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[SOCIOLOGIA DO DIREITO] EMERJ - CPII

AULA 01 – FERNANDO FONTAINHA

INTRODUÇÃO

A sociologia é a ciência que estuda o comportamento de homens e


mulheres na sociedade. Ela percebe a criatividade humana diante de
constrangimentos de várias naturezas, ex. morais, econômicos, ideológicos,
políticos, jurídicos etc. Dentro dessa esteira, quando o CNJ determina que cada
Tribunal realize determinada atividade, cada um deles o exerce de uma forma.

Durkheim e Weber são os responsáveis pela construção desta disciplina e


pela fundação da primeira escola de sociologia do mundo.

KARL MARX

É o pai do socialismo científico. Para ele, o proletariado deveria tomar o


Estado e instaurar a ditadura do proletariado. No controle do Estado, usaria a
máquina estatal para oprimir a burguesia, invertendo a lógica existente até então.
Quando esse processo – denominado socialismo – se concluísse, o mundo
passaria a ser governado por comunas gentílicas.

Marx foi fortemente mobilizado pela ideia de que, se ele não


compreendesse os fenômenos que o circunscreviam, isso seria insuficiente. Por
isso, migra da filosofia clássica alemã para a teoria política francesa. Passou a
estudar os relatórios do Império britânico e se torna um economista inglês, pois
eram os ingleses que queriam criar uma teoria social da realidade baseada em
fatos (ex. êxodo rural, desenvolvimento do capitalismo, revolução industrial etc.).
Marx vê uma Europa sucumbir a tiranias imperiais após movimentos
revolucionários.

Ao fundar o socialismo científico e o materialismo histórico, ele vai


defender que existe uma postulação de sentido dos fenômenos históricos. Marx
assistiu a transição da Idade Média para a Idade Moderna. Compreendeu
revoluções burguesas que visavam tirar o poder da aristocracia nos séculos XVIII
e XIX e que tiveram contornos distintos conforme os países. Marx quer entender
essa dinâmica dos diversos pontos de vista.

Todas essas circunstâncias impulsionaram Marx para determinadas


empreitadas intelectuais. Ele se debruçou sobre a ideia de que não é possível
transformar o mundo sem conhecê-lo.

MODO DE PRODUÇÃO GLOBAL


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Marx se vale de metáforas para explicar a sociedade. Ele chama a


sociedade de “modo de produção global”, porque esse modelo teórico pode ser
aplicado a diversas realidades, adaptando-se (não existe na prática). Esse modelo
advém de uma observação da realidade. O modo de produção global é o modo de
produção dos fenômenos da vida; não só mercadorias, mas ideias, sentimentos
religiosos, conformações familiares etc. Tudo isso, para a ciência, não vêm da
natureza, mas se traduzem em artefatos humanos. Os fenômenos da vida social
não são dados anteriormente, mas construídos pelos indivíduos. Dentre eles,
temos a ideologia, a religião, a política, a economia e o direito. A forma como
esses fatores se organizam dentro do modo de produção global compõe o estudo
de Marx.

A metáfora de Karl Marx vem da construção civil. Ele vê a realidade


social como um prédio que contém uma infra-estrutura – o que não é visível – e
uma super-estrutura – que é visível. A infra-estrutura da realidade social não é
sentida pelos indivíduos no cotidiano e não é experimentável pelos sentidos,
contudo, ela é extremamente importante, é o fator determinante do resto da
construção. É a fundação de um prédio.

 Ideologia: é a organização da matéria que produz a ideia. Portanto, a


ideia é produto de outras relações, um determinado e não fator de determinação.
A definição de ideologia para Marx é falso conhecimento (é aquilo que o
indivíduo acha e que, geralmente, não tem a ver com a realidade material).

 Política: se enquadra na super-estrutura; é um determinado. Os


movimentos revolucionários burgueses denotam essa ideia. A burguesia passou a
dominar a economia, mas ainda não detinha a hegemonia política. Por isso, deu
azo aos movimentos revolucionários para que pudesse se enquadrar na política e
obter direitos políticos, como o sufrágio universal. É nesse contexto que surge o
Iluminismo.

 Economia: é um determinante, se enquadra na infra-estrutura. Marx


baseia sua teoria em uma luta de classes, divididas a partir de critérios
econômicos, e é essa luta de classes que é considerada fator de determinação.

 Religião: é um determinado, se enquadra na super-estrutura. É claro que


os países que tiveram mais desenvolvimento capitalista foram os que realizaram
reformas protestantes. A distribuição do poder religioso na sociedade é
determinada por fenômenos econômicos.

 Direito: de início, tinha seu fundamento nas chamadas glosas, isto é,


comentários de determinados textos visando interpretá-los, realizados pelos
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glosadores. O texto mais glosado à época era o chamado Corpus Juris Civilis,
com o fito de ser um direito absolutamente conservador que mantivesse no poder
as aristocracias tradicionais. A burguesia vê então a necessidade de um direito
que lhe tutelasse. É nesse espectro que nasce a ideia do jusnaturalismo como uma
ideologia jurídica revolucionária de combate. É argumento suficiente para que se
questionasse a ordem jurídica então vigente o fato de existirem direitos inerentes
ao homem, à sua natureza racional, e que não podem ser contrariados por
convenções humanas, dentre as quais a manutenção de uma aristocracia no
poder. Para Marx, a ideia desse novo direito não é acertada, na medida em que,
quando a burguesia toma o poder, o direito deixa de ser advindo do
jusnaturalismo para dar lugar ao juspositivismo, isto é, o direito volta a nascer do
Estado. A relação do direito com a sociedade, portanto, é uma relação de
determinação econômica.

Marx vê a transição de uma sociedade feudal para uma sociedade semi-


feudal e posteriormente capitalista. Para ele, o capitalismo, isto é, o domínio pela
burguesia, era bem melhor do que o feudalismo, mas ainda se baseava em uma
relação de exploração do homem pelo homem e, portanto, não era suficiente.
Para produzir uma mercadoria, são necessárias três forças produtivas: natureza,
força de trabalho e meios de produção. O burguês tem meios de produção e
precisa comprar a força de trabalho alheia. Ocorre que ele não paga para o
trabalhador o valor que seria devido, mas se apossa da chamada “mais-valia”, o
que lhe permite manter-se no domínio econômico. Marx luta por uma sociedade
sem classes e entende que sem violência não há transição real de poder. Para
Marx, não adianta mudar a ideologia, o direito ou a religião. Tem que mudar a
economia para que seja possível entregar os meios de produção e dividir as
riquezas.

Atualmente, há exemplos da teoria da determinação econômica dos fatos


jurídicos: corrupção política (ex. mensalão), superpopulação carcerária, declarar
uma guerra. O capitalismo destruiu a estrutura responsável pela manutenção dos
grandes empreendimentos da civilização através das gerações. Ex. A família
heteroafetiva que até então era responsável por gerar a prole, sendo o primeiro
sucessor detentor do direito de primogenitura, deixa de ser alvo de proteção
exclusiva, para proteger também outras entidades familiares, como a
homoafetiva.

Em resumo: A teoria de Marx defende a determinação econômica dos


demais fenômenos, dentre os quais se incluem os fenômenos jurídicos. Então,
para tudo que ocorre, há de haver uma razão econômica.
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TOCQUEVILLE

Para Tocqueville, como a efetividade das leis depende de um conserto, de


um arranjo entre as cadeias sancionatórias do direito, ou seja, de atores concretos
que tornem a lei uma realidade, que a apliquem no caso concreto. Ex. Lei Maria
da Penha – mesmo antes dessa lei, já era proibido homem bater em mulher, mas
os delegados, promotores e etc. arquivavam os inquéritos, ou seja, não davam
efetividade concreta à lei. Para Tocqueville, a força moral da mulher surge
justamente quando ela passa a ocupar esses papeis na sociedade (ex. delegada,
juíza), momento a partir do qual passa a ser protegida.

Tocqueville é contemporâneo ao Marx e, portanto, o contexto que o


circunscrevia era o mesmo. Ele questionava o fato de que, mesmo após a
Revolução Francesa, manteve-se a aristocracia no poder através de um
Imperador. Ela sobreviveu aos movimentos revolucionários e nada mudou.

Poucos anos antes da Revolução Francesa, está acontecendo outro


movimento no ocidente – a Independência dos Estados Unidos. Tocqueville viaja
para os EUA e escreve uma obra denominada “A Democracia na América”.

O que mais impressionou Tocqueville foi que várias colônias americanas


se uniram e expulsaram os ingleses em uma luta violenta. Posteriormente,
perceberam que em determinadas matérias deveria haver uma união (ex. moeda,
economia, exército etc.). Era necessário definir como seria o sistema
representativo. Os estados do Sul criam que o Parlamento tinha que representar a
porcentagem da população distribuída pelo país. Os estados do Norte criam que o
Parlamento tinha que representar os estados. Não havia espaço para dominação
aristocrática. No entanto, existia uma classe de pessoas que, na sua maneira de
falar, de se vestir, de se pensar e de se comportar, se parecia com a aristocracia
europeia, qual seja a dos juristas.

O desenho institucional da magistratura americana era igual ao desenho da


magistratura francesa do século XIX. O Poder Judiciário dos EUA se baseava em
uma tríade:

 Inércia: para Tocqueville, o objetivo era diminuir o poder do juiz


na sociedade, controlando a magistratura.
 Limites objetivos da coisa julgada: a decisão de um juiz se limita ao
caso julgado. Ele não pode estender suas decisões para fatos que
não lhe foram submetidos.
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 Árbitro: ao Judiciário é dada a função de atuar como árbitros de


conflitos. Ele não pode nem executar as leis nem fazer as leis, mas
deve a elas se submeter. É a submissão política do Judiciário.

Para Tocqueville, nos EUA, o Poder Judiciário poderia ser considerado a


maior força política sem partido, embora houvesse submissão política. Isto
porque a presença do Judiciário na vida política americana era intensa. O juiz
americano podia deixar de aplicar a lei caso entendesse inconstitucional. O juiz
só consegue esse poder político porque não mexe na prerrogativa dos demais
Poderes. Quando a Suprema Corte americana diz que uma lei é inconstitucional,
não está ofendendo a função legislativa, mas apenas retirando-lhe a força moral
em determinado caso. Se demais pessoas, inspiradas com tal solução, também
buscam o Judiciário e este retira a força moral da lei em vários outros casos, há o
que se chama de perda da força moral da lei. Embora ela exista e esteja vigente,
não é mais aplicada à maioria dos casos. Para analisar o Direito, deve-se o lhar
para a prática.

A cidadania judicial nos EUA era exercida porque havia uma cultura de
buscar a realização de interesses subjetivos através do Judiciário com base na lei.
Essa cultura dá poder político ao Judiciário. Ele só se submete na política por
acaso, mas é um acaso recorrente, que acontece periodicamente, mediante a
confluência da prática de vários atores sociais.

A força moral da lei é a força que ela tem no meio da sociedade, na práxis
social, nas ações humanas (ex. o que fez as pessoas pararem de beber e dirigir
não foi a Lei Seca, mas as blitz. Já houve tentativa de retirar a força moral dessa
lei com o twitter da Lei Seca). O direito só é possível mediante a confluência de
práticas de indivíduos concretamente.

AULA 02 – ISABEL NUÑEZ

Weber e Durkheim são dois clássicos da Sociologia, considerados


fundadores da referida disciplina.

DURKHEIM

INTRODUÇÃO

Ele funda a Sociologia e começa a pensá-la como ciência. Viveu em um


período de estabilidade social. Embora identificasse uma “crise” na sociedade,
porque era tempo de transformação. A Revolução Industrial estava começando e
a sociedade encontrava novas maneiras de se organizar. Houve uma urbanização,
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a aglomeração de pessoas em várias cidades, explosão do mercado de trabalho


etc. É o período também em que se iniciam as chamadas colonizações e chegam
ao conhecimento de Durkheim relatos sobre essas sociedades. Durkheim, ao
olhar para essas sociedades ditas primitivas, ele compreende que, apesar de todos
serem humanos, se organizavam de maneira distinta. O Direito é a maneira como
as pessoas se organizam e, por isso, também varia conforme a sociedade.

No tempo de Durkheim, considerava-se ciência somente aquelas que


podiam ser experimentadas (empirismo), como as ciências exatas (Física,
Matemática, Química etc.). Durkheim buscava que as ciências humanas, assim
como a Sociologia, fossem reconhecidas como ciência, na medida em que
também são pensadas a partir de um método.

GRANDES OBRAS

Existem algumas grandes obras do Durkheim:

 “As regras do método sociológico” (1895): explica porque a


Sociologia, assim como as ciências exatas, deve ser considerada
ciência, e quais são as regras do método utilizado para estudar esta
disciplina.
 “Da divisão do trabalho social” (1893): Durkheim percebe a
diferença das sociedades primitivas para a sociedade parisiense de
sua época e as explica através da divisão do trabalho social. Nos
primórdios, a divisão do trabalho social era insipiente, mas restrita
a uma circunscrição menor (poucas pessoas realizando toda a etapa
produtiva com laços próximos). Já nas sociedades mais
desenvolvidas, a divisão do trabalho social é extremamente
especializada e cada um realiza parte da etapa produtiva, afastando
os laços entre as pessoas. Durkheim conclui que as mudanças na
sociedade (ex. aumento de índice de delitos, de suicídio etc.)
decorrem da divisão social do trabalho e do rompimento dos
antigos laços existentes.
 “O suicídio” (1897): fala sobre as causas do suicídio na França.
 “As formas elementares da vida religiosa” (1912): compara as
religiões primitivas com a religião católica/protestante.

MÉTODO SOCIOLÓGICO

Método é um caminho para se desenvolver uma pesquisa. A partir da


observância da realidade, busca-se analisar as regras que estão por trás de
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determinado fenômeno sociológico, a fim de identificar o porquê da repetição do


fenômeno. Para Durkheim, deve-se olhar para o fenômeno social como se fosse
uma “coisa” e entender como ele funciona por ele mesmo. É uma análise externa,
com certo distanciamento, objetividade (visão positivista de ciência). Durkheim
busca dar uma explicação propriamente sociológica do fenômeno estudado.

O método sociológico de Durkheim para pesquisar é a utilização de uma


rigorosa postura empírica, ou seja uma rigorosa postura de coleta e análise de
dados. Postura empírica é olhar com regra e organização para um fenômeno que
efetivamente está acontecendo na prática. A postura empírica trabalha tanto com
métodos quantitativos como com métodos qualitativos.

De acordo com o método de coleta, uma pesquisa qualitativa é aquela


cujas perguntas são abertas, ou seja, não estão padronizadas, enquanto uma
pesquisa quantitativa se baseia em perguntas padronizadas que não dão margem
de liberdade ao pesquisado.

Durkheim olha para as sociedades mais e menos evoluídas e levanta as


diferenças e semelhanças existentes entre elas. Isso também fez em relação às
formas de religião mais ou menos evoluídas.

FATO SOCIAL

Para Durkheim, os fatos sociais devem ser vistos como coisas. Os fatos
sociais possuem algumas características:

1. Coerção social: força que os fatos sociais exercem sobre os indivíduos.

2. São exteriores aos indivíduos: atuam sobre os indivíduos


independentemente de sua vontade, direito, instituições. Existem antes dos
indivíduos nascerem.

3. Generalidade: é geral, repete-se na maioria dos indivíduos.

O Direito é um fato social, pois contém todas as características acima.

FATO MORAL

O Direito, para Durkheim, não é apenas um fato social, mas também um


fato moral, pois ele carrega os valores morais que são importantes para uma
sociedade e tenta conduzi-la, distinguindo o certo e o errado. As condutas
tipificadas como infrações penais são nada mais do que condutas socialmente
reprováveis. O Direito consolida o que é moral para determinada sociedade em
determinada época.
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O fato moral é a própria regra, que constrange a ação do indivíduo e é uma


fonte para a ação desse indivíduo.

A DIVISÃO DO TRABALHO SOCIAL

Durkheim entende que a divisão do trabalho social e a consequente


especialização dela decorrente afetou as relações sociais e o próprio direito.
Olhando para as sociedades primitivas e a sociedade parisiense à época,
Durkheim cria uma classificação entre as sociedades organizadas por
solidariedade mecânica e as sociedades organizadas por solidariedade orgânica.

Questão: Como podem os indivíduos constituir uma sociedade?

Solidariedade mecânica Solidariedade orgânica

Laços fortes – pouca diferença entre Laços fracos – cada um exercer sua
os indivíduos função
Diferenciação social

Valores comuns Valores privados

Sociedades primitivas Sociedades complexas

Indivíduo nã o vem em primeiro Indivíduo em primeiro lugar


lugar (sentimentos coletivos)

Direito Penal (repressivo) Direito Civil (restitutivo –


contratualismo é consequência da
diferenciação social)

CONSCIÊNCIA COLETIVA

A consciência coletiva, para Durkheim, é um conjunto de regras fortes e


estabelecidas que atribuem valor e delimitam os atos individuais das pessoas. É a
forma moral vigente na sociedade em determinada época que define o que é
imoral, reprovável ou criminoso. A consciência individual continua existindo, só
tem uma força menor do que a representação da sociedade. A representação da
sociedade é maior do que a representação do indivíduo.

CRIME, SANÇÃO E DIREITO

Para Durkheim, crime é tudo aquilo que viola a consciência coletiva, isto
é, tudo aquilo que é considero certo e moral pela sociedade. A relação do crime
vai muito além daquilo que é definido pelo Estado.
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A sanção não tem a função de reprimir, a pena não tem uma função
retributiva/preventiva, no sentido de que, a partir da existência da pena, o
indivíduo não volte a cometer delitos. O objetivo da sanção é satisfazer a
consciência comum. O efeito que se busca é o fortalecimento de uma consciência
coletiva do que é certo e do que é errado.

O Direito é uma expressão da moral (método), da própria consciência


coletiva.

SUICÍDIO

Esta obra de Durkheim busca explicar um fenômeno social a partir de um


problema individual. Embora o suicídio seja um problema individual, se ocorrido
em quantidade, gera um fenômeno social cuja causa é essencialmente social.
Durkheim chama tais fenômenos de “correntes suicidógenas”. Elas surgem na
sociedade e são causa real e determinante do indivíduo.

Ao fazer o levantamento quantitativo dos índices de suicídio, Durkheim


chega à conclusão de que há vários tipos de suicídio, mas um deles é um
fenômeno social amplo e que se repete – o chamado suicídio anômico. É quando
aquele que se suicida não se reconhece mais como parte de uma sociedade.
Anomia é a ausência ou a desintegração das normas sociais.

Como em uma sociedade complexa há uma proliferação de valores e


grupos sociais heterogêneos, o indivíduo fica perdido, se desintegra de todos
esses núcleos e não consegue se enxergar nos valores da sociedade em que vive.
Ele não sabe quais regras deve seguir ou respeitar.

Durkheim classifica os suicídios em três tipos:

a) Egoísta: é aquele gerado por uma causa estritamente individual (ex.


morte de um filho), por um momento pessoal do indivíduo, que nada se
relaciona com as relações sociais por ele travadas.
b) Altruísta: é aquele suicídio movido por uma causa coletiva (ex.
homem-bomba islâmico). Aqui, há uma perfeita integração do suicida
com as normas sociais que visa ser reforçada ainda mais por ele.
c) Anômico: não é um suicídio psicológico, mas parte de uma corrente
suicidógena, de um fenômeno social de desintegração das normas
sociais que faz com que as pessoas não se enxerguem como parte da
sociedade. Esse é o único tipo de suicídio que é considerado fenômeno
social, pois possui a característica da generalidade (repetição).
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MAX WEBER

INTRODUÇÃO

Max Weber, diferentemente de Durkheim, entende que não dá para querer


transportar o método das ciências exatas para as ciências sociais, pois não
funciona. Não dá para trabalhar com uma visão estritamente objetiva e empírica
nas ciências sociais. Tem que haver um método, mas distinto.

Os estudos de Weber tratam do espírito, do objeto e método das ciências


humanas, história e sociologia (inclusive da religião). Sua obra prima é o tratado
de sociologia “Economia e sociedade” e também “Ética protestante e o espírito
do capitalismo”.

SOCIOLOGIA COMPREENSIVA

Para Weber, a sociologia também tem que ter um método, mas diferente
daquele aplicado às ciências biológicas. Tem que ser um método próprio. As
ciências da história e da sociedade diferem das ciências da natureza, embora
tenham a mesma inspiração racional. Ocorre que, diferentemente das ciências
biológicas, as ciências sociais não apenas explicam a realidade social, mas
também a interpreta. Como o pesquisador encontra-se inserido na realidade
social, não há como se fazer uma pesquisa cuja objetividade seja a mesma das
ciências biológicas, pois busca compreender a partir da interpretação o curso da
ação das pessoas. Por isso, o nome sociologia compreensiva, sociologia da ação.
Há objetividade, pois fazer ciência não é necessariamente estar externo ao
fenômeno estudado.

TEORIA DA AÇÃO

Para o autor, a sociologia é uma ciência que busca compreender a ação


social. Essa compreensão implica a percepção do sentido que o autor atribui à sua
conduta. A ação social é uma ação com sentido. Todos nós estamos interligados
em sociedade e as condutas praticadas afetam necessariamente uns aos outros.
Isso é ação social. Essa justificativa para o sentido de nossas ações é
subjetivamente elaborada. Para o Durkheim, a representação da sociedade está
acima da representação individual e constrange o indivíduo de certa maneira. Já
para o Weber, não há oposição entre o indivíduo e a sociedade. As normas
sociais só se tornam concretas quando manifestadas em cada indivíduo, sob a
forma de motivação. A norma social se manifesta no fazer, no modo como a ação
social de um indivíduo repercute nos demais (ex. uma pessoa levanta para uma
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velhinha sentar no metrô, pois ela é idosa – sentido. Isso faz com que outras
pessoas passem também a levantar, pois é uma ação social que repercute e gera
norma social).

TIPOS DE AÇÃO

 Ação racional com relação a um objetivo (engenheiro) – um engenheiro


tem uma ação orientada para um fim, que pode ser, por exemplo, a
construção de um prédio. Ele traça metas, planos racionais para atingir um
objetivo final.

 Ação racional com relação a um valor (comandante do navio) – é quando


a pessoa age racionalmente em prol de um valor, ex. em um náufrago de
um navio, o comandante é o último a sair, pois ajuda todas as pessoas que
estão lá dentro, em prol de um valor. Outro exemplo poderia ser a forma
como os protestantes e católicos se comportam em relação ao dinheiro
com base nos valores de sua religião.

 Ação afetiva (reação emocional) – é a ação dirigida com base em uma


emoção e não com base na razão. O indivíduo age sem pensar.

 Ação tradicional (hábito, costumes, crenças) – é a ação dirigida com base


em um hábito, uma crença, ex. usar babosa para curar uma ferida.

MOTIVO DA AÇÃO

Para o Weber, a tarefa do cientista é desvendar o sentido das ações, pois


estas são guiadas não somente pelas ideias individuais, mas pela noção de que
essa ação irá repercutir no todo. O caráter social da ação individual decorre da
interdependência dos indivíduos.

TIPO IDEAL

Weber criou um método para estudar as ações sociais. O tipo ideal é uma
construção social para explicar os fenômenos sociais, é um instrumento de
análise científica, uma ferramenta de pesquisa. O tipo ideal não está presente na
realidade. Ele é criado teoricamente para comparar com a realidade e sempre a
partir da própria realidade. É uma construção, uma ordenação do pensamento
para conceituar os fenômenos sociais e identificar na realidade as suas
manifestações.
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Nenhum dos exemplos representará de forma perfeita e acabada o tipo


ideal, mas manterá com ele semelhanças e diferenças. Ex. Pesquisa sobre
ministros do STF – 3 tipos ideias (brasiliense, semi-brasiliense e não brasiliense)
– todos vão se aproximar de um tipo ideal, mas não representá-lo concretamente,
pois possuem especificidades.

ÉTICA PROTESTANTE E O ESPÍRITO DO CAPITALISMO

Essa obra relaciona o papel do protestantismo na formação do capitalismo


ocidental moderno. Weber encontra, nos textos protestantes (Lutero, Calvino
etc.), valores como: disciplina ascética (trabalho incessante), poupança,
austeridade, vocação, dever, propensão ao trabalho. Por esses valores, o
capitalismo teria se expandido mais nos lugares onde o protestantismo é mais
forte. Pro Weber, esses valores formaram um ethos que ajudou a formação do
capitalismo em oposição ao alheamento, adoração, sacrifício da vida católica.

Para ele, há uma relação entre religião e sociedade, na medida em que os


valores da religião são introjetados pelas pessoas e são fatores motivadores de
sua ação social, da forma como se comportam em sociedade.

Embora a ação desses protestantes tivesse um motivo consciente (atender


aos valores da religião, como a poupança), os efeitos não eram controlados, tal
qual a expansão do capitalismo (não era a intenção dos protestantes, mas foi o
que ocorreu).

Para Weber, a grande revolução luterana é a noção de vocação, ou seja,


aqueles que são cristãos expressam sinais da salvação. O ascetismo laico é a ideia
protestante da época de que o cristão deveria se privar de prazeres mundanos em
prol de um bem maior: sua família, uma vida asseada, uma acumulação. Isto fez
com que os cristãos se capitalizassem, investissem, poupassem etc. Essa ética
protestante, ao se transformar em uma ética moral, em uma ética social (e atinge
um todo e não somente os cristãos), se transformou na mola matriz do
capitalismo.

Posteriormente, seguiu-se uma fase de “desencantamento”, ou seja, a


privação dos prazeres não tinha mais a ver com a salvação, mas sim com a
racionalidade instrumental. O mesmo ocorre em relação ao Direito, que passa por
uma fase de desencantamento, para dar prioridade à racionalidade instrumental,
ou seja, a adequação entre os meios e os fins, uma maior formalidade. Ex.
atualmente, para se encontrar na condição de julgador, é necessário o
preenchimento de vários requisitos, como o concurso público.
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RACIONALIZAÇÃO: ORGANIZAÇÃO DO ESTADO MODERNO

Weber entende que é a racionalização que culmina na organização do


Estado Moderno. O direito, por exemplo, nada mais é do que uma forma de
racionalização das condutas humanas. Cria-se um aparato burocrático e racional
para organizar o Estado Moderno com os cinco pilares acima.

DOMINAÇÃO LEGÍTIMA DO PODER

Segundo Weber, podemos pensar em três tipos de poder:

 Dominação legal/racional: as regras, as leis como fator de dominação,


o direito como forma de dominar. É a crença na validade das leis eis
que derivam de um procedimento racional (ex. eleição, processo
legislativo). É o direito como regras abstratas administradas por uma
equipe de funcionários. A burocracia comporta: atribuições fixas dos
empregados, tarefas definidas, sistema organizado de mando e
subordinação, hierarquia/autoridade, administração baseada em
documentos escritos, recrutamento por meio de provas, empregados
protegidos pelas regras e estatutos, remuneração regular de dinheiro.
 Dominação carismática: o carisma não tem a ver com um aspecto
individual, mas com uma visão social sobre determinada pessoa. É o
poder de dominação dado pela sociedade a alguém. Ex. Salomão.
 Dominação tradicional: é a tradição, os costumes, os hábitos como
fator de dominação, ex. casamento, religião etc. ex. o líder de um clã,
de uma tribo.
D
R
e
r
io
c
a
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AULA 03 – FERNANDO FONTAINHA

PIERRE BOURDIEU

INTRODUÇÃO

É um sociólogo francês, cuja produção acadêmica é das décadas de 60 a


80. Possui uma teoria geral da sociedade – chamada de teoria dos campos – com
maior ênfase no âmbito jurídico.

Weber dizia que uma das características do Estado Moderno não é apenas
concentrar meios de gestão, mas monopolizar a violência legítima. Para
Bourdieu, o processo de legitimação das relações de dominação no Estado
Moderno, isto é, no âmbito de uma República, não pode mais se basear na
violência. Estas relações deveriam começar na escola.

Só que Bourdieu subverte a promessa de uma escola de inclusão: qual seja


a de uma escola de qualidade para todos, por uma escola que é local de
reprodução de desigualdades entre as classes dominantes e as classes dominadas.
Os filhos de uma cultura tradicional terão sua cultura exaltada em salas de aula e
os filhos de culturas distintas terão sua cultura diminuída. Estes terão notas
menores no boletim. É a chamada violência simbólica, mascarada sob a
instituição das escolas. Este argumento do Bourdieu se espraia para os demais
ramos (direito, religião, economia etc.).

A diferença da violência simbólica para a violência explícita é que quem


sofre a violência não sabe que está sofrendo a violência. O que a escola faz é
legitimar a manutenção de cada um em sua classe social e das relações de
dominação.

CAMPO SOCIAL

Bourdieu concebe uma realidade multifacetária, complexa e que ocorre em


diversos domínios da vida. Essa multiface ocorre dentro de um campo social, ou
seja, dentro da sociedade como um todo. A sociedade terá quantos campos
quanto for a sua complexidade (campo religioso, jurídico, político, econômico,
artístico etc.). A capacidade de dominação de uma pessoa em cada campo sempre
será relativa, a depender de sua penetração neste campo e da influência que
exerce sobre ele.

Bourdieu usa a palavra campo de maneira metafórica. Para ele, a


sociedade é um campo de batalha. Enquanto para Durkheim, o que dá sentido ao
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mundo é a solidariedade, ou seja, os laços existentes entre os seres humanos, para


Bourdieu, assim como para Marx, o que dá sentido e ordem às relações sociais é
justamente o conflito entre as pessoas. Existe uma guerra entre dominantes e
dominados. A tua posição é dada pelo grau de acumulação de capital que você
tem dentro de determinado campo. Mesmo dentro de uma mesma posição de
dominantes ou de dominados, existem diferenças sensíveis que devem ser
levadas em conta (ex. dois Ministros do STF – um é bacharel de Direito e outro
não – capital jurídico).

O capital pode ser de diversas espécies. Capital econômico é a quantidade


de ativos mobilizáveis e é ele quem define quem é dominante e quem é dominado
no campo econômico. O capital político se mede pelo acesso e controle sobre
uma quantidade de votos. Capital religioso está diretamente relacionado à
quantidade de fieis. Capital jurídico, para Bourdieu, é o direito de dizer o Direito.
Isso envolve não apenas conhecimento técnico, mas títulos acadêmicos
universitários, relações de poder, conhecimento nos Tribunais etc.

Pode acontecer ainda a interpenetração entre os campos através do


fenômeno da reconversão do capital (ex. trocar seu capital jurídico pela obtenção
de um capital econômico, ex. dízimo – trocar capital religioso por um capital
econômico, ex. contratar um serviço de advocacia – trocar capital econômico por
um capital jurídico). A reconversão do capital para obtenção de capital
econômico é a mais evidente. No entanto, existem reconversões em todos os
campos. (ex. nomeação de Ministro do STF – campos jurídico e político; ex.
transformar o poder de mobilizar fieis no poder de impedir mudança legislativa –
campos religioso e político; ex. caso da Denise Frossard – campos político e
jurídico).

LUÍS WERNECK VIANNA

Werneck Vianna segue as ideias de Tocqueville. Possui uma obra,


juntamente com outros autores, de 1996, denominada “A judicialização da
política e das relações sociais no Brasil”. A judicialização não se relaciona
apenas ao maior acesso ao Judiciário por parte das pessoas e à proliferação de
processos, mas à extensão de suas funções para demais campos da vida social
que até então não regulava, para outras funções relacionadas aos demais Poderes
(função executiva) etc. O Werneck identifica um empoderamento recente do
campo jurídico em relação aos outros campos aqui no Brasil.

Uma dimensão forte da judicialização é traduzida pelo aumento das


práticas de cidadania participativa através da busca ao Judiciário. Os indivíduos
[SOCIOLOGIA DO DIREITO] EMERJ - CPII

se sentem cidadãos no momento em que buscam a tutela de seus direitos através


de uma ação. Isso fica muito claro quando vemos os movimentos sociais (ex.
MST) se dirigindo ao Judiciário. Há uma experimentação concreta do Judiciário
pelo povo. Embora a judicialização aconteça num tempo de crise republicana, ela
só afeta a democracia representativa, mas significa um movimento de
credenciamento à cidadania.

Werneck Vianna, contudo, vê o outro lado da judicialização. A República


tem como uma de suas principais características a independência dos Poderes,
sendo esse um sistema de controle recíproco. Cabe ao Poder Judiciário, dentro
desse sistema, julgar de acordo com as leis. Quando esse Poder começa a legislar
e a gestar, está interferindo na democracia representativa, na medida em que os
juízes não são representantes do povo legitimamente eleitos para exercer a
função legislativa ou executiva. Há, consequentemente, uma sobrecarga do Poder
Judiciário, na medida em que começa a usurpar funções dos demais Poderes.

Werneck vê a CLT como uma primeira legislação a transformar o


paradigma jurídico no Brasil. Isto porque, na esteira de um Estado de Bem-Estar
Social, com hipertrofia do Poder Executivo, é necessário romper com a ideia de
igualdade meramente formal e voltar-se à igualdade substancial, ou seja, aquela
que tenta equilibrar as partes envolvidas em uma relação quando uma delas é
hipossuficiente, como ocorre na relação de trabalho. Posteriormente, no governo
FHC, houve um degelo desse Estado de Bem-Estar Social e um avanço para um
Estado Liberal. O Estado de Bem-Estar Social como experiência concreta vai
decrescendo, contudo, o acúmulo de legislações de caráter social vai subindo
(CLT, Lei de Ação Civil Pública etc.). Essa experiência fracassada do Bem-Estar
Social, combinada com a existência de um direito well-fairiano (que prevê os
direitos e autoriza a sua concretização pelo juiz) e da Constituição de 1988, que
respalda uma atitude pró-ativa, de legislador implícito, de intérprete do direito
por parte do juiz. O Judiciário então tem condições de ocupar espaços que não
foram projetados para ser dele, como a implementação de políticas públicas e a
confecção de um direito novo (legislação nova). É nesse contexto que surge o
fenômeno da judicialização. Num Estado de Bem-Estar Social consolidado e em
democracias representativas fortes, é extremamente improvável que haja
judicialização.

Werneck, contudo, fala que a democracia não é feita só de representação.


Se fosse só representativa, a judicialização teria que acabar, pois ela afeta não
apenas a representação legítima (na medida em que o Judiciário usurpa funções
dos outros Poderes sem ter sido eleito para tal), mas como a própria democracia
(na medida em que o Judiciário não foi criado com esse fim). No entanto, ela
[SOCIOLOGIA DO DIREITO] EMERJ - CPII

precisa ser uma democracia participativa que possibilita a atuação direta do


indivíduo como cidadão que é e nisso a judicialização ajuda.

Existe uma pró-atividade não apenas do ponto de vista de interpretação do


direito well-fairiano, mas em busca de uma maior estrutura, maiores salários,
maior poder do Judiciário. É a construção social e política da autonomia e da
independência do Judiciário.

AULA 04 – PEDRO HEITOR

BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS

INTRODUÇÃO

Os fenômenos sociais não são passíveis de uma solução normativa. Não


existe uma regra jurídica para resolver os problemas sociais. Os cientistas devem
produzir compreensões sobre estes problemas.

A Sociologia do Direito serve para compreender os sentidos e as


moralidades presentes no Direito e que orientam as ações das pessoas. Ela está
interessada em dois problemas fundamentais. O primeiro deles é a ordem, isto é,
a organização cotidiana. O segundo deles é o sentido atribuído pelas pessoas às
suas ações. Difere, portanto, do Direito que tem um sentido predefinido. A
Sociologia do Direito vê o Direito como um fenômeno que vai sempre se
apresentar na práxis (ex. Tribunais, ruas, relações sociais em que se atribua uma
juridicidade), cujo sentido deve ser explicado mediante a observância da
realidade social.

O PLURALISMO JURÍDICO

Boaventura é um sociólogo português (está vivo!). Ele traz uma ideia


interessante do significado de pluralismo jurídico.

 Três quadros para análise

 Governo da província de Ontario no Canadá – propõe que os juízes


apliquem a sharia em matéria de Direito de Família nos processos
em que figurem como parte membros da comunidade muçulmana
local.
 França – desde a província de 2011, o uso do véu integral islâmico
(burca) é proibido em qualquer lugar público, sob pena de multa de
150 euros e/ou um “estágio de cidadania”. As crianças também não
podem ostentar nas escolas nenhum símbolo referente à religião.
[SOCIOLOGIA DO DIREITO] EMERJ - CPII

 Brasil – progressivamente, o Poder Público vem adotando cotas por


critérios raciais como um dos modos de acesso às universidades
públicas.

Esses três cenários se referem fundamentalmente à relação entre Estado e


sociedade.

UNIVERSALISMO FRANCÊS: UMA PROMESSA REPUBLICANA

No caso francês, devemos compreender como o universalismo surge


como uma ideologia republicana. A ideia do universalismo francês se relaciona à
uma aversão a direitos especiais, a privilégios e decorre da luta da Revolução
Francesa para acabar com uma monarquia que conferia privilégios à nobreza ou à
aristocracia e, assim, instaurar uma cidadania como ideal de igualdade e
liberdade política. Trata-se de igualdade formal.

A Revolução Francesa não apenas constrói o ideal republicano, como


também funda na França a ideia de oposição entre o espaço público (universal,
político) e espaço privado (pessoal, particular). Antes na monarquia, não havia
essa noção, porque tudo pertencia ao rei e era passível sua intervenção. Depois da
Revolução, criou-se essa distinção e o Estado não está autorizado a produzir
intervenções no espaço privado das pessoas, mas somente no espaço público.

Para os franceses, a reivindicação do exercício de particularidades não


pode ensejar atribuição de direitos diferenciados, motivo pelo qual, por exemplo,
é proibido o uso de algum elemento religioso pelas crianças na escola e o uso da
burca. Nenhum tipo de desigualação é legítimo. Essa oposição entre o universal e
o particular funda uma discussão entre os juristas sobre o universalismo e o
comunitarismo. A ideia de comunitarismo está associada sobretudo à existência
de diversas jurisdições, isto é, diversas formas de se identificar o direito.

Os franceses desenvolvem uma ideia de identidade política do cidadão.


Uma sociedade de cidadãos é aquela em que todos são vistos e tratados
igualmente pelo Estado, sendo-lhes atribuídos os mesmos direitos. Pessoa é
aquele que carrega sua identidade cultural e é tratada pelo Estado segundo a sua
identidade, já o indivíduo é aquele que é tratado igualmente perante outros
indivíduos.

Para os franceses, o modelo político republicano não vem de cima pra


baixo. Ele está sendo construído até hoje. Ao mesmo tempo em que na França
surge a separação do público para o privado, acontece a separação da Igreja,
motivo pelo qual a laicidade é um assunto recente.
[SOCIOLOGIA DO DIREITO] EMERJ - CPII

COMUNITARISMO OU MULTICULTURALISMO

Existe, atualmente, outro modelo – o comunitarismo ou multiculturalismo.


Para este, as identidades particulares/culturais devem ser reconhecidas no
momento em que as pessoas começam a se misturar. Desde o início do século
XX, sobretudo no segundo pós-guerra, houve uma imigração massiva, o que
gerou, obviamente, choque de identidades culturais. A cidadania universal é
confrontada com diversidade étnica e cultural. O Estado é chamado, então,
periodicamente ao reconhecimento dessas diversidades, através da criação de
desigualações entre as pessoas. A unidade e a indivisibilidade da República é
confrontada com as particularidades locais (internas e externas). Surge,
portanto, a problemática da inclusão e da integração.

No modelo multiculturalista, existem diferentes formas de produção do


direito, diferentes jurisdições que não são correntes. É distinto do modelo
republicano, pois promove desigualações entre as pessoas. O direito à diferença
não atribui apenas direitos especiais, mas jurisdições especiais.

Universalismo Multiculturalismo

Modelo francês Modelo canadense

Assimilaçã o: supressã o do particular Diversidade: afirmação política das


na esfera política particularidades

Direito à indiferença Direito à diferença

Oposiçã o entre identidade privada e Afirmação pública das identidades


identidade pú blica privadas

Exemplos: véu na escola, francofonia Exemplos: o kirpan no exército, o


“feliz natal” dos políticos

PLURALISMO

Para Boaventura, o Estado não detém o monopólio de produção das


regras. O pluralismo jurídico significa dizer que existem diferentes formas de
produção do Direito. É o reconhecimento de diferentes normas no âmbito
jurídico.

 Reconhecimento de diferentes normas – as relações sociais são


mediadas através das regras, que podem ser de ordem jurídica ou
não, ou seja, há um pluralismo jurídico.
 Associado à crise do Estado social
[SOCIOLOGIA DO DIREITO] EMERJ - CPII

 Fragmentação das identidades


 Diferentes formas de resolução de conflitos – a comunidade tem
formas institucionalizadas de resolução de conflitos que não
necessariamente são a forma prevista em lei (ex. favela → tráfico,
milícia, polícia). Ex. Timor Leste – passou por uma guerra civil e
depois sofreu uma intervenção da ONU. Existia uma campanha
maciça dos organismos internacionais pela adoção de métodos de
mediação de conflitos com caráter civilizatório. Existiam outras
duas formas: uma do Estado, orientada pelo direito português, e
uma advinda das próprias relações sociais. Todas essas formas
eram aceitas, ou seja, o Estado não tinha o monopólio.

MULTICULTURALISMO VS. MULTICULTURALIDADE

Essa ideia de pluralismo jurídico é empiricamente demonstrada nos


modelos multiculturalistas. No entanto, o modelo brasileiro não é exatamente
multiculturalista. No Brasil, porém, podemos citar como exemplo as cotas, os
índios e os quilombolas. Os índios só existem como uma entidade coletiva (a
FUNAI), ou seja, não são reconhecidos individualmente, além disso não tem o
direito de dispor das terras que ocupam, pois não têm direito de propriedade
sobre elas. Com os quilombolas ocorre da mesma forma. Por isso, diz-se que há
grande diferença do que ocorre no Timor Leste e no Canadá.

Quando reconhecemos as identidades culturais e atribuímos esses direitos,


o Estado está delimitando o direito de propriedade, não reconhecendo uma
jurisdição específica para essas tribos/quilombos. A diferença entre
multiculturalismo e multiculturalidade é que o multiculturalismo se refere às
situações em que a diferença enseja uma jurisdição, um poder sobre escolher as
regras e administrar os conflitos. A multiculturalidade se refere à uma ideia de
reconhecimento de identidades culturais sem atribuição de jurisdição.

O Brasil possui multiculturalidade, mas não multiculturalismo, pois a


multiculturalidade não enseja jurisdições diferenciadas (embora atualmente já se
veja o MP e o Judiciário reconhecendo algumas poucas decisões tomadas nessas
tribos, quilombos etc.).

 Descontinuidade da noção de “nacionalidade”


 Midiatização das sociedades e políticas culturais
 Discurso e prática do combate ao racismo
 Percepção e auto-percepção da diferença
[SOCIOLOGIA DO DIREITO] EMERJ - CPII

O pluralismo jurídico é uma oposição a ideia de que o Estado é o único


legítimo produtor das regras da sociedade.

MARIA TEREZA SADEK: REFORMA DO JUDICIÁRIO

Sadek é uma cientista política, brasileira e que há muitos anos vêm


trabalhando com as transformações institucionais pelas quais o Judiciário têm
passado. Para começar a compreender as reformas do Judiciário, é preciso que
nós enquadremos tais reformas no quadro da reforma do Estado. São duas coisas
interligadas, porque o Judiciário interpreta as demandas sociais de uma forma
bastante paradoxal. O Min. Luiz Fux, coordenador do grupo de discussão do
CPC, expõe duas ideias paradoxais. Primeiro, fala que a sociedade brasileira é
carente de direitos e, portanto, precisa de mais direitos. Em outra parte do texto,
fala que essa sociedade litiga muito, vai muito ao Judiciário e que determinados
conflitos não precisariam ir ao Judiciário.

CRISE DO ESTADO SOCIAL

Esse discurso se produz em um contexto de um Estado que passa por uma


série de transformações que não podem ser negligenciadas. A primeira delas é o
fato de que a Constituição de 1988 é inspirada nos modelos das Constituições dos
Estados de Bem-Estar Social da Europa. Cabe ao Estado promover e financiar os
direitos sociais. Pierre Rosanvallon quando vai analisar o Estado de Bem-Estar
Social na França, ele vê esse Estado como uma alternativa capitalista para o
comunismo. Ele destaca, contudo, um problema, qual seja o do custo desse
Estado, ou seja, não é viável do ponto de vista econômico. Por isso, entra em
crise na Europa.

Logo depois do advento da Constituição de 1988, em 1989, cai o muro de


Berlim, ou seja, o comunismo é derrotado e, portanto, não era mais necessário o
Estado de Bem-Estar Social como uma alternativa a um comunismo já derrotado.
Procede-se, assim, no Brasil, em 1990 e seguintes, um processo de reforma do
Estado.

A VIRADA NEOLIBERAL E A REFORMA DO ESTADO

 O Estado minimalista
 Descompromisso social
 O paradigma da eficiência
 Racionalização econômica
[SOCIOLOGIA DO DIREITO] EMERJ - CPII

Nessa reforma do Estado, desmantelou-se o Estado de Bem-Estar Social


em busca de um Estado liberal, de um Estado mínimo, que não seja encarregado
de promover prestações sociais. Transformou-se também a forma de gestão das
questões administrativas. Bresser prevê um Estado gerencial, que faz uma
interface direta com o mercado. O mercado oferece serviços que seriam de
atribuição estatal (ex. educação, saúde, telefonia etc.) que, uma vez inseridos em
um ambiente competitivo, geram maior qualidade e menor custo para o
consumidor. Sobra para o Estado, portanto, a gestão de questões essenciais.
Nesse período, houve um grande desenvolvimento das carreiras jurídicas estatais
(AGU, MP etc.).

O Estado deixa de ser prestador do serviço para ser regulador do serviço.


Surgem, portanto, as chamadas agências reguladoras, para regular as disputas no
mercado.

Surge também a questão da eficiência. O Estado deve otimizar seus


recursos, isto é, administrar seus recursos racionalmente para realizar as
atividades que lhe são essenciais, deixando as não essenciais a cargo do mercado
privado.

A IMPORTÂNCIA DO JUDICIÁRIO

 A promessa da modernidade
 A garantia dos direitos
 A fragmentação dos estatutos jurídicos
 A justiça de massa

O Judiciário passa a ser visto como uma via para implementação de


direitos. Os direitos são abstratos, mas não são universais. Só os tem quem vai ao
Judiciário. A diversidade de estatutos jurídicos permite ao Estado se colocar na
posição de detentor de uma sistematização do Direito. O Estado passa a ver,
então, como um guardião de promessas, pois de alguma forma tornará esses
direitos concretos. Receberá, então, cada vez mais e mais demandas de titulares
completamente diferentes.

O ACESSO À JUSTIÇA

 A percepção sobre os direitos


 A litigância habitual de determinados setores
 O custo do processo
 Novos dispositivos institucionais
 Novas arenas de resolução de conflitos
[SOCIOLOGIA DO DIREITO] EMERJ - CPII

Nesse contexto de transformação, o Judiciário passa por duas mudanças


importantes. Uma delas fundada na ideia de desburocratização (décadas de 70 e
80). A ideia dos Juizados de Pequenas Causas é orientada pela busca de
mecanismos de solução de conflitos mais simplificados. Na década de 90,
incorporamos no Brasil a perspectiva do acesso à justiça, com o surgimento dos
Juizados Especiais.

O acesso à justiça, no Brasil, tem a ver com a criação de um novo


procedimento judicial que atenda o contencioso de massa, garantindo assim o
acesso a direitos. Também compreende uma ideia de autonomia do cidadão, que
desaparece na cultura jurídica de privilegiar a aplicação da literalidade da lei em
vez da conciliação. Atualmente, há uma dificuldade de se conciliar diante da
desconfiança da sociedade em relação ao Judiciário (diversidade de
entendimentos para cada questão).

Mauro Cappelletti e Bryant Garth, em sua obra “Acesso à justiça”,


definiram três ondas do acesso à justiça:

1. Assistência judiciária gratuita;


2. Representação dos interesses difusos;
3. Reforma interna do processo em busca da efetividade da tutela
jurisdicional.

Todas essas ondas chegaram de uma vez no Brasil com a criação dos Juizados
Especiais. O Judiciário se percebe não como a prestação de um serviço público,
mas como um poder de definir direitos.

A REFORMA DO JUDICIÁRIO

 A agenda de reformas
 Uma reforma técnica ou política?
 A construção do controle de constitucionalidade
 O controle externo do Judiciário

O processo de reforma foi desencadeado com os escândalos do Judiciário.


Verificou-se, portanto, a necessidade de se criar um órgão externo para controle
do Judiciário. Com a EC 45/04, surge, portanto, o CNJ. A reforma do Judiciário
perde, portanto, seu caráter político e passa a ter um caráter técnico. O CNJ passa
a intervir nas questões de gestão do Judiciário.

Somam-se a isso a criação das súmulas e todo o processo de


judicialização. Essa reforma técnica quer dizer que todas aquelas aspirações que
[SOCIOLOGIA DO DIREITO] EMERJ - CPII

orientaram o processo de reforma do Judiciário desaparecem em prol de uma


reforma procedimental.

A PROXIMIDADE COMO PARADIGMA DA JUSTIÇA

 Arbitragem
 Juizados Especiais
 Juizados Especiais Federais
 Conciliação
 Perspectiva do conflito

Todas esses mecanismos na verdade incorporam a mesma cultura jurídica


na forma de sua realização prática. A reforma do Judiciário busca organizar essas
questões decidindo quem tem mais poder.

Jacques Commaille fala sobre o Judiciário francês e diz que este oscila em
duas perspectivas:

a) Meta-garantidor do social: o Judiciário recebe demandas da sociedade,


mas não intervém nas questões sociais.
b) Operador do social: o Judiciário intervém nas questões sociais,
proferindo decisões que interferem na vida em sociedade em uma
linguagem mais acessível.

Maria Tereza Sadek. O Judiciário em debate.

QUADRO-RESUMO

Sociólogo Palavra-chavve
s

Marx Direito e luta de classes

Tocquevill Poder dos juízes e força moral da


e lei

Durkheim Fato social

Weber Ação social

Werneck Judicialização

Bourdieu Força do direito


[SOCIOLOGIA DO DIREITO] EMERJ - CPII

Boaventur Pluralismo jurídico


a

Sadeck Reforma do Judiciário

AULA 05

ROBERTO KANT DE LIMA

INTRODUÇÃO

Em seu doutorado, fez uma tese comparativa sobre a polícia estrangeira e


a polícia brasileira. Para Kant, a perspectiva comparada não se resume em pegar
um ideal de instituições jurídicas estrangeiras e comparar com o ideal de
instituição jurídica brasileira, contida nos manuais. A perspectiva comparada não
se volta para os ideais dos institutos, mas para aquilo que se verifica na prática,
na realidade social. É uma comparação por contraste, por diferença entre os
sistemas observados. Ele foi responsável também por fundar o Instituto de
Estudos Comparados em Administração de Conflitos.

OBRA

 Sensibilidades jurídicas, saber e poder: bases culturais de alguns aspectos


do direito brasileiro em uma perspectiva comparada (2010)
 Direitos Civis e Direitos Humanos: uma tradição judiciária pré-
republicana? (2004)
 A Antropologia da Academia: quando os índios somos nós (1985)
 A polícia da cidade do Rio de Janeiro: seus dilemas e paradoxos (1994)

Podemos dividir a produção de Kant de Lima em 2 eixos:

a) Produção de verdades judiciárias e policiais em uma perspectiva


comparada: é a ideia da busca da verdade real através do processo mediante
oitiva das diversas versões sobre determinado fato. A produção da verdade, no
Direito, começa com a própria polícia, através da realização do inquérito policial.
A verdade judiciária e a policial estão intimamente ligadas. Ex. Quando da oitiva
da testemunha em sede de audiência de instrução e julgamento, a primeira
pergunta feita é se ela ratifica o que disse em sede de inquérito policial.

b) Transmissão do saber jurídico.

PERSPECTIVA COMPARADA/ANTROPOLOGIA: BR X EUA


[SOCIOLOGIA DO DIREITO] EMERJ - CPII

O autor, a partir de uma etnografia, vai fazer um estudo comparativo da


cultura jurídica norte-americana e brasileira (sociedade brasileira x sociedade
norte-americana e sistema de justiça brasileiro x sistema de justiça norte-
americano). É uma perspectiva comparada por contrate, pois coloca em descrição
as práxis policial e judiciária e as compara.

Há um Direito dos códigos (dever-ser) e um Direito da prática (ser). Esse


choque entre o dever-ser e o ser é o que motiva Kant a fazer uma perspectiva
comparada por contraste, com foco nas práticas sociais.

A vantagem dessa perspectiva comparada por contraste é que ela nos


permite verificar não apenas a diferença entre os sistemas de justiça brasileiro e
norte-americano, mas também a diferença entre as próprias sociedades brasileira
e norte-americana. A partir disso, podemos verificar se determinado instituto
jurídico norte-americano pode ou não ser importado para a sociedade brasileira.
A importação dos Juizados Especiais, por exemplo, não funcionou como deveria,
pois pensado não sob a ótica da sociedade brasileira, mas norte-americana. Na
ótica norte-americana, há uma cultura da conciliação, na medida em que os
indivíduos são vistos como seres autônomos, que independem do Estado e
podem resolver seus conflitos individualmente. Já na ótica brasileira, por termos
um Estado interventor/tutelar, há certa dependência dos indivíduos em relação ao
Estado, na medida em que até mesmo os conflitos individuais (que poderiam ser
resolvidos em privado) são subjugados às suas decisões. As práticas sociais
estão, portanto, diretamente relacionadas às representações que os indivíduos
fazem sobre o Direito, o Estado, a sociedade.

Kant faz uma classificação entre indivíduo e pessoa. Indivíduo é tomado


abstratamente, independentemente de suas particularidades, ou seja, aquele
contido na Constituição. Pessoa, porém, é o indivíduo concretamente pensado,
nas suas condutas diárias e nas relações sociais que trava (ex. um advogado que
vai toda semana no mesmo cartório e é bem tratado por isso). No Brasil, as
nossas relações são pessoais, isto é, tratamos distintamente a depender de quem
seja (“você sabe com quem está falando?”). Já nos EUA, as relações são com
base no indivíduo, isto é, todos são tratados igualmente independente das
particularidades (“quem você pensa que é?”).

Para Kant de Lima, há dois tipos de sociedade:

» Sociedade representada por triângulo: hierarquizada. O direito é uma


forma de reforçar as desigualdades, pois controlado pelas classes dominantes. Ex.
castas na Índia.
[SOCIOLOGIA DO DIREITO] EMERJ - CPII

» Sociedade representada por paralelepípedo: sem hierarquia. O direito,


nessas sociedades, serve à proteção dos cidadãos da República face ao Estado.
Ex. EUA. O discurso se coaduna com a prática.

Questão: E o Brasil? Para Kant, o caso brasileiro é paradoxal. É uma


sociedade triângulo que quer virar paralelepípedo. O discurso brasileiro é de
igualdade, ou seja, é de uma sociedade paralelepípedo. Contudo, na prática, o que
há é um cenário de desigualdade, de uma sociedade triângulo. Ex. prisão especial
para quem tem ensino superior; instituições aplicam regras de formas
particularizadas; tratamento diferente para autor e co-autor.

“Esta visão republicana, democrática, igualitária e individualista da


sociedade, entretanto, convive, na sociedade brasileira, com uma
outra, que permanece implícita – mas claramente detectável à
observação – em que a sociedade, à maneira de uma pirâmide, é
constituída de segmentos desiguais e complementares. (...). As
diferenças não exprimem igualdade formal, mas desigualdade formal,
própria da lógica da complementaridade, em que cada um tem o seu
lugar previamente definido na estrutura social. A estratégia de
controle social na forma piramidal é repressiva, visando manter o
status quo ante a qualquer preço, sob pena de desmoronar toda a
estrutura social”.

Esse paradoxo do caso brasileiro também se aplica no que diz respeito à


transmissão do saber. Na sociedade de pirâmide, quem está no topo detém um
saber particularizado, especializado. Como exemplos desse saber, temos:

a) Concursos públicos: para lograr aprovação é necessário o acesso a um


saber particularizado, indisponível no mercado universitário.
b) Lógica do contraditório: ser detentor de um saber particularizado
converte-se em poder diante do público e tem sinal positivo (ex. o
advogado guarda uma carta na manga para usar no momento certo, ao
invés de compartilhar a informação que tem). Quem está no topo
exerce o poder baseado no que sabe mais. Se a informação do processo
é de todos (como diz o discurso brasileiro), não deveria haver essa
lógica.
c) Ensino do Direito.

Nas sociedades de paralelepípedo, o saber é visto como algo de todos, ou


seja, tem que ser compartilhado, difundido, transmitido. Todos chegam numa
aula, por exemplo, tendo lido o mesmo livro.

ANTROPOLOGIA DA ACADEMIA
[SOCIOLOGIA DO DIREITO] EMERJ - CPII

 Compartilhamento dos livros e do saber → enquanto nas academias


de paralelepípedo, há um grande compartilhamento do saber, nas
academias de pirâmide, há um egoísmo na referida transmissão.
 Perguntas → enquanto nas academias de paralelepípedo, as
perguntas devem ser feitas na sala, com divulgação para todos, nas
academias de pirâmide, as perguntas normalmente são feitas
individualmente, depois da aula etc.
 Pós-aulas: socialização → na sociedade de paralelepípedo, não há
uma socialização pós-aula, diferentemente do que ocorre na
sociedade de pirâmide.
 Autoridade do argumento x Argumento de autoridade → o
argumento de autoridade só pode valer numa sociedade hierárquica,
pois quem sabe mais está no topo. Nas sociedades não
hierarquizadas, o que há é a autoridade do argumento, ou seja, um
argumento bom, de conteúdo, independentemente de quem fala.
 Mitos de origem → criam-se mitos de origem para justificar as
instituições que temos, mas que não necessariamente guardam
semelhança com a realidade que vivemos. Ex. República (a
república não foi proclamada como descrito no hino). Ex. Júri.
 Comparação por semelhança na busca de um melhor modelo.
Evolucionismo. → a comparação por semelhança resulta numa
importação de modelos considerados mais evoluídos, quando na
verdade é uma questão de adequação, de adaptação e não de
evolução.

SISTEMA AMERICANO X SISTEMA BRASILEIRO

1. Inquérito policial

Uma das formas para pensar sobre nossas práticas é olhando para a
produção da verdade policial no sistema americano e no sistema brasileiro
mediante o inquérito policial.

No Brasil, o Estado é detentor da produção dessa verdade, exercida pelo


Delegado, membro do Executivo. Trata-se de um procedimento de iniciativa de
um estado ‘todo poderoso’, na busca incansável da verdade, uma verdade secreta,
que muitas vezes sequer é divulgada para o advogado do investigado. É um
inquérito administrativo, inquisitorial, tramita no cartório policial e depois é
entranhado no processo judicial para ser utilizado pelo juiz. Há a produção de um
ethos de suspeição permanente sobre o investigado que prejudica a harmonia de
uma sociedade de desiguais complementares.
[SOCIOLOGIA DO DIREITO] EMERJ - CPII

2. Processo judicial

Essa ideia toda se repete no processo judicial. No Brasil, ao perguntar, o


juiz conduz o processo de forma que a verdade produzida de uma maneira
inquisitorial se repita no processo judicial, enquanto, no discurso, sua obrigação
seja a de refazer todas as provas do zero. Há outras distinções:

 Denúncia obrigatória (aqui, embora se fale que o processo é uma


garantia do acusado, o MP é obrigado a denunciar, o que não
permite qualquer negociação) – sistema brasileiro x Denúncia
facultativa (há um procedimento de negociação anterior entre o
promotor e o defensor) – sistema norte-americano.
 Interrogatório: réu responde perguntas (“seu silêncio pode resultar
em prejuízo de sua defesa”) e confissão atenua pena.
 Prisão especial
 Competência por prerrogativa de função.

“Um sistema judicial criminal que não é aplicado de forma igual a


todos os cidadãos, mas que assegura privilégios, desigualdades,
consagradas na própria legislação penal e, como vimos, presentes nas
práticas que a atualizam como se verifica em sociedades”.

3. Tribunal do Júri

O mesmo ocorre em relação ao Tribunal do Júri. Quando o Júri foi


introduzido no Brasil, inspirado no júri inglês, também foi introduzido nos EUA.
No entanto, chegaram a patamares completamente diferentes, embora importados
do mesmo modelo.

 Nome: Trial em inglês significa procedimento e é esse o nome


usado no sistema norte-americano. Aqui, no Brasil, porém, foi
adaptado para Court que quer dizer tribunal, dada a
institucionalização do júri.
 Nos EUA, o júri é um direito subjetivo, pois o réu vai a júri
somente quando não concorda com a negociação. No Brasil, é
instituição judiciária obrigatória.
 Nos EUA, o júri tem competência ampla para todos os crimes. No
Brasil, só tem competência para os crimes dolosos contra a vida.
 Nos EUA, há uma seleção ampla dos jurados. No Brasil, os jurados
são selecionados pelo juiz.
 Nos EUA, há um dever de servir. No Brasil, há um direito de julgar
(certificados para desempate no concurso público).
[SOCIOLOGIA DO DIREITO] EMERJ - CPII

 Enquanto nos EUA, há 12 jurados para decidirem o debate, no


Brasil, há apenas 7 jurados.
 No Brasil, há incomunicabilidade.

MARIA DA GLÓRIA BONELLI

INTRODUÇÃO

Trabalha com a Sociologia das Profissões, atuando principalmente nos


seguintes temas: profissões jurídicas, sistema de justiça, profissionalismo e
gênero, processos de profissionalização contemporâneos.

OBRAS

 Profissionalismo, gênero e significados da diferença entre juízes e


juízas estaduais e federais (2011)
 Profissionalismo e diferença de gênero na magistratura pública
(2010)
 Profissionalismo e construção do gênero na advocacia paulista
(2008)
 Profissionalismo, dominação e resistência: a magistratura paulista e
a reforma do Judiciário (2008)
 Sociedades de advogados e tendências profissionais (2007)

COMPETIÇÃO PROFISSIONAL NO MUNDO DO DIREITO

Ela fez uma pesquisa numa comarca do interior de SP, que ela chama de
“Comarca de Branca” que tem 4 Varas Cíveis, 2 Varas Criminais e Delegacias de
Polícia. Chegou à conclusão de que há 2 tipos de competição no mundo do
Direito:

a) Disputas intraprofissionais: são as disputas ocorridas dentro de uma


mesma instituição ou órgão. Ex. Promotor x Promotor, Procuradores x
Procuradores, Juiz x Desembargador.
b) Disputas interprofissionais: são as disputas ocorridas entre
profissionais de diferentes órgãos. Ex. MP x DP (ex. legitimidade para
ações de tutela coletiva), magistrados x MP (ex. estruturas,
prerrogativas etc.).

Os perfis dos entrevistados são:


[SOCIOLOGIA DO DIREITO] EMERJ - CPII

a) Juízes: 6 homens brancos; função de juiz como forma de ascensão


social; experiências anteriores como funcionário de cartório
(valorizavam mais a figura do juiz autoridade) e advogado.
b) Promotores: 6 homens brancos (um poderia não ser classificado como
branco); descendentes de segmentos mais baixos da hierarquia;
socialização no “mundo da ordem” (polícia), não necessariamente o
“mundo do direito”.
c) Delegados: 18 entrevistados (17 homens e 1 mulher); origens sociais
mais diversificadas; socialização no mundo da ordem (ex. polícia, em
casa, militar ou civil); faculdades de direito todas privadas.
d) Advogados: 16 entrevistados (11 homens e 5 mulheres); origem social
mais favorecida (profissional liberal depende de contatos, clientela,
laços sociais etc.); 1 ex-juiz; jovens de ascensão profissional.
e) Funcionários judiciais: 7 funcionários.

Na competição interprofissional, ela percebeu que há maior tensão entre


aqueles que estão em posições mais próximas, reforçando a noção do que é a
proximidade que aumenta as disputas. Ademais, percebeu que a mudança de
identidade profissional acompanha valores e opiniões e que há uma hierarquia
nas profissões (um joga a culpa para o outro): Judiciário → Legislativo (ex. “não
faço por causa da lei”), Promotores → Magistratura, Delegados → Ministério
Público.

Concluiu ainda que o conflito com o legislativo unifica os profissionais do


campo da justiça, ou seja, todos os profissionais reclamam das leis, reputam os
problemas à lei, em vez de se colocaram como agentes solucionadores dos
problemas.

Na competição intraprofissional, percebeu que há diferentes subgrupos


dentro de cada profissão, gerando disputas e tensões vividas pelos pares dentro
da profissão (ex. juízes garantistas x juízes conservadores, promotores x
promotoras etc.). Essa estratificação deriva de fatores como gênero, etnia e
gerações.

Obviamente, a ideia de um grupo profissional coeso é necessária para


fortalecer a instituição e unificar a identidade profissional quando falam pra fora
(visão externa). Diferentemente, em uma visão interna, fica clara a competição
profissional.

Em relação aos delegados, havia uma crítica a maneira de se realizar as


promoções com base nos critérios de antiguidade e merecimento; percebeu
conflito geracional (geração anterior x posterior à ditadura), conflito de perfil
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(menos operacional x mais ostensivo, de rua), conflito delegado no interior x


delegado na capital, conflito delegacia da mulher x outras delegacias.

Em relação aos cartórios judiciais, havia disputa: funcionários antigos x


funcionários novos, auxiliares do judiciário x escreventes (primeiros qualificam
seus cargos e depois desqualificam os escreventes), posições de chefia x oficiais
de justiça (o 2º como sendo subordinado diretamente ao juiz), posições
subordinadas reverenciando os juízes (simbologia os juízes que eram
funcionários é mais forte).

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