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INSTITUTO DE ARTES
CAMPINAS
2018
DHIEEGO CARDOSO DE ANDRADE
CAMPINAS
2018
Agência(s) de fomento e número(s) de processo: CAPES 88882.180254/2018-01
COMISSÃO EXAMINADORA DA DEFESA DE MESTRADO
MEMBROS:
Aos professores doutores Rafael dos Santos, Zé Alexandre Carvalho e Raphael Ferreira
da Silva pela leitura atenta do nosso trabalho durante as bancas de qualificação e de defesa.
Suas contribuições instigantes foram valiosas aos nossos estudos.
Aos músicos Tutty Moreno, Rodolfo Stroeter e André Mehmari por gentilmente nos
cederem um tempo de entrevistas imprescindível para a discussão aqui proposta.
Aos colegas pesquisadores Luiz Guilherme Sanita, Hélio Cunha e Guilherme Marques
pelas conversas enriquecedoras e as importantes sugestões de bibliografias.
Ao querido Giba Favery por todas as vivências em sala de aula, congressos e demais
processos envolvidos na empreitada do mestrado em música.
Aos meus pais Adilson e Zezé e meu irmão Rafael pelo amor e presença acolhedora de
sempre.
Resumo
Palavras-chave: Moreno, Tutty 1947-; Bateria (música); Música Brasileira; Melodia; Bateria
Melódica; Música – Análise, apreciação;
Abstract
The present study investigates the musical patterns of Brazilian drummer Tutty
Moreno, based on the analysis of his second solo album called Forças D'Alma (1998). The
objective is to verify if that drummer has taken over a rhythmic-marking-free function of
playing, as opposed to what is usually associated with the drummers. To do that, the concept
of melodical drumming approach is discussed. The cross-reference between the data
originated from transcriptions and musical analysis, as well as testimonials from the oral story
along with the referenced literature compose the basis of the hereby proposed research. The
concept of musical stability produced by drums in contexts of Brazilian instrumental music
and jazz was also discussed. Moreno's classification as a melodic drummer was also
considered.
Keywords: Moreno, Tutty 1947-; Drumset; Brazilian Music; Melody; Melodical Drumming,
Music Appreciation
Índice de ilustrações:
Introdução.............................................................................................................................................12
3.1 - O Disco Forças D´Alma (1998) – Nossos Critérios de Escolha para Análise...............................92
3.2 – Os padrões musicais brasileiros para o instrumento bateria e a abordagem rítmica de Moreno...94
3.4 – A escolha de timbres como reação ao conjunto sonoro – Abordagem melodicamente orientada de
Moreno..................................................................................................................................................120
3.5.1 – A melodia como referência interna nas elaborações contrapontísticas de Moreno para
o Baião...................................................................................................................................130
3.5.2 – A melodia influenciando as escolhas tímbricas de Moreno em A Lenda do
Abaeté....................................................................................................................................138
Referências..........................................................................................................................................150
Introdução
Parte daquilo que deu origem ao instrumento bateria está ligado à dança. Desde seu
surgimento no começo do século XX, este instrumento tem desenvolvido uma trajetória
íntima com o conjunto de capacidades necessárias para mover corpos e mentes através dos
sons, algo que é típico da música. Há um momento em que a bateria passa a fazer parte de um
tipo de música feita mais para ser escutada do que dançada. Mas ainda assim, ela continua
carregando consigo aquelas capacidades que a popularizaram enquanto um instrumento de
marcação rítmica para a dança. O jazz norte-americano tem sido este tipo de música na qual
os performers da bateria têm desenvolvido uma série de combinações e usos cada vez mais
criativos e expressivos que, com o passar do tempo, têm sido capazes de tencionar os
parâmetros que distinguem a música feita para dançar daquela feita para se escutar. É evidente
que os resultados destes processos são bastante singulares de maneira que uns tendem a
padrões musicais mais próximos da dança e, portanto, parecem ser percebidos como estáveis,
enquanto outros se afastam dela ao sinalizarem estruturas sonoras aparentemente instáveis.
É neste contexto que situamos o baterista brasileiro Tutty Moreno. Dono de um estilo
muito particular de tocar a bateria, ele despertou nosso interesse pelo modo como organiza
seus padrões musicais que, a nosso ver, pareciam fazer referência a estruturas sonoras
instáveis. Assim, procuramos responder à seguinte pergunta: será que Moreno assumiu uma
maneira de tocar desprendida da função de marcação rítmica comumente associada aos
bateristas? No intuito de verificar se ou em que grau isto aconteceu, passamos a fazer um
levantamento acerca da produção musical deste baterista.
Não foi somente a sonoridade de Moreno que inspirou nossa investigação, mas
também sua trajetória profissional. Como um experiente músico com mais de cinquenta anos
de carreira, este baterista atuou ao lado de uma grande quantidade de artistas brasileiros em
gravações e apresentações ao vivo. Ele gravou discos bastante conhecidos, como Expresso
2222 (1972) e Gilberto Gil ao vivo (1971), de Gilberto Gil; Transa (1972) e Araçá azul (1973)
de Caetano Veloso; Sinal fechado (1974) de Chico Buarque; Cantar (1972) de Gal Costa;
Caetano e Chico, juntos e ao vivo (1972) de Chico Buarque e Caetano Veloso; Drama (1972),
Álibi (1978), Mel (1979) e Nossos momentos (1982), de Maria Bethânia; Jards Macalé (1972),
de Jards Macalé, entre outros. Além disso, atuou ao vivo ao lado de Raimundo Fagner,
Ednardo e o Pessoal do Ceará, Alcione, Milton Nascimento, Antonio Adolfo, Elizeth Cardoso,
13
Herivelto Martins, Hermínio Bello de Carvalho, Maria Bethânia. Desde a década de 1980 ele
acompanha a cantora e compositora Joyce em apresentações pelo Brasil e no exterior.
Contudo, nos debruçamos sobre a atuação de Moreno a partir da década de 1990,
período em que ele passa a verter a maior parte de sua produção para a música popular
instrumental, além de impulsionar sua carreira solo. Neste período ele grava os discos Pra
Que Mentir (1996) junto ao grupo Quarteto Livre; Ninhal (1996) de Léa Freire; Meu Brasil
(1997) de Teco Cardoso, Pedra Bonita (1997) de Mario Adnet e Forças D´Alma (1998) seu
segundo disco solo.
É justamente sobre este último disco que direcionamos nossa análise musical por se
tratar de um registro em que Moreno realiza uma série de padrões rítmicos cujas
características parecem remeter a formas mais abstratas de conceber a atuação do instrumento
bateria ao realizar acompanhamentos em uma situação de improvisação baseada em gêneros
musicais brasileiros. Na tentativa de compreender tais procedimentos, chegamos ao conceito
abordagem melódica da bateria e o discutimos como uma possibilidade teórica capaz de
lançar luz à maneira de atuação de Moreno. Para isto, realizamos um levantamento acerca da
conceituação teórica das frases rítmicas do samba, já que estas, normalmente, dão origem às
melodias deste gênero musical. Ao discutirmos sobre a referida abordagem de bateria,
tratamos, sobretudo, da ideia de melodia, já que esta tem um papel central neste tipo de
contexto. Contudo, verificamos que, para alguns músicos que se identificam quanto
“bateristas melódicos”, tocar melodias na bateria de maneira similar aos instrumentos de
alturas definidas seria algo distante daquilo a que se referem quando tratam sobre suas
“abordagens melódicas da bateria”. Portanto, propusemos, ainda que brevemente, uma
revisão do conceito “abordagem melódica da bateria” sugerindo o uso “abordagem
melodicamente orientada” por julgarmos se tratar de um modo de tocar mais adequado à
atuação de Moreno nesta investigação, uma vez que as características das melodias e
harmonias servem de critério de escolhas para a elaboração de padrões rítmicos no
instrumento bateria sem a intenção de compreendê-lo enquanto instrumento melódico. Além
disso, estabelecemos alguns paralelos entre a atuação de Moreno e outros dois bateristas
brasileiros (Edison Machado e Airto Moreira), ao compararmos suas organizações rítmicas na
prática de música instrumental brasileira.
Em relação aos dados analisados, nossa investigação se valeu: do material musical
proveniente das transcrições; da análise destas transcrições tendo como fundamentação
14
teórica trabalhos que discutissem, sobretudo, a abordagem melódica da bateria; dos dados
colhidos a partir dos depoimentos de músicos entrevistados.
A interpretação dos dados teve como referencial teórico o trabalho de Jonathan
McCaslin Melodic Jazz Drumming (2015) sendo este fundamental para a sistematização
acerca do conceito abordagem melódica para a bateria. Ainda, o trabalho de Ingrid Monson
Saying Something: Jazz Improvisation and Interaction (1996) forneceu importantes
considerações acerca da montagem do ritmo feita pelos bateristas num contexto de
improvisação jazzística, complementando a visão apresentada por McCaslin, assim como o
fizeram os trabalhos de Ari Hoenig Drumming Technique and Melodic Jazz Independence.
(2011) e Rodrigo Villaneuva Jeff Hamilton's Melodic Approach (2007).
Além disso, as leituras de Leandro Barsalini As sínteses de Edison Machado: um
estudo sobre o desenvolvimento de padrões de samba na bateria (2009) e Guilherme Marques
Airto Moreira: do sambajazz à música dos anos 70 (1964-1975) (2013) forneceram
considerações acerca da discussão sobre um papel mais colaborativo dos bateristas brasileiros
Edison Machado e Airto Moreira no contexto do sambajazz.
Por fim, recorremos a um conjunto de artigos com vistas a fundamentar o conceito
acerca das frases rítmicas do samba. Para isto, a consulta dos trabalhos de Tiago Oliveira
Pinto As cores do som: estruturas sonoras e concepção estética na música afro-brasileira
(2004); de Carlos Sandroni Mudanças de padrão rítmico no samba carioca (1917-1937)
(1996); e de Jason Stanyek e Fabio Oliveira Nuances of Continual Variation in the Brazilian
Pagode Song ‘‘Sorriso Aberto." Analytical and Cross-Cultural Studies in World Music (2011),
foram de grande contribuição para a investigação aqui proposta.
Este trabalho encontra-se organizado em três capítulos. O primeiro deles busca situar o
conceito bateria melódica a partir de nossa revisão de literatura. Deste modo, trabalhos
acadêmicos, métodos de ensino, entrevistas, gravações, transcrições e materiais em vídeo
forneceram um panorama que nos permitiu estabelecer relações entre este conceito e a
abordagem de Tutty Moreno.
O segundo capítulo trata-se de uma elaboração da trajetória biográfica deste baterista a
partir do cruzamento de informações provenientes de fontes primárias – entrevistas por nós
realizadas – com trabalhos acadêmicos, outras entrevistas e livros que nos permitiram
visualizar o contexto sócio-histórico no entorno da atuação de Moreno no período
compreendido entre as décadas de 1960 a 1990. É interessante notar que embora Moreno
tenha feito parte de vários movimentos conhecidos da música brasileira na segunda metade do
15
século XX, há poucas referências a este músico nos trabalhos que analisam estes movimentos
e, em sua maioria, restringindo a participação deste baterista à ficha técnica de discos
importantes do período.
O terceiro e último capítulo debruçou-se sobre o estudo interpretativo da abordagem
melódica de Moreno a partir da análise de procedimentos executados por este baterista nas
faixas A Lenda do Abaeté e A Vizinha do Lado, ambas presentes no disco Forças D´Alma
(1998).
16
Para Berliner (1994) esta função de manutenção do tempo estaria associada à dança e
ao momento de surgimento da bateria nos primeiros anos do jazz norte-americano:
A importância da bateria dentro dos grupos de jazz reflete o valor geral atrelado ao
ritmo na tradição musical afro-americana. Devido ao papel inicialmente comercial
do jazz como um acompanhamento para a dança, a função central do baterista é
manter uma batida (um ritmo) forte e regular dentro da estrutura de tempos e
contagens convencionais. Esta maneira de tocar, relacionada ao contexto dos trap
sets, tem permanecido como parte integral da evolução estilística do jazz ao mesmo
tempo em que esta música movia-se dos salões de dança para os bares e salas de
concerto, onde a escuta séria era a atração principal para o público, e a necessidade
de fazer dançar não mais se impunha sobre a performance. Ao mesmo tempo, as
práticas de bateristas contemporâneos refletem o legado de seus precursores 2
(BERLINER, 1994 apud MCCASLIN, 2015:9, tradução nossa).
Para Berliner, a evolução estilística do jazz parece ter criado condições propícias
para que os bateristas, ao mesmo tempo em que desempenham sua função de mantenedores
do tempo, também apresentem uma forma de tocar descompromissada com a dança. Em sua
tese de doutorado intitulada Melodic Jazz Drumming (2015), Jonathan McCaslin concorda
com Berliner ao afirmar que:
1 Embora tal abordagem melódica seja comumente associada ao jazz, ela também pode ser encontrada em outros
estilos musicais como o caso da música brasileira realizada por Tutty Moreno no disco Forças D´Alma e que
trataremos em maiores detalhes no decorrer deste trabalho.
2 The importance of the drums within jazz groups reflects the general value attached to rhythm in African
American musical tradition. Because of the early commercial position of jazz as accompaniment for dancing, the
drummer's central function has been to maintain a strong, regular beat within the framework of conventional
tempos and meters. The trap sets performance practices have remained integral to the stylistic evolution of jazz
as the music moved from dance halls to nightclubs and concert halls where serious listening was the main
attraction for audiences, and danceability no longer imposed its constraints upon performance. At the same time,
the practices of contemporary drummers reflect the legacy of their early forerunners.
17
McCaslin e Berliner apontam para o fato de que os bateristas passaram a atuar não
apenas na função de mantenedores do tempo, mas também de outra forma. Na tentativa de
compreender esta maneira de se tocar a bateria, McCaslin (2015) realizou uma série de
entrevistas com os performers deste instrumento, além de transcrições e análises musicais que
revelaram uma relação entre os padrões rítmicos utilizados por esses bateristas e as melodias
das músicas executadas. Dessa forma, o termo bateria melódica estaria associado a esta
relação.
3 However, as jazz music developed, the drum set as an instrument, and the creativity and imagination of
drummers themselves, evolved as well. Over the course of jazz history the role and possibilities of the drum set
as a musical instrument developed significantly to the point where the drum set could no longer be considered an
instrument that exclusively “keeps a beat.” Rather, jazz drumming has developed to a point where the drums can
contribute musically to an ensemble at the same level of sophistication and interaction as any other musician or
instrument.
18
Para Ali Jackson Jr., baterista da Lincoln Center Orchestra de Nova York, conhecer
bem a melodia de uma canção fornece ao baterista um contato estrutural com a música. A
respeito disto, declara:
Para John Riley, além do contato com a estrutura da música, a melodia funciona
também como referência de andamento. Enquanto toca uma dada canção, ele se orienta por
uma espécie de “modelo” melódico baseado em um registro desta canção já escutado
anteriormente. Então, antes da performance e durante a mesma, Riley, lembrando-se da
gravação ou cantando para si mesmo a melodia, ajusta o andamento do que está tocando a
partir de uma referência interna (MCCASLIN, 2015:39). A partir desta prática fica evidente
que o baterista precisa memorizar uma grande quantidade de melodias. Contudo, Riley sugere
4 You have to understand the construction of the form, the overall musical concept and how they both relate to
the construction of the melody. In this stage of your development or understanding of how to play the drums in a
jazz context, we definitely have to understand the basic forms: blues form and 32 bar, AABA form and many
others. For rhythm sections those forms are fundamental but then also you have to understand harmonically and
melodically what’s going on within those forms. Then when somebody is improvising or playing a melody then
it all makes sense.
19
que o desenvolvimento destas habilidades não é um exercício típico dos dias de hoje, e que
com o tempo ele pode ser assimilado como parte dos estudos a que o baterista já está
acostumado:
Muitos veteranos diriam para você aprender as letras das canções. Isto fará com que
você se lembre mais facilmente da melodia, além de lhe dar um conhecimento mais
profundo, talvez, para o que a canção é como um todo. Uma coisa que também tem
sido útil é ouvir uma gravação e cantar a melodia da música continuamente do início
ao fim da gravação. Isto tem me ajudado a apreciar as variações que as pessoas
tocam e porque elas o fazem em determinados momentos, de forma pontual, em uma
performance. Isto me dá um contexto para o conteúdo. E quanto mais você faz isto,
menos trabalhoso isto se torna. Mais isto se torna sua segunda natureza. Se eu não
sei a melodia ou se eu perder a melodia, então eu não sei o que tocar. Eu sinto como
se estivesse apenas enrolando. (RILEY, 2011 apud MCCASLIN, 2015:39, tradução
nossa).5
É possível verificar que para estes bateristas a melodia tem sido uma importante
referência musical, já que através dela eles estabelecem contato com a estrutura da música,
com o andamento e com algumas possibilidades de interpretação. Conhecer as melodias das
músicas em detalhes parece ser fundamental para o tipo de atuação que eles desempenham no
jazz.
5 Many old timers would say learn the lyrics to the songs. That will make it easier to remember the melody and
it will also give you some deeper insight, perhaps, into what the song is all about. One thing that has also been
helpful is to listen to a recording and sing the melody of the song continuously from the beginning of the
recording to the end of the recording. That has helped me appreciate the variations that people play and why they
play them at particular exact moments in a performance. It gives me a context for the content. And the more you
do it, the less of a chore it becomes. The more it Just becomes second nature. If I don’t know the melody or if I
lose the melody, then I don’tknow what to play. I feel like I’m just BS-ing.
20
Em seu trabalho intitulado Sayin’ Something: Jazz Improvisation and Interaction (1996),
Ingrid Monson refere-se à prática da bateria melódica dizendo:
Quando os bateristas falam sobre tocar melodicamente, de uma maneira mais básica
estão se referindo ao ritmo das melodias – tanto aquelas que imitam a melodia
principal de uma música quanto às linhas criadas pelos solistas que servirão de
ideias temáticas e que serão desenvolvidas ao serem tocadas em diferentes alturas e
timbres no entorno dos tambores. Além disso, uma grande variedade musical pode
ser alcançada através da execução de uma dada ideia rítmica entre duas ou mais
partes da bateria, estas afinadas de maneira contrastante. (MONSON, 1996, p.61,
tradução nossa).6
6 When drummers speak of playing melodically, at the most basic level they are referring to melodic rhythms –
either those that imitate the melody or the soloist’s line of those that form thematic ideas developed by being
played at different pitches and timbral levels around the drum set. In addition, great musical variety can be
achieved by playing a given rhythmic idea between two or more parts of the drum set tuned in contrast to each
other.
7 Referimo-nos ao uso dos 40 rudimentos (paradiddle, flams, drags, rulos, etc) e das combinações provenientes
“Em outras palavras, tocar na caixa somente a divisão rítmica de uma melodia é o nosso ponto
de partida.” (EZEQUIEL, 2008: 10).
Através desta afirmação Mahoney descreve como se dá este processo de ajuste dos
sons da bateria tendo como referência uma dada melodia. Uma abordagem similar pode ser
8 Often the best approach to soloing is to base it “around” or “on” the melody. Na excellent way to do this is to
sit down and play the melody of a song on the drums, matching the rhythms and pitch changes. This might be
called “orchestrating the melody”. For example, a melody might start on a low pitch and go up, perhaps
beginning on the bass drum and moving up to the toms.
22
Nos dois casos, fica evidente que os autores não estão preocupados com a afinação
exata destas melodias, mas sim com a percepção, de forma aproximada, dos sons graves e
agudos das mesmas para expressá-los na bateria. Ademais, os dois trabalhos destacam outros
parâmetros de análise além das alturas das melodias, na tentativa de sensibilizar os alunos
para uma abordagem mais ampla em relação à prática de bateria.
Mahoney sugere que o baterista teria de aprender novas formas de tocar, caso deseje
experimentar o uso de recursos como bend, por exemplo, (comuns aos instrumentos
tradicionalmente conhecidos como melódicos) em uma orquestração. “Se a melodia se move
entre notas próximas na região aguda, pegue uma baqueta, pressione-a na pele do tom e faça
um bend refletindo as alturas desta melodia”. (MAHONEY, 2004:45). Além disso, este autor
também chama a atenção para a duração das notas das melodias como um fator de
direcionamento no processo de orquestração. "Se há uma nota longa, toque num prato e o
deixe soar pela mesma duração desta nota9.” (Ibid.).
9 If there is a long note, strike a cymbal and let it ring for the duration of that note. If a melody moves slightly
higher in pitch, take a stick, press it into a tom head and “bend” the pitch to reflect the melody (this is not easy as
it sounds).
23
tocar ideias que não são normalmente associadas com os padrões de baquetas ou
outras ideias típicas à bateria. (MAHONEY, 2004:45, tradução nossa).10
Esta sugestão dos autores parece apontar para um caminho de maior interação entre os
bateristas e os demais instrumentistas, pois ao atentar para esses parâmetros mais comuns aos
instrumentos melódicos, os bateristas experimentam outros procedimentos utilizados em
situações musicais evidenciando suas funcionalidades e dificuldades de aplicação.
Neste sentido, tocar melodias que sejam reconhecíveis, ser capaz de expressar uma
composição do repertório de standards de jazz do começo ao fim somente com a bateria,
improvisar utilizando mais variações de alturas, seriam recursos que suplantam as limitações
que tradicionalmente situam a bateria em uma definição estritamente rítmica. Contudo, alguns
bateristas como Ari Hoenig 11 (2011) e Jeff Hamilton 12 (1998) têm proposto em suas
performances alguns meios para rediscutir este papel atribuído à bateria apontando para novos
caminhos de aplicação e prática deste instrumento.
10 Learning to orchestrate the melody will make you think about phrasing like horn players (because they have
to breath between phrases) and will make you play ideas that are not normally associated with sticking patterns
or other drum ideas.
11 Ari Hoenig tocando a melodia da música Billi´s Bounce (Charlie Parker) na bateria realizando o processo de
pressionar as peles para imitar as alturas da melodia desta música. Vídeo gravado para o site Boston Drum
Center em 2011. Link acessado em 25/03/2017 - https://www.youtube.com/watch?v=SctD6hDBphs
12 Jeff Hamilton tocando a melodia da música A Night in Tunisia (Dizzy Gillespie) na bateria realizando o
processo de pressionar as peles para imitar as alturas da melodia desta música. Video gravado para o Modern
Drummer Day - Hudson Music, EUA, 1998. Link acessado em 25/03/2017 -
https://www.youtube.com/watch?v=_xxf97Xzka8&t=0s&list=PLGJLFiOzUHcJF6bayfuGOZsmfqlGq7a6r&ind
ex=22
13 Nos referimos ao artigo Villanueva, Rodrigo. “Jeff Hamilton’s Melodic Approach.” In Percussive
the drumhead of the high tom, in combination with the rest of the kit, Hamilton is able to reproduce most of the
pitches from the original melody, resulting in a unique interpretation of “A Night in Tunisia.”
24
Embora o autor afirme que Hamilton (1996) seja capaz de reproduzir a maioria das
alturas desta famosa composição de Gillespie, ele atenta para o uso da palavra aproximar
devido ao fato de que “uma bateria convencional é incapaz de produzir alturas definidas. Sua
onda sonora é muito irregular, então um dado som pode ser um lá ou lá bemol, dependendo da
acústica, da velocidade da batida, do lugar da batida, etc15.” (Ibid.). Porém, o autor destaca
que ao pressionar a pele dos tambores o baterista “utiliza esta técnica durante todo o solo para
recriar a imagem acústica de vários padrões melódicos presentes no tema16.” (Ibid.)
Ao utilizar a expressão “imagem acústica”, o autor faz referência mais uma vez ao
caráter de aproximação realizado pelo baterista. Da mesma forma como uma paisagem pode
ser registrada em uma pintura e ser compreendida como uma representação do lugar original,
a maneira como Hamilton executa seus padrões sonoros funciona como uma “imagem”
bastante aproximada da melodia original e da composição como um todo. Ao descrever a
afinação das peças da bateria, o autor aponta que o bumbo está afinado próximo à nota sol; o
surdo próximo à nota do; o tom-tom agudo próximo à nota mi; e a caixa também próxima à
nota sol. Contudo, esta melodia não possui apenas essas três notas e, a partir do uso do bend,
o baterista consegue alcançar mais notas ao passo de representar os demais sons faltantes.
(VILLANUEVA, 2007:17).
15 I use the term “approximate” due to the fact that standard drums are unable to produce a definite pitch. Their
sound wave is very irregular, so a given sound can be an A or an A-flat, depending on acoustics, stroke velocity,
placement of the stroke, etc.
16 This technique is used throughout the solo to recreate the acoustic image of various melodic patterns from the
theme.
17 As listeners we have the tendency to “fill in the blanks”; in other words, we tend to use our own experience
with a given melody, such as this jazz standard, and hear the actual theme even when it is played by a typically
nonmelodic instrument.
25
Como Mel Lewis me disse: "Tudo o que estamos fazendo é criar uma" miragem ".
Não se preocupe com como fazê-lo, apenas pense no som que deseja e crie essa
"miragem" para o ouvinte. Pense na bateria como sendo um teclado ou tente apenas
cantar suas alturas e tente imitar as linhas ascendentes e descendentes. Você
realmente fará as pessoas acreditarem, na maioria das vezes, que você está
apreendendo as alturas. De vez em quando, você ainda recebe uma avaliação que diz
que você o faz! (HAMILTON, 2014 apud MCCASLIN, 2015:116). 19
McCaslin aponta para a intenção de Hamilton em fazer uso destas imagens como parte
fundamental de sua prática na bateria. Ainda, esta abordagem endereçada a provocar a
percepção dos ouvintes muitas vezes é utilizada para descrever a atuação de instrumentos
melódicos – o vôo de um pássaro representado por uma passagem com notas tocadas de forma
rápida realizada por flautas, por exemplo – e não ao universo da bateria no qual a constância
dos padrões rítmicos que esta normalmente realiza, direcionam a associação de imagens
apenas para a representação de máquinas estrondosas e ruídos penetrantes. A performance de
Hamilton em A Night In Tunisia (1996) é um “exemplo desta abordagem em que o baterista
manipula as células rítmicas e melódicas, além de fazer referência à estrutura da composição,
de uma forma análoga ao estilo de Charlie Parker.” (VILLANUEVA, 2007:18).
18 Mel Lewis foi um baterista profissional norte-americano que atuou de 1948 à 1990 recebendo 14 indicações
ao prêmio Grammy, tendo recebido o prêmio em uma delas pela atuação em seu disco solo Live in Munich
(1979). Fonte: DVD Mel Lewis and His Big Band. View Video by Arkadia Records, 2007
19 Like Mel Lewis told me: “All we’re doing is creating a ‘mirage.’ Don’t worry about how to do it, just think
about the sound you want to get and create that ‘mirage’ for the listener.” Think of the drums as a keyboard or
just try to sing your pitches and try to emulate the ascending and descending lines. You’ll actually make people
believe, most of the time, that you’re nailing the pitches. Once in a while you even get a review that says you
are!
26
Além disso, não seria apenas em uma situação de solo que o baterista utiliza os
conceitos de orquestração e articulação. Kenny Washington, professor da Juilliard School em
Nova York, parece concordar com as sugestões de Mahoney e Ezequiel ao tratar sobre como a
articulação das melodias orientam suas escolhas musicais:
Se a nota tocada pelos sopros for uma semínima seguida de uma pausa de colcheia, e
em seguida uma colcheia ligada a uma mínima, então aquela semínima será curta, ou
poderia ser uma semínima gorda. Então, pensando naquela primeira semínima, os
bateristas não a tocariam no prato de condução, porque o prato vai ficar soando.
Logo, tudo depende da articulação que os sopros estiverem tocando. Poderia ser uma
semínima em staccato ou uma semínima gorda. O baterista tocaria esta semínima na
caixa, pois o som seria curto. Porque a caixa possui um som curto e não o sustenta
da forma como o prato de condução faz. Este seria utilizado em um som longo que
necessite soar por mais tempo. Tudo é uma questão de notas curtas e longas.
(WASHINGTON, 2011 apud MCCASLIN, 2015:43, tradução nossa).20
Se um baterista tocou Mary Had a Little Lamb nos seus tom-toms e na caixa
alterando a superfície de tensão da pele com seu cotovelo (o que é um tipo de truque
antigo) e a reação for “esta é a maior bateria melódica que eu já ouvi”, eu diria que
discordo. Porque tocar Mary Had a Little Lamb não significa nenhuma profundidade
melódica ou algo do tipo. Isto é apenas o fato que as afinações podem estar
aparentes no instrumento de percussão. Você não pode dizer que isto não é uma
melodia, mas ao mesmo tempo eu não acho que isto é que queremos dizer aos nos
20 If the note played by the horns is like a quarter note followed by an 8th rest, then an 8th note tied to a
half-note, now that quarter note is going to be short or it could be a fat quarter note. So that first quarter note,
they wouldn’t play that on the ride cymbal, because the cymbal is going to ring. So it all depends upon the
articulation of what the horns are playing. It could be a staccato note or it could be a fat quarter note. He’d play
that quarter note on the snare drum because it’s going to be short. Because the snare drum is short it doesn’t
sustain but the ride cymbal does. It’s going to be a longer sound and that’s going to ring. It’s all about shorts and
longs.
27
referirmos à bateria melódica. No final ele (baterista) pode estar tocando uma
melodia na bateria e ainda assim estar tocando algo realmente estúpido. (ERSKINE,
2011 apud MCCASLIN, 2015, p.12, tradução nossa).21
Erskine não nega que a abordagem da imitação não seja possível de ser compreendida
como melódica, porém ele faz referência a uma consideração mais ampla que envolva outros
conceitos musicais além de tornar a melodia aparente nos tambores.
Cabe aqui uma distinção entre a noção de contraponto no jazz e a definição deste
conceito proveniente da tradição musical europeia. O New Grove Dictionary of Music and
Musicians (2001:551, apud MCCASLIN: 2015:48) define contraponto como “um termo
utilizado primeiramente no século XIV para descrever a combinação de linhas sonoras
musicais simultâneas de acordo com um sistema de regras22.” Contudo, na definição dos
bateristas de jazz, a ideia de contraponto é considerada de uma forma mais ampla com menos
restrições e regulações. Portanto, referimo-nos a contraponto como uma maneira de descrever
o processo de interação entre o solista e o baterista o que é comumente chamado de comping23
(acompanhamento). (Ibid.)
Peter Erskine exemplifica um dos usos do termo contraponto no período em que tocou
com a banda Weather Report. Sobre a forma como interagia com o saxofonista Wayne
Shorter, ele afirma:
Você sabe, isto (contraponto) foi um resultado do meu treino que adquiri enquanto
tocava com o Weather Report. Wayne (Shorter) pararia, se viraria e diria: Não faça
isto! (copiar os ritmos dele). Então, através de Joe Zawinul e Wayne Shorter, eu
percebi que eles eram bons professores, eles meio que formaram esta minha
21 If a drummer played Mary Had a Little Lamb on their tom-toms or snare drum by changing the surface
tension of the head with their elbow (which is kind of an old trick) and the reaction was “that’s the most melodic
drumming I’ve ever heard,” I’d say – I would disagree. Because playing Mary Had a Little Lamb doesn’t really
constitute any melodic profundity or anything like that. It’s not just the fact that pitches can be made apparent on
a percussion instrument. You can’t say that it’s not a melody, but at the same time I don’t think that’s what we
mean by melodic drumming. In the end they may be playing a melody on the drums and yet still be playing some
really dumb stuff!
22 A term first used in the 14th century, to describe the combination of simultaneously sounding musical lines
Erskine praticava a abordagem da imitação do ritmo das melodias, mas seu contato
com Wayne Shorter e Joe Zawinul o aproximou de uma experiência que acabara por fazê-lo
refletir sobre sua abordagem melódica e, em alguma medida, modificá-la em relação ao
conhecimento e à prática do contraponto. Ao descrever sua forma de tocar a bateria, Erskine
afirma:
Para Erskine, a concepção melódica do baterista parece estar presente também nos
momentos em que este realiza a marcação rítmica do jazz e não só nos momentos de solo, por
mais constante que esta marcação possa parecer. Além disso, ele atenta para as
responsabilidades em prover contrapontos rítmicos que não se percam no aspecto de criação
artística do baterista, que é marca deste processo, mas que fundamentalmente estejam
relacionados com o que a banda realmente precisa em termos de informações rítmicas e um
pulso regular. Passemos agora a discutir como isto se dá em maiores detalhes.
24 You know, this was a result of my training I got while playing in Weather Report. Wayne would stop, turn
around and say: “Don’t do that!” (i.e. copying his rhythms). So from Joe Zawinul and Wayne Shorter, and I
figured they were good teachers, they sort of shaped my thing which made me much more aware of
counterpoint.
25
I approach my drumming, especially accompanying the arrangement, the melody and another improviser or
soloist in terms of providing counterpoint. And actually that might mean sometimes that I just provide a very
steady rhythmic foundation. There’s no intent like (sings) “La la la…oh I must be melodic now!” For me there’s
no dichotomy of playing melody vs. non-melody. For me it’s all about providing counterpoint along with a
rhythmic foundation in such a way that there’s always good tension and release. That’s what moves the music
along. And the whole time I’m providing rhythmic information to the band. You can’t let the “art” aspect of it
make you be derelict in your ensemble duties.
29
formato, normalmente é composta por piano, contrabaixo e bateria26. Este pequeno grupo de
instrumentos possui a capacidade de configurar um quadro estrutural que viabiliza os
processos de interação entre os músicos. Em sua investigação, a autora afirma que “manter o
tempo, acompanhar e solar são três das funções musicais mais básicas compartilhadas por um
conjunto musical deste tipo e cada instrumento da seção rítmica têm formas particulares de
realizá-las.” (MONSON, 1996: 26, tradução nossa)27. Assim como apontou Erskine a respeito
das funções que ele como baterista precisa prover ao mesmo tempo em que cria contrapontos,
Monson contribui para a discussão aqui proposta a respeito de como os bateristas de jazz
combinam sua função de manutenção do tempo simultaneamente com processo de criação de
linhas melódicas neste instrumento.
No segundo capítulo de seu livro, há uma seção intitulada O baterista em que a autora
descreve aspectos históricos, práticos e filosóficos de procedimentos comuns a este
instrumento no contexto do jazz. O primeiro ponto importante a se ressaltar aqui é que, a
partir do desenvolvimento e introdução do sistema de pedais (década de 1920), os bateristas
passaram a utilizar os quatro membros de seu corpo para prover a fundação rítmica do jazz
(BROWN, 1976 apud MONSON, 1996:52). Esta mudança permite visualizar o baterista
como um multi-instrumentista que faz uso da coordenação dos quatro membros, comumente
chamada de four-way coordination, em sua prática. Esta perspectiva está presente na
caracterização que Michael Carvin28 faz a respeito de o baterista ser uma banda completa:
Na verdade, você pode ter quatro diferentes partes [na bateria] o que seria um
quarteto. E se você praticar e adquirir a quantidade certa de disciplina, você pode
realmente desenvolver estas partes ao ponto disto ser uma banda dentro dela mesma.
Posso ouvir uma melodia contra uma melodia contra um ritmo contra um ritmo. E é
por isso que eu sinto que o baterista é a banda. (CARVIN 1990 apud MONSON,
1996:52, tradução nossa).29
26
A elaboração desta frase levou em consideração o formato de trios de Jazz em que a escolha por um
instrumento harmônico/melódico acaba recaindo sobre piano na maior parte dos casos. Contudo, a guitarra e o
Vibrafone também são instrumentos comumente associados à função harmônico/melódica neste contexto.
27 Keeping time, comping and soloing are three of the most basic musical functions traded around the
improvising band and each rhythm section instrument has particular ways to fulfilling them.
28
29 You can actually have four diferent parts [on the drumset] wich is a quartet. And if you practice and get the
right amount of discipline, you can actually develop those parts to where it is a band within itself. I can hear a
melody against a melody against a rhythm against a rhythm. And that´s why I feel that drummer is the band
(CARVIN 1990).
30
Monson (1996) tratou esta questão realizando a exposição de duas ideias fundamentais
para esta discussão. A primeira ideia diz respeito à interação interna entre os quatro membros
do baterista, que acionam partes distintas do seu instrumento (mão direita – prato de
condução; mão esquerda – caixa e tambores; pé direito – bumbo; e pé esquerdo – chimbal),
criando um diálogo tão polifônico quanto o que se estabelece entre a bateria e os demais
instrumentos do conjunto. (CARVIN apud MONSON, 1996:54).
A segunda ideia exposta por Monson trata de uma função que os norte-americanos
denominam keeping time (manter o tempo) ou playing time (tocando o tempo) e que, segundo
a autora, é uma especialidade dos bateristas, além de uma de suas funções primordiais. Para
isto, eles dedicam pelo menos um membro do seu corpo para a realização desta função. A
respeito disso, Michael Carvin afirma que “[...] um baterista tem que dar a banda um de seus
membros. Pode ser qualquer um que ele escolher para isto. Se voltarmos aos anos 1920 com
Sid Catlett e Baby Dodds o membro que eles davam era o bumbo.” (MONSON, 1996:55).30
Carvin faz referência à forma como estes bateristas marcavam os quatro tempos do
compasso tocando o bumbo no sentido de reforçar a linha do contrabaixo. Cabe lembrar que
neste momento (década de 1920) não havia amplificadores para fazer com que a função
rítmico/harmônica do contrabaixo fosse ouvida pela a banda toda. Contudo, observando os
desdobramentos da bateria no jazz nota-se a transição desta função do bumbo (pé) para o
prato de condução, normalmente, tocado pela mão dominante dos bateristas. Este
procedimento pode ser observado em gravações de jazz principalmente a partir da década de
1940 nos EUA.
Bateristas como Max Roach e Kenny Clark normalmente são citados como músicos
que popularizaram este padrão de marcação do jazz no prato. Este novo padrão
30 “[…] a drummer has to give the band one limb. It can be any one that he chooses to. If we go back to 1920
with Sid Catlett and Baby Dodds the limb that they gave was the bass drum (Carvin).
31
diferenciava-se do anterior, pois, ao invés de marcar os quatro tempos com uma nota de
mesma duração (semínima) o baterista tocaria no prato uma nota longa (semínima) nos
tempos 1 e 3 e duas notas curtas (colcheias ou semicolcheias) nos tempos 2 e 4, assim como
mostra a figura:
Figura 1 – Padrões de jazz tocados no prato de condução (ride cymbal beat). Fonte: MONSON, 1996: 53.
Contudo, a partir dos anos 1960, é possível observar outros usos desta marcação. Ao
descrever a forma como Tony Williams dedica um de seus membros à marcação dos tempos,
Carvin afirma:
Agora Tony Williams, quando ele tocava com Miles Davis. O membro que ele dava
a Miles era o hi-hat [tocado com o pé esquerdo]... e ele dançaria [tocaria livremente]
em seu prato [de condução]... Tony confundiu muitos bateristas porque quando eles
o ouviram, eles sabiam que você devia manter o tempo com o prato de condução...
Mas o que eles não entendiam sobre a forma de Tony tocar foi que isto (o prato
tocado com a mão) não foi o membro que ele estava dando para a banda. Este não
era o membro mantendo o tempo. (CARVIN 1990 apud MONSON, 1996: 57,
tradução nossa)31
31 Now Tony Williams, when he was with Miles Davis. The limb that he gave to Miles was the hi-hat … and he
would dance [play freely] on his [ride] cymbal … Tony confused a lot of drummers because when they heard
Tony Williams, they knew that you were supposed to keep time with the ride cymbal… But what they didn´t
understand about Tony´s playing was that that wasn´t the limb that he was giving to the band. That wasn´t the
limb keeping time.
32
Michael Carvin (1990) comparou as partes rítmicas que mantêm o tempo ao estado
de serem "sólidas" e partes rítmicas mais livres a serem "líquidas". Os quatro
membros integram aspectos sólidos e líquidos do ritmo, de modo que podemos ter
algo flutuante e algo sólido - ao invés de ter tudo sólido... ou tudo líquido.
(MONSON, 1996:55, tradução nossa).32
Retomando a ideia de Carvin, o estado líquido parece estar associado a este caráter
variável das intervenções realizadas pelas demais partes da bateria. Ao descrever o uso que os
bateristas fazem da mão esquerda, Monson (1996) destaca a relação entre o piano e a bateria
32 Michael Carvin likened the time-keeping rhythmic parts to the state of being “solid” and freer rhythmic parts
to being “liquid”. The four limbs integrate solid and liquid aspects of rhythm, so “we can have something
floating and something solid – instead of having all solid… or all liquid.
33
O pianista tem que responder harmonicamente ao que o solista está fazendo e ao que
o baixista está fazendo, complementando o solista e também responder ritmicamente
ao solista e - dentro da sessão rítmica - ao baterista. Muitas vezes, comparo o papel
rítmico do pianista com a mão esquerda do baterista, os tipos de acentos e figuras
que ele toca na caixa e no bumbo. (Michael Weiss 1990 apud MONSON, 1996:58,
tradução nossa).33
Da mesma forma como Weiss diz estar atento as figuras e acentos que o baterista faz
na caixa, o baterista por sua vez também atenta para as intervenções que o pianista realiza,
como afirma o baterista Kenny Washington (1990): “Pra mim, além do baixista, a primeira
pessoa em que olho quando chego para tocar é o pianista. Porque eu estou sempre ouvindo
como ele acompanha, o tipo de voicings que usa e seu ritmo, porque isto afeta o que minha
mão esquerda irá tocar34.” (WASHINGTON 1990 apud MONSON, 1996: 58).
Além destes dois depoimentos, muitos dos entrevistados corroboram com a afirmação
de que parece haver um consenso a respeito desta troca de informações musicais entre
pianistas e bateristas. Contudo, quais são, exatamente, estes sons que o baterista e o pianista
tocam juntos? Como eles o fazem?
Não é apenas para um solista que o pianista tem que fazer o comp. Digamos que um
arranjo foi escrito e uma linha do arranjo é um tutti ou uníssono de vários
instrumentos tocando a mesma linha. O pianista deve ser capaz de preencher esta
linha com um comp que se encaixe perfeitamente - de modo que você não sinta que
você tem buracos nesta linha. Você tem que sentir que este pequeno espaço estava lá
para o piano tocar este tipo de linha. Ele tem que acompanhar de tal forma que o
33 The piano player has to respond harmonically to what the soloist is doing and what the bass player is doing,
complemente the soloist and also respond rhythmically to the soloist and – whithin the rhythm section – to the
drummer. I often liken the pianist´s rhythmic role with the drummer´s left hand, the types of accents and figures
he plays on the snare drum and the bass drum.
34 For me, besides the bass player, the first person I´m a look at when I get on the bandstand is the piano player.
Because I´m always listening to how he comps, the kind of voicings he uses and his rhythm, because that affects
what my left hand is gonna do.
34
comp se encaixe na lacuna sem entrar no caminho da linha. (HANNA, 1989 apud
MONSON, 1996: 44, tradução nossa).35
Esta interação entre uma linha melódica principal e os voicings do piano costuma ser
associada a um tipo de acompanhamento proveniente das big bands. Monson descreve dois
procedimentos análogos ao comping do piano – o shout chorus e o riff. A respeito deles a
autora afirma:
35 It isn´t just to a soloist that a pianist has to do a comp. Let´s say an arrangement has been written and the line
in the arrangement is tutti or unison of several instruments playing the same line. The pianist has to be able to fill
the gaps in that line with a comp that fits perfectly – so that you don´t feel like you´ve got holes in that line.
You´ve got to fell like that little space was there just for the piano to play that certain line. He has to comp in
such a way that the comp fits the gap without getting in the way of the line.
36 Many players cited big band accompaniments – particularly riffs and shout choruses – as important influences
on their comping style. A shout chorus is typically played at a climatic point in a solo or arrangement and is
characterized by fully voiced rhythmic figures with space between repetitions that allows the soloist, rhythm
section, or contrasting horn section to engage in call and response. […] A riff is short, repeated rhythmic figure
used as a melody or as accompanimental background.
37 I´m thinking of a bigband… Those things that I played during that are things I´ve heard bands do. Those
sua mão esquerda tocando a caixa. Michael Carvin fornece uma explicação análoga a de Jaki
Byard dizendo:
Eu realmente sinto que minha mão esquerda é mais como um sopro... como numa
big band, a sessão de sopros está tocando as shout parts. E eu ouço um grupo
pequeno como uma big band. E antes de deixar a música ficar monótona, eu toco um
riff... Mas eu escuto a mão esquerda como um sopro. Sons curtos, staccato, spurts ou
como um boxeador, jabbin´, jabbin´, sempre mantendo algo acontecendo.
(CARVIN, 1990 apud MONSON, 1996:58-59, tradução nossa).38
Embora o termo comping seja normalmente associado ao piano, o fato dos bateristas
realizarem intervenções rítmicas a partir das mesmas influências que os pianistas
(preenchendo os espaços das melodias e sugerindo riffs como os das big bands) demonstram
um possível caminho para se compreender o porquê dos bateristas se identificarem com este
termo apropriando-se dele para descrever suas formas de tocar quando tratam das linhas
rítmicas que constroem. Sem dúvida, é o ritmo que une estes dois instrumentos no comping,
pois como já fora apresentado anteriormente, a bateria não teria condições de fornecer os
voicings harmônicos que também são marcas deste procedimento. Contudo, alguns bateristas
referem-se às suas escolhas sonoras também levando em consideração o timbre de suas peças
e a interferência que estas causam, harmonicamente no resultado sonoro do comping.
Na fala de Kenny Washington a respeito do uso de sua mão esquerda estar relacionada
aos padrões executados pelos pianistas, dentre outras coisas, ele cita os voicings como um dos
fatores que direcionam sua prática. Contudo, Monson chama a atenção para o fato de “embora
a sensibilidade harmônica de um baterista pode não ser tão específica como a de um pianista
ou baixista, as razões de escolha para tocar em certas partes da bateria em pontos particulares
da música incluem escolhas harmônicas.” (MONSON, 1996: 61). Em suas aulas de bateria, a
autora exemplifica esta questão relatando:
Por exemplo, quando eu estava tocando com a gravação do Count Basie de Shiny
Stockings na minha aula de bateria, meu professor Michael Carvin e outro estudante
de bateria na sala comentaram positivamente quando eu toquei uma figura no surdo
em um ponto da música no qual a afinação do surdo aconteceu de forma parecida
com a tonalidade do trecho musical. Ao reproduzir outra música em uma tonalidade
contrastante, percebo que tocar uma figura semelhante no surdo não soava tão certo
como tinha soado na primeira passagem. (ibid., tradução nossa)39
38
I really feel my left hand is more a brass… like in a big band, the brass section is playing the shout parts. And
I hear a small group as big band. And before I let the music get stale, I play a riff… But I hear the left hand as a
brass. Short, staccato, spurts or like a boxer, jabbin´, jabbin´, always keeping something happening.
39 For example, when a I was playing along with the Count Basie recording of “Shiny Stockings” in my drum
lesson my teacher Michael Carvin and another drum student in the room commented approvingly when I played
36
Além de estar atento ao ambiente harmônico dos trechos musicais, Michael Carvin
tem a preocupação de instruir seus estudantes a desenvolverem uma percepção capaz de
associar o timbre dos tambores aos acordes no intuito de fazer o som da bateria ser parte
integrante deste ambiente harmônico.
Tutty Moreno faz referência a este processo ao comentar sobre a influência de um dos
quintetos de Miles Davis em sua abordagem melódica na bateria:
Por exemplo, nos anos 1960 aquele quinteto que você naturalmente conhece com
Miles Davis, Tony Williams, Ron Carter, Herbie Hancock e Wayne Shorter. [...] Isto
é o que o Tony Williams fazia. Com uma percutida no tom-tom ele mudava a cor. E
era na hora daquela mudança de acorde ali. Quando Hancock tocava aquela mão
esquerda logo vinha aquele tom-tom. Quer dizer, um músico que estivesse ali e que
não fosse baterista, talvez nem notasse, mas se você é baterista você notava e via a
cor vir junto. Se você os assistisse tocando ao vivo você via que o Hancock sorria
quando isto acontecia. A gente dizia que ele [Tony Williams] completou o acorde
das estrelas, quer dizer, estrelas do céu mesmo40. (MORENO, 2017).
Isto [imagens] vem do som. Olha, quando o sol beija você, é quente, mas é muito
suave. Este é o meu prato de condução. Eu cresci em um país de furacões, então o
trovão é um relâmpago notável - no escuro. O trovão é forte e preto. Então eu tenho
o trovão, este é o meu prato de ataque... Tem o meu pequeno prato que eu uso e o
chamo de pudim... porque no sul todas as garotas quando nascem são chamadas de
pudim. Então esta [aponta] é como um bebê, então eu a chamo de pudim... Então, eu
não me relaciono com meus pratos como sendo pratos porque se eu fizesse isto eu
não os tocaria da forma como os toco. (CARVIN 1990 apud MONSON, 1996:62,
tradução nossa).41
a figure on the floor tom at the point in the music when the pitch of the tom happened to closely match the
tonality of the musical passage. When playing another tune in a contrasting key, I notice that playing a similar
figure on the tom did not feel as right as it had in the first passage.
40 Entrevista realizada com Tutty Moreno para este trabalho e que aconteceu no dia 12/06/2017.
41 It comes from the sound. See, when the sun kisses you, it´s warm but it´s very soft. That´s my ride cymbal. I
grew up in hurricane country, so thunder is lightning striking it – dark. Thunder is strong and black. So I have
Thunder, that´s my crash cymbal… Then my little cymbal that I use is called Puddin´…because in the South all
37
Por fim, a estabilidade rítmica do prato juntamente com as intervenções variáveis das
demais peças da bateria parecem delinear como se dá a aplicação da abordagem melódica
neste instrumento em uma situação de acompanhamento. A partir desta combinação entre
aspectos rítmicos “sólidos” e “líquidos” o baterista pode fornecer uma marcação regular no
prato de condução, por exemplo, enquanto imita o ritmo de uma linha melódica tocada por
outro instrumento com sua mão esquerda na caixa; ou preenche os espaços deixados por esta
mesma melodia; ou toca um riff imitando o ritmo do pianista; ou sugere o ritmo de um shout
chorus para influenciar o pianista; ou preenche os espaços deixados pelo riff ou shout chorus
deixados pelo pianista; ou toca a mão esquerda nos tom-toms buscando uma aproximação de
alturas em relação a esta melodia. São muitas as possibilidades e, a qualquer momento, o
baterista pode escolher direcionar sua atenção para uma delas. Contudo, para desenvolver a
capacidade de fazê-lo o baterista precisa aprender a combinar a estabilidade do ritmo do prato
com a capacidade de estar atento às muitas possibilidades de interação a partir das demais
peças. Neste sentido, acreditamos que uma descrição de procedimentos técnicos de
aprendizagem em bateria podem elucidar como os bateristas se preparam para a realização
desta abordagem melódica ao acompanharem os demais músicos de um grupo de jazz.
little girls when they´re first born are called Puddin´…So that [one] is like the baby, so I call her Puddin´… So I
don´t relate to my cymbals as cymbals because if I did I wouldn´t play them the way I play them.
38
Figura 2 – ostinato padrão de jazz sugerido pelo autor do livro. Fonte: Hoenig, 2011, p. 13
Figura 3 – linha melódica a ser tocada na caixa pelo baterista. Fonte: Hoenig, 2011, p.5
42 The following systems involve playing an ostinato in one or more limbs, while playing a melodic line with
the remaining limb(s)
43
39
do jazz, é a tercina. Deste modo, a montagem do ritmo a ser executado pelo baterista poderia
ser representada da seguinte forma (a cor cinza indica o ostinato e a cor preta indica a linha
melódica):
Figura 4 – junção do ostinato e da linha melódica, esta tocada somente na caixa. Fonte: Hoenig, 2011, p.13
É possível notar que a linha melódica está sendo executada pela caixa, enquanto que o
ostinato está sendo executado pelo prato de condução e o hi-hat tocado com o pé. Contudo,
para o desenvolvimento de uma maior fluência na junção entre este ostinato e a linha
melódica escolhida, Hoenig sugere que o baterista toque a linha melódica com outro membro
– no caso o bumbo que é acionado pelo pé direito.
Figura 5 – ostinato e linha melódica, esta tocada somente no bumbo. Fonte: Hoenig, 2011, p.13
A seguir, ele sugere outra possibilidade de combinação, fazendo com que a linha
melódica seja tocada por dois membros do baterista. Para isto, ele aponta para mais uma
possibilidade de padrão interno à execução da melodia: as notas curtas serão tocadas pela
caixa e as notas longas serão tocadas pelo bumbo.
Figura 6 – ostinato e linha melódica, esta tocada por duas peças: notas longas no bumbo e notas curtas na caixa.
Fonte: Hoenig, 2011, p.14
40
Para ampliar ainda mais as combinações entre o ostinato e a melodia, ele sugere que o
baterista inverta as possibilidades de execução da linha melódica. Nesta nova montagem, as
notas curtas serão tocadas pelo bumbo e as notas longas serão tocadas pela caixa.
Figura 7 ostinato e linha melódica, esta tocada por duas peças: notas longas na caixa e notas curtas no bumbo.
Fonte: Hoenig, 2011, p.14
44 Um padrão de samba (figura abaixo) que, a partir da década de 1960 consolidou-se de maneira hegemônica,
exige que o baterista ocupe seus membros da seguinte maneira: a mão direita atrelada ao hi-hat, tocando todas as
notas da subdivisão do samba, as semicolcheias (função de condução); ao bumbo cabe a execução de padrões
adaptados da linguagem de se tocar o instrumento surdo de escola de samba (função de marcação). Estas duas
funções se mantem constantes e repetem o mesmo padrão a cada compasso – dois tempos com quatro
semicolcheias tocados com a mão direita, além do bumbo tocado na primeira e quarta semicolcheias de cada um
dos dois tempos. Já à mão esquerda do baterista caberia a função de executar na caixa as figuras assimiladas
através do tamborim (função de fraseado). Esta última função apresenta variações de um compasso para o outro
e, portanto, esta seria a mão responsável pela leitura das linhas melódicas do livro The New Breed. Esta
41
No livro Novos caminhos da bateria brasileira (2008), Sérgio Gomes sugere a prática
da leitura de uma linha melódica com a mão esquerda, enquanto o baterista realiza padrões de
samba e baião. Como padrão para o ritmo de samba ele sugere a seguinte combinação de
peças:
Figura 10. Quatro primeiros compassos da linha melódica presente na lista nº1. Fonte: Gomes, 2008, p.25
Gomes (2008) sugere que o estudante realize a montagem do padrão de samba (hi-hat
e bumbo) junto da linha melódica a ser tocada na caixa:
Figura 11. Padrão de samba e linha melódica tocados simultaneamente. Fonte: Gomes, 2008, p.23.
descrição está presente no artigo Forças D'Alma: um estudo de caso sobre os padrões de Tutty Moreno e o
conceito bateria melódica (ANDRADE E BARSALINI) publicado no Anal da Abrapem – Associação Brasileira
de Performance Musical de 2016:312)
Neste trabalho, o autor discute a expressão tocando “nas quebradas” como sendo um
termo comum à prática de bateristas brasileiros dos anos 1960. Nas palavras de Airto Moreira,
tocar “nas quebradas” poderia ter vários significados:
Nos anos 60 nas quebradas era uma gíria que servia para várias coisas diferentes.
Quando eu tocava samba eu fazia uns acentos diferentes ao invés de tocar direto.
Assim, depois de pouco tempo começamos a chamar aquele estilo de samba nas
quebradas. Eu não lembro quem inventou esse termo, mas ouvindo o Edison
Machado você pode perceber aquele estilo, pois ele e outros bateristas cariocas já
tocavam assim. (MOREIRA, 2011 apud MARQUES, 2013:49-50).
Este depoimento de Moreira parece ser reforçado por Tutty Moreno que, como
baterista contemporâneo de Moreira, também conhecia os muitos usos desta expressão. Sobre
isto Moreno afirma que:
“Nas quebradas é um termo que se usa e na época usava-se muito mais pra definir a
postura do baterista, que não era certinho, que tocava à vontade, quebrava não só a
estrutura rítmica da música, mas também os padrões do chamado profissional.”
(MORENO, 2011 apud MARQUES, 2014:50).
45 Referimo-nos à dissertação de mestrado intitulada Airto Moreira: do samba jazz à música dos anos 1970
(1964-1975) de autoria de Guilherme Marques, 2013.
43
a respeito do contexto musical do Samba Jazz46, propõe duas abordagens distintas para se
discutir a prática dos bateristas neste período (década de 1960): a primeira diz respeito a uma
forma participativa deste músico dentro do conjunto (ao realizar “acentos diferentes”),
enquanto a segunda se refere a um estilo mais contido no qual o baterista executa
essencialmente a marcação rítmica da música (ao “tocar direto”).
Ainda, a partir da fala de Tutty Moreno (2011) ao tratar sobre estas formas de atuação
dos bateristas, Marques (2013) identifica uma similaridade entre o termo nas quebradas e a
abordagem melódica na bateria. Para Moreno, o baterista melódico “é aquele que não pensa
unicamente no ritmo, ele toca em cima da melodia [...] quer dizer, mistura o ritmo com a
melodia” (MORENO, 2011 apud MARQUES, 2013:52). Percebe-se mais uma vez a relação
entre a palavra melodia e os padrões realizados pelos bateristas.
O “tocar nas quebradas”, que nesse caso está associado principalmente ao contexto
musical do samba jazz, pode ser visto como uma via alternativa de expressão artística para os
instrumentistas oriundos da bossa nova, como é o caso dos bateristas Edison Machado e Dom
Um Romão que atuaram com os principais artistas deste movimento e, paralelamente,
integraram grupos de samba jazz. Já para aqueles instrumentistas que estavam surgindo e que,
46 Segundo a pesquisadora Joana Martins Saraiva (2007) em seu trabalho A invenção do Samba jazz: discursos
sobre a cena musical de Copacabana no final dos anos de 1950 e início dos anos de 1960, o uso da expressão
samba jazz ocorre, entre outras razões, para se estabelecer uma caracterização musical que se consolida na
“mistura original do ritmo de samba com a harmonização e a improvisação do jazz” (SARAIVA, 2007:15 apud
MARQUES, 2013: 56). Além da combinação destes três elementos, a autora estende sua definição também à
formação típica da sessão rítmica do samba jazz composta por piano, contrabaixo e bateria – mesma formação da
sessão rítmica de jazz. Contudo, cabe destacar que
47 Embora Marques (2013) apresente este modelo dicotômico, ele observa que, com o distanciamento do tempo,
as duas abordagens estavam presentes na prática dos bateristas da época. De um modo geral, os bateristas
possuem incorporadas estas duas formas de tocar e as usa de acordo com os diferentes contextos em que atuam.
(MARQUES, 2013:50).
44
o contato com a bossa nova fora um pouco mais distante – como era o caso de Airto Moreira
–, “tocar nas quebradas” era um caminho profissional a ser seguido. (MARQUES, 2013:51).
Ao tratar sobre por que a melodia é importante para os bateristas de jazz, Jonathan
McCaslin (2015) listou os dois principais motivos que fazem com que estes músicos se
interessem pelo assunto. Para ele, estes bateristas sentem que entender e usar a melodia como
parte de uma consideração musical maior os levará a oportunidades aumentadas para a
expressão musical como baterista; e ampliará a capacidade de se conectar com os outros
músicos com os quais estejam tocando em um nível mais profundo. (MCCASLIN, 2015:35,
tradução nossa).48
Como fora apresentado no início deste capítulo, a bateria tem sido transformada desde
o seu surgimento e as possibilidades de atuação dos bateristas também se modificaram.
Observa-se uma mudança em suas práticas desde aquelas que guardam uma relação com o
passado e a origem marcial deste instrumento, ainda no século XIX – função exclusivamente
rítmica – até alguns dos procedimentos descritos por nossa investigação, mais comuns nos
últimos sessenta anos– abordagem melódica da bateria, por exemplo. Sem dúvida, essas
mudanças também foram percebidas na forma como os bateristas, os demais músicos, o
público, as Universidades, as gravadoras, as marcas fabricantes de instrumentos musicais,
etc., situam a bateria nos ambientes profissionais dos quais ela faz parte.
Ao considerar uma banda de jazz como um destes espaços, Monson (1996) aponta
para a associação entre o instrumento e o indivíduo. A autora cita a decorrente fixação de
48 These drummers feel that understanding and using melody as part of a larger musical consideration will lead
to a) increased opportunities for musical expression as a drummer and b) the ability to connect with the other
musicians he or she is playing with on a deeper level.
45
hábitos e comportamentos que derivam desta associação e que acabam por criar definições
para as funções que cada instrumento desempenha:
O papel instrumental de um músico é, por sua vez, visto como tendo um efeito a
longo prazo sobre a personalidade dele. O instrumento pode ser citado em
explicações sobre a atitude do músico, seu modo de pensar e suas percepções
musicais: "Ele é um baterista; é por isso que ele pensa assim." Certas limitações
musicais também podem ser explicadas pelo instrumento, como quando um baixista
se opõe a direção musical dada por um soprista ao comentar que "sopristas não
podem ouvir notas graves." (MONSON, 1996:27, tradução nossa).49
A ideia de ser um músico que toca a bateria em oposição a um baterista que só sabe
sobre bateria com um desrespeito para qualquer consideração musical global maior
é um tema central e uma atitude compartilhada pela maioria dos bateristas que foram
entrevistados. (MCCASLIN, 2015:31, tradução nossa)51
McCaslin faz uma distinção entre as palavras músico e baterista. A escolha destas
palavras reflete o uso que os próprios bateristas fazem delas ao descreverem o comportamento
49 A player´s instrumental role is in turn viewed as having a long-term effect on his or her personality. The
instrument may be cited in explanation of the player´s attitude, modes of thinking, and musical perceptions:
“He´s a drummer; that´s why he thinks like that”. Certain musical limitations may also be accounted for by the
instrument, as when a bass player objected to a horn player´s musical direction by commenting that “horn
players just can´t hear low notes.”
50 É sabido que o piano é um instrumento que ocupa uma posição de destaque dentro de um grupo, pois ele
possui a maior tessitura dentre os instrumentos alcançando notas em faixas de frequência extremas tanto para o
som agudo quanto para o grave. Ainda, um único pianista pode executar melodias, acompanhamentos e o ritmo
simultaneamente. Os instrumentos de sopros, embora ocupem uma posição de destaque nos grupos de jazz,
somente são capazes de expressar harmonias quando são tocados em conjunto. Isto confere uma limitação a estes
instrumentos posicionando-os num patamar abaixo do piano. Já em relação à bateria, o fato deste instrumento
não possuir alturas definidas, faz com que ele seja comumente associado apenas à possibilidade de expressar
ideias rítmicas, ou seja, sendo posicionado em um patamar ainda inferior ao dos sopros.
51 The idea of being a “musician that plays the drums” as opposed to a “drummer who only plays the drums”
with a disregard for any overall larger musical consideration is a central theme and an attitude shared by most of
the drummers who were interviewed.
46
de um músico que toca bateria em oposição a um baterista que apenas toca bateria. Contudo,
para que os bateristas sejam entendidos como músicos, não significa necessariamente que eles
precisam tocar outros instrumentos além da bateria, como piano ou trompete. Trata-se de
atentar para outros elementos da música sem que o foco esteja voltado somente para as
particularidades da prática deste instrumento. Joey Baron é um dos bateristas entrevistados
por McCaslin (2015) e trata sobre esta questão dizendo:
Assim, tal abordagem pode ser entendida como uma reação dos bateristas em direção a
uma possível ruptura na hierarquia das bandas no sentido de reafirmar o papel destes
bateristas na disputa por um lugar que não seja estritamente rítmico. Sem dúvida o termo
“bateria melódica” parece não ser adequado, pois as limitações deste instrumento, como
tratadas anteriormente, não lhe permite tocar melodias da forma como os demais instrumentos
harmônico/melódicos o fazem. Contudo, a elaboração deste conceito fornece meios para que a
bateria não seja mais compreendida exclusivamente através de sua perspectiva rítmica. Por
isso, o termo abordagem melodicamente orientada da bateria parece situar melhor o que os
52 For me melodic playing is focusing on that area of quality in the music. When you’re playing you’re not
thinking: “right, left, right, left…” you’re not thinking technically, you’re not thinking of speed or endurance or
anything like that, you’re just thinking of music. Melody is a part of music. If you’re “stuck in a drum,” that’s all
you’re going to be playing. You’re not really going to be really playing music; you’re going to be laying the
drums. But if you’re getting out of the drums and thinking music (and music includes melody, harmony and
rhythm) then it’s all in there.
47
performers deste instrumento querem dizer ao se referirem às suas práticas. Além disso, esta
abordagem pode ser entendida como uma evidência do alcance social a que Marques (2013)
trata, pois permite questionar as concepções a respeito da função da bateria dentro de um
grupo de jazz.
48
Eu me lembro do contato que tive com estas coisas [gravações], ainda garoto, lá na
Bahia. Claro que não era tão acessível assim quanto é hoje. A gente tinha uma única
loja boa na cidade e que recebia os discos que vinham de São Paulo e do Rio de
Janeiro. De vez em quando aparecia um disco ou outro de jazz por ali. A gente
ficava louco para ver quem viria para cá [São Paulo] para levar os discos até
Salvador. Eu me lembro de que com 10 ou 11 anos eu ouvia o [John] Coltrane sem
me dar conta de nada, eu ouvia porque eu gostava! Eu pedia para o amigo que fosse
viajar: “veja aí o que você encontrar lá [São Paulo ou Rio de Janeiro] que tenha a ver
com este tipo de música e pode me trazer sem medo”. (MORENO, 2017) 53
Embora este depoimento de Moreno pareça evidenciar um momento em que era difícil
ter acesso a bens de consumo, como discos de jazz, o cenário econômico, político e cultural
53 As citações de depoimentos identificadas com o nome “MORENO, 2017” foram colhidas em entrevista
realizada pelo autor em São Paulo na casa do contrabaixista Rodolfo Stroeter em 12/06/2017. Arquivo pessoal
do autor.
49
da cidade de Salvador passava por uma grande transformação durante as décadas de 1950 e
1960, algo que contribuiu decisivamente para a formação e inserção profissional de Moreno
na carreira de músico.
Ao tratar sobre os fatores que viabilizaram tal transformação urbana, Matos e Mabel
(2012), investigando as origens dos meios de comunicação baianos, apontam a descoberta do
petróleo e o desenvolvimento agrícola associado ao cultivo do cacau como desencadeadores
do crescimento urbano de Salvador e a decorrente ampliação de seu setor de serviços no final
de 1940. Acerca disto, Rubim, Coutinho e Alcântara (2008) afirmam que “o volume de
investimentos e salários concentrará a renda em Salvador quase como em nenhuma outra
parte do Brasil” (RUBIM, COUTINHO, ALCÂNTARA, 2008:32). Deste modo, a classe
média se amplia e, com isto, “inúmeras atividades antes inexistentes ou insignificantes passam
a fazer parte ativa da vida econômica da cidade” (Idem). É neste momento, portanto, que
surgem “arranha-céus para acolher os serviços públicos, os bancos, as companhias de seguros,
as casas de importação e exportação e os escritórios das fábricas” (Idem:34). A administração
pública, também interessada na educação e cultura baianas, viabilizam uma série de ações no
sentido de garantir investimentos às escolas já existentes, além de criarem novas instituições
de formação, destacando-se a fundação da Universidade Federal da Bahia (1946) e,
juntamente com ela, os Seminários Livres de Música da Bahia (1954)54. Nas palavras de
Antônio Risério (1995), Salvador foi “um ‘ecossistema’ propício ao aparecimento, à formação
e ao desenvolvimento de uma personalidade cultural criativa que se encarnou em
artistas-pensadores como o compositor Caetano Veloso e o cineasta Glauber Rocha”.
(RISÉRIO, 1995:13).
Assim, foi na cidade de Salvador, nos anos 1958-59, que o jovem Tutty Moreno
iniciou seus estudos musicais no Seminário Livre de Música da Bahia. A respeito disto,
Moreno afirma:
54 Para maiores detalhes sobre este processo recomenda-se a leitura da dissertação de mestrado de Angela
Matos Onnis intitulada Orquestra Sinfônica da Universidade Federal da Bahia: memória de uma trajetória
histórica (2016). A partir dela é possível verificar os processos legais do decreto que oficializou a fundação da
UFBA e dos Seminários, bem como verificar os nomes de políticos, artistas e principais funcionários que
atuaram nestas instituições no período.
50
Embora não tenha tido aulas com Koellreutter, Moreno provavelmente vivenciou um
tipo de aprendizado em música influenciado pelas ideias e concepções do maestro austríaco
que desde 1937 vivia no Brasil. A pesquisadora Teca Alencar de Brito, que trabalhou durante
vinte anos junto deste compositor, assim o apresenta na contracapa de seu livro intitulado
Koellreutter - Ideias de Mundo, de Música, de Educação (2015):
Quem quisesse estudar isto [disciplinas musicais] teria de ir para fora [EUA e
Europa] e estudar por lá. Na Bahia havia uma escola maravilhosa junto da figura de
Koellreutter, mas era um ensino voltado para a música clássica. Contudo, Luizinho
Eça estudou com ele e acabou ficando conhecido por seus trabalhos no universo da
música Popular. (MORENO, 2017)
Para Moreno, mesmo tendo um viés mais ligado à música erudita, a escola
proporcionava uma das poucas alternativas quanto instrução formal para um músico,
apontando o êxito de Luiz Eça, em sua forma de articular os conhecimentos de compositor e
arranjador, como uma evidência concreta desta formação. É claro que esta visão só foi
possível graças ao distanciamento temporal, uma vez que hoje, quarenta anos depois, é
possível verificar um caminho que se desenvolveu a partir da presença de Eça naquela escola.
Para o jovem Tutty Moreno do final da década de 1950, a única certeza residia no desejo de
estudar música, sem deixar que as especificidades desta linguagem artística se impusessem
quanto critérios de escolha que condicionassem a ação do estudante naquele momento. Neste
sentido, a escolha do instrumento, estilo, professor, banda, tudo isto ainda estava incerto.
Acerca da escolha de seu primeiro instrumento musical, Tutty Moreno relembra:
Embora Moreno pareça ter iniciado seus estudos musicais a contragosto, já que tinha o
desejo de tocar trombone, a prática de trompete serviu de porta de entrada para o músico que,
pouco tempo depois, passou a tocar saxofone. Ao responder sobre os critérios que o limitaram
na escolha por um instrumento musical, Moreno não demonstra incômodo algum e parecia
estar entusiasmado com as possibilidades que lhe foram apresentadas:
Mas tudo bem. Era música! Estava bom demais e estava tudo certo. Eu fiquei mais
ou menos um ano aprendendo o trompete. Depois troquei para o saxofone por causa
do [John] Coltrane. Só que eu toquei o sax alto, ainda limitado pelo tamanho do sax
tenor. Foi com o sax alto que iniciei minha atuação profissional tocando em Bandas
de Baile. (Ibid.)
Uma destas bandas era Carlito e Sua Orquestra (1960), um grupo formado por 12
músicos, em sua maioria instrumentistas de sopros, que atuava em bailes de formatura e nos
clubes da cidade. Era uma banda de músicos jovens, entre 16 e 24 anos, que demonstravam
grande desenvoltura em suas apresentações, fato este que permitiu a alguns de seus
integrantes figurarem entre os principais artistas baianos da época, ainda desconhecidos do
grande público, como Gilberto Gil, Maria Bethânia, Caetano Veloso, Gal Gosta, Raul Seixas.
Tutty Moreno atuou na banda até seu encerramento entre 1968-69. Foi também neste grupo
52
que Moreno, deixando o saxofone, passou a tocar bateria. A respeito deste momento (1963),
Tutty recorda:
57 As citações de depoimentos identificadas com o nome “MORENO, 2018” foram colhidas em entrevista
realizada pelo autor através de uma áudio-conferência em 09/05/2018. Arquivo pessoal do autor.
58 Cool jazz é um estilo de Jazz moderno que surgiu nos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial. É
caracterizado por andamentos mais lentos e por uma sonoridade mais suave, em contraste com o estilo rápido e
denso do Bebop. O Cool Jazz frequentemente emprega arranjos formais e incorpora elementos da música clássica.
Em linhas gerais, o gênero refere-se a uma série de estilos de jazz pós-guerra que empregam uma abordagem mais
moderada do que a encontrada em outros idiomas Jazz contemporâneos. Texto original: Cool jazz is a style of
modern jazz music that arose in the United States after World War II. It is characterized by relaxed tempos and
lighter tone, in contrast to the fast and complex bebop style. Cool jazz often employs formal arrangements and
incorporates elements of classical music. Broadly, the genre refers to a number of post-war jazz styles employing a
more subdued approach than that found in other contemporaneous jazz idioms (Gridley, Mark C. “Styles”, in Ron
Wynn, All Music Guide to Jazz, M. Erlewine, V. Bogdanov, San Franciso: Miller Freeman, 1994, p. 11). Tradução
feita pelo autor deste trabalho.
53
Da mesma forma como Machado estava atento aos bateristas da década de 1950, Tutty
Moreno também parecia estar conectado aos grandes nomes do Jazz da década de 1960,
admirando-os quanto músicos inovadores. Porém, Tutty parecia estar atento também aos
movimentos da música brasileira em contato com os “produtos” da década anterior, uma vez
que haviam similaridades entre as formas de se fazer o Jazz e a música brasileira. A partir de
1962, “paulatinamente alguns instrumentistas brasileiros passam a ingressar no mercado
musical norte-americano” (BARSALINI, 2009: 95), como Tom Jobim, João Gilberto, e tantos
outros, além do baterista Edison Machado.
Em uma descrição mais detalhada acerca de suas impressões sobre a forma de tocar de
Edison Machado, Tutty Moreno relata:
Você conhece os discos do Rio 65 trio? Pois bem, nessas gravações você percebe
que o Edison [Machado] e [Dom] Salvador [pianista] tocando são uma coisa só. Do
início ao fim, todas as músicas, todos os temas, ele [Edison Machado] está dentro e
não está fazendo o ritmo. O bumbo do Edison é uma coisa que pira a sua cabeça! Eu
vi e ouvi isto ao vivo. Pouco tempo depois de ter assistido ele pela primeira vez eu
procurava, sempre que possível, estar nos lugares onde ele iria tocar. Eu ficava do
lado dele para olhar a forma como ele tocava o bumbo. Nesta época (década de
1960), se tocava muito o ostinato (cantarola e bate o pé no chão) pum pu pum
(primeira e quarta semicolcheias). Este padrão é utilizado até hoje e tem muita gente
que faz isto de forma mais acentuada. A minha geração chamava esta forma de tocar
o bumbo de Milton Banana, associando o nome da técnica ao baterista que a
popularizou em suas gravações no período. Dizer que ele tocava o padrão sem
alteração e que o fazia de forma acentuada não desmerece o swing do Milton, muito
pelo contrário, essas eram suas marcas. Só que para mim o som do bumbo do Edison
era muito redondo. Ele dava um apoio ao baixo sem forçar a barra. Era como se
você não ouvisse o pu pum, mas o pum pum dele vinha no seu peito sem aquele tum
tum [mais forte]. Era um som macio, aveludado e envolvente. E aqui em cima
54
[mostra as mãos] completamente livre. Era uma coisa criativa pra danar. Melódica.
Fundamentalmente melódica em cima do solista. Nestes discos, músicas como Meu
Fraco é Café Forte, Tem Dó e Desafinado são um arraso! Quando o Edison parava o
ostinato, ele colocava o bumbo nuns lugares que era difícil de você entender. E a
minha impressão era “Meu Deus, como é que ele encontrou um lugar ali e fechava
tudo”. Era mais do que melódico, era harmônico! Sei lá. Quer dizer, sem interferir
nas notas. Era a cor ou a soma do som fechado com a banda. Foi dali que eu tirei a
ideia de tocar meu bumbo completamente livre, dependendo da situação musical.
Isto vem desta influência. Hoje em dia quando me perguntam: Quais são as suas
influências? Eu respondo que primeiro vem o Edison Machado e depois Tony
Williams. (MORENO, 2017)
59
Contudo, o termo “bateria melódica” somente fora apresentado a Moreno anos mais tarde (1974-78), o que
nos leva a inferir que parte desta descrição tenha sido feita a posteriori pelo baterista que, ao olhar para trás,
associou estes procedimentos, que na época lhe chamaram a atenção de forma intuitiva, à sistematização deste
conceito proposta anos mais tarde.
60 Expressividade em música pode ser tratada sob muitos aspectos e o fato de termos escolhido um enfoque
específico, não elimina ou diminui outras visões sobre o tema. Neste sentido, é possível comparar dois bateristas
sendo um mais rítmico e outro melódico chegando a conclusão de que o baterista rítmico é mais expressivo que
o baterista melódico. Esta constatação pode estar baseada em critérios como a gestualidade do performer ou o
som que este obtém das percutidas que realiza, por exemplo. Para nós aqui, a perspectiva quantitativa
proveniente das combinações típicas dos bateristas melódicos, se apresenta como um enfoque pertinente ao
relacionar expressividade e bateria, uma vez que a quantidade de combinações também é um fator que amplia as
possibilidades de criação.
55
Do ponto de vista da bateria, o uso da expressão “música para dançar” normalmente faz
referência a um tipo de acompanhamento mais ligado ao ritmo de fundo constituído por muitas
repetições de células similares, já que o objetivo é criar um referencial de tempo musical
constante e fácil de ser apreendido pelo ouvinte. Nesta situação, a função do baterista está mais
ligada a um trabalho mecânico, sendo os sons que ele executa uma espécie de ferramenta para o
ato de dançar. O ouvinte, normalmente, aprecia esta construção musical através dos parâmetros
necessários à prática da dança. Já a “música para se ouvir” faz referência a uma forma de
trabalho desprendida desta obrigação mecânica e, portanto, deixa de ser ferramenta para a
dança, tornando-se um meio para a livre apreciação do ouvinte. Neste sentido, as regras que
limitam a ação do baterista em sua prática são diferentes, pois como são situações diferenciadas,
acabam gerando possibilidades expressivas distintas. Assim, como resultado desta prática, a
ideia de “espírito do jazz” apresentada por Barsalini, seria uma espécie de representação de
61
Aqui a palavra rompe está entre aspas, pois como fora exposto no capítulo anterior, o baterista de jazz
utilizando-se da coordenação motora entre seus quatro membros, conserva sua função de mantenedor do tempo
(função normalmente associada ao prato) simultaneamente com a construção de frases melódicas a partir da
combinação dos seus tambores. A ideia de rompimento, neste caso, está ligada a quebra da relação música-dança
que limitou a ação da bateria a um dado parâmetro.
56
liberdade capaz de transgredir os parâmetros da música feita para a dança. Esta se tornou a
busca de Edison Machado.
Como eu não tinha bateria, eu transformei um móvel que tinha em casa em algo
parecido com uma bateria. Era um porta-revistas dos anos 1950. Ele era feito de
ferro com uns arames grossos. Eu prendia qualquer coisa que pudesse ter um som
parecido com um prato nesses arames. Fazia o mesmo tentando achar uma peça que
tivesse um som parecido com a caixa. (MORENO, 2018)
Era nisso que eu tocava (...). Na época haviam as vitrolas portáteis e, como eu tinha
uma, me trancava no meu quarto com os discos e a minha bateria improvisada.
Então, eu botava os discos e saia tocando junto. Quer dizer, tentava porque não tinha
uma bateria ainda. (MORENO, 2018).
existia na casa, criaram as condições para que Tutty pudesse praticar individualmente e também
em conjunto:
Além do trio e da Orquestra Avanço, Tutty Moreno trabalhou também como baterista
contratado junto à Orquestra da TV Itapoan de Salvador.
Foi um emprego de carteira assinada! Eu ainda tenho esta carteira aqui. Foi em 1968.
Trabalhei lá durante um ano e meio (...). Havia um pianista muito conhecido lá na
cidade que se chamava Carlos Lacerda. Ele é quem dirigia a orquestra da TV. Ele
também tinha um trio em que eu atuava como baterista. Na verdade, tocávamos mais
como trio na programação local de TV e de vez em quando tinha a orquestra toda.
Eu só o acompanhava na TV. (MORENO, 2018).
62 O Teatro Vila Velha é um espaço físico que sediava as ações da Sociedade Teatro dos Novos - STN, cuja
origem data do final da década de 1950 quando um grupo de alunos da recém-criada Escola de Teatro da
Universidade Federal da Bahia, motivados pelo desejo de aproximar a arte erudita da cultura popular, rompem
com a Escola criando uma iniciativa pioneira em relação à profissionalização das artes na cidade. O início dos
trabalhos do grupo foi marcado pela realização de diversas apresentações cênicas e leituras dramáticas em
comunidades periféricas de Salvador e no interior do Estado[...] Em meio a pressão ocasionada por uma
campanha popular feita na cidade, a administração pública de Salvador cedeu um espaço para as atividades
58
foi bastante importante não só para as artes cênicas, mas também para a música em Salvador na
década de 1960. Além disso, antes do movimento Tropicalista tomar forma, seus idealizadores
comumente figuravam entre as atrações programadas pelo teatro. A respeito do momento em
que conheceu e atuou junto de Gilberto Gil e Gal Costa, Moreno relembra:
De fato, o momento em que o grande público brasileiro tem contato com estes
compositores e intérpretes baianos é a partir de 1967 com o III Festival de Música Popular
Brasileira organizado pela TV Record (em São Paulo) e 1968 com o lançamento do disco
intitulado Tropicália Panis ets Circencis. Embora Moreno tenha feito referência ao fato de
que até 1965 a turma de compositores baianos estava bastante conectada com as canções da
Bossa Nova, na segunda metade da década de 1960 este grupo apresentou um tipo de música
diferente daquilo que era veiculado no Brasil. Nas palavras de Moreno, o movimento
Tropicalista “surgiu como uma reação ao do tipo de música feita por jovens compositores do
Rio de Janeiro, como Dori Caymmi, Chico Buarque e Edu Lobo” que, em seu formato de
composição rebuscado, influenciado pelo Jazz e também por alguns movimentos da música
erudita, colocava a música dos baianos em uma perspectiva técnica que causava um certo
incômodo nestes compositores (MORENO, 2018). Acerca de como Moreno via este
movimento, ele afirma:
Então, eles [os baianos] quiseram fazer algo que fosse exatamente o contrário. A
ideia era pegar o lado B ou tudo que fosse brega e dizer que isto é que era bom. E
deu certo. (...). Eu entendo que há muitas visões em relação ao movimento e
compreendo seu valor quanto corrente estética, mas esta é a minha opinião sobre isto.
(Ibid.)
propostas por esta Sociedade. Além de encenações teatrais, o local sediou também shows, exposições de arte,
ministrou cursos. Em sua inauguração em 1964, o teatro recebeu a encenação do espetáculo “Nós, Por exemplo”
que possuía em seu elenco Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Gal Costa e Maria Bethânia. Mesmo passando
por inúmeras dificuldades financeiras, o Teatro ainda existe e até o momento em que realizamos a pesquisa
permanece ativo. (RATTES,2007: 23-24)
59
Verdade Tropical (2012), Caetano Veloso parece fornecer algumas pistas acerca desta
oposição a que Moreno se refere. Em relação a uma de suas práticas composicionais, ele
afirma:
A lição que, desde o início, Gil quisera aprender dos Beatles era a de transformar
alquimicamente lixo comercial em criação inspirada e livre, reforçando assim a
autonomia dos criadores – e dos consumidores. Por isso é que os Beatles nos
interessavam como o rock’n’roll dos anos 50 não tinha podido fazer. O mais
importante não seria tentar reproduzir os procedimentos musicais do grupo inglês,
mas a atitude em relação ao próprio sentido da música popular como um fenômeno.
Sendo que, no Brasil, isso deveria valer por uma fortificação da nossa capacidade de
sobrevivência histórica e de resistência à opressão. (VELOSO, 2012: 164)
Caetano Veloso parece influenciar-se mais pela atitude do que pelas combinações
sonoras propostas pelos Beatles. Aos olhos de Veloso, tal atitude parecia uma reação dos
ingleses ao formato de Rock norte-americano que poderia ser interpretado como um modelo a
ser seguido em suas formas de cantar, vestir, performar, orquestrar, etc. De maneira análoga a
esta atitude, Caetano Veloso enxerga a ação Tropicalista como reação à Bossa Nova e seus
padrões, não somente harmônicos e melódicos, mas sobretudo estéticos.
A esta altura, o maniqueísmo próprio da época já tinha sido incorporado pela ala
engajada dos artistas contratados. Quem não fazia MPB “de protesto”, estava de
algum modo a serviço do imperialismo norte-americano, por adoção, omissão ou
alienação. Nesta última categoria estava inserida a jovem guarda, adorada pela
maioria silenciosa, mas desprezada - quando não hostilizada - pela minoria militante.
(...) Sem se darem conta do que estava acontecendo, artistas e público, considerados
de esquerda, criavam um consenso sobre a forma musical e poética da “verdadeira”
MPB, restringindo-se a instrumentos acústicos, ritmos regionais, temas ligados à
terra ou mensagens de esperança para um futuro imediato. (TATIT, 2008: 202)
Foi justamente em relação a esta forma musical e poética de se fazer música que a
ação Tropicalista procurava se opor. Ao convidar um grupo de rock argentino chamado Beat
Boys para acompanhá-lo no Festival de 1967, Caetano Veloso tinha a intenção de causar um
impacto nas concepções dos jurados, da plateia e dos demais artistas, acerca dos parâmetros
que definiam a música popular brasileira feita naqueles dias. A ideia era que “o aspecto do
grupo de rapazes de cabelos muito longos portando guitarras maciças e coloridas
representasse de modo gritante tudo o que os nacionalistas da MPB mais odiavam e temiam. ”
(VELOSO, 2012: 163)
Embora a fala de Caetano Veloso pareça demonstrar certo controle em relação aos
resultados esperados pela ação Tropicalista quanto provocadores da MPB, ainda assim o
movimento adquiriu outros desdobramentos que fugiram de seu controle. Acerca disto,
Moreno afirma:
Eles [tropicalistas] foram além, pois acabaram por moldar uma estética que, pelas
vias erradas, acabou por incomodar o governo ditatorial da época. Era um regime
muito duro e que entendeu a Tropicália de uma forma diferente daquilo que os
representantes deste movimento queriam. Então, quando digo que o movimento foi
além, quero dizer que foi além do que os próprios Tropicalistas esperavam dele.
(MORENO, 2018)
63 Dentre os vários motivos para a perseguição política, pesou a exibição no palco da boate carioca Sucata,
durante um show com Os Mutantes e Gilberto Gil, da imagem de uma bandeira com a figura de um traficante
famoso na época, o Cara-de-Cavalo, estendido morto no chão, assassinado violentamente pela polícia. Em vez de
legenda jornalística, lê-se no estandarte os seguintes dizeres: “Seja marginal, seja herói”. Aquela bandeira-poema,
que revoltou as Forças Armadas e serviu de pretexto político para o fim da temporada na Sucata e
posteriormente para o exílio para Gil e Caetano, era obra de um jovem artista plástico carioca, Hélio Oiticica.
Matéria realizada pela jornalista Paula Góes para o site Digestivo Cultural em 12/11/2007. Acesso através do
link: https://www.digestivocultural.com/ensaios/ensaio.asp?codigo=231&titulo=Oiticica_e_a_Tropicalondon
61
ação deste movimento contribuiu para configurar a situação de exílio na qual Gilberto Gil e
Caetano Veloso foram inseridos, pouco tempo depois (1969) ao viajarem para a Inglaterra.
Em 1970 Moreno viajou para Londres (Inglaterra) e, apesar da coincidência no tempo e
espaço, ele buscou o exterior por razões pessoais, diferentes das que foram impostas para os
Tropicalistas exilados.
Olha, tem muita gente que acha que, quando Gilberto Gil e Caetano Veloso foram
exilados para Londres na época da Ditadura Militar do Brasil, como eu fui para lá
(Inglaterra) mais ou menos no mesmo período, eu estava envolvido no movimento
Tropicalista. Isto não é verdade. Eu nunca fui Tropicalista em minha vida. Eu era
um músico que, naquele momento, atuei como baterista junto de Gilberto Gil, de
Caetano Veloso, da Gal Costa, e de outros mais, mas nunca fui Tropicalista. Isto é
um dado fundamental acerca da minha história (...). Eu fui para Londres por razões
pessoais e, como eu já havia tocado com eles em Salvador, nos aproximamos
também lá na Inglaterra onde fiz parte dos trabalhos deles daquele período.
(MORENO, 2018)
Moreno reconhece que o fato de ter participado da música feita pelos compositores da
Tropicália, lhe abriu novas oportunidades de trabalho que, pouco tempo depois, lhe
confeririam uma relevância nacional quanto baterista. Porém, é possível perceber também que
há um desejo na fala de Moreno de limitar sua participação no movimento Tropicalista
restringindo-a apenas a sua atuação como baterista. Ao utilizar a expressão “eu estive no meio
62
Não tenho nada a ver com a Tropicália. Eu acabei fazendo vários discos ligados a
estes artistas, já que foi uma fase muito fértil. Contudo, a forma como toquei nestas
gravações era diferente dos padrões de rock e pop utilizados na época para aquelas
músicas. Eu acabei tocando à minha maneira. Eu me lembro de tentar fugir destes
padrões. Mas, mesmo fazendo o meu lance, ainda assim era um negócio preso.
(MORENO, 2018)
O “negócio preso” a que Moreno se refere parece recuperar a ideia da oposição entre a
atuação do baterista realizando um ritmo de fundo e a forma mais colaborativa de atuação
típica do Sambajazz que discutimos anteriormente ao tratarmos sobre a influência do baterista
Edison Machado sobre a forma de tocar de Moreno. Ao criticar os desdobramentos da música
brasileira no período, Moreno demonstra sua predileção pelo Sambajazz em relação aos
demais estilos dos quais fez parte:
Fico imaginando o que teria sido se, assim como o Samba, que está sempre aí
independente dos novos movimentos que surjam, o Sambajazz também tivesse se
perpetuado da mesma forma. O que teria ocorrido caso o Sambajazz não tivesse se
esvaziado enquanto a forma de fazer canção da Tropicália crescia. É claro que tem
músicas da Tropicália que são maravilhosas como Domingo no Parque, e o Caetano
Veloso idem. Mas a música brasileira foi indo para outro lado. É claro que o
Sambajazz foi carregado com a nova geração de músicos que veio depois de Edison
Machado, como é o meu caso, por exemplo. (MORENO, 2018)
Nascimento, EMI). Em 1979, gravou o disco Mel (Maria Bethânia, Philips Records). A
respeito deste período Moreno relembra:
Acontece que eu trabalhei com muita gente e, no começo dos anos 1970, eu gravava
muito. A gente sabe o conceito de moda, né? Tudo tem uma moda que dura por um
tempo. Existe esta ideia também no mercado musical, sobretudo em relação a
atuação dos músicos. Há sempre os músicos da época e eu era um deles. [O baterista]
Carlos Bala foi outro, [o baterista] Teo Lima foi outro, pelo menos aqui no Rio de
Janeiro. Você grava com todo mundo e todo mundo quer você. Então, eu fui um
destes músicos que gravava muito, só que eu não aguentava mais, porque, embora
você tenha muito trabalho, você não toca o quer tocar. É claro que eu precisava viver
e, portanto, eu fazia as gravações para pagar as minhas contas, mas com o tempo me
vi completamente preso nesta situação. Daí vieram os rótulos de “o melhor”. Isto me
oprimia um bocado! Que melhor o que? Não tem essa de melhor. Tem tanta gente
tentando pagar as contas tocando com dignidade por aí, porque eu seria melhor que
alguém? (...). Eu já não aguentava mais. Eu não estava mais a fim de fazer aquilo.
(MORENO, 2018).
Para Moreno, lidar com esta nova situação em que ele ganhava prestígio para o
mercado nacional enquanto baterista e, ao mesmo tempo, adentrava em estruturas de trabalho
cada vez mais direcionadas por interesses que não passavam por sua apreciação enquanto
performer, acabaram por lhe gerar um desconforto muito grande. Contudo, ainda assim
Moreno atuou durante toda esta década (1970) seguindo tais diretrizes, ao passo de
compreendê-las como parte do trabalho em música. Para ele, a sensação de desconforto reside
no fato de o baterista perceber que não está colaborando com a produção musical da forma
como esperava:
Eu acho que a palavra que pode nos ajudar aqui é colaboração. Isto que a gente faz é
uma colaboração. Quando você observa a interação dentro do grupo, você observa o
que cada músico está dando de si. Aquilo que cada um é. Isso é a arte e não é
serviço. Tem vários músicos que usam a palavra serviço para caracterizar nossa
prática como se a gente fosse um bancário, por exemplo. É claro que não há
problema nenhum em entender o ofício por esta perspectiva, mas não acho que é a
um serviço que me refiro quando estou falando em fazer arte (...). Você vai botar
para fora sua expressão da melhor maneira que você puder (...). Quando você tiver
tocando com uma cantora/cantor tem certas horas que você terá de se submeter a
uma disciplina. Isto é perfeitamente natural. E precisamos disto, principalmente
quando somos jovens (...). Contudo, mesmo em um ambiente controlado – tocando
da forma como os outros querem – é importante perceber se ainda assim você está
colaborando. Houve momentos em que trabalhei com produtores que não eram
músicos e a sensação é de causar dor. (MORENO, 2017)
Para Moreno, embora a prática de bateria possa ser entendida como um serviço
mecânico é importante que ainda assim ela seja algo a mais. Nesta fala, evidenciam-se
aqueles ideais de expressividade associados a prática dos bateristas do Sambajazz como
apresentamos anteriormente nos depoimentos de Edison Machado e Hélcio Milito. A atuação
restrita a que Moreno estava submetido criava uma contradição em relação à prática artística
64
pretendida pelo baterista. Diante deste quadro, Moreno se via em meio a escolha de perseguir
o “espírito do jazz” onde atuaria de um modo mais colaborativo dentro dos trabalhos musicais
ou se submeteria à prática de bateria quanto um serviço que fosse independente de suas
aspirações de expressão artística.
Também neste momento, década de 1970, Moreno ampliaria ainda mais sua rede de
contatos profissionais, passando a interagir com os músicos do Rio de Janeiro, sua nova
residência desde a volta da Inglaterra em 1972, e São Paulo. A oportunidade de vivenciar os
trabalhos nestas que eram as principais cidades para atividade musical no Brasil, possibilitou
a Moreno um contato mais próximo com músicos que transitavam entre o mercado brasileiro
e norte-americano, como o baterista Airto Moreira64.
64 Airto Moreira é o percussionista de maior repercussão da década de 1970 e ainda entre os mais famosos,
Airto (muitas vezes conhecido pelo seu primeiro nome) ajudou a tornar a percussão uma parte essencial de
muitos grupos de jazz modernos; seus solos de pandeiro podem fazer fronteira com o incrível. Airto estudou
originalmente violão e piano antes de se tornar um percussionista. Tocou localmente no Brasil, colecionou e
estudou mais de 120 diferentes instrumentos de percussão, e em 1968 mudou-se para os EUA com sua esposa, a
cantora Flora Purim. Airto tocou com Miles Davis durante parte de 1969-1970, aparecendo em vários discos
(mais notavelmente Live Evil). Trabalhou com Lee Morgan em 1971, foi membro original do Weather Report e,
em 1972, fez parte da versão inicial de Chick Corea The Return to Forever. Em 1973, Airto era famoso o
suficiente para ter seu próprio grupo, que foi assinado junto à CTI Records. Desde então, ele se manteve ocupado,
na maioria das vezes co-liderando bandas com sua esposa e gravando como líder de muitas gravadoras, incluindo
Buddah, CTI, Arista, Warner Bros., Caroline, Rykodisc, In & Out e B & W. Extraído do site All Music
https://www.allmusic.com/artist/airto-moreira-mn0000609992/biography. Tradução realizada pelo autor deste
trabalho. Texto original Original: Airto Moreira is the most high-profile percussionist of the 1970s and still
among the most famous, Airto (often simply known by his first name) helped make percussion an essential part
of many modern jazz groups; his tambourine solos can border on the amazing. Airto originally studied guitar and
piano before becoming a percussionist. He played locally in Brazil, collected and studied over 120 different
percussion instruments, and in 1968 moved to the U.S. with his wife, singer Flora Purim. Airto played
with Miles Davis during part of 1969-1970, appearing on several records (most notably Live Evil). He worked
with Lee Morgan in 1971, was an original member of Weather Report, and in 1972 was part of Chick Corea's
initial version of Return to Forever. By 1973, Airto was famous enough to have his own group, which was
signed to CTI. Since then he has stayed busy, mostly co-leading bands with his wife and recording as a leader for
many labels, including Buddah, CTI, Arista, Warner Bros., Caroline, Rykodisc, In & Out, and B&W.
65
profissionais” (MARQUES, 2013:33). No caso de Tutty Moreno, embora a escolha pareça ter
sido motivada pela terceira opção, há que se considerar também as duas primeiras, pois ao
escolher adentrar no mercado norte-americano, Moreno verteria seu interesse de atuação
profissional para aquela forma mais colaborativa de se tocar a bateria e que havia influenciado
os ritmistas do Sambajazz. Cabe salientar que Moreno tinha grande curiosidade e nutria certa
expectativa acerca de todo o universo que circundava a prática de bateria no contexto do Jazz.
Em meio a este panorama, Moreno se mudou para Los Angeles (EUA) em 1974.
Contudo, a experiência do músico, logo em sua chegada, revelou-se frustrante e cheia de
adversidades:
Quando fui para Los Angeles, não me dei bem por lá porque o tipo de música mais
comum na cidade daquela época (década de 1970) era justamente esta em que se
espera do baterista uma postura mais rítmica. Cheguei lá com uma filhinha que não
havia completado um ano de vida. Parecia uma mudança e tanto, mas naquela época
a gente encarava essas coisas. Foi uma época muito difícil da minha vida. Eu já
conhecia o Airto [Moreira] há muito tempo e, nos EUA, eu me aproximei muito
mais dele. Ainda assim, não estava fácil de conseguir trabalho. (MORENO, 2017)
Para Moreno, a escolha por Los Angeles se deu por conta da relação que ele possuía
com o baterista Airto Moreira e também pela possibilidade de viver em uma cidade de clima
agradável e com excelentes indicadores sociais. Contudo, o fato de ter que lidar com a
responsabilidade de garantir o sustento de sua família, somado aos poucos empregos
disponíveis para música, mesmo contando com a parceria de Airto Moreira, acabaram
levando o músico a deixar a cidade entre 1974-75 destinando-se à Nova York. Somado a isto,
Moreno estava interessado em um tipo de música que não era exatamente o que mais se fazia
por ali:
Eu queria mesmo era ir para Nova York! Eu explico porquê. Dentre os muitos
estilos musicais norte-americanos, costuma-se dizer, de maneira generalizada, que
há dois tipos de som: o East Coast e o West Coast. A West Coast (costa oeste) é um
lugar maravilhoso para se viver, tem condições climáticas muito melhores que a
East Coast (costa leste). A música desta região é mais próxima do Funk e Pop.
Sempre foi assim. (...). Agora, falando de arte e não só música, mas arte de uma
maneira geral, o lugar onde para mim ferve é Nova York. A “barra pesada” do jazz
sempre foi Nova York e vai continuar sendo. Existe este movimento das escolas e
Universidades que, anualmente, despejam uma porção de músicos jovens, bons a
pampa, afim de tocar jazz nesta cidade. (MORENO, 2017)
como fez com Edison Machado, sentando-se ao lado deles durante a performance, observando
suas gestualidades, conversando com eles nos intervalos dos shows, conhecendo seus
procedimentos de trabalho, suas aspirações estéticas, suas dificuldades, enfim, estando muito
atento à todas estas coisas. Foi neste momento que Moreno teve contato com o termo “bateria
melódica”, conceito que discutimos no primeiro capítulo deste trabalho. Acerca disto, Moreno
afirma:
A primeira vez que eu ouvi este conceito foi através de uns amigos meus de Nova
York, músicos de jazz norte-americanos, falando entre eles: “eu gosto de Fulano e
gosto de Sicrano. O Sicrano é um baterista rítmico e o Fulano é baterista melódico.
Não é que eles quisessem desmerecer um e pôr o outro em evidência. Eu entendia
que para eles tudo tem o seu valor. E eu concordo com eles. Tem muito músico,
inclusive jazzista, que prefere ter na cozinha (sessão rítmica) aquele negócio rítmico
mesmo enquanto ele faz o que quiser como solista. Nesta situação, o ritmo está
literalmente atrás no som do conjunto. Já o baterista melódico interage
completamente com o grupo não apenas com o piano e o baixo, mas, principalmente,
com o solista. (MORENO, 2017)
É a partir deste momento que Moreno se deu conta de que a forma mais colaborativa
de prática de bateria da qual Edison Machado se apropriara por influência do Jazz, recebera
um nome entre os músicos norte-americanos com a finalidade de classificar abordagens
distintas entre os bateristas. É claro que os padrões tocados no Sambajazz eram diferentes dos
padrões realizados pelos bateristas norte-americanos, já que os materiais eram diferentes -
Samba e Bossa Nova no Brasil enquanto se tocava Jazz e Blues nos EUA. Contudo, havia
similaridades e, a principal delas era em relação à postura profissional, pois os bateristas de
ambos estilos almejavam uma posição mais participativa, sobretudo nas situações de
improvisação, sob a defesa de um ideal de maior expressividade associado à bateria.
Ao descrever esta forma de atuação mais colaborativa dos bateristas, agora designada
como “abordagem melódica”, Moreno relembra a atuação de um de seus bateristas favoritos,
o norte-americano Tony Williams, junto a um dos Quintetos de Miles Davis (1964-1968):
Mas o que é este conceito de baterista melódico? É o músico que toca não somente o
ritmo, mas ele está com o solista e com a base o tempo inteiro. Não é só o ritmo,
pinta também muita cor. Por exemplo, nos anos 1960 havia aquele Quinteto que
você naturalmente conhece com Miles Davis, Ron Carter, Tony Williams, Herbie
Hancock e Wayne Shorter (...). Chamava-me muito a atenção a forma como, com
uma percutida no ton-ton, ele [Tony Williams] gerava aquela sonoridade linda. A
gente na época estava muito ligado no pianista Herbie Hancock e nas harmonias que
ele tocava. Bem, até hoje ele toca, não é? Acontece é que quando o Tony Williams
ouvia estes acordes ele coloria o som da harmonia com o som do seu ton-ton. É
claro que tinha a resposta do bumbo e a maneira de fazer o crash no prato que é ele
quem faz e desconheço outro. Mas em se tratando de colorir, a gente costumava
dizer assim: Ele [Tony Williams] completou o acorde das estrelas. Quero dizer
estrelas do céu mesmo! É incrível a forma como Herbie Hancock toca os acordes
67
com a mão esquerda e combina sua linguagem de improvisar com a mão direita em
passagens muito rápidas e com uma escolha de notas que são belíssimas até hoje. É
evidente que o Tony Williams percebia e buscava destacar isto o tempo todo. Por
isso, parece que ele está com Hancock ou Wayne o tempo inteiro do início ao final.
Ele não está dando só um ritmo de apoio, ele está com os caras. (...) Só percebiam,
quer dizer, um músico que está ali e não é baterista talvez nem notasse, mas quem
era baterista notava e via a cor vir junto. E o [Herbie] Hancock muitas vezes sorria
porque eles estavam juntos. (MORENO, 2017)
A partir desta descrição, Moreno utiliza a palavra cor para designar a ideia de timbre.
Neste sentido, a sonoridade de um acorde tocado pelo pianista, por exemplo, teria, além de
suas notas empilhadas no mecanismo de intervalos, o som do tambor somado a esta estrutura.
Para Moreno, a intenção de Tony Williams não era tocar ritmicamente junto do acorde, mas
também harmonicamente, de maneira que a frequência dos tambores se adequasse às
frequências dos acordes. Contudo, essa adequação se dá de forma aproximada, como
apresentamos no primeiro capítulo deste trabalho, e, portanto, se trata de uma apropriação
específica realizada pelos bateristas em relação à definição de harmonização 65. Outro ponto
importante desta descrição faz referência à gestualidade do pianista Herbie Hancock, que sorri
para Tony Williams nos momentos em que este tocava o ton-ton com a intenção de compor o
timbre do acorde. Esta fala nos permite inferir que Moreno iniciou sua afirmação baseando-se
nas gravações do Quinteto de Miles Davis e, depois, passou a trazer considerações do ponto
de vista de alguém que assistiu ao vivo a este tipo de procedimento musical. Por isso, a
observação presencial de Moreno parece ter sido crucial para que ele compreendesse a
aplicação destes conceitos no que se refere à abordagem melódica da bateria. Na década de
1970, o Quinteto de Miles Davis já não contava mais com a atuação de Tony Williams, porém
este músico tocava com muitos outros artistas de Nova York e, foi numa destas situações, que
Moreno pode assistir Williams ao vivo. Além deste, Moreno também teve a oportunidade de
ver o baterista Elvin Jones. Como era um grande admirador da música do saxofonista John
Coltrane, assistir ao baterista que havia eternizado as gravações deste músico foi algo muito
revelador para Tutty Moreno. Ao relembrar esta experiência, Moreno afirma:
O Elvin [Jones] eu vi muito. Eu conhecia o som dele através das gravações e quando
vi ele ao vivo foi um choque. A técnica dele era totalmente autodidata, assim como a
maior parte dos jazzistas desta época. Era uma abordagem simples, mas os caras
tocavam mesmo. Eles tocavam o que sentiam. Esta foi uma revelação que foi fundo
65 Conforme apresentamos anteriormente, a ideia de “harmonizar” utilizada pelos bateristas seria no sentido de
aproximar os timbres. Por exemplo, o baterista procura tocar tambores mais graves para trechos em que a
harmonia apresenta acordes com mais tensão ou trechos em que há um pedal harmônico. A ideia aqui não é tocar
uma das frequências destes acordes, mas sim compor o timbre “escuro” que alguns destes acordes podem
provocar no resultado sonoro do trecho tocado.
68
e me pegou mesmo. (...). Acho que ver o Elvin e sua naturalidade tocando foi algo
que realmente me emocionou. E o Tony Williams idem. (MORENO, 2018)
Moreno parecia, sob o ponto de vista filosófico, vivenciar uma epifania ao assistir o
modo como Elvin Jones performava ao vivo. Contudo, é preciso compreender que tanto Elvin
Jones quanto Tony Williams, eram bateristas que se utilizavam de recursos técnicos
conhecidos como rudimentos66 em suas performances de Jazz e que, portanto, partiam de um
mesmo referencial de atuação que a maior parte dos bateristas norte-americanos. Para Moreno,
o que os destacava dos demais era justamente o fato de que Tony e Elvin eram a
materialização dos novos horizontes acerca da expressividade em bateria. Era como se a
investigação de Moreno, que se iniciara anos atrás com Edison Machado, chegasse a um novo
momento em que a prática destes bateristas revelariam ainda mais possibilidades artísticas
dentro da performance em música. Portanto, entender a forma como estes bateristas
associaram o conhecimento técnico dos rudimentos transformando-os em recursos
expressivos, começava a se delinear como um caminho de trabalho para Moreno em sua busca
por uma atuação mais colaborativa em bateria. Ao tratar sobre um dos aspectos que lhe
chamaram a atenção na atuação de Elvin Jones e Tony Williams, Moreno aponta:
Tony e Elvin são duas coisas completamente diferentes, embora os dois sejam
criativos num nível assim altíssimo. Ambos são muito melódicos só que o Elvin
possuía uma forma de tocar mais ligada às tercinas (cantarola padrões em tercina de
Elvin). (...) [Já em relação a Tony Williams] os norte-americanos costumam dizer
que não eram seus padrões rítmicos (padrão no prato pipirim piripirim), mas era a
pulsação dele que carregava o grupo. (MORENO, 2017)
A forma como Elvin utilizava as tercinas e a maneira como Williams evidenciava sua
pulsação, independente dos padrões tocados, demonstram novos assuntos de interesse para
Moreno. Além disso, estes recursos eram desdobramentos das práticas composicionais e
interpretativas que estavam em curso no Jazz naquele momento (década de 1970). A ideia
parecia ser transgredir os limites conhecidos para o estilo, tanto do ponto visto interno -
rejeitando as estruturas de 12 ou 32 compassos, rejeitando as principais progressões
harmônicas típicas destas estruturas, rejeitando o timbre obtido nos registros confortáveis dos
66 Rudimentos são uma série de padrões de movimentação de baquetas que foram criados, durante séculos, para
o ensino da percussão num contexto militar. O documento mais antigo acerca do assunto data de 1612 na Suíça.
No século XX, a prática de bateria do Jazz foi influenciada por tais padrões uma vez que forneciam as bases para
o estudo da coordenação entre as mãos, além de permitir compreender e analisar longos trechos rítmicos a partir
de sua decomposição em trechos menores. Segundo a Percussive Arts Society uma analogia entre o estudo de
percussão e o de piano pode ser feita no sentido de comparar a prática das escalas aos padrões rudimentares
compreendendo ambos como sendo recursos técnicos que auxiliarão os músicos a aprenderem peças musicais
completas. Extraído do DVD The Rudiment Project. 2008 [vídeo-DVD] EUA: Percussive Arts Society
69
instrumentos, rejeitando a noção de pulso regular estável -, quanto do ponto de vista externo -
buscando aplicar os procedimentos da improvisação também em relação à outros estilos como
Funk, Rock, Rhythm and Blues e Jazz Latino. Posteriormente, definiu-se a primeira corrente
como Free Jazz e a segunda como Jazz Fusion, contudo, as ações dos músicos em relação a
estas correntes não se limitavam a uma ou outra vertente, mas sim faziam parte de uma
postura com vistas a romper as regras que caracterizavam e, ao mesmo tempo, limitavam a
ação criativa do Jazz.
Em seu artigo intitulado A Sense of the Possible: Miles Davis and the Semiotics of
Improvised Performance (1995), Christopher Smith, analisando a forma como Miles interagia
com os músicos em seus conjuntos, aponta para como se dava este processo de criação de novos
padrões musicais. Para o autor, o trompetista não esperava algo inovador de imediato, mas sim
estimulava à criação a partir dos padrões que os músicos já tocavam. Nas palavras de Miles:
70
Olha, se você coloca um músico em um lugar onde ele tem que fazer algo diferente
do que ele faz o tempo todo, então ele pode fazer isso, mas ele tem que pensar de
uma forma diferente para fazê-lo. Ele tem que usar sua imaginação, ser mais criativo,
mais inovador, ele tem que correr mais riscos. Então ele estará mais livre, esperará
as coisas de maneira diferente, antecipará e saberá que algo diferente está por vir. Eu
sempre disse aos músicos da minha banda para tocar o que eles sabem e depois tocar
acima disso. Porque então, tudo pode acontecer e é aí que surgem grandes obras de
arte e música. (Davis, 1991 apud SMITH, 1995: 43, tradução nossa)67
Miles Davis utiliza a palavra livre para designar a postura dos membros do seu grupo
em relação às suas formas de performar numa situação musical. Comparado com a música
que ele fazia nos anos 1960, a forma livre a que este compositor faz referência oferece um
ambiente com outros tipos de restrições como ciclos harmônicos diferentes daqueles de 12 ou
32 compassos, combinações harmônicas com poucos acordes, poucas melodias compostas
previamente (procedimentos atribuídos ao Free Jazz), além do uso da estruturação rítmica e
harmônica de estilos com Funk e Rock (procedimento atribuído ao Jazz Fusion). Neste
sentido, os performers teriam de reagir a outras regras numa situação de improvisação
“libertando-se” dos clichês praticados até então. Em uma declaração colhida por Marques
(2013), Airto Moreira afirma que o próprio ato de tocar era facultado aos performers como
uma das possibilidades de ação junto ao grupo de Miles no período, desprendendo os músicos
de qualquer função estabelecida previamente. Para Airto isto completou sua concepção
enquanto músico (MARQUES, 2013: 38).
A oportunidade de trabalhar com Miles Davis e outros músicos ligados a estas novas
formas composicionais e interpretativas do Jazz68, parece ter influenciado Airto durante toda a
década de 1970. Em 1972 ele lançou o disco intitulado Free (CTI Records) fazendo referência
a esta postura de performance em voga entre os principais artistas da música improvisada do
período. Além disso, Airto seria um possível elo de ligação entre músicos brasileiros e estas
novas ideias de atuação profissional. Um destes músicos seria Hermeto Pascoal:
Hermeto gravou seu primeiro disco, Hermeto, nos EUA a convite de Airto e Flora, em
1971. Airto, que a esta altura já estava abrindo portas para outros músicos brasileiros
no mercado norte-americano, aparece como produtor do disco, além de baterista e
percussionista. (MARQUES, 2013: 40)
67
See, if you put a musician in a place where he has to do something different from what he does all the time,
then he can do that but he's got to think differently in order to do it. He has to use his imagination, be more
creative, more innovative; he's got to take more risks. So then he'll be freer, will expect things differently, will
anticipate and know something different is coming down. I've always told the musicians in my band to play what
they know and then play above that. Because then anything can happen, and that's where great art and music
happens.
68
Além de Miles Davis, Airto gravou o primeiro disco do grupo Wheter Report, o disco Return to Forever de
Chick Korea, além de ter trabalhado com Cannoball Adderley, Wayne Shorter, Stan Getz, Paul Desmond, Keith
Jarrett, Hubert Laws, Gil Evans, Freddie Hubbard, e muitos outros. (MARQUES, 2013: 40)
71
Já existia essa maneira de tocar nos anos 1960. Eu falo aqui dos grupos de
Sambajazz. Mas, quem primeiro fez uma música mais elástica neste sentido, foi o
Hermeto [Pascoal]. Sem sombra de dúvidas. Naqueles primeiros discos dele. Aquilo
era uma maravilha. (...) O grupo então formado por Hermeto Pascoal, pelo baterista
Nenê (Realcino Lima Filho), o contrabaixista Alberto de Barros, um saxofonista que
já faleceu e não me lembro o nome - poderia ser Hamleto Stamato, ou Mazinho ou
Bola -, Anunciação (Antônio Ferreira da Anunciação) que era o percussionista que
revezava com Nenê. Ele (Anunciação) era genial! Super melódico. Uma
sensibilidade maravilhosa. Era baterista e percussionista. O Hermeto dava muito
valor à percussão e incentivava os bateristas a tocarem de formas diferentes do
convencional. Havia espaço na música do Hermeto para que o baterista
experimentasse outras formas de tocar. E isto abre também a sua visão. (MORENO,
2017)
Contudo, estas novas possibilidades ainda estariam no campo das pretensões de Tutty
Moreno, uma vez que o trabalho de música na cidade de Nova York em 1975 apresentava
outros tipos de demanda e Moreno precisava corresponder com elas para garantir as condições
materiais para sua permanência na cidade.
Assim como Hermeto Pascoal, a figura de Airto Moreira aparece como uma possível
conexão entre Moreno e outros músicos de Nova York como o contra-baixista Walter
72
Booker69. Além de Booker, Moreno atuou ao lado de Larry Willis (piano), Frank Clayton
(contra-baixo), dos brasileiros Dom Salvador (piano) e Guilherme Vergueiro (piano). De 1975
a 1980, Vergueiro era o músico e também o responsável pela direção musical da casa noturna
“Cachaça” uma das únicas casas de Nova York especializadas em música brasileira. Acerca
disso, Moreno relembra:
Inaugurou uma casa em que a ideia dos proprietários era levar música
brasileira. Esta casa chamava-se Cachaça. Nós suspeitávamos que esta casa
era ligada a máfia ou algum tipo de lavagem de dinheiro. Mas nós não
estávamos nem aí. Nós queríamos e precisávamos trabalhar e não ligávamos
para aquilo. Então tinha o grupo da casa que era composto por Dom
Salvador e eu. (MORENO, 2017)
Foi nesta casa também que Tutty Moreno conheceu a cantora e compositora carioca
Joyce70 que estava de passagem por Nova York atuando junto de um grupo liderado pelo
baterista Hélcio Milito. Acerca disto, Moreno relembra:
Quando nós nos conhecemos eu estava dando uma canja nesse clube
(Cachaça) a convite do Hélcio Milito, isto depois da casa inaugurada. A
gente revezava. Eu fazia parte da banda da casa e Hélcio tocava bateria na
banda em que Joyce atuava. Uma vez o Hélcio me pediu para tocar uma
música no lugar dele e depois, no final do set, Joyce me procurou,
particularmente, e fez o maior elogio que alguém havia feito sobre minha
forma de tocar: você toca como se tivesse dirigindo um carro conversível.
Ali eu entendi tudo no ato! (MORENO, 2017)
É a partir deste momento que eles começam a namorar iniciando sua parceria musical
e familiar. Nas palavras de Moreno, com Joyce “não foi somente o matrimônio, mas sim o
todo. Um casamento de ideias e concepções que me deram a oportunidade de tocar desta
forma [abordagem melódica da bateria] também no universo da canção” (MORENO, 2017).
69
Marques (2013) aponta que no estúdio de ensaios de Booker, Airto Moreira teria conhecido Cannoball
Adderley, Thelonious Monk e Joe Zawinul e que, a partir deste último, viria a indicação para participar do grupo
de Miles Davis, momento da grande virada na carreira musical de Airto. (MARQUES, 2013: 34-35)
70
Ao longo de uma carreira internacional, Joyce (também conhecida como Joyce Moreno) gravou mais de 21
discos solo e mais de 300 de suas músicas foram gravadas por alguns dos maiores nomes da música brasileira e
internacional, como Flora Purim, Milton Nascimento, Elis Regina, Gal Costa e outros. Suas composições foram
apresentadas em trilhas sonoras de televisão, teatro e cinema, como The Player, de Robert Altman. Em turnê
internacional a cada ano, ela se consolidou como uma artista original com uma voz distinta e um estilo de
composição pessoal, celebrando predominantemente sua feminilidade. Extraído do site allmusic.com acessado
em maio de 2018 através do link https://www.allmusic.com/artist/joyce-mn0000292876/biography Tradução
realizada pelo autor deste trabalho. Texto original: Over the course of an international career, Joyce (aka Joyce
Moreno) has recorded over 21 solo discs and over 300 of her songs by some of the greatest names in Brazilian
and international music, such as Flora Purim, Milton Nascimento, Elis Regina, Gal Costa, and others. Her
compositions have been featured in television, theater, and film soundtracks, such as The Player by Robert
Altman. Touring internationally every year, she consolidated herself as an original artist with a distinctive voice
and a personal compositional style predominantly celebrating her femininity.
73
2.3 – A Volta ao Brasil, a parceria com a cantora Joyce e a década de 1980 (1978-1989)
Ao tratar sobre a permanência de Airto Moreira nos EUA, Marques (2013) aponta para
o fato de que havia, no mercado de Jazz, um interesse pela atuação de ritmistas brasileiros
enquanto percussionistas e não bateristas. Deste modo, gradualmente, Airto foi vertendo sua
produção, sempre interessado em corresponder com esta demanda, ao oferecer trabalhos em
que sua atuação como percussionista fosse evidenciada. Embora Tutty Moreno tivesse
gravado percussão nos discos de Gilberto Gil (Expresso 2222), a escolha por atuar como
percussionista foi algo que Moreno se privou durante sua estada nos EUA. Ao responder
sobre esta dinâmica de atuação profissional no mercado norte-americano, ele afirma:
Eu nunca quis [atuar como percussionista]. É que lá tem uma coisa que eu acredito
que tenha a ver com um brio meu acerca da atuação de bateristas brasileiros. Hoje
em dia eu penso que era uma bobagem minha. Mas eu tinha um grilo com os
norte-americanos, especificamente, porque aos bateristas brasileiros restava apenas
trabalhos como percussionista. Os trabalhos de baterista costumavam ser ocupados
por músicos norte-americanos. Isto acontecia com outros músicos como Tom Jobim
e Oscar Castro-Neves, por exemplo, que, em seus discos tocavam o que queriam,
mas atuando com artistas norte-americanos, teriam de tocar violão ao invés de piano
que era o instrumento deles. Eu via esta situação e ficava revoltadíssimo. Por isso,
eu me colocava nos trabalhos como baterista e dizia que se fosse necessário tocar
percussão, seria melhor procurarem outro músico, já que eu atuaria apenas como
baterista. E por conta disso eu fechei algumas portas lá nos EUA. (MORENO, 2018)
Moreno parece estar ciente de que poderia ter vertido sua atuação profissional para a
prática de percussão nos EUA e, por isso, talvez não tenha conseguido se inserir no mercado,
como fizeram Airto Moreira, Dom “Um” Romão, Paulinho da Costa, Hélcio Milito. Contudo,
voltar para o Brasil guardava também um importante universo de possibilidades, em que ele
poderia retomar os trabalhos com os principais artistas brasileiros com os quais já havia
trabalhado. Porém, naquele novo momento, Moreno carregava consigo as vivências musicais
71 Joyce em entrevista realizada por Daniela Aragão para o site acessa.com em 06/10/2014. Acessado em
maio de 2018.
https://www.acessa.com/cultura/arquivo/musica/2014/10/06-entrevista-com-a-cantora-e-compositora-joyce-more
no/
74
que tivera no mercado norte-americano estando ainda mais experiente. Ainda, a possibilidade
de atuação junto de Joyce demonstrava-se como uma grande oportunidade para Moreno dado
o grau de afinidade entre os dois. Segundo Moreno, Joyce entendeu sua forma “melódica” de
tocar muito rapidamente, desde sua participação junto ao grupo do qual ela fazia parte em
Nova York (1977). Ao descrever sua atuação no universo musical, Joyce fornece algumas
pistas acerca de sua inclinação pelo criar em relação ao interpretar:
Eu não sou cantora, sou músico. É outra prateleira. Cantora é outra coisa e o Brasil
tem cantoras espetaculares. Tem algumas que estão entre as grandes cantoras do
mundo, eu não faço parte desse mundo das cantoras e dos cantores. Faço parte de
um outro mundo, que é um mundo de músicos, compositores. Tudo é um
pensamento musical meu que expresso de várias maneiras, seja compondo, tocando
ou cantando. Essas coisas são expressas através dessas ferramentas que possuo, do
canto, do violão, da composição. Eventualmente um arranjo que faço, pois todas as
canções que crio organizo da maneira que quero, orquestração não sei fazer, mas
arranjo faço. Então trabalho muito com esse pensamento. Não se trata de um
trabalho de cantora, de intérprete, embora eu faça isso também dentro do meu
universo, mas é outra coisa. Adoro Dori cantando, é uma de minhas vozes preferidas,
mas se você lhe perguntar se é cantor, certamente ele vai dizer que não. O que Dori
faz é outra coisa, inclusive ele é um orquestrador. São outros universos.72 (Joyce em
entrevista para o site acessa.com 06/10/2014)
72 Joyce em entrevista realizada por Daniela Aragão para o site acessa.com em 06/10/2014. Acessado em
maio de 2018.
https://www.acessa.com/cultura/arquivo/musica/2014/10/06-entrevista-com-a-cantora-e-compositora-joyce-more
no/
73 Moreno em entrevista realizada por Roberta Pennafort para o jornal O Estado de São Paulo em 21/02/2011.
Acessado em maio de 2018.
https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,o-som-cheio-de-afeto-de-joyce-e-tutty-imp-,682208
75
Era completamente diferente de tudo. Depois vim a saber que ele tinha sido
saxofonista antes, o que explicou muita coisa. Eu tinha um pensamento musical
bastante claro na minha cabeça que eu não tinha conseguido realizar aqui no Brasil,
e ele também. Acabou que ficou uma marca do meu trabalho esse encontro musical
da gente. (Joyce em entrevista para o jornal O Estado de São Paulo em 21/02/2011)
Embora tivesse trabalhado no universo da canção brasileira com vários outros artistas,
Tutty Moreno se dizia frustrado com a quantidade de limitações impostas por demandas de
produção que lhe faziam sentir-se “preso” ao performar como baterista. Contudo, o
pensamento musical de Joyce parecia fornecer um espaço único em que este baterista poderia
atuar com uma liberdade poucas vezes experimentada por ele em se tratando de canção. Em
outras palavras, Joyce visualizava os interesses musicais de Moreno dentro de suas
composições, valorizando-os enquanto parte do todo de sua criação. Acerca disso, ela afirma:
Ele [Tutty Moreno] é um super músico, e não sou eu dizendo, mas a geral... Ele tem
um lance de tocar 'para a música' que poucos bateristas têm, uma sutileza, uma coisa
de transformar a bateria num instrumento harmônico e melódico - ele ouve o que os
outros músicos estão tocando, e toca de acordo, interage musicalmente, não é só
manter o andamento e o tempo, é fazer música mesmo. Então quem é do ramo e
conhece, fica doido pra tocar com ele. É criação rolando direto, sem previsão, tudo
muito livre, muito solto, bom demais. E a gente começou assim, eu me apaixonei
pelo som dele e ele pelo meu. E fomos construindo um lance juntos ao longo do
tempo, além de casamento e família, mas tem uma linguagem musical que
construímos juntos. (Joyce em entrevista para o site acessa.com em 06/10/2014)
Aliás, a forma como Moreno atuou em algumas faixas desta gravação - destaque para
a faixa título Feminina, por exemplo - parecem fazer referência a linguagem de Sambajazz de
Edison Machado.74 Embora Moreno toque de maneira a “figurar” junto da melodia principal
74 Em bateria, o padrão associado aos pés no Sambajazz faz referência ao uso da figura colcheia pontuada e
semicolcheia que fora adaptada pelos bateristas ao observarem um típico uso desta figura que os percussionistas
76
executada pela voz, é nas situações de improvisação que ele parece variar ainda mais seus
padrões musicais fazendo referência ao formato mais colaborativo de atuação quanto baterista.
Além disso, há faixas como Banana em que Moreno demonstra seu mecanismo de elaboração
rítmica utilizando materiais provenientes do repertório musical nordestino do Brasil como o
Baião e o Xaxado de maneira similar aos padrões executados pelo baterista Nenê (Realcino
Lima Filho) nas gravações de Hermeto Pascoal do mesmo período75 (Hermeto Pascoal ao
vivo em Montreux, WEA, 1979). Como citamos anteriormente, Moreno já estava atento ao
trabalho de Hermeto Pascoal, dizendo se tratar de uma forma de composição mais “elástica”,
dotada de certo ineditismo dentro daquilo que se fazia quanto música instrumental no Brasil
da década de 1970. Portanto, Moreno poderia estar influenciado também por estes padrões
advindos da música instrumental que estava sendo feita por aqui. Ainda, ao referir-se aos seus
processos de criação junto de Joyce, Moreno demonstra uma dinâmica de proposição de
ideias em que, ora ele a influencia, ora é influenciado por Joyce. “Houve uma época em que a
Joyce fez algumas composições em cima do que eu estudava. Muitas vezes eu estava
estudando em casa e de repetente vinha uma inspiração para ela que era baseada naquilo que
eu estava tocando” (MORENO, 2017). Neste sentido, as proposições de Moreno, advindas da
música instrumental, poderiam acabar influenciando Joyce em seu trabalho de canção.
Embora sua parceria com Joyce estivesse desenvolvendo-se com profícua fluidez, a
década de 1980 seria um período de dificuldades de trabalho para Tutty Moreno. Neste
período, o Brasil passava por uma grave crise econômica ocasionada pelo endividamento
externo e acelerada taxa de inflação:
da década de 1950 faziam ao tocar o surdo nos conjuntos de samba da época. Ao adicionar o hi-hat tocado com o
pé esquerdo no contra-tempo, esta estrutura ficou conhecida entre os bateristas como bumbo à dois. Já em
relação às mãos, estas realizam linhas rítmicas adaptadas do tamborim entre os pratos, caixa e ton-tons.
(BARSALINI 2009: 85-89)
75 De maneira similar ao samba, para tocar o Baião, os bateristas elaboraram padrões musicais a partir da
adaptação dos instrumentos de percussão típicos deste estilo, associando seus timbres, sua forma de tocar e sua
métrica à dinâmica da bateria. Em relação a este procedimento aplicado por Nenê no grupo de Hermeto Pascoal,
Marques (2013) faz referência a um ritmo que seria a soma de Baião e Xaxado no qual o bumbo tocaria os sons
graves do zabumba (primeira e quarta semicolcheias do primeiro tempo e terceira semicolcheia do segundo
tempo), enquanto que a caixa e o prato, em uníssono, fariam o preenchimento de todas as semicolcheias que não
seriam tocadas pelo som grave. Assim, a caixa e o prato tocariam a segunda e terceira semicolcheias do primeiro
tempo e a primeira, a segunda e a quarta semicolcheias do segundo tempo. Este procedimento pode ser
evidenciado em transcrições de Airto Moreira (MARQUES, 2013: 89), além da transcrição deste padrão a partir
do livro Realcino Lima Filho (Nenê) A bateria no século XXI Ritmos Brasileiros Feito de maneira independente,
São Paulo (2008), p. 28
77
Além do trabalho com Joyce em meio à esta crise, ao retornar ao Brasil, Tutty voltou a
fazer parte da banda da cantora Maria Bethânia, em apresentações no Brasil e no exterior.
Embora este dado pareça configurar uma situação em que Moreno estivesse empregado, em
meio a acelerada inflação, ele ainda assim tinha dificuldades para equilibrar suas despesas
familiares. Acerca deste período, Moreno relembra:
(...) era um período difícil para se trabalhar com música no Brasil. Joyce e eu
começamos a fazer qualquer coisa, muitas vezes tocando em casas noturnas que não
tinham a ver com a música que fazíamos. (...) E de repente virar um músico da noite
também é um desastre. Para nós que queríamos viver da música que compúnhamos,
tocar o repertório de músicas da noite seria uma situação muito difícil. (...). Ela
[Joyce] se recusou a continuar fazendo aquilo. Nós já tínhamos quatro filhos para
sustentar. Nós éramos dois jovens músicos que fazíamos qualquer trabalho para
sustentar a família. Aí a gente parou e falou: a coisa tá indo para um lado que a gente
não quer. (MORENO 2017-2018)
Diante desta situação, Tutty e Joyce decidiram reorganizar sua estrutura de trabalho ao
passo de se manterem atuantes enquanto compositores, mesmo em condições restritas de
veiculação de seus materiais autorais:
A gente (Tutty e Joyce) tem um duo que surgiu por conta de uma adversidade. Na
época do ex-presidente [Fernando] Collor [de Mello] ficou dificílimo trabalhar com
música. Foi uma “brabeza”. Não tinha jeito, não havia condições de levar os
músicos e então começamos a fazer shows em duo. (...) A Joyce contratou uma
pessoa [Túlio Feliciano] para dirigir um show novo em que ela atuava sozinha - só
voz e violão. Foi a primeira vez que ela fez isso. Era um show lindo chamado
Quadrantes.77 (MORENO, 2017)
De início, foi muito mais difícil. Joyce foi fazer shows solo e eu tinha a intenção de
entrar para uma orquestra do Rio de Janeiro e virar funcionário público. Isto seria
um desastre para mim, mas era o que eu podia fazer naquele momento. Se tivesse
seguido por este caminho eu entraria numa infelicidade que você não faz ideia. Eu
jamais seria um músico clássico. Era minha última opção e faria aquilo por
necessidade. (MORENO, 2018)
Outro ponto negativo parece ter sido o contato com o rigor técnico de seu instrutor.
Contudo, Moreno pondera ao dizer também que se tratava de uma experiência em que tirou
proveito dos estudos. Ao relembrar as aulas de música deste período, ele afirma:
77 Embora a figura do ex-presidente citado esteja ligada ao final dos anos 1980 e início de 1990, Moreno
parece fazer referência a eventos ocorridos nos anos anteriores ao governo de Collor. No site oficial de Joyce, o
show ao qual Moreno se refere aconteceu em 1985. Consulta através do link
https://www.joycemoreno.com/joyce-moreno-%E2%80%93-sobre.html em junho de 2018.
79
um grilo enorme. Hoje eu toco com o traditional grip (mão direita e esquerda
seguram as baquetas de formas diferentes) na mão esquerda, mas antes eu tocava
com a mão assim (demonstra o match grip em que a mão direita e esquerda seguram
a baqueta da mesma forma). Ele me traumatizou porque era muito rígido com este
negócio da técnica. Só que ele me ensinou muitas coisas também. O que é que ele
fazia. Ele ia me ver tocar e ficava escondido só me observando. Quando eu chegava
na aula ele tinha criado exercícios para me corrigir. Ele me apontava o que ele
julgava serem os meus vícios ao tocar. Ele me ensinou a criar os meus próprios
exercícios e foi a partir desta experiência que entendi que a coordenação também te
abre à musicalidade gerando caminhos para que você desenvolva a sensibilidade
necessária ao tocar melodicamente. (MORENO 2017-2018)
Nas palavras de Moreno, ainda que de uma forma incômoda, seu professor contribuiu
significativamente para que ele desenvolvesse percepções que lhe foram proveitosas acerca da
abordagem melódica associada à bateria. A maneira como seu mentor organizava exercícios
técnicos lhe servira de exemplo para começar a construir seus próprios exercícios. Trataremos,
pormenorizadamente, sobre eles no próximo capítulo deste trabalho. Ainda, como estudava
percussão sinfônica, Moreno teve contato com a Marimba, o Vibrafone e os Tímpanos que,
por se tratarem de instrumentos com alturas definidas, diferenciavam-se da forma como
Moreno atuava ao tocar bateria. Embora tenha estudado para ingressar na orquestra, Tutty não
conseguiu efetivar-se enquanto percussionista principal do grupo, atuando apenas como
músico substituto em algumas ocasiões.
O “caminho lá de fora” a que Moreno se refere seria o mercado musical fora do Brasil.
Em 1985, Joyce e Tutty receberam o convite para realizarem shows na Rússia e no Japão e
dali em diante, iniciaram uma carreira internacional juntos, indo regularmente para a Europa e,
principalmente, para o Japão.78
Embora tenha gravado seu primeiro disco solo (Tutty Moreno and Friends Tocando,
Sentindo e Suando, Far Out Recordings) em 1981, Moreno só lançaria este álbum em 1996. Isto
se deu por conta da aproximação que o músico teve junto do selo inglês Far Out Recordings
somente na década de 1990, quinze anos depois de ter gravado o disco. Além das idas
constantes ao Japão, Moreno e Joyce estabeleceram também um contato inicial com a Inglaterra
através da figura dos Disc Jockeys londrinos. Segundo Joyce, estes DJs tocavam sua música nas
pistas de dança da cidade. Acerca da carreira internacional, ela afirma:
Em 1988 fui para a Europa fazer meus primeiros shows, embora já tivesse antes ido
com Edu Lobo. Em 1989 tive um convite da Verve para gravar um disco, na verdade
A partir do contato com o público inglês, Joyce e Tutty, que já vinham atuando no
mercado Europeu desde 1988, acabaram estabelecendo relações comerciais ainda mais sólidas,
pois, ao receberem o convite do selo Far Out Recordings, eles teriam uma parceria que
viabilizaria ainda mais a difusão de seus trabalhos na Europa, uma vez que o selo produziria e
lançaria discos feitos pelo casal nestes territórios. Outra evidência desta inserção internacional
se deu no Japão, onde Tutty Moreno estabeleceu uma relação profissional junto à empresa
Canopus, uma das principais marcas de bateria em circulação pelo mundo. Acerca disso,
Moreno afirma:
A Canopus me deu quatro baterias. Mas hoje guardo lá em casa apenas duas. Uma
delas, que eu nunca vou me desfazer dela porque é o protótipo 001 da marca, é um
instrumento que eu tenho um carinho muito grande. Outro dia eu estava falando com
o presidente da companhia numa dessas idas para lá (Japão). Antes de qualquer
coisa nós somos muito amigos e isso se deu num relacionamento não profissional,
mas pessoal de amizade e respeito. Eu sou o único endorse dele que não usa contrato
nenhum. Eu não preciso prestar contas do que eu tenho feito e como tenho
divulgado a marca. Na última vez que fui para lá (Japão) foi em agosto de 2016. Nós
sempre saímos para almoçar juntos e nesta conversa eu disse: O Shinichi Usuda,
você já se deu conta que eu tenho o modelo 001 da Canopus? Enfim, temos uma
relação de trabalho desde 1988. (MORENO, 2017)
De fato, Moreno é um dos primeiros artistas patrocinados pela empresa que fora
fundada em 1981. Ao tratar sobre sua relação com o presidente da Canopus, Tutty parece
demonstrar intimidade em uma parceria de longa data.
Além do trabalho de canção junto à Joyce, na década de 1990, Moreno passou a atuar
com mais frequência no cenário de música instrumental de São Paulo. Em 1996, Tutty fazia
parte do Quarteto Livre, grupo formado por ele na bateria, Sizão Machado no contra-baixo,
Teco Cardoso nos saxofones e Mozar Terra no piano. No mesmo ano, ocorreu o lançamento
do disco Pra Que Mentir (selo Lumiar, 1996) um importante registro da atuação do grupo no
79 Joyce em entrevista realizada por Daniela Aragão para o site acessa.com em 06/10/2014. Acessado em maio
de 2018.
https://www.acessa.com/cultura/arquivo/musica/2014/10/06-entrevista-com-a-cantora-e-compositora-joyce-more
no/
82
período. Acerca disso, uma nota escrita pelo jornalista Carlos Calado descreve, em poucas
palavras, o tipo de música feita pelo quarteto:
Da mesma forma como Joyce e Tutty pareciam ter as mesmas influências advindas da
Bossa Nova, do Sambajazz e do Jazz, e isto lhes conferia uma grande afinidade musical, neste
novo trabalho, Moreno colocou sua abordagem melódica a serviço do conjunto que também
parece compartilhar das mesmas influências. No repertório do disco, há canções tocadas no
formato instrumental como Pra Que Mentir? (Noel Rosa e Vadico), Mistérios (Maurício
Maestro e Joyce), Se Você Disser Que Sim (Vinicius de Moraes e Moacir Santos), Sue Ann
(Tom Jobim), Aos Pés da Cruz (Marino Pinto e José Gonçalves), além de composições dos
integrantes como Só, Como uma Aranha, A sereia voou e Frevo do Exílio, todas de autoria de
Mozar Terra. Embora tenhamos tratado aqui acerca do caráter da palavra livre estar associado a
procedimentos musicais que se opunham ao que se fazia musicalmente nos anos 1960, a escuta
do disco parece remeter a uma forma de atuação musical bastante influenciada pelo Sambajazz
que data desta década. A diferença, porém, se dá nos timbres dos instrumentos, de maneira
especial em relação ao uso do contra-baixo elétrico fretless (sem trastes) fazendo
acompanhamentos e melodias que não eram comuns para as gravações deste estilo. Portanto, a
palavra livre que faz parte do nome e do conceito do quarteto parece estar mais associada a
presença de improvisações de influências Hard-Bop e Cool Jazz sobre um repertório de música
brasileira do que fazendo referência aos procedimentos do Free Jazz. Acerca disso, em sua fala
para Carlos Calados, Moreno destaca:
Segundo Tutty Moreno, os frequentes shows do grupo no bar Sanja, em São Paulo,
durante o ano de 95, foram fundamentais para que a música do Quarteto Livre se
desenvolvesse. "O Sanja foi o nosso laboratório. Ali o nosso trabalho amadureceu",
diz o baterista, que define a música do grupo como "jazz brasileiro". "Tocamos
80
Extraído de uma nota escrita por Carlos Calado para o jornal Folha de São Paulo em 21/03/1997. Acessado
através do link https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/3/21/ilustrada/16.html em junho de 2018
83
O bar Sanja citado por Tutty Moreno era um estabelecimento bastante conhecido entre
os músicos ligados ao Jazz na cidade de São Paulo. Giba Favery (2018), baterista paulistano
que iniciava sua carreira musical em fins dos anos 1980 e início dos 1990, assim descreve este
estabelecimento:
Lá tocou todo mundo que fez carreira na música instrumental. Então tocou o Faísca,
Celso Pixinga, Teco Cardoso, Léa Freire, Sizão Machado, Cuca Teixeira, Maguinho,
Roberto Sion, Tutty Moreno, tinha também o grupo Zona Sul, Ricardo Silveira,
Carlos Bala, Márcio Montarroios, Hermeto Pascoal, Arismar do Espírito Santo,
Silvia Goes. Eu comecei a tocar lá quando eu tinha 19 anos com um grupo que eu
tinha com Renato Consorte e Otávio Noronha. Era sensacional! Todo dia tinha som
instrumental. Até tinham dias em que tinha canção, mas 90% da programação era
instrumental. Lá rolava Jazz e era a época do Fusion. Rolava muito fusion, mas tinha
música brasileira também. Era um lugar a ser conquistado pelos músicos. Me lembro
que a primeira vez que eu fui tocar no Sanja foi um evento para mim. Eu sai falando
para todo mundo que havia tocado lá. Era importante para os músicos serem
associados ao Sanja porque isso queria dizer que você estava começando a se
destacar no mercado musical.82 (FAVERY, 2018)
Favery (2018) afirma que, embora houvesse a predominância de estilos como Fusion
nesta época, ainda assim havia música brasileira como o som do Quarteto Livre - do qual
Moreno fazia parte - na programação musical do Sanja. Ainda, Favery destaca um certo
movimento em que os músicos viam e eram vistos neste espaço como se ele fosse um local que
unia jovens músicos, músicos experientes e o público, em um ambiente que configurava uma
identidade para os interessados neste tipo de música. Outro importante local onde era possível
se ouvir este tipo de música instrumental em São Paulo foi o Bourbon Street Music Club que
fora inaugurado também no mesmo período (1993). Contudo, como o foco desta casa foi trazer
atrações internacionais - sua inauguração contou com a apresentação do mundialmente
conhecido BB King -, o elevado custo dos ingressos e serviços fez com que se estabelecesse na
casa um público diferente daquele que frequentava o Sanja.
81
Extraído de uma nota escrita por Carlos Calado para o jornal Folha de São Paulo em 21/03/1997. Acessado
através do link https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/3/21/ilustrada/16.html em junho de 2018
82
Acervo pessoal do autor. Entrevista realizada em junho de 2018
84
Na verdade, vou falar um pouco da minha história para entender o meu ponto de
vista. Eu comecei a atuar profissionalmente como músico em 1978. Nessa época, eu
participei bastante da música instrumental que era ligada ao teatro Lira Paulistana.
Eu toquei em vários grupos como a Divina Encrenca (1980) - eu, Felix Wagner e
Azael Rodrigues - tendo gravado um único disco que leva o nome do grupo
(Independente, 1980). Depois toquei no Grupo Um (1981 e 1982) - eu, Lelo Nazário,
Zé Eduardo Nazário, Mauro Senise e o Felix Wagner - tendo feito alguns discos por
lá. E junto com estes grupos eu fundei também a banda Pau Brasil (1981) que na
época éramos eu, Nelson Ayres, Azael Rodrigues, Roberto Sion e o Hector Costita e,
logo depois, entrou o Paulo Bellinati no lugar do Costita e acabou ficando no grupo.
Pois bem, eu venho então deste momento. Nesta época, havia uma confluência de
interesses em torno da música instrumental, já que a geração da qual eu faço parte
estava compondo, gravando e tocando este tipo de música. Somado a isto havia um
certo movimento independente de cultura. Então o teatro Lira Paulistana cumpriu
um importante papel no sentido de aglutinar estes grupos e muitos outros em um
espaço em que a molecada poderia ir assistir aos shows por “cinco conto” num
lugarzinho meio ruim em um porão da Teodoro Sampaio, mas que o som rolava.
Quer dizer, nós éramos os grupos de música instrumental mais o Zona Azul, Pé Ante
Pé, o Akaru, o Orquestra Azul e também o Língua de Trapo, o Premeditando o
Breque, o Arrigo Barnabé, o Itamar Assunção, a Ná Ozzetti, o grupo Rumo, enfim,
tudo isso era uma mesma safra de gente de uma mesma geração que estava
aglutinada ali.83 (STROETER, 2018)
Logo depois que o Lira começou a explodir, digo, explodir não, mas ter um fluxo
contínuo de público, o dono do Lira Wilson Souto Jr. foi chamado pelo presidente
da gravadora Continental para ser o diretor artístico desta gravadora. Então Wilson
foi trabalhar na gravadora e capitalizou parte da produção do Lira e artistas como
Pau Brasil, Grupo Rumo, Premeditando o Breque e outros dessa época começaram a
gravar pela Continental. Então, havia a efervescência desses novos artistas e a
circulação de um público jovem no entorno do Lira com discos sendo lançados e
tudo mais. (STROETER, 2018)
83 As citações de depoimentos identificadas com o nome “STROETER, 2018” foram colhidas em entrevista
realizada pelo autor na casa deste contra-baixista em São Paulo no dia 22/03/2018. Arquivo pessoal do autor.
85
também de canção provenientes dos artistas do Lira Paulistana figurando entre os principais
lançamentos de música do país. Para Stroeter, este segundo momento teria configurado a
situação que influenciara a produção de música instrumental no começo dos anos 1990:
Portanto, havia uma situação que já não existe mais. Não havia a internet, mas havia
discos. As pessoas compravam os LPs nas lojas, havia um mercado de distribuição,
ou seja, havia um sistema distributivo dessas coisas. (...) [Nos anos 1990] ainda
havia este mercado de distribuição que vinha dos anos 1980, havia o CD que era um
formato novo de suporte para a música, haviam estes músicos criando quer seja
música instrumental ou canção, e como eu trafegava muito por aqui e pela Europa,
eu consegui colocar os discos para circularem no mercado norte-americano e
também europeu. (STROETER, 2018)
Assim como Joyce e Tutty, Stroeter também investia em uma carreira internacional
atuando como contra-baixista e também como produtor de discos. Ao aproximar-se da cena
musical de São Paulo, Tutty Moreno acabaria atuando com Rodolfo Stroeter. O disco
Astronauta (1996) de Joyce foi lançado pelo selo Pau Brasil e contou com a coprodução e a
performance de Stroeter marcando o início da parceria entre Tutty e este contra-baixista. No
mesmo ano, Moreno participou da gravação de mais um disco de música instrumental
também com músicos de São Paulo - Ninhal (selo Maritaca, 1996) de Léa Freire. Em 1997,
participou dos discos Meu Brasil (selo Núcleo Contemporâneo, 1997) de Teco Cardoso e
Pedra Bonita (selo Leblon Records, 1997) de Mario Adnet.
Tutty recebeu o convite para gravar um disco junto ao selo Sons da Bahia - selo
criado pela secretaria de cultura da Bahia através do produtor Roberto Santana. O
Roberto é um cara muito ligado aos tropicalistas e já tinha sido o produtor do
[Gilberto] Gil e do Caetano [Veloso]. Era um cara muito esperto e de um bom gosto
musical. Era atinado. Então, ele chamou o Tutty para fazer um disco dentro de uma
série de vários discos do selo. Havia discos do Gordurinha (Waldeck Artur de
84 Roberto Sant´Ana é um produtor musical que iniciou seu contato com as artes na década de 1960 na Bahia. É
primo do compositor Tom Zé e junto dele estudou artes na UFBA e esteve ligado ao movimento estudantil da
época. Credita-se a ele o ato de apresentar Gilberto Gil à Caetano Veloso. Durante a década de 1970, foi
funcionário da Philips/Polygram sendo o responsável pelo lançamento de artistas como Elomar e Fafá de Belém,
além de muitos discos de artistas já consagrados como Elis Regina, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto
Gil, Maria Bethânia, Gal Costa, Alcione, Emílio Santiago, entre outros. Extraído do Dicionário Cravo Albin da
Música Popular Brasileira através do link http://dicionariompb.com.br/roberto-santana/biografia acessado em
junho de 2018.
86
Como havia trabalhado por muitos anos no universo das gravadoras, Roberto
Sant´Ana conectou o interesse da então Secretaria de Cultura e Turismo do Estado da Bahia à
gravadora Warner neste projeto de registro fonográfico. Para Moreno, o que motivou o
conceito empregado no disco foi a busca por uma forma musical ainda mais livre de atuação
entre os músicos envolvidos:
É uma visão minha de um tipo de música que eu sempre quis fazer. Eu chamei esses
músicos – Rodolfo Stroeter, André Mehmari, Nailor Proveta – que na minha visão
podem fazer este tipo de música que eu imagino e então juntei todo mundo deste
quarteto e batizei o disco de Forças D´Alma. Isto quer dizer uma integração de
sintonia e de afinidades. Só que Forças D´Alma não é só esse lance do melódico,
mas é também da música livre interativa onde existe uma colaboração de cada um
completamente livre. (MORENO, 2017)
Este foi um disco que eu ouvi muito! E surpreendentemente, para mim, o disco saiu
muito mal saído através de uma tiragem baixa. O Tutty tinha um pouco de discos, eu
tinha outra parte e nós acabamos distribuindo entre os nossos amigos de forma
independente e, para minha surpresa, ele se espalhou na comunidade musical e virou
uma espécie de referência de um tipo de música brasileira para as gerações seguintes.
(STROETER, 2018)
88
Para o exterior, o disco saiu através do selo norte-americano Malandro Records (2000).
Já no Brasil a distribuição parece ter sido feita diretamente pelos músicos envolvidos. Dentre
as poucas notas de imprensa acerca do álbum, podemos citar a que fora escrita pelo jornalista
Tom Schulte (2007) para o site All Music:
Muitos apontam para a Europa como a terra em que o jazz emigrou, a região onde
encontrou ampla aceitação e popularidade após a marginalização na América.
Especialmente para carreiras específicas, isso é verdade. No entanto, no Brasil a arte
do jazz floresce, trazendo frutos de criatividade inigualável. O baterista brasileiro
Tutty Moreno exemplifica a face sofisticada e avançada do jazz naquele país. Em
seu álbum Forças D'Alma, ele participa de um trio de piano ao lado dos melhores
talentos de São Paulo. O instrumentista de sopros Nailor "Proveta" Azevedo faz
parte da banda nomeada ao Grammy Matiquiera. O baixista Rodolfo Stroeter
também atua no projeto de fusion Pau Brasil. O pianista Andre Mehmari é um
excepcional mestre do teclado aos 21 anos de idade. Forças D'Alma combina os
elementos da alma do jazz: emoção, melodia, improvisação de temas e a beleza do
que é apropriadamente inesperado. (SCHULTE, 2007, tradução nossa)85
Para Stroeter (2018), o trabalho lhe permitiu inserir-se em uma situação até então não
experimentada por ele em música brasileira:
Eu não fiquei para as sessões de mixagem. Acho que ficou apenas o Tutty
nesta fase. E depois me chegou uma fita cassete ou um CD, não me lembro,
mas me recordo de ficar impressionado com o resultado, pois tocamos de um
jeito muito livre. Para mim era coisa inédita fazer aquele tipo de música
brasileira daquela maneira. Havia muita abertura ali muita abstração. Acho
que há um lado muito abstrato na música que a gente faz. E assim foi.
(STROETER, 2018)
85
Tradução feita pelo autor. Texto original. Many point to Europe as the land jazz emigrated to, the region
where it found widespread acceptance and popularity after marginalization in America. Especially for specific
career paths, this is so. However, in Brazil the art of jazz flourishes, bearing fruits of unparalleled creativity.
Brazilian drummer Tutty Moreno exemplifies the sophisticated, advanced face of jazz in that country. On his
album Forces d'Alma (Forces of the Soul) he participates in a piano trio drawing on Sao Paulo's best talent. Reed
player Nailor "Proveta" Azevedo is part of the Grammy-nominated Banda Matiquiera. Bassist Rodolfo Stroeter
also provides rhythmic support in fusion project Pau Brasil. Pianist Andre Mehmari is an exceptional keyboard
master at the age of 21. Forces d'Alma combines the elements of the jazz soul: emotion, melody, theme
improvisation, and the beauty of the appropriately unexpected. Acessado através do link
https://www.allmusic.com/album/for%C3%A7as-dalma-mw0000606281 em junho de 2018
89
concreto que fora atribuído a este instrumento. Ao dizer que o resultado sonoro musical
possui abstrações, Stroeter parece fazer referência aos graus de generalizações possíveis para
se compreender as percepções provenientes da escuta do disco em questão. No caso
específico de Moreno, é possível inferir que sua “abordagem melódica”, ao executar padrões
cheios de variações, contribua para que as percepções acerca deste caráter concreto do ritmo
se percam em alguns momentos dentro da performance do quarteto. Nas palavras de Stroeter
“Tem hora que tudo vai para o espaço, mas há momentos que não” (STROETER, 2018). Ao
responder sobre as estratégias do grupo para esclarecer a cada instrumentista os padrões e
construções que eventualmente poderiam gerar uma dificuldade de percepção das funções de
cada instrumento no conjunto, Stroeter afirma que não há esta intenção tanto no trabalho com
o quarteto, quanto em outras situações de música instrumental do qual Moreno e ele façam
parte:
Isto não é nem falado! Isto já é parte destes grupos. Eles só existem porque são
assim. O fato do Tutty tocar desta forma nesses grupos já está implícito. E ele
também não gera nenhuma condicionante para a forma como você toca. A ideia é
assim: o Tutty liga e te convida para tocar. Então você aceita. Esta é toda a
informação que ele vai te dar. O resto você vai lá toca da forma como você quiser
fazer. Não existe este assunto - combinar modos de tocar. (STROETER, 2018)
Mas isto tem um preço alto. O preço é não me chamarem para fazer os trabalhos. É
claro que quem me conhece e sabe da minha forma de tocar já me chama esperando
que eu faça o meu som. Tem vezes até em que eu posso negar o trabalho, mas as
pessoas dizem que só eu faço aquilo e que precisam daquela forma de tocar em seus
trabalhos. Novamente, são sempre pessoas que me conhecem. Porque tem aquele
lance do mito também em que a pessoa nem te conhece, nem te ouviu, mas quer
você na gravação dele. Ele não te chamou pelo o que você toca, mas pela grife.
90
Enfim, por estas razões, digo que o preço é alto, pois as oportunidades de trabalho
são reduzidas. Isto gera um impacto direto na sua vida como um todo porque você
tem família e precisa sobreviver. A gente não tem aposentadoria meu amigo! Vou
tocar até quando Deus quiser. E até onde ele quiser eu estarei lá tocando. Então tem
um preço: você faz o que gosta e acredita, mas paga o preço. Se um dia você entrar
nessa você vai ver que é bom a pampa, mas tem um preço alto. (MORENO, 2018)
91
Para isto, selecionamos um material específico (disco Forças D´Alma) com vistas a
discutir este conceito em um uma situação específica de performance. Compararemos os
padrões musicais de Moreno com aqueles amplamente utilizados na prática dos gêneros
Samba e Baião para a bateria; verificaremos como se dá a organização rítmica dos padrões
desenvolvidos por este baterista em cada um destes gêneros à luz do conceito “abordagem
melódica da bateria” e que, para nós, trata-se de uma “abordagem melodicamente orientada”
da bateria; e discutiremos, ainda que brevemente, sobre a interação entre Moreno e os demais
instrumentistas do disco em questão.
86
Tratamos aqui da abordagem empregada por Jeff Hamilton e Ary Hoenig e que fora apresentada no primeiro
capítulo deste trabalho em que há a finalidade de expressar, ainda que de forma aproximada, melodias com
alturas definidas nos tambores da bateria.
92
3.1 - O Disco Forças D´Alma (1998) – Nossos Critérios de Escolha para Análise
Em contato com a extensa discografia da qual Tutty Moreno faz parte, optamos por
verter nossa investigação para sua carreira solo e, mais especificamente, seu segundo disco
como líder de grupo, o álbum Forças D´Alma (1998). Em se tratando de um disco de música
popular brasileira em um formato instrumental, há em Forças D´Alma uma preocupação
central com um tipo de música improvisada. Tanto nas palavras de Moreno (2017) quanto nas
do contrabaixista Rodolfo Stroeter (2018), este disco seria o registro de uma música mais
“livre87” em que os músicos foram estimulados a apresentar temas, solos e acompanhamentos
de maneiras pouco convencionais. Para nós, o resultado deste trabalho revelou um modo de
tocar bateria que acabou por suscitar questões acerca da elaboração de padrões rítmicos que
diferem daqueles encontrados no vocabulário típico das práticas em bateria brasileira.
Em pouco mais de cinquenta e sete minutos de música, o disco Forças D´Alma contem
dez faixas assim dispostas: A Lenda do Abaeté (Dorival Caymmi); Alegria de Viver (Luiz
Eça); Só Louco (Dorival Caymmi); Baracumbara (Joyce Moreno); Samba Novo (Durval
Ferreira/Newton Chaves); João Valentão (Dorival Caymmi); Forças D´Alma (Joyce Moreno);
A Vizinha do Lado (Dorival Caymmi); Imagem (Luiz Eça/Aloysio de Oliveira); e Sanfona
(Egberto Gismonti). A maior parte destas músicas são canções adaptadas para o formato
instrumental o que direcionou nossa observação para o fato de não haver uma preocupação
em se lançar um material de composições autorais, mas sim realizar releituras de músicas
conhecidas em um trabalho com ênfase nas possibilidades de interpretação deste material. Há
também o predomínio de dois gêneros musicais brasileiros, o Samba e o Baião. Em relação ao
primeiro, poderíamos associar as faixas Alegria de Viver, Só Louco, Samba Novo, João
Valentão, A Vizinha do Lado e Imagem. Já em relação ao segundo, apontaríamos as faixas A
Lenda do Abaeté e Baracumbara. Em relação às faixas restantes, Forças D´Alma parece
ambientada na sonoridade rítmica do gênero Salsa e Sanfona apresenta uma organização
87 Discutimos no segundo capítulo deste trabalho quais parâmetros caracterizariam a ideia de música “livre” de Tutty
Moreno e acabamos por associá-la a alguns procedimentos do Free Jazz e da música feita por brasileiros nos anos 1970 como
o trabalho de Airto Moreira e Hermeto Pascoal. Embora o álbum Forças D´Alma tenha sido gravado vinte anos depois, a
ideia de música “livre” a que Moreno se refere, inicialmente, era aquela empregada por estes dois compositores do Brasil.
Moreno utiliza a expressão “música mais elástica” para caracterizar procedimentos como o uso de métricas ímpares para
gêneros como Samba e Baião, a criação de uma sessão específica para a realização da improvisação ao invés de utilizar a
forma e harmonia da canção tocada e, sobretudo, ao amplo espaço de criação para o baterista/percussionista sem que este
estivesse “preso”, estritamente, a função de acompanhar. Em nosso entendimento, Forças D´Alma seria, em alguma medida,
uma continuidade à música da década de 1970 que inspirou Tutty Moreno.
93
musical que guarda similaridades com uma peça de música erudita sem que haja a
predominância de um ritmo que associe tal faixa a um gênero da música popular brasileira.
Esta pergunta direcionou nossa análise para músicas em que a abordagem de Moreno
apresentava usos atípicos de padrões de bateria para os gêneros brasileiros. Deste modo, as
faixas que não fazem referência ao Samba e ao Baião foram deixadas de lado por esta
investigação. Embora a faixa Só Louco faça referência ao Samba, acabamos por excluí-la de
nossa análise por entendermos que o modo como Moreno atuou em tal faixa fazia referência
ao tipo de abordagem em que o baterista faz o ritmo de fundo88 diferente da “abordagem
melódica” em que ele colabora de uma forma mais participativa em relação ao resultado
sonoro do conjunto e, sobretudo, dos momentos de improvisação.
Em se tratando do gênero Samba, entendemos que o modo como Moreno organiza seus
padrões musicais nas faixas Samba Novo, João Valentão e A Vizinha do Lado guardam
similaridades e, através de uma escuta mais ampla e menos atida aos detalhes, apresentam
padrões musicais reincidentes provenientes de um mesmo mecanismo de elaboração rítmica.
Contudo, a quantidade de variações produzidas por Moreno em cada uma destas situações
associada ao momento da performance e seus desdobramentos quanto reação aos demais
instrumentistas acaba por gerar construções singulares em cada uma destas faixas. Dentre as
três músicas, elegemos A Vizinha do Lado com a finalidade de analisar as relações entre os
padrões rítmicos de Moreno e alguns aspectos da construção melódica do clarinete. Além
disso, a ausência do contrabaixo e do piano na primeira parte “A” da improvisação entre o
clarinete e a bateria desta faixa parece revelar uma situação interessante para a discussão
acerca da estabilidade dos padrões rítmicos de Moreno, uma vez que o mesmo não realiza o
padrão de marcação com os pés – assunto que trataremos a seguir. Acreditamos que o
88 No primeiro capítulo tratamos sobre este conceito ao compararmos o ritmo de fundo e a “abordagem melódica da bateria”.
De maneira geral, definimos o ritmo de fundo como sendo uma abordagem em que o baterista realiza padrões repetitivos com
poucas variações. Já na “abordagem melódica” o baterista realizaria uma grande quantidade de variações provocando uma
mudança na percepção do som da bateria para ouvintes habituados com os padrões advindos de uma prática de ritmo de
fundo, prática esta que é mais difundida que a anterior.
94
pensamento que embasa as escolhas musicais de Moreno possa contribuir para a compreensão
de sua abordagem musical também nas demais faixas em que este baterista toca Samba.
na bateria, e em parte pela influência e assimilação de estilos estrangeiros como o Jazz, por
exemplo89.
conduzido para caracterizar esta abordagem na qual o ritmo pode ser visualizado através de
uma perspectiva vertical de encaixe das notas do bumbo e da caixa na subdivisão do hi-hat,
como mostra a figura abaixo:
Figura 12 – exemplo da perspectiva vertical de encaixe das peças da bateria no ritmo de samba
telecoteco, extraído de GOMES (2008:23).90
Figura 13 – Transcrição da bateria de Edison Machado tocando a música Coisa Nº 1 de Moacir Santos – disco
Edison Machado e Grupo, 1965. (BARSALINI 2009:155)91
90 Há um recorte de áudio com padrões similares a este disponível para consulta através do link:
https://www.youtube.com/watch?v=hyQUIs67b_U&index=17&list=PLGJLFiOzUHcJF6bayfuGOZsmfqlGq7a6
r
91 Há um recorte de áudio com padrões similares a este disponível para consulta através do link:
https://www.youtube.com/watch?v=OLk0_varzdE&index=1&list=PLGJLFiOzUHcJF6bayfuGOZsmfqlGq7a6r
97
rítmicos de Airto Moreira nos quais os pés mantém a função de marcação e as mãos se
assemelham às estruturas rítmicas que dão ênfase à função fraseado, mesmo que organizadas
em compassos de três tempos – de maneira similar ao samba fraseado de Edison Machado.
Figura 14 – transcrição da bateria de Airto Moreira tocando a música Cravo e Canela de Milton Nascimento –
disco Milton 76, 1974. (MARQUES 2013:129).92
O bumbo do Edson é uma coisa que pira você bicho! Eu que vi. (...) Eu ficava do
lado dele só pra olhar o bumbo. Nessa época, se tocava muito o ostinato [cantarola e
bate o pé no chão] pum pu pum [primeira e quarta semicolcheias]. Só que tinha
muita gente que na época usava este ostinato de forma mais acentuada. Aliás, tem
gente que faz isso até hoje. A minha geração chamava [essa forma de tocar o
bumbo] de Milton Banana. Ele é quem usava muito isso. Isto não desmerece o swing
do Milton (...) só que o [som] do Edson era muito redondo. Ele dava um apoio ao
baixo sem forçar a barra. Era como se você não ouvisse o pu pum, mas você sentia o
pum pum do bumbo dele vibrar no seu peito sem aquele TUM TUM mais forte. Era
aquele negócio macio, aveludado e envolvente. E aqui em cima [gesticula padrões
de baquetas no ar] completamente livre. (MORENO, 2017)
Este depoimento ecoa com a caracterização proposta por Barsalini (2014), já que para
Moreno, mesmo os bateristas possuindo abordagens diferentes – o estilo Milton Banana sendo
mais próximo do samba conduzido enquanto que Edison Machado era mais próximo do
samba fraseado – ambos representavam duas abordagens conhecidas para a execução deste
estilo na bateria. Sem dúvida a predileção de Moreno em relação ao modo como Machado
toca o bumbo de forma “macia” é um indício para compreender um dos aspectos que mais
diferencia Tutty Moreno destes bateristas: o uso dos pés para compor a função fraseado. A
respeito da motivação para fazê-lo, Moreno afirma:
92 Há um recorte de áudio contendo este trecho que está disponível para consulta através do link:
https://www.youtube.com/watch?v=Sq6GDxHbh0c&index=16&list=PLGJLFiOzUHcJF6bayfuGOZsmfqlGq7a6
r
98
Então, além dele [Edson Machado] tinha um cara daqui de São Paulo chamado
Zinho [nome artístico de José Rafael Daloia] que usava o bumbo completamente
livre. Zinho não fazia o ostinato de bumbo nunca. Edson [Machado], de vez em
quando e, quando sentia necessidade, arredondava e tocava o ostinato. Mas quando
o Edson [Machado] parava o ostinato, ele colocava o bumbo nuns lugares que era
difícil de você entender. E você pensava: meu Deus, mas como é que ele encontrou
um lugar ali e fechava tudo? Era mais do que melódico, era harmônico! Sei lá. Quer
dizer sem interferir nas notas [da harmonia]. Era a “cor”: a soma do som fechado
com a banda. (...) tem horas que o meu bumbo fica completamente livre, mas isso
vem de lá. Vem dessa influência. (MORENO, 2017)
Figura 15: Transcrição da bateria em Desafinado Rio 65 trio (1965), compassos 69 a 136 (1:09 a 2:15).
(BARSALINI, 2014: 213)93
Moreno foi despertado pela prática de bateristas como Machado e Zinho para este tipo
de abordagem em que o bumbo se desprende da função de marcação. A figura abaixo ilustra
93
Há um recorte de áudio com este trecho transcrito que está disponível para consulta através do link:
https://www.youtube.com/watch?v=lFhRkr4nhdM&index=15&list=PLGJLFiOzUHcJF6bayfuGOZsmfqlGq7a6r
100
este procedimento realizado por Moreno enquanto realiza o acompanhamento durante o solo
de clarinete na música A Vizinha do Lado (Dorival Caymmi):
Figura 16 – transcrição da bateria no segundo chorus da música A Vizinha do Lado de Dorival Caymmi – disco
Forças D'Alma (1998). Compassos 57 a 88 (0:49 a 1:14). Transcrição realizada pelo autor.94
94
Há um recorte de áudio com este trecho transcrito que está disponível para consulta através do link:
https://www.youtube.com/watch?v=7yATHNMViJU&index=14&list=PLGJLFiOzUHcJF6bayfuGOZsmfqlGq7
a6r
95
Aqui fazemos referência ao conceito “sólido” e “líquido” apresentado por Monson (1996) e que fora discutido
no primeiro capítulo deste trabalho.
101
característica de tal padrão. O resultado parece revelar certa instabilidade para o ouvido
desabituado quando este entra em contato com o ritmo produzido por Moreno.
para cima) e marcação (hastes voltadas para baixo) comuns para o exercício das habilidades
necessárias à prática de bateria dentro do gênero Baião:
Figura 18:Três tipos de padrões de marcação e condução empregados na prática de bateria ao atuar no
gênero Baião. (GOMES, 2008: 51 e 52).
Figura 19: Montagem de ritmos comuns à prática de Baião a partir do exercício de leitura da linha
proveniente das frases do Bacalhau conforme sugestão de GOMES, 2008: 51 a 58.
Figura 20: Transcrição de alguns compassos do ritmo executado pelo baterista Fernando Pereira durante
o solo de acordeon na faixa Um Tom Pra Jobim – Disco Pau Doido, Kuarup Recordings, 1992 – (1:42 a 1:55).
Transcrição realizada pelo autor.97
Embora haja a repetição dos padrões de marcação (pés) e condução (prato) na maioria
dos compassos, as variações de caixa (função fraseado) acabam por diferenciar o ritmo
resultante de um compasso para o outro. Por vezes, esta oscilação dos padrões realizados pela
bateria pode contribuir para que o ouvinte fique confuso em relação aos pontos de apoio dos
compassos gerando a sensação de instabilidade em relação ao pulso musical. Contudo, a
presença incisiva, tanto da marcação com os pés (padrão em dois tempos) quanto da condução
no prato (padrão de um tempo) acaba produzindo a sensação de estabilidade do ritmo da
bateria, uma vez que o ato de repetir tais padrões estabelece um alto grau de previsibilidade
em relação ao que será tocado e, portanto, por mais que haja variações na caixa, o ouvido
ainda identifica a presença do bumbo e do prato de condução reforçando os pontos de apoio
neste tipo de prática de bateria comum ao gênero Baião.
96
“Fernando Pereira é baterista profissional de larga experiência, foi aluno de Edgar Nunes Rocca, Wilson das
Neves e Bob Wyatt. Tocou durante onze anos na Orquestra da Rede Globo de Televisão, e outros dez anos com
o sanfoneiro, maestro e compositor Sivuca, com quem excursionou por toda a Europa. Participou de centenas de
gravações com os maiores artistas da música brasileira como Luiz Gonzaga, Radamés Gnatalli, Chiquinho do
Acordeom, Zé Menezes, Dominguinhos, Simone, Alcione, Fagner, Cauby Peixoto, Ângela Maria, Martinho da
Vila, Nelson Sargento, João de Aquino e Leni Andrade, além de gravações na Suécia, Dinamarca e EUA.
Fernando também deu aulas de ritmos brasileiros na Escola de Improvisação Rítmica, de Copenhague, e na
Escola de Música Anita Asleim, em Berlim (1999). E foi baterista da Estácio Rio Jazz Orquestra, da
Universidade Estácio de Sá, a única orquestra permanente de Jazz do Rio do Janeiro. Acaba de Licenciar-se
como professor de Música pela UNIRIO.” Informações extraídas do site da escola de música Maracatu Brasil
(Rio de Janeiro) onde o baterista leciona música. Acessada através do link:
http://maracatubrasil.com.br/site/aulas-individuais/bateria/fernando-pereira/ (Dezembro de 2018)
97
Há um recorte de áudio com este trecho transcrito que está disponível para consulta através do link:
https://youtu.be/U3qaerYqLdw
104
Figura 21: Transcrição de alguns compassos do ritmo executado pelo baterista Nenê (Realcino Lima
Filho) durante o improviso da introdução da faixa Remelexo – disco Hermeto Pascoal Ao Vivo Montreux Jazz,
WEA Recordings, 1979 – (0:14 a 0:30). Transcrição realizada pelo autor.98
A partir do nono compasso, Nenê toca, com os pés, o bumbo e o hi-hat ao mesmo
tempo realizando o padrão de marcação enquanto que o fraseado, agora composto pela caixa e
o prato de condução, parecem fazer referência às frases advindas de um ritmo do nordeste
brasileiro conhecido como Xaxado. Marques (2013:60) identificou construções similares a
esta como sendo “a mistura de Baião com Xaxado” ritmo que, nas palavras de Airto Moreira,
“era coisa nova na época” em que Moreira atuava em orquestras que animavam os bailes no
Brasil (década de 1950).
98
Há um recorte de áudio com este trecho transcrito que está disponível para consulta através do link:
https://youtu.be/nB-HLEu7MvQ
105
Figura 22: dois dos principais padrões do ritmo Xaxado (GOMES, 2008:48-49).
A partir desta figura, Gomes sugere dois ritmos que ainda mantém o prato preso à
função de condução. No padrão da esquerda, o aro da caixa funciona como uma variação de
frase do Bacalhau. Já no padrão da direita o aro da caixa realiza os preenchimentos que
coincidem com as semicolcheias que não foram tocados pelo bumbo (segunda e terceira
semicolcheias do primeiro tempo; primeira, segunda e quarta semicolcheias do segundo
tempo).
No livro A bateria no século XXI Ritmos Brasileiros (2008), Realcino Lima Filho
(Nenê) propõe uma elaboração rítmica para a bateria que parece sugerir a junção das funções
condução e fraseado. A figura a seguir, que foi extraída do referido livro, demonstra a linha da
caixa (responsável pela função fraseado) tocada juntamente com o prato (que até então era
responsável pela condução):
Figura 23: Transcrição de um padrão de Xaxado presente no livro A bateria no século XXI Ritmos
Brasileiros Realcino Lima Filho (Nenê), feito de maneira independente, São Paulo (2008), p. 28
Figura 24: transcrição da bateria de A Lenda do Abaeté (Forças D´Alma). Compassos de 13 a 57. (2:13
a 2:43). Transcrição feita pelo autor.99
A partir desta figura, é possível visualizar construções que guardam similaridades com
os padrões apresentados por Gomes (2008). Ao observarmos o trecho entre os compassos 18 a
24 é possível notar que a caixa foi tocada predominantemente na segunda semicolcheia do
primeiro tempo e na primeira e quarta semicolcheias do segundo tempo. Observa-se também
99
Há um recorte de áudio com este trecho transcrito, além da faixa completa desta música que estão disponíveis
para consulta através do link:
https://www.youtube.com/watch?v=ZrZwDZBFlBg&list=PLGJLFiOzUHcJF6bayfuGOZsmfqlGq7a6r&index=5
107
que Moreno aciona o bumbo apenas três vezes durante estes sete compassos realizando a
marcação do padrão de Baião com os pés apenas com o hi-hat diferente da sugestão de Gomes
(2008) em que o bumbo é tocado juntamente com o hi-hat. Nos compassos 33, 34 e 35 há uma
construção similar à proposição de Nenê (2008) em que a caixa faz os preenchimentos da
célula do Baião no formato Baião com Xaxado. Nota-se que o ride e a caixa estão sendo
tocados juntos evidenciando a célula do Xaxado enquanto o pé esquerdo faz o padrão de
marcação do Baião e o pé direito é acionado apenas duas vezes reforçando este padrão de
marcação ao tocar na quarta semicolcheia do primeiro tempo dos compassos 34 e 35.
Embora haja similaridades com as proposições anteriores, Moreno ainda assim parece
apontar para um modo singular de construir seus padrões no gênero Baião, sobretudo por
conta do uso dos pés em suas elaborações. A ausência, principalmente do bumbo, produz um
resultado sonoro que despertou em nós uma grande curiosidade já que a percepção da
estabilidade do tempo musical que normalmente é evidenciada pelos padrões de bateria fica,
aparentemente, instável aos ouvidos de outros músicos e do público que passam a não ouvir o
som grave marcando os tempos fortes dos compassos. Portanto, esta investigação nos
direcionou para um entendimento mais amplo acerca da ideia de estabilidade, assunto que
discutiremos a seguir.
faria combinações entre a caixa e o bumbo. Mas a mão que toca o prato de condução
nunca vai sair da levada de tamborim100. (MORENO, 2017)
Através desta fala de Moreno, é possível verificar que o prato de condução parece
ocupar um lugar central em sua forma de tocar o Samba. Como discutimos anteriormente,
tanto através da perspectiva do Jazz – na qual, em muitos períodos, se atribuiu a estabilidade
rítmica ao prato de condução –, quanto através da música brasileira – com o Samba Jazz e o
modo de se tocar o Samba no prato, por exemplo – esta peça tem sido utilizada para
direcionar a organização rítmica dos bateristas.
Ao analisarmos o modo como Moreno faz uso do prato de condução em sua atuação
na música A Vizinha do Lado, é possível observar a utilização de vários padrões rítmicos
bastante similares aos realizados pelo tamborim, um dos principais instrumentos responsáveis
pela função fraseado no Samba. Como Moreno abandona os padrões de marcação com os pés
que contribuíam para a sensação de estabilidade dentro do gênero, coube a nós analisarmos se
as construções de Moreno produziriam somente sonoridades instáveis, já que aquilo que
geraria estabilidade nos padrões realizados pela bateria fora deixado de lado por este
instrumentista em busca de formas mais “comunicativas” de atuação num contexto de música
instrumental. Para discutirmos a qualidade da estabilidade associada à prática de Moreno,
observaremos em maiores detalhes a conceituação existente acerca das frases rítmicas do
samba.
100
Entrevista realizada com Tutty Moreno para este trabalho e que aconteceu no dia 12/06/2017.
101 Tanto o conceito de imparidade rítmica quanto cometricidade e contrametricidade (discutidos mais adiante)
são advindos de análises musicais provenientes da tradição de pesquisa europeia. Acreditamos que para os
músicos advindos da cultura africana, tal conceituação pode parecer imprópria, por se tratar de uma visão
europeia acerca dos modos de fazer música na África. Optamos por utilizar as definições europeias, pois no caso
da música popular brasileira o encontro entre a tradição musical africana e europeia centralizaram muitas das
discussões acerca da elaboração de gêneros como o Samba, por exemplo, servindo de conceituação para os
trabalhos de Sandroni (1996) e outros autores que se debruçaram sobre tais investigações.
109
102 SANDRONI, Carlos. "Mudanças de padrão rítmico no samba carioca (1917-1937)" TRANS 2 – Revista
Transcultural de Música (artigo 12). Edição on-line Sociedade de Etnomusicologia. (1996). [Consultado 10 de
julho de 2017].
110
Figura 25: o padrão telecoteco visualizado através da perspectiva da unidade rítmica de subdivisão. Imagem
criada pelo autor para ilustrar a similaridade entre a forma de organizar padrões rítmicos de origem
afro-brasileira103.
Os retângulos dourados na figura representam as notas que coincidem com o apoio dos
compassos, já os círculos vermelhos indicam notas que não coincidem com os mesmos. Além
disso, a linha superior (pulsação elementar) ilustra o que poderia ser os reais pontos de apoio
deste padrão rítmico ao agrupar as semicolcheias em grupos de duas e três notas
(12+12+123+12+12+12+123).
Este conceito de pulsação mínima ou elementar é discutido por Oliveira Pinto (2001)
para diferenciar as organizações musicais de tradição europeia e afro-brasileira. A respeito
desta pulsação o autor afirma:
103
A elaboração foi inspirada em diagrama proposto pelo trabalho Linguagem e interpretação do samba:
aspectos rítmicos, fraseológicos e interpretativos do samba carioca aplicado em estudos de caixa clara
(CUNHA, 2014).
111
Ainda sobre este tema, ao descrever a relação entre a imparidade rítmica e a estrutura
de pulsos isócronos da tradição europeia que foi atribuída ao samba, Stanyek e Oliveira
(2011) recorrem aos conceitos cometricidade e contrametricidade para explicar,
pormenorizadamente, como se dá a imparidade:
Na visão de Arom, uma figura é cométrica "quando a maioria dos acentos - ou nas
ausências, do ataque - que as identificam, coincidem com a pulsação". Por outro
lado, figuras contramétricas ocorrem "quando a maioria dos acentos ou ataques são
colocados contra a pulsação". No pagode ou no samba, essas figuras geralmente
variam, mas cada instrumento pode voltar para sua própria batida (no sentido de um
padrão recorrente). Estas batidas são caracterizadas pelo que Arom chama de
"imparidade rítmica"104. (AROM 1984 apud STANYEK E OLIVEIRA 2011:128)
Retomando a figura que ilustra o padrão telecoteco, seria possível dizer que as notas
indicadas pelos retângulos dourados seriam as figuras cométrica e as notas indicadas pelos
círculos vermelhos seriam as figuras contramétricas. O fato de ambas aparecerem juntas em
um mesmo padrão de 16 pulsos ilustra a principal característica das linhas rítmicas do samba:
estruturas regulares e irregulares em relação à métrica europeia dentro de um mesmo ciclo.
Ainda, esta característica conferiu aos padrões aditivos o status de estruturas rítmicas
“irregulares” e, para tanto, a tradição de música europeia cunhou o termo sincopa, para
classificar estas “anormalidades”.
104 In Arom´s view a figure is commetric "when the majority of the accents - or in the absences, of the attack -
wich identify it, coincide with the pulsation." On the other hand, contrametric figures occur "when most of the
accents or attacks are placed against the beat". In pagode or samba these figures often vary, but each instrument
can cycle back on its own particular batida, or beat (in the sense of a recurring pattern). The batidas are
characterized by what Arom calls "rhythmic imparity".
112
Figura 26: Linha de tamborim tocada no prato de condução juntamente com o padrão de marcação do
samba.
para cima representam um padrão adaptado do tamborim, e as hastes para baixo representam a
adaptação feita em relação ao surdo na prática de Samba. Nota-se que a frase de tamborim
tem duração de quatro tempos, enquanto que o padrão de marcação possui duração de um
tempo. Portanto, enquanto uma única frase de tamborim se desenvolve sobre quatro tempos, o
padrão de marcação é repetido quatro vezes, sem variações, nesta mesma quantidade de
tempos. Deste modo, a sensação de marcação dos apoios do compasso no Samba é incisiva ao
“martelar”, tempo a tempo, tal apoio independente do padrão rítmico executado no prato
como mostra a figura a seguir:
Figura 27: Linha de tamborim e padrão de marcação: diferença entre suas durações.
Como a sonoridade dos pés é bastante incisiva, já que o padrão se repete tempo a
tempo, seu ciclo é bastante perceptível ao ouvido e acaba adquirindo o status de geradora de
estabilidade. Como Tutty Moreno abandona este padrão dos pés (função de marcação), ele
provoca uma frustração na escuta dos elementos que caracterizariam esta sensação de
estabilidade. Porém, ele continua fazendo uso das frases de tamborim no prato de condução.
Deste modo, Moreno parece direcionar a compreensão da estabilidade para uma nova
referência, pois ao invés de utilizar a marcação rítmica com o padrão tocado em ciclos de um
tempo (bumbo tocado na primeira e quarta semicolcheias acrescido do hi-hat no contratempo
em cada um dos tempos dos compassos), a ideia de ponto de apoio rítmico acontecerá em
ciclos de quatro tempos (duração comum para uma típica frase de tamborim). Portanto, os
demais músicos que performan junto de Moreno serão privados da escuta do padrão em ciclos
de um tempo da bateria, mas ainda sim reconhecerão as frases executadas no prato cujo
padrão se repete, em ciclos, a cada quatro tempos. Isto lhes permite identificar uma
organização rítmica nos padrões de Moreno e, juntamente com ela, a noção de apoio e de
estabilidade nos contextos em que este baterista atua.
115
Figura 28: padrão recorrente de prato utilizado por Moreno em A Vizinha do Lado escrito a partir da pulsação
elementar.
Figura 29: um dos padrões de prato recorrentes na abordagem de Moreno na música A Vizinha do Lado entre os
compassos 117 e 126 (1:32 a 1:45). Transcrição feita pelo autor.107
As notas indicadas pelo símbolo “x” na linha superior do pentagrama indicam os sons
tocados pelo prato de condução enquanto que as demais alturas da bateria estão representadas
pelas cabeças de notas no primeiro (bumbo) e terceiro (caixa) espaços, além do hi-hat tocado
com o pé (o “x” abaixo da linha inferior do pentagrama). Embora Moreno posicione a caixa, o
bumbo e o hi-hat em lugares diferentes, compasso a compasso, ainda sim é possível observar
a seguinte frase rítmica que deu origem ao padrão tocado por este baterista:
Figura 30: uma das frases rítmicas que deram origem a padrões executados por Moreno.
Contudo, há também situações em que Moreno não repete a mesma frase rítmica no
prato e, embora realize variações nesta frase, ele ainda o faz a partir da influência das linhas
de tamborim. Deste modo, Moreno ainda mantém a mesma referência de estabilidade a cada
frase de tamborim, ou seja, a cada quatro tempos. A figura a seguir demonstra um padrão de
prato – Frase A – que se matem do compasso 59 ao 63 (destacado pelo retângulo dourado). A
partir do compasso 64 ocorre uma variação no final do padrão, gerando a Frase A´ (variação)
que possui os três primeiros tempos iguais a frase A, porém tendo no quarto tempo a variação
107 Há um recorte de áudio com este trecho transcrito, além da faixa completa desta música que estão
disponíveis para consulta através do link:
https://www.youtube.com/watch?v=vNmOWMxNO-o&index=13&list=PLGJLFiOzUHcJF6bayfuGOZsmfqlGq
7a6r
117
que as diferenciam (destacado pelo retângulo vermelho). Embora haja uma mudança na
sonoridade do padrão de prato, a frase continua sendo repetida em ciclos de quatro tempos:
Figura 31: transcrição de bateria de A Vizinha do Lado (Disco Forças D´Alma) compassos 57 a 68
(0:49 à 0:59) – a repetição de padrões de prato e as variações nestes padrões.108
É possível perceber que as duas frases que deram origem ao padrão executado por
Moreno neste trecho podem ser melhor visualizadas a partir da figura a seguir:
Figura 32: frases que deram origem aos padrões de Moreno entre os compassos 57 a 68.
Outro ponto em que isto acontece é no trecho entre os compassos 89 e 100 em que é
possível observar seis frases que originaram os padrões de acompanhamento de Moreno.
Neste caso, as frases A e A´ são originadas praticamente do mesmo padrão rítmico, com uma
pequena modificação em um dos tempos da frase (alteração no quarto tempo da frase A
gerando a frase A´). O mesmo acontece com C e C´ (alteração no primeiro tempo da frase C
gerando a frase C´):
108 Há um recorte de áudio com este trecho transcrito, além da faixa completa desta música que estão
disponíveis para consulta através do link:
https://www.youtube.com/watch?v=VrPmEh_2R1g&list=PLGJLFiOzUHcJF6bayfuGOZsmfqlGq7a6r&index=1
2
118
Figura 33: transcrição de bateria de A Vizinha do Lado (Disco Forças D´Alma) trecho entre os
compassos 89 e 100 (1:14 a 1:24): frases rítmicas executadas por Moreno.109
Para uma melhor visualização, as frases que deram origem aos padrões executados por
Moreno neste trecho podem ser observadas a partir da figura a seguir:
Figura 34: frases rítmicas que deram origem aos padrões executados por Moreno.
Para nós, a discussão sobre a estabilidade gerada pelos padrões realizados por Moreno
parece revelar dois pontos interessantes. Por um lado, o fato de embasar a organização de seus
padrões rítmicos a partir de frases advindas da gramaticalidade do gênero Samba, permite a
Moreno a possibilidade de prover uma estrutura rítmica estável, já que os ciclos destas frases
acontecem em quatro tempos e, portanto, podem ser previstos e esperados mesmo sem que o
baterista execute os padrões de marcação com os pés. Por outro lado, a compreensão destas
109
Há um recorte de áudio com este trecho transcrito, além da faixa completa desta música que estão
disponíveis para consulta através do link:
https://www.youtube.com/watch?v=rYypEEhzUCU&index=11&list=PLGJLFiOzUHcJF6bayfuGOZsmfqlGq7a
6r
119
mesmas frases carece de um estudo aprofundado acerca dos mecanismos de imparidade que
as caracterizam.
[Forças D´Alma] é uma visão minha de um tipo de música que eu sempre quis fazer.
Eu chamei esses músicos – Rodolfo Stroeter, André Mehmari, Nailor Proveta – que
na minha visão podem fazer este tipo de música que eu imagino e então juntei todo
mundo deste quarteto e batizei o disco de Forças D´Alma. Isto quer dizer uma
integração de sintonia e de afinidades. [...]Por isso, quando eu fiz o Forças D´Alma
eu escolhi as pessoas certas na hora certa. Músicos que tinham abertura para
entender isto e que estavam afim de experimentar essas coisas. Com Joyce foi a
mesma coisa. Não foi somente o matrimônio, mas sim o todo. Um casamento de
ideias e concepções que me deram também esta oportunidade de tocar desta forma
no universo da canção. (MORENO, 2017)
Para Moreno, a escolha das peças da bateria a serem tocadas a partir das frases
rítmicas do Samba, depende de outros fatores além do mecanismo de coordenação entre
bumbo, caixa e hi-hat coincidindo com as notas do prato. Ele destaca a escuta como um fator
importante neste processo:
O que você precisa fazer é se entregar. Tem muita gente que quer tocar exatamente o
que estudou em casa e isto é algo que eu não aconselho. Você tem que estar ouvindo
e deixar sua sensibilidade te levar. É aquilo que eu disse. A gente cria exercícios que
vão te libertar e abrir sua sensibilidade, mas na hora “H” o que fará a diferença será
a prática e não somente a teoria. (MORENO, 2017).
Na tentativa de visualizar estes outros critérios que orientam a escolha dos tambores
na montagem de padrões musicais quanto reação ao solista, passaremos agora a observar a
interação entre Moreno e Nailor [Proveta] Azevedo em alguns trechos, ainda a partir da
música A vizinha do lado.
A gravação desta música se inicia com um solo de piano que depois de tocar sem o
acompanhamento de nenhum outro instrumento, deixa de tocar o arranjo no fim do primeiro
chorus da música. É interessante notar que o solo do piano acontece na forma AAB, ou seja,
ele cria melodias na parte A – composta por 16 compassos de dois tempos cada –, depois
novamente utiliza o ambiente harmônico e formal de mais uma parte A – mais 16 compassos
de solo – e, por fim, passa a solar na parte B – também com 16 compassos – deixando o
último compasso em silêncio para a entrada dos demais instrumentos. A partir do segundo
chorus, os músicos realizam a forma ABAB de 32 compassos (16+16).
121
No começo deste segundo chorus, os instrumentos que tocam a parte “A” são o
clarinete e a bateria, sem que o baixo ou o piano façam o acompanhamento. Nailor “Proveta”
(clarinetista desta gravação) inicia seu solo com uma frase similar à primeira frase da melodia
original e a desenvolve, nos oito primeiros compassos, em direção a uma nota grave (G#)
compassos 56 a 64. Ao observarmos a maneira como Moreno inicia seu acompanhamento
verificamos que ele toca a caixa de forma coincidente com as antecipações realizadas pelo
clarinete:
Figura 35: A Vizinha do Lado (Forças D´Alma), compassos de 56 a 61 (0:49 a 0:53). Transcrição realizada
pelo autor110.
Eu nunca pontuo a melodia. Eu dou cor a ela! Na minha cabeça é cor o tempo
inteiro. Raramente eu faço uma pontuação. Quando ela vem é intuitivo. Às vezes eu
faço um acento que traz uma cor que vai mudar a maneira do solista atuar. Por
exemplo, o solista faz uma frase e começa a repeti-la. Daí então quando vem um
110 Há um recorte de áudio com este trecho transcrito, além da faixa completa desta música que estão
disponíveis para consulta através do link:
https://www.youtube.com/watch?v=qLtG1dd4elQ&list=PLGJLFiOzUHcJF6bayfuGOZsmfqlGq7a6r&index=10
122
“PÁ” (som da caixa com rimshot 111 ) o solista muda e vai para outro lado
intuitivamente também. Isto é que é o melódico. É a colaboração. (MORENO,
2017).
Retomando o uso da expressão “cor”, Moreno parece fazer referência à soma do som
da bateria com uma dada nota da melodia ou da harmonia. Discutimos aqui (primeiro
capítulo) que esta soma não estaria relacionada com o produto advindo das regras de afinação
do temperamento dos instrumentos, mas sim a ideia do som de um determinado tambor
compondo o timbre geral de um dado acorde ou passagem. Através desta fala de Moreno, é
possível observar que o timbre da caixa proveniente do rimshot não está lá apenas para
pontuar uma dada melodia, mas também para compor seu timbre. Embora esta constatação
pareça óbvia, muitos bateristas não atentam para a sonoridade da caixa quanto timbre de
soma, mas sim como um recurso de pontuação, tocando-a a partir desta função independente
da altura realizada pela melodia principal no conjunto. Moreno parece estar atento as
diferentes alturas e as sonoridades consonantes e dissonantes advindas da melodia principal
ou das harmonias para escolher seus tambores de maneira a reagir a estes elementos. Ao tratar
112
sobre o recurso baixo pedal empregado por harmonizadores, Moreno faz referência à
escolha de seus tambores levando em consideração às características sonoras presentes nos
trechos em que este recurso é empregado:
Mas tem uma coisa que eu queria dizer ainda sobre a ideia de utilizar a tensão. Eu
costumo dizer que nos trechos de baixo pedal é a hora do bumbo, mas não é você
forçar a barra e tocar forte o bumbo, mas é o momento em que você escurece o som
da banda com o grave do bumbo. E é legal porque esse som escuro gera a sensação
de que uma hora ele tem que voltar a ser claro. E você segura o som escuro e demora
a resolver no som claro. Daí a paciência! Por isso você tem que ouvir os músicos
que tocam com você e ter calma para chegar ao momento de resolução. E este
momento vai chegar. É quando o som desagua no sol de novo e não é a nota sol não
e sim o sol mesmo, o astro universal, quente e claro. É a hora do crash. Isto tudo é
intuitivo. Não é teórico. (MORENO, 2017)
Não há trechos de baixo pedal na referida música, porém há alguns pontos de acúmulo
de tensão em que é possível observar a escolha de timbres citada por Moreno em sua busca
por “colorir” a melodia executada pelo solista. Observando a transcrição na figura a seguir, no
início da parte “B” deste segundo chorus da música, o clarinete desenvolve uma longa frase
111
Nos referimos à Rimshot como sendo o golpe em que a baqueta produz um som a partir do contato com o aro
e a pele, simultaneamente, gerando um som de grande intensidade e alta frequência.
112
Baixo pedal: no contexto da música popular instrumental, se trata de uma nota sustentada, ou da repetição de
uma mesma nota, no contrabaixo – ou neste caso, pelo piano em sua região grave – por alguns compassos,
mesmo enquanto há movimento harmônico em outras linhas e/ou instrumentos. (SILVA, 2016: 135)
123
(sinalizada pela linha verde) composta por três fragmentos (sinalizados pelos números 1, 2 e
3, respectivamente) de três notas, porém soando sobre as quatro semicolcheias. À medida que
a frase do clarinete se desenvolve, é possível perceber um movimento descendente de todas as
notas que compõem cada um dos três fragmentos fazendo com que a sonoridade se encaminhe
para notas mais graves. No começo da frase executada pelo clarinete (compasso 47), Moreno
estava utilizando o prato de condução, a caixa e o hi-hat em seu padrão rítmico que são peças
de sonoridade média e aguda. No compasso 48, ele mantém a escolha das mesmas peças. No
compasso 49, o clarinete inicia, através de uma antecipação, o segundo fragmento da frase
indo para o grave. Moreno parece reagir a esta movimentação ao acionar o bumbo trazendo
um timbre mais grave para compor este trecho (sinalizado pelo retângulo laranja). No
compasso seguinte (50, sinalizado pelo retângulo vermelho), além do bumbo, Moreno utiliza
o ton-ton para sonorizar este trecho (outro timbre de sonoridade média e grave). No compasso
51 ele ainda mantém a sonoridade grave com a presença do bumbo, porém com menor
intensidade (sinalizado pela cor laranja novamente). E finalmente no compasso 52, ele volta a
soar mais agudo, acionando o bumbo uma única vez no segundo tempo deste compasso
(sinalizado pela cor dourada).
Figura 36: transcrição de A Vizinha do Lado (Forças D´Alma) reação de Moreno ao caminho melódico
proposto pelo solista entre os compassos 47 e 52 (1:02 a 1:08).113
113 Há um recorte de áudio com este trecho transcrito, além da faixa completa desta música que estão
disponíveis para consulta através do link:
https://www.youtube.com/watch?v=AY0RuanAQfw&list=PLGJLFiOzUHcJF6bayfuGOZsmfqlGq7a6r&index=2
124
114 Há um recorte de áudio com este trecho transcrito, além da faixa completa desta música que estão disponíveis para
consulta através do link:
https://www.youtube.com/watch?v=AY0RuanAQfw&list=PLGJLFiOzUHcJF6bayfuGOZsmfqlGq7a6r&index=2
125
Ainda sobre as escolhas motivadas pelo timbre, outro aspecto a se considerar neste
primeiro chorus em que a bateria acompanha o clarinete é a presença do procedimento
conhecido como pergunta e resposta. Tanto o solista quanto o baterista parecem se
influenciar a partir deste motivo rítmico de dois tempos que consiste em uma frase que se
inicia na segunda semicolcheia do primeiro tempo em sentido ascendente ou descendente até
a “cabeça” do segundo tempo. Na figura abaixo é possível verificar um momento em que o
clarinete parece estimular a resposta da bateria:
Figura 38: padrão recorrente de pergunta e resposta na transcrição de A Vizinha do Lado (Forças
D´Alma). Compassos 164 e 165 – 2:14.
Este procedimento pode ser observado entre os compassos 181 e 184 em que o
baterista responde duas vezes a frase com características semelhantes a que fora utilizada nos
compassos 164 e 165. Nos dois casos, enquanto a melodia do solista encaminha-se de forma
ascendente, o padrão tocado por Moreno encaminha-se de forma descendente. Os retângulos
vermelhos destacam a resposta do baterista enquanto que os retângulos verdes destacam a
frase realizada pelo clarinete. Ainda, como o clarinete desenvolve uma frase longa em direção
ascendente até a nota Dó na segunda linha suplementar acima do pentagrama, é possível
inferir que ao utilizar o prato de ataque, Moreno aumenta a densidade sonora proveniente da
bateria ao fazer uso desta peça. Por fim, Tutty responde ao fim da frase ascendente do
clarinete (compasso 183) com o mesmo padrão de resposta descendente no compasso 184:
126
Figura 39: transcrição de A Vizinha do Lado (Forças D´Alma) pergunta e resposta entre a bateria e o clarinete na
música A vizinha do lado. Compassos 181 a 184 (2:27 a 2:30).115
Contudo, no exemplo a seguir, a bateria organiza um padrão que parece estimular uma
resposta do clarinete. A partir do compasso 62 é possível perceber que o modo como Moreno
toca junto do clarinete se estabelece quanto uma frase rítmica de dois compassos que é
repetida três vezes. Em cada uma dessas repetições, Moreno faz alterações na frase que criou,
variando-a em relação ao timbre, porém dentro da mesma organização de dois compassos
(quatro tempos típicos da organização das linhas de tamborim). O destaque desta frase pode
ser observado a partir dos retângulos dourados na figura a seguir. A partir do compasso 66, a
melodia executada pelo clarinete parece “responder” a esta frase fixada pela bateria ao
apresentar também uma frase em dois compassos com características rítmicas e melódicas que
reforçam a linha desenvolvida por Moreno. Neste ponto, fica difícil compreender quem está
realizando a melodia principal, pois a resposta do clarinete soa como um contraponto ao
padrão desenvolvido pela bateria. Por sua vez, a bateria desenvolve uma frase que parece um
contraponto116 em relação ao clarinete. O retângulo vermelho destaca esta frase do clarinete
na figura abaixo.
115
Há um recorte de áudio com este trecho transcrito, além da faixa completa desta música que estão
disponíveis para consulta através do link:
https://www.youtube.com/watch?v=de0qrHxuLBs&list=PLGJLFiOzUHcJF6bayfuGOZsmfqlGq7a6r&index=19
116
Conforme discutimos no primeiro capítulo, a ideia de contraponto empregada pelos bateristas não leva em
consideração as regras de temperamento que são marcas deste procedimento de elaboração musical. Neste trecho,
contraponto significa qualquer melodia desenvolvida ao mesmo tempo em que outra melodia está sendo tocada.
127
Figura 40: A Vizinha do Lado (Forças D´Alma) compassos de 62 a 70 (0:53 a 1:00). Exemplo da relação dos
padrões de Moreno em relação à melodia do solista. Transcrição realizada pelo autor.117
No compasso 69 há uma ideia de finalização de frase uma vez que tanto Moreno
quanto Proveta fazem uma variação no segundo compasso da frase em questão. O baterista ao
invés de tocar as duas notas do bumbo no primeiro tempo do segundo compasso da frase,
desloca essas notas para o segundo tempo do segundo compasso. Já o clarinetista, desenvolve
a frase de maneira similar as “baixarias de violão de 7 cordas 118” em um frase que é
ascendente no primeiro tempo do compasso 69 e depois descendente até a nota fá sustenido
do compasso 70. Estes procedimentos foram destacados com as cores dourado e verde no
compasso 69 da figura anterior.
117 Há um recorte de áudio com este trecho transcrito, além da faixa completa desta música que estão disponíveis para
consulta através do link:
https://www.youtube.com/watch?v=4ZGsSp7O10M&list=PLGJLFiOzUHcJF6bayfuGOZsmfqlGq7a6r&index=8
118Nos referimos ao procedimento comumente performado pelo violão de 7 cordas no contexto do choro, em
que este realiza contracantos improvisados (linhas melódicas) nas notas graves do violão, as chamadas
“baixarias”. Estas fazem alusão aos instrumentos de sopro – tais como o bombardino, o oficleide e a tuba –
responsáveis pelos contracantos nos conjuntos de música popular, consolidados desde o século XIX (BORGES,
2008:1)
128
pois, embora Moreno utilize o bumbo nos compassos 59 e 60, ele o faz com uma dinâmica
baixa, tocando o bumbo acentuado apenas no compasso 63, portanto, no compasso que
antecede a chegada da nota que parece ser alvo para o solista. Além disso, nos compassos 59 e
60 o bumbo é acionado uma única vez, contra três vezes do ritmo executado no compasso 63.
No compasso 64 Moreno opta por não tocar o bumbo, “suavizando” o acompanhamento em
relação ao compasso anterior. Esta observação permite-nos inferir que o baterista pode estar
propondo uma combinação rítmica com caráter de finalização para a frase desenvolvida pelo
solista durante os primeiros 8 compassos de solo. Este procedimento está indicado pelo
retângulo de cor vermelha destacado na imagem a seguir.
Figura 41: A Vizinha do Lado (Forças D´Alma) compassos 56 a 64 (0:49 à 0:55). Exemplo da relação entre os
padrões de Moreno e a melodia do solista. Transcrição realizada pelo autor.119
Ainda, Moreno inicia seu acompanhamento tocando apenas uma nota no primeiro
tempo do segundo compasso seguida de mais uma nota na “cabeça” do segundo tempo.
Somente a partir do terceiro e quarto compassos é que o baterista realiza uma montagem
rítmica utilizando bumbo, caixa e prato. Este procedimento de iniciar o chorus com poucos
toques acontece novamente todas as vezes em que ele executa a parte “A” da música. É
possível inferir que, ao realizar este procedimento, Moreno “suaviza” o acompanhamento ao
diminuir a quantidade de toques e de sons provenientes da bateria. O resultado é uma
diminuição da densidade sonora gerada pela bateria e uma possível sensação de vazio que
contrasta com os padrões realizados pelo baterista no final de cada sessão. Ainda, esta
119
Há um recorte de áudio com este trecho transcrito, além da faixa completa desta música que estão
disponíveis para consulta através do link:
https://www.youtube.com/watch?v=pxtJGRK5n7M&index=7&list=PLGJLFiOzUHcJF6bayfuGOZsmfqlGq7a6r
129
abordagem parece reforçar o caráter convidativo de um novo chorus de criação para o solista
no sentido de não impor um padrão rítmico denso capaz de orientar as escolhas do músico que
estiver fazendo o solo.
Em nossa análise, optamos por unir dois dos parâmetros de McCaslin (2015) – a melodia
como ponto de referência interna; e os padrões de bateria funcionando como contraponto –
em um único subcapítulo. Tal união nos pareceu pertinente, pois durante o período de análise
do material transcrito procuramos refletir sobre o caráter indissociável da elaboração dos
padrões de bateria, por nós entendidos como contrapontísticos, a partir das características de
uma dada melodia. Contudo, discutimos também sobre o uso específico que os bateristas
fazem do termo contraponto uma vez que o diferenciam daquelas construções melódicas
baseadas nas regras de harmonização tonal. Acerca de tal caráter indissociável, o baterista de
Jazz Peter Erskine afirma:
Erskine não diferencia um baterista rítmico de outro que seja melódico121. Ele destaca que
toda elaboração rítmica que produza para o conjunto pode ser compreendida como
contrapontística. Até mesmo aqueles padrões de ritmo constante comumente associado ao
“ritmo de fundo” provêm um material sonoro entendido por Erskine como contrapontos de
bateria. Ao analisarmos a performance de Moreno na faixa A Lenda do Abaeté, procuramos
observar suas elaborações a partir desta perspectiva indissociável entre prover padrões
rítmicos de bateria e ser orientado pelas melodias.
Em se tratando dos padrões rítmicos típicos de bateria, Moreno parece referendar suas
elaborações sonoras a partir do ritmo Xaxado durante a maior parte da música. A figura à
120
I approach my drumming, especially accompanying the arrangement, the melody and another improviser or
soloist in terms of providing counterpoint. And actually that might mean sometimes that I just provide a very
steady rhythmic foundation. There’s no intent like (sings) “La la la…oh I must be melodic now!” For me there’s
no dichotomy of playing melody vs. non-melody. For me it’s all about providing counterpoint along with a
rhythmic foundation in such a way that there’s always good tension and release. That’s what moves the music
along. And the whole time I’m providing rhythmic information to the band.
121
Aqui voltamos a fazer referência à discussão do primeiro capítulo deste trabalho acerca da diferenciação
entre o baterista rítmico e melódico. Ver item 1.1.3.
131
esquerda representa o padrão de Xaxado (GOMES, 2008: 49). A figura à direita representa
um trecho de A Lenda do Abaeté em que se verifica o mesmo padrão tocado por Moreno:
Figura 42: padrão de Xaxado à esquerda extraído de GOMES 2008:49. Padrão de Xaxado executado por
Moreno em A Lenda do Abaeté compassos 190 e191 – transcrição realizada pelo autor.
Por mais que faça variações em seus padrões, observamos que Moreno possui a tendência
de retomar a combinação característica do Xaxado. Contudo, o modo como tal padrão aparece
na maior parte da música demonstra uma grande quantidade de variações deste modelo de
Xaxado obtido através da permuta entre bumbo, caixa e hi-hat. A figura abaixo ilustra
algumas dessas combinações extraídas dos padrões de Moreno na referida música:
132
Figura 43: algumas variações do padrão de Xaxado realizadas por Tutty Moreno em A Lenda do Abaeté.
Transcrição realizada pelo autor.
Essas são vinte e oito das muitas combinações tocadas por Moreno em A Lenda do
Abaeté. A frequência com que ele troca de uma combinação para a outra é bastante alta
criando a impressão de que um compasso é, na maioria das vezes, diferente do anterior. A
elaboração de tal processo em relação ao Baião é similar àquela feita na prática de Jazz, ou
seja, há a ideia de se manter um padrão rítmico no prato de condução enquanto que as demais
peças são acionadas com vistas a produzir combinações melodicamente orientadas 122 .
Discutimos anteriormente acerca do estudo preparatório para o baterista experimentar cada
uma das combinações e seus desafios de coordenação motora num ambiente de ensaios.
Contudo, ele costuma organizar a sequência de seus padrões sonoros esmiuçados “em casa” a
partir do momento da performance. Deste modo, os critérios de escolha para o encadeamento
de uma sequência dessas variações procura levar em consideração as elaborações sonoras
produzidas pelos demais instrumentos, sobretudo tratando-se da música instrumental de
influência jazzística. Passemos agora a observar algumas situações em que Moreno reage às
informações melódicas a partir da escolha de seus padrões rítmicos.
122
Ver item 1.3 no primeiro capítulo deste trabalho.
133
A figura abaixo representa os seis primeiros compassos da música em que este baterista
opta por tocar apenas o prato de condução nos momentos em que há maior atividade rítmica
na melodia – compassos 2 e 6 (retângulos verdes). Já nos momentos de notas longas
(retângulo azul), ele opta por executar padrões de maior densidade sonora utilizando-se de
caixa, prato de condução e hi-hat tocado com o pé esquerdo (retângulo vermelho). Além
disso, no compasso 2 Moreno parece pontuar a “cabeça” do primeiro tempo do compasso e o
contratempo do segundo tempo numa estrutura análoga ao ritmo da melodia principal:
Figura 44: padrões de Moreno executados em um trecho de notas longas da melodia principal. Compassos de 1 a
6 da nossa transcrição que parte do momento em que o tema é apresentado pela primeira vez (2:12 a 2:20)123
123 Há um recorte de áudio com este trecho transcrito que está disponível para consulta através do link:
https://youtu.be/tAI0gHVnBvI
134
Figura 45: padrões de Moreno executados em um trecho de notas longas da melodia principal. Compassos de
17 a 21 (2:31 a 2:38)124
Abaixo, é possível observar outro trecho em que a intervenção de Moreno acontece num
momento de repouso da melodia executada pelo solista:
Figura 46: padrões de Moreno executados em um trecho de pausa da melodia principal. Compassos de 78 a
81 (3:43 a 3:50)125
A próxima figura apresenta a bateria (retângulo azul) reagindo à melodia produzida pelo
contrabaixo (retângulo verde). Vale notar que a escolha do padrão de bateria guarda
similaridades rítmicas com as notas executadas pelo contrabaixo (retângulo vermelho):
124
Há um recorte de áudio com este trecho transcrito que está disponível para consulta através do link:
https://youtu.be/7HK3uJWfQJU
125
Há um recorte de áudio com este trecho transcrito que está disponível para consulta através do link:
https://youtu.be/ifnvqSI2aUo
135
Figura 47: padrão de Moreno reagindo ao contrabaixo. Compassos 145 a 148 (4:58 a 5:04)126
126
Há um recorte de áudio com este trecho transcrito que está disponível para consulta através do link:
https://youtu.be/Vw7PH6A_0lU
136
Figura 48: padrão de Moreno num momento de repetição fraseológica da melodia principal. Compassos
22 a 25 (2:37 a 2:43)127
Ainda observando este trecho em que a melodia principal realiza uma frase que se
repete (retângulo azul), é possível verificar uma sensação de acúmulo de tensão sonora, uma
vez que o ouvido passa a esperar por uma variação que funcione como resolução para este
trecho melódico.128 Para nós, a forma como Moreno utiliza as sextinas, sempre no segundo
tempo, criando um “vai e vem” entre as duas sensações rítmicas (semicolcheias e sextinas)
reforça este acúmulo de tensão provocando uma momentânea sensação de oscilação de
andamento, já que as sextinas sugerem uma atividade rítmica mais intensa que as
semicolcheias. Posteriormente – na reexposição deste trecho – é possível observar que
Moreno utiliza novamente o padrão de sextinas intercalando-os com as semicolcheias nos
compassos 37, 38 e 39 como mostra a figura abaixo:
127
Há um recorte de áudio com este trecho transcrito que está disponível para consulta através do link:
https://youtu.be/mVLGwMftQHA
128
Embora a discussão proposta tenha o objetivo de verificar os padrões de Moreno sendo elaborados a partir
das características da melodia principal, optamos por nos afastar da discussão proposta ao ampliar, ainda que de
forma breve, o horizonte dos possíveis efeitos produzidos pelos padrões musicais executados por este baterista a
fim de reiterar um caminho de elaboração sonoro melodicamente orientado neste contexto de música
instrumental.
137
Figura 49: padrão de Moreno num momento de repetição fraseológica da melodia principal. Suavização da
densidade sonora da bateria em trecho de notas longas. Compassos 36 a 44 (2:53 a 3:06)129
Cabe destacar também que esta figura demonstra o modo como Moreno opta por suavizar
o acompanhamento tocando somente o prato de condução (retângulo verde – compassos 40,
41 e 42) ao invés de adensá-lo nos trechos de notas longas da melodia principal (retângulo
dourado - compassos 41 e 42). Ainda, o compasso 43 funciona como um fill que prepara a
volta da melodia principal. No compasso 44 (retângulo verde) Moreno realiza um padrão no
ride que guarda similaridades com a melodia original, mas o clarinete varia o segundo tempo
da melodia neste compasso passando a tocar na quarta semicolcheia ao invés de tocar na
terceira.
129 Há um recorte de áudio com este trecho transcrito que está disponível para consulta através do link:
https://youtu.be/vojWLVNiq5M
138
Figura 50: padrões de Moreno em conformidade com a sonoridade ascendente da melodia principal. Compassos
29 a 32 (2:46 a 2:51). Transcrição realizada pelo autor.130
Assim como tratamos em relação ao Samba, no Baião Moreno também faz uso do bumbo
quanto sonoridade capaz de “escurecer” o resultado musical do conjunto. A figura a seguir
130
Há um recorte de áudio com este trecho transcrito que está disponível para consulta através do link:
https://youtu.be/MCHH_XNR2Hc
139
Figura 51: uso gradual do bumbo enquanto recurso tímbrico para acúmulo de tensão sonora. Compassos 46 a 57
(3:04 a 3:22) Transcrição realizada pelo autor.131
131
Há um recorte de áudio com este trecho transcrito que está disponível para consulta através do link:
https://youtu.be/XWeU9uvZZ8U
141
E tem músicos que não gostam quando você afina, por exemplo, eu por causa do
Tony Williams, eu gosto de afinar com a sonoridade aproximadamente de quintas.
Mas é aproximada, pois não tem nota definida. Quando vai numa nota definida ela
até atrapalha. Se você está numa gravação e tem um acorde lá você pode criar um
trítono ou coisa assim. Tem uns que dizem: “Pera aí bicho, bota outro som aí porque
esse não dá! Tá chocando!” Mas isso é tolice. É um tambor e vai [chocar de modo
dissonante] de vez em quando. (MORENO, 2017)
Do mesmo modo que Moreno faz uso dos tons tons não apenas quanto drumfills, ele
também utiliza o prato de ataque enquanto meio para “colorir”. A figura abaixo ilustra a
sequencia do trecho analisado anteriormente. No compasso 58 a melodia principal chega
a nota Ré que é a terça maior do acorde de Bbmaj7. Nos compassos que seguem há um
repouso da melodia. Moreno parece atacar o prato no compasso 58 como um modo de
sinalizar a iminência de tal repouso. No compasso 59 o saxofone toca uma espécie de
resposta a própria melodia sem que este fosse parte do material original (parte B da
melodia):
142
Figura 52: uso do prato de ataque sinalizando a nota de repouso da melodia executada pelo solista.
Compassos 58 a 61 (3:18 a 3:26). Transcrição realizada pelo autor.132
Eu nunca pontuo a melodia. Eu dou cor a ela! Na minha cabeça é cor o tempo
inteiro. Raramente eu faço uma pontuação. Quando ela vem é intuitivo. Às vezes eu
faço um acento que traz uma cor que vai mudar a maneira do solista atuar. Por
exemplo, o solista faz uma frase e começa a repeti-la. Daí então quando vem um
“PÁ” (som da caixa com rimshot) o solista muda e vai pra outro lado intuitivamente
também. Isto é que é o melódico. É a colaboração. (MORENO, 2017).
132
Há um recorte de áudio com este trecho transcrito que está disponível para consulta através do link:
https://youtu.be/qJdnv9ayB4I
143
Figura 53: uso do prato de ataque estimulando a interrupção das repetições do solista. Compassos 86 a 89 (3:51 a
3:59). Transcrição realizada pelo autor.133
É interessante notar também que a rítmica proposta pelo piano (retângulo cinza) parece
enfatizar as repetições realizadas pelo saxofone e que o prato de ataque pode ter sido
entendido pelo pianista como um provocador de quebra em suas escolhas de repetição no
mesmo trecho. Deste modo, Moreno parece influenciar diretamente o instante de prática tanto
do pianista quanto do saxofonista.
133
Há um recorte de áudio com este trecho transcrito que está disponível para consulta através do link:
https://youtu.be/8sm-xSzQ0po
144
Figura 54: uso do hi-hat quanto reação a interrupção de repetições do solista. Compassos 101 a 107 (4:09 a
4:18). Transcrição feita pelo autor.134
134
Há um recorte de áudio com este trecho transcrito que está disponível para consulta através do link:
https://youtu.be/ErRkXZRnErU
145
Assim, foi possível observar alguns dos critérios de Moreno para a escolha de timbres de
um modo melodicamente orientado em A Lenda do Abaeté. Em parte estas escolhas se dão em
processos de interação com as elaborações melódicas dos demais instrumentistas; e em parte
tem relação com os modos de organizar os padrões de bateria a partir da tradição rítmica de
gêneros como o Baião. Ao tocar seus padrões em um ambiente de colaborações musicais de
influência jazzística referendada numa abordagem melodicamente orientada, Moreno aponta
para uma das mais singulares elaborações rítmicas da bateria em música brasileira.
146
Considerações Finais.
Ao tomarmos contato com o disco Forças D´Alma (1998) – em que Tutty Moreno é o
baterista – nos deparamos com a dificuldade em reconhecer os padrões de marcação
atribuídos ao bumbo. Além disso, o fato de utilizar as demais peças do set realizando
combinações dotadas de muitas variações contribuiu para que entendêssemos a atuação deste
baterista como instável. Verificamos que a motivação para fazê-lo parece ter sido influenciada
por bateristas que, nos dias hoje, poderiam ter sua abordagem classificada como “abordagem
melodicamente orientada”. Em busca de caminhos para atuarem de forma mais colaborativa
dentro do contexto do Jazz, estes bateristas passaram a organizar padrões diferentes daqueles
em que o bumbo ocupava a função de marcação. Para isto, estes músicos dedicavam ao menos
um de seus membros para a execução de padrões constantes capazes de gerar estabilidade,
enquanto utilizavam os demais membros para realizar combinações dotadas de muitas
variações. Este procedimento é bastante comum nos dias de hoje. Através da coordenação
motora, o baterista concilia a estabilidade dos padrões constantes, metaforicamente rotulada
como face “sólida”, com a instabilidade das combinações variáveis, ou sua face “líquida”. Ao
situarmos a atuação de Moreno no contexto de uma “abordagem melodicamente orientada”
para a bateria, conseguimos visualizar a montagem de seus padrões musicais ao passo de
147
refletirmos novamente sobre os parâmetros que definem o que seria marcação rítmica neste
instrumento.
Em relação ao Baião, Moreno também constrói seus padrões baseados nas frases deste
gênero, sobretudo a partir da adaptação do bacalhau (baqueta de graveto que percute a pele
inferior do zabumba obtendo um timbre médio agudo) e suas muitas variações dentro do
gênero. Além disso, verificamos também que Moreno embasa suas elaborações no contexto
do Baião e do Xaxado e que, através da montagem proveniente de uma abordagem
melodicamente orientada da bateria, ele realiza uma série de combinações entre a caixa, o
bumbo e o hi-hat enquanto mantém um padrão adaptado a partir triângulo tocando-o no prato
de condução.
Ao observar a relação entre os padrões musicais de Moreno e dos demais músicos que
participaram do disco Forças D´Alma, pudemos verificar a eficiência das elaborações de
148
Moreno frente ao modo como estes músicos reagiram à bateria. A partir das análises foi
possível verificar os padrões de Moreno funcionando como contrapontos que ora
influenciavam, ora eram influenciados pelas melodias criadas por outros solistas durante as
situações de improvisação. Além disso, a escolha das peças da bateria acionadas em cada
compasso levava em consideração aspectos de reforço tímbrico de maneira que Moreno as
percutia motivado pela intenção de “colorir”, ou seja, de somar o som grave do bumbo da
bateria ao timbre de uma dada passagem harmônica dissonante, por exemplo.
Tratamos também sobre o nível técnico dos músicos que participaram do disco Forças
D´Alma destacando suas proficiências enquanto fator fundamental para o resultado sonoro
junto de Moreno. Embora as frases rítmicas que embasam as elaborações destes bateristas
estejam em conformidade com os estilos dos quais fazem parte, o fato de Moreno realizar
uma série de variações em andamentos rápidos exige dos demais performers grande destreza e
familiaridade com gramaticalidade compartilhada no conjunto.
Por fim, como se trata de uma pesquisa em práticas interpretativas, cabe destacar aqui
que muitas das considerações feitas acerca dos padrões de Moreno são provenientes de nosso
exercício como bateristas. Deste modo, gostaríamos de destacar que a montagem dos ritmos
de Moreno suscitou um grande desafio de coordenação motora. Ainda, ao observar a fluência
com que ele acessa padrões diferentes reagindo às frases tocadas pelos solistas, verificamos a
possibilidade de uma ampliação das capacidades de escuta do baterista levando em
consideração também o timbre quanto gerador de “cores” no resultado sonoro. Além disso, o
exercício de organizar frases musicais em arcos ampliados sugere um aprofundamento da
concepção melódica dos bateristas, já que suscita um pensamento que leve em consideração
pontos de respiração das frases, algo que, ao realizar um ritmo de fundo, não costumamos
fazer.
149
Referências
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EZEQUIEL, Carlos. Interpretação Melódica na Bateria – 1ª edição. Editora Souza Lima. São
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de doutorado. Universidade de Toronto – Canadá.
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London: The University of Chicago Press, (1996).
150
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Economia brasileira na década de oitenta e seus reflexos nas condições de vida da
população. Revista de Saúde Pública, v. 29, p. 403-414, (1995).
PINTO, Tiago Oliveira. "As cores do som: estruturas sonoras e concepção estética na música
afro-brasileira." África 22-23 (2004): 87-109.
RATTES, Plínio Cesar dos Santos. Públicos do Teatro Vila Velha. Salvador: Faculdade de
Comunicação–Universidade Federal da Bahia, (2007).
Realcino Lima Filho (Nenê) A bateria no século XXI Ritmos Brasileiros - Feito de maneira
independente, São Paulo (2008)
SADIE, Stanley and TYRREL, John, SAMSON, Jim The New Grove Dictionary of Music
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SMITH, C. A sense of the possible: Miles Davis and the semiotics of improvised
performance. Editora TDR, volume 39, número 3, p. 41-55. (1988)
STANYEK, Jason, and Fabio OLIVEIRA. "Nuances of Continual Variation in the Brazilian
Pagode Song ‘‘Sorriso Aberto." Analytical and Cross-Cultural Studies in World
Music (2011): 98-146.
Figura 55: Capa do disco Forças D´Alma lançado de forma independente em 1998.
152
Anexo 2 - entrevistas
Tutty: Na verdade eu já entendia isso intuitivamente pela própria maneira que um músico e
outro tocam. Mas a primeira vez que eu ouvi este conceito foi através de uns amigos meus de
Nova York, músicos de jazz norte-americanos, falando entre eles: “eu gosto de Fulano e gosto
de Sicrano. O Sicrano é um baterista rítmico e o Fulano é baterista melódico. Não é que eles
quisessem desmerecer um e por o outro em evidência. Eu entendia que para eles tudo tem o
seu valor. E eu concordo com eles. Tem muito músico, inclusive jazzista, que prefere ter na
cozinha (sessão rítmica) aquele negócio rítmico mesmo enquanto ele faz o que quiser como
solista. Nesta situação, o ritmo está literalmente atrás no som do conjunto. Já o baterista
melódico interage completamente com o grupo não apenas com o piano e o baixo, mas e,
principalmente, com o solista. Isto vem a partir do Bebop. Você ouve no bebop: (cantarola
uma frase) padi pada padi padi pê e o baterista toca pata putum para putumtum. Ou seja,
todos estão inteiramente interagindo. Não é aquela forma de marcar os apoios do tempo com
aquele bumbo: (cantarola e bate o pé no chão marcando, predominantemente, semínimas) tum
tum tum tucutum tum. Não é isso! Na verdade é: (cantarola o acompanhamento dos bateristas
no bebop). O som da bateria está em cima da melodia. É a mesma coisa com o Edison
Machado que foi o primeiro músico em que eu percebi isto. Só que ele fez isto com o samba
na época em que surgiu o Sambajazz nos anos 1960.
Era uma época riquíssima para a nossa música sem sombra de dúvida nenhuma. Nós tivemos
a fundação de Brasília. A arte cresceu profundamente, a indústria brasileira idem, e a música
então? Nem se fala! Era o momento da Bossa Nova e toda aquela efervescência da época.
Havia muita música instrumental, muitos trios. Era neste contexto em que Edison atuava. Mas
o que é este conceito de baterista melódico? É o músico que toca não somente o ritmo, mas
ele está com o solista e com a base o tempo inteiro. Não é só o ritmo, pinta também muita cor.
Por exemplo, nos anos 1960 havia aquele Quinteto que você naturalmente conhece com Miles
Davis, Ron Carter, Tony Williams, Herbie Hancock e Wayne Shorter. Eu li na autobiografia
do Miles [Davis] que quem decidia se o saxofonista permanecia no grupo ou não era Tony
Williams. Ele tinha uma personalidade muito forte e Miles dizia que Tony Williams era a
centelha criativa do grupo. Estava tudo na mão dele. Miles dizia: quando você está solando se
você perder ele (Tony Williams) acabou.
O Tony Williams daquela época era um menino ainda aos 17 anos. Portanto, ele foi crescendo
ali com o quinteto. Os norte-americanos costumam dizer que não eram seus padrões rítmicos
(padrão no prato pipirim piripirim), mas era a pulsação dele que carregava o grupo.
Chamava-me muito a atenção a forma como, com uma percutida no tom-tom, ele gerava
aquela sonoridade linda. A gente na época estava muito ligado no pianista Herbie Hancock e
nas harmonias que ele tocava. Bem, até hoje ele toca, não é? Acontece é que quando o Tony
Williams ouvia estes acordes ele coloria o som da harmonia com o som do seu ton-ton. É
153
claro que tinha a resposta do bumbo e a maneira de fazer o crash no prato que é ele quem faz
e desconheço outro. Mas em se tratando de colorir, a gente costumava dizer assim: Ele [Tony
Williams] completou o acorde das estrelas. Quero dizer estrelas do céu mesmo! É incrível a
forma como Herbie Hancock toca os acordes com a mão esquerda e combina sua linguagem
de improvisar com a mão direita em passagens muito rápidas e com a escolha de notas que
são belíssimas até hoje. É evidente que o Tony Williams percebia e buscava destacar isto o
tempo todo. Por isso, parece que ele está com Hancock ou Wayne o tempo inteiro do início ao
final. Ele não está dando só um ritmo de apoio, ele está com os caras. E isto não tira o valor
do baterista rítmico, de maneira nenhuma, não tira e nem diminuí. Uma coisa é uma e outra é
outra.
Melodic Drumming.
Foi nos anos 1970. Na verdade, eu fui para Los Angeles porque era uma época que muita
gente estava saindo do Brasil e indo para os EUA. Eu queria mesmo era ir para Nova York!
Eu explico porque. Dentre os muitos estilos musicais norte-americanos, costuma-se dizer, de
maneira generalizada, que há dois tipos de som: o East Coast e o West Coast. A West Coast
(costa oeste) é um lugar maravilhoso para se viver, tem condições climáticas muito melhores
que a East Coast (costa leste). A música desta região é mais próximo do Funk e Pop. Sempre
foi assim. Pode parecer que eu atribuo um juízo de valor em relação a estes estilos ao fazer
minha escolha por não interagir tanto com eles, mas eu não vejo dessa forma. Ambas (East e
West Cost) oferecem inúmeras possibilidades criativas. Agora, falando de arte e não só
música, mas arte de uma maneira geral, o lugar onde para mim ferve é Nova York. A “barra
pesada” do jazz sempre foi Nova York e vai continuar sendo. Existe este movimento das
escolas e Universidades que, anualmente, despejam uma porção de músicos jovens, bons a
pampa, afim de tocar jazz nesta cidade. O tipo de som que eles tem feito por lá transcendeu o
melódico. Tem músicos tocando de uma maneira que já me parece uma nova onda. Ainda
assim, os caras tocam a pampa de uma forma completamente integrada com música (com
harmonia e melodia).
Contudo, como o baterista interage com harmonia e melodia se seu instrumento não tem nota?
Houve uma época em que estudei percussão sinfônica e, dentro deste universo, pude perceber
que há instrumentos com afinação análoga ao piano como Vibrafone e, também, aqueles que
não tem afinação. Eles são chamados membranofones. Destes, o único que tem nota definida
é o tímpano. Caso você decida afinar os tambores da bateria com afinação específica, ou seja,
ajustar a frequência do som de cada tambor para que ele soe como uma nota do piano, por
exemplo, haverá músicos que irão se opor a você. Por causa do Tony Williams, eu gosto de
afinar com a sonoridade aproximadamente de quintas. Mas é aproximado, já que não tem nota
154
definida. Quando o tambor soa numa altura definida ele até atrapalha. Se você está numa
gravação e, num dado momento, o som do ton-ton tocado junto de um acorde gerar um som
dissonante como um trítono, por exemplo, pode ser que os demais músicos se queixem com
você dizendo: “Pera aí bicho, bota outro som aí porque esse não dá! Tá chocando!” Mas isto é
tolice. É um tambor! Seu timbre e uso dão cabo de não confundir o ouvido nos poucos trechos
em que o choque aconteceria.
Entrevistador: Quando escuto as gravações dos anos 1980 com a cantora Joyce, observo que
sua abordagem melódica já estava lá – disco Feminina da Joyce. Como isto se deu?
Vou começar explicando que eu sou baiano e nasci em 1947. Portanto, vivi minha
pré-adolescência e adolescência nos anos 1960. Período de uma efervescência enorme. O Jazz
estava mudando com figuras como Miles [Davis], [Charles] Mingus, Thelonious Monk,
músicos que foram completamente inovadores. Foi exatamente nesta mesma época que surgiu
a bossa nova. Eu me lembro do contato que tive com estas coisas, ainda garoto, lá na Bahia.
Claro que não era tão acessível assim quanto é hoje. A gente tinha uma única loja boa na
cidade e que recebia os discos que vinham de São Paulo e do Rio de Janeiro. De vez em
quando aparecia um disco ou outro de jazz por ali. A gente ficava louco para ver quem viria
para cá (São Paulo) para levar os discos até Salvador. Eu me lembro de que com 10 ou 11
anos eu ouvia o [John] Coltrane sem me dar conta de nada, eu ouvia porque eu gostava. Eu
pedia para o amigo que fosse viajar: “veja aí o que você encontrar lá (São Paulo ou Rio de
Janeiro) que tenha a ver com este tipo de música e pode me trazer sem medo.” Quando Miles
Davis apareceu com Tony Williams, bicho, minha mente virou de cabeça para baixo!
Tutty: Mas tudo bem era música! Estava bom de mais e estava tudo certo. Eu fiquei mais ou
menos um ano aprendendo o trompete. Depois troquei para o saxofone por causa do [John]
155
Coltrane. Só que eu toquei o sax alto, ainda limitado pelo tamanho do sax tenor. Foi com o
sax alto que iniciei minha atuação profissional tocando em Bandas de Baile.
Então, eu acabei conhecendo o som do baterista Elvin Jones a partir das gravações de John
Coltrane. Eu adorava tudo naqueles discos e, ainda adoro. Me lembro que aquela forma de
tocar a bateria já me chamava a atenção. Mais ou menos na mesma época chegou o Tony
Williams. Se bem que Tony e Elvin são duas coisas completamente diferentes, embora os dois
sejam criativos num nível assim altíssimo. Ambos são muito melódicos só que o Elvin
possuía uma forma de tocar mais ligada às tercinas (cantarola padrões em tercina de Elvin).
Mas está tudo lá e em cima da melodia. Bom, até um dia em que eu pude assistir o baterista
Edison Machado ao vivo! Já conhecia o som dele através das gravações.
Tutty: Muito antes. Eu morava na Bahia ainda. Era adolescente. Foi em 1963-64. Foi um
impacto! Fiquei assim: meu Deus do céu é isso o que eu quero fazer! E depois eu conheci o
Edison e fiquei amigo dele.
Tutty: Você conhece os discos do Rio 65 trio? Pois bem, nessas gravações você percebe que o
Edison [Machado] e [Dom] Salvador (pianista) tocando são uma coisa som. Do início ao fim,
todas as músicas, todos os temas, ele (Edison Machado) está dentro e não está fazendo o ritmo.
O bumbo do Edison é uma coisa que pira a sua cabeça! Eu vi e ouvi isto ao vivo. Pouco
tempo depois de ter assistido ele pela primeira vez eu procurava, sempre que possível, estar
nos lugares onde ele iria tocar. Eu ficava do lado dele para olhar a forma como ele tocava o
bumbo. Nesta época (década de 1960), se tocava muito o ostinato (cantarola e bate o pé no
chão) pum pu pum (primeira e quarta semicolcheias). Este padrão é utilizado até hoje e tem
muita gente que faz isto de forma mais acentuada. A minha geração chamava esta forma de
tocar o bumbo de Milton Banana associando o nome da técnica ao baterista que a popularizou
em suas gravações no período. Dizer que ele tocava o padrão sem alteração e que o fazia de
forma acentuada não desmerece o swing do Milton, muito pelo contrário, essas eram suas
marcas. Só que para mim o som do bumbo do Edison era muito redondo. Ele dava um apoio
ao baixo sem “forçar a barra”. Era como se você não ouvisse o pu pum, mas o pum pum dele
vinha no seu peito sem aquele tum tum (mais forte). Era um som macio, aveludado e
envolvente. E aqui em cima (mostra as mãos) completamente livre. Era uma coisa criativa
“pra danar.” Melódica. Fundamentalmente melódica em cima do solista. Nestes discos,
músicas como Meu Fraco é Café Forte, Tem Dó e Desafinado são um arraso!
Além do Edison Machado, tinha um baterista aqui de São Paulo que também utilizava o
bumbo de forma livre. A turma conhecia ele como Zinho (apelido de José Rafael Daloia). Há
tempos não ouço falar dele. Ele nunca fazia o ostinato de bumbo. Já o Edison, de vez em
quando, arredondava e tocava o ostinato quando sentia necessidade de fazê-lo.
Quando o Edison parava o ostinato, ele colocava o bumbo nuns lugares que era difícil de você
entender. E a minha impressão era “Meu Deus, como é que ele encontrou um lugar ali e
156
fechava tudo.” Era mais do que melódico, era harmônico! Sei lá. Quer dizer sem interferir nas
notas. Era a cor ou a soma do som fechado com a banda. Foi dali que eu tirei a ideia de tocar
meu bumbo completamente livre dependendo da situação musical. Isto vem desta influência.
Hoje em dia quando me perguntam: Quais são as suas influências? Eu respondo que primeiro
vem o Edison Machado e depois Tony Williams.
Só que se você fizer uma análise, você não vai encontrar nada nem de um (Edison Machado)
e nem de outro (Tony Williams). E Por quê? As influências são sempre bem vindas até um
determinado ponto. Se você ouvir gravações minhas lá de trás eu estou soando muito parecido
com o Edison [Machado] ou com Tony Williams. Só que chega uma hora em que você
encontra o seu caminho. Você comentou sobre o Edu [Ribeiro]. Este baterista me traz uma
alegria muito grande porque houve uma época – Edu era estudante ainda – em que ele ia a
uma porção de shows que eu fazia e ficava do meu lado chegando a me incomodar olhando
tudo o que eu fazia. Depois, ele despejava uma enxurrada de perguntas. Evidentemente, nos
tornamos amigos. Eu passava para ele tudo o que eu sabia. Só que ele tomou o caminho dele e
isso me dá uma alegria enorme. Quando você observa um discípulo seu e você percebe que
ele se desgarrou, entendeu e conseguiu seguir o lance dele é uma sensação maravilhosa e é
assim que tem que ser.
Entrevistador: E foi a partir de 1980, você já sentiu que estava em busca deste seu som, deste
seu caminho?
Tutty: Sim, mas eu ainda não entendia essa coisa de baterista melódico e rítmico.
E tem outra coisa. Voltando a trás. Embora minha maior influência musical venha do Jazz, do
Sambajazz e da Bossa Nova, nos anos 1970 eu estive no meio de outra música. Lá eu apenas
estive. Foi quando eu fiz (gravações e performances ao vivo) com [Gilberto] Gil. Foi esta fase
que me projetou nacionalmente. Neste sentido, eu participei daquilo que eles faziam e
chamavam de Tropicalismo. Dentre os discos que gravei, tem um que é marcante e todo
mundo fala dele que é o Expresso 2222 (1972). Também tem o disco do [Jards] Macalé (1972)
que era eu, ele e o Lanny Gordin.
Tutty: Não era rock. Todo mundo chamava de Pop na época. A onda era essa naquele
momento. Mas eu não fazia como as pessoas esperavam. Se você parar para ver já era
melódico. Estava em cima do que o [Gilberto] Gil fazia. Estava completamente em cima dele.
Eu já ia nele e estava com ele. Só que, pelo conceito da música, era uma coisa muito mais
marcada e então tinha que ter aquele lance rítmico. Mas eu nunca fui aquilo. Eu estive neste
tipo de música que nunca me atraiu. Sem tirar o mérito da música ou de quem faz este tipo de
música. É algo da minha natureza. Sempre fui mais para este outro lado (bateria melódica).
Retomando minha ida para os EUA. Quando fui para Los Angeles, não me dei bem por lá
porque o tipo de música mais comum na cidade daquela época (década de 1970) era
157
justamente esta em que se espera do baterista uma postura mais rítmica. Cheguei lá com uma
filhinha que não havia completado um ano de vida. Parecia uma mudança e tanto, mas
naquela época a gente encarava essas coisas. Foi uma época muito difícil da minha vida. Eu já
conhecia o Airto [Moreira] há muito tempo e, nos EUA, eu me aproximei muito mais dele.
Ainda assim, não estava fácil de conseguir trabalho. Comecei a perceber que aquilo não podia
dar certo. Fiquei lá seis ou oito meses, não lembro ao certo, e mudei com a minha família para
Nova York. Lá, também vivi muitas dificuldades. Foi uma luta muito grande. Neste período
eu me divorciei da minha primeira mulher - nós mantemos uma relação muito boa até hoje
tendo ela se casado novamente e tido outro filho. Nós temos uma filha em comum que hoje
em dia mora em Los Angeles e foi nessa que eu conheci Joyce.
Tutty: Sim. Em Nova York. Inaugurou uma casa em que a ideia dos proprietários era levar
música brasileira. Esta casa chamava-se Cachaça. Nós suspeitávamos que esta casa era ligada
a máfia ou algum tipo de lavagem de dinheiro. Mas nós não estávamos nem aí. Nós
queríamos e precisávamos trabalhar e não ligávamos para aquilo. Então tinha o grupo da casa
que era composto por Dom Salvador e eu. Em 1977, a Joyce foi com um grupo vindo Brasil
formado por Hélcio Milito (baterista do Tamba Trio) para fazer um show de inauguração
desta casa. E foi aí que nós nos conhecemos.
Nós voltamos para o Brasil em 1978. Então, no ano de 1980, ano de lançamento do disco
Feminina, foi o momento em que eu comecei a fazer parte da música dela.
Entrevistador: Eu tenho focado mais no disco Forças D´Alma que é um disco que veio depois
disso.
Tutty: Aí já é outra história. É uma visão minha de um tipo de música que eu sempre quis
fazer. Eu chamei esses músicos – Rodolfo Stroeter, André Memahri, Nailor Proveta – que na
minha visão podem fazer este tipo de música que eu imagino e então juntei todo mundo deste
quarteto e batizei o disco de Forças D´Alma. Isto quer dizer uma integração de sintonia e de
afinidades. Só que Forças D´Alma não é só esse lance do melódico, mas é também da música
livre interativa onde existe uma colaboração de cada um completamente livre. Então o que
aconteceu com este quarteto é o seguinte.
Já existia essa maneira de tocar nos anos 1960. Eu falo aqui dos grupo de Sambajazz. Mas
quem primeiro fez uma música mais elástica neste sentido, foi o Hermeto [Pascoal]. Sem
sombra de dúvidas. Naqueles primeiros discos dele. Aquilo era uma maravilha.
Tutty: Sim. Mas já não era o Airto [Moreira], pois ele tinha mudado para os EUA. O grupo
então formado por Hermeto Pascoal, pelo baterista Nenê (Realcindo Lima Filho), o
contrabaixista Alberto de Barros, um saxofonista que já faleceu e não me lembro o nome -
poderia ser Hamleto Stamato, ou Mazinho ou Bola -, Anunciação (Antônio Ferreira da
Anunciação) que era o percussionista que revezava com Nenê. Ele (Anunciação) era genial!
Super melódico. Uma sensibilidade maravilhosa. Era baterista e percussionista. O Hermeto
dava muito valor à percussão e incentivava os bateristas a tocarem de formas diferentes do
convencional. Havia espaço na música do Hermeto para que o baterista experimentasse outras
formas de tocar. E isto abre também a sua visão.
Entrevistador: Ter um trabalho em que os músicos não estejam esperando de você a forma de
tocar mais associada ao baterista rítmico?
Entrevistador: Eu gostaria de falar sobre isto contigo, pois no trabalho da Joyce você toca de
uma forma bastante diferente dos bateristas que costumam acompanhar um trabalho de
canção.
Tutty: É! Ali tem uma interação muito grande de anos e anos. Mas deixa eu terminar de falar
sobre o disco Forças D´Alma. Então, tinha essa ideia da música livre que eu já tinha ouvido
através do trabalho do Hermeto - disco A música livre de Hermeto Pascoal (1973).
Tutty: Não. Na época era só o título do trabalho e hoje em dia – vinte anos depois – nos
reunimos novamente com o nome de cada um e aquele nome que partiu de mim ficou ligado
àquela gravação.
Durante alguns anos eu participei de um grupo chamado Quarteto Livre. Só que embora a
gente tocasse a vontade, não tinha o conceito de liberdade em música que eu queria fazer. O
que eu realmente queria fazer era o Forças D´Alma. Ali você claramente observa esse lance
melódico. Não é que não exista a abordagem rítmica. O que acontece é que não há aquela
coisa previamente definida em relação aos arranjos. Os músicos estão completamente à
vontade criando. Daí vem esse conceito de música livre que faz parte do grupo até hoje.
Embora cada um tenha seu trabalho, quando nos juntamos mantemos este conceito de música
livre mesmo. Esse é o Forças D´Alma. Esta é a ideia do Forças D´Alma.
Entrevistador: Então, você já estava experimentando esta forma de tocar, mas não com a
liberdade que o Forças D´Alma lhe permitiu?
Tutty: Exatamente!
159
Entrevistador: Retomando a ideia da bateria melódica, o que um baterista tem que fazer para
tocar melodicamente? Quais são os recursos técnicos e expressivos necessários aos bateristas
para que se coloquem nesta forma de tocar o instrumento?
Tutty: Expressivos. Vamos começar com eles, porque para mim a técnica só existe porque se
deseja expressar algo com o instrumento e não o contrário. Esta é a minha visão de técnica
como algo que é necessário como um meio pelo qual a gente tem as possibilidades de projetar
a nossa perfeita expressão própria, nossa forma de pensar ao tocar e não apenas como um fim.
Não sei se fui claro. É evidente que é preciso ter a técnica para poder tocar relaxado. Uma das
coisas que mais me interessa e que é importante para mim é a maneira de tocar. Para ser mais
claro utilizarei o termo americano “touch” que é o toque do pianista de forma leve. Eu penso
que em bateria, esta é a mesma coisa com que a gente tem que lidar em busca da leveza que
muitas vezes um pianista consegue alcançar demonstrando grande sensibilidade e, portanto,
muita técnica também. Por exemplo, se você não conhece alguns recursos técnicos fica difícil
pensar em expressão musical. Na minha época, não se tinha ideia destes recursos – toque
duplo, múltiplo, simples, o duplo “dada mama” e etc. A gente não tinha muita ideia disso.
Depois, percebi que mesmo músicos profissionais também não tinham. A primeira vez que eu
vi um músico americano tocando eu me decepcionei um bocado, porque pensei que esses
caras fossem super técnicos e cheguei lá e vi o cara metendo o braço. Pensei: meu Deus é isso
aí então. Hoje em dia este assunto é bastante discutido e há muitos músicos que se
especializaram na pedagogia destes conceitos. Eu não acho que isto seja um erro. É até bom.
Por exemplo, se você tem vícios, como uma das mãos torta, você terá dificuldade em executar
alguns procedimentos. Mesmo que você conheça a combinação dos toques, sem estudar o
movimento correto você pode desenvolver tendinites. É importante a técnica. Mas tem gente
que só se liga nisso. É o efeito Dave Weckl que na verdade veio do Steve Gadd. Só que o
Gadd tem muita técnica e a utilizava como um meio e não um fim. Ele criou a maneira dele
de tocar que mudou toda a forma dos bateristas se expressarem dentro da música Pop. Ele
mudou as coisas e é muito importante para os norte-americanos. Nós não podemos deixar de
ter esta visão. Tem toda uma geração que veio a partir dele a partir das ideias dele.
Entrevistador: Tem uma professora aqui de São Paulo, Lilian Carmona, que é muito fã dele.
Tutty: Pois é eu conheço a Lilian. Eu acho que você tem que usar a técnica como um meio de
se expressar. Por exemplo, para você fazer um solo. Se você não tiver uma condição técnica
legal, para você se expressar vai ser difícil, concorda?
Tutty: Sim.
160
Entrevistador: Então minha pergunta vai neste sentido. Existe uma abordagem no formato de
exercícios para praticar a bateria melódica no instrumento?
Tutty: Você tocou num ponto muito sensível para mim. Eu tenho um livro que nunca lancei.
Inclusive houve uma época em que eu escrevia para a revista Batera. É uma coisa mais menos
parecida com este lance do Syncopation. Só que eu uso no prato a levada tradicional do
tamborim (ta ta tara ta ta tara ta). O hi-hat de início fica no contratempo, como se fosse o
padrão comum mesmo. E aí, faço combinações entre a caixa e o bumbo sem que o bumbo
fique preso ao ostinato. Isto, a efeito de estudos. Quando você vai tocar você tem que abrir e
não ficar preso a esta regra inicial para chegar ao ponto de ficar melódico. Então, a efeito de
estudos, a mão direita nunca sai desta levada de tamborim porque há um propósito nisto cujo
objetivo é desenvolver a coordenação. Então você realiza a combinação da mão esquerda e o
pé direito de forma intercalada. Isto deve ser feito de forma progressiva, ou seja, combinações
mais simples utilizando semínimas e colcheias para combinações mais elaboradas com
semicolcheias e sextinas. A partir deste segundo nível, esta prática vai chegando num ponto
complicado que exige um estudo paciente afim de se obter a independência da mão direita em
relação aos outros três membros na montagem dos padrões musicais. Eu digo que este tipo de
exercício abre a sua cabeça para muitas possibilidades. Falo por experiência própria.
Se lembra quando disse que estudei percussão sinfônica? Eu cheguei a esta conclusão acerca
do estudo técnico na época em que me envolvi com estes estudos praticando com um músico
lá no Rio de Janeiro que era ligado a uma orquestra da cidade. Isso há muitos anos atrás (final
da década de 1980). Então, meu professor de percussão nesta época era um sujeito muito
rígido que me criou um grilo enorme. Hoje eu toco com o traditional grip (mão direita e
esquerda seguram as baquetas de formas diferentes) na mão esquerda, mas antes eu tocava
com a mão assim (match grip em que a mão direita e esquerda seguram a baqueta da mesma
forma). Ele me traumatizou porque era muito rígido com este negócio da técnica. Só que ele
me ensinou muitas coisas também. O que é que ele fazia. Ele ia me ver tocar e ficava
escondido só me observando. Quando eu chegava na aula ele tinha criado exercícios para me
corrigir. Ele me apontava o que ele julgava serem os meus vícios ao tocar. Ele me ensinou a
criar os meus próprios exercícios e foi a partir desta experiência que entendi que a
coordenação também te abre à musicalidade gerando caminhos para que você desenvolva a
sensibilidade necessária ao tocar melodicamente. Mas isto inclui também muito a sua
sensibilidade.
Tutty: Se chamava (o nome foi mantido em sigilo por razões éticas). Ele tem vários livros
sobre ensino de percussão. Ele é muito rígido tecnicamente. Havia momentos em que eu
estudava o dia todo cerca de 12 ou 13 horas e aí ia para a aula na casa dele. Ele tinha um
estúdio pequeno assim nos fundos com todos os instrumentos vibrafone, marimba, tímpano,
várias caixas, triângulos, etc. Era percussão sinfônica. Então, eu estudava feito um louco e ia
para casa dele com a lição.
161
Tutty: Final dos anos 1980. Foi uma opção que eu fiz porque era um período difícil para se
trabalhar com música no Brasil. Joyce e eu começamos a fazer qualquer coisa, muitas vezes
tocando em casas noturnas que não tinham a ver com a música que fazíamos. Ela se recusou a
continuar fazendo aquilo. Nós já tínhamos quatro filhos para sustentar. Nós éramos dois
jovens músicos que fazíamos qualquer trabalho para sustentar a família. Aí a gente parou e
falou: a coisa tá indo para um lado que a gente não quer.
Tutty: A ideia era me sacrificar, pelo menos por um tempo, para que eu prestasse um
concurso para uma orquestra sinfônica e me tornasse funcionário público com uma renda fixa
para estabilizar a família. A Joyce, ao mesmo tempo, contratou uma pessoa para dirigir um
show novo em que ela atuava sozinha - só voz e violão. Foi a primeira vez que ela fez isso.
Era um show lindo chamado Quadrantes. Esta, então, foi a razão por eu ter procurado pelos
estudos de percussão.
Só que eu ia para casa dele e estudava feito um louco. Chegava lá e me sentava de frente para
ele. Com a fisionomia séria ele ficava me olhando. Eu pegava as baquetas e me preparava
para demonstrar o que havia praticado. Antes mesmo de eu iniciar ele dizia: está errado! E eu
perguntava como assim está errado? Eu nem toquei ainda. O que é que está errado? E ele
respondia: Olha para a sua mão. Seus dedos. Enfim, foi um negócio que me traumatizou.
Entrevistador: Quando eu escuto você tocando e atento para o hi-hat tocado com o pé
esquerdo eu vejo que ele também entra na conversa com a caixa e o bumbo sendo incluído
como uma peça a mais no mecanismo de combinação dos padrões. O que mantém a estrutura
é a linha de tamborim que permanece inalterada?.
Tutty: Claro que o hi-hat entra nas combinações, mas ainda assim, quando estou tocando, eu
vario também a linha de tamborim. E vario muito. E tem também a maneira e o momento em
que você usa o crash para dar uma cor. É o que o Tony Williams fazia não só com o prato,
mas também com um ton-ton. Uma única percutida dele mudava a cor e era exatamente na
hora daquela mudança de acorde, quando o [Herbie] Hancock metia aquela mão esquerda, e
então vinha aquele ton-ton. Só percebiam, quer dizer, um músico que está ali e não é baterista
talvez nem notasse, mas quem era baterista notava e via a cor vir junto. E o [Herbie] Hancock
muitas vezes ria porque eles estavam juntos.
Entrevistador: Além desse universo de coordenação motora envolvida na prática dos padrões
musicais que você executa em música brasileira, gostaria de retomar o momento em que você
falou sobre o “touch” dos pianistas americanos. Comente mais sobre como esta observação
lhe trouxe indagações quanto um músico que toca bateria.
162
Tutty: É a coisa do bom gosto. Quer dizer não é o bom gosto conceitual de quando você fala
em bom gosto e as pessoas pensam que você despreza as outras formas de fazer e que são
diferentes daquilo que você julga ser de bom gosto. Porque tem muita gente que tem um
swing danado, como alguns bateristas mais rítmicos, que não tem essa sensibilidade criativa e
tocam numa onda que poderíamos chamar, aí com muitas aspas, de insensível ou mais grossa.
Mas o cara tem um swing que leva e que incendeia. Por isso, não podemos desmerecer este
tipo de músico. Jamais desmereça isso. É um conselho que eu te dou por ser mais velho que
você. Não desmereça porque lá na frente você vai entender e ver que aquilo ali tem um valor
tremendo. Então, tem uns caras que sentam ali no piano e metem a mão e que até ferem o seu
ouvido por conta da intensidade do som, mas o swing e aquela coisa que está no sangue do
músico te surpreendem. Agora, a sensibilidade de um touch quando você vê aquele cara e a
mão direita solta e a escolha de notas suave, quer dizer, não é nem suave, é a coisa da
sensibilidade. Suave também precisa ser melhor explicado aqui porque as pessoas podem
confundir com aquele papo de “easy jazz” ou música de elevador. Então, não é a suavidade,
mas sim a sensibilidade.
Entrevistador: Você estudou alguns instrumentos sinfônicos com altura definida como
vibrafone e marimba. Você acha que o baterista melódico precisa aprender recursos de
harmonia e melodia? Que outros conhecimentos, além da bateria, seriam necessários para o
desenvolvimento desta forma de tocar?
Entrevistador: Miles Davis estudou na Julliard School of Music e falou sobre a dificuldade em
estudar o jazz no espaço acadêmico.
Tutty: Isso. Então a gente ia muito mais pela intuição do que pelo estudo formal. É a coisa da
sensibilidade. Mas hoje em dia, eu sei que aqui já existe outra visão. Por exemplo, existe um
ditado no jazz que é mais um tipo de piada, muito comum entre os músicos, em que eles
perguntavam: você faz o que? E o músico responde: Sou baterista! Então, vinha a célebre
frase: ah, você é o melhor amigo dos músicos. Ou seja, não o tratam como um dos músicos,
mas sim como alguém que eles deixam estar ali por perto. Então existe esta separação e é um
negócio antigo e que sempre esteve presente. Só que hoje em dia não é mais assim. Porque o
baterista estuda inclusive música, composição sendo um músico como outro qualquer. E
muito mais, pois chegou ao ponto de nós bateristas elevarmos nosso instrumento à condição
melódica e não apenas rítmica e de fazermos parte do todo melódico. E a nossa música
brasileira, nos dá, e a Bossa Nova e o Sambajazz são exemplos disso por serem mundialmente
163
Entrevistador: E muitas vezes estes conceitos estão orientados por demandas do mercado.
Tutty: Exatamente. Por isso, quando eu fiz o Forças D´Alma eu escolhi as pessoas certas na
hora certa. Músicos que tinham abertura para entender isto e que estavam afim de
experimentar essas coisas. Com Joyce foi a mesma coisa. Não foi somente o matrimônio, mas
sim o todo. Um casamento de ideias e concepções que me deram também esta oportunidade
de tocar desta forma no universo da canção.
Entrevistador: Desculpe voltar a este assunto, mas você toca um instrumento harmônico hoje?
Tutty: Olha como saxofonista que fui eu “arranho” um pouco destas coisas em outros
instrumentos. Eu queria tocar muito mais.
Entrevistador: Mas em situações de improvisação você saberia utilizar as notas das escalas e
padrões que lhe dão um controle e lhe permitem realizar isto?
Tutty: E tem outra coisa também. Isto é algo que você aprende intuitivamente. Por exemplo,
você sabe o que é um circulo harmônico, por mais complicado que ele seja. Por exemplo,
Tutty cita um músico com quem tem tocado - é um cara que tem uma formação harmônica
completamente inabitual. Se alguém que for tocar com ele e estiver esperando caminhos
harmônicos mais usuais vai acabar se perdendo, porque a coisa vai para outro lado em que
esta pessoa não está acostumada a ouvir. A mesma coisa com Dori Caymmi ou com a Joyce.
Creio que a gente aprende isso intuitivamente. O chorus ou a noção harmônica de
encadeamento é algo fundamental para a gente. Se você tem algum estudo de harmonia seria
melhor ainda porque você conhecerá, em maiores detalhes, estes encadeamentos. Então, eu
acredito que isto é altamente aconselhável. Isto te permite, inclusive, uma abertura enorme
para pensar mais sobre a bateria. Tem escolas que colocam esta disciplina como algo
obrigatório e eu penso que é aconselhável.
Tutty: Pode ser que sim. Tente. Porque pensando a gente chega lá. Eu acho que é algo mais
ligado ao intuitivo. Mas acho que é algo mais prático do que teórico. Muito mais.
164
Entrevistador: Por exemplo, quando eu escuto suas escolhas musicais eu fico pensando se o
uso do ton-ton ou da cúpula tem uma razão específica para estarem sendo tocadas naqueles
trechos e se estas escolhas tem alguma relação com a harmonia? Se o fato do harmonizador
estar tocando um acorde diminuto, por exemplo, interfere na sua escolha?
Tutty: É intuitivo e na hora. Eu não penso nestas definições, mas eu sou sensível a elas. O que
você precisa fazer é se entregar. Tem muita gente que quer tocar exatamente o que estudou
em casa e isto é algo que eu não aconselho. Você tem que estar ouvindo e deixar sua
sensibilidade te levar. É aquilo que eu disse. A gente cria exercícios que vão te libertar e abrir
sua sensibilidade, mas na hora “H” o que fará a diferença será a prática e não somente a teoria.
Por isso eu sempre digo aos meus alunos quando apresento-lhes os exercícios que discutimos
há pouco para que pratiquem a nível de estudo. Não é a nível de aplicar o que está escrito no
método, porque se você fizer isto não vai casar. Você aplica conforme a situação criada. Você
pode tocar um bumbo num lugar completamente inabitual e funcionar perfeitamente porque,
de início, você manteria a mão direita na linha de tamborim e o pé esquerdo no contra-tempo
com o hi-hat. Nesta situação, os pratos te dariam um apoio e, ao mesmo tempo, te forçariam a
coordenar os toques com a mão esquerda e o pé direito de maneira que você saiba onde as
notas dos pratos coincidem com as notas dos demais tambores. Portanto, você precisa saber
onde tocar as notas junto da linha de tamborim sabendo em que semicolcheia cada uma das
notas da mão esquerda ou do bumbo irão cair. É mais fácil visualizar isto na partitura.
Entrevistador: Entendo. No seu caso, eu percebo através das gravações o uso do bumbo em
posições inabituais da maneira como você citou, sendo tocado na segunda e terceira
semicolcheias diferente do padrão habitual que seria tocar na primeira e quarta semicolcheias.
Tutty: Os japoneses ficam loucos com isto! Eles falam comigo, mas como é que é isso aí que
você tá tocando? Não é esse o jeito de tocar. É a mesma coisa para inserir o contra-tempo com
o pé esquerdo nas combinações rítmicas. Depois que você fez esta prática com o hi-hat no
contra-tempo, você irá fazer o seguinte. Você vai realizar as leituras que você fez com a mão
esquerda na caixa, agora, com o hi-hat no pé esquerdo, já pensando em combinar as linhas
rítmicas do hi-hat com o bumbo. Então, a sua mão esquerda vai tocar o contra-tempo na caixa.
Ou seja, você inverte as funções da mão esquerda e do pé esquerdo. Este seria o caminho para
desenvolver a coordenação e incluir o hi-hat nas combinações. Eu tenho estes procedimentos
sistematizados, porém não publicados. Neste momento, é um projeto que tenho deixado de
lado. Contudo, faço isso cotidianamente e com o passar dos anos percebi que isto tem aberto
possibilidades de expressar coisas diferentes na bateria. Tem uma questão de espaço também.
O lugar onde eu pratico hoje é muito pequeno e ele está cheio de pratos e baterias. A Canopus
me deu quatro baterias. Mas hoje guardo lá em casa apenas duas. Uma delas, que eu nunca
vou me desfazer dela porque é o protótipo 001 da marca, é um instrumento que eu tenho um
carinho muito grande. Outro dia eu estava falando com o presidente da companhia numa
dessas idas para lá (Japão). Antes de qualquer coisa nós somos muito amigos e isso se deu
num relacionamento não profissional, mas pessoal de amizade e respeito. Eu sou o único
endorse dele que não usa contrato nenhum. Eu não preciso prestar contas do que eu tenho
feito e como tenho divulgado a marca. Na última vez que fui para lá (Japão) foi em agosto de
165
2016. Nós sempre saímos para almoçar juntos e nesta conversa eu disse: O Shinichi Usuda.
Você já se deu conta que eu tenho o modelo 001 da Canopus? Enfim, temos uma relação de
trabalho desde 1988. O modelo que eu tenho é o neovintage muito parecida com a Gretsch
dos anos 1960. Todo mundo gosta do som da Gretsch e eu sou fissurado por essa bateria.
Inclusive no Forças D´Alma tem uma foto dela no encarte só que esta bateria não era a mesma
fabricada nos EUA nos anos 1960. Houve um tempo em que a fábrica da Gretsch pegou fogo
nos EUA e os empresários verteram a produção para Taiwan. Minha batera foi feita na Ásia,
mas de uns tempos para cá eles voltaram a fabricar a bateria a partir do formato americano de
antigamente, só que aí já era tarde e eu já tinha firmado um compromisso com a Canopus.
Contudo, minha relação com a Canopus não é só para divulgar a marca, mas sim aproveitar e
curtir tocar no instrumento que eles fazem. Eu realmente gosto muito das baterias que eles
fabricam é um apreço de verdade. Meu conselho: se você tem um endorse que você não gosta,
melhor não ter. Se você busca um instrumento, procure amá-lo mesmo, conheça o que é que
te toca nele. Essa minha paixão pela Gretsch vem desde menino porque todas as gravações
que eu ouvia na época eram feitas com esta bateria. Exceto Edison Machado que tocava com
uma bateria da marca Ludwig. Mas era um som completamente diferente e mesmo eu
adorando a forma como Edison tocava eu ainda assim preferia o som da Gretsch. Mas hoje eu
criaria uma situação muito ruim desfazendo meu acordo com a Canopus.
Entrevistador: Vamos falar um pouco sobre o seu trabalho junto da Joyce. Eu percebo que
você atua no contexto de canção também desta forma que você chama de melódica. Como
isto funciona?
Tutty: Houve uma época em que a Joyce fez algumas composições em cima do que eu
estudava. Muitas vezes eu estava estudando em casa e de repetente vinha uma inspiração para
ela que era baseada naquilo que eu estava tocando. A gente tem um duo que surgiu por conta
de uma adversidade. Na época do Collor (ex-presidente) ficou dificílimo trabalhar com
música. Foi uma “brabeza”. Não tinha jeito, não havia condições de levar os músicos e então
começamos a fazer shows em duo. E nosso duo é uma banda. Quem vê fica impressionado,
pois não sente falta de nada. Ela canta e toca a harmonia e eu toco completamente livre da
maneira como eu toco em conjuntos instrumentais. Tem horas que eu toco mais rítmico, mas
mesmo assim é bastante livre. Hoje em dia voltamos a fazer este formato com o nome
inspirado no duo Assadi. Chamamos Duo Moreno.
Entrevistador: Me parece que a Joyce sempre foi aberta a sua forma de tocar?
Tutty: Ela sempre foi. Ela sempre gostou mais dessa onda. Quando nós nos conhecemos eu
estava dando uma canja nesse clube (Cachaça) a convite do Hélcio Milito, isto depois da casa
inaugurada. A gente revezava. Eu fazia parte da banda da casa e Hélcio tocava bateria na
banda em que Joyce atuava. Uma vez o Hélcio me pediu para tocar uma música no lugar dele
e depois, no final do set, Joyce me procurou, particularmente, e fez o maior elogio que alguém
havia feito sobre minha forma de tocar: você toca como se tivesse dirigindo um carro
conversível. Ali eu entendi tudo no ato. Ela gostou dessa forma de tocar no ato. Isto foi a
primeira abertura que eu tive para atuar em gravações tocando daquela forma. E era uma coisa
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natural para mim. Eu ouvia outros bateristas fazendo aquilo e queria muito fazer isto do meu
jeito.
Entrevistador: E no trabalho com o Gilberto Gil? Havia um diretor musical guiando os tipos
de grooves que você tinha de executar?
Tutty: Bom com o [Gilberto] Gil era diferente. Quer dizer havia os ensaios e várias
convenções, mas eu tocava em cima dele. Sempre fiz. Na época ele não tinha entendido isto e
só percebeu isto lá na frente. Mas depois ele mesmo entrou em outro lance por causa dessa
coisa de mercado, ele entrou em outra e a partir disso ele se esqueceu. Só que o Gil é um
músico mesmo e tem um espírito de músico. Então, hoje ele ainda faz uns troços desses. Mas,
embora hoje ele seja bastante comercial, ele ainda é aquele músico.
Entrevistador: Eu como baterista percebo o quanto os demais músicos tem sempre uma
sugestão de groove ou abordagem para que você execute. Contudo, fica difícil estabelecer um
equilíbrio entre estas sugestões e suas escolhas quanto baterista, uma vez que parte destas
sugestões parecem partir da necessidade de gerar conforto para o performer que as sugerem.
Por vezes, a sensação é a de que nosso desejo de expressar ideias sonoras na bateria está
sempre limitado por estas sugestões, por se tratar de uma prática coletiva em que
harmonizadores e melodistas esperam um papel mais próximo da abordagem rítmica do
baterista. O que você pensa sobre isto?
Tutty: Eu acho que a palavra que pode nos ajudar aqui é colaboração. Isto que a gente faz é
uma colaboração. Quando você observa a interação dentro do grupo, você observa o que cada
músico está dando de si. Aquilo que cada um é. Isso é a arte e não é serviço. Tem vários
músicos que usam a palavra serviço para caracterizar nossa prática como se a gente fosse um
bancário, por exemplo. É claro que não há problema nenhum em entender o ofício por esta
perspectiva, mas não acho que é a um serviço que me refiro quando estou falando em fazer
arte. Existem algumas questões como monetarizar o trabalho que sempre nos cercam no
dilema de vivermos da arte, mas dentro desta sobrevivência, no meu modo de entender, hoje
nos meus 70 anos de idade, penso que você tem que ter o mínimo de dignidade. Você tá
fazendo arte. Você vai botar para fora sua expressão da melhor maneira que você puder.
Entrevistador: Na música instrumental há mais liberdade neste sentido, mas no trabalho com
canção me parece que o ambiente dessas escolhas é mais limitado.
Tutty: Quando você tiver tocando com uma cantora/cantor tem certas horas que você terá de
se submeter a uma disciplina. Isto é perfeitamente natural. E precisamos disto, principalmente
quando somos jovens. Por exemplo, quando você e sua companheira são responsáveis por
uma família com filhos e tudo mais, é uma responsabilidade grande e você tem que sobreviver.
Você terá que se submeter a um determinado tipo de coisa e saber o que é colaborar e abrir
mão das suas escolhas. Contudo, mesmo em um ambiente controlado – tocando da forma
como os outros querem – é importante perceber se ainda assim você está colaborando. Houve
167
momentos em que trabalhei com produtores que não eram músicos e a sensação é de causar
dor.
Entrevistador: E para mim é interessante notar que você conseguiu conciliar em sua carreira
um trabalho de canção, que normalmente é associado a esta forma de tocar mais “presa” com
sua linguagem mais colaborativa.
Tutty: Mas isto tem um preço alto. O preço é não me chamarem para fazer os trabalhos. É
claro que quem me conhece e sabe da minha forma de tocar já me chama esperando que eu
faça o meu som. Tem vezes até em que eu posso negar o trabalho, mas as pessoas dizem que
só eu faço aquilo e que precisam daquela forma de tocar em seus trabalhos. Novamente, são
sempre pessoas que me conhecem. Porque tem aquele lance do mito também em que a pessoa
nem te conhece, nem te ouviu, mas quer você na gravação dele. Ele não te chamou pelo o que
você toca, mas pela grife. Enfim, por estas razões, digo que o preço é alto, pois as
oportunidades de trabalho são reduzidas. Isto gera um impacto direto na sua vida como um
todo porque você tem família e precisa sobreviver. A gente não tem aposentadoria meu amigo!
Vou tocar até quando Deus quiser. E até onde ele quiser eu estarei lá tocando. Então tem um
preço: você faz o que gosta e acredita, mas paga o preço. Se um dia você entrar nessa você vai
ver que é bom a pampa, mas tem um preço alto.
Entrevistador: Falando novamente sobre o toque mais leve e retomando a fala da Joyce sobre
sua forma de tocar como sendo a de alguém que dirige, graciosamente, um carro conversível,
há na configuração dos seus padrões uma escolha de peças e, consequentemente, de sons que
derivam das suas escolhas. É sabido que no universo das big bands, por exemplo, costuma-se
utilizar a caixa para marcar os ataques melódicos realizados pelos sopros (naipe de metais).
Existe algum tipo de uso que é costume na sua forma de tocar e que você endereça um tambor
específico para a marcação de um trecho específico junto aos demais músicos que atuam com
você? De que maneira você conhecer a melodia em detalhes pode te auxiliar nessas escolhas?
Tutty: Então BigBand é outra coisa! Ainda outro dia eu tive uma longa conversa sobre isto
com o [Nailor] Provetinha. Como você sabe ele é líder de uma banda deste tipo e estávamos
falando sobre o Lelo Izar o baterista que fundou a banda. Lelo saiu da banda Mantiqueira e
agora quem está atuando é o Celso De Almeida. Só que o Lelo [Izar] é um especialista em
BigBand e para tocar neste tipo de banda é preciso ser um especialista. Não só o baterista tem
funções muito definidas, mas outros instrumentistas também o têm a exemplo do 1º trompete
ou 1º saxofone que normalmente são funções atribuídas a um músico especialista capaz de
atingir as notas mais agudas executadas pela banda. Ás vezes, estes músicos não são os
solistas da banda, mas possuem a função de gerar o impacto da sonoridade geral do grupo.
Pensando no baterista, em minha opinião, o Lelo [Izar] é um tipo de especialista em Bigbands
porque ele conduzia a Mantiqueira. Lelo utiliza principalmente a caixa e bumbo para pontuar
as melodias e os tons e surdo funcionam mais no sentido de fazer preenchimentos que
marquem transições ou convenções. Estes processos são bem conhecidos pelos bateristas, mas
acontece é que o Lelo faz isto bem “pra danar!” Escute os discos da Mantiqueira com ele. Ele
está em todas – se referindo as marcações de Lelo junto dos metais em muitos trechos das
168
gravações. Tem bateristas que preferem ler a partitura do 1º trompete, por exemplo, para já
sair atacando em cima das frases do trompete. É claro que a forma de tocar em Bigbands é
uma abordagem melódica, mas não acho que seja o mesmo procedimento que eu realizo
quando falo sobre minha abordagem melódica. No contexto das Bigbands o baterista tem uma
determinada função e ele não poderá fugir muito daquilo a não ser que o líder da banda
convide alguém como Jack DeJohnette, por exemplo, em uma situação em que ele espere que
o DeJohnette toque do seu modo como se ele fosse um solista convidado. Mas, de maneira
geral, os bateristas de Bigbands tem essa função determinada e, para se inspirar, a turma
costuma se ligar muito no Buddy Rich que sem dúvida é alguém que fez isto como ninguém.
Tutty: Olha eu também sou muito ligado nessa onda [Bigbands]. Na verdade Joyce e eu
somos e curtimos isso juntos. Adoramos ver solistas também nesta situação de banda. Então,
sempre que vamos para as turnês nós temos o costume de sair para assistir Bigbands. Nós as
acompanhamos pela internet e damos um jeitinho de arranjar tempo para assisti-las. Nós já
vimos a mesma banda várias vezes. Em algumas delas, o baterista principal, por ser muito
ocupado e estar trabalhando com outros artistas, acaba enviando um baterista substituto em
seu lugar. E esses caras de Bigband já conhecem todos os arranjos de core. Você chega para
assisti-los esperando o outro baterista e logo observa que quem está tocando é um substituto
parecendo totalmente confortável com o repertório. Inclusive, ele toca sem nenhuma partitura
e com todo o repertório memorizado. E é um repertório enorme! Mas, por fazer aquilo tantas
vezes e compreender bem esta função, estes bateristas são capazes de desempenhar muito
bem este papel. É uma função específica.
Agora a escolha das peças no contexto do que eu faço. A primeira coisa é que você precisa
conhecer seu instrumento. Você precisa ter uma afinação sua. Você escolhe sua afinação de
maneira que você já saiba como vai soar porque você conhece o som do tambor e qual a
resposta que ele vai te dar. Então, no momento em que você está tocando você vai nele
intuitivamente e o som vai somar porque você sabe intuitivamente o que ele vai te dar e o que
ele vai dar à música. Não é uma pontuação. Quando você fala de pontuação eu entendo como
um acento. Certas notas que você acentua com o rimshot, por exemplo, ou um bumbo mais
enfático junto de um ataque da banda. Só que o bumbo você tem que saber a afinação dele e
como ele vai soar. Se você deixa a pele mais folgada vai gerar aquele som sem overtones.
Dessa forma, o som não se soma e pode ficar agressivo. Tipo aqueles bumbos entupidos de
travesseiros que não permitem que o tambor soe. Se você deixar o tambor livre destes
sistemas de abafar e você for capaz de ajustar seu toque, o som do bumbo e suas sobras irão
soar lindamente, harmoniosamente de forma somada com o todo da banda. A mesma regra
vale para os tons. O tipo de pele que você usa, tipo a pinstripe se estiver solta não vai soar o
tambor.
Entrevistador: Então, o tipo de afinação que você usa necessariamente é mais aguda e com as
peles mais esticadas?
Tutty: Não é mais esticada. O som de toda a bateria tem que estar dentro do seu ouvido. Você
conhece o seu instrumento. Então, intuitivamente você vai lá e “pum” e percute de forma que
169
este som que você já conhece se some aos sons dos outros instrumentos. A escolha é feita na
hora e isto é possível porque você já sabe o som do seu instrumento e a forma como ele soa.
Entrevistador: e os pratos?
Tutty: Sinceramente, eu tenho uma filosofia sobre os pratos. Como eu tenho alguns e já há
algum tempo, eu os conheço bem – tenho um ride K 1960 e um hi-hat da mesma época que
não vou me desfazer deles nunca. Tenho outros pratos também, mas por natureza mesmo,
meu set não é composto por muitos pratos e no momento em que estou tocando uso no
máximo 3. Eu conheço exatamente como eles falam. Quando eu fico um tempo usando um
deles e então, tenho a necessidade de trocá-lo para fazer um outro trabalho, eu falo com ele
dizendo: Olha, vou botar o outro prato. Não fique com ciúmes. O prato fica ciúmes! E aí,
quando você traz este prato de volta pro set ele não responde. Não soa da forma como você
quer. Eu até pensava que esta sensação vinha pelo fato de eu ter me acostumado ao prato que
havia colocado no lugar deste mais antigo, mas não. É claro que isto é algo muito mais
psicológico porque um prato não tem alma, mas é um instrumento. Quando eu troco de bateria
eu vou lá e converso com ela. Converso mesmo! Se alguém me vir lá em casa fazendo isto vai
pensar que eu sou louco. Eu digo para minha bateria, vou fazer uma gravação agora e não vou
levar você desta vez. Limpo ela carinhosamente e a guardo em casa e depois saio com a outra
bateria para o trabalho. Depois quando tenho de voltar a utilizar a bateria que deixei ela está
feliz.
Entrevistador: Mas em se tratando da soma entre o som da bateria e da harmonia, por exemplo,
a afinação dos tambores e dos pratos é pensada no sentido de fazer com que as frequências
sigam as regras da harmonia funcional e reforcem as tríades e tétrades tocadas pelos
harmonizadores?
Tutty: Não. Claro que não! É como eu disse, embora a bateria possa ser entendida como um
membranofone em que você pode chegar a uma afinação definida, a bateria não funciona
deste modo. Ela não pode ter essa nota definida porque ela pode gerar um trítono, por
exemplo, com alguma nota tocada pelos demais instrumentistas e vai gerar um incômodo para
o músico que está tocando com você. Então, não é um lance em que você afine para a
harmonia, mas é apenas a cor. Claro que a sensação é próxima desta em que você percebe que
o som somado entre a bateria e a harmonia é completude. É a cor. No final deu uma cor mais
escura se for o tambor ou mais clara se for o prato. E isso tudo vem naturalmente. Não dá nem
para falar. A gente pode tentar teorizar, mas na hora “H” é na prática que este tipo de coisa
acontece. E aí quando você está pensando em fazer uma determinada escolha você precisa
entender que tem momentos em que a gente se engana. Numa gravação, por exemplo, em que
você pode ouvir o take que acabou de tocar, você percebe que utilizou esta cor num momento
errado e a soma não harmonizou da forma como você esperava. Aos poucos você vai
aprendendo e reutilizando estas possibilidades de sonorização nas próximas experiências.
Ninguém ensina isto. É intuitivo e ligado as suas escolhas individuais.
170
Entrevistador: E no caso dos discos da Joyce, por exemplo, há situações em que há uma
pré-produção em que você refina suas escolhas a partir da escuta próxima ao momento da
gravação definitiva?
Tutty: Com a Joyce há uma telepatia. Quando ela me apresenta um material novo, logo na
primeira frase, eu já sei o que é que vem por ali. Tanto do ponto de vista melódico e
harmônico quanto do rítmico. É telepatia. Tem muita gente que é assim. Por exemplo, o
baterista Bill Stewart tem um disco que se chama Telepathy (1997) em que o tipo de interação
captado ali é maravilhosa. É um título muito feliz para descrever aquela coisa feita na hora.
Como eu disse, tem vezes em que eu me engano e penso que uma escolha poderia ter sido
diferente, mas quando estamos ouvindo depois de gravar o take não é somente este meu
critério que é levado em consideração. Se os demais músicos acharem que o take está bom, eu
também o afirmo. Eu jamais invalidaria um take em que todos acham bom por conta de um
ajuste desta cor que, no meu julgamento, não foi o apropriado. Se valeu, valeu! Mas eu
guardo aquela sensação de uso do som e tento não repeti-la no futuro quando me deparar com
novas situações de prática musical. Por isso digo que você desenvolve esta coisa da escolha
dos sons com a experiência. Como esta experiência é muito individual, acaba virando um
negócio que é só seu.
Quando as pessoas falam em bateria melódica, algumas delas pensam que a ideia é afinar os
tambores mesmo e imitar as alturas das melodias na bateria. Na minha visão, não é nada disso.
É muito mais você pensar em somar na perspectiva da interação do criar melodias como um
melodista. É a tal da colaboração.
Tutty: Eu nunca pontuo a melodia. Eu dou cor a ela! Na minha cabeça é cor o tempo inteiro.
Raramente eu faço uma pontuação. Quando ela vem é intuitivo. Às vezes eu faço um acento
que traz uma cor que vai mudar a maneira do solista atuar. Por exemplo, o solista faz uma
frase e começa a repeti-la. Daí então quando vem um “PÁ” (som da caixa com rimshot) o
solista muda e vai para outro lado intuitivamente também. Isto é que é o melódico. É a
colaboração. Que nem a gente. Nós também nos repetimos muito. Quando você ouve várias
gravações em que você atuou você percebe a repetição de uma série de padrões musicais seus,
mas acontece que solistas diferentes te levam para lugares diferentes. Isto, claro, se você está
ligado! Depois você ouve e fica feliz com a sensação de ter seguido caminhos diferentes. É a
colaboração melódica.
Entrevistador: Quando eu ouço você tocando fico com a impressão de que você é um segundo
melodista que está sempre dialogando com a melodia principal como se estivesse fazendo um
contraponto de bateria. Você acredita que esta sua forma de tocar possa ser caracterizada
como contrapontística?
171
Entrevistador: Você falou sobre o ajuste de escolhas a partir de suas experiências. Imagine
uma situação em que a melodia principal da música possui muitas notas longas. Como você
tocaria a bateria neste caso? Procuraria fazer algo mais “seco” no hi-hat para contrastar com o
legato da melodia?
Tutty: Não, pelo contrario. Eu abro muito. Sempre toco no prato. Só vou pro hi-hat quando é
algo necessário. Explico. Eu gosto de tocar o hi-hat quando busco um som “sequinho” que
desemboca no ride, sendo este, tocado de forma leve. Como o som seco do hi-hat chama a
atenção e, normalmente, tocamos muitas notas uma vez que seu som é mais curto, quando
você ataca o ride de leve gera uma surpresa para o ouvinte. Eu gosto de fazer este ataque no
ride bem leve mesmo e com apenas uma nota. Daí vem a sensação de repouso. É claro que
isto é algo muito prático e não teórico e você pode fazer o uso destas peças de outra forma.
Mas este é um tipo de uso que procuro realizar buscando surpreender quem está ouvindo ou
tocando comigo. Imagine que eu tenha que tocar uma balada ambientada na Bossa Nova. A
gente já conhece este estilo e seus caminhos harmônicos, já que está intuitivamente dentro de
você, por isso eu abro e não faço o ritmo. Tem horas que procuro utilizar o bumbo para
marcar os pontos de tensão harmônica naquele formato de pedal – mesma nota sustentada por
vários compassos em uma composição – que gera a sensação de repetição. No quarteto que
gravou o Forças D´Alma utilizamos muito isto. Então, eu uso isto o tempo inteiro, mesmo que
não esteja tocando em um trecho de pedal harmônico a ideia é utilizar este conceito quanto
gerador de tensão a partir da bateria. Então, neste exemplo de balada Bossa Nova eu não
tenho a intenção de fechar o groove, mas de provocar este tipo de sonoridade enquanto toco.
Ou então você vai para vassoura que é outro mistério! Você utilizar a vassoura bem é uma
maravilha. Aí é uma outra história e para isto teríamos de marcar uma outra entrevista. Mas
tem uma coisa que eu queria dizer ainda sobre a ideia de utilizar a tensão. Eu costumo dizer
que nos trechos de pedal harmônico é a hora do bumbo, mas não é você forçar a barra e tocar
forte o bumbo, mas é o momento em que você escurece o som da banda com o grave do
bumbo. E é legal porque esse som escuro gera a sensação de que uma hora ele tem que voltar
a ser claro. E você segura o som escuro e demora a resolver no som claro. Daí a paciência!
Por isso você tem que ouvir os músicos que tocam com você e ter calma para chegar ao
momento de resolução. E este momento vai chegar. É quando o som desagua no sol de novo e
não é a nota sol não e sim o sol mesmo, o astro universal, quente e claro. É a hora do crash.
Isto tudo é intuitivo. Não é teórico.
Entrevistador: Falando sobre o momento em que você decidiu passar do saxofone para a
bateria, como se deu isto?
Tutty: Quando passei do trompete para o saxofone eu já estava muito ligado em bateristas de
jazz. Até que um dia Edison Machado foi até Salvador apresentar-se em um dos desfiles da
marca Rhodia. Na ocasião ele tocou junto do pianista Sérgio Mendes. Esta foi a primeira vez
172
que eu vi o Edison ao vivo. Eu já conhecia algumas das gravações em que ele atuou, mas ao
vivo foi a primeira vez. Antes do desfile, ele montou a bateria que iria tocar, sentou-se e deu
uma esquentada. No que ele começou a tocar já mudou minha cabeça na hora! Pensei: é isso o
que eu quero fazer. Como eu não tinha bateria, eu transformei um móvel que tinha em casa
em algo parecido com uma bateria. Era um porta-revistas dos anos 1950. Ele era feito de feito
com uns arames grossos. Eu prendia qualquer coisa que pudesse ter um som parecido com um
prato nesses arames. Fazia o mesmo tentando achar uma peça que tivesse um som parecido
com a caixa. Então, era nisso que eu tocava. Naquela época, haviam as vitrolas. Nós tínhamos
uma que parecia um móvel bem diferente dos aparelhos de som no formato microsystem que
vieram nos anos seguintes. Como era um móvel grande, este aparelho ficava situado na sala
da casa de meus pais. Além desta, na época haviam as vitrolas portáteis e, como eu tinha uma,
eu me trancava no meu quarto com os discos e a minha bateria feita de um porta revistas
improvisada. Eu botava os discos com ele [Edison Machado]. Rio 65 trio (1965), Você ainda
não viu nada de Sérgio Mendes. Este disco é maravilhoso! Era o Sérgio Mendes e Sexteto
Bossa Rio (1964). Botava também o Meirelles e os copa 5 (1963). Só que este era o Dom
“Um” Romão na bateria. Então, eu botava os discos e saia tocando junto. Quer dizer, tentava
porque não tinha uma bateria ainda. A minha mãe adorava música e sempre me deu a maior
força. Nós tínhamos um piano de cauda em casa. Então, minha mãe comprou um contrabaixo.
Na época, eu tocava saxofone para Carlito e Sua Orquestra e o baixista Moacir Albuquerque e
o pianista Perna Fróes que atuavam comigo naquele grupo costumavam ir lá em casa para
tocarmos em trio. Só que eu ainda não tinha uma bateria, era aquele negócio de porta revistas.
Então, um dia minha mãe decidiu me comprar uma bateria. Era um instrumento que nem me
lembro o nome. Era muito legal e inclusive o Edison [Machado] tocou nela. Houve uma
ocasião em que ele voltou a Salvador, também atuando em um evento da Rhodia, e tive a
oportunidade de fazer amizade e convidá-lo junto de outros músicos a irem lá em casa. E eles
foram lá. Eu só vim a ter uma bateria Pinguim bem mais para frente. E foi assim que eu
comecei.
Tutty: Sim. Foi um emprego de carteira assinada. Eu ainda tenho esta carteira aqui. Foi em
1968. Trabalhei lá durante um ano e meio. Eu saí de lá em 1970 e fui direto para Londres.
Mas antes, tiveram várias outras coisas. Por exemplo, Carlito e sua Orquestra era uma banda
em que atuei como saxofonista. Quando mudei de instrumento, passei a tocar bateria na
Orquestra - que era liderada pelo Carlito que também era baterista - trazendo esta forma de
tocar, inspirada no sambajazz, para o grupo. Foi neste momento em que a banda passou a se
chamar Orquestra Avanço. Eu penso que este nome tenha sido dado por influência do título
de um dos discos do Tamba Trio, Avanço (1963).
Entrevistador: Então sua atuação profissional como baterista se deu ainda nos anos 1960?
173
Tutty: Sim. Inclusive a minha primeira carteira da ordem dos músicos eu tirei em Salvador
também nesta época (1964).
Junto do trabalho da televisão em 1968 havia um pianista muito conhecido lá na cidade que se
chamava Carlos Lacerda. Ele é quem dirigia a orquestra da TV. Ele também tinha um trio em
que eu atuava como baterista. Na verdade, tocávamos mais com trio na programação local,
mas de vez em quando tinha a orquestra toda.
Entrevistador: Este trio tinha uma atuação local ou vocês viajavam para tocar em outras
localidades?
Tutty: Não, este trio atuava somente na TV Itapoan. O outro trio (Perna´s Trio) é que tinha
uma ampla circulação em Salvador.
Tutty: Olha, tem muita gente que acha que, quando Gilberto Gil e Caetano Veloso foram
exilados para Londres na época da Ditadura Militar do Brasil (1968), como eu fui para lá
(Londres) mais ou menos no mesmo período, eu estava envolvido no movimento Tropicalista.
Isto não é verdade. Eu nunca fui Tropicalista em minha vida. Eu era um músico que, naquele
momento, atuei como baterista junto de Gilberto Gil, de Caetano Veloso, da Gal Costa, e de
outros mais, mas nunca fui Tropicalista. Isto é um dado fundamental acerca da minha história.
Eu fui para Londres por razões pessoais e, como eu já havia tocado com eles em Salvador, nos
aproximamos também lá na Inglaterra onde fiz parte dos trabalhos deles daquele período. Mas,
eu os conheci alguns anos atrás, ainda em Salvador. Como a década de 1960 foi uma época
muito rica em música e em arte de maneira geral, não só no Rio de Janeiro, mas em todo o
Brasil, Salvador também experimentou este clima de efervescência. Lá, havia um local
específico chamado Teatro Vila Velha onde começaram a acontecer muitos shows e só fazia
Bossa Nova. Tanto Gil quanto Caetano tinham músicas belíssimas. Isto era entre 1963 e 1965.
Eu toquei neste teatro em várias ocasiões e foi assim que conheci Gilberto Gil e Gal Costa.
Foi em um momento em que eles ainda não eram conhecidos do grande público. Nem se
sonhava em Tropicalismo na época. Era a Bossa Nova. Depois, eles foram para São Paulo,
depois vieram para o Rio de Janeiro. Era a época dos festivais da canção e, por conta disso,
eles conheceram a rapaziada do Rio de Janeiro como Edu Lobo, Chico Buarque, Francis
Hime, Paulinho da Viola. Foi só depois disso que veio a Tropicália. Eu ainda estava em
Salvador nesta mesma época, portanto eu não tinha nada a ver com a Tropicália. Eu vinha
muito ao Rio de Janeiro, mas não tive contato com eles nesta época. Em 1970 eu fui à
Londres por razões pessoais. Foi neste período que aconteceu a situação do exílio e eles
escolheram ir para Londres, e eu, evidentemente, me encontrei com eles por lá e nos
aproximamos. Foi uma época muito difícil para eles também. E foi nessa que comecei a tocar
com o Gilberto Gil lá fora. A gente fez uma porção de coisas lá. E assim foi com Caetano
também. Quando eles voltaram ao Brasil, eu estava junto deles, mas como músico. Não tenho
nada a ver com a Tropicália. Eu acabei fazendo vários discos ligados a estes artistas, já que foi
uma fase muito fértil. Contudo, a forma como toquei nestas gravações era diferente dos
174
padrões de rock e pop utilizados na época para aquelas músicas. Eu acabei tocando à minha
maneira. Eu me lembro de tentar fugir destes padrões. Mas, mesmo fazendo o meu lance,
ainda assim era um negócio preso.
Entrevistador: Você me descreveu como se deu seu início de contato com os Tropicalistas e
como se deu sua atuação quanto baterista que trabalhou com eles em algumas situações. Mas
seria interessante para nós conhecer a sua visão acerca do movimento. Como você via a
Tropicália?
Tutty: Olha, falar sobre isto é uma coisa delicada. Eu penso que foi um movimento que surgiu
como uma reação acerca do tipo de música composta por jovens compositores do Rio de
Janeiro, como Dori Caymmi, Chico Buarque e Edu Lobo. Os Tropicalistas sentiam-se
inferiores em relação ao nível técnico musical dos cariocas, pois estes conheciam muito mais
sobre composição e atuação musical do que os baianos. Então, eles quiseram fazer algo que
fosse exatamente o contrário. A ideia era pegar o lado B ou tudo que fosse “brega” e dizer que
isto é que era bom. E deu certo. Só que eles fizeram mais do que isto. Eles foram além, pois
acabaram por moldar uma estética que, pelas vias erradas, acabou por incomodar o governo
ditatorial da época. Era um regime muito duro e que entendeu a Tropicália de uma forma
diferente daquilo que os representantes deste movimento queriam. Então, quando digo que o
movimento foi além, quero dizer que foi além do que os próprios Tropicalistas esperavam
dele. Eu entendo que há muitas visões em relação ao movimento e compreendo seu valor
quanto corrente estética. Eu penso também que este movimento deu início a uma decadência
do Sambajazz, por exemplo, que, aos poucos, foi por água a baixo. Fico imaginando o que
teria sido se, assim como o Samba que está sempre aí independente dos novos movimentos
que surjam, o Sambajazz também tivesse se perpetuado da mesma forma. O que teria ocorrido
caso o Sambajazz não tivesse se esvaziado enquanto a forma de fazer canção da Tropicália
crescia. É claro que tem músicas da Tropicália que são maravilhosas como Domingo no
parque (Gilberto Gil) e o Caetano Veloso Idem. Mas a música brasileira foi indo para outro
lado. É claro que o Sambajazz foi carregado com a nova geração de músicos que veio depois
de Edison Machado, como é o meu caso, por exemplo.
Entrevistador: Observando sua trajetória musical, é possível verificar que embora você seja
um músico brasileiro com bases na Bossa Nova, você sempre esteve aberto ao Jazz não se
colocando quanto um músico mais nacionalista como alguns que atuavam no segmento de
música instrumental da época (década de 1960).
Tutty: Eu sempre fui aberto a esta influência. É difícil para mim ter uma visão clara sobre isto
porque eu vivi esta época. Só que me lembro de não ser muito ligado a aquele movimento dos
compositores do Rio de Janeiro como Edu Lobo e Chico Buarque, todos “filhos” do Tom
Jobim. A Joyce já era desta turma, mas eu nunca fui ligado a eles. Embora eu tenha gravado
com Chico Buarque várias vezes, mas era outra coisa, era um trabalho como baterista e não
fazendo parte da elaboração dos movimentos. Então, eu não sacava muita coisa por não ser
tão ligado. Porque quando você vive uma situação no calor do presente, você não tem um
distanciamento histórico para observar para onde é que as coisas estavam caminhando. Por
175
Entrevistador: A que você atribui as dificuldades encontradas por vocês neste período (anos
1980)?
Tutty: Pessoalmente, no nosso caso, foi a nossa escolha de fazermos a música que queríamos.
A sensação é de que a correnteza que vinha de la para cá era outra coisa completamente
diferente daquilo que fazíamos. As pessoas achavam que nossa música estava ligada a uma
arte de elite. A moda, então, estava caminhando para outro lugar e como ela é uma onda
muito grande, quem entra nela vai embora, mas lutar contra ela é muito difícil. Nós não
lutamos contra. Nós olhamos para ela e saímos dela. A onda é tão forte que te esmaga. Então,
procuramos sair dela e encontrar uma maneira de fazer o que queríamos. O que havia para se
fazer nesta época era fazer a noite. E de repente virar um músico da noite também é um
desastre. Para nós que queríamos viver da música que compúnhamos, tocar o repertório de
músicas da noite seria uma situação muito difícil. Daí a minha tentativa de buscar um trabalho
junto a sinfônica e de Joyce fazendo shows solo. Então, começaram a surgir as oportunidades
de trabalho fora do Brasil.
Entrevistador: Quando você diz moda, você se refere aos estilos de maior popularidade na
década como a Dance Music das discotecas ou o Rock Nacional?
176
Tutty: Não era nem isso. Falo especificamente sobre o que se costumava chamar de MPB
naquela época. Todos os artistas que utilizavam este rótulo aderiram a alguns procedimentos
musicais que eram mais atrativos para as gravadoras, tanto para a contratação quanto para a
venda de discos, para a imprensa, etc. Era o que se chamava na época de música Pop. Ela
ainda existe e é uma forma musical muito rica com muitas ramificações. Ela é conhecida por
possuir um núcleo muito organizado. O rock sempre foi uma coisa mais à vontade. Os
músicos faziam o que eles queriam fazer. Mas, na música Pop a organização tem a finalidade
de gerar dinheiro e, portanto, segue outros caminhos que independem da criação dos artistas.
E isto acontece bastante. Então, o resultado é muito direcionado para isto um estilo comercial
mesmo. Ainda, tinha a questão da inflação brasileira na década que era algo sem precedentes
no mundo e o governo Collor. Aí a coisa estava muito ruim mesmo.
Graças a Deus a gente encontrou o caminho lá de fora. Digo eu e Joyce. Muitos músicos
fizeram isto também como Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, etc. Até hoje a gente ainda
vai para lá. É nosso caminho real e possível.
Entrevistador: Você gravou percussão nos discos do Gilberto Gil. Quando você se mudou
para os EUA, você chegou a atuar como percussionista por lá?
Tutty: Não. Eu nunca quis. É que lá tem uma coisa que eu acredito que tenha a ver com um
brio meu acerca da atuação de bateristas brasileiros. Hoje em dia eu penso que era uma
bobagem minha. Mas eu tinha um grilo com os americanos, especificamente, porque aos
bateristas brasileiros restava apenas trabalhos como percussionista. Os trabalhos de baterista
costumavam ser ocupados por músicos norte-americanos. Isto acontecia com outros músicos
como Tom Jobim e Oscar Castro-Neves, por exemplo, que, em seus discos tocavam o que
queriam, mas atuando com artistas norte-americanos, teriam de tocar violão ao invés de piano
que era o instrumento deles. Eu via esta situação e ficava revoltadíssimo. Por isso, eu me
colocava nos trabalhos como baterista e dizia que se fosse necessário tocar percussão, seria
melhor procurarem outro músico, já que eu atuaria apenas como baterista. E por conta disso
eu fechei algumas portas lá nos EUA. Hoje em dia eu reconheço que isto foi uma bobagem
minha. Mas ainda hoje eu fico revoltado. Por exemplo, Dom “Um” Romão chegou lá tocando
legal à beça e virou percussionista. Nunca lhe permitiam tocar bateria, a não ser quando ele
tocava com Sérgio Mendes, com Tom Jobim, aí sim, era ele atuando no instrumento dele.
Dom “Um” Romão nunca foi percussionista. Agora com o Airto Moreira, a coisa era diferente.
Airto era percussionista e baterista. Na gravação do Quarteto Novo você pode ouvir ele
tocando somente percussão. Quando foi para os EUA e chegou lá arrasando. Tanto que ele foi
tocar com Miles Davis. Embora tenha tido grande notoriedade, o trabalho com Miles também
foi difícil para o Airto. O Miles era uma músico cheio de histórias. Mas ele era percussionista
e estava pronto para chegar tocando. Claro que nos discos dele Airto tocava bateria também,
mas com os norte-americanos era a mesma história de só tocar percussão.
Entrevistador: Falando em Miles Davis, você chegou a assistir aos bateristas Tony Williams e
Elvin Jones tocando ao vivo durante sua estada nos EUA?
177
Tutty: Cheguei sim. Inclusive, o Elvin eu vi muito. Eu conhecia o som dele através das
gravações e quando vi ele ao vivo foi um choque. A técnica dele era totalmente autodidata,
assim como a maior parte dos jazzistas desta época. Era uma abordagem simples, mas os
caras tocavam mesmo. Eles tocavam o que sentiam. Esta foi uma revelação que foi fundo e
me pegou mesmo. A coisa da técnica mais apurada só veio depois e foi de uma época para cá
quando começou a surgir Steve Gadd e, depois, Dave Weckl. Já havia a técnica Moller e era
ensina pelo Jim Chapin, mas os bateristas de jazz não se interessavam tanto por isto. A não
ser Joe Morello. Mas eu nunca gostei muito desta onda. Eu ouvia o trabalho dele porque eu
gosto muito do saxofonista que tocava no grupo de Dave Brubeck que era Paul Desmond. Eu
acho que ele tem uma simplicidade cativante. Eu nunca achei legal o som da banda como um
todo com aquela que bateria soava de uma maneira muito repetitiva. Eu só curtia o
saxofonista mesmo. Acho que ver o Elvin e sua naturalidade tocando foi algo que realmente
me emocionou. E o Tony Williams idem. Só que a fase dele que eu mais gosto é junto do
quinteto do Miles Davis e, na década de 1970, ele atuava em outros grupos que não este.
Anualmente, Tony se reunia com trio que se chamava na época de New York Trio que era
formado por Tony Williams na bateria, Ron Carter no contrabaixo e o irmão do Elvin Jones
que era pianista e se chama Hank Jones. Esse trio eu vi duas vezes. O Tony Williams ainda
insistia em tocar com aquele instrumento dele que era enorme com um bumbo de 24
polegadas e cinco ton-tons. Aquela Gretch amarela dele utilizada para tocar com um trio de
jazz. Para mim, ficava meio estranho. Mas ele tocando era jazz mesmo. Ali ele voltava ao
jazz.
Tutty: Tony Williams era um músico muito difícil e ninguém chegava nele. Mas o Elvin e a
grande maioria dos jazzistas eram pessoas muito legais e completamente acessíveis.
Dependendo do estado em que estivessem na noite. Mas naquela época essa coisa das drogas
já tinha baixado bem.
A Tropicália não aceitaria minha forma de tocar de jeito nenhum. Eu dei sorte. E não é que eu
queria tocar jazz, mas era o que eu ouvia. E gostava muito. Eu ainda era menino e gostava de
uma maneira sincera. Eu não pensava muito se alguém aceitaria aquilo ou não, eu só queria
fazer.
Entrevistador: Eu estudei com Edu Ribeiro e ele fala bastante sobre o Tutty [Moreno].
Rodolfo: É. Eu acredito que O Tutty foi uma influência pro Edu no início da carreira. Além
do Tutty também o [Edson] Machado e eu penso que quem apresentou o Machado pro Edu foi
o Tutty. Aliás, o Machado é uma grande influência pro Tutty e ele declara isto abertamente.
Embora haja esta influência e, alguns momentos é possível perceber a similaridade entre os
dois, eu acredito que o que o Tutty faz é bem diferente daquilo que Machado fazia. Este era
menos dinâmico que o Tutty e, consequentemente, mais ostensivo ritmicamente. O Tutty é
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mais oculto. Ele é um poeta da bateria. Ele é um perfumista. Eu acho incrível isto nele. Nós
tocamos juntos há 21 anos. Eu comecei a tocar com a Joyce em 1996/1997 e desde então não
paramos mais. Na época éramos eu (contrabaixo), Tutty (bateria), Joyce (voz e violão) e mais
alguém. E sempre foi assim. Havia momentos em que a formação era eu, Tutty, Joyce e Teco
Cardoso (sopros); ou eu, Tutty, Joyce, Teco Cardoso e [Nailor] Proveta (sopros); ou eu, Tutty,
Joyce e Hélio Alves (piano).
Rodolfo: Esse show foi muito legal. Rola uma energia boa de música nos nossos shows. É
uma onda muito legal! É engraçado. E é muito legal de ver ele atuando com a Joyce porque,
além de serem marido e mulher, eles tem uma química musical muito legal e acho que o Tutty
me chamou para tocar por conta disso. Nós temos uma química musical muito boa. A gente se
dá bem e é muito amigo. As vezes nem falamos de música e aproveitamos a companhia um
do outro da mesma forma.
Entrevistador: O meu foco de pesquisa é o disco Forças D´Alma que é de 1998 e, portanto,
data do início da parceria de vocês. Você consegue recordar alguma coisa acerca do momento
da gravação ou da confecção dos arranjos? Vocês conversavam sobre a forma de tocar no
disco?
Rodolfo: É. O Forças D´Alma foi o piloto que deu origem a série! Como eu disse a você eu
tocava com a Joyce naquele momento. Então, o Tutty recebeu o convite para gravar um disco
junto ao selo Sons da Bahia - selo criado pela secretaria de cultura da Bahia através do
produtor Roberto Santana. O Roberto é um cara muito ligado aos tropicalistas e já tinha sido o
produtor do [Gilberto] Gil e do Caetano [Veloso]. Era um cara muito esperto e de um bom
gosto musical. Era atinado. Então, ele chamou o Tutty para fazer um disco dentro de uma
série de vários discos do selo. Havia discos do Gordurinha (Waldeck Artur de Macedo) aquele
compositor baiano, discos de folclore, discos de capoeira e o disco do Tutty no meio disso
tudo. Existia o fato de termos de gravar o disco lá na Bahia. Então veio a ligação do Tutty me
convidando para fazer parte disso me explicando a situação e dizendo se tratar de um quarteto.
Ele me disse que seríamos eu, Tutty, o [Nailor] Proveta - que eu já conhecia, pois havíamos
gravado o disco do Mozart Terra -, e um menino de 18 anos que se chama André Mehmari.
Tutty havia conhecido o André através do Gil Jardim em um trabalho que havia feito no
SESC. Me lembro dele ter dito que gostou muito do André tocando e que achava o jovem
pianista perfeito para gravação deste disco junto ao selo baiano. Então, o Tutty começou a
elaborar os preparativos pro disco e eu fiquei esperando ele me chamar para as etapas
seguintes do processo até que marcaram dois ensaios num teatro antigo no bairro do Bexiga
ali perto da Rui Barbosa (em São Paulo). Era um teatro pequenininho, úmido e estranho. Era
perto da casa do Proveta. Aí fomos ensaiar e não sabíamos o que iríamos tocar. Logo de cara
me deparei com um menino carregando um teclado - era o André e eu acabava de conhecê-lo.
Quando iniciamos os ensaios, Tutty e André já tinham construído um repertório com algumas
harmonias e mais algumas coisas. Isto foi, vamos dizer assim, numa quarta-feira onde fizemos
179
um ensaio curto de duas horas onde experimentamos algumas coisas. Aí no dia seguinte ou
dois dias depois repetimos e fizemos um segundo ensaio onde o disco já pegou uma forma
com algumas introduções definidas, arranjo de cordas para algumas faixas e a gente criando
espontaneamente - que era a orientação que o Tutty, como líder, havia dado para gente. Então,
depois desses dois ensaios voamos para Bahia e fomos para o teatro chamado ACBEU
(Associação Cultural Brasil-Estados Unidos) que é ali no corredor da Vitória (Salvador-BA) e
a gente gravou no palco do teatro que já tinha um piano. Tutty levou a bateria e eu levei meu
baixo, o Proveta os instrumentos dele. Me lembro que o técnico de som no dia era um rapaz
chamado Wesley que fez de um dos camarins a sua sala técnica. A Joyce participou também
desta gravação atuando em duas faixas Baracumbara e Forças D´Alma. Foi um disco muito
rápido de fazer, pois gravamos tudo em 2 ou 3 dias.
Para mim foi muito surpreendente! Primeiro porque eu não tinha a menor expectativa do
disco e do que faríamos sonoramente. Eu já tinha tocado com Proveta e com Tutty em outros
contextos, mas não com o André. Retomando o curto período de ensaios, me lembro de que o
Tutty tinha preparado algumas coisas junto do André, mas eu não sabia ao certo o que
faríamos na gravação. Aí no primeiro ensaio algo já me chamou a atenção. No segundo,
comecei a perceber que o grupo tinha uma coisa maior. Era algum tipo de alquimia muito viva
em que a energia passava de um pro outro muito rapidamente do ponto de vista da criação e
da concepção do trabalho.
Rodolfo: Não. Foi muito rápido. Eu não fiquei para as sessões de mixagem. Acho que ficou
apenas o Tutty nesta fase. E depois me chegou uma fita cassete ou um CD, não me lembro,
mas me recordo de ficar impressionado com o resultado, pois tocamos de um jeito muito livre.
Para mim era coisa inédita fazer aquele tipo de música brasileira daquela maneira. Havia
muita abertura ali muita abstração. Acho que há um lado muito abstrato na música que a gente
faz. E assim foi.
O segundo ponto é que eu acho que o disco tem uma magia pela escolha do repertório. O fato
do Tutty ter priorizado o Caymmi em alguns momentos - A Lenda do Abaeté, João Valentão,
A Vizinha do Lado, Só Louco somado a Imagens de Luiz Eça, Samba Novo de Durval
Ferreira, Sanfona do Egberto Gismonti que a gente toca de bis, enfim.
Rodolfo: Este foi um disco que eu ouvi muito! E surpreendentemente, para mim, o disco saiu
muito mal saído através de uma tiragem baixa. O Tutty tinha um pouco de discos, eu tinha
outra parte e nós acabamos distribuindo entre os nossos amigos de forma independente e, para
minha surpresa, ele se espalhou na comunidade musical e virou uma espécie de referência de
um tipo de música brasileira para as gerações seguintes. Que idade você tem?
Rodolfo: Então, meu filho Noah tem a sua idade e já ouviu bastante esse disco. Tem o João
Fidelis que toca bateria e também sempre me fala do disco, enfim, muitos jovens músicos já
me falaram que este disco era uma de suas referências.
Entrevistador: Você falou em uma forma de se tocar a música brasileira com mais abstração.
Ainda sobre o momento de gravação do Forças D`Alma (final da década de 1990) como era o
cenário da música instrumental da época? Sei que a pergunta parece ampla, mas você se
recorda se era fácil gravar um disco, se os músicos costumavam custear essas produções ou se
havia a necessidade de uma gravadora ou alguma produtora assumir os encargos de produção,
havia um público interessado neste tipo de música?
Rodolfo: Eu acho que havia um ambiente musical que não sei se existe agora porque eu não
tenho participado tanto. Quer dizer, eu tinha a gravadora. Na verdade, vou falar um pouco da
minha história para entender o meu ponto de vista. Eu comecei a atuar profissionalmente
como músico em 1978. Nessa época, eu participei bastante da música instrumental paulistana
que era ligada ao teatro Lira Paulistana. Eu toquei em vários grupos como a Divina Increnca
(1980) - eu, Felix Wagner e Asael Rodrigues - tendo gravado um único disco que leva o nome
do grupo (Independente, 1980). Depois toquei no Grupo Um (1981 e 1982) - eu, Lelo Nazário,
Zé Eduardo Nazário, Mauro Senise e o Felix Wagner - tendo feito alguns discos por lá. E
junto com estes grupos eu fundei também a banda Pau Brasil (1981) que na época éramos eu,
Nelso Ayres, Asael Rodrigues, Roberto Sion e o Hector Costita e, logo depois, entrou o Paulo
Bellinati no lugar do Costita e acabou ficando no grupo. Pois bem, eu venho então deste
momento. Nesta época, havia uma confluência de interesses entorno da música instrumental,
já que a geração da qual eu faço parte estava compondo, gravando e tocando este tipo de
música. Somado a isto havia um certo movimento independente de cultura. Me lembro que
Antônio Adolfo - um pianista carioca - fez um disco histórico do ponto da vista da forma
como foi feito. Era um LP chamado Feito em Casa. Na mesma época o Grupo Um gravou um
primeiro disco chamado Marcha Sobre a Cidade que é o único disco em que eu não toco. Eu
gravei os outros. Então o teatro Lira Paulistana cumpriu um importante papel no sentido de
aglutinar estes grupos e muitos outros em um espaço em que a molecada poderia ir assistir aos
shows por “cinco conto” num lugarzinho meio ruim em um porão da Teodoro Sampaio, mas
que o som rolava. Quer dizer, nós éramos os grupos de música instrumental mais o Zona Azul,
Pé Ante Pé, o Akaru, o Orquestra Azul e também o Língua de Trapo, o Premeditando o
Breque, o Arrigo Barnabé, o Itamar Assunção, a Ná Ozzetti, o grupo Rumo, enfim, tudo isso
era uma mesma safra de gente de uma mesma geração que estava aglutinada ali. Logo depois
que o Lira começou a explodir, digo, explodir não, mas ter um fluxo contínuo de público, o
dono do Lira Wilson Souto Jr. foi chamado pelo Buyington - que era o dono da gravadora
Continental - para ser o diretor artístico desta gravadora. Então Wilson foi trabalhar na
gravadora e capitalizou parte da produção do Lira e artistas como Pau Brasil, Grupo Rumo,
Premeditando o Breque e outros dessa época começaram a gravar pela Continental. Então,
havia a efervescência desses novos artistas e a circulação de um público jovem no entorno do
Lira com discos sendo lançados e tudo mais.
181
Portanto, havia uma situação que já não existe mais. Não havia a internet, mas havia discos.
As pessoas compravam os LPs nas lojas, havia um mercado de distribuição, ou seja, havia um
sistema distributivo dessas coisas. Então, muito jovem eu comecei a me interessar por este
universo e acabei fundando a minha gravadora que recebeu o nome de Pau Brasil. Mas, o selo
Pau Brasil Music nada tem a ver com o grupo Pau Brasil, pois no selo gravamos a Banda
Mantiqueira, O Gilberto Gil, o Sérgio Santos, a Mônica Salmaso, o Pau Brasil, a Orquestra
Jazz Sinfônica, enfim, tem um catálogo grande de artistas. Então, eu me tornei uma pessoas
que mergulhou totalmente neste universo da produção musical e que começou a gostar deste
ramo de atuação.
Rodolfo: Por volta de (1994/1995). O primeiro disco foi da cantora Marlui Miranda chamado
Ihu Todos os Sons. O segundo foi o Babel do grupo Pau Brasil (1995) e o terceiro é o Aldeia
da Banda Mantiqueira (1995). Os discos Aldeia e o Babel foram nomeados ao Grammy
norte-americano e o disco da Marlui Miranda ganhou o prêmio de worldmusic na Alemanha.
Foram discos bem sucedidos. Então, novamente, ainda havia este mercado de distribuição que
vinha dos anos 1980, havia o CD que era um formato novo de suporte para a música, haviam
estes músicos criando quer seja instrumental ou canção, e como eu trafegava muito por aqui e
pela Europa, eu consegui colocar os discos para circularem no mercado norte-americano e
também europeu. Então, para mim, esta pergunta sobre a produção fonográfica neste período
é muito interessante porque eu também atuei neste momento com a visão de um produtor
fonográfico. É claro que eu atuei também como músico, mas construir este transito todo junto
do selo Pau Brasil Music foi algo muito legal de fazer. O engraçado é que eu comecei o selo
ser querer.
E foi assim. O [Gilberto] Gil veio a São Paulo para fazer o unplugged dele num estúdio na
Raposo Tavares que era um estúdio de televisão. Na época a Lei Rouanet estava começando e
a Marlui Miranda tinha conseguido o apoio da Fundação Rockefeller, do SESC e da Kibon
para fazer aquele disco Ihu Todos os Sons que era uma espécie de mapa musical dos nativos
do Brasil. Me lembro que ela focou em dezessete tribos diferentes e como era sob o prisma
dela, ela selecionou um grupo vocal chamado Grupo Beijo liderado pelo Tiago Pinehiro (filho
do Benito Juarez), e ensinou este grupo a cantar no idioma dos nativos com a entonação e
tudo mais. Ela tinha um dinheiro para a fazer isto. Então, ela me procurou e me perguntou se
eu gostaria de produzir o disco. Eu aceitei e depois de ouvir o disco fiquei fascinado, porque
era um disco muito libertador e diferente. Eu já tinha viajado com a Marlui tendo tocado em
Angola com ela e, portanto, ela já era uma velha companheira. Eu achei aquele disco uma
coisa louca e ela me disse que estava mergulhada naquele material e queria muito que o
Gilberto Gil cantasse três faixas com ela. Ela me mostrou as faixas e eu disse ok, irei atrás do
Gil. Entrei em contato com Gil e ele me convidou para assistir a gravação desse unplugged
dele em São Paulo. Só tinha eu nos bastidores assistindo ao show, não tinha público. Fui falar
com ele depois que terminou a gravação. A gente já se conhecia porque o grupo Pau Brasil
abriu alguns shows dele na Europa no final da década de 1980 e início de 1990. Então nós já
tínhamos conversado e ele sabia quem eu era. Então, com esta abertura eu expliquei o
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conceito do disco da Marlui para ele propus para que viesse a São Paulo gravar as vozes e ele,
como sempre muito gentil, aceitou o convite. Então, chegou o momento da gravação. E ele
veio, gravou as três faixas. No dia seguinte, quando eu estava levando ele pro aeroporto, ele
me disse: Pô bicho, gostei do jeito que você trabalha. A gente podia fazer alguma coisa junto.
E eu disse: Ah é? Beleza! Então, eu e Marlui terminamos o disco dela lá em Oslo na Noruega
e na volta eu apresentei um projeto pro Gil. Nele, a ideia era fazer um disco nordestino sobre
o interior do sertão nordestino e pensei no fato de você ser do interior da Bahia. Então eu
comecei a viajar com isto. A formação seria eu, um músico norueguês chamado Bugge
Wesseltoft que era pianista e tecladista, a Marlui Miranda porque ela traria um outro elemento,
o Toninho Ferraguti no acordeon e um percussionista indiano que eu conheço que se chama
Trilok Gurtu e o Gil gostou muito da proposta e se comprometeu a vir a São Paulo para os
ensaios e gravações. Então ele veio e gravamos algumas coisas. A Marlui trouxe umas coisas
que haviam sido recolhidas pelo Mario de Andrade no livro sobre côcos. Então ela chegou
com côcos de usina, de engenho, de sertão, enfim, gravamos algumas coisas a partir deste
material. Então, esse disco acabou puxando o selo porque eu estava com o disco da Marlui na
mão, esse disco do Gil e alguns outros. Daí eu fiz o selo. Pode parecer que os lançamentos do
nosso catálogo não tinham muito a ver com o que era produzido aqui, mas eu acho que tinha
sim. A gente tem uma riqueza musical muito grande no Brasil. Sem dúvida é uma das maiores
e mais diversas do mundo.
Agora, se aquele momento era mais efervescente na época. Na minha opinião era. Talvez
porque eu era mais jovem e tinha energia para fazer as coisas e segundo porque era mais
aglutinado, porque todos estes mecanismos de facilitação para ouvir e produzir música hoje,
eles fragmentaram a música como um todo. Antes tudo era concentrado em alguns lugares
como lojas de disco. Havia os encartes. Hoje você não sabe muito bem como as pessoas
recebem isto, se elas sabem alguma coisa dos artistas que produziram aquele material, dados
estatísticos mais precisos sobre venda, enfim, eu me perdi nessa nova forma de fazer. Talvez
por ter vindo de uma geração que lidava com outra estrutura. Antes eram 8 canais, depois 16,
depois 24, depois 48 e depois digital e daí para frente eu fiquei meio sem saber o que fazer.
Voltemos para o Forças D´Alma?
Entrevistador: Eu acho interessante estes dados que você tem me dado para tentar situar a sua
percepção em relação ao mercado de música instrumental da época.
Rodolfo: As vezes, tem certas coisas, e isto talvez seja parte do que estamos conversando
agora, e certos momentos - agora me parece que é um deles - em que você encontra um lugar
e uma equipe que pare para pensar neste lugar e que saiba o conduzir, você faz uma confusão.
E confusão no bom sentido. Porque eu acho que o número de músicos e da diversidade de
manifestações musicais que eu ouço hoje em dia é espetacular e gigante. Meu filho às vezes
aparece aqui em casa e mostra uma série de coisas novas, tipo uma menina cantando de um
jeito muito diferente em show num espaço chamado Sofar que é um espaço que tenta criar um
ambiente para shows ao vivo um pouco diferente daquilo que estamos habituados. E a menina
cantando era sensacional! Era interessante, criativo, novo, jovem. Assim como eu vejo um
montão de música instrumental jovem. Tem muito rock também, enfim tem de tudo. Talvez, o
183
que foi legal e proveitoso para a minha geração, foi o fato do Lira ter sido um espaço em que
as pessoas que iam até lá tinham uma mesma informação geral de tudo o que acontecia
naquela época. Numa noite tinha um grupo de rock, na outra noite um grupo de música
instrumental, na outra noite o Premeditando o Breque, noutra noite o Arrigo Barnabé. E se
você ia em um show já ficava sabendo do outro. Era muito barato. O “Gordo” que era o
apelido do Wilson Souto Jr. Não devia ganhar muito dinheiro não. Acho que era muito pouco.
Mas o jovem não tem dinheiro. Por exemplo, eu vou tocar com o grupo Pau Brasil no bar
Tupi or not Tupi aqui em São Paulo e para gente ganhar algum dinheiro o ingresso precisa
custar 60 reais. Pô isso é caro para um jovem de 20 anos. No Lira custaria algo em torno de
15 reais. Então, por uma mágica a moçada ia. É também uma questão de juventude.
Entrevistador: É. A juventude de São Paulo dos anos 1980 parecia estar mais disposta a sair
de casa. Pelo menos neste recorte que você nos trouxe, isto pareceu evidente. Talvez a
juventude de hoje, ao menos uma parte dela, me parece bastante resignada e em alguma
medida nostálgica em relação à música. Não é incomum você conversar com jovens que
defendem a ideia de que o quadro musical antes era melhor. Só que muita gente diz que esta
tal nostalgia é algo bastante comum. Por exemplo, o Herbie Hancock e Frank Zappa falam um
pouco sobre isto quando se referem aos anos 1960. Na visão deles, muita gente mais jovem os
interpela manifestando este sentimento de nostalgia em relação à produção musical nos anos
1960 como sendo um momento melhor do que os dias atuais. Ambos são enfáticos em afirmar
que esta década não parecia tão bonita quanto a narrativa descrita pelos jovens. Eu também
penso que hoje temos muitas distrações e isto influência na tomada de decisão do jovem em
sair de casa para assistir a um show. Ou mesmo estudando.
Rodolfo: Você está falando de uma coisa que foi tão fundamental para a minha geração no
exercício da profissão de músico. Nós fantasiávamos a forma de aprender, pois queríamos ter
o disco nas mãos, queríamos ter o livro ou método que abordasse um determinado assunto.
Quando esse livro chegava ele era tudo o que nós tínhamos à disposição. Neste sentido, não
havia bagaço! Você tentava aproveitar tudo o que fosse possível de um mesmo material lendo
da primeira a última folha. Hoje em dia é o contrário. Tem tanta informação que chega até
você que fica difícil saber ao certo para que ela serve.
Entrevistador: Hoje como estudante de música eu tenho focado mais nas gravações e menos
nos métodos. Primeiro porque já faz um tempo que atuo na área de música e já temos uma
ideia destes livros. Segundo, porque os livros foram inspirados em formas de tocar. Por isso,
tenho gasto mais tempo investigando as gravações.
Entrevistador: Eu vejo você falando o nome das pessoas que fizeram parte dos discos que
você ouvia ou produzia e me parece que isto também é diferente para as pessoas de hoje.
Talvez entre os músicos este hábito se manteve, mas será que as pessoas no geral ainda
buscam este tipo de informação?
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Rodolfo: Este tipo de informação sumiu. Você sabe que eu recuperei minha discoteca há
pouco tempo, pois minha vitrola havia quebrado e eu demorei vinte anos para comprar outra.
Meu filho me disse para tentar ajustar isto porque temos muitos discos em casa. Quando eu
trouxe a vitrola para casa e busquei a discoteca me dei conta de que tinha perdido aquilo não
ouvindo aquele material durante todos esses anos. Coloquei um disco do Walter Franco -
título: Walter Franco ou não - e quando ouvi aquele chiado foi uma sensação muito legal. E o
disco era moderno e cheio de ideias e conceitos. Daí coloquei o disco do Vassourinha (nome
artístico do compositor Mário Ramos) único disco deste sambista que morreu na década de
1940 por conta de um câncer ósseo. E me lembrei das vezes que havia ouvido este disco na
adolescência. Daí peguei o encarte e li um texto muito bom sobre a história deste compositor,
além das informações sobre quem atuou na gravação. Quando eu digo que estas informações
sumiram é a isto que me refiro. Hoje você tem todas estas músicas, mas você tem associado a
elas um único nome, já que você não sabe se quem compôs é quem está interpretando a letra,
quem são os músicos que gravaram o disco, em que ano aquilo foi gravado, onde aquilo foi
gravado. A gente perdeu a conexão com o físico. Como músico, este fato me deixa
desesperado. As vezes me recolho para estudar o contrabaixo e fico num pequeno trecho por
duas ou três horas.
Por exemplo, um improviso. Eu como baixista, sou uma espécie de barqueiro tendo que remar
para que o solista possa tocar. Eu gasto um tempo ouvindo gravações e pensando de que
maneira vou tocar de uma forma capaz de trazer o maior conforto possível para o solista. Isto
tem muito no Forças D`Alma. Vai depender de uma série de fatores e um deles é o baterista
com quem você irá tocar. Então, o meu foco costuma ser voltado para trechos muito pequenos
no qual eu toco por horas tocando lento, médio, rápido e paro, volto e repito muitas vezes de
formas diferentes. Quando eu sento para tocar o mesmo material no dia seguinte percebo que
aquilo me alimentou musicalmente e fez subir um degrau bem pequeno ao que tocava no dia
anterior. Então, eu penso que o importante para mim não é o excesso de informações, mas sim
a qualidade dessa informação.
Ao falar do Forças D ´Alma este é um fator que também me surpreendeu muito porque o
Tutty toca tão livre e eu já sabia disto porque tocava com a Joyce. O violão da Joyce é muito
condutor. Ela tem uma mão direita muito rítmica e a banda se conduz através do violão dela.
Mas no quarteto do Forças D´Alma não tem esse violão e a harmonia é tocada de outra forma,
porque o André não é este tipo de harmonizador mais ligado ao ritmo. Ele não é um músico
de gênero. Ele é um músico da música clássica misturado com a música popular e sua forma
de tocar é diferente do que tradicionalmente os pianistas fariam ao tocar a batida típica de um
estilo enquanto toca os acordes. Então, eu sinto que estou no meio de um baterista que não
toca o ritmo o tempo inteiro e de um pianista que não acompanha o tempo inteiro. O outro
músico que falta é o [Nailor] Proveta que é o solista. Ele é uma mistura de Pixinguinha com
[John] Coltrane, enfim, é outra coisa. Por isso, eu penso que preciso voar junto com eles, mas
eu preciso que eles saibam que eu também sou o chão. Se eles não atentarem para isto vão
acabar voando de mais. Por isso, o equilíbrio para o meu instrumento está entre o chão e esta
atmosfera. Se eu fizer isto, o resto é com eles. Então eu me preocupei em desempenhar este
papel.
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Entrevistador: Mas você acredita que realizou uma mudança de postura em relação as formas
de tocar que você estava mais habituado antes do quarteto do Forças D´Alma?
Entrevistador: Quando você escuta hoje o disco você percebe que optou mais por esta
abordagem em que você faz mais o chão para o grupo?
Rodolfo: Não é bem o chão. Tem uma coisa diferente na maneira que eu estou tocando
quando é com eles.
Entrevistador: É muito interessante você tocar neste assunto, porque uma das hipóteses do
meu trabalho trata sobre esta mudança de função. Se Tutty toca de uma forma a não realizar o
ritmo o tempo todo, é mesmo necessário que alguém o faça?
Rodolfo: É tem hora que tudo vai para o espaço, mas há momentos que não.
Neste momento o entrevistado inicia a reprodução de uma das faixas do disco em questão,
convidando o entrevistador a partilhar a escuta da faixa com ele.
Rodolfo: Olha a forma como o Proveta e o André estão apresentando o tema. É uma maneira
pouco convencional de fazê-lo. É bastante livre este jeito de tocar. O piano não está
acompanhando. Quer dizer, está, mas olha este jeito de acompanhar. Agora entraremos Tutty
e eu. Olha a linha de baixo que eu fiz. Eu estou contra o Tutty e, mesmo assim, tudo da certo.
Eu estou flutuando, olha! Agora eu vou botar no chão. Não, me enganei. Olha o Tutty voando.
Entrevistador: Você disse que estava tocando contra o Tutty (bateria) e mais junto do André
(piano). Durante sua forma de acompanhar e tocar essa mudança de foco costuma acontecer
sempre?
Rodolfo: Lógico!
Entrevistador: Mas isto tem a ver com o fato do piano ser o solista naquele momento?
Rodolfo: Não. As vezes o que me faz mudar a forma de tocar é o assunto. Tem momentos em
que o assunto da base me faz realizar outras escolhas e não somente reagir ao que o solista
toca. Eu entendo o que você está perguntando e acho que este procedimento é o mais comum,
mas não só.
Em primeiro lugar tem essa coisa de eu ser uma âncora. Eu preciso ser uma âncora. É bom
para todo mundo que eu seja uma âncora, porque se não for eu é necessário que outro o faça.
Só que tem várias maneiras de assumir esta função. Pensando no contrabaixo que é o meu
instrumento. Se eu tocasse muito straight com eles, eu acredito que não estaria fazendo a
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música que precisa ser feita. Neste grupo a banda precisa que eu toque de uma forma mais
participativa. O Proveta disse uma coisa sensacional que é: o grupo soa como uma aquarela de
cores. Quando tocamos estamos pintando e colorindo melodias conhecidas, como a Dora de
Dorival Caymmi. Quer dizer, são pinturas. E é um pouco disso mesmo em uma situação onde
cada música tem uma espécie de matiz de cor. Isto tem a ver com a forma como a gente toca e
entende a música. Este quarteto é muito especial. Nós começamos com o Forças D `Alma
(1998), depois fizemos o Nonada (2008) que é o quarteto mais o Teco Cardoso, depois
fizemos o Nenhum Ai (2008) que é o quarteto mais a Mônica Salmaso e o Toninho Ferragutti
e depois paramos. Aí quando voltamos, que foi no ano retrasado (2016), fizemos Dorival e na
sequência já gravamos o Mestiço (2017) e agora em setembro faremos um terceiro lá na
Noruega também chamado Divertimentos que encerra uma trilogia contemporânea acerca do
nosso trabalho. A ideia é somar o Forças D´Alma a esta trilogia, sendo, portanto, quatro
discos que permitem a criação de um perfil acerca da personalidade deste grupo. Eu acho que
é um grupo muito especial e, graças a Deus, eu tenho orgulho de fazer parte dele.
Entrevistador: E você observa outros grupos fazendo um tipo de música parecido com o que
vocês fazem no quarteto do Forças D´Alma no que se refere a releituras associadas a este tipo
de improvisação?
Stroeter: Não. Você sabe o que eu acho. E o Tutty deve ter falado isto para você também. Eu
acho que o quarteto é uma reunião muito oportuna de quatro pessoas diferentes. Até por isso,
o grupo não tem nome. Por exemplo, no disco em que gravamos Dorival [Caymmi] está
escrito o nome de cada um dos músicos sem que haja um nome para o grupo. Não tem nome.
Não é Pau Brasil, não pe Mutantes, não é Made in Brasil, enfim, não é. E por que disso?
Porque cada um ali é um. É um projeto de quatro pessoas diferentes, com audições diferentes
e que tocam de uma determinada maneira. Eu acho que o Tutty foi certeiro em convidar estes
músicos. Ele sabia o que queria.
Entrevistador: Eu até gostaria de falar sobre isto com a Joyce. Mesmo tocando canção, o Tutty
consegue encontrar espaço no trabalho junto dela para tocar desta forma. É claro que ele
executa padrões mais próximos daqueles esperados para a função de acompanhar um grupo de
canção. Mas ainda assim ele consegue trazer esta forma de tocar para o grupo. Como baterista
que sou, por diversas vezes me vi na situação de tocar na tentativa de deixar o
acompanhamento confortável para os demais músicos. Me parece que alguns dos padrões do
Tutty não geram este conforto. Então, este equilíbrio me parece bastante delicado já que há
situações em que a possibilidade de tocar de uma forma menos convencional será duramente
reprimida por conta da expectativa em se ouvir os mesmos padrões já conhecidos na atuação
dos bateristas. Por isso, retomando a sua fala a respeito de Tutty saber o que queria, penso que
ele tinha clareza de que convidando estas pessoas, ele teria liberdade para a execução destes
padrões e desta forma de atuação.
Stroeter: Tutty sempre me disse que este quarteto é o grupo com que ele sonhou a vida inteiro!
Eu já vi ele falando isso publicamente. Ele dizia se tratar de uma música que ele sonhava, que
estava dentro da cabeça dele e que ele não conseguia realizar. Acho que ele usa a ideia de
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música livre. Não sei ao certo se é isto, mas foi o que eu entendi sobre o que ele quis dizer. Eu
não sou um baixista que toca de forma tradicional. A razão disso é porque não sou. Eu tenho
uma certa personalidade para tocar. Eu adoro acompanhar cantores e não tenho problema
nenhum em fazê-lo, mas eu tenho meu jeito de tocar da época em que me tranquei num
quartinho lá atrás e, bem ou mal, é minha forma de tocar. Eu acho que é a coisa da
personalidade. Quando você insiste no erro, ele passa a ser parte de você. O que eu estou
querendo dizer é o seguinte. Talvez eu não tenha feito os métodos a perfeição, mas eu os fiz
do meu jeito. Aquilo me ensinou coisas que intuitivamente eu carreguei ou carrego comigo. E
tem esta questão da nossa relação que também é importante. Eu viajo com Tutty há vinte anos
durante quatro meses por ano. Então vamos para os EUA, para a Europa, para o Japão junto
do Tutty e da Joyce. Então, nós temos uma relação muito familiar. Nós passamos muito
tempo juntos, compramos as mesmas roupas, comemos a mesma comida, sabemos das
famílias um do outro, então é isso. E é engraçado porque a gente quase não fala de música.
Tanto no Dorvial quanto neste disco novo de agora (que ainda será lançado) nós tocamos
alguma coisa desse repertório em dois shows seguidos que fizemos no JazzB (bar de jazz em
São Paulo) e já partimos para a gravação na Noruega. Terminamos a gravação de maneira
relativamente rápida e aproveitamos para gravar mais coisas. Deste material, muita coisa a
gente nunca tinha tocado. Não havíamos nem lido os arranjos e eles estão no disco. Por
exemplo, Notícia (Nelson Cavaquinho), O Dono da Bola que é um Choro, tem Inverno do
meu tempo (Cartola), são músicas que sequer tiveram uma leitura antes. O que aconteceu foi
o registro de leituras de estúdio. Só que o grupo já tem uma intimidade. A mágica da música
esta aí. Isto é a música.
Stroeter: Isto não é nem falado! Isto já é parte destes grupos. Eles só existem porque são
assim. O fato do Tutty tocar desta forma nesses grupos já está implícito. E ele também não
gera nenhuma condicionante para a forma como você toca. A ideia é assim: o Tutty liga e te
convida para tocar. Então você aceita. Esta é toda a informação que ele vai te dar. O resto
você vai lá toca da forma como você quiser fazer. Não existe este assunto - combinar modos
de tocar.
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Rodolfo pega o último disco lançado pelo grupo e comenta, música a música dados sobre a
quantidades de vezes em que tocaram a música.
Esse disco foi gravado no dia 3 de novembro do ano passado (2017), portanto, há quatro
meses atrás estando ele já mixado e tudo mais. Então, dessas músicas, O dono da bola,
Inverno do meu tempo e notícia, nós tínhamos a partitura, mas não tínhamos nem lido antes
da gravação. As músicas na Batucada da Vida, Mascarada (Elton Medeiros), Desprezado
(Pixinguinha), Encontro das Vozes (André Mehmari), Outubro (Milton Nascimento), Pra que
mentir (Noel Rosa) e Coisa (Moacir Santos) foram tocadas duas vezes antes da gravação. Mas
chegando lá no estúdio, no momento da gravação, colocando o fone - e você já sabe mais ou
menos como é que é - é só tocar. Não tem problema. A música aparece. Ela se revela.
Stroeter: É sempre unânime. Eu aproveitei que estaríamos lá eu, Tutty, André e Proveta para a
gravação do Dorival e então convidei a Joyce para fazer um disco de canção também sobre
Caymmi. Ela gosta muito das músicas deste compositor. Então, três dias antes do disco
instrumental, utilizando o mesmo estúdio, nós fizemos um disco da Joyce chamado Fiz uma
viagem. Este disco só saiu no Japão por enquanto. Neste disco, somos eu, Joyce, Tutty e
Hélio Alves (piano). Acontece que o André [Mehmari] chegou antes por conta da gravação do
disco instrumental e ficou passeando pelo estúdio enquanto trabalhávamos no registro do
disco da Joyce. O Proveta chegou um dia antes de gravarmos o disco instrumental tendo
ficado pouco tempo conosco. Então, no dia da gravação, a passagem de som foi muito rápida
porque aproveitamos o fato do som já estar passado desde a gravação do disco da Joyce e
saímos logo tocando. Me lembro que Dora que é uma música de onze minutos foi gravada em
um único take. É esta música que abre o disco. As demais tem um ou no máximo dois takes.
Normalmente é assim.
Stroeter: Eu vou te contar uma situação maravilhosa envolvendo o Tutty. Eu penso que esta
história seja talvez um resumo do que a gente conversou. Há alguns anos atrás eu produzia
discos para outros selos que não o meu e, atuando para um deles, recebi o convite para
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produzir um disco novo para uma cantora brasileira bastante conhecida. Ela mesmo me
procurou manifestando seu interesse em contar com o meu trabalho de produção. Depois de
algumas reuniões, defini uma ideia baseada no momento de carreira da cantora que estava
perto dos 60 anos. Pensei então, em arregimentar um grupo para tocar arranjos de uma forma
elegante tocando de forma serena. Pensei em chamar o Tutty Moreno para tocar a bateria.
Então, convidei o Tutty e ele foi para a gravação. Ele estava um pouco desconfiado, mas
mesmo assim se prontificou a atender este trabalho. Ainda no primeiro dia de gravação
começamos bem e a banda estava soando muito bonita e elegante. Não me lembro que música
gravamos primeiro. Então, a cantora começou a se sentir incomodada porque ela queria ouvir
uma coisa que ela não iria ouvir naquela hora. Ninguém comentou nada, mas o ambiente foi
ficando denso como se tivesse assim uma neblina. Num dado momento, Tutty parou de tocar,
colocou seu par de baquetas sobre o surdo e disse, de uma maneira muito educado: “Eu vou
embora”. Eu estava na técnica junto da cantora que fazia a voz guia naquele momento. Tutty
continuou: “Eu não baterista para você. Eu não sei tocar da forma como vocês estão
esperando que eu toque. Eu não vou tocar deste jeito. Eu sou o baterista errado para a música
errada. Eu sei tocar deste jeito e, se vocês quiserem, eu posso contribuir assim, mas eu estou
vendo que não está a vontade. Então eu vou me recolher. Acho que vocês tem que chamar o
Jurin Moreira ou o Carlinhos Bala.” Todos os músicos ouviram em seus headfones. Então,
Tutty recolheu a bateria e saiu tranquilamente e sem medo. E ele tinha toda a razão. Porque na
verdade aquilo não levaria ele a nada. A cantora estava incomodada com o resultado sonoro
do trabalho. Eu não me desculpei com ele, porque entre a gente não há necessidade disso,
mas , tempos depois, numa conversa sobre aquilo, Tutty me disse que estava claro para ele
que ela precisava de um músico que não era o tipo de música que ele é. Ele é outro tipo de
músico. E acho que ele tinha razão. E não significa que o Tutty não tenha tocado deste modo
em outras situações, já que ele havia acompanhado outra cantora bastante conhecida durante
anos. Ele gravou muitos discos tocando deste modo mais rítmico, mas ele não quer mais fazer
isto. Ele me disse: “Eu mudei. Eu pago o preço por isso, mas também tenho o prazer disto”.
Ou seja, ele não vai cantar com a primeira cantora citada, nem com a segunda se ele não
puder tocar da forma como ele se sente bem. De maneira que ele sinta que é ele mesmo
tocando. E isto é uma opção! Isso tem tudo a ver com a vida da gente. Eu acho que isso
resume esse nossa conversa aqui. Aliás, eu trago esta conversa sem nenhum tipo de
preconceito, eu adoro a primeira cantora citada, eu adoro o Tutty, enfim, é uma história entre
eles que diz respeito a forma como ambos vêem a música. Acho que tanto ela quanto ele
estavam incomodados. Agora, partiu dele interromper a gravação e, de uma forma elegante,
dizer que não prosseguiria. Para mim estava lindo! Para mim Rodolfo. Para ela não. O disco é
dela, claro, tem que tocar da forma como ela espera. Eu pensei que o resultado sonoro com o
Tutty nos auxiliaria a chegar na sonoridade elegante que busquei para o disco. Eu reafirmo
isto. Ela não quis viajar um pouco mais e enxergar aquela sonoridade como uma possibilidade.
É um direito dela.
Entrevistador: Queria propor um exercício de comparação. No grupo Pau Brasil você toca
com o Ricardo Moska (baterista). Se você está tocando com ele, ou o Edu Ribeiro, ou Celso
de Almeida, ou Kiko Freitas, enfim, o que mudaria na sua forma tocar que você faria diferente
caso estivesse tocando com Tutty?
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Stroeter: Então, há muito tempo que eu toco com Tutty. A maior parte dos trabalhos que eu
faço ou é tocando com ele ou tocando com o Moska. E o Moska é uma pessoa que tem uma
abertura muito grande para muitas formas de tocar. Me lembro que ele foi assistir ao show do
quarteto (Tutty Moreno, Rodolfo Stroeter, André Mehmari e Nailor Proveta) no jazz b e no
dia seguinte, já no ensaio do grupo Pau Brasil ele me disse: “Pô, tem vezes que eu quero tocar
que nem o Tutty, mas não sai.” E eu disse, que bom que não sai. Ainda bem que sai você. E
ele disse isto de uma maneira aberta e bonita com admiração pelo o que o Tutty tocava.
Porque se você parar para analisar os discos de jazz que todo mundo gosta, você vai ver que o
Elvin Jones toca de uma maneira e o Tonny Williams toca de outra, o Dejohnette toca de
outra. Cada um imprime um selo no resultado sonoro. Eu não me preocupo em mudar nada
não. Eu tento tocar da melhor maneira que eu consigo para todo mundo se sentir bem. Só isso.
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Anexo 3 – Transcrições
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