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- et MERCADO Ny ADERTO Doutorada em Roman istica pela Universidade de Heidelberg & Professora de Teoria Literaria no Pos- Graduagéo em Letras da PUCRS. aval pera ae Em A literatura no Rio Grande do Sul, Regina Zilberman constréi um painel ~— breve, mas abrangente — da vida intelectual da provincia, desde as suas origens até os nossos dias. A autora soube evitar os peri- gos de uma listagem exaustiva de nomes e datas, concentrando-se nos momentos decisivos da formacao li- teréria e nas obras representativas desses momentos. Para isso, somou A sua erudicao @ ao seu conhecimen- to da linguagem especifica da arte, uma 6tica sociolégica que Ihe per- mitiu determinar com preciséo as coordenadas do universo cultural rio-grandense, Nao que tenha privi- legiado 0 documento sobre a cria- do, a temética sobre a escrita, An- “tes, jogou dialeticamente com esses elementos. E assim, relacionando texto e contexto, discutindo a fun- do dos cddigos estéticos transplan- tados, estabelecendo os vinculos en- tre o discurso literario e os interesses da classe dirigente, terminou por realizar uma “pequena grande” his- toria da literatura gaucha, A partir de agora o leitor brasileiro j4 tem em suas méos uma sintese definitiva da produgao literéria do Rio Grande. A Série Revisdéo vem oferecer ao leitor brasileiro uma nova abordagem dos grandes temas do nosso tempo. Em linguagem acess ivel, os li- vros da série sdo redigidos por especialistas que analisam e sintetizam assun tos de interes- se geral. ; Capa/Diagramagao: Marco Cena 5 Revisdo: Noelci R. Jacoby 1982 (ntroduedo. youn) aes etc arene Tl |. POESIA NO RIO GRANDE DO SUL: DAS ORI- GENS AO SIMBOLISMO........--5 0-55 1 O Partenon Literério ......... Do Parnasianismo ao Simbolismo Todos os direitos reservados a Mercado Aberto Ed. e Prop. Ltda. Rua Santos Dumont, 1186 Fone (0512) 22 8822 90000 P. Alegre, RS Il, O REGIONALISMO E SIMOES LOPESNETO. 30 O regionalismo na literatura brasileira... . - 30 O regionalismo no Rio Grande do Sul . 35 Jo&o SimGes Lopes Neto... ....1eeere 38 Ill. O MODERNISMO E A POESIA DE MARIO | QUINTIANA tienes cet clete: sletute to nenanenate 47 ' IV. A PERMANENCIA DA LINHAGEM REGIONA- i LASTAN s uceeracnee tics sovaiiiake cheer orgs 61 t} ot \ Vv. A NOVA FICCAO URBANA 74 | Zilberman, Regina Dyonélio Machado....... ane ie rao: A literatura no Rio Grande do Sul. 2. ed. Erico Verissimo. «<0. cscs se 1 + 1 ee 79 Porto Alegre, Mercado. Aberto, 1982. Hae ei (Sere eves VI. HISTORIA E POLITICA NO ROMANCE MO: CDU 869.0(816.5) DERNO. . Ce eee 89 Acolonizacéo....... 1 wate ais, 203 Eventos histéricos e reflexos politicos, .,.. 98 ; oO VII. A EXISTENCIA URBANA NA FICGAO ATUALS cos, 0 1) er As luzes da cidade . Indices alfabéticos para catélogo sistematico PIGUET ar SG Literatura rio-grandense K 869.0(816.5) VIII. APOESIA CONTEMPORANEA ........-- lib Rio Grande do Sul: Literatura 869.0(816.5) CONCLUSAQ grr). «cree trinitrate 136 QUADRO CRONOLOGICO DA LITERATURA GAUGCHAs ater) betes rerrenns Mecseeln 140 Bibliotecéria Responsavel: Rejane Raffo Klaes CRB- 10/586 Introdu¢gao A um livro que se volta a literatura no Rio Grande do Sul cabe delimitar o que entende por este tema. Pols, per tencendo ao campo maior da literatura nacional, a produ- ¢ao sulina precisa preservar sua individualidade, para asse- gurar seu tratamento singularizado, sem cair no separatismo e na promogao de valores regionalistas e setorizados. Seguindo Carlos Dante de Moraes,’ foram conside- rados como pertencentes a literatura rio-grandense os auto- res nascidos no Estado. Assim, o critério mais abrangente de- corre da biografia dos escritores e, por isso, envolve também aqueles que aqui se radicaram, como aconteceu a Carlos V. 1 CF. Moraes, Carlos Dante de. ''Condigées hist6rico-saciais da lite- ratura rio-grandense (esquema)", In: Figuras e ciclos da historia rio-grandense. Porto Alegre, Globo, 1959. p, 179. Koseritz no século passado e vem ocorrendo com Sérgio Caparelli atualmente. O ensafsta alude ainda a um terceiro aspecto, considerando inseridas no acervo literdrio aquelas obras que tém ‘“‘expressao’ rio-grandense” (p. 179), o que permite a incorporagéo das novelas de Ivan Pedro de Mar- tins e Pedro Wayne, por exemplo. E preciso acrescentar a estes um Ultimo aspecto digno de meng¢éo: é que a literatura gaticha retira sua especificidade do fato de que os autores dirigem suas obras originariamente ao ptiblico local, estabe- lecendo com ele um didlogo de onde provém seu sentido. Por isso, artistas desde cedo integrados a outros meios, co- mo Aratjo Porto Alegre, nado séo estudados, embora se re- conhega a importancia de suas criagdes para a evolugao glo- bal da cultura brasileira. Apesar de acompanhar um encadeamento temporal no tratamento das obras e enfatizar questédes relativas ao Progresso da arte sul-rio-grandense, nao se fez aqui histéria literaria, por duas raz6es: esta deveria ser exaustiva, abran- gendo o maior numero possivel de homens de Letras; e seria necessdrio uma simultaneidade entre o eixo cronoldgico dos fatos politicos e sociais e o das obras publicadas. Em vez disso, socorremo-nos da Histéria somente quando esclarecia os acontecimentos artisticos, situando, de modo breve, as relagdes entre determinadas ocorréncias literdrias e o plano politico, social e econdmico do Estado. Porém, o interesse maior centralizou-se na descricdo e interpretacdo das obras, de maneira que, a um levantamento completo e homogéneo dos textos, preferiu-se a andlise mais aprofundada de alguns, que funcionam como parametro para a compreensdo daque- les que nado receberam uma atencdo mais concentrada. As op¢Ges procedidas explicitam o método de traba- Iho: em lugar de exaurir a pesquisa de autores e livros, a tentativa de revelar o sentido destes e alcancar seu valor e importancia enquanto arte, assim como sua colabo- ragao para o seguimento da literatura sulina, Devido a isto, as obras sdo vistas sob seu prisma teméatico e estrutural, ve- rificando-se em que medida a exposicdo de uma certa reali- dade humana e social é o fundamento de uma criagdo esteti- eamente valida, Porém, como esta sempre oferece um en- quadramento a certa época e uma relacdo com um amplo Alimero de outros produtos ficcionais, foi elaborado ao final um Anexo, que estabelece os vinculos dos livros com os acontecimentos politicos e literdrios segundo uma ordem eronoldgica. Tendo sido negligenciada a informagao historica pro- priamente dita (tanto no que se refere a hist6ria fatual, co- mo literaria) em termos de catalogo de eventos, autores e obras, 0 mesmo pode ser dito a respeito da fundamenta¢ao tedrica e bibliografica com que os textos foram trabalhados. Com efeito, evitou-se voluntariamente tanto a erudicdo bi- bliografica relativamente as criagdes estudadas, como o fecurso as fontes tedricas, que justificariam os métodos empregados e a terminologia. Por isto, a Ultima é simples, lidando-se tao-somente com os vocdbulos dominados pelo leitor menos afeito ao glossdrio da Teoria Literdria. Assim se cabia facilitar a compreensdo de um destinatdrio nao ini- ciado, era preciso depor um tipo de informagdo que, embo- ra sem ser indcuo ou supérfluo, representaria antes um acres- cimo de erudig&o aos contetidos desdobrados. Por isso, a escolha por mais uma espécie de limitagdo: a referéncia bi- bliogrdfica cingiu-se t&o-somente aos autores de quem fo- ram retiradas as citagdes. Enfim, um Gltimo limite: lida-se aqui exclusivamente com prosa de ficcdo e poesia. O teatro, a cronica e a litera- tura infantil, que mereceriam igualmente uma abordagem, foram preteridos. Assim, de Qorpo-Santo e Apolinario Por- to Alegre a |vo Bender e Carlos Carvalho, passando por Er- nani Fornari e Edy Lima, criou-se uma linha de tempo da literatura dramética que foi preciso abandonar. E o mesmo pode ser dito da crdnica que, remontando aos primeiros intelectuais da Provincia, teve momentos altos neste século com Alvaro Moreyra e Jodo Bergmann, configurando uma tradigdo que se mantém viva nos escritos de Sérgio Jocky- mann, Luis Fernando Verissimo, Sérgio da Costa Franco, Ivete Brandalise, Carlos Reverbel, Anténio Carlos Ribeiro, entre outros. Ainda a literatura infantil possui idéntica im- portancla histérica, ja que foi freqiientada tanto por grande parte dos principais escritores sulinos (Erico Verissimo, Paulo Correa Lopes, Mario Quintana, Josué Guimardes), como por autores voltados principalmente ao publico in- fanto-juvenil: Sérgio Caparelli, Ana Maria Bohrer, Mery Weiss, Maria Dinorah, incluindo-se af também aqueles nao radicados em nosso meio: Walmir Ayala, Edy Lima, Lygia Bojunga Nunes. Todavia, igualmente nesta circunstancia, cabia fixar uma fronteira, e esta foi ditada pelo respeito a forma literdria propriamente dita, de modo que estas mo- dalidades de expressdo, assim como o ensaio, onde avulta- ram, por exemplo, Manoelito de Ornellas e Augusto Meyer, ou as memorias e literatura de viagens (nas quais se inscreve significativa por¢do da obra de Erico Verissimo) tiveram de ser deixadas de lado. Uma visdo da literatura sul-rio-grandense néo pode prescindir, como se vé, de uma delimitacdo dos critérios de trabalho, de um lado, e, de outro, de cortes no material disponivel. Sao estes fatos — que, de certa maneira, colo- cam o intérprete na defesa, obrigando-o a uma tomada de posicfo — que atestam no apenas a continuidade do pro- cesso literdrio no Sul, mas a altura a que se elevou. Em vista disto, as recomendagées iniciais, por si mesmas, con- vertem-se em garantia da existéncia e valor desta producdo literaria, poupando-nos a demonstracdo de sua eficdcia e comprovando o lugar de destaque que ocupa no Ambito maior da cultura nacional. |, Poesia no Rio Grande do Sul: das origens ao Simbolismo As primeiras manifestagées literarias no Rio Grande do Sul obedeceram a forma métrica. Independentemente do maior prestfgio que o verso, de modo geral, gozou até o ini- cio do século 20 em relac&o a prosa, as razGes desta prefe- yéncia devem-se também a maior facilidade de divulgacdo. Numa época em que inexistiam editoras de livros, um sone- to podia se tornar ptiblico por meio da declamacdo ou apa: recer num canto de jornal, de modo que, desde os primér- dios, os literatos privilegiaram o género que mais convinha As modalidades de comunicagao disponfveis. Por outro lado, ‘a tradicgdo poética local se alimentou também da contribui- fio popular. Ao contrario das outras regides brasileiras, a Provincia sulina cultivou a familiaridade com o cancioneiro folclérico, que se propagou enquanto se mantiveram vivos a cultura rural de onde proveio e os lacos com a produgio trovadoresca do Prata. O infcio da literatura sul-rio-grandense ligou-se a estes fatores, justificando-se a opgao pelo verso. Por sua vez, a temética relacionou-se desde 0 comeco 4 valorizagaéo do mundo gauchesco, aproveitando elementos de procedéncia popular e da ideologia da classe latifundiaria. E que estas 12 manifestagdes pioneiras aconteceram a época da Revolucae Farroupilha. A revolta de 1835 tinha um objetivo separatista, por que a classe dos proprietarios rurais aliada a utilizagdo in: dustrial do charque contrapunha seus interesses (relativo: ao estabelecimento de precos compativeis com 0 mercad interno do pais) a politica de exportacdo da burguesia ca: rioca, que controlava a administracao durante o period dos Regentes. Como o movimento expressava, em todos o: Ambitos, a Otica local, encontrou um eco no setor intelec: tual, que deu andamento 4 exploracdo do veio gauchesco] Encetou-se, desta maneira, uma tematica regional, que aca- bou por dar estatuto literario ao tipo local e suas formas di comunicagao, de maneira que, da confluéncia entre a con+ tribuigdo do cancioneiro popular e 0 uso que féz dele a classe} superior, ainda no perfodo delimitado pela Guerra dos Far+ rapos, produziu-se o nascimento das instituigées literarias n Sul. A opgao pela forma metrificada explica-se ainda por um ultimo fator, de ordem histérico-literéria. O Romantis- mo comegava a deitar raizes na literatura brasileira, e esta escola afirmou-se inicialmente por intermédio dos poetas, pois a primeira pléiade de artistas foi de versejadores — Goncalves Dias, Alvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, Junqueira Freyre. Assim, conciliando a teméatica local, esti- mulada pelo ambiente revolucionario, e a influéncia poética do Romantismo, consolida-se a literatura em versos no Rio Grande do Sul. O Partenon Literario Se sdo as manifestacdes ocorridas nos anos 30 do sé- culo 19 que assinalam o surgimento da literatura sulina, seu desenvolvimento deu-se lentamente, devendo-seseste vagar &s circunstAncias pouco civilizadas do meio; as cidades eram pequenas, e reduzidos os instrumentos de divulgagdo, so- mando-se a isto a dependéncia as diretrizes poéticas oriundas do Rio de Janeiro. A solugao encontrada pelos intelectuais foi uma espécie dealianca sob a égide de um jornal literario. jm, fundaram-se varios periddicos, tendo como finalida- s dar abrigo aos escritores; 0 primeiro deles foi O Guatba, recido em 1856, que teve vida curta, Os anos 60 assisti- fam a iniciativas mais bem sucedidas, 0 que indicou a ascen- 385 cultural da Provincia: surgiram @ Revista Arcddia, em Rie Grande, e, em Porto Alegre, a Revista Mensal e os Mur- Fiutios do Guafba, vinculada a primeira 4 Sociedade Parte- fan Literario. Esta tinha um espectro de agSo bastante amplo, pois visava ndo apenas a uma finalidade literaria, jas também filantropica e social. Por isso, suas atividades estenderam-se 4 diferentes setores, manifestando preocupa- gbes com a aboli¢do da escravatura OU a educacdo noturna ra adultos. Em vista disto, deve-se reconhecer 0 papel central que 6 Partenon, através de seus agremiados, veio a desempenhar fad apenas no ambiente porto-alegrense, mas em toda a Pro- yincia, pois contava com socios em quase todas as cidades do interior. Além disto, extrapolou a pura operacdo postica, pols deu énfase a participagdo social do literato, contrarian- do a imagem estereotipada do artista boémio e irresponsavel, sonsagrada pela mitologia romantica. Enfim, por ter manti- do viva uma publicagdo regular por mais de dez anos, seus membros deram continuidade 4 atuacdo artistica, de modo que vieram a constituir um sistema complexo de intercam- blo de idéias e produgées literarias, consolidando aqui uma eultura com caracter(sticas proprias. Por esta razao, 0 inicio efetivo da literatura no Rio Grande do Sul coincide com a atuacdo dos escritores que tomaram parte nesta agremiacdo. Se bem que tivessem pu- blicado em outros veiculos jornalisticos, como 0 Jornal do Comércio ou A Reforma, o carater agregador do movimen- to justifica por que todo o perifodo tomou seu nome. Devido a isto, o Partenon Literario designa tanto o grupo freqiien- tado principalmente por Caldre e Fido, Apolinario Porto Alegre, Bernardo Taveira Janior, Mucio Teixeira, Hilario Ribeiro, Luciana de Abreu, Lobo da Costa, como a época — os anos entre 1868 e 1880 — em que estiveram atuantes; € configura ainda a orientacio literdria que passou a ser a nor- ma dominante da arte poética em seu tempo. ——————————————— Pode-se examinar grupalmente a producdo destes escri- tores, pois sua importancia estd antes no seu papel pioneiro, que nos resultados a que chegaram, uma vez que o saldo es- tético é muito pequeno. Suas poesias sfo inferiores 4 prosa de ficgdo, se se considera os exemplos de Apolinario ou Cal- dre e Fido, qué escreveram em ambos os géneros. E mesmo Taveira Jr., ensaista e poeta, 6 digno de destaque sobretud por ter dado estatuto artistico 4 tematica regional, e na por obter um padrao poético mais elevado. As criagées literarias podem ser reunidas em duas gran: des vertentes tematicas, sendo que ambas foram decisiva para os estagios posteriores de nossa cultura: de um lado, apresenta-se a linhagem romantica, explorando os assunto: relativos 4 infancia, morte e amor desenganado; e, de outro, avulta a apropriagao dos motivos regionais, que se faz seja enquanto utilizagdo épica do modelo humano rio-grandense oriundo dos pampas, seja enquanto memoria do passado glorioso da Provincia, exaltando-se o indio como matriz do campeiro e a Revolucao Farroupilha, marco da Histéria lo- cal. A influéncia romantica é percebida no tratamento da tematica lirica, Embora carecam da emogao que caracteri- za a abordagem do assunto amoroso ou fiinebre, os versos dos diferentes poetas evidenciam o recurso a estas idéias. O escritor vé na morte a solucdo de seus problemas, Adeus!. . . Adeus! Jd outros mundos miro, Nao quero prantos. . . nem nos dar souberas, As primaveras que recebe a campa; D’alto cipreste me abandona a sombra Na triste alfombra que o siléncio estampa.’ que, via de regra, dizem respeito a indiferenca feminina: ‘Porto Alegre, Apolindrio. “Ultimo suspiro”. in: Arcddia. Rio Gran- de, 1869, Este poema, assim como os demais a seguir citados, po- dem ser encontrados também em Zilberman, Regina et alii. O Partenon Literério: poesia e prosa. Antologia. Porto Alegre, Escola Superior de Teologia, 1980, p. 70. Deste modo, ao lado da referén- cia a edi¢do original, colocaremos o numero da pagina corresponden- te no texto mencionado acima. Vés, Laura, o que fizeste? No tamulo um cadaver mais lancado!2 a vida presente é desilusdo e sofrimento, cabe a idealizagdo do passado e, sobretudo, da infancia, enquanto idade durea soterrada pelo transcurso do tempo. A tépica, que remonta a Casimiro de Abreu, teve cultores no Sul, ‘faugurando uma tendéncia que se revelaria fértil com o passar dos anos: Feliz quem ri, feliz a quadra magica Dos anos infantis de uz banhados!3 Mais importante para o desenvolvimento de nossas le- “tas 6 0 aproveitamento da sugest& local. Conforme foi “mencionado, isto jé acontecera quando das primeiras mani- festacdes posticas, transmitidas oralmente, e que precede- fam a expressdo escrita. O tratamento que os poetas dao a ela tem, todavia, maior ligagdo com as formas eruditas do flomantismo brasileiro, sob a influéncia dos ritmos de Goncalves Dias, que propriamente com a fonte popular. Por sua vez, coerente coma ascensao do regionalismo a que a Nagao assiste nesta época, os escritores aproveitam o tipo regional para tornd-lo assunto literario, procedendo a sua heroizagao: Avante, ginete, Dos campos do sul! Quem pode contigo, Que, afeito ao perigo, As sanhas do imigo Nao temes, taful?4 Juntamente com a utilizagdéo do campeiro como pre- texto poético, dé-se a introducdo de assuntos regionais na literatura; os habitos rurais, a paisagem do Sul e as pecu- 2Caldre e Fido, José Anténio do Vale. In: Revista Mensal da Socie- dade Partenon Literério. Porto Alegre, 1875, n.° 4 (p. 180), p. 59. Sporto Alegre, Apolinario, “A uma menina’’. In: Aredd/a. Rio Gran- de, 1869. p. 72. 4Porto Alegre, Apolinério. “Canto do campeiro’’. In: Arcddia. Rio Grande, 1869. p. 74. 16 liaridades lingiiisticas convertem-se em motivos que inun- | dam os textos, particularizando a poesia rio-grandense: Eis a vida que levam todo dia Os robustos e sos estancieiros: Que se tém luxo é s6 na prataria Com que arreiam os ageis sarilheiros. . 5 Enfim, é preciso assinalar uma dltima particularidade desta poesia: é seu comprometimento politico, Assim como 0 grémio do Partenon nao tinha finalidades exclusivamente literarias, a producdo poética de seus membros nao se res- tringiu 4 tematica lirica ou regional. Deste modo, eles pro- curaram manifestar seu idedrio polftico, de cunho liberal, e até republicano, como faz Apolindrio, criticando a escra- viddo e participando da campanha abolicionista. E valoriza- do igualmente o passado rio-grandense enquanto represen- tou um grito de rebeldia contra a arbitrariedade do governo monarquico, no Rio de Janeiro. Por isso, destaca-se a glori- ficacdéo da revolta farroupilha e de seus herdis, que tanto provém do meio humilde, como o escravo Gabila ou os mu- latos Tobias e Chico Diabo, nas poesias de Apolindrio Porto Alegre, como das camadas superiores, como Bento Gongal- ves: Pela mente do herdi Bento Goncalves Que turbilhdo ardente passa agora? O que faz da fortaleza sobre a rampa O filho sem rival do imenso pampa?6 A leitura destes versos evidencia dois aspectos: de um lado, a influéncia da métrica e da tematica do Romantismo nacional, j4 em declinio em sua época; e, de Outro, sua es- cassa qualidade literaria, devido ao carater retorico e rebar- bativo da poesia politica; ou ainda sua caréncia de emocdo, cam versos pesados e inauténticos, quando se trata do as: STeixeira, Mucio. Na estancia’’, In: Jornal do Comércio. Porto Alegre, 20-01-1878. p. 194. 5Porto Alegre, Apolindrio, “A evasdo". In: Revista Mensal da So- ciedade Partenon Literério. Porto Alegre, 1877, n.° 7 (p. 186). p. 94, sunto Ifrico, Porém, ndo se pode deixar de reconhecer a im- portancia do movimento, 0 que se deve, de um lado, a seu ploneirismo, lutando pela valorizacéo da atividade literdria flum ambiente tacanho e precario relativamente as condi- g6es de desenvolvimento de um trabalho intelectual; e, de outro, a instauragdo de vertentes temdticas que irdo deitar faizes na literatura sulina, sobretudo quando dizem respeito #0 aproveitamento da matéria local, de que iré se abeberar fhosso regionalismo, ao longo de sua trajetoria. De modo que, as geragdes subseqiientes, representadas por parnasia- fos e simbolistas, restou a necessidade de se posicionar pe- fante este passado, aprofundando a vertente lirica e explo- rando aqueles recantos da interioridade deixados intocados pelos romanticos locais. Do Parnasianismo ao Simbolismo Os escritores que fundaram a Sociedade Partenon Li- terario foram os responsaveis pelo desdobramento da escola romantica no meio sulino. Se mostram influéncias ritmicas © tematicas de Goncalves Dias e Alvares de Azevedo, apre- sentam ainda grande identidade de intencado com Castro Al- ves, produzindo uma poesia exacerbada de fé patridtica e programas antiescravocratas. Porém, é entre seus socios que Nasce a vertente parnasiana, tendo seus iniciadores em Aqui- les Porto Alegre e Damasceno Vieira. E caberé a Fontoura Xavier, com Opa/as, compor aquela que é considerada a obra mais expressiva do perfodo. A geragao parnasiana teve atuacgdo destacada nas ulti- fas décadas do século passado. Como, neste perfodo, jd se destacava a influéncia dos acordes simbolistas, também o Rio Grande do Sul foi atingido por seus ecos. O grupo simbolis- ta gatcho destacou-se no cenario nacional, ja que a escola eonstituiu rafzes sdlidas no Sul; e, como boa parte dos es- ritores teve atuacdéo marcante na capital federal, como Alvaro Moreyra, Felipe D’Oliveira, Marcelo Gama e Homero Prates, sua atividade repercutiu no coragdo mesmo do pais. Porém, ndo se deve apenas a quantidade de poetas simbolistas sulinos, nem ao fato de que boa parte deles viveu ter 18 no Rio de Janeiro, a importéncia do movimento nas letras gatichas, Com Oliveira, Wamosy e Guimaraens a poesia pro- duzida aqui atingiu um status artistico que motivou o reco- nhecimento nacional, fato que se deu durante os vinte pri- meiros anos do século, A inauguragao da estética simbolista no Sul é atribuida a Marcelo Gama, que publica, em 1902, Via sacra. Como seguidores dela congrega-se um nimero significativo de es- critores: Marcelo Gama, Zeferino Brasil, Alvaro Moreyra, Alceu Wamosy, Eduardo Guimaraens, Felipe D’Oliveira, Homero Prates, entre outros. Este veio se propagara ainda aos anos modernistas, influenciando a produgao poética de Theodomiro Tostes, Augusto Meyer, Reynaldo Moura e Mario Quintana. O grupo simbolista garante sua identidade no contex- to da poesia rio-grandense pelos aspectos mencionados: o alto nivel de suas obras e a permanéncia de sua estética na evolucdo da literatura sulina. Hd ainda um outro elemento que os singulariza, freqiientemente ressaltado: a auséncia de alus6es 4 realidade circundante. Com efeito, se confronta- dos tanto aos autores do Partenon, como aos prosadores coetdéneos seus (Simées Lopes, Alcides Maya), é notavel a auséncia da chamada ‘‘cor local’’ que tanto marcou o regio- nalismo e que teve suas primeiras manifestacdes na poesia romantica. Neste sentido, o simbolismo configura-se como uma reacéo compacta ao separatismo da poesia e da prosa de sua época, buscando maior universalidade tanto temati- ca, quanto imag/stica. Por outro lado, nao se pode deixar de reconhecer que o ambiente avulta colateralmente em suas produgées, j4 que a valorizacdo dos crepusculos e do clima outonal encontra ressonancia na paisagem sulina. Além dis- to, o obscurantismo do meio, do ponto de vista politico e intelectual, evidencia-se ainda no processo de tematizacdo da condi¢éo do poeta, constante em seus versos, como se vera a seguir. Tem sido salientado o carater moderno do simbolis- mo enquanto movimento estético, na medida em que o es- critor, por seu isolamento e autoflagelacdo, manifesta a con- dicdo alienada do ser humano numa _sociedade altamente desenvolvida tecnologicamente que comegava a se ressentir dos efeitos da industrializacdo. Walter Benjamin, analisando 4 poesia de Baudelaire,” o primeiro Poeta da modernidade, verifica que ao escritor cabia apenas a reac&o individual dian- te da massificacdo coletiva, A impessoalidade do publicoea ascenséo da massa urbana reagia 0 artista através de um fe- chamento na sua interioridade, reduto que the restava para agir @ no qual se reconhecia como Pessoa. Por isso, é a par- tir de Baudelaire que se constréi a lirica moderna, seguindo Sou rastro os franceses Verlaine, Mallarmé e Rimbaud e, um pouco mais tarde, ao final do século 19, um grande séquito de poetas de distintas nacionalidades: Rilke, Hoffmannstahl, Maeterlinck, D’Annunzio, Estes abriram caminho para a poesia experimental do século 20, caracterizada pelo abis- mo, as vezes intransponivel, entre a criacéo de vanguarda e 4s expectativas do pubblico, que, sufocado ainda pelas ofer- tas massificadas da industria cultural, néo consegue absor- vé-las @ muito menos decifré-las. A este cortejo pertence igualmente a poesia brasileira, sendo seu arauto o catarinense Cruz e Souza. Num Brasil que ainda estava marcado pela condicdo colonial e que proclamava a Republica para que se restaurasse © poder, abalado pela abolicdo da escravatura, dos grandes proprie- tirios rurais, ndo se Podia esperar que os poetas expressas- fem, por via indireta, um reptidio ao avancado desenvolvi- mento da civilizagdo industrial e tecnoldgica. Todavia, o frande sucesso do simbolismo neste pa/s atrasado ndo pode fer explicado tao-somente em termos de dependéncia eco- ndmica ou colonialismo cultural, O mesmo pode ser exten- sivo a poesia sul-rio-grandense, onde o movimento foi tao fértil, gerando a tarefa de se explicar tal abundancia produ- tiva. Eo que pode resultar do exame das obras de Alceu Wamosy, Felipe D’Oliveira e Eduardo Guimaraens. Na poesia de Wamosy, os elementos simbolistas apa- fecem por intermédio de seu aproveitamento das sugestées de luz. Sua temdatica traduz a ansia de sole calor, que repre- 7Cf, Benjamin, Walter. “A obra de arte na época de sua reproduti- bilidade técnica’, In: Lima, Luiz Costa. Teoria oa cultura de mas- ws, Rio de Janeiro, Saga [s. d. ]. Id. Muminaciones (1. Madrid ,Tau- fus, 1971, 20 sentam o desejo de vida e felicidade: ‘Este raio de sol, dol rado e quente /(.. .)/ vem trazer-me a sua luz alegremente, E vem povoar-me a alcova de alegria. ..“8 Esta aspiracdo 4 luz significa igualmente a vontade d elevacdo — é o ideal a que se lanca o poeta e cuja obtenca culmina na realizacdo amorosa e existencial: Na rede astral de luz dessa visao futura, — Abencoado porvir, florido de esperanca! — Ele dorme, a sorrir, de alma serena e mansa, Como dormem de noite os astros pela altura! (p. 14 E esta busca do elevado e superior que motiva a cria- ga poética. Nela habita um sonho, ao mesmo tempo, de grandeza e paz doméstica. Estes dois desejos polarizam a tematica de Wa terra virgem. De um lado, 0 poeta aspira gloria do artista que se eleva acima da multidao incauta; as: sim, em “Sol de outono”, confessa que, na companhia d calor de um sol outonal, espera finalmente vencer e subir Dos teus raios de luz doirada e merencoria, Que enchem de claridade 0 fundo do meu ser, Quando de mim se afasta a estrela da vitoria, E que me vem, 6 sol, este anseio de crer, Na piedade e no amor, no futuro e na gloria, De lutar, de subir, de amar e de vencer! (p. 27) Em “A heranga’’, retoma a oposicdo entre a baixeza da multiddo anénima e invejosa e a gloria do poeta, que, mesmo pobre e humilde, lega a coletividade seu sacrificio Pessoal, isto 6, sua “Via crucis”, expressa em outro soneto: Nao tens lume, nem pao? Morre de frio e fome! Legando, como heranca, a inveja, 4 humanidade, A cinza do teu corpoea gloria do teu nome. . . (p, 43) Por outro lado, no plano social, almeja tdo-soménte a 8Wamosy, Alceu, “Sol amigo’, Flémulas. In: Wamosy, Alceu. Poe- sias. Porto Alegre, Livraria do Globo, 1925, p. 9. Todos os poemas citados foram retirados desta edigéo, de modo que, a seguir, indica- remos apenas 0 nimero da pagina onde se encontram os versos. Pro- cedemos a atualizacdo ortografica. ambos os movimentos, revela-se a separacdo do grupo e do meio hostil; porém, cada vez mais na direcdo do segredo e do recolhimento, a que facilitava a noturnidade e o misticis- fo desenhados no livro final. Também em Felipe D’Oliveira transparece a tematica da incompatibilidade do Eu. Compondo uma auto-imagem deformada e caricata, ‘‘minha cara de caricatura’’, como es- ereve em “Desafinamentos’’,10 e uma personalidade hiper- sensivel (““O meu temperamento tumultudrio/é um descon- chavo de ais e gritos.”), ele esté sempre em desacordo com a realidade, encontrando uma conciliacdo apenas no mundo Onirico e erdtico: Foge-me, apos, do sonho, o sédico cortejo da luxtiria suprema. . . “Um punhado de terra e um punhado de cal” é igual- mente expressivo desta condicdo. Descrevendo o final do dia como um enterro, 0 poeta tem oportunidade de exer- citar seus dons de pintor impressionista, 0 que se estende até a quarta estrofe, quando se encerra o entardecer. Ins- tourada a noite, introduz-se 0 eu até entdo ausente, dando conta de sua situaco desencontrada:’’... E a noite veio e eu me perdi dentro da noite. ../Vago na sombra. .. Vago dentro do mistério. . ./Perdido.”” Configura-se assim, mais uma vez, um ser em dissondn- sia com o mundo externo, E, embora a noite seja vencida velo dia, na continuidade natural do tempo, o eu nao recu- dera a unidade perdida, nem o rumo existencial: 'Saio. . . Ponho-me a andar. Vou sem rumo, sem norte,/na alongada ®xtensdo de uma estrada comprida.” A Ultima estrofe reforca esta incompatibilidade e a falta de diregdo; e acrescenta a isto a desilusdo com a vida, o que Ihe dé a condicgdo de morto a espera tdo-somente da “'y4 de cal’’ que o devolva a terra: \Ooliveira, Felipe D’. Vida extinta. Rio de Janeiro, Edigées da So- cledade Felipe D’Oliveira, 1937. Todas as citagdes foram retiradas desta edicdéo, na qual ndo consta a numeracdo das paginas. Procede- mos a atualizagdo ortografica. 24 E ando... E ando... E passo junto a um prédio em construcao. (Eu também construf. .. Tive anelos, ideal. . .) ... E ao pé de mim, do alto do andaime, cai no chao —um punhado de terra e um punhado de cal. . . O final do poema implica que se refaca o percurso ini- cial, revelando que simboliza o fim do préprio poeta: expli- ca-se, pois, sua direcdo ao cemitério, de onde foge apenas um fantasma. Esta alienacdo do Eu, que s6 se percebe quan-~ do refletido na natureza, nao aparece apenas neste poema. | Surge também através da criagdo de personalidades alucina- das, como Ellen, ou doentias, como em ‘‘Versos ao Cais”. | Por isto, Felipe D’Oliveira irmana-se a Wamosy na medida em que também ele, nos seus poemas, expde esta incompatibilidade — os “‘desafinamentos'’ — entre o ser humano e a realidade que se torna adversa, sem que se ex- | plique para o poeta as razGes desta dificuldade existencial. Mais uma vez configura-se o Eu como o reftigio perante a sititacdo desencontrada, embora o escritor, se comparado a Wamosy, ndo tenha a mesma conviccdo relativamente a sua unidade interior. Em vista disto, também Vida extinta ex- plora a rejeic&o do espaco social, de modo que este nao comparece, a nao ser esporadicamente, em sua obra. Toda- via, € notdvel sua presenca em Lanterna verde, escrito sob © impacto da revolucdo modernista. Neste livro, revela-se sobretudo a influéncia do futurismo e da pintura cubista. Por isto, o livro é uma obra de exterioridades, o que se constata desde o titulo de uma de suas partes: “Cena- rios”. Aqui surge ainda a inspiragdo regional, como em ‘‘Recuo nostalgico’’, onde conta seu retorno a querén- cia e descreve a vida campestre. Porém, a dificuldade de Felipe em tratar esta tematica da vida moderna, como em “"Cenario de louga e cristal’ ou “Gulliver”, é reveladora: denuncia sua incompeténcia para uma literatura que ne- gligenciasse o dilema individual. Em vista disto, seu me- Ihor trabalho é ‘Ubi Troia fuit’’, onde a sugestdo da cidade arruinada sobre a qual se erigiu uma nova vida, da ensejo ao tratamento do conflito interior entre o eu e o outro, guer- ra interna e permanente que leva a uma dominag¢ao e depen- déncia. Desta maneira, embora tenha dado sua contribuicaéo ao modernismo, Felipe permanece sobretudo um criador slmbolista. E, como seus colegas, deu énfase 4 manifestacao de uma tematica marcada pela caréncia de conciliacgao exis- tencial com a circunstancia social e a vida publica, determi- nando a anulagdo destas em termos de representacao lite- taria, A divina quimera, 11 publicada em 1916, nao é o pri- meiro livro de Eduardo Guimaraens, mas 0 que 0 Consagrou nacionalmente, obtendo o reconhecimento generalizado de todos aqueles que examinam criticamente o simbolismo brasileiro. Constituido por um poema longo de assunto tni- co, esta formado por cinco partes mais um prelidio e um final; nele, o poeta desenvolve uma tematica ao mesmo tem- po amorosa e espiritualista, tio ao gosto de sua época. O preliidio tem a funcdo de uma invocagdo, propondo os temas a serem desenvolvidos. Dirige-se a uma seglunda pessoa, caracterizada na sua “‘doce e mistica pureza’’ (p. 23): 6 a Amada, de quem se percebe separado, distancia que se acentua pela condicdo dela — esta longe, goza de uma supe- rioridade em relac&o ao poeta e encontra-se dormindo, A mulher configura-se dentro do padrao simbolista: é o ente distante que o poeta nao alcanga, vindo a ser divini- zada, pois “‘nimba-te a fronte um halo, um resplendor, bri- \hando.” E adquire a ‘forma de Vitral, Musa e Melancolia’”, que o individuo admira, mas a que ndo tem acesso. O esta- do adormecido da mulher complementa a descricao da ina- cessibilidade: ‘‘dorme perpetuamente o sono teu sem ter- mo”, 0 que a converte na quimera inatingivel do titulo: “és a quimera de um espirito enfermo” (p. 24). Do outro lado esta o poeta, homem solitario que pas- pelos jardins sem atingir seu alvo; este motivo é desdo- brado ao longo da primeira parte. A imagem do jardim, de onde quer contemplar a mulher que sonha e que, portanto, lhe é indiferente, indica o pano de fundo do texto, oriundo \1Guimaraens, Eduardo. A divina quimera, Porto Alegre, Emma/ Instituto Estadual do Livro, 1978, Todas as citagSes provém desta adigéo, de modo que ser indicada tdo-somente a pagina onde se en- contram, 25 do conto de fadas: sua amada é a Bela Adormecida, cuja indiferenca decorre de seu estado. Porém, esta imagem é ainda associada ao Paraiso, que, no seu caso, 6 paradoxal, jé que, se lhe traz o amor, este ver acompanhado pelo so- frimento: é o “Eden IGgubre de dor/onde, entre as maos do anjo da vida,/ como uma espada, fulge 0 amor!’ (p. 27). Nesta medida, 0 poeta, porque separado do objeto de amor e adoracdo, considera-se o ser humano banido do convivio) divino, o individuo decafdo apés 0 pecado mortal: E de onde sou, talvez, o expulso que do seu exilio mortal levanta as maos, hirto e convulso, para a tua alma virginal. (p. 27) E nesta medida que a figura feminina corporifica o mundo ideal e perfeito, porém distante, a que se dirige o escritor, Ela transforma-se num simbolo, o que despe de carnalidade e erotismo o amor, sendo louvada sua espiritua- lizagéo. Deste modo, a personagem mulher decorre antes da possibilidade que enseja a uma passagem tematica da ques- téo amorosa a espiritual. Esta mudanca facilita ainda outro procedimento: determina que o conflito central do texto diga respeito apenas superficialmente a distancia entre duas personalidades; com efeito, importa muito mais dar conta dos problemas que vive o sujeito poético, que dé vazdo a seu mundo interior conturbado pela soliddo e na persegui- cdo de um ideal de perfeicdo imaterial. Justifica-se, assim, a ambiéncia onirica que perpassa todo o livro, no qual os cendrios noturnos e outonais traduzem a inquietacdo pes- soal do eu. A realidade que transparece em A divina quimera é toda ela, pois, a manifestacdo de um sonho enquanto um ideal superior corporificado pela mulher; por isso, ela é, antes de tudo, Musa e Madona. Em decorréncia, cabe o descarnamento de todo o contetdo eventualmente erdtico desta relacdo, o que serd alcancado, de um lado, por esta associac¢déo entre a amada e as entidades sublimes e religio- sas; e, de outro, pela conversdo de seu relacionamento num encontro fraternal. A segunda parte representa um interliidio musical em meio a confissio amorosa. Mostra o projeto estéties de autor, tanto pela associagéo aos compositores romanticos, como por sua identificacéo a Dante: Dante! — Quero-o porém, mais doloroso e terno, mais humano, a compor, torturado e feliz, sob a angistia mortal de seu secreto inferno, uma can¢ao de amor em louvor de Beatriz! (p. 47) Guimaraens desvela aqui o objetivo de sua obra e seu t/tulo; como no poema de Dante, trata-se de uma trajetoria do Inferno ao Parajso, cuja ante-sala esté representada pelos Jardins solitarios onde se localiza presentemente: por sua vez, este transito é filtrado pelo assunto amoroso, 0 que faz do autor um ente ‘mais humano’’, porque paradoxalmente “torturado e feliz’. Todavia, isto ndo significa uma abdica- ¢40 do contetido espiritualista; como se viu, diz respeito igualmente a uma ascensdo, encarnada na passagem dos jar- dins onde vagueia a um lugar superior e alto (o quarto da amada, que agora apenas contempla), o que 6 reforcado pe- lo fato de a mulher corporificar um ideal de perfeicdo e pureza. As seqiéncias seguintes insistem na situacao de sepa- facdo amorosa, embora déem conta, ao mesmo tempo, de uma paulatina aproximacdo. Na terceira parte, o poeta ouve sons que vém de dentro da casa: uma voz que “pelos jardins perpassa, dentro da noite, misteriosamente.” (p. 59-60), um piano, um violino. E, na transicdo da terceira a quarta parte, ele introduz-se nos saldes; porém, sfo dependéncias vazias, de modo que seu acercamento ao reduto da mulher nao equivale a uma amenizacéo da solidao. E no final da Gltima parte que ele se reconcilia com a mulher, encontro que se da primeiramente por um beijo trocado e que, mais tarde, faz aquecer a “alcova fria” (p. 88). O contato com ela provoca a volta ao passado, a har- monia e a satisfacdo interior. E 0 poeta, na sua alearia acaba por justificar mesmo o sofrimento que o conduziu a felicidade atual: “ser feliz, afinal, é ter sofrido assim.” (p.89) A trajetéria do poeta leva-o a recuperacdo da amante, 27 28 tefazendo o percurso do principe do conto de fadas que se desenhava ao fundo: sua Bela Adormecida é despertada por seu beijo (“Beijei-a longamente, docemente .. ."’ p. 73), mas, paradoxalmente, no momento derradeiro da reconci- liagdo, é ele o doente, homem atormentado por "uma febre estranha e lenta’’, curada pela presenca da mulher a seu lado. O poeta inverte, no final, sua situaco em relacdo a mulher: ele se transforma no ‘‘pobre pequeno enfermo” (p. 88), flagelado e doentio, salvo pela acéo maternal de sua querida, ente protetor, que fornece calor e vida a seu mun- do sombrio. E © que provoca a conclusdo, assinalada pela conquista da felicidade e traduzida pelo casamento, a ‘‘gran- de flor nupcial”’ (p. 93). O alvo final da trajetoria é o encon- tro da paz doméstica, antecipada nos versos anteriores pela valorizacdo do calor do lar e da atuacdo maternal da figura feminina. Como em Alceu Wamosy, a aspiragdo a uma asce- se espiritual coincide com a aquisigdo de um lar, no qual o individuo se reconcilia consigo mesmo e convive num am- biente construfdo exclusivamente por seu desejo, impene- travel as investidas da sociedade. Nesta medida, os sintomas detectados na poesia de Wamosy e Felipe retornam: ha uma incompatibilidade ra- dical com o espaco circundante, que pode ser expresso, como em A divina quimera e Na terra virgem, pelo desejo amoroso nao correspondido. Por sua vez, a realizacdo deste num dado momento néo implica a dissolucdo do conflito, pois a Mulher, sendo a corporificacéo de um Ideal, nado po- de participar da sociedade mundana. Por isto, o 4ambito de atuacdo dela é restrito: colabora apenas no processo de ele- vacdo espiritual do companheiro. Reaparece assim o hori- zonte social dos escritores, configurado na decifracao deste limite: pois a elevagéo coincide com a expressdo e valoriza- ¢ao de uma vida doméstica, assinalada pela tranquilidade burguesa e a submissdo feminina. E ao ambicionar 6 aban- dono da realidade que os artistas acabam por regressar a ela, evidenciando que seu anseios mais altos correspondem as expectativas da existéncia mediocre da pequena Porto Ale- gre de entdo. A transfiguracdo do cenario e a ampliagdo dos sonhos ndo impedem que se reconhega que, no fundo, estan os mesmos valores familiares e caseiros, E, 86 6 pane to de partida desta aspiracdo foi uma incompatibilidade fom a vida local por sua estreiteza de idéias, em nenhum fiomento o simbolismo gaticho viu-se capaz de gerar outras, tratando apenas de dar-lhes uma grandeza porque partiam da amplidao de sua alma. Foi, portanto, 0 mundo interior que sofreu esta am» plificagdo. Hipervalorizando o Ego e usando-o como espe: lion de um ideal soberbo, os poetas esperavam compensar 0 pequeno lugar em que viviam e suplantar suas deficiéncias. Nio fizeram mais do que voltar a ele docilmente, reconhe- fendo, por vias paralelas, a superioridade de seus valores. Porém, neste intervalo entre a aspiragdo exacerbada e a acei- tacio davida doméstica, conseguiram manifestar a dor maior do homem contemporaneo: a insatisfagdo produzida por uma realidade mediocre, no caso gaticho, ndo por ter exage- fado as vantagens e os servicos da civilizacdo moderna e in- dustrial, mas por n&o ter chegado a eles. Por esta razdo, 0 simbolismo local merece o lugar que detém no setor maior da literatura brasileira e coincide, ainda que por percorrer saminhos singulares, com o sentido mais amplo do movi- fiento que deflagra o modernismo no Ocidente. 29 Il. O regionalismo e Simdes Lopes Neto O regionalismo na literatura brasileira As primeiras manifestagdes regionalistas na prosa de ficgdo nacional remontam ao perfodo roméntico, Estado re- lacionadas ao inicio do romance brasileiro e associam-se a concepe¢ao nativista, que orientou a escola literaria no pats, O romantismo brasileiro é considerado a resposta, no plano artistico, a uma aspiragdo generalizada que congregou 0s intelectuais na época em toda a nacao: o desejo de expres- sar uma tematica local, sem influéncias externas, através de recursos estéticos auténomos. Desejava alcancar uma inde- pendéncia literaria, como contrapartida a liberdade politica. Este processo inicia-se na década de 30 do século 19, mas, Paradoxalmente, nao ocorre no Brasil: os primeiros manifes- tos so proclamados em Paris, reunindo seus autores nos editoriais da Revista Niterdi. Por isto, sua realizacado efetiva da-se mais tarde, através da poesia de Goncalves Dias e do romance de José de Alencar, ambos de cunho indianista. Se se mede a distancia temporal entre a concretizacdo da autonomia politica, que se estende de 1822, ano da pro- clamagao de Pedro I, a 1831, quando se da sua rentncia, ea producgdo romanesca e poética, respectivamente de José de Alencar (1855-1875) e Goncalves Dias (1846-1857), perce: bese que o intuito do indianismo nao era unicamente a constituicdo literéria de um protétipo equivalente a inde pendéncia. Pode ser compreendido também como o desejo de formulagdo de uma mitologia local, que fornecesse a re. eente nacionalidade uma imagem épica de si mesma, vincu- lada a um passado n&o contaminado pela influéncia euro- péia. O indianismo foi, neste sentido, a resposta a uma soli- eitagdo de volta as origens, o que é a matriz de todo 0 mito; ® como tal, idealizou suas personagens, dando-lhes uma en- yergadura herdica, com um alto padrao moral, disponibili- dade a aco desinteressada e coragem imorredoura. Por tais razées, ndo poderia corresponder a uma certa fealidade social. Se deixava transparecer uma vontade cole- tiva de encontrar na literatura um espelho que embelezasse 0 passado e atribu/sse aos tempos coloniais (ou mesmo as #pocas anteriores) uma harmonia entre conquistador e con- quistado, teria de deformar positivamente todos os angulos lo problema. Assim, ndo se pode falar de uma frustracao do projeto, j4 que foi bem sucedido naquilo a que almejava. Forneceu a nova nagdo uma epopéia com verossimilhanca historica (dav Alencar ter aproximado seus romances histo- flcos e indianistas); @ povoou-a com figuras espléndidas, que deveriam necessariamente ser os antepassados dos Iideres lo momento. Seu produto final era um crédito no presente, pois fundava-se na légica de que, se a raiz fora boae forte, Inevitavelmente seus frutos — os homens que naquele ins: fante comandavam a politica do pafs — tinham também Valor. O esgotamento do indianismo decretou sua sucessao ‘pelo regionalismo. Afranio Coutinho alude a esta descen- déncia, usando como exemplo o sertanismo;! e Lucia Miguel- Pereira menciona uma inversdo na sua origem e seqiéncia, fonsiderando que caberia ao regionalismo ser superado por uma literatura de tendéncia mais universalista.2 Todavia, é \Ci, Coutinho, Afranio, A ffteratura no Brasil. Rio de Janeiro, fditorial Sul-Americana, 1969, v, 3. . Prasa de ficcdo: 1870-1920. Rio de Janei- 2Cf, Miguel-Pereira, Luc f0, José Olympio; Brasilia, INL, 1973. p, 181. 31 32 preciso lembrar que a literatura brasileira esta impregnadi desta inclinacdo ao regional, de modo que, ao contrario di indianismo, que teve vida breve, ele permanceu atuante ai longo da histéria da ficgdo. Caberia perguntar pelas razdes desta longevidade; tambem pela legitimidade da denominacao empregada. A tes, porém, € necessdrio que se verifique as raz6es e os tr ¢os caracteristicos do regionalismo. Lucia Miguel-Perei assim o define: Para estudar, pois, o regionalismo, é mister delimita Ihe o alcance; s6 Ihe pertencem de pleno direito obras cujo fim primordial for a fixagao de tipos, costu mes e linguagens locais, cujo contetido perderia a si nificagdo sem esses elementos exteriores, e que se pa sem em ambientes onde os hdbitos e estilos de vida s diferenciem dos que imprimea civilizagdo niveladora. A Autora enfatiza os aspectos singulares do regionalis: mo: o primeiro deles diz respeito 4 presenca da “cor local”, J4 que o género se define antes pela insisténcia naquilo qui especifica um certo espaco geografico diante de uma preten sa generalidade nacional. Decorrem daf as demais peculiari dades: 0 tipo humano escolhido, a linguagem empregada 08 costumes apresentados destacam-se igualmente por se di ferenciarem em contraposicao a um certo modelo conven clonado como mais global. O segundo elemento notavel é de natureza ideoldgica! assinala a supremacia do meio sobre o individuo, na medid: em que este é concebido como um produto do espaco ond f@ situa, Este fato se explica na medida em que, num certo Povo aglutinado em torno a uma norma de extensdo nacio: Hal, somente ao cendrio é permitida a individualizagao. Des- 16 modo, se no coracao da totalidade brasileira cabia desta- far um Gerto tipo humano, era Porque o local onde vivia finha aeabado por se imprimir nele, determinando seus ha- bitos @ modo de ser. Por que era preciso proceder a esta singularizacdo? O Ssaetamente dos motivos indianistas Poderia ser a causa; SMiguel-Pereira, Lucia, op Pp. 179. porém, a que se deveu esta saturagio? Sem duyida, 4 uma Mudificagdo no processo politico; ou melhor, 4 yalta de Hina problematica separatista que assolou o pais dufante flo o século 19, com repercussdes ainda na Repibliea Velha. O indianismo, conforme foi dito, propunha uma ima gen idealizada do homem brasileiro; desta maneira, ele to- Hiava como pressuposto a existéncia de uma nogdo centra- lizacla de brasilidade e atribuva-Ihe uma origem — 0 {ndio © \ima evolucdo — a fusdo racial harmonica, que propiciou & eonquista do territorio. Todavia, é preciso assinalar que esta imagem emanava sobretudo da Corte, onde atuavam os 08 Filores, que mantinha sua soberania politica enquanto con: folava, com mao de ferro (e o pulso forte do Duque de xias), as rebeliGes regionals que dilaceraram o pais durante © perfodo da Regéncia e se estenderam até a década em que erlodiu a guerra com o Paraguai. Nos anos 70, cessado 0 fonflito internacional, renova-se a problematica separatista; £ 0 regionalismo torna-se o projeto literério dominante no pais. HA o manifesto dos escritores do Norte e, no Sul, os intelectuais rio-grandenses agregam-se em torno a uma agre- fMmiacdo litero-social: a Sociedade Partenon Literdrio. De Modo que o separatismo politico sempre existiu, tendo seu tiiunfo apenas nos primeiros anos da Repiiblica, quando Bila se fez federativa. Sua contrapartida no 4mbito literdrio foi o regionalismo, o que justifica seu aparecimento simulta- ‘fio em varios pontos da nacao e, ao mesmo tempo, legitima 4a permanéncia no transcorrer da literatura brasileira. Esta associacdo entre o regionalismo e o federalismo, fue atendia aos interesses dos grupos politicos ligados aos Grandes proprietarios rurais, explica ainda seu particularis- mo, que Lucia Miguel-Pereira denuncia como deficiéncia te- matica. Por outro lado, se a conclusao explicita a atualidade flo movimento em seu tempo, sua permanéncia deve-se afn- daa fatores literarios que demandam uma averiguacdo. A critica feita ao indianismo atacava sua {ndole idea- lista. Considerado pouco representativo da nacionalidade, o {ndio veio a ser rejeitado, tido como indigno de figurar no texto literdrio. Este banimento significou o reptidio a incli- 34 nagdo centralizadora da Corte, porta-voz da monarquia es- O regionalismo no Rio Grande do Sul tabelecida no Rio de Janeiro e associada aos interesses i portadores e exportadores das poténcias colonialistas, coma a Inglaterra. Mas a alegacao para este exilio foi exclusiva mente literdria, invocando-se a pouca representatividadé do herdi escolhido no cenario e historia nacionais. Cabia substitu/-lo por um simbolo mais adequado, vaga que veid a ser ocupada pelo tipo regional: o sertanejo, o cangaceiro, © gaticho, que aparecem nas obras de Taunay, Bernardo a Guimaraes, Tavora e Alencar, entre outros, Por isso, as conseqtiéncias imediatas do regionalisma foram a obtencao de um maior acercamento a realidade (cos mo em Luzia Homem, de Domingos Olimpio) ea valorizacaa do cenario local, como em Pelo sertéo, de Afonso Arinos, ou Tapera, de Alcides Maya. Por sua vez, este fato tem u Outro efeito que da ao regionalismo uma importancia qué ultrapassa as circunstancias que regeram seu nascimento. que proveio dai um maior interesse pelas questées da te ra € seus ocupantes; e a glorificacdo do herdi, propria ao: Primeiros anos do movimento, ainda sob a influéncia das idéias romanticas, cedeu lugar as reflexées em torno a sua miséria econdmica e alijamento do poder, como el Os sertées, de Euclides da Cunha. As aventuras cavaleires cas de gatichos e sertanejos foram sucedidas, em decorrén cia ainda do influxo do pensamento determinista do natu ralismo, pela denGncia dos problemas climdticos (a seca) da decadéncia da propriedade rural e, enfim, dos males so: ciais. Se esta mudanca decorre igualmente de transforma: cdes na organizacdo da sociedade brasileira, devido ao inf cio do processo de industrializacdo e aos deslocamentos no ambito polftico, é preciso ter em vista que foi o regionalis- mo que traduziu artisticamente estes acontecimentos. este fato que assegura sua importancia no desdobramento da historia literdria nacional e sua continuidade, assim como a vigéncia do conceito e a unidade que ele mantém com as modificagGes ocorridas na vida brasileira. As primeiras manifestagdes de cunho regionalista no Estado provém do cancioneiro popular. E as producées lite- + ias pioneiras remontam a época da Revolucdo Farroupi- jhe, quando se editaram também os primeiros jornais. Por =a vez, o posto de iniciadores da literatura sulina pertence 80s membros do Partenon Literdrio, pois foram eles que ati- ism o meio intelectual, discutindo idéias e atuando em istintos campos literdrios. E foram os temas sobre os quais efeveram que determinaram as principais linhas da produ- 8 poética local, conforme se viu no capitulo anterior. Quanto 4a inclinagdo localista, esta j4 ocorre em O drio, sendo que Guilhermino Cesar concede ao folhetim Caldre e Fido a posicao de iniciador do regionalismo bra- eir0.4 Com efeito, a concepcdo regionalista esta presente io na obra deste decano do Partenon Literdrio, como nas Sayelas e contos dos demais sécios. E 0 caso da narrativa de Spolinario Porto Alegre, O vaqueano, que tem como herdi + personagem titulo, representando o homem livre dos pam- ole dé seguimento, assim, ao veio gauchesco deflagrado, Rio de Janeiro, por José de Alencar, cuja fertilidade no io sulino pode ser comprovada pela relagdo de obras pu- plieadas no periodo (v. Anexo, ao final deste volume)..O jonalismo abrange, pois, um per/odo que se estende do jo da década de 70 aos primeiros anos do modernismo. @m, ndo desapareceu ai: ressurge com forcas renovadas anos 30, quando Aureliano de Figueiredo Pinto, Cyro aftins, |van Pedro de Martins se apropriam desta tematica, fentro de uma 6tica social, segundo os cénones do romance 8 época. E sua sobrevivéncia por tanto tempo que assegura VYalidade de sua problematica, vinculada a realidade sulina 405 esforcgos desta para se converter em motivo literdrio. O regionalismo, de modo geral, pode ser caracterizado "9 dois fatores, conforme evidenciava a formulacao de Lu- + Miguel-Pereira: o tipo humano escolhido e o meio espa- i, No Rio Grande do Sul, soma-se ainda o tratamento de =} Cesar, Guilhermino. Introdugdo, In: Fido, José Antonio do le Galdre e. O corsdrio. Porto Alegre, Movimento/IEL, 1979. 35 36 um terceiro aspecto: o emprego de um determinado tem| historico, sa e€ encantadora loquacidade servida e floreada pelo vivo e pitoresco dialeto gauchesco.6 E esta identificago com o modelo original que o au- toriza a narrar as histérias ocorridas no pampa. Assim, o pri- meiro elemento da trfade regionalista (0 homem, o espago ® 0 tempo) aparece aqui representado. Porém, para legiti- mar a validade das qualidades atribufdas ao narrador, é ele ainda o protagonista do primeiro conto, ‘’Trezentas onc¢as’’. Apresentando a historiaem primeira pessoa, Blau con- ta como, na época em que tropeava, perdeu uma guaiaca fom trezentas on¢as de ouro. Desesperado e pensando que 0 fazendeiro ia toma-lo por um ladrao, cogita em matar-se. Mas nao o faz, decidindo enfrentar a eventual punicao. Chegando 4 casa do patrao, descobre que uma comitiva ti- nha encontrado a guaiaca e trazido o dinheiro a seu proprie- c homem da Campanha. O Privilégio atribuido aumc tipo esta de antemao associado 4 valorizacéo de um es| a ° Pampa. Com isto, assumem importancia capital al um conjunto de valores e uma estrutura social, Angee gee jogo é a primitiva sociedade rural seine a I. se em dois segmentos, Constituido | i pelos fazendeiros (proprietarios de gi sdes de terra) eo segundo, pelos pedes, despojados da Beer ae sempre livres, pois, além do eabaihead a 0 Branco, existia o escravo negro, i setores da vida social nao ha ret Pesce ck Nao porque compartilham 8 posses materiais — a estan- cia, 9 gado — Mas porque todos devem demonstrar as mes- aie avitudes humanas. No texto regionalista, portanto hd divisdo social, mas ndo desigualdade, nem conflito. Estall cleiro e vaqueano, pretos e brancos, estao juntos Hs lides ca , ivi pipes es @ na guerra; e a atividade comum justifica o mi- to da ‘‘demoeracia rural”, tario. O conto complementa a imagem de Blau e configura as principais caracteristicas do homem do campo. Destaca- £8, num primeiro momento, sua condic4o social: era pobre fla época em que transcorreu a historia e continua assim; e trabalhava para um estancieiro, a quem respeitava pela ho- festidade e temia. Acima desta divisdo social, avulta a soli- dariedade humana: dos tropeiros, como ele, que acham a guaiaca e entregam-na a seu dono; a do estancieiro, dispos- {oO a perdoar Blau; e este Ultimo, que prefere enfrentar o fastigo a deixar abandonados os seus. Mais importante é “outra virtude evidenciada pela narrativa: a honestidade, tan- to de Blau, como dos companheiros, que entregam a riqueza encontrada solitaria no caminho. O amor a vida e a natureza é o ideal mais forte do _ texto. No momento de desespero, Blau esta disposto a ma- fase, para atestar sua honestidade. E quando olha em volta & percebe o movimento dos animais, que Ihe ensinam a im- portancia de uma existéncia que demandava sua participa- Gho: ra S&o os valores vividos Comunitariamente que susten- a a unidade entre os homens, destacando-se a coragem, 'sponibilidade para a luta e © desejo de liberdade Esta 4 “ 7 ee @ manutencado da autonomia politica, ‘or x. “ s . i esta fa2kO! 9 gaucho é um individuo inserido numa ordem social, que defende ao inc e lutar por elas até a morte, Mas, ao mesmo tempo, integra: sea i fi ae ne ordem natural, na medida em que tem ‘afinidades €spaco — 0 pampa, a Ca r k mpanha — e que sdo i mais, sobretudo o cav; i ae 7 ‘alo, seus maiores c i : : ‘ompanheiros. A ae entre os homens de classes diferentes e a con Nuldade entre o individu ari ‘ 10 € 0 cenario fisic i t ‘0 asseguram a dole globalizante do mundo regional. A sua auto-suficién- Slopes Neto, Jodo Simées. Contos gauchescos e Lendas do Sul. Porto Alegre, Globo, 1949. p. 124. Todas as citagées sao retiradas Hosta edicdo; indicaremos apenas sua pagina. 39 40 — Patricio! ndo me avexo duma heresia; mas era Deus que estava no luzimento daquelas estrelas, era ele que mandava aqueles-bichos brutos arredarem de mim a ma tencao. i O cachorrinho tao fiel, lembrou-me a amizade de mi-— nha gente; o meu cavalo lembrou-me a liberdade, o trabalho, e aquele grilo cantador trouxe a esperanca, .. (p. 129) E significativo o lugar que ocupam os animais neste momento, pois sdo eles que introduzem a memoria da fami- lia e dos valores da existéncia — a liberdade, o trabalho e a esperanca. Além disto, s4o seus companheiros de viagem, e © vaqueano estabelece com eles uma espécie de comunica- 0) particular, Nesta medida, a natureza tem sua linguagem propria, com sinais que 0 campeiro interpreta, permitindo- Ihe situar-se neste mundo. Esta afinidade entre o homem e © 0 meio circundante é caracter{stica do tratamento do espaco | num texto regional. Porém, a singularidade da narrativa de Sim6es Lopes é que nao apenas o cenario e seus habitantes — arvores, animais, pedras — “falam’’ ao protagonista, como podem representar imageticamente a tematica do conto. Por isso, se Blau apresenta os lugares por onde Passou a procura de sua guaiaca, a descrigao nunca visa a identificagdo do pi- toresco na paisagem sulina, mas a denunciar a solidao e o abandono do herdi, quando de sua busca alucinada do ob- jeto perdido. Por isso, em vez de ser objeto de uma descricdo a dis- tancia por um narrador estranho ao ambiente, a paisagem é uma extensdo da personalidade do herdi ou do sentimento da historia, como ocorre em “Trezentas Ongas”. Além disto, garantindo este transito entre o meio e o ser humano, Si- modes Lopes nao admite uma superioridade do primeiro so- bre o segundo, evitando um Posicionamento de cunho de- terminista, 0 que consiste em matéria de critica para Lucia Miguel-Pereira, quando examina globalmente a preduc3o regionalista, Enfim, a natureza adquire uma dimensdo mi- tica, revelando a Presenca de uma mentalidade Pprimitiva, Coerente com a circunstancia de onde provém o heroi das narrativas, Em “Trezentas Oncas’’, este aspecto transparece por intermédio da revelacéo vivenciada por Blau Nunes. Em Hutros Contos, os elementos da natureza tém carater premo- nitdrio, anunciando males por vir: Pois é ali o manantial, que virou sepultura naquele dia brabo em que desde manha tanto agouro apareceu, de desgraca: os pica-paus chorando. .. os cachorros ca- voucando,.. e a bruxa preta entrada sem ninguém ver... (p. 151) Também os animais alcancam esta comunicacao espe- ial com o individuo, conforme foi verificado; e os objetos adquirem um forga magica, o que explica o temor que inspi- fam, a supersticdo e o fetichismo. E o que acontece em “Os fabelos da china’, com um bugalete feito com os cabelos de uma moga, ouem “‘O ‘Menininho’ do Presépio””, em quea heroina é salva no Ultimo instante pela intervencdo do Me- nino Jesus reproduzido no Presépio de Natal. Esta mitificagdo do espaco e dos objetos que fazem parte dele explica a universalidade atribufda ao lugar da ac4o; por isto, esta se ‘‘desgeografiza”, e os Contos gauches- eos nao se convertem num panegfrico ao Rio Grande do Sul. Mas, por esta mesma razdo, eles promovem a superioridade do homem rio-grandense. Foi ressaltado 0 aspecto de heroificagdo do narrador, 4 partir de sua tipicidade e do desdobramento de suas virtu- des em “Trezentas Oneas’’. As demais historias apresentam Outros protagonistas, passando Blau a um lugar secundario, @nquanto testemunha dos eventos ou mero colaborador da acdo. Desfila, assim, um galeria de seres que apresentam ca- facteristicas semelhantes as do narrador ou que pertencem 40 mesmo eixo. Independentemente de sua classe social ou, sobretudo, de seu posto na hierarquia militar, todos os agen- tes das narrativas sfo acima de tudo homens corajosos, des- conhecendo limites legais (podendo até ser um fora-da-lei, como Jango Jorge), morais, como o negro Bonifacio, ou socials, como na maioria dos contos, Como conseqiiéncia, avulta uma sociedade marcada pela violéncia, Esta provém dos crimes vinculados 4 manu- 41 42 tengdo da honra pessoal ou da permanéncia de um estado de guerra, que conserva as personagens em conflito armado. A violéncia nao é, pois, um atributo da sociedade civil, mas relaciona-se a constante circunstdncia militar vivenciada pela Provincia. Este fato integra-se 4 personalidade do rio- grandense e, se 0 faz um homem violento, garante seu espi- rito guerreiro, a disponibilidade para a luta ea propalada coragem. Decorréncia disto é igualmente a lealdade entre os homens, independentemente de sua posicdo social; e ainda a fraternidade entre superiores e subalternos, propria ao acampamento militar e que se transfere a vida pacifica. Daj a garantia da democracia rural, que deveria ser o regi- me na estancia, assegurando a continuidade de uma ideolo- gia que remonta as origens do regionalismo. Esta equivaléncia moral entre individuos de classes diferentes sobrepée-se a divisdo social. Portanto, 0 pedo pobre é feito superior, ndo porque ascende na escala social, mas porque tem virtudes que o elevam até mesmo acima de certos estancieiros. Se este fato avaliza a superioridade do gaticho e justifica por que 6 0 campeiro o tipo escolhido para ser promovido pelo regionalismo, ele repercute sobre a sociedade como um todo. Deste modo, 6 a harmonia social adquirida que vem a ser também louvada e, por extensdo, a classe proprietaria que, mesmo detendo o poder, concede esta igualdade ideoldgica a seus servicais. Por este motivo, ndo ha uma razdo para o subalterno se revoltar. Com efeito, Blau esta sempre satisfeito com seus herdis e a situacao descrita. Mas os contos se caracterizam por um clima tragico, produto da violéncia que cerca a SO» ciedade sulina. Assim, se ha a concérdia social, ou seja, se verticalmente nao ha conflitos e a hierarquia é obedecida com rigidez, no plano horizontal perdura a inseguranca, miséria e a desgraca. Quase todas as historias terminam e1 morte, decorrente de um erro estratégico ou de um crime contra a honra, que demanda vinganca e mais violéncia. Desta maneira, percebe-se uma grande falta de estabilidade no meio social, proveniente da auséncia de uma autoridade legal institufda. Com efeito, ndo existe a classe politica nos Contos gauchescos. Cada estancia 6 um mundo a parte, regido pela yontade soberana de seu proprietario: Foi 0 tempo do manda-quem-pode!. . . E foi o tempo que o gaticho, o seu cavalo e o seu facdo, sozinhos, conquistaram e defenderam estes pagos!. .. (p. 205) 6u entdo a acao se passa num acampamento militar, onde habitam apenas soldados e comandantes. Também 0 espaco 4 aberto e ilimitado, Estes campos eram meio sem dono, era uma pampa aberta, sem estrada nem divisa; apenas os trilhos do gado cruzando-se entre aguadas e queréncias. (p. 139) tornando-se impraticavel a aplicagao de uma lei que regula- mentasse 0 funcionamento do grupo, o que comprova, de um lado, a primitividade do meio e, de outro, a importancia da defesa individual, necessitando-se para tanto a posse de todos os atributos guerreiros vinculados a4 coragem e valen- fia. Todavia, este mundo pertence ao passado. Foi assina- lado como os Contos gauchescos reproduzem os aspectos yeferentes ao homem e ao espago, conforme é préprio ao fegionalismo. Também o tratamento da questéo temporal 4 caracteristico e cabe ser verificado. Ao apresentar seu herdi-contador, o narrador andni- mo comenta a diferenga entre 0 “Blau-moco, militar e o Blau-velho, paisano”’ (p. 124), sendo este Ultimo o responsa- vel pela transmissao dos relatos. Todas as historias apresenta- das transcorreram na sua juventude, no passado, época que recebe dele um respeito todo especial, contrapondo-se a degeneragdo do presente: “Ah! se vancé visse a indiada da- quele tempo. . . cada gadelhudo. . . Ah! Bom!. ..’” (p. 219) f a Revolucdo Farroupilha que sintetiza tanto os ‘‘bons jempos’’, como 0 momento maior da vida aventuresca e querreira: ‘’Vancé desculpe... estou velho, mas inté hoje, quando falo na Republica dos Farrapos, tiro o meu cha- poul...'” (p. 218. Grifo do A.) Mais uma vez reaparece a valorizacdo da grande mo- 43 44 mento da histéria sulina, como sintese de seus valores e ideais: 6 quando os homens mostram sua valentia e lealdade, avulta a igualdade entre chefes e soldados e, principalmente, recusa-se a autoridade politica centralizadora, do Rio de Ja- neiro. Este preconceito em relacao a Corte transparece aind: em ‘'Chasque do Imperador’’, quando Pedro II visita o Ri Grande e depara-se com costumes barbaros, mas esponta: neos, Blau descreve o chefe do Estado de modo pejorativo, vendo “‘assim a modo um gringo” (p. 169), com “‘uma vos zinha fininha” (p. 169), concluindo até que ‘‘esse era mei maricas, era!’’ (p. 173) E no conto "0 boi velho” que aparecem o tempo pre: ssente e a classe politica — e por seu lado negativo. Narran: do como “uns Silvas mui pol/ticos, sempre metidos em elei cGes e enredos de qualificacdes de votantes” (p. 159), deci: dem sacrificar um boi, que fora seu meio de transporte ni infancia, porque o animal estava velho e sO valia pelo couro, Blau aponta como pode se dar a violagdo dos ideais gauches- cos. O sacriffcio do animal representa esta ruptura, na me- dida em que corta os lagos sagrados que unem 0 individuo ao meio natural, caracteristico do pensamento magico do homem do campo. E fazé-lo por dinheiro significa interpor lar nesta relaggo um valor materialista que deveria inexistir, para que nao se perdesse a harmonia tanto social, quanto ff- sica, com o espaco geografico. Enfim, este rompimento procedido por pessoas que nado apenas pertencem 4 classi dominante, mas que estao vinculadas a poltica e, portant a autoridade que se estabelece por intermédio de maquina ¢des e jogos partiddrios, evidenciando o reptidio de Blau estas instituicdes e atitudes. "O boi velho” introduz elementos até entdo soneg dos nos contos: a autoridade (e os meios através dos qual assume o poder, independentes da aVentura guerreira) e influéncia econémica. E sua intervencéo anula a harmonii propria 4 sociedade gaticha, cuja forca era tanta, que podi absorver — e mesmo louvar — a violéncia que a tornava bar bara e indisciplinada. Portanto, 0 desequilibrio, capaz mes: mo de gerar histdrias com final sanguindrio ou patético, como “O negro Bonifacio” ou ‘Penar de velhos’’, no impe dia a integragao do grupo social, justificando-se o carater idealizado de suas relagdes, O auténtico desequilibrio pro» vém da introdugdo dos elementos disciplinadores, como a presenca do politico interesseiro e materialista que procede A ruptura maior, intolerdvel ao pensamento mitico do gai cho: como meio natural, anulando um relacionamento amis- toso com o animal, que nao é um mero objeto de consumo, como querem os Silvas, mas o grande companheiro de todas as jornadas, Por isso, o tempo presente nao é paradis/aco. Apre- senta progressos, mas perdeu sua atracéo, porque nio esti- mula a aventura, nem as guerras sfo movidas por ideais gran- diosos ou tipos magnificos, como Bento Gongalves. Como acontece também em Alcides Maya, é 0 presente o momen- to da degradacdo e do desconsolo. E Simées Lopes vai em busca de suas raz6es, atribuindo ao exercicio da autoridade por um partido politico esta dilaceragao da tradi¢ao sulina, sobretudo por seu afastamento, de um lado, do passado e, de outro, de sua alianca com o meio circundante, incluindo- se af 0 campeiro e o espago fisico. Simées Lopes, com os Contos gauchescos, retoma os elementos do regionalismo e transforma-os num instrumen- to de reflexdo sobre a realidade gaticha. Da dimensdo artis- tica ao tipo regional enquanto um modelo propiciado pelo solo rio-grandense e solidario a ele; mas revela que este mun- do esta terminado por razées verificdveis na historia contem- poranea do Estado. Sua nostalgia converte o passado num mito, porque perfeito, unitdrio e globalizante; mas sua cons- eléncia do presente dimensiona sua critica e faz com que percorra o caminho inverso, dessacralizandc o mito institu/- do e alertando a respeito do tipo de dominacado exercida em $a Gpoca, A promocao do passado levou-o ainda 4 pesquisa das Lendas do Sul, mostrando a fundacdo das instituigdes e dos valores democraticos e baseados na coragem pessoal no Rio Grande do Sul; e a critica ao presente originou a criagdo de Romualdo, exemplo do gaticho despojado do poder, que Sonta apenas com sua verve narrativa para assegurar a aten: 45 46 cao e o interesse do grupo social. Extensdo e contrapartida de Blau, porque conta histérias inacreditaveis, Romualdo é também o desdobramento do processo de desmitificacéo que o contador dos Contos gauchescos ja deixava implicito na sua dentncia do presente e que impedia a configuracao’ de uma epopéia local. Revela-se assim a unidade da obra e do projeto de SimGes Lopes, elevando o regionalismo a uma dimensao artistica, enquanto criacdo literaria e meio de conhecimento e reflexao sobre a realidade circundante. Il. O modernismo e a poesia de Mario Quintana O modernismo, movimento que correspondeu aos anseios de uma equipara¢ao da literatura nacional aos avan- gos das vanguardas estrangeiras, irradiou-se de Sao Paulo para as demais regides do pafs. Foi a geracao liderada pelos paulistanos Mario e Oswald de Andrade, Menotti del Picchia e Cassiano Ricardo, que exigiu a atualizacdo da consciéncia artfstica da nac&o, o que somente poderia se dar pela adesdo aos preceitos estéticos em vigor na Europa. Do futurismo proveio sua principal bandeira, porque significava tanto a superacdo do simbolismo, como a valorizagao da vida urba- na moderna, no seu culto 4 tecnologia e a velocidade. Enquanto que na maior parte dos paises do Ocidente 0 simbolismo foi o cartdéo de visitas da modernidade, no Brasil a escola nao teve este sentido. Nao significou, como na Europa, a reagéo 4 mecanizagdo da existéncia, 4 emer- géncia das massas urbanas ou a anulacao da individualidade, fatores que Walter Benjamin verifica em Baudelaire e que marcam o sentimento do moderno.! Porém, ele ndo deixou 1CF, Benjamin, Walter. “A obra de arte na época de sua reprodutibi- lidade técnica.’ In: Lima, Luiz Costa, Teoria da cultura de massas. Rio de Janeiro, Saga [s. d.], Id. /uminaciones //, Madrid, Taurus, 1971. | 48 de enfatizar a condic&o colateral do artista na sociedad brasileira, de modo inusitado até entdo (a nao ser que 4 aluda a ‘casos esporddicos, como Gregorio de Matos e Cla dio Manuel da Costa), o que se deveu, de um lado, a medio: cridade intelectual do meio, e, de outro, 4 presenca marcan: te de preconceitos sociais e raciais, verificaveis nos versos di Cruz e Souza. Assim, se o simbolismo nacional nado romps com padrées estéticos do passado, nem cria uma poéti aut6noma, j4 que nasce do seio do parnasianismo, ele deit rafzes profundas na poesia nacional, porque em nenhum momento anterior se evidenciara com tanta nitidez 0 confli to agudo entre o ambiente e o criador, em termos de umi incompatibilidade que veio a se traduzir em sentimento d existéncia. Todavia, assim como 0 modernismo europeu preciso dar ainda mais um passo para chegar aquele extremo que é arte de vanguarda de Tzara, Breton, Picasso, Joyce e Pound, também no Brasil havia um determinado trajeto a percorrer, para se alcangar semelhante resultado. E com a particulari- dade de que, num primeiro momento, precisou ir de encon- tro a um simbolismo que, aliado a escola parnasiana, se ofi- cializava nos principais redutos literdrios. A corrente de ruptura que mais vingou entre nds foi o futurismo, conduzido por Oswald de Andrade, que, numa S. Paulo que se modernizava, encontrou campo fértil para explorar as sugest6es relativas 4 vida moderna. Exaltando automOveis, arranha-céus, 0 cinema e o telégrafo sem fio, mostra-se um homem do seu tempo e sua cidade natal. Além disto, coincidia com as aspiracGes nacionalistas ini- ciais do movimento que, antes de descobrir a Amazonia em Macunaima e Cobra Norato, colocou na ordem do dia a ca- pital paulista nos poemas de Paulicéia desvairada e Martim Cereré. No Rio Grande do Sul, o movimento de 22 nao teve uma repercusséo imediata. Segundo Guilhermino Cesar, apenas em 1925 seus ecos atingiram a intelectualidade local, acl a Guilhermino. ‘A vida literéria”, In: Kremer, Alda Car- lozo et alii. Rio Grande do Sul. Terra e povo. Pi sae Povo. Porto Alegre, Globo, embora o primeiro livro de Augusto Meyer, //usdo querida, se\9 de 1923. Este Ultimo e mais Theodomiro Tostes, egres- <6 do simbolismo, foram seus principais arautos em Porto Alogre, j& que Felipe D’Oliveira e Alvaro Moreyra, que ade- firam a revolucdo modernista, viviam no Rio de Janeiro. E ainda Guilhermino Cesar quem adverte para o fato de que o projeto modernista néo causou impacto no Sul, atribuindo- 6 a duas raz6es: as produgées oriundas na nova estética ndéo perderam seus vinculos com o simbolismo; e a outra meta modernista — a énfase na tradicdo local — coincidia com os jesultados j4 alcancados pelo regionalismo, de modo que io houve solugéo de continuidade na literatura sulina. E © que Ligia C. de Moraes Leite condena, pois, analisando a producdo dos anos 20, conclui por seu carater conservador dissolvente da proposta renovadora do modernismo. Por isso, anuncia que ‘6 possivel dizer que houve e néo houve Modernismo no Rio Grande do Sul. Se a afirmac&o se sus- tenta nos fatos enumerados, a nega¢ao se apdia no fracasso do projeto renovador da prosa e no carater diluidor da poesia’.S Assim sendo, o exarne da producao poétiea gaticha demanda uma dupla orientacdo: de um lado, a abordagem do género na sua oscilagdo entre a fidelidade ao simbolismo © o assumir de tragos modernistas; e, de outro, o contraste entre as criagdes dos artistas ligados ao cenério porto-ale- grense, como A. Meyer e M. Quintana, e a obra de Raul Bopp, autor que se afastou do contexto local e aderiu inte- gralmente as propostas revolucionérias de Oswald e Tarsila. Com efeito, Cobra Norato, publicado em 1931, liga-se antes a8 vertentes do modernismo paulista que @ literatura rio-grandense. Pois, escrito na década de 20 (em 1928, se- gundo o Autor), deveria fazer parte da “Bibliotequinha An- tropofagica”, que reuniria as principais obras produzidas sob 0 influxo do idedrio antropofagico, concebido por Os- wald de Andrade e Tarsila do Amaral. Momento culminante do nacionalismo da época, a Antropofagia visava ao mesmo tempo a um “retorno ao Brasil’ e a expansdo do primitivis- 3Leite, Ligia C, de Moraes. Regionalismo e modernismo. Sao Paulo, Atica, 1978. p. 22. Grifos da A. 50 a floresta amazOnica, e O re- mo. Unificava, assim, a aspiragdo a valorizagao das font 5 mundo primitivo e ingénuo, frico. A um so nacionais néo contaminadas pela colonizacdéo européiagy grees0 ao inconsciente através do percurso on identificando a individualidade nacional nas criaturas oriu TEMPO, alia a intengdo nativista e o tratamento da proble- das de um contexto ndo urbano e magico, a influéncia dé =atica individual, sem condicionar um ao outro, isto 6, res- surrealismo e da psicandlise, que postulavam como papel dal psitando suas respectivas autonomias. Deste modo, obedece! arte a exploragéo do fundo inconsciente do homem. O elé™} aq programa antropofdgico, sem renunciar ao carter Ifrico mento regressivo da Antropofagia: configura-se, portantoyy de seu texto. . num assunto — a primitividade — e um espaco para a sud O mundo representado no poema pode ser magico e representacéo — a floresta amazOnica e seu mundo miticog§ Sabrenatural, sem perder a verossimilhanga. De um lado, a O poema de Raul Bopp dé vazdo poética a este desejog flaresta, habitada por entes fantdsticos, como a Cobra Gran- e conforma (junto com Macunaima, de Mario de Andrade) de, pode ser antropomorfizada, devido a seu contetido mé- a grande criagéo da concepcdo antropofagica. Narrandog gies: como o Poeta, enfiado na pele da Cobra Norato, 01 4 i ( ps A iat estes oe Aqui um pedago de mato esta de castigo. terras do Sem-fim em busca da filha da Rainha Luzia, co: Arvorezinhas acocoram-se no charco. quem quer se casar, ele desdobra tematicamente as metas Um fio de dgua atrasada lambe a lama. (p. 20) prioritarias deste projeto radical do modernismo: — apresenta uma narracdo que se passa num ambiente primitivo, anterior 4 Histéria, da qual esté ausente mesmo © ser humano enquanto eixo centralizador do evento e do He outro, estes mesmos elementos da natureza configuram um universo simbélico, representando os desejos incons- elentes de {ndole sexual do eu narrador. Assim, este se transforma na Cobra, simbolo falico por exceléncia; e todo espaco; — 0 mundo representado, sendo tao primordial, esta s ambiente circundante esta carregado de erotismo: isento da influéncia européia coloniz i bi h refere uma re oeaat lid aoe Cree here — Onde vais, Cobra Norato? a gressacia)iessaliea| ade snagscontarnineuiadg Tenho aqui trés arvorezinhas jovens a tua espera. (p.21) mais auténtica. A primitividade é, pois, o elemento que sintetiza o texto, configurada na ‘‘floresta cifrada”,* na qual penetra o- protagonista, 0 eu andnimo que inicia o relato. Este feito dé-se por intermédio de duas acées, procedentes de dois de- sejos; 0 primeiro 6 o de “‘morar nas terras do Sem-fim” (p. 19), 0 que o leva 4 utilizagdo da pele da Cobra Norato. Consumada a metamorfose, ele formula o segundo desejo, o de casar com a filha da Rainha Luzia, cuja efetivacdo impli- ca a sua entrega ao mundo dos sonhos: “'O sono escorregou nas palpebras pesadas.” (p. 19) O acesso 4 floresta advém, pois, do ato magico — a metamorfose — e do sonho. No primeiro canto, o Poeta al- Enruga-se o charco canga a sintese almejada pela Antropofagia: ha a trajetéria como um ovario cansado. (p. 38) Enfim, € a fusdo sexual (o casamento) que se desvela somo o intuito Ultima da trajetoria do herdi, cuja realizagdéo depende das provas por que ele passa ao longo de sua aven- jura e cujo resultado 6a geracdo de um mundo novo. Expli- ea-se a simbologia da cobra e a conformacdo do cenario, que vive intrinsecamente a mutacdo, pois nada, na floresta, tem fronteiras delimitadas. Assim, seguidamente 0 herdi se atola ou afunda, predominando o ambiente Gmido, demar- eado pela agua do grande rio amazonico. A analogia com o mundo uterino é evidente, o que ainda 6 acentuado pela linguagem poética: 4Bopp, Raul. Cobra Norato. Rio de Janeiro, Sao José, 1956. p. 20. A presenca de um mundo em gestagSo, pré-natal e li 62 vre dos conflitos da civilizagéo, complementa a nocdo dt maior parte de seus livros de poesia. Nos anos 30, voltou-se que Cobra Worato revela a trajetoria do inconsciente, rum@ antes a atividade ensa(stica, abordando temas da literatura a realidade do instinto e de Eros. Assegura-se, assim, a vé brasileira e universal, dando énfase ainda a producao cultu- rossimilhanga antes mencionada, preservando-se a validad fal sulina, como em Prosa dos pagos, Guia do folclore gau- da representagdo concomitantemente magica e onirica dé eho e Gaucho: historia de uma palavra. texto. Por outro lado, devido a esta mesma coeréncia, Sua poesia estd fortemente marcada pela ambiéncia poema é devolvido ao contexto de onde surgiu, qual seja, fegional do Sul; seus primeiros versos ddo conta mesmo de programa antropofagico. uma tentativa de aproximacdo ao falar gauchesco e a identi- O mundo do instinto e do inconsciente é o primitiva ficago com seus costumes, a moda da vertente regionalista: e natural por exceléncia, j4 que da sua repressdo nasce cultura. Procedendo a este retorno, Bopp situa seu relatd 5 num Brasil tdéo primordial, que as coisas ainda ndo tém no ee RIGS aL Seke me. Quando ppaeceD sores humanos, como Joaninha Vini resale logo ladrandore tém, a ambiéncia primitiva jé estd assegurada e nada mais) pode mudé-la. De modo que ainda nao se trata de uma civi- lizago com fronteiras sociais demarcadas ou convengdes estabelecidas: diz respeito antes a este mundo em formagéa que vird a tornar-se um “Brasil”, utopia na qual acredita o Poeta e que consistiu na aspiracdo maior da Antropofagia. Assim sendo, 0 poema ndo apenas desdobra os dois niveis sobre os quais se constréi — o individual e Ifrico; o nativista e antropofdgico — como também estabelece uma sujeito que enuncia o poema. profunda unidade entre eles. Possibilita que se transite de Se a presenga dos motivos rurais vincula sua poesia ao uma outro sem perder a coeréncia, nem abdicar das coorde- regionalismo, estabelecendo uma continuidade com a litera- nadas seja do programa estético a que se filiou, nem da ex~ tura anterior ao modernismo, também temas e recursos sim- pressdo de uma tematica vinculada ao Eu poético. Manifesta’ bolistas estéo presentes nela, relativizando, ainda por este uma profunda aspiracao individual — a de expansdo livre do aspecto, 0 trago de ruptura que marcou fundamente 0 mo- desejo erdtico, sem as restrigées da convencao social; e con- vimento paulista. Em “Cancdo de setembro”’, o simbolismo fia em que se possa gerar o mundo harmé6nico, que seré o aparece por intermédio da preocupagao em transformar os lugar desta realizagéo — um Brasil idealizado, utépico, mas objetos da vida cotidiana em instrumentos de uma concei- leal As suas rafzes folcloricas e geograficas. Daf a plenitude tuagdo filoséfica: “a tua vida, Poeta, é uma flor que se em- de sua criagao, fiel aos parametros da estética antropofagica, bala/como a sombra na cortina.”’ (p. 37); e, em “Se Deus mas nao limitado a ela, dando ensejo 4 manifestacdo de um quiser. .."’, retornam as analogias entre o clima crepuscular nacionalismo renovador e desvinculado de uma inclinacéo outonal ea morte: “A sombra do campanario/a vida é cal- 6 de casa! vou bradando Coragéo verde \eva adiante o aproveitamento da su- gestdo regional, mas, sob 0 influxo do modernismo, 0 verso néo visa a reproduzir o ritmo regular da trova e sua silaba- fo regular em redondilha maior; além disto, a presenga da hatureza local motiva sempre uma reflexdo, que pode dizer respeito ao objeto mesmo do olhar, como, por exemplo, uma 4rvore solitdria ou 0 campo, como pode se referir a0 ideolégica, rumo aquele carater universal que faz o valor di ma e grave como um creptisculo de outono” (p. 49). uma obra literdria. “Serrano”, de Coragdéo verde, comprova esta descri- Augusto Meyer foi um dos principais mentores do ¢fo. Lidando com um assunto de ordem local, o Autor vale- modernismo no Rio Grande do Sul. Teve atuagdéo marcante SMeyer, Augusto. “© de casa’. A/guns poemas. \n: Poesias. Rio de na década de 20 em Porto Alegre, época em que publicou a Janeiro, S80 José, 1957. Todas as citacdes provém desta edicéo.

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