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Endomorfismos diagonalizáveis

V
V.1. Valores e vectores próprios

Neste capı́tulo voltamos ao estudo das transformações lineares. Em particular consideramos


as transformações lineares f : V → V de um espaço vectorial V para si próprio. Uma tal
aplicação linear diz-se também endomorfismo. Tencionamos responder à seguinte questão.
Como obter uma base B = (v1 , . . . , vn ) de V tal que a matriz M (f, B, B) seja “simples”?
Aqui interpretamos “simples” como sendo uma matriz diagonal
 
λ1 0 0 ... 0
 0 λ2 0 . . . 0
 
. .. 
. ..
. . . .

.
..

.
. . 0

0 ... ... 0 λn

Definição V.1.1. Um endomorfismo f : V → V diz-se diagonalizável quando existe uma


base B = (v1 , . . . , vn ) de V tal que a matriz M (f, B, B) de f relativamente a esta base (tanto no
espaço de partida como no espaço de chegada) é diagonal.

Exemplos V.1.2. (1). Para cada espaço vetorial V de dimensão finita, a função nula é
diagonalizável: a matriz da função nula relativamente a qualquer base B de V é a
matriz nula.
(2). Para cada espaço vetorial V de dimensão finita, a função identidade idV : V → V é
diagonalizável: a matriz da função identidade relativamente a qualquer base B de V é
a matriz identidade.
(3). Agora consideramos a transformação linear

f : R2 −→ R2 , (x, y) 7−→ (x + y, x + y).

Neste caso, a matriz de f é


" #
1 1
;
1 1
portanto, a matriz de f relativamente à base canónica do R2 não é diagonal. Será que
existe uma base de R2 em relação à qual a matriz seja diagonal? Voltaremos dentro de
segundos. . .
89
90 V.1. Valores e vectores próprios

Relembra-se que as colunas da matriz M (f, B, B) na base B = (v1 , . . . , vn ) são dadas por

[f (v1 )]B , [f (v2 )]B , . . . , [f (vn )]B ,

consequentemente, B é uma uma tal base precisamente quando

f (v1 ) = λ1 v1 , f (v2 ) = λ2 v2 , ... f (vn ) = λn vn .

Portanto, tendo em conta que os vetores de uma base não podem ser nulos, define-se:

Definição V.1.3. Seja f : V → V um endomorfismo. Um número real λ diz-se valor próprio


de f quando existe um vetor v ∈ V diferente do vetor nulo tal que f (v) = λv. Para um valor
próprio λ, cada vetor v ∈ V com f (v) = λv diz-se vetor próprio associado ao valor próprio λ.

Nesta linguagem, um endomorfismo f : V → V é diagonalizável exatamente quando existe


uma base B = (v1 , . . . , vn ) formado por vetores próprios de f ; e, neste caso, a matriz M (f, B, B)
é a matriz diagonal com os correspondentes valores próprios no diagonal. Voltamos agora ao
Exemplo V.1.2 (3).

Exemplo V.1.4. Começamos por verificar que o (1, 1) é um vetor próprio de

f : R2 −→ R2 , (x, y) 7−→ (x + y, x + y)

associado ao valor próprio 2:


f (1, 1) = (2, 2) = 2 · (1, 1).
Será que (1, −1) é um vetor próprio de f ? Agora calculamos

f (1, −1) = (0, 0) = 0 · (1, −1),

portanto, 0 é um valor próprio de f e (1, −1) é um vetor próprio associado ao 0. É fácil de


verificar que ((1, 1), (1, −1)) é linearmente independente; logo, B = ((1, 1), (1, −1)) é uma base
de R2 de vetores próprios. Concluı́mos que f é diagonalizável, e a matriz de f relativamente a
esta base B é " #
2 0
M (f, B, B) = .
0 0

Admitimos que até este momento o nosso método de resolver a questão da diagonalização é
“adivinhar e ter sorte”: no exemplo acima, os valores próprios 2 e 0 caı́ram do céu. No entanto,
o facto de termos descoberto vetores próprios linearmente independentes não foi apenas sorte:

Lema V.1.5. Seja f : V → V um endomorfismo onde dim V = n ∈ N. Então, cada sequência


(v1 , . . . , vm ) de vetores próprios não nulos associados respetivamente a valores próprios distintos
λ1 , . . . , λm é linearmente independente.

Podemos logo tirar uma consequência importante.

Teorema V.1.6. Seja f : V → V um endomorfismo onde dim V = n ∈ N. Se f tem n valores


próprios distintos, então f é diagonalizável.

De facto, se temos uma sequência (λ1 , . . . , λn ) de n valores próprios distintos, então


• pela definição de valor próprio, para cada um destes podemos escolher um vetor próprio
não nulo;
Capı́tulo V. Endomorfismos diagonalizáveis 91

• pelo Lema V.1.5, a sequência (v1 , . . . , vn ) destes vetores próprios é linearmente inde-
pendente;
• como dim V = n, B = (v1 , . . . , vn ) é uma base de V .
Uma outra consequência do Lema V.1.5 é que em espaços vetoriais de dimensão finita não
pode haver um excesso de valores próprios: o número de valores próprios de um endomorfismo
f : V → V com dim V = n ∈ N é limitado por n (ver Teorema II.5.19).
Resumindo, para uma transformação linear f : V → V com dim V = n ∈ N, ou temos
exatamente n valores próprios e neste caso f é diagonalizável, ou temos menos do que n valores
próprios, e neste caso . . . não sabemos. Tudo depende se conseguimos arranjar suficientes vetores
próprios linearmente independentes. Por exemplo, a função nula

R2 −→ R2 , (x, y) 7−→ (0, 0)

tem um único valor próprio, λ = 0; mas todo o (x, y) ∈ R2 é um vetor próprio associado a 0.
Nos seguintes exemplos temos menos sorte.

Exemplos V.1.7. (1). Consideremos o endomorfismo f : R2 → R2 , (x, y) 7→ (−y, x). O


número real λ é um valor próprio de f se existe um vetor não nulo (x, y) ∈ R2 tal que
f (x, y) = λ(x, y), ou seja, tal que (−y, x) = (λx, λy). No entanto,
( ( (
−y = λx (λ2 + 1)y = 0 x=0
(−y, x) = (λx, λy) ⇔ ⇔ ⇔ ,
x = λy x = λy y=0

pois λ2 + 1 6= 0. Logo, não existe um vetor (x, y) diferente de zero tal que f (x, y) =
λ(x, y), ou seja, f não tem nenhum valor próprio λ ∈ R. Em particular, f não é
diagonalizável.
(2). Consideremos agora o endomorfismo f : R2 → R2 , (x, y) 7→ (y, 0). Neste caso, f (x, y) =
λ(x, y) ⇔ (y, 0) = (λx, λy). Se λ 6= 0, obtemos que (x, y) = (0, 0) é a única solução
desta equação. Se λ = 0 as soluções da equação são os vetores da forma (x, 0), com
x ∈ R. Assim, o único valor próprio de f é λ = 0 e os vetores próprios associados a
0 são os vetores da forma (x, 0), com x ∈ R. Logo, não existem dois vetores próprios
linearmente independentes; portanto, f não é diagonalizável.

No que se segue, Uλ denota a colecção de todos os vectores próprios associados ao valor


próprio λ. Note-se que Uλ é um subespaço de V , designado por subespaço próprio associado
ao λ. Pelo Lema V.1.5, uma tal base B que procuramos pode-se obter escolhendo, para cada
valor próprio λ, uma base de Uλ ; supondo que este procedimento produz n = dim V vetores.
Este método é analisado na próxima secção, e acabamos esta secção com uma nota e um exemplo
bem diferente.

Nota V.1.8. Um endomorfismo f : V → V não é injectivo se e somente se λ = 0 é um valor


próprio de f ; e neste caso U0 = ker(f ).

V.2. Endomorfismos diagonalizáveis

Dirigimos primeiro a nossa atenção à questão:


Como calcular os valores e vetores próprios?
Pela definição, λ ∈ R é um valor próprio do endomorfismo f : V → V se e só se ker(f − λ idV ) 6=
{0} (aqui idV : V → V denota a função identidade). Vamos considerar apenas o caso V = Rn .
92 V.3. Diagonalização de matrizes

Proposição V.2.1. Seja f : Rn → Rn um endomorfismo, necessariamente dado por x 7→ A x,


para uma matriz A do tipo n × n. Então, λ é um valor próprio de f se e somente se
det(A − λIn ) = 0,
e v ∈ Rn é um vector próprio associado ao valor próprio λ precisamente quando v é solução do
sistema homogéneo (A − λIn ) x = 0.
Note-se que det(A − λIn ) define um polinómio pf de grau n na variável λ, designado por
polinómio caracterı́stico de f : Rn → Rn , x 7→ A x. Portanto, os valores próprios de f são
precisamente as raı́zes do polinómio caracterı́stico pf de f .
Nota V.2.2. Seja λ0 um valor próprio de f : Rn → Rn e seja k = dim Uλ0 . Então, (λ − λ0 )k
divide pf ; ou seja, λ0 é raiz de multiplicidade maior ou igual a k do polinómio pf .
Teorema V.2.3. Seja f : Rn → Rn um endomorfismo. Então, as seguintes afirmações são
equivalentes.
(i) f é diagonalizável.
(ii) O polinómio caracterı́stico de f factoriza em R, ou seja,
pf (λ) = ±(λ − λ1 )k1 (λ − λ2 )k2 · · · (λ − λm )km ;
e dim Uλi = ki , para cada i ∈ {1, . . . , m}.
(iii) dim Rn = dim Uλ1 + · · · + dim Uλm , onde λ1 , . . . , λm ∈ R são os valores próprios de f .
Note-se que, se dim Rn = dim Uλ1 +· · ·+dim Uλm , escolhendo, para cada i ∈ {1, . . . , m}, uma
base (v1i , . . . , vki i ) de Uλi , a matriz M (f, B, B) de f relativamente à base B = (v11 , . . . , vk11 , . . . , v1m , . . . , vkmm )
de Rn é dada pela matriz diagonal
 
λ1 0 . . . . . . . . . . . . . . . 0
 0 λ1 0 ... ... ... ... 0 
 
..
 
.
 
 
 
 0 . . . 0 λ1 0 ... ... 0 
D= ,
 
 0 . . . . . . 0 λ 2 0 . . . 0 
 .. 

 . 

 .. 

 . 

0 0 λm
onde λi aparece ki vezes.

V.3. Diagonalização de matrizes

Nesta secção vamos estudar a diagonalização de matrizes quadradas.


Definição V.3.1. Seja A uma matriz n × n. Os valores próprios e os vetores próprios de A são
os valores próprios e os vetores próprios do endomorfismo fA : Rn → Rn , x 7→ A x.
Portanto, um número real λ é valor próprio de A se e somente se det(A − λI) = 0. A
det(A − λI) também se chama polinómio caracterı́stico de A. E, um vetor x ∈ Rn diz-se um
vetor próprio de A associado ao valor próprio λ se (A − λI)x = 0 (ou seja, se Ax = λx) e o
subespaço próprio de A associado a λ, Uλ , constituı́do pelos vetores próprios de A associados a
λ, é o conjunto das soluções do sistema (A − λI)x = 0, i.e.,
Uλ = {x ∈ Rn | (A − λI)x = 0}.
Capı́tulo V. Endomorfismos diagonalizáveis 93

Exemplo V.3.2. Vamos determinar os valores próprios e os vetores próprios da matriz


 
1 −3 3
A = 0 −5 6 .
 

0 −3 4

Começamos por determinar os valores próprios de A, que são as raı́zes do polinómio



1 − λ −3 3
−5 − λ 6
det(A − λI) = 0 −5 − λ 6 = (1 − λ)

−3 4 − λ


0 −3 4 − λ
= (1 − λ)[(−5 − λ)(4 − λ) + 18] = (1 − λ)2 (−2 − λ).

Isto é, os valores próprios de A são −2 e 1. Para calcular o subespaço próprio U−2 vamos reduzir
a matriz aumentada do sistema (A − (−2)I)X = 0 a uma matriz em escada:
   
3 −3 3 1 −1 1
A − (−2)I | 0 =  0 −3 6   0 1 −2 
   

0 −3 6 0 0 0

Os vetores próprios de A associados ao valor próprios −2 são as soluções do sistema


( (
x−y+z =0 x=z

y − 2z = 0 y = 2z

Obtemos assim U−2 = {(z, 2z, z) | z ∈ R}. Da mesma forma, vamos calcular o subespaço
próprio de A associado a 1. A matriz em escada obtida a partir da matriz aumentada do
sistema (A − I)X = 0,
   
0 −3 3 0 1 −1
A − I | 0 =  0 −6 6   0 0 0 ,
   

0 −3 3 0 0 0

representa a equação y − z = 0 ⇔ y = z e portanto obtemos U1 = {(x, z, z) | x, z ∈ R}.

Uma matriz A do tipo n × n diz-se diagonalizável quando o endomorfismo fA : Rn →


Rn , x 7→ A x é diagonalizável. isto é, quando existe uma base B = (v1 , . . . , vn ) de Rn tal que
 
λ1

M (fA , B, B) =  .. 
=D
 . 
λn

onde vi é um vetor próprio de f (e, portanto, também de A) associado ao valor próprio λi . Como
A é a matriz de f na base canónica de Rn , Bc , temos que D = P −1 AP , onde P é a matriz de
mudança de base de B para Bc , i.e., as colunas de P são v1 , . . . , vn . Portanto, A é diagonalizável
se e somente se A tem n vetores próprios linearmente independentes.
94 V.3. Diagonalização de matrizes

Exemplo V.3.3. Vamos agora verificar se a matriz do Exemplo V.3.2 é diagonalizável. Como
U−2 = h(1, 2, 1)i e U1 = h(1, 0, 0), (0, 1, 1)i e (1, 2, 1), (1, 0, 0), (0, 1, 1) são linearmente indepen-
dentes, obtivemos três vetores
 próprios
 de A linearmente independentes e portanto A é diago-
1 1 0
nalizável. A matriz P =  2 0 1  é invertı́vel e é tal que
 

1 0 1
 
−2 0 0
P −1 AP =  0 1 0  .
 

0 0 1

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