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2.

SAÚDE, CULTURA E SOCIEDADE


2.1. Saberes médicos e saberes leigos

Texto 7- Silva, L. F. (2004). “Vivências da Saúde e da Doença” in Sócio-


Antropologia da Saúde. Sociedade, Cultura e Saúde/Doença.
Lisboa.Universidade Aberta, 85-168.
Texto 9- Tavares, D. (2016) “A perspetiva sociológica e a construção
social da saúde e da doença” in Introdução à Sociologia da
Saúde. Coimbra. Almedina: pp. 41-69.
Texto 11- Xavier, B. (2016). Viver com hipertensão arterial: uma análise
sociológica das experiências de doença. Em J. M. Pinto, Um
olhar psicodinâmico da psicologia e outros pares (Serie
Monográfica Educação e Investigação em Saúde, ed., pp. 107-
127). Coimbra: Unidade de Investigação em Ciências da
Saúde: Enfermagem: Escola Superior de Enfermagem de
Coimbra.
Representações sociais e experiências de doença

Na nossa sociedade, a principal abordagem da saúde e da


doença é fornecida pelo modelo médico.

MAS

• Esta não é a única leitura que os indivíduos possuem;


• Nem é partilhada por todos de igual modo;
• Existem outras interpretações da saúde e da doença, assentes
em sistemas de referência diferentes;
• A abordagem médica da doença não introduz um corte com
os significados sociais, nem implica o total desaparecimento
da abordagem anterior.
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Fatores socioculturais, saúde e doença

• Influência na saúde e doença das características dos grupos


sociais de pertença, das interacções e instituições sociais
existentes (sociedade), bem como da maneira de ver o
mundo (cultura).
• Há uma distribuição não aleatória das doenças entre os
indivíduos das diferentes sociedades e entre os membros de
cada sociedade.
• A variação dos modos de entender a doença começa pela
própria definição de doença.

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Fatores socioculturais, saúde e doença

• A atribuição do estatuto de normal/patológico é socialmente


construída:
- Depende do valor que é atribuído às manifestações da
doença;
- Da capacidade tecnológica de detetar sintomas que não
percecionados pelo próprio doente;
- Dos efeitos que a doença tem sobre o corpo social.

• A doença tem um significado que só é compreendido em


função da organização social e em torno dela (Augé, 1991).

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Fatores socioculturais, saúde e doença

• Os conceitos de doença não são universais mas refletem


uma maneira particular de entendimento do mundo e da
sociedade (Herzlich e Pierret, 1984; Lupton, 1995).
• Saúde e doença são definidas por um conjuntos de valores
e normas sociais e culturais que determinam as suas
imagens/representações sociais. A sociedade atribui-lhes
significados ou sentidos próprios.
• Cada indivíduo retira dos significados socialmente
disponíveis aqueles que lhe servem para interpretar a sua
saúde e a sua doença.
A interpretação social da doença atribui-lhe uma causa e
define procedimentos e atores com legitimidade para
intervir sobre ela.

É feita uma distinção clássica entre

o pensamento mágico, das sociedades “primitivas”, que


associa a doença a agentes sobrenaturais e e preconiza a
acção sobre esses agentes como forma de cura,

e o pensamento empírico-racional das sociedades modernas,


que atribui a doença a causas físico-naturais, passíveis de
conhecimento científico e intervenção científica por
profissionais credenciados (Good, 1994:8)

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Representações sociais de saúde/doença

As representações mentais que cada pessoa tem não são apenas


individuais mas, em grande parte, constituídas pela cultura da
sociedade em que vive  REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

Formas colectivas de entender a


realidade, percepções, muitas vezes não
Conscientes, que moldam a nossa forma
de pensar, de sentir e de reagir.

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Representação social da saúde e da doença

• Há uma representação social da saúde, da doença e do corpo, na medida em


que o conjunto de valores, de normas sociais e modelos culturais de cada
sociedade e de cada grupo social determina as imagens e os significados
atribuídos ao corpo, à saúde e à doença. Saúde, doença, corpo são moldados
socialmente. Adquirem significados diferentes consoante a sociedade/cultura
de que o indivíduo faz parte

• Estudar a representação social da saúde e da doença é tentar perceber como é


que o conjunto de valores e normas sociais e modelos culturais determinam ou
elaboram a imagem destes objetos sociais que são a saúde e a doença, o que é
importante pois as representações modelam os comportamentos dos
indivíduos.

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Através das conceções de doença,
falamos de outras coisas:
da sociedade, da nossa relação com a sociedade.

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O corpo, a doença e a cura: o modelo
biomédico e a cultura camponesa
Carnaval de Trás-os-Montes

Nossa Senhora dos Anúncios Alfandega da Fé


O corpo, a doença e a cura no modelo biomédico e na cultura camponesa
Modelo Biomédico Comunidade rural/camponesa (1970-80s)
(ciência) (natureza, religião)
Todo indiferenciado
Individual Socializado – sujeito às influências sociais
Conjunto articulado de (feitiço, mau-olhado, inveja).
Corpo órgãos e aparelhos (visão Solidário com as emoções (Corpo=mente+fisico)
mecanicista) “Aberto” à natureza (clima, lua) e ao sobrenatural
Soma/psique (almas, milagres)
Místico (espiritual, religioso)
Comparação com os animais (natureza)
Desordem específica Desordem mal assimilada, infortúnio, mal
relativa a um órgão ou Reflexo das vissicitudes do quotidiano
Doença conjunto de órgãos Vertente naturalista ou mágico-religiosa − Causas
determinados das doenças (naturais, psicológicas, sociais,
Causa(s) objectiva, espirituais)
cientificamente determinada
Repor a ordem (resolução do problema) −
Determinada pelo médico pragmatismo
Cura Tratamento especifico A medicina não esgota o sentido do mal
(intervenção, Diferentes alternativas (recursos)terapêuticas(os)
medicalização) Holismo (necessidades espirituais, físicas,
Sociais)
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Saber popular / saber leigo sobre saúde/doença

SABER LEIGO
 Conhecimentos sobre saúde e doença das pessoas comuns, não
profissionais ou especialistas (de medicina ou disciplinas afins).
O saber leigo não é o oposto do saber científico na medida em que muito
do conhecimento da ciência (da medicina, nutrição…) faz já parte do
conhecimento das pessoas comuns que o utilizam nos seus raciocínios
e nas suas práticas

SABER POPULAR – remete para a herança de saber acumulado,


experiências transmitidas, conhecimentos e crenças, transmite
conselhos…muitas vezes contraditórios.
É um saber global – corpo, clima, vizinhança, sobrenatural…

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O saber popular organiza o sentido da experiência individual da
doença:
- Situa as causas da doença tanto no quadro de vida do individuo
(acontecimentos críticos), no contexto do seu meio social próximo
(a sal rede de suporte social) e do seu universo social mais amplo (a
comunidade)  atribuição de significados, procura de sentidos para
a doença.
 Isto a medicina não faz!!
- Pela tripla função de significação, interpretação e explicação, o
saber popular dá sentido não só aos sintomas mas também aos
acontecimentos, às circunstâncias, às terapias ou às instituições
ligadas à doença.

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O saber popular – sistema cultural.
É em função do saber popular com as suas lógicas próprias que as
pessoas decidem os seus comportamentos e é nesse sistema de
informação que a informação que a ciência quer fazer passar tem
de ser integrada.

 Em todas as culturas os seres humanos procuram explicações para a


existência da doença. Não para o que ela é mas para o que significa:
porquê o mal, o sofrimento? Porquê a mim?
 Todas as sociedades atribuem à doença uma causalidade social, no
sentido em que encontram para a doença uma razão de ser que
está para além da etiologia específica com que se preocupa a
medicina.

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Explo:
Modelos explicativos da doença nas sociedades ocidentais (França,
Portugal) e em África: em ambas as sociedades as pessoas atribuem
a doença a uma situação de transgressão.
O Africano acusará o feiticeiro ou um vizinho responsável pelo mau
olhado. O Francês acusa-se pelo seu comportamento (ter fumado,
p.ex), acusa outra pessoa (pela influência que exerce) ou a
sociedade (é a sociedade moderna que torna o mundo stressado e
depressivo).

O SABER POPULAR é um saber prático no sentido que responde à


necessidade de dar sentido aos acontecimentos, interligado com
crenças, conhecimentos e acontecimentos.

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O SABER POPULAR é um saber com uma racionalidade diversa,
diferente do saber cientifico. A lógica causa-efeito está longe de ser
a única ….

“Quando a pessoa não come, arranja uma fraqueza geral e se


essa fraqueza passa para o sangue, não tem cura”.
(frase de uma mãe de criança com leucemia, no Minho em 2001)

Os doentes possuem “modelos explicativos das doenças” próprios do


seu saber, da sua cultura, e que serão mais ou menos divergentes
da interpretação médica

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“modelos explicativos das doenças” (Kleinman, 1980)

 São os conjuntos de crenças e conceções que procuram dar conta


de uma determinada experiência pessoal de doença (illness),
explicando as suas causas e as suas manifestações.
São os discursos dos doentes sobre as suas doenças, que procuram dar
sentido ao acontecimento.

“Tenho muitas dores nas costas. É dos anos que dormi no


chão….” (Mulher cigana, residindo em barraca, 50-55 anos)

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Modelos etiológicos populares, ou teorias explicativas das doenças
pela origem das suas causas (Helman, 2000):
 O mundo sobrenatural
 O mundo social
 O mundo natural
 O próprio doente

“Há gentinha que adoece por tudo e por nada. Até parece que
apanham a doença que anda no ar, não têm resistência nenhuma!”
(Mulher agricultora reformada, 68 anos)

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“Foi desde então (divórcio violentamente litigioso) que isto (cancro)
apareceu. A ele lhe fico a dever esta morte lenta que os médicos não
curam”. (Mulher, professora, cerca de 40 anos)

 No entendimento popular, a doença remete para uma “rede de


significações” que traduzem as cargas simbólicas que o indivíduo
estabelece entre as suas experiências de vida e que dão um sentido
à doença. Liga os símbolos da cultura com os valores veiculados
pela sociedade e as emoções vividas pelo indivíduo, ou seja,
permite ligar o simbólico ao afetivo e ao fisiológico, a experiência
social à doença.

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“A minha sogra e o meu marido queriam que eu abortasse (…)
tomei uma injeção e um chá (…) e foi por isso que a minha
filha ficou assim…” (Mulher falando da filha com esquizofrenia)

“Os nervos que tenho na cabeça, … às vezes formam-se papos


que mal posso pentear-me, fazem de mim uma desgraçada…”.
(Mulher rural, 70 anos)

“Doenças dos nervos, “ter um esgotamento” – doenças mal-estar ….

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Categorias de causas:

 a evolução do mundo moderno (poluição, stress, ambiente,


radiações …)
 acontecimentos da vida (desgostos, desemprego, tristeza)
 a usura (busca de lucro, ganância)
 fatalidade, maus hábitos, desleixo com a saúde,
hereditariedade, contágio …

Ao falar na população em geral, as pessoas referem sobretudo “o mundo


moderno” e os “hábitos de vida”.
Quando se referem a si próprias, são as categorias “acontecimentos da
vida” e “usura” que dominam as explicações.

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Os síndromas culturalmente condicionados (explo inveja) traduzem e
simbolizam valores centrais da cultura a que estão ligados e só
podem ser tratados por elementos dessa mesma cultura.

“A maior parte das doenças da canalha (criançada), eles (os médicos)


não as curam. Como é que eles podem curar o medo, o enganido, o
ventre caído, o mau olhado, o mal de inveja, o aguado?”
(Mulher rural, norte de Portugal, 68 anos)

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Síntese:
• A doença é sempre uma questão social. Só pode ser interpretada de modo
contextualizado, isto é, por relação à cultura e à sociedade.

• Como questão social, a doença envolve não apenas profissionais e instituições


de saúde mas também condições de vida, crenças e práticas culturais.

• Quer na formulação das causas quer na atribuição de sentidos, o diagnóstico


médico não é suficiente (nem único) para o entendimento (individual e
colectivo) da doença nem para os significados sociais que lhe são atribuídos.
• Existe uma pluralidade de discursos sobre a doença e a saúde, ou seja,
uma pluralidade de normas interpretativas elaboradas pelas diferentes
culturas e sujeitos (Laplantine ,1991).

• A sociologia e a antropologia ajudam-nos a perceber de que forma os


contextos (cultura/sociedade; universos simbólicos/ interações)
determinam o que significam para nós a saúde e a doença.

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