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LOUCURA COR DE ROSA

Ou

Porque Afrodite leva os homens à loucura com a


pornografia?

JAMES HILLMAN

Tradução de Gustavo Mendes Gerheim

“Agora, você vai concordar que preferir o que é leve ao que é pesado é prova o bastante de...Eros”
- Platão, Symposium, 195d

I – A Queixa de Afrodite

Se você tivesse sido posto em um armário por centenas de anos por padres, filósofos e
mulheres melindrosas que amavam suas religiões mais do que seus corpos, o que você faria
para mostrar aos mortais que você ainda está vigorosamente vivo e bem? E se você fosse
banido da vida real, exceto por oportunidades ocasionais em certos círculos dedicados a você
ou em tempos e ocupações específicos, sem encontrar uma ordem social na qual se encaixar
nas realidades literais da piedade medieval, do capitalismo reformacional, da idade de ferro do
industrialismo, do colonialismo cerimonial, do progressivismo científico (que se transformou
no salvacionismo terapêutico) – se simplesmente não houvesse um lugar digno para você no
grande mundo literal, que avenida sobraria exceto a fantasia?
Lembre-se, o terreno desta senhora é a evocação do desejo, a provocação da atração, a
invocação do prazer. Mas cabelo comprido não é permitido na linha de produção. Fica preso
nas rodas dentadas da engrenagem. A fascinante senhora de Botticelli teria que vestir um
capuz higiênico branco. Mulheres administrativas cobrem as pulsações da garganta com
colares caros, como o clero. A pele deve ser coberta para se proteger do câncer. Pés
calçados; unhas cortadas. Odores bolorosos da carne em banho morno asperamente banidos
com desodorantes que duram todo o dia, cinq a sept.
Se aventurar nas águas selvagens com Ártemis está bem; trazer para casa um presente
para Hera está bem; planejar estratégias contra competidores com Atená está bem; e também
está correr com Hércules para acentuar os músculos e a circulação para derrotar Gerião, a
velhice. Muito bem. Lembre-se que o Darwinismo social prega a sobrevivência dos mais
adaptados, não dos mais fascinantes. Então, eu, regente da beleza e do desejo, como eu trago
meu cosmos para o mundo real, onde os gestos que eu provoco são chamados de agressão
sexual, a luxúria que eu instigo chamada de estupro, o corpo que eu faço concupiscente
chamado de um mero objeto sexual, e as imagens que pululam de minha estufa abundante de
imaginação erótica chamadas de pornografia? O que eu devo fazer? Bem, ela disse, eu tenho
meu método: eu vou deixar os homens loucos; eu vou afligi-los com a loucura cor de rosa.
Por louco eu não quero dizer insano, violento, iludido, paranóico. Eu quero dizer
louco como rachado, quebrado: quebre as aparências, rache o conteúdo em estruturas
corretas. Colapso como rompimento. E por loucura cor de rosa quero dizer vestir lentes
rosadas para enxergar a fascinação da carne, a aurora na vulva, hortus inclusus, rosa vulva,
fons et origo, cunnus mystica, fons et puteus, rosa mystica. Pornografia será meu caminho – o
caminho da fantasia libidinal proibida.
Invadirei cada canto do mundo contemporâneo que tem me rejeitado por tanto tempo
com uma loucura cor de rosa. Pornografizarei seus carros e sua comida, seus anúncios e suas
férias, seus livros e seus filmes, suas escolas e suas famílias. Nada vai me deter. Vou estar
em suas camisas e suas roupas de baixo, até em suas fraldas, nas jovens adolescentes, seus
slogans e músicas, a nas velhas senhoras e cavalheiros nas colônias para aposentados, nos
pedestres e em San Diego e Miami Beach. Lhes revelarei – revelando, até que suas mentes
estejam embriagadas de rosa com desejos românticos, com desejos de fuga – encontros,
ninhos, doçuras. Ou seja, a civilização vai ficar louca para entrar na minha reserva, meu
jardim secreto. Excitarei toda sua cultura para que até aqueles que estejam tentando curar
suas neuroses, assim como seus sóbrios psicanalistas, não tenham nada melhor para falar do
que desejo, jouissance, seduções, incesto, molestações e o olhar fixo no espelho. Lembrem-
se: o que vocês chamam propaganda, eu chamo fantasia.
Ah, não foi sempre assim. Eu não fui sempre excluída. Roma era a minha cidade,
fundada por meu filho, Enéias; e Paris tem o nome como daquele garoto sábio que viu minha
beleza. Tróia, também, foi minha cidade. New Orleans, Kyoto, Shiraz, Veneza. Não, não foi
sempre como é hoje. Eu já tive pleno espaço no mundo diário, até que aqueles mártires
fanáticos conquistaram o mundo com suas garras e pregos e roupas de aniagem, e aqueles
rabinos com suas palavras maravilhosas e chapéus de lã. Mas agora que fui tirada do reino
público, governarei o que sobrou para mim, o privado, os segredos clandestinos, o
confidencial.
Então vamos começar a falar do privado, e deixarei a conduta ir para meu filho, não
Enéias, o herói; não Hermafrodito, a quem eu concebi com Hermes; e não Eros, mas outro
filho, desfavorecido e desproporcional, Príapo.1 Peço a ele que pegue a conduta agora, desde
que o encantamento dele, a celebração dele, a tentativa de erguê-lo da omissão é um objetivo
principal da pornografia. É a figura de Príapo que faz a pornografia e sua controvérsia tão
fascinantes.
(Fascinação é a palavra certa, já que fascinum era um termo romano padrão para o
membro masculino, como amuleto, gesto, grafite, ou adorno de barro, para precaver-se contra
o mal e trazer boa sorte. Sobre o mal a ser desviado e a boa sorte a ser convidada – vamos
falar brevemente).
Primeiro, mais sobre nosso líder, meu filho Príapo. Vários fatos – os tipos que os
sábios usam para me suprimir com seu sábio distanciamento. Príapo era, como eles gostam
de falar, um Deus da fertilidade. Ele desempenhava um “papel em quase todos os mistérios,”
como diz aquele acadêmico conservador e distinto, Walter Burkert.2 Procissões com phalloi
enormes eram a forma mais popular de adoração dionisíaca. O priápico era uma forma de
honrar Dioniso e até de representá-lo. Assim como (como diz Heráclito) Dioniso e Hades são
o mesmo, o phallos triunfante pertence também a Hades, e então tem um sub-texto, uma
intenção por baixo da que é pomposamente exibida.
Algo misterioso continua durante o despertar. Como a pornografia aponta para o
despertar, deve também ter um significado oculto de mistério e não meramente um
significado oculto de criminalidade. Ou, talvez devamos aceitar que ambos submundos estão
juntos – o misterioso e o criminal. O próprio assunto, pornografia, por si só traz suas
imagens, perturba nossa razão convencional, porque a pornografia convida tanto a vitalidade
absorta dionisíaca quanto o estupro e a morte de Hades. O phallos ereto atua como um
emblema fascinante de ambos, desejo e terror.
É claro que os humanos não são capazes de simplesmente postular o que é
pornografia. Até a majestosa Suprema Corte dos Estados Unidos não consegue falar dela
claramente. Como Heráclito também disse, agouros e mistérios oraculares não falam
claramente; eles apenas dão sinais, porque “a natureza adora se esconder” (Heráclito).
Mesmo que o despertar e a ereção falem alto e claro, a natureza epifânica do despertar
permanece misteriosa, ascendendo como o faz de uma cama de imagens. É por isso que o
imaginário sexual desempenha um papel tão vívido nos cultos de mistério e fertiliza a
criatividade (pela qual quero dizer qualquer impulso originado). O despertar está na origem
da vida, e como todas as origens está fundamentalmente vetado da claridade do entendimento.
Nós nunca podemos saber como alguma coisa começou. Todos os começos são fantasias...
talvez, até, fantasias sexuais. Estaria eu dizendo que o mundo começa com pornografia?3
Então há um mistério até hoje sobre o phallos na cesta e o estupro de Perséfone. Estas
imagens sexuais e violentas eram centrais para o culto eleusiano que perdurou como a
principal devoção religiosa do Mediterrâneo por pelo menos mil anos. Da mesma forma o
erotismo sádico da Villa dei Misteri em Pompéia. Não o nascimento de uma virgem e uma
concepção imaculada – um phallos em uma cesta! Porque o imaginário pornô, o estupro, o
phallos no coração destes cultos que eram na sua maioria mistérios para as mulheres? O que
estava acontecendo?
Talvez a moral misteriosa era Afrodítica. Talvez estes cultos estivessem dizendo,
especialmente para mulheres tão facilmente capturadas por Hera e Héstia, por Ártemis, Atená
e Deméter: Mulheres – mantenham a fantasia sexual viva! Imaginem! Imaginem!
Imaginem! No coração a essência é uma imagem pornô hardcore – um membrum virile.
Mantenham a luxúria acordada em suas mentes – ou como na Índia, cubram as partes com
ramos de flores, tragam-lhes óleos, tributo, velas, moedas. Não percam sua imaginação
sexual erótica. É isto que “fertilidade”, como os acadêmicos dizem, realmente significa.
Mantenha sua fantasia fértil. Não se afundem em vergonhas sexuais e medos seculares sobre
doença, aborto e menopausa.
Tudo que lhes estou revelando vem dela, o que ela me disse, muito como a voz da
senhora filósofa que consolou Beoto em sua cela de prisão e como Diotima falou com
Sócrates sobre a natureza de Eros. Eu estou relatando o que ela – espero que tenha sido ela,
Afrodite4 - me indicou, um psicanalista aposentado que viu centenas e centenas de sonhos e
fantasias e pensamentos obsessivos aos quais chamamos pornográficos nas psiques dos que
chamamos “pacientes”, por exemplo, aqueles humanos tão frequentemente sofrendo de uma
ausência de Afrodite em suas vidas reais e, consequentemente, vítimas de suas incursões e
suas vinganças.
Para continuar com seu apelo. Eu não estou feliz, ela disse, e é da minha natureza
estar feliz. Não, eu não estou feliz se me é permitido somente este único acesso, a fantasia,
então eu estou um pouco maldosa, vingativa. Afinal de contas, minha irmã, ou meio irmã, se
chamava Nêmesis, e Nêmesis ou Retribuição e eu estamos estreitamente ligadas; onde eu
apareço no destino de um humano, Nêmesis normalmente vem, trazendo algum tipo de justiça
retribuitiva. Por exemplo, Páris acertadamente me preferiu a Atená e Hera – e daí vieram
terríveis retribuições maravilhosas: a Guerra de Tróia e Homero. Então, a loucura cor de rosa
é minha retribuição. Minha avenida de retorno.
Eu quero lhes falar mais sobre o meu menino extraordinário, Príapo, ou meu menino
com o equipamento extraordinário: na verdade, não mais um menino, mas um homem adulto,
careca, corado e barbado – apesar de que para mim ele vai ser sempre o meu menino.
De acordo com alguns contos, Príapo era um “irmão” de Hermafrodito. Ambos eram
considerados descendentes de Hermes e Afrodite. Mas outros dizem que Príapo foi gerado
por Dioniso; alguns contos dizem até que foi por Zeus, diretamente. Encontrar o Pai nunca é
fácil – mesmo entre os Deuses. E quem sou eu para dizer, mesmo se eu soubesse! Quem
quer que tenha sido o pai sortudo que teve os prazeres da cama e do corpo de Afrodite, Príapo
é definitivamente filho dela.
Afrodite está sempre lá, como uma mãe sempre está em seu filho. Onde quer que
esteja, quando quer que seja, que Príapo levante sua cabeça calva, Afrodite também está lá.
Isto sugere, tão vulgar quanto possa parecer para aqueles que se apegam ao sexo certinho e
amaneirado, que Afrodite está sempre por trás de suas ações, e está, de alguma forma,
carregando suas intenções, suas fantasias, pois a mãe instiga e inspira as atividades de seus
filhos.
É claro, como as estórias continuam, que Afrodite estava apavorada com seu pequeno
garoto. Ela ficou presa em suas noções de beleza, pois ela via seu corpo como deformidade.
Ela não tolerava olhar para ele. Isto é interessante, a intolerância do excesso no critério
afrodítico de beleza. Há uma lição aqui para todos vocês adoradores das idéias da beleza
simétrica, perfeita, amável, suave e prazerosa. Mas continuando: ela pariu Príapo, mas não
podia suportá-lo, então o colocou exposto em uma montanha. Um pastor o achou – aquela
figura maravilhosa, o pastor, sempre achando os abandonados: como Édipo, e aquele no
“Winter’s Tale” de shakespeare, que achou Perdita. Cristo, também, era um pastor que salvou
os abandonados, os cordeirinhos perdidos, e todos nós damos continuação a este mitema. 5
Hoje o bom pastor é o terapeuta-analista se preocupando com nossa criança interna
abandonada. E como aquela criança interna se sente traída, enfurecida e vingativa quando
descobre a ligação arquetípica de pastor com Pan e Príapo.
Agora, este pastor é capaz de salvar Príapo, não porque ele é um redentor compassivo,
mas porque o pastor é ele próprio perverso, “tão arqueado quanto seu cajado”. O Deus dos
pastores é Pan, o deus-cabra, quem, entre outras coisas inventou a masturbação – o pânico
também. Uma figura monstruosa, como Príapo, Pan vive sua vida nas bordas da civilização,
na zona pagã, e assim como Príapo, é uma fonte importante de nosso humor. Por exemplo: o
que é lã virgem? Ela vem da ovelha que corre mais rápido do que o pastor.
Mas de volta ao Príapo exposto. Exposição, abandono. Toda sua vida se condensa
naquele fruto do carvalho de exposição. Pois, para sempre, ele que foi exposto na montanha, é
o sujeito exposto, o que expõe seu membro significante em estatuetas, objetos de culto,
souvenirs, amuletos e murais. Ele se expõe e ainda assim está sempre encoberto, sobre uma
capa, um tipo de camisa, folhas e folhagem, uma toga meio levantada, exibindo sua ereção.
Quanto àquele jardim onde Príapo é achado (ele é o Deus dos jardineiros 6): vamos lá,
não seja bobo nem enganado. O jardim é um dos mais antigos eufemismos para a região
genital das mulheres (pudenda muliebra), kepos em grego, assim como usamos a palavra
“moita” (bush), e imagens de frutas e flores, tais como figo, melão, damasco, pêssego, cereja,
ameixa, e é claro, rosa. Então, é claro que Príapo é o jardineiro que cuida do “jardim”- uma
tarefa que o mantém alegremente ocupado. A ciência teve que cobrir tudo isto com
“fertilidade” porque Príapo é, ele mesmo, coberto para que possa ser mostrado, assim como
estou fazendo aqui – e como Lopez-Pedraza fez anos atrás ao escrever sobre Príapo.
Com isto chegamos ao que é clinicamente chamado exibicionismo. Poderia ser o
próprio Príapo que está se mostrando neste impulso? Estaria este impulso dizendo, “Olhem
para as minhas partes que Afrodite rejeitou. Eu preciso ser visto, apreciado, tirado do
abandono, salvo desta condição órfã amaldiçoada. Eu sou filho de Afrodite, que foi exposto
por ela e então devo retornar pela mesma rota: exposição da própria parte que causou minha
exposição.” É isto que os exibicionistas tentam dizer para todas as pessoas a quem eles
conseguem mostrar seus genitais? “Olhem para mim. Eu não desejo nenhum mal.
(Clinicamente, exibicionistas não são violentos, estupradores, mas normalmente, homens
moderados e tímidos) Recebam-me. Sabe, eu sou orgulhoso e maravilhoso, apesar do que
minha mãe diz.”
Sobre aquela maldição no nascimento, há mais coisas a dizer. Sobre a genitália
vergonhosa, a rudeza pornô, o excesso, o exagero que tanto apavorou o sensível bom gosto de
Afrodite, aquele pênis que ultrapassou a medida padrão para o membro masculino ereto –
você sabe a estória toda de como aconteceu? Afrodite, quando estava para dar à luz, se
retirou para Lâmpsaco, uma cidade no oriente, um lugar que mais tarde considerou Príapo seu
Deus-Herói fundador, pois lá ele nasceu e lá, mais tarde, seu culto era celebrado, moedas
carregando sua imagem fundida e rituais priápicos interpretados. O heróico Alexandre queria
destruir a cidade devido aos seus excessos pornográficos. Heróis parecem ser tímidos
sexualmente: Hércules permanecendo em Argos, ao invés de flertar com as mulheres;
Belorofonte fugindo das mulheres que levantavam suas saias. Até os mármores (estátuas)
esculpidos para representar figuras e Deuses heróicos como Apolo mostram suplementos
modestos comparados com os tamanhos grotescos dos sátiros, Pan e Príapo.
Agora Hera estava enraivecida perante a frivolidade de Zeus, ou de Dioniso, filho de
Zeus com sua rival, Sêmele. Em sua cabeça, esta criança que estava para nascer de Afrodite
era um insulto em sua própria concepção, pois era direta ou indiretamente filho de Zeus. A
criança seria uma testemunha viva dos namoricos de Zeus, cria do mesmo comportamento
que ela, Hera, rainha dos céus, foi ordenada a se opor. Bem, ela, Hera, enganou e trapaceou
em seu próprio estilo, proferindo ajuda a Afrodite durante o parto. Ela tocou a barriga de
Afrodite com seu dedo, sendo a causa do nascimento de uma criança desforme. Nós temos
que reconhecer o longo dedo de Hera na grosseira genitália de Príapo. A medida normal e
correta de Hera cria a enormidade priápica.
A enormidade priapiana contém muitos Deuses nela própria – um monte de Deuses.
Não pode ser vista como simples – como diz Lopez Pedraza. Cada excitação priapiana
contém em si os poderes de Afrodite, Dioniso, Hades, Zeus, talvez Hermes, e assim por
diante. Mas mesmo com tudo isto, não nos esqueçamos do dedo de Hera. Isto é o que uma
psicologia politeísta ensina sobre qualquer evento. Há uma imaginação complexa que é
liberada, em vez de uma simples explicação que identifica e fecha a questão. Nós obtemos
uma estória, ao invés de uma redução ou um moralismo, e cada estória mitológica envolve
outra. Como os Românticos alemães disseram, “Nunca, nunca um Deus aparece sozinho.”
Eu coloco ênfase em Hera porque os outros filhos de Afrodite, assim como seus
favoritos – Enéias, Páris, Anquises, Eros, Ares, Adônis, Hermes, Dioniso, certamente não
eram deformados. (Hermafrodito era, com certeza, peculiar, por causa de sua atratividade
dupla; e apesar do marido de Afrodite, Hefesto, ser coxo, esta era uma deformidade
intimamente associada, novamente, com Hera.) De todos os filhos e amantes da Deusa,
somente Príapo era deformado, somente este, tocado por Hera.
Um toque de Hera e o priápico se torna deformado, vulgar, grosseiro. Nós o
dissuadimos, rejeitado; nós o abandonamos na montanha e o chamamos de bárbaro, pagão.
(“Pagão” literalmente significa “do lado rochoso da ladeira”) Hera aprovaria somente um tipo
de ereção, aquela que serve ao jogo do acasalamento, à união, ao casamento. Aqui, então,
está a autora das proibições contra o pornô hardcore, que grosseiramente mostra ereções e
convida a ereções priápicas em retorno. Eu suspeito que a maioria das deusas são anti-pornô:
Atená tomou parte contra as forças mais potentes de Posídon e Dioniso e ela não gostava de
cabras chifrudas; Héstia rejeitou Príapo quando ele veio atrás dela; e Ártemis com certeza
não persegue e caça em jardins.
Hera excluiria a excessiva imaginação sexual para manter a luxúria dentro dos
vínculos conjugais. É ela que os faz feios – não que os genitais sejam eles mesmos feios.
Como notou Georges Bataille, e os franceses notam tais coisas mesmo, os genitais reais são os
mais desejados e os mais repulsivos ao mesmo tempo. Por causa dela, o priápico é colocado
fora dos limites, marginalizado na zona de meretrício, na loja pornô, longe das pessoas
decentes com valores familiares. É Hera que transformou a pornografia em obscenidade.
Agora, não estou aqui para culpar Hera ou para buscar sua inimizade. Eu tenho
problemas suficientes em seu domínio. Na verdade, querida senhora, eu me considero como
um de seus devotos, tendo feito reverências em seus lugares sagrados na Sicília e Paestum e
tomado notas para um curto livro favorecendo suas virtudes e sua importância para nossa
cultura contemporânea. Todavia, Hera, permita-me este momento analítico de penetração em
sua privacidade.
A localização da sexualidade priapiana em uma zona de meretrício é a literalização de
um domínio mítico. O jardim de Príapo permanece fora da casa, mesmo que recolocado em
um sex shop urbano. A imaginação perversa – e você pode se recordar que uma das marcas
do priápico é o pênis virado para trás, uma metáfora, é claro, e não simplesmente uma
curiosidade física – não pertence ao lar, onde as viradas da imaginação devem ser corrigidas.
O reino de Hera está onde o fogo é esfriado, segundo os dizeres de São Paulo de que é melhor
casar do que queimar. A pornografia pode incendiar as imagens adormecidas na frieza da
tranquilidade doméstica. Quando a pornografia entra no lar, aparece idiota, de novo de
acordo com o mito. Pois um conto diz que quando Príapo invade a casa, com a intenção de
levar Héstia, que está cochilando perto da lareira, um asno zurra, acordando-a para que ela o
possa expulsar. Príapo não é para domesticação. A pornografia não pode ser segura e sã;
não pode aceitar os valores familiares. Ainda, aquele mesmo asno, é também central para os
mistérios de Ísis de Psiqué, como é contado por Apuleio em O asno de ouro.
Então, quando Sallie Tisdale escreve, em Talk dirty to me, sobre seu desejo, o desejo
de uma mulher, de visitar sex shops, comprar vídeos pornô, e assisti-los, e quando ela escreve
da vergonha que ela tem que superar para libertar sua curiosidade, não é uma vergonha que
emerge porque apreciar o pornô é uma atividade exclusivamente masculina. Antes, sua
vergonha reflete o fato mitológico de que o pornô não pertence à consciência da comunidade
normal, suas domesticidade e convenções, como definido por Héstia e Hera. A resistência
que Sallie Tisdale supera não é um condicionamento patriarcal (mulheres mantenham-se
fora); é a resistência arquetípica dessa Deusas a Príapo e Afrodite. Será por isso que as
esposas não querem assistir ao pornô com seus maridos: o sexo de dois preguiçosos na frente
da TV. Quando Sallie Tisdale visita uma loja, ela é como uma das mulheres que deixam suas
casas para as montanhas dos mistérios de Dioniso, mistérios femininos, aqueles festivais
exclusivamente femininos, dos quais Kerényi escreve: “nos festivais exclusivamente
femininos, para os quais os homens não são admitidos, as participantes disseram as coisas
mais obscenas uma para a outra. No festim de Haloa havia não apenas zombarias obscenas,
mas alguns comportamentos bem indecentes. As mulheres casadas eram guiadas, por fins
rituais, para brincar com coisas proibidas no casamento.”7
Eu contei o conto de Príapo, do dedo de Hera na barriga de Afrodite, de sua exposição
e marginalização para mostrar a maldição arquetípica ao priápico, e consequentemente, a
todas as imagens vigorosamente eretas da consciência, aquele despertar da imaginação que a
pornografia procura atingir. É culpada por violência masculina, o espancamento de esposas,
excessos sexuais e distorções artificiais, degradação das mulheres, molestamento de crianças,
estupros...toda esta argumentação é parte da maldição colocada no priápico por Hera e por
suas servas no domínio do doméstico, da comuna, da sociedade.
A propósito, uma intrusão recente desta constelação mítica na vida pública ocorreu na
exposição de Clarence Thomas (grosso, de meia idade, careca, moreno, se não for vermelho)
perante o Comitê Judiciário do Senado dos Estados Unidos. Lá estava ele, descoberto pela
TV, um tipo de exposição indecente quando ele foi acusado de falar do tamanho do pênis do
ator pornô “Long Dong Silver” com sua ajudante, Anita Hill, e houve a menção de um pêlo
púbico sedutor em uma garrafa de Coca. Das tantas plantas usadas na antiguidade para honrar
Príapo com guirlandas havia a adiantum, nos tempos romanos conhecida como o capillus
veneris ou avenca-cabelo-de-vênus, e “o cabelo implicado nesses nomes era aquele do
púbis.”8

II – Imagens são Instintos

Educação sexual, programas de auditório de sexo, livros de ajuda sexual, terapia


sexual, workshops sexuais – as fitas cor de rosa de Afrodite estão ao redor de nossa cultura.
A bilionária indústria pornô não é nada comparada com as obsessões sexuais endêmicas em
nossa cultura. Mas por um momento quero sair fora de política e moralidade e adentrar na
psicologia – a psicologia da imagem.
Primeiro, para a psicologia junguiana da imagem de fantasia, que, no fim das contas, é
precisamente o que é o pornô: imagens de fantasias luxuriosas.
Jung coloca as imagens e os instintos em um continuum psicológico, como um
espectro (CW 8: pp. 397-420). Este espectro, ou banda de cores, varia de uma extremidade
infravermelha, a ação corpórea do desejo instintivo, até à extremidade azul ultravioleta das
imagens de fantasia. Estas imagens de fantasia, segundo o modelo de Jung, são o padrão e a
forma do desejo. Desejo não é apenas um impulso cego; é formado por um padrão de
comportamento, um gesto, contração, uma dança, uma poética, o aparecimento de um estilo, e
estes padrões são também fantasias que apresentam as imagens como comportamentos
instintivos.
Jung faz algo diferente de Freud. Freud considera a extremidade azul ou mental como
a sublimação do instinto vermelho desejoso. O vermelho transforma, civiliza, sublima para o
azul, segundo Freud. Jung, no entanto, considera as imagens como instintos. Imagem e
instinto são naturalmente inseparáveis. Você sempre está em uma fantasia quando realiza um
instinto, e você está sempre instintivamente preso quando imaginando uma fantasia. Como
imagens e instintos são duas faces de uma mesma coisa, o modelo de Jung implica que
qualquer mudança em um é uma mudança no outro. Se você bagunça sua vida instintiva, sua
imaginação também está bagunçada; se você reprime suas imagens de fantasia, sua vida
instintiva também é reprimida. Isto é importante, muito importante. Instinto e imagem são
um o outro. Suas imagens são instintos em forma de fantasia; seus instintos são o
comportamento padronizado da imaginação.
Se separamos a extremidade vermelha da azul, temos uma imaginação azul sem
vitalidade, clichês da Hallmark(Hallmark é uma marca de cartões americana) como emoções,
imaginação espiritualizada New Age sem o grosseiro, o vigoroso e o lúrido. E também
obtemos o grosseiro, o vigoroso e o lúrido como violência, um instinto da extremidade
vermelha privado da contenção formal e variedade imaginativa.
Exemplo: alguns anos atrás no arquivo Kinsey em Bloomington, Indiana, eu vi
volumes de conteúdos eróticos da prisão guardados – cartas de amor, desenhos, cadernos,
artefatos, esboços de desenhos – a pornografia feita pelos presos e confiscada pelos guardas.
A extremidade azul do espectro foi reprimida forçadamente; imaginação trancada à chave. O
que então acontece com a extremidade vermelha? Estupro, sodomia e prostituição.
Quando os bombeiros de Los Angeles lutaram em uma batalha legal contra as
feministas para manter seu direito de olhar revistas pornô enquanto estivessem de plantão,
eles estavam acendendo suas fantasias, mantendo-as vivas, para que o instinto necessário para
seu trabalho também estivesse vivo. (eles ganharam o caso, a propósito)
Existe uma lição aqui. O confisco dos escritos e desenhos nas prisões de Indiana
indicam um grande medo, o medo da própria imaginação, o medo da incontrolável efusão da
vida da fantasia que não pode ser mantida dentro de barras e paredes. Eu preciso explicar
mais isto. Para esta explicação, eu me viro para um livro de um professor de arte da
Universidade de Columbia, David Freedberg, um gigantesco trabalho de mestre: The power
of images, Editora da Universidade de Chicago.
Agora, diz Freedberg, “as imagens trabalham de forma a incitar o desejo”, e desde
que, ele diz, “os olhos são o canal para os outros sentidos”, todas as figuras nos fazem olhar.
Elas nos seduzem ao olhar. O olhar fixo estimula os outros sentidos e desperta. O despertar
“fetichiza” o objeto. Estamos presos a isto, nisto. O que sustenta o olhar fixo é este poder
demoníaco na imagem, sua força super humana ou divina. Imagens, não apenas imagens de
sexo explícito, fazem visível a Eros e são demoníacas, e então por séculos estas peças tem
sido consideradas como guias para o vício, sua beleza corrompendo.
Platão insistiu na República [3:401b] que as imagens da arte devem ser controladas.
Isto Aristóteles reafirmou em seu Política [7.17 (1336b)]: “deveria então ser um dever do
governo proibir toda estátua e pintura que retrata qualquer tipo de ação indecente”.
Porque as imagens nos levam a uma participação com elas, aquela parte da natureza
humana para a qual Platão e Aristóteles aqui falam – a apolínea, lógica, matemática,
idealizada – é trazida para baixo e maculada pelas emoções que despertam. O corpo é
animado por imagens, por imagens gráficas especialmente, e o medo daquela imaginação
vivificada, caindo na imagem (Pigmalião), adoração idólatra, vício, força a mente superior a
considerar a censura, tal como Platão e Aristóteles mencionam.
A censura é uma resposta inerente para a potência libidinal da imagem, e não para
qualquer conteúdo particular. Como diz Freedberg, [o] “potencial para o despertar
imediatamente e irresistivelmente advém da interação entre imagens e pessoas”.
Consequentemente, todas as imagens são ameaçadoras porque o potencial para o despertar
está sempre presente.
As imagens pornográficas representam somente um caso de despertar libidinal.
Imagens santas, também, têm sido atacadas, como por exemplo a Pietá de Michelangelo, e
imagens burguesas, por exemplo, Night Watch de Rembrandt. Deformações, injúrias, ataques
com ácidos em pinturas de Poussin, Dürer, Mantegna, Rubens, Correggio pertencem à história
da arte; da mesma forma milhares e milhares de imagens amassadas e rasgadas por éditos
governamentais do Egito antigo, Pérsia, das ilhas gregas, e das Américas até a pequenas
igrejas na Inglaterra. A história da iconoclastia, do medo da imagem e tentativas de controlá-
la, dizem claramente que todas as imagens são pornográficas em sua capacidade de
despertar, um despertar que reconhece a animação libidinal, o poder daimônico, a alma ativa
na imagem.
Quando digo que todas imagens são pornográficas, por favor, vamos relembrar que a
definição de pornografia depende não em o que está descrito, mas em seu efeito, o instinto na
imagem. Como diz Webster: o pornô é o material descrevendo comportamento erótico que é
“feito para causar excitação sexual” (grifo meu). Conteúdo é contingente sobre efeito:
despertar. É por isso que o conteúdo deve ser cautelosamente, até privadamente, definido, por
exemplo, sem valor científico, estético, etc. Conteúdo é insuficiente para definição, porque
como a Suprema Corte declarou (Cohen vs. Califórnia, 1971), “a vulgaridade de um homem é
a lírica de outro”. Nós não conhecemos a pornografia pelo que ela é, mas pelo que ela faz. É
por isso que o juiz Potter Stewart pôde dizer, “eu a conheço quando a vejo”. Ele sabe o que é
pornô por causa do que as imagens fazem aos seus instintos, suas emoções; despertar. A
questão da definição se torna simplesmente: a imagem produz um frisson; será que ela
estimula a reverberação instintiva. Novamente, a definição de pornô dada pelo Dictionary of
Modern Critical Terms de Fowler é aquela que “deprava ou corrompe”, por exemplo, o que
faz.9
Para monoteístas ortodoxos que seguem um espírito puro e abstrato, qualquer imagem
deprava e corrompe, até um sonho, e deve ser erradicado em sua raiz na mente. A história da
iconoclastia é longa e sangrenta (e eu já a revi em meu Healing Fiction em consideração à
insistência corajosa de Jung sobre as imagens como a base da psique e consequentemente, de
sua terapia). A história da iconoclastia continua em formas sutis ao se reduzir imagens a
alegorias, interpretando-as com conceitos e por técnicas mediativas que procuram esvaziar a
mente em nome de um estado sem imagens.

III – Censura

Como imagens são instintos, censurar as imagens reprime os instintos. O que


acontece então com a vitalidade do cidadão? Aqui, a questão da censura muda de uma
expressão e crença pessoal (liberdade perante a Primeira Emenda) para uma de vitalidade
nacional, até mesmo segurança nacional. Se torna uma questão da própria constituição, cujo
preâmbulo declara que nosso governo almeja a “assegurar a tranquilidade doméstica” e a
“promover o bem-estar geral”.
Se tranquilidade do povo em geral significa tranquilizado, então a censura do governo
pode ser defensível. Pois, sim, a pornografia desperta. Eu concordo que este potencial para
iniciar uma insurreição da imaginação instintiva reprimida e para fomentar a curiosidade a
espreitar o que está escondido podem ser as razões subjacentes ao ansioso escrutínio da
pornografia em nossos tempos por todas as três seções do governo: Suprema Corte, Comitê
do Congresso e Departamento de Justiça.
Notem, por favor, que estamos agora nos movendo do mito para a lei de acordo com
um padrão arquetípico da mente humana. À medida que nos movemos, a deliberação começa
a tomar o lugar do deleite. Afrodite destronada; nomos e themis para a frente.
Neste instante, uma definição de pornografia: a estimulação da lascívia através da
imaginação e a estimulação da imaginação através da lascívia. Podemos melhorar esta
definição omitindo “estimulação” já que o despertar é sempre contextual, , dependendo de
variáveis como tempo, lugar, humor e gosto. Muitas imagens luxuriosas deixam um
indivíduo hesitante e estupefato; algumas concupiscências imaginadas provocam somente
revulsão. No entanto, em suma, pornografia são imagens luxuriosas e luxúria imaginada.
Eu ofereço esta definição para substituir aquelas dos dicionários que ligam
“pornográfico” com “obsceno” – significando sujo, imundo, ofensivo para a decência e a
modéstia. Apesar de os gregos usarem a palavra porne para prostituta, em inglês
“pornografia” entra no Oxford English dictionary somente em meados da época Vitoriana
quando recebeu uma qualificação obscena.
Poderemos limpar esta bagunça que confunde obscenidade com pornografia? Vamos
tentar manter em mente o que Murray Davis diz em seu livro encantador, Smut, “de que
nenhuma atividade sexual é obscena por si própria, mas apenas em relação a uma ideologia
particular. Consequentemente, a questão central...deveria mudar de ‘Quais atividades sexuais
são obscenas?’ para ‘Relativo a qual [ideologia] são algumas atividades sexuais obscenas?’”10
Apesar de o Departamento de Justiça ter uma Unidade Nacional de Obscenidade,
precisamente qual obscenidade não está claro. Basicamente, é definido como (a)
representações ou descrições de atividades ou órgãos sexuais, (b) atrativo fundamentalmente
para interesses lascivos, ofensivos para os padrões da comunidade local, e (c) sem redimir
mérito científico, estético ou político. O obsceno é completamente sexualizado. Lixos
atômicos, venenos, devastações de florestas, focas estranguladas, monstros de brinquedo
desfigurados, torturas da TV, travessas de comida desperdiçadas em lixos de restaurantes,
crianças bombardeadas no Iraque, George Bush andando pelo South Central L.A., vigas
mestras enferrujadas de Richard Serra em praças públicas, os arcos de McDonald’s se
espalhando pelo globo e o cheiro de gordura frita – nada disso é legalmente obsceno, no
entanto, qual dessas ações tem mérito científico, estético ou social? Obscenidade, deslocada
de suas ocasiões diárias reais, tem sido substituída por atos e órgãos sexuais. Mas eu tenho
visto prédios mais obscenos do que Marilyn Chambers e Traci Lords – e prédios não podem
ser desligados, você é forçado a entrar neles. Claramente nossa cultura tem mais medo de
olhar para as fotos de um pênis de Robert Mapplethorpe do que para um rifle automático do
Rambo. Temos mais medo de olhar um ordinário ânus humano do que os bundões que
assistimos toda noite na TV.
A luta contra a pornografia na América não é sobre obscenidade. É sobre ideologia; e
de acordo com Leonore Tiefer, presidente da Academia Internacional para Pesquisa Sexual,
particularmente a ideologia condenando a masturbação.11 Anátema! E porquê? Já que as
estatísticas dizem que quase todo mundo se masturba, provavelmente mais cidadãos do que os
que escovam os dentes, e certamente mais do que os que votam. Porque é tão condenada
ideologicamente? Em parte, porque a masturbação oferece prazer sem dependência; pode até
impedir o consumismo. Arquetipicamente, a masturbação invoca Pan, e somos testemunhas
de seu pânico quando o Presidente, usando os poderes delegados a ele para defender a
constituição, sumariamente despediu o cirurgião geral (que ele havia indicado) por declarar
que a juventude desta nação (perante Deus) deveria aprender sobre masturbação em uma
época da história desta nação quando em que esta mesma juventude está infestada de HIV,
gonorréia, gravidez indesejada e estupro.
Nos Estados Unidos, mais ou menos 2000 estupros ocorreram hoje e vão ocorrer
amanhã. Uma em cada oito mulheres americanas adultas vai ser vítima de um estupro – do
qual a definição eu deixarei de lado. Molestamento infantil, prostituição infantil, cultos
sexuais satânicos, doenças venéreas – por que enumerar? Tudo muito bem conhecido de
vocês. Fantasias sexuais violentas e patológicas colonizaram nossas mentes. Nós somos uma
nação de imagens luxuriosas, uma nação pornográfica. Este é um fato hardcore. Mas nossa
nação pornográfica ainda tem que desenredar sua violência e sua obscenidade da pornografia.
Pois a violência é o inimigo, não a sexualidade que pode ocasionalmente acompanhá-la. E a
obscenidade do gosto, valores, linguagem e sensibilidade da nação é somente minimamente e
em parte representado pela pornografia. O “problema” do que fazer sobre a pornografia
começa primeiramente com a devoção hardcore da nação por violência e obscenidade.
A maneira como a América lida com seus fatos difíceis é fazendo uma lei. Como um
comentador da América disse, a lei é o mito da América. Advogados são nossos padres,
nossos intérpretes do mito dominante que dirige a civilização, codifica suas práticas e
providencia seus rituais. É claro que os advogados devem receber altos tributos. Então, para
lidar com a pornografia nós a proscrevemos, e desse modo a culpamos por incitar
comportamento criminoso. Nos lembremos, no entanto, que uma ligação causal definitiva
entre pornografia e comportamento sexual criminoso nunca foi estabelecida. O relatório da
comissão do Presidente Johnson publicado em 1970, o relatório Meese (1986) e o relatório do
cirurgião geral – todos falharam em achar evidências confiáveis que significativamente
conectam pornografia com comportamento sexual criminoso.12
Apesar destes repetidos achados inconclusivos, o Comitê do Senado Judiciário
deliberou vários meses sobre o Ato de Compensação das Vítimas da Pornografia. Esta nota,
em sua própria, perversa e torcida maneira, dá um reconhecimento ao poder na imagem para
incitar desejo. Pois a nota, como proposta originalmente, iria colocar os produtores e
distribuidores de pornografia legalmente responsáveis pelos atos ilegais cometidos pelos
consumidores de pornografia. Vítimas de crimes sexuais podiam entrar com ações civis para
recuperar os danos de produtores, distribuidores, talvez até atores, de materiais “obscenos”, se
as vítimas pudessem mostrar que os materiais causaram (incitaram, iniciaram) os crimes.
Você não seria mais um cidadão responsável por seu comportamento – você é antes uma
vítima de Penthouse e Screw.
Aqui percebemos os efeitos de Hera em nosso pensamento legal. (será que Afrodite
escreve leis? De que tipo seriam? Será que ela contrata advogados, ou terá ela outros meios
de conseguir por ela própria?) Quando os “nove homens velhos” como Roosevelt chamou os
Juizes (e eu incluo O’Connor e Ginzberg nesse número) consideram os casos de pornografia
trazidos para o tribunal, eles se retiraram para uma figura imaginativa chamada “a pessoa
mediana” [às vezes chamada “pessoa razoável”] que “aplicando padrões da comunidade
contemporânea acharia o material obviamente ofensivo”.
Quem é esta “pessoa” ficcional? A pessoa estatisticamente mediana nos Estados
Unidos seria uma das casadas com Hera, de quem as repressões refletiriam no casal, por
exemplo, medidas padrões petit bourgeois. Para esta “pessoa” as imagens da pornografia –
como a lei declara – podem ser atrativas somente para “interesses lascivos”. Uma vez que a
porta da pornografia foi fechada pela opinião da comunidade local, a única abertura é pelo
buraco da fechadura. O único acesso para um puritano é a lascívia.
Então quem compra a pornografia? De onde vem o dinheiro? “não eu”, diz a pessoa
padrão mediana razoável da comunidade. Deve vir então das pessoas não razoáveis
(irracionais, dementes?), não medianas (marginais?), que não estão seguindo os padrões da
comunidade (a-social?). Deve haver uma enorme quantidade delas com carteiras gordas para
manter a sempre crescente indústria multi-bilionária.
Pornografia e lascívia parecem inseparáveis porque, quando imagens luxuriosas são
elevadas ao título de arquivos para o estudo da sexualidade ou colecionadas como arte erótica,
ninguém parece se interessar. De acordo com um relatório recente, os arquivos Kinsey estão
“caindo aos pedaços”, o Museu de Arte Erótica em São Francisco é um “defunto”, e o acesso
ao material em outras coleções como aquela da Biblioteca Pública de Nova Iorque é
desorganizado e complicado. Além disso, o interesse “sério” de pessoas razoáveis também
desanima. O presidente do Instituto para o estudo avançado da sexualidade reclama: “é
difícil conseguir número suficiente de pessoas treinadas para olhar todo o material que
recebemos”.13
Que estas imagens feitas somente para despertar devem ter outros fins também nos
leva de volta a Hera (ou à Igreja Católica Romana) que insiste que toda sexualidade humana
deve servir a um propósito superior. Percebam que prazer, deleite, surpresa, curiosidade,
iniciação – ou somente assistir – não são sérios o bastante. Os valores priápicos e afrodíticos
são julgados por outros valores supostamente superiores. Hera enfureceu-se com Zeus por
não manter dentro dos serviços do casamento suas fantasias de namoricos que geraram tantas
formas extraordinárias de existência, sua prole. E a Igreja tem ordenado por séculos que a
sexualidade deve servir à procriação, ao casamento, ou a Deus. Caso contrário, flertes e o
furor da carne pertencem ao Demônio. A Suprema Corte faz tudo isto bem literal, escrevendo
um aviso em letras vermelhas para as imagens luxuriosas de todo cidadão: se você se
interessa por pornografia, deve ser somente por valores científicos, estéticos ou políticos
sérios.
Político? Não seria a pornografia em si política? Pelas reações de Jesse Helms e as
tempestades liberadas sempre que Afrodite invade o corpo político via emprego de recursos
na arte, exibições de museus ou os corpos dos políticos, ela dissolve a barreira entre política e
pornografia. Materiais pornográficos são ipso facto políticos quando eles têm a intenção de
despertar o corpo suprimido do cidadão, o qual é também o corpo político.
A virtude omitida do assalto letal de Andrea Dworkin e Catherine MacKinnon à
pornografia é sua ligação de pornografia e política. Seu movimento é similar ao meu; as
consequências do movimento, no entanto, são completamente diferentes. O argumento que
eles conseguiram com sucesso introduzir como lei no Canadá e parcialmente em Minneápolis
e Indianápolis é assim: Porque a pornografia é uma subordinação sexual de pessoas, a
política da pornografia desloca-se dos direitos pessoais de expressão e crença (primeira
emenda) para os direitos civis estabelecidos pelas décima terceira e décima quarta emendas
proibindo a servidão involuntária e a privação da liberdade. Posteriormente eles argumentam
que, como uma demonstração da subordinação das mulheres pelos homens, a pornografia
discrimina contra todas as mulheres. Deve ser banida não por que incita a violência, mas
porque é violadora. Confiná-la às casas de meretrício não apenas perdoa esta servidão
involuntária, mas legaliza um gueto, em quarteirão de escravos.
Então, elas dizem, abula toda a pornografia porque a primeira emenda não pode
preceder sobre a décima terceira, a abolição da servidão involuntária, ou a décima quarta que
garante os direitos civis, ou a oitava que proíbe punições cruéis e incomuns.
Advogar pela pornografia não é ignorar as grosserias e crueldades de algumas
pornografias contra algumas mulheres. Mas é ignorar alguns pensamentos grosseiros sobre
gênero. Cada vez que usamos a palavra “mulheres” neste contexto precisamos entender que
estão subentendidas bilhões de mulheres particulares, cada uma com milhares de traços
particulares, preferências e aversões que diferem de acordo com o tempo e o lugar, o humor e
o gosto.
A própria questão: “A pornografia é prejudicial às mulheres? é prejudicial para as
mulheres porque ignora essas diferenças individuais. A questão reduz todas as mulheres a um
conceito de classe, e elevar esta classe a uma “igualdade” na verdade oprime as mulheres
individuais pela lógica que as força a serem incluídas nolens volens nesta classe.
Consequentemente, muitas feministas se recusam a seguir Dworkin e MacKinnon,
achando-as mais opressivas do que a pornografia que iriam banir. Primeiro, porque as
relações sexuais são relações e não eo ipso violações, a força sendo somente uma forma
daquela relação, não o próprio sexo. Segundo, eles psicopatologizam todo o sexo:
considerando que escravidão ou felação possam ser, às vezes, não uma privação da liberdade
mas uma prática de prazer. Terceiro, banindo a pornografia fecha-se uma indústria e impede-
se a alguém a busca da felicidade seguindo a vocação como uma atriz profissionalmente
treinada, striper, escritora, fotógrafa ou prostituta. Nós não fechamos a indústria de roupa por
causa de imigrantes estrangeiras em lojas de doces ou os moinhos satânicos da Inglaterra
Dickensiana por causa das crianças trabalhadoras. Proteções eram decretadas, injustiças
corrigidas, condições melhoradas. E as próprias indústrias melhoraram.
Quarto, Dworkin/MacKinnon distorceram fundamentalmente a relação homem/mulher
na pornografia. Os homens olham com carinho e de soslaio e gastam não principalmente por
causa da privação patriarcal e do poder abusivo tão exaltados na sociedade. Não, é porque os
homens estão invadidos pelo mistério revelado na pornografia, o Outro nu revelado. Eles
estão, como diz Camille Paglia,14 admirados e sob o domínio da Deusa feminina. A
pornografia revela Seu poder. A abolição da pornografia iria suprimir a Deusa e então, e
concluo, contra Dworkin/MacKinnon, que sua proibição não é em nome Dela. Certamente,
Susan Griffin,15 “a mente pornográfica é a mente de nossa cultura” – embora não como você
argumente por causa da inflamação masculina, mas por causa de Sua infiltração.
Argumentos que vão e voltam – censure tudo! não censure nada! – omitem o
princípio que venho elaborando através dessas páginas. Qualquer que seja a violência,
qualquer que seja a cruel servidão ou degradação que é mostrada pela pornografia, estas
imagens de exploração são todas imagens. A pornografia, como o sufixo grafia
explicitamente declara, pertence a uma realidade imaginativa – teatro e show, linhas escritas
num papel, pintura numa tela, bobinas de filmes microfinos. Tudo são tal qual os sonhos,
fenômenos de imaginações luxuriosas. Sua realidade está além da lei. Os humanos reais
literais que retratam estas cenas imaginativas têm recorrido às mesmas medidas que protegem
o cidadão contra qualquer injustiça em qualquer ocupação ou situação. Direitos iguais
perante a lei para todos, independente da profissão. Mas as imaginações são indisponíveis à
censura, desenrolando seus shows no sonho e na mente, dia e noite, como funções
arquetípicas da psique natural.
Logo, se aceitarmos o dizer de Susan Griffin, “mulher que é natureza”, (op. cit. p. 71)
então a geração incessante de imagens pornográficas não pode ser uma província masculina
ou mesmo uma perversão masculina. Como naturais, elas devem ser o presente da mulher
que é natureza, o presente da Deusa a quem a própria Griffin aclama, na forma de Afrodite
porneia.

IV – Príapo e Jesus, Pothos e Compras

Nós temos prestado tanta atenção a Príapo neste trabalho porque ele é instrumental na
maioria das pornografias hardcore, tanto como o que é descrito quanto como o que é
almejado. Se existe um Deus na doença, como diz Jung, o Deus é Príapo, e não é mais sábio
prestar homenagem ao Deus do que ser obsediado pela doença? A pornografia almeja
ressuscitar sua ereção. Pois a idéia de ressurreição divina precisa ser recapturada da
usurpação Cristã e colocada onde hoje realmente ocorre, a insurreição da carne, como St.
Agostinho chamou seus desejos libidinais, a ressurreição dos poderes pagãos que foram
pressionados, empurrados para a carne. O primeiro sinal de sua inquietação é a loucura cor de
rosa.
Três razões pelas quais os Deuses retornam primeiro via loucura cor de rosa, todas
apontadas por Freud: a) a libido sexual está no topo da pilha de dois mil anos de conteúdos
reprimidos; b) é o instinto mais poderoso e imediato; c) e também um instinto facilmente
metamorfoseado em vicissitudes errôneas. A loucura cor de rosa invade especialmente o
mundo comercial, pornografizando shampoos, ilhas havaianas, grãos de café e queijo
Velveeta. A loucura cor de rosa vende a pele de automóveis e os corpos macios e sem pêlos
anexados às máquinas nórdicas. Todas estas imagens que assistimos diariamente são
variedades de pornografia soft-core (pornografia leve). Romanticamente tingido, vagamente
sensual, languidamente despertador. No entanto, o Deus ou daimon aqui é menos
Hermafrodito, o anormal ou Príapo, o idiota, do que seu irmão adorável, Eros. É dele o apelo
inflamatório, a sedução de outro mundo, o constante cortejo da alma, tentando psique a
desmaiar de desejo – siga-me, venha voar comigo, te darei voluptuosidade. Vocês se
lembram que Eros e Psique tiveram uma criança (Afrodite era sua vovó), chamada Voluptas,
volúpia, definido pelo Oxford English Dictionary como “de, pertencendo a, derivada de,
motivada por ou caracterizada pela gratificação dos sentidos, especialmente, em uma maneira
refinada ou luxuriosa; marcada pela indulgência dos prazeres sensuais.” Isto é precisamente o
que a aura do consumismo oferece: indulgência dos prazeres sensuais.
É claro que o consumismo agrada à psique, porque Psiqué está sempre entrelaçada
com Eros. A única coisa que lhe resta são as compras, se o shopping e o catálogo estão onde
Afrodite trabalha as suas seduções e onde o conto de Eros e Psique acontece em nossa época.
Aonde quer que sejamos seduzidos, a psique é presa naquele mito. E eu quero defender esta
venda de sexo suave contra os proponentes de hardcore. Eles querem cenas explícitas e
ralação dos órgãos. Sem embrulhos nem pompa, sem romance, sem penumbra, sem
desvanecimentos graduais.
O critério crucial do conteúdo do hardcore é a presença concreta direta; nada
escondido, nada ausente. O reverso deste completo literalismo sexual são os acobertamentos
inocentes da censura, por exemplo, o completo literalismo moral.
Esta guerra entre os dois aspectos de Príapo continua através dos séculos, porque
existe sempre o medo de que o demônio vai saltar da imagem, da página, direto nas suas
pernas, como aquela centelha que Malraux diz que salta de uma pessoa para a outra via um
objeto de arte. A centelha do despertar à espreita; sua imaginação erótica poderia ser
incitada. Por razão disso, a censura: notórias são aquelas [censuras] na Igreja da obra O
Último Julgamento de Michelangelo na Capela Sistina. Até a Bíblia já foi considerada
pornográfica, censurada e algumas partes banidas.
Flaubert escreveu a respeito dessas folhas de figueiro e desses véus de uma maneira
tão ácida que não posso resistir a um excerto: Flaubert diz que ele teria

“dado uma fortuna para saber o nome, idade, endereço, profissão e a face do cavalheiro
que inventou para as estátuas do museu de Nantes aquelas folhas de figueiro feitas de
estanho que parecem com dispositivos para desencorajar o onanismo. Castas do Apollo
Belvedere, o lançador de discos e um tocador de flauta foram vestidos com estas
vergonhosas ceroulas de metal... afixadas com parafusos aos membros destas pobres
figuras de emplastro agora se acabando com dor... entre as tolices comuns que nos
cercam, que prazer é encontrar... ao menos um idiotismo verdadeiramente saliente, uma
gigantesca estupidez...”16

Meu ponto é que cobrir autentica o priápico, transforma o atlético lançador de discos,
por exemplo, em uma figura pornográfica. A estupidez idiota (o objeto de desdém de
Flaubert) pertence a Príapo. As estátuas se movem de arte do nu para pornografia pelada por
virtude das “vergonhosas ceroulas de metal”. A importância de cobrir para a imaginação
luxuriosa de descobrir sugere que as imagens de nu de Mapplethorpe são menos
pornográficas do que o Apollo belvedere que convida à espreitadela lasciva. Até mesmo
Afrodite encontra-se em seu banho, parcialmente desviada, parcialmente coberta, ainda assim
nua e despida. Ambos presença e ausência, pois a ausência faz o coração ficar mais afetuoso.
Não obstante, como eu disse, defensores do hardcore querem exposição total. Por
exemplo, Aretino, jornalista da Renascença e provedor da pornografia, escreve:

“Que mal há em ver um homem montar numa mulher? Deveriam as bestas, então, ser
mais livres do que nós? Deveríamos usar aquela coisa que a natureza nos deu para a
preservação da espécie em uma corrente em volta de nossos pescoços ou como uma
medalha em nossos chapéus; pois aquela é a fonte de onde vêm os rios de seres
humanos...Aquela coisa te fez...me criou, e sou melhor do que o pão. Produziu os
Bembos, os Molzas, os Varchis, os Ugolin Martellis... os Titãs, e os Michelangelos, e
depois deles os Papas, emperadores, e Reis. Gerou homens bonitos e mulheres lindas
com suas partes sagradas. Deveríamos celebrar tudo isto estabelecendo dias sagrados
especiais e festividades em sua honra em vez de confiná-lo em um pequeno pedaço de
pano ou seda. As mãos dos homens poderiam ser bem escondidas já que eles apostam
dinheiro, rogam pragas, praticam a usura, fazem gestos obscenos, arrancam, puxam,
socam, machucam e matam.”17

Aretino hoje seria um daqueles que pedem por mais genitais na TV e menos armas.
Receio que nem Flaubert nem Aretino compreendem que a folha de figueiro feita de
estanho ou o pequeno pedaço de pano pertencem essencialmente ao priápico. O
encobrimento é essencial ao despertar priápico. Soft core, porque convidam uma fantasia
além do que é apresentado, fetichizam até mais fortemente uma imagem despertadora.
Este argumento nos obriga a reler o mais importante de todos os encobrimentos em
nossa cultura, o Jesus pelado da Crucificação. Aqueles véus, pedaços de tecido e proteções
habilmente posicionadas entre nós, os espectadores, e seus genitais não são para serem lidos
simplesmente como censura literal de sua sexualidade literal, para banir o sexo da mente de
seus devotos.18 Estes disfarces que escondem e mesmo assim indicam servem como um gesto
soft-core da parte de uma igreja muito sofisticada (da qual as regras conscientemente
controlaram por séculos a produção de imagens de objetos religiosos). Encobrimentos
sugestivos, discretamente posicionados fascinam os adoradores deste mais sagrado ícone de
um Deus que é tudo, menos nu, ligando-nos eroticamente, passionalmente, despertadamente à
imagem, somente pela própria dobra de tecido, o ramo, ou galho, ou folha, ou mão em
concha, fechando o literal e abrindo para o imaginável, o inferido, lampejando o fervor da
fantasia. O ícone determinante da consciência religiosa de nossa cultura, porque é priápico
em sua presença e ausência juntas do genital, é um emblema soft-core por excelência. E digo
isto não como um insulto.
Pois o suave traz consigo Eros como diz Platão. Então, eu, Afrodite favoreço o soft-
core. Mas será que os humanos alguma vez pegam o sentido completo da natureza de Eros?
Será que eles percebem que parte de sua natureza descende do seu ancestral, Penia
(necessidade) que sempre quer, como dito no conto do Symposium de Sócrates (um dos meus
maiores amantes de todos os tempos). Essa não realização congênita reaparece como uma
figura interna dentro de Eros chamada pothos19 ou aspiração, um anseio pelo que não está
aqui, duro, agora, claro, conhecido e vermelho, mas longe, difuso, róseo. A pornografia leve
anseia pelo inatingível, banalidades comerciais difundidas com a promessa de uma doçura
lasciva, como a menina na TV chupando seu Frozen Gladje proibido.
O tema dominante em toda pornografia leve é a tentação transgressiva, além dos
limites do real e do usual, como o romance pulp fiction em uma prateleira de farmácia. A
pornografia leve oferece o sexo transfigurado em mistério, a sacralização do sexo redimido da
conformidade secular pela charis de Afrodite, a graça e o charme do desconhecido na forma
do novo. Liberta o anseio do coração por um “tempo primeiro” in illo tempore, um tempo
mítico não tocado pelas cargas terrestres, uma nova pessoa de uma nova maneira em um novo
lugar, corpos agarrados e sem ar em espaço sagrado, todas as ausências agora presentes em
um quarto deserto fora daquela rodovia barulhenta.
Então, eu, Afrodite, e meus meninos, banidos da civilização secular, retornamos ao
seu coração através da fascinação do consumismo que nos faz querer, desejar, alcançar
(orexis, a palavra grega para apetite, vindo originalmente de estender, como estender os
dedos). E apetite tem em si petere, procurar, buscar, (petição como procurar, implorar) e
petulância, aquele sentimento quando você não consegue o que você quer. Dentro do apetite
por compras e dos dedos abrangentes do consumismo está ptero, a asa de um pássaro; nossa
mão que se estende, uma asa de pássaro. Tão arcaico quanto o pterodáctilo são os dedos
voadores do espírito ansioso esquadrinhando as tabelas de desconto em seu K-Mart (uma rede
de supermercados nos EUA) local.
Bem simples: a loucura cor de rosa de Afrodite governa o mundo sub rosa sob o
disfarce da economia consumista. É claro que o consumismo e a televisão são a primeira e
segunda atividades de lazer do povo americano. Por meio de suas seduções, ela mantém o
mundo em movimento, lá fora comprando. O governo decreta leis contra a bebida, contra o
fumo e promulga um “não” contra as drogas. Mas quem proíbe as compras, e como? O que –
sem catálogos???
A verdade seja dita, eu, Afrodite, inventei a pornografia leve. É como eu agarro uma
cultura com uma corda rosa, um desejo por asas. E é de longe mais efetivo do que o hardcore
porque tem o poder de um sintoma: tanto nega quanto oferece o que a psique quer. A
pornografia leve é um compromisso, como Freud (outro de meus filhos?) disse de todos os
sintomas. Convida o anseio da alma pela beleza e magia de Eros, mas somente atormenta
com as fantasias de um amante fantasmagórico desconhecido, não visto, como meu menino
Amor na noite de Psique, tanto presente quanto ausente.
Lembrem-se: além dos hábitos sem sal da luxúria no casamento, a luxúria executada20
tem apenas duas escolhas, a neurótica e a psicopática. Tanto as idealizações sentimentais de
um romance de cinema ou a foda sem vínculo de estranhos sem passado nem futuro. O
próprio Freud disse que o real não satisfaz a libido sexual e Reich passou sua vida tentando
“acertar” literalizando o pothos cósmico em energia orgone. Somente pothos satisfaz à
complexidade invisível da alma porque pothos não pode acontecer. Assim como a conjunção
alquímica, é um sonho, um milagre no vaso de vidro da realidade imaginal.
Da maneira como eu vejo as coisas, a pornografia leve não é uma idealização do sexo,
como os freudianos de barba branca (Anna também) podem dizer, e consequentemente, uma
defesa contra a dura realidade. Antes é o aspecto divino dado por mim, esta Deusa,
diretamente ou via um dos meus filhos, lembrando à alma de que ela deve sempre servir em
meu templo, onde vai estar sempre susceptível a uma maravilhosa elevação deste mundo e
reminescente de outro, platônico, romântico e rosado, enchendo este mundo consumidor com
o brilho dourado de Afrodite Urania, aquela radiância de outro mundo que sempre foi a razão
principal de meu ser e o principal significado do meu sorriso.
E então o consumismo é muito mais efetivo, e mais prazeroso, do que a censura,
porque diverte ao invés de castrar o desejo. Não serviriam os ataques moralistas à indústria
da pornografia hardcore, na realidade, à venda a varejo? Os negócios parecem reconhecer
que se o hardcore fosse mais prevalecente, as imagens francamente luxuriosas poderiam tirar
a loucura cor de rosa do mercado. Então os compradores poderiam escapar à armadilha do
enigma consumista como foi dito por Eric Hoffer: “Você nunca tem o bastante do que você
na verdade nem quer muito.”
V – Curiosidade como Coragem

Eu gostaria de posicionar o que estou escrevendo aqui dentro do campo dos épicos
psicológicos assim como foi feito pelos fundadores da terapia – os psicanalistas de Vienna e
Zürich, os clínicos de Paris e Nancy, os psiquiatras de hospitais da Alemanha e Inglaterra,
aqueles pioneiros que estavam corajosamente curiosos sobre as excentricidades da
imaginação humana, e cujo campo de conhecimento eram os humores, luxúrias e obsessões
inaceitáveis e inexoráveis que alimentavam as raízes da imaginação em cada cidadão,
encarcerado ou nas ruas.
Nosso trabalho tem sido sempre em defesa do oprimido em vez de ajustamento do
opressor. A terapia vai pelo lado da vítima. Mas hoje é difícil distinguir quem é a vítima e
quem é o opressor. Seremos nós vítimas da pornografia ou a pornografia é a vítima? A
imaginação luxuriosa é perseguida pelo Vitorianismo puritano cujas raízes vão fundo nos
fundamentos da ortodoxia religiosa que não permite à mente a sua natureza e ao sonho seu
prazer sexual, condenando o esquisito e excêntrico aos estoques públicos da justeza política.
Esta perseguição então separa a luxúria das imagens e as imagens da luxúria de uma forma
que as imagens perdem sua vitalidade instintiva e, pior, a luxúria perde sua imaginação,
encontrando satisfação substituta em representações brutas e literais. Um círculo vicioso de
literalismo cria aquilo que procura prevenir, de forma que o censor pode ser muito mais uma
causa subjacente de violência sexual do que aquilo que é censurado.
As sementes deste literalismo foram entregues diretamente a Moisés (Êxodo 20) em
um mandamento contra imagens esculpidas. O Todo Poderoso advertiu Moisés que qualquer
imagem esculpida – mesmo de pássaros e peixes – infringe Sua Onipotência e deve
consequentemente ser mais abominável em um sentido cósmico do que coisas tão ordinárias
quanto mentira, furto, adultério e assassinato. Está claro que qualquer imagem é uma ameaça
gravada para a mente monoteísta. Vamos nos lembrar, no entanto, que o edito diz que você
não pode cravar em pedra (esculpido significa bem delineado) qualquer fantasia
absolutamente, incluindo aí, a fantasia proibindo uma imagem esculpida. Isto tem sido
sempre reconhecido de alguma forma por observadores judeus que regularmente apresentam
os mandamentos iconicamente e ironicamente como duas tabuletas de pedra talhada. Então,
aceitar o mandamento contra a idolatria no nível único de uma proibição somente é por si
mesmo uma literalização da própria instrução de não literalizar, fixando com isso o próprio
mandamento em pedra, o transformando em um ídolo imóvel, perdurando até os nossos dias
nas cabeças duras do fundamentalismo.
Mas isso é apenas a metade – a outra metade ocorre em Mateus (5:28) onde somos
obrigados a não fazer nenhuma distinção entre uma imagem luxuriosa na mente e o adultério
real no comportamento. Esta foi a passagem que deixou Jimmy Carter em apuros. Em uma
entrevista à Playboy ele admitiu olhar com desejo. Ele corajosamente reconheceu as imagens
luxuriosas. Para leitores literalistas de Mateus, Carter cometeu adultério pois não há uma
diferença fundamental para o ortodoxo entre o que alguém imagina e o que alguém faz.
Deixe que concluamos agora que o problema básico da pornografia não se torna nem
obscenidade nem sexualidade. É o literalismo, a mente simples que lê as imagens sem
imaginação e é, portanto, ameaçada por elas, e então é levada a controlar todas as imagens,
especialmente aquelas que são extremamente vitais, por exemplo, dotadas de potência sexual.
Ao me referir a Mateus e à ortodoxia, estou nos lembrando do investimento Cristão
para o controle das imagens luxuriosas, uma preocupação sem fim que não começou com as
obsessões dogmáticas do Papa atual. Começa séculos atrás quando o próprio Cristianismo se
formou vis á vis Paganismo, como os Cristãos chamavam as religiões contemporâneas pelas
quais eles estavam rodeados. A luta contra a pornografia é a luta contra o Paganismo. E os
Deuses e Deusas pagãos retornam, como o reprimido sempre retorna, disse Freud, através do
lugar mais vulnerável na doutrina Cristã: sua lacunae no que diz respeito ao prazer, ao corpo,
e à imaginação mítica. Afrodite, Príapo, Perséfone, Pan, Eros, Dioniso, Zeus – especialmente
estes são os Deuses que estão retornando. A pornografia está onde os Deuses pagãos
baixaram e é como eles se forçam de volta às nossas mentes.
Devido à sua presença eu não posso apoiar qualquer tipo de censura. Eu sou obrigado
a validar toda pornografia baseado na sua importância para ressuscitar a imaginação
arquetípica. Quero encorajar a curiosidade nela, ou o que é agora condenado como “interesse
lascivo”. Eu me coloco contra os escritores Cristãos, tais como Fenelon (1651 – 1715), que
elevou a curiosidade ao primeiro dos pecados, até mesmo acima do orgulho. Antes que
escolhamos entre as partes, deixe-nos primeiro aceitar o todo, ou então a diferenciação se
torna mais uma supressão insidiosa. Como disse Thomas Jefferson, “Qual pé deve ser a
medida a partir da qual nosso pé deve ser cortado ou esticado?” Os estatutos contra assalto e
servidão involuntária e que protegem menores e aqueles em posição de dependência, lidam
suficientemente com as injustiças onde quer que elas ocorram na sociedade, incluindo a
indústria pornográfica. A pornografia não é o pior caso da exploração e abuso de crianças, de
corpos, de mulheres ou de crueldades físicas.
A guerra contra a pornografia é somente indiretamente motivada pela defesa piedosa
das crianças infelizes, pela proteção das mulheres exploradas e pelo salvamento dos valores
familiares decentes. A guerra é aquela antiga da iconoclastia contra as imagens, da
magnanimidade do espírito contra as inclinações naturais da alma, da inocência contra o
prazer, do sentimentalismo contra Saturno, da regra dos ideais contra os fatos da vida, ou
simplesmente, dos Deuses Olímpicos magnânimos contra os poderes do campo, do solo e do
mundo subterrâneo. Afrodite combinou ambos: porne e urania; já que Príapo era um
protetor contra a má sorte e um jardineiro fértil assim como uma figura grotesca
assustadoramente fálica.
A supressão da pornografia começa ao se confundir o sexualmente vívido com o
obsceno, rebaixando, desse modo, nossos ventres a sujeira privada. Esta é a maneira principal
de iconoclastia em nosso tempo e, pela lei psicológica de pars pro toto (uma parte representa
o todo), pornografiza nossos corpos nus e degrada qualquer tipo de sexualidade. Esta loucura
obscena primária necessita da loucura cor de rosa secundária do consumismo. Também, esta
loucura obscena cria a convenção da vergonha, aquela censura interiorizada que inibe caras
sérios e racionais da comunidade, como você e eu, de falar da pornografia. Isto só pode
significar falar sujo.
Bom, eu quero falar sujo – para vocês – políticos sujos. A luta política é sobre o
controle das respostas do corpo humano, ou com diz Thomas Szasz, controle do corpo do
cidadão pelo estado, de outra maneira conhecido como escravidão. Talvez, a pornografia
necessite de um lobby comparável com a Associação Nacional de Rifles. Pois o direito
constitucional de carregar armas que tanto atormenta os cidadãos hoje depende primeiramente
de um corpo animado e pessoalmente pertencido reivindicado ao controle do estado, de
maneira que o cidadão possa carregar estas armas com responsabilidade cívica ao invés de
raiva fortuita ressentida.
Deste modo, a pornografia se torna tão vital para nosso presente e futuro políticos
quanto outras áreas de liberdade corporal; os direitos de assembléia e discurso; de qualquer
um entrar nas eleições; a abolição da escravidão; direitos de aborto; o direito de terminar com
a vida corporal de alguém; de ingerir substâncias que alguém bem intender; de ser protegido
por lei contra ataques físicos, discriminação, exploração e punições injustas.
A estas liberdades fundamentais estou adicionando o direito de fantasiar. A fantasia é
inata aos seres humanos, tão irreprimível quanto nossos outros instintos. Como tal é mais do
que luxúria privada, mais do que uma necessidade básica. A fantasia é também uma
responsabilidade humana coletiva, chamando pela consciência, coragem e participação viva
pelos cidadãos em imaginações luxuriosas. As fantasias pornográficas exigem seu lugar no
corpo político como parte de sua vitalidade instintiva, ou a vida da psique e o bem estar da
sociedade estarão impedidos. Se a pornografia, como a definimos aqui, não encontrar apoio
social mas sim supressão social, então o cidadão e a nação declinam em vitimizações passivo-
agressivas degradantes, presos por leves fitas rosas e arrebatados pelo frenesi do consumismo.
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