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Enogastronomia

Princípios de harmonização
1 Introdução

O objetivo deste curso é explicar alguns princípios para que qualquer pessoa que
deseje tomar um vinho junto com a comida possa desfrutar de ambos
prazerosamente. É importante ressaltar que não existem regras absolutas, já que o
paladar é algo subjetivo e a aceitação dos acordos entre vinho e comida, aqui
propostos, vai depender do gosto de cada um.

Serão expostas desde harmonizações clássicas até combinações a que a maioria das
pessoas evitaria provar, revendo, assim, certos paradigmas de consumo. A partir de
diferentes tipos e estilos de vinhos, iremos propor diferentes ingredientes, pratos e
cozinhas regionais que melhor casam com esta bebida.

Veremos, ainda, que devido à grande diversidade de estilos de vinhos e à constante


reinvenção da gastronomia contemporânea, as possibilidades de combinações entre
comida e bebida são quase infinitas.

O termo enogastronomia deriva da junção do vinho (prefixo eno) com o universo da


comida (gastronomia). Poderíamos, de maneira
despretensiosa, definir como uma ciência “inexata” do
gosto.

A combinação entre comida e bebida, que antes era feita


intuitivamente ou por conveniência, passou a ser estudada
mais a fundo, com o intuito de explicar o porquê de
algumas combinações funcionarem muito bem e outras não.
A enogastronomia busca a harmonia na combinação entre
vinho e comida.

No passado, havia regras de harmonização restritas: o


vinho branco com carne branca, como peixes e aves; o
vinho tinto com carne vermelha; e os vinhos locais com

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pratos regionais. De maneira geral, esses conceitos são úteis na hora de definir um
acordo vinho-comida.

Além disso, a enogastronomia, em princípio, era essencialmente regionalista, porque


os pratos típicos italianos ou franceses eram acompanhados de vinhos de mesma
origem ou de regiões próximas dentro do mesmo país. Tais proposições,
consideradas harmonizações clássicas, devem ser provadas e podem agradar muito
ao paladar, mas podem existir outras combinações possíveis.

Essas regras acabam limitando bastante o consumo, já que com a evolução da


gastronomia – cada vez mais globalizada – os pratos tendem a ousar cada vez mais
na mistura de ingredientes e técnicas culinárias de diferentes regiões do mundo.
Muitas receitas da cozinha clássica são revistas e ganham toques ousados.

O mesmo acontece com os vinhos, já que, visando agradar ao paladar de um


mercado consumidor cada vez mais eclético, são elaborados de estilo tradicional e
moderno, mais ou menos frutados, com ou sem envelhecimento em carvalho, mais
ou menos álcool, tanto na Europa quanto nos países do Novo Mundo vinícola.

1.2 Princípios básicos de harmonização

Alguns princípios básicos devem ser pensados para que a harmonização exista, como
veremos a seguir:

- os sabores do vinho e da comida se complementam: há parcerias


famosas em que comida e vinho parecem se realçar mutuamente de modo
surpreendente. Mas, em geral, combiná-los não implica descobrir parcerias
perfeitas e exclusivas. Ou seja, um mesmo vinho pode combinar com diferentes
pratos e vice-versa.

- a comida não ultrapassa o vinho e o vinho não ultrapassa a comida em


intensidade: este aspecto é de extrema importância já que um prato mais leve

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pode tornar-se ofuscado por um vinho muito encorpado, assim como um vinho
mais sutil pode desaparecer se bebido junto com uma comida de sabores muito
fortes;
- existe um contraste interessante de sabores que é benéfico para
ambos. Certas combinações, por mais impensadas que sejam, podem ser
eficientes em situações de difícil harmonização. Neste caso, podemos ver que o
toque picante ou salgado de certos vinhos pode ser balanceado pela doçura ou
riqueza aromática de um vinho.

1.3 Aspectos a considerar na comida

As características a se observar na comida são as seguintes: matéria-prima principal,


método de cocção, molho, recheio e guarnição.

 Matéria-prima principal: é o grande chamariz do prato, aquela iguaria que será


protagonista da receita em quantidade e em sabor, seja em um aperitivo, entrada,
prato principal ou sobremesa. Neste caso, não devemos pensar de maneia genérica
em grupos de alimentos, como se todos fossem iguais em intensidade. Os peixes,
por exemplo, podem ser leves e de sabor sutil, como um linguado, ou mais
gordurosos e intensos em sabor, como o atum. A carne de peru tem sabor mais
pronunciado que a de frango, além do que a contracoxa dessas aves é mais
suculenta enquanto o peito é mais seco. Além disso, segundo a quantidade de
tempero usado no preparo da matéria-prima, o sabor pode ser dominante, sobretudo
se preparamos carnes mais neutras como peixe e frango. Na sequência veremos
alguns ingredientes que devem ser evitados em excesso para que estes não briguem
com o vinho na boca e causem sabores desagradáveis.

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 Método de cocção: é um ponto fundamental, já que, segundo a forma de
cozimento de um ingrediente o resultado, poderá ser mais leve ou mais intenso. Um
sashimi de peixe é muito mais sutil em sabor que iscas de peixe fritas à milanesa,
assim como um peito de frango grelhado difere bastante de frango a passarinho ou
um carpaccio de mignon comparado a uma carne bovina assada.

 Pochear (escalfar) e cozer no vapor ̶ são os métodos culinários mais suaves e,


assim, usados para alimentos mais delicados, seja para preservar sabores sutis ou
texturas frágeis de certos alimentos. Os chineses – que valorizam muito a textura,
frescor e aparência da comida – usam o cozimento ao vapor na sua culinária talvez
mais que qualquer outro povo. Nestes casos, devemos usar vinhos mais leves e
menos alcoólicos para que estes não se sobreponham à sutileza de sabores do prato.

Segundo o método de cocção empregado,


Batata cozida
os resultados podem ser bem diferentes
para um mesmo ingrediente.

Batatas fritas

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 Fritar ̶ em essência, é cozinhar rapidamente pequenas porções de alimento em alta
temperatura em algum tipo de gordura. Segundo o tipo e a quantidade de gordura
utilizada o resultado pode ser diferente. Mas é incontestável que este método deixa o
sabor dos alimentos mais pronunciados. A fritura pode ser feita em imersão na
gordura, no caso da batata frita ou com pouca quantidade de óleo, como as frituras
feitas em wok, grandes frigideiras de origem chinesa, que submetem os alimentos a
altas temperaturas e movimento constante, também conhecido como “saltear”.
Veremos aqui que vinhos mais ácidos funcionarão melhor para quebrar a sensação
gordurosa na boca.
 Ensopar e refogar ̶ apesar dos muitos nomes, há duas versões básicas e o
princípio é o mesmo para ambas: carne, peixe ou vegetais são preparados
lentamente em líquido numa panela coberta com outros ingredientes e temperos. A
diferença está no volume de líquido e no tamanho do item principal a cozinhar. Em
ensopados e cozidos utiliza-se mais líquido, quase sempre cobrindo os ingredientes,
e a carne é cortada em pedaços menores. Em refogados e carnes de panela
colocam-se pedaços inteiros de carne com menos líquido. Este líquido pode conferir
um toque marcante ao alimento, no caso de vinhos e caldos ou ser neutro se for
usado apenas água. Para alimentos cozidos em vinho, como Coq au vin (frango
ensopado no vinho tinto), normalmente utilizamos um vinho similar para
acompanhar o prato.
 Grelhar ̶ cozinhar rapidamente o alimento por fogo alto, para dourá-lo por fora,
deixando-se o interior suculento. Grelhar algo em fogo de carvão confere um toque
defumado muito mais intenso do que se usarmos uma chapa quente ou frigideira
aquecida no fogão. Dependendo do quanto douramos o alimento, o calor irá
caramelizá-lo por fora gerando um sabor mais ou menos intenso. É esta intensidade
de sabor defumado ou caramelizado que irá determinar a escolha do vinho.
 Assar ̶ consiste em cozinhar pedaços grandes de carne em um ambiente fechado
como um forno ou em um espeto que é constantemente girado para que a carne
seja regada pela própria gordura que se derrete por fora. Este tipo de cocção é mais
lenta e feita por meio de calor seco, que vai cozinhar o alimento lentamente de fora

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para dentro. No caso dos churrascos, a quantidade de gordura da carne e o ponto de
cocção irão produzir resultados mais ou menos suculentos. Neste caso, tintos
frutados mais encorpados e os ricos em taninos serão os melhores parceiros.

 Molho e recheio: estes itens de um prato podem exercer um papel secundário


como protagonizar uma receita, segundo a quantidade que for utilizada. Se for uma
pequena quantidade, que sirva apenas de adorno ou complemento, pode não
exercer uma influência grande. Já no caso de um strogonoff, por exemplo, ele tem
um impacto determinante no prato e deve ser considerado na hora da harmonização.
Para as massas é fundamental pensar nestes itens por diversas razões: um molho de
tomate em um spaguetti ao sugo tem caráter ácido, já um molho branco em um
pene quatro queijos é muito mais denso e gorduroso. São pratos que pedem vinhos
bem diferentes. Com respeito às massas recheadas como ravióli ou caneloni,
devemos estar atentos ao recheio: um ravióli de ricota é muito mais suave que um
ravióli de carneiro com figo e nozes. Enquanto o primeiro, provavelmente, combinará
com vinho branco, para o segundo prato
devemos pensar em um tinto.

 O molho e a guarnição podem ser


determinantes no resultado final do prato.

 Guarnição: apesar de ser


um complemento, a guarnição pode
exercer influência no peso final e/ou sabor predominante no prato, o que pode nos
obrigar a rever o vinho escolhido. Um mignon grelhado, de sabor relativamente
neutro, pode não ser a razão da escolha do vinho, se ele vier acompanhado por um
risoto com queijo brie e damasco, por exemplo.

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A partir da análise dos aspectos citados, podemos concluir qual ou quais são os
sabores mais marcantes do prato – se salgado, ácido, amargo, doce ou picante – a
textura alcançada: suculento, cremoso, fibroso, crocante – o peso e intensidade do
mesmo. A identificação destas qualidades será fundamental para definirmos que
vinho melhor o acompanha.

1.4 Aspectos a considerar no vinho

 Tipo de vinho: segundo o tipo, o vinho será mais apropriado a certos pratos
pelas características que ele possui. Vinhos espumantes, por exemplo, em virtude do
gás carbônico e alta acidez são vinhos versáteis para harmonização. Brancos tendem
a ser mais leves e de maior acidez. Tintos tendem a ser mais encorpados e possuem
tanino, que pode ajudar ou prejudicar a combinação com a comida. Rosados, por
estarem geralmente entre brancos e tintos em nível de intensidade, acabam sendo
coringas em situações de difícil escolha. Mas em todos os casos sempre há exceções
à regra, já que existem vinhos brancos untuosos e complexos, assim como tintos
leves e simples com acidez marcada.
 Grau de doçura: a quantidade de açúcar é importante já que quanto mais doce
for um prato, mais doce deve ser o vinho que o acompanha. Pratos salgados e
entradas, salvo raras exceções, são mais bem acompanhados por vinhos secos.
Pratos picantes casam bem com vinhos semissecos e um vinho seco dificilmente terá
um sabor agradável se acompanhar uma sobremesa.
 Acidez: da mesma forma que a doçura, a acidez em um prato pede vinhos de
acidez igual ou superior. Caso contrário, se a comida for mais ácida, o vinho soará
insosso. A acidez de um vinho ajuda também a quebrar a untuosidade de pratos
mais gordurosos, já que ajuda a limpar o paladar e nos prepara para a próxima
garfada.
 Corpo: o corpo do vinho e o peso da comida costumam caminhar lado a lado.
Pratos leves combinam com vinhos mais leves e pratos mais pesados com vinhos

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mais encorpados. Um vinho branco leve certamente ficará melhor com uma salada
caprese do que com um javali assado. Porém, devemos sempre associar o corpo a
outros fatores do vinho, como acidez e doçura, para decidir o que de fato favorecerá
a harmonização.
 Graduação alcoólica: o álcool no vinho também reforça a percepção de corpo
da bebida. Normalmente, percebemos vinhos mais alcoólicos como sendo um pouco
mais encorpados, mas o oposto também acontece e pode ser indicativo de
qualidade. Como os grandes vinhos tintos, encorpados, mas que não se percebem
tão alcoólicos. O fato é que a graduação alcoólica alta, sobretudo nos vinhos
fortificados, dá força a estes vinhos na hora de fazer acordos quase impossíveis,
como chocolate amargo e queijos azuis.
 Passo ou não por madeira: o envelhecimento em barris de carvalho se aplica
aos vinhos que potencialmente melhor qualidade e estarão aptos para envelhecer.
Esta etapa incrementa a complexidade dos vinhos tintos, agregando-lhe corpo,
taninos e complexidade aromática, já que o carvalho é um grande transmissor de
aromas ao vinho. No caso dos vinhos brancos, quando estagiam em carvalho,
ganham untuosidade e estrutura para sustentar pratos que em outras situações não
funcionariam.
 Sabor predominante: por último, e não menos importante, o sabor
predominante do vinho. É comum encontramos nos vinhos certos aromas e sabores
que remetem a ervas, frutas e vegetais de uso culinário. Quando encontramos na
bebida aromas evidentes a algum ingrediente que está sendo usado na receita, vale
a pena experimentar a combinação de ambos. A complementação de sabores
similares pode resultar muito benéfica tanto para o prato quanto para o vinho. Esta é
uma interpretação bastante original na hora de pensar os acordos. No entanto,
outros aspectos como doçuras, corpo e acidez não devem ser deixados de lado ao
tomar decisão.

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Referências

DOMINE, André. El vino. Barcelona: H.F. Ullmann, 2008.


FREIRE, Renato; NOVAKOSKI, Deise. Enogastronomia: a arte de harmonizar
cardápios e vinhos. Rio de Janeiro: Senac, 2007.
GALVAO, SAUL. A cozinha e seus vinhos. São Paulo: Senac, 2004.
HARRINGTON, Robert. Food & Wine Pairing. New Jersey: John Wilet & Sons,
2008.
SANTANA, J. M.; SANTOS, J. I. Comida e vinho: harmonização essencial. São
Paulo: Senac, 2008.
SIMON, Joanna. Vinho e comida. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

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