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Sobre Ontens

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ISSN 2176-1876

Editorial

EDITORES
Prof. André Bueno [UERJ]
Prof. Dulceli Tonet Estacheski [UFMS]
Prof. Everton Crema [UNESPAR]

COMISSÃO CIENTÍFICA
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Prof. Leandro Hecko [UFMS]
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Prof. Thiago Zardini [Saberes]
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Prof. Washington Santos Nascimento [UERJ]

COMISSÃO EDITORIAL
Prof. Aristides Leo Pardo [UNESPAR]
Prof. Caroline Antunes Martins Alamino [UFSC]
Prof. Jefferson Lima [UDESC]

Periódico produzido e promovido pelo


LAPHIS - Laboratório de Aprendizagem Histórica
UNESPAR
AS NAVEGAÇÕES DE CANOAS NO MÉDIO IGUAÇU NO SÉCULO XVIII
COMO BASE DE UM DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL

Tiago Portes Borges

Introdução

Canoa. Pequena embarcação primitiva, feita de uma só peça de


madeira escavada. Parece um objeto simples e sem grande
importância, porém, em uma época onde os rios eram caminhos
principais para os sertões, elas eram veículos indispensáveis para as
atividades de exploração, uma vez que através delas se venciam
grandes distâncias em tempos menores, quando comparadas aos
1
trechos vencidos por terra. As navegações se desenvolveram dessa
necessidade de locomoção. Buscamos evidenciar, assim como as
técnicas construtivas desses objetos, cujo mérito ressaltamos devia-se
aos indígenas, as relações ora pacíficas, ora conflituosas entre estes e
europeus. Essas navegações são motivos de interesse devido a
importância que tiveram para a História regional, colocando em
evidência esse período, para que não passe despercebido, levando-nos
a explicitar um período de nossa história muitas vezes esquecida ou
ignorada. É comum observarmos em alguns veículos de comunicação o
enaltecimento da navegação a vapor, período posterior à navegação de
canoa, indiscutivelmente de extrema importância para o
desenvolvimento dessa região, Médio Iguaçu, mas que de certa
maneira acaba deixando-a um pouco sem importância, criando no
imaginário popular, que a navegação de um modo genérico começou
no século XIX, daí a observância da necessidade de um estudo mais
específico desse período: final do século XVIII.
O Rio Iguaçu, cuja nomenclatura é atual e primitiva ao mesmo
tempo, pois desde o século XVI existem registros cujos radicais I-guaçu
significam na etimologia Tupi-Guarani “Água Grande”. Posteriormente
com o desenvolvimento do tropeirismo, e da necessidade de se efetuar
o registro do gado que da região sul iam em direção ao centro da
colônia, surge o termo Rio Grande do Registro, ou Rio Grande de
Curitiba. Os relatórios das expedições militares nos servem como
fontes de pesquisa, e de maneira sistemática, nos permitem analisar,
tanto as questões relacionadas às expedições em si, como as de ordem
política, as estratégias do governo, quando se encontravam indefinidas
as regiões de fronteira (no sul da colônia), e Portugal e Espanha por
esses motivos, estavam em situações litigiosas.

Os relatos dessas expedições 2


militares, ocorridas de 1768 à
1773, foram compiladas e
organizadas em “Anais da
Biblioteca Nacional – Notícia da
Conquista e Descobrimento dos
Sertões do Tibagi”, volume 76
(figura 1), os quais de maneira um
pouco confusa, pois não obedecem
uma sequência lógica, permitem
que se realize as consultas e
interpretações.

Inicialmente, trataremos um Figura 1: Capa dos Anais da


pouco sobre o Brasil Colônia, já Biblioteca Nacional, cuja compilação
que o objeto estudado está contém os relatórios e registros das
Expedições Militares.
inserido nesse período,
demonstrando desde o descobrimento “sociológico” do Brasil, até as
questões de disputa territorial entre Portugal e Espanha, e o interesse
exploratório e colonizatório por essas terras do sul. Geograficamente
pretendemos mostrar o Rio Grande do Registro, atual Rio Iguaçu, cuja
importância é evidenciada em inúmeras citações nos relatos,
observando-se ainda a utilização dos rios nesse período como principal
caminho para o sertão, conforme obra Monções, de Sérgio Buarque de
Hollanda, 1945, p. 46. Essas fontes, de um modo geral serão discutidas
e postas, como já citado, á luz dos fatos, através da análise dos relatos
das expedições, cujas táticas e manobras portuguesas mostram-se
claras, com o governador da Capitania de São Paulo, D. Luís Antonio de
Sousa Botelho Mourão, o Morgado de Mateus, nomeando seu primo
Afonso Botelho de Sampaio e Souza, que organiza as onze expedições,
que ocorreram no Sertão do Tibagi, compreendendo os segundo e
terceiro planalto do atual estado do Paraná, para garantir a posse das
terras. 3

Brasil Colônia

Quando falamos em História Antiga, Moderna ou Contemporânea


e estudamos esses períodos separadamente, fica difícil entender a
história, da mesma maneira que estudar a História do Brasil, e não
compreender o que acontecia em outras partes do mundo, se torna
impraticável. É a linearidade da História, uma vez que ela é uma só,
aqui no Brasil, como colônia, na Europa ou até mesmo na China. Claro
que as relações ocorreram muito mais enfatizadas entre a América e
Europa. Entenda-se Portugal e Espanha, países que se adiantaram nas
navegações ultramarinas, e que acabaram colonizando grande parte
das regiões das Américas. Sabemos não ser fruto do acaso, mas
também nada do que aconteceu pode ser considerado como algo
totalmente premeditado, a história é algo que aconteceu e hoje, somos
frutos e herança desses momentos.
Quando Portugal sai nas navegações para além mar, em busca de
novas terras, vemos inúmeros fatores que o levaram a tomar esses
rumos. O espírito aventureiro, as condições econômicas pós
feudalismo quando a fome e a falta de terras assombravam os
europeus, a posição geográfica enfim, são alguns que podemos citar
como exemplos. O início do século XVI é o que nossa história, como
Brasil começa a ser delineada. Portugal alguns anos antes já faz um
acordo com a Espanha, com o intuito de dividir as possíveis terras
encontradas fora da Europa, demonstrando inclusive, um
conhecimento sobre nossa região. A “descoberta do Brasil” por
Portugal em 1500, pode ser considerado então como um
descobrimento sociológico1 (BUENO, 1998, p. 178), e que as vezes nem
sempre conseguimos imaginar, o que seria essa posse portuguesa.
4
O litoral obviamente foi o primeiro contato do português, assim
como sua conseqüente colonização/exploração. Litoral esse muito
mais ao nordeste, do que nossas regiões ao sul, explicando aí como se
deu o processo de desenvolvimento da própria colônia. A colônia
sempre teve por principal objetivo a produção de riquezas para a
metrópole. Portugal em nenhum momento se preocupou com as
questões de sustentabilidade, mas sim, com um caráter muito
extrativista, usufruir de maneira a aproveitar o máximo o que a colônia
poderia oferecer. Nesse caso, mais uma vez ressaltamos sem
premonição alguma, que esse fato acabou favorecendo a unificação do
território colonial, conforme Caio Prado Jr nos mostra, em Formação
1O termo “descobrimento sociológico” do Brasil pelos portugueses, considera as
várias evidências da passagem de espanhóis pela costa brasileira, anos antes de
1500. O Tratado de Tordesilhas, o descobrimento da América são alguns dos
exemplos de que os portugueses efetivaram a posse das terras, como cita Eduardo
Bueno, em seu livro “A viagem do Descobrimento”.
do Brasil Contemporâneo, uma vez que éramos um sertão inóspito,
diferente das colônias espanholas, e que devido a presença e interesses
da Espanha, tiveram como conseqüência a fragmentação territorial, e
hoje vemos vários países resultantes do modelo desse de colonização,
diferente da condição do Brasil: uma grande extensão territorial.

Essa primeira parte Brasil colônia e pré-colônia então


observamos que os contatos efetivos mesmo se deram muito mais na
região litorânea, e com a divisão pelo Tratado de Tordesilhas, as
explorações de pau-brasil ficaram restritas à costa. Com a tentativa não
muito satisfatória da divisão das Capitanias Hereditárias de
colonização, temos os primeiros passos da efetivação colonial do que
um dia seria o Brasil. Duas dessas capitânias mostram-se mais
rentáveis: as capitanias de Pernambuco e São Vicente. Movidas pela 5
monocultura da cana-de-açúcar, marcam o primeiro ciclo econômico
da colônia (FREYRE, 1992, p. 114). Com a busca incansável, e talvez
por que não dizer insaciável da metrópole por riquezas, começa as
explorações e busca pelo ouro. Relacionado à nossa região, temos as
primeiras descobertas e exploração desse metal na região de
Paranaguá. O povoamento dessa região acaba indiretamente
favorecendo a exploração mais ao centro, com o surgimento da Vila de
Nossa Senhora da Luz e Bom Jesus dos Pinhais, atual Curitiba.

Portugal na colonização do Brasil, fazia o seu dever de casa, ou


seja, não investia muito, mas também buscava manter certa constância
nessas questões. A Espanha, observando as atividades portuguesas não
ficava alheia. E as disputas pelos territórios dantes divididos pelos
tratados, agora Portugal avançava cada vez mais, colônia adentro. O
território que hoje conhecemos como Paraná, era em grande parte
território espanhol, conforme figura 2. O Rio Iguaçu, basicamente
dividia as posses. É aí que o objeto desse trabalho começa a entrar em
cena. Faremos agora em capítulo específico, as relações de disputas e
tentativas de posse das terras ao sul da colônia, analisando as
Expedições Militares.

Figura 2: Mapa representativo da região espanhola de Guairá. Imagem


disponível em http://cascavel.dihitt.com.br/noticia/os-segredos-do-rio-parana.

As Expedições Militares

As expedições militares foram onze, denominadas Expedições


para o descobrimento dos sertões do Tibagi, e das quais, cinco delas
ocorreram no Rio Grande do Registro especificamente, embora para as
citadas como Sítio do Carrapato, certamente passaram pelo Rio do
Registro. Esse nome deve-se ao registro do gado, próximo da atual
cidade da Lapa, que subia do Rio Grande do Sul, pelo caminho de Via
Mão em direção a Sorocaba.

Com relação as historiografias existentes, analisamos algumas


obras, relacionadas à navegação no rio Iguaçu. Rio Iguaçu e o último
apito, de Raul Ferreira Doepfer, publicado em 2004, como o próprio
título já relaciona, enfatiza a navegação à vapor, dedicando meia
página do livro às navegações em canoas. Filho de um comandante de
navio à vapor, o autor faz uma descrição detalhada do período áureo
da navegação mais específica do século XX. Francisco Lothar Paulo
Lange escreve Iguaçu um caminho pelo rio, em 2005, e faz um texto
mais interativo com o presente, também dando ênfase as navegações
de vapores. Ao final do século XVIII, Lange dedica três páginas de seu 7
livro. O livro é interessante por essa correlação do passado com o
presente. O livro Vapores, de Arnoldo Monteiro Bach, com quase
quinhentas páginas dedicadas, como o próprio título remete, as
navegações dos vapores. Duas páginas demonstram superficialmente
as navegações das canoas e as expedições militares, considerando que
não é esse o enfoque do autor, o livro é bem interessante.

As compilações dos diários, relatórios de viagens e as próprias


ordens das expedições militares que o governador, por ordem da
rainha de Portugal, Dona Maria I, expedia ao então seu sobrinho
Afonso Botelho de San Paio e Souza, são os objetos analisados. O
primeiro era Morgado de Mateus, que era um título nobiliárquico
português, e como se percebe, já numa demonstração da má utilização
do poder público para a nomeação dos familiares em cargos
importantes, nos remetendo aos exemplos nepóticos recentes, de
nossa política.
As expedições foram de 1768 até 1774, e graças ao espírito e
disciplina militar, minuciosamente relatadas nos diários, conforme as
ordens recebidas, e que nos permite hoje, analisá-las em todas as suas
formas. Formas essas que vão desde os relatos em si, como nos fatos
ocultos, ou que podem e devem ser interpretados de maneira
investigativa, no sentido de entender seu verdadeiro sentido.

Notícia da conquista e descobrimento dos Sertões do Tibagi, é


uma obra interessantíssima, mesmo que aparentemente confusa, uma
vez que apresenta de maneira alternada os relatos e diários. Esse fato
leva o leitor a ler várias vezes, e voltar quando necessário, pois os
documentos são apresentados em várias ordens e seqüências, por
exemplo, no início ele faz um resumo de todas as expedições, citando-
as. Depois faz um relato minucioso da expedição mais importante 8
(segundo Afonso Botelho), onde ele participou ativamente, no ano de
1771. É esse vai e vem que deixa a leitura e análise do documento um
pouco confusa, porém reconhece-se que não há outro jeito, pois são
vários documentos, muitos deles falando sobre o mesmo assunto, um é
a ordem da expedição, o outro é o relato e diário dessa mesma, e pode
haver um terceiro ainda, citando essa viagem, e tudo isso em diferentes
páginas, todos fora de ordem.

Considerando que o foco é o Rio Iguaçu, ou Rio do Registro como


é citado, faremos a ressalva de que essa fonte compreende além do
mesmo, o Rio Ivaí e Tibagi obviamente. A opção de nomear como
Sertões do Tibagi, vem de que há um interesse da coroa portuguesa em
manter essas incursões pelo interior da colônia, no anonimato,
preservando-se assim, dos espanhóis, pelo fato ainda de seus pontos
limítrofes com esse reino estarem indefinidos.

Observamos já no início dessa compilação de documentos,


quando Afonso Botelho faz um prólogo à Rainha (D. Maria I), o
explicitísmo do caráter religioso. Alguns autores afirmam que escondia
na verdade, a idéia de exploração e conquistas portuguesas. É a idéia
de que Portugal chegou com a cruz numa mão, e a espada na outra.

“[...] Para esta, ainda que árdua, ilustre emprêsa, que


circunstâncias não concorriam dignas todas de ocuparem a
alta consideração de Vossa Magestade, seguindo as pisadas
dos nossos maiores nos seus descobrimentos, de que
sempre a posteridade falara com admiração, e respeito, eu
tive por objecto principal, conformando-me com o que se me
ordenava o serviço de Deus, trabalhando com tôdas as
minhas fôrças para aquêle cego gentelíssimo, abraçando o 9
Evangelho de Jesus Cristo, de que os portugueses em tôdas
as idades foram os mais fervorosos propagadores, entrando
no grêmio da Igreja ficasse reduzido à nossa Fé”. (SAMPAIO
E SOUZA, [1768-1774], 1956, P. 3).

Reitera ainda a crença e devoção da Rainha (Que pode ter uma


segunda intenção, que era associar as explorações à evangelização, ou
redução, dos indígenas, uma vez que a igreja era a grande financiadora
desses projetos da época): “O fundador da monarquia de que Vossa
Majestade é árbitra absoluta, Jesus Cristo, de cujo coração é Vossa
Majestade tão devota, lhe dilate a vida, e lhe prospere todos os seus
desígnios, para serem completos os nossos desejos. É o que lhe peço, é
o que todos os vassalos lhe pedimos.” (SAMPAIO E SOUZA, [1768-
1774], 1956, P. 3)
Da página 7 até a 25, o autor faz um resumo de todas as
expedições, bem como cita-as na ordem cronológica. A primeira, no Rio
do Registro, partiu do Porto Nossa Senhora da Conceição (Atual Porto
Amazonas), em 5 de dezembro de 1768. A segunda, entrou pelo porto
de São Bento no Tibagi, em 20 de julho de 1769, a terceira pelo mesmo
porto aos 11 de agosto de 1769 também. É nessa expedição que
aparecem os primeiros relatos da Vila Rica do Espírito Santo, ruínas da
cidade espanhola, cujo capitão era Francisco Lopes da Silva. A quarta
expedição, entrou pelo Porto de Nossa Senhora da Conceição, em 28 de
agosto de 1769, cujo comandante era Bruno da Costa Filgueira, em três
canoas, onde pelo Rio do Registro, foi até a barra do Rio Potinga.
Navegou por ele, pra ver se encontrava os campos de Guarapuava. No
mesmo porto, de Nossa Senhora da Conceição de Caiacanga, saiu a
quinta expedição, em duas esquadras: uma aos 16 e outra aos 28 de 10
outubro de 1769. Comandante o alferes de auxiliares da Vila de
Paranaguá Antonio da Silveira Peixoto, estabeleceu no primeiro salto, e
denominou-o Porto de Nossa Senhora da Vitória (outro indício da forte
presença católica).

A sexta expedição também entrou pelo Rio do Registro, no Porto


de Nossa Senhora da Conceição em 12 de Julho de 1770, assim como a
sétima expedição, em 4 de março de 1771 onde era comandante o
tenente da Praça de Santos Felipe de S. Tiago, bem como o capelão o
padre frei Inácio de Abraão de Santa Catarina, religioso carmelita, cuja
intenção era catequizar os índios. A oitava expedição entrou pelo Sítio
do Carrapato em 30 de julho de 1770, cujo comandante e guarda-mor
era Francisco Martins Lustosa. A nona expedição entrou pelo mesmo
Sítio em 7 de fevereiro de 1771. A décima expedição, em que foi
comandante o próprio tenente-coronel Afonso Botelho de S. Paio e
Souza, entrou também pelo Sítio do Carrapato, em 17 de novembro de
1771. O mesmo comandou a décima-primeira, em 23 de outubro de
1773, pelo Sítio do Carrapato.

De maneira resumida, explicitamos as onze expedições que


ocorreram no Sertão do Tibagi, que compreendia os segundo e terceiro
planalto do atual Paraná:

1° expedição Rio Grande do Registro 5/12/1768 p.7

2° expedição Porto de São Bento 20/07/1769 p.8

3° expedição Porto de São Bento 11/08/1769 p.9


11
4° expedição Porto Nossa Sra da Conceição Rio Grande do Registro
28/08/1769 p.10

5° expedição Porto Nossa Sra da Conceição Rio Grande do Registro

– 16/10/1769 p.11
– 28/10/1769 p.11

6° expedição Porto Nossa Sra da Conceição Rio Grande do Registro


12/07/1770 p. 12

7° expedição Porto Nossa Sra da Conceição Rio Grande do Registro


04/03/1771 p. 15

8° expedição Sítio do Carrapato 30/07/1770 * p. 18

9° expedição Sítio do Carrapato 07/02/1771 p. 19


10° expedição Sítio do Carrapato 17/11/1771 p. 20

11° expedição Sítio do Carrapato 23/10/1773 p. 22

As páginas indicadas correspondem a fonte utilizada: Notícia da


conquista e descobrimento dos sertões do Tibagi, na capitania de S.
Paulo, no Governo do general Don Luís Antônio de Sousa Botelho
Mourão, conforme as ordens de Sua Majestade. 1768–1774. Anais da
Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, v.76, 1956.

Reflexões
12
Antes de falarmos sobre as fontes utilizadas, faremos
considerações sobre ufanismos e ressentimentos contidos nos relatos
das expedições, e nem tão implícitos assim, como mostra Michel
Kobelinski em Heroísmos, sedições e heresias: a construção do
ufanismo e do ressentimento nos sertões da capitania de São Paulo
(1768-1774). O caráter militar das expedições, aliadas a necessidade
de se exaltar, impor-se, garantindo os sentimentos de nobreza e
superioridade, evidencia ainda mais o ufanismo, em detrimento dos
ressentimentos. As análises então, buscarão a alienação à esses
sentimentos, visando uma imparcialidade historiográfica.
Considerando o objetivo oficial das expedições (em tese), segundo
relato da compilação, página 71, como segue:
“[...] O empenho maior desta expedição deve ser o
entroduzir-se a fé de Nosso Senhor Jesus Cristo naqueles
incultos, e grandíssimos sertões, para o que serão
tratados os índios com afabilíssimo mimo, comprindo
enteiramente o que eles ajustarem, e tratarem,
animando-os com alguns mimos, a que entrem no grêmio
da Igreja, e obedeçam a Nosso Rei, que os há de estimar e
honrar, como tem feito os mais”. (SAMPAIO E SOUZA
[1768-1774], 1956, P. 69-72)

Observamos muito mais do que uma simples missão de fé.


Garantir a posse das terras, conforme observa Glória Kok, no livro O 13
Sertão Itinerante, as Expedições Militares na Capitania de São Paulo no
século XVIII, p. 154. Glória Kok comenta dos ganhos da coroa
portuguesa, por intermédio de Afonso Botelho, ao desbravar essas
regiões, acrescentando aos seus domínios. Além dos campos férteis,
vislumbrava-se as esperanças da descoberta de ouro nas regiões à
oeste.

Quais seriam então, essas outras intenções implícitas? Ou então,


porque tratar os índios com “afabilíssimo mimo”? Ora, ter os gentios
como aliados, em uma suposta disputa pelos territórios não parecia
uma má idéia. Na expedição em que participou o Tenente Coronel, há o
relato de uma “traição” por parte dos indígenas, em que atacam os
integrantes, e que por pouco, não vitima o próprio Coronel. Mesmo
assim, conforme as ordens, buscava-se sempre o bom relacionamento,
os quais eram úteis não só na suposta guerra, ou disputa, com a
Espanha, como eram utilizados os índios para auxiliar nas incursões,
sertões adentro. A própria navegação, fabrico de canoas, alimentação e
costumes, foram absorvidos dos negros da terra 2 (MACHADO, 1930 p.
85), pelos europeus. Esse contato com os indígenas é importante
salientar, foi extremamente marcante, uma vez que essa região da
colônia era inóspita, e só nesse momento, começa as relações entre
europeus e indígenas. O contato marcou de maneira negativa os índios
principalmente no que tange as questões de doenças. As trocas que
ocorriam entre eles também era desigual. O índio oferecia suas armas
como arcos e flechas, objetos esses que para eles eram indispensáveis
para a sobrevivência, e em troca recebiam roupas, espelhos, chapéus,
objetos que não os favoreciam muito, ou que fossem indispensáveis.

Com relação a garantia das posses das terras, faremos uma


citação do Morgado de Mateus, D. Luís Antonio Botelho Mourão, ao
conde de Oeiras, em 1768: “Em matérias de posse de Domínios hé mais 14
fácil ao depois de acomodar havendo que ceder do que havendo que
pedir”(SAMPAIO E SOUZA, [1768-1774], 1956, p. 32) representando o
real interesse, que era a expansão territorial, bem como a busca por
metais preciosos (BELLOTO, 2007, p. 103). A administração
portuguesa então, consegue manter a propriedade, além de conhecer
os insólitos sertões, bem como descobrir os campos de Guarapuava e
Palmas, e que posteriormente tornam-se extremamente importantes
para o ciclo econômico do tropeirismo.

Começa então, a partir desses registros, se estabelecer uma rota


de acesso a região sul da colônia, intensificando após as desbravações.
A própria navegação a vapor, se serviu nos anos subseqüentes das
informações dos relatórios, como as informações de rios, afluentes, as
comunidades indígenas, pousos, etc. Nesse momento, gostaríamos de
esclarecer que quando falamos em “evidenciar” esse momento da

2 Termo utilizado por paulistas seiscentistas, sobretudo bandeirantes, para


designar os indígenas.
História, não significa estabelecer importâncias, dizendo que este ou
aquele espaço/tempo foram mais importantes, mas sim, dizer que a
História muitas vezes é negligenciada e mostra-se só aquilo que é
aprazível. Esse trabalho então, é uma tentativa de divulgar e mostrar a
História em sua seqüência fatológica.

Essas atividades militares foram importantes para o


estabelecimento da posse portuguesa, uma vez que após esse período,
acontece a criação de Colônias Militares e outras atividades que
visavam a garantia dessas posses, considerando perigo de invasão e
ameaça de castelhanos. O processo de ocupação e colonização desse
espaço, ancora-se na idéia de que com a participação de inúmeros
grupos sociais, como religiosos, aventureiros, militares e outros,
facilitou essa etapa. As discussões se voltam para a ética dessa 15
atividade, que desconsiderou os posseiros e indígenas que aqui viviam
pois os segmentos privados, religiosos e políticos não desconheciam a
existência desses povos.

Evidenciamos através desse trabalho a importância da


navegação de canoas pelo Rio Iguaçu, onde forneceu subsídios e
informações para outros meios de navegação, consolidando assim o
processo de exploração e colonização. Reiteramos ainda que, as
navegações já existiam com os indígenas, e as próprias canoas desse
período mencionado eram baseadas nas experiências de construção
indígenas, logo, é entendido que deu-se um processo de apropriação de
costumes e experiências, mas ao mesmo tempo, uma dizimação desses
povos, devido ao não reconhecimento como partes integrantes do
meio.
FONTE

Notícia da conquista e descobrimento dos sertões do Tibagi, na


capitania de S. Paulo, no Governo do general Don Luís Antônio de
Sousa Botelho Mourão, conforme as ordens de Sua Majestade. 1768–
1774. Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, v.76, 1956.

BIBLIOGRAFIA

BELLOTO, Heloísa L. Autoridade e conflito no Brasil colônial, São


Paulo, 2007.

BUENO, Eduardo. A viagem do Descobrimento: a Verdadeira


16
História da Expedição de Cabral. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998

CORRÊA, Dora Shellard. Descrições de paisagens – construindo


vazios humanos e territórios indígenas na capitania de São Paulo
ao final do século XVIII

FREYRE, Gilberto. Casa-grande e Senzala. Rio de Janeiro, Record,


1992.

HOLLANDA, Sérgio Buarque de. Monções. Rio de Janeiro, 1945

KOBELINSKI, Michel. Heroísmos, sedições e heresias: a construção


do ufanismo e do ressentimento nos sertões da capitania de São
Paulo (1768-1774). 2008. 250 f. Tese (Doutorado em História),
Universidade Estadual Paulista, Assis, 2008.

KOK, Glória. O sertão itinerante. Expedições da capitania de São


Paulo no século XVIII. São Paulo: Hucitec, 2004.
PRADO Jr., Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo,
Editora Brasiliense, 1994.

RIESENBERG, Alvir. A instalação humana no vale do Iguaçu. União


da Vitória, 1973.

Imagem Mapa representativo da região espanhola de Guairá,


disponível em: http://cascavel.dihitt.com.br/noticia/os-segredos-do-
rio-parana

Acessado dia 20 de setembro de 2011, às 20:00.

17
ANITA GARIBALDI, A MULHER À FRENTE DE SEU TEMPO:
LUTA, POLÍTICA, LITERATURA, CINEMA E HISTÓRIA
Viviane Regina Árcega de Souza 1

RESUMO: O presente artigo tem como objetivo analisar a vida de Anita Garibaldi,
personagem que é conhecida como “heroína de dois mundos”. Anita é lembrada até
hoje por seus feitos militares, em uma época em que a guerra era associada à
masculinidade, e a sociedade era marcada pelo estabelecimento da ordem
patriarcal. Apesar da época em que nasceu, foi vista como uma mulher intrépida e
decidida, que defendia seus ideais libertários, desafiando um estereótipo feminino,
onde as mulheres eram frágeis e delicadas. Para tanto buscaremos mostrar como
Anita Garibaldi é vista em biografias como a de RAU, Wolfgang Ludwing, intitulada 1
Anita Garibaldi. O perfil de uma heroína brasileira, no qual o autor faz uma densa
pesquisa biográfica, sobre a vida de Anita. Outra obra a ser analisada é o livro de
WIERZCHOWSKI, Letícia, intitulado A Casa das sete Mulheres, nessa obra podemos
observar a história e a ficção em um romance que usa a Revolução Farroupilha
como pano de fundo para retratar a guerra sob a perspectiva dessas mulheres,
dentre elas, a vida de Anita Garibaldi. O texto analisado se articula a Minissérie A
casa das sete mulheres, uma adaptação da obra da escritora gaúcha Letícia
Wierzchowski, em que mostra o papel das mulheres na Guerra dos Farrapos.

Palavras chaves: Anita Garibaldi; Narrativa; Literatura; Relações de Gênero.

1 Acadêmica do 4º ano do curso de História da Faculdade Estadual de Filosofia,


Ciências e Letras – União da Vitória. Artigo de conclusão de curso orientado pelo
Professor Mestre em História do Paraná. Atualmente atuante no curso de História
da Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de União da Vitória.
Introdução

Utilizando-se de diversas metodologias, vários pesquisadores


têm apresentado a história de Anita Garibaldi dentro de um perfil
heróico, alguns romanceiam sua história na tentativa de uma
mitificação. Muitos autores que escreveram sobre a vida de Anita
Garibaldi, retrataram-na segundo suas próprias concepções, seus pré-
conceitos e interesses, alguns destes foram políticos positivistas,
outros curiosos apaixonados e historiadores.

Sabemos que a história está marcada pela inferioridade e


submissão da mulher em relação ao homem, porém, em relação a
diversos pesquisadores, podemos observar que existiram mulheres
que almejavam sua liberdade e que de certa forma participaram da 2
vida política ou das lutas constantes que as cercavam. Em
contrapartida, na perspectiva patriarcal os homens encontravam-se
engajados na luta política, esta postura era esperada e fazia parte das
práticas sociais daquele período histórico. Particularmente, sobre a
vida de Anita, torna-se importante perceber como a cidade de Laguna e
seu porto, contribuíram para a propagação de ideologias libertárias e
republicanas, possibilitaram a construção de uma perspectiva de
mundo mais ativa e politizada, dados aos contatos conversas e a
chegada de idéias junto aos navios. Isto permitiu que Laguna recebesse
notícias e propagandas, em especial dos ideais republicanos, assim
podemos observar que Anita, por morar em um porto, tinha contato
com outras ideologias e pôde de certa forma desenvolver uma
consciência crítica, se envolvendo em questões políticas, articulando e
discutindo seus pensamentos, ainda que de forma inusitada para a
época.
Ana Maria de Jesus Ribeiro, mais conhecida como Anita
Garibaldi, que para muitos rompeu padrões de época, teve sua história
construída sob uma imagem de mulher corajosa, gradualmente foi
masculinizada, sua desfeminilização, surge numa contra mão de sua
identidade, como se não possuísse fraquezas, somente coragem. Vista
por muitos, como heroína, em uma época em que mulheres eram
discriminadas, mal vistas pela sociedade, como destaca Oliveira:

A mulher brasileira, como a história de tantas


mulheres, é marcada pelo estabelecimento da
ordem patriarcal que, em grande medida foi
legitimada pela religião cristã ocidental, que 3
transmitiu o silenciamento do feminino em todas as
esferas sociais. A mulher do Brasil oitocentista,
formada e constituída socialmente nesta ordem, era
subordinada e dependente do pai ou do marido,
sendo feita propriedade do homem e calada por ele.
(OLIVEIRA 2009, p.1)

Anita Garibaldi é mencionada na obra de Wierzchowski (2003)


como uma mulher corajosa, que se apropriou do universo masculino,
ignorando normas regidas pela sociedade de sua época, em que
mulheres destinaram-se às atividades menos valorizadas e tinham em
sua condição a submissão ao homem. O patriarca era o senhor e centro
da estrutura social daquele período, era dono das mulheres, conforme
Gilberto Freyre (1986, p. 19) “Donos de terras. Donos dos homens.
Donos das mulheres”. Isso tudo é facilmente percebido na estrutura
social da época, sobretudo quando, as mulheres ainda moças, deviam
obediência ao pai e quando casadas, era o marido que exercia todo o
poder sobre elas. Porém, Anita se diferenciava destas mulheres, como
mostra Wierzchowski em sua obra:

A moça que agora vive com Garibaldi, a Anita, lutou


como um homem, transportando gentes e salvando
os feridos num pequeno barco, e a víamos do alto
do forte, pequenina em meio ao fogo cruzado, indo
de um lado a outro, incólume e corajosa.
(WIERZCHOWSKI, 2003, p. 271).
4
A obra de Wierzchowski (2003) é uma ficção e, apesar da
autora estar ‘masculinizando’ Anita em seu romance, não podemos
perder de vista que ela foi uma mulher, esposa e mãe, que apesar de
participar da guerra, gerou filhos, amamentou e amou como mulher.
Mesmo sendo uma mulher que refletia o mundo masculino, Anita
construiu uma ação política individual a partir de sua condição como
mulher e não o contrário. A partir disso, compreendemos então que,
por mais que Anita fosse uma mulher à frente do seu tempo, em
diversos momentos e condições ela jamais se distanciou da figura
feminina. Segundo Badinter (1991), a fraqueza mostrada na figura da
mulher é certamente consequência da condição imposta pela
sociedade, em que “a mulher não nasce mulher, mas se torna mulher” e
que o caráter e a potência intelectual seriam idênticos no homem e na
mulher, se a sociedade e a educação não interferissem para distingui-
los.
Como para a sociedade Anita foi uma mulher que superou
obstáculos, recentemente, ela teve seu nome incluído no Livro dos
Heróis da Pátria, pelo Diário Oficial da União, sob o título: “Heroína de
dois Continentes”. Esse livro foi criado em novembro de 2007, pela Lei
11.597, assinada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva e pelo
ex-ministro da Cultura Gilberto Gil, ensejando o reconhecimento da
figura heróica de Anita Garibaldi, mitificação essa, criada numa recém-
surgida República Brasileira. Houve a necessidade da criação de novos
‘símbolos’ nacionais com a finalidade de legitimação da nova ordem.
Essa busca por heróis foi bastante importante devido à falta de
participação política popular, pois a Republica Brasileira acabou se
tornando restrita. Conforme Carvalho (2008) esse movimento não teve
o envolvimento do povo, o autor faz uma análise da República que fora
construída "de cima para baixo" e que de certa forma, sustenta a 5
necessidade da criação de vínculos ou representações políticas que
açambarcassem todo o corpo social.

Mas a escolha não foi tão simples, visto que o herói precisava
ter a cara da nação, servindo de referencial para grupos socialmente
diversificados. A construção ou mitificação dos ‘heróis’ tinha como
objetivo, atingir a massa populacional, ou seja, servir de exemplo para
a sociedade. Segundo Carvalho (2008) observa que não há regime
político que não cultue seus heróis. Para o autor, o herói tem que se
identificar e ser aceito pela população, segundo ele, a exemplo o caso
francês, na figura de Mariane, influenciou os primeiros republicanos
brasileiros. Ele afirma:

Não foi por acaso que a Revolução Francesa, em


suas várias fases, tornou-se um exemplo clássico de
tentativa de manipular os sentimentos coletivos no
esforço de criar um novo sistema político, uma nova
sociedade, um homem novo. Mirabeau disse-o com
clareza: não basta mostrar a verdade, é necessário
fazer com que o povo a ame, é necessário apoderar-
se da imaginação do povo. Para a revolução,
educação pública significava acima de tudo isto:
formar as almas (Carvalho, 2008, p. 11).

A construção de heróis é associada diretamente com o tipo de


governo conservador que se desejava implantar, afastando a população
das decisões políticas, e tentando manipular o imaginário do povo, e
dessa forma, Carvalho (2005) reflete sobre essa imagem que a elite
6
estava impondo para a sociedade:

As imagens da nação brasileira variaram ao longo


do tempo, de acordo com as visões da elite ou de
seus setores dominantes. Desde 1822, data da
independência, até 1945, ponto final da grande
transformação iniciada em 1930, pelo menos três
imagens da nação foram construídas pelas elites
políticas e intelectuais. A primeira poderia ser
caracterizada pela ausência do povo, a segunda pela
visão negativa do povo, a terceira pela visão
paternalista do povo. Em nenhuma o povo fez parte
da imagem nacional. Eram nações apenas
imaginadas (Carvalho, 2005, p.233).
Devido a falta de consonância, representação e espaço, entre as
classes menores, havia surgido um sentimento de repudio à república
caracterizada por sua ausência política, que transforma esta mulher
idealizada pelos franceses e pela elite brasileira, em uma prostituta.
Suas perspectivas ainda estavam vinculadas ao paternalismo instituído
pelo regime monarquista. A República foi simbolizada por uma figura
feminina, tal simbologia conforme Carvalho, (2008, p 93) poderia ser
“considerada apenas um meio para compensar a sua exclusão no seio
político, advertindo que a política não era coisa de mulher”. Percebe-se
que, nesta época, ela não tinha lugar no mundo político e nem tão
pouco fora de casa.
7
Anita: da realidade para a ficção

A escritora Letícia Wierzchowski (2003), reconta a história sul-


rio-grandense, sob a perspectiva feminina. Sua obra possibilita uma
visão renovada dos acontecimentos, a partir das discussões sobre
gênero e de um olhar histórico feminino. Ela narra fatos e personagens
até então esquecidos nos relatos oficiais, redescobrindo a atuação de
mulheres que passaram despercebidas no decorrer da história, porque
cultivaram o silêncio e a submissão ao sistema patriarcal tradicional.

O romance resgata a posição feminina, em que às mulheres era


reservado o espaço doméstico e a administração do lar. Como se pode
observar, a minissérie “A casa das sete mulheres”, também mostrou a
questão da Revolução Farroupilha, a partir do olhar feminino, dando
espaço para que as personagens se destacassem em um período de
dominação masculina. Anita Garibaldi também foi contemplada pelos
telespectadores através da TV, caracterizando-a como uma mulher à
frente e seu tempo. A televisão, ou seja, a minissérie acabou retratando
a Revolução Farroupilha, ocorrida no Sul do país, trazendo para o
telespectador uma possibilidade de observar a história a partir de
“novos lugares”. Para, além disso, a minissérie destacou em v|rios de
seus momentos, a trajetória politica e a vida pessoal de Anita, como
foram suas batalhas, como ela surgiu na cena da Revolução Farroupilha
e o quão diferente era seu papel na sociedade de época em comparação
às demais mulheres. Para além da própria Revolução, a minissérie traz
um olhar voltado à situação das mulheres durante o desenrolar da
guerra. Esse destaque ao feminino possibilita uma análise comparativa
entre as mesmas, vistas como tradicionais e conservadoras, e a própria
Anita Garibaldi, tudo isso partindo do romance na minissérie e de 8
cenas em que Anita encontra as demais personagens ali presentes.

Para Marc Ferro (1976) os estudos cinematográficos


relacionados à história devem levar em conta a variedade de
possibilidades em se estudar o filme. Trata-se, sobretudo, de uma obra
de linguagens que possibilita aliar som e imagem e estabelecer elos
com os espectadores. Para Ferro (1976), o cinema ou, nesse caso, a
minissérie, possui uma tensão que lhe é própria, trazendo à tona
elementos que realizam uma análise social:

Ela descobre o segredo, ela ilude os feiticeiros, tira


as máscaras, mostra o inverso de uma sociedade,
seus “lapsus”. É mais do que preciso para que, após
a hora do desprezo venha a da desconfiança, a do
temor (...). A idéia de que um gesto poderia ser uma
frase, esse olhar, um longo discurso é totalmente
insuportável: significaria que a imagem, as imagens
(...) constituem a matéria de uma outra história que
não a História, uma contra-análise da sociedade.
(FERRO, 1976. p. 202-203).

Segundo Ferro (1976), o filme, a novela ou a minissérie histórica,


seriam importantes fontes para revelar aquilo que o autor busca
expressar, muitas vezes em suas narrativas, podendo observar as
ideias sobre determinados personagens, fatos, práticas ou ideologias.
Para o autor, os historiadores devem procurar também, fazer uso do
cinema como meio de comunicação de suas concepções sobre a 9
História. Paiva (2008) observa que às minisséries se entrelaçam nas
mais profundas malhas da história, para ele, de certa forma, o olhar do
telespectador diante da televisão especifica novas espacialidades e
temporalidades para uma reconstrução da história. Dessa forma,
acabamos compreendendo que as minisséries históricas fazem uma
reconstrução do conhecimento histórico, atendendo um novo formato
proposto, ou seja, ao analisar a Anita da minissérie, pode-se pensar na
Anita Garibaldi histórica, pois, a personagem ali presente, existiu, ela
não é ficção, isso pode ser comprovado em fontes históricas da época.
Pensando nisso, percebe-se que é possível transformar a escrita em
imagens que procuram mostrar o tempo histórico, em filmes, novelas e
minisséries.

Chartier (2009) faz uma análise, em que os historiadores


percebem que as obras literárias desempenham um papel evidente na
coletividade em relação ao passado, até mais que muitos livros de
história, entretanto, não deixam dúvidas quanto à distinção entre
ficção e história:

[...] a ficção é um discurso que informa do real mas


não pretende representá-lo nem abonar-se nele,
enquanto a história pretende dar uma
representação adequada da realidade que foi e já
não é. (CHARTIER, 2009, p.24).

Segundo Decca (1997), a historiografia moderna e o romance


partilham, desde suas origens, o mesmo ideal que é encontrar o
sentido da experiência humana, 10

a diferença entre a historiografia e o romance não


está portanto naquilo que ambos perseguem, mas
no modo de investigar tais objetivos. A
historiografia direcionou-se para o campo das
ciências (...) acreditando na objetividade do método
e da teoria para a apreensão do mundo real.
Caminho diferente acabou percorrendo o romance,
na busca da apreensão do real, acreditando mais na
força da imaginação e da subjetividade. (DECCA
1997, p. 199).

A linguagem é a forma na qual a historiografia organiza seus


modelos metodológicos, formalizando uma narrativa, dessa forma,
como menciona Decca (1997, p. 200) “a historiografia e o romance são
modos de narrar eventos humanos com o objetivo de extrair os seus
significados”. Notadamente muitos romancistas escolhem para sua
obra a trajetória de personagens reais, como foi o caso em que
Wierzchowski (2003) observou e descreveu Anita Garibaldi. Estes
autores fazem de forma minuciosa, várias pesquisas, escolhendo com
atenção documentos, mas, segundo Schmidt (1997), de certa forma,
existem diferenças entre um historiador e um romancista:

Porém, insisto, seus compromissos são diferentes


daqueles que se impõem aos historiadores. As
possibilidades de invenção destes últimos estão 11
sempre restritas a um "campo de possibilidades
historicamente determinadas"que obviamente não
é ilimitado. (SCHMIDT, 1997, p.13).

Tanto para romancistas, quanto para historiadores, a análise


detalhada de documentos é de grande importância para ambos e como
continua afirmando Schmidt, (1997, p.13) [...] “os estudos biogr|ficos
podem ser de grande valia para a comprovação ou para a refutação de
diversas teses consagradas”. O historiador, pode utilizar-se da
imaginação, como faz o romancista, desde que esta seja esclarecida ao
leitor, enquanto tal, e delimitado pelas fontes disponíveis. Estes
procedimentos muitas vezes não são seguidos pelos jornalistas-
biógrafos, preferindo tramar em seus textos o "verdadeiro" e o
"verossímil", as "provas" e as "possibilidades" (SCHMIDT, 1997, p.14).
O imaginário é um recurso do historiador em seu processo de escrita.
Segundo Pesavento (2006) a narrativa histórica estimula a imaginação,
possibilitando uma realidade passada que só pode chegar até o leitor
pelo esforço do pensamento, um leitor de história cria em sua mente,
cenários e personagens históricos ao ler, da mesma forma que um
leitor de texto literário constrói mentalmente os cenários, as
personagens e suas articulações.

Segundo Pacheco (2007), Anita Garibaldi é uma mulher


estudada por historiadores, literatos, curiosos e amantes da história. A
historiografia vem analisando sua história por diversas formas de
mídias e olhares como biografias, ensaios, seriados de TV, iconografia e
iconologia. De tal modo as produções historiográficas e literárias,
esclarecem a trajetória de Anita junto de Giuseppe Garibaldi, narrando
suas histórias de vida, como enredo histórico, como quando da 12
conquista de Laguna pelos Farroupilhas, ou nas lutas pela unificação da
Itália. Wolfgang Ludwig Rau foi o maior colecionador de documentos
sobre Anita Garibaldi, assim como foi também, o primeiro autor a
apresentá-la como uma personagem histórica. O autor fez pesquisas e
procurou vencer a falta de dados históricos e tentou esclarecer e
preencher lacunas da vida dessa brasileira.

Num outro sentido, Silverstone (2005) argumenta que a mídia,


é uma ferramenta para a manifestação da memória, mostrando o
passado, no sentido de apresenta-lo e representá-lo. “Memória que é
pública, popular, difusa, plausível e, portanto, irresistível e também, de
tempos em tempos, compulsiva.” (SILVERSTONE, 2005, p. 234). Para o
autor “As memórias da mídia são memórias mediadas. A tecnologia
tanto conectou como interveio”. (SILVERTONE, 2005, p. 242). A
teledramaturgia é responsável também, por transmitir a história e
trazer o conhecimento sobre o passado, o que acaba levando os
indivíduos a construir sua memória mediada.
Rosenstone (2010) argumenta que um filme histórico, assim
como um livro, não é o real, para ele uma obra fílmica e um livro de
História compartilham das mesmas limitações, o filme histórico e o
livro de História, pertencem ao campo das representações, são
produções que se aproximam muito, pois, “referem-se a
acontecimentos, momentos e movimentos reais do passado e, ao
mesmo tempo, compartilham do irreal e do ficcional” (ROSENSTONE,
2010 p.14). Silverstone (2005) aponta que não há uma divisão
evidente entre a representação histórica do passado e a popular.

Elas se fundem, como também rivalizam, no espaço


público. E, juntas, definem para nós tanto os textos 13
como os contextos: para a identidade, a comunidade
e, na base dessas duas, para a crença e ação, que
talvez sejam os fatores mais importantes.
(SILVERSTONE, 2005, p.236-237).

No caso da minissérie, “A casa das sete mulheres”, a produção


estava voltada à uma reconstituição histórica da Revolução
Farroupilha e, durante os capítulos, a trama aliou aos fatos históricos à
um enredo e personagens fictícios, ficando no limite da ficção e da
história, exemplo maior foi a construção do personagem de Anita,
parte histórico, parte ficcional, mas sobretudo criado pelas novas
demandas criticas do publico.
Vida política e militar de Anita Garibaldi

Anita Garibaldi é uma das poucas mulheres brasileiras que,


antes do século XX, participou, de eventos políticos e militares da
História do Brasil, pois, essas questões sociais não diziam respeito à
mulher, era papel do homem se preocupar com questões públicas. No
entanto, Anita participou de algumas batalhas que foram decisivas na
luta republicana do Rio Grande do Sul. Lutavam por um governo de
todos. Como define Bobbio (2004) no dicion|rio de política “(...) o
termo República se contrapõe à monarquia”. A República quer
evidenciar o pensamento de uma sociedade, o bem comum. A
República mostra a vontade do povo, enquanto que na monarquia
quem expressa essa vontade é o rei. O republicanismo enfatiza os
deveres e a participação política dos cidadãos, sobretudo no Rio Grade 14
do Sul o republicanismo passou a ter maior importância com o
surgimento da Revolução Farroupilha, adquirindo ainda mais
importância com a proclamação da República Rio-Grandense.

Os farrapos buscaram, até fevereiro de 1845, através da


república, garantir a autonomia local tentando construir um Estado
soberano e independente, porém nem todo o Rio Grande do Sul, foi
favorável aos farroupilhas, algumas cidades mantiveram-se a margem
do processo revolucionário, nunca estando sob o controle dos
Farrapos. Os ideais de autonomia e substituição do regime monárquico
pelo republicano tinham em Laguna, fervorosos e intransigentes
adeptos, como foi o caso de Anita, que, conforme RAU (1975), sempre
esteve envolvida nas reuniões republicanas. O republicanismo
consistia em uma das principais ideologias de oposição ao império, a
República, entretanto, tinha um significado maior do que o de Estado,
pois, ela não era apenas um território, mas um território organizado
politicamente, desta forma, o republicanismo constituía-se em uma
importante ideologia utilizada na construção destes novos Estados.

Anita foi casada com o sapateiro Manuel Duarte de Aguiar,


casou-se aos catorze anos, casamento arranjado por sua mãe. A
dificuldade de romper a ordem social e o tradicionalismo dos
costumes, não deu escolha a Anita com relação ao matrimônio, mesmo
sendo uma mulher de caráter decidido e dona de suas vontades, Anita
teve que aceitar as bodas como se fosse seu destino irremediável, pois
essas eram as condições sociais daquele período, de dominação
masculina, conforme Freyre (1986) “da mulher ser tantas vezes no
Brasil vítima inerte do domínio ou do abuso do homem”.

Em 29 de julho de 1839, em Santa Catarina, Garibaldi e os 15


Farrapos proclamaram a República Juliana, eles desejavam
transformar todas as províncias do Império Brasileiro em repúblicas
autônomas. Garibaldi chegou a Laguna no comando do Lanchão Seival,
onde derrotaram a marinha e as tropas imperiais e entraram vitoriosos
em Laguna, Anita vai lutar por seus ideais, aderindo-se aos farrapos.
Segundo Ribeiro (2011), sua história será resgatada pelos
historiadores somente a partir da proclamação da República, fruto do
novo contexto político. Anita no período em que viveu, foi vista pela
sociedade como “diferente”, pois não era normal uma mulher pegar em
armas para defendê-los, sobretudo seu posicionamento e ação política.
Conforme observamos até o momento, a sociedade daquele período
refletia a dominação masculina. Entretanto, contemporaneamente a
nova sociedade começou a refletir melhor sobre a posição das
mulheres e como equivalente, Anita ganhou nova contextualização, foi
apresentada como mulher forte, desprendida e vista pela sociedade
como heroína autêntica, heroína desmistificada.
A figura de Anita Garibaldi atualmente é celebrada pela cidade
de Laguna, em que no mês de julho se encena a Tomada de Laguna
pelas forças farroupilhas, envolvendo toda a cidade nas festividades da
Proclamação da República. Parte dessa nova contextualização é
percebida quando a mulher Anita Garibaldi nomeia no Estado de Santa
Catarina, ruas, praças, escolas, museus:

Numerosas cidades brasileiras levantaram


monumentos em sua memória e a Itália a
consagrou, colocando-a no que ergueu ao guerreiro
que foi seu esposo. Muitas ruas levam o seu nome e
a glória tem aureolado o nome da pobre lagunense 16
que partiu desprezada de sua terra e a ela voltou
imortalizada no bronze. (CABRAL, 1970, p. 137).

No serviço militar, os homens cumprem várias funções nas quais


as mulheres não possuem equivalentes ou condições especificas, esse
espaço de guerra acabou construindo uma caracterização masculina,
porém as mulheres não estão ausentes desse ambiente. O homem é
visto como forte, ou seja, mais corajoso que as mulheres, tendo
obrigação de protegê-las, já a mulher é vista como um ser frágil, o que
fica evidente na sociedade patriarcal, conforme observa Freyre (1986),
existe essa diferença entre o homem e a mulher, reforçando esse
conceito de dominação e fragilidade. Como relata Oliveira (2009), a
mulher dessa época era dominada pelo homem, devendo respeitá-lo,
pois, a mesma era um produto nas mãos de seus pais, maridos e até
seus irmãos.
A mulher do Brasil oitocentista, formada e
constituída socialmente nesta ordem, era
subordinada e dependente do pai ou do marido,
sendo feita propriedade do homem e calada por ele.
Desde menina era ensinada a ser mãe e esposa, sua
educação limitava-se a aprender a cozinhar, bordar,
costurar, tarefas estritamente domésticas, que
restringia a mulher apenas ao espaço privado como
sendo o único lugar, e sem contestar pois seu
espaço estava determinado. Carregava o estigma da
fragilidade, da pouca inteligência, afirmações do
patriarcado que construiu estereótipos ao longo do
processo histórico, onde foram sendo reproduzidos
como natural, definindo assim o papel social da 17
mulher, como propriedade e produto do homem,
devendo obediência ao “seu senhor”. (OLIVEIRA
2009, p.01)

Oliveira (2009) relata que o patriarcalismo era o que


determinava o espaço social brasileiro no século XIX, cabendo à mulher
o papel de boa moça, deveriam ser boas mães e boas esposas,
formadoras de futuros cidadãos. As mulheres acabavam aceitando esse
papel, mas, segundo Oliveira (2009), elas, através da saída de casa para
a escola, começaram a ter uma participação no espaço público e uma
redefinição de seu papel social. A profissionalização do magistério
acabou abrindo as portas do mercado de trabalho, ampliando inclusive
a educação familiar dos próprios filhos e filhas. Acabaram adquirindo
uma profissão, tinham como se sustentar, estavam a um passo de sua
independência.
Anteriormente, as mulheres eram vistas apenas como figura
materna e as políticas publicas em relação a mulher eram voltadas
para a amamentação e os cuidados com as crianças e com o lar.
Resultado desse processo o elemento feminino apresentado na mídia,
ainda reflete estereótipos ligados a educação doméstica, religião,
política, cinema e literatura cheios de desigualdades. Silva (2005) faz
uma análise em livros didáticos nos quais, segundo ele, a violência
praticada contra a mulher não é apenas física, mas também simbólica.
Alerta para o erro da manutenção das “(...) permanências negativas {s
mulheres nos espaços de socialização”. Dificultando em grande parte,
a organização de uma sociedade mais igualitária. E no que se refere à
representação feminina, o autor complementa:

18
Que idéia do papel da mulher na construção da
sociedade nos é apresentada (...) o papel da mulher
é estar sempre em uma situação de subordinação,
realizando trabalhos domésticos, cuidando de filhos
e, também, em situação de consumo. Cuidar das
crianças, velar pelo marido, fazer compras, agir na
domesticidade do lar. Lugares de reclusão e de
participação menor nos negócios da sociedade.
Transmitindo tais valores, como esperar que as
novas gerações de mulheres venham a sentir-se
sujeitas de suas próprias histórias e entendê-las
como parte de um processo maior? (SILVA, 2005
p.157)
Porém, mesmo com essas limitações e preconceitos referentes
às mulheres, no início de novembro de 1839, Anita entrou em combate
em Imbituba. Em 15 de novembro, ocorreu o confronto com a
esquadra imperial sob o comando do Almirante Mariath, quando a
marinha farroupilha foi destruída. No final do mês, Garibaldi e Anita
acompanharam as tropas de Canabarro em retirada em direção ao Rio
Grande do Sul. Já no final de dezembro, lutaram na batalha de
Curitibanos, quando Anita caiu prisioneira, tendo empreendido a
lendária fuga do acampamento imperial e reencontrando Garibaldi oito
dias depois. Em 16 de setembro de 1840, nasceu Menotti em São José
das Mostardas. Como observa Rau (1975), Anita fez uma dura marcha
pelo planalto médio, quando quase perdeu seu bebê, Garibaldi e Anita
partiram para Montevidéu, onde lutaram com suas tropas, nesse
contexto podemos obsevar que ela não limitou sua participação 19
militares, ela continuou participando ativamente dos confrontos, como
mulher, esposa e mãe. Muitas mulheres como Anita, tiveram
participação, direta ou indiretamente com guerras e conflitos, porém
suas histórias foram esquecidas, destaca Rau:

A participação direta de mulheres em lutas


violentas é geralmente esquecida, dificilmente
reconhecida. Entretanto, apesar disso, de alguma
maneira, as mulheres sempre estiveram envolvidas
em guerras, revoltas e guerrilhas. E muitas vezes
pegam armas. (RAU, 1975, p. 423)
Retornando a Europa, Anita e Giuseppe desembarcaram em
solo italiano, dando inicio a uma nova fase na vida de Anita Garibaldi.
Rau (1975, p.228). faz uma observação sobre a vontade de Garibaldi
voltar para a It|lia: “aumentava-lhe ainda mais o ardente desejo de
voltar a It|lia” Anita com aproximadamente vinte e sete anos,
conforme sonhava com a terra de seu marido, “tendo construído para
si todo um mosaico imagin|rio da p|tria de Garibaldi”, (Rau 1975,
p.328).

Apesar de viver em uma sociedade em que o homem era


venerado, Anita não era oprimida ou submissa às regras que a
sociedade impunha, negando qualquer elemento que a pudesse
prendê-la ao ambiente fechado da casa e às tarefas domésticas,
preferia o que aos olhos do público era o hábito de um homem. 20
Conforme Ribeiro (2010) a opressão ao feminino nesse período
histórico ampliava a dificuldade das mulheres se posicionarem perante
a sociedade de forma autônoma e individualizada.

Os atos de galopar, ir ao mercado, matear no


comércio e discutir política são atitudes atribuídas
aos homens e proibidas às mulheres. Todavia, a
personagem não se submete às normas que
estabelecem a opressão feminina e transita no
espaço público como o seu território (RIBEIRO,
2010, p. 5)
Enquanto seu marido participava do movimento da unificação
italiana, Anita e os filhos ficaram na casa de dona Rosa Raimondi, mãe
de Garibaldi. Conforme Rau (1975), Anita estava nervosa com notícias
de que Roma fora sitiada, e mesmo estando grávida e enferma em
junho de 1849, pusera-se ao encontro de seu marido, embora Garibaldi
quisesse mantê-la longe da guerra:

Esta mãe, novamente grávida, expôs-se no teatro


das operações, determinada a dividir os extremos
perigos de adesão a uma República cadente junto ao
homem a quem considerava diferente dos maridos
de outras mulheres, e de maior valor do que 21
qualquer filho pudesse ter. (RAU, 1975, p.380).

Grávida de seu quinto filho, se juntou às tropas de Garibaldi, e com


a queda da república Anita, Garibaldi e a tropa que os acompanhavam,
fugiram de Roma. Durante a fuga, Anita demonstra muito cansaço
ficando cada vez mais doente, tendo que ser carregada pelo seu
marido. Anita falece em 04 de agosto de 1849, em Madriole, perto de
Ravenna. Por causa da aproximação da tropa inimiga, seu corpo é
enterrado na areia às pressas. Dias depois, uma menina descobre seu
braço,fora da sepultura e autoridades são avisadas, descobrem que o
corpo pertence à Anita, seu corpo passa por diversos sepultamentos
até ser enterrado definitivamente em 1932, em Roma, local onde foi
erguido um monumento em sua homenagem.
Percebemos através de leituras, que sua vida foi romanceada, e
que para muitos ela foi uma heroína, como observa Collor (1977, p.
332) “Nunca imaginaríamos ver uma mulher tão valorosa. Enchia-nos
de orgulho o fato de ser ela uma catarinense, uma compatriota, que
dava ao mundo tão sublime provas de valor e intrepidez”. Vimos que
ela, apesar de ser intrépida, passou por restrições de uma sociedade
patriarcal e dessa forma, nos faz refletir acerca das diferenças sexuais,
que a sociedade cria nas relações de gênero. O feminino e o masculino
são considerados opostos e com valores diferentes, como observamos
na maioria das vezes o que é pertence ao universo masculino é mais
valorizado.

22
Considerações Finais

O objetivo deste trabalho foi realizar um estudo sobre a vida


pública de Anita Garibaldi e como ela foi observada em obras literárias
e televisiva, identificando como sua vida era descrita biograficamente e
como era a vida das mulheres naquele mesmo período histórico.
Através de análises literárias, pôde-se observar um romantismo muito
forte que se dá em torno de sua vida, porém verificamos como foi uma
mulher que desejou ir além do que a sociedade patriarcal impunha
naquela época. Fazendo leituras referentes a vida de Anita e de outras
mulheres, podemos observar o quanto suas histórias são esquecidas
nesse ambiente de batalhas e guerras. O homem é visto como forte, ou
seja, mais corajoso que as mulheres, tendo obrigação de protegê-las, já
a mulher é vista como um ser frágil com dever de cuidar da casa, o que
fica evidente na sociedade patriarcal, conforme observa Freyre (1986),
existe essa diferença entre o homem e a mulher, reforçando esse
conceito de dominação e fragilidade.
Muitas vezes a história das mulheres é contada pela visão
masculina a qual a silencia, tornando-a não a autora da sua própria
história. Essa exclusão das mulheres da vida pública deve-se aos
discursos masculinos dominantes, pois, foram os homens que, ao longo
do tempo, representaram socialmente as mulheres.

Apesar de viver em uma época em que o homem tinha domínio


sobre a mulher, e que deveria ser submissa a ele, Anita Garibaldi
rompeu com esses padrões, procurando lutar pelo que acreditava,
colocando em risco sua própria em vida em defesa da República
Catarinense, mas, sobretudo no que acreditava. Podemos observar que
Anita Garibaldi, era uma mulher que buscava alcançar seus
pensamentos políticos, apesar de muitos romancearem a sua história,
de que ela lutou ao lado do seu “grande amor”. Anita Garibaldi desde 23
criança se mostrava diferente, como relata Lindolfo Collor (1977, p.
262), Anita “revela desde criança um car|ter independente e resoluto.
Sabia impor-se pela energia”. Toda essa an|lise proporcionou uma
reflexão acerca da figura de Anita, todo seu posicionamento e luta
política, ampliaram os olhares sobre a “mulher”, resinificando nossa
visão sobre a história.

Mesmo longe do movimento farroupilha, de sua terra, manteve


sua condição de mulher e suas convicções políticas, ao mesmo tempo
em que cumpriu seu papel de soldado, mãe, mulher e esposa. Assim
percebe-se que Anita Garibaldi foi uma mulher que buscou lutar pelo
que acreditava e que sua vida nos revela a condição feminina, abrindo
espaço para a história de vida de outras mulheres, que naquele mesmo
período também lutaram, mas que suas histórias acabaram
simplesmente esquecidas.
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O DESAFIO DA MEMÓRIA: MEMÓRIA, MEMORIZAÇÃO
E HISTÓRIA NA CHINA TRADICIONAL

André Bueno

O Homem que esqueceu

Havia em Song um homem chamado Huazi, que


contraiu ao chegar à meia idade a singular doença de
esquecer tudo. Tomava uma coisa de manhã e
esquecia-se dela à noite, e recebia uma coisa de noite e
já não se lembrava pela manhã. Quando estava na rua 1
esquecia-se de andar, e estando em casa esquecia-se
de sentar-se. Não podia recordar-se do passado no
presente nem do presente no futuro. E toda a família
estava muito aflita com isso. Os parentes consultaram
o adivinho e não puderam decifrar o caso, consultaram
a feiticeira e as rezas não o puderam curar, e
consultaram o médico e este não deu remédio. Havia,
porém, um letrado, confuciano na terra de Lu que disse
poder curar o homem. Assim, a família de Huazi
ofereceu-lhe metade dos seus bens se ele o livrasse
dessa estranha doença. E disse o letrado confuciano:

- A sua doença não é coisa que se possa tratar com


predições, com rezas ou com remédios. Vou tentar
curar o seu espírito e mudar os objetos do seu
pensamento, e talvez ele se restabeleça.
Assim, ele expôs Huazi ao frio e Huazi pediu roupa,
deixou-o ter fome e ele pediu comida, fechou-o num
quarto escuro e ele pediu luz. Conservou-o numa sala
sozinho durante sete dias, sem se importar com o que
ele fazia todo esse tempo. E a doença de anos foi
curada num dia.

Quando Huazi ficou restabelecido e soube do caso,


enfureceu-se. Brigou com a mulher, castigou os filhos e
expulsou de casa com uma lança o letrado confuciano.
A gente do lugar perguntou a Huazi por que fez isso, e
ele respondeu:

- Quando eu estava mergulhado no mar do 2


esquecimento, não sabia se o céu e a terra existiam ou
não. Agora eles me despertaram, e todos os triunfos e
reveses, as alegrias e as tristezas, os amores e os ódios
dos decênios passados voltaram a perturbar o meu
peito. Receio que no futuro os triunfos e os reveses, as
alegrias e as tristezas, os amores e os ódios continuem
a oprimir o meu espírito como me oprimem agora.
Posso eu recuperar algum dia sequer um instante de
esquecimento? [列子 Liezi, séc. +1]

A história do livro de Liezi trata do tema da memória (记 Ji),


elemento fundamental para a construção da história e da
individualidade. Para os caminhantes, que gostavam de jogar com o
sonho e com a memória, a aniquilação da reminiscência da cultura e
dos sentimentos significava o tão desejado retorno à 'natureza original'
(自然 Ziran); mas o ‘homem que esqueceu’ revela um ponto
problemático para a humanidade; pode ela construir-se sem a
memória, sem a manutenção de suas tradições?

Confúcio acreditava que a humanidade só existia com a cultura, e


desde o nascimento somos inseridos nela; para ele, pois, o problema
consistia na transmissão das tradições, de modo que o indivíduo
pudesse se integrar por completo na sociedade, evitando que a
ignorância e selvageria se apoderassem de sua autonomia. Como ele
mesmo afirmou, "Quando a natureza prevalece sobre a cultura, obténs
um selvagem; quando a cultura prevalece sobre a natureza, obténs um
pedante. Quando natureza e cultura estão em equilíbrio, obténs um
cavalheiro" [论语, Conversas, 6]. A preservação da cultura dependeria,
pois, da memória, pilar da civilização:
3

Mestre Zeng disse: "Quando se honram os mortos e a


memória dos ancestrais remotos se mantém viva, a
virtude de um povo encontra-se em seu apogeu".
[Conversas, 1]

Contudo, como preservar essa memória? Desde saída, sabe-se que


o humano – por mais extensas que sejam suas capacidades de
memorização – escolhe os fragmentos do passado que preserva para
si mesmo, o que dá dimensão a sua vida individual. Por
conseqüência, essas escolhas se refletem no entendimento e na
interpretação dos ritos [ou, a cultura], que articulam a sociedade e o
imaginário que ela constrói sobre si mesma.
Sem esse imaginário construído pela cultura, e apreendido pelo
binômio ‘educação - experiência’, a sociedade perde-se nas leis, nos
excessos e nas ausências. A história, portanto, fornece a ligação
necessária para a manutenção da cultura, transformando-se numa
literatura redentora. Mas como fixar a memória, o alicerce das
lembranças históricas?

Xunzi 荀子 [- 313 -238], um dos mais importantes seguidores de


Confúcio, afirmou que:

A mente não deixa de arquivar, mas pouco entende


de aprender pela sua própria natureza. O ser 4
humano, ao nascer, está dotado da capacidade de
conhecer as coisas. Esse conhecimento leva a
memória, e a memória é o arquivo. Quando se fala da
necessidade de aprender algo que não seja pré-
concebido, significa que devemos tomar cuidado para
que o que sabemos não atrapalhe ou entorpeça a
aquisição de novos conhecimentos.

Xunzi nos lança uma dificuldade básica para a preservação dos


registros: como aprender coisas novas sem esquecer as anteriores?
E, no entanto, como aprender coisas novas sem possuir –e manter –
uma base a priori? Por conta disso, os chineses engendraram um
sistema duplo, que envolvia a construção do texto [o ‘armazém da
memória’] e a memorização, que sistematizava a construção de uma
‘mente cultural’, ou, um raciocínio voltado para a preservação e
análise das tradições.

Sima Qian 司马迁 [-145 -90], o famoso historiador da dinastia Han


汉, optou por fixar a memória em texto, admitindo que, após séculos,
os fragmentos e detalhes se perdem, e o entendimento dos
princípios subjacentes ao escrito histórico ficam cada vez mais
difíceis de serem alcançados:

Busquei preservar e garantir a continuidade das


antigas tradições imperiais para que elas não fossem
corrompidas ou perdidas. Sobre a carreira dos 5
grandes reis, eu pesquisei seus começos e examinei
seus fins; eu vislumbrei seus tempos prósperos e
observei seus declínios. Em todos estes casos, eu os
discuti e examinei, e o que fiz foi uma introdução
geral a história das três dinastias e aos anais de Qin e
Han, vindo desde a época do Imperador amarelo até
os dias de hoje, que estão organizadas nos doze anais
básicos. Depois de tê-los posto em ordem e os
completado, em função de algumas diferenças na
cronologia de alguns períodos, em que as datas não
estão claras, eu as organizei nas tabelas cronológicas.
Sobre as mudanças nos ritos e na música, sobre a
astronomia e o calendário, sobre o poder militar, as
montanhas e os rios, espíritos e deuses, a relação
entre o céu e a terra, as práticas econômicas e suas
mudanças ao longo do tempo, eu fiz os oito tratados.
[...] Para aqueles que serviram com espírito moral aos
seus senhores e governantes, para estes eu fiz as
trintas casas genealógicas. [...] para manter o nome
daqueles que legaram seu nome a posteridade do
mundo, eu fiz as setenta biografias. São assim cento e
trinta capítulos, 526.500 palavras, o livro da Grande
História, compilado em ordem para reparar as
omissões e ampliar as seis disciplinas. Este é o
trabalho de uma família, designado para completar as
variadas interpretações dos seis clássicos e pôr em
ordem a grande miscelânea de ditos das cem escolas.

6
Inevitavelmente, Sima assumiu a escolha pelos materiais e versões
que propunha – até porque, ainda era recente na mente chinesa a
apocalíptica tentativa da dinastia Qin de apagar o passado. Ele estava
absolutamente consciente das dificuldades de reconstruir um tempo
passado, ao qual ele não poderia acessar senão por meio da imaginação
e das referências documentais que restaram. No entanto, Sima
consolida a importância do escrito: junto com isso, os chineses
admitem que aquilo que foi fixado é uma ‘referência do passado’,
exposta a crítica, mas indispensável como ponto de partida. Dominar o
texto torna-se, assim, uma extensão natural do processo de
memorização, tal como a memorização preserva a tradição guardada
no escrito. Ambos se nutrem um do outro, e a quebra dessa estrutura
provoca as tão temidas perdas históricas, cujo desdobramento é o
desconhecimento da cultura e a conseqüente crise social. Esse
entendimento do papel da memória se consolidaria na história chinesa,
por mais de um milênio, até surgirem as primeiras críticas.
A importância da memorização

Tanto é que um milênio depois, Zhang Zai 张载 [+1020 +1077]


reafirmava a necessidade da memória como alicerce do aprendizado
cultural:

Também é necessário saber de memória os textos


clássicos [...]. Quem os sabe de memória pode explicar
as palavras e colocá-las em ação. A memorização, assim,
é imprescindível.

7
Pois segundo Zhang, apenas assim:

Ao ler, há que guardar de memória e refletir


profundamente [o texto][...] para abarcar o contexto
e deduzir o que o autor quer dizer.

Zhuxi 朱熹 [+1130 +1200], o grande estudioso confucionista e


especialista em história, afirmava igualmente que:

Por regra geral, na leitura de um livro, a primeira


coisa que se deve fazer é recitá-lo de memória, até o
ponto em que as palavras pareçam emanar da boca
do próprio leitor; logo, chega a hora de refletir
concentradamente, até o ponto em que o sentido do
livro pareça proceder da mente do próprio leitor, e
assim se pode conseguir algo.

Portanto, é quando o leitor incorpora o texto em sua mente que


ele adquire a simbiose necessária com o autor – ou a menos, é o que
se supõe ao ser ler os textos do passado, sabendo que esses autores
estão mortos. Zhuxi acreditava que a memória seria a identificação
dos princípios subjacentes ao texto, ou seja, que a memorização
levava a uma compreensão exata do que o texto, e do que ele propõe. 8
Zhang Boxing 張伯行 [1652 +1725] tentou conciliar essa tensão
entre o sentido de memorizar e a memória em si, entendendo que a
memorização abria os sentidos a compreensão possível do escrito;
no entanto, a instabilidade da mente sujeitaria a memória ao
acidente e a confusão, permitindo interpretações errôneas. Se isso
fosse verdade, como supor então que seria possível captar um
sentido do texto? Não seria a própria escolha dos fragmentos
memoriais a articulação de um sentido novo para a interpretação da
história? Como Zhang Boxing afirmara,

Estudar é ler, ler é refletir, refletir é ler, e assim se


capta naturalmente o sentido. Esse não se capta com
a leitura sem reflexão. Mas, a reflexão sem estudo,
ainda que permita obter algo, esse algo é instável na
mente. [...] a total memorização do texto somada a
uma profunda reflexão permitirá alcançar a
identificação da mente com o sentido do texto, e o
que se aprende nunca será esquecido.

O próprio Boxing supunha, por fim, que esse condicionamento


era essencial, de fato, para criar a memória – e conseqüentemente, o
sentido:

Quem tem memória fraca não tem mais do que


recitar um texto repetidamente para, de modo
9
natural, familiarizar-se com ele e guardá-lo de
memória.

Todavia, outro importante historiador, Zhang Xuecheng 章学诚


[+1738 +1801], discordou dessa teoria, estabelecendo um paradoxo
entre a memorização e a memória; se a memória em si contém os
princípios, a reflexão – mais do que a memorização – não permitira o
real acesso ao sentido do texto? Para ele, a memorização seria um
acessório do verdadeiro conhecimento, mas não um fim em si:

Aquele que apenas começou a estudar não conhece de


memória os textos. Mas, na medida em que vá
ampliando e aprofundando seus estudos, ele vai
passando por cima da simples memorização. A
memorização é como uma carruagem ou embarcação
no itinerário do estudo; para viajar se precisa de uma,
mas ao chegar ao destino, a deixa. Quem nunca viajou,
porém, não precisa de carruagem...

A ironia no final da afirmação de Zhang deixa escapar que, mesmo


com sua relutância pela memorização, aqueles que não cultivam a
memória – e por conseguinte, a história e a cultura – estão sujeitos aos
acidentes da vida, e são incapazes de refletir profundamente.

Ao ler esses autores, é difícil não pensar como a manutenção da


10
memória tornou-se um objeto central na análise dos pensadores
chineses, principalmente como alicerce da construção de uma história
cultural, cuja função foi, desde cedo, a manutenção da continuidade
chinesa. Se por um lado parece haver algo de artificial nessa ênfase na
memorização, ou mesmo na escolha dos objetos históricos a serem
preservados, por outro, é esse intento de manter uma cultura viva que
permitiu a sobrevivência milenar dessa civilização. Durante a dinastia
Song, por exemplo, surgiu o Sanzijing 三字经 (Tratado dos três
ideogramas), de Wang Yinglin 王应麟 [+1223 +1296], uma magnífica
obra educacional, dedicada a ensinar os ideogramas às crianças. O livro
é todo composto por orações de três ideogramas diferentes,
organizados em rimas, e que apresentam uma mensagem ligada a
histórias tradicionais da cultura chinesa. Tal esforço denota a intenção
clara, dos chineses, em reforçar os processos de memorização. O livro é
um sucesso até os dias de hoje, e não raro é utilizado nos meios
educativos..

A China escolheu, assim, por continuar a existir, apesar de todas as


suas crises. A memória histórica, sobre a qual se assenta a
continuidade da cultura, foi compreendida pelos chineses como a
forma ideal de articular sua existência.O projeto histórico de Confúcio
foi bem sucedido; e apesar dos homens que preferem esquecer, como
na história de Liezi, a humanidade já compreendeu que precisa
lembrar para continuar a sobreviver, e superar os desafios da
modernidade a partir de suas experiências pregressas.

O Mestre disse: "Quanto a mim, não sou dotado de um


11
conhecimento inato. Sou simplesmente um homem que
ama o passado e que é diligente em investigá-lo".
[Conversas]

Bibliografia

LIEZI, Tratado do Vazio Perfeito. São Paulo: Landy, 2009.

CONFÚCIO, As Conversas do Mestre. 2012, em


http://orientalismo.blogspot.com.br/2012/04/as-conversas-do-
mestre.html

Os demais textos foram retirados da antologia de 冯天瑜 Feng Tianyu,


中国思想家论智力 Zhonguo yixiang jialun zhili. Shanghai, 1986.
LED-ZEPPELIN - UMA “LENDA” QUE TRANSCENDEU GERAÇÕES

Aquiles K. G. Zin

Resumo: Voltamos aos anos 1960. Uma época de muitas movimentações de


âmbitos econômico, cultural, social e político. Porém, apesar destas
movimentações estarem distribuídas em todos estes aspectos, eles estavam todos
embalados pela mesma presente (e muitas vezes polêmica) forma de mídia e
manifestação existente até os dias de hoje: a música. A música está presente na
humanidade desde a antiguidade em rituais primitivos (para colheita, chuva,
proteção) a partir da percussão, até a atualidade, seja na forma de lazer, expressão
ou diversão. Não é nosso objetivo discutir aqui, a história da música propriamente
dita, porém, vamos procurar entrar em detalhes da década de 1970 em torno do
gênero musical definido como “Rock and Roll” e também, algumas de suas origens e
1
vertentes como Blues, Rythm and Blues, Country, e mais tarde o Hard Rock, o Heavy
Metal, o Classic Rock, através da banda Led Zeppelin. Ao falar de Rock and Roll,
muitas vezes o classificamos em décadas, e em cada uma delas há artistas que se
destacam como, por exemplo, Elvis Presley nos anos 1950. Dentro desta mesma
dinâmica, procuraremos tratar da banda Led Zeppelin (da década de 1970). Nesta
pesquisa procuramos constatar e apresentar o Led Zeppelin de forma tão (ou
mais) importante e “revolucion|ria” para o Rock quanto qualquer outra banda.
Nosso propósito é abordar a banda a partir de um foco no quadro musical e
também a partir de seus fatos inovadores, para provar que o Led Zeppelin merece
o seu posto de total importância na História do Rock. De modo geral, procuramos,
por fim, abordar o Led Zeppelin, para que assim pudéssemos fundamentar mais
detalhadamente sua grande importância em sua década de sucesso, os anos 1970.

Palavras- Chave: Led-Zeppelin, banda, música.


1 INTRODUÇÃO

Trabalhar com música é um pouco delicado, pois, cada pessoa


tem seu próprio sentimento em relação à ela, seja ela dividida em
estilos, épocas, bandas ou simplesmente músicas.

A música é recebida de forma intuitiva, uma forma


que contém uma rica variedade de conhecimento e
sentimento sem o processo de pensamento lógico
que acompanha o que nós geralmente chamamos de
entendimento. (FRIEDLANDER, P., 2010, pág. 13).

Para trabalhar com música é preciso ter em mente algumas


definições, de como tratá-la, por exemplo: 2
Outro tratamento que se pode dar a esta música é
seguir uma abordagem conhecida como “analítica”.
Para isto é necessário ouvir uma peça musical com
o objetivo de coletar uma grande gama de
informações sobre ela. (FRIEDLANDER, P., 2010,
pág. 13).

Vamos procurara aqui, abordar o Led-Zeppelin em seu contexto


social, e procurar destacar as marcas históricas da banda durante toda
a sua trajetória do início ao fim de sua carreira. Para trabalha-la em um
contexto social é preciso entender a que sociedade a banda estava
exposta em sua época.

O início da década de 1970 tornou-se uma época de


contradições. Por um lado houve a
institucionalização da moda da contracultura, da
aparência, da experiência com drogas e da
linguagem, Por outro, havia esforços do governo e
do showbusiness para reverter a recente abertura e
expressividade política e cultural da época. Em meio
a esta confusão, o bombástico hard rock explodiu na
esteira da música popular. O Led Zeppelin estava na
frente, seguido por uma legião de discípulos fiéis.
(FRIEDLANDER, P., 2010, pág. 330).

O Led-Zeppelin é uma das bandas mais conhecidas da história


do rock, e não é por menos. O Led-Zeppelin foi responsável por bater
muitos recordes históricos, como por exemplo, o recorde de público
que os Beatles haviam batido em 1965 com 55 mil pessoas para
assistir uma única banda, enquanto o Led-Zeppelin, oito anos depois, 3
bate o recorde com 56 mil pessoas.
As músicas do Led-Zeppelin levam a assinatura da banda no
som, ao se ouvir uma de suas músicas, logo se quer ouvir as outras. A
banda foi responsável por manter os seus 4 primeiros álbuns em
primeiro lugar na parada “Billboard” norte-americana. Também foi
responsável por vender mais de um milhão de cópias de sue primeiro
álbum apenas no ano de lançamento.
Vamos abordar aqui, a trajetória desta sensacional banda de
Rock, vamos destacar os acontecimentos que marcaram toda sua
sinuosa trajetória, desde altos e baixos, e por fim, esperamos deixar
claro o motivo de apresenta-la como a banda mais revolucionária da
História do Rock.

2 OS ANOS 50, 60 E A PROGRESSÃO DO ROCK AND ROLL.

Tudo começa no final dos anos 50. Década que vinha ainda
passando pelo clima tenso da Guerra Fria, a corrida pelo armamento
entre duas grandes potências da época, os Estados Unidos da América
e a União das Republicas Socialistas Soviéticas. Na música, temos
resquícios de Elvis Presley que traz uma novidade ao mundo, a mistura
do Country com o Rythm and Blues acelerado, o que vem a ser o Rock
and Roll. Porém, apesar deste gênero ter sido uma inovação para a
música, ele não parou por ali, era questão de tempo até que novos
artistas colocassem suas marcas dando origens às varias ramificações
que o Rock vem a ter mais tarde.

Durante os anos 50, a luta pela “coroa do Rock” vinha sendo


disputada fervorosamente por artistas inovadores (cada um a seu
modo) da época, sendo os principais deles Bill Haley, Chuck Berry,
Little Richards, Jerry Lee Lewis, Buddy Holly, e mais tarde aquele que
vem ser eleito o “rei” em virtude da busca por um “branco que fizesse o 4
som negro”, Elvis Presley. Elvis tem clara influência da música Country
e juntando isso ao Rock desenvolveu o que mais chamaria a atenção
(depois de sua música) da população jovem, a atitude. Elvis fora muito
ousado para sua época ao realizar o seu “cl|ssico rebolado”, seu cabelo
com um topete enorme, camisa aberta e tudo isso em uma época
conservadora, onde os modos e a discrição imperavam.

Em seguida viriam os anos 60 com todo seu vigor e as maiores


promessas do Rock and Roll. A década de 60 foi a época que mais
proporcionou artistas de Rock à mídia. Grandes nomes como Jimi
Hendrix e Janis Joplin vêm a surgir, além de grandes nomes de bandas
como Cream, The Who, Jefferson Airplane, The Yardbirds, Creedence
Clearwater Survival, The Rolling Stones e é claro, The Beatles.

Os Beatles foram os caras responsáveis pela inovação no modo


de se “fazer Rock”. Muitos os consideram a banda mais importante
para a História do Rock, porém, acreditamos que cada banda teve de
igual sua própria contribuição para o que tivemos nos anos 60 e
também nas décadas posteriores. A partir desse viés, percebemos
grandes destaques mesmo na década de 60, um deles em especial, que
vai ter seu desfecho na década de 70, o The Yardbirds.

3 ROCK AND ROLL COM YARDBIRDS

O Yardbirds era uma banda inglesa que surgiu no começo da


década de 1960 na Inglaterra, onde o Blues ainda estava em alta e
expandindo.

Exatamente na expansão do gênero, em 1963,


apareceu The Yardbirds no Crawdaddy Club de
Londres. O embrião da banda havia surgido um ano
antes, com o nome The Metropolis Blues Quartet, 5
formado por inspiração de dois amigos estudantes
de arte, entusiastas do ‘skiflle’ e do blues, Paul
Samwell-Smith e Keith Relf. (FERRI, R. 2001, pág.
49).

Composta por 5 integrantes, sendo eles Keith Relf nos vocais e


gaita, Chris Dreja na Guitarra Base, Paul Samwell-smith no Baixo, Jim
McCarty na Bateria e na guitarra solo Tony Topham (que ficara apenas
4 meses na banda e fora substituído por ninguém menos que Eric
Clapton). O nome da banda vem de uma antiga gíria norte - americana
referente a “desocupados que ficavam viajando de um lugar para outro
seguindo linhas de trem”, e foi retirado de um |lbum de blues
americano da coleção de discos de Keith Relf.

O novo guitarrista, Eric Clapton (futuro front-man da banda


Cream) entrou no Yardbrids com apenas 18 anos de idade. Tinha forte
influência vinda do blues e do rythm and blues e rapidamente se
tornou sensação entre os fãs da banda devido à sua grande habilidade
na guitarra.

A banda vinha fazendo seu trabalho a partir de compactos,


como, por exemplo, “Good Morning Little Schoolgirl” que chegou ao 44º
lugar nas paradas inglesas. Mais tarde, lançariam o compacto que os
trouxe mais { mídia, “For Your Love”, (música originalmente feita por
Graham Gouldman). Atingiram o 2º lugar das paradas com “For your
Love”, uma música que tingia um estilo mais “pop”. Isso fez com que
Eric Clapton, amante fiel do Blues, ficasse insatisfeito, anunciando sua
saída da banda. A reação do público não foi nada agradável em relação
à saída de Clapton da banda, os fãs pichavam muros e faziam faixas
com dizeres como “Eric is God” e proclamavam pela volta do
guitarrista. 6
A princípio, o substituto de Clapton seria James Patrick Page,
um guitarrista de Estúdio muito jovem e talentoso, que por sua vez,
renunciou ao convite e indicou um amigo seu, Jeff Beck, que chegara a
tempo de participar da gravação de “For Your Love”.

Ao recebê-lo na banda, os integrantes na verdade queriam que


ele literalmente substituísse Clapton, fazendo tudo como Clapton fazia,
porém, Beck logo tomou a frente do grupo e trouxe suas ideias e
influências. Beck deu uma pegada mais “psicodélica” ao grupo,
inovando no som dos solos e nas composições próprias. Com ele à
frente da banda, o Yardbirds vem a gravar outras músicas como, “The
Train Kept A-Rollin”, “Heart Full of Soul”, “I’m a Man”, “Evil Hearted
You”, You’re A Better Man Than I”.

Depois de tantos compactos, a banda resolve enfim, gravar seu


primeiro |lbum intitulado simplesmente “The Yardbirds”.
Uma das primeiras músicas registrada foi “Over
Under Sideways Down”, logo editada em compacto. É
esta a música dos Yardbirds que mais se assemelha
ao som pesado e experimental que viraria a ser
marca registrada do Led Zeppelin. (FERRI, R., 2001,
pág. 60).

Este álbum foi inteiramente produzido pelos próprios membros


da banda, o que para a época, era muita inovação, este processo, de
certa forma, não existia.

Mesmo assim, eles escreveram, produziram,


criaram e desenharam a capa e escreveram (Jim
McCarty) as notas da contracapa, como se o disco 7
fosse uma produção independente. (FERRI, R., 2001,
pág. 61).

Este fato fez com que uma paixão pela produção atingisse em
especial o baixista da banda, Paul Samwell-Smith, que decidiu por
abandonar a banda, em julho de 1966, para se tornar exclusivamente
produtor. Foi então, que a banda resolveu, pela segunda vez, convidar
James Patrick Page para fazer parte da banda. Desta vez ele resolveu
aceitar e assumiu o posto de baixista, no qual não ficou por muito
tempo.

A banda naquele momento estava em meio a um caos. Keith


Relf, vocalista, tentara carreira solo, porém, procurou não se desligar
da banda, o baixista “Jimmy” Page (como viria a ser conhecido)
assumira o cargo de guitarrista da banda, junto com Jeff Beck, fazendo
com que o guitarrista original, Chris Dreja, assumisse o posto de
Baixista. Uma coisa curiosa para a época foi o fato de o Yardbrids ser a
primeira banda de Rock a possuir dois guitarristas solo e o momento
musical onde ambos “duelavam” com trocas de solos e performances
particulares durante os shows, era o mais esperado, fazendo a plateia
ir ao delírio.

Page parecia estar se adaptando bem à nova banda, pois,


estavam com força total nesta época.

Nos Yardbirds, Page se viu no centro de uma


revolução musical – em ‘66/’67, no auge da
criatividade, os Yardbirds iam fundo,
experimentando e expandindo ao máximo seus
limites. (FERRI, R., 2001, pág. 64).

Foi neste embalo que em novembro de 1966 lançaram o 8


primeiro compacto com a participação de Page, “Happenings Ten Years
Time Ago”, este era seu nome, e tinha como marca um fervoroso duelo
de guitarras travado por Jimmy Page e Jeff Beck. Uma curiosidade
sobre o compacto é que neste mesmo duelo, pela primeira vez, Page
utiliza um arco de violino para tocar sua guitarra e duelar com Beck, e
o som é impressionante. 1 Apesar de tudo, este compacto não vendeu.

Foi então que Jeff Beck resolveu sair da banda para montar seu
próprio projeto, Beck’ Bolero. Sem Beck, Jimmy Page tomou as rédeas
da banda. Gravaram seu um álbum chamado “Little Games”, que foi de
certa forma, um fracasso e demonstrou que claramente a banda perdia
muito de sua qualidade musical sem Jeff Beck na formação. Isso fez
com que cada membro da banda começasse a querer seguir seu
próprio rumo.

1Há quem diga que Jimmy Page apenas imitou o truque do arco de violino do
guitarrista Eddie Philips, da banda The Creation, enquanto outros dizem que foi
uma ideia sugerida por um músico erudito americano.
O que restava para Jimmy Page naquele momento era um grupo
bagunçado, contratos a cumprir e quase nenhuma possibilidade de se
reerguer. Porém, para alegria dos fãs, a banda teve sua despedida com
um belo disco contendo algumas das melhores gravações da banda,
“Good Night Sweet Josephine” e “Think About it”. A primeira delas é uma
música escrita por Tony Hazard, enquanto a segunda é uma música
escrita e produzida por Page, considerada por muitos, a melhor
gravação que os Yardbirds já fizeram, marcando um digno fim para a
banda.

4 THE NEW YARDBIRDS, A NOVIDADE CHEGOU!

O conhecido Yardbirds estava então, finalizado. Jimmy Page,


melhor do que ninguém, sabia disso. Com um calendário cheio e uma 9
banda desmembrada, não tinham muitas saídas. Cada membro da
banda resolveu seguir seu caminho e os direitos da banda ficaram com
o baixista Chris Dreja, Jimmy Page e com Peter Grant, empresário da
banda. Chris, vendo que a banda não tinha mais salvação, resolveu
seguir seu caminho na carreira fotográfica (é dele a foto na contracapa
do Led-Zeppelin I).

Page sabia que agora era sua chance de montar um projeto com
suas próprias ideias e propostas, já que era o único que restara da
banda. A partir disso, Jimmy Page resolve passar suas ideias para um
homem de sua confiança, era ele Peter Grant, o empresário (em
sociedade com Mickie Most) dos Yardbirds. Certa vez, enquanto
andava de carro com Grant, Page resolveu apresentar a ideia de um
novo projeto à ele, falando que queria fazer algo novo, algo nunca visto
antes. Page coloca que “acha que pode pegar o grupo e fazer melhor,
colocar novos membros, compor novas músicas, fazer melhor.” (WALL,
Mick. 2009, pág. 19).
Peter Grant acreditava na capacidade de Jimmy Page, um
guitarrista experiente, músico de estúdio desde seus 19 anos de idade
e que tinha muito a demonstrar ainda. A partir daí, Peter Grant e
Jimmy Page resolveram correr atrás de músicos para montar uma nova
banda, porém, Page sabia que começar do zero, com outro nome, seria
mais difícil, então resolveu aproveitar o remanescente sucesso do
nome “Yardbirds” para fazer seu projeto.

Page conhecia uma pessoa que poderia assumir o baixo, John


Paul Jones. Page havia conhecido Jones em sessões de estúdio. Jones
era um músico excelente, era multi-instrumentista e era excelente para
fazer arranjos.

Peter e Page falaram com ele, que também estava um tanto 10


quanto “cansado” de ficar apenas nos estúdios, então aceitou a ideia.
Agora faltavam dois membros, um baterista e um vocalista. Page
queria montar uma banda com grandes músicos de sua época, como
Keith Moon na bateria e até mesmo seu amigo Jeff Beck (ex-Yardbirds).
Page até fez uma sessão de estúdio com Keith Moon, Jeff Beck e John
Paul Jones, porém, cada um tinha sua própria banda e/ou projetos para
seguir. Jimmy Page ouvira falar de Terry Reid um garoto que na época
era a sensação na Inglaterra, e então resolveu convidá-lo para assumir
o posto de Keith Relf na banda, porém, Reid já tinha assinado com
Mickie Most e como o Yardbirds era um projeto que Mickie Most abrira
mão e deixará somente para Peter Grant, Terry Ried não poderia mais
entrar na banda. Mas Ried colaboraria com os Yardbirds de uma forma
indireta.

Ao recusar o convite de Page e Peter para entrar nos Yardbirds,


Reid recomendou um amigo seu, chamado Robert Plant para entrar em
seu lugar. Page e Grant não hesitaram em ir atrás deste garoto. Ao
chegar no ginásio da escola onde Robert e sua banda chamada
“Hobbstweedle” estavam tocando, foi simplesmente bom demais pra
ser verdade. Robert era excelente para a proposta de Jimmy Page.

[...] o cantor era bom, de verdade. Uma grande


sodomia com a camiseta da “University of Toronto”.
Apresentou uma versão de “Somebody to Love” do
Airplane e realmente a transformou. Bom até
demais, talvez. Como é que ninguém ouvira falar
dele além e Terry? E do maldito Secunda2? (PAGE, J.
In: WALL, M. 2009, pág. 38).

Page e Grant apresentaram a proposta para Robert, que no


começo não estava muito interessado. Page também achava difícil
acreditar que um garoto com tanto talento aparecesse assim do nada, 11
acreditando que deveria haver algum problema com sua
personalidade, já que tinha boa aparência e grande talento para cantar,
porém, Grant insistiu e disse que o convidasse para um teste, para só
então decidir se descartava ou não a possibilidade. Foi o que Page fez.
Alguns dias depois lá estava Robert batendo na porta de sua casa em
Pangbourne. Foi aí que Page apresentou seu projeto para os Yardbirds,
que Plant dissera não conhecer nenhuma música (pelo menos não da
época de Page). Nesta mesma noite Page já mostrou à ele uma prévia
do que viria a ser a primeira faixa do primeiro disco do Led-Zeppelin,
uma versão própria de “Babe I’m Gonna Leave You”, originalmente de
Joan Baez.

Quando começaram a conversar e falar de música,


houve certa conexão, ele disse, embora Jimmy tenha
falado mais. (WALL, M. 2009, pág. 42).

2 Tony Secunda, empresário da banda The Move que também estava interessado no
talento de Robert Plant.
Robert estava dentro, agora faltava arranjar um homem para a
bateria, o que não foi muito difícil devido à ajuda do próprio Plant. Ele
sugeriu à Page e Grant um amigo seu para tocar bateria, John Henry
Bonham. Depois de muitos bateristas do interesse de Page terem
recusado ou nem mesmo demonstrado interesse na proposta de Peter
Grant, chegara a hora de falar com Bonham.

Era dia 31 de julho de 1968, e Page me contou: “Ele


fez um solo de bateria de apenas 5 minutos e eu
percebi que havia encontrado o que procurava”
(WALL, M. 2009, pág. 48, 49).

Bonham não demonstrou interesse na proposta de entrar para


os Yardbirds, para ele, esta banda já estava esquecida na Inglaterra, 12
porém, duas coisas o fizeram reconsiderar. Uma delas foi o fato de seu
amigo de anos, Robert Plant, estar envolvido no projeto, e a outra coisa
foi o fato de conhecer a reputação de Jimmy Page como um guitarrista
de estúdio muito respeitado. Mas mesmo com esses dois fatores,
Bonham ainda não estava convencido a entrar na banda, foi preciso
algo mais, pois, Bonham tinha seu filho James, de apenas dois anos, e
também sua mulher Pat. Foi então que Page fez uma proposta de pagar
25 libras por semana na Inglaterra, 50 na Europa e 100 nos Estados
Unidos, para Bonham isso foi o suficiente. Agora tudo estava pronto.

O Yardbirds estava montado, agora faltava fazer alguns testes


para ver como estava o entrosamento e então, seguir em frente. O
Primeiro encontro para ensaiar foi simplesmente mágico. Jimmy Page
declara na obra de Mick Wall:

Musicalmente, tínhamos muito orgulho de nossas


habilidades como seção rítmica. Ouvíamos e
dávamos espaço a nós mesmos. Havia muito
respeito mútuo. Estávamos sempre incrivelmente
antenados – no mesmo fraseado e sempre chegando
à mesma conclusão musical. A empatia que
sentíamos quando tocávamos era incrível. Mas
também tive muita sorte. Estava tocando com o
melhor baterista que já conheci, e conheci muitos
deles... (PAGE, J. In: WALL, M. 2009, pág. 57).

Foi então que Page percebeu que sua chance chegara, sua banda
estava montada. Depois de algumas sessões de ensaios, ele percebeu
que a nova formação dos Yardbirds estava preparada para se
apresentar. Foi então que a banda ganhou o nome de New Yardbirds.
Vale lembrar que tudo que tinha “new” no nome significava algo
totalmente novo, algo completamente diferente do que já foi algum dia, 13
e foi isso que ajudou e muito no desenvolvimento da banda. Porém, a
banda não ficaria com este nome por muito tempo.

Enquanto se apresentavam na Inglaterra em


outubro de ’68, sentiram que deveriam trocar o
nome para criar uma identidade nova e renovar as
expectativas. Depois de rejeitar as sugestões dos
nomes Mad Dogs (‘igual ao grupo Joe Cocker’) e
Whoopie Cushion (‘muito complicado’), Page
lembrou-se do nome sugerido por Keith Moon
durante as gravações de ‘Beck’s Bolero’. Na verdade
foi mais uma brincadeira de Moon, dizendo que
aquele grupo iria cair feito “um balão de chumbo ou
um zepelim de chumbo”. Page gostou do som do
nome ‘Lead Zeppelin’ e o usou para rebatizar os
New Yardbirds, tirando o ‘a’ de ‘Lead’, para
simplificar, por sugestão de Peter Grant. A banda
estreou o novo nome em um show na Surrey
University, em 25 de outubro de 1969. Na ocasião,
metade do repertório do show era feito de
composições novas. (FERRI, R., 2001, pág. 74).

5 LED-ZEPPELIN, O SURGIMENTO DE UM GIGANTE

O Led-Zeppelin estava agora no início de um caminho longo,


brilhante, turbulento e principalmente, inovador para tudo que já
havia se visto na música até então.

A maior banda da História do Rock havia acabado


de nascer. (VANCE, Tommy.; Documentário “THE
ROCK HISTORY OF LED ZEPPELIN”, 2008).

Não podíamos acreditar no que estávamos ouvindo.


14
Nós nunca havíamos ouvido nada parecido. (ROSEN,
Steven; Documentário “THE ROCK HISTORY OF
LED ZEPPELIN”, 2008).

Com as primeiras músicas próprias montadas a banda


começara a gravação de seu primeiro |lbum “Led-Zeppelin I” que
continha faixas desde “Dazed and Confused” (uma música original de
Jake Holmes) à versões próprias de sucessos anteriores como “Babe
I’m Gonna Leave You” de Joan Baez, ou até mesmo “You Shook Me” de
Willie Dixon. A primeira faixa do |lbum é nada menos que “Good Times
Bad Times” uma das únicas três composições próprias do grupo neste
álbum.

Este álbum foi algo inédito para a época, pois, além da


sonoridade e de toda a novidade que trazia em seu conteúdo, ele foi
gravado em 8 dias com o custo de 800 libras 3. Em relação à sonoridade,
o Led-Zeppelin trouxe esse som tão diversificado em seu primeiro
álbum também devido ao trabalho de estúdio muito bem feito.

Felizmente tudo foi captado pelo Glenn Johns, o


engenheiro que trabalhou na sessão e conseguiu
esse som mágico. Não sei por que, mas creio que
seja por causa do eco. Foi a primeira vez que
usaram efeitos especiais na guitarra. (WELCH, C.
Documentário “THE ROCK HISTORY OF LED
ZEPPELIN”, 2008).

Apesar de tudo que este álbum representou não só para a


banda, como também para toda a História do Rock (vendendo 2 15
milhões de cópias apenas no ano em que foi editado), na verdade os
membros do Led Zeppelin, Page em especial, não estava construindo
nada que já não tivessem feito antes, e Mick Wall explica melhor esta
ideia em uma passagem de seu livro.

Mas o primeiro álbum do Led foi menos um começo


para Page e mais a complementação de tudo que ele
já havia feito antes. Tudo o que ele realmente
provou foi que o Led era um grande “catalisador”
das ideias existentes. (WALL, Mick., 2009, pág. 90).

Apesar disso, não se pode dizer que o que eles fizeram foi algo
comum de ser feito, ainda mais à época. Eles não apenas faziam

3Essainformação consta no document|rio “The Rock History of Led Zeppelin”. Mas


René Ferri em “Led Zeppelin – Rock é Rock mesmo” Fala sobre 1782 libras de
despesa total.
versões de músicas existentes, mas eles criavam em cima dela toda
uma conjuntura instrumental nunca vista antes.

Não era um álbum comum de várias maneiras. Ouví-


los pela primeira vez era surpreendente. (WELCH,
C. Documentário “THE ROCK HISTORY OF LED
ZEPPELIN”, 2008).

Outra coisa que não se pode deixar de ressaltar é o fato de que o


próprio Jimmy Page produzia os álbuns da banda, ou seja, um
guitarrista que produzia os álbuns da própria banda era algo
totalmente incomum para a época. Page queria ter certeza que o som
de sua guitarra e a combinação dos instrumentos dentro das músicas
seria totalmente simétrica, para que tudo estivesse em seu devido 16
lugar e assim, fosse possível ressaltar a qualidade da música.

Não se esqueça que o Jimmy Page sentou na cadeira


do produtor e ele produzia os seus álbuns. É uma
coisa fantástica de se fazer e os sons do vocal que
tirava, e o ambiente que conseguia tirar, e a
amplitude de todos os sons no estúdio que tirava
eram incríveis. Levando em conta que naquela
época ainda se usava 16 ou 24 canais, que não havia
mesa digital, não havia nada disso era tudo
analógico, o som que tirava era inacreditável.
(TAUBER, N.; Documentário “THE ROCK HISTORY
OF LED ZEPPELIN”, 2008).

Mick Wall ainda ressalta esta afirmação.

De fato, as verdadeiras inovações desse primeiro


álbum estavam nas avançadas técnicas de produção
que Page conseguiu trazer e no peso da habilidade
musical que ele havia reunido para executá-las.
(WALL, Mick., 2009, pág. 90).

Ainda neste álbum temos “Communication Breakdown” uma


música que tem não apenas um som extasiante e nunca visto antes, não
apenas um solo agudo misturado de um bumbo forte por parte de Page
e Bonham, mas principalmente uma linha de baixo enriquecedora e
muito bem composta por John Paul Jones. Isso mostra que desde seu
primeiro álbum o Led Zeppelin já demonstra um entrosamento
incomum entre as demais bandas da época, e esse é, também, um dos
principais fatores do sucesso do Led-Zeppelin. O fato de cada membro
da banda ter suas qualidades particulares fez com que um todo
resultasse no mais espetacular som da época. 17
Em Communication Breakdown pode-se perceber a habilidade
como arranjador que provinha de Jones.

É inacreditável. De fato o John Paul, nesse primeiro


álbum, em todos os álbuns, nessa música é o herói
não celebrado do Led Zeppelin. (ROSEN, S.;
Documentário “THE ROCK HISTORY OF LED
ZEPPELIN”, 2008).

Outro fator que fez desta banda inovadora foi o estilo vocal de
Robert Plant. Inspirado no Blues e no Jazz, Plant exalava sua voz em
forma de gritos e uivos suaves, alternando entre tons graves à tons
extremamente agudos para uma voz masculina. Essa característica se
tornou uma das marcas fundamentais do Led-Zeppelin, não há como
imaginar a banda com outro vocalista, por melhor que fosse.
A maior surpresa para a maioria dos ouvintes era a
voz única e o estilo de cantar de Robert Plant. Ali
estava um homem que se fazia ouvir enquanto
cantava uma oitava acima de seu registro natural,
de uma forma que parecia que suas cordas vocais se
romperiam a qualquer momento – uma Janis Joplin
de calças. (FRIEDLANDER, P., 2010, pág. 333).

Apesar de tudo, o Led-Zeppelin não teve seu “estouro” na


Inglaterra, mas sim nos Estados Unidos. Uma das mais fortes
características do Led-Zeppelin era o volume no máximo, guitarra e
baixo altos, uma voz estridente, mas principalmente uma bateria
escandalosa, isso fez com que o Led Zeppelin (ainda New Yardbirds, na
época) fosse até mesmo expulso do palco antes do fim de seus shows. O 18
reino Unido ainda não estava preparado para aceitar os gigantes do
Rock, talvez ainda não estivesse pronto para a música deles. Mas isso
não foi problema, não para uma banda com Peter Grant como
empresário.

Nos EUA, o Led-Zeppelin foi muito bem recebido pela Atlantic


Records, que veio assinar com a banda, fazendo com que assim o Led-
Zeppelin acabasse deixando para trás a ex-gravadora do ex-Yardbirds,
a Epic Records.

Peter Grant tornou-se o empresário exclusivo do Led


Zeppelin e ele se orgulhava de conhecer muito bem o
mercado musical americano. Insatisfeito com as
dificuldades para marcar shows do Led Zeppelin naquele
início de carreira, e com lucros irrisórios (cerca de 150
libras) que rendiam, Grant acionou seus contatos na
América até conseguir fechar um contrato com a Atlantic
Records de Nova York, gravadora tradicionalmente
ligada à música negra americana. (FERRI, R., 2001, pág.
76).

Em consequência disso, chegamos a mais um fator


revolucionário do Led-Zeppelin, o melhor contrato já conseguido por
um empresário até então para uma banda de Rock. Segundo Mick Wall,
Jerry Wexler, vice-presidente da Atlantic Records, depois de apenas
uma conversa com Peter Grant, apareceu com o contrato na mão.

E não qualquer contrato, mas o que seria o maior


adiantamento já oferecido a um artista ainda não
contratado: um contrato de cinco anos com um
adiantamento de 143 mil dólares pelo primeiro ano,
mais opção para quatro períodos de um ano, num 19
total de 220 mil dólares ali na mesa, imediatamente.
(WALL, Mick., 2009, pág. 104).

A banda sempre esteve focada no trabalho em equipe, e isto


proferiu muitas vantagens em relação à estrutura de profissionais que
estava à volta da banda, principalmente em seu relacionamento com
empresário Peter Grant.

6 PETER GRANT, “O QUINTO ZEPPELIN”

O sucesso da banda sempre foi evidente. Suas marcas e


contribuições para a música são inegáveis, assim como seu sucesso
financeiro e empresarial durante toda a carreira, porém, estes méritos
são, sem dúvidas, devidos em grande parte à um dos maiores
empresários musicais que já existiu, Peter Grant.

Peter Grant, nascido no subúrbio sul de Londres, no dia 5 de


abril de 1935, sempre viveu com sua mãe, nunca chegou a conhecer
seu pai, teve uma vida muito movimentada e conturbada, mas isso não
fez dele uma má pessoa, muito pelo contrário. Peter, sempre foi uma
pessoa que lutava para conseguir o que queria e isso foi fundamental
para o sucesso que ele ajudou o Led Zeppelin atingir. Grant trabalhara
como garçom e até mesmo como lutador profissional de Luta Livre
que, apesar de ele saber que tudo era farsa, serviu como método
intimidador no mundo dos negócios mais adiante. Peter chegara até
mesmo a fazer um pequeno papel no cinema, pensou que daria em algo
maior, mas na verdade não deu em nada. Porém mais tarde, conseguiu
outros papéis, um deles como um vilão, conseguiu até mesmo um
grande trabalho na TV, interpretando o garçom de O Santo. Nada disso
estava resultando em grande acervo financeiro, mas não era ruim, e
ainda colocava sua imagem em evidência.
20
A partir disso, Peter Grant conheceu Don Arden, que era um
empresário musical conhecido e temido pelos seus métodos de fazer
negócio, muitas vezes até mesmo com ameaças. Foi com Don Arden
que Peter adentrou ao mundo dos negócios. A partir daí, foi trilhando
seu caminho no mundo do show bussiness.

Peter Grant foi praticamente um propulsor no que foi e vem a


ser até hoje o Led-Zeppelin. Empresário dos Yardbirds, em parceria
com Mickie Most, Peter Grant acompanhou e ajudou a Page a
amadurecer todas as ideias de uma nova formação da banda, apoiando
e procurando ajudar no que fosse possível seu cliente e amigo Jimmy
Page. Quando Page viu que os Yardbirds estavam indo por água abaixo,
foi à Peter Grant que recorreu e falou de seus planos de buscar uma
nova formação para a banda e também compor novas músicas. Peter
Grant foi o responsável por correr atrás dos membros da banda e
expor propostas para que entrassem na banda, tudo para apoiar Page.
Mais tarde, quando a banda estava montada, apesar de terem
sido expulsos do palco em seus primeiros shows, Peter não perdeu a
confiança. “G”, como veio a ser chamado pelos companheiros, sempre
buscou dar seu sangue e suor pela banda, costumava se envolver em
muitas confusões para que a banda continuasse intacta, foi ele o
responsável por toda essa ideia de “família” que o Led-Zeppelin
sempre teve.

O futuro sucesso comercial do Led Zeppelin baseou-


se, em parte, em sua versão da ideia de “equipe”. Ela
incluía os músicos, a produção de estúdio de Page, a
consistência das letras de Page e Plant e um
empresário agressivo e competente.
(FRIEDLANDER, P., 2010, pág. 332). 21
Foi Grant também, o responsável por uma das marcas inéditas
que o Led-Zeppelin deixou, o contrato com maior quantidade
financeira já oferecida como adiantamento para uma banda não
contratada.

Grant, Page e três músicos praticamente


desconhecidos receberam da gravadora Atlantic um
adiantamento astronômico, 200 mil dólares, e uma
alta percentagem da divisão de royalties.
(FRIEDLANDER, P., 2010, pág. 332).

Grant, que sempre conheceu bem o mercado musical, soube


também como fazer o Led-Zeppelin subir ao topo. Uma das táticas de
Peter, era simplesmente de poupar a banda de aparecimentos públicos,
sendo assim, a banda apareceu raras vezes na televisão e deu poucas
entrevistas gravadas, Peter também foi quem deu a ideia de se lançar
apenas LPs e não compactos. Sendo assim, a estratégia de Peter deu
certo, pois, como a banda decolou, o único jeito de se ver ou ouvir o
Led-Zeppelin era comprando seu LP ou indo aos shows.

Peter Grant acompanhou o Led-Zeppelin durante toda a


carreira, isso lhe rendeu o título de “quinto Zeppelin”, que foi exposto {
público pelos próprios membros da banda, se não fosse Grant, não se
pode imaginar aonde o Led-Zeppelin teria chegado (ou parado).

7 LED-ZEPPELIN, “A SUBIDA AO TOPO CONTINUA”

Como se esperava do Led-Zeppelin, fora lançado seu segundo


álbum, um dos mais esperados da época.

A qualidade musical da banda parecia só melhorar, se o 22


primeiro álbum já havia sido bem recebido pelo público, seu segundo
álbum foi então a forma de demonstrar que o que já era bom poderia
ainda, melhorar. Este álbum trouxe, como primeira faixa, uma das
músicas que vem a ser considerada um clássico do Heavy Metal4,
intitulada “Whole Lotta Love”. Com seu riff inconfundível e letra
inspirada em Willie Dixon, esta música foi um dos maiores sucessos da
época e uma marca registrada da banda.

É a canção mais excitante do Led Zeppelin e um dos


momentos mais excitantes do Rock'n' Roll em toda
a sua história. E estou falando sério! (WINGATE, J.
Documentário “LED ZEPPELIN – INSIDE: 1968 -
1972”, 2005).

Ainda neste |lbum temos uma “pequena” demonstração da


habilidade de John Bonham na bateria. Na música intitulada “Moby
4O termo “Heavy Metal” vem a surgir em 1969, com o jornalista e crítico musical
Lester Bangs. (ver FERRI, R. “Led Zeppelin – Rock é Rock Mesmo”. 2001, pág.82).
Dick”, John Bonham faz um solo de bateria de, em média, 3 minutos. A
música é inteira instrumental e tem seu riff baseado na música de
Bobby Parker intitulada “Watch your Step”, porém, na versão do Led-
Zeppelin, além da guitarra mais pesada e com passagens de pequenos
fraseados, há também um momento onde apenas a bateria de Bonham
é tocada, em um solo tremendo. Após o solo, os demais instrumentos
voltam e as passagens antes feitas pela guitarra, agora são feitas pela
bateria.

O que torna este álbum tão especial é que


colocaram um solo de bateria incrível nele. Tiro o
Chapéu para o Led Zeppelin II. (KRUSHER.;
Documentário “THE ROCK HISTORY OF LED
ZEPPELIN”, 2008). 23
Como sabemos, o Led-Zeppelin já estava famoso nos EUA, mas
agora era hora de aparecer no Reino Unido, e com um show,
divulgando as músicas deste segundo álbum, foi possível mostrar ao
Reino Unido à que veio o Led Zeppelin.

Os Estados Unidos já estavam sob o feitiço do Led


Zeppelin e só faltava colocar o Led Zeppelin no
mapa do Reino Unido. Isso foi realizado com uma
única apresentação inovadora para duzentos mil fãs
num festival em Somerset perto de Bath. O Zeppelin
subiu ao palco assim que o sol se pôs e logo
conquistou a enorme multidão
com um set empolgante que se baseou no material
do segundo álbum da banda. (VANCE, Tommy.;
Documentário “THE ROCK HISTORY OF LED
ZEPPELIN”, 2008).
De forma geral este segundo álbum foi muito bem recebido. A
crítica e o público tiveram exatamente aquilo que esperavam do Led-
Zeppelin, um som inovador de uma banda inovadora. A produção por
conta de Jimmy Page foi muito bem feita, procurando sempre
aproximar a música em estúdio da música ao vivo, para que assim o
mesmo êxtase da música em estúdio pudesse ser alcançado ao vivo, ao
contrário dos Beatles que em seus últimos álbuns procuraram fazer
uma mescla de tempos e instrumentos, coisa que dificultava a execução
das músicas ao vivo e que também foi uma das razões pela escolha de
não excursionar mais.

8 LED-ZEPPELIN III: “O EXPERIMENTO”

Nesta etapa da carreira o Led-Zeppelin continuava a inovar, o 24


Led-Zeppelin III foi uma prova disso.

Em outubro de 1970, a banda lança seu terceiro álbum, um


álbum muito mal recebido pelo público e principalmente pela crítica,
tinha quase toda a sua estrutura montada em cima de instrumentos
acústicos desde violões à banjos.

Este álbum foi uma forma da banda se retirar um pouco da


pressão sob a qual estava. Turnês com duração de meses estavam
cansando os membros da banda e fazendo deles, principalmente
Bonham, mais estressados com tudo aquilo. Foi então que Robert Plant
sugeriu um retiro em uma cabana de “Bron-Y-Aur Stomp”, no País de
Gales, o nome da cabana vem a ser nome de uma das faixas do disco.
Ao ouvir o disco, percebe-se que as músicas estão um pouco mais
reflexivas, e as letras e melodias mais elaboradas. Jimmy Page e John
Paul Jones fazem uma mescla de arranjos com violão e banjo, dando
um uma pegada totalmente diferente ás músicas deste álbum.
Apesar de tudo, é neste álbum que a banda marcou dois de seus
grandes sucessos, um deles é “Since I’ve Been Loving You” e o outro, que
é a faixa de abertura, “Immigrant Song”.

Acho que é uma progressão. Musicalmente


progrediram. Sempre tentaram não copiar o último
álbum. É difícil, porque quando se grava um álbum
tão bom quanto o II deve ser difícil. (TAUBER, N.;
Documentário “THE ROCK HISTORY OF LED
ZEPPELIN”, 2008).

Levando em consideração que o Led-Zeppelin estava sempre


experimentando, sempre buscando coisas novas, o álbum é com toda
certeza mais uma forma de provar como a banda é revolucionária e 25
flexível, pois, pode ir do mais pesado Rock ao mais suave folk em um
único álbum.

O lado “elétrico” do Led Zeppelin III inicia com o


sucesso Immigrant Song, uma história sobre
invasores vikings repleta de referências míticas que
se tornaria parte integrante das letras do Zeppelin –
demonstrando que eles não eram simples
metaleiros debochados. Since I’ve Been Loving You
era a melhor faixa de tempero blues. Page abria com
uma simples, mas elegante introdução de guitarra e,
depois, um convincente solo de blues/metal com
repetidos riffs. Apoiado em uma estrutura
harmônica com base no blues e relativamente
complexa e na rica textura conduzida pelo órgão de
Jones, Plant gemia o blues com a mesma expressão
e entonação de Janis Joplin em seus melhores
momentos. (FRIEDLANDER, P., 2010, pág. 338).
A resposta de John Bonham para uma entrevista ao ser
questionado sobre este álbum é:

Se ouvir todos os |lbuns alguém dir| “isso soa como


Led-Zeppelin”. É a mesma coisa sabe?! Mas na
verdade cada álbum é muito diferente. Há muitas
coisas diferentes em cada álbum. Achei que o
terceiro foi especialmente diferente do primeiro e
do segundo que basicamente continham músicas
muito pesadas. Há muita coisa acústica no terceiro.
(BONHAM, J.; Documentário “THE ROCK HISTORY
OF LED ZEPPELIN”, 2008).

O fato de o álbum ser basicamente estruturado em um som mais 26


folk não quer dizer que o álbum não esteja repleto de bom material,
não apenas as mais pesadas, mas também as mais calmas como
“Tangerine”, “That’s the way” ou a faixa título do álbum “Bron-Y-Aur
Stomp”, são musicalmente excelentes, tanto na composição, quanto
para serem ouvidas.

9 LED-ZEPPELIN IV, O SUCESSO ABSOLUTO, O HINO DO ROCK.

Afastados da mídia (tanto britânica quanto mundial) por causa


das críticas ferrenhas em relação ao terceiro álbum, o Led-Zeppelin
raramente deu entrevistas entre o lançamento do terceiro e do quarto
álbum. Porém, quando voltaram à mídia simplesmente fizeram o que
fazem de melhor, revolucionaram.

O “Led-Zeppelin IV” não somente emplacou as maiores músicas


da carreira da banda como também trouxe uma capa inédita para um
álbum de Rock, a capa continha apenas um camponês, e nada, nada
mesmo (!), escrito nela. Este álbum não contem título, mas ficou
conhecido como “Led-Zeppelin IV” por seguir a sequência dos álbuns
anteriores.

[...] acho que um dos motivos por não terem


colocado nada na capa foi que tiveram um
desentendimento com a imprensa por causa do Led-
Zeppelin III e foi como se dissesse: “Olhe para nós.
Podemos lançar algo sem nada escrito, com
nenhuma informação e não apenas chegará ao
primeiro lugar nas paradas do Reino Unido como
nas paradas dos Estados Unidos e do mundo todo e
engulam isso e danem-se vocês todos!”. (KRUSHER.;
Documentário “THE ROCK HISTORY OF LED
ZEPPELIN”, 2008). 27
O álbum contava com apenas quatro símbolos na capa, um
referente à cada membro da banda. Paul Friedlander coloca também
que era uma forma de Jimmy Page deixar a música falar por ela mesma.

Cansado da condenação da mídia, Page,


simbolicamente, queria deixar que a música falasse
por si mesma [...]. O álbum passou a ser conhecido
por muitos nomes: Untitled, The Runes, Led Zeppelin
IV e Zoso (por causa do símbolo de Page).
(FRIEDLANDER, P., 2010, pág. 340).

Este álbum foi a maior prova de versatilidade da banda, indo de


extremo à extremo nas composições. “Black Dog” e “Rock and Roll”
duas das principais faixas do lado A do LP mostram o lado pesado da
banda, aquilo soa como “Led-Zeppelin”. Nunca havia-se ouvido falar
em uma música com a construção de tempos musicais como em “Black
Dog”, onde em um momento apenas a voz de Plant canta à capela, e de
repente, surgem os demais instrumentos executando o que viria a ser
um dos mais conhecidos riffs de toda a História do Rock. “Rock and
Roll”, por outro lado, mostra o Led-Zeppelin explorando a seu modo a
mais cl|ssica estrutura musical de Rythm & Blues e de Rock ‘n’ Roll,
porém, com o som pesado e com uma assinatura da banda.

Além destas, temos a música que vem a ser o “hino do Rock”,


“Stairway to Heaven”, que demonstra como o a banda poderia ir do
mais calmo e sentimental arranjo acústico à mais pesada forma de se
fazer Rock. É neste álbum que o Led-Zeppelin coloca sua prova de que
é até hoje uma das bandas mais influentes da História.

De todas as bandas de Rock, incluindo as grandes


do início, o Rolling Stones, os Beatles, eu acho que o 28
Led Zeppelin é a que tem maior influência sobre as
bandas jovens de hoje em meio a todos os grupos da
história do Rock. (Documentário “BIOGRAPHY –
LED-ZEPPELIN”, 2004).

Este álbum também continha músicas acústicas como “Going to


California”. John Bonham, baterista da banda, ao ser questionado
posteriormente sobre o álbum, fala:

Tem duas faixas acústicas, “Going to California” com


o bandolim e guitarra acústica. São músicas que
compusemos e tocamos em uma certa época e
decidimos incluí-las no álbum. Essas músicas
soaram certas naquela época então o próximo
provavelmente será diferente. (BONHAN, J.;
Documentário “THE ROCK HISTORY OF LED
ZEPPELIN”, 2008).
10 LED-ZEPPELIN E O OCULTO POR TRÁS DO QUARTO ÁLBUM

Este álbum é também responsável por uma grande polêmica e


uma discussão que existe até os dias de hoje, uma mensagem
subliminar na letra de “Stairway to Heaven”. Ao ouvir esta música, logo
percebemos a habilidade de cada integrante em sua construção, o
órgão de Jones acompanhando o violão de Page em seu início, a voz de
Plant que inicia sussurrando a letra para dentro de nossa mente e, mais
tarde, a bateria que entra exatamente no momento correto, dando
acompanhamento para todo o fantástico solo de Page e os compassos
finais, onde Plant canta em tons agudos como se estivesse “cuspindo” a
letra para sua plateia. Porém, ao tocar a música de trás para frente
temos uma letra que faz referências à Satã. Se isso foi feito
propositalmente, ou acaso, ainda é uma discussão que se prolonga até 29
os dias de hoje. Muitas pessoas ligam isso ao envolvimento de Jimmy
Page com ocultismo (o estudo das ciências ocultas), em especial com as
escrituras de Aleister Crowley, o mais conhecido ocultista da do séc.
XX. Aleister Crowley dizia ser o “666”, ou seja, a “Besta”, foi ele também
o escritor de “O Livro da Lei”, obra muito conhecida dentro dos estudos
ocultistas. Page é tão “fissurado” nos ensinamentos e nas obras de
Aleister Crowley que comprou e foi morar no castelo onde viveu o
ocultista.

Há quem diga que a música (e até mesmo a banda) atingiu tanto


sucesso devido à rituais satânicos por parte dos membros da banda,
mas há controvérsias.

É assustador. Da primeira vez que ouvi fiquei todo


arrepiado. Já tinha ouvido falarem a respeito, mas
nunca havia ouvido e é assustador. Está no álbum.
Ele vendeu a alma ao diabo por aquele álbum? Bem,
quem sabe? (KRUSHER.; Documentário “THE
ROCK HISTORY OF LED ZEPPELIN”, 2008).

Por outro lado:

Aquela coisa satânica de tocar a música de trás para


frente... Gostavam demais de música. Eram músicos.
Acho que não mexeriam com algo assim. Se houve
alguma sugestão disso eu nunca ouvi isso. O nome
da música é “Stairway to Heaven” e não “Stairway to
Hell”. Não sei de onde surgiu isso. Acho que as
pessoas queriam acreditar nisso, haviam ouvido
falar de chicotes e esse tipo de coisa. Era típico de
jornalista, rotulá-los assim, mas... Não. (ROSEN, S.; 30
Documentário “THE ROCK HISTORY OF LED
ZEPPELIN”, 2008).

Não há dúvidas de que o Led-Zeppelin se envolveu com o


“oculto”, porém, é importante que entendamos que o “oculto” não
significa necessáriamente “satanismo” ou coisas do gênero. É
importante também, parar para pensar que, se levarmos em
consideração o desentendimento que a banda tinha com a mídia, seria
comum que procurassem rotular a banda com algo que pudesse cair na
opinião popular, então, procurando “juntar o útil ao agrad|vel”, a mídia
pode apenas ter utilizado das informações referentes às relações entre
o Led-Zeppelin e o ocultismo, para fazer com que a crendice popular
logo voltasse seu olhar da pior forma possível à banda.

Sem dúvida o Zeppelin explorou áreas escuras em


algumas de suas composições, que talvez as pessoas
tenham confundido e achado que fala de algo
satânico. O Page realmente estava fascinado pelo
Aleister Crowley e pelo oculto, mas, em minha
opinião, realmente eram acusações infundadas. O
Zeppelin não se envolveu com nada satânico.
(SHARP, K.; Documentário “THE ROCK HISTORY
OF LED ZEPPELIN”, 2008).

A verdade é que, de certa forma, nunca saberemos realmente o


que houve.

11 “HOUSES OF THE HOLY”, MARCAS CONTINUAM SENDO


BATIDAS

E quando achamos que não havia mais o que produzir depois de


“Led-Zeppelin IV”, chega ao mundo “Houses of the Holy”, o quinto álbum 31
da banda britânica, em março de 1973. Com este álbum a banda volta a
excursionar e cai na estrada.

De 1972 à 1975 abanda ganhou a estrada. Suas


turnês continuavam a ser recorde de público e
arrecadação, em parte pelas táticas visionárias de
Peter Grant, Para a turnê de 1972, o Zeppelin
decidiu oferecer aos organizadores locais 10 por
cento da renda ao invés dos habituais 40 ou 50 por
cento. A banda alugou estádios, criou uma
campanha promocional e contratou promotores
locais para desenvolvê-la. Valeu o risco.
Excursionando ao mesmo tempo que os Rolling
Stones – e apesar de estes terem conseguido notas
positivas na imprensa –, o Zeppelin tocou para
plateias maiores. (FRIEDLANDER, P., 2010, pág.
340).
O Led-Zeppelin estava sempre experimentando, e neste álbum
não foi diferente. Porém, para muitos esse álbum não foi bem recebido.
Ele tirou um pouco do que talvez fosse a “identidade” da banda, pois,
há músicas com estilos alternativos, além do Rock, blues e Rythm and
Blues. Neste |lbum é possível encontrar elementos do “Funky” e até
mesmo do “Reggae”. Para identificar estes “estilos alternativos” da
banda é preciso ouvir as faixas “The Crunge” e “D’yer Mak’er” (uma
alusão ao nome “Jamaica” com pronúncia inglesa). Estas foram as duas
faixas que deram ao álbum motivos de críticas, porém, apesar disso, é
possível ver quão dinâmica a banda poderia chegar a ser, não apenas
em torno do Rock, mas também em torno de outros estilos musicais.
Em relação às demais faixas do álbum, é possível perceber o Led-
Zeppelin que conhecemos, com sua música pesada e também com
elementos de psicodelia, além disso, a fase da banda era muito boa 32
neste momento.

Nessa época, o Led Zeppelin tinha virado uma


mania, uma unanimidade entre os fãs de rock
pesado. Legiões de fãs corriam assistir aos
concertos da banda, que começava a bater recordes
estabelecidos há quase dez anos pelos Beatles.
(FERRI, R., 2001, pág. 90).

Paul Friedlander exemplifica alguns destes recordes.

Em Tampa, Flórida, durante a turnê de 1973, o


Zeppelin quebrou o recorde de público de oito anos
dos Beatles para apresentação de uma única banda,
levando 56 mil fãs ao estádio (mil a mais do que os
Beatles levaram ao Shea Stadium em 1965). Eles
também bateram os Beatles na renda, arrecadando
309 mil dólares naquele show, oito mil a mais.
(FRIEDLANDER, P., 2010, pág. 340 - 341).

Ainda neste ano, gravaram os três shows no “Madson Square


Garden”, em Nova York, shows esses que foram editados e
transformados no filme intitulado “The Song Remains the Same”. Foi
durante as gravações deste show que houve um escândalo envolvendo
um roubo de 200 mil dólares da banda, retirados do cofre do hotel
onde a banda estava hospedada. No DVD 2 do filme, há uma coletiva de
imprensa com Peter Grant e o dono do hotel, onde são questionados
sobre o acontecimento que parece não ter explicação e não foi
solucionado até hoje. Há quem diga que possa ter sido uma jogada
entre Peter Grant e o dono do hotel, para que o hotel recebesse os 200
mil da asseguradora, enquanto Peter Grant poderia simplesmente ter 33
retirado o dinheiro do hotel sem deixar pistas. Há também, uma
hipótese de que Peter Grant possa ter retirado o dinheiro sem ser visto
e anunciado o furto para não precisar pagar o hotel, pois, na coletiva
ele fala que a banda iria pagar a hospedagem com o “este” dinheiro.
Mas são apenas hipóteses, e esse é um fato que se tornou um dos
muitos mistérios que rondam a banda.

Em relação ao filme “The song Remains the Same”, foi um


sucesso de bilheteria, pois, para aqueles que nunca tinham visto a
banda, era uma forma de ter a oportunidade, mesmo que fosse no
cinema. A crítica, por outro lado, não foi generosa com o filme,
chegaram a falar que eles como músicos não deveriam “se meter a
fazer filmes”. O filme é uma mescla de cenas editadas dos três shows
com filmagens particulares de cada um em um tipo de “cena”
particular. A cena relacionada à Page foi a que causou mais opiniões
entre o público. Mas Page, diz, na obra de Mick Wall, que sabia o que
queria fazer com aquilo.
A cena pretendia ser “uma interpretação da carta do
Eremita do Tarô”, ele reconheceu. “O Eremita estava
parado com o farol da verdade, você sabe, a luz e
tudo o mais. E aquele que busca alcança-la, subindo,
para tentar. Mas o fato é que, ao alcançar o Eremita,
o rosto começa a mudar; a mensagem é que, a
verdade pode ser alcançada a qualquer momento,
mas você pode não tê-la recebido ou não saber que
a recebeu, algo assim.” (WALL, Mick., 2009, p|g.
361).

12 “PHYSICAL GRAFFITI”, O COMEÇO DO FIM

“Physical Graffiti” é o álbum duplo da banda, e para recuperar- 34


se das críticas de “Houses of the Holy” este álbum foi uma obra de arte,
onde estão contidos alguns dos maiores sucessos da banda até os dias
de hoje, como por exemplo, a faixa intitulada “Kashmir”.

Acho que “Physical Graffiti” é um álbum duplo


clássico e vale cada espaço nos CDs. Adoro “Physical
Graffiti”. Adoro tudo nele, até a capa. Acho que é
brilhante. (TAUBER, N.; Documentário “THE ROCK
HISTORY OF LED ZEPPELIN”, 2008).

Outra novidade da banda é que já em 1975 (ano de lançamento


do álbum) o Led-Zeppelin j| possuía seu próprio selo, a “Swan Song”, e
este álbum já saiu a partir deste selo. Este selo também abriu
oportunidades para outros artistas, como “Bad Company” e “Roy
Harper”.

Este álbum foi considerado por muitos, a melhor obra do Led-


Zeppelin, porém, também é o álbum que marca o final da ascensão da
banda e o início de sua decadência. É a partir deste momento também,
que uma “onda de azar” parece atingir a banda. Neste mesmo ano
(1975), Robert Plant e sua mulher, Maureen, sofreram um acidente de
carro grave, e Robert ficou todo engessado e sua mulher, quase
morreu.

Physical Graffiti marcou o final da fase de ascensão


do Led Zeppelin, que vinha num crescendo desde a
edição de seu primeiro álbum e, de certa forma, o
fim da fase de ouro dessa grande banda de rock.
(FERRI, R., 2001, pág. 92).

13 ETAPA FINAL, ÁLBUNS FINAIS, PROBLEMAS FINAIS


35
A trajetória final do Led-Zeppelin havia chegado, depois de
“Physical Graffiti”, a banda ainda veio a lançar mais quatro álbuns
inéditos que são “Presence”, “The Song Remains The Same”, “In Through
The Out Door” e “Coda”.

Antes destes álbuns serem editados uma sequência de


acontecimentos estranhos e desastrosos se seguiu com a banda. Um
deles fora o acidente de carro de Plant, enquanto passava férias no
Mediterrâneo. Em 1975, durante uma das viagens da turnê, Jimmy
Page fraturara o dedo na porta de um trem na Inglaterra. Isso fez com
que a banda substituísse do repertório a “Dazed Confused” pela “How
Many More Times”.

Apenas depois de parar um bom tempo para refletir, o Led-


Zeppelin voltou à ativa, com seu álbum “Presence”. Este álbum foi
gravado com Robert Plant sobre cadeira de rodas. Editado em março
de 1976, este álbum parecia menos inspirado, até mesmo menos
expressivo e a crítica manteve-se impassível à ele.
Em outubro deste mesmo ano, é lançado o filme “The Song
Remains The Same”, uma edição dos três shows feitos em Nova York.
Para acompanhar o filme, foi lançado também um disco duplo com o
mesmo nome. O álbum foi bem recebido pelo público, ainda mais por
ter sido o primeiro |lbum “ao vivo” lançado oficialmente pela banda.

Já em 1977, o Led-Zeppelin parecia estar se preparando para


voltar e iniciou uma turnê que começara pela Inglaterra. Nesta época, o
Led-Zeppelin conheceu as novas bandas de novos estilos, como o The
Clash, uma banda “punk”. O Led-Zeppelin se surpreendeu ao descobrir
como essas novas bandas os odiavam.

Foi então, quando a banda estava de volta ao palco em seus


shows extraordinários de até 3 horas no palco, que outra tragédia 36
acontece. Robert Plant perde seu filho, Karac.

Poucas horas depois de chegar em Nova Orleans,


Plant recebeu uma ligação e soube que o filho dele,
Karac, estava doente por causa de um vírus
estomacal, mas não era caso de vida ou morte, ou
pegar um avião para voltar para casa e em menos
de 24 horas, recebeu outra ligação, pois, chamara
uma ambulância para resgatar o garoto e... é trájico.
Karac morreu na ambulância a caminho do hospital.
(KRUSHER.; Documentário “THE ROCK HISTORY
OF LED ZEPPELIN”, 2008).

Isso levou a banda a fazer outra longa pausa. Essa sequência de


acontecimentos começa a causa à banda uma certa fama de
“amaldiçoada”, ainda mais devido {s relações de Jimmy Page com
“ocultismo”.
Foi em 1978, que a banda resolveu viajar para a Suécia, e fazer a
gravação daquele que viria a ser seu último álbum, intitulado “In
Through The Out Door”.

O primeiro álbum da banda depois de três anos sem lançar


nada, foi responsável por um dos maiores sucessos da banda, e
possivelmente a música mais conhecida depois de “Stairway to
Heaven”, uma faixa intitulada “All Of My Love”.

No mesmo mês em que saiu In Through The Out


Door, apresentaram dois megaespectáculos no
festival de Knebworth, fechando em grande estilo a
história da banda na década de 70. (FERRI, R., 2001,
pág. 100). 37
14 BONHAM, SE VAI UMA VIDA, SE PERPETUA UMA HISTÓRIA

Em 1980 a banda estava em uma turnê, começando a década.


Estava fazendo uma excursão pela Europa, a primeira em três anos
intitulada “Zeppelin Over Europe 80”. Em setembro deste mesmo ano, a
banda anunciou sua excursão pelos EUA. Ainda neste mesmo mês, a
banda havia se reunido na casa de Jimmy Page, para ficar durante três
semanas ensaiando para a turnê, até que o pior aconteceu.

Em 24 de setembro de 1980, Bonham bebeu 40


doses de vodka em um período de dezessete horas
para comemorar a iminente turnê americana do
Zeppelin. Sua morte na manhã seguinte foi parecida
com a de Hendrix; Bonham vomitou, engasgou-se e
nunca mais acordou. Diferentemente do Who sem
Keith Moon, o Zeppelin não sobreviveu à morte de
Bonham. (FRIEDLANDER, P., 2010, pág. 341).
O choque foi enorme, não apenas para os membros da banda
como também para o público. Não havia como imaginar o Led-Zeppelin
sem John Bonham, ou sem qualquer um dos membros da banda. A
surpresa foi enorme para os membros da banda, pois, seu estilo de
vida era sempre pautado em “viver o presente”, os membros da banda
já estavam tão acostumados com a formação, com os altos e baixos, que
nunca devem ter parado para pensar como seria o dia de amanhã caso
alguns deles viesse a falecer. Em vista disso, a banda se deu por
terminada, a trajetória revolucionária do maior gigante do Rock and
Roll havia terminado. E foi então, que no dia 4 de dezembro de 1980, a
banda distribuiu uma nota para a imprensa anunciando que o Led-
Zeppelin havia acabado.

Mesmo com o fim da banda, ainda foram lançados alguns 38


materiais póstumos.

O Led Zeppelin teve uma trajetória de fenomenal


sucesso, foram quase doze anos, tempo demais para
que não tenham produzido nada a mais do que foi
lançado nos álbuns – e esse material inédito,
principalmente depois que o formato CD se
estabeleceu, foi sendo liberado com extrema
parcimônia, gota a gota nas compilações “Coda”
(’82), “Remasters” (’90), “Led Zeppelin Remasters”
(’92) e “Boxed Set 2” (’93). (FERRI, R., 2001, pág.
105).

Depois do final da banda, cada membro seguiu seu caminho na


música. Jimmy Page e Robert Plant gravaram cada um, um álbum solo,
enquanto John Paul Jones, resolveu voltar aos estúdios e hoje, 2011,
tem seu projeto com uma banda de músicos que ele reuniu.
O fato de abanda ter acabado, não significa que seu legado tenha
ido por água abaixo muito pelo contrário, prova que ainda nos dias de
hoje, está muito vivo e continua a influenciar e fascinar pessoas de
todas as idades, sexos e etnias. O Led-Zeppelin não apenas marcou uma
geração, mas ele também transcendeu gerações com toda sua inovação
e marcas que deixou na história. Sem dúvidas, foi uma das mais (se não
“a” mais) importantes bandas para toda a história do Rock and Roll.

15 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com esta pesquisa esperamos ter conseguido demonstrar a


importância da banda através de alguns diálogos entre as fontes.
Procuramos discorrer sobre a história da banda desde seu início e
demonstrar alguns fatos que merecem destaque em toda sua grandiosa 39
carreira. Fatos estes, como o recorde de público em estádio antes
estabelecido pelos Beatles que na década posterior viria a ser
quebrado pelo Led Zeppelin.

Nenhuma outra banda de Rock no planeta jamais


chegou tão perto dessa habilidade mágica de fundir
músicas estruturadas ao redor de improvisos não-
estruturados e harmonizar as duas sem
interrupção. (VANCE, Tommy.; Documentário
“THE ROCK HISTORY OF LED ZEPPELIN”, 2008).

Procuramos demonstrar aqui algumas características da banda


simplesmente revolucionárias para sua época dentro da história do
Rock and Roll. Estabelecemos um pequeno debate em torno dos estilos
musicais que rodeiam esta banda que, até os dias de hoje, consegue se
manter viva no mundo musical e ainda influencia e muito artistas de
nossa geração pelo mundo todo.
O Led Zeppelin tem como marca a grandiosidade e a
particularidade no desempenho de cada um de seus membros, fazendo
da banda um conjunto de músicos de igual destaque. Procuramos
demonstrar como cada membro da banda também teve um toque
especial para fazer desta, a banda revolucionária que se tornara.

Pegavam ótimas faixas de Rock and Roll, grandes


faixas de soul, pegavam grandes faixas musicais e ao
vivo faziam improvisações dessas músicas, durante
as quais tiravam elementos de grandes músicas de
rock e de grandes musicas de soul, músicas que a
banda conhecia e com as quais estavam
telepaticamente antenados. (KRUSHER.;
Documentário “THE ROCK HISTORY OF LED 40
ZEPPELIN”, 2008).

Conhecidos como os gigantes do Rock, eles fizeram muito mais


do que compor e contribuir para as futuras gerações da música, eles
trouxeram para o Rock and Roll uma nova cara, algo que até então não
havia sido visto em nenhuma outra banda, desde a performance em
palco à variedade e mistura de gêneros em sua música de estúdio.
Muito se fala das conquistas e contribuições de várias bandas, em
particular os Beatles, mas aqui colocamos o Led Zeppelin ao lado dos
Beatles e de outras bandas, para provar por vários meios a grandeza e
a importância desta banda para o Rock and Roll e sua História.
REFERÊNCIAS:

FERRI, René. Led Zeppelin – Rock é Rock Mesmo. São Paulo: Heavy
Metal, 2001.

FRIEDLANDER, Paul. Rock And Roll – Uma História Social. Rio de


Janeiro: Record, 2006.

THOMAS, Gareth. Led Zeppelin – A História Ilustrada. São Paulo:


Escala, 2010.

WALL, Mick. Led-Zeppelin – Quando os Gigantes andavam sobre a


Terra. São Paulo: Larousse, 2009.

DOCUMENTÁRIOS:
41
Led-Zeppelin - Inside, 2010

It Might Get Loud, 2008

The Rock History of Led Zeppelin, 2008

Led-Zeppelin - The song Remains the Same, 1976

Biography – Led Zeppelin, 2004

SITES E ARTIGOS ONLINE:

http://www.ledzepblues.hpg.ig.com.br/bio.html. Acessado dia


23.04.2011, às 02h e 33 min.

http://www.espada.eti.br/n1957.asp. Acessado dia 01.11.2011, Às 16h


e 45 min.
NÃO FOI NADA FÁCIL: A TARDIA COLONIZAÇÃO PORTUGUESA E A
RESISTÊNCIA DOS ÍNDIOS GOYTACAZES NA CAPITANIA DE SÃO TOMÉ

Aristides Leo Pardo

Resumo: As presentes páginas têm por objetivo analisar o porquê da Capitania de São
Tomé ter sido uma das últimas a ser conquistada e colonizada de fato pelo homem
branco. Nas referidas terras, a resistência indígena apresentou características
diferenciadas e os portugueses que aqui aportaram, se depararam com os índios
Goytacazes, uma tribo guerreira, acostumadas com embates violentos e com quem
travaram inúmeras batalhas ao longo de quase um século, onde fizeram até donatários
desistirem de suas posses e abandoná-las, porém a ganância do homem branco levou 1
esta tribo a total extinção.

Palavra Chave: Índios Goytacazes. Capitania de São Tomé. Resistência Indígena


INTRODUÇÃO

A imagem que nós temos dos primeiros habitantes do Brasil,


oriunda de livros escolares e pinturas diretamente ligadas ao colonizador
português de que o homem branco aqui chegou, dominou o povo indígena,
catequizando sob a égide do cristianismo e introduzindo os nativos na
cultura européia, rapidamente aceita pelos silvícolas, que não
demonstraram nenhuma resistência, é totalmente absurda, equivocada e
infundada, já que apesar dos pesares, eles não se deixaram dominar
2
facilmente pelo homem branco.
Algumas tribos habitantes do território brasileiro antes mesmo da
chegada dos invasores europeus, já guerreavam entre si. Uma delas, a dos
Goytacazes, será destacada neste trabalho, por suas peculiaridades e por
serem responsáveis diretos da não colonização do solo campista nos
primeiros momentos da expansão colonialista brasileira. Os índios foram
humilhados, massacrados e exterminados em seu próprio quinhão, no qual
eles foram os senhores absolutos por vários séculos, anteriores da chegada
do europeu.
Outro pensamento difundido sem base, que acabou sendo aceito
por muitos como verdade, é de que os índios formavam uma única nação
homogênea, os Tupi-Guaranis, mas não, havia muitos povos diferentes que
viviam cada qual em seu território e em determinados locais, eles nem
chagavam a se encontrarem, e em outros, mantinham troca de víveres e em
muitos casos, travavam batalhas, já que muitos deles eram tribos
tradicionalmente de guerreiros, como os Goytacás.
Por que a Capitania de São Tomé foi uma das últimas a cair
realmente na mão colonizadora do português, tendo inclusive dois
donatários aberto mão dessas terras? A história oficial esconde a luta dos
indígenas na tentativa de resistir ao domínio do homem branco em todo o
3
território que abrangia a capitania, que ia das margens do Rio Itabapoana
até o entorno da Lagoa Feia, na divisa do Norte Fluminense, com a Região
dos Lagos.

OS GOYTACAZES

Os Índios Goytacás, descrito por alguns autores como Goytacazes,


Goitacaz, Goitacá e ainda, como Uaitacás (Hemming e Moura, 2007, p. 35)
foram povos guerreiros, que habitaram toda a Planície que engloba o sul do
atual Espírito Santo, Norte Fluminense e Região dos Lagos, territórios
banhados pelos Rios Paraíba do Sul e Itabapoana, além de seus inúmeros
afluentes e de muitas lagoas, o que representou a base de sua alimentação e
a facilidade com que estes se tornaram exímios nadadores.
A tradução de seu nome é motivo de divergência entre vários
autores, mas as denominações mais usuais são “Índios Nadadores” e
“corredores da Mata”, esta menos provável, já que a região habitada por
eles era (e ainda é) formada predominantemente por planícies e planaltos,
com vegetação rasteira e arbustos, que formavam seu habitat natural junto
aos rios e praias.
No clássico romance O Guarani, de José de Alencar, (1986, p. 125)
4
o personagem central da trama, é indagado sobre sua nação de origem e
responde ser um Goitacá, e completa dizendo seu nome “Peri”, filho de
Ararê, primeiro “Cacique” de sua tribo.
Fisicamente eram bem diferentes de outras tribos litorâneas, pois,
segundo Lamego (1945, p. 71), os Goytacazes possuíam a pele um pouco
mais clara, estatura alta e mais robustez no corpo, que era bem forte, o que
levou a serem chamados de “tigres humanos” e devido a essa força,
conseguiam se atracar com peixes maiores, como filhotes de tubarão, com
os braços em sua busca pela alimentação. Outra peculiaridade desta tribo
são os longos cabelos compridos, mas que eram raspados no alto da cabeça;
Adornavam o corpo e utensílios com penas de aves e usavam pigmentos
coloridos extraídos do Jenipapo.
Seguindo a impressão de viajantes, que anotavam informações em
seus diários, Silva (1984, p. 10) nos diz que:

O Inglês Southey, citado por Augusto de Carvalho, diz


que o Goitacáz é mais claro, alto e robusto que outros
índios do litoral, falando diversas línguas. Talvez seja do
“tronco dos Aymorés”. Já o lusitano Simão de
Vasconcelos Goitacaz é “gente agigantada, membruda e
forçosa”. O inglês Knivet fala da seguinte forma: “Seu
porte é sujo e asqueroso, seu olhar feroz e sua fisionomia 5
bruta fazem dele o povo mais odioso do universo”. O
francês Saint-Hilare doz dos Goytacazes: “Reuniam a um
talhe gigantesco uma força extraordinária, e sabiam
manejar o arco com destreza. Outro Historiador (Gabriel
Soares), diz que “na feição do corpo” se parecem com o
Tupinambá. E, “este gentio tem a cor mais clara que os
que dissemos atrás, Tupiniquins, Tamoios e Papanases.

Guerreavam com tribos vizinhas, seus principais rivais eram os


Guarulhos, tribo menos numerosa, que habitavam a mesma região, assim
como, os Tamoios, Aimorés, Guaranis, Puris, Coroados, entre outras tribos
que viviam em áreas próximas e encontros eram sempre findados em
violentos combates.
Citados em diversas literaturas como canibais, fato também
negado por muitos historiadores, já que o ambiente que o cercava era rico
em alimentação, pois além da terra, tinham a sua disposição rios, lagos e o
oceano, fator que minimiza a teoria antropofágica dada aos Goytacaz, que
existiu da mesma forma que em outras tribos, como forma de “incorporar” a
força do inimigo morto em batalhas.
A ingestão da carne humana tinha mais conotação moral e
religiosa do que fins alimentícios e era comum, após a “degustação”,
empilhar ossos de seus inimigos na frente de sua maloca e uma família
6
adquiria prestígio devido ao tamanho de sua pilha. (HEMMING e MOURA,
2007, p. 153).
Os Goytacazes resistiram e mantiveram seu território
praticamente intacto da nociva presença devastadora do colonizador, por
pouco mais de um século, tendo feito inclusive dois donatários abdicarem
de suas sesmarias por não terem conseguido combatê-los.
Aos poucos e a partir da presença dos sete capitães é que foram
perdendo seu espaço, pois armas de fogo e roupas contaminadas com
“doenças do homem branco”, desconhecidas entre a tribo, foram usadas
contra os Goytacazes, que foram sendo combatidos aos poucos.
O último grupo organizado que se teve notícia, fugiu da praia do
Farol no início do Século XVIII e foram alcançados na localidade que se
chamaria São Gonçalo, hoje Distrito de Goytacazes, em “homenagem” à
valente tribo que ali findara cansados, doentes e sem nenhuma resistência,
foram mortos impiedosamente e riscados para sempre do mapa.
Hoje, os Goytacás são considerados extintos e poucos resquícios de
sua vida restaram para a contemporaneidade, ficando principalmente
impressões de historiadores e relatos de alguns escritores.

7
PERO DE GÓES E A CAPITANIA DE SÃO TOMÉ

A Capitania de São Tomé foi uma das quinze em que o Brasil


Colônia foi dividido para melhor administração feita pela Coroa Portuguesa,
que entregou cada Capitania a um donatário, que era o responsável por seu
desenvolvimento, exploração e obediência à Corte. Esta capitania, que
depois passaria a ser chamada de Parahyba do Sul, foi doada a Pero de Góes
da Silveira, um donatário relativamente sem muitas posses, que
desembarcou no Brasil em 1531 na comitiva de Martim Afonso de Souza e
com este foi para a capitania de São Vicente, onde administrou plantações
de cana de açúcar, construções de engenhos e criação de gado, antes de
receber suas próprias terras, através de Carta Doação, assinada pelo Rei
Dom João III, em 28 de agosto de 1534.
Em Carvalho (1988, p.56), notamos que em 1538 é fundado, o
primeiro povoado, denominado Vila da Rainha, nas margens do Rio
Itabapoana, para servir de entreposto aos passantes daquele território e ali
faz as primeiras plantações de cana de açúcar e introduz, de forma pioneira,
o gado na região, construindo um pequeno engenho movido por uma roda
d’água. Sobre esta empreitada, Schwartz (1998, p. 31) nos diz que:

A expedição de Martim Afonso de Sousa, enviada ao país 8


em 1532 para livrar a costa dos navios franceses e
também com fins colonizadores, trouxe mudas de cana.
(...) Na Paraíba do Sul, o donatário Pero de Goes, que já
havia construído engenhos em São Vicente, ergueu duas
pequenas moendas de tração animal e, por fim, instalou
um engenho movido a água, utilizando-se de capital
português.

Desde as primeiras tentativas de fixar residências na região, Pero e


sua comitiva sofreu ataques por parte dos índios. Vale lembrar aqui, que o
donatário não vivia no lugar e continuava com sua vida de fazendeiro em
São Vicente, como homem de confiança do então governador do Brasil,
Martim Afonso de Souza.
Schwartz (1998, p. 36) salienta que os primeiros engenhos
brasileiros foram pequenos, a maioria era do tipo trapiche, movidos por
bois ou cavalos e apenas alguns usavam força hidráulica, em geral os
construídos pelos próprios donatários, Pois os custos envolvidos na feitura
da grande roda d’água e do sistema de calhas, que conduzia a água até o
local apropriado, eram bem elevados para a maioria dos colonos e conclui
dizendo que a capacidade de produção de açúcar na capitania de Paraíba do
Sul, em 1540 era de apenas mil arrobas anuais cada um, ou seja, menos de
quinze toneladas. Lara (1988, p. 127), nos informa que em 1547, o engenho
9
dava conta de produzir “Um par de mil arrobas de açúcar nosso” e confirma
que as primeiras mudas de cana e cabeças de gado, chegam através de São
Vicente.
Algum sucesso as engenhocas de São Tomé conseguiram, pois
Schwartz (1998) fala acerca da contratação por parte dos donatários das
capitanias, de mestre no fabrico do açúcar por altos valores, já que esse
produto era o mais valorizado, sendo inclusive, o principal motivo da
colonização e escravidão no Brasil. O autor, sobre esse assunto comenta
que:

Os donatários e senhores de engenho às vezes não


poupavam esforços para conseguir tais especialistas.
Pero de Goes, donatário da Paraíba do Sul, mandou
buscar técnicos no fabrico do açúcar e artesãos em
outras capitanias. Um homem foi levado àquela capitania
para construir um engenho com um salário de um
cruzado (400 réis) por dia. Também foram contratados
feitores e um mestre de açúcar, este último com um
contrato para receber 60 mil réis por ano, durante três
anos. Pero de Goes estava tão interessado em conservar
esse homem a seu serviço que lhe pagou já no primeiro
ano, mesmo não estando o engenho em funcionamento;
procurou, além disso, encontrar um meio de obrigá-lo
legalmente a cumprir o contrato. (SCHWARTZ, 1998, p.
37)
10
Por inúmeras vezes, os membros da comitiva de Pero precisaram
deixar a pequena vila, após ataques dos índios, que chegaram a matar 30
homens nos dois grandes ataques que cometeram no local, assim, os que
conseguiram fugir do primeiro ataque foram buscar abrigo nas fazendas do
donatário, em São Vicente, a fim de conseguir mais homens para mais uma
vez seguir com a vida nas novas terras. Após o segundo ataque, não se
conseguia mais homens para habitar o lugar que era o lar dos Goytacazes e
assim, Pero abandona o Brasil em 1570 e volta para Portugal, onde
enfrentou diversos problemas com dívidas contraídas na aventura de ser o
senhor da Capitania de São Tomé, que na verdade já era de outros senhores,
os índios Goytacazes, que bravamente resistiram ao domínio do
colonizador.
As terras ficaram abandonadas por alguns anos até que em 1626,
Gil de Góes, filho de Pero, resolve se aventurar na mesma empreitada em
que seu pai se envolvera, anos atrás, e consegue autorização Régia, já que
além das terras estarem devolutas, era descendente direto do donatário. E
assim, Gil parte para o Novo Mundo com um pequeno grupo, na esperança
de que sua tentativa de desenvolver a capitania fosse mais bem sucedida do
que a tentativa de seu pai.
11
Ao chegar, Gil encontra nas margens do Itabapoana, plantações de
cana que se alastraram ao longo dos anos e inúmeras cabeças de gado, fruto
do trabalho inicial de Pero e desenvolvido em terras abandonadas. Gil
montou novamente um pequeno vilarejo, com a mesma denominação de
Vila da Rainha, mas um pouco distante da original e ali começa a sua
tentativa de colonizar a região.
Também sendo atacado constantemente pelos Goytacazes, Gil
renuncia de vez a terra e deixa o Brasil com parte de seus homens, já que
alguns se aventurariam por outras bandas e assim, a posse da Capitania de
São Tomé retorna ao governo português, que depois a incorpora à Capitania
do Rio de Janeiro.
Nas terras de São Tomé, se desenvolveria uma das principais
cidades brasileiras até a década de 1930, denominada Campos dos
Goytacazes, em alusão à nação indígena que um dia dominara o lugar, que
cresceu movida a cana de açúcar e ao trabalho escravo e se originou anos
após a renúncia de Gil, quando essas terras, foram entregues para sete
capitães acostumados com batalhas, que ganharam o quinhão, como
presente por serviços prestados para a Coroa e partiram para a posse, que
por muito tempo foi sendo passada aos seus descendentes, que então
conseguiram dizimar os habitantes nativos, como aponta Silva (2004, p. 13)
12
Caldo de cana envenenado nos cochos foi arma muito
usada contra os Goytacazes. Mas o que provocou as
maiores devastações foi o uso de roupas infectadas de
varíola, o que devastou tribos inteiras. Os europeus
apanhavam as roupas usadas pelos doentes e as
colocavam nas trilhas dos Goytacazes, os índios
procuraram os brancos, em busca de remédios.

A crescente prosperidade da vila despertou a ganância de alguns


homens, liderados pelo Visconde de Asseca, que graças a prestígios junto à
corte, conseguiu para si e para seus herdeiros, a posse do lugar, habitado
pelos descendentes dos sete capitães, os campistas, fato que gerou
Inúmeras batalhas que durariam quase duzentos anos, recheada de
crueldade e carnificina, como nos mostra Lamego (1945, p. 239) e a partir
daí não parou mais, o desenvolvimento da futura cidade que se ergueria no
solo que fora território quase intransponível dos valentes Goytacazes.

CONCLUSÃO

O índio Goytacá, praticamente desconhecido do povo brasileiro na


contemporaneidade, não se rendeu ao homem branco e resistiu até não
agüentar mais e sucumbiu dizimado pela ganância dos conquistadores.
13
Mas para apoderar-se de suas planícies, muitos homens deixaram
seu sangue e foi preciso mais de cem anos para que as terras que faziam
parte da Capitania de São Tomé fossem de fato possessão portuguesa, já
que por resistência dos Goytacazes, até mesmo dois donatários abriram
mão do seu direito de posse da referida capitania, fato inédito em nossa
história colonial.
Se os Goytacazes tinham noção da devastação que os
colonizadores fariam em seu habitat natural ou se eles simplesmente não
queriam companhia, nunca saberemos, mas o importante é deixar
registrado que apesar dos pesares, os índios locais não foram tão amistosos
quanto os de algumas regiões brasileiras, que desde os primeiros passos do
português na Terra Brasilis se aproximaram do homem branco e tiveram a
doce ilusão de que se beneficiaria com sua “visita”.
Os motivos para que São Tomé fosse um dos bastiões de
resistência indígena nas capitanias brasileiras são: era única onde um
donatário desistiu das terras por não conseguir combater os índios (na
verdade foram dois, Pero e depois, Gil), aliados com o fator de que nas áreas
da referida capitania, existia uma nação indígena com características
peculiares, que uniam o conhecimento completo da região em que
habitavam, com os costumes guerreiros e ainda dispunha de uma grande
14
força física e o exímio manuseio de facões, lanças, arcos e flechas, que os
motivaram em não se deixarem dominar pelo invasor e resistir enquanto
pudessem, por mais de um século, até as terras ficarem na guarda dos sete
capitães, que dispunham de material bélico e humano superior aos homens
que tentaram as primeiras colonizações.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ALENCAR, José de, O Guarani. São Paulo: Klick, 1986. 413 p.

CARVALHO, Augusto de. Apontamentos para a História da Capitania de


São Tomé. Campos dos Goytacazes: Leith Carneiro, 1988.

HEMMING, Jhon; MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de. Ouro Vermelho: A


Conquista do Índio Brasileiro. São Paulo: Edusp, 2007. 816 p.

LAMEGO, Alberto Ribeiro. O Homem e o Brejo. 2ª Ed. Rio de Janeiro:


Lidador.1974

SILVA, Osório Peixoto e. Os Momentos Decisivos da História dos 15


Campos dos Goytacazes. Rio de Janeiro: Serviço de Comunicação Social da
PETROBRÁS. 1984.

______, Osório Peixoto. 500 anos dos Campos dos Goytacazes. Campos dos
Goytacazes: Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima, 2004.

SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos: Engenhos e Escravos na Sociedade


Colonial. São Paulo: Cia. Das Letras. 1998

LARA, Silvia Hunold. Campos da Violência: Escravos e Senhores na


Capitania do Rio de Janeiro, 1750 -1808. São Paulo: Paz e Terra. 1988
FICÇÃO E HISTÓRIA: O MANGÁ COMO FONTE DE
PESQUISA HISTÓRICA E INSTRUMENTO FORMADOR DE
OPINIÃO

ARTHUR LUIZ PEIXER

As histórias em quadrinhos são importantes instrumentos formadores


de opinião para crianças. Histórias simples, cuja linguagem e o acesso
apresentam-se de forma muito mais fácil. A arte sequencial nipônica
apresenta-se nesse contexto desde os anos 1970, em terras brasileiras. 1
Contudo, o foco deste trabalho se dá a partir dos anos 1990, quando
vieram os animes, séries como Cavaleiros do Zodíaco, Dragon Ball,
Sailor Moon, Yuyu Hakusho, entre outras, que caíram no gosto popular
e, posteriormente, obtiveram suas versões em mangá trazidas para
Brasil a partir dos anos 2000. A febre hoje, reforçada pela era digital se
mantém reforçada pelos admiradores da arte nipônica.

Neste artigo serão trabalhadas várias séries, como Naruto, Dragon Ball,
conhecidas do grande público, além de Adolf e Gen Pés Descalços,
menos conhecidas, porém, com maior notoriedade histórica. A série
que será mais analisada, entretanto, é Cavaleiros do Zodíaco. No seu
enredo encontram-se, englobando anime e mangá, elementos da
mitologia grega e romana, que constituem o enredo básico da série,
tanto na constituição dos deuses, da maioria dos personagens, e do
contexto geral da série, além de elementos da mitologia nórdica, da
mitologia cristã e elementos da mitologia Hindu.
Dessa forma, portanto, o trabalho irá propor uma questão básica: as
histórias em quadrinhos japonesas podem ser materiais de pesquisa
histórica? A partir disso, iremos pautar nossas discussões: Será
discutida qual a importância do mangá na formação de opinião, para
dessa maneira pontuar de que forma ele pode influenciar o
consumidor, e apresentar elementos históricos ou mitológicos a serem
analisados.

1 A IMPORTÂNCIA DO ANIME E DO MANGÁ NA FORMAÇÃO DA


OPINIÃO

Primeiramente, devemos entender o que são histórias em quadrinhos, 2


o que Scott McCloud discute isso em sua obra “Desvendando os
Quadrinhos”. Inicialmente, ele coloca esse termo citando o pensamento
do americano Will Eisner, de que histórias em quadrinhos são artes
sequenciais de imagens que contém sucessão de imagens, movimentos
e conversas, ou seja, dos acontecimentos como um todo (McCLOUD,
2005, p. 6).

Nos mangás, as histórias em sua maioria constituem-se de páginas em


preto e branco, com folha semelhante à de jornal. Eles podem ser
coloridos, quando se tratam de edições especiais ou definitivas das
publicações. Já os quadrinhos americanos ganham muito mais
acabamento, entretanto, possuem muito menos páginas que os
quadrinhos japoneses. Outro fato que diferencia o mangá é a sua
leitura constituída de forma contrária aos ocidentais, devido à sua
forma de escrita vertical, da esquerda para a direita. Assim, as
adaptações construídas, em sua maioria, são fieis ao formato original.
Dessa forma, constitui-se a diferença básica entre os quadrinhos
japoneses e ocidentais.
Inicialmente, o mangá é visto como um objeto de consumo para puro e
simples entretenimento. Entretanto, deve se obter Devemos construir
outro olhar para esse tipo de literatura. Como os games, a internet e
todas as mídias atuais, os quadrinhos japoneses têm ganhado forte
expansão mercadológica, e Dessa forma, difundindo não somente sua
cultura através desses exemplares trazidos ao Brasil, ou dos animes
exibidos na TV. O fato é que essa presença dentro do mercado nacional
possibilita uma nova assimilação de uma diferente forma de
entretenimento, Ou seja, utilizando de forma semelhante ao Japão,
onde há uma utilização dessa linguagem para melhor educar os jovens.
Sonia Luyten discute essa utilização dos japoneses dessa
representação cultural para a educação dos jovens:

3
Após a capitulação do Japão, em 1945, não só a caricatura, mas
também os quadrinhos em grande proporção voltaram a ser
utilizados para a educação política das massas, agora esboçando
novas necessidades, como a reforma agrária, o desenvolvimento
de uma consciência de classe entre os combatentes, e a
educação dos prisioneiros. (LUYTEN, 2000, p. 178).

A partir disso podemos frisar que no Japão, temas como violência e


erotismo são tratados com naturalidade. Ou seja, há ausência de
censura, ao contrário do Brasil. Os nipônicos utilizam esses materiais
que teriam uma conotação erótica (Hentais) para educação sexual, e a
violência presente nos mangás ou animes, que tem espaço no horário
nobre das principais emissoras de televisão do Japão. Por tratarem tal
temática com naturalidade, isso permite que não existam tabus para
tratarem destes temas, considerados polêmicos no Brasil.
Deve-se observar que nas últimas duas décadas estes meios de
consumo se fizeram mais presentes na mídia brasileira, influenciando
as gerações dos anos 1990 e 2000. Levando-se em consideração,
logicamente, as diferenças culturais existentes, os mangás se
constituem como parte do universo formador de opinião de seus
consumidores nos tempos atuais, somados às mídias digitais,
presentes no cotidiano dos jovens. O fato é que esse consumo de um
elemento forte da cultura japonesa, não só possibilita um prévio
conhecimento sobre os elementos dos enredos (referindo-se aos
quadrinhos japoneses de cunho histórico ou mitológico), mas da
própria cultura japonesa. Os mangás de enredo, que possuem um pano
de fundo mitológico, como Cavaleiros do Zodíaco, por exemplo,
instigam ao consumidor a conhecer aquilo do que trata a série, seus
elementos principais (os deuses gregos presentes como Atena, Hades, 4
Poseidon, ou os deuses nórdicos, no caso do anime, como Odin) e
constituir um conhecimento sobre o tema.

Ao consumir, o próprio leitor tem consciência que a série, como a


maioria dessas produzidas, possui elementos dos mitos, entretanto,
não são descrições fieis históricas, mas sim adaptações. Assim, ele
busca conhecer muitas vezes do que se trata a descrição histórica
apresentada pelos grandes autores. Ou seja, torna-se uma iniciação ao
consumo deste tipo de produto. Marcelo Fronza discute essa questão
em seus trabalhos com quadrinhos em sala de aula, salientando que a
força do enredo da narrativa gráfica gera muitos anacronismos que
não são percebidos pelos jovens (2009, p. 211). Fronza considera
válida a utilização dos quadrinhos, seja de qualquer natureza dentro de
sala de aula como material de pesquisa similar a qualquer livro
didático, pois é uma linguagem que facilita a compreensão do aluno
sobre determinado tema abordado, considerando todos os
anacronismos existentes.
Sendo assim, além de despertar o interesse pela leitura para muitos
jovens, existe a possibilidade de seu uso em sala de aula, o aprendizado
japonês faz-se comum na formação de opinião dos consumidores
destes produtos. Por existir forte influência nipônica no Brasil, devido
à grande e expansiva colônia nipônica existente neste país, observa-se
que não somente esses descentes conhecem dessas culturas, mas que
seus admiradores e consumidores são iniciados a partir do
conhecimento deste pedaço da cultura japonesa inserido no mercado
dos quadrinhos:

O Brasil é o país onde se encontra o maior número de japoneses


e de seus descendentes no mundo, fora do Japão. Segundo as 5
estimativas do censo feito pela colônia em 1987, a população de
nipo-brasileiros alcança, em nosso país, quase um milhão de
pessoas. O ponto de partida foi a chegada dos 781 imigrantes
pioneiros que desembarcaram no dia 18 de junho de 1908, do
navio Kasato-maru. (LUYTEN, 2000, p. 191).

Os japoneses trouxeram consigo sua cultura e a preservam até hoje,


através da manutenção da sua língua, além de seus costumes, e os
mangás fazem parte desse processo. São elementos culturais que
refletem o pensamento japonês, o seu modo de ver o mundo, reflexos
de sua religiosidade, a maneira como encaram o cotidiano e os
relacionamentos com os demais, mesmo que indiretamente. O fato é
que seus pensamentos ficam impressos nas histórias, e seu olhar fica
nítido na forma diferenciada que vê as coisas. Esse aprendizado fascina
os consumidores de mangá, que acabam por ser aficionados pela
cultura nipônica, influenciando seu modo de ver as coisas.
Sendo assim, os mangás se mostram de diversas maneiras como
construtores da opinião daqueles que os consomem. Sua leitura se faz
extremamente eficiente dentro de sala de aula, onde pode auxiliar na
produção de conhecimento historiográfico. A utilização deles na
pesquisa faz-se útil, considerando a era em que vivemos, em que
surgem cada vez mais fontes históricas diferenciadas, e as imagens
fotográficas, filmes e agora também os quadrinhos servem de
referência para a construção historiográfica.

2 O MANGÁ COMO FONTE DE PESQUISA HISTÓRICA

O mercado japonês, como já mencionado neste trabalho, obteve um 6


crescente desenvolvimento econômico e social desde o fim da II Guerra
Mundial. O fato, é que a partir desse processo, sua cultura se
desenvolveu da mesma forma, e se tornou evidente para o mundo.
Grandes responsáveis por isso foram os mangás, que nas suas
narrativas sequenciais, não só desenvolvem o sentido proposto de seu
enredo, mas também carregam consigo a carga cultural tradicional de
seus autores nipônicos, que por sua vez, refletem a forma como foram
criados.

Os precursores do mangá no Japão datam do período da idade média


ocidental. Nos séculos II e III a.C. construiu-se um novo modo de vida
japonês, embasado em suas influências vindas da China. Nas terras
nipônicas, Confucionismo e a escrita chinesa foram adotados para a
nação (LUYTEN, 2000, p. 91). Nos templos budistas daquele período,
foram encontradas as primeiras caricaturas que serviriam de
influencia para os atuais mangás. Elas possuíam traços toscos e fora de
proporção. Segundo Luyten trata, posteriormente haveriam surgido os
chamados Chojugiga, que nada mais são do que traços simplificados
embebidos de humor, com um estilo semelhante às charges, com traços
constituídos de forma simplista e são comuns com animais como
personagens de suas estórias:

Chojugiga é um clássico famoso da arte cômica japonesa que


tem seu reconhecimento na história mundial da arte em função
do humor satírico aliado a técnica apurada da captação de
formas. Neles, sapos, macacos, coelhos e raposas são
humorísticos antropomorfizados satirizando as condições da
época. (LUYTEN, 2000, p. 92).

7
Entretanto, o mangá começou a se constituir no fim do século XIX e
início do XX. Paul Gravett (2004, p. 22) É nesse período que começa a
se constituir como um periódico, com enorme influência dos comics
americanos. Inicialmente eles se constituíam de pequenas tiras de
jornal de 4 a 6 quadros, com traço humorístico em sua maioria, com
traços simplificados. Para o autor:

Na verdade, o mangá poderia jamais ter nascido se a longa


herança cultural japonesa não tivesse sido violentamente
sacudida pelo fluxo de desenhos, caricaturas, tiras de jornal e
quadrinhos ocidentais. Negar isso é reinscrever a história. O
mangá nasceu do encontro do oriente com o ocidente, do velho
com o novo, ou, como outro slogan de modernização do século
XIX colocou, foi um caso de Wakon Yosai – “espirito japonês,
aprendizado ocidental”. (GRAVETT, 2004, p. 22).
O fato é que os mangás, por trás de seu viés mercadológico, imprimem
não somente uma cultura de massas, mas um importante documento
que reconta a história de uma nação. A partir de suas origens, pode-se
observar, por exemplo, as influências chinesas e americanas que foram
inseridas, sem destruir seus principais traços culturais.

Dentro de seus enredos temáticos, observam-se muitas influências das


eras da história cultural do Japão. Ninjas, samurais, os períodos
históricos, as influências da segunda guerra, vertentes de seu
pensamento histórico-social, todos os elementos trazem uma carga
histórica, que mesclada ao enredo, constituem narrativas
diferenciadas. Nesse contexto, apresentaremos alguns exemplos e
discutiremos elementos presentes, a fim de exemplificar todo o
processo da abordagem temática. 8
As séries mais clássicas e conhecidas podem ser caracterizadas pelas
histórias de samurais. Muitas histórias foram trazidas ao país,
publicadas e desenvolvidas, dentre elas, Rurouni Kenshin:

Iniciando sua ação em 1878, dez anos depois da era meiji,


Rurouni Kenshin tem como protagonista Kenshin Himura, um
retalhador que decide um dia abandonar sua vida de matanças.
A partir de então, passou a levar consigo a sakabatou, uma
espada de lamina invertida. (MOLINÉ, 2004, p. 148)

A série engloba um contexto feudal. As roupas, as casas, as armas, todo


o enredo produz uma visão dos anos 1990 sobre a era Meiji, inserindo
uma história fictícia. O fato é que o autor da série, Nobuhiro Watsuki,
desenvolve uma história que se insere de forma adequada no período
que é narrado.

Estes documentos refletem não somente um retrato simplista de um


período, ou uma interpretação de um autor. No caso de séries que
narram a mitologia japonesa, como Rurouni Kenshin, elas refletem
como os fatos históricos são observados por eles. Não se trata somente
de uma visão do que está exposto, mas sim uma pesquisa histórica de
fato, observar o que autor coloca, qual o período em que foi escrita a
história, e não somente do período que se trata. O confronto com
documentos históricos, e as imagens e os detalhes inseridos nos traços,
podem facilitar a construção de uma narrativa histórica.

9
2.1 EXEMPLOS DE ANÁLISES HISTÓRICAS TENDO COMO FONTE OS
MANGÁS

Outro grande exemplo é a conhecida série Dragon Ball, de Akira


Toriyama, uma das mais famosas de todo o planeta. Seus elementos
gerais não refletem o conteúdo histórico em si. Entretanto, seu
protagonista, chamado de Son Goku, é uma “versão moderna e
humanizada do rei macaco, personagem popular de uma antiga lenda
chinesa (cujo nome original e Su Wo Kong e, em japonês, precisamente,
Son Goku).” (MOLINÉ, 2004, p. 95). Nesse contexto, Akira Toriyama
inseriu a transformação em macaco nas noites de lua cheia, como uma
alusão a essa lenda.

A série é um interessante instrumento para reflexão sobre as lendas e


pensar a partir disso a importância destas para os diferentes povos ao
longo da história. Pode ser utilizado como uma fonte histórica para
retratar uma lenda chinesa, adaptada pelos quadrinhos japoneses de
maneira extremamente caricata.

A série Yu-Yu-Hakusho é um bom exemplo de uma caricatura do


mundo espiritual da mitologia japonesa. A série escrita por Yoshihiro
Togashi conta com um enredo que se passa em 1990:

Yu Yu Hakusho – cuja tradução aproximada é “brincando com


os espíritos” – tem como protagonista Yusuke Urameshi, um
estudante de 14 anos, bastante indisciplinado, mas de bom
coração. Um dia, ao salvar a vida de um garoto que está prestes
Sr. Enma Daioh, decide conceder a Yusuke a chance de 10
ressuscitar. Ele deverá enfrentar uma série de provas para ser
merecedor de tal privilégio. Aprovado e devidamente
ressuscitado, Yusuke passa a agir sob as ordens do mundo
espiritual como detetive sobrenatural. Uma vez que os Youkais
fugiram do Makai, o mundo dos demônios, e vão para a Terra
cometer atos deliquentes, a missão de Yusuke será capturá-los.
(MOLINÉ, 2004, p. 170).

No que tange o mundo espiritual, Yu yu Hakusho brinca com esse


contexto. Por ser uma série de humor, tem toda uma visão
diferenciada, mas pouco altera os elementos que permeiam a
mitologia. O deus que julga os vivos e os mortos, Enma Daioh não é
uma exclusividade dessa série, Dragon Ball também o apresenta,
quando trata da morte do personagem principal. Além de Enma,
apresentam-se os demônios, presos dentro do inferno que escapam e
perturbam os seres humanos e a ordem estabelecida.
Nesse viés, pode-se observar o pensamento que os japoneses têm
quanto ao seu imaginário espiritual, ou seja, como se constrói o
pensamento japonês em visão de seus mitos. O medo dos demônios, a
luta no mundo espiritual pelos humanos, e contribui para uma
pesquisa não só dos elementos da série, como também no que descreve
o imaginário que possuem relativo ao outro mundo.

Além de samurais e youkais, a série mais recente e conhecida que trata


a lenda dos ninjas e possui enormes quesitos a serem analisados é
Naruto. Esta série trata de uma sociedade inteiramente constituída por
ninjas, divididos por aldeias, centros de países comandados por
senhores feudais. Todo o contexto do anime remete ao Japão feudal,
sem a existência própria de um Japão, e também se constitui de
elementos da mitologia e do folclore japonês. A criatura que está selada 11
no protagonista, Naruto Uzumaki, é a Kyuubi (raposa de nove caudas)
é uma criatura típica do folclore japonês, conforme destaca Moliné
quando trata dessa série:

O protagonista dessa série é Naruto Uzumaki, um órfão de


origem desconhecida, que, na realidade possui, lacrada dentro
de si, a “raposa de nove caudas”, uma criatura mítica do folclore
japonês. Além disso, Naruto é um jovem aprendiz de ninja que
vive na vila oculta da folha, uma cidade-academia para
aspirantes a “guerreiros das sombras” (MOLINÉ, 2004, p. 137).

Dentro desse contexto, além do uso de criaturas míticas e dos ninjas e


suas expressões, a série constitui uma sociedade completamente
embasada na proteção e no cumprimento da missão estipulada, ou
seja, de fidelidade à nação acima de qualquer coisa e de qualquer
pessoa.
Além disso, dentro do enredo, muitas expressões e criaturas, como a já
mencionada Kyuubi, são relacionadas a elementos mitológicos e são
apresentados na série. Izanaghi, Izanami, amaterasu, são estágios de
uma técnica ocular apresentada na série, chamada “Sharingan”. Todas
estas formas correspondem a analogias às divindades da mitologia
japonesa e seu poder correspondente, como o uso das chamas negras
do Deus Amaterasu, características do golpe ocular do clã Uchiha.
Inclusive, a formação de clãs é uma característica do período feudal
japonês, e que podem ser encontrados na série. Naruto, portanto é
embebida de diversos quesitos para uma análise de fonte
historiográfica, tanto em vídeo como em mangá, considerando o seu
rico e extenso enredo.

Estes exemplos citados permitem nortear como se pode iniciar uma 12


pesquisa histórica a partir dos mangás, baseando-se na visão japonesa
de seus mitos. Entretanto, existem muitos números relativos a fatos
históricos recentes, como o mais marcante do século XX e que teve
consequências catastróficas no Japão: a II Guerra Mundial. Muitos
autores descreveram de maneira historiográfica todo o contexto, e os
mangás japoneses permitiram refletir isto de forma direta sobre
histórias reais e sobre fatos construídos em cima do contexto. Adolf, de
Osamu Tezuka, o maior mangaká* de todos os tempos, narrou dessa
forma, em seus cinco volumes a história do dilema entre três pessoas:

O enredo de Adolf ni Tsugu (“Fale a Adolf”) – titulo completo do


mangá – se desenvolve em torno de três personagens de mesmo
nome: Adolf Kauffmann, filho de um diplomata alemão e de uma
japonesa; Adolf Kamil, filho de humildes padeiros judios, e o
tristemente célebre, Adolf Hitler. [...] o autor volta a exibir em
Adolf um impressionante retrato das misérias humanas, em que
tanto as altas personalidades políticas e militares, quanto o
“povo simples” são metidos no mesmo saco e apresentados
como meros títeres no grande teatro da vida. (MOLINÉ, 2004, p.
70 – 71).

Moliné retrata um pouco do que é a série em seu texto. Entretanto,


embora possua um enredo fictício, Adolf retrata toda a destruição que
uma guerra pode causar. Não se ateve somente à desestruturação da
nação como um todo, mas permeou todo o sofrimento que diferentes
pessoas tiveram de passar. A começar por Sohei Toge, que tem sua vida
destruída devido aos documentos que acusam Hitler de ser um judeu.
13
O ponto alto da série é a destruição da amizade que tinham os
protagonistas de nome Adolf da história, devido aos rumos que
tomaram por um ser judeu e o outro nazista. O segundo inclusive
responsável pela morte do pai de Adolf Kamil, o judeu. A partir desse
fato, o enredo se desenrola. Essa série demonstra de forma marcante o
pensamento japonês quanto às consequências da guerra, na maneira
como ocorre a narrativa, o enredo do mangá se mostra mais
abrangente historicamente, quando após o fim da guerra, a história
passa a ocorrer em Israel durante a quarta guerra árabe-israelense,
nos anos 1970. Os dois protagonistas se cruzam na história novamente,
o Adolf nazista torna-se membro da organização para a Libertação
Palestina, em um grupo secreto chamado setembro-negro, e o Adolf
judeu, antes um pacifista, torna-se membro do exército israelense. O
caminho de ambos se cruza, e a trama tem seu desfecho nesse
contexto.

O autor constrói um enredo marcante que exprime como os japoneses


viam a guerra. Ele consegue individualizar as consequências da
batalha, destacando a culpa, o sofrimento, e toda a experiência pessoal
que possam ter passado. É um relato crítico, que confrontado aos
documentos históricos, cria uma ligação para a construção de uma
pesquisa historiográfica.

Os elementos utilizados pelo autor, mesmo podendo não ter a


fidelidade precisa, eram extremamente úteis pra contextualizar o
comportamento dos japoneses quanto à guerra. Além de tudo, ele
consegue captar fatos históricos, como as olimpíadas de Berlim, a
própria II Guerra Mundial e a guerra em Israel, construindo uma
ligação entre os fatos, tornando a história complexa e interessante.

Outro grande exemplo de série que retrata os sofrimentos da II Grande


Guerra é Hadashi No Gen (Gen Pés Descalços) de Kenji Nakazawa, que 14
constrói um pseudônimo para retratar o sofrimento passado por ele
mesmo na II Guerra:

Ambientado no Japão da Segunda Guerra Mundial, Hadashi no


Gen (Gen Pés Descalços) alcança seu auge com os bombardeios
de Hiroshima, que puseram um ponto final no conflito bélico.
Nakazawa havia sido testemunha do holocausto nuclear quando
tinha seis anos de idade, no qual perdeu seu pai e dois irmãos.
Isso teve grande influencia na realização de Hadashi No Gen, em
que objetivou refletir de maneira estremecedora e fidedigna
sobre as penúrias sofridas por seus pais durante a guerra, assim
como o horror causado pelo holocausto e suas conseqüências.
(MOLINÉ, 2004, p. 108)
O autor consegue relatar com muitos detalhes as tensões da guerra.
Mostra o quanto Gen Nakaoka, protagonista da série, sofre por seu pai
ser um pacifista, ele é humilhado por esse motivo pelos seus amigos e
professores, afinal no período imperava a educação militarista. Ele
consegue retratar também as grandes crises de fome, até quando ele e
seu irmão brigam por um grão de arroz (MOLINÉ, p. 109), por
exemplo, e consegue colocar como ficou o Japão no pós-guerra e
principalmente, depois das bombas atômicas, mostrando as
consequências que a radiação nuclear teve para as pessoas que
sobreviveram às explosões.

Essa série, portanto, tem um valor testemunhal importantíssimo, e


pode ser retratada de forma bastante marcante pelo autor. É uma entre
tantas histórias que relataram fortemente um período obscuro na 15
história japonesa. A carga dramática dessa publicação traz um teor tão
forte, que mais do que nunca, esse relato pode destacar uma pesquisa
histórica acerca do tema. E por tratar-se de uma experiência de vida,
podemos associar o texto com as ideias de Rüsen acerca da consciência
histórica e da memória histórica:

A memória histórica e a consciência histórica têm uma


importante função cultural: elas formam e expressam
identidade. Elas delimitam o domínio da vida de uma pessoa –
os aspectos familiares e reconfortantes de seu próprio mundo
da vida – em relação ao mundo dos outros, que frequentemente
é um “outro mundo”, e como tal um mundo estranho. A
memória histórica e o pensamento histórico desempenham essa
função de formar identidade em uma perspectiva temporal;
pois é a mudança temporal dos seres humanos e de seu mundo,
sua experiência frequente das coisas tornando-se diferentes
daquilo que se esperava ou planejava, que ameaça a identidade
e familiaridade de nosso próprio mundo e pessoa. A mudança
provoca um esforço mental para manter o mundo e o ‘eu’
familiares ou para readquirir esta familiaridade nos casos de
experiências de transformações extraordinariamente
perturbadoras. (RÜSEN, 2009, p. 173).

Essas experiências perturbadoras destacadas por Rüsen e as mudanças


do mundo em que vivemos, fazem com que a formação da identidade
resulte de impactos profundos no contexto social em que se vive. No
caso de Kenji Nakazawa, ele relata exatamente os impactos que a
guerra teve em sua vida, no meio em que vivia. A invasão de pessoas 16
fora do seu meio resultou nesse caso, na destruição da cidade onde
vivia, e consequentemente na perda de seus pais. O reflexo de sua
vivência, resultou em um relato de memória, o que acresce ainda mais
no seu trabalho quadrinizado. O esforço mental de Nakazawa,
portanto, resultou em um relato histórico em formato de mangá.

Sendo assim, todos os exemplos citados podem contribuir com uma


pesquisa histórica. O fato é que a maioria das publicações pode
contribuir para uma análise, às vezes não tão precisa (como Dragon
Ball) ou até bastante minimalista (como Hadashi No Gen). Contudo,
isso torna a pesquisa mais valiosa, utilizando-se de representações e
interpretações para conseguir ilustrar ou até perceber como os
criadores observam o fato histórico, possibilitando comparações sobre
períodos, tornando a pesquisa mais rica. O mangá apresenta-se como
fonte de pesquisa extremamente válida.

Além de toda essa ideia, o sentido subjetivo que permeia a publicação


torna-se extremamente interessante. Como o Hadashi No Gen: o que
levou o autor a fazer a história? Retratar através de um pseudônimo,
todas as suas experiências sofríveis da Guerra. Qual a visão do autor
sobre o fato? Qual é a visão do povo japonês exposto dentro da
publicação? São essas questões que permeiam uma pesquisa que se
fazem extremamente válidas nesse contexto.

2.2 CAVALEIROS DO ZODÍACO E A PESQUISA HISTÓRICA

Uma das séries que possuem ênfase para pesquisa histórica é


Cavaleiros do Zodíaco. Masami Kurumada constrói uma mitologia
própria para toda a série a partir de várias mitologias existentes. O
autor, portanto se coloca como um narrador da antiguidade, como 17
Heródoto e Homero, e cria dessa forma, sua própria versão dos da
mitologia:

A “mitologia” é a própria sistematização da cultura e de suas


ramificações desde o surgimento da humanidade. É por
definição, algo tão vasto que nem o mais dedicado poeta épico
poderia narrar cada uma de suas histórias, e com certeza seria
impossível reunir todos os relatos em um mesmo livro. Por
estar em evolução constante, nela coexistem teorias dispares e
até contraditórias, e qualquer esforço em discutir ou alinhar
diferentes versões não seria mais do que um divertido
passatempo. (HAMAZAKI; KURUMADA, 2004, p. 25)
Muitos deuses de diversas mitologias apresentam-se no decorrer da
série. Atena, deusa da sabedoria e da justiça, filha de Zeus e Métis, ao
nascer sai armada da cabeça de Zeus, se trata também da deusa da
guerra e da inteligência (VERNANT, 2000, p. 195). Na série se trata da
defensora da terra na ausência de Zeus, deus dos deuses, e tem por
função protegê-la de todo o mal a cada 200 ou 300 anos. Nesse
contexto, Masami Kurumada, autor da obra, insere os cavaleiros como
seus defensores diretos que surgiram nos tempos mitológicos pra
proteger a Terra do mal.

São 88 guerreiros, divididos em três categorias: os 48 cavaleiros de


bronze, e suas constelações austrais (cisne, Leão menor, Lobo, Hidra,
Camaleão, etc.); os 24 cavaleiros de prata, e suas constelações boreais
(Cefeu, Cães de caça, baleia, mosca, lagarto, etc.); e os cavaleiros de 18
ouro, representados pelas constelações zodiacais (Áries, touro,
gêmeos, câncer, aquário, etc.); O autor justifica que não existe um
número fixo de constelações, mas essas 88 se tratam de uma
padronização da união astronômica internacional na assembléia geral
de 1930 (HAMAZAKI; KURUMADA, 2004, p. 44). Considerando que os
cavaleiros somam 84, considera-se que os 4 restantes sejam os
cavaleiros que usam as armaduras dos deuses:

Saint Seiya (literalmente “Santo Seiya”) traz um grupo de jovens


guerreiros dotados de armaduras e poderes sobre-humanos, os
cavaleiros de bronze, encabeçados por Seiya, um jovem japonês
treinado na Grécia. Cada um dos cavaleiros está associado a
uma constelação; [...] Finalizada a primeira grande saga,
“santuário”, os cavaleiros de bronze terão como oponentes no
segundo e terceiro ciclos, respectivamente, os generais marinas,
a serviço de poseidon, e os Espectros, comandados por Hades. O
Mangá foi finalizado em 1991. Produzida pela Toei Animation, a
versão original do anime consta de uma série de 114 episódios,
lançada em 1986, além de quatro adaptações em média-
metragem e 2 longas. [...] No Brasil, como nos demais países do
ocidente, Saint Seiya foi rebatizado como Os Cavaleiros do
Zodíaco, por iniciativa do seu distribuidor europeu, pelas
possíveis confusões religiosas que o nome “Santo” no titulo
original pudesse suscitar nos países cristãos. [...] O mangá foi
editado no país (Brasil) pela Conrad editora a partir de 2001.
(MOLINÉ, 2004, p. 151).

Portanto, o anime é revestido de traços que se assemelham a figuras 19


mitológicas que se interligam com as armaduras. Alguns exemplos
clássicos são os próprios personagens principais, como Ikki, o
cavaleiro de bronze de Fênix. Trata-se da ave contada por Ovídio na
mitologia grega, que se reproduz a partir das cinzas. (BULFINCH, 1962,
p. 271).

Outro protagonista que possui características mitológicas que se


refletem em sua armadura, e até em sua personalidade, é o cavaleiro
Shun, da constelação de Andrômeda. Conta-se que Cassiopéia, a rainha
esposa de Cefeu, rei etíope, ousou comparar sua beleza as das ninfas do
mar, e essas irritadas, enviaram um pródigo monstro marinho para
destruir o litoral do país. Cefeu, aconselhado pelo oráculo colocou sua
filha Andrômeda como sacrifício, mas está foi salva por Perseu em
troca de esta ser oferecida para ele pelo salvamento. (BULFINCH, 1962,
p. 111).

No que diz as características que se assemelham ao cavaleiro, observa-


se o fato do seu uso das correntes como armas de defesa e ataque,
devido ao fato da princesa ser acorrentada nas rochas litorâneas
etíopes, e pelo próprio cavaleiro ter uma personalidade mais altruísta,
de auto-sacrifício e uma visão pacifista e sensível em relação às
batalhas. Outra questão é o fato de seu local de treinamento ser
litorâneo e seu mestre se tratar de Daidaros, o cavaleiro da armadura
de Cefeu. O teste final para conseguir sua armadura, é se libertar das
correntes, ao qual o pretendente a cavaleiro está preso, da mesma
forma que Andrômeda. (KURUMADA, volume 20, 2001).

Dentre os cavaleiros de prata, existe o cavaleiro de Perseu, dono do


escudo da medusa. Perseu, na mitologia grega, foi um herói épico que
venceu a mulher que possuía cabelos de serpente e quem a olhasse
diretamente se transformaria em pedra. Perseu a vence, utilizando seu
escudo e o calçado alado, dados por Atena e Hermes, respectivamente, 20
e ao vencê-la, fica com sua cabeça com o intuito de utilizar seu poder
de transformar homens em pedra. (BULFINCH, 1962, p. 109).

No caso do cavaleiro de prata, defensor da armadura de Perseu, ele


possui um escudo, ao invés da cabeça, e esse escudo que reveste as
costas da armadura, é capaz de transformar o inimigo em pedra. Esse é
o grande trunfo do cavaleiro de prata de Perseu, ao qual o cavaleiro de
dragão sente necessidade de rasgar os olhos para vencer ele.
(KURUMADA, volume 11, 2001).

Diversos deuses além de Atena fazem-se presentes na série. Poseidon,


deus dos mares, Hades, deus do mundo dos mortos, são as divindades
da mitologia grega, mais notórias da série. Quanto a este último, nota-
se a constituição do mundo dos mortos e personagens deste lugar
presentes no inferno de cavaleiros do zodíaco.

Entre muitos exemplos, têm-se os juízes infernais Minos e


Radamanthys. Minos na mitologia é rei de Creta e um dos juízes do
inferno (VERNANT, 2000, p. 204) e na série representa a sapuris
(nome das armaduras dos guerreiros de Hades) de Griffon. Já
Radamanthys é filho de Zeus e Europa, é irmão de Minos, e Hades o
julgando sábio, arrasta-o para o inferno para ser juiz do mundo dos
mortos. (VERNANT, 2000, p. 207). Em Cavaleiros do zodíaco, ele é o
juiz mais forte, representante da sapuris de Wyvern. Tanatos e Hypnos,
personificações do da morte e do sono perspectivamente (VERNANT,
2000, p.202), tratam-se na série de semideuses, braços direitos de
Hades, e irmãos gêmeos.

Existem também séries extras, como a saga exclusiva para o anime,


denominada “saga de Asgard” que remonta o imaginário da mitologia
nórdica e segue a mesma linearidade, entretanto, os guerreiros deuses,
representam individualmente as estrelas da constelação da ursa maior, 21
que tem sua principal estrela, polaris, representada na figura de Hilda,
a guardiã da gelada Asgard. Odin é o principal Deus do panteão
nórdico, um dos deuses da criação da humanidade, é o protetor da
terra divina, habitação dos deuses (BULFINCH, 1962, p. 286).

O Valhala é a habitação de Hilda na intitulada saga de Asgard, do anime


de Cavaleiros do Zodíaco. Trata-se do local da mitologia nórdica onde
Odin “[...] se banqueteia na companhia dos heróis escolhidos, todos
eles caídos corajosamente em batalhas, pois todos os que haviam
morrido de maneira pacifica eram dali excluídos”. (BULFINCH, 1962, p.
286). Portanto, na série, os guerreiros que podiam habitar o palácio
eram os guerreiros deuses de Odin, representados na série pelas oito
estrelas da constelação da ursa maior.

Existem também os livros da Gigantomaquia, que narram a batalha


contra os Gigas, seres conhecidos por antecederem os humanos, seres
mitológicos que combatem os cavaleiros, comandados por Tifon. Na
mitologia grega é um monstro, filho de Gaia e Tártaro. Ele foi
aprisionado por Zeus no monte Vesúvio. (VERNANT, 2000, p. 208).
Essa série inicia desse contexto em que os Gigantes, seres que segundo
a mitologia são saídos da gota do sangue de Urano e caíram na terra e
encarnam a guerra e os combates (VERNANT, 2000, p. 200), unem-se
para reviver Tifon, e resultar em Equidna, que geraria os monstros
necessários para a destruição humana. Assim como na mitologia, ela
resulta do filho de Gaia (VERNANT, 2000, p. 199).

Tem o personagem Orfeu, na série o cavaleiro de prata de Lira, que


pelo seu amor a Eurídice vai ao inferno buscá-la. (KURUMADA, volume
40, 2001).

22
Orfeu era filho de Apolo e da musa Calíope. Seu pai oferecera-
lhe uma lira. Aprendeu a tocar o instrumento com tanta
perfeição que nada resistia ao encanto da sua musica. [...]
Himeneu fora convidado para abençoar o casamento de Orfeu
com Eurídice; mas embora estivesse presente, não trouxe feliz
agouro consigo. Sua tocha fumegava e fez com que os olhos de
todos os presentes lacrimassem. Em coincidência com esse
prognostico, Euridice, pouco depois do seu casamento, quando
passeavam com as ninfas, suas companheiras, foi vista pelo
pastor Aristeu, que ficou tão impressionado com a beleza dela
que se atreveu a falar-lhe. Ela assustou-se e ao fugir, pisou em
uma cobra que estava escondida no chão, foi mordida no pé e
morreu. (BULFINCH, 1962, p. 166 – 167).

Orfeu acaba ficando no mundo dos mortos, é considerado um traidor,


mas tudo que ele faz é pela sua amada, que é transformada em pedra, e
ele resolve fazer companhia a ela no jardim do mundo dos mortos. Na
mitologia ela é arrastada para o fundo do inferno, e ele só a encontra
depois de sua morte (BULFINCH, 1962, p. 128).

Enfim, Cavaleiros do Zodíaco possui um enredo rico, porém anacrônico


e com adaptação própria dos mitos históricos. Dessa forma, Marcelo
Fronza, historiador que trata sobre a aplicação dos quadrinhos em sala
de aula, comenta sobre o anacronismo existente nos enredos:

No entanto nos enredos das histórias em quadrinhos aparecem


elementos como os anacronismos e a descontextualização.
Esses elementos não devem necessariamente ser considerados 23
erros históricos, pois, nas histórias em quadrinhos com temas
históricos, eles são elementos estruturais de sua narrativa.
(FRONZA, 2009, p. 47)

Portanto, avaliar a interpretação de Masami Kurumada e sua colocação


como um dos poetas épicos, não se caracteriza de erros históricos, mas
sim, cabe uma pesquisa relacionada aos documentos a cerca de uma
análise fria da série, como foi proposto nesse trabalho, a questão da
contextualização da série implica em um trabalho comparativo
considerando os conteúdos avaliados, e o fato histórico ao qual é
contextualizado no enredo.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Histórias em quadrinhos em geral, não são feitas para serem utilizadas


como documentos históricos. Atualmente, estão surgindo obras
históricas transcritas para esse tipo de linguagem, como o clássico
“Casa Grande e Senzala” de Gilberto Freire, ou o livro “O Capital” de
Karl Marx que se encaixam nessa analise. Entretanto, histórias como
analisadas aqui, são feitas para entretenimento, mas podem ser bem
utilizadas diversificando a pesquisa.

Os quadrinhos tornaram-se uma linguagem contemporânea, que une


palavras e representações de fatos históricos, através das suas 24
próprias interpretações anacrônicas e nem tanto fiéis, buscando a
construção e o desenvolvimento interpretativo próprio, sem
desconstruir a temática para uma análise mais profunda deste.

Como trata Paul Gravett (2006), o mangá é uma das principais fontes
que apresentam a nação japonesa para o mundo. Durante a copa do
mundo de 2002, os principais meios de divulgação do evento foram em
imagens com traços de mangá (GRAVETT, 2006, p. 156). Consideramos
o mangá, como as demais fontes de pesquisa imagéticas, um material
diversificado para a constituição de uma construção histórica. Este
trabalho propôs demonstrar que a investigação e interpretação de
fatos históricos podem utilizar-se de subterfúgios e recursos
estruturais que dispõem os quadrinhos japoneses. A utilização de uma
representação quadrinizada, contendo traços de conteúdos históricos,
dinamiza e diversifica o fazer historiográfico.

A utilização dos quadrinhos se faz válida, pois é uma fonte presente no


período em que vivemos e que retrata a escrita e o trabalho em
imagens, como evoluíram e chegaram ao período em que estamos. O
uso de filmes, de fotografias, de materiais que utilizem imagens se faz
presente e extremamente comuns ao momento atual da humanidade:

A utilização de imagem como meio de comunicação e


transmissão de conhecimentos está tão disseminada, que
negligenciar tais características seria uma insensibilidade. Não
se trata apenas de desmistificar as maneiras como o passado é
recontado, mas de buscar compreender um pouco mais a
respeito da maneira como este interfere no presente que está
sendo feito. (BONOW, CASTRO & LUCAS, 2002, p. 170)
25
O texto citado refere-se ao uso de cinema para o ensino de sala de aula.
Entretanto, cremos que isso se aplica ao uso de imagens para a
pesquisa. Embora, exija-se um pouco mais para a pesquisa, a forma
como as imagens são expressas nos quadrinhos refletem o período em
que elas foram produzidas e a forma como se dá a história pode refletir
o contexto social vivido. Ou seja, não é uma questão do olhar simplista
para uma história em quadrinhos, mas, observar de forma crítica,
sobre a perspectiva de pesquisador, como para qualquer documento
histórico. Cada vez mais, os meios de comunicação de massa tornam-se
parte integrante do nosso meio social, e será o caminho para
analisarmos a nossa sociedade futuramente.

Dessa forma, na análise das imagens, os mangás e os animes encaixam-


se, não somente como material de análise dos mitos, mas também,
acerca do comportamento e da forma que pensam os idealizadores
desse tipo de literatura. Estudar os mangás não se trata de um único
ramo de pesquisa, mas sim perceber certos traços culturais em uma
representação literária.

O fato é que o historiador deve perceber, o meio em que vive e


demonstrar seu ponto de vista, a partir das questões que abordam o
meio social e dessa forma, dinamizar a sua pesquisa com as novas
fontes que despontam na atualidade. Pode-se utilizar o mangá para a
pesquisa histórica e, acima de tudo, a evolução dos meios de pesquisa e
da representação imagética de uma época.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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26
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SCHMIDT, Maria Auxiliadora. BARCA, Isabel. (orgs.) Aprender
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MOLINÉ, Alfons O Grande Livro dos Mangás. São Paulo, JBC, 2004.

NETTO, José Paulo. O que é Marxismo? Coleção primeiros passos, 6ª


edição. São Paulo, editora Brasiliense, 1990.

RÜSEN, Jörn. Como dar sentido ao passado: questões relevantes de


27
meta-história. Revista História da Historiografia. São Paulo, v. 1, n. 3,
(p. 163 – 209) Março de 2009.

VERNANT, Jean Pierre. O universo, Os Deuses e Os Homens. São


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KURUMADA, Masami. HAMAZAKI, Tatsuya; Gigantomaquia – Volume
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TEZUKA, Osamu. Adolf. (Vol. 1 ao 5). Edição Brasileira; São Paulo,


Conrad Editora, 2006.

TORIYAMA, Akira. Dragon Ball (vol. 1 ao 6). Edição Brasileira; São


Paulo, Panini Comics, 2012.

28
DO FUNDO DO OCEANO PARA OS TELÕES:
O TITANIC DE JAMES CAMERON
Cristiane Brand de Paula Gouveia 1

Resumo: O cinema, como bem coloca o teórico Christian Metz (1980), é uma
“linguagem sem língua”, que fala por si só, sendo analisado pelo seu conteúdo e por
sua produção. O filme torna-se então um documento que pode ser utilizado pelos
historiadores como uma importante ferramenta na disseminação dos conhecimentos
históricos, e para análise da sociedade que o assiste, como propomos neste trabalho,
nos utilizando do filme Titanic (1997) de James Cameron. O que pretendemos é fazer
uma análise da narrativa do filme, que será nossa fonte, para podermos compreender
como se dão as relações entre a escrita da história e a sua narração fílmica da
perspectiva do diretor, de sua visão do fato. O que pretendia o autor com a produção
1
pode nos levar a analisar o resultado obtido por ele de maneira mais consistente,
afinal, pensaremos os limites do que é proposto e pensando pelo diretor e o que de
fato acontece. Levar em consideração o no público alvo do filme, a indústria
cinematográfica da época e a repercussão do filme, nos permite refletir sobre as
intenções de Cameron, e consequentemente, compreender como o filme pode ter dado
uma ótica diferente do fato histórico que não havia sido alcançada por nenhuma
produção feita anteriormente. Ferro (1992) confirma o filme como um documento e é
assim que o analisaremos, nos utilizando de autores como Cristiane Nova e Paul
Veyne. Pretendemos pensar o cinema como meio de se construir o conhecimento
histórico, pensando a sua análise com um caráter reflexivo e crítico.

Palavras-chave: Cinema. História. Titanic.

1 Orientador: Dr. Jefferson Willian Gohl – FAFIUV.


Da relação Cinema-História

“Todo filme é um documento”

Cristiane Nova

A História se faz de narrativas do passado, sob a visão do


historiador, a partir de perguntas que são feitas a esse passado, que pode
ser observado pelo historiador de diferentes maneiras. Segundo Paul
Veyne (1998), História é tudo aquilo que o historiador decide tornar
História, quando o estuda, questiona, reflete. Na visão do autor, a História 2
é feita pelos historiadores, e consiste em uma narrativa, que não pode
deduzir ou reduzir um acontecimento a uma única causa, um único ponto
de vista. Assim encaramos o fato de que existem diferentes narrativas
históricas a respeito de um mesmo acontecimento, logo, diferentes
produções historiográficas em torno do mesmo. O historiador pode optar
por dar um determinado foco ao seu trabalho e assim, demonstrar o
desenvolvimento da trama que envolve esse acontecimento. Para Veyne,
nisso consiste a história.

Partindo dessa conjectura, consideramos a História fruto


unicamente de uma produção em torno do passado, seja ela realizada por
um historiador, através de um livro, por exemplo, ou um diretor de
cinema, em um filme. Cristiane Nova (1996) considera que a História
pode ser inspiração para diferentes formas de representação, como
epopeias, teatros e o cinema. Logo, “n~o é absurdo considerar que o
cineasta, ao realizar um “filme histórico”, assume a posiç~o de historiador,
mesmo que não carregue consigo o rigor metodológico do trabalho
historiogr|fico” (NOVA, 1996)

A paixão por naufrágios levou Cameron a produzir o filme que foi


sucesso de bilheteria em todo o mundo, quebrando recordes e
emocionando tanto, que até o presente momento ele permanece vivo e
atual. O diretor agora o lançará em formato 3D, e as expectativas para o
lançamento são ainda maiores que da primeira, afinal, quando do
lançamento em 1997, a equipe do filme, bem como os estúdios, não
sabiam ao certo que futuro estava determinado à superprodução. Pode
um filme ter marcado tão fortemente gerações a ponto de o fato histórico,
Titanic, comemorar o seu centenário e ter garantido a atenção de
3
milhares de expectadores que se envolvem com essa história?

Atualmente, o grande número de pessoas que faz parte do público


cinematográfico, está tendo acesso à história pelo que tem sido
apresentado a elas pelas telas, e assim, a história tem sido absorvida por
multidões que, em um momento de lazer, são bombardeadas por
informações e representações que podem ou não levá-las a pensar sobre
um determinado fato histórico e podem ou não apresentar-se de acordo
com o que se produziu até então pela historiografia.

Nesse sentido, NOVA (1996) destaca que quando analisamos um


filme, não devemos pretender perceber verdades ou falsas construções, e
sim, ter a percepção do que é ficcional e daquilo que apresenta
verossimilhanças com a História, fazendo assim o observador, uma leitura
histórica do filme, e uma leitura fílmica do acontecimento, como propõe
Marc Ferro (1992).

Ferro considera o cinema como um importante aliado do pensar


histórico, consistindo esse numa narrativa histórica, que encontra-se
desvinculada de instituições, e torna-se assim, uma contra-história, onde
o olhar, a crítica e as pretensões do diretor tornam-se expressas. Por
vezes, no decorrer do tempo, a História fixou seu olhar sob grandes
figuras, ou pelo menos, tornou nomes, grandes e importantes,
considerados dignos de destaque. Essa História que privilegiou uns em
detrimento de outros e que fez-se a custa de grandes acontecimentos,
grandes nomes e datas e documentos oficiais, distanciou-se do ideal
histórico, que prevê reflexão, crítica, pensar historicamente. Assim, a
4
contra-histórica, erguia-se como uma possibilidade de fuga desse padrão
que inibia a História e permitiu uma crítica á sociedade, mais e menos
petulante, sem maiores preocupações com essas instituições dominantes.

Quando o cinema adentra a reflexão historiográfica, surgem


opiniões que divergem a respeito do seu uso pela e para a História. Marc
Ferro, como grande precursor e desenvolvedor do pensamento que
relaciona o cinema e a História, faz do filme, uma importante fonte para a
compreensão de uma sociedade, bem como da mentalidade que a
norteava em determinados momentos históricos. Nesse sentido, o filme
nos permite perceber o fato histórico sob um ângulo diferente, com
recortes criativos.
Utilizado pela historiografia, o cinema pode ainda auxiliar no
processo de disseminação da História e assimilação por parte das
pessoas. Nova (1997) aponta que “o grande público tem mais acesso a
História pelas telas do que pela via das leituras e do ensino”.
Consideremos a atual eficiência da História em levar conhecimento e
desenvolver consciência histórica nas pessoas. Cada vez mais as novas
tecnologias adentram as casas, os pensamentos das pessoas e as tiram
daquele ideal de intelectualidade que determina que o conhecimento só
se alcança através da leitura e na educação.

Enquanto alguém assiste a um filme, de cunho histórico, por


exemplo, ele será levado a pensar sobre como o passado é representado
no filme, e pode tomar para si, como real, tudo o que é demonstrado no
5
filme, que foi pensado com o desejo de ser fiel à História, ou não. Esse
cuidado é o alvo central do uso do cinema pela História, e por esse motivo,
muitos historiadores descartam a possibilidade de se encarar um filme
como auxiliador, porque ele pode muito mais distorcer o conhecimento
histórico de dado fato, do que levar a uma reflexão fidedigna.

Pois bem, não é a História parcial, com verdades parciais? (VEYNE,


1998, p.48). Logo, podemos entender que o filme não busca, ou não
deveria buscar, apresentar a verdade histórica, porque nem a História
assim pretende, mas demonstra a sua percepção do fato histórico,
carregados de ficção ou não. Compreender esse pressuposto nos permite
analisar um filme pela construção que se pretende de um fato histórico e
não da verdade histórica presente no filme, e nos permite ainda refletir
sobre a visão do diretor sobre esse fato e como ele articula isso em seu
filme.

Assim, o cinema pode ser analisado por historiadores, sob


diferentes perspectivas, como fonte para a compreensão de uma
sociedade, bem como da história do cinema, e por pessoas que não teriam
acesso tão facilmente à História por outros meios. Cabe aos historiadores,
porém, se utilizar de maneira mais efetiva desse meio, para que cada vez
mais, as pessoas possam ser instigadas a uma análise histórica dos filmes.
Por isso, Ferro defende que os historiadores não devem fazer apenas
livros, mas devem fazer filmes.

O filme Titanic será no presente artigo analisado pelo que tem a nos 6
dizer sobre a indústria cinematográfica de 1997, que o produziu com
determinados fins, sobre o público que não só o recebeu, mas o aclamou
como sucesso e sobre a perspectiva dada ao fato histórico pelo diretor,
nos possibilitando pensar a influencia do cinema na sociedade e para a
História. Propomos ainda buscar compreender a escrita da história
realizada pelo diretor, que enxergaremos em certa medida como um
historiador, objetivando refletir sobre as maneiras como ele articula o
fato histórico com a ficção e de que maneira apresenta uma trama
conseguiu reviver o naufrágio e fazê-lo conhecido e lembrado
mundialmente.
Titanic, o plano de fundo do filme

“O Titanic era chamado o navio dos


sonhos, e era, realmente era” Rose DeWitt
Bukkater- Personagem do filme

Em Abril de 1912, em todo o mundo, o olhar de inúmeras pessoas


voltava-se para um dos mais importantes acontecimentos do momento, a
viagem inaugural do maior navio visto até então. O Titanic chamava para
si toda a atenção. Com mais de 46 toneladas, era o grande destaque em
termos de inovações na navegação. Era chamado de Navio dos Sonhos,
Insubmergível (MARRIOT, 1998). Mas foi mais que isso. Ele ergueu-se
7
como o símbolo do século XIX, aclamado como o representante do luxo,
da ostentação, da majestade do período. Os homens estavam cada vez
mais confiantes em seus avanços tecnológicos, e cada vez mais certos do
sucesso que lhes esperava o futuro não muito distante. A era do progresso
estava a todo o vapor, assim como o navio, que foi literalmente por água
abaixo, bem como o orgulho daquela sociedade voltada para o espetáculo
que confiara cegamente no poderoso navio.

A forte divulgação feita pela empresa criadora do navio White Star


Line, em torno da viagem inaugural fez com que o Titanic se tornasse
conhecido em todo o mundo. A empresa não o rotulava como o
Insubmergível, mas salientava tanto suas qualidades que as pessoas
passaram a chamá-lo assim, e eles não se preocuparam em negar essas
expectativas em torno do navio. Quanto maior a imagem construída em
torno do Titanic, maior o seu sucesso.

Nesse momento o domínio dos mares está sob disputa de ingleses,


norte-americanos, irlandeses, enfim, muitos países entraram em uma
corrida para ver quem conseguia lançar ao mar o melhor e mais eficaz
navio. O maior concorrente do Titanic no momento era o navio inglês
Mauretania, da Cunard Line. Era o destaque em termos de luxo, rapidez e
segurança. Foi ultrapassado pelo Olympic, irmão gêmeo do Titanic, que
tinha 30 metros de cumprimento a mais que ele. Enquanto que algumas
das principais companhias da época se preocupavam com a rapidez das
viagens e com possíveis quebras de recordes, a White Star Line se
interessava em proporcionar uma viagem agradável, com todo o conforto
8
e luxo possível, com o qual seus passageiros estavam acostumados, e com
segurança (MARRIOT, 1998). Este era seu diferencial. Porém, na noite do
naufrágio o navio estava com velocidade superior à planejada. Bruce
Ismay, diretor da empresa, teria sugerido ao capitão Smith que todos
ficariam felizes se o Titanic surpreendesse chegando antes do previsto. O
capitão, que pretendia fazer daquela sua ultima viagem antes de se
aposentar, parece ter dado ouvidos ao diretor.

O Titanic representava no mar a sociedade em terra, onde a


aparência era principal preocupação, e as pessoas queriam pertencer aos
mais altos níveis sociais. Era necessário seguir os padrões de boa conduta
ditados então, para que pudessem fazer parte desse universo particular
tão cobiçado. Todos buscavam acender socialmente, e para isso, estavam
dispostos a entrar no jogo de aparências que garantiria sua posição.
Muitos mais que ser, era necessário aparentar.

O navio dos sonhos oferecia aos mais ricos da sociedade o prazer de


viajar com todo o conforto, e principalmente, com todo o luxo a que
estavam acostumados. Tinham a “sensaç~o se atravessar o oceano a
bordo do maior, e em tese o mais seguro, navio do mundo, dotado de
serviços de bordo estupendos” (MARRIOT, 1998, p.37). O consideravam
insubmergível porque ele havia sido construído para manter-se flutuando
com até quatro dos compartimentos inundados, o que apresentava para a
época, a maior segurança possível. Tamanha era a confiança no navio, que
o número de botes salva- vidas era inferior ao número de passageiros.
9
O personagem Cal do filme Titanic (1997) representa bem a visão
que se tinha a esse respeito. “Desperdício de espaço do pavimento, afinal
é um navio inafund|vel” (CAMERON, 1996, cena 96). Essa cena diz
respeito ao número de botes salva-vidas, que, para o personagem, eram
desnecessários, visto a segurança que o navio proporcionava. De fato se
acreditava que nada poderia ser motivo de preocupação quando o
assunto era o Titanic. A confiança do homem em seus grandes feitos se
impunha com força até então.

A sociedade está retratada no filme e as classes ficam em seus


devidos lugares. Ricos acima, pobres bem abaixo. Até mesmo na hora do
naufrágio os ricos tinham prioridade. As mulheres e crianças teriam os
primeiros lugares dos botes salva-vidas, mas, em uma sociedade
corrompida pelo dinheiro, muitos dos homens mais ricos que estavam no
navio, conseguiram comprar um lugar, rumo à salvação, sem se preocupar
com as mulheres e crianças que perderam seus lugares.

Historicamente constatamos que na primeira classe os passageiros


podiam desfrutar de piscina, academia, de restaurantes finos, banhos
turcos, quadra de tênis, bibliotecas, várias salas de leitura e conversa,
decoradas cada uma seguindo um estilo de decoração. O luxo diminuía na
medida que a classe também diminuísse. Passageiros de terceira classe
também tinham bons cômodos, logicamente muito inferiores que os de
primeira classe, mas ainda assim, em alguns casos, melhores do que eles
tinham em terra (MARRIOT, 1998).

Mesmo com o número de botes salva-vidas sendo inferior ao 10


número de passageiros, mas ainda estavam seguindo as leis de navegação,
que calculavam esse número baseando-se em navios muito menores que
o Titanic. No momento do naufrágio, os oficiais, despreparados, não
colocaram tantas pessoas quanto cabiam nos botes e eles foram lançados
ao mar com menos da metade da sua capacidade. Depois do naufrágio, as
leis de navegação de 1912 foram mudadas.

Todos os passageiros tinham coletes salva-vidas, mas a água estava


tão gelada que congelava em menos de vinte minutos. -0,5°C deixaram o
casco de aço do navio tão frágil quanto uma folha de papel. Qualquer
colisão geraria grandes estragos. O capitão havia sido avisado da presença
de icebergs, mas manteve a velocidade acima do planejado para o navio.
Os homens de atalaia estavam sem binóculos, e quando viram o iceberg, já
era tarde. O oficial Murdoch, que estava no comando enquanto o capitão
estava em seus aposentos, ordenou que dessem ré total e que virassem o
leme para estibordo. O navio perdeu força e velocidade e não conseguiu
fazer a curva sem evitar a colisão. Duas horas depois estava indo para o
fundo do oceano.

O navio mais próximo era o Carpathia, que chegou apenas duas


horas depois do naufrágio. Apenas pode ajudar os sobreviventes dos
botes. Nos inquéritos realizados para averiguar as causas do incidente,
surgiram muitas dúvidas e especulações. Por fim, atribuiu-se ao capitão a
responsabilidade pela velocidade acima do considerável aceito e por
ignorar os avisos mandados por outros navios. Também considerada
culpada a empresa por oferecer numero inferior de botes salva-vidas. Era
necessário que os culpados fossem punidos para que a dor fosse de certa
11
forma amenizada. O mundo chorava por justiça.

Depois do naufrágio, inúmeras narrativas surgiram sobre o navio. A


era do progresso estava assustada com o desfecho dessa história.
Construções foram feitas da imagem do naufrágio. Uma delas, a primeira,
contou com a atuação de uma sobrevivente do navio. O filme “Saved from
the Titanic”, sob a direç~o de Étienne Arnaud, estreou apenas 29 dias
após o naufrágio e contava, em dez minutos, a história de Dorothy Gibson,
que contava sua história real. A ideia era fazer o filme rapidamente
porque o assunto ainda estava nas manchetes e certamente despertaria
muito interesse e geraria muito lucro. Essa produção teve então o
objetivo de aproveitar a dor ainda recente para levar o público a conhecer
uma das tantas histórias vividas a bordo do Titanic.
O filme Titanic de 1943 foi feito pela Alemanha Nazista, de Hitler,
em plena Segunda Guerra. Teve como produtor executivo Wilty Reiber, e
foi mais um filme de propaganda feita em Berlim, que utilizava o
naufrágio como cenário para tentar construir uma imagem ruim dos
britânicos e americanos. Algumas cenas foram filmadas a bordo do SS Cap
Arcona. Na noite anterior a sua estréia, o cinema onde seria exibido o
filme, sofreu ataque aéreo. O Titanic existia apenas como justificativa e o
contexto era a guerra.

Por fim2, podemos considera a produção de 1996, um ano antes da


de Cameron, que contou com a atuação de Catherine Zeta-Jones, Tim
Curry e Peter Gallagher, entre outros; e apresentou um roteiro que se
diferenciou dos demais filmes produzidos. idealizado para a TV, se tornou
12
um filme que contou a história de diferentes personagens cujo destino era
o mesmo, o naufrágio. Um jovem carteirista, Jaime Perse, ganha a
oportunidade de viajar no Titanic, onde estão presentes os mais
importantes membros da sociedade, inclusive a americana Molly Brown.
Também a bordo está Simon Doonan, um criminoso determinado a
assaltar os passageiros da 1ª classe e a trama do filme se desenrola a
partir desses personagens e do romance que conduz os olhares.

2A escolha desses filmes seguiu critérios de seleção baseados na comparação possível


desses com a narrativa de Cameron, sendo utilizados para reflexão do papel
desempenhado pelo navio em cada um deles. Outros filmes, entre tantos, podem ser
aqui citados. O filme de 1953 de Jean Negulesco, Náufragos do Titanic; o de 1958 de
Roy Baker, A night to rebember; e o filme de 1979 de William Hale, SOS Titanic.
Mesmo se utilizando de elementos comuns ao filme de Cameron, o
Titanic de 1996, e os demais, não foram tão incisivos em tornar o fato
histórico mundialmente conhecido e perpetuado. As tantas narrativas não
se impuseram com tanta veemência quanto o Titanic de 1997 o fez. Os
motivos para essa grande popularidade e destaque para o filme de
Cameron, estão presentes e problematizadas a seguir.

O Titanic de James Cameron

“Bem vindo ao navio dos sonhos. Se


precisar, você encontrará coletes salva- 13
vidas sobre o guarda-roupa”. James
Cameron

A trama de Cameron apresenta elementos comuns aos mais


famosos filmes hollywoodianos. Faz o estilo filme catástrofe, onde são
condicionados elementos que tornam intenso o desenrolar dos fatos,
causando medo, expectativa, tensão, com cenas de ação, pânico e muitos
efeitos especiais. Uma paixão que surge rapidamente, e é devastadora, ao
estilo dos grandes romances de William Shakespeare.

O filme começa com a jogada de sorte de Jack Dawson (Leonardo


DiCaprio), um jovem impetuoso que ganha a oportunidade de viajar a
bordo do transatlântico mais famoso do momento, o Titanic. Ele não tem
nada a perder, e ruma à América sem planos, apenas expectativas e sua
bagagem é composta por algumas roupas, uma porção de desenhos e
alguns cigarros. Contrapondo essa figura, encontramos Rose DeWitt
Bukater (Kate Winslet), a jovem noiva de Cal Hockley (Billy Zane), cujo
casamento iria salvar sua família da falência e vergonha. Ela não se sente
bem atuando no papel que a sociedade lhe impunha, e Jack lhe da
esperança de mudar essa situação. Ele a salva de morrer congelada no
oceano e, posteriormente, do trágico destino a que estava fadada. A trama
ganha movimento quando o navio colide com um iceberg. Eles precisam
correr contra o tempo, contra suas limitações e contra o fim que se
aproximava.

Já se passaram cem anos desde o naufrágio do Palácio Flutuante e


ele ainda é lembrado com pesar e lamento por milhares de pessoas que
encontram-se ansiosas para assistir o lançamento do filme Titanic em 3D.
14
O que aproxima aquele navio, que em sua época foi tão importante e que
hoje encontra-se mergulhado no profundo oceano, sem no entanto ter
sido esquecido e abandonado ou fadado a solidão, de tantos espectadores
apaixonados por uma história que teve seu fim decretado a tempos?
Parece que ele ainda se relaciona conosco, age e está presente, através das
imagens apresentadas no filme, do retrato, da porcelana, do espelho; dos
ideais, dos planos, dos desejos, dos sonhos de tanta gente que teve um
trágico fim. O Titanic fala e não só se comunica como aclama para si a
opulência e o destaque que sempre foram seus por direito. A produção do
filme tinha que ser tão faustosa quanto o lançamento do navio no oceano
no dia 10 de Abril de 1912, rumo à sua viagem inaugural.

Compreender o sucesso que teve e tem o filme de Cameron nos


permite refletir sobre sua produção. O que era pretendido pelo diretor e o
que foi concebido no término das produções, bem como a repercussão do
filme, nos apresentam uma reflexão sobre a representação fílmica.

Segundo NICHOLS (2005), todo filme é um documentário, partindo


do pressuposto de que todo documentário explora uma realidade e a
representa, não apenas reproduzindo-a, mas desejando nos convencer de
seus argumentos, Sendo essa representação parcial e subjetiva, o
documentário, por mais próximo da realidade que se apresente, não é a
realidade, mas uma representação que passa pela interferência do
produtor. Os filmes podem então ser documentários de representação
social ou de satisfação de desejos, como define NICHOLS (2005). Assim, a
ficção gera no espectador a projeção de seus sonhos, que tornam-se
realidade na pele dos personagens, sendo dessa maneira acompanhados
15
pelos olhos atentos e pela empolgação desse espectador. O cinema se
torna um refúgio, uma maneira de aliviar a humanidade de alguns pesos,
e livrá-los por alguns minutos de seus problemas, fazendo-os adentrar um
mundo onde projetam seus desejos e vivem aquilo que não lhes é
permitido ou não puderam ainda viver, mas esperam.

Um dos gêneros do cinema que mais desperta interesse, o drama,


revela-se como um grande exemplo do poder do cinema em mover
corações, abalar, fazer refletir. Segundo a pesquisa “Tragedy Viewers
Count Their Blessings: Feeling low on Fiction Leads to Feeling High on
Life” da Universidade do Estado de Ohio, Estados Unidos, publicada na
última edição do periódico Communication Research, o drama faz com
que as pessoas se sintam felizes com suas próprias vidas, com seus
romances. Assim, os filmes que despertam uma tristeza momentânea
agradam o público.

Cameron se utiliza desses recursos do cinema em prol de seus


objetivos. Facilmente percebemos que o que evoca o encanto do filme de
Cameron é o romance, que trás os espectadores para dentro do filme,
fazendo-os se sentirem parte da trama. Logo, as expectativas se
acumulam sobre o romance, que passa a ser metaforicamente o destino
do navio que já se conhece, cujo envolvimento toma lugar dentro desse
mundo que passa a ser explorado durante as mais de duas horas do filme.

No prefácio do livro lançado com o filme, escrito por Ed W. Marsh,


Cameron revela seus anseios com a produç~o. “Senti que meu filme 16
deveria ser, antes de tudo, uma história de amor” (MARSH, 1997, p.6). De
fato, o decorrer da trama nos leva a acompanhar o nascimento desse
sentimento e torcer por ele, sendo dirigidos para o momento mais
doloroso, a separação, que vai além de qualquer poder ao alcance deles. O
destino é quem havia traçado o trágico fim.

Eles são separados por circunstancias tão esmagadoras e dolorosas,


que tornam esse romance insolúvel, eterno; o exemplo de amor que
ultrapassa limites. Cameron continua,

“o maior dos amores pode ser medido apenas contra a


maior das adversidades, e o maior dos sacrifícios seria
definido da mesma maneira. O Titanic, em toda a sua
terrível grandiosidade, abre essa possibilidade como
nenhum outro evento histórico”. (MARSH, 1997, p.6)

O romance só é levado ao seu extremo e o amor de fato provado,


quando situações extremas separam duas vidas. A promessa do amor que
é para sempre é tomado como real quando duas pessoas são impedidas
de viverem esse amor. O que os une então, é maior que aquilo que os
separou. O caso dos personagens principais, Rose e Jack, refletem as
aspirações do espectador de deparar-se com aquilo que é eterno.
Cameron utiliza-se desse elemento principalmente porque o amor que 17
surge entre os protagonistas é um típico caso de amor impossível, que
dificilmente aconteceria.

Rose é uma jovem sonhadora, que tem um pensamento diferente


das mulheres da sociedade do século XX, da qual pertence. Ela começa a
ter contato com pensamentos modernos e isso só acentua a insatisfação e
o desejo de mudança que já existe dentro dela.

Cameron explica que

“Jack tinha que ser alguém inesquecível. A conexão


entre eles, em um nível emocional, é o que transforma
Rose, de um tipo de gueixa inglesa da primeira classe,
que está morrendo por dentro, em uma jovem
espirituosa no inicio de uma nova vida”. (MARSH,
1997, p.85)

Quando eles chegam ao navio, ela exclama: “N~o parece muito


maior que o Mauretania” (CAMERON, 1996, cena 34). A atriz Kate Winslet
revela: “Todo mundo est| t~o animado com o navio, e o personagem que
interpreto o esnoba completamente”. (MARSH, 1997, p. 44). No filme, as
câmeras apontam para a agitação do momento do embarque. Muita gente
andando, falando, chorando. Conforme mencionado no roteiro,
18

“no cais, veículos, cavalos, automóveis e caminhões


movem-se lentamente através da multidão densa. A
atmosfera é de excitação geral e tontura. As pessoas se
abraçam em despedidas lacrimosas, e gritam boa
viagem aos amigos e parentes nas plataformas acima”.
(CAMERON, 1996, cena 34)

Quase mil figurantes dividiram a cena com 25 cavalos e uma dúzia


de carros antigos para compor esse cenário. As notícias circulavam o
mundo todo. Milhares de pessoas estavam ansiosas a espera do grande
acontecimento que era a viagem inaugural do Titanic, mas no roteiro
notamos a pretensão de apresentar a imagem inicial de Rose como uma
jovem indiferente a tudo isso. Rose aparenta ser uma garota mimada, mas
no decorrer do filme revela-se uma garota espirituosa e com sonhos
diferentes daqueles que seu destino lhe reservara. “Rose est| afundando
antes mesmo do Titanic zarpar, agonizando frente às restrições de gênero
e classe que a cercam. Ela quer explorar o mundo inteiro, mas sabe que
isso nunca irá acontecer porque ela está noiva de Cal e está sendo
pressionada a entrar no mundo limitado do noivo, que a obriga a agir de
maneira apropriada e adequada” (MARSH, 1997, p. 51). É assim que ela se
vê, e por isso se sente atraída por Jack. A fala da personagem demonstra
exatamente como ela sentia frente ao mundo que pertencia.
19
“Eu vi minha vida inteira como se eu já tinha vivido
isso. Um desfile interminável de roupas, jogos de iates
e polo. Sempre o mesmo estreito de pessoas e
conversas irracionais. Eu senti como se estivesse em
pé em um grande precipício, sem ninguém para me
puxar de volta, ninguém que se importasse, ou mesmo
que tivesse notado” (CAMERON, 1996, cena 61).

Jack era um aventureiro que não tinha medo do futuro


desconhecido, incerto, ainda a conquistar. Lutava por seus ideais. Era
livre. Sua visão de mundo conquista Rose, e muito mais que isso, ele a
conquista. Jack a ouvia, procurava saber de seus sentimentos, de seus
anseios. Dava espaço para ela, o espaço que ela tanto almejava.

Cameron apresenta no decorrer do filme elementos sutis que nos


levam a compor a imagem final de Rose. Começa com a garota indiferente,
depois revela que ela na verdade não se sente parte daquela realidade e
aponta para o seu encontro com a Rose decidida e disposta a libertar-se.
Como já mencionado, nesse momento as mulheres faziam parte de um
ritual no qual os homens se gabavam por suas belas esposas, as
mostrando como troféus para a sociedade. Não eram mais que isso, salvo
raros casos. Não havia espaço diferente que esse para elas dentro dessa
sociedade preocupada com a aparência. Nesse sentido, elas eram
ensinadas desde cedo a portar-se com decência para que os homens da
20
família não fossem envergonhados. A imagem delas refletia na honra e no
nome de toda a família (CAMERON 1997).

Percebemos que a primeira característica apresentada por


Cameron, que difere Rose das demais mulheres é a sua roupa. Com cortes
mais retos, ela é vista pela primeira vez com um tailleur, que pouco tempo
depois seria uma forte tendência na moda europeia, em especial em Paris,
onde Rose tinha feito suas ultimas compras. Durante o dia as mulheres se
vestiam mais discretamente, já à noite, seus vestidos exibiam belos
decotes. O luxo e a ostentação nos jantares começava pelas roupas. Esse é
o momento da história que mais se gastou dinheiro com roupas do que
com qualquer outra coisa (MARRIOT, 1998).
Nesse universo Rose é apresentada como uma garota de bom gosto
que não tem medo de ousar. A moda que começava a se modificar, trazia
para a mulher mais leveza, e as características físicas eram cada vez mais
valorizadas, com vestidos mais justos e que davam mais forma ao corpo,
moldando a silhueta. Rose veste uma roupa com traços masculinos, como
a gravata e os botões. Logo, percebemos que havia recebido muito bem as
inovações no mundo da moda.

Quando está em seu camarote, um dos mais luxuosos do navio, Rose


revela mais um traço de sua personalidade, o gosto por obras de arte. O
mais importante em relação a esse detalhe que passa rapidamente na
cena 47 (CAMERON, 1996), é que as obras de arte que Rose aprecia são de
artistas que revolucionam o seu tempo. Cameron escolheu o cubismo de
21
Pablo Picasso e o impressionismo de Edgar Degas para compor o gosto
artístico de sua protagonista. As obras que Rose usa para decorar seu
camarote são Portrait, de 1912 e Les Demoiselles d’ Avignon, de 1907,
ambas de Picasso e A primeira bailarina de Degas, que fazia crítica à
sociedade.

O último elemento que Cameron apresenta antes de Rose decidir


que daria chance para o romance com Jack, é revelado no almoço, na cena
59, quando está com sua mãe e seu noivo, ao lado de Molly, Ismay e
Andrews. A cena começa com um close em Ismay que fala sobre o navio.
Rose acende um cigarro e sua mãe, em sinal de desaprovação, fala
discretamente que não gosta daquilo. Indiferente, Rose continua, quando
Cal tira seu cigarro e apaga. A garota mimada começa a aparecer como
aquela que não se sentia parte do mundo em que vivia e que já não tinha
uma boa relação com sua mãe, que a inseria nesse mundo do qual ela
queria fugir.

Em seguida Cal faz o pedido do almoço para o garçom, no lugar de


Rose. O destaque para a cena nesse momento é a dinâmica dos olhares
entre os personagens e a fala de Molly, “Ent~o, você vai cortar a carne
para ela também Cal?”. O sorriso sem graça de Cal fecha esse primeiro
momento da cena. Cameron quer despertar o publico para as tensões que
já existem no relacionamento de Cal e Rose e o quanto Rose se sente
reprimida. Cal é tipificado como o estilo de homem de 1912. Aquele que
acredita na submissão da mulher e no seu poder de agir por ela.

Para finalizar, a conversa caminha para outro rumo. Ismay fala 22


sobre a pretensão por trás do nome do navio, que segundo o personagem,
significa estabilidade, segurança, fazendo alusão ao tamanho do navio.
Rose parece impaciente e rapidamente questiona: “Você conhece o Dr.
Freud? Suas ideias sobre a preocupação masculina com o tamanho pode
ser de particular interesse para você, Sr. Ismay”. O arremate est| dado.
Rose está lendo obras que geram nela novos pensamentos, a frente de seu
tempo. Rose definitivamente não se adequava, e é na viagem que ela
encontra motivos para dar um basta nessa situação.

O enorme abismo entre as classes, que inclusive muito bem


representa o próprio Titanic, não parecia ser maior que o desejo do jovem
casal de viver esse amor. A primeira troca de olhares entre os
personagens dimensiona esse abismo. “Rose se vira de repente e olha
direto em direção a Jack. Ele é pego olhando, mas ele não desvia o
olhar. Ela faz, mas depois olha para ele. Seus olhos se encontram no
espaço do convés, bem através do abismo entre os mundos” (CAMERON,
1996, cena 61).

A jovem que já tinha seu futuro escrito pelas mãos de sua mãe,
agora se via possibilitada de alcançar objetivos outrora inalcançáveis. A
força de um amor comove mais que a morte. Aliados, o amor que rompe
limites, com o poder devastador da morte, temos uma das chaves do
sucesso do filme, o elemento que comove e faz o espectador vibrar, o
sentimento.

Cameron toma para seu romance elementos da sociedade da época,


machista, opressora, preocupada essencialmente com o luxo, do qual o 23
Titanic é fruto. O navio e sua história eram plano de fundo ideal para esse
romance, porque ele dava possibilidade de Cameron se utilizar de
elementos indispensáveis para um verdadeiro drama e que misturava o
real e o ficcional. Essa mescla nos aponta outro fator crucial para o
sucesso do filme. Nós somos levados hora a acreditar que tudo aquilo foi
real, hora a pensar até que ponto o filme é ficção. A figura de Rose já
velha, contando a história permite ao diretor passear entre o real e a
ficção e utilizando-se de algumas filmagens do navio, no fundo do oceano,
transporta o espectador novamente para fora do filme e nos lembra que o
Titanic de fato existiu, levando-os a um nível ainda maior de
envolvimento com a trama. “Saindo da escurid~o, como uma apariç~o
fantasmagórica, surge a proa de um navio” (CAMERON, 1996, cena 102).
Somos levados a um passeio com o diretor pelo fundo do oceano, e assim
como ele, vibramos quando eles se deparam com os restos do navio dos
sonhos, em meio à escuridão. Todos os elementos estão lançados para
que nosso desejo de descobrir o fim da história cresça com o filme. A
busca pelo colar tão cobiçado, o coração do oceano, surge ainda como um
atraente ingrediente que prende o espectador à trama. Fascinados com a
possibilidade do romance também ter sido real, rendem-se aos encantos
do filme.

Milhares de pessoas realmente morreram. Quantos romances não


tiveram seu fim determinado assim como o próprio Titanic? Todos eles
são representados na pele de Jack e Rose.

24
“Para experimentar plenamente a tragédia do Titanic,
para ser capaz de compreendê-la no aspecto humano,
parecia necessário criar uma tocha emocional para
guiar o publico, apresentando dois protagonistas que o
conquistassem, e depois levá-los ao inferno”. (MARSH,
1997, p. 7)

Esse casal seria responsável por dimensionar a tragédia, afinal, a


morte de mais de 1500 pessoas parece muito distante do espectador,
sendo muito abstrata para comover o coração, afinal são histórias
desconhecidas, que não dizem mais ao publico do que sua morte. Já a
história do casal possibilitava o cumprimento do desejo do diretor: “Eu
quis colocar o publico no navio, nas suas últimas horas, para que vivesse o
tr|gico evento em sua terrível e fascinante glória” (MARSH, 1997, p. 6).

O drama faz o espectador pensar em suas situações. Em uma série


da Fox, intitulada Titanic, Cameron fala que um dos objetivos dele com o
filme era justamente demonstrar a emoção daquela noite, através do
casal, da grandiosidade do navio, da dinâmica das cenas. O olhar
desesperador dos personagens devia fazer-nos pensar sobre nossas vidas,
segundo o diretor.

Fundamentais para o sucesso do filme, os atores escolhidos, Kate


Winslet e Leonardo DiCaprio, tinham a difícil tarefa de fazer essa conexão
entre o espectador e o jovem casal, e principalmente, em dar um “coraç~o 25
vivo para o filme”. O público que se apaixona pela história deles passa a
ver as cenas a partir deles, “através de seus olhos”. O navio volta { cena
para fazer sua ultima atuação, que define o fim do romance. É ele o
começo, o plano de fundo, mas também é o desfecho da história.
“Sentindo o medo, a perda e o sofrimento de Jack e Rose, no final
acabamos vivendo o sentimento daquelas 1500 pessoas” (MARSH, 1997,
p. 7).

Pensar sobre uma produção fílmica requer que compreendamos


também os fatos cinematogr|ficos que “designam tudo o que é exterior ao
filme; sua técnica de fabricação, seu sistema de produção, sua exploração
e sua recepç~o pelo público”. (MIR, 2009, p.106). Para compreendermos o
contexto que envolve a produção do filme, faz-se necessário que
reflitamos também sobre a indústria cinematográfica no momento da
produção desse filme.

Butcher (2004) defende que a partir de 1950, Hollywood se


reinventa e logo o cinema também sofre transformações. Quando o
cinema surge, ele alcança de imediato o centro das atenções. Constituiu-se
como a distração, o entretenimento, o lazer das pessoas. O momento de
fuga dos problemas, da correria do dia-a-dia, onde o espectador se
permitia apenas de divertir, com amigos ou com a família. Era um
programa extremamente barato e possibilitava que as massas
desfrutassem de alguns momentos de distração. Com a chegada da
televisão, o cinema viu-se passando por sérios problemas, visto que as
pessoas já não precisavam mais sair de casa para assistir um bom filme.
26
Hollywood então trás inovações em relação ao cinema. Era preciso lutar
contra a decadência à que estava destinada.

São realizadas grandes campanhas publicitárias em torno de cada


filme produzido. O sucesso de um filme dependia exclusivamente do
número de bilhetes vendidos quando estreava. Foram gastos milhões em
propaganda, tornando cada lançamento de um filme imperdível. Os
cinemas deixam de ter apenas uma sala grande, e passam a ser divididos
em varias outras salas, onde diferentes filmes poderiam ser vistos ao
mesmo tempo. Essa inovação possibilitava o melhoramento da qualidade
do som, das acomodações, do ambiente, enfim, e fazia o público desejar
sair de casa para assistir o filme tão comentado e esperado, com conforto
e qualidade que eles não teriam em casa, assistindo esse filme
posteriormente na televisão. Não apenas iam assistir ao filme, mas iam ao
cinema, como um novo programa para o fim de semana.

Desde a segunda Guerra Mundial, a indústria cinematográfica


hollywoodiana voltava seu foco para os grandes filmes catástrofe, como
Independence Day (1996). Cenas de ação acompanhadas de efeitos
especiais que davam dimensão de realidade foram as grandes máquinas
de fazer dinheiro. Cameron se apropria desse ideal e escolhe um grande
naufrágio para dar ao público o filme que marcaria a história do cinema. O
ator Billy Zane declara que o Titanic “era o |pice de qualquer fantasia
hollywoodiana”.3 A produção saiu mais cara que o próprio navio teria sido
a seu tempo. A escolha dos atores também foi resultado das necessidades
de cortas gastos, visto que os protagonistas tinham uma carreira ainda em
27
ascensão. Com inacreditáveis 3 horas e 14 minutos de duração, essa super
produção superou as expectativas dos estúdios. Milhões gastos na
produção, milhões gastos com a divulgação. Seu lançamento era esperado.
O sucesso do filme dependia da estreia. A produção já havia excedido o
valor estipulado pelo estúdio, mas Cameron esperava que o lançamento
compensasse os gastos, e de fato compensou, tendo arrecadado mais de
US$ 1 bilhão e 800 milhões de dólares.

Outro aspecto interessante é a preocupação do diretor em ser o


mais coerente com a verdadeira história quanto possível. “Existem
responsabilidades ao trazer um assunto histórico à tela, mesmo que meu

3
Disponível em
http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=TAuzzIAYI7k
primeiro objetivo, como diretor de cinema, fosse entreter o publico”
(MARSH, 1997, p. 13). O cuidado com os detalhes, que vão das roupas até
as lareiras, tornam o filme ainda mais próximo do Titanic real. Cameron
utilizou fotos do irmão gêmeo do Titanic, o Olympic, para reproduzir a
escadaria, a academia, e até mesmo os turcos usados para baixar os botes
salva-vidas. Foram utilizados carros como os que estavam no Titanic, e se
dá destaque para o Renault de passeio de Willian Carter, que se tornou
cenário da cena de amor entre Rose e Jack, cujo interior foi reproduzido
baseado nas imagens conseguidas por Cameron no fundo do oceano e por
documentos históricos. Atenta-se ainda para o cuidado com a reprodução
das acomodações, dos espaços, da decoração. Mas nada disso seria tão
real se os atores não entendessem o comportamento que cada pessoa
tinha que ter dentro de sua classe social. Pensando nisso, os atores
28
tiveram aulas de etiqueta, para saber como andar, falar e portar-se. Tudo
devia estar impecável para parecer o mais natural possível. Os penteados
e as roupas foram inspiradas em fotografias de pessoas da época. Até
mesmo a comida servida no jantar tinha de ser impecável. Os atores
comeram caviar e os pratos foram servidos com tanto requinte como
acontecia no Titanic.

As dimensões de tudo devia acompanhar o tamanho da tragédia.


Para tanto, o navio foi praticamente reconstruído e depois afundado. Os
efeitos tinham que ser tão intensos que fizessem o público sentir o quão
dramático o momento foi. As cenas do naufrágio foram gravadas parte no
mar, parte nos estúdios, parte em uma enorme piscina. Só assim o filme
de Cameron se diferenciaria dos demais filmes produzidos até então.
MARSH (1997) aponta que os outros filmes feitos sobre o Titanic
montavam a cena a partir dos olhos cheios de lágrimas dos sobreviventes.
Logo, o filme que Cameron pretendia, devia passar tanta realidade quanto
possível. Os gestos, os olhares, o desespero, tudo devia parecer real.
Cameron utiliza a imagem de alguns personagens em específico, por vezes
repetidas, para que, segundo ele, “o público ficasse comovido ao vê-los
repetidamente enquanto o navio afunda” (MARSH, 1997, p. 88). Era uma
forma de criar um pequeno laço de envolvimento entre outros
personagens e o público, o que aumentaria o grau de consternação.

No início do filme, as imagens gravadas no fundo do oceano revelam


a face de uma boneca de porcelana, fazendo alusão a boneca encontrada
nos destroços do navio, por Robert Ballard, em 1986. Essa boneca
aparece no filme, nos braços de uma criança chamada Cora. A menina é
29
uma das imigrantes irlandesas que encontram-se no convés da terceira
classe. Cameron conta que “ela cria uma resson}ncia com a história”
(MARSH, 1997, p. 102), demonstrando mais uma vez seu apelo para a
relação entre ficção e realidade.

Um dos momentos mais esperados do filme é o do primeiro beijo


entre os personagens principais, que acontece na cena 100. Ele está
cercado de pequenos movimentos da câmera em torno do casal e de
detalhes que se acentuam no roteiro.

Eles se beijam com a cabeça dela inclinada para trás,


rendendo-se a ele, à emoção, ao inevitável. Eles se
beijam lenta e intensamente, e depois com paixão
crescente. Enquanto Jack e Rose se abraçam na proa,
vão se dissolvendo lentamente, deixando apenas a
imagem das ruínas da proa dos restos do navio
naufragado (CAMERON, 1996, cena 100).

A cena tem seu desfecho com a senhora Rose observando essa


imagem em um monitor de vídeo. É a ligação entre o casal e o presente. O
espectador é levado mais uma vez a confundir ficção e realidade, e se
comover com a história de amor. A emoção expressa no olhar melancólico
de Rose, na cena seguinte, reforça a dramaticidade do momento 30
retratado, e levo o espectador a sentir o que a senhora Rose sente. “Rose
pisca, parecendo voltar ao presente. Ela vê o naufrágio na tela; o navio
fantasma triste no fundo do abismo”. (CAMERON, 1996, cena 101).
Cameron consegue “estender os limites dos efeitos visuais a serviço da
história” (MARSH, 1997, p. 113). Os efeitos especiais empregados no
filme, que eram inovadores em sua época, nos dão noção do
acontecimento, mas para além disso, nos fazem sentir as dores, ouvir os
gritos, sofrer com as mortes, as separações, os amores não vividos, os
corações partidos. É como se o público pudesse voltar no tempo e
descobrir o que aconteceu de fato naquele dia, por mais que esse romance
seja totalmente fictício, mesclando-se com personagens reais como o
capitão Smith, por exemplo. O acontecimento passa a ser observado
apenas sob a perspectiva deles, quando na verdade, para
compreendermos um pouco melhor a magnitude daquela noite, teríamos
de pensar na visão de cada um dos passageiros, cujos olhares apontam
para direções diferentes.

Alguns pensavam em mudar sua vida, indo para a América, a terra


de novas oportunidades. Famílias inteiras objetivando ser enfim livre de
sua situações, de seus problemas, de sua pobreza. Almejavam encontrar
um lugar dentro da sociedade melhor do que aquele que ocupavam. O
ator Brian Walsh salienta, “o grupo de irlandeses que estava no navio
despediu-se com lágrimas de sua terra natal. Você pode imaginar o misto
de tristeza e esperança que estes imigrantes deviam sentir?” (MARSH,
1997, p. 96). Outros, no entanto, faziam uma viagem como tantas outras,
que tinha um caráter muito mais de status do que necessidade. Nesse
período, as viagens turísticas de famílias ricas era comum, desejável.
31
Também lembremos dos tantos que trabalhavam para o sucesso do
Titanic, para que ele alcançasse o seu destino. Pessoas que acreditavam
fazer parte de um momento histórico, que marcaria o século, e de fato,
assim aconteceu. Por fim, outros tantos viviam lindas histórias de amor, e
não escreveram o fim delas, porque foram impedidos. Laços, histórias,
sentimentos que não nos cabe conhecer.

É através de Jack e Rose que somos então levados a pensar sobre as


desastrosas ultimas horas de vida de tantas pessoas. Cameron atribui a
Rose mais velha, a função de fazer-nos desejar conhecer essas histórias. O
que desperta o interesse do publico é a busca de um pirata moderno,
Brock Lovett, pelo coração do oceano. O Titanic era para ele apenas o
lugar de onde poderia se tirar o raríssimo diamante azul. Esse pirata
representa os valores da sociedade de 1912 na contemporaneidade.
A crítica apresentada por Cameron vem sendo posta desde o
começo do filme. Surge na postura de Rose, que rejeita uma vida de
aparências, que tem contato com pensamentos que contrariam essa lógica
e que está disposta a dar um basta nisso tudo. É articulada nos grandes
jantares no navio, onde os homens se orgulham de seus grandes feitos e
onde têm a oportunidade de demonstrar uns aos outros o tamanho de seu
poder de aç~o política e econômica. “Eles entram em uma nuvem de
fumaça e parabenizam uns aos outros por serem os senhores do
universo” (CAMERON, 1996, cena 81). Revelada na figura de Jack, que não
se encaixa nos padrões do novo mundo capitalista que busca lucros a
qualquer custo, de uma classe burguesa preocupada com a opulência. Fica
expressa no momento do naufrágio, onde qualquer lógica de piedade e
consternação são abandonadas, onde cada um lutava por sua própria
32
sobrevivência, salvos alguns casos, como são conhecidos os de homens e
mulheres que cederam seus lugares, casais que decidiram morrer juntos,
da orquestra que tentou manter a calma e dos oficiais que organizaram os
botes. A crítica de Cameron leva por fim à reflexão em torno do pirata, em
busca do diamante, deixando de lado toda a história que o navio possuiu.
Nossa sociedade atual, embora diferente da sociedade de 1912, apresenta
traços marcantes do capitalismo avassalador que outrora fez parte do
cenário do Titanic.

Nesse momento do filme, Rose entra em cena e faz com que ele e
todo o publico perceba que há uma história por detrás disso, e é essa
história que, passa a ser explorada. O filme é contado por ela, que
diferente de Brock Lovett vê significado ímpar nos destroços do navio.
Rose faz-nos pensar sobre a possibilidade de resgatar uma memória.
Para HALBWACHS (2004, p.75), “a lembrança é em larga medida
uma reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do
presente, e além disso, preparada por outras reconstruções feitas em
épocas anteriores e de onde a imagem de outrora manifestou-se já bem
alterada. Nesse sentido, podemos criar representações do passado
baseados na memória individual de outros e na memória histórica que se
tem do fato que para nós é desconhecido. Surge então uma nova narrativa
de um acontecimento marcante. O filme Titanic (1997), consegue fazer a
lembrança do naufrágio permanecer na memória histórica, tornando o
fato conhecido a pessoas que não o presenciaram.

O Titanic é revivido primeiramente na memória de Rose e depois na


memória coletiva. Ela tem um encontro com seu passado e nos conduz
33
para dentro de suas lembranças, para dentro do navio, para dentro do seu
romance.

“O Titanic está ancorado na memória da humanidade”

Irina Bokova - Diretora geral da UNESCO


REFERÊNCIAS:

BUTCHER, disponível em:


http://www.contemporanea.uerj.br/pdf/ed_03/contemporanea_n03_02_
butcher.pdf

CAMERON, J. Titanic. Los Angeles, 20th Century Fox, 1996. [Roteiro]

CAMERON, J. Titanic. Los Angeles, 20th Century Fox, 1997. [Película]

FERRO, M. Cinema e História. São Paulo: Paz e Terra, 1992.

HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Ed. Centauro, 34


2004.

HOBSBAWM, E. J. A Era dos Impérios. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988

METZ, Christian. A significação no cinema. São Paulo: Ed. Perspectiva,


1977.

NAPOLITANO, M. Como usar o cinema na sala de aula. São Paulo:


Contexto, 2004.

NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Tradução: Mônica Saddy


Martins. Campinas, SP: Papirus, 2005.

NOVA, C. O cinema e o conhecimento da história. In: O olho da história,


n.3. Salvador:
MARRIOTT, Leo. Titanic, O naufrágio. Rio de janeiro: Record, 1998.

MARSH, ED W. Titanic de James Cameron. São Paulo: Manole, 1997.

MIR, N.M. Linguagens imbricadas: São Bernardo, romance e fita.


Brasília, 2009.

VEYNE, Paul Marie. Como se escreve a História; Foucault revoluciona


a história. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998.

35
A CIVILIZAÇÃO DAS IDEOLOGIAS CAVALHEIRESCAS:
MUDANÇA DO CONCEITO DE NOBREZA NA FRANÇA ENTRE
OS SÉCULOS XVI E XVII A PARTIR DE UMA TEORIA DO
PROCESSO CIVILIZACIONAL

Fernando Ferreira1

Resumo: O objetivo dessa pesquisa é estabelecer uma reflexão sobre como o


conceito de nobreza, analisado em seus diversos sentidos e significados dentro do
contexto Europeu. Compreendidos por diversas categorias nobiliárquicas
construíram uma categoria cortesã e uma Civilité equivalente dentro do Estado
Moderno. Há limites naturais em relação a amplitude do tema e a dificuldade de
compreender categorias e os fenômenos históricos que condicionaram a mudança
social do conceito de uma nobreza guerreira para uma aristocracia cortesã, dentro
1
do contexto europeu durante vários séculos subsequentes. No entanto,
buscaremos compreender como os conceitos históricos revelam diversos
significados em determinados contextos sociais, dessa forma podemos pensar em
algumas possibilidades e mecanismos que condicionaram a mudança do conceito
da nobreza na França, através das analises de Elias a partir da teoria de um
“processo” civilizacional, entre os séculos XVI e XVII.

Palavras-chaves: Nobreza, O Processo Civilizador, Conceito, Civilité.


As análises da obra O Processo Civilizador de Norbert Elias,
serão preponderantes para compreender como as mudanças sociais do
processo civilizacional são constituídas em longo prazo, por
fenômenos históricos que se articulam entre si e seguem para um
ponto específico, rumo à civilidade. Resgatando a teoria de um
processo histórico em que os fenômenos dialogam entre sim,
construindo uma nova moralidade e etiqueta social. Esse grau de
civilização é constituído por demandas sociais que são criadas por
homens e mulheres em seu cotidiano. Essas demandas foram
articuladas principalmente pelo Estado Moderno, pela conjuntura de
mudanças que ordenavam novos padrões sociais, em seus contextos
históricos para os grupos que estavam inseridos dentro desta
sociedade. Dentro dessa ordem em transformação, também são móveis
seus papéis, status e condições, se adequando aos novos padrões que
vão se construindo e se efetivando. Essa dinâmica é um dos 2
importantes pontos de análise de Elias, pois compreender como a
teoria do processo se desenvolve nos permite compreendermos sua
estrutura. Os padrões de comportamentos e costumes, que se
evidenciam, vistos como naturais, mudam ao mesmo tempo em que a
sociedade se desenvolve.

Em sua obra Elias nos mostra como se construíram


diferentemente os conceitos de civilização e cultura entre as nações.
Historicamente os franceses e Ingleses entendem que o conceito de
civilização está ligado há várias esferas da sociedade. Para os alemães
há uma clara separação sobre o que o conceito de civilização abrange,
fazendo uma divisão dos aspectos estruturais políticos, econômicos e
religiosos, diferenciando-se da intelectualidade e de questões artístico
culturais. Por outro lado, os ingleses e franceses entendem que a
construção da noção de civilização está ligada aos comportamentos
humanos; moral e virtude, não relevando tanto as realizações humanas
como parte característica desse processo. Para os alemães a civilização
(Kultur) está tanto ligada às virtudes de cada indivíduo, quanto as suas
realizações perante a sociedade. Porém o conceito de Kultur na
Alemanha refletiu a segmentação sócio-cultural de época, reforçando
as distinções sociais como espaço de construção identitário. De certa
forma, o modelo de desenvolvimento alemão em sua caracterização
construiu e oscilou dois grandes grupos, segmentando os espaços
sociais entre aristocracia e a burguesia, caracterizando formas de
civilité especificas, que somente passam por um processo de unificação,
construindo uma noção de civilização, posteriormente a Primeira
Guerra Mundial.

Em seguida Elias demonstra como as mudanças nos costumes e


comportamentos são efeitos de um condicionamento social, em direção
à civilidade. Dessa forma, alguns comportamentos como escarrar a 3
mesa, limpar o nariz com as mãos ou molhar o pão na travessa
comunitária, são tidos como incivilizados. Num momento posterior a
mudança comportamental, sua aceitação e a transformação da etiqueta
e seu refinamento são fruto de um processo de longo prazo, em que as
restrições ou proibições desses comportamentos são reproduzidas
cotidianamente, assimiladas psicologicamente durante várias gerações,
constituindo-se naturalmente como prática, tornando-se “naturais”.
Por exemplo, o ato de “flatular” atualmente, n~o é considerado de bom
tom, sabemos disso quase de forma natural. Mas em certo momento
histórico, “flatular” era algo recomendado, fruto de boa saúde e
educaç~o, eliminando segundo a tradiç~o Galênica dos “corpos e dos
humores” gases nocivos ao corpo. Dessa forma, a restriç~o sobre o
“fl|tulo” n~o ocorreu naturalmente, mas desenvolveu-se a partir de
uma nova civilité como condição das práticas sociais, que percebiam o
comportamento como não adequado ou até repugnante para uma
sociedade civilizada.
A esta altura, porem, teria sido útil! Suprimir a
sensação de embaraço de modo ou acalmar o corpo
ou, seguindo o conselho de todos os médicos,
apertar bem juntas as nadegas e agir de acordo com
as sugestões do epigramade Aethon: Fazia de tudo
para não peidar explosivamente em Lugar sagrado,
e orou a Zeus, embora com as nadegas
comprimidas. O som do peido, especialmente das
pessoas que se encontram em lugar elevado, e
horrível. Sacrifícios devem ser feitos, com as
nadegas fortemente comprimidas. (Genebra, 1609
in: ELIAS, 1990, p.36)

4
Para fazer tais análises, Elias utiliza; manuais de
comportamentos de época, “manuais de civilité” como os organizados
por Eramos de Roterdã, que evidência as mudanças comportamentais
desejáveis e as aspirações de uma sociedade refinada. Obras como as
de Shakespeare, destacam novos hábitos sociais desejáveis, também
percebidos em pinturas e cartas pessoais. Segundo Elias as novas
normas sociais ampliaram a sociedade civilizada, ao mesmo tempo em
que aumentam os mecanismos de controle. Nessa direção, salienta
Nietzsche, acerca do sofrimento que nasce junto à sociedade e sua
civilização, o homem civilizado é refém de sua vontade.

Antes de partimos propriamente para compreendermos


algumas concepções sobre a gênese do Estado Moderno e a formação
das sociedades de corte. Torna-se importante percebemos os vários
sentidos que o conceito de nobreza modela no contexto da Europa
Moderna, durante os séculos XVII e XVIII. Nessa tentativa buscaremos
a partir das concepções de Reinhardt Kosseleck perceber a construção
do conceito histórico, refletido a partir de uma comunidade histórico
linguística. Dessa forma buscamos demonstrar que o conceito de
nobreza também se caracteriza como um problema histórico. A falta de
compreensão de uma categoria histórico-conceitual articulada a um
contexto social, muitas vezes gera abordagens históricas anacrônicas.
O problema surge, não fora de sua época, pois os conceitos ou
categorias por possuírem um contexto sócio linguístico operam de
forma adequada em seu tempo e seu significado. Diferentemente
quando na tentativa de compreendermos contextos sociolinguísticos
distintos, incorremos em um anacronismo, fruto de uma inadequação
entre o conceito-categoria, sua carga representativa ou simbólica e sua
estrutura semântica. Segundo as indagações de Koselleck sobre a
história dos conceitos:
5

Constitui objeto da história social a investigação das


formações das sociedades ou as estruturas
constitucionais, assim como as relações entre
grupos, camadas sociais; ela investiga as
circunstâncias nas quais ocorreram determinados
eventos, focalizando as estruturas de médio em
longo prazo, bem como suas alterações, a história
social ainda pode investigar teoremas econômicos,
por força dos quais se podem questionar os eventos
singulares e os desenvolvimentos políticos dos
fatos. (KOSELLECK, 2006, p.98)
Quanto { história conceitual; “Os métodos da história dos
conceitos, por sua vez, provém da história da termologia filosófica, da
semasiologia, e da onomasiologia, seus resultados podem ser
comprovados pela retomada de exegese textual, remontando sempre
de volta a ela.” (KOSELLECK, 2006, p. 98) No entanto, Koselleck nos
mostra que o diálogo entre essas ciências linguísticas e históricas não
estão restritas em suas definições metodológicas, uma com abordagem
na formação histórica da sociedade e a outra na comunidade
linguística. Suas proximidades são complementares e não estão
distintas em si, pois não pode existir uma sociedade sem conceitos, ou
seja, as palavras ou categorias conceituais exprimem e representam
uma realidade histórica e propriamente não podemos compreender os
conceitos sem propriedade contextual histórica, percebendo apenas
suas especificidades linguísticas. Como exemplo dessa proximidade,
podemos referenciar o momento em que os estudos levaram a 6
compreender o conceito de revolução, possuindo inerentemente um
significado de ação política. Dessa forma, as interpretações dos
fenômenos históricos do passado, que remetem ao conceito de
revolução, podem ser vistos como indicadores de uma mudança
estrutural. (KOSELLECK, 2006)

A interpretação do passado necessita da compreensão dos


conceitos em seu contexto e tempo histórico. Um conceito é formado
por uma palavra, e mesmo que tal palavra continue escrita da mesma
forma, seu significado pode remeter à outros sentidos durante o
desenvolvimento do processo de mudança da sociedade. Dessa forma,
para termos uma leitura do passado procurando retratar a realidade
histórica, sem distorções ou anacronismo, precisamos ter uma
preocupação em compreender os conceitos históricos em suas
transformações que o compõe.
ALGUMAS INDAGAÇÕES SOBRE O CONCEITO DE NOBREZA NO SÉCULO
IX

A partir dessa lógica, na Sociedade Feudal, Marc Bloch descreve


que a gênese da atribuição do conceito de nobreza, que expressa suas
primeiras aparições ainda nas constituições de grupos “b|rbaros”,
anterior ao próprio processo de fixação do feudalismo, que se inicia na
França, com o declínio do império Carolíngio, por volta do século IX no
ocidente.

Entre muitos dos povos germânicos, tinham


existido certas famílias qualificadas, oficialmente,
como nobres: em língua vulgar, edelinge, que os 7
textos latinos traduzem por nobiles e que, em
franco-borgonhês, sobreviveu muito tempo sob a
forma adelenc. A este título, gozavam de vantagens
precisas, nomeadamente de um preço de sangue
mais elevado; os seus membros, como dizem os
documentos anglo-saxões, tinham nascido mais
caros do que os outros homens. (BLOCH, 1979,
p.331)

Para Bloch o conceito de nobreza é um equivalente de


hereditariedade (sangue e bens) e a condição de uma superioridade
social, construída por meio da legitimação e do reconhecimento desta
condição, entretanto, não figurou antes do século XII. Anterior a esse
período a nobreza francesa, possuía uma significação menor, e sua
linhagem apenas aludia ao fato de não possuírem antepassados
escravos, sem dignificação:

Todavia, encontraram-se, mesmo entre os humildes,


indivíduos que, súbditos de um senhor quanto às
suas terras, mesmo assim, tinham conservado a sua
liberdade pessoal. Inevitavelmente, a uma qualidade
que se tornara tão rara, ligava-se o sentimento
duma honorabilidade especial, que, sem contrariar
os hábitos do tempo, podia chamar-se nobreza.
(BLOCH, 1979, p.334)

8
George Duby em seu livro intitulado “A sociedade
cavalheiresca” dedica uma grande parcela de seus estudos, analisando
as origens das famílias nobres francesas através de fontes primarias
existentes em pequenas regiões da França, encontradas
especificamente em abadias. Duby percebe, assim como Bloch, que as
primeiras designações para nobreza apenas expressavam uma situação
maior de posses e bens e a sua condiç~o de homem “livre”,
notadamente a evolução das estruturas sociais garante aos nobres
ricos, concessões de terras e títulos hereditários. No entanto essa
aristocracia não prezava suas posses e sim sua fidalguia, conceito que
ultrapassa sua eventual riqueza, ou seja, glorificam-se pelas conquistas
de seus antepassados. A glória militar era para a sociedade feudal,
prova de sua nobreza e assim, a legitimidade de seu orgulho, reside na
sua capacidade militar traduzida numa condição social distintiva.
A nobreza guerreira distingue dois qualitativos que
representam grupos em posições diversificadas dentro do feudalismo,
entretanto, com o tempo as categorias poderiam designar o mesmo
indivíduo, nobreza de sangue e de espada. Nem todo nobre era
cavaleiro, e vice versa, mas pelo contexto do feudalismo em que as
guerras eram frequentes e a principal atividade da nobreza se pautava
em sua função guerreira, era comum, nobres serem investidos como
cavaleiros, acumulando as distinções. A caracterização de um grupo
específico para atuar na condição de uma milícia guerreira, sugere uma
distinção social, já que se tratava de um grupo especializado voltado
para as atividades militares. No entanto desde o momento de sua
origem no contexto do feudalismo, esse conceito sofre um processo de
mudança com o desenvolvimento da sociedade em questão, em que o
estabelecimento de grupos especializados para as funções ligadas às
guerras, articulavam a nobreza como parte desse processo, por várias 9
questões, que envolvem desde o processo de vassalagem até a
glorificação das atividades militares, que passam a ser um qualitativo
cada vez mais difuso entre os nobres.

Atas estudadas por Georges Duby na região de Maconnais,


província da França, nos cartulários da abadia de Cluby por volta do
ano de 971 exprimem as primeiras aparições da palavra “Miles” 2 como
dignificante de uma superioridade social, sendo atribuída
individualmente para expressar um título ou ao coletivo de um grupo
específico. Nas fontes relativas às cartas de senhores o emprego da
express~o “cavaleiro” torna-se mais frequente a partir do século XII e
na maioria dos casos descreve um grupo familiar especifico, o que
sustentava a distinção de tal titulo por hereditariedade. Os “nobres”
que exerciam funções militares eram referenciados como “guerreiros”,
e nem sempre faziam parte de uma nobreza com concessões de títulos
e status propriamente dito, nesses lugares o processo de mudança do
termo guerreiro para “miles” pode ser percebido como fator de um
desenvolvimento das instituições militares.

Marc Bloch define que na primeira era feudal. Um cavaleiro era


aquele que combatia a cavalo e possuía um feudo para proteger, esse
conceito inicial equivalente, combater a cavalo, evidencia uma grande
evolução militar, passando da infantaria para a cavalaria, já que
outrora os Carolíngios só guerreavam a pé. Segundo os germanos um
cavalo valia seis vezes mais que um boi, e se analisarmos o extenso
período medieval, um cavalo era privilégio de poucos e custava um
preço elevado. Outro ponto que podemos analisar é a perícia militar
que desenvolveu-se em anos de treinamento para um cavaleiro já
investido, treinamento que não ocorria na fase adulta, mas ainda
quando “criança”. Dessa forma, podemos perceber que as condições
próprias para arma-se cavaleiro como indicativo de uma milícia 10
especializada, exigindo recurso e tempo em grande monta. Essas
transformações históricas criam novas palavras/categorias que
demonstram a mudança do conceito de “cavaleiro”, acompanhado e
institucionalizado por princípios e ideologias cavalheirescas e sociais
distintivas, torna-se qualitativo cada vez mais característico da
aristocracia.

Na região da Normandia (Ducado da França) esse pensamento


cavalheiresco, difundiu-se tanto que dizer que um filho de nobre não
era um cavaleiro, significava que o mesmo não tinha atingido a
“maioridade”. No entanto o sentido de “Miles’” por volta do ano mil n~o
era propriamente uma designação militar superior, mais uma função
militar de servir um patrono. Deste modo, o uso dessa atribuição não
poderia ser aplicado a todos da nobreza, pois nem todo nobre era
vassalo, o que deixava claro a compreensão do porque nas cartas de
Maconnais, “Miles” era usado no lugar de termos como sinônimo a
vassalo, os “escribas” da época tinham o cuidado de n~o usar o termo
“Miles” para descrever um suserano na mesma condiç~o que seus
vassalos, mas teriam que utilizar um termo, que ressaltasse também
sua condição militar de cavaleiro. Nesse sentido “escribas” posteriores
aos séculos XII, n~o mais usavam a designaç~o “Miles” para mencionar
a alta nobreza, mais uma categorização ligada a divinização de sua
função militar e refletindo as ideologias cavalheirescas expressas entre
a aristocracia, “Bellatores”.

A partir de uma história conceitual, podemos analisar essa


abordagem histórica interpretada por Marc Bloch e George Duby.
Ambos os autores se preocupam com os vários sentidos que um
conceito pode atribuir em seu contexto histórico.

11
Para os primeiros escritores que deram o nome ao
feudalismo, para os homens da Revolução, que
trabalharam para o destruir, a noção de nobreza
parecia inseparável dele. No entanto, não há
associação de ideias mais redondamente errada.
Mesmo por pouco que nos interessemos por
conservar alguma exactidão ao vocabulário
histórico. Decerto que as sociedades da era feudal
nada tiveram de igualitário. (BLOCH, 1976 , p.330)

A preocupação de Bloch demonstra que as primeiras


concepções a respeito da formação do feudalismo, compreendiam que
a nobreza era um grupo dominante e lhe atribuíam características que
apenas posteriormente, (século XII) se fixariam em definitivo. Esse tipo
de abordagem anacrônica, que Bloch evidencia, é também uma crítica a
história dos conceitos, em relação a analises das fontes, onde as
categorias conceituais representam uma realidade histórica, nesse
sentido não podemos compreender os conceitos sem propriedade
contextual histórica, pautando-se apenas em suas especificidades
linguísticas.

Refletindo a teoria do “Processo Civilizador” podemos


compreender como a mudança comportamental, de uma sociedade que
procurava expressar sua civilidade como distinção entre grupos, gerou
novas realidades históricas, condicionando várias mudanças sociais e
criando ou gerando outros significados para conceitos que estão
presos a essas sociedades. Sem a crítica histórico-conceitual não
podemos entendê-los, bem como os antecedentes que levaram a 12
nobreza de corte a ser identificada como uma aristocracia cortesã.
Dessa forma procuramos compreender como que a origem do Estado
Moderno gerou mudanças nos padrões e demandas sociais, assim
como, um condicionamento ordenado por um governo “centralizado”.
Portanto, o contexto social da formação do Estado Moderno, gerou
categorias nobiliárquicas que estavam dispostas de acordo com sua
vinculação a essa conjuntura. Para nos situarmos sob como a nobreza
estava dividida em categorias, vamos novamente a Bloch:

Apesar das características comuns da vocação


militar e do gênero de vida, o grupo dos nobres de
facto, e depois, de direito, esteve sempre muito
longe de constituir uma sociedade de iguais.
Profundas diferenças de fortuna, de poder e,
consequentemente, de prestígio estabeleciam entre
eles uma verdadeira hierarquia, mais ou menos
habilmente expressa, primeira pela opinião e, mais
tarde, pelo direito consuetudinário ou pela lei.
(BLOCH, 1979, p. 386)

A partir dessa indagação de Bloch, podemos perceber que


mesmo algumas características comuns aos padrões de vida
nobiliárquicos, não se constituem em uma homogeneização categórica,
pois são diversos os qualitativos e indicadores que podem ser
expressos para diferenciar os grupos entre as camadas da nobreza,
exemplo; suseranos e vassalos, primogênitos ou segundo filho
(refletindo as condições individualmente). Dessa forma as categorias 13
cada vez mais são reconhecidas por direitos e por legislações que
muitas vezes se apresentam por seus costumes e práticas exclusivas.

Antes de Guilherme o Conquistador, invadir a Inglaterra em


1066, e ser designado com esse título, ele era o duque da Normandia,
ou também, Guilherme o Bastardo, filho logicamente bastardo do
duque Roberto I o Magnífico. A Normandia era um ducado da França,
conquistado pelos povos vindos do norte, os dinamarqueses que
invadiram sobre a liderança do futuro conde Rolo. Como podemos
perceber nessa pequena genealogia de duques e condes, os títulos
nobiliárquicos expressam uma categoria distinta, mas análoga a
nobreza, como no caso referenciado a cima, o domínio de um condado
repassado por sua genealogia nobre alterando a dignificação no nome,
na categoria e na distinção. Mesmo Guilherme o Conquistador sendo
bastardo, filho de uma camponesa, a nobreza herdada do pai Roberto I
assim como o título com suas honrarias davam-lhe a concessão de um
ducado, sua condição e reconhecimento tornou-se efetiva através de
suas conquistas.

No entanto, a expressão duque que referencia o poder sobre um


domínio “exclusivo”, foi {s poucos perdendo esse significado e
consequentemente o caráter do título vai se evidenciando apenas em
honrarias e status, não se limitando propriamente a chefia de um
ducado. “À época das formações nobili|rquicas espont}neas sucedia
aquela em que o do cimo ao fundo da escala social, o Estado
futuramente teria o poder de fixar e modificar as categorias” (BLOCH,
1979, p. 389)

ALGUMAS PERCEPÇÕES SOBRE A FORMAÇÃO DO ESTADO MODERNO 14


NA FRANÇA

O sociólogo Norbert Elias, atribui como fator de várias


mudanças conjunturais na sociedade, o estabelecimento do Estado
Moderno, que se constitui através de vários antecedentes e fenômenos
históricos como; grandes guerras, crises, fatores econômicos, dentre
outros, que levaram ao desenvolvimento de instituições políticas e
certamente reordenaram o condicionamento do poder real ao um
desenvolvimento de um Estado centralizado.

A formação do Estado Moderno é um dos indicativos de


mudanças históricas que passam a refletir as alterações de sentidos no
conceito de nobreza no contexto europeu. Nesse sentido, Elias
procurava evidenciar que não são somente reis e príncipes que
ampliam seus poderes nesse contexto histórico, mas instituições são
estabelecidas e adquirem novas importâncias no processo de
transformação da sociedade, gerando novas possibilidades aos grupos
que oscilam no corpo social.

As estruturas feudais de nobres autônomos que se dedicavam


{s guerras “tribais” e seus comportamentos e costumes, estavam
ligados a características próprias de uma sociedade dita “feudal”, que
passa por uma transformação em que o enraizamento do Estado e suas
instituições impõem limites, controlando os conflitos internos e as
armas de uma sociedade cavalheiresca. Esse processo ocorreu em uma
centralização crescente dos poderes através de mecanismos
restritivos, onde a violência que outrora era parte privada e direito da
sociedade dita “feudal” se transforma deslocada pelo poder crescente e
interventivo do Estado. Como salienta Elias “o livre emprego de armas
em combate é vedado ao indivíduo e reservado a um autoridade
central, qualquer que seja seu tipo” (1993, p. 98) Com monopólio da 15
força militar, o Estado viabiliza também o monopólio da tributação.
Dessa forma, a máquina administrativa do Estado, compreende e
modifica gradualmente novas formas e modelos com respectivos
impactos nas camadas sociais, gerando um complexo sistema de
mudanças. Os conflitos inerentes às questões de poder envolvem
também concessões de privilégios e benefícios a essa organização
social transitória. O Estado gerou novas possibilidades, fruto dessa
mudança estrutural, em que a ascensão de grupos pode ser manejada
por outros mecanismos e condições, outrora conquistados pelas armas.
“Graças { centralizaç~o e a monopolizaç~o, oportunidades que antes
tinham que ser conquistadas por indivíduos com emprego da força
militar... tornou-se possível de planejamento” (ELIAS, 1993, p. 100)
A express~o muito citada, “Nenhuma terra sem um
senhor”, n~o constituía apenas uma princípio
jurídico básico. Era também o lema da classe
guerreira. Traduzia a necessidade dos cavaleiros de
se apossarem de todos os pedaços de terra
utilizável. Cedo ou tarde, isso acontecera em todas
as regiões da Cristandade latina. (ELIAS, 1993, p.
45)

Como Salienta Elias, podemos pensar em agentes individuais e


seus atos que puncionaram o desenvolvimento de uma forma
centralizada de poder, com mecanismos complexos de controle social e
enraizamento de instituições duradoras que geriam esse sistema. Não 16
é menos verdade que Luís VI, o gordo da família dos Capetos lutou
durante toda sua vida para ampliar suas posses e subjugar os senhores
feudais no ducado da Francia. Durante quase cinco séculos os Capetos
expandiram seus poderes militares e financeiros, por toda área do seu
reino. Em longo prazo os alicerces lançados por Luís o gordo,
contribuíram fortemente para a ascensão dos Capetos e para a
centralização do poder do Estado. Segundo Elias, em uma sociedade
guerreira, comumente uma família conseguia ascender militarmente e
conquistar a hegemonia de um território conflituoso, subjugando os
nobres menores e de médio porte, sendo que quase ou todos os
poderes do feudalismo demandavam da posse da terra. Até mesmo a
coroa necessitava partilhar de campanhas de conquistas territoriais
para ampliar ou manter seu poder na regi~o. ”Se os Capetos n~o
tivessem conseguido a preponderância na região da Frância, cedo ou
tarde - tal como acontecia com outras províncias na França -, ela teria
passado a outra Casa.” (ELIAS, 1993, p.90) Dessa forma, Luís o gordo
não planejava consolidar mecanismo de poderes que engendraram a
formação de uma forma de governo centralizada, entretanto, precisava
subjugar e conquistas apoio das famílias mais poderosas da região
para manter a comunicação entre seu território, e para seu poder não
desaparecer em alguns lugares.

Um dos mecanismos efetivos de poder do monarca sobre seu


território, era o controle da tributação, que não poderia ter se
efetivado fortemente em um contexto social onde predominava a
economia de escambo3. A partir do século XI no ocidente a mudança
estrutural da sociedade gerava demandas econômicas que
necessitavam de uma forma de troca econômica uniforme para se
movimentar; a moeda. As relações monetárias ampliam as trocas à
longa distancias e impulsionavam outras mudanças consequentes a
esse processo. Dessa forma, o monopólio das armas, garantido pelas 17
instituições militares do Estado, eram financiados pelo controle da
tributação, mas não somente o Estado se fortalecia nesse contexto,
como também a circulação monetária ao mesmo tempo em se
ampliavam os valores nos cofres dos monarcas e sua autonomia.
Riqueza que era utilizada para manter concessões individuais e
privilégios próprios da nobreza, numa condição de negociação ativa.

A monetarização foi aumentando gradualmente por diversos


fatores e dinâmicas históricas sociais, entre estes; a expansão
demográfica que ampliava e formava várias camadas de
interdependências na sociedade, nesse aspecto podemos citar o
número de artesãos e comerciantes que cresciam de forma
significativa nas cidades contribuindo com o estabelecimento de um
grande mercado em expansão, gerando demandas de trocas moveis e
também a formação de estradas e meios de transportes que
movimentassem esse mercado. A moeda passou a circular de forma
intensa nas grandes cidades, consolidando e ampliando o crescimento
da burguesia e seus equivalentes politicos. Em parte o monopólio das
atividades comerciais nas cidades, tencionaram às relações entre as
classes dominantes, e forçam o sistema social numa nova direção,
acabando por garantir a burguesia em ascensão novos espaços e
direitos sociais em um processo longo e conflituoso, forjando uma nova
“civilité”. Através de um determinado desenvolvimento estrutural do
comércio no sistema feudal, a burguesia se legitima como uma classe
média de profissionais livres, exercendo um papel marginal nas
relações de dominação. Nesse sentido, podemos pensar em duas
formas de dominação criadas pela aristocracia no sistema feudal; a
gerada sobre { terra (servid~o), e a “dominaç~o sobre o homem”. Nesse
aspecto um dos capítulos da obra de Marc Bloch4, capítulo intitulado O
homem de outro homem retrata as relações de laços de fidelidades e
interdependências. 18
No entanto, os monopólios fiscais, militares e tributários não se
constituem em exclusividade de classe, como salienta Elias, não
dependem essencialmente de um único individuo ou grupo. Em uma
sociedade as interdependências e a divisão das funções de trabalhos
são amplas, aumentando a necessidade de uma grande teia de relações
para gerir esse sistema. Da mesma forma, quanto mais às instituições
monopolistas tornam-se duradouras e amplas, maior é a “dependência
dos dependentes” para explorar efetivamente as dimensões dos
poderes. Nesse sentido, quanto maior se torna a abrangência do poder,
maior é a necessidade de fiscalizá-lo e estruturá-lo. Portanto, quando o
poder atinge dimensões monopolistas o controle e a fiscalização
compreende esferas de poderes que são controladas cada vez mais por
uma “teia humana” com v|rias divisões de funções e trabalhos
específicos, onde os poderes privados aos poucos se transformam em
públicos. Esse processo gradual e lento se apresenta perceptível ao
longo de séculos:

Características estruturais particulares da


sociedade podem levantar obstáculos infindáveis no
decorrer do processo, mas, ainda assim, seu
mecanismo e tendência são inequívocos. Quanto
mais abrangente o potencial de poder
monopolizado, maior a rede de funcionário que o
administra e maior a divisão de trabalho entre eles,
em suma, quanto maior o número de pessoas de
cujo trabalho ou função o monopólio depende de
qualquer maneira, mais fortemente esse campo 19
controlado pelo monopolista faz valer se próprio
peso e suas regularidades internas. (ELIAS, 1993, p.
100)

Uma das formas físicas de manter esses monopólios, eram as


cortes privadas dos aristocratas, surgindo como resultado e causa da
transformação da sociedade. Emergem dentro de um contexto
histórico de crise do sistema feudal, seja pelas crises alimentares, falta
de terras, ao aumento demográfico ou próprio limite do sistema. As
cortes, além de serem a morada do senhor feudal, soberano de uma
vasta região, eram também um centro administrativo responsável pelo
controle da produção de subsistência, assim como o controle da
entrada e saída de produtos (não podemos pensar que o comércio
nesse período século XIV tinha atingido grandes amplitudes, o feudo
produzia grande parte dos alimentos que eram usados pela sua
subsistência, o excedente era comerciado). Para gerir essa
administração dentro das cortes, o soberano precisava de pessoas
educadas para tais fins, como resultado dessas novas demandas
surgem os magistrados. Dessa forma, podemos perceber que a
construç~o de uma nova sociedade e uma nova “civilité,” s~o resultado
de uma desestruturação e crise que força os sistemas sociais e suas
normalizações a reconstruir a partir dessa crise uma nova realidade,
um processo civilizador.

AS CORTES ARISTOCRÁTICAS E AS NORMAS DE CIVILIDADES

A formação de centros privados evidencia um grande número 20


de relações de interdependências, como salienta Elias, é por
consequência uma “desintegraç~o” do sistema feudal. Mas aos poucos
esse movimento começa a estabilizar-se e se reintegrar através de
mecanismos de centralização. Um dos modelos explicativos para esse
processo é a comercialização que aos poucos beneficia os aristocratas
mais poderosos, pois os mesmos tinham condições de gerir dentro das
suas cortes, atividades comerciais do excedente produzido em seu
feudo, oferecendo novas oportunidades e funções próprias, dentro de
um complexo sistema econômico. A corte não possuía apenas fins
administrativos, ela era a morada dos homens mais ricos e poderosos,
um lugar luxuoso e por sua vez, importante centro cultural, reunia
dentro delas; escribas responsáveis por escrever as crônicas dos
soberanos, escritores de livros que contavam com o patrocínio dos
senhores aos quais serviam, pois nesse período não existia mercado
para o livro, e quem possuía esse oficio fiava-se na aristocracia.
As cortes atraiam poetas, músicos, pintores, artistas de vários
gêneros. Nesse sentido as cortes ganharam uma importância cultural
maior que as próprias cidades, elas eram o reflexo do poder e riquezas
do senhor, e com o passar do tempo, essa estrutura se amplia entre os
nobres, um nobre tinha que possuir uma morada digna de sua nobreza,
um equivalente categórico. A representação torna-se muito importante
para organização social da nobreza nessa época (séculos XV e XVI) e
gradativamente com maior força, a ponto de muitos nobres, venderem
tudo que possuíam para se manter em uma vida luxuosa e de acordo
com as novas representações e estilos de vida que se conformavam.
Dentro das cortes esses grupos operam funções diversificadas e
preservam um estilo de vida nobiliárquico e podem conquistar
benefícios com suas funções, terras, títulos, patrocínios. Essas
categorias anteriormente equivaliam a nobres menores que não
tinham condições de manterem atividades e custos próprios da 21
nobreza, e acabam por realizar funções paralelas, suplementares,
nesses grandes centros. Mas com a difusão desses ofícios, dependiam
eles cada vez mais de um soberano para financiar sua arte, um
mecenas. Por exemplo, o “bardo” para manter sua “carreira musical”,
deveria ir a lugares onde sua música fosse apreciada, lugares onde
pessoas fossem educadas para apreciar culturalmente sua música. As
oportunidades nesse caso se davam nas cortes, principalmente de
grandes aristocratas, que tinham a condição de financiar um crescente
mecenato. Assim como o poeta, que se inspiravam na vida cotidiana do
nobre para dedicar sua poesia, por isso alguns temas são sugestivos, se
pensarmos as artes liberais dentro das cortes aristocráticas. Mas não
podemos imaginar que somente o nobre menor fosse educado para
desempenhar essa arte, a alta nobreza também possuía essa condição
artística, pois tinha que parecer culturalmente superior a outros
aristocratas, assim como seu status social o indicava. Evidenciando
isso, apenas nas cortes os trovadores tinham a possibilidade de
arrebatar serviço de alguma duração e servir a uma dama (ELIAS,
1995, p.76)

A vida na sociedade de corte não estava isenta de


percalços... Os nobres colidiam entre si, lutavam por
prestígio, pela posição na hierarquia da corte. Os
escândalos, as intrigas, as disputas por favores não
tinham fim. Todos dependiam uns dos outros e
todos dependiam do rei... Quem detinha um cargo
elevado poderia perdê-lo no dia seguinte. Não havia
segurança. Cada um era obrigado a fazer alianças
com pessoas de nível mais elevado, a evitar
inimizades inúteis, a planejar rigorosamente a sua 22
estratégia contra rivais irredutíveis, a dosear cada
gesto de aproximação ou distanciamento em função
da própria posição de força. (ELIAS, 1995, p.78)

Essa passagem de Elias, referenciada da obra, A Sociedade de


Corte. Indica as relações sociais nos círculos das cortes aristocráticas,
onde o convívio dos indivíduos era ordenado por regras
comportamentais, que os legitimavam e também os distinguiam entre
os mesmos, sendo que cada movimento teria que ser planejado em
relação a si e para com os outros. Tanto a ascensão social e o acesso
aos cargos como no declínio dos mesmos, eram uma situação
momentânea que poderia transformar-se pelo renovado contexto
social. Dessa forma, cada gesto, cada atitude era potencialmente
percebido como condição de exposição, tanto de fragilidade como de
superioridade. Portanto se manter próximo ao rei ou aos príncipes e
sua benevolência eram fundamentais e desejados por todos os
aristocratas dentro das cortes, seus favores exigiam novas etiquetas.

A busca pela “civilidade”, privando comportamentos e paixões,


em direção a uma mentalidade difundida a respeito da violência e do
comportamento desejável, era fruto de uma sociedade cortesã em
transformação. A violência na forma individual, não era mais um
atributo dos senhores feudais, não se adequava mais dentro da nova
sociedade de corte. Portanto, segundo Elias, a centralização do Estado
e as mudanças nos mecanismos de controle social são por
consequência, parte e resultado de um processo civilizacional lento, em
que a sociedade estabelece complexos modelos psicológicos de longa
duração. É como se dentro dos limites da corte/cidade se
desenvolvesse uma consciência de privações e interdições. Resultado 23
disso, a violência não era entendida como um meio para conseguir algo
dentro dessa sociedade, por essa razão se estabelecem outros
mecanismos sociais para tais fins, esses meios são parte de um
processo de civilidade que a sociedade aos poucos passa a legitimar.

Erasmo de Roterdã5 foi um dos primeiros do seu tempo a


propor um manual de civilidade, evidenciando um tema que estava
“amadurecido para discuss~o” assimilado ou em processo de
assimilação social, refletindo costumes/comportamentos como parte
de normas de civilidade. O sucesso de sua obra, publicada em vários
países, adaptadas sobre a forma de literatura, contos, poemas é um
forte indicativo de como a sociedade europeia estava “madura”, em
termos comportamentais para um novo “salto dentro da civilidade”.
Dessa forma, o contexto social em transformação influencia e amplia os
resultados de suas ideias, circunscritas dentro da Civilité ou Civilité
Puérile publicadas até o século XVIII. Pela didática de suas obras e
certamente por escrever algo que expressava uma necessidade social,
propõem normas e regras comportamentais de grande alcançe. Elias
salienta que à obra de Erasmo, em grande parte, é forjada por
observações aos costumes e modelos comportamentais que operavam
na sociedade. Dessa forma os costumes adotados pela influência do
pensamento de Erasmo, eram algo inerente a sociedade, expressando
desejos e anseios que já estavam mais ou menos dispostos entre os
grupos. Os manuais nesse sentido contribuíram para uma
compreensão mais concreta da inteligibilidade das representações das
práticas e dos costumes e comportamentos:

O conceito civilitas, daí em diante, ficou gravado na


consciência do povo com o sentido especial que 24
recebeu no tratado de Erasmo. Palavras
correspondentes surgiram várias línguas; a francesa
civilité, a inglesa civility, a italiana civilitá, e alemã
Zivilität, que reconhecidamente nunca alcançou a
mesma extensão que as palavras correspondentes
nas outras culturas. (ELIAS, 1996, p.65)

Assim como autores clássicos (na Grécia, Roma etc.) Erasmo


propõem um tratado sobre o comportamento das pessoas em
sociedade em que; expressões corporais, faciais, gestos que evidenciam
a natureza do humano. A leitura que pode ser feita dos olhares,
expressões da face, e outros comportamentos, podem identificar o
interior do homem, ou seja, “grosseiramente falando”, sua bondade ou
maldade. O contexto social em que Erasmo publica sua obra, parte de
uma compreensão dos comportamentos humanos, aos quais se
julgavam civilizados ou incivilizados, em que é possível mapear essas
expressões, mesmo que com intenções diversas, as mesmas expressões
podem ser controladas e restringidas, limitando e extinguindo as
poucos os excessos, que eram compreendidos nesse contexto,
posterior ao século XVI, como uma característica do Medievo, na forma
de expressar o “amor cortes~o”, nos duelos e propriamente na
violência física, e para a nova sociedade de corte tais excessos não
eram próprios do comportamento civilizado.

A mudança das “Civilites” é condição e reflexo do processo


civilizador, e a importância da construção histórica de categorias ou
conceitos remete a necessidade de ampliarmos nossas perspectivas de
an|lise, abandonando uma definiç~o de “termo” ora confort|vel e
construirmos modelos de análise metodológicos que evidenciem a 25
construção histórica das palavras, conceitos e categorias, não como
expressão linguística restrita, mas como um processo histórico
contextualizado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Seria limitado citar algumas ciências sociais que receberam


significativas contribuições diretamente ou indiretamente pela obra
inovadora de Elias, “O Processo Civilizador”. Elias resgata a teoria de
processos civilizacionais analisados a partir das experiências
históricas, onde fenômenos sociais que eram percebidos isolados entre
si, na verdade revelam sentidos e nexos singulares, possibilitando
compreensões de “forças que só se manifestam na vertente de séculos”
6. Por exemplo, Elias diverge das várias formas explicativas que
compreendem determinados comportamentos, como naturais dos
indivíduos. Pois não podemos separar a constituição psicológica dos
indivíduos do processo de transformação social, ambos estão ligados e
seguem a um condicionamento específico, a civilização. Com a teoria
do processo civilizador, Elias abre as portas para que várias pesquisas
sociais sejam produzidas a partir da noç~o de “processo”, pois sua
aplicabilidade é significativa em diversos contextos históricos e áreas
do conhecimento social, tanto que sua obra aborda costumes e
comportamentos de diversificadas “nações” (França, Alemanha e
Inglaterra) em diferentes tempos históricos, mostrando que as origens
de uma “civilizaç~o dos costumes” é um processo lento, que sob v|rias
hipóteses n~o é linear. Determinados indivíduos se portam “de uma
forma específica” porque durante sua existência eles estavam inseridos
numa sociedade em movimento, que condicionava e refletia seus
comportamentos a partir das mudanças históricas que a sociedade 26
criava:

Serão necessárias a reflexão de muitas pessoas e a


cooperação de diferentes ramos do conhecimento,
hoje frequentemente divididos por barreiras
artificiais, para que gradualmente sejam
respondidas as questões levantadas no curso deste
estudo. Dizem elas respeito à psicologia, filologia,
etnologia e antropologia, não menos que à
sociologia ou aos diferentes ramos da pesquisa
histórica. (ELIAS, 1990, p.19)
Elias não só realiza umas das obras mais respeitáveis nos
estudos sociais, como também lança uma teoria inovadora para ser
refletida em vários trabalhos decorrentes. A aplicabilidade do
“processo” se faz sob v|rios sentidos e contextos históricos como s~o
mostrado por Elias em vários momentos de sua obra. Pois toda
sociedade passa por processos civilizacionais. Não estamos atualmente
passando por uma globalização? O capitalismo é puramente um
processo econômico? Ambas são perspectivas de analise amplas, que
podem ser pensadas a partir de uma origem e mudança social, em
an|logo com a pesquisa de Norbert Elias sobre a “civilizaç~o dos
costumes”.

Dessa forma, tanto a teoria do processo civilizacional, como a


compreensão dos conceitos históricos nós formam auxiliados por
Reinhardt Koselleck que salienta que quando as ciências sociais se 27
propõem a analisar estruturas de longo prazo, mudanças, durações,
apenas podem fazer reflexões significativas da realidade histórica sem
levarem em considerações os conceitos ali expressos, pois todo
sociedade é formada por conceitos que são gerados a partir do seu
“movimento histórico”, que contribuem para perceber de forma
teórica, as relações cronológicas entre os acontecimentos, ou sua
justaposição de permanência e alteração (2006). Como podemos
observar nessa pesquisa, foram vários os fatores que condicionam a
mudança do conceito de nobreza e seu significado em diferentes
contextos históricos, percebemos que já no inicio do feudalismo,
apenas se tratava de uma condição social mais elevada, uma
categorizaç~o de homem “livre” que n~o possuía antepassados
escravos. Em resumo; o desenvolvimento da sociedade em questão
elevou ao passo do processo de mudança social, as condições de
nobres e cavaleiros, esse segundo conceito chegou a prevalecer sobre o
primeiro, mas no momento em que o Estado Moderno cristaliza os
meios de monopolização sob a violência e as guerras, nova condições
sociais passam a serem estabelecidas, e ao passo do processo
civilizacional, as ideologias cavalheirescas transformam-se em regras
de cortesias e civilidade. Mas dizer que nobres autônomos perdem a
preponderância sobre a guerra, não é o mesmo que dizer que a
sociedade se torna menos bélica, pelo contrario. Essa é uma condição
d| import}ncia de perceber o “processo”, e n~o a linearidade
cronológica dos fatos, que são limitadas para refletir determinadas
circunstâncias históricas.

REFERÊNCIAS

BLOCH, Marc. A Sociedade Feudal. Lisboa: Edições 70, 1979. 28


DUBY, G. A sociedade cavalheiresca. São Paulo. Martins Fontes, 1989.
ELIAS, Nobert. A Sociedade de Corte. Lisboa: Estampa, 1995.
ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1990, volume 1.
ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1993, volume 2.
FLORI, Jean. Cavalaria. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude.
Dicionário do Ocidente medieval. Vol. I. Bauru/São Paulo:
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FRANCO JÚNIOR, Hilário. Idade Média: nascimento do ocidente. 3
ed. São Paulo: Brasiliense, 1986.
GUERREAU, Alain. Feudalismo. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-
Claude. Dicionário do Ocidente medieval. Vol. I. Bauru/São Paulo:
EDUSC/Imprensa Oficial, 2002, pp. 185-199
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica
dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio,2006.
PEDRO, Antonio. História Moderna e Contemporânea. São Paulo:
Moderna, 1985.

NOTAS

1. Graduando do 4º ano de História FAFIUV- Campus UNESPAR.


Orientador: Ms Everton Carlos Crema – UNESPAR-FAFIUV

2. Miles (plural milites) utilizado em diferentes contextos históricos,


podendo atribuir diferentes significados , mas referencia atividades
ligadas à combates; guerras, serviços militares. Na Idade Média sobre 29
uma influência dos monges que se designavam soldados de Deus
(milites Dei) as vocações militares sobre vários aspectos se
assemelham a servir a Deus, nesse sentido as palavras milites, militare,
milites recebem também um significado elevado além de sua condição
mundana. Miles, pode atribuir o sentido de servir, dessa forma algumas
vezes eram utilizados para transcrever termo como vassalo.

3. Economia por troca de mercadorias

4. Obra, A sociedade Feudal

5. Tratado de Erasmo; De civitate morum puerilium (Da civilidade em


crianças) em 1534

6. Ribeiro, J., Apresentação a Norbert Elias in: ELIAS, Norbert. O


Processo Civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990, p.15. volume 1
A IMPORTÂNCIA DAS SENSIBILIDADES E DO SENTIMENTO
SAUDADE NA HISTÓRIA

Jaquelline Maria Cardoso

Todas as pessoas estão em constante transformação. Ora


expressam seus sentimentos, ora repreendem de alguma forma, o fato
é que ninguém conhece alguém em um todo. Sendo assim, buscar o
sentimento das pessoas em cada momento da história é algo que deve
ser evidenciado, já que essa sensibilidade é a capacidade humana de
sentir ou ter sentimentos próprios ou coletivos, uma forma de ser e
estar no mundo; é ir além da mentalidade, do imaginário. É preciso 1
essa presença constante do individuo na história, onde ele deve estar
presente, precisa ser evidenciado, bem como todos os sentimentos
devem ser registrados de alguma forma e que devem ser vistos com
destaque pelo historiador.

Sendo assim, o presente artigo evidencia história das


sensibilidades esta que conforme nos fala Alain Corbin (2005) não
damos a devida importância, já que não temos uma história do amor,
não temos uma história da alegria e ele enumerava toda uma série de
sentimentos. A história das sensibilidades identifica a utilização dos
sentidos que permitiu construir imagens do outro, dar forma ao
imaginário social. Falou-se em que havia muito interesse apenas em
relatar a vida privada da elite, certamente, porque não se pode estudar
a intimidade, a vida privada, senão daqueles que deixaram alguma
escrita de si, como um diário, do qual mais à frente iremos mencionar,
ou ainda correspondência, autobiografia, ou daqueles que foram objeto
de uma descrição muito precisa por parte dos observadores.
Começamos por uma discussão sobre as sensibilidades, esta
aventura da individualidade que se encontra no centro das ambições
da história cultural. “Capturar as razões e os sentimentos que
qualificam a realidade, que expressam os sentidos que os homens em
cada momento da história foram capazes de dar a si próprios e ao
mundo” (PESAVENTO, 2007, p. 10).

As sensibilidades são uma forma de apreensão e de


conhecimento do mundo para além do conhecimento cientifico. A
sensibilidade se situa em um espaço anterior à reflexão e que marca
uma modificação no equilíbrio entre este ser e o mundo; Como forma
de ser e estar no mundo, a sensibilidade se traduz em sensações e
emoções, na reação quase imediata dos sentidos afetados por
fenômenos físicos ou psíquicos, uma vez em contato com a realidade. E 2
também correspondem às manifestações do pensamento ou do
espírito. Os indivíduos experimentam as sensações e os sentimentos, e
tem idéias sobre eles e podem se reproduzir e transmitir os mesmos,
como forma de conhecimento produzido sobre o mundo. “É pelo fato
do sentir que a vida se distingue da ausência de vida [...] Toda a
sensação é capacidade de conhecer por meio do corpo. Graças a esta
forma de conhecimento, a alma é capaz de conhecer” (PESAVENTO,
2007). Assim a sensibilidade consegue reproduzir a experiência do
vivido, reconfigurado pela presença do sentimento.

Entre os sentimentos mais comuns está a saudade, está que


passa muitas vezes despercebidas nos estudos, mas que será tratada
como prioridade na presente pesquisa. A saudade é a certeza de
termos vividos bons momentos, de um tempo que não volta mais e
assim à história aparece como uma aliada dessas lembranças, pois nos
dá a certeza de que esses instantes não serão esquecidos,
permanecendo de alguma forma. É uma lembrança nostálgica de
pessoas ou coisas distantes ou extintas, acompanhada do desejo de
tornar a vê-las ou possuí-las, uma certa maneira de viver e pensar o
tempo. Porém não temos saudade das mesmas coisas, cada tempo tem
suas saudades, e nem todos os povos valorizam este sentimento ou dão
a ele o mesmo conteúdo e sentido.

Sendo assim a saudade e a história seria algo que estão ligadas


de alguma forma

A saudade que como todo sentimento humano é a


expressão de uma sensibilidade social e é historicamente
construída, é manifestação de uma subjetividade
culturalmente produzida, só existe à medida que se
explicita em atitudes, em práticas e é transformada em 3
sentido que percorre e atravessa a história do país. A
saudade que é ausência de algo ou alguém
historicamente situado torna-se este sentimento
universal e a - histórico que os românticos tentam
construir [...] A história teria a mesma capacidade que a
saudade de tornar o presente o que é passado, de reviver
o mesmo sentimento e a mesma emoção que foram
sentidos em outros momentos. Saudade e história nos
transportariam para o passado, se apoderariam de nós e
nos fariam ser outros, compreender os outros que estão
para além do rio da morte. Saudade e história são, pois, a
luta incessante contra o esquecimento, contra o tempo
que ameaça de ruína um ser individual ou nacional que
precisava ser reencontrado em suas manifestações mais
autenticas, originais e primevas. [...].Saudade e história
são filhas da imaginação, da capacidade de representar e
encenar de novo o que existiu, de por de pé aqueles que
tombaram por casa individuo ou pela pátria
(ALBURQUERQUE Jr, 2006, p. 07).

O saudosismo parece nascer da angústia ou insegurança diante


do novo. A saudade por ter esse caráter ambíguo, já que, ao mesmo
tempo, que trás o sofrimento pode constituir em consolo, ao mesmo
tempo, que é a constatação de perda pode ser a única forma de
recuperação do bem perdido, pode facilmente se constituir em uma
doença permanente do espírito. Outras vezes podemos até sentir
saudade de lugares ou de pessoas que nem ao menos conhecemos, mas
que pessoas queridas ao relatarem fazem com que experimentemos a
mesma sensação. Algo curioso é que há rumores de que somente a
língua portuguesa expressa este sentimento:
4
Aliás, somente a língua portuguesa expressa este
sentimento através de uma palavra, que vem do latim
solitate, que se aproxima da idéia de solidão, mas
também através do português arcaico soydade, suydade,
se aproxima de saúde, ou seja, esta expressaria um certo
estado de espírito, que nasceria de uma certa afecção, ou
adoecimento da alma por motivo de solidão, de ausência,
de desaparecimento no tempo e com o tempo de coisa
ou pessoa amada, querida, significativa e essencial. Se
somente a língua portuguesa possuía esta palavra é
porque somente a alma portuguesa experimentaria este
sentimento raro, somente a alma portuguesa viveria este
sentimento intraduzível para os demais povos, expresso
por uma palavra intraduzível em outras línguas.
Saudade, palavra chave da qual o enigma da alma
portuguesa se revelaria (ALBURQUERQUE Jr, 2006, p.
01-02).
A história da saudade é a historia de todas as praticas humanas
que tentam de alguma forma nos reconciliar com o tempo que sempre
nos escapa. Como todo sentimento, a saudade é produto de uma dada
sensibilidade que é construída socialmente. E como todo conceito,
saudade é um nome que recobre diferentes praticas, sensações,
estados de espírito e que pertence apenas a alguns povos, os que
podem pronunciar esta palavra e com ela expressar uma dada situação,
um dado pedaço de tempo que quer reter e guardar como significativo,
como constituinte de seu próprio ser. A história não é saudade, mas a
saudade é história, aqui e do outro lado do Atlântico (ALBUQUERQUE
Jr, 2006).

A saudade é afirmação no individuo, quer com relação ao


seu passado pessoal, quer com relação ao seu passado 5
nacional, daquela autenticidade de caráter que encontra
na identificação do mesmo individuo com os valores do
seu passado, a sua base mais sólida (...) porque sem esse
sentimento, um tanto amoroso, de saudade do passado,
substituído de todo por outro, de repudio total ao
mesmo passado, não há povo que se compreenda
profundamente a si mesmo. Que compreenda o que nele
é presente e o que nele é possível futuro (FREYRE, 1965,
p.02).

Viver temporalmente é viver saudoso, pois é viver sabendo que


tudo que viveu passará, que os melhores momentos já estão sempre se
tornando passado. A partir desse ponto, parece ser de bom interesse
introduzir a questão que incentiva o presente artigo: a relação que os
sentidos históricos passados desempenham na narrativa de Freyre, a
delinearem uma determinada estética da saudade e da melancolia. A
saudade e a melancolia podem se constituir como laços através dos
quais a história se cruza com o sentido da memória. Para Freyre

Assim a palavra saudade, como expressão de


temporalidade, deixa de ser um veiculo neutro e racional
para ela ser ela própria a realidade da idéia que exprime.
Como em muitos autores do inicio do século XX, a obra
de Gilberto Freyre está atravessada por uma reflexão
sobre o tempo e o que significa para a vida do indivíduo
e para a vida coletiva. Define o tempo como o pior
inimigo do homem. A resposta nos diz de como Freyre
pensa a temporalidade e nos aproxima da compreensão
de porque seus escritos estão banhados por um certo ar
de nostalgia, de saudade, sem que se saiba muitas vezes 6
bem de que. Ele chega a conclusão que quem morre são
os homens, não o tempo, este consegue sobreviver ao
homem biológico que morre, através das próprias ações
e obras deixadas por estes homens que se foram. Freyre
parece nos falar da responsabilidade humana em relação
a sobrevivência de certos tempos (FREYRE, 1965, p.17).

Freyre diz se preocupar em pensar como este presente vai se


dissolvendo a cada instante, o que faz a saudade ser um sentimento
constante, sendo um instante que sabemos que não poder deter. O
presente já está se tornando passado.

E em Freyre a saudade é uma maneira de procurar


integrar e fazer conviver harmoniosamente os diversos
tempos que nos rodeia e nos constitui. [...] esta saudade
que inclui ‘a saudade do instante que sabemos não poder
reter’. Que temos que nos contentar em evocar. Ou em
registrar a sensação que nos deu, como instante logo
desaparecido como instante singular; e perdido num
conjunto plural de instantes (DIANA, 2008, p. 33).

Ao juntar a nostalgia nas obras de Freyre, a imagem que temos


como resultado confirma a tese de que a saudade patriarcal constitui
um ponto a partir do qual a história do Brasil poderia ser contada,
enxergavam, no caso do Brasil, como esta saudade patriarcal seria
indicadora de algum sentido diferente na nossa história. Assim, a
história do moderno, tornar-se-ia local e particularizada justamente na
ausência patriarcal, pela expressão de um sentimento. Uma ausência
que, não nos esqueçamos, torna-se presente na sua saudade. Por meio
do artifício da rememoração, da nostalgia e da melancolia a inscrever-
se na história, a saudade como que vem para atualizar aquele passado 7
recente numa armação de tornar presente um traço ausente.

A saudade configura assim uma forma própria de


imaginação – social e sociológica, subjetiva e
historicamente – de Brasil, um modo pelo qual escrever
o Brasil será representar essa saudade, esse jogo de
tornar presente o ausente. Neste ponto que podemos
compreender que somente por um recurso de retórica, a
estética da saudade atua como um modo de sentir e
conhecer – impressionista, ensaísta, aventureiro – da
sociedade brasileira; conclusão que se chega,
evidentemente, se aceita que à imaginação corresponda
uma sua específica realidade (DIANA, 2008, p.36).
Na obra sentimental de Gilberto Freyre denominada “Tempo
morto e outros tempos”, através de seu diário podemos chegar mais
próximos do mundo vivido e re-significado por Freyre, para
entendermos de que maneira Freyre agiu sobre a realidade social,
recriando-a. Afinal, memória não é apenas registro, é também
construção e cristalização: seja na criação de espaços, seja na produção
de lembranças, seja na eternização de instantes. Nesta obra temos uma
memória juvenil.

Porém nesse diário o próprio Freyre afirma que foi publicado


incompleto, faltando numerosos e importantes registros para
reconstituição do que foi sua vida. Esse diário é parte de sua
subjetividade, de sua memória, da sua relação com a sociedade e com o
seu tempo. É por meio da linguagem que o indivíduo expressa seus 8
anseios, sua relação com o mundo, transforma em experiência os
conteúdos sociais recebidos, é na linguagem que o individuo se
constrói.

O diário como lugar de registro de nossas experiências


mais significativas não está isento do aspecto emocional,
ao contrário, é o lugar em que nossos escritos guardam
maiores parcelas do que sentimentos, estando
extremamente impregnados por nossas emoções (SALES
NETO, 2005, p. 562).

Portanto o que Freyre realizou em sua obra foi a utilização da


escrita da história como meio de lidar com o mundo. A história
regional por ele produzida e, constantemente, retomada em suas
obras, dá conta de re-significar a região, atribuir-lhe o sentido desejado
e, assim, manter viva sua própria identidade. Essa visão não se reduz
ao escritor em questão, mas foi ele quem melhor soube usar esse tipo
de discurso histórico, pois o saudosismo típico desse momento , início
do século XX, serviu de lema para a região delimitada em suas obras
(SALES NETO, 2005).

Então se a saudade é a certeza de termos vivido bons momentos,


a história aparece como uma aliada dessas lembranças, pois nos dá
certeza de que esses instantes não serão esquecidos, permanecendo
em constante trânsito, na possibilidade que a história tem de sempre
fornecer novas explicações para o passado que os discursos
registraram. No seu diário, Freyre constrói uma memória de seu
passado eternizando os bons momentos de sua vida, para recordá-lo
num futuro incerto. É uma forma de recompor o presente, revivendo
um saudoso passado, transformando-o em saber e em erudição. Essa
obra é a esperança de completar uma vida, um outro tempo, uma 9
sociedade para quando a saudade bater. É uma obra saudosista.

É a partir da experiência histórica pessoal que se resgatam


emoções, sentimentos, idéias temores ou desejos; Os homens
aprendem a sentir e a pensar, ou seja, a traduzir o mundo em razões e
sentimentos através da sua inserção no mundo social, na sua relação
com o outro.

Concordamos com Pesavento, quando nos diz:

Estas preocupações, a rigor, já se encontravam presentes


em Lucien Febvre, quando alertava que os historiadores
não poderiam compreender uma época sem esta
preocupação que chama de psicológica, que é a de ligar
os sentidos dados pelos homens ao mundo com o
conjunto das condições de existência de uma
determinada época. Quando Febvre defendia a
necessidade de recuperar a vida afetiva e as emoções,
introduzindo a noção das mentalidades, quer parecer
que se voltava justamente para o processo mediante a
qual se socializavam os sentimentos, desde os indivíduos
à codificação e institucionalização das emoções coletivas
(PESAVENTO, 2007, p. 14).

As sensibilidades são sutis, difíceis de capturar, pois se


inscrevem sob o signo da alteridade, traduzindo emoções, sentimentos
e valores que não são mais nossos. Elas evidenciam que o trabalho da
história envolve sempre uma diferença no tempo, uma estrangeiridade
com relação ao que se passou por fora das experiências do vivido.

As sensibilidades se apresentam, portanto, como 10


operações imaginárias de sentido e de representação do
mundo, que conseguem tornar uma ausência e produzir,
pela força do pensamento, uma experiência sensível do
acontecido. O sentimento faz perdurar a sensação e
reproduz esta inserção com a realidade. [...] A história
cultural tem se empenhado, entre outras coisas, a
resgatar estas tais sensibilidades do passado, ou as
práticas culturais do sensível, através das marcas que
deixaram nos materiais de arquivo, nas artes, na
literatura (PESAVENTO, 2007, p. 15).

Ou seja, o historiador, ao trazer o passado para o presente


precisa dar a ver esta diferença no tempo, ao recriar uma
temporalidade, distinta do passado e do presente, temporalidade esta
onde estejam contidas as formas de ver e sentir dos homens de uma
outra época.
A saudade em Freyre esta a um passo de se revelar
saudade do que Braudel chamou de tempo de longa
duração, o tempo das estruturas, este tempo que a
despeito da velocidade das mudanças históricas garante
a continuidade e o entendimento entre as diferentes
gerações. E não seria isso o que fazemos nós
historiadores, viver outros tempos em nosso tempo? Não
seria nossa tarefa complexificar nossa temporalidade
colocando-a em contato com outras formas humanas de
viver, pensar e sofrer o tempo? (SALES NETO, 2005, p.
20).

Enfim, sentir saudade é o sentimento mais infeliz que existe, pois


a saudade não tem volta. Saudade que é confundida com expressões 11
como: “até logo” ou “sentir falta”. Mas não, a saudade significa algo
muito mais triste e menos difícil de interpretar: ela significa a perda
eterna. Esta “saudade que inclui a perda do instante que sabemos que
não podemos reter, em que temos que nos contentar em evocar, ou em
apenas registrar a sensação que nos deu, como instante que logo se
desaparece. Recuperar sensibilidades não é sentir da mesma forma, é
tentar explicar como poderia ter sido a experiência sensível de um
outro tempo pelos rastros que deixou. Por fim, estudar as
sensibilidades é um desafio, é ir além, é ter mais duvidas do que
certezas com relação ao passado, talvez resida ai o charme que se
encontra presente em toda aventura do conhecimento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBURQUERQUE Jr, Durval Muniz de. As sombras do tempo: a


saudade como maneira de viver e pensar o tempo e a história. Natal:
2006. Disponível em: http://www.cchla.ufrn.br/ppgh/durval>. Acesso
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http://www.scielo.br/scielo.php?sc ript=sci_arttext&pid= S0102-
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Disponível em:
http://www.bvgf.fgf.org.br/frances/obra/artigos/imprensa/em_defes
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PESAVENTO, Sandra J. Sensibilidades: Escrita e Leitura da Alma.


Sensibilidades na História: Memórias singulares e identidades sociais.
Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007.

SALES NETO, Francisco Firmino. Narrativas da Saudade: Gilberto


Freyre e a escrita de uma História Regional. Revista de Humanidades,
v. 7, nº 18, out/Nov de 2005. ISSN-15183394. Disponível em:
http://periodicos.ufrn.br/ojs/index.php
/mneme/article/viewFile/335/308. Acesso em 07 de julho de 2011.
REFLEXÕES SOBRE O CONTESTADO (1912-1916)

Juliana de Cássia Câmara

O Contestado, movimento social que ocorreu entre os anos de


1912 e 1916, entre os estados do Paraná e Santa Catarina, tem
diferentes abordagens, leituras e interpretações e suscita muitas
indagações.

No entanto, as reflexões acerca deste movimento nos levam a


discutir e analisar não apenas o contexto histórico, mas a importância
do Contestado para o ensino da história. Afinal, porque a história do
Contestado é tão pouco privilegiada pelos livros didáticos? A história 1
de Canudos parece resumir o contexto dos movimentos republicanos;
não se dá relevância nem quando se trabalha a história local.
Paranaenses e catarinenses desconhecem a sua própria história e não
selam com ela um sentimento de pertença e de identidade.

A historiografia do Contestado, por longos anos deixou de


privilegiar o sertanejo, enquanto sujeito histórico, agente
transformador da realidade social. Muitos são os discursos sustentados
pela historiografia tradicional. Assim como Canudos, Juazeiro,
Caldeirão, Pedra Bonita, o Movimento do Contestado foi encarado
como um fenômeno extra-histórico, resumido a atos de banditismo e
fanatismo.

Contudo, o que levou o sertanejo, a lutar e defender a sua terra,


as suas tradições, o seu povo, os seus costumes? Como nos lembra
Carvalho (1998) porque a força da tradição?
Para compreender a história do Contestado é preciso analisar o
contexto republicano no Brasil e o significado da modernidade. Afinal
porque a República representava a superação do velho e do arcaico,
‘espelhos’ do Império?

A República, regime que se impôs em 1889, após a queda do


gabinete de Ouro Preto, último do império, representava o novo, o
progresso. Fruto da necessidade da modernidade, de superação da
monarquia e da mão de obra escrava, ela tinha como papel constituir a
nação e identidade ao país. Mas que República era essa? Sobre que
modelos e influências ela foi pensada? Qual o seu conceito?

Segundo Mendonça (2009), sobre o conceito de república é


preciso pensar nas várias e diversas experiências republicanas que se
deram no espaço e no tempo e que envolveram diferentes grupos 2
sociais.

Na república dos antigos, Cícero utilizava o termo res publica


para indicar o bem comum, a coisa pública, o que é do povo, da
comunidade.

No Brasil, como nos lembra Carvalho (1998) há uma engenhosa


combinação entre os modelos clássico (que não pressupõe trabalho),
americano (que prevê liberdades individuais, sendo a coletividade o
Estado) e francês (que pressupõem a ordem e o progresso).

No entanto, a república que viria para salvar os descaminhos do


Brasil imperial, não gera cidadania. Quantos dos cidadãos civis eram
também cidadãos políticos, poderiam votar naquela época? Ex-
escravos, caboclos, sertanejos, preferem a monarquia, a sofrer os
descaminhos de um Brasil republicano, de uma realidade que lhes é
desconhecida e que não promove o bem comum e a igualdade de
direitos.
A República não traz transformações significativas à sociedade
brasileira. As estruturas rural, patriarcal e hierárquica ainda
permanecem. Estradas de ferro construídas com dinheiro estrangeiro
que parecem dar ares de modernidade, só aumentam a dependência do
país com o mundo exterior. Muitos ainda trabalham sob o regime
escravo. O analfabetismo, as desigualdades, só aumentam as diferenças
sociais. E o moderno ...

O que era o moderno na República? Ex-escravos, mestiços, índios


eram tratados da mesma maneira? Todos eram iguais perante o estado
e a lei?

O projeto imigratório responde essa questão. As vantagens da


população imigrante estavam não apenas por serem considerados
afeitos ao trabalho, uma gente morigerada, mas pela crença de que por 3
meio da eugenia, o sangue limpo e civilizado do branco melhoraria a
raça brasileira e constituiria a nação.

Muitos são os estudos que procuram atestar a inferioridade do


negro e do mestiço para constituir a nação. O racismo que surge na
segunda metade do século XIX, explica bem essas diferenças. Segundo
Ramos (2002) tomava-se por base o estudo “dos costumes e práticas
dos povos primitivos, a medição de crânios e a análise do tamanho e
formato dos cérebros” (p. 141). A teoria do branqueamento desejava a
vitória da raça branca no país, excluindo o negro e o mestiço do projeto
de nação, pois a miscigenação era vista como uma doença, que
provocava a degeneração do povo.

O índio que pelo viés da ciência não era capaz de compor a


civilização, ganhava no meio literário um trajeto contrário. Segundo
Santos (2002) era muito comum na tradição antropológica do século
XIX, apoiar-se em estudos de craniologia para inferir atributos morais
e intelectuais as pessoas. Para os índios,
[...] se as características cranianas (“a porção do
órgão pensante atingia proporções diminutas”) e
dentárias (“cunho de animalidade impresso na
dentadura”), já evidenciavam, para Lacerda,
condições biológicas intrínsecas de inferioridade
[...]. (p. 116)

Já Roquette Pinto, que assim como Lacerda trabalhava a serviço


do Museu Nacional, defendia a mestiçagem, pois não via nada de
decadente no povo mestiço. Via a necessidade de organização no país,
de adoção de políticas corretas para construir a nação. Era necessário
investir na educação e na saúde. Educar os sentidos.

Mas a República usou também métodos menos


violentos para lidar com seus excluídos. Produziu 4
missionários do progresso que se puseram a
catequizar os cidadãos incultos e tratar os doentes.
Foram missionários do progresso Pereira Passos,
reformador do Rio de Janeiro, Osvaldo Cruz,
saneador da cidade, Artur Neiva e Belisário Pena,
saneadores dos sertões. (Carvalho, 2005, p. 24)

O discurso médico e jurista também tinha muito peso na questão


da modernidade. Os juristas viam na lei a possibilidade de superar as
desigualdades sociais, mas os médicos apoiados na ciência tendiam a
refutá-la.

Mas o que de moderno, ou de possibilidade de moderno, tinha o


sertanejo do Contestado?

Segundo Lazarin (2004), os “fanáticos” do Contestado, termo


muito utilizado nos relatórios militares, por serem considerados
bárbaros, primitivos, ignorantes e desumanos, eram incapazes de
constituir civilização, eram uma grande ameaça a realidade política do
país e a ordem pública. Não são modelos para uma sociedade que
prima pela ordem e pelo progresso.

O militar D’Assumpção, em seu relatório, a fim de aguçar o


imaginário popular com sua escrita, fala no que lhe parece mais ‘real’
sobre a gente do contestado.

Choupanas de miserável aspecto, cujos moradores


eram mulheres desengonçadas, andrajosas, de
cabellos arrepiados, hirsutos, em completo
desalinho, e de rostos macilentos, nos quaes se
estereotyvam os vestígios inilludíveis da
desventura; as crianças, nuas, sujas, muito magras,
amedrontadas, olhavam-nos por entre as grandes 5
frestas das tristes choças... os homens, madraços
habitues, indolentemente recostados nas pedras ou
nos barrancos próximos, indifferentes ao aspecto
desolador de seu lar, observavam-nos com
curiosidade, espreguiçavam-se ao sol e não
pensavam no trabalho... (Lazarin, 2004, p. 155)

A população do Contestado, assim como de Canudos, incitavam a


teoria do branqueamento, a eugenia, a necessidade de modernidade,
pois nada de moderno esses espaços tinham.

E é, portanto, que a reação maior contra a “modernidade” se dá


no espaço rural, dominado pelo paternalismo, pelo trabalho semi-
servil, pelos grandes proprietários de terra, pelos coronéis, que davam
sustentação ao governo federal e a república oligárquica.

A modernidade era alérgica ao povo do Contestado. Ela tirava


suas terras, de onde tiravam o seu sustento e o valor afetivo para com
elas, pois tinham seus familiares nela enterrados, construíram uma
história de vida, laços de identidade. Ela destituía o seu modo de vida,
as práticas religiosas que ocupavam a vida dos crentes, os costumes e
tradições construídos ao longo dos tempos e passados de pai para
filho.

Como nos lembra Carvalho (2002), no Contestado os valores que


defendiam certas tradições, vão aos poucos sendo destruídos, como as
relações de trabalho antes baseadas no favor e agora nas relações
capitalistas. O direito vivido passava ao direito imposto. Muitas
relações estavam sendo destruídas. Com a natureza, aonde o seu
aproveitamento com a vinda da modernidade passara ao corte sem
freio e sem medida das árvores.

Segundo Facó (1991), “nas condições de isolamento em que 6


viviam, [...], era natural que as populações interioranas criassem seus
próprios conceitos de vida, de organização social, de propriedade, de
moral, etc.” (p. 50)

Por isso, pegar em armas e defender as leis antigas para eles


significava defender o que era justo, o que era um bem, um costume em
comum, e que se defendia na guerra se preciso fosse.

Os sertanejos não brigavam para ter o seu pedaço de terra, mas


para alterar as formas de relações sociais centradas na posse da terra.
São retratados como ‘fanáticos’, porque não estavam integrados a
cultura dominante, mas fora do domínio da religião oficial. Tinham
uma forma sincrética de apoio ao sagrado. A religião era a única
ideologia na qual podiam se agarrar, ela os congregava e lhes dava
visibilidade social.

As mudanças sentidas pelos sertanejos eram tidas como


conseqüências da república, da nova ordem, da modernidade
capitalista. Por isso, o saudosismo a monarquia, não para que
retornassem a esse regime, mas para que seus direitos pudessem ser
garantidos e respeitados.

Pois se tratava da lei do direito vivido, do costume, que fazia


parte da tradição, cultura e história do povo sertanejo.

Thompson (1998), no capítulo Economia moral da multidão


inglesa no século XVIII, lembra os motins pela fome, a fim de
estabelecer e fixar o preço do pão. Comerciantes e moleiros não
compravam mais o grão no mercado aberto, os fazendeiros os vendiam
a outras regiões e os padeiros vendiam o pão a um preço mais alto. Os
camponeses não se alimentavam somente de pão, mas, sobretudo dele.
Contudo, o que pode parecer algo natural nos dias de hoje, era para
eles romper com a lei da tradição e do costume. O que eles procuravam 7
era manter a economia moral, o que não fugisse ao costume, a moral e
a tradição do povo.

A história do Contestado precisa ainda ser revisitada. Quantos


são os paranaenses e catarinenses batizados em poçinhos, que sabem a
ligação dessa prática cultural com a história do Contestado? Quantos já
ouviram a história de um homem que andava pregando pelo sertão
catarinense e paranaense e que quando cansado, parava de casa em
casa, pedindo pouso e um pouco de comida?

A crença nos monges e nas suas previsões, os cânticos, orações e


festas, as relações de compadrio, os batizados nos poçinhos, que se
fazem até os dias de hoje, nos revelam a resistência dessas práticas
culturais ao longo dos tempos, mas desconhecida também por muita
gente.

São necessárias certas mudanças no currículo escolar, que


procurem dar maior visibilidade e importância a história local.
Contudo, cabe também aos professores de história, enquanto
formadores da consciência histórica de seus alunos, reafirmar a
importância da história do Contestado para a construção da história e
identidade humana. Pois para o homem se reconhecer enquanto
sujeito histórico, ele precisa se reconhecer na história, valorizando
também a sua história.

Referências

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República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

___________ Pontos e Bordados: escritos de história e política. Belo


Horizonte: UFMG, 1998.
8
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Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, Ano 1, n. 5, p. 20-24, nov. 2005.

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9
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lingüísticos, históricos e socioantropológicos da formação do povo
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tupiniquim e o imaginário sobre a África no Brasil. IV Colóquio
Nacional de História. União da Vitória: FAFIUV, 2009.
“GAROTOS DO SUBURBIO” – A IMPORTÂNCIA DA MUSICA PARA O
MOVIMENTO PUNK DOS ANOS 80 NO BRASIL

Luis Carlos Colita

O presente artigo busca apresentar aspectos relevantes para um


melhor entendimento do movimento punk no Brasil, o qual teve suas
origens na década de 1970, mas se mostrou mais forte no país na
década seguinte. Para tal tarefa, analiso o contexto histórico que
envolve o objeto em questão nos EUA e Inglaterra enquanto berços do
movimento, e consequentemente o contexto brasileiro, posteriormente
se dará uma análise de algumas bandas nacionais, e para um melhor
entendimento será exposta e analisada uma musica punk como fonte 1
história do inicio da década de 80, se trata da musica “Garotos do
Subúrbio” da banda paulista Inocentes. Por fim, para o fechamento do
texto, haverá uma abordagem sobre os efeitos deste movimento em
seus integrantes e também na sociedade.

Para uma melhor análise e mais coerente, é melhor que


prestemos atenção em seu contexto histórico, pois o punk, não segue
uma vertente somente, política, social, visual ou musical, mas é sim,
uma junção destas. O movimento de que falamos surge nas últimas
décadas de um século que foi muito movimentado, política, econômica
e socialmente. A primeira metade do século XX foi fomentada com
diferentes movimentos políticos contestatórios, baseados em idéias
socialistas, comunistas e mesmo anarquistas. Tais grupos estavam ora
debatendo ora enfrentando republicanos, capitalistas, monarquistas e
ditadores, visando derrubar ou alterar governos, tendo como ideal
promover a “justiça social”. Muitos desses movimentos foram
organizados pelo operariado, que já desde o inicio do século se
mostrava atuante, e reivindicatório. “Já que a fabrica, o local de
trabalho dos assalariados será sempre – enquanto não existir a
robotização total da produção – o centro das relações fundamentais de
dominação e consequentemente o núcleo potencial da resistência ao
capitalismo onde pode germinar uma alternativa social.” (RODRIGUES,
2006, p.26). Os movimentos anarquistas estiveram presentes no Brasil
desde as primeiras décadas do século, se manifestando, principalmente
por jornais que divulgavam seus ideais. (RODRIGUES, 200, p. 14)
admite que historiadores como Rudolf de Jong e Carlos da Fonseca, já
demonstravam que durante o séc. XX o ideário anarquista estava
amplamente implementado entre os grupos operários dos principais
centros operários da época, como Rio de janeiro e São Paulo, no Brasil.
Como relata (GAWRYSZEWSKI, 2009. p.14) as condições dos
trabalhadores das indústrias brasileiras no inicio do século eram duras
como na Europa, e tais condições fomentaram a criação de tais grupos
também aqui, as greves que se deram nesse período demonstram que
2
eles já lutavam por seus direitos desde o início do século, em São Paulo
entre os anos de 1917 e 1920 ocorreram 137 greves, por motivos
diversos entre os principais, condições de trabalho, salário, legalidade
sindical (GAWRYSZEWSKI, 2009. p.14), demonstrando assim o
incomodo do trabalhador paulista, e sua noção de força contestatória.
Para (Rodrigues, 200, pg. 08): “... a situação vivida nos países do
hemisfério sul – com algumas semelhanças com o Leste Europeu onde
a super-exploração, a não satisfação das necessidades básicas e a
flagrante desigualdade social que se traduz num verdadeiro apartheid
social, abrem espaços à continuidade de amplos movimentos sociais
anti-capitalistas.“

Relevante também seria destacar que a luta destes trabalhadores


conseguiu “melhorias” em suas condições de trabalho, como redução
da jornada de trabalho para oito horas diárias, já no inicio do século, no
entanto o Estado foi disciplinando e limitando a força de ação dos
mesmos, reduzindo sua combatividade, regulamentando o poder dos
sindicatos e legislando sobre ações dos trabalhadores. É com essa
realidade que o trabalhador, que se tornaria um Punk, se depara - e
para agravar esta, em meio à ditadura, como no caso brasileiro. O
“Punk”, convive com a sua própria realidade de desigualdades e
exploração. Os movimentos contestatórios e revolucionários já
existiam, como vimos anteriormente, e a arte, musica, e sociedade que
foi palco para esse surgimento, teve sua realidade moldada frente aos
contextos que os nortearam. Quanto aos grupos jovens (NETO, 2001,
p.39) explica: “Num mundo onde a principal forma de comunicação é a
imagem, e onde as identidades sociais são expressas pelo que se
consome, marcar posição através da construção alegórica da própria
imagem foi a saída encontrada pelos jovens para tornar visíveis suas
questões para o mundo e elaborá-las para si mesmos.” O período do
surgimento do punk, é posterior a outras propostas culturais musicais
e políticas, como o Movimento Hippie, este que propunha o caminho da
3
“paz e amor”, frase que se tornou seu lema, no entanto a sonhada paz
não foi alcançada, surge o Punk vem com a idéia de “No future”, sem
futuro, contribuição dos ingleses nos anos iniciais do movimento, entre
1975-76, como explica (NETO, 2001, p. 51). Já no final dos anos 70 o
conteúdo das letras passa a apresentar propostas anti-governamentais,
e, demonstrando esperanças para o mundo, desta vez com um ritmo
mais rápido, é o que será chamado de Hardcore, e terá como um de
seus principais expoentes a banda Dead Kennedys.

Certamente a musica punk foi e é um elemento fundamental na


constituição do movimento, se baseando em ideais de anarquia
enquanto opção de vida e política, de autogestão, de “faça você
mesmo”. Um ideário anarquistas pode conter atitudes ou
posicionamentos como a negação de toda autoridade, amor livre;
contra partidos políticos; negação do Estado e da Igreja; contra
militarismo; educação livre e racionalista; coletivização dos meios de
produção, entre outros (GAWRYSZEWSKI, 2009. p.25-26). Entrevistas
compiladas por Leggs Mcneil e Gillian Mccain, em seu livro “Mate-me
por favor” Vol.1, unem depoimentos de personagens que fizeram parte
de um movimento artístico, que pode ser entendido como primeiros
passos para o que veio a se tornar o movimento punk. Tais
depoimentos demonstram que eram artistas do teatro, da musica,
poetas, que acabaram por criar uma nova cena artística com nova
postura quanto a sociedade que os cercava, mas também quanto a si
mesmos. Entre os entrevistados estão Igg Pop, Jhonny Rotten, ex-
vocalista do Sex Pistols, Lou Reed, foi membro fundador do Velvet
Underground, resumindo, dezenas de pessoas que viram a história do
punk de sua pré-história até hoje. Vivenciaram uma realidade de
revolta contra os padrões de arte existentes, e em um ambiente de
muita droga, sexo e rock’n roll, que foram parte fundamental na
criação de um novo padrão de comportamento artístico. A partir desta
leitura, pode-se interpretar a adesão do movimento por um
4
considerável numero de pessoas, como resultado de um momento de
descontentamento com a realidade artística e política de uma época. O
mundo neste período conheceu a “discoteca”, já havia conhecido o
Rock’n Roll dos Beatles, no caso do Brasil, além desses ainda se somam
a bossa nova, e a tropicália enquanto movimentos musicais surgidos
nos anos 60. Nos E.U.A, no inicio dos 70 já começava a desenhar as
linhas musicais do punk, o Rock estava se tornando algo complexo,
coma as chamadas bandas psicodélicas, com musicas de mais de dez
minutos, e com parafernálias instrumentais e cenográficas de grande
volume para seus shows, era algo profundamente técnico, mas, novas
bandas como o Velvet Underground, New York Dolls e um pouco mais
tarde o The Ramones, traziam de volta a musica rock, mais próximas
de suas raízes, musicas mais simples e mais rápidas, também
apresentações mais simples com menos equipamentos. O grupo The
Ramones, sem dúvida foi um dos que conseguiu aderir elementos que
se constituíram posteriormente como características do punk rock,
como as musicas de “três acordes”, as calças e outras roupas, bem
usadas, e geralmente rasgadas, e para completar, a jaqueta de couro
preta, esse visual é utilizado ainda hoje com bastante freqüência pelos
punks. Se na “terra do Tio San” o punk configurou-se como movimento
musical, é na Inglaterra que ele adquire suas características de revolta,
os jovens londrinos perceberam que neste movimento teriam uma
maneira para expressar sua revolta contra a política da rainha inglesa,
uma das principais bandas que ajudou nesse extravaso foi o Sex Pistols.
Na década de setenta em meio as comemorações do Jubileu de prata da
Rainha Elizabet II os Sex Pistols o ironizavam com “Good save the
queen” (...Deus salve a rainha. Seu regime Fascista. Fez de você um
retardado. Bomba H em potencial...), durante o período de inflação
constante no Brasil, os Ratos de Porão faziam referência com “Plano
furado” (Planejaram febrilmente. O Brasil ia mudar. Congelaram a
pátria amada, botaram as coisas no lugar. Todo mundo, o mundo
inteiro, essa farsa engoliu, o povo se fudeu e o Brasil faliu.), Gritando
5
HC, durante a década de 90, citava a violência cotidiana vivenciada em
SP com “Escuto Tiros” ( Vejo a toda hora a cidade em guerra civil.
Ignorância e armas ascendem o pavio. Fardados e armados reprimem a
população. Políticos corruptos escondem toda a podridão), e os
exemplos continuam. O punk vem a conquistar principalmente os
jovens, em sua maior parte ainda adolescentes, juventude que esta em
busca de sua identidade, formando opiniões a respeito do mundo a sua
volta, mas nem por isso menos conscientes ou críticos. (ERIKSON,
1972, p.234), citado por (NETO, 2001, p.37), complementa:

“os/as jovens precisam sentir-se membros de um gênero


especial, cujos símbolos serão ostentados com vaidade e
defendidos contra aqueles que são inimigos. Nesta fase,
de construção da identidade individual e de busca pela
identificação com um coletivo, o/a jovem faz escolhas
selecionando pessoas e grupos por aquilo que eles
representam.”
Nesse contexto os Punks buscaram chocar a sociedade, através
de sua arte e atitude, suas roupas eram ofensivas para a maior parte da
sociedade, as letras das musicas atacavam diretamente o alvo,
“tocavam na ferida”, o som era incomodo, barulhento, como a
sociedade naquele momento era para eles, insuportável.

O elo mais forte de divulgação do punk para o mundo partiu da


Inglaterra, e parte do sucesso disso se deve a Malcon Mclaren, dono da
loja Sex, juntamente com sua esposa Viviene Westwood, estilista,
juntos eles ditaram uma nova moda. O Sex Pistols, banda criada por
Mclaren, acabou por divulgar o movimento punk para o mundo,
através do choque causado pelas roupas, e cortes de cabelo dos
músicos, mas principalmente, pelo comportamento deles, e pelas letras
destemidas de suas musicas. Seus idealizadores tiveram sucesso na
divulgação de sua moda, porém mais que isso, os adeptos do 6
movimento, os fãs dos “Pistols”, começaram a criar suas próprias
roupas, popularizaram o uso de roupas usadas, rasgadas, e acessórios
exóticos, como correntes e arrebites. Para (OROSCO, 2010. In:
http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/tres-decadas-de-faca-
voce-mesmo/):

“A filosofia punk era a do “se você não gosta do que


existe, faça você mesmo” – ou, simplificando, o lema “do
it yourself”. E os punks de primeira hora começaram a
criar suas próprias artes plásticas, suas próprias roupas
diferentes, seus próprios discos (dando início a um real
sistema de gravadoras independentes) e suas próprias
publicações (revistinhas xerocadas chamadas fanzines).

A divulgação do que viria a se tornar o “movimento punk”, pelo


Sex Pistols, fez popularizar outras bandas inglesas, também bandas
americanas, em um momento inicial. Porém tal divulgação, nem
sempre pela mídia, fez o “movimento” ser conhecido e aderido pelo
restante do mundo, e o contexto social, foi crucial para o aparecimento
do movimento em outros lugares.

No Brasil o movimento eclodiu em São Paulo, ou ao menos, foi


onde ele teve maior força e representatividade no inicio do punk
nacional, apesar de os punk’s do Distrito Federal, reivindicarem para lá
o inicio do movimento, como é demonstrado em depoimentos no
Documentário “Botinada” de Gastão Moreira sobre o Punk no Brasil,
por terem aparecido em Brasília os primeiros LP’s das bandas punks
estrangeiras. Jovens paulistas que já possuíam um comportamento dito
“revoltado”, encontraram, neste movimento espaço para por tal revolta
para fora. São Paulo foi um dos principais pólos industriais no Brasil,
não é a toa que foi lá que surgiu o movimento no país. Ainda na década
de 70 surgiram os primeiros punks paulistas, os quais faziam parte de
gangues, que eram muitas em SP, as quais estavam em constante 7
conflito (NETO, 2001, p. 70), outros optaram pelo caminho musical, e
deste grupo é que busco falar neste artigo. Nas palavras de Zorro da
Banda M-19 (Doc. BOTINADA, 2006), “ ... você é subproduto de uma
sociedade que te oprime, que é violenta, e tira tudo que você poderia
ter direito. O Punk propõe “destruir” para depois reconstruir com
dignidade....” . No mesmo documentário, Pierre da banda Cólera afirma
“... o punk não era somente um protesto contra a política, mas também
contra a música que se estava fazendo na época...”. Parte da rivalidade
dos punks paulistas, se dá por que os punks do ABC Paulistas estavam
mais aptos a lutar literalmente por suas opiniões, e os chamados
“punks do centro” estavam mais interessados no aspecto musical do
movimento. Lembro ainda que neste contexto, os punks brasileiros
surgem em meio ao período de ditadura militar no país que foi de 1964
à 1985, toda a população do país estava a mercê das vontades dos
militares, manifestações políticas contrarias ao regime eram proibidas,
opositores foram perseguidos e mortos, os diferentes meios de
comunicação e artísticos eram submetidos a censura prévia de tudo
aquilo que fossem promover.

Feitas as considerações quanto ao contexto, podemos passar a


analisar a fonte, “Garotos do Subúrbio”, é uma musica da banda
Inocentes, fundada por Clemente Nascimento, vocalista e guitarrista,
que é também autor desta música em questão. Clemente cresceu em
uma vila operária em SP, juntamente com seus amigos, dos quais
muitos também optaram pelo punk como ideologia de vida, fez parte
de outras bandas antes do Inocentes em 1978 Restos de Nada
(primeira banda punk nacional), em 1979 Condutores de Cadáveres, e
finalmente o inocentes em 81, todas essas bandas, pelo contexto onde
estiveram inseridas, pelo conteúdo de suas letras, foram de grande
importância para os primórdios do Punk no Brasil. A minha escolha
por esta fonte, se deu devido à importância também desta banda 8
através das letras de suas musicas e a relação com a ideologia do
movimento. Esta musica esteve presente no primeiro LP punk do
Brasil, o “Grito Suburbano”, disco de 12´´ e 45 rpm, que se trata de uma
coletânea com as bandas: Inocentes, Cólera e Olho Seco, (as três ainda
estão em atividade) cada uma com quatro faixas. Este tipo de parceria
era e ainda é muito comum no cenário musical punk nacional, pois a
produção de um disco não é barato, assim dividem-se os custos, e
pode-se ter um trabalho de divulgação com mais facilidade. Tendo um
material para mostrar, as bandas poderiam se divulgar até mesmo para
outros países. Como comenta (BIVAR, 2007, pg106) a
intercomunicação autônoma via correio entre punks do mundo inteiro
permitiu a troca de materiais de promoção do punk enquanto
movimento e também como manifestação musical, trocavam-se fitas
K7, zines, fotos, etc. Mesmo sendo um produto vendável na época em
que surgiu o punk também se manteve underground, alternativo, e
autônomo, mantendo espaço para novas bandas. As bandas que
fizeram parte do “Grito Suburbano”, e várias outras participaram do
festival punk "O Começo do Fim do Mundo” em 1982, um evento
grandioso que tinha por intuito divulgar o movimento, e uni-lo. Contou
com palestras e exibição de fotos sobre o movimento, o evento teve
grande cobertura da mídia e aconteceu no SESC – POMPÉIA em SP. Se
encerrou com a chegada da polícia, que foi chamada pelos vizinhos do
SESC. Como resultado, o país ficou sabendo da existência desse
movimento, e de sua proporção, o jornal americano Washington Post,
chegou a citar o evento como “Woddstock Punk” (BARCELLOS, 2009, p.
129). As musicas, por sua vez, acabaram por divulgar toda a ideologia,
e ponto de vista punk sobre vários assuntos como política, religião,
injustiça, ou justiça.

Os músicos punks falavam de sua realidade, daquilo que não


querem para suas vidas, ou do que foram obrigados a aceitar, e o
mesmo vale para o Brasil. “Garotos do subúrbio” fala de uma realidade 9
nacional. Muitas dessas músicas foram censuradas e encontros punks
não eram fáceis de promover. Como relatou Clemente (Doc.
BOTINADA, 2006) em 1982, durante um festival punk na PUC, com
parceria do DCE, que por sinal era anarquista, a policia teria ateado
fogo no prédio, visando prejudicar a imagem no movimento e também
dos estudantes, e conseguiu, “os jornais noticiavam, que anarquistas
haviam incendiado a Universidade”.

Para se proceder a analise da musica à dividirei em partes. A


simplicidade de acordes é uma característica das musicas punks, letras
conscientes, agressivas e algumas vezes irônicas fizeram parte desse
cotidiano. A musica precisava chocar, chamar a atenção, falar de algo
que outra pessoa, a não ser um punk, falaria, ainda mais em uma época
de repressão. “Garotos do Subúrbio” pode ser tocado com apenas três
seqüências de notas as do primeiro verso se baseiam em E(mi) C(dó) e
D(ré), e do segundo verso e refrão E(mi) , D(ré)/C(dó) D(ré) e com um
intervalo em C(dó) D(ré) B(si).
Garotos do Subúrbio

Vagando pelas ruas tentam esquecer


tudo que os oprime e os impedem de viver.
Será que esquecer seria a solução
pra dissolver o ódio que eles tem no coração.
vontade de gritar... sufocada no ar
O medo causado pela repressão
Tudo isso tenta impedir os garotos do subúrbio de existir

Garotos do subúrbio, garotos do subúrbio.


Vocês, vocês, vocês não podem desistir.
Garotos do subúrbio, garotos do subúrbio.
Vocês, vocês, vocês não podem desistir de viver
10
A aparente simplicidade, também se mostra na letra da musica
nos primeiros versos: vagando pelas ruas tentam esquecer tudo que os
oprime e os impede de viver/será que esquecer seria a solução pra
dissolver o ódio que eles tem no coração. Neste trecho se percebe a
presença de rima, a qual nem sempre esta contida neste tipo de
musica, uma vez que o punk foge de padrões técnicos, o trecho deixa
claro que a musica pretende chamar o morador dos subúrbios, os
trabalhadores desse subúrbio, ou os jovens desse subúrbio, ela assim
como outras musicas servem pra quem se identificar com elas. Na
segunda parte: Vontade de gritar sufocado no ar / o medo causado pela
repressão. Tudo isso tenta impedir os garotos do subúrbio de existir.
Remete-se ao contexto em que a musica esta inserida, época da
ditadura, repressão de opiniões de ações, “tenta impedir os garotos do
subúrbio de existir” pode ser uma representação de idéia de que os
jovens querem ter voz e precisam ter voz. Prova disso é que os
fundadores e adeptos do punk eram em sua maioria jovens, e a maioria
dos manifestantes que protestavam nas ruas por diferentes motivos
também eram jovens em diferentes momentos históricos. Jonh Savage
(autor de England’s dreaming, um dos principais livros sobre o
movimento punk) respondendo sobre a explosão do punk para a
revista CULT afirmou que “a ideologia punk mais coerente era
anarquia verdadeira, ou seja, autodisciplina e regras pessoais no lugar
de regras extremas’ (OROSCO, 2010. In:
http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/tres-decadas-de-faca-
voce-mesmo/). No refrão da musica, ( Garotos do subúrbio
vocês,vocês,vocês não podem desistir de viver), mantém-se o enfoque do
restante da musica, suas frases estão claramente chamando a atenção
dos jovens que moram em regiões menos privilegiados que devem
buscar o que acharem melhor para sua vida.

De forma relativamente simples, com poucos acordes, com uma 11


letra curta e também simples, mas com muito conteúdo os Inocentes
buscaram falar de sua vivencia e do cotidiano em que se vivia nas
periferias. A musica em questão, bem como as outras musicas da cena
punk, se destinavam a atingir os ‘punks’ brasileiros e demais jovens
que se identificassem com a revolta presente no movimento. Relembro
que o contexto em que o punk nacional surgiu, foi o da ditadura,
professores, políticos, lideres sindicais, toda a sociedade foi reprimida,
foi imposta a lei dos militares, quaisquer idéias contra ela eram
barradas, censuradas muitas vezes com violência, talvez esteja nessa
violência , a razão que justificaria a ‘violência’ figurativa e real que o
punk representou, e que com a musica e atitude externou. A ideologia
foi uma maneira para se impor contra a realidade que estes jovens
estavam encarando. A base da revolta do punk é contra o capitalismo e
contra a repressão, limites e moldes que ele impõe ou nas palavras de
Jonh Savage (OROSCO, 2010. In:
http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/tres-decadas-de-faca-
voce-mesmo/ ), ‘um anarquista não reconhece ninguém nem acima
nem abaixo dele’, e quanto a Anarquia Bakunin citado por (BIVAR,
2007, pg. 117) já dizia, “Anarquia é uma sociedade de iguais e livres...
Proponho a abolição do Estado, o qual até agora só conseguiu
escravizar, perseguir e corromper o ser humano com o pretexto de
moralizá-lo e civilizá-lo”. Se durante a ditadura militar também surgiu
movimentações da MPB, ou ainda grupos que buscavam uma ditadura
do proletariado, o movimento punk tinha a alternativa do anarquismo
que fugia as conseqüências desta outra ditadura se baseado na
experiência da URSS. “A experiência soviética para o anarquismo, no
mínimo demonstrou que a utilização da ditadura do proletariado como
estratégia política, enquanto etapa necessária para o atingimento do
comunismo, possui a mesma vertente repressora autoritária da
democracia burguesa” (BOTELHO, 1997, pg29-30). Ainda para este
autor a transição para o anarquismo ou para o comunismo não seria
possível sem derramamento de sangue “porque o homem não tomou o
12
amor como a melhor arma de promover a evolução da humanidade
como idealizava Tostoi.” (BOTELHO, 1997, pg50).

Muitos destes então jovens da década de 70 e 80 que estavam


iniciando o movimento, ainda hoje persistem, seguindo a ideologia,
outros com suas bandas continuam tocando por todo o Brasil e pelo
mundo. Algumas dessas bandas dos primórdios que ainda estão na
ativa como os Garotos Podres, Cólera, Olho Seco, Inocentes, etc. Muitos
dos punks daquele tempo não o deixaram de ser, viraram professores,
operários, advogados, bancários, etc. O próprio Clemente do Inocentes
trabalha como apresentador do programa showlivre.com. Redson
(1962-2011), vocalista do Cólera, que continuava trabalhando com
arte, em 1998 foi responsável pela parte musical de opera punk
intitulada: “Existe alguém mais punk do eu?” e ambos paralelamente as
suas profissões mantém o compromisso com suas bandas e
consequentemente com o punk. Por mais que o punk tenha sido
vendável enquanto estilo musical e moda na Inglaterra, nos EUA, no
Brasil e em outros paises, o compromisso de seus adeptos foi com
ideologia, mesmo que tenham em algum momento sido afetados pelo
Capitalismo.

Para muita gente o punk já morreu e desde sempre as letras vem


dizendo “Punks não morreram”- Gritando HC, “Punks not dead” –
Exploited, “O punk rock não morreu” – Lixomania, entre outras. A
própria cena atual demonstra a presença do movimento, basta
procurarmos na internet para ter uma idéia do numero de bandas
deste estilo no pais, e também de sites que discutem, explicam ou
debatem o assunto. Apesar de os pontos de explosão do movimento
surgirem na região de São Paulo ele se espalhou por todo o Brasil
demonstrando que a atitude de divulgação autônoma de seus ideais
também eram executados aqui.
13
O estilo punk não é mais exclusividade dos adeptos do
movimento, o próprio corte de cabelo moicano que o punk ajudou a
popularizar, que na década de 70 serviu para chocar a sociedade hoje e
com freqüência visto na cabeça de jogadores de futebol. Os arrebites
em cintos e roupas, cabelos coloridos e com cortes exóticos, também
musicas com palavrão nas letras, podem ser considerados parte de
uma herança do que foi o movimento punk nacional. As roupas estão
nas vitrines das lojas exibindo cortes despojados, com furos e rasgos já
de fabrica. Os piercings se popularizaram entre todas as classes sociais.
Porem, a musica punk continua sendo punk. As bandas que tem maior
público em suas apresentações hoje em dia, no país e fora dele, são
bandas que ficaram consagradas na primeiras década do movimento. A
música continua contestatória, barulhenta e continua “incomodando”.

A ideologia encontrou outros caminhos com a evolução da


tecnologia para ser compartilhada. Se desde a década de 80 os fanzines
cobrem e divulgam a cena punk nacional, segundo afirma (BIVAR,
2001 pg 98), hoje se tem o advento da internet. “O faça você mesmo
punk, nascido a três décadas, pode ser traduzido pelas três leis da siber
cultura: emissão, conexão e reconfiguração” (LEMOS, 2010. In:
http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/cibercultura-punk/),
apesar de considerar que o movimento punk já acabou, reconhece
aspecto da atitude punk nas diferentes ferramentas existentes no
universo da internet, para reprodução articulação debates e
compartilhamento de informação, para ele “...o mote punk atualiza-se
em: dê sua parcela para modificar a cultura vigente. Esta modificação
não é aniquilação nem simples substituição, mas reorganização e
convivência de formatos midiáticos: jornal on-line e impresso, espaço
urbano e redes, podcast e radio, tv e web, amigos de bar e MSN.

Neste contesto Ariel da banda Invasores de Cérebro citado por


(BIVAR, 2007, pg.156) afirmou que “já que o punk quer destruir essa
sociedade, o governo, a auto gestão é a solução”...”nós, punks, estamos 14
do lado de todo mundo que quer lutar. Não resta duvida que a
revolução esta a caminho”. É fato, no entanto, que o anarquismo não foi
implementado, que o capitalismo continua dominando o pais, que o
Brasil ainda é um pais “republicano”, o fato é que somos um dos países
que mais perde com corrupção, a educação continua deficiente e ainda
falta emprego para a população, sem falar que os trabalhadores no país
penam por melhores salários. Sendo assim existe muito chão para
alcançarmos a igualdade e união sonhada pelo movimento, os jovens
continuam tendo revolta para por pra fora e tem na musica punk uma
alternativa para isso. Não é toda a sociedade que foi afetada pelo
“movimento”, mas poderíamos dizer que seu maior legado esta na
mudança proporcionada nas pessoas, que foram sim, afetadas por sua
ideologia. A mudança de uma sociedade só será possível se as pessoas
que estiverem nela inseridas à quiserem e nela acreditarem.
REFERÊNCIAS

BARCELLOS, J. A de. Musica e Imagem: o movimento punk e seus desdobramentos


– década de 1990. Tese de mestrado.São Paulo. PUC, 2008

BIVAR, A. O que é punk. São Paulo. Brasiliense, 2007.

BOTELHO, A. J. Toques anarquistas: contribuição para uma visão de mundo


alternativa. Manaus, 1997.

BOTINADA: A origem do punk no Brasil. Documentário. Gastão Moreira. ST2,


2006.

GAWRYSZEWSKI, A. Imagens Anarquistas: análise e debates. Londrina. UEL,


2009.

LEMOS, A. Cybercultura punk. Revista Cult. 2010 In: 15


http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/cibercultura-punk/

MCNEIL, L; MCCAIN, G. Mate-me por favor.Tradução: Lucia Brito. Porto Alegre.


L&PM, 2010.

NETO, N. T. Enterrado, mas ainda vivo: identidade punk e território em Londrina.


Dissertação de Mestrado. Presidente Prudente. UNESP, 2001. In:
http://www4.fct.unesp.br/pos/geo/dis_teses/01/01_necio.pdf

OROZCO, M. Três décadas de “faça você mesmo”. Revista Cult. 2010 In:
http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/tres-decadas-de-faca-voce-mesmo/

RODRIGUES, E. O Anarquismo Hoje: uma reflexão sobre o movimento libertário.


2006. In: www.ceca.org.br/edgar/anarkp.html

SAFATLE, V. Reforma e forma-mercadoria. Revista Cult. 2010. In:


http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/revolta-e-forma-mercadoria/

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