas dele
roçando nas suas, o peito musculoso esmagando-a com o peso. De repente, explodiu
nela a chama do desejo, e Christine começou a corresponder às carícias que recebia.
Não raciocinava mais, não se dominava mais. Só sentia o gosto da boca dele queimando-
lhe os lábios, fazendo-a enlouquecer.

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Lucien mordiscou-lhe a orelha, lambeu seu pescoço e enfim beijou-lhe os seios,
detendo-se num dos mamilos rosados. Christine estremeceu de prazer.
Ela o apertava contra si, afagando-lhe os cabelos castanhos e movendo os quadris
num movimento sensual.
Os dedos dele brincaram na região do baixo ventre e apertaram-lhe as coxas contra o
corpo viril. Os pêlos ásperos o excitavam e ele apalpou a parte interna das pernas,
arrancando-lhe gemidos de prazer.
Lucien, então, afastou as pernas de Christine, deitando todo o peso do corpo másculo
sobre ela.
— Venha, Lucien, . . Venha, agora!
Christine ofegava e sussurrava-lhe palavras carregadas de paixão. E, quando deu-se
conta do que estava acontecendo, não havia mais como voltar atrás... Lucien
movimentava-se dentro dela, aprisionando-a num abraço ardente.
Tomada de pânico, empurrou-o, debatendo-se e soluçando. Tal era a violência de seus
apelos que ele parou, atordoado.
— Não! Não pode ser! — ela quase gritou, num pranto convulsivo que fazia o corpo
inteiro tremer.
— O que foi? Eu... não tive a intenção de magoar você...
— Eu... Eu o odeio! E me detesto também! Como pude deixar as coisas chegarem a
esse ponto?
Lucien tentou abraçá-la, mas Christine recuou. Ele ficou perturbado com a súbita
mudança no comportamento dela e angustiava-se. Afinal, o que fizera de errado para
colocá-la naquele estado de histeria?
— Christine, foi você quem me procurou! Eu não encostei um dedo em você antes
disso... Depois... pensei que era o que desejava...
— Eu tive medo da tempestade e então... então... Mon Dieu, como pude cometer a
loucura de me deixar possuir por um estranho?
Ele segurou-lhe o rosto com infinita ternura e disse, num
tom cheio de meiguice:
— Eu não sou um estranho, Christine...
Ela permaneceu imóvel na borda da cama, totalmente apática. Em seus olhos, todavia,
notava-se o quanto estava deprimida.
— Não, Lucien, não me venha proclamando direitos conjugais!
— Por favor, perdoe-me... Por um momento eu achei que
você realmente me queria.
"E estava certo. Eu o queria, como jamais quis alguém! Mas não suporto a idéia de me
entregar a um homem apenas por causa de uma ligação circunstancial! E... foi o que fiz!"
Christine sentiu uma terrível sensação de vazio.

CAPÍTULO VII

Lucien saiu do quarto com pesados passos, e Christine encostou-se na cabeceira da


cama. Atravessou a madrugada assim, sem se mover, fitando as paredes do quarto com
a mente embaralhada. Os primeiros raios do sol saudavam o novo dia, e a límpida manhã
se pronunciou. Ela permaneceu ali, trancada em sua dor.
Perto da hora do almoço, Miri entrou no quarto, cantando alegremente e carregando
alguns pacotes. Vendo Christine recolhida num canto, parou, sem graça, desculpando-se:
— Aue. Pensei que estava na praia, madame. Eu volto mais tarde...
— Não, Miri, não precisa sair. Pode fazer a limpeza.
A nativa abriu as cortinas da janela, realçando ainda mais a palidez e as profundas
olheiras de Christine. O estado dela era tão deplorável que Miri não conseguiu se conter:

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— Não vai abrir os presentes?
— Que presentes, Miri?
— Os pacotes que eu coloquei sobre a cadeira. Vou trazê-los. — Miri abriu uma das
caixas e entregou-a para Christine.
— Não gosta, madame?
Era um elegante vestido estampado de flores. Christine nem precisou conferir na
etiqueta para saber que era um modelo de Paris.
— Não, não gosto. Tire estes pacotes daqui, eles me irritam!
— Não lhe agradam, madame? Talvez se abrisse os outros...
— Leve-os, Miri! A nativa fez ainda nova tentativa:
— Mas monsieur Girraud encomendou-o da França, para fazer-lhe uma surpresa...
— Pouco me importa monsieur Girraud! Pelo amor de Deus, tire esses embrulhos
daqui, Miri!
A nativa recolheu os pacotes e saiu. Minutos depois, Lucien apareceu à porta. Cruzou
os braços, e uma sombra indefinível passou-lhe pelos olhos azuis.
— Você está agindo como uma criança, Christine. Eu encomendei as roupas
especialmente para você, há mais de uma semana...
— Deixe-me em paz! Não quero nada de você! O único desejo que tenho é ir embora
daqui! E Deus o proteja se encostar em mim de novo, porque sou capaz de cometer uma
loucura!
—Então você se exime de qualquer culpa e joga nas minhas costas a responsabilidade
por tudo o que aconteceu ontem à noite!
— O meu grande erro foi ter confiado em você! Um lobo em pele de cordeiro!
Conquistou-me com palavras doces e ares protetores, com o intuito de me seduzir! Você
é desequilibrado, Lucien... Eu nem sei mais o que pensar de você! Quantas vezes não se
aproveitou do meu sono para fazer tentativas sujas? Bem, afinal, conseguiu o que tanto
queria. Agora deixe-me! — desabafou Christine, os olhos acinzentados marejados de
lágrimas que traduziam toda a dor e frustração.
Lucien olhou para ela sério e sentou-se na cadeira.
— Christine, seja honesta consigo mesma. Você me desejava e eu não a violentei de
modo algum! Admito que cometi excesso, mas você me encorajou... Podia ter me repelido
e afirmado que não me queria, mas não era o que seus olhos diziam!
— Se assim lhe parece, assim é, Lucien Girraud!
Os olhos de Christine estavam cheios de indignação, enquanto ele sustentava um olhar
indecifrável.
— Eu tenho uma proposta: quer casar comigo?
— Mas você é extremamente generoso!
— Não se trata de generosidade. Digamos que estou sendo apenas prático...
— Prático para quem, Lucien?
— Para nós dois. Eu necessito de uma esposa que cuide de Josie. Quanto a você,
suspeito que esteja metida numa bela encrenca, e nada mais indicado do que" um
casamento para conferir-lhe um ar de respeitabilidade e isenção de culpa! Não acha uma
troca razoável?
Christine ficou apreensiva. A farsa estava prestes a ser desvendada e, daí por diante,
precisava ser cuidadosa com cada palavra que dissesse. "Então ele desconfia de minha
verdadeira identidade. Mas, enquanto viver, jamais desmentirei a história da amnésia!"
— Não seja cínico! Depois do que me fez, eu não me casaria com você nem que fosse
o último homem da face da Terra! Meu único desejo é deixar esta ilha. E, quanto antes,
melhor!
— Eu me esforçarei para ser um bom marido, Christine...
— Pois não foi o que demonstrou, Lucien. Aliás, fico me perguntando por que se
separou de sua mulher!

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— Não sabia que era tão venenosa. Vamos, continue! Quero ver aonde vai a sua
sutileza!
— Não, é melhor parar por aqui. O assunto não vai levar ;i nada! Quando poderei sair
da ilha?
Houve uma longa pausa. Lucien remexeu-se na cadeira, cruzando as pernas. Não
podia deixá-la ir. Precisava achar uma maneira de fazê-la ficar.
— Lamento informar, Christine, mas, enquanto o barco de provisões não retornar, não
há comunicação entre Te Tuahine c o continente e as demais ilhas.
— Três meses? Nunca!
— Bem, se não acredita, você pode perguntar a qualquer um na ilha. Ou, se preferir,
tem a opção de nadar. Maupiti fica a apenas seis milhas daqui e lá você terá vôos que
saem três vezes por semana.
— Ora, e o que são seis milhas? Um pescador poderia me levar...
— Mantenha os nativos fora disto, Christine Girraud.
— Não me chame assim! Não sou Christine Girraud e jamais fui sua mulher! Eu... eu
espero que o inspetor Tihoni regresse logo, assim poderei contar-lhe algumas verdades
sobre sua filha!
— Mas que bela atitude! Agora me chantageia!
— Pois é o que você merece!
Lucien ficou tenso, os olhos azuis faiscaram. O corpo inteiro tremia e ele cerrou os
dentes com força. Christine enfrentou-o sem medo. A guerra de nervos chegara a um
ponto insustentável e ele não iria retroceder.
— Você parece ter se recordado de uma porção de coisas, Christine. Tem vinte e três
anos, não é minha mulher e me detesta ... Do que mais se lembra?
— De tudo! Você imaginou que era tão brilhante, pregando-me todas as mentiras,
pensando que assim me ludibriava. Ah, como pôde ser ingênuo a ponto de pensar que
me enganaria com histórias infantis, quando, na verdade, eu nunca tive amnésia?
Ela emudeceu. Fora longe demais e agora não havia mais volta. Precisava assumir a
verdade, até então camuflada por meias palavras.
— Ah! Finalmente, obtive a confirmação de minhas suspeitas! Daí concluo que
estávamos tentando nos enganar mutuamente.
— Não vejo a menor graça nisso. Como eu sofri, como tive medo!
A fisionomia irritada de Lucien abrandou-se, enquanto Christine andava em círculos
pelo quarto. Lucien pediu-lhe que se sentasse, mas não foi ouvido. Impaciente, ele a
segurou pelos ombros e a forçou a parar.
— Minha querida Christine. Se você pensa que eu sou tão bobo como o inspetor
Tihoni, engana-se redondamente. É muita coincidência duas Christines Harriet
naufragando numa só tempestade do Pacífico. Sei muito bem que você é filha de Tules
Lambert, um dos principais suspeitos no roubo do Banco do Pacífico. Então, não se
atreva a jogar pedras no meu telhado, porque o seu também é de vidro! Na realidade, nós
dois temos necessidade um do outro, Christine! Eu preciso de uma pessoa que eduque
minha filha. Se cuidar dela durante os próximos ires meses, eu me encarregarei de zelar
pela sua segurança aqui na ilha e, depois disso, estará livre para partir para onde desejar.
Eu providenciarei, inclusive, uma quantia de dinheiro que lhe permita recomeçar a vida...
— Não lhe darei esse gosto, Lucien! Vou arrumar um meio de sair daqui o quanto
antes!
— Pois então fique ciente de uma coisa: no momento em que eu perceber sua falta,
informarei à polícia que Christine Lambert partiu para Maupiti!
Ele deu uma gargalhada e a voz soou áspera. Christine descontrolou-se e o rubor
subiu-lhe às faces:
— Isso é chantagem! Você me ameaçou!
— Eu ainda prefiro chamar de um acordo entre cavalheiros. Ou, se lhe agrada mais,

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um acordo entre um homem e uma mulher em apuros. Em nossa situação, não há lugar
para atos impensados. Sei que você quer ir embora, mas tudo virá no devido tempo...
Fora de si, ela levantou-se num salto. Mas logo arrependeu-se do que havia feito, pois
agora Lucien barrava-lhe a passagem c estavam muito próximos. De novo, veio-lhe a
sensação de estar hipnotizada pelo brilho enigmático daqueles olhos azuis.
Christine cerrou os punhos com tanta força que cravou as unhas nas palmas das mãos.
Desviando o olhar, concordou:
— Está certo, como queira. Afinal, trata-se de um acordo entre cavalheiros...
Ela sentia-se impotente. E, assim, a revolta crescia em seu coração, por ter de sujeitar-
se às condições dele. Ao mesmo tempo, reconhecia que o que Lucien propunha era
razoável.
Os temores voltaram a assaltá-la e pensou no pai, foragido em alguma parte do
Pacífico. "Não podem tê-lo apanhado!", assegurou a si mesma. Por ora, entretanto, nada
podia fazer, a não ser submeter-se ao jogo de Lucien.
— Nos próximos meses você será Christine Girraud e tomará conta de Jô. É tudo o
que lhe peço.
— Concordo em ficar aqui e cuidar de Josie, não em ser sua mulher.
— É tudo ou nada, Christine...
— E que mais posso fazer, senão concordar? Corretíssimo, serei madame Girraud,
mas atreva-se á encostar um dedo em mim e não responderei pelas conseqüências!
Ouviu bem?
— Sim, meu amor, ouvi muito bem. Não se preocupe, porque não tenho a menor
pretensão de encostar o dedo em você. A não ser, é claro, que me peça...
Ele lançava olhares maliciosos, e Christine teve vontade de esbofeteá-lo. Por pouco
não se satisfez.
— Pense como quiser, Lucien. Não gostaria de voltar a discutir o mesmo assunto!
— Assim, uma vez que finalmente nos entendemos, eu gostaria que você fizesse jus
ao novo nome e aceitasse as roupas que lhe comprei.
— Há uma grande diferença entre usá-las e aceitá-las — retorquiu ela, mordaz.
— Ora, ora, isso não é muito delicado, Christine. Mas, enfim, não posso exigir a
perfeição. Vou fingir que não escutei o que acabou de dizer. Afinal, você é minha adorada
esposa, a partir de agora.
"Você é como uma lagarta, que se movimenta com graciosidade num corpo liso e
flexível entre o sol e as flores. Enlouquece e seduz, com seu sorriso que é uma armadilha.
Mas, quando estico o braço para tocá-la, transforma-se numa borboleta e voa para longe
de mim!", pensou ele, enquanto a observava com olhos penetrantes e melancólicos.
No final da tarde, quando retornou de um passeio à vila com Miri, Josie estava radiante.
Passara o dia brincando com outras crianças nativas entre os coqueirais, seguindo trilhas
e inventando jogos. Era evidente o entusiasmo dela. — E então o menino chamado Terri
me levou à baía e pescamos. Eu apanhei dois peixes e ele nenhum! Então Terri sacudiu
os ombros e disse que eu estava com sorte, porque as meninas não foram feitas para
pescar. Não acham que ele estava com inveja de mim?
"Os homens são assim. Julgam-nos incapazes, só servimos para cuidar dos filhos e da
casa. Hoje, Josie ouviu que as meninas não sabem pescar. Depois, alguém lhe dirá que
deve ser sempre feminina e dócil. E, então, estará formado o primeiro cio da corrente que,
mais tarde, irá aprisioná-la nas convenções sociais..."
Christine falou com infinita ternura:
— Filhinha, ele ficou zangado porque achava que, por ser menino, era mais habilidoso
do que você. Mas não é verdade que Terri caiu do cavalo, não foi? Você pode fazer o que
quiser, pescar ou subir nos coqueiros, cozinhar ou costurar. Basta aprender e se esforçar!
Agora, precisamos arranjar um filtro solar para você, para a próxima vez que for à vila.
Seus ombros estão em bolhas!

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— Mas por quê? Terri não usa nada na pele e não ficou queimado como eu!
— Porque você é clarinha e nós, clarinhas, precisamos nos proteger para não ficarmos
parecendo lagostas!
Christine ajudou-a a tomar banho e, depois, foi com ela ao quarto. Josie deitou-se,
exausta, devido ao dia de aventuras que levara. Mas ainda conversaram um pouco:
— Mamãe, você vai usar um dos vestidos que papai lhe deu?
— Não sei, Jô. Talvez eu possa desmanchar algum deles e trazer uma roupa para
você, o que acha? Vai parecer uma dama!
— Eu não quero parecer uma dama! Quero apenas ser uma IH»I remadora de canoas...
— replicou a menina, fechando os olhos e mergulhando em sono profundo.
Christine dirigiu-se para a varanda, reclinando-se na espreguiçadeira, ociosa, enquanto
bebericava goles de café. Miri surgiu e, ao vê-la, comentou:
— Nós ainda teremos café por três ou quatro semanas. Monsieur comprou muitas
coisas, inclusive farinha de trigo e legumes frescos. A única coisa que me deixou confusa
foram as batatas desidratadas que ele encomendou. Nós não sabemos como prepará-las.
— Amanhã eu lhe explicarei, Miri, é bem simples. A nativa sorriu e encaminhou-se para
o interior da casa, levando a cafeteira.
— Deixe o café aqui.
— É preferível beber Kaava, madame. O café tira o sono e agita os nervos.
— Se você me permite, Miri, quero tomar café.
— Tudo bem, madame. Logo que Miri saiu, Christine notou a presença de Lucien atrás
de si. Convidou-o a sentar.
— Quer café?
— Sem açúcar. Ela encheu a caneca e deu a ele. Três meses era um longo tempo
para passar em meio a discussões e achou por bem tornar a relação com Lucien mais
cordial. Por que não podia dar o primeiro passo?
— Trabalhou muito hoje, Lucien?
— Sim. O ritmo foi lento, porque tive algumas dificuldades.
— Que tipo de dificuldades?
— Tem certeza de que quer saber? Ela lançou-lhe um olhar sincero e sorriu.
— Claro que quero. Do contrário, não teria perguntado!
— Bem, meu novo livro terá de ser um grande sucesso de vendas. Não desconhece
minha situação embaraçosa, não é, Christine? Helen, a mãe de Josie, leva grande parte
do dinheiro que ganho, e eu tenho de compensar os gastos. No momento, estou
escrevendo um romance de aventura e, conversando com os editores, chegamos à
conclusão de que, se eu acrescentasse algumas cenas eróticas, o livro atrairia mais
leitores.
— E então...?
— A personagem de mulher fatal que criei não se encaixa na trama toda. Estou tendo
problemas para incluí-la na história de modo interessante.
— E como é a sua femme fatale.
Lucien calou-se e pensou, por um instante. De repente, passou a mão nos cabelos e
pulou da cadeira, com um brilho no olhar.
— Mas é claro! Estava o tempo todo debaixo das minhas vistas e eu não vi! Obrigado,
Christine, você me ajudou muito!
Ele saiu às pressas e fechou-se no escritório.
Christine bebeu mais um gole de café, sem entender o comportamento de Lucien.
Colocou a xícara no chão, recostou-se na espreguiçadeira e contemplou as estrelas
distantes...

CAPITULO VIII

Projeto Revisoras 44
A Desconhecida – Bianca nº 318 – Emma Goldrick

Os dias que se seguiram foram preenchidos por uma tranqüila rotina. Christine
acordava cedo e ia para a praia tomar um banho de mar. A seguir, tomava o café da
manhã e dava aulas particulares para Josie. À tarde, as duas saíam para explo rar a ilha,
caminhando por veredas e atalhos, apanhando mangas no pé e se lambuzando com a
polpa amarela da fruta. Os passeios terminavam em lagoas e cachoeiras, bicas e grandes
rochas, de onde se podia avistar a ilha.
A amizade que crescia entre Christine e Josie era cada vez mais profunda. Josie fazia
confidencias a Christine e elas passavam longas horas conversando.
Um dia, após o almoço, Christine deixou a menina entregue aos deveres de
matemática e decidiu tomar um banho para se refrescar. Ao encaminhar-se para o
chuveiro, viu a porta do escritório aberta e não resistiu à tentação de entrar. A corres -
pondência estava sobre a mesa e ela começou a examiná-la. Eram contas a pagar, duas
cartas de Papeete e uma de São Francisco. Chamou-lhe a atenção uma carta de Nova
Iorque ainda lacrada, com o nome Helen Morley Girraud no lugar do remetente, escrito
com uma caligrafia firme e decidida. "Então, a primeira mulher dele mantém contato e
ainda usa o nome de casada!" Recolocou o envelope no lugar e deu uma olhada no
restante da correspondência.
Foi então que viu, numa conta proveniente do Taiti, o carimbo do correio com a data da
semana anterior! Isso não batia com o que Lucien dissera sobre a comunicação com a
ilha, que só seria possível de três em três meses, quando da passagem do barco. Como
poderia ter chegado aquela conta?
Feliz com a descoberta, arrumou as cartas como havia encontrado e deixou o
escritório. Mas, dando meia-volta, apanhou na escrivaninha um calhamaço de folhas
escritas e atirou tudo para o alto. Tinha raiva de Lucien e experimentava uma alegria
imensa em embaralhar os escritos dele.
Ela teve um sobressalto ao perceber que Lucien a observava, encostado ao batente da
porta. Muito sem graça, Christine simulou uma desculpa:
— Eu vi que o vento estava desarrumando os papéis, e eu resolvi...
— Sim, eu notei a forma com que estava me ajudando! O vento? Ora, não me faça rir!
Por que não pára de inventar mentiras?
— Bem, nesse caso não serei somente eu a ter culpa em cartório. A verdade aqui é
pouco usual, pelo que pude perceber.
Ele a fuzilou com os olhos azuis, que brilhavam em sinal de desaprovação.
— Você tem apenas um segundo para me contar o que veio xeretar em meu escritório,
Christine.
— Pois bem! Eu queria descobrir um meio de sair desta ilha, o que não é nenhuma
novidade para você. Quando vi que você mais uma vez me enganara, fiquei irritada e
joguei para o alto todos os seus escritos. Explique-me como aquela conta chegou na ilha
na semana passada.
Lucien caminhou em direção a Christine e ficou muito próximo dela. Segurando-a pelos
ombros, puxou-a para si com as mãos, que pareciam garras de aço. Christine ficou
parada, como que hipnotizada, incapaz de um gesto. E deixou-se beijar, inerte, tal como
uma boneca nos braços dele.
O mundo à sua volta parecia ter parado de girar, e ela fechou os olhos. O conflito de
paixões e medos que tinha dentro de si cresceu, mergulhando-a num turbilhão de
sensações contraditórias, Lucien, impiedoso, explorava a boca de Christine com avidez,
retardando o encontro de suas línguas, despertando-lhe o desejo que tinha de ser
possuída por aquele homem, que apertava contra ela toda a sua masculinidade.
Pressentindo que estava para perder o controle, Christine libertou-se dele com um
movimento brusco e saiu para a varanda. Aproximou-se de Josie, que estava ocupada
com as tarefas escolares.

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— E então, Jô, já terminou?
— Falta só um exercício, mamãe.
A menina rascunhou algumas contas e anotou a resposta na folha de papel. Christine
conferiu os exercícios, fazendo as correções necessárias. Quando terminou, já estava na
hora do almoço, e as duas foram para a cozinha.
Comeram sem a companhia de Lucien que, segundo Miri, havia saído muito cedo e
ainda não voltara. Após a refeição, Christine disse a Josie:
— Vamos até a vila. Eu tenho uma aula-surpresa para você. Os olhos de Jô brilharam
de entusiasmo e curiosidade.
— Aula de quê, mamãe?
— De geografia e história.
Christine segurou-lhe a mão e foram para o vilarejo, onde encontraram o tahu'a. Ele as
saudou e. traçando desenhos na areia, começou a explicação:
— Havaki foi o começo de tudo, de onde vieram as grandes canoas...
O velho sacerdote riscava as rotas marítimas na areia com o auxílio da bengala,
falando dos deuses e das paixões humanas. Josie acompanhava as explicações com
verdadeiro interesse, quase entusiasmo. Mas a aula foi interrompida por dois nativos, que
chegaram perto do tahu'a e trocaram algumas palavras com o velho homem. Depois de
alguns instantes, eles balançaram a cabeça e foram embora, visivelmente contrariados.
Josie olhou para o tahu'a com expressão interrogativa, sem compreender a conversa
em dialeto polinésio.
— O que foi que eles disseram?
— Eles disseram: "Por que ensinar o Grande Caminho para uma menina?"
— Mas por quê? Só os homens sabem sobre o Grande Caminho?
Ele riscou um signo, semelhante a um amuleto egípcio, e sorriu, enigmático.
— Não, madame Girraud. Eu falei a eles que não estava ensinando uma menina, mas,
sim, obedecendo ao comando de Peele. Minha missão é ensinar a Filha de Tangora.
Você volta outro dia?
— Sim, tahu'a. Jô e eu viremos vê-lo mais vezes!
A menina cutucou Christine, pedindo para que fossem embora dali.
— Mamãe, vamos nadar! Tem está na praia, acenando para mim!
— Vá você, querida. Eu quero ver se acho uma pessoa e logo mais encontrarei você
na praia.
Ela observou a menina correr e juntar-se às outras crianças. Não tinha receio de deixar
Jô sozinha por alguns instantes. Havia um pequeno grupo de nativos na orla da praia, e
estava certa de que eles cuidariam da garota. Conforme a tradição da ilha, os adultos
eram responsáveis por todas as crianças, sem exceção.
Christine seguiu tranqüilamente para a praia, na direção oposta à tomada por Josie,
indo encontrar Sam Apuka. Ele consertava um barco e, tão logo a viu, largou o trabalho e
balançou a cabeça.
— Iorana, madame.
— Iorana, Sam. Desculpe-me, não pretendia atrapalhar.
— Não é incômodo nenhum. Tenho toda a eternidade para arrumar esta canoa! Nada
tão urgente assim! — falou ele, dando uma sonora gargalhada.
— Bem, Sam, vim aqui pedir-lhe um favor... Será que poderia checar o correio para
mim? Monsieur Girraud esperava cinco cartas, mas só recebemos quatro.
Christine olhava para ele, procurando disfarçar a ansiedade. Estava a um passo de
descobrir qual seria o meio para fugir da ilha. E o nativo confirmou as suspeitas:
— Aue, eu não costumo contar a correspondência. Talvez a carta tenha se extraviado
em Maupiti, não? Amanhã irei lá e verificarei.
— Ah! Então você partirá para Maupiti... Não pensei que iria tão cedo...
Ele a fitou com indulgência, como quem se dirige a uma criança, esclarecendo o

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equívoco em tom didático:
— Nós vamos para Maupiti toda sexta-feira de manhã e regressamos ao anoitecer. Isto
é, se não houver tempestade, é claro! Quando o tempo está ruim, voltamos na manhã
seguinte.
"Afinal o peguei, Lucien Girraud! Quer dizer que há um barco que vai a Maupiti e, de lá,
há acesso para o Taiti! E então, monsieur Girraud, como explica isso?"
— Madame está com uma cara engraçada. Ei, esta noite nós dançaremos o tamure.
Você vem?
— Eu adoraria, mas não creio que meu marido aprecie muito a idéia. Agora, conte-me
sobre a canoa.
— Oh, não, é melhor eu contar sobre o tamure. Miri e eu dançaremos hoje, e é
provável que amanhã ela não trabalhe.
— Mas a viagem para Maupiti é longa. Que tipo de barco usa, Sam? — perguntou ela,
voltando ao assunto que a interessava.
Novamente, o nativo olhou-a condescendente, conformado com a ignorância que ela
manifestava acerca dos costumes locais.
— De maneira alguma, madame. Do topo da montanha já se avista Maupiti. São
apenas nove ou dez quilômetros e nós temos uma canoa especial, um pahi. Quando faz
bom tempo, cobrimos a distância daqui a Maupiti em três horas. Não há nenhum
empecilho. Um dia poderá nos acompanhar, se quiser.
Ela o ouvia radiante. Tudo o que tinha a fazer era ir à praia numa sexta-feira, embarcar
na canoa e... adeus, Te Tua-hine. E, quando Lucien descobrir que fugi, tratará de acionar
o rádio e avisar a polícia." Nesse caso, a primeira coisa que precisava era conseguir
alguns jornais, para saber em que pé estavam as investigações do Banco do Pacífico.
— Ah, Sam, lembrei-me de mais uma coisa. Será que poderia me trazer alguns jornais,
da próxima vez que for ao Taiti?
— Lucien não deixa você ler? Ele assina jornais de Nova Iorque, Paris e do Taiti! —
esclareceu Sam, com uma nota de cautela na voz.
— Ora, pois Lucien nunca me contou. Aquele homem! — Christine quis parecer
espontânea.
— E eu lhe asseguro que é a melhor forma de tratar uma vahine.
O nativo sorriu e acenou, retomando o trabalho no barco, enquanto Christine subia
para a vila.
Josie correu ao encontro dela, e caminharam juntas pela baía. Num dado momento, a
menina segurou-lhe a mão, parecendo preocupada.
— Mamãe?
— O que é, Jô?
— Terri quebrou o dedo.
— Como foi isso, menina?
— Foi quando ele estava mexendo no barco. Mas a mãe dele disse que...
A menina não terminou a frase, pondo-se a fitar o chão, embaraçada.
— O que a mãe dele falou, Jô?
— Ela disse que, neste mês, aconteceram muitos acidentes na ilha por culpa sua!
fosie arregalava os olhos azuis e Christine a encarou, confusa. Onde a garota queria
chegar com aquela declaração?
— Minha culpa? Não entendo...
— Eles dizem que a má sorte está solta em Te Tuahine desde que você trouxe Peele
da montanha. E que a onda de azar só terminará no instante em que a deusa for levada
de volta ao... ao... não recordo a palavra que usaram...
— Maere. É o templo dela, na encosta do vulcão. Mas você não acredita nessas
coisas, não é, querida?
— Não sei, mamãe. São os boatos que correm na vila. Eles não ficam zangados, só

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tristes.
— Tudo não passa de superstição. Se tivéssemos violado o templo de Peele, o tahu'a
nem se dignaria a falar conosco!
— Ah, não sei... Garantiram que a boa sorte só retornará quando Peele for colocada de
novo no santuário.
— Isto é um absurdo. Peele é apenas uma estatueta, um tiki. Agora precisamos nos
apressar. Está quase na hora do jantar!
Christine passou o braço em torno do ombro de Josie, procurando transmitir-lhe
segurança.
De pé na varanda, Lucien as viu chegar, alegres e íntimas. Levou a bebida à boca, com
raiva. Justamente agora que as coisas se ajeitavam, Helen voltara a se intrometer,
estragando tudo! Apertou o envelope no bolso, sentindo queimar-lhe a mão.
— Olá, papai! Hoje o tahu'a me ensinou história e geografia, fazendo desenhos com a
bengala na areia!
Josie atirou-se no pescoço dele. Comovida com a cena, Christine sorriu. Então,
ordenou:
— Agora, mocinha, vá tomar um banho. Assim estará limpa e asseada para o jantar,
certo?
A menina desapareceu pelo interior da casa e Christine admirou a baía,
repentinamente constrangida com a presença de Lucien.
— Christine, você não está vestindo as roupas novas?
— Não...
— Temos uma surpresa para o jantar de hoje: Comeremos filé, uma cortesia do
açougue Dupont y Freres.
Christine sorriu, lembrando da carta da referida casa de carnes. Por meio dela,
descobriu a maneira de fugir da ilha e acabar com aquela farsa.
Logo em seguida, Josie reapareceu, e seguiram juntos para a cozinha. A menina, ao
ver a carne servida sobre a mesa posta, deu um assobio.
— Que delícia, papai! Não como um bife há quase três meses i
Sentaram-se, e ela devorou o seu pedaço. Christine estava aguardando o momento
certo para abordar o assunto dos jornais. Ficou tão atenta que bastou Josie cometer um
erro de gramática para que ela o transformasse no pretexto de que precisava.
— Nós estamos tendo uma certa dificuldade em conduzir as lições de francês. Penso
que seria mais produtivo se utilizássemos revistas e... jornais.
— Lucien parou de comer, largando a faca ao lado do prato, e lançou um olhar
penetrante a Christine. Nisso, Miri serviu a sobremesa e ele mudou o rumo da conversa,
indo para o escritório logo após o jantar.
Christine sorriu, observando Lucien sair apressado. "Eu não desistirei, monsieur
Girraud. Você não poderá mudar de assunto sempre!"
Josie foi dormir e ela ficou na varanda. Deitada na espreguiçadeira, passeava os olhos
pela Via Láctea, compenetrada em arquitetar um plano para sair dali. Mas a cabeça dava
voltas, sem chegar a lugar algum. As batidas das teclas da máquina de escrever, no
escritório, compunham um ruído monótono e seco, embalando-a. Exausta, Christine
adormeceu.
Acordou quando dedos leves tocaram-lhe os cabelos. Lucien estava de pé, a seu lado.
— Recebi uma carta de Helen, minha ex-mulher, Christine. Ela sentiu súbita atração e
simpatia por aquele vulto robusto que segurava um envelope, e cujos olhos brilhavam na
escuridão. Lucien prosseguiu:
— Eu imagino que saiba o motivo de minhas dificuldades financeiras. A pensão
alimentícia de minha ex-mulher é de sete mil dólares por mês, conforme o veredito da
corte de Nova Iorque.
Torcendo as mãos nervosamente, Lucien sentou-se e desabafou toda a contrariedade

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que tinha guardada.
— A lei norte-americana estabelece que as crianças devem ficar com as mães. Não
levarem consideração se os filhos são bem cuidados ou não. A custódia vai
automaticamente para a mãe, e o pai tem de pagar a pensão. Não me admira que haja
tanta incidência de rapto de crianças por parte de pais insatisfeitos com a lei!
— E foi isso que você fez?
— Sim, e não me arrependo. Eu a apanhei na saída do colégio, e, depois de dizer
umas boas verdades àquele verme que vive com Helen. embarquei num avião com Josie.
— E então veio para Te Tuahine.
— Exato. Há três anos. E, desde então, Helen tem nos procurado, às minhas custas, é
claro. Esta carta foi uma surpresa.
Ele apertou a carta entre os dedos, imerso em pensamentos angustiantes. Christine
estimulou-o a prosseguir:
— O que aconteceu, Lucien?
— Ela quer casar com o tal homem com quem vive.
— E o que tem de errado nisso?
— Na verdade, nada. Se ela contrair novo matrimônio, minhas obrigações cessam.
Mas Helen é inteligente demais para perder a renda que lhe mando. Na carta, disse que
estava pensando em se casar, porém, em troca de um "presente de casamento
adequado"...
— Adequado?
— Dinheiro. Ela pretende me extorquir até o fim, para poder viver tranqüila em
companhia daquele homem. Só que eu estou com dificuldades financeiras e não poderei
pagar o preço que ela quer.
— Mas o livro que está escrevendo... Você levantará a quantia necessária.
— Você me ajudou bastante em meu livro. Mesmo assim, o futuro é incerto...
Christine olhou para Lucien, finalmente compreendendo a difícil situação em que ele se
encontrava.
— Helen gosta de jogo, Lucien?
— Como descobriu? Todo o dinheiro vai para os cassinos de Atlantic City!
— Então ainda há uma possibilidade.
Lucien virou-se, interessado. A ansiedade dele era quase palpável.
— Ofereça a Helen metade de tudo que conseguir com o livro. Em troca, peça a
liberdade.
— Ora, isso pode chegar a um milhão de dólares! Talvez isso ela aceite... Acho que
vou agora mesmo escrever para Helen!
Entusiasmado, Lucien segurou as mãos de Christine, aproximando-se. Fez menção de
beijá-la, mas ela desviou o rosto. Lamentava toda a mágoa que existia entre eles, mas
sabia que tinha de agir daquela maneira.
— Você ainda me odeia, Christine?
Ela o fitou demoradamente, as palavras de Lucien batendo e rebatendo em seu
cérebro. "Eu ainda o odeio?" De repente, renasceu toda a paixão da noite em que haviam
feito amor, envolvendo-a num redemoinho de imagens e sensações. E respondeu,
sabendo que mentia;
— Sim...
Lucien levantou-se e acariciou-lhe o braço, despedindo-se com delicadeza:
— lorana oe.
Sozinha na varanda, Christine sentiu um aperto no coração. Grossas lágrimas
começaram a escorrer pelos olhos acinzentados.

CAPITULO IX

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Lucien, afinal, cedeu aos pedidos de Josie para que Christine utilizasse jornais nas
aulas de gramática. Desde então, ela era vista todas as sextas-feiras, à sombra do
mesmo coqueiro, esperando pela chegada do pahi. Preferia tomar para si o encargo de
recolher a correspondência, a fim de garantir que os jornais chegassem sem censura às
suas mãos.
Lia atentamente notícia por notícia, mas em vão. O caso de Tules Lambert e a filha
desaparecida não interessava mais aos jornais.
Pela décima vez, estava na praia observando as manobras do pahi para atracar. Nisso,
o tahu'a surgiu e ficou ao lado dela, apontando para o barco ao longe.
— Não está ventando o suficiente e eles ainda vão demorar cerca de meia hora para
atracar. Madame, preciso falar-lhe.
— Então fale! — disse Christine, com simpatia.
— Logo chegará o verão. E com ele o dia mais longo do ano, antes do Natal.
Christine olhou para o tahu'a sem alcançar o que ele estava querendo dizer. Sabia
perfeitamente que nos países tropicais o Natal era em pleno verão, mas não deixava de
estranhar a idéia. Lembrou-se, com saudade, de tantos natais passados em Paris, em
meio ao frio glacial e chuvas de neve.
— Não sei o que poderemos fazer para comemorar o Natal.
— Você não deve se preocupar. Até lá, já não estará mais aqui.
— Eu não compreendo, tahu'a.
— Sim, é natural que não compreenda. Você ainda vai sofrer muito, mas no Natal já
terá partido da ilha e o arco-íris será seu guia... para que faça um pequeno favor para
Peele.
"Oh, não! Outra vez! Não é possível que ele realmente acredite nessas histórias de
deusas loucas!"
Ao longe, o barco oscilava ao sabor das ondas do mar. Calculando que faltavam alguns
minutos para a ancoragem do pahi, Christine virou-se para o tahu'a e tentou ser mais
paciente com ele. No fundo, gostava do velho sacerdote.
— Peele é a deusa do vulcão e Tangora é o deus do mar. Desde a Criação, os dois
lutam. Peele agita a terra e Tangora espera. A lava queima tudo o que seus dedos ígneos
tocam e o mar faz cessar o fogo...
— Então Peele é má e Tangora é bom?
— Não, você entendeu errado. Peele é uma força feminina e Tangora, uma força
masculina. A energia feminina abala e faz estremecer a terra, para limitar o poder
masculino.
— Na antiga Grécia o raciocínio era o contrário: a força da mulher era fluida e
incontrolável, e a força masculina era mais concreta e servia de limite para a energia
feminina. Mas, e Peele? O que deseja de mim?
— Ela quer ser levada à Terra Nova, que avistou por sobre as ilhas.
Christine franziu a testa. Aquilo não se parecia nada com as aulas de Grécia Antiga...
— Peele quer que eu a leve para Paris? Ou para os Estados Unidos?
— Na hora exata você saberá. A deusa do vulcão se encarregará do resto.
— Mas Peele é uma estatueta e há uma lei a ser cumprida no que concerne à
exportação de artesanato.
— Não se preocupe. E não faça perguntas.
— Está certo. Levarei a estatueta comigo.
O velho homem sorriu, mostrando os dentes perfeitos e fazendo um gesto de
aprovação.
— Bom, torana oe, Tamahine. A canoa está atracando.
Christine sorriu e dirigiu-se para o pahi. lá era conhecida pela pequena multidão de
nativos que aguardava o barco e todos a tratavam com simpatia, apesar dos rumores que

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corriam sobre ela e Peele.
Sam Apuka examinou um punhado de cartas, separando-as de acordo com os seus
destinatários.
— Quatro cartas para a Casa Grande, uma para o tahu'a... Ei! Há uma carta para mim!
— Deve ser da namorada que você deixou em algum porto! O nativo deu uma sonora
gargalhada e explicou que não
havia outra mulher além de Miri.
— Aue. Vem do Centro de Pesquisas. Eles devem estar chamando para trabalhar lá
outra vez.
— E você irá, Sam?
— De jeito nenhum. Abandonar este belo lugar e minha vahine. Nunca!
Despediram-se e Christine voltou para casa, segurando as cartas. Havia uma carta de
São Francisco, outra de Portland e duas de Nova Iorque. Uma delas Christine reconheceu
como sendo de Helen.
Sentou-se debaixo de uma palmeira e começou a folhear os jornais. De repente,
deparou com a notícia há tanto esperada: "O Banco do Pacífico, em Taiti, reabre em
condições provisórias".
De acordo com o jornal, o prédio do banco fora incendiado numa sabotagem e ele seria
reaberto em breve em instalações provisórias. E que a polícia ainda estava na pista dos
responsáveis pelo desfalque de dois milhões de francos no banco... Christine balançou a
cabeça, recordando que seu pai dissera que se tratava apenas de quinhentos mil francos.
O jornal datava do dia 26 de novembro e ela fez a soma: setembro, outubro e
novembro. Há três meses que não lhe vinham as regras. No início imaginara que o atraso
era devido a todos os abalos que sofrerá. Entretanto, já não acreditava mais nisso. O
estômago dilatara-se e a cintura engrossara ligeiramente.
Para tornar a situação ainda mais clara, foi acometida de mal-estar. Um bolo formou-se
em seu estômago e a cabeça girou. Christine não alimentava mais dúvidas: estava
grávida de Lucien!
Deitando-se na areia, esperou o enjôo passar, enquanto refletia sobre o que iria fazer.
Não estava certa se devia contar ou não a Lucien. Não sabia se devia ou não assumir o
filho. Sem imaginar o que seria de sua vida a partir de agora, levantou-se e foi para casa.
Lucien a aguardava na varanda, segurando um copo. Ao avistá-la, abriu um largo e
cativante sorriso.
— Aí vem a garota do correio! Como foi o dia?
— Estou cansada, Lucien. Pode me preparar um pouco de Kaava.
Lucien surpreendeu-se com o pedido, mas atendeu prontamente. Ao primeiro gole,
Christine contorceu-se. Lucien a conduziu até uma cadeira.
— Aconteceu alguma coisa, Christine? Você se machucou? Ela conservou-se calada.
Lucien a enlaçou com os braços
másculos, pressionando-a contra o peito numa atitude protetora.
A sensação confortante que aquele abraço lhe proporcionava fez com que toda a
sensibilidade aflorasse, e Christine deu vazão às lágrimas que tanto prendera.
Sentia-se desamparada, e era impossível manter frieza diante da situação. Estava
grávida de um homem que a queria apenas como um corpo a ser desfrutado. Mas pior era
saber que, quanto mais ele a estreitava, mais o desejava. Se ao menos não se sentisse
tão presa a Lucien, iria embora da ilha e se desdobraria ao máximo para criar seu filho.
— O que houve, Christine? Por que está chorando? Mas, como ela permanecesse em
silêncio, ele insistiu:
— Você ainda me odeia?
Christine não teve tempo de responder, porque Josie apareceu e precipitou-se para a
cadeira em que estava sentada.
— Mamãe! Você está chorando! Papai lhe fez alguma coisa?

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— Oh, não, mocinha! Eu não tenho nada a ver com isso! Afagando os cabelos de
Christine, ela ameaçou:
— E é bom mesmo que seja assim!
Lucien desviou a atenção para as cartas e Josie sentou-se ao lado de Christine,
tentando animá-la.
— Mamãe, Miri me ensinou a fazer poi. Não é tão difícil como eu havia imaginado.
Acertei na primeira tentativa e nós teremos poi para o jantar!
— Ora, mas que filha mais esperta eu fui arranjar! — brincou Christine, um pouco mais
confortada com a presença da menina.
— Mamãe, sabe o que Miri me falou? Que ela e Sam estão fazendo um bebê!
Lucien ergueu os olhos da correspondência, mudando de assunto:
— Seu raciocínio estava correto, Christine. Helen mandou uma carta, aceitando a
proposta! Ela receberá cinqüenta por cento dos lucros do livro em troca da minha
liberdade total. Poderei ficar com Jô e não precisarei mais enviar-lhe uma renda mensal.
— Então está tudo acertado?
— Bem... Eu diria que quase. Helen é cautelosa e quer verificar por si mesma os
originais do livro.
— E quando ela virá?
— Não sei ao certo. Ela é imprevisível. Mas o que importa é que virá e selará o acordo
comigo.
— Pois eu espero que ela se afogue antes de chegar aqui! — exclamou Josie,
agarrando-se a Christine.
— Jô! — Lucien e Christine falaram ao mesmo tempo. A menina resmungou algo e
correu para a vila.
O jantar daquela noite não transcorreu com o habitual clima de descontração. Josie
ficou cabisbaixa e recusou-se a falar até mesmo quando Miri serviu o poi. A gravidez
imprevista não saía dos pensamentos de Christine, que observava a nativa e invejava-lhe
o orgulho com que exibia o ventre crescido.
Após o jantar, Christine acompanhou Josie ao quarto e a embalou. Antes de mergulhar
no sono, a menina a abraçou com força.
— Quando... Quando ela vier, não deixará que me leve embora, não é, mamãe?
— Claro que não, querida.
— E você será minha mãe para sempre?
— Isso nós veremos mais tarde, meu anjo. Mas fique tranqüila. Agora, durma...
O desespero de Josie ficou gravado na memória de Christine, não lhe permitindo um
sono calmo. No dia seguinte, estava deprimida à mesa do café.
Um estrondo de motor cortou os ares e Lucien informou:
— É um helicóptero. Deve estar chegando de Bora Bora.
O helicóptero aterrissou na praia e eles viram o piloto desembarcar juntamente com um
homem de meia-idade e uma mulher. O casal tomou o rumo da Casa Grande, carregando
as bagagens.
— Oh! — gritou Josie, com ar infeliz.
— Não posso crer! Helen está vindo para cá, um dia depois de eu ter recebido a carta!
— exclamou Lucien, sem despregar os olhos do horizonte.
Christine torceu as mãos, encostando-se ao batente da porta da cozinha. Sentia uma
onda de infelicidade invadi-la, temendo que Helen fosse intrometer-se na harmonia de
Lucien e Josie, tão duramente conquistada.
Mas Lucien, agitado como estava, não percebeu o nervosismo de Christine e pediu-lhe:
— Eu gostaria que você fizesse uma última representação. As coisas se tornariam mais
fáceis para mim e para Jô se você fingisse que estamos casados.
— Está bem, como achar melhor.
— Obrigado, Christine. Se Helen souber que você está cuidando bem de Jô, será um

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motivo a mais para aceitar minha proposta.
Passados alguns minutos, uma mulher surgiu nos degraus da varanda com um sorriso
provocante. O vestido sofisticado destoava da simplicidade da ilha.
— Lucien! E... minha pequena Caroline!
A recém-chegada beijou Lucien na face e aproximou-se da menina, que se afastou
com uma careta.
— Meu nome não é Caroline. Eu me chamo Josie!
— Não vai beijar sua mãe, meu bem?
— Você não é minha mãe! A única mãe que eu tenho é Christine!
A garota a olhava com rebeldia e desconfiança e correu para os braços de Christine,
procurando proteção. Helen dirigiu-se a Lucien, com raiva:
— Francamente, meu querido! São estas as boas maneiras que você vem ensinando
à menina?
— Nós estamos educando Jô. Helen, esta é Christine, minha esposa.
— Ora, mas que surpresa! Não sabia que você havia se casado pela segunda vez,
Lucien... Ela é tão... tão pouco elegante!
— Pois nós todos a julgamos perfeita.
— Bem-vinda a Te Tuahine... — saudou Christine, controlando-se para não pular no
pescoço da outra, diante de tamanha petulância.
Helen, no entanto, era fútil demais para observar sentimentos que fossem alheios aos
seus, e continuou a falar com desenvoltura.
— Quando vejo Josie e Christine juntas, quase acredito que são mãe e filha. É incrível
a semelhança dos olhos e dos cabelos ...
— Bem, você veio aqui a negócios, não? Que tal irmos direto a eles?
— Calma, meu caro Lucien. O helicóptero foi a Maupiti reabastecer e amanhã virá nos
buscar. Teremos tempo suficiente par tomar uma decisão.
— Ótimo, Helen. Vou pedir a Christine que nos traga um refresco e... Christine?
Os três a fitaram sem compreender. Ela estava apoiada na amurada da varanda,
boquiaberta, com os pensamentos vagando muito longe dali.
Nesse instante, um homem de cabeleira branca subiu a escada que conduzia à casa e
Christine gritou, os olhos acinzentados emocionados:
— Papai! Eu sabia que mais cedo ou mais tarde nós nos encontraríamos. Eu senti,
papai!
— Christine, minha querida!
Pai e filha se abraçaram, transbordando alegria. Depois, olharam-se com afeição, e o
velho homem disse:
— E eu tinha certeza de que você estava bem! Mas aquele idiota, o inspetor Tihoni,
não me falou de você até ontem. Absurdo! Fui elevado à categoria de herói em Papeete e
ele só me disse ontem!
— Já passou, papai. Agora estamos juntos, e é o que importa. Mas... como conseguiu
escapar?
— Mais tarde contarei os detalhes, filha. Por enquanto, saiba apenas que o inspetor
me disse, casualmente, de uma certa Christine Harriet e da filhinha que moravam em Te
Tuahine, e então entendi tudo!
— Só me esclareça: e a polícia?
— Não haverá mais prisão, chérie.
Lucien aproximou-se deles, com expressão de espanto.
— Monsieur Lambert?
— Sim, em pessoa. Com quem tenho o prazer de falar?
— Com seu genro. Que bela surpresa! Vamos entrar e celebrar!
— Mamãe! Ele é seu pai? — perguntou Jô, referindo-se a Jules.
— Sim, querida. Ele é meu pai.

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— Então esse homem é meu avô?
Jules olhou de Christine para Josie e de Josie para Lucien, atônito. Passando a mão
pelos cabelos brancos, apoiou-se numa pilastra. Christine amparou-o, preocupada.
— Sente-se bem, papai?
— Sim, Christine. Mas você há de convir comigo que para um homem de minha idade
é um tanto quanto... inusitado ganhar um genro e uma neta em apenas três meses! —
Jules deu uma gostosa gargalhada.
Christine procurou ser cuidadosa com as palavras que usava. Agora, tudo o que tinha a
fazer era evitar complicações com Lucien. E então... a liberdade!
— Lucien. Vá com Helen para o escritório. Eu providenciarei os refrescos,
Olhando os dois se afastarem, ela sentiu uma súbita onda de ressentimento. Eles
formavam um bonito par, o que lhe dava uma vaga sensação de ciúme.
Afinal a sós com o pai, pôde ficar mais à vontade.
— A menina não voltará?
— Não, papai. Mandei Josie ajudar Miri na cozinha. Agora, conte-me o que aconteceu!
— Não, primeiro você! O que significa este "genro" e esta "neta"?
— Tudo não passa de uma farsa. Eu não quis comprometer você e escondi minha
verdadeira identidade.
— Então não está casada?
— Não, papai. Mas, diga-me, e quanto a você?
Jules fitou-a com meiguice e, tomando fôlego, iniciou a narrativa:
— Depois da tempestade, o barco avariou-se e eu naufraguei perto da enseada de
Apiri. Fui resgatado e levado para uma vila, onde, passados dois dias, a polícia apareceu.
Àquela altura, ainda com o dinheiro nas mãos, julguei que estava perdido...
— Mon Dieu! Tentaram prendê-lo?
— Você não vai acreditar se eu lhe disser, Christine! — E Jules balançou a cabeça,
aceitando o copo de martíni que a filha lhe estendia. — Na mesma noite em que nós...
er... fugimos, alguém incendiou as instalações do banco. No final, descobriram o culpado,
que não era outro senão Emile Lorange. Lembra-se dele, o presidente do Pacífico? Pois o
homem pôs fogo no prédio do banco para esconder as transações ilícitas! E, depois da
sabotagem, fugiu para Sidnei. Eu mal posso crer, mas ele levou consigo dois milhões de
francos do cofre!
— No mesmo fim de semana do desfalque, papai?
— Exato, querida. Dois milhões de francos!
Christine deu um passo para trás, buscando amparo na amurada.
— E o que veio depois, papai?
— Descobriram-me na ilha e lamentaram minha desgraça! Chamaram-me de volta ao
banco e eu, prestativo como sou, os auxiliei a reconstruírem o livro com os registros de
contas... A meu modo, claro... E, desde então, transformei-me num grande herói! Estou,
inclusive, sendo apontado para o cargo de novo presidente do banco!
— Ora, ora. Você não se emenda! O tio François bem que dizia...
— Mas isso não é tudo. filha... Bem, é inacreditável, mas... Conhece a viúva Marceau?
— Sim, papai. Não me diga que...
— Bem, ma petite, nós pretendemos nos casar!
Christine riu, tomando-lhe a mão. Seu pai nunca mudaria!
Os dois permaneceram por um- longo tempo na varanda. Depois de marcarem a
viagem de volta a Paris para o dia seguinte, teceram planos para o futuro e se deixaram
levar por uma série de reminiscências. Já anoitecia quando Miri anunciou que o jantar
estava pronto e eles encaminharam-se para a cozinha.
A refeição se deu num clima pouco descontraído. Todos se sentiam um pouco
deslocados, mas, no final, tudo correu bem.
Continuando a encenar o papel de anfitriã, Christine fez a distribuição dos quartos:

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— Papai, o senhor fica no... hum... quarto de hóspedes. Helen, você vai para o quarto
de Jô e você, Josie, dormirá esta noite comigo, certo?
— E eu?
— Ora, querido! Uma noite na espreguiçadeira da varanda não lhe fará mal, não é?
Christine disse isso sorrindo para Lucien.
CAPÍTULO X

Christine teve um sono profundo e reparador, aliviada pela presença do pai em casa.
Na manhã seguinte, ela espreguiçou-se devagar e tomou um banho antes de ir tomar o
café.
Tules e Helen já se achavam na varanda, e Christine saudou-os com esplêndido
humor. Tules beijou-lhe a testa, sorrindo.
— Bonjour, ma petite. Pensei que tivesse mudado de idéia e já não quisesse mais
partir!
— Apresse-se, por favor. Quero voltar o quanto antes para a civilização! — Helen
estava nervosa, contraindo os lábios finos.
— Veja, o piloto está acenando. Precisamos ir.
Jules abraçou Christine e conduziu-a até os degraus da varanda. Deu de encontro com
Lucien, bastante preocupado.
— Você viu Josie, Christine?
— Não... Ela dormiu cedo ontem e....
— Pois não encontro Jô em parte alguma!
Christine sentiu um nó na garganta. Sabia o quanto aquela separação significava para
a menina e receou pelo pior. Seus temores avivaram-se com a chegada de Miri, que
gesticulava nervosamente.
— Ela não está na vila. Desde hoje cedo que não a vejo! Sam recrutou alguns homens
para procurá-la na mata...
— Bem, creio que não poderemos adiar nossa partida em razão dos caprichos
sentimentais de uma menina — interrompeu Helen.
— Mesmo quando são os "caprichos" de sua filha? — retrucou Christine, os olhos
chispando.
Jules procurou acalmá-la, dizendo em tom conciliador:
— Não se preocupe, chérie. A ilha é pequena e ela não pode ter ido longe. Vamos,
querida, o helicóptero nos espera.
— Não, papai. Infelizmente não posso acompanhá-lo. Antes, preciso certificar-me de
que Josie está bem!
Ele quis insistir, mas sabia que Christine não mudaria de idéia. E, com muita
compreensão, deu a última cartada: —- Você está certa de que é isso o que quer?
— Sim, papai. Agora vá! Eu seguirei para Paris na primeira oportunidade.
Jules sacudiu os ombros, dando-se por vencido. Virou-se para Lucien e, com um gesto
de despedida, advertiu:
— Sua filha será achada o mais breve possível, monsieur Girraud, quanto a isso não
há com que se inquietar. E, por favor, cuide bem de minha filha, sim?
— Dou-lhe minha palavra, monsieur Lambert.
Christine acompanhou o pai com o olhar até que sumisse na encosta. De coração
apertado, ela via-se no meio de um fogo cruzado. E, por um lado, desejava ardentemente
acompanhá-lo, por outro sua consciência a impedia de partir antes que visse Josie sã e
salva. Sentia-se culpada pelo desaparecimento da menina.
Condenava-se por ter levado a farsa longe demais, alimentando esperanças inúteis na
alma pura da criança. Fora imprevidente, deixando que a situação se consolidasse por si
mesma.
— Como posso ajudar, Lucien?

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— Acalme-se, Christine. Por ora, não há nada que possamos fazer. Os nativos já se
mobilizaram e montaram um esquema para cobrir toda a área da ilha. Quem sabe Jô não
aparece a qualquer momento? É mais aconselhável que você fique por aqui... Vamos,
não chore! Corra e esqueça tudo isto! Talvez ainda haja tempo para alcançar o
helicóptero...
— Eu não quero alcançar o helicóptero! Se eu tivesse me comportado com menos
negligência, Jô estaria conosco agora! Eu preciso reparar o meu erro!
Ela vertia lágrimas de pura amargura e Lucien rodeou-lhe os ombros delicados com as
mãos fortes, consolando-a. Nesse instante ouviu-se o ruído distante do helicóptero,
levantando vôo, e Christine estremeceu nos braços dele.
— Não foi culpa sua! Fui eu a descuidar de Josie e tenho de assumir a
responsabilidade. Afinal, sou o pai dela! Agora preciso ir acompanhar o andamento das
buscas. Você fica aqui?
Ela assentiu e ficou sozinha, à mercê de sua aflição. Andou de um lado para outro, mas
não conseguiu minimizar o sofrimento. Então, resolveu ajudar Miri no preparo do almoço.
Uma hora depois, a comida estava pronta e Lucien ainda não retornara. Christine mal
continha a preocupação. "Mon Dieu, como isso foi acontecer? Onde andará a pequena
Josie? E quanto a mim? Preciso ir embora deste lugar!" Sentia-se totalmente perdida e
amargurada e, para complicar a situação, existia o filho que carregava no ventre... o filho
de Lucien!
E assim, cheia de inquietações e dúvidas, adormeceu na espreguiçadeira, procurando
no sono a paz que a realidade não lhe dava.
Lucien regressou por volta das cinco horas e encontrou Christine ainda dormindo. Por
um momento, parou para admirar-lhe a doce beleza. A fisionomia dele suavizou-se para,
em seguida, retornar à expressão aflita. Ele foi para o interior da casa, tomou um banho
frio e trocou de roupa.
Lucien lançou um último olhar para a figura inerte de Christine e saiu outra vez, no
encalço de Josie. Era quase noite quando ela despertou. Constatando que a casa estava
vazia, ficou em pânico. E, arrastada por uma forte intuição, sentiu que deveria apanhar a
estatueta de Peele.
Revirou todas as gavetas do quarto, mas a imagem da deusa desaparecera. Lembrou-
se então do que Josie certa vez dissera, repetindo o que ouvira dos nativos: Peele
precisava ser recolocada em seu santuário, a fim de que a boa sorte voltasse a reinar na
ilha.
"É isso! Ela foi devolvei a estatueta ao templo!" Christine foi até a cozinha, embrulhou
as sobras do almoço, apanhou uma lanterna e rumou para a montanha da deusa do
vulcão.
Enquanto Christine saía pelos fundos da casa, Lucien entrava pela varanda. Os nativos
o aconselharam a manter a calma. Tudo o que era possível estava sendo feito e só
restava aguardar o curso dos acontecimentos.
A filha continuava desaparecida e, com muito custo, conteve o ímpeto de esmurrar a
porta ao encontrar a casa silenciosa e escura. Desesperado, chamou:
— Christine!
O nome dela ecoou por todos os recintos, sem qualquer resposta, e, desnorteado, ele
elevou a voz:
— Christine!
Enquanto isso, Christine prosseguia a penosa subida da montanha. Desta vez, não
havia luar e teve de andar com cuidado, debatendo-se com a escuridão da noite.
Era quase meia-noite quando alcançou o santuário de Peele. Mal enxergava através
das densas sombras da madrugada, que já se fazia anunciar pelo canto distante de um
galo.
— Josie!

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A sua voz ecoou nas alturas e, após uma pausa, ela ouviu a garota responder:
— Mamãe, eu estou aqui!
Christine conseguiu perceber o pequeno vulto, encolhido ao pé do altar de pedra.
Aproximando-se, abraçou Josie, com as lágrimas umedecendo-lhe as faces aveludadas.
— Ah, minha querida! Eu vim procurar você. Estávamos todos preocupados!
— Eu tive tanto medo, mamãe! Pensei que você ia embora! Você ficou por minha
causa?
— Sim, anjo. Fique tranqüila, agora eu estou com você. Trouxe Peele para cá?
A menina fez um gesto afirmativo, apontando para o altar de pedra. Christine iluminou
com a lanterna a direção que Josie indicava e viu a estatueta, que ostentava um brilho
sinistro. Sentindo um arrepio, desviou o foco de luz para a garota, tocando-a com a mão.
— Você não se machucou, não é?
— Não, mamãe. Eu apenas tive medo da escuridão. Por isso não voltei para casa.
— Então, vamos comer alguma coisa antes de descer. Você não se alimentou o dia
inteiro!
— Só se você comer também, mamãe! As duas dividiram a refeição, que consistia em
peixe assado, saladas de algas e um mamão papaia. Para beber, havia uma deliciosa
água de coco.
— É melhor esperarmos amanhecer para voltar. Está escuro demais e não
conseguiremos enxergar a trilha para a Casa Grande.
Josie concordou e aninhou-se no colo de Christine.
As horas demoraram a passar. Encostada à base do altar, Christine apreciava as
estrelas pensando no que seria de sua vida. Um ruído de passos alertou-a. Colocando
Josie no piso de pedra com todo cuidado, ergueu-se silenciosamente e agarrou um
pedaço de rocha nas mãos. Tornou a agachar-se e ficou à espreita. Defenderia sua vida e
a de Josie até esgotar suas forças, e ficou apertando a pedra entre os dedos delgados,
pronta para qualquer emergência.
— Christine! Ela largou a pedra que tinha nas mãos, reconhecendo a voz grave de
Lucien.
— Estou aqui, com Josie! — Christine tentou gritar, mas suas palavras perderam-se
num soluço.
Ele caminhou em sua direção com passos hesitantes, dominado pela emoção. E,
abraçando-a, falou com voz embargada:
— Eu quase enlouqueci, sem saber onde você estava! Então lembrei-me da
montanha... Christine, fui um cego! Só agora, nesses momentos de agonia, pude
perceber que a amo! Case-se comigo, meu amor!
— Vocês vão se casar?
A pergunta veio do tahu'a, que surgira do nada com um sorriso enigmático. Entretanto,
Christine não se surpreendeu com a súbita aparição e respondeu, olhando para Lucien:
— Sim, tahu'a, nós iremos nos casar!
Lucien a tomou nos braços, num gesto de infinita ternura. Quando afinal o sol anunciou
a entrada de um novo dia, o tahu'a apoiou-se na velha bengala e despediu-se.
— Não esqueça, Filha do Mar. Leve Peele para a Terra Nova!
Quando o sacerdote começou a descer a encosta da montanha, Lucien acolheu
Christine nos braços másculos e beijou-lhe os lábios com ardor. Ela afastou-se um pouco
para fitá-lo e decidiu contar-lhe que estava grávida.
— Ótimo... Maravilhoso...
Ele sorriu, num misto de afeto e desejo, e brincou com os botões da blusa dela.
Ambos olharam ao mesmo tempo para Josie, que suspirou e virou-se para o outro lado,
continuando a dormir.
Lucien a despiu com delicadeza e em seguida tirou as próprias roupas. Os corpos nus,
em contato, começaram a explodir de sensações e, na vertigem da paixão, eles se

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amaram sob os raios do sol nascente.
O casamento realizou-se na ilha, numa pequena capela anglicana ornamentada com
flores brancas e amarelas. À saída, os noivos foram saudados pela multidão de nativos.
Cantando músicas regionais, eles os acompanharam até a praia, onde começou a festa
em homenagem a Lucien e Christine.
Depois de horas dançando e bebendo, Christine, Lucien e Josie embarcaram no
grande pahi, especialmente enfeitado para a ocasião. Doze canoas escoltaram o barco,
enquanto a população de Te Tuahine acenava o último adeus.
— Não entendo por que não podemos ficar... Christine encarava o marido com olhar
inquisidor, e ele apressou-se em explicar:
— Já lhe disse, meu amor. Eu quero que tenha toda a assistência médica de que
necessita. E, além disso, Josie precisa entrar numa escola. Ela mal fala francês. Há um
colégio em Nice que fica a apenas algumas quadras da casa de alguém muito especial...
— Minha avó, pai?
— Sim, querida.
— Vou adorar conhecê-la, Lucien!
Enquanto conversavam animadamente, o barco atracou em Maupiti. De lá foram para o
aeroporto, voando para Paris,
Christine estava excitada com a vida nova que a aguardava. Olhou para Lucien cheia
de paixão, e logo retomou as preocupações banais que, no fundo, serviam para abafar
um pouco o extremo sentimento de felicidade que a dominava.
— E o que será da Casa Grande enquanto estivermos ausentes?
— Miri e Sam tomarão conta da casa, Christine. Não se preocupe.
— E quanto ao tiki — indagou ela, apertando contra o corpo a maleta na qual trazia a
estatueta.
— Bobagem. Não passa de superstição.
Jules Lambert estava com a nova esposa no aeroporto, aguardando a chegada dos
noivos. A viúva Marceau cumprimentou Christine com simpatia e confidenciou:
— Ele tem sido elogiado por sua atuação na presidência da sede parisiense do Banco
do Pacífico. De qualquer modo, ninguém melhor que um ladrão regenerado para vigiar
dinheiro!
As duas riram, enquanto Tules trocava algumas palavras com Lucien.
Mas o tempo não espera, e logo os três tornaram a embarcar, desta vez rumo ao
Havaí, onde se alojaram num chalé rústico e confortável.
A semana transcorreu na mais perfeita tranqüilidade, entre passeios e banhos de mar.
— Vocês não conseguem fazer nada além de olharem um para o outro?
— Você tem que ir se acostumando com a idéia, (ô! E os três deram boas gargalhadas,
abraçando-se.
Mas, naquela noite, folheando casualmente o jornal, Lucien foi tomado de sobressalto.
— O que foi, meu amor?
— Aqui diz que o vulcão de St. Helen entrou em erupção! Ela apanhou a maleta de
couro e olhou para o seu interior.
A imagem continuava intocada, com o riso sinistro. "Fazendo a terra estremecer!"
Lucien percebeu a inquietação de Christine e a abraçou, confortando-a:
— É somente uma crendice popular. Jamais terá o poder de interferir na realidade!
Christine olhou para Lucien com uma sombra de ceticismo nos olhos acinzentados, e
ele prosseguiu:
— O conhecido e o desconhecido tocam-se e entrelaçam-se. Mas a superstição nunca
dominará o mundo real. E a realidade somos nós dois e o sentimento que nos une!
Com um olhar cheio de malícia, Lucien enlaçou Christine, decidido a afastar aqueles
pensamentos da mente dela. Cobriu-lhe os lábios com os seus, arrancando dela um
gemido de prazer.

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Christine abriu a boca e Lucien aproveitou para beijá-la ardentemente. E, logo que o
calor do corpo dele se espalhou pelo de Christine, ela se esqueceu completamente de
tudo. Não se importava com mais nada, só em ser amada com loucura e paixão pelo
marido. Era o início de uma longa noite de amor!

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