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Texto 4 FILMAT

Neste texto veremos a definição, dada por Frege, de número que convém a um conceito e as
definições, também dadas por Frege, dos números 0, 1, 2, etc como objetos lógicos. Além
disso, vamos tratar do paradoxo de Russell.

Vejamos, primeiramente, a definição de número que convém a um conceito (como dissemos


no texto 3, Frege apresenta essa definição no parágrafo 68 de Os Fundamentos da Aritmética).

Seja F um conceito.

O número que convém ao conceito F é a extensão do conceito “equinumérico ao conceito F”.

Vamos explicar essa definição.

Intuitivamente, a extensão de um conceito é a coleção das coisas que caem sob esse
conceito. Por exemplo, a extensão do conceito “estudante da UFMG” é a coleção das(os)
estudantes da UFMG.

Sejam G e H conceitos. Dizemos que o conceito G é equinumérico ao conceito H se e


somente se existe uma correspondência biunívoca entre a coleção das coisas que caem sob G
e a coleção das coisas que caem sob H (lembrem-se do que dissemos, no texto 3, sobre
correspondências biunívocas).

Considerando, por exemplo, o enunciado (b) do texto 3 temos que:

o número que convém ao conceito “cachorro no quintal daquela casa” é a extensão do


conceito “equinumérico ao conceito “cachorro no quintal daquela casa””.

Ou seja,

o número que convém ao conceito “cachorro no quintal daquela casa” é a coleção dos
conceitos equinuméricos ao conceito “cachorro no quintal daquela casa”.

Novamente, ou seja,

O número que convém ao conceito “cachorro no quintal daquela casa” é a coleção dos
conceitos tais que para cada conceito nessa coleção existe x que cai sob esse conceito, existe y
que cai sob esse conceito, e x é diferente de y e qualquer que seja z, se z cai sob esse conceito,
então z é igual a x ou z é igual a y.

Observação: o que acabamos de fazer foi dizer que o número que convém ao conceito
“cachorro no quintal daquela casa” é a coleção dos conceitos sob os quais caem exatamente
duas coisas, mas atenção, fizemos isso sem usar a palavra “duas”; assim, na verdade, fizemos
isso sem usar o número 2; fizemos isso, de fato, usando apenas os recursos da lógica e o
predicado “cachorro no quintal daquela casa”; quando definirmos, abaixo, o número 2, esse
predicado não será necessário; os recursos da lógica bastarão.

Tendo estabelecido a definição de número que convém a um conceito, Frege usou essa
definição para dar as definições dos números 0, 1, 2, etc. Vejamos.

0 é o número que convém ao conceito “diferente de si mesmo”.

Observação: notem que qualquer que seja x, temos que: x cai sob o conceito “diferente de si
mesmo” se e somente se x é diferente de x; ora, nenhum x é diferente de x; assim, nada cai
sob esse conceito; desse modo, Frege definiu o número 0, usando apenas os recursos da
lógica.

Tendo definido o número 0, usando apenas os recursos da lógica, Frege usou o número 0
para definir o número 1. Vejamos.

1 é o número que convém ao conceito “igual a 0”.

Observação: notem que há exatamente uma coisa que cai sob o conceito “igual a 0”; de fato,
apenas o 0 é igual a 0, mas o ponto é que a definição acima diz isso sem usar a palavra “uma”;
assim, na verdade, diz isso sem usar o número 1.

Tendo definido o número 0 e o número 1, usando apenas os recursos da lógica, Frege usou o
número 0 e o número 1 para definir o número 2. Vejamos.

2 é o número que convém ao conceito “igual a 0 ou igual a 1”.

Observação: notem que há apenas duas coisas que caem sob o conceito “igual a 0 ou igual a
1”; de fato, apenas o 0 e o 1 caem sob esse conceito, mas o ponto é que a definição acima diz
isso sem usar a palavra “duas”; assim, na verdade, diz isso sem usar o número 2.

etc

Como este é um curso sobre a filosofia da matemática em Quine, não vamos examinar outros
aspectos do projeto logicista de Frege, entretanto um ponto que tem de ser destacado é o
seguinte: Russell encontrou uma inconsistência, isto é, uma contradição no sistema de Frege.
Essa contradição é chamada de paradoxo de Russell.

A palavra “paradoxo” tem vários sentidos, mas para os nossos propósitos, podemos dizer que
um paradoxo é uma contradição obtida a partir de premissas aparentemente incontroversas.
Em vez de detalhar o modo como o paradoxo de Russell é obtido no sistema de Frege, vamos
apresentar a chamada versão conjuntista desse paradoxo, ou seja, vamos mostrar como o
paradoxo de Russell pode ser obtido em uma certa visão de teoria intuitiva dos conjuntos.
Nessa visão, cada propriedade determina um conjunto (essa é a premissa aparentemente
incontroversa). Por exemplo, a propriedade “estudante da UFMG” (isto é, a propriedade de ser
estudante da UFMG) determina um conjunto, a saber, o conjunto das(os) estudantes da
UFMG.

Consideremos a propriedade “não pertence a si mesmo” (isto é, a propriedade de não


pertencer a si mesmo). Então, segundo a premissa aparentemente incontroversa acima, essa
propriedade determina um conjunto, a saber, o conjunto dos conjuntos que não pertencem a
si mesmos. Vamos chamar esse conjunto de R (claro, em homenagem a Russell). Temos então
que R = {x: x não pertence a x}.

Observação: O conjunto das(os) estudantes da UFMG não é uma(um) estudante da UFMG (de
fato, o conjunto das(os) estudantes da UFMG não é uma (um) estudante determinada(o) com
um certo número de matrícula e fazendo um curso específico). Assim, o conjunto das(os)
estudantes da UFMG não pertence a si mesmo. Portanto, o conjunto das(os) estudantes da
UFMG pertence a R. Seja agora NP o conjunto das não pessoas. A condição necessária e
suficiente para uma entidade pertencer a NP é que essa entidade não seja uma pessoa. Por
exemplo, a Lua pertence a NP, a mesa diante de mim pertence a NP, a árvore naquela praça
pertence a NP, mas eu não pertenço a NP. Ora, o conjunto NP não é uma pessoa, assim NP
pertence a NP, ou seja, NP pertence a si mesmo. Portanto NP não pertence a R (atenção: todo
esse raciocínio foi feito em uma teoria intuitiva de conjuntos).

Voltemos ao conjunto R = {x: x não pertence a x}. Dado um x qualquer, a condição necessária
e suficiente para x pertencer a R é que x não pertença a x (é isso que significa dizer que a
propriedade “não pertence a si mesmo” determina o conjunto R). Portanto temos que:

se R pertence a R, então R não tem a propriedade de não pertencer a si mesmo, ou seja, R não
tem a propriedade que determina o conjunto R, logo R não pertence a R. Resumindo,

se R pertence a R, então R não pertence a R.

Por outro lado, temos que:

se R não pertence a R, então R tem a propriedade de não pertencer a si mesmo, ou seja, R tem
a propriedade que determina o conjunto R, logo R pertence a R. Resumindo,

se R não pertence a R, então R pertence a R.

Portanto, ficamos com:

R pertence a R se e somente se R não pertence a R.

Isso é uma contradição. Esse é o chamado paradoxo de Russell.

Observação: embora, devido a essa contradição, Frege não tenha atingido seu objetivo de
mostrar que a aritmética se reduz à lógica, ele, ao desenvolver seu projeto logicista, deu
importantíssimas contribuições à lógica e à filosofia da matemática; Russell enfrentou o
paradoxo que leva seu nome desenvolvendo a chamada teoria dos tipos; uma outra forma de
enfrentar o paradoxo de Russell, por meio do Axioma de Compreensão ou de Separação (ou
melhor dizendo, por meio do Esquema de Axiomas de Compreensão ou de Separação), é
usada no que é a teoria padrão de conjuntos, isto é, a teoria ZFC (Zermelo, Fraenkel, com o
Axioma da Escolha); a propósito, em ZFC há um axioma, o Axioma do Fundamento ou da
Regularidade, que não permite a existência de conjuntos que pertençam a si mesmos.

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