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Céline Spinelli1
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Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (PPGSA – IFCS – UFRJ). Participa do grupo de pesquisa Ritual,
Etnografia e Sociabilidades Urbanas, sob orientação da Profª. Drª. Maria Laura Viveiros de
Castro Cavalcanti. Bolsista do Cnpq. E-mail: celinespinelli@gmail.com.
Introdução
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de restauração arquitetônica, e o tombamento como patrimônio nacional do
centro histórico da cidade, marcaram a roupagem que hoje envolve Pirenópolis.
Atualmente, junto à extração de quartzito, outro importante motor da
economia local é o turismo. Ele é fundamentado em três pilares: patrimônio
histórico; ecologia e natureza, com destaque para as numerosas cachoeiras;
elementos culturais, com ênfase para gastronomia e, sobretudo, para festas
locais. Quanto a esse último aspecto, pude observar pela pesquisa etnográfica
que a cavalhada ocupa um lugar de destaque no universo festivo da cidade.
Conforme a historiadora Mônica Martins (2001), isso vêm se processando desde
a década de 1970, época em que, com a criação da Goiastur, o turismo foi
impulsionado na cidade, promovendo consigo alguns elementos culturais, dentre
eles a Festa do Divino.
Penso que a cavalhada é, por várias razões, uma parte atrativa da Festa
do Divino. Primeiro, porque comporta cores e enfeites cintilantes, que revestem
tanto os cavaleiros como os cavalos. Segundo, justamente porque tem cavalos:
elemento identificador para o público local, pois esse é em parte formado por
habitantes do meio rural, e também porque o animal indica uma realidade de
passado agropecuário; atração para os visitantes urbanos, que se deparam com
os trotes nas ruelas de pedra, o que acrescenta um tom passadista à pequena
cidade de arquitetura colonial. Em terceiro lugar, a cavalhada de Pirenópolis
pode servir de atrativo pela tradicional presença dos numerosos mascarados.
Esses, com suas máscaras de papel imitando a feição de animais, fazem nova
alusão (especialmente com a cara de boi) ao passado econômico da cidade, ao
mesmo tempo em que destacam os dotes dos artesãos locais. Mas, o que neles
é mais marcante são suas atuações, capazes de dar vida a múltiplos
personagens através da mímica e do grotesco, do lúdico e do riso. Assim, a
cavalhada em Pirenópolis atiça amplo conjunto de percepções sensitivas,
podendo sensibilizar uma diversificada gama de espectadores.
O destaque das cavalhadas como objeto de atração da Festa do Divino
pode ser observado nos próprios prospectos que circulam pela cidade. No ano
de 2007, ao solicitar informações sobre o município e a festa junto ao Centro de
Atendimento ao Turista (CAT), recebi dois folders: um, continha a programação
da festa; outro, um mapa da cidade. Ao abrir uma vez o primeiro deles, de tal
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modo que apareçam somente as informações iniciais, o que se vê é uma oração
e um histórico de Pirenópolis, acompanhados da foto de um mascarado com
cara de boi e de outra, do grupo dos cavaleiros de cavalhadas. Mais um
desdobramento de páginas e surge a programação completa da Festa do
Divino, sendo que somente tem destaque, dentre todas as atividades, a palavra
“cavalhadas”, que aparece escrita em letras grandes. No segundo folder, a
imagem de um mascarado aparece justo na capa, seguida de um slogan no qual
se lê: “Piri é logo ali - turismo eco-histórico”.
É interessante observar que, nos prospectos acima descritos, as festas
tradicionais da cidade, que se amalgamam na época da grande festa em
homenagem ao Divino Espírito Santo, são de algum modo representadas pelas
cavalhadas, e essas, por sua vez, são simbolizadas pela imagem do mascarado.
Esse personagem, como já observou Ana Cláudia Alves (2004), é recorrente na
obra de pintores e artesãos locais, nos jornais e em matérias publicitárias.
Assim, é possível considerar que hoje os mascarados representam não só a
festa, mas também a cidade de Pirenópolis, sendo elemento significativo para
pensar como na cidade se articulou uma idéia de patrimônio cultural, políticas
públicas e interesses econômicos direcionados para o turismo.
O processo de ressignificação de aspectos da realidade local, aliado à
proximidade geográfica em relação a Brasília e aos interesses de projeção da
cidade histórica, foram responsáveis por gerar a visibilidade que recentemente
Pirenópolis alcançou nos meios de difusão de massa. A cidade e suas
cavalhadas foram, por exemplo, tema do curta-metragem ficcional de Adolfo
Lachtermacher, Cavalhadas de Pirenópolis, lançado no Rio de Janeiro em 2004
e apresentado em festivais de cinema por todo o país. Mais de vinte filmes de
curta e longa metragem usaram a cidade como cenário; a televisão,
especialmente pela atuação da emissora Rede Globo, também auxiliou a
popularizar Pirenópolis, que já foi apresentada em programas como Globo
Rural, Globo Ecologia, Jornal Nacional, Domingão do Faustão e em novelas
como Renascer e Estrela-Guia (Berocan, 2002, p. 12).
Essa divulgação, e ainda os interesses políticos que a motivaram, foram
influentes para o fato de ter sido a cavalhada de Pirenópolis a eleita para
representar em terras francesas, no ano de 2005 (ano do Brasil na França), a
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tradicional encenação brasileira da luta entre mouros e cristãos. Nessa ocasião,
o atual grupo de cavaleiros foi se apresentar em Chantilly, pequena cidade nos
arredores de Paris conhecida pelo seu castelo e hipódromo. Cavaleiros de
Pirenópolis montados em cavalos franceses, encenando uma tradição diante de
público estrangeiro: trata-se de um indício de que as cavalhadas de Pirenópolis
são hoje emblemáticas no Brasil.
A prática local tem aos poucos se alterado devido à divulgação da cidade
e de suas festas. Modificações nas indumentárias dos cavaleiros costumam ser
os sinais mais evidentes de que alguma mudança, na representação ou na
forma de concebê-la, pode estar se processando. Em Pirenópolis, como se pode
ver cotejando fotografias antigas e descrições de pesquisadores (Bandão, 1974;
Silva, 2001) com a realidade atual, as roupas que antes se assemelhavam à
farda militar são hoje significativamente mais adornadas. Inclusive, mesmo o
texto explicativo publicado no site de turismo da cidade2 sobre as cavalhadas
trata de alterações nas vestes dos cavaleiros. Elas são apresentadas nos
seguintes termos: “hoje, com a criação de tecidos sintéticos e a nova estética
carnavalesca, os cavaleiros se apresentam um tanto mais luxuosos”.
É importante salientar que considerar essas inovações não implica admitir
que as cavalhadas tenham hoje adquirido uma feição turística ou até
“espetacular”, que antes não lhes caracterizava. Significa, isto sim, buscar situar
a cavalhada dentro de um processo de transformação, ainda ativo, que tem feito
dela outra, em relação ao que era há algumas poucas décadas. Vale observar
que esse momento pelo qual têm passado as cavalhadas de Pirenópolis não é
isolado, frente ao quadro de manifestações da contemporânea cultura popular
brasileira. Talvez ele se assemelhe em alguns aspectos com o que ocorreu em
relação ao Boi-Bumbá de Parintins (Amazonas), por exemplo, que foi
ressignificado com a participação da mídia, de agências governamentais, da
indústria cultural e do turismo (Cavalcanti, 2000). Aliás, como esse boi, que
ganhou seu bumbódromo (em 1988), em Pirenópolis a cavalhada acaba de
inaugurar seu “dromo”. Acredito que a construção do cavalhódromo, tido como o
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primeiro espaço forjado no país para esse tipo de manifestação cultural,
materializa o processo pelo qual estão passando as cavalhadas pirenopolinas.
3. O cavalhódromo
3 Esses dados podem ser consultados através do site do Gabinete Civil da Governadoria do
Estado de Goiás: http://www.gabinetecivil.goias.gov.br/decretos/2000/decreto_5.342.htm. O
decreto em questão é o de número 5.342, tornado público no dia 29 de dezembro de 2000.
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ao longo de todo ano, somente sendo aberto para a realização das cavalhadas.
Isso explica o nome comumente atribuído à estrutura: cavalhódromo.
Penso que é interessante salientar a forma como essa obra foi
apresentada no ano de 2006 em informativo do Seplan (Secretaria de
Planejamento e Orçamento): como um significativo projeto para o “incremento
do turismo” local; uma “obra de grande importância”, que “deve beneficiar toda a
população e turistas que freqüentam a cidade” 4. Esse aspecto corrobora a idéia
de que se buscou, mediante um projeto político visando a implementação do
turismo local, transformar a cavalhada num produto com potencial para ser um
chamariz e arrecadar divisas para a cidade.
As opiniões a respeito do cavalhódromo são diversas entre os habitantes,
mas costumam se dividir em duas categorias opostas: aprovação e
desaprovação. Dentre os aspectos positivos constavam, nos dizeres de meus
interlocutores, as seguintes justificativas: que a estrutura em concreto diminui as
possibilidades de acidentes ocasionais devidos à proximidade com os cavaleiros
ao longo da encenação; que, pelo gramado do campo e pelas altas
arquibancadas, não há mais nuvens de poeira que encobrem a audiência; por
fim, que há mais conforto. Já aqueles que ficaram insatisfeitos com a obra
enfatizaram: a perda de alguns elementos tradicionais decorrentes do modo
como a estrutura de concreto foi projetada; seu caráter desproporcional em
relação à cidade; a própria iniciativa do governo, considerada autoritária, já que
a população local não foi consultada para manifestar seu interesse em alterar o
espaço onde ocorrem suas tradicionais cavalhadas. Nesse último sentido, os
mais críticos salientavam, ainda, que o investimento poderia ter sido canalizado
para obras públicas de mais valia, como o reparo de problemas de infra-
estrutura e saneamento básico.
Já no cavalhódromo em dia de festa, alguns elementos podem ser
destacados. Um aspecto que pode chamar a atenção de um observador de
primeira viagem é a quantidade de faixas com escritos dispostas ao longo do
campo. O espectador que se debruçasse no parapeito da arquibancada geral e
desse uma rápida passada de olhos pelo campo poderia ler uma das cerca de
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http://www.seplan.go.gov.br/rev/revista23/cap.11.pdf.
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trinta faixas distribuídas pelas muretas internas do cavalhódromo. Elas hoje são
constitutivas da festa, tendo em vista que são confeccionadas sob ordem da
Prefeitura, e se complementam no intuito de veicular os seguintes tópicos:
agradecimento e/ou cumprimento; propaganda; parabenização. Elas
costumavam mencionar algum patrocinador, a própria Prefeitura ou o Governo
do Estado.
Essas faixas não são novidade nas cavalhadas de Pirenópolis. Ao
menos, já na década de 1970 (Brandão, 1974) se podia ler uma frase atual, sob
a arquibancada das autoridades: “o prefeito saúda os mouros e cristãos”. O que
talvez diferencie o momento contemporâneo das cavalhadas é a quantidade
desses letreiros, aspecto que pode justificar o comentário recorrente por parte
dos pirenopolinos de que a política está hoje mais presente na festa. Isso
significa admitir que, mesmo se a questão política integra a cavalhada
pirenopolina desde longa data, ela hoje recebe mais destaque. De fato, além
das faixas em agradecimento aos políticos que prestigiavam as cavalhadas, as
intervenções do locutor também operam no sentido de enfatizar a presença
deles. Acompanhando a festa no “camarote das autoridades”, aparentemente
uma das funções do locutor corresponde a tornar público, através do
agradecimento, os patrocinadores da festa e as autoridades presentes.
Diferentes interpretações podem ser acionadas para elucidar a presença
significativa de políticos na cavalhada de Pirenópolis. Uma delas é a
proximidade geográfica em relação ao Distrito Federal e os significados
conferidos à pequena cidade, responsáveis por terem feito dela um reduto tão
atrativo para os brasilienses, que alguns políticos de renome aí compraram
casas, onde vêm se alojar para descanso da rotina da cidade grande. Outro viés
implica considerar que a construção do cavalhódromo corresponde a um projeto
político, que comporta mais funções do que unicamente ser um espaço de
encenação da luta entre mouros e cristãos.
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4. No cavalhódromo: as principais atrações da festa
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que eles deixam o campo pelo castelo cristão, para nele retornarem, do mesmo
modo e pelo mesmo castelo, só no terceiro e último dia.
A etapa final das cavalhadas é marcada pela troca de flores entre os
cavaleiros das cores opostas, prova da irmandade alcançada, e prossegue com
competições. Com as três armas que portam (lança, pistola e espada), todos
têm que demonstrar habilidades com as tiradas de cabeças, primeiro, e de
argolinha, depois. A primeira prova consiste em abater representações de
cabeças humanas feitas em papelão e postas diametralmente no campo; a
segunda, em retirar a galope uma pequena argola dependurada numa estrutura
de madeira em forma de dólmen. Terminadas as provas, os cavaleiros fazem
uma última carreira, lenços em mãos sinalizando a despedida; sorrisos no rosto
indicando que, em um ano, tudo recomeçará.
As cavalhadas de Pirenópolis podem realmente ser consideradas um
espetáculo. As roupas dos cavaleiros, vistosas devido a suas cores intensas,
são um dos elementos que chamam a atenção do espectador. Elas são
constituídas, dentre outras coisas, por calças, coletes e longas capas de veludo.
As capas são enfeitadas com uma espécie de plumagem denominada boá e
com inúmeras lantejoulas e pedras, com as quais as bordadeiras desenham
símbolos, conforme o gosto do cavaleiro. Os reis e embaixadores se distinguem
dos soldados pela armadura que portam: um peitoral e capacete, enquanto que
os demais se apresentam com chapéu de aba mole e peitoral de veludo preto.
Além da indumentária dos cavaleiros, os cavalos são atração garantida
para os olhos da platéia. Sendo todos da raça Manga Larga, esses animais têm
grande porte e se caracterizam pela forma como movimentam as patas
dianteiras: elas se elevam bastante do chão, como se propositadamente, por
puro gosto de acompanhar a música. Os cavalos são enfeitados com cortes de
veludo e com flores; todos têm a cara coberta por uma máscara de metal, bem
como tornozeleiras. Eles são personagens importantes e devem ser
reconhecidos como tais; afinal, sem os cavalos, não haveria cavaleiros.
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4.2 A atuação irreverente dos mascarados
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Considerações finais
Referências
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DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do
dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979.
GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.
PEREIRA, Niomar de Souza. Cavalhadas no Brasil: de cortejo a cavalo a lutas
de mouros e cristãos. São Paulo: Escola de Folclore, 1983.
SILVA, Mônica Martins da. A Festa do Divino: Romanização, Patrimônio &
Tradição em Pirenópolis (1890-1988). Goiânia: Instituto Goiano do Livro/Agepel,
2001.
TURNER, V. Floresta dos símbolos: aspectos do ritual Ndembu. Trad. de Paulo
Gabriel Hilu da Rocha Pinto. Niterói: Ed.UFF, 2005.
VEIGA, Felipe Berocan. A Festa do Divino Espírito Santo em Pirenópolis, Goiás:
Polaridades simbólicas em torno de um rito. Niterói, 2002, 220p. Dissertação
(Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência Política.
Universidade Federal Fluminense. Orientador Prof. Dr. Marco Antonio da Silva
Mello.
Fontes eletrônicas
http://www.pirenopolis.tur.br/
http://www.pirenopolis.com.br/
http://www.gabinetecivil.goias.gov.br/decretos/2000/decreto_5.342.htm.
http://www.seplan.go.gov.br/rev/revista23/cap.11.pdf.
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