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Suplemento Pernambuco

16 de junho de 2020

GRANDE SERTÃO: CROSSROADS BLUES


Silviano Santiago

O crítico literário Roland Barthes e o filósofo Giorgio Agamben se encontram na


definição do que é o contemporâneo em arte. “O contemporâneo é o inatual”. A
definição serve não só para explicitar a magia atemporal, ou intempestiva, do
romance Grande Sertão: Veredas (1956), de Guimarães Rosa, como também para
salientar a inesgotável riqueza alegórica de sua prosa ficcional. Nada é mais inatual
artística, social e politicamente e, no entanto, nada é mais contemporâneo nosso, que o
romance escrito e publicado em meados do século XX, no momento em que o cidadão
brasileiro está a vibrar com a construção de Brasília no planalto central e com a
abertura, na selva ainda ocupada pelos indígenas, da moderníssima rodovia
Transamazônica.
Desde a primeira linha do romance o leitor enfrenta dificuldades. Páginas
adiante, elas se justificam na proposta da composição literária inédita: “quem mói no
aspr’o não fantaseia”. A escrita selvagem da ficção é moída no áspero e não fantasia.
Cada palavra é esmigalhada pelo escritor, assim como o moinho, graças a artimanhas
mecânicas, tritura o grão para a boa alimentação. Pela moagem das mil e uma palavras
da língua portuguesa e de línguas afins, a escrita ganha a materialidade da fala do
jagunço Riobaldo, narrador e protagonista do romance.
Em invenções inesperadas e surpreendentes, as sílabas/grãos moídos passam a se
agrupar em palavras, frases e parágrafos, constituindo um manuscrito monstruoso.
Mesmo sem outras e novas sílabas a moer, o engenho continua a triturar. O trabalho já
feito passa por constantes revisões. Saltemos algumas páginas para ler: “A mó de
moinho, que, nela não caindo o que moer, mói assim mesmo, si mesma, mói, mói!”. O
engenho e a arte da escrita roseana, mesmo se desprovido de novas sílabas, continua a
triturar o já-escrito em busca da perfeição absoluta: “mói assim mesmo, si mesma, mói,
mói”.
Recordemos as saliências artísticas no Brasil da década de 1950. Menos é
mais — eis o princípio que governa a estética minimalista de então.
João Cabral de Melo Neto tinha anunciado a poupança minimalista desde os
anos 1945, quando publica O engenheiro, seu terceiro livro de poemas. Poetar com
apenas 20 palavras, sempre as mesmas. Anos depois, Haroldo e Augusto de Campos
mais Décio Pignatari pregam em sucessivos manifestos que a poesia concreta reduzirá o
verso e até o poema a uma palavra. Dito e feito. A Bienal de São Paulo de 1954, ano em
que se comemora o quarto centenário da metrópole brasileira, abole a representação da
figura humana no pavilhão do Parque Ibirapuera e propõe o abstracionismo geométrico
como o estilo moderno e atual. Prêmios são conferidos à escultura Unidade tripartida,
do suíço Max Bill, e a telas do brasileiro Ivan Serpa. Rádios e gravadoras privilegiam o
singelo, doce e nostálgico balanço da canção bossa-nova, tão cool quanto o modern jazz
que o vocábulo qualifica tão bem. Lembram “do barquinho a deslizar no macio azul do
mar” (Roberto Menescal)?
Exemplos semelhantes se sucederiam ao infinito e desautorizariam a atualidade
do atrevido, embriagante e descomunal Grande sertão: Veredas.
O romance é incompreendido. Menos não é mais. Apenas um exemplo. Não
preocupa o escritor enumerar em longa frase as diferentes alcunhas que referendam a
presença, ou a inexistência, do Diabo nos sertões do Alto São Francisco. A repetição
sinonímica não abastarda o estilo ficcional moderno; transforma a prosa ficcional de
Rosa em forma peculiar de ladainha às avessas, ou de exorcismo. Cito o exemplo: “E as
ideias instruídas do senhor me fornecem paz. Principalmente a confirmação, que me
deu, de que o Tal não existe; pois é não? O Arrenegado, o Cão, o Cramulhão, o
Indivíduo, o Galhardo, o Pé-de-Pato, o Sujo, o Homem, o Tisnado, o Coxo, o Temba, o
Azarape, o Coisa-Ruim, o Mafarro, o Pé-Preto, o Canho, o Duba-Dubá, o Rapaz, o
Tristonho, o Não-sei-que-diga, O-que-nunca-se-ri, o Sem-Gracejos... Pois, não existe!”.
Em 1956, faltam leitores ao romance. O monstro não se entrega sem as
asperezas e transgressões estilísticas que caracterizam a fala num enclave arcaico,
perdido no sertão do Alto do Rio São Francisco. O monstro incomoda demais e sequer
seduz os profissionais das letras. Em entrevistas curtas, publicadas na revista Leitura,
romancistas e poetas são reunidos para falar mal do romance. A matéria ganha título
demolidor: “Escritores que não conseguem ler Grande sertão: Veredas”. Autor do
originalíssimo A luta corporal (1954), Ferreira Gullar declara: “Li 70 páginas
do Grande sertão: Veredas. Não pude ir adiante. A essa altura, o livro começou a
parecer-me uma história de cangaço contada para os linguistas”.
Compete a uma notável geração de críticos literários, com destaque para
Antonio Candido e Benedito Nunes, assumir a tarefa de demonstrar alcance, significado
e valor do romance. Apesar de o texto de Rosa ser intempestivo e inatual, os críticos se
entusiasmam com o ineditismo de sua prosa e se dedicam à tarefa de amansar para o
leitor o bicho intratável. Assimilam-no à tradição dos mestres regionalistas brasileiros.
Tornam-no palatável ao gosto do leitor comum. A compreensão do romance seria
facilitada. O interesse pela trama enigmática seria despertado. Ainda que pelo viés da
falsa analogia, estariam evidenciando sua atualidade e minimizando sua
intempestividade.
Gera-se um consenso. Grande sertão: Veredas é tão relevante, moderno e atual
quanto Os sertões (1902), de Euclides da Cunha. No pioneiro número 8 da
revista Diálogo (1958), os mestres da crítica concordam: ainda que inatual, o romance
de Guimarães Rosa é tão genial quanto a obra-prima de Euclides da Cunha.
Assassina-se a letra; salva-se o espírito?
Assim se constitui uma tradição de leitura do Grande sertão: Veredas que hoje
nos incomoda e perturba, haja vista a recente e iconoclasta montagem teatral do
romance, de responsabilidade de Bia Lessa. A qualidade selvagem de Grande sertão:
Veredas — sua wilderness — tinha sido domesticada pelos que recomendavam sua
leitura pela mediação da prosa de Os sertões.
Des/domesticar a monstruosidade do romance, eis uma nova proposta de leitura.
O contemporâneo é o inatual. A fatura de Os sertões é histórica e simbólica. Grande
sertão: Veredas pouco ou nada tem a ver com os acontecimentos históricos narrados
com brilhantismo por Euclides da Cunha, acontecimentos que levam a nação brasileira a
transitar do período monárquico ao republicano pelo relato da revolta dos
conselheiristas (beatos) no interior do sertão baiano. Reparem. Não há uma única data
no romance de Rosa. Riobaldo não menciona uma só vez o nome da então capital da
República, o Rio de Janeiro. Descreve-se um enclave de natureza luxuriosa e arcaico à
época em que, a poucos quilômetros de distância, está sendo construída em concreto e
vidro a nova capital.
A fatura de Grande sertão: Veredas é alegórica e paradoxal. Quando é que
quisemos ser modernos e terminamos por gerar regiões mais atrasadas do que as mais
atrasadas? Desde sempre. Na já longa história da nação brasileira, é assim que os
administradores públicos e privados agem de maneira intermitente. Os governos
intervêm e dialogam com a história política e econômica da nação, despreocupando-se
com a condição e o destino dos menos favorecidos. Gestamos enclaves selvagens e
modernizamos.
No período pós-escravidão africana, fomos modernos na construção no
estilo belle époque da Avenida Central no Rio de Janeiro e erigimos as favelas nos
morros. Em tempos de Vidas secas, construímos nova e moderníssima capital federal e
esquecemos ao lado, no Alto São Francisco, um enclave onde a anarquia feroz dos
jagunços se assemelha à encontrada hoje nas penitenciárias das metrópoles. Em tempos
da rebeldia na cadeia de Carandiru, motivo para a obra-prima de mesmo nome do
cineasta Hector Babenco (2000), quisemos armar um sistema de controle de enclaves
miseráveis, afinado com o moderno saber das Ciências Sociais, e nos tornamos tão ou
mais irascíveis que Zé Bebelo. O esforço positivo da modernização cria enclaves
ferozes de párias — favelas, bairros miseráveis, prisões, manicômios etc. — onde
violentas forças antagônicas se defrontam e se afirmam pela ferocidade da
sobrevivência, acirrando a ira no controle e no mando.
“Viver é perigoso” — eis o leitmotiv da trama de Grande sertão: Veredas.
Ao afirmar que o contemporâneo é o inatual, Giorgio Agamben se descola das
luzes do presente em que vive para perceber o escuro da realidade em que vivemos
todos. O artista contemporâneo neutraliza o clarão sedutor que norteia o artista na época
moderna, para enxergar as trevas, de que as luzes são inseparáveis. Só é contemporâneo
quem recebe no rosto o facho de trevas – e não o clarão – que provém do seu tempo.
Recebe o facho de trevas no rosto e, no entanto, enxerga.
Notável em Grande sertão: Veredas é o fato de que, no mais profundo da vida
miserável e autodestrutiva — na morte do humano, há lugar para o afeto e o amor. Ao
compasso de espera, Riobaldo e Diadorim, os dois jagunços enamorados, dançam novos
e felizes tempos. Como vagalumes que a mata do sertão libera à noite, piscam a alegria
de viver. Piscam como os vagalumes que, em seu conto As margens da
alegria (Primeiras estórias, 1962), iluminam a noite em que os tratores derrubam
árvores centenárias para que Brasília se construa. Remeto-vos às linhas finais do conto:
“voava a luzinha verde, vindo mesmo da mata, o primeiro vagalume. Sim, o vagalume,
sim, era lindo! — tão pequenino, no ar, um instante só, alto, distante, indo-se. Era, outra
vez em quando, a Alegria”.
Na mesma época em que Benito Mussolini e Adolf Hitler apertam as mãos no
Berghof, na Baviera alemã, Pier Paolo Pasolini e seus amigos se refugiam na localidade
de Pieve del Pino, nos arredores de Bolonha. Em 1941, acampados no alto do morro,
deparam com uma revoada de vagalumes. Cito trecho da carta que Pasolini escreve a
um amigo: “nós invejamos os vagalumes porque se amavam, porque se tocavam em
voos amorosos e luzes”. Vagalumes se acendem e se apagam e, em voos noturnos e
amorosos, se tocam. Trevas e luzes.
Neste momento em que a pandemia do covid-19 assola o planeta e as
manifestações públicas tomam conta das cidades norte-americanas, expressando uma
mensagem de esperança acesa pelo sacrifício de George Floyd, Bob Dylan, em
entrevista ao jornal The New York Times, destaca os músicos negros que foram
importantes na sua formação. Em certo momento, destaca o inesperado Robert Johnson
(1911-1938) e justifica sua enorme admiração (e, indiretamente, a de Eric Clapton e de
Keith Richards) pelo velho compositor e cantor de blues. Cito-o: “Foi um dos mais
inventivos gênios de todos os tempos. Mas, na verdade, não teve uma plateia a quem se
dirigir. Estava tão à frente de seu tempo que nós ainda não o alcançamos. Hoje, seu
prestígio não poderia ser mais elevado. No entanto, nos seus dias, suas canções
confundiram as pessoas. Isso revela apenas que o grande artista segue seu próprio
caminho”. Em 1936, dois antes de falecer envenenado num bar com mistura de uísque e
naftalina (segundo reza a lenda), Johnson escreve e canta seu próprio e notável Grande
sertão: Veredas, na cidade de San Antonio, Texas. Escutemos Crossroads blues, e
prestemos várias homenagens ao mesmo tempo: https://www.youtube.com/watch?
v=kXFAlFqjSlM .

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