Você está na página 1de 22
IMvENGAe Eder Chiodetto ¢ Jean-Luc Monterosso curadores Fotografar ndo para certificar o visivel, mas para ctiar outras dimensbes possiveis do espaco-tem po. Olhar e registrar ndo a aparéncia do entomo, mas a vertigem dos desejos, dos ternores, dos 50 nihos segredados. Fotografar nso o que os olhos veem, mas a imaginacéo criadora onria, iracio nal subjetiva.Instaurar a duivida, a cialética ea iro- nia onde reinava a aparéncia volt de realidades fortuitas. Fotograar, inventar un mundo e, assim, representa o homem em todos os seus matizes. Tiansfigurar a objetividade documental, 0 rigor formal e o flagrante para dar primazia 8 subjetiv- dade, & abstragio e 8 construgdo da cena foi attu de transgressora que sempre exist de forma pul verizada na historia da fotografia, mas que passou a dominar uma deterrninada producéo fotogréh- «2, sobretudo a partir dosanos 1960. Tals pesquisas recrudesceram nas décadas sequintes motivadas pela evolugio dos moos e costumes da socieda de, pelo invento de novas tecnologias,pelas teo- fas de pensadores que desconstruiram o conceito de"verdade' e de realidade’ nas ima {que se somaram 8 crise da representacao rx ada pelo pés-moderismo. Diversos artistas, deixando de lado a ideia da cap: ture de momentos decisivos, optaram pela cons trugio de cenas,realizando uma espécie de teatro ‘ouato performstico para os quals a cémera escura a550U a simbolizar um palco de representacoes € a imagem resultante, a sintese de uma narat va dirigida com forte aporte estético e ideokbgico. ‘Aideia de uma verdade totalizante, pura e isenta assou a ser repudiada. Vigora, desde entdo, 0 pensamento de que todo conhecimento € relat vo. Dicotomias, incertezas, ronia ¢ lrsmo preen- chem, assim, outros planos que se justapdem 3 aparente bidimensionalidade das fotografia. ‘A lnvencao de um Mundo, exposigao que faz um pequeno recorte dessa producao a partir do vasto acervo da Maison Européenne de la Photographie, faz. um apanhado de obras e artistas que se toma~ ram referencia desse tipo de fotografia construida, por vezes denominada por pesquisadores corno pés-moderna, contemporanea, encenada, expan dida, contaminada etc. Tals denominagdes buscem, na verdade, tevelar a capacidade desse tipo de fotografia de se mesclar ‘com outras inguagens como o cinema, a pintura, a gravura eo teatro, por exemplo, nun movimen- toque tende a tomar mais complexas e desafiado- Fas tanto sua simbologia quanto sua classificacio. 0 fato & que a produgao dos artistas contempo- rneos aqui representados, 30 quebrar diversos tabus, conferiu definitivamente 2 fotografia um 4grau de autonomia e originalidade que fez dela a linquagem mais discutida das titimas décadas, no ambito da arte, no melo académico e ern outras instancias sociais Contta a combalida ideia da assungdo do real na fotografia, os artistas investiram fundo na simula- Bo, na busca de uma representacso genuina de seus estados de animo ou de sua observacao citt- ado mundo pela via fccional Detetminante para alavancar essa postura dos artistas, as novas tecnologias ofereceram nos diti- ‘mos anos uma infinidade de ferramentas para que eles conseguissem ampliar o repert6rio de suas pesquisas ps-fotogrdficas. As cépias em grandes formatos com grande qualidade pictérica, por exemplo, fizeram reacender 0 eterno debate dos limites entre fotografia e pintura Nas tiltimas trés décadas, essa produgio explo- div no cireuito das grandes exposicoes de arte, tomnando-se um fenémeno de mercado, como nunca havia acorrido na histéria. Com 0 cresci- mento exponencial dos computadores pessoais € programas de tratamento de imagem, a manipu- Iago do contetido das imagens torna-se cada vez mais algo corriqueiro, sepultando de vez a crenca do senso comum de que as imagens necessaria- mente fazer emergit um real inquestionavel, Sao esses usuarios também que cada vez mais buscam imagens idealizadas, retocadas, construt das, fccionais para ilustrar seus perfis, por exern- plo, nos sites de relacionamento na intesnet. A n= vengdo de urn Mundo, por esse prism, nao inventa ‘um mundo paralelo e distante da realidade, mas, sim, reflete e potencializa de forma pottica e me- taforica 0 comportamento também cambiante da sociedade em que estd inser, Com tantas transforragdes de ordem conceitual técnica, a fotografia da virada do século XX para (© XXI tem conseguido de forma enfética e original representar os anseios e as contradigoes do ho- mem contemporéneo, ampliando suas fronteiras de representacso, nt CIC Ronaldo Entler & jornalista, doutor em artes pela ECAVUSP, pés-doutor em multimeios pelo IA/Unicamp. € professor e coordenador de pés-graduagSo da Faculdade de Comu een ret rT E dificil explicar 0 que é a fotografia cantemporsnea, Alguma coisa parece terse transfor: mado e se consolidado nos uitimos 20 ou 30 anos, mas 0 adjetivo ‘conternpordneo’ ndo ppoderia ser mais problematico. Primero, aponta para uma fotografia que se define pelo dislogo com a arte contempordnes, tautologia que explica quase nada. Segundo, tenta dar conta de um processo que esté em construcdo e que, no entanto,jé possul uma his {ria Terceito, toma absoluto um conceito que deveria se referir ao presente de qualquer ‘momento: tudo ¢ contempordneo a seu devido tempo, mas 3s vezes parece que, daqui a ccem anos, leremos nos livios que a “fotografia contermporanea" foi um movimento ocorti- cdo na passagem do século XX pata 0 XXL Por fim, diz respeito a uma situacao tio maledvel que, com frequéncia, incorpora aspectos da tradigéo aos quais parecia se opor. Como poderiamos olhar para a proxlucao recente e dizer que tal coisa é ou no contemporsnea? ‘Com contomnos escorregadios,resta aprender que, mais do que um procedimento, uma técnica, um tendéncia estilistca, a fotografia contempordnea é uma postura. Algo que se desdobra em acdes diversficadas, mas cujo ponto de partida é a tentativa de se colocar cde modo mais consciente e critico ciante do préprio melo. Alguns recortes so esclare~ cedotes, Podemos reconhecer nas propastas que assumem urna direcio ficcionalizante algo ber representado nesta exposicao~ uma experiéncia fundamental paraaafirmag3o dessa postura, Sem pretender encontrar as determinages que conduzem a fotografia até ‘aqui, vale a pena olhar retrospectivamente para situar algumas questées diante das quais tas experiéncias recentes dernarcarn uma posicéo. Conhecemos ber as dificuldades enfrentadas pela fotografia no ambiente das artes tra dicionais do século XIX. Curioso & que 0 modo como a fotografia se defendeu deixou hetangas to problematicas quanto os arguments de seus detratores. A ansiedade de ser reconhecida como arte gerou duas reacdes onostas: ora a fotografia tentou absorver forgosamente efeitos superficiais da pintura, ora buscou se fechar nos limites de sua téc nica para ndo se confundir com outras formas de expressdo, sobretudo aquelas que the ‘erar hostis. Ambas as atitudes apenas contribuiram para seu isolamento, seja porque ‘encontraram na submissao a tinica forma de dilogo com as artes tradicionais,seja porque buscaram um estatuto estético que the fosse exclusivo. Felizmente, esse foi um problerna de ordem mais retérica do que prética,e tanto os pictorialistas quanto os mais purstas, deixaram boas contribuigées pata a posteridade. De todo modo, esse é um debate que parece ter sido sepultado pela produgao recente. Reconhecemos na experiéncia moderna uma vocacao para expandir as fronteiras das lit guagens artisticas ao mesmo tempo em que refletia sobre suas especificidades, ainda que seja forcoso dizer que artistas como Rodchenko, Moholy-Nagy ou Geraldo de Barros esti- ‘veram de fato preacupados com as fronteras entre as linguagens. Em todo caso, 2 ques- to que se esbocava parecia ser mais ou menos da sequinte ordem: até onde podernos ir na experiéncia com a fotografia (ou com a pintura, a musica etc)? Isso ainda pressupunha um territério demarcado. REFLEXOES | Ronaldo Erler Uma mudanga comega a se operer muito espontaneamente na efervescéncia dos anos 1960: muitos artistas deixaram de se perguntar que tipo de arte estavam fazendo ¢, assim, transitaram indistintamente entre diversas linguagens, incorporaram técnicas ainda mais alheias 8 tradicao artistica, como a serigrafia, 0 xerox ou meios eletrénicos incipientes, e realizaram experiéncias hibridas que hoje chamamos de perforrnances, instalagoes, agoes, proposicbes, eoutras tantas coisas dificels de nomear.€ interessante também pensar que a fotografia penetrou efetivamente 0s espagos da arte de um modo tanto mais evidente quanto menos esteve preocupada em responder aos fantasmas hist6ricos que interroga- vam sobre sua legitimidade artstica, Esse momento encarregou-se de exorcizar tal far tasma de forma radical: a questo de saber se a fotografia é ou néo uma obra de arte se esvazia quando ninguém esta preocupado em definir se uma obra é ou néo fotogrsfica, 0u pictérica, ou videogréfica etc A fotografia atravessou as experiéncias dos artistas dessa geracdo de vias formas. Er al- ‘guns casos ela cumpriu apenas 0 papel de registrar obras que eram efémeras ou inacesst- vels, como é 0 caso das performances ou da land art. Parece pouco, mas js se esboga aqui uma questéo importante que seté largamente explorada nas décadas sequintes: a foto- BARD), Pletro Marla, Proficio. Viagem pelo fantstica Fotografias de Bors Kossoy. Sao Paul Lvraria Kosmos Editor, 1971 REFLEXOES | Rubens Fernandes Jinor REFLEXOES | Rubens Fernandes inlor pprocessos de criacdo, mais a fotografia foi se tearticulando em diversas possibilidades expressivas. E 0 Brasil acompanhou de perto essas discusses nas ultimas décadas. Nos ‘anos 1990, contamos com a presenca de artistas como Andreas Miller Pohle, Joel-Peter Witkin, Alain Fleischer, Joan Fontcuberta, Joachim Schmid, entre outros, que também rovocaram nossos artistas e turbinaram suas ideias, Em 1993, por ocasido do 1° Més Internacional de Fotografia, orgahizado pelo Nucleo dos ‘Amigos da Fotografia (Nafoto}, realizou-se a exposi¢do Fotografia Consiruida no Museu Lasar Segall, que discutia as novas formas de representagao fotografica, geralmente ruido- sas deslocedas da tradicao da imagem técnica, O.evento também contou com a presen- Ga de Joel-Peter Witkin, Alain Fleischer, Keichi Tahara, Andreas Miller-Pohle, entre ouos ue contribuiram naquele momento para a reflexdo e a gestago de caminhos distintos para a fotografia brasileira, Naquele mesmo ano, o Museu da Imagem e do Som organizou «a coletiva O Fotdgrafo Construtor, com a presenca de Cao Guimaraes e Eustéquio Neves, entre outros. [No ano seguinte,o grupo Panoramas da Imagem® mostrou o trabalho de Joan Fontcuber- ta, que coordenou um workshop em So Paulo e apontou navas potencialidades da foto- grafa. Em 1996, 0 mesmo grupo organizou o Seminrio Panoramas da Imagem, que teve ‘como convidado intemacional Joachim Schmid, que também trouxe contiibuicées para a Feflexao e 0 fazer da fotografia. O Sesc Pompei, sempre sintonizado, também organizou, «em 1996, a exposico Nos Limites a Fotografia, com curadoria de André Rouillé(Franga)€ Eduardo Muylaert (Grasi). No catélogo de apresentacio, Rouillé destaca:"Excesso, audéci desmedida, dissolugdo das fronteiras formats tradicionais. Em pouco mais de um decénio, a fotografia mudou radicalmente. Apés ter durante muito tempo sido relegada a funcBes praticas e utlitaias, ela & hoje tentada pela arte, envolvida numa verdadeira experiéncia {de transgressdo dos seus limites formais anteriores: os de documento”. Com essa breve memiria podemos entender como o Brasil se inseriu rapidamente no Circuito da fotografia contemporénea e como os nossos artistas se aproximaram daquilo que denominamos de fotografia expandida. Por outro lado, além dos autores classicos, * ONafoto foi criado em 1991 com a paticipacao de Nair Benedicto, Stefania Bri Rosely Nakagawa, Rulbens Fernandes Jinior, Eduardo Castanho, Marcos Santili,Juvenal Pereira, Eduardo Sime, Faus- {to Chermont e lsabel Amado. * 0 grupo Panoramas da Imagem foi criado em 1992 com Rubens Mano, Everton Ballardim e José Fujocka Neto. Mais tarde, Eli Suabrack passou a integrar 0 grupo. ® A exposicio contou com a partcipagao de Eric Rondepierre, Jean-Louis Gammel, Florence Paradeis, Alain Fleischer, Dominique Auerbacher, René Sultra Maria Barthélémy, David Boeno, Georges Rous. Se, Joachim Mogarra e Francois Méchain, por parte da Franca, e A, Saggese, Rubens Mano, Paula Tipo, Luciana Napchan, Rafael Assef, Rochelle Cosi, Artur Lescher, rs Blerrenbach, Claudio Fei, Renata Castello Branco e Cassio Vasconcellos, por parte do Bras 7 ROUILLE, André. Nos limites da fotografia, Catélogo da exposigdo reaizada no Sesc Pompeia em julho de 1996. como Walter Benjamin Roland Barthes, Gisée Freund, Susan Sontag, novos pesquisadores se dispuseram a pensar a fotografia e seus desdobramentos técnicos eestéticos, entre ees Philippe Dubois, Rosalind Krauss, Jean-Marie Schaeffer, Dominiqué Baqué, André Rouilé e Reg}s Durand. © que devemos intuir € que na fotografia expandida® existe uma transferéncia de aten- G20 da sintaxe para o processo propriamente dito. Isso exige também o necessério en- tendimento do percutso do artista para a realzacio de sua obra, N3o que 2 fotografia expandida seja de dificil compreensio. O que acontece ¢ que essa expansao tem cer tas particularidades que s80 0 resultado da singularidade do instinto atistico, anos de pesquisa, tentativas e muita experimentagao, Uma extraordinaria conexio de mulipios campos heterogéneos que, quando articulados, engendram uma imagem diferenciada, incomparavelmente mais polissémica, que derruba barreras e desconst6l a rotina dos padres insttucionalizados pelas convengoes e que se encontra distante dos automats: mos maquinicos FERNANDES JONIOR, Rubens. A fotografia expandida Tese de doutorado, S80 Paulo: PUC, 2002. ens Fetnan REFLEXOES | ful 1

Você também pode gostar