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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

VITOR AUGUSTO PILÓ DOS SANTOS

MEMORIAL DE LEITURA E ESCRITA

Belo Horizonte
2020
VITOR AUGUSTO PILÓ DOS SANTOS

MEMORIAL DE LEITURA E ESCRITA

Trabalho apresentado à disciplina Leitura e


Escrita como requisito parcial de obtenção de
créditos.

Professora Daniella Lopes

Belo Horizonte

2020
Filho de pais que não chegaram a se casar: assim começa a narrativa da
minha relação com as práticas de leitura. Incomum, não? Não tanto quanto imaginas
meu caro leitor, e já te explico o porquê. Deves considerar então que, sendo meus
pais “separados”, cada momento que eu vivia com eles era especialmente singular,
diferenciado e único na minha terna infância. Voilà! Eis aqui a função primordial da
leitura em minha vida: ponte entre o coração ansioso de um filho e os corações
calorosos de seus pais.
Lembro-me muito bem do que me alegrava nos dias de menino, quando meu
pai contava e recontava inúmeras vezes as clássicas estórias da literatura infantil
(deixo aqui minha ode à chapeuzinho vermelho por tanto aturar meus ouvidos em
dias de chuva), ou quando minha querida mãe me incentivava a leitura dessas
singelas, mas não menos preciosas, coleções de livretos infantis.
Mas como nem tudo são flores, não posso deixar de descrever, doce mãe e
caro leitor, o medo gélido e o calafrio sinistro que sentia nas madrugadas, sem
dormir, após ler os macabros contos do nosso folclore: mula sem cabeça, lobisomem
e outros. Questiono-me: qual o sentido ou utilidade pública em destinar jovens e
pobres crianças a tais leituras? Fica em aberto o debate para as próximas
gerações de filósofos, linguistas e mamães.
A despeito de todo horror vivenciado por este que vos fala, prossigamos
nessa narrativa: pois passado é passado e não volta mais! Bom, apenas algumas
vezes ou outras remove a tampa do caixão e toda a terra por cima, vindo
indesejadamente assombrar nossas mentes num curto período de tempo: no banho,
lendo, caminhando, comendo, ao dormir... Enfim, enquanto este ainda não te amola,
meu leitor, contar-te-ei como a leitura se fez marcante, novamente, em minha
história e como a mesma sagazmente me inseriu na História.
Neste sentido, é importante levantar aqui o seguinte e indispensável
questionamento: qual a possibilidade de um rapaz, aos seus 10 anos de vida, em
seu pacato fundamental I, apreciando os sabores do ensino público brasileiro, mais
perdido que cego em tiroteio, odiando veementemente com toda a sua alma, força e
existência a escola; como tal criatura pôde se tornar um exímio, sobretudo modesto,
analista das tramas humanas, aquele que vos escreve?
A resposta é que, segundo Schopenhauer (1851, p. 62) “a solidão é o destino
de todos os espíritos excepcionais, e isso às vezes lhes entristecerá; porém, sempre
a escolherão como o menor dos males”. Qual! A solidão? Sim, meu amigo, a
solidão. A triste e mesquinha solidão que te assola e envolve enquanto criança
isolada, um pouco tímida, incompreensível e incapaz de compreender o mundo que
o cerca: porque meus colegas me tratam assim? Porque não consigo pensar, sentir
e agir como eles? Que tipo de mundo é esse em que vivem? Será que o “problema”
é comigo ou com eles? Sei que essa pergunta já ressoou no coração de muitos,
inclusive no seu leitor. É normal. Como já dizia um grande psicólogo e amigo meu:
“Bem-vindo à raça humana!”.
Então, nisso estais se perguntando: que diabos têm a ver essa volumosa
choramingada com meu desenvolvimento como leitor? Calma lá! Digo-lhe somente
que minha trajetória se seguiu nessa época exatamente conforme as palavras do
autor supracitado: a solidão levou-me à excepção. E no que consistia essa
excepção? Resposta: longos recreios dispensados na biblioteca. Confesso que
muitas das vezes sentia vergonha por estar lá, sozinho, lendo e relendo os livros das
modestas estantes do recinto. Era uma maneira que eu encontrei, ou melhor, na
qual eu me encontrei fugindo da realidade angustiante que me afligia e por fim
tentando apreender e construir algo só meu, que me desse valor e senso de
pertencimento. Por isso, advogo aqui em favor de um olhar mais delicado em
relação às nossas bibliotecas. Estas se constituem tanto como refúgios da alma
quanto maternos berços para a próxima geração pensante de um país; são os
lugares “[...] de encontro com o conhecimento e desenvolvimento dele” (BRITTO,
2015, p. 56).
Foi nesse contexto que os volumosos livros didáticos e ilustrativos de História
vieram a calhar e serviram-me de alento e companhia nos momentos vagos e
tristonhos desse período. Não sei exatamente como começou essa paixão, esse
hobby, mas surge na minha mente agora a figura de uma dessas primeiras obras
com que tive contato. Tratava sobre a vida de Alexandre, o Grande, imperador
helenístico e memorável general que varreu o Império de Dário com seus exércitos e
o mundo com sua fama. Toda a vida de Alexandre, do seu nascimento à sua morte,
era abordada de uma maneira peculiar e íntima para mim, de modo que me
identifiquei com o sujeito e em decorrência disso abrilhantou-me o pensamento a
ideia de ser também um imperador, alguém que deixasse seu nome e glória para a
posterioridade. Não ria meu leitor. Mas se rir confirma que “[...] à leitura intensiva se
atribui grave delito: ela transtorna e transforma seu leitor” (ZILBERMAN, 2001, p. 21)
Deixando os devaneios febris da meninice de lado, retornemos ao que nos
interessa aqui. Acrescentando ao que foi muito bem demonstrado nas últimas linhas,
a leitura do material didático de História permitiu que o meu juvenil cérebro
começasse, além de delirar fantasticamente acordado, a pôr em movimento as
engrenagens de uma análise mais profunda dos processos históricos, das condições
e dos fluxos das tramas humanas em suas vidas neste planeta ao longo dos séculos
e milênios. Dessa forma, lendo, desabrochou e floresceu em mim o desejo e
curiosidade de penetrar as mazelas e cenas perpetuadas pelo homem em sua breve
existência e temporalidade, e até hoje é notável esse frenesi que tenho em devorar
estudos e leituras que me permitam, ao menos, entender um pouco desse universo.
Vale então ressaltar, a título de enriquecimento do pensamento aqui descrito,
as palavras do Santo Livro, “O meu povo está sendo destruído, porque lhe falta o
conhecimento” (BÍBLIA, Oséias, 4, 6). Atenção! Examinemos bem e com cautela a
reflexão que o profeta nos traz à tona. Sucintamente, ao fazer uma leitura rápida do
verso, depreende-se logo o princípio inigualável da relação manifesta e intrínseca
entre o conhecimento e a vida, ou a falta desta que se concretiza ao
negligenciarmos o outro. Mas, o que tem isso a ver com a leitura e as práticas de
leitura? Tudo, meu amigo, tudo! Perdoem-me os grandes teólogos pela feita, mas
ousarei humildemente acrescentar uma nota de rodapé ao texto, que por sua vez é
uma implicação lógica do próprio versículo e talvez faça sentido, talvez: o povo
perece pela falta de conhecimento e a falta de conhecimento se dá, em muitos
casos, pela carência que sofremos como indivíduos em relação a uma imersão
pedagógica mais profunda e rica no universo das leituras e práticas leitoras.
De outro modo, podemos supor também que essa infeliz conjuntura social em
relação à leitura é uma implicação do advento de uma nova revolução cultural-
tecnológica. Nesse sentido, Chartier (2002, p. 105) afirma que “[...] a morte do leitor
e o desaparecimento da leitura são pensados como a consequência inelutável da
civilização da tela, do triunfo das imagens e da comunicação eletrônica”. Logo,
nossa carência como povo em relação à leitura se caracterizaria não somente pela
privação histórica, como também pela reconfiguração das condições materiais do
presente: “Se é fato que o leitor, enquanto ser histórico, constrói os sentidos que lê,
é fato também que sua leitura estará sempre constrangida pelas condições –
igualmente históricas – em que se dá [...]” (BRITTO et al., 1998, p. 1, grifo nosso).
É depressivo notar essa miséria que vivemos nas nossas experiências
cotidianas e em nossas comunidades no que se refere a viver uma vida de leituras.
Possivelmente, isso decorre também do fato de que “[...] a implantação massiva de
ensinos normalizados tornou impossíveis ou invisíveis as relações da aprendizagem
tradicional [...]” (CERTEAU, 1990, p. 262, grifo nosso). Como parte de uma
aprendizagem tradicional, a leitura: liberta, expande horizontes, abre novos portais e
caminhos que nos levam a enxergar o mundo de mil e uma formas diferentes.
Mergulhar nos livros é como mergulhar na fossa do espírito humano, é apropriar-se
de tudo o que já foi produzido, reingerido e expelido pelas dores, tristezas, alegrias e
descobertas de muitas e muitas almas ao longo do tempo. Ler é descobrir a si
mesmo e o mundo que o cerca tal como são e como poderiam ser. A leitura insere o
indivíduo no palco das agitações humanas, na encenação diária do cosmos e em
todos os seus fluxos. Privar-se ou privar a outrem de ler é privar de existir, de
encarnar o seu papel como um dos atores dessa obra divina, que se chama vida.
Porém, é necessário ressaltar que esse rico crescimento pessoal dos
indivíduos, em seus múltiplos aspectos (intelectual, cultural, social, etc.),
proporcionado por uma inserção efetiva nas práticas leitoras (enquanto parte de uma
aprendizagem tradicional), talvez seja passível de enfrentar certos obstáculos em
sua concretização. Conforme já proposto mais acima, a configuração histórico-
material e cultural de nossas sociedades na atualidade apresenta desafios à
formação do leitor-cidadão moderno, pois está constantemente inferindo
modulações na percepção da natureza-valor e execução das práticas de leitura no
contexto da cultura escrita:

[...] a cultura escrita é abrangente, isto é, conforma-se às contingências,


às práticas sociais, etc. E é dentro dessa cultura que ocorrem mudanças
de caráter técnico e tecnológico que a transformam e mesmo a
subdividem (RIBEIRO, 2018, p. 12, grifo nosso).

Diante desse quadro geral, reitero aqui a excepcional necessidade de uma


formação leitora na vida de todo e qualquer ser humano, pois a mesma desperta no
espírito do indivíduo uma série de processos criativos. A inserção prática e efetiva
da leitura na vida pessoal do estudante, visando o desenvolvimento de suas
capacidades de criação e interpretação, torna-se um objetivo indispensável no
planejamento escolar e acadêmico. Dessa forma, corrobora-se que:

O processo criativo é – ou deveria ser – elemento central no ensino, na


aprendizagem, na educação ou na deseducação do olhar, na emergência
do estranhamento, na percepção da intenção ou da inocência do que lemos
e escrevemos, em sentido amplo (RIBEIRO, 2018, p. 72, grifo nosso).

Dito tudo isto, quero aqui encerrar essas breves memórias até que se chegue
um tempo oportuno em que lhe acrescentarei mais algumas letrinhas, quem sabe
bem lá na frente, quando já velhinho, ou mesmo com o pé na cova como fez Brás
Cubas. Porém, não posso terminar este escrito sem antes tirar alguma conclusão ou
deixar alguma proposta ao leitor a respeito das práticas de leitura.
Sendo curto e conciso, depreende-se da leitura (olha só ela de novo) dos
parágrafos acima que tais práticas são indispensáveis, pode até se dizer
obrigatórias, não somente na formação de um bom cidadão ou profissional, mas vão
muito além, pois constroem, moldam, edificam e desenvolvem o próprio espírito de
cada indivíduo; materializam o seu ser nas vastas redes que conectam o passado,
presente e futuro dos estados das almas da humanidade em sua transitoriedade
histórica e material. A leitura, gradativamente, transforma-nos em seres mais
solidários e humanos; construímos a totalidade do mundo e do nosso ser a partir do
diálogo constante com o “outro”. Conclui-se então que, “[...] ao ler, o leitor
experimenta uma situação desencadeada tão somente pela leitura: ele consegue
ocupar-se com os pensamentos de outro [...]” (ZILBERMAN, 2001, p. 52). Assim,
deixo agora meu parecer final, porém provisório: deve-se prezar, invariavelmente,
pela propagação, difusão e aprimoramento das práticas de leitura como um meio de
evolução gradual, progressiva e eficiente do homem. Leitura é vida!
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BÍBLIA, A. T. Oséias. In BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução de João


Ferreira de Almeida. 2 ed. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2008. 1664p.

BRITTO, Luiz Percival L. No lugar da leitura: biblioteca e formação. Rio de Janeiro:


Edições Brasil Literário, 2015.

BRITTO, L. L. e BARZOTTO, V. H. Promoção X Mitificação da Leitura. Em Dia:


Leitura & Crítica. Campinas: Associação de Leitura do Brasil, agosto de 1998.

CERTEAU, Michel de. Ler: uma operação de caça. In: A invenção do cotidiano.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1990.

CHARTIER, Roger. Morte ou transfiguração do leitor. In: Os desafios da Escrita.


São Paulo: Editora UNESP, 2002. p. 101-124.

RIBEIRO, Ana Elisa. Cultura escrita, cultura impressa, cultura digital: Contiguidades
e tensões. In: Escrever hoje: palavra, imagem e tecnologias digitais na educação.
São Paulo: Editora Parábola. 2018.

RIBEIRO, Ana Elisa. Palavra e criação, palavra e ação: livro, leitura e escrita em
pauta. In: Escrever hoje: palavra, imagem e tecnologias digitais na educação. São
Paulo: Editora Parábola. 2018.

SCHOPENHAUER, Arthur. Aforismos para a Sabedoria de Vida. Tradução de Jair


Barboza. 1 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

ZILBERMAN, Regina. Ler faz bem? In: Fim dos livros, fim dos leitores. São Paulo:
Editora Senac, 2001.

ZILBERMAN, Regina. Ler faz mal? In: Fim dos livros, fim dos leitores. São Paulo:
Editora Senac, 2001.

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